Ripe 41 - Instituição Toledo de Ensino

Transcrição

Ripe 41 - Instituição Toledo de Ensino
ISSN 1413-7100
41
setembro a dezembro de 2004
REVISTA DO INSTITUTO
DE PESQUISAS E ESTUDOS
Divisão Jurídica
Esta edição contém produções científicas desenvolvidas
no Centro de Pós-Graduação da ITE - Bauru.
REVISTA DO INSTITUTO DE PESQUISAS E ESTUDOS (DIVISÃO JURÍDICA)
Faculdade de Direito de Bauru,
Mantida pela Instituição Toledo de Ensino (ITE).
Edição - Nº 41 – setembro a dezembro de 2004
EDITE EDITORA DA ITE
Praça 9 de Julho, 1-51 - Vila Falcão - 17050-790 - Bauru - SP - Tel. (14) 3108-5000
CONSELHO EDITORIAL
Carlos Maria Cárcova, Cláudia Aparecida de Toledo Soares Cintra, Flávio Luís de Oliveira, Giselda Maria Fernandes
Novaes Hironaka, Iara de Toledo Fernandes, José Roberto Martins Segalla, Jussara Susi Assis Borges Nasser Ferreira,
Luiz Alberto David Araujo, Luiz Antônio Rizzato Nunes, Luiz Otavio de Oliveira Rocha, Lydia Neves Bastos Telles
Nunes, Maria Isabel Jesus Costa Canellas, Maria Luiza Siqueira De Pretto, Pedro Walter De Pretto, Pietro de Jesús
Lora Alarcón, Roberto Francisco Daniel, Rogelio Barba Alvarez, Thomas Bohrmann.
SUPERVISÃO EDITORIAL
Maria Isabel Jesus Costa Canellas
COORDENAÇÃO
Bento Barbosa Cintra Neto
Solicita-se permuta
Os textos são de inteira responsabilidade de seus autores
Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos : Divisão Jurídica.
Instituição Toledo de Ensino de Bauru. -- n. 1 (1966) - . Bauru
(SP) : a Instituição, 1966 v.
Quadrimestral
ISSN 1413-7100
1. Direito - periódico I. Instituto de Pesquisas e Estudos.
II. Instituição Toledo de Ensino de Bauru
CDD 340
Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos
n. 41 p. 1-653
2004
ÍNDICE
Apresentação
Maria Isabel Jesus Costa Canellas
9
COLABORAÇÃO DE AUTOR ESTRANGEIRO
El valor probatorio de las declaraciones inculpatorias del coimputado en el derecho peruano
James Reátegui Sánchez
13
COLABORAÇÃO DE AUTORA NACIONAL NO EXTERIOR
Savigny et les sources du droit
Ruth Maria Junqueira de Andrade Pereira e Silva
29
DOUTRINA
Cultura e Constituição: promoção e proteção jurídica
Walter Claudius Rothenburg
39
Os efeitos do novo Código Civil junto ao Direito Penal e ao Direito Processual
Penal
Antonio Carlos da Ponte
65
O direito à saúde e a efetividade dos direitos sociais
Vidal Serrano Nunes Júnior
77
Responsabilidade como expressão de uma existência dialogal
Roberto Francisco Daniel
81
O primado da iniciativa privada na Constituição
Alvacir Alfredo Nicz
89
Previsão legal do direito à imagem
Vera Lúcia Toledo Pereira de Góis Campos
95
Direito natural: berço dos direitos humanos
Kaiomi de Souza Oliveira
119
O direito internacional frente ao Instituto da Propriedade Intelectual:
OMC/TRIPS (Trade related aspects of intellectual property rights)
Charlene Maria de Ávila Corrêa
139
Natureza jurídica das decisões dos Tribunais de Contas, no Brasil
Paulstein Aureliano de Almeida
157
A sociedade simples no Código Civil
Manoel de Queiroz Pereira Calças
171
Embargos de declaração protelatórios
Clito Fornaciari Júnior
189
Aspectos contemporâneos da intervenção do Ministério Público no Processo Civil
201
Volnei Carlin
O fetiche das leis
Giovani Clark
211
Os Princípios Constitucionais da livre concorrência e da livre iniciativa e o amadurecimento no Direito concorrencial e societário brasileiro
Paulo Freitas Henrique de Souza
217
INCLUSÃO SOCIAL
DIREITO DAS MINORIAS
Ações afirmativas frente a particulares
Ana Cláudia Pires Ferreira de Lima
251
Algumas considerações sobre a Emenda Constitucional n. XIV e as minorias
nos Estados Unidos
Adhemar Ferreira Maciel
277
Benefício assistencial de prestação continuada.
Nova interpretação à luz do Estatuto do Idoso
Eduardo Antonio Ribeiro
309
A alterabilidade do nome dos filhos pelo descumprimento do poder familiar mútuo
315
Jesualdo Eduardo de Almeida Junior
Adoção, o descompasso do novo Código Civil frente ao Estatuto da Criança e
do Adolescente
329
Iriana Maira Munhoz
Delinqüência juvenil
Marissol Labanca de Medonça & Ailson Pinhão de Oliveira
333
ASSUNTO ESPECIAL
“Código de Defesa do Consumidor: Proteção dos interesses da massa de consumidores considerados socialmente relevantes pelo legislador”
As produções científicas publicadas como “assunto especial” desta edição foram desenvolvidas
no Centro de Pós-Graduação da ITE – Bauru, sob orientação e colaboração do docente Professor
Doutorando José Luiz Ragazzi
O consumidor de energia elétrica. Segundo o Código de Defesa do Consumidor
341
Carlos Augusto Ramos Kirchner
Publicidade abusiva
Adriano Aparecido Bruno
369
O consumidor ante a publicidade ilícita
Renata Gomes de Moraes
379
A impossibilidade da suspensão dos serviços públicos essenciais em virtude de
inadimplência
393
Maurício Augusto de Souza Ruiz
Responsabilidade civil do Estado frente à ineficiência dos serviços prestados
aos jurisdicionados
401
Marcelo Augusto de Souza Garms
Responsabilidade civil do advogado perante o Código de Defesa do Consumidor
Cesar Augusto Alves de Carvalho
417
PARECER
Exclusão sumária do REFIS por ausência de cumprimento de requisito formal.
Ofensa aos princípios da legalidade, razoabilidade, proporcionalidade e motivação.
Inconstitucionalidade da resolução CG/REFIS n.º 9 E n.º 20. Ofensa aos princípios do
contraditório, ampla defesa e boa fé, e aos contidos nos arts. 170 e 174 da CF - Parecer
Ives Gandra da Silva Martins, José Ruben Marone &
Soraya David Monteiro Locatelli
437
NÚCLEO DE PESQUISA DOCENTE
Anotações sobre palestra proferida no Núcleo de Pesquisa e Integração do
Centro de Pós-Graduação – ITE, em 30 de setembro de 2004.
Breves considerações sobre o Estatuto do Idoso
Lydia Neves Bastos Telles Nunes
477
Direito de família e sucessões no Código Civil vigente – aspectos de relevância
perante o direito vivo
Afifi Habib Cury
487
NÚCLEO DE INICIAÇÃO À PESQUISA CIENTÍFICA - NIPEC
Homenageando o Digníssimo Diretor da Faculdade de Direito de Bauru, Professor Doutorando, José Roberto Martins Segalla, mola propulsora do sucesso
alcançado pelos acadêmicos de Direito no I Congresso Iteano de Iniciação
Científica, realizado no período de 27 a 29 de abril de 2004.
Dano estético em cirurgias plásticas
Colaboração dos pesquisadores: Bacharel em Direito,
Pedro Fernando Cataneo e Professor de Direito Civil, Freddy G. Silva
497
Incompatibilidade constitucional do reexame necessário no processo penal
Aluno pesquisador: Luciano Siqueira De Pretto
Professor orientador: Rafael Siqueira De Pretto
505
Aquecimento global, o protocolo de Quioto e a posição dos Estados Unidos
Colaboração dos pesquisadores: Bacharel em Direito, Vânia V. C. Rudge e
Professor de Direito Internacional, Daniel F. e Almeida
515
A obscuridade dos progressos científicos à luz do nosso ordenamento jurídico. Como compatibilizar os reflexos dos avanços havidos no campo da Genética com as tradicionais premissas consagradas pelo nosso Direito Positivo
em vigor
Aluno pesquisador: Cleófas Pires da Silva
Professor orientador: Ney Lobato Rodrigues
523
A guarda compartilhada no futuro ordenamento jurídico brasileiro
Aluna pesquisadora: Aline Panhozzi
Professor orientador: Ney Lobato Rodrigues
531
Plano diretor da cidade
Aluna pesquisadora do Curso de Administração da ITE: Yolande Neme da Silva
Prof. orientador dos Cursos de Direito e Administração: Reinaldo Antonio Aleixo 535
DECISÃO DE RELEVO
ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL - INCIDENTE DE INCONSTITUCIONALIDADE – TRIBUNAL PLENO – N.º 70005713862 – PORTO ALEGRE - COLENDA 7.ª
CÂMARA CÍVEL: “Acordam, em Órgão Especial do Tribunal de Justiça deste Estado, por maioria, em acolher o incidente, declarando a inconstitucionalidade do artigo 12, § 3.º, da Lei n.º 8.821/89”. Porto Alegre, 11 de agosto de 2003.
Relator: Desembargador Araken de Assis
Colaboração: Desembargadora Maria Berenice Dias
545
ATIVIDADE PROFISSIONAL DE RELEVO
Mandado de segurança coletivo contra ato de agente público municipal
Advogados: Bento Barbosa Cintra Neto, Rosana de Oliveira Manfrin &
Marco Antonio Bronzatto Paixão (Estagiário)
567
CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO
Resumos de dissertações defendidas no Programa de Pós-Graduação Stricto
Sensu em Direito (Área de Concentração: Sistema Constitucional de Garantia de Direitos), em nível de Mestrado, Instituição Toledo de Ensino
A universalidade, a assistência integral e os planos privados de atendimento à saúde
Aron Wajngarten
579
A tutela jurisdicional dos direitos fundamentais e a efetividade do direito à saúde
Oscar de Carvalho
581
Saúde privada e relevância pública. A natureza jurídica dos contratos com as
operadoras de planos ou seguros privados de assistência à saúde
Paulo Roberto Rodrigues Pinto
585
A bolsa eletrônica de compras – BEC/SP, em atendimento ao princípio da eficiência
Marcio Jose Alves
587
Da imunidade tributária do livro eletrônico
Eduardo Amorim de Lima
589
A Lei complementar como instrumento de realização de segurança jurídica
Cleber Sanfelice Otero
591
Da exigência de contribuição previdenciária dos aposentados e pensionistas
Maria Priscila Soares Berro
595
Aspectos constitucionais das comissões parlamentares de inquérito e a sua limitação pelos direitos fundamentais
Murillo Canellas
597
CONTRIBUIÇÃO ACADÊMICA – INICIAÇÃO CIENTÍFICA DA ITE
A tutela interdital romana e o procedimento sincrético como anseios de efetividade na prestação da tutela jurisdicional – Apontamentos para uma nova processualística civil brasileira na perspectiva filosófica da alopoiese
Luiz Henrique Martim Herrera
603
JURISPRUDÊNCIA COMENTADA
Número de vereadores: resolução TSE n.º 21.702/04 x leis orgânicas municipais
Procurador do Estado de São Paulo: Renato Bernardi
627
ARTIGOS
Este monstro chamado RDD
Rômulo de Andrade Moreira
635
Redução da maioridade penal, essa é a solução?
Renato Ribeiro Velloso
641
A necessidade do enunciado vinculante (Caso concreto – Empresa Brasileira
de Correios e Telégrafos)
Mário Antônio Lobato de Paiva
643
A greve dos servidores do Judiciário paulista justifica a decretação de intervenção federal?
647
Renato Bernardi
INFORMAÇÕES AOS COLABORADORES
651
APRESENTAÇão
“A NOSSA REVISTA há de ser o reflexo do esforço aglutinador de
quantos trabalham conosco, Professores, Alunos e Patrícios Ilustres
que, em sintonia com o nosso desejo de servir, realizam a grande
obra, nossas FACULDADES e ESCOLAS, afirmação de crença na Mocidade e confiança no futuro do Brasil.
Imunes à vaidade e despido de personalismo, que sempre leva os
homens a caminhos diferentes, palmilharemos as mesmas estradas,
viveremos os mesmos sonhos, sentiremos todas as emoções e conquistaremos, juntos, o respeito dos que nos cercam, através do trabalho que dignifica. Impulsionados para os destinos reservados às
obras que nascem e vivem, como a nossa, sob os desígnios de uma
vontade superior, vamos caminhar com o espírito Eternamente
Moço, em busca das conquistas que Deus nos proporcionará”.
Bauru, 20 de abril de 1966
(ass.) A. Eufrásio de Toledo
O calendário iteano comemora no mês de outubro a fundação da ITE coincidentemente com o registro natalício do seu fundador, Antonio Eufrásio de Toledo,
cuja história será sempre uma página viva da RIPE, uma vez que esta, igualmente,
surgiu do entusiasmo e compreensão desse educador.
Os valores humanos são imperecíveis e a história os insere em seus anais
como forças individuais que resistem a todas as erosões do tempo. A dignidade é
um patrimônio do homem. Como virtude inextirpável da individualidade, é um monumento ético que acompanha os mortais no tumultuado percurso que vai do berço ao túmulo. Deus é a instituição suprema. De sua perpétua autoridade descem as
decisões que a nossa sentimentalidade confunde e, às vezes, ousa recusar.
O mundo, obviamente, não é a morada permanente dos homens, mas o caráter transitório da vida não vem invalidar as figuras apostolares que na terra souberam dignificar a sua condição.
Antonio Eufrásio de Toledo tinha uma lúcida missão a cumprir. A dinâmica de sua
inteligência e o potencial amoroso de seu coração eram forças intimamente paralelas,
que se conjugavam para definir o traçado de seu caráter, incontestavelmente, educador.
Mineiro, de Cambuí, deslocou-se para Bauru onde criou raízes e fundou, primeiro, a Escola Técnica de Bauru, com os cursos de Pontes e Estradas e Química Industrial e, depois, a Faculdade de Direito de Bauru (1952) e a Escola de Educação Física (1953).
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A carga de recordações e saudades que trouxe, cederam às paisagens do futuro paulista que se descortinava, mas nunca a ponto de renunciar à dignidade sagrada de suas origens. As mesmas origens humildes que se constituíram em razões espirituais propulsoras, levando-o a arrastar e destruir obstáculos materiais aparentemente irremovíveis.
Lucidamente vinculado aos valores filosóficos que embasaram a criação da Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos da ITE, RIPE, entendia que o periódico haveria de compor um campo de idéias capaz de promover a juventude como energia
criadora no campo das nacionalidades.
E assim se fez, Magnífico Reitor!
Não é mais possibilidade. É realidade, pois, hoje, experimentamos o júbilo de
registrar que a RIPE, da ITE integra a relação dos periódicos considerados de excelência nacional pela CAPES.
Há trinta e oito anos, homens de boa vontade, liderados por um homem extraordinário se deram as mãos e criaram a Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos – Divisão Jurídica.
Há dez anos, outras pessoas, irmanadas com a família iteana, acreditaram que
o julgado da história lhes seria favorável, e sobre eles caiu o prêmio prometido aos
sábios: nossa RIPE atingiu o grau máximo nacional para, é claro, caminhar trabalhando e chegar ao grau internacional.
Ao registrar uma efeméride, o sentimento é de orgulho. Um orgulho saudável
porque nasce da certeza de que se participou de uma grande obra. Um sentimento
de gratidão ao seu idealizador. Um sentimento de júbilo que se quer compartilhar e
agradecer aos vocacionados que enriquecem todo o trabalho, reiterando o convite
para que, conosco, a chama seja mantida acesa. Esse é o resultado de todo esforço
da Instituição.
Nossa Revista, que nasceu para servir, acolhe os interessados no culto à justiça e aprimoramento do Direito. Dos labirintos legais surge, a cada momento, a luz
da verdade e da fé que liberta. Justamente, a fagulha da Divindade é que nos impulsiona para a descoberta do próprio ser, para a reflexão sobre o próximo, para dar um
sentido à existência, para cima e para frente, a fé.
Nosso fundador foi a própria juventude falando e lutando, restando por deixar escritas páginas indeléveis de trabalho, de fé e amor ao próximo.
E só o Poder Supremo será capaz de emoldurar uma dignidade póstuma.
Outubro de 2004.
Maria Isabel Jesus Costa Canellas
Colaboração de
Autor Estrangeiro
EL VALOR PROBATORIO DE LAS DECLARACIONES
INCULPATORIAS DEL COIMPUTADO EN
EL DERECHO PERUANO
James Reátegui Sánchez
Advogado.
Auxiliar Docente en la Universidad de Buenos Aires, Argentina.
RESUMÉN
El presente artículo, a través de un fallo de la jurisprudencia peruana, pretende
introducir al estudio de las cuestiones probatorios personales dentro de un proceso
penal. Se trata de explicar el valor probatorio que puede alcanzar las declaraciones del
imputado hacia otro imputado con contenido incriminatorio. El punto principal es
establecer parámetros sólidos en la declaración imputativa para que ésta no sea simplemente un arma de “defensa” de quien emite la declaración y, porque, como es sabido,
muchas veces la declaración puede estar amparada por el “derecho a mentir”. Esta
declaración cobra relevancia, además porque a quien se le incrimina puede verse alterado su situación jurídica en cuanto a las medidas cautelares personales (si estaba con
comparecencia, ahora podrá estar detenido). El problema se complica en sistemas
jurídicos, como el peruano, que guarda absoluto silencio sobre el tema, no obstante que
actualmente los casos de corrupción de funcionarios públicos y criminalidad organizada están a la orden del día.
I.
CUESTIONES PRELIMINARES
La presente ejecutoria suprema nos introduce en el campo de las sindicaciones incriminatorias realizadas por un coimputado, vale decir, cuando el hecho
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punible ha sido ejecutado por una colectivización de sujetos àctivos. Asimismo,
la ejecutoria establece determinados lineamientos en torno a la relevancia jurídico-procesal que posee las declaraciones inculpatorias del coimputado como posible medio racional de probanza, (¿será una prueba de cargo suficiente?)
para justificar una decisión jurisdiccional condenatoria en nuestro caso, y aprovecharemos la ocasión para analizar sucintamente, ya en el ámbito de las medidas
cautelares personales, si las aludidas declaraciones pueden fundamentar un mandato de detención en el Derecho peruano.
En Derecho procesal penal, existen lo que se llaman las pruebas personales que son, en palabras de MORENO CATENA, los medios de prueba a través de
los cuales se trae al proceso a una persona con la finalidad de que verifique determinados hechos y, de ese modo, se pueda formar el juez una convicción plena sobre ellos y sobre las circunstancias en que se produjeron, y son esencialmente tres: las declaraciones del imputado, la declaraciones del testigo y los informes de peritos; en lo concerniente a la primeras de ellas, se destaca nítidamente la prueba de confesión. La doctrina, lo ha dividido, a su vez, metodológicamente en dos partes:
La primera, la confesión propia o llamada también confesión sincera (autoinculpación) que se refiere al reconocimiento expreso por parte del imputado de haber ejecutado el hecho punible y de asumir las consecuencias jurídicas del delito, es una declaración judicial, el mismo que se encuentra positivizado en el Art. 136º del C de PP in fine y tendrá un efecto ulterior, atenuante y privilegiada en la sentencia (280º del C de PP) –diferente tratamiento penal será lo
regulado en el artículo 46º, inc. 10 del Código Penal, que es un arrepentimiento
posterior al delito, es una especie de autodenuncia- y,
La segunda, la confesión ajena (inculpación a un coimputado) referida a que en el curso de un proceso penal puede aparecer una situación procesal singular cuando son varios los imputados, en el caso de que alguno de ellos
se decida a prestar declaración y lo haga con un contenido incriminatorio para
otro de los que se encuentran en la misma posición o status procesal.
Esta segunda temática cobra especial importancia, puesto que la finalidad
de la actividad probatoria no es otra cosa que el logro de la convicción judicial
sobre la credibilidad o veracidad de las afirmaciones realizadas por las partes involucradas. En este sentido el profesor español MIRANDA ESTRAMPÉS sostiene
que la prueba no tiene por objeto la probanza de los hechos, en tanto realidad
histórica son inalcanzables. El objeto de la prueba y por ende objeto de valoración, -agrega el autor- será, entonces, las afirmaciones o proposiciones que las
partes realizan en torno a determinados hechos.
Por otro lado, habrá que tener cuidado por que la realidad de las casuísticas rebasan muchas veces las congeladas hipótesis legales, y se cae en una inseguridad jurídica que nadie desea; en tal línea, por ejemplo la declaración incul-
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patoria de un coimputado no tiene regulación expresa en nuestra legislación penal y como tal no permite obtener en los juzgadores, puntos sólidos de interpretación, ni mucho menos de aplicación al caso concreto, sólo existen esporádicas
versiones jurisprudenciales que allanan el camino. Cosa distinta sucede en el
Derecho comparado, así tenemos el caso del CPP de Italia que en el artículo
192.3, inserto en las disposiciones generales sobre pruebas y concretamente, en
el título que lleva por rúbrica “Valoración de la prueba”, prescribe que: “Las declaraciones realizadas por los coimputados por un mismo delito, o por persona imputadas en un procedimiento conexo a tenor de lo dispuesto en el artículo 12, se valorarán conjuntamente con los demás elementos de prueba, que
confirmen su credibilidad”. En atención a ello, entonces, como conclusión provisional tenemos que la precisión de tales declaraciones no puede constituir
“prueba exclusiva”, sino que ha de valorarse conjuntamente con las otras pruebas, como se verá más adelante.
II.
EL CONCEPTO, NATURALEZA JURÍDICA Y EL DERECHO A “MENTIR” DEL COIMPUTADO
En atención a la conceptualización, tendrá que percibirse una verdadera situación o status de coimputado en el proceso penal. Esto es, tendrá que ser, ante todo,
un imputado o encausado. Surge la pregunta entonces acerca de a partir de qué momento una persona natural incluida dentro de los límites de las investigaciones,
debe ser considerada como “imputado”. En tal sentido, se tendrá que distinguir entre una imputación material o implícita que es aquella condición que nace de la
admisión de una denuncia o una querella y no de la simple presentación de las mismas por cuanto la situación material del imputado no puede inferirse, de la mera indicación hacia un sujeto como supuesto autor del hecho punible, y otra imputación
formal o explícita que vendría representada por el auto de procesamiento en sede
judicial. Por otro lado, en el caso, si varios sujetos están sometidos a un único proceso, de tal manera que si uno de ellos declara instructivamente que otro u otros
también están comprendidos en el evento criminal, se evacuará en el concepto lógicamente de imputado. Mientras que, de no darse aquella situación, esto es, que
los sujetos son juzgados en procedimientos separados, o siendo juzgados en proceso único el sujeto que propaló se dictó respecto de él un auto de sobreseimiento o
archivamiento, aquél verterá en calidad de testigo por estar ajeno a la relación jurídico-procesal antagónica (acusación y defensa).
En cuanto a su naturaleza jurídica, la declaración del coimputado, como se
sabe, no es propiamente una declaración testimonial, porque el que declara tiene la
calidad de encausado o procesado; tampoco puede ser considerado como una confesión sincera tal como lo prevé el art. 136º in fine del C de PP, porque no supone
reconocer la propia responsabilidad, sino la de atribuir a otro coimputado su inter-
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vención en un determinado suceso delictivo en la que ambos son procesados. Sino
mas bien la de una testimonial impropia, al estar basadas en un conocimiento extraprocesal de los hechos que se aportan a la causa por la particularidad de que se
narra inculpando a otro coimputado, y que por lo menos constituirán la mínima actividad probatoria de cargo.
Téngase en cuenta además, y de ahí lo preocupante, que el coimputado, como
cualquier procesado, no tiene la obligación jurídica de decir la verdad sobre los hechos que se están investigando, reconociéndose el derecho no sólo a guardar silencio, aunque puede ser tomado como indicio de culpabilidad en la etapa de instrucción (Art. 127 del C de PP) o en la etapa de juzgamiento (Art. 245 del C de PP.), sino
también a no declarar si no quiere, esto es, a no declarar contra sí mismo y a no confesarse culpable (véase, en este sentido, el art. 14.3 del Pacto Internacional de Derechos Civiles y Políticos, el art. 8 de la Convención Americana sobre Derechos Humanos o Pacto de San José y en su momento la Constitución 1979 lo reguló en su art. 2,
numeral 20, en el literal k), y lo más importante, incluso se admite el “derecho a
mentir”, por la razón que no presta juramento o promesa de decir la verdad, ni su
falsa declaración en proceso judicial se criminaliza como delito de falso testimonio
que está reservado para el testigo (Art. 409 del CP.), tan es así que si en los debates
del juicio oral, el testigo ha incurrido en falsedad en la declaración prestada o leída
en la audiencia, puede el Tribunal, de oficio o a petición del fiscal, del acusado o de
la parte civil ordenar su detención hasta que se pronuncie la sentencia, y se resuelve
si hay motivo para abrir instrucción contra él (Art. 257 del C de PP).
III. LOS CRITERIOS DE VERIFICACIÓN PARA CONSOLIDAR LAS DECLARACIONES INCULPATORIAS DEL COIMPUTADO
Para apreciar la credibilidad de las declaraciones inculpatorias de los coimputados, éstas estarán sujetas a ciertos condicionamientos: elementos de verificación intrínsecos o subjetivos de tipo negativo: la personalidad del delator, las relaciones precedentes que el sujeto mantuviese con el delator, la presencia de móviles turbios o espúrios y el ánimo de auto exculpación; como de tipo positivo: la reiteración, precisión, seguridad, persistencia en la incriminación, espontaneidad, coherencia lógica,
univocidad. Y los elementos de verificación extrínsecos u objetivos que se traducen en
la presencia de otros elementos de prueba que confirmen la fiabilidad subjetiva.
1.
Verificación subjetiva negativa
En la faceta sólo de credibilidad subjetiva de carácter negativa debe valorarse un conjunto de factores tales como:
Personalidad del delator y relaciones precedentes con el designado
como partícipe: Se tiene que tener en cuenta los rasgos del imputado delator como
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su carácter, antecedentes penales, edad, formación, propensión a la delincuencia, entre otros que hagan descartar una personalidad fantasiosa, propensa a la mentira o la
confabulación. DÍAZ PITA, apunta que la personalidad del declarante ha de ser tenida
en cuenta, de modo particular, como señala BREVERE en los procesos sobre criminalidad organizada ya que si por personalidad se entendiera el complejo de cualidades
éticas del colaborador con la justicia, es evidente que en los citados procesos la personalidad del pendito es poco recomendable ya que éste, por regla general, es autor
de al menos un delito o incluso de una multiplicidad de delitos graves.
Asimismo, a juicio de la doctrina y la jurisprudencia española, la concurrencia
de relaciones de amistad, enemistad, parentesco, etc., entre el sujeto que vierte las
declaraciones incriminatorias y aquel o aquellos acreedores de las mismas, restaría
una fuerte dosis de credibilidad a las propalaciones y se constituiría, por ende, en
un elemento indispensable para que aquellas fueran o no tenidas en cuenta como
pruebas de cargo suficiente.
Examen riguroso de la posible existencia de móviles turbios e inconfesables. Este requisito consiste en que la declaración incriminatoria del coimputado debe estar desprovisto de motivaciones particulares que permitan tildar la
declaración de falso o espurio, o restarle verosimilitud como: a) dirigido a obtener
un dato favorable que mejore su status procesal y b) dirigido a perjudicar al coimputado incriminado por razón de odio personal, venganza, resentimiento, soborno
o cualquier otro motivo. Estos sentimientos íntimos serán cuidadosamente calificados y calibrados por el juzgador, sobre todo en niveles cercanos a la decisión final
del proceso.
Que, no pueda deducirse que la declaración inculpatorio se
haya prestado con ánimo de exculpación. Ya que si se llega a la conclusión
de que el coimputado incriminador o delator lejos de procurar el descubrimiento de la verdad de los hechos, busca su propia exculpación o exclusión del proceso, a costa de la inculpación del coimputadc incriminado, entonces habrá que
poner en tela de juicio esa incriminación y someterlo a un análisis crítico y riguroso. Evidentemente se infiere que la mera sindicación es para buscar su exculpación ya que en todo momento no ha admitido que esté arrepentido o haya
confesado en relación a los hechos investigados. Dicha exculpación será entonces, tomada con un matiz eminentemente defensivo realizado por el coimputado
en su propio descargo.
2.
Verificación subjetiva positiva
En cuanto a los criterios de verificación intrínsecos positivos tenemos:
Reiteración de la declaración inculpatoria, que es la repetición prestada en el curso del proceso (fase preliminar, fase investigatoria y fase del juicio del
oral) por parte de uno de los imputados incriminadores. Será la persistencia en la
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incriminación en las diversas comparecencias, diciendo sustancialmente lo mismo.
Esto se quiebra cuando el sujeto delator incurre en divergencias relevantes, imprecisiones, contradicciones o ambigüedades entre lo declarado en fase investigatoria
y lo expresado por ejemplo en el juicio oral o en la etapa preliminar, rectificando o
retractando, por lo tanto, su declaración.
Las declaraciones tienen que ser además precisas, entiéndase claras y contundentes, ya que el coimputado conoce directamente el desarrollo minucioso de
los hechos y es más, la conducta de los intervenientes.
El requisito lógico tiene que superar positivamente una valoración lógica unida generalmente a un análisis sobre el plano psicológico, de tal manera que la declaración inculpatoria, luego de ser sometido al análisis del juez, esté presente sobre la base común de experiencia y de las reglas generales de la lógica, tiene que
existir una coherencia interna, de tal forma que la declaración deberá ser “articulada”, “detallada”, “circunstanciada” o “particularizada”.
El elemento espontaneidad es apreciada en función de la condición de libertad o coerción física o moral, psicológica en la que se encontraba el declarante
en el momento de la deposición, de tal manera que la narración inculpatoria sea
como consecuencia no de una pregunta directa.
3.
Verificación extrínseca objetiva
En cuanto a los criterios de verificación extrínsecos u objetivos, -que dicho
sea de paso ha sido la legislación italiana la que con mayor énfasis ha pregonado la
necesidad de que las declaraciones inculpatorios vengan apoyadas por otros medios
probatorios de “corroboración”-, tienen como finalidad acreditar objetivamente la
fiabilidad de la declaración; que formen un “corpus” o “acervo” de probanza causal
e interrelacionado. Es más, la propia confesión sincera del artículo 136º de nuestro
C de PP en sí misma no tiene efectos benignos sino viene corroborado con otras
pruebas. Por tanto, se tiene que este criterio extrínseco, tendrá que desarrollarse
progresivamente en las etapas sucesivas del proceso, en función al acopio de mayor
información (existen varias fuentes), se entiende generalmente, que puede darse en
el momento del juicio oral o momentos cercanos a la etapa decisoria. Ahondando
más, diremos que en la verificación objetiva ya no se trata si tal declaración inculpatoria del coimputado resulta suficientemente concluyente que el “hecho imputado”
o hechos que se hayan producido fácticamente, que puede ser subjetivamente creíbles, el mismo que daría lugar a una acusación fiscal de tipo formal (Art. 92 inc. 4
de la LOMP) con respecto al sujeto incriminado a través del delator coimputado,
sino fundamentalmente, que “participó” en ellos aquel o aquellos contra los que se
declara, lo que daría lugar, ahora sí, a una acusación fiscal de tipo sustancial (Art. 92
inc. 4 de la LOMP).
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IV. LA DECLARACIÓN INCULPATORIA DEL COIMPUTADO Y SU EFICACIA PROBATORIA EN LAS FASES DEL PROCESO PENAL
El tema de fondo de la declaración inculpatoria del coimputado tiene en el
terreno procesal penal -quedando al margen bajo qué título de imputación ostentan: si es autor o partícipe: inductor o cómplice-, es si éstas poseen aptitud suficiente para destruir o inervar el derecho fundamental de la presunción de inocencia.
En todo caso, tres son los frentes en que “ataca” principalmente esta peculiar, casi
tangencial, figura jurídico-procesal o chiamata di carreo en la doctrina italiana, obviamente, con distintas consecuencias, según la situación que el sujeto ocupe dentro del proceso y avance la secuencia del mismo. Por razones de espacio nos referiremos sólo a los tres procedimientos ordinarios regulados en nuestro ordenamiento procesal: a) el procedimiento común que abarca 8 rubros delictivos del Código
penal: (Ley Nº 26689 de 30 de noviembre de 1996, aclarada por la Ley Nº 26833, de
3 de julio de 1997, y ampliada por Ley Nº 26926, de 21 de febrero de 1998); b) El
procedimiento sumario (Dec. Leg. 124 de 15 de junio de 1981) y c) El procedimiento por falta (Art.325 del C de PP, modificado por la Ley Nº 29465 del 22 de Diciembre de 1988):
Si la declaración se produce dentro de la etapa preliminar y si dicha declaración incriminatoria puede fundamentar una formalización de denuncia por parte del fiscal en contra del sujeto incriminado;
ante todo debemos de tener consideración que las indagaciones preliminares no se
investigan pruebas, sino elementos indiciarios, que son en realidad, actos de investigación. No son valorables con criterio de conciencia (Art. 283 C de PP), aquellas
declaraciones incriminatorias realizadas en la etapa policial ya que muchas veces el
declarante sufrió presiones, coacciones, amenazas, violencias (se presentaría aquí
un supuesto de prueba ilegítimamente obtenida) o porque simplemente le ofrecieron un mejor trato en su situación con la finalidad que “ayude” o “colabore” con la
identidad de los copartícipes del delito a cambio de un “premio”, lo que se denomina el Derecho penal premial (buscando principalmente un beneficio -exención
o atenuación- penológico). Dichas hipótesis se complica si es que no estuvo presente el representante del Ministerio Público y su abogado defensor (Art.62 de C
de PP), y menos aún si no son ratificadas en sede judicial, porque en tal caso, las
declaraciones sólo tendrán el valor de mera denuncia contenidas en un atestado o
parte policial, y ninguna eficacia probatoria a tener en cuenta en el curso del proceso judicial, ya que no pueden ser consideradas como exponentes ni de prueba
anticipada ni como prueba preconstituida, y no sólo porque su reproducción,
tanto en fase de instrucción o en el juicio oral no se revele imposible o difícil, sino
fundamentalmente por que no se efectúan en presencia de la autoridad judicial
competente (como órgano autónomo e imparcial) que asegure la fidelidad de la
declaración.
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Lo que no se puede permitir es que la declaración que pudiera realizar cualquiera de las personas involucradas en los actos de investigación, es que se convierta de una prueba de cargo “exclusiva”, que se admita sin un mínimo análisis crítico,
con las posibilidades defensivas del incriminado prácticamente escasas o nulas, por
que se dice que las indagaciones preliminares son “reservadas”; que no se tiene apenas opciones de combatir lo manifestado por quien lo incrimina sin otros apoyos
probatorios que sus propias palabras.
Sin embargo, si la declaración inculpatoria de un coimplicado se realiza en el
marco del respecto y garantías constitucionales de los denunciados, además si durante las investigaciones preliminares se llegara a la conclusión que existen indicios
ranozables que el caso deba de ser investigado en sede judicial, entonces será prudente la formalización de denuncia por parte del fiscal provincial (por el principio
pro societas que rige en el ámbito del Ministerio Público).
Ahora en la etapa judicial, previa a la calificación del auto apertorio de instrucción, la pregunta sería por partida doble:
– ¿Constituyen las declaraciones inculpatorias de un coimplicado un indicio
racional para abrir instrucción (auto de procesamiento) a otro coimplicado?
– Y si la respuesta es afirmativa: ¿constituyen las declaraciones inculpatorias
mérito suficiente para dictar una medida de coerción personal, como, por ejemplo,
un mandato de detención?
Como es sabido, los requisitos del auto apertorio de instrucción, se encuentra contenido en el artículo 77º del C. de PP., los mismos que son: a) que los hechos
denunciados constituyan delito; b) que esté individualizado al autor; c) que, la acción penal no haya prescrito.
Lo único racional y hasta notorio que se puede acceder a una sindicación de
un coimputado, ya sea proporcionada en forma presencial o referencial, es verificar
o cumplir con las exigencias de la individualización del presunto autor o partícipe
de los hechos investigados. Es lo que la doctrina conoce como “identidad física”, o
lo que la doctrina italiana denomina “verificación individualizante”.
ORE GUARDIA, sostiene que el requisito de la individualización del agente implica no sólo la verificación formal de los datos de identidad del autor, sino también,
en algunos casos, la verificación de una vinculación material de la persona imputada con los hechos incriminados”. La vinculación material estaría dado por el
carácter de incriminatorio, objetiva y directa proporcionada por el sujeto declarante.
En lo concerniente a que si la declaración inculpatoria puede ser presupuesto suficiente para que amerite el dictado de medidas cautelares personales como el
mandato de detención, se tendrá que acreditar los tres requisitos de dicho mandato; en tal sentido, tendrá que acreditarse fundamentalmente el inciso primero del
artículo 135º del CPP referido a “suficientes elementos probatorios” y lógicamente la concurrencia de la pena probable (inciso segundo) y el peligro procesal
(inciso tercero). Se adecuará al primer supuesto las declaraciones vertidas por el vir-
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tual coimputado en la medida en que dicha declaración inculpatoria tenga además
otros elementos de “corroboración” que hagan presumir la exigida suficiencia probatoria, vale decir, que exista una cierta vinculación de los hechos que están investigando con el sujeto incriminado a través de su coimputado.
Si la declaración se produce en la etapa del juicio oral. En este ámbito, cabe apreciar si las declaraciones inculpatorias de los coacusados pueden ser
aisladamente consideradas como verdaderas pruebas de cargo suficiente para justificar una condena. En otras palabras, si solamente será suficiente la credibilidad subjetiva o intrínseca de aquellas declaraciones o si sería necesario practicar además,
una credibilidad extrínseca u objetiva de las mismas.
En los procesos ordinarios comunes (“delitos graves” como parricidio, genocidio, torturas, etc.) las declaraciones inculpatorias del coacusado tendrán un mayor
valor probatorio ya que estarán regidos por los principios de oralidad, publicidad y
contradicción. Puede ocurrir que durante el desarrollo del juicio oral el acusado se
ratifique de lo dicho en la etapa de instrucción, con lo cual quedará consolidado la
credibilidad de lo dicho. O puede suceder que realice, en el juicio oral, la incriminación por primera vez.
Destacándose el caso que si concurren varias declaraciones inculpatorias de
coacusados que coinciden entre sí (“verificación cruzada”), puede llegarse a consolidar el elemento objetivo de verificación. La doctrina, sobre todo italiana, no se ha
puesto de acuerdo en este punto; así para algunos, indican que nada impide configurarlas como elementos externos de verificación, de tal manera que quedarían reconducidos en la noción prevista en el apartado 3º del artículo 92 del C.p.p. italiano; para otros en cambio, no siempre las declaraciones de un coacusado confirman
la realidad de los hechos, pues en efecto, puede suceder que dos o más imputados
se muestren de acuerdo para incriminar a una persona que es en realidad inocente,
y por tanto, la verificación ya no sería “cruzada” sino una verdadera “cuartada”,
que sería, bajo todo punto de vista, inadmisible. A mi entender, estas declaraciones
inculpatorias tienen que tener la virtud de intentar destruir o cancelar el amparo
que lleva aparejado la presunción de inocencia, más aún cuando se llega a momentos culminantes del procesamiento, que entre sus tantos significados la presunción
de inocencia está referida al juicio de hecho en la sentencia penal, es decir de acuerdo a las pruebas, o se inclina por una sentencia absolutoria (Art. 284 del C de PP:
“...no son suficientes para establecer su culpabilidad”), por el contrario justifican una sentencia condenatoria (Art. 285 del C de PP: “...o de las otras pruebas en que se funda la culpabilidad”).
V.
LAS DECLARACIONES INCULPATORIAS DE CARÁCTER REFERENCIAL
Hasta acá, hemos analizados aquellas declaraciones del coimputado en el marco
de un contexto de inmediación que ha tenido el delator con el acontecimiento o suce-
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faculdade de direito de bauru
so que ha presenciado visual o auditivamente, personal y directamente, para efectos de
incriminar a otro coimputado. Un tema aparte, merece las declaraciones ya no presénciales sino referenciales de los coimputados incriminadores, es decir cuando se relata
un hecho teniendo como base que sus conocimientos proceden de terceras personas
que se lo han relatado. Esta modalidad, al igual que lo pasa la testimonial referencial, indirecta, mediata, suscita recelo y hasta desconfianza en la credibilidad de lo dicho.
En el Derecho español, el artículo 710 de la Ley de Enjuiciamiento Criminal
prescribe lo siguiente: “los testigos expresarán la razón de su dicho y, si fueren de
referencia, precisarán el origen de la noticia, designando con su nombre y apellido, o con las señas con que fuere conocida, a la persona que la hubiera comunicado”. Esta “prueba”, pues, por sí sola no puede desvirtuar, a juicio de JAEN VALLEJO, la presunción de inocencia que asiste a todo acusado.
Cabe precisar que la mera declaración de carácter referencial que pudiera deponer cualquier persona sujeta a un proceso, o aquellas derivadas de una inspección
judicial o policial, de una testimonial o confesión sincera del imputado o documento aportado al proceso, tendrán todos ellos la calidad de indicio, el mismo que es
equivalente a un hecho, suficientemente probado por cualquier medio probatorio,
no pudiendo tratarse de meras sospechas, a partir del cual es posible realizar una inducción o inferencia, luego de un razonamiento explícito, para determinar la existencia de otro hecho conectado con aquél a través de una máxima de experiencia.
En resumen, para acreditar la presencia de un indicio, la jurisprudencia española ha exigido, junto a los requisitos relativos a la plena probanza de los indicios
(indicio probado) y la exteriorización del juicio de valorativo sobre la apreciación de
la prueba indiciaria (motivación), un tercer requisito referido a la valoración de la racionalidad de la inferencia (racionalidad de enlace). Estos datos de consistencia indiciaria que servirán para fundamentar un adecuado grado de probabilidad y fiabilidad e los hechos narrados, que supere de tal modo la frontera sospechosa de la
mentira; para justificar cualquier decisión ulterior, como por ejemplo, un auto de
procesamiento, contra el sujeto incriminado.
Ahora bien, se presenta una situación singular, en el cual el sujeto delator, que
es imputado, no está en la misma situación con un sujeto contra quien se declara,
pues éste es una persona que está ajena a dicha investigación. Se presenta una situación de una declaración inculpatoria de un imputado hacia un “tercero”, con
cierta vinculación en los hechos que están investigando. No habrá tantos problemas
si el imputado delator lo realiza en base a un testimonio que personalmente percibió y escuchó – auditio propio - por él; el caso, por el contrario, se complica, cuando aquel declara por que otra persona le comunicó – audito alieno. ¿Puede bastar
sólo la declaración referencial de un coimputado para abrir proceso judicial a otra
persona que es ajena al mismo? Definitivamente, este supuesto no será considerado como un indicio, o al menos como un elemento indagatorio de “cargo”, “único”
o “principal”, y tendrá que valorarse en cada caso concreto.
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VI. CONCLUSIONES
La ejecutoria suprema, materia de comentario, deja un precedente importante ya que pone en tela de juicio la discusión, tan olvidada en nuestro medio, pese a
que constituye un tema de palpitante actualidad, acerca del alcance y la naturaleza
jurídica de las declaraciones inculpatorias del coimputado. Dicho supuesto no sólo
es aflorado en sectores como la delincuencia organizada (terrorismo, delitos de narcotráfico, etc.), sino también en ámbitos, como lo demuestra el presente caso, de la
delincuencia común.
Está claro, que se trata de una prueba sui generis de “cargo” ubicada dentro
de las confesiones ajenas del imputado, desarrollas a su vez dentro del rubro de las
pruebas personales; asimismo existe reiterada jurisprudencia en nuestro medio,
que indican que la sola sindicación, ya sea del coimputado como pasa también con
la víctima, no es merito suficiente para producir convicción de certeza en el juzgador sobre los hechos que se están investigando. En tal virtud, la doctrina y la jurisprudencia (extranjera) han establecido determinados parámetros o condiciones de
caracteres subjetivos o intrínsecos de tipo negativo y positivo, corroborado a su vez
con criterios extrínsecos u objetivos, necesarios para hacer viables la eficacia probatoria y obviamente destruir la presunción de inocencia.
Las declaraciones inculpatorias del coimputado tienen en su esencia una fuerte carga de “manipulación” por parte del imputado-delator que puede acarrear en la
arbitrariedad, y esto se agudiza cuando el coimputado declara en base una fuente
referencial e indirecta (porque escuchó o le contaron); sin olvidar además, que en
el Derecho procesal penal dichas declaraciones (instructivas) se produce en un contexto “legal” donde el imputado tiene el “derecho a mentir”, con lo cual deberán
ajustarse con mayor énfasis los criterios subjetivos (negativos y positivos) y objetivos. En consecuencia, las declaraciones del coimputado tienen su explicación en las
siguientes razones:
El coimputado no tiene la obligación de decir la verdad, incluso puede no responder, sin que pueda emplearse contra él ningún medio intimidatorio ni coactivo.
Está prohibido tomarle juramento, incluso en el supuesto de tratarse de preguntas sobre hechos ajenos.
El coimputado declara sin la amenaza de las penas que incriminan el delito de
falso testimonio.
Tendrán un tratamiento procesal distinto si el imputado rinde su declaración en
el cumplimiento de un deber de colaborar con la justicia para la identificación de los
responsables, (“colaboración eficaz”) ya que habrá en la mayor predisposición para revelar nombres, hechos secretos, datos, etc. y aquel o aquellos imputados que lo hacen
como consecuencia de su participación normal en los hechos que se enjuician.
Las declaraciones inculpatorias de un coimputado (teniendo un valor probatorio muy superior la fuente presencial-directa, pues fueron percibidos por el
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que los afirma, es decir informar la “causa” del propio conocimiento, que el que
tendría si solo fuese de oídas -hecho referencial-) pueden estar referidas a otro
coimputado, como a un tercero ajeno a la relación jurídico-procesal (Declaración
inculpatorio a un tercero). Acá la figura entra en una etapa dubitativa, híbrida en
contenido.
VII. EJECUTORIA COMENTADA
SALA PENAL
R.N. 2695-99
CAJAMARCA
Lima, ocho de septiembre de mil novecientos noventa y nueve.
VISTOS; de conformidad en parte con el Señor Fiscal; por sus fundamentos;
y CONSIDERANDO: que, en el caso de autos ha quedado probado que la acusada
Adelina Quintana Silva, determinó a Baldomero Tarrillo Linares a que diera muerte
a Gilberto Bautista Rodríguez, bajo promesa de recompensa económica; que, éste
último, lejos de ejecutar la muerte de la víctima por sí sólo, conforme a lo convenido, convenció a su vez al encausado Misael Tarrillo Peralta a fin de ejecutara la muerte, como en efecto ocurrió, a cambio de mil nuevos soles, de lo cual sólo recibió la
suma de trescientos cincuenta nuevos soles, entregados en dos partes, de parte de
la referida encausada; que, la fuente de incriminación en contra de la acusada se
basa en la sola sindicación de su encausado Tarrillo Peralta, quien de manera
uniforme y coherente señala que Baldomero Tarrillo Linares le indicó que una señora necesitaba que diera muerte al agraviado, la misma que conoció posteriormente, cuando ésta en forma personal y en dos oportunidades le entregó las sumas de
doscientos y ciento cincuenta nuevos soles en efectivo, lo que fluye de su manifestación policial obrante a fojas doce realizada en presencia del Fiscal Provincial y de
su abogado defensor, instructiva de fojas cuarenta y cuatro, continuada a fojas cincuenta y dos, así como en el acto del juzgamiento; que, a criterio de esta Suprema
Sala Penal, esa sola sindicación constituye un medio racional de prueba que debe valorarse por un conjunto de factores tales como: a) personalidad del delator y
relaciones precedentes con el designado como partícipe; en efecto, Tarrillo
Linares, hasta antes de los hechos, se dedicaba a sus actividades cotidianas de agricultor, no contaba con ninguna clase de antecedentes y nunca había tenido relación
alguna con su coacusada Adelina Quinta Silva, a quien recién conoce una vez que se
ha materializado la muerte de Gilberto Bautista Rodríguez, b) examen riguroso
de la posible existencia de móviles turbios e inconfesables; en el presente
caso no se puede advertir, ni siquiera indiciariamente, por Tarrillo Linares esté sindicando a su coacusada por móviles de venganza, odio personal y resentimiento,
pues ambos recién se conocieron con posterioridad a la ejecución de la muerte del
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occiso; y c) que, no puede deducirse que la declaración inculpatorio se
haya prestado con ánimo de exculpación; en autos ha quedado probado que
la sindicación de Tarrillo Linares, no tiene fines de exculpación, en tanto que él en
todo momento admite su responsabilidad como ejecutor material de la muerte de
la víctima, esto es, que la sindicación con su coacusada no supone automáticamente la exención de su propia responsabilidad; que, de otro lado, conforme a lo dispuesto por el artículo cuarenta y siete del Código penal, a la pena impuesta se debe
abonar el tiempo de detención que haya sufrido el procesado, a razón de un día de
pena privativa de libertad por cada día de detención; que, no habiendo procedido a
realizar dicho abono la Sala Penal Superior, debe aclararse el cómputo de la pena impuesta a los condenados: declararon NO HABER NULIDAD en la sentencia recurrida a fojas quinientos noventa y dos, su fecha dos de julio de mil novecientos noventa y nueve, que absuelve a Norvil Campos Delgado y María Maribel Acuña Quintana, de la acusación fiscal por el delito contra la vida, el cuerpo y la salud –homicidio calificado-, en agravio de Gilberto Bautista Rodríguez; condena a Misael Tarrallo
Peralta y Adelina Quintana Silva, por el delito contra la vida, el cuerpo y la salud –homicidio calificado-, en agravio de Gilberto Bautista Rodríguez, a veinticinco años de
pena privativa de libertad para cada uno, la misma que con el descuento de la carcelería que viene sufriendo el acusado Misael Tarrillo Peralta, desde el cinco de enero de mil novecientos noventa y nueve –fojas veinticinco-, y no desde el ocho del
mismo mes y año, como erróneamente se consigna en la sentencia, vencerá el cuatro de enero del año dos mil veinticuatro y para la sentenciada Adelina Quintana Silva, con descuento de carcelería que viene sufriendo desde el siete de enero de mil
novecientos noventa y nueve –fojas ochenta y uno- y no desde el diecinueve del
mismo mes y año, como erróneamente se ha consignado en la sentencia, vencerá el
seis de enero del año dos mil veinticuatro; fija en treinta mil nuevos soles, la suma
que por concepto de reparación civil, deberán abonar los referidos sentenciados, en
forma solidaria, a favor de los herederos legales del occiso Gilberto Bautista Rodríguez; y reserva el proceso respecto al acusado Baldomero Tarrillo Linares, hasta que
sea habido; MANDARON que la Sala Penal Superior, reitere las órdenes de captura
impartidas en su contra; con los demás que contiene; y los devolvieron.- SS.
MONTES DE OCA BEGAZO / ALMENARA BRYSON / SIVINA HURTADO / ROMAN SANTISTEBAN / GONZALES LOPEZ.
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SAN MARTÍN CASTRO, César; Derecho Procesal Penal, Volumen I y II; Lima, 1999.
Colaboração de
Autora Nacional
no Exterior
Savigny et les Sources du Droit
Ruth Maria Junqueira de Andrade Pereira e Silva
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direito,
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP.
Estudante do Programa de Pós-Graduação em Filosofia do Direito,
Universidade de Paris - Panthéon Assas.
I.
INTRODUCTION
Cet article a comme but étudier le chapitre III, tome I de l’oeuvre “Traité de
droit romain” de Savigny, dont le titre est “Sources du droit romain actuel”.
Cela étant dit, l’importance d’étudier la théorie des sources du droit dans
le cadre de l’école historique du droit, demeure dans le fait qu’elle représente
la première école critique de la pensée juridique, suscitée par le phénomène de
grandes codifications. Cette école survient comme une réaction contre le projet
de codification du Code Civil allemand presenté par Thibaut. Une autre importante raison de l’étudier consiste dans le fait qu’elle nous offre toute une philosophie de l’origine et des fondements du droit. Comme nous verons plus tard,
elle développe une doctrine des sources du droit, laquelle se partage en: source matérielle, source formelle et source de la conaissance du droit.
D’un autre côté, les principaux adeptes de cette école ont, eux aussi, étudié
et écrit des textes sur les notions et sur le système des sources du droit1.
1 A. Dufour, La théorie des sources du droi dans l´école du droit historique, Archives de Philosophie du droit, Tome
27, Paris, Sirey, 1982, 86/88.
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Cependant, premièrement, nous allons mettre en relief, quelques fondements
de l’école historique et de la théorie de Savigny pour arriver à mieux comprendre
son oeuvre.
II
PRÉMISSES DE L’ÉCOLE HISTORIQUE
L’école historique a été élaborée par Savigny en 1814, en Allemagne. Toutefois,
ses fondements créés par Gustav Hugo et Just Möser la précédent. Cette école avait
comme objectif démontrer, comment le droit devrait réagir aux transformations économiques et politiques de l’époque. La France a énormément contribué dans la création de ces nouvelles idées à travers la Révolution Française et le Code Civil de 1804.
Il ne s’agissait pas uniquement d’un mouvement de réaction contre la codification, il défendait aussi: l’opinion d’après laquelle, il est impossible de tout légiférer; l’importance du droit coutumier et finalement, les origines du droit.
D’après Savigny, la vraie unification juridique ne devrait pas être faite par la codification, mais par la science du droit. Dans ce cas, les juristes seraient les responsables de l’élaboration des concepts du droit, ce qui équivaut à dire, qu’un nouveau
Code pour unifier l’Allemagne ne serait pas plus nécessaire.
Puchta, un des théoriciens de l’école historique, soutient qu’aucun juge,
même au cas où il serait muni du code le plus complet, ne réussirait pas à résoudre
tous les litiges uniquement avec ce code.
L’auteur remarque aussi qu’une législation est possible uniquement à l’intérieur d’un État. D’après lui, l’État, lui même, est fondé sur le droit, alors on peut en
conclure, que la source originaire du droit ne peut pas être la loi. L’origine du droit
n’est pas dans l’État2.
Savigny a définit la théorie de l’origine du droit comme: la commune conviction du peuple; la conscience populaire, l’esprit du peuple. Il soutient que le point
zéro du droit n’est pas susceptible d’être connu, ce que nous pouvons concevoir
comme l’origine du droit est déjà un développement de son propre germe.
Nonobstant, d’après l’école historique, le droit du présent est une conséquence du droit du passé, alors, l’idée que le passé n’ait pas d’influence sur le présent est
tout à fait inconcevable.
La thèse de Hugo consiste dans le fait, qu’une génération ne peut pas constituer la totalité d’une nation, et conséquemment, elle ne peut pas revendiquer pour
soi, le droit d’imposer ses lois aux futures générations, étant donné qu’elle n’a pas
accepté les lois des générations précédentes3.
2 A. Dufour, La théorie des sources du droi dans l´école du droit historique, Archives de Philosophie du droit, Tome
27, Paris, Sirey, 1982, 93.
3 Z. Kristufek, La querelle entre Savigny et Thibaut et son influence sur la pensée juridique européenne, Revue Historique de Droit Français et Etranger, vol. 1, Paris, 1966, p. 62.
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Savigny n’est pas d’accord avec les prémisses de l’école anti-historique, qui défendent: l’idée que le droit du présent n’est pas nécessairement lié au droit du passé et que tout dépend exclusivement de l’arbitre du législateur. Pour lui, le fondement du droit est l’esprit du peuple. En fait, l’élément politique du droit est son rapport avec la vie du peuple, c’est ce que les membres de la colectivité comprennent
comme étant juste, sans avoir besoin de réflechir, et l’élément technique serait la vie
scientifique et autonome du droit, la science et la législation.
L’expression “sens historique” est comprise par Savigny, comme une connaissance approfondie de l’évolution historique du droit, plus précisément, une connaissance approfondie des institutions juridiques surannées. Il poursuit, en déclarant que plus ancienne est une loi en vigueur, plus elle est juste, ce qui revient à dire,
que le droit romain est plus juste que le droit germanique. Il considère qu’un droit
rationnel “ a posteriori” est possible, tandis que pour Kant cela est irréalisable, étant
donné que pour celui-ci le droit rationnel est “a priori” et sa connaissance n’a pas
pour objet le droit historique.
Savigny essaye de prouver à travers l’histoire, que nous n’avons pas nécessairement besoin d’un code, il affirme aussi que son époque est inapte à achever un travail
législatif, puisqu’il manquerait de grands juristes, soit, de spécialistes en droit romain.
Une des critiques faites à l’école historique, c’est qu’elle n’étudie pas l’avenir,
seulement le passé. En effet, pour ne pas faire les mêmes fautes, il faut connaître le
passé, cela nous permet d’être encore plus libre, puisqu’il nous donne le choix de
choisir, si nous avons besoin de lui ou pas.
Le droit positif de chaque peuple se forme à leur intérieur, et il se développe
avec le peuple, c’est comme la langue, qui se trouve toujours en transformation
constante et a comme fondement la conscience commun du peuple, explique Savigny. Alors, les moeurs et les langues seraient le produit d’une création collective,
inconsciente et involontaire. En somme, le droit tel que la langue seraient une partie du peuple et se développerait avec lui.
Les principes fondamentaux du droit sont toujours dans la conscience du
peuple, malgré la croissance de la population, toutefois, c’est aux jurisconsultes de
les déterminer rigoureusement, à ce moment-là, le droit du peuple devient invisible, ce qui veut dire, que l’origine du droit peut être oubliée. Le peuple continue à
exercer un rôle primordial en ce qui concerne la formation du droit, mais c’est à la
science du droit qui la développera, ce qui nous amène à la théorie pluraliste des
sources du droit. L’origine du droit est le droit du peuple, cependant, il se complète avec la législation et la science juridique.
Les textes de Savigny ne laissent aucun doute quant à sa croyance à la dynamique du droit, ce qui fait tomber par terre l’accusation de Marx, quand ce dernier
affirme que Savigny proposait un droit statique.
Selon l’auteur, le droit n’est pas seulement dynamique, il est aussi continu, et
chaque époque serait la continuation de toutes les époques antérieures.
32
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Cependant, l’on se demande pourquoi Savigny considère le droit romain le
fondement de tous les autres, parce qu’il le considère le meilleur comme modèle de
méthode juridique, étant donné qu’il est encore en vigueur, puisque les autres peuples n’ont jamais laissé de l’adopter, alors il est encore vivant dans la conscience du
peuple. Le droit romain a pour Savigny une valeur pragmatique, il le trouve parfait
pas seulement à cause de sa méthode, mais aussi pour son histoire. En fait, même
au cas où le droit romain serait suranné, désuet, sa forme et sa méthode restent toujours modernes. L’auteur déclarait qu’il n’y avait pas à son époque des juristes autant capables que les jurisconsultes romains.
Plus précisément, en ce qui concerne les sources du droit, Alfred Dufour fait
trois remarques: 1 – la prédominance d’un concept générique de la source du droit;
2 – l’incertitude terminologique, les variations du langage en ce qui se réfère aux définitions faites; 3 – la nette distinction établie entre la source du droit et les sources
de la connaissance du droit4.
Puchta défend l’idée que les organes qui confèrent au droit une forme visible
s’appellent les sources du droit, qui seraient: la conviction immédiate du peuple, la
legislation et la science5.
Les sources de la connaissance du droit comprennent tous les documents qui
nous permettent de connaître la réalité jurídique, exceptionnellement, elles peuvent se confondent avec la source du droit, comme dans le digeste de Justinien.
À cause de l’importance du droit populaire, la différence entre source formelle et matérielle n’est pas tout à fait nette dans l’école historique, ce que pour l’école de l’exégège représentait une différence primordiale.
L’école historique en ce qui fait référence aux sources du droit se partage en
: courant romaniste, qui privilégie la science du droit - droit savant; et courant germanique qui privilégie les coutumes.
III. ANALYSE DETAILLÉE DU TEXTE DE SAVIGNY
L’auteur commence le chapitre III, du tome I du Traité de droit romain en annonçant qu’il essayera de déterminer la place de la législation, des moeurs et du
droit scientifique dans le droit romain actuel. Toutefois, il est important de mettre
en évidence que Savigny fait référence au droit romain actuel, cela veut dire qu’il n’a
jamais souhaité mettre en place le droit romain de l’époque de l’Empire Romain, il
a toujours voulu mettre en place le droit romain mis à jour, et c’est à cause de cela,
qu’on n’aurait pas besoin d’aucun code.
4 A. Dufour, La théorie des sources du droi dans l´école du droit historique, Archives de Philosophie du droit, Tome
27, Paris, Sirey, 1982, p. 105.
5 Cf. . Dufour, La théorie des sources du droi dans l´école du droit historique, Archives de Philosophie du droit,
Tome 27, Paris, Sirey, 1982, p. 105 et 106.
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Ensuite, il fait une analyse afin de déterminer les textes qui devraient être reconnus comme des lois. Il démontre que pour beaucoup de juristes les textes non glosés
ne devraient pas être caractérisés comme des lois, et l’on peut en conclure qu’il n’est
pas d’accord avec eux. Il croit que quelques uns de ces textes doivent être reconnus
comme des lois, pas tous, seulement ceux dont l’on peut reconnaître la sagesse.
Il remarque que quelques cours se sont servies de ce genre de texte, de manière exceptionnelle, ce qui ne change pas le principe d’après lequel, les textes qui
n’ont pas été glosés ne font pas partie du droit romain. Il souligne que, même si ces
textes n’aient pas d’autorité législative, on doit reconnaître leur autorité scientifique,
ainsi comme leur influence dans la pratique du droit, puisqu’ils aident aussi à élucider les points sombres de la législation romaine.
Dans le topique suivant, Savigny cherche à démontrer la place du droit coutumier dans les sources du droit romain. Il met en évidence l’immense importance
des coutumes, qui ne se trouvent pas au-dessous de la loi, puisqu’ils ont la capacité
de la complémenter, de la modifier, de l’abolir, et même de créer une nouvelle règle. Cette position est cohérente avec sa théorie, selon laquelle, le fondement du
droit est la conscience commune du peuple.
En ce qui concerne la science, Savigny soutient qu’il lui serait très difficile de
créer un nouveau droit, étant donné que sa fonction primordiale est celle d’unifier
le droit déjà existant et éclaircir ces points noirs. D’après l’auteur, la science pourrait créer le droit, au cas où, on aurait un jurisconsulte qui soit em même temps
juge, néanmoins, il pense que cela resterait toujours rare. Il explique que le droit populaire depuis son origine s’identifie avec la science, puisque les nécessités pratiques ont toujours eu le besoin d’être traduites par la science.
Il poursuit en affirmant que, c’est à la science le travail de particulariser les
rapports du droit, comme aussi celui de décerner les règles qui le dominent et mettre de côté toutes les incertitudes qui troublent ses éléments de décision. L’auteur
tient à affirmer que quant à cela, les romains seraient supérieurs, puisqu’ils avaient
une terminologie rigoureuse, ils étaient précis quant aux distinctions nécessaires, ce
qui constate sa prédilection pour le droit romain.
Dans le chapitre suivant, l’auteur se propose à étudier d’autres sources du
droit, celles dont les pays avaient adopté le droit romain. Jusqu’à ce moment-là, il affirme avoir étudié les sources du droit romain d’une manière isolée, pour les analyser de façon plus complète et pure. Les pays qui ont adapté le droit romain, ont aussi un droit national, cette combinaison des ces deux formes de droit, c’est justement
un des objets les plus importants de la science.
Avec l’éruption des codes nationaux (en Prussie, en Autriche et en France), il
y a eu un grand bouleversement en ce qui fait référence aux sources du droit. Ces
nouveaux codes se distinguent des autres lois par leur carctère d’exclusion, les textes une fois promulgués interdisent l’application directe du droit romain, nonobstant, quant à leurs contenu, leurs règles et quant aux principes anciens des sources
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du droit continuent à exister dans les nouvelles lois. À ce moment-là, l’auteur tient
à affirmer, que l’esprit du droit romain n’a pas disparu avec la chute de l’Empire Romain, il continuerait à exister dans la conscience du peuple. C’est pour cela, que
l’étude des sources anciennes du droit n’est pas inutile car, elle trouve son application directe dans les pays où les sources romaines sont toujours en vigueur et sont
aussi utiles à approfondir les codes modernes. Voilà, la vraie motivation de Savigny
quand celui-ci se dédie au droit romain actuel.
Dans le chapitre “Principes des romains sur les sources du droit en général”,
Savigny déclare que l’énumération des sources du droit faite par les jurisconsultes
romains ne suit aucune systèmatisation. L’indication des sources était utilisé, au cas
où, le juge savait où trouver les moyens pour résoudre une question de droit.
Dans le chapitre “Principes des romains sur les sources du droit en général”,
Savigny déclare que l’énumération des sources du droit faite par les jurisconsultes
romains ne suit aucune systématisation. L’indication des sources était utilisé, au cas
où, le juge savait où trouver les moyens pour résoudre une question de droit. Les
sources pouvaient se partager en: “jus scriptum”, qui est le droit dont l’origine est
liée à un texte écrit; et “jus non scritum”, qui représente le droit coutumier. Il met
en relief l’importance de vérifier, si les jurisconsultes romains admettaient ou réfusaient le droit coutumier.
Il avoue l’énorme influence des préteurs dans le droit romain, il ne s’agissait
pas de simples rédacteurs du droit coutumier, mais des individus capables de le développer, et même de le modifier. D’une certaine façon, c’était le pouvoir populaire, car annuellement les préteurs étaient renouvelés.
Ajoute-t-il, que tout ce qui a été dit en ce qui concerne les sources du droit romain est valable seulement, jusqu’à l’époque des empereurs chrétiens, car après,
juste deux sources continuent à exister : les édits des empereurs et les écrits des jurisconsultes. Ces deux sources ont absorbé toutes les autres.
À partir de la législation de Justinien cela est encore plus simple, puisque les
sources du droit se résument pratiquement aux constitutions impériales.
Dans le chapitre qui traite les principes romains, le droit coutumier, Savigny
réaffirme l’autorité du droit coutumier, qui possède l’autorité générale d’une loi. Les
coutumes pouvaient compléter une loi pas nette ou ambiguë, ou régler une matière qui n’avait pas de disposition legislative. En mettant en évidence, que les coutumes peuvent être utilisées dans l’absence d’une loi, toutefois nous ne devons pas
comprendre qu’ils doivent être utilisés uniquement, dans cette situation. il observe
que quand le code déclare que les coutumes ne doivent pas enlever l’autorité d’une
loi, il fait référence aux coutumes particuliers, qui feraient partie d’une organisation
spécifique, et non pas aux coutumes généraux, qui auraient la force d’une loi.
