promethea: a relação entre os quadrinhos de
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promethea: a relação entre os quadrinhos de
UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES COMUNICAÇÃO SOCIAL DIEGO AGUIAR VIEIRA PROMETHEA: A RELAÇÃO ENTRE OS QUADRINHOS DE SUPER-HERÓIS E A MITOLOGIA OCIDENTAL CONTEMPORÂNEA NOVA FRIBURGO 2008 DIEGO AGUIAR VIEIRA PROMETHEA: A RELAÇÃO ENTRE OS QUADRINHOS DE SUPER-HERÓIS E A MITOLOGIA OCIDENTAL CONTEMPORÂNEA Monografia apresentada à Universidade Candido Mendes como requisito parcial à obtenção do diploma do curso de Comunicação Social com habilitação em Jornalismo. Orientador: Alita Sá Rego NOVA FRIBURGO 2008 UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES COMUNICAÇÃO SOCIAL DIEGO AGUIAR VIEIRA PROMETHEA: A RELAÇÃO ENTRE OS QUADRINHOS DE SUPER-HERÓIS E A MITOLOGIA OCIDENTAL CONTEMPORÂNEA Monografia aprovada em ____/____/____ para obtenção do diploma do curso de Comunicação Social com habilitação em Jornalismo Banca Examinadora: _______________________________________ Alita Sá Rego _______________________________________ Maurício Siaines _______________________________________ Marcus S. Wolff ! ! ! ! ! Às inúmeras deusas que coroei. E a Ti, que virá. Agradecimentos Agradeço, em primeiro lugar, a meus pais, por darem corda em toda essa loucura. Agradeço também a meus amigos e aos companheiros de bar - todos admiravelmente malditos, sem exceção. Agradecimentos especiais aos professores Miro Andrade, Alita Sá Rego, Maurício Siaines e Débora Breder. Obrigado a todos, pelos cascudos e pelos afagos. São sempre úteis. O herói tem uma capa de estrelas E um cinto de cometas Na testa a estrela solitária Da Irmandade dos Planetas Voa em seu vôo noturno Nos dedos ele usa os misteriosos Fulgurantes sete anéis de Saturno Tem nas mãos uma espada de luz Que um anjo astronauta lhe deu Quando se encontraram pelo espaço E ao anjo astronauta Ele então respondeu: “Meu caminho eu sei Não sei qual é o seu No universo tudo voa Tudo parece balão É que pra mim anjo astronauta Só interessam os caminhos Que levam ao coração” O Herói das Estrelas – Jorge Mautner RESUMO A jornada investigativa empreendida neste trabalho buscou a compreensão do que é o mito ocidental contemporâneo e de como o mesmo se relaciona com os quadrinhos de super-heróis. Para isso, buscou-se primeiramente a compreensão do que é o mito, como ele se manifesta e qual a sua importância. Feito isso, estabeleceu-se o que é o herói e as diferentes narrativas que dão conta de apresentá-lo no mundo moderno. Assumindo os quadrinhos como uma dessas narrativas, observou-se a manifestação do mito através das páginas de Promethea. Palavras-chave: Quadrinhos. Promethea. Mitologia. Sumário INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 9 1 O Herói Mítico Ocidental ................................................................................................. 13 1.2 Os passos do Herói ocidental (sua jornada e a busca pelo significado) ........................... 16 1.3 As formas narrativas modernas ......................................................................................... 20 2 A narrativa mitológica (e sua desconstrução) nos quadrinhos de super-heróis ................ 24 2.2 O tempo em quatro cores .................................................................................................. 25 2.3 As várias eras dos quadrinhos ........................................................................................... 28 2.4 A Crise na realidade: super-heróis existem! ..................................................................... 37 3 A Musa Dourada ............................................................................................................... 45 3.2 As origens da deusa coroada ............................................................................................. 46 3.3 O reino de Immateria ........................................................................................................ 49 3.4 Os caminhos da metáfora ................................................................................................. 60 3.5 Histórias de Trilhas e Fadas (a estrutura narrativa de Promethea) ................................... 63 3.5 A dádiva da Deusa ............................................................................................................ 65 CONCLUSÃO ........................................................................................................................ 68 BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................... 71 APÊNDICE ............................................................................................................................ 74 9 Introdução ! Arte seqüencial, banda desenhada, mangás, comics, hq’s, histórias em quadrinhos ou simplesmente, gibis. As histórias em quadrinhos são conhecidas por vários nomes e formas em todo o mundo, mas ainda não gozam de todo o prestigio que merecem. Apesar de contarem com os públicos mais variados e de se difundirem cada vez mais, afetando, inclusive, outras mídias (como o cinema e a TV), os quadrinhos ainda carregam um quê de maldito, sendo considerados como “coisa de criança” ou mero desperdício de dinheiro por parte de nerd’s e adolescentes eternos. No entanto, nas estantes das livrarias, quadrinhos infantis e adultos dividem espaço com coqueluches produzidas a preço de ouro para saudosistas e colecionadores. Ao mesmo tempo, mais quadrinhos infantis conquistam as crianças nas bancas de jornal, com histórias simples produzidas em massa. Histórias pornográficas são vendidas por baixo do balcão, mangás fomentam a fome das crianças que, querendo mais histórias dos seus personagens favoritos dos desenhos animados, abocanham os quadrinhos. E no meio disso tudo, o gênero mais conhecido, embora, muito provavelmente, o mais depreciado, são os super-heróis. ! Nas duas últimas décadas, mais exatamente a partir de 1986, com a publicação de obras como O Cavaleiro das Trevas de Frank Miller e Watchmen de Alan Moore e David Gibbons, uma nova consciência parece ter brotado no mercado editorial americano de quadrinhos de super-heróis. As eternas reviravoltas, o “continua” no final das edições, os duelos emblemáticos entre heróis e vilões – tudo isso passou a ser visto como algo além da extrapolação criativa e comercialmente produtiva como os quadrinhos eram encarados até então. ! E é aí que entra a segunda e mais importante parte deste trabalho. Os quadrinhos como elementos difusores do mito do herói. Ou, ainda mais especificamente, o mito do herói ocidental. A mitologia ocidental contemporânea usa com bastante eficácia e, de forma nada moderada, a imagem do herói. O herói, este individuo que busca, realiza ou descobre “alguma coisa além do nível normal de realizações ou de experiência”, como diria Joseph Campbell, é um elemento presente em diversas culturas e mitos. 10 Então, há de surgir o questionamento: Se esta é uma história tão comum, se os elementos que compõem os mitos estão tão difundidos pelos relatos de todas as culturas de todo o mundo, por que observar os quadrinhos sob este prisma? A resposta está contida exatamente nesta pergunta. Por ser tão comum, por ser tão difundido, essas histórias acabam sendo esquecidas. Longe de tentar carregar um enlevo espiritual para o estudo desenvolvido aqui, o objetivo deste trabalho se justifica na necessidade de apresentar os quadrinhos como elementos valorosos na divulgação do mito e seu papel como elemento explicativo e arquetípico do mundo. Mais ainda, os quadrinhos como uma mídia eficaz e profundamente comprometida com as transformações que o mito pode empreender sobre o Homem. Afastamo-nos do didatismo e de qualquer discurso de tom ascendente que se assemelhe ao de um guru (ainda que os valorizemos, como ficará claro no terceiro capítulo). Para falar sobre os mitos e sua relação com os quadrinhos, usaremos os super-heróis, mais especificamente as primeiras doze edições de Promethea. Compreendendo o receio diante de um material tão pouco convencional (quadrinhos são, inegavelmente, produtos de massa, voltados para as necessidades mercadológicas), o presente estudo se compromete a abordar as histórias em quadrinhos de uma forma diferenciada. Apresentaremos criadores e criaturas reunidos ao redor de idéias diferentes e maravilhosas. E, por considerarmos que o aspecto comercial desta mídia já foi explorado em outros trabalhos, também lhes será poupado uma análise estrutural-mercadológica deste tema, apenas resvalaremos em temas como “indústria cultural”. E provaremos que é possível observar os quadrinhos de uma maneira diferente, acurada, não maléfica. Desde a primeira vez em que o Super-Homem deteve um trem em movimento nas páginas da primeira edição de Action Comics em 1938, até o momento em que uma jovem universitária viu-se obrigada a encarnar a personagem sobre a qual estudava para seu trabalho final em 1999 na primeira edição de Promethea, esse trabalho revela vários aspectos dos quadrinhos, como suas complexas estruturas narrativas e os diferentes períodos de produção. ! Criada por Alan Moore e J. H. Williams III, escritor e desenhista, 11 respectivamente, a escolha de Promethea se justifica pela idéia (a ser explorada mais a frente) de que os quadrinhos podem se calcar num entrelaçamento de diversas mitologias. A heroína, Promethea, é a materialização da imaginação. Assim, as diferentes correntes de pensamentos filosóficos utilizadas nesta hq 1 serão, a seu devido tempo exploradas neste trabalho. ! Para Joseph Campbell, um dos teóricos que tomamos como base durante a produção deste trabalho, a necessidade da compreensão do mito se deve à relevância que ele assume diante dos acontecimentos cotidianos, funcionando como modelo e exemplo de comportamento, além de procurar explicar por que as coisas acontecem de determinada forma. As informações geradas por este processo de compreensão, têm a ver com os temas que sempre deram sustentação à vida humana, que construíram civilizações e formaram religiões através dos séculos; com os profundos problemas interiores, com os profundos mistérios, com os profundos limiares da travessia. Para Campbell, se não soubermos o que dizem os sinais típicos do mito ao longo do caminho, teremos de criá-los por conta própria. Independente das soluções adotadas por cada um, a compreensão do mito é relevante para ele, numa urgência semelhante à necessidade de sobrevivência de um cão acuado. ! Campbell diz que “não precisamos correr sozinhos o risco da aventura, pois os heróis de todos os tempos a enfrentaram antes de nós”. Assim, resta-nos enxergar nos super-heróis uma compreensão e justificativa para as constantes recriações e re-interpretações dos arquétipos2. ! E é exatamente esta a função deste trabalho: expor as finas linhas que separam as narrativas dos quadrinhos de super-heróis como são produzidos hoje e os discursos míticos dos quais eles advêm. Abordaremos os quadrinhos de superheróis como uma mídia disposta e eficaz, não só para a compreensão do mito no mundo moderno, mas também como elemento necessário a nossa cultura. ! Os aspectos a serem observados nos doze números analisados de Promethea vão desde a relação estabelecida pelo autor entre a personagem Promethea e os arcanos maiores do Tarô até a teoria das idéias de Platão. No 1 2 Em alguns momentos, este trabalho se referirá as histórias em quadrinhos como hq’s. Arquétipo, na psicologia analítica, significa a forma imaterial à qual os fenômenos psíquicos tendem a se moldar. C.G.Jung usou o termo para se referir aos modelos inatos que servem de matriz para o desenvolvimento da psique. 12 mundo de Promethea (e dos quadrinhos – e por que não, no de nossa imaginação?), tudo é válido. ! Apresentados alguns dos temas básicos a serem explorados neste trabalho, chega a hora de explicitar como isso será feito. Quanto a metodologia, não há uma específica. A pesquisa bibliográfica respeitou a necessidade de liberdade pungente ao espírito de Promethea. Preferiu-se abrir ao acaso os livros que constam na bibliografia e contar com a sorte para se obter algum ordenamento diante do caos de informações geradas por este trabalho. A redação será feita com base nos textos lidos, muito provavelmente de acordo com a inspiração do momento e nada mais. ! O trabalho foi dividido em três capítulos: ! No primeiro entenderemos o que é o mito. O que é o herói e como ele se torna vivo no mundo moderno. Para isso, autores como Joseph Campbell, Christopher Vogler, Roland Barthes e Umberto Eco nos guiarão. A seguir, o segundo capítulo explorará as origens dos quadrinhos de superheróis, rastreando-os desde os primórdios do gênero, com a primeira aparição do Super-Homem até a publicação de Promethea, passando pelas diferentes fases ocorridas no mercado editorial desde o ano de 1939 até 1999. Ressalta-se aqui que o material estudado vai até o ano de 1999 por duas razões: a primeira é que este foi ano em que a primeira edição de Promethea chegou às bancas. A segunda razão é que após o atentado de 11 de setembro de 2001, os quadrinhos de super-heróis parecem ter se encaminhado para uma outra etapa naquilo que, durante o segundo capítulo, chamaremos de Eras dos Quadrinhos. ! O terceiro capítulo versará exclusivamente sobre Promethea. Suas doze primeiras edições serão levantadas e aferidas, numa tentativa de radiografar alguns dos elementos míticos e filosóficos utilizados na história, relacionando-o com o mito do herói. Este, certamente será o capítulo mais extenso e, por isso mesmo, aquele que poderá se justificar como sem fim, aberto a continuações, como uma série de quadrinhos. ! Este trabalho conta ainda com um apêndice, onde são detalhados alguns dos principais elementos mitológicos presentes no panteão da editora DC Comics. 13 Capítulo 1 O Herói Mítico Ocidental (BLAKE apud MORAES e OKADA, 2008) Não se esgotam as intenções de se decifrar o mito. Os homens precisam sentir-se como parte de algo maior, e essa necessidade de fazer parte do jogo, de sentirem-se importantes, de terem seu valor reconhecido, é que os coloca em busca de uma sensação de transcendência3 , algo próprio do mito. No entanto, cada vez mais desgastadas, as imagens e seus significados parecem se contrapor ao racionalismo típico do mundo moderno. Assim, é dicotômico ousar expressar-se através de conceitos como “transcendência” num mundo que exige os pés no chão, enquanto nos bombardeia com imagens corrosivas e danosas à realidade primária, isto é, aquela na qual tentamos nos proteger, criando, desde cedo, um muro que nos separe do que quer que haja fora dos limites de nossa razão. O escritor John Marc DeMatteis expressa a dificuldade sentida ao falar sobre questões do espírito a um público cínico e insensível, incapaz de compreender as potencialidades espirituais da vida humana: “Eis o meu problema: a experiência transcendente, quando traduzida em palavras (...) francamente, não tem tradução. Talvez, uma sucessão de clichês e um pouco mais” (DeMATTEIS, 1987, p. 368). Mesmo os mais céticos se encontram diante de um impasse ao verem seus filhos, frutos deste maquinário racional, absortos e verdadeiramente interessados em “magia e filosofia gnóstica graças a Matrix, Harry Potter e O Senhor dos 3 O escritor Aldous Huxley defende ainda que a transcendência pode ocorrer em diversos níveis, de diferentes formas. São elas: ascendente, associada a iluminação espiritual alcançada, por exemplo, após anos de disciplina física e mental; descendente, ligadas ao consumo de drogas, sexualidade primária e o envolvimento com a massa; e a transcendência horizontal, ligada ao altruísmo, mas também referente a questões sexuais, que neste caso, seriam representadas pelo tantrismo. (V. Apêndice contido em Os Demônios de Loudun de sua autoria) 14 Anéis” (MORRISON, 2003), como revela em entrevista à Hector Lima, o escritor Grant Morrison4 . Este repentino interesse acaba por colocar por terra a idéia de que o homem se distanciou dos valores icônicos do mito 5. Para o semiólogo Roland Barthes, aqueles que conscientemente embarcam nesta jornada exemplificada pelos mitos, correm o risco de se perderem. Ou seja, são incapazes de colher o real. A busca é sempre infrutífera, os objetos procurados, infelizmente, tornam-se inalcançáveis, o real se dissolve e o mito se acresce, cada vez mais inatingível. Em geral, o mito costuma “trabalhar com imagens pobres, incompletas, onde o sentido está já diminuído, disponível para uma significação: caricaturas, pastiches, símbolos etc.” (BARTHES, 1975, p. 148). ! Umberto Eco, ao abordar as particularidades de que são compostos os mitos, diz que não se deve esquecer de seu papel como “simbolização incônscia” (ECO, 1974, p. 239), ou seja, o ideário particular pelo qual procuramos atingir a plenitude. A consciência da imperfeição e a busca pela perfeição, estes são os temas de que se compõem os mitos. Embora pareça que esse “repertório institucionalizado”6 esteja em declínio, a retomada por este interesse do espírito é cada vez mais freqüente7. Se há, de fato, uma falência do sagrado nos tempos atuais, ela deve ser encarada como uma crise referente apenas aos símbolos comumente tomados como sacros em uma sociedade como a nossa que, cristã, acabou por limitar muito a forma como os mitos podem ser enxergados. Conforme nos revela Eco, ao afirmar que “novas metodologias de investigação põem em dúvida a estabilidade de uma 4 Autor de quadrinhos escocês, famoso por seu trabalho em Batman: Asilo Arkham, Homem-Animal, Os Invisíveis e Liga da Justiça (v. Cap. 2). 5 A idéia moderna de que o Homem vive por sua própria conta, alheio às pressões e valores impostos pelos mitos, acaba por ruir diante da enormidade de produções artísticas que se utilizam dos caracteres básicos de que são compostos determinadas mitologias, e da grande quantidade de pessoas que se mostram influenciadas por esses conceitos. Assim, mesmo que não passem de memorabilia para colecionadores e aficcionados, os altares voltaram à moda, só que no lugarde Cristos crucificados, bonecos articulados dos personagens de Harry Potter. 6 7 Umberto Eco em O Mito do Superman, presente no livro Apocalípticos e Integrados. O escritor Alan Moore propõe, em diversas entrevistas e na décima segunda edição de Promethea que, na verdade, há um equilíbrio entre a razão e o espírito. Para Moore, o mundo passa por períodos cíclicos de interesses diversos, em que, hora é o espírito o que nos motiva, ora é a razão. Sem buscar partidos, Moore não defende qual era, ou é mais benéfica para o homem, chegando, inclusive, a creditar diversas benesses para a evolução do conhecimento, em ambos os períodos. Moore diz ainda que a informação gerada por esse conflito entre ordem e caos, intelecto e alma, corpo e espírito, está em vias de entrar em colapso, colocando o Homem frente a uma nova paisagem mental, deixando-nos à porta de um novo patamar na escala evolutiva. A data sugerida por Moore se situa entre 2012 e 2019. As palavras de Moore têm ecos de várias teorias modernas, como os campos morfogenéticos e a teoria do caos, todas divulgadas entre o grande público principalmente por formas de arte, como os quadrinhos e o cinema. 