Será que o onde determina o quem
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Será que o onde determina o quem
m301.540981 R672h Rocha, Renata. História de cohabeiros: será que o onde determina ou o quem? Moradores da Cohab de Carapicuíba respondem. / Renata Rocha. –Campinas: PUC Campinas, 2007. 125 p. Projeto Experimental, modalidade livro-reportagem. Orientador: Carlos Roberto Saviani Rey. Monografia (Graduação) – Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Centro de Linguagem e Comunicação, Faculdade de Jornalismo. 1. Habitação – aspectos sociais - Brasil. 2. Habitação popular – aspectos sociais - Brasil. 3. Habitação popular – São Paulo. 4. Política habitacional. I. Rey, Carlos Roberto Saviani. II. Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Centro de Linguagem e Comunicação, Faculdade de Jornalismo. III. Título. 20.ed. m301.540981 CDD – Agradecimentos A minha família amada que em todos momentos esteve presente, acompanhando bem de perto minha ansiedade, superação, frustrações, corrida contra o tempo e vontade de fazer esse projeto dar certo. Obrigada por terem acreditado em mim a todo instante e, principalmente, por não terem me deixado desistir. Sem o apoio e amor incondicional de vocês esse trabalho, que hoje me orgulho em apresentar, não teria acontecido. Aos amigos fiéis que torceram, vibraram, acreditaram, me aturaram falando sempre do mesmo assunto e rezaram para que tudo desse certo. Registro aqui o meu muito obrigada! Amo vocês. Sumário Prefácio da autora ............................................ 09 A Cohab de Carapicuíba .................................... 22 Mulher Gerônimo ............................................. 33 O professor, o historiador, o advogado ............... 46 Dona Marly ...................................................... 58 Dance and Fly ................................................. 66 Edite. Sinônimo de labuta ................................ 76 O fantástico mundo de Bob ............................... 83 Não sou Nhaca, sou Evanildo ............................ 93 Meu pai, meu ídolo ........................................... 99 Retratos da Cohab .......................................... 105 Bibliografia .................................................... 121 Prefácio da autora Segundo Edvaldo Pereira Lima “o livroreportagem é o veículo de comunicação impressa não-periódico que apresenta reportagens em grau de amplitude superior ao tratamento costumeiro nos meios de comunicação jornalístico periódicos”1. Essa é justamente a proposta de Histórias de Cohabeiros. Será que o Onde determina o Quem? Moradores da Cohab de Carapicuíba respondem: tratar de forma diferenciada a questão que o livro propõe já em seu título, ou seja, se o Onde, a Cohab, determina o Quem, os cohabeiros. De que forma? Dando voz aos próprios moradores do Conjunto Habitacional Presidente Castelo Branco, mais conhecido como Cohab de Carapicuíba, para responderem a essa indagação, ao invés de, como habitualmente acontece na grande imprensa, ceder espaço para teóricos como antropólogos, sociólogos e historiadores o façam. Óbvio que não desmereço aqui a grande importância que essas ciências representam para a sociedade, mas, uma vez que 1 Páginas Ampliadas. Barueri – SP: Manole, 2004, p. 26 Renata Rocha 9 a utilização de estudiosos como fontes já é uma prática adotada costumeiramente, eu parti do pressuposto que ninguém melhor que os próprios cohabeiros, através de suas experiências pessoais, para dividir com você leitor quais são as qualidades, defeitos, sentimentos, curiosidades e histórias da Cohab de Carapicuíba. Portanto, reforço que o foco do livro são as histórias dos perfilados, a visão desses moradores a respeito do bairro e o que ser cohabeiro significa para essas pessoas. Esse material, cuja justificativa está na relevância social que representa, tem por finalidade retratar aspectos do cotidiano em que essas pessoas estão inseridas e a forma como lidam com essas questões. Um detalhe que se faz importante aqui, é que a palavra cohabeiro é uma expressão inexistente nos dicionários de Língua Portuguesa, mas é uma personificação popularmente utilizada pelos habitantes de Cohabs, quando falam a respeito deles mesmos, ou seja, se auto-intitulam dessa forma, definindo-se pelo contexto social do qual fazem parte. É fato que existem vários estereótipos em diferentes grupos da sociedade, ou seja, há essa imagem simplificada, baseada num modelo ou em generalização 2 do que é ser um cohabeiro, assim 2 Mini Houaiss Dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003, p. 219 10 Histórias de Cohabeiros como existe a do que é ser favelado, do que é ser ‘patricinha’, ‘mauricinho’, do que é ser rico, do que é ser pobre e assim por diante. Por isso, o tema do livro surgiu como pauta baseado na observação de que, no caso específico dos cohabeiros, o conteúdo desses rótulos podem ser contestados, pois nesse ambiente populoso existe uma vasta gama de estilos diferentes de pessoas, que mesmo fazendo parte de um igual cenário, não apresentam um padrão de comportamento. Por isso é válido reforçar que a intenção do livro-reportagem é puramente jornalística, de tornar visível algumas histórias, do presente e passado, de pessoas que vivem a ética desse lugar, os então Cohabeiros, para abordar se o Onde realmente determina o Quem na visão dos próprios moradores. Por abordar experiências do presente e do passado dos cohabeiros, o livro se enquadra na descrição de liberdade temporal feita por Edvaldo Pereira Lima. “Livre no ranço limitador da presentificação restrita, o livro-reportagem avança para o relato da contemporaneidade, resgatando no tempo algo mais distante do de hoje, mas que todavia segue causando efeitos neste.”3 Não existe aqui nenhuma pretensão científica de encabeçar alguma tese que responda a indagação que o título do livro propõe, pelo 3 p. 85 Renata Rocha 11 contrário, a idéia é deixar para você leitor a responsabilidade de formar seu conceito pessoal, considerando o pluralismo de opiniões oferecidas através dos perfis dos cohabeiros. A missão do projeto é conseguir, através da apuração e pesquisa jornalística, retratar fatos relevantes do ponto de vista social, que lhe faça refletir a respeito e conhecer um pouco mais a Cohab e os cohabeiros, daí explica-se, inclusive, sua importância e viabilidade de veiculação. Portanto, este livro não apresenta considerações finais como o de praxe. Ao invés disso, existem fotos atuais de locais comentados pelos cohabeiros no decorrer dos capítulos, como forma de, após a leitura, ilustrar os cenários citados pelos entrevistados. A escolha em colocar as imagens após os perfis é estratégica no sentido de querer antes estimular a sua imaginação, trabalhando com o lúdico durante a leitura, para então expor após isso as fotos. Até por esse motivo, não existem fotos dos perfilados, pois também é uma estratégia que tem por objetivo criar proximidade contigo, que ao ler as histórias você não as associe somente ao cohabeiro retratado, mas que também possa em algum momento se identificar com a personagem, seja vinculando o conteúdo lido com passagens de sua própria vida ou com a de pessoas conhecidas. Somente na grande São Paulo existem 62 Conjuntos Habitacionais, por isso, utilizei como critérios de escolha a Cohab de Carapicuíba por 12 Histórias de Cohabeiros conhecer a região, uma vez que morei por dezessete anos no bairro e acompanhei de perto algumas, se não muitas, das situações que narro; Foi através dessa vivência na Cohab que observei a relevância social que abordar o tema cohabeiros representa e tive a idéia de escrever o livro; Ser um tema inédito, haja vista ainda não existir nenhuma bibliografia ou levantamento a esse respeito; E das três músicas conhecidas nacionalmente que falam a respeito de Cohab, é a de Carapicuíba que já foi motivo da existência de duas delas, que são de autoria e interpretação de Neto de Paula, popularmente conhecido como Netinho. Esses são os quatro argumentos que foram determinantes na minha opção pelo Conjunto Habitacional Presidente Castelo Branco e que se legitimam pela “liberdade temática”4 que todo livro-reportagem possui. Em alguns trechos do livro me faço presente na narrativa e procuro detalhar os cenários, trejeitos e reações das personagens, pois assim como Gay Talese em Fama & Anonimato “os textos deste livro se enquadram num tipo de reportagem que se costuma classificar de ‘novo jornalismo’, ‘nova não-ficção’, ou ‘parajornalismo’, sendo a última uma forma pejorativa cunhada pelo 4 p. 82 Renata Rocha 13 falecido crítico Dwight MacDonald, que tinha lá suas desconfianças em relação a esse gênero, pois achava, assim como alguns outros críticos, que seus autores deturpavam os fatos para conseguir um maior efeito dramático. Eu não concordo. Embora muitas vezes seja lido como ficção, o novo jornalismo não é ficção. Ele é, ou deveria ser, tão fidedigno quanto a mais fidedigna reportagem, embora busque uma verdade mais ampla que a obtida pela mera compilação de fatos passíveis de verificação, pelo uso de aspas e observância dos rígidos princípios organizacionais à moda antiga. O novo jornalismo permite, na verdade exige, uma abordagem mais imaginativa da reportagem, possibilitando ao autor inserir-se na narrativa se assim o desejar, como fazem muitos escritores, ou assumir um papel de um observador neutro, como outros preferem (...)”5. Escolhi esse estilo de narração por me sentir à vontade em fazê-lo, por acreditar que essa metodologia enriquece o conteúdo e, conforme já citado anteriormente, por considerar essa escolha uma estratégia que durante a leitura causa proximidade e, porque não, audaciosamente querer que você sinta-se como se estivesse presente 5 Fama & Anonimato. São Paulo: Cia das letras, 2004, p. 9 14 Histórias de Cohabeiros durante as entrevistas, observando os cohabeiros e suas declarações. Essa minha predição é descrita por Edvaldo Pereira Lima como liberdade de angulação. “O livro-reportagem é uma obra de autor. A presença expressiva de seu realizador é, muitas vezes, marcante. Desvinculado, ao menos em tese, de compromentimentos com o nível grupal, com o nível massa e como nível pessoal tal qual limitado nas grandes empresas jornalísticas, seu único compromisso é com sua própria cosmovisão e com o esforço de estabelecer uma ligação estimuladora com seu leitor, valendo-se, para isso, dos recursos que achar mais convenientes, escapando das fórmulas institucionalizadas nas redações (...)”6. O critério de escolha das personagens deuse pela vivência no ambiente tema e observância de que essas são pessoas conhecidas por grande parte dos cohabeiros, seja no prédio em que residem, na rua onde moram, ou até mesmo no bairro como um todo, opção essa tida “liberdade de fontes”7. Todos os capítulos do livro são, em termos, desvinculados uns dos outros. Digo isso porque as 6 7 p. 83 p. 84 Renata Rocha 15 personagens não necessariamente se conhecem ou partilham do mesmo acontecimento narrado. O que realmente as une é o contexto social do qual fazem parte, ou seja, o fato de serem cohabeiros. Dessa forma, existe aqui a possibilidade de ler histórias diferentes, cada uma descrita em um capítulo, mas que juntas contextualizam a Cohab e seus moradores. Segundo Edvaldo Pereira Lima essa minha escolha de edição é uma liberdade de eixo de abordagem, pois “o livro-reportagem não necessita obrigatoriamente girar em torno da factualidade, do acontecimento. Pode vislumbrar um horizonte mais elevado penetrando na situação ou nas questões mais duradouras que compõem um terreno das linhas de força que determinam os acontecimentos” 8 . Além disso, cada capítulo é iniciado com trecho de música, devidamente selecionada para ilustrar o perfil narrado e servindo como uma espécie de trilha, como as sonoras existentes em vídeos reportagens. Com estilos musicais diferentes, as letras dão a dica para você leitor do que virá pela frente e no caso de não entender o simbolismo do trecho descrito, o instiga a descobrir e, dessa forma, continuar a leitura para descobrir seu significado. Além de perceber que as músicas contextualizam as situações narradas, 8 p. 85 16 Histórias de Cohabeiros você vai observar e sentir que é bem diferente ouvir uma canção e simplesmente ler sua letra sem arranjos. Talvez, essa seja uma experiência nova, nunca antes vivida por você. Edvaldo Pereira Lima conceitua essa iniciativa como liberdade de propósito9 e da condição especial de tratamento que o livro-reportagem deve ter. “Compreendo a linguagem, a montagem e a edição do texto, o livroreportagem apresenta-se eminentemente jornalístico. A linguagem jornalística, aqui, é entendida como conceitua Nilson Lage10. A que ‘(...) mobiliza outros sistemas simbólicos além da comunicação lingüística’, incluindo o projeto gráfico, os sistemas analógicos – ilustrações, fotografias, charges, cartons – e o sistema lingüístico em si, este abrangendo as manchetes, os títulos, os textos, as legendas.’11 Histórias de Cohabeiros. Será que o Onde determina o Quem? Moradores da Cohab de Carapicuíba respondem, de acordo com as classificações estabelecidas é um livro-reportagemperfil.“Trata-se da obra que procura evidenciar o lado humano de uma personalidade pública ou de uma personagem anônima que, por algum motivo, torna-se interessante. No primeiro caso, trata-se, em geral, de uma figura olimpiana. No segundo, a 9 p. 86 p. 27 e 28 11 Linguagem jornalística. São Paulo: Ática, 1985, p. 57 10 Renata Rocha 17 pessoa geralmente representa, por suas características e circunstancias de vida, um determinado grupo social, passando como que a personificar a realidade do grupo em questão”12. O tratamento dos textos é feito de tal forma caracterizada de perfil humanizado “que se caracteriza pela abertura e proposta de compreensão ampla do entrevistado em vários aspectos, do histórico de vida ao comportamento, dos valores aos conceitos (...) observação intensa, demorada (...)”13.-----------------------------------As metodologias empregadas são a de narração que “envolve uma finalidade que ultrapassa o meramente informar. Compreende uma reconstrução do real, uma reconstrução em que o emocional-racional e o emocional se equilibrem, em que o real e o imaginário convivem”14; a de perfil humanizado “o livro-reportagem que concede à entrevista a máxima possibilidade de alcançar dimensão superior ao que raramente seria aceitável nos veículos periódicos. (...) Há a pauta, mas também coexiste a flexibilidade de o entrevistador momentaneamente abandoná-la para entrar numa variante mais empática com seu entrevistado. Surge a emoção, surge a pessoa por detrás do mito”15; e a de histórias de vida “aparecendo em forma clássica 12 p. 51 e 52 p. 93 e 95 14 p. 96 15 p. 113 13 18 Histórias de Cohabeiros de entrevista – com a reprodução do diálogo entre o entrevistador e o entrevistado – ou como depoimento direto, ou ainda numa mescla em que se combinam ambiente essas modalidade de apresentação com narrativa em primeira ou terceira pessoa”16.