Dans le chapitre sur le droit scientifique, l’on s’aperçoit de l’immense importance que les jurisconsultes romains ont toujours eu, cependant ses opinions
qui n’étaient pas toujours dans le même sens causait une inquiétude juridique.
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Voilà, la raison pour laquelle Justinien a adopté une position radicale: il a publié
un tome avec les positions des jurisconsultes et lui a donné l’autorité de loi, en
même temps qu’il a interdit toute autre publication, toute autre littérature, sous
l’argument que la législation impériale répondait à tous les besoins et que toute
nouvelle production rendrait des problèmes à l’ouevre du législateur. Justinien
croyait qu’il avait élaboré un droit immuable. Savigny n’est pas d’accord avec
ceux qui le critiquent de façon aussi sévère, puisqu’au fond, tous les législateurs
modernes auraient aussi aimé que leurs codes soient immuables. Toutefois, il
condamne aussi ceux qui cherchent à relever ses prescription, que pour lui
étaient très claires.
Dans le chapitre intitulé “Des idées modernes sur les sources du droit”, Savigny cherche à démontrer les principales différences entre ses idées et les idées
normalement adoptées par d’autres spécialistes en droit. Il avoue qu’il n’est pas
d’accord avec l’idée comme quoi la législation soit l’unique base légitime du droit et
que les autres sources soient considérées comme secondaires. Le droit coutumier
serait une source naturelle du droit et il dispense de légitimation spéciale capable
de prouver son autorité. Au cas où, un droit coutumier serait en contradiction avec
une loi, la solution serait l’application de la règle le plus récente, puisqu’ils ont la
même importance. Il souligne que la majorité des auteurs reconnaît que les moeurs
puissent abolir une loi, mais ils ne reconnaissent pas que le manque d’utilité enleverait l’autorité d’une loi, pour lui les deux situations seraient possibles, puisque le
droit romain ne ferait pas cette distinction.
Il observe que les conditions pour former une coutume sont les mêmes depuis l’antiquité: l’acte doit être pratiqué plusieurs fois, un seul acte n’est pas capable de former une coutume; les actes doivent être uniformes, constants et répétés
pendant un bon bout de temps; les auteurs de l’acte doivent avoir la conscience de
son importance comme droit, ils ne doivent pas le pratiquer en pensant qu’ils auraient pu le faire d’une autre manière, tandis que les coutumes ne devraient pas être
manifestement déraisonnables ni dépourvus de morale.
Il explique que le droit coutumier particulier, ainsi comme n’importe quel fait
allégué dans un procès, doit être soumis aux même règles de preuve, comme tous
les autres faits y sont, mais contrairement aux faits, le juge peut compléter ce qui
manque à la coutume qui lui est presentée, et aussi elles peuvent être présentées à
n’importe quelle phase de la procédure. D’un autre côté, le droit coutumier commun appartient à la connaisssance du juge.
Il critique sévèrement la manière de comprendre les idées des auteurs anciens, et principalement, le fait que les auteurs modernes les présentent, c’està-dire, comme des règles immuables et applicables à n’importe quelle époque.
Il croit que chaque siècle a eu son influence dans l’exercice de la formation du
droit, c’est ce que nous avons souligné au début de ce travail, il s’agit d’un des principaux fondements de l’école historique du droit.
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faculdade de direito de bauru
Au dernier topique de ce chapitre, Savigny disserte sur comment les auteurs
des codes modernes (les prussiens, les autrichiens, et les français) voient les sources du droit.
Le code prussien a aboli le droit précédent et est devenu la source exclusive
du droit; en France, une loi spécifique a aboli le droit précédent en ce qui concerne
les matières traitées par le code français, tandis que le code autrichien a déterminé
que les coutumes seraient appliquées seulement, au cas où, la loi le permettrait expressément.
De cette manière, on peut comprendre facilement pourquoi Savigny était aussi sévère quand il critiquait ces trois codes, cités ci-dessus. Ces codes ont aboli le
droit coutumier dans sa forme primitive, ce qui représente une absurdité pour l’école du droit historique. Hormis cela, ils ont ignoré le droit précédent, ce qui représente aussi une absurdité au regard de l’école historique, qui défend fermement,
l’idée d’après laquelle, le droit doit se développer de manière continue et que le
présent doit toujours prendre en compte le passé.
Nous espérons avoir contribué pour la meilleur compréhension de la théorie
élaborée par Savigny. Nous croyons avoir éclairci, que Savigny n’a jamais voulu appliquer le droit romain comme à l’époque de L’Empire Romain, cependant il avait
comme objectif le mettre à jour, puisque d’après cet auteur, le droit romain reste
toujours suprême en sa méthode et il continue vivant dans l’esprit du peuple.
Plus précisément, en ce qui fait référence aux sources du droit, nous souhaitons avoir éclairci, que les coutumes et la science du droit ont pour cet auteur une
immense importance, alors que les coutumes et les lois ont exactement la même importance.
BIBLIOGRAPHIE
DUFOUR, A. La théorie des sources du droi dans l´école du droit historique. Archives de
Philosophie du droit, Tome 27, Paris, Sirey, 1982.
KRISTUFEK, Z. La querelle entre Savigny et Thibaut et son influence sur la pensée juridique européenne. Revue Historique de Droit Français et Etranger, vol. 1, Paris, 1966.
SAVIGNY,M. F. C. Traité de droit romain. Ch. Guenoux (Traducteur), Paris, Librairie de Firmin Didot Frères, 1855.
doutrina
CULTURA E CONSTITUIÇÃO:
PROMOÇÃO E PROTEÇÃO JURÍDICA
Walter Claudius Rothenburg
Mestre e Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná.
Pós-graduado em Direito Constitucional pela Universidade de Paris II.
Professor de Direito Constitucional.
Procurador Regional da República.
INTRODUÇÃO
Tão importante é a proteção jurídica do patrimônio cultural, que se trata de
assunto constitucional. O termo “cultura” e suas variantes, ou, mais freqüentemente, a expressão “patrimônio histórico” ou este adjetivo, constam do texto da Constituição da República Federativa do Brasil em diversos momentos; por exemplo, dentre os direitos e deveres individuais e coletivos, quando se assegura ao cidadão a
possibilidade de “propor ação popular que vise a anular ato lesivo... ao patrimônio
histórico e cultural...” (art. 5º, LXXIII); como competência comum da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, “proteger os documentos, as obras e outros bens
de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos...”, bem como impedir-lhes
“a evasão, a destruição e a descaracterização...”, e “proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência” (art. 23, III, IV e V ); como competência legislativa de todos os entes da federação, a “proteção ao patrimônio histórico, cultural, artístico...”, a “responsabilidade por dano...” e, genericamente, “educação, cultura, ensino e desporto” (art. 24, VII, VIII e IX); como competência dos Municípios, “promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local...” (art. 30, IX); como requisito
para a fixação dos conteúdos mínimos para o ensino fundamental, o “respeito aos
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valores culturais e artísticos, nacionais e regionais” (art. 210); a seção especificamente destinada à cultura (art. 215-216); como princípios da produção e programação
das emissoras de rádio e televisão, a “preferência a finalidades educativas, artísticas,
culturais e informativas”, a “promoção da cultura nacional e regional e estímulo à
produção independente que objetive sua divulgação”, e a “regionalização da produção cultural, artística e jornalística...” (art. 221, I a III); como dever da família, da sociedade e do Estado, assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade,
dentre outros, o direito “à cultura” (art. 227); como direitos dos índios, sua cultura,
inclusive as terras “necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos,
costumes e tradições” (art. 231 e § 1º); que “[o] ensino da História do Brasil levará
em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo
brasileiro” (art. 242, § 1º).
Outros dispositivos constitucionais, embora não contenham essas palavras,
relacionam-se diretamente à cultura, e são exemplo: o direito fundamental de livre
“expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação...” (art. 5º,
IX); a situação, dentre os bens da União, das “terras tradicionalmente ocupadas pelos índios” (art. 20, XI); a atribuição de competência legislativa privativa à União sobre “diretrizes e bases da educação nacional” (art. 22, XXIV ); dentre as funções do
Ministério Público, “a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e
de outros interesses difusos e coletivos”, bem como a defesa judicial dos “direitos e
interesses das populações indígenas” (art. 129, III e V ); a prescrição da “função social da propriedade” genericamente e como princípio da atividade econômica (art.
5º, XXIII, e 170, III); disposições sobre educação (art. 205 a 214), desporto (217),
ciência e tecnologia (art. 218-219), comunicação social (art. 220 a 224), meio ambiente (art. 225)1, família, criança, adolescente e idoso (art. 226 a 230); o reconhecimento de propriedade fundiária “[a]os remanescentes das comunidades dos quilombos” (art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias).
Qual a perspectiva constitucional dessa preocupação com a cultura? O presente ensaio aborda a natureza constitucional do fenômeno cultural e as implicações jurídicas desse reconhecimento: a qualificação da cultura enquanto direito e dever
fundamental; a promoção e proteção da cultura como tarefa de Estado, especialmente no ambiente federativo brasileiro (conforme a distribuição de competências); a perspectiva democrática (pluralista). Considera-se, por fim, um conceito de
cultura adequado e esclarecedor à compreensão constitucional.
Este trabalho produziu-se no contexto do núcleo de pesquisa sobre “A Preservação do Patrimônio Histórico e Cultural”, que tenho a honra de coordenar como do1 LUIZ ALBERTO DAVID ARAUJO e VIDAL SERRANO NUNES JÚNIOR entendem, na esteira da melhor interpretação, que “o patrimônio cultural envolve o meio ambiente cultural. É que o meio ambiente natural, embora, por evidente, tenha
existência autônoma, ganha significado no contexto social, na medida das projeções de valor que recebe.” (Curso
de direito constitucional, p. 446).
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cente responsável e que está vinculado à linha de pesquisa “Instrumentos Constitucionais de Efetivação dos Direitos Fundamentais”, do Mestrado em Direito centrado no
“Sistema Constitucional de Garantia de Direitos”, da Instituição Toledo de Ensino –
Bauru (SP), sob a coordenação geral do Professor Doutor LUIZ ALBERTO DAVID ARAUJO.
O projeto é gerido pelo Professor e Mestre RAFAEL SIQUEIRA DE PRETTO, e integrado pelos graduandos ALINE CRISTINA SERRANO, CARLA R. F. CARDOSO e TATIANE C. BLAGITZ.
NATUREZA CONSTITUCIONAL
A primeira percepção é de ordem constitutiva: a cultura (e o patrimônio histórico) é considerada dentre os valores mais importantes da sociedade brasileira. Vai
daí que, como dissemos em outra oportunidade a respeito da ecologia, a cultura
faz parte do conteúdo e da ideologia das Constituições modernas...
como um dos principais valores que orientam (formam e informam) a Constituição.
... Não se trata de mera contingência – normas apenas formalmente constitucionais, que fariam parte da Constituição por razões estratégicas, como sedimentação de determinados interesses,
que encontram na fórmula constitucional evidência, simbolismo
e garantia de estabilidade, mas que talvez não desfrutem de reconhecimento consensual e certamente não possuem a maior importância –; trata-se de um autêntico valor fundamental: o ambiente
(agora: a cultura) como bem jurídico constitucional.
...
O valor ‘ambiente’ (agora: cultura), quando considerado alicerce
da Constituição, impregna-a amplamente. Para compreendê-la e
aplicá-la, é preciso levar em consideração a perspectiva ambiental
(agora: cultural). O ‘todo constitucional’, tomado holisticamente,
possui um componente ambiental (agora: cultural) fundamental.
Assim, a Constituição da democracia, dos direitos fundamentais, da
federação, é também uma Constituição ecológica (agora: cultural)
em sentido (material) largo. E não somente num sentido parcial – de
um grupo de normas específicas (que, no entanto, contribuem decisivamente para traçar o perfil global da Constituição).2
Várias Constituições modernas fazem referência à cultura. Para ilustrar, a
Constituição portuguesa de 1.976; a Constituição espanhola de 1.978; a Constitui2 A Constituição ecológica (2004), artigo a ser publicado em coletânea de estudos em homenagem ao Professor
Paulo Affonso Leme Machado.
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ção venezuelana de 1.999. Contudo, a cultura impregna a Constituição em um sentido mais amplo, de que as referências específicas são apenas índice. Segundo PETER
HÄBERLE, “o que realmente aparece ‘normalizado’ – no sentido de estruturado normativamente – como ‘Direito Constitucional cultural’ são unicamente fragmentos
disso que se chama ‘cultura’”.3
Óbvio que a Constituição e o fenômeno jurídico de modo geral fazem parte do ambiente cultural, integrando a cultura do país. Trata-se de característica do
Direito: ser condicionado e condicionante da realidade social (na verdade, uma
dimensão dessa realidade). Vale trazer à colação a impressiva lição de KONRAD
HESSE:
A Constituição não configura, portanto, apenas expressão de um
ser, mas também de um dever ser; ela significa mais do que o simples reflexo das condições fáticas de sua vigência, particularmente as forças sociais e políticas. Graças à pretensão de eficácia, a
Constituição procura imprimir ordem e conformação à realidade
política e social. Determinada pela realidade social e, ao mesmo
tempo, determinante em relação a ela, não se pode definir como
fundamental nem a pura normatividade, nem a simples eficácia
das condições sócio-políticas e econômicas. A força condicionante
da realidade e a normatividade da Constituição podem ser diferençadas; elas não podem, todavia, ser definitivamente separadas
ou confundidas.4
Mais especificamente em relação à cultura, PETER HÄBERLE aduz:
A Constituição não se limita a ser um conjunto de textos jurídicos
ou um mero compêndio de regras normativas, mas a expressão de
um certo grau de desenvolvimento cultural, um meio de auto-representação própria de todo um povo, espelho de seu legado cultural e fundamento de suas esperanças e desejos.5
3 Teoría de la Constitución como ciencia de la cultura, p. 31-32: “lo que realmente aparece «normalizado» –en el
sentido de estructurado normativamente– como «Derecho constitucional cultural» son únicamente fragmentos de
ese algo llamado «cultura»”.
4 A força normativa da Constituição, p. 15.
5 Teoría de la Constitución como ciencia de la cultura, p. 34: “La Constitución no se limita sólo a ser un conjunto de textos jurídicos o un mero compendio de reglas normativas, sino la expresión de un cierto grado de desarrollo cultural, un medio de autorrepresentación propia de todo un pueblo, espejo de su legado cultural y fundamento de sus esperanzas y deseos.”.
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O autor observa ainda que os textos de diferentes Constituições encerram
conteúdos diversos, que só conseguem ser devidamente interpretados à luz da respectiva cultura: “exegese constitucional em função da especificidade cultural”.6
Merece referência a contribuição do clássico constitucionalista RUDOLF SMEND,
que sustentou ser a natureza da Constituição dada por um aspecto cultural (por ele
designado “espiritual”): sua capacidade integradora do Estado. “A Constituição é a
ordenação jurídica do Estado, melhor dito, da dinâmica vital em que se desenvolve
a vida do Estado, é dizer, de seu processo de integração. A finalidade deste processo é a perpétua reimplantação da realidade total do Estado: e a Constituição é a modelação legal ou normativa de aspectos determinados deste processo.”7 A função integradora da Constituição, nas palavras de SMEND, advém “de seus valores materiais
próprios”.8 Esclarecedora é a leitura de GILBERTO BERCOVICI, segundo quem, para
Smend, o aspecto relevante é a “realidade integradora, permanente e contínua da
Constituição”, e, mais ainda, a “elasticidade e capacidade transformadora e supletiva de sua interpretação”.9 “Mediante a constitucionalização como integração dos cidadãos – afirma PABLO LUCAS VERDÚ –, vão-se assumindo os valores capitais que fundamentam e inspiram a comunidade estatal. Deste modo, o reconhecimento, pela
cidadania, de valores superiores, motivado por sua vis atrativa e percebidos emotivamente (sentimento constitucional), atuam eficazmente para integrar o Estado.”10
A existência ou criação de um contexto que a Constituição produz e em que
ela se produz, e que a transcende, quiçá esteja presente na concepção de PETER HÄBERLE, quando afirma que a Constituição “se remete a algo mais, isto é, a uma realidade apenas sugerida por indícios ‘superficiais’, setoriais e fragmentários do próprio
texto legal, que ela mesma criou”.11
Podemos aproveitar, no presente estudo, essa perspectiva de integração cultural
que a Constituição deve assegurar e propor (sendo a própria Constituição a projeção
jurídica dessa integração). Porém a integração normativa não deve ocultar ou oprimir
as diversas e eventualmente divergentes concepções que compõem o mosaico social
(especialmente diversificado no Brasil): a Constituição deve representar justamente o
compromisso de tolerância e harmonia, nisso residindo muito do efeito integrador.
6 Teoría de la Constitución como ciencia de la cultura, p. 45.
7 Constitución y derecho constitucional, p. 132.
8 Constitución y derecho constitucional, p. 140.
9 A Constituição dirigente e a crise da Teoria da Constituição, p. 97-98.
10 Teoría de la Constitución como ciencia cultural, p. 131: “Mediante la constitucionalización como integración
de los ciudadanos se van asumiendo los valores capitales que fundamentan, e inspiran, a la comunidad estatal. De
este modo, el reconocimiento por la ciudadanía de valores superiores motivado por su vis atractiva y percibidos
emotivamente (sentimiento constitucional) operan eficazmente para integrar el Estado.”.
11 Teoría de la Constitución como ciencia de la cultura, p. 23: “(la Constitución) se remite a algo más, esto es, a
una realidad únicamente sugerida por indicios «superficiales», sectoriales y fragmentarios del propio texto legal, que
ella misma ha creado”.
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Enfim, a cultura faz parte da “constituição material” do país, com conseqüências jurídicas derivadas dessa posição constitucional de supremacia12; primordialmente, as normas constitucionais sobre cultura funcionam como parâmetros para o
controle de constitucionalidade13.
Há uma implicação entre cultura e nação, pois o fenômeno cultural é sempre
uma manifestação de determinado povo. Por isso que a Constituição, sendo a projeção jurídica da identidade nacional, é, ela mesma, uma expressão cultural desse(s)
povo(s). A cultura nacional é entendida “como a cultura comum de uma sociedade
nacional, uma dimensão dinâmica e viva, importante nos processos internos dessa
sociedade, importante para entender as relações internacionais” (JOSÉ LUIZ DOS SAN14
TOS ). E por falar em relações internacionais, mesmo documentos jurídicos de âmbito supraestatal mencionam a cultura, do que são exemplo a Convenção sobre a
Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural (Paris, 1.972)15, e o Projeto de
Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa (2.003)16. O art. 1º da Convenção define, ainda que limitadamente, como “patrimônio cultural”:
- os monumentos: obras arquitetônicas, de escultura ou de pintura monumentais, elementos ou estruturas de natureza arqueológica, inscrições, cavernas e grupos de elementos, que tenham um valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou
da ciência;
- os conjuntos: grupos de construções isoladas ou reunidas que, em
virtude de sua arquitetura, unidade ou integração na paisagem,
tenham um valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência;
- os lugares notáveis: obras do homem ou obras conjugadas do homem e da natureza, bem como as zonas, inclusive lugares arqueológicos, que tenham valor universal excepcional do ponto de vista
histórico, estético, etnológico ou antropológico.17
12 LUÍS ROBERTO BARROSO, Interpretação e aplicação da Constituição, p. 150-160.
13 CLÈMERSON MERLIN CLÈVE, A fiscalização abstrata da constitucionalidade no Direito brasileiro, p. 24-34.
14 O que é cultura, p. 73.
15 PAULO AFFONSO LEME MACHADO, Direito ambiental brasileiro, p. 773-774; FÁBIO KONDER COMPARATO, A afirmação
histórica dos direitos humanos, p. 347-350.
16 O art. II-22 do Projeto, da parte relativa à Carta dos Direitos Fundamentais da União, dispõe: “A União respeita a
diversidade cultural, religiosa e lingüística.”
17 FÁBIO KONDER COMPARATO aponta para a omissão, na Convenção, das obras de arte plástica não monumentais e das
obras manuscritas ou impressas, “tais como incunábulos, livros, cartas missivas ou partituras musicais” (A afirmação histórica dos direitos humanos, p. 348). Incunábulo, registra o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (Rio
de Janeiro: Objetiva, 2001), seria o “impresso que data dos primeiros tempos da imprensa (até o ano de 1500)”, ou
“as primeiras produções de tipografia (anteriores a 1500)”.
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DIREITO E DEVER FUNDAMENTAL
A cultura é não apenas um valor constituinte da sociedade brasileira, senão
também um direito fundamental das pessoas. Todos têm direito de participar da cultura e de ter acesso ao patrimônio histórico. A Declaração Universal dos Direitos Humanos (1.948), da Organização das Nações Unidas (ONU), dispõe: “Todo homem
tem direito a participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes
e de participar do progresso científico e de seus benefícios.” (art. XXVII. 1).
O patrimônio cultural, enquanto objeto de direito fundamental, é tanto de
titularidade individual quanto coletiva. Jogado esse critério (da titularidade) em
perspectiva cronológica, teríamos o direito ao patrimônio cultural como um direito de primeira e de terceira “gerações”.18 Sob o prisma individual, por exemplo, o Poder Público não poderia desapossar alguém de antigas fotos de família,
de colégio etc., salvo se o valor histórico desses objetos fosse também social (público) E também o patrimônio cultural pertenceria à humanidade, como direito
fundamental que leva em consideração não apenas o porvir (direito que as pessoas do futuro já têm agora em relação, por exemplo, ao patrimônio histórico, inclusive a fatos de nosso presente, que, à falta de recuo histórico, possam parecernos de somenos importância, mas que representarão nosso legado e, para os vindouros, seu passado), mas o passado (um direito nosso ao que se foi e um direito dos de ontem ao que era seu como presente e como passado). Somente uma
perspectiva transcendente ao individualismo contemporâneo, que se abra para
outras pessoas e outros tempos, dá conta de avaliar a importância do patrimônio
cultural enquanto direito fundamental de velha e nova geração. Sob o ponto-devista jurídico-processual, o reconhecimento do direito ao patrimônio cultural
como de “terceira geração” facilita a utilização do direito de ação (mas não apenas a via do Judiciário) por qualquer sujeito em prol de toda a coletividade, bem
como por associações e por instituições públicas (como o Ministério Público); e
permite um maior alcance das decisões e acordos.
A consagração de um direito como fundamental, vale dizer, sua constitucionalização, implica uma consideração subjetiva (de cunho, digamos, individual) e uma
consideração objetiva (de cunho, digamos, institucional). PETER HÄBERLE aponta,
dentre diversos aspectos do “Direito Constitucional cultural”, o jurídico-individual
(dando como exemplos a liberdade subjetiva artístico-científica e o direito a receber
uma boa formação, conforme previstos em textos constitucionais) e o jurídico-institucional (dando como exemplos instituições de formação de adultos e do povo em
18 Na perspectiva de PAULO BONAVIDES (Curso de direito constitucional, p. 523), dentre os direitos de terceira geração está o direito ao patrimônio comum da humanidade. De quarta geração considera ele o direito ao pluralismo
(p. 525). Sobre o tema, consulte-se a resenha de VLADIMIR BREGA FILHO, Direitos fundamentais na Constituição de
1988. Conteúdo jurídico das expressões, p. 23-25.
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geral; garantias de feriados oficiais; instituições religiosas e de fomento, todas conforme previsão em textos constitucionais).19
A concretização do direito fundamental ao patrimônio cultural requer – como
marcadamente o exigem os chamados “direitos econômicos, sociais e culturais”, mas é
genericamente de qualquer direito fundamental – a disposição de meios e modos. Por
exemplo, faz parte da promoção do direito fundamental à cultura a previsão e alocação
de recursos orçamentários destinados à preservação de monumentos históricos. É possível exigir a respectiva inclusão. Num país de escassos recursos e múltiplas demandas
de primeira necessidade, temos aqui um desafio político-administrativo. Uma modalidade indireta de fomento (indireta porque não requer aplicação imediata de recursos pelo
Estado), de mais fácil operacionalização, é a renúncia fiscal.
A abertura da escola para informações e manifestações de diferentes grupos e
opiniões é outra forma significativa de assegurar o direito à cultura sob uma perspectiva institucional. Ao assegurar a pluralidade em face da hegemonia dos padrões
culturais predominantes, está-se a oferecer uma garantia objetiva ao direito fundamental à cultura, de cunho procedimentalista: o Direito não diz algo sobre o conteúdo do direito, senão que assegura as diversas manifestações.
A Constituição brasileira de 1988 não se reduz, no entanto, a um conjunto de
garantias procedimentais. Ela toma o partido de determinados conteúdos que, às
vezes, revelam preocupação democrática com minorias (para ilustrar: deve-se assegurar a utilização das línguas maternas e dos processos próprios de aprendizagem
às comunidades indígenas no ensino fundamental: art. 210, § 2º) e, às vezes, fazem
concessões aos padrões dominantes (o ensino religioso, embora facultativo, como
disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental e, curiosamente, não das particulares: art. 210, § 1º).
São reconhecidos pela Constituição os seguintes direitos culturais, na perspectiva de JOSÉ AFONSO DA SILVA:
(a) liberdade de expressão da atividade intelectual, artística, científica; (b) direito de criação cultural, compreendidas as criações
artísticas, científicas e tecnológicas; (c) direito de acesso às fontes
da cultura nacional; (d) direito de difusão das manifestações culturais; (e) direito de proteção às manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras e de outros grupos participantes
do processo civilizatório nacional; (f ) direito-dever estatal de formação do patrimônio cultural brasileiro e de proteção dos bens de
cultura – que, assim, ficam sujeitos a um regime jurídico especial,
como forma de propriedade de interesse público. Tais direitos decorrem das normas dos arts. 5º, IX, 215 e 216.20
19 Teoría de la Constitución como ciencia de la cultura, p. 30.
20 Ordenação constitucional da cultura, p. 51-52.
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Ao Poder Público e a todos incumbe proporcionar essa participação e esse acesso,
pelo que existe um dever constitucional fundamental autônomo de preservar e promover a cultura. Por exemplo, se tenho um objeto de valor histórico, devo dele cuidar mesmo que ninguém ainda tenha demonstrado interesse por ele. No plano institucional, o
tombamento revela, de modo compulsório, a exigência de cumprimento desse dever.
Abra-se um parêntesis para rememorar o conceito de tombamento, segundo
DIOGO DE FIGUEIREDO MOREIRA NETO:
espécie de intervenção ordinatória e concreta do Estado na propriedade privada, limitativa de exercício de direitos de utilização e de disposição, gratuita, permanente e indelegável, destinada à preservação, sob regime especial, dos bens de valor cultural, histórico, arqueológico, artístico, turístico ou paisagístico21.
Para JOSÉ AFONSO DA SILVA, é o tombamento
o ato do Poder Público que, reconhecendo o valor cultural (histórico, arqueológico, etnográfico, artístico ou paisagístico) de um
bem, mediante sua inscrição no livro próprio, subordina-o a um
regime jurídico especial que lhe impõe vínculos de destinação, de
imodificabilidade e de relativa inalienabilidade.22
DIMITRI DIMOULIS aponta deveres fundamentais por parte do Estado e por
parte dos cidadãos e da sociedade, referindo “o serviço militar obrigatório (art.
143) e a educação enquanto dever da família (art. 205)”.23 Pode-se citar, ainda na
Constituição brasileira, o genérico dever de proteção do patrimônio histórico
(art. 216, especialmente os §§ 1º e 4º) e, no âmbito da educação, a obrigatoriedade do ensino fundamental (art. 208, I). CANOTILHO enfatiza – com base no texto claro da Constituição portuguesa (“Todos têm direito à fruição e criação cultural, bem como o dever de preservar, defender e valorizar o patrimônio cultural.”:
art. 78.1) – o caráter autônomo dos deveres fundamentais: “não se estabelece a
correspectividade estrita entre direitos fundamentais e deveres fundamentais. O
carácter não relacional entre direitos e deveres resulta ainda da compreensão não
funcionalista... dos direitos fundamentais na ordem constitucional portuguesa.”;
a seguir, o constitucionalista luso exemplifica com “o dever de defesa do património relacionado com o direito à fruição e criação cultural (art. 78º/1)”.24 Mais am21 Curso de direito administrativo, p. 368-369.
22 Ordenação constitucional da cultura, p. 159.
23 Manual de introdução ao estudo do Direito, p. 252.
24 Direito constitucional, p. 548.
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plamente, a Declaração Universal dos Direitos Humanos dispõe, no art. XXIX,.1:
“Todo homem tem deveres para com a comunidade na qual o livre e pleno desenvolvimento de sua personalidade é possível.”
Ao tratar dos objetivos educacionais enquanto tema central de uma “teoria
constitucional da cultura”, PETER HÄBERLE alude a deveres nos seguintes termos:
Objetivos educacionais são, por exemplo, a tolerância e a dignidade humana, que refletem a concepção antropológica existente,
mas também a conscientização da existência do próprio Estado de
Direito e do império da lei com todas suas múltiplas implicações,
assim como a assunção consciente de responsabilidades, a abertura de vistas frente ao resto do mundo, o sentido do dever e de
quantos deveres básicos específicos elenca a Constituição...25
Da dupla configuração da cultura como direito e dever constitucional, extraise uma perspectiva prospectiva, voltada ao futuro: o compromisso de legar às gerações futuras o patrimônio cultural adquirido e de assegurar-lhes condições para seu
próprio desenvolvimento cultural. PETER HÄBERLE refere que a Constituição do Estado alemão da Saxônia preceitua, no art. 27.1, com relação aos objetivos educacionais e de formação, uma “Responsabilidade (...) frente a futuras gerações”.26
TAREFA DO ESTADO
Compete (no sentido de dever-poder) ao Poder Público proteger e promover
a cultura. Como ensina JORGE MIRANDA,
tarefas equivalem a fins do Estado manifestados em certo tempo
histórico, em certa situação político-constitucional, em certo regime, em certa Constituição em sentido material. Traduzem um determinado enlace entre o Estado e a sociedade. Implicam um princípio (ou uma tentativa) de legitimação do exercício do poder.27
25 Teoría de la Constitución como ciencia de la cultura, p. 85: “Objetivos educacionales son, por ejemplo, la tolerancia y la dignidad humana, que reflejan la concepción antropológica existente, pero también la concienciación
de la existencia del propio Estado de Derecho y del imperio de la ley con todas sus múltiples implicaciones, así
como la asunción consciente de responsabilidades, la apertura de miras frente al restante mundo, el sentido del deber y de cuantos deberes básicos específicos reseña la Constitución...”. Veja-se referencia anterior às pp. 82-83.
26 Teoría de la Constitución como ciencia de la cultura, p. 29.
27 Manual de direito constitucional, t. IV, p. 344.
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Com efeito, “a garantia da liberdade de expressão cultural não é suficiente para
seu gozo, requerendo que o Estado apóie e incentive a valorização e a difusão das manifestações culturais” (JOSÉ AFONSO DA SILVA28). Essa atribuição está entre as indeclináveis
incumbências do Estado brasileiro, constitucionalmente previstas e referidas a todas as
esferas da federação e a todos os âmbitos do Poder Público: todos os órgãos (Executivo – inclusive a Administração indireta, Legislativo – inclusive na função de fiscalização,
Judiciário e demais funções essenciais à Justiça) e atividades (inclusive aquelas prestadas por intermédio de sujeitos privados: concessionários, organizações sociais etc.).
Por meio da educação, por exemplo, o Estado desempenha uma importantíssima tarefa cultural, não apenas relativa à transmissão de informações, mas de valores, dentre os quais se sobressai a tolerância: “o pluralismo se converte em uma
‘meta de aprendizagem’ via tolerância” (PETER HÄBERLE29).
Um Tribunal de Contas pode rejeitar uma política indevida de alocação de recursos para a preservação do patrimônio histórico (por exemplo, gastos elevados com
apresentações de cantores ou exposições de peças e quase nenhuma despesa com a restauração de prédios históricos), pois às Cortes de Contas cabe inclusive uma apreciação
quanto à legitimidade e economicidade dos gastos públicos, di-lo o art. 70, caput, da
Constituição da República. Também isenções de imposto predial e territorial urbano
(IPTU) concedidas a mansões históricas cujos abonados proprietários (eventualmente
pessoas jurídicas empresariais) podem ser questionadas, por traduzirem renúncia fiscal
em favor de quem detenha inegável capacidade contributiva.
Tanto é tarefa do Poder Público a preservação e promoção da cultura, que a legislação brasileira de combate à improbidade administrativa (Lei 8.429/ 1.992) prevê, como
ato de improbidade administrativa que causa prejuízo ao erário, “agir negligentemente...
no que diz respeito à conservação do patrimônio público” (art. 10, X).
O imenso acervo ferroviário brasileiro inclui não apenas as composições, estradas de ferro e estações, mas todos os bens ligados ao serviço, como as vilas dos
ferroviários, a documentação, o mobiliário, enfim, quaisquer componentes de um
destacado setor e época que produziram uma cultura própria. O regime previdenciário dos ferroviários representou um significativo avanço social; com efeito, foi a
Lei Eloy Chaves (Decreto Legislativo 4.682, de 24 de janeiro de 1.923) que – como
diz ODONEL URBANO GONÇALVES – “implantou no Brasil o sistema de Previdência Social”30, com a criação das Caixas de Aposentadorias e Pensões
nas empresas de estradas de ferro existentes, mediante contribuições dos trabalhadores, das empresas do ramo e do Estado, assegu28 Ordenação constitucional da cultura, p. 74.
29 Teoría de la Constitución como ciencia de la cultura, p. 87: “el pluralismo se convierte en una «meta de aprendizaje» vía tolerancia”.
30 Manual de direito previdenciário, p. 21-22.
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rando aposentadoria aos trabalhadores e pensão a seus dependentes em caso de morte do segurado, além de assistência médica
e diminuição do custo de medicamentos (CARLOS ALBERTO PEREIRA DE
CASTRO e JOÃO BATISTA L AZZARI31).
O descaso para com esse acervo histórico, entregue freqüentemente ao sucateamento em razão de não interessar à privatização, pode consistir em ato típico de
improbidade administrativa. Para tanto, a compreensão de “patrimônio público” (ou
“erário”) deve envolver
o conjunto de bens e interesses de natureza moral, econômica, estética, artística, histórica, ambiental e turística pertencentes ao Poder Público, conceito este extraído do art. 1º da Lei nº 4.717/65 e da
dogmática contemporânea, que identifica a existência de um patrimônio moral do Poder Público,
na lição de EMERSON GARCIA e ROGÉRIO PACHECO ALVES, que exemplificam com a situação do “agente público que permite a deterioração de prédio que abriga repartição pública e que se encontra tombado e incorporado ao patrimônio histórico e cultural”.32
Pelo Ministério Público Federal, tivemos oportunidade de intermediar a cessão da antiga estação ferroviária de Mairinque (SP) – das primeiras construções em
concreto armado do país e que se encontrava em completo abandono – pela proprietária Rede Ferroviária Federal S.A. (RFFSA) ao Município, que a restaurou com
fins culturais e terminou por adquiri-la.
distribuição de competências
No plano do fazer, todos os entes da federação têm competência (administrativa, executiva) para “proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios
arqueológicos” (art. 23, III). Trata-se de atribuição comum (um “consórcio material”,
na sugestiva expressão de JOSÉ ADÉRCIO LEITE SAMPAIO33), deferida de modo indistinto
e simultâneo34 ao Poder Público de todas as esferas federativas.35 Essa atribuição plural pode dar ensejo a conflitos.
31 Manual de direito previdenciário, p. 50.
32 Improbidade administrativa, p. 204-206.
33 A constituição reinventada pela jurisdição constitucional, p. 631.
34 O termo é empregado por ANDRÉ RAMOS TAVARES (Curso de direito constitucional, p. 838).
35 A concorrência de competências é encontrada mesmo em Espanha, considerada um Estado unitário, conquanto fortemente descentralizado (veja-se os comentários de MANUEL PULIDO QUECEDO, La Constitución española, p.
917-918 e 1.574-1.575, aos art. 46 e 149 da Constituição espanhola de 1.978.
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No plano do “dizer como se faz” (competências normativas, legislativas), a
Constituição novamente distribuiu de modo horizontal a atribuição de “proteção ao
patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico” entre os diversos entes federados (art. 24, VII). Calha advertir que também os Municípios partilham dessa atribuição, conquanto esquecidos pelo caput do art. 24: há a referência expressa
do art. 30, II, que se vale exatamente da mesma expressão utilizada para designar a
competência concorrente dos Estados-membros (art. 24, § 2º): “suplementar a legislação federal e a estadual no que couber”.
Essa competência legislativa, embora concorrente, não se distribui entre os
entes federados de modo idêntico, por isso que se diz não-cumulativa.36 À União cabem as normas gerais; aos Estados-membros e aos Municípios, a respectiva suplementação. Conflitos que surjam devem levar em conta os respectivos âmbitos de incidência e a natural dependência que existe entre normas gerais e normas específicas. Simplificando: as normas gerais da União haverão de ser respeitadas pelos Estados-membros e Municípios; as normas gerais daqueles, por estes. O Decreto-Lei
25/1.937, que “[o]rganiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional”,
pode ser considerado como conjunto de normas gerais federais.37 Mesmo ele, no entanto, incide em inconstitucionalidade – violando o princípio federativo – quando,
ao estabelecer o direito de preferência em face da alienação onerosa, concede primazia à União em relação aos Estados e Municípios e daqueles em relação a estes
(art. 22).
Voltemos às competências materiais, onde todos os entes da federação podem/devem proteger os bens de valor histórico. Não há precedência estabelecida. A
ilustração é a seguinte: um imóvel onde ocorreram fatos historicamente significativos é tombado pelo Poder Público municipal; tempos depois, também é tombado
pelo Poder Público estadual; por último, é declarado de valor histórico nacional e
novamente tombado, pelo Poder Público federal. Pode parecer pouco usual, mas é
perfeitamente possível o tombamento do mesmo bem por diversas esferas da federação. Um pouco ingênuo o exemplo em que diversos entes da federação tombam
o mesmo bem, num país que não tem um histórico favorável de proteção do patrimônio histórico (seja perdoado o trocadilho). Voltemos ao caso. Surge a necessidade de restaurar a fachada do prédio e o proprietário não tem condições de fazê-lo,
o que suscita o dever do Poder Público (art. 19 do Decreto-Lei 25/1.932). O Município, após uma pesquisa, decide que a cor da fachada original – que deve ser usada
na pintura por ocasião do restauro – era branca; o Estado, tendo pesquisado também, chega à conclusão de que a cor original era amarela; os estudos do Poder Público federal revelam uma fachada marrom. Qual a cor que deve prevalecer? Porque
se trata de competência cumulativa, inexistindo uma ordenação prévia, e conside36 MARLON ALBERTO WEICHERT, Saúde e federação na Constituição brasileira, p. 86.
37 DIOGO DE FIGUEIREDO MOREIRA NETO, Curso de direito administrativo, p. 369.
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rando sempre o critério da maior proximidade (que contempla o ente mais local, ou
seja, o Município em face do Estado-membro e da União; o segundo em face desta),
somente a análise do caso concreto saberá indicar a melhor solução. A pesquisa mais
apurada, os argumentos mais convincentes, orientarão a escolha. Para que o exemplo não fique descolorido, teria sido o Estado-membro a apresentar estudos mais sérios: a fachada será pintada de amarelo.
A despeito do exemplo, o tombamento não tem sido conjugado conforme a
partilha constitucional de competências. Embora, no exercício de sua autonomia e
seguindo seus próprios critérios, todas as esferas da federação (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) possam tombar o mesmo bem, acontece de bens tombados em âmbito estadual e/ou federal não o serem pelo Município onde situado e
para quem o interesse em preservá-lo talvez seja mais evidente. Impõe-se aqui que
os Municípios assumam sua incumbência e realizem o sempre possível tombamento concorrente (quando não decidam por um tombamento original).
No Município de Bauru (SP), parece não haver nenhum bem tombado em âmbito federal (pelo órgão competente, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional – IPHAN, vinculado ao Ministério da Cultura); em Piracicaba (SP), há somente a casa onde residiu e faleceu o ex-Presidente Prudente de Moraes, que hoje
abriga um museu histórico e pedagógico e que foi tombada em 2.003.38 Em Bauru,
no âmbito municipal, há, tombados pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Cultural de Bauru (CODEPAC): a Estação Central Ferroviária (2.000); o Automóvel Clube
de Bauru (2.001); a antiga estação da Companhia Paulista de Estrada de Ferro
(2.002); o Comando de Policiamento do Interior, antigo 4º Batalhão de Polícia Militar do Interior, e seu entorno (2.002); o frontispício do Cemitério da Saudade
(2.002); o Hotel Cariani (2.002); a Igreja Santa Terezinha (2.002); a Igreja Tenrikyo
(2.003) e o Residencial Brasil-Portugal; não consta tombamento em âmbito estadual.
Em Piracicaba, no âmbito estadual, há, tombados pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (CONDEPHAAT), a Casa do Povoador (1.970); o Passo da Via Sacra São Vicente de Paula (1.972); a Casa de Pudente de Moraes (1.973) e o edifício da antiga Escola Normal de Piracicaba (2.002); no
âmbito municipal, o Conselho de Defesa do Patrimônio Cultural (CONDEPAC) tombou o Mercado Municipal (1.987); o Engenho Central (1.989); o Palacete Boyes
(1.997); o Largo dos Pescadores (2.000); o Museu da Água (2002); a antiga estação
ferroviária do distrito de Ártemis (2.002); a antiga sede da Sociedade de Beneficência Portuguesa (2.002); o antigo prédio da escola estadual Francisca Elisa da Silva
(2.002); área da Chácara do Morato (2.002); a Chácara Nazareth (2.002); o Clube Coronel Barbosa (2.002); o edifício principal e anexo Martha Watts, do Instituto Educacional Piracicabano (2.002); a escola Moraes Barros (2.002); a escola estadual Sud
38 Informações obtidas em <http://www.iphan.gov.br./ans/inicial>; acesso em 06/10/2.004.
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Mennucci (2.002); a escola estadual Barão do Rio Branco (2.002); a escola estadual
Marquês de Monte Alegre (2.002); a Igreja do Sagrado Coração de Jesus (2.002); a
Igreja do Senhor Bom Jesus do Monte (2.002); a Igreja Metodista Central de Piracicaba (2.002); a Igreja São Benedito (2.002); o Parque do Mirante (2.002); o Pavilhão
de Engenharia da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz - ESALQ (2.002); o
portal do Cemitério da Saudade (2.002); o Seminário Seráfico São Fidélis (2.002); o
antigo prédio da Companhia Paulista de Força e Luz – CPFL (2.003); o Grupo Espírita Fora da Caridade (2.003); o Prédio de Hiroshi Matsubara (2.003); a sede da Sociedade Beneficente 13 de Maio (2.003); diversos imóveis de propriedade particular
(2.002 e 2.003) e o Teatro São José.39
ESPAÇO DEMOCRÁTICO (PLURALISMO)
A franca opção por um regime democrático (Estado Democrático de Direito,
na formulação do art. 1º da Constituição brasileira) significa a assunção das diversas
manifestações culturais existentes, num compromisso de respeito pluralista e à medida que as manifestações culturais não deponham contra o próprio regime democrático (por exemplo, proibição de manifestações terroristas: art. 5º, XVII e XLIV, da
Constituição). Trata-se de “uma democracia constitucional baseada no pluralismo
como princípio”, no dizer de PETER HÄBERLE40, para quem um conceito cultural aberto deve significar cultura para todos e cultura de todos41. JOSÉ AFONSO DA SILVA aponta que o tratamento dispensado ao tema pela Constituição brasileira
valoriza os fatores de diferenciação das culturas singulares (aliás,
expressamente indicadas: populares, indígenas, afro-brasileiras e de
outros grupos – italianos, japoneses, alemães – participantes dessa evolução sociocultural), só explicáveis como esforços de adaptação a condições ecológicas e históricas específicas e como produto de uma criatividade própria.42
Merece citação, também, o seguinte texto da Constituição portuguesa de 1.976:
O Estado promove a democratização da cultura, incentivando e
assegurando o acesso de todos os cidadãos à fruição e criação cultural, em colaboração com os órgãos de comunicação social, as
39 Informações obtidas em <http://www.guiacultural.sp.gov.br/>; acesso em 06/10/2.004.
40 Teoría de la Constitución como ciencia de la cultura, p. 34: “... una democracia constitucional basada en el pluralismo como principio”.
41 Teoría de la Constitución como ciencia de la cultura, p. 30.
42 Ordenação constitucional da cultura, p. 36.
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associações e fundações de fins culturais, as colectividades de cultura e recreio, as associações de defesa do patrimônio cultural, as
organizações de moradores e outros agentes culturais. (art. 73.3).
É complexa a solução de conflitos porventura surgidos entre manifestações culturais antagônicas e que opõem, freqüentemente, concepções majoritárias a minoritárias. No campo religioso, um grupo de alunos e seus pais, provavelmente não-cristãos, pede seja retirado o crucifixo da sala de aula de uma escola pública na Alemanha;
o Tribunal Constitucional Federal dá-lhes razão.43 No campo civil, representantes de etnias minoritárias reivindicam que suas datas mais significativas também sejam tidas
como feriados. A construção de uma importante rodovia implicará a destruição de um
sítio arqueológico. Moderno prédio, sintonizado com a estética e funcionalidade contemporâneas, desfigurará a região antiga onde se pretende construí-lo.
Sobre animais, há a conhecida decisão tomada a partir de uma ação civil pública promovida por uma associação de ambientalistas, para proibir a “farra do boi’,
tradicional festa popular dos descendentes de açorianos em Santa Catarina; devendo optar entre a determinação constitucional de proteção às manifestações das culturas dos grupos participantes do processo civilizatório nacional (art. 215, § 1º, da
Constituição brasileira) – aí incluídas as formas de expressão dos diferentes grupos
formadores da sociedade brasileira (art. 216, I) – e a proibição constitucional de práticas que submetam os animais a crueldade (art. 225, § 1º, VII), o Supremo Tribunal
Federal fez pender a balança para o lado deste último valor.44
A “farra do boi” é talvez a mais tradicional manifestação cultural de uma minoria. Estão envolvidos animais que longe estão da ameaça de extinção (embora a vedação à crueldade não faça distinção). Não é a sensibilidade “ecológica” dessa comunidade que é atingida pela prática, mas a sensibilidade da maioria da população, sob
o apelo contemporâneo dos valores “ecológicos”. Não era uma decisão fácil nem foi
tomada por unanimidade. Argumentou-se em defesa que o Poder Público estadual
havia tomado as providências necessárias para coibir excessos, fazendo efetivo o policiamento nas ocasiões respectivas. A decisão do Supremo Tribunal Federal não se
contentou e determinou a proibição.
Tivemos oportunidade, no Ministério Público Federal, de enfrentar dois casos
interessantes envolvendo animais. O primeiro e mais apelativo dava conta de um filme pornográfico em que eram utilizados animais em cenas de sexo explícito com seres humanos. As fitas foram produzidas e estavam sendo comercializadas regularmente, inclusive com advertência relativa aos menores de idade. Considerações à parte so43 RODRIGO MEYER BORNHOLDT, Novos contornos da liberdade de expressão e do direito à honra – uma diversa
abordagem da colisão no Direito brasileiro, p. 310-311.
44 Recurso Extraordinário 153.531-SC, relator Ministro Marco Aurélio, julgamento em 10 de junho de 1.997. A decisão é referida por JOSÉ ADÉRCIO LEITE SAMPAIO, ob. cit., p. 701-702.
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bre a (péssima) qualidade e o (mau) gosto da produção (avaliações, ademais, extremamente pessoais), impunha-se uma análise técnico-jurídica. O parâmetro encontrado foi o art. 32 da Lei 9.605/1.998, que veda, dentre outras condutas, submeter os animais a ato de abuso ou maus-tratos. Tomamos “maus-tratos” como um critério mais
objetivo e solicitamos uma avaliação técnica (veterinária) sobre se os animais provavelmente sofreram fisicamente; a resposta foi negativa. Tomamos “abuso” como um
critério mais subjetivo, que permitisse avaliar também se os animais estavam sendo
utilizados absoluta e indevidamente fora de contexto45. Aqui, a liberdade de expressão
e de lazer foram determinantes e optamos pelo arquivamento.
O outro caso era representado pela pretensão de uma associação, de coibir o
abate dos animais de consumo em condições de suposto sofrimento. Especificamente, a crítica voltava-se contra a forma de abate designada “jugulação cruenta”, adotada
pela comunidade muçulmana e pela judaica (kosher). Nos indevidos termos em que
formulada, a pretensão atingia determinadas comunidades minoritárias e não quaisquer formas de abate cruel. E comunidades para as quais a forma de abate é muito importante, sendo que uma das alegadas razões para esse tipo de abate – em que há um
especialista encarregado e uma técnica precisa utilizada – é justamente a morte rápida do animal, para que não sofra demasiado, fazendo-se escorrer o sangue para livrar
a carne de impurezas. Optamos novamente pelo arquivamento.
Os índios mereceram uma ponderada decisão do Supremo Tribunal Federal, que
salvaguardou indígena do comparecimento a comissão parlamentar de inquérito. Tratava-se de comissão parlamentar de inquérito46 que investigava a ocupação de terras públicas na região amazônica e que intimou líder indígena a prestar depoimento em audiência na Capital de Rondônia (Boa Vista). O tribunal concedeu habeas corpus para
tornar sem efeito a intimação, sem prejuízo da oitiva do índio “na área indígena, em dia
e hora previamente acordados com a comunidade, e com a presença de representante da FUNAI e de um antropólogo com conhecimento da mesma comunidade”.47 A decisão soube avaliar adequadamente os interesses em jogo, ao considerar o indígena
como pleno participante da sociedade brasileira e, assim, no dever de prestar esclarecimentos perante comissão parlamentar de inquérito; a peculiaridade cultural não foi
considerada razão que justificasse a subtração do indígena àquele dever. Todavia, para
não tornar o depoimento exageradamente penoso ao indígena, tendo em vista justamente sua peculiaridade cultural, considerou-se razoável que a comissão parlamentar
de inquérito se deslocasse até a aldeia e tomasse o depoimento sob a assistência de antropólogo e de representante do órgão oficial de proteção aos índios.
No âmbito da cultura, a interpretação/aplicação das normas jurídicas pertinentes deve levar em alta conta o pluralismo, a possibilidade de convivência, o me45 LUIZ ALBERTO DAVID ARAUJO e VIDAL SERRANO NUNES JÚNIOR, Curso de direito constitucional, p. 457-458.
46 Veja-se LUIZ CARLOS DOS SANTOS GONÇALVES, Comissões parlamentares de inquérito. Poderes de investigação.
47 Habeas Corpus 80.240-RO, relator Ministro Sepúlveda Pertence, julgamento em 20/06/2.001.
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nor sacrifício razoável, tendo em vista as exigências de um regime democrático,
preocupado com a proteção das minorias. “O problema da democracia participativa – observa JOSÉ AFONSO DA SILVA – está precisamente em construir o equilíbrio entre as tensões múltiplas e por vezes contraditórias, em conciliar a sociabilidade e o
particularismo, em administrar os antagonismos e evitar divisões irredutíveis.”48
A diversidade cultural deve manifestar-se também na dimensão temporal, é dizer, devem ser prestigiadas não apenas manifestações culturais do passado, mas
igualmente as do presente49 e as potenciais. O direito à cultura, como direito fundamental, tem uma “repercussão temporal que ultrapassa a existência de uma geração”50, ou seja, sem deixar de ser fenômeno histórico, contextualizado no tempo e
no espaço, importa para aquém e além de determinado momento. PETER HÄBERLE
alude à “vivência da individualidade ou especificidade de um povo determinado que
encontra sua identidade tanto na tradição histórica como em suas próprias experiências, e que reflete suas esperanças em forma de desejos e aspirações de futuro”.51 Uma exagerada restrição ao planejamento urbano, inclusive a novas construções, pode “fossilizar” uma cidade e impedir as expressões contemporâneas; os arquitetos do presente, por exemplo, têm um direito semelhante de exprimir suas
concepções estéticas. Sem prejuízo da preservação de sítios inteiros (por exemplo,
vilas como Paraty e Outro Preto), quando o justifique a importância histórica do
conjunto. Essa tensão não passou despercebida a JOSÉ AFONSO DA SILVA:
há na correlação renovação urbana/proteção do meio ambiente urbano uma tensão entre valores que se opõem: de um lado, a necessária e indispensável adequação da cidade aos valores do progresso, mediante a remodelação de áreas, zonas ou bairros envelhecidos e deteriorados; de outro, a necessária e também indispensável
preservação da memória da cidade, mediante a proteção do ambiente urbano. A renovação, assim, terá que ser comedida, a fim
de manter um equilíbrio entre as duas exigências.52
Por isso que devem ser respeitados e oferecidos espaços às diversas concepções culturais, inclusive à chamada “cultura popular”, caracterizada – na perspectiva de JOSÉ LUIZ DOS SANTOS – por manifestações culturais das classes dominadas e di48 Ordenação constitucional da cultura, p. 76.
49 Como afirma HÄBERLE, o entorno cultural é “produto tanto de gerações anteriores como das atuais” (Teoría de
la Constitución como ciencia de la cultura, p. 31).
50 WALTER CLAUDIUS ROTHENBURG, Direitos fundamentais e suas características, p. 61.
51 Teoría de la Constitución como ciencia de la cultura, p. 32: “... vivencia de la individualidad o especificidad de
un pueblo determinado que logra su identidad tanto en la tradición histórica como en sus propias experiencias, y
que refleja sus esperanzas en forma de deseos y aspiraciones de futuro”.
52 Ordenação constitucional da cultura, p. 97-98.
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ferentes da cultura dominante, que estão fora das instituições “oficiais” (universidades, academias, ordens profissionais...) e “que existem independentemente delas,
mesmo sendo suas contemporâneas”53. Por exemplo, a autorização de ocupação de
praças públicas, de madrugada, por “tribos” urbanas/suburbanas de “contracultura”
(“darks”, skatistas ...), se for essa sua reivindicação. Enfatiza JOSÉ AFONSO DA SILVA que
“não pode haver cultura imposta, que o papel do Poder Público deve ser o de favorecer a livre procura das manifestações culturais, criar condições de acesso popular
à cultura, prover meios para que a difusão cultural se fundamente nos critérios de
igualdade”.54 Para JORGE MIRANDA, isso importa “uma efectivação não autoritária e não
estatizante, aberta à promoção pelos próprios interessados e às iniciativas vindas da
sociedade civil”.55 O Poder Público há de contemplar os diversos segmentos da comunidade e as diferentes expressões, incentivando ou promovendo, por exemplo,
não apenas apresentações de dança convencional, mas também de capoeira ou
“street-dance”. Todavia, a excessiva intromissão do Poder Público pode representar
uma agressão a manifestações culturais que se querem alternativas, subversivas,
não-alinhadas ou rebeldes; a melhor posição aqui é a do respeito e da tolerância.
A democracia, todavia, não se caracteriza apenas pelo aspecto “declarativista”
do reconhecimento e consideração das formas culturais existentes. Há uma implicada dimensão participativa, em que existem oportunidades a que todos contribuam
para a construção de perspectivas; como refere CANOTILHO, trata-se de “uma forma
mais alargada do concurso dos cidadãos para a tomada de decisões, muitas vezes de
forma directa e não convencional”56. Plebiscitos locais e “orçamentos participativos”
são instrumentos que permitem a expressão dos diversos setores. Por exemplo, os
habitantes de um Município poderiam definir quais artistas gostariam de ver apresentar-se em determinado dia festivo. A abertura participativa deve cuidar para não
orientar-se exclusivamente pelo critério majoritário, a fim de que a perspectiva da
maioria não sufoque manifestações minoritárias. As práticas desportivas ortodoxas
não devem esgotar os recursos públicos e nada restar às práticas desportivas das
pessoas portadoras de deficiência, por exemplo.
A hegemonia cultural dos tempos modernos faz-se em grande medida por homogeneização, operacionalizada pela chamada indústria cultural, onde os meios de
comunicação de massa desempenham papel proeminente. Uma conseqüência perversa está na alienação individual e coletiva, no “amaciamento dos conflitos sociais”
(JOSÉ LUIZ DOS SANTOS57). Numa projeção internacional, a extensão e velocidade da
53 O que é cultura, p. 55. Veja-se também JOSÉ AFONSO DA SILVA, Ordenação constitucional da cultura, p. 101, rodapé.
54 Ordenação constitucional da cultura, p. 48.
55 Manual de direito constitucional, t. IV, p. 346.
56 Direito constitucional, p. 410.
57 O que é cultura, p. 69.
58
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circulação de informações e produtos (inclusive da informação como produto) têm
evidente impacto sobre a cultura contemporânea. O fenômeno da “globalização”
apresenta aspectos positivos – como o conhecimento (com sua possibilidade de
acesso e participação) e a possibilidade de respeito e valorização das diversas manifestações culturais – bem como aspectos negativos (de imposição e exploração),
tendo em vista que a “integração” nem sempre é livre, espontânea e bem intencionada. Todavia, “a tendência à formação de uma civilização mundial” (JOSÉ LUIZ DOS
SANTOS) parece ser um fato moderno, que o Direito não tem como ignorar; vejamse os documentos jurídicos internacionais relativos ao patrimônio cultural.
A chave democrática para enfrentar a globalização está em garantir liberdade
e abertura às relações humanas, com necessária igualdade de oportunidades e garantias de respeito à diversidade, às identidades culturais. Se a identidade cultural
pode forjar-se inclusive a partir das relações com outras culturas (“Cada cultura é o
resultado de uma história particular, e isso inclui também suas relações com outras
culturas, as quais podem ter características bem diferentes.” – JOSÉ LUIZ DOS SAN58
TOS ), hoje em dia, o risco de uma homogeneização a partir de padrões autoritários
dos países mais poderosos parece ser a maior ameaça. A resposta, muitas vezes violenta (terrorista), de sociedades ou instituições políticas que se sentem violadas,
não deixa de ser uma reação cultural radical àquela tentativa de dominação. Exagerando no tom, a globalização não pode restringir-se ao acesso, via internet, aos produtos de multinacionais, eventualmente produzidos em países com mão-de-obra explorada; nem pode transformar os lugares exóticos do planeta apenas em roteiros
turísticos padronizados.
Também aqui a preocupação jurídico-democrática envolverá, paradoxalmente, a unidade e a totalidade, buscando uma síntese dialética e sempre inacabada entre o particular e o universal, pois “a discussão sobre cultura tem a humanidade
como referência e ao mesmo tempo procura dar conta de particularidades de cada
realidade cultural” (JOSÉ LUIZ DOS SANTOS 59).
CULTURA E DIREITO
A idéia de “cultura” provavelmente seja difusa e facilmente apreendida por
muitos num nível de aparente superficialidade, ao passo que o conceito seja difícil
de precisar. Trata-se de um desafio pedagógico freqüente no magistério: uma idéia
mais fácil de compreender do que de explicar.
Tomemos o termo em sentido amplo. Pode-se entender por cultura o modo
“de conceber a realidade e expressá-la” (JOSÉ LUIZ DOS SANTOS60). Na cultura, há atri58 O que é cultura, p. 12.
59 O que é cultura, p. 36.
60 O que é cultura, p. 7.
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buição de sentido e valor; no dizer de JOSÉ AFONSO DA SILVA, “a presença e participação do espírito humano”61. Embora por demais vago para ser operacional, esse conceito é fiel à extensão e variedade que o fenômeno cultural possui. O tratamento jurídico a ser dispensado à cultura deve levar em conta essa característica conceitual,
condicionante da e condicionada pela democracia.
Um aspecto relevante da aproximação conceitual está em reconhecer que as
manifestações culturais podem ser intencionais ou não. PABLO LUCAS VERDÚ afirma, a
propósito: “Em certo sentido, os valores são sentidos e captados por uma intuição
essencial (Wesensschau) diferente do conhecimento mediante raciocínios ou argumentações formalistas.”62. Outro aspecto: a cultura pode projetar-se em bens corpóreos, materiais, ou em bens imateriais, “espirituais”, que
são os que refletem valores em suportes não-materiais, tais são as
crendices, cultos, danças, festas, que não constituem produtos culturais apreensíveis fisicamente, como se apreende um quadro,
uma estátua, um livro, uma partitura musical, uma peça teatral.
Seu produto consiste especialmente no manifestar-se (JOSÉ AFONSO
63
DA SILVA ).
Do ponto de vista “científico”, digamos que é possível adotar uma perspectiva mais descritiva da cultura, de cunho informativo, mas também é possível
adotar uma perspectiva mais prescritiva, de interferência. Esta pode ter resultado negativo, de opressão de traços culturais e imposição de outros, e pode ter
resultado positivo, de libertação e emancipação cultural. Embora o Direito sirva
para desempenhar todas essas funções e tenha servido, freqüente e infelizmente, como instrumento de dominação cultural ilegítima, ele pode e deve estar ao
bom serviço da cultura: “o estudo da cultura – como afirma JOSÉ LUIZ DOS SANTOS
– contribui no combate a preconceitos, oferecendo uma plataforma firme para
o respeito e a dignidade nas relações humanas”64; em outra passagem, o autor
aduz: “cultura está associada a conhecimento, o qual tem uma característica fundamental: o de ser fator de mudança social, de servir não apenas para descrever
a realidade e compreendê-la, mas também para apontar-lhe caminhos e contribuir para sua modificação.”65
61 Ordenação constitucional da cultura, p. 26.
62 Teoría de la Constitución como ciencia cultural, p. 126: “En cierto sentido los valores se sienten y son captados por una intuición esencial (Wesensschau) diferente al conocimiento mediante razonamientos o argumentaciones formalistas.”.
63 Ordenação constitucional da cultura, p. 98.
64 O que é cultura, p. 8-9.
65 O que é cultura, p. 43; veja-se também a passagem de fls. 66. A dimensão de libertação é também enfatizada por
JOSÉ AFONSO DA SILVA, Ordenação constitucional da cultura, p. 55.
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Ainda sob uma concepção ampla, “cultura” abrange, para o antropólogo JOSÉ
LUIZ DOS SANTOS, “todos os aspectos de uma realidade social. Assim, cultura diz respeito a tudo aquilo que caracteriza a existência social de um povo ou nação, ou então de grupos no interior de uma sociedade”, ou seja, “a totalidade dessas características, digam elas respeito às maneiras de conceber e organizar a vida social ou a
seus aspectos materiais”.
Para esse autor, uma concepção restrita de cultura refere-se “ao conhecimento,
às idéias e crenças, assim como às maneiras como eles existem na vida social”, como
“ênfase especial no conhecimento e dimensões associadas”.66 O autor acentua o aspecto – digamos – materialista da cultura, ligada esta às condições concretas (sobretudo
econômicas) de vida social. Sem desconhecer outras dimensões – certamente inter-relacionadas – do fenômeno cultural, verifica-se que até a etimologia do termo (de origem latina) prende-se às atividades agrícolas (de colere = cultivar).67
Definindo melhor a concepção ampla de cultura não como a soma de todos
os aspectos de uma sociedade, mas como uma dimensão desses aspectos, afirma
JOSÉ LUIZ DOS SANTOS:
Assim, cultura passa a ser entendida como uma dimensão da realidade social, a dimensão não-material, uma dimensão totalizadora, pois entrecorta os vários aspectos dessa realidade. Ou seja,
em vez de se falar em cultura como a totalidade de características,
fala-se agora em cultura como a totalidade de uma dimensão da
sociedade.
Essa dimensão é a do conhecimento num sentido ampliado, é todo
conhecimento que uma sociedade tem sobre si mesma, sobre outras sociedades, sobre o meio material em que vive e sobre a própria existência. Cultura inclui ainda as maneiras como esse conhecimento é expresso por uma sociedade, como é o caso de sua
arte, religião, esportes e jogos, tecnologia, ciência, política. O estudo da cultura assim compreendida volta-se para as maneiras pelas quais a realidade que se conhece é codificada por uma sociedade, através de palavras, idéias, doutrinas, teorias, práticas costumeiras e rituais. O estudo da cultura procura entender o sentido que fazem essas concepções e práticas para a sociedade que as
vive, buscando seu desenvolvimento na história dessa sociedade e
mostrando como a cultura se relaciona às forças sociais que movem a sociedade.68
66 O que é cultura, p. 24-25.
67 O que é cultura, p. 27.
68 O que é cultura, p. 41.
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O jurista PETER HÄBERLE cita uma clássica definição (de E. B. Tylor) segundo a qual
cultura (ou civilização) seria “um conjunto complexo de conhecimentos, crenças, artes,
moral, leis, costumes e usos sociais que o ser humano adquire como membro de uma
sociedade determinada”. Contudo, com provável base na Constituição alemã, dá um
conceito mais limitado: “aquela esfera em que o Estado como tal, por um lado, e o
mundo do pensamento, por outro, se encontram estreitamente relacionados de uma
forma um tanto especial e íntima a um nível triplo: o da educação ou formação, o da
ciência e o da criação artística”.69 O autor alemão aponta três “aspectos orientadores”
da dogmática do Direito Constitucional cultural e da Teoria da Constituição como ciência da cultura: “tradição, inovação e pluralismo” (abertura).70
LUIZ ALBERTO DAVID ARAUJO e VIDAL SERRANO NUNES JÚNIOR definem o termo “patrimônio cultural” à luz da Constituição brasileira: “a interação do homem com a natureza, as formas institucionais das relações sociais, as peculiaridades dos diversos
segmentos nacionais, enfim, os bens, em sua acepção mais lata, depositários das
projeções valorativas dos seres humanos”.71
A precisa definição do dicionário para o sentido antropológico do termo vem
em nosso socorro: “conjunto de padrões de comportamento, crenças, conhecimentos, costumes etc. que distinguem um grupo social”.72
A partir dessa conceituação, o papel do Direito – particularmente do Direito Constitucional brasileiro – na promoção e proteção da cultura deve orientar-se pela natureza constitucional da cultura, por sua qualificação como direito
e dever fundamental, por sua assunção como tarefa de Estado e pelo pluralismo
do espaço democrático.
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69 Teoría de la Constitución como ciencia de la cultura, p. 24: “se entiende por cultura o civilización un conjunto complejo de conocimientos, creencias, artes, moral, leyes, costumbres y usos sociales que el ser humano adquiere como miembro de una sociedad determinada”; “aquella esfera en la que el Estado como tal, por un lado, y el
mundo del pensamiento, por otro, se hallan estrechamente relacionados de una forma un tanto especial e íntima a
un triple nivel: el de la educación o formación, el de la ciencia y el de la creación artística”.
