Para outras leituras do jornalismo literário
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Para outras leituras do jornalismo literário
Grupo de Trabalho (6) – Ética e Teorias do Jornalismo Para outras leituras do jornalismo literário Jacques Mick1 Letícia Caroline da Silva2 RESUMO O artigo procura contribuir com a identificação de alternativas teóricas para avançar num problema apontado por diversos pesquisadores: a dependência de uma noção de senso-comum ligada à ficção gera uma interpretação insatisfatória do jornalismo literário. Para tanto, aponta dois caminhos de reflexão, complementares a artigo de Vogel (2005). O ponto de partida é aceitar a ficção como um elemento comum a todos os discursos; a partir disso, propõe-se pensar o jornalismo literário para além de relações dualistas entre verdade/mentira, bom/mau, realidade/ficção. O primeiro caminho de reflexão é o conceito de “forma encrática”, no contexto dos regimes estéticos teorizados por Rancière. O segundo aponta o conceito de mímesis como fundamental para uma teoria do texto jornalístico. O artigo baseia-se em pesquisa ainda em andamento; propõe questões, mas não oferece respostas. PALAVRAS-CHAVE: jornalismo literário; ficção; mímesis. A crítica das formas jornalísticas que se aproximam da literatura, designadas por expressões tais como “jornalismo literário” ou new journalism, costuma se basear em conceitos tradicionais que não contribuem para a compreensão do objeto a que se dedicam. Por não compreenderem o que é a literatura para além do senso comum, os primeiros intérpretes do jornalismo literário não conseguiram responder à indagação essencial sobre em que consistiria a diferença entre o discurso jornalístico e a literatura3. Nos últimos anos, releituras dos textos canônicos sobre este tema no Brasil têm apontado algumas dessas inconsistências e destacado a importância de oxigenar a reflexão sobre os gêneros jornalísticos, propondo a adoção de categorias formuladas recentemente pela filosofia ou pela crítica literária4. A maioria das críticas do jornalismo literário parte do mesmo princípio, ao estabelecer uma dicotomia entre realidade e ficção. Daisi Vogel (2005) se afasta da 1 Jornalista, Doutor em Sociologia Política (UFSC), Professor da Associação Educacional Luterana Bom Jesus/Ielusc, email: [email protected] 2 Estudante do 8º semestre do curso de graduação em Comunicação Social – Jornalismo da Associação Educacional Luterana Bom Jesus/Ielusc, email: [email protected] 3 É o caso de Lima, E. (1995); Lima, A. (1990); Bianchin (1997); Vilas Boas (2003); e mesmo do recente Pena (2006). 4 Pensamos, por exemplo, em Vogel (2005); Lima, L. (2006); Resende (2002); Cosson (2007). 1 discussão corrente para propor outras possibilidades. Para ela, a ficção é um elemento implícito de todos os discursos, uma vez que, ao depender da linguagem, o autor se vale de processos cognitivos e imaginativos para recompor os acontecimentos e transcrevêlos. Não se trata, pois, de confundir ficção com falsidade ou mentira, mas de perceber que todo relato, mesmo o que se ampara estritamente na fidelidade histórica e no trabalho de checar, não prescinde de estratégias que são, afinal, estratégias da ficção. (VOGEL, 2005, p. 4) Desse ângulo, a ficção não seria uma ferramenta estritamente literária – assim como a não-ficção tampouco seria característica extra-literária. Essa diluição de uma fronteira tradicional reforça o “parentesco também essencial entre a narrativa jornalística e a narrativa literária, na medida em que todo relato jornalístico, mesmo o mais fatual, organiza suas temporalidades, seus personagens e suas causalidades lançando mão dos mesmos recursos de que dispõem as narrativas da imaginação” (VOGEL, 2005, p. 4). A autora considera que a ficção é dotada de uma “verdade reflexiva”, constituída por uma “disposição refeita, inteligível e partilhável de signos”, especialmente propícia a fortalecer os relatos jornalísticos, contra a deterioração