Veja a pesquisa completa em PDF

Transcrição

Veja a pesquisa completa em PDF
COMPORTAMENTO Tema: Personagens Masculinos Pesquisador: Francis Vogner dos Reis Sinopse O programa “Personagens Masculinos” se volta a personagens típicos do cinema brasileiro como o malandro, o corno e o cafajeste, com a intenção de discutir de que maneira esses tipos sociais e estereótipos estão representados nos filmes e presentes na cultura e no cotidiano brasileiro. Os filmes discutidos serão Vai Trabalhar Vagabundo, de Hugo Carvana, que tem como protagonista um típico malandro carioca, Boca de Ouro, dirigido por Nelson Pereira dos Santos (e adaptado da peça homônima de Nelson Rodrigues) que deu origem à persona do cafajeste encarnado por Jece Valadão, Gosto do Pecado, de Cláudio Cunha, que mostra não só cafajeste, mas também o “homem traído” (o corno) e o Bem Dotado -­‐ O Homem de Itu, de José Miziara, que trata do “garanhão”. Apresentação dos filmes e das questões Boca de ouro (Brasil, 1963), de Nelson Pereira dos Santos Baseado em peça homônima de Nelson Rodrigues, Boca de Ouro conta a história do violento bicheiro carioca que teria substituído todos os seus dentes naturais por dentes de ouro. O filme começa, tal como a estrutura de Cidadão Kane, a partir da morte de Boca de Ouro e da busca de um repórter em relatar sua vida a partir do depoimento das amantes do bicheiro. Entre várias lendas que envolvem a vida de Boca de Ouro, descobre que este preparava um caixão mortuário de ouro. O filme foi encomendado por Jece Valadão e Nelson Pereira dos Santos só o dirigiu porque esperava passar o período de chuvas no sertão para filmar Vidas Secas. Vai trabalhar vagabundo (Brasil, 1973), de Hugo Carvana Em época de pleno fim da malandragem carioca, o malandro Secundino Meirelles (Hugo Carvana), sai da prisão e utiliza seus trambiques para conseguir algum dinheiro. Ele prepara uma disputa entre Russo (Paulo César Pereio) e Babalu (Nelson Xavier), dois dos maiores jogadores de sinuca da sua áurea época de malandragem. O problema é que Russo está internado em um hospício desde sua última derrota e Babalú se tornou um trabalhador comum controlado pela esposa. A comédia é uma reflexão sobre o fim da malandragem carioca. O Bem dotado, o homem de Itu (Brasil, 1978), de José Miziara Rapaz ingênuo de Itu (interior de São Paulo) interpretado por Nuno Leal Maia chega à capital e começa a trabalhar em uma mansão. As granfinas se utilizam de sua ingenuidade interessadas em seu “dote”. A pornochanchada de Miziara, se comparada às outras da época, é bastante ingênua e discreta apesar de tratar de um tema como o do garanhão bem dotado. O filme levou dois milhões e meio de espectadores aos cinemas e é considerada uma das comédias eróticas de maior sucesso do cinema brasileiro. O Gosto do Pecado (Brasil, 1980), de Cláudio Cunha O Gosto do Pecado, dirigido por Cláudio Cunha e roteirizado por Jean Garret e Inácio Araújo, mostra a história de Júlio (Jardel Mello) que, recém separado da esposa, tenta retomar sua vida de liberdade e libertinagem em companhia de seu amigo Enéas (John Herbert). Júlio então seduz sua secretária Vânia (Simone Carvalho) que trai o noivo, um proletário ciumento e possessivo, mas mesmo assim se casa com ele. Mais tarde, Júlio também se sentirá traído quando sua ex-­‐esposa retoma sua vida afetiva e sexual. O filme lida com a imagem do “macho traído”, tanto a partir da revolta quanto da “mansidão”. O Gosto do Pecado não teve o mesmo sucesso que outros filmes de Cláudio Cunha, mas mesmo assim, é um exemplar de certa crônica urbana realizada pelo cinema paulista nas décadas de 70 e 80 que abordavam temas sexuais comuns à sociedade brasileira. Material Anexo 2 O cafajeste rodriguiano por excelência Certas frases de Nelson Rodrigues parecem ter sido escritas para ser ditas por Jece Valadão. Exemplo: "O marido não deve ser o último a saber. O marido não deve saber nunca". Jece efetivamente disse essa frase num episódio de A vida como ela é..., a série de contos de Nelson dirigida por Daniel Filho para a TV Globo em 1998 e lançada há pouco em DVD. Mas não foi escrita para ele. Aliás, quando Nelson a criou, em sua coluna da Última Hora nos anos 50, provavelmente ainda nem o conhecia. Mas Jece Valadão, talvez sem querer, já era um personagem de Nelson Rodrigues. A persona rodriguiana se revelou em Jece desde seus primeiros filmes, como Amei um bicheiro (1953), Rio quarenta graus (1955), Rio Zona Norte (1957) e várias chanchadas, sempre no papel de bandido. Não era o bandido que o tornava um rodriguiano nato (porque José Lewgoy e Wilson Gray também eram sempre bandidos e nem por isso rodriguianos), mas seu jeito de interpretá-­‐lo. Jece era malandro, sensual, debochado e, ao mesmo tempo, tinha humor. Teria sido um magnífico Tuninho em A falecida, a peça com que Nelson, em 1953, inaugurou seu ciclo de tragédias cariocas; ou um grande Bibelot em Os sete gatinhos, de 1958. Aconteceu que Nelson só entrou em sua vida quando, naquele ano de 1957, Dulce Rodrigues, irmã caçula do dramaturgo, precisou de um ator para viver Humberto, o motorista que se torna amante da patroa, numa montagem de A mulher sem pecado que ela iria fazer com sua companhia. Alguém lhe indicou Jece para o personagem. Dulce torceu o nariz porque, com razão, o associava a uma cafajestice autêntica, de rua, o que, para ela, era pouco adequado a um profissional. Mas, à custa de seu talento, Jece venceu a resistência e ganhou o papel. En passant, ganhou também a patroa. Comportou-­‐ se bem nos ensaios, beijando Dulce à moda do teatro, como lhe tinham recomendado fazer (nada de beijos à vera). Mas, assim que a peça entrou em cartaz, diante de uma platéia de verdade, Jece tascou-­‐lhe um beijo também de verdade. E, a provar que nada mais rodriguiano que a família Rodrigues, Dulce ficou tão alterada que, ao fim do terceiro ato, já intimara Jece a pedi-­‐la em casamento. O beijo fora quase uma defloração. Jece, 27 anos, se casou com Dulce, cinicamente de olho na parte que competira a ela da indenização que os Rodrigues tinham acabado de receber pela destruição, na Revolução de 1930, do jornal Crítica, que pertencia à família — muitos anos depois, ele próprio confessaria isso. Só que, então, Jece protagonizou com Dulce um casamento que parecia saído de uma história de Nelson: casou-­‐se por dinheiro, mas, ao descobrir que o dinheiro não existia, continuou casado por amor — resistindo a todas as desconfianças da família, que o enxergava como a uma radiografia e não o aceitava. 3 Entre os que não confiavam em Jece estava o próprio Nelson, que, no entanto, sabia muito bem separar o cunhado do ator. O cunhado fazia sua úlcera dar cambalhotas — e Nelson nem imaginava as bandalheiras de Jece fora do casamento.Mas, para o ator, Nelson escreveu o papel de Diabo da Fonseca, o implacável caçador de viúvas, em Viúva, porém honesta, também em 1957. Ninguém dizia melhor seus diálogos, ninguém encarnava tão bem os jovens cafajestes que só ele era capaz de criar. Nos anos seguintes, Jece foi a ligação direta de Nelson Rodrigues com o cinema. Estava em Mulheres e milhões, o surpreendente filme de Jorge Ileli para o qual Nelson escreveu os diálogos. Produziu a adaptação para cinema de Boca de Ouro e contratou para dirigi-­‐la Nelson Pereira dos Santos, parado no Rio já que sua filmagem de Vidas secas abortara, ora vejam só, por causa das chuvas no sertão nordestino. (Não ficava bem filmar Vidas secas num território alagado.) Com Boca de Ouro quase pronto, as chuvas pararam e Nelson foi correndo para o sertão, cabendo a Jece terminar o filme. Em 1963, Jece foi a principal presença atrás e na frente das câmeras de Bonitinha, mas ordinária, assinado por J. P. de Carvalho. E, antes desses, em 1961, já produzira (e contratara Ruy Guerra para dirigir) Os cafajestes, que, com todos os seus méritos, só existiu porque,muito antes, já existia Nelson Rodrigues — e o próprio personagem de Jece era a prova disso. Boca de Ouro foi o primeiro filme realmente tirado da obra de Nelson e, para meu gosto, até hoje o melhor. Em nenhum momento traía sua origem teatral, com o milagre de que, ao levar a câmera para a rua a fim de "abrir a história" (tirá-­‐la dos limites do palco), Nelson Pereira dos Santos e Jece não desfiguraram o equilíbrio original da trama. O elenco era excepcional, com Jece no protagonista, apavorante com sua prótese a ouro, jaquetão branco, cabelo gomalinado e uma viscosidade lasciva em cada fala. Diz ele, em suas memórias, que uma grã-­‐
fina carioca foi assistir às filmagens e seqüestrou-­‐o no fim do dia — levou-­‐o para os ermos do Joá e o obrigou a executá-­‐la ali mesmo, no matinho, totalmente caracterizado como Boca, com a prótese e tudo. E Jece não era o único bom no elenco. Odete Lara, como Guigui, também estava excepcional, além de Daniel Filho, como Leleco, Maria Lucia Monteiro, como Celeste, e uma plêiade de rodriguianos como coadjuvantes. Bonitinha, mas ordinária, um ano depois, não estava no mesmo nível, mas foi um sucesso de público: levou ao cinema 2 milhões de espectadores e revelou Vera Viana, a heroína de Nelson por excelência. No mesmo ano, ainda haveria Asfalto selvagem, de J. B. Tanko, com Vera como Engraçadinha e o próprio Jece como Sílvio. O filme era a primeira parte do romance, que, como se sabe, trata de uma paixão entre irmãos. Jece só conseguiu liberá-­‐lo para maiores de 21 anos e, em 1964, os militares o proibiram de vez. A partir dali, Nelson deixou de ser propriedade de Jece. Outros produtores o retomaram, com maior ou menor sucesso (o pior: A 4 falecida, de Leon Hirszman), e Jece assumiu de vez a direção de seus filmes, todos violentos e tratando de bandidos, mas sem Nelson. Nunca mais trabalharam juntos. Em 1970, saiu também da família, ao separar-­‐se de Dulce para se casar com Vera Gimenez. Um dos problemas com os últimos filmes e montagens de Nelson é que os atores já não conseguem reproduzir a típica dicção rodriguiana. O autor não está mais aqui para ensiná-­‐ los. Por isso, fariam bem se, antes de começar o trabalho, conseguissem cópias de Boca de Ouro, Bonitinha, mas ordinária ou Asfalto selvagem e estudassem o estilo de Jece. Ali estaria a ligação direta com Nelson — por intermédio de um grande ator que foi íntimo do autor. Hei, espere aí! Jece Valadão não é aquele que, há algum tempo, deixou de ser cafajeste para se tornar pastor evangélico? — dirá você. Sim, qual é o problema? Pode haver melhor passado para um candidato a santo? — respondo eu. Ruy Castro Portal brasileiro de cinema Disponível em http://www.portalbrasileirodecinema.com.br/nelson/ensaios/03_03.php O texto abaixo é um release da mostra “As muitas faces de um cafajeste” e traz informações importantes sobre a persona cinematográfica de Jece Valadão. RJ: As muitas faces de um cafajeste Há 50 anos, o filme Os Cafajestes, estrelado e produzido por Jece Valadão, e dirigido por Ruy Guerra, começou a ser rodado. Sucesso de bilheteria, o longa-­‐metragem marcou o início da Magnus Filmes, criada por Jece, empresa que produziu mais de 30 longas-­‐metragens, dos quais 15 rodados em apenas cinco anos. Talvez o mais frenético ritmo industrial experimentado pelo cinema brasileiro. Para comemorar o cinquentenário e resgatar a memória desta importante produtora nacional, a CAIXA Cultural Rio de Janeiro recebe a mostra “As muitas faces de um cafajeste – Jece Valadão e os filmes da Magnus”, com exibição de 18 filmes, de 29 de março a 10 de abril (de terça a domingo). A mostra é realizada pela Franco Produções, com patrocínio da Caixa Econômica Federal. Os 18 filmes selecionados para a mostra são: A Deusa negra; A navalha na carne; As sete faces de um cafajeste; Bonitinha, mas ordinária; Dois perdidos numa noite; Engraçadinha depois dos trinta; Eu matei Lúcio Flávio; Mãos vazias; Memórias de um gigolô; Mineirinho vivo ou morto; Nós os canalhas; O escolhido e iemanjá; O torturador; Obsessão; Os amores da pantera; Os cafajestes; Paraíba, vida e morte de um bandido; e O Matador Profissional. 