promethea: a relação entre os quadrinhos de

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promethea: a relação entre os quadrinhos de
UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES
COMUNICAÇÃO SOCIAL
DIEGO AGUIAR VIEIRA
PROMETHEA:
A RELAÇÃO ENTRE OS QUADRINHOS DE SUPER-HERÓIS E A
MITOLOGIA OCIDENTAL CONTEMPORÂNEA
NOVA FRIBURGO
2008
DIEGO AGUIAR VIEIRA
PROMETHEA:
A RELAÇÃO ENTRE OS QUADRINHOS DE SUPER-HERÓIS E A
MITOLOGIA OCIDENTAL CONTEMPORÂNEA
Monografia apresentada à Universidade
Candido Mendes como requisito parcial à
obtenção do diploma do curso de
Comunicação Social com habilitação em
Jornalismo.
Orientador: Alita Sá Rego
NOVA FRIBURGO
2008
UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES
COMUNICAÇÃO SOCIAL
DIEGO AGUIAR VIEIRA
PROMETHEA:
A RELAÇÃO ENTRE OS QUADRINHOS DE SUPER-HERÓIS E A
MITOLOGIA OCIDENTAL CONTEMPORÂNEA
Monografia aprovada em ____/____/____ para obtenção do diploma do curso de
Comunicação Social com habilitação em Jornalismo
Banca Examinadora:
_______________________________________
Alita Sá Rego
_______________________________________
Maurício Siaines
_______________________________________
Marcus S. Wolff
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Às inúmeras deusas que coroei.
E a Ti, que virá.
Agradecimentos
Agradeço, em primeiro lugar, a meus pais, por darem corda em toda essa
loucura.
Agradeço também a meus amigos e aos companheiros de bar - todos
admiravelmente malditos, sem exceção.
Agradecimentos especiais aos professores Miro Andrade, Alita Sá Rego,
Maurício Siaines e Débora Breder.
Obrigado a todos, pelos cascudos e pelos afagos. São sempre úteis.
O herói tem uma capa de estrelas
E um cinto de cometas
Na testa a estrela solitária
Da Irmandade dos Planetas
Voa em seu vôo noturno
Nos dedos ele usa os misteriosos
Fulgurantes sete anéis de Saturno
Tem nas mãos uma espada de luz
Que um anjo astronauta lhe deu
Quando se encontraram pelo espaço
E ao anjo astronauta
Ele então respondeu:
“Meu caminho eu sei
Não sei qual é o seu
No universo tudo voa
Tudo parece balão
É que pra mim anjo astronauta
Só interessam os caminhos
Que levam ao coração”
O Herói das Estrelas – Jorge Mautner
RESUMO
A jornada investigativa empreendida neste trabalho buscou a compreensão do que é
o mito ocidental contemporâneo e de como o mesmo se relaciona com os
quadrinhos de super-heróis. Para isso, buscou-se primeiramente a compreensão do
que é o mito, como ele se manifesta e qual a sua importância. Feito isso,
estabeleceu-se o que é o herói e as diferentes narrativas que dão conta de
apresentá-lo no mundo moderno. Assumindo os quadrinhos como uma dessas
narrativas, observou-se a manifestação do mito através das páginas de Promethea.
Palavras-chave: Quadrinhos. Promethea. Mitologia.
Sumário
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 9
1 O Herói Mítico Ocidental ................................................................................................. 13
1.2 Os passos do Herói ocidental (sua jornada e a busca pelo significado) ........................... 16
1.3 As formas narrativas modernas ......................................................................................... 20
2 A narrativa mitológica (e sua desconstrução) nos quadrinhos de super-heróis ................ 24
2.2 O tempo em quatro cores .................................................................................................. 25
2.3 As várias eras dos quadrinhos ........................................................................................... 28
2.4 A Crise na realidade: super-heróis existem! ..................................................................... 37
3 A Musa Dourada ............................................................................................................... 45
3.2 As origens da deusa coroada ............................................................................................. 46
3.3 O reino de Immateria ........................................................................................................ 49
3.4 Os caminhos da metáfora ................................................................................................. 60
3.5 Histórias de Trilhas e Fadas (a estrutura narrativa de Promethea) ................................... 63
3.5 A dádiva da Deusa ............................................................................................................ 65
CONCLUSÃO ........................................................................................................................ 68
BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................... 71
APÊNDICE ............................................................................................................................ 74
9
Introdução
!
Arte seqüencial, banda desenhada, mangás, comics, hq’s, histórias em
quadrinhos ou simplesmente, gibis. As histórias em quadrinhos são conhecidas por
vários nomes e formas em todo o mundo, mas ainda não gozam de todo o prestigio
que merecem. Apesar de contarem com os públicos mais variados e de se
difundirem cada vez mais, afetando, inclusive, outras mídias (como o cinema e a
TV), os quadrinhos ainda carregam um quê de maldito, sendo considerados como
“coisa de criança” ou mero desperdício de dinheiro por parte de nerd’s e
adolescentes eternos.
No entanto, nas estantes das livrarias, quadrinhos infantis e adultos dividem
espaço com coqueluches produzidas a preço de ouro para saudosistas e
colecionadores. Ao mesmo tempo, mais quadrinhos infantis conquistam as crianças
nas bancas de jornal, com histórias simples produzidas em massa. Histórias
pornográficas são vendidas por baixo do balcão, mangás fomentam a fome das
crianças que, querendo mais histórias dos seus personagens favoritos dos desenhos
animados, abocanham os quadrinhos. E no meio disso tudo, o gênero mais
conhecido, embora, muito provavelmente, o mais depreciado, são os super-heróis.
!
Nas duas últimas décadas, mais exatamente a partir de 1986, com a
publicação de obras como O Cavaleiro das Trevas de Frank Miller e Watchmen de
Alan Moore e David Gibbons, uma nova consciência parece ter brotado no mercado
editorial americano de quadrinhos de super-heróis. As eternas reviravoltas, o
“continua” no final das edições, os duelos emblemáticos entre heróis e vilões – tudo
isso passou a ser visto como algo além da extrapolação criativa e comercialmente
produtiva como os quadrinhos eram encarados até então.
!
E é aí que entra a segunda e mais importante parte deste trabalho. Os
quadrinhos como elementos difusores do mito do herói. Ou, ainda mais
especificamente, o mito do herói ocidental.
A mitologia ocidental contemporânea usa com bastante eficácia e, de forma
nada moderada, a imagem do herói. O herói, este individuo que busca, realiza ou
descobre “alguma coisa além do nível normal de realizações ou de experiência”,
como diria Joseph Campbell, é um elemento presente em diversas culturas e mitos.
10
Então, há de surgir o questionamento: Se esta é uma história tão comum, se
os elementos que compõem os mitos estão tão difundidos pelos relatos de todas as
culturas de todo o mundo, por que observar os quadrinhos sob este prisma? A
resposta está contida exatamente nesta pergunta. Por ser tão comum, por ser tão
difundido, essas histórias acabam sendo esquecidas.
Longe de tentar carregar um enlevo espiritual para o estudo desenvolvido
aqui, o objetivo deste trabalho se justifica na necessidade de apresentar os
quadrinhos como elementos valorosos na divulgação do mito e seu papel como
elemento explicativo e arquetípico do mundo. Mais ainda, os quadrinhos como uma
mídia eficaz e profundamente comprometida com as transformações que o mito
pode empreender sobre o Homem. Afastamo-nos do didatismo e de qualquer
discurso de tom ascendente que se assemelhe ao de um guru (ainda que os
valorizemos, como ficará claro no terceiro capítulo).
Para falar sobre os mitos e sua relação com os quadrinhos, usaremos os
super-heróis, mais especificamente as primeiras doze edições de Promethea.
Compreendendo o receio diante de um material tão pouco convencional
(quadrinhos são, inegavelmente, produtos de massa, voltados para as necessidades
mercadológicas), o presente estudo se compromete a abordar as histórias em
quadrinhos de uma forma diferenciada. Apresentaremos criadores e criaturas
reunidos ao redor de idéias diferentes e maravilhosas. E, por considerarmos que o
aspecto comercial desta mídia já foi explorado em outros trabalhos, também lhes
será poupado uma análise estrutural-mercadológica deste tema, apenas
resvalaremos em temas como “indústria cultural”. E provaremos que é possível
observar os quadrinhos de uma maneira diferente, acurada, não maléfica.
Desde a primeira vez em que o Super-Homem deteve um trem em movimento
nas páginas da primeira edição de Action Comics em 1938, até o momento em que
uma jovem universitária viu-se obrigada a encarnar a personagem sobre a qual
estudava para seu trabalho final em 1999 na primeira edição de Promethea, esse
trabalho revela vários aspectos dos quadrinhos, como suas complexas estruturas
narrativas e os diferentes períodos de produção.
!
Criada por Alan Moore e J. H. Williams III, escritor e desenhista,
11
respectivamente, a escolha de Promethea se justifica pela idéia (a ser explorada
mais a frente) de que os quadrinhos podem se calcar num entrelaçamento de
diversas mitologias. A heroína, Promethea, é a materialização da imaginação. Assim,
as diferentes correntes de pensamentos filosóficos utilizadas nesta hq 1 serão, a seu
devido tempo exploradas neste trabalho.
!
Para Joseph Campbell, um dos teóricos que tomamos como base durante a
produção deste trabalho, a necessidade da compreensão do mito se deve à
relevância que ele assume diante dos acontecimentos cotidianos, funcionando como
modelo e exemplo de comportamento, além de procurar explicar por que as coisas
acontecem de determinada forma. As informações geradas por este processo de
compreensão, têm a ver com os temas que sempre deram sustentação à vida
humana, que construíram civilizações e formaram religiões através dos séculos; com
os profundos problemas interiores, com os profundos mistérios, com os profundos
limiares da travessia. Para Campbell, se não soubermos o que dizem os sinais
típicos do mito ao longo do caminho, teremos de criá-los por conta própria.
Independente das soluções adotadas por cada um, a compreensão do mito é
relevante para ele, numa urgência semelhante à necessidade de sobrevivência de
um cão acuado.
!
Campbell diz que “não precisamos correr sozinhos o risco da aventura, pois
os heróis de todos os tempos a enfrentaram antes de nós”. Assim, resta-nos
enxergar nos super-heróis uma compreensão e justificativa para as constantes recriações e re-interpretações dos arquétipos2.
!
E é exatamente esta a função deste trabalho: expor as finas linhas que
separam as narrativas dos quadrinhos de super-heróis como são produzidos hoje e
os discursos míticos dos quais eles advêm. Abordaremos os quadrinhos de superheróis como uma mídia disposta e eficaz, não só para a compreensão do mito no
mundo moderno, mas também como elemento necessário a nossa cultura.
!
Os aspectos a serem observados nos doze números analisados de
Promethea vão desde a relação estabelecida pelo autor entre a personagem
Promethea e os arcanos maiores do Tarô até a teoria das idéias de Platão. No
1
2
Em alguns momentos, este trabalho se referirá as histórias em quadrinhos como hq’s.
Arquétipo, na psicologia analítica, significa a forma imaterial à qual os fenômenos psíquicos tendem a se
moldar. C.G.Jung usou o termo para se referir aos modelos inatos que servem de matriz para o desenvolvimento
da psique.
12
mundo de Promethea (e dos quadrinhos – e por que não, no de nossa imaginação?),
tudo é válido.
!
Apresentados alguns dos temas básicos a serem explorados neste trabalho,
chega a hora de explicitar como isso será feito. Quanto a metodologia, não há uma
específica. A pesquisa bibliográfica respeitou a necessidade de liberdade pungente
ao espírito de Promethea. Preferiu-se abrir ao acaso os livros que constam na
bibliografia e contar com a sorte para se obter algum ordenamento diante do caos de
informações geradas por este trabalho. A redação será feita com base nos textos
lidos, muito provavelmente de acordo com a inspiração do momento e nada mais.
!
O trabalho foi dividido em três capítulos:
!
No primeiro entenderemos o que é o mito. O que é o herói e como ele se
torna vivo no mundo moderno. Para isso, autores como Joseph Campbell,
Christopher Vogler, Roland Barthes e Umberto Eco nos guiarão.
A seguir, o segundo capítulo explorará as origens dos quadrinhos de superheróis, rastreando-os desde os primórdios do gênero, com a primeira aparição do
Super-Homem até a publicação de Promethea, passando pelas diferentes fases
ocorridas no mercado editorial desde o ano de 1939 até 1999.
Ressalta-se aqui que o material estudado vai até o ano de 1999 por duas
razões: a primeira é que este foi ano em que a primeira edição de Promethea
chegou às bancas. A segunda razão é que após o atentado de 11 de setembro de
2001, os quadrinhos de super-heróis parecem ter se encaminhado para uma outra
etapa naquilo que, durante o segundo capítulo, chamaremos de Eras dos
Quadrinhos.
!
O terceiro capítulo versará exclusivamente sobre Promethea. Suas doze
primeiras edições serão levantadas e aferidas, numa tentativa de radiografar alguns
dos elementos míticos e filosóficos utilizados na história, relacionando-o com o mito
do herói. Este, certamente será o capítulo mais extenso e, por isso mesmo, aquele
que poderá se justificar como sem fim, aberto a continuações, como uma série de
quadrinhos.
!
Este trabalho conta ainda com um apêndice, onde são detalhados alguns dos
principais elementos mitológicos presentes no panteão da editora DC Comics.
13
Capítulo 1 O Herói Mítico Ocidental
(BLAKE apud MORAES e OKADA, 2008)
Não se esgotam as intenções de se decifrar o mito. Os homens precisam
sentir-se como parte de algo maior, e essa necessidade de fazer parte do jogo, de
sentirem-se importantes, de terem seu valor reconhecido, é que os coloca em busca
de uma sensação de transcendência3 , algo próprio do mito.
No entanto, cada vez mais desgastadas, as imagens e seus significados
parecem se contrapor ao racionalismo típico do mundo moderno. Assim, é
dicotômico ousar expressar-se através de conceitos como “transcendência” num
mundo que exige os pés no chão, enquanto nos bombardeia com imagens
corrosivas e danosas à realidade primária, isto é, aquela na qual tentamos nos
proteger, criando, desde cedo, um muro que nos separe do que quer que haja fora
dos limites de nossa razão.
O escritor John Marc DeMatteis expressa a dificuldade sentida ao falar sobre
questões do espírito a um público cínico e insensível, incapaz de compreender as
potencialidades espirituais da vida humana: “Eis o meu problema: a experiência
transcendente, quando traduzida em palavras (...) francamente, não tem tradução.
Talvez, uma sucessão de clichês e um pouco mais” (DeMATTEIS, 1987, p. 368).
Mesmo os mais céticos se encontram diante de um impasse ao verem seus filhos,
frutos deste maquinário racional, absortos e verdadeiramente interessados em
“magia e filosofia gnóstica graças a Matrix, Harry Potter e O Senhor dos
3
O escritor Aldous Huxley defende ainda que a transcendência pode ocorrer em diversos níveis, de diferentes
formas. São elas: ascendente, associada a iluminação espiritual alcançada, por exemplo, após anos de disciplina
física e mental; descendente, ligadas ao consumo de drogas, sexualidade primária e o envolvimento com a
massa; e a transcendência horizontal, ligada ao altruísmo, mas também referente a questões sexuais, que neste
caso, seriam representadas pelo tantrismo. (V. Apêndice contido em Os Demônios de Loudun de sua autoria)
14
Anéis” (MORRISON, 2003), como revela em entrevista à Hector Lima, o escritor
Grant Morrison4 . Este repentino interesse acaba por colocar por terra a idéia de que
o homem se distanciou dos valores icônicos do mito 5.
Para o semiólogo Roland Barthes, aqueles que conscientemente embarcam
nesta jornada exemplificada pelos mitos, correm o risco de se perderem. Ou seja,
são incapazes de colher o real. A busca é sempre infrutífera, os objetos procurados,
infelizmente, tornam-se inalcançáveis, o real se dissolve e o mito se acresce, cada
vez mais inatingível. Em geral, o mito costuma “trabalhar com imagens pobres,
incompletas, onde o sentido está já diminuído, disponível para uma significação:
caricaturas, pastiches, símbolos etc.” (BARTHES, 1975, p. 148).
!
Umberto Eco, ao abordar as particularidades de que são compostos os mitos,
diz que não se deve esquecer de seu papel como “simbolização incônscia” (ECO,
1974, p. 239), ou seja, o ideário particular pelo qual procuramos atingir a plenitude.
A consciência da imperfeição e a busca pela perfeição, estes são os temas de que
se compõem os mitos. Embora pareça que esse “repertório institucionalizado”6
esteja em declínio, a retomada por este interesse do espírito é cada vez mais
freqüente7.
Se há, de fato, uma falência do sagrado nos tempos atuais, ela deve ser
encarada como uma crise referente apenas aos símbolos comumente tomados
como sacros em uma sociedade como a nossa que, cristã, acabou por limitar muito
a forma como os mitos podem ser enxergados. Conforme nos revela Eco, ao afirmar
que “novas metodologias de investigação põem em dúvida a estabilidade de uma
4
Autor de quadrinhos escocês, famoso por seu trabalho em Batman: Asilo Arkham, Homem-Animal, Os
Invisíveis e Liga da Justiça (v. Cap. 2).
5
A idéia moderna de que o Homem vive por sua própria conta, alheio às pressões e valores impostos pelos
mitos, acaba por ruir diante da enormidade de produções artísticas que se utilizam dos caracteres básicos de que
são compostos determinadas mitologias, e da grande quantidade de pessoas que se mostram influenciadas por
esses conceitos. Assim, mesmo que não passem de memorabilia para colecionadores e aficcionados, os altares
voltaram à moda, só que no lugarde Cristos crucificados, bonecos articulados dos personagens de Harry Potter.
6
7
Umberto Eco em O Mito do Superman, presente no livro Apocalípticos e Integrados.
O escritor Alan Moore propõe, em diversas entrevistas e na décima segunda edição de Promethea que, na
verdade, há um equilíbrio entre a razão e o espírito. Para Moore, o mundo passa por períodos cíclicos de
interesses diversos, em que, hora é o espírito o que nos motiva, ora é a razão. Sem buscar partidos, Moore não
defende qual era, ou é mais benéfica para o homem, chegando, inclusive, a creditar diversas benesses para a
evolução do conhecimento, em ambos os períodos. Moore diz ainda que a informação gerada por esse conflito
entre ordem e caos, intelecto e alma, corpo e espírito, está em vias de entrar em colapso, colocando o Homem
frente a uma nova paisagem mental, deixando-nos à porta de um novo patamar na escala evolutiva. A data
sugerida por Moore se situa entre 2012 e 2019. As palavras de Moore têm ecos de várias teorias modernas, como
os campos morfogenéticos e a teoria do caos, todas divulgadas entre o grande público principalmente por formas
de arte, como os quadrinhos e o cinema.
15
visão do mundo” (ECO, 1974, p. 241), encerrando o ciclo de transferência dos
conceitos de uma religião para toda uma base de símbolos que pudessem ser
utilizados por todos, privando-os dos conhecimentos teológicos. Em outras palavras,
as verdades absolutas surgem quando não há forma de se questionar: é o controle
absoluto sobre uma porção maior e menos esclarecida da população, exercida por
um grupo menor e, claro, mais “iluminado”.
Ou seja, o mito estabelece a busca pelo sentido como experiência, enquanto
a imagem pré-estabelecida usada para ilustrar esse mito, acaba por limitar esta
mesma experiência, algumas vezes, até mesmo anulando-a8 . Um retorno ao
interesse mais claro e estudado dos valores referentes ao espírito se torna cada vez
mais presente, principalmente na figura dos jovens que, em contato com esta nova
forma cultural mitológica por essência, encontrada em quadrinhos e filmes, se
disporiam a colocar-se num profundo estado de investigação interior. Pois é através
das histórias que o mito é mais facilmente compreendido.
!
Eles ensinam que você pode se voltar para dentro, e você começa
a captar a mensagem dos símbolos. Leia mitos de outros povos,
não os da sua própria religião, porque você tenderá a interpretar
sua própria religião em termos de fatos – mas lendo os mitos
alheios você tenderá a captar a mensagem. O mito o ajuda a
colocar sua mente com essa experiência de estar vivo. Ele lhe diz
o que a experiência é. (CAMPBELL, 2008, p. 6)
!
Por vivermos em uma cultura tipicamente cristã, muitas das histórias da Bíblia
fazem parte do imaginário do mundo ocidental, deixando, mesmo aqueles que não
foram criados de acordo com os preceitos cristãos, frente a exemplos que tenham
relevância apenas por seu óbvio vocabulário tradicionalmente associado às figuras
do Antigo e do Novo Testamento.
“Mitos são histórias de nossa busca da verdade, de sentido, de significação,
através dos tempos” (CAMPBELL, 2008, p. 5). Essa busca, passando principalmente
pelo canal das imperfeições e das tentações9, é o que há de comum entre os
8 As
9
ilustrações referidas no texto remetem as imagens utilizadas como tema de adorno em templos e igrejas.
