Será que o onde determina o quem

Transcrição

Será que o onde determina o quem
m301.540981
R672h
Rocha, Renata.
História de cohabeiros: será que o onde determina ou
o quem? Moradores da Cohab de Carapicuíba respondem.
/ Renata Rocha. –Campinas: PUC Campinas, 2007.
125 p.
Projeto Experimental, modalidade livro-reportagem.
Orientador: Carlos Roberto Saviani Rey.
Monografia (Graduação) – Pontifícia Universidade
Católica de Campinas, Centro de Linguagem e Comunicação,
Faculdade de Jornalismo.
1. Habitação – aspectos sociais - Brasil. 2. Habitação
popular – aspectos sociais - Brasil. 3. Habitação popular –
São Paulo. 4. Política habitacional. I. Rey, Carlos Roberto
Saviani. II. Pontifícia Universidade Católica de Campinas,
Centro de Linguagem e Comunicação, Faculdade de
Jornalismo. III. Título.
20.ed.
m301.540981
CDD
–
Agradecimentos
A minha família amada que em todos momentos esteve presente,
acompanhando bem de perto minha ansiedade, superação,
frustrações, corrida contra o tempo e vontade de fazer esse projeto
dar certo. Obrigada por terem acreditado em mim a todo instante e,
principalmente, por não terem me deixado desistir. Sem o apoio e
amor incondicional de vocês esse trabalho, que hoje me orgulho em
apresentar, não teria acontecido.
Aos amigos fiéis que torceram, vibraram, acreditaram, me aturaram
falando sempre do mesmo assunto e rezaram para que tudo desse
certo.
Registro aqui o meu muito obrigada!
Amo vocês.
Sumário
Prefácio da autora ............................................ 09
A Cohab de Carapicuíba .................................... 22
Mulher Gerônimo ............................................. 33
O professor, o historiador, o advogado ............... 46
Dona Marly ...................................................... 58
Dance and Fly ................................................. 66
Edite. Sinônimo de labuta ................................ 76
O fantástico mundo de Bob ............................... 83
Não sou Nhaca, sou Evanildo ............................ 93
Meu pai, meu ídolo ........................................... 99
Retratos da Cohab .......................................... 105
Bibliografia .................................................... 121
Prefácio da autora
Segundo Edvaldo Pereira Lima “o livroreportagem é o veículo de comunicação impressa
não-periódico que apresenta reportagens em grau
de amplitude superior ao tratamento costumeiro
nos meios de comunicação jornalístico periódicos”1.
Essa é justamente a proposta de Histórias de
Cohabeiros. Será que o Onde determina o Quem?
Moradores da Cohab de Carapicuíba respondem:
tratar de forma diferenciada a questão que o livro
propõe já em seu título, ou seja, se o Onde, a Cohab,
determina o Quem, os cohabeiros. De que forma?
Dando voz aos próprios moradores do Conjunto
Habitacional Presidente Castelo Branco, mais
conhecido como Cohab de Carapicuíba, para
responderem a essa indagação, ao invés de, como
habitualmente acontece na grande imprensa, ceder
espaço para teóricos como antropólogos, sociólogos
e historiadores o façam. Óbvio que não desmereço
aqui a grande importância que essas ciências
representam para a sociedade, mas, uma vez que
1
Páginas Ampliadas. Barueri – SP: Manole, 2004, p. 26
Renata Rocha
9
a utilização de estudiosos como fontes já é uma
prática adotada costumeiramente, eu parti do
pressuposto que ninguém melhor que os próprios
cohabeiros, através de suas experiências pessoais,
para dividir com você leitor quais são as qualidades,
defeitos, sentimentos, curiosidades e histórias da
Cohab de Carapicuíba. Portanto, reforço que o foco
do livro são as histórias dos perfilados, a visão
desses moradores a respeito do bairro e o que ser
cohabeiro significa para essas pessoas. Esse
material, cuja justificativa está na relevância social
que representa, tem por finalidade retratar aspectos
do cotidiano em que essas pessoas estão inseridas
e a forma como lidam com essas questões. Um
detalhe que se faz importante aqui, é que a palavra
cohabeiro é uma expressão inexistente nos
dicionários de Língua Portuguesa, mas é uma
personificação popularmente utilizada pelos
habitantes de Cohabs, quando falam a respeito
deles mesmos, ou seja, se auto-intitulam dessa
forma, definindo-se pelo contexto social do qual
fazem parte.
É fato que existem vários estereótipos em
diferentes grupos da sociedade, ou seja, há essa
imagem simplificada, baseada num modelo ou em
generalização 2 do que é ser um cohabeiro, assim
2
Mini Houaiss Dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2003, p. 219
10
Histórias de Cohabeiros
como existe a do que é ser favelado, do que é ser
‘patricinha’, ‘mauricinho’, do que é ser rico, do que
é ser pobre e assim por diante. Por isso, o tema do
livro surgiu como pauta baseado na observação de
que, no caso específico dos cohabeiros, o conteúdo
desses rótulos podem ser contestados, pois nesse
ambiente populoso existe uma vasta gama de estilos
diferentes de pessoas, que mesmo fazendo parte
de um igual cenário, não apresentam um padrão
de comportamento. Por isso é válido reforçar que a
intenção do livro-reportagem é puramente
jornalística, de tornar visível algumas histórias, do
presente e passado, de pessoas que vivem a ética
desse lugar, os então Cohabeiros, para abordar se
o Onde realmente determina o Quem na visão dos
próprios moradores. Por abordar experiências do
presente e do passado dos cohabeiros, o livro se
enquadra na descrição de liberdade temporal feita
por Edvaldo Pereira Lima. “Livre no ranço limitador
da presentificação restrita, o livro-reportagem
avança para o relato da contemporaneidade,
resgatando no tempo algo mais distante do de hoje,
mas que todavia segue causando efeitos neste.”3
Não existe aqui nenhuma pretensão
científica de encabeçar alguma tese que responda
a indagação que o título do livro propõe, pelo
3
p. 85
Renata Rocha
11
contrário, a idéia é deixar para você leitor a
responsabilidade de formar seu conceito pessoal,
considerando o pluralismo de opiniões oferecidas
através dos perfis dos cohabeiros. A missão do
projeto é conseguir, através da apuração e pesquisa
jornalística, retratar fatos relevantes do ponto de
vista social, que lhe faça refletir a respeito e
conhecer um pouco mais a Cohab e os cohabeiros,
daí explica-se, inclusive, sua importância e
viabilidade de veiculação. Portanto, este livro não
apresenta considerações finais como o de praxe.
Ao invés disso, existem fotos atuais de locais
comentados pelos cohabeiros no decorrer dos
capítulos, como forma de, após a leitura, ilustrar
os cenários citados pelos entrevistados. A escolha
em colocar as imagens após os perfis é estratégica
no sentido de querer antes estimular a sua
imaginação, trabalhando com o lúdico durante a
leitura, para então expor após isso as fotos. Até por
esse motivo, não existem fotos dos perfilados, pois
também é uma estratégia que tem por objetivo criar
proximidade contigo, que ao ler as histórias você
não as associe somente ao cohabeiro retratado, mas
que também possa em algum momento se
identificar com a personagem, seja vinculando o
conteúdo lido com passagens de sua própria vida
ou com a de pessoas conhecidas.
Somente na grande São Paulo existem 62
Conjuntos Habitacionais, por isso, utilizei como
critérios de escolha a Cohab de Carapicuíba por
12
Histórias de Cohabeiros
conhecer a região, uma vez que morei por dezessete
anos no bairro e acompanhei de perto algumas, se
não muitas, das situações que narro; Foi através
dessa vivência na Cohab que observei a relevância
social que abordar o tema cohabeiros representa e
tive a idéia de escrever o livro; Ser um tema inédito,
haja vista ainda não existir nenhuma bibliografia
ou levantamento a esse respeito; E das três músicas
conhecidas nacionalmente que falam a respeito de
Cohab, é a de Carapicuíba que já foi motivo da
existência de duas delas, que são de autoria e
interpretação de Neto de Paula, popularmente
conhecido como Netinho. Esses são os quatro
argumentos que foram determinantes na minha
opção pelo Conjunto Habitacional Presidente
Castelo Branco e que se legitimam pela “liberdade
temática”4 que todo livro-reportagem possui.
Em alguns trechos do livro me faço presente
na narrativa e procuro detalhar os cenários, trejeitos
e reações das personagens, pois assim como Gay
Talese em Fama & Anonimato
“os textos deste livro se enquadram num tipo de
reportagem que se costuma classificar de ‘novo
jornalismo’, ‘nova não-ficção’, ou ‘parajornalismo’,
sendo a última uma forma pejorativa cunhada pelo
4
p. 82
Renata Rocha
13
falecido crítico Dwight MacDonald, que tinha lá
suas desconfianças em relação a esse gênero, pois
achava, assim como alguns outros críticos, que
seus autores deturpavam os fatos para conseguir
um maior efeito dramático. Eu não concordo.
Embora muitas vezes seja lido como ficção, o novo
jornalismo não é ficção. Ele é, ou deveria ser, tão
fidedigno quanto a mais fidedigna reportagem,
embora busque uma verdade mais ampla que a
obtida pela mera compilação de fatos passíveis de
verificação, pelo uso de aspas e observância dos
rígidos princípios organizacionais à moda antiga.
O novo jornalismo permite, na verdade exige, uma
abordagem mais imaginativa da reportagem,
possibilitando ao autor inserir-se na narrativa se
assim o desejar, como fazem muitos escritores,
ou assumir um papel de um observador neutro,
como outros preferem (...)”5.
Escolhi esse estilo de narração por me sentir
à vontade em fazê-lo, por acreditar que essa
metodologia enriquece o conteúdo e, conforme já
citado anteriormente, por considerar essa escolha
uma estratégia que durante a leitura causa
proximidade e, porque não, audaciosamente querer
que você sinta-se como se estivesse presente
5
Fama & Anonimato. São Paulo: Cia das letras, 2004, p. 9
14
Histórias de Cohabeiros
durante as entrevistas, observando os cohabeiros
e suas declarações. Essa minha predição é descrita
por Edvaldo Pereira Lima como liberdade de
angulação.
“O livro-reportagem é uma obra de autor. A
presença expressiva de seu realizador é, muitas
vezes, marcante. Desvinculado, ao menos em
tese, de compromentimentos com o nível grupal,
com o nível massa e como nível pessoal tal qual
limitado nas grandes empresas jornalísticas, seu
único compromisso é com sua própria cosmovisão
e com o esforço de estabelecer uma ligação
estimuladora com seu leitor, valendo-se, para isso,
dos recursos que achar mais convenientes,
escapando das fórmulas institucionalizadas nas
redações (...)”6.
O critério de escolha das personagens deuse pela vivência no ambiente tema e observância
de que essas são pessoas conhecidas por grande
parte dos cohabeiros, seja no prédio em que
residem, na rua onde moram, ou até mesmo no
bairro como um todo, opção essa tida “liberdade de
fontes”7. Todos os capítulos do livro são, em termos,
desvinculados uns dos outros. Digo isso porque as
6
7
p. 83
p. 84
Renata Rocha
15
personagens não necessariamente se conhecem
ou partilham do mesmo acontecimento narrado. O
que realmente as une é o contexto social do qual
fazem parte, ou seja, o fato de serem cohabeiros.
Dessa forma, existe aqui a possibilidade de ler
histórias diferentes, cada uma descrita em um
capítulo, mas que juntas contextualizam a Cohab
e seus moradores. Segundo Edvaldo Pereira Lima
essa minha escolha de edição é uma liberdade de
eixo de abordagem, pois “o livro-reportagem não
necessita obrigatoriamente girar em torno da
factualidade, do acontecimento. Pode vislumbrar
um horizonte mais elevado penetrando na situação
ou nas questões mais duradouras que compõem
um terreno das linhas de força que determinam os
acontecimentos” 8 . Além disso, cada capítulo é
iniciado com trecho de música, devidamente
selecionada para ilustrar o perfil narrado e servindo
como uma espécie de trilha, como as sonoras
existentes em vídeos reportagens. Com estilos
musicais diferentes, as letras dão a dica para você
leitor do que virá pela frente e no caso de não
entender o simbolismo do trecho descrito, o instiga
a descobrir e, dessa forma, continuar a leitura para
descobrir seu significado. Além de perceber que as
músicas contextualizam as situações narradas,
8
p. 85
16
Histórias de Cohabeiros
você vai observar e sentir que é bem diferente ouvir
uma canção e simplesmente ler sua letra sem
arranjos. Talvez, essa seja uma experiência nova,
nunca antes vivida por você. Edvaldo Pereira Lima
conceitua essa iniciativa como liberdade de
propósito9 e da condição especial de tratamento que
o livro-reportagem deve ter. “Compreendo a
linguagem, a montagem e a edição do texto, o livroreportagem
apresenta-se
eminentemente
jornalístico. A linguagem jornalística, aqui, é
entendida como conceitua Nilson Lage10. A que ‘(...)
mobiliza outros sistemas simbólicos além da
comunicação lingüística’, incluindo o projeto
gráfico, os sistemas analógicos – ilustrações,
fotografias, charges, cartons – e o sistema
lingüístico em si, este abrangendo as manchetes,
os títulos, os textos, as legendas.’11
Histórias de Cohabeiros. Será que o Onde
determina o Quem? Moradores da Cohab de
Carapicuíba respondem, de acordo com as
classificações estabelecidas é um livro-reportagemperfil.“Trata-se da obra que procura evidenciar o
lado humano de uma personalidade pública ou de
uma personagem anônima que, por algum motivo,
torna-se interessante. No primeiro caso, trata-se,
em geral, de uma figura olimpiana. No segundo, a
9
p. 86
p. 27 e 28
11
Linguagem jornalística. São Paulo: Ática, 1985, p. 57
10
Renata Rocha
17
pessoa geralmente representa, por suas
características e circunstancias de vida, um
determinado grupo social, passando como que a
personificar a realidade do grupo em questão”12. O
tratamento dos textos é feito de tal forma
caracterizada de perfil humanizado “que se
caracteriza pela abertura e proposta de
compreensão ampla do entrevistado em vários
aspectos, do histórico de vida ao comportamento,
dos valores aos conceitos (...) observação intensa,
demorada (...)”13.-----------------------------------As metodologias empregadas são a de narração
que “envolve uma finalidade que ultrapassa o
meramente
informar.
Compreende
uma
reconstrução do real, uma reconstrução em que o
emocional-racional e o emocional se equilibrem,
em que o real e o imaginário convivem”14; a de perfil
humanizado “o livro-reportagem que concede à
entrevista a máxima possibilidade de alcançar
dimensão superior ao que raramente seria aceitável
nos veículos periódicos. (...) Há a pauta, mas
também coexiste a flexibilidade de o entrevistador
momentaneamente abandoná-la para entrar numa
variante mais empática com seu entrevistado. Surge
a emoção, surge a pessoa por detrás do mito”15; e a
de histórias de vida “aparecendo em forma clássica
12
p. 51 e 52
p. 93 e 95
14
p. 96
15
p. 113
13
18
Histórias de Cohabeiros
de entrevista – com a reprodução do diálogo entre
o entrevistador e o entrevistado – ou como
depoimento direto, ou ainda numa mescla em que
se combinam ambiente essas modalidade de
apresentação com narrativa em primeira ou terceira
pessoa”16.--------------------------------------------------As observações de Edvaldo Pereira Lima,
quando fala do real sentido do surgimento de novas
propostas de livro-reportagem, devem ser
consideradas por você antes que inicie a leitura de
Histórias de Cohabeiros. Será que o Onde
determina o Quem? Moradores da Cohab de
Carapicuíba respondem.
“Não há, neste presente momento histórico,
possibilidade de a reportagem exercer um serviço
de real orientação ao leitor se ignorar a
profundidade do que está ocorrendo de alteração
nos instrumentos de percepção do mundo. Não
conseguirá oferecer um sentido e um significado
sem a ousadia, tentativa que seja, de avanço rumo
a essas direções (...). Talvez nunca o homem tenha
podido combinar tantos recursos de entendimento
do real. Talvez jamais tenha tido o privilégio de
mesclar em tão refinado grau a visão racional e a
percepção intuitiva. Então, este mergulho no mar
empolgante da história em movimento exige
humildade, queda de preconceitos, e espírito
16
p. 114
Renata Rocha
19
aberto para admitir a relatividade de tudo. É
momento de síntese, de recuperação não de todo
o passado, mas do seu substrato mais
significativo, de modo a ficar lançado para o futuro
o que de melhor conseguiu a humanidade”17.