5 “Parte dessa importante fase da produção cinematográfica nacional vem se perdendo e por isso muitos filmes da Magnus não fazem parte da mostra, que foi montada a partir do material ainda existente no acervo da extinta produtora. Além dos filmes, vamos exibir os cartazes promocionais, com arrojado tratamento gráfico para a época”, diz Ailton Franco, produtor da mostra. Magnus Filmes em história Há exatos 50 anos, iniciavam-­‐se as filmagens de Os Cafajestes. Nesta época, Jece Valadão já era um ator conhecido no teatro e no cinema, onde estrelou Rio, 40 Graus, de Nelson Pereira dos Santos. No início da década de 1960, Jece vendeu o seu teatro no Catete para se dedicar à produção de longas-­‐metragens. Começava assim a história da Magnus Filmes. Com apenas quatro personagens e um roteiro com cenas polêmicas, Os Cafajestes foi um enorme escândalo e sucesso de bilheteria. Apresentado no Festival de Berlim no mesmo ano de sua estreia no Brasil (1952), o filme – que incorporava elementos da Nouvelle Vague e pavimentava o caminho para um embrionário Cinema Novo – recebeu aplausos da crítica internacional, e Jece, montanhas de dinheiro. A história escolhida para o longa-­‐metragem seguinte seria Boca de Ouro, obra polêmica de seu cunhado Nelson Rodrigues. Concluído o filme, Jece – que novamente sob a direção de Nelson Pereira dos Santos interpretava o papel principal – venderia sua participação nos lucros para apostar em novos filmes. Bonitinha, mas Ordinária, também de Nelson Rodrigues, levou mais de dois milhões de espectadores brasileiros às salas de cinema. Em 1964, o ator/produtor já assumia também a direção de seus filmes. Insatisfeito com os rumos tomados pelo Cinema Novo optou por filmes que fossem mais rentáveis e dialogassem com maior público, o que não o impediu de produzir Mãos Vazias, dirigido por Luiz Carlos Lacerda, tendo Leila Diniz naquele que seria o seu último filme. Atento a modismos apostou em musicais da “jovem guarda” com o astro Jerry Adriani. Jece ousou ao levar para as telas a obra de outro autor de teatro, o não menos polêmico Plínio Marcos. Inicialmente interditado pela censura, Navalha na Carne tornou-­‐se mais um grande sucesso da Magnus. Essa atração por uma dramaturgia “maldita”, não impediu que logo após trafegasse pela margem oposta, desenvolvendo o longa Obsessão a partir de um original da aclamada autora de telenovelas Janete Clair. Em constante adequação ao mercado e às exigências da indústria, a Magnus Filmes realizaria ainda comédias eróticas, dramas biográficos, westerns e produções de ficção científica, mas Jece não se furtava a chance de se arriscar em projetos improváveis, como A Deusa Negra, 6 uma co-­‐produção Brasil-­‐Nigéria estrelada por um elenco constituído quase que unicamente de atores negros. Em Eu Matei Lúcio Flávio, produção de 1979, Jece, no papel do policial/bandido Mariel Maryscott, arrastou multidões para as salas de exibição, mas no início da década de1980, a Magnus Filmes perdeu o fôlego. As muitas faces de um cafajeste Por uma única vez, no filme Obsessão, o ator Jece Valadão tentou se livrar de uma personagem mau caráter. Fracassou ao não encontrar qualquer empatia junto ao público. “A figura do homem já caminhava presa à sombra do cafajeste, e essa fama conquistada nas telas e a gigantesca dimensão que assumira no imaginário nacional para sempre viriam a obscurecer a face empreendedora e visionária do produtor e impedir o reconhecimento pleno de um autêntico homem de cinema”, diz Alfeu França, curador da mostra. Mesmo com o fim da Magnus Filmes, Jece Valadão, um anti-­‐herói nacional tão rejeitado quanto amado, o machão que já mal cabia em um mundo politicamente correto, prosseguiu atuando em teatro, telenovelas, programas de auditório e em obras de diretores como Glauber Rocha, Júlio Bressane e José Mojica Marins para o cinema. Para o espanto de toda uma nação, Jece Valadão viria a tornar-­‐se ainda pastor evangélico. Em novembro de 2006, com problemas de saúde, faleceu em São Paulo. TVZO Disponivel em http://www.tvzo.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=1073:rj-­‐as-­‐muitas-­‐
faces-­‐de-­‐um-­‐cafajeste-­‐jece-­‐valadao-­‐e-­‐os-­‐filmes-­‐da-­‐magnus-­‐mostra-­‐na-­‐caixa-­‐cultural-­‐vai-­‐
reunir-­‐18-­‐filmes-­‐da-­‐era-­‐industrial-­‐do-­‐cinema-­‐brasileiro-­‐&catid=66:acontece&Itemid=64 A rica fauna da pornochanchada Como todo gênero, a pornochanchada também erigiu seus personagens típicos. Nada da mãe mexicana do melodrama ou do cavaleiro solitário do western. Ancorou-­‐se em personagens nossos, muito nossos, comuns na vida doméstica brasileira -­‐ vida essa que a pornochanchada como gênero conseguiu levar para a tela mais do que qualquer outra contribuição, seja de um autor ou de outro gênero. Aproveitando-­‐se de não precisar de crivo moral, esse gênero sempre tão mal-­‐olhado e pouco estudado pôde dar livre vazão a tudo que não era de bom tom e de que todavia o país esteve sempre cheio: machismo, assédio dentro da empresa, sexo como ascendência social ou moeda de troca, recalque sexual tanto de mulheres como de 7 homens (um recalque que pode remeter ao recalque existencial terceiro-­‐mundista do brasileiro ou ao recalque social e político de se viver numa ditadura), tudo isso profundamente enraizado em nossa cultura e geralmente muito pouco trabalhado – pensamos, de imediato, apenas em Nélson Rodrigues (sabiamente apropriado por diretores mais "eruditos" da pornochanchada) e Martins Pena que, sendo de outro século, serve pouco para captar as intrigas da classe média brasileira. A pornochanchada vai criar e/ou retrabalhar uma gama de personagens que permanece até hoje no nosso imaginário, seja pelo poder de evocação delas, seja pela reapropriação que delas fizeram os programas humorísticos dos anos 80 (Jô Soares, ator de pornochanchada, ou Manuel da Nóbrega e seu filho Carlos Alberto). Abaixo, seguem alguns mais típicos. O GARANHÃO CAFAJESTE Depois de uma breve experiência em 1961, com Os Cafajestes, a figura do garanhão cafajeste volta com força total a partir do final dos anos 60, na figura de dois atores-­‐produtores-­‐roteiristas: Jece Valadão e Reginaldo Faria. O modelo é simples: um malandrão que tem como única finalidade na vida correr atrás de um rabo de saia. Além de ser bom para os produtores-­‐atores, é bom para o público, que fica inebriado pela profusão de garotas bonitas que passa pelas telas e pelas mãos dos galãs. O ano de 1968 é especialmente deflagrador: Os Paqueras (Faria) e As Sete Faces de um Cafajeste (Valadão). Enquanto os dois galãs brigavam para ver quem conseguia mais meninas por filme, em São Paulo surgia outro ator-­‐produtor, o indefectível David Cardoso. Só ele seria capaz de interpretar um dono de empresa de ônibus que cede um de seus carros gratuitamente para um colégio de freiras realizar uma excursão. Claro, é ele que vai como motorista. Os resultados são impressionantes. O nome do filme? Dezenove Mulheres e um Homem, de 1977 A VIRGEM PROFISSIONAL Herança de toda sociedade católica e particularmente da brasileira – onde a hipócrita religião oficial encontra-­‐se com as poucas chances típicas do terceiro mundo –, a virgem profissional – ou a virgem como moeda de negócios – é a forma de uma família em apuros ter chances de ascendência social graças a um marido rico. Resta, então, como em Ainda Agarro Essa Vizinha, de deixar a pobrezinha e assanhada Adriana Prieto casta até que ela consiga um bom partido. Adriana Prieto, por sinal, se tornará a mais típica virgem profissional, pois repetirá o mesmo personagem em A Viúva Virgem. Ela é perfeita para isso: o rosto de menina com um pé tanto na inocência quanto na molequice, com aparência de anjo (era magra demais para ser uma gostosona) e olhos de menina experimentadora. Em Pintando o Sexo, uma espécie diferente de virgem profissional surge: a autoconsciente. Ela, junto com sua 8 vovó, vivem de passar o golpe da falsa virgem nos velhos tarados. Aliás, só existe virgem profissional quando junto a uma vovó ou alguma aparentada, geralmente a titia malandrona. O VELHO TARADO Uma das primeiras ocorrências pré-­‐comédia erótica desse personagem está em Crônica da Cidade Amada, de Carlos Hugo Christensen. É Oscarito, num esquete particularmente hilário em que, família a tiracolo, fica babando pelas menininhas na praia. A partir de então, o personagem do velho tarado (geralmente nem muito velho) será perfeito para os melhores comediantes exercerem seus tipos antológicos. Como Cazarré em Pintando o Sexo ou Costinha em suas inúmeras pornochanchadas e paródias, até Renato Aragão tira uma casquinha desse personagem para compor o herói ingênuo mas sempre afeiçoado a um rabo de saia, que recorrentemente jamais conseguirá. A FRÍGIDA GOSTOSA Da mesma forma que a figura da virgem profissional pertence por excelência a Adriana Prieto, a frígida gostosa tem por ícone maior Helena Ramos. É ela que dá vida a esse personagem em Mulher, Mulher (1977) e é depois catapultada à condição de estrela da novela das oito em Mulher Sensual (1980), quando é desejada pelo país inteiro mas não consegue ela mesma deixar florescer sua sexualidade. Sem sombra de dúvida, o perfil físico da atriz colabora. Apesar de ter um corpo extremamente bem-­‐feito, seu rosto consegue transmitir um sentimento ao mesmo tempo gélido (pela imponência aristocríatica e pelo olhar distanciado) e cálido (pelas curvas do corpo e pelo rosto muito bonito). A frígida gostosa tem um padrão social bem definido: é geralmente muito rica, tem dinheiro sem ter precisado trabalhar. Tanto em Mulher, Mulher quanto em Império do Desejo, são viúvas de milionários. Se desde A Aventura de Antonioni é recorrente no cinema a idéia da burguesa entediada por estar absolutamente alienada do mundo, a pornochanchada contribui seu quinhão à evolução desse gênero de personagem. A MOÇA LIBERADA São os tempos de liberdade sexual e a pornochanchada, aproveitando-­‐se da temática sexual de seus filmes, transforma a mulher liberada, egressa das barricadas de maio de 68, em um de seus persoangens mais recorrentes. Já em 1968, Os Paqueras apresenta uma moça que faz sexo simplesmente por fazer (como aponta Flávia Seligman numa das poucas coisas escritas sobre personagens de pornochanchadas, no caso os tipos femininos; o artigo chama-­‐se "As Meninas daquela hora"). Em Amadas e Violentadas, de Jean Garrett, é a fotógrafa que tenta seduzir seu modelo, invertendo os papéis. Aliás, as moças liberadas estão volta e meia associadas à vida artística, onde os valores supostamente são mais questionados e, conseqüentemente, mais tênues. Mas o amor livre só é tema mesmo em Império do Desejo, 9 de Carlos Reichenbach, sem dúvida a obra-­‐prima do gênero, onde um casal hippie instala-­‐se na casa de uma frígida gostosa e pratica quase todas as variações possíveis do sexo. O MARIDO INADIMPLENTE Omisso, sempre pensando mais em trabalho e dinheiro do que na vida sentimental/sexual do casal, o marido inadimplente faz a festa dos outros homens. E de suas esposas. O exemplar mais perfeito é o encontrado em Pintando o Sexo, inequivocamente chamado de Cornélio. A figura é cara e arquetípica: cabelinho boi-­‐lambeu para trás, óculos enormes, e um grande fichário eivado de números que ele leva até para a cama. Enquanto a esposa (a deliciosa Meiry Vieira) espera na cama que a justiça seja feita, Cornélio repara que ela está nua e dispara: "Você está pelada? Você pode pegar um resfriado!" O marido inadimplente só existe em conjunto com a esposa em erupção. A ESPOSA EM ERUPÇÃO Segundo as leis