Tomemos, por exemplo, a busca de Cristo pela superação das imperfeições clementes ao corpo, através da bem
sucedida jornada através do deserto, quando foi tentado pelo Diabo. (V. Mateus, Cap. IV)
16
homens. O mito faz as vezes de pistas para o fim deste caminho. As histórias
mitológicas são contadas com a intenção de harmonizar nossas vidas com a
realidade, para que tentemos entrar em acordo com o mundo, para que atinemos,
enfim, com as “potencialidades espirituais da vida humana” (CAMPBELL, 2008).
Para que isso ocorra, e para que os homens possam se identificar e, dessa forma,
sentirem-se parte deste grande esquema, é preciso que surja um herói.
1.2 – Os passos do Herói ocidental
(sua jornada e a busca pelo significado)
Não precisamos correr sozinhos o risco da aventura, pois os
heróis de todos os tempos a enfrentaram antes de nós. O labirinto
é conhecido em toda sua extensão. Temos apenas de seguir a
trilha do herói, e lá, onde temíamos encontrar algo abominável,
encontraremos um deus. E lá, onde esperávamos matar alguém,
mataremos a nós mesmos. Onde imaginávamos viajar para longe,
iremos ter ao centro da nossa própria existência. E lá, onde
pensáramos estar sós, estaremos na companhia do mundo todo
(CAMPBELL, 2008, p. 131)
Joseph Campbell aponta que um dos elementos mais caros à mitologia e ao
ato de se contar histórias, são homens comuns, indivíduos que, sobrepujando todos
os desafios impostos pelos céus, obtiveram sucesso em alguma empreitada
hercúlea, domando as cismas com que o destino os amaldiçoou, obtendo, assim, um
segredo inestimável, de tal forma que tornam-se maiores que simples homens.
Fosse um elixir, o encontro com o limiar ou a decifração das manchas de um tigre10,
era esta motivação que importava. As provações sofridas por esses heróis ilustram
os conflitos do homem durante o período em que vive. Sua evolução está ligada a
evolução da cultura que o cerca.
O herói surge onde ele é mais necessário, disposto a dar a própria vida por
algo maior que ele mesmo. Ele nasce como resposta a desafios prementes a um
determinado povo numa determinada época. Tiranos, déspotas, conquistadores em
geral vêem o herói como um agente tóxico, “hostil para seus
propósitos” (MORRISON, 1999, p. 74). O herói nasce dos sonhos do homem
10
Referência ao conto A Escrita do Deus, de Jorge Luis Borges, presente no livro O Aleph, cujo conto-título
também merece uma leitura de acordo com os estudos desta pesquisa.
17
comum, da necessidade de desafiar o que está de errado com o mundo, é uma
afronta aos mestres, às “pessoas com interesses velados em manter o mundo
como está, porque é este o mundo sobre o qual elas têm poder” (MOORE, 2007, nº
08, p. 45).
Alguns heróis, é claro, correm o risco de tornarem-se mártires. Isto não é de
todo incomum, visto que “não se desce vivo de uma cruz” 11, e sacrifícios, sofrimento
e quedas são frequentemente vistas em qualquer jornada. Para Campbell (2008),
essa vida doada serve para a transformação de uma nova vida, talvez social, ou
individual, mas apresenta um novo caminho para aqueles que seguiram os feitos
desse herói sacrificado, e isto pode lhes dar ganas de mudar.
Existem muitas provações na jornada de um herói, além da morte, e ele se
entrega a elas em busca de uma ordenação social ou interior à qual, supostamente,
ele serve. Muitas vezes sua intenção original está longe de ser moralmente
conceituada aos olhos da sociedade; o herói pode apenas procurar salvar uma
pessoa12 . Nem sempre sua função universal é mergulhar fundo nas idiossincrasias
de um povo e tentar uni-lo.
Algumas vezes, antes de salvar o mundo ao seu redor, o herói precisa salvar
a si mesmo. “Ainda que não sejamos heróis, no sentido pleno de redimir a
sociedade, temos de enfrentar esse périplo, no interior de nós mesmos, espiritual e
psicologicamente” (MOYERS, 2008, 132).
Existem, é claro, aqueles que estão em sua própria jornada. Estes têm o
objetivo moral de defender uma idéia – seja ela qual for, afinal, “chamar alguém de
herói ou monstro depende de onde se localize o foco da sua
consciência” (CAMPBELL, 2008, p. 135). O herói, posto que venceu todas as
barreiras, torna-se imortal, nega a morte, “fazendo o extraordinário parecer
fácil” (WAID, 2002, p. 35), como se refere o escritor Mark Waid ao relatar os feitos
dos grandes heróis gregos.
11
A citação é retirada de uma “entrevista sensorial”, promovida pela revista eletrônica A Arte da Palavra (http://
www.aartedapalavra.com.br/index.htm). Entrevistas sensoriais, de acordo com a proposta do site, são feitas com
perguntas relacionadas, principalmente ao ato de se escrever, com respostas obtidas através de citações tiradas da
bibliografia deste ou daquele autor. As respostas obtidas para esta sabatinada com Cortázar podem ser todas
encontradas nos livros Histórias de Cronópios e de Famas, Orientação dos Gatos, Todos os Fogos o Fogo e O
Jogo da Amarelinha.
12
Como Luke Skywalker em Star Wars Episódio IV Uma Nova Esperança, por exemplo. Seu único objetivo era
salvar a princesa. Unir-se à Rebelião e explodir a Estrela da Morte foram meras conseqüências. Só mais tarde,
Luke atinou, de fato, para a grandeza interna que possuía.
18
Diante da narrativa moderna a jornada de conhecimento do Herói serve como
metáfora para a vida daqueles que o seguem. “Não nos deixai cair em tentação”, diz
a oração do Pai Nosso. É o exemplo de Cristo que se toma ao ouvir essas palavras são seus dias no deserto, negando as tentações da carne que ecoa nessas
palavras. Este é o tipo de poder que um herói pode exercer. Inconscientemente um
povo toma novas medidas de comportamento, uma nova moral se estabelece e esse
herói, sacrificado por nossos pecados, ressurge, dia após dia, em cada palavra e
ato. Para o bem ou para o mal, o mundo passa a girar por conta da existência desse
herói.
Em maior ou menor grau, a narrativa ocidental quase sempre busca em Cristo
ou algum personagem com uma origem similar a dele, como base para os heróis
que experimentam criar. Sobre essa espécie de herói, o filósofo Joseph Henderson
declara:
!
Ele tem uma origem extraordinária, é criado por pessoas humildes,
descobre seu potencial para grandes feitos, é ensinado por vários
mestres, enfrenta seu nêmesis numa série de aventuras que
envolvem o cumprimento de tarefas sobre-humanas e, depois da
vitória miraculosa, é sacrificado em holocausto, quase sempre
consumido pelo pecado da hybris, do orgulho, ressuscitando para
salvar seu povo na hora de maior necessidade (HENDERSON
apud ARAGÃO, 2007)
O mestre em História da Arte, Octávio Aragão refere-se a este individuo como
o herói-solar, ele “nasce, brilha e morre apenas para renascer num outro
dia” (ARAGÃO, 2007). Esse é o herói de acordo com o ocidente e ele nos é
continuamente narrado e repetido 13, através de figuras como Jesus, Gilgamesh,
13
Vale lembrar que este trabalho se propõe a analisar apenas as narrativas ocidentais. Embora reconheçamos a
importância e diversidade das narrativas heróicas por todo o mundo, é de comum acordo que o Herói, conforme
analisado aqui, é o mais presente em boa parte das tradições literárias, cinematográficas e quadrinhisticas ao
redor do globo. Isso se explicaria, talvez, pela popularidade das narrativas comuns e mastigadas de Hollywood
que, contando com extenuantes aparelhos de propaganda, rapidamente se alastram pelo mundo, tornando
reconhecíveis, em qualquer parte, os elementos com que são formados os heróis.
Reconhecemos ainda a existência da arte oriental como peça bem divulgada e conhecida pelo mundo. No
entanto, heróis como Yoh, protagonista do mangá Shaman King, e Goku, de Dragon Ball, têm tanto em comum
com os heróis ocidentais, que não seria de se espantar que sua popularidade venha daí. Suas similaridades com o
supra-citado mito ocidental do herói, além da narrativa descomprimida, podem ser o bastante para torná-los
populares entre o público ocidental, já que estes [o público] passam a reconhece-los como a identidade uniforme
e imutável do mito.
19
Balder, Sigfried, Moisés, Arthur e até o Super-Homem. Todos encaixam-se
perfeitamente neste currículo.
“Às vezes, se uma história for muito especial, ela pode conquistar as
pessoas” (MOORE, 2007, nº4, p. 27), ou seja, de acordo com as reincidentes
tentativas do homem em superar a si mesmo, em transfigurarem-se nessa busca
visionária, acabamos por esculpir um modelo ideal. O exemplo de Cristo é o mais
gritante por ser, ainda hoje, o que mais perdura e influencia em nossa rotina.
Observadas as grandes narrativas ocidentais produzidas nos últimos cinqüenta,
sessenta anos, não é de se espantar que todas tragam alguma semelhança à
jornada de Cristo. !
A dualidade da natureza de Cristo – a necessidade, tão humana,
tão sobre-humana, do homem de atingir Deus – tem sido um
mistério profundo e insondável para mim. Minha principal angústia
e a fonte de todas minhas alegrias e sofrimentos desde a
juventude tem sido a incessante, impiedosa batalha entre o
espírito e a carne... e minha alma é a arena onde esses dois
exércitos têm lutado. (KAZANTZAKIS 14)
Convertemo-nos em mitos através dessas histórias. É nossa tentativa de
compreender a nós mesmos; identificamo-nos com os heróis e suas provações – “é
difícil caminhar sobre o afiado fio de uma navalha; do mesmo modo, diz o sábio, é
difícil o caminho da Salvação” (KATHA-UPANISHAD apud MAUGHAM, 1983, p. 5).
Assim, incapazes de se lançarem à aventura, por estarem presos às praticidades
típicas do mundo moderno, os homens desconhecem suas próprias capacidades.
Ignoram possuir os dons que tanto apreciam nos heróis que tanto admiram. Porque
uma vez dado o primeiro passo, é difícil prever o que nos aguarda no fim da jornada.
!
Nos primeiros momentos eu fiquei perdido nas trevas e comecei a
pensar em um monte coisas... Pensei no passado e no futuro... E
só fiquei aflito. Mas chegou uma hora que desisti de pensar. O que
importava naquele momento era tatear e avançar... Afinal, tem que
ter um jeito para tudo. (TAKEI, 1998, p. 63 e 64)
14
Da abertura do filme A Última Tentação de Cristo, 1988, Universal Pictures, direção de Martin Scorsese, com
roteiro de Paul Schrader, baseado no livro homônimo de Nikos Kazantzakis.
20
Um dos maiores genitores de heróis do mundo moderno tem sido Hollywood.
Em filmes como Sete Anos no Tibet, O Último Samurai, Batman Begins, Matrix, Hotel
Ruanda e outros, observam-se homens comuns que, frente a desafios e/ou
jornadas, morrem e ressuscitam como novos indivíduos. “O herói se vê então
lutando contra um mundo duro, que não corresponde mais às suas necessidades
espirituais” (CAMPBELL, 2008, p. 138).
Sua morte, claro, é metafórica. Mas é capaz de fazer ruir o mundo da forma
como esses homens o viam anteriormente, tornando-os melhores. Após superarem
uma série de desafios, enfim, deixam todas as dores e pecados para trás, entrando
em harmonia com o mundo que uma vez eles chegaram a negar.
1.3 – As formas narrativas modernas
O herói se sustenta de histórias. É como ele é difundido, torna-se real e
particularmente importante. Desde que, é claro, a audiência esteja interessada. A
cumplicidade do público sempre foi elemento de grande importância na transmissão
e divulgação do mito. A estrutura narrativa modifica-se e finda com gêneros, dando
lugar a outros, novos ou, simplesmente, reestruturando-se, adaptando-se aos novos
tempos.
O escritor Christopher Vogler (1997) defende que as histórias narradas por
grande parte das mídias ocidentais hoje em dia, em particular o cinema, valem-se de
fórmulas prontas, recheada de estereótipos prontos para serem usados em favor da
história. Vogler garante ainda que boa parte destes arquétipos e a forma como eles
são utilizados sofrem influência da obra de Joseph Campbell.
Eco (1974) aponta que antes do grande volume de publicações seqüenciais, o
padrão narrativo era o enredo trágico aristotélico, onde o público, mesmo já
conhecedor da trama, ainda assim compartilha dos acontecimentos, “por virtude da
piedade e do terror, levando-nos a identificar-nos com a situação e com a
personagem” (ECO, 1974, p. 250). No entanto, as tradições românticas acabaram
por dominar as esferas narrativas, e nelas “o interesse principal do leitor é deslocado
21
para a imprevisibilidade do que acontecerá, e portanto, para a inventividade do
enredo, que passa para o primeiro plano” (ECO, 1974, p. 249).
Com o advento de novas tecnologias, as formas narrativas ganharam novos
tons. O séc. XX desdobrou-se em uma produção artística que, ao menos em
número, iriam, em muito, sobrepujar todo material produzido na história anterior do
mundo. A literatura desdobrou-se em fórmulas várias, criaram-se padrões de
narrativa para as séries de tv, os filmes de tv, as novelas para tv e rádio, os filmes
para cinema, as histórias em quadrinhos, as rádio-novelas etc.
Vogler (1997) propõe que “cada contador de histórias adapta o padrão mítico
a seus propósitos ou às necessidades de sua cultura” (VOGLER, 1997, p. 28). Mas
a Jornada do Herói, como é chamada, costuma ser dividida em alguns estágios. E
estes estágios em atos.
O primeiro ato se dá da seguinte forma: o herói começa sua história naquilo
que Vogler chama de “O Mundo Comum”. Este é o mundo ordinário, onde o
quotidiano imutável se encontra. Dali, há o “Chamado à Aventura”, onde o herói se
vê frente a “um problema, um desafio, uma aventura a empreender” (VOGLER,
1997, p. 31). É quando a missão começa, estabelecendo os objetivos do jogo,
deixando claro as perguntas a serem respondidas ou trabalhos a serem cumpridos
pelo herói. “Conquistar o tesouro ou o amor, executar vingança ou obter justiça,
realizar um sonho, enfrentar um desafio ou mudar uma vida” (VOGLER, 1997, p.
32), todos esses podem ser tema de uma jornada.
O herói também está sujeito ao medo, é parte de sua jornada. É o estágio
conhecido como “Recusa ao Chamado”, onde o herói reluta em aceitar seu destino,
hesita logo antes de partir para sua aventura. Para que ele vença essa encruzilhada,
é preciso alguma influência, “uma mudança nas circunstâncias, uma nova ofensa à
ordem natural das coisas, ou o encorajamento de um Mentor” (VOGLER, 1997, p.
33), que tem a função de preparar, fortificá-lo para o que está por vir. Principalmente
porque a jornada do herói, muitas vezes, é solitária, o Mentor não deve seguir com
ele.
Assim, o primeiro ato se aproxima de seu fim, quando acontece a “Travessia
do Primeiro Limiar”, onde o herói se compromete de uma vez por todas com sua
aventura e abandona afinal o Mundo Comum, entrando num Mundo Especial, onde
a história e suas conseqüências finalmente decolam.
22
O segundo ato começa com os Testes e o encontro com os Aliados e os
Inimigos. É quando ele começa a aprender as regras deste Mundo Especial. Então,
conhecedor dos seus inimigos, aproximando-se de seus aliados e testando seus
próprios limites, o Herói se aproxima da “Caverna Oculta”, onde ele enfrentará a
morte ou o perigo supremo.
A “Provação Suprema” ocorre quando o herói se vê obrigado a confrontar seu
maior medo, seja ela a possibilidade da morte ou apenas uma experiência penosa.
!
Se você colocar as coisas em termos de intenções, as provações
são concebidas para ver se o pretendente a herói pode realmente
ser um herói. Será que ele está à altura da tarefa? Será que é
capaz de ultrapassar os perigos? Será que tem a coragem, o
conhecimento, a capacidade que o habilitem a servir?
(CAMPBELL, 2008, pp. 133 e 134)
Aí, após sobreviver a morte o herói irá celebrar. É o terceiro ato que se inicia,
o momento da “Recompensa”. O herói se apossa do tesouro que havia ido buscar, e
isso pode ser tanto um objeto quanto uma lição, uma adquirida sensação de
compreensão, mudança. É hora de fazer o “Caminho de Volta”, onde o herói
“compreende que, em algum momento, vai ter que deixar para trás o Mundo
Especial, e que ainda há perigos, tentações e testes à sua frente” (VOGLER, 1997,
p. 41).
Transformados pela experiência, os heróis experimentam uma Ressurreição,
uma lição final, onde a jornada apresenta novos testes. O objetivo é saber se o herói
realmente aprendeu as lições, para que finalmente possa voltar para casa com o
Elixir. “Algumas vezes o Elixir é o tesouro conquistado na busca, mas pode ser o
amor, a liberdade, a sabedoria, ou o conhecimento de que o Mundo Especial existe,
mas se pode sobreviver a ele” (VOGLER, 1997, p. 43)15.
Para Joseph Campbell, algo muito comum nestes estágios são as presenças
de arquétipos, uma padronização universal da constituição dos homens,
possibilitando a experiência de compartilhar, contar e ouvir histórias. “O conceito de
arquétipo é uma ferramenta indispensável para se compreender o propósito ou a
15
Vogler também menciona o herói tolo que, incapaz de conquistar algo em sua provação, se põe a refazer todos
os passos da jornada. Mais a frente exploraremos este aspecto do herói, sob o prisma das cartas do tarô.
23
função dos personagens em uma história. (...) Os arquétipos fazem parte da
linguagem universal da narrativa” (VOGLER, 1997, p. 48).
Esses mesmos elementos podem ser vistos, em maior ou menos escala, em
boa parte das produções hollywoodianas. O trabalho do roteirista passa a ser o de
alterar as matizes para que o quadro não se apresente sempre o mesmo para o
público. Os observadores mais atentos são capazes de colher esses elementos e
decifrá-los, rapidamente compreendendo as fórmulas cinematográficas de narrativa
– o que, infelizmente, acaba tornando boa parte dos filmes em cartaz em
enfadonhos passatempos16 .
Mas o sucesso alcançado por tais fórmulas mostra a necessidade ainda
premente do mito pelo homem.
Vale lembrar que estas fórmulas não são a regra para todas as mídias. As
tele-novelas e os quadrinhos, por exemplo, beneficiam-se do herói, mas por sua
extensão e pela influência do público, acabam tendo de se virar em sub-tramas e
enredos que, muitas vezes, escapam aos ditames da narrativa.
Uma história em quadrinhos, por exemplo, pode se estender por décadas.
Muitas vezes, os autores abandonam os projetos em prol de sangue novo, fazendo
com que personagens jamais envelheçam, e, mesmo quando frente à morte,
acabem por fazer pouco da mesma, pois é certo de que poderão voltar.
O próximo capítulo versará sobre estas particularidades narrativas dos
quadrinhos, além de fazer um apanhado sobre a trajetória do mesmo e como o mito
se comportou nesta mídia em particular.
16
Obviamente, há a liberdade individual de se observar cada filme como um espetáculo em separado, dotado de
elementos que os diferencie da grande maioria, sejam eles direção, atuação, roteiros, cenários ou apenas algo que
provoque no espectador um profundo reboliço interno.
24
Capítulo 2 A narrativa mitológica (e sua desconstrução) nos quadrinhos de
super-heróis
A despeito da discordância de gostos em relação aos leitores e
criadores, teremos uma pequena dificuldade em identificar os
componentes do campo de quadrinhos que nós gostamos.
Gostamos dos quadrinhos quando eles nos assustam, nos
amedrontam, nos fazem rir ou nos dizem algo que não sabemos.
Os adoramos por sua sensualidade e seu encanto, por sua
inocência e seu charme. Amamos as grandes artes, histórias
fortes e uma bela capa. Amamos os quadrinhos para adultos e as
revistas infantis. Gostamos de caubóis, de cavaleiros de armadura
e super-humanos; gostamos de monstros, de personagens
adoráveis, de piratas, deuses e qualquer animal que use luvas
brancas. Amamos os desenhos e amamos as palavras. (MOORE,
2008)
!
Ao eventual novo leitor de quadrinhos de super-heróis que se interessou por
este fascinante universo após acompanhar alguns episódios das séries animadas da
tv ou algum filme campeão de bilheteria que adaptam os heróis para outras mídias
e, principalmente, aos críticos que acusam os quadrinhos de serem agentes
alienantes deformadores das jovens e influenciáveis mentes das Américas
colonizadas, eis um alerta: é preciso muita pesquisa para se ler quadrinhos e
aproveitar tudo que eles podem oferecer.
!
Alan Moore, o escritor de Promethea, relata em entrevista17 que atribui muito
de sua formação aos quadrinhos, onde era possível encontrar "personagens
incrivelmente coloridos, que detinham aqueles poderes maravilhosos que podiam
transcender suas limitações humanas” (MOORE, 2003), alegando que a renovação
das histórias era o que mais lhe atraia, visto que “não tinha que reler os mesmos
mitos outra e mais outra vez, e sim (...) algo novo sobre o Super-Homem ou sobre o
Flash” (MOORE op. cit.).