--------------------------------------------------As observações de Edvaldo Pereira Lima, quando fala do real sentido do surgimento de novas propostas de livro-reportagem, devem ser consideradas por você antes que inicie a leitura de Histórias de Cohabeiros. Será que o Onde determina o Quem? Moradores da Cohab de Carapicuíba respondem. “Não há, neste presente momento histórico, possibilidade de a reportagem exercer um serviço de real orientação ao leitor se ignorar a profundidade do que está ocorrendo de alteração nos instrumentos de percepção do mundo. Não conseguirá oferecer um sentido e um significado sem a ousadia, tentativa que seja, de avanço rumo a essas direções (...). Talvez nunca o homem tenha podido combinar tantos recursos de entendimento do real. Talvez jamais tenha tido o privilégio de mesclar em tão refinado grau a visão racional e a percepção intuitiva. Então, este mergulho no mar empolgante da história em movimento exige humildade, queda de preconceitos, e espírito 16 p. 114 Renata Rocha 19 aberto para admitir a relatividade de tudo. É momento de síntese, de recuperação não de todo o passado, mas do seu substrato mais significativo, de modo a ficar lançado para o futuro o que de melhor conseguiu a humanidade”17. A explanação do conteúdo do livro trouxe intrínseco um grande desafio para mim, que foi através das técnicas aprendidas durante o curso de jornalismo, somadas à imersão em todos os processos de apuração e contextualização para a produção do livro-reportagem, garantir que o objetivo do projeto fosse atingido: tornar visível histórias de personagens urbanos, dando voz a esses para dizerem quem são e qual é o real significado de ser cohabeiro. Um projeto cujo diferencial foi a experimentação do tema, como objeto de análise e recorte, pois, até então, a Cohab era uma espécie de mundo paralelo ainda não explorado e os cohabeiros cidadãos esteriotipados que ainda não haviam recebido a oportunidade de opinar se realmente o Onde determina o Quem. Acredito que você leitor conheça muitas Marlys, Ladenilsons, Edites, Rosicleides, Henriques, Evanildos e, por isso, irá gostar do que vem pela frente e entender o que a obra realmente simboliza. Boa leitura! 17 p.133 20 Histórias de Cohabeiros Renata Rocha 21 “Lá na Cohab aprendi o que é vida Doce lar, terra querida Na batida do pandeiro eu encontrei uma saída (...) Te digo a bem da verdade A melhor faculdade É a própria vida (...) Lá na Cohab aprendi o que é vida Doce lar, terra querida Na batida do pandeiro eu encontrei uma saída” Terra Prometida (Wagninho / Netinho / Serginho Procópio) A Cohab de Carapicuíba O Conjunto Habitacional Presidente Castelo Branco foi inaugurado em 1972, passando a ser conhecido popularmente como a Cohab de Carapicuíba, que é cenário tema desse livroreportagem. Nessa época, o então Presidente da República General Emilio Garrastazu Médici, conhecido por promover a mais violenta repressão da Ditadura Militar brasileira, período do Regime Militar que ficou conhecido como ‘anos de chumbo’, resolveu nomear o sétimo Conjunto Habitacional da cidade de São Paulo em homenagem ao primeiro presidente do golpe de 1964, o Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco, na época já falecido. 22 Histórias de Cohabeiros A cidade de Carapicuíba situa-se a aproximadamente 23 quilômetros do Marco Zero de São Paulo e possui como limites os municípios de Barueri, Cotia, Osasco e Jandira. Tem como principais acessos as rodovias Presidente Castelo Branco, Raposo Tavares e o Rodoanel Mario Covas, que interliga o município às Marginais Tietê e Pinheiros. É considerada uma cidade dormitório, pois a maioria de sua população trabalha fora do município e só volta para casa para o repouso, e um município carente, por ter alto índice populacional e ser um dos que têm a menor renda per capita da grande São Paulo, cuja população é de quase 16 milhões de habitantes: R$0,68 por habitante. Segundo dados do IBGE, Carapicuíba tem 550.000 moradores, extensão territorial de 34 quilômetros quadrados e densidade demográfica de 9.546 hab/km². Desse total, de mais de meio milhão de pessoas, o Cartório Eleitoral afirma ter 208.368 eleitores. Na área da educação, Carapicuíba conta com 58 escolas estaduais tendo ao todo 85.433 alunos matriculados. O índice de alfabetização da cidade é de 93,64% e a mortalidade infantil é de 17,82%. O conceito de Conjuntos Habitacionais deriva de um arquiteto suíço chamado Charles-Edouard Jeanneret-Gris, mais conhecido pelo pseudónimo de Le Corbusier, que, com o surgimento de grandes cidades, projetava casas planejadas e imaginava a arquitetura do futuro, chamando-a de máquinas Renata Rocha 23 de morar. Tinha como princípio humanizar os condutos residenciais, como solução para colocar grandes conglomerados de pessoas numa única cidade. Hoje essa visão pode ser criticada, pois criou de certa forma uma divisão: aqui vão morar os ricos, aqui vão morar os pobres, mas pra a época a proposta era avançada e criou construções modernas. No Brasil, essa idéia chega durante o Regime Militar, a partir de 1964, como tendência de esvaziamento da luta por terra e moradia, criando no campo o Estatuto da Terra, o Incra, e, na cidade, as Cohabs, destinadas à concentração da classe pobre e trabalhadora. Para adquirir uma moradia no Conjunto Habitacional de Carapicuíba, na época em que eram construídas, era necessário ganhar até três salários mínimos, não ter imóvel no próprio nome e não ter antecedentes criminais. Após apresentar o cadastro, os inscritos entregavam a documentação necessária para provar que se encontravam dentro dos critérios estabelecidos e assim que os prédios estivessem construídos, eram chamados para escolher em qual região iriam morar. Em seguida, acontecia o sorteio entre os cadastrados para definir qual seria o prédio e o apartamento de cada um. O valor da prestação mensal dos imóveis não chegava a 30% do salário mínimo. Por isso, os cohabeiros sempre tiveram um perfil heterogêneo, pois já no começo, quando o Conjunto Habitacional Presidente Castelo Branco foi construído, foram 24 Histórias de Cohabeiros morar no bairro desde pessoas que fugiam do Imposto de Renda, a pessoas que moravam em favelas e que se juntavam entre três ou quatro membros da família para fazer dinheiro e se mudar para a Cohab. Com o passar do tempo, essa variedade de perfis de pessoas começou a ser motivo de desentendimentos e conflitos entre os moradores, tanto que, pensando nisso, as administrações dos Conjuntos Habitacionais distribuíam textos informativos aos primeiros moradores, explicando o que era um condomínio, como se organizava uma assembléia, como se elegia um sindico, como se elegia um secretário, ou seja, mostrando passo a passo como se organizava um condomínio. Os contratos originais também traziam sugestões: era proibido colocar varal para fora, fazer reformas que abalassem o prédio, entre outras coisas, que ao longo dos anos foram desrespeitadas e cuja desobediência tornou o bairro um lugar descaracterizado em relação ao que foi planejado. Boa parte dessa primeira geração de cohabeiros, já com a vida monetária mais estabilizada, começou a se mudar em busca de lugares mais tranqüilos, com menos barulho e intriga entre os vizinhos. Mas, como os contratos assinados com a administração da Cohab tinham duração média de 23 anos, período do financiamento, surgiram os contratos de gaveta, que eram uma documentações informais de venda dos imóveis, que não tinham efeito jurídico, mas Renata Rocha 25 eram registrados em cartório, ou seja, para a administração do Conjunto não tinham valor. Essa foi uma situação que só estourou nos anos 90, quando a Cohab completou 20 anos de existência e a primeira geração de moradores precisava retirar a escritura. Na atualidade ainda existem moradias sem a documentação legalizada devido a esse fator, pois os novos proprietários dos imóveis não encontram mais os primeiros donos e os contratos de gaveta permanecem informais. Uma curiosidade da Cohab de Carapicuíba é que de acordo com cada época os prédios ganharam um perfil arquitetônico diferente. Começaram construídos com bloco, depois com tijolinhos, em seguida vieram os prédios de concreto, depois os de bloco a vista, seguidos pelos de gesso, que foram demolidos alguns anos depois. Assim, por volta de 1984, no final do Regime Militar, começo da redemocratização do Brasil, foram construídos os últimos prédios que apresentam outro perfil arquitetônico. Nesse sentido, o Conjunto Habitacional Presidente Castelo Branco foi uma espécie de cobaia, com experimentos tais como apartamentos em que a entrada se dá pela cozinha; outros que tinham somente uma tomada; outros em que a luminária era na parede em vez de instaladas no teto. Atualmente, a grande mudança observada é a ausência de áreas recreativas na Cohab, pois os playgrounds que separavam os prédios, cada um com escorregador e área verde, 26 Histórias de Cohabeiros foram demolidos para a construção de garagens, pois os cohabeiros começaram a comprar carros e não tinham onde guardá-los. Garagens cuja maioria estão com as portas voltadas, propositadamente, para o lado externo dos prédios, pois agora foram transformadas em comércios. Até os nomes das ruas da Cohab de Carapicuíba têm uma peculiaridade. Como o bairro foi construído durante o Regime Militar, havia por parte do governo a preocupação de despersonalizar a história e, por isso, nenhuma rua recebeu nome de personalidades ou autoridades. Ao invés, ganharam nomes de estados, capitais e cidades brasileiras. Só quando a Ditadura chegou ao fim é que foi nomeada a Avenida das Diretas Já e a Avenida Tancredo Neves. Todo resto das ruas do Conjunto Habitacional leva nomes como Belém, Salvador, Adamantina, Manaus, Brasília, Vitória, Uberlândia, Guarulhos e assim vai. Atualmente o Conjunto Habitacional Presidente Castelo Branco tem 2,4 milhões de metros quadrados e uma população estimada de 71.800 habitantes, distribuídos em 13.504 apartamentos e 856 casas, números esses que correspondem às habitações legalizadas, pois existem à margem do bairro pontos de moradias irregulares, as favelas. A procura de imóveis para compra e locação no bairro é grande, inclusive de pessoas que vêm de outras cidades. Os custos para compra de apartamentos variam entre R$ 25 mil a Renata Rocha 27 R$ 40 mil, pois depende das condições que o imóvel apresenta, se está reformado, quitado e qual a metragem possui. Já o custo com aluguel é em média de R$350, mais as despesas com condomínio, luz, água e etc. A Cohab de Carapicuíba vive um clima intranqüilo. A Delegacia de Polícia da Região registra muitas ocorrências que vão, desde a agressão à ameaça, lesão corporal, calúnia, difamação, injúria, tráfico, furto e perda de documentos. Segundo o delegado Etori André Bonifácio, responsável pelo policiamento do bairro, as ocorrências na delegacia atingem a média mensal de 3000 BO´s, sendo que os dias de mais movimento são as sextas-feiras e os sábados.---------------------------------Na área de educação existem ao todo 11 escolas estaduais no bairro, com 9.471 alunos matriculados. Desse total de escolas, quatro atendem ao Ciclo 1; seis delas o Ensino Fundamental, 4 o Ensino Médio, 3 o Supletivo de Ensino Médio e uma o Supletivo de Ensino Fundamental, ou seja, algumas delas atendem mais de um tipo de ensino. Atualmente o Ciclo 1 tem efetivamente 2866 crianças estudando, cujo índice de aprovação é de 97,53%, reprovação 1,95% e abandono 0,53%. Já no Ensino Fundamental estão matriculados 3560 alunos, com índice de aprovação de 80,37%, reprovação de 12,83% e abandono de 6,83%. A média de aprovação dos estudantes do Ensino Médio é de 74,30%, reprovação 16% e 28 Histórias de Cohabeiros abandono de 9,75%. Do Supletivo de Ensino Fundamental a aprovação é de 75,63%, reprovação 16% e abandono 8,4% e o Supletivo de Ensino Médio aprovação de 85,4%, reprovação 9,6% e abandono de 5%. Dentro do Conjunto Habitacional Presidente Castelo Branco há dois postos de saúde e um hospital que atendem além do município de Carapicuíba, as cidades da região, tais como Pirapora, Osasco, Vargem Grande, Cotia e Itapevi. O Hospital chamado Sanatorinhos registra mensalmente 1200 saídas de internação, 5000 consultas, 45.000 exames, oferece 20 especialidades diferentes, além de ambulatório e psiquiatria emergencial, emprega 1300 funcionários, desses 290 médicos e tem 10.500 m² de área construída distribuídas em 6 pavimentos, com 270 leitos e 15.000 m² de terreno. Existem ao todo três pontos de táxi na Cohab, um no hospital Sanatorinhos e os outros em dois dos grandes supermercados que estão instalados no bairro. Segundo os taxistas, o custo do taxímetro no bairro é mais caro que de outras regiões, pois não tem muito trânsito como em São Paulo, porém a corrida é mais barata por conta da região ser mais pobre. Afirmam que normalmente os passageiros fazem os trajetos comuns, expostos nas tabelas que trazem as descrições de valores e percursos. Essas placas servem de marketing para o ponto, uma espécie de anúncio, pois as pessoas Renata Rocha 29 olham os valores, sabem exatamento quanto irão gastar e ficam atraídas. São em média cem corridas por semana e o atendimento é até a meia noite, de domingo a domingo. Ainda não há sistema de rádiotáxi no bairro, mas 22 taxistas da região já fazem parte de uma cooperativa para montar um. Cohab de Carapicuíba: um lugar em que a musicalidade, ruídos e barulho são constantes na vida das pessoas. Seja pelas brigas e discussões corriqueiras em que os ânimos são alterados e os tons de vozes elevados; desentendimentos esses, entre vizinhos que não se ‘bicam’, entre esposas com seus maridos, mães com os filhos, crianças com adultos, amigos com amigos, cachorros com gatos. Seja pelo som alto com músicas das rádios populares que tocam enquanto a dona de casa, ou a filha estudante que lhe ajuda no serviço doméstico, ouvem durante a faxina. Seja pelos vendedores que passam de prédio em prédio, escada por escada, vendendo seus produtos anunciados com frases já conhecidas pelos cohabeiros. O homem do alho que diz “Olha o alho, olha o alho. É um real o alho”. A mulher do Yakult que bate de porta em porta abordando “Vai Yakult ou queijinho hoje?”