do gênero, se o marido não coopera, a mulher vai encontrar quem o faça na porta ao lado. A lei é seguida à regra em Pintando o Sexo, onde Meiry Vieira, cansada de tentar novos golpes de sedução para restituir o desejo sexual ao marido Cornélio, acaba se entregando ao vizinho pintor, ou melhor, Paulo Hesse, num papel hilário. No mesmo filme, em outro episódio, Íris Bruzzi é Conchetta, a viúva dona de uma pensão. Guarda o celibato desde que se marido morreu, e conversa diariamente por horas a fio com um retrato dele que está preso em seu quarto. Até que um dos freqüentadores da pensão, apaixonado, decide jogar até a última carta na conquista da viúva. A resistência da virtuosa acaba por ser inútil, e o casal fará a "união de corpos" em frente ao retrato do marido defunto. A TITIA MALANDRONA Vigilante protetora da virgindade de sua sobrinha (ou netinha, conforme o caso), ela é na verdade uma das personagens mais hipócritas dentre todos os tipos da pornochanchada. Não preza tanto a pureza da sobrinha quanto uma bela conta bancária associada ao pretendente. Velha rapina da sociedade, é representada à perfeição por Lola Brah, atriz de porte aristocrático, em Ainda Agarro Essa Vizinha. Uma variação é a vovó de Pintando o Sexo, que estorque Cazarré ameaçando entregar a sua esposa as fotos do tórrido tête-­‐à-­‐tête desenvolvido entre sua netinha e ele. Sempre uma aura de mulher cândida travestida na pele de uma interesseira contumaz. O SAFADO ENGRAVATADO Mais do que uma instituição, um verdadeiro esporte nacional, a traição conjugal é item mais do que repetido na pornochanchada. Num exemplar do começo dessa época, Um Uísque Antes ... e Um Cigarro Depois, de Flávio Tambellini pai (o filho 10 aparece, mas como ator do último episódio, seduzindo e apalpando a priminha), a traição aparece duas vezes. Na primeira, um marido revoltado com as insinuações que o melhor amigo faz para sua esposa, decide dar o troco cantando a mulher dele. O que deveria ser o ajuste de contas acaba, no final, se resolvendo na cama: a mulher acaba cedendo facilmente a seus movimentos e os dois fazem amor. Na volta, a mulher, ignorando o acontecido, pergunta o porquê da desistência da vingança. O marido responde qualquer coisa, evasivo. Em outro episódio do filme, um advogado recebe uma cliente que diz ter sido seduzida e desvirginada pelo noivo. Sendo maior de idade, diz o advogado, não resta a ela nenhum tipo de ação na justiça. Porém, ele está interessado em outra coisa: em ser o segundo sedutor da menina. Em Os Paqueras, o pai de Reginaldo Faria, também um empresário bem-­‐sucedido, passa a vida entre a casa e Irene Stefânia, uma jovem estudante universitária. Por fim, a traição conjugal mais comum, a com a secretária: em Pintando o Sexo, Cazarré, antes de conhecer a virgem profissional que mora ao lado, vive ligando para a esposa, avisando que vai fazer serão. O serão, claro, envolve em alguma medida a secretária. Melhor, em todas as medidas. Definitivamente, na classe média brasileira dos anos 70-­‐80, sexo é um prato que não se come em casa. Ruy Gardnier Contracampo -­‐ revista de cinema Disponível em http://www.contracampo.com.br/36/ricafauna.htm Trecho do verbete “malandragem” na Wikipédia. “Malandragem define-­‐se como um conjunto de artimanhas utilizadas para se obter vantagem em determinada situação (vantagens estas muitas vezes ilícitas). Caracteriza-­‐se pela engenhosidade e sutileza. Sua execução exige destreza, carisma, lábia e quaisquer características que permitam a manipulação de pessoas ou resultados, de forma a obter o melhor destes, e da maneira mais fácil possível. Contradiz a argumentação lógica, o labor e a honestidade, pois a malandragem pressupõe que tais métodos são incapazes de gerar bons resultados. Aquele que pratica a malandragem (o "malandro") age como no popular adágio brasileiro, imortalizado pelo nome de Lei do Gerson: "gosto de levar vantagem em tudo". Junto ao jeitinho, a malandragem pode ser considerado outro modo de navegação social tipicamente (mas não unicamente) brasileiro; porém, diferente do jeitinho, neste a integridade de instituições e de indivíduos é efetivamente lesada, e de forma juridicamente definível como dolosa. No entanto, a malandragem bem-­‐sucedida pressupõe que se obtenham vantagens sem que sua ação se faça perceber. Em termos mais populares, o "malandro" "engana" o "otário" (vítima) sem que este perceba ter sido enganado. 11 A malandragem é descrita no imaginário popular brasileiro como uma ferramenta de justiça individual. Perante a força das instituições necessariamente opressoras, o indivíduo "malandro" e o curupira que so faz gol de calcanhar e sai comemorando de moon Walker . Tal como o jeitinho, a malandragem é um recurso de esperteza, utilizado por indivíduos de pouca influência social, ou socialmente desfavorecidos. Isso não impede a malandragem de ser igualmente utilizada por indivíduos mais bem posicionados socialmente. Através da malandragem, obtêm-­‐se vantagens ilícitas em jogos de azar, nos negócios e na vida social em sua totalidade. Pode-­‐se considerar "malandro" o adúltero que convence a mulher de sua falsa fidelidade; o patrão que "dá um jeito" de não pagar os funcionários tal como deveria; o "jogador" que manipula as cartas e leva para si toda uma rodada de apostas. Estereótipo do malandro brasileiro Chapéu-­‐palheta, um acessório indispensável para o malandro brasileiro da década de 30. O estereótipo do típico malandro brasileiro surgiu na primeira metade do século XX. Carregado de um certo romantismo, foi principalmente imortalizado pelas letras de samba. De acordo com este estereótipo, o malandro é carioca e habita os guetos; usa chapéu-­‐palheta ou panamá e calça sapatos de cores branco e preta. Veste camisa preta com listras brancas (é sua identidade), detalhes vermelhos ou regata listrada, calças brancas e leva sempre uma navalha no bolso do paletó (e vai para a Barão de Mauá). É boêmio, vive de pequenos golpes, aprecia rodas de samba e não acredita no trabalho como um modo de vida confiável; no entanto, é sensível e sentimental, além de galante, cavalheiro e um amante invejável. Obviamente, não existe uma "teoria da malandragem" que sustente e justifique ideologicamente esse comportamento típico. A postura, atitude e cotidiano do malandro é retratado principalmente pelas artes. O samba "Lenço no Pescoço", escrito por Wilson Batista e gravado por Sílvio Caldas em 1933, tornou-­‐se um "hino" da "malandragem brasileira". Suas estrofes descrevem com precisão o modo de vida de um típico malandro:"Meu chapéu do lado / Tamanco arrastando / Lenço no pescoço / Navalha no bolso / Eu passo gingando / Provoco e desafio / Eu tenho orgulho / Em ser tão vadio. / Sei que eles falam / Deste meu proceder / Eu vejo quem trabalha / Andar no miserê / Eu sou vadio / Porque tive inclinação / Eu me lembro, era criança / Tirava samba-­‐canção". O jeito de ser e vestir do malandros, como estereótipos, também bebe na fonte do personagem folclórico Zé Pelintra, personalidade emblemática do Catimbó. A Umbanda posteriormente incorporou o antigo mestre de mesa, com a figura de malandro, quando do translado de levas de migrantes do Nordeste para o Centro-­‐Sul do Brasil. Zé Pelintra seria um boêmio de modos selvagens em suas lides, mas de coração bom e prestimoso, sendo, 12 inclusive, considerado "padrinho dos pobres". A mais marcante diferença entre o estereótipo do malandro e a representação de Zé Pelintra é que este último veste-­‐se em caxemira e gravata vermelha, enquanto que o malandro típico prefere camisas listradas, sem gravata. No Brasil, muitos indivíduos que poderiam ser considerados como "malandros típicos" fizeram fortunas ilícitas como empresários do jogo do bicho. Estes malandros praticaram caridade e investiram nas escolas de samba, o que lhes conferiu uma imagem romântica de benfeitores. Tal imagem fora severamente prejudicada com o episódio conhecido como "CPI do jogo do bicho", onde se investigou o envolvimento deste tipo de empresário(o "bicheiro") com corrupção. De fato, a linha que separa a malandragem romântica do crime explícito é imprecisa. A coleção de contos "Pastores da Noite", de Jorge Amado, fornece um costumeiro retrato romântico dos pequenos malandros: arruaceiros, amigos e de bom coração. A bem-­‐humorada "Ópera do Malandro", de Chico Buarque de Hollanda, descreve com mais precisão o malandro: contrabandista, bonachão, bon vivant e com certeza criminoso. Mais sóbria, a peça teatral "Boca de Ouro", escrita por Nelson Rodrigues, oferece um perfil realista do malandro bicheiro: temível, orgulhoso, vaidoso, generoso por demagogia e psicótico.” Wikipedia Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Malandragem Alma de corno O problema não é ser traído, mas viver apavorado com essa ideia Nelson Rodrigues, o Nietzsche brasileiro, escreveu que certos homens nascem para ser traídos. Pesaria sobre esses infelizes genéticos uma pátina de fatalidade que os faria caminhar -­‐ feito um Édipo, feito um Hamlet, feito um idiota -­‐ em direção à única tragédia percebida como tal por estas bandas, o chifre. Nelson era um homem dos anos 30, mas, neste assunto, acho que o imaginário brasileiro não mudou substancialmente. Para homens ou para mulheres. A traição ainda é vista como uma tragédia pessoal insuperável. A fraqueza masculina é a sua principal explicação, acompanhada, naturalmente, pelo pérfido caráter feminino. A violência, ou pelo menos a mais terrível vergonha, é percebida como a única resposta imaginável. Tudo isso no plano moral, quase filosófico. Na vida real, as pessoas traem e são traídas cotidianamente, sem que isso cause enorme confusão. Os envolvidos sofrem as consequências íntimas e sociais dos seus atos, que às vezes são graves, mas, na maior parte das vezes, o drama privado não acaba em acerto de conta público. Embora às vezes termine, tragicamente. 13 Mas o plano imaginário é terrivelmente importante. Nós vivemos tanto no mundo dos atos quanto no mundo das ideias. E as nossas ideias nesse terreno são antigas. Agimos de forma moderna, mas sentimos de forma antiquada. O velho fantasma da traição ainda nos põe obcecados. Homens e mulheres. Andamos por aí com um sorriso nos lábios, mas em estado de vigília permanente, interiormente atormentados. Morremos de medo. Parece que não existe nada mais importante no mundo do que a nossa maldita honra. No fundo, temos alma de corno. Não por estarmos fadados a ser traídos, como pensava Nelson, mas por vivermos apavorados com essa ideia. O medo da traição domina a nossa vida social. Fazemos piadas incessantes sobre o assunto para exorcizar o terror de que nos aconteça. Temos na ponta da língua frases lapidares sobre o tema. Comentamos intensamente a vida dos outros por perceber, melhor que os envolvidos, o inevitável chifre que vem vindo. Julgamos quem está em volta drasticamente, cegamente, com base na percepção de risco que ele ou ela nos impõe. Começamos e, sobretudo, terminamos relacionamentos por medo de ser enganados. O chifre assombra a nossa vida com a fatalidade do inevitável. Somos viralatas medrosos e assustados quando se trata desse assunto. Homens e mulheres. Parte da nossa paranóia tem origem óbvia: a mania de tratar coisas íntimas como assuntos públicos. Discutimos com tanta insistência a vida dos outros que antecipamos como os nossos reveses serão julgados, da mesma maneira frívola e impiedosa. À dor íntima da traição ou do abandono, que é imensa, juntamos a vergonha de ser expostos ao ridículo. Imaginamos as piadas, os comentários, o sarcasmo. Isso enlouquece. Se déssemos menos importância ao que os outros pensam e falam, se fôssemos mais privados na nossa dor, o sofrimento seria menor. E a paranóia também. O outro componente do nosso medo é interior. Enxergamos na traição um julgamento a nosso respeito. Um homem de verdade não seria trocado; uma mulher atraente não seria deixada para trás. É puro Nelson Rodrigues. Quando somos enganados, sentimos que a culpa é nossa. Ao acusar o outro, tentamos desviar a atenção sobre a nossa suposta responsabilidade. Somos incapazes de perceber que o desejo vai como veio. Que a atração entre duas pessoas não implica num juízo sobre qualquer outra. Que as escolhas eróticas e afetivas não estão baseadas em quadros comparativos de virtude, virilidade ou feminilidade. Ao sermos enganados, esquecemos que o desejo não tem regras. Talvez seja hora de deixar essa visão antiga para trás. Viver a felicidade sem medo, aproveitar a curtíssima vida sem sobressaltos. O amor entre as pessoas existe, os compromissos que elas assumem são reais, o respeito é parte da vida. Se as coisas mudarem, teremos de lidar com elas. Quando acontecer. Com dor, com tristeza, com raiva. Com dignidade também. 14 Privadamente. O mundo de Nelson Rodrigues, dos homens temerosos e das mulheres impotentes, todos discutindo a vida de todos os demais no portão, vai se dissolvendo lentamente ao nosso redor. Podemos inventar para nós mesmos um outro mundo, melhor. Ivan Martins Revista Época Disponível em http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/ivan-­‐martins/noticia/2012/06/alma-­‐
