o cinema nas aulas de literatura e história - DEINFO

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3º ECOM.EDU ‐ Encontro de Comunicação e Educação de Ponta Grossa
O CINEMA NAS AULAS DE LITERATURA E HISTÓRIA: ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE SUA UTILIZAÇÃO EM SALA DE AULA Fábio Augusto Steyer19 GT1: Mídia, Educação e Arte Modalidade: Comunicação Oral Resumo: O objetivo deste trabalho é debater questões teórico‐práticas sobre a utilização do cinema em sala de aula, como ferramenta didática, em especial nas disciplinas de literatura e história. A idéia é discutir problemas encontrados nas escolas e propor a necessária relação transdisciplinar entre as áreas, envolvendo questões teórico‐metodológicas relacionadas às especificidades da linguagem de cada uma. Entre os principais problemas destacamos: a) a falta de formação específica para o professor ter condições de “ler” imagens e trabalhar adequadamente com o cinema em sala de aula, ou seja, o desconhecimento da “gramática” cinematográfica; b) a utilização do filme como mero “tapa‐buracos” para aulas não preparadas ou ausência de professor; c) o filme usado como “substituto” ou mero “complemento” do livro de história ou da obra literária. O ponto de partida será uma análise de quatro filmes e suas relações com a história e a literatura: “Hércules” (1997), desenho da Disney; “Policarpo Quaresma” (1998), de Paulo Thiago; “Caramuru”(2001), de Guel Arraes; e “Gregório de Mattos” (2002), cinebiografia do poeta baiano dirigida por Ana Carolina. A interação entre as três áreas de conhecimento será analisada a partir de autores como Tatiana Sena, Arlindo Machado e Lenita Esteves. Palavras‐chave: Cinema; Literatura; História; Ensino; Interdisciplinaridade. Resumen: El objetivo de este trabajo es discutir cuestiones teóricas y prácticas relativas a la utilización del cine en el aula como herramienta de enseñanza, sobre todo en las disciplinas de la literatura y la historia. La idea es discutir los problemas encontrados en las escuelas y proponer la relación necesaria entre las áreas disciplinarias, en relación con cuestiones teóricas y metodológicas relacionadas con las características específicas de cada idioma. Los principales temas son: a) la falta de formación específica para que el maestro sea capaz de "leer" las imágenes y trabajar correctamente con la película en clase, es decir, la falta de la película "gramática", b) el uso de película como mero "provisional" para las clases que no están preparados o ausencia del profesor c) la película se utiliza como un "sustituto" o mero "complemento" del libro de la historia o el trabajo literario. El punto de partida es un análisis de cuatro películas y su relación con la historia y la literatura, "Hércules" (1997), Disney de dibujos animados, "Policarpo Quaresma" (1998), de Paulo Thiago, "Caramuru" (2001), el Guel Arraes, y "Gregorio de Mattos" (2002), el poeta bahiano biopic dirigido por Ana Carolina. La interacción entre las tres áreas de conocimiento se puede analizar desde autores como Tatiana Sena, Arlindo Machado y Lenita Esteves. Palabras clave: Cine, Literatura, Historia, Educación, interdisciplinariedad. Algumas considerações iniciais: o cinema morreu? Seria uma tarefa extremamente ingrata tentar dimensionar a real importância que os filmes exercem atualmente na vida social e cultural das pessoas. O que nos parece inegável é que desde o final do século XIX, quando o cinema foi inventado, ele cada vez mais ocupou uma posição de destaque entre as formas de entretenimento e 19
Doutor em Letras/Literatura (UFRGS); Mestre em História (PUCRS); Professor adjunto na Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). E‐mail: [email protected] 64