. O carro de pamonha do conhecido Beleza Maravilha, que anuncia seu produto no alto falante, enquanto dá voltas pelas ruas do bairro dizendo “Beleza maravilha”, e os cohabeiros sabem exatamente o que isso significa. O amolador que passa gritando “Amolador. Amola faca, tesoura, 30 Histórias de Cohabeiros alicatinho de unha” repetitivamente. O adolescente que vende biju tocando matraca, som característico dessa venda. O senhor de cabelos brancos que vende algodão doce tocando a corneta “Fon, Fon”. Os caminhões de gás que passam três vezes ao dia com uma trilha sonora ao fundo tocando e com os carregadores berrando dentro dos prédios “Gás, olha o gás”. O rapaz da mandioca que anda com carrinho de mão anunciando “olha a mandioca, mandioca boa, olha a mandioca”. Seja pelo barulho do pagode da Rio Branco, do movimento de motos e bicicletas do Barufi. Seja pelos ônibus cujas linhas circulam quase que de 10 em 10 minutos. Seja pela bagunça dos meninos ao jogarem bola dentro dos pátios dos prédios, das meninas que montam suas casinhas nas portas das vizinhas, espaços esses apelidados de quadradinhos. Do corre e corre da molecada que brincam de esconde-esconde, pega-pega e duro ou mole. Um lugar que mais parece um formigueiro de gente em que o silêncio é raro e quando acontece é na madruga à dentro. Renata Rocha 31 32 Histórias de Cohabeiros “Só posso levantar as mãos pro céu Agradecer e ser fiel ao destino que Deus me deu Se não tenho tudo que preciso Com o que tenho, vivo De mansinho, lá vou eu Se a coisa não sai do jeito que eu quero Também não me desespero O negócio é deixar rolar E aos trancos e barrancos, lá vou eu E sou feliz e agradeço por tudo que Deus me deu E deixa a vida me levar, vida leva eu” Deixa a Vida me levar (Serginho Meriti) Mulher Gerônimo “Ai me perdoa, mas minha mãe tá aprontando muito, por isso que demorei”, desculpa-se a Cohabeira de nascença Rosicleide Gerônimo dos Santos, com o constante sorriso metálico, de quem aos 22 anos usa aparelho nos dentes. Pergunto o que aconteceu, e a estudante de Publicidade e Propaganda conta com o tom de voz agitado, as peripécias da mãe, Emília, que traz o mesmo sobrenome que lhe foi dado. “Ah, ela fica assim toda vez que meu irmão vem em casa. Ela tava até que bem essa semana, mas foi o Rogerinho aparecer e pronto. Ela bebeu todas e mais um pouco. Eu to desde de manhã tentando segurar ela em casa, mas não teve jeito. Ela saiu de casa às 4 da manhã pra caminhar, como sempre faz, e bebeu tanto Renata Rocha 33 que encontrei ela agora pouco sentada na escada do prédio dormindo, bem na hora que a gente tinha marcado”, explica-se agora com um sorriso mais tímido e ar de embaraço, como se ao mesmo tempo em que estivesse habituada a falar a respeito do assunto, isso ainda lhe trouxesse certo constrangimento. Ainda se explicando, a morena de pele jambo e cabelos loiros descoloridos, que sempre que possível os mantém perfeitamente escovados e lisos, disse que ao ver a mãe imediatamente chamou a Neide para ajudar a levá-la para casa. Neide é a vizinha que mora no andar térreo da mesma escada e mesmo prédio de Rosicleide, a qual recebe R$200 por mês para ajudar a cuidar de Dona Emília. Para Neide, que já faz esse bico há quase um ano, o maior problema de Dona Emília não é nem a doença psicológica, pois quando essa senhora de 61 anos, olhos azuis, cabelos cacheados na altura dos ombros, 1,50m e 43 quilos, e com fama de fazer a melhor coxinha do prédio, voltou da clínica, onde ficou por um ano internada, a doença já estava controlada. Neide acredita que o que realmente desgraça Dona Emília é o vício, o alcoolismo. Falando rápido e sem parar, nítido sinônimo de ansiedade, Rosicleide continua a narrar o ocorrido gesticulando bastante e sem poupar gírias. “Nossa meu, você não sabe de nada. Quando peguei a minha mãe, junto com a Neide, ela tava toda mijada. Isso até que é normal quando ela bebe, ela não se controla. Aí, dei banho, fiz questão de trocar a roupa de cama pra ela deitar e dormir bem fresquinha, abri as janelas pra ventilar bastante, deitei ela e pensei: ‘beleza, tudo certo!’. Hum que nada! Daí veio 34 Histórias de Cohabeiros a surpresa, não deu dois minutos e ela cagou na calça. Ai credo!”. Nesse momento, como se de uma hora para outra, toda aquela agitação transformou-se em timidez e vergonha. Rosicleide tampou o rosto com as duas mãos, fazendo sinal negativo, com a cabeça de um lado para outro, como se não acreditasse no que tinha acabado de contar. A sala ficou em silêncio. Coisa de dez segundos depois, o meio sorriso nos lábios de Keka, um dos 6 apelidos que Rosicleide possui, voltou. Ao destampar a face, a filha de Dona Emília continuou a contar a história de onde havia parado, com um tom de voz pacato e sem atropelar as palavras. “Nossa, maior trabalhão viu! E eu não ia deixar a Neide limpar minha mãe né? Sobrou pra mim. Troquei a roupa de cama tudo de novo, dei outro banho e fui lavar as roupas. Sabe, eu fico com vergonha de dizer isso, mas tenho nojo sabia? Tudo bem que é a minha mãe, mas não tem jeito eu fiquei mesmo”, desabafou cheia de sinceridade. E como se nada tivesse acontecido, ou melhor, como se tudo que acabou de passar já fizera parte de um passado distante, Nega, outro dos 6 apelidos de Rosicleide, voltou a sorrir escancaradamente e com viés de brincadeira insistiu em se desculpar. “Só depois que fiz tudo isso que consegui vir pra cá, como combinamos. Entendeu porque me atrasei né?”. Rosicleide conta que segundo o diagnóstico do psiquiatra da clínica em que Dona Emília ficou internada em Quitaúna, localizada em Osasco, cidade vizinha à Carapicuíba e há 3Km da Cohab, sua mãe sofre de esquizofrenia crônica. “Você já assistiu o filme Mente Brilhante?”, pergunta. Ao responder que sim, ela completa Renata Rocha 35 “então, esse daí é o mesmo caso da minha mãe. Ela também vê pessoas, ouve vozes e tem mania de conspiração”, reforça com tranqüilidade, demonstrando certo conhecimento a respeito do assunto. Cigana, o outro apelido da irmã caçula de Rosemeire e Rogério, os outros dois filhos de Dona Emília, explica que esse é um distúrbio psicológico que foi herdado da avó materna e agravado no decorrer dos anos, devido ao histórico de vida sofrida que sua mãe teve desde a infância. “Os responsáveis pela clínica disseram que minha mãe se culpa por ter a doença, por isso é mais difícil a recuperação. Na clínica ela tinha melhorado, tanto que a tiramos de lá. Mas o ruim é que agora ela fica bebendo. Minha mãe vai morrer desse jeito, se continuar assim. Vai morrer sem se ajudar”, acrescenta. A filha xodó do falecido Ulisses e de Dona Emília, Rosicleide, não sabe explicar ao certo o porque de ser dona de tantos apelidos, a maioria utilizados até hoje pelos amigos e vizinhos, mas sabe que foram adquiridos ainda na infância. Até tem algumas idéias a respeito dos significados. Acredita que o Nega seja pelo fato dela possuir uma pele morena, que é fruto da miscigenação do tom de pele negro de seu pai e da brancura de sua mãe. Já o Keka, sabe que ganhou de forma carinhosa, quando ainda tinha meses de vida, de uma antiga moradora do prédio que não tinha filhos e que sua mãe sempre diz que era apaixonada por ela, mas ainda assim não sabe exatamente qual é a origem da palavra. O Kekinha veio depois, como diminutivo do Keka, e era utilizado pelas crianças que na época tinham a mesma idade que ela. Em seguida virou a Cigana, apelido que ganhou por montar barracas com as 36 Histórias de Cohabeiros demais meninas, quando brincavam de boneca no estacionamento atrás do prédio. “Eu passava pelos corredores e pelas escadas com um monte de sacolas e os meninos gritavam assim: ’a Cigana do amor’. Adoravam me zuar, me irritar”, relembra. Na pré-adolescência passou a ser chamada de Ganaci, palavra que é formada pelas sílabas embaralhadas do então Cigana. Até que na adolescência prevaleceu o Cleide e o Cleidinha, que vem da abreviatura de seu nome Rosicleide, e apedido do qual prefere ser chamada até mais do que pelo próprio nome, mesmo em ambiente de trabalho. E por falar em trabalho, a geminiana de 24 de maio, sempre gostou de trabalhar, de ter o próprio dinheiro e de se manter sozinha. Ainda na adolescência, antes dos 16 anos necessários e previstos por lei para poder arrumar emprego, já fazia alguns bicos, palavra essa que designa trabalho informal e não periódico. Fazia faxina na casa de uma vizinha da mesma rua e passava roupa semanalmente de outra vizinha do mesmo prédio. Em outro momento, confeccionava brincos e os vendia. Chegou até a montar brinquedos em casa. Assim que completou a idade necessária para conseguir um emprego, passou na prova do CAMP, Círculo de Amigos do Menor Patrulheiro de Pinheiros, uma instituição que oferece formação para adolescentes e que através de parcerias com empresas, ajuda esses jovens na conquista pelo primeiro emprego. Através dessa instituição Rosicleide conseguiu trabalho em duas grandes empresas, mas que por motivos familiares não conseguiu se manter em nenhum. Nessa época, sua irmã mais velha Rosemeire, conhecida como Renata Rocha 37 Meire, já estava casada, mas seu irmão do meio, Rogério ainda não e, detalhe, estava no auge do alcoolismo. Passados alguns meses, Rosicleide não agüentava mais o inferno que estava vivendo dentro de casa. Ela e a mãe apanhavam constantemente do irmão, também desempregado, que não precisava de muitos motivos para perder as estribeiras e descer a mão em ambas. Até que Keka decidiu voltar a procurar emprego, pois só queria levar uma vida normal. Conseguiu então trabalho de recepcionista, numa empresa de vendas televisivas. Lá teve oportunidade de crescimento, passou por diversas áreas, exerceu cargos diferentes, mas precisou sair porque a empresa faliu. Desempregada novamente começou a fazer bico em um carrinho de hot dog na Cohab mesmo, mas ficou pouco tempo. Em seguida foi pulando de galho em galho, com funções distintas das que já havia tido, tais como processadora de mercadoria, operadora de telemarketing, vendedora de loja, atendente em uma gráfica e auxiliar numa farmácia de manipulação, função essa que gostou tanto que na época até pensou em se especializar, mas perdeu o emprego por causa da irmã que ficava ligando o tempo todo para se queixar da mãe, Dona Emília. “Mas não agüento ficar sem dinheiro. Sou praticamente um bombril, 1001 utilidades”, comenta ao dizer que nesse momento está desemprega, mas que isso não vai durar muito tempo. A família Gerônimo perdeu Ulisses, o marido de Emília e pai de Rosemeire, Rogério e Rosicleide, na virada do ano novo de 1992. Ele, que era muito autoritário como marido e alcoólatra, desde que Rosicleide se entendia por 38 Histórias de Cohabeiros gente, deixou para Dona Emília uma pensão mensal de R$1.210, o apartamento onde Rosicleide e a mãe moram até hoje e uma garagem no mesmo prédio, que atualmente serve de renda, pois é alugada como ponto comercial e rende R$250 por mês. Além disso, Ulisses ao falecer de ataque cardíaco, sem ser notado, sem ao menos fazer barulho e ter sido encontrado desfalecido pela manhã do primeiro dia do ano, no sofá de corvim marrom da sala, deixou como seguro de vida uma quantia considerável para a família. Nessa época Meire, a irmã mais velha, era noiva de um policial, que a partir de então passou a morar com a família no apartamento. Por sugestão do PM, os Gerônimos tiraram todo o dinheiro do seguro e lhe entregaram, pois segundo o então noivo de Meire ele iria trocar toda a quantia do seguro por dólares, uma vez que a moeda estava em alta e a idéia era que essa troca lhes rendesse lucro. A família só não sabia que o tipo de transação que o noivo de Meire queria fazer era ilegal. O policial viajou com todo o dinheiro e voltou sem nenhum. Segundo ele, na divisa do Mato Grosso, onde iria trocar o dinheiro por dólares, foi roubado e perdeu tudo. A partir daí, o irmão do meio de Rosicleide, o Lolé, como é conhecido na cohab, entrou de cabeça no mundo das drogas. “Ele nunca aceitou tudo o que aconteceu”, afirma a caçula. O noivado de Rosemeire não durou muito depois disso. A infância, pré-adolescência e adolescência inteira de Rosicleide foram presenciando as brigas do irmão e da irmã, do irmão com a mãe, do irmão com ela. Os motivos eram sempre os mesmos: ele vendia tudo que via pela Renata Rocha 39 frente para sustentar o vício, fosse de quem fosse, e batia nelas sempre que se exaltava. Além disso, nessa época era normal os traficantes do bairro invadirem o apartamento para cobrar delas as dividas do Lolé. “Eu tinha muito medo, pois eles faziam muitas ameaças. Eu me escondia. Não gosto nem de lembrar”, conta com clara tristeza no olhar. Os vizinhos por vezes se revoltavam e chamavam a polícia. Por vezes se ausentavam sem expectativa de conseguir ajudá-las. “Já até bateram nele por causa dessas coisas que ele fazia com a gente”, relembra. Nessa época as três mulheres se apegaram muito à religião e à fé. Foi na Igreja Universal que Meire conheceu o marido que leva o mesmo nome de seu irmão, Rogério, e que é o pai de sua filha Nicole. Meire, como a irmã lhe chama, é obreira da instituição e fiel assídua. Rosicleide afirma que teve uma estrutura familiar muito fraca e que foi a igreja que deu muita força nos momentos difíceis. Quando fala de sua fé, é nítido o brilho nos olhos e a gratidão nas palavras. Segundo ela, sem a educação religiosa que teve, talvez não soubesse sequer se portar diante das pessoas. “Eu tinha uma vida rodeada de problemas, mas mesmo assim ajudava outras pessoas. Eu ia em presídio, favela, hospital, asilo e fui até na Febem evangelizar. Sem dúvida a fé me deu muita força, me fez continuar e não desistir”, relembra ao dizer que as vezes até parecia que os problemas dela eram gigantes perto das queixas que ouvia dos outros. “Até meus 20 anos eu estava firme na igreja. Saí porque me envolvi com um pastor e percebi que havia certa hipocrisia, algumas laranjas podres que contaminavam o ambiente e senti falta 40 Histórias de Cohabeiros de como era antes, no começo. Passei a me sentir um peixe fora d´agua e então terminei o namoro e saí”, conta sem constrangimentos, mas sem esconder que sua irmã ainda a cobra muito, pois foi difícil para Meire aceitar a saída de Rosicleide da igreja. “A Meire tem disritmia cerebral, síndrome do pânico, é surda do lado esquerdo e toma antidepressivo. O nervoso dela comigo é que sou tranqüila e estou aproveitando a minha vida. Sei me cuidar. Quero tirar carta de motorista, to fazendo faculdade, viajando sempre quando posso e comprando as roupas que tenho vontade, mas nem por isso perdi a minha fé. De vez em quando até vou na igreja, mas só não freqüento mais”, conta com a tranqüilidade de quem sabe exatamente o que quer da vida e o que lhe faz feliz. Já Dona Emília foi a favor da reliogisidade das filhas somente nos primeiros anos de devoção, pois quando começou a sofrer os transtornos psicológicos, nunca mais teve fé. Assim que Meire casou, o irmão do meio, Rogerinho, conseguiu abandonar as drogas, mas se afundou na bebida. Continuava batendo na mãe e na irmã mais nova, pois ainda moravam juntos, roubando utensílios da casa, arrumando brigas na rua e sem trabalhar, até que há 5 anos conheceu uma pessoa e resolveu se casar. Atualmente mora com a esposa no Jardim Abril em Osasco e trabalha como segurança noturno. “Hoje ele está um pouco melhor, mas ainda aparece aqui para atormentar. Todas as vezes que ele vem minha mãe fica mal. A Meire fala que ele é um traste, mas eu