de-­‐corno.html Frases de Nelson Rodrigues sobre o “corno”: “Amar é ser fiel a quem nos trai”. “O marido não deve ser o último a saber. O marido não deve saber nunca.” “Corno em família não conta”. MEMÓRIAS DE UM HOMEM DE CINEMA Sobre Jece Valadão (24/07/1930 -­‐ 27/11/2006) “Nunca tive problemas com a morte. Sempre acreditei que você começa a morrer no primeiro minuto em que nasce. Quer dizer, quando você nasce, já tem um minuto a menos de vida. Já fiz tudo que um ser humano pode fazer. Estou um crédito enorme lá em cima. Se eu morrer hoje, não tem problema nenhum. A morte é a coisa mais natural do mundo.” Jece Valadão em Memórias de um Cafajeste, autobiografia Uma notícia de morte nunca chega suave. A notícia da morte de Jece Valadão me chegou súbita, violenta, agressiva: um telefonema de um canal de TV a cabo solicitando um contato para um depoimento, para integrar alguma reportagem. A mídia, este espaço que ele tanto habitou, em cenas de escândalos e afins, corria para noticiar sua partida, enquanto meu corpo parava em choque. Ele, que havia encarado a morte várias vezes na tela do cinema, que dizia não ter medo dela, havia sido enfim surpreendido por ela. Dessa vez, uma morte dura, pesada, doída, diferente daquelas que eram pura ação cinematográfica, grafismos evanescentes embalados pela alegria fugidia de momentos de entretenimento. Me apaixonei por Jece, personagem de múltiplas facetas, numa tarde de agosto deste ano, sentada em frente a recortes de jornais e revistas de época. Provavelmente, lia alguma entrevista da década de 60 ou 70. Havia sido chamada para editar o catálogo da mostra “As Muitas Faces de Jece Valadão”, que se daria no CCBB-­‐Rio em setembro. Fui tragada por uma rotina de pesquisa e, subitamente, o que havia se iniciado como um trabalho em cima de um objeto, ganhou uma dimensão emocional inesperada e insuspeita, tornando-­‐se um projeto bastante pessoal e evocando diversas questões minhas com o cinema. 15 Sinto que descrevi um percurso atravessado em relação a Jece Valadão. Conhecia-­‐o de alguns filmes assistidos ao longo dos anos, como Boca de Ouro e Rio Zona Norte, e, embora sua figura carismática sempre tivesse atraído minha simpatia, nunca havia estabelecido propriamente uma relação mais ampla com sua persona. No entanto, se a aproximação se deu de forma cuidadosa, até um pouco hesitante, o afeto veio repentino. Curiosamente, não pelas imagens cinematográficas que ele moldou com tanta ênfase, mas por suas palavras e pelo poder de evocação do seu discurso. Um pouco como se tivesse traçado uma fenda temporal – afinal Jece não foi um personagem do meu tempo –, me apaixonei através de uma perspectiva histórica. O contato com esta espécie de “passado bruto”, que são os documentos de época, me possibilitou a descoberta de todo um universo que parecia não ter sido desbravado, que se oferecia a mim com o frescor de algo não-­‐vivido e não-­‐relatado. Um mundo desconhecido no qual poderia me aventurar livremente. Jece foi um autêntico homem de cinema, capaz de trabalhar prioritariamente a partir de imagens a e de fazer do discurso sua principal força. E foram suas palavras que me fisgaram antes de tudo. Sempre envolvente e cativante, não havia assunto sobre o qual ele não versasse bem. Militante incansável do cinema e do cinema brasileiro, ator eloqüente, realizador de grande visão, pastor evangélico; nas falas de Jece corriam mundos, muitos dos quais ele buscava atualizar na tela. Espantosamente determinado, ele perseguiu por muito tempo seu sonho de “fazer cinema”, que era para ele algo muito mais amplo do que realizar filmes ou atuar neles. Jece carregava em si o espírito de um verdadeiro artista, que é o de transformar o ofício num fecundo diálogo com a vida e com o mundo. Dono de uma aguçada percepção do meio cultural brasileiro, ele soube trabalhar o conceito de ícone junto à cultura popular como talvez nenhum outro artista do seu tempo. Ancorado no cinema de gênero e no papel que este deveria cumprir dentro de um cenário cultural amplo, ele construiu um legado cujas dimensões são ainda difíceis de precisar. Numa época de intensa discussão política acerca da cultura brasileira, de sua identidade e de seus rumos, ele percorreu um caminho um tanto particular, intimamente ligado à história do cinema brasileiro como a conhecemos, mas um tanto à margem desta historiografia. Um percurso guiado pela forte imagem do “cafajeste”, que ele trabalhou e vestiu como ninguém, e por uma persistente luta pela subsistência do nosso cinema, sobretudo frente à esmagadora presença do cinema estrangeiro no mercado. Mantendo-­‐se um artesão e desenvolvendo uma profunda relação com o público, Jece parece ter compreendido algumas das dimensões mais complexas que envolvem o cinema como produto cultural, histórico e de consumo, forjando esta compreensão principalmente através do seu trabalho com o imaginário popular. 16 Imaginário popular que ele passou a integrar ao longo dos anos, visto que partiu de imagens (as fortes figuras masculinas do cinema americano, uma certa idéia do homem brasileiro, gêneros cinematográficos), para se transformar ele mesmo em um ícone imediatamente reconhecível. Sua crença de que apenas o ator estigmatizado alcançaria o estrelato e ficaria gravado nas mentes comprovou-­‐se pela sua trajetória. No entanto, por mais redutora que sua iconicidade pudesse ser, ela camuflava um homem de múltiplas facetas. Pai de família, empresário bem-­‐sucedido, cineasta talentoso, ator de presença inigualável, galanteador incansável... E, para além de todos esses Jeces, havia o Jece que conheci. Atencioso, doce e extremamente gentil. Que na abertura da mostra em sua homenagem, dizia, com os olhos levemente marejados: “estou muito feliz, é muito bom poder receber essa homenagem em vida, porque no Brasil, as pessoas só são lembradas depois que morrem. Só não choro porque já passei da idade”. O momento, emocionante, não poderia prefigurar a notícia que viria dois meses depois. E, se o choque da sua morte pode ter algum alento, certamente é o de saber que pudemos lhe conceder tamanha alegria, ao expressar todo nosso carinho, afeto e admiração por sua obra e que estes sentimentos tenham ganhado seu destinatário e tenham sido recebidos de peito aberto. Como consolo, ainda, talvez a crença de que, como alguém que soube levar a vida de forma admirável, Jece deve ter partido com serenidade. Meu sentimento de perda, que, neste momento, poderia ser da ordem de um relacionamento entabulado por imagens (jornalísticas, no caso), guardando um pouco a relação que se estabelece com um artista a partir de filmes, me tomou, no entanto, de forma próxima, indo ao encontro de um afeto e de um carinho nascidos de forma singular. Entre as grandes experiências da minha vida, os momentos que carregarei comigo, certamente estará a de assistir a Boca de Ouro sentada ao lado dele. Na tela, imagens de quarenta anos antes, testemunhando uma vida, um tempo, uma arte, já distantes; ao meu lado, um homem que, mais do que um dos grandes nomes do cinema brasileiro, era alguém que recebia emocionado uma grande homenagem de todos ali presentes, e dos envolvidos na mostra em particular. Dez dias depois, quando do memorável encontro de Jece com o público, dentro da programação da mostra – no qual ele desfilou todo o seu carisma e empatia –, tive a oportunidade de jantar em sua companhia e na de José Oliosi, seu amigo e parceiro de anos na Magnus Filmes. “Tchau, minha linda”, foi como Jece se despediu de mim, com um beijo na testa. Hoje, suas palavras ainda ecoam. E com a mesma intensidade que contemplei sua rápida passagem pela minha vida, lamento sua partida. Sempre ativo, ele foi-­‐se em meio a diversos trabalhos, entre eles, sua já histórica parceria com José Mojica Marins em Encarnação do Demônio. E, se por dias e dias adiei o término deste obituário, talvez tenha sido pela relutância 17 em aceitar tal notícia, que sobrevém como esta interrupção de tudo, esta súbita suspensão de uma vida inteira; em acreditar que ele não está mais entre nós. A Jece, agradeço pelo rico mundo de cinema que nos deixou e destino minhas mais sinceras palavras de afeto. Tatiana Monassa Contracampo -­‐ revista de cinema Disponível em http://www.contracampo.com.br/83/jece.htm Boca de ouro (1963), de Nelson Pereira dos Santos Boca de Ouro Nelson Pereira dos Santos RIO DE JANEIRO, 1962, P&B, 35 MM., 101 MIN. Eis um filme feito para dar certo nas bilheterias: a primeira adaptação do teatro do autor mais polêmico e proibido do teatro nacional, protagonizada pelo cunhado e dirigida por um diretor moderno, acompanhada de um concurso de seios, em plenos anos 60! Sucesso na certa ou fracasso retumbante, sem meio-­‐termo. Por detrás da cena, no entanto, o clima era outro. Nelson Pereira dos Santos, militante da esquerda e fã do neo-­‐realismo, não tinha afinidade com a exacerbação de Nelson Rodrigues; e Odete Lara achava tudo falso, mesmo os celebrados diálogos do autor. Ambos fizeram o filme pelo cachê. Acontece que, por ironia do destino, Boca de Ouro resultou num ótimo trabalho do diretor e quase certamente na melhor interpretação da bela atriz. De quebra, ainda fez muito sucesso de bilheteria, desencadeando a primeira fase de adaptações das peças rodriguianas. A estrutura deste filme é nitidamente influenciada pelo Rashomon, de Kurosawa. Um personagem conta a mesma história de maneira diferente, de acordo com as suas circunstâncias emocionais. O enredo, saído das sensacionalistas páginas policiais cariocas dos anos 50, fala do jogo do bicho, tema ainda virgem no teatro sério da época. E tem grã-­‐finas, dignas das colunas de Ibrahim Sued e Jacinto de Thormes, envolvidas com o baixo mundo das navalhadas e assassinatos. De um lado, temos uma adaptação fiel do espetáculo teatral, com os diálogos aparentemente coloquiais, a um passo da comédia e do dramalhão — destaque para o desempenho magistral de Jece Valadão, fazendo o tipo cafajeste carioca que marcou sua carreira. De outro, o realismo social do diretor, em duas seqüências antológicas: a conversa entre Leleco e Celeste numa passarela da Central do Brasil e a cena final no necrotério, com d. Guigui, o marido e os 18 jornalistas. Este é um exemplo do melhor cinema industrial carioca pós-­‐chanchada, porém anterior ao golpe militar. Está muito próximo, por exemplo, de Assalto ao trem pagador, de Roberto Farias, e Engraçadinha depois dos trinta, Asfalto selvagem e Massacre no supermercado, de J. B. Tanko — todos produzidos ou coproduzidos por Herbert Richers. Comercial, eficiente e popular, uma corrente promissora, ainda pouco estudada, castrada pela chegada do Cinema Novo. João Carlos Rodrigues Portal Brasileiro de Cinema Disponível em http://www.portalbrasileirodecinema.com.br/nelson/obra%20adaptada/cinema/02_01_02.ph