arte da população mundial. Em meu estudo de Mestrado, posteriormente transformado em livro (“Cinema, Imprensa e Sociedade em Porto Alegre: 1895 – 1930” – Porto Alegre :EDIPUCRS, 2001), analisei justamente o desenvolvimento do cinema nas primeiras décadas do século XX, especificamente na capital gaúcha, mas num fenômeno que se repetiu também em outras grandes cidades brasileiras do período e, por que não dizer, no restante do mundo. Que fenômeno foi esse? Um enorme desenvolvimento do cinema, que aos poucos foi tomando corpo como uma das principais diversões da população, roubando público do teatro (mais elitista) e popularizando os espaços culturais do meio urbano. Muitos intelectuais do início do século passado inclusive “torciam o nariz” para esta nova forma de expressão e entretenimento, reclamando, através da imprensa, de seu amplo desenvolvimento, chegando a denominá‐lo, pejorativamente, de “teatro sem palavras” ou “cena muda” ‐ uma referência comparativa a uma certa disputa que então ocorria entre o teatro (visto como arte) e o cinema mudo (visto como uma modalidade de expressão inferior e voltada a divertir apenas as pessoas com menor grau de instrução)20. O século XX foi, por assim dizer, o “século da imagem”, com um amplo desenvolvimento do cinema e o posterior surgimento da televisão. O folhetim, que popularizou o romance e a literatura no Brasil, durante o século XIX, tornou‐se “folhetim cinematográfico” (filmes em série), depois radionovela e, finalmente, a telenovela, talvez o gênero que melhor define a enorme influência que a televisão assume na vida contemporânea, inclusive em nosso século. Além disso, também é no século XX que temos a profissionalização da publicidade, que além de tomar conta dos próprios meios de comunicação em questão (cinema e televisão), ocupou também amplos espaços imagéticos nas cidades, como os outdoors, por exemplo. Já estamos no século XXI, aquele em que as “formas híbridas” substituíram os meios de expressão isolados. Ou seja: o computador e suas derivações acabaram por hibridizar os meios de comunicação anteriores, tornando possível a convivência de todos ao mesmo tempo num mesmo suporte. Nele há imagem, som, texto, pintura, fotografia, vídeo, película, etc. Além, é claro, da maior interatividade que estas formas 20
Para maiores informações sobre o desenvolvimento do cinema no Brasil nas primeiras décadas do século XX, sugiro a leitura da obra de Vicente de Paula Araújo e também de meu livro, referenciados no final do trabalho. 65
híbridas e seus novos suportes proporcionam. Trata‐se inclusive de pensar, como sugerem autores como Roger Chartier e Arlindo Machado, em novos conceitos de “livro”, para dar conta destas novas “formas expressivas da contemporaneidade”, para usar palavras de Machado21. O cineasta Peter Greenaway chega a dizer que “o cinema morreu” diante das possibilidades oriundas das novas tecnologias. Afirma ele: “O cinema era uma forma simples e sustentável de entretenimento. Acho que o mundo está muito mais sofisticado e o cinema não tem o poder de estimular a imaginação como no passado. (...) O que realmente me empolga hoje em dia é o pensamento de reinventar o cinema sem narrativa”22. Mas será que esse cinema narrativo acabou mesmo? O cinema de diretores como Peter Greenaway, que procuram reinventar a Sétima Arte a partir de novas propostas estéticas, que de certo modo desconstroem essa visão de “cinema narrativo” ainda possui um público muito restrito na atualidade. Ele próprio admite: “Sei muito bem das críticas que recebo, que meus filmes são incompreensíveis”23. Filmes como “A Última Tempestade” (1991) ou “O Livro de Cabeceira” (1996), só para citar alguns dos filmes mais herméticos do diretor inglês, tiveram inclusive dificuldades de distribuição e circulação pela dificuldade de diálogo com o grande público. Podem ser associados àquilo que Gilles Deleuze chamou de “cinema moderno”, com um regime de “imagens‐tempo”. Talvez estejam mesmo além disso, podendo mesmo ser associados à idéia de “pós‐modernidade” ou, como prefere Arlindo Machado, “contemporaneidade”24. Acredito que Greenaway não tem razão quando diz que o cinema narrativo acabou. Afinal, o que ainda move o grande público para as salas de cinema é o “cinema 21
Nesse sentido, para pensar as modificações tecnológicas e as relações sociais e culturais envolvidas nestas novas “formas expressivas da contemporaneidade”, parece‐me importante estudar a história do livro e perceber que nem sempre ele foi visto apenas em seu formato atual, que é o códice. O livro já teve formatos bem diferentes e foi visto de maneira bem mais ampla do que na atualidade. Sugiro aqui a leitura da obra de Roger Chartier, além de pelo menos dois capítulos do livro de Arlindo Machado (“Fim do livro?” e “Formas expressivas da contemporaneidade”). Todos estão referenciados no final deste texto. 22
Entrevista de Peter Greenaway a Rodrigo Salem, da Folha de São Paulo, publicada em 12 de março de 2012, no caderno Ilustrada. 23