15 visão do mundo” (ECO, 1974, p. 241), encerrando o ciclo de transferência dos conceitos de uma religião para toda uma base de símbolos que pudessem ser utilizados por todos, privando-os dos conhecimentos teológicos. Em outras palavras, as verdades absolutas surgem quando não há forma de se questionar: é o controle absoluto sobre uma porção maior e menos esclarecida da população, exercida por um grupo menor e, claro, mais “iluminado”. Ou seja, o mito estabelece a busca pelo sentido como experiência, enquanto a imagem pré-estabelecida usada para ilustrar esse mito, acaba por limitar esta mesma experiência, algumas vezes, até mesmo anulando-a8 . Um retorno ao interesse mais claro e estudado dos valores referentes ao espírito se torna cada vez mais presente, principalmente na figura dos jovens que, em contato com esta nova forma cultural mitológica por essência, encontrada em quadrinhos e filmes, se disporiam a colocar-se num profundo estado de investigação interior. Pois é através das histórias que o mito é mais facilmente compreendido. ! Eles ensinam que você pode se voltar para dentro, e você começa a captar a mensagem dos símbolos. Leia mitos de outros povos, não os da sua própria religião, porque você tenderá a interpretar sua própria religião em termos de fatos – mas lendo os mitos alheios você tenderá a captar a mensagem. O mito o ajuda a colocar sua mente com essa experiência de estar vivo. Ele lhe diz o que a experiência é. (CAMPBELL, 2008, p. 6) ! Por vivermos em uma cultura tipicamente cristã, muitas das histórias da Bíblia fazem parte do imaginário do mundo ocidental, deixando, mesmo aqueles que não foram criados de acordo com os preceitos cristãos, frente a exemplos que tenham relevância apenas por seu óbvio vocabulário tradicionalmente associado às figuras do Antigo e do Novo Testamento. “Mitos são histórias de nossa busca da verdade, de sentido, de significação, através dos tempos” (CAMPBELL, 2008, p. 5). Essa busca, passando principalmente pelo canal das imperfeições e das tentações9, é o que há de comum entre os 8 As 9 ilustrações referidas no texto remetem as imagens utilizadas como tema de adorno em templos e igrejas. Tomemos, por exemplo, a busca de Cristo pela superação das imperfeições clementes ao corpo, através da bem sucedida jornada através do deserto, quando foi tentado pelo Diabo. (V. Mateus, Cap. IV) 16 homens. O mito faz as vezes de pistas para o fim deste caminho. As histórias mitológicas são contadas com a intenção de harmonizar nossas vidas com a realidade, para que tentemos entrar em acordo com o mundo, para que atinemos, enfim, com as “potencialidades espirituais da vida humana” (CAMPBELL, 2008). Para que isso ocorra, e para que os homens possam se identificar e, dessa forma, sentirem-se parte deste grande esquema, é preciso que surja um herói. 1.2 – Os passos do Herói ocidental (sua jornada e a busca pelo significado) Não precisamos correr sozinhos o risco da aventura, pois os heróis de todos os tempos a enfrentaram antes de nós. O labirinto é conhecido em toda sua extensão. Temos apenas de seguir a trilha do herói, e lá, onde temíamos encontrar algo abominável, encontraremos um deus. E lá, onde esperávamos matar alguém, mataremos a nós mesmos. Onde imaginávamos viajar para longe, iremos ter ao centro da nossa própria existência. E lá, onde pensáramos estar sós, estaremos na companhia do mundo todo (CAMPBELL, 2008, p. 131) Joseph Campbell aponta que um dos elementos mais caros à mitologia e ao ato de se contar histórias, são homens comuns, indivíduos que, sobrepujando todos os desafios impostos pelos céus, obtiveram sucesso em alguma empreitada hercúlea, domando as cismas com que o destino os amaldiçoou, obtendo, assim, um segredo inestimável, de tal forma que tornam-se maiores que simples homens. Fosse um elixir, o encontro com o limiar ou a decifração das manchas de um tigre10, era esta motivação que importava. As provações sofridas por esses heróis ilustram os conflitos do homem durante o período em que vive. Sua evolução está ligada a evolução da cultura que o cerca. O herói surge onde ele é mais necessário, disposto a dar a própria vida por algo maior que ele mesmo. Ele nasce como resposta a desafios prementes a um determinado povo numa determinada época. Tiranos, déspotas, conquistadores em geral vêem o herói como um agente tóxico, “hostil para seus propósitos” (MORRISON, 1999, p. 74). O herói nasce dos sonhos do homem 10 Referência ao conto A Escrita do Deus, de Jorge Luis Borges, presente no livro O Aleph, cujo conto-título também merece uma leitura de acordo com os estudos desta pesquisa. 17 comum, da necessidade de desafiar o que está de errado com o mundo, é uma afronta aos mestres, às “pessoas com interesses velados em manter o mundo como está, porque é este o mundo sobre o qual elas têm poder” (MOORE, 2007, nº 08, p. 45). Alguns heróis, é claro, correm o risco de tornarem-se mártires. Isto não é de todo incomum, visto que “não se desce vivo de uma cruz” 11, e sacrifícios, sofrimento e quedas são frequentemente vistas em qualquer jornada. Para Campbell (2008), essa vida doada serve para a transformação de uma nova vida, talvez social, ou individual, mas apresenta um novo caminho para aqueles que seguiram os feitos desse herói sacrificado, e isto pode lhes dar ganas de mudar. Existem muitas provações na jornada de um herói, além da morte, e ele se entrega a elas em busca de uma ordenação social ou interior à qual, supostamente, ele serve. Muitas vezes sua intenção original está longe de ser moralmente conceituada aos olhos da sociedade; o herói pode apenas procurar salvar uma pessoa12 . Nem sempre sua função universal é mergulhar fundo nas idiossincrasias de um povo e tentar uni-lo. Algumas vezes, antes de salvar o mundo ao seu redor, o herói precisa salvar a si mesmo. “Ainda que não sejamos heróis, no sentido pleno de redimir a sociedade, temos de enfrentar esse périplo, no interior de nós mesmos, espiritual e psicologicamente” (MOYERS, 2008, 132). Existem, é claro, aqueles que estão em sua própria jornada. Estes têm o objetivo moral de defender uma idéia – seja ela qual for, afinal, “chamar alguém de herói ou monstro depende de onde se localize o foco da sua consciência” (CAMPBELL, 2008, p. 135). O herói, posto que venceu todas as barreiras, torna-se imortal, nega a morte, “fazendo o extraordinário parecer fácil” (WAID, 2002, p. 35), como se refere o escritor Mark Waid ao relatar os feitos dos grandes heróis gregos. 11 A citação é retirada de uma “entrevista sensorial”, promovida pela revista eletrônica A Arte da Palavra (http:// www.aartedapalavra.com.br/index.htm). Entrevistas sensoriais, de acordo com a proposta do site, são feitas com perguntas relacionadas, principalmente ao ato de se escrever, com respostas obtidas através de citações tiradas da bibliografia deste ou daquele autor. As respostas obtidas para esta sabatinada com Cortázar podem ser todas encontradas nos livros Histórias de Cronópios e de Famas, Orientação dos Gatos, Todos os Fogos o Fogo e O Jogo da Amarelinha. 12 Como Luke Skywalker em Star Wars Episódio IV Uma Nova Esperança, por exemplo. Seu único objetivo era salvar a princesa. Unir-se à Rebelião e explodir a Estrela da Morte foram meras conseqüências. Só mais tarde, Luke atinou, de fato, para a grandeza interna que possuía. 18 Diante da narrativa moderna a jornada de conhecimento do Herói serve como metáfora para a vida daqueles que o seguem. “Não nos deixai cair em tentação”, diz a oração do Pai Nosso. É o exemplo de Cristo que se toma ao ouvir essas palavras são seus dias no deserto, negando as tentações da carne que ecoa nessas palavras. Este é o tipo de poder que um herói pode exercer. Inconscientemente um povo toma novas medidas de comportamento, uma nova moral se estabelece e esse herói, sacrificado por nossos pecados, ressurge, dia após dia, em cada palavra e ato. Para o bem ou para o mal, o mundo passa a girar por conta da existência desse herói. Em maior ou menor grau, a narrativa ocidental quase sempre busca em Cristo ou algum personagem com uma origem similar a dele, como base para os heróis que experimentam criar. Sobre essa espécie de herói, o filósofo Joseph Henderson declara: ! Ele tem uma origem extraordinária, é criado por pessoas humildes, descobre seu potencial para grandes feitos, é ensinado por vários mestres, enfrenta seu nêmesis numa série de aventuras que envolvem o cumprimento de tarefas sobre-humanas e, depois da vitória miraculosa, é sacrificado em holocausto, quase sempre consumido pelo pecado da hybris, do orgulho, ressuscitando para salvar seu povo na hora de maior necessidade (HENDERSON apud ARAGÃO, 2007) O mestre em História da Arte, Octávio Aragão refere-se a este individuo como o herói-solar, ele “nasce, brilha e morre apenas para renascer num outro dia” (ARAGÃO, 2007). Esse é o herói de acordo com o ocidente e ele nos é continuamente narrado e repetido 13, através de figuras como Jesus, Gilgamesh, 13 Vale lembrar que este trabalho se propõe a analisar apenas as narrativas ocidentais. Embora reconheçamos a importância e diversidade das narrativas heróicas por todo o mundo, é de comum acordo que o Herói, conforme analisado aqui, é o mais presente em boa parte das tradições literárias, cinematográficas e quadrinhisticas ao redor do globo. Isso se explicaria, talvez, pela popularidade das narrativas comuns e mastigadas de Hollywood que, contando com extenuantes aparelhos de propaganda, rapidamente se alastram pelo mundo, tornando reconhecíveis, em qualquer parte, os elementos com que são formados os heróis. Reconhecemos ainda a existência da arte oriental como peça bem divulgada e conhecida pelo mundo. No entanto, heróis como Yoh, protagonista do mangá Shaman King, e Goku, de Dragon Ball, têm tanto em comum com os heróis ocidentais, que não seria de se espantar que sua popularidade venha daí. Suas similaridades com o supra-citado mito ocidental do herói, além da narrativa descomprimida, podem ser o bastante para torná-los populares entre o público ocidental, já que estes [o público] passam a reconhece-los como a identidade uniforme e imutável do mito. 19 Balder, Sigfried, Moisés, Arthur e até o Super-Homem. Todos encaixam-se perfeitamente neste currículo. “Às vezes, se uma história for muito especial, ela pode conquistar as pessoas” (MOORE, 2007, nº4, p. 27), ou seja, de acordo com as reincidentes tentativas do homem em superar a si mesmo, em transfigurarem-se nessa busca visionária, acabamos por esculpir um modelo ideal. O exemplo de Cristo é o mais gritante por ser, ainda hoje, o que mais perdura e influencia em nossa rotina. Observadas as grandes narrativas ocidentais produzidas nos últimos cinqüenta, sessenta anos, não é de se espantar que todas tragam alguma semelhança à jornada de Cristo. ! A dualidade da natureza de Cristo – a necessidade, tão humana, tão sobre-humana, do homem de atingir Deus – tem sido um mistério profundo e insondável para mim. Minha principal angústia e a fonte de todas minhas alegrias e sofrimentos desde a juventude tem sido a incessante, impiedosa batalha entre o espírito e a carne... e minha alma é a arena onde esses dois exércitos têm lutado. (KAZANTZAKIS 14) Convertemo-nos em mitos através dessas histórias. É nossa tentativa de compreender a nós mesmos; identificamo-nos com os heróis e suas provações – “é difícil caminhar sobre o afiado fio de uma navalha; do mesmo modo, diz o sábio, é difícil o caminho da Salvação” (KATHA-UPANISHAD apud MAUGHAM, 1983, p. 5). Assim, incapazes de se lançarem à aventura, por estarem presos às praticidades típicas do mundo moderno, os homens desconhecem suas próprias capacidades. Ignoram possuir os dons que tanto apreciam nos heróis que tanto admiram. Porque uma vez dado o primeiro passo, é difícil prever o que nos aguarda no fim da jornada. ! Nos primeiros momentos eu fiquei perdido nas trevas e comecei a pensar em um monte coisas... Pensei no passado e no futuro... E só fiquei aflito. Mas chegou uma hora que desisti de pensar. O que importava naquele momento era tatear e avançar... Afinal, tem que ter um jeito para tudo. (TAKEI, 1998, p. 63 e 64) 14 Da abertura do filme A Última Tentação de Cristo, 1988, Universal Pictures, direção de Martin Scorsese, com roteiro de Paul Schrader, baseado no livro homônimo de Nikos Kazantzakis. 20 Um dos maiores genitores de heróis do mundo moderno tem sido Hollywood. Em filmes como Sete Anos no Tibet, O Último Samurai, Batman Begins, Matrix, Hotel Ruanda e outros, observam-se homens comuns que, frente a desafios e/ou jornadas, morrem e ressuscitam como novos indivíduos. “O herói se vê então lutando contra um mundo duro, que não corresponde mais às suas necessidades espirituais” (CAMPBELL, 2008, p. 138). Sua morte, claro, é metafórica. Mas é capaz de fazer ruir o mundo da forma como esses homens o viam anteriormente, tornando-os melhores. Após superarem uma série de desafios, enfim, deixam todas as dores e pecados para trás, entrando em harmonia com o mundo que uma vez eles chegaram a negar. 1.3 – As formas narrativas modernas O herói se sustenta de histórias. É como ele é difundido, torna-se real e particularmente importante. Desde que, é claro, a audiência esteja interessada. A cumplicidade do público sempre foi elemento de grande importância na transmissão e divulgação do mito. A estrutura narrativa modifica-se e finda com gêneros, dando lugar a outros, novos ou, simplesmente, reestruturando-se, adaptando-se aos novos tempos. O escritor Christopher Vogler (1997) defende que as histórias narradas por grande parte das mídias ocidentais hoje em dia, em particular o cinema, valem-se de fórmulas prontas, recheada de estereótipos prontos para serem usados em favor da história. Vogler garante ainda que boa parte destes arquétipos e a forma como eles são utilizados sofrem influência da obra de Joseph Campbell. Eco (1974) aponta que antes do grande volume de publicações seqüenciais, o padrão narrativo era o enredo trágico aristotélico, onde o público, mesmo já conhecedor da trama, ainda assim compartilha dos acontecimentos, “por virtude da piedade e do terror, levando-nos a identificar-nos com a situação e com a personagem” (ECO, 1974, p. 250). No entanto, as tradições românticas acabaram por dominar as esferas narrativas, e nelas “o interesse principal do leitor é deslocado 21 para a imprevisibilidade do que acontecerá, e portanto, para a inventividade do enredo, que passa para o primeiro plano” (ECO, 1974, p. 249). Com o advento de novas tecnologias, as formas narrativas ganharam novos tons. O séc. XX desdobrou-se em uma produção artística que, ao menos em número, iriam, em muito, sobrepujar todo material produzido na história anterior do mundo. A literatura desdobrou-se em fórmulas várias, criaram-se padrões de narrativa para as séries de tv, os filmes de tv, as novelas para tv e rádio, os filmes para cinema, as histórias em quadrinhos, as rádio-novelas etc. Vogler (1997) propõe que “cada contador de histórias adapta o padrão mítico a seus propósitos ou às necessidades de sua cultura” (VOGLER, 1997, p. 28). Mas a Jornada do Herói, como é chamada, costuma ser dividida em alguns estágios. E estes estágios em atos. O primeiro ato se dá da seguinte forma: o herói começa sua história naquilo que Vogler chama de “O Mundo Comum”. Este é o mundo ordinário, onde o quotidiano imutável se encontra. Dali, há o “Chamado à Aventura”, onde o herói se vê frente a “um problema, um desafio, uma aventura a empreender” (VOGLER, 1997, p. 31). É quando a missão começa, estabelecendo os objetivos do jogo, deixando claro as perguntas a serem respondidas ou trabalhos a serem cumpridos pelo herói. “Conquistar o tesouro ou o amor, executar vingança ou obter justiça, realizar um sonho, enfrentar um desafio ou mudar uma vida” (VOGLER, 1997, p. 32), todos esses podem ser tema de uma jornada. O herói também está sujeito ao medo, é parte de sua jornada. É o estágio conhecido como “Recusa ao Chamado”, onde o herói reluta em aceitar seu destino, hesita logo antes de partir para sua aventura. Para que ele vença essa encruzilhada, é preciso alguma influência, “uma mudança nas circunstâncias, uma nova ofensa à ordem natural das coisas, ou o encorajamento de um Mentor” (VOGLER, 1997, p. 33), que tem a função de preparar, fortificá-lo para o que está por vir. Principalmente porque a jornada do herói, muitas vezes, é solitária, o Mentor não deve seguir com ele. Assim, o primeiro ato se aproxima de seu fim, quando acontece a “Travessia do Primeiro Limiar”, onde o herói se compromete de uma vez por todas com sua aventura e abandona afinal o Mundo Comum, entrando num Mundo Especial, onde a história e suas conseqüências finalmente decolam. 22 O segundo ato começa com os Testes e o encontro com os Aliados e os Inimigos. É quando ele começa a aprender as regras deste Mundo Especial. Então, conhecedor dos seus inimigos, aproximando-se de seus aliados e testando seus próprios limites, o Herói se aproxima da “Caverna Oculta”, onde ele enfrentará a morte ou o perigo supremo. A “Provação Suprema” ocorre quando o herói se vê obrigado a confrontar seu maior medo, seja ela a possibilidade da morte ou apenas uma experiência penosa. ! Se você colocar as coisas em termos de intenções, as provações são concebidas para ver se o pretendente a herói pode realmente ser um herói. Será que ele está à altura da tarefa? Será que é capaz de ultrapassar os perigos? Será que tem a coragem, o conhecimento, a capacidade que o habilitem a servir? (CAMPBELL, 2008, pp. 133 e 134) Aí, após sobreviver a morte o herói irá celebrar. É o terceiro ato que se inicia, o momento da “Recompensa”. O herói se apossa do tesouro que havia ido buscar, e isso pode ser tanto um objeto quanto uma lição, uma adquirida sensação de compreensão, mudança. É hora de fazer o “Caminho de Volta”, onde o herói “compreende que, em algum momento, vai ter que deixar para trás o Mundo Especial, e que ainda há perigos, tentações e testes à sua frente” (VOGLER, 1997, p. 41). Transformados pela experiência, os heróis experimentam uma Ressurreição, uma lição final, onde a jornada apresenta novos testes. O objetivo é saber se o herói realmente aprendeu as lições, para que finalmente possa voltar para casa com o Elixir. “Algumas vezes o Elixir é o tesouro conquistado na busca, mas pode ser o amor, a liberdade, a sabedoria, ou o conhecimento de que o Mundo Especial existe, mas se pode sobreviver a ele” (VOGLER, 1997, p. 43)15. Para Joseph Campbell, algo muito comum nestes estágios são as presenças de arquétipos, uma padronização universal da constituição dos homens, possibilitando a experiência de compartilhar, contar e ouvir histórias. “O conceito de arquétipo é uma ferramenta indispensável para se compreender o propósito ou a 15 Vogler também menciona o herói tolo que, incapaz de conquistar algo em sua provação, se põe a refazer todos os passos da jornada. Mais a frente exploraremos este aspecto do herói, sob o prisma das cartas do tarô. 23 função dos personagens em uma história. (...) Os arquétipos fazem parte da linguagem universal da narrativa” (VOGLER, 1997, p. 48). Esses mesmos elementos podem ser vistos, em maior ou menos escala, em boa parte das produções hollywoodianas. O trabalho do roteirista passa a ser o de alterar as matizes para que o quadro não se apresente sempre o mesmo para o público. Os observadores mais atentos são capazes de colher esses elementos e decifrá-los, rapidamente compreendendo as fórmulas cinematográficas de narrativa – o que, infelizmente, acaba tornando boa parte dos filmes em cartaz em enfadonhos passatempos16 . Mas o sucesso alcançado por tais fórmulas mostra a necessidade ainda premente do mito pelo homem. Vale lembrar que estas fórmulas não são a regra para todas as mídias. As tele-novelas e os quadrinhos, por exemplo, beneficiam-se do herói, mas por sua extensão e pela influência do público, acabam tendo de se virar em sub-tramas e enredos que, muitas vezes, escapam aos ditames da narrativa. Uma história em quadrinhos, por exemplo, pode se estender por décadas. Muitas vezes, os autores abandonam os projetos em prol de sangue novo, fazendo com que personagens jamais envelheçam, e, mesmo quando frente à morte, acabem por fazer pouco da mesma, pois é certo de que poderão voltar. O próximo capítulo versará sobre estas particularidades narrativas dos quadrinhos, além de fazer um apanhado sobre a trajetória do mesmo e como o mito se comportou nesta mídia em particular. 16 Obviamente, há a liberdade individual de se observar cada filme como um espetáculo em separado, dotado de elementos que os diferencie da grande maioria, sejam eles direção, atuação, roteiros, cenários ou apenas algo que provoque no espectador um profundo reboliço interno. 24 Capítulo 2 A narrativa mitológica (e sua desconstrução) nos quadrinhos de super-heróis A despeito da discordância de gostos em relação aos leitores e criadores, teremos uma pequena dificuldade em identificar os componentes do campo de quadrinhos que nós gostamos. Gostamos dos quadrinhos quando eles nos assustam, nos amedrontam, nos fazem rir ou nos dizem algo que não sabemos. Os adoramos por sua sensualidade e seu encanto, por sua inocência e seu charme. Amamos as grandes artes, histórias fortes e uma bela capa. Amamos os quadrinhos para adultos e as revistas infantis. Gostamos de caubóis, de cavaleiros de armadura e super-humanos; gostamos de monstros, de personagens adoráveis, de piratas, deuses e qualquer animal que use luvas brancas. Amamos os desenhos e amamos as palavras. (MOORE, 2008) ! Ao eventual novo leitor de quadrinhos de super-heróis que se interessou por este fascinante universo após acompanhar alguns episódios das séries animadas da tv ou algum filme campeão de bilheteria que adaptam os heróis para outras mídias e, principalmente, aos críticos que acusam os quadrinhos de serem agentes alienantes deformadores das jovens e influenciáveis mentes das Américas colonizadas, eis um alerta: é preciso muita pesquisa para se ler quadrinhos e aproveitar tudo que eles podem oferecer. ! Alan Moore, o escritor de Promethea, relata em entrevista17 que atribui muito de sua formação aos quadrinhos, onde era possível encontrar "personagens incrivelmente coloridos, que detinham aqueles poderes maravilhosos que podiam transcender suas limitações humanas” (MOORE, 2003), alegando que a renovação das histórias era o que mais lhe atraia, visto que “não tinha que reler os mesmos mitos outra e mais outra vez, e sim (...) algo novo sobre o Super-Homem ou sobre o Flash” (MOORE op. cit.). “Os super-heróis eram exóticos - todos esses homens em berrantes calças estreitas, brigando uns com os outros, exibindo poderes extraordinários. Foi a mesma sensação que senti quando descobri as mitologias grega e escandinava pela primeira vez” (MOORE, 2008). Remetendo acerca das similaridades entre os super- 17 No documentário A Paisagem Mental de Alan Moore, 2003, ShadowSnake Productions, direção de DeZ Vylenz. 