a revolução cubana e a busca pela democracia em cuba

Transcrição

a revolução cubana e a busca pela democracia em cuba
Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC
Centro Sócio Econômico – CSE
Departamento de Ciências Econômicas e Relações Internacionais
A REVOLUÇÃO CUBANA E A BUSCA PELA DEMOCRACIA EM
CUBA
FERNANDA DA ROSA DUARTE
FLORIANÓPOLIS, 2013
2
FERNANDA DA ROSA DUARTE
A REVOLUÇÃO CUBANA E A BUSCA PELA DEMOCRACIA EM
CUBA
Monografia submetida ao Departamento de Ciências
Econômicas para obtenção da carga horária na
disciplina CNM 5420 – Monografia, como requisito
obrigatório para a aquisição do grau de Bacharelado.
Orientador: Professor Nildo Domingos Ouriques
FLORIANÓPOLIS, 2013
3
FERNANDA DA ROSA DUARTE
A REVOLUÇÃO CUBANA E A BUSCA PELA DEMOCRACIA EM
CUBA
Monografia apresentada como requisito obrigatório para obtenção do grau de Bacharel
em Ciências Econômicas pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Área de
concentração: Economia.
Data da aprovação:
A Banca Examinadora resolveu atribuir nota 9,0 à aluna Fernanda da Rosa Duarte na
disciplina CNM 5420 – Monografia, pela apresentação deste trabalho.
Banca Examinadora:
------------------------------------------------Prof. Dr. Nildo Domingos Ouriques
Universidade Federal de Santa Catarina
-------------------------------------------------Prof. Dr. Waldir José Rampinelli
Universidade Federal de Santa Catarina
------------------------------------------------Prof. Daniel Corrêa da Silva
Universidade Federal de Santa Catarina
4
RESUMO
A Revolução Cubana e o sistema político adotado em Cuba a partir de 1959 é motivo de
muita polêmica acerca da questão de se tratar ou não de uma democracia. Para
compreender o que aconteceu na ilha, vamos conceituar brevemente o que é
dependência e como ela é construída a partir do colonialismo e do neocolonialismo. Em
seguida será feita uma análise do período pré-revolucionário e de como foram criadas as
condições para uma revolução social. Estabelecido o governo revolucionário,
verificamos as mudanças sofridas na economia e na política do país. Trataremos dos
conceitos de democracia liberal e socialista para que a partir deles possamos caracterizar
o sistema político cubano.
Palavras-chave: Revolução Cubana; Democracia.
5
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 6
1.1. Tema e problema ..................................................................................................... 6
1.2. Objetivos ................................................................................................................... 7
1.2.1. Objetivo Geral ...................................................................................................... 7
1.2.2. Objetivos Específicos ............................................................................................ 7
1.3. Justificativa .............................................................................................................. 7
1.4. Metodologia .............................................................................................................. 8
2. REFERENCIAL TEÓRICO-METODOLÓGICO ................................................. 9
3. A REVOLUÇÃO CUBANA .................................................................................... 15
3.1. Cuba Pré-Revolucionária ..................................................................................... 15
3.1.1 Período Colonial .................................................................................................. 15
3.1.2 Período pós-independência - Neocolonial .......................................................... 19
3.2 A tradição de luta do povo cubano ....................................................................... 25
3.3 Greve Geral ............................................................................................................. 30
3.4 Cuba Revolucionária .............................................................................................. 32
3.4.1 Transição para a etapa socialista ....................................................................... 35
3.4.2 A política estadunidense de hostilidade a Cuba................................................ 38
3.4.3 O governo revolucionário ................................................................................... 40
4. DEMOCRACIA ........................................................................................................ 47
4.1 Democracia Liberal ................................................................................................ 47
4.2. Democracia Socialista............................................................................................ 54
5. CARACTERIZAÇÃO DO SISTEMA POLÍTICO CUBANO ............................ 57
6. CONCLUSÕES......................................................................................................... 62
REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 64
ANEXO .......................................................................................................................... 66
6
1. INTRODUÇÃO
1.1. Tema e problema
A democracia é uma questão bastante polêmica e controversa, especialmente
quando debatida com profundidade e atenção. O que é democracia? Quais regimes
políticos podem ser considerados democráticos? Não pretendo aqui esgotar o assunto,
mas abordar como uma revolução social pôde promover mudanças políticas e
econômicas tão radicais em um país.
Para fazer compreender o que significa a Revolução Cubana, em primeiro lugar
foi necessário entender Cuba desde sua colonização, quando o país serviu à Espanha e
depois, já independente, como os Estados Unidos conseguiram manter a ilha em uma
relação neocolonial que servia apenas ao seu interesse, e aos interesses de uma
burguesia cubana que, por sua vez era fraca - como toda burguesia nascida em países
dependentes -, incapaz de tomar as rédeas de sua própria economia frente a uma
exploração estrangeira.
Cuba se transformou em uma grande feitoria de açúcar à disposição dos Estados
Unidos; não tinha nem mesmo uma razoável diversificação na produção, tendo,
portanto, que importar não apenas bens de consumo, mas até mesmo alimentos. Os
Estados Unidos impunham a Cuba uma política oposta a praticada em seu território,
onde a diversificação sempre foi uma preocupação, afinal afeta diretamente a liberdade
do país: quanto maior a autossuficiência em manter as necessidades básicas da
população, menos vulnerável ele se torna.
A situação em Cuba era muito crítica para a maioria da população, o que
motivou os movimentos populares, que ganharam o respaldo dos cubanos em geral, de
tal forma – me arrisco a dizer – poucas vezes vista na periferia. Quando, através da
guerrilha o movimento revolucionário chega ao poder, derrubando o exercito e a
ditadura de Fulgêncio Batista, se iniciam as mudanças estruturais no país.
A revolução foi feita pelo povo, portanto deveria servir fundamentalmente ao
interesse do povo. As relações comerciais que Cuba mantinha com os Estados Unidos
eram incompatíveis com os interesses da nação, sofrendo, portanto, alterações.
Entretanto, os Estados Unidos não costumam tolerar a soberania alheia e, em função
disso, romperam relações diplomáticas com Cuba e implementaram um bloqueio
econômico que perdura até os dias atuais trazendo enormes prejuízos econômicos,
7
políticos e culturais para o povo cubano.
O caráter socialista da revolução é assumido quando o governo revolucionário
percebe que dentro do capitalismo não é possível atender às demandas da população. A
democracia liberal não seria capaz de garantir as reformas necessárias no país e muitos
menos assegurar as conquistas sociais criadas pelo movimento revolucionário.
Vamos conceituar brevemente as duas formas de democracia conhecidas na
contemporaneidade, a liberal e a socialista. E, finalmente, caracterizar o sistema político
cubano, sempre com a intenção de responder à pergunta: trata-se de uma democracia?
1.2. Objetivos
1.2.1. Objetivo Geral
 Analisar a Revolução Cubana e o direcionamento político e econômico
tomado ao substituir o capitalismo pelo socialismo.
1.2.2. Objetivos Específicos
 Identificar o processo de evolução do colonialismo ao neocolonialismo,
que leva posteriormente ao estabelecimento da situação de dependência
do país.
 Analisar as motivações da Revolução Cubana e descrever como ocorreu
o processo revolucionário em Cuba.
 Caracterizar o sistema político cubano a partir dos conceitos de
democracia liberal e socialista.
1.3. Justificativa
A Revolução Cubana não tem o espaço merecido nas pesquisas acadêmicas,
sendo absolutamente intrigante a análise dos fatores que possibilitaram, e ainda
possibilitam, a despeito de toda hostilidade, a sustentação de uma revolução de cunho
socialista em um mundo capitalista.
Existe muita especulação a respeito do sistema econômico cubano e de como
vive, desde 1959 até os dias de hoje, a população em Cuba. As informações que
8
recebemos da grande mídia - que, por sua vez, alimenta o senso comum - não
correspondem aos índices de qualidade de vida dos cubanos, nem mesmo aos relatos de
quem conhece o país, fato que terminou por motivar minha pesquisa.
1.4. Metodologia
O presente trabalho de pesquisa constitui-se em uma revisão bibliográfica sobre
a Revolução Cubana, a partir de autores marxistas, bem como a análise dos conceitos de
colonialismo, neocolonialismo e dependência.
É feita a caracterização do sistema político cubano conquistado através da
revolução e sua comparação com os conceitos de democracia liberal e socialista.
9
2. REFERENCIAL TEÓRICO-METODOLÓGICO
Nas fases iniciais do desenvolvimento colonial, onde não havia mão de obra
suficiente para dar conta da produção de cana-de-açúcar, algodão e tabaco, a escravidão
foi a única forma possível de o grande capitalista praticar a monocultura extensiva em
grande escala, através do estabelecimento de uma organização social e econômica
composta por exploradores e explorados. Portanto, a escravidão não aconteceu em
condições normais, mas sim por motivos econômicos, de forma que possibilitasse esse
sistema exploratório. “A escravidão não nasceu do racismo: pelo contrário, o racismo
foi consequência da escravidão. O trabalho forçado no novo mundo foi vermelho,
branco, preto e amarelo; católico, protestante e pagão.” 1.
No Novo Mundo, o indígena foi o primeiro escravo, em seguida substituído pelo
escravo branco e pobre, que trabalhavam em troca do próprio sustento. O negro
substituiu os escravos brancos e indígenas por ter maior capacidade de trabalho e
resistência, sendo assim considerado muito superior em capacidade produtiva.
(...) a escravidão negra foi apenas uma solução, em certas circunstâncias
históricas, para o problema de mão de obra no Caribe. Açúcar significava
mão de obra – às vezes essa mão de obra foi escrava, outras vezes foi
nominalmente livre; às vezes negra, outras vezes branca, indígena ou
amarela. A escravidão não implicava de maneira nenhuma e em nenhuma
acepção científica a inferioridade do negro. Sem ela, o grande
desenvolvimento das fazendas canavieiras do Caribe, entre 1650 e 1850, teria
sido impossível. 2
Através da escravidão e do monopólio, o capitalismo mercantil desenvolveu a
riqueza da Europa no século XVIII, colaborando com a criação do capitalismo industrial
do século XIX, que em momento oportuno, acabou com a escravidão e com todo o
sistema mercantil. A ascensão e queda do mercantilismo significaram também ascensão
e queda da escravidão. E a crise do sistema escravista inicia a partir do momento em
que a produção escravista se tornou mais cara que o produto do trabalho livre.
Observou-se que, além da mão de obra escrava não ser qualificada, trabalhava com
relutância e sem motivação -, por não consumir e ser resumida a uma propriedade. “O
1
2
WILLIAMS, 2012, p. 34.
WILLIAMS, 2012, p. 62.
10
trabalho escravo é mais caro do que o livre sempre que exista uma abundância de
trabalho livre.” 3
O levantamento da questão da falta de consumo do escravo provocou um
conflito estrutural entre os interesses da sociedade industrial nascente e a manutenção de
um sistema escravista, onde o número de consumidores é reduzido, já que escravos não
recebiam salário. Esse processo histórico cria condições para o surgimento do trabalho
assalariado e é fundamental para o desenvolvimento do capitalismo. O trabalhador livre,
já separado dos meios de produção, não tem outra forma de manter seu sustento senão
vendendo sua mão de obra ao capitalista. Com o salário, gera consumo para a indústria
nascente, e o capitalista ainda se apropria da mais-valia de seu trabalho. O único insumo
que produz valor é o trabalho. Portanto, o trabalho livre é um grande negócio em pelo
menos três sentidos: (i) a qualidade do trabalhador livre; mais preocupado com sua
própria qualificação, se torna superior a do trabalho escravo, (ii) não é mais preciso
comprá-lo; o trabalhador livre está disponível no mercado gratuitamente, e libera o
contratante de arcar com o seu sustento, transferindo para si o que antes era
preocupação de quem tinha sua posse. E, finalmente, (iii) amplia o consumo, tendo nos
antigos escravos um novo mercado consumidor. Como o trabalhador está separado dos
meios de produção, tem que se sujeitar ao salário pago pelo capitalista se quiser
sobreviver, se alimentar, subsistir.
O Neocolonialismo é o conceito que define a situação do continente africano,
quando foi literalmente repartido entre países centrais, e que também utilizado para
explicar a condição de colônia que se perpetua nos países latino-americanos, mesmo
após suas respectivas declarações formais de independência. O país é classificado como
dependente quando perde a soberania e tem sua política e sua economia regidas de fora
para dentro, em função de interesses externos. Constitui-se, portanto, uma relação
imperialista, onde o país dependente é utilizado em benefício dos países centrais. No
caso de Cuba, o neocolonialismo aconteceu na mudança de status de colônia espanhola
para país declarado independente, mas que na verdade estava se tornando dependente
dos Estados Unidos. Produzindo - de acordo com as determinações dos Estados Unidos,
conforme os interesses da nova metrópole - bens de baixo valor agregado e comprando dos Estados Unidos - bens de maior valor agregado, como manufaturas.
3
WILLIAMS, 2012, p. 33 apud H. Merivale, Lectures on Colonization and Colonies, 1928, p.
303.
11
Um fator decisivo para a manutenção da dependência é a questão da acumulação
de capital da periferia sempre permanecer alguns estágios atrás, em nível de
industrialização e tecnologia, em relação aos países centrais. Isso acontece devido a três
grandes fatores – mercado interno reduzido, exército de reserva imenso e maquinaria
obsoleta.
O mercado interno nos países dependentes tem um tamanho bastante reduzido.
A população não tem poder de compra relevante, então a produção tem que se voltar ao
mercado externo, tornando-se mais vulnerável a problemas internacionais. Contudo, o
problema mais grave é que se organiza uma economia que não se apoia desenvolvendo
o mercado interno de massas, tornando-se incapaz de suprir às próprias demandas
básicas.
O grande exército de reserva que faz com que os salários sejam baixos. Como há
um grande número de desempregados e também um enorme mercado de trabalho
informal com elevado grau de exploração da força de trabalho, os salários tornam-se
mais baixos nos países dependentes, afinal o “preço” do trabalhador, ou seu salário,
segue às regras de oferta e demanda: quanto mais trabalhadores disponíveis, mais baixa
será a remuneração oferecida; esta situação coloca o trabalhador da periferia em
desvantagem, com um salário abaixo do que é pago nos países centrais.
Ademais, a tendência à industrialização com tecnologia ultrapassada
impossibilita os países periféricos de competir em caráter de igualdade com países
centrais. Além disso, em função desse atraso tecnológico, a periferia acumula dívidas ao
adquirir máquinas dos países imperialistas, na tentativa de se desenvolver
economicamente. Existe, portanto, transferência de valor – da periferia para o centro também através do pagamento dos juros gerados nessas dívidas.
Outro problema ligado à situação de dependência é a ausência de uma produção
diversificada, que prejudicou o abastecimento de alimentos nos países periféricos. Seu
papel na economia internacional foi a prática do monocultivo, conforme os interesses
imperialistas:
Uma extensão de terra cada vez maior é utilizada para o cultivo de produtos
agrícolas destinados à exportação, para satisfazer as necessidades das
metrópoles e não das populações locais; só na África a produção de café
aumentou em 300% entre 1959 e 1967. A crescente proletarização do campo
e o subemprego e desemprego cada vez maiores criam um hiato crescente
entre a produtividade potencial e a produtividade média do trabalho na terra. 4
4
MANDEL, 1985, p. 264.
12
A maior parte do sobreproduto social nos países coloniais e semicoloniais não
foi utilizada para fins produtivos. A acumulação nesses países consistia em capital
estrangeiro e capital monetário investido, em geral, improdutivamente, no lugar de
capital industrial. A situação neocolonial dos países periféricos pode ser resumida pela
falta de direcionamento da produção ao mercado interno e pela estagnação tecnológica.
E caracterizado por uma troca desigual, de quantidades desiguais de trabalho. No
mercado mundial a hora de trabalho do país central é considerada mais produtiva e
intensiva que a da nação dependente, ocasionando uma “(...) transferência de valor
resultante da troca de quantidades desiguais de trabalho no mercado mundial.” 5.
Colônia produtora de metais preciosos e gêneros exóticos, a América Latina
contribuiu em um primeiro momento com o aumento do fluxo de
mercadorias e a expansão dos meios de pagamento, que, ao mesmo tempo em
que permitiam o desenvolvimento do capital comercial e bancário na Europa,
sustentaram o sistema manufatureiro europeu e propiciaram o caminho para a
criação da grande indústria. 6
A América Latina involuntariamente ajudou a financiar o desenvolvimento
industrial europeu com metais preciosos extraídos de suas terras e levados à Europa, e
em seguida auxiliou na manutenção dessa estrutura, exportando bens primários em troca
de manufaturas de consumo e contraindo dívidas com a metrópole para financiar a
diferença gerada na balança comercial, causada por esse tipo de troca.
A compensação da perda de renda gerada pela troca desigual entre nações no
comércio internacional (especialmente quando se trocam bens primários por
manufatura, mas também quando a troca ocorre entre produtos industriais) é feita
através de uma maior exploração do trabalhador. Ao mesmo tempo, esse mecanismo faz
com que aumente a mais-valia relativa
7
nos países industriais, pois com o preço do
alimento reduzido, diminui o valor dos “bens-salário”, ou seja, o tanto necessário à
reprodução do trabalhador, aumentando, portanto o excedente produzido. 8
Na periferia a produção de alimentos precisa ser ampliada para que se consiga
produzir valor o suficiente para pagar pelas manufaturas importadas. Esse excesso de
produção de alimentos reduz seu preço, possibilitando esse aumento da mais-valia
relativa nos países centrais. Ao mesmo tempo, o trabalhador da periferia sofre uma
5
MANDEL, 1985, p. 255.
MARINI, 2005, p. 140.
7
Desvalorização dos bens-salário. Barateamento das mercadorias que entram na composição do
consumo individual do trabalhador.
8
Dados: MARINI, 2005.
6
13
maior exploração de sua força de trabalho pela impossibilidade se compensar a troca
desigual de outra forma, senão através desse aumento de produção. Não havendo
condições de aumentar a produção através do incremento de sua capacidade produtiva, a
saída encontrada é o aumento da intensidade do trabalho. Essa acumulação é baseada na
superexploração do trabalhador.
