encontros teológicos 60
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encontros teológicos 60
Instituto Teológico de Santa Catarina – ITESC ISSN 1415-4471 www.itesc.org.br FUNDAÇÃO DOM JAIME DE BARROS CÂMARA INSTITUTO TEOLÓGICO DE SANTA CATARINA Diretor: Pe. Dr. Vitor Galdino Feller Vice-diretor: Pe. Dr. Domingos Volney Nandi Secretário: Prof. Ms. Celso Loraschi Coordenador/Departamento de Ecumenismo: Pe. Dr. Elias Wolff Coordenador/Departamento de Comunicação: Pe. Dr. Domingos Volney Nandi Coordenador/Departamento de Bíblia: Prof. Ms. Celso Loraschi Bibliotecária: Adriana de Mello Tomaz Secretária Acadêmica: Secretária Institucional: Aline Maria Pereira Assistente Administrativo: Donizeti Mendes Guimarães Recepcionista: Crisleine Daiana Radatz [Catalogação na fonte por Daurecy Camilo (Beto)] CRB-14/416 Encontros Teológicos. Revista do Instituto Teológico de Santa Catarina – ITESC, n. 60, Florianópolis, 2011. Quadrimestral ISSN 1415-4471 I. Instituto Teológico de Santa Catarina CDU 2 (05) Preço de Assinatura para o ano 2012 Contribuição a partir de R$ 40,00 Forma de Pagamento Cheque em nome do Instituto Teológico de Santa Catarina ou depósito bancário: Banco do Brasil, Agência 3191-7, Conta 09.645-8 Correspondência e Assinatura Instituto Teológico de Santa Catarina – ITESC Caixa Postal 5041 88040-970 Florianópolis, SC Fone/Fax: (0xx48) 3234-0400 Home Page: www.itesc.org.br E-mail: [email protected] Revisão: Pe. Ney Brasil Pereira Editoração eletrônica e projeto gráfico da capa: Atta Projeto gráfico: Antônio Frutuoso Printed in Brasil Pede-se permuta Exchange is Requested ENCONTROS TEOLÓGICOS Revista quadrimestral fundada em 1986 Diretor: Elias Wolff Editor: Vitor Galdino Feller Redator: Ney Brasil Pereira Conselho Editorial: Celso Loraschi – ITESC – Florianópolis, SC Domingos Nandi – ITESC – Florianópolis, SC Edinei da Rosa Cândido – ITESC – Florianópolis, SC Elias Wolff – ITESC – Florianópolis, SC Helcion Ribeiro – PUC – Curitiba, PR Inácio Neutzling – UNISINOS – São Leopoldo, RS João Batista Libânio – ISI-FAJE – Belo Horizonte, MG José Artulino Besen – ITESC – Florianópolis, SC Lilian Blanck de Oliveira – FURB – Blumenau, SC Luiz Carlos Susin – PUC-RS e ESTEF – Porto Alegre, RS Márcio Fabri dos Anjos – Pontifícia Faculdade N. Sra. da Assunção – São Paulo, SP Maria Clara Bingemmer – PUC-RJ, Rio de Janeiro, RJ Maria de Lourdes Pereira Dias – UFSC – Florianópolis, SC Marlene Bertoldi – ITESC – Florianópolis, SC Ney Brasil Pereira – ITESC – Florianópolis, SC Rudolf von Sinner – EST – São Leopoldo, RS Valter Maurício Goedert – ITESC – Florianópolis, SC Vilmar Adelino Vicente – ITESC – Florianópolis, SC Vitor Galdino Feller – ITESC – Florianópolis, SC CoNSELHO CONSULTIVO: Analita Candaten – Centro de Fomação Scalabriniana – Passo Fundo, RS Armando Lisboa – UFSC – Florianópolis, SC Cecília Hess – UNIVILLE – Joinville, SC Érico Hammes – PUC-RS – Porto Alegre, RS Evaristo Debiasi – ITESC – Florianópolis, SC Fábio Régio Bento – UNISUL – Tubarão, SC Gabriele Cipriani – CONIC – Brasília, DF Joaquim Cavalcante – Universidade Estadual de Goiás – Itumbiara, GO Luís Dietrich – ITESC – Florianópolis, SC Luís Inácio Stadelmann SJ – ITESC – Florianópolis, SC Márcio Bolda da Silva – ITESC – Florianópolis, SC Mari Hammes – ITESC – Florianópolis, SC Marta Magda Antunes Machado – ITESC – Florianópolis, SC Paulo Cezar da Costa – PUC-Rio, Rio de Janeiro, RJ Roberto Iunskovski – UNISUL – Florianópolis, SC Sérgio Rogério Junqueira Azevedo – PUC-PR – Curitiba, PR Siro Manoel de Oliveira – ITESC – Florianópolis, SC Vilson Groh – ITESC – Florianópolis, SC Nota: O autor de cada artigo desta publicação assume a responsabilidade das opiniões que expressa. Publicação dirigida aos agentes de pastoral das igrejas e aos professores universitários, pesquisadores e alunos nas áreas da Teologia, das Ciências da Religião e Ciências Humanas em geral, com o objetivo de favorecer a formação religiosa, social e humana, promover o debate e incentivar a troca de informações sobre temas teológicos, pastorais e sociais. Sumário Editorial ....................................................................................................... O presbítero e a missão Stefano Raschietti...................................................................................................... Ministério presbiteral na Igreja Luis I. J. Stadelmann, SJ........................................................................... Formação presbiteral inicial e permanente Ângelo Domingos Salvador, OFM Cap.................................................................... O presbítero a partir do Documento de Aparecida Anselmo Matias Limberger....................................................................................... Desafios atuais para a formação eclesial José Lisboa Moreira de Oliveira.............................................................................. A Igreja, a homossexualidade e o clero Arlene Denise Bacarji............................................................................................... Celebração e Vida: dois momentos inseparáveis da Celebração Eucarística Cleiton José Senem................................................................................................... Homilia gratulatória: Jubileu de Ouro presbiteral do Pe. Paulo De Coppi, PIME 7 9 31 45 81 95 111 129 Agostinho Staehelin.................................................................................................. 149 Recensões .................................................................................................... 153 Crônicas........................................................................................................ 175 Revista Encontros Teológicos 25 Anos......................................................... 183 Índice Geral dos números 58, 59 e 60 (2011/1, 2 e 3).................................. 187 Editorial A vida e ação do presbítero se configura e se compreende a partir de três fundamentais fatores: da relação com Cristo, da vida em comunidade e da missão. O presbítero, como todo cristão, vive num horizonte cristológico na medida em que em seu viver expressa o discipulado de Cristo. Nesse horizonte ele configura a sua identidade humana, cristã e eclesial. Desenvolve a sua espiritualidade e a sua missão e forma sua identidade crística. Claro, a intensidade e coerência dessa relação é um processo de conversão, até ter “os mesmos sentimentos de Cristo”, como exorta Paulo na carta aos filipenses (Fl 2,5). Um segundo elemento que caracteriza o ser e agir do presbítero é a vivência em comunidade. Não se é presbítero para si mesmo, mas para e com os outros. Daqui a importância da comunidade pastoral e a comunidade presbiteral. Afinal, a experiência de Cristo é feita em comunidade, pois ali acontece o encontro, a relação, o diálogo, a cooperação, a solidariedade, a comunhão no amor. Experiências fundamentalmente cristãs. E a qualidade da vivência comunitária expressa a qualidade da experiência de Cristo. Pois, como adverte João em sua primeira carta, “quem diz que ama a Deus a quem não vê e não ama o irmão a quem vê, é mentiroso...” (1Jo 4,20). Da relação com Cristo e da vivência comunitária, nasce a missão. O encontro com Cristo desperta a sensibilidade para com as necessidades dos outros. Daí surgem os carismas, os ministérios, a vocação. Frutos da ação do Espírito no qual Cristo foi ungido e enviado em missão. É o mesmo Espírito que unge também o presbítero. A unção é para a missão: “O Espírito do Senhor está sobre mim, me consagrou e me enviou...” (cf. Is 61,1). A finalidade última da missão é “para que todos tenham vida, e a tenham em abundância” (Jo 10,10). E vida em abundância, vida plena, só é possível na experiência de Deus, aqui neste mundo e na eternidade. Portanto, o modus essendi e o modus operandi do presbítero é formado pela relação com Cristo, na sua vivência na comunidade pastoral e no presbitério e pela missão. Em tudo isso opera o Espírito e a graça de Deus que constitui o ministro (cf Ef 3,2). Não se prescinde dos fatores sociais e humanos da pessoa do presbítero. Seu ser e agir estão integrados no contexto sócio-cultural, político, econômico, religioso. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 7 Editorial Fatores que influenciam na estrutura cultural, psico-afetiva, religiosa da pessoa. E é essa pessoa que se relaciona com Cristo, que forma a comunidade e que assume uma missão. É essa pessoa, com suas qualidades e limites, que “se fez padre”. Daqui, um dos principais desafios para a formação do presbítero: deixar o humano ser trabalhado pela graça de Cristo que, sem negar ou forçar a natureza, a assume e a transforma, com suas limitações, em instrumento, mediação e serviço do Evangelho. O humano torna-se, com suas qualidades e precariedades, como que um sacramento do divino. Afinal, gratia naturam supponit. Em nossos dias, muitas são as questões que pairam sobre o presbítero, seu ser e agir, como humano, como cristão, como Igreja. O que é ser padre e por quê ser padre? Como deve ser hoje o padre? Há algum “modelo” de padre que pode inspirar os atuais e futuros vocacionados? Qual é a espiritualidade do presbítero, sobretudo diocesano? O que pode e o que não pode o padre fazer no meio social? Pode, e em que medida, o padre, viver como os demais cidadãos? Como fortalecer a dimensão profética do ministério presbiteral em meio às situações de empobrecimento e sofrimento injustos? E o que dizer dos padres que reúnem multidões em celebrações nas quais se confundem o místico e o estético, o carisma de servidor e o de pop espetacular, a proclamação do Evangelho que questiona e o show que apenas emociona... São algumas das interrogações atuais sobre a vida e a ação do presbítero. A presente edição de Encontros Teológicos quer contribuir para a reflexão e a busca de resposta sobre tais questões: Stefano Raschietti ajuda a compreender a relação entre O presbítero e a missão; Luis I. J. Stadelmann apresenta O Ministério presbiteral na Igreja; Dom Ângelo D. Salvador traz algumas reflexões sobre a Formação presbiteral inicial e permanente; Anselmo M. Linberger busca entender O ser e o agir do presbítero a partir do documento de Aparecida; José L. M. de Oliveira desenvolve alguns Desafios atuais para a formação eclesial; na mesma direção, Arlene Denise Bacarji trata sobre A Igreja, a homossexualidade e o clero; Cleiton José Senem fala da Celebração e Vida: dois momentos inseparáveis da Celebração Eucarística. Publicamos, também, na forma de testemunho, a Homilia gratulatória da missa do Jubileu de Ouro de um Presbítero, além de recensões e crônicas. Pe. Elias Wolff Diretor 8 Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Resumo: O Documento de Aparecida oferece significativas e imprescindíveis contribuições para a formação do presbítero. Atento à mudança de época em que vivemos, marcada sobretudo pelo pelo “modo de ter de existir” e pelo “modo urbano de existir”, urge um repensamento do modo de ser Igreja e do seu agir missionário. Consequentemente, é preciso repensar também o ser e agir do presbítero, chamado a assumir a missão de pregar o Evangelho de Jesus Cristo que valoriza “ser” pessoal e cristão. Contra a “profissionalização do ministério presbiteral”, é preciso afirmar a missão, gratuita e permanente, como eixo articulador da formação presbiteral. Abstract: The Document of Aparecida makes some significant and irreplaceable contributions to the formation of priests. With special attention to the changes in our time and age, as marked by the means needed for existence over the mode of urban existence, a new requirement is made to the Church so as to stress the mode of Christian belonging and missionary action of the faithful. As a result, priestly vocation should focus on the role of the priest as preacher of Christ’s gospel, rather than on a mere professional ministry. Most important of all is to reaffirm his commitment to Jesus Christ in view of the gratuitous and permanent mission of the priest in unrelenting growth towards perfection. O presbítero e a missão Stefano Raschietti* * Stefano Raschietti, SX, é missionário italiano há 20 anos no Brasil. É mestre em Teologia Dogmática com concentração em Missiologia pela Pontifícia Faculdade Nossa Senhora da Assunção, São Paulo, SP, assessor do Conselho Missionário Nacional da CNBB e Secretário Executivo do Centro Cultural Missionário – CCM de Brasília. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011, p. 9-30. O presbítero e a missão O tema da missão perpassa todo o Documento de Aparecida (DAp) como elemento fundante de conversão eclesial. É tratado especificamente no começo da terceira parte, no sétimo capítulo: “A missão dos discípulos a serviço da vida plena”. Aqui encontramos três aspectos essenciais: primeiro, o fundamento e a dinâmica da missão (“Viver e comunicar a vida nova em Cristo a nossos povos”); segundo, a necessidade de uma metanóia pessoal e estrutural para tornar-se sujeito da missão (“Conversão pastoral e renovação missionária das comunidades”); terceiro, a necessária extensão da ação missionária para o mundo inteiro (“Nosso compromisso com a missão ad gentes”). O nexo entre presbítero e missão é tão estreito que, quanto mais entendermos a missão em suas perspectivas fundamentais, tanto mais entenderemos melhor a identidade do presbítero, seu caminho discipular de conversão e sua missão ao mundo inteiro. 1 Fundamento: viver e comunicar a vida nova em Cristo Com efeito, o que representa a missão para a vida da Igreja e de seus presbíteros? Para tentar um caminho de compreensão, o DAp retoma, logo de cara, como fundamento, Ad Gentes 2: “A Igreja peregrina é missionária por natureza, porque tem sua origem na missão do Filho e do Espírito Santo, segundo o desígnio do Pai. Por isso, o impulso missionário é fruto necessário à vida que a Trindade comunica aos discípulos” (DAp 347). A primeira novidade da declaração conciliar está na palavra “natureza”, que quer dizer “essência”: a Igreja é missionária por sua “essência”. Essa essência é a própria essência de Deus, porque “este desígnio brota do «amor fontal», isto é, da caridade de Deus Pai” (AG 2). Em outras palavras, a missão vem de Deus porque Deus é amor, um amor que não se contém, que transborda, que se comunica, que sai de si já com a criação do mundo, e conseqüentemente ao pecado da humanidade, com a história da salvação para reintegrar as criaturas na vida plena do Reino. Esse transbordar histórico da Trindade Imanente foi chamado de Trindade histórico-salvífica, que configura a missão de Deus (missio Dei). De alguma forma, o próprio Deus se auto-envia pela missão do Filho e do Espírito, através dos quais o próprio Pai se revela 10 Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Stefano Raschietti como amor (cf. Jo 14,9).1 Em suma, Deus é missão: a missão existe com Deus, diz respeito ao que Deus é e não, primeiramente, ao que Deus faz. Por tabela, a missão da Igreja não teria, a princípio, um seu porquê, não surgiria de uma necessidade histórica de sobrevivência ou de domínio, mas é um impulso gratuito, de dentro para fora, que teria como origem a participação à vida divina (cf. DAp 348). A segunda palavra mágica é “missionária”. A Igreja é por sua natureza missionária. Isso constitui uma revolução no próprio conceito de Igreja, que procede da missio Dei. Não é mais a Igreja que envia missionários em qualidade de “missionante”, mas é ela própria enviada como “missionária”. Seu envio não é conseqüência: é essência. A Igreja “é” ao ser enviada: se edifica em ordem à missão. Não é a missão que procede da Igreja, mas é a Igreja que procede da missão de Deus. A missão é antes de tudo: eis a mudança de paradigma. A eclesiologia, portanto, não precede a missiologia.2 A atividade missionária não é tanto uma ação da Igreja, mas é simplesmente a Igreja em ação. Ou como, diria Moltmann, “não é uma igreja que ‘tem’ uma missão, mas ao contrário, é na missão de Cristo que se cria a Igreja. Não é uma missão que deve ser compreendida a partir da Igreja, mas o contrário”.3 Nisso se define a própria identidade da Igreja e também a própria identidade do presbítero. Josef Ratzinger insiste que o verdadeiro elemento integrante da identidade sacerdotal reside na dimensão missionária que está na base do ministério do presbítero em suas três atuações fundamentais (profeta, sacerdote e pastor): “Essa característica de ser enviado por Jesus exige do sujeito não só certa maneira de agir, mas também o toca no seu próprio ser. Ser padres e viver em estado de missão significa ser-enviados. Quer dizer que, para o sacerdote, o seu ser-para-um-outro tem uma importância constitutiva. Quem aceita uma missão não pertence mais a si mesmo. E isso por duas razões: ele é expropriado em favor daquele que ele representa, mas também em favor daqueles diante dos quais ele o representa. Viver em estado de missão comporta uma laceração na própria existência. E também aqui em duas frentes. Precisa deixar o lugar a quem envia e 1 Veja SUESS, Paulo. Missão como Caminho, Encontro, Partilha e Envio. Perspectiva, Desafios e Projetos. In: Igreja no Brasil, tua vida é missão. I Congresso Missionário Nacional. Brasília: POM, 2003, pp. 54 – 55. 2 Cf. BOSCH, Missão transformadora. Mudança de paradigma na Teologia da Missão. São Leopoldo (RS): Sinodal, 2002, p. 446. 3 MOLTMANN, J. La Iglesia en la fuerza del Espíritu. Salamanca, 1978, p. 26. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 11 O presbítero e a missão não preocupar-se com a própria pessoa, deixando-a fora do jogo; não anunciar a si próprios nem apropriar-se da palavra que se comunica, mas abrir o caminho e o espaço a outros, sempre prontos a diminuir para que os outros cresçam”.4 Um Deus humano Esses fundamentos estão repletos de implicações na compreensão dos principais mistérios da fé. Compreender a missão não como atividade, território ou necessidade histórica, mas como essência gratuita de Deus Amor e da Igreja peregrina, significa para o presbítero adoção de uma prática jesuana de proximidade aos outros e aos pobres, para comunicar vida em termos de humanidade, compaixão, gratuidade, fraternidade sem fronteiras, como caminho de salvação. “Fora do dom da vida (acolhido e oferecido) e da fraternidade não há salvação”, diria o próprio DAp com outras palavras (cf. DAp 359-360).5 A essência missionária da Igreja e da identidade do presbítero diz respeito também à essência do Evangelho que vão anunciar. Com esta palavra, “evangelho”, os autores do Novo Testamento quiseram transmitir, de maneiras muito diferentes entre eles, o anúncio fundamental de Jesus. Esse anúncio pode-se resumir no seguinte: Deus é Pai, nós somos seus filhos e filhas, irmãos e irmãs entre nós. Ponto. O Evangelho está todo aqui. Isso não é apenas uma noção, mas é algo de vivido por Jesus efetivamente numa prática de vida, e afetivamente numa relação intensamente carinhosa com Deus e com os irmãos: “Ele nos ensinou a orar dizendo ‘Abbá’” (DAp 17). “Abbá” quer dizer com ternura: “papaizinho”. Essa Boa Nova anuncia uma visão completamente nova de Deus. Jesus “Sacerdote” (cf. Hb 5,5-6) nos apresenta um Deus que não pede sacrifícios: ele se sacrifica por nós. Não pede oferendas: ele oferece a própria vida. Não tira o pão da boca dos pobres: ele se torna pão para saciar multidões. Deus revela em Jesus seu rosto profundamente humano e, nEle, a humanidade se encontra plena, reunida numa só família. 12 4 Ratzinger, J. Zur Frage nach dem Sinn des priesterlichen Dienstes, in GuL 41 (1968) 357. 5 Em DAp 359 encontramos “uma profunda lei da realidade: a vida se desenvolve plenamente na comunhão fraterna e justa”. Em DAp 360, “outra lei profunda da realidade: a vida se alcança e amadurece à medida que é entregue para dar a vida aos outros”. E conclui: “isso é, definitivamente, a missão”. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Stefano Raschietti A vida de Jesus aponta continuamente para essa perspectiva. A sua é uma maneira de encarar a realidade baseada numa peculiar experiência de Deus, uma ética que se fundamenta numa ótica: se eu acreditar que Deus é verdadeiramente Pai de todos, então os outros são meus irmãos. Todos os outros, ninguém excluído (cf. DAp 353).6 Por isso, então, a prática missionária de Jesus é uma contínua aproximação aos pobres e aos outros para libertá-los das amarras da opressão da Lei, do preconceito, da exclusão, do domínio, e oferecer-lhes uma vida melhor: isso acontece com paralíticos (cf. Jo 5,1-18), cegos (cf. Jo 9,1-34), leprosos (cf. Lc 17,11-19), endemoninhados (cf. Mc 5,1-20); mulheres prostitutas, impuras, adúlteras, pagãs (cf. Lc 7,36-50; 8,43-48; Jo 8,1-11; Mc 7,24-30), cobradores de impostos (cf. Lc 19,1-10), fariseus (cf. Jo 3,1-15) e romanos opressores (cf. Mt 8,5-13). Uma vida plena O desconcerto causado por Jesus, pela humanidade universal do Deus que ele anuncia, acompanha a sua Igreja e seus presbíteros até os dias de hoje. Estamos sempre a caminho como discípulos missionários, em qualidade de presbíteros, tentando entender o mistério dEle, aderindo à sua mesma missão. Ele é o Caminho, a Verdade e a Vida que continuamente surpreende e desafia nossas direções, nossas convicções e nossas pretensões. A única coisa que nos pede (porque é a única que humaniza plenamente), é: viver como filhos do Pai e como irmãos entre nós. A nossa fé não constitui uma moral, um rito: funda e se realiza num humanismo. Amar o humano em todas as suas manifestações e limitações: isto é divino e isto é exigido dos discípulos missionários. O Evangelho não indica as condições para salvar a própria alma: indica como viver plenamente, humanamente, na base do amor gratuito. Ele é recompensa para si próprio. A vida plena só se encontra na vivência de um amor radical, gratuito e universal, segundo o espírito das Bem-aventuranças (cf. DAp 139), na proximidade e no serviço aos pobres e aos outros. Desta maneira o discípulo se torna “irmão” de todos. Para o presbítero, a dimensão da 6 Cf. CNBB. Diretrizes gerais da ação evangelizadora da Igreja no Brasil. 2003-2006, 114-120 Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 13 O presbítero e a missão fraternidade é fundamental: “os presbíteros, tirados dentre os homens e constituídos a favor dos homens nas coisas que se referem a Deus, para oferecerem dons e sacrifícios pelos pecados (16), convivem com os restantes homens como irmãos” (PO 3). Essa fraternidade evangélica constitui também o âmbito necessário para o celibato voluntário dos discípulos missionários. A escolha celibatária não é um virtuosismo direcionado a uma perfeição individual ou a uma atividade apostólica. Faz parte da radicalidade vivida por Jesus e proposta aos discípulos: deixar casas, irmãos, irmãs, pai, mãe, filhos, campos... (cf. Mt 19,29). Essa radicalidade conflui numa comunhão de vida com Ele e com uma pequena comunidade de irmãos: “Jesus faz dos discípulos seus familiares, porque compartilha com eles a mesma vida que procede do Pai e lhes pede, como discípulos, uma união íntima com Ele, e obediência à Palavra do Pai, para produzirem frutos de amor em abundância”. (DA 133) É por isso que a Christus Dominus 30 recomenda insistentemente a vida em comum dos presbíteros. A palavra “irmão” é tão importante, no Evangelho, que se torna praticamente um sinônimo de discípulo. Fazer discípulos na missão (cf. Mt 28,19), portanto, quer dizer fazer irmãos. A comunhão de vida estabelecida mediante relações fraternas constitui a origem, o caminho e a meta da missão: “Descobrimos, dessa forma, uma profunda lei da realidade: a vida só se desenvolve plenamente na comunhão fraterna e justa” (DAp 359). Uma missão que comunica vida A partir daqui entendemos por que uma vida plena segundo o Evangelho é uma vida que se torna dom. A vida de Jesus foi um dom: “Tomai e comei, isto é o meu corpo”. Nós fazemos eucaristicamente memória desse dom quando nos entregamos inteiramente à doação, até coincidir rigorosamente com o Dom recebido. Aplicado à vida do presbítero, isso tem um significado todo especial: “A auto-doação de Cristo, que tem a sua fonte na vida trinitária do Deus-Amor, atinge a sua expressão mais alta no sacrifício da Cruz, cuja antecipação sacramental é a Última Ceia. Não é possível repetir as palavras da consagração sem sentir-se implicado nesse movimento espiritual. Em certo sentido, o sacerdote deve aprender a dizer, com 14 Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Stefano Raschietti verdade e generosidade, também de si próprio: ‘tomai e comei’. De fato, a sua vida tem sentido, se ele souber fazer-se dom, colocando-se à disposição da comunidade e ao serviço de qualquer pessoa que passe necessidade”.7 Vida não é para ser retida: é para ser doada (cf. DAp 360). A frase de Jo 10,10, “Eu vim para que todos tenham vida, e a tenham em abundância”, largamente utilizada em nossas pastorais sociais, tornouse não raramente um chavão equivocado. Quantas vezes os presbíteros se entregaram para que os pobres tivessem “vida em abundância”. Mas a conquista dessa vida, em termo de moradia, terra, trabalho, educação, saúde, etc., muitas vezes foi recebida como vida para si sem partilha, sem missão, sem dom para os outros. Quantas lideranças abandonaram as lutas sociais, uma vez alcançados seus próprios objetivos. Sem dúvida, a missão cristã beneficia gratuitamente muita gente, mas deixa de fazer discípulos missionários (cf. Mt 28,19) quando não consegue envolver seus destinatários na lógica do dom, que faz com que eles participem da própria vida de Deus (cf. DAp 348). Esse discernimento é cruel para a missão, mas necessário: se for verdade que “a evangelização vai sempre unida sempre à promoção humana e à autentica libertação cristã” (DAp 26), é também verdade que o divisor das águas entre promoção humana e discipulado missionário é exatamente o dom da vida não só recebido mas também oferecido. Estamos realmente evangelizando? Estamos ajudando nossos interlocutores a tornarem-se protagonistas da missão e não apenas destinatários? Estamos saindo da planície para escalar com eles o topo da montanha da Galileia8, para ser enviados aos outros? É preciso ter muito claro que o objetivo último da missão não é fazer obras (filantrópicas) e sim fazer discípulos missionários, praticantes da Palavra, participantes da vida divina. Isso faz a vida fluir: uma vida doada para outra vida, para que esta se torne por sua vez um dom. A Igreja na América Latina procura encontrar esse sentido da missão 7 JOÃO PAULO II. Carta aos Presbíteros por ocasião da quinta feira santa de 2005. Disponível em: http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/letters/2005/documents/ hf_jp-ii_let_ 20050313_ priests-holy-thursday_po.html. Acesso em 5 fev. 2008. 8 A montanha das Bem-aventuranças (cf. Mt 5-7) e a do Grande Mandato (cf. Mt 28,1620) Num primeiro momento, aqui é proclamada a cartilha do discípulo de Jesus, o que significa ser discípulo de Jesus: o conteúdo da missão. Num segundo momento, no final do Evangelho, nessa mesma montanha, o Ressuscitado envia seus discípulos a fazer discípulos em todas as nações: o objetivo da missão. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 15 O presbítero e a missão quando afirma que é preciso “aprofundar e enriquecer todas as razões e motivações que permitam converter cada cristão em discípulo missionário” (DAp 362). 2 Conversão: renovação missionária das comunidades e de seus presbíteros A missão de comunicar vida é a razão de ser da Igreja (cf. DAp 373) e consequentemente de seus presbíteros. Por isso ela é chamada a desinstalar-se: “a Igreja necessita de forte comoção que a impeça de se instalar na comodidade, no estancamento e na indiferença, à margem do sofrimento dos pobres do Continente” (DAp 362). Se “missão” significa “envio”, todo envio pressupõe um deslocamento e uma saída: “nós somos agora, na América Latina e no Caribe, seus discípulos e discípulas, chamados a navegar mar adentro para uma pesca abundante. Trata-se de sair de nossa consciência isolada e de nos lançarmos, com ousadia e confiança (parresía), à missão de toda a Igreja” (DAp 363). A conversão missionária da qual fala o DAp em uma de suas páginas centrais (cf. 7.2 Conversão pastoral e renovação missionária das comunidades) equivale substancialmente a uma saída. Na saída de si, do círculo da própria comunidade e dos confins da própria terra, se realiza para a Igreja essa conversão. Paradoxalmente, é nessa saída que a Igreja encontra sua razão de ser e sua própria identidade. “Temos que ser de novo evangelizados” (DAp 549) O tema da conversão, antes de ser dirigido aos destinatários da missão, é apontado pelo DAp como exigência fundamental para a própria Igreja. Com o mesmo espírito do Vaticano II, Aparecida analisa que, na atual conjuntura de grandes mudanças, “sentimo-nos desafiados a discernir os ‘sinais dos tempos’” (DAp 33) e “a assumir uma atitude de permanente conversão pastoral” (DAp 366). Na mudança global, a Igreja precisa mudar também, mas não apenas pastoralmente “seu jeito de ser”9: ela precisa ser evangelizada de novo para converter-se numa Igreja 9 16 A pastoral muitas vezes é vista, no esquema clássico dedutivo, apenas como a aplicação prática do depositum fidei. No entanto a missão proporciona um encontro com os pobres e com os outros que informa e transforma profundamente nossa interpretação do Evangelho. A missão, na saída de si, converte profundamente a Igreja, não muda apenas suas linguagens e estratégias “para procurar êxitos pastorais” (DA 372). Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Stefano Raschietti cheia de ímpeto e audácia evangelizadora (cf. DAp 549). Conversão é um convite para Igreja e não, primeiramente, para o mundo. O conteúdo dessa conversão consiste no surpreendente e profundo re-encantamento com a essência do Evangelho, um Evangelho assumido e vivido não como doutrina, mas como “práxis de vida baseada no dúplice mandamento do amor”.10 Essas palavras do Papa Bento XVI indicam um caminho a seguir, aparentemente quase óbvio: “não temos de dar nada como pressuposto e descontado, todos os batizados são chamados a ‘recomeçar a partir de Cristo’” (DAp 549). No entanto, o DAp menciona a falta de espírito missionário em membros do clero e falta de solidariedade na comunhão dos bens no interior das Igrejas locais e entre elas, como sombras na caminhada eclesial latino-americana (cf. DAp 100e). O número de missionários e missionárias além-fronteiras do continente para o mundo é bastante exíguo. A passagem do receber dons de outras igrejas ao dar com gratidão é marcada por fortes resistências, muitas delas de caráter histórico e cultural. Contudo, o motivo principal de uma certa introspeção parece a urgente preocupação com a missão ad intra, apesar de alguns documentos convidarem a superar também essa dificuldade.11 De que maneira podemos suscitar em nossos presbíteros e em nossas comunidades uma abertura verdadeiramente missionária sem uma perspectiva genuinamente ad extra, sem fronteiras, católica, atenta e sensível ao mundo todo? Sem esse respiro, corremos o risco de cairmos “na armadilha de fechar-nos em nós mesmos” (DAp 376), numa dinâmica centrípeta e, afinal, egocêntrica, traindo a missão e o espírito do próprio Evangelho. Como “peregrinos a caminho” (DAp 553) O episódio de Jesus em Nazaré (cf. Lc 4,16-30; Mc 6,1-6) parece confirmar o ditado popular: “santo de casa não faz milagre”. A missão, 10 11 Bento XVI, Encontro e celebração das Vésperas com os Bispos do Brasil, em 11 de maio de 2007. “Uma Igreja local não pode esperar atingir a plena maturidade eclesial e, só então, começar a preocupar-se com a missão para além de seu território. A maturidade eclesial é conseqüência e não apenas condição de abertura missionária. Estaria condenando-se à esterilidade a Igreja que deixasse atrofiado seu espírito missionário, sob a alegação de que ainda não foram plenamente atendidas todas as necessidades locais” (CNBB. Igreja: comunhão e missão, 119). Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 17 O presbítero e a missão por definição, não pode ser feita em casa e nem a partir de casa. Mas ainda hoje, apesar de nossos esforços, somos tentados compreender a missão a partir de nós, a partir da Igreja e não a partir de Deus que envia e se auto-envia. A missão consiste no seguinte: não podemos esperar que as pessoas venham a nós, precisamos nós ir ao encontro delas e anunciarlhes a Boa Nova ali mesmo onde se encontram. Esse princípio parece quase óbvio. No entanto, na prática, a Igreja sempre teve a tentação de evangelizar os povos a partir de sua própria condição, permanecendo em seu lugar, a partir de sua própria cultura, enviando e delegando seus missionários, mas sem se envolver num movimento de saída e de inserção nas situações que desejavam evangelizar. Nesse sentido, metáforas usadas pelo DAp em descrever a Igreja e sua missão, podem levar a algum equívoco. Por exemplo, a freqüente imagem da Igreja como “casa e escola”12, assim como o verbo “acolher” que a acompanha, expressam uma dinâmica missionária só por analogia. Missionário não é, em si, aquele que acolhe, mas é o acolhido por antonomásia. Missão é um termo que desde o Vaticano II serve um pouco para descrever toda a ação da Igreja. No entanto, não podemos perder de vista o que especificamente se entende com isso, sob pena de esvaziar o seu sentido. Uma Igreja enviada é uma Igreja que está fora de casa, que faz a experiência radical do seguimento, do despojamento e da itinerância, como companheira dos pobres (cf. DAp 398) e como hóspede na casa dos outros. O discípulo, em particular o discípulo presbítero, é essencialmente um peregrino e um enviado que deixou casas, irmãos, irmãs, pai, mãe, filhos, campos, por causa de Jesus. O próprio Jesus disse: “Eu sou o Caminho” (Jo 14,6) e não: “Eu sou a chegada”. Jesus inverte a perspectiva de Tomé, que queria conhecer o caminho a partir do ponto de chegada: “Senhor, não sabemos para onde vais. Como podemos conhecer o caminho?” (Jo 14,5). Esta identificação de Jesus com o caminho foi algo de marcante para os primeiro cristãos. Eles se autodenominavam de “pertencentes ao Caminho” (At 9,2):13 18 12 Cf. DA 158; 167; 170; 188; 246; 272; 370. 13 Cf. SUESS, Paulo. Migração, peregrinação e caminhada. Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, n. 238, p. 309, jun. 2000. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Stefano Raschietti “Abandonar as estruturas caducas” (DAp 365) A partir dessas considerações, o apelo do DAp de “abandonar as estruturas caducas que já não favorecem a transmissão da fé”, talvez não se refira imediatamente a algo de exterior, mas a algo de profundamente interior na vida dos discípulos missionários (cf. DAp 366.368), como se se tratasse de uma radical renovação espiritual, uma libertação das amarras culturais, sociais, ideológicas, psicológicas, afetivas. O DAp não diz claramente quais são essas amarras. Mas, no que diz respeito à conversão missionária dos presbíteros, podemos até arriscar alguns palpites. Primeiramente, em qualidade da excelência à qual é chamado como discípulo missionário de Jesus Cristo, o presbítero deve ser um homem capaz de estar na linha de frente, nos lugares onde a fé ainda não brotou e a Igreja ainda não se reuniu. O presbítero tem que aprender a viver e trabalhar fora da cumplicidade aconchegante de uma comunidade na qual ele encontra seus irmãos na fé, é reconhecido e valorizado como o “padre”, exerce uma autoridade aceita, é servido e procurado e sua tarefa é definida e apreciada. Desse ponto de vista ele terá que agüentar a solidão ou o isolamento que nasce dessa “alteridade”, às vezes profunda e hostil, por parte do ambiente que está ao seu redor. É uma dimensão que interessa também o aspecto espiritual. O presbítero deverá sair da dependência em relação à sua comunidade, terá que converter sua espiritualidade encontrando referências e recursos em si mesmo, aprendendo a viver a partir da convicção de que seu povo são os “outros”, os de fora. Sua alegria e seu conforto residem no fato de estar próximo a eles no modo mais íntimo que for possível, em nome do Amigo comum, embora eles ainda não o reconheçam. Um outro campo de conversão tem a ver com o próprio ministério ordenado. Nossos jovens presbíteros são investidos fortemente da consciência de serem “padres”, quer dizer, homens da Palavra (sobretudo intra-eclesial, pregação, ensino), de governo e dos sacramentos: “profetas, sacerdotes e pastores”. Isso constitui um fato tremendamente perigoso para um presbítero missionário em relação ao qual a comunidade cristã não é mais o campo principal de suas atividades, o centro da sua vida. Por isso é urgente retificar esta imagem de si. Não porque os tria munera que definem o presbiterado estejam errados, mas porque o presbítero missionário tem que vivê-los de acordo com uma outra lógica. Certamente ele deve ser profeta e anunciador da Palavra, mas para o mundo: uma Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 19 O presbítero e a missão pessoa que é sinal para o mundo (com a palavra e a ação), que decifra os sinais do Reino no mundo (com todos os que buscam a vida), que anuncia o Evangelho para que faça sentido para o mundo. Além disso, ele é sacerdote, certamente, mas o seu sacerdócio não é chamado a se expressar, em primeiro lugar, na administração dos sacramentos. A sua celebração da eucaristia, muitas vezes individual ou sem uma numerosa assembléia, será uma “missa no mundo”; sua aliança de vida com o povo de Deus “que está fora” será seu “culto espiritual”, uma “oferenda espiritual” de hóstias viventes. Ele é, certamente, pastor, mas suas “ovelhas ainda não estão no aprisco”: ele procura, chama, reconhece as ovelhas e as acolherá na medida do dom de Deus. Em uma palavra, a conversão missionária é uma mudança muito radical, que deve atravessar modelos oferecidos e certo ensinamento recebido para poder preparar presbíteros missionários que sabem e têm consciência de ser para todos os povos e não apenas para o povo cristão. É bom lembrar que sempre mais, como presbíteros, seremos envolvidos numa atividade propriamente missionária, quase por consequência. “Além de uma pastoral de mera conservação” (DAp 370) O significado das palavras do DAp de que “a conversão pastoral de nossas comunidade exige que se vá além de uma pastoral de mera conservação para uma pastoral decididamente missionária” (DAp 370), talvez encontre seu sentido apropriado na conversão dos pastores, pois “o testemunho de comunhão eclesial e de santidade é uma urgência pastoral” (DAp 368). Contudo, somos convidados a transformar não apenas nossas pessoas, mas o nosso próprio agir. Aparecida faz um apelo para uma mudança de mentalidade em relação a um estilo projetual de fazer a missão: “o projeto pastoral da Diocese, caminho de pastoral orgânica, deve ser resposta consciente e eficaz para atender às exigências do mundo de hoje” (DAp 371). Praticamente, devemos passar do hábito de apenas planejar a pastoral para o hábito de ter uma mentalidade projetual, o que significa não apenas “bolar” um projeto, mas continuamente avaliá-lo, acompanhá-lo, modificá-lo: “Esse projeto diocesano exige acompanhamento constante por parte do bispo, dos sacerdotes e dos agentes pastorais, com atitude flexível que lhes permita manter-se atentos às exigências da realidade sempre mutável” (DAp 371). 20 Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Stefano Raschietti A nota do DAp é extremamente indicativa: “não se trata só de estratégias para procurar êxitos pastorais, mas de fidelidade na imitação do Mestre” (DAp 371). Ter um projeto missionário significa imitar Jesus, ser fiel a ele. Ele teve um projeto missionário? Sim, sem dúvida. Nós o encontramos em Mateus 9,35-10,42. Aí podemos buscar linhas mestras para traçar nossos projetos e nossos caminhos. Com efeito, ao enviar os doze para uma missão itinerante, Jesus nos ensina: – a enxergar a realidade do mundo e das pessoas com os olhos de Deus, rezando para que o Dono da messe envie operários (cf. Mt 9, 36-38); – a chamar pessoas para serem enviadas em missão em comunidade, por meio de uma organização participativa e descentralizada (cf. Mt 10,1-4); – a definir os objetivos em torno do anúncio essencial e de destinatários específicos: o que quer dizer para nós hoje que “o Reino de Deus está próximo” (Mt 10,7)? Quem são para nós “as ovelhas perdidas da casa de Israel” (Mat 10,5-6)? – a escolher caminhos de serviço à vida; linhas de ação de luta contra o mal; metodologias missionárias de ir ao encontro dos outros, tornando-se hóspedes na casa deles; atitudes básicas diante das inevitáveis perseguições (cf. Mt 10,8-23); – a procurar os meios necessários para alcançar metas e objetivos, sabendo valorizar e capacitar ao máximo os recursos humanos (cf. Mt 10,31), mantendo simplicidade e agilidade com os recursos estruturais (cf. Mt 10,11), dando um testemunho de austeridade, essencialidade, criatividade e justiça através dos recursos financeiros (cf Mt 10,8b-10). Do estudo e da reflexão contextual sobre esses cinco elementos, procede depois a elaboração de nossos planejamentos e de nossos encaminhamentos. Mas, antes de mais nada, o projeto missionário quer definir um estilo de missão, uma maneira peculiar de Jesus em se aproximar da realidade, que corresponde à maneira do próprio Deus Pai de amar o mundo concretamente. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 21 O presbítero e a missão 3 Extensão: nosso compromisso com a missão ad gentes A Igreja se encontra hoje numa situação de diáspora diante da fragmentação e da multi-culturalidade do mundo atual. A hegemonia das tradições religiosas em determinados territórios cedeu lugar ao pluralismo possível, graças às encruzilhadas proporcionadas por tecnologias, mercados, mobilidades humanas e aglomerações urbanas. Nessa situação de efervescência, cidades e metrópoles substituíram aldeias em todos os continentes. Sabedorias populares e estruturas comunitárias deram lugar à autonomia e à liberdade das pessoas. A questão religiosa, no seu conjunto, se amplifica e se aprofunda diante dos desafios do mundo pós-moderno e globalizado (cf. DAp 37). Para a humanidade do século XXI, a religião torna-se sempre mais uma commodity, uma mercadoria para satisfazer as necessidades/desejos espirituais de sentido dos indivíduos, dispensando, porém, a adesão a uma comunidade e a afiliação a uma confissão. Nesse contexto, a missão ad gentes amplia espontaneamente seu âmbito de ação.14 Antigamente, na mentalidade da cristandade, coincidia com a missão ad extra, em territórios culturalmente não-cristãos. Extensão aqui rimava com expansão da Igreja. Hoje, parece impor-se como realidade em qualquer lugar, particularmente nos contextos de antiga tradição cristã. No DAp podemos identificar pelo menos cinco âmbitos de atuação missionária tendo como leit motiv a missão ad gentes. Esses âmbitos podem ser entendidos como círculos concêntricos em ordem à extensão da missão, e também como tarefas que se implicam uma com a outra. Missão aos corações O primeiro âmbito é indicado por uma frase de Bento XVI citada no DAp 7.3:15 22 14 Cf. o capítulo IV da Redemptoris Missio: “Os imensos horizontes da missão ad gentes” (RMi 31-40). 15 Essa citação de DA 375, porém, não confere com: BENTO XVI. Discurso aos membros do Conselho Superior das Pontifícias Obras Missionárias, 5 de maio de 2007. In: http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/speeches/2007/ may/documents/ hf_ben-xvi_spe_20070505_pom_po.html. Acesso em 1 de novembro de 2008. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Stefano Raschietti “O campo da Missão ad gentes se tem ampliado notavelmente e não é possível defini-lo baseando-se apenas em considerações geográficas ou jurídicas. Na verdade, os verdadeiros destinatários da atividade missionária do povo de Deus não são só os povos não cristãos e das terras distantes, mas também os campos sócio-culturais, e sobretudo os corações” (DAp 375). Aqui o campo da missão ad gentes, em seu novo paradigma na esteira de Evangelii Nuntiandi 19 e de Redemptoris Missio 37, é individuado segundo três critérios: a) o critério religioso (os não-cristãos); b) o contexto social; c) a dimensão cultural. Mas o que mais salta aos olhos é esse “... e sobretudo os corações”. A missio ad gentes se apresenta essencialmente como uma missio ad córdia: em primeiro lugar, vem a atenção, a aproximação e o cuidado para com a pessoa humana. A missão não é uma questão de coerção, mas de coração. As pessoas na sociedade pós-industrial vivem dentro de um sistema de coerções e de cobranças. Não agüentam mais. As pessoas precisam de humanidade. Aparecida aposta que o amor cristão “supera o amor humano e participa do amor divino, único eixo cultural capaz de construir uma cultura da vida” (DAp 550). Antes de ser uma verdade axiomática, isso precisa ser entendido como imperativo e perspectiva existencial para todos os cristãos, enquanto discípulos missionários pelo batismo. Por isso que a missão não é primariamente uma questão de estruturas, de métodos e de estratégias, mas é uma questão de homens e mulheres novos: “não há novas estruturas se não há homens novos e mulheres novas que mobilizem e façam convergir nos povos ideais e poderosas energias morais e religiosas” (DAp 538). O diálogo e o anúncio missionário, antes de mais nada, “precisa passar de pessoa a pessoa, de casa em casa, de comunidade a comunidade (...) procurando dialogar com todos, em espírito de compreensão e de delicada caridade” (DAp 550). De coração a coração, objetivo da missão é converter os corações, fazendo com que todos se tornem discípulos missionários (cf. Mt 28,19). Isso significa praticar a Palavra e reconhecer-se como irmãs e irmãos, filhos do mesmo Pai, uns com os outros, próximos aos demais no mundo inteiro. Comunidade missionária O segundo âmbito da missão ad gentes que podemos identificar no DAp é a constituição da comunidade missionária: Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 23 O presbítero e a missão “A Diocese, em todas as suas comunidades e estruturas, é chamada a ser ‘comunidade missionária’ (cf. ChL 32). Cada Diocese necessita fortalecer sua consciência missionária, saindo ao encontro dos que ainda não crêem em Cristo no espaço de seu próprio território e responder adequadamente aos grandes problemas da sociedade na qual está inserida. Mas também, com espírito materno, é chamada a sair em busca de todos os batizados que não participam na vida das comunidades cristãs” (DAp 168). Trata-se de uma “firme decisão” que “deve impregnar todas as estruturas eclesiais e todos os planos pastorais de dioceses, paróquias, comunidades religiosas, movimentos e de qualquer instituição da Igreja” (DAp 365). A Igreja em Aparecida sente que está na hora de mudar, mas não sabe como e de onde começar. De um lado, almeja abandonar uma pastoral de conservação, para uma missão evangelizadora no meio do mundo. Por outro lado, reafirma hierarquicamente suas estruturas delegando a responsabilidade das mudanças a uma maior motivação e a um maior empenho de seus principais agentes. A principal estrutura a ser mudada é a própria mentalidade eclesiocêntrica. Pegamos, por exemplo, a renovação missionária das paróquias (cf. DAp 173). Isso mais parece uma contradictio in terminis que uma afirmação ou um desejo, pois as palavras “pastoral” e “missionária” indicam tensões diferentes e quase opostas. Uma indica preservação, “cuidado com os fieis”; a outra, abertura, envio ao diferente que não pertence ao rebanho cristão. Com efeito, a paróquia nunca foi propriamente missionária e nem nasceu para ser missionária.16 Não é por acaso que em seus documentos principais, como a Lumen Gentium e a Gaudium et Spes, o Vaticano II nunca fala de paróquia. A doutrina conciliar não está interessada em falar da instituição, porque sabe que a instituição não pode se converter. Ao contrário, para indicar a Igreja visível, o Concílio usa a palavra “comunidade”. A comunidade é feita de pessoas 16 24 “Impressiona ler esta consideração do teólogo Severino Dianich: ‘A estrutura paroquial sempre acolheu os crentes aos quais a fé já tinha sido transmitida e aos quais a paróquia devia garantir a catequese e os sacramentos. É paradoxal mas é verdadeiro, o fato de que ao longo de sua história a paróquia nunca esteve preocupada com o problema do acesso à fé dos não-cristãos. É verdadeiramente um paradoxo, mas é difícil desmenti-lo’”. ORLANDONI, Mons. Giuseppe. Il volto missionário della parrochia. Linee programmatiche per l´anno pastorale 2004-2005. In: http://www. diocesi-senigallia.it/documentiword/IL%20VOLTO%20MISSIONARIO%20DELLA%20 PARROCCHIA.doc. Acesso em 15 de julho de 2007. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Stefano Raschietti e de relações. As pessoas têm coração, as estruturas não têm. E a missão é uma questão de coração. A comunidade representa a grande proposta que a Igreja faz ao mundo com sua missão. O próprio Evangelho chama à vida em comunidade. A salvação não passa pela simples distribuição de sacramentos, mas na resposta a um chamado de discipulado missionário que se realiza numa intensa vida de fraternidade. Jamais essa fraternidade constituirá círculos fechados, como também não estará simplesmente aberta a acolher os outros que estão de fora. A proposta de Jesus é de uma fraternidade peregrina que se faz próxima a todos, conjugando a comunidade com a missão: comunhão na missão e missão em comunhão. Missão Continental O terceiro âmbito da missão foi descrito como Missão Continental (cf. DAp 362). Parece haver uma novidade na perspectiva da Missão Continental: passar de uma nova evangelização realizada prevalentemente com eventos esporádicos (ex. missões populares, com a pretensão de trazer o povo para a Igreja), para uma Igreja em estado permanente de missão. Isso equivale a reconhecer o contexto de pluralismo no qual se encontra o mundo de hoje. Esse contexto não representa uma situação de nomadismo das pessoas. Nossas ovelhas não se sentem desgarradas e perdidas, fora do redil da cristandade. Aliás, esse “estar fora” representa muitas vezes um estado de liberdade e de emancipação. Esse pluralismo é a propria “casa” dos nossos povos na América e no mundo, onde temos que entrar tirando as sandálias, para anunciar permanentemente o Evangelho e fazer discípulos missionários. Mas o intuito da Missão Continental não deveria parar por aqui. Há também um outro aspecto importante a ser acrescentado: o da cooperação entre as igrejas. Com efeito, o projeto poderia tornarse também uma ocasião para promover uma inter-ajuda entre igrejas latino-americanas, pelo menos como sinal e gesto comum. Cada Igreja local sentir-se-ia chamada a abraçar uma missão maior junto a outra Igreja no Continente. Aparecida resgata com vigor a perspectiva da Pátria Grande: “una e plural, a América Latina é a casa comum, a grande pátria de irmãos” (DAp 525). Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 25 O presbítero e a missão Essa “dignidade de nos reconhecer como família de latino-americanos e caribenhos implica uma experiência singular de proximidade, fraternidade e solidariedade” (DAp 525). Retomando as palavras de Bento XVI, em várias partes do DAp se diz que o Continente da esperança há de tornar-se o Continente do amor (cf. DAp 64; 128; 522; 537; 543). Tudo isso precisa se expressar urgentemente em termos de compromisso mútuo e de projetos missionários além-fronteiras, para não ficar apenas na base da confraternização e das boas intenções. Missão ad gentes Finalmente, o quarto âmbito indicado por Aparecida é a missão ad gentes. O debate sobre a missão ad gentes intensificou-se muito nas últimas décadas, ao ponto que não é mais possível referir-se a ela somente em termos de territórios e de primeiríssima evangelização. Também o contexto social e a dimensão cultural sobressaem como âmbitos nos quais é preciso “chegar a atingir e como que a modificar pela força do Evangelho os critérios de julgar, os valores que contam, os centros de interesses, as linhas de pensamento, as fontes inspiradoras e os modelos de vida” (EN 19). Desafios como o mundo urbano, a juventude, os fenômenos sociais novos, as migrações, os areópagos das comunicações, da cultura, da política, da economia, fazem parte do nosso cotidiano, estão debaixo dos nossos olhos e dizem respeito diretamente à missão ad gentes (cf. RMi 37). A missão ad gentes convoca hoje a Igreja na América Latina a um êxodo constante junto à humanidade, a uma saída da escravidão de tantas “situações desumanas” (DAp 358) e uma travessia para um outro mundo possível. Esse êxodo exige nossa conversão de cada dia para que aconteça uma ruptura, uma “contraposição à cultura dominante” (DAp 540), com gestos concretos (cf. DAp 397), com o dom da vida (cf. DAp 360) e com sinais que revelam a presença de Deus (cf. DAp 383). Para o DAp, destinatários da missão são, em primeiro lugar, os pobres, enquanto carecem de reconhecimento por parte da sociedade como um todo. São os excluídos, “não são somente ‘explorados’, mas ‘supérfluos’ e ‘descartáveis’” (DAp 65), povo de rua, migrantes, enfermos, dependentes químicos, presos (cf. DAp 8.6): pessoas que representam 26 Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Stefano Raschietti somente um “custo” e que, portanto, para a lógica neo-liberal, devem ser eliminados. Também destinatária dessa missão é a família (cf. DAp 548), como “patrimônio da humanidade inteira”, núcleo da sociedade mundial, afetado por difíceis condições de vida que ameaçam diretamente sua existência (cf. DAp 432), junto a todos seus sujeitos (crianças, adolescente, jovens, idosos, mulheres, homens, mãe e pai de família). O DAp não esquece os areópagos da cultura moderna global (cf. DAp X; RMi 37c): o mundo da educação, da comunicação, da política, da economia, da ciência e tecnologia, onde o Evangelho e a Igreja são vistos muitas vezes como estranhos e hostis. Enfim, um enfoque especial sobre a cidade, “onde surgem novos costumes e modelos de vida” (RMi 37b), e sobre os indígenas e afro-descendentes, com os quais a missão ad gentes tem uma dívida histórica. Tudo isso representa para a Igreja da América Latina e Caribe uma missão ad gentes fora de sua casa e de seus quintais. Podemos dizer que ela está mergulhada nessa missão, e que, portanto, constitui para ela e seus presbíteros “uma atividade primária e essencial, jamais concluída” (RMi 31). Missão universal Se precisarmos distinguir, de uma certa forma, a missão ad gentes da missão ad extra, “além-fronteiras” (cf. Puebla 368), essa última então constitui um ulterior e indeclinável âmbito de atuação missionária: “O mundo espera de nossa Igreja latino-americana e caribenha um compromisso mais significativo com a missão universal em todos os Continentes. Para não cairmos na armadilha de nos fechar em nós mesmos, devemos formar-nos como discípulos missionários sem fronteiras, dispostos a ir ‘à outra margem’, àquela onde Cristo ainda não é reconhecido como Deus e Senhor, e a Igreja não está presente” (DAp 375). Longe de representar algo de ultrapassado e de necessariamente ligado a pretensões hegemônicas do cristianismo, essa visão aponta para uma fundamental dimensão universal da missão. O conceito é estreitamente ligado à missão ad gentes como “missão para a Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 27 O presbítero e a missão humanidade”,17 mas é necessário distingui-lo para que não “se torne uma realidade diluída na missão global de todo o Povo de Deus, ficando desse modo descurada ou esquecida” (RMi 34). A missão ad extra lembra que a missão ad gentes, na sua radicalidade e especificidade, “se exerce em territórios e grupos humanos bem delimitados” (RMi 37a), e que um contexto culturalmente não-cristão representa um desafio bem mais complexo e de primária importância em relação a outros já marcados por uma tradição cristã. Hoje essa perspectiva pode ser pensada também em termos de missão inter gentes, uma missão entre povos e continentes, entre igrejas locais e igreja universal, vivida no intercâmbio de dons entre comunidades solidárias. Essa visão corresponde ao espírito do Vaticano II, porque “leva em conta a situação do pluralismo religioso e da diáspora crescente da Igreja no mundo de hoje; enfatiza a responsabilidade da Igreja local para a missão; quebra o monopólio de uma Igreja que envia missionários e uma Igreja que os recebe; admite a reciprocidade e conversão mútua entre agentes e destinatários da missão e da Igreja nos seis continentes e, por conseguinte, valoriza o diálogo intercultural e inter-religioso; sublinha a missão como uma atividade, não entre indivíduos, mas entre comunidades”.18 Conclusão Todos esses âmbitos da única missão da Igreja são constitutivos para definir a identidade e a missão dos presbíteros, que estão ainda muito presas ao imaginário pastoral. O Diretório dos Presbíteros diz claramente que o ministério do presbítero é essencialmente pastoral19, e é “o único, depois do Bispo, ao qual, em virtude do ministério sacerdotal recebido mediante a ordenação, se pode atribuir dum modo próprio unívoco o termo ‘pastor’. Com 28 17 O recente Congresso Americano Missionário (CAM 3 – Comla 8) adotou esse caminho para entender a missão ad gentes. 18 SUESS, Paulo. Introdução à Teologia da Missão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. 19 CONGREGAÇÂO PARA O CLERO. Diretório para o Ministério e a Vida dos Presbíteros, n. 16. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Stefano Raschietti efeito, a qualificação de ‘pastoral’ refere-se quer à ‘potestas docendi et santificandi’ quer à ‘potestas regendi’”.20 Por outro lado, a Presbyterorum Ordinis afirma que “os presbíteros, como cooperadores dos Bispos, têm, como primeiro dever, anunciar a todos o Evangelho de Deus, para que, realizando o mandato do Senhor: ‘Ide por todo o mundo, pregai o Evangelho a todas as criaturas’ (Mc 16,15), constituam e aumentem o Povo de Deus” (PO 4). A pastoral, portanto, descreve apenas uma parte – a menor talvez – de toda a missão da Igreja, e ao presbítero não é confiada apenas essa parte, mas toda a missão. A missão ad gentes constitui o seu “primeiro dever”. O próprio Diretório dos Presbíteros pondera que “o sacerdote pertence ‘de modo imediato’ à Igreja universal, que tem a ‘missão’ de anunciar a Boa Nova até ‘aos confins da terra’”.21 A missão ad gentes lembra globalmente à Igreja da América Latina sua situação de diáspora no mundo atual e, especificamente, as situações outras onde ela não está presente com o anúncio do Evangelho, aqui e no mundo inteiro. O apelo é sempre essencial: Jesus e seu Evangelho é salvação, vida e felicidade para todos. A Igreja, com seus presbíteros e toda sua ministerialidade, é chamada a ser esse Evangelho no meio dos povos, próxima a todas as realidades humanas e, ao mesmo tempo, transcendendo todas elas. Deus convida o ser humano a se converter para ser “sempre mais”: sempre mais humano, sempre mais sensível, sempre mais misericordioso. Esse “sempre mais” corresponde a um contínuo ir além de todas as fronteiras. Enquanto o ser humano é sensível ao que lhe está mais próximo, Deus é compassivo também com aquele que lhe está menos próximo. Ou, como diria o Eclesiástico: “A compaixão de uma pessoa se volta para seu próximo; a misericórdia de Deus, porém, para todo ser vivo” (Eclo 18,12). O que qualifica a comunidade cristã é, definitivamente, a vivência dessa misericórdia sem limites “para todo ser vivo”. Isso torna os discípulos missionários “perfeitos como é perfeito o Pai que está no céu” (Mt 5,48). Esse último aspecto deveria caracterizar, de maneira peculiar, o ser discípulo missionário como presbítero. É o modo mais fundamen20 Ibid., n. 19. 21 Ibid., n. 14. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 29 O presbítero e a missão tal, radical e primário de ser discípulo missionário. A missão ad gentes representa uma dimensão privilegiada de exercício do ministério do presbítero. Sua identidade encontra nessa missão uma modalidade de atuação típica e específica. Por sua vez, ela confere à própria missão qualidade e espessura: o presbítero é chamado a ser um alter Christus, um ícone de Cristo, um prolongamento sacramental de Jesus. Sem dúvida, essa concepção sacramental da missão encontra em toda a Igreja a sua atuação. Contudo, no presbítero tem concretamente e visivelmente o seu “ministro” por excelência. E-mail do Autor: [email protected] 30 Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Resumo: O tema do artigo é desenvolvido em vários capítulos, começando com o ministério eclesial pela análise dos termos-chave nos diferentes livros do NT e do uso nas citações na literatura patrística das primeiras décadas. Muito elucidativa sobre a vida dos bispos nos primórdios do cristianismo é a abordagem das sete Cartas no livro do Apocalipse. Uma característica marcante é estudada no capítulo sobre a atividade dos presbíteros a serviço de Cristo na Igreja. Realce especial merece a função dos presbíteros como oficiantes da celebração litúrgica da Eucaristia. O último capítulo mais extenso trata da missão das mulheres na pastoral vocacional diante do problema da escassez dos padres hoje em dia. Abstract: The article develops the basic theme in various chapters, beginning with the semantic analysis of key words which occur in different books of the NT, dealing with the ecclesial dimension of the ministries in the Church. A quick glance at some of the earlier written sources of Christianity from the first decades is quite revealing. Very interesting is the reference to the life of the bishops mentioned in the seven letters addressed to churches mentioned in the Apocalypse. The study of the priestly ministry at the service of Christ is quite important in the overall presentation relevant features. Special attention is given to the function of the priests officiating at the liturgical celebration of the Eucharist. The last chapter is more extended due to the involvement of women in the pastoral activity dealing with the promotion and formation of vocations of future priests. Facing the problem of a steady decrease in number of seminarians in the diocese and religious orders new procedures should be devised to stop the shortage of clergy and raise the growth of new vocations. Ministério presbiteral na Igreja Luis I. J. Stadelmann, SJ * * O autor, Doutor em Línguas e Literatura Semíticas, Cincinnati, e Mestre em Ciências Bíblicas, é Professor no ITESC. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011, p. 31-44. Ministério presbiteral na Igreja Introdução O ministério presbiteral é uma das funções a serviço dos fiéis da Igreja. Segundo o documento do Concílio Vaticano II Lumen Gentium (LG), a organização da Igreja está baseada na inovação da revelação divina a respeito dos fiéis integrados no corpo da Igreja não como meros ouvintes ou espectadores e, sim, como cooperadores de Cristo Ressuscitado e do Espírito Santo na obra de redenção da humanidade. Manifesta-se assim uma nova dimensão do status dos fiéis, enriquecidos com o dom do Espírito Santo, que os incentiva para assumir sua missão na vida como cristãos engajados na consolidação das comunidades de fé e comunidades éticas. Esta inovação é própria do NT e recebe pleno apoio nas Cartas do NT e nos Evangelhos, diferenciando-se assim do AT, onde em nenhum dos livros veterotestamentários se menciona a função dos fiéis como colaboradores de JHWH na obra de salvação divina no mundo. Não há referência ao papel dos israelitas como colaboradores de Deus na obra de implantar e consolidar comunidades de fiéis, porque pertence unicamente à iniciativa de Deus, já que as criaturas humanas não tinham sido elevadas ao status de “filhos adotivos de Deus e herdeiros de Cristo” (Rm 8,15-17). Ministério eclesial Na chefia das comunidades cristãs, desde o início do cristianismo, encontram-se πρεσβυτεροι − presbyteroi: na Ásia Menor (At 14,23); em Jerusalém (At 11,30; 15,22); em Éfeso (At 20,17); em Creta (Tt 1,5, cf. 1Tm 5,1; 1Pd 5,1-5; 2Jo 1; 3Jo 1; 1Tm 4,14). É bom observar, que o termo presbítero é sinônimo, na linguagem do NT, do termo επισκοπος − epíscopo (At 20,17 e 28; Tt 1,5-7), o qual se emprega também no plural (Fl 1,1) designando chefes de uma Igreja local. A terminologia grega se apoia na tradução do termo hebr. zaqen e aramaico zaqin (“ancião”), cuja função correspondia à de mestre da comunidade de fé. Para a função do epíscopo se empregava também a palavra roš − “chefe” (em hebraico e aramaico) indicando o líder como autoridade religiosa. Mas, para os historiadores surgiu o problema de saber a que realidade exata esses dois nomes correspondiam. E isto para não prejudicar a opção por uma tradução por demais moderna, supondo que os termos “epíscopo” e “presbítero” fossem transcrições rudimentares e, no entanto, são mais expressivos e fiéis, do original grego. 32 Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Luis I. J. Stadelmann, SJ Ora, a mesma tradição ocorre na literatura patrística. Os “epíscopos” reaparecem na Didaqué (XV. 1) e em Clemente de Roma (1Cor 42,4); ao passo que os “presbíteros” são mencionados por S. Policarpo (Fl v. 3). Hermas conhecia os dois: uma vez os “presbíteros” são citados ao lado dos apóstolos (Vis. M. 5,1); mas ao abordar outras regiões além da Igreja de Roma, ele observa que de fato “os presbíteros a governam” (Vis. 2,4). Entretanto, não há dúvida de que os dois termos não designam a mesma função, como consta em S. Paulo e S. Lucas. Na verdade, vários indícios atestam com certeza a existência, na mesma época, do episcopado propriamente dito. Mesmo assim, o vocabulário hierárquico continua sendo impreciso. Para haver uma distinção mais exata entre o corpo presbiteral e o bispo como seu chefe, é preciso pesquisar outras fontes até chegar a S. Inácio de Antioquia, onde é corrente1. Quem eram então esses “presbíteros” nos inícios da Igreja nascente? Houve tentativas de explicação com base numa analogia com um corpo honorário entre os dignitários, ou por causa de sua eleição pelos fiéis ou por causa do caráter sagrado, atribuído a eles como pré-requisito de suas funções. Outros supõem praxe em vigor numa época em que todos os “presbíteros” teriam possuído o caráter episcopal sufragâneo. Mas podemos contentar-nos com a explicação de simplesmente ver aí sacerdotes, unidos entre si nas comarcas de um bispado, o que é suficientemente atestado alhures naquele tempo2. Porém há mais. Conhece-se o livro do Apocalipse onde se encontra uma terminologia bem diferente da costumeira, ao designar o chefe de cada uma das sete Igrejas da Ásia Menor com o termo “anjo, mensageiro“, em grego: αγγελος − angelos (Ap 2-3). Sua função é guiar a comunidade de fé e transmitir a mensagem que o Espírito de Deus lhe comunica. Essas sete cartas dirigidas às Igrejas na Ásia Menor apresentam uma imagem bem ilustrativa de Jesus Cristo, da história da Igreja e também da vida dos presbíteros. 1 Cf. Carta a Filadélfia. VIII, 4, Esmirna VIII, e S. IRINEU, Adversus haereses, III, 14,2 PG, vol.I, col. 914. 2 Cf. J. RIVIÈRE, “Presbytre”, em: Dictionnaire pratique des Connaissances Religieuses V, Librairie Letouzey et Ané, Paris, 1927, col. 749-750. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 33 Ministério presbiteral na Igreja A vida dos bispos no NT3 Em cada uma das sete Cartas enviadas pelo autor do Apocalipse, é apresentado o perfil do chefe da Igreja cristã local com ênfase nas qualidades de caráter e de espiritualidade, para que sirvam de paradigma, mutatis mutandis, a outros líderes eclesiais. Como característica comum é avaliada sua conformidade com as virtudes teologais: a fé vigilante, a esperança comprovada pela fidelidade e a vivência do amor. O ”anjo” de Éfeso se destaca pela qualidade organizativa, a perseverança na luta de consolidar a comunidade, um temperamento marcante, alcançando êxito notável no seu engajamento. Entretanto, em meio à atividade empreendedora, esmoreceu seu amor inicial. Apesar de todo o êxito conquistado, sua liderança como pastor perdeu seu brilho no candelabro (Ap 2,1-7). O “anjo” de Esmirna está desprovido de bens materiais, isento de cobiça, e é fiel na adesão a Cristo. Do fundo do seu coração e do fundo de sua confiança em Deus brotam sua força a toda prova. Perseguições e calúnias não abalam sua constância na vocação, de sorte que a Igreja tem nele um sustentáculo seguro em tempos de grave perigo (Ap 2,8-11). O “anjo” de Pérgamo exerce seu apostolado numa comunidade muito atribulada, já que Satanás erigiu seu trono naquela cidade. Logo de início desenvolveu uma atividade bem diversificada, com muita coragem, e empenhou-se pela pureza da fé, mas em seguida ficou paralisado pela tibieza. Portanto, precisava ser encorajado e admoestado para retomar sua prístina fortaleza na fé (Ap 2,12-17). O “anjo” de Tiatira possui qualidades louváveis, executa obras com amor e perseverança, e seu zelo está em contínuo crescimento, porém falta-lhe o dom do discernimento dos espíritos. Mostra condescendência no trato com uma mulher que se exibe como profetiza, mas não passa de uma pervertida (Ap 2,18-28). 3 34 Nos Comentários exegéticos do Apocalipse constam descrições muito elucidativas do perfil dos bispos nas comunidades cristãs da província romana da Ásia: cf. A. FEUILLET, “Jalons por une meuilleure intelligence de l’Apocalypse”, em Esprit et Vie, vol. 85, 1975, 209-223, segundo o qual, os “anjos” são sem dúvida os chefes dessas Igrejas; cf. também P.MORANT, Das Kommen des Herrn, Thomas Verlag Zurique, F. Schöningh, Munique, Paderborn, Viena, 1969, 107-108; por outro lado, foi apresentada a hipótese menos provável de que esses “anjos” seriam meramente as comunidades eclesiais, ver P. PRIGENT, O Apocalipse, (Bíblica Loyola 8), Ed. Loyola, S. Paulo 1993. p. 44. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Luis I. J. Stadelmann, SJ O “anjo” de Sardes é homem de fachada, com aspirações à ostentação e exterioridade. Leva uma vida de conforto e faltam-lhe o espírito de fé e a convicção sobrenatural da vocação. Vangloria-se do renome em público, mas aos olhos de Deus ele está morto (Ap 3,1-6). O “anjo” de Filadélfia é modelo de um cura de almas sem mácula nem defeito. Embora não possua grande talento, granjeia estima entre os adversários pela fidelidade, vida exemplar e grande fervor (Ap 3,7-13) O “anjo” de Laodiceia não faz honra ao seu cargo, talvez por viver numa cidade muito rica. De fato, está muito convencido de sua capacidade profissional e da importância pessoal. Sua característica é a tibieza e ausência de espiritualidade baseada na vocação (Ap 3,14-29). Desde o início do livro do Apocalipse, vê-se a importância considerável da apresentação das sete comunidades cristãs, sete Igrejas, localizadas na província romana da Ásia, resultado da rápida difusão do cristianismo no Império Romano, na segunda metade do I. séc. O número “sete” indica o conjunto de cidades nas quais dois cultos idolátricos eram praticados: o culto a Ártemis4, em Éfeso, e a solenidade em honra do imperador romano, celebrada anualmente com cerimônias festivas em cada uma dessas sete cidades. O culto dedicado a Ártemis estava enraizado na população, por causa da sua veneração como deusa da fecundidade na natureza e na vida humana. Segundo a lenda, Ártemis tinha sete assistentes metamorfoseadas em estrelas. Essas assistentes eram identificadas com as Plêiades, um grupo de estrelas na constelação do Touro. A designação dos bispos por “anjos” é provavelmente uma alusão à nomenclatura sideral. Haja vista a situação do “anjo”5 da Igreja em Sardes, que foi chamado de “morto” (3,1), em analogia com Mérope, a estrela tutelar que se tornou invisível, por castigo de ter amado um mortal6. 4 Quanto ao culto das Plêiades, é de notar que sua origem é semítica, da Mesopotâmia, veja-se J. HENNINGER, “La religion bédouine préislamique”, em: L’antica società beduina, Roma 1959, p. 133. 5 A designação dos bispos como “anjos, mensageiros” (cf. Ec 5,6 e Ml 27, sobre os sacerdotes do AT), se explica pela sua função de portadores da Palavra na liturgia eucarística. O motivo de o autor do Apocalipse usar o termo “anjos” em lugar de “epíscopos”, é provavelmente intencional. 6 A razão de o autor do Apocalipse optar pela escolha exatamente dessas sete cidades não está clara. Surge a pergunta: por que são citadas estas igrejas e não outras, que existiam por lá na época? A resposta está na proximidade geográfica: Éfeso dista 50 km de Esmirna, que dista 70 km de Pérgamo, que dista 60 km de Tiatira, que dista 50 km de Sardes, que dista 45 km de Filadélfia, que dista 70 km de Laodicéia. A posição geográfica dessas cidades e sua proximidade evocam a configuração estelar Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 35 Ministério presbiteral na Igreja Presbíteros a serviço de Cristo na Igreja7 O ministério sacerdotal está diretamente ligado à missão de Jesus Cristo, como Redentor da humanidade8. A razão é bem clara: Deus precisa de padres, porque o intermediário entre Deus e o gênero humano tem que ser um homem e não um anjo, porque esse não é visível. Por isso, Jesus entrou no mundo para responder às aspirações dos seres humanos e estender-lhes as mãos, a fim de distribuir-lhes os dons divinos. Com efeito, Cristo é que vem ao encontro dos anseios do “eu” transcendente em busca da presença de Deus9. No AT havia uma função toda especial atribuída ao sacerdócio no rol das instituições de mediação da salvação divina, sendo aí designado para servir como um dos quatro sinais de Eleição divina do Povo Eleito: Templo, sacerdócio, Jerusalém e realeza davídica. Destarte, os israelitas reconheciam no sacerdócio aarônico a missão precípua de celebrar a liturgia no Templo, ofertando os sacrifícios. Outros encargos diretamente ligados à sua atuação no santuário eram: o ensino da fé e da instrução na Lei (cf. Lv 10,10-11), e a conservação dos livros sagrados. Desde tempos remotos, vigorava a tradição religiosa em Israel de manter a coesão entre os fiéis mediante as instituições religiosas, servindo de mediação da presença de Deus. A opção por instituições sagradas se baseava na continuidade histórica e na prevenção de desvirtuarem em meras funções transitórias, por causa de fatores extrínsecos ou devido à improvisação, como é típico nos movimentos de religiosidade. Na religião do NT foi adotada do AT a celebração da liturgia com a oferta do sacrifício de ação de graças (ευχαριστια − eucaristia)10. O das Plêiades, pois se assemelham à figura geométrica dessa constelação; cf. L. STADELMANN, Criação e Ecologia na Bíblia, Ed. Lyola, S. Paulo. 2007, p. 68-70. 36 7 Cf. J. GIBLET, “Os Sacerdotes da Segunda Ordem”, artigo inserido no livro de G. Baraúna, A Igreja do Vaticano II, Vozes, Petrópolis, 1965, cap. IV “Episcopado e Presbiterado”, p. 906-918. 8 No Catecismo da Igreja Católica (1998) se designa o ministro ordenado como “ícone” de Cristo Sacerdote (n.1142), citando um texto de S. INACIO DE ANTIOQUIA. 9 A metáfora do “eu” transcendente foi elaborada pelo psicanalista C.G. JUNG, tendo sua aplicação no estudo da teoria da personalidade. Veja-se a conclusão do livro de Susan C. CLONINGER, Teorias da Personalidade, (Trd. de C. Berliner), Martins Fontes, S. Paulo, 1999, p. 532s. 10 Outros tipos de sacrifício em vigor no AT eram os seguintes: holocausto (Lv 1,1-17); oblações de cereais (2,2-16); ação de graças, i.e. sacrifícios pacíficos (3,1-17); expiação dos pecados (4,1-5-13) e reparação da culpa (5,14-26). Os Salmos mencionam também “sacrifício de louvor” como expressão alternativa de “ação de graças”, porque Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Luis I. J. Stadelmann, SJ próprio fundador do cristianismo tomou a iniciativa de instituir o culto sacrifical na Última Ceia para ratificar a Nova Aliança. Caso contrário, essa Aliança se reduziria a mera recordação de um rito obsoleto do passado ou a evocação de uma ideia, sem eficácia real11. É importante notar a inovação introduzida por Jesus Cristo ao instituir, de forma incruenta, o “memorial” do sacrifício salvífico na cruz para remissão dos pecados. Não se trata meramente de um rito sagrado12 como tal, que Cristo lhes mandou realizar e, sim, de celebrar, antecipadamente, na véspera, o sacrifício memorial da Sexta-Feira Santa: “meu corpo que será dado por vós” e ”meu sangue que será derramado por vós e por todos” (1Cor 11,24-25). Chamamos a atenção para o uso do tempo dos verbos no futuro, numa opção de tradução adotada com a reforma litúrgica da Vaticano II, com base no argumento de que a ação litúrgica comemora uma ação com eficácia em todos os tempos. Mas o Concílio visava ressaltar a atuação de Cristo dentro da História da Salvação marcada pela continuidade e descontinuidade entre o AT e NT. A praxe de oferecer um sacrifício incruento é deveras inovadora, embora tenha ficado despercebida em outras religiões e por isso não foi adotada por elas. É isso o que hoje se celebra na S. Missa. Na Última Ceia foram instituídos os apóstolos como ministros ordenados: “Fazei isto em memória de mim!” (1Cor 11,23-26). A função de Cristo no exercício do sacerdócio não se compara com o sacerdócio aarônico, mas é o sacerdócio primordial por ser “intransferível” e ser de outra “ordem” (Hb 7,24), isto é, não é hereditário entre as famílias sacerdotais da descendência de Aarão. A religião abrange liturgia e culto: o sacrifício tem o papel de mediação da graça divina, sem reduzir-se a mero rito. Ora, ritos religiosos originam-se em costumes populares, no folclore, tabu e cerimônias públicas, quando se celebram eventos festivos do calendário cívico. Porém, as mediações da graça divina são instituídas nas religiões bíblicas por ministros ordenados para o exercício de funções sacras no culto e na liturgia, culto, portanto, sacrifical (cf. Hb). Além da função de oficiantes da liturgia, os “sacerdotes” exercem também a liderança das comunidades se louva o Benfeitor divino em vez de agradecer a dádiva divina; cf. hebr: tôdah = louvor, gratidão. 11 Ver a opinião diferente defendida por José COMBLIN, afirmando que Jesus Cristo não teria fundado uma religião nem instituído um culto sacrifical, mas teria se contentado em pregar o Reino de Deus, cf. “O pobre, critério para a profecia”, em Encontros Teológicos, Nº 59, Ano 26, Fasc. 2 (2011), p. 131-154. 12 Veja-se o artigo de Jung MO SUNG, “Eucaristia: memorial ou rito sagrado”, em Convergência, Ano 43, Nº 411, Maio 2008, p.328-336. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 37 Ministério presbiteral na Igreja de fé pelo ensino da doutrina, pela administração dos sacramentos, pela organização e obras assistenciais da Igreja local. Para não desvirtuar num mero ativismo “a serviço” do serviço pastoral, entrou em foco, a partir do Vaticano II, a perspectiva deontológica, isto é, a espiritualidade presbiteral unindo a vivência eclesial da fé na comunidade dos fiéis com a própria adesão do presbítero a Cristo como discípulo13. A celebração da liturgia na Igreja O cristianismo como religião está a serviço do Reino de Deus. Na Igreja Católica destaca-se a liturgia sagrada na comunidade de fiéis porque, por meio dela, a religião se torna viva graças à presença atuante de Jesus Cristo, a fim de ratificar a Aliança sagrada por meio de um sacrifício, na santa Missa. Cumpre particularmente sublinhar as diferentes concepções do sacrifício: Sacrifício em sentido antigo e moderno14 Concepção moderna (secularizada) Uso específico: Somente um ato cultual Nunca um ato cultual Âmbito: Totalmente religioso Quase sempre secular Volume: Quanto maior possível Quanto menor possível Destinatário: Sempre oferecido a Deus Nunca oferecido a alguém Objetivo: Em reconhecimento por dádiva Sem reconhecimento por dádiva Ato: Feito sempre com alegria Feito sempre com pesar Emoção: Acompanhado de júbilo Acompanhado de tristeza Ênfase: Na doação da oferta Ênfase em desfazer-se de algo próprio Implicação: Morte e destruição como fator Morte e destruição como fator acidental inerente Transferência: Privação não é fator constitutivo Privação é fator constitutivo Parâmetros Concepção antiga (bíblica) Desde logo, surge a pergunta: por que Cristo encerrou sua missão na terra por uma morte cruenta e pela ressurreição gloriosa? A resposta é dada nas três profecias sobre a sua morte salvífica (Mt 16,21; 17,22s; 20,17-19). Pois Cristo explica que Ele tinha que morrer dessa maneira (em grego δει − “é necessário”) devido ao desígnio salvífico de Deus em aceitar o sacrifício de expiação pelos pecados da humanidade e assim realizar a 38 13 Cf. Carlos Rogério GROH, A identidade do ministério presbiteral como tema teológicopastoral: uma questão epistemológica, ITESC, Florianópolis, 2010, p. 106-120. 14 Robert J. DALY, SJ, The Origins of the Christian Doctrine of Sacrifice. Philadelphia, Fortress Press, 1978, p.3-4. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Luis I. J. Stadelmann, SJ redenção humana. Em outras palavras, uma morte plácida na cama não teria sido salvífica, porque somente a morte na cruz foi o gesto culminante de todos os atos de doação da vida de Cristo em oferenda a Deus. A motivação desse sacrifício faz parte da concepção bíblica sobre a obra salvífica pela redenção da humanidade. Por iniciativa do próprio Cristo, esse sacrifício não adquiriu valor apenas simbólico na vivência da fé e, sim, se torna presente e eficaz como memorial litúrgico na santa Missa. Missão das mulheres na pastoral vocacional15 Entre as grandes novidades do Vaticano II está a ênfase na colaboração dos leigos na Igreja em termos de um sacerdócio batismal. Recebem, portanto, uma notável dignidade, devida à consagração que lhes é conferida pelo batismo e pela confirmação. Trata-se de uma novidade em relação ao AT, onde JHWH não pediu a colaboração dos leigos (mas cf a revolta de Coré, em Nm 16!), porque só no cristianismo é que se efetivou, no coração dos fiéis, a dupla ação de Cristo Ressuscitado e do Espírito Santo. Além disso, a missão de difundir entre os povos a fé na Eleição divina e na Aliança sagrada não entrou em ação no AT, porque ali estava em vigor a história salvífica particular, ao passo que no NT é que se abriu o âmbito mundial com a história salvífica universal16. A missão que coube ao Povo Eleito realizar em Israel era servir de paradigma da ação divina para com os outros povos. Assim, o Povo Eleito se tornou o instrumento de salvação para toda a humanidade. Sabe-se, com efeito, que o critério de paradigma não teve uma influência marcante entre os diversos povos, visto que não se organizaram em comunidades de fé e comunidades éticas. Era preciso um fator atuante que agisse sobre a vivência da fé mediante o sacerdócio de Cristo, ao qual se associam colaboradores participando no sacerdócio ordenado e no sacerdócio batismal. Os dois se orientam um ao outro, sendo que a 15 Cf. F. TABORDA, A Igreja e seus ministros. Uma teologia do ministério ordenado, Ed. Paulus, S. Paulo, p. 181-183. 16 Nos onze capítulos do Pentateuco se narra a “história salvífica universal”, passando para o relato da “história salvífica particular” e abrangendo todos os séculos do passado do Povo Eleito, narrado nos livros do AT. Com o NT abriu-se a dimensão mundial da “história salvífica universal”, a fim de difundir os méritos da redenção de Cristo para toda a humanidade. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 39 Ministério presbiteral na Igreja distinção está na diversidade de carismas que o Espírito Santo distribui aos fiéis17. A participação dos leigos no múnus sacerdotal é uma inovação do NT (embora fundamentada em Ex 19,6 e Is 61,6 etc), porque é uma função atribuída a todos os cristãos consagrados pelos sacramentos do batismo e da confirmação. Ela confirma a identidade eclesial dos fiéis por serem as colunas da Igreja sustentando a instituição em todo o seu conjunto pelas modalidades com as quais o ministério se realiza e se configura. Foram providenciais as Ordens e Congregações religiosas que, no curso dos séculos, deram sua contribuição valiosa na realização da ação eclesial nas dioceses e da expansão da fé cristã nas missões ultramarinas do mundo inteiro. Entretanto, com a escassez dos ministros ordenados, recai sobre os leigos a execução das atividades eclesiais incluindo o desafio de suscitar novas modalidades de vivência da fé e uma maior variedade de modelos de vida cristã adaptados às diversas faixas etárias, no contexto das mudanças sociais ocorridas nas últimas décadas. Antes de apreciar devidamente a atuação das mulheres na pastoral vocacional, é preciso chamar a atenção para o princípio da unidade e pluralidade da Igreja, sem reduzir os fiéis a um padrão comum e nivelar todos num só patamar, sem hierarquia nem atribuições diferentes, instituídas no entanto para o crescimento da fé. A unidade da fé na comunidade cristã, sem fragmentação em movimentos de religiosidade, é da essência da Igreja Católica. Mas a Igreja vive essa unidade na pluralidade dos diversos seres humanos, povos e culturas18. Nessa pluralidade é que se realizam os fiéis, nas mais diversas situações culturais e sociais. Daí que na Igreja “não há mais homem e mulher”, segundo S. Paulo (cf. Gl 3,28) e, sim, uma pluralidade de fiéis, condicionados pela história e pelas condições culturais, étnicas e sociais dos povos. Destarte, as soluções encaminhadas para solucionar a escassez dos padres, nos diversos continentes e povos, respondem de maneira muito diversificada às necessidades da vida pastoral nas dioceses e nas paróquias19. 40 17 Cf. F. Taborda, op. cit., p.166-170. 18 Cf. K. RAHNER, “La Mujer en la Nueva Situación de la Iglesia”, em: Escritos de Teología VII, (Escritos Pastorales), Taurus Ediciones, Madrid, 1967, p. 380-397. 19 Haja vista a analogia com outras denominações religiosas, onde entrou em voga a ordenação de mulheres para servirem de ministras ordenadas no culto religioso da Igreja Presbiteriana do Canadá e das congregações luteranas da Alemanha e alhures, como também no culto do rito israelita nas sinagogas, entre os judeus liberais Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Luis I. J. Stadelmann, SJ Um novo desafio tem que ser enfrentado hoje em dia na promoção vocacional, pelo fato de sempre menos filhos nas famílias. Com poucos filhos, um ou dois ou no máximo três, os pais não querem deixá-los ir ao seminário, mas seguram-nos no lar com o pretexto de futuro arrimo da família. Fator marcante na formação de caráter dos jovens é o testemunho dos pais. Um exemplo preclaro desse testemunho encontra-se no remate do livro bíblico de Josué, cuja vivência da fé em público serviu de lema para todo o povo: “Quanto a mim e a minha família, nós serviremos ao Senhor! E o povo respondeu, nós também serviremos ao Senhor, pois Ele é o nosso Deus” (Js 24,15-18). Como se vê, a síntese das propostas de solução do problema de escassez dos padres fica sendo precária. O fato de se partir da formação desde o seminário até a ordenação sacerdotal origina-se de um equívoco, porque não leva em conta o princípio pedagógico: Homo nascitur – sacerdos fit (o homem nasce feito – o sacerdote se faz) Em outras palavras, é preciso educar os candidatos ao sacerdócio durante o crescimento na família e nos anos de escolaridade até a idade adulta. Porém, a problemática da pedofilia e dos transtornos de sexualidade entre gays, homossexuais e transexuais dificulta a organização de jovens, turmas de coroinhas, encontros de grupos juvenis e ministério junto a menores de idade. Em reação, a tendência dos padres é de abstenção dos encontros com jovens e adolescentes aos quais pudessem expressar seus sentimentos e comportamentos como educadores, evitando que seus gestos e atitudes possam ser mal interpretados, mesmo que tenham as melhores das intenções. Se não houver educadores fidedignos para orientar as crianças das diversas faixas etárias com a ajuda de um acompanhamento qualificado, atendendo os educandos nos vários estágios do crescimento dentro de grupos de alunos, é inevitável que a aprendizagem das normas da vida humana corre o perigo de ser deturpada pelo exemplo dos meninos de rua praticando traquinagens ou estará à mercê de gangues organizadas recrutando meninos para o tráfico de drogas. Por isso, atenta ao binômio do humanismo e religião, a Igreja está sentindo a necessidade de formadoras a serviço das vocações sacerdotais. As mulheres engajadas na promoção vocacional devem dar-se conta do fato de que Deus é quem toma a iniciativa. É Ele quem convida e é n’Ele que os fiéis da Igreja devem pôr todas as esperanças de que continue da América, onde foram instituídas mulheres na função de rabinas, como também homens gays como rabinos: cf. <www.huc.edu/ijso/jhwrc>. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 41 Ministério presbiteral na Igreja chamando escolhidos para colaborarem com Ele em sua missão. Os jovens de hoje têm uma série de valores, preocupações, sensibilidades e possibilidades que os tornam capazes de acolher generosamente a mensagem de Deus e, com efeito, a acolhem em novas formas. Afirmar essa confiança e pedir luz para compreender essas novas formas de acolher a Palavra de Deus é apostar na promoção vocacional. Prioridade nesta atividade pastoral é a confiança na ação do Espírito Santo, que vencerá os nossos medos e suscitará o crescimento das vocações. A pastoral vocacional exercida por mulheres reconhece sete planos do múnus presbiteral, que caracterizam toda a comunidade paroquial. 1. O primeiro consiste no engajamento dos padres como mensageiros da boa-nova. Cristo trouxe-a do céu e incumbiu seus apóstolos de transmiti-la a toda a humanidade: “Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda criatura!” (Mc 16,15) Por isso, um dos deveres primordiais do padre, é a pregação da palavra de Deus. O que ele diz como “sacerdote” na Igreja, como catequista na escola, ou como professor de teologia na universidade, não é opinião pessoal, mas é a palavra de Deu. Paulo o Apóstolo admoesta seu discípulo, o jovem bispo Timóteo: ”Conjuro-te diante de Deus e de Jesus Cristo: prega a Palavra! Prega-a sempre, seja oportuno ou inoportuno!” (2Tm 4,2). A colaboração das mulheres é dar assistência aos catequizandos na aprendizagem da doutrina cristã, é marcar presença nas reuniões de pais e mestres para dar orientação aos professores na implementação do ensino religioso. 2. O segundo é a guarda fiel dos mandamentos, como é essencial aos coordenadores da comunidade ética. Sem conivência com os desmandos dos poderes públicos e sem condescendência com a falta de integridade dos mandatários, resulta que a Igreja ganha credibilidade na vida pública. É tarefa dos leigos lembrar aos padres a importância da animação da cultura pelos valores cristãos. 3. O terceiro é a atuação como ministro dos sacramentos. Com a ajuda das animadoras de pastoral nas paróquias, nos hospitais e nos acampamentos de grupos de jovens, reunidos em encontros informais nas jornadas de formação, é muito oportuno aproveitar oportunidades propícias para a celebração eucarística e 42 Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Luis I. J. Stadelmann, SJ a animação religiosa na prática da fé. Isso se constituirá num forte apelo para a vocação presbiteral. 4. O quarto é o zelo do pastor de almas orientando os fiéis para o caminho da vida de fé através do aconselhamento e da assistência espiritual, quando as tensões da vida familiar e profissional vão corroendo o estado de saúde e subtraindo a qualidade de vida. A espiritualidade na vida cotidiana está se tornando cada vez mais importante, principalmente com visitas dos padres que as equipes pastorais encaminham às pessoas em busca de orientação e atendimento personalizado. 5. O quinto é o empenho do salvador das almas em grave perigo de soçobrar em situações que geram amargura e roubam o alento interior. Encontros com agentes de pastoral de enfermos encaminham o padre para trazer os dons da salvação a domicílio. 6. O sexto é a guia das almas para a paz interior onde Deus mesmo habita e que Ele preenche com Sua presença divina. As leigas, encaminhando essas pessoas, exercem um papel providencial nas comunidades paroquiais. 7. O sétimo é a cura das almas nos diversos caminhos da vida como ela é, com seus altos e baixos, com seus fracassos e sucessos, desempenhando o papel de reconciliação com a situação concreta. A presença amiga do padre e das equipes de espiritualidade paroquial é capaz de relativizar as frustrações e ajudar a encontrar a alegria como dom do Espírito de Deus. Essa dimensão participativa da ação pastoral deve poder contar com a colaboração de todos os fiéis na difusão da salvação divina, situando-a num contexto comunitário e nas interações personalizadas entre clero e laicato. Conclusão A questão crucial da Igreja Católica chama a atenção para o fato de que a vocação para o ministério presbiteral não é opção de alguns católicos ou de algumas dioceses, mas constitui parte essencial da existência cristã, que busca adquirir forma como participação no serviço de Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 43 Ministério presbiteral na Igreja Cristo. Uma ação em que o caráter de serviço de colaboração eclesial se expressa com muita intensidade é a presidência da celebração eucarística. A interação do sacerdócio ministerial e do sacerdócio batismal a serviço de Cristo na Igreja visa a construção do Reino de Deus. A inserção dos fiéis na Igreja dá-lhes acesso à obra da salvação de Cristo, cujos méritos salvíficos redundam em benefício dos redimidos do Povo de Deus e possibilitam o encontro com Ele no contexto histórico dos indivíduos e da comunidade. Endereço do Autor: Colégio Catarinense Rua Esteves Júnior 711, Caixa Postal 135 CEP 88015-130 Florianópolis, SC E-mail: [email protected] 44 Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Resumo: O Documento de Aparecida oferece significativas e imprescindíveis contribuições para a formação do presbítero. Atento à mudança de época em que vivemos, marcada sobretudo pelo pelo “modo de ter de existir” e pelo “modo urbano de existir”, urge um repensamento do modo de ser Igreja e do seu agir missionário. Consequentemente, é preciso repensar também o ser e agir do presbítero, chamado a assumir a missão de pregar o Evangelho de Jesus Cristo que valoriza “ser” pessoal e cristão. Contra a “profissionalização do ministério presbiteral”, é preciso afirmar a missão, gratuita e permanente, como eixo articulador da formação presbiteral. Abstract: The Document of Aparecida makes some significant and irreplaceable contributions to the formation of priests. With special attention to the changes in our time and age, as marked by the means needed for existence over the mode of urban existence, a new requirement is made to the Church so as to stress the mode of Christian belonging and missionary action of the faithful. As a result, priestly vocation should focus on the role of the priest as preacher of Christ’s gospel, rather than on a mere professional ministry. Most important of all is to reaffirm his commitment to Jesus Christ in view of the gratuitous and permanent mission of the priest in unrelenting growth towards perfection. Formação presbiteral inicial e permanente* Ângelo Domingos Salvador, OFM Cap** * Este texto foi publicado pelas edições CNBB na coleção À Luz de Aparecida, 2009. ** O autor é especialista em cultura brasileira e bispo emérito da diocese de Uruguaiana, RS. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011, p. 45-79. Formação presbiteral inicial e permanente Introdução Que contribuições a Conferência de Aparecida oferece à formação de Presbíteros? Em outros termos, que diretrizes de formação presbiteral podem ser obtidas ou inferidas da Conferência de Aparecida? O presente texto não trata de todo o sistema de formação presbiteral. Limita-se às principais contribuições de Aparecida. Evidentemente, o assunto deve ser tratado, quer de acordo com as orientações explícitas no Documento de Aparecida, quer de acordo com as orientações nele implícitas, ou seja, seu espírito, seus horizontes e suas perspectivas. Ora, “a V Conferência do Episcopado Latino-Americano e Caribenho é novo passo no caminho da Igreja” (DAp, n. 9); “abre-se a passagem para um novo período da história” (DAp, n. 10); “a Igreja é chamada a repensar profundamente e a relançar com fidelidade e audácia sua missão nas novas circunstâncias” (DAp, n. 11). “Trata-se de confirmar, renovar e revitalizar a novidade do evangelho” (DAp, n. 11); “encontramo-nos diante do desafio de revitalizar nosso modo de ser católico” (DAp, n. 13); “Isso requer uma evangelização mais missionária” (DAp, n. 13). Ora, os presbíteros “são os primeiros promotores do discipulado e da missão”, “os primeiros agentes de uma autêntica renovação da vida cristã no povo de Deus”. Em consequência, “eles devem receber de modo preferencial a atenção e o cuidado paterno de seus Bispos”1. Tal atenção e cuidado preferenciais devem começar no processo de sua Formação Inicial e continuar e, até mesmo, intensificar-se no processo de sua Formação Permanente. Em consequência, trata-se de empreender “novo passo” no caminho da formação presbiteral, de tal forma que se inicie “novo período” de sua história. Isto exige que se entre num processo de “repensar profundamente” a formação, a fim de renová-la e revitalizá-la, na perspectiva missionária. A sequência dos assuntos pode ser formulada assim: Para novo modelo de sociedade, um novo modelo de Igreja; para novo modelo de Igreja, um novo modelo de presbítero; para novo modelo de presbítero, um novo modelo de formação. 1 46 Bento XVI, Homilia na Eucaristia de inauguração da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, 13 de maio de 2007, Aparecida, Brasil. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Ângelo Domingos Salvador, OFM Cap I Contexto da formação presbiteral Neste capítulo, tratamos dos seguintes temas: 1) Globalização do “Modo Ter de Existência”– tópico tratado com relativa extensão; 2) Globalização do “Modo Urbano de Existência” – tópico breve; 3) Situações que afetam a Vida Presbiteral – tópico igualmente breve. 1 Globalização do “modo ter de existência”2 Novo Modelo de Sociedade Introdução Ao falar da “identidade e do Ministério dos Presbíteros” a Conferência de Aparecida afirma que “um olhar ao nosso momento atual nos mostra situações que afetam e desafiam a vida e o ministério de nossos presbíteros” (DAp, n. 192). Depois aponta alguns desafios. Particularmente, “o segundo desafio se refere ao ministério do presbítero inserido na cultura atual” (DAp, n. 194). Antes disso, no capítulo II ao falar de “um olhar dos discípulos Missionários sobre a Realidade”, afirma categoricamente: “VIVEMOS UMA MUDANÇA DE ÉPOCA, e seu nível mais profundo é o cultural” (DAp, n. 44). Significa: Estamos saindo de um modelo ou sistema de sociedade e entrando em outro, ou seja, um modelo ou sistema está passando e outro vem chegando. Assim, estamos no tempo da passagem de um para outro. De fato, já não estamos em época de mudanças acidentais ou graduais dentro do mesmo modelo ou sistema social, mas, sim, de mudanças substanciais e essenciais, que caracterizam outro modelo ou outro sistema de sociedade. Tais mudanças, segundo Aparecida, revelam-se principalmente no nível cultural, evidentemente com reflexos nos demais níveis. Há, porém, analistas3 que falam que já entramos dentro de outra época, num outro modelo, num outro sistema de existência humana no planeta Terra. Em outros termos, já estamos vivendo em situação substancial e essencialmente diversa. Então, a diferença entre ontem e hoje, não é de grau, de qualidade, de quantidade, de relação, de ação ou de qualquer outro predicamento 2 Este texto foi apresentado durante a 46ª Assembleia da CNBB, realizada em Itaici, nos dias 02 a 11 de abril de 2008. 3 NEUTZLING, Inácio, Uma época de Mudança, Revista Convergência, Ano XLIII, Nº 409, março 2008, pág. 107-131. O texto foi apresentado também no Fórum da Igreja Católica do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre. É um artigo científico com todo o aparato técnico. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 47 Formação presbiteral inicial e permanente acidental, mas de natureza ou essência. Não é apenas época diferente: É outra época, diversa. Que critério nos garante a legitimidade da afirmação: Vivemos uma mudança de época? Como se caracteriza a “mudança de época”? Ou mais radicalmente: Em que novo modelo ou novo sistema estaríamos vivendo? Como se caracteriza tal modelo, sistema ou época? Como resposta, apresentamos aqui, de forma breve, um ponto de vista, que é sempre a vista de um ponto. Outros, de outros pontos, podem ter e apresentar outros pontos de vista. Não há espaço para relacioná-los. O que apresento, parece-me o “óbvio ululante” (Nelson Rodrigues). 