gosto dele. Ela diz que ele fica igual a minha mãe, se transforma quando está bêbado. Outro dia ele veio da casa Renata Rocha 41 dele até aqui a pé e descalço”, conta como se não entendesse o porque dele ainda não ter se curado. “A diferença é que não sou mais como antes, hoje eu me viro melhor, enfrento. Não que eu tenha me tornado uma pessoa ruim, é que só parei de ser boba”, esclarece com transparente orgulho por ter se tornado a pessoa que se tornou. Rosicleide conta que a psicóloga, que toda a família precisou conversar quando a Dona Emília foi internada, disse que ela, a irmã caçula, era o ponto principal dos conflitos familiares. A profissional a definiu como a mãe de todos, o ponto de equilíbrio, e que se Rosicleide não colocasse seus conflitos pra fora, não desabafasse, isso seria muito prejudicial para a saúde dela. “Conversar com a psicóloga foi muito bom, ajudou a colocar tudo pra fora, soltar tudo, com certeza me aliviou muito. Foi então que percebi que eu precisava viver, curtir, sair, viajar. Eu não tinha vida! Eu fui uma caipira na infância, mas isso foi até eu me conhecer de verdade! Hoje, não! Converso com as pessoas em qualquer lugar, no ponto de ônibus, onde for! Foi aí que disse para os meus irmãos: ‘ou interna a mãe ou eu’, se não eu não agüentaria mais viver daquela forma, pois com a saída dos dois de casa quem estava ali no dia a dia era eu”, relembra sorrindo ao observar que tomada essa atitude não conseguiu ficar muito tempo sem a mãe, mesmo indo visitá-la quase diariamente e a trouxe de volta pra casa. Atualmente quem faz o controle das finanças da pensão de Dona Emília é a Meire. É a irmã mais velha que diz o que e onde a irmã caçula deve gastar, quais são as contas a serem pagas e os vencimentos. Só de remédio de 42 Histórias de Cohabeiros Dona Emília são gastos R$280 por mês. Rosicleide conta que quando a mãe ficou internada, o dinheiro da pensão ia integralmente para a saúde de Dona Emília, pois o restante, a diferença que sobrava do dinheiro dos remédios, era exatamente o valor da mensalidade da clínica. “Eu fiquei um ano nessa vida. Tive que trabalhar dobrado pra pagar todas as contas de casa e diminui bem as saídas. Ah e fora isso foi horrível morar sozinha, conciliar tudo: casa, estudo e trabalho. Credo! Ainda por cima chegava em casa e não tinha com quem conversar, contar como foi o dia”, desabafa Rosicleide assumindo que é ruim com a mãe, mas com certeza pior sem. “Deus é muito generoso comigo. Tudo que quero eu tenho, não tenho do que reclamar”, conclui Rosicleide ao definir sua felicidade por ser uma pessoa independente, sem deficiências físicas e com saúde. Apega-se ao exemplo da amiga que mora no mesmo prédio, no apartamento de frente ao seu, que é viúva e mãe de 3 filhos, trabalha para sustentar a família, não reclama de nada e ainda curte a vida. “Se ela não reclama, quem sou eu pra reclamar! Pelo menos não tenho filhos pra sustentar. Fazer o que, tem coisas que a gente não escolhe, só planeja”, acrescenta. A estudante sabe que os vizinhos estranharam sua mudança de comportamento e fazem fofoca a seu respeito, mas afirma não se importar. A única certeza que tem é que não quer ter a vida desgraçada. “Quero ter meu apartamento, meu carro, minha vida. Destino é a gente quem traça”, conclui incisiva. Questiono qual a opinião dela a respeito da Cohab, uma vez que ela é Cohabeira e Rosicleide diz que acha Renata Rocha 43 um lugar muito feio, cheio de pessoas mal educadas, mas que tem lá o seu lado bom e gosta de morar no bairro. Para ela ser Cohabeira não é nada pejorativo e não tem vergonha de sê-lo, mas que, sem dúvida, se tivesse oportunidade de mudar, mudaria. Acredita que o Onde não determina o Quem, pois seria a Rosicleide Gerônimo dos Santos onde quer que morasse ou tivesse sido criada. Após horas de conversa, dentre momentos de descontração e reflexões intensas, para encerrar a entrevista, pergunto para Rosicleide qual é o seu maior medo. Ela pára, reflete, sorri e diz “sou uma mulher independente, tenho ainda muita vontade de viver e amo muito minha mãe. Nossa ligação é muito forte! Querendo ou não, é uma pela outra e é por ela que me sinto corajosa” e conclui que seu maior medo é perder a sua companheira, a sua mãe, a Dona Emília. Mesmo que ela apronte o tempo todo. Mesmo que o fardo não seja fácil. Mesmo que ela tente rotineiramente reverter esse quadro traçado à infelicidade. E até mesmo que os papéis em sua casa tenham se invertido, afinal mãe virou filha e filha virou mãe. 44 Histórias de Cohabeiros Renata Rocha 45 “Meu partido É um coração partido E as ilusões Estão todas perdidas Os meus sonhos Foram todos vendidos Tão barato Que eu nem acredito Ah! eu nem acredito... Ideologia! Eu quero uma prá viver Ideologia! Eu quero uma prá viver (...)” Ideologia (Cazuza / Roberto Frejat) O professor, o historiador, o advogado Durante as aulas de Ladenilson não são permitidas conversas paralelas, mascar chicletes, nem “tunzar”, termo que ele utiliza para descrever a palavra cochilo. Sua principal e objetiva metodologia é a disciplina. O silêncio é absoluto e só o professor fala. Quando o aluno tem dúvidas, levanta a mão e aguarda até que ele lhe passe a palavra. O professor, que fora da sala de aula se mostra um sujeito tímido, que mesmo seguro do que diz insiste em desviar o olhar, ora para objetos, 46 Histórias de Cohabeiros ora para o chão, durante as aulas se perfaz e mostra a que veio: ensina História literalmente contando histórias. Ladenilson, apelidado de Lalá pelos alunos, que claro só o chamam dessa forma entre eles e jamais na frente do professor, mora há 27 anos na Cohab e leciona, no Cursinho da Prefeitura de Carapicuíba, em outro particular e na Escola Estadual Professor Manoel da Conceição Santos, conhecida como Manoel. Foi nesse colégio que cursou magistério durante a adolescência e onde ministrou sua primeira aula. Conta que virou professor por acaso, por não querer estudar à noite, matriculou-se no matutino mesmo sabendo que nesse período só havia colegial com magistério, e que durante o curso percebeu ter nascido para aquilo. “Eu hoje até brinco com a Beatriz, digo que não sei se escolhi a mulher certa, mas a profissão eu tenho certeza que sim!”, comenta em tom de brincadeira, mas afirma dizer a verdade. Beatriz é companheira de Ladenilson há seis anos. Todos os alunos do professor sabem quem é ela, pois durante suas aulas, o palmeirense fanático, para ilustrar a matéria ministrada sempre comenta algum episódio a respeito de sua guria, a gaúcha Bia, apelido usado por ele. O casal vive no mesmo apartamento em que Ladenilson reside desde que se mudou com os pais para a Cohab, o qual recentemente ganhou do pai, senhor Renata Rocha 47 aposentado que mora no interior de São Paulo com a esposa. Professor muito popular no bairro e na Internet, Ladenilson é motivo da criação da comunidade “Eu tive aula com o Ladenilson” do site de relacionamentos Orkut que, conforme apuração em 22 de outubro de 2007, tem 1.465 membros. O professor, que adora se comunicar via web com alunos e ex-alunos, já está no seu segundo perfil, também do Orkut, pois o primeiro não comportou e extrapolou o limite de 1000 amigos. O novo perfil já tem mais 376 pessoas cadastradas. Durante a entrevista ocorrida nos intervalos de suas aulas de final de semana, nos dois cursinhos em que trabalha, Ladenilson educadamente interrompeu o assunto quando apareceu um aluno para tirar dúvidas. Thiago, o aluno que, assim como os demais, o professor conhece pelo nome e faz questão de mostrar isso, foi prioridade o tempo todo. O professor, pacientemente, esclareceu todas as perguntas, deu exemplos e acrescentou dados. Citou o obs dum dum, som que faz em sala de aula quando pede para os alunos anotarem um observação, cuja abreviação é “Obs:”, ou seja, o obs é o barulho da abreviação e o dum dum é o som dos dois pontos. Thiago fez as anotações conforme direcionamento, agradeceu e se retirou. Atenções novamente voltadas a mim, pergunto a Ladenilson como ele explica o próprio sucesso no mundo virtual. O 48 Histórias de Cohabeiros professor prontamente diz que os alunos reconhecem quem são os professores que cumprem da melhor forma seu papel de educadores, que sabem exatamente quem planeja a aula, quem é preguiçoso e quem os deixa fazer o que querem e bem entendem. Questiono se desde sempre ele teve a mesma metodologia de trabalho. Afirmando que sim, Ladenilson reforça “Eu sou cria da Dona Denise”. Difícil é encontrar alguém na Cohab não tenha ouvido falar de Maria Denise Albuquerque Pereira de Oliveira, a Dona Denise. Diretora do Manoel durante quase 20 anos, de 1984 a 2003, só deixou de administrar o colégio, que segundo moradores do bairro é a melhor escola da região, pois se aposentou. Durante sua gestão, os alunos de 5ª série até o 3º colegial, dos três períodos, matutino, vespertino e noturno, faziam filas divididas por classe, para ir e para voltar do intervalo. O uso do uniforme, que era camiseta da escola branca e bordô com calça de moletom azul marinho, era obrigatório. Quem não estivesse dessa forma era barrado já na entrada da escola. Walkman, calça jeans e boné não eram permitidos. Bermuda, somente se fosse a azul marinho do uniforme e se estivesse no máximo até o joelho. Não se podia passar aula vaga fora da sala, seja no pátio ou nos corredores do Manoel. Desrespeitar professor em sala de aula, ser pego fumando escondido, brigar, degradar a escola ou arrumar Renata Rocha 49 confusão, significava ir para a Diretoria tomar chá na sala da Dona Denise, esperar em pé um bom tempo, enquanto isso contar por distração quantos gatos passeavam na mesa dela, até ser atendido e, enfim, levar convocação solicitando o comparecimento do responsável, para juntos, pais, aluno e diretoria resolverem o problema. O respeito imposto por Dona Denise era tanto que, quando ela passava nas salas durante as aulas, para fazer visitas surpresa, todos os alunos levantavam-se e ficavam em pé ao lado direito da carteira e só sentavam se assim ela dissesse para fazê-lo. Quando falava, não se ouviam nem os mosquitos, além da voz dela. Dona Denise, uma mulher alta e magra, com dedos compridos que gesticulavam o tempo todo, cabelos claros, de tom de voz firme, que em 2001 teve descolamento de retina e quase não enxergava mais, ao mesmo tempo em que despertava medo nos seus alunos era motivo de risadas, de boas gargalhadas por parte deles, que às escondidas caçoavam de suas roupas de cores quentes, que misturavam salto alto com calça de moletom. Antonio Cláudio de Oliveira, o vice-diretor de Dona Denise durante quase toda carreira dela e seu marido há 28 anos, a define como “uma mulher inteligentíssima e brilhante, de olhar completo, diferente do senso comum, que dava o melhor de si em tudo”. Explica dizendo que “pra você ter uma idéia, durante a apresentação da tese 50 Histórias de Cohabeiros de mestrado dela, que é algo a respeito da sintaxe sob pontos cantados na umbanda, os professores ficaram boquiabertos e pediram, inclusive, mais referências pra ela a respeito do assunto, pois desconheciam”, comenta. Quando Denise iniciou a carreira de Diretora, o professor Antonio Cláudio, como é conhecido, para acompanhá-la fez complementação pedagógica para então poder exercer o cargo de vice-diretor. Ele, que é graduado em Letras e tem mestrado em Latim, afirma que Dona Denise não confundia autoridade com autoritarismo. “Os pais confiavam na competência da Denise, ela era muito respeitada. Não é a toa que a Manoel era a melhor escola de Carapicuíba, Barueri e Cotia, tanto nas avaliações quanto no corpo docente, pois era uma escola estável, com professores que tinham anos de casa e desenvolviam o melhor o trabalho em sala de aula. As reuniões bimestrais com pais e mestres eram um diferencial, pois contavam com a presença dos alunos também, como forma de criar responsabilidade nos estudantes. Hoje isso é praticado por outras escolas, mas isso foi coisa da Denise. Ah e se os responsáveis não fossem à reunião, o aluno era proibido de assistir aula no dia seguinte. Eu e a Denise tínhamos tudo para ter uma carreira acadêmica, mas não, optamos por administrar uma escola da Cohab e tenho certeza que o fizemos bem. É só olhar os frutos disso”, conclui. Renata Rocha 51 Dona Denise faleceu em 21 de maio de 2007, de infarto durante uma aula de Tai Chi Chuan. Sem filhos, pois Denise por problemas de saúde não pôde tê-los, o Professor Antonio Cláudio quando está longe dos amigos, que tanto lhe apóiam, ainda sente-se sozinho, mas se apega na formação kardesista e na certeza de que espiritualmente Denise está bem. “Ela era um espírito evoluído”, finaliza. Ladenilson lamenta o falecimento de Dona Denise e conta que realmente se inspirou nela e que os dois sempre se deram muito bem, desde a época em que era aluno do Manoel, até quando se tornou professor do colégio, cuja oportunidade de emprego foi dada por ela. Diz que teve uma criação rigorosa e sempre gostou de disciplina e que talvez isso tenha ajudado no relacionamento entre os dois. “Eu era muito o que chamávamos de Armandinho, o mesmo hoje que vocês chamam de CDF. Pra você ter uma idéia as vezes tínhamos aula vaga no meio do turno e éramos dispensados na condição de que voltássemos para as duas últimas aulas, coisa de uma hora depois. Eu voltava!”, conta às gargalhadas, “enquanto o restante do pessoal ia namorar, jogar bola e etc”, esclarece. Como se o tempo todo estivesse com medo de perder a hora, talvez por hábito de controlar o horário das aulas para não exceder o tempo previsto, Ladenilson olha a quase todo momento para o relógio. Filho de nordestino com interiorana de São 52 Histórias de Cohabeiros Paulo, o paulista reforça o quanto foi importante ter sido criado com muita disciplina e rigor. “Eu brinco que sempre fui um menino de gaiola. Apenas quatro anos da minha vida que eu não morei em apartamento. Que foi no início da década de 70. Todo o resto da minha vida eu morei em apartamento. Morei, inclusive, em prédio de alto padrão, não porque meu pai tinha grana não, era justamente porque não tinha. Meu pai era zelador de prédio. Então você imagina o que é você ter dois filhos pequenos e ser zelador. Meu pai tinha toda uma preocupação, sempre falava para mim e para meu irmão que deveríamos nos comportar, se não ele não teria moral para chamar a atenção dos condôminos”, relembra. Formado em História pela USP, Universidade de São Paulo, e em Direito pela Faculdade São Francisco, o historiador afirma que os noticiários são os seus programas de TV favoritos, uma vez que sintetizam a comédia e o drama de cada dia e que o único esporte que pratica não é jogar futebol, e sim torcer para o Palmeiras, pois segundo ele “exige um esforço e tanto”. Com o humor que lhe é peculiar, Ladenilson se diz frustrado por não saber tocar nenhum instrumento, mas o que não o impede de ser fã de “música boa, de qualidade, como MPB, Jazz