A industrialização latino-americana, quando ocorre, não é para atender à
demanda interna, afinal a população não tem renda para isso. Ao mesmo tempo em que
nos países centrais a produção abastecia o comércio interno com bens de consumo, a
periferia seguiu produzindo alimentos e bens primários, mesmo após atingir certo nível
de industrialização.
A industrialização latino-americana não cria, portanto, como nas economias
clássicas, sua própria demanda, mas nasce para atender a uma demanda préexistente, e se estruturará em função das exigências de mercado procedentes
dos países avançados. 9
O aumento do lucro não é buscado através da demanda interna, e sim no
“aumento da massa de lucro em função do preço unitário do produto.”
10
E a forma
encontrada para efetivar esse aumento no lucro é reduzindo os salários.
(...) dado que o baixo nível tecnológico faz com que o preço de produção seja
determinado fundamentalmente pelos salários, o capitalista industrial valerse-á do excedente de mão de obra criado pela própria economia exportadora e
agravado pela crise que esta atravessa (crise que obriga o setor exportador a
liberar mão de obra), para pressionar os salários no sentido descendente. Isso
lhe permitirá absorver grandes massas de trabalho, o que, acentuado pela
intensificação do trabalho e pela prolongação da jornada de trabalho,
acelerará a concentração de capital no setor industrial. 11
Não sendo capaz de criar uma demanda interna por bens supérfluos, que na
periferia esse consumo se restringe às camadas altas e aos capitalistas, a América Latina
se tornou dependente de expandir seu mercado para o exterior, centrando mais uma vez
sua produção a partir do mercado mundial, e não em função do mercado interno.
A exportação de manufaturas, tanto de bens essenciais quanto de produtos
supérfluos, converte-se então na tábua de salvação de uma economia incapaz
de superar os fatores desarticuladores que a afligem. Desde os projetos de
integração econômica regional e sub-regional até o desenho de políticas
agressivas de competição internacional, assiste-se em toda a América Latina
à ressurreição do modelo da velha economia exportadora. 12
9
MARINI, 2005, p. 170.
MARINI, 2005, p. 171.
11
MARINI, 2005, p. 171.
12
MARINI, 2005, p. 179.
10
14
A herança deixada pelo colonialismo e neocolonialismo é uma economia
dependente e subordinada à dinâmica de acumulação dos países industriais. Nas
economias dependentes, foi criado um abismo entre produção e circulação a partir da
existência de um mercado interno que não consome. E estabelecida a superexploração que é o próprio fundamento da dependência - da classe operária, uma categoria social
formada por trabalhadores cuja remuneração é sempre inferior ao valor do produto de
seu trabalho.
Neste contexto, a referência mais importante para a elaboração deste trabalho
final foi a teoria marxista da dependência, desafio lançado originalmente por Ruy
Mauro Marini e que conta também com autores marxistas importantes, como Ernest
Mandel quem, em sua vasta obra, também tratou temas como a dependência, o
neocolonialismo e o imperialismo.
15
3. A REVOLUÇÃO CUBANA
3.1. Cuba Pré-Revolucionária
3.1.1 Período Colonial
Invadida pela Espanha em 1492, onde viviam os índios Siboneys
13
, Cuba se
tornou uma colônia espanhola, mas não muito importante. Após a extração do pouco
ouro e madeiras preciosas que existiam na ilha, o interesse básico girou em torno de sua
posição geográfica estratégica, localizada entre outras colônias espanholas, e perto do
México e das Américas Central e do Sul. Dessa forma auxiliava na logística da
Espanha, especialmente para o transporte de armamento utilizado para auxiliar na
manutenção da dominação das colônias. Os principais bens produzidos na ilha no
período colonial eram o café, o tabaco e o açúcar.
O café, introduzido em Cuba em 1768, rendeu investimentos em mão de obra
escrava, uma necessidade do produto, que exigia maior quantidade de pessoas
envolvidas em seu cultivo. Mas o produto que obteve destaque foi o açúcar, que logo
consumiu a maior parte dos investimentos, das terras e dos escravos.
Os colonizadores criaram uma organização tecnológica e de infraestrutura para a
realização do cultivo mercantil do açúcar. Florestan cita algumas mudanças:
(...) introdução da maquinaria a vapor nos trapiches cubanos, em 1820;
aprofunda-se com a construção de estradas de ferro, (...) invenção dos trilhos
de aço e o consequente barateamento dos custos: as vias férreas ligam entre si
as várias partes do engenho ou as zonas de açúcar com os portos de
armazenagem e de embarque (...). 14
Essa tecnologia entrou em choque com o sistema colonial direto. Contrastava
com a quantidade de escravos, cada vez maior.
(...) el numero de esclavos llegados a la isla cresce em forma extraordinaria:
pasó de unos 3271 anuales en el período 1796 – 1800, a el promedio de
17000 anuales, o sea, alredor de médio millón de esclavos em la primera
mitad del siglo XIX. 15
13
HARNECKER, 2000.
FERNANDES, 2007, p. 56.
15
PIERRE-CHARLES, 1985, p. 19 - 20.
14
16
A época em que chegam escravos em grande quantidade em Cuba é a mesma em
que acontece a revolução do Haiti (1789 – 1804), até então maior produtor mundial de
açúcar. A revolução haitiana retirou o país desse mercado quando rompeu com a
monocultura em sua busca por uma mudança estrutural, de diversificação de produção.
Então um amplo capital estrangeiro se instalou em Cuba, e a ilha passou a substituir o
Haiti como o principal abastecedor de açúcar mundial.
O clima quente e úmido de Cuba favorecia a plantação de cana, que acabou
devastando fauna e flora e prejudicando a fertilidade da terra, por se tratar de uma
monocultura. O monocultivo empobrece o solo e expõe o país à cotação mundial;
quando o produto tem o preço em queda muitas vezes cria uma grave crise financeira no
país, por ser sua principal e praticamente única fonte de renda. Quando o preço sobe
muito, os produtores enriquecem e prejudica parte da população, que chega a passar
fome por não poder pagar pelo aumento de preço gerado no produto e em seus
derivados. E ainda impossibilita uma produção diversificada, mantendo o país
dependente até mesmo para obter a alimentação básica.
Os Estados Unidos se interessaram pelo açúcar cubano e passaram a
comercializar com o país. Em 1818 a Espanha autorizou formalmente o comércio livre
entre sua colônia e os Estados Unidos, que em meados do século XIX já tinham
investimentos na ilha em créditos de açúcar. Com esse dinheiro Cuba investia em
maquinaria e na compra de escravos.
A produção de açúcar demandava tecnologia e ao mesmo tempo mão de obra
escrava. A convivência entre introdução tecnológica e a manutenção do trabalho
escravo vai colaborar mais adiante com o despertar crítico e revolucionário dos
trabalhadores.
Nessa época existiam duas correntes contrárias ao império espanhol: a
reformista, composta por parte da oligarquia mais poderosa, unida através do Partido
Liberal (depois chamado de Partido Liberal Reformista) e o independentismo, que era
composto por um grupo revolucionário, entre eles estavam Antonio Maceo y Grajales,
Máximo Gómez, Juan Gualberto Gómez, Calixto García e José Martí, posteriormente
membros do Partido Revolucionário Cubano.
A primeira luta independentista contra a invasão espanhola, em Cuba, foi a
Guerra dos Dez Anos, ente 1868 a 1878, quase 400 anos após o continente ser
“descoberto”. Foi iniciada por Carlos Manuel de Céspedes, um latifundiário cubano que
tentou provocar a independência de Cuba dando liberdade a seus escravos, na fazenda
17
La Demajagua, localizada na província de Oriente. Em seguida, o mesmo foi feito por
Francisco Vicente Aguilera, Maceo Osório, entre outros, em descontentamento com o
regime colonial espanhol.
Entretanto, essa guerra foi repudiada pela maior parte dos latifundiários, que
temiam o fim da escravidão e que o controle político do país ficasse nas mãos de grupos
de orientação democrática. Devido o teor radical assumido pelo movimento, que
buscava uma emancipação nacional, provavelmente seriam alteradas as posições
sociais, econômicas e políticas privilegiadas. E o desejo desses latifundiários em se
manter nos altos estamentos da sociedade era maior que o de ter uma nação
independente. Dessa forma, a guerra foi encerrada com o Pacto de Zanjón, em 1878, um
acordo firmado entre a burguesia cubana e o império.
Os Estados Unidos auxiliaram a Espanha nesse acordo, para evitar uma
emancipação nacional – o que quase nunca interessa aos estadunidenses, quando não se
trata deles mesmos - que prejudicaria seus interesses na ilha. A localização e a situação
fragilizada despertou a possibilidade de transformar Cuba em uma feitoria
agroindustrial moderna. E para isso era conveniente que houvesse a permanência da
colônia, a mantendo distante de qualquer independência nacional.
Esse interesse era justificado em função do açúcar ter sido um dos produtos mais
importantes para o comércio da Europa, na América colonial. Assim como o ouro e a
prata, também ajudou a impulsionar o desenvolvimento industrial de países como a
Holanda, França, Inglaterra, e depois, Estados Unidos. 16
Em 1880 os Estados Unidos passaram a investir diretamente na colônia
espanhola através da indústria refinadora e em minério. Estimasse um investimento
estadunidense em Cuba, em 1895, em torno de 50 milhões de dólares
17
. A relação de
dependência estava sendo fortemente construída. De 1880 a 1886, 62% das exportações
cubanas foram para os Estados Unidos. 18
Houve um aumento expressivo na produção de açúcar e ao mesmo tempo uma
redução dos engenhos, demonstrando uma significativa concentração produtiva: em
1877, a safra de açúcar foi de 520 mil toneladas, com 1.119 engenhos. A safra de 1894
16
Dados: GALEANO, 2010.
Dados: FERNANDES, 2007, p. 64.
18
Dados: PIERRE-CHARLES, 1985, p. 22 apud Julio Le Riverend, Historia económica de
Cuba, 1967, p.186.
17
18
foi de mais de 1 milhão de toneladas, com 450 engenhos. Essa produção correspondia a
85% das exportações cubanas. 19
No fim do século XVIII as plantações de fumo foram reduzidas, produtos como
café e charque, antes exportados pela ilha, tiveram suas produções suspensas em função
do açúcar, e passaram a ser importados. O país se tornou o principal comprador de
madeira dos Estados Unidos, ao mesmo tempo em que florestas eram queimadas para
dar lugar à cana. Milhares de riachos secaram por causa do desmatamento. 20
O movimento popular, contrário a essa política da monocultura se firmou nas
massas construindo a própria estratégia e organização, centralizando as forças no
Partido Revolucionário Cubano, fundando por José Martí em abril de 1892. Tratava-se
de um projeto de caráter anti-imperialista, que defendia não apenas a independência de
Cuba, mas a libertação de toda a América Latina.
Em fevereiro de 1895 iniciou a Guerra da Independência, assim como a Guerra
dos Dez Anos também de caráter independentista. Durante um combate, em 19 de maio
de 1985, morre José Martí, herói e inspiração da Revolução Cubana.
De abril a agosto de 1898 aconteceu a Guerra Hispânico-Americana, quando os
Estados Unidos decidem intervir nas relações entre Cuba e Espanha sob o pretexto de
garantir a independência de Cuba. Diferentemente da Guerra dos Dez Anos, onde a
Espanha teve apoio estadunidense para evitar uma emancipação nacional de Cuba, que
naquele momento não convinha a eles. Contudo, durante a Guerra da Independência
Cuba já estava sob o domínio indireto dos Estados Unidos em função de sua penetração
econômica na ilha, estabelecida através dos negócios que envolviam a produção de
açúcar.
O poder militar, político e econômico possibilitava aos Estados Unidos manter
Cuba sob seu comando de forma indireta - vantajosa por evitar uma simples ocupação e
formalizar diplomática e legalmente a dominação, que de fato já acontecia. Essa
dominação bastava para impedir qualquer soberania nacional e poupava os Estados
Unidos dos custos e das responsabilidades quem envolvem uma dominação direta. Em
outras palavras, Cuba independente satisfazia seus interesses de maneira mais prática,
não sendo necessário evitar sua independência formal.
19
Dados: PIERRE-CHARLES, p. 24 apud Oscar Pino Santos, História de Cuba, aspectos
fundamentales, La Habana, Editora nacional de Cuba, 1964, p. 208.
20
Dados: GALEANO, 2010.
19
Os Estados Unidos receberam o apoio de políticos cubanos e da maior parte da
burguesia local, a quem também não interessava um efetivo projeto nacional, afinal,
pela maneira como as relações foram estabelecidas, dependia dos Estados Unidos na
mediação dos negócios para obter sua parcela da riqueza.
Assim, a revolução dentro da ordem colonial não se extingue pela negação
em seu contrário, a revolução nacional. Ela se redefine e se reconfigura
graças ao aparecimento de um poder externo, bastante forte para absorver
aquela revolução dentro da ordem colonial em uma inexorável “expansão de
fronteiras” e para impor a dominação indireta na forma de uma tutela
institucional, aceita e legitimada constitucionalmente pelos cubanos 21.
Cuba e Porto Rico foram suas últimas colônias da Espanha que, já decadente,
resistiu sem êxito. Em 1898 Cuba torna-se independente da Espanha e passa a ser uma
(neo) colônia estadunidense. “El poderio imperialista se asienta sobre la isla que ingresa
así a una nueva forma de coloniaje.” 22
3.1.2 Período pós-independência - Neocolonial
Em primeiro de janeiro de 1899 um governo militar estadunidense foi instalado
no país, apoiado pelos setores estrategistas da burguesia, aqueles vinculados ao açúcar,
iniciando o período neocolonial de Cuba.
Os Estados Unidos criaram instrumentos jurídicos para que a dependência
cubana fosse oficializada através de acordos, como a Emenda Platt e Tratado de
Reciprocidade Comercial. A Emenda Platt
23
foi um adendo à constituição cubana,
aprovada em dois de março de 1901, que permitia aos Estados Unidos intervir nos
assuntos internos do país e fixar bases militares em território cubano. O Tratado de
Reciprocidade Comercial, de 1902, continha um regime tarifário a ser praticado entre
eles e também permitia a participação de capital estadunidense na indústria açucareira
cubana, o que possibilitou aos Estados Unidos a obtenção do controle dos setores mais
importantes de Cuba. Em 1903 esses acordos foram incorporados ao Tratado
Permanente entre Cuba e os Estados Unidos.
Essas manobras na constituição cubana formalizaram o direito dos Estados
Unidos em interferir na soberania nacional do país, inclusive adquirindo o poder de
21
FERNANDES, 2007, p. 65.
PIERRE-CHARLES, 1985, p. 88.
23
A versão integral da Emenda Platt consta em anexo a este trabalho.
22
20
arrendar e até mesmo de vender terras pertencentes ao território cubano. Em 23 de
fevereiro de 1903 foi dada a concessão da Bahia de Guantánamo para a instalação de
base naval estadunidense. Apesar da revogação da Emenda Platt ter ocorrido em 1934,
junto com o tratado comercial estabelecido em 1903, um novo acordo manteve a Bahia
de Guantánamo sob o poder estrangeiro. A condição para alteração seria um consenso
entre as partes. Como isso nunca aconteceu, os Estados Unidos seguem ocupando parte
do território cubano até os dias atuais, baseados no contrato de arrendamento feito no
momento da ocupação. 24
Pequenas e médias propriedades foram extintas para dar lugar à formação dos
monopólios, que utilizavam as terras para os cultivos relativos ao setor de exportação,
dando continuidade ao processo de estabelecimento da monocultura do açúcar, iniciado
ainda no período colonial. Como resultado, houve um aumento significativo na
produção de açúcar em Cuba logo nos primeiros anos da fase neocolonial. Em 1900 a
produção foi de 360.289 toneladas. No ano seguinte saltou para 655.186. Em 1903
passou para 1.028.205 toneladas 25.
Mais adiante, o crescimento do investimento estadunidense na indústria
açucareira cubana também aumentou de maneira considerável; entre 1913 e 1928 pelo
aumento das exportações causado em função da Primeira Guerra Mundial. Em 1928 os
engenhos estadunidenses foram responsáveis por 75% da produção do açúcar cubano,
enquanto que em 1906 produziram 15%. De 1913 a 1924 a participação norteamericana na produção açucareira passou de 39 para 60,3%. 26
Os Estados Unidos controlavam nesse período, como proprietários ou
arrendatários, 47,5% das terras dedicadas ao cultivo de açúcar, possuíam cerca de 75%
da terra cultivável, a terça parte das ferrovias e a maioria dos portos. 27
Oitenta e cinco por cento dos pequenos agricultores cubanos pagam renda e
vivem sob a constante ameaça de serem expulsos de suas parcelas. Mais da
Dados: 300 Perguntas, 300 Respostas – Jorge Lezcano Pérez, 2002, p. 56 - 57. “Como uma
prova das condições abusivas daquele convênio, o mencionado acordo suplementar estipulava
que os Estados Unidos pagariam à República de Cuba pelo arrendamento de 11.760 hectares que incluem grande parte de uma das melhores baías do país – a soma de 2000 dólares anuais,
que na atualidade ascendem a 4085 dólares por ano, quer dizer 34,7 centavos por hectare pagos
em cheques anuais, que Cuba, por dignidade e absoluto desacordo com o que ocorre nesse
espaço do território nacional, tem se negado a receber. Os cheques são depositados no Tesouro
Nacional da República de Cuba, Instituição que há muito não mais existe.”
25
Dados: PIERRE-CHARLES, p. 25 apud Bohemia. Reciprocidad comercial y domínio yanqui
de la economia cubana, 1974, p. 11.
26
Dados: PIERRE-CHARLES, p. 27.
27
Dados: PIERRE-CHARLES, p. 36.