1.1 Globalização do Modo Ter de Existência4 Tese. Hoje, no mundo inteiro, o motor da história, o fator gerador de outra civilização, o eixo articulador da organização social são os BENS: Não mais o “bem” ou os valores, mas, sim, os “bens”. A preocupação central da sociedade estabelecida, oficial e pública, não é mais “o bem ou o mal”, mas os bens econômico-financeiros. Sua ética não é mais a do “bem”, mas a dos “bens”. Em outros temos: Passamos de uma cultura de valores para uma cultura de bens; de uma civilização de valores para uma civilização de bens. Já em 1920 R. H. Tawney falava do aparecimento de uma “sociedade aquisitiva”, sociedade que se organiza em função da aquisição de bens. Em 1977, o conhecido escritor polivalente, Erich From, escrevia o livro “Ter ou Ser”, em que analisava dois modos de existência, já então facilmente visíveis na sociedade: O modo ser e o modo ter. Com referência ao modo ter, também é dele a distinção entre “modo ter existencial” e “modo ter caracterológico”: O primeiro é tendência e exigência natural de sobrevivência. O “meu é prolongamento do eu”. O segundo é aprendizagem cultural. Possui o modo ter de existência, caracterológico, como traço de caráter, quem tende a classificar tudo em termos de bens, de rendimento e de lucro. Então, pessoas, conhecimento, amor, religião, até o próprio Deus, tudo passa a ser visto e tido como objeto de posse e 4 48 A presente exposição inspira-se também em “Sacerdotes para Hoy”, artigo de Joseph Mattam, cujo resumo se encontra em “Selecciones de Teologia”, Vol. 45, jul-set, 2006, Nº 179, pág. 230 a 240. O autor afirma que o problema fundamental da formação de sacerdotes de hoje é o ponto de vista do mundo, em que é dominante o “Sistema do Ter”, com o “sistema do Fazer”, os quais definem o “sistema de valores mundanos”, que prevalecem em nosso tempo. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Ângelo Domingos Salvador, OFM Cap de lucro, ou seja, como valor economicamente rentável, em termos de vantagem ou desvantagem. Assim, o modo ter de existência, de tendência natural, passou a ter caráter cultural. Este, de alcance singular, de um ou outro indivíduo, evoluiu para caráter particular, de grupos. Na sequência, passou de grupos cada vez maiores até alcançar inteiras sociedades. Hoje, assistimos à universalização ou globalização do modo ter de existência. Assim, de caráter singular, particular e parcial, o modo ter de existência passou a ser caráter global e dominante da inteira sociedade humana, no planeta terra. Podemos dizer hoje – somente hoje – que há dois modos de existência com caráter de globalidade – modos globais de viver e de estar no planeta terra, modos que abarcam a totalidade da vida pessoal e social, durante todo o tempo: De um lado, o modo masculino e feminino de existir, de natureza biológica, e, de outro, o modo ter de existir, de natureza cultural. Na terminologia de Mendel, assim como no varão o modo masculino comporta-se à maneira de caráter dominante e o modo feminino, à maneira de caráter recessivo, assim também em toda a extensão do planeta e em todas as suas sociedades humanas organizadas, o modo ter de existência, centrado em bens, comporta-se igualmente como caráter dominante, oficial e público, enquanto, por sua vez, o modo ser de existência, centrado em valores, comporta-se como caráter recessivo, particular e privado. Ao modo ter de existência, agrega-se o modo fazer: Para o “ter” é necessário o “fazer”, o agir, a ação. Ao “ter material” corresponde o “fazer tecnológico”. É que a máquina produz mais, é facilmente substituível e não reclama direitos. Como fruto e manifestação, verifica-se o “ethos instrumental ativo”, ou seja, o hábito de pensar-se e comportar-se como mero instrumento de trabalho. Deste modo, o ter e o fazer constituem o caráter dominante, público e oficial de nossa época, enquanto o ser e o viver sobrevivem como caráter recessivo, privado e particular. 1.2 Características do Modo Ter-Fazer de existir Globalizado Nunca, no planeta Terra, viveu-se um modo de existência tão universalizado como o atual, declaradamente considerado “o Fim da História”. De fato, Francis Fukuyama, no livro “O Fim da História e o Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 49 Formação presbiteral inicial e permanente Último Homem” considera que o triunfo da democracia liberal do ocidente sobre todos os demais sistemas e ideologias é o fim da história, tendo, então, aparecido o último tipo ideal de ser humano, o homem neoliberal. Apresentamos algumas características mais marcantes, destacando o que é dominante e o que é recessivo. Fato Gerador do Sistema Os “bens” são constituídos fato gerador, fator determinante e caráter dominante da estrutura interna de todo o sistema de organização social, enquanto os “valores” são confinados à condição de caráter recessivo. Os “bens” são assunto “maior”, enquanto os “valores” são assunto “menor”. Os “bens” são assunto público; o bem é assunto privado. Os “bens” são assunto oficial e obrigatório, os “valores” são assunto particular e voluntário ou livre. Em razão disto, à produção, circulação e consumo de “bens” é reservada a parte maior e a mais nobre do dia, enquanto o cultivo de “valores”, tanto humanísticos quanto religiosos, é confinado ao fim do dia e dentro da noite. Nos noticiários dos Meios de Comunicação social, mais de 90% dos assuntos é de natureza econômico-financeira, reservando-se menos de 10% para outras notícias. O autor de “O Pecado de nossa Época” afirma que ele consiste em não mais se falar de “pecado”, ou seja, do bem e do mal. Tal livro indica a data em que o Presidente dos Estados Unidos falou, pela última vez, de pecado. Depois dessa data, diz o Autor, os Estados Unidos não cometeram mais pecados! Em seu lugar, talvez tenham tido desvios de conduta ou cometido crimes! Novos Protagonistas Sociais Na lógica do sistema, houve substituição dos protagonistas sociais. No modo ser de existência, os geradores da vida e da organização social, eram os PAIS, os PROFESSORES e os PADRES. Então, nesse modo de existência, ocupavam lugar de destaque a Família, a Escola e a Igreja (Religião). Sobre eles recaía o “louvor” quando a sociedade ia bem; sobre eles recaía a “crítica” em tempos de crise social. Tais protagonistas se davam bem entre si. No modo ter de existência, os protagonistas sociais passaram a ser os PODEROSOS, os PODERES ou POLÍTICOS, ou “PÚBLICOS” (os formadores da opinião pública). São eles que exercem a liderança absoluta na nova sociedade. Agora, nesse modo de existência, ocupam lugar de destaque as instituições financeiras, as instituições políticas e as instituições de comunicação social. Os novos protagonistas se dão 50 Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Ângelo Domingos Salvador, OFM Cap muito bem entre si, mas todos se dão muito mal com a religião e com a ética (dos valores). Na Era da Economia, os poderosos, os políticos e os “públicos”, assumem a “dominância” na sociedade global, enquanto os pais, os professores e os padres passam à recessividade. Desejos (wants) X Necessidades (needs) Na lógica do sistema, segundo a versão neoliberal, para que o progresso econômico não sofra solução de continuidade, ou então, seja permanente, contínuo, sem interrupção, as necessidades individuais e sociais são substituídas por desejos individuais e sociais, como motor do progresso. Assim, os desejos são constituídos em fator e caráter dominante, enquanto as necessidades são relegadas à condição de recessivas. Em outros termos, a sociedade deve organizar-se, não para satisfazer necessidades, mas para satisfazer desejos. De outro modo, a sociedade deve organizar-se, não para atender direitos, mas para satisfazer ambições. Por que? Porque as necessidades são limitadas e saciáveis, enquanto os desejos são ilimitados e insaciáveis. Logo, o progresso a partir de necessidades é limitado, enquanto o progresso a partir de desejos não tem fim. 1ª Consequência: Se a necessidade é limitada e saciável, pode haver “sobras”. Se o desejo é ilimitado e insaciável, nunca há “sobras”; assim, enquanto a necessidade favorece a “distribuição”, o desejo favorece a “concentração”. Na lógica do sistema, a “concentração” de bens é dominante e “desejável”, enquanto a “distribuição” de bens é recessiva e “indesejável”. 2ª Consequência: Uma “saudável desigualdade” deve ser estimulada e promovida, de preferência à estagnante igualdade. A desigualdade deve vir a ser caráter dominante, enquanto a “igualdade” deve ser relegada à recessividade, a algo particular e privado, até mesmo evitada, em razão de sua potencialidade à estagnação. Como, então, promover a “saudável desigualdade”? Opção preferencial pelas grandes Fortunas X Opção preferencial pelos pobres Para o neoliberalismo, o motor do progresso não é o simples desejo, mas o “desejo mimético”. Diz Frederico Hayeck, o Pai do neoliberalismo: “A maior parte das coisas, que nos esforçamos para conseguir, as queremos porque os outros já as têm”. É da estrutura do desejo mimético o desejar, não tanto pelo valor do objeto em si, mas sobretudo pelo fato Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 51 Formação presbiteral inicial e permanente de que outros já o têm. Além disto, constata Hayeck, “um novo bem ou uma nova mercadoria, antes de ser uma necessidade pública e formar parte das necessidades da vida, constituem geralmente caprichos de uns poucos escolhidos. Os luxos de hoje são as necessidades de amanhã”. Por essas razões, os ricos, as grandes fortunas, são os “escolhidos do sistema”, os “grandes profetas” do desenvolvimento. Eles, provocando o desejo mimético, promovem o desenvolvimento contínuo. Deles pode-se dizer o que Santo Agostinho dizia dos santos e santas: “Si isti et istae, cur non ego?”, ou seja, se estes e estas, por que não eu? De fato, o motor da santidade é o desejo mimético. O jornal Zero Hora noticiou, dia 22.03.08, a propósito da Reforma Tributária, que “especialistas divergem sobre imposto das grandes fortunas”. Diz um deles: “É uma ideia fascista, porque tira o incentivo ao investimento e à produção de bens”. No que se refere aos pobres, é o mercado que determina quantos ele permite existirem, enquanto necessários como força de trabalho ou mão-de-obra qualificada. Os demais, excluídos do mercado de trabalho, não devem vir a existir, mediante rígidos programas de controle da natalidade. Os ricos não têm mais capacidade para manter tantos pobres! Globalização da Competição X globalização da solidariedade É notório para o senso comum que a competição é processo dominante, global, público, oficial e aprovado, enquanto a solidariedade está relegada à recessividade, à iniciativa privada, ao voluntariado livre. Nada escapa ao processo competitivo, onde necessariamente há vencedores e primeiros, triunfantes e humilhados, vencidos e “segundos”. Não escapam do processo competitivo, nem mesmo o esporte, como o popular futebol; a diversão, como o brasileiríssimo carnaval; e a religião, com a teologia da prosperidade. Globalização da competência X qualidade de vida Na lógica do sistema, o ideal máximo de ser humano, homem e mulher, é o de vir a “ser competente para ser competitivo”. Na formação de seus profissionais, o sistema exige duas coisas: Especialização científica e habilitação tecnológica. A qualidade de vida do profissional é assunto privado, no qual o sistema não entra. O propagado projeto de “Qualidade Total” na administração de empresas tem por finalidade a otimização de rendimentos. 52 Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Ângelo Domingos Salvador, OFM Cap Mercado X Estado Enquanto KEINES (1883-1946), propunha uma sociedade de bem estar para todos, mediante a intervenção do Estado, com o regime de pleno emprego, para HETYECK tal procedimento é “O Caminho da Perdição” (título do livro, em que expõe os princípios do neoliberalismo). Para ele, cabe ao mercado a regulação da sociedade, não ao Estado. Então, o próprio Estado passa a ser fator-regulador recessivo, enquanto o mercado (a mão invisível) é fator-regulador dominante. O Estado é regulador social na medida em que garante livre trânsito ao mercado. 1.3 Legitimação do Sistema Dominante Sem entrar em maiores detalhes explicativos, podemos indicar duas fontes conceituais legitimadoras do sistema dominante: 1) A secularidade, que adquire status de “doutrina sagrada”, segundo a qual o mundo, a sociedade, se explicam, se legitimam e se governam por si mesmas, sem necessidade de qualquer intervenção externa, seja da religião, seja de Deus. Assim, a sociedade democrática é sociedade auto-suficiente, a qual se explica, se legitima e se governa democraticamente, sem necessidade de algo externo que nela intervenha. Afirma Habermas: “Tenho por mim que a constituição do Estado constitucional liberal basta a si mesma para se legitimar, pois dispõe de um acervo cognitivo de argumentos que independe das tradições religiosas e metafísicas”5. 2) A laicidade. O Estado laico, com todas as suas instituições, como a Escola Pública, orienta-se por três fontes de conhecimentos e de critérios: 1) A natureza das coisas, revelada pela ciência; 2) a razão humana, que se expressa pela filosofia; 3) Os usos e costumes estabelecidos, e os demais elementos, da cultura socializada. Porque isto lhe é suficiente, o Estado laico prescinde da religião. Não se opõe a ela, nem a nega, mas prescinde dela, procedendo como se ela não existisse. A laicidade – “essencial na tradição cristã autêntica” (Bento XVI) –, exige um reposicionamento da Igreja. 5 HABERMAS, Jürgen; RATZINGER, Joseph. Dialética da Secularização – Sobre Razão e Religião. Aparecida, Editora Ideias & Letras, 2007, pág. 33. Diálogo entre Jürgen Habermas e Cardeal Joseph Ratzinger, dia 19 de janeiro de 2004, na Academia Católica da Baviera. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 53 Formação presbiteral inicial e permanente 1.4 Corolários: Igreja e Presbíteros Igreja na Recessividade Não na dominância, nem na clandestinidade, mas na recessividade. Por tudo o que foi dito acima, percebe-se bem qual o lugar da Igreja Católica na sociedade global e particularmente no Estado Brasileiro: Está e atua na privacidade da recessividade. A Igreja Católica no Brasil já fez parte dos protagonistas sociais, junto com os Pais e os Professores. Ainda subsiste um “substrato Católico”, que se manifesta na religiosidade popular. Mas pública e oficialmente a Igreja passou para à condição de entidade recessiva. Já vivemos no passado próximo situações de perseguição, durante os quais setores ou agentes da Igreja foram encurralados para a clandestinidade. Não é ainda esta, porém, nossa situação geral, ao menos não do mesmo modo. Mas não resta dúvida de que o espaço disponível é o da recessividade, como entidade privada, que congrega voluntários, por livre adesão. Durante muito tempo, particularmente em muitas comunidades rurais, pertencer à Igreja e nela atuar era o veículo ordinário de integração social. Hoje, porém, especialmente na cultura urbana, pluralista, pertencer à Igreja e nela atuar, representa quase nada, em termos de integração social. É mero assunto privado. Esta é a razão por que sua intervenção em assuntos da vida pública vai sendo cada vez mais interpretada, sobretudo pelos novos protagonistas sociais, como intromissões indevidas e reprováveis. Haja vista, a rumorosa discussão sobre as células tronco de embriões humanos. Em termos comparativos, podemos dizer que a Igreja, na sociedade secular e laica, é como a vegetação baixa no meio de vasta floresta de imensos jequitibás. Com muito esforço consegue acesso a uma nesga de sol para poder sobreviver! Como podem ser a vida e a missão da Igreja na situação de recessividade num Estado laico? O assunto merece especial atenção. Duas coisas, ao menos, tornam-se claras: 1) Na recessividade de um Estado laico, a Igreja, garantida sua independência e autonomia, tem aberto o canal da ação profética, não como “contra comunidade”, mas dentro da sociedade; 2) Em situação de recessividade num Estado laico, seu profetismo básico deve ser precisamente o do testemunho de vida. Talvez esteja aqui nosso problema crucial – problema talvez ainda não reconhecido. Cabe recordar aqui as propostas de João Paulo II, em Evangelium Vitae, 54 Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Ângelo Domingos Salvador, OFM Cap onde ele propõe uma “virada Cultural”: “Urge uma mobilização geral das consciências e um esforço ético comum, para realizar uma grande estratégia a favor da vida. Todos juntos devemos construir uma nova cultura da vida” (EV, n. 95). Tal virada cultural “exige de todos a coragem de assumir um novo estilo de vida que se exprime colocando... o primado do ser sobre o ter, da pessoa sobre as coisas”, mais ainda “a passagem da indiferença ao interesse pelo outro: Os outros não são concorrentes de quem temos de nos defender, mas irmãos e irmãs de quem devemos ser solidários” (EV, n.96). Tal proposta foi renovada, em Novo Millenio Ineunte, onde indica a santidade de vida, como a primeira prioridade pastoral no início do novo milênio: “Não hesito em dizer que o horizonte para que deve tender todo o dinamismo pastoral é a santidade”... “É hora de propor de novo a todos, com convicção, essa ‘medida alta’ da vida cristã ordinária: toda a vida da comunidade eclesial e das famílias cristãs deve apontar nessa direção” (NMI, n. 30). Ainda em termos comparativos, podemos dizer que a Igreja, em situação de recessividade num Estado laico, cumprirá sua missão se vier a ser como o cacau, que cresce viçosamente à sombra de florestas. Pelo “valor” de seu testemunho de vida, a Igreja pode vir a ser a grande “fortuna” do povo, especialmente dos mais pobres. Profissionalização do Ministério Presbiteral Faz algum tempo, divulgou-se o slogan: “Homem de meu tempo, tenho pressa”. De fato, homens de nosso tempo, temos imensa dificuldade de resistir ao espírito da época, ou seja, ao que é social, pública e oficialmente aprovado. O então Cardeal Ratzinger, em Retiro para a Casa Pontifícia, fazendo uma “Meditação sobre o Sacerdócio”, constata que “nos últimos anos tem-se refletido muito sobre o sacerdócio e também tem havido muitas polêmicas. Nessas discussões, ele saiu cada vez mais reforçado pelos muitos e apressados argumentos mediante os quais se procurou eliminá-lo como sacralização mal-entendida para o substituir por simples serviços temporários de caráter funcional”. De fato, como filhos de nossa época, podemos cair na tendência de equiparar o Sacerdócio e, mais precisamente, o ministério presbiteral, a um simples serviço, até temporário, de caráter funcional. Em outros termos, podemos aderir à tendência de equiparar o ministério presbiteral Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 55 Formação presbiteral inicial e permanente a uma simples profissão secular, para cujo exercício são suficientes a especialização teológica e a tecnologia pastoral. Nessa concepção, conta pouco a santidade de vida, incluído o celibato sacerdotal. Tal tendência terá já chegado até aqui? Para nós, na América e no Brasil, essa tendência é já real ou ainda é meramente hipotética? Durante o processo de formação inicial, a nossa linguagem parece indicar que a formação intelectual, filosófico-teológica, é absolutamente dominante, enquanto a formação pastoral e, sobretudo, a formação humano-afetiva, comunitária e espiritual, são recessivas. Pois ao perguntar a um seminarista: Em que tempo de formação se encontra? Invariavelmente, ouvimos a resposta: Estou em tal ano de Filosofia ou em tal ano de Teologia. Isto é dominante, o restante é recessivo. Como nos desviar, no processo de formação inicial, de tal tendência? Por outro lado, nós mesmos, por ocasião de jubileus, ao recomendar bispos e padres, relacionamos ordinariamente seus empreendimentos ou suas obras. Ora, já dizia Segundo Galileia: “Dizer de um Padre ou de um Bispo que trabalha muito não diz nada de importante”! 2 Globalização do modo urbano de existir Estima-se que, atualmente, cerca de 70% da população mundial localiza-se em cidades; os demais 30% são invadidos, mediante os Meios de Comunicação de Massa, pela mentalidade urbana: estes são urbanos. Em Aparecida, a cultura urbana é tratada diretamente a propósito da “Situação sócio-cultural” (DAp, n. 43-59) e da “Pastoral Urbana” (DAp, n. 509-519). Muitos outros números fazem referência a ela. Podese dizer, contudo, que a cultura urbana perpassa todo o Documento. Em verdade, quando o Documento fala de cultura socializada tem como pano de fundo e como referência a cultura urbana (DAp, n. 39). O assunto necessita de amplo desenvolvimento. Aqui fazemos apenas menção dele. Destacamos, porém, duas características da cultura urbana, como amostras indicadoras da necessidade de renovação, quer da organização da Igreja, quer de sua ação, quer da formação presbiteral. A cultura rural era centrípeta; a cultura urbana é centrífuga: a cidade cresce para fora do centro; a população urbana busca residir para fora do centro. Por outro lado, a cultura rural orientava-nos a obedecer. A 56 Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Ângelo Domingos Salvador, OFM Cap norma suprema era: “Eu obedeço” à natureza e seu ritmo; ao contrário, a cultura urbana orienta-nos a que cada um escolha e decida por si6. A norma suprema é: “Eu escolho, eu decido”, de acordo com a cultura que nós construímos. A simples citação de tais características é suficiente para nos convencer de que a Igreja deve descentralizar-se e fazer-se presente lá onde se encontra o povo, organizando-se em rede de comunidades, fixas e móveis (DAp, n. 172-177). Por outro lado, a Igreja e sua ação devem ser tais que possam vir a ser escolhidas entre inúmeras alternativas. E a formação de Presbíteros deve ser tal que leve em conta estas novas realidades. 3 Situações que afetam a existência presbiteral Aparecida afirma que “um olhar ao nosso momento atual nos mostra situações que afetam e desafiam a vida e o ministério de presbíteros” (DAp, n. 192), entre as quais destacam-se: a) A identidade teológica do ministério presbiteral. O sacerdócio ministerial está a serviço do sacerdócio comum dos fiéis, e cada um participa do único sacerdócio de Cristo de maneira qualitativamente diferente. Mas o ministro ordenado não pode cair na tentação de considerar-se mero delegado ou representante da comunidade, e, sim, dom a ela, pela unção do Espírito e por sua especial união a Cristo, Cabeça (n. 193); b) A inserção do Presbítero na cultura atual. É o desafio de fazer com que a Mensagem de Jesus chegue a ser interpelação válida, compreensível, cheia de esperança e relevante para hoje, especialmente para os jovens (n. 194); c) Aspectos importantes da vida e ministério do presbítero exigem atenção especial, tais como a afetividade e o celibato; a vida espiritual, fundada na caridade pastoral; as relações fraternas com o Bispo e com o presbitério, etc.; em particular a valorização do celibato (DAp, n. 195; 196); d) Desafios de caráter estrutural, tais como paróquias muito grandes; paróquias muito pobres; paróquias em regiões de extrema 6 A TV Globo, do Brasil, manteve por longos anos o programa “Você Decide”, no qual eram abordados assuntos polêmicos do momento. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 57 Formação presbiteral inicial e permanente violência e insegurança, e a falta de adequada distribuição dos presbíteros (DAp, n. 197). Breve síntese 1) Vivemos em mudança de época, até mesmo em nova época, cujas características dominantes são a globalização do modo ter e do modo urbano de existir, no qual os “bens” são caráter dominante, e o “bem” é caráter recessivo, e “eu escolho ou decido” é caráter dominante, e “eu sigo ou obedeço” é caráter recessivo. 2) O lugar da Igreja na sociedade atual já não é o da dominância (entre os protagonistas sociais), ainda não é o da clandestinidade, mas já é o da recessividade, no mundo do privado, do voluntariado ou do terceiro setor (ao lado do Estado e do mercado): Seu espaço é o da globalização do ser, da qualidade, da santidade, da comunhão/solidariedade e missionariedade/ testemunho. 3) A formação presbiteral deve privilegiar o “ser”, a qualidade, a santidade, a comunhão e a missionariedade/testemunho, mais do que o “fazer”, a função, as atividades, segundo a norma evangélica, norma suprema da vida presbiteral: “Eu me consagro por eles, a fim de que eles também sejam verdadeiramente consagrados” (Jo 17,19). II Novo modelo de Igreja, de presbítero e de sua formação A formação presbiteral deve situar-se, evidentemente, dentro da ação da Igreja, enquanto continuação da ação de Cristo, pois a formação presbiteral é formação de agentes ordenados para a ação da Igreja. Ora, a Conferência de Aparecida propõe que a ação da Igreja, na América Latina e no Caribe, segundo “pareceu bem ao Espírito Santo e a nós”(At 15,28) (DAp, n. 547), tenha como eixo inspirador e articulador sua missão evangelizadora. Logo, a formação de presbíteros para a ação da Igreja na América Latina e no Caribe deve ter como eixo inspirador e articulador a missão evangelizadora. 58 Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Ângelo Domingos Salvador, OFM Cap 1 Mudança do eixo articulador da ação da Igreja Como vimos, o Documento de Aparecida constata que “vivemos uma mudança de época” (DAp, n. 44). Por nossa vez, constatamos que Aparecida propõe uma mudança de eixo articulador da ação da Igreja. Enquanto a consigna ou eixo articulador de Medellin é “libertação” (libertação de), o de Puebla é “comunhão e participação” (libertação para), e o de Santo Domingo é “inculturação” (evangelização como), qual é a consigna, o eixo articulador, a ideia diretriz, de Aparecida? 1.1 Formulação da Mudança O Documento de Aparecida trata explicitamente da conversão para a missionariedade no Cap. VII e nos números 365 a 372. Entre muitas, eis duas manifestações explícitas: “A conversão pastoral de nossas comunidades exige que se vá de uma pastoral de mera conservação para uma pastoral decididamente missionária” (DAp, n. 370). Aqui o termo “pastoral” é empregado em sentido amplo, e pode ser substituído por “ação da Igreja”. A missionariedade deve informar toda a ação da Igreja: “Esta firme decisão missionária deve impregnar todas as estruturas eclesiais e todos os planos pastorais de dioceses, paróquias, comunidades religiosas, movimentos e de qualquer instituição da Igreja. Nenhuma comunidade deve se isentar de entrar decididamente, com todas as forças, nos processos constantes de renovação missionária e de abandonar as ultrapassadas estruturas que já não favoreçam a transmissão da fé” (DAp, n. 365). A mudança proposta por Aparecida pode ser apresentada assim: Progredir de uma Igreja de manutenção a uma Igreja decididamente missionária. Tal mudança pode também ser formulada assim: Progredir de “pastoral” para “Missão”. Neste caso, os termos “pastoral” e “missão” são tomados em sentido restrito e próprio. De fato, por “pastoral”, em seu sentido próprio, entende-se o atendimento daqueles que já são discípulos de Cristo. Por sua vez, “missão”, em se sentido próprio, é ir ao encontro de quem ainda não é discípulo de Cristo ou de quem já não é discípulo de Cristo (Cf. Redemptoris Missio, n. 33). Finalmente, tal mudança pode Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 59 Formação presbiteral inicial e permanente ser formulada assim: Progredir de “Igreja: Vida-comunhão-comunidade” para uma “Igreja: Ação-missão-missionariedade”. Ou, então, com mais propriedade: A partir de “Igreja: Vida-comunhão-comunidade”, progredir para “Igreja: Ação-missão-missionariedade”. Como se percebe, trata-se de verdadeira mudança de modelo de Igreja, progredindo de um modelo a outro, em que o eixo articulador já não é a “comunhão”, nem a “organização”, mas, sim, a “missão”, como veremos logo adiante. Em outros termos, trata-se de verdadeira re-estruturação da própria identidade da Igreja, com inversão de seus elementos constitutivos. 1.2 Explicitação da Mudança A identidade de qualquer criatura, indivíduo ou entidade, compõese de três elementos constitutivos, dos quais dois elementos são essenciais: Vida e ação, vocação e missão, forma de vida e categoria de ação, e um elemento é complementar: a organização. De fato, definir a forma de vida de uma criatura e sua função na sociedade é definir sua identidade, a qual se forma e se constrói em constante processo. Tal identidade, à medida que avança, passa a estruturar-se e a organizar-se, a fim de firmar-se como realidade permanente. Assim, uma definição completa da identidade de um indivíduo ou de sua entidade inclui sua forma de vida e sua função, papel ou missão na sociedade, bem como sua forma de organizar a vida e a missão. Ora, a forma de vida da Igreja é “comunhão”, sua função ou missão no mundo é a “evangelização”. Simplificando, podemos dizer que, antes do Concílio Vaticano II, a Igreja organizou sua vida-comunhão e sua missão evangelização na forma de “sociedade”; por inspiração do Concílio Vaticano II progrediu para a forma de “comunidade”; mas tem como ideal evangélico a forma de “fraternidade”. De fato, a Igreja de Cristo identifica-se como Povo de Deus que vive em comunhão, exerce a missão de evangelização e organiza-se ora como sociedade, ora como comunidade, tendo por ideal a fraternidade. Os modelos de Igreja surgem e diferenciam-se segundo a prioridade ou primazia, não exclusão, que é dada a um dos elementos da identidade sobre os demais, tornando-se eixo articulador, enquanto os outros elementos situam-se como subordinados. Assim, “Igreja-comu- 60 Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Ângelo Domingos Salvador, OFM Cap nhão” é modelo, em que prevalece a comunhão: missão e organização subordinam-se à comunhão. “Igreja-organização” é modelo em que, prevalecendo a organização, subordinam-se a ela tanto a comunhão quanto a missão. Por fim, “Igreja-missão” é modelo em que comunhão e organização servem à missão. Ora, a proposta central de Aparecida é inquestionavelmente a implantação do modelo de “Igreja-Missão”. Para nos convencer disto é suficiente reler a introdução e a conclusão do documento final da referida Conferência, como faremos adiante. 1.3 O que Aparecida entende por “missão”, “missionário”? Mas, que entende Aparecida por Missão? Antecipamos a resposta, dizendo: Em Aparecida, por missão entende-se primariamente a “função”, ou seja, a incumbência, o papel, que cabe à Igreja desempenhar no mundo. Tentemos detalhar os vários significados das palavras “Missão” e “missionário” no Documento de Aparecida, já que esse é o novo eixo articulador, quer da ação, quer da formação. Missão como função Em Aparecida, o termo “missão” é empregado dominantemente como sinônimo de “função”, de “papel”. Chama, assim, nossa atenção para a função da Igreja ou seu papel, seu lugar ou seu espaço, na sociedade e no mundo. De fato, o termo “missão” aparece cerca de 100 vezes; destas, em 90 vezes, ao menos, a palavra missão refere-se à função ou papel, ou seja, a um dos elementos da identidade da Igreja. Assim, vejamos alguns exemplos tomados aleatoriamente: “Cumprir a missão” (DAp, n. 21); “participar da missão de Jesus” (DAp, n. 131, 148); “continuar a missão de Jesus” (DAp, n. 151); “comunhão e missão” (DAp, n. 163, 164); “missão própria e específica dos leigos” (DAp, n. 202); “missão evangelizadora” (DAp, n. 158, 214); “Maria teve uma missão única” (DAp, n. 267). O termo “missionário” encontra-se, no Documento de Aparecida, cerca de 150 vezes. Na maior parte delas, o termo “missionário” aparece ao lado de discípulo. Enquanto os termos “discípulo” e “discipulado” apontam para a vida do seguidor de Cristo, o termo “missionário” indica a função ou missão que ele exerce. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 61 Formação presbiteral inicial e permanente Se a vida da Igreja é vida de comunhão, a missão da Igreja é missão de evangelização ou missão evangelizadora. No Documento de Aparecida, aparece, algumas vezes, a expressão “missão de evangelizar”(DAp, n. 30). A expressão “missão evangelizadora”, mediante a qual unem-se intimamente missão com evangelização, aparece com mais frequência (DAp, n. 214; 287; 341; 450; 486; 532; 545). Assim, irmanam-se “discípulo missionário”, bem como “missão e evangelização”. Daí, conclui-se que, segundo Aparecida, o eixo articulador da vida, ação e organização da Igreja, deve ser sua função ou papel, ou seja, sua missão, tornando-se de iure e de facto uma “Igreja Toda Missionária”. Assim, a missão deve impregnar, informar, conformar, reformar e transformar toda a Igreja, tanto a vida de comunhão, quanto a organização comunitária. Evidentemente, a formação dos agentes de uma Igreja Toda Missionária deve ter necessariamente como eixo articulador a missionariedade. Missão Continental A experiência da Igreja de progredir do modelo societário para o modelo comunitário – desafio ainda não completamente superado – faz-nos prever o esforço que deve ser feito para progredir do modelo comunhão – Igreja para dentro e para nós – para o modelo missão – Igreja para fora e para outros. Assim, além de propor o modelo de uma Igreja Toda Missionária, Aparecida convoca a América Latina e Caribenha para uma ação ou projeto concreto coletivo, a fim de concretizar, por um exercício coletivo, a transformação do modelo eclesial: É a Missão Continental. No final do segundo milênio e final do século XX, em preparação do Ano Santo de 2000, o Papa João Paulo II propôs um projeto coletivo de Missão Mundial, através da Carta Apostólica Novo Millenio Adveniente. Em seguida, já no início do novo século e do novo milênio, o mesmo Papa João Paulo II, através de nova Carta Apostólica, convocou as Igrejas Particulares a que elaborassem uma programação pastoral que significasse um “novo começo”, e indicou algumas prioridades pastorais universais. Agora, o Episcopado Latino Americano e Caribenho propõe de novo um projeto coletivo de alcance continental: A Missão Continental. De tal proposta, Aparecida fala explicitamente nos números 362 e 551. Eis como a Missão Continental é apresentada: 62 Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Ângelo Domingos Salvador, OFM Cap A) No número 551: 1) O despertar missionário vai ter a forma de uma Missão Continental, que envolva todo o Continente; 2) As Linhas fundamentais já foram examinadas pela própria Conferência, mas deverão ser implementadas pela Assembleia Plenária do CELAM em Havana; 3) Exige a colaboração das Conferências Episcopais e de cada diocese; 4) Procura colocar a Igreja em estado permanente de missão, levando os navios mar adentro, com o poderoso sopro do Espírito Santo. B) No Número 362: Tal projeto de Missão Continental exige, necessita e espera: 1) Exige-se aprofundar e enriquecer todas as razões e motivações que permitam converter cada cristão em discípulo missionário; 2) Necessita-se desenvolver em cada cristão a dimensão missionária da vida de Cristo e que cada comunidade cristã se transforme num poderoso centro de irradiação da vida em Cristo; 3) Necessita-se de forte comoção que impeça a Igreja de se instalar na comodidade, no estancamento e na indiferença, à margem do sofrimento dos pobres; 4) Espera-se um novo Pentecostes, que nos livre do cansaço, da desilusão, da acomodação ao ambiente: uma vinda do Espírito Santo que renove nossa alegria e nossa esperança; 5) Necessita-se de calorosos espaços de oração comunitária, que alimente o fogo do ardor missionário e que torne atraente o testemunho de unidade, para que o mundo creia (Jo 17,21). Missão Universal Parece certo que a Conferência de Aparecida quer uma “Igreja Toda Missionária” dentro do continente latino-americano e caribenho, bem como dentro dos próprios países. No entanto, é evidente também que tal orientação missionária inclui igualmente as missões além das fronteiras diocesanas, nacionais e continentais. Assim, há referências a presbíteros enviados a outras Igrejas como missionários (n. 191), a diáconos em fronteiras de missão (n. 208), à missão de toda a Igreja (n. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 63 Formação presbiteral inicial e permanente 363). Além disso, trata explicitamente da missão ad gentes nos números 373 a 379, com também em 548. 1.4 Igreja-Missão – Igreja Toda Missionária – Comprovação A partir de “Igreja: “Vida-comunhão-comunidade” progredir para “Igreja: Ação-missão-missionariedade”, ou seja, progredir de“IgrejaPastoral”-“Igreja Toda Pastoral”, a serviço dos “nossos”, para “Igrejamissão”-“Igreja Toda Missionária”, a serviço dos “outros”, é opção tão séria e revolucionária que exige detalhada comprovação. Vejamos a comprovação no Documento de Aparecida, em sua introdução e em sua conclusão. Introdução ao Documento Já na Introdução do Documento, como a definir sua intenção fundamental, de base, a Conferência declara: “A Igreja é chamada a repensar profundamente e a relançar com fidelidade e audácia sua missão nas novas circunstâncias latino-americanas e mundiais” (n. 11). Por isso, “encontramo-nos diante do desafio de revitalizar nosso modo de ser católico e nossas opções pessoais pelo Senhor (...). Assim, “a partir de nossa identidade católica”, empreender “uma evangelização muito mais missionária, em diálogo com todos os cristãos e a serviço de todos os homens” (n. 13). Quais são as motivações para tal revitalização de nosso modo de ser católico em função da missão em todo o continente? “O que nos define não são as circunstâncias dramáticas da vida, nem os desafios da sociedade ou as tarefas que devemos empreender, mas acima de tudo o amor recebido do Pai graças a Jesus Cristo pela unção do Espírito Santo” (DAp, n.14). Conclusão do Documento Aí lemos: Porque “pareceu bem ao Espírito Santo e a nós” (At 15,28), “esta V Conferência deseja despertar a Igreja na América Latina e no Caribe para um grande impulso missionário” (DAp, n. 548). “Para nos converter em uma Igreja cheia de ímpeto e audácia evangelizadora, 64 Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Ângelo Domingos Salvador, OFM Cap temos que ser de novo evangelizados e fiéis discípulos” (DAp, n. 549). “É um afã e anúncio missionário que precisam passar de pessoa a pessoa, de casa em casa, de comunidade a comunidade” (DAp, n. 550). É “despertar missionário”, que toma “a forma de Missão Continental”... que “procurará colocar a Igreja em estado permanente de missão” (DAp, n. 551). Por isso, “recuperemos o ardor e a audácia apostólicos” (DAp, n. 552). Atitude Missionária Fundamental – Prioridade do “outro” Numa “Igreja toda Missionária” é determinante dar prioridade ao “outro” em relação ao “nós”, em que o “nós” é para os “outros”, a serviço dos “outros”. Aparecida declara: “O conteúdo fundamental da missão de Jesus Cristo é a oferta de vida plena para todos. Por isso, a doutrina, as normas, as orientações éticas e toda a atividade missionária das Igrejas, devem deixar transparecer essa atrativa oferta de vida mais digna, em Cristo, para cada homem e para cada mulher da América Latina e do Caribe” (DAp, n. 361). De fato, “a Igreja tem como missão própria e específica comunicar a vida de Jesus Cristo a todas as pessoas, anunciando a Palavra, administrando os sacramentos e praticando a caridade” (DAp, n. 386). João Paulo II, na encíclica Evangelium Vitae, propõe realizar uma “virada cultural”, com a mobilização geral das consciências e um esforço ético comum, a fim de recuperar a “cultura da vida” versus “cultura da morte”. Tal virada cultural, acrescenta o Papa, exige de todos a coragem de assumir um novo estilo de vida, que dê primado ao ser sobre o ter, à pessoa sobre as coisas. Sobretudo, o novo estilo de vida implica a passagem da indiferença ao interesse pelo outro, a passagem da recusa do outro ao seu acolhimento (EV, n. 95-100). Ora, a missionariedade é um estilo de vida característico, próprio e diferenciado, de ser Igreja. Progredir de “Igreja: Vida-comunhão-comunidade” para “Igreja: Ação-missão-missionariedade” exige verdadeira “virada cultural”: de fato, é progredir da “cultura de comunhão” para a “cultura de missão”. Se progredir de “sociedade” para “comunidade” foi um difícil desafio ainda não inteiramente superado, maior será o desafio de assumir a cultura da missionariedade. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 65 Formação presbiteral inicial e permanente A característica determinante da cultura da missionariedade é a de que ela envolve basicamente a primazia de “outros” sobre “nós”, colocando-nos a “nós” em função de “outros”, no sentido mais amplo do termo. É a mordente pergunta que não cessa de martelar nos ouvidos do missionário: Nós..., sim, mas os outros? Nós sabemos que Deus é Pai, mas os outros que não conhecem essa consoladora verdade? Nós sabemos que o Filho veio ao mundo e nos fez filhos no Filho, e os outros? Tal martelante interrogação repete-se também em assuntos de direitos de vida humana digna: Nós temos o que comer, e os outros? Fundamentalmente, a cultura da missão, que equivale à “cultura do outro”, exige como pressuposto, não só a valorização do outro e do diferente, mas também a cultura da abertura, da oblatividade, da dedicação desinteressada, do sacrifício, do “dar a vida”. Ora, tal estilo de vida, já difícil face ao egocentrismo natural, torna-se, hoje, mais difícil, face à macro-mega-tendência moderna do individualismo, consagrado pelo sistema competitivo dominante. Justifica-se, assim, inteiramente, o reconhecimento de que “necessitamos de um novo Pentecostes!”, a fim de que o anúncio das maravilhas de Deus chegue, em sua própria língua, aos “partos, medos e elamitas, habitantes da Mesopotâmia, da Judeia e da Capadócia, do Ponto e da Ásia, da Frígia e da Panfília, do Egito, da Líbia, romanos, cretenses e árabes” (At 2,9-11). Sim, “necessitamos de novo Pentecostes”, porque “necessitamos sair ao encontro das pessoas, das famílias, das comunidades e dos povos para lhes comunicar e compartilhar o dom do encontro com Cristo, que tem preenchido nossas vidas de ‘sentido’, de verdade, e de amor, de alegria e de esperança! Não podemos ficar tranquilos em espera passiva em nossos tempos, mas é urgente ir em todas as direções para proclamar” a Boa Nova (DAp, n. 548). Valha, finalmente, para nós o que pode ser dito como lema de Jesus: “Devo pregar também ali” ou, em texto mais completo da tradução da CNBB, “vamos a outros lugares, nas aldeias da redondeza, a fim de que, lá também, proclame a Boa Nova. Pois foi para isso que eu saí” (Mc 1,38). 2 Mudança do eixo articulador da formação Diante do exposto, fica evidente a reorientação de rumo que deve receber a formação presbiteral. Integrante da ação da Igreja, a formação 66 Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Ângelo Domingos Salvador, OFM Cap dos agentes de uma Igreja Toda Missionária deve ter necessariamente como eixo articulador a missionariedade. Ou seja, o eixo articulador da formação deve progredir da pastoralidade”, ação eclesial de conservação de quem já é discípulo de Cristo, para a “missionariedade”, ação eclesial de fazer discípulos de Cristo aqueles que ainda não o são ou já não o são. Assim, a missionariedade deve impregnar, informar, conformar, reformar e transformar todo processo de formação, desde suas coordenadas, seus fins, seu itinerário, seu conteúdo, seus métodos e suas instituições, tanto durante a formação inicial quanto durante a formação permanente. Se ação é gravar ideias na realidade, formação é gravar a “missionariedade” no processo formativo e nos próprios candidatos ao presbiterado. Breve síntese 1) Antes do Concílio Vaticano II, a Igreja Católica, estando numa sociedade monárquica, estruturou-se segundo o modelo societário; o Concílio Vaticano II, impulsionou a Igreja Católica, em face de uma sociedade democrática, a organizar-se segundo o modelo comunitário; a V Conferência do Episcopado LatinoAmericano e Caribenho propõe-nos que, numa sociedade laica e secular, adotemos um modelo missionário. 2) Tal modelo deve impregnar todas as comunidades, as atividades, as entidades, as estruturas, os processos formativos de toda a Igreja Católica. 3) Assim, a missionariedade – eixo articulador da Igreja – deverá ser também eixo articulador da formação presbiteral. III Novo modelo de presbítero Redefinição da Identidade Presbiteral 1 Texto de Aparecida A Conferência de Aparecida produziu um texto verdadeiramente antológico sobre a imagem ideal do presbítero, para a América Latina e Caribe (DAp, n. 199), imagem que deve ser assimilada no processo de formação inicial e aperfeiçoada no processo de formação permanente. Eis o texto, disposto em forma didática: “O Povo de Deus sente necessidade de: Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 67 Formação presbiteral inicial e permanente a) Presbíteros-discípulos: que tenham profunda experiência de Deus, configurados com o coração do Bom Pastor, dóceis às orientações do Espírito, que se nutram da Palavra de Deus, da Eucaristia e da oração; b) Presbíteros-missionários: movidos pela caridade pastoral (digase: caridade missionária) que os leve a cuidar do rebanho a eles confiado e a procurar os mais distantes, pregando a Palavra de Deus, sempre em profunda comunhão com o Bispo, com os presbíteros, diáconos, religiosos, religiosas e leigos; c) Presbíteros-servidores da vida: que estejam atentos às necessidades dos mais pobres, comprometidos na defesa dos direitos dos mais fracos, e promotores da cultura da solidariedade; d) Presbíteros cheios de misericórdia: disponíveis para administrar o sacramento da reconciliação” (DAp, n. 199). No espírito de Aparecida, tomamos a liberdade de desdobrar o qualificativo “presbíteros-servidores da vida” em dois: 1) Presbíteros-servidores: que, a exemplo de Cristo-servo, que veio, não para ser servido, mas para servir e dar a vida, se caracterizem pelo espírito de abertura, de oblatividade, de doação, de dar a vida por seus irmãos; presbíteros que deem prioridade ao “outro”, especialmente ao afastado, ao distante, ao diferente; 2) Presbíteros-amigos dos pobres: que estejam atentos às necessidades dos mais pobres, comprometidos na defesa dos direitos dos mais fracos, e promotores da cultura da solidariedade; presbíteros que vivam claramente a opção preferencial e evangélica pelos pobres; presbíteros que sejam próximos, amigos, irmãos e pais dos pobres. 2 Organização da imagem ideal do presbítero A partir desses dados e, sobretudo, considerando o presbítero no quadro do modelo de “Igreja: Ação-missão-missionariedade”, podemos formular assim a imagem ideal de presbítero, imagem que deve iluminar e informar todo o processo de formação. O Povo de Deus sente necessidade de Presbíteros missionários, que sejam discípulos, servidores, misericordiosos e amigos dos pobres. Dizendo de outro modo: O Pastor do Povo de Deus, à imagem de Cristo 68 Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Ângelo Domingos Salvador, OFM Cap Pastor, deve ser um Presbítero-Missionário, o qual deve caracterizar-se como discípulo, servidor, misericordioso e amigo dos pobres. Repetindo: O processo formativo deve visar à formação de Presbíteros Missionários, mas de missionários que sejam discípulos, servidores, misericordiosos e amigos dos pobres. Assim, situando-nos no quadro de “Igreja: Ação-missão-missionariedade” podemos organizar a imagem ideal do Presbítero e a imagem ideal do processo de formação presbiteral, do seguinte modo: No quadro do modelo de Igreja “Ação-missão-missionariedade”, 1) O atributo “missionário” qualifica a personalidade do presbítero, ou seja, o predicamento da “missionariedade” impregna, Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 69 Formação presbiteral inicial e permanente conforma, informa, reforma e transforma a personalidade do presbítero, constituindo-o na categoria específica, distintiva e substantiva de “missionário”. 2) Os demais adjetivos, “discípulo, servidor, misericordioso e amigo dos pobres” passam a ser atributos, que qualificam diretamente a personalidade do “missionário” e, indiretamente, a personalidade do presbítero, de tal maneira que passamos a falar de “missionário-discípulo”, de “missionário-servidor”, de “missionário-misericordioso” e, finalmente, de “missionárioamigo dos pobres”. 3) A exemplo de Aparecida, que consagrou a consigna “discípulo missionário”, de tal modo que, mutuamente, um elemento qualifica o outro (o discípulo é missionário, e o missionário é discípulo), os predicamentos “missionário, discípulo, servidor, misericordioso e amigo dos pobres” qualificam-se mutuamente, ou seja, impregnam-se, conformam-se, informam-se, reformam-se e transformam-se reciprocamente formando a rica personalidade do presbítero, tal como sente necessidade o Povo de Deus, na América Latina e Caribe, de um Novo Pentecostes para a missão no continente. Breve síntese 1) A identidade, individual ou social-eclesial, envolve essencialmente vida e missão. Numa Igreja missionária, a vida presbiteral deve estar orientada para a missão presbiteral. 2) Em consequência, a identidade do presbítero deve estar estruturada em torno do ministério missionário, inclusive e principalmente sua espiritualidade: Todos os atributos de sua identidade devem vir a ser atributos de sua missionariedade. IV Definição do itinerário formativo Ser cristão é um modo global de ser, de viver e de estar no mundo, que abarca a totalidade da personalidade, em todas as suas dimensões, durante todo o tempo. Igualmente, ser presbítero é um modo global de ser cristão, que envolve o seu ser, o seu conhecer e o seu agir, em tudo e durante toda a vida. Consequentemente, a formação do cristão, e mais ainda a do presbítero, requer um profundo processo formativo, que vá 70 Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Ângelo Domingos Salvador, OFM Cap à raiz da personalidade – processo similar, mas mais exigente, que o processo antropológico de iniciação à vida adulta. Aparecida enfrentou com coragem esta problemática. Talvez a melhor contribuição de Aparecida para o processo de formação presbiteral seja a da formulação do itinerário de formação dos discípulos missionários. Tal itinerário é plenamente apropriado para definir e explicar o Itinerário da Formação Presbiteral. 