p Boca de Ouro Escaldado no calor saariano do subúrbio, acompanhando os trilhos do trem que varrem a zona profunda do arrabalde, ei-­‐lo aqui, o espectro que ronda Madureira. Torto, abençoado na pia de um salão de dança ao nascer de mãe suja, o bairro vira antro para o nobre Boca de Ouro – epítome do malandro agulha, bicheiro, mezzo homicida, mezzo benemérito de pobres. Lenço na mão, dá umas apalpadelas na testa, anel no dedo mínimo, ascende na contravenção e troca os molares, os incisivos, os caninos, os dentes todos por substitutos kitsch em ouro 24 quilates. Encomenda o próprio caixão no metal, supondo uma dignidade tosca que o enterro conseguisse lhe dar. Este o monstrengo que encarou Nelson Pereira dos Santos após o recente neorealismo urbano – “Rio 40 Graus” (1955), “Rio, Zona Norte” (1957) – e agreste – “Mandacaru Vermelho” (1961). A ele retornaria com “Vidas Secas” (1963), barganha assentada com a produção de “Boca de Ouro”. Faz-­‐se um filme como mero realizador contratado, sem o mínimo de apego à obra, para conseguir-­‐se o que se almeja com toda alma. No trajeto ao graal, Nelson esbarra na criação do xará, o Rodrigues, autor da peça que originou o filme. “Boca de Ouro” (1962) lança, portanto, outro deque de cartas à sorte das adaptações de textos de Nelson Rodrigues pelo Cinema Novo. Acaso se queira dar um sentido amplo à genealogia do movimento, tem-­‐se em “Agulha no Palheiro” (1952), de Alex Viany, uma das sementes – assistido na direção por NPS, recém-­‐
chegado de São Paulo. Há muito Nelson resistia no meio cinematográfico brasileiro. Mais velho em alguns anos do que a geração de Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Cacá Diegues et alli tornou-­‐se, a despeito, a tocha do cinema dito “independente”, “antiimperialista”, “materialista-­‐dialético-­‐pragmático” e construções do gênero. Em “Rio, 40 Graus” sobe o 19 morro, passa as câmeras por vielas, faz da produção um evento de cooperativa, manda uma foice à política dos estúdios. Vá lá que não filma despachos de macumba – profissão de fé também de Glauber, em “Barravento” (1961) –, religiosidade a que cederia em fase outra, no “O Amuleto de Ogum” (1974). O elemento popular era inegavelmente tomado por um tanto de sectarismo naqueles 1950-­‐1960, sem dar a entender a abertura de consciência que “Na Estrada da Vida” (1980), por exemplo, possibilitaria. Direção de Nelson Pereira, estrelado por Milionário e Zé Rico, une-­‐se ao melhor gosto do cinema de Clery Cunha e companhia. Ainda assim, tendo-­‐se em mente o tempo e espaço de “Boca de Ouro”, natural que se compreenda a implicância do diretor – e demais colegas de Vermelhinho – com a encomenda feita pela Copacabana Filmes, de Herbert Richers, produção de Jarbas Barbosa. Produto feito, vendido, máquina midiática. Tirando-­‐se o ranço de guerrilha sessentista, a situação há de ser repaginada, para se colocar o filme como coletânea de acertos que de fato é. E não só pelo desempenho tonitruante de Jece Valadão, mas pelas estratégias de Nelson no que se referem à direção e ao roteiro. Os minutos iniciais apresentam belamente o protagonista e driblam as armadilhas deixadas pela peça – encadeamento lógico, literalidade e quetais, feitos para a comunicação com uma audiência de teatro. Boca (Jece Valadão) é visto preso, libertado, assaltando, matando chefe e tomando o trono, sem dizer palavra. Atenção para o diálogo tenso que trava com o dentista: está ali Rodolfo Arena impondo o boticão, próximo da pinta de galã que sustentou por décadas, como em “O Ébrio” (1946). Colocado no contratempo a ser desvendado pela trama, Boca morre e a notícia chega à redação de jornal em que trabalha Caveirinha (Ivan Cândido), o quase-­‐papa-­‐defunto à procura do próximo urubu. Nelson Pereira insere inteligentemente o chiste típico do outro Nelson: “Miguel Borges, telefone!” – coloca o crítico-­‐diretor na piada que Rodrigues vira e mexe fazia com o alvo certeiro, Otto Lara Resende. Para as três versões contadas pela cocada Guiomar (Odete Lara) – ex-­‐amante de Boca, caçada por Caveirinha –, a caracterização do contraventor muda em figurino e preparação visual, deixando a dose de facilidade para ensinar ao público a manipulação da história pela mulher. Leleco (Daniel Filho) e Celeste (Maria Lúcia Monteiro) formam o casal que tangencia Boca. Ora Leleco é o desempregado covarde; Celeste, pura; Boca, o cruel. Ora Leleco é o traído, Celeste enrolada com um granfo em Copacabana; Boca, o que revida golpe de Leleco. Ora os dois são mortos pelo bandido, em êxtase com a bacana da Zona Sul, que perdera o campeonato de seios bonitos, na versão anterior. Interessantemente, o grau de aceitação em torno do nascimento problemático – e suado – muda em Boca. Há espaço inclusive para ser filho (quase) amoroso, à medida em que Guigui doura a pílula, com pena do amásio morto. 20 Nelson, o Pereira, opta por uma linha vertiginosa, rápida, mesclada pela montagem de Rafael Valverde e pela música de Remo Usai. Deixa o clima de excentricidade jornalística, deixa o humor, cede ao encanto de Valadão – ainda incipiente em “Rio 40 Graus” –, aqui em estado de graça, feliz qual penáceo no lixo. Os diálogos de Nelson, o Rodrigues, acrescentam em brilho, dando o cinismo que ululava no reacionário das causas inglórias. “Se Deus quiser, hei de ver a Grace Kelly”, “Só tive um colar, das Lojas Americanas”, e tudo o mais o que Celeste e as personagens oníricas merecessem. O pastelão guarda uma premissa rodrigueana – dessas incompreendidas e que a crítica redimiu, sobretudo desde a década dos 1990. Cômodo supor que a animalidade, o coito em casa de família ou nos porões escuros de Madame Clessi, fossem pretextos para chocarem de modo vazio, misturados aos bordões cômicos. Hoje, até o idiota da objetividade pescou que Nelson – sim, o Rodrigues – guardava uma singeleza de séculos, sobrepunha planos de consciência e escondia uma faca no bolso, encoberta pela voz bovina. O que a princípio é grosseria, termina em ceticismo. O filho incestuoso, nu, em “O Álbum de Família” (1945). Os dentes de Boca roubados, o cadáver seguindo o sortilégio de ser filho do nada, saindo da vida para entrar no ocaso. A interdição de Rodrigues – aos cântaros, a cada nova peça – sustentou a aura de maldito que, por sinal, cutucou de leve “Boca de Ouro”, o filme. Mais uma vez galanteador na estratégia de xerife das boas práticas, acima da competência funcional de Chefe de Polícia, o sr. Newton Marques Cruz tentou impedir a gravação de internas no Instituto Médico Legal do Rio de Janeiro. Compreendam que se tratavam dos píncaros da morte de Boca, o povo querendo saudar o self-­‐made marginal. A Censura nada dissera, extras e curiosos começaram a circular, a balbúrdia foi num crescendo, a proibição poderia causar prejuízo de milhares de cruzeiros. No vai e vem, a equipe conseguiu empurrar Wilson Grey – sempre ele – como transeunte, além de Caveirinha, Guiomar e o marido. Correndo entre as ruas do Centro velho, aproveitando a histeria e o desencontro de ordens, as cenas trazem aquele misto de cafajestada e verdade, improvisos que caracterizam as heranças do cinema popular brasileiro. Nelson Pereira dos Santos aproximou-­‐se dele, deixou um regalo para os materialistas e imaterialistas que ainda podiam valsar ou tocar um tango argentino, luas antes da noite bruta chegar. Andrea Ormond Estranho Encontro Disponível em http://estranhoencontro.blogspot.com.br/2010/11/boca-­‐de-­‐ouro.html Boca de Ouro Direção: Nelson Pereira dos Santos 21 Brasil, 1963. É curioso um filme como Boca de Ouro ocupar uma posição tão obscura e ingrata quanto o lugar em que ele sempre se encontrou. É um objeto estranho e totalmente alienígena na filmografia de Nelson Pereira dos Santos, em particular, e no cinema brasileiro em geral, e pouco citado mesmo quando o assunto são as adaptações de Nelson Rodrigues, sejam as direcionadas para a tela grande, ou as produzidas para os canais de televisão. Um pouco por motivos óbvios, pois a participação de Nelson Pereira no projeto foi a de um pistoleiro de aluguel: impossibilitado de rodar Vidas Secas por fortes chuvas que assolavam o Nordeste, realizou na mesma região um faroeste sertanejo (Mandacaru Vermelho, um dos seus trabalhos mais fracos) e aceitou o convite do astro Jece Valadão para dirigir a primeira adaptação para o cinema de um texto teatral de Nelson Rodrigues, na intenção de aproveitar o sucesso de Os Cafajestes, de Ruy Guerra, contando inclusive com a mesma dupla de atores (Jece Valadão e Daniel Filho). Uma fita nitidamente comercial, que Nelson Pereira só fez por grana, e que o próprio Valadão teve que dirigir (não-­‐creditado) algumas cenas quando o cineasta voltou ao Nordeste para as filmagens de Vidas Secas. No entanto, o resultado ficou tão bom que provavelmente só não agrade aos que seguem e acreditam incondicionalmente na Teoria do Autor (que diz que o diretor deve ser responsável pela confecção completa de uma fita, desde a idéia original até a sua finalização, e que a mesma contenha todos os seus ideais estéticos, o que vai totalmente contra as circunstâncias em que Boca de Ouro se situa). Com roteiro do próprio Nelson Pereira (que segue fielmente os diálogos coloquiais da peça original, bem-­‐humorados e por vezes beirando o melodrama), Boca de Ouro é um filme policial rashomônico com toques noir (incluindo muito dos aspectos sórdidos e amorais que permeiam esse universo). Do clássico de Kurosawa, Rashomon, a história toma emprestada a idéia de um mesmo fato ser contado de maneiras diversas, com a sua cronologia desarticulada e na qual nenhuma versão se confirma integralmente na outra. Mas se no filme japonês são quatro pessoas (e até um fantasma!) que dão uma visão diferente da mesma história, em Boca de Ouro é uma única mulher (interpretada pela musa Odete Lara) que relata três versões contraditórias sobre a vida e personalidade de seu antigo amante, o bandido recém-­‐falecido Boca de Ouro (Jece Valadão). As versões giram em torno de um crime ─ o assassinato de Leleco (Daniel Filho) ─, de acordo com as diferentes reações de ódio, amor e indiferença que a lembrança de Boca de Ouro desperta na mulher, e, a cada versão, detalhes fundamentais para a compreensão da trama são alterados, modificando o roteiro e a motivação dos personagens. Entretanto, o acontecimento em si não muda radicalmente: Leleco resiste em entregar sua esposa Celeste (Maria Lucia Monteiro, uma revelação, que infelizmente quase que não fez mais nada no cinema) ao chefão Boca de Ouro, rei do crime em torno das suas atividades 22 como banqueiro do jogo do bicho. Leleco, precisando de dinheiro para o enterro da sogra, recorre a Boca de Ouro, que cobra um preço alto demais como pagamento da dívida: uma hora de amor com Celeste. Daí se encena entre os personagens uma batalha quase corporal pela imposição de suas vontades, da vontade de um contra a do outro, e a resistência que os mais fracos precisam articular diante do poder do mais forte, do mais rico, do bandido (A destacar também, o concurso de seios promovido por Boca de Ouro entre grã-­‐finas da alta sociedade que o visitam, um lance digno e característico na obra do dramaturgo carioca). O ápice dessa intriga é o longo encontro do triângulo amoroso no escritório da mansão do criminoso (mas não só ali), e esse episódio se desdobra em três fragmentos com pontos-­‐de-­‐