24
21
metade das melhores terras cultivadas está em mãos estrangeiras. Em
Oriente, que é a província mais larga, as terras da United Fruit Company e da
West Indian unem a costa norte com a costa sul. Há duzentas mil famílias
camponesas que não possuem um palmo de terra onde semear culturas para
alimentar seus filhos famintos. No entanto, permanecem incultas, em mãos
de interesses poderosos, cerca de trezentas mil caballerías de terras
produtivas. 28
Em contrapartida às exportações aos Estados Unidos - cerca de 60% de sua
produção – Cuba importava deles de 75 a 80% do seu consumo, incluindo a alimentação
básica. Além de não ter controle da própria produção, não podia comercializar
livremente com outros países. 29
Salvo umas quantas indústrias alimentícias, madeireiras e têxteis, Cuba
continua como uma feitoria produtora de matéria-prima. Exporta-se açúcar
para importar caramelos, exporta-se couro para importar sapatos, exporta-se
ferro para importar arados... Todo mundo concorda que é urgente
industrializar o país, que são necessárias indústrias metalúrgicas, indústria de
papel, indústria química; que é preciso melhorar a pecuária, os cultivos, a
técnica e a elaboração de nossas indústrias alimentícias, a fim de que possam
resistir à concorrência ruinosa que lhes fazem as indústrias europeias de
queijo, leite condensado, licores e azeites, e as de conservas norteamericanas; que necessitamos de navios mercantes; que o turismo poderia ser
uma enorme fonte de riquezas. 30
Na década de 1920 foi vivenciada em Cuba uma das graves consequências de
uma economia baseada na monocultura. Houve uma baixa no preço do açúcar agravada
pela crise de 1929, e que se prolongou até 1959. As exportações caíram bruscamente safra de 1932-1933 correspondeu a apenas 50% da safra de 1922 -, o que levou a uma
catástrofe na economia, com a quebra de bancos e de pequenos negócios. 31
Em 1920, com o açúcar a 22 centavos a libra, Cuba bateu o recorde mundial
de exportação por habitante, superando até a Inglaterra, e teve a maior renda
per capita da América Latina. Mas nesse mesmo ano, em dezembro, o preço
do açúcar caiu quatro centavos, e em 1921 se desencadeou o furacão da crise:
quebraram numerosas centrais açucareiras, que foram adquiridas por
interesses norte americanos, e todos os bancos cubanos e espanhóis, inclusive
o próprio Banco Nacional. Sobreviveram apenas as sucursais dos bancos dos
Estados Unidos. 32
Em meio à crise os engenhos controlados pelos Estados Unidos aumentaram de
35 para 55% e foi instituída uma lei que reduzia a compra de açúcar cubano por parte
dos Estados Unidos com a finalidade de estimular a produção em outras partes do
28
CASTRO, 1979, p. 52.
Dados: PIERRE-CHARLES, 1985, p. 35 - 36.
30
CASTRO, 1979 p. 52.
31
Dados: PIERRE-CHARLES, 1985, p. 62.
32
GALEANO, 2010 p. 100 apud René Dumont, Intento de crítica construtiva, 1965.
29
22
continente. Essa redução foi de 50% do total consumido no país para 28,6%. Ao mesmo
tempo, a participação dos Estados Unidos nas importações cubanas aumentou de 56,2
em 1934 para 71,3% em 1938. 33 O que mostra que a crise sofrida por Cuba não afetou
os Estados Unidos, pelo contrário, estimulou seus negócios na ilha.
A configuração estrutural que se tinha nesse momento, de dupla subordinação bens de consumo importados e açúcar exportado – e domínio do aparelho produtivo por
estrangeiros, impossibilitava a diversificação da agricultura e deixava o aparato
financeiro submetido ao capital norte-americano.
A liberdade de um país tem relação direta com a capacidade interna de suprir as
necessidades básicas de sua população. Implica na diversificação de produção,
especialmente alimentícia, evitando vulnerabilidade a pressões internacionais. Os
Estados Unidos não abriam mão de sua própria diversificação. Mas impuseram o
contrário em suas relações internacionais, pois sabiam que para sua própria
industrialização e desenvolvimento, precisavam de fornecedores de matéria prima. Não
destruiriam a própria terra e diversidade para produzir açúcar em larga escala, por
exemplo. Para isso utilizaram Cuba, que dessa forma permaneceu agrícola. Porém, um
país agrícola monocultor, que exportava um único produto e comprava de fora todo o
resto.
Essa relação dependente tinha um efeito descapitalizador para Cuba, pelo
crescimento para fora, ou seja, servindo para a ampliação capitalista externa, através de
uma estrutura monoprodutora e de grande dominação financeira, mantida graças à
inserção imperialista no aparato produtivo, e com isso impedindo o próprio
desenvolvimento.
En conclusión, las fuerzas productivas de Cuba experimentaron durante
cierto período un gran auge; pero ese desarrollo fue unilateral,
hipertrofiándose el sector exportador azucarero, y deformándose la economía
del país. Ésta no pudo desarrollarse de manera equilibrada y acorde con las
necesidades de crecimiento de una burguesía propia, trabadas como estaban
las posibilidades de desarrollo de la agricultura, por la existencia del
latifundismo, y obstaculizadas las industrias por el dominio del mercado
ejercido por la producción norteamericana.34
A produção latifundiária possuía as melhores terras e com o desaparecimento da
economia agrícola de subsistência, a sazonalidade da produção açucareira deixava os
trabalhadores do campo durante parte do ano desempregados ou produzindo em terras
33
34
Dados: PIERRE-CHARLES, 1985, p. 65.
PIERRE-CHARLES, 1985, p. 34.
23
arrendadas a altos preços. Frequentemente agricultores pertencentes à pequena
burguesia rural transformavam-se em campesinos pobres e proletários em função da
submissão aos latifundiários.
Cuba não teve uma burguesia forte, que desenvolvesse um capitalismo nacional
ou tivesse disposição em buscar alianças com o proletariado, assim como teve a Europa
na Revolução Burguesa. Como toda a burguesia dependente, foi um simples
instrumento do capitalismo internacional. A burguesia deixou que o poder ficasse
inteiramente em mãos estrangeiras, e, consequentemente a economia do país também.
Os “donos do poder”, a partir de dentro e a partir de fora, possuem o mesmo
interesse. Sufocar todo fermento revolucionário em seu nascedouro. Uma
burguesia dependente não é só instrumental para com seus interesses
conservadores “nacionais”; ela também é instrumental para com os interesses
conservadores externos, “internacionais”, ou seja, ela atua em permanente
aliança com o imperialismo e dele recebe parte de sua força econômica,
cultural e política. 35
Nestas condições, a burguesia participava como “sócio menor ou simplesmente
como satélite dentro da constelação imperialista.” 36.
Parte dela era sócia de empresas norte-americanas ou dependia delas para obter
equipamentos e matérias-primas. Apenas uma pequena parcela da burguesia local não
participava da monocultura e buscava crescer diversificando a produção agrícola. Foi
incapaz de ser independente aos estrangeiros e formar uma burguesia nacional que
fortalecesse o país. A produção era determinada pelos Estados Unidos, para atender
parte de sua demanda. Além de produzir apenas um bem, atendia um único cliente, que
tomava as decisões de produção.
(...) por el mismo caráter de la vinculación entre Cuba y los Estados Unidos,
la burguesía se integra al papel subordinado como simples prolongación
funcional del capital monopolístico. Su práctica política se fue ejerciendo en
un marco de sometimiento a la estructura de poder extranjero. Por ello, le
resultaba imposible plantear las reivindicaciones de la nación; quedaba más
bien identificada con la anti-nación. 37
Como a economia cubana cresceu em torno da indústria açucareira, cujo
monopólio pertencia aos Estados Unidos, o país tornou-se dependente também através
de setores fundamentais, como o de transporte, comunicação e energia, que tinham o
35
FERNANDES, 1981, p. 50 - 51.
PIERRE-CHARLES, 1985, p. 47.
37
PIERRE-CHARLES, 1985, p. 92.
36
24
financiamento de origem estadunidense pela necessidade de infraestrutura que desse
suporte aos seus negócios em Cuba.
O capital estrangeiro se mobiliza com o fim de ajudar-se a si próprio. O
capital privado estrangeiro é o capital em excesso num país, que se transporta
para um outro país onde os salários são mais baixos, as condições de vida e
as matérias-primas mais baratas, de modo a obter melhores lucros. 38
Cuba neocolonial tinha problemas econômicos e sociais graves, a maioria da
população vivia próxima à miséria. A riqueza tem um preço que é pago por quem não a
usufrui. A Europa se desenvolveu graças à exploração da América Latina, e também da
África, da qual não trataremos aqui, mas que também ainda sofre as consequências do
imperialismo. Os metais preciosos saqueados do continente latino-americano foram
utilizados como capital para a acumulação primitiva europeia. Mais tarde a América
Latina se tornou fornecedora de matéria-prima e consumidora de manufatura. De Cuba
retiraram riquezas como madeira e ouro. Transformaram-na em uma grande fábrica de
açúcar, impedindo na origem a diversidade produtiva e dessa forma levando à escassez
de alimentos. A população já não tinha mais acesso a bens de primeira necessidade.
(...) as relações da América Latina com os centros capitalistas europeus se
inserem em uma estrutura definida: a divisão internacional do trabalho, que
determinará o sentido do desenvolvimento posterior da região. Em outros
termos, é a partir de então que se configura a dependência, entendida como
uma relação de subordinação entre nações formalmente independentes, em
cujo marco as relações de produção das nações subordinadas são modificadas
ou recriadas para assegurar a reprodução ampliada da dependência. 39
A quantidade de imigrantes trabalhadores recebidos nos primeiros 30 anos do
século XX superou a quantidade de escravos recebidos em todo o período colonial
cubano.
40
Isso resultou, em Cuba, em altas taxas de mais-valia absoluta, que se
caracterizam por baixos salários, longas jornadas de trabalho; condições semelhantes à
época da escravidão. Assim, é exercida uma maior exploração do trabalhador. É a forma
encontrada pelos países dependentes de compensar a perda de mais-valia ao se
relacionar com os países centrais, já que não é possível incrementar a capacidade
produtiva de outra forma senão através de mais exploração.
38
GUEVARA, 1980, p. 27.
MARINI, 2005, p. 141.
40
GALEANO, 2010, p. 29.
39
25
3.2 A tradição de luta do povo cubano
Aqui pretendemos mostrar como foi construída a veia revolucionária cubana. O
movimento operário organizado começou a ser articulado no século XIX. Nessa época o
país tinha duas indústrias destacadas, de açúcar e de tabaco. A indústria açucareira
utilizava trabalho escravo. Já a indústria do tabaco, por dispor de técnicas mais
avançadas de produção, era mantida pelo trabalho livre, cuja condição “livre” os
possibilitou que fossem mais politizados e constituíssem uma classe de trabalhadores
mais esclarecida.
Quando acontece a abolição da escravidão em Cuba, em 1886, os trabalhadores
dessa indústria se uniram aos escravos, que apesar de nesse momento ainda não terem
uma consciência de classe, colaboraram na construção de uma união proletária. As
ideias de Marx e Engels foram difundidas pelo país através da circulação de revistas de
conscientização dos trabalhadores, como El Procurador (de Havana), El Obrero (de
Cienfuegos), El Comunista (de teor marxista-leninista) e dos jornais revolucionários
clandestinos Son los mismos e El acusador. Os comunistas também tinham uma
emissora de rádio, a Mil Diez. No exílio o movimento também trabalhou, a exemplo de
José Martí e Carlos Baliño. 41
Conviene apuntar, que en ningún país de América Latina, correspondió al
proletariado organizado estar presente y participar como en Cuba en la
misma constitución del estado nacional. En ninguna, el proletariado participo
tanto como en Cuba en la formación de la conciencia antimperialista, así
como en la orientación de los combates políticos. 42
É iniciado em Cuba um processo de criação de uma infinidade de partidos. 43 Em
29 de março de 1899 Diego Vicente Tejera lança um manifesto contendo as ideias para
fundação do Partido Socialista Cubano e meses depois o partido é fundado. Em 1904 é
fundado o Partido Obrero de Cuba. Por iniciativa de Carlos Baliño, do movimento
operário, em 1905 o Partido Obrero de Cuba se integra à Internacional Socialista e
muda seu nome para Partido Obrero Socialista. Em 1906 acontece a fusão do Partido
Obrero Cubano e do Partido Socialista Internacional em Partido Socialista de Cuba.
Em 1907, de fevereiro a julho, acontece um movimento grevista dos produtores
de tabaco chamado “huelga de la moneda”, que exigia o pagamento em moeda
41
Dados: PIERRE-CHARLES, 1985, p. 114 - 115.
PIERRE-CHARLES, 1985, p. 94.
43
Dados sobre os partidos: PIERRE-CHARLES, 1985.
42
26
americana, já que a moeda nacional sofria constantes desvalorizações. Em 1914 o
movimento proletário lutava também contra a alta do custo de vida e pela diminuição da
jornada de trabalho. No ano seguinte, um congresso dos trabalhadores aprofundou a
consciência proletária, compreendendo aos poucos, com a ajuda das ideias de José
Martí, o pensamento marxista.
A partir de 1917 aconteceram uma série de greves e manifestações em caráter de
greve geral. Em dezembro de 1918 uma intervenção norte-americana provocou uma
revolta e em 1919 iniciou um movimento grevista dos trabalhadores do açúcar que
culmina em uma greve geral.
Em 18 de maio de 1923 foi criado o primeiro grupo comunista de Havana, onde
Carlos Baliño era vice-secretário geral. Os congressos de Cienfuegos e Camaguey
resultam na criação da Confederación Nacional Obrera de Cuba (CNOC), em 1925, e no
mesmo ano é criado o Partido Comunista de Cuba. É construída uma união de forças
entre o Partido Comunista de Cuba, a CNOC, o Diretório Estudantil Universitário (onde
atuava Julio Antonio Mella, do movimento estudantil) e o Sindicato Nacional de los
Obreros de la Industria Azucarera (SNOIA).
Em função da crise de 1929, em 20 de março de 1930 a terceira parte da força de
trabalho da época, ou seja, 200 mil trabalhadores fez uma paralisação de 24 horas no
país, convocada pela Confederación Nacional Obrera de Cuba (CNOC), reivindicando
melhores salários e respeito aos direitos democráticos do povo.
Em agosto de 1933 a luta revolucionária obteve algumas vitórias, como a
revogação da Emenda Platt, jornada de trabalho de 8 horas. A Constituição de 1940
avançou no plano social, porém maior parte dela não foi posta em prática.
Em 10 de março de 1952, faltando 80 dias para as eleições, das quais participaria
Roberto Agramante, do Partido Ortodoxo, após o trágico suicídio de Eduardo Chibás,
líder do partido e revolucionário de ideias anti-imperialistas, Fulgêncio Batista, o
homem de confiança de Washington, em resposta a uma campanha anticomunista
devido ao aumento do movimento proletário pela conscientização da população,
desembarcou de viagem a Miami e aplicou um golpe de Estado, frente a iminente
vitória do partido Ortodoxo – fortemente respaldado pelas massas.
O Partido Ortodoxo foi incapaz de combater Batista, e alguns de seus membros
chegaram a se colocar a disposição do ditador. Como a classe operária se negava a
participar do sindicalismo corporativo dessa ditadura, o Partido Socialista Popular –
criado em 1944 a partir do Partido Revolucionário Cubano, que por sua vez era uma
27
junção entre o Partido Comunista com o Partido de União Revolucionaria - passou para
a ilegalidade. 44
Batista, com apoio político, econômico e militar estadunidense suspendeu a
constituição de 1940 e rompeu relações diplomáticas com a União Soviética. Quando
aconteceu uma crise gerada pela queda do preço do açúcar, em 1952, o governo utilizou
dinheiro público para o fortalecimento do setor privado, através de reservas de divisas e
de empréstimos no exterior, o que colaborou para que o país entrasse em uma crise
permanente.
Um grupo de revolucionários se reuniu com a intenção de derrubar o governo de
Fulgêncio Batista em uma tentativa de tomada das bases militares do país, na operação
que ficou conhecida como Assalto ao quartel de Moncada, em 26 de Julho de 1953.
Tinha Fidel Castro no comando, que justificava o levante pela inconstitucionalidade e
ilegalidade daquele governo, que chegou ao poder através de um golpe de Estado, sem
que o povo tenha-o elegido, e dessa forma criando condições para governar
despoticamente.
As influências ideológicas dos dirigentes revolucionários foram o patriotismo
intransigente, nacionalismo revolucionário e humanismo.
45
O principal objetivo do
grupo era a soberania do povo e queria, em primeiro lugar, a proclamação da
constituição de 1940 até que o próprio povo decidisse modificá-la ou substituí-la. Ao
movimento revolucionário caberia, enquanto soberano momentâneo, legislar, executar e
julgar de acordo com essa constituição.
Quanto aos direitos dos trabalhadores, seria pleiteada a participação de 30% nos
lucros aos empregados das grandes empresas industriais, mercantis, mineiras e
açucareiras. Aos colonos a participação em 55% dos rendimentos da cana de açúcar e
cota mínima de 40 mil arrobas aos pequenos colonos estabelecidos há pelo menos três
anos. 46 Pretendiam sancionar a lei do confisco que previa “a confiscação total dos bens
de todos os dilapidadores dos bens públicos de todos os governos e dos seus coniventes
e herdeiros, tanto dos bens percebidos por testamento ou sem testamento de maneira
fraudulenta”. 47
O movimento também tinha como objetivo resolver outros problemas graves de
Cuba ignorados pelo governo de Batista, como da moradia, desemprego, educação –
44
Dados: PIERRE-CHARLES, 1985.
Segundo PIERRE-CHARLES, 1985.
46
Dados: CASTRO, 1979.
47
CASTRO, 1979, p. 50.
45
28
com a reforma integral do ensino -, saúde, falta de industrialização, reforma agrária,
nacionalização do truste de eletricidade e do truste telefônico, para cumprir o que dizia a
própria constituição do país.
Nem uma única iniciativa corajosa foi tomada. Batista vive entregue de pés e
mãos aos grandes negócios, e não podia ser de ouro modo, por sua
mentalidade, pela carência total de ideologia e de princípios, pela ausência
absoluta de fé, de confiança e de apoio das massas. Foi uma simples mudança
de mãos e uma repartição do botim entre os amigos, parentes cúmplices e a
malta de parasitas vorazes que integram o séquito político do ditador.
Quantas afrontas fizeram o povo sofrer para que um grupelho egoísta que não
sente pela pátria a menor consideração possa encontrar na coisa pública um
modus vivendi fácil e cômodo. 48
Apesar do levante dos guerrilheiros ser absolutamente legítimo, o grupo
fracassou em seu objetivo de tomada do quartel e foi preso.