A explanação do conteúdo do livro trouxe
intrínseco um grande desafio para mim, que foi
através das técnicas aprendidas durante o curso
de jornalismo, somadas à imersão em todos os
processos de apuração e contextualização para a
produção do livro-reportagem, garantir que o objetivo
do projeto fosse atingido: tornar visível histórias
de personagens urbanos, dando voz a esses para
dizerem quem são e qual é o real significado de
ser cohabeiro. Um projeto cujo diferencial foi a
experimentação do tema, como objeto de análise e
recorte, pois, até então, a Cohab era uma espécie
de mundo paralelo ainda não explorado e os
cohabeiros cidadãos esteriotipados que ainda não
haviam recebido a oportunidade de opinar se
realmente o Onde determina o Quem.
Acredito que você leitor conheça muitas
Marlys, Ladenilsons, Edites, Rosicleides,
Henriques, Evanildos e, por isso, irá gostar do que
vem pela frente e entender o que a obra realmente
simboliza.
Boa leitura!
17
p.133
20
Histórias de Cohabeiros
Renata Rocha
21
“Lá na Cohab aprendi o que é vida
Doce lar, terra querida
Na batida do pandeiro eu encontrei uma saída (...)
Te digo a bem da verdade
A melhor faculdade
É a própria vida (...)
Lá na Cohab aprendi o que é vida
Doce lar, terra querida
Na batida do pandeiro eu encontrei uma saída”
Terra Prometida
(Wagninho / Netinho / Serginho Procópio)
A Cohab de Carapicuíba
O Conjunto Habitacional Presidente Castelo
Branco foi inaugurado em 1972, passando a ser
conhecido popularmente como a Cohab de
Carapicuíba, que é cenário tema desse livroreportagem. Nessa época, o então Presidente da
República General Emilio Garrastazu Médici,
conhecido por promover a mais violenta repressão
da Ditadura Militar brasileira, período do Regime
Militar que ficou conhecido como ‘anos de chumbo’,
resolveu nomear o sétimo Conjunto Habitacional
da cidade de São Paulo em homenagem ao primeiro
presidente do golpe de 1964, o Marechal Humberto
de Alencar Castelo Branco, na época já falecido.
22
Histórias de Cohabeiros
A cidade de Carapicuíba situa-se a
aproximadamente 23 quilômetros do Marco Zero
de São Paulo e possui como limites os municípios
de Barueri, Cotia, Osasco e Jandira. Tem como
principais acessos as rodovias Presidente Castelo
Branco, Raposo Tavares e o Rodoanel Mario Covas,
que interliga o município às Marginais Tietê e
Pinheiros. É considerada uma cidade dormitório,
pois a maioria de sua população trabalha fora do
município e só volta para casa para o repouso, e
um município carente, por ter alto índice
populacional e ser um dos que têm a menor renda
per capita da grande São Paulo, cuja população é
de quase 16 milhões de habitantes: R$0,68 por
habitante. Segundo dados do IBGE, Carapicuíba tem
550.000 moradores, extensão territorial de 34
quilômetros quadrados e densidade demográfica de
9.546 hab/km². Desse total, de mais de meio
milhão de pessoas, o Cartório Eleitoral afirma ter
208.368 eleitores. Na área da educação,
Carapicuíba conta com 58 escolas estaduais tendo
ao todo 85.433 alunos matriculados. O índice de
alfabetização da cidade é de 93,64% e a
mortalidade infantil é de 17,82%.
O conceito de Conjuntos Habitacionais deriva
de um arquiteto suíço chamado Charles-Edouard
Jeanneret-Gris, mais conhecido pelo pseudónimo
de Le Corbusier, que, com o surgimento de grandes
cidades, projetava casas planejadas e imaginava a
arquitetura do futuro, chamando-a de máquinas
Renata Rocha
23
de morar. Tinha como princípio humanizar os
condutos residenciais, como solução para colocar
grandes conglomerados de pessoas numa única
cidade. Hoje essa visão pode ser criticada, pois criou
de certa forma uma divisão: aqui vão morar os ricos,
aqui vão morar os pobres, mas pra a época a
proposta era avançada e criou construções
modernas. No Brasil, essa idéia chega durante o
Regime Militar, a partir de 1964, como tendência
de esvaziamento da luta por terra e moradia,
criando no campo o Estatuto da Terra, o Incra, e,
na cidade, as Cohabs, destinadas à concentração
da classe pobre e trabalhadora.
Para adquirir uma moradia no Conjunto
Habitacional de Carapicuíba, na época em que eram
construídas, era necessário ganhar até três salários
mínimos, não ter imóvel no próprio nome e não ter
antecedentes criminais. Após apresentar o
cadastro, os inscritos entregavam a documentação
necessária para provar que se encontravam dentro
dos critérios estabelecidos e assim que os prédios
estivessem construídos, eram chamados para
escolher em qual região iriam morar. Em seguida,
acontecia o sorteio entre os cadastrados para
definir qual seria o prédio e o apartamento de cada
um. O valor da prestação mensal dos imóveis não
chegava a 30% do salário mínimo. Por isso, os
cohabeiros sempre tiveram um perfil heterogêneo,
pois já no começo, quando o Conjunto Habitacional
Presidente Castelo Branco foi construído, foram
24
Histórias de Cohabeiros
morar no bairro desde pessoas que fugiam do
Imposto de Renda, a pessoas que moravam em
favelas e que se juntavam entre três ou quatro
membros da família para fazer dinheiro e se mudar
para a Cohab. Com o passar do tempo, essa
variedade de perfis de pessoas começou a ser motivo
de desentendimentos e conflitos entre os
moradores, tanto que, pensando nisso, as
administrações dos Conjuntos Habitacionais
distribuíam textos informativos aos primeiros
moradores, explicando o que era um condomínio,
como se organizava uma assembléia, como se elegia
um sindico, como se elegia um secretário, ou seja,
mostrando passo a passo como se organizava um
condomínio. Os contratos originais também traziam
sugestões: era proibido colocar varal para fora, fazer
reformas que abalassem o prédio, entre outras
coisas, que ao longo dos anos foram desrespeitadas
e cuja desobediência tornou o bairro um lugar
descaracterizado em relação ao que foi planejado.
Boa parte dessa primeira geração de
cohabeiros, já com a vida monetária mais
estabilizada, começou a se mudar em busca de
lugares mais tranqüilos, com menos barulho e
intriga entre os vizinhos. Mas, como os contratos
assinados com a administração da Cohab tinham
duração média de 23 anos, período do
financiamento, surgiram os contratos de gaveta,
que eram uma documentações informais de venda
dos imóveis, que não tinham efeito jurídico, mas
Renata Rocha
25
eram registrados em cartório, ou seja, para a
administração do Conjunto não tinham valor. Essa
foi uma situação que só estourou nos anos 90,
quando a Cohab completou 20 anos de existência e
a primeira geração de moradores precisava retirar
a escritura. Na atualidade ainda existem moradias
sem a documentação legalizada devido a esse fator,
pois os novos proprietários dos imóveis não
encontram mais os primeiros donos e os contratos
de gaveta permanecem informais.
Uma curiosidade da Cohab de Carapicuíba é
que de acordo com cada época os prédios ganharam
um perfil arquitetônico diferente. Começaram
construídos com bloco, depois com tijolinhos, em
seguida vieram os prédios de concreto, depois os
de bloco a vista, seguidos pelos de gesso, que foram
demolidos alguns anos depois. Assim, por volta de
1984, no final do Regime Militar, começo da
redemocratização do Brasil, foram construídos os
últimos prédios que apresentam outro perfil
arquitetônico. Nesse sentido, o Conjunto
Habitacional Presidente Castelo Branco foi uma
espécie de cobaia, com experimentos tais como
apartamentos em que a entrada se dá pela cozinha;
outros que tinham somente uma tomada; outros
em que a luminária era na parede em vez de
instaladas no teto. Atualmente, a grande mudança
observada é a ausência de áreas recreativas na
Cohab, pois os playgrounds que separavam os
prédios, cada um com escorregador e área verde,
26
Histórias de Cohabeiros
foram demolidos para a construção de garagens,
pois os cohabeiros começaram a comprar carros e
não tinham onde guardá-los. Garagens cuja maioria
estão com as portas voltadas, propositadamente,
para o lado externo dos prédios, pois agora foram
transformadas em comércios.
Até os nomes das ruas da Cohab de
Carapicuíba têm uma peculiaridade. Como o bairro
foi construído durante o Regime Militar, havia por
parte do governo a preocupação de despersonalizar
a história e, por isso, nenhuma rua recebeu nome
de personalidades ou autoridades. Ao invés,
ganharam nomes de estados, capitais e cidades
brasileiras. Só quando a Ditadura chegou ao fim é
que foi nomeada a Avenida das Diretas Já e a
Avenida Tancredo Neves. Todo resto das ruas do
Conjunto Habitacional leva nomes como Belém,
Salvador, Adamantina, Manaus, Brasília, Vitória,
Uberlândia, Guarulhos e assim vai.
Atualmente o Conjunto Habitacional
Presidente Castelo Branco tem 2,4 milhões de
metros quadrados e uma população estimada de
71.800 habitantes, distribuídos em 13.504
apartamentos e 856 casas, números esses que
correspondem às habitações legalizadas, pois
existem à margem do bairro pontos de moradias
irregulares, as favelas. A procura de imóveis para
compra e locação no bairro é grande, inclusive de
pessoas que vêm de outras cidades. Os custos para
compra de apartamentos variam entre R$ 25 mil a
Renata Rocha
27
R$ 40 mil, pois depende das condições que o imóvel
apresenta, se está reformado, quitado e qual a
metragem possui. Já o custo com aluguel é em
média de R$350, mais as despesas com condomínio,
luz, água e etc.
A Cohab de Carapicuíba vive um clima
intranqüilo. A Delegacia de Polícia da Região registra muitas ocorrências que vão, desde a agressão à ameaça, lesão corporal, calúnia, difamação,
injúria, tráfico, furto e perda de documentos. Segundo o delegado Etori André Bonifácio, responsável pelo policiamento do bairro, as ocorrências na
delegacia atingem a média mensal de 3000 BO´s,
sendo que os dias de mais movimento são as sextas-feiras e os sábados.---------------------------------Na área de educação existem ao todo 11
escolas estaduais no bairro, com 9.471 alunos
matriculados. Desse total de escolas, quatro
atendem ao Ciclo 1; seis delas o Ensino
Fundamental, 4 o Ensino Médio, 3 o Supletivo de
Ensino Médio e uma o Supletivo de Ensino
Fundamental, ou seja, algumas delas atendem
mais de um tipo de ensino. Atualmente o Ciclo 1
tem efetivamente 2866 crianças estudando, cujo
índice de aprovação é de 97,53%, reprovação 1,95%
e abandono 0,53%. Já no Ensino Fundamental estão
matriculados 3560 alunos, com índice de aprovação
de 80,37%, reprovação de 12,83% e abandono de
6,83%. A média de aprovação dos estudantes do
Ensino Médio é de 74,30%, reprovação 16% e
28
Histórias de Cohabeiros
abandono de 9,75%. Do Supletivo de Ensino
Fundamental a aprovação é de 75,63%, reprovação
16% e abandono 8,4% e o Supletivo de Ensino Médio
aprovação de 85,4%, reprovação 9,6% e abandono
de 5%.
Dentro do Conjunto Habitacional Presidente
Castelo Branco há dois postos de saúde e um
hospital que atendem além do município de
Carapicuíba, as cidades da região, tais como
Pirapora, Osasco, Vargem Grande, Cotia e Itapevi.
O Hospital chamado Sanatorinhos registra
mensalmente 1200 saídas de internação, 5000
consultas,
45.000
exames,
oferece
20
especialidades diferentes, além de ambulatório e
psiquiatria
emergencial,
emprega
1300
funcionários, desses 290 médicos e tem 10.500 m²
de área construída distribuídas em 6 pavimentos,
com 270 leitos e 15.000 m² de terreno.
Existem ao todo três pontos de táxi na Cohab,
um no hospital Sanatorinhos e os outros em dois
dos grandes supermercados que estão instalados
no bairro. Segundo os taxistas, o custo do taxímetro
no bairro é mais caro que de outras regiões, pois
não tem muito trânsito como em São Paulo, porém
a corrida é mais barata por conta da região ser
mais pobre. Afirmam que normalmente os
passageiros fazem os trajetos comuns, expostos nas
tabelas que trazem as descrições de valores e
percursos. Essas placas servem de marketing para
o ponto, uma espécie de anúncio, pois as pessoas
Renata Rocha
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olham os valores, sabem exatamento quanto irão
gastar e ficam atraídas. São em média cem corridas
por semana e o atendimento é até a meia noite, de
domingo a domingo. Ainda não há sistema de rádiotáxi no bairro, mas 22 taxistas da região já fazem
parte de uma cooperativa para montar um.
Cohab de Carapicuíba: um lugar em que a
musicalidade, ruídos e barulho são constantes na
vida das pessoas. Seja pelas brigas e discussões
corriqueiras em que os ânimos são alterados e os
tons de vozes elevados; desentendimentos esses,
entre vizinhos que não se ‘bicam’, entre esposas
com seus maridos, mães com os filhos, crianças
com adultos, amigos com amigos, cachorros com
gatos. Seja pelo som alto com músicas das rádios
populares que tocam enquanto a dona de casa, ou
a filha estudante que lhe ajuda no serviço
doméstico, ouvem durante a faxina. Seja pelos
vendedores que passam de prédio em prédio, escada
por escada, vendendo seus produtos anunciados
com frases já conhecidas pelos cohabeiros. O
homem do alho que diz “Olha o alho, olha o alho. É
um real o alho”. A mulher do Yakult que bate de
porta em porta abordando “Vai Yakult ou queijinho
hoje?”. O carro de pamonha do conhecido Beleza
Maravilha, que anuncia seu produto no alto falante,
enquanto dá voltas pelas ruas do bairro dizendo
“Beleza maravilha”, e os cohabeiros sabem
exatamente o que isso significa. O amolador que
passa gritando “Amolador. Amola faca, tesoura,
30
Histórias de Cohabeiros
alicatinho de unha” repetitivamente. O adolescente
que vende biju tocando matraca, som característico
dessa venda. O senhor de cabelos brancos que
vende algodão doce tocando a corneta “Fon, Fon”.
Os caminhões de gás que passam três vezes ao dia
com uma trilha sonora ao fundo tocando e com os
carregadores berrando dentro dos prédios “Gás,
olha o gás”. O rapaz da mandioca que anda com
carrinho de mão anunciando “olha a mandioca,
mandioca boa, olha a mandioca”. Seja pelo barulho
do pagode da Rio Branco, do movimento de motos e
bicicletas do Barufi. Seja pelos ônibus cujas linhas
circulam quase que de 10 em 10 minutos. Seja
pela bagunça dos meninos ao jogarem bola dentro
dos pátios dos prédios, das meninas que montam
suas casinhas nas portas das vizinhas, espaços
esses apelidados de quadradinhos. Do corre e corre
da molecada que brincam de esconde-esconde,
pega-pega e duro ou mole. Um lugar que mais
parece um formigueiro de gente em que o silêncio
é raro e quando acontece é na madruga à dentro.