Idem. 24
Ver o capítulo “Formas expressivas da contemporaneidade”, do livro de Machado incluído nas referências. 66
clássico”, com seu regime de “imagens‐movimento” – e aí novamente utilizo termos de Deleuze25. É o velho “cinemão” narrativo que tanto Greenaway critica. E se as salas de cinema diminuíram no mundo todo e hoje são restritas às médias e grandes cidades, não podemos esquecer que os filmes circulam de uma maneira muito mais ampla, além das salas de cinema, da televisão e das locadoras de vídeo, na internet, nas redes sociais, no Youtube, enfim, exatamente nas “formas híbridas” derivadas do computador e que tão bem definem os nossos tempos. As salas de cinema diminuíram, mas a circulação dos filmes aumentou, em todos esses meios de que dispomos na contemporaneidade. Tanto dos filmes “narrativos”, clássicos, quanto dos filmes que propõem uma estética renovada, caso de Greenaway. Tanto os filmes continuam vivos por aí que cada vez mais se discute a sua utilização em sala de aula. E não podemos deixar de pensar a sala de aula como mais um destes tantos espaços em que o filme circula na atualidade. E é justamente esse o tema sobre o qual gostaria de me debruçar a seguir, a partir de algumas questões teórico‐práticas que me parecem fundamentais para uma reflexão adequada sobre o assunto. Alguns problemas na utilização dos filmes em sala de aula Embora no Brasil se fale cada vez mais em interdisciplinaridade, e os próprios documentos educacionais oficiais (nacionais e estaduais)26 abordem a necessidade de se relacionar as disciplinas e o ensino com as “novas tecnologias” e as “novas linguagens”, parece‐me que ainda estamos muito distantes de uma efetiva realidade a respeito. Há muito discurso, mas pouca interdisciplinaridade de fato na prática. E no que se refere ao cinema, há algumas contradições que precisam ser comentadas. Em primeiro lugar, é inegável que a utilização dos filmes em sala de aula é corrente, regular, sendo inclusive, como disse antes, estimulada pelos próprios documentos oficiais da área da educação. No entanto, tanto professores como alunos não são “alfabetizados” para o cinema, ou seja, para a linguagem do cinema. E isso é 25
Para maiores informações sobre os conceitos de “imagem‐movimento” e “imagem‐tempo” sugiro a leitura da obra de Peter Pál‐Pelbart, incluída na bibliografia deste texto. 26
Exemplo disso são os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) e as Diretrizes Curriculares do Estado do Paraná. 67
extremamente complicado. Não se trata de exigir que alunos e professores sejam “especialistas” em cinema, mas que pelo menos possuam noções básicas da linguagem cinematográfica27, de sua “gramática”, para que melhor possam interpretar as obras. O século XX foi o “século da imagem”. Já estamos no século XXI, com as formas híbridas derivadas do computador. E, por incrível que possa parecer, todo o nosso sistema de ensino ainda está voltado quase que única e exclusivamente para o TEXTO ESCRITO. Sequer (ou muitíssimo pouco) se trabalha, nas aulas de Língua Portuguesa, por exemplo, com a oralidade, forma através da qual nos comunicamos na maior parte do tempo das nossas vidas. Estuda‐se a gramática do texto do ensino fundamental ao final do ensino médio. Talvez a disciplina de Língua Portuguesa seja a única em que se estuda a mesma coisa desde o início do fundamental até o final do médio. E cada vez mais percebe‐se que os alunos aprendem menos. Prova disso é a recente pesquisa que mostra que 38% de nossos estudantes universitários são analfabetos funcionais!28 Será que isso não demonstra, de uma ou outra forma, uma contradição enorme entre nosso sistema de ensino e a realidade? Cadê a interdisciplinaridade? Cadê a relação das disciplinas com as “novas linguagens” e as “novas tecnologias”? Especificamente com relação ao cinema: estamos no século em que o cinema até já morreu (diz Greenaway), mas professores e alunos continuam utilizando os filmes em sala de aula sem qualquer preparo, sem saber praticamente nada sequer do beabá da linguagem cinematográfica (daquele cinema narrativo que Greenaway critica), trabalhando os filmes apenas a partir de seus “temas” e “enredos”. Então aí está o primeiro grande problema: nosso sistema educacional não absorveu ainda a idéia de que o mundo não tem mais o “texto” ou o “livro“ (códice) como a única ou a mais legítima forma de se adquirir conhecimento, de entretenimento ou formação cultural. As “novas linguagens” precisam urgentemente ser incorporadas à formação dos professores. E as “velhas”, como o cinema, surgido no final do século XIX, também. Está posto aí o primeiro grande problema da utilização 27