Após a derrota o movimento se tornou mais radical. A participação popular
aumentou em função da revolta gerada pela ditadura de Fulgêncio Batista,
especialmente pelo assassinato de dezenas de jovens combatentes e pela repressão geral
criada em resposta ao assalto à Moncada.
Enquanto Fidel Castro e outros guerrilheiros estavam presos em função do
assalto ao quartel de Moncada, foi criado o Movimento 26 de Julho, em 1954.
Inicialmente o grupo era composto por estudantes e profissionais liberais, mas em
seguida também foi aderido pelas classes operária e camponesa.
Buscavam fazer um trabalho de conscientização na sociedade, da necessidade de
mudança. As intenções do movimento eram bastante divulgadas através dos manifestos
e o povo sempre convidado a apoiar.
O Movimento 26 de Julho utilizou como programa o discurso de Fidel Castro A
História me Absolverá - escrito enquanto Fidel estava preso pelo assalto de Moncada,
para sua própria defesa nos tribunais da ditadura de Batista, dispensando advogados
para tal. Nesse discurso ele questionou o poder ditatorial e toda a ação do governo de
Batista.
Segundo Vania Bambirra, o Movimento tinha um caráter pequeno burguês
49
e
reformista. Objetivava aumentar a participação dos operários nos ganhos, reforma
48
CASTRO, 1979, p. 91.
O pequeno burguês pertence a uma classe social que obtém vantagens com o domínio da
burguesia, ficando em uma espécie de classe intermediária, e por isso adota um comportamento
simpático a ela. O pensamento pequeno burguês é uma dominação econômica e cultural que
serve à ascensão da burguesia enquanto classe social.
49
29
agrária, mas não pretendia romper por completo a relação de dominação que existia
entre o país e as burguesias nacional e estrangeira. Mas isso não foi um problema na
luta revolucionária. Pelo contrário. Para o momento histórico em que o país se
encontrava, foi uma evolução da postura dos movimentos sociais diante do combate ao
domínio sofrido por Cuba. O descontentamento da população trouxe a discussão sobre a
situação do país e o questionamento das atitudes que seriam eficientes para resolver os
problemas sociais e econômicos naquele momento.
As medidas preconizadas não põem em causa as bases e o funcionamento do
capitalismo dependente cubano. Visam, sobretudo, uma redemocratização do
sistema, uma maior justiça econômica e social. Não se encara ainda o
imperialismo como inimigo e nem sequer se faz referência aos interesses
oligárquicos nacionais. Entre as classes revolucionárias definidas através da
categoria povo, sobressaem os operários, os camponeses e a pequena
burguesia, mas tampouco se explicita a que classe corresponderá a
hegemonia no processo revolucionário. 50
Uma das inspirações do Movimento 26 de Julho foi José Martí, que segundo
Vania, apesar de lutar contra a dominação imperialista espanhola e estadunidense sobre
Cuba, não tinha um pensamento radical, de rompimento com o capitalismo. A luta de
classes, portanto, não era um meio:
Impedir que as simpatias revolucionárias em Cuba se desviem e escravizem
por qualquer interesse de grupo, para preponderância de uma classe social ou
da autoridade desmedida de um agrupamento militar ou civil, nem de uma
região determinada, nem de uma raça sobre a outra.51
Mesmo que a idéia de José Martí não tenha sido o fim da relação imperialista,
seu pensamento foi um salto no comportamento revolucionário. A concepção de
unidade da América Latina segue seus pressupostos. Supera o pensamento democrático
burguês evoluindo para o antiimperialismo radical pequeno burguês latino-americano. 52
Ruy Mauro Marini, no prefácio do livro A Revolução Cubana – Uma
Reinterpretação discorda dessa caracterização pequeno-burguesa do movimento
revolucionário defendida por Vania Bambirra. Marini define como Revolução Popular,
por ter a participação de classes sociais opostas. A burguesia que fazia parte da
composição do movimento estava lá por mera falta de alternativa de combate ao poder
ditatorial. Entretanto isso não significa que o movimento tivesse caráter burguês.
50
BAMBIRRA, 1975, p. 58 - 59.
BAMBIRRA, 1975, p. 62 apud José Martí, Pensamiento Revolucionario Cubano, 1971, p. 77.
52
BAMBIRRA, 1975.
51
30
Uma importante tentativa de tomada de poder ficou conhecida como
Desembarco del Granma, ocorrida em 2 de dezembro de 1956. Granma era o nome do
iate que trazia do México um grupo de revolucionários exilados, entre eles Fidel Castro,
Che Guevara e Camilo Cienfuegos. Pretendiam desembarcar na província de Oriente
com o objetivo de acabar com a ditadura de Batista. Porém o grupo foi derrotado em
uma emboscada, submetido a bombardeio aéreo, e teve a maior parte da expedição
perdida nessa batalha. Os sobreviventes fugiram para a Sierra Maestra, uma região
serrana de Cuba, onde se formou o Exército Rebelde, constituindo outra vertente
revolucionária, a guerrilha rural, muito bem recebida pela população.
3.3 Greve Geral
A greve geral, que aconteceu em abril de 1958, foi encorajada por ter sido, em
diversos momentos, um bom instrumento de protesto e de mudança, tanto em Cuba
quanto em outros processos revolucionários. A ditadura de Machado foi derrubada com
uma greve geral em 1933. Na Revolução Russa também se utilizou desse expediente.
Por isso, e pela determinação em tirar Batista do poder, o povo tinha bastante simpatia
pela idéia da greve geral. Dessa forma, o Movimento 26 de Julho tentou pô-la em
prática.
No entanto, a mobilização não aconteceu como se esperava. Foi dispersa e sem o
apoio popular suficiente, tanto urbano quanto rural. Faltou um trabalho prévio maior de
conscientização e mobilização das massas. Muitos trabalhadores nem tomaram
conhecimento dela, por ter sido convocada repentinamente, de última hora. O
Movimento 26 de Julho ainda não era a vanguarda e o Partido Socialista Popular, que
era a maior influência dos operários até então não estava comprometido com a greve,
um dos maiores motivos para a desmobilização da população naquele momento. O
Partido Socialista Popular “era, dentre as forças de esquerda, a que possuía uma base
orgânica operária mais sólida, produto de anos de experiência de luta, de militância e
disciplina partidária.” 53.
Embora meses depois fosse diferente, em abril de 1958 o movimento ainda não
estava maduro o suficiente. Vania compara a postura do Movimento 26 de Julho à
53
BAMBIRRA, 1975.
31
estratégia putschista54 - a greve geral de abril estava saturada dessa concepção. Rosa
Luxemburgo, ao comentar a Revolução Russa, falou sobre a falta de mobilização, tal
qual posteriormente aconteceu em Cuba, na aplicação inoportuna da greve geral.
Se algo nos ensina a Revolução Russa é, antes de tudo, que a greve de massas
não é, nem feita artificialmente, nem acordada ou propagada nas nuvens,
antes é um fenômeno histórico que se produz num dado momento por uma
necessidade histórica surgida das condições sociais. (...) na realidade, não é a
greve de massas que produz a Revolução, é a Revolução que produz a greve
de massas. 55
A repressão aumentou após o fracasso da greve geral de abril, mas a guerrilha
conseguiu superar os ataques contrarrevolucionários de Fulgêncio Batista, mesmo tendo
menos soldados. A cada batalha vencida aumentavam o arsenal revolucionário, pois
tomavam armamentos do exército de Batista.
Quando o movimento conquistou a serra, ou seja, a parte rural do país, criou
condições para uma greve geral ter sucesso. Na segunda metade de 1958 o movimento
recebeu a incorporação massiva da classe operária graças à colaboração do Partido
Socialista Popular na luta contra a ditadura. Em dezembro de 1958 a greve foi
novamente convocada, por Fidel e pela Frente Operária Nacional Unida (FONU).
Paralisou o país por quatro dias e a participação de massa criou condições para as forças
rebeldes vencerem os ditadores e ocuparem os dois quartéis mais importantes de Cuba:
Cabaña e Columbia. Com toda essa mobilização, a ditadura de Batista foi derrotada e
ele foge da ilha na madrugada do dia 1 de janeiro de 1959. 56
Vania atribui a quatro fatores fundamentais o êxito da estratégia vitoriosa da
guerrilha nesse momento: (i) Decomposição do exército de Batista: derrotado em sete
meses, não teve alta combatividade. Não lutava apenas contra os guerrilheiros, lutava
também contra a vontade de mudança de toda uma população. Os guerrilheiros
chegaram a conquistar alguns soldados da ditadura de Batista, por lhes prestar ajuda
humanitária quando precisaram. Tinham motivações mais estimulantes que às dos
soldados da tirania. (ii) Apoio e participação popular: os revolucionários tinham
propostas melhores. Conquistaram trabalhadores rurais e o campesinato pela promessa
de terra e os operários com a possibilidade de auxiliá-los a enfrentar a indústria
açucareira nas reivindicações. A população civil no geral tinha na revolução a esperança
54
Os putschistas tinham como procedimento de tomada do poder o golpe, sem prévia
conscientização da população.
55
BAMBIRRA, 1975, p. 160 apud Rosa Luxemburgo.
56
Dados: BAMBIRRA, 1975.
32
da melhoria de qualidade de vida. E na verdade nem tinham motivos para apoiar ao
exército de Batista. Ao contrário, repudiavam a arbitrariedade desse governo. (iii)
Caráter amplo e nacional da luta, inclusive com a participação da classe média e
pequeno-burguesa: a classe média e pequena burguesia tinham objetivos convergentes
com os do movimento revolucionário, como o de derrubar o governo corrupto e
antidemocrático. E sozinhas essas classes não conseguiriam articular um levante. Para o
movimento, por sua vez, não é inteligente dispensar forças que estejam dispostas a lutar
pelo mesmo objetivo. (iv) A utilização e combinação de várias formas de luta: a junção
de duas estratégias, parte na planície, que foi a guerrilha urbana, e parte na serra, que foi
a guerrilha rural. A utilização das greves, a participação das classes campesina, operária,
da população em geral, e com o apoio da pequena burguesia, formou um conjunto de
forças. A exclusão de qualquer forma de apoio poderia significar a derrota da revolução.
A greve geral de abril de 1958 é um exemplo. Muito provavelmente não vingou por
falta de engajamento do Partido Socialista Popular. Logo, é perceptível a diferença que
faz uma única forma de luta para o conjunto.
O apoio popular foi fundamental, seja no mais simples ato de ato de quem
prestou assistência aos combatentes, fornecendo-lhes mantimentos, por exemplo, ou de
quem lutou diretamente na guerrilha. Seja fazendo campanha de conscientização da
população, escrevendo ou divulgando manifestos defendendo o movimento. Cada um a
sua forma. A revolução estava presente em todo o território cubano colaborando para
que o exército revolucionário dominasse o exército de Batista.
A guerrilha mobilizou a massa e possibilitou a abertura para as forças sociais
revolucionárias, tornando-as eficaz. As aspirações econômicas, sociais e políticas dos
trabalhadores seriam garantidas a partir de então, quebrando com uma crença de que as
revoluções, para serem vitoriosa, precisavam ser feitas pela classe dominante e em
benefício delas.
3.4 Cuba Revolucionária
Cuba revolucionária é dividida em duas etapas: a social-democrática e a
socialista. Segundo Vania, a revolução cubana foi estabelecida numa concepção
democrático-burguesa, o que significa que teve um caráter reformista e sem a pretensão
de romper com o imperialismo. Portanto a primeira etapa teve esse caráter, que
33
perdurou até a primeira metade do ano de 1960. Partindo da análise do Partido
Socialista Popular, Vania destacou que:
(...) tais forças sociais, como se sabe, ainda que não se submetam ao
imperialismo e lhe oponham resistência, defendendo os seus interesses e a
independência nacional, não se decidem por uma luta revolucionária contra o
imperialismo, vacilam ante as medidas econômicas e sociais que se devem
adotar para levar adiante a libertação nacional, o desenvolvimento econômico
e o progresso social. Estas forças estão limitadas na sua orientação antiimperialista e revolucionária pelo seu afã de conservarem a todo o transe o
regime capitalista. 57
A intenção dos revolucionários, a princípio, não era o socialismo. Observando os
discursos de Fidel Castro, Vania entende que o líder revolucionário defendia uma
“Revolução democrática, humanista e justiceira”, e que isso não significava
necessariamente um rompimento com os Estados Unidos e nem que pretendiam
implantar o socialismo no país. Fidel dizia:
É possível progredirmos em Cuba se caminharmos juntos com os Estados
Unidos. (...) Não sou comunista, nem estou de acordo com o comunismo (...)
A democracia e o comunismo não são uma e a mesma coisa para mim.
Chamamos humanistas aos nossos ideais, porque não queremos apenas dar
liberdade ao povo, mas também proporcionar-lhe os meios de viver e
conseguir comida. 58
Entretanto, seus objetivos eram insolúveis dentro do sistema capitalista. Seria
possível apenas manter algumas das propostas, mas não resolver as questões estruturais
do país. A população não teria seus problemas resolvidos dentro do capitalismo
dependente, no qual o país subsistia. O capital estrangeiro tinha o controle das
indústrias, o que impedia o desenvolvimento de uma burguesia nacional industrial. O
país subsidiava os interesses secundários dos Estados Unidos, e isso não mudaria dentro
de uma revolução democrático-burguesa.
Como o compromisso era com o povo operário, camponês, trabalhador
industrial, que era a maior parte da população, a revolução cubana foi reformista até o
momento em que se percebeu que, para cumprir com os objetivos propostos seria
necessário romper com o sistema capitalista.
Foi o resultado necessário de um processo revolucionário que preconizava o
humanismo, o desenvolvimento econômico, a justiça social e a democracia
política. E estes não podem conseguir-se nos quadros do capitalismo e muito
menos nos do capitalismo dependente. Por isso, a revolução para ser
57
BAMBIRRA, 1975, p. 235.
BAMBIRRA, 1975, p. 251 – 252 apud Fidel Castro, discurso pronunciado no Central Park de
New York, em 24 de Abril de 1959, p. 140.
58
34
consequente com seus postulados básicos, que de início assumiram a forma
de democráticos, teve de romper com a democracia burguesa até as suas
últimas consequências, teve de transformar-se em socialista. 59
Houve o esgotamento dessa formação social, do capitalismo dentro de uma
ordem neocolonial, para então haver a transição ao socialismo. O governo
revolucionário tinha os instrumentos necessários fazer a transição para o socialismo:
controle do aparelho estatal, exército rebelde fortalecido, domínio da superestrutura
jurídico-político social e posse de parte fundamental da base econômica, agrícola,
industrial, comercial e financeira de Cuba.
Cuba seguiu o caminho do socialismo não porque houvesse essa intenção desde
o início do movimento, mas porque existiu, de fato, a tentativa pela via socialdemocrática, mas que se mostrou incapaz de cumprir os objetivos revolucionários.
Esse é um ponto divergente entre dois dos autores aqui estudados. Florestan
discorda de Vania quanto ao caráter da revolução cubana, e consequentemente, quanto o
papel da guerrilha. Segundo ele, uma nacionalização democrático-burguesa não seria
possível em Cuba uma vez que o polo forte da ordem social neocolonial estava fora do
país, nos Estados Unidos. Nesse caso ele descarta uma intenção de revolução dentro da
ordem.
(...) é conveniente salientar que a guerrilha não era e nem podia ser neutra
com referência ao destino da ordem social neocolonial. Esta devia ser
destruída inteiramente e até o fim, o que punha a guerrilha em luta direta com
os Estados Unidos. Ao buscar o apoio frontal das classes trabalhadoras e da
população pobre, ela não procurava uma retaguarda firme para sua luta
armada contra a ditadura de Batista. Isso seria um exagero. Ela preparava o
terreno para o confronto mais árduo e difícil com o imperialismo. 60
A revolução aconteceu em Cuba a despeito do regime de classes pouco
avançado, tal qual ocorre nos países centrais. A atividade da guerrilha se adequou a essa
situação, surgindo como expressão da vontade da população já que o desenvolvimento
capitalista dentro de uma ordem social neocolonial prejudicou tanto a classe
trabalhadora, impossibilitando que a grande maioria da população conseguisse viver
razoavelmente bem. E a guerrilha foi a forma encontrada de lutar contra esse sistema.
A guerrilha, portanto, subverteu a orbita das relações e conflitos de classes,
conferindo às classes trabalhadoras e destituídas a possibilidade (antes
inconcebível) de enfrentar as tarefas políticas que a situação revolucionária e
59
60
BAMBIRRA, 1975, p. 261.
FERNANDES, 2007, p. 118.
35
a guerra civil lhes impunham. E o regime de classes, antes de tornar-se
“maduro”, explodiu. 61
O caráter explorador da relação com os Estados Unidos impedia que Cuba
avançasse. Portanto, não teria alternativa senão o enfrentar, ocasionando o rompimento
das relações, que partiu dos norte-americanos, já que outra relação não serviria a seus
interesses econômicos e políticos.
Os serviços públicos, companhias elétricas, companhias telefônicas, eram
propriedade de monopólios norte-americanos. (...) Uma grande parte da
banca, uma grande parte do comércio de importação, as refinarias de
petróleo, a maior parte da produção açucareira, as melhores terras de Cuba e
as indústrias mais importantes em todas as ordens, eram propriedade de
companhias norte-americanas. A balança de pagamentos entre Estados
Unidos e Cuba, nos últimos dez anos, de 1950 a 1960, tinha sido favorável
aos Estados Unidos em 1.000 milhões de dólares. 62
O questionamento que pode ficar é se os revolucionários pensavam que uma
revolução dentro da ordem seria o suficiente para a solução dos problemas que se
propuseram resolver ou se desde o princípio já sabiam que teriam que romper com a
ordem. Fidel declarava que não tinha a intenção de romper com os Estados Unidos.
Creio que de fato não queria isso. O objetivo era construir uma economia e sociedade
soberana, com liberdade para governar de acordo com os interesses da própria nação.
As relações internacionais poderiam continuar, porém sem que prejudicasse Cuba, como
acontecia até então. A questão é: seria possível ter soberania sem romper com o
império? Os revolucionários provavelmente já sabiam a resposta dessa pergunta.