Renata Rocha
31
32
Histórias de Cohabeiros
“Só posso levantar as mãos pro céu
Agradecer e ser fiel ao destino que Deus me deu
Se não tenho tudo que preciso
Com o que tenho, vivo
De mansinho, lá vou eu
Se a coisa não sai do jeito que eu quero
Também não me desespero
O negócio é deixar rolar
E aos trancos e barrancos, lá vou eu
E sou feliz e agradeço por tudo que Deus me deu
E deixa a vida me levar, vida leva eu”
Deixa a Vida me levar
(Serginho Meriti)
Mulher Gerônimo
“Ai me perdoa, mas minha mãe tá aprontando
muito, por isso que demorei”, desculpa-se a Cohabeira de
nascença Rosicleide Gerônimo dos Santos, com o constante
sorriso metálico, de quem aos 22 anos usa aparelho nos
dentes. Pergunto o que aconteceu, e a estudante de
Publicidade e Propaganda conta com o tom de voz agitado,
as peripécias da mãe, Emília, que traz o mesmo sobrenome
que lhe foi dado. “Ah, ela fica assim toda vez que meu
irmão vem em casa. Ela tava até que bem essa semana,
mas foi o Rogerinho aparecer e pronto. Ela bebeu todas e
mais um pouco. Eu to desde de manhã tentando segurar
ela em casa, mas não teve jeito. Ela saiu de casa às 4 da
manhã pra caminhar, como sempre faz, e bebeu tanto
Renata Rocha
33
que encontrei ela agora pouco sentada na escada do prédio
dormindo, bem na hora que a gente tinha marcado”,
explica-se agora com um sorriso mais tímido e ar de
embaraço, como se ao mesmo tempo em que estivesse
habituada a falar a respeito do assunto, isso ainda lhe
trouxesse certo constrangimento. Ainda se explicando, a
morena de pele jambo e cabelos loiros descoloridos, que
sempre que possível os mantém perfeitamente escovados
e lisos, disse que ao ver a mãe imediatamente chamou a
Neide para ajudar a levá-la para casa.
Neide é a vizinha que mora no andar térreo da
mesma escada e mesmo prédio de Rosicleide, a qual recebe
R$200 por mês para ajudar a cuidar de Dona Emília. Para
Neide, que já faz esse bico há quase um ano, o maior
problema de Dona Emília não é nem a doença psicológica,
pois quando essa senhora de 61 anos, olhos azuis, cabelos
cacheados na altura dos ombros, 1,50m e 43 quilos, e com
fama de fazer a melhor coxinha do prédio, voltou da
clínica, onde ficou por um ano internada, a doença já
estava controlada. Neide acredita que o que realmente
desgraça Dona Emília é o vício, o alcoolismo.
Falando rápido e sem parar, nítido sinônimo de
ansiedade, Rosicleide continua a narrar o ocorrido
gesticulando bastante e sem poupar gírias. “Nossa meu,
você não sabe de nada. Quando peguei a minha mãe, junto
com a Neide, ela tava toda mijada. Isso até que é normal
quando ela bebe, ela não se controla. Aí, dei banho, fiz
questão de trocar a roupa de cama pra ela deitar e dormir
bem fresquinha, abri as janelas pra ventilar bastante, deitei
ela e pensei: ‘beleza, tudo certo!’. Hum que nada! Daí veio
34
Histórias de Cohabeiros
a surpresa, não deu dois minutos e ela cagou na calça. Ai
credo!”. Nesse momento, como se de uma hora para outra,
toda aquela agitação transformou-se em timidez e
vergonha. Rosicleide tampou o rosto com as duas mãos,
fazendo sinal negativo, com a cabeça de um lado para
outro, como se não acreditasse no que tinha acabado de
contar. A sala ficou em silêncio. Coisa de dez segundos
depois, o meio sorriso nos lábios de Keka, um dos 6
apelidos que Rosicleide possui, voltou. Ao destampar a
face, a filha de Dona Emília continuou a contar a história
de onde havia parado, com um tom de voz pacato e sem
atropelar as palavras. “Nossa, maior trabalhão viu! E eu
não ia deixar a Neide limpar minha mãe né? Sobrou pra
mim. Troquei a roupa de cama tudo de novo, dei outro
banho e fui lavar as roupas. Sabe, eu fico com vergonha
de dizer isso, mas tenho nojo sabia? Tudo bem que é a
minha mãe, mas não tem jeito eu fiquei mesmo”, desabafou
cheia de sinceridade. E como se nada tivesse acontecido,
ou melhor, como se tudo que acabou de passar já fizera
parte de um passado distante, Nega, outro dos 6 apelidos
de Rosicleide, voltou a sorrir escancaradamente e com viés
de brincadeira insistiu em se desculpar. “Só depois que
fiz tudo isso que consegui vir pra cá, como combinamos.
Entendeu porque me atrasei né?”.
Rosicleide conta que segundo o diagnóstico do
psiquiatra da clínica em que Dona Emília ficou internada
em Quitaúna, localizada em Osasco, cidade vizinha à
Carapicuíba e há 3Km da Cohab, sua mãe sofre de
esquizofrenia crônica. “Você já assistiu o filme Mente
Brilhante?”, pergunta. Ao responder que sim, ela completa
Renata Rocha
35
“então, esse daí é o mesmo caso da minha mãe. Ela
também vê pessoas, ouve vozes e tem mania de
conspiração”, reforça com tranqüilidade, demonstrando
certo conhecimento a respeito do assunto. Cigana, o outro
apelido da irmã caçula de Rosemeire e Rogério, os outros
dois filhos de Dona Emília, explica que esse é um distúrbio
psicológico que foi herdado da avó materna e agravado
no decorrer dos anos, devido ao histórico de vida sofrida
que sua mãe teve desde a infância. “Os responsáveis pela
clínica disseram que minha mãe se culpa por ter a doença,
por isso é mais difícil a recuperação. Na clínica ela tinha
melhorado, tanto que a tiramos de lá. Mas o ruim é que
agora ela fica bebendo. Minha mãe vai morrer desse jeito,
se continuar assim. Vai morrer sem se ajudar”, acrescenta.
A filha xodó do falecido Ulisses e de Dona Emília,
Rosicleide, não sabe explicar ao certo o porque de ser dona
de tantos apelidos, a maioria utilizados até hoje pelos
amigos e vizinhos, mas sabe que foram adquiridos ainda
na infância. Até tem algumas idéias a respeito dos
significados. Acredita que o Nega seja pelo fato dela possuir
uma pele morena, que é fruto da miscigenação do tom de
pele negro de seu pai e da brancura de sua mãe. Já o Keka,
sabe que ganhou de forma carinhosa, quando ainda tinha
meses de vida, de uma antiga moradora do prédio que
não tinha filhos e que sua mãe sempre diz que era
apaixonada por ela, mas ainda assim não sabe exatamente
qual é a origem da palavra. O Kekinha veio depois, como
diminutivo do Keka, e era utilizado pelas crianças que na
época tinham a mesma idade que ela. Em seguida virou a
Cigana, apelido que ganhou por montar barracas com as
36
Histórias de Cohabeiros
demais meninas, quando brincavam de boneca no
estacionamento atrás do prédio. “Eu passava pelos
corredores e pelas escadas com um monte de sacolas e os
meninos gritavam assim: ’a Cigana do amor’. Adoravam
me zuar, me irritar”, relembra. Na pré-adolescência
passou a ser chamada de Ganaci, palavra que é formada
pelas sílabas embaralhadas do então Cigana. Até que na
adolescência prevaleceu o Cleide e o Cleidinha, que vem
da abreviatura de seu nome Rosicleide, e apedido do qual
prefere ser chamada até mais do que pelo próprio nome,
mesmo em ambiente de trabalho.
E por falar em trabalho, a geminiana de 24 de maio,
sempre gostou de trabalhar, de ter o próprio dinheiro e
de se manter sozinha. Ainda na adolescência, antes dos
16 anos necessários e previstos por lei para poder arrumar
emprego, já fazia alguns bicos, palavra essa que designa
trabalho informal e não periódico. Fazia faxina na casa
de uma vizinha da mesma rua e passava roupa
semanalmente de outra vizinha do mesmo prédio. Em
outro momento, confeccionava brincos e os vendia.
Chegou até a montar brinquedos em casa. Assim que
completou a idade necessária para conseguir um emprego,
passou na prova do CAMP, Círculo de Amigos do Menor
Patrulheiro de Pinheiros, uma instituição que oferece
formação para adolescentes e que através de parcerias com
empresas, ajuda esses jovens na conquista pelo primeiro
emprego. Através dessa instituição Rosicleide conseguiu
trabalho em duas grandes empresas, mas que por motivos
familiares não conseguiu se manter em nenhum. Nessa
época, sua irmã mais velha Rosemeire, conhecida como
Renata Rocha
37
Meire, já estava casada, mas seu irmão do meio, Rogério
ainda não e, detalhe, estava no auge do alcoolismo.
Passados alguns meses, Rosicleide não agüentava mais o
inferno que estava vivendo dentro de casa. Ela e a mãe
apanhavam constantemente do irmão, também
desempregado, que não precisava de muitos motivos para
perder as estribeiras e descer a mão em ambas. Até que
Keka decidiu voltar a procurar emprego, pois só queria
levar uma vida normal. Conseguiu então trabalho de
recepcionista, numa empresa de vendas televisivas. Lá teve
oportunidade de crescimento, passou por diversas áreas,
exerceu cargos diferentes, mas precisou sair porque a
empresa faliu. Desempregada novamente começou a
fazer bico em um carrinho de hot dog na Cohab mesmo,
mas ficou pouco tempo. Em seguida foi pulando de galho
em galho, com funções distintas das que já havia tido,
tais como processadora de mercadoria, operadora de
telemarketing, vendedora de loja, atendente em uma
gráfica e auxiliar numa farmácia de manipulação, função
essa que gostou tanto que na época até pensou em se
especializar, mas perdeu o emprego por causa da irmã
que ficava ligando o tempo todo para se queixar da mãe,
Dona Emília. “Mas não agüento ficar sem dinheiro. Sou
praticamente um bombril, 1001 utilidades”, comenta ao
dizer que nesse momento está desemprega, mas que isso
não vai durar muito tempo.
A família Gerônimo perdeu Ulisses, o marido de
Emília e pai de Rosemeire, Rogério e Rosicleide, na virada
do ano novo de 1992. Ele, que era muito autoritário como
marido e alcoólatra, desde que Rosicleide se entendia por
38
Histórias de Cohabeiros
gente, deixou para Dona Emília uma pensão mensal de
R$1.210, o apartamento onde Rosicleide e a mãe moram
até hoje e uma garagem no mesmo prédio, que atualmente
serve de renda, pois é alugada como ponto comercial e
rende R$250 por mês. Além disso, Ulisses ao falecer de
ataque cardíaco, sem ser notado, sem ao menos fazer
barulho e ter sido encontrado desfalecido pela manhã do
primeiro dia do ano, no sofá de corvim marrom da sala,
deixou como seguro de vida uma quantia considerável
para a família. Nessa época Meire, a irmã mais velha, era
noiva de um policial, que a partir de então passou a morar
com a família no apartamento. Por sugestão do PM, os
Gerônimos tiraram todo o dinheiro do seguro e lhe
entregaram, pois segundo o então noivo de Meire ele iria
trocar toda a quantia do seguro por dólares, uma vez que
a moeda estava em alta e a idéia era que essa troca lhes
rendesse lucro. A família só não sabia que o tipo de
transação que o noivo de Meire queria fazer era ilegal. O
policial viajou com todo o dinheiro e voltou sem nenhum.
Segundo ele, na divisa do Mato Grosso, onde iria trocar o
dinheiro por dólares, foi roubado e perdeu tudo. A partir
daí, o irmão do meio de Rosicleide, o Lolé, como é
conhecido na cohab, entrou de cabeça no mundo das
drogas. “Ele nunca aceitou tudo o que aconteceu”, afirma
a caçula. O noivado de Rosemeire não durou muito depois
disso.
A infância, pré-adolescência e adolescência inteira
de Rosicleide foram presenciando as brigas do irmão e da
irmã, do irmão com a mãe, do irmão com ela. Os motivos
eram sempre os mesmos: ele vendia tudo que via pela
Renata Rocha
39
frente para sustentar o vício, fosse de quem fosse, e batia
nelas sempre que se exaltava. Além disso, nessa época era
normal os traficantes do bairro invadirem o apartamento
para cobrar delas as dividas do Lolé. “Eu tinha muito
medo, pois eles faziam muitas ameaças. Eu me escondia.
Não gosto nem de lembrar”, conta com clara tristeza no
olhar. Os vizinhos por vezes se revoltavam e chamavam
a polícia. Por vezes se ausentavam sem expectativa de
conseguir ajudá-las. “Já até bateram nele por causa dessas
coisas que ele fazia com a gente”, relembra.
Nessa época as três mulheres se apegaram muito à
religião e à fé. Foi na Igreja Universal que Meire conheceu
o marido que leva o mesmo nome de seu irmão, Rogério, e
que é o pai de sua filha Nicole. Meire, como a irmã lhe
chama, é obreira da instituição e fiel assídua. Rosicleide
afirma que teve uma estrutura familiar muito fraca e que
foi a igreja que deu muita força nos momentos difíceis.
Quando fala de sua fé, é nítido o brilho nos olhos e a
gratidão nas palavras. Segundo ela, sem a educação
religiosa que teve, talvez não soubesse sequer se portar
diante das pessoas. “Eu tinha uma vida rodeada de
problemas, mas mesmo assim ajudava outras pessoas. Eu
ia em presídio, favela, hospital, asilo e fui até na Febem
evangelizar. Sem dúvida a fé me deu muita força, me fez
continuar e não desistir”, relembra ao dizer que as vezes
até parecia que os problemas dela eram gigantes perto
das queixas que ouvia dos outros. “Até meus 20 anos eu
estava firme na igreja. Saí porque me envolvi com um
pastor e percebi que havia certa hipocrisia, algumas
laranjas podres que contaminavam o ambiente e senti falta
40
Histórias de Cohabeiros
de como era antes, no começo. Passei a me sentir um peixe
fora d´agua e então terminei o namoro e saí”, conta sem
constrangimentos, mas sem esconder que sua irmã ainda
a cobra muito, pois foi difícil para Meire aceitar a saída
de Rosicleide da igreja. “A Meire tem disritmia cerebral,
síndrome do pânico, é surda do lado esquerdo e toma
antidepressivo. O nervoso dela comigo é que sou tranqüila
e estou aproveitando a minha vida. Sei me cuidar. Quero
tirar carta de motorista, to fazendo faculdade, viajando
sempre quando posso e comprando as roupas que tenho
vontade, mas nem por isso perdi a minha fé. De vez em
quando até vou na igreja, mas só não freqüento mais”,
conta com a tranqüilidade de quem sabe exatamente o
que quer da vida e o que lhe faz feliz. Já Dona Emília foi a
favor da reliogisidade das filhas somente nos primeiros
anos de devoção, pois quando começou a sofrer os
transtornos psicológicos, nunca mais teve fé.
Assim que Meire casou, o irmão do meio,
Rogerinho, conseguiu abandonar as drogas, mas se
afundou na bebida. Continuava batendo na mãe e na irmã
mais nova, pois ainda moravam juntos, roubando
utensílios da casa, arrumando brigas na rua e sem
trabalhar, até que há 5 anos conheceu uma pessoa e
resolveu se casar. Atualmente mora com a esposa no
Jardim Abril em Osasco e trabalha como segurança
noturno. “Hoje ele está um pouco melhor, mas ainda
aparece aqui para atormentar. Todas as vezes que ele vem
minha mãe fica mal. A Meire fala que ele é um traste, mas
eu gosto dele. Ela diz que ele fica igual a minha mãe, se
transforma quando está bêbado. Outro dia ele veio da casa
Renata Rocha
41
dele até aqui a pé e descalço”, conta como se não
entendesse o porque dele ainda não ter se curado. “A
diferença é que não sou mais como antes, hoje eu me viro
melhor, enfrento. Não que eu tenha me tornado uma
pessoa ruim, é que só parei de ser boba”, esclarece com
transparente orgulho por ter se tornado a pessoa que se
tornou. Rosicleide conta que a psicóloga, que toda a família
precisou conversar quando a Dona Emília foi internada,
disse que ela, a irmã caçula, era o ponto principal dos
conflitos familiares. A profissional a definiu como a mãe
de todos, o ponto de equilíbrio, e que se Rosicleide não
colocasse seus conflitos pra fora, não desabafasse, isso seria
muito prejudicial para a saúde dela. “Conversar com a
psicóloga foi muito bom, ajudou a colocar tudo pra fora,
soltar tudo, com certeza me aliviou muito. Foi então que
percebi que eu precisava viver, curtir, sair, viajar. Eu não
tinha vida! Eu fui uma caipira na infância, mas isso foi
até eu me conhecer de verdade! Hoje, não! Converso com
as pessoas em qualquer lugar, no ponto de ônibus, onde
for! Foi aí que disse para os meus irmãos: ‘ou interna a
mãe ou eu’, se não eu não agüentaria mais viver daquela
forma, pois com a saída dos dois de casa quem estava ali
no dia a dia era eu”, relembra sorrindo ao observar que
tomada essa atitude não conseguiu ficar muito tempo sem
a mãe, mesmo indo visitá-la quase diariamente e a trouxe
de volta pra casa.