“Os super-heróis eram exóticos - todos esses homens em berrantes calças
estreitas, brigando uns com os outros, exibindo poderes extraordinários. Foi a
mesma sensação que senti quando descobri as mitologias grega e escandinava pela
primeira vez” (MOORE, 2008). Remetendo acerca das similaridades entre os super-
17
No documentário A Paisagem Mental de Alan Moore, 2003, ShadowSnake Productions, direção de DeZ
Vylenz.
25
heróis e os mitos de que se constituem a mitologia ocidental contemporânea18 , Alan
Moore larga mão de julgar o impulso de ler quadrinhos de acordo com a
identificação do leitor com os personagens. E o fato dos heróis, em sua maioria,
serem tão semelhantes ao ser humano comum, apenas contribuía para isso.
2.2 O tempo em quatro cores
(GAIMAN e KUBERT, 2004, p. 22)
!
!
O personagem de quadrinhos vive à margem da temporalidade. O leitor
moderno, ao acompanhar as aventuras de um determinado super-herói, se encontra
diante de uma trama que, quase sempre, se estende em muitos anos para o
passado. É preciso um conhecimento quase enciclopédico para se virar as páginas
de uma edição de uma revista como, digamos, X-Men e entender todos os
fenômenos ali apresentados.
A longevidade de um personagem de quadrinhos se deve a renovação
constante do time de criadores que trabalha por trás das páginas. Novos escritores
trazem novas idéias: assim nascem personagens como o Super-cão, Super-gato,
Super-moça, etc. Cada um desses elementos foi integrado à mitologia do
personagem em algum momento e, quando conveniente, descartado, esquecido e
devidamente enterrado.
18
A partir daqui, todas as vezes em que citarmos “mito” ou “mitologia” neste trabalho, estaremos nos referindo à
citada “mitologia ocidental contemporânea”.
26
!
Para Umberto Eco, embora este fosse um recurso narrativo bastante
comum19 , foi com os super-heróis que as tramas empreenderam a paralisação do
tempo. Isto se dava porque o leitor em geral não tinha interesse em grande tramas
que poderiam se estender, quem sabe, ad infinitum. Estas histórias eram, afinal,
“vendidas a um público preguiçoso que se apavoraria ante um desenvolvimento
indefinido de fatos que o levasse a empenhar a memória semanas a fio” (ECO,
1975, p. 252).
Ou seja, esse herói não acumula experiências, as suas aventuras são
esquecidas e ele nunca passará de um simples Sísifo 20, condenado pela eternidade
a repetir trabalhos mínimos que, na verdade, em nada ajudavam na verdadeira
transformação do herói21 . Assim, o super-herói torna-se um personagem único na
área da ficção, ele não se submete ao tempo, não envelhece (o mundo ao seu redor
pode envelhecer, mas ele permanecerá jovem, adaptando-se) – ainda que se lembre
de algumas aventuras passadas, quase nunca é capaz de acumular experiências.
Tomemos como exemplo, o primeiro dos super-heróis: o Super-Homem.
!
Publicado pela primeira vez em junho de 1938, na primeira edição da revista
Action Comics, o Super-Homem é o exemplo perfeito do mito do herói. Sua origem
está ligada à destruição de um mundo, seu planeta-natal, Krypton, um “lugar ideal,
muito mais avançado do que a Terra de 1938. Os Kryptonianos haviam atingido a
perfeição física e mental” (BYRNE, 1996, p. 54), no entanto, estavam próximos do
fim de seu ciclo de existência e um cientista chamado Jor-El, ao ver a situação limite
em que se encontra seu planeta-natal, coloca o filho a salvo, enviando-o em direção
ao espaço desconhecido.
19
Como aponta Eco, a história da literatura acostumou-se a ver alguns de seus grandes e mais populares
personagens voltarem para estrelar uma série de novas aventuras. Personagens como Sherlock Holmes de Sir
Arthur Conan Doyle e Os Três Mosqueteiros de Alexandre Duma, por exemplo, foram bons exemplos desse
recurso largamente utilizado, ainda hoje, com as diversas e bem sucedidas seqüências no mundo cinematográfico
e até em livros que insistem em resgatar Drácula, Sherlock Holmes, Tarzan e outros personagens clássicos da
literatura.
20
Mestre das malícias e truques, Sísifo foi condenado por toda a eternidade a rolar uma grande pedra de
mármore com suas mãos até o cume de uma montanha, sendo que toda vez que ele estava quase alcançando o
topo, a pedra rolava novamente montanha abaixo até o ponto de partida por meio de uma força irresistível. Por
esse motivo, a tarefa que envolve esforços inúteis passou a ser chamada "Trabalho de Sísifo".
21
Autores como Alan Grant, Warren Ellis, James Delano entre outros, criticam esta incapacidade do herói de
mudar o mundo. Grant respondeu a esse padrão imutável e esquemático dos super-heróis, criando o Anarquia,
um jovem super-dotado com fortes inclinações políticas e militantes mensagens de liberdade, que acabou sendo
alçado à condição de inimigo do Batman. Ellis, no entanto, obteve mais sucesso, com a criação de Authority, um
poderoso e imbatível grupo de super-heróis que não tinham pudores em invadir uma nação e arremessar um
ditador para uma multidão que, enfurecida, sem dúvidas o julgará da forma mais violenta possível.
27
O pequeno órfão acaba por chegar à Terra, onde é acolhido por uma singela e
infértil família do interior do Kansas, que o encontra em meio as plantações de milho,
o adota e passa a criá-lo como uma criança comum. No entanto, a força do tempo o
alcança e esta criança, que agora se chama Clark Kent, torna-se um homem. E esse
processo de amadurecimento não é nada comum: seus olhos expelem raios de fogo
e, vêem através de objetos sólidos e a distâncias ilimitadas; da mesma forma que
sua audição; seu corpo tem a resistência do aço; sua força é tanta que pode parar
um trem; e ele ainda pode saltar a distâncias enormes.
!
Sim, saltar. Em suas primeiras histórias, o Super-Homem não voava. Mas
este detalhe, assim como diversos outros conflitantes eventos de sua trajetória, tem
uma razão de ser: o Super-Homem é um produto.
Para John Byrne (1996), era muito comum que Jerry Siegel e Joe Shuster,
respectivamente, escritor, desenhista e criadores do Super-Homem, trabalhassem
de acordo com a lógica de mercado. Assim, se era mais interessante e vendável que
o personagem voasse, que assim fosse. Da mesma forma como, anos depois (em
1945), descobriu-se que Clark já usava seus poderes na adolescência, sob a
alcunha de Superboy.
Mais tarde, este tipo de intervenção narrativa no passado do personagem
para justificar atos referentes a histórias do presente ganhou nome no meio editorial.
Chama-se retcon. Refere-se a mexer na continuidade retro-temporal das histórias.
O Super-Homem não é um personagem nos moldes clássicos da ficção. Os
personagens que circulam ao seu redor existem há mais de setenta anos,
praticamente imutáveis, assim como o próprio Super-Homem que, salvo um ou outro
detalhe, pouco se alterou. Sua história não se encerra na última página da história.
Como todo super-herói, o Super-Homem tem sempre uma nova aventura o
esperando na próxima edição. Quando não, uma continuação desta em que ele se
encontra.
As continuações são típicas da Indústria Cultural, onde a estabilização de um
personagem junto ao público é muito mais importante do que as histórias que o
mesmo cria. Expressão criada por Horkheimer e Adorno, a Industria Cultural ilustra a
“transformação do progresso cultural no seu contrário” (ADORNO e HORKHEIMER,
apud Wolf, 2005, p. 75), deixando a criação de lado e se concentrando nos
28
dividendos gerados pelo mesmo 22. É comum deixar que as altas vendas falem mais
alto, pois elas fazem com que o público exija cada vez mais de um personagem.
Os tempos mudam e este personagem deve se adaptar, como justifica Steve
Webb (WEBB, 1996). Setenta anos depois de histórias ininterruptas, o SuperHomem ainda é publicado e pouco se alterou de sua essência, mas muitas
adaptações tiveram de ser feitas ao personagem e seu elenco.
Assim, estabelecidas algumas particularidades narrativas dos quadrinhos de
super-heróis, é hora de observar as mudanças da mesma com o passar dos anos –
e como os heróis se comportaram diante destas modificações.
2.3 – As várias eras dos quadrinhos
Embora não exista um consenso sobre quando os quadrinhos começaram a
serem divididos em eras, Marcus Ramone, articulista do site Universo HQ, nos diz
que “separar a arte seqüencial em eras é uma das máximas seguidas por qualquer
fã de HQs” (RAMONE, acessado em 23 de novembro de 2003). Assim,
compreendem-se os quadrinhos de super-heróis em três eras distintas.
A primeira era dos quadrinhos, chamada de Era de Ouro, estende-se de 1938
(com a publicação de Action Comics nº 1), até o final da Segunda Guerra Mundial. O
fim do conflito, no entanto, levaram os quadrinhos a amargarem uma considerável
queda nas vendas.
Aqui, daremos foco, principalmente aos personagens da editora americana
DC Comics23, não só por ser a responsável pela publicação do Super-Homem24,
22
Adorno e Horkheimer criaram o conceito de Indústria Cultural para definir a conversão da cultura em
mercadoria. O conceito não se refere aos veículos (televisão, jornais, rádio...), mas ao uso dessas tecnologias por
parte da classe dominante. A produção cultural e intelectual passa a ser guiada pela possibilidade de consumo
mercadológico. Para Adorno a cultura de massa tende a agir as suas criações ao redor da economia, tornando-as
uniformes. “O cinema e o rádio não têm mais necessidade de serem empacotados como arte. A verdade de que
nada são além negócios lhes serve de ideologia. Esta deverá legitimar os lixos que produzem de propósito. O
cinema e o rádio se autodefinem como indústrias, e as cifras publicadas dos rendimentos de seus diretores-gerais
tiram qualquer dúvida sobre a necessidade social de seus produtos” (ADORNO, 2007, p. 8).
23
No entanto, quando for de relevância para a compreensão total do quadro cronológico da narrativa
quadrinhistica de super-heróis, também serão abordadas as criações de personagens de outras editoras.
24
Embora a oportunidade de acompanhar o personagem [Super-Homem] ao longo das décadas ser de grande
utilidade para o desenvolvimento deste trabalho.
29
mas também por considerarmos que seja a editora onde as criações mitológicas
tenham atingido o nível mais alto 25 de seu universo narrativo.
!
Pode ser que “universo” seja um termo grandioso demais para o
conjunto compartilhado de narrativas de quadrinhos que compõem
o que convencionamos chamar de “Universo DC”. Mas, desde as
fortuitas histórias produzidas nos anos 40 até as deliberadas e
complexas tramas dos últimos tempos, as aventuras dos heróicos
personagens da DC Comics se entrelaçam e formam um
maravilhoso e complexo panorama. (GIBBONS, 2006, pp. 5 e 6)
!
A Era de Ouro foi marcada pelo surgimento de muitos heróis, todos na esteira
do sucesso comercial do Super-Homem. A editora, então conhecida como National
Comics26, passou a publicar personagens como Batman, Lanterna Verde, Flash
(chamado aqui no Brasil de Joel Ciclone), Aquaman, Mulher-Maravilha e em outras
editoras se observou o surgimento
de vários outros heróis. A Timely Comics27
apareceu com Namor, o Príncipe Submarino, Capitão América28 , entre outros.
A publicação mais importante deste período, no entanto, foi Capitão Marvel,
da Fawcett Comics. Nas páginas da WHIZ Comics, o jovem órfão Billy Batson
transformava-se no maduro Capitão Marvel, ao pronunciar a palavra mágica
SHAZAM, ganhando assim a sabedoria de Salomão, a força de Hércules, o vigor de
Atlas, o poder de Zeus, a coragem de Aquiles e a velocidade de Mercúrio.
Apesar do grande potencial, poucas vezes se viu o personagem usando, de
fato, qualquer um dos atributos que os deuses lhe entregavam, sendo, na maior
25
Mesmo as criações mitológicas oferecidas pelos quadrinhos europeus, como a série A Casta dos Metabarões
de Alejandro Jodorowsky, e mangás como Dragon Ball de Akira Toryiama, escapam à grandiosidade universal
dos quadrinhos da DC, já que são atados às considerações narrativas de um único individuo, enquanto os superheróis padecem de constantes renovações em suas equipes de criação.
26
E que mais tarde, 1977, passaria a se chamar oficialmente DC Comics, principalmente por conta de seu título
mais vendável, a Detective Comics, onde surgiu e é publicado, até hoje, o personagem Batman.
27
Mais tarde, a editora mudaria seu nome para Atlas Comics, Timely/Atlas e, finalmente, para Marvel Comics,
como hoje é conhecida no mundo inteiro.
28
Que logo na capa de sua primeira edição, em 1940, já era visto esmurrando Adolf Hitler. Um claro exemplo de
como os quadrinhos foram influenciados pelo período de guerra – algo que vem se repetindo, desde então, como,
por exemplo, a edição de Homem-Aranha onde o personagem é visto com outros heróis, ajudando a resgatar
pessoas soterradas pelos destroços do World Trade Center, durante o incidente de 11 de setembro de 2001, e nas
revistas do próprio Capitão, que chegou a ir até o Afeganistão, atrás de Osama Bin Laden.
30
parte do tempo, apenas uma cópia do Super-Homem29 . Esta era a primeira, de
muitas vezes em que os heróis iriam ser associados a deuses.
A década também marcou a primeira reunião oficial de super-heróis, no caso,
A Sociedade da Justiça América. A terceira edição da revista All-Star Comics trouxe
em suas páginas heróis que, embora gozassem de grande prestigio, não contavam
com títulos próprios. Assim, Sr. Destino, Lanterna Verde (o original), Joel Ciclone,
Homem-Hora, Sandman, Gavião Negro, Átomo e Espectro constantemente se
reuniam para pôr fim aos planos de algum vilão. Batman e Super-Homem, embora
fossem membros honorários, só apareceram em duas aventuras do grupo.
No final da década de 40 a popularidade dos super-heróis caiu. Assim, as
editoras voltaram sua atenção para outros gêneros como ficção cientifica, faroeste,
humor e romance (todos gêneros que já eram publicados antes, mas que haviam
sido deixados de lado em prol da febre dos super-heróis).
A década de 50, em pleno macarthismo 30, viu uma cruzada anti-quadrinhos
varrer o país. Isso se deveu, principalmente, por conta da grande influência do
psiquiatra alemão Fredric Whertheimer.
Whertham, como ficou conhecido Whertheimer, alegava que os quadrinhos
eram determinantes nos desvios de comportamento dos jovens, estimulando, não só
o crime, mas também a homossexualidade 31. Com a publicação de seu livro
Seduction of the Innocent (A Sedução do Inocente), Whertham passou a ser visto
como a autoridade máxima no assunto. Qualquer quadrinho condenado por ele
tornava-se quase que imediatamente uma vítima do cancelamento. Embora
houvesse pessoas que discordassem dele32, as pressões exercidas por Whertham
foram tantas que a indústria de quadrinhos americana nunca mais foi a mesma.
29
O que fez com que a National Comics processasse a Fawcett Comics. O longo processo judicial terminou em
1955, quando a Fawcett finalmente desistiu do personagem, cedendo os direitos para a DC que só o retomaria
em 1973.
30
O senador americano do estado de Winsconsin Joseph McCarthy aproveitou a paranóia americana do pósguerra e mobilizou uma grande luta contra o comunismo nos meios de comunicação, levando à prisão, diversos
artistas, cineastas, roteiristas e afins, baseando-se em argumentos que, hoje, vêem-se, eram pouco sólidos, mas
que surtiram grandes efeitos na época. (TEIXEIRA, 2003)
31
32
Whertam é o grande responsável por disseminar a idéia de que Batman e Robin são um casal gay.
O professor Frederic M. Thrasher, da Universidade de Nova Iorque, declarou que a posição extremada adotada
e indicada por Wertham, não contava com nenhuma pesquisa válida, além de ser contrária a boa parte do
pensamento psiquiátrico daquele momento. (V. Os Gibis Americanos nos anos 40 e 50, de Rafael Teixeira)
31
Quando uma comissão especial do Senado americano foi reunida para
investigar o crime organizado, a influência dos quadrinhos em atitudes criminosas
também foi levada à pauta. Embora não tenha surgido daí, nenhuma legislação
especial sobre o controle dos quadrinhos. Em plena Caça às Bruxas33, a indústria
teve de se render e, em 1954, quando o Senado instaurou uma subcomissão
encarregada de investigar os efeitos dos quadrinhos sobre as crianças, partiu das
próprias editoras a institucionalização de um código de auto-regulamentação.
O Comics Code Authority, além de garantir uma distribuição competente das
revistas34 , também estabelecia algumas regras bem objetivas sobre a publicação
dos quadrinhos na época. Revistas que contivessem em seu título as palavras
“crime”, “horror” ou “terror”, estavam proibidas; o bem sempre triunfaria sobre o mal;
a sensualidade deveria ser diminuída; e gírias e coloquialismos seriam evitados ao
máximo; entre outras.
O cancelamento de boa parte dos quadrinhos de humor e suspense foi
cataclísmico para muitas editoras35 . As que não faliram, tiveram de se adaptar ao
gosto de um público que, não podendo ter o que queria, deveria se moldar a novos
gêneros. Foi o começo da Era de Prata.
Em 1956, a DC Comics, na época contando com Julius Schwartz como editorchefe, revitalizou o personagem Flash na edição nº 4 da revista Showcase. A idéia
era trazer de volta alguns heróis da Era de Ouro, mas re-imaginando-os como novos
personagens. “Reiniciar com outro Flash (...) fez sentido para Schwartz porque ele
achou que ninguém se lembraria do antigo” (WEBB, 1996, p. 126). Assim, saiu de
cena Jay Garrick (o Joel Ciclone no Brasil), e entrou Barry Allen.
33
Como também ficou conhecido o macarthismo.
34
editoras amargavam ante o boicote dos distribuidores que se negavam a entregar material sem o selo do
código.
35
Poucas revistas se salvaram, mas num exemplo irônico de como este controle era rasteiro e pouco eficaz, vale
destacar as ações dos editores da revista Mad para evitar seu cancelamento. Eles mudaram o formato da revista e
passaram a tratá-la como um Magazine, colocando-a num patamar diferente em relação aos quadrinhos no
mundo das publicações impressas.
32
Uniformes diferentes, com origens muito semelhantes: tanto Garrick quanto
Allen eram cientistas que sofreram acidentes com materiais químicos que,
combinados, conferiram-lhes super-velocidade36.
A Era de Prata também trouxe de volta personagens como o Lanterna Verde37
e o Gavião Negro, além de heróis como o Homem-Elástico, Arqueiro-Verde,
Zatanna38 , entre muitos outros. Embora crescessem o número de super-heróis e sua
popularidade entre os leitores, a qualidade das histórias passou a ser
significantemente afetada pelo gosto do público pelas histórias de ficção cientifica.
Batman e Super-Homem, por exemplo, amargaram, durante anos, aventuras
sofríveis, com vilões e tramas que caiam no ridículo 39.
Para garantir o sucesso destes personagens, a DC Comics lançou em 1960,
na edição 28 da revista The Brave and the Bold, a Liga da Justiça. A intenção era
repetir o sucesso alcançado com a Sociedade da Justiça, desta vez contando com
os personagens mais populares da editora: Super-Homem, Batman, Mulher-
36
Jay Garrick era um estudante quando inalou acidentalmente vapores de água pesada depois de adormecer em
seu laboratório onde ele estava trabalhando. Como resultado, ele descobriu que podia correr a velocidades sobrehumanas e tinha reflexos igualmente rápidos.
Já Barry Allen, um funcionário da polícia cientifica, ganhou seus poderes depois de sofrer um acidente, sendo
banhado por produtos químicos após seu laboratório ser atingido por um raio.
37
O primeiro Lanterna Verde, criado em 1940, apareceu pela primeira vez na revista All-American Comics nº
16. Chamava-se Alan Scott. Seu anel (fonte do poder dos Lanternas Verdes), fazia parte de um fragmento de
metal alienígena encontrada por ele no final da década de 30. O metal tinha o formato de uma lanterna e
conseguia gerar objetos maciços (e verdes, claro) com o poder do pensamento. Alan usou uma parte da lanterna
para criar um anel – que constantemente tinha de ser recarregado na peça-matriz. Sua única vulnerabilidade era a
madeira.
O segundo Lanterna Verde, criado em 1959, apareceu pela primeira vez na revista Showcase mº 22. Chamava-se
Hal Jordan e ignorava a existência de Scott. Hal era um piloto de testes da Ferris-Aeronáutica. Um dia, enquanto
testava uma nave experimental, foi abduzida por uma estranha energia verde que o levou até uma clareira, onde,
agonizante, o alienígena Abin Sur entregou-lhe o anel da Tropa dos Lanternas Verdes. A partir de então, Hal
passou a contar com poderes semelhantes aos de Scott, com a diferença de que sua única vulnerabilidade estava
ligada à cor amarela e não a madeira. (V. mais sobre a Tropa dos Lanternas Verdes no apêndice)
38
Filha de um tradicional personagem da Era de Ouro, o mago Zatara. Assim como o pai, Zatanna dividia as
atividades de super-heroína com a profissão de artista dos palcos e fazia seus truques, simplesmente dizendo as
frases de trás para frente.