vista distintos a partir dos diferentes estados de espíritos com que a personagem de Odete Lara (que vive no morro com marido e filhos), dividida entre o afeto e a raiva, relembra o antigo amante, manipulando as narrativas em seu longo e passional depoimento nas entrevistas concedidas ao repórter que a interroga. O modelo de outro clássico do cinema se insinua nesse sentido, pois são fortes os laços com Cidadão Kane, no jornalista que questiona os conhecidos de Charles Foster Kane na tentativa de solucionar o enigma de sua vida. Em Boca de Ouro também o chefe do jornal incumbe o repórter Caveirinha (Ivan Cândido) de investigar e correr atrás da ex-­‐amante do protagonista para que se descubra um grande segredo qualquer relacionado ao Boca, algo sensacionalista que possa servir de manchete para estampar a capa do jornal do dia seguinte. E o próprio Boca de Ouro tem algo do magnata de Cidadão Kane, pois ele também nasceu pobre, mas enriqueceu por conta de seus crimes e de suas atividades ilícitas, tornando-­‐se poderoso e violento com os que o rodeiam em sua mansão, sem falar no seu comportamento excêntrico e imprevisível, o que possibilita a Jece Valadão exercitar mais uma vez o seu tipo cafajeste e maquiavélico. Ao final, temos mais de uma versão sobre quem foram e o que fizeram Boca de Ouro, Leleco e Celeste e na figura do personagem de Odete Lara a constatação de que a verdade e a percepção podem ser maleáveis dependendo da emoção de quem dita a história. Se tivesse sido realizado nos anos 70 ou 80, Boca de Ouro seria aclamado como uma obra-­‐
prima (ou quase), mas naqueles primeiros anos de Cinema Novo se cobrava um cinema engajado que não encontrava correspondência no texto de Nelson Rodrigues, e a maioria absoluta da crítica torceu o nariz para a sua realização. No entanto, permanece um dos exemplos mais brilhantes de narrativa não-­‐linear utilizadas em nosso cinema, e seu sucesso de bilheteria foi um marco de uma boa fase de um cinema mais comercial da produtora carioca Herbert Richers (que produziu também o clássico O Assalto ao Trem Pagador), incluindo outras adaptações de Nelson Rodrigues que se seguiram a essa e que praticamente ninguém nos dias de hoje recorda: O Asfalto Selvagem (1964) e sua continuação Engraçadinha, Vinte Anos 23 Depois (1966), ambas dirigidas por J.B. Tanko. Há também outras adaptações da obra de Nelson Rodrigues nesse período: Bonitinha, Mais Ordinária (1963, também com Odete Lara e Jece Valadão), o célebre A Falecida (1965), de Leon Hirszman, e O Beijo (1966), de Flávio Tambellini e também com Valadão. Todos esses formam a partir de Boca de Ouro o primeiro ciclo de adaptações de Nelson Rodrigues para o cinema (o segundo ciclo seria na década seguinte, após os sucessos das adaptações dirigidas por Arnaldo Jabor). O que confirma que se o cinema nacional da década de sessenta foi tão grande, o seu valor então não decorre somente dos movimentos do Cinema Novo e do Cinema Marginal, mas do cinema brasileiro como um todo, contando tudo que se fez no país naquele período, entre as mais diferentes escolas e vertentes. Quanto ao grande Nelson Pereira dos Santos, em 1990, foi convidado para refilmar Boca de Ouro numa versão atualizada, mas o cineasta não foi adiante no projeto por divergências na escolha do elenco (acabou que o diretor de TV Walter Avancini assinou uma readaptação muito fraca do original para o cinema). Não obstante, o Boca de Ouro original dos anos sessenta permanece como sério candidato à melhor adaptação cinematográfica do genial Nelson Rodrigues. Vlademir Lazo Correa Revista Zingu! Disponível em http://www.revistazingu.blogspot.com.br/2009/08/enrcbocadeouro.html Boca de Ouro (I): A Nelson o que é de Nelson Venho insistindo na tese pouca profunda mas muito verdadeira de que o cinema comercial brasileiro atingiu, a partir de "O Pagador de Promessas", um nível técnico e artístico até então desconhecido ou insuspeitado. O "Boca de Ouro" surge em socorro dessa tese: está longe de ser uma obra de arte, quer no sentido da preservação, quer no da renovação dos meios expressivos do cinema; mas é uma obra inteligente e correta, com alguns momentos de evidente e comovente força dramática, e narrada com muita segurança. Por tudo isso mantém o espectador interessado, se não mesmo empolgado. "Boca de Ouro" nada tem a ver com a obra que seu diretor, Nelson Pereira dos Santos, prometeu realizar com seus dois primeiros filmes, "Rio, 40 graus" e "Rio, Zona Norte". Nada ou quase nada acrescenta à sua experiência de criador, mas serve para mantê-­‐lo em forma e para conservar-­‐lhe a destreza no uso da linguagem através da qual ele possa vir a exprimir-­‐se, integralmente, em seus próximos filmes. Temos portanto Nelson Pereira dos Santos exercitando-­‐se em cinema e, não, fazendo cinema. O exercício que lhe pode e deve ser fecundo mas que não lhe permite mergulhar, profundamente, na essência dramática da peça de Nelson Rodrigues, pois se ela o interessou como profissional não deve ter lhe sensibilizado como criador, ou, no caso, recriador. A partir 24 daí poderemos explicar o descaso com que Nelson Pereira dos Santos tratou alguns elementos do drama e o seu desinteresse em acentuar a força de impacto de algumas seqüências, personagens e situações. Bastam dois exemplos. O primeiro: O Boca sonhava em ser sepultado em um caixão de ouro, mas é levado para o cemitério dentro de um miserável e anônimo caixão de madeira -­‐ e o que existe de simbólico e dramático nessa passagem violenta do sonho para a realidade, da vida para a morte, foi desprezado pelo diretor, que não se preocupou em destacar, visualmente, esse detalhe de tamanha expressividade e importância. Segundo: Guigui, que segundo se percebe, deve ter participado intensamente da carreira do Boca, é excluída das seqüências iniciais e passa a viver, nas três narrações, um papel de segunda e apagada importância. Isso cria uma contradição entre a Guigui que narra e a Guigui que é narrada, contradição que se agrava porque entre uma e outra, não há qualquer elemento psicológico de semelhança. Pode-­‐se argumentar, em defesa do diretor, que ela é mesmo que se vê, mas isso não exclui a possibilidade de o diretor manter, nas duas personagens diferenciadas pelo tempo e pela memória, alguns traços comuns de identificadores. São apenas dois exemplos; poderia dar mais alguns de menor importância. Mas ao mesmo tempo em que se constata o descuido e o descaso do diretor com relação a certos elementos não se pode deixar de ressaltar a sua profunda intuição do problema central e a sua poderosa capacidade de narrador, que nos é revelada frequentemente. Aqui basta um exemplo: o primeiro olhar do Boca para Celeste é aprofundado por um movimento rápido da câmera em direção as partes mais sugestivas e simbólicas do seu corpo. Nesse rapidíssimo instante temos um prodígio de síntese e informação dramática, e desde logo ficamos sabendo qual o tipo de interesse que une o poderoso bicheiro à modesta suburbana. Devo continuar essa crônica amanhã, leitor, pois já não há espaço bastante para contá-­‐la toda, hoje. Claudio Melo e Souza Jornal do Brasil -­‐ 13/02/1963 Disponível em http://www.nelsonrodrigues.com.br/site/criticascinema_det.php?Id=4 Vai trabalhar vagabundo (1973), de Hugo Carvana Vai Trabalhar, Vagabundo! O papel ocupado pelo cinema de Ugo Giorgetti em relação ao imaginário da cidade de São Paulo é no Rio de Janeiro amplificado e dominado pela curta cinematografia como diretor do roteirista, produtor e ator – de mais de cinqüenta filmes! – Hugo Carvana. 25 Logo, para se compreender a obra de Carvana, precisamos dar um mergulho nos recônditos da alma carioca. Capital do Brasil por 200 anos, cidade-­‐símbolo das delícias paradisíacas nacionais, o Rio é um daqueles fenômenos contraditórios, de onde se espera tanta perfeição que qualquer imperfeição soa gritante, grotesca. Muita coisa aconteceu da "Paris Tropical" no início do século XX, para o Rio de Janeiro do século XXI. Neste vácuo de profundas transformações surgem as grandes questões de conflito: a mesma favela que simboliza a cidade é também sua desgraça; a mesma mítica da dolce vita é a que cria a injustiça de se dizer que no Rio ninguém trabalha, apesar da população ser a campeã absoluta em horas trabalhadas no Brasil. Navegando em tantos paradoxos, os cariocas costumam responder aos problemas com uma auto-­‐suficiência exagerada, com a exacerbação de seus méritos e uma tentativa de volta pródiga ao passado. Tal como sebastianistas, dão-­‐se ao carioca típico os descontos de ser utópico. Dom Sebastião não retornará – assim como a Argentina nunca será novamente a de Perón e Gardel – e Antônio Carlos Jobim não se levantará da sepultura do São João Baptista, para recolocar no mundo o suspiro por uma aldeia longínqua e ideal. Hugo Carvana, primordialmente um filho de Ipanema, começa sua trajetória no cinema como ator em meados dos anos 50 e chega à direção, no início dos anos 70, pronto para colocar em prática aquilo que tinha aprendido em quase duas décadas de ofício. Assim é que Carvana captou o rumo das coisas e, como a alma onipresente que tudo vê e tudo sabe, recriou em meia dúzia de filmes uma metáfora do que era, foi e seria sua cidade – do passado triunfante aos dias incertos e conturbados de hoje, quase previstos em “Vai Trabalhar, Vagabundo!” (1973), exatos trinta e três anos atrás. No filme, Dino (o próprio Carvana) é um malandro que ao sair da cadeia procura continuar a fazer da vida aquilo que sempre fez: absolutamente nada. Notem que não existiria Dino sem Rio e Rio sem Dino. Levado para qualquer outro espaço, o tipo murcharia e seu way of life não faria sentido. Alimentando-­‐se da geografia exuberante, da fauna social que manipula, dos refúgios nos casebres da favela, há em Dino um carioquismo militante de anedota, na fronteira entre a realidade e o estereótipo. Antropologicamente, o malandro pode ser explicado pela proximidade da população da antiga capital com o poder e a ordem estabelecidos – o que a tornava mais resistente e debochada a eles. Em uma explicação psicanalítica, o malandro é aquele que insatisfeito com a interdição, o controle paterno (a lei), sublima a castração através de artifícios de resistência e fuga, criando para si uma compensação de self – ou melhor dizendo, criando um mundo onde estes conflitos desapareçam e triunfe o prazer, o Eros. 26 O que torna o filme interessante, no entanto, não é só o personagem, mas sua busca por um sentido. Quanto mais pretende vagabundear, mais Dino é posto para agir, criar, trabalhar. Em suma, como bom carioca e malandro que se preze, sua embromação e seu savoir-­‐affair são motivos de quase-­‐arte, quase-­‐mérito. Ironia absoluta é precisar fazer um esforço maior do que um emprego formal para sustentar exatamente sua negação ao formalismo sócio-­‐econômico. Carvana opera o tempo todo com signos: o homem branco e pobre brasileiro guarda na mistura racial do país sua delícia, sua vazão existencial. Sendo amante da empregada negra (Zezé Motta) de um apartamento na Lagoa, Dino se apaixona também pela dona da casa (Odete Lara), loira fidalga que, apesar disto, vive de golpes tanto quanto o próprio Dino. Discute-­‐se, em nível maior, a descrença na integridade moral da sociedade, anulando-­‐se assim o aspecto dos feitos de Dino como contravenção ou desvio de conduta. Em um país onde todos erram, que mal há em ser errado? Posicionando o espectador na torcida pelo herói, a trama avança as peças e para pagar um saldo de jogo, Dino precisa organizar um campeonato de sinuca. Recorda na lenda urbana, no imaginário popular, os dois maiores jogadores da cidade. Um deles, Russo (Paulo César Peréio), foi parar literalmente no Pinel. Outro, Babalu (Nelson Xavier), largou a sinuca e virou represente comercial em botequins. A ida de Dino para buscá-­‐lo, em uma pequena casa da favela, e sua posterior argumentação para que o amigo volte a ativa – para que não massacre seu talento em benefício de uma moral burguesa –, dizem mais sobre a luta de classes do que mil tratados sociológicos. E a trilha-­‐sonora emocionante de Chico Buarque, as externas de um Rio-­‐73 pleno de luz, alegria e sol, o riso fácil dos párias que deveriam chorar de amargura e a instrução didática que o filme propõe, conduzindo o espectador pela mão, já bastariam para incluí-­‐lo como parte do currículo de qualquer universidade do mundo que estude cultura brasileira. Mas o que o leva a ser um dos maiores filmes nacionais é, sobretudo, a capacidade de se antecipar em documento vivo das mudanças que massacravam a cidade, das idiossincrasias do fascinante e dionisíaco povo carioca e das razões óbvias que encaminharam a Cidade Maravilhosa para a encruzilhada em que se encontra na atualidade. Ao longo de sua filmografia, tal como David Neves, Carvana foi desfiando o carretel e tornando-­‐se comentador do próprio tema. Mas ao assistí-­‐lo aprendemos a amar uma Ipanema que não conhecemos, um apartamento em Copacabana que nunca freqüentamos e uma birosca no subúrbio na qual nunca beberemos. Portanto, se a raça humana desaparecer e do Rio sobrar apenas uma cópia de “Vai Trabalhar, Vagabundo!”, ainda assim no futuro conhecerão a lenda, o mito de quem nasceu ou viveu naquele pedaço de terra onde um dia construíram uma bela metrópole, entre as montanhas e o mar. 27 Andrea Ormond Estranho Encontro Disponível em http://estranhoencontro.blogspot.com.br/2006/06/vai-­‐trabalhar-­‐