das narrativas, provocada pela experiência do tempo típica da pós-modernidade5: no jornalismo, a busca pela simultaneidade começa a condicionar e exaurir os relatos. Uma das conseqüências possíveis dessa exaustão é o desgaste no compartilhamento de experiências, cada vez mais padronizadas e simplificadas pela consonância dos noticiários, bem como a validação de uma compreensão limitada, porque pontual, dos encadeamentos e lapsos espaço-temporais. (VOGEL, 2005, p. 6) Além de Benjamin, Agamben e Genette quanto ao tempo e à narrativa, Vogel dialoga com Foucault e Barthes quanto ao conceito de ficção, e com Hayden White, num paralelo entre jornalismo e história. Para não repeti-la, neste artigo discutimos dois conceitos que a nosso ver se articulam com essas premissas, na busca de uma outra fundamentação teórica para interpretar o jornalismo literário: o de linguagens encráticas, desenvolvido por Barthes e Rancière; e o de mímesis, por Costa Lima. 5 A autora dialoga com Benjamin (1994), para quem a narração é um trabalho artesanal baseado na experiência contada de pessoa a pessoa. A partir do momento em que a era industrial passa a tomar conta dos processos artísticos, a tradição do trabalho manual se perde e consequentemente a narração se extingue. O ritmo industrial exige rapidez, veracidade e transmissão de informação, características incompatíveis com o sentido mítico e educativo das narrações. Pautada pela corrida contra o tempo e a obsessão pelos acontecimentos presentes, a cada vez a narrativa jornalística empobrece. 2 1. As formas encráticas As formas “padronizadas e simplificadas”, advindas com a morte da narração, podem ser consideradas como linguagens encráticas6. Esse tipo de linguagem é aquele que por ser altamente difundido ganha proteção das instituições de poder e torna-se oficial. A narrativa jornalística tradicional (correspondente à estrutura de lide e pirâmide invertida) poderia ser considerada uma linguagem encrática, pois consolidou um tipo de discurso, amparado por instituições que lhe conferem credibilidade, como a empresa jornalística, os editores e os repórteres. Assim, quando o jornalismo literário nasceu, reivindicou-se como uma forma de fugir desse tipo de linguagem, a fim de produzir um discurso que promovesse outros tipos de sensações e entendimentos. Há tipos de textos que permitem a brincadeira lúdica. O texto de fruição7 é o que permite o jogo, pois deixa espaços, as chamadas “fendas”, nos quais o leitor pode encaixar seu conhecimento e sua cultura, e dialogar com a narrativa. O jornalismo literário pode ter nascido como um texto de fruição, que em comparação com a factualidade do jornal diário, causava estranheza, mas também permitia jogos entre história e leitor. A linguagem encrática pode se valer de regimes estéticos da arte, conforme expressados por Rancière (2005). Essas práticas estéticas definem o “fazer político” das artes, ou seja, proporcionam maneiras de se pensar a arte como tal, inserida na comunidade. Os regimes de arte são compostos, em geral, de uma historicidade, que leva em conta o contexto e as decisões de ruptura que surgem no interior do próprio regime e contribuem para mudanças nos fazeres. O objetivo desses regimes é encobrir os modos de produção dos discursos, com o intuito de produzir uma “falsa ilusão do real”. Mesmo não sendo habitualmente considerado arte, o jornalismo literário tem um regime estético, que pode ser o mesmo do jornalismo factual, pois se vale de elementos retóricos para encobrir seus modos de fazer, transmitindo assim credibilidade aos leitores. Os regimes não têm característica de novidade, são reinterpretações do velho: coisas que não eram consideradas artísticas passam a ter esse cunho. O jornalismo literário é uma reciclagem do jornalismo tradicional, para se enquadrar como arte e legitimar o caráter “salvador” do novo gênero. 