39
O seriado clássico de Batman, produzido entre 1968 e 1970, teve grande influência dos quadrinhos desse
período.
33
Maravilha, Flash, Lanterna Verde, Aquaman e Ajax – O Caçador de Marte40 (o único
que não contava com uma revista própria no período).
O sucesso da Liga da Justiça, fez com que a editora-rival, Timely Comics,
encomendasse a criação de uma super-equipe a dois de seus maiores criadores:
Stan Lee e Jack Kirby. Ambos atuando no mercado de quadrinhos desde a década
de 40, Kirby e Lee criaram o Quarteto Fantástico, uma família de exploradores
espaciais que em contato com uma força desconhecida, retornam a Terra, dotados
de super-poderes.
A inovação ficou por conta do tratamento dado a esses super-heróis. O
Tocha-Humana, o Sr. Fantástico, a Garota Invisível e o Coisa eram imperfeitos e
viviam em conflito entre si, gerando os super-seres mais humanos já vistos até
então. O Coisa, por exemplo, era constantemente atingido por uma onda de
melancolia, ao perceber que jamais poderia voltar a se tornar um homem comum e
estaria, para sempre, condenado a ser um estranho entre os humanos, devido a sua
aparência “pedregosa”.
O Quarteto Fantástico impulsionou toda uma nova geração de heróis com
problemas pessoais e comportamentos que muitas vezes fugiam da rigidez moral
presente em quase todos os personagens da época. Assim, pelas mãos da Timely
Comics, que logo se tornaria a Marvel Comics, o público viu surgir outros heróis, tais
como o Homem-Aranha, um adolescente preocupado com amores, contas e
trabalhos de escola, que chegou a enfrentar a morte de uma namorada, a
adolescente Gwen Stacy 41, pelas mãos de seu maior inimigo, o Duende-Verde; o
Thor, um deus nórdico condenado a viver preso ao corpo do mortal Donald Blake42,
que, manco de uma perna, também se sentia amaldiçoado, pois mesmo sendo um
médico brilhante, ainda assim se considerava um nada em relação ao grande poder
40
J’onn J’onzz, mais conhecido no Brasil como Ajax, o Caçador de Marte, é o último marciano vivo. Sua origem
foi mostrada na edição 225 de Detective Comics. Atraído pra Terra no final da década de 40, por um acidente
que custou a vida de um cientista, J’onn permaneceu, durante anos, como um ex-detetive aposentado na cidade
Chicago. Com o surgimento do Super-Homem, achou que era hora de se revelar e criou uma identidade superheróica. Devido a seus poderes, que incluem telapatia, visão marciana (combinação de visão de calor e raio x),
super-força, intangibilidade, transmorfismo, supervelocidade e invisibilidade, logo foi alçado a condição de
membro de valor da Liga da Justiça, tornando-se o personagem que mais tempo esteve junto com o grupo.
41
Gwen Stacy, morta em 1972, foi, durante muitos anos, tida como a única morte irreversível do mundo dos
quadrinhos, afetando seriamente, até os dias de hoje, as ações do Homem-Aranha. Recentemente a personagem
voltou dos mortos numa série de mal-sucedidas decisões editoriais que, aos olhos dos fãs, prejudicaram muito as
aventuras do herói. Ironicamente, a revista do personagem continua vendendo como água.
42
Mais uma vez, o humano se envolve com os deuses. No entanto, nas aventuras de Thor, ao contrário das
protagonizadas pelo Capitão Marvel, o universo dos deuses era bastante explorado.
34
que trazia dentro de si; e Homem-de-Ferro, cuja identidade secreta é o
multimilionário Tony Stark, que, a exemplo de Bruce Wayne, combatia o crime com
ajuda de seus infindáveis recursos financeiros, mas o herói também enfrentava
demônios pessoais, tendo de lidar, por exemplo, com o alcoolismo e constantes
ameaças empresariais.
A DC Comics também investiu nesse aspecto, colocando os personagens
Lanterna Verde e Arqueiro Verde para percorrerem a América, remetendo à obra de
Kerouac43 , conforme nos revela Ricardo Malta Barbeira em uma resenha para o site
Universo HQ, em que também comenta as semelhanças desta fase com os
trabalhos dos jornalistas Tom Wolfe e Hunter Thompson. Durante este período, que
ficou marcado pelos roteiros de Dennis O’Neil e os desenhos de Neal Adams, o
Arqueiro Verde revelou-se um simpatizante do comunismo, e o Lanterna Verde teve
algumas de suas crenças no American way of life questionadas44 . Tornou-se clássica
a edição onde o Arqueiro descobre que seu parceiro-mirim, Ricardito, tornara-se um
viciado em heroína.
No entanto, a ficção científica ainda era o carro chefe de boa parte das
publicações dessas editoras45 , como nos revela Byrne (1996). O ponto alto foi a
criação dos Novos Deuses46, pelas mãos de Jack Kirby, para a DC Comics. Esta
fixação pela ficção cientifica pode ser encarada como uma obsessão ocidental, à luz
da seguinte declaração de Alan Moore:
!
A idéia de discos voadores sólidos do sistema estelar de Alpha
Centauri, nos visitando agora ou em qualquer tempo no passado
não é uma idéia racional. E então, porque envolve maquinário,
motores warp, ou conceitos pseudo-científicos como esse, então
nós, no ocidente lhe prestaremos seriamente atenção, igual
43
Jack Kerouac, escritor norte-americano, membro fundador do movimento beatnick, que contava também com
gente como William Burroughs (Almoço Nu), Allen Ginsberg (Uivo), Gregory Corso, Peter Orlovsky e outros.
Ficaram famosos por suas transgressões e pela contínua busca da liberdade, experimentando todo tipo de drogas
e posturas sociais anti-governamentais que encontrassem pelo caminho. A obra de Kerouac ficou marcada por
seu fascínio pelas religiões orientais, o fluxo de consciência durante a escrita e as longas viagens feitas por ele
pelos Estados Unidos. Seu livro mais famoso é On The Road – Pé na Estrada.
44
Publicadas entre as edições 76 e 88 de Green Lantern (1970 e 1971), recentemente republicadas no Brasil no
especial Grandes Clássicos DC – Lanterna Verde e Arqueiro Verde Vol. 1.
45
Mesmo o Quarteto Fantástico, com sua temática familiar, ainda era, em grande parte, uma hq de aventuras
cientificas.
46
V. mais sobre os Novos Deuses no apêndice.
35
fizeram com os livros de Von Danicken. Ao contrário, as idéias
espirituais de outras culturas, nós as consideramos como... Bem,
elas são completamente sem sentido, não são científicas. (...)
Tudo o que vemos são as nossas percepções e as confundimos
com a realidade. Em conseqüência, tendemos a ser muito
chauvinistas, sobre a nossa imagem da realidade, como se ela
fosse a única. Então, a única forma através da qual podemos ver
as outras culturas é imaginando que elas se iludiram ou eram
primitivas ou que não haviam entendido tudo. Essa é a forma em
que nós, em termos de informação, isolamos a nós mesmos,
terrivelmente. (MOORE, 2003)
Moore se refere a capacidade da ficção de, em alguns momentos, limitar os
indivíduos, cegando-os para outros aspectos da investigação mitológica. Joseph
Campbell é menos rancoroso com a busca pelas estrelas, mas adverte que “ao se
lançar no espaço, você carrega o seu corpo e, se este não estiver transformado, o
espaço não o transformará” (CAMPBELL, 2008, p. 193). Campbell questiona a
verdadeira importância do homem dentro de um universo tão vasto e grandioso,
recheado de estrelas e explosões inimagináveis.
E, ao tomar consciência disso, você se dá conta da sua real
importância, não é mesmo?, uma minúscula micropartícula no
meio dessa grande magnitude. Depois, é preciso viver a
experiência de que você e isso tudo são, de algum modo, uma
coisa só, e você participa de tudo isso. (...) E essa experiência
começa aqui. (CAMPBELL, 2008, p. 193)
Os super-heróis, no entanto, são capazes de atingir as estrelas, dançar com
aliens e se voltar novamente para o mundo que chamam de lar. E é ao leitor que
cabe a identificação com esta jornada, empreendendo uma investigação dos mitos
que compõem um super-herói. Este comportamento relacional entre público e mídia,
enfim atingiria seu grande ápice, gerando aquele que seria o próximo passo dos
quadrinhos.
Mas antes, é preciso se observar como, no começo dos anos 80 a Era de
Prata começava a se aproximar de seu fim (WEBB, 1996). Mais uma vez, foi um
Flash o responsável por uma nova direção dos quadrinhos. Na verdade, dois
Flashes, já esta quebra de paradigmas teve seu início em 1961. Na edição 123 de
36
Flash, o personagem Barry Allen rompeu com os limites do espaço-tempo e foi parar
em outra Terra, encontrando-se assim com Jay Garrick, o Joel Ciclone (o primeiro
Flash, nos Estados Unidos). Segundo Julius Schwartz e Gardner Fox, responsáveis
por este encontro, as duas Terras tratavam-se do mesmo mundo, só que vibrando
em velocidades diferentes (daí, de só os Flashes poderem alcançar esses outros
mundos, pois possuem a capacidade de romperem com os limites da luz). Fox
batizou a Terra do Flash-Barry Allen de Terra Ativa (Earth One, no original) e a de
Joel Ciclone de Terra Paralela (Earth Two)47.
A história fez tanto sucesso que uma esteira cósmica foi construída para que
os heróis se encontrassem mais vezes. Além dos dois Flashes, os membros da Liga
da Justiça e da Sociedade da Justiça também passaram a se encontrar48 . Estes
encontros também proporcionaram o descobrimento de outros mundos, como a
Terra 3, onde os vilões eram versões dos heróis que conhecemos e o único defensor
do planeta era Lex Luthor; a Terra 4, habitada pelo Capitão Átomo, Besouro Azul,
Questão e outros personagens comprados da editora Charlton Comics; Terra S, lar
do Capitão Marvel, dos seus inimigos e do seu elenco de apoio; a Terra X, onde a
Alemanha havia vencido a Segunda Guerra Mundial e soldados como os da
Companhia Moleza tentavam reverter a situação; entre outras muitas terras.
Isso tudo apenas servia para bagunçar a cabeça do leitor. Embora facilitasse
a vida dos autores quando esses queriam contar alguma história que não
influenciasse na vida dos personagens49 . Tantos mundos paralelos acabaram
tornando o Universo DC confuso demais para os leitores (WEBB, 1996).
A solução foi uma crise. A Crise. A Era de Prata estava chegando ao fim.
47
Hoje, no Brasil, as denominações Terra Ativa e Terra Paralela foram deixadas de lado, em prol dos nomes
originais, Terra 1 e Terra 2.
48
Vale destacar que na Terra Paralela, Batman e Suer-Homem continuaram na ativa, casaram, tiveram filhos e, é
claro, envelheceram.
Estes encontros se davam várias vezes ao ano e foram republicados, recentemente, na edição especial Crise nas
Múltiplas Terras, pela Panini Editora.
49
Bastava ao autor dizer que aquela era uma “história imaginária”. Mais tarde, Alan Moore ironizou esta
fórmula adotada pelos autores de outrora, ao questionar na introdução de sua história “O que aconteceu com o
Homem de Aço?”, se não seriam, afinal, todas aquelas histórias imaginárias.
37
2.4 – A Crise na realidade: super-heróis existem!
(MORRISON e TRUOG, 1993, p. 73 e 74)
Crise nas Infinitas Terras. Uma mini-série em doze edições cujas proporções
puderam ser notadas em todos os títulos regulares da DC Comics durante todo o
ano de 1985.
Editorialmente, a solução foi muito simples: unificar tudo aquilo que
convencionou-se chamar de Universo DC numa única cronologia, atraindo assim,
novos leitores que não mais se sentiriam intimidados diante de uma continuidade tão
desordenada. Artisticamente, bastava convocar dois dos mais conceituados autores
da época, Marv Wolfman e George Pérez, respectivamente, o escritor e desenhista
38
responsáveis pelo estrondoso sucesso da revista Novos Titãs50. Literariamente, uma
saga deste porte, exigia o sacrifício de muitos heróis e vilões, além de realidades
inteiras que passariam a ser esquecidas (SPERB, 1989).
Durante um ano, os leitores observaram seus super-heróis preferidos lutarem
contra a ameaça de um fim. Claro que todos sabiam que esse fim não chegaria, que
a editora DC Comics continuaria, de uma forma ou de outra, a publicar seus
personagens, e que, obviamente, a história acabaria bem. Mas era a primeira vez
em que a eminência de um fim assombrava esses personagens 51 que só conheciam
continuações.
Para provar que não estavam brincando, Wolfman, Pérez e Len Wein, o editor
responsável pela Crise, fizeram com que vários heróis fossem mortos. Entre eles, a
Supermoça, Columba52 , e muitos outros. Mas a morte mais emblemática foi a do
segundo Flash, Barry Allen. Era um sinal de que as coisas jamais seriam as
mesmas. E, também, a última pá de terra de sobre a Era de Prata.
!
Há vários aspectos de Crise que me orgulham. Em primeiro lugar,
a história faz sentido! Depois de 12 edições, com tantos
personagens e enredos juntos, o fato de tudo ter dado certo é
gratificante. Também fiquei satisfeito com a reação frente à morte
da Supermoça, especialmente porque foram fornecidos todos os
dados necessários sobre a heroína para se entender quem ela era
e como morreu. Estou satisfeito, porque, na maioria das vezes,
você não tem que saber quem são todos os personagens para
apreciar a história. Eu tentei escrever Crise de forma que, mesmo
50
Grupo que reunia os parceiros-mirins de boa parte dos heróis da DC. Entre os heróis presentes, estavam Asa
Noturna (o primeiro Robin, Dick Grayson), Ricardito (parceiro do Arqueiro Verde, recuperando-se do vício em
heroína), Aqualad (parceiro do Aquaman), Moça-Maravilha (parceira da Mulher-Maravilha), além de outros
jovens e confusos heróis que, com o tempo, foram agregados ao grupo original, tais como Ravena, Mutano (ex
Rapaz-Fera do grupo Patrulha do Destino), Cyborg e outros.
51
A maior prova disso foi que as duas revistas responsáveis pelas histórias do Super-Homem, chegaram ao fim
(para serem re-iniciadas no mês seguinte, claro). As edições 423 de Superman e 583 de Action Comics
trouxeram uma história dupla, onde o escritor Alan Moore imaginava um fim apropriado para o Homem de Aço
e seus personagens de apoio. Obviamente, como já foi dito anteriormente, esta era “uma história imaginária”.
52
Personagem pouco conhecido pelo grande público, parceiro de seu irmão, Rapina, agiam em nome da Ordem
(Columba) e do Caos (Rapina), promovendo o equilíbrio do universo. No Brasil, os leitores mais antigos se
lembram das participações dos personagens na série dos Novos Titãs, além de uma participação rápida, de um
episódio, no terceiro episódio do desenho animado Liga da Justiça – Sem Limites, em que a dupla de heróis dá o
título do episódio.
Mais tarde, Columba foi substituído por uma moça, mas Rapina nunca superou a morte do irmão, e acabou se
tornando um vilão, o Monarca, que intentava alterar o passado para controlar o futuro (V. a mini-série
Armageddon 2001). Com seus planos fracassados, adotou a alcunha de Extemporâneo, tentando, sem sucesso,
reproduzir os efeitos da Crise nas Infinitas Terras, trazendo de volta todos os mundos paralelos (V. a mini-série
Zero Hora).
39
não conhecendo esses personagens, você pelo menos soubesse
que eles existiram e eram importantes. (WOLFMAN, 1989, p. 126)
Crise nas Infinitas Terras tornou-se um marco dos quadrinhos. Hoje, vinte e
três anos depois, é possível observar que suas mudanças foram muito além das
mortes deste ou daquele personagem. Após Crise, editorialmente, os quadrinhos
nunca mais foram os mesmos.
Seguindo o final de Crise, a coincidente publicação, em 1986, de duas miniséries foram cruciais para as mudanças que estavam por vir: Watchmen, de Alan
Moore e David Gibbons e Batman – O Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller. Era o
fim de um período de inocência para os quadrinhos de super-heróis.
Watchmen e Batman – O Cavaleiro das Trevas trataram dos super-heróis
como se estes existissem no mundo real, com tramas complexas e tons críticos
sobre a mídia e o governo 53 que foram responsáveis por atrair toda uma nova
geração de leitores, além de consolidar os quadrinhos como arte54.
!
(...) isso ocorreu devido a uma sucessão de acontecimentos, como
a abertura das portas do Museu do Louvre para os quadrinhos, a
criação do Congresso de Lucca, o apoio de intelectuais e
universidades européias, e declarações como a de Federico
Fellini, conclamando Lee Falk como seu mestre literário, depois de
confessar ter aprendido a escrever lendo Fantasma e Mandrake.
(MANTO, 1992, p. 16)
A publicação e conseqüente aclamação de público e crítica de Watchmen e
Batman – O Cavaleiro das Trevas, também deu o tom para boa parte das
publicações que viriam a seguir. Os heróis amargurados e violentos vistos nessas
53
Em Watchmen, ambientada em 1985, num mundo onde, inspirados pela publicação das histórias do Superman,
pessoas comuns se fantasiaram e foram às ruas para agir em nome da justiça, Richard Nixon estava em seu
quinto mandato e a iminência de uma guerra nuclear assolava a todos os personagens. Em O Cavaleiro das
Trevas, ambientado num futuro próximo onde o Homem-Morcego voltava de uma auto-imposta aposentadoria, o
mundo também passava pela ameaça de uma guerra nuclear e o governo dos Estados Unidos contava com uma
ajuda especial, o único super-herói com autorização para agir, ainda que escondido: o Super-Homem.
54
Lembrando que em 1951, o Brasil já havia contado com a 1ª Exposição Internacional de História em
Quadrinhos (MANTO, 1992).
40
duas mini-séries contagiaram toda a indústria. Não era de se estranhar que superheróis passassem a adotar medidas mais extremas em suas aventuras55.
A DC resolveu apostar nisso e eliminou, de vez, todos os resquícios de
inocência dos quadrinhos. Personagens como Bat-Moça e Robin não foram
poupados56 , enquanto personagens como o Super-Homem recorreram ao
assassinato 57. O Homem-Aranha, da Marvel Comics, foi outro que sofreu as
conseqüências deste estranho período nos quadrinhos: após uma temporada no
espaço, durante a saga Guerra Secreta, voltou para a Terra com um uniforme negro
que, na verdade, era um simbionte alienígena, capaz de alterar suas emoções 58.
A transformação dos quadrinhos de super-heróis em uma mídia voltada para
adultos tornou-se muito natural. Visto que o público alvo estava crescendo (e
sempre estivera, de fato), era a primeira vez que se tomava medidas para continuar
cativando-os. Graças ao trabalho desenvolvido por Alan Moore na série mensal do
Monstro do Pântano, trazendo personagens secundários de volta, além de explorar
atentamente o lado místico do Universo DC, a editora criou o selo Vertigo, onde
foram introduzidos personagens como John Constantine, no título Hellblazer e os
Perpétuos59, em Sandman.
Embora pouco se relacionassem com o universo de super-heróis da DC, as
tramas do mago urbano John Constantine60 e de Sandman acabaram tornando-se
de importância impar para a indústria dos quadrinhos, firmando-se no gênero dos
chamados “quadrinhos adultos”. Ambas, até hoje, continuam gerando dividendos
preciosos para a DC Comics. Para Del Manto, os quadrinhos adultos fiam-se numa
descontinuidade, ou seja, há o desprendimento das edições anteriores, coisa que
não se vê nas tramas de super-heróis com bastante freqüência. Del Manto também
55
Os super-heróis passaram a ser mais violentos e, muitas vezes, os roteiros não passavam de desculpas para um
ou mais personagens se digladiarem. O ponto alto desta fase foi a criação da editora Image, marcada por
personagens ultra-fortes e violentos, como o Spawn de Todd MacFarlanne.
56
A primeira foi aleijada pelo Coringa na Graphic-Novel A Piada Mortal de Alan Moore e Brian Bolland,
enquanto o segundo teve a morte decretada, também sob o julgo do Coringa, pelos próprios leitores, que votaram
por telefone, para decidirem o destino do personagem durante a saga Morte em Família.
57
V. Super Powers nº 17, 1990.
58
Mais tarde, livre do simbionte, o personagem continuou a usar o uniforme negro.
59
Para saber mais sobre os Perpétuos, veja o Apêndice no final deste trabalho.
60
Criado para ser um coadjuvante com “cara de Sting” para as aventuras do Monstro do Pântano, John
Constantine acabou se desvinculando do universo de super-heróis, sendo, hoje em dia, o dono de um dos títulos
mais longevos da Vertigo.
41
diz que há uma investigação muito maior por parte dos autores, criando tramas que
tenham ressonância com o mundo real (MANTO, 1992).