3.4.1 Transição para a etapa socialista
A estratégia de desenvolvimento do governo revolucionário se concentrou na
política agrária e na industrialização. Houve uma diversificação da produção agrícola,
afinal era preciso fortalecer o mercado interno. Cuba importava quase tudo que
consumia dos Estados Unidos. E a compensação era a exportação de açúcar. Com o
rompimento e o consequente bloqueio econômico promovido pelos Estados Unidos
(tema que será tratado em seguida), foi necessário modificar essa estrutura e começar a
produzir para o consumo próprio e, posteriormente, também para exportação.
61
FERNANDES, 2007, p. 117.
BAMBIRRA, 1975, p. 289 apud Fidel Castro, Discurso na Organização das Nações Unidas
(ONU), p. 11.
62
36
No entanto, as divisas necessárias à importação de máquinas para manter o setor
primário e financiar os projetos industriais vinham justamente da venda de açúcar, cuja
produção foi reduzida. Mesmo assim, o governo revolucionário assumiu uma política
social muito forte, com altos investimentos em educação, saúde, cultura.
Embora essa primeira estratégia tenha causado um déficit no balanço de
pagamentos, foi uma atitude necessária, visto o cenário deixado após uma longa história
de dependência, onde não havia intenção de fortalecimento da economia de Cuba. O
país até então tinha sido utilizado apenas para fortalecer a Espanha e depois os Estados
Unidos.
Cuba também sofreu com escassez de mão de obra especializada no início do
processo de transição para o socialismo. Para superar essa situação o país optou por
fazer investimentos sociais, mesmo sendo difícil devido às condições econômicas. Não
há como superar uma situação sem enfrentá-la. São, nas palavras de Fidel, os
“sacrifícios da revolução”.
Para corrigir os problemas gerados na primeira estratégia de desenvolvimento
houve algumas mudanças no processo de planificação da economia: (i) Racionalização
dos gastos sociais: continuou sendo prioridade, porém melhor estudados. E a política de
salários foi reestruturada, com aumentos mais moderados. Antes existia um aumento
salarial, mas a produção não acompanhava. Logo, criava-se um processo inflacionário,
pois o dinheiro perdia poder de compra. Um aumento muito alto, nesse caso, não
resolveria nada. (ii) Política agrária: especialização regional das culturas e aumento de
investimento para o setor, que antes tinha como prioridade a indústria. Nacionalização
de propriedades e formação de grandes fazendas estatais. (iii) Linhas gerais de
desenvolvimento: açúcar, como principal produto, aumentando 50% a sua produção,
além de fortalecimento do níquel e da pecuária. 63
Foi nesse contexto que a Revolução teve seu êxito; colaboração geral da
população, frente a uma situação insustentável tanto para os trabalhadores, que estavam
vivendo em péssimas condições, quanto para a burguesia, que não conseguia avançar
sob o império estadunidense, na condição de colônia.
A situação do país melhorou consideravelmente.
Graças ao socialismo, apenas em 20 anos, Cuba: 1º. Livrou-se da condição de
“nação-problema”, que o levara ao beco sem saída em que se encontrava; 2º.
Realizou uma reforma agrária que se inscreve na história das grandes
63
Dados: FERNANDES, 2007.
37
realizações que ocorreram na América Latina no século 20; 3º. Retirou a
maioria de sua população, os setores mais pobres dos proletários rurais e
urbanos, da situação crônica de condenados da terra, assegurando-lhes meios
permanentes de trabalho, um padrão sóbrio mas decente de vida, e a
possibilidade de viver como gente; 4º. Suplantou um dos mais terríveis
cercos capitalistas e deixou definitivamente para trás o complexo colonial e a
complacência da burguesia compradora64.
A socialização da agricultura, através da reforma agrária, foi o início da
formação de base material da revolução, base essa que focava no aumento da produção
de alimentos, na diferenciação da produção agrícola e no incremento do excedente, para
exportação. Além disso, mobilizava politicamente os trabalhadores. O INRA (Instituto
Nacional de Reforma Agrária), criado através da lei de 17 de maio de 1959, foi a
principal entidade relativa à reforma agrária. Autônoma e com personalidade jurídica,
tinha as cooperativas agrária e as zonas de desenvolvimento agrário como subordinadas,
a fim de auxiliá-la no processo de reforma.
Em maio de 1960 Cuba estabeleceu relações econômicas com a União Soviética.
Os empréstimos feitos a Cuba foram investidos em empresas cubanas, e não em
multinacionais, que tem a cultura de enviar dividendos para fora do país onde investe.
Além disso, a URSS emprestava dinheiro a Cuba a juros mais baixos e firmou acordo
de compra do açúcar cubano, e de venda, com o preço 33% abaixo do mercado, do
petróleo soviético.
A suspensão de compra de açúcar cubano por parte dos Estados Unidos, em
julho de 1960, juntamente com os ataques dos Estados Unidos a Cuba na Organização
dos Estados Americanos (OEA) e com as sabotagens promovidas pelos grandes
produtores daquele país, fez com que o governo revolucionário confiscasse as centrais
açucareiras com suas terras, e as explorações agrícolas de propriedade estrangeira e da
burguesia cubana. Jersey, Shell e Texaco, empresas estadunidenses em território
cubano, foram nacionalizadas sem compensação, quando se negaram a refinar petróleo
soviético.
Nesse mês de julho de 1960, Cuba já tinha conquistado o monopólio do
comércio externo. Companhias norte-americanas (as refinarias de petróleo, 36 centrais
açucareiras, companhias telefônicas e elétricas) foram nacionalizadas em agosto. No
mês seguinte anunciaram o estabelecimento de relações com a China, ruptura do tratado
militar com os Estados Unidos e nacionalização dos bancos norte-americana em Cuba.
Em outubro foram nacionalizados quase todos os bancos - com exceção dos canadenses
64
FERNANDES, 2007, p. 149 – 150.
38
- e grandes empresas de diversos ramos: açucareiras, indústrias têxteis, ferroviárias,
cadeias cinematográficas, estabelecimentos comerciais, moinhos de arroz, fábricas de
bebidas e de leite condensado, torrefações de café, armazéns comerciais. As empresas
norte-americanas restantes em Cuba também foram nacionalizadas.
Fidel Castro, em seu primeiro discurso na Organização das Nações Unidas
(ONU) afirmou que é dessa forma, com a destruição da base material de dominação que
se busca a independência econômica, pré-requisito para a independência política.
3.4.2 A política estadunidense de hostilidade a Cuba
A decisão do governo revolucionário de modificar as relações comerciais que
mantinham Cuba dependente implicou em prejuízo no relacionamento com os Estados
Unidos, que se empenharam na tentativa de desestabilizar a revolução. Em 3 de janeiro
de 1961 romperam as relações diplomáticas com Cuba. Iniciaram o bloqueio econômico
ao país, suspendendo a compra da cota de açúcar cubano e praticando outros tantos
boicotes, como campanha midiática de difamação do governo cubano, praticando
atentados, espionagens, e forçando outros países membros da Organização dos Estados
Americanos (OEA) a também romperem as relações com Cuba.
Em 15 de abril de 1961, houve uma tentativa de ocupação do território cubano
para o estabelecimento de um governo provisório, episódio conhecido como ataque a
Playa Girón, projetado pela CIA e executado a mando dos Estados Unidos. Foi
derrotado pelo regime revolucionário e no dia seguinte foi proclamado o caráter
socialista da revolução cubana. Como demonstração da hostilidade à soberania cubana,
os Estados Unidos tomou uma série de medidas contra o país: 65.
- 2 de fevereiro de 1962: bloqueio econômico. O bloqueio vai além do contexto
bilateral da relação norte-americana com Cuba: (i) Empresas de outros países foram
proibidas de exportar para Cuba produtos com componentes ou materiais
estadunidenses ou reexportar mercadorias originárias dos Estados Unidos. (ii) Proibição
aos bancos de outros países de manter contas em dólar para Cuba ou em nome de
qualquer cidadão cubano, e às empresas em utilizar a moeda em seus negócios em
contas com Cuba. (iii) Proibição às instituições financeiras internacionais de conceder
de crédito a Cuba.
65
Dados a seguir: PÉREZ, 2002.
39
- março de 1962: proibição da entrada nos Estados Unidos de produtos de
origem cubana, mesmo que produzido parcialmente em Cuba.
- julho de 1963: proibição de transações de ativos entre Cuba e Estados Unidos e
congelamento dos valores de posse de cubanos ou do Estado cubano nos Estados
Unidos.
- julho de 1963: os estadunidenses foram proibidos de viajar para Cuba. Entre
1979 e 1982 a proibição foi suspensa, pois o então presidente dos Estados Unidos,
Jimmy Carter não renovou esta regulamentação. Mas em 1982 tornou a vigorar e
permanece até os dias atuais. O cidadão estadunidense que viajar a Cuba sem uma
licença especial do Departamento de Estado está sujeito a uma multa de 250 mil dólares
e a cumprir 10 anos de prisão. Em 2009 Barack Obama autorizou apenas a viagem de
cidadãos cubano-americanos à ilha. Os estadunidenses permanecem proibidos de viajar
para Cuba.
- maio de 1964: proibição do embarque de medicamentos e alimentos com
destino a Cuba, determinado pelo Departamento de Comércio dos Estados Unidos.
- Lei Torricelli, de 1992: pune países que colaborem com Cuba e amplia o
embargo.
- Lei Helms-Burton, de 1996: possibilitou aos Estados Unidos processar
empresas nacionais e estrangeiras que tivessem relações comerciais com Cuba,
contrariando as regras do direito internacional. Essa lei ocasionou a Cuba “perdas
diretas e indiretas acima de 121 bilhões de dólares. Estima-se que todo o dano equivale
a 15 vezes o nível de exportação de 1989, o mais alto da história, o que corresponde a
cercear 15 anos de desenvolvimento em Cuba.” 66.
Em novembro de 1966 foi criada a Lei de Ajuste Cubano:
(...) estabelece que qualquer cubano que chegue a território norte-americano,
mesmo que ilegalmente, e que ali viva durante dois anos (posteriormente se
reduziu para um ano, que é o vigente hoje), pode receber o Promotor Geral
(na prática do INS) a condição de Residente Permanente nos Estados Unidos.
67
Essa lei é uma aberração, considerando o tratamento que é dado a qualquer
imigrante, especialmente de países pobres que chagam aos Estados Unidos. Os únicos
66
67
PÉREZ, 2002, p. 59.
PÉREZ, 2002, p. 60.
40
que recebem automaticamente o visto de autorização de permanência no país são os
cubanos. Uma política claramente intencional em desestruturar a revolução.
3.4.3 O governo revolucionário
Após a declaração do caráter socialista da revolução, o governo revolucionário
se deparou com o grande desafio de adaptar a economia cubana às normas ideais do
socialismo. “O futuro não está ao alcance das mãos! Um povo não pode livrar-se, em
pouco mais de um decênio, do fardo de uma herança pesada, deixada por 5 séculos de
colonialismo e de neocolonialismo!” 68 diz Florestan.
Com a Revolução não foi possível acabar de imediato com a monocultura do
açúcar. Primeiro foi preciso utilizar as divisas geradas pelo produto para se investir na
diversificação da produção e nas demais indústrias. O açúcar financiou o fim da
monocultura. Houve escassez de produtos, pois a demanda aumentou, afinal antes
poucos tinham acesso a certos bens de consumo e até mesmo a certos alimentos. Cuba
teve que se adequar a produzir para suprir essa demanda, e felizmente não faltava mão
de obra para tal.
Também Cuba continua dependendo de modo incontornável, de suas vendas
de açúcar, mas a partir da reforma agrária de 1959, foi iniciado um intenso
processo de diversificação da economia da ilha, mudança que pôs um ponto
final no desemprego: os cubanos já não trabalham apenas cinco meses por
ano, durante as safras, mas no ano todo, ao longo da ininterrupta e por certo
difícil construção de uma sociedade nova. 69
A economia era dependente da produção e exportação de açúcar, sofria com
secas, oscilações na cotação, especulação financeira, demanda e oferta, crises externas,
etc. Era inviável enfrentar simultaneamente uma revolução agrícola e uma revolução
industrial. Após o fracasso da safra de 1970, Cuba entrou para o Conselho de Ajuda
Mútua70 em julho de 1972 e formou acordos de cooperação com a União Soviética. A
prioridade era o desenvolvimento industrial.
A aproximação de Cuba com a URSS não foi produto de uma opção ideológica,
mas uma imposição dos fatos: a política de hostilidade dos Estados Unidos – como no
68
FERNANDES, 2007, p. 197.
GALEANO, 2010, p. 94.
70
Conselho de Ajuda Mútua Econômica (CAME), foi composto por países socialistas liderados
pela URSS, fundado em 1972 e extinto em 1991.
69
41
bloqueio econômico e o ataque à Playa Girón - frente às decisões de cunho nacionalista
do governo revolucionário cubano que correspondiam às exigências das massas foi a
real motivação dessa aliança entre Cuba e União Soviética.
Algumas medidas de apoio da URSS a Cuba: (i) Acordo de pagamento firmado
a preços superiores para os principais produtos cubanos: açúcar e níquel. (ii) Auxilio na
mecanização da colheita do açúcar, modernização da exploração do níquel, produção de
eletricidade, refino de petróleo, produção têxtil, nas metalúrgicas, nos serviços de
planificação e computação. (iii) Prorrogação de mais 13 anos no pagamento da dívida.
(iv) Crédito para suprir o déficit no balanço de pagamento. (v) Criação do Controle
Econômico (CE), com o intuito da aplicação do 1º Plano Quinquenal, para que Cuba
estabelecesse uma planificação centralizada mais rigorosa, bem como os países
socialistas devem fazer.
Política social era um luxo na situação econômica em que Cuba se encontrava. O
país não tinha estabilidade suficiente para isso. No entanto, houve uma preocupação na
humanização das condições de vida das pessoas e a política social foi tratada como
prioridade, a despeito das dificuldades. Ao mesmo tempo, havia uma preocupação com
o desenvolvimento econômico. Cuba não tinha muitos recursos, então não era possível
atender de forma plena às demandas do desenvolvimento do país e simultaneamente às
necessidades da população. A postura tomada pelo governo revolucionário foi de
assumir essas duas responsabilidades, sem resignação.
O grande desafio foi superar o neocolonialismo e o veto estadunidense. A
esperança do povo foi fundamental. A credibilidade no governo revolucionário, na
superação do capitalismo e construção do socialismo. Para isso, era necessário ter uma
sociedade cada vez mais consciente e almejando mudança.
A sociedade é o ponto de partida da promoção de uma mudança estrutural do
regime sob o qual se está estabelecido. Sem apoio popular se trona inviável tal
superação. A alienação talvez seja, portanto, o primeiro desafio. Em Cuba a busca da
população em melhorar as péssimas condições em que vivia construiu a maturidade para
que se acreditasse que era possível superar o subdesenvolvimento. Fernandes via a
sociedade cubana dessa forma: “Fica claro, então, que Cuba é uma sociedade
revolucionária, suficientemente madura para dar densidade histórica à filosofia política
revolucionária e bastante consolidada para tornar-se socialista”. 71
71
FERNANDES, 2007, p. 212.
42
Fidel Castro dizia que o instrumento de mobilização das massas deve ser
fundamentalmente moral, apesar de também ser necessário utilizar um estímulo
material, mas de forma correta.
O fato de a revolução triunfar num país e proclamar a intenção de edificar a
nova sociedade não garante, de per se, que isto chegue a ser realidade. Para
chegar ao socialismo e ao comunismo é necessário combinar dois fatores
essenciais: o desenvolvimento de um homem novo, com uma consciência e
uma atitude novas diante da vida, e o avanço da técnica, capaz de multiplicar
a produtividade e gestar a abundância de bens. Para alcançar esta meta
elevada da sociedade humana é preciso exercer uma política consequente
com os princípios do marxismo-leninismo 72
O governo revolucionário encontrou um sistema educacional precário e acessível
a uma pequena parcela da população. para poucos. Optou por priorizar a educação de
base, ensinos primário e médio. Na implantação do socialismo ocorreu inicialmente um
declínio proporcional do ensino superior em relação ao ensino de base, depois foi
estabelecido um novo equilíbrio. Dois grandes problemas iniciais foram a falta de
estrutura na rede educacional, no que se refere a professores e a profissionais habilitados
a auxiliar na construção de um novo sistema de ensino, e a troca da filosofia
educacional básica, da capitalista para a socialista.
A situação da educação antes da revolução se traduzia em mais de um milhão de
analfabetos na população maior de 10 anos (25%) enquanto que 66% da população
entre 5 e 24 anos não tinham assistência escolar. Para cada mil habitantes, apenas 3
concluíram o ensino médio e as escolas eram concentradas nos principais centros
urbanos. 73
Imediatamente após a revolução a porcentagem da população matriculada em
alguma instituição de ensino subiu 12,5% entre 1958 e 1959. E 37,1% de 1977 a 1978.
A matrícula no ensino primário triplicou, no nível médio aumentou dez vezes e no
ensino superior oito vezes. O orçamento apenas destinado à educação no ano de 1973
foi de 700 milhões de pesos, superior ao orçamento total da república antes de 1959. 74
O governo também criou alguns incentivos aos trabalhadores - como pagamento
adicional, aproveitamento em ocupações mais complexas e ascensão na escala de
promoções – para que completassem seus estudos e tivessem acesso à cultura e,
consequentemente condições intelectuais para uma formação política. De 1972 a 1973
72
FERNANDES, 2007, p. 219 apud Fidel Castro, Socialismo y comunismo, p. 170.
Dados: FERNANDES, 2007, p. 232 - 235.
74
Dados: FERNANDES, 2007, p. 232.
73
43
aumentou o número de trabalhadores estudando, sendo em curso de formação para
adultos ou treinamento técnico, de 166.021 para 517.803. 75 “A revolução concentrou-se
no trabalhador. Ele é o alfa e o ômega, portanto, da revolução educacional em curso –
como sujeito-objeto, como produto e como o agente previsível da consolidação da
própria revolução ou do socialismo.” 76.
Quanto ao recrutamento de militantes e a mobilização das massas, existia um
cuidado especial na forma como o povo seria engajado, procurando-se evitar a formação
de “um exército de revolucionários domesticados e amestrados”
77
O Partido Unido da
Revolução Socialista (PURS) auxiliou nesses dois objetivos.