1 Itinerário de formação de discípulos missionários 1.1 Breve apresentação e descrição A Conferência de Aparecida destaca cinco aspectos fundamentais, que se completam intimamente e se alimentam entre si. Tais aspectos, por se complementarem intimamente e se alimentarem entre si, podem ser tomados e tratados como etapas complementares de um itinerário progressivo de formação cristã. Ei-lo, em síntese: 1) Encontro com Cristo: É o querigma, aspecto, etapa e fio condutor de um processo que culmina na maturidade do discípulo de Jesus Cristo. “Não se começa a ser cristão por uma decisão ética ou por uma grande ideia, mas através de um encontro... com uma pessoa, que dá um novo horizonte à vida e, com isso, uma orientação decisiva” (DCE, n. 12). 2) Conversão: É o aspecto e a etapa da resposta inicial. Quem se encontrou com o Senhor, decide mudar sua forma de pensar e de viver e fazer-se discípulo de Jesus Cristo. 3) Discipulado: É o aspecto e a etapa da aprendizagem, isto é, do aprofundamento da resposta inicial, ou seja, do amadurecimento do conhecimento, do amor e do seguimento de Jesus, e de sua pessoa, sua doutrina e seu exemplo. 4) Comunhão: É o aspecto e a etapa da integração em uma comunidade de discípulos de Jesus Cristo. “A fé é ato pessoal (...). Ela não é, porém, ato isolado. Ninguém pode crer sozinho, assim como ninguém pode viver sozinho. Ninguém deu a fé a si mesmo, assim como ninguém deu a vida a si mesmo. O crente recebeu a fé de outros; deve transmiti-la a outros (...). Cada crente é como um elo na grande corrente dos crentes. Não posso crer sem ser Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 71 Formação presbiteral inicial e permanente carregado pela fé dos outros, e pela minha fé contribuo para carregar a fé dos outros” (CIC 166). 5) Missão: O discípulo, à medida que cresce na experiência do encontro com Cristo, em comunidade, sente sempre maior necessidade de anunciá-lo, ou seja, ser enviado, ir pelo mundo, tornar realidade o Reino de Deus: “Ai de mim, se eu não evangelizar”. 1.2 Análise Pedagógica do Itinerário Do ponto de vista da formação, podemos destacar nesse itinerário três aspectos ou momentos distintos: 1) Ponto de Partida: Causa ou condição necessária: Encontro com Cristo; 2) Caminhada: Etapas centrais do processo: Conversão, Discipulado e Comunhão; 3) Ponto de Chegada: Frutos do Processo: Missão-Missionariedade. Num quadro, podemos representar assim os distintos aspectos ou momentos do processo de formação cristã, propriamente de iniciação cristã: Iniciação Cristã Conversão Discipulado Comunhão Pressuposto, causa, condição necessária: Encontro com Cristo Etapas Centrais do processo de Iniciação: Iniciação do Iniciação à Processo de Povo de Deus Vida Adulta Conversão Saída do Separação Desestruturação Egito Caminhada no Liminaridade Provação Deserto Entrada Integração Re-estruturação na Terra Prometida Missão-missionariedade Frutos, Consequências, Resultados Iniciação à Vida Consagrada Postulantado Noviciado Juniorado 1.3 Aspectos e Etapas Centrais do Processo de Iniciação Verificamos, no quadro acima, que, tanto o processo de iniciação, quanto o processo de conversão, tanto à vida civil quanto à vida cristã, 72 Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Ângelo Domingos Salvador, OFM Cap em geral, e à Vida Consagrada, em particular, envolvem três tempos, momentos, etapas ou aspectos: 1) Conversão. Corresponde à saída do Egito, etapa inicial de formação do Povo de Deus. É etapa de separação da vida infantil e juvenil. Na conversão religiosa é etapa de desestruturação da cosmovisão secular e laica. Na Vida Consagrada corresponde à etapa do Postulantado, em que o postulante sai do século e ingressa numa Casa de Formação; 2) Discipulado. Corresponde à longa caminhada pelo deserto, com todas as suas provações. É tempo de aprendizagem da nova vida, em regime especial, sob a guia de um mestre-guru. Neste tempo, o candidato já saiu de uma casa, mas ainda não entrou noutra: Está no limiar, em regime especial. No processo de conversão, é tempo de ensaio e erro em a nova vida, com todas as suas provações. Na Vida Consagrada, é o tempo do Noviciado. 3) Comunhão. Corresponde à entrada do Povo peregrino na Terra Prometida. É etapa de integração social na companhia de adultos. No processo de conversão é tempo de re-estruturação de nova cosmovisão. Na Vida Consagrada corresponde ao tempo do Juniorado: os Professos temporários convivem com professos perpétuos. 2 Aplicação à formação presbiteral Na folha que segue, oferecemos a proposta da Comissão Brasileira de Diretrizes da Formação para um Itinerário de Formação Presbiteral, inspirado no itinerário da formação de discípulos missionários, indicado por Aparecida: Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 73 Formação presbiteral inicial e permanente 74 Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Ângelo Domingos Salvador, OFM Cap Breve síntese 1) A formação é um processo progressivo, que segue um itinerário igualmente progressivo; 2) Tudo indica que o itinerário da formação do discípulo missionário pode perfeitamente ser aplicado ao processo da formação presbiteral, tanto para a formação inicial, quanto para a formação permanente. V Dimensões da formação: espiritualidade missionária 1 Conteúdo integral O Documento de Aparecida trata das dimensões da formação presbiteral nos números 319 a 324. Afirma que é necessário que o Projeto Formativo ofereça aos candidatos à vida presbiteral um verdadeiro processo integral, que envolva: Formação humana, comunitária (DAp, n. 324)7, espiritual, intelectual e pastoral. Consagra, pois, as cinco clássicas dimensões da formação presbiteral. Vejamos, brevemente, o que o Documento de Aparecida diz de cada uma delas. 1.1. Formação Humana: Ao recomendar especial atenção à maturidade humana, especialmente afetiva e sexual, tem em vista a melhor compreensão do significado do celibato consagrado (DAp, n. 321).Contribui para a formação humano afetiva uma pedagogia e um clima de sã liberdade e de responsabilidade pessoal, bem como o amadurecimento de motivações verdadeiras e autênticas, livres e pessoais (DAp, n. 322; 195 e 196). 1.2. Formação Comunitária. É tratada em separado, em número especial. A vida comunitária implica o diálogo, capacidade de serviço, humildade, valorização dos carismas alheios, disposição para se deixar interpelar pelos outros, abertura para crescer em comunhão missionária, respeito à unidade na diversidade (DAp, n. 324). 1.3. Formação Espiritual. Dada sua importância, dedicamos um item especial a ela (Ver logo adiante). 7 Na relação das dimensões da formação integral, feita no número 319, não consta a formação comunitária. Dela, porém, trata-se no número 324. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 75 Formação presbiteral inicial e permanente 1.4. Formação Intelectual. A formação deve ser séria e profunda, especialmente em teologia e missiologia, devendo-se reforçar o estudo da Palavra de Deus, que venha a ser espírito e vida que ilumine e alimente toda a existência. Ora, tal exigência requer professores bem preparados, em número suficiente (DAp, n. 323). Ao recomendar seriedade e profundidade especialmente em Missiologia, pode-se incluir a necessidade de enriquecer o currículo com disciplinas que aprofundem o conhecimento do “outro”, como o estudo de outras Religiões, outras culturas, outras igrejas e comunidades, outras filosofias e teologias, outras formas de evangelizar, etc. 1.5. Formação Pastoral-missionária. Como é evidente, no modelo de Igreja ação-missão-missionariedade, a formação pastoral-missionária, no espírito de Aparecida, é o eixo articulador e integrador da formação presbiteral. A centralidade da formação pastoral-missionária não pode, porém, reduzir-se à intencionalidade, mas deve traduzir-se em disciplinas de estudo constantes no currículo e em treinamentos práticos de exercício pastoral e missionário, inclusive com estágios pastorais-missionários significativos. 2 Espiritualidade missionária Na lógica de Aparecida, a espiritualidade presbiteral deve ser espiritualidade missionária. De fato, no modelo de “Igreja: Ação-missãomissionariedade”, deve prevalecer e desenvolver-se uma sólida espiri tualidade: a espiritualidade da ação (VC 74), a espiritualidade do trabalho (LE 24), a espiritualidade do ministério (LG 41;PO 12 e 13; PDV 24), a espiritualidade da evangelização (EN 74), em suma, a espiritualidade missionária (RM 87). 2.1 Proposta de Aparecida Vejamos algumas declarações explícitas de Aparecida: Ao falar das dimensões da formação, em geral, Aparecida afirma que a “espiritualidade que se promove deve responder à identidade da própria vocação, seja diocesana ou religiosa”. Um autêntico processo de iniciação espiritual deve ser assegurado, especialmente no Período Propedêutico (DAp, n. 219). 76 Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Ângelo Domingos Salvador, OFM Cap Ao falar da Pastoral Presbiteral, Aparecida afirma que esta deve privilegiar a espiritualidade específica, ou seja, a espiritualidade específica dos presbíteros (DAp, n. 200). Logo, Aparecida afirma que os Presbíteros possuem uma “espiritualidade específica”, a “espiritualidade própria dos presbíteros” (DAp, n.285), “um caminho de santidade próprio do ministério sacerdotal” (DAp, n. 316). Ao falar da Paróquia, comunidade de discípulos missionários, afirma que os organismos paroquiais “precisam estar animados por uma espiritualidade de comunhão missionária” (DAp, n. 203). Tratando explicitamente de “uma formação na espiritualidade da ação missionária”, afirma que “É necessário formar os discípulos numa espiritualidade da ação missionária, que se baseia na docilidade ao impulso do Espírito, à sua potência de vida que mobiliza e transfigura todas as dimensões da existência” (DAp, n. 284). Ora, os presbíteros ocupam lugar privilegiado entre os discípulos missionários. Logo, como discípulos missionários, os presbíteros devem ser formados na espiritualidade da ação missionária. É verdade que, várias vezes, Aparecida recomenda uma “espiritualidade de comunhão” (DAp, n. 181; 189; 307; 316; 368), mas também é verdade que a “comunhão” recebe o qualificativo de “missionária” (DAp, n. 203). 2.2 Tarefa necessária, ingente e urgente A tradição católica tem larga experiência e sólida teologia sobre espiritualidade, em si mesma, intransitiva, imanente, interior, ilustrada com a sabedoria de grandes mestres, ornados de grande santidade. Mas há ainda um longo caminho a percorrer em relação à “espiritualidade do Genitivo”, espiritualidade com complemento de especificação, a espiritualidade transitiva, especialmente em relação à ação, ao ministério e à missão. De fato, a teologia do genitivo é recente; teve início com a corrente teológica que tratava da “Teologia das Realidades Terrestres”. Por sua vez, a “espiritualidade do genitivo, mal está ensaiando os primeiros passos8. O Vaticano II oferece as bases e o magistério posterior desenvolve alguns “fundamentos”. Cabe à Teologia Espiritual 8 Conferir: FERNÁNDEZ, Victor Manuel. Teologia Espiritual Encarnada – Profundidade espiritual em ação. São Paulo, Paulus, 2007. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 77 Formação presbiteral inicial e permanente ampliar os horizontes, com a “ascética e mística da ação”, sobretudo da ação missionária. Breve síntese 1) O Documento de Aparecida consagra as cinco clássicas dimensões da formação presbiteral: A formação humano-afetiva, a formação comunitária, a formação espiritual, a formação intelectual e a formação pastoral-missionária. 2) Merece destaque a formação espiritual, quer por sua permanente importância, quer pela índole missionária, que deve assumir. VI Outras contribuições de Aparecida sobre formação presbiteral Aparecida chama a atenção sobre outros aspectos da formação. Vamos elencá-los, sem desenvolvê-los, por falta de espaço: 1 Instituições de formação presbiteral 1.1. Pastoral Vocacional e Promoção Vocacional. Para a formação de discípulos missionários, ocupa lugar particular a Pastoral Vocacional, que acompanha todos os que o Senhor chamar (DAp, n. 314). Diante da escassez de candidatos à vida presbiteral e à Vida Consagrada, é urgente dedicar cuidado especial à Promoção Vocacional, dirigida às vocações para essas formas de vida (DAp, n. 315). 1.2. Os Seminários e Casas de Formação constituem espaço privilegiado – escola e casa – para a formação de discípulos missionários (DAp, n. 316). 2 Seleção de candidatos É necessário que se faça esmerada seleção de candidatos, com os seguintes critérios: • Equilíbrio psicológico de personalidade sadia; • Motivação genuína de amor a Cristo, à Igreja; 78 Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Ângelo Domingos Salvador, OFM Cap • Capacidade intelectual adequada às exigências do ministério no tempo atual (DAp, n. 218). 3 Candidatos pobres e indígenas Tais candidatos requerem formação inculturada: Adequada formação teológica e espiritual, sem que isso os faça perder suas raízes (DAp, n. 325). 4 Formação permanente Deve haver complementariedade entre formação inicial, realizada no Seminário, e a formação permanente, que abrange as diversas etapas de vida do presbítero. É necessário despertar a consciência de que a formação só termina com a morte. São necessários projetos diocesanos bem articulados e constantemente renovados (DAp, n. 326). E-mail do Autor: [email protected] Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 79 Resumo: O artigo tem como objetivo colocar o leitor em contato com argumentos que refletem o presbítero a partir do Documento de Aparecida. Segue o método da pesquisa documental. Aborda três eixos que desafiam a vida e o ministério do presbítero na formação inicial e na formação permanente através da exposição de argumentos extraídos do DA, de Documentos do Magistério da Igreja, da Sagrada Escritura e de pesquisas científicas. Faz a leitura da missão compreendida como serviço. Refere que a Igreja trabalha através de cinco dimensões o homem presbítero total, ou seja, a dimensão humano-afetiva, intelectual, espiritual, pastoral e comunitária. A Igreja cuida da formação do presbítero para que viva sua vocação e tenha competência para evangelizar no contexto cultural pós-moderno em crise de mudança de época. O artigo fala de profissionais da psicologia que trabalham com presbíteros. Refere-se ao relato informal de presbíteros que se beneficiaram pelo recurso à psicoterapia. Enfim, focaliza a dimensão humano-afetiva e sugere a capacitação de profissionais da psicologia em nível de pós-graduação para atenderem a demanda da Igreja, levando-se em conta a adequação da linguagem, de pressupostos teóricos e dos procedimentos científicos. Palavras-Chave: Documento de Aparecida, presbítero, vida e ministério. Abstract: The aim of the present article is to put the reader in contact with arguments that reflect the presbyter in the Document of Aparecida (DA). Its method is documental inquiry. Three aspects that challenge the life and ministry of the presbyter in the initial and permanent formation are reflected by the exposition of arguments extracted from the DA, from magisterial documents of the Church, from the Holy Scriptures and scientific inquiry. Mission is conceptualized as service. The article argues that the Church forms the integral man-presbyter in five dimensions: the human-affective, the intellectual, the spiritual, pastoral and the communitarian. The Church is concerned with the formation of the presbyter for him to live his vocation and to be competent to evangelize in the postmodern context in an epochal change. The article cites professionals in psychology who attend presbyters. Makes reference to informal reports of presbyters who benefitted from recurring to psychotherapy. Finally, focalizes the human-affective dimension and proposes the capacitation by post-graduation of professionals in psychology to attend the demand of the Church with respect to linguistic adaptation, theoretic presuppositions and scientific procedures. Keywords: Document of Aparecida, presbyter, life and ministry O presbítero a partir do Documento de Aparecida Anselmo Matias Limberger* * Doutor em Psicologia Clínica pela PUCSP. Professor do Centro Universitário Assunção – UNIFAI. Pároco da Paróquia N. Sra. Refúgio dos Pecadores e Sto. Expedito, Diocese de Santo Amaro. Presidente do CRP – SUL 1. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011, p. 81-94. O presbítero a partir do Documento de Aparecida Epígrafe Comunhão e Diálogo! A comunhão refere-se àquilo que é essencial à vida e ao ministério dos presbíteros e os une na mesma Igreja. O diálogo possibilita a construção de pontes entre os presbíteros para que as suas diferenças subjetivas sejam mutuamente respeitadas. Agradecimento Profunda gratidão aos Padres Norberto H. C. Foerster, Patrick Jaime Smith, Deusmar Jesus da Silva e ao Frei Gabriel de Moura Lima pelas contribuições. 1 Introdução O Documento de Aparecida – DA1 volta seu olhar para o momento atual, ou seja, para o início do terceiro milênio e destaca situações que afetam e desafiam a vida e ministério dos presbíteros. Focaliza três eixos, isto é, a) a dimensão da identidade teológica do ministério presbiteral, b) a inserção do presbítero na cultura atual e enfatiza c) situações que incidem sobre a existência do presbítero (DA, n. 192). 2 Desenvolvimento 2.1 A identidade teológica do ministério presbiteral. Para situar a identidade teológica do ministério presbiteral, o DA volta-se para o Concílio Vaticano II2 e refere que o “sacerdócio ministerial está a serviço do sacerdócio comum dos fiéis” (DA, n. 193). Essa informação põe em destaque a diferença entre os dois tipos de sacerdócio e refere que o batismo confere a graça que é comum a ambos e que o sacramento da ordem estabelece uma diferença qualitativa e ordena o sacerdócio ministerial a serviço do sacerdócio comum. 82 1 Documento de Aparecida (2007). 11. ed. Brasília/São Paulo: Editoras CNBB, Paulus e Paulinas, 2009. 2 O Concílio Vaticano II teve início no dia 11 de outubro de 1962 e foi concluído no dia 7 de dezembro de 1965. Compêndio do Vaticano II. Constituições, Decretos e Declarações. Petrópolis: Vozes, 1972. LG, n. 10. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Anselmo Matias Limberger Retomo a questão da identidade teológica do ministério sacerdotal, voltando-me para o Decreto Presbyterorum Ordinis - PO e percebo que, ao referir-se ao ‘Presbiterado na Missão da Igreja’, destaca que “o Senhor Jesus, a Quem o Pai santificou e enviou ao mundo (Jo 10, 36), faz todo o Seu Corpo místico participar da unção do Espírito pela qual Ele foi ungido. Pois n’Ele os fiéis todos tornam-se um sacerdócio santo e régio, oferecem a Deus hóstias espirituais por Jesus Cristo, e anunciam as virtudes d’Aquele que das trevas os chamou para Sua luz admirável. Não existe assim membro que não tenha parte na missão de todo o Corpo. Cada qual deve pelo contrário tratar santamente a Jesus em seu coração, e num espírito de profecia dar testemunho sobre Jesus (...). O ofício dos presbíteros, por estar ligado à Ordem episcopal, participa da autoridade com que o próprio Cristo constrói, santifica e rege o Seu Corpo. Por isso o sacerdócio dos presbíteros, supondo embora os sacramentos da iniciação cristã, é conferido por aquele Sacramento peculiar mediante o qual os presbíteros, pela unção do Espírito Santo, são assinalados com um caráter especial e assim configurados com Cristo Sacerdote, de forma a poderem agir na pessoa de Cristo cabeça” (PO, n. 1142 e 1144)3. João Paulo II, através da Instrução: “O Presbítero, Pastor e Guia da Comunidade Paroquial” (2002)4, afirma que “o sacerdócio comum e o sacerdócio ministerial diferenciam-se por essência e não só por grau: não se trata somente de uma maior ou menor intensidade de participação no único sacerdócio de Cristo, mas de participações essencialmente diversas. O sacerdócio comum fundamenta-se no caráter batismal, que é o selo espiritual da pertença a Cristo que ‘capacita e compromete os cristãos a servirem a Deus em uma participação viva na sagrada Liturgia da Igreja e a exercerem o seu sacerdócio batismal pelo testemunho de uma vida santa e de uma caridade eficaz. O sacerdócio ministerial, ao invés, fundamenta-se no caráter impresso pelo sacramento da Ordem, que configura a Cristo sacerdote, de modo a poder agir na pessoa de Cristo Cabeça com poder sagrado, para oferecer o Sacrifício e para perdoar os pecados (...). No exercício das suas funções específicas, ‘os presbíteros’ agem in persona Christi Capitis e, do mesmo modo, conseqüentemente, in nomine Ecclesiae5”. 3 Compêndio do Vaticano II. Constituições, Decretos e Declarações. Petrópolis: Vozes, 1972. PO, n. 1142 e 1144. 4 Papa JOÃO PAULO II. Instrução: O Presbítero, Pastor e Guia da Comunidade Paroquial. Brasília: Edições CNBB, 2011: 26-27. 5 Cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 1273. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 83 O presbítero a partir do Documento de Aparecida O sacerdócio ministerial refere-se à missão na forma de serviço a ser prestado ao Povo de Deus. Com essa referência retomo o lema do DA: ‘discípulos-missionários’, para enfatizar o serviço compreendido pelas características “da gratuidade e da alteridade6”, gerados a partir do encontro pessoal com Jesus Cristo. Nesse sentido pode-se recuperar o exemplo deixado por Nosso Senhor, que com sua doutrina e prática evidenciou as diferentes formas pelas quais Ele serve e ao mesmo tempo envia seus discípulos-presbíteros a fazerem o mesmo. O sacerdócio ministerial fundamenta-se em Jesus que, ao servir, anunciava o Reino “manifestado claramente aos homens nas suas palavras, nas suas obras e na sua pessoa7”. O fundamento da missão compreendida como serviço na Igreja Católica remete à vida e aos ensinamentos de Jesus e dos Apóstolos e sobretudo à sua visão de homem e de mundo (LIMBERGER, 2011)8. Jesus é o missionário do Pai e serve na ação do Espírito Santo ao proclamar as Bem-Aventuranças. Com elas percebe-se como Ele apresenta os critérios do Reino que parecem paradoxais em relação às máximas do mundo, e contudo indicam para o presbítero uma realização. Disse: “Bem-Aventurados os pobres no espírito, os mansos, os que choram, os que têm fome, os misericordiosos, os pacíficos, os que sofrem”. Concluindo cada Bem-Aventurança, Jesus refere-se a uma realização: “porque deles é o reino dos céus, possuirão a terra, serão consolados, serão saciados, alcançarão misericórdia, serão chamados filhos de Deus, deles é o reino dos céus” (cf Mt 5,3-12). Nota-se que a razão e o objetivo que fundamentam a missão e o serviço do presbítero, são assim expressos paradoxalmente. A noção de servir e de ser servido aparece no episódio em que a mãe dos filhos de Zebedeu se dirige a Jesus e pede que um se sente à sua direita e outro à sua esquerda no seu Reino. Jesus, porém, adverte: Vós sabeis que os príncipes das nações as subjugam e que os grandes as governam com autoridade. Não será assim entre vós, mas todo o que quiser ser entre vós o maior, seja vosso servo; e o que quiser ser entre vós o primeiro, seja vosso escravo; assim como o Filho do homem não 84 6 Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil, 2011-2015, n. 8. 7 LG, n. 5. e 6. 8 Anselmo Matias LIMBERGER. Sentidos da experiência do trabalho voluntário em uma instituição religiosa. Doutorado em psicologia clínica. São Paulo: PUCSP, 2011: 26. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Anselmo Matias Limberger veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida para a redenção de muitos (Mt 20,25-28). O serviço de Jesus Cristo nasce de quem Ele é. Vós chamais-me Mestre e Senhor e dizeis bem, porque o sou. Se eu, pois, Senhor e Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns aos outros. Porque eu dei-vos o exemplo, para que, como eu vos fiz, assim façais vós também. Em verdade, em verdade vos digo: O servo não é maior do que seu senhor, nem o enviado é maior do que aquele que o enviou (Jo 13,13-16). Na última Ceia, Jesus deixa o exemplo de serviço cujas características destacadas não se referem à busca de poder, de fama, de sucesso, de resultados, de dons, de milagres a serem almejados, mas como uma doação generosa e gratuita, expressa nas suas atitudes. O lava-pés representa uma das disposições de quem se põe a servir imitando a atitude de Jesus (LIMBERGER, 2011)9. O serviço de Jesus é identificado pelo seu amor, “ama-os até o fim” a ponto de entregar a si mesmo, a própria vida. Porque fruto do amor, o serviço de Jesus foi incondicional e sem discriminação (LIMBERGER, 2011)10. Os serviços na Igreja são especificados por São Paulo quando escreve aos Coríntios: Assim a alguns constitui Deus na Igreja: em primeiro lugar, apóstolos; em segundo lugar, profetas; em terceiro lugar, doutores; depois, os que têm o poder de operar milagres; depois, os que têm o dom de curar, de assistir, de governar, de falar diversas línguas, de interpretar as línguas (1Cor 12,29). Na carta aos Romanos, o apóstolo Paulo enfatiza os serviços através da metáfora do corpo e afirma: Assim como num só corpo temos muitos membros, e nem todos os membros têm a mesma função, assim, ainda que muitos, somos um só corpo em Idem, ibidem. 10 Idem, ibidem. 9 Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 85 O presbítero a partir do Documento de Aparecida Cristo, e cada um de nós somos membros uns dos outros. Mas temos dons diferentes, segundo a graça que nos foi dada: quem tem o dom da profecia, use-o segundo a regra da fé; quem tem o ministério, exerça o ministério; quem tem o dom de ensinar, ensine; quem tem o de exortar, exorte; o que reparte, faça-o com simplicidade; o que preside, seja solícito; o que faz obras de misericórdia, faça-as com alegria (Rm 12,4-8). Ontologicamente compreendo a identidade teológica do ministério presbiteral como missão, ou seja, como serviço a ser prestado ao Povo de Deus, seguindo o exemplo que Jesus deixou. Retomando o DA, (n. 192) esse adverte que não se deve confundir o “sacerdócio ministerial com o sacerdócio comum dos fiéis”. O DA destaca que “o sacerdote não pode cair na tentação de se considerar somente mero delegado ou apenas representante da comunidade, mas sim um dom para ela, pela unção do Espírito e por sua especial união com Cristo”. O objetivo do ministério sacerdotal é lembrado pelo Decreto Presbyterorum Ordinis, segundo o qual “o fim que visam os presbíteros, por seu ministério e vida, é ocupar-se da glória de Deus Pai em Cristo. Consiste essa glória em aceitarem os homens a obra de Deus, levada à perfeição por Cristo, de maneira consciente, livre e grata, fazendo-a irradiar-se em toda a sua vida. Assim os presbíteros, ao se dedicarem à oração e à adoração, ao pregarem a palavra, ao oferecerem o Sacrifício Eucarístico e administrarem os demais sacramentos, ao exercerem os diversos ministérios em favor dos homens, contribuem de um lado para aumentar a glória de Deus e, por outro, para levar os homens a crescerem na vida divina” (PO, n. 1146). 2.2 A inserção do presbítero na cultura atual Referindo-se à cultura atual, o DA lembra que “o presbítero é chamado a conhecê-la para semear nela a semente do evangelho, ou seja, para que a mensagem de Jesus chegue a ser uma interpelação válida, compreensível, cheia de esperança e relevante para a vida do homem e da mulher de hoje, especialmente para os jovens. Esse desafio inclui a necessidade de potencializar adequadamente a formação inicial e permanente dos presbíteros, em suas quatro dimensões: afetiva, espiritual, intelectual e pastoral” (DA, n. 194). As Diretrizes para a Formação dos Presbíteros da 86 Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Anselmo Matias Limberger Igreja no Brasil (2010)11 fundamentam-se nos documentos do Magistério e apresentam o itinerário da formação inicial e da formação permanente do presbítero. Nota-se que são mantidas as dimensões da Pastores Dabo Vobis, dos eixos do DA, bem como das Orientações da Congregação para a Educação Católica aprovadas pelo Papa Bento XVI. Dom Ângelo Domingos Salvador (2008)12, fundamentado no DA, apresenta sua contribuição para compreendermos a cultura atual. Entre outras coisas, observa que vivemos uma mudança de época, e seu nível mais profundo é o cultural. Significa: estamos saindo de um modelo ou sistema de sociedade e entrando em outro, ou seja, um modelo ou sistema está passando e outro vem chegando. Assim, estamos no tempo da passagem de um para outro. De fato, já não estamos em época de mudanças acidentais ou graduais, mas, sim, de mudanças substanciais e essenciais, que caracterizam outro modelo ou outro sistema de sociedade. Tais mudanças, segundo Aparecida, revelam-se principalmente no nível cultural, evidentemente com reflexos nos demais níveis. Seguindo sua exposição, o mesmo autor analisa três pontos: a globalização do modo pessoal da existência, a globalização do modo urbano da existência e, enfim, situações que afetam a vida presbiteral. Com isso evidencia a importância que tem a formação inicial e permanente do presbítero, conforme a dimensão humano-afetiva, espiritual, intelectual, pastoral e comunitária, supracitadas para responderem ao homem e à cultura pós-moderna em crise de mudança de época. Reporto-me à Pastores Dabo Vobis (1992)13 de João Paulo II, da qual destaco um parágrafo referente a cada dimensão supracitada. O Papa escreve: “sem uma formação humana, toda a formação sacerdotal ficaria privada do seu necessário fundamento”, (n. 43). Quanto à dimensão espiritual: “possui a inconfundível originalidade que provém da novidade evangélica. Efetivamente essa formação é obra do Espírito 11 Diretrizes para a Formação dos Presbíteros da Igreja no Brasil. 1ª Ed. Brasília: Edições CNBB, 2010. 12 Dom Ângelo Domingos SALVADOR. Formação Presbiteral. Inicial e Permanente. À luz de Aparecida, n. 17. Bogotá: Edições CNBB, 2008: 16-39. 13 JOÃO PAULO II. Exortação Apostólica Pós-Sinodal, Pastores Dabo Vobis. São Paulo: Paulinas, 1992. Formação humana: pp. 116-121. Formação espiritual: pp. 122-138. Formação intelectual: pp. 138-150. Formação pastoral: pp. 150-157. As quatro dimensões relacionadas à formação permanente: pp. 186-212. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 87 O presbítero a partir do Documento de Aparecida e compromete a pessoa em sua totalidade; introduz na comunhão profunda com Jesus Cristo, Bom Pastor; conduz a uma submissão de toda a vida ao Espírito numa atitude filial para com o Pai, e numa ligação fiel à Igreja. A formação espiritual radica na experiência da cruz para poder introduzir, em profunda comunhão, na totalidade do mistério pascal” (n. 45). Quanto à formação intelectual: “um momento essencial da formação intelectual é o estudo da Filosofia, que leva a uma compreensão e interpretação profunda da pessoa, da sua liberdade, das suas relações com o mundo e com Deus. (...) Para uma compreensão mais abrangente do ser humano, bem como dos fenômenos e das linhas evolutivas da sociedade, em ordem ao exercício o mais encarnado possível do ministério pastoral, podem ser de grande utilidade as chamadas ciências do homem como a Sociologia, a Psicologia, a Pedagogia, a ciência econômica e a política, e a comunicação social. (...) A formação intelectual do futuro sacerdote baseia-se e constrói-se sobretudo sobre o estudo da ‘sagrada doutrina’, a Teologia” (n. 52-53). Quanto à formação pastoral: “toda a formação dos candidatos ao sacerdócio é destinada a dispô-los de modo particular para comungar da caridade de Cristo, Bom Pastor. Portanto, nos seus diversos aspectos, essa formação deve ter um caráter essencialmente pastoral” (n. 57). As Diretrizes para a Formação dos Presbíteros da Igreja no Brasil (2010)14, referindo-se às dimensões da formação, destacam que estas se apóiam em três dispositivos pedagógicos, ou seja, na “familiaridade da casa, na sucessão do cotidiano e na presença do formador”. Esses dispositivos supõem as conhecidas dimensões antropológico-teológicas da “formação humano-afetiva, formação comunitária, formação espiritual, formação pastoral e formação intelectual”. Nota-se que o documento ampliou as dimensões da Pastores Dabo Vobis e do DA de quatro para cinco e informa que “essas dimensões da formação correspondem às exigências essenciais da identidade e missão dos presbíteros”. Quanto à dimensão da formação comunitária, as Diretrizes destacam que “somente a efetiva e profunda experiência de comunidade poderá formar o presbítero segundo o modelo deixado por Jesus (...). O sentido da vida e da missão do presbítero é determinado pela qualidade e profundidade de sua experiência de comunhão (...). A comunhão de fé com o bispo e com o presbitério e a partilha da vida com o Povo de Deus, 14 88 Diretrizes para a Formação dos Presbíteros da Igreja no Brasil. Brasília: Edições CNBB, 2010: 116-7. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Anselmo Matias Limberger a quem deve estimar, acolher, servir e amar (...) é, ao mesmo tempo, sinal e fruto da comunhão com Deus Pai, no Filho, pelo Espírito”. A partir desses elementos, o documento apresenta os objetivos e indica os meios da formação comunitária15. Retomo o DA, através do estudo de Dom Ângelo Domingos Salvador (2008)16, para apresentar com ele um novo modelo de presbítero. O autor redefine a identidade presbiteral e destaca suas características: a) Presbíteros-discípulos, que tenham profunda experiência de Deus, configurados com o coração do Bom Pastor, dóceis à orientação do Espírito, que se nutram da Palavra de Deus, da Eucaristia e da Oração; b) Presbíteros-missionários, movidos pela caridade pastoral-missionária que os leve a cuidar do rebanho a eles confiado e a procurar os distantes, pregando a Palavra de Deus, sempre em profunda comunhão com o Bispo, com os outros presbíteros, diáconos, religiosos, religiosas e leigos; c) Presbíteros-servidores da vida, que estejam atentos às necessidades dos mais pobres, comprometidos na defesa dos direitos dos mais fracos, e promotores da cultura da solidariedade; d) Presbíteros cheios de misericórdia, especialmente disponíveis para administrar o sacramento da reconciliação17. Dentro da ótica do novo modelo de presbítero, os Bispos do Brasil vêm lembrá-los de que se esmerem “em levar avante a formação permanente, conscientes de que cada vida é um caminho incessante em direção à maturidade e, por ela, atende-se à exigência de acertar o passo com a história e discernir o contínuo chamado ou vontade de Deus. A alma e essência da formação permanente do presbítero é a caridade pastoral, pois todos os aspectos da formação devem ordenar-se ao fim pastoral” (n. 16)18. Quanto à dimensão espiritual, pode-se verificar a contribuição da Congregação para o Clero (2011)19 que relembra, entre outras recomendações: “os próprios ministros necessitam da prática da direção espiritual, que está sempre intrinsecamente ligada à intimidade com Cristo: para desempenhar com fidelidade o seu ministério, tenham a 15 Idem, p. 127-131. 16 Dom Ângelo Domingos SALVADOR, op. cit. n. 17. 17 Idem, n. 61-62 18 Carta aos Presbíteros. Doc. 75. São Paulo: Paulinas, 2004. 19 CONGREGAÇÃO PARA O CLERO (2011). O sacerdote, ministro da misericórdia divina: subsídio para confessores e diretores espirituais. São Paulo: Paulinas, 2011. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 89 O presbítero a partir do Documento de Aparecida peito o colóquio cotidiano com Cristo Senhor, na visita e culto pessoal à Sagrada Eucaristia, entreguem-se de bom grado ao retiro espiritual, e tenham em grande apreço a direção espiritual” (n. 74). 2.3 Situações que incidem sobre a existência do presbítero O DA destaca o desafio que se refere aos “aspectos vitais e afetivos, ao celibato e a uma vida espiritual intensa fundada na caridade pastoral, que se nutre na experiência pessoal com Deus e na comunhão com os irmãos; também ao cultivo de relações fraternas com o Bispo, com os demais presbíteros da diocese e com os leigos. Nesse sentido, adverte: Para que o ministério do presbítero seja coerente e testemunhal, ele deve amar e realizar sua tarefa pastoral não isoladamente mas em comunhão” (cf. n. 195). Quanto ao setor humano-afetivo supracitado, reporto-me às Orientações aprovadas pelo Papa Bento XVI (2008/2010)20 para serem utilizadas tanto na formação inicial quanto na formação permanente, tanto em caráter preventivo como em caráter curativo. A propósito, trago o exemplo de um autor que se beneficiou da psicoterapia na formação inicial ao presbiterado. Psisaneschi (2009)21, advogado formado pela PUCSP, sentiu-se chamado ao sacerdócio e, após a graduação em teologia, foi ordenado. Sua primeira função ministerial consistiu em ser pároco numa paróquia próximo à PUCSP, o que facilitou para ele colaborar com outros padres no trabalho da Pastoral Universitária. Relatou que, ao exercer seu ofício, sentiu-se interpelado pelas demandas dos jovens que o buscavam para se aconselharem. Esse fato o levou a desenvolver uma pesquisa científica na área da psicologia clínica, na qual investiga o tema das contribuições do aconselhamento psicológico para a prática da direção espiritual. Por outro lado, na pesquisa ele se refere ao seu processo na formação inicial ao presbiterado e relata que fez acompanhamento personalizado com 90 20 CONGREGAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO CATÓLICA (2008). Orientações para a utilização das competências psicológicas na admissão e na formação dos candidatos ao sacerdócio. Brasília: Edições CNBB, 2010. 21 Vandro PISANESCHI. Contribuições do aconselhamento psicológico para a prática da direção espiritual. Mestrado em psicologia clínica. São Paulo: PUCSP, 2009. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Anselmo Matias Limberger psicólogo e como esse trabalho contribuiu para o amadurecimento de sua personalidade e de suas opções. Pereira (2009)22 é psicóloga, e em sua pesquisa científica trabalha a interface entre o aconselhamento psicológico e o aconselhamento espiritual. Relata que foi convidada pelo Reitor do Seminário “X” para atender aos candidatos em processo de formação inicial ao presbiterado. Na pesquisa, essa autora descreve experiências de psicólogos que fazem aconselhamento e de diretores espirituais que trabalham em Seminário. Quanto à função do conselheiro psicológico, ela destaca que este tem o objetivo de “facilitar a auto-exploração, o auto-conhecimento e a autonomia do cliente, favorecendo sua comunicação consigo mesmo e a revitalização de sua tendência ao crescimento, tida como um recurso confiável para a mudança e a transformação buscadas”. O “Instituto Terapêutico Acolher”, em São Paulo, é especializado no atendimento a presbíteros. Padres que fizeram acompanhamento psicológico testemunham informalmente os benefícios terapêuticos para suas vidas. 3 Conclusão Concluindo o presente artigo, observo que os vários documentos do Magistério da Igreja reconhecem a necessidade de trabalhar os três eixos do DA e as quatro dimensões da Pastores Dabo Vobis, mais a dimensão comunitária. Em comum, destacam como fundamental a dimensão humano-afetiva, que é o campo do trabalho psicológico no processo de formação inicial e de formação permanente dos presbíteros. As Diretrizes supracitadas apresentam os objetivos da formação humano-afetiva que devem ser trabalhadas pela comunidade formadora. Ao destacar o profissional da psicologia, elas ressaltam que esse deve atuar com o objetivo de, tanto na formação inicial como na permanente, ajudar o candidato a “conseguir a capacidade de autoconhecimento equilibrado, com exclusão de percepções distorcidas, e a resistência às tensões e provas a que a vida submete toda pessoa (...). A primeira e permanente tarefa é ajudar o presbítero a amar-se a si mesmo”. E acrescentam que “a experiência de amar a si mesmo, sentindo-se chamado e 22 Leidilene Cristina PEREIRA. A interface entre o aconselhamento psicológico e o aconselhamento espiritual. Mestrado em Psicologia Clínica. São Paulo: PUCSP, 2009: 123. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 91 O presbítero a partir do Documento de Aparecida escolhido pelo Senhor, torna-se uma força vigorosa para o crescimento humano-afetivo e fonte genuína do amor aos irmãos”. O desafio se coloca quando se parte para a escolha dos profissionais da psicologia para realizarem o atendimento. Observo que há, de um lado, a demanda dos presbíteros e, do outro lado, há muitas especificidades para o atendimento psicológico. Reconheço que há abordagens e princípios da psicologia que entram em conflito com aquilo que a Igreja espera do trabalho psicológico. Contudo, na própria psicologia, que é uma ciência com muitos paradigmas, há princípios, procedimentos e técnicas que não se opõem aos ensinamentos da Igreja. É, pois, necessário organizar um curso em nível de pós-graduação para habilitar e capacitar os psicólogos a fazerem o atendimento dentro dos princípios que regem a Igreja e a Ciência. Limberger (2004)23 desenvolve sua pesquisa de especialização em psicologia clínica e descreve o processo de terapia breve, com abordagem psicodinâmica, na qual é possível obter resultados duradouros com um processo que dura em média vinte e quatro sessões. Após o atendimento, fazem-se sessões de follow-up para reavaliar o cliente e propor novos encaminhamentos. O processo de terapia breve, conforme descrição na pesquisa supracitada, adequa-se bem às necessidades dos presbíteros em sua formação inicial e em sua formação permanente. Quando me referi a um possível curso de especialização para psicólogos para atenderem à demanda da Igreja, no caso de presbíteros, refiro-me a essa modalidade de atendimento focalizado. A Igreja apresenta critérios psicológicos nas Diretrizes para a Formação dos Presbíteros (2010)24, as quais também devem ser conhecidas pelos psicólogos. De resto, acredito que a fenomenologia seja a abordagem mais adequada para o estudo, compreensão e trabalho que envolva os presbíteros. Finalizo este artigo afirmando que é possível dizer que a Igreja abrange o homem presbítero na sua totalidade, ao descrevê-lo a partir de três eixos no DA e de quatro dimensões descritas na Pastores Dabo Vobis, bem como em outros documentos do Magistério. 92 23 Anselmo Matias LIMBERGER. Processo psicoterápico breve: eleição do foco, aliança terapêutica e resultados do tratamento. Especialização em psicologia clínica. São Paulo: Instituto Paulista de Psicologia, Estudos Sociais e Pesquisa – IPPESP, 2004. 24 Diretrizes para a Formação dos Presbíteros da Igreja no Brasil. 1ª Ed. Brasília: Edições CNBB, 2010. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Anselmo Matias Limberger 4 Referências Bibliográficas CARTA AOS PRESBÍTEROS. Documento n. 75. São Paulo: Paulinas, 2004. CONGREGAÇÃO PARA O CLERO (2002). Instrução: O presbítero, pastor e guia da comunidade paroquial. Brasília: Edições CNBB, 2011. CONGREGAÇÃO PARA O CLERO (2011). O sacerdote, ministro da misericórdia divina: subsídio para confessores e diretores espirituais. São Paulo: Paulinas, 2011. CONGREGAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO CATÓLICA (2008). Orientações para a utilização das competências psicológicas na admissão e na formação dos candidatos ao sacerdócio. Brasília: Edições CNBB, 2010. DIRETRIZES GERAIS DA AÇÃO EVANGELIZADORA DA IGREJA NO BRASIL, 2011-2015. São Paulo: Paulinas, 2011. DIRETRIZES PARA A FORMAÇÃO DOS PRESBÍTEROS DA IGREJA NO BRASIL. Brasília: Edições CNBB, 2010. DOCUMENTO DE APARECIDA (2007). 11. ed. Brasília/São Paulo: Editoras CNBB, Paulus e Paulinas, 2009. JOÃO PAULO II, PAPA, Exortação Apostólica Pós-Sinodal Pastores Dabo Vobis. São Paulo: Edições Paulinas, 1992. LIMBERGER, Anselmo Matias. Processo psicoterápico breve: eleição do foco, aliança terapêutica e resultados do tratamento. Especialização em psicologia clínica. São Paulo: IPPESP, 2004. _____. Sentidos da experiência do trabalho voluntário em uma instituição religiosa. Doutorado em psicologia clínica. São Paulo: PUCSP, 2011. _____. Friederich Wilhelm Nietzsche: pensamento ou doutrina. Mestrado em filosofia. Roma: Pontifícia Università San Tommaso, 1990. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 93 O presbítero a partir do Documento de Aparecida PEREIRA, Leidilene Cristina. A interface entre o aconselhamento psicológico e o aconselhamento espiritual. Mestrado em psicologia clínica. São Paulo: PUCSP, 2009. PISANESCHI, Vandro. Contribuições do aconselhamento psicológico para a prática da direção espiritual. Mestrado em psicologia clínica. São Paulo: PUCSP, 2009. SALVADOR, Dom Ângelo Domingos. Formação presbiteral: inicial e permanente, à luz de Aparecida. Brasília: Edições CNBB, 2008. Endereço do Autor: Rua Prof. Waldomiro Postcher, 134 04387-260 Domitila, SP E-mail: [email protected] 94 Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Resumo: Cada época tem os seus desafios. O momento atual, definido por alguns não como uma época de mudança, mas como uma mudança de época, também tem os seus. Esses desafios atingem a formação em geral na Igreja, particularmente aquela voltada para a preparação dos que vão assumir a vida consagrada e os ministérios ordenados. O presente artigo apresenta os principais desafios para a formação no momento atual e propõe alguns princípios de ordem pedagógica que podem ajudar a Igreja e os responsáveis pela formação eclesial a encará-los de outra maneira. Abstract: Every age has its challenges. The present moment, defined by some not as an age of change, but as a change of age, also has its own. These challenges affect the general instruction in the Church, particularly that which is devoted to the preparation of those who will assume the consecrated life and the ordained ministries. The present article presents the main challenges to today’s instruction and suggests some principles of a pedagogical order that may help the Church and those who are responsible for the ecclesial instruction to view these challenges from a different perspective. Desafios atuais para a formação eclesial* José Lisboa Moreira de Oliveira** * Artigo publicado na Revista Eclesiástica Brasileira. Petrópolis. v. 71, n. 282. p. 293308. abr. 2011. ** Licenciado em Filosofia pela Universidade Católica de Brasília, graduado em Teologia pela Universidade Gregoriana de Roma, Mestre em Teologia pela Pontifícia Faculdade Teológica da Itália Meridional (Nápoles – Itália), Doutor em Teologia pela Universidade Gregoriana de Roma. Autor de 13 livros e dezenas de artigos sobre o tema da vocação e da animação vocacional. Foi assessor do Setor Vocações e Ministérios da CNBB (1999-2003) e Presidente do Instituto de Pastoral Vocacional (2002-2006). Foi membro do Conselho Superior da CRB (1995-1997) e da Equipe de Reflexão Teológica da CRB (2003-2006). Atualmente é gestor do Centro de Reflexão sobre Ética e Antropologia da Religião (CREAR) da Universidade Católica de Brasília, onde também é professor de Antropologia da Religião e Ética. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011, p. 95-110. Desafios atuais para a formação eclesial Cada época tem os seus desafios. O momento atual, definido por alguns não como uma época de mudança, mas como uma mudança de época, também tem os seus. Esses desafios atingem a formação em geral na Igreja, particularmente aquela voltada para a preparação dos que vão assumir a vida consagrada e os ministérios ordenados. Tais desafios são ainda maiores, porque as instituições, como a Igreja, passam por uma séria crise e se recusam a reconhecer essa crise. Adotam o método da avestruz, não querendo enfrentar o assunto e aplicando a lei do silêncio. Por isso, concordando com Cozzens, “o nosso primeiro desafio é romper o muro de negação e silêncio que protege a ordem eclesiástica”.1 Negação essa manifestada inclusive na recusa de algumas instâncias da Igreja Católica em admitir certas situações escandalosas em seu interior. Infelizmente, como gosta de repetir um bispo amigo meu, “para certas instituições religiosas o cadáver está muito bem, mesmo uma semana depois de morto”. Por essa razão o tempo vai passando, e a crise se alastrando cada vez mais, e as soluções para certas situações ficam cada vez mais difíceis. Isso termina causando ansiedade e medo. E “onde existe ansiedade a imaginação se atrofia, a negação prospera e o controle torna-se obsessivo. A burocracia de uma Igreja ansiosa exibe precisamente estas características – negação, legalismo, poder controlador, ocultação”.2 Não é isso o que vemos atualmente na Igreja Católica Romana? 1 Os desafios Mas, quais seriam, hoje, os principais desafios para a formação? Certamente são muitos. Eu procuro sintetizá-los em cinco aspectos. Vejamos. O primeiro é de ordem cultural. Estamos na pós-modernidade, ou, como querem alguns, no auge da crise da modernidade. Há, no dizer de Mattéi, uma “barbárie da cultura”, uma vez que as pessoas vivem uma vida medíocre, uma “subjetividade de massa”, que as impede de abrirse de verdade à realidade.3 Neste contexto cultural o lema é o seguinte: 96 1 Donald COZZENS. Silêncio sagrado. Negação e crise na Igreja, Loyola, São Paulo 2004, p. 14. 2 Ibidem. 3 Jean François MATTÉI, A barbárie interior. Ensaios sobre o i-mundo moderno, Unesp, São Paulo 2001, p. 231-278. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 José Lisboa Moreira de Oliveira “Nem pensar, nem transformar. Viver o presente na sua cotidianidade banal”.4 Assim sendo, fazem parte da ordem do dia o individualismo, o subjetivismo, o relativismo, o imediatismo, o consumismo, a provisoriedade, etc. Protótipo desse modelo cultural é certo jovem religioso que conheço, o qual não esconde para ninguém a sua situação. Sua vida está um caos por diversos problemas. A direção da congregação está apertando-o cada vez mais. Ele se desafoga, indo passear no shopping, comprando o desnecessário e consumindo sem parar. Seu mestrado, sua licenciatura e sua especialização não conseguem lhe dar equilíbrio. Porque sua congregação é rica e ele ocupa um cargo de gestão importante na província, lhe é oferecido um cartão de crédito, com um “limite” relativamente alto, e assim ele pode gastar a vontade. Desafoga a sua frustração na cotidianidade banal, recusando-se a pensar, a enfrentar sua crise e a provocar uma transformação em si mesmo e nos outros. O segundo desafio é o antropológico. O jovem que está chegando às casas religiosas e aos seminários é um ser humano fragilizado, quebrado, arrebentado. É o homo debilis do qual fala o filósofo italiano Gianni Vattimo.5 Ainda jovem, mas já fraco, cansado, frustrado, desamparado. Incapaz de tomar iniciativa, de lutar, de topar desafios, de assumir a vanguarda de projetos de fronteira e, sobretudo, de amar o próximo.6 Muitos jovens hoje são dominados pelo fenômeno da adultescência. Fisicamente parecem adultos, mas psicologicamente vivendo uma vida de adolescente. Tal debilidade é agravada pela situação das famílias e pela degradação dos ambientes, particularmente pela violência e pelo clima de insegurança a que as pessoas são submetidas no atual momento. Por isso, os jovens e as jovens trazem consigo uma infinidade de problemas e de dificuldades. Não porque sejam maus, mas porque são filhos da pós-modernidade, “cultura” criada pelo sistema capitalista – agora neoliberal – para mantê-los debaixo de seus pés. 4 João Batista LIBANIO, A vida religiosa na crise da modernidade brasileira, Loyola, São Paulo 1995, p. 41. Quinze anos depois, essa constatação de Libanio não só continua atual, mas parece muito mais presente na sociedade, particularmente entre os jovens. 5 José Lisboa Moreira de OLIVEIRA, Pastoral Vocacional e cultura urbana. Desafios e perspectivas, Loyola, São Paulo 2000, p. 33-34. 6 A este respeito veja-se Zygmunt BAUMAN, Amor líquido. Sobre a fragilidade dos laços humanos, Zahar, Rio de Janeiro 2004. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 97 Desafios atuais para a formação eclesial O terceiro desafio é de ordem teológica.7 Mesmo depois de mais de quatro décadas da conclusão do Concílio Vaticano II, a vocação comum à santidade não é ainda reconhecida.8 Por outro lado, há uma tremenda indefinição do que seja o específico da vocação dos cristãos leigos e das cristãs leigas, da vida consagrada e do ministério ordenado.9 De um modo geral, as congregações, mesmo tendo recebido o convite do Vaticano II a voltar às fontes (PC, 2), continuam perdidas, sem clareza quanto a seus carismas congregacionais.10 Hoje vemos leigos fazendo o que é próprio dos padres e das freiras. Há frades e freiras fazendo o que é dos leigos e dos padres e há padres fazendo o que é específico dos leigos e dos frades e freiras. As congregações religiosas parecem-se mais com agências de serviços gerais, onde é possível encontrar funcionários para todo tipo de trabalho. Além do mais, continua-se com a “sacerdotalização” do ministério ordenado, ou seja, os padres não são presbíteros, mas apenas rezadores de missas.11 Tal “sacerdotalização” tira do Povo de Deus a condição de sujeito eclesial. O padre é o único que celebra, que decide, que faz. Os demais são apenas expectadores, meros cumpridores de ordens. Na vida religiosa masculina há a prevalência do ministério ordenado sobre o específico da Vida Consagrada, de modo que não se sabe por que alguém entrou numa congregação religiosa apenas para ser padre.12 A meu ver, um quarto desafio se encontra no âmbito da espiritualidade. Continuamos confundindo espiritualidade com espiritualismo, particularmente com os espiritualismos de fuga.13 Alguém reza um 7 Cf. José COMBLIN, Quais os desafios dos temas teológicos atuais?, Paulus, São Paulo 2005. 8 Cf. José Lisboa Moreira de OLIVEIRA, Qual o sentido da vocação e da missão?, Paulus, São Paulo 2006, p. 25-42. 9 Cf. ID., Nossa resposta ao Amor. Teologia das vocações específicas, Loyola, São Paulo 2001. 10 Veja-se o que diz a esse respeito Felicísimo Martinez DÍEZ, Vida Religiosa: carisma e missão profética, Paulus, São Paulo 1995. 11 98 Edward SCHILLEBEECKX, Por uma Igreja mais humana. Identidade cristã dos ministérios, Paulus, São Paulo 1989, p. 196-200. 12 Cf. Francisco TABORDA, O religioso presbítero: uma questão disputada, em: Convergência 329 (2000) 42-52; Felicísimo Martinez DÍEZ, Vida Religiosa: carisma e missão profética, p. 40-47; José Lisboa Moreira de OLIVEIRA, Nossa resposta ao Amor, p. 269-276. Segundo Díez, nota-se nos institutos religiosos clericais uma esquizofrenia permanente: “os respectivos carismas inspiram a espiritualidade e a vida interna das comunidades; porém muitas vezes é necessário deixá-los em casa para ajustar-se à engrenagem da pastoral de conjunto diocesana” (p. 297). 13 Acerca da espiritualidade e dos problemas a ela relacionados, veja-se, entre outros, Alfonso García RUBIO, A caminho da maturidade na experiência de Deus, Paulinas, Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 José Lisboa Moreira de Oliveira terço, e já achamos que a pessoa é muito espiritual. Os espiritualismos aumentaram nesses últimos anos, e praticamente todos estão revestidos de maniqueísmo, com claro desprezo pelo que é “carnal”, humano, por aquilo que é de “carne e osso”. Chega-se ao absurdo de se ter uma religião sem o humano e, de consequência, uma vida humana sem religião. Crescem o fanatismo, o fundamentalismo, a discriminação religiosa e a violência em nome de Deus.14 Chama-se de espiritualidade o que é apenas religião de consolação, teologia da prosperidade. As religiões e as igrejas abdicam de sua função social, “dando as costas para o humano”.15 As igrejas foram transformadas em “supermercados da fé” onde se vendem e onde se compram “kits de salvação”. Disso resulta o trânsito religioso, pois, quando surge um novo “supermercado da fé”, todos correm para lá, em busca de um novo produto religioso, oferecido por algum “curandeiro” que, muitas vezes, traja vestes eclesiásticas. Tais produtos usam “embrulhos” sofisticados, com nomes bem atrativos, como, por exemplo, “missa de cura”. No fundo, porém, tudo isso não passa de bricolagem religiosa e de privatização da experiência de fé. Por fim um último desafio é o eclesiológico. Os cenários de Igreja, já mencionados em 1999 por Libanio, não são os mais animadores.16 Há o cenário institucional, no qual o Direito Canônico está acima da Bíblia. No cenário carismático, a emoção, a histeria, o exótico e o brilhantismo das vestes eclesiásticas prevalecem sobre tudo. No cenário midiático estão os padres pop star, disputando para ver quem aparece mais e quem é o campeão de besterol, de bobagens e de idiotices ditas para aquelas poucas pessoas que ainda aguentam tanta mediocridade. A Igreja da libertação está em extinção. Recentemente assisti perplexo um arcebispo afirmando em público que as Comunidades Eclesiais de Base não têm mais espaço em sua arquidiocese. Os modelos e paradigmas apresentados, infelizmente, são os da “cultura clerical”, de pessoas amantes do carreirismo eclesiástico.17 A quase totalidade das Igrejas locais perdeu sua identidade e transformaram-se em “igrejas genéricas”, fotocópias do São Paulo 2008; João Batista LIBANIO, Caminhos de existência, Paulus, São Paulo 2009; José Lisboa Moreira de OLIVEIRA, Na órbita de Deus. Espiritualidade do amimador e da animadora vocacional, Loyola, São Paulo 2004. 14 Cf. Elias WOLFF, Humanismo e religião, em: Fábio Régio BENTO (org.), Cristianismo, humanismo e democracia, Paulus, São Paulo 2005, p. 213-248. 15 Ibid., p. 224. 16 Cf. João Batista LIBANIO, Cenários da Igreja, Loyola, São Paulo 1999. 17 Cf. Donald COZZENS, Silêncio sagrado, p. 135-147. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 99 Desafios atuais para a formação eclesial Vaticano, onde as lideranças eclesiásticas são apenas “vacas de presépio”, que, sacudindo a cabeça, dizem, sem nenhum discernimento, “amém” a tudo que “vem do alto”. A maioria dos bispos não tem mais consciência da própria responsabilidade, ou melhor, da solicitude por todas as Igrejas (LG 23). Por isso, eles se recusam a falar com o Vaticano na sua condição de bispos. Não são como Paulo, que não teve medo de se opor abertamente a Pedro quando percebeu que esse agia erradamente (Gl 2,11-21). Preferem o silêncio e a subserviência. E, numa Igreja feita de subservientes, onde falta o princípio da subsidiariedade, falta a cidadania cristã e a corresponsabilidade.18 Não há mais uma Igreja de “concidadãos dos santos” (Ef 2,19), de gente em “estado de adultos” (Ef 4,13), mas apenas um agrupamento de “crianças” que vivem à deriva (Ef 4,14), arrastadas e ludibriadas pela esperteza dos marqueteiros religiosos, inclusive aqueles católicos. 2 É possível superar tais desafios? É possível superar tais desafios? Eu acredito que sim e até proponho mais adiante alguns princípios de ordem pedagógica. Mas, antes disso, entendo apresentar algumas indicações que podem ajudar a encarar os desafios de outra maneira. De fato, lembra-nos muito bem Demo, a “educação não deve perder tempo em temer a modernidade. Deve procurar conduzi-la e ser-lhe o sujeito histórico”.19 Portanto, não se trata de ficar com medo dos tempos modernos, ou melhor, da época pós-moderna, mas “de dialogar com a realidade, inserindo-se nela como sujeito criativo”.20 Coisa que, infelizmente, determinados setores da Igreja Católica não fazem, uma vez que o estilo irreal de vida, por eles cultivado, não lhes permite alcançar a humanidade no seu estágio atual. Por isso, essa parcela da Igreja se encontra num “exílio virtual”, 100 18 Cf. Otto KARRER, O princípio de subsidiariedade na Igreja, em: Guilherme BARAÚNA (org.), A Igreja do Vaticano II, Vozes, Petrópolis 1965, p. 623-649. Aliás, toda vez que uma Igreja local deixa de ter uma identidade específica deixa de ser a manifestação da Igreja Universal, uma vez que é a partir dessa sua identidade específica que se realiza naquele lugar a Igreja de Cristo espalhada por toda a Terra (Cf. Burkhard NEUNHEUSER, Igreja Universal e Igreja Local, em: Ibid., p. 650-674). O papa São Gregório Magno já dizia a seu tempo que “se não for respeitada a jurisdição de cada bispo, nós mesmos criamos confusão, quando na verdade deveríamos zelar pela ordem na Igreja” (Registrum Epistolarum, II, 285). 19 Pedro DEMO, Desafios modernos da educação, Vozes, Petrópolis 1993, p. 21. 20 Ibidem. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 José Lisboa Moreira de Oliveira totalmente deslocada, deixando as pessoas hesitantes, desorientadas e desestimuladas.21 a) Formação realista e com “cheiro” humano Começo dizendo que para enfrentar o desafio cultural é necessária uma formação inculturada, que pense no vocacionado real. Nesse processo de formação inculturada não se pode, como disse antes, rejeitar o que é pós-moderno, mas assumir alguns valores que a pós-modernidade nos trouxe.22 Um desses valores é o da provisoriedade, do relativismo, no qual, diferente do que pensam muitos, há algo profundamente cristão. De fato, já nos lembrava Paulo, “o tempo se abreviou” e “a figura desse mundo passa” (1Cor 7,29-31). Outro exemplo de valor presente na pós-modernidade é o da redescoberta da corporalidade, mesmo com o risco de possíveis desvios. Penso que a pós-modernidade, ao radicalizar o “culto ao corpo”, nos ajuda a pensar no resgate da dimensão corporal como aspecto fundamental da teologia da criação.23 De fato, o Criador nos fez sua imagem e semelhança não na abstração espiritual, mas na corporalidade, no ser “macho e fêmea” (Gn 1,27) e na busca por uma companheira ou companheiro (Gn 2,18-24). Portanto, as provocações da pós-modernidade podem ajudar a Igreja a deixar de construir catedrais e passar a viver nas tendas improvisadas de quem é apenas peregrino e viandante (Hb 13,14). No tocante ao desafio antropológico, é necessário que na formação se leve mais a sério a dimensão humana. Estamos repetindo isso desde o Vaticano II, mas infelizmente o que se nota é um total descuido com essa dimensão. Chega-se até a fazer cursos para os formadores e formadoras sobre o assunto, mas, quando se vai para a prática, a teoria é outra. Tal descompasso entre teoria e prática é expressão de uma verdadeira patologia do comportamento humano.24 O que se vê por aí é 21 Cf. Donald COZZENS, Silêncio sagrado, p. 13-17. 22 Cf. José TRASFERETTI/Paulo Sérgio Lopes GONÇALVES (orgs.), Teologia na PósModernidade. Abordagens epistemológica, sistemática e teórico-prática, Paulinas, São Paulo 2003. 23 Cf. Ana ROY, Tu me deste um corpo..., Paulinas, São Paulo 2000; Sandro SPINSANTI, Il corpo nella cultura contemporanea, 2ª ed., Queriniana, Brescia 1985; Carlo ROCCHETTA, Per una teologia della corporeità, Camilliane, Turim 1990. 24 Sobre esta questão do descompasso entre teoria e prática dentro da Igreja veja-se Hubert LEPARGNEUR, O descompasso da teoria com a prática: uma indagação nas raízes da moral, Vozes, Petrópolis 1979. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 101 Desafios atuais para a formação eclesial um punhado de “vivaldinos”, ou seja, de pessoas que vivem pregando a coerência quando, na verdade, possuem uma prática incoerente. O sujeito vivaldino engana a comunidade, deturpa a realidade, sendo, pois, um farsante.25 Os recentes casos de padres pedófilos são exemplos daquilo que estamos dizendo.26 É fundamental ter sempre presente que os cuidados com a vocação específica “nunca poderão esquecer ou negar as exigências da natureza humana, enquanto elas têm origem e fundamento no próprio plano de Deus Criador”.27 Rezar não basta, não é suficiente e não resolve certos problemas. É necessário mais cuidado antropológico, e mais humildade para aceitar a ajuda das ciências humanas. No que diz respeito ao desafio teológico, é indispensável usar de mais clareza na formação acerca do específico de cada vocação e uma reviravolta nos processos pedagógicos, que, na maioria das vezes, escondem a verdade e não revelam o óbvio. Que, por exemplo, não se tenha medo de dizer que para seguir Jesus Cristo e servir ao Reino não é necessário ser padre, frade ou freira. Além do mais, é necessário rever paradigmas e modelos existentes, que são de épocas passadas e não atendem mais aos tempos atuais. Na cultura midiática atual, o exótico e o medíocre ganham força e destaque. Veja-se o caso de alguns programas televisivos, inclusive da mídia católica. A burrice, a leviandade, a falta de compromisso, são exaltadas por grupos de fugitivos da realidade. E para tanto existem regras bem precisas de uma “uniformidade mundial”.28 A Igreja não pode continuar apontando como modelo aquilo que é arcaico e defasado, embora isso hoje esteja na moda. A comunidade cristã não é chamada a seguir a moda, mas a fazer discernimento e a ficar com o que é em conformidade ao Evangelho (Rm 12,2). E o que é conforme ao Evangelho é o que não aparece, o que é normal, despojado de todo exibicionismo (Fl 2,7). Diante do desafio da espiritualidade, é urgente recuperar a verdadeira espiritualidade cristã encarnada, com sua mística e com sua ascese. Praticar uma espiritualidade que seja, de fato, vida conduzida 102 25 Pedro DEMO, Intelectuais e vivaldinos. Da crítica acrítica, Almed, São Paulo 1982, p. 89-93. 26 Cf. Donald COZZENS, Silêncio sagrado, p. 109-134. 27 CNBB, Guia pedagógico de pastoral vocacional, Paulus, São Paulo 1983, p. 28. 28 Cf. Zygmunt BAUMAN, Comunidade. A busca por segurança no mundo atual, Zahar, Rio de Janeiro 2003, p. 49-55. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 José Lisboa Moreira de Oliveira pelo Espírito e que nos leve a seguir Jesus na história concreta, no diaa-dia. Uma espiritualidade que não nos tire do mundo, mas que nos faça fermento e sal, pessoas comprometidas com a construção da justiça e da paz. É preciso, como diz Rubio, caminhar através de uma experiência adulta de Deus que supere o infantilismo religioso.29 Por fim, diante do desafio eclesiológico, é preciso que se retome a eclesiologia do Concílio Vaticano II, a qual nos indicou uma Igreja Povo de Deus, peregrina no mundo, assumindo para si tanto as alegrias como as tristezas da humanidade. É preciso retornar a Medellín, a uma Igreja pobre que ama os pobres, a uma Igreja de Comunhão e de Participação, como queria Puebla, a uma Igreja discípula e missionária, como indicou mais recentemente a conferência de Aparecida. Não há como superar esse desafio, se continuarmos reféns da burocracia eclesiástica que insiste em manter estruturas obsoletas e normas voltadas exclusivamente para a perpetuação e crescimento do poder centralizador da hierarquia.30 b) Princípios pedagógicos As considerações que acabamos de fazer apontam para a necessidade de princípios pedagógicos que norteiem a formação na Igreja. Já faz algum tempo, Brighenti nos dizia que em tempos nos quais “não há vento favorável”, é indispensável “eleger um rumo” que nos leve onde queremos chegar. Do contrário, seremos sempre surpreendidos por vendavais e temporais que terminarão por nos levar exatamente lá onde nunca gostaríamos de aportar.31 Nesse caso, os princípios pedagógicos seriam o conjunto de esforços para conjugar de modo objetivo e claro a formação com a realidade, com a prática, e com a meta que se pretende atingir. Seria o esforço para vencer formas deformantes de esquizofrenia eclesiástica. De fato, lembra Brighenti, torna-se inoperante e contraditório “a simples aplicação de umas técnicas ou regras preestabelecidas para todos os contextos e 29 Cf. Alfonso García RUBIO, A caminho da maturidade na experiência de Deus, p. 61-101. 30 Cf. José COMBLIN, Quais os desafios dos temas teológicos atuais?, p. 57-66. 31 Agenor BRIGHENTI, Reconstruindo a esperança. Como planejar a ação da Igreja em tempos de mudança, Paulus, São Paulo 2000, p. 9-31. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 103 Desafios atuais para a formação eclesial épocas, desvinculadas de princípios que as contextualizem e as tornem instrumentos eficazes para a ação evangelizadora”.32 Tendo presente o que acabou de ser dito, podemos afirmar que o primeiro princípio pedagógico é aquele de uma nova aprendizagem. Trata-se de sermos capazes de fazer um confronto entre os paradigmas até agora utilizados e os novos paradigmas que a pós-modernidade está propondo. Precisamos com toda honestidade reconhecer que os atuais paradigmas formativos, fincados na tradição europeia medieval, não funcionam mais. Estão superados e em franca agonia. Com eles agoniza também o paradigma do formador, tido até então como o sujeito onipotente que tem as chaves para desvendar todos os segredos e mistérios. Nesse sentido, nos lembra Demo, somos convocados a urgentemente abandonar a obsolescência da educação, a qual consiste em oferecer cursos e conteúdos sem nenhuma preocupação com a realidade e com o futuro.33 Infelizmente, o que estamos chamando de “moderno” no atual processo formativo é algo equivocado e atrasado. Precisamos, pois, desconstruir tudo e começar do zero. Tentar remendar as coisas só aumenta ainda mais o rasgão, como disse muito bem o Senhor Jesus (cf. Mc 2,21). A partir disso, pode-se dizer que o segundo princípio é a superação do conceito de aprendizagem. Infelizmente, na prática concreta da formação eclesial, insiste-se ainda em confundir aprendizagem com instrucionismo. Queremos a todo custo que os formandos aprendam e gravem algumas regras, normas e doutrinas que serão completamente deletadas assim que eles chegarem ao objetivo ao qual almejam. Nesse sentido, é indispensável que a formação inicial e permanente seja reconstrutiva, isto é, leve os formandos a aprender a desaprender. Trata-se, pois, de cuidar para que a formação seja autopoiética, de dentro para fora e não o contrário. Que seja uma aprendizagem interpretativa que não tenha como referenciais regras externas, mas a própria vontade do sujeito de se autodefinir na própria caminhada. Nesse sentido, a aprendizagem, no processo formativo, terá que ser construtiva e interativa, ressignificativa e envolvente. Temos que voltar à maiêutica de Sócrates, lembrando que só permanece durante o processo formativo aquilo que o formando ou formanda reconfigurou na sua mente e na sua vida. É pura ilusão pensar que o formando vai acolher o argumento da 104 32 ID., Por uma evangelização inculturada. Princípios pedagógicos e passos metodológicos, Paulinas, São Paulo 1998, p. 42. 33 Cf. Pedro DEMO, Desafios modernos da educação, p. 56-78. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 José Lisboa Moreira de Oliveira autoridade. O que fica é a autoridade do argumento, ou seja, aquilo que o sujeito percebe como sendo também sua construção. É preciso qualificar o processo formativo, passando do puro ensinar regras e normas para o ato de educar. Nesse sentido, formadores e formandos precisam “aprender a aprender”.34 Qualificar a formação significa abandonar a pretensão de “fazer a cabeça”, para proporcionar condições à pessoa de pensar com a própria cabeça. “Educação que vira pregação faz discípulos, fiéis seguidores, não gente competente”.35 Disso decorre um terceiro princípio que se refere ao tipo de conhecimento que estamos proporcionando durante o processo formativo.36 Infelizmente, o tipo de conhecimento que estamos proporcionando aos jovens formandos é aquele do pecado original. Queremos torná-los como os deuses, pessoas onipotentes e prepotentes que se colocam acima de tudo e de todos. Precisamos inverter essa lógica perversa e ajudá-los a serem “normais” e a permanecerem “normais”. E para ser normal é indispensável saber pensar, buscar novos horizontes, aceitar questionamentos, querer mudar. Se isso não está presente na formação, teremos no futuro uma comunidade de escravos arrogantes e não de homens e mulheres livres. Portanto, um conhecimento que permanece aberto para a escuta e para outros conhecimentos, sem nenhum resquício de fundamentalismos e de rigorismos. Um conhecimento tão bem fundamentado que jamais se sente completo. Por essa razão, está aberto à crítica e à autocrítica, dispondo-se à desconstrução, ou seja, à capacidade de reconhecer sua validade relativa diante de argumentos mais decisivos e precisos.37 A questão do conhecimento aponta para um quarto princípio: o da qualidade formal do conhecimento e da formação. Infelizmente, de um modo geral, a formação eclesial sofre com a falta de uma metodologia científica precisa. Tudo costuma ser improvisado, genérico e unilateral. Faltam pessoas seriamente preparadas. Geralmente, os formadores são improvisados. É notória a ausência de uma equipe de formação, ficando a responsabilidade sobre as costas de uma única pessoa, que, quase sempre, está sobrecarregada com tantas outras tarefas. Chega-se até a dizer 34 ID., Educação de qualidade, 4ª ed., Papirus, São Paulo 1998, p. 81-100. 35 Ibid., p. 99. 36 ID., Conhecer & aprender. Sabedoria dos limites e desafios, Artmed, Porto Alegre 2000, p. 58-71. 37 Ibid., p. 101-117. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 105 Desafios atuais para a formação eclesial que os formadores e formadoras fazem várias coisas, inclusive trabalhar na formação. Dificilmente há dedicação exclusiva. Em função disso, o processo formativo torna-se carente de coerência, de consistência, de sistematização, de originalidade e de objetividade. Ora, isso é um verdadeiro desastre, pois é indispensável que haja uma formação básica que não se contente apenas em oferecer conhecimentos gerais, no “saber de tudo pelo menos um pouco, mas no saber aquilo que é tido como coluna mestra dos desafios modernos, ou seja, saber estratégico, de teor interdisciplinar e aprofundado”.38 Qualquer um de nós sabe por experiência que, de um modo geral, os formandos e formandas terminam o período de formação inicial sem o saber estratégico, sem preparação suficiente para enfrentar os desafios do mundo atual. À formação genérica se junta quase sempre a pressa e o desespero, pois as dioceses e os institutos de vida consagrada estão sempre às voltas com o problema da escassez de vocações. Disso então surge um último princípio que pode ser chamado de qualidade política da formação. Trata-se, segundo Demo, do cuidado que se deveria ter com a relevância social do conhecimento.39 Os responsáveis pela formação, especialmente aqueles e aquelas que tomam as decisões finais, deveriam constantemente se perguntar sobre a “condensação simbólica” do processo formativo. Dito de outra forma: até que ponto a formação está preparando as pessoas para assumirem seus lugares na Igreja e na sociedade? Muitas vezes, por ser ainda tremendamente arcaica e ultrapassada, a formação apenas ensina a “ler e escrever”, mas não forma seres pensantes, autônomos, criativos e responsáveis. Os formandos e formandas aprendem, quase que mecanicamente, alguns conceitos e normas, mas não aprendem a reconstruir a vida e os ambientes. Tornam-se alienados, verdadeiros “analfabetos funcionais”, visto que serão incapazes de interpretar e de transformar a realidade.40 106 38 ID., Desafios modernos da educação, p. 29-30. 39 Ibid., p. 28-36. 40 Segundo pesquisas do Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf), realizadas no final de 2009, existem no Brasil pelo menos 28% de analfabetos funcionais: pessoas que sabem ler e escrever, mas são incapazes de entender e de interpretar o que leem e escrevem. Cf. www.oglobo.globo.com, acessado em 03/05/2010. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 José Lisboa Moreira de Oliveira Não há conclusões, mas perguntas que pairam no ar Tudo o que foi dito até agora revela que neste campo não existem conclusões, mas perguntas que permanecem. Uma delas é a seguinte: estará a Igreja, estarão os seminários, estará a Vida Consagrada com disposição para fazer certas mudanças? Eu, particularmente, estou convencido de que não é possível superar os desafios mencionados sem certo grau de ousadia. Dom Helder há muitos anos já nos dizia: “Há audácias sobre as quais não se pode meditar muito... Pouco importam, então, as consequências”.41 Terá a Igreja a coragem de ousar? Ou continuará a passos de tartaruga, procurando um “bode expiatório” sobre o qual descarregar todas as culpas? A situação complica-se ainda mais, porque, como dito no início, impera atualmente na Igreja “o silêncio sagrado”.42 A hierarquia da Igreja Católica Romana não só se recusa a falar de determinados temas, mas proíbe que eles sejam mencionados e discutidos. “Como uma Igreja que é portadora da Palavra e a defensora dos oprimidos pode manter silêncios perversos, negando até mesmo a existência de problemas, de fato crises, pastorais e eclesiais evidentes?”.43 Certamente não podemos duvidar da potência do Espírito que sempre age como e “onde quer” (Jo 3,8) e em quem quer (1Cor 12,11). Porém, não devemos ser tão ingênuos a ponto de pensar que tudo é muito fácil. Existem atualmente forças na Igreja que impedem seriamente qualquer mudança. É urgente o retorno dos profetas e das profetisas, capazes de sacudir as bases de um sistema eclesiástico mofado, arcaico, ultrapassado, que colocou a instituição no lugar do Evangelho.44 Profetas como Dom Helder Câmara, que em pleno Concílio Vaticano II ousava afirmar: “Há momentos em que não temos o direito de calar, quaisquer que sejam as consequências”.45 Profetas como Dom Oscar Romero, que, no dia 16 de abril de 1978, lançava este desafio: “Uma Igreja que não provoca crise, um Evangelho que não inquieta, uma Palavra de Deus que não faz doer na pele – como se diz vulgarmente –, 41 Citado em DE BROUCKER, As noites de um profeta. Dom Helder Câmara no Vaticano II, Paulus, São Paulo 2008, p. 97. 42 Cf. Donald COZZENS, Silêncio sagrado, p. 21-36. 43 Ibid., p. 13. 44 Cf. ibid., p. 199-200. 45 Citado em DE BROUCKER, As noites de um profeta, p. 104. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 107 Desafios atuais para a formação eclesial uma Palavra de Deus que não mexe no pecado concreto da sociedade em que está anunciando, que Evangelho é esse?”46 Profetas como o italiano Arturo Paoli, místico e peregrino, que viveu o mistério da encarnação perambulando pela América Latina, acompanhando os sem-terra e os sem-teto. Há alguns anos atrás, olhando para a formação eclesiástica, ele dizia que tinha a impressão de que se tratava de “uma festa organizada no salão de um palácio destruído por um terremoto”.47 Segundo Paoli, “Cristo está preso numa fortaleza construída por uma teologia atenta mais em conhecer a sua essência do que o seu projeto”.48 Por esse motivo, a alternativa que é oferecida à juventude “não entusiasma, porque não é libertadora: a proposta de proximidade apresentada aos jovens é uma proposta de nível epidérmico, que não resolve o conflito nem supera o medo de percorrer o itinerário da relação”.49 Não há como pensar em futuro para a formação eclesial sem encarar esses desafios e sem dialogar sobre eles em profundidade. Se continuarmos a ter a atitude da avestruz, seremos literalmente engolidos pela realidade que aí está. Não há como escapar do enfrentamento. “É hora de um silêncio sagrado e de uma escuta sagrada. Acima de tudo, é hora de uma fala honesta e corajosa – hora de falar a verdade em amor”.50 O medo de falar sobre essas realidades só irá contribuir para o agravamento da crise e para a perda total de controle sobre a situação. Com a palavra, então, os formadores e as formadoras conscientes de seu carisma profético e de sua missão na Igreja de hoje! Endereço do Autor: Residencial Via Araguaia – Bloco B – Aptº 223 AC 02 – Lotes 01/02/12 – Riacho Fundo I 71810-200 Brasília – DF/BRASIL E-mail: [email protected] 108 46 Citado em Pablo RICHARD, A força espiritual da palavra de Dom Romero, Paulinas, São Paulo 2005, p. 18. 47 Arturo PAOLI, Testemunhas da esperança, Paulus, São Paulo 1992, p. 17. 48 Ibidem. 49 Ibid., p. 14. 50 Donald COZZENS, Silêncio sagrado, p. 200. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 José Lisboa Moreira de Oliveira Bibliografia consultada BARAÚNA, Guilherme (org.), A Igreja do Vaticano II, Vozes, Petrópolis 1965. BAUMAN, Zygmunt, Amor líquido. 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SPINSANTI, Sandro, Il corpo nella cultura contemporanea, 2ª ed., Queriniana, Brescia 1985. 110 Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Resumo: A autora faz observações sobre o último documento da CNBB, Novas Diretrizes para a Formação Presbiteral da Igreja no Brasil, relacionando-o com a ordenação de homossexuais, acrescentando conhecimentos sociológicos e psicanalíticos sobre o tema. Alerta a Igreja sobre a perversão, mostra uma visão de quem está de fora do clero e faz parte do povo de Deus, e questiona qual seria o significado dos fatos à luz do Espírito Santo. Abstract: The author comments on the last document of the Brazilian Bishops, New Guidelines for the Priestly Formation of the Church in Brazil, relating it with the ordination of homosexuals, adding psychoanalytic and sociological knowledge about the subject. Alert the Church on perversion, shows a view of who is out of the clergy and is part of God’s people, and asks what is the meaning of the facts in the light of the Holy Spirit. A Igreja, a homossexualidade e o clero* Arlene Denise Bacarji** * Com base nos Documentos da Igreja, ressaltando o último documento da CNBB sobre Novas diretrizes da formação presbiteral, de 2010. Artigo publicado na Revista Eclesiástica Brasileira. Petrópolis. v. 71, n. 282. p. 309-324. abr. 2011. ** Graduação em Filosofia (UCDB), mestrado em Sociologia (UFPR), mestrado em Teologia (PUC/RS) e doutoranda em Teologia (PUC/Rio). Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011, p. 111-127. A Igreja, a homossexualidade e o clero No ano de 2010, saiu um novo documento da CNBB, “Novas diretrizes para a formação presbiteral da Igreja no Brasil”,1 no qual se elaboram caminhos para uma formação presbiteral mais aprofundada, considerando os tempos em que estamos vivendo. Este documento inicia com “desafios de mudança de época”, mostrando a situação da cultura pós-moderna e também do nosso país, em termos socioeconômicos e culturais. Neste artigo, queremos realçar um item do documento e relacioná-lo com alguns dos demais itens, que é a não possibilidade de se ordenar presbíteros homossexuais, assim como lembrar mais dois documentos da Igreja que abordam claramente esta questão, acrescentando referências psicanalíticas e sociológicas. A cultura pós-moderna estabelece alguns dogmas. Dentre os mais populares, está a libertação das pessoas em relação às instituições, a Deus, à moral, e de todo e qualquer tipo de normas, regras e tradição. É a liquidificação de tudo, como diz Bauman.2 E outro dogma pós-moderno é a aceitação de tudo como “normal”, lícito e moralmente correto. Na pós-modernidade, não existe mais certo ou errado, porque não se têm mais referenciais seguros e acreditáveis. Todos os referenciais (religiões, família, estado, leis, educação) se tornaram “verdades” elaboradas para dominações e formas de poder (Foucault) e, por isso, podem ser desconstruídas (Derrida), modificadas ou relativizadas. Nesse turbilhão de novidades “libertadoras”, está também a inexistência do pecado: nada mais é pecado ou imoral. Tudo deve ser permitido e compreendido à luz da diluição e desconstrução, e a Igreja deve também aderir a esse movimento, deve aceitar a união homossexual como “casamento”, a ordenação de gays e tantas outras situações estranhas à consciência coletiva3 dos cristãos. 112 1 CNBB, Diretrizes para a formação presbítero da Igreja no Brasil, 48a Assembleia Geral da CNBB, 2010. 2 Sobre esse tema ofereço aqui uma bibliografia básica, pois neste artigo não poderemos aprofundar o assunto, para não nos desviarmos do objetivo: David HARVEY, A condição pós-moderna, Loyola, São Paulo 1999; Jean-François LYOTARD, O Pósmoderno, José Olympio, Rio de Janeiro 1986; Fredric JAMESON, Pós-Modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, Ática, São Paulo 1996; Zygmunt BAUMAN, Modernidade e ambivalência, Jorge Zahar, Rio de Janeiro 1999; ID., Comunidade, a busca por segurança no mundo atual, Jorge Zahar, Rio de Janeiro 2003; ID., Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos, Jorge Zahar, Rio de Janeiro 2004; ID., Modernidade Líquida, Jorge Zahar, Rio de Janeiro 2001; ID., O mal-estar da pósmodernidade, Jorge Zahar, Rio de Janeiro 1998. 3 Consciência coletiva aqui deve ser entendida a partir da sociologia de Durkheim, como “O conjunto de crenças e de sentimentos comuns à média dos membros de uma Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Arlene Denise Bacarji Esta cultura atual pode ser muito boa para as pessoas se assumirem e se aceitarem como são e viverem em seus guetos de “iguais”, mas não para a Igreja. A Igreja é uma Instituição Social que possui suas normas, regras e tradição. Seus dirigentes têm a responsabilidade de oferecer ao povo de Deus pastores que possam ser compatíveis e coerentes com a doutrina e com o Evangelho e com a consciência dos cristãos. Caso contrário, a plausibilidade desta instituição começa a ruir, e, com isto, sua credibilidade vai aos poucos se diluindo em meio a um mundo sociopático onde tudo é relativo, nada é plausível e pode ser desacreditado, onde a ditadura das minorias cala o direito de expressão das pessoas religiosas com o apoio da lei, mediante o sofisma de que isso é democracia. Essa é a cultura em que vivemos. O último documento da CNBB que diz respeito à formação4 menciona os problemas que envolvem o “exercício do ministério presbiteral tais como: incoerência, autoritarismo e um celibato mal vivido”; e ainda diz: “Tenha-se presente que no campo da sexualidade podem verificarse distúrbios sexuais incompatíveis com o sacerdócio”, referindo-se a uma passagem de outro documento que trata da questão da ordenação do homossexual:5 Se o candidato pratica a homossexualidade ou apresenta tendências homossexuais profundamente radicadas, o seu diretor espiritual, bem como o seu confessor, tem o dever, em consciência, de dissuadi-lo de prosseguir para a ordenação. Em seguida, mostra os fundamentos teológicos do sacramento da Ordem, a identidade e a vida do presbítero e o que esta exige destes homens. A Igreja já lançou outros tantos documentos a respeito desse assunto, com proibições claras e objetivas da ordenação de homossexuais.6 mesma sociedade” – E. DURKHEIM, A Divisão do Trabalho social, Martins Fontes, São Paulo s/d. 4 CNBB, Novas Diretrizes para a formação presbiteral da Igreja no Brasil, 48ª Assembleia Geral da CNBB, 2010, n. 36 e n. 38 respectivamente. 5 CONGREGAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO CATÓLICA, Instrução Sobre os Critérios de discernimento vocacional acerca das pessoas com tendências homossexuais e da sua admissão ao seminário e às ordens sacras, Paulinas, São Paulo 2005, n. 3, p. 16. 6 ID., Orientações para a utilização das Competências psicológicas na admissão e na formação dos candidatos ao sacerdócio, Cidade do Vaticano 2008, Zenit Org. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 113 A Igreja, a homossexualidade e o clero Mas, por que há impedimento em ordenar sacerdotes gays? Se nós fôssemos olhar para a consciência coletiva do povo de Deus, isso teria respostas óbvias e nem se deveria questionar. Mas a cultura pósmoderna liquidificou os sólidos de tal forma que temos que gastar tempo e neurônios para legitimar coisas óbvias em todos os lugares, na família, com os filhos, na Igreja, na política, na escola, nas universidades... 1 As configurações Neste momento, não vamos aprofundar aspectos psicológicos da homossexualidade, pois não é este o objetivo; e requereria muito espaço, pois é uma questão bastante complexa e divergente entre os autores que tratam do assunto. Mas vamos apenas mencionar alguns autores, alguns dados relacionados à realidade das configurações exigidas pela Igreja da pessoa do clero em contraposição com as configurações do homossexual. Também é bom ficar claro que não se trata de discriminação, uma vez que a Igreja acolhe o homossexual como pessoa que pode ser cristã como qualquer um de nós; recusa o sacerdócio a ele como recusa às mulheres, por motivos diferentes ou não, como vamos ver aqui. A homossexualidade masculina, independente do que se trata em termos psicológicos, é, de fato, uma configuração de um corpo masculino com um psiquismo efeminado. Não podemos dizer feminino, porque não se trata de ser feminino como o das mulheres, mas de ter características efeminadas na escolha do objeto de desejo. Escolhem o mesmo objeto de desejo que as mulheres heterossexuais escolhem. Esta configuração não é algo superficial, mas envolve todo um psiquismo específico de homossexuais, o qual possui características incompatíveis com as configurações que a Igreja exige do clero e que os difere de homens heterossexuais de forma profunda, nas relações com as pessoas, nas resoluções de problemas e em todos os aspectos comportamentais, emocionais e intelectuais. Quais são elas? a) De acordo com o último documento da CNBB,7 a configuração principal do sacerdote é com Cristo,8 um ser do qual decorre 114 7 Cf. Nota 4. 8 Cf. n. 50. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Arlene Denise Bacarji um agir9 in persona Christi, “uma representação sacramental de Jesus Cristo”.10 Poderíamos, então, configurar o gay a Cristo? Seria isso uma coisa aceitável e legitima? O que isso teria como consequência com relação à não ordenação de mulheres? Seria isso justo para com as mulheres? O que significaria configurar o gay a Cristo e dizer que não se ordenam mulheres, porque não se configuram a Cristo? Para se configurar a Cristo, basta ter “falo” concreto? Caberiam as perguntas: Ser homem é apenas ter órgãos genitais masculinos? Homens e gays identificam-se com a masculinidade exigida pelo sacerdócio?11 Parece que o grande erro e a grande confusão que fizeram com que a Igreja ordenasse homossexuais foi imaginar que eles eram “homens”. São pessoas, mas não varões. Pois o que faz ser homem ou mulher não são somente os órgãos genitais. Esta é uma visão estreita e biológica que não cabe mais nos dias de hoje. A homossexualidade é uma identidade do individuo. b) O mesmo documento acima diz, no n. 61, que “o presbítero recebe as potencialidades da paternidade espiritual e, quando o bispo lhe confere jurisdição, lhe designa um povo, a fim de que venha a ser dele o pai espiritual...” Poderíamos questionar como o homossexual pode ter a capacidade paternal, se o desejo dele é configurado de forma a não procriar? Isso sem considerar o que inúmeros autores da área de psicologia e da psicanálise afirmam sobre a imaturidade afetiva do homossexual, assim como os documentos da Igreja que tratam desse assunto. Quanto às configurações, teríamos ainda muito mais itens a abordar (noivo, pastor, esposo e outros), mas nos estenderíamos muito e deixaríamos outros mais importantes relacionados ao povo, que aqui nos interessam.12 Idem. 10 Cf. n.52. 9 11 Estas perguntas são bem respondidas pelo artigo de Peter METTLER, Homossexualidade e ministério ordenado, em: REB 69 (2009) 834: “San José Prisco chama a atenção para o fato de que não são só os órgãos sexuais masculinos que definem a condição de homem ou varão. A condição de homem ou mulher se delineia mediante a interação de três aspectos fundamentais: ‘A identidade sexual, o papel sexual e a orientação sexual’”. 12 Cf. sobre estas e outras configurações exigidas, assim como uma abordagem mais profunda dos aspectos psicológicos do homossexual em comparação com estas Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 115 A Igreja, a homossexualidade e o clero 2 O povo de Deus É certo que a Igreja não é uma instituição democrática, mas ela existe para o povo de Deus, para evangelizá-lo e trazer-lhe Cristo. Este povo é destinatário da sua mensagem e é a ele que a Igreja se dirige e é com ele que a Igreja caminha e é nele que a Igreja deve pensar em primeiro lugar. É missão da Igreja evangelizar, ser profética, ir contra toda prática que é contra a vida e a família; mas, como ela poderá fazer isso, se paradoxalmente os padres são gays e se dentro da Igreja se vai contra o Evangelho? É possível uma instituição assim ter credibilidade? Como a Igreja irá ser profética, pronunciando-se contra a prática de adoção de crianças por homossexuais, se dentro dela se negligenciou a pedofilia? Como ela poderá ir contra o casamento gay, se dentro dela os gays são seus representantes e formam casais? Estes paradoxos quebram completamente a plausibilidade da Igreja, uma vez que a deslegitimam e a tornam não mais crível. Sabemos que o povo de Deus possui uma consciência coletiva. Nesta existem padrões de comportamentos aceitos e outros comportamentos que fogem aos padrões e que fazem de conta que são “aceitos” (hoje, na cultura atual) para não serem politicamente incorretos, mas que não são e nunca serão aceitos como moralmente corretos. Pode haver paradas Gay, movimentos, manifestações de todo tipo, quanto à aceitação da homossexualidade como “normal”, mas não terão êxito na realidade da consciência das pessoas heterossexuais, pois a consciência coletiva de um povo não muda de forma fácil e rápida e, em alguns aspectos, pode nunca mudar. Existe uma questão – que todos sabem e ninguém diz por pudor, mas que devemos abordar porque, na consciência coletiva está claro,– que é a necessidade da condição não normal e fora do padrão do tipo de relação sexual que os homossexuais têm que ter para satisfazerem seu desejo. Essa questão torna a homossexualidade algo não aceito como “normal”, independentemente se na realidade é normal ou não. As pessoas não falam isso para não chocar, mas devemos tratar da realidade de forma a trazer a verdade claramente. Essa concepção está na consciência coletiva, e nada poderá mudá-la. Isso não quer dizer e não pode servir para legitimar nenhuma prática homofóbica, pois nada justifica o não acolhimento, a violência configurações que a Igreja exige dos presbíteros, no artigo muito bem elaborado de Peter METTLER, art. cit., 806-842. 116 Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Arlene Denise Bacarji ou a discriminação destas pessoas. Mas o acolhimento, a não-violência e a não-discriminação destas pessoas como pessoas que merecem o nosso amor cristão, o nosso respeito e o nosso acolhimento nada têm a ver com aceitar que estas pessoas possam ser os nossos representantes de Cristo na terra e na Igreja. São coisas bem diferenciadas. Isso gera uma situação onde as pessoas não dizem, mas se afastam de uma Igreja que coloca estas pessoas com este tipo de desejo e comportamento para serem nossos pastores. Será mesmo que nós, povo de Deus, iremos aceitar estas pessoas para nos apascentar, desempenhando o múnus de nos ensinar, santificar e governar, como diz o documento?13 E ainda, como uma pessoa cheia de conflitos internos, de gastos de energia para lidar com uma situação sexual e emocional diferente, poderá ter disponibilidade interna e psicológica para apascentar, ensinar, santificar e governar o povo de Deus? Ou seja, o que se quer dizer aqui não é que o povo discrimina os gays, mas o povo não os aceitará como representantes de Cristo, e representantes do povo nas suas relações com Deus,14 sem que haja um incômodo e um conflito. Se o povo soubesse das estatísticas pesquisadas por Mettler,15 talvez 80% deixariam a Igreja. O que ocorre é que o povo, muitas vezes, é ingênuo, só percebe aqueles casos mais aberrantes, e talvez o próprio Espírito Santo os cega para não perderem a fé e ficarem sem referenciais, engrossando o número de “perdidos” da cultura pós-moderna. A verdade é que ordenar gays como a Igreja tem feito, por conivência de alguns bispos ou por descuido, é deixar ruir a Igreja perante o povo. O povo deve e pode aceitar os gays como leigos, como nós, com direitos de serem cristãos como nós, com todos os direitos na Igreja que o leigo tem. Mas daí a imaginar que somos obrigados a aceitá-los como nossos pastores, nossos líderes, representantes de Cristo para nós e intermediários entre nós e Deus, isso já é falta de discernimento. 13 Cf. n. 53. 14 Cf. n. 50 e 52. 15 P. METTLER, art. cit., 812-815. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 117 A Igreja, a homossexualidade e o clero 3 Elementos concretos Na realidade concreta, deparamo-nos com outras questões de cunho mais íntimo na vida religiosa e no próprio clero. São as questões da vida religiosa – incluindo também as congregações femininas em si16 – ou do clero diocesano, que são locais em que se convive intimamente com as pessoas do mesmo sexo em ambientes fechados. Esse é o problema mais complicado, pois não é possível viver a castidade sem que haja ambiente propício; a sublimação só é possível em determinadas condições ambientais. E não são todos que são capazes de sublimar até mesmo em condições ambientais favoráveis.17 É muito difícil acreditar na castidade de quem dorme ao mesmo lado do seu objeto de desejo. Existem homossexuais que entram na Igreja para o sacerdócio, tentando com isso fugir de sua homossexualidade, viver o celibato e a castidade, mas é uma porcentagem mínima que consegue, e a luta interna é tão intensa que esta pessoa não tem como ser um bom pastor. Aqui se encontra um dos problemas sobre a questão de o homossexual ser padre. Será que, se a Igreja fosse masculina e feminina, ou seja, se houvesse a presença de mulheres como esposas de alguns sacerdotes ou como presbíteras, da mesma forma como há dos homens no que diz respeito às decisões eclesiásticas18 –, será que os homossexuais seriam realmente atraídos pela vida sacerdotal? O que os atrai para esta vida não seria justamente o fato de a Igreja ser masculina?19 E como é esta vivência da castidade ao lado do objeto de desejo? Fazendo retiros jun- 118 16 Lembrando que a situação das congregações femininas é muito diferente das masculinas no que diz respeito ao controle social, à rigidez moral, à falta de liberdade para se ter uma vida dupla, entre outras diferenças que não cabem mencionar nesta pequena nota, assim como a homossexualidade feminina também se diferencia em alguns aspectos da masculina. 17 Cf. Carlos Dominguez MORANO, Afetividade, espiritualidade e mística, CRB, 2007. 18 A autora não tem a intenção de sugerir o sacerdócio para as mulheres ou o casamento para os padres, isso já seria uma outra discussão muito complexa. Apenas sugere com esta afirmação que, a ausência das mulheres nos círculos decisórios da Igreja, favorece a presença de homossexuais, cuja tendência psíquica é, principalmente, a distância de mulheres com poder. 19 Sobre esta questão a respeito da homossexualidade e das suas relações com mulheres e homens pode-se conferir em: Otto FENICHEL, Teoria psicanalítica das neuroses. Fundamentos e bases da doutrina psicanalítica, Atheneu, 2000, p. 307: “A submissão passiva ao pai cobre a ideia inconsciente de roubar-lhe a masculinidade [...]. Inconscientemente, consideram temporária a sua feminilidade, veem nela o meio de conseguir um fim; quando são parceiros ‘femininos’ de um homem masculino, é como se estivessem aprendendo os segredos da masculinidade com um ‘mestre’[...]. Em casos assim, a submissão ao pai combina-se a traços de identificação amorosa, Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Arlene Denise Bacarji tos, dormindo no quarto ao lado, quando não no mesmo quarto? Como é esta questão aos olhos do povo e na realidade concreta? Poderíamos dizer que há castidade assim? Seria este um ambiente favorável para a sublimação, uma vez que se convive diariamente e intimamente com o objeto de desejo? Ou seria falta de cuidado e de caridade para com o homossexual ordená-lo, esperando que Deus lhe dê uma graça que não supõe a natureza? Não seria expô-lo ao risco de dar escândalos e ao masoquismo de ter que sublimar sem ambiente favorável? Se formos pensar bem, saberemos que, se a Igreja tivesse mais presença feminina, os homossexuais não iriam se sentir tão atraídos pelo sacerdócio; sabemos que o convívio contínuo e íntimo com o objeto de desejo não favorece a sublimação e a castidade; sabemos que não podemos exigir uma graça que não supõe a natureza e sabemos que aos olhos do povo não pega bem uma instituição masculina fechada (conventos) com relações que podem ser homossexuais entre suas paredes. Nada quebra mais a plausibilidade da Igreja para o povo do que a incoerência entre a consciência de seus membros representantes e aquilo que a Igreja propõe objetivamente.20 Por isso, ser padre e homossexual é um paradoxo que fará ruir a Igreja. Pois é uma consciência subjetiva que não se coaduna com a consciência objetiva desta (Evangelho, família, matrimônio etc.) e, consequentemente, com o sensus fidei. Não podemos esquecer que o convívio nos seminários entre heterossexuais e homossexuais não é sem conflitos. Em minha experiência pessoal de professora de seminaristas há mais de seis anos, tenho tido inúmeros casos de rapazes heterossexuais que saem do seminário, perdem a vocação, devido ao fato de terem que conviver com colegas seminaristas homossexuais e muitas vezes com formadores que são também homossexuais. Se as coisas continuam em um ritmo assim, teremos uma Igreja masculina ou uma Igreja gay? Isso sem mencionar que o jeito efeminado de falar e de se portar já está se tornando cultural de seminários. Seria importante o magistério começar a pensar o que está acontecendo, pois a arcaica e original com o pai”. Ou seja, o fato de a instituição ser masculina e ter estes “pais” favorece enormemente a entrada desse tipo de pessoa. 