Atualmente quem faz o controle das finanças da
pensão de Dona Emília é a Meire. É a irmã mais velha que
diz o que e onde a irmã caçula deve gastar, quais são as
contas a serem pagas e os vencimentos. Só de remédio de
42
Histórias de Cohabeiros
Dona Emília são gastos R$280 por mês. Rosicleide conta
que quando a mãe ficou internada, o dinheiro da pensão
ia integralmente para a saúde de Dona Emília, pois o
restante, a diferença que sobrava do dinheiro dos remédios,
era exatamente o valor da mensalidade da clínica. “Eu
fiquei um ano nessa vida. Tive que trabalhar dobrado pra
pagar todas as contas de casa e diminui bem as saídas.
Ah e fora isso foi horrível morar sozinha, conciliar tudo:
casa, estudo e trabalho. Credo! Ainda por cima chegava
em casa e não tinha com quem conversar, contar como
foi o dia”, desabafa Rosicleide assumindo que é ruim com
a mãe, mas com certeza pior sem.
“Deus é muito generoso comigo. Tudo que quero
eu tenho, não tenho do que reclamar”, conclui Rosicleide
ao definir sua felicidade por ser uma pessoa independente,
sem deficiências físicas e com saúde. Apega-se ao exemplo
da amiga que mora no mesmo prédio, no apartamento de
frente ao seu, que é viúva e mãe de 3 filhos, trabalha para
sustentar a família, não reclama de nada e ainda curte a
vida. “Se ela não reclama, quem sou eu pra reclamar! Pelo
menos não tenho filhos pra sustentar. Fazer o que, tem
coisas que a gente não escolhe, só planeja”, acrescenta. A
estudante sabe que os vizinhos estranharam sua mudança
de comportamento e fazem fofoca a seu respeito, mas
afirma não se importar. A única certeza que tem é que
não quer ter a vida desgraçada. “Quero ter meu
apartamento, meu carro, minha vida. Destino é a gente
quem traça”, conclui incisiva.
Questiono qual a opinião dela a respeito da Cohab,
uma vez que ela é Cohabeira e Rosicleide diz que acha
Renata Rocha
43
um lugar muito feio, cheio de pessoas mal educadas, mas
que tem lá o seu lado bom e gosta de morar no bairro.
Para ela ser Cohabeira não é nada pejorativo e não tem
vergonha de sê-lo, mas que, sem dúvida, se tivesse
oportunidade de mudar, mudaria. Acredita que o Onde
não determina o Quem, pois seria a Rosicleide Gerônimo
dos Santos onde quer que morasse ou tivesse sido criada.
Após horas de conversa, dentre momentos de
descontração e reflexões intensas, para encerrar a
entrevista, pergunto para Rosicleide qual é o seu maior
medo. Ela pára, reflete, sorri e diz “sou uma mulher
independente, tenho ainda muita vontade de viver e amo
muito minha mãe. Nossa ligação é muito forte! Querendo
ou não, é uma pela outra e é por ela que me sinto corajosa”
e conclui que seu maior medo é perder a sua companheira,
a sua mãe, a Dona Emília. Mesmo que ela apronte o tempo
todo. Mesmo que o fardo não seja fácil. Mesmo que ela
tente rotineiramente reverter esse quadro traçado à
infelicidade. E até mesmo que os papéis em sua casa
tenham se invertido, afinal mãe virou filha e filha virou
mãe.
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Histórias de Cohabeiros
Renata Rocha
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“Meu partido
É um coração partido
E as ilusões
Estão todas perdidas
Os meus sonhos
Foram todos vendidos
Tão barato
Que eu nem acredito
Ah! eu nem acredito...
Ideologia!
Eu quero uma prá viver
Ideologia!
Eu quero uma prá viver (...)”
Ideologia
(Cazuza / Roberto Frejat)
O professor, o historiador, o advogado
Durante as aulas de Ladenilson não são
permitidas conversas paralelas, mascar chicletes,
nem “tunzar”, termo que ele utiliza para descrever
a palavra cochilo. Sua principal e objetiva
metodologia é a disciplina. O silêncio é absoluto e
só o professor fala. Quando o aluno tem dúvidas,
levanta a mão e aguarda até que ele lhe passe a
palavra. O professor, que fora da sala de aula se
mostra um sujeito tímido, que mesmo seguro do
que diz insiste em desviar o olhar, ora para objetos,
46
Histórias de Cohabeiros
ora para o chão, durante as aulas se perfaz e mostra
a que veio: ensina História literalmente contando
histórias.
Ladenilson, apelidado de Lalá pelos alunos,
que claro só o chamam dessa forma entre eles e
jamais na frente do professor, mora há 27 anos na
Cohab e leciona, no Cursinho da Prefeitura de
Carapicuíba, em outro particular e na Escola
Estadual Professor Manoel da Conceição Santos,
conhecida como Manoel. Foi nesse colégio que
cursou magistério durante a adolescência e onde
ministrou sua primeira aula. Conta que virou
professor por acaso, por não querer estudar à noite,
matriculou-se no matutino mesmo sabendo que
nesse período só havia colegial com magistério, e
que durante o curso percebeu ter nascido para
aquilo. “Eu hoje até brinco com a Beatriz, digo que
não sei se escolhi a mulher certa, mas a profissão
eu tenho certeza que sim!”, comenta em tom de
brincadeira, mas afirma dizer a verdade.
Beatriz é companheira de Ladenilson há seis
anos. Todos os alunos do professor sabem quem é
ela, pois durante suas aulas, o palmeirense
fanático, para ilustrar a matéria ministrada sempre
comenta algum episódio a respeito de sua guria, a
gaúcha Bia, apelido usado por ele. O casal vive no
mesmo apartamento em que Ladenilson reside
desde que se mudou com os pais para a Cohab, o
qual recentemente ganhou do pai, senhor
Renata Rocha
47
aposentado que mora no interior de São Paulo com
a esposa.
Professor muito popular no bairro e na
Internet, Ladenilson é motivo da criação da
comunidade “Eu tive aula com o Ladenilson” do
site de relacionamentos Orkut que, conforme
apuração em 22 de outubro de 2007, tem 1.465
membros. O professor, que adora se comunicar via
web com alunos e ex-alunos, já está no seu segundo
perfil, também do Orkut, pois o primeiro não
comportou e extrapolou o limite de 1000 amigos. O
novo perfil já tem mais 376 pessoas cadastradas.
Durante a entrevista ocorrida nos intervalos
de suas aulas de final de semana, nos dois
cursinhos em que trabalha, Ladenilson
educadamente interrompeu o assunto quando
apareceu um aluno para tirar dúvidas. Thiago, o
aluno que, assim como os demais, o professor
conhece pelo nome e faz questão de mostrar isso,
foi prioridade o tempo todo. O professor,
pacientemente, esclareceu todas as perguntas, deu
exemplos e acrescentou dados. Citou o obs dum
dum, som que faz em sala de aula quando pede
para os alunos anotarem um observação, cuja
abreviação é “Obs:”, ou seja, o obs é o barulho da
abreviação e o dum dum é o som dos dois pontos.
Thiago fez as anotações conforme direcionamento,
agradeceu e se retirou. Atenções novamente
voltadas a mim, pergunto a Ladenilson como ele
explica o próprio sucesso no mundo virtual. O
48
Histórias de Cohabeiros
professor prontamente diz que os alunos
reconhecem quem são os professores que cumprem
da melhor forma seu papel de educadores, que
sabem exatamente quem planeja a aula, quem é
preguiçoso e quem os deixa fazer o que querem e
bem entendem. Questiono se desde sempre ele teve
a mesma metodologia de trabalho. Afirmando que
sim, Ladenilson reforça “Eu sou cria da Dona
Denise”.
Difícil é encontrar alguém na Cohab não
tenha ouvido falar de Maria Denise Albuquerque
Pereira de Oliveira, a Dona Denise. Diretora do
Manoel durante quase 20 anos, de 1984 a 2003, só
deixou de administrar o colégio, que segundo
moradores do bairro é a melhor escola da região,
pois se aposentou. Durante sua gestão, os alunos
de 5ª série até o 3º colegial, dos três períodos,
matutino, vespertino e noturno, faziam filas
divididas por classe, para ir e para voltar do
intervalo. O uso do uniforme, que era camiseta da
escola branca e bordô com calça de moletom azul
marinho, era obrigatório. Quem não estivesse dessa
forma era barrado já na entrada da escola.
Walkman, calça jeans e boné não eram permitidos.
Bermuda, somente se fosse a azul marinho do
uniforme e se estivesse no máximo até o joelho.
Não se podia passar aula vaga fora da sala, seja no
pátio ou nos corredores do Manoel. Desrespeitar
professor em sala de aula, ser pego fumando
escondido, brigar, degradar a escola ou arrumar
Renata Rocha
49
confusão, significava ir para a Diretoria tomar chá
na sala da Dona Denise, esperar em pé um bom
tempo, enquanto isso contar por distração quantos
gatos passeavam na mesa dela, até ser atendido e,
enfim,
levar
convocação
solicitando
o
comparecimento do responsável, para juntos, pais,
aluno e diretoria resolverem o problema. O respeito
imposto por Dona Denise era tanto que, quando
ela passava nas salas durante as aulas, para fazer
visitas surpresa, todos os alunos levantavam-se e
ficavam em pé ao lado direito da carteira e só
sentavam se assim ela dissesse para fazê-lo.
Quando falava, não se ouviam nem os mosquitos,
além da voz dela. Dona Denise, uma mulher alta e
magra, com dedos compridos que gesticulavam o
tempo todo, cabelos claros, de tom de voz firme,
que em 2001 teve descolamento de retina e quase
não enxergava mais, ao mesmo tempo em que
despertava medo nos seus alunos era motivo de
risadas, de boas gargalhadas por parte deles, que
às escondidas caçoavam de suas roupas de cores
quentes, que misturavam salto alto com calça de
moletom.
Antonio Cláudio de Oliveira, o vice-diretor
de Dona Denise durante quase toda carreira dela
e seu marido há 28 anos, a define como “uma
mulher inteligentíssima e brilhante, de olhar
completo, diferente do senso comum, que dava o
melhor de si em tudo”. Explica dizendo que “pra
você ter uma idéia, durante a apresentação da tese
50
Histórias de Cohabeiros
de mestrado dela, que é algo a respeito da sintaxe
sob pontos cantados na umbanda, os professores
ficaram boquiabertos e pediram, inclusive, mais
referências pra ela a respeito do assunto, pois
desconheciam”, comenta. Quando Denise iniciou
a carreira de Diretora, o professor Antonio Cláudio,
como é conhecido, para acompanhá-la fez
complementação pedagógica para então poder
exercer o cargo de vice-diretor. Ele, que é graduado
em Letras e tem mestrado em Latim, afirma que
Dona Denise não confundia autoridade com
autoritarismo. “Os pais confiavam na competência
da Denise, ela era muito respeitada. Não é a toa
que a Manoel era a melhor escola de Carapicuíba,
Barueri e Cotia, tanto nas avaliações quanto no
corpo docente, pois era uma escola estável, com
professores que tinham anos de casa e
desenvolviam o melhor o trabalho em sala de aula.
As reuniões bimestrais com pais e mestres eram
um diferencial, pois contavam com a presença dos
alunos também, como forma de criar
responsabilidade nos estudantes. Hoje isso é
praticado por outras escolas, mas isso foi coisa da
Denise. Ah e se os responsáveis não fossem à
reunião, o aluno era proibido de assistir aula no
dia seguinte. Eu e a Denise tínhamos tudo para
ter uma carreira acadêmica, mas não, optamos por
administrar uma escola da Cohab e tenho certeza
que o fizemos bem. É só olhar os frutos disso”,
conclui.
Renata Rocha
51
Dona Denise faleceu em 21 de maio de 2007,
de infarto durante uma aula de Tai Chi Chuan.
Sem filhos, pois Denise por problemas de saúde
não pôde tê-los, o Professor Antonio Cláudio quando
está longe dos amigos, que tanto lhe apóiam, ainda
sente-se sozinho, mas se apega na formação
kardesista e na certeza de que espiritualmente
Denise está bem. “Ela era um espírito evoluído”,
finaliza.
Ladenilson lamenta o falecimento de Dona
Denise e conta que realmente se inspirou nela e
que os dois sempre se deram muito bem, desde a
época em que era aluno do Manoel, até quando se
tornou professor do colégio, cuja oportunidade de
emprego foi dada por ela. Diz que teve uma criação
rigorosa e sempre gostou de disciplina e que talvez
isso tenha ajudado no relacionamento entre os dois.
“Eu era muito o que chamávamos de Armandinho,
o mesmo hoje que vocês chamam de CDF. Pra você
ter uma idéia as vezes tínhamos aula vaga no meio
do turno e éramos dispensados na condição de que
voltássemos para as duas últimas aulas, coisa de
uma hora depois. Eu voltava!”, conta às gargalhadas,
“enquanto o restante do pessoal ia namorar, jogar
bola e etc”, esclarece.
Como se o tempo todo estivesse com medo
de perder a hora, talvez por hábito de controlar o
horário das aulas para não exceder o tempo previsto,
Ladenilson olha a quase todo momento para o
relógio. Filho de nordestino com interiorana de São
52
Histórias de Cohabeiros
Paulo, o paulista reforça o quanto foi importante
ter sido criado com muita disciplina e rigor. “Eu
brinco que sempre fui um menino de gaiola. Apenas
quatro anos da minha vida que eu não morei em
apartamento. Que foi no início da década de 70.
Todo o resto da minha vida eu morei em
apartamento. Morei, inclusive, em prédio de alto
padrão, não porque meu pai tinha grana não, era
justamente porque não tinha. Meu pai era zelador
de prédio. Então você imagina o que é você ter dois
filhos pequenos e ser zelador. Meu pai tinha toda
uma preocupação, sempre falava para mim e para
meu irmão que deveríamos nos comportar, se não
ele não teria moral para chamar a atenção dos
condôminos”, relembra.
Formado em História pela USP, Universidade
de São Paulo, e em Direito pela Faculdade São
Francisco, o historiador afirma que os noticiários
são os seus programas de TV favoritos, uma vez
que sintetizam a comédia e o drama de cada dia e
que o único esporte que pratica não é jogar futebol,
e sim torcer para o Palmeiras, pois segundo ele
“exige um esforço e tanto”. Com o humor que lhe é
peculiar, Ladenilson se diz frustrado por não saber
tocar nenhum instrumento, mas o que não o
impede de ser fã de “música boa, de qualidade,
como MPB, Jazz e Erudita”. Prova disso é a coleção
de CD´s que tem em casa, com a qual cheio de
cuidados, além, é claro, de 72% das comunidades
Renata Rocha
53
do Orkut que faz parte, serem a respeito de
intérpretes e estilos musicais.
Ladenilson gosta de viver na Cohab, está
reformando o apartamento em que mora, não pensa
em mudar do bairro e fundamenta sua opção
dizendo que “Os apartamentos da Cohab se você
olhar do ponto de vista da metragem, eles são
melhores do que muitos do centro de São Paulo.
Veja a área privativa no caderno de imóveis e você
vai descobrir que aqui os apartamentos não são tão
pequenos assim. Agora se você olhar do viés
localização, são apartamentos com valor de mercado
muito baixo, que estão fora dos grandes centros e
numa região de periferia e etc”. O professor
cohabeiro acompanhou de perto a evolução e como
ele diz “a degradação do bairro”. Entre as histórias
a respeito da Cohab que faz questão de contar,
exaltou-se quando falou a respeito da Praça
Presidente Castelo Branco, que fica na Cohab II.