25 heróis e os mitos de que se constituem a mitologia ocidental contemporânea18 , Alan Moore larga mão de julgar o impulso de ler quadrinhos de acordo com a identificação do leitor com os personagens. E o fato dos heróis, em sua maioria, serem tão semelhantes ao ser humano comum, apenas contribuía para isso. 2.2 O tempo em quatro cores (GAIMAN e KUBERT, 2004, p. 22) ! ! O personagem de quadrinhos vive à margem da temporalidade. O leitor moderno, ao acompanhar as aventuras de um determinado super-herói, se encontra diante de uma trama que, quase sempre, se estende em muitos anos para o passado. É preciso um conhecimento quase enciclopédico para se virar as páginas de uma edição de uma revista como, digamos, X-Men e entender todos os fenômenos ali apresentados. A longevidade de um personagem de quadrinhos se deve a renovação constante do time de criadores que trabalha por trás das páginas. Novos escritores trazem novas idéias: assim nascem personagens como o Super-cão, Super-gato, Super-moça, etc. Cada um desses elementos foi integrado à mitologia do personagem em algum momento e, quando conveniente, descartado, esquecido e devidamente enterrado. 18 A partir daqui, todas as vezes em que citarmos “mito” ou “mitologia” neste trabalho, estaremos nos referindo à citada “mitologia ocidental contemporânea”. 26 ! Para Umberto Eco, embora este fosse um recurso narrativo bastante comum19 , foi com os super-heróis que as tramas empreenderam a paralisação do tempo. Isto se dava porque o leitor em geral não tinha interesse em grande tramas que poderiam se estender, quem sabe, ad infinitum. Estas histórias eram, afinal, “vendidas a um público preguiçoso que se apavoraria ante um desenvolvimento indefinido de fatos que o levasse a empenhar a memória semanas a fio” (ECO, 1975, p. 252). Ou seja, esse herói não acumula experiências, as suas aventuras são esquecidas e ele nunca passará de um simples Sísifo 20, condenado pela eternidade a repetir trabalhos mínimos que, na verdade, em nada ajudavam na verdadeira transformação do herói21 . Assim, o super-herói torna-se um personagem único na área da ficção, ele não se submete ao tempo, não envelhece (o mundo ao seu redor pode envelhecer, mas ele permanecerá jovem, adaptando-se) – ainda que se lembre de algumas aventuras passadas, quase nunca é capaz de acumular experiências. Tomemos como exemplo, o primeiro dos super-heróis: o Super-Homem. ! Publicado pela primeira vez em junho de 1938, na primeira edição da revista Action Comics, o Super-Homem é o exemplo perfeito do mito do herói. Sua origem está ligada à destruição de um mundo, seu planeta-natal, Krypton, um “lugar ideal, muito mais avançado do que a Terra de 1938. Os Kryptonianos haviam atingido a perfeição física e mental” (BYRNE, 1996, p. 54), no entanto, estavam próximos do fim de seu ciclo de existência e um cientista chamado Jor-El, ao ver a situação limite em que se encontra seu planeta-natal, coloca o filho a salvo, enviando-o em direção ao espaço desconhecido. 19 Como aponta Eco, a história da literatura acostumou-se a ver alguns de seus grandes e mais populares personagens voltarem para estrelar uma série de novas aventuras. Personagens como Sherlock Holmes de Sir Arthur Conan Doyle e Os Três Mosqueteiros de Alexandre Duma, por exemplo, foram bons exemplos desse recurso largamente utilizado, ainda hoje, com as diversas e bem sucedidas seqüências no mundo cinematográfico e até em livros que insistem em resgatar Drácula, Sherlock Holmes, Tarzan e outros personagens clássicos da literatura. 20 Mestre das malícias e truques, Sísifo foi condenado por toda a eternidade a rolar uma grande pedra de mármore com suas mãos até o cume de uma montanha, sendo que toda vez que ele estava quase alcançando o topo, a pedra rolava novamente montanha abaixo até o ponto de partida por meio de uma força irresistível. Por esse motivo, a tarefa que envolve esforços inúteis passou a ser chamada "Trabalho de Sísifo". 21 Autores como Alan Grant, Warren Ellis, James Delano entre outros, criticam esta incapacidade do herói de mudar o mundo. Grant respondeu a esse padrão imutável e esquemático dos super-heróis, criando o Anarquia, um jovem super-dotado com fortes inclinações políticas e militantes mensagens de liberdade, que acabou sendo alçado à condição de inimigo do Batman. Ellis, no entanto, obteve mais sucesso, com a criação de Authority, um poderoso e imbatível grupo de super-heróis que não tinham pudores em invadir uma nação e arremessar um ditador para uma multidão que, enfurecida, sem dúvidas o julgará da forma mais violenta possível. 27 O pequeno órfão acaba por chegar à Terra, onde é acolhido por uma singela e infértil família do interior do Kansas, que o encontra em meio as plantações de milho, o adota e passa a criá-lo como uma criança comum. No entanto, a força do tempo o alcança e esta criança, que agora se chama Clark Kent, torna-se um homem. E esse processo de amadurecimento não é nada comum: seus olhos expelem raios de fogo e, vêem através de objetos sólidos e a distâncias ilimitadas; da mesma forma que sua audição; seu corpo tem a resistência do aço; sua força é tanta que pode parar um trem; e ele ainda pode saltar a distâncias enormes. ! Sim, saltar. Em suas primeiras histórias, o Super-Homem não voava. Mas este detalhe, assim como diversos outros conflitantes eventos de sua trajetória, tem uma razão de ser: o Super-Homem é um produto. Para John Byrne (1996), era muito comum que Jerry Siegel e Joe Shuster, respectivamente, escritor, desenhista e criadores do Super-Homem, trabalhassem de acordo com a lógica de mercado. Assim, se era mais interessante e vendável que o personagem voasse, que assim fosse. Da mesma forma como, anos depois (em 1945), descobriu-se que Clark já usava seus poderes na adolescência, sob a alcunha de Superboy. Mais tarde, este tipo de intervenção narrativa no passado do personagem para justificar atos referentes a histórias do presente ganhou nome no meio editorial. Chama-se retcon. Refere-se a mexer na continuidade retro-temporal das histórias. O Super-Homem não é um personagem nos moldes clássicos da ficção. Os personagens que circulam ao seu redor existem há mais de setenta anos, praticamente imutáveis, assim como o próprio Super-Homem que, salvo um ou outro detalhe, pouco se alterou. Sua história não se encerra na última página da história. Como todo super-herói, o Super-Homem tem sempre uma nova aventura o esperando na próxima edição. Quando não, uma continuação desta em que ele se encontra. As continuações são típicas da Indústria Cultural, onde a estabilização de um personagem junto ao público é muito mais importante do que as histórias que o mesmo cria. Expressão criada por Horkheimer e Adorno, a Industria Cultural ilustra a “transformação do progresso cultural no seu contrário” (ADORNO e HORKHEIMER, apud Wolf, 2005, p. 75), deixando a criação de lado e se concentrando nos 28 dividendos gerados pelo mesmo 22. É comum deixar que as altas vendas falem mais alto, pois elas fazem com que o público exija cada vez mais de um personagem. Os tempos mudam e este personagem deve se adaptar, como justifica Steve Webb (WEBB, 1996). Setenta anos depois de histórias ininterruptas, o SuperHomem ainda é publicado e pouco se alterou de sua essência, mas muitas adaptações tiveram de ser feitas ao personagem e seu elenco. Assim, estabelecidas algumas particularidades narrativas dos quadrinhos de super-heróis, é hora de observar as mudanças da mesma com o passar dos anos – e como os heróis se comportaram diante destas modificações. 2.3 – As várias eras dos quadrinhos Embora não exista um consenso sobre quando os quadrinhos começaram a serem divididos em eras, Marcus Ramone, articulista do site Universo HQ, nos diz que “separar a arte seqüencial em eras é uma das máximas seguidas por qualquer fã de HQs” (RAMONE, acessado em 23 de novembro de 2003). Assim, compreendem-se os quadrinhos de super-heróis em três eras distintas. A primeira era dos quadrinhos, chamada de Era de Ouro, estende-se de 1938 (com a publicação de Action Comics nº 1), até o final da Segunda Guerra Mundial. O fim do conflito, no entanto, levaram os quadrinhos a amargarem uma considerável queda nas vendas. Aqui, daremos foco, principalmente aos personagens da editora americana DC Comics23, não só por ser a responsável pela publicação do Super-Homem24, 22 Adorno e Horkheimer criaram o conceito de Indústria Cultural para definir a conversão da cultura em mercadoria. O conceito não se refere aos veículos (televisão, jornais, rádio...), mas ao uso dessas tecnologias por parte da classe dominante. A produção cultural e intelectual passa a ser guiada pela possibilidade de consumo mercadológico. Para Adorno a cultura de massa tende a agir as suas criações ao redor da economia, tornando-as uniformes. “O cinema e o rádio não têm mais necessidade de serem empacotados como arte. A verdade de que nada são além negócios lhes serve de ideologia. Esta deverá legitimar os lixos que produzem de propósito. O cinema e o rádio se autodefinem como indústrias, e as cifras publicadas dos rendimentos de seus diretores-gerais tiram qualquer dúvida sobre a necessidade social de seus produtos” (ADORNO, 2007, p. 8). 23 No entanto, quando for de relevância para a compreensão total do quadro cronológico da narrativa quadrinhistica de super-heróis, também serão abordadas as criações de personagens de outras editoras. 24 Embora a oportunidade de acompanhar o personagem [Super-Homem] ao longo das décadas ser de grande utilidade para o desenvolvimento deste trabalho. 29 mas também por considerarmos que seja a editora onde as criações mitológicas tenham atingido o nível mais alto 25 de seu universo narrativo. ! Pode ser que “universo” seja um termo grandioso demais para o conjunto compartilhado de narrativas de quadrinhos que compõem o que convencionamos chamar de “Universo DC”. Mas, desde as fortuitas histórias produzidas nos anos 40 até as deliberadas e complexas tramas dos últimos tempos, as aventuras dos heróicos personagens da DC Comics se entrelaçam e formam um maravilhoso e complexo panorama. (GIBBONS, 2006, pp. 5 e 6) ! A Era de Ouro foi marcada pelo surgimento de muitos heróis, todos na esteira do sucesso comercial do Super-Homem. A editora, então conhecida como National Comics26, passou a publicar personagens como Batman, Lanterna Verde, Flash (chamado aqui no Brasil de Joel Ciclone), Aquaman, Mulher-Maravilha e em outras editoras se observou o surgimento de vários outros heróis. A Timely Comics27 apareceu com Namor, o Príncipe Submarino, Capitão América28 , entre outros. A publicação mais importante deste período, no entanto, foi Capitão Marvel, da Fawcett Comics. Nas páginas da WHIZ Comics, o jovem órfão Billy Batson transformava-se no maduro Capitão Marvel, ao pronunciar a palavra mágica SHAZAM, ganhando assim a sabedoria de Salomão, a força de Hércules, o vigor de Atlas, o poder de Zeus, a coragem de Aquiles e a velocidade de Mercúrio. Apesar do grande potencial, poucas vezes se viu o personagem usando, de fato, qualquer um dos atributos que os deuses lhe entregavam, sendo, na maior 25 Mesmo as criações mitológicas oferecidas pelos quadrinhos europeus, como a série A Casta dos Metabarões de Alejandro Jodorowsky, e mangás como Dragon Ball de Akira Toryiama, escapam à grandiosidade universal dos quadrinhos da DC, já que são atados às considerações narrativas de um único individuo, enquanto os superheróis padecem de constantes renovações em suas equipes de criação. 26 E que mais tarde, 1977, passaria a se chamar oficialmente DC Comics, principalmente por conta de seu título mais vendável, a Detective Comics, onde surgiu e é publicado, até hoje, o personagem Batman. 27 Mais tarde, a editora mudaria seu nome para Atlas Comics, Timely/Atlas e, finalmente, para Marvel Comics, como hoje é conhecida no mundo inteiro. 28 Que logo na capa de sua primeira edição, em 1940, já era visto esmurrando Adolf Hitler. Um claro exemplo de como os quadrinhos foram influenciados pelo período de guerra – algo que vem se repetindo, desde então, como, por exemplo, a edição de Homem-Aranha onde o personagem é visto com outros heróis, ajudando a resgatar pessoas soterradas pelos destroços do World Trade Center, durante o incidente de 11 de setembro de 2001, e nas revistas do próprio Capitão, que chegou a ir até o Afeganistão, atrás de Osama Bin Laden. 30 parte do tempo, apenas uma cópia do Super-Homem29 . Esta era a primeira, de muitas vezes em que os heróis iriam ser associados a deuses. A década também marcou a primeira reunião oficial de super-heróis, no caso, A Sociedade da Justiça América. A terceira edição da revista All-Star Comics trouxe em suas páginas heróis que, embora gozassem de grande prestigio, não contavam com títulos próprios. Assim, Sr. Destino, Lanterna Verde (o original), Joel Ciclone, Homem-Hora, Sandman, Gavião Negro, Átomo e Espectro constantemente se reuniam para pôr fim aos planos de algum vilão. Batman e Super-Homem, embora fossem membros honorários, só apareceram em duas aventuras do grupo. No final da década de 40 a popularidade dos super-heróis caiu. Assim, as editoras voltaram sua atenção para outros gêneros como ficção cientifica, faroeste, humor e romance (todos gêneros que já eram publicados antes, mas que haviam sido deixados de lado em prol da febre dos super-heróis). A década de 50, em pleno macarthismo 30, viu uma cruzada anti-quadrinhos varrer o país. Isso se deveu, principalmente, por conta da grande influência do psiquiatra alemão Fredric Whertheimer. Whertham, como ficou conhecido Whertheimer, alegava que os quadrinhos eram determinantes nos desvios de comportamento dos jovens, estimulando, não só o crime, mas também a homossexualidade 31. Com a publicação de seu livro Seduction of the Innocent (A Sedução do Inocente), Whertham passou a ser visto como a autoridade máxima no assunto. Qualquer quadrinho condenado por ele tornava-se quase que imediatamente uma vítima do cancelamento. Embora houvesse pessoas que discordassem dele32, as pressões exercidas por Whertham foram tantas que a indústria de quadrinhos americana nunca mais foi a mesma. 29 O que fez com que a National Comics processasse a Fawcett Comics. O longo processo judicial terminou em 1955, quando a Fawcett finalmente desistiu do personagem, cedendo os direitos para a DC que só o retomaria em 1973. 30 O senador americano do estado de Winsconsin Joseph McCarthy aproveitou a paranóia americana do pósguerra e mobilizou uma grande luta contra o comunismo nos meios de comunicação, levando à prisão, diversos artistas, cineastas, roteiristas e afins, baseando-se em argumentos que, hoje, vêem-se, eram pouco sólidos, mas que surtiram grandes efeitos na época. (TEIXEIRA, 2003) 31 32 Whertam é o grande responsável por disseminar a idéia de que Batman e Robin são um casal gay. O professor Frederic M. Thrasher, da Universidade de Nova Iorque, declarou que a posição extremada adotada e indicada por Wertham, não contava com nenhuma pesquisa válida, além de ser contrária a boa parte do pensamento psiquiátrico daquele momento. (V. Os Gibis Americanos nos anos 40 e 50, de Rafael Teixeira) 31 Quando uma comissão especial do Senado americano foi reunida para investigar o crime organizado, a influência dos quadrinhos em atitudes criminosas também foi levada à pauta. Embora não tenha surgido daí, nenhuma legislação especial sobre o controle dos quadrinhos. Em plena Caça às Bruxas33, a indústria teve de se render e, em 1954, quando o Senado instaurou uma subcomissão encarregada de investigar os efeitos dos quadrinhos sobre as crianças, partiu das próprias editoras a institucionalização de um código de auto-regulamentação. O Comics Code Authority, além de garantir uma distribuição competente das revistas34 , também estabelecia algumas regras bem objetivas sobre a publicação dos quadrinhos na época. Revistas que contivessem em seu título as palavras “crime”, “horror” ou “terror”, estavam proibidas; o bem sempre triunfaria sobre o mal; a sensualidade deveria ser diminuída; e gírias e coloquialismos seriam evitados ao máximo; entre outras. O cancelamento de boa parte dos quadrinhos de humor e suspense foi cataclísmico para muitas editoras35 . As que não faliram, tiveram de se adaptar ao gosto de um público que, não podendo ter o que queria, deveria se moldar a novos gêneros. Foi o começo da Era de Prata. Em 1956, a DC Comics, na época contando com Julius Schwartz como editorchefe, revitalizou o personagem Flash na edição nº 4 da revista Showcase. A idéia era trazer de volta alguns heróis da Era de Ouro, mas re-imaginando-os como novos personagens. “Reiniciar com outro Flash (...) fez sentido para Schwartz porque ele achou que ninguém se lembraria do antigo” (WEBB, 1996, p. 126). Assim, saiu de cena Jay Garrick (o Joel Ciclone no Brasil), e entrou Barry Allen. 33 Como também ficou conhecido o macarthismo. 34 editoras amargavam ante o boicote dos distribuidores que se negavam a entregar material sem o selo do código. 35 Poucas revistas se salvaram, mas num exemplo irônico de como este controle era rasteiro e pouco eficaz, vale destacar as ações dos editores da revista Mad para evitar seu cancelamento. Eles mudaram o formato da revista e passaram a tratá-la como um Magazine, colocando-a num patamar diferente em relação aos quadrinhos no mundo das publicações impressas. 32 Uniformes diferentes, com origens muito semelhantes: tanto Garrick quanto Allen eram cientistas que sofreram acidentes com materiais químicos que, combinados, conferiram-lhes super-velocidade36. A Era de Prata também trouxe de volta personagens como o Lanterna Verde37 e o Gavião Negro, além de heróis como o Homem-Elástico, Arqueiro-Verde, Zatanna38 , entre muitos outros. Embora crescessem o número de super-heróis e sua popularidade entre os leitores, a qualidade das histórias passou a ser significantemente afetada pelo gosto do público pelas histórias de ficção cientifica. Batman e Super-Homem, por exemplo, amargaram, durante anos, aventuras sofríveis, com vilões e tramas que caiam no ridículo 39. Para garantir o sucesso destes personagens, a DC Comics lançou em 1960, na edição 28 da revista The Brave and the Bold, a Liga da Justiça. A intenção era repetir o sucesso alcançado com a Sociedade da Justiça, desta vez contando com os personagens mais populares da editora: Super-Homem, Batman, Mulher- 36 Jay Garrick era um estudante quando inalou acidentalmente vapores de água pesada depois de adormecer em seu laboratório onde ele estava trabalhando. Como resultado, ele descobriu que podia correr a velocidades sobrehumanas e tinha reflexos igualmente rápidos. Já Barry Allen, um funcionário da polícia cientifica, ganhou seus poderes depois de sofrer um acidente, sendo banhado por produtos químicos após seu laboratório ser atingido por um raio. 37 O primeiro Lanterna Verde, criado em 1940, apareceu pela primeira vez na revista All-American Comics nº 16. Chamava-se Alan Scott. Seu anel (fonte do poder dos Lanternas Verdes), fazia parte de um fragmento de metal alienígena encontrada por ele no final da década de 30. O metal tinha o formato de uma lanterna e conseguia gerar objetos maciços (e verdes, claro) com o poder do pensamento. Alan usou uma parte da lanterna para criar um anel – que constantemente tinha de ser recarregado na peça-matriz. Sua única vulnerabilidade era a madeira. O segundo Lanterna Verde, criado em 1959, apareceu pela primeira vez na revista Showcase mº 22. Chamava-se Hal Jordan e ignorava a existência de Scott. Hal era um piloto de testes da Ferris-Aeronáutica. Um dia, enquanto testava uma nave experimental, foi abduzida por uma estranha energia verde que o levou até uma clareira, onde, agonizante, o alienígena Abin Sur entregou-lhe o anel da Tropa dos Lanternas Verdes. A partir de então, Hal passou a contar com poderes semelhantes aos de Scott, com a diferença de que sua única vulnerabilidade estava ligada à cor amarela e não a madeira. (V. mais sobre a Tropa dos Lanternas Verdes no apêndice) 38 Filha de um tradicional personagem da Era de Ouro, o mago Zatara. Assim como o pai, Zatanna dividia as atividades de super-heroína com a profissão de artista dos palcos e fazia seus truques, simplesmente dizendo as frases de trás para frente. 