20 Cf., a respeito deste assunto, os textos de Peter Berger sobre instituições e legitimações, em: Dossel Sagrado, Paulus, 2005. Para este autor, uma instituição passa a ser deslegitimada a partir do momento em que ela não é mais acreditável, e isso ocorre quando perde a plausibilidade. Esta, por sua vez, deixa de existir, quando a consciência subjetiva dos membros da instituição não mais é coerente com a consciência objetiva desta. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 119 A Igreja, a homossexualidade e o clero efeminização do padre não é interessante para uma Igreja que se dispõe a ser masculina, e isso tem algum significado: é sintoma de alguma coisa que não está bem. Fui professora também muitos anos em instituições seculares e heterogêneas – e posso comparar – a quantidade de rapazes efeminados em uma sala de aula de seminaristas ultrapassa muito a quantidade de rapazes efeminados numa sala de aula de qualquer outro curso de graduação, proporcionalmente.21 No sentido de uma instituição fechada, o mencionado documento da CNBB, neste ponto, oferece algumas novidades interessantes, sendo uma delas a presença de mulheres, de leigos e leigas na formação, como participantes desta, como se pode perceber no n. 146. Isso irá favorecer uma seleção melhor nos seminários, principalmente devido à presença de mulheres, pois, se os formadores souberem fazer bom uso das qualidades femininas, poderão escolher mulheres capazes de perceber, intuir e sentir os problemas e também algumas formas de solucioná-los. Em termos concretos, se este documento da CNBB for realmente considerado pelos formadores com seriedade, exigirá do candidato condições de relacionamentos que sejam verdadeiramente maduras, sem infantilismos e com capacidade de agregação, e não o contrário; também exigirá do candidato comportamentos verdadeiramente integrados com a comunidade e entre os seminaristas. Mas será realmente suficiente para que gays não sejam ordenados e enganem alguns formadores que não são gays?22 4 Uma Consideração especial ao artigo de Mettler e os Limites dos documentos eclesiais diante da “perversão” Temos que considerar as pesquisas feitas por Mettler,23 onde foi mostrado que os números de homossexuais nos seminários, entre sacerdotes e religiosos, são alarmantes e desproporcionais em relação ao mundo. O que leva a uma flagrante discriminação de seminaristas heterossexuais, à formação de uma subcultura homossexual e à constituição de redes de homossexuais nos seminários e consequentemente 120 21 Sobre o assunto deste parágrafo voltaremos com mais substância no item dos limites dos documentos eclesiais. 22 Com efeito, os que são gays não precisam nem se dar ao trabalho de enganar. 23 P. METTLER, art. cit., 812. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Arlene Denise Bacarji no clero [...]. Estes aspectos são sentidos nitidamente por quem convive com seminaristas e em meio à vida religiosa e, como já foi mencionado neste artigo, leva ao êxodo dos heterossexuais, decisivo no caminho da ‘homossexualização’ do clero.24 Deduzimos daí que a Igreja hoje enfrenta um problema muito maior do que ordenar ou não ordenar gays. Pois o problema citado acima não trata mais de homossexualidade em si, mas de perversão. Não podemos dizer que todo homossexual seja perverso (no sentido psicanalítico e não moral do termo), mas o homossexual que invade a Igreja, desta forma, cria redes de homossexuais e impõe-se contra toda e qualquer regra da instituição; este, sim, é perverso no sentido do termo ‘perversão’ citado por Claire Pajazckowska como: violentar, abusar, desviar, inverter, reverter, afastar.25 O termo perversão aqui deve ser entendido dentro do contexto psicanalítico e também sociológico, que significa não somente a tentativa de quebra dos padrões estabelecidos, das regras e normas sociais, mas principalmente no sentido de burlar a regra para satisfazer suas necessidades e desejos individuais, prejudicando os outros, as instituições e a sociedade e que pode ser designado como sociopatia, em grau maior ou menor. Nesse contexto, a Igreja deve ficar atenta, pois, mesmo com todos os documentos, poderá haver pessoas que, quanto mais perversas, mais conseguem enganar bem a todos. Nesse sentido, o documento da CNBB aborda a questão do acompanhamento psicológico profundo, da contínua formação, mas o cuidado deve ser maior. Pois o homossexual que não é perverso não irá querer burlar a regra e a norma da Igreja, deverá ser honesto consigo mesmo e por si mesmo chegar à conclusão que a vocação do sacerdócio não é para ele. O documento conta com este tipo de pessoa, mas o que normalmente ocorre é outro tipo de pessoa que quer se apossar do sacerdócio (não necessariamente é sempre homossexual, embora seja mais que comum que o seja) à custa de manipular os formadores e superiores em geral. Para isto, a Igreja deverá obter maiores conhecimentos desta patologia que se denomina “perversão”.26 Pois o sacerdócio não é somente um bom esconderijo para quem tem problemas sexuais, mas 24 Ib., 816. 25 Claire PAJAZCKOWSKA, Perversão. Conceitos de psicanálise, Ediouro/Relume Dumará, São Paulo/Rio de Janeiro 2005, 13. 26 Uma bibliografia simples e excelente sobre este assunto é: Claire PAJAZCKOWSKA, op. cit. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 121 A Igreja, a homossexualidade e o clero para quem tem problemas de todo tipo. Infelizmente, numa sociedade com uma cultura em que os problemas aumentam, a Igreja torna-se uma instituição cada vez mais desejada por pessoas que nem sempre estão bem intencionadas. Mas mentem e enganam bem com lágrimas na confissão e na direção espiritual. E muitas vezes chegam ao episcopado. No sentido psicanalítico que se casa bem com o sociológico, o sociopata ou pessoa que possui Transtorno de Personalidade Antissocial, denominado perverso, cuja estrutura é diferente do neurótico ou psicótico, é a pessoa que teve problemas na infância com os limites (castração) e não os aceita. Estas pessoas são totalmente avessas às regras e normas sociais e sentem prazer em quebrá-las. São pessoas que mentem, não sentem remorsos normalmente e, quando são acuadas ou descobertas, fingem arrepender-se, de forma que muitos não acreditam que é falso; é onde conseguem permanecer no clero, pois para o confessor se arrependem, choram, dizem que vão mudar, que não gostam de ser assim e de agir assim, e o confessor ou diretor espiritual, desavisado de que se trata de uma patologia, cai. Nasini descreve os homossexuais no clero segundo as pesquisas feitas da seguinte forma: Usualmente, esses ministros (sacerdotes-religiosos ativos no ministério) são descritos por seus colegas como inteligentes, de muita capacidade criativa e realizadora. Conquistam facilmente as pessoas em geral. Sabem envolver os que estão à sua volta, pois geralmente são simpáticos e criativos. Mas, por outro lado, agem furtivamente, sempre por baixo dos panos, deixando transparecer insatisfações internas, frustrações afetivas e descontroles psicoemocionais. Buscam preencher freneticamente os vazios através desse comportamento sexual. Eles parecem ser pessoas espiritualistas e reflexivas, afeminados nos seus gestos e com tendência à passividade, aceitam as coisas como elas se apresentam. São pessoas muito informadas e com muitas influências. Gostam de bajular os poderosos, de disfarçar e fingir. Na visão de um padre que respondeu à pesquisa, a homossexualidade entre o clero constitui um comportamento marcado pela violência, preguiça e farisaísmo. Tal comportamento é escandaloso, e toda a comunidade é a primeira a saber. Lamentavelmente, essa coisa não é só de padres, mas também de bispos.27 No entanto, nesses casos, não se trata apenas de homossexuais, mas de homossexuais perversos. Hoje, estão aumentando muito as per27 122 Gino NASINI, Um espinho na carne. Má conduta e abuso sexual por parte de clérigos da Igreja católica do Brasil, Santuário, Aparecida 2001, 115, grifo meu. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Arlene Denise Bacarji versões, devido aos problemas familiares e às mudanças de papéis entre os pais. Mães que fazem papéis de pais e pais que não fazem papel algum é um problema para a constituição psíquica do ser humano, dentre outros fatores que também se agravam, como ausência desses pais, falta de afetividade, sobrecarga de trabalho, agressividade, falta de referenciais, medo de colocar limites, afeto desordenado e tantos outros comportamentos desequilibrados dos pais e das mães em relação aos filhos. Inclusive a perda da influência da religião na sociedade é um dos fatores que impede a contenção dos instintos, gerando mais sociopatias. Para os homossexuais perversos, a Igreja é um “ninho aconchegante”, pois ali ele encontra seu objeto de desejo, seus supostos “pais”, com quem estabelecem relações amorosas, sejam elas abstinentes sexualmente ou não, ou ainda, “filhotes” em quem se projetam e amam como se fossem a si mesmos.28 Encontram proteção, pois ninguém irá mexer com “padres”, buscam status e poder, duas coisas que atraem o homossexual pela sua necessidade de manipulações, e ambientes favoráveis para segurança econômica e para realizarem seus desejos sem que ninguém os incomode. Ressaltando que os homossexuais não perversos dificilmente permanecem nesta estrutura, porque não conseguem viver mentindo a todos por longo período. Ou seja, os homossexuais que permanecem, na maioria, serão os perversos, devido à necessidade de mentiras e à facilidade de vida dupla sem que se exponham ao julgamento do povo na sua fantasia, pois na realidade acabam se expondo. O perverso também menospreza não somente as normas e regras institucionais, mas também a capacidade de inteligência e de percepção das pessoas. Para estas pessoas, o prazer sexual só é possível a partir do momento em que burlam as regras, pois o que os impede de ter prazer é a castração (lei social); 28 Otto FENICHEL, op. cit.: “Uns tantos homossexuais, a saber, homens que tiveram nos primeiros anos de vida fixação intensa por um homem [...] regridem, simplesmente, depois de adquirirem esta atitude, ao seu ponto de fixação e escolhem homens que lhes recordam o objeto primário”, p. 309; “O tipo de individuo que é mais narcísico do que ‘feminino’ tenta, antes de mais nada, garantir um substituto dos seus desejos edipianos. Depois que se identificou com a mãe, comporta-se como até aí desejara que a mãe se comportasse para com ele. Escolhe para objetos amorosos rapazes ou meninos que, para ele, se lhe assemelham e ama-os e trata-os com a ternura que desejara da parte da mãe. Embora procedendo como se fosse sua mãe, está centrado, emocionalmente, no seu objeto amoroso, assim desfrutando ser amado por si mesmo. O tipo de desenvolvimento a que estamos aludindo produz ‘indivíduos homoeróticos’, que procuram, de forma ativa, pessoas mais jovens como objetos [...]. Fixados naquele período da vida em que ocorreu a orientação decisiva, os indivíduos deste tipo costumam amar adolescentes, estes o representando ao tempo de sua própria adolescência”, p. 310-311. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 123 A Igreja, a homossexualidade e o clero pela perversão, ele tenta provar que não existe castração29; somente aí volta a ter condições de ter prazer. Nesse sentido, o documento inova com a presença de mulheres na formação, pois os homens em geral têm dificuldade em perceber a falsidade por meio de gestos, do olhar, do tom de voz, do riso e de comportamentos claramente manipuladores e bajuladores aos olhos de mulheres mais intuitivas e com conhecimentos nas áreas de ciências humanas. No entanto, o documento não menciona este problema tão grave e presente na Igreja hoje. Aqui encontramos o maior limite dos documentos, pois eles não são capazes de apontar para a presença do perverso e alertar sobre este tipo de pessoa, para que seja detectada na Igreja. Muito ao contrário, o último documento aponta para a necessidade de comportamentos do candidato que o perverso é capaz de cumprir com muito êxito de forma falsa e enganosa, e é isso que tem levado a Igreja a ter os problemas que hoje enfrenta. Ela possui uma estrutura “mole” para perversos, até porque eles sabem bajular os superiores, e muitos superiores, se não são perversos também, entram nesta bajulação com verdadeiras mostras de afeto e de confiança, como se estas pessoas fossem dignas disto. Incrivelmente, encontramos homens bons, que não são perversos, mas que, em momentos de escândalos, têm um excesso de misericórdia sem discernimento e não conseguem distinguir a diferença entre um homem pecador como qualquer um de nós e um perverso. Portanto, é um excesso de misericórdia para com o que causou o escândalo e falta de zelo pela Igreja e desconsideração pelo povo de Deus. 5 Encaminhamentos pastorais da homossexualidade A Igreja, pastoralmente, ao pedir ao homossexual (e a todos) a castidade, está correta, mas devemos saber que nem sempre será possível. A castidade é uma das coisas mais difíceis para qualquer um de nós, heterossexuais ou homossexuais, mas parece que para o homossexual é um pouco mais difícil, quando não impossível. Isso não deve impedi-lo de participar das missas, de ser acolhido como cristão, se assim ele o desejar. Pois Cristo é para todos e veio para os pecadores, que somos 29 124 Ibidem, 306. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Arlene Denise Bacarji todos nós. Se ele consegue viver a castidade, poderá comungar, se não, deverá ser acolhido e participar como os casais de segunda união que também não comungam, como as pessoas que não vivem a castidade em geral e que não devem comungar, ou seja, ele deve ser acolhido como pessoa entre as outras que também enfrenta dificuldades a respeito da vida sexual. A sua condição não deve afastá-lo da palavra de Deus e do direito de ouvi-la. Ele deve ser incluído, amado e respeitado. Também é importante uma dica sociológica para os homossexuais. Sociologicamente, quanto mais agressiva é uma prática e uma tentativa, mais aversão irá gerar no lado oposto. As paradas gays, os movimentos de homossexuais, devem entender que devem lutar pelos seus direitos de pessoa como outra qualquer, mas existem regras e normas que devem ser respeitadas. Se o homossexual desrespeita as normas e as regras, principalmente as das instituições, ele não está lutando pelos seus direitos, mas está agredindo a sociedade e caindo naquilo que chamamos de “perverso”, pois não podemos impor para os outros aquilo que é regra para nós. A Igreja não vai à parada gay para tentar mudá-los de “escolha” sexual, mas eles vão até o papa para fazê-lo mudar as regras da Igreja. Isso gera homofobia. Por isso a homofobia tem aumentado, pois a prática de se impor aos outros com violência (verbal e prática, não física) gerará maior violência. Seria interessante os homossexuais saberem disso e se cuidarem para serem pessoas agradáveis à sociedade e não o contrário; o povo é bom e pode amá-los e respeitá-los, desde que eles respeitem o povo. Com exceção dos que ainda possuem uma bissexualidade, dificilmente o homossexual terá uma condição heterossexual. Não adianta a Igreja ficar pregando que eles têm que deixar de ser homossexuais, pois quem já se delineou assim em algum momento da vida, na infância ou na adolescência e assim se cristalizou, não irá ter mudança. Porém, podem ser respeitados e não discriminados, se respeitarem a liberdade dos outros serem heterossexuais (coisa que já está quase se perdendo), de terem suas regras institucionais, como no caso da Igreja, e nem por isso ela os condenará (o que se condena é a homossexualidade em si e sua prática e não o homossexual). Isso é diferente de querer que a Igreja mude suas regras e normas de 2000 anos. Assim como nós, mulheres, se queremos ser católicas, não devemos querer impor à Igreja o sacerdócio das mulheres. Esta regra existe desde 2000 anos e só irá mudar quando os homens de dentro dela quiserem, e isso não irá acontecer por pressão, por violência, por imposição, se é que um dia isso irá mudar. Talvez Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 125 A Igreja, a homossexualidade e o clero nunca mude, e nós mulheres temos que conviver com isso em paz, em comunhão e unidade. Porque os homossexuais querem mudar a Igreja, querem o casamento gay, querem se ordenar...? Isso gera homofobia, sociologicamente dizendo. Se todos nós assumirmos o que somos e formos verdadeiros conosco e com os outros, o mundo poderá ser muito melhor, pois “é a verdade que liberta”, e esta começa conosco, com a nossa vida – o que não é assumido não pode ser salvo. Assim, poderemos nos relacionar bem, sem homofobia, e as instituições poderão manter suas regras sem serem vistas como discriminações, pois acusá-las disso já seria uma manipulação da razão e da verdade. 6 O que o Espírito Santo estaria dizendo Com toda esta situação da Igreja, com os escândalos de pedofilia30 e o número de homossexuais ordenados, assim como de bispos homossexuais nomeados, o que será que o Espírito Santo está a dizer para a hierarquia da Igreja? Apenas que ela foi negligente e desatenta a este problema, colocando hoje o povo de Deus católico em situação de provação ao comprometer a sua plausibilidade perante toda a sociedade? O que estes problemas de homossexualidade perversa teriam a ver com as relações de poder que existem na estrutura da Igreja? Não seria a atual estrutura de relações entre Bispo, clero, seminaristas, que estaria atraindo para dentro da Igreja este tipo de pessoa? Como se dão estas relações de poder? O que estes problemas teriam a ver com o clericalismo? O que teriam a ver com remanescentes congregações que ainda valorizam o clero em seu “poder sacerdotal” inabalável devido a uma graça – que nem sempre supôs a natureza – recebida na ordenação? A ordenação de gays é realmente válida perante o direito canônico? Ou os gays deveriam ser suspensos da ordem por vários motivos de configurações e, principalmente, porque não deveriam ser entendidos como homens-varões? Esses gays que já são ordenados não irão reproduzir esta situação, se a hierarquia não ficar atenta quanto às perversões? Qual o poder 30 126 Que nem se trata de pedofilia, mas de efebofilia, e que não passa de simples homossexualidade. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Arlene Denise Bacarji que gays que chegaram ao episcopado ainda têm na Igreja ao elaborar documentos e diretrizes e ao nomear outros bispos? Uma Igreja masculina que excluiu as mulheres da participação mais ativa nas percepções, decisões e opiniões, teria alguma responsabilidade sobre isso? Seria a estrutura da Igreja e a forma como ela se moldou (clericalismos, seminários, bispos nomeados sem a participação do povo de Deus, distância entre a hierarquia e o povo, maneiras de lidar com a sexualidade, atitudes internas como – algumas mentirinhas são santas) propiciadoras de hipocrisias, carreirismos, desejos ardentes de poder e status? O que o Espírito Santo estaria mostrando, alertando e pedindo aos verdadeiros sacerdotes que amam a Igreja, com esta situação? Endereço da Autora: Av. Afonso Camargo 2125, apt. 33 Cristo Rei 80050-370 Curitiba, PR BRASIL E-mail: [email protected] Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 127 Resumo: A Eucaristia é a celebração do Mistério Pascal de Nosso Senhor Jesus Cristo. Nela faz-se memória da Páscoa de Cristo e da páscoa dos cristãos. Olhando para a sua história, percebe-se que nos primórdios do cristianismo a celebração eucarística tinha um desdobramento prático na vida do cristão. Com o passar do tempo, a relação celebração e vida foi-se perdendo, e a celebração tornou-se um rito, muitas vezes, distante da vida. Hoje, um dos nossos maiores desafios é restabelecer esta unidade: celebração e vida são dois momentos inseparáveis da Celebração Eucarística. Abstract: The celebration of the Eucharist re-enacts the Paschal mystery of our Lord Jesus Christ. It draws from the memorial of Christ’s paschal celebration and the Christian passover celebrated annually ever since. It converts it into a memorial which He himself instituted at the Last Supper on Holy Thursday and handed it over as a legate of faith for the Church. A key element of the historical survey on the initial stage of Christianity is the fact that the Christian community celebrated the Eucharist not as passive recepient of an obsolete ceremonial from the past but with special significance for daily life. However, in the course of subsequent decades and centuries the relationship between the liturgical celebration and its impact on human life came into disuse so that it turned nearly into a liturgical rite or a religious ritual quite distant from what it had been at the beginning. Today, the Christian community faces the challenge to re-establish (re-establsh) once again the living relationship that binds together Eucharist and community in terms of inseparable moments of the Christian celebration. Celebração e Vida: dois momentos inseparáveis da Celebração Eucarística Cleiton José Senem* * O autor é graduado em teologia pelo Instituto Teológico Franciscano de Petrópolis, RJ. É professsor de Ética e Cultura Religiosa na Universidade Sagrado Coração, Bauru, SP. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011, p. 129-148. Celebração e Vida: dois momentos inseparáveis da Celebração Eucarística Introdução A liturgia é o cume e a fonte de toda a vida da Igreja (cf. SC 10). A Eucaristia, por sua vez, é o centro de toda a liturgia e, por excelência, o sacramento de unidade de toda a Igreja com o Deus Trindade. Para ela converge toda a evangelização da Igreja, e dela provém toda a força necessária para que a evangelização se realize com eficácia. Nesse sentido, a celebração e a vivência da Eucaristia são fundamentais para a vida da Igreja. Porém, percebe-se hoje um distanciamento entre o que Jesus Cristo viveu e realizou na última ceia com seus discípulos, e o que celebramos na Eucaristia. Dessa realidade percebida decorre a necessidade de voltar às fontes da Eucaristia, resgatando a relação vida-celebração. O objetivo deste artigo é mostrar que a celebração da Eucaristia, necessariamente nos impele a um compromisso com a vida, ao seguimento de Jesus Cristo. A Eucaristia convida-nos a viver a partir do Mistério celebrado. Assim, dois pólos marcam a vida dos seguidores de Jesus Cristo: a reunião e a missão. Na reunião, com palavras e ações simbólicas, entre cantos e silêncios, recorda-se a paixão e a glorificação de Jesus, o Senhor, na cumplicidade do Espírito que atualiza, fecunda, cria comunhão. Na missão, o mesmo Espírito envia, cria, dá forças, coragem, persistência e alegria... Há uma relação intrínseca entre esses dois pólos: é o mesmo mistério da páscoa do Senhor, ora anunciado e vivido no dia-a-dia, no testemunho e no compromisso até o martírio, ora atualizado na memória litúrgica. Um não existe sem o outro.1 A celebração eucarística está intrinsecamente ligada à vida de cada cristão. Jesus deixou aos seus discípulos duas maneiras de fazerem memória de sua vida e de sua ação salvadora no mundo: a memória celebrativa ritual e a memória testamentária. A memória celebrativa ritual é realizada através dos sacramentos e da liturgia em geral. Essa memória como ação simbólica profética realiza uma ponte para o segundo tipo de memorial deixado por Jesus, o memorial testamentário, onde o cristão deve viver conforme o que ele crê e o que é celebrado.2 130 1 BUYST, Ione e SILVA, José Ariovaldo. O mistério celebrado: memória e compromisso I. São Paulo: Paulinas; Valência: Espanha, Siquem, 2003. p. 11. 2 Cf. BECKHÄUSER, Alberto. Os Sacramentos na Vida Diária. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 10-11. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Cleiton José Senem Gostaríamos de ressaltar que estas linhas não têm a pretensão de esgotar o assunto, mas de suscitar o questionamento dos leitores sobre o tema, proposto à luz de uma dimensão histórica da liturgia. 1 A pré-compreensão do Mistério da Eucaristia na atualidade Normalmente, quando se fala em Eucaristia parte-se de um pressuposto muitas vezes não explicitado: a Eucaristia é algo sagrado! “Sagrado” entendido como algo separado da vida. Por isso, se separa um espaço, um tempo, um objeto, uma pessoa. O sagrado torna-se uma manifestação de algo completamente diferente (Mircea Eliade), de uma realidade que não pertence a este mundo. Essa concepção, portanto, traz em si uma ruptura de nível que constitui o sagrado como um mundo distinto do profano. Como consequência, entrar em contato com o sagrado é ausentar-se do profano, do trabalho, da convivência, do descanso, do jogo etc. A Eucaristia, vista nessa compreensão, como ação sagrada, é situada à margem da vida, do dia-a-dia, quiçá até distante das realidades cotidianas. A consequência dessa pré-compreensão é que Eucaristia e Vida perdem sua unidade dinâmica e são vistas dicotomicamente. A separação que existe entre sagrado e profano é a distância que existe entre celebração e vida.3 Com certeza muitos cristãos têm na Eucaristia a sua fonte de espiritualidade e vitalidade. Muitos celebram e vivem a Eucaristia como mistério pascal de Cristo em sua vida. Porém, existem pessoas que pensam a Igreja como um grande “supermercado religioso” e buscam nela um “produto” que está faltando na sua vida. Isto é, um sacramento ou uma bênção que possa satisfazer sua necessidade momentânea. A Eucaristia, muitas vezes, se encaixa nessa perspectiva e parece tornarse uma espécie de serviço religioso posto à disposição do público, ao “gosto do consumidor”. O resultado é o consumismo sacramental. Basta olhar as nossas listas de intenções na celebração Eucarística para constatarmos isso.4 3 Cf. CASTILLO, José Maria. Eucaristia, Y Vida, Hoy. Madrid: Fundación Santa María. S.d. p.10-14. 4 Por exemplo: pelas almas do purgatório, pelo falecido João da Silva, por uma graça alcançada, por Nossa Senhora Aparecida, ao Sagrado Coração de Jesus, em honra a São José, a Santo Antônio, para pedir chuva, para pedir uma cura, em ação de graças pela saúde de Sebastiana, para pedir emprego etc. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 131 Celebração e Vida: dois momentos inseparáveis da Celebração Eucarística A Eucaristia parece, muitas vezes, uma oração que o padre reza sozinho lá no altar, pelas intenções que foram encomendadas, e o povo assiste. O Padre é o funcionário desse grande “supermercado sacramental”, parecendo “contratado” para rezar a missa. Do consumismo sacramental chegamos facilmente ao individualismo cristão. A Eucaristia como sacramento comunitário por excelência, muitas vezes, é celebrada individualmente. Cada pessoa reza por si, dirige a Deus suas preces geralmente individualistas, sem sequer conhecer e celebrar com as pessoas que estão ao seu redor. Ninguém celebra um aniversário, uma festa, um fato importante sozinho! É inerente à celebração a comunhão com os outros, celebrar é fundamentalmente concelebrar, assim como viver é conviver. Muitas pessoas não compreendem a Eucaristia e muito menos têm consciência do que se está celebrando. Muitos se tornam meros leitores do tão conhecido jornal ou folheto de missa. Então: celebra-se uma coisa e se vive outra. A compreensão que mais se destaca nos dias de hoje, quando falamos em Eucaristia, é a da presença real de Jesus no pão e no vinho, Corpo e Sangue de Cristo. A primeira imagem que nos vem à mente quando falamos em Eucaristia é a do ostensório com a hóstia consagrada, ou a hóstia na mão do padre na hora da consagração. Olhando as lembranças de Primeira Eucaristia, temos sempre a imagem da hóstia, com alguns ramos de trigo e um cacho de uva. Nos convites de ordenação presbiteral, é frequente o uso dessa mesma imagem. A prática da adoração do Santíssimo Sacramento dentro da celebração eucarística, ou logo após a mesma, está crescendo cada vez mais. Na hora da consagração, muitas pessoas sussurram exclamações como: “Meu Deus e Meu tudo”, “Eu creio Senhor, mas aumentai a minha fé”, “Jesus Cristo, eu te adoro”. Se perguntarmos às pessoas qual é o momento mais importante da celebração eucarística, por unanimidade elas irão responder que é a consagração do pão e do vinho no Corpo e Sangue de Cristo. Para o senso comum, celebrar o mistério da Eucaristia é isso: ir todos os domingos à igreja para “assistir” Cristo que vem sobre o altar no pão e no vinho. O padre lá no altar, com sua voz poderosa, transubstancia o pão e o vinho no Corpo e Sangue de Cristo através das palavras da consagração e, a 132 Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Cleiton José Senem partir daquele momento, Jesus está presente ali sobre o altar para ser adorado e comungado “por quem não tiver pecado”. São riquíssimas as palavras ditas pelo bispo durante a ordenação presbiteral quando toma em suas mãos o pão e o vinho, trazidos pelo povo, e diz ao neo-ordenando: “Recebe a oferta do povo santo para apresentá-la a Deus. Toma consciência do que vais fazer e põe em prática o que vais celebrar, conformando a tua vida ao mistério da cruz do Senhor”.5 Percebe-se que muitos padres vivem profundamente o que celebram, comprometendo-se ao serviço do Reino de Deus. A Eucaristia para eles não é um ritual para ser executado, desencarnado da vida e da história humana, mas é a celebração do mistério pascal e da sua vida juntamente com a vida de todos que a celebram. Faz parte da missão e da vocação do presbítero viver uma vida eucarística e assim incentivar o povo a fazer o mesmo. Entretanto, para muitos padres, assim como para uma grande parte do povo, a Eucaristia é o ritual através do qual Jesus se faz presente nas espécies eucarísticas. Percebe-se também em muitos padres uma compreensão mágica e até alienante da Eucaristia, pois compreendem que em suas mãos está o poder de consagrar. Há sacerdotes que na hora da consagração levantam bem devagar a hóstia consagrada, e depois o cálice, para a adoração dos fiéis. Há padres que interrompem a oração eucarística e fazem o famoso “passeio com o Santíssimo”. Alguns substituem a aclamação memorial “Anunciamos Senhor a vossa morte e proclamamos a vossa ressurreição...” por aclamações como: “Eu te adoro hóstia divina“ ou “Meu Deus e Meu tudo”.6 Outros pensam que a bênção do Santíssimo é mais importante que a Eucaristia. Certa vez, disse um padre depois que acabou de presidir a celebração eucarística: “Meus irmãos, agora vamos receber a bênção do Santíssimo Sacramento... Não existe bênção mais importante do que esta!” Daí conclui-se que a maior bênção não foi a participação no memorial do sacrifício de Cristo, isto é, a Eucaristia recém celebrada deixou de ser a mais importante.7 Há presbíteros que executam o ritual com frieza e rigidez, perdendo a vivacidade e a dinamicidade da celebração. Aquilo que exprime a vivên5 Ritual de Ordenação de Bispos, Presbíteros e Diáconos. São Paulo: Paulus, 1994. n. 135 p. 70. 6 A propósito desta questão sugiro a leitura do artigo: SILVA, José Ariovaldo da. “Eu te Adoro, hóstia divina”. In: Revista de Liturgia. São Paulo, n.166, 2001.p.4-6. 7 Cf. SILVA, José Ariovaldo da. “Eu te Adoro, hóstia divina”. p. 4. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 133 Celebração e Vida: dois momentos inseparáveis da Celebração Eucarística cia da fé fica cristalizado, não toca nem leva a assembleia a celebrar a sua vida. Não faz brotar a emoção, a sensibilidade e a vivência do mistério ali celebrado, cai-se no ritualismo, fazendo com que a assembleia não comprometa a sua própria vida. Alguns leem a oração eucarística numa velocidade tal que parece quererem terminar a celebração em um minuto. Outros se compreendem como donos da celebração e consequentemente fazem com que a assembleia se torne passiva. O padre assume o papel de ator principal, e a comunidade contempla passivamente a sua apresentação, proporcionando cada vez mais a separação entre presidente e assembleia, vida e celebração. Olhando os jornais, revistas, noticiários de televisão e internet, percebemos que os meios de comunicação também transmitem uma compreensão de Eucaristia, pois afinal de contas, essas notícias ou informações veiculadas são expressões de uma compreensão cultural. Vejamos alguns exemplos recolhidos por Frei José Ariovaldo da Silva, publicados na revista Mundo e Missão: “’Amigos do traficante Uê encomendaram missa pelo primeiro aniversário de morte’ (O Globo, 11.09.03, p.1 e 16). ‘Missa em memória de Roberto Marinho reúne cem pessoas em igreja paulista... a missa foi encomendada pelo presidente do Museu de Arte Moderna’ (idem, 02.09.03, p. 13). ‘ACM pede ordem e vai à missa em homenagem ao filho’ (Jornal do Brasil, 22.05.98, p.2). ‘Ontem de manhã, foi rezada um missa na Casa da Dinda em homenagem a Pedro...’ (Folha de São Paulo, 19.12. 94, Cad. 1, p. 6). ‘Missa de sétimo dia celebrada ontem no Rio em homenagem ao deputado Ulysses Guimarães comprovou que ele ainda simboliza o consenso nacional...’ (O Estado de São Paulo, 20.10.92, p.10). ‘Sindicato festeja 60 anos com missa’. (O Globo, 26.09.92, p.18). ‘A população petropolitana está convidada para assistir ... a missa em homenagem ao prefeito eleito Leandro Sampaio...’ (Tribuna de Petrópolis, 31.12.96, p.1).8 Observamos nos exemplos citados acima que a Eucaristia é entendida como uma “cerimônia” que se “encomenda”, ou se “promove” para “homenagear” alguém vivo ou falecido, ou para celebrar a memória de alguma pessoa ou evento importante. Ela é executada por um profissional religioso, isto é: bispo ou padre, que é contratado para realizar essa 8 134 SILVA, José Ariovaldo da. Missa-memória, Missa-homenagem. In: Mundo e Missão. São Paulo, n. 77, 2003. p. 34. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Cleiton José Senem função.9 Nesse sentido, a celebração eucarística normalmente é entendida pelos meios de comunicação como um “ato social”. Essas compreensões que usualmente percebemos entre o povo, os clérigos e os meios de comunicação, levam-nos a perguntar: Será que foi isso que Jesus Cristo quis quando instituiu a Eucaristia? Será que não estamos distantes do que Jesus pensou quando tomou o pão, deu graças, partiu, e distribuiu a todos, pedindo que fizéssemos isso em sua memória? Enfim, percebemos que, de maneira geral, a relação vida-celebração está comprometida devido a uma visão mágica, por vezes ritualista e outras vezes utilitarista do mistério da Eucaristia. Sabemos que as compreensões explicitadas neste primeiro momento não são frutos pura e simplesmente da nossa prática atual, mas são frutos de longos séculos de vivência e experiência cristã. Por isso, é importante observar como foram se desenvolvendo essas compreensões ao longo da história do cristianismo. 2 A Eucaristia no primeiro milênio do cristianismo A celebração eucarística, como a temos hoje, não é invenção nossa; não somos seus criadores, mas somos herdeiros de uma rica tradição que começou no início do cristianismo com as primeiras comunidades cristãs. Assim, queremos, de maneira simples, percorrer esse início do cristianismo bebendo das fontes originárias, observando também como a celebração foi sendo entendida e celebrada ao longo da história, perpassando os séculos e chegando até nós hoje. O primeiro elemento e o fundamental que perpassa o primeiro milênio do cristianismo é a compreensão da Eucaristia como Celebração do Mistério Pascal de Cristo. O texto mais antigo sobre a sua instituição, recebido na tradição, é o de São Paulo aos Coríntios10, onde lemos o seguinte sobre a Ceia do Senhor: Porque recebi do Senhor o que vos transmiti: O Senhor Jesus, na noite em que foi entregue, tomou o pão e, depois de dar graças, partiu-o e disse: “Isto é meu corpo, que se dá por vós; fazei isto em memória de 9 10 Cf. idem. p. 34. Cf. Bíblia Sagrada. GARMUS, Ludovico (trad.) et alii. 45ª ed. Petrópolis: Vozes. 1982. Nota referente a 1Cor 11,17-33. p.1364. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 135 Celebração e Vida: dois momentos inseparáveis da Celebração Eucarística mim”. E, do mesmo modo, depois de cear, tomou o cálice, dizendo: ‘Este cálice é o Novo Testamento no meu sangue; todas as vezes que o beberdes, fazei-o em memória de mim’. Pois todas as vezes que comerdes este pão e beberdes este cálice, anunciareis a morte do Senhor, até que ele venha (1Cor 11, 23-26). Nos primórdios, a Eucaristia era entendida como fazer a memória de Jesus, de sua paixão morte e ressurreição; era fundamentalmente a celebração do Mistério Pascal de Jesus Cristo. E essa memória estava muito ligada à vida das pessoas que participavam. Em 1Cor 11,17ss, por exemplo, vemos que Paulo condena as divisões dos que vão à Ceia do Senhor, dizendo que isso não serve para o crescimento espiritual, mas faz mal. Mateus 5,23-24 diz o seguinte: “Portanto, se estiveres diante do altar para apresentar tua oferta e ali te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa tua oferta lá diante do altar, vai primeiro reconciliar-te com teu irmão e então volta para apresentar tua oferta”. Esse texto, destinado à comunidade cristã, fala da oferta (celebração) associada à vida. Isto é, a oferta apresentada na celebração é incompatível com a divisão entre os seres humanos. A celebração não pode ser compreendida desligada da vida. Não é possível participar autenticamente da Eucaristia, quando não se tem a reta intenção de viver aquilo que é celebrado em comunhão com os demais membros da comunidade. Olhando os textos do Novo Testamento, referentes à Eucaristia,11 percebemos um segundo aspecto que é um desdobramento do primeiro: A Eucaristia é o memorial do mistério pascal de Jesus Cristo que é celebrado durante uma refeição. A Eucaristia foi instituída como alimento.12 Mas não um alimento comum. Foi o próprio Jesus quem disse que o pão e o vinho eram o seu corpo e o seu sangue, e pediu para que os discípulos fizessem sempre isso em sua memória. Isto é: através da ceia, os discípulos deveriam celebrar toda a vida de Jesus, especialmente, sua paixão, morte e ressurreição. A refeição marca desde o princípio a celebração Eucarística. Nos textos referentes à Eucaristia, aparece mais de trinta vezes a palavra comer e mais de vinte vezes a palavra beber. A comensalidade está na base da intenção eucarística, tanto em direção vertical, de união com seu 11 Cf. 1Cor 11,23-26; Lc 22,14-20; Mt 26,26-29; Mc 14,22-25 e Jo 6,51-59. 12 136 Cf. CASTILLO, J. M. Onde não há Justiça não há Eucaristia. In: Fé e Justiça. São Paulo: Loyola, 1990. p. 138. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Cleiton José Senem Senhor, como horizontal, de fraternidade crescente.13 A Eucaristia era celebrada junto com o ágape (refeição fraterna), tendo muito mais um sentido fraterno do que alimentar. Na refeição partilhada, os comensais comem do mesmo pão que se parte e se reparte entre todos (Mt 26,26; Mc 14,22. Lc 22,19, 1Cor 11,24) e bebem do mesmo cálice, que passa de boca em boca do primeiro ao último (Mt 26,27, Mc 14,23, Lc 22,20, 1Cor 11,25). Podemos perceber, nos Atos dos Apóstolos, que a Eucaristia é chamada de “fração do pão” (At 2,42.46, 20, 7.11). Quer dizer que se trata de uma refeição em comum, celebrada nas casas, em um clima de alegria e ligada à partilha dos bens (At 2,42-47; 4, 32-35).14 Famílias ricas ofereciam suas casas para a reunião da comunidade, devido ao fato de oferecem melhores condições para as necessidades litúrgicas da Igreja. São as chamadas Domus Eclesiae – Casa da Igreja. Em Roma existiam umas 40 dessas casas.15 A Ação de Graças é o terceiro elemento a ser destacado. Nas celebrações eucarísticas não faltava a “oração de bênção” (oração eucarística) de origem judaica. Pouco a pouco foi prevalecendo a categoria de bênção e ação de graças na celebração da Eucaristia. O centro da Eucaristia se desloca do sinal primordial da refeição ao da palavra: a palavra descendente das leituras bíblicas e a palavra ascendente da oração eucarística. De Ceia do Senhor passa-se à Eucaristia, isto é, ação de graças, já nos finais do séc I (Cf. Cartas de Inácio de Antioquia).16 A ação de graças apresenta-se como uma contemplação de Deus, autor de todas as maravilhas da criação e da História da Salvação, principalmente, por ter salvado a humanidade através da morte-ressurreição de Jesus Cristo. É essa atitude que será traduzida pelo termo “Eucaristia”. A palavra Eucaristia na língua grega quer dizer “ação de graças”. A Igreja, ao usá-la, deu-lhe uma compreensão que tem origem no Antigo Testamento: “Render Graças”. Render graças tornou-se o equivalente a “fazer 13 Cf. ALDAZÁBAL, José. A Eucaristia. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 131. 14 Cf. CASTILLO, J. M. Onde não há Justiça não há Eucaristia. p. 138. 15 Cf. SILVA, José Ariovaldo. O Mistério Celebrado no Primeiro Milênio da Era Cristã. In: O Mistério Celebrado: Memória e Compromisso I. São Paulo: Paulinas; Valência: Espanha, Siquem, 2003. p. 31. 16 Cf. Idem. p. 134. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 137 Celebração e Vida: dois momentos inseparáveis da Celebração Eucarística a Eucaristia”: a oração transformou-se em rito”.17 É importante lembrar que a celebração da Eucaristia Cristã tem sua raiz na tradição judaica, mas assume a partir de Cristo um sentido próprio, pois é concebida como a celebração do mistério pascal de Jesus Cristo.18 O quarto elemento a ser destacado é que a Eucaristia era celebrada no “primeiro dia da semana”: o Dia do Senhor (Domingo), por ser o dia memorial da Ressurreição (cf. 1 Cor 16,2; At 20,7; Ap 1,10).19 Justino, leigo e filósofo, lá pelo ano 150, escreve uma Apologia em favor dos cristãos, onde podemos perceber como se estruturava a Eucaristia em meados do século II. Vejamos: a reunião da assembleia era no “dia do Sol” 20 (domingo), havia a escuta da Palavra, a homilia, a oração dos fiéis, a preparação das oferendas, a oração eucarística, a comunhão e o socorro aos necessitados.21 Percebemos que a Eucaristia nos séculos II-III tem como característica a improvisação e a criatividade, permanecendo sempre fiel aos princípios da tradição, isto é, ao mistério pascal de Cristo.22 A Eucaristia nesse início não é discutida, mas é um mistério vivido e celebrado, tanto que nesse período não temos tratados eucarísticos, mas sim “sermões” e catequeses mistagógicas.23 Ela é de fato uma experiência vivida em comunidade, em ligação direta com a vida. Como quinto elemento percebemos que a Eucaristia é uma celebração eclesial-comunitária. A comunidade era considerada comunidade eucarística, enquanto pessoas que viviam na sua vida aquilo que celebravam. O ator principal da celebração era a comunidade presidida por seus pastores. O sujeito da celebração era o povo reunido, povo sacerdotal e todos participavam ativamente. Eles tinham acesso à Palavra de Deus, e, quando era proclamada, se sentia que Deus mesmo estava falando. Assim como na passagem dos discípulos de Emaús: “Não nos ardia o coração quando pelo caminho nos falava e explicava as Escrituras?” 138 17 Cf. MARTIMORT, Aimé Georges. A Igreja em Oração. Introdução à Liturgia. Eucaristia. Petrópolis: Vozes, 1989. Vol. 2. p. 43. 18 Cf. SILVA, José Ariovaldo. O Mistério Celebrado no Primeiro Milênio da Era Cristã. p. 29. 19 Cf. idem. p. 29. 20 Dia dedicado ao deus Sol na tradição religiosa romana. 21 Para ler o texto na íntegra Cf. JUSTINO de Roma. Apologia I. São Paulo: Paulus, 1995. n. 67. p. 83. 22 Cf. AUGÉ, Matias. Liturgia: História, Celebração, Teologia, Espiritualidade. São Paulo: Ave-Maria, 1996. p. 31. 23 Cf. ALDAZÁBAL, José. A Eucaristia. p. 167-168. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Cleiton José Senem (Lc 24,22). A Palavra de Deus era sentida como momento privilegiado de diálogo de Deus com o povo. O sexto elemento a ser destacado era que a presença de Jesus Cristo era vivenciada e sentida em toda a celebração eucarística. Isto é: na presidência, na escuta da Palavra, na assembleia que era entendida como “corpo de Cristo” e nas espécies de pão e de vinho. A Eucaristia era o centro da espiritualidade, e tinha-se uma preocupação quanto à qualidade das celebrações, fazendo com que a assembleia de fato conseguisse celebrar o mistério pascal. Como sétimo elemento, a Eucaristia era uma celebração inculturada. Embora sempre fiel à tradição cristã e apostólica, ela se adaptou aos diferentes povos com sua cultura, tanto no Ocidente quanto no Oriente, com sua língua e costumes próprios, conseguindo fazer com que cada povo vivenciasse o centro da espiritualidade cristã a partir da sua situação concreta.24 O oitavo elemento mostra que durante o primeiro milênio a Eucaristia impulsionava as pessoas a viverem aquilo que celebravam na sua vida, especialmente no compromisso com a justiça, com os mais pobres e necessitados. Vejamos alguns textos que nos mostram isso. Em At 2,42-47 vemos que a primeira comunidade era assídua na doutrina dos apóstolos, eles se reuniam nas casas e partilhavam o pão. Vendiam os seus bens e dividiam com todos segundo suas necessidades. Nota-se que o culto da comunidade parece ter quatro partes: a instrução dos fiéis, a oração em comum, a ceia eucarística e a coleta para os pobres.25 O texto da Didaqué (13,1-7) fala das primícias que é preciso oferecer aos profetas, “e se não houver profetas entre vós, oferecei-as aos pobres”. Justino apresenta-nos um testemunho muito interessante sobre a oferta dos fiéis, não só um testemunho particular, mas uma práxis da comunidade cristã em Roma no século II. A Eucaristia é para ele uma experiência comunitária26 à qual não apenas todos os membros da comunidade assistem, mas todos participam. Nela se exigia, como condição para participar, uma vida “conforme aquilo que Cristo nos ensinou”.27 Isto é: o amor aos pobres e necessitados. 24 Cf. SILVA, José Ariovaldo. O Mistério Celebrado no Primeiro Milênio da Era Cristã. p. 43. 25 Cf. Bíblia Sagrada. Nota sobre At 2, 42. p. 1304. 26 Cf. JUSTINO de Roma. Apologia I. n. 67,3 p. 83. 27 Cf. idem. n. 66,1 p. 82. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 139 Celebração e Vida: dois momentos inseparáveis da Celebração Eucarística A oferta dos fiéis, conforme o testemunho de Justino, era parte integrante da celebração eucarística, uma celebração que se transforma em ação, em prol dos necessitados. No Diálogo com Trifão, ele diz que “as orações e ações de graças feitas pelos homens dignos são os únicos sacrifícios perfeitos e agradáveis a Deus”.28 Para Justino, a Eucaristia está ligada intimamente com a vida e uma vida que se coloca em prol dos fracos e necessitados. Tertuliano, no século III, falava da Eucaristia sempre ligada à práxis das obras de caridade que a comunidade cristã praticava, especialmente com relação aos fracos e perseguidos.29 No Apologeticum cap. 39, Tertuliano descreve a ceia de caridade (ágape) que os cristãos celebravam.30 Nessa ceia “sagrada”, os cristãos colocavam tudo em comum, de tal forma que cada um dava livremente o que podia para alimentar os pobres, os anciãos, os que estavam no cárcere e em trabalhos forçados.31 Para Cipriano, a Eucaristia é a collecta fraternitatis e o convenire cum fratribus,32 isto é, a coleta da fraternidade e a convivência com os irmãos. A Eucaristia representa a comunidade reunida, tendo como essencial a união e a concórdia entre os seres humanos. Este elemento de compromisso com a vida é percebido no tempo de Cipriano, quando o papa Cornélio informa que estavam aos cuidados da Igreja de Roma mil e quinhentas pessoas33. São João Crisóstomo tinha sob sua proteção, em Antioquia, três mil viúvas, virgens e enfermos.34 Percebemos durante todo esse tempo que a caridade e o amor aos pobres e fracos estava normalmente ligada à Eucaristia, mistério de comunhão e de partilha entre todos. Não se admitiam as esmolas daqueles que praticavam a injustiça. Essa ideia está na Didaskalia, onde se diz que “o altar de Deus são as 140 28 Cf. JUSTINO de Roma. Diálogo com Trifão. São Paulo: Paulus, 1995. n. 117,2 p. 288. 29 Cf. Segundo TERTULIANO. Ad Uxorem II, 4 citado por CASTILLO, J. M. Onde não há Justiça não há Eucaristia. p. 131. 30 Alguns pensam que essa ceia não era eucarística. Mas nela se orava, se cantava ao Senhor e se liam as Sagradas Escrituras, o que não é normal numa ceia comum. (cf. Apol. 39,17-18). 31 Cf. TERTULIANO, Apologia Contra Los Gentiles. Argentina: Espasa, 1947. nº 39 p. 100-104. 32 Cf. Segundo CIPRIANO, De Ecclesiae Unitate. Nº 13. Citado por CASTILLO, J. M. Onde não há Justiça não há Eucaristia. p. 132. 33 Cf. Segundo EUSÉBIO de Cesareia, História Eclesiástica. VI, 11. Citado por CASTILLO, J. M. Onde não há Justiça não há Eucaristia. p. 133. 