e Erudita”. Prova disso é a coleção de CD´s que tem em casa, com a qual cheio de cuidados, além, é claro, de 72% das comunidades Renata Rocha 53 do Orkut que faz parte, serem a respeito de intérpretes e estilos musicais. Ladenilson gosta de viver na Cohab, está reformando o apartamento em que mora, não pensa em mudar do bairro e fundamenta sua opção dizendo que “Os apartamentos da Cohab se você olhar do ponto de vista da metragem, eles são melhores do que muitos do centro de São Paulo. Veja a área privativa no caderno de imóveis e você vai descobrir que aqui os apartamentos não são tão pequenos assim. Agora se você olhar do viés localização, são apartamentos com valor de mercado muito baixo, que estão fora dos grandes centros e numa região de periferia e etc”. O professor cohabeiro acompanhou de perto a evolução e como ele diz “a degradação do bairro”. Entre as histórias a respeito da Cohab que faz questão de contar, exaltou-se quando falou a respeito da Praça Presidente Castelo Branco, que fica na Cohab II. “É aquela praça que hoje é uma vergonha. Ou você tem usuário de tóxicos ou casais de namorados se amassando. A inauguração daquela praça foi em junho de 1980, sou testemunha ocular da história, estava na inauguração. Foi um evento que parou o bairro. Veio até um familiar do Presidente Castelo Branco que eu não me lembro o grau de parentesco. Veio gente de todo o bairro e também vieram os escoteiros, de cujo agrupamento eu fazia parte na época, e que atuava, inclusive, como um dos mecanismos de socialização da Cohab. Essa praça 54 Histórias de Cohabeiros tinha o busto do Marechal, tinha uma placa de bronze, 1º Presidente da Revolução, tava lá. E no muro tinham vários mastros pra cada governo estadual. Em dias de feriado nacional e aos finais de semana, todas as bandeiras eram hasteadas. Então aquela praça foi bonita, ela foi bonita! Se você observar aquela praça hoje, está toda pichada e quando tentam pintar, os marginais vão lá e picham de novo. Hoje ela é um símbolo da degradação do bairro”, conclui com saudosismo e ar de indignação. Ladenilson, um homem de estatura baixa e magra, cabelos crespos e compridos até a metade dos ombros, se veste com roupas estilo hippie e sandálias de couro, como ele mesmo diz “estilo bicho grilo”. Afirma que a roupa que veste não diz quem ele é, mas serve de protesto contra os que adoram estereótipos. “No meu dia-a-dia me visto da forma que me sinto à vontade e que realmente gosto. Quando as pessoas me olham não imaginam quem é o Ladenilson”, conta, ao dizer em seguida que somente quando advoga em causas cíveis, trabalho que lhe serve como espécie de bico, que põe o terno e gravata que a profissão exige. Questiono se mesmo sendo contra estereótipos não acredita que o meio do qual fez e faz parte de alguma forma refletiu na pessoa que ele se tornou. Ladenilson é enfático em dizer que sim, que sob o seu ponto de vista o lugar Onde viveu, as pessoas que conheceu, as oportunidades que teve e principalmente a sua Renata Rocha 55 criação são também os responsáveis por ele tornar o Ladenilson que é, e recorda de algo que seu pai sempre lhe dizia: “A gente não pode escolher a nossa classe social, mas pode escolher entre ter ou não ter conhecimento, pois isso ninguém nunca vai poder tomar de você e vai fazer com que você se sinta bem em qualquer lugar”. Ao nos despedirmos vejo Ladenilson, que diariamente anda de ônibus, por não gostar de dirigir, atravessando a rua correndo, mesmo que os carros estejam a uma boa e larga distância. De repente vira e me diz, “cuidado que aqui os carros aparecem do nada!”. Agradeço, sorrio e me despeço. 56 Histórias de Cohabeiros Renata Rocha 57 “Quando eu estou aqui eu vivo este momento lindo Olhando pra você e as mesmas emoções sentindo São tantas já vividas, são momentos que eu não me esqueci Detalhes de uma vida, histórias que eu contei aqui Amigos eu ganhei, saudades eu senti partindo E às vezes eu deixei você me ver chorar sorrindo (...) Em paz com a vida e o que ela me traz Na fé que me faz otimista demais Se chorei ou se sorri O importante é que emoções eu vivi” Emoções (Erasmo Carlos / Roberto Carlos) Dona Marly Marly Cirlene Rainha dos Santos, interiorana de Presidente Prudente completa 30 anos de Cohab em 25 de maio, do próximo ano, data que a aposentada tem na ponta da língua. A exmerendeira e inspetora de alunos é chamada por todos do bairro de Dona Marly. Ela que é mãe de Samuel, Sandra, Sérgio, Sidny, Silvio e Suely, casou-se com Manoel Trindade, mais conhecido como seu Mané aos 13 anos de idade. Ambos são chamados desta maneira até por pessoas que tem a mesma, se não até mais, idade do que eles. Essa é uma forma de tratamento respeitosa que se tornou ao longo dos anos uma espécie de apelido. 58 Histórias de Cohabeiros Dona Marly tem os cabelos bem curtos e semiencaracolados, com um corte que deixa as orelhas a vista e utiliza há anos. Talvez por isso, os moradores do prédio em que reside tenham a impressão que ela não envelhece e possui a muito tempo a mesma aparência. Aos 61 anos Dona Marly, que para conceder a entrevista deixou no sofá o tricô que estava fazendo, enquanto assistia ao Programa “Silvio Santos”, afirma não ter mais sonhos “Não tenho mais idade para isso, eles já acabaram”, comenta fazendo sinal negativo com a cabeça, num tom de voz tranqüilo e olhar sereno demonstrando que realmente deixou de sonhar. Em seguida, repensa e aparentando certa insatisfação com a resposta que acabara de dar, acrescenta: “Eu já alcancei tudo o que eu queria. Sou muito feliz porque vejo meus filhos se realizando e meus netos crescendo. Eles são minha vida, e o que me faz feliz hoje é ver eles felizes. Isso pra mim é o que importa”. A merendeira diz não ter planejado nenhuma gravidez, pois “todos vieram” e quando se mudou para a Cohab quatro dos seis filhos já eram nascidos. Dona Marly conta que em 1978 quando passou a morar no bairro, a Cohab não tinha infra-estrutura. “Ah! era bem diferente! O chão era de terra. Não tinha luz de rua, não tinha posto de saúde, não tinha delegacia e não tinham escolas, depois que veio a Didita pra cá, que na época nem se chamava Didita, era a 4ª Escola da Cohab e era um barracão de verdade”, Renata Rocha 59 relata. Nessa época, a preocupação de Dona Marly também era a escassez de ônibus, pois segundo ela só havia uma linha que circulava na avenida principal do bairro e ficava há uma boa distância de sua casa e quando precisava de transporte à noite era muito complicado, por que as ruas não tinham iluminação. Segundo ela, não haviam paredes e nem garagens dividindo os prédios, como atualmente. Ao invés disso, existiam áreas recreativas. “O espaço era todo gramado, tinha playground e as crianças tinham onde brincar, coisa que hoje em dia já não tem mais. Mas nessa época não tinha garagem né? Na cabeça de quem fez a Cohab, pobre não tem carro”, comenta sorrindo com as palmas das duas mãos voltadas para cima, como se estivesse dizendo ‘fazer o quê?’, e completa “a gente sabe que não é bem assim, pelo contrário, tem gente que fez a vida aqui, que está super bem e não sai daqui porque não quer. É só dar uma olhada nos apartamentos e nos carros que tem por aí. Agora os que se mudaram, também fizeram a vida na Cohab”. A avó de Emanuelly, Gustavo, Letícia, Michelly, Mickaelly, Natasha, Rodolpho, Selma, Sergio Fernando, Sergio Gabriel, Silenne e Thiago, afirma que a relação com seus vizinhos sempre foi muito boa. Segundo Dona Marly a maioria dos moradores antigos, que vieram para Cohab no mesmo período que ela, há quase 30 anos atrás, já mudaram e que alguns até “já se foram”, maneira 60 Histórias de Cohabeiros sutil de se referir a morte. Alguns vizinhos da família Santos fazem, em tom de brincadeira uma queixa a respeito deles. Dizem que “irão dominar o 45”, isso porque além de Dona Marly e Seu Mané, moram no mesmo prédio, o então nomeado 45, Dona Guiomar, a mãe de Dona Marly, e mais três filhos do casal. Os outros dois filhos dos aposentados também residem no bairro, sendo que um deles na mesma rua e o outro na avenida principal, onde Dona Marly comentou que antigamente era o único local por onde os ônibus passavam. Apenas um dos filhos de Dona Marly não mora na Cohab, mas mesmo assim não mora longe, habita a cidade vizinha. “Todos os meus filhos gostam da Cohab, tanto que Sidny até já morou no interior de São Paulo, mas voltou pra cá”, conta Dona Marly, ao dizer que a infância dos filhos no bairro foi saudável e que as dos netos também está sendo. Diz que adora ver os netos brincarem entre si, estudarem na mesma escola e um freqüentar a casa do outro. “A vida é mais gostosa assim, porque é um tal de neto entrando aqui, saindo ali, é vó pra cá, vô pra lá. As crianças antes de ir para escola passam pra dar um beijo, quando voltam passam pra dar oi. Se meus filhos morassem longe seria muito triste, por que só eu e o Mané os dias demorariam muito pra passar. Tanto que tem dias que o tempo passa, voa que nem vejo! Mas têm outros que falo ‘nossa Mane que dia longo, que não passa’. Imagina se meus filhos e netos morassem longe?”, indaga concluindo. Renata Rocha 61 Enquanto a entrevista transcorre logo na entrada da sala, na pequena mesa quadrada, em que estamos sentadas em duas das quatro cadeiras de mogno, Dona Marly relembra que os momentos marcantes e de dificuldade, que passou na Cohab, foram todos envolvendo a saúde de seus familiares. Seus netos Rodolpho e Silenne que, inclusive, são irmãos, quando bebês tiveram problemas sérios. A avó, somente em recordar as ocasiões, muda de semblante e seu rosto se transforma como se estivesse arrepiada. Fica séria, apóia os cotovelos na mesa, coloca as duas mãos no rosto e conclui “tem coisas que a gente tem que passar, não tem jeito!”. Pergunto para a católica não praticante, mas que reza diariamente, se ela acredita em destino e Dona Marly diz que “Sim, claro! Tudo está escrito. Ninguém passa se não estiver determinado. Dizem por aí que Deus escreve certo por linhas tortas, não é? Então. Tem gente que diz que cada um faz o seu destino, mas se fosse assim ninguém escolheria passar por coisas ruins”, conclui. Pergunto para a bisavó de Giovanna, Isabela e Maria Fernanda, qual a opinião dela a respeito do termo Cohabeira, com freqüência utilizado pelos moradores da região. Dona Marly rapidamente responde que conhece algumas pessoas que não gostam de serem chamadas dessa forma, outras que não ligam e há os que se orgulham disso. Mas, para ela, ser chamada de Cohabeira, ou se autointitular dessa forma, é algo indiferente, que não 62 Histórias de Cohabeiros é pejorativo, mas que também não é um elogio. “Não é o bairro que faz as pessoas. Cada um faz o seu ambiente, o lugar não influência. Eu, por exemplo, sou reservada, sou caseira, fico na minha quietinha. Mas tem um monte de gente por aí que não”, completa. Vestida com um conjunto de blusa regata e calças pescador largas ao corpo e tecido aparentemente bem fresco, na cor bege claro e com estampa floral, Dona Marly diz que a única coisa da Cohab que atualmente a incomoda é o movimento de domingo no Barufi, local conhecido dessa forma até os dias atuais devido a um antigo supermercado que trazia essa nomenclatura e ficava na região. “O som dos carros é muito alto, os funks tem umas letras tão pesadas que não faz bem para as crianças ouvirem, além do barulho das motos que ficam pra cima e pra baixo. Mas é a juventude né? Fazer o que?”, diz. Conhecida por manter as unhas sempre bem feitas, cuidadas e coloridas, Dona Marly no dia da entrevista estava sem esmalte, mas com as unhas compridas, sem cutícula e devidamente lixadas. Vaidosa , conta que depois que se aposentou há 10 anos engordou em média um quilo por ano. Diz que seu único medo hoje é da morte. “Quero viver mais coisas, tenho muito que ver ainda. Quero ser igual à minha mãe, que aos 83 anos já conhece os tataranetos”, diz sorrindo e completa “Minha mãe é interona pra idade dela. Quando saímos juntas para ir aos médicos da vida, as pessoas perguntam Renata Rocha 63 se ela é minha irmã!”. Quando fala a respeito de si, Dona Marly diz que se considera uma pessoa pegajosa, chata e terrível. “O que quero, quero ali ó, certinho, consigo tudo do meu jeito. Não tombo fácil! Tem horas que penso que vou entregar os pontos, mas passa rapidinho. Sou uma mulher valente e batalhadora, meu defeito talvez seja ser perfeccionista demais”. Finalizada a entrevista e enquanto nos despedimos na cozinha, a fã de Roberto Carlos e de música romântica, aponta para Nani, sua nova cadela de estimação, e diz que a cachorrinha bege, que vem da mistura de chiwawa com poodle, sente ciúmes do vô, referindo-se a Seu Mané. “Eu estava aqui tomando café hoje logo cedo, aí o vô veio atrás de mim fazer massagem, porque eu não dormi bem à noite e fiquei com dor nos ombros, acredita que ela ficou com ciúmes e começou a latir sem parar? Eu mereço viu!”, conta com brilho nos olhos e com o sorriso de uma mulher apaixonada, que vê graça na situação. 