Embora os anos 90 tenham sido marcados por grandes golpes publicitários
no mundo dos quadrinhos, com sagas como A Morte do Super-Homem61 , A Queda
do Morcego62 e Crepúsculo Esmeralda63 , houve quem visse as coisas de outra
forma. Obviamente, nem todos os autores concordavam com o rumo que as coisas
tomaram. O escritor Neil Gaiman expressou a mudança do comportamento adotada
pela indústria quanto aos personagens. É interessante notar um personagem como
o Charada, famoso por suas excentricidades e crimes relacionados a enigmas,
perdido no “mundo real”:
(GAIMAN, 1990, p. 200)
61
Seguida por Funeral para um amigo, O Retorno do Super-Homem e outras que só serviram para modificar o
visual do personagem, dando-lhe cabelos compridos e uma nova gama de personagens secundários, como o
Superboy (um clone secretamente produzido para lhe substituir um dia) e Aço (um cientista genial que fez uma
armadura super-poderosa em homenagem ao Homem de Aço).
62
Saga onde, durante dois anos, os leitores acompanharam os percalços de um Bruce Wayne quebrado física e
psicologicamente que, preso a uma cadeira de rodas, precisou enfrentar muitos desafios, para retomar o manto
do morcego.
63
Onde um enlouquecido Hal Jordan extermina toda a Tropa dos Lanternas Verdes, tornando-se assim, um vilão
que, mais tarde, ao lado de Extemporâneo, tentaria tomar as rédeas do tempo para si, na saga Zero Hora. Depois,
durante a Noite Final, onde o sol de nossa galáxia se extinguira, Hal se sacrificou ressuscitando a estrela. Como
recompensa, transformou-se na nova encarnação do Espectro, que, durante os tempos da SJA, havia tido como
hospedeiro o policial Jim Corrigan. Hoje, Hal Jordan voltou a vida e reassumiu seu posto de Lanterna Verde,
provando a máxima de que “nos quadrinhos, quem é morto, sempre aparece”.
42
Os autores Mark Waid e Grant Morrison preferiram diferir da máxima imposta
de que os heróis vivem no mundo real e começaram e a trabalhar com a idéia de
pessoas comuns vivendo num mundo onde existissem super-heróis, ou seja,
inverteram os pontos de vista. Para Morrison, a matemática do processo era muito
simples: deixaríamos de encarar os heróis como criaturas para observá-los como
elemento natural do jogo, uma meta a ser atingida, o próximo passo da evolução.
!
Preze este organismo, este prodígio entre as estrelas. Esta Terra.
Sua fabulosa diversidade de criação. Sua perfeição auto-evolutiva.
Seu solo é fértil o suficiente para germinar deuses (...) Preserve
este mundo. (...) O que Nova Gênese representa para o quarto
mundo, a Terra representará para o quinto que virá. (MORRISON,
2004, pp. 30 e 31)
Waid e Morrison retomaram a Liga da Justiça como uma das equipes mais
poderosas do mundo, conferindo-lhes características dignas de um panteão. O
grupo passou a ser formado pelos maiores heróis da Terra64 , cujos feitos não só
recendiam a grandiosidade primeva dos heróis, como também rendiam homenagens
a diversos elementos da Era de Prata.
Mark Waid lançou, ao lado do ilustrador Alex Ross, a mini-série O Reino do
Amanhã, onde, em um futuro próximo, os heróis aposentados do Universo DC se
viam obrigados a voltar a ativa, após testemunharem o caos instaurado pelas ações
inconseqüentes de seus jovens sucessores. Um Super-Homem rancoroso com a
espécie humana se vê obrigado a liderar um grupo de heróis, ao mesmo tempo em
que têm de levar outros à prisão. Além disso, ele também se vê na obrigação de
enfrentar uma coalizão de heróis liderados por Batman e outros justiceiros sem
super-poderes. O resultado é uma nova ordem mundial fundamentada em princípios
sombrios, bem diferentes do mundo resplandecente de outrora65. Outro fator curioso
da série são os restaurantes ornamentados em homenagem aos super-heróis, todos
64
No caso, os sete grandes personagens da DC: Super-Homem (força), Batman (astúcia e inteligência), Flash
(velocidade sobre-humana), Lanterna Verde (com seu anel energético capaz de criar formas e realizar desejos),
Aquaman (poderes aquáticos), Ajax, o Marciano (diversas habilidades alienígenas – além da própria aparência) e
Mulher-Maravilha (a destreza de uma verdadeira filha dos deuses).
65
Este conflito entre o velho e novo mundo se dá principalmente pelo Capitão Marvel, mostrado na mini-série
como um homem confuso, preso em sua forma humana, com um deus adormecido dentro de si, temeroso de sair
e encarar o novo mundo sinistro que se formou ao seu redor.
43
dotados de uma decoração kitsch, com diversas bugigangas espalhadas pelas
paredes.
Grant Morrison, por sua vez, celebrou os feitos dos membros da Liga da
Justiça na cronologia corrente do Universo DC e, durante sua fase a frente da
revista, fez com os heróis para se verem obrigados a fazer frente a invasões
alienígenas, tomarem parte de batalhas entre anjos, confrontar ameaças ancestrais,
viajarem a mundos onde todos são super-heróis, destruir uma realidade apocalíptica
para garantir a existência de um futuro melhor e, ainda serem gratificados com a
chance de visitarem um futuro distante, onde após milênios, o Super-Homem
continua vivo, adormecido no Sol enquanto os outros heróis são louvados por novas
gerações que continuam a usar seus nomes, enquanto mantém o universo seguro.
Outro grande feito da Liga da Justiça, este novamente sob a batuta de Mark Waid,
foi a literal construção de um paraíso, para que os habitantes mais antigos da
galáxia possam, enfim, descansar66 .
Assim, os super-heróis começaram a ser vistos de outra forma. Estavam
acumulando experiências, aproximavam-se de um fim que, mesmo seguro pelos
limites editoriais, não poderia ser negado. Mas havia uma saída: num universo onde
a picada de uma aranha-radiativa o colocava entre os maiores heróis da Terra, ao
invés de te matar, não é incomum que todos queiram ter sua chance de salvar o
universo. Eco manifesta esta identificação com o herói da seguinte forma:
Clark Kent personaliza, de modo bastante típico, o leitor médio
torturado por complexos e desprezado pelos semelhantes; através
de um óbvio processo de identificação, um accountant qualquer de
uma cidade norte-americana qualquer, nutre secretamente a
esperança de que, um dia, das vestes de sua atual personalidade,
possa aflorar um super-homem capaz de resgatar anos de
mediocridade. (ECO, 1974, p. 248)
!
Já Grant Morrison, na função de roteirista, faz o mesmo através dos lábios de
uma de suas personagens, a Supercaubói Shelly Gaynor, criada especialmente para
a minissérie Sete Soldados da Vitória, mostrando o quão longe a admiração por
super-seres pode ir. Shelly é uma repórter que, imersa em uma matéria sobre o
66
Esta fase pôde ser acompanhada na revista Os Melhores do Mundo, entre os números 9 e 29, pela Editora
Abril, 3ª Guerra Mundial, pela Mythos Editora e LJA – Escada para o Céu, pela Panini Comics.
44
mundo dos super-heróis, decide se tornar, também uma super-heroína. Sua
obsessão acaba levando-a a aventuras que são muito maiores do que ela mesma e
cujos efeitos podem ser conferidos no trecho a seguir:
(...) tudo isso é porque os altos não são mais tão altos... Porque os
prédios que eu salto não são altos o suficiente. Porque levei todo
esse lance moralmente ambíguo do vigilantismo urbano o mais
longe que pude. E agora, Deus me perdoe... Agora quero visitar
outros planetas, dimensões e enfrentar deuses renegados. Nos
meus momentos mais profundos e sombrios, às três da manhã,
me imagino morrendo pra salvar o Universo. Vejo uma imagem na
lua, talhada como um memorial. Mundos inteiros chorando diante
do meu túmulo. (...) Como é que você sabe que virou um superherói e não apenas um fetichista maluco com desejos suicidas? É
quando a piada se torna real? (MORRISON, 2007, p. 15)
Morrison defende que os super-heróis são o próximo passo evolutivo da
humanidade. Mais do que isso, ele entende que eles são necessários em nossa
própria realidade. Como leitores, os buscamos por precisarmos de deuses que nos
defendam. A nossa realidade está em débito conosco, esperamos ansiosos por
“luzes no céu. Estrondos sônicos nas ruas e estranhas aeronaves... Deveria haver
algo mais... Mais do que há” (MORRISON, 1999, p. 3).
45
Capítulo 3 A Musa Dourada
Eu sou Promethea,
Adotada por deus,
Criada em suas colinas e vales imateriais.
Minha lenda é do largo mundo substancial,
Mas minha substância é do mundo das lendas.
(...)
Eu sou Promethea,
Da pura luz da Mente
Inclino-me sobre as trevas da Terra,
Do dia das Fábulas,
Descendo até os frios fatos com pesado poder,
De Atmosferas líricas à argila mamífera.
Eu sou Promethea,
a tão falada,
O tronco Mítico que a Razão se esforça para curvar
Eu sou a voz que resta, assim que o livro termina,
Eu sou o sonho que o despertar não encerra.
(MOORE, 2007, nº 4, pp. 31, 32 e 33)
Assim surge pela primeira vez a personagem Promethea na série homônima,
lançada entre os anos de 1999 e 2005, pela editora americana WildStorm, sob o
selo da América’s Best Comics (ABC). As trinta e duas edições demoraram para
chegar ao Brasil, surgindo primeiro via scan’s67 , por volta de 2003, e finalmente
traduzido e lançado corretamente pela editora Pixel Media, na revista Pixel
Magazine, onde as doze primeiras edições foram publicadas entre julho de 2007 e
junho de 2008. São essas as edições analisadas neste trabalho.
Neste capítulo, serão apresentados os elementos que compõem o mundo de
Promethea, assim como sua formação mitológica, servindo-se dos elementos
apresentados nos capítulos anteriores para que façam sentido. A razão para se falar
de Promethea ao invés de, por exemplo, um quadrinho da DC Comics, como a Liga
da Justiça escrita por Grant Morrison, é a capacidade de síntese encontrada em
Promethea, onde toda uma mitologia é brilhantemente construída ao longo de doze
edições.
67
Material escaneado, traduzido e publicado gratuitamente na internet por leitores descontentes com o mercado
editorial nacional.
46
3.2 As origens da deusa coroada
Durante uma entrevista à revista Rolling Stone, no ano de 1987, o escritor
inglês, Alan Moore, declarou que seu trabalho como roteirista de quadrinhos
consistia em tentar “propor um idioma moral para um novo mundo, quer dizer, propor
um alcance de conceitos que estão mais de acordo com o mundo no qual vivemos
(...) em lugar dos materiais que herdamos de gerações anteriores e mais
simplistas” (MOORE, 2008).
!
Nesta época, Alan Moore havia deixado de trabalhar para a DC Comics,
devido a questões contratuais referentes a V de Vingança68 e Watchmen. Moore
alega que os direitos de ambos os trabalhos deveriam ter retornado a ele e aos
desenhistas após a publicação dos mesmos, mas como a editora nunca os deixara
de publicar, preenchendo as livrarias e bancas continuamente como re-edições
especiais e encadernados, os artistas tinham de se contentar com pouco mais de
5% das vendas. Tendo também uma rixa com a editora rival, Marvel Comics, devido
a um processo que havia envolvido o personagem Marvelman69 , Moore concluiu que
o melhor a fazer era abandonar os quadrinhos mainstream.
!
Alguns anos depois, após ter abandonado os quadrinhos comerciais em prol
de projetos pessoais, como Do Inferno 70, Lost Girls 71, Big Numbers72 , A Voz do
68
A série, inicialmente publicada na Inglaterra, durante o começo dos anos 80, pela revista Warrior, havia ficado
no limbo por mais de cinco anos, devido a falência dos editores originais. Com o sucesso de Moore, devido a
Watchmen e seu trabalho no Monstro do Pântano, a DC Comics o convidou para, junto do desenhista original
David LLoyd, concluírem a obra.
69
Antigo personagem dos quadrinhos britânicos de super-herói, reformulado por Moore na mesma época em que
começou a escrever V de Vingança. Marvelman teve problemas ao ser publicado na América. Os problemas
legais infundidos pela Marvel Comics, devido ao nome do personagem, fizeram com que Moore o rebatizasse de
Miracleman.
70
Desenhada por Eddie Campbell, From Hell começou a ser escrita em 1987 e só teve seu último capítulo
publicado em 1997.
71
Desenhada por sua atual esposa, Melinda Gebbie, Lost Girls demorou dezesseis anos para ficar pronta e ser,
eventualmente, publicada.
72
Desenhada por Bill Sienkwicz, das doze edições pretendidas, apenas duas foram publicadas. Os volumosos e
lendários roteiros detalhados de Moore, acabaram por comprometer a capacidade artística de Sienkwicz que
acabou se afastando dos quadrinhos, retornando aos poucos, a principio como arte-finalista e fazendo pequenas
participações em algumas hq’s, como favor a editores que queriam presentear escritores estrelas, como Brian
Michael Bendis.
47
Fogo 73, The Birth Caul74 , Moore acabou voltando ao gênero dos super-heróis,
escrevendo esporádicas edições de Spawn, WildC.A.T.S., Supremo e outros, em
1999, Moore colocou seu plano mais audacioso em ação.
Conhecido no mercado de quadrinhos como um dos grandes inovadores da
arte de se narrar uma história, Moore se propunha um novo desafio. Uma linha de
hq’s inteiramente nova, com cinco títulos todos escritos por Moore, que na época
declarou em uma entrevista que o projeto inteiro não passava de um desafio a si
mesmo. “Vejo isso como ‘Ei, vamos nos exibir e fascinar os leitores’. Não sou
indulgente comigo mesmo com muita freqüência, então por que não,
diabos” (MOORE, 2003). Publicados pela WildStorm, subsidiaria da DC Comics75, a
ABC, America’s Best Comics trazia uma proposta inovadora aos quadrinhos de
super-heróis.
!
Para descrever isso, tenho que traçar as raízes dos quadrinhos,
de volta ao ponto no qual os modernos super-heróis foram
concebidos: o Super-homem. Se você voltar ao passo anterior a
esse, você encontrará as revistas pulp e a tirinhas de jornais. Os
romances de fantasia do século XIX. Mitologia. As primeiras
ficções científicas. Essas foram as coisas das quais os quadrinhos
cresceram. Tentei voltar ao território pré Super-homem e
extrapolar um futuro diferente a partir disso. Esses são os
quadrinhos de um mundo paralelo, se você quiser. (MOORE,
2008)
!
Os cinco títulos lançados eram:
- Tomorrows Stories, com um time constante de quatro desenhistas e
personagens, normalmente com histórias simples e curtas, que esbanjavam
73
Primeiro romance de Moore, onde, através de doze capítulos, ele reconstrói a história de sua cidade-natal,
Northamptom, ao longo de sete mil anos. Cada capítulo narra eventos particulares, sob uma ótica mística, típica
do autor que, por sua vez, acaba sendo, também, um dos narradores do livro, no último capítulo, sendo
responsável pela imagem contemporânea da cidade.
74
Um ambicioso projeto artístico que misturava performances teatrais, música e o próprio autor narrando
eventos relacionados à própria infância até os momentos que procederam à morte de sua mãe. Mais tarde, este
trabalho foi adaptado aos quadrinhos por Eddie Campbell.
75
No entanto, parte do acordo de Moore com o editor-original, Jim Lee, era de que o logo da DC não constasse
em nenhuma página da hq. Em entrevista a Wizard, durante a divulgação da nova linha, Moore declarou que
obviamente “não há nada nas revistas que as conecte com a DC. Quero dizer, sim, no final das contas, é a DC
que publica essas revistas. E sim, eu preferiria que isso fosse de outra forma. Mas isso é algo com o qual posso
conviver, e enquanto nós mantivermos esse relacionamento a distância, não haverá problemas.”
48
sensualidade, como Cobweb, desenhada por Melinda Gebbie; ou rendiam
homenagens a clássicos dos quadrinhos policiais, como Greyshirt, desenhado por
Rick Veitch e inspirado na narrativa de Will Eisner para seu personagem The Spirit;
Jack B. Quick, desenhada por Kevin Nowlan, uma série infantil com um cientista
mirim; ou The First American, com arte de Jim Baikie, contando com um estúpido e
brutamontes super-herói que representava o espírito americano;
- Top Ten, com arte de Gene Ha, uma hq aos moldes de uma série policial de
tv, com policiais durões e tensões diárias que refletiam em suas vidas fora das ruas.
O diferencial é que todos os policiais da hq de Moore tinham super-poderes e viviam
numa cidade onde todos, também eram super-poderosos;
- Tom Strong, com arte de Chris Sprouse foi o título mais longevo da ABC. A
série mostrava as aventuras de um cientista centenário, mas com um
envelhecimento invejável, visto que ainda aparentava seus trinta e poucos. Com
origens que remetiam a Tarzan, o personagem era uma mistura de Super-Homem,
Doc Savage 76 e outros heróis;
- A Liga Extraordinária, com arte de Kevin O’Neill, tratou-se de uma seqüência
não-oficial dos eventos mostrados em romances como Drácula de Bram Stoker, As
Minas do Rei Salomão de H. R. Haggard, 20000 Léguas Submarinas de Julio Verne,
O Médico e o Monstro de Robert Louis Stevenson e O Homem Invisível de G. G.
Wells, onde, os respectivos personagens Mina Harker, Allan Quatermain, Capitão
Nemo, Henry Jeckyll (e sua contraparte Edward Hyde) e Hawley Griffin eram
recrutados pelo governo britânico e passavam a trabalhar como um grupo,
envolvendo-se em tramas que acarretavam em novos vínculos com clássicos da
literatura. A Liga Extraordinária contou com a participação de personagens como o
Inspetor Dupin de Assassinatos na Rua Morgue de Edgar Allan Poe, Dr. Moreau de
A Ilha do Dr. Moreau de H. G. Wells, os marcianos de Guerra dos Mundos, também
de Wells e até de um jovem James Bond, criado por Ian Fleming e
- Promethea, com arte de J. H. Williams III, onde misticismo, poesia,
heroísmo, sexo, drogas, rock’n’roll, deuses, mitos, quadrinhos e um dos mais
interessantes processos de metalinguagem ocorrem, quando a protagonista,
Sophie Bangs, resolve utilizar a personagem Promethea como tema de seu
trabalho de conclusão de curso.
76
Clássico personagem da literatura pulp.
49
3.3 O reino de Immateria
Sua cabeça é como a minha, como todas as cabeças. Grande o
bastante para conter todos os deuses e demônios que já existiram.
Grande o bastante para conter o peso dos oceanos e todas as
estrelas. Universos inteiros cabem nela! (MORRISON, 2008, p. 93)
!
No universo proposto por Moore, Promethea é uma personagem recorrente
da literatura romântica, tendo seu primeiro registro histórico no épico de fantasia
romântica, Um Romance de Fadas do poeta Charlton Sennet (1751-1803), onde
encarna uma serviçal da Fada Rainha Titânia.
!
A segunda encarnação de Promethea ocorreu no ano de 1901, quando o
jornal New York Clarion passou a publicar na seção colorida dominical do jornal, as
tiras de quadrinhos desenhadas e escritas pela artista Margaret Taylor Case. Little
Margie na Misteriosa Terra Encantada mostrava as estranhas aventuras oníricas de
uma jovem garotinha que, supostamente, era baseada nas aventuras imaginativas
da autora quando jovem. Em suas aventuras, Little Margie era acompanhada por um
ajudante cômico chamado Chinky, o Demônio Chinês, “uma grotesca e demoníaca
caricatura racial, completa com uma trança e falas embromadas (...), que embora
seja obviamente ofensivo para o público atual, não diferia muito dos padrões da
época” (MOORE, 2007, nº 4, p. 5). Outra presença freqüente nas tiras de Little
Margie era uma fada princesa chamada Promethea, que permaneceu nas tiras até
meses antes da aposentadoria de Margaret Taylor.
!
A próxima encarnação de Promethea surgiu em 1924, na revista de pulp
fictions Estórias Fabulosas. Esta Promethea, no entanto, é muito diferente de suas
versões anteriores: “uma rainha guerreira brutal e ao mesmo tempo amorosa,
constantemente lutando” (MOORE, idem). Com histórias medíocres creditadas a
uma pessoa de nome Marto Neptura (na verdade, um pseudônimo utilizado por
diversos escritores), esta Promethea só se manteve viva na memória de
colecionadores e fãs do gênero devido as ilustrações providenciadas pela lendária
Grace Brannagh.
!
A próxima encarnação de Promethea foi nos quadrinhos. Sob a tutela do ex-
professor de literatura clássica, William Woolcott, Promethea foi publicada pela
editora Apex, de 1941 até 1970, quando Woolcott foi assassinado em seu
50
apartamento pelo ex-agente do FBI, Dennis Drucker que estava convencido que o
personagem Dirk Dangerfield, também agente do FBI e amante de Promethea, fosse
baseado em si mesmo.
!
Após a morte de Woolcott, Promethea foi entregue ao jovem roteirista Steven
Shelley. Baseando a personagem em sua jovem esposa hispânica, Bárbara, Shelley
fez com que o “rosada tez caucasiana das Eras de Ouro e Prata” de Promethea,
desse lugar a um tom “lustroso como madeira de lei”. Após 26 anos, sob a batuta de
Shelley, a hq foi cancelada após a morte do roteirista, vítima de câncer.