39 O seriado clássico de Batman, produzido entre 1968 e 1970, teve grande influência dos quadrinhos desse período. 33 Maravilha, Flash, Lanterna Verde, Aquaman e Ajax – O Caçador de Marte40 (o único que não contava com uma revista própria no período). O sucesso da Liga da Justiça, fez com que a editora-rival, Timely Comics, encomendasse a criação de uma super-equipe a dois de seus maiores criadores: Stan Lee e Jack Kirby. Ambos atuando no mercado de quadrinhos desde a década de 40, Kirby e Lee criaram o Quarteto Fantástico, uma família de exploradores espaciais que em contato com uma força desconhecida, retornam a Terra, dotados de super-poderes. A inovação ficou por conta do tratamento dado a esses super-heróis. O Tocha-Humana, o Sr. Fantástico, a Garota Invisível e o Coisa eram imperfeitos e viviam em conflito entre si, gerando os super-seres mais humanos já vistos até então. O Coisa, por exemplo, era constantemente atingido por uma onda de melancolia, ao perceber que jamais poderia voltar a se tornar um homem comum e estaria, para sempre, condenado a ser um estranho entre os humanos, devido a sua aparência “pedregosa”. O Quarteto Fantástico impulsionou toda uma nova geração de heróis com problemas pessoais e comportamentos que muitas vezes fugiam da rigidez moral presente em quase todos os personagens da época. Assim, pelas mãos da Timely Comics, que logo se tornaria a Marvel Comics, o público viu surgir outros heróis, tais como o Homem-Aranha, um adolescente preocupado com amores, contas e trabalhos de escola, que chegou a enfrentar a morte de uma namorada, a adolescente Gwen Stacy 41, pelas mãos de seu maior inimigo, o Duende-Verde; o Thor, um deus nórdico condenado a viver preso ao corpo do mortal Donald Blake42, que, manco de uma perna, também se sentia amaldiçoado, pois mesmo sendo um médico brilhante, ainda assim se considerava um nada em relação ao grande poder 40 J’onn J’onzz, mais conhecido no Brasil como Ajax, o Caçador de Marte, é o último marciano vivo. Sua origem foi mostrada na edição 225 de Detective Comics. Atraído pra Terra no final da década de 40, por um acidente que custou a vida de um cientista, J’onn permaneceu, durante anos, como um ex-detetive aposentado na cidade Chicago. Com o surgimento do Super-Homem, achou que era hora de se revelar e criou uma identidade superheróica. Devido a seus poderes, que incluem telapatia, visão marciana (combinação de visão de calor e raio x), super-força, intangibilidade, transmorfismo, supervelocidade e invisibilidade, logo foi alçado a condição de membro de valor da Liga da Justiça, tornando-se o personagem que mais tempo esteve junto com o grupo. 41 Gwen Stacy, morta em 1972, foi, durante muitos anos, tida como a única morte irreversível do mundo dos quadrinhos, afetando seriamente, até os dias de hoje, as ações do Homem-Aranha. Recentemente a personagem voltou dos mortos numa série de mal-sucedidas decisões editoriais que, aos olhos dos fãs, prejudicaram muito as aventuras do herói. Ironicamente, a revista do personagem continua vendendo como água. 42 Mais uma vez, o humano se envolve com os deuses. No entanto, nas aventuras de Thor, ao contrário das protagonizadas pelo Capitão Marvel, o universo dos deuses era bastante explorado. 34 que trazia dentro de si; e Homem-de-Ferro, cuja identidade secreta é o multimilionário Tony Stark, que, a exemplo de Bruce Wayne, combatia o crime com ajuda de seus infindáveis recursos financeiros, mas o herói também enfrentava demônios pessoais, tendo de lidar, por exemplo, com o alcoolismo e constantes ameaças empresariais. A DC Comics também investiu nesse aspecto, colocando os personagens Lanterna Verde e Arqueiro Verde para percorrerem a América, remetendo à obra de Kerouac43 , conforme nos revela Ricardo Malta Barbeira em uma resenha para o site Universo HQ, em que também comenta as semelhanças desta fase com os trabalhos dos jornalistas Tom Wolfe e Hunter Thompson. Durante este período, que ficou marcado pelos roteiros de Dennis O’Neil e os desenhos de Neal Adams, o Arqueiro Verde revelou-se um simpatizante do comunismo, e o Lanterna Verde teve algumas de suas crenças no American way of life questionadas44 . Tornou-se clássica a edição onde o Arqueiro descobre que seu parceiro-mirim, Ricardito, tornara-se um viciado em heroína. No entanto, a ficção científica ainda era o carro chefe de boa parte das publicações dessas editoras45 , como nos revela Byrne (1996). O ponto alto foi a criação dos Novos Deuses46, pelas mãos de Jack Kirby, para a DC Comics. Esta fixação pela ficção cientifica pode ser encarada como uma obsessão ocidental, à luz da seguinte declaração de Alan Moore: ! A idéia de discos voadores sólidos do sistema estelar de Alpha Centauri, nos visitando agora ou em qualquer tempo no passado não é uma idéia racional. E então, porque envolve maquinário, motores warp, ou conceitos pseudo-científicos como esse, então nós, no ocidente lhe prestaremos seriamente atenção, igual 43 Jack Kerouac, escritor norte-americano, membro fundador do movimento beatnick, que contava também com gente como William Burroughs (Almoço Nu), Allen Ginsberg (Uivo), Gregory Corso, Peter Orlovsky e outros. Ficaram famosos por suas transgressões e pela contínua busca da liberdade, experimentando todo tipo de drogas e posturas sociais anti-governamentais que encontrassem pelo caminho. A obra de Kerouac ficou marcada por seu fascínio pelas religiões orientais, o fluxo de consciência durante a escrita e as longas viagens feitas por ele pelos Estados Unidos. Seu livro mais famoso é On The Road – Pé na Estrada. 44 Publicadas entre as edições 76 e 88 de Green Lantern (1970 e 1971), recentemente republicadas no Brasil no especial Grandes Clássicos DC – Lanterna Verde e Arqueiro Verde Vol. 1. 45 Mesmo o Quarteto Fantástico, com sua temática familiar, ainda era, em grande parte, uma hq de aventuras cientificas. 46 V. mais sobre os Novos Deuses no apêndice. 35 fizeram com os livros de Von Danicken. Ao contrário, as idéias espirituais de outras culturas, nós as consideramos como... Bem, elas são completamente sem sentido, não são científicas. (...) Tudo o que vemos são as nossas percepções e as confundimos com a realidade. Em conseqüência, tendemos a ser muito chauvinistas, sobre a nossa imagem da realidade, como se ela fosse a única. Então, a única forma através da qual podemos ver as outras culturas é imaginando que elas se iludiram ou eram primitivas ou que não haviam entendido tudo. Essa é a forma em que nós, em termos de informação, isolamos a nós mesmos, terrivelmente. (MOORE, 2003) Moore se refere a capacidade da ficção de, em alguns momentos, limitar os indivíduos, cegando-os para outros aspectos da investigação mitológica. Joseph Campbell é menos rancoroso com a busca pelas estrelas, mas adverte que “ao se lançar no espaço, você carrega o seu corpo e, se este não estiver transformado, o espaço não o transformará” (CAMPBELL, 2008, p. 193). Campbell questiona a verdadeira importância do homem dentro de um universo tão vasto e grandioso, recheado de estrelas e explosões inimagináveis. E, ao tomar consciência disso, você se dá conta da sua real importância, não é mesmo?, uma minúscula micropartícula no meio dessa grande magnitude. Depois, é preciso viver a experiência de que você e isso tudo são, de algum modo, uma coisa só, e você participa de tudo isso. (...) E essa experiência começa aqui. (CAMPBELL, 2008, p. 193) Os super-heróis, no entanto, são capazes de atingir as estrelas, dançar com aliens e se voltar novamente para o mundo que chamam de lar. E é ao leitor que cabe a identificação com esta jornada, empreendendo uma investigação dos mitos que compõem um super-herói. Este comportamento relacional entre público e mídia, enfim atingiria seu grande ápice, gerando aquele que seria o próximo passo dos quadrinhos. Mas antes, é preciso se observar como, no começo dos anos 80 a Era de Prata começava a se aproximar de seu fim (WEBB, 1996). Mais uma vez, foi um Flash o responsável por uma nova direção dos quadrinhos. Na verdade, dois Flashes, já esta quebra de paradigmas teve seu início em 1961. Na edição 123 de 36 Flash, o personagem Barry Allen rompeu com os limites do espaço-tempo e foi parar em outra Terra, encontrando-se assim com Jay Garrick, o Joel Ciclone (o primeiro Flash, nos Estados Unidos). Segundo Julius Schwartz e Gardner Fox, responsáveis por este encontro, as duas Terras tratavam-se do mesmo mundo, só que vibrando em velocidades diferentes (daí, de só os Flashes poderem alcançar esses outros mundos, pois possuem a capacidade de romperem com os limites da luz). Fox batizou a Terra do Flash-Barry Allen de Terra Ativa (Earth One, no original) e a de Joel Ciclone de Terra Paralela (Earth Two)47. A história fez tanto sucesso que uma esteira cósmica foi construída para que os heróis se encontrassem mais vezes. Além dos dois Flashes, os membros da Liga da Justiça e da Sociedade da Justiça também passaram a se encontrar48 . Estes encontros também proporcionaram o descobrimento de outros mundos, como a Terra 3, onde os vilões eram versões dos heróis que conhecemos e o único defensor do planeta era Lex Luthor; a Terra 4, habitada pelo Capitão Átomo, Besouro Azul, Questão e outros personagens comprados da editora Charlton Comics; Terra S, lar do Capitão Marvel, dos seus inimigos e do seu elenco de apoio; a Terra X, onde a Alemanha havia vencido a Segunda Guerra Mundial e soldados como os da Companhia Moleza tentavam reverter a situação; entre outras muitas terras. Isso tudo apenas servia para bagunçar a cabeça do leitor. Embora facilitasse a vida dos autores quando esses queriam contar alguma história que não influenciasse na vida dos personagens49 . Tantos mundos paralelos acabaram tornando o Universo DC confuso demais para os leitores (WEBB, 1996). A solução foi uma crise. A Crise. A Era de Prata estava chegando ao fim. 47 Hoje, no Brasil, as denominações Terra Ativa e Terra Paralela foram deixadas de lado, em prol dos nomes originais, Terra 1 e Terra 2. 48 Vale destacar que na Terra Paralela, Batman e Suer-Homem continuaram na ativa, casaram, tiveram filhos e, é claro, envelheceram. Estes encontros se davam várias vezes ao ano e foram republicados, recentemente, na edição especial Crise nas Múltiplas Terras, pela Panini Editora. 49 Bastava ao autor dizer que aquela era uma “história imaginária”. Mais tarde, Alan Moore ironizou esta fórmula adotada pelos autores de outrora, ao questionar na introdução de sua história “O que aconteceu com o Homem de Aço?”, se não seriam, afinal, todas aquelas histórias imaginárias. 37 2.4 – A Crise na realidade: super-heróis existem! (MORRISON e TRUOG, 1993, p. 73 e 74) Crise nas Infinitas Terras. Uma mini-série em doze edições cujas proporções puderam ser notadas em todos os títulos regulares da DC Comics durante todo o ano de 1985. Editorialmente, a solução foi muito simples: unificar tudo aquilo que convencionou-se chamar de Universo DC numa única cronologia, atraindo assim, novos leitores que não mais se sentiriam intimidados diante de uma continuidade tão desordenada. Artisticamente, bastava convocar dois dos mais conceituados autores da época, Marv Wolfman e George Pérez, respectivamente, o escritor e desenhista 38 responsáveis pelo estrondoso sucesso da revista Novos Titãs50. Literariamente, uma saga deste porte, exigia o sacrifício de muitos heróis e vilões, além de realidades inteiras que passariam a ser esquecidas (SPERB, 1989). Durante um ano, os leitores observaram seus super-heróis preferidos lutarem contra a ameaça de um fim. Claro que todos sabiam que esse fim não chegaria, que a editora DC Comics continuaria, de uma forma ou de outra, a publicar seus personagens, e que, obviamente, a história acabaria bem. Mas era a primeira vez em que a eminência de um fim assombrava esses personagens 51 que só conheciam continuações. Para provar que não estavam brincando, Wolfman, Pérez e Len Wein, o editor responsável pela Crise, fizeram com que vários heróis fossem mortos. Entre eles, a Supermoça, Columba52 , e muitos outros. Mas a morte mais emblemática foi a do segundo Flash, Barry Allen. Era um sinal de que as coisas jamais seriam as mesmas. E, também, a última pá de terra de sobre a Era de Prata. ! Há vários aspectos de Crise que me orgulham. Em primeiro lugar, a história faz sentido! Depois de 12 edições, com tantos personagens e enredos juntos, o fato de tudo ter dado certo é gratificante. Também fiquei satisfeito com a reação frente à morte da Supermoça, especialmente porque foram fornecidos todos os dados necessários sobre a heroína para se entender quem ela era e como morreu. Estou satisfeito, porque, na maioria das vezes, você não tem que saber quem são todos os personagens para apreciar a história. Eu tentei escrever Crise de forma que, mesmo 50 Grupo que reunia os parceiros-mirins de boa parte dos heróis da DC. Entre os heróis presentes, estavam Asa Noturna (o primeiro Robin, Dick Grayson), Ricardito (parceiro do Arqueiro Verde, recuperando-se do vício em heroína), Aqualad (parceiro do Aquaman), Moça-Maravilha (parceira da Mulher-Maravilha), além de outros jovens e confusos heróis que, com o tempo, foram agregados ao grupo original, tais como Ravena, Mutano (ex Rapaz-Fera do grupo Patrulha do Destino), Cyborg e outros. 51 A maior prova disso foi que as duas revistas responsáveis pelas histórias do Super-Homem, chegaram ao fim (para serem re-iniciadas no mês seguinte, claro). As edições 423 de Superman e 583 de Action Comics trouxeram uma história dupla, onde o escritor Alan Moore imaginava um fim apropriado para o Homem de Aço e seus personagens de apoio. Obviamente, como já foi dito anteriormente, esta era “uma história imaginária”. 52 Personagem pouco conhecido pelo grande público, parceiro de seu irmão, Rapina, agiam em nome da Ordem (Columba) e do Caos (Rapina), promovendo o equilíbrio do universo. No Brasil, os leitores mais antigos se lembram das participações dos personagens na série dos Novos Titãs, além de uma participação rápida, de um episódio, no terceiro episódio do desenho animado Liga da Justiça – Sem Limites, em que a dupla de heróis dá o título do episódio. Mais tarde, Columba foi substituído por uma moça, mas Rapina nunca superou a morte do irmão, e acabou se tornando um vilão, o Monarca, que intentava alterar o passado para controlar o futuro (V. a mini-série Armageddon 2001). Com seus planos fracassados, adotou a alcunha de Extemporâneo, tentando, sem sucesso, reproduzir os efeitos da Crise nas Infinitas Terras, trazendo de volta todos os mundos paralelos (V. a mini-série Zero Hora). 39 não conhecendo esses personagens, você pelo menos soubesse que eles existiram e eram importantes. (WOLFMAN, 1989, p. 126) Crise nas Infinitas Terras tornou-se um marco dos quadrinhos. Hoje, vinte e três anos depois, é possível observar que suas mudanças foram muito além das mortes deste ou daquele personagem. Após Crise, editorialmente, os quadrinhos nunca mais foram os mesmos. Seguindo o final de Crise, a coincidente publicação, em 1986, de duas miniséries foram cruciais para as mudanças que estavam por vir: Watchmen, de Alan Moore e David Gibbons e Batman – O Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller. Era o fim de um período de inocência para os quadrinhos de super-heróis. Watchmen e Batman – O Cavaleiro das Trevas trataram dos super-heróis como se estes existissem no mundo real, com tramas complexas e tons críticos sobre a mídia e o governo 53 que foram responsáveis por atrair toda uma nova geração de leitores, além de consolidar os quadrinhos como arte54. ! (...) isso ocorreu devido a uma sucessão de acontecimentos, como a abertura das portas do Museu do Louvre para os quadrinhos, a criação do Congresso de Lucca, o apoio de intelectuais e universidades européias, e declarações como a de Federico Fellini, conclamando Lee Falk como seu mestre literário, depois de confessar ter aprendido a escrever lendo Fantasma e Mandrake. (MANTO, 1992, p. 16) A publicação e conseqüente aclamação de público e crítica de Watchmen e Batman – O Cavaleiro das Trevas, também deu o tom para boa parte das publicações que viriam a seguir. Os heróis amargurados e violentos vistos nessas 53 Em Watchmen, ambientada em 1985, num mundo onde, inspirados pela publicação das histórias do Superman, pessoas comuns se fantasiaram e foram às ruas para agir em nome da justiça, Richard Nixon estava em seu quinto mandato e a iminência de uma guerra nuclear assolava a todos os personagens. Em O Cavaleiro das Trevas, ambientado num futuro próximo onde o Homem-Morcego voltava de uma auto-imposta aposentadoria, o mundo também passava pela ameaça de uma guerra nuclear e o governo dos Estados Unidos contava com uma ajuda especial, o único super-herói com autorização para agir, ainda que escondido: o Super-Homem. 54 Lembrando que em 1951, o Brasil já havia contado com a 1ª Exposição Internacional de História em Quadrinhos (MANTO, 1992). 40 duas mini-séries contagiaram toda a indústria. Não era de se estranhar que superheróis passassem a adotar medidas mais extremas em suas aventuras55. A DC resolveu apostar nisso e eliminou, de vez, todos os resquícios de inocência dos quadrinhos. Personagens como Bat-Moça e Robin não foram poupados56 , enquanto personagens como o Super-Homem recorreram ao assassinato 57. O Homem-Aranha, da Marvel Comics, foi outro que sofreu as conseqüências deste estranho período nos quadrinhos: após uma temporada no espaço, durante a saga Guerra Secreta, voltou para a Terra com um uniforme negro que, na verdade, era um simbionte alienígena, capaz de alterar suas emoções 58. A transformação dos quadrinhos de super-heróis em uma mídia voltada para adultos tornou-se muito natural. Visto que o público alvo estava crescendo (e sempre estivera, de fato), era a primeira vez que se tomava medidas para continuar cativando-os. Graças ao trabalho desenvolvido por Alan Moore na série mensal do Monstro do Pântano, trazendo personagens secundários de volta, além de explorar atentamente o lado místico do Universo DC, a editora criou o selo Vertigo, onde foram introduzidos personagens como John Constantine, no título Hellblazer e os Perpétuos59, em Sandman. Embora pouco se relacionassem com o universo de super-heróis da DC, as tramas do mago urbano John Constantine60 e de Sandman acabaram tornando-se de importância impar para a indústria dos quadrinhos, firmando-se no gênero dos chamados “quadrinhos adultos”. Ambas, até hoje, continuam gerando dividendos preciosos para a DC Comics. Para Del Manto, os quadrinhos adultos fiam-se numa descontinuidade, ou seja, há o desprendimento das edições anteriores, coisa que não se vê nas tramas de super-heróis com bastante freqüência. Del Manto também 55 Os super-heróis passaram a ser mais violentos e, muitas vezes, os roteiros não passavam de desculpas para um ou mais personagens se digladiarem. O ponto alto desta fase foi a criação da editora Image, marcada por personagens ultra-fortes e violentos, como o Spawn de Todd MacFarlanne. 56 A primeira foi aleijada pelo Coringa na Graphic-Novel A Piada Mortal de Alan Moore e Brian Bolland, enquanto o segundo teve a morte decretada, também sob o julgo do Coringa, pelos próprios leitores, que votaram por telefone, para decidirem o destino do personagem durante a saga Morte em Família. 57 V. Super Powers nº 17, 1990. 58 Mais tarde, livre do simbionte, o personagem continuou a usar o uniforme negro. 59 Para saber mais sobre os Perpétuos, veja o Apêndice no final deste trabalho. 60 Criado para ser um coadjuvante com “cara de Sting” para as aventuras do Monstro do Pântano, John Constantine acabou se desvinculando do universo de super-heróis, sendo, hoje em dia, o dono de um dos títulos mais longevos da Vertigo. 