34 Cf. CASTILLO, J. M. Onde não há Justiça não há Eucaristia. p. 133 Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Cleiton José Senem viúvas e os órfãos”.35 Certa vez, Santo Ambrósio, ao saber que o imperador Teodósio cometera um massacre em Tessalônica, escreveu-lhe uma carta, comunicando que ele não celebraria o sacrifício diante dele. A Eucaristia não podia ser conivente com os ditadores e os tiranos.36 Não é possível dissociar vida e celebração. A celebração está relacionada diretamente com a vida, isto é: com a prática da justiça e o amor aos necessitados. Não é possível celebrar uma coisa e viver outra totalmente contraditória. Por isso, normalmente falava-se muito das práticas que impediam a participação na Eucaristia, dos pecadores públicos que não podiam participar, pois prejudicavam o próximo através da suas injustiças e não colocavam os bens a serviço da comunidade para ajudar os que precisavam.37 No século IV, quando o Imperador Constantino decretou liberdade para a Igreja, a liturgia procurou espaços mais amplos para ser celebrada e recebeu influências da cultura romana.38 O que é característico da liturgia romana clássica é a amplidão dos espaços basilicais e a adoção de solenidades provindas dos usos imperiais. Não existiam momentos de adoração ao Santíssimo durante a celebração, as próprias palavras usadas não falavam de corpo e sangue mas de alimento, bebida, sacramento, mistério sagrado. A linguagem era simples, sóbria, sucinta, não loquaz e pouco sentimental; a sua disposição é clara e lúcida, espiritual e de notável valor literário. A oração é dirigida ao Pai, por Cristo, no Espírito Santo.39 Na liturgia romana, a Eucaristia nos é dada por Deus acima de tudo para ser comida e bebida, e não para ser adorada. A participação do povo, via de regra, era espontânea e viva, com equilíbrio entre o pessoal e o comunitário.40 Resumidamente: no primeiro milênio, via de regra, se procurava garantir o essencial, isto é: a Eucaristia como mistério pascal de Cristo. O povo tinha contato direto com a Palavra de Deus, e sua participação era ativa, consciente e plena. O jeito de celebrar era adaptado aos diferentes povos com sua cultura. A relação vida e celebração era muito concreta, sendo visivel35 Segundo Didaskalia II, 26,3 citado por CASTILLO, J. M. Onde não há Justiça não há Eucaristia. p. 134. 36 Cf. CASTILLO, J. M. Onde não há Justiça não há Eucaristia. p. 125-126. 37 Cf. idem. p. 136-137. 38 Cf. SILVA, José Ariovaldo. O Mistério Celebrado no Primeiro Milênio da Era Cristã. p. 34-35. 39 Cf. AUGÉ, Matias. Liturgia: História, Celebração, Teologia, Espiritualidade. p. 37. 40 Cf. SILVA, José Ariovaldo. O Mistério Celebrado no Primeiro Milênio da Era Cristã. p. 39-40. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 141 Celebração e Vida: dois momentos inseparáveis da Celebração Eucarística mente perceptível na ajuda aos mais pobres e necessitados. A metodologia usada para se falar sobre a Eucaristia era a dos Santos Pais. Para os teólogos desse tempo, o lugar privilegiado para estudar a Eucaristia é a Igreja.41 3 A Eucaristia no segundo milênio No século IX a liturgia romana migrou para as terras francogermânicas, onde foi adaptada à liturgia galicana, para depois voltar a Roma como fundamento da liturgia romana da Idade Média. Durante esse tempo, a Eucaristia sofreu um grande deslocamento de eixo. No primeiro milênio, a Eucaristia tinha seu centro na celebração do memorial do mistério pascal de Cristo, mas a partir de agora o Santíssimo Sacramento passou a ser o centro da celebração. O altar é substituído pelo sacrário. A festa mais importante não é a Páscoa, mas Corpus Christi e a festa do padroeiro. A Devoção ao Santíssimo e aos santos tornou-se a fonte da espiritualidade. Perdeu-se a centralidade da Palavra de Deus que cedeu lugar às lendas sobre o Santíssimo Sacramento e à leitura da vida dos santos. A Palavra nem é mais proclamada, mas é lida somente pelo padre em voz baixa. A presença de Cristo, que era sentida em toda a celebração, agora se restringe ao pão e o vinho, corpo e sangue de Cristo. Essa compreensão ocupou os teólogos não menos que sete séculos e foi iniciada por um trio muito famoso: Pascásio Radberto, Ratramno e Berengário.42 A Igreja não é mais o lugar da experiência comunitária do mistério pascal, mas é vista como um grande “supermercado religioso”, uma “farmácia espiritual”, aonde o povo acorre para curar seus males, com seus “agentes de saúde” credenciados na qualidade de ministros ordenados.43 A Eucaristia era vista como remédio para “curar males” ou preveni-los e para manter a amizade com Deus: “para escapar do perigo do inferno”. Nesse tempo se intensifica a ideia dos “frutos da missa”, 142 41 Cf. GIRAUDO, Cesare. Num só Corpo: Tratado Mistagógico sobre a Eucaristia. São Paulo: Loyola, 2003. p. 8. 42 Cf. idem. p. 416. 43 Cf. SILVA, José Ariovaldo. O Mistério Celebrado no Segundo Milênio da Era Cristã. In: O Mistério Celebrado: Memória e Compromisso I. São Paulo: Paulinas; Valência: Espanha, Siquem, 2003.p. 54-55. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Cleiton José Senem a comunhão começa a ser “oferecida por”, considerando-a como meio para conseguir favores.44 Consequentemente, a Eucaristia torna-se um ritual meio mágico, feito pelo padre, desencarnado da vida e da história humana. Acentua-se a separação entre clero e fiéis. A oração eucarística é rezada em voz baixa, o sacerdote celebra de costas para o público, as pessoas já não entendem o latim da liturgia, os fiéis já não levam mais as oferendas ao altar, a missa tornou-se uma coisa santa passivamente assistida pelas pessoas. O pão comum foi substituído pelo pão ázimo. Extinguiu-se a comunhão com o cálice e o pão começou a ser recebido na boca, isto, quando se comungava.45 Aos poucos, a comunhão foi sendo substituída pela adoração da hóstia: adorar tornou-se uma forma de comungar. Por isso, os padres levantavam bem alto a hóstia e o cálice para o povo ver e prestar adoração ao Senhor terrível que “descera sobre o altar”. Tocam-se campanhias para chamar a atenção para o momento. Bastava ver a hóstia, e todos já estavam satisfeitos.46 O Missal de Pio V (1570), elaborado depois do Concílio de Trento, fala somente sobre rubricas que o sacerdote devia observar. O povo nem sequer é mencionado, e cada vez mais a celebração vai se distanciando da vida das pessoas. A centralidade romana faz com que todos sigam de forma unificada o ritual romano que é levado ao seu expoente pela liturgia barroca, extremamente ritualista, e desconsiderando a cultura e o jeito de cada cultura celebrar.47 Sintetizando: temos nesse tempo, via de regra, uma liturgia híbrida, monolítica, ritualista, distante do povo, clerical, mágica, devocional, “farmacêutica”; pouco mistérica e eclesial, muito utilitarista e individualista. Poderíamos dizer que, no aspecto devocional e individualista, existia uma relação vida-celebração. Entretanto, a celebração eucarística é uma celebração comunitária por excelência, e não é uma devoção. Nós na América Latina fomos evangelizados nessa liturgia, nos moldes pós-tridentinos, 44 Cf. ADALZÁBAL, José. A Eucaristia. p. 179-182. 45 46 Cf. MARTIMORT, Aimé Georges. A Igreja em Oração: Introdução à Liturgia. Eucaristia. p. 131. 47 Cf. SILVA, José Ariovaldo. O Mistério Celebrado no Segundo Milênio da Era Cristã. p. 50. O concílio de Latrão, do século XIII, ordenou que se comungasse pelo menos uma vez ao ano, pela Páscoa, devido ao fato de as pessoas comungarem raramente. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 143 Celebração e Vida: dois momentos inseparáveis da Celebração Eucarística de índole romano-franco-germânica, de língua latina obrigatória para todos, sem se levar em consideração as culturas locais.48 4 O resgate do sentido da Eucaristia no Concílio Vaticano II O movimento litúrgico, dos inícios do séc. XX, teve o intuito de renovar a liturgia na Igreja do Ocidente. Sua importância foi a de ter preparado a grande reforma litúrgica do Vaticano II com um amplo e fundado instrumental: histórico, teológico, pastoral e pessoal.49 O Concílio Vaticano II colocou a liturgia numa perspectiva pastoral e teológica, superando a visão meramente estética e ritualista, promovendo uma redescoberta do essencial, que é o mistério de Cristo, e tirando a “poeira” medieval e pós-tridentina que permanecia sobre a liturgia. A Constituição sobre a Sagrada Liturgia, Sacrossanctum Concilium (SC) , diz, referindo-se à Eucaristia, que nela principalmente se exerce a obra de nossa Redenção, e ela contribui de modo mais excelente para que os fiéis exprimam em suas vidas e aos outros manifestem o mistério de Cristo e a genuína natureza da verdadeira Igreja (SC 2). 50 Nota-se que o título do capítulo que trata da Eucaristia é: “O Sacrossanto Mistério da Eucaristia”. Recupera-se o sentido do Mistério. A Eucaristia é o mistério pascal de Jesus Cristo.51 Cristo está presente no sacrifício eucarístico, mas não de forma estática como costumeiramente entendemos, somente no pão e vinho eucaristizados. Ele está presente tanto na pessoa do ministro, “pois aquele que agora oferece pelo ministério dos sacerdotes é o mesmo que outrora se ofereceu na cruz”, quanto sob as espécies eucarísticas. [...] Presente está pela sua Palavra, pois é ele mesmo que fala quando se leem as Sagradas Escrituras na Igreja” (SC 7). Além disso, Jesus está presente quando a Igreja ora e salmodia, 144 48 Cf. SILVA, José Ariovaldo. A evangelização que nossos índios e negros tiveram de “engolir”. In: Revista de Liturgia. São Paulo, n.159, 2000. p.4-6. 49 Cf. SILVA, José Ariovaldo. O Mistério Celebrado no Segundo Milênio da Era Cristã. p. 59-60. 50 VATICANO II. Constituição “Sacrosanctum Concilium” sobre a Sagrada Liturgia. In: Compêncio do Vaticano II: Constituições, decretos, declarações. 29a ed. Petrópolis, Vozes, 2000. 51 Cf. SILVA, José Ariovaldo. A Reforma Litúrgica do Concilio Vaticano II. In: O Mistério Celebrado: Memória e Compromisso I. São Paulo: Paulinas; Valência: Espanha, Siquem, 2003. p. 64. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Cleiton José Senem Ele que prometeu: “onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estarei no meio deles”. (Mt 18,20) (SC 7). Percebemos, portanto, que a presença do Senhor não se dá de forma estática e única nas espécies eucarísticas, mas ela é dinâmica e se dá na globalidade da celebração, na pessoa que preside, na Palavra de Deus, na assembleia reunida e, especialmente, no pão e no vinho. O documento diz-nos que os sacramentos devem ensinar a observar tudo o que Cristo mandou (Mt 28, 20) e estimular todas as obras de caridade, piedade e apostolado (SC 9). Nesse sentido, a liturgia é cume para o qual tende toda a ação da Igreja e, ao mesmo tempo, é a fonte donde emana toda a sua força. [...] “A própria liturgia, por seu turno, impele os fiéis a que, saciados dos sacramentos pascais, sejam concordes na piedade, e reza para que conservem em suas vidas o que receberam pela fé; a renovação da aliança do Senhor com os homens na Eucaristia solicita e estimula os cristãos para a caridade imperiosa de Cristo” (SC 10). Percebemos nesses textos, acima citados, uma co-relação entre vida e celebração. A Eucaristia é ponto de chegada e ponto de partida da vida do cristão. É ponto de chegada, pois a celebramos em nossa vida, no que fazemos, temos e somos. É ponto de partida, porque somos chamados a viver a nossa vida em Cristo a partir do mistério que celebramos, principalmente, vivendo os ensinamentos de Cristo, a caridade e o amor fraterno. A celebração Eucarística impulsiona-nos a viver na vida o mistério pascal de Cristo, a ação de graças, a partilha do pão e o amor aos irmãos. No tocante ao Mistério, o documento ainda diz: “Na última ceia, na noite em que ia ser entregue, nosso Salvador instituiu o Sacrifício Eucarístico de seu Corpo e Sangue. Por ele, perpetua pelos séculos, até que volte, o Sacrifício da Cruz, confiando dessarte à Igreja, Sua dileta Esposa, o memorial de Sua Morte e Ressurreição: sacramento de piedade, sinal de união, vínculo de caridade, banquete pascal, em que Cristo nos é dado em alimento, o espírito é repleto de graça e nos é dado o penhor da futura glória” (SC 47). “E aprendam a oferecer-se a si próprios oferecendo a hóstia imaculada, não só pelas mãos do sacerdote, mas também, juntamente com ele. E assim, tendo a Cristo como Mediador, dia a dia se aperfeiçoem na união com Deus e entre si, para que, finalmente, Deus seja tudo em todos” (SC 48). Portanto, podemos dizer que a Sacrosanctum Concilium recuperou os elementos fundamentais que caracterizavam a Eucaristia no primeiro Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 145 Celebração e Vida: dois momentos inseparáveis da Celebração Eucarística milênio cristão e que se tinham diluído por mais de dez séculos. A saber: a celebração do mistério pascal de Cristo, e o contato abundante com a Palavra proclamada.52 O resgate da dimensão comunitária da Eucaristia (SC 27), recuperando os diferentes ministérios nas ações litúrgicas. A adaptação às diversas culturas (SC 37-40). Outra preocupação da SC foi quanto à qualidade das celebrações e a necessidade de se promover a educação litúrgica e a ativa participação de todos (SC 14-20). Em tudo isso, percebemos que a SC ajudou a recuperar a relação “vida e celebração” que se havia perdido, especialmente no segundo milênio. Conclusão Após termos realizado essa breve contextualização histórica sobre a relação vida e celebração no mistério da Eucaristia, percebemos que houve um grande deslocamento de eixo do primeiro para o segundo milênio cristão, no tocante à compreensão do Mistério. No primeiro milênio, a relação vida e celebração era muito presente no dia-a-dia de cada cristão. Ambas eram vivenciadas como duas faces de uma mesma moeda, não podendo se separar uma da outra. Já no segundo milênio, houve uma ruptura, deixando suas marcas até hoje. Como pudemos perceber, grande parte do povo, dos próprios ministros ordenados e da mídia, têm uma compreensão reduzida do mistério eucarístico. Com o Vaticano II, a Igreja voltou às suas origens e resgatou a sua experiência eucarística mais genuína. Apesar de se terem passado quase cinquenta anos desde a promulgação da SC, ainda hoje, não conseguimos colocá-la totalmente em prática. Portanto, percebemos a necessidade de aprofundar a nossa compreensão de Eucaristia como memorial do mistério pascal de Jesus Cristo, para que possamos celebrar e viver mais perfeitamente o mistério eucarístico. Endereço do autor: Rua Capitão Alcides, 6-45 CEP 17013-710 Bauru, SP E-mail: [email protected] 52 146 Cf. idem. p. 65-66. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Cleiton José Senem Bibliografia ALDAZÁBAL, José. A Eucaristia. Petrópolis: Vozes, 2002. AUGÉ, Matias. Liturgia: História, Celebração, Teologia, Espiritualidade. São Paulo: Ave-Maria, 1996. BECKHÄUSER, Alberto. Os Sacramentos na Vida Diária. Petrópolis: Vozes, 1998. Bíblia Sagrada. GARMUS, Ludovico (trad.) et alii. 45. ed. Petrópolis: Vozes. 1982. BUYST, Ione e SILVA, José Ariovaldo. O mistério celebrado: memória e compromisso I. São Paulo: Paulinas; Valência: Espanha, Siquem, 2003. CASTILLO, José Maria. Eucaristia, Y Vida, Hoy. Madrid: Fundación Santa María. S.d. CASTILLO, José Maria. Onde não há Justiça não há Eucaristia. In: Fé e Justiça. São Paulo: Loyola, 1990 GIRAUDO, Cesare. Num só Corpo: Tratado Mistagógico sobre a Eucaristia. São Paulo: Loyola, 2003. JUSTINO de Roma. Apologia I. São Paulo: Paulus, 1995. JUSTINO de Roma. Diálogo com Trifão. São Paulo: Paulus, 1995. MARTIMORT, Aimé Georges. A Igreja em Oração. Introdução à Liturgia. Eucaristia. Petrópolis: Vozes, 1989. Vol. 2. TERTULIANO, Apologia Contra Los Gentiles. Argentina: Espasa, 1947. Ritual de Ordenação de Bispos, Presbíteros e Diáconos. São Paulo: Paulus, 1994. SILVA, José Ariovaldo da. “Eu te Adoro, hóstia divina”. In: Revista de Liturgia. São Paulo, n.166, 2001. SILVA, José Ariovaldo da. Missa-memória, Missa-homenagem. In: Mundo e Missão. São Paulo, n. 77, 2003. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 147 Celebração e Vida: dois momentos inseparáveis da Celebração Eucarística SILVA, José Ariovaldo. A evangelização que nossos índios e negros tiveram de “engolir”. In: Revista de Liturgia. São Paulo, n.159, 2000. VATICANO II. Constituição “Sacrosanctum Concilium” sobre a Sagrada Liturgia. In: Compêndio do Vaticano II: Constituições, decretos, declarações. 29. ed. Petrópolis, Vozes, 2000. 148 Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Homilia gratulatória* Jubileu de Ouro presbiteral do Pe. Paulo De Coppi, PIME Agostinho Staehelin** Prezado Pe. Paulo Quem me dera a possibilidade e a capacidade, e o senhor o merece, de biografar 50 anos de sacerdócio dados à Igreja, longe dos seus, de sua Pátria, e 76 anos vividos para Deus. Receio não saber fazê-lo. Mas tenho a alegria de falar deste seu ideal. Quando se abraça uma causa, e ela é amada e vivida, a gente gosta de falar dela. Quem não proclama as belezas de seu amor? Somos homens, mas portadores de Deus. Somos racionais, mas anunciadores do que está acima da razão. Somos profetas do tempo, mas testemunhamos o eterno. Somos de Deus, mas tirados do meio do povo. Para os sem fé, somos alienados. Para os crentes, somos os donos da verdade. * Homilia na Missa Jubilar do Pe. Paulo de Coppi, na Matriz de N.Sra. da Boa Viagem, Saco dos Limões, Florianópolis, em 20-03-2011. ** Monsenhor, do presbitério da arquidiocese de Florianópolis, SC, Vigário Paroquial de Santa Cruz, Barreiros, São José, e coordenador da AME. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011, p. 149-152. Homilia gratulatória: Jubileu de Ouro presbiteral do Pe. Paulo De Coppi, PIME Se evangelizamos, somos da esquerda, revolucionários, perturbadores da ordem. Se sacramentalizamos a pastoral, somos conservadores, retrógrados. A questão é ser padre, dentro deste contexto do mundo de hoje, e em todos os tempos da Igreja. Igreja que é Povo de Deus em marcha, que caminha, que muda na maneira de ser no tempo, porque é dinâmica, é Reino que se constrói. Ser Padre de um Povo Sacerdotal. Isto implica conhecimentos claros sobre o sacerdócio, e vivência profunda da doutrina de São Pedro: “Raça eleita, sacerdócio real, Nação Santa” (1Pd 2,9). Antes de Padre, eu sou cristão. Pelo Batismo entrei para a Raça Eleita, para a Nação Santa, e comecei a participar do Sacerdócio Real de Cristo. Quando me escolheram e fizeram ministro, foi para tornar esta Nação Santa, cada vez mais Santa. Nisto se fundamenta a identidade do Presbítero. Sua vida intimamente ligada a seu ministério. Não somos e não exercemos o nosso sacerdócio, só porque somos ordenados, só porque um sacramento nos conferiu poderes, mas porque nos chamaram a exercer este ministério dentro de uma Igreja Sacerdotal. Quanto mais eu viver o meu ministério (PO 14)... Quanto mais me abrasar de caridade pastoral... Quanto mais incansavelmente exercer as funções de presbítero (PO 13)... Quanto mais dinâmica e missionária for minha evangelização, abrindo horizontes e não me fechando dentro de um pequeno círculo... Quanto mais convencido eu estiver de ser feliz por ser ministro do Evangelho (Puebla 383)... Mais Padre eu sou... Mais minha vida estará marcada pelo Evangelho. As opções desta Igreja influirão em minha vida e o amor às causas que Ela assumiu, serão meus ideais. E as virtudes exigidas hoje do sacerdote serão minhas marcas, e serei testemunho contra a injustiça, o desamor, a riqueza espoliada, a idolatria do dinheiro, dos bens, do poder e do materialismo consumista. 150 Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Agostinho Staehelin A vida do sacerdote estará enquadrada no modelo: Cristo, que veio para servir (Mc 10,45), para que tenham vida (Jo 10,10), para evangelizar os pobres... proclamar a remissão dos oprimidos..., restituir a liberdade aos presos... (Lc 4,1), missão toda imbuída do espírito da Igreja, que é “toda Ministerial”. Sacerdote é o que perdoa, consagra, oferece. Padre é o que dá a vida, alimenta, orienta, ajuda, aconselha, libera, é Pai. Como sacerdotes santificamos o Povo de Deus pelo perdão, e a oblação do próprio Senhor, para que esse Povo se torne digno da participação no Mistério/Ministério da Redenção. Como Padres, somos animadores da Pastoral. Nesses dois conceitos, vividos intensamente, o Presbítero se completa. O documento Presbyterorum Ordinis apresenta o Presbítero a partir daquilo que deve constituir sua própria natureza: Evangelizar. Traça as grandes linhas para o Padre, que deve ser Pastor do Povo de Deus, formar um corpo com o Bispo e o Povo no presbitério, apresenta a doutrina da universalidade do sacerdócio, e apresenta o próprio ministério como meio para a santidade presbiteral. Os nossos planos, as nossas mentes estão saturados de pastorais. Vivemos preocupados com ministérios... E a pastoral do Padre? E o ministério dos Presbíteros? Os carismas de cada um? Tocamos todos os instrumentos da orquestra, e não aprendemos a valorizar a batuta do regente, que coordena os movimentos para a grande sinfonia. O reino de Deus se constrói a partir de um desprendimento de si mesmo. É estar acima de problemas e exigências pessoais. O problema não é o Evangelho, não é a messe que é grande, não é a seara que não é boa, não é a escassez do clero, mas, o tipo de Padre. O Padre mais humano e mais divino. O Padre que traz as marcas de Cristo, para uma messe madura. Cristo escolheu apenas um pequeno grupo, e a maior preocupação de Cristo foi com a pastoral desse grupo. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 151 Homilia gratulatória: Jubileu de Ouro presbiteral do Pe. Paulo De Coppi, PIME “Vem e segue-me”... Chamado individual. “Vinde e vede”... Conhecimento íntimo. Com eles rezava. Com eles ceava. Na barca deles atravessava o mar. Era a eles que explicava as parábolas. A eles eram revelados os segredos do Pai, os mistérios de Deus. Os grandes dogmas eram ensinados ao pequeno grupo dos discípulos. Eles foram as testemunhas da Ressurreição. A Eles, reunidos, Cristo aparece diversas vezes, para confirmá-los. Quando a sós, Jesus os incumbia das grandes missões da sua Igreja. A grande preocupação de Cristo era a “pastoral dos presbíteros”, os seus apóstolos. Cristo marcou aqueles homens rudes com sua presença, sua vida, sua doutrina, sua santidade. Prezado Padre Paulo, não tenho dúvidas em afirmar que foi assim que sempre esteve marcado seu sacerdócio. O “Ide e ensinai”... “Ide e Batizai”... “Fazei isto em minha memória”... “Aqueles aos quais perdoardes”... estiveram sempre presentes em sua mente. “Daí-lhes vós mesmos de comer”... “Tenho pena deste povo”... “Sereis minhas testemunhas”... “Eu vos enviei a ceifar”... “Eu vos escolhi”... angustiaram seu coração sacerdotal. “Permanecei em mim”... “Vós sois meus amigos”... “Eu vos escolhi e designei”... “Não sois do mundo”... “Amai-vos”... deram coragem em sua caminhada. A lembrança dessas verdades, Padre Paulo, o fez viver o ideal do sacerdócio; deu sentido à sua vida; o fez feliz e o encorajou, até para assumir os Meios Modernos de Comunicação Social – o Jornal, o “Missão Jovem” e, agora, o “Transparente”. É justamente por isso, Padre Paulo, que os Padres da Arquidiocese o estimam, admiram e veneram. E-mail do autor: [email protected] 152 Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Recensões TABORDA, Francisco: A Igreja e seus ministérios. Uma teologia do ministério ordenado. São Paulo: Paulus, 2011. 21cm x 13,5cm. 327p. ISBN 978-85-349-2605-8 João Batista Libânio SJ* Eis um estudo sério, cuidadoso, que une ampla informação de maneira bem sintética com reflexões de aprofundamento. O livro nasce de longa e madura docência sobre esse tema, de maneira que o leitor adquire, num número razoável de páginas, visão vasta da temática. As notas de roda-pé estão a indicar a riqueza de bibliografia consultada e referida, fundando bem as teses propostas. Na introdução, o A. indica a natureza do livro. Não trata da propalada crise do ministério ordenado, mas pretende compreendê-lo a partir do Evangelho, da tradição e da liturgia da Igreja e contribuir assim para vislumbrar caminhos, sem sucumbir à tentação das receitas. Ademais, estabelece, como ponto de vista central para encarar os ministérios, a prioridade lógica, não cronológica, da Igreja em relação aos ministérios. O ministro existe para a Igreja e em função da Igreja. Por isso, a Igreja vem em primeiro lugar, mesmo que o constituir-se da Igreja resulte da pregação de alguém. Está aí o horizonte em que se move a reflexão do A. Existe certa analogia com outra questão: a prioridade das Igrejas particulares em relação à universal ou vice-versa. A Introdução ainda explicita o termo de sacramento da Ordem, tanto sob o aspecto etimológico, quanto semântico. Tal se faz de maneira detalhada e bem cuidadosa quanto às fontes da reflexão. Termina com rápida menção da metodologia: ao partir da Lex orandi – Lex credendi a fim de purificar tal axioma de poeiras históricas, o A. recorre à fundamentação escriturística, reforçada pelo uso da Igreja – sensus Ecclesiae. Só então se capta o conteúdo da prece da Igreja, das preces litúrgicas, não vistas em si, mas baseadas na Escritura e atestadas pela Tradição universal. * O recensor é presbítero da Companhia de Jesus, doutor em teologia, e professor da Faculdade Jesuita de Filosofia e Teologia – FAJE – Belo Horizonte, MG. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 153 Recensões O livro estrutura-se em três partes e alguns anexos. A primeira volta às raízes da prática ministerial na Igreja, a segunda sistematiza os dados aí colhidos, para na terceira analisar a celebração do sacramento da Ordem, interpretando o que nele se expressa à luz da Escritura e da Tradição. Seguem-se anexos das preces da ordenação episcopal, presbiteral e diaconal. A compreensão da prática ministerial na Igreja se alimenta de três fontes: a atuação de Jesus, os ministérios no Novo Testamento e a evolução histórica na concepção do ministério ordenado. O Novo Testamento apresenta-nos a práxis de Jesus. Ela é e permanece definitivamente como última base crítica para o ministério na Igreja que a persegue desde o início até hoje, ora mais fielmente, ora menos. Nesse capítulo, o A. debate-se com três modelos fundamentais do agir de Jesus: sacerdotal, servo de YHWH e Bom Pastor. O modelo sacerdotal não responde aos escritos do Novo Testamento. Pelo contrário, parecem descartar tal título para mostrar a distância de Jesus em relação ao sacerdote judeu – ele não pertencia ao sacerdócio aarônico nem era da tribo levítica – e ao sacerdote pagão. O A. mostra como esses sacerdócios geriam o espaço e o tempo sagrados em conflito com o profano. Jesus, porém, relativiza tal mundo. Ele provoca a desabsolutização da ordem vigente cósmico-político-religiosa e se constitui fim e realização do sacerdócio, como a Epístola aos Hebreus nos refere. Ela não entende o sacerdócio de Jesus de maneira ritual, mas histórica, vivencial, existencial. O A. apresenta-nos clara e excelente síntese dessa epístola no referente ao significado do sacerdócio de Cristo. O capítulo prossegue a reflexão sobre a práxis de Jesus como Servo de YHWH e sobre o ministério na Igreja segundo esse modelo. Nesse parágrafo, o A., com apoio sobretudo em H. Arendt, trabalha o conceito de poder, tanto na perspectiva antropológica como sociopolítica, que servirá para contrapô-lo à perspectiva do Servo de YHWH. Este vivencia o poder pela fraqueza. E mais adiante, enfoca tal questão respeito ao ministério na Igreja, encarando o poder como serviço. Conclui o capítulo estudando o ministério na Igreja segundo o modelo do Bom Pastor. Imagem altamente bíblica. Por meio da Reforma, ela se tornou comum nas Igrejas evangélicas, ao contrário da categoria de sacerdócio. Embora a imagem tenha certa ambiguidade no sentido de insinuar a dependência das ovelhas, o A. mostra-lhe a outra face, enquanto exprime um pastor que caminha à frente, provê, cuida, faz-se solidário até a entrega da própria vida. Em toda essa reflexão, o A. mostra reserva sobre o conceito de sacerdócio. A designação “sacerdotal” para os ministérios presbiteral e episcopal 154 Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Recensões carrega certa ambigüidade. Nas pegadas de Y. Congar, escreve que o termo “sacerdote”, “que em realidade qualifica todos os cristãos e que, a título autêntico, só qualifica Jesus Cristo, o único sacerdote, não é [um termo] muito bom” para designar o ministro ordenado. O capítulo II estuda os ministérios no Novo Testamento, ao distinguir entre básicos e estruturais das comunidades. Trabalho sério e cuidadoso. Aborda os três ministérios básicos dos apóstolos, profetas e doutores, dando relevo ao dos apóstolos. Depois de caracterizar, em geral, os ministérios estruturais das comunidades, percorre, com rigor e esmero, textos da Carta aos Filipenses, dos Atos dos Apóstolos, das Epístolas Pastorais, das dirigidas às comunidades de Colossos e Éfeso e a outras comunidades espalhadas em diversos escritos (Epístola de Pedro, Epístola aos Hebreus, Epístola de Tiago, Evangelho de João, Segunda Epístola de João e Apocalipse). Aí se encontram esclarecimentos sobre tais ministérios. Destarte, tem-se visão ampla de como eles se foram construindo nas diferentes comunidades no início da Igreja. Taborda chega a conclusão muito interessante: “O ministério não se desenvolveu em torno da eucaristia ou da liturgia, mas em torno da construção da comunidade, pela pregação, exortação, direção e também, sem dúvida, pela eucaristia”. No terceiro capítulo, o A. dirige a atenção à evolução histórica da concepção do ministério ordenado. Ele o faz em três ondas. A primeira trata da concepção pneumatológico-eclesial, correspondente ao primeiro milênio. Nela se salienta o gesto sacramental da imposição das mãos com a prece da ordenação, ordenando o candidato para uma comunidade local concreta, onde desempenhará o ministério. A segunda onda, correspondente ao segundo milênio, desloca o movimento para a dimensão cristológico-individualista. Retira a imposição das mãos do contexto da Igreja local e lhe dá certa autonomia. Quando se respeitam matéria e forma, a ordenação é válida, independente da vinculação com a comunidade. O decisivo é o cumprimento do ritual, mesmo que se continue mencionando o “título de ordenação”. Vários fatores contribuíram para a privatização do ministério ordenado. O A. estuda a evolução medieval na qual o ministério se entende como potestas (poder), mostrando que, sendo rejeitado nos inícios, tal conceito obteve na Idade Média foro de cidadania na teologia e no direito canônico. Isso não acontece sem a influência do renascimento do direito romano no final do séc. XI para o começo do séc. XII e de outros fatores políticos. Com ele se processou a progressiva clericalização. Em conexão, deu-se também a privatização Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 155 Recensões da missa. Mudou-se o sentido na relação Cristo-Igreja, eucaristia-Igreja. Na Patrística, a Igreja era o corpus verum de Cristo e a eucaristia o corpus mysticum. No começo da Idade Média se inverte por causa da disputa sobre a presença real na eucaristia com repercussão no ministério ordenado. O presbiterado começou a ser compreendido como estado de vida com valorização do celibato, distinguindo-o e separando-o dos não presbíteros. Acentuam-se o caráter sacramental e sua ação in persona Christi. Corre-se o risco de serem esquecidas a relação com a comunidade e a própria eclesialidade do ministério. O Concílio de Trento, que poderia ter sido um momento de equilíbrio, perdeu tal chance por causa das opções metodológicas de tratar os temas postos pelos Reformadores e de não querer dirimir controvérsias existentes entre as escolas teológicas católicas. Ele esposou, pelo menos, duas teologias do ministério ordenado, observa Taborda: uma, baseada no conceito de sacerdócio; outra, em torno da hierarquia, tendo o bispo no vértice. Não conseguiu, porém, formular uma teologia adequada do episcopado e por isso não integrou a teologia do sacramento da Ordem numa eclesiologia. Reafirma, perpetua e reforça a posição medieval do sacerdócio como “poder de consagrar”. O Concílio Vaticano II, mesmo que não tenha conseguido uma síntese das teologias dos dois milênios, apontou-lhe o rumo. Ele supera a dicotomia entre potestas ordinis e potestas jurisdictionis, integrando-as num único conceito de sacra potestas que ele interpreta a partir do tríplice múnus de ensinar, reger e santificar. Por fim, considera o ministério a partir do episcopado, sacramento da “plenitude do sacerdócio”. Terminada essa parte sobre as raízes do ministério ordenado na Igreja, o livro dedica um capítulo sobre a sua eclesialidade. Começa, então, pela caracterização da Igreja particular a partir de seus elementos constitutivos. Ela é congregada no Espírito Santo por meio do Evangelho e dos sacramentos, em comunhão com seu pastor. A eucaristia ocupa entre os sacramentos papel primordial. Ela faz a Igreja. Vê-a em tensão com a Igreja universal. Reflexão eclesiológica fundamental para evitar os dois extremos do galicanismo da Igreja particular e uma hipostasiação da Igreja universal. E pior ainda, quando esta se identifica na prática com a Igreja de Roma. As reflexões sobre a eclesiologia da Igreja particular vêm muito a propósito no momento atual em que o clima criado no Concílio Vaticano II, valorizando-a, arrefece. Salienta-lhe a dimensão de comunhão de pessoas. E a Igreja no todo se entende una e única como comunhão de comunhões. Considera secundária a distinção entre ministros e não-ministros em comparação com o que lhes é comum. 156 Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Recensões Acentua a Igreja local como comunidade diversificada pelos carismas e assentada sobre a igualdade fundamental. Não há oposição entre ministérios e carismas, já que o próprio ministério é carisma. Prossegue a reflexão, caracterizando o ministério ordenado, primeiro, de um modo geral. Considera-o na vida da Igreja, na comunidade e diante dela. Julgo essas páginas iluminadoras sobretudo para aqueles que se preparam para o ministério ou já o exercem. Texto cuidadoso e crítico, ao identificar tradições diferentes, mostrando-lhes a maior ou menor pertinência com uma concepção do ministério ordenado na Igreja. Essa tese central do livro atravessa os capítulos: a precedência da Igreja sobre os ministérios em que pese certa tendência oposta. Merece destaque o parágrafo dedicado à sucessão apostólica. Ilumina e corrige equívocos sobre a materialidade de tal transmissão e permite abertura ecumênica, de um lado, e evita aventureirismo, de outro. Num segundo momento, Taborda detém-se em cada um dos três ministérios ordenados. Texto esclarecedor. Tanto mais importante quanto muitas igrejas particulares se consideram nelas mesmas sem comunhão com as outras e em mera dependência subordinada de Roma. Assim a colegialidade eclesial se esvai e o ministério presbiteral, também ele, perde a dimensão colegial, ao permanecer funcionalmente na dependência unilateral dos bispos. Em algumas igrejas, multiplicam-se os diáconos, sem muita clareza sobre tal ministério. Taborda delineia muito bem a distinção e articulação entre esses ministérios. Realmente vale a pena conferir. Situa bem a posição do ministério episcopal, sua colegialidade e também o presbiteral na sua função de coletivo em torno do bispo. Além disso, ilustra o ofício diaconal a partir da tradição da Igreja, oferecendo luzes para as Igrejas que estão reimplantando o diaconato permanente. Elucida esse ministério a partir sobretudo do serviço aos pobres, prolongando a presença dos bispos nesse mundo. Pareceu-me muito pertinente e lúcida a abordagem da problemática vocacional. Apresenta as duas correntes principais e oferece elementos teológicos para juízo crítico sobre elas. Uma atribui relevância à dimensão subjetiva do candidato e a outra ao chamado que a Igreja faz para alguém, julgado apto por ela, assumir o ministério ordenado, mesmo contra sentimentos interiores. Os promotores de vocação têm muito que aprender dessa explanação. Estuda em dois parágrafos conclusivos do capítulo a situação anômala do presbítero religioso que não se entende a partir do presbitério em torno do bispo e o fato dos bispos titulares que não presidem a uma Igreja particular. Por essa ocasião, Taborda recorre à Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 157 Recensões tradição oriental e oferece-nos iluminadora explanação sobre o “princípio da economia” que corrige a tendência legalista ocidental. E o livro constroi uma terceira parte que estuda o ministério uno da Igreja, sacramentalmente instituído num processo em que a ação divina se expressa na ação humana. Dedica-se a enuclear a estrutura e os elementos essenciais de uma ordenação. E para tanto, explicita a expressão significativa do sacramento da Ordem e debruça-se sobre as preces da ordenação. A instituição de ministros da e na Igreja se realiza por meio do sacramento da Ordem que lhes confere a graça da função a que são destinados e a força do Espírito Santo para viver dignamente tal sacramento. Como todo sacramento, este tem um núcleo central em que se unem palavra e gesto simbólico para expressar aquilo que a Igreja suplica a Deus, acreditando na promessa infalível de sua Palavra. O ato fundamental da vida da Igreja, a saber, a instituição de ministros nas ordens do episcopado, presbiterado e diaconado se situa num movimento em três momentos: a escolha, a designação e a acolhida dos novos ministros em cada um dos graus. Entram em questão quatro agentes: a comunidade, o bispo, o ordenando e o Espírito Santo. Tal movimento tem a culminação na imposição das mãos acompanhada da prece solene da Igreja reunida em oração. O gesto da imposição das mãos – quirotonia – mereceu longo estudo para detectar-lhe o sentido profundo de que o ministro é dado por Deus para agir na comunidade e por meio da comunidade na comunhão entre as comunidades. Esse gesto significa transmissão de poder ou constituição em autoridade. A sua força simbólica tem raízes antropológicas. Encontram-se ressonâncias no Antigo Testamento e na tradição judaica. Faz-se presente no Novo Testamento. De passagem, aborda-se tanto a ordenação sem imposição das mãos como as suas variantes nas diversas liturgias. Termina esse tema percorrendo brevemente a evolução de tal expressão significativa no rito romano puro, no Pontifical Romano-Germânico (séc. X), nos pontificais da Idade Média alta e tardia, e na reforma litúrgica do Vaticano II. O texto da Tradição Apostólica, antigamente atribuída a Hipólito de Roma, por causa de sua importância, mereceu consideração detalhada no referente à ordenação episcopal. O texto do Testamento do Senhor, datado provavelmente do séc. V, na Igreja da Síria, ofereceu o material para a estrutura da ordenação presbiteral e diaconal. Quanto às preces da ordenação, Taborda faz-lhe estudo pormenorizado em dois momentos. Num primeiro, dedica-se a mostrar o dinamismo literário-teológico das preces de aliança, gênero literário das anáforas ou orações eucarísticas 158 Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Recensões e de outras preces de fundamental importância na celebração dos sacramentos. Tal movimento corresponde à dinâmica teológica da relação de aliança entre Deus e a humanidade. Num segundo momento, a atenção se volta para analisar as preces de ordenação na liturgia romana atual. O livro termina com três anexos: a Prece de ordenação episcopal do Sacramentário Veronense/Gelasiano, a Prece de ordenação presbiteral do Sacramentário Veronense e a Prece de ordenação diaconal do Sacramentário Veronense. Livro muito maduro, levado a cabo com extremo esmero. Revela sólido conhecimento das fontes e uso de ampla bibliografia. Apesar de ser alentado, apresenta, porém, sínteses bem elaboradas de pontos importantes da teologia ministerial. Assim o leitor penetra no sentido profundo do ministério ordenado na Igreja. O horizonte principal de compreensão é a Igreja como sacramento maior da presença salvífica de Jesus. Talvez tenham faltado um toque latinoamericano e certa referência às situações gritantes de nossa realidade social e eclesial. Entende-se, porém, tal reserva devido à opção do A. de pensar tal relação mais a modo de provocação, de decorrência da Lex orandi e Lex credendi, de onde surge uma Lex agendi libertadora. Fica para os leitores e estudiosos o desafio de chegar até a esse nível que o livro provocou. Recomendo a leitura aos ministros ordenados, àqueles que se preparam para tais ministérios e ao fiel comum a fim de compreenderem melhor a vida da Igreja. Superam-se preconceitos contra o ministério ordenado, criados, bastas vezes, não por causa dele mesmo, mas devido a compreensões limitadas e defeituosas do mesmo. Endereço do Recensor: Av. Dr. Cristiano Guimarães, 2127 Planalto CEP 31720-300 Belo Horizonte, MG Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 159 Recensões MOLTMANN, Jürgen. No fim, o início: breve tratado sobre a esperança. São Paulo: Loyola, 2007, 206 p. Lucas Fernandes Bombazar* NO FIM, O INÍCIO: BREVE TRATADO SOBRE A ESPERANÇA Quotidianamente ouvem-se inquietações, vindas de lugares e pessoas mais diversas. Seja na família, no trabalho, nos hospitais, presídios ou nas comunidades eclesiais. Quantas são as dores apresentadas, os medos e os desafios. Levando-se em consideração tamanha demanda de “alegrias e esperanças, tristezas e angústias dos homens de hoje” (Cf. Gaudium et Spes n. 1), a presente obra do teólogo alemão Jürgen Moltmann: “No fim, o Início” é uma feliz oportunidade para mergulharmos no contexto humano a partir da nossa fraqueza. Atingir a humanidade a partir de seus porões. Ler “No fim, o Início” é partilhar a experiência de alguém que fez teologia a partir da angustiosa realidade de um campo de concentração. O livro não traz receitas prontas, mas uma importante bagagem teológica para se entender a atualidade. Convive-se com perguntas que perpassam a pós-modernidade, tais quais: como ainda falar do amor de Deus depois de atrocidades como a de Auschwitz? Ou dos genocídios em massa de inocentes? Ou mesmo: qual o sentido da vida humana? Por que existe o sofrimento? Jürgen Moltmann, natural de Hamburgo (Alemanha), é teólogo protestante, que em 1957 habilitou-se para a docência nas áreas de Dogma e Teologia Sistemática. Lecionou Sistemática na Universidade de Bonn. Em 1967, transferiu-se para a Universidade de Tübingen, onde continuou a exercer a mesma função. Recebeu diversos prêmios; entre outros, o prêmio Grawemeyer Award in Religion, da Universidade de Louisville, Kentucky (EUA). Em três brevíssimas páginas (pp. 49-51), J. Moltmann brilhantemente relata toda a sua vida. Três páginas que levam a mergulhar no âmago de uma personalidade que sentiu na própria carne o total desprezo * O autor é bacharel em Filosofia pela Faculdade Vicentina (Curitiba PR) e aluno do sexto semestre do curso de Teologia do ITESC. 160 Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Recensões humano. “Eu não sou apenas um teólogo que se ocupa cientificamente das esperanças e das angústias das pessoas, sou também um sobrevivente de Sodoma e Gomorra.” Uma dolorosa realidade. O autor fala da destruição de sua cidade natal, Hamburgo, em julho de 1943. A Real Força Britânica vinha noite após noite com mil bombardeiros sobre a cidade. “Naquelas noites, 40 mil pessoas foram consumidas pelo fogo.” (p. 49) Depois de tantas conquistas, descobertas e inovações, a humanidade pós-moderna experimenta não só a luz da racionalidade, mas também a própria racionalidade enlouquecida. Exatamente nesses meandros frenéticos em que mergulhou a modernidade e conseqüentemente a pós-modernidade, é que encontramos pessoas como Jürgen Moltmann, tirando o extrato de sua Teologia da Esperança e Teologia da Cruz; ou como Viktor Emil Frankl, ‘um psicólogo nos campos de concentração’, com sua Logoterapia; ou mesmo Dietrich Bonhoeffer, no aspecto bíblico-exegético; Edith Stein, com sua Ciência da Cruz, ou François Xavier Van Thuan, com a espiritualidade da esperança. Enfim, são tantos os homens e as mulheres que souberam encontrar nas catástrofes produzidas pela engenhosidade humana o sentido e o conteúdo absoluto de suas vidas e obras. O autor relata com minúcias a perda das pessoas queridas: “Mas a bomba que estraçalhou o colega de classe que estava ao meu lado na máquina de comando poupou-me de maneira inexplicável.” (p. 49) E segue comentando as tantas mortes do campo de concentração de Neuengamme, em Hamburgo, como o da Bielo-Rússia durante a ditadura nazista. Diante de tamanho sofrimento, a pergunta que o próprio autor se faz: “Qual a impressão que a catástrofe causou naquele jovem de 17 anos? [...] naquela noite catastrófica, porém, pela primeira vez em minha vida, clamei: Deus onde estás? Surgiu então a outra pergunta, que me persegue por toda a vida: por que eu permaneci vivo e não morri também como os outros?” (p. 50) A grande resposta que Moltmann encontrou não foi no clássico de Goethe ou na filosofia niilista de Nietzsche, pensadores um tanto distantes de sua busca, como ele mesmo relata. Mas a resposta estava no Evangelho de Marcos: “Chegando no grito de morte de Jesus, ‘Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?’, tive a profunda impressão: este é o único que me pode entender.”(p. 51) E foi naquele campo de concentração escocês que o autor abraçou a fé cristã e decidiu estudar teologia. Diante do conhecido caos pós-moderno, duas atitudes movem as pessoas: ou a apatia temerária, que só faz enxergar o fim imediato de Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 161 Recensões tudo; ou a coragem destemida que as expande para frente, numa compreensão de que tudo está ainda no seu início. A propósito, assim dizia o papa Bom, João XXIII: “Por que temer? Não estamos no começo do fim. Estamos apenas no fim do começo!” E Moltmann: “A expectativa cristã de futuro nada tem a ver com o fim; fim da vida, fim da história ou com o fim do mundo, mas com o início: o início da verdadeira vida, o início do reino de Deus e início da nova criação de todas as coisas em sua forma definitiva.” (pp. 9-10) O próprio autor apresenta a presente obra como: um breve tratado da esperança. Esse “tratado sobre a esperança” é dividido em três grandes partes, que correspondem aos três inícios de nossa vida: nascimento – renascimento – ressurreição. Na primeira parte, no capítulo primeiro (pp. 1532), a partir dos exemplos da infância e da juventude, que constituem o início cronológico da vida humana, o autor vem mostrar a novidade que acompanha uma criança que nasce. “Nasceu para nós um filho” (Cf. Is 9,5) “A cada criança nascida no mundo judeu, a mesma esperança: de cada uma delas poderá nascer o Messias.”(p. 16) O autor apresenta o nascimento de Jesus como a grande esperança que nos veio visitar. “O grande domínio de Deus que tudo abarca começa com o domínio pacífico de uma criança.” (p. 16) Na segunda parte deste capítulo introdutório (p. p. 33-43), o capítulo segundo fala da juventude. Quais as possibilidades do futuro dessa juventude? “Não estamos então em cada presente, pouco importa o quanto sejamos jovens ou velhos, no limiar cronológico desse futuro, e as possibilidades de futuro que percebemos e realizamos na expectativa e na esperança não nos tornam qualitativamente ‘jovens’, pouco importando o quanto sejamos jovens ou velhos em anos? Com o tempo envelhecemos, é verdade, mas podemos tornar-nos jovens com o futuro, se aceitamos os desafios.” (p. 33) Podemos resumir toda essa primeira parte numa máxima: O novo traz consigo um início fascinante. A segunda grande parte se subdivide em quatro capítulos (pp. 47120). Nesse ponto do livro, o autor trabalha com categorias escatológicas de cada momento histórico. Ou seja, da história das catástrofes e dos novos inícios delas originados. Em cada novo fim, um novo início. O autor faz também um paralelo entre as catástrofes bíblicas, como as do dilúvio até os horrores apocalípticos com as catástrofes atuais. Apresenta assim a fé justificadora como um ânimo para o novo início e o renascimento para a esperança. 162 Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Recensões Moltmann segue apresentando quatro grandes catástrofes da humanidade, relacionadas com o novo início delas emergido. O dilúvio. A destruição da terra pelas águas está presente nas sagas de muitos povos. Mas, a figura do dilúvio é provocativa e suscita muitos questionamentos. “Segundo uma interpretação judaica, isso quer dizer: Por que, afinal, Ele criou os seres humanos, já que devia saber que eles o enganariam? A resposta da história do dilúvio é: Ele se enganou e volta atrás com a criação dos seres humanos. [...] Enquanto Deus castiga o delito humano, ele ainda se interessa pelo ser humano e ainda crê em sua capacidade de tornar-se melhor. [...] ‘Ele se arrependeu de ter criado o ser humano’. Nessa breve frase está contida a teologia mais impressionante que se pode imaginar.” (p. 56) O autor segue apresentando a delicadeza do problema que está por detrás do dilúvio. A salvação do grupo de Noé, a volta da vida sobre a terra, a nova criação, tudo isso revela a paciência de Deus, permitindo que a vida volte com o vigor de antes, mesmo com todas as contradições. A segunda catástrofe apresentada pelo autor: a catástrofe de Israel e o início do Judaísmo. “Inicialmente, essa catástrofe de Israel é denominada Korban, destruição, mais tarde, arrasamento de Jerusalém pelos romanos em 70 d. C. e, por fim, Auschwitz.” (p. 58) Houve, ao que afirma o autor, a in-habitação de Deus, visibilizada no símbolo da Arca da Aliança. Depois, Salomão constrói o Templo e, a partir de então, Deus habitava no lugar conhecido como Santo dos Santos. E a pergunta do autor: “Mas o que ocorreu com essa in-habitação de Deus, denominada Shekinah, no momento em que o Templo foi reduzido a chamas? Teria ela retornado a Deus no céu? Ou Deus ‘permaneceu habitando em meio aos israelitas’, acompanhando o povo para o cativeiro?” (p. 59) Depois dessa catástrofe, após esse fim surge uma nova compreensão teológica da ação salvífica de Deus: “Por meio de sua Shekinah, o Deus eterno e sem fim se tornou companheiro de caminhada e de sofrimento, perseguido e sofredor junto com seu povo disperso.” (p. 61) Nessa perspectiva, pode-se lembrar a resposta popular dada nas celebrações eucarísticas brasileiras: “O Senhor esteja convosco! Ele está no meio de nós!” A propósito, eis o que exclama Noemi, convicta e confiante, diante de suas duas noras: “o Senhor tinha visitado o seu povo e lhe tinha dado pão.” (Cf. Rute 1,6) Deus está com seu povo. E Deus veio visitar e armar sua tenda junto de seu povo. A terceira catástrofe: do Gólgota ao início do Cristianismo. O próprio cristianismo resultou de uma crise, ou de uma aparente derrota: Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 163 Recensões a crucifixão do messias Jesus no Gólgota. “Deus não mais espera, Deus vem ao encontro do ser humano.” (p. 62) O Filho de Deus morre na cruz romana no maior abandono de seu Pai: “Deus meu Deus meu, porque me abandonaste?” (cf. Mc 15,35) Mas esse aparente fim deu início a um verdadeiro começo, a nova criação de Deus instaura na Ressurreição de Jesus Cristo. “Com a ressurreição de Cristo da catástrofe do Gólgota, já se deu o novo início, um início que não mais passará, porque surgiu da superação da transitoriedade.” (p. p. 66-67) A fé na ressurreição atacou os poderosos dominadores deste mundo. A quarta catástrofe: a atual destruição catastrófica do mundo moderno. Nessa análise, Moltmann faz um paralelo entre as destruições ‘apocalípticas’ produzidas pelo capricho humano e os apocalipses bíblicos. “Os apocalipses bíblicos não são cenários pessimistas de catástrofes mundiais que apenas espalham medo e terror, com a intenção de paralisar as pessoas mediante a adequada crença na fatalidade. São mensagens da esperança no perigo, que deve ser atentamente encarado e ao qual se deve opor resistência. Eles mantêm viva a confiança em Deus[...]