As informações relatadas acima, são retiradas quase que inteiramente do
texto que abre a primeira edição de Promethea. O texto, intitulado O Enigma de
Promethea: Uma Aventura pelo Folclore, é a introdução do trabalho de conclusão de
curso de Sophie Bangs, a protagonista de Promethea.
Sophie vive numa Nova York contemporânea77 , porém com sutis diferenças,
como carros que voam, a polícia trabalhando em discos voadores, produtos como o
elastagel, um tecido formado por circuitos plásticos que pode ser rasgado,
modificado e alterado, mas sempre voltará a sua forma anterior.
Nas primeiras páginas de Promethea, também somos apresentados aos
quadrinhos de O Gorila Chorão, da Apex Publicações (a mesma que publicava as
revistas de Promethea escritas por Woolcott e Shelley). Um sucesso de publicações,
O Gorila Chorão não passa de uma série de closes do personagem, sempre citando
frases melancólicas que, ninguém sabe muito bem porque, atraem um grande
público. Durante as primeiras edições de Promethea, vemos o personagem surgir
em outdoors e capas de revista. Algumas de suas frases clichês autopiedosas: “A
vida moderna me faz sentir tão solitário”, “Todo mundo disse que eu devia usar o
Windows 95”, “Eu odeio meu corpo”, etc.
Na altura em que a conhecemos, Sophie está indo até a residência da viúva
de Steve Shelley, Bárbara, para entrevista-la sobre a personagem que fez a carreira
de seu marido. As perguntas de Sophie sobre constantes aparições de Promethea
através dos tempos, incomodam Bárbara, que resolve encerrar a entrevista: “Você
não quer ir atrás de folclore. E não vai querer que o folclore venha atrás de
você” (MOORE, ibdem idem, p. 13), diz Bárbara, antes de expulsar Sophie de sua
casa.
77 As
primeiras páginas da história nos informam de que se trata do ano de 1999.
51
No caminho de volta, Sophie é abordada pelos Cinco Caras Bacanas, um
super-grupo de heróis científicos de Nova York, composto por Stan, o mecânico,
Roger, os músculos, Bob, o líder, Marv, o gênio e Kenneth, o vidente. O grupo
pergunta a Sophie se ela não estaria “sendo ameaçada por estranhas e poderosas
forças” (MOORE, ibdem idem, p. 16). Diante da resposta negativa da protagonista, o
grupo de heróis a deixa ir.
Infelizmente, o grupo de heróis tinha razão e Sophie é perseguida por uma
criatura de sombras, chamada SMEE78 , que quer matá-la por ter lido “os livros
errados”. Jogada do alto de um prédio, Sophie é salva por uma mulher obesa,
metida em trajes de heroína, com um caduceu79 preso ao cinto. A mulher é Bárbara
Shelley que, ferida, conta a verdadeira história de Promethea a Sophie:
Promethea foi uma garota de verdade que viveu no Egito Romano, no séc. V.
Seu pai, um acadêmico hermético 80, foi morto por uma turba de cristãos, “aqueles
que transformariam Deus novamente em Líder” (MOORE, ibdem idem, p. 31). Para
ser salva, Promethea foi entregue por seu pai ais deuses Tot-Hermes, uma junção
dos deuses originais que representavam a sabedoria (Tot) e tinha a função de
divulgar e interpretar a vontade dos outros deuses (Hermes).
Mas a influência desses deuses em nosso mundo se esvai, devido ao novo
Deus que surge81, assim eles só podem garantir segurança de Promethea, se ela
aceitar ir com eles para seu mundo, um lugar chamado Imatéria, que sempre fica no
lugar onde você está. Lá, ela não seria mais uma garotinha, mas “viveria
eternamente, como uma história”, podendo eventualmente voltar a este mundo,
porque “às vezes, se uma história for muito especial, ela pode conquistar as
pessoas” (MOORE, ibdem idem, p. 28).
Bárbara explica a Sophie que Promethea então “se tornou uma história viva,
crescendo no reino de onde todos os sonhos e histórias vieram”, e algumas vezes,
78
Semi-Midless Elemental Entity – Seres Meio-Estúpidos Elementais.
79
O Caduceu ou emblema de Hermes (Mercúrio) é um bastão em torno do qual se entrelaçam duas serpentes e
cuja parte superior é adornada com asas. Estas duas serpentes opostas figuram forças contrárias que podem se
associar mas não se confundir.
80
Ciência hermética: espécie de abordagem similar à alquimia, supostamente criada por Hermes Trimegistus, ser
mítico egípcio que combinava as características do deus egípcio Tot e do deus grego Hermes. Ele teria escrito
vários livros reveladores para a época sobre assuntos que variavam da medicina e astronomia até a música e
ciência política.
81
O Deus cristão.
52
voltava ao nosso mundo, canalizada pela imaginação de poetas, ilustradores,
cartunistas e escritores. Alguns desses indivíduos acabaram sendo tomados por
esta poderosa idéia e se transformaram fisicamente em Promethea. Foi o caso de
Margaret Case, Grace Brannagh e William Woolcott, que mesmo sendo homem
também transformou-se em Promethea. Outros, como Charlton Sennet e Steve
Shelley, acabaram por transformar as mulheres que amavam em Promethea.
“Veja, qualquer um com imaginação e entusiasmo o bastante pela
personagem pode traze-la de Imatéria, ao imaginar ele mesmo ou outros no papel
dela” (MOORE, ibdem idem, p. 29), explica Bárbara a Sophie, revelando-lhe que ela
não estaria sendo caçada por um Smee, se não fosse a próxima Promethea.
Bárbara diz que não pode mais ser Promethea, porque desde a morte de seu
marido, que é quem tinha a imaginação, ela não tem conseguido imaginar-se mais
no papel da personagem que tem ficado cada vez mais parecida com ela.
Bárbara entrega papel e caneta para Sophie e manda que ela “escreva sobre
Promethea. Uma descrição, um poema... Qualquer coisa” (MOORE, ibdem idem, p.
30). Sophie começa a escrever um poema e quando o encerra, já não são mais
necessários papel e caneta, pois é a nova encarnação de Promethea quem fala:
Eu sou Promethea,
A mais ardente faísca das artes,
Sou toda a inspiração, todo o desejo.
A chama da imaginação nas trevas da humanidade.
Eu sou Promethea,
Eu lhe trago fogo!
(MOORE, ibdem idem, pp. 34 e 35)
!
Derrotando o Smee, o primeiro capítulo se encerra com Promethea voando
sobre a cidade de Nova York, levando Bárbara até um hospital.
!
Neste primeiro número, já são esboçados todos os elementos que formariam
as histórias de Promethea. Nas edições seguintes, o primeiro arco de histórias, que
dura do número 1 ao 6, além de apresentar Sophie e os personagens coadjuvantes,
também serve para introduzir-nos à jornada heróica de Promethea. Nessas edições,
53
Promethea conhece seus inimigos e aliados, além de aprender um pouco sobre seu
reino, Imatéria.
!
Imatéria é apresentada como um cenário surreal e psicodélico, com
cogumelos que se transformam em sapos, fadas escondidas entre flores, aranhas
tatuadas, flores que se transformam em pássaros e muito mais. Neste primeiro arco,
Sophie viaja duas vezes a Imatéria. Na primeira, logo após enfrentar demônios
enviados contra ela, a heroína tem de ir a Imatéria para resgatar sua amiga Stacia
que acidentalmente havia sido enviada para lá durante o conflito, no final da
segunda edição. Em Imatéria, Promethea recebe a ajuda da Chapeuzinho Vermelho,
!
Esta, no entanto, não é a personagem clássica, mas uma Chapeuzinho
desbocada, fumante e armada, saída diretamente de um desenho feito por Sophie,
após esta ter assistido ao filme Cães de Aluguel de Quentin Tarantino. Chapeuzinho
explica que em Imatéria, Sophie não deve perder o foco, pois pode acabar se
perdendo e até ficar louca.
!
Neste primeiro contato, Sophie/Promethea tem apenas um vislumbre do que é
Imatéria, enfrentando o Lobo-Mau82 e salvando Stacia que se perdeu num cenário
do gibi do Gorila Chorão e agora não consegue deixar de se lamentar. Enquanto
enfrentam o Lobo-Mau, Chapeuzinho explica a Sophie/Promethea o que se passa:
!
Promethea compreende que Sophie é seu novo “veículo” e que suas psiques
se alinharão conforme ela seguir adiante. Para retornar ao mundo comum, Sophie
precisa imaginar um caminho de volta até Nova York, concentrando-se nas
particularidades da cidade. O mesmo ocorre quando Promethea precisa voltar a ser
Sophie.
!
Nos quadrinhos de super-heróis, é comum que ocorra uma jornada de auto-
conhecimento. Algumas vezes, como durante a fase do Monstro do Pântano, escrita
pelo mesmo Alan Moore de Promethea, no início dos anos oitenta, o processo é
82 Algo
descrito como uma “idéia simples, sem nenhuma defesa adulta como distanciamento, ironia ou o que
for” (MOORE, 2007, nº6, p. 42), visto como uma criança o vê, ou seja, o puro mau.
54
longo e doloroso 83, outras vezes, esta jornada pode ser mortal, como no caso de
Miracleman, também de Moore84.
!
Em Promethea a jornada de auto-conhecimento começa com a pesquisa
sobre a história que deu origem ao mito, que neste momento já é muito mais do que
isso – saltou das páginas e encara Sophie.
A primeira revelação chega a Sophie através de Jack Faust, um antigo inimigo
das encarnações anteriores de Promethea, que agora vêm até esta para lhe
informar que ela será caçada por bruxos, demônios e um grupo conhecido como O
Templo, porque ela irá “acabar o mundo”. Faust explica que esta foi a maldição final
do pai de Promethea, lançada sobre a humanidade enquanto ele era assassinado.
Faust diz ainda que essa é uma excelente idéia e que qualquer mago de verdade
concordaria com isto.
A antiga crença de que o mundo será consumido pelo fogo ao
cabo de seis mil anos é real, como revelaram-me nas profundezas
do Inferno.
Pois foi ordenado ao Querubim com a espada de fogo que
abandonasse a guarda da Árvore da Vida e quando isso ocorrer,
toda criação será consumida e vislumbrar-se-á infinita e purificada,
pois agora apresenta-se finita & corrompida.
E isto ocorrerá mediante a sofisticação do prazer sensual.
Mas antes de tudo, a noção de que o homem tem um corpo
distinto de sua alma será abolida. Isto conseguirei através do
método infernal, cujos ácidos corrosivos, que no Inferno são
saudáveis & terapêuticos, ao dissolver as superfícies visíveis,
revelam o Infinito antes oculto.
Se as portas da percepção se desvelassem, cada coisa apareceria
ao homem como é, infinita.
Pois o homem se enclausurou a tal ponto que apenas consegue
enxergar através das estreitas frestas de sua gruta.
(BLAKE, 2007, pp. 29 e 30)
83
Inicialmente considerado como um cientista que havia se tornado um monstro, a criatura do pântano logo na
primeira aventura escrita por Moore, descobriu que na verdade se tratava de apenas um apanhado de vegetais
inteligentes que haviam absorvido o intelecto do cientista, acabando com as esperanças do mesmo de voltar a ser
humano. Esta descoberta levou o personagem a loucura e a uma jornada através do mundo, das dimensões e do
universo, por mais de 40 edições da revista.
84
Em Miracleman, o jornalista Michael Moran descobre aos quarenta anos de idade que, na verdade, é a
contraparte humana de um super-herói britânico esquecido dos anos 50 e 60. Ao dizer a palavra Kimota, Michael
transforma-se em Miracleman. A relação do personagem com a esposa começa a se desestabilizar,
principalmente por ela acabar tendo um filho de Miracleman. Ao fim, abandonado pela esposa, que não
consegue lidar com a situação, e pela filha, uma criança poderosa e super-inteligente que o abandona para
conhecer o espaço ainda em seus primeiros meses de vida, Michael sobe até o alto de uma montanha e se
transforma em Miracleman uma última vez. O herói encontra um pedaço de papel preso sob uma rocha, nele há
o nome de Michael, assim como a sua data de nascimento e a de sua morte. Miracleman compreende o que lhe é
pedido e nunca mais volta a ser Michael Moran.
55
! !
Os versos de Blake exprimem a força de Promethea e a essência de sua
conexão entre o mundo material e Imatéria. Isto é explicado por Margaret Taylor,
quando, na quinta edição, Sophie empreende uma nova viagem até Imatéria. Desta
vez em sua própria forma, Sophie parte em busca de conhecer o reino de
Promethea, enquanto é guiada pelas encarnações anteriores da mesma que a
orientarão e darão conselhos. A primeira a recebê-la é justamente Margaret Taylor, o
recipiente humano de Promethea durante a Iª Guerra Mundial.
!
Margaret explica a Sophie as diferenças entre o mundo físico e Imatéria.
“Humanos são anfíbios (...). Isso significa que vivem em dois mundos ao mesmo
tempo: matéria e mente” (MOORE, 2007, nº 8, p. 39), resume Margaret ressaltando
a diferença entre o mundo sólido e a realidade e a importância de Promethea para
que as limitações entre os dois mundos por fim desvaneçam.
!
Moore explica Imatéria da seguinte forma:
A ciência não pode falar sobre a consciência porque a ciência é
algo que trabalha inteiramente com a evidência empírica, com
coisas que podem ser repetidas em laboratório. Os pensamentos
não entram nessa categoria. Deste modo, a ciência tende a
desacreditar a existência da consciência. (...) Rupert Sheldrake,
que é uma espécie de cientista herege, propôs a teoria de um
campo morfogenético, para provar e entender alguns dos mais
atemorizantes efeitos da consciência. Eu estou provavelmente
simplificando horrivelmente aqui, mas penso que o conceito básico
era que, uma vez que uma forma se manifestou, tanto uma forma
física quanto uma forma-idéia, então se faz mais provável e
possível a ela que essa forma se manifeste de novo. Sheldrake diz
que isto acontece porque há uma espécie de campo
morfogenético que conecta tudo. Uma vez que uma idéia existiu é
porque de alguma maneira existia neste campo morfogenético.
(MOORE, 2003)
!
Margaret resume isto a Sophie, dizendo que o mundo sólido não passaria de
uma cristalização de Imatéria85 , que é para onde qualquer pessoa vai enquanto
segue uma linha de pensamento. Na verdade, ela trilha um dos muitos caminhos de
85
Há também, nesta concepção de realidade engendrada por Moore, bastante do mundo das idéias de Platão. Os
valores morais e as realizações imediatas seriam apenas meras cópias dos modelos primários localizados no
plano das essências divinas? Platão respondia a isso com duas noções fundamentais: a de participação e a de
imitação. Tomemos como exemplo, a arte, que para Platão, deveria se distanciar da reprodução da realidade, pois
só poderia imitar uma imitação da realidade.
56
Imatéria – o caminho das idéias mais raras e exóticas pertencem aos artistas,
cientistas e filósofos, que são os pioneiros destes territórios. Óbvio que todos têm
seu espaço mental particular (como aquele em que Sophie encontrou sua
marginalizada versão da Chapeuzinho Vermelho), mas o “território externo pertence
a todos” (MOORE, 2007, nº 8, p. 39).
!
Margaret diz que não existem limites em Imatéria, que engloba toda a
existência e realidade, dentro das pessoas e no universo além delas, “os mundos
dentro e fora de nós têm a mesma estrutura, o mesmo padrão” (MOORE, idem, p.
46). Margaet explica a Sophie que a existência é dividida em:
- Matéria, onde a luz da mente se transformou em substância concreta.
- A Esfera Lunar, onde a imaginação e o romance se localizam. O reino do
sonho e ficção, fantasias sexuais e da mente inconsciente.
- O Domínio Mercurial do intelecto e da ciência, da magia e da linguagem,
fonte do dom mais precioso da humanidade: a comunicação.
- O Cenário Venusiano da emoção, além da idéia intelectual de molde ou
forma.
- Os Dourados Recantos Solares da Alma Humana guardam os dourados
recantos solares da alma humana. Este é o polido grão da existência de cada
individuo, o plano humano mais alto dentro de Imatéria.
- Além, ficam os Reinos Transumanos das forças absolutas universais, onde
oscila o equilíbrio do cosmos.
- Então, encontram-se os acolhedores Céus Jupterianos da piedade universal,
onde deuses dos raios e tempestades brincam.
- Por fim, há o abismo na distante fronteira da existência.
57
(MORRISON, 2008, p. 211)
Promethea irá acabar o mundo por isso. Ela é a representação de um mundo
de idéias que qualquer um poderia explorar. Promethea veio ao mundo sólido dos
Homens para lembrá-los de que há um vasto reino imaterial sem cercas, fronteiras,
alugueis, sistemas políticos, econômicos (estas são apenas idéias do mundo).
Promethea seria o caminho, tornando as pessoas mais conscientes deste outro
elemento, prontos para imaginar para eles mesmos “uma forma de superar a
perigosa situação material que criou” (MOORE, idem, p. 44).
Consciente de sua missão, Sophie continua em sua jornada, tentando
compreender um pouco mais sobre Imatéria, ela viaja até Hy-Brazil86 e encontra
Grace Brannagh, outra encarnação de Promethea, uma divertida guerreira aos
moldes de Conan, lutando para reconquistar seu reino que foi dominado pelo vilão
Marto Neptura.
Grace conta que seu reino de Hy-Brazil foi conspurcado por Neptura, que
viola a razão, um ser medíocre e sem criatividade, cujas sentenças, todas, precisam
ser conferidas por um editor. A edição é marcada por lutas e um clímax que foge do
habitual, onde o vilão é desmembrado em vários pequenos homens, cada um deles
86
Ilha imaginária, sem localização exata, considerada como morada de fadas e divindades, na mitologia celta.
Entre os cristãos, era o Paraíso na Terra.
58
se referindo a um dos escritores que estiveram incumbidos de escrever Promethea
enquanto Grace Brannagh foi a heroína.
O primeiro arco de histórias se encerra com Sophie continuando em sua
jornada por Imatéria, enquanto Grace reconstrói Hy-Brazil a partir de suas próprias
idéias, pelo ponto de vista de “uma artista”, como diz.
O segundo arco de histórias começa com Sophie encontrando William
Woolcott, ou Bill, um homossexual que tendo escrito e desenhado Promethea entre
os anos de 39 e 69, também acabou servindo de canal para Promethea se
manifestar no mundo físico.
Bill explica a Sophie que ela/ele lhe ensinará o caminho das moedas, ou
pentáculos, ou discos, que representa a existência física. Sophie aprende que a
matéria e mente não são separadas, apenas diferentes pontos de vista – não
havendo certezas, pois enquanto uns vêem o mundo material como o plano mais
baixo e mais distante da existência, outros a enxergam como o resultado final da
mesma.
Levada de volta ao mundo real, Sophie descobre estar internada num
hospital, onde na oitava edição, um grupo de demônios ataca, na intenção de
derrotá-la. Sophie, então, decide recrutar as encarnações de Promethea que haviam
lhe ajudado em sua jornada por Imatéria, manifestando Grace, Bill e Margaret nos
corpos de sua amiga Stacia, sua mãe e de uma médica, respectivamente. Juntas, as
quatro mulheres, mais Bárbara que se encontra internada no mesmo hospital,
derrotam os demônios. Infelizmente, isto custa a vida de Bárbara.
Procurando vingança, Sophie encarna Promethea mais uma vez e vai atrás
dos responsáveis pela invasão de demônios no hospital. Vasculhando por Imatéria,
Promethea encontra os membros do grupo conhecido como O Templo, na verdade,
três velhos herdeiros dos responsáveis pela morte do pai da Promethea original,
criados para o mundo do apocalipse que será trazido pela influência da heroína.
Ao se confrontar com os netos dos membros do Templo, Promethea desiste
de sua vingança e presenteia as crianças com uma visão de Imatéria, onde
personagens de contos de fadas vivem harmonicamente entre si. Enquanto
Promethea desaparece o Flautista Mágico surge e dá um aviso: “A propósito, eu não
voltaria a mexer com aquela mulher. Ela tem amigos. (...) Fiquem longe, ou eu vou
59
voltar. E ninguém quer isso” (MOORE, 2008, nº 12, pp. 72 e 73), diz o personagem
principal da Flauta Mágica, conhecido por levar crianças embora.
A décima edição de Promethea trata exclusivamente de magia e traz uma
cena de sexo que se estende por toda a história, rompendo os limites do espaçotempo. Numa sessão de tântrismo guiada por Jack Faust, é explicado a a
Promethea o simbolismo do sexo como porta natural mais acessível para
transcendência. Faust compara a receptividade do corpo feminino ao Santo Graal,
por ser capaz de dar e receber. A essência da feminilidade é a compaixão, a
transformação ocorrida após experimentarem da taça sagrada do simbolismo
referente ao sexo.
Durante o ato sexual, os dois rompem com os limites da própria
personalidade, tornando-se mais do que apenas um indivíduo, mas o todo de que é
composto o universo, tornando-se o amor e entrando na eternidade. Faust fala a
Promethea sobre Kundalini, o poder espiritual primordial localizado na base da
coluna, próximo aos órgãos genitais. Derivada de uma palavra sânscrita significa
“aquela que está enrolada como uma cobra”, a Kundalini deve ser despertada para a
conscientização de nossas capacidades criativas. Enquanto sobe pelo corpo da
pessoa, durante o ato sexual, a serpente toca os diferentes chakras, até que a
consciência finalmente desperte para uma grande claridade.