64 Histórias de Cohabeiros Renata Rocha 65 “(...) Música para estar distante Música para estourar falante Música para tocar no estádio Música para escutar rádio Música para ouvir no dentista Música para dançar na pista Música para cantar no chuveiro Música para ganhar dinheiro (...) Música para ouvir Música para ouvir Música para ouvir” Música para ouvir (Arnaldo Antunes) Dance and Fly Para Wagner Garcia, mais conhecido como Fly, apelido criado por amigos que o consideram muito calmo e dizem que vive voando, o rapaz gostou da idéia e o utiliza como nome profissional de DJ, o Onde determina o Quem. “No meu caso influenciou, pois a Cohab tem uma veia cultural e artística muito forte, temos muitas coisas acontecendo por aqui em todos os estilos de arte. Eu particularmente me espelhei no Noel e no Jairinho, que em meados de 86 montaram numa garagem um mini estúdio que se tornou ponto de encontro de interessados na cultura DJ. Deu muito certo até 1994, pois com o surgimento de artistas do chamado estilo Pop, como Daniela Mercury, Skank, Cidade Negra e 66 Histórias de Cohabeiros Negritude Jr., a cultura de clubes teve uma mudança forte e as grandes festas especializadas em música eletrônica foram decaindo. Então Noel e Jairinho tomaram rumos diferentes, ambos atualmente tem suas profissões como qualquer cidadão considerado normal, mas até hoje são apaixonados pela arte DJ. Eu acompanhei tudo isso de perto e paralelamente eu escrevi a minha história no meio musical, com muitas influências destes dois meninos. Hoje tenho muito orgulho e alegria de uns sete anos para cá trabalhar com eles em apresentações por aí e, principalmente, por eles quinzenalmente darem som no Cassimira, o meu Clube”, conta o Cohabeiro de nascença. Fly descobriu a paixão pela música nos anos 80, quando colecionava discos e diz ter descoberto a cultura DJ em 1992, quando então iniciou sua carreira profissional discotecando por toda zona oeste de São Paulo e conseguiu ao longo desses anos se apresentar também em Minas Gerais, Rio de Janeiro, Espírito Santo e Paraná. Há quase um ano, em parceria com seu amigo e produtor Marcelo Amaral, montou o Cassimira um local que o define como “um mini clube especializado em música eletrônica alternativa de boa qualidade, algo bem underground, que surgiu devido ao cansaço de produzir festas em espaços totalmente capitalistas”. O local, que até então eram duas garagens do prédio onde o DJ mora, fica com as portas viradas para a rua e é dividido em duas partes, sendo que em Renata Rocha 67 uma fica a pista de dança e no outra o barzinho. Cada garagem mede 2,3m por 6m, ou seja, pouco mais que 12 metros quadrados e a decoração de ambos os ambientes, que têm as paredes vermelhas, num tom quase vinho, é cheia de detalhes. Há um lustre com fitas coloridas que são conhecidas como pulseiras do senhor do bom fim; uma mascara comprada em Manaus; uma tela com pinturas de desenhos de negros trabalhando, que o sócio de Fly ganhou de um amigo que foi para a África; alguns piscas-piscas em formato de abacaxi; os tecidos das banquetas são florais; na parede da pista de dança tem um desenho de um alvo em alto relevo, na cor preta; além do lagarto, símbolo do Cassimira, feito de papel marche por um artesão de Embu das Artes. Uma mistura de elementos que juntos tem sintonia e colorem o ambiente. No barzinho há uma prateleira com revistas e livros comunitários, que tem sempre um exemplar do dia do jornal Folha de S. Paulo e serve uma espécie de mini biblioteca, que fica disponível para quem quiser ler e se aprofundar no assunto música e cultura. Nesse mesmo espaço o DJ e seu sócio também comercializam CD´s de música eletrônica a custo médio de R$15. “Vendo esses CD´s a preço de custo, por pura ideologia. Compro na Under Ground Records Brasil e vendo aqui pelo mesmo preço e tenho até prejuízo, porque não calculo o preço da gasolina pra ir buscar. Enchi a paciência do dono da gravadora pra conseguir revender aqui, porque 68 Histórias de Cohabeiros em lojas não custa menos que R$30. Aí quando consegui pensei ‘meu Deus onde vou expor?’. Ah fui correr atrás de onde”, conta. Os CD´s ficam expostos num mostruário que foi um presente de uma cabeleireira cujo salão fica ali próximo, cinco garagens à frente que também serve de pontos comerciais. “Aqui todo mundo se ajuda mesmo”, enfatiza Fly ao contar que para conseguir essa prateleira foi na farmácia, padaria, academia, papelaria, pizzaria, mercearia e pet shop do bairro, até que a Sandra, a dona do Salão de beleza, lhe doou uma. Já a pista de dança tem luzes e mais luzes, que dão o toque especial de discoteca, tecidos com estampas de oncinha e também de estilo psicodélicos, pufz coloridos e, claro, as aparelhagens que tecnicamente são chamadas de pick-ups e quando manipuladas pelos DJ’s dão o som. Quando pergunto se Fly não considera o espaço muito pequeno, o DJ o define como um lugar aconchegante e afirma que a idéia do “clubinho” consiste mesmo em que a curtição aconteça nas calçadas e na rua, onde tem espaço pra todo mundo se divertir e ser efetivamente o que acontece. É por isso que um dos projetos de Fly se chama Dançando na Rua. Cassimira, que aos finais de semana atende em média 70 pessoas, quinzenalmente recebe DJ’s convidados, além dos já residentes Noel, Jairo Vendramini, Douglas, Robson, Marcelo S, Royal, André Bacon e do próprio Fly, funciona de terça a domingo, das 14 às 22h na Rua Belém. Orgulhoso, Renata Rocha 69 o dono do clube cita os nomes dos Dj´s que já trouxe até seu estabelecimento. “Já vieram aqui Renato Lopes, Julião, Mimi, Mr. Gil, Bunnys, Cláudia Assef, Daniel Cozta, Alessandra Soares, Gláucia++, Paula, Carol Campos, Felício Marmitex, André Juliani, Bruno Gouvêa, Pil Marques, Sub, Eric Kapri, Tigrão, Ita, Ana Flávia, Benjamin Ferreira, Camilo Rocha e Ton”, conta. Os estilos mais tocados no barzinho, que não tem nenhum funcionário a não ser os próprios donos, são House, Techno e Electro. Fly conta que a inauguração da “pistinha de dança” foi o dia em que sem dúvida Cassimira teve mais movimento, pois participaram mais ou menos 100 pessoas. Segundo a jornalista da revista DJMAG Brasil e autora do livro Todo DJ já sambou, Claúdia Assef, “a pesquisa musical é algo que é realmente levado a sério pela turma do Cassimira. Além dos DJs famosos que dão pinta por lá, um de seus residentes, Jairo Vendramini, o Jairinho, é uma verdadeira enciclopédia ambulante de música eletrônica. O cara é o único moderador e editor brasileiro do site Discogs, a maior base de dados do planeta quando se fala em e-music. Ele está entre as vinte pessoas que mais alimentam um site no mundo. De residentes, aliás, o Cassimira não está fraco. Outro talento que sempre toca por lá é o DJ Robson, um dos maiores entendedores de Detroit tecno do país”, afirma. 70 Histórias de Cohabeiros Com ensino médio completo, o DJ cuida da imagem de seu espaço com dedicação. Quando não está atendendo aos clientes, Fly está dentro do bar, sentado na cadeira e apoiado na mesa de metal branca, tipicamente presente em bares, mas que tem estampada a logomarca do Cassimira, assim como em todas as outras, concentrado em seu note book conversando com seus contatos via MSN, acessando a comunidade do Cassimira no Orkut, convidando mais pessoas a tornarem-se membros e aceitando amigos, clientes e conhecidos em seu perfil pessoal, que tem no mesmo site de relacionamentos. Semanalmente o DJ envia e-mail marketing, uma espécie de propaganda feita via Internet que apresenta a agenda da semana do Cassimira, para seu banco de endereços e afirma atingir em média 5.000 pessoas. A escolha de um lagarto como logomarca para o clube também foi do Marcelo, o sócio, que segundo Fly deve ter algum significado hytec. Ele, que por ser um dos donos do “clubinho”, que já foi notícia de mídias como jornal Folha de S.Paulo, O Estado de S. Paulo, Jornal da Tarde, Revista DJ MAG Brasil e do site rraurl.com, tem à disposição de quem o procura, releases a respeito do Cassimira Clube e de sua carreira, que conta sua trajetória de como passou de curioso à DJ. Aos 30 anos, cobiçado pelas mulheres que o descrevem como um homem atraente, Fly, que a todo momento durante a entrevista cita o nome da Renata Rocha 71 namorada Juliana, diz que o melhor da Cohab é existir muita gente, animação e solidariedade entre as pessoas. “Veja se isso não é solidariedade, as mesas e cadeiras do Cassimira estão na frente dos outros comércios. Os vizinhos que ainda utilizam as garagens como garagens não se importam de eu deixar as mesas e cadeiras na frente. Outro dia mesmo a delegada, que foi minha amiga de infância, dona dessa garagem aqui. Peguei ela na boa tirando as cadeiras da frente para conseguir estacionar e quando fui ajudar ela já estava devolvendo as cadeiras de onde tirou pra guardar o carro. Vem me dizer que isso não é solidariedade?” conta gesticulando e como se estive ainda descrente do que havia visto. O DJ de 1,85m, olhos verdes e português correto, lamenta o desdém das autoridades perante a Cohab que não cuidam das pessoas e diz que sob seu ponto de vista os defeitos do bairro são a má conservação dos prédios e o fato do bairro ser mau visto pelas pessoas que moram em outros lugares, fora dali. “Ser Cohabeiro é sim um elogio para mim, porque aqui cresci, esse é o meu lugar, sou daqui e nunca tive vergonha de dizer onde moro. Moro na Cohab, pois aqui tenho condições de pagar as minhas contas. Agora, se eu tivesse oportunidade de mudar eu mudaria somente na hora certa, pois saberia que chegou o momento de crescer para outros lados”, conclui ao dizer que comparando o bairro nos dias atuais com o que era há 20 anos atrás, hoje as pessoas tendem 72 Histórias de Cohabeiros a ter mais cultura, pois antigamente cada um tinha sua tribo e se restringia, mas atualmente percebe a mudança desse cenário, levando em consideração seu convívio com os moradores, segundo Fly, os Cohabeiros estão mais abertos a outras culturas, a adquirir outros conhecimentos. “Os três sentimentos que tenho por esse lugar são amor, orgulho e respeito , resolvi montar o meu barzinho aqui para ser uma proposta diferente das 100 mil já existentes”, finaliza. Pergunto para Fly, que faz de seu estabelecimento um projeto de vida e divulgar a música eletrônica underground um sonho, por que do nome Cassimira. Ele espontaneamente diz que o barzinho chama-se dessa forma, pois quando saia com um grande amigo chamado Alexandre, o colega dizia que dentro das festas tornava-se Alessandra Cassimira e como o DJ ria muito disso, resolveu batizar seu estabelecimento assim, Cassimira. “Eu e o Marcelo investimos R$15.000 no Cassimira. Já faz quase um ano que o clubinho existe e ainda não tivemos o retorno do investimento. Tudo foi pago a vista, mas o estabelecimento tem que se pagar certo? A sorte é que o Marcelo tem uma carreira profissional fora, vive até viajando pelo país e eu sou DJ, dou festa por aí, porque só daqui não dá pra viver não” acrescenta. Quando fala a respeito dele mesmo, algo raro, pois seu assunto predileto é o Cassimira, se define como “um maluco que nunca ligou para dinheiro, por isso é um duro, Renata Rocha 73 apaixonado pela cultura DJ e como viu que nada seria feito onde vive para desenvolvê-la, luta nos últimos 15 anos para que isso aconteça”, diz com gestos que legitimam e impõem sua fala. Fly afirma ser muito chato, a ponto de acreditar piamente que sofre de TOC, Transtorno Obsessivo Compulsivo, terminologia que aprendeu com a namorada Juliana que é Terapeuta Ocupacional. O DJ atribui ao seu comportamento o fato de colocar ordem no barzinho e, por isso, nunca ter passado alguma situação de risco, confusão ou de medo no clube. “Sou maluco por organização. Mas é loucura mesmo! O computador tem que estar sempre retinho na mesa , a pia do barzinho com tudo no lugar. É loucura mesmo”, afirma dizendo que isso é algo que já vem de família, pois sua mãe também é assim. Um homem, que afirma ter por defeitos acreditar nas pessoas, querer ajudá-las e ser sistemático demais, diz com prazer ser dono de três grandes qualidades: determinação, determinação e determinação. 74 Histórias de Cohabeiros Renata Rocha 75 “(...) Eu vou chegar Pedir e agradecer Pois a vitória de um homem As vezes se esconde Num gesto forte Que só ele pode ver... Eu sou guerreiro Sou trabalhador E todo dia vou encarar Com fé em Deus E na minha batalha (...)” Lado B Lado A (Marcelo Yuka / Falcão) Edite. Sinônimo de labuta Edite de Paula Lomeu é cafezeira no Ceagesp há mais de 15 anos. Lá, local também conhecido como Ceasa, além de café, vende chocolate quente, leite, refrigerante, vários tipos de salgados, bolos, tortas, entre outras coisas feitas por ela. Prestes a se aposentar, sempre pagou INSS e acabou de entrar com o pedido na Previdência, Edite deixa no Ceasa o carrinho que é o seu ponto de venda e todos os dias leva de sua casa os itens que põe à venda. Para preparar os alimentos e bebidas, a cafezeira levanta todos os dias às 4 h da manhã. “Deu a hora eu levanto, pulo da cama e vou embora”, diz. Atualmente é isenta da taxa de R$80 mensais que 76 Histórias de Cohabeiros o Ceasa cobra para manter os carrinhos lá dentro, pois já tem mais de 60 anos e conta que existem em média 200 cafezeiras no Ceagesp e as cinco que trabalham nos mesmos três pavilhões que ela, são suas amigas e todas se ajudam. “Quando o freguês pede alguma coisa que alguém não tem, uma empresta pra outra”, conta. Edite faz questão de dizer que em sua banca tudo é “bem fresquinho” e vende 100% dos produtos diariamente. “Como já tenho cliente fixo deixo mais ou menos uns R$50 por dia com coisas que vendo fiado e levo R$50 pra casa, dos R$100 que tiro”, esclarece. Apaixonada pelo trabalho, Edite diz que ama o que faz e que se diverte muito enquanto trabalha. Conta que constantemente é assediada pelos novos clientes e antigos amigos do Ceasa, mas que tudo não passa de brincadeira e quando percebe que tem alguém falando sério não pensa duas vezes e diz “nem te conheço cara, sai fora!”, conta rindo com o rosto corado. Edite lembra-se de uma única vez em que um amigo ficou fazendo gracinhas e como ela não estava gostando pediu para ele parar e o sujeito não se tocava e continuava fazendo piadinhas. “Não deu outra, quebrei uma garrafa de vidro na cabeça do homem. Eu avisei antes para ele parar, ele não parou, pronto levou na testa. Mas isso já passou já, hoje em dia a gente até se fala normal, fizemos as pazes. Eu falo sempre sou pequena mas valho mais que um grandão”, conta as gargalhadas. Renata Rocha 77 A cafezeira toma ônibus todos os dias às 5h45, para chegar o mais cedo possível ao trabalho. Nesse horário o dia está começando a clarear e, por isso, diz ter medo de ficar no ponto de ônibus sozinha. “Os nóinhas que tão na rua até essa hora falam ‘pode passar tia a gente não vai fazer nada não’, mas mesmo assim fico com medo”, comenta escondendo o rosto com as duas mãos e continua “Já fui assaltada uma vez logo cedo, ai credo! Tenho muito medo de ladrão e por isso chego no ponto bem na hora que o ônibus passa”, conta. Edite se recorda de certa vez ter presenciado um tiroteio em frente ao Ceasa que teve que passar com todas as sacolas por debaixo do portão do Ceagesp, porque estava fechado. “Fiquei desesperada, credo!”, diz demonstrando repulsa. A mineira mudou para a Cohab há 19 anos e mora há 14 no mesmo apartamento que, será seu no próximo ano quando terminar de pagá-lo. Edite saiu de sua terra natal com dois de seus três filhos, quando descobriu que o marido a traía. O outro filho, que já era maior de idade, não quis vir para São Paulo e optou por ficar com o pai, que assumiu a amante com a qual vive até hoje. Esbanjando alto astral, a cafezeira afirma gostar de movimento, de gente e adorar fazer muitas coisas para progredir sempre. “Quando era casada o meu marido não me deixava fazer nada e eu vivia doente. Hoje em dia sou livre, ando muito pra cima e pra baixo e nem gripe eu tenho. Pago todas minhas contas e 78 Histórias de Cohabeiros mantenho minha casa. Chego em casa por volta do meio dia, limpo tudo, faço mercado e ainda tem o Jorge”, diz. Edite considera sua relação com os vizinhos muito boa, tem amizade com todo mundo e diz ficar na sua e não fazer fofoca de ninguém. Ela que adora ouvir música popular diz ser fã da Cohab. “A Cohab é uma beleza! Não precisa mudar em nada, pois ta sempre melhorando. Daqui eu não saio nunca mais!”, diz. Jorge é o neto de Edite, filho de Mônica, a única filha mulher da cafezeira. Filho de pais separados desde que nasceu, mora na Cohab com a mãe e com a avó. Há pouco tempo a mãe de Jorge mudou-se para São Matheus com o atual marido e com a filha mais nova Munieli, de 06 anos, e Jorge preferiu ficar com a avó. Edite diz que ele é o seu companheiro. “Eu falo para ele “mas Jorge ela é a sua mãe” e ele vai visitá-la mas sempre