Questões básicas como noções de escala de planos, movimentos de câmera, elementos da construção fílmica, como música, fotografia, figurino, roteiro, entre outros. 28
Trata‐se do Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf), divulgado em julho de 2012 pelo Instituto Paulo Montenegro (IPM) e pela ONG Ação Educativa. 68
do cinema em sala de aula: professores e alunos não possuem formação adequada da “gramática cinematográfica” para trabalhar de forma aprofundada com os filmes, restringindo a análise, normalmente, ao tema e ao enredo do filme. A partir daí podemos perceber outros problemas que são decorrentes dessa falta de formação, que dizem respeito às maneiras com que o cinema é utilizado em sala de aula. O mundo de hoje é rápido, a vida parece que não tem mais o tempo reflexivo e lento da leitura de um bom romance, por exemplo... Então o que alunos e professores fazem? Eles “substituem” o conteúdo das aulas, dos livros didáticos, pelos filmes. É aquela velha história: o professor não conseguiu preparar a aula ou então vai faltar por algum motivo: exibe‐se um filme! Muitas vezes não tem nada a ver com o conteúdo, mas pelo menos mantém o aluno em sala de aula e serve para “tapar o buraco” da carga horária. O que também acontece muito é que o professor passa o filme e discute o conteúdo apenas a partir dele, sem a complementaridade necessária entre filme e livro didático (e não apenas o livro didático). Ou seja: não considera que na sua construção cinematográfica pode haver algo novo com relação ao mesmo conteúdo. É como se o filme fosse um “perfeito” substituto do conteúdo original. Isso pode ocasionar problemas, como veremos nos exemplos práticos que serão comentados na seqüência. O exemplo “clássico” desta substituição do conteúdo pelo filme se dá nas aulas de Literatura, e agora da parte dos alunos: o professor pede que eles leiam um determinado romance, por exemplo, e a primeira coisa que os estudantes fazem é procurar se existe uma versão cinematográfica, que supostamente seria um meio mais “fácil” de apreender o conteúdo e as características essenciais da obra literária. Mas e as diferenças de linguagem, de foco narrativo? E a “recriação” do roteirista e do diretor a partir do romance? E o mais interessante é que mesmo quando se busca um diálogo entre o conteúdo da disciplina a ser trabalhado e o filme, este serve muito mais como uma espécie de “acessório” ao aprendizado, ou seja, é considerado apenas enquanto um meio que possibilita ao aluno “visualizar” melhor a matéria, sendo considerado, portanto, apenas a partir de seu tema/conteúdo/enredo. A construção cinematográfica é deixada de lado. E isso é um pecado, pois muitas vezes um conhecimento mínimo desta linguagem permitiria a alunos e professores enxergarem outros novos 69
elementos inerentes à visão do cineasta sobre o tema que está sendo tratado. E isso enriqueceria ainda mais as aulas. O que falta, portanto, é a idéia de que o trabalho deveria ser complementar, um (filme) ajudando a aprofundar o outro (conteúdo da disciplina). Falta exatamente a tal da interdisciplinaridade. Hércules, Caramuru, Gregório de Mattos e Policarpo Quaresma: alguns exemplos práticos Vejamos agora rapidamente alguns exemplos práticos do trabalho em sala de aula de alguns filmes que poderiam ser utilizados nas aulas de História e Literatura. Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, é um dos romances mais conhecidos do chamado Pré‐Modernismo brasileiro, apresentando uma crítica bastante forte com relação ao contexto político e social da 1ª República no Brasil. Além disso, a partir de uma visão mais “realista” da realidade brasileira da época, o autor também critica o Romantismo, período literário marcado pela “idealização” de tipos nacionais/regionais como o índio, o gaúcho e o sertanejo – aqui, é claro, estamos falando de José de Alencar, principal alvo das críticas de Lima Barreto.29 É texto, portanto, que pode ser utilizado tanto nas aulas de História quanto nas aulas de Literatura, e que igualmente pode ser analisado a partir de enfoque