Deste ângulo, o homem novo e a sociedade nova passaram de marco utópico
do “idealismo revolucionário” a produtos e fatores interdependentes de uma
nova situação hitórico-social. Exprimem e fazem parte de práticas coletivas
concretas, que redefinem o significado humano da revolução. Ou seja, na
medida em que uma “revolução para os trabalhadores” se transforma em uma
revolução dos trabalhadores, pelos trabalhadores e para os trabalhadores, o
que era uma aspiração de chegar ao socialismo passa a ser o socialismo em
marcha e dele está brotando uma nova Cuba, Cuba socialista. 78
A participação do povo nas decisões vindas “de cima” foi levada até a fábrica,
para que os trabalhadores pudessem de fato dar suas contribuições. O trabalhador foi, de
certa forma, incorporado em todas as tarefas, para uma construção coletiva da política
nacional.
A revolução atinge, aqui, sua etapa mais construtiva, na qual ela própria
suscita o fim do governo revolucionário, liga-se “para baixo” a todos os
estratos do povo e assume um caráter democrático-popular,
institucionalizando-se como poder popular organizado. Portanto, esta é uma
década de colheita de frutos mas, também, de lançamento dos pilares do
Estado socialista e de conquista do futuro. 79
A revolução tinha um poder de mobilização muito grande e precisava convertêlo em participação política dos trabalhadores. A legitimidade do governo revolucionário
é dada justamente a partir do momento em que é capaz de promover o engajamento
geral da população. Essa preocupação fica sempre muito clara, e a participação é
possibilitada através do apoio às organizações revolucionárias, de dedicação ao trabalho
75
Dados: FERNANDES, 2007, p. 236.
FERNANDES, 2007, p. 236.
77
FERNANDES, 2007, p. 271 apud M. Harnecker, p. 17
78
FERNANDES, 2007, p. 261.
79
FERNANDES, 2007, p. 265.
76
44
e à sua formação educacional. Dessa forma desempenha-se uma política socialista.
“Poder da maioria, pela a maioria e para maioria.” 80.
O Partido Unido da Revolução Socialista (PURS) auxiliou na mobilização das
massas. Cuba levou quase 15 anos para passar da problemática da organização do
partido para a problemática da organização do Estado. Foi estabelecida uma ditadura do
proletariado após solucionar problemas referentes ao desenvolvimento econômico, à
defesa militar e à atuação dos militantes e dos trabalhadores no auxílio ao
estabelecimento dessa estrutura socialista. A ditadura do proletariado ou Estado
proletário “resulta que essa “força especial de repressão” do proletariado pela burguesia,
de milhões de trabalhadores por um punhado de ricos, deve ser substituída por uma
“força especial de repressão” da burguesia pelo proletariado.” 81.
Lenin, a partir da teoria de Marx e Engels, defendia a ideia do fim do Estado.
Mas isso, segundo ele, deve acontecer através de seu definhamento, e não com uma
extinção compulsória, como propõem os anarquistas. O primeiro passo seria a
substituição do Estado burguês pelo Estado proletário, consequentemente levando à
ditadura do proletariado. O desenvolvimento pacífico da democracia é uma ilusão e
cabe somente para alimentar ideias reformistas. Esse processo é possível, segundo
Lenin, apenas através de uma revolução violenta.
Com um Estado proletário, o Estado se dissolverá por si próprio, afinal ele existe
apenas enquanto existe luta de classes, para intermediar as relações de domínio de uns
sobre os outros.
O Estado é o produto e a manifestação do antagonismo inconciliável das
classes. O Estado aparece onde e na medida em que os antagonismos de
classes não podem objetivamente ser conciliados. E, reciprocamente, a
existência do Estado prova que as contradições de classes são inconciliáveis.
82
Por esse motivo é necessário, primeiramente, essa transição do Estado burguês
para o Estado proletário, no qual o proletariado estará organizado como classe
dominante, para que, dai sim, possa haver o desaparecimento do Estado, que existe
apenas enquanto alguma classe é subjugada. No Estado burguês essa classe é o
proletariado, e no Estado proletário, é a burguesia.
80
FERNANDES, 2007.
LENIN, 2007, p. 35.
82
LENIN, 2007, p. 25.
81
45
As classes exploradoras precisam da dominação política para a manutenção
da exploração, no interesse egoísta de uma ínfima minoria contra a imensa
maioria do povo. As classes exploradas precisam da dominação política para
o completo aniquilamento de qualquer exploração, no interesse da imensa
maioria do povo contra a ínfima minoria dos escravistas modernos, ou seja,
os proprietários fundiários e os capitalistas. 83
O Estado é inútil e impossível numa sociedade onde não existam os
antagonismos de classe. A luta de classes existe para promover uma transição para a
extinção de todas as classes até que se chegue a uma sociedade sem classe. O estado
proletário, ou ditadura do proletariado, é necessário em todo o período que separa o
capitalismo da “sociedade sem classes”, do comunismo.
Ora, uma vez que é a própria maioria do povo que oprime os seus opressores,
já não há necessidade de uma “força especial” de repressão! É nesse sentido
que o Estado começa a definhar. Em lugar de instituições especiais de uma
minoria privilegiada (funcionários civis, chefes do exército permanente), a
própria maioria pode desempenhar diretamente as funções do poder político,
e, quanto mais o próprio povo assumir essas funções, tanto menos se fará
sentir a necessidade desse poder. 84
E quem deve enfrentar e derrotar a dominação burguesa é o proletariado, que se
encontra organizado e concentrado pelo próprio regime burguês.
Em virtude do seu papel econômico na grande produção, só o proletariado é
capaz de ser o guia de todos os trabalhadores e de todas as massas que,
embora tão exploradas, escravizadas e esmagadas quanto ele, e mesmo mais
do que ele, não são aptas para lutar independentemente por sua emancipação.
85
A função da ditadura do proletariado é quebrar o velho aparelho do Estado e
substituí-lo por um novo. Não se trata simplesmente de tomar o poder, de trocar de
mãos o poder do Estado.
Marx nos ensina a evitar esses dois erros: ele nos ensina a destruir
ousadamente toda velha máquina do Estado, e a colocar ao mesmo tempo a
questão concreta; em algumas semanas, a Comuna pôde começar a construir
uma nova máquina, uma máquina de Estado proletária, aplicando as medidas
assinaladas, para ampliar a democracia e suprimir a burocracia. Aprendamos,
pois, com os comunardos, a audácia revolucionária, vejamos nas suas
medidas práticas um esboço das reformas fundamentais e imediatamente
realizáveis, e, seguindo esse caminho, chegaremos à supressão completa da
burocracia. 86
83
LENIN, 2007, p. 43.
LENIN, 2007, p. 61.
85
LENIN, 2007, p. 44.
86
LENIN, 2007, p. 136.
84
46
O Estado enquanto autoridade política desaparecerá transformando as funções
públicas apenas em funções administrativas, a serviço dos interesses sociais, perdendo o
caráter político.
No momento em que a opressão é invertida, da minoria para a maioria, a
existência do Estado passa a não fazer mais sentido. E o fim do Estado, nesse sentido,
significa o auge da democracia. Uma sociedade sem a necessidade de haver submissão
de uma parte da população à outra. “Para salientar esse elemento de adaptação, Engels
fala da nova geração “educada em uma nova sociedade de homens livres e iguais” e que
“poderá livrar-se de todo aparato governamental”, de qualquer forma de Estado,
inclusive a República democrática.” 87.
O Estado democrático-popular deve nascer a partir de duas etapas, primeiro
acabando com a sociedade de classes – através da ditadura do proletariado - para logo
depois pôr fim à classe revolucionária, colocando em prática a política democrática
popular, que é de fato o objetivo da revolução, a evolução social. Cuba já conquistou a
primeira fase.
87
LENIN, 2007, p. 99.
47
4. DEMOCRACIA
A Revolução Cubana pretendia uma radical mudança social e econômica. O país
vivia uma ditadura que perdurou por muito tempo, mas esse não era o único problema.
Existia uma relação imperialista absolutamente nociva ao país. A desconstrução dessa
relação passou pela mudança da ordem social; afinal, a conquista de uma democracia
nos moldes liberais – a única possível dentro do capitalismo - não seria suficiente.
Nesse capítulo vamos abordar dois tipos de democracia: a liberal, existente nos
países de economia capitalista, e a democracia socialista, vigente em Cuba.
O conceito básico de democracia é o governo do povo para o povo. Ela pode ser
simplesmente interpretada como a garantia de igualdade jurídica e de liberdade de
expressão, ou como um desafio ao governo de classes. Nesse caso, “não se trata apenas
de um sistema específico de relações de poder, mas também da relação constitutiva de
um processo social distinto, a dinâmica da acumulação e da autoexpansão do capital.”
88
.
4.1 Democracia Liberal
A democracia nasce como um contraponto a formas de governos autocráticos,
como a monarquia e a oligarquia. O direito natural, cuja doutrina é o pressuposto
filosófico do Estado liberal, diz que:
(...) todos os homens, indiscriminadamente, tem por natureza e, portanto,
independentemente de sua própria vontade, e menos ainda da vontade de
alguns poucos ou de apenas um, certos direitos fundamentais, como o direito
à vida, à liberdade, à segurança, à felicidade – direitos esses que o Estado, ou
mais concretamente aqueles que num determinado momento histórico detêm
o poder legítimo de exercer a força para obter a obediência a seus comandos
devem respeitar, e portanto não invadir, e ao mesmo tempo proteger contra
toda possível invasão por parte dos outros. 89
A democracia liberal, direta e representativa, é um acordo “(...) entre indivíduos
inicialmente livres que convencionam estabelecer os vínculos estritamente necessários a
uma convivência pacífica e duradoura.” 90, de igualdade jurídica, de liberdade perante a
88
WOOD, 2003, p. 211.
BOBBIO, 1994, p. 11.
90
BOBBIO, 1994, p. 14.
89
48
lei. É entendida pelo direito a liberdade de expressão e extensão dos direitos políticos a
todos os cidadãos maiores de idade, não os limitando apenas aos proprietários, como
acontecia antes da existência da democracia.
O direito político “(...) é a participação direta ou indireta dos cidadãos, do maior
número de cidadãos, na formação das leis.”
91
Essa participação é exercida através do
voto, por se tratar de um sistema representativo.
(...) deve-se observar que a participação no voto pode ser considerada um
correto e eficaz exercício de um poder político, isto é, o poder de influenciar
a formação das decisões coletivas, apenas caso se desenvolva livremente,
quer dizer, apenas se o indivíduo se dirige às urnas para expressar o próprio
voto goza das liberdades de opinião, de imprensa, de reunião, de associação,
de todas as liberdades que constituem a essência do Estado liberal, e que
enquanto tais passam por pressupostos necessários para que a participação
seja real e não fictícia. 92
A apesar do “princípio da igualdade diante da lei como recusa da sociedade por
estamentos e, assim, ainda uma vez, como afirmação da sociedade em que os sujeitos
originários são apenas os indivíduos uti singuli.”
93
, a característica de uma sociedade
estamental permanece dentro da democracia liberal através das classes sociais. Perante a
lei, todos são iguais, porém não há uma igualdade de oportunidades, de possibilidades e
de acesso.
Bobbio nos adianta que os princípios de igualdade do Estado liberal não dizem
respeito ao aspecto econômico. E avisa: “que se tome o termo “democracia” em seu
significado jurídico-institucional e não no ético, ou seja, num significado mais
procedimental do que substancial.” 94 Apesar de tratá-la como igualdade de liberdade.
(...) liberalismo e democracia são antitéticos, no sentido de que a democracia
levada às suas extremas consequências termina por destruir o Estado liberal
(como sustentam os liberais conservadores) ou pode se realizar plenamente
apenas num Estado social que tenha abandonado o ideal do Estado mínimo
(como sustentam os democratas radicais). 95
A busca por uma democracia igualitária, ou mais próxima disso, resultaria em
“tirania da maioria”, cujo efeito final é o despotismo. O autor entende por ideal
igualitário “(...) uma sociedade composta tanto quanto possível por indivíduos
semelhantes nas aspirações, nos gostos, nas necessidades e nas condições.” portando
91
BOBBIO, 1994, p. 43.
BOBBIO, 1994, p. 44.
93
BOBBIO, 1994, p. 40 e 41.
94
BOBBIO, 1994, p. 37.
95
BOBBIO, 1994, p. 53.
92
49
“(...) os germes do novo despotismo, sob a forma de um governo centralizado e
onipresente.” 96 E no socialismo, vê a confirmação do Estado coletivista que “daria vida
a uma sociedade de castores e não de homens livres”. 97 Gastos públicos que atenderiam
a demanda da maioria, em certos momentos, inclusive, violam os princípios da
democracia liberal.
A separação da condição cívica da situação de classe nas sociedades
capitalistas tem, assim, dois lados: de um, o direito de cidadania não é
determinado por posição socioeconômica – e, neste sentido, o capitalismo
coexiste com a democracia formal -, de outro, a igualdade cívica não afeta
diretamente a desigualdade de classe, e a democracia formal deixa
fundamentalmente intacta a exploração de classe. 98
Do ponto de vista liberal, o Estado é um “mal necessário”. Portanto deve ser
mínimo, limitado a garantir a igualdade jurídica dos cidadãos.
A democracia liberal, que se criou junto com o capitalismo, não era possível nas
sociedades pré-capitalistas, onde a apropriação e a exploração eram inseparavelmente
ligadas ao poder jurídico, político e militar. Essa liberdade convencionada de “igualdade
de oportunidades” separou os trabalhadores dos meios de produção, já na sociedade
capitalista, e é uma forma de manter as relações de dominação e exploração, e de inibir
possíveis alterações nesse cenário, promovendo um alcance limitado da cidadania, sem
a necessidade de limites constitucionais para tal.
Em certo sentido, a criação da soberania individual foi o preço pago pela
multidão trabalhadora para entrar na comunidade política, ou, para ser mais
preciso, no processo histórico que gerou a ascensão do capitalismo e do
trabalho assalariado “livre e igual” que se juntou ao corpo de cidadãos, foi o
mesmo processo em que os camponeses foram despossuídos e desenraizados,
arrancados de sua propriedade e de sua comunidade, com seus direitos
comuns e costumeiros. 99
A manutenção da democracia liberal é feita pela classe dominante, que é
composta pelas burguesias nacional e externa (dos países centrais). Impõe uma cultura
que facilita a manipulação das massas com a submissão da grande mídia, que age como
cliente do capital, e tem o respaldo da máquina estatal, que por sua vez trabalha para
manter essa ordem. O objetivo é estabelecer uma ordem política enfraquecida para,
assim, impedir mudanças no status quo. Tanto a burguesia nacional quanto a
96
BOBBIO, 1994, p. 59.
BOBBIO, 1994, p. 60 apud Tocqueville.
98
WOOD, 2003, p. 123.
99
WOOD, 2003, p. 181.
97
50
imperialista tem interesses em manter o colonialismo disfarçado de democracia em que
vive a América Latina.
O ponto crucial da questão, no que respeita a países nos quais a vanguarda
interna da luta contra o colonialismo era recrutada nos estratos mais
privilegiados dos estamentos dominantes, vem a ser que estes estamentos e
suas elites não possuíam interesse algum em revolucionar as estruturas
sociais e econômicas vigentes – e, quanto às estruturas legais e políticas, só
queriam modificá-las revolucionariamente de forma localizada: a
independência perante a metrópole, de um lado, e a plenitude política de sua
hegemonia social no plano interno, de outro. 100
A relação de dependência é mantida pelo tripé burguesia nacional, Estado e
multinacionais.
Executivo, Legislativo, Judiciário tornaram-se instrumentos do governo
arbitrário de minorias poderosas. (...) Esse governo arbitrário, que se arroga
o caráter de uma variante “liberal” do regime representativo e de contrapesos,
deu continuidade a formas absolutistas de controle estatal e impediu com
êxito que a democracia restrita fosse de fato ameaçada pelas pressões de
“rebeldes esclarecidos” e, principalmente, das massas populares. 101
Uma democracia burguesa real é aquela onde a burguesia nacional não depende
dos países centrais. As burguesias latino-americanas não se autossustentam, o que torna
ainda mais danoso para os países dependentes uma democracia liberal. Tampouco tem
capacidade de se manter sem os países centrais.
A revolução burguesa em atraso não possui envergadura para enfrentar e
resolver tarefas que a revolução burguesa “clássica” só solucionou
parcialmente, na Europa e nos EUA, em um contexto histórico produzido em
grande parte pelo poder coletivo de ação inovadora e construtiva da
burguesia em ascensão ou em consolidação como classe dominante. 102
A esquerda política no cenário da democracia liberal se mostra frágil, e muitas
vezes um instrumento utilizado a favor da burguesia, auxiliando na manutenção do
capitalismo. De que forma é possível que a esquerda cumpra com seus preceitos sem o
rompimento com a ordem? Pois estando no poder, essa esquerda não avança em grandes
mudanças, pelo menos não dentro da ordem. “Em vez das aparições universalistas do
socialismo e da política integradora da luta contra a exploração de classe, temos uma
100
FERNANDES, 1981, p. 81.
FERNANDES, 1981, p. 47.
102
FERNANDES, 1981, p. 103.
101
51
pluralidade de lutas particulares isoladas que terminam na submissão ao capitalismo.”
103
.
A esquerda é incapaz de reconhecer que as várias identidades ou grupos de
interesse se situam em posições diferentes em relação à estrutura dominante,
reconhecem menos essa diferença que a simples pluralidade. E demonstra a fragilidade
na América Latina de um pensamento socialista revolucionário e de teoria
revolucionária para pautar os movimentos sociais e partidos políticos.
A postura da esquerda e dos movimentos sociais deveria ser justamente a de
combater a resignação, que é quase tão perigosa quanto a atuação da direita, pois
enquanto acreditamos estar lutando, não começamos, de fato, a lutar. “As contradições
que não são aproveitadas ativamente pelo movimento sindical e operário são drenadas
pelo sistema capitalista de poder e convertidas em apatia das massas, ou seja, em
submissão dirigida.” 104.
O poder centralizado do capitalismo proporciona à minoria dominante a
possibilidade de exercer uma ditadura por meios legais, governando a seu próprio favor.