70 Teoría de la Constitución como ciencia de la cultura, p. 26: “En este sistema basado en los tres aspectos orientativos aludidos de tradición, innovación y pluralismo –léase aperturismo– es donde debe encontrar el horizonte
orientativo toda dogmática en torno al Derecho constitucional cultural, al igual que toda Teoría de la Constitución
como ciencia de la cultura”.
71 Curso de direito constitucional, p. 446.
72 Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (Rio de Janeiro: Objetiva, 2001).
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Os Efeitos do Novo Código Civil junto ao
Direito Penal e ao Direito Processual Penal
Antonio Carlos da Ponte
Promotor de Justiça.
Mestre e Doutor em Direito pela PUC-SP.
Professor do Programa de Pós-Graduação da
Instituição Toledo de Ensino (ITE) de Bauru.
Com a vigência do novo Código Civil, surgiram várias dúvidas acerca de seu
efetivo alcance e conseqüências junto a vários ramos do Direito, em especial no que
tange ao Direito Penal e ao Direito Processual Penal.
A análise correta e conseqüente dessas modificações não é questão simples,
pois demanda a avaliação dos preceitos que regem as normas penais e processuais
penais.
O presente trabalho tem o escopo de oferecer uma singela contribuição nesse debate, sem pretender o estabelecimento de verdades absolutas e, tampouco, esgotar o tema.
I.
REFLEXOS DO NOVO CÓDIGO CIVIL NO DIREITO PENAL
O Direito Penal apresenta, como um de seus princípios estruturais, viga mestra de um Estado Democrático de Direito, o princípio da legalidade.
Tal princípio tem significado político, ou seja, atua como garantia fundamental
do cidadão frente à atuação do Estado. Não é por outro motivo que todo regime totalitário tem como preocupação básica a aniquilação ou a subjugação de tal princípio. Foi
o que aconteceu, por exemplo, em passado recente, na Rússia e na Alemanha.
66
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Além do significado político, primordial em qualquer democracia, também deve
ser considerado o significado jurídico em sentido lato e em sentido estrito ou penal.
Em sentido lato, a adoção do princípio da legalidade traduz a certeza de que
ninguém poderá fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de lei, que
deve ser escrita e taxativa, não permitindo maiores digressões ao intérprete quanto
ao conteúdo das normas incriminadoras e, tampouco, quanto ao conteúdo e abrangência das sanções penais.
Dentro do sentido estrito, decorre uma das principais conseqüências do princípio da legalidade, que é o princípio da anterioridade, segundo o qual a norma penal incriminadora deve ser anterior à prática da infração penal.
O princípio da legalidade não encontra fundamento apenas no Código Penal
(artigo 1º), mas na própria Carta Magna (artigo 5º, Inciso XXXIX).
A nossa legislação penal prestigia de forma absoluta o princípio em apreço, o
que faz com que as normas incriminadoras não só sejam taxativas, mas, também, irretroativas, salvo para beneficiar o agente.
O panorama apresentado torna-se necessário, para que não se tenha a idéia
equivocada de que a simples vigência de uma nova lei, do mesmo status que a lei
penal, seja o suficiente para a modificação automática desta última.
Consoante o magistério de Nélson Hungria,
a fonte única do Direito Penal é a norma legal. Não há Direito Penal vagando fora da lei escrita. Não há distinguir em matéria penal, entre lei e direito. ‘Sub specie juris’, não existe crime ‘sem lei
anterior que o defina’, nem pena ‘sem prévia cominação legal’.
‘Nullum crimen, nulla poena sine praevia lege poenali’. A lei penal é
assim, um sistema fechado: ainda que se apresente omissa ou lacunosa, não pode ser suprida pelo arbítrio judicial, ou por analogia, ou pelos ‘princípios gerais do direito’, ou pelo costume. Do
ponto de vista de sua aplicação pelo juiz, pode mesmo dizer-se que
a lei penal não tem lacunas. Se estas existem sob o prisma da política criminal (ciência pré-jurídica), só uma lei penal (sem efeito
retroativo) pode preenchê-las... Com a abolição do sistema de enumeração taxativa dos crimes ou com a licença para o ‘arbitrium
judicis’ ou a analogia na incriminação de fatos e irrogação de penas, não poderia ser coibida, nos seus requintes e caprichos, a sensibilidade ético-social dos juízes criminais, que seriam naturalmente levados à hipertrofia funcional, pois êste é o destino fatal de
todo poder incontrolado ou de imprecisas linhas de fronteira. O
indivíduo passaria a viver em constante sobressalto, sempre na
iminência de se ver sujeito à reação penal por fatos cuja anti-sociabilidade escapasse ao seu mediano senso de ajustamento à mo-
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67
ral ambiente. Seria inevitável o conflito entre a apurada mentalidade dos juízes e a mentalidade média do homem do povo, ficando êste subordinado a um juízo de reprovação muitas vezes inacessível ao seu próprio entendimento.1
Pobre do Direito Penal se ficasse adstrito aos desmandos e caprichos do legislador ordinário. O simples surgimento de uma nova lei, não importa se atinente ao
Direito Civil, Tributário, Administrativo ou do Trabalho, já seria o suficiente para trazer reflexos na órbita penal, consagrando, assim, o caos, pois patente a vulneração
indireta aos princípios da legalidade e da anterioridade.
1.
IMPUTABILIDADE PENAL E CAPACIDADE CIVIL
O Código Civil de 1916 entrou em vigor quando tinha vigência, no Brasil, o
Código Penal Republicano (1890). Conviveu com a Consolidação das Leis Penais
(1932), elaborada pelo Desembargador Vicente Piragibe; continuou em vigência por
ocasião da entrada em vigor do Código Penal de 1940 e perdurou tal relacionamento por vários anos após a reforma penal operada em 1984 (Lei nº 7.209).
Estabelecia o Código Civil de 1916 que os menores de 16 anos eram absolutamente incapazes, que aqueles que tinham mais de 16 e menos de 21 anos eram relativamente incapazes e que somente aqueles que contassem com 21 anos eram plenamente capazes.
O novo Código Civil inovou em tal aspecto, ao fixar como absolutamente incapazes os menores de 16 anos, relativamente incapazes os maiores de 16 e menores de 18 anos e plenamente capazes os maiores de 18 anos.
É curioso que, no Brasil, antes do surgimento da Lei nº 10.406/02, nunca houve a preocupação de fixar a capacidade civil e penal num mesmo patamar. A história do Direito Penal brasileiro bem demonstra isso.
No âmbito penal, tiveram vigência no Brasil as Ordenações Afonsinas (1500 a
1512), Manuelinas (1512 a 1569), o Código de D. Sebastião (1569 a 1603) e as Ordenações Filipinas (1603 a 1830), cujo Livro V bem refletia o Direito Penal da época, que tinha a pena de morte como sanção aplicada quase que invariavelmente e era marcado
pela falta de critério na distinção entre os conceitos de pecado e crime, bem como pela
forma assistemática e irracional da disposição da matéria criminal, representada por um
número excessivo de comportamentos incriminados, os quais se encontravam em diversos tipos vagos, obscuros e, na maioria das vezes, conflitantes.
As Ordenações Filipinas não revelaram qualquer preocupação com o protagonista do crime, motivo pelo qual ali não são encontrados preceitos gerais ou espe-
1 HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro, Revista Forense, 1949. v. I, fls. 09, 11 e 12.
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ciais que digam respeito à imputabilidade, semi-imputabilidade ou inimputabilidade. Havia uma exceção que se referia ao menor de 17 anos, contra quem não poderia ser aplicada a pena de morte natural, sendo conferida ao julgador a possibilidade de substituição dela por outra sanção de espécie diversa.
Com a Independência, sob a influência da Constituição Federal de 1824, foi
elaborado o Código Criminal do Império (1830), primeiro diploma penal autônomo
da América Latina, de índole notadamente liberal, apontado, ainda hoje, como o melhor diploma penal que o Brasil já teve (tanto que influenciou vários outros diplomas penais, como o Código Penal espanhol de 1848 e a legislação de diversos países latino-americanos). Referido diploma repressivo estabelecia a imputabilidade
penal aos 14 anos (artigo 10, § 1º).
Proclamada a República, foi conferida ao Conselheiro Baptista Pereira a incumbência de organizar um projeto de Código Penal, o qual, uma vez concluído, foi
submetido ao estudo de uma Comissão presidida pelo então Ministro da Justiça do
Governo Provisório, Campos Salles. O indigitado projeto foi convertido em lei.
O Código Penal Republicano já nasceu velho, desatendendo à realidade social
de seu tempo.
No que diz respeito à imputabilidade penal, o aludido diploma legal estabeleceu a maioridade penal aos nove anos de idade (artigo 27, § 1º). Tal situação vergonhosa e absurda perdurou até 1921, quando a imputabilidade penal retornou aos 14
anos de idade.
Com o surgimento do Código Penal de 1940, a imputabilidade foi fixada em
18 anos de idade, limite mantido com a reforma penal de 1984 (artigo 27) e, mais
tarde, transformado em cláusula pétrea pelo legislador constituinte.
No entendimento de Nélson Hungria, justificava-se a imputabilidade penal
nos termos em que é mantida hoje, pois seria preferível tentar corrigir os menores
por métodos pedagógicos e preventivos, a marcá-los com o ferrete da condenação
criminal.
Hoje, a Constituição Federal (artigo 5º, § 2º) e o Código Penal (artigo 27)
partem da premissa que o menor de 18 anos possui desenvolvimento mental incompleto.
O Código Penal brasileiro não traz um conceito positivo de imputabilidade,
mas fornece as hipóteses em que esta não é verificada. Partindo do princípio de
que só é imputável o indivíduo que tem capacidade de entender e querer, nosso
diploma legal funda a responsabilidade no elemento subjetivo da vontade consciente, exigindo, para tanto, que o agente revele certo grau de desenvolvimento
mental, maturidade, normalidade psíquica, entendimento ético-jurídico e faculdade de autodeterminação. Faltando um desses requisitos, total ou parcialmente, o agente poderá ser considerado, dependendo da hipótese, inimputável ou
semi-imputável.
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2.
n.
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69
PRESCRIÇÃO PENAL E ATENUANTE GENÉRICA DA MENORIDADE
Prescrição penal é a perda do jus puniendi do Estado ou do direito de executar
a sanção penal imposta, em virtude do decurso de um determinado lapso temporal.
A prescrição penal funciona como um limite estabelecido ao Estado em benefício do cidadão. Se é verdade que o mesmo homem não se banha duas vezes no mesmo rio, não é menos verdade que o homem muda o seu pensar e agir ao longo da vida.
O Estado não pode manter uma espada de Dâmocles indefinidamente apontada para a cabeça do autor de uma infração penal. É por essa razão que a lei lhe impõe um prazo para a apuração da infração e para a imposição da sanção penal, assim como um prazo para fazer com que a pena efetivamente imposta seja cumprida. Desatendidos os prazos estabelecidos, ocorrerá a prescrição.
O artigo 115 do Código Penal estabelece que os prazos prescricionais serão
contados pela metade, todas as vezes que, à época dos fatos, o agente contar com
menos de 21 anos ou com mais de 70 anos à época da sentença.
O tratamento diferenciado em relação aos demais autores de infrações penais
justifica-se. Entre os 18 e os 21 anos, culturalmente, o homem passa por uma fase
diferenciada em sua vida. Os valores cultuados ao longo da infância e da adolescência são colocados em prova. Trata-se de uma fase de formação singular, o que justifica, em contrapartida, a concessão ao Estado de um prazo menor para a apuração
e punição do criminoso, assim como para a aplicação da lei penal.
A redução dos prazos prescricionais para os menores de 21 anos foi fruto do
Decreto de 24 de fevereiro de 1933, de iniciativa de Melo Matos. Estabelecia o
preâmbulo do respectivo Decreto que
... há uma idade de transição entre a adolescência e a maioridade penal, que vai dos 18 aos 21 anos feitos, na qual a responsabilidade do delinqüente é atenuada, sendo diminuídas as penas previstas pelas leis penais (Código Penal, art. 42, § 11; Código dos Menores, art. 76); atendendo a que, se as leis assim determinam esse
período de transição, por ainda não ser completo o desenvolvimento mental e moral do indivíduo pelas condições psicológicas e
éticas, é lógico e justo que, do mesmo modo que êle não é punido
com todo rigor da pena, também sejam diminuídos os prazos da
ação e da condenação; atendendo a que, por êsse ato de clemência, o Estado proporciona ao indivíduo, em plena maioridade, libertar-se mais depressa das más conseqüências de infração da lei,
por êle praticada na menoridade, quando era ainda fortemente
influenciável no sentido do bem e do mal, por falta de reflexão perfeita e de plena fôrça de resistência aos maus impulsos ...
faculdade de direito de bauru
70
O professor Roberto Lyra justificava a opção feita pelo legislador, argumentando que no período compreendido entre os 18 e 21 anos “a personalidade está em
evolução, segundo o desenvolvimento físio-psíquico”.2
A Lei nº 10.406/02 não revogou implicitamente o artigo 115 do Código Penal.
Seria necessário uma nova lei penal (novatio legis in pejus) tratando especificamente do assunto; o que ainda não ocorreu. É o que também acontece com o artigo 65,
Inciso I, do Código Penal, que estabelece como circunstância atenuante o agente ter
cometido a infração penal quando era maior de 18 e menor de 21 anos.
Seria necessária, repita-se, uma nova lei penal para que tais dispositivos penais
fossem alterados. Caso surgisse tal lei, ela seria uma novatio legis in pejus, que só
poderia ser aplicada aos fatos ocorridos após a sua entrada em vigor, visto que é uma
decorrência da adoção do princípio da legalidade, a irretroatividade da lei mais severa (lex gravior).
3.
PÁTRIO-PODER E PODER FAMILIAR
A lei nº 10.406/02 substitui o termo pátrio poder por poder familiar, que é o
exercido pelos pais em relação aos filhos, quando os mesmos possuem menos de
18 anos de idade. O artigo 1.630 do novo Código Civil estabelece que os filhos estão sujeitos ao poder familiar, enquanto menores.
Existem algumas normas incriminadoras que se socorrem de conceitos contidos na lei civil. Um exemplo claro dessa situação está no artigo 236 do Código Penal, que trata do crime de induzimento a erro essencial e ocultação de impedimento. Referido tipo penal é uma norma penal impropriamente em branco, cujo complemento é fornecido por uma fonte formal homogênea, qual seja, o Código Civil,
lei do mesmo status da penal, que traz um rol de impedimentos matrimoniais em
seu artigo 1521.
O artigo 220 do Código Penal, ao tratar do crime de rapto consensual, estabelece que a vítima deve contar com mais de 14 e menos de 21 anos de idade e, além
disso, deve haver o seu consentimento.
O legislador penal brasileiro, ao longo do código, fixa um patamar para que o
consentimento seja válido, fixando-o em 14 anos. É o que se depreende, dentre outros, dos artigos 126, § único, e 224, alínea “a”, ambos do Código Penal.
Por outro lado, no dispositivo em questão, toma-se como teto os 21 anos em
razão do conceito até então vigente de pátrio-poder. Ora, a partir do momento que
o pátrio-poder cede lugar para o poder familiar, que tem como teto os dezoito anos;
forçoso torna-se concluir que o artigo 220 do Código Penal foi atingido pelo novo
Código Civil. Referida interpretação se faz necessária, posto que o conceito de po-
2 LYRA, Roberto. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro, Revista Forense, 1942. v. II, p. 310.
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71
der familiar é fornecido pelo Código Civil e, também, pelo fato de a mesma não traduzir qualquer prejuízo ao autor da infração penal; muito ao contrário, uma vez que
limita a idade da vítima.
II.
REFLEXOS DO NOVO CÓDIGO CIVIL NO DIREITO PROCESSUAL
PENAL
O Código de Processo Penal, tomando por base a maioridade civil, estabelece
em seu artigo 15 que ao indiciado menor deverá ser nomeado curador pela Autoridade Policial. Adotando o mesmo critério, mais adiante, o referido diploma legal, em
seu artigo 194, exigia que ao acusado menor fosse nomeado curador por ocasião do
interrogatório judicial.
A preocupação do legislador justificava-se na maioridade civil. Partia o legislador processual penal da premissa que o maior de 18 anos e menor de 21, sendo relativamente incapaz à luz do Código Civil de 1916, necessitava de aconselhamento
por parte de pessoa que pudesse resguardar seus direitos e interesses ou, ao menos, informá-lo suficientemente deles.
A figura do curador mostrava-se como imprescindível e poderia recair sobre
qualquer pessoa capaz, isenta e alfabetizada. Não era imprescindível que tal pessoa
fosse habilitada para a advocacia.
O artigo 564, Inciso III, alínea “c”, do Código de Processo Penal, estabelece que
a falta de nomeação de curador representa nulidade absoluta. Embora a redação do
dispositivo não suscite dúvidas, a Súmula nº 352 do Supremo Tribunal Federal amenizou sua aplicação ao estabelecer que “Não é nulo o processo penal por falta de nomeação de curador ao réu menor que teve assistência de defensor dativo”.
Hoje, a discussão sobre a vigência ou não dos artigos 15 e 194 do Código de
Processo Penal, frente ao novo Código Civil, encontra-se superada, face à edição da
Lei nº 10.792/03, que, ao introduzir alterações no Código de Processo Penal, em seu
artigo 2º, revogou expressamente o artigo 194 do Código de Processo Penal e, implicitamente, o artigo 15 do mesmo código.
Na mesma linha, não tem mais vigência o artigo 262 do Código de Processo
Penal, que obrigava a nomeação de curador ao “acusado menor”, considerado
como tal o agente que possuía mais de 18 anos e menos de 21.
Outros dispositivos contidos no Código de Processo Penal também sofreram
alteração. A partir do momento em que o novo Código Civil considera como plenamente capaz quem possui 18 anos de idade, caberão a tais pessoas, sem a assistência de terceiros, requererem a instauração de inquérito policial (artigo 5º, Inciso I,
do CPP); diligências à Autoridade Policial (artigo 14 do CPP); oferecerem diretamente queixa (artigos 19, 30 e 34 do CPP e artigo 100 do CP); elaborarem representação
criminal (artigo 24 do CPP); requererem habilitação como assistente de acusação
(artigo 268 do CPP).
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faculdade de direito de bauru
Nos processos que tratam de crimes da competência do Tribunal do Júri, o
Juiz Presidente não terá mais que nomear curador ao réu menor de 21 anos. O artigo 449 do Código de Processo Penal3 foi derrogado pelo artigo 5º do novo Código
Civil, na parte que trata do curador.
A polêmica resultante da interpretação da Súmula nº 594 do Supremo Tribunal Federal4 igualmente deixou de existir.
Caberá à vítima maior de 18 anos, com plena capacidade de entendimento e
discernimento, exercer diretamente o direito de queixa ou de representação. A partir do momento em que o ofendido tomar conhecimento da autoria da infração, terá
curso seu prazo decadencial.
A figura do representante legal somente continuará a existir se o ofendido for
semi-imputável ou inimputável. Na primeira hipótese, o prazo deverá ser contado
de forma independente para a vítima e para seu representante legal, enquanto, na
segunda, a decadência terá como termo inicial a data em que o representante legal
do ofendido tomou conhecimento da autoria da infração penal.
O artigo 34 do Código de Processo Penal5 foi revogado implicitamente pelo novo
Código Civil, enquanto o artigo 38, pelos motivos apontados, sofreu sensível alteração.
Na mesma linha, estão parcialmente revogados os artigos 52 e 54 do Código
de Processo Penal6. Como o agente maior de 18 anos, com higidez mental completa, é considerado plenamente capaz, caberá exclusivamente a ele a aceitação ou concessão do perdão judicial.
Dois dispositivos, contudo, do Código de Processo Penal, merecem reflexão.
São eles: os artigos 279, Inciso III7, e 434.
Pretendendo fixar critério ligado à maturidade e experiência e não à menoridade relativa, o Código de Processo Penal estabeleceu que somente poderiam exer3 Artigo 449. “Apregoado o réu, e comparecendo, perguntar-lhe-á o juiz o nome, a idade e se tem advogado, nomeando-lhe curador, se for menor e não o tiver, e defensor, se maior. Em tal hipótese, o julgamento será adiado
para o primeiro dia desimpedido”.
4 Súmula nº 594 do STF: “Os direitos de queixa e de representação podem ser exercidos, independentemente, pelo
ofendido ou por seu representante legal”.
5 Artigo 34. “Se o ofendido for menor de 21 (vinte e um) e maior de 18 (dezoito) anos, o direito de queixa poderá ser exercido por ele ou por seu representante legal”.
6 Artigo 52. “Se o querelante for menor de 21 (vinte e um) e maior de 18 (dezoito) anos, o direito de perdão poderá ser exercido por ele ou por seu representante legal, mas o perdão concedido por um, havendo oposição do
outro, não produzirá efeito”.
Artigo 54. “Se o querelado for menor de 21 (vinte e um) anos, observar-se-á, quanto à aceitação do perdão, o disposto no artigo 52”.
7Artigo 279. “Não poderão ser peritos:
(...)
III – os analfabetos e os menores de 21 anos”
Artigo 434. “O serviço do Júri será obrigatório. O alistamento compreenderá os cidadãos maiores de 21 (vinte e
um) anos, isentos os maiores de 60 (sessenta)”.
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n.
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cer as relevantes funções de perito e jurado, as pessoas que contassem com pelo
menos 21 anos de idade. Ao estabelecer patamar etário distinto da capacidade civil
plena do então código de 1916, forçoso torna-se concluir que os dispositivos indicados não sofreram alteração decorrente do surgimento do novo Código Civil, estando em plena vigência.
III. NOVO CÓDIGO CIVIL E APLICAÇÃO DE MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS
Discute-se, na doutrina, se continua sendo possível a imposição de medida sócio-educativa às pessoas entre 18 e 21 anos, que tenham praticado ato infracional.
A questão não é simples e demanda reflexão.
Estabelece o artigo 103 do Estatuto da Criança e do Adolescente8 que “considerase ato infracional a conduta descrita como crime ou contravenção penal”. O artigo
121, § 3º, do mesmo diploma legal, limita a medida sócio-educativa representada pela
internação, fixando seu prazo máximo em três anos; sendo que o § 5º, do apontado artigo, diz que “a liberação será compulsória aos 21 (vinte e um) anos de idade”.
O Estatuto da Criança e do Adolescente é uma lei especial que tem como principal finalidade dar proteção integral à criança e ao adolescente.
A modificação do aludido diploma especial só é possível com o advento de lei
específica, que não poderá atentar contra os princípios basilares estabelecidos pelo
estatuto, notadamente garantista. Destarte, em havendo lacuna normativa no Estatuto da Criança e do Adolescente, somente será possível a aplicação de uma outra
lei, caso esta não seja incompatível com as finalidades e objetivos nele contidos.
O novo Código Civil não revogou o artigo 121, § 5º, do ECA. Tratam-se de diplomas legais com finalidades e abrangências distintas.
O Código Civil, que é uma lei de caráter geral, não pode revogar o ECA, lei de
caráter especial aplicável, em algumas hipóteses, a pessoas com idade variável entre
18 e 21 anos.
Foram razões ligadas à prevenção geral e especial que permitiram a incidência de medida sócio-educativa ao jovem adulto.
A opção feita pelo legislador brasileiro é por demais clara. No que tange às
crianças, adolescentes e algumas pessoas que tenham idade variável entre 18 e 21
anos, aplica-se o Estatuto da Criança e do Adolescente, diploma legal especial, que
contém princípios e objetivos próprios. Somente em caráter excepcional, o Estatuto poderá ser complementado pelo Código Civil.
Como a novatio legis não trouxe qualquer disposição relativa ao Estatuto, este
encontra-se em plena vigência, não sofrendo qualquer alteração decorrente do artigo 5º do novo Código Civil.
8 Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990.
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IV. CONCLUSÕES
O novo Código Civil, ao fixar a capacidade plena aos dezoito anos, trouxe poucas modificações junto ao Direito Penal.
Os artigos 65, Inciso I, e 115 não sofreram qualquer alteração, dada a natureza das normas penais. Apenas o rapto consensual, tendo em vista a objetividade jurídica da infração, foi afetado.
Como o poder familiar somente pode ser exercido até os dezoito anos de idade,
a vítima de rapto consensual passou a ser a mulher maior de 14 e menor de 18 anos.
Se a modificação foi limitada no seara penal, o mesmo não pode ser afirmado
no que diz respeito ao Código de Processo Penal.
O artigo 194 foi revogado pela Lei nº 10.792/03, o que acabou atingindo o artigo 15. Do mesmo modo, todos os dispositivos que tratavam do representante legal do agente que contasse com 18 anos, considerado com higidez mental completa, sofreram alteração, uma vez que o referido representante legal, algumas vezes
denominado de curador, deixou de existir. Permaneceram incólumes, contudo, os
artigos 279, Inciso III, e 434, da Lei Processual Penal, dadas as suas particularidades.
Finalmente, o Estatuto da Criança e do Adolescente, lei de caráter especial,
com preceitos, princípios e finalidades próprias, não sofreu qualquer alteração.
Como pode ser observado, o novel diploma civil não trouxe tantas conseqüências ao Direito Penal e Direito Processual Penal, tal como alardeado por alguns.
Modificações existiram, porém em número bem inferior ao proclamado, dadas as características e princípios inspiradores das normas penais e processuais penais.
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O DIREITO À SAÚDE E A EFETIVIDADE
DOS DIREITOS SOCIAIS
Vidal Serrano Nunes Júnior
Promotor de Justiça.
Ex-Presidente do Conselho Diretor do IDEC.
Doutor em Direito e Professor de Direito Constitucional da PUC-SP,
do Programa de Pós-graduação do Instituto Toledo de Ensino
e da Escola Superior do Ministério Público.
Os Direitos Fundamentais constituem uma categoria jurídica orientada à preservação da dignidade humana em todas as suas dimensões.
Logo, o estudo do tema reclama, antes de mais, uma breve alusão ao significado da expressão “dignidade humana”.
A expressão dignidade humana, num primeiro momento, parece acenar com
dois aspectos básicos: o respeito ao ser humano, como gênero e como individualidade; e a garantia de um estado de bem-estar social para todos.
Como, no entanto, equacionar esses dois aspectos?
A vida humana, com efeito, não pode ser contemplada fora do convívio social,
pois é neste que surge a identidade individual e coletiva. É no convívio social que os
signos e os valores são formados.
Destarte, parece-nos que, sob todos os aspectos, preservação da dignidade
humana pode ser resumida na inclusão social. Aquele que está incluído, que se
vê e é visto como membro de uma sociedade é que tem a sua dignidade humana
respeitada.
Vale transcrever, neste passo, o seguinte excerto da preleção de PABLO LUCAS
MURILLO:
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No hay Duda de que constituyen el núcleo del ordenamiento constitucional y, portanto, del ordenamiento jurídico. El Estado como
organización política juridicamente organizada tiene su razón de
ser el realización de los derechos fundamentales1.
Coerente a tal entendimento, parece incogitável tratar-se de dignidade humana,
de inclusão social e, em suma, dos direitos fundamentais como razão ser do Estado,
sem se garantir o direito à saúde como um pressuposto básico destes conceitos.
Nesta diretriz, a Constituição Federal afiançou que a saúde é um direito de todos e um dever do Estado, cabendo a este promover o acesso universal e igualitário
dos indivíduos às ações e serviços de saúde.
O dispositivo em causa indica, em primeiro lugar, que o acesso às ações e serviços de saúde constituiam um direito público subjetivo, reivindicável, inclusive,
pela via judicial, na perspectiva de eventual omissão do Poder Público.
A propósito, o seguinte excerto de aresto do Supremo Tribunal Federal
Brasileiro:
O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico
constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de
maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular
– e implementar – políticas sociais e econômicas que visem a garantir, aos cidadãos, o acesso universal e igualitário à assistência
hospitalar. 2
Calha lembrar que, na esteira da decisão destacada, tribunais do país inteiro
vêm reconhecendo, de forma incontroversa, o direito subjetivo público à atenção
estatal à saúde, concedendo invariavelmente ordens judiciais para atendimento dos
mais diversos aos cidadãos que reivindicam tal direito em juízo.
Não há argumento justo e razoável a socorrer ponto de vista contrário, pois
negar o acesso à saúde significa violar o mais básico dos direitos: o direito à
vida.Nesse sentido, a lição de LUIZA CRISTINA FONSECA FRISCHEISEN, no sentido
de que “na consecução de Políticas Públicas decorrentes da CF, a margem do administrador é mínima, pois os limites já foram postos pela
própria Carta Magna e normas infraconstitucionais integradoras.”3A
1 Pablo Lucas Murillo, El derecho a la autodeterminación informativa, p. 17.
2 RE 267.612-RS, rel Ministro Celso de Mello.
3 Luiza Cristina Fonseca Frischeisen, Políticas Públicas: a responsabilidade do administrador e do Ministério Público, São Paulo, 2000, Max Limonad, p. 150.
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discricionariedade administrativa não pode ser enfocada como uma espécie de poder absoluto, que se coloque acima da Constituição e das leis. Antes, a discricionariedade consiste na liberdade de avaliar como cumprir a lei, não facultando ao agente, sob nenhum pretexto, a faculdade de recusar o cumprimento da Constituição e
da legislação infraordenada.
É que, em outras palavras, aponta o juiz RÔMULO RUSSO JR, ao afirmar que
“a democracia exige, portanto, que se faça Justiça no caso concreto, o que, por vezes, como aqui, exige que o poder discricionário deve atuar pela afirmação necessária da observância da Constituição...”4
Cuida observar que o art. 196 da Constituição ainda afirmar o acesso universal e igualitário às ações e serviços públicos de saúde. Veicula, a bem do rigor, princípios de observância obrigatória pelo administrador.
Tais princípios, porém, não podem ser dissociados. Com efeito, é da conjugação de ambos que se extrai a noção de equidade no sistema de saúde.
O princípio da universalidade aponta que todo ser humano, só por sê-lo, tem
direito de acesso ao sistema público de saúde. Tal acesso, contudo, há de se dar em
compasso com o princípio republicano, que proíbe tratamento diferenciado aos cidadãos, conforme enunciado do art. 19, III, da Constituição Federal.
Só o acesso igualitário assegura a correta distribuição dos recursos públicos
na área de saúde, promovendo, portanto, a equidade no sistema.
Em resumo, a garantia do direito à vida traz como primeiro pressuposto a efetividade do direito constitucional do direito à saúde.
4 Sentença processo (ação civil pública) n. 1730/053.02.027595-4, 5ª Vara Fazenda Pública/SP.
RESPONSABILIDADE COMO EXPRESSÃO
DE UMA EXISTÊNCIA DIALOGAL
Dr. Roberto Francisco Daniel
Formado em Direito pela Faculdade de Direito de Bauru – ITE.
Em História pela Universidade do Sagrado Coração – USC.
Em Teologia pela Universidade Estadual da Baviera Ludwig-Maximilian – Alemanha.
Doutorado pela Universidade Estadual da Baviera Ludwig-Maximilian – Alemanha.
Professor de Ética na Faculdade de Direito de Bauru – ITE.
Professor de Ética e Pesquisador no Centro de Pós-Graduação da Instituição Toledo de Ensino – ITE.
O ser humano como “pessoa” desenvolve-se na dialética entre individualidade e
inter-personalidade. Em outras palavras, somos pessoas, porque possuímos uma consciência racional e graças a esta vivemos constantemente uma inter-relação ética com
nossos semelhantes. A nossa individualidade modifica as relações sociais e estas, por
sua vez, trans-formam nossa personalidade.1 Desta forma, a consciência ética não se
constitui somente em uma dimensão individual, mas principalmente em um fenômeno coletivo, no qual o indivíduo participa de forma ativa e através do qual estabelece
interações com seus semelhantes construindo assim sua história e mentalidade. Nos relacionamentos em sociedade, o ser humano como pessoa justifica suas posturas e
ações não somente frente à sua consciência individual, mas também frente à consciência de seus semelhantes. Justamente, nesta perspectiva da fundamentação de nossos
pensamentos e nossas ações, no assumir consciente do que somos, estamos sendo ou
desejamos ser, nos confrontamos com o princípio ético da responsabilidade.
1 Ver: Roberto Francisco Daniel, Ser Pessoa: A Base Ontológica do Direito, in: ARAUJO, Luiz Alberto David (Org.),
Efetivando Direitos Constitucionais (Bauru 2003) 551-564.
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1.
O SIGNIFICADO ETIMOLÓGICO E ONTOLÓGICO DA RESPONSABILIDADE
O ser humano é comunicativo por natureza, ou seja, um ser que reage e dialoga
diante de situações e oferece a elas, de forma consciente ou não, uma resposta. Desta
forma, o ser humano encontra-se sempre no âmbito de uma responsabilidade, expressão esta que em sua etimologia significa “dar uma resposta a alguém”.2 O ser humano
responde através de todo seu ser e fazer a ações orientadas a ele e são por ele preenchidas de sentido. Neste sentido, todo ser humano é por si mesmo um ser responsável.3 Por existir sempre em uma relação, a responsabilidade se desenvolve de forma tridimensional. Ao analisarmos as relações na perspectiva da responsabilidade encontramos sempre um portador da responsabilidade, uma circunstância diante da qual a responsabilidade deve ser exercida e uma instância que exige do portador uma determinada resposta. A responsabilidade se expressa aqui como uma conseqüência ativa de
um fazer ou mesmo de um deixar fazer. Um artista plástico recebe de um industrial a
tarefa de pintar um quadro. A partir do momento em que o artista aceita a tarefa assume este a responsabilidade de sua realização nas condições determinadas (prazo de
início da tarefa, realização com a qualidade e estilo exigidos, prazo para o término da
obra...). Neste caso, a responsabilidade se demonstra como pontual e está relacionada
diretamente a uma ação e suas conseqüências.
A compreensão da responsabilidade não se reduz, porém, a um fazer ou deixar fazer. Antes de ser um compromisso assumido, a responsabilidade se constitui
em um fenômeno ontológico. Em outras palavras, a responsabilidade não possui somente um significado relacionado a um cumprimento de determinada obrigação,
mas essencialmente ao próprio significado e sentido do ser pessoa. A pessoa humana existe a partir do momento em que o ser humano vivencia dialeticamente a dimensão de sua inter-personalidade, na comunicação. O ser humano torna-se pessoa
a partir do momento em que se encontra aberto a seus semelhantes. Assim, a pessoa humana se constitui segundo sua natureza em um “eu” responsável à medida
que cultiva suas relações e através delas procura responder quem ele é e qual o sentido do seu existir. A responsabilidade surge como conteúdo ontológico a partir do
momento que o ser pessoa é questionado. Mais do que cumprimento de leis, normas ou compromissos, a responsabilidade é uma resposta ao questionamento: qual
o sentido de nossa vida, qual a razão de passarmos pela existência. Como um sujeito ético, o ser humano é constantemente cobrado por uma resposta. Esta é expressa através da própria vida conduzida e construída pela pessoa humana na dinâmica
2 Ver: Padre Beto, Sem Medo de Voar (Bauru 2003) 93-95; Richard Egenter, Verantwortung, Verantwortlichkeit, in:
Lexikon für Theologie und Kirche Band 10 (Freiburg – 2. Aufl. – 1986) 669.
3 Ver: Hermann Ringeling, Christliche Ethik im Dialog mit der Antropologie: das Problem der Identität, in: Anselm
Hertz u.a. (Hg.), Handbuch der christlichen Ethik Band 1 (Freiburg – Basel – Wien 1993) 494.
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83
relação com seus semelhantes. Desta forma a responsabilidade é uma expressão de
uma existência dialogal.4 A resposta sobre o sentido de nossa existência se inicia a
partir de nossa concepção e é finalizada com nossa morte. Por isso, a responsabilidade ontológica, segundo Lévinas, se constitui no nascimento consciente do sujeito. Nesta responsabilidade, na qual ninguém pode ser substituído, somos únicos e
nela podemos ser totalmente.5 A necessidade da responsabilidade não nasce de um
objeto ou da realização de uma tarefa, mas sim do próprio eu, que se encontra em
uma determinada condição e através dela deve demonstrar o sentido de seu ser
através de seu existir.
2.
RESPONSABILIDADE COMO SOLICITUDE
Na perspectiva da responsabilidade, a pessoa humana se encontra em sua individualidade e inter-personalidade sempre em duas instâncias: diante de si própria,
sua consciência e diante de seus semelhantes. Responsabilidade pode ser compreendida como sinal de liberdade e, ao mesmo tempo, de compromisso.6 Quem
conduz uma vida conscientemente responsável alcança obrigatoriamente uma determinada emancipação, tornando-se respeitado por seus semelhantes em sua liberdade. Ao mesmo tempo, quem assume de forma consciente sua responsabilidade
renúncia a uma certa autonomia limitando-se a critérios éticos, leis jurídicas e à liberdade de seus semelhantes. Nesta dialética, a responsabilidade possibilita a vida
social, pois a pessoa humana responsável, frente à sua consciência e à de seus semelhantes, opõe-se a toda forma de opressão e limitação da liberdade humana. Assim,
na expressão responsabilidade está implícita uma postura ativa de “ser para o outro”
e pode ser considerada como uma forma solicitude. Agir com responsabilidade significa ser solícito, não somente nas circunstâncias, diante das quais o ser humano é
diretamente responsável, mas principalmente em três dimensões básicas: no relacionamento consigo mesmo, no relacionamento com a pessoa do outro e o no relacionamento com seu meio ambiente. Desta forma, é exigida de todos os membros
de uma sociedade uma responsabilidade diante das crianças, diante dos idosos,
diante da natureza, diante da política, diante das minorias, como também diante das
futuras gerações. A responsabilidade se torna aqui uma proteção da condição que
possibilita a vida humana e, portanto, da paz social. Como princípio ético, a responsabilidade é a condição da possibilidade de uma existência social digna para toda
4 Ver: Waldemar Molinski, Verantwortung, Verantwortlichkeit, in: Karl Rahner (Hg.), Herders Theologisches Taschenlexikon Band 8 (Freiburg 1973) 38.
5 Ver: Emmanuel Lévinas, Die Spur des Anderen. Untersuchungen zur Phänomenologie und Sozialphilosophie
(Freiburg – München 1986) 226.
6 Ver: Trutz Rendtorff, Vom ethischen Sinn der Verantwortung, in: Anselm Hertz u.a. (Hg.), Handbuch der christlichen Ethik Band 3 (Freiburg – Basel – Wien 1993) 121/122.
84
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pessoa humana.7 Uma ação responsável, como solicitude à sua própria pessoa humana, à pessoa humana do outro e ao meio ambiente exige a capacidade de discernimento ético entre o bem e o mal, entre ações destrutivas ou mantenedoras da
vida. Por isso, a inter-personalidade deve estar sempre acompanhada da individualidade, da qual pertence o exercício da razão. Somente uma ação que é acompanhada pelo pensamento crítico, ou seja, uma ação que não é uma simples conseqüência de circunstâncias, mas é precedida de fundamentos, se constitui em uma ação
verdadeiramente livre. Somente nestas ações, pode ser julgado o grau de responsabilidade da pessoa humana.8 Ninguém pode estabelecer exigências que ele próprio
diante de seus semelhantes não pode realizar. Aqui deve estar a responsabilidade da
pessoa humana diante de si própria e diante de seus semelhantes livre de qualquer
determinismo, fundamentalismo ou autoritarismo. Somente uma pessoa humana livre em suas decisão e com sensibilidade para o relacionamento social possui uma
responsabilidade que o leve a ser solícito diante da vida.9
3.
AS TRÊS DIMENSÕES JURÍDICAS DA RESPONSABILIDADE
Por ser a responsabilidade necessária à vida social, pode ser a ação humana
compreendida como responsável no sentido penal e civil. Na área do Direito, a responsabilidade se manifesta basicamente em três formas. Na primeira, a responsabilidade é vista como um compromisso surgido em uma determinada circunstância. A
falta de responsabilidade pode prejudicar a quem espera uma reação ou a todos os
envolvidos na situação circunstancial. Ao provocar um acidente no trânsito, uma
pessoa torna-se responsável em socorrer as vítimas e em assumir os danos causados
pelo acidente. Esta responsabilidade circunstancial pode gerar conseqüências como
dívidas, ressarcimento de danos ou até mesmo detenção. Em sua segunda forma, a
responsabilidade surge de um determinado encargo ou tarefa. Cuidar para que tudo
se desenvolva bem, para que tudo seja feito corretamente ou para que o menos possível de dano seja provocado, pertence à essência desta responsabilidade. O cuidado dos pais diante de suas crianças ou do médico diante de seu paciente são exemplos desta responsabilidade. Em sua terceira forma, a responsabilidade manifesta-se
como acerto de contas. Se um cidadão não pagar seus impostos, sofrerá obrigatoriamente as conseqüências determinadas pela lei. O cidadão é aquele que possui
responsabilidades diante de sua sociedade, pois usufrui de sua estrutura e proteção.
7 Ver: Wilhelm Vossenkuhl, Verantwortung – 2. Philosophisch, in: Lexikon der Bioethik Band 3 (Gütersloh 1998)
675.
8 Ver: Ludger Honnefelder, Gewissen und Verantwortung, in: Anselm Hertz u.a. (Hg.), Handbuch der christlichen
Ethik Band 3 (Freiburg – Basel – Wien 1993) 37.
9 Ver: Werner Wolbert, Verantwortung, in: Volker Drehsen u.a. (Hg.), Worterbuch des Christentums (München
1995) 1309.
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Todos esses significados da responsabilidade estão ligados aos elementos da
prontidão e do compromisso. Os dois elementos são exigências morais de respostas esperadas na convivência social que no transcorrer da história solidificaram-se
em normas jurídicas.10
4.
A DIMENSÃO TEMPORAL DA RESPONSABILIDADE
A responsabilidade pode ser exercida individualmente, institucionalmente e
coletivamente. A responsabilidade individual se expressa através de ações da pessoa
humana, em relação a si mesma, a seus semelhantes e a seu meio ambiente. Por sua
vez, a garantia da ordem jurídica e do bem estar social, como, por exemplo, segurança, saúde pública e educação, é responsabilidade de instituições como governo
federal, estadual e municipal, poder judiciário ou organizações nacionais e internacionais. A responsabilidade institucional não se constitui simplesmente em uma
soma de responsabilidades individuais; as duas formas de responsabilidade possuem sua qualidade específica. As instituições devem responder às exigências das
circunstâncias como se fossem indivíduos. A função básica das instituições é garantir os espaços, nos quais os indivíduos exercem suas responsabilidades, fazendo isso
de uma forma que garantam ou restrinjam a liberdade de pessoas humanas. Por sua
vez, a soma das responsabilidades individuais expressa a chamada responsabilidade
coletiva. Esta reforça a responsabilidade individual e institucional formando o grau
de consciência de uma sociedade em relação a sua responsabilidade.11
Se a responsabilidade não é entendida somente como o cumprimento de normas ou leis, mas como uma resposta ontológica da pessoa humana, necessariamente a responsabilidade assume, em sua forma individual, institucional e coletiva uma
posição social e política, pois a responsabilidade presume obrigatoriamente uma
existência social.12 Neste sentido, a responsabilidade precisa ser sempre compreendida como trans-pessoal, em outras palavras, como uma “co-responsabilidade”. O
fato de todo ser humano ser em um membro de uma sociedade faz com que ele se
torne co-responsável pela história de sua sociedade como também por seu futuro.
Uma sociedade responsável exige que seus membros tenham a consciência de que
são sujeitos e criadores de sua história coletiva. Assim, o ser humano ultrapassa seu
âmbito individual a partir do momento que assume a história de seu povo.13
À co-responsabilidade pertence obrigatoriamente uma dimensão temporal. O
membro de uma sociedade, independente de sua vontade ou sua ação, está entrelaçado na história atual de sua sociedade. A condição da sociedade atual é, porém, uma
10 Ver: Björn Burkhardt, Verantwortung – 1. Rechtlich, in: Lexikon der Bioethik Band 3 (Gütersloh 1988) 671-673.
11 Ver: VOSSENKUHL, Verantwortung 675/676.
12 Ver: Joseph Fletcher, Leben ohne Moral? (Gütersloh 1969) 95.
13 Ver: Gibson Winter, Grundlegung einer Ethik der Gesellschaft (München – Mainz 1970) 262.
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construção da história passada, diante da qual o ser humano da contemporaneidade
deve dar uma resposta. Neste sentido, diante do desenvolver da história surge a responsabilidade frente aos antepassados e às gerações futuras. Em primeiro lugar, as gerações contemporâneas possuem uma responsabilidade perante o passado. Cada
membro de uma sociedade tem a liberdade de aceitar ou não a história construída por
seus antepassados. Em relação ao passado, surge a responsabilidade de conservar ou
alterar os rumos da história. Para isso, é necessário que a sociedade mantenha viva a
memória coletiva para que o esforço, as ações, as inovações e, principalmente, os sofrimentos dos antepassados não sejam simplesmente esquecidos. Automaticamente,
a responsabilidade em relação ao passado se constitui em um posicionamento perante as gerações futuras, pois somente pelo conhecimento do passado e sua reflexão crítica é possível, no presente, ações que evitem os mesmos erros que poderão se tornar um peso ou um prejuízo para as gerações futuras. Afinal, estruturas políticas e econômicas como também critérios e valores que desrespeitam a dignidade da pessoa humana, podem ser consertados para a sociedade do futuro. Assim, não possuem somente os antepassados a responsabilidade pela história herdada no presente, mas as
gerações contemporâneas assumem uma responsabilidade em relação à sociedade do
futuro. Desta forma, cada membro de uma sociedade possui uma responsabilidade
temporal em relação ao passado e ao futuro, para a sua conservação como também
necessário melhoramento.14 Neste sentido, a responsabilidade temporal é uma consciência social que exige a conservação da memória histórica, o debate e a reflexão sobre fatos passados que ainda influenciam no presente e a auto-compreensão dos
membros da sociedade como sujeitos históricos.
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14 Ver: Roman Bleistein, Generationenwechsel – Generationenkonflikt – Generationenvertrag, in: Stimmen der
Zeit 215 (Freiburg 1997) 417/418.
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O PRIMADO DA INICIATIVA PRIVADA
NA CONSTITUIção
Alvacir Alfredo Nicz
Professor de Direito Constitucional nos Cursos de
Graduação e Pós-Graduação da UFPR e PUCPR.
Doutor e Mestre pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).
Hoje todo o Estado, independentemente do seu tipo, é fundamentalmente um Estado econômico.
H. Kruger
Este tema é um dos pontos mais salientes da parte referente à ordem econômica.
É preciso relembrar sempre que a Constituição de um país visa primordialmente
a resguardar a liberdade, até porque esta é a inspiração fundamental da democracia.
A liberdade pela sua tradição liberal imprime a todos um entusiasmo e um
apelo à sua efetividade, de modo a que todos dela possam usufruir sem que com
isto se possibilite o alcance desmesurado e desmedido que venha por alguns ferir a
liberdade de outrem.
Mas a liberdade, ainda que de inspiração liberal não pode ser vista apenas sob
a ótica política, uma vez que esta não pode prescindir da liberdade econômica. Aliás,
é bom também que se afirme que esta última, na verdade, não sobreviveria sem a
primeira, isto é, sem a liberdade política, até porque o Estado quando exerce um poder autoritário sempre se faz presente atuando na economia.A liberdade tem como
contrapartida a responsabilidade, ficando pois cada um sujeito a responder por suas
ações.
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faculdade de direito de bauru
Este é o ponto nuclear do liberalismo que, por si só, pretende assim afastar
toda e qualquer pretensão de opressão, sob pena de uma incompatibilidade com o
seu cerne filosófico que tem como enfoque o respeito à dignidade da pessoa humana. Aliás, o liberalismo não se opõe apenas contra o Estado autoritário, mas também
se coloca contra o Estado paternalista, uma vez que, aos seus olhos, ambos atentam
contra a dignidade humana.
O liberalismo contemporâneo tem admitido a presença do Estado no âmbito
econômico e social, mas muito mais como um intermediário conciliador de interesses, sem que com isto pretenda marcar uma posição de comando ou, ainda, de um
assistencialismo exacerbado.
É importante lembrar que dentre as liberdades reconhecidas desde o século
do Iluminismo transparece a liberdade econômica como uma das mais fundamentais, tendo dentro dela a liberdade de iniciativa, a liberdade de empresa, de ofício,
trabalho ou profissão, a liberdade de comércio e indústria, enfim a liberdade como
um direito que o indivíduo ou o grupo exerça no desempenho de uma atividade
econômica voltada ao bem comum, sem a necessidade da manifestação autorizativa
por parte do Estado.
Esta liberdade pautada pelo liberalismo tem no pensamento econômico da
época o exercício da sua condução pela chamada “mão invisível”, na expressão de
Adam Smith, na obra “A riqueza das nações”, objetivando alcançar o melhor dos
mundos, uma vez que a ausência do Estado proporciona, no dizer deles, o melhor
bem-estar geral.Este decorre da liberdade de mercado, sendo esta a reguladora do
campo econômico.
Assim, as primeiras Constituições deixam intencionalmente fora do seu alcance regulatório o econômico e o social. Limitam-se a dispor sobre uma parte orgânica e outra dogmática. Cuidam de limitar o exercício do poder político, de modo a
afastar o uso absoluto daqueles que detêm o poder.
Mas sempre a Constituição, de um modo ou de outro, é dependente de certos elementos que são estabelecidos pela economia. Não se vai aqui, evidentemente, sustentar uma pré-determinação da Constituição pela economia, mas se pode
afirmar a existência de um condicionamento da Constituição. Mas ela não é simplesmente uma resultante mas sim uma condicionante, uma vez que ela atua direta ou
indiretamente sobre o quadro econômico e contribui para conformá-lo deste ou daquele modo.
Ressalte-se, inclusive, que tal procedimento acontece quando estamos diante
de uma Constituição liberal típica, isto é, daquelas ausentes sobre a ordem econômica e social que, todavia, mesmo assim, não deixavam de ter atrás de si um quadro
econômico, bem como não deixavam também de influenciar essa mesma ordem.
Desta forma, podemos afirmar que toda Constituição, direta ou indiretamente, implícita ou explicitamente, tem uma dimensão econômica no sentido de que ela
é, ao mesmo tempo, influenciada pelo quadro econômico e o influencia.
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Mas é a partir do Século XX, pricipalmente com a Constituição alemã de Weimar de 1919, mas sem deixar, por questão de justiça de lembrar da Constituição do
México, de 1917, ainda que esta de influência reduzida, as Constituições estenderam
suas normas ao campo do econômico e do social. Assim foram várias Constituições
da época, inclusive a nossa de 1934.
Assim, as Constituições deixam de ser apenas políticas, passando a incorporar
ao seu texto outras matérias, como principalmente as de ordem econômica e social.
A princípio não definem precisamente qual a orientação que se pretende imprimir na economia. Elas se parecem mais como um conjunto de normas voltadas à
formação de um corpo de preceitos de propósitos generosos de concessões de “direitos sociais” que, todavia, passavam ao largo quanto a sua efetiva execução.
A doutrina constitucional passa, portanto, a registrar não apenas a existência das
Constituições liberais chamadas de Constituições políticas, mas também as denominadas Constituições econômicas que inserem no seu corpo essas novas matérias.
A importância destas últimas decorrem do fato de que o poder político não é
o único que pode sufocar a liberdade, porquanto o poder econômico ou o poder
social também podem ser os responsáveis pelo cerceamento desta liberdade.
É evidente que a análise da Constituição econômica deva se fazer, à semelhança da análise da Constituição política, sob o prisma da democracia, isto é, pelo respeito à liberdade.
A nossa Constituição vigente, elaborada sob a ótica dos princípios do Estado
Democrático de Direito, apresenta já no seu preâmbulo menção expressa à liberdade, bem como a estende por todo o seu corpo normativo como elemento condutor
na aplicabilidade das suas normas.
Ela tem, quanto à ordem econômica princípios extremamente liberais que nos
conduzem na direção de uma Constituição liberal.
Por exemplo, o princípio da patrimonialidade, isto é, a propriedade privada dos
bens de produção colocado, inclusive, antes mesmo da função social da propriedade.
Outro, como o princípio da livre iniciativa que no texto constitucional vigente não se apresenta apenas como fundamento da ordem econômica, constante do
seu art. 170, mas também o inclui no próprio corpo dos princípios fundamentais
quando vem mencionado dentre os fundamentos da República Federativa do Brasil,
no art 1º, IV, juntamente com os valores sociais do trabalho.
Aliás, a melhor forma de proporcionar a valorização do trabalho humano e a
dignidade da pessoa humana é dar oportunidade para que as pessoas trabalhem livremente, porque assim conseguirão a sua auto-realização.
Alguns outros princípios se apresentam nesta Constituição e que não encontrávamos nas nossas anteriores, como, por exemplo, o da livre concorrência, que
tem um conteúdo de vocação tipicamente liberal.
Ressalte-se, ainda, que o texto vigente reforça a primazia constitucional pela
iniciativa privada quando dispõe no parágrafo único do art. 170 que “é assegurado a
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todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei”.
Aliás, este princípio de vocação liberal que é um princípio majoritário de nossa ordem econômica se estendeu por todo o corpo da Constituição, inclusive dentre os direitos individuais do art. 5º quando expressa no inciso XIII que “é livre o
exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações que a
lei estabelecer”.
Mesmo a partir da leitura do art. 174 da Constituição, podemos extrair o elemento conformador da doutrina liberal do nosso texto constitucional. Ali encontramos que
como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público
e indicativo para o setor privado.
Observe-se que a liberdade do cidadão, vista sob a ótica liberal, compreendendo a livre iniciativa, a livre concorrência, a propriedade privada deve ser analisada sob o planejamento econômico estatal de que trata o art.174 da Constituição como meramente indicativo para o setor privado. É obrigatório apenas para
o setor público, pela simples razão de que o Estado quando entende de atuar na
economia deixa muito a desejar ou, melhor dizendo, é quase sempre incompetente e ineficiente.
A livre iniciativa no texto constitucional deve ser encarada de forma bem mais
ampla, uma vez que abarca não apenas a liberdade da empresa como também a do
trabalho. Assim, a Constituição ao destacar a preferência a livre iniciativa coloca a ela
oponível apenas a iniciativa estatal, ainda que não excludente.
A primazia pela iniciativa privada consagrada no texto constitucional é reafirmada no art. 173 da Constituição que estabelece um princípio básico em matéria de
presença do Estado na economia.
Assim dispõe o referido artigo:
Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.
Tal dispositivo reitera o princípio de que a exploração da atividade econômica pertence à iniciativa privada. Esta é a regra majoritária do nosso direito.
Explorar a atividade econômica é produzir bens e serviços visando à obtenção
de lucro e obediente às leis de mercado.
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De todo o exposto, relembremos que os arts. 1º e 3º delineiam os fundamentos e os objetivos da nossa República Federativa os quais incluem entre eles a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e a livre iniciativa.
Dentre os objetivos mencionados no art. 3º, estão enumeradas a construção
de uma sociedade livre, justa e solidária, a garantia do desenvolvimento nacional, a
erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e
regionais.
Assim, para concluir, ressalte-se que tais dispositivos inseridos na nossa Constituição na parte do Título I - “Princípios Fundamentais” e incluídos desde o seu
preâmbulo não podem ser vistos como meras declarações, apenas ideais, desprovidas de qualquer efetividade e sem qualquer valor real. Pelo contrário, a sua existência o abriga a integrá-los no sistema ou, quando não, interpretá-los em função deles
as normas que integram a ordem econômica e a ordem social constantes do texto
constitucional vigente.
PREVISÃO LEGAL DO DIREITO À IMAGEM
Vera Lúcia Toledo Pereira de Gois Campos
Mestra em Direito Constitucional.
Professora de Ética Geral e Profissional e orientadora de monografias jurídicas
nas Faculdades Integradas “Antonio Eufrásio de Toledo” de Presidente Prudente.
Advogada na Comarca de Presidente Prudente.
1.
NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
Até o advento da Constituição de 1988, o direito à imagem não figurava de forma
explícita no texto constitucional, muito embora alguns autores, a exemplo de Luiz Alberto David Araujo1, sustentem que a imagem foi protegida pelo direito constitucional brasileiro desde a primeira constituição. Para ele, a proteção da imagem consagrada pela
Constituição do Império, de 1824, ocorria de modo reflexo: ao proteger a inviolabilidade do domicílio, a vida e a intimidade, o texto constitucional protegia também a imagem.
No entanto, para outros autores, como Zulmar Fachin2, a imagem passou a ser
protegida, de modo implícito a partir da Constituição de 1891 e, expressamente, a
partir de 1988.
Segundo Sidney Cesar Silva Guerra3: o legislador constituinte acompanhando Constituições mais modernas, a exemplo da Constituição portuguesa e da
1 ARAUJO, Luiz Alberto David. A proteção constitucional da própria imagem. Pessoa física, pessoa jurídica e produto. Coleção acesso à Justiça; Del Rey: Belo Horizonte, 1996; p. 54
2 FACHIN, Zulmar Antonio. A proteção jurídica da imagem. São Paulo: Celso Bastos, 1999; p. 80.
3 GUERRA, Sidney Cesar Silva. A liberdade de imprensa e o direito à imagem. Biblioteca de Teses Renovar. Rio de
Janeiro: 1999; p. 58-59.
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Constituição espanhola, resolveu inserir no texto constitucional a proteção do direito à imagem.
Assim, a Constituição Federal4 de 1988, dentro dos direitos e garantias fundamentais, no artigo 5º, incisos V, X, e XXVIII, “a”, preceitua sobre a reprodução
da imagem física da pessoa, conforme se transcreve abaixo:
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade,
à igualdade, à segurança, à propriedade, nos termos seguintes:
......................................................................................................
V – é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo,
além da indenização por dano material, moral ou à imagem;
......................................................................................................
X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a
imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo
dano material ou moral decorrente de sua violação;
......................................................................................................
XXVIII – são assegurados, nos termos da lei:
a proteção às participações individuais em obras coletivas e à
reprodução da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas.
Pela primeira vez, o direito à imagem foi elevado a nível constitucional, o
que já era previsto de forma restrita na lei adjetiva civil e jurisprudencial.
Há de se ressaltar que, dentre os direitos e garantias individuais do cidadão, o texto constitucional enfatiza dois aspectos jurídicos relevantes: o direito
à indenização pelo dano material ou moral, decorrente da violação da imagem,
e a proteção à reprodução da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades
desportivas.
Além disso, como alerta Luiz Alberto David Araujo5, por força do artigo 60,
§ 4º, IV da Constituição Federal6, que dispõe que: não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais, o direito à imagem apresenta-se como cláusula pétrea, isto é, não pode
ser abolido ou sofrer restrições, vez que está incluído entre os direitos e garantias fundamentais.
4 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 1988.
5 ARAUJO, Luiz Alberto David. A proteção constitucional da própria imagem. Pessoa física, pessoa jurídica e produto. Coleção acesso à Justiça; Del Rey: Belo Horizonte, 1996; p. 55.
6 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 1988.
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Conforme leciona Zulmar Fachin7, ainda no âmbito constitucional são aplicados à proteção da imagem outros dispositivos, como os que prevêem a inafastabilidade do controle jurisdicional, contido no artigo 5º, inciso XXV e o devido processo legal, previsto no artigo 5º, inciso LIV da Constituição Federal8, abaixo transcritos:
XXV – no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano;
......................................................................................................
LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;
Sem desmerecer o posicionamento de Zulmar Fachin, nos parece-nos que o
controle jurisdicional previsto nos incisos XXV e LIV cuida mais de proteger a vida
privada, a intimidade e a liberdade do que a imagem propriamente dita; esta sim
protegida e amparada expressamente nos incisos V, X e XXVIII do artigo 5º, conforme já citado.
No nosso entender, a acepção de Fachin poderia comprometer a autonomia
do direito à imagem, confundindo-o com as teorias do direito de propriedade ou do
direito à intimidade, já abordadas nos tópicos 3.2 e 3.3 deste capítulo.
Verifica-se, também, que a despeito da demora da inserção expressa do direito à imagem no texto constitucional, o legislador constituinte, acompanhando a
evolução tecnológica e as conseqüentes mudanças no que tange à violação, divulgação e reprodução da imagem humana, amparou o direito à imagem, inserindo-o entre os direitos humanos fundamentais, alçando-o à condição de cláusula pétrea, dando-lhe, assim, a devida importância e amparo constitucional.
2.
NA LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL
2.1. Código Civil
Anteriormente à Constituição de 1988, o Código Civil Brasileiro9, no artigo
666, inciso X, já explicitamente revogado pelo artigo 115 da Lei 9.61010, de 19.02.98,
apenas fazia referência à imagem, num tratamento especial de direitos autorais, dis7 FACHIN, op. cit., p. 82
8 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 1988.
9 BRASIL. Código Civil (1916). Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916. Regula os direitos e obrigações de ordem privada concernentes às pessoas, aos bens e às suas relações. Rio de Janeiro (RJ), 1º de janeiro de 1916.
10 BRASIL. Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998. Altera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais
e dá outras providências. Brasília, DF, 19 de fevereiro de 1998.
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pondo que: A pessoa representada e seus sucessores diretos podem opor-se à reprodução ou pública exposição do retrato ou busto.
Da norma do inciso X do Código Civil de 1916, infere-se que ao titular do direito de imagem competia o consentimento no uso da mesma.
Outro ponto a ser observado quanto ao disposto nesse artigo, é a evidente intenção do legislador em estender o direito de imagem aos sucessores diretos do titular desse direito, alçando-os à mesma posição desse para se opor, ou não, à reprodução ou exposição pública de retrato ou busto. Assim, não apenas o detentor do
retrato ou busto, entendendo-se aí como a imagem da pessoa, poderia dela dispor,
como também os seus sucessores diretos.
Além desse dispositivo, o Código Civil tratou também de proteger juridicamente a imagem em outras normas, porém sempre de modo implícito, uma vez que
o legislador de 1916 não contemplava a imagem como um direito autônomo, passível de proteção jurídica.
É o que acontece no artigo 186 do Novo Código Civil11, que manteve a mesma
redação do artigo 159 do Código Civil de 1916:
Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência,
ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica
obrigado a reparar o dano.
Esse artigo dita a norma geral de proteção a todo e qualquer tipo de violação
do direito que cause prejuízo a alguém, consagrando, dessa forma, a regra matriz da
responsabilidade civil.
Da análise desse dispositivo extraiem-se os pressupostos da responsabilidade
civil, quais sejam: a ação ou omissão, a culpa caracterizada pela negligência ou imprudência, o resultado lesivo (prejuízo) e o nexo de causalidade entre a ação ou
omissão e o dano ocasionado.
Ao inserir a norma contida no artigo 159 do Código Civil de 1916 e, posteriormente, mantida no artigo 186 do novo Código Civil, o legislador colocou-a à
disposição de todos os membros do grupo social, uma vez que a mesma possui
alcance geral e abstrato, cabendo ao intérprete extrair da norma jurídica tudo o
que ela contém.
Assim, se a norma do artigo 186 pode ser aplicada a qualquer espécie de lesão a bem jurídico, pode-se concluir que a imagem encontra-se inserida entre esses
bens, merecendo ela, também, a tutela legal.
Dessa forma, o disposto no artigo 186 da Lei nº 10.406/02 (novo Código Civil), contempla a proteção jurídica devida à imagem. Se esta é um bem jurídico pertencente à pessoa humana, deve o direito estender sua proteção sobre ela.
11 BRASIL. Código Civil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Brasília, DF, 10 de janeiro de 2002.
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O artigo 188, I do novo Código Civil12 (Lei 10.406/02) traz a figura da exclusão
de ilicitude, quando dispõe que:
Art. 188 Não constituem atos ilícitos:
I - os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um
direito reconhecido;
A exemplo do artigo 186 da Lei nº 10.406/02, a norma jurídica inserida no artigo 188, I do mesmo diploma legal não excepciona a proteção jurídica à imagem ou
a todos os casos que a ela se amoldem.
Trata-se de uma norma permissiva, na qual o legislador permite que a pessoa,
sofrendo ataque a um bem que lhe pertença, defenda-o com sua própria força, desde que respeitados os limites de modo e de meios permitidos pela própria legítima
defesa, isto é, a pessoa ameaçada em seu direito, incluindo aí o direito de imagem,
está legitimada a defendê-lo.
Ainda no artigo 1518 do Código Civil de 1916, atual artigo 942 da Lei nº
10.406/0213 (novo Código Civil), segundo Zulmar Fachin14, pode-se encontrar, também, uma norma jurídica que, por força de interpretação criteriosa, poderia ser
invocada como proteção a ela, referindo-se, aí, à imagem da pessoa.
Dispõe tal artigo:
Art. 942. Os bens do responsável pela ofensa ou violação do direito
de outrem ficam sujeitos à reparação do dano causado; e, se tiver
mais de um autor a ofensa, todos responderão solidariamente
pela reparação.
Nesse dispositivo, pode-se encontrar, também implicitamente, a proteção à
imagem, pois a imagem, como direito, poderia ser ofendida ou violada, ficando o autor do ato lesivo comprometido a reparar o dano causado, inclusive com a vinculação de seus bens à essa obrigação.
Três são as alterações mais consistentes trazidas pelo novo Código Civil, Lei
10.40615, em vigor a partir de janeiro de 2003, quanto ao
direito à imagem: a prevista no artigo 11, que aborda os direitos da personalidade; a do parágrafo único do artigo 12, que tutela a imagem de pessoa falecida ou
ausente, estendendo o direito sobre ela ao cônjuge sobrevivente e aos parentes em
linha reta até 4º grau; e a do artigo 20 que, explicitamente, protege a imagem, des12 Ibidem.
13 Ibidem.
14 FACHIN, op. cit., p. 85,
15 BRASIL. Código Civil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Brasília, DF, 10 de janeiro de 2002.
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de que a sua utilização ofenda a honra, a boa fama, a respeitabilidade, ou se destine
a fins comerciais.
Na íntegra, preconizam tais disposições:
Art. 11. Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o
seu exercício sofrer limitação voluntária.
Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da
personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras
sanções previstas em lei.
Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, terá legitimação para requerer a medida prevista neste artigo o cônjuge
sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até
o quarto grau.
Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a
transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização
da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento
e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a
boa fama ou a respeitabilidade, ou se destinarem a fins comerciais.
Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.
No entanto, apesar das inovações trazidas com o advento do novo Código Civil,
várias são as críticas quanto aos dispositivos referentes à imagem nele contidos. Regina
Sahm16, ao comparar a Constituição Federal com o novo Código Civil, no tocante aos direitos da personalidade, afirma que enquanto a Constituição Federal de 1988 os contempla em sua autonomia e amplitude, o Código Civil os restringe, com exceção da
consagração de um direito geral de personalidade por meio de uma cláusula geral.