41 diz que há uma investigação muito maior por parte dos autores, criando tramas que tenham ressonância com o mundo real (MANTO, 1992). Embora os anos 90 tenham sido marcados por grandes golpes publicitários no mundo dos quadrinhos, com sagas como A Morte do Super-Homem61 , A Queda do Morcego62 e Crepúsculo Esmeralda63 , houve quem visse as coisas de outra forma. Obviamente, nem todos os autores concordavam com o rumo que as coisas tomaram. O escritor Neil Gaiman expressou a mudança do comportamento adotada pela indústria quanto aos personagens. É interessante notar um personagem como o Charada, famoso por suas excentricidades e crimes relacionados a enigmas, perdido no “mundo real”: (GAIMAN, 1990, p. 200) 61 Seguida por Funeral para um amigo, O Retorno do Super-Homem e outras que só serviram para modificar o visual do personagem, dando-lhe cabelos compridos e uma nova gama de personagens secundários, como o Superboy (um clone secretamente produzido para lhe substituir um dia) e Aço (um cientista genial que fez uma armadura super-poderosa em homenagem ao Homem de Aço). 62 Saga onde, durante dois anos, os leitores acompanharam os percalços de um Bruce Wayne quebrado física e psicologicamente que, preso a uma cadeira de rodas, precisou enfrentar muitos desafios, para retomar o manto do morcego. 63 Onde um enlouquecido Hal Jordan extermina toda a Tropa dos Lanternas Verdes, tornando-se assim, um vilão que, mais tarde, ao lado de Extemporâneo, tentaria tomar as rédeas do tempo para si, na saga Zero Hora. Depois, durante a Noite Final, onde o sol de nossa galáxia se extinguira, Hal se sacrificou ressuscitando a estrela. Como recompensa, transformou-se na nova encarnação do Espectro, que, durante os tempos da SJA, havia tido como hospedeiro o policial Jim Corrigan. Hoje, Hal Jordan voltou a vida e reassumiu seu posto de Lanterna Verde, provando a máxima de que “nos quadrinhos, quem é morto, sempre aparece”. 42 Os autores Mark Waid e Grant Morrison preferiram diferir da máxima imposta de que os heróis vivem no mundo real e começaram e a trabalhar com a idéia de pessoas comuns vivendo num mundo onde existissem super-heróis, ou seja, inverteram os pontos de vista. Para Morrison, a matemática do processo era muito simples: deixaríamos de encarar os heróis como criaturas para observá-los como elemento natural do jogo, uma meta a ser atingida, o próximo passo da evolução. ! Preze este organismo, este prodígio entre as estrelas. Esta Terra. Sua fabulosa diversidade de criação. Sua perfeição auto-evolutiva. Seu solo é fértil o suficiente para germinar deuses (...) Preserve este mundo. (...) O que Nova Gênese representa para o quarto mundo, a Terra representará para o quinto que virá. (MORRISON, 2004, pp. 30 e 31) Waid e Morrison retomaram a Liga da Justiça como uma das equipes mais poderosas do mundo, conferindo-lhes características dignas de um panteão. O grupo passou a ser formado pelos maiores heróis da Terra64 , cujos feitos não só recendiam a grandiosidade primeva dos heróis, como também rendiam homenagens a diversos elementos da Era de Prata. Mark Waid lançou, ao lado do ilustrador Alex Ross, a mini-série O Reino do Amanhã, onde, em um futuro próximo, os heróis aposentados do Universo DC se viam obrigados a voltar a ativa, após testemunharem o caos instaurado pelas ações inconseqüentes de seus jovens sucessores. Um Super-Homem rancoroso com a espécie humana se vê obrigado a liderar um grupo de heróis, ao mesmo tempo em que têm de levar outros à prisão. Além disso, ele também se vê na obrigação de enfrentar uma coalizão de heróis liderados por Batman e outros justiceiros sem super-poderes. O resultado é uma nova ordem mundial fundamentada em princípios sombrios, bem diferentes do mundo resplandecente de outrora65. Outro fator curioso da série são os restaurantes ornamentados em homenagem aos super-heróis, todos 64 No caso, os sete grandes personagens da DC: Super-Homem (força), Batman (astúcia e inteligência), Flash (velocidade sobre-humana), Lanterna Verde (com seu anel energético capaz de criar formas e realizar desejos), Aquaman (poderes aquáticos), Ajax, o Marciano (diversas habilidades alienígenas – além da própria aparência) e Mulher-Maravilha (a destreza de uma verdadeira filha dos deuses). 65 Este conflito entre o velho e novo mundo se dá principalmente pelo Capitão Marvel, mostrado na mini-série como um homem confuso, preso em sua forma humana, com um deus adormecido dentro de si, temeroso de sair e encarar o novo mundo sinistro que se formou ao seu redor. 43 dotados de uma decoração kitsch, com diversas bugigangas espalhadas pelas paredes. Grant Morrison, por sua vez, celebrou os feitos dos membros da Liga da Justiça na cronologia corrente do Universo DC e, durante sua fase a frente da revista, fez com os heróis para se verem obrigados a fazer frente a invasões alienígenas, tomarem parte de batalhas entre anjos, confrontar ameaças ancestrais, viajarem a mundos onde todos são super-heróis, destruir uma realidade apocalíptica para garantir a existência de um futuro melhor e, ainda serem gratificados com a chance de visitarem um futuro distante, onde após milênios, o Super-Homem continua vivo, adormecido no Sol enquanto os outros heróis são louvados por novas gerações que continuam a usar seus nomes, enquanto mantém o universo seguro. Outro grande feito da Liga da Justiça, este novamente sob a batuta de Mark Waid, foi a literal construção de um paraíso, para que os habitantes mais antigos da galáxia possam, enfim, descansar66 . Assim, os super-heróis começaram a ser vistos de outra forma. Estavam acumulando experiências, aproximavam-se de um fim que, mesmo seguro pelos limites editoriais, não poderia ser negado. Mas havia uma saída: num universo onde a picada de uma aranha-radiativa o colocava entre os maiores heróis da Terra, ao invés de te matar, não é incomum que todos queiram ter sua chance de salvar o universo. Eco manifesta esta identificação com o herói da seguinte forma: Clark Kent personaliza, de modo bastante típico, o leitor médio torturado por complexos e desprezado pelos semelhantes; através de um óbvio processo de identificação, um accountant qualquer de uma cidade norte-americana qualquer, nutre secretamente a esperança de que, um dia, das vestes de sua atual personalidade, possa aflorar um super-homem capaz de resgatar anos de mediocridade. (ECO, 1974, p. 248) ! Já Grant Morrison, na função de roteirista, faz o mesmo através dos lábios de uma de suas personagens, a Supercaubói Shelly Gaynor, criada especialmente para a minissérie Sete Soldados da Vitória, mostrando o quão longe a admiração por super-seres pode ir. Shelly é uma repórter que, imersa em uma matéria sobre o 66 Esta fase pôde ser acompanhada na revista Os Melhores do Mundo, entre os números 9 e 29, pela Editora Abril, 3ª Guerra Mundial, pela Mythos Editora e LJA – Escada para o Céu, pela Panini Comics. 44 mundo dos super-heróis, decide se tornar, também uma super-heroína. Sua obsessão acaba levando-a a aventuras que são muito maiores do que ela mesma e cujos efeitos podem ser conferidos no trecho a seguir: (...) tudo isso é porque os altos não são mais tão altos... Porque os prédios que eu salto não são altos o suficiente. Porque levei todo esse lance moralmente ambíguo do vigilantismo urbano o mais longe que pude. E agora, Deus me perdoe... Agora quero visitar outros planetas, dimensões e enfrentar deuses renegados. Nos meus momentos mais profundos e sombrios, às três da manhã, me imagino morrendo pra salvar o Universo. Vejo uma imagem na lua, talhada como um memorial. Mundos inteiros chorando diante do meu túmulo. (...) Como é que você sabe que virou um superherói e não apenas um fetichista maluco com desejos suicidas? É quando a piada se torna real? (MORRISON, 2007, p. 15) Morrison defende que os super-heróis são o próximo passo evolutivo da humanidade. Mais do que isso, ele entende que eles são necessários em nossa própria realidade. Como leitores, os buscamos por precisarmos de deuses que nos defendam. A nossa realidade está em débito conosco, esperamos ansiosos por “luzes no céu. Estrondos sônicos nas ruas e estranhas aeronaves... Deveria haver algo mais... Mais do que há” (MORRISON, 1999, p. 3). 45 Capítulo 3 A Musa Dourada Eu sou Promethea, Adotada por deus, Criada em suas colinas e vales imateriais. Minha lenda é do largo mundo substancial, Mas minha substância é do mundo das lendas. (...) Eu sou Promethea, Da pura luz da Mente Inclino-me sobre as trevas da Terra, Do dia das Fábulas, Descendo até os frios fatos com pesado poder, De Atmosferas líricas à argila mamífera. Eu sou Promethea, a tão falada, O tronco Mítico que a Razão se esforça para curvar Eu sou a voz que resta, assim que o livro termina, Eu sou o sonho que o despertar não encerra. (MOORE, 2007, nº 4, pp. 31, 32 e 33) Assim surge pela primeira vez a personagem Promethea na série homônima, lançada entre os anos de 1999 e 2005, pela editora americana WildStorm, sob o selo da América’s Best Comics (ABC). As trinta e duas edições demoraram para chegar ao Brasil, surgindo primeiro via scan’s67 , por volta de 2003, e finalmente traduzido e lançado corretamente pela editora Pixel Media, na revista Pixel Magazine, onde as doze primeiras edições foram publicadas entre julho de 2007 e junho de 2008. São essas as edições analisadas neste trabalho. Neste capítulo, serão apresentados os elementos que compõem o mundo de Promethea, assim como sua formação mitológica, servindo-se dos elementos apresentados nos capítulos anteriores para que façam sentido. A razão para se falar de Promethea ao invés de, por exemplo, um quadrinho da DC Comics, como a Liga da Justiça escrita por Grant Morrison, é a capacidade de síntese encontrada em Promethea, onde toda uma mitologia é brilhantemente construída ao longo de doze edições. 67 Material escaneado, traduzido e publicado gratuitamente na internet por leitores descontentes com o mercado editorial nacional. 46 3.2 As origens da deusa coroada Durante uma entrevista à revista Rolling Stone, no ano de 1987, o escritor inglês, Alan Moore, declarou que seu trabalho como roteirista de quadrinhos consistia em tentar “propor um idioma moral para um novo mundo, quer dizer, propor um alcance de conceitos que estão mais de acordo com o mundo no qual vivemos (...) em lugar dos materiais que herdamos de gerações anteriores e mais simplistas” (MOORE, 2008). ! Nesta época, Alan Moore havia deixado de trabalhar para a DC Comics, devido a questões contratuais referentes a V de Vingança68 e Watchmen. Moore alega que os direitos de ambos os trabalhos deveriam ter retornado a ele e aos desenhistas após a publicação dos mesmos, mas como a editora nunca os deixara de publicar, preenchendo as livrarias e bancas continuamente como re-edições especiais e encadernados, os artistas tinham de se contentar com pouco mais de 5% das vendas. Tendo também uma rixa com a editora rival, Marvel Comics, devido a um processo que havia envolvido o personagem Marvelman69 , Moore concluiu que o melhor a fazer era abandonar os quadrinhos mainstream. ! Alguns anos depois, após ter abandonado os quadrinhos comerciais em prol de projetos pessoais, como Do Inferno 70, Lost Girls 71, Big Numbers72 , A Voz do 68 A série, inicialmente publicada na Inglaterra, durante o começo dos anos 80, pela revista Warrior, havia ficado no limbo por mais de cinco anos, devido a falência dos editores originais. Com o sucesso de Moore, devido a Watchmen e seu trabalho no Monstro do Pântano, a DC Comics o convidou para, junto do desenhista original David LLoyd, concluírem a obra. 69 Antigo personagem dos quadrinhos britânicos de super-herói, reformulado por Moore na mesma época em que começou a escrever V de Vingança. Marvelman teve problemas ao ser publicado na América. Os problemas legais infundidos pela Marvel Comics, devido ao nome do personagem, fizeram com que Moore o rebatizasse de Miracleman. 70 Desenhada por Eddie Campbell, From Hell começou a ser escrita em 1987 e só teve seu último capítulo publicado em 1997. 71 Desenhada por sua atual esposa, Melinda Gebbie, Lost Girls demorou dezesseis anos para ficar pronta e ser, eventualmente, publicada. 72 Desenhada por Bill Sienkwicz, das doze edições pretendidas, apenas duas foram publicadas. Os volumosos e lendários roteiros detalhados de Moore, acabaram por comprometer a capacidade artística de Sienkwicz que acabou se afastando dos quadrinhos, retornando aos poucos, a principio como arte-finalista e fazendo pequenas participações em algumas hq’s, como favor a editores que queriam presentear escritores estrelas, como Brian Michael Bendis. 47 Fogo 73, The Birth Caul74 , Moore acabou voltando ao gênero dos super-heróis, escrevendo esporádicas edições de Spawn, WildC.A.T.S., Supremo e outros, em 1999, Moore colocou seu plano mais audacioso em ação. Conhecido no mercado de quadrinhos como um dos grandes inovadores da arte de se narrar uma história, Moore se propunha um novo desafio. Uma linha de hq’s inteiramente nova, com cinco títulos todos escritos por Moore, que na época declarou em uma entrevista que o projeto inteiro não passava de um desafio a si mesmo. “Vejo isso como ‘Ei, vamos nos exibir e fascinar os leitores’. Não sou indulgente comigo mesmo com muita freqüência, então por que não, diabos” (MOORE, 2003). Publicados pela WildStorm, subsidiaria da DC Comics75, a ABC, America’s Best Comics trazia uma proposta inovadora aos quadrinhos de super-heróis. ! Para descrever isso, tenho que traçar as raízes dos quadrinhos, de volta ao ponto no qual os modernos super-heróis foram concebidos: o Super-homem. Se você voltar ao passo anterior a esse, você encontrará as revistas pulp e a tirinhas de jornais. Os romances de fantasia do século XIX. Mitologia. As primeiras ficções científicas. Essas foram as coisas das quais os quadrinhos cresceram. Tentei voltar ao território pré Super-homem e extrapolar um futuro diferente a partir disso. Esses são os quadrinhos de um mundo paralelo, se você quiser. (MOORE, 2008) ! Os cinco títulos lançados eram: - Tomorrows Stories, com um time constante de quatro desenhistas e personagens, normalmente com histórias simples e curtas, que esbanjavam 73 Primeiro romance de Moore, onde, através de doze capítulos, ele reconstrói a história de sua cidade-natal, Northamptom, ao longo de sete mil anos. Cada capítulo narra eventos particulares, sob uma ótica mística, típica do autor que, por sua vez, acaba sendo, também, um dos narradores do livro, no último capítulo, sendo responsável pela imagem contemporânea da cidade. 74 Um ambicioso projeto artístico que misturava performances teatrais, música e o próprio autor narrando eventos relacionados à própria infância até os momentos que procederam à morte de sua mãe. Mais tarde, este trabalho foi adaptado aos quadrinhos por Eddie Campbell. 75 No entanto, parte do acordo de Moore com o editor-original, Jim Lee, era de que o logo da DC não constasse em nenhuma página da hq. Em entrevista a Wizard, durante a divulgação da nova linha, Moore declarou que obviamente “não há nada nas revistas que as conecte com a DC. Quero dizer, sim, no final das contas, é a DC que publica essas revistas. E sim, eu preferiria que isso fosse de outra forma. Mas isso é algo com o qual posso conviver, e enquanto nós mantivermos esse relacionamento a distância, não haverá problemas.” 48 sensualidade, como Cobweb, desenhada por Melinda Gebbie; ou rendiam homenagens a clássicos dos quadrinhos policiais, como Greyshirt, desenhado por Rick Veitch e inspirado na narrativa de Will Eisner para seu personagem The Spirit; Jack B. Quick, desenhada por Kevin Nowlan, uma série infantil com um cientista mirim; ou The First American, com arte de Jim Baikie, contando com um estúpido e brutamontes super-herói que representava o espírito americano; - Top Ten, com arte de Gene Ha, uma hq aos moldes de uma série policial de tv, com policiais durões e tensões diárias que refletiam em suas vidas fora das ruas. O diferencial é que todos os policiais da hq de Moore tinham super-poderes e viviam numa cidade onde todos, também eram super-poderosos; - Tom Strong, com arte de Chris Sprouse foi o título mais longevo da ABC. A série mostrava as aventuras de um cientista centenário, mas com um envelhecimento invejável, visto que ainda aparentava seus trinta e poucos. Com origens que remetiam a Tarzan, o personagem era uma mistura de Super-Homem, Doc Savage 76 e outros heróis; - A Liga Extraordinária, com arte de Kevin O’Neill, tratou-se de uma seqüência não-oficial dos eventos mostrados em romances como Drácula de Bram Stoker, As Minas do Rei Salomão de H. R. Haggard, 20000 Léguas Submarinas de Julio Verne, O Médico e o Monstro de Robert Louis Stevenson e O Homem Invisível de G. G. Wells, onde, os respectivos personagens Mina Harker, Allan Quatermain, Capitão Nemo, Henry Jeckyll (e sua contraparte Edward Hyde) e Hawley Griffin eram recrutados pelo governo britânico e passavam a trabalhar como um grupo, envolvendo-se em tramas que acarretavam em novos vínculos com clássicos da literatura. A Liga Extraordinária contou com a participação de personagens como o Inspetor Dupin de Assassinatos na Rua Morgue de Edgar Allan Poe, Dr. Moreau de A Ilha do Dr. Moreau de H. G. Wells, os marcianos de Guerra dos Mundos, também de Wells e até de um jovem James Bond, criado por Ian Fleming e - Promethea, com arte de J. H. Williams III, onde misticismo, poesia, heroísmo, sexo, drogas, rock’n’roll, deuses, mitos, quadrinhos e um dos mais interessantes processos de metalinguagem ocorrem, quando a protagonista, Sophie Bangs, resolve utilizar a personagem Promethea como tema de seu trabalho de conclusão de curso. 76 Clássico personagem da literatura pulp. 49 3.3 O reino de Immateria Sua cabeça é como a minha, como todas as cabeças. Grande o bastante para conter todos os deuses e demônios que já existiram. Grande o bastante para conter o peso dos oceanos e todas as estrelas. Universos inteiros cabem nela! (MORRISON, 2008, p. 93) ! No universo proposto por Moore, Promethea é uma personagem recorrente da literatura romântica, tendo seu primeiro registro histórico no épico de fantasia romântica, Um Romance de Fadas do poeta Charlton Sennet (1751-1803), onde encarna uma serviçal da Fada Rainha Titânia. ! A segunda encarnação de Promethea ocorreu no ano de 1901, quando o jornal New York Clarion passou a publicar na seção colorida dominical do jornal, as tiras de quadrinhos desenhadas e escritas pela artista Margaret Taylor Case. Little Margie na Misteriosa Terra Encantada mostrava as estranhas aventuras oníricas de uma jovem garotinha que, supostamente, era baseada nas aventuras imaginativas da autora quando jovem. Em suas aventuras, Little Margie era acompanhada por um ajudante cômico chamado Chinky, o Demônio Chinês, “uma grotesca e demoníaca caricatura racial, completa com uma trança e falas embromadas (...), que embora seja obviamente ofensivo para o público atual, não diferia muito dos padrões da época” (MOORE, 2007, nº 4, p. 5). Outra presença freqüente nas tiras de Little Margie era uma fada princesa chamada Promethea, que permaneceu nas tiras até meses antes da aposentadoria de Margaret Taylor. ! A próxima encarnação de Promethea surgiu em 1924, na revista de pulp fictions Estórias Fabulosas. Esta Promethea, no entanto, é muito diferente de suas versões anteriores: “uma rainha guerreira brutal e ao mesmo tempo amorosa, constantemente lutando” (MOORE, idem). Com histórias medíocres creditadas a uma pessoa de nome Marto Neptura (na verdade, um pseudônimo utilizado por diversos escritores), esta Promethea só se manteve viva na memória de colecionadores e fãs do gênero devido as ilustrações providenciadas pela lendária Grace Brannagh. ! A próxima encarnação de Promethea foi nos quadrinhos. Sob a tutela do ex- professor de literatura clássica, William Woolcott, Promethea foi publicada pela editora Apex, de 1941 até 1970, quando Woolcott foi assassinado em seu 50 apartamento pelo ex-agente do FBI, Dennis Drucker que estava convencido que o personagem Dirk Dangerfield, também agente do FBI e amante de Promethea, fosse baseado em si mesmo. ! Após a morte de Woolcott, Promethea foi entregue ao jovem roteirista Steven Shelley. Baseando a personagem em sua jovem esposa hispânica, Bárbara, Shelley fez com que o “rosada tez caucasiana das Eras de Ouro e Prata” de Promethea, desse lugar a um tom “lustroso como madeira de lei”. Após 26 anos, sob a batuta de Shelley, a hq foi cancelada após a morte do roteirista, vítima de câncer. As informações relatadas acima, são retiradas quase que inteiramente do texto que abre a primeira edição de Promethea. O texto, intitulado O Enigma de Promethea: Uma Aventura pelo Folclore, é a introdução do trabalho de conclusão de curso de Sophie Bangs, a protagonista de Promethea. Sophie vive numa Nova York contemporânea77 , porém com sutis diferenças, como carros que voam, a polícia trabalhando em discos voadores, produtos como o elastagel, um tecido formado por circuitos plásticos que pode ser rasgado, modificado e alterado, mas sempre voltará a sua forma anterior. Nas primeiras páginas de Promethea, também somos apresentados aos quadrinhos de O Gorila Chorão, da Apex Publicações (a mesma que publicava as revistas de Promethea escritas por Woolcott e Shelley). Um sucesso de publicações, O Gorila Chorão não passa de uma série de closes do personagem, sempre citando frases melancólicas que, ninguém sabe muito bem porque, atraem um grande público. Durante as primeiras edições de Promethea, vemos o personagem surgir em outdoors e capas de revista. Algumas de suas frases clichês autopiedosas: “A vida moderna me faz sentir tão solitário”, “Todo mundo disse que eu devia usar o Windows 95”, “Eu odeio meu corpo”, etc. Na altura em que a conhecemos, Sophie está indo até a residência da viúva de Steve Shelley, Bárbara, para entrevista-la sobre a personagem que fez a carreira de seu marido. As perguntas de Sophie sobre constantes aparições de Promethea através dos tempos, incomodam Bárbara, que resolve encerrar a entrevista: “Você não quer ir atrás de folclore. E não vai querer que o folclore venha atrás de você” (MOORE, ibdem idem, p. 13), diz Bárbara, antes de expulsar Sophie de sua casa. 77 As primeiras páginas da história nos informam de que se trata do ano de 1999. 