É uma forma de dominar, corromper, controlar e manter o poder sob sua rédea com
maior segurança e facilidade. “Os traços e tendências pré-fascistas somente se
convertem em forças políticas efetivas quando esse tipo de polarização não pode ser
resolvido por “acordos entre cavalheiros”, “dentro da ordem” ou mesmo
civilizadamente”. 105
Pode-se dizer que o capitalismo por natureza é contra a democracia, no sentido
de se autofundamentar em sua própria vontade despótica, das duas condições básicas
para a sua existência: acumulação de riqueza e acumulação de força de trabalho
separada dos meios de produção. Há uma separação entre o político e o econômico na
democracia liberal. Permite ao capitalismo deslocar para si fatores como controle de
produção, apropriação e alocação do trabalho e dos recursos sociais, e isola o produtor
dos meios de produção. Uma organização social que estabelece uma relação de poder
através da exploração. Separa a prática intelectual de todo e qualquer movimento
político, o marxismo da política operária, por exemplo, dificultando a consciência
revolucionária da classe operária com essa substituição da luta de classes pela atividade
intelectual.
103
WOOD, 2003, p. 223.
FERNANDES, 1981, p. 107.
105
FERNANDES, 1981, p. 28.
104
52
Essas características são inerentes ao sistema capitalista. Sem educação e com
esse controle que o aparato liberal dispõe em nome de sua democracia, impede a
formação de uma consciência política sólida da população, controlando uma sociedade
de massas através de uma sociedade separada por classes.
O fim dessa relação centro-periferia acontece somente através de nacionalismo
ou socialismo revolucionário.
A criação de uma política nacional está, por isso mesmo, ligada intimamente
à existência e funcionamento de uma estrutura democrática: a característica
antinacional está, precisamente, na inexistência de estrutura democrática, na
vigência de formas ditatoriais de governo. (...) São as forças econômicas
antinacionais que geram as formas políticas e as formas culturais
antinacionais; para manter aquelas, é absolutamente necessário suprimir as
liberdades que condicionam a democracia e a cultura. 106
Os movimentos esquerdistas deveriam perceber que os impulsos emancipatórios
fortes e promissores, muitas vezes não agem no centro da vida social, no coração da
sociedade capitalista. Por exemplo, os estudantes lutando no movimento estudantil
enquanto que os trabalhadores, que representam o motor, o combustível, que são os que
possibilitam a existência do capitalismo, permanecem passivos. A população é
transformada em massa, com a mera função reprodutora desse sistema, sem ter um fim
em si mesma.
Não existe um capitalismo governado pelo poder popular, não há capitalismo
em que a vontade do povo tenha precedência sobre os imperativos do lucro e
da acumulação, não há capitalismo em que as exigências de maximização dos
lucros não definam as condições mais básicas da vida. [...] Toda prática
humana que é transformada em mercadoria deixa de ser acessível ao poder
democrático. Isso significa que a democratização deve seguir pari passu com
a “destransformação em mercadoria”. Mas tal destransformação significa o
fim do capitalismo. 107
Um modo de produção é um fenômeno social. “não somente uma tecnologia,
mas uma organização social da atividade produtiva; e um modo de exploração é uma
relação de poder.” 108 A igualdade política formal na democracia liberal - que podemos
chamar de democracia capitalista, afinal é o único sistema democrático possível no
capitalismo - não somente coexiste com as desigualdades socioeconômicas e de classe,
como as mantém fundamentalmente intactas.
106
SODRÉ, 1990, p. 58.
WOOD, 2003, p. 8.
108
WOOD, 2003, p. 33.
107
53
As forças de classe e os poderes do Estado possibilitam a manutenção da
propriedade privada da produção em favor do capitalista, dando a ele o controle e
expropriando o produtor direto, o isolando dos meios de produção. A base produtiva
capitalista é estabelecida na propriedade e pela dominação, com o respaldo das formas
políticas, sociais e jurídicas.
Pela necessidade de acessar os meios de produção, o trabalhador, dito livre, não
tem alternativa senão transferir mais-valia ao capitalista. É livre para, na melhor das
hipóteses, escolher com qual capitalista irá estabelecer essa relação. Não se trata de
trabalhar apenas para sobreviver. Trata-se de trabalhar para sobreviver e dar condições
ao capitalista permanecer acumulando riqueza em proveito próprio.
O capitalismo é constituído pela exploração de classe, mas é mais que um
mero sistema de opressão de classe. É um processo totalizador cruel que dá
forma a nossa vida em todos os aspectos imagináveis, e em toda parte, não
apenas na relativa opulência do Norte capitalista. Entre outras coisas, mesmo
sem considerar o poder direto brandido pela riqueza capitalista tanto na
economia quanto na esfera política, ele submete toda vida social às
exigências abstratas do mercado, por meio da mercantilização da vida em
todos os seus aspectos, determinando a alocação de trabalho, lazer, recursos,
padrões de produção, de consumo, e a organização do tempo. E assim se
tornam ridículas todas as nossas aspirações à autonomia, à liberdade de
escolha e ao autogoverno democrático. 109
A esfera econômica tem em si uma dimensão jurídica e política. “Nesses
sentidos, são as leis “autônomas” da economia e do capital “em abstração” que exercem
o poder, e não a imposição voluntária pelo capitalista de sua autoridade pessoal sobre o
trabalhador.” 110.
A relação de transferência de poder político para a propriedade privada gera
certa privatização do poder público. O direito a propriedade privada é garantido pelo
capitalismo, ao mesmo tempo em que o direito do trabalhador ao excedente gerado por
sua força de trabalho lhe é negado. A apropriação que o capitalista faz do que é retirado
da terra, do conhecimento que foi socialmente construído é considerado legitimo pela
lógica capitalista, enquanto que o acesso ao excedente que o trabalhador produziu, não.
O capital é o motivo e a finalidade da produção. Seu ponto final e inicial. E o
trabalhador obrigado a se sujeitar a essa lógica.
109
110
WOOD, 2003, p. 224.
WOOD, 2003, p. 44.
54
4.2. Democracia Socialista
Uma das principais consequências do impulso capitalista é a capacidade - e a
necessidade - de expulsar outras formas sociais, ou de lhes impor sua lógica. A
democracia socialista vem como um caminho de combate às premissas autovalidadoras
do capitalismo. Atende à necessidade de uma crítica que explique o que a economia
política aceita como dado. O materialismo histórico foi a mais produtiva das críticas ao
capitalismo e o marxismo atribuiu força determinante à luta de classe.
O primeiro principio do materialismo histórico não é a classe , nem a luta de
classes, mas a organização da vida material e da reprodução social. A classe
entra no quadro quando o acesso às condições de existência e aos meios de
apropriação é organizado em formas de classe, ou seja, quando algumas
pessoas são sistematicamente compelidas pelo acesso diferenciado aos meios
de produção ou de apropriação a transferir para outros a mais-valia. 111
A necessidade econômica torna a transferência de mais-valia condição
inseparável ao acesso da classe trabalhadora aos meios de subsistência e de reprodução,
onde é obrigada a transferir parte de seu trabalho ou de seu produto para a classe
capitalista.
Ainda mais significativa é a visão de Marx de que o objetivo particular da
mudança tecnológica no capitalismo é próprio desse sistema, sendo diferente
de todo objetivo universal que pudesse ser atribuído à humanidade em geral,
como a “economia de esforços” ou o “alívio do trabalho duro”. Marx insiste
repetidamente que o desenvolvimento capitalista das forças produtivas não
visa reduzir o “tempo de trabalho necessário para a produção material em
geral”, mas aumentar o “tempo de trabalho excedente das classes
trabalhadoras” 112. No que concerne ao capital , a produtividade não aumenta
por economia de trabalho vivo em geral, mas somente por meio da economia
da parte paga do trabalho vivo (...) 113
Além de uma categoria política, a democracia deve ser tratada como um
regulador econômico, “(...) baseada na reintegração da “economia” à vida política da
comunidade, que se inicia pela sua subordinação à autodeterminação democrática dos
próprios produtores.” 114.
111
WOOD, 2003, p. 99.
WOOD, p. 112 - 113 apud Karl Marx, O Capital III, p. 264.
113
WOOD, p. 112 - 113 apud Karl Marx, O Capital III, p. 262.
114
WOOD, 2003, p. 242.
112
55
A democracia liberal deixa intocada toda esfera de dominação e coação criada
pelo capitalismo. É governada pelos poderes da propriedade, pelo imperativo da
maximização do lucro e pelas leis do mercado.
O capitalismo é incompatível com alguns bens extraeconômicos, como por
exemplo, a paz mundial, a preservação ecológica. Não é sustentável, produz consumo
descartável, preza a eficiência do aumento do capital, e não uma eficiência produtiva
real. Gera investimentos equivocados. Diferente do socialismo,
(...) um sistema que não é movido pelos imperativos da maximização dos
lucros, da acumulação e do chamado “crescimento”, com seu desperdício e
sua degradação – material, humana e ecológica-, um sistema cujos valores e
impulsos relativos não são limitados pelas noções restritivas do progresso
tecnológico. 115
A democracia é um caminho para a verdadeira liberdade. Nasce para combater
sistemas absolutistas. Da forma liberal evolui para socialista, e, quando madura,
definha.
A democracia tem uma enorme importância na luta da classe operária por sua
emancipação. Mas a democracia não é um limite que não possa ser
ultrapassado, e sim uma etapa no caminho que vai do feudalismo ao
capitalismo e do capitalismo ao comunismo. 116
A democracia socialista é a primeira fase, ou fase inferior, segundo Marx, da
sociedade comunista. É o período de transição para o comunismo. Segundo Lênin, “só o
comunismo está em condições de realizar uma democracia realmente perfeita, e, quanto
mais perfeita for, mais depressa se tornará supérflua e por si mesma se eliminará.” 117.
Na primeira fase da sociedade comunista ainda subsiste o “direito burguês”,
onde os membros da sociedade recebem conforme o que produzem, e não de acordo
com o que necessitam. Apesar da obrigatoriedade do trabalho para obter o sustento, não
existe uma distribuição baseada na produção individual. É preservada a igualdade de
trabalho e igualdade de repartição. E o Estado nesse momento garante esse “direito
burguês”, inevitável econômica e politicamente, segundo Marx, numa sociedade recémsaída do capitalismo.
Em sua expressão superior, ou seja, como governo das maiorias, a
democracia supõe o socialismo, na qualidade de modo de organização social
que, por se basear na propriedade coletiva dos meios de produção, assegura a
115
WOOD, 2003, p. 126.
LENIN, 2007, p. 117.
117
LENIN, 2007, p. 107 - 108.
116
56
igualdade política à massa de produtores – ainda que, como destacou Marx,
não lhes garanta, ainda, a igualdade econômica. Outro elemento: a
democracia plena não somente tem o socialismo como premissa, mas conduz
a ele. Isso só não ocorreria se fosse possível conceber uma maioria
governando para o benefício da minoria, ou seja, contra si mesma. 118
Socialismo não significa necessariamente uma democracia, por exemplo, em
regimes socialistas ditatoriais. Além disso, sendo o socialismo a ditadura do
proletariado, ocorre a imposição de uma classe pela outra. A democracia plena é
atingida somente quando não existe mais opressão de uns sobre os outros, eliminando
assim a sociedade de classes. Mas, para que isso aconteça, primeiramente é preciso se
fazer uma inversão de domínio, a maioria precisa tomar o poder e dominar a minoria,
para depois evoluir para a eliminação das classes sociais, e consequentemente para o
fim da dominação de uns sobre os outros.
118
MARINI, 2005, p. 207 - 208.
57
5. CARACTERIZAÇÃO DO SISTEMA POLÍTICO
CUBANO
Rousseau não acreditava na possibilidade de existência de um governo
verdadeiramente democrático, por considerar “contra a ordem natural que o grande
número governe e o pequeno seja governado”. 119
Cuba se aproxima dos requisitos necessários a essa tal democracia intangível,
por ele descrita:
Aliás, quantas coisas difíceis de reunir não supõe esse governo!
Primeiramente um Estado muito pequeno, onde o povo possa ser reunido
facilmente e onde cada cidadão possa conhecer os outros facilmente, em
segundo lugar, uma grande simplicidade de costumes que evite a acumulação
de questões e as discussões espinhosas; ainda, muita igualdade nas posições e
nas fortunas, sem o que a igualdade não poderia subsistir durante muito
tempo nos direitos e na autoridade, finalmente, nenhum ou pouco luxo, pois o
luxo é o efeito das riquezas ou as torna necessárias, corrompe, ao mesmo
tempo, o rico e o pobre, um pela posse, outro pela cobiça: vende a pátria à
lassidão, à vaidade, subtrai do Estado todos os cidadãos para subjugá-los uns
aos outros, e todos à opinião. 120
Através
dos
órgãos
institucionais
a
continuidade
da
revolução
e,
consequentemente, do poder popular, é garantida. É discutida e criada uma nova
constituição proclamada no dia 24 de fevereiro de 1976, a qual:
(...) preceitua que Cuba é “um Estado socialista de operários e camponeses e
demais trabalhadores manuais e intelectuais” (art. 1), no qual “todo o poder
pertence ao povo trabalhador que exerce por meio das assembléias po Poder
Popular e demais orgãos do Estado que derivam dela, ou então diretamente”
(art. 4). O cap. VII da constituição (“Os órgãos supremos do poder popular”),
em seu art. 67, estabelece: “A Assembléia Nacional do Poder Popular é o
órgão supremo do poder do Estado. Representa e expressa a vontade
soberana de todo o povo trabalhador”. O único órgão com potestade
constituinte e legislativa do país; nele se insere e dele propana, por sua vez, o
poder executivo. 121
O centralismo não possibilita a liberdade de discussão. E as instituições que
auxiliaram a revolução, ao serem criadas, exigiram certa centralização. Portanto,
posteriormente foi necessário superar esse centralismo. Para isso, em 1976 houve uma
reorganização territorial, com o aumento do número de províncias, de 6 passam para 14,
a eliminação do nível regional da administração criando nos municípios unidades de
119
ROUSSEAU, 1981, p. 76.
ROUSSEAU, 1981, p. 77.
121
FERNANDES, 2007, p. 288.
120
58
produção e serviços e, dessa forma, colocando o cidadão comum ativamente na
participação política. Dessa forma se criou em Cuba um processo de descentralização
política com o objetivo de construir uma relação dialética entre a população e o Estado:
a população obteve poder sobre o Estado e o Estado recebeu a população como alicerce
e motor de sua nova estrutura.
Foram estabelecidas Assembleias de três níveis: municipal, provincial e
nacional, nas quais são eleitos os delegados – municipais e provinciais -, e os deputados.
Esses cargos que tem por objetivo promover a discussão junto à comunidade das
demandas da população. 122
No quadro abaixo está demonstrada a estrutura das assembleias. 123
ASSEMBLÉIA NACIONAL
Presidente
Conselho de Estado
Conselho de Ministros
ASSEMBLÉIAS PROVINCIAIS
Comitê Executivo
ASSEMBLÉIAS MUNICIPAIS
Comitê Executivo
↑
MINISTÉRIOS NACIONAIS, AGÊNCIAS E INSTITUTOS
↓
DEPARTAMENTOS ADMINISTRATIVOS
↓
DEPARTAMENTOS ADMINISTRATIVOS
↓
POVO
Cada município cubano tem uma Assembleia municipal, onde são eleitos os
delegados municipais, que tem como função servir às demandas da cidade que
representa. Os candidatos surgem nas organizações de bairro, onde a própria população
indica quem deve concorrer, não sendo permitida a autocandidatura.
Nas assembleias provinciais, os delegados são indicados dentre os delegados
municipais. Tanto as eleições dos delegados municipais como provinciais são votadas
diretamente pelo povo.
A Assembleia Nacional é composta por deputados, indicados por organizações,
como a Federação das Mulheres, o Movimento Estudantil. Essas organizações indicam
os candidatos que irão para votação popular.
122
Colaboração do deputado cubano Antonio Becali Garrido nas informações a respeito do
sistema político de Cuba, através de uma entrevista informal realizada por mim, aproveitando
sua visita a Florianópolis em função das Jornadas Bolivarianas, em abril de 2013.
123
Dados: FERNANDES, 2007, p. 297.
59
A campanha eleitoral acontece de forma homogênea para todos os candidatos.
Cada candidato recebe o mesmo espaço para se apresentar, e tem seu currículo
divulgado em locais públicos, como em murais de farmácias e hospitais, onde consta
uma foto, suas informações e propostas. Não existe campanha política da forma que
conhecemos nas democracias capitalistas, com panfletagem, carro de som, apelo visual
e sonoro. O candidato não precisa de patrocinadores para concorrer em igualdade com
os demais, - isso nem existe em Cuba - o que reduz a chance de existir candidatos que
tenham o interesse de utilizar o poder público em benefício próprio.
O presidente de Cuba é eleito pelos deputados, não passando por votação
popular. Como todo o processo eleitoral é construído a partir de uma base muito
descentralizada e popular, a população é representada de forma bastante direta, dentro
dos limites de uma democracia representativa, sendo, dessa forma, representada pelos
deputados que participam em nome do povo nas eleições presidenciais.
A atividade política não é remunerada em Cuba. Os delegados e deputados
eleitos não recebem salário para desempenhar as funções políticas, e continuam em suas
atividades profissionais normalmente. Quando necessário, se ausentam do posto de
trabalho para se dedicar às atividades relativas ao cargo político. E isso não lhes confere
algum benefício além do que recebe qualquer outro trabalhador. Apenas o status moral
de desempenhar tarefas tão importantes para o país. E estão sujeitos a perder o cargo
caso seja constatado que não estejam cumprindo adequadamente com as suas
obrigações. Havendo afastamento, ocorrem novas eleições.
A revolução cubana articula a democracia estabelecendo uma descentralização
do poder, criando um sistema político que possibilita a participação popular com maior
efetividade. Em Cuba existe apenas um partido político – o Partido Comunista de Cuba
- e isso é motivo de crítica, colocando em questão a própria democracia. No entanto há
eleições, as pessoas são indicadas pela própria população a serem candidatas. Não
funciona como na democracia burguesa onde o candidato precisa de dinheiro para fazer
sua campanha, e depois de eleito se sente a vontade para governar para quem o
financiou. Eliminando os partidos, se elimina disputas e interesses partidários. O partido
único existe porque não há necessidade de outros. É uma questão delicada para uma
democracia liberal. Entretanto, no socialismo, da forma que foi instituído em Cuba, o
partido único não trás prejuízos à democracia cubana.