volta, dizendo que sua casa é aqui”, conta. A respeito do pai de Jorge a cafezeira não se contém e diz: “o pai do Jorge é um safado que não ta pagando pensão. A mãe dele já entrou na justiça porque o menino quer fazer faculdade ano que vem e vai precisar da ajuda do pai”. Pergunto qual faculdade Jorge quer cursar e Edite com olhar orgulhoso e sorriso ainda mais largo que o habitual diz que não sabe direito o nome, não se recorda bem, mas ele quer trabalhar na bolsa de valores. A Vó do Jorge, como Edite é conhecida no prédio onde mora, é uma senhora animada e Renata Rocha 79 sorridente, que usa óculos arredondados, tem cabelos curtos, bem enrolados, quase crespos, na metade da orelha e tingidos de preto. Ela que se veste com roupas consideradas jovens, como vestidos de alça, e por gostar de bijuterias usa normalmente em média três anéis prateados na mesma mão, freqüenta bailes dançantes e namora há 15 anos com Gilberto. “Chamo ele de meu ficante”, conta rindo e explica-se com o rosto envergonhado “falo isso porque cada um mora na sua casa”. Aos 65 anos e seus 1,40m de altura, Edite se considera uma mulher dinâmica, e como ela mesma diz “pra frente”, tanto que afirma dar bronca nos amigos mais parados. “A Margarida mesmo, que é minha amiga desde que mudei para São Paulo, vivo falando pra ela esquecer os problemas, uma mulher batalhadora que formou todos os filhos na faculdade, agora fica se queixando por coisinhas, ah não! Falo pra ela deixa pra lá Margarida, a vida é assim mesmo e o melhor que você tem pra fazer é esquecer e agradecer a Deus isso sim!”, conta. Pergunto para Edite se essa felicidade e vontade de viver que faz questão de esbanjar é permanente, ou se há algo que a entristeça. A cafezeira se cala por um instante, desvia o olhar para o chão e diz que não, as lembranças de seu filho caçula ainda mexem muito com ela. Há 13 anos, numa tarde de 1º de abril, Edite acordou agoniada, com mau pressentimento e aperto no coração, mas resolveu deixar pra lá. Ao voltar do 80 Histórias de Cohabeiros trabalho, o filho de 17 anos comentou que havia vendido a bicicleta e entregou o dinheiro para a cafezeira. Disse que naquele dia não queria almoçar em casa e preferiu ir à tia que morava ali perto na Cohab V. No caminho queria aproveitar para entregar a bicicleta ao rapaz que havia comprado e para chegar mais rápido pegou rabeira num caminhão. Depois disso Edite nunca mais viu seu filho vivo. Ele foi atropelado e morreu na hora. “Desde pequeno quando ele nasceu parecia que não iria ficar nesse mundo. É tão esquisito, minha filha sempre foi baladeira, o meu outro filho que mora em Minas sempre andou de moto pra cima e para baixo. Ele que vivia dentro de casa comigo, foi primeiro”, conta com a cabeça fazendo sinal negativo e com a mão direita no peito. Depois de perder o filho, Edite mudou-se do prédio em que morava, pois constantemente passava em frente ao local do acidente e isso lhe fazia muito mal, tanto que até hoje diz desviar desse caminho, pois não gosta de passar por ali e foge da lembrança. Subitamente volta a estampar o sorriso no rosto e diz “Mas essa é a única coisa ruim que me recordo, o resto aqui é tudo bom! Tenho muita fé e Deus me ajuda muito. Foi ele quem me tirou toda a tristeza do meu coração”, diz. Edite, deriva do anglo-saxão Eadgyth. ‘Gyth’ é combate e ‘ead’ pelas riquezas. E essa é a Edite, a Vó do Jorge, que assim como o significado de seu nome é sinônimo de labuta para os que a conhecem e a admiram. Renata Rocha 81 82 Histórias de Cohabeiros “Eu sei que tenho muitas garotas Todas gamadinhas por mim E todo dia é uma agonia Não posso mais andar na rua, é o fim (...) Sei de muito broto Que anda louco Pra dar uma bitoca ni mim (...) Eu era neném Não tinha talco Mamãe passou açúcar em mim” Mamãe passou açúcar em mim (Wilson Simonal) O fantástico mundo de Bob Onde quer que vá na Cohab Bob é conhecido por ser um tirador de sarro de primeira e fazer amizade rápido. Conhece as pessoas pelos nomes, quando não, dá apelidos para facilitar na memorização e não esquecer quem são elas. Também é natural de Bob querer sempre ajudar as pessoas, seus vizinhos e amigos cohabeiros. Ajuda desde a Dona Joana, sua vizinha de escada que praticamente o viu nascer, a levar as sacolas com as compras feitas no mercado do bairro, aos amigos de boteco, que embebedados não conseguem se quer chegar em casa sozinhos. “A Dona Joana me adora, porque onde vejo ela pego as coisas pra ajudar a subir a rua e as escadas. Aí ela pra me agradar faz Renata Rocha 83 alguma coisa gostosa na casa dela e vai lá em casa levar pra mim experimentar”, conta todo sorridente. Com ensino fundamental completo, solteiro e aos 21 anos, Bob adora dançar forró universitário e “catar a mulherada”, como mesmo diz. “Eu sou muito sacana, qualquer dia vou apanhar na rua por pegar mulher dos outros. Tenho açúcar, minha mãe em vez de colocar talco na minha fralda colocava açúcar. Sou muito tranqueira”, afirma ao dizer que a barriguinha sobressalente faz muito sucesso por aí. Seu nome de registro, que não é utilizado nem em ambiente de trabalho, pois profissionalmente também é chamado por Bob, é Henrique Lima de Araújo. Lembra-se que ganhou o apelido em 1995, quando tinha nove anos, de dois amigos mais velhos que na época moravam no mesmo prédio, por causa de um desenho chamado ‘O Fantástico Mundo de Bobby’, em que o garoto protagonista “era cabeçudo e vivia viajando na maionese”, e, por isso, tinha tudo haver com o ele, o até então Henrique. Bob conta que no começo eu não gostava da brincadeira, ficava bravo e irritado e chegou até a chorar de raiva por causa da gozação dos amigos, mas que com o passar do tempo não ligou mais, tanto que traz o apelido consigo até hoje e se apresenta dessa forma “oi, prazer eu sou o Bob”. Assim como ele faz piadas o tempo todo com as características pessoais dos conhecidos, mexe com todos que passam na rua, cumprimentando 84 Histórias de Cohabeiros sempre com comentários engraçados, os amigos de Bob também não deixam passar uma oportunidade se quer para fazer graça com ele. “Ah é um zuando o outro. Tem uns nego aí que pra zuar me chamam de Cirrose, porque vivo com cara de ressaca e fico no bar da Dona Rosa de terça a sábado, porque de domingo e segunda não bebo, ou me chamam de costeleta, porque uso costeleta comprida. Ah e outros me chamam de RQ, por causa do sotaque do nordeste da minha mãe, quando me grita no prédio pra me chamar, porque não parece que ela fala Henrique, mas RQ”, acrescenta. Bob vem de uma educação rigorosa em que tinha horário pra tudo: para voltar da rua, para almoçar, jantar, estudar e tomar banho. Os três filhos de Maria, Ednilson, Erica e Henrique, foram criados somente por ela, pois o gestor da família, Edílson Alves de Araújo, faleceu de derrame aos 36 anos, quando Ednilson tinha 10 anos, Erica 5 e Henrique 10 meses de vida. Sozinha, a dona de casa mora com os filhos e neto, filho de Erica, no apartamento que herdou do marido e mantém a família com a pensão que ganha até os dias atuais. Em tom de piada, Bob diz que “a pensão é bem gorda viu, tanto que minha mãe sustenta três filhos desempregados” ao afirmar que se o pai, que só conhece por foto e o chamava de pica pau por causa do cabelo espetado que tinha quando bebê, ainda estivesse vivo, com certeza já não estariam mais morando na Cohab, já teriam mudado. “Meu pai Renata Rocha 85 trabalhava na Ericson e ganhava maior bem. Ele não gostava da Cohab e só veio pra cá porque foi aqui que na época tinha condições de comprar, mas com certeza teríamos mudado daqui se ele ainda fosse vivo”, reforça. Até os 16 anos era da religião Testemunha de Jeová, também seguida por sua mãe e irmãos, e circulava pelo bairro sempre de social e com uma pasta preta nas mãos. Deixou a religião, pois segundo ele começou a “fazer coisa errada, pegar a mulherada, as fixas e as reservas né? Comecei a sair, beber e fumar cigarro, essas coisas do mundo aí”. Em sua página pessoal no site de relacionamentos orkut, Bob se diz ateu, mas durante a entrevista afirmou ser cristão, acreditar em Deus e saber que ele existe e que diz que é ateu, pois não gosta de discutir religião e “pra ninguém ficar enchendo o saco. Odeio quando ficam dizendo ‘Jesus te ama’, ‘Jesus te ama’, isso é uma coisa tão óbvia que todo mundo sabe, não precisa ficar repetindo. Os caras nem conhecem a bíblia direito e vêm querer dar um bom. Não gosto disso, mando logo a merda”, desabafa. Mesmo com a educação rígida da mãe, Bob durante a infância adorava aprontar e fazer arte com uma vizinha em específico. “Era legal zuar com ela porque ela veio da Bahia e era engraçado ouvir ela xingando ‘seus filho de uma rapariga’. Eu e os moleque amarava o trinco da porta dela, tocava a campainha e saia correndo. Ela tentava abrir e não conseguia porque tava amarrado”, diz às 86 Histórias de Cohabeiros gargalhadas e completa “a gente fazia isso direto com ela. Até bombinha na porta dela eu jogava”, relembra. Bob só podia brincar no prédio até às 7 da noite. Dava esse horário Maria, a mãe dele, chamava gritando da porta de seu apartamento ‘RQ’, assim como contam os amigos de Bob. Ele subia as escadas chorando, pois mora no último andar, porque queria continuar brincando com as outras crianças, mas mesmo não querendo ir pra casa, não tinha jeito, ia para não desobedecer a mãe. “Eu era muito chorão, mas não coloca isso aí hein?”, adverte pedindo para que eu omita esse detalhe de sua história. O respeito do gozador, que não tira boné da cabeça, por sua mãe ainda é tão grande que nem gírias fala na frente dela. “Minha mãe me dá bronca todo dia. Quando to em casa ela diz que to preguiçoso e quando to na rua ela diz que sou rueiro demais. Ela não decide, mas eu não ligo não, eu respeito”, conta rindo e dizendo que Maria se diverte com ele, com as brincadeiras e piadas do filho, mas que mesmo assim ‘puxa a orelha’ sempre. Bob, que já foi atendente de crédito, assistente administrativo e corretor de imóveis por uma semana, atualmente está desempregado, mas usufruindo seguro desemprego do último trabalho que teve, cujo benefício vai até metade do próximo ano. “Não peço dinheiro pra minha mãe pra sair ou pra comprar cigarro, faço minhas mutretas”, esclarece. Ele, que usa na mesma mão três anéis Renata Rocha 87 pretos feitos de coquinho, uma espécie de madeira, diz que o maior sonho de sua vida e o seu objetivo atual é virar político. “Todo mundo quando perguntava o que eu queria ser quando crescesse eu dizia que queria ser político, é um sonho desde pequeno” reforça. Atualmente é presidente da ala jovem de um partido e se reúne todos os dias com os membros da equipe para discutirem a campanha e os projetos para o próximo ano. Conta que as reuniões são de certa forma secretas, para não chamar atenção de outros partidos e pretende começar sua carreira na política como assessor do atual candidato pra prefeito do partido do qual é filiado. “Daqui a quatro anos vou ser vereador eleito pela Cohab, depois vou ser prefeito de Carapicuíba, depois deputado estadual, para então ser deputado federal e finalmente chegar na presidência da república. Já vou cortar meu dedo e deixar a barba crescer, se você quiser inclusive te arrumo emprego em uma grande emissora de TV até, olha? Vote no Bob”, diz em tom sarcástico comparando-se com o Presidente da República Luis Inácio Lula da Silva, rindo como se tudo o que dissera fosse algo simples e já determinado, certo de que irá acontecer e acrescenta que “isso é política. Acordos e mais acordos entre cavalheiros. Você aprova o meu que eu aprovo o seu e assim vai. O duro é precisar apoiar um negócio ruim, aí ninguém merece”. Planos para Cohab para quando for candidato a vereador, Bob tem aos montes, fala de melhorar os 88 Histórias de Cohabeiros postos de saúde para ficarem com atendimento descente, reclama da falta investimento na infra estrutura do bairro, quer pleitear a construção de áreas recreativas ou empresas nos terrenos vazios que ainda existem na Cohab, mas deixa claro que tudo isso não depende só dele, pois vai depender dos apoios que conseguir na câmara ao longo de seu mandato. O futuro político diz que os moradores do bairro são muito hospitaleiros, que recebem bem todo mundo e que a Cohab é um bom lugar de se morar, mesmo não tendo o lado negativo “os prédios são horríveis, mais parecem ninhos, as ruas são destruídas, fora que não tem balada pra gente. O movimento de domingo então, com aquele monte de carro com som ligado, bicicleta e moto pra cima pra baixo, é coisa de viado que não vai catar mulher e fica impinando moto. É uma droga e pura falta de educação”, afirma incisivo. Mesmo considerando esses fatores, Bob diz que não muda da Cohab de jeito nenhum, porque gosta do lugar e pronto. “Só saio daqui se engravidar alguém e precisar me esconder. Até quando eu for Presidente da República vou morar aqui, vou comprar cinco apartamentos, emendar um no outro, fazer uma cobertura e colocar uns cinco seguranças na porta pra ficar de boa”, diz às gargalhadas. Para o cohabeiro o bairro mudou muito nos últimos anos. “Na verdade mudou tudo na Cohab, mas acho que o que ta pior é a bandidagem aí, mas o prédio está a mesma coisa, as brigas de vizinhos Renata Rocha 89 continuam, o barulho, tudo igual, isso acho que não muda nunca não”, diz. Ele, que considera se auto-analisar e dizer quais são seus defeitos e qualidades coisa de gay, ao perguntar qual seu maior medo, diz de cara que não tem nenhum, nem da morte. Mas, de repente faz uma pausa, pára, pensa, faz cara de quem está se concentrando e refaz a resposta. “Na verdade tenho medo de umas coisas aí. Tenho medo de dirigir, sou uma lesma no volante porque tenho medo de acidente de carro, tanto que nem carta de motorista tirei ainda e não gosto de andar com quem dirige correndo. Eu sou claustrofóbico também, não consigo me imaginar preso, até no banheiro tenho medo, cago de porta aberta”, conta escondendo o constrangimento de admitir ter medo através do tom humorístico quando conta detalhes de como faz suas necessidades fisiológicas. Bob não acredita em destino, pois diz que “quem tem destino é ônibus. A gente faz o que quer e o que bem entende com a nossa vida. Agora em missão eu acredito, cada um vem pra Terra pra cumprir alguma coisa, mas em destino eu não acredito mesmo”, mas acredita que o onde influencia o quem, porque segundo ele se a pessoa vive num ambiente em que o pensamento é pequeno, essa pessoa tem a forte tendência de também ter a mente curta, se não se esforçar para sair do seu mundinho. Para ele ser cohabeiro é sinônimo de “um povo pobre, que gosta de uma briga, 90 Histórias de Cohabeiros é tudo meio doido e adora um fuxico, mas que tem lá suas exceções, que depende de cada um. Mas ainda acho que de cohabeiro e médico todo mundo tem um pouco”, brinca ao dizer que mesmo quando está na balada não esconde das garotas que mora na Cohab. “Eu sou cohabeiro mesmo e não