51 No caminho de volta, Sophie é abordada pelos Cinco Caras Bacanas, um super-grupo de heróis científicos de Nova York, composto por Stan, o mecânico, Roger, os músculos, Bob, o líder, Marv, o gênio e Kenneth, o vidente. O grupo pergunta a Sophie se ela não estaria “sendo ameaçada por estranhas e poderosas forças” (MOORE, ibdem idem, p. 16). Diante da resposta negativa da protagonista, o grupo de heróis a deixa ir. Infelizmente, o grupo de heróis tinha razão e Sophie é perseguida por uma criatura de sombras, chamada SMEE78 , que quer matá-la por ter lido “os livros errados”. Jogada do alto de um prédio, Sophie é salva por uma mulher obesa, metida em trajes de heroína, com um caduceu79 preso ao cinto. A mulher é Bárbara Shelley que, ferida, conta a verdadeira história de Promethea a Sophie: Promethea foi uma garota de verdade que viveu no Egito Romano, no séc. V. Seu pai, um acadêmico hermético 80, foi morto por uma turba de cristãos, “aqueles que transformariam Deus novamente em Líder” (MOORE, ibdem idem, p. 31). Para ser salva, Promethea foi entregue por seu pai ais deuses Tot-Hermes, uma junção dos deuses originais que representavam a sabedoria (Tot) e tinha a função de divulgar e interpretar a vontade dos outros deuses (Hermes). Mas a influência desses deuses em nosso mundo se esvai, devido ao novo Deus que surge81, assim eles só podem garantir segurança de Promethea, se ela aceitar ir com eles para seu mundo, um lugar chamado Imatéria, que sempre fica no lugar onde você está. Lá, ela não seria mais uma garotinha, mas “viveria eternamente, como uma história”, podendo eventualmente voltar a este mundo, porque “às vezes, se uma história for muito especial, ela pode conquistar as pessoas” (MOORE, ibdem idem, p. 28). Bárbara explica a Sophie que Promethea então “se tornou uma história viva, crescendo no reino de onde todos os sonhos e histórias vieram”, e algumas vezes, 78 Semi-Midless Elemental Entity – Seres Meio-Estúpidos Elementais. 79 O Caduceu ou emblema de Hermes (Mercúrio) é um bastão em torno do qual se entrelaçam duas serpentes e cuja parte superior é adornada com asas. Estas duas serpentes opostas figuram forças contrárias que podem se associar mas não se confundir. 80 Ciência hermética: espécie de abordagem similar à alquimia, supostamente criada por Hermes Trimegistus, ser mítico egípcio que combinava as características do deus egípcio Tot e do deus grego Hermes. Ele teria escrito vários livros reveladores para a época sobre assuntos que variavam da medicina e astronomia até a música e ciência política. 81 O Deus cristão. 52 voltava ao nosso mundo, canalizada pela imaginação de poetas, ilustradores, cartunistas e escritores. Alguns desses indivíduos acabaram sendo tomados por esta poderosa idéia e se transformaram fisicamente em Promethea. Foi o caso de Margaret Case, Grace Brannagh e William Woolcott, que mesmo sendo homem também transformou-se em Promethea. Outros, como Charlton Sennet e Steve Shelley, acabaram por transformar as mulheres que amavam em Promethea. “Veja, qualquer um com imaginação e entusiasmo o bastante pela personagem pode traze-la de Imatéria, ao imaginar ele mesmo ou outros no papel dela” (MOORE, ibdem idem, p. 29), explica Bárbara a Sophie, revelando-lhe que ela não estaria sendo caçada por um Smee, se não fosse a próxima Promethea. Bárbara diz que não pode mais ser Promethea, porque desde a morte de seu marido, que é quem tinha a imaginação, ela não tem conseguido imaginar-se mais no papel da personagem que tem ficado cada vez mais parecida com ela. Bárbara entrega papel e caneta para Sophie e manda que ela “escreva sobre Promethea. Uma descrição, um poema... Qualquer coisa” (MOORE, ibdem idem, p. 30). Sophie começa a escrever um poema e quando o encerra, já não são mais necessários papel e caneta, pois é a nova encarnação de Promethea quem fala: Eu sou Promethea, A mais ardente faísca das artes, Sou toda a inspiração, todo o desejo. A chama da imaginação nas trevas da humanidade. Eu sou Promethea, Eu lhe trago fogo! (MOORE, ibdem idem, pp. 34 e 35) ! Derrotando o Smee, o primeiro capítulo se encerra com Promethea voando sobre a cidade de Nova York, levando Bárbara até um hospital. ! Neste primeiro número, já são esboçados todos os elementos que formariam as histórias de Promethea. Nas edições seguintes, o primeiro arco de histórias, que dura do número 1 ao 6, além de apresentar Sophie e os personagens coadjuvantes, também serve para introduzir-nos à jornada heróica de Promethea. Nessas edições, 53 Promethea conhece seus inimigos e aliados, além de aprender um pouco sobre seu reino, Imatéria. ! Imatéria é apresentada como um cenário surreal e psicodélico, com cogumelos que se transformam em sapos, fadas escondidas entre flores, aranhas tatuadas, flores que se transformam em pássaros e muito mais. Neste primeiro arco, Sophie viaja duas vezes a Imatéria. Na primeira, logo após enfrentar demônios enviados contra ela, a heroína tem de ir a Imatéria para resgatar sua amiga Stacia que acidentalmente havia sido enviada para lá durante o conflito, no final da segunda edição. Em Imatéria, Promethea recebe a ajuda da Chapeuzinho Vermelho, ! Esta, no entanto, não é a personagem clássica, mas uma Chapeuzinho desbocada, fumante e armada, saída diretamente de um desenho feito por Sophie, após esta ter assistido ao filme Cães de Aluguel de Quentin Tarantino. Chapeuzinho explica que em Imatéria, Sophie não deve perder o foco, pois pode acabar se perdendo e até ficar louca. ! Neste primeiro contato, Sophie/Promethea tem apenas um vislumbre do que é Imatéria, enfrentando o Lobo-Mau82 e salvando Stacia que se perdeu num cenário do gibi do Gorila Chorão e agora não consegue deixar de se lamentar. Enquanto enfrentam o Lobo-Mau, Chapeuzinho explica a Sophie/Promethea o que se passa: ! Promethea compreende que Sophie é seu novo “veículo” e que suas psiques se alinharão conforme ela seguir adiante. Para retornar ao mundo comum, Sophie precisa imaginar um caminho de volta até Nova York, concentrando-se nas particularidades da cidade. O mesmo ocorre quando Promethea precisa voltar a ser Sophie. ! Nos quadrinhos de super-heróis, é comum que ocorra uma jornada de auto- conhecimento. Algumas vezes, como durante a fase do Monstro do Pântano, escrita pelo mesmo Alan Moore de Promethea, no início dos anos oitenta, o processo é 82 Algo descrito como uma “idéia simples, sem nenhuma defesa adulta como distanciamento, ironia ou o que for” (MOORE, 2007, nº6, p. 42), visto como uma criança o vê, ou seja, o puro mau. 54 longo e doloroso 83, outras vezes, esta jornada pode ser mortal, como no caso de Miracleman, também de Moore84. ! Em Promethea a jornada de auto-conhecimento começa com a pesquisa sobre a história que deu origem ao mito, que neste momento já é muito mais do que isso – saltou das páginas e encara Sophie. A primeira revelação chega a Sophie através de Jack Faust, um antigo inimigo das encarnações anteriores de Promethea, que agora vêm até esta para lhe informar que ela será caçada por bruxos, demônios e um grupo conhecido como O Templo, porque ela irá “acabar o mundo”. Faust explica que esta foi a maldição final do pai de Promethea, lançada sobre a humanidade enquanto ele era assassinado. Faust diz ainda que essa é uma excelente idéia e que qualquer mago de verdade concordaria com isto. A antiga crença de que o mundo será consumido pelo fogo ao cabo de seis mil anos é real, como revelaram-me nas profundezas do Inferno. Pois foi ordenado ao Querubim com a espada de fogo que abandonasse a guarda da Árvore da Vida e quando isso ocorrer, toda criação será consumida e vislumbrar-se-á infinita e purificada, pois agora apresenta-se finita & corrompida. E isto ocorrerá mediante a sofisticação do prazer sensual. Mas antes de tudo, a noção de que o homem tem um corpo distinto de sua alma será abolida. Isto conseguirei através do método infernal, cujos ácidos corrosivos, que no Inferno são saudáveis & terapêuticos, ao dissolver as superfícies visíveis, revelam o Infinito antes oculto. Se as portas da percepção se desvelassem, cada coisa apareceria ao homem como é, infinita. Pois o homem se enclausurou a tal ponto que apenas consegue enxergar através das estreitas frestas de sua gruta. (BLAKE, 2007, pp. 29 e 30) 83 Inicialmente considerado como um cientista que havia se tornado um monstro, a criatura do pântano logo na primeira aventura escrita por Moore, descobriu que na verdade se tratava de apenas um apanhado de vegetais inteligentes que haviam absorvido o intelecto do cientista, acabando com as esperanças do mesmo de voltar a ser humano. Esta descoberta levou o personagem a loucura e a uma jornada através do mundo, das dimensões e do universo, por mais de 40 edições da revista. 84 Em Miracleman, o jornalista Michael Moran descobre aos quarenta anos de idade que, na verdade, é a contraparte humana de um super-herói britânico esquecido dos anos 50 e 60. Ao dizer a palavra Kimota, Michael transforma-se em Miracleman. A relação do personagem com a esposa começa a se desestabilizar, principalmente por ela acabar tendo um filho de Miracleman. Ao fim, abandonado pela esposa, que não consegue lidar com a situação, e pela filha, uma criança poderosa e super-inteligente que o abandona para conhecer o espaço ainda em seus primeiros meses de vida, Michael sobe até o alto de uma montanha e se transforma em Miracleman uma última vez. O herói encontra um pedaço de papel preso sob uma rocha, nele há o nome de Michael, assim como a sua data de nascimento e a de sua morte. Miracleman compreende o que lhe é pedido e nunca mais volta a ser Michael Moran. 55 ! ! Os versos de Blake exprimem a força de Promethea e a essência de sua conexão entre o mundo material e Imatéria. Isto é explicado por Margaret Taylor, quando, na quinta edição, Sophie empreende uma nova viagem até Imatéria. Desta vez em sua própria forma, Sophie parte em busca de conhecer o reino de Promethea, enquanto é guiada pelas encarnações anteriores da mesma que a orientarão e darão conselhos. A primeira a recebê-la é justamente Margaret Taylor, o recipiente humano de Promethea durante a Iª Guerra Mundial. ! Margaret explica a Sophie as diferenças entre o mundo físico e Imatéria. “Humanos são anfíbios (...). Isso significa que vivem em dois mundos ao mesmo tempo: matéria e mente” (MOORE, 2007, nº 8, p. 39), resume Margaret ressaltando a diferença entre o mundo sólido e a realidade e a importância de Promethea para que as limitações entre os dois mundos por fim desvaneçam. ! Moore explica Imatéria da seguinte forma: A ciência não pode falar sobre a consciência porque a ciência é algo que trabalha inteiramente com a evidência empírica, com coisas que podem ser repetidas em laboratório. Os pensamentos não entram nessa categoria. Deste modo, a ciência tende a desacreditar a existência da consciência. (...) Rupert Sheldrake, que é uma espécie de cientista herege, propôs a teoria de um campo morfogenético, para provar e entender alguns dos mais atemorizantes efeitos da consciência. Eu estou provavelmente simplificando horrivelmente aqui, mas penso que o conceito básico era que, uma vez que uma forma se manifestou, tanto uma forma física quanto uma forma-idéia, então se faz mais provável e possível a ela que essa forma se manifeste de novo. Sheldrake diz que isto acontece porque há uma espécie de campo morfogenético que conecta tudo. Uma vez que uma idéia existiu é porque de alguma maneira existia neste campo morfogenético. (MOORE, 2003) ! Margaret resume isto a Sophie, dizendo que o mundo sólido não passaria de uma cristalização de Imatéria85 , que é para onde qualquer pessoa vai enquanto segue uma linha de pensamento. Na verdade, ela trilha um dos muitos caminhos de 85 Há também, nesta concepção de realidade engendrada por Moore, bastante do mundo das idéias de Platão. Os valores morais e as realizações imediatas seriam apenas meras cópias dos modelos primários localizados no plano das essências divinas? Platão respondia a isso com duas noções fundamentais: a de participação e a de imitação. Tomemos como exemplo, a arte, que para Platão, deveria se distanciar da reprodução da realidade, pois só poderia imitar uma imitação da realidade. 56 Imatéria – o caminho das idéias mais raras e exóticas pertencem aos artistas, cientistas e filósofos, que são os pioneiros destes territórios. Óbvio que todos têm seu espaço mental particular (como aquele em que Sophie encontrou sua marginalizada versão da Chapeuzinho Vermelho), mas o “território externo pertence a todos” (MOORE, 2007, nº 8, p. 39). ! Margaret diz que não existem limites em Imatéria, que engloba toda a existência e realidade, dentro das pessoas e no universo além delas, “os mundos dentro e fora de nós têm a mesma estrutura, o mesmo padrão” (MOORE, idem, p. 46). Margaet explica a Sophie que a existência é dividida em: - Matéria, onde a luz da mente se transformou em substância concreta. - A Esfera Lunar, onde a imaginação e o romance se localizam. O reino do sonho e ficção, fantasias sexuais e da mente inconsciente. - O Domínio Mercurial do intelecto e da ciência, da magia e da linguagem, fonte do dom mais precioso da humanidade: a comunicação. - O Cenário Venusiano da emoção, além da idéia intelectual de molde ou forma. - Os Dourados Recantos Solares da Alma Humana guardam os dourados recantos solares da alma humana. Este é o polido grão da existência de cada individuo, o plano humano mais alto dentro de Imatéria. - Além, ficam os Reinos Transumanos das forças absolutas universais, onde oscila o equilíbrio do cosmos. - Então, encontram-se os acolhedores Céus Jupterianos da piedade universal, onde deuses dos raios e tempestades brincam. - Por fim, há o abismo na distante fronteira da existência. 57 (MORRISON, 2008, p. 211) Promethea irá acabar o mundo por isso. Ela é a representação de um mundo de idéias que qualquer um poderia explorar. Promethea veio ao mundo sólido dos Homens para lembrá-los de que há um vasto reino imaterial sem cercas, fronteiras, alugueis, sistemas políticos, econômicos (estas são apenas idéias do mundo). Promethea seria o caminho, tornando as pessoas mais conscientes deste outro elemento, prontos para imaginar para eles mesmos “uma forma de superar a perigosa situação material que criou” (MOORE, idem, p. 44). Consciente de sua missão, Sophie continua em sua jornada, tentando compreender um pouco mais sobre Imatéria, ela viaja até Hy-Brazil86 e encontra Grace Brannagh, outra encarnação de Promethea, uma divertida guerreira aos moldes de Conan, lutando para reconquistar seu reino que foi dominado pelo vilão Marto Neptura. Grace conta que seu reino de Hy-Brazil foi conspurcado por Neptura, que viola a razão, um ser medíocre e sem criatividade, cujas sentenças, todas, precisam ser conferidas por um editor. A edição é marcada por lutas e um clímax que foge do habitual, onde o vilão é desmembrado em vários pequenos homens, cada um deles 86 Ilha imaginária, sem localização exata, considerada como morada de fadas e divindades, na mitologia celta. Entre os cristãos, era o Paraíso na Terra. 58 se referindo a um dos escritores que estiveram incumbidos de escrever Promethea enquanto Grace Brannagh foi a heroína. O primeiro arco de histórias se encerra com Sophie continuando em sua jornada por Imatéria, enquanto Grace reconstrói Hy-Brazil a partir de suas próprias idéias, pelo ponto de vista de “uma artista”, como diz. O segundo arco de histórias começa com Sophie encontrando William Woolcott, ou Bill, um homossexual que tendo escrito e desenhado Promethea entre os anos de 39 e 69, também acabou servindo de canal para Promethea se manifestar no mundo físico. Bill explica a Sophie que ela/ele lhe ensinará o caminho das moedas, ou pentáculos, ou discos, que representa a existência física. Sophie aprende que a matéria e mente não são separadas, apenas diferentes pontos de vista – não havendo certezas, pois enquanto uns vêem o mundo material como o plano mais baixo e mais distante da existência, outros a enxergam como o resultado final da mesma. Levada de volta ao mundo real, Sophie descobre estar internada num hospital, onde na oitava edição, um grupo de demônios ataca, na intenção de derrotá-la. Sophie, então, decide recrutar as encarnações de Promethea que haviam lhe ajudado em sua jornada por Imatéria, manifestando Grace, Bill e Margaret nos corpos de sua amiga Stacia, sua mãe e de uma médica, respectivamente. Juntas, as quatro mulheres, mais Bárbara que se encontra internada no mesmo hospital, derrotam os demônios. Infelizmente, isto custa a vida de Bárbara. Procurando vingança, Sophie encarna Promethea mais uma vez e vai atrás dos responsáveis pela invasão de demônios no hospital. Vasculhando por Imatéria, Promethea encontra os membros do grupo conhecido como O Templo, na verdade, três velhos herdeiros dos responsáveis pela morte do pai da Promethea original, criados para o mundo do apocalipse que será trazido pela influência da heroína. Ao se confrontar com os netos dos membros do Templo, Promethea desiste de sua vingança e presenteia as crianças com uma visão de Imatéria, onde personagens de contos de fadas vivem harmonicamente entre si. Enquanto Promethea desaparece o Flautista Mágico surge e dá um aviso: “A propósito, eu não voltaria a mexer com aquela mulher. Ela tem amigos. (...) Fiquem longe, ou eu vou 59 voltar. E ninguém quer isso” (MOORE, 2008, nº 12, pp. 72 e 73), diz o personagem principal da Flauta Mágica, conhecido por levar crianças embora. A décima edição de Promethea trata exclusivamente de magia e traz uma cena de sexo que se estende por toda a história, rompendo os limites do espaçotempo. Numa sessão de tântrismo guiada por Jack Faust, é explicado a a Promethea o simbolismo do sexo como porta natural mais acessível para transcendência. Faust compara a receptividade do corpo feminino ao Santo Graal, por ser capaz de dar e receber. A essência da feminilidade é a compaixão, a transformação ocorrida após experimentarem da taça sagrada do simbolismo referente ao sexo. Durante o ato sexual, os dois rompem com os limites da própria personalidade, tornando-se mais do que apenas um indivíduo, mas o todo de que é composto o universo, tornando-se o amor e entrando na eternidade. Faust fala a Promethea sobre Kundalini, o poder espiritual primordial localizado na base da coluna, próximo aos órgãos genitais. Derivada de uma palavra sânscrita significa “aquela que está enrolada como uma cobra”, a Kundalini deve ser despertada para a conscientização de nossas capacidades criativas. Enquanto sobe pelo corpo da pessoa, durante o ato sexual, a serpente toca os diferentes chakras, até que a consciência finalmente desperte para uma grande claridade. Faust diz que, independente do sexo, todos os magos são machos, pois trabalham com o cajado, procurando a fenda mágica que, por fim, lhes trará a iluminação, transformando-lhes, tornando-os femininos e, por fim, entidades hermafroditas, distantes do tempo e do espaço, localizados no todo, que é aqui. Campbell interpreta a relação macho-fêmea entre os heróis, com o macho sempre tendo mais destaque, devido as condições de vida do mesmo, que é obrigado a se aventurar pelo mundo, enquanto a mulher está em casa. Mas tudo varia de acordo com o ponto de vista e dar à luz, por exemplo “é incontestavelmente uma proeza heróica, pois é abrir mão da própria vida em benefício da vida alheia” (CAMPBELL, 2008, p. 132). Quanto as características funcionais de Imatéria, no documentário A Paisagem Mental de Alan Moore, o autor diz que é da opinião de que o mundo das idéias é formado por continentes inteiros representando grandes sistemas de crenças e filosofias, onde os homens acomodaram-se e pouco ou quase nada se 60 incomodam em velejar para outras paragens. No entanto, se você for um artista, um inventor, filósofo, ou alguém que simplesmente trabalhe com idéias novas, como um mago, poderá submergir até os oceanos que separam esses continentes. “Agora, se estamos por nos aventurar neste território hipotético e mais ou menos desconhecido, parece sensato testar e traçar mapas com as rotas feitos pelos exploradores anteriores” (MOORE, 2003), diz Alan, justificando a utilização que ele faz em seus trabalhos de sistemas mágicos filosofias como as usadas por Aleister Crowley 87, Austin Osman Spare88, John Dee 89 e outros mais. “Quando se fala em território da mente, e talvez do espírito, os únicos mapas disponíveis são os sistemas mágicos da antiguidade” (MOORE, idem), completa. Assim, após receber esta primeira aula de magia, Sophie embarca numa nova jornada de compreensão, sentindo-se distante do mundo comum. Em sua forma de Promethea, ela passa a ser capaz de se comunicar com máquinas e fica claro que a forma como ela é vista varia enormemente entre uma pessoa e outra, fazendo com que ela consulte as serpentes de seu caduceu que a levam até uma jornada pelo mundo da magia, o “circo mágico da mente”, onde a história do cosmos se revelará. 