Faust diz que, independente do sexo, todos os magos são machos, pois
trabalham com o cajado, procurando a fenda mágica que, por fim, lhes trará a
iluminação, transformando-lhes, tornando-os femininos e, por fim, entidades
hermafroditas, distantes do tempo e do espaço, localizados no todo, que é aqui.
Campbell interpreta a relação macho-fêmea entre os heróis, com o macho sempre
tendo mais destaque, devido as condições de vida do mesmo, que é obrigado a se
aventurar pelo mundo, enquanto a mulher está em casa. Mas tudo varia de acordo
com o ponto de vista e dar à luz, por exemplo “é incontestavelmente uma proeza
heróica, pois é abrir mão da própria vida em benefício da vida alheia” (CAMPBELL,
2008, p. 132).
Quanto as características funcionais de Imatéria, no documentário A
Paisagem Mental de Alan Moore, o autor diz que é da opinião de que o mundo das
idéias é formado por continentes inteiros representando grandes sistemas de
crenças e filosofias, onde os homens acomodaram-se e pouco ou quase nada se
60
incomodam em velejar para outras paragens. No entanto, se você for um artista, um
inventor, filósofo, ou alguém que simplesmente trabalhe com idéias novas, como um
mago, poderá submergir até os oceanos que separam esses continentes.
“Agora, se estamos por nos aventurar neste território hipotético e mais ou
menos desconhecido, parece sensato testar e traçar mapas com as rotas feitos
pelos exploradores anteriores” (MOORE, 2003), diz Alan, justificando a utilização
que ele faz em seus trabalhos de sistemas mágicos filosofias como as usadas por
Aleister Crowley 87, Austin Osman Spare88, John Dee 89 e outros mais. “Quando se
fala em território da mente, e talvez do espírito, os únicos mapas disponíveis são os
sistemas mágicos da antiguidade” (MOORE, idem), completa.
Assim, após receber esta primeira aula de magia, Sophie embarca numa nova
jornada de compreensão, sentindo-se distante do mundo comum. Em sua forma de
Promethea, ela passa a ser capaz de se comunicar com máquinas e fica claro que a
forma como ela é vista varia enormemente entre uma pessoa e outra, fazendo com
que ela consulte as serpentes de seu caduceu que a levam até uma jornada pelo
mundo da magia, o “circo mágico da mente”, onde a história do cosmos se revelará.
3.4 Os caminhos da metáfora
!
Nas doze primeiras edições de Promethea, um fato comum é a figura da
metáfora, do mito como figura harmonizadora entre a vida quotidiana e a realidade.
O toque ascendente entre a fixação no corpo, enquanto se caminha “na direção da
fonte dinâmica do corpo” (CAMPBELL, 2008, p. 59).
!
Campbell nos diz que textos como os da Bíblia devem ser lidos em termos de
poesia e não de prosa: “Aquilo que está além do próprio conceito de realidade, que
87
Edward Alexander Crowley (1875-1947), foi um importante enxadrista, alpinista e ocultista do séc. XX. Foi
um polêmico ocultista britânico, conhecido por suas posturas controversas, pelo tarô que leva seu nome e pela
criação da doutrina de Thelema. Sua influência na cultura pop é grande e até hoje é reconhecido e influencia
artistas e grupos musicais diversos, como o próprio Moore, Grant Morrison, Ozzy Osbourne, Led Zeppelin, The
Beatles, Raul Seixas, entre outros
88
Austin Osman Spare (1886-1956) é considerado um gênio das artes, tanto mágicas quanto da pintura. Dotado
de um gênio indomável, Spare esteve junto a algumas das grandes mentes mágicas do séc. XX, mas abandonou
todos os grupos nos quais esteve envolvido, para criar sua própria corrente mística, que incluiu a criação dos
sigilos mágicos e a subseqüente criação da Magia do Caos.
89
John Dee (13 de julho de 1527 - 1608 ou 1609) foi um matemático , astrônomo, astrólogo,geógrafo e
conselheiro particular da rainha Elizabeth I. Devotou também grande parte de sua vida à alquimia, adivinhação,
e à filosofia hermética. Em seus últimos anos, gastou um considerável tempo tentando traduzir aquilo que
chamava de “língua dos anjos”.
61
transcende todo pensamento. O mito coloca você lá, o tempo todo, fornece um canal
de comunicação com o mistério que você é” (CAMPBELL, idem). Da mesma forma,
Promethea se prefigura, desde o caráter divino da personagem que acaba elevando
a leitura da hq além dos limites da ficção, por almejar, a todo tempo, que
enxerguemos além dos mitos.
!
A própria figura de Promethea, por tentar estabelecer os limites entre matéria
e mente (e quebrá-los), acaba remetendo-nos ao genitor de seu nome, Prometeu,
responsável por roubar o fogo dos deuses e, consequentemente, a civilização. O
grande personagem histórico, no entanto, penou profundamente por seu desacato
aos deuses e foi condenado pela eternidade, acorrentado à uma pedra, tendo um
passado que o devora sem parar.
!
A sorte de Promethea, parece, será diferente. Dentro da mitologia
estabelecida por Alan Moore, sua heroína trará menos dor e danação àqueles que
entrarem em contato com suas dádivas: ela enviará a liberdade final. Como a própria
heroína define, “‘O mundo’ não é o planeta, ou a vida e as pessoas nele. O mundo é
nosso sistema, nossa política, nossa economia... Nossas idéias de
mundo” (MOORE, 2007, nº 8, p. 40). Acabar com o mundo, segundo Moore, não é
algo ruim, como pensam as pessoas. Uma concepção mais elaborada das idéias do
autor se faz necessária para que compreendamos sua opinião:
A maioria das pessoas encontra na palavra Apocalipse um
conceito aterrador. Conferindo o dicionário, o seu sentido é apenas
“revelação”, o que, obviamente, acaba significando, também, o fim
do mundo. Até onde o significado do mundo vai, eu diria que isso
provavelmente depende da nossa idéia de “mundo”. Não acho que
isso signifique o planeta, ou quaisquer forma de vida sobre o
planeta. Penso que o mundo é apenas uma construção de idéias,
e não apenas as físicas, e sim as estruturas mentais, as ideologias
que temos erigido, isso é o que eu chamo de “o mundo”. Nossas
estruturas políticas, nossas estruturas filosóficas, os modelos
ideológicos, as economias. Estes são, na realidade, coisas
imaginárias, e ainda assim constituem-se no modelo sobre o qual
construímos o mundo inteiro. Me ocorre que uma onda de
informação suficientemente forte poderia levar abaixo e destruir
tudo isso. Uma repentina revelação poderia mudar toda a nossa
perspectiva sobre quem nós somos e como nós existimos.
(MOORE, 2003)
62
A antropóloga Marika Moisseeff, embora siga numa outra linha, acrescenta
que é da natureza do universo uma operação cíclica, onde a evolução de uma
espécie ou de um planeta caminhe em direção ao equilíbrio, para depois se
colapsar, regredindo à extinção. “O preço da emergência de novos fenômenos é o
desaparecimento dos que os precederam: somos apenas poeira de estrelas (...)
destinados a cair no esquecimento e no silêncio (...) de onde ressurgiremos sob uma
forma totalmente diferente” (MOISSEEFF, 2005).
A jornada para o esquecimento, no entanto, passa por outra jornada, ainda
mais importante internamente, a jornada do descobrimento. E Alan Moore utiliza o
tarô como metáfora para esta jornada. Moore diz que o tarô 90 é um sistema no qual
encontramos “um panteão de imagens arquetípicas, que provêm a cartografia para
um mapa da condição humana” (MOORE, 2003).
Durante sua jornada por Imatéria, é explicado a Sophie que ela precisa
dominar quatro armas mágicas, chamadas de Bastões, Cálices, Espadas e Moedas,
representando os naipes dos Arcanos Menores do Tarô. É explicado a Sophie/
Promethea que é dado a todo os homens o direito de dominar cada uma destas
armas, cujas representações são:
Bastões (paus)
Cálices (copas)
Lâminas (espadas)
Moedas (ouros)
Espírito
Compaixão
Intelecto
Existência física
Fogo
Água
Ar
Terra
Na décima-segunda edição de Promethea, é empreendida uma viagem
através da história do mundo. Oferecendo correspondências entre os vinte e dois
arcanos maiores e alguns estágios da história da humanidade. Aqui, Moore, mais do
90
Não há uma origem correta e plenamente determinada do tarô. Enquanto alguns estudiosos como o chileno
Alejandro Jodorowsky, determinam sua origem em Marselha, durante a idade-média. A origem do moderno
baralho de cartas estaria ligado a esta história, também, por oferecer facilidades de manuseio, sem oferecer
suspeitas. Crowley, por sua vez, pertencia a uma corrente de pensamento que creditava a origem do tarô ao
Antigo Egito, como uma forma de manifestação do deus Thot.
Pela ligação de Promethea com Thot, acreditamos que as inclinações de Moore estejam mais voltadas para esta
segunda versão.
63
que nunca, firma-se como representante da contracultura91 ao alegar que parte da
evolução da Humanidade esteve ligada ao consumo de substâncias psicotrópicas,
principalmente chás de cogumelo e peiote, fazendo uma conexão com o trabalho de
Terrence McKenna92 .
Por fim, esta heroína que é a poesia encarnada, a inspiração, que se compara
à Cristo, em determinado momento: “Cristo é mais próximo de mim do que jamais
poderiam entender! Somos sagrados. Somos histórias e fomos criados apenas para
trazer a luz!” (MOORE, 2008, nº12, pp. 70 e 71); uma luz que irá finalizar o mundo,
se aventurando na dança existente entre a matéria e a imaginação, aquilo que
alguns chamam de Universo.
3.5 Histórias de Trilhas e Fadas
(a estrutura narrativa de Promethea)
(GAIMAN, 1992, pp. 5 e 6)
91
Bráulio Tavares caracteriza a contracultura como “um movimento descentralizado e contraditório, que não se
criou a partir de uma origem comum, mas por uma justaposição de temas recorrentes que vieram a se entrelaçar
nas atividades de indivíduos e grupos” (TAVARES, 2007, p. 14), tais como: o interesse pelo misticismo oriental,
pelas religiões das culturas tomadas como primitivas (xamanismo), pelo ocultismo medieval e renascentista
(alquimia, cabala, magia ritual) e das artes divinatórias, como tarô, astrologia e outros; a adoção de políticas
radicais, como o anarquismo e a guerrilha; interesse por paradigmas científicos anticonvencionais e a recusa da
ética da industrialização e da tecnocracia; a busca de formas alternativas de vida comunitária e comportamento
sexual; o culto dos aspectos dionisíacos da arte; o interesse pelo inconsciente e a busca por uma psicologia
transpessoal; etc
92
Embora os estudos sobre a psilocibina tenha sido proibida em 1966, e a mesma só tenha sido descoberta em
1953, as pesquisas de McKenna misturavam espiritualidade e viagens extra-corpóreas, alegando a existência de
uma paisagem mental universal, acessível a qualquer ser humano, tal como a Imatéria de Promethea. McKenna
acreditava que a droga, como o LSD, pode ser capaz de proporcionar uma viagem de auto-descobrimento capaz
de romper com todos os limites impostos pelas represas sociais construídas ao longo dos séculos.
Quanto às chamadas “bad trip’s”, as viagens funestas, comumente associadas ao LSD, McKenna dá a mesma
explicação de Joseph Campbell, alegando que esse tipo de coisa só ocorre quando você absorve mais informação
do que estava preparado.
64
!
Definido o universo narrativo de Promethea e como a personagem lida com
ele, é hora de se analisar a estrutura sobre a qual a história é construída.
!
Como dito anteriormente, as histórias em quadrinhos, principalmente as de
super-heróis, se mantém com características bem diferentes das normas narrativas
comuns. Em Promethea, por exemplo, com exceção da primeira edição que conta
com quarenta páginas, todas as edições contam com vinte e quatro páginas93.
Assim, cada edição acaba tendo a oportunidade de iniciar e encerrar uma aventura,
dispersando diversos ganchos para as próximas edições, enquanto alguns eventos
mais obscuros ocorridos nas aventuras anteriores são finalmente esclarecidos.
!
Esclarecimento, alias, é um tema corrente em Promethea. A história carrega
um quê de romance de formação, com a personagem continuamente descobrindo
um pouco mais acerca de si mesma.
A arte de J. H. Williams III costuma irromper por toda a página, oferecendo
aos personagens a oportunidade viajar entre os painéis que vistos a distância,
tornam-se um único painel, separados por pequenas sarjetas 94. Enquanto as três
primeiras edições não fogem à regra das aventuras super-heroísticas comuns, com
Sophie/Promethea enfrentando demônios e manifestações de terrores infantis (no
caso, o Lobo-Mau em sua parceria com a Chapeuzinho Vermelho), as edições
seguintes estabelecem alguns temas bem inovadores ao universo narrativo dos
quadrinhos de super-heróis.
!
A quarta edição de Promethea, por exemplo, traz dentro da hq, uma outra
história, desenhada pelo ilustrador convidado, Charles Vess, contando a história da
primeira vez que Promethea veio a se manifestar através das inspirações literárias
de alguém, no caso, o poeta Charlton Sennet. Aqui, são gastas oito das vinte e
quatro páginas da revista, descrevendo-se os encontros amorosos entre Sennet e
Promethea e como isso custou ao poeta sua sanidade.
!
A quinta edição e a sétima edições transcorrem praticamente sem ações, com
os personagens dialogando em meio a cenários psicodélicos, movimentando-se em
surpreendentes enquadramentos e inusitados elementos narrativos, inéditos em
93
Como é normativo nos quadrinhos norte-americanos.
94
O espaço entre os painéis.
65
quadrinhos de super-heróis, como o uso de fotos, compondo seqüências inteiras
com realísticas fotos do artista Jose Villarrubia.
!
A décima edição é carregada por páginas psicodélicas, cujas ilustrações
oferecem novos modos de leitura, transcorrendo entre tempo e espaço,
!
A décima primeira edição é inteiramente lida na horizontal, obrigando o leitor a
deitar a revista, obtendo um efeito semelhante ao widscreen das telas de cinema.
Alias, a própria trama desta edição remete aos filmes de ficção cientifica dos anos
50, com uma criatura sintética inteligente tentando invadir e destruir a cidade de
Nova York e sendo impendido por Promethea.
!
No fechamento deste primeiro arco, a décima segunda edição apresenta uma
história de Promethea na qual a heroína se contenta em ser uma mera observadora
dos eventos que se seguem. E esses eventos são tão simplesmente a história do
universo, de um ponto a outro, do início ao fim e ao começo novamente, sendo
assim por usar novamente o tarô como ferramenta de narrativa95 .
Há ainda uma grata surpresa nesta edição, quando por toda ela, vê-se as
páginas divididas em duas partes, com a história principal, onde Promethea observa
o mundo evoluir e outra, onde em pequenas tiras, o mago Aleister Crowley surge
para contar uma piada que pode ser lida à parte da trama principal ou como parte
dela, já que há momentos em que se ouvem ecos de um trecho no outro.
Resumindo, Promethea, embora não escape totalmente do gênero dos superheróis, o faz com uma elegância narrativa que raras vezes se vê entre esses
personagens de roupa colorida, capa e cuecas por cima das calças. Mas é a
imprecisão narrativa de Promethea, sua vontade afirmação da inexistência do tempo
e do espaço, e da existência de outros mundos onde as coisas são mais valorizadas
que realmente se destaca na experiência da leitura, fugindo aos parâmetros básicos
e comuns da narrativa quadrinhistica, onde basta ler os quadrinhos da esquerda
para a direita e de cima para baixo. Promethea empurra o leitor para todas as
direções da página e isso não seria feito sem a bela arte de J. H. Williams III.
3.6 A dádiva da Deusa
95
No tarô, os Arcanos Maiores são formados por vinte e duas cartas, sendo que a primeira carta, O Tolo, tem
dois números, o 0 e XXII. Isto confere ao Tarô uma forma cíclica, de construção e reconstrução, inicio, fim e
novamente início gerado pelo acumulo de experiências.
66
Quando você depara com uma perspectiva filosófica, como nas
religiões consagradas à Deusa, na Índia – onde a simbologia da
Deusa é dominante ainda hoje -, o feminino representa a maya. O
feminino representa o que, em termos kantianos, chamamos de
formas da sensibilidade. Ela é espaço e tempo, e o mistério para
além dela é o mistério para além de todos os pares de opostos.
Assim, não é masculina nem feminina. Nem é, nem deixa de ser.
Mas tudo está dentro dela, de modo que os deuses são seus
filhos. Tudo quanto você vê, tudo aquilo em que possa pensar, é
produto da Deusa. (CAMPBELL, 2008, p. 177)
!
Promethea é tudo, a encarnação de toda a magia, simbolismo, imaginação, a
materialização de todas as emoções e a fragmentação da realidade, também. Tudo
está em Promethea. Confundida com um anjo, com os amores de nossa vida, as
belezas que nos impressionam, a arte que nos conquista e a mente que nos guia.
Promethea é a criação primeva que tudo traz e tudo leva. Ela é nossa mãe, nossas
irmãs, todo o tempo e espaço se invalidam diante dela. Ao ser tocado por suas mãos
morenas, aquele que serve-se da ganância e da injustiça mudará sua vida.
!
Promethea é o mais alto elemento da natureza, é sagrada, é luz.
!
As profecias de Grant Morrison nas páginas da Liga da Justiça, quando diz
que o ser humano não passa de uma ponte – Travessia, como diria Guimarães Rosa
–, encontram eco no texto de Moore.
Promethea é a heroína que trará a iluminação para todos. O feminino
responsável pelo mistério da geração da vida, explodindo cosmicamente, sacro. O
tantrismo diz que “a mulher é o criador do universo. Não há felicidade como a que dá
a mulher” (FELLINI, 1992, p. 98). Esta felicidade é, para Joseph Campbell, a
felicidade do parto, da vida, do reconhecimento, enfim, da divindade em cada um de
nós, pois é disto que se trata os mitos:
Todos esses símbolos na mitologia se referem a você. Você pode
se apegar ao lá fora e achar que está tudo lá fora. Assim, você
estará pensando em Jesus levando em conta todo o sofrimento,
tudo o que ele sofreu – lá fora. Mas esse sofrimento devia estar
acontecendo dentro de você. Você renasceu espiritualmente?
Você morreu para a sua natureza animal e retornou à vida como
encarnação humana da compaixão? (CAMPBELL, 2008, p. 184)
67
Campbell chama a Deusa de “o campo que produz formas” (CAMPBELL,
2008, p. 179), e vai além, nos diz que é preciso procurar a fonte que dá energia a
sua vida, a relação entre o corpo, como forma física e a energia que o anima. Para
Campbell, entrar em contato com esta energia é uma questão de seguir as
sugestões do próprio mito, descobrindo os próprios motivos de acordo com os
símbolos que lhe façam sentido.
Promethea é esta dádiva, sua jornada é infinita, imaculada, sensível, tão
imaginária quanto as formas que nos rodeiam, seu compromisso com o real
desvanece junto a seus atos, fazendo com que ela e os acontecimentos tornem-se
uma coisa só. Adentrar os caminhos de Imatéria é o mesmo que romper com os
grilhões que nos prendem à caverna de Platão “no qual os homens vivem brigando
uns com os outros por causa de sombras e discutindo com ardor pelo poder, como
se ele fosse um grande prêmio” (PLATÃO apud GIANNETTI, 2007, p. 29)
68
Conclusão
!
Civilizações inteiras se estruturam através de mitos que buscam oferecer um
sentido pleno e satisfeito para vida, com modelos e padrões que evidenciem a
experiência de estar vivo. Espiritualmente, os mitos servem ao propósito de
relacionar as experiências da vida corriqueira e quotidiana com a realidade íntima de
cada individuo. O mito serve a esse desejo, através de histórias, tentando
harmonizar a vida interior com a exterior, revelando as potencialidades espirituais do
ser humano 96.
!
Esta jornada de harmonização é, normalmente, representada por heróis que
tracejam coordenadas de auto-revelação, em grande parte, transmitidas através de
histórias. O mundo viu surgir um bocado destes heróis, tantos que eles se tornaram
temas dos mais diversos filmes e romances. Após um tempo, não sem alguma
dificuldade, surgiram histórias que alteravam esteticamente estes mitos, fornecendo
personagens comuns, envoltos em situações que os transformariam até seus
máximos limites. E além.
!
E também surgiram aqueles que identificaram alguns elementos chaves
nessas histórias todas. Joseph Campbell influenciou, através do trabalho de
Christopher Vogler, toda uma geração cinematográfica, interessada em fórmulas
certas para conduzirem suas histórias sobre indivíduos medíocres que se
descobrem grandiosos quando em meio a situações desesperadoras ou adversas.
!
Da mesma forma, a literatura também segue tradições formalistas que vêem
representadas por gêneros e mercados editoriais diversos, espalhados pelo globo. O
mercado editorial também se refere a outra mídia muito popular, embora poucos
pareçam realmente prestar atenção ao que ela tem a dizer: os quadrinhos.