tenho vergonha de falar não. Tenho uns amigos aí que falam pras menininhas que são de Osasco. Eu não, chego na mina de boa, sou assim mesmo, moro na Cohab mesmo e digo ‘chega aí vem ver o que é bom’, to acostumado a ser chamado de cohabeiro”. Esse é o fantástico mundo de Bob. Não do Bobby do desenho, cuja grafia é com duas letras b e uma letra y, mas, sim, do Bob da vida real. Renata Rocha 91 92 Histórias de Cohabeiros “(...) Não tem dó no peito não tem jeito não tem ninguém que mereça não tem coração que esqueça não tem pé não tem cabeça não dá pé não é direito não foi nada, eu não fiz nada disso e você fez um bicho de sete cabeças Bicho de sete cabeças, bicho de sete cabeças Bicho de sete cabeças” Bicho de sete cabeças (Geraldo Azevedo) Não sou Nhaca, sou Evanildo Se você perguntar por Evanildo provavelmente ninguém vai saber lhe dizer quem é ele, o que faz exatamente e em qual prédio da Cohab mora. Mas, se perguntar por Nhaca, aí sim conseguirá chegar até ele. Evanildo Emídio da Silva e Nhaca são a mesma pessoa. Um homem negro de 1,80m, olhos grandes e pretos, com dentes amarelos, isso é, os que ainda lhe restam tem essa coloração, vestimenta constantemente simples e surrada, de fala lenta e andar cansado. É cohabeiro há mais de 20 anos, quase a metade de sua vida, e é uma pessoa muito conhecida no bairro por fazer bicos de serviços manuais como pedreiro e pintor. Mas sua profissão, que levanta as sete da manhã diariamente pra exercer, é carroceiro. Renata Rocha 93 Nhaca, quer dizer, Evanildo, foi alcoólatra durante toda a vida e parou com o vício a menos de um ano, pois por problemas de saúde precisou tomar remédio para largar a bebida, do contrário, segundo os médicos que o atenderam, morreria. O apelido que lhe foi dado por amigos de bar, hoje já não é aceito por ele, que faz questão de corrigir quem quer que seja que lhe chame dessa forma. Quando o procurei para pedir-lhe a entrevista só o conhecia pelo apelido de Nhaca, assim como todos seus vizinhos e amigos com os quais conversei, e, por isso, não o chamei pelo nome. Logo no início fui corrigida. “Com certeza a gente conversa sim. Pode ser sexta-feira? Porque hoje tenho um serviço ali no prédio da frente, tenho que tirar uns entulhos. Mas só uma coisa: quem te disse que meu nome é Nhaca? Meu nome não é esse não, me chamo Evanildo Emídio da Silva”, corrigiu-me sem titubear. Parar de ser chamado pelo apelido tornou-se para Evanildo um símbolo, um marco que legitima o antes e depois do vício. “Nhaca é de pessoa fedida, que anda com roupa suja, que não toma banho e tem falta de higiene. Pô pega mal né? Comecei a ser chamado desse jeito quando eu ainda tomava uma branquinha, né, mas hoje não sinto nem o cheiro graças a Deus. Se a pessoa me chama assim, chego e falo que eu tenho nome, meu nome é Evanildo”, conta com a fala mansa e gesticular lento, maneira essa que causa a ligeira impressão de ter sido herdada pela falecida bebida como 94 Histórias de Cohabeiros conseqüência do vício de muito anos. O carroceiro diz ainda ter muita amizade no bairro, e que agora que parou de beber é mais respeitado e ganhou novos amigos. “As pessoas tem muita consideração por mim”, diz orgulhoso. Na adolescência Evanildo trabalhou em uma empresa de grande porte como auxiliar de armazém, mas por não ter se adaptado ao serviço ficou somente por uma semana. Desde então passou a fazer bicos, fazendo pintura, carregando entulho, recolhendo materiais recicláveis como alumínio, ferro, papelão, vidro e vendendo tudo para o ferro velho. Não sabe precisar ao certo qual sua renda mensal, mas diz cobrar por bico, que não são constantes, em média R$30 e quando é trabalho mais demorado, que leva o dia todo, cobra entre R$50 e R$ 60. “Quando não tem serviço fico sentado no portão do prédio da frente e as pessoas me vêem ali e chamam pra fazer serviço. É só chamar que eu vou”, conta animado com sorriso no rosto fazendo sinal afirmativo, com a cabeça para cima e para baixo, quando acrescenta uma observação “Só não mexo com elétrica, porque não conheço direito como funciona e tenho medo de choque”. Evanildo é um homem solteiro, tem somente a primeira série e divide o apartamento de 42m², herdado dos pais, com quatro dos sete irmãos, os demais assim como seu pai e sua mãe, já são falecidos. O lar onde vive é bem simples, assim como seus moradores. O chão é de cimento batido Renata Rocha 95 na cor vermelha; as portas e janelas são as originais da Cohab, ou seja, nunca foram trocadas como quase 100% dos demais apartamentos; as paredes com falta de tinta mostram o sinal do tempo; os dois quartos não têm portas que o separem da sala, mas sim cortinas feitas de penduricalhos de madeira. Falar da família faz com que o carroceiro fique monossilábico, limitando-se a dizer que a saudade é grande e que as lembranças são constantes. Lembrar da infância parece lhe trazer dificuldades de memória, demonstra perder o raciocínio, pensar, pensar e pensar até conseguir comentar “eu empinava pipa quando era criança, mas tem um monte de marmanjão aí que fica o dia inteiro fazendo isso. Isso é coisa de criança. É, mas tem outro lado também, o desemprego ta bravo né?”, conclui por si só. Para Evanildo a Cohab está piorando a cada dia, pois segundo ele o bairro tem muito barulho, muita briga e muita confusão. “O que a Cohab tem de ruim são os vizinhos que enchem o saco viu. Um cuida da vida do outro, fica fazendo fofoca aí e cuidar da vida deles que é bom mesmo, nada. E isso é a maioria dos vizinhos viu?”, diz. Mesmo achando isso, o católico que usa um anel dourado, como se fosse uma aliança de casamento com os dizeres Deus é fiel e que nitidamente é uma bijuteria, diz ser cohabeiro com muito orgulho. “Ser cohabeiro pra mim é um elogio. Eu sou com muita 96 Histórias de Cohabeiros honra”, conta ao dizer de pronto na seqüência que para ele o onde determina o quem, mas que “se bem que isso depende do modo da pessoa”. Atualmente Evanildo, com marcas de expressão que lhe dão ares de pessoa sofrida, considera-se muito feliz, mais do que foi no passado. Isso claramente porque parou de beber e deixou de ser o Nhaca. Ele que acredita em destino “tá bom na hora, mas depois a gente não sabe”, não sabe ao certo quais são suas qualidades e defeitos “isso eu não sei te responder”, não tem expectativas para o futuro “vamos ver como vai ficar daqui pra frente”, simplesmente leva um dia após o outro. Enquanto agradeço Evanildo pela receptividade, já na porta de sua casa que fica no último andar do prédio, o sobrinho que também mora com ele, sobe as escadas correndo e gritando “Nhaca, Nhaca tem um monte de papelão lá em baixo no prédio, na entrada ali, vai lá pegar se não alguém vai jogar fora”. O carroceiro como se nada estivesse acontecendo ignora a frase do sobrinho, como se o garoto que aparenta ter seis anos de idade não tivesse dito nada, ou melhor, como se o Nhaca não fosse ele, ou simplesmente não estivesse ali, se despede e entra no apartamento de número 47. Renata Rocha 97 98 Histórias de Cohabeiros “(...) Pai! Pode crer, eu tô bem Eu vou indo Tô tentando, vivendo e pedindo Com loucura prá você renascer (...) Pai! Você foi meu herói meu bandido Hoje é mais Muito mais que um amigo Nem você nem ninguém tá sozinho Você faz parte desse caminho Que hoje eu sigo em paz Pai! Paz!” Pai (Fabio Junior) Meu pai, meu ídolo Valter Aparecido Nunes é filho de Lauro Pedro Nunes e Aparecida Campos Nunes. Conhecido no bairro como Valtinho, aos 49 anos é dono da Spézia, uma pizzaria movimentada de música ao vivo, que fica à margem da Cohab II, e aos finais de semana é ponto de encontro de cohabeiros de várias idades, tanto que entre de sexta e domingo recebe em média 500 pessoas por dia, a maioria do bairro. O empresário tem o estabelecimento há 15 anos, cujo nome é igual ao de uma cidade da Itália, e derivou da lanchonete que foi herdada do pai e ficava instalada na mesma região que a pizzaria fica hoje. Renata Rocha 99 Para Valtinho falar do pai é sempre motivo de emoção. Esteja onde estiver, seja com quem for, as lágrimas surgem e insistem em ficar até que o assunto seja outro. A voz embarga e as brincadeiras constantes desaparecem. Mesmo durante o churrasco com os amigos, cerveja, música e alegria. Isso porque o pai de Valtinho e de mais outros quatro filhos, Claudimir, Cleonice, Norma e Celma, sempre foi exemplo para os demais, sejam eles amigos ou parentes, pela vida de luta que levara e exemplos que dera. Lauro deixou muitas saudades, não só por ter falecido ainda muito jovem, mas principalmente pela morte trágica que teve. Há 27 anos, durante a construção da Avenida Brasil, localizada na Cohab II, e para a construção dos prédios dessa região, houve a necessidade implodir uma pedreira para tornar possível o início das obras. Na época a família de Valtinho morava numa casa do bairro que tinha a varanda voltada justamente para essa pedreira. Próximo dali, Lauro, o pai de Valtinho, tinha uma criação de porcos, que diariamente tratava, nos mesmos horários e da mesma maneira costumeira. No dia 30 de agosto de 1980 toda vizinhança ouviu o som de alarmes ressoando aos quatro cantos, mas ninguém entendeu ao certo o porque das sirenes, mesmo sabendo que uma hora ou outra a implosão aconteceria, a área não estava isolada naquele dia como deveria estar. De casa Valtinho assistiu com 100 Histórias de Cohabeiros desespero o momento exato da morte de seu pai. Ao implodirem a pedreira uma pedra voou muito alto, com uma distância longa de uma ponta a outra, e acertou justamente a cabeça de Lauro que morreu na hora. Limpando as lágrimas e sem conseguir falar direito, Valtinho entristece ao dizer que “foi uma fatalidade. Do telhado vi tudo, meu pai todo sujo, foi chocante. O pai foi um exemplo, ensinou muitas coisas pra nós e ter perdido ele assim desse jeito foi realmente uma grande perda. Só quem passa por isso sabe, consegue medir o tamanho da dor”, conta demonstrando até hoje não aceitar o ocorrido. Quando pergunto quais foram as medidas que a família tomou, se processou a empreiteira responsável, se recebeu alguma indenização, o empresário é enfático ao dizer que isso é o de menos e foi o de menos, que não há dinheiro no mundo que pague a ausência do pai. “Na época até ganhamos uma merreca, mas deixamos pra lá, mas o certo mesmo seria minha mãe receber uma pensão até hoje, afinal ficou viúva, sozinha com quatro filhos pra criar”, conclui ao dizer que o pai era uma pessoa muito conhecida e queria, tanto que no dia do enterro tinha um comboio de carros de tanta gente que foi se despedir de Lauro. “Ele ainda faz muita falta, muita coisa teria sido diferente se ele estive ainda com a gente”, desabafa. Renata Rocha 101 Diariamente Valtinho passa em frente ao local que Lauro, seu pai, morreu, pois seu comércio fica bem próximo dali e o apartamento onde mora também. O empresário, durante a entrevista que aconteceu numa festa de aniversário de dois de seus funcionários, que moram ao lado da pizzaria, afirma ter se habituado a lidar com as lembranças e ausência do pai, e, por isso, gosta do bairro, mesmo não enxergando nenhuma qualidade na Cohab. Ao dizer isso, que não vê nada de bom no bairro, é corrigido por uma amiga que ouvia a entrevista da sala, mesmo com o som alto tocando, e gritou “nenhuma qualidade? e os clientes?”, automaticamente Valtinho concerta “é verdade, o que a Cohab tem de melhor são os clientes. Os clientes e os amigos, é claro, como pude me esquecer”, reforça com toque de humor. “Mas tem o lado ruim também. Existe muita fofoca, muito barulho, a falta de cuidado e o relaxo também. Meu prédio, por exemplo, acho que nunca foi pintado desde que foi construído”, conta. Ar jovial, apesar dos cabelos grisalhos, Valtinho é um comerciante bem sucedido, dono de uma caminhonete importada, cujo valor daria para comprar no mínimo uns três apartamentos no bairro. Ainda assim diz não trocar a Cohab por nada, apesar dos pesares. “As pessoas ficam surpresas quando falo que moro na Cohab, acham que eu deveria morar em outro lugar só porque sou dono 102 Histórias de Cohabeiros da pizzaria, tenho dinheiro, essas coisas. Eu não, eu gosto daqui, meus amigos estão aqui, aqui conheço todo mundo, todo mundo me conhece e pronto. Moro aqui e não tenho vergonha de dizer isso, falo pra todo mundo, pra quem quiser ouvir”. Nesse momento volta ser a figura conhecida pelos cohabeiros, volta a ser o Valtinho de sempre, deixando de lado as memórias e saudades do pai que a pouco emocionava-se em dizer, gesticulando, sorrindo e fazendo piadas e brincadeiras como é de costume “vai uma cervejinha aí?”. Renata Rocha 103 104 Histórias de Cohabeiros Retratos da Cohab Vista da Cohab V Renata Rocha 105 Geral da Cohab II Prédios da Cohab I com varáis nas janelas 106 Histórias de Cohabeiros Fachada de prédio da Cohab II localizado na Rua Salvador Prédio da Cohab I que nunca foi pintado desde a fundação Renata Rocha 107 Praça Presidente Castelo Branco Busto do Presidente Castelo Branco 108 Histórias de Cohabeiros Movimento na Rua Manaus aos domingos O local também é conhecido como Barufi Renata Rocha 109 A polícia faz ronda durante o movimento existente aos domingos É um corre corre mas o movimento volta quando a PM se retira 110 Histórias de Cohabeiros Fachada do Posto de Saúde da Cohab II Lateral do Postinho, nome pelo qual é conhecido Renata Rocha 111 Posto de Saúde da Cohab V Fachada do postinho, cuja especialidade é consultas 112 Histórias de Cohabeiros Hospital Público Sanatorinhos que fica instalado no bairro A lanchonete citada na música Cohab Citi de Neto de Paula Renata Rocha 113 Placa de divulgação de preços de trajeto de táxi Área de recreação no Parque dos Paturis, conhecido como Km 21 114 Histórias de Cohabeiros Praça da Árvore na Cohab V Posto policial Renata Rocha 115 Começo da feira da Cohab V Final da feira da Cohab V 116 Histórias de Cohabeiros Escola Didita Cardoso Alves Escola Manoel da Conceição Santos Renata Rocha 117 Entrada lateral da “ Manoel” Grafitagem nos muros da Rua Uberlândia 118 Histórias de Cohabeiros Renata Rocha 119 120 Histórias de Cohabeiros Bibliografia HOUAISS, Instituto Antônio. Mini Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro, Editora Objetiva, 2003. LIMA, Edvaldo Pereira. Páginas Ampliadas. O livroreportagem como extensão do jornalismo e da literatura. Editora Manole, 2003. TALESE, Gay. Fama & Anonimato. O lado oculto de celebridades, a fascinante vida de pessoas desconhecidas e um inusitado perfil de Nova Yourk, por um mestre da reportagem. São Paulo, Cia das letras, 2004. Site oficial da Prefeitura de Carapicuíba http://www2.prefeitura.sp.gov.br/empresas_autarquias/ cohab/conjuntos_habitacionais/carapicuíba/0001 Enciclopédia digital http://www.angelfire.com/ca3/carapicuiba/ Carapicuiba.html Site oficial da Prefeitura de São Paulo http://www6.prefeitura.sp.gov.br/empresas_autarquias/ cohab/conjuntos_habitacionais/carapicuiba/0001 Renata Rocha 121