Oduvaldo Donnini e Rogério Ferraz Donnini17 também tecem críticas ao novo
Código Civil, alegando que nesse diploma legal o instituto “imagem” está desatualizado, vez que a exposição da imagem de uma pessoa, sem a sua autorização, gera
indenização independentemente de atingir a sua honra, a sua fama ou a sua respeitabilidade, ou de ser utilizada para fins comerciais, conforme dispõe o artigo 20 do
novo diploma legal. Quer dizer, mesmo que a imagem seja utilizada para fins institucionais, se não houver consentimento do titular da imagem, esse fará jus à inde16 SAHM, Regina. Direito à imagem no direito civil contemporâneo. São Paulo: Atlas, 2002; p. 237.
17 DONNINI, Oduvaldo e DONNINI, Rogério Ferraz. Imprensa livre, dano moral, dano à imagem, e sua quantificação à luz do novo Código Civil. São Paulo: Método, 2002; p. 63.
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nização pela violação de seu direito à imagem, a despeito da imagem ser, ou não, utilizada com vislumbre de ganho pecuniário.
No nosso entender, corretas estão as críticas dos doutrinadores, haja vista que as
disposições do novo Código Civil com relação à imagem dão margens para que se questione a autonomia desse direito que, há muito tempo, vem tentado ser firmada.
Por outro lado, comparando o Código Civil de 1916 com a Lei 10.406, em vigor a partir de 2003, há de se convir que no Código anterior, pouca ou nenhuma
menção explícita, de caráter protetivo, havia com relação à imagem. E, apesar das
críticas ao novo Código, é evidente que a imagem recebe tratamento especial com
normas explícitas que a protegem e a tutelam.
2.2. Código de Processo Civil
A exemplo da proteção implícita ao direito à imagem contida no Código Civil de
1916 e na Lei nº 10.406/02, da mesma forma o Código de Processo Civil (Lei 5869/73)
protege tal direito, fornecendo os meios para que seu titular busque a proteção jurisdicional quando se sentir lesado, ofendido ou ameaçado no seu direito à imagem.
Tem-se, assim, nos artigos 3º e 7º do Código de Processo Civil, a proteção implícita a ser aplicada quando da lesão ou ofensa ao direito à imagem.
Dispõem os artigos 3º e 7º do Código de Processo Civil18, in verbis:
Art. 3º. Para propor, ou contestar uma ação, é necessário ter interesse e legitimidade.
Art. 7º. Toda pessoa que se acha no exercício dos seus direitos tem
capacidade para estar em juízo.
Do exposto nas normas acima citadas, infere-se que, sendo a imagem um direito da pessoa humana, e caso seja ela ofendida ou violada, seu titular terá legitimidade para propor uma ação visando a assegurá-la.
Se a violação ou a ameaça de violação ao direito à própria imagem partir de
autoridade pública, no sentido de injustificada publicação do retrato ou mesmo de
retratação a contragosto, o remédio será o mandado de segurança.
Ainda na esfera processual civil, segundo Zulmar Fachin19, o direito à imagem
é amparado, implicitamente, no artigo 86720 do Código de Processo Civil, que disci18 BRASIL. Código de Processo Civil. Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Institui o Código de Processo Civil.
Brasília (DF), 11 de janeiro de 1973.
19 FACHIN, op. cit., p. 101-108.
20 Art. 867. Todo aquele que deseja prevenir responsabilidade, prover a conservação e ressalva de seus direitos
ou manifestar qualquer intenção de modo formal, poderá fazer por escrito o seu protesto, em petição dirigida
ao juiz, e requerer que do mesmo se intime a quem de direito.
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plina as medidas judiciais da interpelação e notificação; no artigo 83921, que admite
a ação de busca e apreensão para o caso de violação do direito à imagem; no artigo
93222, que dispõe sobre a ação de interdito proibitório; no artigo 27323, que abrange
a tutela antecipatória e no artigo 92624, que cuida da ação de reintegração de posse.
Conforme preleciona o autor, todas essas disposições podem ser encaradas como
dispositivos de proteção à imagem, vez que o titular da imagem lesionada ou ameaçada de lesão delas pode se servir no amparo e defesa do seu direito.
No entanto, nos parece que tais previsões não indicam um avanço traduzido pela
intervenção dos Tribunais ou um avanço legislativo, pois a mera previsão legal não assegura o exercício de um direito. Dessa forma, os dispositivos constantes do Código de
Processo Civil, que poderiam ser encarados como proteção à imagem, são normas gerais que se amoldariam a qualquer direito violado e não especificamente ao direito à
imagem. Trata-se mais de “procurar” entre as normas já existentes a mais adequada ao
direito de imagem violado, do que uma proteção propriamente dita.
2.3. Código Penal
No âmbito do Direito Penal, o que se percebe é que nenhuma norma penal
incriminadora visando proteger o direito à imagem foi estabelecida até o presente
momento.
O Código Penal brasileiro, datado de 1940, apenas se limitou a tipificar condutas lesivas a alguns direitos da personalidade, como ensina Jose Laercio Araujo25:
A ofensa à imagem da pessoa pode acarretar a configuração de
três tipos de crimes previstos no Código Penal: calúnia (artigo 138)
como fato de imputar falsamente a alguém fato definido como crime; difamação (artigo 139), que consiste em imputar a alguém
fato ofensivo à sua reputação, ou, finalmente, a injúria (prevista
no artigo 140), como ofensa à dignidade ou ao decoro de alguém.
Todavia, a Constituição Federal de 1988, ao prever a possibilidade de indenização pelo dano material ou moral decorrente da violação à imagem, conferiu responsabilização de natureza civil ao infrator do direito à imagem.
21 Art. 839. O juiz pode decretar a busca e apreensão de pessoas ou de coisas.
22 Art. 932. O possuidor direto ou indireto, que tenha justo receio de ser molestado na posse, poderá impetrar ao
juiz que o segure da turbação ou esbulho iminente, mediante mandado proibitório, em que se comine ao réu
determinada pena pecuniária, caso transgrida o preceito
23 Art. 273. O juiz poderá, a requerimento da parte, antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, desde que, existindo prova inequívoca, se convença da verossimilhança da alegação.
24 Art. 926. O possuidor tem direito a ser mantido na posse em caso de turbação e reintegração no de esbulho.
25 ARAUJO, Jose Laercio. Intimidade, Vida Privada e Direito Penal. São Paulo: Madras, [s. d.]; p. 80.
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No dizer de José Laércio Araújo26, isso não significa a exclusão das outras formas de punição compatíveis com a lesão de tal direito, como a responsabilização administrativa e a tipificação da conduta dentro dos crimes contra a honra.
Mesmo na reforma penal, implantada pela Lei 7.20927, de 11/07/84, a conduta
lesiva à imagem não foi abordada.
Nota-se que o direito à imagem, explícita e amplamente previsto na Constituição Federal, amparado expressamente pelo novo Código Civil e implicitamente pelo
Código Processual Civil, não encontra respaldo ou proteção no Direito Penal, sendo, talvez, esse o motivo para a edição de legislações esparsas que visem a proteger
tal direito de maneira mais eficiente e eficaz.
2.4. Código de Processo Penal
A despeito da ausência de previsão protecional ao direito à imagem no Código Penal, o Código de Processo Penal, ao contrário, traz alguns mecanismos que podem ser interpretados como proteção implícita ao direito à imagem.
No artigo 792 do Código de Processo Penal28, está disposto sobre a publicidade das audiências e demais atos processuais, estabelecendo o parágrafo 1º desse artigo que:
Art. 792............................................................................................
§ 1º. Se da publicidade da audiência, cessão ou ato processual, puder resultar escândalo, inconveniente grave ou perigo de perturbação da ordem, o juiz ou o tribunal, câmara ou turma, poderá,
de ofício ou a requerimento da parte ou do Ministério Público determinar que o ato seja realizado a portas fechadas, limitando o
número de pessoas que possam estar presentes.
Nota-se, nesse dispositivo, que o legislador processual penal logrou proteger
também a imagem do envolvido, restringido a publicidade da audiência, caso dessa
possa resultar escândalo, inconveniente grave ou perigo de perturbação da ordem.
Com a restrição da publicidade da audiência, conseqüentemente a imagem do envolvido recebe maior proteção, limitando-se a sua exposição e posterior divulgação.
Ainda na esfera do Direito Processual Penal, outro dispositivo que pode ser
entendido como referente ao direito à imagem é o artigo 226, III e IV do diploma
26 Ibidem, p. 80.
27 BRASIL. Lei nº 7.209, de 11 de julho de 1984. Altera dispositivos do Decreto-Lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940
- Codigo Penal, e dá outras providências. Brasília (DF), 11 de julho de 1984.
28 BRASIL. Código de Processo Penal. Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Rio de Janeiro, 3 de outubro
de 1942.
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processual29 que, implicitamente, recepciona como meio de prova a exibição de fotografias extraídas da identificação criminal, permitindo-se a lavratura de autos de
reconhecimento fotográfico como forma de investigação, como se verifica in verbis:
Art. 226. Quando houver necessidade de fazer-se o reconhecimento de pessoa, proceder-se-á pela seguinte forma:
......................................................................................................
III – se houver razão para recear que a pessoa chamada para o reconhecimento, por efeito de intimação ou outra influência, não
diga a verdade em face da pessoa que deve ser reconhecida, a autoridade providenciará para que esta não veja aquela;
IV – do auto de reconhecimento lavrar-se-á auto pormenorizado,
subscrito pela autoridade, pela pessoa chamada para proceder ao
reconhecimento e por duas testemunhas presenciais.
Percebe-se aí, também, o perfeito cabimento no processo penal do uso de
imagens de pessoas durante cenas de crime captadas por câmeras particulares ou
públicas, por ser do interesse público, devidamente assegurado por lei.
A Constituição Federal30, no inciso LIX do artigo 5º, preceitua que o civilmente identificado não será submetido à identificação criminal, salvo nas hipóteses
previstas em lei. A contrario senso, deixa clara a exigência da identificação da pessoa sujeita à investigação criminal, como afirma Arnaldo Siqueira de Lima31:
A identificação criminal só se dará, em regra, se a pessoa não for
civilmente identificada, como dispõe o texto maior, mas, de pronto, deixa a critério do legislador ordinário o elenco dos casos que
merecem identificação criminal, podendo-se extrair daí que a
Constituição autoriza o uso da imagem no processo penal, pois a
identificação, tanto civil como criminal, é realizada com uso de
fotografia.
Tanto é assim que a Lei 10.05432, de 07 de dezembro de 2000, regulamentou o
dispositivo constitucional citado por Arnaldo Siqueira de Lima33, prevendo a juntada
29 BRASIL. Código de Processo Penal. Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Rio de Janeiro, 3 de outubro
de 1942.
30 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 1988.
31 LIMA, Arnaldo Siqueira de. A imagem no processo penal. In Pró-Jurídico; publicado em 22 mai. 2002. Disponível em <http://www.juridico.pro.br/artigos/viewnews.cgi?newsid1016832197,16286>. Acesso em 18 jun. 2002.
32 BRASIL. Lei 10.054, de 07 de dezembro de 2000. Dispõe sobre identificação criminal e dá outras providências.
Brasília (DF), 07 de dezembro de 2000.
33 LIMA, op. cit., p. 3.
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do boletim de identificação do indiciado aos inquéritos policiais, ou cópia de seu
prontuário civil, que contém fotografia, tornando clara, mais uma vez, a pretensão
do legislador em permitir o uso da imagem na persecução penal.
Do exposto, infere-se que, mesmo antes do advento da Lei 10.054/2000, o uso da
imagem já era autorizado, pois o Código de Processo Penal elenca o reconhecimento no
capítulo das provas. Ao permitir que a autoridade competente submeta pessoas a reconhecimento pessoal ou por intermédio da imagem, o Código de Processo Penal não deixa margem a dúvidas quanto à existência de lei permitindo o seu uso no processo penal.
A utilização da imagem, prevista legalmente, consubstancia-se, também, como
forma de proteção e amparo a esse direito.
2.5. Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei 8069/90)
Antes de se adentrar no assunto sobre a previsão do direito à imagem no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90), necessário se faz definir o que vem a
ser considerado como criança e como adolescente para o meio jurídico. Quem melhor
dá essa definição é o próprio Estatuto34 que, em seu artigo 2º, dispõe: Considera-se
criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até 12 (doze) anos de idade incompletos,
e adolescente aquela entre 12 (doze) e 18 (dezoito) anos de idade.
Assim, a imagem da criança, entendida como pessoa até doze anos incompletos e do adolescente, dos doze aos dezoito anos, é tutelada implicitamente no artigo 227 da Constituição Federal35, que dispõe:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à
criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à
vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda
forma de negligência, discriminação, exploração, violência,
crueldade e opressão.
Além da tutela constitucional, implícita no artigo 227 da Constituição Federal,
também a imagem da criança e do adolescente está contemplada expressamente no
artigo 17 do Estatuto da Criança e do Adolescente36, instituído pela Lei 8069, de 13
de julho de 1990:
34 BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei nº 8.069, de 13 julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da
Criança e do Adolescente, e dá outras providências. Brasília (DF), 13 de julho de 1990.
35BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 1988.
36 BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei nº 8.069, de 13 julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da
Criança e do Adolescente, e dá outras providências. Brasília (DF), 13 de julho de 1990.
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Art. 17. O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia,
dos valores, idéias e crenças, dos espaços e objetos pessoais.
Como se denota, o respeito à imagem da criança e do adolescente foi colocado pelo legislador em igualdade com os demais direitos fundamentais, equiparando-se, portanto, à identidade e à autonomia, às idéias e crenças.
É de se refletir sobre o motivo que levou o legislador a alçar a imagem da
criança e do adolescente à proteção especial do ECA.
Para Silma Mendes Berti37, crianças e adolescentes, influenciados pela mídia e
com o incentivo dos pais, cada vez mais são atraídos para expor sua imagem e, assim, alcançar projeção e popularidade. Por outro lado, as empresas publicitárias investem no filão criança/adolescente, divulgando suas imagens em propagandas, programas de televisão e sites da internet.
No entanto, a exposição ou divulgação da imagem da criança e do adolescente envolve fatores outros bem mais complexos que a simples proteção constitucional ou aquela contida no ECA.
Há de se recordar que, de acordo com o artigo 3º* do novo Código Civil38, a
criança e o adolescente menor de 16 anos são considerados absolutamente incapazes para exercer os atos da vida civil e, os maiores de 16 anos e menores de 18, em
conformidade com o artigo 4º, I** do mesmo diploma legal, são relativamente incapazes para dispor de seus direitos, dentre eles incluído o direito à imagem.
Assim, para o exercício dos direitos decorrentes da utilização de sua imagem,
a criança e ou o adolescente necessita ser representada pelos pais ou responsáveis.
Além disso, ainda no ensinamento de Silma Mendes Berti39, de acordo com o artigo
201, III do Estatuto da Criança e do Adolescente, é necessária também a autorização formal do Juiz da Infância e da Juventude e do representante do Ministério
Público, agindo na tutela dos seus interesses.
Exemplo disso é o caso ocorrido no ano de 2000, por ocasião da exibição da
novela “Laços de Família”, de autoria de Manoel Carlos, exibida pela Rede Globo de
Televisão. Essa novela utilizava em seu elenco várias crianças de ampla faixa etária:
desde recém-nascidos até adolescentes. Entendendo ser tal exposição prejudicial ao
37 BERTI, op. cit., p. 124.
*Art. 3º. São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil: I – os menores de dezesseis
anos;
38 BRASIL. Código Civil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Brasília, DF, 10 de janeiro de 2002.
**Art. 4º. São incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercer: I – os maiores de dezesseis
anos e menores de dezoito anos;
39 BERTI, op. cit., p. 125.
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desenvolvimento da criança, o polêmico juiz da Vara da Infância e Juventude do Rio
de Janeiro, Siro Darlan, expediu uma portaria proibindo a participação de menores
na novela. De nada adiantou, pois os Tribunais revogaram a portaria por entender
que cabe aos pais, como representantes legais, autorizar, ou não, a divulgação e/ou
exposição da imagem de seus filhos na mídia.
Apesar da autorização judicial para a utilização da imagem da criança e do adolescente, essa formalização não tem o condão de dispor dos direitos reais do menor,
cabendo aos seus representantes legais, efetivamente, a concessão, ou não, do uso
da imagem.
Porém, o que se verifica hoje em dia na mídia é a divulgação e a superexposição
indiscriminada de imagens de crianças desde a mais tenra idade, em publicidade, novelas, internet e modelos fotográficos, entre outros, num incentivo, inclusive, à pedofilia.
No âmbito jurisprudencial, as decisões têm sido no sentido de que é imprescindível a autorização dos responsáveis para a reprodução da imagem do menor de
18 anos, como se verifica na jurisprudência trazida a lume por Sylvio Guerra40:
EMENTA – Indenização – Direito à imagem – Menor de 15 anos de
idade – Reprodução de fotos em encarte promocional da empresa
em que trabalhava. Hipótese em que a autora era menor absolutamente incapaz à época dos fatos, e tal incapacidade não permitia que pudesse consentir positivamente ou negativamente quanto
a seus direitos – Necessidade do consentimento expresso de representante legal – Inteligência do art. 5º, inciso X da Constituição Federal – Negado provimento ao recurso.
(TJRJ, Apel. Cív. nº 4492/98, Rel. Des. Otávio Rodrigues).
Denota-se, no acórdão acima, que a adolescente, titular da imagem violada,
apesar de já exercer atividade laborativa, não poderia autorizar a divulgação de sua
imagem, cabendo tal encargo somente aos pais ou representantes legais que, expressamente, deveriam consentir na divulgação da imagem da adolescente.
É de se indagar até que ponto os pais ou representantes legais podem dispor
da imagem de seus filhos ou tutelados sem que com isso prejudiquem o desenvolvimento psíquico, social e emocional dessas crianças. Sem contar que, na maioria
dos casos de divulgação da imagem de crianças, os pais a autorizam movidos tão somente pelo vislumbre do lucro, da fama e da projeção social que possa, porventura,
advir dessa divulgação.
Assim, pode-se dizer que o artigo 17 do Estatuto da Criança e do Adolescente
tem a intenção de proteger a imagem da criança e do adolescente até mesmo dos
próprios pais.
40 GUERRA, Sylvio. Colisão de direitos fundamentais. Imagem x Imprensa. Rio de Janeiro: BVZ, 2002; p. 51.
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2.6. Direito de arena (Lei 9615/98)
O direito de arena pode ser entendido sob dois pontos de vista: para o atleta
é o direito de receber parte dos proventos advindos de publicidade, utilizando a sua
imagem, feita em campos de esporte e, para as entidades desportivas (clubes, times
de futebol, etc.) é o direito de negociar, autorizar ou proibir a fixação, a transmissão
ou retransmissão de imagem de espetáculo ou eventos desportivos.
Mediante contrato entre o atleta e a entidade à qual está vinculado, são fixados os percentuais aos quais ele teria direito na exibição publicitária. Salvo convenção em contrário, o atleta tem direito a vinte por cento dos valores arrecadados.
Assim, o direito de arena transfere para as entidades de prática desportiva a titularidade do direito de negociar a imagem do atleta quando esse se apresenta
como parte integrante da entidade.
Está previsto e garantido na Constituição Federal41, artigo 5º, XXVIII, a:
Art. 5º............................................................................................
XXVIII – são assegurados, nos termos da lei:
a proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas;
Mais especificamente, está previsto no artigo 42 da Lei 9615/9842, a chamada
“Lei Pelé”, e visa à proteção do atleta pelo uso de sua imagem na prática desportiva:
Art. 42. Às entidades de prática desportiva pertence o direito de
negociar, autorizar e proibir a fixação, a transmissão ou retransmissão de imagem de espetáculo ou eventos desportivos de
que participem.
Segundo Carlos Adriano Pacheco43, professor de Direito Desportivo, a Lei Pelé
estabelece que a entidade esportiva, à qual o atleta está vinculado, tem o direito de
negociar por ele a fixação, transmissão e retransmissão do evento esportivo do qual
o atleta participa, pois não seria lógico que cada atleta negociasse individualmente
o uso de sua imagem no espetáculo desportivo.
E, prossegue, salientando que:
41 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 1988.
42 BRASIL. Lei nº 9.615, de 24 de março de 1998. Institui normas gerais sobre desporto e dá outras providências.
Brasília (DF), 24 de março de 1998.
43 PACHECO, Carlos Adriano; Direito de arena – Atleta profissional. Disponível em <http://www.legislacaodesportiva.hpg.ig.com.br/art12html>. Acesso em 13 jun 2002.
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Importante destacar que a regra contida no art. 42 da Lei 9615/98
não autoriza a exploração da imagem do atleta fora do espetáculo desportivo. Assim, toda divulgação da imagem do atleta ‘extracampo’ (propaganda, lançamento de produtos com uso do
nome...) deve ser negociada com o mesmo via contratual.
Pode-se entender que o direito de arena não abrange o uso da imagem dos
atletas individualmente, fora da situação específica do espetáculo desportivo do
qual participa, seja jogo, desfile ou outro qualquer. Assim, o atleta profissional tem
o direito de negociar individualmente o uso de sua imagem para os demais casos,
inclusive para fins comerciais.
Insta salientar que a doutrina manifesta-se relutante em aceitar o direito de
arena, vez que, no espetáculo desportivo, não há nenhum produto intelectual que
se assemelhe à manifestação artística.
José Oliveira Ascensão44 acentua a diferença fundamental entre o direito à imagem e o direito de arena. O direito à imagem pertence ao atleta, que seria o titular exclusivo de sua utilização. Por sua vez, o direito de arena é atribuído à entidade à qual o
atleta está vinculado. Por outro lado, afirma a constitucionalidade do instituto, pois
transmitir um espetáculo desportivo público não é violar a imagem do atleta.
De acordo com Regina Sahm45, a recepção pela Constituição Federal quanto ao direito de Arena não foi completa, pois a antiga lei que regia o desporto admitia a possibilidade de não se remunerar atletas; no entanto, a Constituição não admite exceções ao
princípio de ordem pública; a participação individual em obras coletivas pressupõe a
proteção de direitos patrimoniais e morais e, dentre eles, o direito à imagem, esteja o
atleta apresentando-se individualmente ou vinculado a um clube ou entidade esportiva.
2.7. Lei de direitos autorais (Lei 9610/98)
O direito autoral é uma questão antiga, mas está sempre na ordem do dia. Até
1973 não havia regulamentação específica quanto ao direito autoral que, até então,
era regido pelo Código Civil.
Foi promulgada, então, a Lei nº 5988/7346, primeira lei autoral do Brasil, que já
sofria influência principalmente da legislação francesa e um pouco da alemã, posteriormente revogada pela Lei º 9610/9847.
44 ASCENSÃO, José Oliveira. Direito autoral. Rio de Janeiro: Forense, 1980; p. 514
45 SAHM, Regina. Direito à imagem no direito civil contemporâneo. São Paulo: Atlas, 2002; p. 232
46 BRASIL. Lei nº 5.988, de 14 de dezembro de 1973. Regula os direitos autorais e dá outras providências. Brasília
(DF), 14 de dezembro de 1973.
47 BRASIL. Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998. Altera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais
e dá outras providências. Brasília (DF), 19 de fevereiro de 1998.
110
faculdade de direito de bauru
No dizer de Paulo Gomes de Oliveira Filho48:
Com a mudança que adveio com a nova Lei de 98 houve uma
simbiose das legislações mais atualizadas do direito autoral. A
brasileira é uma das mais evoluídas. Ela dá uma proteção muito maior à pessoa física do criador e apenas abre exceções para
que ele possa, eventualmente, ceder parte desses direitos a outras pessoas.
A cessão de direitos prevista na Lei dos Direitos Autorais é que entra em conflito com o direito à imagem. Até que ponto, um fotógrafo, por exemplo, autor de
obra fotográfica, pode ceder o direito de sua obra a terceiros, se nela está a imagem
de outra pessoa, imagem essa protegida e amparada constitucionalmente como direito humano fundamental?
O autor de uma obra fotográfica jamais poderá, argumentando estar sob a égide do direito autoral, utilizar uma foto para outra finalidade que não seja entregá-la
ao fotografado. Quanto a isso, o artigo 5º, VII da Lei de Direitos Autorais (Lei nº
9.610/98), é explícito ao dispor:
Art. 5º. Para os efeitos da Lei, considera-se:
...........................................................................
VII – contrafação – a reprodução não autorizada;
Ainda, no mesmo artigo 5º, é definido o que vem a ser publicação, transmissão, retransmissão, distribuição ao público, comunicação e reprodução, abrangendo-se, entre as obras literárias, artísticas ou científicas, os sons e as imagens. Também na Lei de Direitos Autorais49 (Lei nº 9.610/98), no artigo 7º*, pode-se perceber
que a imagem é contemplada por esse dispositivo legal quando, ao dispor sobre as
obras intelectualmente protegidas, o legislador elenca entre elas obras fotográficas,
de desenho, pintura, gravura, escultura e cinematográficas que, na maioria das vezes, têm na imagem da pessoa humana o seu maior expoente.
48 OLIVEIRA FILHO, Paulo Gomes de. Lei 9610/98 trata dos direitos autorais. Nova legislação garante maior proteção à pessoa física do criador da obra e é considerada uma das mais evoluídas do mundo. In: Revista Fox; edição 62. Disponível em <http://www.igutenberg.org.biblio19.htm>. Acesso em 16 jun 2002.
49 BRASIL. Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998. Altera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais
e dá outras providências. Brasília (DF), 19 de fevereiro de 1998.
*Art. 7º São obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em
qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro, tais como: [...] VI – as obras
audiovisuais, sonorizadas ou não, inclusive as cinematográficas; VII – as obras fotográficas e as produzidas por
qualquer processo análogo ao da fotografia; VIII – as obras de desenho, pintura, gravura, escultura, litografia
e arte cinética.
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Porém, no nosso entender, a maior proteção ao direito à imagem verificada na
Lei dos Direitos Autorais está implícita no artigo 46, I, “c”, cujo título “Das Limitações aos Direitos Autorais”, já especifica que esse direito, o autoral, é que é limitado pelo direito à imagem e não o contrário.
Dispõe o artigo 46, I, “c” da Lei nº 9.610/9850:
Art. 46. Não constitui ofensa aos direitos autorais:
I – a reprodução:
......................................................................................................
c) de retratos, ou de forma de representação da imagem, feitos sob
encomenda quando realizada pelo proprietário do objeto encomendado, não havendo a oposição da pessoa neles representada
ou de seus herdeiros;
Restringindo a reprodução de retratos, como se verifica no artigo citado,
àqueles que neles estão representados ou aos seus herdeiros, implicitamente a Lei
de Direitos Autorias protege a imagem e dá a entender que, em outros casos, necessária será a autorização do titular da imagem para a sua reprodução.
Assim, verifica-se que, também na Lei dos Direitos Autorais, o direito à imagem prevalece, ainda que existam na própria lei autoral, algumas exceções quanto
ao uso de qualquer obra intelectual, quando a finalidade é pedagógica ou científica,
aí, então não há impedimento que se possa opor à reprodução.
2.8. Lei de Imprensa (Lei 5.250/67)
Muito embora esteja a imprensa estreitamente ligada à imagem, esta não foi
prevista na Lei 5.250/6751, que regula a liberdade de manifestação do pensamento e
de informação nos veículos de comunicação de massa. Sobre a imagem não há sequer menção na Lei de Imprensa.
Dois fatores contribuíram para que a imagem não fosse abordada nesse dispositivo. O primeiro é que tal lei, promulgada em 1967 e, portanto, anterior à Constituição Federal, por essa não foi recepcionada. O segundo fator também diz respeito à data de promulgação da lei: nos anos 60 e 70 as fotografias impressas importavam em trabalho dificultoso e pouco utilizado, vez que era dificílima a reprodução de clichês que gerariam
as fotos a serem impressas nos jornais e periódicos. Assim, a mesma foto era impressa
várias vezes, gerando, dessa maneira, menos conflitos com relação à imagem.
50 BRASIL. Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998. Altera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais
e dá outras providências. Brasília (DF), 19 de fevereiro de 1998.
51 BRASIL. Lei de Informação. Lei nº 5.250, de 09 de fevereiro de 1967. Regula a liberdade de manifestação do pensamento e de informação. Brasília (DF), 9 de fevereiro de 1967.
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faculdade de direito de bauru
Com o advento do off set nos anos 70, a imprensa passou a utilizar os negativos das fotos, fato esse que possibilitou que o trabalho de impressão de fotos e imagens fosse executado com mais facilidade e rapidez.
Assim, como a imagem não era muito utilizada pela imprensa e, como na
Constituição da época não era previsto o direito à imagem, esse ficou excluído da
Lei nº 5.250/67.
No entanto, a responsabilidade civil decorrente de atos ou omissões praticados pela imprensa é regulada no capítulo VI da Lei 5.250/6752, em especial no artigo
49, que dispõe:
Art. 49. Aquele que no exercício da liberdade de manifestação do
pensamento e de informação, com dolo ou culpa, viola direito, ou
causa prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar:
I – os danos morais e materiais, nos casos previstos no art. 16, incisos II e IV, no art. 18 e de calúnia, difamação ou injúria;
II – os danos materiais, nos demais casos.
Do dispositivo acima transcrito, pode-se inferir que, em se tratando de ofensa à imagem pela imprensa, o dever de indenizar está restrito aos danos materiais,
pois inexiste previsão nesse sentido para a indenização por danos morais. Há de se
relembrar que a lei em questão foi promulgada em 1967 e somente a partir da Constituição de 1988 é que o texto constitucional previu a cumulação de danos.
De acordo com Pedro Vinha53:
A interpretação do texto constitucional não comporta e não recepcionou os parâmetros inseridos na Lei de Imprensa sobre o assunto. O que determina o dever de indenizar pelo dano moral ou material causado pelo fato da imprensa, a partir da Constituição Federal de 88, é a violação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem, na forma prevista no inciso X do artigo 5º do texto constitucional.
Hoje é pacífico e evidente que sempre que houver danos morais e materiais
decorrentes da violação da imagem pela imprensa, serão esses cumuláveis.
Pedro Vinha54 noticia que se encontra em trâmite na Câmara dos Deputados,
o Projeto de Lei nº 3.232-A, originário do Senado Federal, que dispõe sobre a liber52 BRASIL. Lei de Informação. Lei nº 5.250, de 09 de fevereiro de 1967. Regula a liberdade de manifestação do pensamento e de informação. Brasília (DF), 9 de fevereiro de 1967.
53 VINHA, Pedro. A responsabilidade civil pelo fato da imprensa. Curitiba: Juruá, 2001; p. 158.
54 Ibidem, p. 186-205.
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dade de imprensa, de opinião e de informação. Segundo o autor, o artigo 5º desse
Projeto de Lei estabelece as regras básicas da responsabilidade civil decorrente da
atividade da imprensa quando assegura o direito à indenização por dano material e
moral ou à imagem a todas as pessoas, atingidas por publicações ou transmissões tidas como ofensivas.
Ainda sobre a imagem, na nova Lei de Imprensa, Pedro Vinha55 dispõe que:
A inserção do termo ‘imagem’ levada a efeito no art. 6º, III do texto, que se expressa no sentido de que a ‘condenação levará em
conta a extensão do prejuízo à imagem do ofendido, tendo em vista que a sua situação profissional, econômica e social’ não é adequada. Ao que parece, está colocada de modo a ser substituída por
‘direitos da personalidade’, gênero do qual a imagem é espécie e
que abrange, além da imagem-retrato ou atributo, a intimidade,
a vida privada e a honra, constitucionalmente tutelados.
Desse modo, é de se constatar que, muito embora a imagem e o direito a ela
não tenham sido previstos na Lei nº 5.250/67, que regula sobre a imprensa e a informação e, portanto, intimamente relacionada à imagem, inequivocamente a partida
para sanar tal lacuna foi dada, pois o Projeto de Lei nº 3.232-A, que viria a substituir
a atual e defasada Lei de Imprensa, aguarda pauta para votação pelo plenário da Câmara dos Deputados, para então retornar ao Senado Federal e ser reapreciado.
Não obstante a demora, pois tal projeto data de 1992, alguma coisa está sendo
feita, ainda que a longo prazo, para a proteção da imagem no âmbito da imprensa.
3.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Constata-se que, além da Constituição Federal, o direito à imagem é contemplado em quase toda a legislação infra-constitucional. Além dos tópicos abordados,
verifica-se, também, a presença do direito à imagem no Código Comercial, ao tratar
sobre a propriedade industrial que se relaciona com marcas identificativas de empresa, marcas de serviços, nome comercial, bem como com patentes de invenções.
O direito à imagem também encontra proteção no direito eleitoral, disciplinado pela Lei Orgânica dos Partidos56, Lei nº 9.096/95 e pelo Código Eleitoral, como se
verifica no parágrafo primeiro, inciso III do artigo 45* da citada lei, que disciplina a
55 Ibidem, p. 208.
56 BRASIL. Lei Orgânica dos Partidos. Lei nº 9.096, de 19 de setembro de 1995. Dispõe sobre partidos políticos,
regulamenta os arts. 17 e 14, § 3º, inciso V, da Constituição Federal. Brasília (DF), 19 de setembro de 1995.
*Art. 45. [...] § 1º Fica vedada, nos programas de que trata este Título: III – a utilização de imagens ou cenas incorretas ou incompletas, efeitos ou quaisquer outros recursos que distorçam ou falseiem os fatos ou a sua comunicação.
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faculdade de direito de bauru
propaganda partidária, vedando a utilização de imagem ou cenas incorretas ou incompletas, efeitos ou quaisquer outros recursos que distorçam ou falseiem os fatos
e a sua comunicação.
De todo o exposto, é de se concluir que o direito à imagem, alçado à condição de direito humano fundamental, recebeu proteção legislativa em todos os ramos do direito, seja público ou privado, demonstrando a preocupação do legislador
em resguardar e preservar o direito à imagem, bem como sua importância face aos
outros direitos humanos fundamentais, ocupando o espaço que merece na legislação constitucional e infra-constitucional.
A proteção legislativa tem os seus reflexos nas decisões que envolvem os litígios referentes à imagem, contribuindo para que haja maior uniformidade nos julgados, recebendo a imagem, desse modo, uma proteção mais eficaz.
Outro fator relevante da proteção legislativa à imagem diz respeito à evolução
dos meios de captação, exposição, divulgação e propagação da imagem ao longo da
história. Uma vez que os meios de reprodução da imagem evoluem vertiginosamente, passando, em alguns anos, da simples fotografia à clonagem humana, à legislação
nada mais resta senão acompanhar esse desenvolvimento, sob pena de transformar
um direito humano fundamental, como é o caso da imagem, em algo estático e desprovido de proteção jurídica.
No entanto, a despeito da proteção legislativa em vigor, muitas lacunas ainda
existem a serem preenchidas quanto à proteção da imagem. É o caso da Lei de Imprensa (Lei nº 5.250/67) que, embora estreitamente ligada à imagem, não apresenta uma disposição sequer sobre ela.
Outro exemplo de lacuna legislativa é o Código Penal, no qual a imagem não
recebe nem ao menos a proteção mínima. Porém, outras leis vêm surgindo, a exemplo da Lei 9615/98 (Lei Pelé), da Lei 10.406/2000 (novo Código Civil), onde as disposições sobre a imagem são explícitas, na tentativa de acompanhar o desenvolvimento tecnológico, sem deixar desamparado um direito que o legislador constituinte e os tratados internacionais alçaram à condição de direito humano fundamental.
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DIREITO NATURAL: BERÇO DOS DIREITOS HUMANOS
Kaiomi de Souza Oliveira
Mestranda pela Fundação Eurípides Soares da Rocha de Marília – UNIVEM.
Professora de Direito Processual Civil I da Fundação Eurípides Soares da Rocha de Marília – UNIVEM.
Advogada Militante.
INTRODUÇÃO
A conscientização do homem no tocante às suas próprias obrigações e aos seus
próprios direitos perante seus semelhantes, percorreu um longo caminho, conforme
percebemos na Grécia, com a mitologia; com o direito natural do filósofo Aristóteles;
na filosofia estóica e na filosofia de Cícero. Esses direitos, baseados na razão e na moral, lhes são inerentes pela sua qualidade de pessoa humana. Portanto, tais direitos irão
consolidar os direitos fundamentais do homem na doutrina do direito natural.
Será abordado no trabalho a peça de Sófocles Antígona, do ano 442 a C. Com
essa tragédia mitológica, perceberemos que a dicotomia entre o direitos das cidades
e o direito natural dos povos não é uma preocupação da atualidade, mas sim um
sentimento inerente que surgiu com a humanidade.
Discorreremos sobre o direito natural como fundamento dos direitos humanos, analisando a construção da noção de Justiça dos gregos e do pensamento filosófico de Aristóteles, dos estóicos e Cícero.
Para Aristóteles, a melhor constituição está na justiça natural, porque é universal e independe do que as pessoas pensam. Os estóicos colocam que a lei que deve
reger a comunidade humana é a lei natural, porque esta é única, superior e perfeita; portanto, não necessita de correções ou melhoramentos, pois a razão humana
inspirada na natureza é a base da lei e da justiça.
120
faculdade de direito de bauru
Portanto, iremos perceber que a construção filosófica sobre o direito natural
de Aristóteles, Cícero e dos estóicos fundamentou a Declaração Universal dos Direitos do Homem, as nossas Constituições entre outros documentos que protegem os
Direitos Humanos.
1.
DO MITO À REALIDADE DOS DIREITOS HUMANOS
O conflito entre lei das cidades e lei natural torna-se uma preocupação generalizada entre os povos antigos e repercute, inclusive, na literatura e no teatro. Sua maior
expressão encontra-se na tragédia1 Antígona. O conflito estabelece uma dicotomia entre Antígona – que representa a família - e Creonte – que representa a cidade.
A intenção de começar abordando a peça de teatro grego do ano de 442 a C,
o gênero literário de Sófocles, “A tragédia de Antígona” que foi uma das peças trágicas que mais bem retratou a inquietação dos gregos com a noção de Justiça da sua
época, é para demonstrar que, na antigüidade, já havia uma preocupação com os Direitos Humanos, quando Antígona confronta os Direito Natural com o Direito das
Cidades, representando por Creonte.
O tema teatral pertence ao ciclo tebano da família dos Labdacidas. Antígona,
filha de Édipo, o acompanhou nos caminhos da Grécia até Colona, onde ele morreu. Ela volta a Tebas e vive com a irmã Ismênia. Mas uma nova desgraça acontece.
Os seus dois irmãos, Etéocles e Polinice, lutam pelo poder e se matam um ao outro.
O tio, Creonte, chefe de Tebas, manda enterrar Etéocles, mas proíbe sepultar Polinice, que combatia contra a cidade.
No prólogo da peça, Antígona pede ajuda a Ismênia para enterrar seu irmão
Polinices. “É proibido, vai fazer uma loucura”, responde esta, “você quer o impossível”. Mas Antígona lhe diz: “Deixe a mim e a minha insensatez arriscar aquilo que receias tanto”. Logo no começo, são bem assinalados traços típicos de Antígona: a sua
determinação e a sua coragem de fazer cumprir a lei que se estabelece acima dos
homens.
No primeiro episódio, Creonte se apresenta a eles proclamando os princípios
que o guiam:
Ocupo o trono e o poder [...]. Aquele que ousar sobrepor o amigo
à pátria, eu julgarei que é uma nulidade”. Aplicando tais princípios ao caso dos dois irmãos: “A Etéocles, que tombou defendendo
a cidade, ordenei que dessem um túmulo digno. Quanto ao seu irmão Polinices, que voltou do exílio para destruir o solo pátrio a
ferro e a fogo [...], e fazer de cada cidadão um escravo, a esse não
1 A tragédia é um gênero literário e teatral – é a origem do teatro -, nascido dos cultos religiosos a Dionisos. Entre
os séculos V e VI a.C., a Grécia conhece seus maiores trágicos: Ésquilo, Sófocles e Eurípides.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
41
121
permito que a cidade honre nem com sepultura, nem com cantos
fúnebres. Insepulto fique e seja pasto de aves e de cães, hediondo
quadro a quem o vir.
Para Creonte, a pátria antes de tudo. Os velhos, a quem Creonte pede ajuda
para que suas ordens sejam respeitadas, não parecem de acordo, mas não querem
protestar com medo de morrer.
Da mesma maneira, o guarda encarregado de vigiar o morto, que descobriu
que o morto fora recoberto de terra e que o ritual fúnebre foi praticado, morre de
medo de revelar o fato a Creonte.
Efetivamente, Creonte estoura: “alguém ousou desobedecer!” Ele vê a rebeldia em tudo; o dinheiro compra tudo e destrói os Estados, mas os deuses estão do
seu lado. Creonte propõe uma ordem em que tudo seria subordinado ao Estado, é
uma ordem totalitária. A peça não é só um conflito de princípios, mas Sófocles, o autor da tragédia, mostra os indivíduos agindo, em um conflito de seres humanos muito diferenciados e marcados.
O segundo canto da peça é muito famoso: “Há muitas maravilhas no mundo,
mas a maior de todas é o homem”. Ele canta o gênio do homem e a desgraça que
acontece quando ele é mal usado.
O coro admira os progressos da civilização humana: navegação, cultivo da terra, caça, pesca, domesticação dos animais, literatura, filosofia, construção. Só a morte ela não vence. Esses progressos são grandes, mas nada têm a ver com a ordem
moral: a potência que eles dão à humanidade podem ser utilizadas, tanto para o
bem, quanto para o mal. É preciso saber juntar o respeito das leis do Estado e o respeito à justiça, que os deuses exigem. O princípio é bem claro. Aqui o coro é o porta-voz do poeta, que fala a Atenas dos problemas do seu tempo.
No episódio seguinte, o culpado é trazido diante de Creonte: é Antígona. E a
cena apresenta o grande debate entre Creonte e Antígona. Trata-se de um conflito
de princípios entre duas formas de vida: temer a morte e não ter medo de morrer;
duas formas de ideal: o ódio e o amor; dois tipos de deveres: perante as leis da cidade e perante as leis não escritas, inabaláveis, dos deuses. Para Antígona, as únicas
leis que ela reconhece são os grandes princípios morais que os deuses garantem. À
ordem de Creonte, ela opõe os deveres de família; Creonte, que é autoritário e orgulhoso, invoca a razão de Estado, mas age contra o bem comum. Mais tarde, ele irá
reconhecer.
Através desses exemplos vivos, Sófocles sublinha uma série de pares de deveres: família e Estado, humanidade e autoridade, religião e respeito às leis do Estado.
O que dá força a Antígona é o seu amor: “Não nasci para odiar, mas para amar”. Esta
iluminação acaba com as astúcias de Creonte.
Com essa tragédia, passamos a um plano superior: a justiça das cidades cede
o passo ao amor e a justiça dos deuses. Creonte está decido a executar Antígona.
122
faculdade de direito de bauru
Creonte e Antígona são diferentes e semelhantes, são vontades inflexíveis, almas
opostas que recusam ajuda dos que poderiam desviá-los do caminho que eles estão
decididos a percorrer até o fim. É tudo ou nada. Eles põem em jogo as suas vidas:
Antígona pelo irmão e Creonte pelo poder.
Nesse debate, o teatrólogo Sófocles escolheu o seu lado: que a razão está do
lado de Antígona. Evidentemente, o dever de um rei é a lealdade em relação ao país.
Para Creonte, a salvação está na ordem, na disciplina, no respeito à lei. Mas Creonte entra no domínio dos deuses que mandam respeitar o direito do sangue, o direito da família. Também ele não tem direito sobre um morto. Todos lembram a Creonte a lei dos deuses, mas ele é irredutível; para Creonte, se existe a lei das cidades,
esta tem que ser cumprida, mesmo que venha a desrespeitar o direito natural.
Antígona, ao contrário de Creonte, não se coloca no terreno da lei; a única coisa que ela lhe opõe é o liame familiar, que a justiça humana transcende a vida, que
a dignidade vai além do corpo, que é preciso que a lei do Estado coincida com
a lei divina. O drama de Antígona não é abstrato: a nobre figura de Antígona é caracterizada pela piedade, em relação aos deuses, em relação à família, em relação a
todos com quem vive. Ela atingiu um nível superior, onde o amor substitui a justiça
das cidades. Antígona já nos ensina os direitos humanos.
Aristóteles, numa conhecida passagem da Retórica, cita a Antígona da peça de
Sófocles, quando estabelece uma distinção entre lei particular e lei comum. Lei particular, segundo Aristóteles, é aquela que cada povo dá a si mesmo, podendo as normas dessa lei particular ser escrita ou não-escrita. Lei comum é aquela conforme à
natureza, pois existe algo que todos, de certo modo, adivinhamos sobre o que por
natureza é justo ou injusto em comum, ainda que não haja nenhuma comunidade
ou acordo.
Segundo Celso Lafer, numa elaboração doutrinária do direito Natural esclarece que é possível distinguir dois planos: o ontológico e o deontológico. No primeiro, identifica-se o Direito com o Direito Natural. No segundo, o Direito natural aparece como um sistema universal e imutável de valores.
O grande mestre conclui ainda que a primeira acepção abrange a segunda,
pois neste caso o ser do Direito (ontologia) constitui-se como dever ser do Direito
Positivo (deontologia), na medida em que o dizer o Direito e o fazer a justiça são
concebidos como atividades sinônimas. A segunda acepção, no entanto, não engloba a primeira. Com efeito, ao se admitir a existência de valores universais e imutáveis não se nega a presença de outros fatores, como os sociais, políticos e econômicos que influenciam a realidade jurídica. O sistema de valores do Direito Natural
existe, no entanto, para exercer uma função de controle em relação ao Direito Positivo. Daí a possibilidade de um dualismo entre o respeito à justiça e o respeito à lei,
configurado no diálogo entre Creonte e Antígona citado por Aristóteles (Celso Lafer, 2003: 26).
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2.
n.
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123
A NOÇÃO DE JUSTIÇA PARA OS GREGOS
Quando falamos de direitos Humanos estamos fazendo um a construção lógica da idéia de Justiça, por isso, é importante abordar por meio de um rápido levantamento histórico o conceito de Justiça que vem dos romanos.
Como bem lembra o professor Olney Queiroz Assis, nas sociedades primitivas, período pré homérico das civilizações gregas, o poder de estabelecer o equilíbrio social,
estava fundado primariamente no sistema palaciano e da sua figura central (o rei divino)
que representa um instrumento de poder, pois era faculdade do rei estabelecer o domínio da guerra, da economia, da vida religiosa e das leis. Portanto, esse sistema acumulava todo o poder nas mãos de uma única pessoa, o rei (Queroz Assis, 2002: 56).
No período homérico, esse modelo de organização política, econômica e social foi destruída em virtude das invasões das tribos dóricas. A destruição de Micenas, o mais importante núcleo urbano fundado por essa civilização, faz desaparecer
a civilização creto-micênica.
Logo, continua Queiroz Assis,
com o desaparecimento desse sistema palaciano, subsistem lado a
lado duas forças sociais: de um lado as comunidades aldeãs, de
outro a aristocracia guerreira, cujas famílias mais eminentes detêm, igualmente, com privilégio do genos, o monopólio das práticas religiosas. Essas forças opostas, liberadas pelo desmoronamento do sistema palaciano e que às vezes se enfrentam com violência,
a busca de um equilíbrio, de um acordo fará nascer, num período
de desordem, uma reflexão moral e especulações políticas que irão
se definir numa primeira forma de sabedoria humana (Queiroz
Assis, 2002: 56).
O desaparecimento da vida palaciana e conseqüentemente da vida urbana,
leva a população a organizar-se em pequenas colônias, cuja célula básica é o genos:
uma grande família. Nesse sentido, o poder de estabelecer o equilíbrio social nessa
comunidade, está dominado pelo elemento organizador, fundado, primariamente,
no princípio do parentesco. Todas as estruturas sociais, deixavam-se penetrar por
esse princípio, valendo tanto para as relações políticas, como para as econômicas e
para as culturais, produzindo uma segmentação que organiza a comunidade em famílias, clãs, grupo de clãs. Dentro dessa comunidade, todos são parentes, portanto,
o indivíduo só é alguém por sua pertinência parental ao clã.
Com o desenvolvimento das sociedades, quer pelo seu aumento quantitativo,
quer pelo aumento da complexidade das interações humanas possíveis, o princípio
do parentesco, pela sua pobreza, é pouco a pouco, diferenciado e substituído com
base da organização social (Ferraz Junior, 1988: 54).
124
faculdade de direito de bauru
Na medida em que alguns homens se libertam do processo de produção,
intensificam a destruição da comunidade gentílica pela consolidação de laços de
parentesco entre grupos menores: o oikos ou família. Esses mesmos homens, libertos do processo de produção, dão início a construção da polis e do seu espaço público.
Com a destruição da comunidade gentílica, vai se adquirindo um sentido abstrato, não mais de uma família, mas de algo ao qual o indivíduo pertence. A unidade produtiva passa a ser o oikos ou oikia, uma instituição social bem menor que o
genos, composta pelos parentes mais afins, dirigida e administrada pelo despotes ou
pater familias (Queiroz Assis, 2002: 60).
A formação de costumes, portanto, em círculos sociais de pequena extensão
territorial, fixava direitos e deveres entre os habitantes. A sorte dos dirigentes era intimamente condicionada à sorte dos que o cercavam. Cada grupo tinha que contar
consigo mesmo, na paz como na guerra. A auto-suficiência era finalidade decorrente das condições econômicas. Por sobre isso, entendia-se que a religião e a moral
exigiam de todos, indiferentemente. O governante parava ante certos preceitos, que
ele cria impostos pela divindade ou pela convicção jurídica da igreja ou dos doutos
(Pontes de Miranda, 2002: 78).
Com a passagem da organização gentílica para a organização política, aparece
as diferenças entre os grupos e consequentemente entre classes sociais. As comunidades passam a se organizar como polis, sociedades políticas com suas formas hierárquicas de domínio fundadas no prestígio ou status, que determina a posição das
pessoas na sociedade. A participação dos homens no destino da polis faz deles homens livres. A liberdade participativa ou política aparece como um status próprio do
cidadão (Queiroz Assis, 2002: 65).
A efetivação da natureza humana só ocorreu quando o homem se socializa,
torna –se participante de um grupo, isto causa uma mudança radical no direito, pois
o direito não depende mais da relações de parentesco. Isso ocorre na culturas prémodernas com o aparecimento do mercado. Aqui, a posição do comerciante deixa
de ser determinada pela a sua situação na família, no clã e passa a ser determinada
pela sua vida em sociedade.
O direito paulatinamente vai se transformando numa ordem autônoma, que atravessa todos os setores da vida social – político,
econômico, religioso, cultural – mas que não se confunde com
eles. O comportamento ilícito passa a depender de procedimentos
decisórios regulados (Ferraz Jr, 1988:54).
Poder econômico, político e religioso se concentra no grupo de eupátridas.
Ademais os eupátridas detêm a religião e o direito, posto que a religião atribui aos
despostes a autoridade suprema de sacerdote e juiz. Uma desigualdade originária se
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125
estabelece entre as famílias que vão se formando fora do genos e as famílias aristocráticas, aquelas ficam excluídas do casamento sagrado, da participação nos rituais
religiosos, não possuem ancestrais, túmulos de antepassados e deuses da casa. Além
disso, leis desiguais regulamentam a propriedade: enquanto sobre as férteis propriedades das famílias aristocráticas incide um regime jurídico proibitivo da alienação e
da partilha, mantendo fortalecido o poder oligárquico, divisões contínuas fragmentam a pequena propriedade, abrindo possibilidades para a escravização dos pequenos proprietários (Barros: 1999).
Com o aparecimento do aristocrata e do escravo, surge a expressão euleteria que é derivada do substantivo euleuterós, que significa liberdade, ou seja, o
indivíduo pertence a um grupo social, mas não se submete a ninguém. Portanto,
a liberdade aparece para os gregos como Justiça, oposição a escravidão e equilíbrio (igualdade).
O direito sempre como fonte de inspiração e símbolo o direito grego, que se
materializa através de uma balança segurada pela deusa grega Diké.
Diké é filha de Zeus e Themis. A deusa está com os olhos abertos segurando
uma balança com os dois pratos, sem o fiel no meio, na mão esquerda; na mão direita, a deusa segura uma espada. Quando a balança estiver em perfeito equilíbrio,
simétrica, dá-se a concepção de igualdade e por conseqüência a idéia de justiça na
cultura grega.
Cabe ressaltar que a deusa Diké tem um significado simbólico. Os olhos abertos da deusa significa para os antigos a especulação, o saber puro; já a audição mostra o valor, as coisas práticas, saber agir, a prudência. Já o fato de a deusa grega carregar na mão uma espada, mostra que os gregos o direito conectam o direito com
a força necessária para executá-lo. Diké repõe o equilíbrio e a igualdade quando violados. Conforme lembra Olney Queiroz Assis (Queiroz Assis: 2002: 78), “a justiça é
igualdade (pratos em equilíbrio), mas também é retribuição, vingança e castigo (espada na mão). A função de Diké é impor uma regra de equilíbrio entre os homens
e punir o transgressor da regra, pelo estabelecimento de uma medida justa.”
Nesse sentido, o professor Olney Queiroz Assis (Queiroz Assis, 2002: 312)
acrescenta que:
O aumento da complexidade social em virtude da ampliação dos
mercados, aumento da população de livres e escravo, invenção de
contratos de empréstimos com garantia, expansão do comércio
marítimo e o início de uma economia monetária provoca a grande crise. A crise induz o grego a repensar a sua vida social, sua politéia, isto é, a forma de governo, o conjunto das instituições públicas e suas leis. O direito costumeiro, dotado de regras que privilegiam a aristocracia de sangue, passa a ser questionado e isso envolve certas dificuldades, afinal o direito antigo é divino. A oposi-
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faculdade de direito de bauru
ção inicial, pelo o que parece, ocorre no plano religioso. De um
lado o antigo direito, fundado nos costumes, que garantem privilégios a aristocracia de sangue, representado pela deusa Themis e
de outro lado, o novo direito, fundado na isonomia e no controle
da desmedida, representado pela deusa Diké. A rigor, tanto em um
aspecto, quanto no outro, tem-se direitos naturais, posto que não
se trata de convenção ou acordo entre os homens, mas são dados
pelas divindades.
Themis etimologicamente tem o sentido de lei, daí o porquê de os déspotas
dos tempos patriarcais julgarem de acordo com themis que é a lei proveniente de
Zeus. Daí o sentido de direito natural. Portanto, enquanto a deusa Themis refere-se
principalmente à autoridade do direito, à sua legalidade e à sua validade, a deusa
Diké significa o cumprimento da justiça.
Contudo, toda manifestação do direito fica a cargo da nobreza aristocrática
que administra a justiça segundo a tradição, mediante normas costumeiras, sem leis
escritas.
Porém, com o aumento da oposição entre nobres e cidadãos livres, que surge
em conseqüência dos cidadãos alheios à nobreza, gera facilmente o abuso político
das magistraturas e leva o povo a exigir leis escritas.
Logo, prossegue o professor Olney Queiroz Assis (Queiroz Assis, 2002: 313),
“a noção de justiça, simbolizada na deusa Diké, caracteriza-se por possuir uma acepção uma mais ampla e abstrata. Entretanto, com a legislação, passa a ter um conteúdo palpável, uma vez que justiça passa a consistir na obediência às leis da cidade”.
Mas há um momento em que a lei da cidade se choca com o costume primitivo que remonta aos antigos genos, ou seja, a lei da cidade não condiz com os direitos dado pela divindade, aparece a contraposição entre o “justo por natureza” e
o “justo por convenção ou legislação”.
3.
DIREITO NATURAL NA CONCEPÇÃO DE ARISTÓTELES
A idéia de um direito natural na concepção de Aristóteles aparece nas suas
obras. Porém, é na obra Ética a Nicômaco que aparece a clara distinção entre o justo por natureza e o justo por convenção ou por lei.
Quando nos remetemos a Aristóteles, obrigatoriamente teremos que citar seu
mestre Platão, pois em todas as suas obras, Aristóteles faz objeções à teoria platônica das idéias. Quanto ao direito natural, Platão pensa numa sociedade perfeita no
mundo das formas, diferentemente pensa Aristóteles, pois para ele o direito que é
universal.
Na obra de Aristóteles “Ética a Nicômaco”, aparece a dicotomia entre justiça
positiva e justiça natural, assim vejamos no início do Capítulo 7 do livro 5:
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n.
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127
Da justiça política, uma parte é natural e outro parte é legal. A natural, é aquela que tem a mesma força aonde quer que seja e não
existe em razão de pensarem os homens deste ou daquele modo; legal, a que de início é indiferente, mas deixa de sê-lo depois que foi
estabelecida: por exemplo ... todas as leis promulgadas para casos
particulares ... e as prescrições dos decretos ... as coisas que são justas não por natureza, mas por decisão humana, não são as mesmas em toda a parte... . Alguns pensam que toda a justiça é desta
espécie, porque as coisas que são por natureza, são imutáveis e em
toda parte têm a mesma força (como o fogo, que arde tanto aqui
como na Pérsia), ao passo que eles observam alterações nas coisas
reconhecidas como justas. E as próprias constituições não são as
mesmas, conquanto só haja uma que é, por natureza, a melhor em
toda a parte (Aristóteles, 1992: 192).
Para Norberto Bobbio (Bobbio, 2003: 34), o direito natural é definido, nessa
passagem do livro Ética a Nicômaco, por meio de duas caraterísticas:
1) a primeira é que o direito natural tem validade universal, posto que independe do lugar e do tempo. Essa característica consiste
com o conceito de natureza e com tudo o que é natural, como o
fogo que arde da mesma maneira em toda parte, tanto na Grécia
como na Pérsia.
2) a segunda é que as regras que o direito natural delimita não são
extraídas das opiniões ou decretos dos homens e, portanto, estabelece o que é justo ou injusto por si mesmas, independentemente do
que pensam as pessoas.
Acrescenta Bobbio quanto ao direito positivo – “Aristóteles o chama de “legal”,
isto é, proposto por meio de leis”. Quanto a esse direito, apresenta características contrárias ao direito natural, pois enquanto o direito natural é válido iniversalmente, o direito positivo muda de lugar para lugar, é incerto e tem validade particular.
Portanto, para Aristóteles as ações reguladas pelo direito natural não pertencem ao julgamento dos homens, pois há uma esfera de comportamento que são
obrigatórios, que não dependem da vontade humana, são ações boas ou más por si
mesmas.
Há ainda a acrescentar que as ações reguladas pelo direito natural, não são todas as ações possíveis, posto que além dessas ações, existe as ações reguladas pela
lei positiva. Portanto, o que é lei positiva, é a que torna obrigatória as ações indiferentes ao direito natural. Pelos exemplos dados por Aristóteles, elucidaremos bem
a questão: sacrificar a Zeus uma cabra ou duas ovelhas é, por si mesmo, uma ação
faculdade de direito de bauru
128
indiferente no sentido de que o direito natural não se ocupa com ela; se há, porém,
uma lei positiva que obrigue a sacrificar uma cabra no lugar de duas ovelhas, ou vice
e versa, estou livre de fazer uma coisa ou a outra. Logo, essa ação deixa de ser livre,
se intervém a lei positiva, impondo uma forma de sacrifício e excluindo a outra.
Enaltece Bobbio, com um outro exemplo de Aristóteles de direito natural – por
exemplo, o direito que prescreve o respeito aos pactos, nunca é indiferente, ou seja, é
uma ação obrigatória que não necessita que a lei positiva intervenha para sancioná-la.
Nesse sentido, Bobbio entende que o interesse de Aristóteles, nessa distinção
de direito natural e direito positivo, consiste no fato de delimitar a matéria de cada
um. Em outras palavras, a matéria que corresponde ao direito natural são os comportamentos bons ou maus em si mesmos; já a matéria que corresponde ao direito
positivo, começa onde cessa a abrangência do direito natural e concerne as ações
indiferentes.
Instigado com o modelo Aristotélico de distinção entre o direito natural e o direito positivo, Bobbio indaga-se: O que aconteceria se uma positiva invadisse a esfera
das coisas reguladas pela lei natural? A resposta, para Norberto Bobbio, estaria fundamentada em duas diferentes hipóteses: 1) Ou a lei positiva regula o comportamento
do mesmo modo que a lei natural, ordenando-a o que ela ordena, e proibindo-a o que
ela proíbe – neste caso, portanto, a lei positiva vem a reforçar a lei natural; 2) Ou a lei
positiva regula de modo oposto que o direito natural, ordenando o que a lei natural
proíbe ou proibindo o que ela permite, – neste caso, ocorre um conflito de normas
que só pode ser resolvido em favor da norma considerada superior.
Logo, é visível na obra Ética a Nicomaco, em uma passagem da Retórica, a
clara preferência de Aristóteles pelo direito natural: se a lei escrita é contrária à nossa causa, torna-se necessário utilizar a lei comum e a eqüidade, que é mais justa (...).
Com efeito, a eqüidade sempre dura e não está destinada a mudar: e até mesmo a
lei comum (pelo fato de ser natural) não muda, enquanto as leis escritas mudam
com freqüência (Aristóteles, Olney Queiroz Assis, na sua obra O estoicismo e o direito, entende que “essa interpretação de Bobbio a respeito da teoria aristótélica do
direito natural está muito próxima de uma explicação do direito natural estóico”
(Queiroz Assis, 2002: 322).
4.
ESTOICISMO E O DIREITO NATURAL
4.1. Noções preliminares
O estoicismo vai do período do século III a. C. ao período II d. C., portanto,
abrange um período de cinco séculos. Nesse período, a doutrina passa por alterações e modificações, motivo pelo qual os historiadores da filosofia distinguem três
períodos do estoicismo: o estoicismo antigo, o estoicismo médio e o estoicismo da
época imperial.
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Ao estoicismo antigo, estão ligados os nomes de Zenão de Cício (336-324 a C),
Cleanto (331-232 a C) e Crisipo (280-210 a C). Zenão funda uma escola em Atenas
por volta do ano 300 antes de Cristo, próximo ao Pórtico Poecilo. Como é de costume dar a uma escola o nome do lugar onde está estabelecida, a escola de Zenão passa a chamar-se estóica, porque pórtico em grego se diz stoa; também em virtude
desse fato, algumas vezes se utiliza a expressão filosofia do pórtico ou Stoa para designar o estoicismo.
O estoicismo médio é representado, sobretudo, por Panécio (185-112 a C) e
Possidônio (135-51 a. C.). Nesse período, a filosofia estóica se expande pela Babilônia, Alexandria e, finalmente, Roma, onde finca raízes e influencia um círculo destacado de políticos, juristas e filósofos por quase quatro séculos. Os principais representantes do estoicismo se destacam da Grécia para Roma já a partir do estoicismo
médio. Panécio e Possidônio, por exemplo, vivem em Roma e só retornam a Atenas
para assumirem a direção da escola.
O filósofo Cícero é profundamente influenciado por Panécio, tanto que se fundamenta na sua obra Os deveres, as relações entre o honestum e o util. Já o estóico Possidônio é mestre de Cícero e, com base nos ensinamentos e na obra desse filósofo, Cícero escreve os tratados Da Natureza dos Deuses e Sobre a Adivinhação.
O estoicismo romano da era imperial reúne os nomes de Sêneca (4-65 d. C.),
Epicteto (50-130 d. C.) e Marco Aurélio (121-180 d. C.). Há uma distância em relação à doutrina dos primeiros estóicos (Zenão e Crisipo) no que concerne às especulações em torno da lógica e da física. Essas duas partes da filosofia, especialmente a lógica, são deslocadas para um plano secundário ou quase inexistente; a preocupação central é mesmo em torno da ética.
A filosofia estóica se constrói a partir de uma arquitetura sistêmica muito complexa, pois não permite a compreensão de uma parte a não ser a partir de sua inserção no todo. Portanto, a existência de uma razão universal, que produz e governa
toda a realidade de acordo com um conjunto de leis necessárias, é a base da doutrina estóica.
Logo, na concepção estóica, a “razão universal” é a natureza e a “providência”
é o conjunto das leis necessárias que regem a natureza. A felicidade e harmonia do
homem, o seu supremo bem, consistem em viver de acordo com o logos, isto é, de
acordo com a natureza. Assim, o homem embora impulsionado por instintos como
os animais, participa da natureza. Para viver de acordo com a razão universal, a ação
moral do homem consiste em renunciar a todos os instintos passionais, em dominar todas as suas paixões, em aceitar a providência e escolher, dentre as mais indiferentes, aquelas que são preferíveis. Para isso, são necessários o conhecimento intelectual, que é a “sabedoria” e o conhecimento dialético que se obtém com a lógica e a física, que é a “viturde”.
Ao expor a filosofia estóica, preferimos pela ordem que consiste em iniciar
pela física, depois pela lógica e, por último, pela ética. Porém, não podemos deixar
faculdade de direito de bauru
130
de esclarecer, que esta não é a ordem adotada pelos filósofos estóicos Crisipo e Zenão, pois, segundo os historiadores, a ordem é: lógica, física e ética.
A opção de começar-se pela física é que nela se desenvolve a idéia fundamental que a ordem racional do universo é garantida por uma lei necessária que implica integração de todas as coisas, formando uma cadeia de causalidade que não pode
se romper. A natureza é a razão garantidora dessa ordem. A física estóica mostra que
não é possível delimitar as fronteiras dos objetos; eles se entrelaçam em relações
complexas, formando uma totalidade que é o cosmo. Não há separação entre natureza e ser humano. O ser humano deve interagir-se com a natureza e essa interação
significa compreendê-la pela aceitação de suas leis.
Olney Queiroz Assis explica que
o conhecimento da natureza é a preparação para a ação; por isso
a física, no sistema estóico, tem a finalidade ética. A física é indispensável a ética por que ensina o homem a reconhecer aquilo que
é conforme a natureza, estabelecendo a distinção entre bem e mal.
É a física que ensina que há coisas que dependem somente de causas exteriores e que se encadeiam de maneira necessária e racional, portanto independem da vontade do homem.
Nesse sentido, acrescenta Olney, a finalidade ética consiste em fundar a racionalidade da ação humana na racionalidade da natureza, ampliando as inclinações naturais, como por exemplo, o amor por si próprio deve ampliar-se em amor pela humanidade (Queiroz Assis, 2002: 302).
4.2. Direito natural
Com o fim da democracia grega e das cidades-estados, atribui a todos os indivíduos, inclusive às mulheres, aos escravos, aos estrangeiros e àqueles que perderam o status quo de cidadãos para se converterem em súditos dos grandes impérios,
uma nova dignidade. Essa nova dignidade, segundo Lafer, resulta do significado filosófico conferido ao universalismo de Alexandre pelos estóicos, quando esses captam a idéia de que o mundo é uma grande cidade, uma cosmopolis da qual todos
participam como amigos e iguais. À comunidade do gênero humano, corresponde
também um direito universal, fundado num patrimônio racional comum, daí derivando um dos precedentes da teoria cristã da lex aeterna e da lex naturalis, igualmente inspiradora dos direitos humanos.