transdisciplinar. O cinema entra nessa história devido à existência de uma versão fílmica do romance. Trata‐se de “Policarpo Quaresma – Herói do Brasil”, filme dirigido por Paulo Thiago e lançado nos cinemas brasileiros em 1998. Como bem aponta Tatiana Sena (2010, s/p), uma das principais especialistas brasileiras na obra de Lima Barreto, filme e livro apresentam visões bastante diferentes tanto do contexto histórico quanto do contexto literário, especialmente se pensarmos na maneira com que apresentam a figura da personagem central: (...) as leituras feitas por Paulo Thiago e Luiz Marfuz enfatizam não a construção discursiva do romance como um todo, mas especificamente o discurso da personagem central, traduzindo apenas uma parte da obra, talvez a mais superficial. Isso conduz à estabilização do sentido menos 29
Não é à toa que os colegas de trabalho de Policarpo Quaresma pejorativamente o chamam, no romance, de “Ubirajara”, referência ao livro de mesmo nome escrito por Alencar. Policarpo pretende que o tupi se torne a língua oficial do Brasil, o que também pode ser visto como uma crítica a Alencar, que teve a primazia de incorporar o léxico do tupi não só à literatura, mas à própria língua portuguesa. 70
problematizador do romance, pois parece mitificar a pátria, conceito que o romance, longe de referendar, problematiza. Parece‐me que esses leitores (...) não se atentaram para a reflexão final do Major Quaresma, quando às vésperas da morte, o discurso ufanista cede em face à brutalidade de um conceito vazio, pois como ele próprio conclui: ‘a pátria que quisera ter era um mito: era um fantasma criado por ele no silêncio do seu gabinete. Justamente aí é que está o problema em “substituir” o livro pelo filme, como muitas vezes acontece. Essa ênfase maior de Thiago na personagem central e não no contexto geral da obra (apontada por Sena), acaba por tornar “positivo”, de certa forma, o ufanismo e o caráter exagerado e patético da personagem central. O próprio subtítulo do filme (“Herói do Brasil”) ressalta esse aspecto. Na verdade, Lima Barreto queria mostrá‐lo como uma caricatura, uma espécie de “anti‐herói”, um “Dom Quixote” brasileiro, deslocado da realidade, mostrando esse caráter “negativo” da postura de Quaresma, de forma bastante crítica. Substituir o livro pelo filme aqui não funciona. É preciso pensar em ambas as obras como complementares, para compreender a visão que cada um dos autores (Barreto e Thiago) tem do objeto em estudo. Além disso, Thiago, apesar de distorcer (segundo Sena) essa visão mais crítica do romance, não deixa de trazer, por outro lado, alguns elementos cinematográficos importantes para uma melhor compreensão do espectador sobre o contexto literário e histórico da obra. Trata‐se, por exemplo, de pensar na contribuição das canções de Carlos Lyra e Paulo César Pinheiro e das caricaturas de Paulo Caruso, uma forma encontrada pela equipe do filme para fazer o espectador “adentrar” no “universo” do romance de Lima Barreto e também no contexto histórico da 1ª República no Brasil. Aqui vemos a importância de se conhecer um pouco as questões da linguagem cinematográfica, para perceber de que maneira esses elementos ou ferramentas de sua “gramática” própria podem contribuir para uma análise mais aprofundada do filme e dos temas por ele abordados. O caso do desenho‐animado “Hércules” (1997), dos Estúdios Disney, também é interessante. Numa aula sobre mitologia grega, por exemplo, trabalhar as aventuras de Hércules apenas a partir do filme pode ser desastroso, especialmente porque o desenho subverte uma das questões‐chave para se compreender as narrativas mitológicas do herói grego. No filme, Hércules é filho de Zeus com sua esposa Hera, 71