3.4 Os caminhos da metáfora ! Nas doze primeiras edições de Promethea, um fato comum é a figura da metáfora, do mito como figura harmonizadora entre a vida quotidiana e a realidade. O toque ascendente entre a fixação no corpo, enquanto se caminha “na direção da fonte dinâmica do corpo” (CAMPBELL, 2008, p. 59). ! Campbell nos diz que textos como os da Bíblia devem ser lidos em termos de poesia e não de prosa: “Aquilo que está além do próprio conceito de realidade, que 87 Edward Alexander Crowley (1875-1947), foi um importante enxadrista, alpinista e ocultista do séc. XX. Foi um polêmico ocultista britânico, conhecido por suas posturas controversas, pelo tarô que leva seu nome e pela criação da doutrina de Thelema. Sua influência na cultura pop é grande e até hoje é reconhecido e influencia artistas e grupos musicais diversos, como o próprio Moore, Grant Morrison, Ozzy Osbourne, Led Zeppelin, The Beatles, Raul Seixas, entre outros 88 Austin Osman Spare (1886-1956) é considerado um gênio das artes, tanto mágicas quanto da pintura. Dotado de um gênio indomável, Spare esteve junto a algumas das grandes mentes mágicas do séc. XX, mas abandonou todos os grupos nos quais esteve envolvido, para criar sua própria corrente mística, que incluiu a criação dos sigilos mágicos e a subseqüente criação da Magia do Caos. 89 John Dee (13 de julho de 1527 - 1608 ou 1609) foi um matemático , astrônomo, astrólogo,geógrafo e conselheiro particular da rainha Elizabeth I. Devotou também grande parte de sua vida à alquimia, adivinhação, e à filosofia hermética. Em seus últimos anos, gastou um considerável tempo tentando traduzir aquilo que chamava de “língua dos anjos”. 61 transcende todo pensamento. O mito coloca você lá, o tempo todo, fornece um canal de comunicação com o mistério que você é” (CAMPBELL, idem). Da mesma forma, Promethea se prefigura, desde o caráter divino da personagem que acaba elevando a leitura da hq além dos limites da ficção, por almejar, a todo tempo, que enxerguemos além dos mitos. ! A própria figura de Promethea, por tentar estabelecer os limites entre matéria e mente (e quebrá-los), acaba remetendo-nos ao genitor de seu nome, Prometeu, responsável por roubar o fogo dos deuses e, consequentemente, a civilização. O grande personagem histórico, no entanto, penou profundamente por seu desacato aos deuses e foi condenado pela eternidade, acorrentado à uma pedra, tendo um passado que o devora sem parar. ! A sorte de Promethea, parece, será diferente. Dentro da mitologia estabelecida por Alan Moore, sua heroína trará menos dor e danação àqueles que entrarem em contato com suas dádivas: ela enviará a liberdade final. Como a própria heroína define, “‘O mundo’ não é o planeta, ou a vida e as pessoas nele. O mundo é nosso sistema, nossa política, nossa economia... Nossas idéias de mundo” (MOORE, 2007, nº 8, p. 40). Acabar com o mundo, segundo Moore, não é algo ruim, como pensam as pessoas. Uma concepção mais elaborada das idéias do autor se faz necessária para que compreendamos sua opinião: A maioria das pessoas encontra na palavra Apocalipse um conceito aterrador. Conferindo o dicionário, o seu sentido é apenas “revelação”, o que, obviamente, acaba significando, também, o fim do mundo. Até onde o significado do mundo vai, eu diria que isso provavelmente depende da nossa idéia de “mundo”. Não acho que isso signifique o planeta, ou quaisquer forma de vida sobre o planeta. Penso que o mundo é apenas uma construção de idéias, e não apenas as físicas, e sim as estruturas mentais, as ideologias que temos erigido, isso é o que eu chamo de “o mundo”. Nossas estruturas políticas, nossas estruturas filosóficas, os modelos ideológicos, as economias. Estes são, na realidade, coisas imaginárias, e ainda assim constituem-se no modelo sobre o qual construímos o mundo inteiro. Me ocorre que uma onda de informação suficientemente forte poderia levar abaixo e destruir tudo isso. Uma repentina revelação poderia mudar toda a nossa perspectiva sobre quem nós somos e como nós existimos. (MOORE, 2003) 62 A antropóloga Marika Moisseeff, embora siga numa outra linha, acrescenta que é da natureza do universo uma operação cíclica, onde a evolução de uma espécie ou de um planeta caminhe em direção ao equilíbrio, para depois se colapsar, regredindo à extinção. “O preço da emergência de novos fenômenos é o desaparecimento dos que os precederam: somos apenas poeira de estrelas (...) destinados a cair no esquecimento e no silêncio (...) de onde ressurgiremos sob uma forma totalmente diferente” (MOISSEEFF, 2005). A jornada para o esquecimento, no entanto, passa por outra jornada, ainda mais importante internamente, a jornada do descobrimento. E Alan Moore utiliza o tarô como metáfora para esta jornada. Moore diz que o tarô 90 é um sistema no qual encontramos “um panteão de imagens arquetípicas, que provêm a cartografia para um mapa da condição humana” (MOORE, 2003). Durante sua jornada por Imatéria, é explicado a Sophie que ela precisa dominar quatro armas mágicas, chamadas de Bastões, Cálices, Espadas e Moedas, representando os naipes dos Arcanos Menores do Tarô. É explicado a Sophie/ Promethea que é dado a todo os homens o direito de dominar cada uma destas armas, cujas representações são: Bastões (paus) Cálices (copas) Lâminas (espadas) Moedas (ouros) Espírito Compaixão Intelecto Existência física Fogo Água Ar Terra Na décima-segunda edição de Promethea, é empreendida uma viagem através da história do mundo. Oferecendo correspondências entre os vinte e dois arcanos maiores e alguns estágios da história da humanidade. Aqui, Moore, mais do 90 Não há uma origem correta e plenamente determinada do tarô. Enquanto alguns estudiosos como o chileno Alejandro Jodorowsky, determinam sua origem em Marselha, durante a idade-média. A origem do moderno baralho de cartas estaria ligado a esta história, também, por oferecer facilidades de manuseio, sem oferecer suspeitas. Crowley, por sua vez, pertencia a uma corrente de pensamento que creditava a origem do tarô ao Antigo Egito, como uma forma de manifestação do deus Thot. Pela ligação de Promethea com Thot, acreditamos que as inclinações de Moore estejam mais voltadas para esta segunda versão. 63 que nunca, firma-se como representante da contracultura91 ao alegar que parte da evolução da Humanidade esteve ligada ao consumo de substâncias psicotrópicas, principalmente chás de cogumelo e peiote, fazendo uma conexão com o trabalho de Terrence McKenna92 . Por fim, esta heroína que é a poesia encarnada, a inspiração, que se compara à Cristo, em determinado momento: “Cristo é mais próximo de mim do que jamais poderiam entender! Somos sagrados. Somos histórias e fomos criados apenas para trazer a luz!” (MOORE, 2008, nº12, pp. 70 e 71); uma luz que irá finalizar o mundo, se aventurando na dança existente entre a matéria e a imaginação, aquilo que alguns chamam de Universo. 3.5 Histórias de Trilhas e Fadas (a estrutura narrativa de Promethea) (GAIMAN, 1992, pp. 5 e 6) 91 Bráulio Tavares caracteriza a contracultura como “um movimento descentralizado e contraditório, que não se criou a partir de uma origem comum, mas por uma justaposição de temas recorrentes que vieram a se entrelaçar nas atividades de indivíduos e grupos” (TAVARES, 2007, p. 14), tais como: o interesse pelo misticismo oriental, pelas religiões das culturas tomadas como primitivas (xamanismo), pelo ocultismo medieval e renascentista (alquimia, cabala, magia ritual) e das artes divinatórias, como tarô, astrologia e outros; a adoção de políticas radicais, como o anarquismo e a guerrilha; interesse por paradigmas científicos anticonvencionais e a recusa da ética da industrialização e da tecnocracia; a busca de formas alternativas de vida comunitária e comportamento sexual; o culto dos aspectos dionisíacos da arte; o interesse pelo inconsciente e a busca por uma psicologia transpessoal; etc 92 Embora os estudos sobre a psilocibina tenha sido proibida em 1966, e a mesma só tenha sido descoberta em 1953, as pesquisas de McKenna misturavam espiritualidade e viagens extra-corpóreas, alegando a existência de uma paisagem mental universal, acessível a qualquer ser humano, tal como a Imatéria de Promethea. McKenna acreditava que a droga, como o LSD, pode ser capaz de proporcionar uma viagem de auto-descobrimento capaz de romper com todos os limites impostos pelas represas sociais construídas ao longo dos séculos. Quanto às chamadas “bad trip’s”, as viagens funestas, comumente associadas ao LSD, McKenna dá a mesma explicação de Joseph Campbell, alegando que esse tipo de coisa só ocorre quando você absorve mais informação do que estava preparado. 64 ! Definido o universo narrativo de Promethea e como a personagem lida com ele, é hora de se analisar a estrutura sobre a qual a história é construída. ! Como dito anteriormente, as histórias em quadrinhos, principalmente as de super-heróis, se mantém com características bem diferentes das normas narrativas comuns. Em Promethea, por exemplo, com exceção da primeira edição que conta com quarenta páginas, todas as edições contam com vinte e quatro páginas93. Assim, cada edição acaba tendo a oportunidade de iniciar e encerrar uma aventura, dispersando diversos ganchos para as próximas edições, enquanto alguns eventos mais obscuros ocorridos nas aventuras anteriores são finalmente esclarecidos. ! Esclarecimento, alias, é um tema corrente em Promethea. A história carrega um quê de romance de formação, com a personagem continuamente descobrindo um pouco mais acerca de si mesma. A arte de J. H. Williams III costuma irromper por toda a página, oferecendo aos personagens a oportunidade viajar entre os painéis que vistos a distância, tornam-se um único painel, separados por pequenas sarjetas 94. Enquanto as três primeiras edições não fogem à regra das aventuras super-heroísticas comuns, com Sophie/Promethea enfrentando demônios e manifestações de terrores infantis (no caso, o Lobo-Mau em sua parceria com a Chapeuzinho Vermelho), as edições seguintes estabelecem alguns temas bem inovadores ao universo narrativo dos quadrinhos de super-heróis. ! A quarta edição de Promethea, por exemplo, traz dentro da hq, uma outra história, desenhada pelo ilustrador convidado, Charles Vess, contando a história da primeira vez que Promethea veio a se manifestar através das inspirações literárias de alguém, no caso, o poeta Charlton Sennet. Aqui, são gastas oito das vinte e quatro páginas da revista, descrevendo-se os encontros amorosos entre Sennet e Promethea e como isso custou ao poeta sua sanidade. ! A quinta edição e a sétima edições transcorrem praticamente sem ações, com os personagens dialogando em meio a cenários psicodélicos, movimentando-se em surpreendentes enquadramentos e inusitados elementos narrativos, inéditos em 93 Como é normativo nos quadrinhos norte-americanos. 94 O espaço entre os painéis. 65 quadrinhos de super-heróis, como o uso de fotos, compondo seqüências inteiras com realísticas fotos do artista Jose Villarrubia. ! A décima edição é carregada por páginas psicodélicas, cujas ilustrações oferecem novos modos de leitura, transcorrendo entre tempo e espaço, ! A décima primeira edição é inteiramente lida na horizontal, obrigando o leitor a deitar a revista, obtendo um efeito semelhante ao widscreen das telas de cinema. Alias, a própria trama desta edição remete aos filmes de ficção cientifica dos anos 50, com uma criatura sintética inteligente tentando invadir e destruir a cidade de Nova York e sendo impendido por Promethea. ! No fechamento deste primeiro arco, a décima segunda edição apresenta uma história de Promethea na qual a heroína se contenta em ser uma mera observadora dos eventos que se seguem. E esses eventos são tão simplesmente a história do universo, de um ponto a outro, do início ao fim e ao começo novamente, sendo assim por usar novamente o tarô como ferramenta de narrativa95 . Há ainda uma grata surpresa nesta edição, quando por toda ela, vê-se as páginas divididas em duas partes, com a história principal, onde Promethea observa o mundo evoluir e outra, onde em pequenas tiras, o mago Aleister Crowley surge para contar uma piada que pode ser lida à parte da trama principal ou como parte dela, já que há momentos em que se ouvem ecos de um trecho no outro. Resumindo, Promethea, embora não escape totalmente do gênero dos superheróis, o faz com uma elegância narrativa que raras vezes se vê entre esses personagens de roupa colorida, capa e cuecas por cima das calças. Mas é a imprecisão narrativa de Promethea, sua vontade afirmação da inexistência do tempo e do espaço, e da existência de outros mundos onde as coisas são mais valorizadas que realmente se destaca na experiência da leitura, fugindo aos parâmetros básicos e comuns da narrativa quadrinhistica, onde basta ler os quadrinhos da esquerda para a direita e de cima para baixo. Promethea empurra o leitor para todas as direções da página e isso não seria feito sem a bela arte de J. H. Williams III. 3.6 A dádiva da Deusa 95 No tarô, os Arcanos Maiores são formados por vinte e duas cartas, sendo que a primeira carta, O Tolo, tem dois números, o 0 e XXII. Isto confere ao Tarô uma forma cíclica, de construção e reconstrução, inicio, fim e novamente início gerado pelo acumulo de experiências. 66 Quando você depara com uma perspectiva filosófica, como nas religiões consagradas à Deusa, na Índia – onde a simbologia da Deusa é dominante ainda hoje -, o feminino representa a maya. O feminino representa o que, em termos kantianos, chamamos de formas da sensibilidade. Ela é espaço e tempo, e o mistério para além dela é o mistério para além de todos os pares de opostos. Assim, não é masculina nem feminina. Nem é, nem deixa de ser. Mas tudo está dentro dela, de modo que os deuses são seus filhos. Tudo quanto você vê, tudo aquilo em que possa pensar, é produto da Deusa. (CAMPBELL, 2008, p. 177) ! Promethea é tudo, a encarnação de toda a magia, simbolismo, imaginação, a materialização de todas as emoções e a fragmentação da realidade, também. Tudo está em Promethea. Confundida com um anjo, com os amores de nossa vida, as belezas que nos impressionam, a arte que nos conquista e a mente que nos guia. Promethea é a criação primeva que tudo traz e tudo leva. Ela é nossa mãe, nossas irmãs, todo o tempo e espaço se invalidam diante dela. Ao ser tocado por suas mãos morenas, aquele que serve-se da ganância e da injustiça mudará sua vida. ! Promethea é o mais alto elemento da natureza, é sagrada, é luz. ! As profecias de Grant Morrison nas páginas da Liga da Justiça, quando diz que o ser humano não passa de uma ponte – Travessia, como diria Guimarães Rosa –, encontram eco no texto de Moore. Promethea é a heroína que trará a iluminação para todos. O feminino responsável pelo mistério da geração da vida, explodindo cosmicamente, sacro. O tantrismo diz que “a mulher é o criador do universo. Não há felicidade como a que dá a mulher” (FELLINI, 1992, p. 98). Esta felicidade é, para Joseph Campbell, a felicidade do parto, da vida, do reconhecimento, enfim, da divindade em cada um de nós, pois é disto que se trata os mitos: Todos esses símbolos na mitologia se referem a você. Você pode se apegar ao lá fora e achar que está tudo lá fora. Assim, você estará pensando em Jesus levando em conta todo o sofrimento, tudo o que ele sofreu – lá fora. Mas esse sofrimento devia estar acontecendo dentro de você. Você renasceu espiritualmente? Você morreu para a sua natureza animal e retornou à vida como encarnação humana da compaixão? (CAMPBELL, 2008, p. 184) 67 Campbell chama a Deusa de “o campo que produz formas” (CAMPBELL, 2008, p. 179), e vai além, nos diz que é preciso procurar a fonte que dá energia a sua vida, a relação entre o corpo, como forma física e a energia que o anima. Para Campbell, entrar em contato com esta energia é uma questão de seguir as sugestões do próprio mito, descobrindo os próprios motivos de acordo com os símbolos que lhe façam sentido. Promethea é esta dádiva, sua jornada é infinita, imaculada, sensível, tão imaginária quanto as formas que nos rodeiam, seu compromisso com o real desvanece junto a seus atos, fazendo com que ela e os acontecimentos tornem-se uma coisa só. Adentrar os caminhos de Imatéria é o mesmo que romper com os grilhões que nos prendem à caverna de Platão “no qual os homens vivem brigando uns com os outros por causa de sombras e discutindo com ardor pelo poder, como se ele fosse um grande prêmio” (PLATÃO apud GIANNETTI, 2007, p. 29) 68 Conclusão ! Civilizações inteiras se estruturam através de mitos que buscam oferecer um sentido pleno e satisfeito para vida, com modelos e padrões que evidenciem a experiência de estar vivo. Espiritualmente, os mitos servem ao propósito de relacionar as experiências da vida corriqueira e quotidiana com a realidade íntima de cada individuo. O mito serve a esse desejo, através de histórias, tentando harmonizar a vida interior com a exterior, revelando as potencialidades espirituais do ser humano 96. ! Esta jornada de harmonização é, normalmente, representada por heróis que tracejam coordenadas de auto-revelação, em grande parte, transmitidas através de histórias. O mundo viu surgir um bocado destes heróis, tantos que eles se tornaram temas dos mais diversos filmes e romances. Após um tempo, não sem alguma dificuldade, surgiram histórias que alteravam esteticamente estes mitos, fornecendo personagens comuns, envoltos em situações que os transformariam até seus máximos limites. E além. ! E também surgiram aqueles que identificaram alguns elementos chaves nessas histórias todas. Joseph Campbell influenciou, através do trabalho de Christopher Vogler, toda uma geração cinematográfica, interessada em fórmulas certas para conduzirem suas histórias sobre indivíduos medíocres que se descobrem grandiosos quando em meio a situações desesperadoras ou adversas. ! Da mesma forma, a literatura também segue tradições formalistas que vêem representadas por gêneros e mercados editoriais diversos, espalhados pelo globo. O mercado editorial também se refere a outra mídia muito popular, embora poucos pareçam realmente prestar atenção ao que ela tem a dizer: os quadrinhos. ! Dentre os vários gêneros de publicações em quadrinhos, uma das mais reconhecidas é dos super-heróis. Neste trabalho observou-se a formação do gênero, desde seu início, com a publicação da primeira aparição do Super-Homem na revista Action Comics nº 1, em 1938, até o ano de 1999, data de publicação do primeiro número da revista Promethea. 96 Os mitos também podem servir a propósitos mais simples, como representar uma regra em que a sociedade precise acreditar, mas este trabalho versa sobre o mito como força institucionalizante da harmonização humana. 