Para Olney Queiroz Assis, no seu livro O estoicismo e o Direito, os princípios
básicos do direito natural estóico, em síntese, encontram-se no seguinte texto extraído de Diógenes Laércio:
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131
Por isso o fim supremo pode ser definido como viver segundo a natureza, em outras palavras, de acordo com a nossa própria natureza
e com a natureza do universo, uma vida que nos abstemos de todas
as ações proibidas pela lei comum a todos, idêntica a reta razão difundida por todo o universo e idêntica ao próprio Zeus, guia e comandante de tudo que existe. E nisso consiste a excelência (virtude)
do homem feliz, e consiste o curso suave da vida quando todas as
ações praticadas promovem a harmonia entre o espírito existente em
cada um de nós e a vontade do ordenador do universo. Diógenes define expressamente como fim supremo agir racionalmente na escolha do que é conforme a natureza. Arquedemos, por seu turno, define fim supremo, a vida em que se cumprem todos os deveres.
A idéia de um direito natural para os estóicos, portanto, é a expressão da razão
universal. Através da idéia de razão universal, o estoicismo rompe as fronteiras das cidades e enxerga o mundo como uma grande cosmopolis, ou seja, uma única cidade
em que os homens são parentes e amigos entre si. Esta noção, destaca Olney,
eleva a pessoa à dignidade de cidadã do mundo e amiga de todas
as demais. Por isso Lafer reconhece no estoicismo uma vertente filosófica que contribui decisivamente na construção dos direitos
humanos, cuja a expressão jurídica encontra-se nos direitos e garantias fundamentais.
A idéia do mundo como uma única cidade implica o reconhecimento da unidade do gênero humano, apesar da diversidade de nações. Da mesma forma, a idéia
de cada indivíduo é única e implica o reconhecimento de proteção à vida, pois aquele que suprime uma existência atinge a harmonia do universo, é como se destruísse
o mundo na sua inteireza.
Como já mencionado, a concepção estóica de direito natural implica a unidade do todo, ou em outras palavras, na unidade do gênero humano, cujas relações
devem ser pautadas por um direito que seja comum a todos. Os jurisconsultos romanos, menciona Olney ao citar Justiniano, reconhecem essa idéia de que os direitos naturais, que se observam igualmente entre todos os povos, constituídos por um
espécie de providência divina, permanecem sempre firmes e imutáveis.
4.2.1. A lei da natureza
A razão humana é a razão universal (ou Deus), e o homem como parte dessa
razão universal, deve conformar-se com essa ordem racional do universo. Essa participação, segundo Olney Queiroz Assis, se manifesta em dois sentidos.
132
faculdade de direito de bauru
Em primeiro lugar, a razão humana é uma parte da razão universal. Em segundo lugar, a razão humana deve conformar-se ou harmonizar-se com a razão universal da qual é apenas parte. Contudo, essa partição - conformação não se dá pelo conhecimento intelectual que a lógica possibilita. A participação mesma ocorre mediante a ação moral que consiste em renunciar a todas as paixões,
em dominar voluntariamente os desejos e em aceitar a providência e o destino. Assim, a ação racional humana, própria do sábio,
é a vida em conformidade com a natureza e com a providência;
isto é, em conformidade com um conjunto de leis necessárias. Portanto, nesse modelo totalizante que é a doutrina estóica, o tema
fundamental ao qual se subordina os demais é a tarefa que se impõe ao homem de estruturar e viver a sua vida em conformidade
com a natureza (Queiroz Assis, 2002:).
Portanto, para os estóicos, não há uma separação entre natureza e pessoa humana. O ser humano deve interagir com a natureza e essa interação significa compreender a natureza pela aceitação de suas leis.
Os estóicos arquitetam o mundo em sua física através de dois princípios: um
passivo que é a matéria e o outro é ativo que é a razão agindo na matéria. A matéria, prosseguem os estóicos, é perecível porque está submetida ao movimento que
implica uma perpétua transmutação. Há um primeiro movimento que vai do fogo à
terra produzindo as coisas os ciclos de vida e morte, mas a morte se transforma em
vida. Essas mudanças representam o encadeamento dos processos, onde tudo influi
sobre tudo. O segundo movimento é o ativo, ou seja, é contrário à matéria, da terra
ao fogo geralmente uma conflagração universal, onde todas as coisas são transformadas em fogo. Essa conflagração não significa a destruição do universo, mas a sua
regeneração e reinício.
O conhecimento de que a natureza é um ser vivo, racional, animado e inteligente, permite ao homem a realização da sua harmonia com a natureza; de modo
que a sabedoria e a ação moral que lhe segue deve representar a adesão do homem
às leis da natureza. Nesse sentido, Crisipo (Laértios,1977: 210), na sua obra Do Belo,
afirma que “a justiça existe por natureza, e não por convenção, da mesma forma que
a lei e a reta razão”.
Se houver uma harmonia necessária entre o homem e a natureza, deveremos
concluir que a conservação do homem e a sua felicidade dependem de uma vida em
harmonia com o todo. Esse é o modelo que Cícero toma como paradigma para organizar a civitas, ou seja, a tendência, que é igual em todos e possibilita a organização humana, com base no consenso em torno da lei natural. Em outras palavras, os
homens tendentes à lei natural devem reunir-se em torno dos deveres que sejam comuns a todos e que reflitam os princípios básicos da lei natural.
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133
Do exposto, deveremos concluir que a natureza estóica surge como única maneira de resgatar o fundamento do Direito, da lei e da norma, porque, para a doutrina, as leis estarão em consonância com a racionalidade e a normatividade se emanadas do logos da phisis.
4.2.2. Direito natural na concepção de Cícero
Não é possível falar do direito natural estóico sem citar Cícero. O jurista e filósofo recebeu influência dos estóicos médios Possidônio, que foi seu mestre e Panécio, que o próprio Cícero reconhece, que foi quem fundamentou suas idéias para
escrever o tratado Dos Deveres. Ademais, Cícero desfruta, por muito tempo, da
companhia do estóico Diódoto, que lhe ensina a dialética.
Cabe esclarecer que Cícero não é um estóico; ele assimila a filosofia estóica integralmente através da influência de seu mestre e amigos estóicos e retira deles as
noções básicas para a composição de suas obras.
É possível observar nas obras de Cícero teorizações abstratas em relação ao direito natural e uma preocupação bastante acentuada pelas questões jurídicas ligadas
à causuística.
A experiência prática de Cícero no cargo de Cônsul explica, por um lado, a sua
crença muito forte de que sem o direito não é possível organizar a vida social. Mas
essa organização deve partir do verdadeiro direito que é o direito natural, isto é, o
vínculo essencial da vida deve fundar-se na lei da natureza.
Olney Queiroz Assis, cita na sua obra O Estoicismo e o Direito que:
Cícero alerta que seu intuito é ir além das realizações dos jurisconsultos, com o intenção de abranger o campo completo do direito e do conjunto das leis, posto que o direito civil representa um
campo muito reduzido, um espaço pequeno e limitado da grande
arquitetura que é o direito. A natureza do direito, diz Cícero, explica-se e descobre-se a partir da natureza do homem e não dos
textos jurídicos (Queiroz Assis, 2002: 354).
No final de sua vida (53 a 43 a C), Cícero encontra-se situado no meio de transformações, num período de grandes crises, que culmina na guerra civil e a luta pelo
poder entre Pompeu e Júlio César. Cícero, movido pelo desejo de lançar uma luz ao
caos legislativo e moral daquela época, percebe a falta de uma doutrina, que seja reconhecida por todos e que permita distinguir o direito imanente à natureza e compulsório para os homens, do direito estabelecido por deliberação, sem permanência, mutável no espaço e no tempo.
É na sua última obra Dos Deveres, que Cícero expressa sua incerteza e ansiedade pelo destino da República Romana. A República, no pensamento de Cícero, para
134
faculdade de direito de bauru
ser duradoura, precisa ser regida por uma autoridade dotada de sabedoria e que se
inspire e se apóie nas demais virtudes, fazendo valer, desse modo, os deveres, especialmente aqueles dois princípios originários que presidem a formação da civitas: o
consentimento jurídico e o bem comum. O governo assim constituído, lembra Cícero, pode atribuir-se a um só homem ou a alguns cidadãos ou ao povo inteiro.
A sabedoria é, para Cícero, uma das quatro principais virtudes que compõem
o honesto. É a sabedoria a primeira virtude a tocar a natureza humana e consiste na
aprendizagem do verdadeiro.
Cícero considera as três formas de governo excelentes: monarquia, aristocracia e democracia. A excelência da monarquia reside na afeição ou tradição; a aristocracia, pela sabedoria; o governo popular, pela liberdade. Contudo, para Cícero, a
melhor forma de governo é a mista, isto é, a que combine as excelências da monarquia, da aristocracia e da democracia.
Como visto, a sabedoria é imprescindível aos magistrados de uma civitas, cuja
constituição reflete o governo misto. Deste modo, podemos observar que Cícero segue a trilha estóica porque entende que a sabedoria é capaz de neutralizar as paixões. Na concepção estóica, para evitar as paixões e deliberar conformidade com a
razão, é preciso conhecer a natureza, a ordem universal.
Cícero reconhece, porém, que a figura do sábio é um ideal, pois ninguém consegue propagar a excelência em toda a sua plenitude.
A República de Cícero, concebida com uma constituição mista, não é uma utopia ou um modelo ideal, é perfeitamente realizável e exeqüível que até dispensa a
figura de um homem sábio.
No que tange aos deveres médios, Cícero, na sua obra, cita que, para os estóicos:
são como que coisas honestas secundárias, próprias não apenas
dos sábios, mas de todo o gênero humano...São deveres comuns,
evidentes que muitos cultivam por bondade de caráter e progresso
nos estudos... Mas quando um ato comporta os deveres médios, parece o cúmulo da perfeição porque o vulgo não nota geralmente o
que se afasta da perfeição e, até onde nota, pensa que nada foi
omitido (Cícero, Dos Deveres: 132,133).
Desse modo, os cidadãos, em geral, notadamente aqueles que exercem funções
públicas, devem se submeter ao dever médio, cuja razão provável possa servir de base
para a ação. Mas o homem pode agir incorretamente, escolhendo o não desejável. Para
evitar o erro, Cícero coloca a sabedoria como a primeira virtude que se deve adquirir.
Enaltece Olney Queiroz Assis que:
A sabedoria tem o primado das virtudes porque é básica e orientadora. Ela implica o conhecimento da ciências (a lógica e a fí-
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n.
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135
sica), qualificadas como virtudes porque, ao explicar a organização da natureza evitam que a pessoa dê o seu assentimento
ao falso e não seja enganada por uma verossimilhança capciosa. Na concepção de Cícero, a ação é a parte mais importante
da sabedoria, motivo pelo qual os deveres daí decorrentes são
também os mais importantes. Assim, a parte mais valiosa da sabedoria é a que apresenta consequências práticas. Por isso Cícero entende, da mesma forma que os estóicos, que é preciso instruir os homens para que se tornem cidadãos melhores e mais
úteis à cidade (Queiroz Assis,2002: 366).
Ademais, Cícero destaca como dever do homem bom definir e defender o direito da civitas. O código jurídico das civitates, isto é, o código jurídico da república, suas leis e seus costumes devem fundar-se no direito natural.
Nesse sentido, Cícero entende que o fundamento do justo encontra-se na natureza e não na convenção ou no acordo entre os homens. O direito natural é, para
Cícero, lembra Olney Queiroz Assis, o padrão ao qual o ius civile pode e deve conformar-se, pois pode ser captado a partir da tendências naturais do homem, das
quais emanam os costumes e os deveres que estão ao alcance, não só do sábio, mas
do gênero humano. Na linha dos costumes e dos deveres, Cícero amolda o ius civile romano, fundado na tradição dos antepassados, ao direito natural.
É certo, nesse sentido, que Cícero aproxima-se da filosofia estóica, isto é, que
existe uma lei universal que se estende erga omnes no tempo e no espaço, que não
está escrita nos códigos, mas na natureza e na razão dos homens, e que por isso
transcende a lei particular de uma determinada cidade.
4.2.3. Direito Natural e Direito dos Povos
Convém lembrar que, para os estóicos, a lei da natureza é a expressão da razão universal. Portanto, a razão humana, inspirada na natureza, é a base da lei e da
Justiça.
Conforme abordado por Cícero, também para os estóicos, o homem não chega ao grau de perfeição do sábio e não é capaz de compreender a ordem do universo de maneira integral, como lembra Olney, deve contentar-se com menos. Logo, os
estóicos desenvolvem, ao lado da moral da intenção reta, um segundo nível da moral que consiste em fixar as tendências naturais e cuidar para que essas tendências
não sejam corrompidas (Queiroz Assis, 2002: 373).
Nesse sentido, continua Olney, as tendências que consistem na conservação
da própria vida e na sociabilidade entre os homens, amplia-se em amor pela família,
amor pela pátria e, finalmente, amor por toda a humanidade e, desse modo, o direito natural, gradativamente, se incorpora às relações humanas. A conseqüência dos
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faculdade de direito de bauru
vínculos naturais que unem os homens e o cuidado que a vida requer leva o homem
a perceber as suas obrigações e deveres para com a humanidade em geral: a pátria,
os parentes, os amigos, os viajantes, os estrangeiros, etc.
Vale dizer, esse é o fundamento dos Direitos Humanos no estoicismo. Porém,
o universalismo, às vezes se encontra em conflito com as convenções humanas, em
virtude das fraquezas provocadas pelas paixões. Daí ocorre a distinção entre direito
natural e direito dos povos, que se explica, que nem sempre o direito das nações
está em conformidade com o direito natural.
Contudo, para o estoicismo, não existe esta distinção, pois a convenção entre
os homens só é considerada justa se estiver de acordo com o direito natural, porque a lei da natureza é anterior à lei positiva. Dessa forma, a Justiça é uma virtude
que dirige os homens a uma vida em conformidade com a natureza.
Cícero também é regido por esse princípio estóico, quando expõe que a melhor forma de governo deve ser regida por leis que tenham, por padrão, a lei natural. O direito que regula a constituição e as relações humanas deve estar em perfeito acordo e harmonia com a ordem universal e, somente é assim, é possível edificar
a organização concreta e necessária da vida social em conformidade com a justiça.
Olney (Queiroz Assis, 2002: 383,384), cita que o fundamento do direito para Cícero, não está no texto escrito, mas, sim, na lei suprema, fruto da razão universal, que
existe antes de todas as “leis” escritas e antes mesmo da constituição da república.
Logo, continua Olney, para Cícero, “a natureza é a fonte do direito, e o direito deve estar de acordo com a natureza”. Há, entretanto, uma sociedade bastante
ampla, que é a sociedade de todos os homens (do gênero humano) à qual se aplica
o “direito dos povos” (direito natural) e uma sociedade bastante restrita (civitas)
que integra os cidadãos de uma mesma cidade, à qual se aplica o “direito civil”. O
direito civil pode ser mais detalhado que o direito dos povos (direito natural), mas
deve obedecer os preceitos básicos desse último. Portanto, Cícero anda sempre no
sentido de adequar o direito à ordem natural.
Nessa acepção, a lei que deve reger a comunidade humana é a lei natural, porque esta é única, superior a e perfeita; portanto, não necessita de correções ou melhoramentos. Logo, o homem que se conduz em conformidade com a lei natural é
um homem sábio, porque não pertence a nenhuma cidade em particular, mas à cidade universal na qual todos os homens são concidadões.
Por isso Cícero persiste em dizer que os magistrados sejam dotados desse caráter ético em conformidade com a natureza, do mesmo modo os jurisconsultos devem buscar o verdadeiro direito não nos editos dos pretores, porque estes podem
estar contaminados pelos vícios ou defeitos, mas na própria natureza. Isso para Cícero são as preliminares que devem ser estabelecidas, antes de passar ao estudo do
direito dos povos (direito civil), porque, este deve estar em conformidade com o direito que procede da natureza. Em outras palavras, a instituição das leis deve obedecer princípios acima delas, princípios esses que advêm do direito natural.
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CONCLUSÃO
O presente trabalho teve como objetivo fundamental demostrar a importância do direito natural como o berço dos direitos humanos, ou seja, que as leis da natureza são leis mais justas que a lei dos homens.
Os gregos conseguiram demonstrar essa dicotomia do direito natural com o
direito das cidades através de peças de teatro, conforme foi abordado na peça de
Antígona.
Também na construção do pensamento de Aristóteles, analisamos a importância do direito natural. Porém, é com os estóicos que o direito natural tomou força;
para eles, não há uma separação entre natureza e pessoa humana. O ser humano
deve interagir com a natureza e essa interação significa compreender a natureza pela
aceitação de suas leis.
Deveremos concluir que a natureza estóica surge como única maneira de resgatar o fundamento do Direito, da lei e da norma, porque, para a doutrina, as leis
estarão em consonância com a racionalidade e a normatividade se emanadas do logos da phisis.
O DIREITO INTERNACIONAL FRENTE AO INSTITUTO
DA PROPRIEDADE INTELECTUAL:
OMC/TRIPS (TRADE RELATED ASPECTS OF INTELLECTUAL
PROPERTY RIGHTS)
Charlene Maria de Ávila Corrêa
Advogada atuante, formada 1994 pela niversidade de São José do Rio Preto-SP – UNIRP.
Mestrada em Direito – Área II – Integração e Relações Empresariais pela
Universidade de Ribeirão Preto – UNAERP.
RESUMO
O trabalho ora apresentado versa sobre o Direito Internacional público no aspecto da propriedade intelectual na OMC (Organização Mundial do Comércio)/TRIPS
(Tratado relativo ao Direito de Propriedade intelectual), e a importância destes acordos
para a globalização. Em segundo momento, abordará sobre os princípios do TRIPS e seus
respectivos efeitos no comércio internacional. Por fim, apresenta um breve comentário
sobre a propriedade intelectual no Brasil sob o contexto da comunidade internacional.
Palavras-chave: Direito Internacional, propriedade Intelectual, TRIPS, OMC.
SUMMARY
This works is about internacional law, its aspects in the intellectual property in
WTO (Word Trade Organization) TRIPS (Trade-Related Intellectual Property Rights),
and the importance theses accords for the globalization worlds. In the second moment,
to broach the source of TRIPS and theirs effects in the internacional commerce, and
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finally, to present one short commentary about the intellectual property in the Brazil
for the internacional community.
Keywords: Internacional Law, Intellectual Property, WTO, TRIPS.
1.
NOÇÕES INTRODUTÓRIAS
Ao longo de mais de meio século de existência, os sistemas das Uniões de Paris e de Berna, através de seus Bureaux Internationaux Reunis Pour La Protection
de La Propriété Intellectuelle, permaneceram intactos, desempenhando um grande
papel para o desenvolvimento do Direito Internacional, quer com relação à Propriedade Intelectual (Convenção de Paris), quanto com a proteção das Obras Literárias
e Artísticas (Convenção de Berna)
Após o advento da Segunda Guerra Mundial os modelos tradicionais, arcaicos
dos Estados com relação à propriedade intelectual se tornou inviável frente ao Direito Internacional que, obrigatoriamente, sofreu importantes transformações, principalmente relativas ao modus operandi desses Bureaux.
Nas décadas de 70 e 80, a propriedade intelectual foi vinculada como fator
fundamental de desenvolvimento tecnológico e conseqüentemente do aumento
de investimentos estrangeiros, dando amplitude ao comércio mundial.
Ao se vincular o aumento do comércio mundial aos bens imateriais no contexto tecnológico, houve, por sua vez, a necessária presença de um instituto que regulasse este mercado promissor, nascendo daí o papel fundamental da propriedade intelectual em nível internacional.
Como mencionado anteriormente, tanto as Convenções de Paris como de
Berna já não satisfaziam os interesses mercadológicos, tornando-se inviáveis para a
nova economia que emergia em meio á globalização, tornando-se modelos arcaicos
para este novo paradigma comercial.
A solução veio através da Convenção de Estocolmo, em 14.07.1967, com a
criação da OMPI/WIPO (Organização Mundial de Propriedade Intelectual), com
sede em Genebra, organismo especializado da ONU (Organização das Nações Unidas) para a promoção dos direitos relativos à Propriedade Intelectual (17/12/1974).1
Com a constituição da OMPI na Convenção supramencionada, houve a unificação dos conceitos, abolindo a tradicional divisão que separava os direitos dos
autores e dos inventores em duas categorias: direitos de autor e conexos e propriedade industrial.
Esta unificação está muito bem expressada em seu artigo segundo, VIII, que
inclui os direitos relativos:
1 Em 28 de dezembro de 1979, o texto da Convenção foi emendado.
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- às obras literárias, artísticas e científicas;
- às interpretações dos artistas intérpretes e às execuções dos artistas executantes, aos fonogramas e às emissões de radiodifusão;
- às invenções em todos os domínios da atividade humana;
- às descobertas científicas;
- aos desenhos e modelos industriais;
- às marcas industriais, comerciais e de serviço, bem como às firmas comerciais e denominações comerciais;
- à proteção contra a concorrência desleal e todos os outros direitos inerentes à
atividade intelectual nos domínios industrial, científico, literário e artístico.
A OMPI (Organização Mundial da Propriedade Intelectual) é uma organização
de caráter preponderantemente técnico, diferentemente de outras organizações internacionais da ONU, não tendo poderes para dirigir resoluções diretamente com
os Estados, uma vez que sua competência lhe é conferida por Tratados e Convenções, em matérias específicas.
2.
PROPRIEDADE INTELECTUAL: ORIGEM E CONCEITO
A noção de propriedade intelectual surge com a revolução industrial, na França, no ano de 1236, quando, na cidade de Bordeaux, foi concedido a Bonafusus de
Sancta e Companhia um privilégio para tecer e tingir tecidos de lã, segundo o método flamengo, visando a dar mais proteção às expressões criativas do homem, sobretudo àquelas oriundas do campo industrial e comercial.
A complexidade do sistema industrial moderno, a velocidade dos avanços tecnológicos, ao alcance de todos os segmentos sociais, os benefícios das conquistas tecnológicas, impõem uma perfeita compreensão dos métodos disciplinadores da propriedade
intelectual. Esta compõe-se de novas idéias, invenções e demais expressões criativas,
que são essencialmente o resultado da atividade privada. A maturação de novas tecnologias, traduzidas em valores de comércio, cada dia mais expressivos, passaram a demandar novas formas de proteção a esses produtos que são, por definição, intangíveis.2
Com o advento da sociedade industrial e o desenvolvimento da produção
com técnicas modernas e sofisticadas, sobretudo a incorporação da própria ciência
como força diretamente envolvida nos processos de criação e produção, a concepção jurídica ampliar-se-á, buscando demarcar o domínio do próprio conhecimento,
e não apenas das coisas em si, das mercadorias, transcendendo a idéia inicial da concepção clássica da propriedade, onde se admitia somente como objeto de apropriação apenas coisas corpóreas, tangíveis de existência material.
2 FURTADO, Lucas Rocha. Sistema de Propriedade Industrial no Direito Brasileiro. Brasília: Brasília Jurídica, 1996, p. 25.
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faculdade de direito de bauru
Com muita sabedoria, Walter Brasil Mujalli conceitua propriedade intelectual
como “um produto do pensamento e da inteligência humana, que também se tornou, com o passar dos tempos, propriedade industrial”.3
Desta forma, a propriedade industrial é um segmento da propriedade intelectual que afeta mais diretamente os interesses da indústria de transformação e do comércio, direitos estes relativos a marcas e patentes.
Uma outra definição não menos digna de respeito é a de Luís Olavo Pimentel
onde diz que,
As diversas produções da inteligência humana e alguns institutos
afins são denominadas genericamente de propriedade intelectual,
dividida em dois grandes grupos, no domínio das artes e da ciência: propriedade literária, científica e artística, os direitos relativos
às produções intelectuais na literatura, ciências e artes, e no campo da indústria: a propriedade industrial com as invenções e os desenhos e modelos industriais pertencentes ao campo industrial.4
Deste modo, podemos conceituar propriedade intelectual como sendo um direito pessoal inerente ao ser humano, pela sua capacidade pensante, reflexo de sua natureza, estando, por assim dizer, voltada às necessidades referentes às criações do espírito.
Atualmente, a matéria abordada é prevista na Lei 9.279, de 14 de maio de 1996,
que disciplina como sendo propriedade da indústria ou propriedade industrial tanto a
concessão de privilégios (invenções), quanto a concessão de registros e marcas, quando a economia passou a reconhecer direitos exclusivos sobre a idéia de produção, ou,
mais precisamente, sobre a idéia que permite a reprodução de um produto.
3.
O DIREITO INTERNACIONAL DA PROPRIEDADE INTELECTUAL:
OMC/TRIPS
3.1. Natureza do TRIPS (Trade Aspects of Intelectual Property Rights)
Antes de adentrarmos ao TRIPS, mister se faz uma pequena observação com
relação à OMC.
Como observou Celso Lafer,
a OMC, num sistema internacional hoje caracterizado por preponderância dos Estado Unidos – que é a única potência capaz de
atuar em todos os tabuleiros da vida mundial (estratégico-militar;
3 A propriedade Industrial. Nova Lei das Patentes. Leme: Editora de Direito, 1997, p. 20.
4 As funções do Direito de patentes. Porto Alegre: Ed. Síntese, 1999, p. 126.
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143
econômico-financeiro; tecnológico; político-diplomático, etc) – é
uma das únicas instâncias em que efetivamente prevalece um
multipolarismo. Enseja coligações de geometria variável, em função da variedade dos temas tratados; por isso, no multilateralismo
comercial não prevalecem alinhamentos automáticos5
Com isto, vale dizer que a Organização Mundial do Comércio prima pela democracia entre seus países-membros, procurando um consenso no processo decisório na promoção dos interesses comuns.
Ainda seguindo o raciocínio de Celso Lafer:
A Europa atua pela voz única da Comissão Européia, o Japão opera sem inibições; países de grande mercado como a Índia e o Brasil tem efetiva influência; interesses específicos como a liberação
do comércio de produtos agrícolas, como vem demonstrando a
atuação do Grupo de Cairns, possuem poder de iniciativa pela força da ação conjunta e, finalmente a regra e prática do consenso
no processo decisório tem um componente de democratização que
permeia a vida da organização6
Portanto, a premissa maior da OMC é o consenso, com a aceitação pelos seus
membros, generalizada enquanto foro negociador, tornando-se uma expressão máxima
de direito internacional a nível de cooperação em todos os campos das negociações.
A OMC (Organização Mundial do Comércio) é uma organização pós-guerra
fria, que cria uma regulamentação do comércio capitalista e veio como substituição
ao moldes do GATT, quer dizer, com a linguagem dos países ricos, tendo os países
pobres que se adaptar.
O TRIPS (Trade Aspects of Intelectual property Rights) faz parte do Acordo Constitutivo da Organização Mundial do Comércio – OMC, também denominado Acordo
Geral ou Acordo Constitutivo, conhecido como a Ata final da Rodada do Uruguai, entrando em vigor em 1/1/95, sendo um dos Anexos do Acordo de Marraqueche.
Acordo maior, a OMC é composta de quatro anexos, sendo que o TRIPS faz
parte do Anexo 1C.
Os Anexos 1, 2 e 3 do Acordo da OMC integram o conjunto denominado
“Acordos Multilaterais de Comércio são obrigatórios para os Estados-membros. O
anexo 4 é composto pelos denominados “Acordos Plurilaterais de Comércio’, que
são facultativos, vinculam unicamente os países que os tenham aceitado.
5 A OMC e a regulamentação do comércio internacional: Uma visão brasileira.Porto Alegre, Livraria do Advogado
Editora, 1998, p. 28.
6 A OMC e a regulamentação..., p.14-15
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144
Neste Acordo, os Estados-membros da OMC podem determinar como implementar suas regras, desde que observado o Acordo Geral e seus Anexos.
Segundo Luís Olavo Batista
as pessoas não estão familiarizadas com a sistemática da OMC. Ao
lado da assinatura do contrato, cada um dos países apresenta um
anexo com as disposições e as explicações da forma como vai cumprir o tratado. Aí está um aspecto muito importante, são os bindings, isto é, as obrigações que os países tem de nem por denúncia
de tratado reduzir as vantagens decorrentes de determinadas
cláusulas e condições. Essas deverão ser inseridas na sua legislação, segundo os prazos ali fixados. Em todos os tratados que o Brasil assinou em Marraqueche, há um anexo com uma série de bindings ou obrigações. Nas publicações feitas pela OMC e do Diário
Oficial esses bindings não aparecem7.
O TRIPS é um tratado-contrato, por dois aspectos: o primeiro é porque são temas relacionados ao comércio, e o segundo é que, através dele, bem como os demais acordos que compõem a OMC, os Estados partes realizam uma operação jurídica, criando uma situação jurídica subjetiva.
Afirma Denis Barbosa que
os destinatários das normas do TRIPS são os Estados membros da
OMC. Nenhum direito subjetivo resulta para a parte privada, da
vigência e aplicação do TRIPS. Assim, por expressa determinação
do próprio TRIPS, cabe à legislação nacional dar corpo às normas
prefiguradas no texto internacional. Não existem no caso, normas
uniformes, mas padrões mínimos a serem seguidos pelas leis nacionais, sob pena de violação do Acordo – mas sem resultar, no
caso de desatendimento, em violação de direito subjetivo privado.8
3.2. Os Objetivos do TRIPS
Faz parte, como preâmbulo do TRIPS, como objetivos
reduzir as distorções e obstáculos ao comércio internacional, a
necessidade de promover uma proteção eficaz e adequada dos direitos de propriedade intelectual e a necessidade de assegurar que
7 A nova lei e o TRIPS. Revista da ABPI, Anais do XVI Seminário Nacional de Propriedade Intelectual, p. 14-18, cit. p. 18.
8 Uma Introdução à Propriedade Intelectual. Rio de Janeiro, Editora Lumen Juris, 1998, Vol. I, p. 87.
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as medidas e procedimentos destinados a fazê-los respeitar não se
tornem, por sua vez, obstáculos ao comércio legítimo.9
Portanto, os Estados-partes reconhecem como supra-sumo da necessidade:
1 - a aplicação dos princípios básicos do GATT (Acordo Geral sobre Tarifas de
Comércio) 1994 e dos Acordos e Convenções Internacionais relevantes em
matéria de propriedade intelectual;
2 - o estabelecimento de padrões e princípios adequados relativos à existência, abrangência e exercício de direitos de propriedade intelectual relacionados ao comércio;
3 - o estabelecimento de meios eficazes e apropriados para a aplicação de normas de proteção de direito de propriedade intelectual relacionados ao comércio, levando em consideração as diferenças existentes entre os sistemas jurídicos nacionais;
4 - o estabelecimento de procedimentos eficazes e expeditos para a prevenção e solução multilaterais de controvérsias entre os Governos.
O TRIPS visa a reduzir as tensões entre os Estados partes através do compromisso para a solução de controvérsias sobre questões de propriedade intelectual relacionados ao comércio, através de procedimentos multilaterais; portanto, realiza
um empreendimento comum, com os interesses compartilhados, onde suas metas
estão pautadas em normas de cooperação mútua, consenso, prudência e lealdade.
3.3. A incorporação dos países ao TRIPS
Para a efetiva incorporação ao TRIPS, os países devem incorporar as regras do
Acordo dentro de suas legislações.
Presumimos para tanto que, cada país que adere ao acordo TRIPS deverá ter
uma legislação que regule o assunto relativo a propriedade intelectual, isto é, uma
lei sobre propriedade intelectual.
Portanto, em 1994, além dos EUA se incorporarem ao TRIPS, Canadá, Japão e
a Austrália modificaram suas leis para adaptá-las ao TRIPS.
Os países latino-americanos também começaram a adaptar-se às disposições
do TRIPS, dentre eles a Argentina, Brasil e a Comunidade Andina.
Os Estados partes têm a liberdade para escolher a forma apropriada para implementar as disposições do Acordo, desde que respeitados os padrões mínimos de proteção, podendo prover proteção mais ampla. A metodologia a ser seguida por cada Estado, na implementação do TRIPS, e aquela descrita em seu próprio sistema de direito.10
9 Preâmbulo do TRIPS.
10 O poder de celebrar tratados, Antônio Paulo Capachuz de Medeiros, 1995.
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4.
PRINCÍPIOS NORTEADORES DO TRIPS
4.1. Princípio do Single Undertaking
Expressos no artigo segundo, incisos 2 e 3 do Acordo Constitutivo da OMC,
apregoa que:
Os acordos e os instrumentos legais conexos incluídos nos Anexos 1, 2 e
3 (denominados a seguir de Acordos Comerciais Multilaterais) formam
parte integrante do presente Acordo e obrigam a todos os Membros.
Os Acordos e os instrumentos legais conexos incluídos no Anexo 4 (denominados de Acordos Comerciais Plurilaterais) também formam parte do presente Acordo para os Membros que os tenham aceito e são obrigatórios para estes. Os Acordos Comerciais Plurilaterais não criam
obrigações nem direitos para os Membros que não os tenham aceitado.
O que consiste este princípio basilar, fundamental da OMC, é que não se pode
cumprir parte dos Acordos, ou seja, aderir em parte, pois fugiria do equilíbrio e estrutura da própria organização, exceção como havíamos comentado para o Anexo 4,
isto é, os Acordos Plurilaterais, relativos ao comércio de aeronaves civis, compras governamentais, produtos lácteos, carne bovina, excluídos da concepção unitária.
Os participantes ratificam em comum acordo, isto é, qualquer acordo bilateral feito entre os países membros; este acordo estender-se-á aos outros.
Portanto, quem adere à OMC, deve aceitar todos os acordos setoriais, não sendo possível aderi-los singularmente e tampouco em bloco, sem fazer parte da OMC.
Deste princípio decorre a unidade do sistema, e segundo este, o TRIPS não
admite reservas.
4.2. Princípio da Transparência
Princípio muito importante na estrutura da OMC, uma vez que os países
membros se comprometem a tornar público todas as questões relativas a matérias
de Acordos entre eles.
A transparência na conduta entre os contratantes faz com que os acordos do
TRIPS sejam publicados em seu teor, onde mediante Conselho para TRIPS, fiscaliza
e supervisiona a aplicação de tais Acordos.
Além disto, é responsável por supervisionar o cumprimento, por parte dos
membros, das obrigações por eles estabelecidas, e lhes oferecerá a oportunidade de
efetuar consultas sobre questões relativas aos aspectos dos direitos de propriedade
intelectual relacionados ao comércio.11
11 Refere-se ao artigo 68 do TRIPS.
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4.3. Princípio da Cooperação Internacional
Tendo sua base no direito internacional, a OMC tem como um dos princípios
basilares a cooperação internacional, com a finalidade de promover interesses comuns através de normas de cooperação mútua.
Esta cooperação internacional dentro da OMC pode ser interna e externa.
A cooperação interna se realiza no âmbito da OMC entre seus membros.
No acordo TRIPS, o princípio de cooperação internacional consagrado no
preâmbulo diz que:
Os membros concordam em cooperar entre si com o objetivo de eliminar o comércio internacional de bens que violem direitos de
propriedade intelectual. Para este fim, estabelecerão pontos de
contato em suas respectivas administrações nacionais, delas darão notificação e estarão prontos a intercambiar informações sobre o comércio de bens infratores. Promoverão, em particular, o
interc6ambio de informações e a cooperação entre as autoridades
alfandegárias no que tange ao comércio de bens com marca contrafeita e bens pirateados.12
O artigo 67 do TRIPS enfatiza o aspecto técnico da assistência mútua.13
A cooperação internacional ou externa é a que se estabelece entre o TRIPS e a
OMPI e suas organizações internacionais relevantes na proteção dos direitos de propriedade intelectual, estabelecendo este vínculo no artigo 68, parte final do Acordo.14
4.4. Princípio da Interação entre os Tratados Internacionais sobre a Matéria
Desde a criação da OMC e seus Anexos, principalmente o que se relaciona
com a propriedade intelectual (Anexo 1C), vários autores questionam o posicionamento do TRIPS frente à Convenção de Paris, dizendo alguns que aquela veio em
12 No TRIPS, o princípio da cooperação aparece no Preâmbulo, e se consagra, definitivamente, no artigo 69 (Cooperação Internacional).
13 Art.67: “A fim de facilitar a aplicação do presente Acordo, os países desenvolvidos Membros, a pedido, e em termos e condições mutuamente acordados, prestarão cooperação técnica e financeira aos países em desenvolvimento relativo Membros. Essa cooperação incluirá assistência técnica na elaboração de leis e regulamentos sobre proteção e aplicação de normas de proteção dos direitos de propriedade intelectual, bem como sobre a prevenção de
seu abuso, e incluirá apoio ao estabelecimento e fortalecimento dos escritórios e agências nacionais competentes
nesses assuntos, inclusive na formação de pessoal.”
14 Art.68: “O Conselho para TRIPS poderá consultar e buscar informações de qualquer fonte que considerar adequada. Em consulta com a OMPI, o Conselho deverá buscar estabelecer, no prazo de um ano a partir de sua primeira reunião, os arranjos apropriados para a cooperação com os órgãos daquela Organização”.
148
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substituição desta, e outros afirmando a interação das mesmas, segundo o artigo 2º
da Convenção da propriedade intelectual, zelando este compromisso.15
As obrigações contratadas na Convenção de Paris prevalecem no TRIPS pela
força do artigo 2º. Os tratados não se excluem, contradizem ou disputam a primazia
de regular relações jurídicas, mas se somam e se complementam e, na dúvida, prevalece o bom senso.16
4.5. Princípio da Interpretação Evolutiva
Quando se alude ao princípio supramencionado, integrante do TRIPS, logo se
pressupõem o processo de dinamicidade, princípio este característico do Tratado,
uma vez que a interpretação das suas cláusulas pode mudar de acordo com a evolução do tema proposto.
A grande diferença de infra-estrutura constitucional, como observa Otto Licks,
legal e de disponibilidade de corpo técnico qualificado em cada um dos membros
do Acordo também contribuirá para a pluralidade de entendimentos. Ademais, o estudo do TRIPS por internacionalistas também contribuirá de forma importante para
a interpretação das cláusulas do Acordo.17
Ao se incorporarem aos Acordos do TRIPS, os Estados estabelecem um parâmetro da realidade pelo qual vivenciam, em todos os aspectos, desde sua realidade
social, econômico e cultural, tendo como auxílio, dentro da própria Organização,
15 Art. 2º: “1- Com relação às Partes II, III e IV deste Acordo, os Membros cumprirão o disposto nos artigos 1 . 12 e
19, da Convenção de Paris. (1967)
2- Nada nas Partes I a IV deste Acordo derrogará as obrigações existentes de que os Membros possam entre si, em
virtude da Convenção de Paris, da Convenção de Berna, da Convenção de Roma e do Tratado sobre a Propriedade
Intelectual em Matéria de Circuitos Integrados”.
16 Convenção de Viena sobre Direitos dos Tratados, 1969, art. 30 (Aplicação de Tratados Sucessivos Sobre o Mesmo
Assunto):...2- Quando um tratado estipular que está subordinado a um tratado anterior ou posterior, ou que não deve
ser considerado incompatível com esse outro tratado, as disposições deste último prevalecerão. 3- Quando todas as
partes do tratado anterior são igualmente partes no tratado posterior, sem que o tratado anterior tenha cessado de
vigorar ou sem que a sua aplicação tenha sido suspensa em virtude do artigo 59, o tratado anterior só se aplica na
medida em que suas disposições sejam compatíveis com as do tratado posterior. 4- Quando as partes no tratado posterior não incluírem todas as partes no tratado anterior: a) nas relações entre os Estados parte nos dois tratados, aplicam-se as regras do parágrafo 3; b) nas relações entre um Estado parte nos dois tratados e um Estado-parte apenas
em um desses tratados, o tratado em que os dois Estados são partes rege seus direitos e obrigações recíprocos”...
Art. 59 (Extinção ou Suspensão da Execução de um Tratado em Virtude da Conclusão de Tratado Posterior), 1- Considera-se extinto um tratado quando todas as suas partes concluírem um tratado posterior sobre o mesmo assunto
e: a) resultar do tratado posterior ou ficar estabelecido por outra forma que a intenção das partes é regular o assunto por este tratado; ou b) as disposições do tratado posterior forem de tal modo incompatíveis com as do tratado
anterior que os dois tratados não podem ser aplicados ao mesmo tempo. 2- A execução do tratado anterior é considerada apenas suspensa quando se depreender do tratado posterior ou estiver estabelecido de outra forma que
essa era a intenção das partes”.
17 O Acordo Sobre Aspectos dos Direitos....,625.
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n.
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um Sistema de Controvérsia para dirimir os conflitos por ventura existentes entre os
Membros.
Em síntese, o Acordo TRIPS estabelece os padrões mínimos de proteção a serem observados pelos Estados-partes, os quais se comprometem a incorporá-los,
submetendo-se às sanções previstas no Acordo.18
4.6. Princípios do Tratamento Nacional
Esse princípio já está consagrado pelo antigo GATT, onde a OMC o recepcionou, atingindo todos os seus setores constitutivos.19
Em se tratando deste princípio constante no TRIPS, cada membro concederá
aos nacionais dos demais membros tratamento não menos favorável que o outorgado a seus próprios nacionais com relação à proteção20 da propriedade intelectual,
salvo exceções já previstas, respectivamente na Convenção de Paris, 1967, na Convenção de Berna, 1971, na Convenção de Roma e no Tratado sobre propriedade intelectual em Matéria de Circuitos Integrados.
4.7. Princípio da Nação Mais Favorecida
Outro princípio trazido pelo GATT e recepcionado pela OMC, em seu artigo
4º, o qual reza a proteção incondicional de todos os membros, isentando porém
desta obrigação, toda vantagem, favorecimento, privilégio ou imunidade concedida
por um membro que:
a - resulte de acordos internacionais sobre assistência judicial ou sobre a aplicação em geral da lei e não limitados em particular à proteção da propriedade intelectual;
b - tenha sido outorgada em conformidade com as disposições da Convenção de
Berna, Convenção de Roma que autorizam a concessão de tratamento em função do tratamento concedido em outro país e não do tratamento nacional;
c - seja relativa aos direitos de artistas-intérpretes, produtores de fonogramas
e organizações de radiodifusão não previstos neste Acordo
d - resultem de acordos internacionais relativos à proteção da propriedade intelectual que tenham entrado em vigor antes da entrada em vigor do Acordo Constitutivo da OMC, desde que esses acordos sejam notificados ao
18 O Acordo não possui a característica self executing, isto é, não é auto-executável, e deve ser incorporado pelos Estados-partes em suas legislações nacionais, através de mecanismos próprios, haja vista a extrema liberdade do Acordo.
19 GATT, 1947 (arts. I e III).
20 A proteção aqui compreende os aspectos que afetem a existência, obtenção, abrangência, manutenção e aplicação de normas de proteção dos direitos de propriedade intelectual, bem como os aspectos relativos ao exercício
dos direitos de propriedade intelectual de que trata especificadamente o Acordo TRIPS.
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faculdade de direito de bauru
Conselho para TRIPS e não constituam discriminação arbitrária ou injustificável contra os nacionais dos demais Membros.21
4.8. Princípio do Esgotamento Internacional dos Direitos
O artigo 6º do TRIPS admite a possibilidade do esgotamento internacional dos
direitos, isto é, a possibilidade de importar legalmente um produto protegido por
direitos de propriedade intelectual, desde que tenha sido introduzido, no mercado
de qualquer outro país, pelo seu titular, ou com o seu consentimento.22
Este princípio também era integrante do antigo GATT, resguardando aos contratantes a igualdade de tratamento, evitando uma proteção discriminatória do produto nacional, uma vez que se aplica o princípio do esgotamento nacional ao produto nacional, nas mesmas condições ao produto importado, através do princípio
de esgotamento internacional, e nas mesmas condições de tratamento.
O princípio de esgotamento internacional aparece no art.188:
Comete crime contra registro de desenho industrial quem:... II- importa produto que incorpore desenho industrial registrado no
país, ou imitação substancial que possa induzir a erro ou confusão, para os fins previstos no inciso anterior, e que não tenha sido
colocado no mercado externo diretamente pelo seu titular ou com
o seu consentimento.
O esgotamento pode ser nacional ou internacional: O nacional, ocorre quando a exaustão dos direitos do titular se limita ao livre comércio interno de um Estado. Se o titular do direito de propriedade intelectual colocou no comércio nacional
seu produto, não poderá impedir a sua ulterior comercialização.
No esgotamento internacional, acontece o mesmo, porém com repercussões
maiores. Se o produto for comercializado pela primeira vez pelo titular do direito de
propriedade intelectual, ou com seu consentimento, em qualquer lugar do mundo,
estarão livres as importações e ulteriores vendas paralelas desse produto no Estado
importador em que a marca tenha sido registrada.
Segundo Corrêa,
o reconhecimento do princípio do esgotamento internacional do
Acordo TRIPS pode ser visto como um reflexo lógico da globaliza21 Art. 4º do TRIPS.
22 Art. 6º do TRIPS, estabelece que “para os propósitos de solução de controvérsias no marco deste Acordo, e sem
prejuízo do disposto nos artigos 3 e 4, nada neste Acordo será utilizado para tratar da questão dos direitos de propriedade intelectual” .
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ção da economia em nível nacional. Esta solução é conveniente
para assegurar a competitividade das empresas locais, que podem
estar em desvantagens se se vêem obrigadas a comprar exclusivamente de distribuidores que aplicam preços mais altos que os vigentes em outro país23
5.
OS EFEITOS DO TRIPS PÓS-BUREAUX INTERNATIONAUX RÉUNIS
POUR LA PROTECION DELA PROPRIÈTÈ INTELLECTUELLE
Sendo o TRIPS parte integrante do Acordo Constitutivo da OMC, a questão da
propriedade intelectual oxigenou-se, tomou nova forma sob todos os aspectos na
economia internacional. Trouxe também para seu conteúdo princípios basilares de
direito internacional (single undertaking, cooperação internacional, interação,
transparência, etc), adotando padrões mínimos ao se tratar da propriedade intelectual em relação à existência, alcance e exercício dos direitos dos mesmos e, conseqüentemente, a adoção também de um regime internacional para a proteção destes
direitos através do mecanismo de prevenção e solução de controvérsias; portanto,
trazendo para seu regime interno mecanismos que faltavam antes de sua criação.
Com relação à OMPI, responsável pela Convenção de Berna e Paris, bem como
os tratados internacionais de propriedade intelectual, continua a se ocupar da harmonia legislativa relativa a este matéria, enquanto o TRIPS se ocupa dos aspectos comerciais internacionais relacionados com a matéria propriedade intelectual, pelo simples
fato de que o mundo mudou, e com ele as relações comerciais, conseqüentemente os
Bureaux ficaram retrógrados com relação a esta nova ordem econômica.
Como observou o professor Miguel Reale,
A Convenção de Paris não representa um direito uniforme, ela
marca uma diretriz no sentido de um direito uniforme. Eu diria
numa expressão filosófico-matemática que a internacionalização
das normas de direito industrial é o infinito de uma constante exigência jurídica. Nós marchamos cada vez mais para a uniformização das regras que disciplinam à matéria de direito industrial,
mas não podemos pretender que isso se realize já
e, continuando, “a disparidade entre os diversos países leva a muitas incompreensões, a reclamações reiteradas, perturbando o campo das relações internacionais.24
23 Acuerdo TRIPS – Régimen internacional de la propiedad intelectual. Buenos Aires, Ediciones Ciudad Argentina,
1998, p. 48-49.
24 Aplicação da Convenção de Paris no Brasil. Revista ABPI, cit. p. 20-21.
152
6.
faculdade de direito de bauru
O TRIPS E A LEI DE PROPRIEDADE INTELECTUAL NO BRASIL
O Brasil aderiu ao TRIPS em 1/1/2000, quando o Congresso Nacional aprovou o Acordo Constitutivo da OMC, através do Decreto legislativo n. 30, de 15
de dezembro de 1994, promulgado pelo Decreto Presidencial n. 1355 de 30 de
dezembro de 1994 e publicado no Diário Oficial da União em 31 de dezembro
do mesmo ano.
Logicamente, depois desses trâmites, o Brasil se viu na obrigação de revisar a
legislação sobre a propriedade intelectual e as novas leis sobre a matéria foram editadas, para comportar a nova adesão aos padrões internacionais do Acordo.
Atualmente, o cenário legislativo nacional relativos à propriedade intelectual
se encontra com as seguintes leis sobre o assunto:
- Lei n. 9.279 de 14 de maio de 1996: Regula os Direitos e Obrigações Relativas à Propriedade Industrial.
- Lei 9.456 de 25 de abril de 1997: Regula a Proteção de Cultivares e dá Outras Providências.
- Lei n. 9.610 de 19 de fevereiro de 1998: Altera, Atualiza e Consolida a Legislação Sobre Direitos Autorais e dá Outras Providências.
- Lei n. 9.609 de 19 de fevereiro de 1998: Dispõe Sobre a Proteção da Propriedade Intelectual de Programas de Computador, sua Comercialização
no País e dá Outras Providências.
Dissemos que o Brasil aderiu ao TRIPS em 2000, isto quer dizer que o período de transição já se foi. As regras de direito interno brasileiro, incompatíveis com
o TRIPS, estão ipso facto revogadas?
Os tratados internacionais incorporados ao direito brasileiro passam a ser
considerados como leis e produzem os mesmos efeitos destas sobre as demais.25
Deduz-se que ocorreria a revogação das leis internas brasileiras pelo TRIPS em
conformidade ao princípio lex posterior derogat priori. Entretanto, isso não ocorre, pois o TRIPS é um tratado-contrato e não um tratado-lei, em que suas normas se
destinam aos Estados partes e não aos indivíduos que não recebem, imediatamente, nenhum direito subjetivo com a entrada em vigor do TRIPS.
Havendo discrepância entre a legislação nacional e o TRIPS, caberá ao julgador nacional dar corpo às disposições do Acordo, adaptar o direito interno aos padrões fixados pelo TRIPS, sob pena de, não o fazendo, o Brasil violar o Acordo Constitutivo e, conseqüentemente, ficar sujeito a responder perante o Órgão de Solução
de Controvérsias da OMC.
Em se tratando de Solução de Controvérsias no âmbito da OMC/TRIPS, esta é
regida pelos artigos XXII E XXIII do GATT, desenvolvidos e aplicados nos Entendi25 Vicente Marotta Rangel, “Os conflitos entre o direito interno e os tratados internacionais” Boletim da Sociedade
Brasileira de Direito Internacional, n.45-46, p.29.
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mentos Relativos às Normas e Procedimentos Sobre Soluções de Controvérsias, previsto, no Anexo 2, do Acordo Constitutivo da OMC.26
7.
A PROPRIEDADE INTELECTUAL SOB O ENFOQUE DO TRIPS
No sentido de buscar maiores proteções aos direitos de propriedade intelectual, os países desenvolvidos, encabeçados pelos Estados Unidos, pressionaram os
países em desenvolvimento a estabelecerem padrões para a proteção e, conseqüentemente, uma lei específica para a matéria.
Com efeito, os países em desenvolvimento acuados diante de tais pressões,
resistiram por mais de vinte anos, até aderirem ao antigo GATT.
Quando do lançamento da Rodada Uruguai, as diferenças existentes entre nações desenvolvidas e em desenvolvimento ficaram evidentes, vez que era gritante as
divergências sob todos os enfoques entre uns e outros.
Neste contexto, emergiram três concepções sobre propriedade intelectual.
A primeira delas, defendida pelo país hegemônico, (EUA), entendia a proteção da propriedade intelectual como instrumento para favorecer a inovação, as invenções e a transferência de tecnologia, independentemente dos níveis de desenvolvimento econômico dos países. Os países desenvolvidos enfatizavam a vinculação entre propriedade intelectual e comércio internacional, uma vez que, aproveitando a Rodada de negociações, comunicaram sobre a ameaça de contrafação de
suas companhias e a inadequada proteção à propriedade intelectual.
A concepção defendida pelos países em desenvolvimento destacava as profundas assimetrias Norte-Sul, no que diz respeito à capacidade de geração de tecnologia.
Sem desconhecer a importância da proteção da propriedade intelectual, defendiam
que o objetivo primordial das negociações deveria ser assegurar a difusão da tecnologia mediante mecanismos formais e informais de transparência. Os países em desenvolvimento tinham a preocupação de se garantir ao acesso seguro à moderna tecnologia através de maior proteção dos direitos de propriedade intelectual. O dilema era
como aumentar a proteção a esses direitos e garantir o acesso à moderna tecnologia.
Para eles, suas necessidades de desenvolvimento econômico e social eram tão importantes ou mais que os direitos dos detentores de propriedade intelectual.
Por fim, como uma posição intermediária de alguns países desenvolvidos, dentre os quais o Japão e os Membros das Comunidades Européias que destacaram a necessidade de assegurar a proteção dos direitos de propriedade intelectual, evitando
abusos no seu exercício ou outras práticas que constituíssem impedimento ao comércio legítimo. Isso porque os direitos exclusivos outorgados pelos títulos de propriedade intelectual poderiam se tornar, muitas vezes, barreiras ao comércio, espe26 O Anexo 2 adotou o ‘Dispute Settlement Body” ou “Órgão de Solução de Controvérsias”, que traduz em um organismo mais eficaz para a solução de controvérsias do que o GATT.
faculdade de direito de bauru
154
cialmente por seu uso abusivo. Para esses países, as distorções no comércio podem
surgir não apenas da inadequada proteção como também de uma excessiva proteção.
Após seis anos de negociações, foi apresentado, em dezembro de 1991 um
projeto de acordo, sendo aprovado, em 15 de abril, pelo Acordo de Marraqueche.
Portanto, nas negociações do TRIPS, restou um consenso expresso em uma
pauta de compromissos claramente apresentados no Preâmbulo do Acordo e nos
arts. 7º, 8º e 69, onde as partes lograram o consenso, comprometendo-se:
A aplicar os princípios básicos do GATT 1994 e os acordos e convenções
internacionais relevantes em matéria de propriedade intelectual;
A estabelecer padrões e princípios adequados relativos à existência, abrangência e exercício de direitos de propriedade intelectual
relacionados ao comércio;
A estabelecer meios eficazes e apropriados para a aplicação de
normas de proteção de direitos de propriedade intelectual relacionados ao comércio, levando em consideração as diferenças existentes entre os sistemas jurídicos nacionais;
A estabelecer procedimentos eficazes e expedidos para a prevenção
e solução multilaterais de controvérsias entre Governos;...
Para tanto, os Estados reconhecem:
a necessidade de um arcabouço de princípios, regras e disciplinas
multilaterais sobre comércio internacional de bens contrafeitos;
os direitos de propriedade intelectual são direitos privados;
os objetivos básicos de política pública dos sistemas nacionais para
a proteção da propriedade intelectual, inclusive os objetivos de desenvolvimento e tecnologia;
as necessidades especiais dos países de menor desenvolvimento relativo, no que se refere `a implementação interna de leis e regulamentos, com a máxima flexibilidade, de forma a habilitá-los a
criar uma base tecnológica sólida e viável;
a importância de reduzir tensões mediante a obtenção de compromissos firmes para a solução de controvérsias sobre questões de
propriedade intelectual relacionadas ao comércio por meio de
procedimentos multilaterais.
O art. 7º do Acordo TRIPS fixa os objetivos a serem perseguidos:
A proteção e a aplicação de normas de proteção dos direitos de
propriedade intelectual devem contribuir para a promoção da
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155
inovação tecnológica e para a transferência e difusão de tecnologia, em benefício mútuo de produtores e usuários de conhecimentos tecnológicos e de uma forma conducente ao bem-estar social e
econômico e a um equilíbrio entre direitos e obrigações.
8.
CONCLUSÃO
Através deste trabalho de pesquisa, muito oportuna é a lição de Celso Lafer,
recordando Grócio, que nos diz:
Há um potencial de sociabilidade e solidariedade na esfera internacional. Este potencial provê – e este é o pressuposto no qual se
fundamenta a OMC – uma interação organizada e não –anárquica entre os atores da vida econômica num mercado globalizado
que não funciona como um jogo de soma zero, em que o ganho de
um significa a perda de outro.
Há conflito, mas há também cooperação, lastreada num processo
abrangente que tem sua base na racionalidade e na funcionalidade da reciprocidade de interesses. Somente se pode perceber e julgar adequadamente essa reciprocidade de interesses se estão visivelmente à tona, através da publicidade contemplada pelo princípio de transparência (grifos nossos).
Com relação ao Brasil, tanto como Membro inicial da OMC quanto parte contratante do Antigo GATT de 1947, dado peso o econômico de seu grande mercado
interior, sempre esteve de uma maneira ou outra participando dos destinos do sistema multilateral de comércio, pois na atualidade, diante da OMC, o país enfrenta
papel importante para a abertura de novas rodadas de negociações, com uma crescente inserção no comércio internacional, tanto no âmbito dos interesses governamentais quanto nos interesses da sociedade civil.
Em se tratando do Acordo sobre propriedade intelectual na OMC, o TRIPS representa um documento fundamental na consolidação da proteção dos direitos de
propriedade intelectual na sociedade internacional contemporânea e, conseqüentemente, a vinculação destes direitos ao comércio internacional.
Com o TRIPS, as partes ganharam e perderam, e os interesses contrapostos de
seus membros acabaram chegando ao consenso, como acima ficou demonstrado no
Preâmbulo do TRIPS.
Portanto, ao se buscar um denominador comum, os Estados-partes obtiveram
o consenso e o comprometimento entre si de implementar medidas eficazes e apropriadas no sentido do livre comércio, na perspectiva de cooperação internacional,
uma vez que, dentro da OMC, o princípio fundamental que a rege nos processos de-
156
faculdade de direito de bauru
cisórios é a democratização que permeia a vida desta Organização, que é o trampolim de inserção para o comércio mundial.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS
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Aires: Ediciones Ciudad Argentina, 1998, p. 48-49.
BARBOSA, Denis. Uma introdução a propriedade intelectual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1998, Vol. I, p.87.
FURTADO, Lucas Rocha. Sistema de propriedade industrial no direito brasileiro.
Brasília: Brasília Jurídica, 1996, p.25.
LAFER, Celso. A OMC e a regulamentação do comércio internacional: Uma visão
brasileira. Porto Alegre: Livraria do advogado Editora, 1998, p.28
MEDEIROS, Antônio Paulo. O poder de celebrar tratados, 1995
MUJALLI, Walter Brasil. A propriedade industrial e a nova lei de patentes. Leme: De
Direito, 1997, p.20.
PIMENTEL, Luís Olavo. As funções do direito de patentes. Porto Alegre: Síntese,
1999, p.126
PREÂMBULO DO TRIPS.
RANGEL, Marota Vicente.Os conflitos entre o direito interno e os tratados internacionais. Boletim da Sociedade Brasileira de Direito Internacional. n. 45-46, p. 29
REVISTA ABPI. Aplicação da convenção de Paris no Brasil, p. 20-21.
______________. A nova lei e o TRIPS. p.14-18
NATUREZA JURÍDICA DAS DECISÕES DOS
TRIBUNAIS DE CONTAS, NO BRASIL
Paulstein Aureliano de Almeida
Advogado da União.
Professor de Direito da Escola Técnica Federal de Palmas/TO.
Especialista em Direito Municipal.
A natureza jurídica das decisões dos Tribunais de Contas, no Brasil, sempre
consistiu em verdadeira vexata quaestio. Grassaram e ainda grassam polêmicas
doutrinárias e jurisprudenciais. Veja-se o magistério do insigne jurista Miguel de Seabra Fagundes, in o Controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário,
§ 69, 6. Ed., Rio de Janeiro: Forense, 1984, em que defende ele a tese de que as Cortes de Contas exercem verdadeira judicatura sobre os exatores, a dizer os que têm,
em seu poder, sob sua gestão, bens e dinheiros públicos:
Ao Tribunal de Contas se delega a apreciação jurisdicional de
certas situações individuais às dos responsáveis por valores patrimoniais da União, não tão-somente no que concerne ao aspecto
contábil, embora com reflexos nas órbitas penal e civil. (Negritei).
Leopoldo da Cunha Melo, quando Procurador do Tribunal de Contas da
União, sustentava que “o Tribunal de Contas não é simples órgão administrativo,
mas exerce verdadeira judicatura sobre os exatores, os que têm em seu poder, sob
sua gestão, bens e dinheiros públicos“ (Pareceres, v. 4, ps-118-119, apud J. Cretella Júnior, Natureza das Decisões do Tribunal de Contas, Revista de Direito Administrativo, FGV, nº 166, out/dez.1986, p. 4).
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Esclarecedora, a respeito, a doutrina de Pontes de Miranda, o qual, em seus
Comentários à Constituição de 1946, v. 2, p. 338, Rio de Janeiro: Borsói, 1960,
dedicou ao assunto bastante atenção e estudos. Veja-a.1
Como se vê da lição do douto Pontes de Miranda, os julgamentos das Cortes de
Contas devem ser acatados pelo Poder Judiciário, tendo em vista que não pode ele rejulgar o que já foi julgado. O constituinte repetiu, desde a Constituição de 1934, art. 99,
o verbo julgar na seguinte construção: “e julgará as contas dos responsáveis por
dinheiros ou bens públicos”; na de 1937, art. 114: “julgar das contas dos responsáveis por dinheiros ou bens públicos e da legalidade dos contratos celebrados”; na de 1946, art. 77: “julgar as contas”, julgar da legalidade dos contratos
e das aposentadorias, reformas e pensões”, na de 1967, art. 71, § 1º: “julgamentos das contas dos administradores e demais responsáveis por bens e valores
públicos”; na Emenda Constitucional nº 1, de 1969, art. 70, § 40: “o julgamento da
regularidade das contas dos administradores e demais responsáveis será baseado em levantamentos contábeis, certificados de auditoria e pronunciamento das autoridades administrativas” e, finalmente, na de 1988, art. 71, II: “julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens
e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações
e sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público federal, e as contas
daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que
resulte prejuízo ao erário público”.
O emprego, destarte, do vocábulo julgar não induziu o intérprete em erro
terminológico, muito menos técnico, pois quando “são empregados termos jurídicos, deve crer-se ter havido preferência pela linguagem técnica.” (MAXIMILIANO,
Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 10.ed., Rio de Janeiro: Forense, p.
109). O julgamento sobre as contas, decidindo a regularidade ou irregularidade, é
soberano, privativo e definitivo.
Soberano, porque não se submete a outra Corte revisional, porquanto suas
decisões em sede de contas especiais fazem coisa julgada, e sua competência, ten1 A que Poder pertence o Tribunal de Contas, na Constituição de 1937? Ao Poder Executivo, não: porque fiscalizava a execução orçamentária, julgava as contas dos responsáveis por dinheiros ou bens públicos e julgava da legalidade dos contratos celebrados pela União. Ao Poder Legislativo, também não: porque estava longe de ser simples
auxiliar da tomada de contas ao Poder Executivo e até se lhe esvaía tal função nos textos de 1937. Ao Poder Judiciário, se bem que de modo especial, como função, sim; como órgão, não. Era um tribunal e julgava. Não importa o
caráter à parte que teve; isso não lhe tirava a função de julgar. Tanto quanto ao Tribunal de Contas de 1934, ao Tribunal de Contas de 1937 reconhecêramos função judiciária. Esse elemento de classificação que defendemos, foi reafirmado pela Constituição de 1946. A nova Constituição tem o Tribunal de Contas como órgão (auxiliar) do Poder
Legislativo. Mas a função de julgar fixou-lhe. No plano material, é corpo judiciário; no formal, corpo auxiliar do Congresso Nacional. (Comentários à Constituição de 1946. 2. ed., v.2, Max Limonad, 1953, p. 338,
apud J. Cretella Júnior, Natureza das decisões do Tribunal de Contas, Revista de Direito Administrativo, FGV,
nº 166, out/dez. 1986, ps. 5-6). (Negritei).
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do sido outorgada pelo constituinte originário, com exclusividade, não pode, conseqüentemente, ser subalterna a qualquer dos demais Poderes.
Definitivo, uma vez esgotados os recursos previstos no âmbito das próprias
Cortes de Contas, adquire a decisão o caráter de definitiva e, em matéria de contas
especiais, não se sujeita à revisibilidade de mérito pelo Poder Judiciário.
Nesse diapasão, já decidiu a Justiça Federal.2
Com efeito, rememore-se a lição de José Luiz de Anhaia Melo:
De nada adiantaria um corpo de auditores a fazer exames de contabilidade, a acompanhar a execução orçamentária, a visar balanços e balancetes, se esses procedimentos meramente instrutivos
e interlocutórios não ensejassem por parte do Tribunal uma decisão definitiva e operante. (O Tribunal de Contas – Pesquisa e
Atuação. São Paulo: Gráfica do TC/SP, 1984, p. 38, apud Gualazzi,
1992, p. 203).
As decisões dos Tribunais de Contas, no Brasil, portanto, caracterizam matéria
prejudicial, em relação à cognição judiciária, conforme elucida José Cretella Júnior.
De outra feita, em relação à Administração Pública e à própria cognição do Poder Judiciário, configuram elas a denominada coisa julgada administrativa. Acerca desta
matéria, pontifica o referido administrativista, adentrando-lhe os aspectos uni e intradicisplinares3.
Deste modo, qualquer decisão do Tribunal de Contas, no Brasil, que gere
situação jurídica individual, é suscetível de ser classificada como coisa julgada
administrativa, bem como aquelas já cobertas pela prescrição ou decadência.
Tem o Tribunal de Contas, sem dúvida, função jurisdicional quando do julgamento das contas dos responsáveis por recursos públicos, não integrando, apenas,
formalmente, os órgão do Poder Judiciário.
2 O TCU só formalmente não é órgão do Poder Judiciário. Suas decisões transitam em julgado e têm, portanto, natureza prejudicial para o juízo não especializado (Apelação Cível nº 89.01.23993-0 – MG, DJU 14.09.92, p. 28.119,
TRF/1ª Região, 3ª Turma, Rel. Desembargador Federal Adhemar Maciel).
3 a) A res judicata administrativa tem âmbito mais restrito do que a res judicata do processo civil ou penal; b) há
todo o interesse em que as decisões na esfera administrativa sejam mantidas, visto serem atos jurisdicionalmente
qualificados ou de relevância jurídica; c) ficam, é claro, fora do campo da res judicata administrativa todos os atos
que não geram situações jurídicas individuais e aqueles que, por motivos de interesse público, precisam ser, periodicamente, reajustados; d) a contrario sensu, configuram de maneira inequívoca exemplos de coisa julgada administrativa os atos que geram situações jurídicas individuais; e) constituem, enfim, categoria inatacável, na órbita administrativa, como vimos, os atos atingidos pela prescrição e cujo prazo de decadência, na esfera judicial, já se extinguiu, pelo menos nos países onde existe o controle judicial dos atos administrativos.” (Tratado de Direito Administrativo, v. 6, ps-226-227, Rio-São Paulo: Forense, s/data).