“É aquela praça que hoje é uma vergonha. Ou você
tem usuário de tóxicos ou casais de namorados se
amassando. A inauguração daquela praça foi em
junho de 1980, sou testemunha ocular da história,
estava na inauguração. Foi um evento que parou o
bairro. Veio até um familiar do Presidente Castelo
Branco que eu não me lembro o grau de parentesco.
Veio gente de todo o bairro e também vieram os
escoteiros, de cujo agrupamento eu fazia parte na
época, e que atuava, inclusive, como um dos
mecanismos de socialização da Cohab. Essa praça
54
Histórias de Cohabeiros
tinha o busto do Marechal, tinha uma placa de
bronze, 1º Presidente da Revolução, tava lá. E no
muro tinham vários mastros pra cada governo
estadual. Em dias de feriado nacional e aos finais
de semana, todas as bandeiras eram hasteadas.
Então aquela praça foi bonita, ela foi bonita! Se
você observar aquela praça hoje, está toda pichada
e quando tentam pintar, os marginais vão lá e
picham de novo. Hoje ela é um símbolo da
degradação do bairro”, conclui com saudosismo e
ar de indignação.
Ladenilson, um homem de estatura baixa e
magra, cabelos crespos e compridos até a metade
dos ombros, se veste com roupas estilo hippie e
sandálias de couro, como ele mesmo diz “estilo bicho
grilo”. Afirma que a roupa que veste não diz quem
ele é, mas serve de protesto contra os que adoram
estereótipos. “No meu dia-a-dia me visto da forma
que me sinto à vontade e que realmente gosto.
Quando as pessoas me olham não imaginam quem
é o Ladenilson”, conta, ao dizer em seguida que
somente quando advoga em causas cíveis, trabalho
que lhe serve como espécie de bico, que põe o terno
e gravata que a profissão exige. Questiono se
mesmo sendo contra estereótipos não acredita que
o meio do qual fez e faz parte de alguma forma
refletiu na pessoa que ele se tornou. Ladenilson é
enfático em dizer que sim, que sob o seu ponto de
vista o lugar Onde viveu, as pessoas que conheceu,
as oportunidades que teve e principalmente a sua
Renata Rocha
55
criação são também os responsáveis por ele tornar
o Ladenilson que é, e recorda de algo que seu pai
sempre lhe dizia: “A gente não pode escolher a nossa
classe social, mas pode escolher entre ter ou não
ter conhecimento, pois isso ninguém nunca vai
poder tomar de você e vai fazer com que você se
sinta bem em qualquer lugar”.
Ao nos despedirmos vejo Ladenilson, que
diariamente anda de ônibus, por não gostar de
dirigir, atravessando a rua correndo, mesmo que
os carros estejam a uma boa e larga distância. De
repente vira e me diz, “cuidado que aqui os carros
aparecem do nada!”. Agradeço, sorrio e me despeço.
56
Histórias de Cohabeiros
Renata Rocha
57
“Quando eu estou aqui eu vivo este momento lindo
Olhando pra você e as mesmas emoções sentindo
São tantas já vividas, são momentos que eu não me esqueci
Detalhes de uma vida, histórias que eu contei aqui
Amigos eu ganhei, saudades eu senti partindo
E às vezes eu deixei você me ver chorar sorrindo (...)
Em paz com a vida e o que ela me traz
Na fé que me faz otimista demais
Se chorei ou se sorri
O importante é que emoções eu vivi”
Emoções
(Erasmo Carlos / Roberto Carlos)
Dona Marly
Marly Cirlene Rainha dos Santos, interiorana
de Presidente Prudente completa 30 anos de Cohab
em 25 de maio, do próximo ano, data que a
aposentada tem na ponta da língua. A exmerendeira e inspetora de alunos é chamada por
todos do bairro de Dona Marly. Ela que é mãe de
Samuel, Sandra, Sérgio, Sidny, Silvio e Suely,
casou-se com Manoel Trindade, mais conhecido
como seu Mané aos 13 anos de idade. Ambos são
chamados desta maneira até por pessoas que tem
a mesma, se não até mais, idade do que eles. Essa
é uma forma de tratamento respeitosa que se
tornou ao longo dos anos uma espécie de apelido.
58
Histórias de Cohabeiros
Dona Marly tem os cabelos bem curtos e semiencaracolados, com um corte que deixa as orelhas
a vista e utiliza há anos. Talvez por isso, os
moradores do prédio em que reside tenham a
impressão que ela não envelhece e possui a muito
tempo a mesma aparência. Aos 61 anos Dona Marly,
que para conceder a entrevista deixou no sofá o
tricô que estava fazendo, enquanto assistia ao
Programa “Silvio Santos”, afirma não ter mais
sonhos “Não tenho mais idade para isso, eles já
acabaram”, comenta fazendo sinal negativo com a
cabeça, num tom de voz tranqüilo e olhar sereno
demonstrando que realmente deixou de sonhar.
Em seguida, repensa e aparentando certa
insatisfação com a resposta que acabara de dar,
acrescenta: “Eu já alcancei tudo o que eu queria.
Sou muito feliz porque vejo meus filhos se
realizando e meus netos crescendo. Eles são minha
vida, e o que me faz feliz hoje é ver eles felizes.
Isso pra mim é o que importa”. A merendeira diz
não ter planejado nenhuma gravidez, pois “todos
vieram” e quando se mudou para a Cohab quatro
dos seis filhos já eram nascidos. Dona Marly conta
que em 1978 quando passou a morar no bairro, a
Cohab não tinha infra-estrutura. “Ah! era bem
diferente! O chão era de terra. Não tinha luz de
rua, não tinha posto de saúde, não tinha delegacia
e não tinham escolas, depois que veio a Didita pra
cá, que na época nem se chamava Didita, era a 4ª
Escola da Cohab e era um barracão de verdade”,
Renata Rocha
59
relata. Nessa época, a preocupação de Dona Marly
também era a escassez de ônibus, pois segundo
ela só havia uma linha que circulava na avenida
principal do bairro e ficava há uma boa distância
de sua casa e quando precisava de transporte à
noite era muito complicado, por que as ruas não
tinham iluminação. Segundo ela, não haviam
paredes e nem garagens dividindo os prédios, como
atualmente. Ao invés disso, existiam áreas
recreativas. “O espaço era todo gramado, tinha
playground e as crianças tinham onde brincar, coisa
que hoje em dia já não tem mais. Mas nessa época
não tinha garagem né? Na cabeça de quem fez a
Cohab, pobre não tem carro”, comenta sorrindo com
as palmas das duas mãos voltadas para cima, como
se estivesse dizendo ‘fazer o quê?’, e completa “a
gente sabe que não é bem assim, pelo contrário,
tem gente que fez a vida aqui, que está super bem
e não sai daqui porque não quer. É só dar uma
olhada nos apartamentos e nos carros que tem por
aí. Agora os que se mudaram, também fizeram a
vida na Cohab”.
A avó de Emanuelly, Gustavo, Letícia,
Michelly, Mickaelly, Natasha, Rodolpho, Selma,
Sergio Fernando, Sergio Gabriel, Silenne e Thiago,
afirma que a relação com seus vizinhos sempre foi
muito boa. Segundo Dona Marly a maioria dos
moradores antigos, que vieram para Cohab no
mesmo período que ela, há quase 30 anos atrás, já
mudaram e que alguns até “já se foram”, maneira
60
Histórias de Cohabeiros
sutil de se referir a morte. Alguns vizinhos da
família Santos fazem, em tom de brincadeira uma
queixa a respeito deles. Dizem que “irão dominar o
45”, isso porque além de Dona Marly e Seu Mané,
moram no mesmo prédio, o então nomeado 45, Dona
Guiomar, a mãe de Dona Marly, e mais três filhos
do casal. Os outros dois filhos dos aposentados
também residem no bairro, sendo que um deles na
mesma rua e o outro na avenida principal, onde
Dona Marly comentou que antigamente era o único
local por onde os ônibus passavam. Apenas um dos
filhos de Dona Marly não mora na Cohab, mas
mesmo assim não mora longe, habita a cidade
vizinha. “Todos os meus filhos gostam da Cohab,
tanto que Sidny até já morou no interior de São
Paulo, mas voltou pra cá”, conta Dona Marly, ao
dizer que a infância dos filhos no bairro foi saudável
e que as dos netos também está sendo. Diz que
adora ver os netos brincarem entre si, estudarem
na mesma escola e um freqüentar a casa do outro.
“A vida é mais gostosa assim, porque é um tal de
neto entrando aqui, saindo ali, é vó pra cá, vô pra
lá. As crianças antes de ir para escola passam pra
dar um beijo, quando voltam passam pra dar oi. Se
meus filhos morassem longe seria muito triste, por
que só eu e o Mané os dias demorariam muito pra
passar. Tanto que tem dias que o tempo passa, voa
que nem vejo! Mas têm outros que falo ‘nossa Mane
que dia longo, que não passa’. Imagina se meus
filhos e netos morassem longe?”, indaga concluindo.
Renata Rocha
61
Enquanto a entrevista transcorre logo na
entrada da sala, na pequena mesa quadrada, em
que estamos sentadas em duas das quatro cadeiras
de mogno, Dona Marly relembra que os momentos
marcantes e de dificuldade, que passou na Cohab,
foram todos envolvendo a saúde de seus familiares.
Seus netos Rodolpho e Silenne que, inclusive, são
irmãos, quando bebês tiveram problemas sérios. A
avó, somente em recordar as ocasiões, muda de
semblante e seu rosto se transforma como se
estivesse arrepiada. Fica séria, apóia os cotovelos
na mesa, coloca as duas mãos no rosto e conclui
“tem coisas que a gente tem que passar, não tem
jeito!”. Pergunto para a católica não praticante, mas
que reza diariamente, se ela acredita em destino
e Dona Marly diz que “Sim, claro! Tudo está escrito.
Ninguém passa se não estiver determinado. Dizem
por aí que Deus escreve certo por linhas tortas,
não é? Então. Tem gente que diz que cada um faz o
seu destino, mas se fosse assim ninguém
escolheria passar por coisas ruins”, conclui.
Pergunto para a bisavó de Giovanna, Isabela
e Maria Fernanda, qual a opinião dela a respeito
do termo Cohabeira, com freqüência utilizado pelos
moradores da região. Dona Marly rapidamente
responde que conhece algumas pessoas que não
gostam de serem chamadas dessa forma, outras
que não ligam e há os que se orgulham disso. Mas,
para ela, ser chamada de Cohabeira, ou se autointitular dessa forma, é algo indiferente, que não
62
Histórias de Cohabeiros
é pejorativo, mas que também não é um elogio.
“Não é o bairro que faz as pessoas. Cada um faz o
seu ambiente, o lugar não influência. Eu, por
exemplo, sou reservada, sou caseira, fico na minha
quietinha. Mas tem um monte de gente por aí que
não”, completa. Vestida com um conjunto de blusa
regata e calças pescador largas ao corpo e tecido
aparentemente bem fresco, na cor bege claro e com
estampa floral, Dona Marly diz que a única coisa
da Cohab que atualmente a incomoda é o movimento
de domingo no Barufi, local conhecido dessa forma
até os dias atuais devido a um antigo supermercado
que trazia essa nomenclatura e ficava na região.
“O som dos carros é muito alto, os funks tem umas
letras tão pesadas que não faz bem para as crianças
ouvirem, além do barulho das motos que ficam pra
cima e pra baixo. Mas é a juventude né? Fazer o
que?”, diz.
Conhecida por manter as unhas sempre bem
feitas, cuidadas e coloridas, Dona Marly no dia da
entrevista estava sem esmalte, mas com as unhas
compridas, sem cutícula e devidamente lixadas.
Vaidosa , conta que depois que se aposentou há 10
anos engordou em média um quilo por ano. Diz que
seu único medo hoje é da morte. “Quero viver mais
coisas, tenho muito que ver ainda. Quero ser igual
à minha mãe, que aos 83 anos já conhece os
tataranetos”, diz sorrindo e completa “Minha mãe
é interona pra idade dela. Quando saímos juntas
para ir aos médicos da vida, as pessoas perguntam
Renata Rocha
63
se ela é minha irmã!”. Quando fala a respeito de
si, Dona Marly diz que se considera uma pessoa
pegajosa, chata e terrível. “O que quero, quero ali
ó, certinho, consigo tudo do meu jeito. Não tombo
fácil! Tem horas que penso que vou entregar os
pontos, mas passa rapidinho. Sou uma mulher
valente e batalhadora, meu defeito talvez seja ser
perfeccionista demais”.
Finalizada a entrevista e enquanto nos
despedimos na cozinha, a fã de Roberto Carlos e
de música romântica, aponta para Nani, sua nova
cadela de estimação, e diz que a cachorrinha bege,
que vem da mistura de chiwawa com poodle, sente
ciúmes do vô, referindo-se a Seu Mané. “Eu estava
aqui tomando café hoje logo cedo, aí o vô veio atrás
de mim fazer massagem, porque eu não dormi bem
à noite e fiquei com dor nos ombros, acredita que
ela ficou com ciúmes e começou a latir sem parar?
Eu mereço viu!”, conta com brilho nos olhos e com
o sorriso de uma mulher apaixonada, que vê graça
na situação.
64
Histórias de Cohabeiros
Renata Rocha
65
“(...) Música para estar distante
Música para estourar falante
Música para tocar no estádio
Música para escutar rádio
Música para ouvir no dentista
Música para dançar na pista
Música para cantar no chuveiro
Música para ganhar dinheiro (...)
Música para ouvir
Música para ouvir
Música para ouvir”
Música para ouvir
(Arnaldo Antunes)
Dance and Fly
Para Wagner Garcia, mais conhecido como Fly,
apelido criado por amigos que o consideram muito
calmo e dizem que vive voando, o rapaz gostou da
idéia e o utiliza como nome profissional de DJ, o
Onde determina o Quem. “No meu caso influenciou,
pois a Cohab tem uma veia cultural e artística muito
forte, temos muitas coisas acontecendo por aqui
em todos os estilos de arte. Eu particularmente
me espelhei no Noel e no Jairinho, que em meados
de 86 montaram numa garagem um mini estúdio
que se tornou ponto de encontro de interessados
na cultura DJ. Deu muito certo até 1994, pois com
o surgimento de artistas do chamado estilo Pop,
como Daniela Mercury, Skank, Cidade Negra e
66
Histórias de Cohabeiros
Negritude Jr., a cultura de clubes teve uma
mudança forte e as grandes festas especializadas
em música eletrônica foram decaindo. Então Noel
e Jairinho tomaram rumos diferentes, ambos
atualmente tem suas profissões como qualquer
cidadão considerado normal, mas até hoje são
apaixonados pela arte DJ. Eu acompanhei tudo isso
de perto e paralelamente eu escrevi a minha
história no meio musical, com muitas influências
destes dois meninos. Hoje tenho muito orgulho e
alegria de uns sete anos para cá trabalhar com
eles em apresentações por aí e, principalmente,
por eles quinzenalmente darem som no Cassimira,
o meu Clube”, conta o Cohabeiro de nascença.
Fly descobriu a paixão pela música nos anos
80, quando colecionava discos e diz ter descoberto
a cultura DJ em 1992, quando então iniciou sua
carreira profissional discotecando por toda zona
oeste de São Paulo e conseguiu ao longo desses
anos se apresentar também em Minas Gerais, Rio
de Janeiro, Espírito Santo e Paraná. Há quase um
ano, em parceria com seu amigo e produtor Marcelo
Amaral, montou o Cassimira um local que o define
como “um mini clube especializado em música
eletrônica alternativa de boa qualidade, algo bem
underground, que surgiu devido ao cansaço de
produzir festas em espaços totalmente capitalistas”.
O local, que até então eram duas garagens do prédio
onde o DJ mora, fica com as portas viradas para a
rua e é dividido em duas partes, sendo que em
Renata Rocha
67
uma fica a pista de dança e no outra o barzinho.