sendo perseguido por Hades, o deus das profundezas, por assim dizer. Ocorre que, no mito (incluindo aí as suas variantes, que não são poucas), Hércules (em grego Héracles) é fruto de uma das tantas infidelidades de Zeus. Seu próprio nome, “Heracles”, significa “glória de Hera”, sua madrasta, portanto, que, na verdade, é quem provoca toda a perseguição ao herói, que acaba sendo sempre protegido pelo pai. Uma análise em contraponto das versões do mito e do filme pode ser muito interessante para se pensar até mesmo em questões mercadológicas do cinema. Ou seja: num filme destinado prioritariamente a crianças, talvez não soasse bem colocar o herói como fruto da infidelidade do pai, sendo necessário demarcar objetivamente o “bem” e o “mal”, personificado, então, por Hades. A existência de uma versão diferente (no mito e no filme) também poderia suscitar o debate sobre as variantes das narrativas mitológicas em geral e mesmo da própria literatura, cuja origem é a oralidade. E mais: há outras questões do filme que poderiam ser discutidas, como, por exemplo, a “fusão” de algumas personagens mitológicas, como as bruxas gréias e as moiras, que no desenho aparecem como sendo a mesma coisa. Enfim... O debate mais profundo entre mito e filme pode ser produtivo. Agora, apenas substituir um pelo outro seria realmente desastroso do ponto de vista de um conhecimento mais profundo sobre a mitologia grega. “Caramuru” (2001), filme brasileiro dirigido por Guel Arraes, também pode ser pensado a partir de sua possível utilização nas aulas de Literatura e História. Baseado nas tantas narrativas (literárias, históricas, sociológicas, etc.) construídas ao longo da história brasileira sobre a real e mítica (ao mesmo tempo) figura de Diogo Álvares, um dos primeiros europeus a conviver com os índios tupinambás, a obra, vista por ela mesma, talvez não passe de mero entretenimento para os alunos, seja o nível/série ao qual possamos nos referir. Agora, trata‐se de uma obra repleta de intertextos, não apenas com a literatura e a história, mas com variados temas de diversas épocas da cultura brasileira. Pode‐se pensar, num primeiro momento, no diálogo mais óbvio: com o poema épico “Caramuru”, de Santa Rita Durão, um dos mais conhecidos de nossa literatura árcade. A partir daí, a constante presença da história de Diogo Álvares e das índias Paraguaçu e Moema em diversos momentos da história cultural brasileira pode 72
ser vista a partir do texto de Janaína Amado (1998), que faz um resgate histórico muito competente sobre o tema. Como afirma a autora (1998, p. 45‐46): O mito do Caramuru, tecido ao longo de séculos, constituído por um núcleo básico – repetido ad infinitum, após fixado pelo Pe. Simão de Vasconcellos ‐, adaptado, como se viu, às sempre novas audiências e demandas, foi várias vezes politicamente apropriado (...), mas, como a fênix, ressurgiu sempre, renovado e despolitizado, pronto para ser novamente apropriado. É um mito que toca em alguns dos mais importantes, queridos e afagados componentes da construção das memórias coletivas de brasileiros e portugueses. Um diálogo mais profundo ainda, que inclua também os elementos cinematográficos como um tempero interdisciplinar a mais, pode ser pensado a partir do texto de Lenita Esteves (2007), que em seu texto faz uma leitura comparativa entre o poema épico de Santa Rita Durão e a obra de Guel Arraes, pensando também em uma série de elementos intertextuais presentes no filme. E assim, nesse amplo jogo intertextual, quem ganha são alunos e professores, pois a interdisciplinaridade acontece de maneira efetiva na prática. Agora, mais uma vez o que se conclui é que simplesmente “substituir” o Caramuru histórico e literário pelo filme é algo que não funciona, resultando numa análise um tanto simplista e superficial. Por fim, a importância de se conhecer elementos básicos da gramática cinematográfica fica evidente quando se pretende analisar um filme como “Gregório de Mattos” (2002), de Ana Carolina. Trata‐se de uma cinebiografia do poeta baiano, que no filme é interpretado pelo maldito” (tanto quanto Gregório, e no melhor sentido que a palavra pode ter) Waly Salomão. A proposta da diretora não é apenas fazer um filme sobre o barroco. Além disso, a própria linguagem do filme é barroca. Não há, como nas cinebiografias e documentários tradicionais, um narrador que conta a vida do poeta, entremeada com trechos de sua obra literária, como acontece em filmes como “Vinícius” (2005), de Miguel Faria Jr., sobre Vinícius de Moraes, ou “O Poeta de Sete Faces” (2002), de Paulo Thiago, sobre Carlos Drummond de Andrade, por exemplo. O filme é pura poesia. Praticamente todo ele é a própria poesia de Gregório de Mattos sendo “despejada” (o termo é esse mesmo) no espectador, tal como a “boca do inferno” do poeta fazia no século XVII em locais públicos da capital baiana. E esse “despejar” de poesia é feito sem maiores explicações, com quebra de linearidade, com uma câmera que se mexe abruptamente; as freiras do filme ora são santas e ora 73