160
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Recorra-se de novo ao ensinamento de Seabra Fagundes.4
Assim, não prospera a doutrina de José Cretella Júnior de que a jurisdição
stricto sensu, é exercida exclusivamente pelo Poder Judiciário, haja vista as duas exceções citadas por Seabra Fagundes ao monopólio da competência constitucional
de aplicar o direito ao caso concreto outorgada ao aludido Poder.
O julgamento das contas, portanto, é função jurisdicional atribuída às Cortes
de Contas, prevista expressamente por norma constitucional, à qual se deve dar eficácia máxima, visto que a Instituição é órgão essencial ao desenvolvimento do processo de consolidação da democracia, pois é a responsável pela garantia de zelo à
coisa pública.
Essa jurisdição exercida pelos Tribunais de Contas é jurisdição especial a que
já se referira Seabra Fagundes em sua obra citada quando mencionou as exceções
ao monopólio jurisdicional do Poder Judiciário. A Constituição Federal a contempla
quando investe o Tribunal de Contas no julgamento das contas, seja quando comete ao Senado Federal o julgamento do Presidente e Vice-Presidente da República,
Ministros de Estado e Comandantes das Forças Armadas, Procurador-Geral da República e o Advogado-Geral da União, segundo o disposto nos arts. 71, II, e 52, I e II.5
É sabido que a jurisdição é una e indivisível por promanar de manifestação da
soberania estatal. A divisão que se faz da jurisdição, v.g., jurisdição comum, jurisdição especial, jurisdição constitucional é meramente orgânica e visa atender à pluralidade e especialização decorrentes dos ordenamentos jurídicos.
A jurisdição comum é exercida pelos órgãos que integram a magistratura ordinária; a jurisdição especial distingue-se da ordinária subjetivamente, pois os que a
exercem não são integrantes do Poder Judiciário e, objetivamente, na amplitude dos
poderes de decisão que são conferidos ao juiz; a jurisdição administrativa não exis4 Duas exceções restritas admite a Constituição ao monopólio jurisdicional do Poder Judiciário, no que concerne à
matéria contenciosa administrativa. A primeira diz respeito aos crimes de responsabilidade do Presidente da República, dos Ministros de Estado, quando conexos com os desse, e dos Ministros do Supremo Tribunal Federal. O seu
julgamento competirá ao Congresso. A segunda se refere ao julgamento da regularidade das contas dos administradores e demais responsáveis pela guarda ou aplicação de bens ou fundos públicos atribuído ao Tribunal de Contas.
(O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário. 6.ed. Rio de Janeiro: Ed.Forense, p. 142).
5 Art. 71. O controle externo a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da
União, ao qual compete:
II – julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público federal, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público.
Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal:
I – processar e julgar o Presidente e o Vice-Presidente da República nos crimes de responsabilidade, bem como os
Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica nos crimes da mesma natureza conexos com aqueles (redação dada pela Emenda Constitucional nº 23, de 02.09.1999).
II – processar e julgar os Ministros do Supremo Tribunal Federal, o Procurador-Geral da República e o AdvogadoGeral da União nos crimes de responsabilidade.
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te em nosso país, tendo encontrado guarida em França e Itália; a jurisdição constitucional é compreendida como parte da administração da justiça que tem como objeto específico matéria jurídico-constitucional de um determinado Estado; surge em
sentido formal, quando a defesa constitucional é atributo de um tribunal com essa
missão específica. Serve, em suma, exclusivamente à conservação da Constituição.
A exclusividade da jurisdição não pode ser vista como característica privativa
do Poder Judiciário. É a Constituição Federal que diz quais são os órgãos que podem
exercer atividade jurisdicional, donde resulta a legitimidade dos mesmos.
A jurisdição é atributo restrito à norma constitucional, a qual distribui a competência entre os órgãos jurisdicionais, ordinários ou especiais.
Em defesa do tema proposto, tem-se a garantia constitucional do juiz natural.
Este princípio é compatível com a existência de órgãos jurisdicionais especiais, desde que constitucionalmente previstos.
Com efeito, somente os juízes, tribunais e órgãos jurisdicionais previstos na Constituição se identificam com o princípio do juiz natural, o qual se estende ao poder de julgar também previsto para outros órgãos, como o Senado, nos casos de impedimento de
agentes do Poder Executivo, e o Tribunal de Contas nos julgamentos proferidos sobre
contas de administradores e demais responsáveis pela guarda e aplicação de dinheiro,
bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público federal, bem como as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao
erário público, conforme expressamente estatuído na Magna Carta, art. 71.
Assim sendo, de acordo com a Constituição Federal de 1988, além do Poder
Judiciário, têm competência para julgar com definitividade o Senado Federal e o Tribunal de Contas nas hipóteses taxativamente estabelecidas.
Ao reconhecer a jurisdição ao Tribunal de Contas, a Constituição introduziu
exceções explícitas à regra da unidade de jurisdição.
A Magna Carta conferiu aos Tribunais de Contas novas competências6, deferiulhe, autonomia administrativa e financeira, conferindo aos seus membros as prerrogativas e garantias dos membros do Poder Judiciário,7 razão pela qual assoma a Ins6 Art. 70. A fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas, será exercida pelo Congresso Nacional, mediante controle externo, e pelo sistema de controle interno de cada Poder.
Parágrafo único. Prestará contas qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos ou pelos quais a União responda, ou que, em nome
desta, assuma obrigações de natureza pecuniária.
7 Art. 71. O controle externo a cargo do Congresso Nacional será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da
União, ao qual compete:
I – apreciar as contas prestadas anualmente pelo Presidente da República, mediante parecer prévio que deverá ser
elaborado em 60 (sessenta) dias a contar de seu recebimento;
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tituição8 como órgão totalmente independente em relação a qualquer dos Poderes
do Estado.
As Cortes de Contas exercem, portanto, função jurisdicional especial, ex vi do
art. 71, II. A Constituição Federal albergou em seu texto normas que atribuem funções jurisdicionais a cargo de outros órgãos que não integram o Poder Judiciário, excepcionando o monopólio da jurisdição do Poder Judiciário, em razão do que a este
Poder fica vedado o direito de rever as decisões proferidas pelo Tribunal de Contas
e Senado Federal, mercê de lhe faltar jurisdição nessas duas circunstâncias especiais.
Conforme solidificado pelo Direito Processual e Teoria Geral do Processo não existe revisão jurisdicional de atos jurisdicionais.
II – julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público federal, e as
contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público;
III – apreciar para fins de registro, a legalidade dos atos de admissão de pessoal, a qualquer título, na administração direta e indireta, incluídas as fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, excetuadas as nomeações
para cargo de provimento em comissão, bem com a das concessões de aposentadorias, reformas e pensões, ressalvadas as melhorias posteriores que não alterem o fundamento legal do ato concessório;
IV – realizar, por iniciativa própria, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, de comissão técnica ou de inquérito, inspeções e auditorias de natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial, nas unidades
administrativas dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, e demais entidades referidas no inciso I;
V – fiscalizar as contas nacionais das empresas supranacionais de cujo capital social a União participe, de forma direta ou indireta, nos termos do tratado constitutivo;
VI – fiscalizar a aplicação de quaisquer recursos repassados pela União mediante convênio, acordo, ajuste ou outros instrumentos congêneres, a Estado, ao Distrito Federal ou a Município;
VII – prestar as informações solicitadas pelo Congresso Nacional, por qualquer de suas Casas, ou por qualquer das
respectivas Comissões, sobre a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial e sobre resultados de auditorias e inspeções realizadas;
VIII – aplicar aos responsáveis, em caso de ilegalidade de despesa ou irregularidade de contas, as sanções previstas
em lei, que estabelecerá, entre outras cominações, multa proporcional ao dano causado ao erário;
IX - assinar prazo para que o órgão ou entidade adote as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, se
verificada ilegalidade;
X – sustar, se não atendido, a execução do ato impugnado, comunicando a decisão à Câmara dos Deputados e ao
Senado Federal;
XI – representar ao Poder competente sobre irregularidades ou abusos apurados.
§ 1º No caso de contrato, o ato de sustação será adotado diretamente pelo Congresso Nacional, que solicitará, de
imediato, ao Poder Executivo as medidas cabíveis.
§ 2º Se o Congresso Nacional ou o Poder Executivo, no prazo de 90 (noventa) dias não efetivar as medidas previstas no parágrafo anterior, o Tribunal decidirá a respeito.
§ 3º As decisões do Tribunal de que resulte imputação de débito ou multa terão eficácia de título executivo.
§ 4º O Tribunal encaminhará ao Congresso Nacional, trimestral e anualmente, relatório de suas atividades.
8 O Tribunal de Contas da União, integrado por 9 (nove) Ministros, tem sede no Distrito Federal, quadro próprio
de pessoal e jurisdição em todo o território nacional, exercendo, no que couber, as atribuições previstas no art. 96.
§ 1º Os Ministros do Tribunal de Contas da União serão nomeados dentre brasileiros que satisfaçam os seguintes
requisitos:
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Em conseqüência da jurisdicionalidade das decisões dos Tribunais de Contas,
no Brasil, produzem as mesmas coisa julgada. Não apenas coisa julgada administrativa que se dá quando não pode mais a Administração alterar ou rever o que foi decidido em processo administrativo nascido de um conflito de interesses entre particular e Administração. Em se tratando de coisa julgada administrativa, a Administração é parte, razão por que se diz que a função é parcial, podendo, por isso, a decisão ser apreciada pelo Poder Judiciário, caso haja lesão ou ameaça a direito.
O julgamento dos Tribunais de Contas, assim, é definitivo, desde que observados os recursos previstos no âmbito desses sodalícios. Com efeito, esgotados os recursos e prazos para sua interposição, a decisão é definitiva e, em matéria de contas, não se sujeita à revisão de mérito pelo Poder Judiciário.
Conforme escólio de Seabra Fagundes,
a atribuição dos Tribunais de Contas para julgar contas públicas
implica, sem dúvida, em investi-lo no parcial exercício da função
judicante. O seu pronunciamento, embora restrito em amplitude,
porque limitado ao aspecto contábil (o criminal fica à justiça comum), é conclusivo. Os órgãos do Poder Judiciário carecem de jurisdição para reexaminá-lo. (O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário, 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984,
p. 782).
Em outra passagem de sua obra clássica, arremata o douto administravista:
Não bem pelo emprego da palavra julgamento, mas sim pelo sentido definitivo da manifestação da Corte, pois se a regularidade
das contas pudesse dar lugar a nova apreciação (pelo Poder JudiI – mais de 35 (trinta e cinco) e menos de 65 (sessenta e cinco) anos de idade;
II – idoneidade moral e reputação ilibada;
III – notórios conhecimentos jurídicos, contábeis, econômicos e financeiros ou de administração pública;
IV – mais de 10 (dez) anos de exercício de função ou de efetiva atividade profissional que exija os conhecimentos
mencionados no inciso anterior.
§ 2º Os Ministros do Tribunal de Contas da União serão escolhidos:
I – 1/3 (um terço) pelo Presidente da República, com aprovação do Senado Federal, sendo dois alternadamente entre auditores e membros do Ministério Público junto ao Tribunal, indicados em lista tríplice pelo Tribunal, segundo
os critérios de antigüidade e merecimento;
II – 2/3 (dois terços) pelo Congresso Nacional.
§ 3º Os Ministros do Tribunal de Contas da União terão as mesmas garantias, prerrogativas, impedimentos, vencimentos e vantagens dos Ministros do Superior Tribunal de Justiça, aplicando-se-lhes, quanto à aposentadoria e pensão, as normas constantes do art. 40;
§ 4º O auditor, quando em substituição a Ministro, terá as mesmas garantias e impedimentos do titular e, quando
no exercício das demais atribuições da judicatura, as de juiz de Tribunal Regional Federal.
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faculdade de direito de bauru
ciário), o seu pronunciamento resultaria em mero e inútil formalismo. Sob esse aspecto restrito a Corte de Contas decide conclusivamente. Os órgãos do Poder Judiciário carecem de jurisdição
para examiná-lo.
O mesmo pensamento9, ao qual novamente recorro, está contido em Pontes
de Miranda.
Vê-se, ante tais e sólidos fundamentos doutrinários e constitucionais, que a jurisdição de contas é o juízo constitucional das contas. A função é privativa do Tribunal instituído pela Constituição para julgar as contas dos responsáveis por dinheiros,
bens ou valores públicos. O Judiciário não tem competência para as reexaminar,
para apurar o alcance dos responsáveis, liberando-os. Tal função é privativa e exclusiva do Tribunal de Contas.
A corrente doutrinária majoritária que sustenta a imutabilidade, inclusive para
o Judiciário, das decisões dos Tribunais de Contas sobre prestações de contas dos
responsáveis por dinheiros e outros bens públicos, respalda-se no vocábulo julgar,
empregado pelas Constituições de 1937 e 1946. Efetivamente, os Tribunais de Contas funcionam como Tribunais de Justiça no julgamento dos processos envolvendo
contas; suas decisões têm força operante, nos casos sujeitos à sua alçada, sobretudo
quando dos seus efeitos resultarem ressarcimentos a favor da Fazenda Pública.
Se não bastassem todas essas alegações no sentido da jurisdicionalidade dos
julgamentos proferidos pelos Tribunais de Contas constantes da doutrina majoritária, moderna e atual, a Carta Política de 1988, no art. 71, § 3º,10 reconhece expressamente que as decisões do Tribunal de Contas de que resulte imputação de débito
ou multa terão eficácia de título executivo. Ora, um dos atributos da atividade jurisdicional é a executoriedade da decisão, sendo da essência da coisa julgada a coercibilidade e a execução das sentenças condenatórias. Deste modo, não paira mais
qualquer dúvida de que a Constituição Federal ao atribuir executoriedade às decisões da Corte de Contas na imputação de débito ou multa, reconheceu a natureza
jurisdicional de seus pronunciamentos
As decisões proferidas nos processos de contas só poderão ser objeto de
controle judicial acaso haja violação da lei ou se inquinadas de abuso de poder,
ou seja, acaso violado o devido processo legal, nunca, porém, podendo o Judi-
9 Julgar as contas está claríssimo no texto constitucional. Não havemos de interpretar que o Tribunal de Contas julgue e outro juiz rejulgue depois. (Comentários à Constituição de 1946, v. 2, p. 95, apud Jacobi Fernandes, 1996,
p. 142).
10 Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas
da União, ao qual compete:
(omissis)
§º4 As decisões do Tribunal de que resulte imputação de débito ou multa terão eficácia de título executivo.
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ciário adentrar o exame de mérito dessas decisões. Restrita, pois, a possibilidade de apreciação judicial.
O posicionamento da doutrina também não discrepa da jurisprudência majoritária. Vejamo-lo:
O Supremo Tribunal Federal, desde a Constituição de 1946, reconhece de forma incontroversa a função jurisdicional do Tribunal de Contas.
Em voto da lavra do então Ministro Antônio Villas Boas, quando do julgamento do Mandado de Segurança nº 5.490, já decidira a Corte Suprema “ter o Tribunal
de Contas competência jurisdicional, livremente, à maneira de um órgão do Poder
Judiciário, dizendo o direito como o interpreta.” Posteriormente, em verdadeiro leading case, o Excelso Pretório, no julgamento do Mandado de Segurança nº 7.280,
relator o então Ministro Henrique D’Ávila, assentou o seguinte entendimento:
Na realidade, o Tribunal de Contas, quando da tomada de contas
de responsáveis por dinheiros públicos, pratica ato insusceptível de
impugnação na via judiciária, a não ser quanto ao seu aspecto
formal, ou ilegalidade manifesta.
No Mandado de Segurança nº 55.821, Relator o Ministro Victor Nunes Leal, o
pronunciamento do STF também foi no mesmo sentido dos precedentes citados:
Sem considerar minha opinião pessoal sobre o assunto, mas tendo em vista esses precedentes do nosso Tribunal, devo dizer algumas palavras sobre as irregularidades formais que o Tribunal de
Justiça apontou na deliberação do Tribunal de Contas, por ela
anulada.
A meu ver, essas irregularidades formais são insignificantes, não
têm a gravidade que, de acordo com os precedentes mencionados,
justificaria a intromissão do Judiciário nessa tarefa especial para
cujo desempenho o constituinte instituiu um órgão altamente qualificado como é o Tribunal de Contas, protegendo seus Juízes com
as garantias próprias dos magistrados.
Veja trecho do voto do Ministro Raphael de Barros Monteiro quando do julgamento do Recurso Extraordinário nº 55.821, consolidando de vez o entendimento
da Suprema Corte:
Estou de pleno acordo em que não se pode chegar a outra conclusão senão àquela do acórdão mencionado pelo eminente Ministro
Victor Nunes Leal, do qual foi relator o Ministro Henrique D’Ávila,
e que exprime o pensamento deste Tribunal: as decisões do Tribu-
166
faculdade de direito de bauru
nal de Contas não podem ser revistas pelo Poder Judiciário, a não
ser quanto ao seu aspecto formal.
Já sob a égide da Constituição Federal de 1988, o Supremo Tribunal Federal
reiterou os precedentes ao julgar o Mandado de Segurança nº 212.466. Eis trecho
do voto do Relator, Ministro Celso de Melo:
Com a superveniência da nova Constituição, ampliou-se, de modo
extremamente significativo, a esfera de competência dos Tribunais
de Contas, os quais, distanciados do modelo inicial consagrado na
Constituição Republicana de 1891, foram investidos de poderes
mais amplos, que ensejam, agora, a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial das pessoas estatais e das entidades e órgãos de sua administração direta e indireta. Nesse contexto, o regime de controle externo, institucionalizado pelo novo ordenamento constitucional, propicia, em função da
própria competência fiscalizadora outorgada ao Tribunal de Contas da União, o exercício, por esse órgão estatal, de todos os poderes que se revelem inerentes e necessários à plena consecução dos
fins que lhe foram cometidos.
Pela sua clareza e brilhantismo, cite-se trecho do voto do Ministro Marco Aurélio:
Nota-se, mediante leitura dos incisos I e II do art. 71 em comento,
a existência de tratamento diferenciado, consideradas as contas
do Chefe do Poder Executivo da União e dos administradores em
geral. Dá-se, sob tal ângulo, nítida dualidade de competência,
ante a atuação do Tribunal de Contas. Este aprecia as contas prestadas pelo Presidente da República e, em relação a elas, limita-se
a exarar parecer, não chegando, portanto, a emitir julgamento.
Já em relação às contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e
mantidas pelo Poder Público Federal, e às contas daqueles que deram causa à perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo para o erário, a atuação do Tribunal de Contas não se
faz apenas no campo opinativo. Extravasa-o, para alcançar o do
julgamento. Isto está evidenciado não só pelo emprego, nos dois incisos, de verbos distintos – apreciar e julgar – como também pelo
desdobramento da matéria, explicitando-se, quanto às contas do
Presidente da República, que o exame se faz ‘mediante parecer
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prévio’ a ser emitido, como exsurge com clareza solar, pelo Tribunal de Contas.
O Ministro Octavio Galotti emitiu seu voto no referido julgamento, proclamando:
Os Tribunais de Contas, recordei eu, a par de suas atividades de
auxiliar do controle externo exercido pelas Casas do Legislativo,
têm, também, uma jurisdição própria e privativa.
O Ministro Carlos Velloso pontificou com a mesma serenidade e cultura de
sempre, ao proferir voto no julgamento em foco:
O modelo federal, extensivo aos Estados e Municípios, institui, ao
que se vê, duas hipóteses: a primeira, inciso I do art. 71, é a do Tribunal de Contas agindo autenticamente como órgão auxiliar do
Poder Legislativo; aprecia as contas prestadas anualmente pelo
Chefe do Executivo, mediante parecer prévio que será submetido
ao julgamento político do Poder Legislativo, podendo ser recusado;
na segunda hipótese, inscrita no inciso II do art. 71, o Tribunal
exerce jurisdição privativa, não estando suas decisões sujeitas à
apreciação do Legislativo. Cabe-lhe, na hipótese do inciso II do
art.71, julgar as contas dos administradores e demais responsáveis
por dinheiros, bens e valores públicos.
Assim sendo, pacífica a matéria perante o STF, guardião da Magna Carta, o
qual reconheceu exercer o Tribunal de Contas, quando do julgamento das contas dos responsáveis pela res publica, jurisdição especial e privativa, ao passo
que, ao apreciar as contas do Presidente da República, fá-lo como órgão auxiliar
do Congresso Nacional, no campo meramente opinativo. No primeiro caso, definitivas são suas decisões, insusceptíveis de apreciação judicial, exceto quanto
ao seu aspecto formal.
Esta, portanto, é a nova roupagem dada pela Constituição Federal aos Tribunais de Contas, órgão de relevo e fundamental ao regime democrático.
CONCLUSÃO
Os Tribunais de Contas desempenham função importante em nossa estrutura
constitucional; são órgãos essenciais ao regime democrático, porquanto controladores da administração financeira e orçamentária da União, Estados, Distrito Federal e
Municípios, neste último caso onde houver, bem como da regularidade das contas
dos administradores.
168
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As competências que lhes foram atribuídas pela Constituição da República
consistem em funções administrativas de fiscalização, prestando, inclusive, auxílio
ao Poder Legislativo no exercício do controle externo, a cargo do Congresso Nacional, nos termos do art. 71, e função jurisdicional quando julgam as contas dos responsáveis por recursos públicos, sendo suas decisões, em tais hipóteses definitivas,
de modo que não podem voltar a ser apreciadas pelo Poder Judiciário.
Com efeito, os Tribunais de Contas não são simples órgãos administrativos,
mas exercem uma verdadeira judicatura sobre os exatores, os que têm em seu poder, sob sua gestão, bens e dinheiros públicos.
Embora não integrem os Tribunais de Contas, até hoje, o elenco dos órgãos
do Poder Judiciário, matéria de lege ferenda, a Constituição Federal de 1988 ao atribuir-lhes o julgamento da regularidade das contas dos administradores e demais responsáveis pela res publica investiu-os no parcial exercício da função judicante, haja
vista o sentido definitivo da manifestação das Cortes, e não pelo emprego da palavra julgamento, pois se a regularidade das contas pudesse dar lugar a nova apreciação pelo Poder Judiciário, o seu pronunciamento redundaria em inútil formalismo, de maneira que, sob esse aspecto, decidem conclusivamente, tornando-se insusceptíveis de reexame pelos órgãos do Poder Judiciário.
A função de julgar as contas, como asseverou Pontes de Miranda nos seus Comentários à Constituição de 1946, v. 2, p. 95, está claríssima no texto constitucional, não se podendo interpretar que o Tribunal de Contas julgue e outro juiz as
rejulgue depois, já que se trataria de absurdo bis in idem.
É atual o magistério de Pontes de Miranda, porque a Magna Carta de 1988 repetiu a expressão julgar e continua não elencando os Tribunais de Contas entre os
órgão do Poder Judiciário.
Os estudiosos examinaram a questão, até hoje, apenas pela ótica do Direito
Constitucional ou Administrativo, esquecendo-se de que a elucubração passa necessariamente pela leitura atualizada da teoria da separação dos poderes, de Montesquieu, in L’Esprit des Lois, 1748, a qual jamais foi adotada em seu sentido estrito.
Efetivamente, a separação das funções legislativa, administrativa e judiciária não é
absoluta, estanque, nem adstrita aos órgãos do respectivo Poder.
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A Sociedade Simples no Código Civil
Manoel de Queiroz Pereira Calças
Mestre e Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Professor de Direito Comercial na Graduação e Pós-Graduação da
Faculdade de Direito de Bauru (ITE).
Juiz do Segundo Tribunal de Alçada Civil de São Paulo.
1.
INTRODUÇÃO: A ESCOLHA DO TEMA
A escolha da sociedade simples como tema deste trabalho deve-se a três motivos extremamente singelos, mas significativos.
O primeiro motivo que nos levou a escrever este trabalho sobre a sociedade
simples decorre da novidade do instituto, pois o direito privado brasileiro não albergava tal tipo societário, que veio a ser introduzido em nossa legislação pelo atual Código Civil.
O segundo motivo que nos anima a promover algumas reflexões sobre a novel sociedade deriva da escassez de doutrina sobre a matéria, pois mesmo autores
consagrados na área do direito civil ou do direito comercial, ainda não nos ofereceram comentários aprofundados ou mais extensos sobre a sociedade simples.
Por fim, a circunstância que nos incentiva, de forma mais incisiva, a nos aventurarmos a trazer algumas reflexões sobre instituto ainda não completamente analisado pelos doutrinadores deriva da importância da sociedade simples que se constitui, em rigor, na parte geral do direito societário brasileiro, pois as normas que regem as sociedades simples e que estão previstas nos artigos 997 a 1.038 do Código
Civil, aplicam-se subsidiariamente a todos os tipos societários albergados em nosso
direito. Tal assertiva decorre de expressa previsão do Código Civil que prevê que as
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172
normas da sociedade simples aplicam-se subsidiariamente à sociedade em comum
(art. 986), à sociedade em conta de participação (art. 996), à sociedade em nome coletivo (art. 1.040), à sociedade em comandita simples (art. 1.046), à sociedade limitada (art. 1.053), à sociedade anônima (art. 1.089), à sociedade em comandita por
ações (art. 1.090) e à sociedade cooperativa (art. 1.096). Em suma, todas as sociedades reguladas pelo direito brasileiro, nas omissões das normas que lhe são próprias
e, havendo compatibilidade, serão regidas subsidiariamente pelas normas da sociedade simples.
2.
NOÇÕES GERAIS
Nosso atual Código Civil introduziu a sociedade simples, que era prevista no
velho Código de Obrigações suíço do final do século XIX que no seu artigo 530, assim a previa: A sociedade é uma sociedade simples no sentido do presente título
quando ela não oferece característicos distintivos de uma das outras sociedades reguladas pela lei. Já o Código Civil italiano de 1942 a prevê nos artigos 2251 a 2290,
sem, no entanto, fornecer seu conceito.
Nosso Código a prevê nos artigos 997 a 1.038 e praticamente a reserva para a
exploração de atividades econômicas não consideradas como empresárias, tal qual
ocorria com as antigas sociedades civis.
Rubens Requião, escrevendo antes da aprovação do projeto que deu origem
ao atual Código Civil, condenou a introdução da sociedade simples em nosso direito positivo, afirmando que tal tipo societário não se encontra afinado com as nossas
tradições jurídicas, pois os países que a instituíram pioneiramente não exigiam o registro de tal sociedade e não outorgavam personalidade jurídica a elas (1991, v.
1:301).
Nosso Código distinguiu as sociedades em: a) não personificadas, isto é, que
não têm personalidade jurídica e que são a sociedade em comum e a sociedade em
conta de participação, previstas nos artigos 986 a 996; b) sociedades personificadas,
que adquirem personalidade jurídica com a inscrição no registro próprio (art. 985)
incluindo nestas últimas as sociedades simples.
Distinguiu ainda o Código Civil as sociedades em: a) “sociedades empresárias”; e b) “sociedades simples”.
Estabelece o artigo 982 que, salvo exceções expressas, considera-se empresária a sociedade que tem por objeto exercício de atividade própria do empresário sujeito a registro (artigo 967) e, simples, as demais.
Na medida em que o Código Civil define o empresário como a pessoa natural
que exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção, a
circulação de bens ou de serviços e preceitua ser obrigatória a inscrição do empresário no Registro Público de Empresas Mercantis da respectiva sede, pode-se concluir que: sociedade empresária é aquela que tem por objetivo social o exercício de
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173
atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou de serviços e está obrigada a inscrever-se na Junta Comercial (arts. 966, 967, 982 e 985). Por
outro lado, o Código Civil considera sociedade simples aquela que exerce atividade
econômica organizada que não impõe a obrigatoriedade do registro na Junta Comercial. Pensamos que são as sociedades que exercem atividade intelectual, de natureza científica, literária ou artística, nas quais o exercício de tal atividade não seja
elemento de empresa. Outrossim, também serão simples as sociedades que tenham
por objeto social a atividade rural, sendo-lhes, no entanto, facultado se inscreverem
no Registro Público de Empresas Mercantis, caso em que, após o registro, serão consideradas empresárias, conforme faculta o artigo 984 do Código Civil.
É importante ressaltar que a sociedade simples pode constituir-se de conformidade com um dos tipos de sociedade empresária (sociedade em nome coletivo,
sociedade em comandita simples, sociedade limitada), caso em que ficará subordinada ao regime legal do tipo de sociedade empresária escolhido (artigo 983). A sociedade simples só se subordinará às regras que lhe são próprias, se adotar o modelo de sociedade simples.
Observamos, porém, que nos termos do artigo 1.150 do Código Civil, a sociedade simples que for constituída sob o modelo de sociedade empresária, apesar subordinar-se às normas do tipo societário escolhido, continuará a ser considerada de
natureza simples para fins de registro, devendo seu contrato ser arquivado no Cartório de Registro Civil de pessoas jurídicas do local de sua sede.
Outrossim, por força do parágrafo único do artigo 982, a sociedade cooperativa será sempre considerada sociedade simples.
As sociedades simples estão reguladas nos artigos 997 a 1.038 do Código Civil
e devem ser constituídas mediante contrato escrito, particular ou público, que, além
das cláusulas estipuladas pelas partes, deverá indicar os requisitos do artigo 997 e
seus incisos I a VIII, impondo-se-lhe a sua inscrição no prazo de 30 dias, no Cartório do Registro Civil das Pessoas Jurídicas do local de sua sede (artigo 998). A sociedade adquire personalidade jurídica com o referido registro, consoante prevê o artigo 985 do Código Civil.
Em que pese ter a sociedade simples personalidade jurídica, entendemos que
a personificação de tal sociedade não tem o condão de permitir a limitação da responsabilidade de seus sócios.
É bem verdade que o artigo 997, VIII, do Código Civil prevê que o contrato deve
estipular “se os sócios respondem, ou não, subsidiariamente, pelas obrigações sociais”.
Segundo o Professor Sérgio Campinho, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, os sócios, na sociedade simples, poderão, ou não, responder subsidiária e ilimitadamente pelas obrigações sociais. Tal questão deverá ser definida no contrato
social. Caso não haja previsão da responsabilidade subsidiária, sustenta que cada sócio fica obrigado apenas pelo valor de sua quota e, estando a quota integralizada, o
sócio não terá responsabilidade pelas dívidas sociais (2003:111).
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faculdade de direito de bauru
Anotado o devido respeito, não concordamos com tal posicionamento em
face da interpretação que damos ao artigo 1.023 do Código Civil, que preconiza:
se os bens da sociedade não lhe cobrirem as dívidas, respondem os
sócios pelo saldo, na proporção em que participem das perdas sociais, salvo cláusula de responsabilidade solidária.
Pensamos que a regra é a ilimitação da responsabilidade dos sócios, pois, a lei
é clara: se os bens sociais não forem suficientes para o pagamento das dívidas da sociedade simples, respondem os sócios pelo saldo. Esta responsabilidade, portanto,
é, em regra, subsidiária em relação à sociedade. Se o contrato social não estabelecer
a responsabilidade solidária dos sócios com a sociedade pelo saldo das dívidas sociais, eles responderão na proporção em que participem dos prejuízos sociais. É a
chamada responsabilidade proporcional pelo saldo. Outrossim, sustentamos que
poderá haver previsão contratual expressa no sentido de que os sócios respondem
solidariamente entre si, pelo saldo devedor e, neste caso, afasta-se a responsabilidade proporcional às perdas sociais e qualquer dos sócios poderá ser chamado pelos
credores a responder, individualmente, com seu patrimônio particular, pelo saldo
devedor, após o exaurimento do patrimônio social.
Sustentamos que o artigo 997, VIII, que menciona apenas a responsabilidade
subsidiária, não permite que o contrato social estabeleça a responsabilidade limitada dos sócios pelas obrigações sociais, mas apenas que os sócios respondam, ou
não, solidariamente, com a sociedade, pelas obrigações dela. Se o contrato prever
que os sócios são solidariamente, com a sociedade, responsáveis pelos débitos sociais, o sócio não terá o direito ao benefício de ordem do artigo 1.024. Na prática,
será muito remota a posssibilidade de os sócios estabelecerem solidariedade com a
sociedade, pois perderiam o direito ao benefício de ordem. Afirmamos, porém, que,
em hipótese alguma pode se admitir que o contrato estabeleça a limitação da responsabilidade dos sócios pelas dívidas da sociedade simples, já que se trata de matéria não inserida no campo dispositivo ou contratual dos sócios.
O Professor Modesto Carvalhosa é enfático em afirmar que, nas sociedades
simples, os sócios respondem ilimitadamente pelas obrigações sociais (2003, v.
13:326 e 364).
No mesmo sentido, é o entendimento adotado pelo Professor Ricardo Negrão
ao enfatizar que a sociedade simples é primariamente responsável com o seu patrimônio social, pelas obrigações sociais assumidas perante terceiros. No entanto, se
os bens sociais não cobrirem as dívidas sociais, os sócios respondem pelo saldo, na
proporção em que participam das perdas sociais. Esclarece, ainda, que, caso o contrato social estabeleça a responsabilidade solidária dos sócios, a obrigação será ilimitada em relação a seus bens particulares, até que ocorra o pagamento integral dos
débitos sociais. Em qualquer hipótese, a responsabilidade dos sócios será secundá-
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ria, haja vista que os sócios têm o benefício de ordem, pelo qual os bens particulares só poderão ser executados após o exaurimento do patrimônio societário (2003,
v. 1:325).
Interessante ponto de vista é o defendido pelo Professor Marlon Tomazete, de
Brasília (RT 800/36), no sentido de que o artigo 997, VIII, é um dispositivo que deve
ser interpretado como uma regra geral válida para todas as sociedades, como a menção nos contratos sociais ao grau de responsabilidade dos sócios, decorrente da escolha de determinado tipo societário e não como uma opção dos próprios sócios.
E, com efeito, tem razão o ilustre comercialista, haja vista que os limites da responsabilidade dos sócios pelas dívidas sociais estão previstos na legislação em caráter impositivo ou cogente, não se tratando de matéria inserida na livre disponibilidade ou contratualidade das partes. Cada tipo societário tem suas próprias regras
sobre a responsabilidade dos sócios pelas obrigações sociais, cabendo aos sócios escolher o modelo legal societário que melhor atenda aos seus objetivos, sendo inviável, no entanto, alterar as regras disciplinadoras de suas respectivas responsabilidades sociais.
3.
ALTERAÇÃO DO CONTRA SOCIAL
As modificações do contrato social referentemente às matérias indicadas no
artigo 997 dependem do consentimento unânime dos sócios (artigo 999), sendo
certo que as demais alterações podem ser deliberadas pela maioria absoluta de votos, isto é, por sócios que representem mais da metade do capital social, salvo cláusula contratual que exija quorum superior.
4.
SOCIEDADE DE PESSOAS
A cessão total ou parcial das quotas, sem a modificação do contrato social com
o consentimento dos demais sócios não terá eficácia em relação a estes sócios e à sociedade. Trata-se, portanto, de uma sociedade de pessoas, pois, o ingresso de novos
sócios fica na dependência do consentimento de todos os sócios remanescentes.
5.
OBRIGAÇÕES DOS SÓCIOS
A principal obrigação dos sócios, ao subscreverem quotas do capital social, é
providenciar a correspondente integralização das quotas, no prazo e forma convencionados no contrato.
O sócio que for inadimplente com a obrigação de integralizar as quotas por
ele subscritas, denominado de sócio remisso, será notificado pela sociedade para,
no prazo de 30 dias seguintes à notificação, emendar a mora com o pagamento dos
danos decorrentes do inadimplemento ( Juros e correção monetária e eventual pe-
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nalidade contratual – conforme o artigo 395 cc. o artigo 1.004, ambos do Código Civil. No entanto, poderá a maioria dos demais sócios preferir à indenização, a exclusão do sócio remisso, ou reduzir a participação do referido sócio ao montante já integralizado (artigo 1.004, parágrafo único). Em tais casos, será reduzido o capital social, exceto se os demais sócios suprirem o valor da quota.
5.1. Responsabilidade pela evicção
O sócio que, a título de quota social, transmitir domínio, posse ou uso, responde pela evicção; e pela solvência do devedor, aquele que transferir o crédito.
A responsabilidade do sócio que conferir bens à sociedade pela evicção decorre do princípio da integralidade do capital social. Da mesma forma, a responsabilidade pela solvência do devedor, imposta ao sócio que transfere créditos à sociedade a título de integralização das quotas, decorre do mesmo princípio.
Modesto Carvalhosa ensina que a
origem do princípio da integridade do capital social está, portanto, na idéia de manutenção da estabilidade social e da segurança
no cumprimento das obrigações assumidas pela sociedade (2003,
v. 13:100).
Por outro lado, sob o enfoque do princípio da integridade do capital social, entendemos que, caso o sócio integralize suas quotas com títulos de crédito de sua emissão, tais títulos só poderão ser recebidos pela sociedade com efeito pro solvendo e, jamais, pro soluto, de modo que, não pago o título pelo sócio, poderá sempre a sociedade, alternativamente, à sua escolha, executar o título ou excluir o sócio remisso, consoante a previsão albergada pelo parágrafo único do artigo 1.004 do Código Civil.
6.
SÓCIO DE INDÚSTRIA
O Código Civil não prevê mais a sociedade de capital e indústria que era disciplinada no Código Comercial revogado. Porém, no artigo 1.006, está prevista a
possibilidade de sócio cuja contribuição consista apenas em serviço. Neste caso, salvo convenção contratual em contrário, tal sócio não pode empregar-se em atividade
estranha à sociedade, sob pena de ser privado de seus lucros e dela excluído. Tal regra já constava do antigo Código Comercial em seu artigo 314.
7.
PARTICIPAÇÃO NOS LUCROS E PERDAS
É da essência da sociedade a participação de todos os sócios nos lucros e nas
perdas. Da simples leitura do artigo 981 do Código Civil, se extrai que a partilha dos
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resultados sociais é de rigor, pois celebram contrato de sociedade as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados.
Diz o artigo 1007 que, salvo estipulação em contrário, o sócio participa dos lucros e das perdas, na proporção das respectivas quotas, mas aquele, cuja contribuição consista em serviços, somente participa dos lucros na proporção da média do
valor das quotas.
Nesta matéria, o Código Civil conferiu ao sócio que contribui apenas em serviços um tratamento melhor do que o previsto no artigo 319 do antigo Código Comercial, que estipulava:
Na falta de declaração no contrato, o sócio de indústria tem direito a uma quota nos lucros igual à que for estipulada a favor do sócio capitalista de menor entrada.
Portanto, o Código Civil mantém a disciplina de que o sócio de indutria só participa dos lucros (não dos prejuízos), mas ao preconizar no artigo 1.007 que aludido sócio participará dos lucros na proporção da média do valor das quotas, conferiu-lhe melhor tratamento.
7.1. Sociedade leonina
O artigo 288 do imperial Código Comercial estipulava ser nula a sociedade
em que se estabelecesse que a totalidade dos lucros pertencesse a um só dos sócios, ou em que algum fosse excluído da participação nos resultados, bem como
a sociedade em que se desonerasse de toda a contribuição nas perdas as somas
ou efeitos entrados por um ou mais sócios para o fundo social. Era a chamada sociedade leonina.
No artigo 1.008, está prevista, não mais a nulidade de tal sociedade, mas sim,
corretamente, a nulidade da cláusula que exclua qualquer sócio de participar dos lucros e das perdas.
8.
ADMINISTRAÇÃO DA SOCIEDADE
A administração da sociedade só pode ser feita por pessoas naturais (artigo
997, VI, CC).
A administração é o órgão da sociedade que tem a função de representar a sociedade e praticar negócios jurídicos em nome dela. Em rigor, os administradores
não são mandatários da sociedade, mas sim órgãos da sociedade (teoria organicista), em que pese o artigo 1.011, parágrafo 2º, do Código Civil, dispor que as normas
concernentes ao mandato se aplicam à atividade dos administradores.
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faculdade de direito de bauru
Segundo o artigo 1.010, quando, por lei ou pelo contrato social, competir aos
sócios decidir sobre os negócios da sociedade, as deliberações serão tomadas por
maioria de votos, contados segundo o valor das quotas de cada um.
Indaga-se: apenas os sócios podem ser administradores da sociedade simples?
O Código Civil não esclarece com precisão tal indagação, pois ao contrário do
que ocorre na sociedade em nome coletivo (artigo 1.042) e na em comandita simples (artigo 1.047), pelos quais apenas os sócios podem ser administradores e na sociedade limitada em que a lei autoriza que o contrato pode permitir administradores não sócios (artigo 1.061), o capítulo que rege a sociedade simples não alberga
regra específica sobre a exigência da qualidade de sócio para ser administrador, não
havendo, também, autorização expressa para previsão de administrador não sócio.
O Professor Sérgio Campinho sustenta que o cargo de administrador é privativo de sócio (2003:105). O artigo 1.013 do Código Civil prevê que “a administração
da sociedade, nada dispondo o contrato social, compete separadamente a cada um
dos sócios”, dispositivo que permite ao intérprete afirmar que no silêncio do contrato, a administração é conferida a qualquer sócio. Já o parágrafo 1º do artigo 1.013
afirma que, se a administração competir separadamente a vários administradores,
cada um pode impugnar a operação pretendida por outro, cabendo a decisão aos
sócios, por maioria de votos.
Verifica-se, assim, que o Código Civil ora fala em administração conferida aos
sócios, ora menciona os administradores, sendo possível entender-se, diante dessa
dualidade de expressões, que se admite administradores não sócios.
E mais: o artigo 1.019 do Código Civil proclama que
são irrevogáveis os poderes do sócio investido na administração
por cláusula expressa no contrato social, salvo justa causa, reconhecida judicialmente, a pedido de qualquer dos sócios.
O parágrafo único, porém, preceitua: “são revogáveis, a qualquer tempo,
os poderes conferidos a sócio por ato separado, ou a quem não seja sócio”.
Como o caput do artigo 1.019 cuida dos poderes dos administradores, exsurge
a dúvida se o parágrafo único ao tratar da revogação de tais poderes e mencionar os poderes conferidos a quem não seja sócio, admite, ou não, administrador
não sócio.
Apesar das dificuldades decorrentes da dubiedade da disciplina legal sobre a
exigência ou não da qualidade de sócio para ser administrador da sociedade simples, entendemos que tais sociedades, por exercerem. atividade própria dos profissionais liberais, não comportam administração por pessoas que não ostentem a qualidade de sócio. Tal entendimento é o defendido pelo Professor Ricardo Negrão
(2003, v. 1:314).
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8.1. Deliberações sobre os negócios sociais
As deliberações sobre os negócios da sociedade devem ser tomadas pela
maioria de votos, sob a óptica capitalista, isto é, por votos que correspondam a mais
da metade do capital social (artigo 1.010). Regra interessante sobre o empate em tais
deliberações é a contida no parágrafo 2º do artigo 1.010, ao estabelecer que prevalece a decisão sufragada pelo maior número de sócios no caso de empate e, se este
persistir, caberá ao juiz decidir.
8.2. Deveres dos administradores
Segundo preconiza o artigo 1.011, os administradores devem exercer suas
funções com diligência, zelo e lealdade, isto é, deverão, ao administrar os negócios
sociais, agir com o cuidado e diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração de seus próprios negócios.
Trata-se de um conceito legal indeterminado (conceito jurídico indeterminado), também chamado de standard jurídico. Para alguns poder-se-ia aplicar a noção
do bonus pater familias. O Professor Fábio Ulhoa Coelho sustenta que se deve invocar a qualidade do administrador eficiente, isto é, que segue as regras estabelecidas pela tecnologia da administração de empresas (2003, v.2:442)
8.3. Impedimentos para ser administrador (artigo 1011, parágrafo 1º)
Os impedimentos legais para o exercício de cargo de administrador de sociedade são praticamente os mesmos previstos para as sociedades simples e para as
empresárias.
Não podem ser administradores:
a) as pessoas impedidas por lei especial, em regra em virtude do exercício de
função ou profissão incompatível, como, por exemplo: Os magistrados
(LOMAN, art. 36, I), membros do MP (art. 128, II, “c”, da Constituição Federal e art. 44, III, da Lei n. 8.625/93, etc.).
b) os condenados a pena que vede, ainda que temporariamente, o acesso a
cargos públicos, como, por exemplo: os condenados por sentença criminal aos quais foi imposta pena de interdição temporária de direitos ou
proibição do exercício profissional (art.47, do Código Penal).
c) os condenados por crime falimentar (art. 195 da Lei de Falências).
d) os condenados por prevaricação, suborno, concussão, peculato, contra o
sistema financeiro nacional, concorrência desleal, relações de consumo, fé
pública, propriedade, enquanto permanecerem os efeitos da condenação.
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faculdade de direito de bauru
8.4. Natureza jurídica das funções de administrador
Os administradores são órgãos e não mandatários da sociedade, razão pela
qual Pontes de Miranda afirma que eles não representam, mas presentam a sociedade (Tratado de Direito Privado, vol. 49, p. 405). Ao contrário do que sustentam alguns doutrinadores, os administradores não são mandatários da sociedade, isto é, não são representantes da pessoa jurídica, prevalecendo o entendimento da teoria organicista, que entrevê nos administradores um órgão da sociedade que faz parte de sua estrutura. Quando o administrador realiza um negócio pela sociedade ele é o órgão societário que expressa a deliberação majoritária, ou seja, é a própria sociedade que se faz presente e realiza o negócio jurídico. No entanto, o art. 1.011, § 2º, do Código Civil determina a aplicação subsidiária à atividade dos administradores, no que couber, as disposições concernentes ao mandato.
8.5. Nomeação de administradores
Os administradores são nomeados no próprio ato constitutivo ou em instrumento separado. Nesta última hipótese, o instrumento de nomeação deve ser averbado, à margem da inscrição da sociedade no registro público. Enquanto não promover a averbação o administrador responderá pessoal e solidariamente com a sociedade pelos atos que praticar.
Na omissão do contrato social, a administração da sociedade compete separadamente a cada um dos sócios (art. 1.013). Em tal caso, cada um dos administradores poderá impugnar operação pretendida por outro, cabendo a decisão aos sócios,
por maioria absoluta de votos.
8.6. Competência conjunta
Se o contrato social estabelecer que determinados atos sejam da competência
conjunta de vários administradores, exige-se a participação de todos, salvo nos casos de urgência em que a omissão ou retardo das providências possa causar dano irreparável ou grave (art. 1.014).
8.7. Venda de imóveis
Na omissão do contrato, os administradores poderão praticar quaisquer
atos de gestão social. No entanto, não constando do objeto social a venda ou
oneração de imóveis, tais atos dependerão do que a maioria absoluta dos sócios
deliberar (art. 1.015).
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8.8. Responsabilidade do administrador
O administrador não responde pessoalmente pelas obrigações sociais decorrentes de atos regulares de gestão.
O administrador responderá por perdas e danos perante a sociedade se realizar operação, sabendo ou devendo saber que estava agindo em desacordo com a
maioria (art. 1.013, § 2º).
Ademais, o administrador que, sem o consentimento escrito dos sócios, aplicar créditos ou bens sociais em proveito próprio ou de terceiros, terá de restituí-los
à sociedade, ou pagar o equivalente, com os lucros que advieram e, caso haja prejuízo, responderá por ele (art. 1.017).
8.9. Voto conflitante
Nos casos em que o administrador tiver interesse contrário ao da sociedade
em qualquer operação e participar da deliberação sobre a mesma, ficará sujeito às
sanções (art. 1.017, parágrafo único). Configura-se o voto conflitante, que é manifestado pelo administrador quando tem interesse incompatível com o da sociedade
(ex: votação de laudo de avaliação de bens que o administrador esteja conferindo
para o capital social; aprovação das contas do administrador, etc). O Código prevê
apenas que o administrador fica sujeito a sanções sem especificá-las. Parece irrecusável que o administrador responderá civilmente pelos prejuízos. Outrossim, se a
deliberação foi aprovada graças ao voto do administrador e, constatando-se que sem
o seu voto aquela não seria aprovada, a assembléia poderá ser anulada.
8.10. Responsabilidade por culpa
Os administradores respondem solidariamente, perante a sociedade e em
face dos terceiros prejudicados, pelos prejuízos decorrentes de culpa no desempenho de suas funções. Neste caso, a sociedade também responde perante terceiros,
mas ulteriormente, pela via regressiva, poderá pleitear indenização dos administradores (art. 1.016).
8.11. Atos violadores da lei ou do contrato social
Os administradores respondem pessoalmente com seus bens, de forma ilimitada, perante a sociedade e terceiros, sempre que agirem com violação da lei ou do
contrato. Nesta hipótese, há solidariedade entre a sociedade e os sócios perante os
terceiros prejudicados. Porém, se a sociedade for condenada, ela poderá, pela via regressiva, postular o ressarcimento da indenização.
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8.12. Excesso de poderes (artigo 1.015, parágrafo único)
A sociedade só poderá alegar excesso de poderes praticado por seus administradores em face de terceiros nas seguintes hipóteses:
1) se a limitação de poderes estiver inscrita ou averbada no registro próprio
da sociedade;
2) provando-se que a limitação era conhecida do terceiro;
3) tratando-se de operação evidentemente estranha aos negócios da sociedade.
8.13. Teoria ultra vires
A ultra vires doctrine, originária da Inglaterra surgiu no século XIX com o escopo de coartar desvios de finalidade na administração societária. Ela autoriza o reconhecimento da nulidade dos atos realizados em nome da sociedade, mas que não
estejam inseridos no objeto social. O artigo 1.015, parágrafo único, III, adota a teoria ultra vires ao exonerar a sociedade de responder perante terceiros por operações evidentemente estranhas aos negócios sociais.
8.14. Indelegabilidade da administração
O administrador não pode fazer-se substituir no exercício de suas funções.
Pode, no entanto, nos limites de seus poderes, constituir mandatários da sociedade, especificando no instrumento os atos e operações que poderão praticar
(art. 1.018).
É importante destacar que o Código Civil não prevê a possibilidade da delegação da gerência ou do uso da firma social, consoante o permitia o Decreto n.
3.708/19.
8.15. Revogabilidade ou irrevogabilidade dos poderes dos administradores:
Os poderes de administrador conferido a sócio no ato constitutivo da sociedade são irrevogáveis, salvo se comprovada justa causa em ação judicial movida por
qualquer sócio (art. 1.019). Já os poderes conferidos a sócio em ato separado, ou a
quem não seja sócio, são revogáveis a qualquer tempo.
8.16. Obrigações dos administradores: (art. 1.020)
Os administradores têm as seguintes obrigações legais: a) prestar contas justificadas da administração; b) inventário anual;
c) balanço patrimonial e de resultado econômico, no final do exercício social.
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DIREITO DO SÓCIO DE FISCALIZAR
Salvo estipulação que fixe época própria, o sócio pode, a qualquer tempo, examinar os livros e documentos, e o estado da caixa e da carteira da sociedade (art.
1.021). Aconselha-se que do contrato social conste, com precisão, em que épocas os
sócios poderão examinar a documentação e livros da sociedade, sob pena de serlhes permitido, a qualquer momento, exercer o direito de fiscalização, podendo
criar, com tal conduta, dificuldades ao normal gerenciamento da sociedade.
10. RESPONSABILIDADE DOS SÓCIOS
A sociedade simples é sociedade de responsabilidade ilimitada, pois seus sócios respondem, sempre ilimitadamente pelas obrigações sociais.
Diz o artigo 1.023: “se os bens da sociedade não lhe cobrirem as dívidas, respondem os sócios pelo saldo, na proporção em que participem das perdas sociais,
salvo cláusula de responsabilidade solidária”. É a chamada responsabilidade proporcional pelo saldo devedor.
Os sócios poderão contratar, entre si, a responsabilidade solidária e, neste
caso, os credores sociais poderão exigir, de um só sócio, a totalidade do passivo em
aberto.
10.1. Benefício de ordem: (art. 1.024)
Os bens particulares dos sócios não podem ser executados por dívidas da sociedade, senão depois de executados os bens sociais. A responsabilidade dos sócios,
pelo saldo devedor da sociedade, é sempre subsidiária em relação à sociedade. Por
isso, eles têm a faculdade de invocar o benefício de ordem, observando o artigo 596
do CPC.
10.2. Dívidas anteriores
O sócio que for admitido em sociedade já constituída responde pelas dívidas
da sociedade contraídas antes de sua admissão (art. 1.025).
10.3. Credor particular de sócio
O credor particular de sócio, na insuficiência de outros bens do devedor, pode fazer recair a execução sobre o que couber ao sócio nos lucros sociais, ou na parte que lhe
tocar em liquidação (artigo 1.026). Como se vê, o legislador cria uma ordem preferencial
dos bens pessoais dos sócios que podem ser penhorados em execução movida por credor particular. Primeiramente, devem ser excutidos os bens particulares do sócio; outros-
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sim, não havendo outros bens do devedor, poderá o credor requerer que a penhora recaia sobre os lucros que couberem ao sócio e, caso a sociedade esteja em liquidação, a
constrição poderá recair na parte que tocar ao sócio-devedor no acervo final.
10.4. Liquidação da quota
Se a sociedade não estiver dissolvida, pode o credor requerer a liquidação da
quota do devedor. O valor da quota será apurado em um balanço especialmente levantado (balanço de determinação) com base na situação patrimonial da sociedade
na data da apuração. O valor aferido será depositado em dinheiro, no juízo da execução, no prazo de até 90 dias após a liquidação (art. 1.026, § único), salvo acordo
ou estipulação contratual diversa.
11. RESOLUÇÃO DA SOCIEDADE EM RELAÇÃO A UM SÓCIO: (ARTS.
1028/1030)
O Código Civil prevê quatro hipóteses de resolução parcial da sociedade em
relação a um sócio. São elas:
a) morte de sócio;
b) retirada de sócio;
c) exclusão judicial por iniciativa da maioria;
d) exclusão de pleno direito.
Examinemos, de forma sucinta, cada uma delas:
a) Morte de sócio (art. 1.028):
Liquida-se a quota do falecido, salvo:
a) se o contrato dispuser diferentemente;
b) se os sócios remanescentes optarem pela dissolução da sociedade;
c) se herdeiros e sócios acordarem sobre a substituição do falecido.
b) Retirada (art. 1.029):
o sócio pode retirar-se da sociedade por prazo indeterminado, a qualquer
tempo, mediante notificação aos demais com antecedência mínima de 60 dias;
já na sociedade por prazo determinado, o sócio só poderá retirar-se provando
em juízo a justa causa.
c) Exclusão judicial (art. 1.030):
A maioria dos demais sócios poderá excluir judicialmente sócio, por falta grave no cumprimento de suas obrigações, ou, por incapacidade superveniente. Nosso
Código, ao prever a possibilidade da exclusão judicial de sócio que praticar falta grave no cumprimento de suas obrigações, institui mais um conceito legal indetermi-
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nado, conferindo ao juiz a competência para estabelecer quais faltas serão consideradas graves para autorizar a exclusão judicial de sócio.
Inova nosso Código ao prever a exclusão judicial do sócio que sofra de incapacidade superveniente decorrente de enfermidade ou deficiência mental, seja acidental, seja em virtude de moléstia que afete o seu discernimento e impeça o regular exercício das atividades empresariais, seja a incapacitação definitiva ou temporária. A incapacitação ulterior será avaliada judicialmente e, sendo reconhecida, autorizará a exclusão do sócio que se tornou incapaz.
d) Exclusão de pleno direito: (art. 1.030, parágrafo único)
Será de pleno direito excluído da sociedade o sócio declarado falido, ou aquele
cuja quota tenha sido liquidada nos termos do parágrafo único do artigo 1.026. O sócio
declarado falido, seja ele empresário individual ou sociedade empresária, será, portanto, excluído da sociedade simples. Da mesma forma, aquele sócio que foi executado por
credor particular e teve sua quota liquidada, também será excluído da sociedade.
11.1. Apuração dos haveres (valor da quota)
Em todas as hipóteses de resolução da sociedade em relação a um sócio (morte,
retirada, exclusão), o valor da quota será apurado com base na situação patrimonial da
sociedade, à data da resolução, em balanço especialmente levantado (art. 1.031).
O capital social será reduzido proporcionalmente, salvo se os demais sócios
suprirem o valor da quota. A quota liquidada deverá ser paga em dinheiro, em 90
dias, salvo convenção contratual em contrário.
11.2. Responsabilidade pelas dívidas sociais (art. 1.032)
A retirada, exclusão ou morte do sócio, não exime, ou a seus herdeiros, da
responsabilidade pelas obrigações sociais anteriores, até 2 anos após averbada a resolução da sociedade; nem nos dois primeiros casos, pelas posteriores e em igual
prazo, enquanto não se requerer a averbação.
12. DISSOLUÇÃO DA SOCIEDADE
Há duas formas de dissolução total da sociedade simples: dissolução extrajudicial e dissolução judicial.
12.1. Dissolução extrajudicial
A dissolução extrajudicial de pleno direito da sociedade simples ocorrerá nas
hipóteses arroladas no artigo 1.033, que são as seguintes:
faculdade de direito de bauru
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1) o vencimento do prazo de duração, salvo se, vencido este e sem oposição
de sócio, não entrar em liquidação, caso em que se prorrogará por tempo
indeterminado;
2) o consenso unânime dos sócios;
3) a deliberação dos sócios, por maioria absoluta, na sociedade por prazo indeterminado;
4) a falta de pluralidade de sócios, não reconstituída em 180 dias;
5) a extinção, na forma da lei, de autorização para funcionar.
12.2. Dissolução judicial da sociedade: (art. 1.034)
A dissolução judicial da sociedade simples poderá ocorrer a requerimento de
qualquer dos sócios quando ocorrer:1) anulação de sua constituição; 2) exaurido o
fim social, ou verificada a sua inexeqüibilidade.
12.3. Liquidação da sociedade
Ocorrida a dissolução, devem os administradores providenciar a investidura do liquidante, restringindo a gestão própria aos negócios inadiáveis, vedadas
novas operações, pelas quais responderão solidária e ilimitadamente. Outrossim, dissolvida de pleno direito a sociedade, pode o sócio requerer, desde logo,
a liquidação judicial.
12.4. Modalidades de Liquidação
Há duas formas de liquidação da sociedade: a) extrajudicial (arts.1.102/1110);
b) extrajudicial (art. 1111 CC e 1.218, VII, do CPC, que manteve em vigor os arts.
655/674 do Código de Processo Civil de 1939.
BIBLIOGRAFIA
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de Janeiro – São Paulo: Renovar, 2003.
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Empresa, 13º volume, Coordenação Antônio Junqueira de Azevedo, 1a. edição, São
Paulo: Saraiva, 2003.
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REQUIÃO, Rubens, Curso de Direito Comercial, 20a. edição, São Paulo, Ed. Saraiva,
1991, v. 1;
Tomazete, Marlon, As Sociedades Simples do Novo Código Civil, p. 36-56, São Paulo: Revista dos Tribunais n. 800, junho de 2002.
EMBARGOS DE DECLARAÇÃO PROTELATÓRIOS
Clito Fornaciari Júnior
Mestre em Direito pela PUCSP .
Advogado em São Paulo.
1.
DA REFORMA PROCESSUAL
Ninguém pode negar que o CPC de 1973, fruto de longo, discutido, amadurecido e bem elaborado projeto, colocou o processo brasileiro no nível dos melhores
países do mundo, criando institutos que possibilitariam, principalmente, a agilidade
na solução dos conflitos, sem se perder a qualidade e a segurança que das decisões
devem surgir.
No entanto, motivos de diversas ordens, principalmente um inegável descaso
para com a Justiça, comprovado pela falta de dotações suscetíveis de fazê-la responder às novas demandas que surgiram, fizeram com que a atividade jurisdicional viesse a ser marcada por uma demora anormal, incapaz de representar efetiva prestação
jurisdicional que, por seu turno, passou a ter uma qualidade questionável.
Surgiu, então, a partir de 1992, uma verdadeira onda reformista, certamente
alimentada pela boa-fé, entendendo ser possível dar novo alento e dinamismo à entrega da prestação da tutela jurisdicional, atuando tão-só na modificação dos textos
legais, abstraindo de enfrentar outras graves mazelas, às quais, sim, podem ser debitados a demora dos processos e o atual estágio de incerteza que dessa situação
emerge.
A reforma teve o condão de desfigurar, por completo, a estrutura do nosso
Código, de vez que incidiu em aspectos pontuais, atacados por um critério de escolha pessoal de cada reformador, sem qualquer pesquisa dotada de um mínimo de
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faculdade de direito de bauru
segurança para se aquilatar se a mudança de texto proposta representa uma avaliação correta, de forma que a nova disposição legal pudesse realmente eliminar o mal
que fora diagnosticado1.
2.
DO AGRAVAMENTO DAS SANÇÕES PREVISTAS NO CPC DE 1973
Em que pese não se possa dizer ter a reforma adotado uma teoria específica relativamente à ciência processual e nem uma filosofia consistente quanto à
persecução de seu sonhado resultado, da análise das centenas de novas, alteradas e suprimidas regras do CPC, considerado na sua versão original, revelam-se
os elementos com que a reforma pretende contar para criar a rapidez na prestação da tutela jurisdicional.
Nessa linha, uma das características que se destaca é o agravamento de sanções
para os comportamentos ou supostos comportamentos desleais e protelatórios, o que
se manifesta por várias facetas: majorando-se o valor de multas, transformando-se sanções de outras ordens em penas pecuniárias, determinando-se valores objetivamente,
além de se criarem novos casos suscetíveis de punição. Poderia afirmar-se que, com as
reformas, a norma processual passou a ser intimidadora, desestimulando não só os
comportamentos ímprobos, mas também a própria ida ao Judiciário.
3.
DA MULTA POR EMBARGOS DE DECLARAÇÃO PROTELATÓRIOS
Um dos institutos mais afetados com a modificação no regime das sanções
processuais foi o recurso de embargos de declaração, vendo-o, talvez, como o maior
vilão no que tange à protelação do desfecho do processo, potencialidade, contudo,
que não é particular somente a este meio de impugnação das decisões judiciais, mas
que pode revelar-se em todos os demais recursos, em relação aos quais, no entanto, nada de tão objetivo e direto se prevê.
Na versão original do Código, o parágrafo único, do art. 538, previa que “quando forem manifestamente protelatórios, o tribunal, declarando expressamente que
o são, condenará o embargante a pagar ao embargado multa, que não poderá exceder de 1% sobre o valor da causa.” Essa disposição estava encartada apenas na disciplina dos embargos declaratórios contra decisões de segundo grau, de modo que,
respeitada a regra de que as sanções devem ser interpretadas restritivamente, não
se aplicava aos embargos oferecidos contra a sentença, ainda que se pudesse sentilos como protelatórios.
1 Apresentamos críticas à reforma processual, no prefácio da nossa Reforma Processual Civil (artigo por artigo),
São Paulo, Saraiva, 1996, pág. XI, no qual também nos reportamos a outras abordagens específicas realizadas em artigos publicados, notadamente no artigo “Preocupação do advogado diante da reforma do CPC”, Revista do Advogado, São Paulo, AASP, 1995, vol. 46/13.
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191
Fora aquela disposição recepcionada com entusiasmo2, de vez que o sistema
que estava sendo revogado previa que, se os embargos fossem vistos como protelatórios, eles não teriam o condão de suspender o prazo para o recurso principal3, o
que era grave, mormente porque isso somente se definia no julgamento dos embargos, quando, então, o prazo para o recurso principal, não se tendo suspendido, já
estava definitivamente esgotado.
Inegável, assim, que a outrora novel regra afastara o subjetivismo a que dava
ensejo a anterior, não comprometendo, de outro lado, o direito a ter acesso às instâncias superiores, de vez que a conseqüência dos embargos protelatórios ficou
confinada apenas à sanção de natureza pecuniária, não sendo cogitável também a
definição do recurso posterior como intempestivo4.
Após vinte anos de vigência, a Lei n. 8950, de 13 de dezembro de 1994, alterou o regime dos embargos definido pelo Código de 1973, unificando o recurso,
dando-lhe igual tratamento, quer quando interposto contra sentenças, quer quando
se volte contra decisões de segundo grau. Ademais, conferiu nova redação ao parágrafo único, do art. 538, ampliando o espectro da sanção que nele se contém. Assim,
quando manifestamente protelatórios os embargos, o juiz ou o tribunal, declarando que o são, condenará o embargante a pagar
ao embargado multa não excedente de um por cento sobre o valor
da causa. Na reiteração de embargos protelatórios, a multa é elevada a até dez por cento, ficando condicionada a interposição de
qualquer outro recurso ao depósito do valor respectivo.
Salta aos olhos que a sanção agora prevista para os embargos protelatórios é
mais grave que aquela de que cuidava o CPC em sua versão inaugural. Por primeiro,
em vista da unificação do regime dos embargos, a pena poderá ser imposta tanto em
relação aos embargos contra acórdãos, como em relação aos oferecidos contra sentenças e outras decisões de primeiro grau; em segundo lugar, o valor da multa é aumentado, podendo atingir até 10% do valor da causa; por derradeiro, o pagamento
2 Nem por todos, AUGUSTO DE MACEDO COSTA JÚNIOR, no artigo “Embargos de declaração – A latente inconveniência do art. 538 do Código de Processo Civil”, publicado originariamente na RT, 480/15, e republicado na série “Memória do Direito Brasileiro” (RT, 821/755), dizia: “aberta está, a meu ver, ante a exclusividade da minguada
pena processual, larga via de protelação do feito pelo uso de embargos de declaração sucessivos...”
3 A redação do § 5º, do art. 862, do Código de 1939, originariamente, era ainda mais grave, de vez que dispunha
que, se os embargos fossem simplesmente rejeitados, eles não teriam importado na interrupção do prazo para outro recurso. Com a Lei n. 8570, de 8 de janeiro de 1946, a redação do citado parágrafo foi modificada, passando a
se ter com o oferecimento dos embargos a suspensão do prazo para outro recurso, “salvo se manifestamente protelatórios e assim declarados na decisão que os rejeitar.”
4 Conforme JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA, Comentários ao Código de Processo Civil, Rio de Janeiro, Ed. Forense, 11ª edição, 2003, n. 307, pág. 562.
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da multa, no caso de os embargos serem considerados protelatórios, pela segunda
vez, passa a representar condição de procedibilidade de recurso, sem o recolhimento da qual não pode haver a interposição de qualquer outro recurso.
Tal como hoje concebida, a disposição traz inegável preocupação, até porque
há risco de, por meio da multa, impedir-se o conhecimento de novos recursos, sem
contar que, no mais das vezes, a pecha de protelatórios aos embargos é lançada por
uma simples afirmação, destituída de qualquer fundamentação, embora assim não
devesse ser.