vagabundo.html 28 29 O Bem Dotado, o homem de Itu (1978), de José Miziara O Bem Dotado, o Homem de Itu, de José Miziara Brasil, 1977 Uma boa parte da repercussão popular das assim chamadas pornochanchadas brasileiras dos anos 70 se deve a um fator que praticamente deixou de existir com o surgimento das salas de shopping e multiplexes e o consequente desaparecimento dos cinemas de rua: a exibição dos posters e fotos de publicidade do filme. O sujeito passava pela porta ou paredes laterais das salas de exibição e deixava a imaginação fluir à vista dos cartazes feitos com desenhos caricaturais coloridos e das fotografias que mostravam a nudez das atrizes. No cartaz de O Bem Dotado, O Homem de Itu, uma característica chamava a atenção: um destaque maior para a imagem de um homem, o protagonista Nuno Leal Maia, do que para as imagens femininas. Isso sugere que este filme apresenta pelo menos uma característica diversa da maior parte da produção do gênero. Tendo como alvo principal o público masculino, o enfoque das comédias era determinado por uma ótica classificada como "machista" e de "exploração da imagem feminina", abusando do conceito da "mulher objeto". A primeira sequencia de O Bem Dotado (mulheres nuas tomando banho de rio) parece indicar que o desenvolvimento da trama irá seguir a linha habitual. Mas logo entra em cena o personagem principal, o ingênuo caipira Lírio (vejam bem: um nome de flor!), que, devido às gigantescas proporções de seu órgão sexual, será levado à cidade grande, no caso, São Paulo, por senhoras de classe alta para satisfação de sua luxúria. Neste momento, a inversão de uma das características habituais das pornochanchadas começa a se delinear. Então, ao invés da moça donzela, temos um rapaz puro (Lírio é virgem e foi criado pelo padre) que irá servir como "homem objeto" a um grupo de fêmeas assanhadas. Lírio, após ser empregado como jardineiro em uma mansão, passa a ser assediado por todas as mulheres, desde a patroa até a empregada, passando pelas amigas e pela filha (Helena Ramos, uma das maiores musas do gênero), sem entender muito do que se passa a sua volta. O filme atinge o seu clímax durante uma festa onde o rapaz é obrigado a vestir-­‐se com uma armadura para escapar da sanha das grã-­‐finas e da ira dos maridos. Mas para que se tenha Lírio como seu homem objeto, as mulheres pagam um preço. Toda vez que o protagonista consuma um ato sexual, suas parceiras não resistem ao tamanho de seu pé-­‐de-­‐mesa; gritam MAMÃE!!, a casa treme e, nas sequências seguintes, mal conseguem andar. É a vingança do oprimido. O 30 caipira vai para a cidade e desconta em cima da elite urbana de maneira peculiar: comendo todas as mulheres , dexando-­‐as descadeiradas e tornando todos os homens cornos. Ë lógico que esta visão mais política não passa de uma interpretação extrapolativa, pois esta não é a intenção do filme. O Bem Dotado, o Homem de Itu é na verdade uma comédia e bastante engraçada. Como todas quase todas as fitas do gênero, é muito mais chanchada do que pornô. Vista pela ótica de hoje, parece até demasiado ingênua. Mas seu humor baseado em adultério, trocadilhos, palavrões e clichês sexuais (não faltam, por exemplo, a empregada boazuda e a bicha caricata) é muito próximo daquele de programas humorísticos populares, como A praça é nossa. Funciona até hoje, principalmente quando temos em vista o principal público alvo do cinema nacional da época: os frequentadores das salas de subúrbio e das cidades do interior. Um público que não mais se vê refletido nos filmes brasileiros contemporâneos. Mesmo filmes mais abertamente voltados para a bilheteria, como Avassaladoras, se dirigem mais à classe média urbana. No que diz respeito ao sexo, atualmente vários programas de televisão mostram mais do que O Homem de Itu ou as demais pornochanchadas. Não havia, obviamente sexo explícito ou nudez frontal (estávamos na época da ditadura). Mas a visão generosa de peitos (sem silicone) e bundas (com celulite), estimulava a libido de muitos moleques e marmanjos. As atrizes eram donas de uma beleza opulenta, segundo o padrão brasileiro da mulher gostosa, antes da imposição do conceito de beleza associado à malhação e à magreza. Mulheres fartas, como a já citada Helena Ramos, Adele Fátima, Matilde Mastrangi e Aldine Muller. Esta última, por sinal, também está presente em O Bem Dotado, como a mulher de Itu, para onde Lírio retorna ao fim do filme, e a única com dimensões capazes de "acolher" o nosso herói. Numa época na qual o cinema brasileiro anda contaminado por uma sexualidade envergonhada e onde diretores fazem filmes visando indicações ao Oscar, fica fácil constatar um pouco da razão pela qual a maioria dos lançamentos falha em encontrar seu público. Grande parte deste, como já dissemos, simplesmente não encontra a si próprio neste cinema e muito menos a ele tem acesso. Apesar de rejeitada pelas gerações de cineastas pós anos 80, a gostosa combinação "mulher pelada + palavrão" faz uma falta imensa nos filmes nacionais. Gilberto Silva Jr. Contracampo -­‐ revista de cinema Disponível em http://www.contracampo.com.br/36/bemdotado.htm O Bem Dotado-­‐ O Homem de Itu A pornochanchada foi o gênero cinematográfico que dominou as salas brasileiras durante o final dos anos 1970 e início dos 80. Algumas dessas produções tornaram-­‐se conhecidas por 31 diferentes gerações de cinéfilos. Tornaram-­‐se inclusive cults e são referência de uma época do Brasil. Com toda certeza, O Bem Dotado-­‐ O Homem de Itu é um desses filmes. O personagem central da película é Lírio (Nuno Leal Maia no papel mais conhecido de sua carreira). Órfão ingênuo criado pelo padre Belmiro, o jovem é um moço simples que não tem nenhuma malícia. Duas coroas milionárias (Consuelo Leandro e Maria Luiza Castelli em atuações excepcionais) descobrem a avantajada anatomia sexual do rapaz. Elas atribuem isso ao garoto ser natural de Itu, cidade do interior de São Paulo conhecida por suas coisas gigantes. Levado para São Paulo, Lírio fica trabalhando como mordomo na casa de uma das donas. Com o tempo, ele acaba chamando a atenção de diversas beldades, como a arrumadeira Nice (a oriental Suely Aoki) e a cozinheira Pedra (Esmeralda Barros). Todas ficam loucas quando descobrem o tamanho do órgão sexual do protagonista. O jovem de Itu ainda viveria durante o filme intensas aventuras amorosas com outras deusas da comédia erótica como Aldine Müller, Marlene França e Helena Ramos. Mas o melhor desta engraçadíssima comédia são as diversas trapalhadas em que Lírio acaba se metendo. Muitas com o motorista e pretenso samurai Kimura, que arma uma grande perseguição ao garoto caipira. O espectador mais atencioso pode prestar atenção em participações especiais de gigantes do humorismo da Boca, como Teobaldo, Heitor Gaiotti e Clayton Silva. Com produção bastante caprichada para os padrões da época, O Bem Dotado é realmente um dos grandes filmes da pornochanchada. José Miziara faz um eficiente trabalho de artesão e uma comédia bastante divertida. A direção de fotografia fica com Osvaldo “Carcaça” Oliveira, técnico importante do cinema paulista e homem de confiança do produtor Aníbal Massaini Neto. O montador Roberto Leme é um outro importante personagem da Boca do Lixo bastante subestimado. Apesar de ter trabalhado em filmes importantes como O Marginal, de Carlos Manga, ele terminou sua carreira trabalhando com diretores do segundo escalão da Rua do Triunfo. Diversos profissionais com longas carreiras no cinema afirmam que o verdadeiro homem de Itu era um consagrado cineasta de Salto. Verdade ou não, O Bem Dotado continua sendo um grande clássico da Boca do Lixo. Matheus Trunk Revista Zingu! Disponível em http://revistazingu.net/2011/01/18/o-­‐bem-­‐dotado-­‐o-­‐homem-­‐de-­‐itu/ 32 O Bem dotado, o homem de Itu Outra pornochanchada digna do termo, este filme surgiu também – a exemplo do clássico “Histórias que Nossas Babás Não Contavam” – numa época em que a única coisa não recriminada abertamente no Brasil pelo regime político então vigente era o sexo. E, para dar continuidade ao projeto de não deixar ao relento filmes tão importantes para a história do cinema nacional e mundial, este filme não poderia ficar de fora. Antes de começar a revê-­‐lo para escrever esta crítica (confesso que não me lembrava de nada além de flashes isolados de algumas cenas), fiz uma aposta que tinha por objetivo medir a qualidade intelectual e cultural do filme: quantos minutos de projeção seriam necessários para que a primeira putaria entrasse em cena. Para minha surpresa, esse tempo foi incrivelmente extenso (levando-­‐se em consideração filmes desse porte, obviamente): um mísero minuto, ou melhor, sessenta e poucos segundos inteiros sem uma única putaria – e, entenda-­‐se por putaria, qualquer cena apelativa, o que, neste caso, foi um mar de mulheres seminuas tomando banho de rio. E, se o filme é de sacanagem e foi filmado no fim dos anos 1970/início dos anos 1980, não se pode esperar outra coisa senão ter Nuno Leal Maia em cena. O ator, quase que onipresente nas pornochanchadas da época, interpreta muito bem – guardadas as devidas proporções com a qualidade do filme em geral – o papel principal, de um jeca nascido e criado em Itu, cidade do interior paulista famosa por sua mania de grandeza, sugestivamente situada a menos de uma hora de Campinas, cidade do interior paulista famosa por… Mas como eu ia dizendo? Ah, sim. De um jeca nascido e criado em Itu, cujos atributos físicos faziam jus à fama da cidade-­‐