Com socialismo está estabelecido, a disputa partidária faria sentido apenas para
beneficiar um grupo em detrimento do outro. O objetivo de todos é o mesmo, o bem da
60
população, e não a disputa de poder que tem por motivação privilegiar uma parcela. Os
partidos políticos disputam o poder para atender cada um o seu próprio interesse, ou de
um grupo.
Não é, então, impossível imaginar que aquele que escolhe a profissão de
político rapidamente aceite as propostas de Fausto e “venda a sua alma ao
demônio” da fetichização usando o exercício do poder para seus próprios
fins, pessoais ou de grupo. Assim, nasce a política como “profissão” e os
partidos políticos como “maquinarias eleitorais” que impões seus candidatos
burocratizados em benefício do próprio partido. É a fetichização do poder
mediante a corrupção da subjetividade do político. 124
Todos tendo o mesmo objetivo, não há essa necessidade. Nesse caso o partido
único protege o país do oportunismo grupos que possam surgir querendo sanar
interesses individuais através da política, em detrimento do interesse geral da
população.
Dussel diz que os governantes são “pilotos eleitos” e não o “corpo
administrativo ou burocrático da sociedade política”. Cabe aos governantes alterar as
estruturas políticas caso convenha a população, e não devem se limitar a fazer a
manutenção do sistema. Mandar obedecendo de forma positiva, e não exercer o poder
fetichizado, onde os responsáveis por governar seguem a lógica de mandar mandando.
“(...) não atua desde si como fonte de soberania e autoridade última, mas sim como
delegado e quanto a seus objetivos deverá trabalhar sempre em favor da comunidade,
escutando suas exigências e reclamações.” 125.
A Revolução Cubana se mostra como uma esperança, “revela a natureza íntima
da revolução em avanço, que tem de desagregar e de destruir toda a ordem preexistente
até ao fundo e até ao fim, para lançar as bases da formação e da evolução históricas de
um novo padrão de civilização.” 126.
O fermento político revolucionário procedia da consciência social que os
proletários adquirissem, coletivamente, de que tinham de desenvolver-se
como classe independente; enfrentar, reduzir e abater a supremacia burguesa;
e conquistar o poder da burguesia. Essa vinha a ser a ótica comunista do
socialismo. Ora, é óbvio que não se pode transferir para a periferia do mundo
capitalista. Sem mais esta nem aquela, semelhante visão articulada da luta de
classes. Ela é o produto de uma longa evolução social. 127
124
DUSSEL, 2007, p. 38.
DUSSEL, 2007, p. 39.
126
FERNANDES, 1981, p. 104.
127
FERNANDES, 1981, p. 105.
125
61
Florestan observa, “Para ocorrer, a liberação nacional tem de tornar-se
antiburguesa, antiimperialista e anticapitalista. A alternativa para a violência das
minorias estaria na contra-violência revolucionária, em um socialismo revolucionário
“made in Latin America”.”
128
Como combater a violência sofrida senão por um meio
igualmente violento? A exemplo da revolução burguesa, a guerrilha foi uma forma
dolorosa de se fazer a revolução socialista, porém necessária.
Os excluídos não devem ser incluídos (seria como introduzir o Outro no
Mesmo) no antigo sistema, mas devem participar como iguais em um novo
momento institucional (a nova ordem política). Não se luta pela inclusão,
mas sim pela transformação – contra Iris Young, J. Habermas e tantos outros
que falam de “inclusão”. 129
Segundo Che Guevara 130, a guerrilha é viável somente quando as possibilidades
de luta pacífica são esgotadas, ou seja, quando o país está sob um governo ditador.
Antes disso não se encontra apoio popular suficiente que sustente a guerrilha. O
conformismo das pessoas é um grande inimigo da guerrilha. Além de ser um
instrumento de luta de quem não tem poder, de quem está a mercê de um Estado que
governa para uma minoria, que não tem de fato o direito a seu favor. Ou seja, uma luta
difícil, especialmente na parte que consiste em conscientizar o povo de não admitir
tamanha exploração.
Cuba retirou a burguesia do centro de decisões e buscou uma alternativa
anticapitalista. Por isso a revolução aconteceu. E o que caracteriza uma revolução é o
exercício de se pensar novas instituições e sistemas econômicos que permitam
benefícios ao ser humano, e não à reprodução do capital.
128
FERNANDES, 1981, p. 55.
DUSSEL, 2007, p. 110.
130
GUEVARA, 1980.
129
62
6. CONCLUSÕES
A transformação promovida pela Revolução Cubana por si só responde a
pergunta: trata-se de uma democracia?
Cuba lidera a lista de países com desenvolvimento elevado
131
no Relatório de
Desenvolvimento Humano. Na classificação do Índice de Desenvolvimento Humano
(IDH) 2012, publicada no mesmo relatório, Cuba está na 59ª posição. Entre os países
latino-americanos fica atrás apenas da Argentina (45º lugar). Contudo, mais adequada
seria a comparação com outro país caribenho, como o Haiti, por exemplo, que está no
161º lugar. Talvez fosse a situação de Cuba, caso não houvesse uma revolução.
Apesar da política de hostilidade estadunidense, que é estendido a outros países,
e de se tratar de um pequeno país, o governo consegue manter as premissas
revolucionárias, especialmente importante no que diz respeito à soberania nacional.
Sobretudo, os cubanos têm acesso garantido à educação, saúde, alimentação básica e
moradia.
O mérito é também da população, que colabora, e que graças à educação, hoje
em dia tem plena consciência coletiva e condições de compreender a importância de
manter o atual sistema político, porém sempre buscando melhorias. A revolução foi
uma construção coletiva, nascida da necessidade de mudança frente ao sofrimento da
população, deixada de lado no favorecimento de interesses externos e da burguesia.
Conheci Cuba em outubro de 2012. Os cubanos vivem muito bem. De forma
simples, é claro, mas não falta nada. São educados, cultos, apreciam literatura. A
maioria com quem conversei fala mais de um idioma – diferente do que vejo no Brasil,
por exemplo, onde conhecimento é privilégio da elite. Aparentam ser muito felizes.
Compreendem muito bem a o que significa a revolução e o sistema político em que
vivem. Comparando com a democracia em que vivemos no Brasil, a diferença é
enorme, no nível de esclarecimento da população e no acesso que tem a cultura e às
necessidades básicas.
A solidariedade chega a gerar estranheza. Assim como a falta de publicidade
pela cidade, que livra o ambiente daquela poluição visual. A televisão também gera
131
Dados: Relatório de Desenvolvimento Humano 2013. O agrupamento dos países é feito em
quatro níveis de desenvolvimento humano: muito elevado, elevado, médio e baixo. Essa lista é
baseada no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e o Rendimento Bruto Nacional (RBN),
onde Cuba figura na 44ª posição.
63
muita estranheza a quem não está acostumado. São transmitidos programas educativos,
os telejornais fazem debates profundos e de qualidade.
Escolas de idiomas, balé, universidades, hospitais, tudo é público. Na farmácia
os remédios custam centavos. O transporte público é gratuito, apesar de que quem
quiser pode pagar, para colaborar. Existe o que melhorar, certamente, mas é
impressionante como a população é bem tratada e compreende o que se passa com eles
e com outros países. São muito bem informados.
O que é democracia? No capitalismo, todos esses serviços não são plenamente
garantidos pela democracia. O direito ao lucro e a transformação da educação, da saúde
e de outras necessidades básicas em mercadoria são garantidos e tratados como
prioridades. Não compreendo uma democracia que coloca o direito a propriedade
privada na frente do direito à moradia, à saúde, à educação, à vida. O que acontece em
Cuba me parece muito mais democrático. Contudo, a ciência política liberal considera
Cuba uma ditadura ou um regime “não-democrático” mesmo garantindo uma
quantidade imensa de serviços que nenhum país latino-americano pode assemelhar-se.
Em oposição, países potencialmente muito ricos, como o Brasil, não somente não possui
cobertura universal em vários serviços públicos como quando existente, exibem péssima
qualidade. A saúde, a educação, o transporte coletivo são de qualidade baixa, mas os
cientistas políticos liberais consideram o país uma democracia.
Nossa crítica supera o conceito liberal de democracia e traz para o debate e
reflexão um esquecido tema da democracia socialista, ou seja, o exercício da soberania
nacional, o atendimento das necessidades básicas e a prática de um sistema político em
que todos possam influenciar diretamente o funcionamento da democracia.
64
REFERÊNCIAS
BAMBIRRA, Vania. A revolução cubana – uma reinterpretação. Coimbra: Centelha
Editora, 1975.
BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. 6ª ed. São Paulo: Editora Brasiliense,
1994.
CASTRO, Fidel. A história me absolverá. São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 1979.
DUSSEL, Enrique. 20 teses de política. São Paulo: Expressão Popular, 2007.
FERNANDES, Florestan. Da guerrilha ao socialismo. São Paulo: Editora Expressão
Popular, 2007.
FERNANDES, Florestan. Poder e contrapoder na América Latina. Rio de Janeiro:
Zahar Editores, 1981.
GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Porto Alegre: L&PM
Editores, 2010.
GUEVARA, Che. Textos econômicos. São Paulo: Centro Editorial Latino Americano,
1980.
HARNECKER, Marta. Fidel. A estratégia política da vitória. São Paulo: Editora
Expressão Popular, 2000.
LENIN, Vladimir Ilitch. O Estado e a revolução. São Paulo: Expressão Popular, 2007.
MANDEL, Ernest. O capitalismo tardio. 2ª ed. São Paulo: Nova Cultural, 1985.
MARINI, Ruy Mauro. Dialética da dependência. In: TRASPADINI, Roberta,
STEDILE, João Pedro. Ruy Mauro Marini: vida e obra. Editora Expressão Popular.
São Paulo, 2005.
PÉREZ, Jorge Lezcano. Cuba: 300 perguntas e 300 respostas. Brasília: Casa Editora
da Embaixada de Cuba no Brasil, 2002.
PIERRE-CHARLES, Gérard. Génesis de la revolución cubana. 6ª ed. Ciudad de
Mexico: Siglo Veintiuno Editores, 1985.
PNUD. Relatório do desenvolvimento humano 2013. New York: Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento, 2013.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social e discurso sobre a economia política.
São Paulo: Editora Hemus, 1981.
65
SAITO, Hideyo; HADDAD, Antonio Gabriel. Cuba sem bloqueio. São Paulo: Radical
Livros, 2012.
SODRÉ, Nelson Werneck. Capitalismo e a revolução burguesa no Brasil. Belo
Horizonte: Oficina de Livros, 1990.
WILLIAMS, Eric. Capitalismo e escravidão. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
WOOD, Ellen Meiksins. Democracia contra capitalismo. São Paulo: Boitempo
Editorial, 2003.
66
ANEXO
A Emenda Platt
Considerando que o Congresso dos Estados Unidos da América, por uma lei aprovada
02 de março de 1901, dispunha:
Desde ainda, que, em cumprimento da declaração contida na resolução conjunta
aprovada em 20 de abril de 1898, intitulado "Para o reconhecimento da independência
do povo de Cuba, exigindo que o Governo da Espanha abandone a sua autoridade e
governo na ilha de Cuba, e retire da sua terra e águas cubanas as forças navais, e
direcionando o Presidente dos Estados Unidos de usar a terra e as forças navais dos
Estados Unidos para realizar essas resoluções em vigor ", o Presidente fica autorizado a
"deixar o governo e o controle da ilha de Cuba para seu povo", tão logo um governo
deve ter sido estabelecido na referida ilha sob uma constituição que, seja como parte, ou
em uma portaria agregada, deverá definir o futuro das relações dos Estados Unidos com
Cuba, substancialmente como se segue:
"I. Que o governo de Cuba nunca entre em qualquer tratado ou outro compacto com
qualquer poder ou poderes que irá prejudicar ou tendam a prejudicar a independência de
Cuba, nem de qualquer forma autorizar ou permitir que qualquer potência ou potências
estrangeiras obter por colonização ou para fins militares ou naval ou de outra forma,
apresentação ou controle sobre qualquer parte da referida ilha. "
"II. Este governo não assumirá ou contrairá qualquer dívida pública para pagamento de
juros e amortização quando, após o custeio das despesas correntes do Governo, as
receitas ordinárias sejam insuficientes para o cumprimento de tal dívida. "
"III. Que o governo de Cuba consente que os Estados Unidos podem exercer o direito
de intervir para a preservação da independência cubana, a manutenção de um governo
adequado para a proteção da vida, propriedade e liberdade individual, e para o
67
cumprimento das obrigações com relação a Cuba, imposta aos Estados Unidos pelo
Tratado de Paris, e que devem agora a ser assumida e realizada pelo governo de Cuba. "
"IV. Que todos os atos dos Estados Unidos em Cuba durante a sua mesma ocupação
militar sejam ratificados e validados, e que todos os direitos legais adquiridos no
presente âmbito sejam mantidos e protegidos."
"V. Que o governo de Cuba executará, e na medida do necessário estenderá os planos já
concebido ou em outros planos a serem mutuamente acordados, para o saneamento das
cidades da ilha, a fim de que a recorrência da epidemia e doenças infecciosas possam
ser evitadas, garantindo assim total proteção às pessoas e ao comércio de Cuba, bem
como para o comércio dos portos do sul dos Estados Unidos e as pessoas que residem
nele. "
"VI. A Ilha de Pinos fica omitida dos limites de Cuba propostos pela Constituição,
deixando para um futuro tratado a fixação de sua adesão."
"VII. Para permitir que os Estados Unidos mantenha a independência de Cuba, e para
proteger o povo cubano, bem como para sua própria defesa, o governo de Cuba venderá
e arrendará aos Estados as terras necessárias para estabelecer nelas estações carvoeiras
ou navais em certos pontos especificados a serem acordados com o presidente dos
Estados Unidos ".
"VIII. O governo de Cuba inserirá as disposições anteriores em um Tratado permanente
com os Estados Unidos."
Considerando que a Convenção Constituinte de Cuba, em 12 de junho de 1901, adotou
uma resolução agregada à Constituição da República de Cuba, que foi aprovada em 21
de fevereiro de 1901, um apêndice que contém palavra por palavra e letra por letra os
oito artigos enumerados da Lei Congresso dos Estados Unidos acima mencionada;
E que, com o estabelecimento do governo independente e soberano da República de
Cuba, nos termos da Constituição promulgada em 20 de maio de 1902, que abraçou a
condição anterior, e pela retirada do Governo dos Estados Unidos como uma
68
intervenção poder, na mesma data, tornou-se necessário incorporar as disposições acima
citadas em um Tratado Permanente entre os Estados Unidos da América e a República
de Cuba;
Os Estados Unidos da América ea República de Cuba, sendo desejosos de realizar as
condições anteriores, têm para o efeito designado como plenipotenciários para concluir
um tratado para esse fim.
O Presidente dos Estados Unidos da América, Herbert G. Squires, Enviado
Extraordinário e Ministro Plenipotenciário em Havana, E o Presidente da República de
Cuba, Carlos de Zaldo y Beurmann, Secretário de Estado e Justiça, - que depois de
comunicar uns com os outros os seus plenos poderes reconhecidos em boa e devida
forma, convieram nos seguintes artigos:
ARTIGO I.
O Governo de Cuba nunca entrará em qualquer tratado ou pacto com qualquer poder ou
poderes que possa prejudicar ou tendam a prejudicar a independência de Cuba, nem de
maneira alguma autorizará ou permitirá que qualquer potência estrangeira obtenha
poderes para colonização ou para propósitos navais ou militares ou para fins de guerra,
ou de outra forma, apresentação ou controle sobre qualquer parte da referida ilha.
ARTIGO II.
O Governo de Cuba não assumirá ou contrairá qualquer dívida pública para pagamento
de juros e principal quando, depois de custear as despesas correntes do Governo, as
receitas ordinárias da Ilha de Cuba sejam insuficientes para honrar tal dívida.
ARTIGO III.
O Governo de Cuba consente que os Estados Unidos possa exercer o direito de intervir
para a preservação da independência cubana, a manutenção de um governo adequado
para a proteção da vida, propriedade e liberdade individual, e para cumprimento das
obrigações com relação a Cuba, imposta aos Estados Unidos pelo Tratado de Paris, e
que devem agora ser assumidas e cumpridas pelo Governo de Cuba.
69
ARTIGO IV.
Todos os atos realizados pelos Estados Unidos em Cuba durante a sua ocupação destes
militares serão ratificados e validados, e todos os direitos legais adquiridos no seu
âmbito serão mantidos e protegidos.
ARTIGO V.
O Governo de Cuba executará, e, tanto quanto necessário, ampliará os planos já
elaborados, ou outros planos a serem mutuamente acordados, para o saneamento das
cidades da ilha, a fim de que a recorrência de epidemias e doenças infecciosas possam
ser evitadas, assegurando proteção às pessoas e ao comércio de Cuba, bem como ao
comércio dos portos do sul dos Estados Unidos e as pessoas que residem nele.
ARTIGO VI.
A Ilha de Pinos fica omitida dos limites de Cuba estabelecidos pela Constituição,
deixando para um futuro tratado a fixação de sua adesão.
ARTIGO VII.
Para pôr em condições os Estados Unidos de manter a independência de Cuba, e para
proteger o povo da mesma, bem como para sua própria defesa, o Governo de Cuba
venderá ou arrendará aos Estados Unidos as terras necessárias para estabelecer
carvoeiras ou estações navais em determinados pontos, a ser acordado com o Presidente
dos Estados Unidos.
ARTIGO VIII.
O presente Tratado deverá ser ratificada por cada uma das partes, em conformidade com
as respectivas Constituições dos dois países, e as ratificações serão trocadas na cidade
de
Washington
no
prazo
de
oito
meses
a
partir
desta
data.
Em testemunho do que, nós, os respectivos plenipotenciários, assinam o mesmo em
70
duplicado, em Inglês e Espanhol, em Havana, Cuba, em vinte e dois de maio, no ano de
mil novecentos e três.
De acordo com o Protocolo adicional, assinado em Washington em 20 de janeiro de
1904, aprovado pelo Senado da República de Cuba em 8 de junho do mesmo ano, foram
trocadas as ratificações nesta cidade de Washington no primeiro dia de julho de 1904.
H.G. Squiers [SEAL.]
CARLOS DE Zaldo [SEAL.]