O risco é ainda maior na medida em que os embargos passaram a ser quase
que necessários, não só em vista da qualidade das decisões, mas, acima de tudo, por
força da exigência dos tribunais superiores de prequestionamento expresso da
questão de direito a ser perante eles discutida5. Ao que se vê na prática, a necessidade dos embargos é mal vista pelos julgadores6, que se esquecem de que, servindo
como meio de comunicação, as decisões devem ensejar a compreensão do que nela
se contém, havendo de se respeitar a dificuldade do destinatário do decisório, até
porque a tarefa de executar a sentença ou acórdão, futuramente, dependerá da atividade provavelmente de quem não o pronunciou.
Urge, pois, que se defina o âmbito de incidência da disposição contida no parágrafo único, do art. 538, até mesmo para que se retire da sua feição o caráter intimidador, que, sem dúvida, a adorna, porém que nada ajuda em termos de se obter
justiça.
4.
DO QUE SE ENTENDE POR EMBARGOS PROTELATÓRIOS
Por protelatórios devem ser entendidos os embargos que se afastem da função do recurso, afrontando, pois, a norma de ritos, mas, também, que revelem a intenção de retardar o desfecho do processo, ganhando o embargante tempo, dada a
circunstância de sempre implicarem os embargos a interrupção do prazo para o recurso principal.
Não é tarefa fácil demarcar uma linha divisória entre os embargos não conhecidos por falta de contradição ou omissão e os protelatórios, mas essa distinção, que
pode ser vista como tênue, perde a importância, na medida em que o legislador determina que se punam somente os embargos “manifestamente” protelatórios, de
onde, na dúvida, a sanção não poderá existir.
5 Cf. CÁSSIO SCARPINELLA BUENO, “Quem tem Medo do Prequestionamento?”, Revista Dialética de Direito Processual, 1/23, especialmente item 4, págs. 40 e segs.
6 Nesse sentido, uma das manifestações mais veementes é encontrada no julgamento dos embargos de declaração
n. 42635-4/1, do Tribunal de Justiça de São Paulo: “Na véspera do terceiro milênio e quando há consenso sobre a
necessidade de modernizar os procedimentos judiciais, não é razoável o entendimento contrário, de caráter formalista e retrógrado, segundo o qual há necessidade de menção expressa de disposições legais em decisões que as
apreciem” (Rel. MAURÍCIO VIDIGAL, julgamento em 9 de junho de 1998).
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É de se reclamar dos magistrados a perquirição da intenção das partes em obter o retardo do processo, de vez que a atitude maliciosa não há de se presumir7.
Dessa forma, pode revelar-se em função da posição do litigante na relação processual, soando absurdo, por exemplo, que se rotule de protelatórios embargos interpostos pelo credor8 que, ao que se há de presumir, tem interesse em receber, mais
prontamente possível, o seu crédito. De outro lado, também não se pode entender
existir caráter protelatório quando o recurso, decidido de modo supostamente
omisso ou contraditório, não havia sido recebido com efeito suspensivo, o que não
importaria em qualquer vantagem no tempo em prol do embargante, dado que o
andamento do processo não está impedido.
O Superior Tribunal de Justiça editou súmula (verbete n. 98) definindo como
não protelatórios os embargos por meio dos quais se busca o prequestionamento,
a fim de viabilizar a interposição de recurso especial9, isso apesar de, com muita habitualidade, os tribunais negarem aos embargos a função de prequestionar a questão de direito, não a vendo inserida no rol do art. 535 do Código de Processo Civil10.
De outro lado, têm sido reputados protelatórios embargos interpostos para
discutir matéria já sumulada11, temas já expressamente decididos pelo acórdão embargado12 e, ainda, quando o aresto atacado apreciou toda a matéria impugnada13.
Não se considerou, outrossim, protelatório recurso de embargos declaratórios com
caráter infringente14.
Não resta dúvida, contudo, que esse quadro não confere segurança para o estabelecimento de critérios, de vez que a visão do tribunal poderá restar comprome-
7 Cf. STF – Embs. de Decl. 239612-1, rel. CELSO DE MELLO, julgado em 17.02.2002, Revista Dialética de Direito
Processual, 3/215.
8 Nesse sentido decisão do STJ, recurso especial n. 252662, rel. HAMILTON CARVALHIDO, julgado em 04.02.2002,
reformando decisão do TJSP, proferida nos embargos de declaração n. 83593-4/9-01, julgados em 05.10.1999, rel.
SILVA RICO.
9 Aplicando a súmula, entre tantas outras, Resp. 543551, rel. HAMILTON CARVALHIDO, julgamento em 27.04.2004,
DJU de 28.06.2004, pág. 433; Resp. 554719, rel. HAMILTON CARVALHIDO, julgamento em 23.03.2004, DJU de
17.05.2004, pág. 301; Resp. 584582, rel. HAMILTON CARVALHIDO, julgamento em 16.12.2003, DJU de 09.02.2004,
pág. 219; Resp. 329855, rel. CARLOS ALBERTO MENESES DIREITO, julgamento em 06.05.2002, DJU de 01.07.2002,
pág. 337; e Resp. 306155, rel. NANCY ANDRIGHI, julgamento em 19.11.2001, DJU de 25.02.2002, pág. 377.
10 TJSP – Embs. de Decl. n. 97548/4, rel. LINNEU CARVALHO, julgados em 29.08.2000; TRF – 1ª Reg., Embs. de
Decl. 95.01.04935-3, rel. MOACIR FERREIRA RAMOS, julgados em 08.08.2002, RT, 807/407. O próprio Superior Tribunal de Justiça não admitiu o uso dos embargos de declaração para prequestionar matéria constitucional, objetivando interposição de recurso extraordinário, entendendo serem os limites deste recurso estreitos (Embs.de Decl.
no Resp. 397568, Rel. LUIZ FUX, julgados em 08.04.2003, Revista Dialética de Direito Processual, 4/211).
11 STJ – EDAGA 418205, rel. JOSÉ DELGADO, julgamento em 28.05.2002, DJU de 01.07.2002, pág. 257.
12 STJ – AGA 542683, rel. CARLOS ALBERTO MENESES DIREITO, julgado 16.03.2004, DJU de 03.05.2004, pág. 155.
13 STJ – Resp. 556604, rel. LAURITA VAZ, julgamento em 18.03.2004, DJU de 12.04.2004, pág. 234.
14 Cf. STF – Embs. de Decl. 239612-1, rel. CELSO DE MELLO, julgados em 17.02.2002, Revista Dialética de Direito
Processual, 3/215.
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tida, na medida em que não entenda a integridade da demanda, podendo julgar ter
decidido aquilo que efetivamente não decidiu. Melhor, assim, a definição, caso a
caso, sem, todavia, se perder a imprescindível prudência e a lembrança que o caráter proletório para ensejar a imposição de multa há de saltar aos olhos, pois somente os recursos manifestamente protelatórios são os que merecem a sanção.
5.
DA NECESSIDADE DE FUNDAMENTAÇÃO QUANTO AO CARÁTER
PROTELATÓRIO DOS EMBARGOS.
Apesar de a redação do parágrafo de que se cogita prever que os embargos
deverão ser declarados manifestamente protelatórios (“declarando que o são”), obviamente a simples declaração não é suficiente para a imposição da pena legal. Não
se trata de um veredicto. A declaração representa a síntese do raciocínio, a sua conclusão, havendo, logicamente, o julgador, até por observância da regra constitucional, fundamentar a sua decisão, apontando os elementos que lhe emprestaram convicção quanto ao caráter protelatório dos embargos15.
A fundamentação faz-se necessária para se ensejar um juízo de revisão a cargo
das instâncias superiores. Sem ela a decisão é viciada, não podendo subsistir. Apresenta-se, destarte, para o órgão de segundo grau duas alternativas: afastar a condenação, desde logo, por falta de fundamento; ou anular a decisão, determinando que
venha a ser complementada, lançando os fundamentos em que se sustenta.
A ausência de indicação do fundamento para a aplicação da multa legal rende
ensejo a novos embargos de declaração, sem se temer que esses sejam vistos como
protelatórios também, o que autorizaria o julgador a majorar a sanção inicialmente
cominada.
6.
DA MULTA A SER IMPOSTA
A interposição de embargos manifestamente protelatórios, de início, impõe a
condenação em multa de até 1% sobre o valor da causa, tal como declinado na inicial ou corrigido de ofício ou no julgamento de impugnação oferecida a ele, aplicando-se apenas a atualização monetária.
SÉRGIO SAHIONE FADEL admite que a multa possa ser fixada em valor certo,
desde que compreendido nos limites do percentual previsto na lei16. A conclusão
não parece errada, mas não se afigura conveniente, até porque podem surgir divergências sobre os critérios de atualização do valor da causa, sendo que, ademais, o
15 Nesse sentido, SONIA MÁRCIA HASE DE ALMEIDA BAPTISTA, Dos embargos de declaração, São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 2ª edição, 1993, pág. 182.
16 “As alterações no Código de Processo Civil relativas a recurso”, Reforma do Código de Processo Civil, obra coletiva, São Paulo, Saraiva, 1996, pág. 627.
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cálculo é ônus do credor. Desse modo, o juiz poderá estar assumindo um encargo
que, posteriormente, ensejará maior dificuldade que a simples realização do cálculo que teria lugar, em se fixando a multa, como manda a lei, com base em percentual incidente sobre o valor da causa.
Para a definição do valor da multa, é indiferente o benefício conseguido pela
parte que protela, a gravidade da falta cometida e, ainda, o prejuízo suportado pela
parte em desfavor de quem a protelação se verificou. O critério da lei é objetivo, impedindo qualquer outra incursão, dando ao julgador somente aferir o percentual
que julgue correto até o máximo de 1%.
Na reiteração dos embargos protelatórios, a multa pode atingir 10%, sendo esse
o patamar máximo, devendo, logicamente, considerar-se, nesse percentual, também a
sanção primeira, de modo que será dado ao juiz complementá-la até o limite de 10%17.
Diferentemente do que pensa SÉRGIO BERMUDES18, não se pode interpretar o
termo reiterar ao pé da letra, entendendo-se existir a reiteração apenas quando se reproduzem os mesmíssimos embargos. O CPC preocupa-se não com os embargos em si,
mas com a prática da reiteração.
Os segundos ou seguintes embargos, considerados isoladamente, devem ser vistos e declarados como manifestamente protelatórios. O fato de o primeiro o ser não importa que também os demais o sejam, de maneira que a interposição de sucessivos embargos pode guardar uma razão pertinente, que não autoriza simplesmente o agravamento da sanção lançada de início. Pense-se na hipótese de declaração de que os embargos são protelatórios sem fundamentação. Por certo, se forem interpostos embargos
para que se fundamente o decidido, não se estará agindo com a finalidade de protelar o
desfecho do processo, sendo caso até mesmo de acolhimento dos embargos.
Há de se ter presente que a reiteração dos embargos deve ser considerada no
incidente em que se apresenta e não se vendo a causa como um todo. Dessa forma,
caso o litigante apresente contra a sentença embargos de declaração considerados
protelatórios e, posteriormente, deduza embargos de declaração contra o acórdão
que julgou o recurso de apelação e esses também sejam vistos como protelatórios,
a sanção que se há de lhe aplicar é a mínima em cada ocorrência, muito embora, na
causa, não tenha havido apenas a interposição de um recurso protelatório.
7.
DO RECURSO CONTRA A IMPOSIÇÃO DA MULTA
A aplicação da pena, em vista dos embargos protelatórios, enseja a interposição de recurso, não havendo, no entanto, qualquer particularidade quanto ao seu
17 Conforme a posição de BARBOSA MOREIRA, que corretamente entende que a fixação da primeira condenação
em percentual inferior a 1% não impede que, na reiteração, venha a ser alcançado o percentual máximo, de vez que
a somatória representa uma única multa (Comentários cit., n. 307, pág. 563).
18 A Reforma do Código de Processo Civil, São Paulo, Saraiva, 2ª edição, 1996, pág. 102.
196
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cabimento, devendo tomar-se como critério a natureza da decisão proferida, considerando, outrossim, que a decisão dos embargos guarda a mesma natureza da decisão embargada, possuindo caráter integrativo, não representando, portanto, um
pronunciamento formalmente autônomo na relação processual.
Assim, se embargada foi uma decisão interlocutória e no julgamento dos embargos vier a ser imposta a multa, o recurso adequado será o de agravo, em qualquer
de suas modalidades. É inadequado o retido somente quando a multa foi imposta
pela reiteração dos embargos protelatórios, quando, então, o depósito de seu valor
será condição de procedibilidade para qualquer outro recurso. Nesse caso, apenas
o agravo de instrumento define-se como pertinente, de vez que, por meio dele, poderá postular-se a concessão de efeito suspensivo contra a decisão.
Se os embargos foram ofertados contra sentença, a condenação em multa poderá ser enfrentada por meio de apelação, conjuntamente com as demais matérias
ou mesmo isoladamente.
Em segundo grau, o enfoque não pode ser diferente. Em tese, as decisões proferidas em embargos interpostos contra acórdãos tomados no julgamento de agravo de
instrumento e apelação, decidida por unanimidade, o recurso, em tese, somente pode
ser o especial e/ou o extraordinário19, a ser deduzido enfrentando somente a questão
da multa ou conjuntamente esta e os demais aspectos da demanda.
Todavia, a recorribilidade está condicionada a se caracterizar, quanto à multa
em si, uma questão de direito, pois não é dado às Cortes Superiores o exame dos
elementos que serviram para definir os embargos como protelatórios, de vez que se
cuida de questão de fato, dependente de provas e elementos colhidos nos autos, insuscetíveis de serem reexaminados na via desses recursos.
Quanto ao especial e/ou extraordinário deduzido contra acórdão proferido no
julgamento dos embargos protelatórios oferecidos contra decisão de agravo de instrumento, em princípio, fica ele sujeito à retenção de que cuida o § 3º, do art. 542,
do Código de Processo Civil, salvo se houve reiteração de embargos protelatórios e
a multa veio a ser imposta como condição de procedibilidade do novo recurso. Nesse caso, em vista do risco de dano irreparável, o especial e o extraordinário comportam procedimento imediato.
Se os embargos forem ofertados contra decisão de apelação, resolvida por maioria de votos e os embargos foram apenados por unanimidade, deverá ocorrer, na linha
dos arts. 498 e 530, parte final, do Código de Processo Civil, o desdobramento do recurso, cabendo especial ou extraordinário para o ataque à questão da multa, decidida por
unanimidade, e infringentes, quanto ao decidido no apelo por maioria.
De outro lado, se ambos, apelação e declaratórios, foram decididos por maioria de votos ou, ainda, se só a punição aos declaratórios for reconhecida por maio19 Embora seja difícil imaginar-se questão constitucional gravitando em torno da fixação da multa, não se pode, desde logo, descartar o cabimento do extraordinário, ficando a sua admissibilidade a ser aferida diante do caso concreto.
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ria, o recurso correto, relativamente à decisão proferida quanto aos declaratórios,
será o de embargos infringentes, sem dúvida alguma, embora possa não o ser quanto à matéria decidida na apelação, de vez que os infringentes somente serão possíveis, em tendo havido a reforma da decisão de primeiro grau (art. 530 do CPC, com
a redação que lhe deu a Lei n. 10352/01). No entanto, o Superior Tribunal de Justiça não entendeu desse modo, firmando, em julgado relatado por JOSÉ DELGADO,
que, se a divergência for restrita à multa, os infringentes não seriam admissíveis20.
Não parece correta essa posição, de um lado porque o critério de admissibilidade dos infringentes toma em consideração a natureza da decisão, sendo certo que
o pronunciamento sobre os embargos vem a integrar a decisão anterior, complementando-a, desenhando, em seu todo, o julgamento da apelação. De outro lado,
presente a inovação trazida pela Lei n. 10352, subsiste, ainda assim, o direito aos infringentes, de vez que a multa representa modificação para pior da sentença de primeiro grau, de forma a preencher a decisão integralmente os requisitos que ensejam a sua impugnação pela via dos infringentes.
Por derradeiro, a multa também poderá ser interposta no julgamento de embargos de declaração oferecidos contra acórdãos do Supremo Tribunal Federal e do
Superior Tribunal de Justiça, criando, em razão da própria hierarquia, inegável restrição à recorribilidade, apesar de se cuidar de uma decisão nova, com o risco, se
não suscetível de impugnação, de ser de instância única.
No que tange à decisão do Superior Tribunal de Justiça, em tese, poderia ser
pensável o recurso extraordinário, mas a questão da multa em si dificilmente caracterizará matéria constitucional, praticamente descartando essa via. Verifica-se, com
mais vigor, hipótese de decisão irrecorrível.
A gravidade da questão foi bem avaliada em decisão monocrática de SÁLVIO
DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, que concedeu liminar em mandado de segurança contra decisão que, em julgando embargos de declaração interpostos contra acórdão
proferido em recurso especial, impôs a multa21. Sem dúvida esse é o único meio possível para a impugnação dessa decisão, encontrando apoio no art. 5º, II, da Lei do
Mandado de Segurança, que prevê a possibilidade do seu uso contra decisões judiciais, nos casos em que contra essas não caiba recurso. Na hipótese, não existindo a
previsão de recurso contra a decisão, torna-se possível a impetração da segurança,
na qual terá que se discutir o conteúdo da decisão.
8.
DO ACRÉSCIMO DE SANÇÃO AOS EMBARGOS PROLETÓRIOS
Vem se formando, à margem da previsão legal, uma corrente jurisprudencial,
sustentando que os embargos não admitidos não têm o efeito de interromper o pra20 Resp. 465763, julgado em 27.05.2003, Revista Dialética de Direito Processual, 8/222.
21 Mandado de segurança n. 9304, julgado em 18.03.2003, Revista Dialética de Direito Processual, 10/180.
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zo para a interposição de outro recurso22, efeito reservado somente aos embargos
conhecidos.
SONIA MÁRCIA HASE DE ALMEIDA BAPTISTA, analisando conclusão do IV
Encontro dos Tribunais de Alçada, realizado em 197523, dizia do perigo de se ressuscitar a interpretação do Código de 1939, segundo a qual os embargos protelatórios
não suspendiam o prazo24. Inegável que inexiste base de apoio para um entendimento desta ordem, de vez que aos embargos reputados manifestamente protelatórios
somente se reserva a sanção da multa, nada mais.
Contudo, parece que a preocupação atual é até mais perigosa que aquela proposta, de vez que sequer se cogita de retirar o efeito interruptivo somente dos embargos protelatórios, mas simplesmente admite-se suprimir, posteriormente, um
efeito dos embargos já operado, ainda que não protelatórios, mas simplesmente
porque não conhecidos25.
Transparece claro o absurdo do entendimento, de modo a não se poder reverenciá-lo.
9.
DO DESTINATÁRIO DA MULTA
O proveito da sanção prevista para os embargos destina-se à parte contrária
ao embargante26, não tendo, porém, caráter indenizatório, de modo que poderá recebê-la, ainda que não tenha sofrido qualquer prejuízo que devesse ser reparado.
Embora o juiz possa agir de ofício e normalmente assim procede, principalmente porque os embargos de declaração não comportam contra-razões ou resposta, é certo, porém, que a parte em favor de quem é fixada a multa pode questionar,
por meio de outro recurso, o percentual determinado pelo magistrado, desde que
não atingido o máximo. Tem interesse subjetivo para tanto, de vez que lhe cabe pugnar também pela observância das regras do processo, evitando os atos protelatórios
que, em última análise, postergam a entrega da tutela jurisdicional. Ademais a multa será por ele recebida.
Não está sujeita, de outro lado, a sanção discutida ao regime das custas judiciais, podendo incidir e ser executada ainda em face de quem desfrute, no pro22 STJ – AGA 427107, rel. CASTRO MEIRA, julgado em 24.06.2003, DJU de 18.08.2003, pág. 191; Resp. 498993, rel.
FELIX FISCHER, julgado em 19.08.2003, DJU de 22.09.2003, pág. 358; Resp. 328388, rel. FELIX FISCHER, julgado
em 13.11.2001, DJU de 04.02.2002, pág. 489.
23 Com certeza aprovou-se a tese de AUGUSTO DE MACEDO COSTA JÚNIOR, antes citado, que formulara esta proposta na conclusão de seu estudo.
24 Dos embargos cit., pág. 182.
25 Menos draconiana, mas também não correta, a decisão do STF, retirando o efeito interruptivo de embargos reconhecidos como manifestamente protelatórios (Rel. CARLOS VELOSO, julgamento 01-10-2002, RT, 810/140). Existe uma única sanção no Código para esta situação que é a imposição da multa, agravada em caso de reincidência.
26 SÉRGIO SAHIONE FADEL, “As alterações” cit., pág. 627.
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n.
41
199
cesso, dos benefícios da justiça gratuita27, porque o Estado lhe garante o direito
de demandar, mas não lhe confere o direito de usar do processo para dificultar a
realização da justiça. Da mesma forma, a sanção é de se aplicar se os embargos
protelatórios forem deduzidos pela Fazenda Pública28, apesar de isenta do pagamento das custas.
A multa, uma vez preclusa a decisão condenatória, poderá ser executada pelo
credor, valendo-se do procedimento da execução por quantia certa contra devedor
solvente29. A execução deverá ocorrer nos próprios autos, se possível, ou por meio
de carta de sentença, nada tendo com o resultado final do processo e nem com a
coisa julgada em relação ao pedido principal. Nada impede que a parte seja vitoriosa quanto à pretensão que exerceu, mas tenha interposto algum recurso de embargos de declaração considerado protelatório.
10. DA REPERCUSSÃO PROCESSUAL DA MULTA
A aplicação da multa também guarda repercussão processual, de vez que, no
caso de aplicação da pena em vista de renovados embargos protelatórios, a interposição de qualquer outro recurso fica condicionada ao depósito do seu valor, sob
pena de o recurso ser considerado deserto.
A regra é de duvidosa constitucionalidade, por poder importar no cerceamento da plenitude do exercício do direito de defesa30. Todavia, entendida a defesa
como aquela que a lei ordinária confere, com os meios, recursos e também os ônus
nela previstos, não se pode negar que a cláusula em questão é constitucional.
De qualquer modo, a exigência em tela supõe a preclusão da decisão. O óbice somente existirá, em não mais cabendo, quanto à fixação da multa, qualquer recurso para discuti-la, não abrangendo a exigência em tela, desse modo, o recurso
que se volta à discussão da própria multa imposta31.
11. DA IMPOSSIBILIDADE DE CUMULAÇÃO DAS SANÇÕES
Por fim, a sanção em tela é específica, sendo, dessa forma, impensável a sua
cumulação com as previstas para a litigância de má-fé (arts. 14 e 17 do CPC). O es27 No mesmo sentido, JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA, Comentários cit., n. 307, pág. 562; SÉRGIO BERMUDES,
A Reforma cit., pág. 103.
28 De acordo: J. E. CARREIRA ALVIM, Código de Processo Civil Reformado, Belo Horizonte, Ed. Del Rey, 1995, 2ª
edição, pág. 196.
29 No mesmo sentido, SÉRGIO BERMUDES, Comentários ao Código de Processo Civil, São Paulo, Ed. Revista dos
Tribunais, 1ª edição, 1975, 7º vol., n. 211, pág. 222.
30 A questão é também levantada por J. E. CARREIRA ALVIM, que entende que, por força disso, a disposição pode
encontrar certa resistência no Supremo Tribunal Federal (Código cit. pág. 196).
31 Diferente é a posição de SÉRGIO SAHIONE FADEL, “A alteração” cit., pág. 627.
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faculdade de direito de bauru
pecial sobrepõe-se ao geral. Assim, pelo mesmo incidente protelatório, ou seja, pela
mesma atuação processual, o litigante não poderá sofrer a multa do parágrafo único, do art. 558 cumulada com a sanção do art. 1832.
AUGUSTO DE MACEDO COSTA JÚNIOR também afirma a impossibilidade de
aplicação de ambas as sanções, sob o fundamento de que configuraria bis in idem,
mas entende que ao tribunal é dado optar pela sanção mais grave33, com o que não
concordamos, não só porque o específico prefere ao geral, como também porque,
cuidando-se de pena, a menos grave há de prevalecer sobre a mais grave, ainda
quando voltada a punir o mesmo fato.
Nada impede, porém, que, por ocorrências diversas, em momentos diferentes do procedimento, sejam aplicadas outras sanções, além daquela reservada aos
embargos, mas pela mesma ocorrência isso não se faz possível.
12. DO RISCO DE SERVIR A MULTA PARA INTIMIDAR O PRETENSO RECORRENTE
O agravamento da multa prevista na norma em consideração não deve servir
como modo de se restringir o direito à plena resposta do Judiciário, nem criar o temor de se buscá-la, sendo certo que qualquer decisão deve, como primeiro atributo, ser clara e precisa, não devendo a interposição e a reiteração dos embargos ser
vista como ofensa ao decisório, mas simplesmente como uma forma de se buscar a
exeqüibilidade posterior do decidido.
Agisse o Judiciário com a indispensável abertura na análise dos embargos de
declaração, certamente não se teria tantos outros incidentes na fase de execução, na
qual, não raramente, os autos voltam aos julgadores para que interpretem aquilo
que disseram de modo pouco claro.
Que a evolução que representou a sanção inicialmente prevista no Código de
1973, em oposição à disposição do Código de 1939, não seja agora esvaziada com o
medo que o agravamento da multa inegavelmente traz.
32 Conforme nossa Reforma cit., pág. 129, com o aval expresso de JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA (Comentários cit., n. 307, pág. 564). Na jurisprudência: STJ – Resp. 299363, rel. HUMBERTO GOMES DE BARROS, julgado em
03.02.2004, Revista Dialética de Direito Processual, 14/144; STJ - Resp. 429070, rel. HUMBERTO GOMES DE BARROS, julgado em 13.08.2002, DJU de 23.09.2002, pág. 272; Resp. 345786, rel. CASTRO FILHO, julgado em
11.04.2003, Revista Dialética de Direito Processual, 4/212. SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA entendeu, em vários julgados, irrelevante a distinção, de modo que a sanção poderia ser aplicada com base em um ou outro dispositivo legal (Resp. 225435, julgado em 22.02.2000, DJU de 16.06. 2000, pág. 151; Resp. 184914, julgado em
29.02.2000, DJU de 24.04.2000, pág. 58).
33 “Embargos de declaração” cit, pág. 756.
ASPECTOS CONTEMPORÂNEOS DA INTERVENÇÃO DO
MINISTÉRIO PÚBLICO NO PROCESSO CIVIL
Volnei Carlin
Professor universitário.
Doutor em direito pela Université des Sciences Sociales de Toulouse I, França.
Desembargador do TJSC.
I.
ASPECTOS GERAIS
Os últimos anos assinalaram sensível evolução no sistema processual civil.
Uma primeira onda de reformas, iniciada em 1985 (ACP), foi marcada pela introdução, no sistema, de instrumentos até então desconhecidos do direito positivo, destinados a dar curso a demandas de natureza coletiva e a defender interesses transindividuais ou, ainda, com mais amplitude, uma ordem jurídica justa.
Constituem indicativos dessa destacada fase as diversas leis que regulamentaram a ACP (Lei 7.345/85), seguida de outras, provendo sobre a tutela de interesses
transindividuais de pessoas portadoras de deficiência (Lei 7.853/89), de crianças e
adolescentes (8.069/90), de consumidores (8.078/90) e da improbidade administrativa (8.429/92).
Marco significativo dessa primeira etapa foi a CRFB de 1988. Com ela, houve
ampliação dos interesses de amparo próprio da ordem jurídica. Daí se vê, pois, que
a estrutura originária do CPC de 1973, moldada para atender conflitos interindividuais, já não espelha a realidade do processo civil. Observa-se que, à medida que se
passa nesse ciclo evolutivo, menos se acentua a vinculação do processo a pessoas e
mais se enfatiza a solução dos litígios em sua extensão coletiva, pondo em xeque
202
faculdade de direito de bauru
conceitos e institutos processuais clássicos, como a coisa julgada, a competência e a
jurisdição, que exigem um forte trabalho hermenêutico criativo para adaptá-los à
nova realidade.
Nasce, a partir de 1994, uma segunda onda de reformas, cujo objetivo
maior era o de aperfeiçoar os mecanismos criados em nome da efetividade do
processo, como a Lei 8.952/94, que universalizou o instituto da antecipação da
tutela, atingindo a essência do sistema, os rumos ideológicos do processo e a
luta pela segurança jurídica.
Em realidade, como se vê, os tempos atuais, por isso mesmo, exigem de
quem faz do processo o seu ofício diário, um exercício de sensibilidade e de criatividade, para consagrar as suas inovadoras dimensões. Por certo, percalços surgirão, notadamente nascidos de mentalidades inseguras e de uma jurisprudência mecânica, para a fixação de um revolucionário modelo processual. Tais temas, sem dúvida, causam inquietações culturais e reflexões na seara do direito
processual constitucional.
A relevância do assunto, sua atualidade, apuro científico e visão analítica
são elogiáveis nos mais diversos aspectos, inclusive, sob a moldura da mais avançada processualística contemporânea, diante dos anseios de uma sociedade cada
vez mais participante, multifacetária e exigente, na busca incessante do acesso
que Watanabe chamou de “ordem jurídica justa”, que objetiva assegurar uma
melhor convivência humana, a efetivação das garantias fundamentais da cidadania e o reequilibrio de situações sociais díspares.
Assim, o Ministério Público, em sua nova fisionomia constitucional, deve
se voltar para essa realidade, preocupando-se com que a justiça seja efetivamente acessível a todos, despossuidos e ricos, desamparados e poderosos, seja na
área preventiva (pacificação social e composição de conflitos) ou na fase posterior à violação da lei (como órgão agente-promovente). Em qualquer circunstância, o Ministério Público atua na defesa daquele interesse público primário, de
solução pluralística e na luta pelos direitos de terceira geração muito enfatizados
na atualidade (bens que eram considerados inesgotáveis até agora, cujo exaurimento começa a preocupar: água, ar puro, alimentos sem conservantes), e que
tiveram elástico reconhecimento na Carta vigente (artigos 6º a 11 e 193); são
bens comuns, não individualizáveis, que interferem na qualidade de vida de cada
indivíduo, mas carecem de proteção.
Essas questões, embora atormentem certos juízes, são relevantes na atuação do Ministério Público, acentua Nalini1; são causas que impulsionam e configuram sua nova filosofia.
1 NALINI, José Renato. O juiz e o acesso à justiça. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1996, p. 63-65 e 102.
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II.
n.
41
203
A AÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO NO PROCESSO CIVIL COMO
INSTRUMENTO DE PACIFICAÇÃO SOCIAL
Já se disse que a Magna Carta de 1988 apresentou, definitivamente, uma nova
tábua axiológica de valores jurídicos. Ao cidadão se concedeu a condição mínima
para uma vida humana digna (artigo 1º, III), inspirada em princípios humanísticos e
sociais. Instalou uma ordem jurídica menos ortodoxa.
No contexto, o legislador criou mecanismos ágeis que pudessem servir de dínamo à concessão das tutelas céleres e adequadas, outorgando ao Ministério Público o papel de evitar violações a direitos de alcance social ou individual indisponível
(CRFB art. 127). Compatibilizou-se, então, sua atuação, no processo civil, como órgão agente ou como interveniente (custus legis). Aliás, múltiplas passaram a ser as
funções desse órgão nos processos civil e penal (acusa os violadores da lei, pugna
por uma ação penal mais eficaz e de efeito pedagógico).
Num país como o Brasil, com graves desigualdades sócio-econômicas e a
omissão estatal quase completa de suas obrigações básicas, é que surge a Instituição
do Ministério Público, vocacionada a uma finalidade ético-social, consolidando sua
verdadeira missão: resguardar a sociedade, defender a ordem jurídica justa ( Watanabe), os interesses sociais e individuais indisponíveis. Afinal de contas, é o Parquet
que deve obter junto ao Judiciário decisões tendentes a equacionar conflitos e proteger valores da sociedade.
Foi-se o tempo, sem dúvida, em que o órgão era simples parecerista, mero
analisador de processos, acusador sistemático, papel que não mais se coaduna à
atuação contemporânea. E é através do processo civil que ele torna efetivo o ideal
de justiça social inserido na Lex Fundamentalis.
Esse perfil do Ministério Público no processo civil, com amplitude de garantir a
ordem jurídica, o regime democrático, os superiores interesses sociais e individuais indisponíveis, confere ao processo a versão atual de que sua dimensão foi ampliada constitucionalmente para a composição de conflitos coletivos, salienta Mazilli2
Na busca por este intento, dispõe o Ministério Público da titularidade de
ação e a intervenção noutros tantos, estando capacitado a desfechar, a qualquer
tempo, contra quem quer que seja, toda a força e poderes que a Constituição e a
lei nele depositaram.
Dentro dessa perspectiva, constitui-se o defensor da cidadania, garantindo o acesso à justiça e a efetivação dos direitos elencados na lei. Por vezes, faz aquilo que a parte
deveria fazer, mas não o fez. Essa viabilização do acesso à justiça na defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveis provoca fenômeno psicológico altamente positivo, pois o povo tende a retomar a confiança na justiça, consoante Marinoni3
2 MAZILLI, Hugo Nigro. O acesso à justiça e o Ministério público. 3 ed., São Paulo: Saraiva,, 1998, p. 08.
3 MARINONI, Luiz Guilherme. Novas linhas de Processo Civil. 3 ed., São Paulo: Malheiros,, 1999, p. 106.
204
faculdade de direito de bauru
De todo o jeito, ao final do item, convém registrar que, como parte (órgão
agente) ou como fiscal da lei (custos legis), o Ministério público não pode esquecer
o caráter instrumentalista do processo civil contemporâneo, rompendo com velhas
posturas e abrindo os olhos para a realidade da vida que corre fora do processo. Para
tanto, é verdade, deverá ter sensibilidade, eficiência e espírito crítico para propor
outras soluções, leciona Cândido Dinamarco4, obtendo impulso nos resultados, melhoria da visão de futuro, satisfação das pessoas e cumprimento de sua verdadeira
missão. Para isso, é preciso investir em uma outra mentalidade.
III. MINISTÉRIO PÚBLICO: NOVAS FORMAS E PERSPECTIVAS DE
ATUAR
Depois dos excessos do Estado-providência (direito formal e direito material),
a solução das dificuldades que a justiça encontra na democracia, é a de persistir na
sua forma tradicional de ação. O modelo que se anuncia é o de uma justiça descentralizada e menos simbólica: mexe-se menos nos procedimentos, nos métodos e nos
seus valores substanciais.
Na contemporaneidade, o direito deve apoiar-se mais em saberes que possam
parecer completamente estranhos, como a psicologia, a sociologia e, acima de tudo,
a deontologia. Em muitos aspectos, portanto, o papel do juiz e do promotor de justiça se confundem. A razão de ambos se torna instrumental, aplicando meios mais
seguros e rápidos para chegar a um dado conclusivo do litígio.
O melhor indicador da necessidade desta evolução da justiça, indica Antoine
Garapon5, encontra-se na transformação do papel do Ministério Público. É essa Instituição que deverá dar a impulsão inicial, estimular, coordenar e refletir as iniciativas locais.
A competência tradicional desse Órgão, a de simplesmente fazer respeitar a
lei, deve, hoje, ser completada pela aptidão de se “colarem ao terreno”6, ou seja, se
mostrarem pragmáticos, concretos, adaptados ao seu ambiente. Ele deve buscar respostas efetivas, com rapidez de reação. O mais notável da evolução do seu desempenho é a de transformar a lógica vertical tecnocrática em lógica inversa, isto é, horizontal, de abertura sobre o intrincado tecido social, virada para o que os anglo-saxões chamam comunidade. É a chamada desconcentração do Ministério Público, relacionada aos problemas do bairro, das unidades policiais, responsável pelas ligações políticas dos eleitos, da prevenção da delinqüência e suas prioridades nas po4 DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 6 ed., São Paulo: Malheiros, 1998, p. 386 – 7.
5 GARAPON, Antoine. Le gardien des promesses. Paris: Éditions Odile Jacob, 1996, p. 249-256.
6 Citem-se: lixo nosso de cada dia, transgênicos, madeira apreendida, improbidade administrativa, proteção às bacias hidrográficas, regularização de loteamentos, sonegação fiscal, adequação do número de vereadores ao município e outros.
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n.
41
205
líticas criminais. A conseqüência é o reconhecimento social, a sua autoridade e a ratificação de sua legitimidade.
A personalização das inovações, nesse domínio, dependerá da experiência de
sua atuação, da demonstração de sua competência, de suas diligências e de seu profissionalismo. A legitimidade de ação será adquirida, assim, de maneira multiforme
(mediante vários tipos de atuação). Para esse fim, poderá unir-se aos segmentos sociais, para melhor responder às expectativas da população. A eficácia de seu trabalho será observada na medida em que diminuir o sentimento de impunidade.
Essa função do Ministério Público será acompanhada por uma rearticulação
de suas posturas profissionais, tornando-o interface entre o Estado e a justiça, entre
o coletivo e a situação individual. Assim, efetivamente, estará redescobrindo o sentido forte do termo “ação pública” exercida pelo Parquet, ao projetar um sentido topológico às políticas públicas ou uma verdadeira imagem de pioneiros de um outro
conceito de justiça.
Nesse passo, vê-se o Ministério Público deflagrando categorias de litígios, relativas ao direito do consumidor, ao meio ambiente, ao exercício do serviço público
e as inúmeras situações da gama de direitos difusos e coletivos, sendo, cotidianamente, chamados a se pronunciar sobre ações relativas aos desmandos do poder
público, no sentido de defesa da probidade administrativa. Tudo isso exige, também,
uma postura da justiça que não poderá abdicar da independência do ato de julgar.
Nunca o seu formato foi tão discutido na mídia, debatido em congressos e provocou a atenção das ciências jurídico-políticas quanto hoje. Cappelletti se refere a sua
presença como a de um gigante, com função social cada vez mais destacada, preocupando o mundo político e atraindo olhares dos Poderes do Estado.
IV. MINISTÉRIO PÚBLICO: MUTAÇÕES E ESPECIALIZAÇÃO
Os progressos no campo do pensamento e da ação (prática) que a ela se associar não nascem e se distribuem homogeneamente. O processo inovador da ação
ministerial é recente, mesmo em se considerando as formas de comunicação e os
aperfeiçoamentos técnicos e da informática (direito de 5ª geração).
Na linha do resgate do atraso, tão arraigado e conveniente para certos setores
da Administração Pública, não obstante importantes aberturas e conquistas obtidas
no campo da justiça, só muito recentemente é que, pouco a pouco, pessoas são reabilitadas na condição de administrado, em pé de igualdade com o status já conquistado pelo eleitor.
Dois fatores merecem destaque como concausas desse resgate. O primeiro é
o sócio-político com o surgimento de uma sociedade engajada, necessária ao diálogo democrático, e o segundo é o fator juspolítico que se caracteriza pela afirmação
do constitucionalismo com a indispensável participação do Ministério Público. Estáse diante das influências de legitimidades, de decisões políticas e judiciais que de-
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faculdade de direito de bauru
monstram inéditas responsabilidades dos sujeitos de direito e da existência de institutos postos à disposição das pessoas. Lembre-se, aqui, que a afirmação do constitucionalismo evoluiu da legalidade para instilar valores e processos legitimatórios
que prestigiam a cidadania em todos os seus aspectos. Deve-se destacar, nessa seara, a contribuição muito relevante de Norberto Bobbio.
A sobrecarga de demandas e a conflitualidade social vigentes, fizeram surgir os
megaprincípios de direito público orientadores da renovação, a subsidiariedade, a
eficiência e a legitimidade, fundantes, nesse início de século, de conceitos, princípios e técnicas jurídicas.
O assunto, que sequer necessita de reforma processual, procura conferir
maior eficácia ao equipamento judicial.
A tendência à especialização é fenômeno universal, embora exista o temor do
reducionismo, mediante a conversão do especialista conhecer cada vez menos áreas
do direito. A uniformização de temas pode gerar instantaneidade hermenêutica e de
resultado. Por exemplo, uma vara especializada em meio ambiente ou uma vara do
consumidor seria fácil de equacionar as controvérsias em face da especificidade dos
assuntos, assegurando célere proteção jurídica e administrativa. É bem verdade que
há necessidade de mentalidades adequadas ao tempo e refratárias aos grupos de
pressão que geralmente adquirem contornos complexos.
A formação clássica do lidador do direito não o preparou para o enfrentamento dessas situações que precisam de soluções novas e rápidas. O perigo está no vazio decisório, esvaindo-se a credibilidade e o prestígio de qualquer função. Nalini sugere a formação interdisciplinar que habilite o operador do direito nos aspectos jurídicos, sociais e psicológicos. Direcionado nessas áreas de conhecimento, o profissional verá otimizado o seu potencial de trabalho.
Necessário pensar nas gerações vindouras. É nesse momento que surgirá a
nova imagem de uma Instituição, erradicando eventual conflito de gerações, de concepções e alimentando, nas inquietações culturais, permanentes e profundas reflexões. Dessa forma, num país onde a criatividade no descumprimento da lei é infindável, a criatividade para cumpri-la também deve ser.
O propósito do encontro era também discutir as divergências doutrinárias e
pretorianas na prestação jurisdicional.
V.
DEBILIDADES E VIRTUDES DO DIREITO JURISPRUDENCIAL7
Sabemos que a criatividade judiciária constitui um fator importante para lidadores do Direito Contemporâneo, podendo, em certos casos, se igualar a função legislativa, o que acaba por invadir o domínio desta. A diferença, no entanto, é o pro7 O subtítulo foi extraído da obra de Mauro Cappelletti intitulado Juízes Legisladores?. Porto Alegre: Ségio Fabris
Editor, 1999. p. 73.
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207
cedimento (ou estrutura) de formação do direito. A jurisprudência nasce de um
processo de caráter contraditório e da natureza não política. Daí vem a tendência,
muito em moda, do fenômeno chamado jurisdicionalização. Este nasce de características abertas e flexíveis à interpretação criativa, surgida livre das pressões econômicas, psicológicas, sociais e, ainda, da “independência interna” da Instituição.
Exemplo extraído do Canadá: quando a jurisprudência criativa traça diretivas gerais
sobre interpretação, vinculantes aos tribunais inferiores e emitidas sem qualquer
conexão com determinado caso concreto. É um problema de legitimação democrática do Direito jurisprudencial, no qual se alia sensibilidade e aprofundado conhecimento do Direito.
A relevância e atualidade do fenômeno surge quando o pesquisador se reporta para a reconstrução de novos paradigmas do conhecimento, direcionados para
uma perspectiva flexível e interdisciplinar, instrumentalizando a tutela jurisdicional,
caracterizando a necessidade do avanço do processo civil e consolidando uma nova
postura. O debate se prende ao acesso da justiça, atingindo os direitos da cidadania
(entendida como decorrência da relação de participação que se estabelece entre o
Estado e os componentes da sociedade civil).
A inovação induz ao reconhecimento também do atual perfil do Ministério Público, conforme se pode depreender dos seguintes exemplos:
a) Ministério Público. Ação rescisória. Discussão acerca da validade da decisão
transitada em julgado. Nulidade da ação.
Votos vencidos. Coisa Julgada. Relatividade. Sentença injusta. Não deve
prevalecer quando afronta a moralidade pública, o interesse público, a razoabilidade e a justiça, visto que normas que tutelam direitos fundamentais não devem ceder diante de lapso temporal previsto em lei infra-constitucional (prazo de 2 anos). Não pode prevalecer a res judicata quando
atente contra a moralidade, o interesse público e a justiça. Tese para ser
discutida. Normas que tutelam direitos fundamentais não podem ceder
diante de lapso temporal previsto em lei infra-constitucional. O Ministro
José Delgado diz: “a moralidade está insita em cada regra constitucional.
Reinando absoluto sobre qualquer outro princípio, até mesmo sobre a coisa julgada. (RT 806/385)
b) Ação Civil Pública. Consumidor. Interesses individuais homogêneos. Princípio da dignidade e auto-respeito humano. Responsabilidade Civil – Tutela Coletiva. Discutiu-se o interesse coletivo e a existência ou não do dano
moral. (TJSC, AC n. 01.0252171, Rel. Des. Volnei Carlin. Blumenau, j. em
23/10/03)
c) Custus legis e não como parte. Defende a administração judicial de direitos subjetivos, a fim de que não fiquem os interesses do menor à mercê da
vontade privada (com o advento da CF/88 o papel institucional do Ministério Público ganhou amplitude, pois além de ser o representante da socie-
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faculdade de direito de bauru
dade, possui papel relevante nos termos referentes à criança e ao adolescente, em conflito). (TJMG, AC n. 107.047/3, j. em 12/03/98)
d) Posicionamento diverso do Ministério Público de 1º e 2º graus, sobre formalidades burocráticas em detrimento aos interesses do menor. Vê-se a
verdadeira função do Ministério Público. (TJSC, AC n. 49.829, j. em
10/10/95)
e) Benefício por morte. Custos legis.
Ministério Público de 1º grau recorreu.
A Procuradoria Geral de Justiça se manifestou pelo desprovimento.
Relator votou pelo não conhecimento do apelo, entendendo que houve
desistência do recurso uma vez que em face dos princípios da unidade e
indivisibilidade do Ministério Público, não poderia haver dois posicionamentos diferentes, prevalecendo o segundo grau. (TJSC, AC n. 02.006001,
Rel. Des. Vanderlei Romer, j. em 25/09/03)
Divergi, porque o Ministério Público possui autonomia e independência
funcional, quer dizer que cada um de seus membros age segundo sua
consciência jurídica, sem ingerência dos órgãos superiores do próprio Ministério Público.
Afinal, o Ministério Público não possui inúmeras ações que tratam da improbidade administrativa?
Vê-se nesses exemplos, coletados à vol-d’oiseaux, a participação ativa do Ministério Público em processos de construção da cidadania e que visa garantir às pessoas condições dignas de vida em sociedade. Nas questões apontadas, agiu, ainda,
relevando o interesse público, ora como órgão agente, ora como fiscal da lei (custos
legis). Na área da moralidade administrativa, estão sendo promovidas inúmeras
ações.
Nota-se, igualmente, que o Ministério Público demostrou, ao menos em dois
dos recursos, compreensão da sociedade em que vive e forte vínculo com ela (legitimidade).
Essa é, enfim, a visão que se faz do atual desempenho profissional do Ministério Público.
VI. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Direito Público tem de servir, integralmente, como todo ramo de direito, à
satisfação do ser humano, à proteção de bens comuns, não individualizáveis, mas
que são condição essencial para a qualidade de vida de cada indivíduo.
Constata-se:
• Distância entre a doutrina e a realidade social, dando-se menor importância às ações de natureza coletiva, inclusive nas grades curriculares das faculdades. Há urgente necessidade de transformação do pensamento jurídi-
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n.
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209
co, o momento do custos legis passou, tendo seu auge no início dos anos
oitenta;
Compete aos magistrados, num Estado democrático, dizer o direito em
nome do povo (cf. CANOTILHO. J.J. Gomes. Estado de Direito), embora os
juízes brasileiros não estejam preparados para aplicar o Direito Público, segundo afirma o Des. Rogério M. Garcia de Lima, do Tribunal de Justiça de
Minas Gerais8. Há grande descompasso entre necessidades da comunidade
e as respostas das Instituições;
Não há mentalidade publicista e tampouco funcional e processual, devendo ser captados princípios informadores que orientem mudanças de postura. “Ser credor de uma prestação contra a Fazenda, neste país, é preciso
ter vida longa para receber”, afirma o Ministro Milton L. Pereira, STJ. Pouco adianta ampliar as formas de exercício da cidadania, se a justiça é impotente para equacionar as demandas. Muitos teimam em não se desprender
do passado, em ignorar o presente e, com isso, comprometer o futuro;
Prosper Weil possui um pequeno livro com grandes idéias no qual atesta
que o Direito Público é mais um direito político do que jurídico, daí a necessidade de reelaboração e readequação de seus conceitos e princípios,
pois inesgotáveis e ilimitadas são as necessidades humanas no tempo e no
espaço;
Por outro lado, a Constituição da República outorgou, repita-se, ao Ministério Público competência para as ações coletivas, sedimentando-o de independência institucional, que termina por vinculá-lo, desde 1988, unicamente ao organismo social do qual é legítimo protetor, dotado de individualidade existencial própria, sendo o destinatário final de inúmeros comandos normativos que em nada se confundem com aqueles endereçados
aos Poderes;
Resta-lhe, quando da atuação processual, nesta atual moldura constitucional, impregnado com espírito ético, enfrentar os desafios do cargo com independência e visibilidade, tendo em vista os princípios fundamentais da
Lei Maior, especialmente quando na defesa do fortalecimento da cidadania,
da dignidade e da consolidação dos valores e interesses da sociedade. Ao
Ministério Público especializado cabe coordenar a ampliação do real acesso à justiça e a busca da efetividade da prestação dos valores jurídicos e interesses da sociedade. Estas também parecem ser as formas embrionárias
do Estado do futuro que vão sendo ensaiadas.
8 In O Direito administrativo e poder judiciário, Justiça, ano 4, n. 18, Belo Horizonte, jun-jul, 2001, p. 33.
O FETICHE DAS LEIS
Giovani Clark
Doutor em Direito Econômico pela UFMG.
Professor dos Cursos de Graduação e Mestrado da PUC/MG.
Membro da Fundação Brasileira de Direito Econômico (www.fbde.org.br), e autor do livro:
“O Município em Face do Direito Econômico”, Belo Horizonte: Del Rey, 2001.
A classe dominante brasileira e os governos nacionais, durante os anos, vêm
embalando os sonhos do nosso oceano de miseráveis e das dilaceradas classes média e trabalhadora, através de seus aparelhos de divulgação, propagando a miragem
de uma sociedade justa, bem como do desenvolvimento econômico. Para tanto, em
regra, basta se ativar, assiduamente, a milagrosa fórmula de mutação ou de criação
de leis, a fim de que a magia da transformação socioeconômica realize-se no futuro.
Cinicamente, “sugere-se” que um dos grandes vilões da caótica realidade brasileira
seja, supostamente, a legislação existente .
A fantasia da alteração das estruturas sociais seria executada por intermédio
da revogação total ou parcial das normas legais, seja criando novas, seja dando roupagem jurídica a matérias ainda não versadas por aquelas. Também não é pouco freqüente a produção de novas normas jurídicas sem a ab-rogação ou derrogação das
anteriores, estabelecendo-se o convívio anárquico e complementar entre elas. Contudo, em um passo de mágica, a nova legislação, como a antiga, cai no descrédito
popular, invariavelmente, por não se tornar eficaz em virtude dos interesses dos
“donos do poder” (FAORO, 2000).
Os fenômenos, de elevação crescente do número de leis em sociedade, chamado pelo jurista italiano Francesco Canelutti de “inflação legislativa” (2001), e da
mobilidade da lei (SOUZA, 2001), ou seja, a contínua mudança da legislação, são de
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faculdade de direito de bauru
ordem mundial. Todavia, foram agravados nos solos das Nações em desenvolvimento, causando instabilidade jurídica e o fetiche social de mudança.
Falávamos de floresta. A jurídica é exuberante. Somente em nosso
País, estima-se haver aproximadamente meio milhão de normas
escritas, entre leis, decretos e regulamentos federais, estaduais e
municipais, número tão elevado para os padrões mundiais que dá
ao nosso ordenamento a feição de uma enorme babel jurídica, em
que podem viver lado a lado, leis inconstitucionais, contraditórias
ou supérfluas, resultando num enorme entulho jurídico que, vez
por outra, infunde nos doutores da lei o desejo de uma grande faxina. (COSTA NETO, 1999: p. 147)
Somos um ardente defensor do Poder Legislativo e de suas prerrogativas de
produtor das leis e de fiscalizador do Executivo, funções essenciais em uma sociedade que se propõe a conquistar uma real democracia social, política e econômica.
Ao Legislativo, juntamente com o Judiciário, compete a difícil missão de inviabilizar
a adoção de qualquer “ditadura pós-moderna” (CLARK, 2003), assim como de controlar a magnitude do poderio do Executivo dos dias atuais, motivado, dentre outros fatores, pela constitucional intervenção estatal no domínio econômico e social,
exercida, em nosso país, pela assídua e abundante criação normativa personificada,
em muitos casos, pelas medidas provisórias.
De qualquer sorte, deve ser registrado que o simples fato de se tornar uma exigência do Estado Social de Direito o cometimento de
funções Legislativas ao Executivo não significa o esvaziamento do
papel do Legislativo em sede de Direito Econômico. Pelo contrário:
avulta a sua função de contrapeso na apreciação do ato normativo justamente para que não seja ele a manifestação de uma vontade unilateral, com o que o governo estatal da vida econômica se
traduz pela colaboração entre os dois Poderes, mitigando, destarte, o caráter de consolidador da exclusão desempenhado pelo dogma da separação, consoante assentam tanto os pais da Federação
norte-americana quanto os juristas do salazarismo. (CAMARGO,
2001: p. 203-204).
A sociedade do século XXI deixa explícita sua pluralidade de interesses, a
complexidade de suas relações e o antagonismo das classes. Obviamente, as normas
jurídicas devem tratar dessa realidade, sujeitas às mutações tecnológicas, ambientais, culturais. Então, torna-se vital que o Legislativo tenha um destacado papel social com uma produção legislativa vigorosa, atendendo aos desejos conflituosos do
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tecido social. Não negamos, assim, dialeticamente, a necessidade da alteração das
normas jurídicas. Todavia, as leis, elaboração de novas, vêm sendo usadas como instrumento de dominação pelas elites.
Os profissionais do Direito não podem, apenas, acompanhar a marcha da história sem deixar de agir sobre a mesma, senão sofrerão com as amarguras da omissão. Devemos, denunciar e repudiar a prática de se mudar as leis ou de se criar normas para matéria “aparentemente” não jurisdicizada, a fim de se não mudar nada
nas chagas da sociedade ou, quando muito, atinge a periferia das questões, ou até
mesmo, reforça os pilares das desigualdades. Enquanto as “elites políticas” discutem
e aprovam as “normas salvadoras”, desvia-se a atenção social e, o pior, desmobilizase a minguada parcela da sociedade civil organizada na exigência da eficácia da legislação em vigor. Ensina Paulo Dourado de Gusmão (1998) sobre vigência e eficácia:
.... no sentido técnico-jurídico vigência é a dimensão temporal e espacial da obrigatoriedade do direito, determinável, começando
da data em que for publicado a lei no Diário Oficial, ou da data
nela prevista, terminando na data de sua revogação total ou parcial, expressa ou tácita, quando lei posterior dispuser em sentido
contrário. Vigente, assim, a lei sancionada e publicada no Diário
Oficial, enquanto não revogada, ou o tratado internacional, aprovado por decreto legislativo, enquanto não denunciado (p. 58).
A eficácia (Getung) do direito depende do fato de sua observância
no meio social no qual é vigente. Eficaz é o direito efetivamente observado e que atinge a sua finalidade. É assim, um fato, consistindo na observância efetiva da norma por parte de seus destinatários e, no caso de inobservância, na sua aplicação compulsória
pelos órgãos com competência para aplicá-la(Judiciário, Administração Pública, Polícia, etc). Significa, com palavras de Kelsen, direito que é “realmente aplicado e obedecido (p. 59).
A ação acima citada é mais uma hábil técnica de dominação que resulta no retrocesso das lutas sociais dos grupos explorados, já que, ao invés de se exigir a eficácia das
leis, através da criação de condições adequadas para implementação das mesmas (fixação de verbas condizentes para os serviços públicos nas leis de orçamento), retrocedese, restabelecendo-se os palcos de disputas anteriores, ou seja, das lutas das forças sociais no plano legislativo em torno da produção das normas jurídicas.
Sendo a elaboração e efetivação das normas de Direito um processo de disputa social, seja antes, durante ou após a sua criação, a fantasia absurda de modificação daquelas para transformar as bases genocidas de uma sociedade majoritariamente de excluídos é um engodo social e, levam os explorados a caminharem vários
passos em sentido oposto de seus objetivos.
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faculdade de direito de bauru
A Constituição Brasileira de 1988, com pouco mais de 15 anos, sofreu mais de
40 Emendas Constitucionais, até então, em nome da conquista do “paraíso liberal”.
Contudo, estamos em um desconfortável 65º lugar no Índice de Desenvolvimento
Humano (IDH) da ONU de 2003 e seguramos os primeiros lugares em relação à concentração de renda no planeta terra.
Mudamos a nossa Carta Magna em prol das “maravilhas econômicas e sociais”
a serem propiciadas pelo Estado Mínimo, quando esse sairia de cena, no âmbito econômico e social, para implantação da famigerada globalização, digo, para renovação
do pacto colonial em bases pós-modernas. A propaganda foi enganosa. O Estado ficou frágil para desempenhar as suas múltiplas funções e os horrores da colonização
imperialista persistiram, transformaram-se em “tecnoconolialismo” (SILVA FILHO,
2.003: 317).
Em nome dessa fantasia, somente no capítulo constitucional da Ordem Econômica e Financeira, a chamada Constituição Econômica(arts. 170 a 192 da CF),
quebramos o monopólio estatal do petróleo; acabamos com a distinção de empresa brasileira e empresa brasileira de capital nacional; possibilitamos privatização de
serviços públicos e a criação das agências de regulação; e revogamos, lamentavelmente, o comando da Carta Magna que determinava a remuneração do capital, os
famosos juros reais, em no máximo 12%. Para o universo da sociedade, tudo em vão,
já que o desenvolvimento sustentável não chegou, nem muito menos a conseqüente melhoria da qualidade de vida e o fim da miséria.
Praticamente em todos os campos das relações sociais em que temos de intervir,
legislativamente, para contribuir na transformação de nosso calamitoso quadro socioeconomico, possuímos numerosa legislação capaz de “vedar” e “modificar” a selvageria
implantada no Brasil desde quando fomos invadidos em 1500. O que realmente necessitamos é de que as leis sejam vividas, ou melhor, tenham eficácia no mundo real do
ser e, não continuem no universo do imaginário legal do dever ser.
A título de exemplificação, para reforçar a nossa argumentação, encontramos
no plano infra-constitucional inúmeras leis que poderiam, caso a eficácia fosse plena, “remodelar” a nossa realidade e levar o país às trilhas da justiça social e econômica. Dentro do Direito Econômico, temos: para vedar os abusos do poder econômico (cartel, venda casada, divisão do mercado pelos oligopólios) as Leis: n.º
8884/94 e n.º 8137/90; para a repressão das ilicitudes no mercado de consumo possuímos o famoso e avançado Código de Defesa do Consumidor; já para combater os
preços astronômicos e abusivos podemos usar a Lei Delegada n.º 04/62. Os exemplos multiplicam-se, nos diversos ramos do Direito, seja ele no penal (efetivar a segurança pública), ambiental (proteção da natureza) ou tributário (combate a sonegação fiscal).
Para reivindicarmos a eficácia da legislação, temos que travar um outro processo de disputa social, seja na mídia, nas ogns, no Judiciário e em outros espaços
possíveis, sem violência, onde os cidadãos individualmente ou organizados atuem e
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exijam as condições necessária, sejam humanas, científicas, materiais, educacionais,
naquele intento. Aliás, não é por obra do acaso, que o Movimento dos Sem Terra
(MST) no Brasil não se preocupa com a alteração do ordenamento jurídico, tendo
em vista que a legislação atual, iniciando pela Carta Magna, impõe ao Estado o poder/dever de fazer a reforma agrária e determina a função social de todos os tipos
de propriedade, inclusive das rurais. Porém, o fim dos latifúndios improdutivos e a
execução da reforma agrária continuam, apenas, letra fria na lei. O referido movimento, luta, a décadas, pela eficácia das normas jurídicas.
Não temos uma posição conservadora em relação ao Direito, mais precisamente, contra a mudança de seus comandos normativos, inclusive temos a clareza
da necessidade de alteração daquele, diante de novas realidades, imposta por múltiplos conflitos de interesses ou em virtude de fatores tecnológicos, ambientais,
dentre outros. Nestas oportunidades é que a nova legislação deve surgir.
O Direito não é revolucionário por si próprio, ele reflete as relações produtivas, culturais, educacionais, econômicas travadas no tecido social. Se as bases da sociedade são de exploração, segregação e ganância em nada adianta modificar a lei,
já que esta se transformará em fetiche, ou em documento ilusório, usado para legitimar a permanência dos “donos do poder”, visto que as perversas estruturas se perpetuam. As normas legais, isoladamente, não possuem a magia de fazer o milagre da
transformação.
BIBLIOGRAFIA
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ed. Belo Horizonte: Lider, 2001. 67 p.
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COSTA NETO. Antônio Calvacanti. Direito, Mito e Metáfora: Os lírios não Nascem da
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Hoje: O Discurso da “Inferioridade” Latino-Americana. In Fundamentos de História
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Cap. 11, p. 279-329.
SOUZA, Washington Peluso Albino. Primeiras Linhas de Direito Econômico. 4º ed.
São Paulo: Ltr, 1999. 614 p.
Os Princípios Constitucionais da
Livre Concorrência e da Livre Iniciativa e o
Amadurecimento no Direito Concorrencial
e Societário Brasileiro
Paulo Freitas Henrique de Souza
Advogado.
I.
EQÜIDADE
A sociedade deste terceiro milênio é, sem dúvida, muito diferente da que
passou do século XIX para o XX, onde o acervo de dados e contratos proporcionados pela Internet aproximaram os instrumentos de informação e comunicação.
Somente para se ter idéia, em 1960, com um cabo transatlântico, poderiam ser realizadas 138 comunicações telefônicas concomitantes, enquanto que, em 1995,
com cabo de fibra ótica, permitia-se a transmissão de um milhão e meio de ligações telefônicas ao mesmo tempo; em 1998, 140 milhões acessavam a rede Internet e, no início de 2001, internautas em todo o mundo já superava a marca dos
700 milhões.
O Século XXI traz a sensação de que está se tentando resgatar a eqüidade nas
relações pessoais, contratuais, e com isto, ensejando mudanças rápidas nas regras
sociais. A eqüidade era adotada como prioritária até o Código Civil Napoleônico –
1804 – que, aliás, este ano, completa seu segundo centenário, quando, com sua edição, deu lugar à codificação positivada, estando o juiz obrigado a decidir no estrito
cumprimento da norma.
A busca de várias maneiras, de se resgatar a eqüidade atribuída aos magistrados 1, antes do código napoleônico, cuja atual sobrecarga de regulamentação
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positivada tem levado os nossos aplicadores do Direito à eqüidade processual 2,
e não à eqüidade natural ou à justiça social3. Álvaro Villaça Azevedo diz que a
“essa igualdade e equilíbrio, nas relações jurídicas, são tão importantes, que, entre os romanos, Celso conceituou o Direito como ‘a arte do bem e da eqüidade’...” 4.
Sempre esteve evidente no direito ocidental que a eqüidade está no centro
do direito, fato este facilmente comprovado por inúmeras frases em que ela é citada com veemência: “A equidade não é senão o direito que a lei não ordenou por
escrito. ... O direito civil é a eqüidade constituída para os que são da mesma cidade (Estado) para obterem o que é seu. ... É équo que ninguém se locuplete com
detrimento de outrem. ... A eqüidade sugere isso, ainda que o direito seja omisso.
... Pareceu bem que em todas as coisas fosse preferível a ação da justiça e da eqüidade à do direito estrito. ... Igualdade se deve conservar em tudo, principalmente
em juízo. ... A propositura da causa se funda na eqüidade. ... As coisas que são contra a estabilidade do direito, assim o exigendo a utilidade, são conhecidas apenas
por eqüidade. ... Só a nós é lícito e necessário ver a interpretação estabelecida entre a eqüidade e o direito. ... O homem deve seguir a eqüidade da lei, não a da própria cabeça. ... A eqüidade acompanha a lei5”.
Essa busca incansável da eqüidade nunca deixou de existir, apenas cedeu
espaço ao positivismo6, muitas vezes interpretado de forma equivocada, e, com
isto, deixando o juiz de aplicá-la. Em outras palavras, enaltecendo o rigorismo
1 Aristóteles – Ética a Nicômaco, pág. 144, editora edipro, tradução, estudo bibliográfico e notas Edson Bini, 1ª ed., 2002,
Bauru, SP, “esta é a razão porque quando ocorrem disputas os indivíduos recorrem a um juiz. Dirigir-se a um juiz é dirigir-se à justiça pois o juiz ideal é, por assim dizer, a justiça personificada. E também os homens necessitam de um juiz
para que este seja um elemento mediano, pelo que, efetivamente, em alguns lugares eles são chamados de mediadores, pois pensam que se eles atingem a mediana na medida em que o juiz é um meio (intermediário) entre os ligantes”.
2 Paulo Nader in Curso de Direito Civil – editora Forense – Rio de Janeiro – 2003 – pág. 96, entende que a eqüidade é o “:...recurso técnico de aplicação do Direito, destinado a situar a decisão judicial no prumo da justiça. É tarefa
que exige sensibilidade e experiência do aplicador, pois, ao decidir por eqüidade, de certa forma desenvolve tarefa
análoga à do legislador. Justiça do caso concreto – eis de idéia nuclear deste valioso instrumento”.
3 Celso Ribeiro Bastos, in Comentários a Constituição do Brasil - Obra em parceria com Ives Gandra da Silva Martins
– p. 18, “A nosso ver não existe uma contradição visceral entre essas idéias. É certo que jogadas a si mesmas as forças da produção podem caminhar num sentido inverso ao da justiça, contudo, ainda assim, os Estados que mais têm
avançado na melhoria da condição humana são justamente aqueles que adotam a liberdade de iniciativa. Ao Estado
pode caber um papel redistribuidor da renda nacional. E é até indispensável que ele o exerça. O que não é aceitável
é ver-se uma contradição entre a liberdade de iniciativa e a justiça social a ponto de se afirmar que esta última só é
atingível na medida em que se negue a primeira. A justiça social consiste na possibilidade de todos contarem com o
mínimo para satisfazerem as suas necessidades fundamentais, tanto físicas quanto espirituais, morais e artísticas”.
4 Teoria Geral dos Contratos Típicos e Atípicos – Álvaro Villaça Azevedo – editora Atlas – São Paulo – 2002 – pág. 27.
5 O Direito entre a Modernidade e Globalização: lições de filosofia do direito e do Estado / André-Jean Arnaud: tradução de Patrice Charles Wuillaume – Rio de Janeiro: Renovar, 1999.