69 ! Destaca-se a divisão das fases editoriais em eras, começando pela Era de Ouro que vai desde 1938 até o fim da Segunda Guerra Mundial. Nesta época, viu-se surgir uma enormidade de super-heróis, todos no rastro do sucesso editorial do Super-Homem. Segundo Umberto Eco, este primeiro período dos quadrinhos de super-heróis é marcado pela incapacidade dos personagens de acumularem experiências. Suas aventuras residiam sempre na mesmice, com os personagens enfrentando vilões e salvando as mocinhas, para que o próximo número trouxesse exatamente a mesma estrutura de narrativa. ! Após a Segunda Guerra Mundial, os quadrinhos de super-heróis enfrentaram uma queda vertiginosa de vendas, sendo substituídos por quadrinhos policiais e de ficção cientifica, que logo também se viram ameaçados por uma série de movimentos tradicionalistas que viam os quadrinhos como uma fonte para os problemas relacionados a violência infanto-juvenil que surgiam todos os dias pelo país. O tumulto gerado por tal argumento acabou provocando um colapso na indústria de quadrinhos que foi obrigada a se voltar para uma linha mais simples de histórias, com vilões espalhafatosos e tramas rocambolescas. Este período deu origem a Era de Prata, colocando todo um novo rol de personagens nas prateleiras. ! Com os quadrinhos voltando a vender como água e com a crescente produção de material, não era de se espantar que surgissem muitas histórias de qualidade duvidosa, mas também muitas que acabaram se tornando clássicas, principalmente pelo tratamento dado aos super-heróis. Pela primeira vez, os superheróis eram tratados como indivíduos, homens e mulheres que faziam muito mais do que lutar todos os dias em suas escandalosas roupas coloridas. Personagens como o Homem-Aranha e os X-Men tratavam de problemas comuns aos leitores, como preconceito, comportamento, responsabilidades da vida adulta e muito mais. ! Esta nova geração de heróis ganhou destaque nos anos 70, quando as histórias discutiam abertamente temas da contracultura, e, inclusive, eram vistos personagens consumindo drogas, sofrendo e amargando vícios. Com os anos 80, por mais irônico que pareça, foi uma Crise que salvou o mercado. A Crise nas Infinitas Terras, publicada pela editora DC Comics, pretendia colocar ordem na casa, uniformizando todos os seus personagens num único universo, onde eles pudessem existir pacificamente, sendo coordenados em passado, presente e futuro. O 70 propósito, além de eliminar personagens que poderiam ser considerados obsoletos, também era abrir caminho para uma nova geração de leitores. ! Independente de ter dado certo ou não, a Crise foi responsável por trazer algo que a maior dos autores e leitores já considerava, mas só agora era oficializada: os super-heróis acumulavam experiências. E isso significava, também, que eles podiam envelhecer. ! Este processo de envelhecimento dos heróis foi visto como uma oportunidade para retratá-los de outra forma. Suas ações eram agora sentidas e observadas por todo um mundo que antes apenas servia de cenário para suas aventuras. Assim, agora este mesmo mundo, recheado de pessoas comuns, era condenado a observar os feitos desses super-seres e a aprender a lidar com isso. E, como em qualquer cultura, era natural que esses indivíduos capazes de feitos absurdos fossem alçados à condição de deuses. ! Este ponto de vista passou a ser muito usado entre os quadrinhos, gerando um período criativo grandioso, onde as metáforas referentes aos mitos finalmente vinham à tona no mundo de quatro cores dos quadrinhos. Isto gerou uma onda de reflexões a respeito da necessidade do super-herói no mundo, dando a entender que ele poderia ser um aperitivo do que os próximos passos evolutivos da humanidade apresentariam. ! É neste período que surge Promethea, uma deusa conectada a várias facetas da realidade, interagindo com o mundo material e uma concebida dimensão extracorpórea habitada por idéias vivas. A heroína é apresentada como uma divindade cuja permanência no nosso mundo se deve a sua convocação por meio da arte, seja ela poesia, ensaios, pinturas ou histórias em quadrinhos. É a idéia de que todas mitologias, todos os símbolos, tem suas bases nos mesmo temas universais humanos, recebendo apenas diferentes enfoques, sendo que Promethea é a reunião de todos esses aspectos. ! Apontada como a responsável pelo “fim do mundo”, Promethea tem o toque materno, capaz de gerar uma nova consciência, onde as limitações do mundo físico sejam esquecidas. É esta capacidade de romper com os circuitos de poder que garante a Promethea suas características míticas: servindo como exemplo e metáfora para as capacidades humanas, ela mostra que mais do que tornar-se um super-herói, como Morrison metaforiza em sua fase da Liga da Justiça, o homem 71 moderno precisa libertar-se dos encalacres do materialismo, iniciando, então, uma nova jornada, toda sua. 72 BIBLIOGRAFIA ADORNO, Theodor. 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São Paulo, Editora Abril, 1989 TAKEI, Hiroyuki: Shaman King nº 12, JBC Mangas, São Paulo, 1998 TAVARES, Bráulio: A contracultura de um homem só – Festival Jodorowsky CCBB, livro da mostra, Rio de Janeiro, 2007 TEIXEIRA, Rafael: A indústria dos quadrinhos – Rio de Janeiro: Prefeitura Municipal da Cidade do Rio de Janeiro: Secretaria Especial de Comunicação Social, 2003 VOGLER, Christopher: A Jornada do Escritor – Rio de Janeiro: Ampersand Ed, 1997 WAID, Mark: LJA Escada para o céu. São Paulo, Panini Comics, 2002 WAID, Mark: O Reino do Amanhã – parte 2. São Paulo, Abril Jovem, 1997 WEBB, Steve: Crise nas Infinitas Terras nº 2. São Paulo, Abril Jovem, 1996 75 WOLF, Mauro. Teorias das comunicações de massa. São Paulo. Martins Fontes. 2005 WOLFMAN, Marv: Crise nas Infinitas Terras nº 3. São Paulo, Editora Abril. 1989 76 APÊNDICE 77 Breve perfil mitológico do Universo DC (...) O Universo DC rapidamente se expandia para incorporar a primordial e mais limitada continuidade dos anos 40, as estrelas da “Era de Ouro”, os personagens coloridos da Quality Comics e, eventualmente, até mesmo o próprio mundo do arqui-rival Capitão Marvel (...). (GIBBONS, 2006, pp. 6 e 7) Como já foi dito neste trabalho, nos setenta anos que se seguiram à publicação do Super-Homem, o Universo DC observou o surgimento e o desaparecimento de vários super-heróis. No entanto, com um público tão ávido por continuidade, e a sorte de contar com artistas que também faziam parte deste público, os eventos contrastantes finalmente tiveram de ceder a uma ordem natural, encaixando-se, co-existindo, tornando-se parte de um único continuum. Crise nas Infinitas Terras foi o primeiro passo deste processo. A ele se seguiram outras sagas, em sua maioria cósmicas, grandiosas, provando que os deuses e os mitos do Universo DC, respondendo à acusação feita por Alan Moore de que para o leitor médio, apenas associadas à ciência, os mitos podem ser trazidos à baila sem provocar algum incômodo. Felizmente, há aqueles que concordam com Moore e conseguiram trazer ao Universo DC alguma conexão com a realidade tida como racional, ignorando deuses cósmicos e se propondo a estabelecer contato com os mitos que fornecem alguma sustentabilidade ao nosso mundo físico. “Esse é o tema básico de toda mitologia: o de que existe um plano invisível sustentando o visível” (CAMPBELL, 2008, p. 76). A seguir, encontraremos um pequeno panorama contendo algumas das entidades mais poderosas que compõem o aspecto mitológico do Universo DC. A ordem em que são apresentadas não é aleatória, ela se baseia no contato que os personagens da editora têm com essas entidades e sua importância na cronologia da mesma, durante os anos que se seguem. Em alguns casos, como no da Tropa dos Lanternas Verdes, oferecemos uma compilação inédita da história da mesma, levando em conta toda sorte de informações geradas ao longo dos anos pelas publicações relacionadas à Tropa. 78 Sempre que possível, procuraremos declarar os criadores de cada uma das entidades, garantindo assim que todas as ilusões básicas sejam capazes de ruir sobre si mesmas. Os Perpétuos ! Criados por Neil Gaiman para a sua série mensal Sandman, os Perpétuos são um retcon. Os sete irmãos chamados de Perpétuos foram introduzidos no Universo DC, a partir de 1989, mas é inegável que sempre estiveram aqui. E sempre estarão. Não há uma origem estabelecida para nenhum deles, que representam algumas das situações mais básicas e inegáveis da existência. No entanto, antes de um mundo ser habitado é a eles que o universo pede suas bênçãos. Eles, que são lendas até no paraíso, os Perpétuos: • Destino: um homem solitário, cego, caminhando por um jardim de muitos caminhos, sem deixar pegadas ou sombras, carregando um livro que está acorrentado à seu corpo e que nunca será roubado. • Morte: a mais simpática dos irmãos. Todos a encontrarão. Estrelas, mundos e deuses a temem. Uma vez a cada cem anos, essa moça gentil e pálida tira um dia para viver, para aprender. Um por um todos irão até ela. Inclusive seus irmãos. • Sonho: Lorde Moldador, Morfeu, Sandman, João Pestana, L’Zoril, Kai’Ckul, o sonho acumula nomes. Seu reino é o da imaginação, o da inspiração, o dos pesadelos e o do amor. Dizem que Shakespeare tinha um pacto com ele. Embora os Perpétuos tenham decidido que não podem amar os mortais, é comum Sonho se perder em seus próprios domínios. Uma vez, ele teve um filho com a musa Calíope. No entanto, o jovem Orfeu herdou as dores do coração do pai e foi condenado a só morrer pelas mãos de alguém da família – o que demorou muito para acontecer. • Destruição: você pode encontrar Destruição nas ruas de alguma cidade, ele estará pintando um quadro ou escrevendo uma poesia. Mas não cumpre mais o seu papel Ele foi o único dos Perpétuos que abandonou o seu posto e passou a viver. No entanto, a destruição continua, pois o universo deve caminhar. 79 • Desespero: dizem que dispersas pelo reino de Desespero, há milhares de janelas, todas mirando o vazio. Sua voz não passa de um sussurro. Seus olhos são cinza, seus cabelos são desalinhados e molhados, seus dedos são curtos e gordos – as unhas roídas e quebradas, seus dentes são tortos e pontiagudos. Existe um vazio em seu olhar, quando se está perto dela há uma sensação de ausência impossível de descrever com palavras. É a mais paciente dos irmãos. • Desejo: irmã-gêmea de Desespero, Desejo queima como um incêndio. Ela é tudo o que você quer. Andrógina, vive em seu reino que é uma cópia de si mesma – uma enorme boneca, onde o lugar mais quente é o coração. • Delírio: a mais jovem dos irmãos. Um dia foi chamada de Deleite. Não há dados sobre a sua mudança – ela apenas se modificou. É o reino mais próximo do dos humanos, mas, infelizmente, pouco o compreendemos. Tropa dos Lanternas Verdes ! Dez bilhões de anos atrás, um planeta de imortais chamado Oa, foi responsável por iniciar o evento que seria conhecido como a Crise. ! Os oanos eram como deuses e viveram em paz por muitos anos. Possuidores de capacidades mentais inacreditáveis eram capazes de mover objetos com a força da mente. Os oanos eram capazes de manipular as intersecções entre a força e a vontade, através da utilização da luz de seu sol, Sto-Oa, “A Luz de Oa”. Dizem as lendas que os oanos só conseguiram manipular a luz devido ao amor que Sto-Oa sentia por uma das mais proeminentes cientistas daquele mundo: Killalla da Luminescência, mas estas são apenas lendas. Oa era, enfim, um paraíso. No entanto, um cientista chamado Krona, obcecado com a idéia de encontrar a origem do universo, foi de encontro com as velhas lendas que diziam que isso só traria destruição. ! Infelizmente, era verdade e a observação de fenômenos cósmicos que poderiam ser vistos como a origem do universo, também revelaram-se como o fim do mesmo. E o início de algo novo: o multiverso. ! As pesquisas de Krona levaram ao estremecimento do cosmo, criando assim, um universo de antimatéria e todo um multiverso positivo. A Terra e todos os mundos que viriam a sucumbir com a Crise, nasceram daí. Apenas Oa não teve um duplo no universo positivo. Seu planeta gêmeo encontra-se no universo de antimatéria, é o 80 mundo conhecido como Qward. ! Tomados pela culpa, os Oanos criaram uma força benéfica para combater o mal gerado por Krona. Nasceram assim, uma raça de robôs chamada de Caçadores Cósmicos. Infelizmente, esses robôs não diferiam as finas linhas que separa o bem e o mal. Assim, foram deixados de lado e uma nova força foi criada: a Tropa dos Lanternas Verdes. ! A energia dos oanos foi reunida numa grande bateria que também serviu como prisão para a maligna criatura chamada Parallax, uma entidade alienígena, destruidora que se alimentava do medo. Devido a cor amarela de Parallax, a força da luz verde foi contaminada – no entanto, sua história jamais foi contada, permanecendo por milênios, como um segredo entre os guardiões de Oa. ! A impureza amarela era a única fraqueza dos Lanternas Verdes, que passaram a ser selecionados entre os mais de 3600 setores espaciais cobertos pela Tropa. Então, para evitar a influência de Parallax, os membros da Tropa deveriam ter uma força de vontade impar, assim como serem homens sem medo. ! No entanto, descontentes com a Tropa, alguns oanos abandonasse esta dimensão, tornando-se aqueles que seriam conhecidos como os Controladores. Enquanto os Guardiões de Oa e da Tropa se propunham a pacificar o universo, os Controladores construíam armas de grande poder destrutivo. ! Ambos continuam, até hoje, a exercer suas funções pelo universo. A Tropa conta com membros de valor, como Tomar-Re, Killowog, Dkrtzy RRR (uma progressão matemática abstrata), Mogo (um planetóide), Hal Jordan, Guy Gardner, Kyle Rayner e muitos outros. ! Uma profecia no entanto diz que a Tropa viverá ainda seus dias mais negros, quando todos os seus inimigos se reuniram e reduzirão seu poder a nada. Os guardiões esmeralda aguardam. ! As histórias dos Lanternas Verdes são publicadas desde a década de 40, assim, colaboraram para o enriquecimento de sua mitologia, muitos autores, entre eles: Gil Kane, Neil Gaiman, Marv Wolfman, Geoff Johns, Alan Moore, Grant Morrison, etc. Novos Deuses ! Um dos maiores criadores dos quadrinhos, Jack Kirby foi o responsável pela 81 criação do Quarto Mundo. ! A história do Quarto Mundo, como tudo o mais no Universo DC, recende a momentos da existência que, obviamente, ignoramos. ! Uma magnífica e altamente complexa civilização governava dezenas de sistemas solares e centenas de planetas. A utópica civilização se viu em perigo, no entanto, quando finalmente entraram em contato com outras formas de vida. Por acreditarem ser superiores, humilharam essa raça alienígena não-humanóide. A resposta foi uma guerra que culminaria com o fim de tudo o que eles conheciam. ! Objetivando acabar com esta guerra, cientistas criaram aquilo que foi chamado de Equação Antivida. A idéia era erradicar a raça alienígena que os confrontava da face do universo. Infelizmente seus planos deram errado e a força da antivida erradicou aquele planeta da existência. ! A força sombra da Antivida era tão intensa que nada poderia lhe conter. Ela consumiu boa parte do universo, até que, inexplicavelmente, voltou-se contra si mesma. A explosão trouxe um novo começo. ! A energia restante resultou em dois mundos, lares de duas raças de novos deuses. O mundo brilhante chamado Nova Gênese e o sombrio Apokolips. A energia que cirou este mundo seguiu em várias direções pelo cosmo, gerando frutos magníficos. Na Terra, um pequeno arquipélago de ilhas selvagens num mar hostil recebeu um nexo de divindade: nasciam os deuses gregos. ! Nova Gênese tornou-se um mundo de paz e esclarecimento, enquanto Apokolips evoluiu de forma marcial. Porém, presos num setor espacial arrancado do restante do universo (nem mesmo a Tropa dos Lanternas verdes poderia alcançálos), os habitantes destes planetas só poderiam entrar em contato com outros mundos através de Tubos de Explosão. ! Tubos de Explosão são vórtices teleportacionais tão intensos que só podem ser manipulados pelas Caixas Maternas, minicomputadores inteligentes. ! Nova Gênese e Apokolips entraram em conflito diversas vezes, até que seus soberanos, o Pai Celestial e Darkseid, firmaram um acordo: seus recém-nascidos filhos seriam trocados e a paz entre os dois mundos seria selado. ! Órion, o filho de Darkseid, foi enviado a Nova Gênese. Sendo um deus da guerra, Órion permaneceu por toda a vida tendo seus impulsos violentos controlados por uma caixa-materna e foi criado, como um igual pelo Pai Celestial. 82 ! Menos sorte obteve o filho do Pai Celestial. Condenado a torturas, Scott Free97, passou anos no inferno de Apokolips, até que, com a ajuda de uma jovem natural de Apokolips, conhecida como Barda, conseguiu fugir para a Terra, onde se tornou um mestre em fugas, adotando a identidade de Sr. Milagre. ! A busca pela equação Antivida, no entanto, não cessou. Darkseid em Apokolips e Metron, em Nova Gênese, continuam em busca desta força que, para alguns, se dominado, alteraria o universo de forma filosófica. Nanda Parbat ! Há uma lenda sobre uma cidade perdida entre as montanhas do Himalaia. Nanda Parbat, como é conhecida, se localiza no topo de uma escadaria de 9.999 degraus. Àquele que alcança o topo da montanha é concedida uma sessão com Rama Kushna. ! Rama Kushna é a voz viva de tudo que é e não é. A perfeita expressão de alegria sobre todos, para sempre. ! Aqueles que buscam Nanda Parbat também podem escolher passar pelo ritual de Thorgal, onde se perdem numa caverna por uma semana ou mais, em busca de algo que ainda não compreendem. O ritual encontra paralelos com o Thogal, ritual budista que busca atingir a iluminação. ! No Japão, existe a lenda do Buraco do Yomi, localizada em Izumo, uma das primeiras terras habitadas do país. Yomi é o nome do país onde os mortos vão morar. Uma vez lá dentro, sua jornada irá durar sete dias e sete noites e poderá lhe custar a sanidade ou a vida. Mas é certo que os cinco sentidos se perderão e tudo o que restará são as percepções adormecidas, deixando o corpo inútil, fazendo com que a morte seja, enfim, experimentada. ! Muitos heróis do Universo DC buscaram por Nanda Parbat: Homem-Elástico, Batman, Mulher-Maravilha, Questão, Richard Dragon, etc. ! Nanda Parbat e Rama Kushna foram criados por Arnold Drake e Carmine Infantino em 1967, para a revista do personagem conhecido no Brasil como Desafiador98 . 97 São e Salvo, em inglês. 98 Deadman, no original, em inglês. 83 Espectro ! “A Mão de Deus”, uma das criaturas mais poderosas da existência, o Espectro não é um ser cujas ações podem ser enquadradas. Agindo neste plano sob o manto mortal de alguém que teve uma morte injusta e lhe serve de hospedeiro, este aspecto de Deus age de forma incompreensível. ! Em algumas ocasiões, o Espectro toma parte em eventos cósmicos, n’outras, ele abandona o Universo à sua própria sorte. Há criminosos que são punidos por ele, mas nunca são específicos. Os caminhos de Deus não são claros, nem mesmo pra ele. A Força da Velocidade ! Ultrapassando o relâmpago e o trovão, além do furacão, mais rápido que a luz, rumo ao desconhecido. Assim sentem-se aqueles que servem à Força da Velocidade. ! A Força da Velocidade é o lugar onde os velocistas, como o Flash, tiram seus poderes. Quando morre, é para lá que eles vão, tornando-se parte do campo de energia que serve de combustível para que aqueles que, literalmente, seguem atrás. ! A primeira vez em se ouviu falar da Força da Velocidade foi na edição 95 da revista Flash, em 1995. Mark Waid contou a história de um índio, Ahwehota, o Péde-vento. Atraído pela Força da Velocidade, ou da Aceleração, como também é chamada, Pé-de-vento hesitou e se perdeu pelo tempo, condenado a vagar para sempre distante do paraíso. ! Há muito mais a ser explorado dentro do Universo DC, como o inferno, onde as hordas de demônios são divididos de acordo com sua capacidade para fazer poesia; a Quintessência, onde os cinco eternos mantêm tudo que existe sob sua eterna vigília – são eles: Vingador Fantasma (um anjo caído, condenado a caminhar pelas estrelas), Shazam (portador dos dons de Salomão, Hércules, Atlas, Zeus, Aquiles e Mercúrio), um representante dos Guardiões do Universo, da Tropa dos Lanternas Verdes, o próprio Zeus e o Pai Celestial de Nova Gênese; a Quinta Dimensão, onde duendes e gênios vivem e o paraíso são as vogais (AEIOU – AIIIIII). ! Para a realização deste apêndice, foram usadas revistas em quadrinhos publicadas pelas editoras Globo, Abril, Panini e Mythos Editora.