!
Dentre os vários gêneros de publicações em quadrinhos, uma das mais
reconhecidas é dos super-heróis. Neste trabalho observou-se a formação do gênero,
desde seu início, com a publicação da primeira aparição do Super-Homem na revista
Action Comics nº 1, em 1938, até o ano de 1999, data de publicação do primeiro
número da revista Promethea.
96
Os mitos também podem servir a propósitos mais simples, como representar uma regra em que a sociedade
precise acreditar, mas este trabalho versa sobre o mito como força institucionalizante da harmonização humana.
69
!
Destaca-se a divisão das fases editoriais em eras, começando pela Era de
Ouro que vai desde 1938 até o fim da Segunda Guerra Mundial. Nesta época, viu-se
surgir uma enormidade de super-heróis, todos no rastro do sucesso editorial do
Super-Homem. Segundo Umberto Eco, este primeiro período dos quadrinhos de
super-heróis é marcado pela incapacidade dos personagens de acumularem
experiências. Suas aventuras residiam sempre na mesmice, com os personagens
enfrentando vilões e salvando as mocinhas, para que o próximo número trouxesse
exatamente a mesma estrutura de narrativa.
!
Após a Segunda Guerra Mundial, os quadrinhos de super-heróis enfrentaram
uma queda vertiginosa de vendas, sendo substituídos por quadrinhos policiais e de
ficção cientifica, que logo também se viram ameaçados por uma série de
movimentos tradicionalistas que viam os quadrinhos como uma fonte para os
problemas relacionados a violência infanto-juvenil que surgiam todos os dias pelo
país. O tumulto gerado por tal argumento acabou provocando um colapso na
indústria de quadrinhos que foi obrigada a se voltar para uma linha mais simples de
histórias, com vilões espalhafatosos e tramas rocambolescas. Este período deu
origem a Era de Prata, colocando todo um novo rol de personagens nas prateleiras.
!
Com os quadrinhos voltando a vender como água e com a crescente
produção de material, não era de se espantar que surgissem muitas histórias de
qualidade duvidosa, mas também muitas que acabaram se tornando clássicas,
principalmente pelo tratamento dado aos super-heróis. Pela primeira vez, os superheróis eram tratados como indivíduos, homens e mulheres que faziam muito mais do
que lutar todos os dias em suas escandalosas roupas coloridas. Personagens como
o Homem-Aranha e os X-Men tratavam de problemas comuns aos leitores, como
preconceito, comportamento, responsabilidades da vida adulta e muito mais.
!
Esta nova geração de heróis ganhou destaque nos anos 70, quando as
histórias discutiam abertamente temas da contracultura, e, inclusive, eram vistos
personagens consumindo drogas, sofrendo e amargando vícios. Com os anos 80,
por mais irônico que pareça, foi uma Crise que salvou o mercado. A Crise nas
Infinitas Terras, publicada pela editora DC Comics, pretendia colocar ordem na casa,
uniformizando todos os seus personagens num único universo, onde eles pudessem
existir pacificamente, sendo coordenados em passado, presente e futuro. O
70
propósito, além de eliminar personagens que poderiam ser considerados obsoletos,
também era abrir caminho para uma nova geração de leitores.
!
Independente de ter dado certo ou não, a Crise foi responsável por trazer algo
que a maior dos autores e leitores já considerava, mas só agora era oficializada: os
super-heróis acumulavam experiências. E isso significava, também, que eles podiam
envelhecer.
!
Este processo de envelhecimento dos heróis foi visto como uma oportunidade
para retratá-los de outra forma. Suas ações eram agora sentidas e observadas por
todo um mundo que antes apenas servia de cenário para suas aventuras. Assim,
agora este mesmo mundo, recheado de pessoas comuns, era condenado a observar
os feitos desses super-seres e a aprender a lidar com isso. E, como em qualquer
cultura, era natural que esses indivíduos capazes de feitos absurdos fossem alçados
à condição de deuses.
!
Este ponto de vista passou a ser muito usado entre os quadrinhos, gerando
um período criativo grandioso, onde as metáforas referentes aos mitos finalmente
vinham à tona no mundo de quatro cores dos quadrinhos. Isto gerou uma onda de
reflexões a respeito da necessidade do super-herói no mundo, dando a entender
que ele poderia ser um aperitivo do que os próximos passos evolutivos da
humanidade apresentariam.
!
É neste período que surge Promethea, uma deusa conectada a várias facetas
da realidade, interagindo com o mundo material e uma concebida dimensão extracorpórea habitada por idéias vivas. A heroína é apresentada como uma divindade
cuja permanência no nosso mundo se deve a sua convocação por meio da arte, seja
ela poesia, ensaios, pinturas ou histórias em quadrinhos. É a idéia de que todas
mitologias, todos os símbolos, tem suas bases nos mesmo temas universais
humanos, recebendo apenas diferentes enfoques, sendo que Promethea é a reunião
de todos esses aspectos.
!
Apontada como a responsável pelo “fim do mundo”, Promethea tem o toque
materno, capaz de gerar uma nova consciência, onde as limitações do mundo físico
sejam esquecidas. É esta capacidade de romper com os circuitos de poder que
garante a Promethea suas características míticas: servindo como exemplo e
metáfora para as capacidades humanas, ela mostra que mais do que tornar-se um
super-herói, como Morrison metaforiza em sua fase da Liga da Justiça, o homem
71
moderno precisa libertar-se dos encalacres do materialismo, iniciando, então, uma
nova jornada, toda sua.
72
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76
APÊNDICE
77
Breve perfil mitológico do Universo DC
(...) O Universo DC rapidamente se expandia para incorporar a
primordial e mais limitada continuidade dos anos 40, as estrelas
da “Era de Ouro”, os personagens coloridos da Quality Comics e,
eventualmente, até mesmo o próprio mundo do arqui-rival Capitão
Marvel (...). (GIBBONS, 2006, pp. 6 e 7)
Como já foi dito neste trabalho, nos setenta anos que se seguiram à
publicação do Super-Homem, o Universo DC observou o surgimento e o
desaparecimento de vários super-heróis. No entanto, com um público tão ávido por
continuidade, e a sorte de contar com artistas que também faziam parte deste
público, os eventos contrastantes finalmente tiveram de ceder a uma ordem natural,
encaixando-se, co-existindo, tornando-se parte de um único continuum.
Crise nas Infinitas Terras foi o primeiro passo deste processo. A ele se
seguiram outras sagas, em sua maioria cósmicas, grandiosas, provando que os
deuses e os mitos do Universo DC, respondendo à acusação feita por Alan Moore
de que para o leitor médio, apenas associadas à ciência, os mitos podem ser
trazidos à baila sem provocar algum incômodo.
Felizmente, há aqueles que concordam com Moore e conseguiram trazer ao
Universo DC alguma conexão com a realidade tida como racional, ignorando deuses
cósmicos e se propondo a estabelecer contato com os mitos que fornecem alguma
sustentabilidade ao nosso mundo físico. “Esse é o tema básico de toda mitologia: o
de que existe um plano invisível sustentando o visível” (CAMPBELL, 2008, p. 76).
A seguir, encontraremos um pequeno panorama contendo algumas das
entidades mais poderosas que compõem o aspecto mitológico do Universo DC. A
ordem em que são apresentadas não é aleatória, ela se baseia no contato que os
personagens da editora têm com essas entidades e sua importância na cronologia
da mesma, durante os anos que se seguem. Em alguns casos, como no da Tropa
dos Lanternas Verdes, oferecemos uma compilação inédita da história da mesma,
levando em conta toda sorte de informações geradas ao longo dos anos pelas
publicações relacionadas à Tropa.
78
Sempre que possível, procuraremos declarar os criadores de cada uma das
entidades, garantindo assim que todas as ilusões básicas sejam capazes de ruir
sobre si mesmas.
Os Perpétuos
!
Criados por Neil Gaiman para a sua série mensal Sandman, os Perpétuos são
um retcon. Os sete irmãos chamados de Perpétuos foram introduzidos no Universo
DC, a partir de 1989, mas é inegável que sempre estiveram aqui. E sempre estarão.
Não há uma origem estabelecida para nenhum deles, que representam algumas das
situações mais básicas e inegáveis da existência. No entanto, antes de um mundo
ser habitado é a eles que o universo pede suas bênçãos. Eles, que são lendas até
no paraíso, os Perpétuos:
•
Destino: um homem solitário, cego, caminhando por um jardim de muitos
caminhos, sem deixar pegadas ou sombras, carregando um livro que está
acorrentado à seu corpo e que nunca será roubado.
•
Morte: a mais simpática dos irmãos. Todos a encontrarão. Estrelas,
mundos e deuses a temem. Uma vez a cada cem anos, essa moça gentil e
pálida tira um dia para viver, para aprender. Um por um todos irão até ela.
Inclusive seus irmãos.
•
Sonho: Lorde Moldador, Morfeu, Sandman, João Pestana, L’Zoril, Kai’Ckul,
o sonho acumula nomes. Seu reino é o da imaginação, o da inspiração, o dos
pesadelos e o do amor. Dizem que Shakespeare tinha um pacto com ele.
Embora os Perpétuos tenham decidido que não podem amar os mortais, é
comum Sonho se perder em seus próprios domínios. Uma vez, ele teve um filho
com a musa Calíope. No entanto, o jovem Orfeu herdou as dores do coração do
pai e foi condenado a só morrer pelas mãos de alguém da família – o que
demorou muito para acontecer.
•
Destruição: você pode encontrar Destruição nas ruas de alguma cidade,
ele estará pintando um quadro ou escrevendo uma poesia. Mas não cumpre mais
o seu papel Ele foi o único dos Perpétuos que abandonou o seu posto e passou
a viver. No entanto, a destruição continua, pois o universo deve caminhar.
79
•
Desespero: dizem que dispersas pelo reino de Desespero, há milhares de
janelas, todas mirando o vazio. Sua voz não passa de um sussurro. Seus olhos
são cinza, seus cabelos são desalinhados e molhados, seus dedos são curtos e
gordos – as unhas roídas e quebradas, seus dentes são tortos e pontiagudos.
Existe um vazio em seu olhar, quando se está perto dela há uma sensação de
ausência impossível de descrever com palavras. É a mais paciente dos irmãos.
•
Desejo: irmã-gêmea de Desespero, Desejo queima como um incêndio. Ela
é tudo o que você quer. Andrógina, vive em seu reino que é uma cópia de si
mesma – uma enorme boneca, onde o lugar mais quente é o coração.
•
Delírio: a mais jovem dos irmãos. Um dia foi chamada de Deleite. Não há
dados sobre a sua mudança – ela apenas se modificou. É o reino mais próximo
do dos humanos, mas, infelizmente, pouco o compreendemos.
Tropa dos Lanternas Verdes
!
Dez bilhões de anos atrás, um planeta de imortais chamado Oa, foi
responsável por iniciar o evento que seria conhecido como a Crise.
!
Os oanos eram como deuses e viveram em paz por muitos anos. Possuidores
de capacidades mentais inacreditáveis eram capazes de mover objetos com a força
da mente. Os oanos eram capazes de manipular as intersecções entre a força e a
vontade, através da utilização da luz de seu sol, Sto-Oa, “A Luz de Oa”. Dizem as
lendas que os oanos só conseguiram manipular a luz devido ao amor que Sto-Oa
sentia por uma das mais proeminentes cientistas daquele mundo: Killalla da
Luminescência, mas estas são apenas lendas.
Oa era, enfim, um paraíso. No entanto, um cientista chamado Krona,
obcecado com a idéia de encontrar a origem do universo, foi de encontro com as
velhas lendas que diziam que isso só traria destruição.
!
Infelizmente, era verdade e a observação de fenômenos cósmicos que
poderiam ser vistos como a origem do universo, também revelaram-se como o fim
do mesmo. E o início de algo novo: o multiverso.
!
As pesquisas de Krona levaram ao estremecimento do cosmo, criando assim,
um universo de antimatéria e todo um multiverso positivo. A Terra e todos os mundos
que viriam a sucumbir com a Crise, nasceram daí. Apenas Oa não teve um duplo no
universo positivo. Seu planeta gêmeo encontra-se no universo de antimatéria, é o
80
mundo conhecido como Qward.
!
Tomados pela culpa, os Oanos criaram uma força benéfica para combater o
mal gerado por Krona. Nasceram assim, uma raça de robôs chamada de Caçadores
Cósmicos. Infelizmente, esses robôs não diferiam as finas linhas que separa o bem
e o mal. Assim, foram deixados de lado e uma nova força foi criada: a Tropa dos
Lanternas Verdes.
!
A energia dos oanos foi reunida numa grande bateria que também serviu
como prisão para a maligna criatura chamada Parallax, uma entidade alienígena,
destruidora que se alimentava do medo. Devido a cor amarela de Parallax, a força
da luz verde foi contaminada – no entanto, sua história jamais foi contada,
permanecendo por milênios, como um segredo entre os guardiões de Oa.
!
A impureza amarela era a única fraqueza dos Lanternas Verdes, que
passaram a ser selecionados entre os mais de 3600 setores espaciais cobertos pela
Tropa. Então, para evitar a influência de Parallax, os membros da Tropa deveriam ter
uma força de vontade impar, assim como serem homens sem medo.
!
No entanto, descontentes com a Tropa, alguns oanos abandonasse esta
dimensão, tornando-se aqueles que seriam conhecidos como os Controladores.
Enquanto os Guardiões de Oa e da Tropa se propunham a pacificar o universo, os
Controladores construíam armas de grande poder destrutivo.
!
Ambos continuam, até hoje, a exercer suas funções pelo universo. A Tropa
conta com membros de valor, como Tomar-Re, Killowog, Dkrtzy RRR (uma
progressão matemática abstrata), Mogo (um planetóide), Hal Jordan, Guy Gardner,
Kyle Rayner e muitos outros.
!
Uma profecia no entanto diz que a Tropa viverá ainda seus dias mais negros,
quando todos os seus inimigos se reuniram e reduzirão seu poder a nada. Os
guardiões esmeralda aguardam.
!
As histórias dos Lanternas Verdes são publicadas desde a década de 40,
assim, colaboraram para o enriquecimento de sua mitologia, muitos autores, entre
eles: Gil Kane, Neil Gaiman, Marv Wolfman, Geoff Johns, Alan Moore, Grant
Morrison, etc.
Novos Deuses
!
Um dos maiores criadores dos quadrinhos, Jack Kirby foi o responsável pela
81
criação do Quarto Mundo.
!
A história do Quarto Mundo, como tudo o mais no Universo DC, recende a
momentos da existência que, obviamente, ignoramos.
!
Uma magnífica e altamente complexa civilização governava dezenas de
sistemas solares e centenas de planetas. A utópica civilização se viu em perigo, no
entanto, quando finalmente entraram em contato com outras formas de vida. Por
acreditarem ser superiores, humilharam essa raça alienígena não-humanóide. A
resposta foi uma guerra que culminaria com o fim de tudo o que eles conheciam.
!
Objetivando acabar com esta guerra, cientistas criaram aquilo que foi
chamado de Equação Antivida. A idéia era erradicar a raça alienígena que os
confrontava da face do universo. Infelizmente seus planos deram errado e a força da
antivida erradicou aquele planeta da existência.
!
A força sombra da Antivida era tão intensa que nada poderia lhe conter. Ela
consumiu boa parte do universo, até que, inexplicavelmente, voltou-se contra si
mesma. A explosão trouxe um novo começo.
!
A energia restante resultou em dois mundos, lares de duas raças de novos
deuses. O mundo brilhante chamado Nova Gênese e o sombrio Apokolips. A energia
que cirou este mundo seguiu em várias direções pelo cosmo, gerando frutos
magníficos. Na Terra, um pequeno arquipélago de ilhas selvagens num mar hostil
recebeu um nexo de divindade: nasciam os deuses gregos.
!
Nova Gênese tornou-se um mundo de paz e esclarecimento, enquanto
Apokolips evoluiu de forma marcial. Porém, presos num setor espacial arrancado do
restante do universo (nem mesmo a Tropa dos Lanternas verdes poderia alcançálos), os habitantes destes planetas só poderiam entrar em contato com outros
mundos através de Tubos de Explosão.
!
Tubos de Explosão são vórtices teleportacionais tão intensos que só podem
ser manipulados pelas Caixas Maternas, minicomputadores inteligentes.
!
Nova Gênese e Apokolips entraram em conflito diversas vezes, até que seus
soberanos, o Pai Celestial e Darkseid, firmaram um acordo: seus recém-nascidos
filhos seriam trocados e a paz entre os dois mundos seria selado.
!
Órion, o filho de Darkseid, foi enviado a Nova Gênese. Sendo um deus da
guerra, Órion permaneceu por toda a vida tendo seus impulsos violentos controlados
por uma caixa-materna e foi criado, como um igual pelo Pai Celestial.
82
!
Menos sorte obteve o filho do Pai Celestial. Condenado a torturas, Scott
Free97, passou anos no inferno de Apokolips, até que, com a ajuda de uma jovem
natural de Apokolips, conhecida como Barda, conseguiu fugir para a Terra, onde se
tornou um mestre em fugas, adotando a identidade de Sr. Milagre.
!
A busca pela equação Antivida, no entanto, não cessou. Darkseid em
Apokolips e Metron, em Nova Gênese, continuam em busca desta força que, para
alguns, se dominado, alteraria o universo de forma filosófica.
Nanda Parbat
!
Há uma lenda sobre uma cidade perdida entre as montanhas do Himalaia.
Nanda Parbat, como é conhecida, se localiza no topo de uma escadaria de 9.999
degraus. Àquele que alcança o topo da montanha é concedida uma sessão com
Rama Kushna.
!
Rama Kushna é a voz viva de tudo que é e não é. A perfeita expressão de
alegria sobre todos, para sempre.
!
Aqueles que buscam Nanda Parbat também podem escolher passar pelo
ritual de Thorgal, onde se perdem numa caverna por uma semana ou mais, em
busca de algo que ainda não compreendem. O ritual encontra paralelos com o
Thogal, ritual budista que busca atingir a iluminação.
!
No Japão, existe a lenda do Buraco do Yomi, localizada em Izumo, uma das
primeiras terras habitadas do país. Yomi é o nome do país onde os mortos vão
morar. Uma vez lá dentro, sua jornada irá durar sete dias e sete noites e poderá lhe
custar a sanidade ou a vida. Mas é certo que os cinco sentidos se perderão e tudo o
que restará são as percepções adormecidas, deixando o corpo inútil, fazendo com
que a morte seja, enfim, experimentada.
!
Muitos heróis do Universo DC buscaram por Nanda Parbat: Homem-Elástico,
Batman, Mulher-Maravilha, Questão, Richard Dragon, etc.
!
Nanda Parbat e Rama Kushna foram criados por Arnold Drake e Carmine
Infantino em 1967, para a revista do personagem conhecido no Brasil como
Desafiador98 .
97
São e Salvo, em inglês.
98
Deadman, no original, em inglês.
83
Espectro
!
“A Mão de Deus”, uma das criaturas mais poderosas da existência, o Espectro
não é um ser cujas ações podem ser enquadradas. Agindo neste plano sob o manto
mortal de alguém que teve uma morte injusta e lhe serve de hospedeiro, este
aspecto de Deus age de forma incompreensível.
!
Em algumas ocasiões, o Espectro toma parte em eventos cósmicos, n’outras,
ele abandona o Universo à sua própria sorte. Há criminosos que são punidos por
ele, mas nunca são específicos. Os caminhos de Deus não são claros, nem mesmo
pra ele.
A Força da Velocidade
!
Ultrapassando o relâmpago e o trovão, além do furacão, mais rápido que a
luz, rumo ao desconhecido. Assim sentem-se aqueles que servem à Força da
Velocidade.
!
A Força da Velocidade é o lugar onde os velocistas, como o Flash, tiram seus
poderes. Quando morre, é para lá que eles vão, tornando-se parte do campo de
energia que serve de combustível para que aqueles que, literalmente, seguem atrás.
!
A primeira vez em se ouviu falar da Força da Velocidade foi na edição 95 da
revista Flash, em 1995. Mark Waid contou a história de um índio, Ahwehota, o Péde-vento. Atraído pela Força da Velocidade, ou da Aceleração, como também é
chamada, Pé-de-vento hesitou e se perdeu pelo tempo, condenado a vagar para
sempre distante do paraíso.
!
Há muito mais a ser explorado dentro do Universo DC, como o inferno, onde
as hordas de demônios são divididos de acordo com sua capacidade para fazer
poesia; a Quintessência, onde os cinco eternos mantêm tudo que existe sob sua
eterna vigília – são eles: Vingador Fantasma (um anjo caído, condenado a caminhar
pelas estrelas), Shazam (portador dos dons de Salomão, Hércules, Atlas, Zeus,
Aquiles e Mercúrio), um representante dos Guardiões do Universo, da Tropa dos
Lanternas Verdes, o próprio Zeus e o Pai Celestial de Nova Gênese; a Quinta
Dimensão, onde duendes e gênios vivem e o paraíso são as vogais (AEIOU – AIIIIII).
!
Para a realização deste apêndice, foram usadas revistas em quadrinhos
publicadas pelas editoras Globo, Abril, Panini e Mythos Editora.

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