natal. Os ourtos atores… Bem, os outros atores não valem nem um centavo no filme. Para ser honesto, não fosse haver uma “japonesa” e uma “mulata”, eu acharia que todas as mulheres eram as mesmas – aliás, parece ser exatamente essa a ideia do diretor, desidentificar as mulheres, nivelando todas pelo mesmo impulso sexual. Mas o sotaque da Japa é ridículo, assim como a “resistência” que ela impõe à sedução do recém-­‐desvirginado Ituano Bem Dotado que a elege, lá pelas tantas, como alvo da vez (vejam o grau da resistência dela na foto abaixo). O filme não deve ser visto pelas suas atuações mas sim – se é que se pode dizer isso – pela crônica de costumes que ele tenta narrar. São os valores por trás da alta casta da sociedade paulista que estão expostos ali: as relações proibidas entre patrões e empregados domésticos, a pouca castidade desses empregados e os objetivos que os levam a manter vidas assim, maridos traídos (a cena do marido que pega a mulher com Lírio na cama é impagável), aparências e bastidores de conversas femininas. 33 O mais interessante do filme são os carros: opalão (irado!), passat, fusca, chevete, táxis paulistanos brancos e abóbora, estão todos ali expostos nas cenas, sem pudor de marcas ou modelos. Nesse ponto, o filme se revela um belo registro da memória automobilística brasileira. Só por este ponto! A trilha sonora do filme não é nada além de tosca. A começar pelo fundo musical presente em quase todas as cenas de notas eletrônicas: “tóin-­‐tóin-­‐tóin…“ Chega a ser irritante e não acrescenta nada ao incrível “suspense” de algumas cenas. Pior ainda quando, depois dessa sucessão irritantes de notas eletrônicas dois atores começam uma cena (mais ou menos) tórrida ao som de “Perigosa“, da Rita Lee. Igualmente ridícula é a ideia de fazer a terra tremer quando as mulheres que o Ituano Lírio pega durante o filme atingem o ápice da satisfação de seus desejos. Na primeira, você dá uma risadinha; na segunda, acha que é palhaçadinha; na terceira, você pula a cena sumariamente. A cena do cachorro desmaiado também é patética – vergonha alheia do cachorro! Outra cena histórica do filme é aquela onde uma bichinha diz que “Campinas não é interior, Campinas é a glória!“ Nada mais hilário, nada mais apropriado. Aliás, de frases de efeito o filme está cheio. Outra filosofia de buteco incrível imortalizada na película é “porque eu sou uma mulher de caráter. Trair o marido vá lá, mas nunca trair o amante.” Do meio para o fim do filme, várias piadinhas de duplo sentido horrorosas vêm à tona também. A pior de todas é a da armadura e do gongo (vejam o filme para descobrir/lembrar do que estou falando). Engraçado mesmo só o discurso final da atriz da última cena e do narrador do filme. A sutileza da piada que ele conta é atípica e vale a pena. O cinéfilo digital Disponível em http://ocinefilodigital.wordpress.com/2011/08/04/o-­‐bem-­‐dotado-­‐o-­‐homem-­‐de-­‐
itu-­‐1978/ O Gosto do Pecado (1980), de Cláudio Cunha O Gosto do Pecado Antes de se tornar a representação em carne e osso do Analista de Bagé – personagem criado por Luís Fernando Veríssimo – e viajar pelo Brasil com a peça de teatro homônima, Cláudio Cunha atuou, dirigiu, produziu e roteirizou clássicos do cinema da Boca do Lixo. 34 Está certo que às vezes Cláudio não acumulava todas essas quatro funções. Mas pelo menos em um filme costuma ser lembrado na cinematografia brasileira como herói do underground nacional. Pois bem, era 1977 e lá estava ele – então produtor da Kinema Filmes – dirigindo “Snuff, Vítimas do Prazer”, roteiro de Carlos Reichenbach e Cláudio Cunha sobre a modalidade dos pornôs “Snuff”, uma espécie de lenda urbana dos anos 70 -­‐-­‐ filmes onde o realismo era levado às últimas consequências e os atores literalmente assassinados em cena. Três anos depois Reichenbach assinava a fotografia de “O Gosto do Pecado” (1980), tour de force sobre o machão inseguro Júlio (Jardel Mello), que separa-­‐se da mulher, tenta voltar, não consegue e alimenta-­‐se das secretariazinhas suburbanas – uma delas, Alba Valéria, estrela de “Giselle” e “Os Paspalhões em Pinóquio 2000”; outra, Vânia (Simone Carvalho, esposa de Cunha na época). O tom ocre e algo desesperado da iluminação e das imagens encaixa-­‐se com folgas e de propósito na estrutura “novelão” do roteiro co-­‐escrito por Inácio Araújo – também diretor assistente –, Cláudio – o diretor – e Jean Garrett – prolífico colaborador da rua do Triunfo. Aliás, a respeito desse toque meio teledramatúrgico de “O Gosto do Pecado”, poderíamos lembrar o início de Cláudio Cunha na carreira artística – começou como ator em novelas. Mas basta uma olhada rápida no filme para percebermos o jeitão iconoclasta em que a cara-­‐
metade do terapeuta bagesense sempre se sentiu à vontade. Afinal, poucos teriam a sacação de citar nos créditos, com toda a non-­‐chalance do mundo, os travestis que aparecem nus em pêlo em uma boate (Susy e Tania Aloma, da “Pinck Panter” [sic].) Correndo por fora, estoques de fixações sexuais que voltariam em 1983 na explosão de “Oh! Rebuceteio”, misturadas com psicanálise reichiana e ecos de “Oh! Calcutá”. Garotas transando embriagadamente pra valer, sem pastiche, diante de Júlio e Enéas (John Herbert). O grito de “quando eu quiser, ouviu? quando eu quiser!” de Júlio no ouvido da pobre Alba, que tem que se contentar com uma quase-­‐curra que transforma-­‐se em orgasmo. Além disso, no quesito “influências”, um trecho em particular lembra “O Império dos Sentidos” – primeiro filme estrangeiro a receber o certificado de pornô no Brasil, rivalizando com “Giselle”, primeiro brasileiro a receber a mesma honra. Júlio asfixia uma garota de programa – a princípio na base do prazer (aproximando-­‐se nisto de “O Império...”) –, mas logo descamba para a agressividade, longe da matriz japonesa, tomado pela culpa de ter abandonado o lar, a esposa (Regina, Maria Lúcia Dahl) e o filho. Como os moralismos não fazem parte do script, vemos Júlio dividindo humilhado a mesa de jantar com o ex-­‐grande amigo Enéas, novo namorado de Regina, a mulher que discursa como a 35 típica feminista dos 70. Urra sobre a necessidade de ser vista, amada, procurada e sobre como tudo acabou, sobre como não há a menor possibilidade de voltarem. Logo, o macho na visão do trio de roteiristas é uma criatura dúbia, que vive em dois mundos diferentes. Por um lado, ele não é completamente o homem estúpido, que gosta de viver a lenda que criou no escritório: a de mulherengo incontrolável. Por outro, também não é um romântico salvador e, neste sentido, a cena final antológica desperta o sorriso no canto de boca dos espectadores, alertados de que viver é uma atividade complicada demais. Vânia, alpinista social, larga o noivo e a casa da mãe, entrega-­‐se para Júlio e este é tanto o predador cafa quanto o pai sensível que chora a saudade do filho e cogita abandoná-­‐la sempre e sempre. Nesse fel que perturba, “O Gosto do Pecado” cria um nó na estrutura dos folhetins, misturando-­‐o com audácia sexual, perversão e a trilha sonora datadíssima de Jairo Ferreira. Em um tempo cada vez mais longe das samambaias no canto da sala, das calças boca-­‐de-­‐sino e dos penteados de gosto duvidoso, permanece a autenticidade de se falar do mundo cão que atormenta os rituais familiares em uma freqüência bem maior do que se imagina. Andrea Ormond Estranho encontro Disponível em http://estranhoencontro.blogspot.com.br/2006/05/o-­‐gosto-­‐do-­‐pecado.html O Gosto do pecado Em O Gosto do Pecado, Jardel Mello é um crápula. Daqueles machões que não aceitam que suas presas escapem de suas mãos. Quando seu filho, uma criança, pergunta se ele não vai voltar mais para casa, ficamos sabendo que está recém-­‐separado. Ele desconversa com o filho, mas para nós, o público, toma a narração condutora e é taxativo: certo dia olhei para ela (a esposa) e vi que ela não me interessava mais. Logo depois assistimos a separação de fato diante do juiz e ficamos sabendo que a mulher é Maria Lucia Dhal. O amigo, John Herbert, logo leva Julio Garcia – Jardel – para se esbaldar nos inferninhos da noite paulistana, mas logo ele vai perceber que não sabe o que fazer com a liberdade adquirida e, a partir daí, fará de tudo para que a esposa o aceite de volta. Não necessariamente para casamento, mas para namoro com pinta de amante. Maria Lucia se debate, resiste e não resiste, mas quando ele vê que está mesmo perdendo terreno, encanta-­‐se pela secretária. Nada menos que a bela Simone Carvalho, que em cena digna de Marilyn Monroe em O Pecado Mora ao Lado, desperta-­‐lhe a libido e as garras de macho dono do pedaço. Só que a moça tem um noivo, o possessivo Fábio Villalonga, e daí se instaura um triângulo amoroso às claras, cheio de permissividade e interesses. 36 Essa descrição dos personagens poderia denotar seres repulsivos e sem nenhum real interesse além do escárnio. Só que não é nada disso. Em parte pelo talento dos atores – Jardel Mello, Simone Carvalho, Maria Lucia Dhal, John Herbert, Fábio Villalonga e Alba Valéria -­‐, e também em boa parte pela direção de Claudio Cunha, que tem Inácio Araújo como assistente, e a fotografia elegante do mestre Carlos Reichenbach. O Gosto do Pecado, que tem roteiro de Cunha, Araújo e Jean Garret, aponta sua lâmina com precisão para a diferença de classes e o quanto o poder manda e desmanda nessa seara. Enquanto Mello, Herbert e Dhal estão do lado de quem tem posses, Simone e Villalonga sacodem no ônibus lotado em direção à periferia onde moram. Há ainda nesse mundinho de secretárias e patrões a figura de Alba Valéria – luminosa presença -­‐, amante marginalizada de Mello, que se contorce na cama diante do gozo precoce do garanhão, que por sua vez não dá o braço a torcer e promove uma verdadeira curra na moça com a mão. A mesma atitude sádica ele terá com a prostituta interpretada por Ana Maria Kreisler, que ele sodomizará durante um programa. O Gosto do Pecado esbanja solidão embebida em cinismo, mas nunca em ares blasé. O que há ali é uma verdade incômoda em personagens absolutamente e indesejadamente críveis. Tudo ao som de trilha sonora deliciosa de Jairo Ferreira, com direito a Je t´aime moi non plus e outras pérolas mais. Adilson Marcelino Revista Zingu! Disponível em http://revistazingu.net/2011/04/20/o-­‐gosto-­‐do-­‐pecado/ Uma noite com Claudio Cunha Ah, o prazer do zappear: no Canal Brasil, A Lira do Delírio, de Walter Lima Jr. Cascatas de planos-­‐sequência selvagens, com uma câmera-­‐corpo, uma descarga documental, dissonância experimental. No canal vizinho, Telecine Cult, cruzo com Jacques Rivette (Quem Sabe?). Marcação teatral de atores, não da câmera, essa rigorosa, sóbria, sem "lampejos", constante em seu equilíbrio. Duas revisões que, além de renovar a memória dos filmes, renova os filmes, que se tornam novas experiências. Novidades mesmo, porém e surpreendentemente, foram dois Claudio Cunhas: Sábado Alucinante e O Gosto do Pecado, ambos da virada dos 70 para os 80, crepúsculo das pornochanchadas. O primeiro antecipa o espírito de Lael Rodrigues e certamente têm consciência de Antonio Calmon. O segundo é um Walter Hugo Khoury sem setas indicativas de erudição, até selvagem em alguns momentos (seja pela agressão ao modelo narrativo ambicionado, seja por conta de cortes agressivos, seja por uma intimidade com os ambientes populares). E aqui se sente a diferença entre o popular daquele momento e 37 o popular do momento atual, sendo aquele mais autêntico e este mais referencial (é menos popular e mais sobre o popular, de A Máquina a Tapete Vermelho). Mudou o popular evidentemente, porque, ali na passagem dos 70 para os 80, ele compreendia as classes C e D, mas hoje, quando o termo se refere ao cinema, refere-­‐se à classe média. O popular só pode ser, assim, uma visão sobre o popular, ou um popular de classe média, que carrega sempre um certo ar de paródia em relação a seus códigos. Já Claudio Cunha, ao ser popular, leva-­‐se a sério. O Gosto do Pecado é um dramalhão cheio de sexo, capaz de, sem os disfarces e as coleiras do popular de classe média, sair com essa: "Eu agora sou seu dono", afirma Roberto Villalonga, no papel de um advogado, para Simone Carvalho, no papel de uma secretária. Ela, noiva e virgem antes de ser deflorada por ele, consente. E ele ainda pede segredo. Cléber Eduardo Revista Cinética Disponível em http://www.revistacinetica.com.br/blocomaiojunho06.htm 38 39 40 

Documentos relacionados