Cada garagem mede 2,3m por 6m, ou seja, pouco
mais que 12 metros quadrados e a decoração de
ambos os ambientes, que têm as paredes vermelhas,
num tom quase vinho, é cheia de detalhes. Há um
lustre com fitas coloridas que são conhecidas como
pulseiras do senhor do bom fim; uma mascara
comprada em Manaus; uma tela com pinturas de
desenhos de negros trabalhando, que o sócio de
Fly ganhou de um amigo que foi para a África;
alguns piscas-piscas em formato de abacaxi; os
tecidos das banquetas são florais; na parede da
pista de dança tem um desenho de um alvo em
alto relevo, na cor preta; além do lagarto, símbolo
do Cassimira, feito de papel marche por um artesão
de Embu das Artes. Uma mistura de elementos
que juntos tem sintonia e colorem o ambiente. No
barzinho há uma prateleira com revistas e livros
comunitários, que tem sempre um exemplar do dia
do jornal Folha de S. Paulo e serve uma espécie de
mini biblioteca, que fica disponível para quem quiser
ler e se aprofundar no assunto música e cultura.
Nesse mesmo espaço o DJ e seu sócio também
comercializam CD´s de música eletrônica a custo
médio de R$15. “Vendo esses CD´s a preço de custo,
por pura ideologia. Compro na Under Ground
Records Brasil e vendo aqui pelo mesmo preço e
tenho até prejuízo, porque não calculo o preço da
gasolina pra ir buscar. Enchi a paciência do dono
da gravadora pra conseguir revender aqui, porque
68
Histórias de Cohabeiros
em lojas não custa menos que R$30. Aí quando
consegui pensei ‘meu Deus onde vou expor?’. Ah
fui correr atrás de onde”, conta. Os CD´s ficam
expostos num mostruário que foi um presente de
uma cabeleireira cujo salão fica ali próximo, cinco
garagens à frente que também serve de pontos
comerciais. “Aqui todo mundo se ajuda mesmo”,
enfatiza Fly ao contar que para conseguir essa
prateleira foi na farmácia, padaria, academia,
papelaria, pizzaria, mercearia e pet shop do bairro,
até que a Sandra, a dona do Salão de beleza, lhe
doou uma. Já a pista de dança tem luzes e mais
luzes, que dão o toque especial de discoteca, tecidos
com estampas de oncinha e também de estilo
psicodélicos, pufz coloridos e, claro, as aparelhagens
que tecnicamente são chamadas de pick-ups e
quando manipuladas pelos DJ’s dão o som. Quando
pergunto se Fly não considera o espaço muito
pequeno, o DJ o define como um lugar aconchegante
e afirma que a idéia do “clubinho” consiste mesmo
em que a curtição aconteça nas calçadas e na rua,
onde tem espaço pra todo mundo se divertir e ser
efetivamente o que acontece. É por isso que um
dos projetos de Fly se chama Dançando na Rua.
Cassimira, que aos finais de semana atende
em média 70 pessoas, quinzenalmente recebe DJ’s
convidados, além dos já residentes Noel, Jairo
Vendramini, Douglas, Robson, Marcelo S, Royal,
André Bacon e do próprio Fly, funciona de terça a
domingo, das 14 às 22h na Rua Belém. Orgulhoso,
Renata Rocha
69
o dono do clube cita os nomes dos Dj´s que já trouxe
até seu estabelecimento. “Já vieram aqui Renato
Lopes, Julião, Mimi, Mr. Gil, Bunnys, Cláudia Assef,
Daniel Cozta, Alessandra Soares, Gláucia++, Paula,
Carol Campos, Felício Marmitex, André Juliani,
Bruno Gouvêa, Pil Marques, Sub, Eric Kapri, Tigrão,
Ita, Ana Flávia, Benjamin Ferreira, Camilo Rocha
e Ton”, conta. Os estilos mais tocados no barzinho,
que não tem nenhum funcionário a não ser os
próprios donos, são House, Techno e Electro. Fly
conta que a inauguração da “pistinha de dança” foi
o dia em que sem dúvida Cassimira teve mais
movimento, pois participaram mais ou menos 100
pessoas.
Segundo a jornalista da revista DJMAG Brasil
e autora do livro Todo DJ já sambou, Claúdia Assef,
“a pesquisa musical é algo que é realmente levado
a sério pela turma do Cassimira. Além dos DJs
famosos que dão pinta por lá, um de seus
residentes, Jairo Vendramini, o Jairinho, é uma
verdadeira enciclopédia ambulante de música
eletrônica. O cara é o único moderador e editor
brasileiro do site Discogs, a maior base de dados
do planeta quando se fala em e-music. Ele está
entre as vinte pessoas que mais alimentam um
site no mundo. De residentes, aliás, o Cassimira
não está fraco. Outro talento que sempre toca por
lá é o DJ Robson, um dos maiores entendedores
de Detroit tecno do país”, afirma.
70
Histórias de Cohabeiros
Com ensino médio completo, o DJ cuida da
imagem de seu espaço com dedicação. Quando não
está atendendo aos clientes, Fly está dentro do
bar, sentado na cadeira e apoiado na mesa de metal
branca, tipicamente presente em bares, mas que
tem estampada a logomarca do Cassimira, assim
como em todas as outras, concentrado em seu note
book conversando com seus contatos via MSN,
acessando a comunidade do Cassimira no Orkut,
convidando mais pessoas a tornarem-se membros
e aceitando amigos, clientes e conhecidos em seu
perfil pessoal, que tem no mesmo site de
relacionamentos. Semanalmente o DJ envia e-mail
marketing, uma espécie de propaganda feita via
Internet que apresenta a agenda da semana do
Cassimira, para seu banco de endereços e afirma
atingir em média 5.000 pessoas. A escolha de um
lagarto como logomarca para o clube também foi do
Marcelo, o sócio, que segundo Fly deve ter algum
significado hytec. Ele, que por ser um dos donos do
“clubinho”, que já foi notícia de mídias como jornal
Folha de S.Paulo, O Estado de S. Paulo, Jornal da
Tarde, Revista DJ MAG Brasil e do site rraurl.com,
tem à disposição de quem o procura, releases a
respeito do Cassimira Clube e de sua carreira, que
conta sua trajetória de como passou de curioso à
DJ.
Aos 30 anos, cobiçado pelas mulheres que o
descrevem como um homem atraente, Fly, que a
todo momento durante a entrevista cita o nome da
Renata Rocha
71
namorada Juliana, diz que o melhor da Cohab é
existir muita gente, animação e solidariedade
entre as pessoas. “Veja se isso não é solidariedade,
as mesas e cadeiras do Cassimira estão na frente
dos outros comércios. Os vizinhos que ainda
utilizam as garagens como garagens não se
importam de eu deixar as mesas e cadeiras na
frente. Outro dia mesmo a delegada, que foi minha
amiga de infância, dona dessa garagem aqui.
Peguei ela na boa tirando as cadeiras da frente
para conseguir estacionar e quando fui ajudar ela
já estava devolvendo as cadeiras de onde tirou pra
guardar o carro. Vem me dizer que isso não é
solidariedade?” conta gesticulando e como se estive
ainda descrente do que havia visto. O DJ de 1,85m,
olhos verdes e português correto, lamenta o desdém
das autoridades perante a Cohab que não cuidam
das pessoas e diz que sob seu ponto de vista os
defeitos do bairro são a má conservação dos prédios
e o fato do bairro ser mau visto pelas pessoas que
moram em outros lugares, fora dali. “Ser Cohabeiro
é sim um elogio para mim, porque aqui cresci, esse
é o meu lugar, sou daqui e nunca tive vergonha de
dizer onde moro. Moro na Cohab, pois aqui tenho
condições de pagar as minhas contas. Agora, se eu
tivesse oportunidade de mudar eu mudaria
somente na hora certa, pois saberia que chegou o
momento de crescer para outros lados”, conclui ao
dizer que comparando o bairro nos dias atuais com
o que era há 20 anos atrás, hoje as pessoas tendem
72
Histórias de Cohabeiros
a ter mais cultura, pois antigamente cada um tinha
sua tribo e se restringia, mas atualmente percebe
a mudança desse cenário, levando em consideração
seu convívio com os moradores, segundo Fly, os
Cohabeiros estão mais abertos a outras culturas,
a adquirir outros conhecimentos. “Os três
sentimentos que tenho por esse lugar são amor,
orgulho e respeito , resolvi montar o meu barzinho
aqui para ser uma proposta diferente das 100 mil
já existentes”, finaliza.
Pergunto para Fly, que faz de seu
estabelecimento um projeto de vida e divulgar a
música eletrônica underground um sonho, por que
do nome Cassimira. Ele espontaneamente diz que
o barzinho chama-se dessa forma, pois quando saia
com um grande amigo chamado Alexandre, o colega
dizia que dentro das festas tornava-se Alessandra
Cassimira e como o DJ ria muito disso, resolveu
batizar seu estabelecimento assim, Cassimira. “Eu
e o Marcelo investimos R$15.000 no Cassimira. Já
faz quase um ano que o clubinho existe e ainda
não tivemos o retorno do investimento. Tudo foi
pago a vista, mas o estabelecimento tem que se
pagar certo? A sorte é que o Marcelo tem uma
carreira profissional fora, vive até viajando pelo país
e eu sou DJ, dou festa por aí, porque só daqui não
dá pra viver não” acrescenta. Quando fala a respeito
dele mesmo, algo raro, pois seu assunto predileto
é o Cassimira, se define como “um maluco que
nunca ligou para dinheiro, por isso é um duro,
Renata Rocha
73
apaixonado pela cultura DJ e como viu que nada
seria feito onde vive para desenvolvê-la, luta nos
últimos 15 anos para que isso aconteça”, diz com
gestos que legitimam e impõem sua fala. Fly afirma
ser muito chato, a ponto de acreditar piamente que
sofre de TOC, Transtorno Obsessivo Compulsivo,
terminologia que aprendeu com a namorada
Juliana que é Terapeuta Ocupacional. O DJ atribui
ao seu comportamento o fato de colocar ordem no
barzinho e, por isso, nunca ter passado alguma
situação de risco, confusão ou de medo no clube.
“Sou maluco por organização. Mas é loucura mesmo!
O computador tem que estar sempre retinho na
mesa , a pia do barzinho com tudo no lugar. É
loucura mesmo”, afirma dizendo que isso é algo
que já vem de família, pois sua mãe também é
assim.
Um homem, que afirma ter por defeitos
acreditar nas pessoas, querer ajudá-las e ser
sistemático demais, diz com prazer ser dono de
três
grandes
qualidades:
determinação,
determinação e determinação.
74
Histórias de Cohabeiros
Renata Rocha
75
“(...) Eu vou chegar
Pedir e agradecer
Pois a vitória de um homem
As vezes se esconde
Num gesto forte
Que só ele pode ver...
Eu sou guerreiro
Sou trabalhador
E todo dia vou encarar
Com fé em Deus
E na minha batalha (...)”
Lado B Lado A
(Marcelo Yuka / Falcão)
Edite. Sinônimo de labuta
Edite de Paula Lomeu é cafezeira no Ceagesp
há mais de 15 anos. Lá, local também conhecido
como Ceasa, além de café, vende chocolate quente,
leite, refrigerante, vários tipos de salgados, bolos,
tortas, entre outras coisas feitas por ela. Prestes a
se aposentar, sempre pagou INSS e acabou de entrar
com o pedido na Previdência, Edite deixa no Ceasa
o carrinho que é o seu ponto de venda e todos os
dias leva de sua casa os itens que põe à venda.
Para preparar os alimentos e bebidas, a cafezeira
levanta todos os dias às 4 h da manhã. “Deu a hora
eu levanto, pulo da cama e vou embora”, diz.
Atualmente é isenta da taxa de R$80 mensais que
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Histórias de Cohabeiros
o Ceasa cobra para manter os carrinhos lá dentro,
pois já tem mais de 60 anos e conta que existem
em média 200 cafezeiras no Ceagesp e as cinco
que trabalham nos mesmos três pavilhões que ela,
são suas amigas e todas se ajudam. “Quando o
freguês pede alguma coisa que alguém não tem,
uma empresta pra outra”, conta. Edite faz questão
de dizer que em sua banca tudo é “bem fresquinho”
e vende 100% dos produtos diariamente. “Como já
tenho cliente fixo deixo mais ou menos uns R$50
por dia com coisas que vendo fiado e levo R$50 pra
casa, dos R$100 que tiro”, esclarece.
Apaixonada pelo trabalho, Edite diz que ama
o que faz e que se diverte muito enquanto trabalha.
Conta que constantemente é assediada pelos novos
clientes e antigos amigos do Ceasa, mas que tudo
não passa de brincadeira e quando percebe que
tem alguém falando sério não pensa duas vezes e
diz “nem te conheço cara, sai fora!”, conta rindo
com o rosto corado. Edite lembra-se de uma única
vez em que um amigo ficou fazendo gracinhas e
como ela não estava gostando pediu para ele parar
e o sujeito não se tocava e continuava fazendo
piadinhas. “Não deu outra, quebrei uma garrafa de
vidro na cabeça do homem. Eu avisei antes para
ele parar, ele não parou, pronto levou na testa.
Mas isso já passou já, hoje em dia a gente até se
fala normal, fizemos as pazes. Eu falo sempre sou
pequena mas valho mais que um grandão”, conta
as gargalhadas.
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A cafezeira toma ônibus todos os dias às 5h45,
para chegar o mais cedo possível ao trabalho. Nesse
horário o dia está começando a clarear e, por isso,
diz ter medo de ficar no ponto de ônibus sozinha.
“Os nóinhas que tão na rua até essa hora falam
‘pode passar tia a gente não vai fazer nada não’,
mas mesmo assim fico com medo”, comenta
escondendo o rosto com as duas mãos e continua
“Já fui assaltada uma vez logo cedo, ai credo! Tenho
muito medo de ladrão e por isso chego no ponto
bem na hora que o ônibus passa”, conta. Edite se
recorda de certa vez ter presenciado um tiroteio
em frente ao Ceasa que teve que passar com todas
as sacolas por debaixo do portão do Ceagesp, porque
estava fechado. “Fiquei desesperada, credo!”, diz
demonstrando repulsa.
A mineira mudou para a Cohab há 19 anos e
mora há 14 no mesmo apartamento que, será seu
no próximo ano quando terminar de pagá-lo. Edite
saiu de sua terra natal com dois de seus três filhos,
quando descobriu que o marido a traía. O outro
filho, que já era maior de idade, não quis vir para
São Paulo e optou por ficar com o pai, que assumiu
a amante com a qual vive até hoje. Esbanjando
alto astral, a cafezeira afirma gostar de movimento,
de gente e adorar fazer muitas coisas para progredir
sempre. “Quando era casada o meu marido não
me deixava fazer nada e eu vivia doente. Hoje em
dia sou livre, ando muito pra cima e pra baixo e
nem gripe eu tenho. Pago todas minhas contas e
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Histórias de Cohabeiros
mantenho minha casa. Chego em casa por volta do
meio dia, limpo tudo, faço mercado e ainda tem o
Jorge”, diz. Edite considera sua relação com os
vizinhos muito boa, tem amizade com todo mundo
e diz ficar na sua e não fazer fofoca de ninguém.
Ela que adora ouvir música popular diz ser fã da
Cohab. “A Cohab é uma beleza! Não precisa mudar
em nada, pois ta sempre melhorando. Daqui eu
não saio nunca mais!”, diz.
Jorge é o neto de Edite, filho de Mônica, a
única filha mulher da cafezeira. Filho de pais
separados desde que nasceu, mora na Cohab com
a mãe e com a avó. Há pouco tempo a mãe de Jorge
mudou-se para São Matheus com o atual marido e
com a filha mais nova Munieli, de 06 anos, e Jorge
preferiu ficar com a avó. Edite diz que ele é o seu
companheiro. “Eu falo para ele “mas Jorge ela é a
sua mãe” e ele vai visitá-la mas sempre volta,
dizendo que sua casa é aqui”, conta. A respeito do
pai de Jorge a cafezeira não se contém e diz: “o pai
do Jorge é um safado que não ta pagando pensão.
A mãe dele já entrou na justiça porque o menino
quer fazer faculdade ano que vem e vai precisar da
ajuda do pai”. Pergunto qual faculdade Jorge quer
cursar e Edite com olhar orgulhoso e sorriso ainda
mais largo que o habitual diz que não sabe direito
o nome, não se recorda bem, mas ele quer trabalhar
na bolsa de valores.