. Os apocalipses bíblicos e as teologias da catástrofe nada tem a ver com as modernas fantasias do fim do mundo.” (p.70) O que acontece atualmente é o denominado ‘apocalypse now’ que designa as catástrofes causadas pela humanidade: a repentina possibilidade da catástrofe atômica e ecológica; suicídios em massa de adeptos de seitas por vários países; o 11 de Setembro de 2001 no World Trade Center e no Pentágono em Washington; terrorismos de todas as naturezas e genocídios camuflados. Isso leva o autor a concluir que a humanidade, diante de tais catástrofes produzidas pela perversidade humana e não por Deus, revela um clima de tempos finais sem esperança. Segue o capítulo II – Um capítulo inteiro dedicado a um tema muito comum para o cristianismo, a oração que acompanha os cristãos desde suas primeiras comunidades, a súplica do “Livrai-nos do mal”. A justiça de Deus e o renascimento da vida. Pedimos sempre a Deus que nos livre dos males que quase sempre nós mesmos causamos e que conseqüentemente nos oprimem. “‘Livrai-nos do mal’. Nas experiências dessa libertação do mal reconhecemos a bondade criadora de Deus.” (p. 71) A justiça de Deus torna a pessoa humana livre e inteira para um novo início. O autor continua a reflexão equiparando dois atos constantes do crente, o pedido do “perdoai a nossa culpa” e o “livrai-nos do mal”, mostrando que a libertação dos males abarca até o perdão dos pecados. Dois gritos são apresentados, “o clamor por justiça e por Deus, o qual, 164 Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Recensões contudo, não se origina apenas das experiências de sofrimento dos grandes crimes contemporâneos contra a humanidade, mas também das experiências cotidianas de estar pessoalmente à mercê do acaso e do destino, da enfermidade e do acidente.”(p. 75) O segundo grito trata daquela voz que vem dos agentes da injustiça. “Também eles tornamse vítimas do mal, mas de maneira diversa das vítimas sofredoras; eles se tornam servos ativos do mal e, com isso, culpados.” (p. 76) Deus se solidariza com os que sofrem. Onde se materializa essa solidariedade? Está no delicado fato de “tudo o que é feito aos pobres e indefesos, indiretamente também é feito a Ele.” (p. 82) Tratamos a respeito não de um ídolo que necessita da constante visita dos seus súditos, mas de um Deus vivente que vem ao encontro dos seus, solidarizando-se através de sua Shekinah. Um Deus visitador: “Um grande profeta surgiu entre nós e Deus visitou o seu povo.” (cf. Lucas 7,16) “‘Somente um Deus sofredor pode ajudar’, escreveu Dietrich Bonhoeffer na prisão da Gestapo. Um Deus que essencialmente fosse incapaz de sofrer também seria incapaz de sofrer com outrem e incapaz de ter compaixão. O Deus ‘impassibilis’ é um Deus sem coração e sem misericórdia, uma fria potência celeste” (p. 91) É fadada ao fracasso uma religião que não se serve dessa categoria teológica. Diante de uma realidade tão liquefeita como a atual, a solidez da compreensão de um Deus sofredor junto aos sofredores se faz indispensável. Assim, em Jesus Cristo se revela a imagem do Pai, e nas palavras e ações do Filho as do Pai estão presentes. “Assim como Jesus age, Deus também age; assim como Jesus sofre, Deus também sofre; assim como Jesus vive, Deus também vive, como está resumido na afirmação de Jesus a respeito de si próprio no Evangelho de João: ‘Eu estou no Pai e o Pai está em mim’ (Jo 14, 9.11).” (p. 83) A despedida de Cristo em sua morte se transformou em novo e eterno início em sua ressurreição. Segue, nos últimos capítulos da segunda parte, a temática da espiritualidade que contém a esperança cristã. Diante de tal proposta, dentro da sumária e possível falta de esperança, surgem dois significativos problemas: a presunção e o desespero. “Na presunção, nós mesmos assumimos a realização da esperança, não mais esperando em Deus. No desespero, duvidamos de qualquer realização, destruindo em nós a esperança.” (p. 119) Conclui o autor com uma bela definição dessa esperança que nada tem a ver com estagnação: “Se tivéssemos ante os olhos apenas o que vemos, nós aceitaríamos as coisas como são, de bom ou mau grado. Mas o fato de não aceitarmos que entre nós e a realidade não há nenhuma Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 165 Recensões harmonia, nem cordial nem teimosa, é obra da inextinguível esperança por uma vida plena. Ela nos mantém nessa atitude sem reconciliação até a chegada do grande dia de Deus. Ela nos mantém em movimento e a caminho. Ela nos enche dessa abertura para o mundo.” (p. 120) Na terceira grande parte, subdividida em quatro capítulos, o autor parece suplicar: “Ó início sem fim...”(pp.123-202) “Esse título provém do antigo hino religioso ‘O Ewigkeit, du Donnerwor’ de Johan Rist, e define paradoxalmente a eternidade como ‘tempo sem tempo’.” (p. 124) Neste ponto da obra, o autor passa a tratar das realidades últimas. Com a pergunta inquietante: existe vida após a morte? O que esperamos? O que nos espera? Ao adentrar na última parte de seu tratado sobre a esperança, Moltmann nos faz mergulhar no misterioso campo da morte/ressurreição. É fascinante a forma como o autor trata de temas tão delicados, que vão desde as noções de céu; paraíso; inferno e purgatório. Por ser protestante e pensar um pouco diferente dos católicos, ele sabe expor as doutrinas sem ser taxativo ou condenativo. Mas, sobretudo, ele sabe brilhantemente conduzir o leitor num excelente caminho de reflexão. “Para onde, portanto, vamos nós? O que nos espera?” (p.125) Vive-se a todo momento em meio a sofrimentos. Há sofrimentos exteriores que tornam a vida inaceitável, tais como a rejeição, o desemprego, as enfermidades. Há também sofrimentos interiores. Não somos um dualismo entre corpo e alma, somos inteiros. “O que poderia então significar para nós uma vida após a morte, se antes da morte não houvesse uma vida plena, à qual nós dizemos sim?” (p. 126) Essa inteireza nos acompanhará até o dia em que todas as coisas serão “recapituladas em Cristo” (cf. Ef 1,10) A vida plena e abundante que desejamos no além morte, é a que por direito e justiça deve estar acontecendo desde agora, em vida e “vida abundante” (cf. Jo 10,10). Fomos projetados de dentro de Deus para sermos vivos. “Por essa razão, pretendo entender a ‘alma de nossa vida’ diversamente do que entendia Platão: a vida humana é totalmente viva. E vitalidade humana significa ter interesse pela vida, participar, compartilhar-se e dizer sim à própria vida.” (p. 130) Se não há ruptura nem distâncias inacessíveis entre esta vida e a futura, logo essa vida deve estar imbuída de abundância e não fadada ao esquecimento, desprezo ou até a vontade de eliminá-la. É muito interessante a insistência do autor em mostrar essa unidade, essa completude de que é constituída a vida humana. “Certamente não sua alma sem corpo, nem seu corpo sem alma, e sim a sua vida como 166 Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Recensões um todo, no espaço e no tempo, toda a história de sua vida.” (p. 132) E assim Moltmann conclui a terceira parte de sua obra, no resgate do verdadeiro sentido da vida eterna. Eternidade essa que não se desvincula da realidade, mas que é continuidade dessa mesma vida de agora. Foi o que afirmou categoricamente Dietrich Bonhoeffer, teólogo da resistência aos sistemas totalitários: “Somente pode crer no Reino de Deus quem ama simultaneamente a terra e Deus.” (p. 197) O autor termina, conceituando a modalidade vida eterna relacionando-a com a fidelidade histórica de Deus; a ressurreição de Cristo e a experiência do Espírito Santo como as bases para a expectativa no futuro mundo novo. Conclui-se o Tratado da Esperança assimilando-se a transformação que sofreu Moltmann a partir da catástrofe atroz dos campos de concentração. Dessa tragédia nasceu a teologia da Esperança e a certeza de que o Deus Todo Poderoso, capaz de encher mil mundos dos nossos com sua presença, foi capaz de “ver, ouvir, conhecer e descer para libertar seu povo” (Cf. Ex 3,7). Endereço do Recensor: Rua Manoel Inocêncio Martins, 29 Bairro Pantanal CEP 88040-330 Florianópolis, SC http://seminaristasdelages.webnode.com.br E-mail do recensor: [email protected] Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 167 Recensões EBEJER, Walter Michael, Dom, O. P. A teoria platônica das formas: com especial referência a sua cosmologia no Timeu. União da Vitória: UNIUV, 2010, 355 pp. Armando Rafael Castro Acquaroli* João Paulo II, em sua encíclica Fides et ratio, utilizou uma poética frase para apresentar a relação entre filosofia e teologia, afirmando que fé e razão são como que duas asas pelas quais o ser humano se eleva para contemplar a verdade. De fato, é inegável o quanto ambas se interpenetram ao longo da história, porém sem se confundir. Por isso, para que haja uma correta teologia, é mister que esteja solidamente fundado na filosofia. Nesse sentido, a compreensão do pensamento de Platão é um importante adminículo para perquirir a teologia, sobretudo ocidental, bastante influenciada por Agostinho, reconhecido neo-platônico. Por isso, uma nova visão da teoria das formas, conforme a obra de Ebejer, implica também nova perspectiva cosmológica, antropológica e teológica. Por conseguinte, o livro ora recensionado é uma preciosa contribuição para o aprofundamento da Sacra Doctrina. O autor nasceu em 1929, em Dingli, ilha de Malta. Estudou como frade dominicano na Inglaterra. Em 1956 obteve, em sua terra natal, o título de Lente em Filosofia e Teologia, pelo Studium Generale. Tendo em vista obter um doutorado em Roma, elaborou a tese “Plato´s Theory of Forms, with special references to his Cosmology in the Timaeus”, a qual, porém, nunca foi defendida. Trabalhou como missionário em várias regiões do Brasil e, em 1976, tornou-se bispo de União da Vitória-PR. Nesse período, lecionou no Studium Theologicum e na PUC, ambos em Curitiba. Atualmente, D. Walter é reitor do seminário diocesano de União da Vitória, e membro fundador da Academia de Letras do Vale do Iguaçu. Uma excelente apresentação do surgimento da filosofia começa o livro. Parte do período axial grego, passando para sua conservação e divulgação nos ambientes cristãos, judeus e muçulmanos. Em seguida, mostra os conflitos das três grandes religiões monoteístas, que se refletiam nas filosofias adotadas como fundamento de suas teorias, a saber, * 168 O recensor é aluno do 6º semestre de Teologia do ITESC. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Recensões aristotélica ou platônica. Desse modo, em meio às intempéries históricas, as duas grandes escolas gregas perduraram ao longo dos séculos e chegaram até nós, por vezes, de modo deturpado. No primeiro capítulo (p. 35-42), Ebejer discorre sobre o conceito de Ideia, (Idea, eidos, génos) usado por Platão, que é aplicável a três aspectos da teoria. O primeiro, ontologicamente, isto é, a forma é verdadeiramente ser. O segundo, teleologicamente, de modo que as Ideias são modelos aos quais todo devir se conforma. Terceiro, logicamente, como estruturação da ordem do universo. Acentua, porém, que são três aspectos inseparáveis. Conclui apontando que o problema daí decorrente é a falta de uma causalidade eficiente. O capítulo segundo (p. 43-48) mostra a dificuldade de interpretar Platão, haja vista sua escrita dialogal, não sistemática e feita nos mais variados contextos. Somente a partir do Teeteto e do Parmênides aparece um Platão menos vinculado ao seu mestre Sócrates e tentando provar suas próprias teses. Além disso, traz à tona as polêmicas questões das doutrinas não-escritas e a confiabilidade da crítica aristotélica. Nos capítulos terceiro e quarto (51-70), Ebejer tematiza alguns aspectos da Ideia. Para ele, o que deve ser definido, conforme o escrito Hipias Maior, é a própria beleza (auto to kalón) e não as suas realizações particulares. Para ascender a tal beleza, conforme escrito em Simpósio, galga-se desde a beleza da terra, elevando-se em direção às práticas louváveis, i.e., virtudes, até os conceitos belos (leis, instituições, ciência) e, enfim, à Beleza Absoluta. Com essas definições introdutórias, parte para a análise dos livros de Platão. O capítulo quinto (p. 71-102) trata da formulação da teoria das formas no Fédon. Apresenta o argumento da igualdade. Assim, ao enxergarmos pauzinhos, pedras... iguais, nós admitimos que existe uma igualdade absoluta. Mas Sócrates alerta que o que parece igual para um pode não sê-lo para outro. O fundamento dessa asserção é o devir heracliteano. Então, Platão introduz um novo elemento à teoria, a saber, a desigualdade. Em outros termos, se somos cônscios do que falta a algum objeto para que ele se torne perfeito, é porque já temos uma noção prévia de perfeição, à qual ele chama de Forma. Destarte, Platão prova sua teoria. No capítulo sexto (p.103-149), Ebejer perquire a República. Nela, os argumentos utilizados para legitimar o dualismo são falazes e não perEncontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 169 Recensões tencem propriamente a Platão, mas a Heráclito, de cujo legado o primeiro se serve. Analisa o texto da linha seccionada, na qual apresentam-se a Ordem Visível e a Ordem inteligível das coisas. Na primeira seção, da ordem visível, estão inclusos os objetos com suas imagens, sombras, reflexos, e tudo que é imaginável (por ele chamado de eikasía). Na segunda, está todo o mundo físico que nos é conhecido. No que tange à ordem invisível, a mente começa analisando os objetos físicos para, em seguida, elevar-se às realidades mais elevadas, ou Formas. Por isso, conclui-se que o mundo sensível participa da natureza racional da Forma do Bem e, outrossim, das perfeições de suas formas subordinadas, determinando o status existencial da realidade física. Isso significa, portanto, que Platão jamais intentou construir um sistema dualista entre pensamento e realidade. No capítulo sétimo (p. 153-158), o autor aborda o Fedro, no qual foca-se o mito da carruagem com os cavalos alados: um, “mundano”, que conduz para baixo, isto é, para os sentidos e paixões; e outro, divino, que tende para o alto, o belo. Além disso, introduz-se um novo aspecto do método da dialética, a saber, a diairesis, em que se parte das ideias universais em direção às específicas. Desse modo, Platão demonstra grande interesse pela hierarquia das formas. O capítulo oitavo (p. 161-186) é focado no Parmênides, em que Platão se defronta com o problema eleático do monismo absoluto. Discorda de que “todo ser é um”, mas povoa o Um com um mundo inteiro de formas cujas múltiplas relações hierárquicas possibilitam o discurso humano e a sabedoria. Platão critica as antinomias de Zenão, afirmando a absurdidade de sua conclusão, na qual havia posições contraditórias, por exemplo, como o similar podia ser também dissimilar, muitos e um... Tal problema é fundamental para o amadurecimento de sua teoria das formas, visto que, com o conceito de participação, o qual expressa a relação entre o mundo sensível e o inteligível, é solucionada a questão do ser que não pode não ser. No Capítulo nono (p. 187-194), Ebejer aborda o Teeteto. Como característica do platonismo, Platão fala da teoria da percepção sensorial. Nela, o universo está em estado de moção e nada mais. Assim, há dois tipos de moção, uma que tem o poder de agir e a outra, que sofre a ação. No entanto, tal processo diverge de Heráclito no fato de que podemos nomear cada momento da percepção sensitiva, de modo que não há um puro devir. Para Ebejer, esse é um salto na teoria de Platão. 170 Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Recensões O capítulo décimo (p. 195-237) divide-se em duas grandes partes, que tratam de dois livros: O Sofista e O político. No primeiro, o acento está na discussão com Parmênides, para o qual só existe o Ser, o qual é imutável. Assim, toda a realidade sensível, que é tida como enganosa, pertence à esfera do não-ser. Platão propõe que as coisas reais são nada mais que potência (dynamis), isto é, têm uma propriedade que manifesta a natureza misteriosa de algo. Dessa forma, atribui ao vir-a-ser o marco da realidade. E conclui: somente as coisas reais mudam. Na segunda parte do capítulo, aborda-se O Político. Neste, o conhecimento das formas muda em relação à República, em que a ascensão até a Forma é mais elevada. Aqui, o conhecimento das formas e o discurso filosófico dependem do método prático e realizável da Divisão, tendo como escopo a definição de cada forma, para enxergar todas as suas relações. Assim, Platão assume uma atitude mais realística, para alcançar o verdadeiro conhecimento. No capítulo onze (p. 241-250), Ebejer discute o Filebo, em que aparece o problema de as Formas serem chamadas Unidades. A grande questão é como tal unidade pode ser, ao mesmo tempo, concebida como multiplicidade nos seus inúmeros particulares. É aqui que Platão apresenta as quatro categorias para a composição das formas: Infinito (to apeíron), Limite (peras), mistura desses dois elementos, e ‘causa’ que faz combinar tais elementos. O capítulo doze (p. 252-294) é a primeira das três partes que estudam o Timeu, centro da tese de Ebejer. Ocupa-se da razão e sua influência no trabalho da criação. Há uma corrente de pensadores que fundem o Demiurgo (plasmador do universo) e a Alma mundial (responsável pelo movimento). Esses seguem a vertente aristotélico-tomista, segundo a qual Deus é a causa primeira do movimento e também o criador de tudo. No entanto, uma creatio ex nihilo et subjecti é incompatível com a mentalidade grega pré-cristã. Por isso, o autor conclui que o demiurgo e a alma mundial são bem distintos, de sorte que não podem ser considerados uma realidade só. O capítulo treze (p. 295-302) é a segunda parte da abordagem do Timeu. O discurso traz à tona um estudo dos fatores irracionais que ocorreram para a geração do universo, a chamada “causa errante”. Para entendê-la, é mister ter em mente que os quatro elementos (terra, ar, fogo e água) são acessórios dos quais a razão se utiliza para criar. No entanto, Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 171 Recensões dada a sua imperfeição, a razão não atinge aquilo que idealizou. Essa é a necessidade (anagke) ou causa errante. O capítulo quatorze (p. 303-344) analisa a terceira parte do Timeu. Aí Platão encontra um terceiro elemento necessário para complementar sua doutrina ontológica, composta de Ser e Devir. É o receptáculo (hipodoché), o qual deve ser considerado entitativamente, como substância em si. Ora, o receptáculo é aquilo em que as qualidades vêm a ser e não aquilo de que as coisas são feitas. Por isso, ainda fica a questão acerca da substancialidade dos objetos físicos, que somente Aristóteles tentará resolver com seu hilemorfismo. No capítulo quinze (p. 345-346), Ebejer trata do problema do mal e suas fontes em As leis. Com o propósito de eximir da culpa do mal a alma do mundo, Platão transfere tal responsabilidade à Alma má. É o contrário do que acontece no Timeu, para o qual a explicação para o mal reside na causa errante, que é cega e irracional. No entanto, a atribuição dessa alma má não foi suficientemente delineada por Platão. No capítulo dezesseis (p. 347-350), o autor apresenta algumas considerações finais. Afirma que a obra de Platão não se esgota nos livros analisados, e que ainda há muito a ser estudado em toda a filosofia, a qual ele define belamente como uma “sinfonia inacabada”. Por fim, deixa uma crítica às novas gerações de filósofos, cujos interesses hodiernos centramse mais na filosofia analítica e da linguagem do que na filosofia do Ser. Para ele, a ordem é inversa, dado que o Homo Sapiens primeiramente existe e vive, somente depois começa a se comunicar. Tendo em vista a pertinência do tema, sobretudo nos últimos cem anos, em que a pesquisa de Platão tomou outro rumo, este trabalho é uma grande contribuição para a filosofia. Considere-se também que esta é uma tese elaborada na década de 1950, antes da monumental obra de Giovanni Reale (Per una nuova interpretazione di Platone, Milano, 1991), que hoje é a grande referência para tal estudo. Por conseguinte, a nova visão da cosmologia, e até mesmo da cosmogonia, alarga um pouco mais o conhecimento desse grande sábio da antiguidade clássica. Como o próprio autor alertara no início, seu objetivo foi escrever um livro para estudantes com um mínimo de iniciação nos conceitos filosóficos. Assim, para quem não domina tal vocabulário, aliado ao conhecimento de grego e latim básicos, a obra torna-se de difícil compreensão. E esse é seu maior problema, justamente a dificuldade de estender 172 Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Recensões o conhecimento de tão rica sabedoria aos que não tiveram o privilégio de estudar “a arte do bem pensar”, conforme Pascal. Apesar disso, os poucos eruditos que conseguirem beber desta fonte de riqueza intelectual, não passarão sede, haja vista sua clareza metodológica e beleza de conteúdo. Não se pode exigir que tal produção tenha necessariamente referência com a realidade de modo direto, haja vista seu caráter eminentemente teórico-conceitual. O autor acerta em oferecer-nos um novo modo de ler Platão, o que redunda na revisão de nossos pressupostos teológicos, sobretudo no que tange ao dualismo antropológico e cosmológico. Atinente à tradução, como foi efetuada pelo próprio autor, recebemos um grande presente, visto que o risco de traição na passagem do inglês para o português tornou-se menor. Entrementes, faltou uma revisão um pouco mais acurada, mormente nos acentos de paroxítonas e proparoxítonas, frequentemente omitidos de modo equivocado. Fica ainda uma sugestão de tradução do termo grego Symposion: não o literal “Simpósio”, como o faz Ebejer, mas a expressão comumente utilizada Banquete, a qual é mais acessível ao leitor com menos conhecimento de grego. Além disso, o vocábulo Demiourgós, definido como Alma melhor, poderia ser mais precisamente traduzido como artífice (cf. REALE, op. cit., p. 393). Afirmo-o, embora tenha consciência de que a tradução é uma opção metodológica, não exclusiva. Endereço do Recensor: Dep. Antônio E. Vieira, 1524 Pantanal 88040-970 Florianópolis, SC Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 173 Crônicas Notícias da CNBB Regional Sul IV – SC Conselho Regional de Pastoral assume abaixo-assinado contra novo Código Florestal A segunda reunião ordinária do CRP, neste ano, realizou-se em Itá, diocese de Chapecó, nos dias 14 e 15-7. Foi a primeira reunião sob a presidência de dom Wilson Tadeu Jönck, Bispo de Tubarão, que sucedeu a dom Murilo Krieger como presidente do Regional Sul 4, e a última, sob a coordenação do Padre Francisco Wloch, que, a partir de agosto, assumiu o cargo de subsecretário Adjunto de Pastoral na CNBB Nacional. Ainda nessa ocasião, o Regional assumiu o compromisso de articular a coleta de assinaturas em protesto e com o intuito de aperfeiçoar aspectos do Novo Código Florestal, em tramitação no Senado. Posse de leigo como secretário executivo da CNBB Regional Sul 4 é fato inédito A troca oficial de secretário executivo da CNBB Regional Sul 4 (Santa Catarina) aconteceu em uma missa realizada na sede da entidade na segunda-feira, 15-8. Ademir Freitas, de Tubarão, leigo ligado à Ordem Franciscana Secular (OFS), substitui padre Francisco de Assis Wloch. Esta é a primeira vez que um leigo assume efetivamente a função. O fato foi destacado pelo presidente do regional, dom Wilson Tadeu Jönck: Ademir começa algo novo na Igreja em Santa Catarina. Sinal da maturidade do nosso laicato. 22ª Romaria da Terra e da Água reúne o povo em memória e oração Neste ano, no dia 11-9, a 22ª Romaria da Terra e da Água reuniu em Irani, meio oeste catarinense, cerca de 8 mil pessoas. O evento é promovido a cada dois anos pelas Pastorais Sociais do Regional Sul 4 da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). Tendas foram montadas pelos movimentos, organismos e pastorais do Regional, cada qual dando o sentido e a visibilidade do trabalho desempenhado no Estado, na perspectiva da construção do Reino de Deus. Água e comida foram partilhados gratuitamente. Após o plantio da cruz de cedro, símbolo das Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 175 Crônicas romarias, as caravanas retornaram a suas cidades, enquanto a fé e a terra se encarregam de fazer o cedro brotar. Setor Juventude da CNBB Regional Sul 4 reúne-se pela primeira vez e define ações O Setor Juventude da CNBB Regional Sul 4 (Santa Catarina) reuniu-se em 10-10 pela primeira vez, para esboçar a organização que terá para os próximos anos. A reunião aconteceu em Florianópolis com 42 pessoas representando 12 expressões eclesiais da juventude no âmbito regional e diocesano. Dom Wilson Tadeu Jönck, que é bispo referencial da Juventude no regional, designou a secretaria da Pastoral da Juventude, hoje ocupada por Rodrigo da Silva, para coordenar o setor. O presbítero referencial é Pe. Alceoni Berkenbrock, pároco em Garopaba. Com os três, trabalhará uma comissão de quatro jovens que representam as novas comunidades, movimentos, congregações e pastorais. O objetivo é preparar a visita da comissão episcopal da Juventude. Projetos da CNBB Sul 4 são aprovados para 2012 Os projetos para 2012 foram aprovados durante a reunião do Conselho Regional de Pastoral (CRP) em Lages, nos dias 17 e 18-11. Eles estão relacionados às três prioridades aprovadas na 44ª Assembleia Regional de Pastoral realizada em setembro: juventude, família e pastorais sociais. Os projetos relacionados com a juventude envolvem a organização do Setor Juventude no Regional Sul 4, o fortalecimento das Pastorais da Juventude, Formação integral da juventude ä luz do doc. 85 da CNBB, sobre a evangelização da juventude. Outra prioridade, a família, tem como projetos previstos: investimento na formação e preparação de agentes da Pastoral Familiar, implantação e ou fortalecimento da Pastoral Familiar no Regional e nas dioceses, organização do Setor Vida e Família no Regional, integrando as pastorais e movimentos. A Celebração dos 100 anos do Contestado é um dos projetos das Pastorais Sociais. Outros dois projetos se referem à organização e fortalecimento do Fórum das Pastorais Sociais, e à realização da 5ª. Semana Social Brasileira no Regional. 176 Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Crônicas CNBB Regional Sul 4 realiza seminário para nortear ações da CF em 2012 Em preparação para a Campanha da Fraternidade 2012, cujo tema é “Fraternidade e saúde pública”, a CNBB Regional Sul 4 (Santa Catarina) realizou em Lages, de 7 a 9-10, um seminário regional, com objetivo de apresentar e debater o tema para agentes de pastoral, conselheiros e gestores em saúde. Participaram 72 pessoas. Os Conselhos de Saúde também entraram na pauta, e terão destaque na campanha. O objetivo é divulgar a importância do controle social do SUS e fortalecer a atuação dos conselheiros que representam os usuários. Florianópolis tem novo Arcebispo No dia 15-11, feriado nacional, em solenidade realizada no amplo Ginásio de esportes do Colégio Catarinense, em Florianópolis, Dom Wilson Tadeu Jönck deu início à sua missão pastoral como Arcebispo Metropolitano. Nomeado pelo Papa Bento XVI no dia 28-09, após pouco mais de um ano como Bispo diocesano de Tubarão, Dom Wilson sucede a Dom Murilo Sebastião Ramos Krieger, transferido no dia 12-01 para Salvador, a Sé primaz do Brasil. Além da participação de mais de três mil fiéis da Arquidiocese, e de grande número de presbíteros e diáconos permanentes, o evento contou com a presença de 19 Bispos, entre os quais, os dois antecessores de Dom Wilson na Arquidiocese: o Cardeal Dom Eusébio Scheid (1991-2001) e o Arcebispo Dom Murilo Krieger (2002-2011). Antes de celebração eucarística procedeu-se ao rito da posse, presidido pelo Núncio Apostólico, Dom Lorenzo Baldisseri. Dom Wilson é catarinense de Vidal Ramos, no Vale do Itajaí, nascido a 10-07-1951. Cursou Teologia no Instituto Teológico de sua Congregação, os Padres Dehonianos, em Taubaté, SP, tendo sido ordenado presbítero em 17-12-1977. Em estudos ulteriores, formou-se em Educação, em Varginha, MG, e em Psicologia, na Universidade Gregoriana, em Roma. Após vários encargos pastorais, vários deles ligados à formação presbiteral, Dom Wilson foi nomeado Bispo Auxiliar da arquidiocese do Rio de Janeiro, em 11-06-2003 e, em 26-05-2010, nomeado Bispo de Tubarão, SC. Em maio deste ano, ainda como Bispo de Tubarão, foi eleito Presidente do Regional Sul IV da CNBB-SC. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 177 Crônicas Semana Teológica 2011 “Comunicação: teologia e pastoral” foi o tema que norteou a Semana Teológica nos dias 26 a 30 de setembro de 2011, no Instituto Teológico de Santa Catarina – ITESC. Contou com a assessoria de Pe. Dr. Pedro Gilberto Gomes, doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo. Pe. Pedro é atuante principalmente nos seguintes temas: comunicação cristã, ética e comunicação, cultura e mídia. Exerce o cargo de Pró-Reitor Acadêmico da Unisinos e é Diretor da Editora da mesma Universidade. É membro da Equipe de Reflexão de Comunicação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). A Semana foi marcada, durante os cinco dias, por conferências, oficinas de comunicação e um cinefórum. Foi coordenada pelo Pe. Dr. Domingos Nandi, nosso Professor de Comunicação e Homilética, A Conferência de abertura, na manhã de segunda-feira, foi sobre “O fenômeno comunicacional na atualidade” com Dr. Fausto Neto, pesquisador do CNPq; membro do Comitê Científico do CNPq (área de comunicação); professor titular da UNISINOS; co-fundador da Associação Nacional de Programas de Pós-Graduação em Comunicação – Compós. No mesmo dia, à noite, houve a conferência sobre “Teologia da Comunicação”. Na terça, também à noite, a conferência foi sobre “Da sociedade dos mídias à midiatização da sociedade”. O período noturno da quarta-feira foi reservado para o Cinefórum, sobre o filme “Homens e Deuses”, do diretor francês Xavier Beauvois. Quinta-feira foi a vez da conferência sobre “Internet e espiritualidade”. O encerramento da Semana foi com uma conferência sobre “O pensamento das Igrejas sobre a comunicação”. Todas essas conferências foram proferidas pelo assessor. Uma das novidades da Semana Teológica foram as oficinas de comunicação: Fonoaudiologia, fotografia, mídias sociais, blog, texto jornalístico e comunicação pedagógica. A oficina de “Mídias Sociais” foi orientada por Fabíola Goulart, da Agência Dominus. Fabíola é jornalista e atua na área do Jornalismo religioso. Essa oficina teve por objetivo fazer conhecer como funcionam as redes sociais para saber como utilizá-las de forma mais eficiente. Conhecer bem o que cada mídia social faz, segundo Fabíola, é importante para saber utilizá-las de acordo com o conteúdo que temos e o público que queremos atingir, qualificando assim as postagens em vista da 178 Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Crônicas evangelização. Essa oficina ofereceu uma visão geral da rede e algumas estratégias para que os participantes possam dela bem desfrutar. A oficina de “Blogs” foi orientada por Felipe dos Santos. Felipe, entre outras atividades, ministra oficinas de Blog em vários Estados brasileiros, pela Pascom Nacional da CNBB. Essa Oficina ofereceu orientações sobre: hospedagem, endereço, layout, conteúdo, texto e imagem. E ainda: exercícios práticos e dicas concretas que animaram os participantes para a criação ou revitalização de blogs. A oficina de “Iniciação Fotográfica” foi orientada por Virginia Yunes, fotógrafa de renome internacional. Entre suas premiações está a da XI Bienal Brasileira de Arte Fotográfica. A Semana Teológica contou com uma mostra de sua arte. Nessa oficina, os participantes puderam conhecer melhor suas máquinas e o seu funcionamento básico, explorando os recursos que elas oferecem. Por meio de um exercício de leitura de imagens, foram apresentados os elementos básicos da composição fotográfica. Isso, com o objetivo de aprimorar a estética e não cometer erros que podem ser evitados. A oficina de “Redação Jornalística” teve como orientador o jornalista Zulmar Faustino, do Jornal da Arquidiocese. Essa oficina ofereceu de forma teórica e prática as características de uma boa notícia, evidenciando como se pode evangelizar por meio de notícias. A oficina de “Comunicação Pedagógica” foi orientada pelo prof. André Marcos Vieira Soltau. Mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina; Professor titular do Centro Universitário de Brusque, atuando em disciplinas da área de História e Semiótica, André Soltau é historiador formado pela Universidade Federal de Santa Maria/ RS. A oficina de comunicação pedagógica teve por objetivo ajudar na arte de ensinar e aprender, revelando como a nova ambiência oferecida pelos meios de comunicação desafia o processo educativo. Essa oficina ofereceu estratégias para uma comunicação dialógica entre docentes e discentes. Ofereceu, igualmente, recursos didáticos para dinamizar uma aula e facilitar a aprendizagem. A oficina de “Fonoaudiologia” foi orientada por Íngrid Vieira. Nessa oficina, os participantes tiveram a oportunidade de conhecer melhor seu aparelho fonador. Na parte prática, fizeram exercícios e receberam orientações referentes aos cuidados da voz. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 179 Crônicas Discurso em nome dos Bacharelandos de 2011 No dia 08-12, data consagrada à Imaculada Conceição, após a Eucaristia de encerramento do ano acadêmico, deu-se a solenidade de Formatura dos novos Bachareis do curso de Teologia do ITESC. Em número de 15, eles haviam prestado seu exame “de universa” no dia anterior, perante uma banca de três examinadores, sob a presidência do Pe. Dr. Manuel Hurtado SJ, da Faculdade de Teologia da Companhia de Jesus, de Belo Horizonte, à qual estamos afiliados. Em nome da turma, assim falou o representante dos formandos, Kelvin B. Kons: “Este é o dia que o Senhor fez para nós, alegremo-nos e nele exultemos!” (Sl 118,24) É com imenso júbilo que nós chegamos a este esperado dia. Transcorreram 4 anos intensos de estudos, buscando compreender a nossa fé, introduzindo-nos nos divinos mistérios. Este dia é dia de alegria e de ação de graças. Muitas foram as bênçãos que o Senhor nos concedeu. Também as dificuldades, tensões e problemas foram fundamentais. Firmes em nosso propósito, com a graça de Deus, fomos perseverantes. Buscamos viver intensamente cada etapa. E as dificuldades valeram como preciosas experiências, que nos impulsionaram para seguir em frente. Guardaremos em nosso coração os anos que vivemos neste Instituto. Em nossa história, muitos colegas que começaram a jornada conosco tomaram rumos diferentes: dos 37 acadêmicos que iniciaram o curso de Teologia aqui, em 2008, apenas 15 estão entre os concluintes. Alguns interromperam os estudos para realização de um Estágio Pastoral; outros, discernindo sua vocação, vieram a deixar o Seminário e, consequentemente, o curso de Teologia. Outro colega veio a integrar a nossa turma, após uma experiência na comunidade dos Focolares. Dois professores partiram para a eternidade no período em que lecionavam para nós: Pe. Dr. Carlos Rogério Groh e Pe. Ms. Sérgio Maykot. Que estejam fruindo do descanso eterno junto ao Bom Pastor, a quem tanto serviram e verdadeiramente amaram. Neste momento, prestes a sermos diplomados, não nos encontramos apenas em um ponto de chegada. Abre-se diante de nós um largo campo de missão. Hoje é um dia de partida e de envio. Não somos teólogos prontos. Aprenderemos cada dia a fazer teologia e a sermos realmente teólogos. 180 Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Crônicas Amanhã estaremos seguindo caminhos diferentes, mas sempre unidos na mesma fé que buscamos compreender e aprofundar nestes anos de faculdade. Também precisamos estar unidos num só coração, intercedendo uns pelos outros, ajudando-nos e encorajando-nos mutuamente, a fim de que, como ministros da Igreja, nosso serviço seja sempre mais fecundo, para a glória de Deus e a santificação de seu povo. Concluímos um curso que visa em seu caráter ideal capacitar pessoas a cooperarem na implantação do Reino de Deus. À nossa frente, desafiando-nos, está o desconhecido representado pela própria natureza da existência. “A quem muito se deu, dele muito se exigirá; e a quem muito se entregou, muito mais se pedirá” (Lc 12,49). Muito nos foi dado nestes 4 anos. Aliás, não só recebemos, mas também nós doamos, trocamos, construímos. Toda a nossa Teologia é um tesouro, que trazemos em nossa fragilidade de vasos de barro que somos (cf. 2Cor 4,7). Vivemos em um século de transições, de mudanças, de substituição de valores. Diante desses desafios, a nossa responsabilidade como anunciadores da Palavra se faz deveras exigente. As pessoas hão de exigir de nós que interpretemos os fatos históricos contemporâneos à luz da Revelação divina. Além dos conhecimentos, é preciso confiança em Deus e coragem profética. Como, então, iremos nos inserir nesse contexto como teólogos? Se os engenheiros que se formam irão projetar edifícios, os administradores gerenciar finanças, os advogados promover a justiça e os médicos o tratamento das enfermidades, o que nós, teólogos, faremos? Nossa missão é proclamar a verdade dinâmica de um Deus eterno, presente na história e interessado pelos problemas humanos. De um Deus que é a afirmação para todas as dúvidas e ansiedades humanas. Pois, como declarou Santo Agostinho, “inquieto está o nosso coração enquanto não repousa em ti, Senhor”. É preciso que nos desloquemos dos nossos lugares confortáveis para que possamos manter um encontro e diálogo com o ser humano no contexto dos seus problemas. Para, ali, darmos nosso testemunho. Esse testemunho não é, necessariamente, um testemunho por meio de palavras, mas um testemunho do serviço, do amor. É chegado o tempo de assumir a nossa responsabilidade como participantes nas dores do mundo. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 181 Crônicas É através do serviço, da doação incondicional no amor, que a Igreja pode dar sabor ao mundo com o sal do Evangelho. Necessitamos readquirir constantemente nosso teor de salinidade, para que possamos ser fiéis ao que de Deus recebemos. O homem busca transcender as suas limitações. O ser humano almeja o infinito, o eterno. E é no encontro com Cristo que o ser humano alcança o “novo ser”, transcendendo assim as suas próprias limitações para tornar-se “filho de Deus”. Cristo veio tornar possível, real, o que antes era apenas potencial. Ele veio libertar o ser humano dos grilhões de sua limitação, do pecado. Esta é a nossa tarefa e Cristo bem a definiu quando enviou seus apóstolos: “Sereis minhas testemunhas...” (At 1,8). Temos que anunciar aos homens e mulheres de nossa época que Cristo é o meio que eles têm de tornar concretas as potencialidades imensas que eles possuem. É preciso que Deus seja trazido para a esfera da experiência humana, para a esfera de uma relação pessoal do tipo “Eu-Tu”, onde o interlocutor divino encontre resposta no humano! Nosso anúncio não será apenas a proclamação de conceitos a respeito de Deus, mas sim uma demonstração da relação que mantemos com ele. No dizer de Unamuno, filósofo espanhol, “a vida é uma luta e a solidariedade pela vida é luta e só se faz em meio à luta”. Eis o campo do mundo à nossa frente! Coloquemo-nos na luta. Assim seremos ministros de uma Igreja Sacramento de Salvação e verdadeiramente sinal profético do Reino de Deus. Florianópolis, ITESC, 8-12-2011. 182 Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Encontros Teológicos – 25 anos REVISTA “ENCONTROS TEOLÓGICOS” 1986 – 25 ANOS – 2011 Títulos dos 60 números monográficos 1986, n. 1 (1986/1): O Leigo na Igreja n. 2 (1986/2): Planejamento Pastoral do Regional Sul IV – Contribuições 1987, n. 3 (1987/1): A Mulher, ontem e hoje 1988, n. 4 (1988/1): No Ano Mariano, Maria n. 5 (1988/2): Comunicação e Evangelização 1989, n. 6 (1989/1): Religiosidade Popular em Santa Catarina n. 7 (1989/2): Experiências Pastorais em Santa Catarina 1990, n. 8 (1990/1): A Mulher, na Igreja e na Sociedade n. 9 (1990/2): O Trabalho 1991,n. 10 (1991/1): A visita do Papa à Igreja que está em Santa Catarina n. 11 (1991/2): Os Jovens e a Juventude 1992,n. 12 (1992/1): Evangelização da América Latina – 500 anos e †Pe. Paulo Bratti – 10 anos n. 13 (1992/2): Fraternidade e Moradia – CF 1993 1993, n. 14 (1993/1): Santo Domingo – o Documento e ITESC – 20 anos n. 15 (1993/2): Fraternidade e Família – CF 1994 1994, n. 16 (1994/1): Política e Igreja e Centenário de Dom Jaime de Barros Câmara n. 17 (1994/2): Fraternidade e Excluídos – CF 1995 1995, n. 18 (1995/1): A Era do Espírito n. 19 (1995/2): Fraternidade e Política – CF 1996 Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 183 Encontros Teológicos – 25 anos 1996, n. 20 (1996/1): Espiritualidade e Espiritualidades n. 21 (1996/2): Fraternidade e Encarcerados – CF 1997 1997, n. 22 (1997/1): Cristo, Fé e Batismo n. 23 (1997/2): Fraternidade e Educação – CF 1998 1998, n. 24 (1998/1): Espírito Santo, Esperança e Crisma n. 25 (1998/2): Fraternidade e Desempregados – CF 1999 1999, n. 26 (1999/1): Deus Pai, Caridade e Reconciliação n. 27 (1999/2): CF 2000 Ecumênica: Por um Milênio sem exclusões 2000, n. 28 (2000/1): Trindade, Eucaristia, Jubileu n. 29 (2000/2): CF 2001: Vida, sim; drogas, não! 2001, n. 30 (2001/1): Ser Igreja no novo Milênio n. 31 (2001/2): CF 2002: Fraternidade e Povos indígenas 2002, n. 32 (2002/1): CNBB: 50 anos de serviço à Evangelização no Brasil n. 33 (2002/2): Concílio Vaticano II: 40 anos depois 2003, n. 34 (2003/1): CF 2003: Fraternidade e Pessoas Idosas n. 35 (2003/2): Ética e Teologia n. 36 (2003/3): ITESC – 30 anos 2004,n. 37 (2004/1): CF 2004: Fraternidade e Água n. 38 (2004/2): O escândalo da Fome n. 39 (2004/3): Lumen Gentium – 40 anos Pessoa, Comunidade, Sociedade 2005, n. 40 (2005/1): CF 2005 Ecumênica: Solidariedade e Paz n. 41 (2005/2): A Eucaristia: Ele está no meio de nós n. 42 (2005/3): Gaudium et Spes – 40 anos 2006, n. 43 (2006/1): CF 2006: Fraternidade e Pessoas com deficiência n. 44 (2006/2): XV Congresso Eucarístico Nacional – maio de 2006 n. 45 (2006/3): Conferência Geral do Episcopado Latino Americano e Caribenho Aparecida – preparação 184 Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Encontros Teológicos – 25 anos 2007, n. 46 (2007/1): CF 2007: Amazônia, Vida e Missão nesse chão n. 47 (2007/2): Espiritualidade n. 48 (2007/3): A Igreja em Santa Catarina 2008,n. 49 (2008/1): CF 2008: Fraternidade e Defesa da Vida n. 50 (2008/2): A Igreja em Santa Catarina – II n. 51 (2008/3): A Igreja no Documento de Aparecida 2009, n. 52 (2009/1): CF 2009: Fraternidade e Segurança Pública n. 53 (2009/2): Ano Sacerdotal: 2009-2010 n. 54 (2009/3): Diaconato Permanente 2010, n. 55 (2010/1): CF 2010 Ecumênica: Economia e Vida n. 56 (2010/2): Igreja e Sociedade n. 57 (2010/3): O Projeto Pastoral de Aparecida 2011, n. 58 (2011/1): CF 2011: Fraternidade e a Vida no Planeta 2011, n. 59 (2011/2): VERBUM DOMINI: Exortação pós-sinodal de Bento XVI 2011, n. 60 (2011/3): Presbítero: vida e missão Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 185 (Faça uma cópia, caso não queira recortar esta página da revista!) Índice Geral ÍNDICE GERAL dos números 58, 59 e 60 (2011/1, 2 e 3) a) Índice Geral dos 3 números monográficos – No. 58 (2011/1): CF 2011 – Fraternidade e a Vida no planeta - LORASCHI, Celso. “Crise e esperança: A CF 2011 e a Igreja Samaritana”, pp. 11-24. - SCHINKE, Gert. “Ecologia Política”, pp. 25-38. - NEVES, Pedro Paulo das. “Ética e Ecologia”, pp. 39-50. - FRANZEN, Ir. Delci Maria. “Mudanças Climáticas”, pp. 51-66. - MORAES, OSM, Frei Carlos Paula de. “Bioética ambiental personalista”, pp. 67-76. - MAÇANEIRO, Marcial. “Ética e episteme: contribuição das religiões para a ecologia”, pp. 77-92. - STADELMANN, SJ, Luis. “Religiões bíblicas baseadas na Aliança Sagrada”, pp. 93-106. - KRIEGER, SCJ, Murilo S. R. “Caritas in veritate”, pp. 107-116. - MAIA, Geraldo. “Imagens e verdadeira face de Deus”, pp. 117-130. - “Teologia, Economia e Ecologia: Síntese da Semana Teológica realizada no ITESC nos dias 20 a 24 de setembro de 2010”, pp. 131-154. - “VERBUM DOMINI: Exortação Apostólica pós-Sinodal do Papa Bento XVI”, Entrevista com Johan Konings, pp. 155-164. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 187 Índice Geral - PEREIRA, Ney Brasil, VIEIRA, Paulo Leonardo Medeiros, “Deus no banco dos réus. Uma resposta da Ciência ao Ateísmo Militante” (recensão), pp. 165-170. – No. 59: VERBUM DOMINI, Exortação pós-sinodal de Bento XVI - WOLFF, Pe. Elias. “O diálogo ecumênico e interreligioso na Verbum Domini”, pp. 11-26. - KONINGS, Johan. “‘Verbum Domini’ e a hermenêutica bíblica”, pp. 27-42. - LORASCHI, Celso. “Justiça – Reconciliação – Paz: Palavra de Deus e compromisso no mundo na Verbum Domini”, pp. 43-54. - RAMADA, Daniel. “Dimensões epistemológicas na economia da revelação e Verbum Domini”, pp. 55-84. - SOAVE, Maria. “‘Ho lógos pachýnetai’: o Verbo abreviou-se”, pp. 85-102. - STADELMANN, SJ, Luis. “A Palavra de Deus no Antigo e no Novo Testamento”, pp. 103-130. - COMBLIN, José (†26-03-2011, in memoriam). “O pobre, critério para a profecia”, pp. 131-154. - BESEN, José Artulino. A criação geme em dores de parto: CF-2011, pp. 155-166. - SUESS, Paulo. “Aonde vais, Igreja? Leitura das novas Diretrizes Gerais da CNBB” (comunicação), pp. 167-174. - PEREIRA, Ney Brasil, CASEL, Dom Odo, “O mistério do culto no cristianismo” (recensão), pp. 175-183. - PEREIRA, Ney Brasil, FONSECA, OFM, Joaquim, “Música Ritual de Exéquias: Uma proposta de inculturação” (recensão), pp. 184-188. - ULIANO, Rafael, SILVA, Maria Ferreira da, “Trindade, criação e ecologia” (recensão), pp. 189-195. - BARAUNA, Fernando Maico, PAGOLA, José Antonio, “Jesus, aproximação histórica” (recensão), pp. 196-201. 188 Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Índice Geral – No. 60: Vida e missão do presbítero - RASCHIETTI, Stefano. “O presbítero e a missão”, pp. 9-30. - STADELMANN, SJ, Luis I. J. “Ministério presbiteral na Igreja”, pp. 31-44. - SALVADOR, OFM Cap, Ângelo Domingos. “Formação presbiteral inicial e permanente”, pp. 45-79. - LIMBERGER, Anselmo Matias. “O presbítero a partir do Documento de Aparecida”, pp. 81-94. - OLIVEIRA, José Lisboa Moreira de. “Desafios atuais para a formação eclesial”, pp. 95-110. - BACARJI, Arlene Denise. “A Igreja, a homossexualidade e o clero”, pp. 111-127. - SENEM, Cleiton José. “Celebração e Vida: dois momentos inseparáveis da Celebração Eucarística”, pp. 129-148. - STAEHELIN, Agostinho. “Homilia gratulatória: Jubileu de Ouro presbiteral do Pe. Paulo De Coppi, PIME”, pp. 149-152. - LIBANIO, João Batista, TABORDA, Francisco, “A Igreja e seus ministérios. Uma teologia do ministério ordenado” (recensão), pp. 153-159. - BOMBAZAR, Lucas Fernandes, MOLTMANN, Jürgen, “No fim, o início: breve tratado sobre a esperança” (recensão), pp. 160-167. - ACQUAROLI, Armando Rafael Castro, EBEJER, Walter Michael, Dom, OP, “A teoria platônica das formas: com especial referência à cosmologia no Timeu” (recensão), pp. 168-173. b) INDICE GERAL dos três números monográficos de 2011, por Autor - ACQUAROLI, Armando Rafael Castro, EBEJER, Walter Michael, Dom, OP, “A teoria platônica das formas: com especial referência à cosmologia no Timeu” (recensão), n. 60 (2011/3), pp. 168-173. Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 189 Índice Geral - BACARJ, Arlene Denise, “A Igreja, a homossexualidade e o clero”, n. 60 (2011/3), pp. 111-127. - BARAUNA, Fernando Maico, PAGOLA, José Antonio, “Jesus, aproximação histórica” (recensão), n. 59 (2011/2), pp.196201. - BESEN, José Artulino, “A criação geme em dores de parto: CF 2011. O mistério da criação do nada, do amor”, n. 59 (2011/2), pp. 155-166. - COMBLIN, José +26-03-2011, in memoriam: “O pobre, critério para a profecia”, n. 59 (2011/2), pp. 131-154. - FRANZEN, Ir. Delci Maria, “Mudanças climáticas”, n.58 (2011/1), pp. 51-66. - KONINGS, Johan, “VERBUM DOMINI, Exortação póssinodal do papa Bento XVI” (entrevista), n. 58, (2011/1), pp. 155-164. - KONINGS, Johan, “VERBUM DOMINI e a hermenêutica bíblica”, n. 59 (2011/2), pp. 27-42. - KRIEGER, Murilo Sebastião Ramos, SCJ, “Caritas in Veritate”, n. 58 (2011/1), pp. 107-116. - LIBANIO, João Batista, TABORDA, Francisco, “A Igreja e seus ministérios. Uma teologia do ministério ordenado” (recensão), n. 60 (2011/3), pp. 153-159. - LIMBERGER, Anselmo Matias, “O Presbítero a partir do Documento de Aparecida”, n. 60 (2011/3), pp. 81-94. - LORASCHI, Celso, “Crise e esperança: a CF 2011 e a Igreja Samaritana”, n. 58 (2011/1), pp. 11-24. - LORASCHI, Celso, “Justiça-Reconciliação-Paz: Palavra de Deus e compromisso no mundo, na Verbum Domini”, n. 59 (2011/2), pp. 43-54. - MAÇANEIRO, Marcial, “Ética e Episteme: contribuição das religiões para a Ecologia”, n. 58 (2011/1), pp. 77-92. - MAIA, Geraldo, “Imagens e verdadeira face de Deus”, n. 58 (2011/1), pp. 117-130. - MORAES, Frei Carlos Paula de, OSM, “Bioética ambiental personalista”, n. 58 (2011/1), pp. 67-76. 190 Encontros Teológicos nº 60 Ano 26 / número 3 / 2011 Índice Geral - NEVES, Pedro Paulo das, “Ética e Ecologia”, n. 58 (2011/1), pp. 39-50. - OLIVEIRA, José Lisboa Moreira de, “Desafios atuais para a formação eclesial”, n. 60 (2011/3), pp. 95-110. - PEREIRA, Ney Brasil, VIEIRA, Paulo Leonardo Medeiros, “Deus no banco dos réus. 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