Trinado para a Noite que Avança por Jorge Viegas

Transcrição

Trinado para a Noite que Avança por Jorge Viegas
“Trinado para a Noite que avança” de Glória de Sant’Anna Há quem escreva sabendo que está a comunicar algo importante. Há quem escreva duvidando da valia dos seus registos. Eu pertenço ao segundo grupo. Ao tecer considerações sobre um autor pelo qual tenho uma funda admiração e simpatia, não consigo fugir ao sentimento de ter andado pela base ou à volta da sua real estatura, sem exprimir o que a sua obra merecia que fosse expresso. E este sentimento toma mais uma vez conta de mim ao elaborar uma nota de leitura sobre o livro “Trinado para a noite que avança” de Glória de Sant’Anna. Numa viagem sem bússola pela poesia Moçambicana apresentada no VII Encontro de Escritores Moçambicanos na Diáspora eu referi‐me à poetisa do seguinte modo: ‐ Glória de Sant’Anna (1925‐2009) uma voz que de tão equilibrada, nem parece estar amargurada. Tentarei justificar esta afirmação contrapondo versos seus aos de Florbela Espanca: (“Árvores! não choreis, Olhai e vêde, / Também ando a gritar morta de sede/ Pedindo a Deus a minha gôta de água!”. Florbela.) – (“ De ouro morto é a árvore / E tão humilde, / Tão densa de verdade, / que com ela me morro / pela tarde”. Glória.) Nos dois poemas é como se a natureza inteira se tornasse irmã duma imensa dor humana. Mas essa dor, em Florbela, é nitidamente mais visível. A dor fica como que subentendida em Glória de Sant’Anna, que é a portadora exemplar duma densa angústia vigiada. “No entanto, que cada um faça a sua leitura.” recomenda‐nos a autora no primeiro texto do livro. Nas linhas seguintes o escriba hesitante que eu sou, tenta dar uma resposta a esse apelo. “Asas”, o poema inicial do livro, dramatiza o desafio duma voz que nasce, quente ainda na sua ingenuidade intrépida, a uma voz que se extingue, vergada pelo peso duma angústia humana sempre em crescendo ao longo do fluir existencial: “ não sabe o pobrezito / cantando na ramaria / que as minhas asas / já foram arrancadas / por densos temporais / de mares de palavras / e de lágrimas”. No segundo poema “Adamastor” procede‐se à desmontagem de um mito. A portentosa figura levantada por Camões nos mares do fim do mundo, e que permanece firme e erecta no eco verbal de Fernando Pessoa, desaparece ao assumir o seu verdadeiro rosto de grandes forças da natureza desentendidas: “e rosna / e baba / sob o chicote e o vento / até ao cabo / onde outro mar o chama / e aí se enlaçam e se batem / numa dança da força”. Na página 21, a poetisa retoma o tema de um dos seus poemas mais divulgados, o da maternidade: “ e ambas / sentadas na varanda / à luz clara do dia / trocávamos ideias / e falávamos palavras / sobre toda a alegria / que é / ter mais um filho”. A poesia pode estar para além dos grandes factos, das grandes causas, dos grandes homens e dos grandes temas? Para Glória de Sant’Anna, naturalmente que sim: “ este carteiro brada / junto ao portão da casa / e eu acorro / e o carteiro já velho / sorri um riso longo / e põe na minha mão / um envelope cheio / de pedras preciosas / safiras diamantes esmeraldas / e tudo à minha volta / dá breves gargalhadas comigo / (o papel é couché / e o anúncio bonito). Os processos históricos não são lineares, e exigem que os homens e as mulheres perante eles não sejam neutros. O poema “Transição” na pág.28, sugere algum distanciamento da poetisa ao “modus faciendi” propagandístico da revolução Moçambicana. Fala‐nos de uma mulher (membro da Organização da Mulher Moçambicana? Uma guerrilheira? Uma neófita duma outra estrutura da Frelimo?) que se aproxima de si e “com voz seca chama‐me jornalista / e manda‐me parar o gravador / depois dirige‐se à pequena multidão / ao seu redor / que veio ver / o que é um comício”. A estentórea animação das almas e dos corpos induzida pela condutora do comício muito pouco ou talvez nada disse à poetisa para quem “o melhor o melhor / é estar à fogueira / pelas noites de cacimba / a ouvir lá longe / lá ao largo / o miar assanhado de um leopardo” É essencial para um poeta sentir que as palavras se ajustam plenamente à amplidão do seu estro. Perante a imensurabilidade “da noite que avança” Glória de Sant’Anna sente que as palavras, as suas e as dos outros, se demitiram da obrigação de serem as suas mais fiéis aliadas: “palavras / passam por mim / como pequenas nuvens / não se fixam / passam dizendo / para que nos queres agora? / vai vai‐te embora / que já não somos tuas”. – “tu que eu não conheço / falas falas falas / e eu tropeço nas tuas palavras / eu não te entendo”. Os outros permanecem alheios ao que para ela é importante: “ não vêdes / que vou a caminho da saída / e que por isso / conto coisas que me são queridas”. As verdades importantes são as que aprendemos quando somos crianças. As outras, as que nos chegam mais tarde, serão sempre excessivas. A poetisa que não se sente à altura de responder ao desafio do passarito que canta na ramaria, fica maravilhada ao ver que “o mais lindo de todos” o faz plenamente: “passos meudos trotam pelo corredor / um dois três quatro cinco / em busca do amor / do meu sorriso / e depois fogem como pássaros / pelo meio das árvores / onde cantam e gritam / e chilreiam sentindo‐se aves”. Dessas verdades importantes, há uma para a poetisa que resume todas as outras, e que por tal não deve nem pode ser questionada: “O Menino nasceu / e os magos chegam / de trilhos remotos / e pastores / e anhos / todos ajoelham / e os anjos cantam / vá / vamos / vinde comigo / e ajoelhamos”. Glória de Sant’Anna. A poetisa que universalizou o mar Moçambicano. Uma voz deveras singular pela dignidade do tom. Pela dignidade dos temas. Pela dignidade da linguagem. Uma autora que decerto merece outras leituras e definições mais abrangentes. Jorge Viegas, 8 de Agosto de 2014 

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