A Vó do Jorge, como Edite é conhecida no
prédio onde mora, é uma senhora animada e
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sorridente, que usa óculos arredondados, tem
cabelos curtos, bem enrolados, quase crespos, na
metade da orelha e tingidos de preto. Ela que se
veste com roupas consideradas jovens, como
vestidos de alça, e por gostar de bijuterias usa
normalmente em média três anéis prateados na
mesma mão, freqüenta bailes dançantes e namora
há 15 anos com Gilberto. “Chamo ele de meu
ficante”, conta rindo e explica-se com o rosto
envergonhado “falo isso porque cada um mora na
sua casa”. Aos 65 anos e seus 1,40m de altura,
Edite se considera uma mulher dinâmica, e como
ela mesma diz “pra frente”, tanto que afirma dar
bronca nos amigos mais parados. “A Margarida
mesmo, que é minha amiga desde que mudei para
São Paulo, vivo falando pra ela esquecer os
problemas, uma mulher batalhadora que formou
todos os filhos na faculdade, agora fica se queixando
por coisinhas, ah não! Falo pra ela deixa pra lá
Margarida, a vida é assim mesmo e o melhor que
você tem pra fazer é esquecer e agradecer a Deus
isso sim!”, conta.
Pergunto para Edite se essa felicidade e
vontade de viver que faz questão de esbanjar é
permanente, ou se há algo que a entristeça. A
cafezeira se cala por um instante, desvia o olhar
para o chão e diz que não, as lembranças de seu
filho caçula ainda mexem muito com ela. Há 13
anos, numa tarde de 1º de abril, Edite acordou
agoniada, com mau pressentimento e aperto no
coração, mas resolveu deixar pra lá. Ao voltar do
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Histórias de Cohabeiros
trabalho, o filho de 17 anos comentou que havia
vendido a bicicleta e entregou o dinheiro para a
cafezeira. Disse que naquele dia não queria almoçar
em casa e preferiu ir à tia que morava ali perto na
Cohab V. No caminho queria aproveitar para
entregar a bicicleta ao rapaz que havia comprado e
para chegar mais rápido pegou rabeira num
caminhão. Depois disso Edite nunca mais viu seu
filho vivo. Ele foi atropelado e morreu na hora.
“Desde pequeno quando ele nasceu parecia que
não iria ficar nesse mundo. É tão esquisito, minha
filha sempre foi baladeira, o meu outro filho que
mora em Minas sempre andou de moto pra cima e
para baixo. Ele que vivia dentro de casa comigo, foi
primeiro”, conta com a cabeça fazendo sinal
negativo e com a mão direita no peito. Depois de
perder o filho, Edite mudou-se do prédio em que
morava, pois constantemente passava em frente
ao local do acidente e isso lhe fazia muito mal,
tanto que até hoje diz desviar desse caminho, pois
não gosta de passar por ali e foge da lembrança.
Subitamente volta a estampar o sorriso no rosto e
diz “Mas essa é a única coisa ruim que me recordo,
o resto aqui é tudo bom! Tenho muita fé e Deus me
ajuda muito. Foi ele quem me tirou toda a tristeza
do meu coração”, diz.
Edite, deriva do anglo-saxão Eadgyth. ‘Gyth’
é combate e ‘ead’ pelas riquezas. E essa é a Edite,
a Vó do Jorge, que assim como o significado de seu
nome é sinônimo de labuta para os que a conhecem
e a admiram.
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Histórias de Cohabeiros
“Eu sei que tenho muitas garotas
Todas gamadinhas por mim
E todo dia é uma agonia
Não posso mais andar na rua, é o fim (...)
Sei de muito broto
Que anda louco
Pra dar uma bitoca ni mim (...)
Eu era neném
Não tinha talco
Mamãe passou açúcar em mim”
Mamãe passou açúcar em mim
(Wilson Simonal)
O fantástico mundo de Bob
Onde quer que vá na Cohab Bob é conhecido
por ser um tirador de sarro de primeira e fazer
amizade rápido. Conhece as pessoas pelos nomes,
quando não, dá apelidos para facilitar na
memorização e não esquecer quem são elas.
Também é natural de Bob querer sempre ajudar as
pessoas, seus vizinhos e amigos cohabeiros. Ajuda
desde a Dona Joana, sua vizinha de escada que
praticamente o viu nascer, a levar as sacolas com
as compras feitas no mercado do bairro, aos amigos
de boteco, que embebedados não conseguem se quer
chegar em casa sozinhos. “A Dona Joana me adora,
porque onde vejo ela pego as coisas pra ajudar a
subir a rua e as escadas. Aí ela pra me agradar faz
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alguma coisa gostosa na casa dela e vai lá em casa
levar pra mim experimentar”, conta todo sorridente.
Com ensino fundamental completo, solteiro e aos
21 anos, Bob adora dançar forró universitário e
“catar a mulherada”, como mesmo diz. “Eu sou
muito sacana, qualquer dia vou apanhar na rua
por pegar mulher dos outros. Tenho açúcar, minha
mãe em vez de colocar talco na minha fralda
colocava açúcar. Sou muito tranqueira”, afirma ao
dizer que a barriguinha sobressalente faz muito
sucesso por aí.
Seu nome de registro, que não é utilizado nem
em ambiente de trabalho, pois profissionalmente
também é chamado por Bob, é Henrique Lima de
Araújo. Lembra-se que ganhou o apelido em 1995,
quando tinha nove anos, de dois amigos mais velhos
que na época moravam no mesmo prédio, por causa
de um desenho chamado ‘O Fantástico Mundo de
Bobby’, em que o garoto protagonista “era cabeçudo
e vivia viajando na maionese”, e, por isso, tinha
tudo haver com o ele, o até então Henrique. Bob
conta que no começo eu não gostava da brincadeira,
ficava bravo e irritado e chegou até a chorar de
raiva por causa da gozação dos amigos, mas que
com o passar do tempo não ligou mais, tanto que
traz o apelido consigo até hoje e se apresenta dessa
forma “oi, prazer eu sou o Bob”.
Assim como ele faz piadas o tempo todo com
as características pessoais dos conhecidos, mexe
com todos que passam na rua, cumprimentando
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Histórias de Cohabeiros
sempre com comentários engraçados, os amigos de
Bob também não deixam passar uma oportunidade
se quer para fazer graça com ele. “Ah é um zuando
o outro. Tem uns nego aí que pra zuar me chamam
de Cirrose, porque vivo com cara de ressaca e fico
no bar da Dona Rosa de terça a sábado, porque de
domingo e segunda não bebo, ou me chamam de
costeleta, porque uso costeleta comprida. Ah e
outros me chamam de RQ, por causa do sotaque do
nordeste da minha mãe, quando me grita no prédio
pra me chamar, porque não parece que ela fala
Henrique, mas RQ”, acrescenta.
Bob vem de uma educação rigorosa em que
tinha horário pra tudo: para voltar da rua, para
almoçar, jantar, estudar e tomar banho. Os três
filhos de Maria, Ednilson, Erica e Henrique, foram
criados somente por ela, pois o gestor da família,
Edílson Alves de Araújo, faleceu de derrame aos
36 anos, quando Ednilson tinha 10 anos, Erica 5 e
Henrique 10 meses de vida. Sozinha, a dona de
casa mora com os filhos e neto, filho de Erica, no
apartamento que herdou do marido e mantém a
família com a pensão que ganha até os dias atuais.
Em tom de piada, Bob diz que “a pensão é bem
gorda viu, tanto que minha mãe sustenta três filhos
desempregados” ao afirmar que se o pai, que só
conhece por foto e o chamava de pica pau por causa
do cabelo espetado que tinha quando bebê, ainda
estivesse vivo, com certeza já não estariam mais
morando na Cohab, já teriam mudado. “Meu pai
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trabalhava na Ericson e ganhava maior bem. Ele
não gostava da Cohab e só veio pra cá porque foi
aqui que na época tinha condições de comprar, mas
com certeza teríamos mudado daqui se ele ainda
fosse vivo”, reforça. Até os 16 anos era da religião
Testemunha de Jeová, também seguida por sua mãe
e irmãos, e circulava pelo bairro sempre de social
e com uma pasta preta nas mãos. Deixou a religião,
pois segundo ele começou a “fazer coisa errada,
pegar a mulherada, as fixas e as reservas né?
Comecei a sair, beber e fumar cigarro, essas coisas
do mundo aí”. Em sua página pessoal no site de
relacionamentos orkut, Bob se diz ateu, mas
durante a entrevista afirmou ser cristão, acreditar
em Deus e saber que ele existe e que diz que é
ateu, pois não gosta de discutir religião e “pra
ninguém ficar enchendo o saco. Odeio quando ficam
dizendo ‘Jesus te ama’, ‘Jesus te ama’, isso é uma
coisa tão óbvia que todo mundo sabe, não precisa
ficar repetindo. Os caras nem conhecem a bíblia
direito e vêm querer dar um bom. Não gosto disso,
mando logo a merda”, desabafa.
Mesmo com a educação rígida da mãe, Bob
durante a infância adorava aprontar e fazer arte
com uma vizinha em específico. “Era legal zuar com
ela porque ela veio da Bahia e era engraçado ouvir
ela xingando ‘seus filho de uma rapariga’. Eu e os
moleque amarava o trinco da porta dela, tocava a
campainha e saia correndo. Ela tentava abrir e não
conseguia porque tava amarrado”, diz às
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Histórias de Cohabeiros
gargalhadas e completa “a gente fazia isso direto
com ela. Até bombinha na porta dela eu jogava”,
relembra. Bob só podia brincar no prédio até às 7
da noite. Dava esse horário Maria, a mãe dele,
chamava gritando da porta de seu apartamento ‘RQ’,
assim como contam os amigos de Bob. Ele subia as
escadas chorando, pois mora no último andar,
porque queria continuar brincando com as outras
crianças, mas mesmo não querendo ir pra casa,
não tinha jeito, ia para não desobedecer a mãe.
“Eu era muito chorão, mas não coloca isso aí
hein?”, adverte pedindo para que eu omita esse
detalhe de sua história. O respeito do gozador, que
não tira boné da cabeça, por sua mãe ainda é tão
grande que nem gírias fala na frente dela. “Minha
mãe me dá bronca todo dia. Quando to em casa ela
diz que to preguiçoso e quando to na rua ela diz
que sou rueiro demais. Ela não decide, mas eu
não ligo não, eu respeito”, conta rindo e dizendo
que Maria se diverte com ele, com as brincadeiras
e piadas do filho, mas que mesmo assim ‘puxa a
orelha’ sempre.
Bob, que já foi atendente de crédito,
assistente administrativo e corretor de imóveis por
uma semana, atualmente está desempregado, mas
usufruindo seguro desemprego do último trabalho
que teve, cujo benefício vai até metade do próximo
ano. “Não peço dinheiro pra minha mãe pra sair ou
pra comprar cigarro, faço minhas mutretas”,
esclarece. Ele, que usa na mesma mão três anéis
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pretos feitos de coquinho, uma espécie de madeira,
diz que o maior sonho de sua vida e o seu objetivo
atual é virar político. “Todo mundo quando
perguntava o que eu queria ser quando crescesse
eu dizia que queria ser político, é um sonho desde
pequeno” reforça. Atualmente é presidente da ala
jovem de um partido e se reúne todos os dias com
os membros da equipe para discutirem a campanha
e os projetos para o próximo ano. Conta que as
reuniões são de certa forma secretas, para não
chamar atenção de outros partidos e pretende
começar sua carreira na política como assessor do
atual candidato pra prefeito do partido do qual é
filiado. “Daqui a quatro anos vou ser vereador eleito
pela Cohab, depois vou ser prefeito de Carapicuíba,
depois deputado estadual, para então ser deputado
federal e finalmente chegar na presidência da
república. Já vou cortar meu dedo e deixar a barba
crescer, se você quiser inclusive te arrumo emprego
em uma grande emissora de TV até, olha? Vote no
Bob”, diz em tom sarcástico comparando-se com o
Presidente da República Luis Inácio Lula da Silva,
rindo como se tudo o que dissera fosse algo simples
e já determinado, certo de que irá acontecer e
acrescenta que “isso é política. Acordos e mais
acordos entre cavalheiros. Você aprova o meu que
eu aprovo o seu e assim vai. O duro é precisar
apoiar um negócio ruim, aí ninguém merece”.
Planos para Cohab para quando for candidato a
vereador, Bob tem aos montes, fala de melhorar os
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Histórias de Cohabeiros
postos de saúde para ficarem com atendimento
descente, reclama da falta investimento na infra
estrutura do bairro, quer pleitear a construção de
áreas recreativas ou empresas nos terrenos vazios
que ainda existem na Cohab, mas deixa claro que
tudo isso não depende só dele, pois vai depender
dos apoios que conseguir na câmara ao longo de
seu mandato. O futuro político diz que os moradores
do bairro são muito hospitaleiros, que recebem bem
todo mundo e que a Cohab é um bom lugar de se
morar, mesmo não tendo o lado negativo “os prédios
são horríveis, mais parecem ninhos, as ruas são
destruídas, fora que não tem balada pra gente. O
movimento de domingo então, com aquele monte
de carro com som ligado, bicicleta e moto pra cima
pra baixo, é coisa de viado que não vai catar mulher
e fica impinando moto. É uma droga e pura falta de
educação”, afirma incisivo. Mesmo considerando
esses fatores, Bob diz que não muda da Cohab de
jeito nenhum, porque gosta do lugar e pronto. “Só
saio daqui se engravidar alguém e precisar me
esconder. Até quando eu for Presidente da
República vou morar aqui, vou comprar cinco
apartamentos, emendar um no outro, fazer uma
cobertura e colocar uns cinco seguranças na porta
pra ficar de boa”, diz às gargalhadas.
Para o cohabeiro o bairro mudou muito nos
últimos anos. “Na verdade mudou tudo na Cohab,
mas acho que o que ta pior é a bandidagem aí, mas
o prédio está a mesma coisa, as brigas de vizinhos
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continuam, o barulho, tudo igual, isso acho que
não muda nunca não”, diz. Ele, que considera se
auto-analisar e dizer quais são seus defeitos e
qualidades coisa de gay, ao perguntar qual seu
maior medo, diz de cara que não tem nenhum, nem
da morte. Mas, de repente faz uma pausa, pára,
pensa, faz cara de quem está se concentrando e
refaz a resposta. “Na verdade tenho medo de umas
coisas aí. Tenho medo de dirigir, sou uma lesma
no volante porque tenho medo de acidente de carro,
tanto que nem carta de motorista tirei ainda e não
gosto de andar com quem dirige correndo. Eu sou
claustrofóbico também, não consigo me imaginar
preso, até no banheiro tenho medo, cago de porta
aberta”, conta escondendo o constrangimento de
admitir ter medo através do tom humorístico quando
conta detalhes de como faz suas necessidades
fisiológicas.
Bob não acredita em destino, pois diz que
“quem tem destino é ônibus. A gente faz o que quer
e o que bem entende com a nossa vida. Agora em
missão eu acredito, cada um vem pra Terra pra
cumprir alguma coisa, mas em destino eu não
acredito mesmo”, mas acredita que o onde
influencia o quem, porque segundo ele se a pessoa
vive num ambiente em que o pensamento é
pequeno, essa pessoa tem a forte tendência de
também ter a mente curta, se não se esforçar para
sair do seu mundinho. Para ele ser cohabeiro é
sinônimo de “um povo pobre, que gosta de uma briga,
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Histórias de Cohabeiros
é tudo meio doido e adora um fuxico, mas que tem
lá suas exceções, que depende de cada um. Mas
ainda acho que de cohabeiro e médico todo mundo
tem um pouco”, brinca ao dizer que mesmo quando
está na balada não esconde das garotas que mora
na Cohab. “Eu sou cohabeiro mesmo e não tenho
vergonha de falar não. Tenho uns amigos aí que
falam pras menininhas que são de Osasco. Eu não,
chego na mina de boa, sou assim mesmo, moro na
Cohab mesmo e digo ‘chega aí vem ver o que é
bom’, to acostumado a ser chamado de cohabeiro”.