6 O conceito, assim como o de linguagem encrática, aparece originalmente em Barthes (2006). Barthes explicita a diferença entre texto de prazer e de fruição. O de prazer seria aquele que segue padrões já conhecidos, não questiona valores e por isso deixa o leitor em um lugar confortável. 7 3 O regime estético das artes não opõe o antigo e o moderno. Opõe, mais profundamente, dois regimes de historicidade. É no interior do regime mimético que o antigo se opõe ao moderno. No regime estético da arte, o futuro da arte, sua distância do presente da não-arte, não cessa de colocar em cena o passado. (RANCIÈRE, 2005, p. 35) Até que ponto o jornalismo literário não está se tornando uma linguagem encrática? 2. Jornalismo e mímesis Uma das ferramentas que conforma o regime é a mímesis. Por muito tempo, a mímesis foi considerada um ato de ludibriar os leitores – mais especificamente, os espectadores das tragédias gregas. A mímesis, diz Rancière, não é a forma normativa, que diz o que o regime tem que fazer, mas é o regime de visibilidade. É a partir da identificação da mímesis que o leitor vai reconhecer os discursos. Não assumir a ficção como uma ferramenta implícita das estratégias textuais não é enganar os leitores, mais ainda do que as tragédias e poemas apresentados aos gregos? A aceitação da mímesis e do ficcional passa pela crítica ao conceito de verdade como correspondência, desenvolvida desde Nietzsche. Para se constituir como sujeito, o homem se vale da linguagem para criar convenções que sejam identificáveis em diferentes contextos e reconhecidas pela coletividade. Se a linguagem, por si, já é um conjunto de convenções arbitrárias8, a verdade se delimita ao universo da ética – ou seja, não mais se refere à relação entre o relato e a “coisa em si”, já que a verdade como discurso é uma impossibilidade lógica: ninguém se vale de verdades, mas de metáforas utilizadas para nomear as coisas e torná-las “real”. A relação entre discursos factuais e ficcionais fica aí em suspenso. Qual a diferença entre jornalismo, história e literatura, uma vez que se valem de ferramentas comuns? Sendo discurso, a história é formulada pela linguagem. Sendo linguagem, o que a diferencia do discurso poético ou do discurso narrativo? O que delimita o teor de veracidade de seu conteúdo? Não seriam as convenções pré-estabelecidas, que contribuem para a institucionalização dos textos e a conseqüente criação de linguagens encráticas? 8 Para Michel Foucault, a linguagem é tida como um sistema de signos, que se estabelece com relações arbitrárias de semelhança e diferença. Para Nietzsche, como é sabido, verdade é “uma designação uniformemente válida e obrigatória das coisas, e a legislação da linguagem dá também as primeiras leis da verdade: pois surge aqui pela primeira vez o contraste entre verdade e mentira” (NIETZSCHE, 1987, p. 32). 4 Luiz Costa Lima (2006) defende que o discurso histórico se vale de aporias, ou seja, premissas pré-definidas e inquestionáveis, criadas por autoridades e reconhecidas amplamente pelos indivíduos. Na passagem da épica para Heródoto e deste para Tucídides, acentua-se a solidificação da via aporética — eu, homem, sem assistência de qualquer outro ser, digo o que me disseram ou presenciei e julgo ser verdadeiro e, com minha palavra, torno justa a ambição de escrever para os que me escutam e para os que, depois, me lerão (LIMA, 2006, p. 61). Como o jornalismo, a história está fundamentada na aporia da verdade. Ao apresentar-se como narrativa verdadeira, em oposição à força da épica, a partir de 400 aC, a história deflagra seu próprio processo de legitimação. Seria possível estabelecer paralelos entre o embate da história contra a épica e o processo de legitimação do jornalismo, contra outros discursos “verdadeiros” desde o início da modernidade? Qual o lugar do jornalismo literário nessa estratégia de legitimação? REFERÊNCIAS BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 2006. BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. 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