são devassas, tal como a própria instabilidade e indecisão barrocas. Até na fotografia do filme a indecisão barroca entre fé e razão está presente: o filme não é nem colorido nem preto e branco, mas em tonalidade sépia, ou seja, numa espécie de “entre‐lugar” do que normalmente se vê no cinema. Portanto, para compreender a proposta estética de Ana Carolina, é preciso compreender os mecanismos puramente cinematográficos que ela manipula tendo em vista a construção de uma linguagem barroca para retratar com maior perfeição a vida e a obra de nosso maior poeta barroco do século XVII. Considerações finais Estas rápidas reflexões não tiveram nenhuma pretensão no sentido de apontar caminhos definitivos para a resolução dos problemas pertinentes à utilização do cinema em sala de aula. O que se quis foi apenas apontar algumas questões fundamentais, de natureza teórico‐prática, a partir das quais se pode pensar em algumas soluções. Essas soluções passam, não tenho a menor dúvida, pela necessidade de uma formação adequada, para professores e alunos, com relação a conhecimentos mínimos sobre a “gramática” cinematográfica, além de uma revisão da ideia corrente de que o “livro” (códice) ou o texto escrito é a forma mais legítima para a formação cultural das pessoas. É preciso efetivamente incorporar na prática a ideia da interdisciplinaridade e de uma formação adequada com relação às “novas linguagens” e “novas tecnologias”. Alguns poderão dizer que se o ensino da “gramática do texto” não tem sido eficaz para fazer os alunos aprenderem a escrever ou para valorizarem os aspectos ficcionais, literários, “lúdicos” das obras, o mesmo acontecerá com relação à “gramática do cinema”. Permito‐me discordar desta ideia. Para desenvolver uma visão mais “lúdica” e “polissêmica” dos filmes (e aqui me refiro às ideias de Eni Orlandi30 e a um texto que escrevi anos atrás sobre o cinema voltado para o público infantil31), é preciso primeiro abandonar as abordagens tradicionais (estas, sim, “autoritárias” e 30
O contraponto entre um “discurso autoritário” e um “discurso lúdico”, termos usados pela autora, aparece no texto de Eni Orlandi que está referenciado no final deste artigo. 31
O texto, publicado na revista Letras de Hoje, da Faculdade de Letras da PUCRS, está nas referências no final do trabalho. 74
superficiais) que consideram apenas seus temas, seu enredo. Um mínimo conhecimento da linguagem cinematográfica será extremamente útil não apenas para uma leitura mais aprofundada dos filmes em si, mas também dos próprios temas e do enredo abordados. E aí, sim, a partir de um maior aprofundamento na análise das estruturas fílmicas, teremos uma visão mais plural, múltipla do fenômeno cinematográfico, mais próxima da realidade contemporânea. O caminho a percorrer se inicia, pois, na “gramática”, mas com o único objetivo de alcançar um nível de aprofundamento que só a “pluralidade” e o “lúdico” dos filmes podem nos proporcionar. Referências AMADO, Janaína. Diogo Álvares, o Caramuru, e a fundação mítica do Brasil. Texto originalmente publicado em: Actas dos IV Cursos Internacionais de Verão de Cascais ‐ Mito e Símbolo na História de Portugal e do Brasil. Portugal, Câmara Municipal de Cascais, 1998, p. 175‐209. Disponível em: http://folk.uio.no/steisat/Tekster/Amado%20Caramuru%20portugisisk.pdf. Consultado em 14/11/2012. ARAÚJO, Vicente de Paula. Salões, circos e cinemas de São Paulo. São Paulo: Perspectiva, 1981. CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. São Paulo: Editora da UNESP, 2011. CHARTIER, Roger. A ordem dos livros. Brasília: Editora da UnB, 1999. ESTEVES, Lenita. Caramuru, do épico ao filme: o que se traduz e o que se adapta nessa transformação? Anais do Encontro Regional da ABRALIC. São Paulo: USP, 2007. MACHADO, Arlindo. Pré‐cinemas e pós‐cinemas. Campinas: Paprus, 1997. ORLANDI, Eni Pulcinelli. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. Campinas: Pontes, 1987. PELBART, Peter Pál. O tempo não reconciliado: imagens de tempo em Deleuze. São Paulo: Perspectiva, 2010. SALEM, Rodrigo. Peter Greenaway ataca obsessão por filmes “bobos” e desdenha do 3D. Matéria e entrevista com o cineasta inglês. Folha de São Paulo, Ilustrada, 12 de março de 2012. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/1060319‐peter‐
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