Esse é o fantástico mundo de Bob. Não do
Bobby do desenho, cuja grafia é com duas letras b
e uma letra y, mas, sim, do Bob da vida real.
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Histórias de Cohabeiros
“(...) Não tem dó no peito
não tem jeito
não tem ninguém que mereça
não tem coração que esqueça
não tem pé não tem cabeça
não dá pé não é direito
não foi nada, eu não fiz nada disso
e você fez um bicho de sete cabeças
Bicho de sete cabeças, bicho de sete cabeças
Bicho de sete cabeças”
Bicho de sete cabeças
(Geraldo Azevedo)
Não sou Nhaca, sou Evanildo
Se você perguntar por Evanildo provavelmente
ninguém vai saber lhe dizer quem é ele, o que faz
exatamente e em qual prédio da Cohab mora. Mas,
se perguntar por Nhaca, aí sim conseguirá chegar
até ele. Evanildo Emídio da Silva e Nhaca são a
mesma pessoa. Um homem negro de 1,80m, olhos
grandes e pretos, com dentes amarelos, isso é, os
que ainda lhe restam tem essa coloração,
vestimenta constantemente simples e surrada, de
fala lenta e andar cansado. É cohabeiro há mais
de 20 anos, quase a metade de sua vida, e é uma
pessoa muito conhecida no bairro por fazer bicos
de serviços manuais como pedreiro e pintor. Mas
sua profissão, que levanta as sete da manhã
diariamente pra exercer, é carroceiro.
Renata Rocha
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Nhaca, quer dizer, Evanildo, foi alcoólatra
durante toda a vida e parou com o vício a menos de
um ano, pois por problemas de saúde precisou tomar
remédio para largar a bebida, do contrário, segundo
os médicos que o atenderam, morreria. O apelido
que lhe foi dado por amigos de bar, hoje já não é
aceito por ele, que faz questão de corrigir quem
quer que seja que lhe chame dessa forma. Quando
o procurei para pedir-lhe a entrevista só o conhecia
pelo apelido de Nhaca, assim como todos seus
vizinhos e amigos com os quais conversei, e, por
isso, não o chamei pelo nome. Logo no início fui
corrigida. “Com certeza a gente conversa sim. Pode
ser sexta-feira? Porque hoje tenho um serviço ali
no prédio da frente, tenho que tirar uns entulhos.
Mas só uma coisa: quem te disse que meu nome é
Nhaca? Meu nome não é esse não, me chamo
Evanildo Emídio da Silva”, corrigiu-me sem titubear.
Parar de ser chamado pelo apelido tornou-se
para Evanildo um símbolo, um marco que legitima
o antes e depois do vício. “Nhaca é de pessoa fedida,
que anda com roupa suja, que não toma banho e
tem falta de higiene. Pô pega mal né? Comecei a
ser chamado desse jeito quando eu ainda tomava
uma branquinha, né, mas hoje não sinto nem o
cheiro graças a Deus. Se a pessoa me chama assim,
chego e falo que eu tenho nome, meu nome é
Evanildo”, conta com a fala mansa e gesticular
lento, maneira essa que causa a ligeira impressão
de ter sido herdada pela falecida bebida como
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Histórias de Cohabeiros
conseqüência do vício de muito anos. O carroceiro
diz ainda ter muita amizade no bairro, e que agora
que parou de beber é mais respeitado e ganhou
novos amigos. “As pessoas tem muita consideração
por mim”, diz orgulhoso.
Na adolescência Evanildo trabalhou em uma
empresa de grande porte como auxiliar de
armazém, mas por não ter se adaptado ao serviço
ficou somente por uma semana. Desde então
passou a fazer bicos, fazendo pintura, carregando
entulho, recolhendo materiais recicláveis como
alumínio, ferro, papelão, vidro e vendendo tudo para
o ferro velho. Não sabe precisar ao certo qual sua
renda mensal, mas diz cobrar por bico, que não são
constantes, em média R$30 e quando é trabalho
mais demorado, que leva o dia todo, cobra entre
R$50 e R$ 60. “Quando não tem serviço fico sentado
no portão do prédio da frente e as pessoas me vêem
ali e chamam pra fazer serviço. É só chamar que
eu vou”, conta animado com sorriso no rosto fazendo
sinal afirmativo, com a cabeça para cima e para
baixo, quando acrescenta uma observação “Só não
mexo com elétrica, porque não conheço direito como
funciona e tenho medo de choque”.
Evanildo é um homem solteiro, tem somente
a primeira série e divide o apartamento de 42m²,
herdado dos pais, com quatro dos sete irmãos, os
demais assim como seu pai e sua mãe, já são
falecidos. O lar onde vive é bem simples, assim
como seus moradores. O chão é de cimento batido
Renata Rocha
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na cor vermelha; as portas e janelas são as originais
da Cohab, ou seja, nunca foram trocadas como
quase 100% dos demais apartamentos; as paredes
com falta de tinta mostram o sinal do tempo; os
dois quartos não têm portas que o separem da sala,
mas sim cortinas feitas de penduricalhos de
madeira.
Falar da família faz com que o carroceiro
fique monossilábico, limitando-se a dizer que a
saudade é grande e que as lembranças são
constantes. Lembrar da infância parece lhe trazer
dificuldades de memória, demonstra perder o
raciocínio, pensar, pensar e pensar até conseguir
comentar “eu empinava pipa quando era criança,
mas tem um monte de marmanjão aí que fica o dia
inteiro fazendo isso. Isso é coisa de criança. É, mas
tem outro lado também, o desemprego ta bravo né?”,
conclui por si só.
Para Evanildo a Cohab está piorando a cada
dia, pois segundo ele o bairro tem muito barulho,
muita briga e muita confusão. “O que a Cohab tem
de ruim são os vizinhos que enchem o saco viu.
Um cuida da vida do outro, fica fazendo fofoca aí e
cuidar da vida deles que é bom mesmo, nada. E
isso é a maioria dos vizinhos viu?”, diz. Mesmo
achando isso, o católico que usa um anel dourado,
como se fosse uma aliança de casamento com os
dizeres Deus é fiel e que nitidamente é uma
bijuteria, diz ser cohabeiro com muito orgulho. “Ser
cohabeiro pra mim é um elogio. Eu sou com muita
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Histórias de Cohabeiros
honra”, conta ao dizer de pronto na seqüência que
para ele o onde determina o quem, mas que “se
bem que isso depende do modo da pessoa”.
Atualmente Evanildo, com marcas de
expressão que lhe dão ares de pessoa sofrida,
considera-se muito feliz, mais do que foi no
passado. Isso claramente porque parou de beber e
deixou de ser o Nhaca. Ele que acredita em destino
“tá bom na hora, mas depois a gente não sabe”,
não sabe ao certo quais são suas qualidades e
defeitos “isso eu não sei te responder”, não tem
expectativas para o futuro “vamos ver como vai ficar
daqui pra frente”, simplesmente leva um dia após
o outro.
Enquanto
agradeço
Evanildo
pela
receptividade, já na porta de sua casa que fica no
último andar do prédio, o sobrinho que também mora
com ele, sobe as escadas correndo e gritando
“Nhaca, Nhaca tem um monte de papelão lá em
baixo no prédio, na entrada ali, vai lá pegar se não
alguém vai jogar fora”. O carroceiro como se nada
estivesse acontecendo ignora a frase do sobrinho,
como se o garoto que aparenta ter seis anos de
idade não tivesse dito nada, ou melhor, como se o
Nhaca não fosse ele, ou simplesmente não
estivesse ali, se despede e entra no apartamento
de número 47.
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Histórias de Cohabeiros
“(...) Pai!
Pode crer, eu tô bem
Eu vou indo
Tô tentando, vivendo e pedindo
Com loucura prá você renascer (...)
Pai!
Você foi meu herói meu bandido
Hoje é mais
Muito mais que um amigo
Nem você nem ninguém tá sozinho
Você faz parte desse caminho
Que hoje eu sigo em paz
Pai! Paz!”
Pai
(Fabio Junior)
Meu pai, meu ídolo
Valter Aparecido Nunes é filho de Lauro Pedro
Nunes e Aparecida Campos Nunes. Conhecido no
bairro como Valtinho, aos 49 anos é dono da Spézia,
uma pizzaria movimentada de música ao vivo, que
fica à margem da Cohab II, e aos finais de semana
é ponto de encontro de cohabeiros de várias idades,
tanto que entre de sexta e domingo recebe em
média 500 pessoas por dia, a maioria do bairro. O
empresário tem o estabelecimento há 15 anos, cujo
nome é igual ao de uma cidade da Itália, e derivou
da lanchonete que foi herdada do pai e ficava
instalada na mesma região que a pizzaria fica hoje.
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Para Valtinho falar do pai é sempre motivo
de emoção. Esteja onde estiver, seja com quem
for, as lágrimas surgem e insistem em ficar até
que o assunto seja outro. A voz embarga e as
brincadeiras constantes desaparecem. Mesmo
durante o churrasco com os amigos, cerveja, música
e alegria. Isso porque o pai de Valtinho e de mais
outros quatro filhos, Claudimir, Cleonice, Norma e
Celma, sempre foi exemplo para os demais, sejam
eles amigos ou parentes, pela vida de luta que levara
e exemplos que dera. Lauro deixou muitas
saudades, não só por ter falecido ainda muito
jovem, mas principalmente pela morte trágica que
teve.
Há 27 anos, durante a construção da Avenida
Brasil, localizada na Cohab II, e para a construção
dos prédios dessa região, houve a necessidade
implodir uma pedreira para tornar possível o início
das obras. Na época a família de Valtinho morava
numa casa do bairro que tinha a varanda voltada
justamente para essa pedreira. Próximo dali, Lauro,
o pai de Valtinho, tinha uma criação de porcos,
que diariamente tratava, nos mesmos horários e
da mesma maneira costumeira. No dia 30 de agosto
de 1980 toda vizinhança ouviu o som de alarmes
ressoando aos quatro cantos, mas ninguém
entendeu ao certo o porque das sirenes, mesmo
sabendo que uma hora ou outra a implosão
aconteceria, a área não estava isolada naquele dia
como deveria estar. De casa Valtinho assistiu com
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Histórias de Cohabeiros
desespero o momento exato da morte de seu pai.
Ao implodirem a pedreira uma pedra voou muito
alto, com uma distância longa de uma ponta a
outra, e acertou justamente a cabeça de Lauro que
morreu na hora.
Limpando as lágrimas e sem conseguir falar
direito, Valtinho entristece ao dizer que “foi uma
fatalidade. Do telhado vi tudo, meu pai todo sujo,
foi chocante. O pai foi um exemplo, ensinou muitas
coisas pra nós e ter perdido ele assim desse jeito
foi realmente uma grande perda. Só quem passa
por isso sabe, consegue medir o tamanho da dor”,
conta demonstrando até hoje não aceitar o ocorrido.
Quando pergunto quais foram as medidas que a
família tomou, se processou a empreiteira
responsável, se recebeu alguma indenização, o
empresário é enfático ao dizer que isso é o de menos
e foi o de menos, que não há dinheiro no mundo
que pague a ausência do pai. “Na época até
ganhamos uma merreca, mas deixamos pra lá, mas
o certo mesmo seria minha mãe receber uma
pensão até hoje, afinal ficou viúva, sozinha com
quatro filhos pra criar”, conclui ao dizer que o pai
era uma pessoa muito conhecida e queria, tanto
que no dia do enterro tinha um comboio de carros
de tanta gente que foi se despedir de Lauro. “Ele
ainda faz muita falta, muita coisa teria sido
diferente se ele estive ainda com a gente”,
desabafa.
Renata Rocha
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Diariamente Valtinho passa em frente ao local
que Lauro, seu pai, morreu, pois seu comércio fica
bem próximo dali e o apartamento onde mora
também. O empresário, durante a entrevista que
aconteceu numa festa de aniversário de dois de
seus funcionários, que moram ao lado da pizzaria,
afirma ter se habituado a lidar com as lembranças
e ausência do pai, e, por isso, gosta do bairro,
mesmo não enxergando nenhuma qualidade na
Cohab. Ao dizer isso, que não vê nada de bom no
bairro, é corrigido por uma amiga que ouvia a
entrevista da sala, mesmo com o som alto tocando,
e gritou “nenhuma qualidade? e os clientes?”,
automaticamente Valtinho concerta “é verdade, o
que a Cohab tem de melhor são os clientes. Os
clientes e os amigos, é claro, como pude me
esquecer”, reforça com toque de humor. “Mas tem
o lado ruim também. Existe muita fofoca, muito
barulho, a falta de cuidado e o relaxo também. Meu
prédio, por exemplo, acho que nunca foi pintado
desde que foi construído”, conta.
Ar jovial, apesar dos cabelos grisalhos,
Valtinho é um comerciante bem sucedido, dono de
uma caminhonete importada, cujo valor daria para
comprar no mínimo uns três apartamentos no
bairro. Ainda assim diz não trocar a Cohab por nada,
apesar dos pesares. “As pessoas ficam surpresas
quando falo que moro na Cohab, acham que eu
deveria morar em outro lugar só porque sou dono
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Histórias de Cohabeiros
da pizzaria, tenho dinheiro, essas coisas. Eu não,
eu gosto daqui, meus amigos estão aqui, aqui
conheço todo mundo, todo mundo me conhece e
pronto. Moro aqui e não tenho vergonha de dizer
isso, falo pra todo mundo, pra quem quiser ouvir”.
Nesse momento volta ser a figura conhecida pelos
cohabeiros, volta a ser o Valtinho de sempre,
deixando de lado as memórias e saudades do pai
que a pouco emocionava-se em dizer, gesticulando,
sorrindo e fazendo piadas e brincadeiras como é
de costume “vai uma cervejinha aí?”.
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Retratos da Cohab
Vista da Cohab V
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Geral da Cohab II
Prédios da Cohab I com varáis nas janelas
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Fachada de prédio da Cohab II localizado na Rua Salvador
Prédio da Cohab I que nunca foi pintado desde a fundação
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Praça Presidente Castelo Branco
Busto do Presidente Castelo Branco
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Histórias de Cohabeiros
Movimento na Rua Manaus aos domingos
O local também é conhecido como Barufi
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A polícia faz ronda durante o movimento existente aos domingos
É um corre corre mas o movimento volta quando a PM se retira
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Histórias de Cohabeiros
Fachada do Posto de Saúde da Cohab II
Lateral do Postinho, nome pelo qual é conhecido
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Posto de Saúde da Cohab V
Fachada do postinho, cuja especialidade é consultas
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Histórias de Cohabeiros
Hospital Público Sanatorinhos que fica instalado no bairro
A lanchonete citada na música Cohab Citi de Neto de Paula
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Placa de divulgação de preços de trajeto de táxi
Área de recreação no Parque dos Paturis, conhecido como Km 21
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Histórias de Cohabeiros
Praça da Árvore na Cohab V
Posto policial
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Começo da feira da Cohab V
Final da feira da Cohab V
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Escola Didita Cardoso Alves
Escola Manoel da Conceição Santos
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Entrada lateral da “ Manoel”
Grafitagem nos muros da Rua Uberlândia
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Bibliografia
HOUAISS, Instituto Antônio. Mini Dicionário Houaiss da
língua portuguesa. Rio de Janeiro, Editora Objetiva,
2003.
LIMA, Edvaldo Pereira. Páginas Ampliadas. O livroreportagem como extensão do jornalismo e da
literatura. Editora Manole, 2003.
TALESE, Gay. Fama & Anonimato. O lado oculto de
celebridades, a fascinante vida de pessoas
desconhecidas e um inusitado perfil de Nova Yourk,
por um mestre da reportagem. São Paulo, Cia das
letras, 2004.
Site oficial da Prefeitura de Carapicuíba
http://www2.prefeitura.sp.gov.br/empresas_autarquias/
cohab/conjuntos_habitacionais/carapicuíba/0001
Enciclopédia digital
http://www.angelfire.com/ca3/carapicuiba/
Carapicuiba.html
Site oficial da Prefeitura de São Paulo
http://www6.prefeitura.sp.gov.br/empresas_autarquias/
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