6 O termo positivismo não é, sabidamente, unívoco. Ele designa tanto a doutrina de Auguste Conte, como também
aquelas que se ligam à sua doutrina ou a ela se assemelham. Comte entende por ‘ciência positiva’coordination de
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formal em detrimento da eqüidade. Para Miguel Reale: “A primeira grande mente que dedicou a devida atenção a esse problema foi Aristóteles. Já encontramos
considerações imperfeitas nas obras dos pensadores pré-aristotélicos, mas é indiscutivelmente com Aristóteles que o problema adquire expressão precisa, que
se tornou clássica. Para o autor de Ética a Nicômaco, a eqüidade é uma forma
de justiça, ou melhor, é a justiça mesma em um de seus momentos, no momento decisivo de sua aplicação ao caso concreto. A eqüidade para Aristóteles é a
justiça do caso concreto, enquanto adaptada, ‘ajustada’ à particularidade de cada
fato ocorrente. Enquanto a justiça em si é medida abstrata, suscetível de aplicação a todas as hipóteses a que se refere, a eqüidade já e a justiça no seu dinâmico ajustamento ao caso. Foi por esse motivo que Aristóteles a comparava à ‘régua de Lesbos’. Esta expressão é de grande precisão. A régua de Lesbos era a régua especial de que se serviam os operários para medir certos blocos de granito, por ser feita de metal flexível que lhe permitia ajustar-se às irregularidade do
objeto. Na justiça é uma proporção genérica e abstrata, ao passo que a eqüidade é específica e concreta, como a ‘régua de Lesbos’ flexível, que não mede apenas aquilo que é normal, mas, também, as variações e curvaturas inevitáveis de
experiência humana”7.
Este pré-estágio8, como aquele da abolição dos escravos, dos direitos iguais
aos das mulheres, já que, em um passado não muito distante, tratou-se pessoas
como mercadorias - escravidão, a esposa de forma subordinada ao marido, e até filhos chamava-se de legítimos e ilegítimos, quando, com raras exceções, mesmo para
aquelas épocas, acreditava-se que essas condutas eram corretas, uma vez que positivadas pelo ordenamento jurídico9.
faits. Devemos, segundo ele, reconhecer a impossibilidade de atingir as causas imanentes e criadoras dos fenômenos, aceitando os fatos e suas recíprocas como o único objeto possível da investigação científica. - A Ciência do Direito – Tercio Sampaio Ferraz Junior – editora Atlas – São Paulo – 1980 – 2ª. Edição.
7 Lições Preliminares de Direito – Miguel Reale – 27ª. Ed ajustada ao novo código civil, 2003, pág. 123/126.
8 Manoel Gonçalves Ferreira Filho, prefaciando o livro de Paulo Lucena de Menezes, afirma que: “O que se passa
com a affirmative action é bom exemplo do fenômeno apontado. Difundiu-se no seio das minorias – negros, gays,
mulheres (que paradoxalmente são maioria e não minoria) – a idéia de que medidas de desigualização em seu favor são positivas, porque visam corrigir desvantagens que a minoria (não os indivídiuos) teria sofrido no passado.
Em razão disso, multiplicam-se propostas, algumas já consagradas em lei, outras em debate nas câmaras legislativas,
de todo naipe, umas razoáveis, outras absurdamente desarrazoadas. E os politicamente corretos tendem a aplaudilas, sem mensurar as suas implicações e conseqüências, os problemas que envolvem, as injustiças que eventualmente podem delas resultar, enfim, os possíveis efeitos negativos.” in A ação afirmativa (affirmative action) no direito norte-americano, editora Revista dos Tribunais, pág. 11.
9 “Afirmar-se que os filhos havidos fora do casamento têm os mesmos direitos daqueles havidos em uma relação
matrimonializada não é um declaração apenas jurídica: é a declaração de um princípio político que uma dada sociedade adota, inserido na Constituição. O que torna opaco esse reconhecimento constitucional é seu reflexo invertido: o reconhecimento da igualdade deixa de ser o próprio reconhecimento da desigualdade real. Ele revela opções políticas – Luiz Edson Fachin – Teoria Crítica do Direito Civil – Rio de Janeiro – 2000 - Renovar – pág. 291.
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Da mesma forma que, até poucos anos atrás, o Código Civil de 1916 e o Comercial de 1850 serviam como base aos nossos julgadores para as relações de consumo de contratos celebrados. Somente em 1990 como base na determinação do artigo 170 da Constituição Federal de 1988 é que entra em vigor o Código de Defesa do
Consumidor e posteriormente, em 1994 o da Defesa da Concorrência, dando tratamento diferenciado aos consumidores e na defesa da concorrência a coletividade.
II.
DIREITO CONCORRENCIAL – LIVRE INICIATIVA E LIVRE CONCORRÊNCIA
O mundo corporativo sofreu um grande impacto com a chamada globalização,
fazendo com que corporações que desenvolvam procedimentos cooperados, com lisura comportamental, parceria negocial, enfim, cooperando-se mutuamente, agregam valores, através de responsabilidade social, enquanto que as corporações despreocupadas com essas práticas, possam ficam desacreditadas mercadologicamente.
A globalização pode ser interpretada como a abertura de fronteiras para a expansão ao comércio mundial, gerando, com isto, mais empregos. Por outro lado, poderá ficar ofuscado pelas inúmeras empresas que terão decretadas suas falências,
pois, até então, mantinham-se pela ausência de concorrência ou concorrência insatisfatória. Da mesma maneira, deve caminhar o pensamento jurídico, sempre voltado em direção a um direito pós-moderno, senão se sentirá convenientemente estruturado enquanto desequilíbrios estiverem ocorrendo no mundo jurídico.
Isto nos leva a acreditar que o importante é olharmos para além das barreiras
científicas e das meras convenções atuais. Contudo, não podemos nos esquecer
que, na ausência do Estado, dependemos de pessoas, capazes de investir verdadeiras fortunas em projetos tecnológicos e científicos. Assim, normas protetivas a propriedade industrial e a defesa da concorrência são importantíssimas para garantia do
cumprimento dos princípios constitucionais da livre iniciativa e livre concorrência
(CF/88 - arts. 1º., inciso IV; 170, caput e inciso IV ).
No mundo todo, com algumas exceções, a livre concorrência tem suporte constitucional na liberdade de empresa, dentro de uma economia de mercado, mas no
Brasil, de forma diferenciada, existe uma hierarquia, onde a livre concorrência assume
status de princípio constitucional que alicerça a ordem econômica. Assim, o princípio
da livre iniciativa relaciona-se com a da livre concorrência, ou seja, dentre os princípios gerais da atividade econômica – produção ou troca de bens ou serviços, aliados
ao princípio da propriedade privada e o livre exercício de qualquer atividade econômica, independente de autorização estatal, salvo as expressamente previstas.
Frise-se que a organização constitucional da ordem econômica é tarefa árdua
e pressupõe equilíbrio de princípios e fundamentos que irão definir os objetivos gerais a serem atingidos. O artigo 170 da Constituição Federal de 1988 possui um misto de determinações liberalistas e socialistas, que poder-se-ia entender como um
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conflito de idéias, dada à variedade de interesses envolvidos. Essa aparente contradição (social x liberal) não existe. O que existe é uma coexistência de valores do liberalismo e do socialismo econômicos, onde o próprio sistema normativo determinará que se estabeleça uma compatibilidade entre eles, ao contrário da exclusão de
um, sobressaindo-se outro.
Analisando a nossa Constituição Federal10, existem três regimes jurídicos de
exploração da atividade econômica: o do monopólio, o da livre iniciativa e o da concessão. Aliás, foi o estado de direito quem desencadeou o surgimento do que se conhece hoje como direito administrativo, visando regular as relações jurídicas entre
o Estado e o particular, sendo que no começo restringiam-se ao rol de direitos individuais do cidadão, pois a preocupação maior era defendê-lo contra arbitrariedade
do poder público. Depois da Constituição de Weimar, na Alemanha, em 1923, que
foram inseridas no âmbito constitucional, as inseguranças econômicas, acarretando
o Estado intervencionista, deixando para trás aquele Estado minimalista, visando
proteger o bem estar material dos cidadãos, reconhecendo que a economia capitalista tinha em si o germe da concentração e do monopólio, que nem sempre, ou
quase nunca, implicava no interesse dos consumidores.
A economia capitalista - capitalismo - 11 pressupõe concorrência e aquela intervenção estatal que vivenciamos com maior intensidade até poucos anos atrás, que
se instalava com as empresas detidas e geridas pelo poder público ou por meio de
10 Celso Ribeiro Bastos: “Ética no Direito e na Economia” – Ética na Economia – pág. 224 – citação de Diogo de
Figueiredo Moreira Neto – “Reengenharia do Estado Brasileiro” in O Estado e o Futuro, São Paulo, RT, 1995, pág.
43 e 44. “... uma Constituição não representa uma simples positivação do poder. É também uma positivação dos valores jurídicos. A legitimidade vem a ser, portanto, a conformação do poder existente aos critérios da sociedade para
considerá-lo justo. Portanto, em toda época, há determinados fatores que devem informar o poder para que este
seja legítimo. No momento atual, um dos critérios fundamentais é o democrático. Qualquer Estado hoje que repila a democracia, acaba por entrar numa certa marginalidade mundial já que são poucos os países que contam com
uma minoria no poder. Nos dias de hoje, os Estados adotam a democracia para que sejam governados pela maioria
dos membros que a compõem a sociedade.” Flávia Piovesan afirma que “no caso brasileiro, o processo de especificação do sujeito de direito ocorreu fundamentalmente com a Constituição Brasileira de 1988 que, por exemplo, traz
capítulos específicos dedicados à criança, ao adolescente, ao idoso, aos índios, bem como dispositivos constitucionais específicos voltados às mulheres, à população negra, às pessoas portadoras de deficiência, etc”. – in Flávia Piovesan – Temas de Direitos Humanos – Max Limond editora, 1998 - pág. 131.
11 “Por terem exercido forte influência sobre a pesquisa e a interpretação históricas, três significados separados atribuídos à noção de capitalismo surgem com destaque. ... Em primeiro lugar, e talvez desfrutando maior difusão, encontramos o significado divulgado pelas obras de Werner Sombart, que buscou a essência do capitalismo não em
qualquer dos aspectos de sua anatomia econômica ou sua fisiologia, mas na totalidade dos aspectos representados
no Gelst ou espírito que tem inspirado a vida de toda uma época. Tal espírito é uma síntese do espírito de empreendimento ou aventura com o ‘espírito burgês’ de prudência e racionalidade. ... Em segundo lugar, existe um significado que encontramos mais freqüentemente implícito no tratamento do material histórico do que explicitamente formulado e que virtualmente identifica o capitalismo com a organização de produção para um mercado distante. ... Em
terceiro lugar, temos o significado inicialmente conferido por Marx, que não buscava a essência do capitalismo num
espírito de empresa nem no uso da moeda para financiar uma série de trocas com objetivo de ganho, mas num de-
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faculdade de direito de bauru
regulação dos mercados, com empresas estatais, deu surgimento à noção de serviço público, atividades consideradas como de interesse geral, e, desta maneira, deveriam estar submetidas a um regime jurídico diferente daquele que sobressai à livre
iniciativa, prevalecendo a supremacia do interesse público sobre o particular 12.
Desta forma, o sistema econômico, contido na CF/88, adotou os institutos básicos do modo de produção capitalista, ou seja, propriedade privada, liberdade de
contratar, a livre iniciativa e livre concorrência.
Fabio Konder Comparato in A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos,
observa que “... o capitalismo não é mero sistema econômico, mas uma forma global de vida em sociedade; ou, se se quiser, dando ao termo um sentido neutro, uma
civilização. Como tal, define-se ele por um espírito (no sentido em que Montesquieu
empregou ao termo), um conjunto de instituições sociopolíticas e uma prática13.
Essa aceitação resgata toda a antiga sabedoria jurídica, expressa no Digesto Romano, onde, por causa do homem, se constituiu todo o direito14.
Não se pode esquecer que essas novas perspectivas protecionistas e sociabilizadoras desencadeiam inúmeros conflitos de interesses, cabendo ao Direito tentar
minimizar esses conflitos, contudo, ao desenvolver essa sua atividade, ele acaba por
originar outros, como num círculo vicioso. E não poderia ser de outra maneira, já
que essa transformação foi ainda mais ampliada com o texto constitucional de 1988,
alterando a base do ter para a do ser, ensejando, na mesma forma, as alterações no
novo Código Civil de 2002.
Esse capitalismo parece estar mais amadurecido no Brasil, desde alguns dias
atrás. É que estamos vivenciando, diante da recente decisão do Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE -, órgão do Ministério da Justiça, no caso da
aquisição da Garoto pela Nestlé, uma nova fase em nosso direito concorrencial,
mesmo não tendo representado, referida decisão do CADE, um corte nas suas decisões anteriores15. Pelo contrário, como dito, trouxe à tona a concretização dos alicer-
terminado modo de produção. Por modo de produção, ele não se referia apenas ao estado da técnica – ao que chamou de estágio de desenvolvimento das forças produtivas – mas ao modo pelo qual se definia a propriedade dos
meios de produção e às relações sociais entre os homens que resultavam de suas ligações com o processo de produção. Desse modo, o capitalismo não era apenas um sistema de produção para o mercado – um sistema de produção de mercadorias, como Marx o denominou – mas um sistema sob o qual a própria capacidade de trabalho ‘se tornara uma mercadoria’ e era comprada e vendida no mercado como qualquer outro objeto de troca.” – Maurice Dobb
– A evolução do Capitalismo – 9ª. edição, LTC Editora, tradução – Manuel do Rego Braga, páginas 14-17.
12 Para Fernando Antonio Albino de Oliveira, DCI - ........ “Trata-se de reconhecer que certas comodidades devem
ser oferecidas na maior extensão possível, para o maior número de súditos do Estado, exigências que se entende
não são supridas a contendo pela livre iniciativa. Telefonia e comunicação em geral, energia elétrica, água e esgoto,
transporte e tantas outras acabam eleitas pelo legislador para integrar o rol de ‘serviços públicos”.
13 Saraiva, 2ª. Ed revista e ampliada – 2001 – pág. 457 e 459.
14 Hominum causa omne jus constitutum est, Justiano D. 1.5.2.
15 Demonstrar as decisões – Eternit e Brasilit , Rodhia e Sinasa, Gerdau e Pains
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ces da economia de mercado, ou seja, a sua real função, que é a proteção da concorrência, como expressamente contido na Carta Magna.
O CADE começou o ano de 2004 com quase dez casos importantes para apreciar, dentre eles, Nestlé-Garoto, Varig-Tam, Pão de Açúcar-Sé, tarifas de interconexão
– Telemar, Telefônica e Brasil Telecon. Mas o caso Nestlé-Garoto deu tanto ou mais
destaque que o caso Antártica-Brahma (Ambev), sendo, então, ambos usados comparativamente, como antagônicos. O caso Nestlé-Garoto já completava dois anos de
tramitação e, dentre as inúmeras teses e pareceres, apresentou uma novidade: os
advogados usaram e abusaram de pareceres econômicos que visualizavam como o
mercado se comportaria após a aquisição, com a redução e o aumento dos preços16.
Mesmo com essa avalanche de petições, pareceres, teses, impugnações e documentos, o CADE se portou da maneira como deveria. Explico melhor. O CADE,
desde 1994, é uma autarquia federal, em cumprimento à Lei 8.884/9417, que dispõe
sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica. Nessa qualidade - autarquia - é que algumas controvérsias surgem. Como se sabe, as autarquias
são pessoas jurídicas de direito público de capacidade exclusivamente administrativa e que gozam de liberdade administrativa nos limites da lei que as criou, não estando subordinadas a órgão algum do Estado. Todavia, mesmo sendo controladas,
possuem autonomia financeira e administrativa, portanto, descentralizadas, nas
quais o Estado tem responsabilidade apenas subsidiária a seus comportamentos. Frise-se que todos requerimentos, judiciais ou não, decorrentes de atos que lhes foram
imputados, devem ser propostos perante e contra elas, e jamais contra o Estado.
Composto por um Presidente e seis Conselheiros, escolhidos dentre cidadãos
com mais de trinta anos de idade, de notório saber jurídico ou econômico e reputação ilibada, nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovados pelo Senado Federal, o CADE legalmente goza de plena autonomia, para que não haja pressões políticas em seus julgamentos. O seu Presidente e Conselheiros possuem mandato fixo de dois anos, permitida uma recondução, mas dedicar-se-ão exclusivamente, não se admitindo qualquer acumulação, salvo as constitucionalmente permitidas.
A Lei 8.884/94 – art. 5º – determina, ainda, que a perda de mandato do Presidente ou dos Conselheiros do CADE só poderá ocorrer em virtude de decisão do
Senado Federal, por provocação do Presidente da República, ou em razão de condenação penal irrecorrível por crime doloso, ou de processo disciplinar de conformidade com a previsão legal da Lei 8.112, de 11 de dezembro de 1990 e a Lei 8.429,
16 A Nestlé sustentou que terá sua produção ampliada o que lhe possibilitaria a redução de preços, como melhor
estratégica para ampliar as vendas. Contudo, para sua concorrente Kraft, a aquisição levaria a uma estratégica de aumento de lucros, com prejuízo aos consumidores.
17 Artigo 3º.: O Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE, órgão judicante com jurisdição em todo o
território nacional, criado pela Lei 4.137, de 10 de setembro de 1962, passa a se constituir em autarquia federal, vinculada ao Ministério da Justiça, com sede e foro no Distrito Federal, e atribuições previstas em lei.
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de 2 de junho de 1992, ou, até, por receber a qualquer título, e sob qualquer pretexto, honorários, percentagens ou custas; exercer profissão liberal; participar, na forma de controlador, diretor, administrador, gerente, preposto ou mandatário, de sociedade civil, comercial ou empresas de qualquer espécie; emitir parecer sobre matéria de suas especialização, ainda que em tese, ou funcionar como consultor de
qualquer tipo de empresa; manifestar, por qualquer meio de comunicação, opinião
sobre processo pendente de julgamento, ou juízo depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças de órgãos judiciais, ressalvada a crítica nos autos, em obras técnicas ou no exercício do magistério; e, por fim, exercer atividade político-partidária.
Como autarquia, então, poder-se-ia entender que pressões políticas desencadeariam julgamento diverso daquele proferido no recente caso Nestlé-Garoto, mas
como acima dito, não foi isto que aconteceu, mantendo íntegro no seu entendimento. Ficou nítido que esse processo em que vivemos em todas as áreas de desenvolvimento e produção científica, inclusive na ciência do direito, e que mais do que
nunca precisa estar atenta e aberta para captar as mudanças sociais e com isto relacionar-se da melhor forma possível com a economia, política, educação, sociologia,
filosofia. Esse relacionamento não pode ser entendido como politização do judiciário ou judicialização da política.
Ao longo dos anos a ciência do direito foi estudada por vários filósofos, alguns
com mais destaques do que outros, sendo que podemos citar, dentre outras tão importantes, a teoria pura do direito de Hans Kelsen e a Teoria dos Sistemas de Niklas
Luhmann. A Teoria Pura de Kelsen propõe o que chama de princípio da pureza, baseando no enfoque normativo, o método e objeto da ciência jurídica, nos quais o direito para o jurista deve ser visto como norma e nunca como fato social ou como valor transcendente, valendo, isto, tanto para o método como para o objeto. Esse entendimento valeu-lhe algumas acusações de reducionista, já que esquecia de dimensões sociais e valorativas18. Em relação à teoria dos sistemas de Niklas Luhmann,
que estuda o direito positivo defendendo a existência de um meio circulante ou
18 Segundo Tércio Sampaio Ferraz Junior, sua intenção, no entanto, não foi jamais a de negar os aspectos multifaciais de um fenômeno complexo como o direito, mas de escolher, dentre eles, um que coubesse autonomamente ao jurista (Fábio Ulhoa Coelho. Para entender Kelsen; prólogo de Tércio Sampaio Ferraz Junior, p. XVI.),
onde desenvolveu a teoria de que a norma acha fundamento de validade em outra norma, até finitamente chegar,
no que chamou de norma fundamental. A norma fundamental desenvolvida por Kelsen, sempre provocou muita polêmica, podendo ser tida como o seu calcanhar de Aquiles.Para ele as normas não valem porque são justas,
ou mesmo pela eficácia da vontade que a instituiu, mas, pela validade da norma superior, aliás, mesmo podendo-se
dizer que foi ele, filósofo, sociólogo, teórico do Estado e precursor da lógica jurídica, senão o mais importante, um
dos mais importantes estudiosos da teoria jurídica contemporânea, onde “diante das dificuldades apresentadas pela
adoção da validade como uma qualidade (sintática ou semântica ou pragmática) do discurso normativo, uma saída
seria firmar a impossibilidade de reunir, num único conceito os diferentes problemas, nos quais se articula a validade jurídica.”(rodapé: Teoria da Norma Jurídica – Ensaio de Pragmática da Comunicação Normativa – Tercio Sampaio Ferraz Junior – Editora Forense - 3ª. Edição, Rio de Janeiro - 1999. – ver também - Editora Martins Fontes, Teoria Pura do Direito – Hans Kelsen - 6ª. Edição, São Paulo, 1998.
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também chamado de ambiente e dentro deste – ambiente – sistemas que, por sua
vez, são auto-referenciais, é que se produz comunicação. Para ele, tudo é comunicação. Essa teoria sistêmica, cujo conceito de autopoiese ou autoreprodução foi introduzido pelos biólogos chilenos Maturana e Varela, caracterizou os seres vivos e
estendeu o campo sociológico por Luhmann com os diversos sistemas, político, jurídico, econômico, educativo.
Cada sistema é autônomo para Luhmann e o que acontece no seu interior não
é definido ou determinado por nenhum componente do ambiente, e sim por sua
própria organização, podendo ser dito que o sistema opera de modo fechado, e somente deste modo fechado é que se consegue diferenciá-lo dos outros sistemas.
Mesmo sendo sistemas normativamente fechados, são, simultaneamente, sistemas
cognitivamente abertos, ou seja, necessitam de troca de informações entre os sistemas e seus ambientes.
Estes sistemas relacionam-se por meio de acoplamentos estruturais, através
de interações seqüenciais mútuas. Cada um deles opera com um código binário próprio: o jurídico com o código binário lícito / ilícito; o político, maioria / minoria, o
econômico, ter / não ter, mas não há hierarquia entre os mesmos, cada um operando de forma cega, sob pena de termos a politização do direito e a judicialização da
política - direito deve produzir direito e política deve produzir política, e não direito produzir política e política produzir direito19.
Desta forma, visando uma aplicação correta do direito da concorrência, segundo Celso Fernandes Campilongo20, devem estar presentes pelo menos três requisitos: “... independência das autoridades, serenidade na decisão e apego a argumentos técnicos. Esses elementos só podem operar de modo virtuoso se forem implementados simultaneamente. De nada adiantaria a independência desacompanhada dos dois outros elementos, ou o rigor técnico obscurecido pela falta de independência.” O mesmo autor, comentando o julgamento do caso Nestlé-Garoto, afirma: “O Cade sinalizou estar amadurecido para fazer valer a mola mestra de um capitalismo dinâmico e voltado ao bem-estar do consumidor: a livre concorrência. Os
três elementos foram devidamente combinados”21.
Todos os atos, sob qualquer forma manifestados, que possam limitar ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência, ou resultar a dominação de mercados relevantes de bens ou serviços deverão ser submetidos à apreciação do CADE22. Todavia,
19 Luhmann, Niklas. Sociologia do Direito I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983. Sociologia do Direito II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985. O direito da sociedade: das recht der gesellschaft; tradução provisória para o espanhol
de Javier Torres Nafarrate. A diferenciação do Direito: contribuição à sociologia e à teoria do direito. Bolonha: Sociedade Editora II Mulino, 1990. Introduión a la teoría de sistemas; publicado por Javier Torres Nafarrate). A respeito do
assunto: Política, Sistema Jurídico e Decisão Judicial. Celso Fernandes Campilongo - São Paulo: Max Limond, 2002.
20 Estado de São Paulo, 03.03.04 – quarta-feira, página A2.
21 Idem mesma artigo.
22 Lei 8884/94, artigo 54, caput.
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o CADE poderá autorizar os atos citados, desde que tenham por objetivo, cumulada
ou alternativamente, aumentar a produtividade, melhorar a qualidade de bens ou serviços ou propiciar a eficiência e o desenvolvimento tecnológico e econômico; que os
benefícios decorrentes sejam distribuídos eqüitativamente entre os seus participantes,
de um lado, e os consumidores ou usuários finais, de outro; não impliquem eliminação da concorrência de parte substancial de mercado relevante de bens e serviços; sejam observados os limites estritamente necessários para atingir os objetivos visados23.
O parágrafo 2º, do artigo 54 da Lei 8.884/94, determina que também poderão ser considerados legítimos os atos previstos no caput do artigo, desde que atendidas, pelo
menos, três das condições previstas nos incisos do parágrafo anterior, quando necessários por motivo preponderante da economia nacional e do bem comum, e desde
que não impliquem em prejuízo ao consumidor ou usuário final.
Como visto, não é tarefa fácil equacionar, jurídico-economicamente, essas atribuições, tornando-se ainda mais difícil se existir interesses políticos (e sempre existem) tentando influenciar de um lado ou outro, ou, como é mais comum, de ambos
- opostos. Assim, o CADE, que tem essa incumbência administrativa, claro, passível
de reapreciação pelo Poder Judiciário, não pode submeter-se a conchavos e politicagem, sob pena de perder a autonomia legalmente conferida.
Outro problema enfrentado pelo CADE é a neutralidade do direito societário
no direito concorrencial, ou seja, coerência entre ambos. Nas palavras de Calixto Salomão Filho, “seria com efeito paradoxal o ordenamento jurídico que, de um lado,
avaliasse negativamente um comportamento e, de outro, incentivasse sua prática do
ponto de vista organizativo”24. Em outras palavras, o parágrafo 3º, do artigo 54 da Lei
8.884/94, determina que se incluem nos atos de infração da concorrência, aqueles
que visem, a qualquer forma de concentração econômica, seja através de fusão ou
incorporação de empresas, a constituição de sociedade para exercer o controle de
empresas ou qualquer forma de agrupamento societário, que implique participação
de empresas ou grupo de empresas resultante em 20% de um mercado relevante,
ou em que qualquer dos participantes tenha registrado faturamento bruto anual no
último balanço equivalente a R$400.000.000,00.
Somente para lembrar, em uma recente operação, muito bem estruturada por
sinal, o poder de controle da AMBEV foi negociado com a empresa belga INTERBREW, o que, pela disposição legal acima citada, deverá ser submetida ao CADE também. Portanto, leis, instruções normativas, portarias, contratos, decisões administrativas ou judiciais, isto é, exemplos de comunicação jurídica, transformam e ampliam
essas comunicações, dada a complexidade da vida moderna que potencializa essas
comunicações. Deste modo, o direito torna-se incapaz de estripar essa insegurança
e garantir comportamentos, mas sem suas determinações, inúmeras atividades esta23 Lei 8884/94., artigo 54 – Parágrafo 1º. – incisos I a IV.
24 Direito Concorrencial – As Estruturas Organizativas – pág. 233 – Malheiros Editores.
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riam sujeitas a uma gama superior de incertezas, que poderia comprometer muitas
atividades. Assim, a comunicação jurídica apenas potencializa a insegurança socialmente suportável. Celso Fernandes Campilongo25 afirma: “Por isso, como um primeiro dado importante da linguagem jurídica, vale sublinhar que o direito multiplica possibilidades de comunicação e reforça expectativas de comportamento. Não
está ao alcance do discurso jurídico erradicar a insegurança ou garantir condutas.”
Portanto, operações como a Nestlé-Garoto ou a AMBEV- INTERBREW, aparentemente não resultarão apenas conseqüências na esfera concorrencial, mas, sim, no
direito societário também. Isto porque, no caso da Nestlé-Garoto, pela primeira vez,
foi assinado Acordo de Preservação da Reversibilidade da Operação – APRO, ou seja,
o acordo previu a possibilidade de reversibilidade, assim, com o APRO, Nestlé, Garoto e as autoridades envolvidas demonstraram cautelas especiais, de modo a facilitar eventual decisão por parte do CADE de não-autorização da operação, como,
aliás, veio a acontecer. Neste caso, aparentemente, e pelas medidas preventivas tomadas, as conseqüências poderão ser mais amenas do que se assim não houvesse
especificado as partes. Contudo, não é o que, aparentemente, pensam os acionistas
preferencialistas da AMBEV. Atentos aos desdobramentos que a operação com a INTERBREW causou, os acionistas preferencialistas podem ter sido os grandes perdedores no negócio. Somente para o fundo de pensão dos funcionários do Banco do
Brasil – PREVI, nos primeiros dias após a negociação, o prejuízo potencial era de 600
milhões de reais, já que o fundo é o maior dos minoritários, com aproximadamente catorze por cento do total das ações preferenciais da cervejaria.
Nesse momento, a comunicação jurídica entra em cena novamente, mas para
definir regras em outra esfera, ou seja, neste momento, o direito concorrencial cede
lugar ao direito societário. E diante destes fatos, novamente a comunicação jurídica
– neste caso a lei acionária – com o respaldo do que a doutrina passou a chamar de
Governança Corporativa, produz mais comunicação, como num ciclo vicioso.
III. GOVERNANÇA CORPORATIVA – PROTEÇÃO AO MINORITÁRIO NO
DIREITO SOCIETÁRIO
O tratamento protecionista, que busca assegurar aos minoritários direitos e
deveres garantidores do governo estratégico da empresas, é chamado de Governança Corporativa, o qual seus princípios são sedimentados na eqüidade, transparência
e prestação de contas, e pode se apresentar, também, como um novo método de enfrentar os conflitos constantes entre os majoritários - controladores e os minoritários, que investem suas poupanças ou recursos. Esses recursos, por sua vez, são utilizados pelas empresas de inúmeras maneiras, investindo na produção, capital de
giro, aquisição de bens, dentre outras, cuja captação, muitas vezes, torna-se mais
25 O Direito na Sociedade Complexa, editora Max Limonad, 2000, pág. 162.
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vantajosa que a realizada normalmente perante instituições financeiras, facilitando o
acesso a capital de maneira, normalmente menos dispendiosa.
A Governança Corporativa pode ser definida de inúmeras outras formas, ressaltando que as práticas, que desencadearam o que viria a ser assim denominada, foram sendo introduzidas dia a dia, bem antes da década de 90, onde, desde o final da
década de 10 e início da de 20, do século passado, o alemão Walther Rathenau referia-se a uma empresa de navegação, como sendo seu objetivo primordial fomentar
a navegação no rio Reno e não distribuir lucros para os sócios.
Desenvolvida de forma mais acentuada, primeiramente nos Estados Unidos e
no Reino Unido, a Governança Corporativa teve sua concepção, de maneira lenta,
conquistada em episódios aleatórios, mas sua verdadeira ascensão pode ser caracterizada pela forte influência e pressão dos fundos de pensão e de investimentos 26.
Os norte-americanos costumeiramente investem suas poupanças em fundos
de pensão, que, por sua vez, aplicam este capital no mercado acionário mundial,
com investimentos em inúmeros países, visando garantir o cumprimento dos pagamentos de seus investidores. Contudo, por essa grande dispersão de acionistas, o
poder de controle torna-se tão diluído que, muitas vezes, é impossível de identificálo, ficando fácil, então, a sua manipulação por pequenos grupos, que, mesmo diminutos, podem provocar estragos inestimáveis.
Outro fator de desenvolvimento dessa concepção chamada Governança Corporativa se deve aos vários organismos privados norte-americanos e ingleses 27, dos
inúmeros escândalos financeiros em todo o mundo e da edição do primeiro do que
viria a ser chamado de Códigos das Melhores Práticas de Governança Corporativa, editado da The Cadbury Report28.
Com o efeito da globalização29, isto pode ser notado mais acentuadamente,
pelos inúmeros investimentos efetivados por poupadores - investidores de um lado
do mundo em outro do lado oposto. Contudo, ao menor sinal de risco, seja pela falta de transparência dos administradores desses recursos, na obediência as leis, na
prestação de contas ou na falta de eqüidade entre os investidores, estes resgatam
6 California Public Personel - Calpers – Fundo de Pensão de funcionários públicos da Califórnia-EUA – Em maio
de 2003, representante deste fundo em visita ao Brasil declarou que este fundo possui 138 bilhões de dólares investidos no mundo todo, sendo que somente no Brasil ele tem investido cerca de 226 milhões de dólares, distribuído no mercado de capitais de uma forma geral.
27 Institute of Directors – Inglaterra – 1908, Conference Board – Estados Unidos – 1916, National Association of
Corporate Directors – Estados Unidos – 1977.
28 O Relatório Cadbury é assim denominado pelo nome do chairman Adrian Cadbury, que publicou em 1992 um
relatório a respeito de boas práticas de governança corporativa, após vários escândalos na Inglaterra, que demonstraram a necessidade de um estudo aprofundado nas responsabilidades do Conselho de Administração, ou seja, rever certos conceitos até então aceitos pelas companhias.
29 O Direito entre a Modernidade e Globalização: lições de filosofia do direito e do Estado / André-Jean Arnaud:
tradução de Patrice Charles Wuillaume – Rio de Janeiro: Renovar, 1999.
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seus recursos e os levam para lugar seguro, ou, pelo menos, arriscado que entendam ser estes, ou seja, o que irá preponderar será a segurança do seu investimento,
muitas vezes ficando em segundo plano o retorno que lhe seria proporcionado, gerando, assim, com essa retirada abrupta, geralmente em efeito manada a quebra de
várias companhias, desemprego, instabilidade financeira e o desespero de muitos
que, até então, beneficiavam-se destes investimentos, como já ocorreram nos anos
90, nas crises do México, Ásia, Rússia e Brasil.
Apesar da adoção de todas as vantagens aos acionistas minoritários, a Governança Corporativa não é um remédio para todos os males, em que o desenvolvimento consolidado do mercado acionário brasileiro depende, dentre outras mudanças,
de voltar a crescer em níveis compatíveis acima dos atuais e juros menores.
Assim, por mais vantajosas que sejam as regras aos acionistas minoritários e
stakeholders, somente isto não será capaz de efetivar o crescimento dos ativos no
Brasil ao nível dos mercados desenvolvidos, mas a implementação dessas regras no
maior número de companhias e sociedades, que já será um grande avanço para a
credibilidade do mercado financeiro.
Em outras palavras, se verificada por outro prisma, frise-se, para o campo do
direito, a Governança Corporativa nada mais tenta incutir nas sociedades empresárias, além do estrito cumprimento das regras contidas na norma geral. O problema
está realmente na interpretação da norma geral, que, em alguns casos, por sua omissão e contradição, pode ser melhor regulamentada, pelos próprios proprietários –
acionistas ou sócios.
Assim, a grande divulgação por todos aqueles que defendem os princípios da
Governança Corporativa, como o grande remédio, principalmente para os males do
mercado de capitais30, mesmo com caráter renovador e louvável, podem estar pregando nada mais que o estrito cumprimento dos deveres dos administradores. No
nosso entendimento, esta concepção se aplica aos demais tipos societários, principalmente a sociedade limitada, pois a Governança Corporativa pode até não atingir
uma revolução no nosso mercado acionário, contudo, seus princípios, transportados à sociedade limitada, por exemplo, causarão inúmeros avanços corporativos.
Nos Estados Unidos, até meados dos anos cinqüentas, o foco de investimentos de várias companhias não era pulverizado em diversos segmentos mercadológicos, e não existia essa diversidade de investimentos, concentrados em fundos de
30 Para Francisco da Silva Cavalcante Filho e Jorge Yoshio Misumi – Editora Campos – Rio de Janeiro – 2001 – pág.
275, observa: “ O mercado de capitais é um dos segmentos mais afetados pela globalização das economias. No Brasil, outros dois eventos importantes contribuíram para o seu desenvolvimento e aumento de exposição do País: o
Programa Nacional de Desestatização e o ingresso de investidores estrangeiros nas bolsas de valores. O PND sofreu
inicialmente resistência da sociedade que estava habituada com o estado-empresário e não vislumbrava a sua incapacidade financeira para continuar a investir em infra-estrutura e suportar o desenvolvimento econômico do páis.
Passado alguns anos, a situação inverteu-se: o foco de preocupação é a regulação das empresas privatizadas, para
não passarmos de um regime de monopólio estatal para monopólio privado.
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pensão. Esse tipo de administração, em que o foco não é apenas uma atividade, mas
o investimento em diversos segmentos, objetivando não colocar todos os ovos na
mesma cesta, pois se tropeçar e cair todos eles se quebrarão, passa a ser adotado
após a grande depressão ocorrida em 1929.
Aliás, nesta época, a utilização de capital de terceiros vindo, principalmente de
investidores, era muito baixa comparada aos das duas últimas décadas, o que acabou resultando na mudança das normas societárias, bem como na dos órgãos fiscalizadores, no caso específico dos Estados Unidos que logo após a crise que afetou a
Bolsa americana foi instituída a Securities and Exchange Commission – SEC – 1934,
da mesma maneira que no Brasil, após os escândalos da década de 70, que se alterou a Lei das Sociedades Anônimas (Lei 6.404/76) e se criou a Comissão de Valores
Mobiliários - C.V.M. – Lei 6.385/76, ou seja, a nossa versão da SEC americana.
Portanto, os investidores buscam, através da aplicação dos princípios de boa
Governança Corporativa, respaldo suficiente para se sentirem seguros de que suas
reservas estão realmente investidas (segurança), devendo retornar ao investidorpoupador quando solicitados (liquidez) e que a valorização do capital empregado
(rentabilidade) é compatível com o risco da operação ou do mercado para aquele
momento. Esse mecanismo é mundialmente aceito e desencadeará o melhor desempenho da economia brasileira se não houver desvio de conduta pelos controladores no momento de prestar as informações.
Não há dúvida que a escolha de bons profissionais para administrar grandes,
médias ou pequenas empresas é extremamente importante e necessária, a qual a eles
se delega poderes de administrar, indiretamente, até o comportamento social de inúmeras pessoas, famílias e até cidades inteiras. Essa escolha de bons administradores,
aliada à transparência nas divulgações, diminuirá vertiginosamente as chances de fraudes por parte dos administradores, que ensejariam a sua conseqüente destituição.
O poder de controle31 que muitos administradores recebem para exercer suas
atividades, no comando de empresas mundiais, na grande maioria, providas de elevadíssimos recursos financeiros, é um fenômeno que não se consegue determinar
o núcleo, onde o uso lingüístico nos leva a pensar no poder como substância, coisa
ou algo que conseguimos deter ou não. Assim, o poder pode ser benéfico ou maléfico, justo ou injusto, com caráter jurídico ou injurídico e legítimo ou ilegítimo32.
31 A respeito: O Poder de Controle na Sociedade Anônima – Fábio Konder Comparato – editora Revista dos Tribunais – São Paulo – 1976.
32 Concepções genéricas do tipo ‘poder é a atuação das causas contra possíveis resistências’ isto é, ‘poder é uma
causalidade sob condições adversas’, têm sido tentadas ultimamente, mas conduzem, como no passado, a fenômenos isolados, toda vez que se tenta verificá-los e demonstrá-los operacionalmente. O mesmo se passa com tentativas que conceberam o poder ou como forma de troca, ou como jogo. Todas essas tentativas, porém, parecem conduzir a uma teorização por meio de uma teoria da sociedade”, in Tercio Sampaio Ferraz Junior, Estudos de Filosofia do Direito – Reflexões sobre o Poder, a Liberdade, a Justiça e o Direito, pág. 35, editora Atlas, São Paulo – 2002.
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A Governança Corporativa, nesses últimos anos, está modificando a forma de pensar dos administradores, principalmente os dos grandes conglomerados, que, em sua
quase totalidade, no começo do século, apenas davam importância máxima ao lucro, que,
atualmente, inúmeras realizações sociais são prestadas por este segmento empresarial33.
O objetivo principal é voltado para a responsabilidade social, o que acaba por fixar
essas ações de respeito à sociedade, através de campanhas, doações, intervenção no auxílio cultural, seja da comunidade local, ou dependendo de sua atuação no país inteiro e,
às vezes, levando isto ao exterior. Para José Luiz Bulhões Pedreira34 a “... macro-empresa
envolve tal número de interesse e de pessoas - empregados, acionistas, fornecedores,
credores, distribuidores, consumidores, intermediários, usuários – que tende a transformar-se realmente em centro de poder tão grande que a sociedade pode e deve cobrarlhe um preço em termos de responsabilidade social. Seja a empresa, seja o acionista controlador, brasileiro ou estrangeiro, tem deveres para a comunidade na qual vivem.”
Esse comportamento ético-moral visa, acima de tudo, dar sustentação à marca e ao nome empresarial das empresas, fazendo com que sua clientela e demais
segmentos que dela dependam direta ou indiretamente, total ou parcialmente, mesmo que neste último caso, de maneira ínfima, torne-se fiel, não na busca de vantagens exclusivamente pecuniárias, e, sim, com intuito muito maior que este, que é a
preservação deste relacionamento o mais duradouro possível. Em outras palavras,
pretende a Governança Corporativa agregar valor econômico à empresa, através dos
princípios da transparência, da obediência às leis, da eqüidade e da responsabilidade pelos resultados, destacando-se também os clientes, fornecedores, empregados
e a própria coletividade como um todo – stakeholders.
A falta de normas contábeis, portanto, instituídas no âmbito do Direito, mesmo que de cunho de escrituração, capazes de enfrentar áreas desconhecidas das
transações contábeis, é extremamente preocupante, pois essas normas contraditórias, lacunosas ou omissas, acabam por deixar de lado métodos e demonstrativos financeiros, desempenhos e avaliações contábeis e todas as demais transações do dia
a dia empresarial. Essas regras de escrituração contábil foram sequer insuficientes
para evitarem os escândalos já ocorridos no Brasil, principalmente na década de 70,
e os mais recentemente nos Estados Unidos e na Itália.
Não acreditamos que essas atuais crises financeiras estejam restritas apenas ao
modelo compartilhado, cuja prática se desenvolve com mais freqüência no Reino
Unido e Estados Unidos, onde inúmeros investidores de pequeno ou médio porte
são garantidos por normas protecionistas – governança corporativa.
Esse modelo compartilhado, mesmo após as fraudes e escândalos contábeis nos
Estados Unidos, ainda é mundialmente aplaudido, mas não existem dúvidas que seu
33 Revista Exame - Guia de Boa Cidadania Corporativa - edição especial do número 754 de 2001 - Editora Abril –
ver ética e responsabilidade social nos negócios – Adele Queiroz – editora saraiva.
34 A Lei das S.A. – pág. 155.
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faculdade de direito de bauru
apogeu, com a exaltação incomparável de seu método, se deu na década de 90, pelo
crescimento surpreendente da economia americana e de seu mercado acionário.
No modelo de propriedade societária concentrada – ao contrário da compartilhada, tipo este predominantemente europeu continental – enseja-se aos acionistas minoritários desvantagens, pois permite-de ao acionista majoritário retirar receitas e patrimônio da empresa em detrimento dos minoritários, inclusive através de
transações entre empresas de propriedade do majoritário, acarretando o contrário
da propriedade compartilhada, que incentiva e desenvolve o mercado de ações, sendo que este último modelo acaba prejudicando ou pelo menos dificultando a negociação dos ativos dos minoritários.
A questão não é de modelo de administração que está em questão – concentrada ou compartilhada – da mesma maneira que outros tipos de administração já
foram tão festejados e depois colocados de lado, podendo ser que isto também venha a acontecer com a Governança Corporativa, pois aceitar que teremos modelo
único de propriedade corporativa é, quem sabe, cultuar um mito.
Ao contrário de levarmos todos a convergir a uma mesma administração de
empresas – concentrada ou compartilhada –, devemos, ao invés disso, canalizar os
nossos esforços na regulamentação legal e incentivar a manutenção com todo o suporte necessário das agências reguladoras, bem como a criação de outras ou com
subdivisão de áreas, no intuito de especializar, ainda mais, cada área de atuação, especificando seus limites e impondo regras rígidas, aliás, como tem sido o procedimento adotado nos Estados Unidos, após os escândalos recentes, com a promulgação da Lei Sarbanes-Oxley36.
Assim, da mesma maneira que a Securities and Exchange Commission – SEC
- foi criada em 1934, para regulamentar o mercado acionário americano após o crash
de 1929 e a Comissão de Valores Mobiliários – CVM – foi criada em 1976, após os
escândalos de 1970, a Lei Sarbanes-Oxley, promulgada após os recentes escândalos
nos Estados Unidos. No Brasil, a modificação urgente da legislação das sociedades
por ações deve ser implementada com a inserção de direitos aos minoritários até então não concedidos, para que se possa fiscalizar os controladores e conscientizá-los
da necessidade desta cooperação.
Preocupação legislativa deve ser concentrada também no que tange às condutas contábeis, visando que não tenhamos que passar pelo que milhares de americanos passaram recentemente, quando, exemplarmente, a toque de caixas, promulgaram a Lei Sarbanes-Oxley.
A prevenção é o melhor remédio e o aprendizado com nossas próprias experiências e erros, bem como com o dos outros, tenta evitar que escândalos como es35 Oscar Barreto Filho, As Operações a termo sobre mercadorias – Revista Direito Mercantil 29/11, observa que “o
direito comercial parte da observação dos fatos econômicos para deles extrair os princípios jurídicos”.
36 A mais abrangente legislação sobre títulos mobiliários desde a criação da SEC em 1934.
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n.
41
233
ses nos Estados Unidos possam contaminar a conduta de controladores de empresas brasileiras e conduzam efeitos muitas vezes mais devastadores que aqueles por
nós enfrentados na década de 70.
Da mesma maneira, o novo Código Civil, que traz em seu corpo os demais tipos
de sociedades, exceção apenas da anônima, que está regulada em lei especial, e por
mais bem intencionados que tenham sido seus legisladores, com a inserção de diversas disposições até então não previstas na norma geral, dando quorum privilegiado
aos minoritários para diversos casos, além de outras disposições que enquadram nos
princípios de boa governança corporativa, na questão da escrituração contábil, o texto legal pecou, ensejando vários equívocos que devem ser revistos urgentemente, evitando-se, com isto, inúmeros desencontros de demonstrações contábeis e financeiras,
principalmente pela aplicação de referidas regras para o tipo societário mais utilizado
atualmente no país, isto é, as sociedades limitadas.
Portanto, a questão crucial no direito brasileiro é reformarmos as normas de demonstrações contábeis, visando enaltecer o dever de informar; garantindo esta obrigação por parte dos administradores; possibilitando às agências reguladoras ou aos
minoritários o total acesso ao controle estratégico da empresa, bem como aplicando
a inevitável e célere sanção correspondente, no caso do desvio de conduta por parte
dos responsáveis, que deverá ser rigorosamente aplicada no intuito de evitar novos escândalos corporativos, além de desenvolver nosso tão incipiente mercado acionário e
produtivo, comparado a outros países desenvolvidos, que, muitas vezes, não possuem
nossa dimensão territorial, muito menos os nossos recursos naturais.
IV. COOPERAÇÃO RECÍPROCA – A TEORIA DOS JOGOS
É nesse contexto de igualdade e cooperação que, em matéria editada na revista Carta Capital37, sua reportagem se inicia om a frase: “A VIDA É UM JOGO – Nas últimas décadas, após longos períodos de hibernação, uma teoria criada por matemáticos se propõe a explicar praticamente todas as formas de interação humana”.
Questiona-se então: Regra matemática, para ciências sociais? Funda-se esta teoria no
chamado Equilíbrio de Nash38.
37 Carta Editorial Ltda - revista de 18 de setembro de 2002, pág. 12 por Flávio Lobo.
38 Augustin Cournot e Joseph Bertrand foram os dois a fazer esse tipo de formulação matemática, na primeira metade do século XIX. Em 1940 John Von Neumann introduz o ‘jogo de soma zero’ e poucos anos mais, em 1948, John
Nash generaliza a jogo de soma zero de forma a estendê-lo a outros tipos de jogos. A tese de John Nash não teve
muita repercussão na época, somente vem a se destacar em 1980, onde percebeu-se que vários problemas teóricos
da economia eram solucionados pelo chamado equilíbrio de Nash – nome dado à mais equilibrada e mais racional
combinação de estratégicas para um determinado jogo. Ou, em outras palavras, o conjunto de jogadas que leva a
uma situação de estabilidade, na qual qualquer mudança unilateral de estratégica por parte de um jogador lhe causaria prejuízo... A ponto de, em 1994, render-lhe o Prêmio Nobel de Economia”, in Carta Editorial Ltda - revista de
18 de setembro de 2002, pág. 12 por Flávio Lobo.
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A eqüidade ou o equilíbrio, como suporte para ciências exatas ou sociais, voltam à tona como no passado já foram destaque. A Teoria dos Jogos tem por objetivo conflito de interesses motivador de comportamentos estratégicos. Dito de outra
maneira, situação em que duas ou mais pessoas ficam expostas a resultados de suas
próprias ações e também das de outros.
Essa teoria criada por matemáticos tem como base fundamental um dos princípios das boas práticas de Governança Corporativa, que é a eqüidade, cujo tema central é a cooperação recíproca de seus componentes. André-Jean Arnaud, manifestando-se a respeito da importância do elemento formal na igualdade jurídica, faz uma interessante observação que pode levar, quem sabe, a aceitar essa visão da matemática
e da física para o campo do direito, enfatizando que “... quando ele se acha diante de
dois interesses divergentes, o homem do Direito deve, por assim dizer, agir à maneira dos físicos, ao tentar aplicar à sua matéria as condições requeridas para a realização do princípio dos vasos comunicantes, e procurar o equilíbrio dos níveis”. Logo
em seguida, conclui que “essa teoria do Direito-compromisso é bastante tentadora:
ela justifica a perenidade do jurista e a imperfeição constante do Direito”39.
A Teoria dos Jogos40 visa dar subsídios para a formulação de leis e regras que
estimulem práticas cooperadas entre seus componentes. O exemplo mais famoso
dessa teoria é o dilema do prisioneiro onde duas pessoas são presas acusadas de
um crime. Essas pessoas têm algumas alternativas que poderão amenizar ou agravar suas condenações. Se ambos os acusados permanecerem calados e não denunciarem o outro, sofrerão uma sanção mínima, suponhamos um ano cada um, enquanto que se os dois falarem receberão pena de cinco anos para cada um, e, por
último, se apenas um optar em denunciar o outro será liberado e o outro receberá
10 anos de prisão. Assim, se houver o pensamento racional, portanto lógico, visando única e exclusivamente deixar de ganhar o máximo e perder o mínimo, ambos
irão optar pela denunciação do outro, pois a lealdade não causaria benefício algum
em quaisquer das opções.
39 Pág. 205 - vide livro O Direito traído pela Filosofia.
40 Binmore, K. [1994], Game Theory and the Social Contract. Cambridge. MIT Press; Brams, J. [1990], Negotiation
Games. New York, Routledge; Dixit, A. e Nalebuff, B. [1993], Thinking Strategically. New York, W.W. Northon &
Company; Fundenberg, D. e Tirole, J. [1991], Game Theory. Cambridge, MIT Press; Gibbons, R [1992]: Game
Theory for Applied Economists, Princeton University Press; Kreps, D. [1990], A Course in Microeconomic Theory.
Princeton University Press; Morrow, J. [1994], Game Theory for Political Scientists. Princeton, Princeton University
Press, Orenstein, L. [1998], a Estratégia de Ação Coletiva. Rio de Janeiro, IUPERJ/UCAM – Revan; Prajit , D. [2000],
Strategies and Games: Theory and Practice. Cambridge, MIT Press; Rasmusen, E. [1994]: Games anda Information,
Blackwell Publishers, Second Edition; McMillan, J. [1992]: Games, Strategies and Managers, Oxford University Press;
Jon Elster – Marxism, Functionalim and Game Theory. – Theory and Society. Amsterdan/New York, 1982. Adam
Przeworsky, “A organização do proletariado em classe”. In: Capitalismo e social-democracia, São Paulo, Companhia
das Letras, 1989., Schelling, T. [1960], The Strategy of Conflict. Harvard, Harvard University Press.; Tsebelis, G.
[1990], Nested Games: Rational Choice in Cooperative Politics. Los Angeles, University of Califórnia Press.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
41
235
Ora, se, pelo exemplo acima, a lealdade não levaria a melhor das opções para
quaisquer dos criminosos, como poderia ser esta uma teoria para as questões sociais?
Em muitos casos e relações as relações não acabam neste único instante, ou seja, várias outras atitudes serão tomadas entre estas mesmas pessoas por várias outras vezes,
em que o prioritário e muito mais estratégico é abdicar de uma vantagem imediata
para aumentar os ganhos no futuro, ou pelo menos aumentar suas chances. O Dilema do Prisioneiro busca conscientizar que se você me trair, eu também trairei e nós
dois perderemos; se você for leal eu também serei e ambos ganharemos. É claro que
matematicamente as atitudes dos participantes seriam muito mais fáceis de se adequar às estratégias do que à realidade nas ciências sociais, pois na matemática as estratégias são muito mais estáveis do que no comportamento humano do dia a dia.
A prática contínua de atitudes, com certas características entre os participantes com boa reputação e credibilidade, passa a se destacar, a qual pessoas e empresas, de uma forma geral, passam a cumprir contratos e compromissos, muitas vezes
sociais ao invés de exclusivamente corporativos.
A Teoria dos Jogos ainda é muito incipiente no Brasil41, enquanto que se destaca nos Estados Unidos, onde vários estudiosos buscam, com seus princípios, decifrar mistérios de várias áreas, na biologia, inclusive, para compreender a evolução
das espécies e da sobrevivência sob a regra da seleção natural.
Estamos vivenciando essa cooperação no nosso dia a dia, para não mais pensarmos em resolver apenas o meu problema jogando o meu pneu velho no rio, pois
com a enchente ele voltará e invadirá casas, atrapalhará o tráfego de automóveis, e,
com isto, o gasto público para drenar o rio e limpar as galerias de esgoto será necessário, ao contrário, este dinheiro poderia ser utilizado para melhorar as ruas, as estradas e, assim, ir facilitando o transporte, melhorar toda a logística de distribuição
de produtos, o que poderia diminuir o valor das mercadorias, chegando mais barata ao destinatário final - que será ele mesmo – aquele que não jogou o pneu no rio.
Esse exemplo, meramente ilustrativo, traz a tona à responsabilidade social que tem
se desencadeado nos últimos anos transportando o foco de atenção do ganho maior
por curto tempo, para o ganho menor e duradouro42.
41 O Primeiro WorkShop Brasileiro da Sociedade de Teoria dos Jogos teve a participação de aproximadamente cem
estrangeiros e oitenta brasileiros – Nos Estados Unidos, um brasileiro – Bernardo Guimarães - em sua tese de doutorado em Yale, está utilizando-se da teoria dos jogos para compreender as crises cambiais do Plano Real, ou seja,
a coordenação entre os especuladores ou investidores e a interação entre eles e o Governo.
42 Ética e responsabilidade social nos negócios – pág. 74, Patrícia Almeida Ashley (coord.) – editora Saraiva, 2002 –
São Paulo – manifestando a respeito de pesquisa realizada a respeito de responsabilidade social, afirma que, as razões
pelas quais as empresas declaram se preocupar com a responsabilidade social são as mais variadas possíveis. Por exemplo, 90% das companhias pesquisadas pelo Ipea começaram a investir em ações sociais por acreditar que isso melhora sua imagem institucional. Grande parte, 74%, também considera a ampliação das relações da empresa com a comunidade um motivo imporante para ações de responsabilidade social. Bem menos empresas acreditam que ser socialmente responsável incrementa a lucratividade (19%) ou a motivação interna e a produtividade (34%)”.
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Essa Teoria dos Jogos, que surgiu com regras da matemática, destacou-se posteriormente na economia – com o Prêmio Nobel para John Nash em 1994 – para,
aos poucos, incentivar estudiosos no campo da ciência política e social. Na ciência
política a teoria pode ser estudada – por exemplo, nos Estados Unidos – onde o
voto não é obrigatório na participação dos eleitores no processo eleitoral e onde o
número de eleitores, que votam em uma eleição e outra, altera, significativamente,
de uma para outra, sendo a Teoria dos Jogos utilizada para estudar o que levaria esses eleitores a ter estas instabilidades de comportamento, estudando-se aquilo que
Kelsen já havia dito há muitos anos, em que nenhum eleitor com o mínimo de informação participa do processo eleitoral achando que seu voto será o decisivo.
As pessoas votam, principalmente quando não estão obrigadas por lei, para satisfazer seus interesses pessoais e não para cooperar, mas pensando sempre no seu
bem estar. Quantas vezes já não nos pegamos em dia de eleição – de política, do condomínio, do clube ou da companhia em que somos minoritários – com a forte inclinação para não comparecer e, assim, substituir aquilo que seria apenas mais um voto
para quaisquer dos dois lados, do que para ser realmente a decisão de desempate.
Normalmente, o sentimento de cooperar não está enraizado no dia a dia do
ser humano, ao contrário, em seu lugar instalou-se o bem-estar de não ter que se
deslocar até às urnas, ao clube, ou mesmo tirar o pijama, trocar de roupa para descer ao salão de reunião do condomínio, cuja atitude, mesmo que demore poucos
minutos, deixa que o prazer de outra atividade, aparentemente muito mais vantajosa, impere, pois, muitas vezes, possuindo a certeza que o seu único voto não fará
qualquer diferença no cômputo final.
Assim, se pensarmos desta maneira, ou seja, no bem-estar de continuarmos fazendo somente aquilo que nos dá muito mais prazer do que votar, não haveria sentido para que milhares de pessoas, mesmo desobrigadas, precisassem se deslocar
para exercer seus direitos de voto. A motivação moral se sobrepõe, em diversos casos, ao bem estar, na qual a cooperação passa a ser muito mais importante, e o ser
humano passa a visualização dessas práticas corriqueiras da vida com outro enfoque.
Questiona-se: Porque em alguns países desenvolvidos, em um plebiscito – hipoteticamente - para mantença de um determinado tributo no percentual atual, aumentá-lo mais 2%, mais 3%, ou mais 4%, vários eleitores votam o aumento de 4%, enquanto que no Brasil, se desobrigados de votar, pouquíssimas pessoas deixariam seus
afazeres mais prazerosos para irem votar, imagine então se para aumentar tributo?
A regra da cooperação e da motivação moral pode nos responder a isto.
Num país onde a obrigação de devolver aquilo que foi arrecadado para a sociedade é regra básica, os eleitores utilizam-se da regra da cooperação para viabilizarem
empreendimentos de grande porte, ou seja, sozinho, pagando 2% a mais deste tributo, não seria suficiente para construir uma ponte ou levaria muitos anos, enquanto que, com o valor de todos, isso poderia ser implementado imediatamente. Entretanto, o brasileiro que sabe que esse dinheiro tem a grande chance de se-
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quer chegar a comprar um mero saco de cimento sente-se desmotivado e não
comparece para votar.
Essa adaptação da Teoria dos Jogos43, com conceituação básica da matemática
para a ciência política, direciona-nos, também, para as deliberações em assembléias
e reuniões corporativas, em que diversos sócios deixam de exercer seus direitos,
mesmo podendo, por não estarem obrigados e desmotivados com o resultado que
os administradores lhe trazem, ou que não fará sentido no seu entendimento, concluindo, pois, que o voto não trará qualquer mudança no cômputo geral.
Poderíamos modificar o dilema do prisioneiro para o dilema do CEO, lembrando que no primeiro ambos cooperam, ambos desertam, o jogador A coopera
enquanto o B deserta, ou jogador B coopera e o A deserta, quando dos jogos contínuos estas atitudes levam com que os jogadores venham a desertar mutuamente nas
situações vindouras, o que não seria bom para ambos os participantes.
O segundo é uma adaptação do dilema do prisioneiro em que vivenciamos
nos anos noventas com a grande expansão econômica, principalmente americana,
com o pagamento aos chief executive office – CEO’s – de verdadeiras fortunas, por
terem atingido lucros inacreditáveis. Com o passar dos anos, estes mesmos ganhos
tornariam-se insustentáveis, fazendo com que o CEO escolhesse entre manter-se íntegro e, com isto, cooperar com os acionistas e desfazer de seus bônus, correndo
ainda o risco de ser despedido - ou se apresentassem informações e demonstrações
contábeis - financeiras fraudadas, manteriam seus milhões de dólares em bônus.
A deserção à cooperação se tornaria muitíssimo vantajosa ao CEO, que apresentaria ganho imediato e certo e, em contra-partida, se a fraude fosse descoberta, poderia levar anos para que isto ocorresse, frise-se, se ocorresse – poderia ser que ninguém
descobrisse – e a sanção a ser imposta poderia ser insignificante, se comparada a milhões de dólares recebidos. Comparando com o dilema do prisioneiro do CEO, seria
como oferecer ao prisioneiro que trair seu parceiro no crime que lhe fosse dada a liberdade naquele momento e um cheque de milhões de dólares, sendo que se cooperasse com seu parceiro isto poderia causar-lhe a diminuição da pena em alguns meses.
O resultado do dilema do CEO é muito desequilibrado. Em outras palavras, a
matriz de resultados é muitíssimo elevada, fazendo com que o CEO desista de coo43 A teoria dos jogos oferece um sistema relativamente simples de manipular e de adaptar para diversas áreas do conhecimento, como a ciência política, a ciência da computação e a biologia. Está sendo desenvolvida até uma nova área
da filosofia inspirada na teoria dos jogos: a epistemologia interativa. – Ehud Leher, professor da Faculdade de Ciências
Matemáticas da Universidade de Tel-Aviv – A teoria dos Jogos é uma maneira formal de explicar o comportamento racional quando a escolha da ação mais eficiente depende de como você pensa que os outros vão agir – Stephen Morris, professor de Economia da Universidade de Yale, EUA – A forma de ver os fenômenos induzida pela teoria dos jogos enfatiza os processos dinâmicos. Aplicada à teoria monetária, por exemplo, ajuda a mostrar que as instituições,
mesmo podendo variar de país a país, não são acidentes históricos: elas existem em razão de necessidades lógicas básicas do sistema social. Martin Shubik – professor de Economia Matemática Institucional da Universidade de Yale – revista carta capital – Carta Editorial Ltda - 18 de setembro de 2002 – pág. 16 – reportagem Flávio Lobo.
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perar, pois normalmente possui alta capacidade intelectual, habituado a decidir, sustentando-se em critérios de racionalidade. Esses critérios de racionalidade sobreporão alguns elementos, tais como, vantagem pecuniária, chance de não ser descoberto, ou, se a mesma for desvendada, poderá, ainda, levar vários anos, e, finalmente,
se assim acontecer a sanção a ser imposta, poderá não ser tão rigorosa.
Assim, esta é a razão de inúmeros escândalos financeiros, que tivemos conhecimento em todo mundo, e, mais recentemente, com ênfase nos Estados Unidos e
na Itália44, sendo que isto não se deu por acaso, mas sim por falta de ética e cooperação, afinal de contas a situação era muito mais propicia para a deserção pelos
CEO’s do que a da cooperação.
Não existe explicação ou justificativa para a falta de ética45, o que poderia ter
diminuído o risco desta situação era a não concessão de bônus tão elevados aos
CEO’s, uma administração mais compartilhada, auditoria independente sem interesse direto no resultado, seja através de outros contratos ou de pagamentos milionários e principalmente uma legislação severa, punindo exemplarmente aqueles que
se desviam de suas obrigações, que, além de qualquer outra coisa, deverão pautarse pela ética46.
A teoria dos jogos deve ser estudada, neste caso, como em inúmeros outros, não
para ser usada por advogados dos fraudadores em seus julgamentos, como parte da defesa, insinuando que os mesmos acabam por ser induzidos a cometer o crime, já que
inúmeros fatores favoreceram a prática das ilicitudes cometidas, mas, ao contrário,
como parâmetro para encontrar falhas na estrutura admissional, seja com vantagem pecuniária direta ou indireta e poder demais, obrigações e fiscalizações de menos.
A teoria do jogos pode adotar, então, uma frase já bem antiga e de conhecimento da maioria – eu coço suas costas, você coça as minhas – o que também poderia ser chamada de eqüidade comportamental. Se eu coço suas costas e você coça
a minha, estamos contratando tarefas recíprocas. Contudo, se hipoteticamente pen44 Veja o estrago que os escândalos corporativos nos Estados Unidos causaram ao mercado financeiro, onde o
Presidente George W. Bush vem a público pedir apuração rigorosa aos culpados, e em contra-ataque a mídia levanta suposições que ele também teria praticado atos semelhantes quando administrador de empresas no Estado
do Texas, bem como, o caso Parmalat na Itália.
45 Geraldo Camargo Vidigal in Ética no Direito e na Economia leciona: “14. Em múltiplos trabalhos que tenho publicado, pareceu-me fundamental dramatizar o dualismo que no ser humano é imanência: dei numerosas vezes ênfase ao contraponto entre os reclamos da individualidade, de um lado, e da vocação de social, de outro, porque desse contraponto brotam as diferentes ciências valorativas, que assumem, em diferentes esferas do convívio humano
e sob múltiplos critérios específicos, a partir de peculiares valorações, suas funções ordenadas e de orientação.” –
Ética no Direito e na Economia – Geraldo Camargo Vidigal – Coordenador – Ives Gandra da Silva Martins – editora pioneira – 1999 – pág. 86.
46 Logo, se nas coisas práticas existe algum fim que se deseja por si mesmo, e por ele se deseja todo o resto; e, se
é verdade que nem toda coisa desejamos por outra (se não, ir-se-ia ao infinito: donde inútil e vão fora o nosso desejar): claro está que tal fim será o bem, ou antes o sumo bem. A Ética – Aristóteles – tradução: Cássio M. Fonseca
– Coleção Universitária – Editora Tecnoprint S/A.
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sarmos que um dos contratantes tem mais coceira nas costas do que o outro e em
horas inoportunas, pergunta-se: terá o outro contratante a obrigação de cumprir
essa atividade ou tratando de um desequilíbrio contratual inaugural, mesmo previsível no ato de sua elaboração?
Portanto, estamos vivenciando uma nova época, na qual o Direito está buscando verdadeiramente a eqüidade nas relações trabalhistas, consumeristas, concorrenciais, civis, comerciais, enfim, em todos os seus ramos, já que a base é o protecionismo a todos, inserido no texto constitucional. Este equilíbrio não é a teoria da imprevisão e sim o princípio da onerosidade excessiva. Álvaro Villaça Azevedo afirma: “em
meu entender, é melhor utilizar o princípio da onerosidade excessiva, fora do âmbito
mais amplo da teoria da imprevisão, porque ele mede, objetivamente, o desequilíbrio
no contrato, com insuportabilidade de seu cumprimento por um dos contratantes.”47.
Acreditamos que o que se pretende com a adoção da onerosidade excessiva,
ao contrário da teoria da imprevisão, é atenuar as controvérsias que a mesma causa,
ou seja, prever ou imaginar as possibilidades no ato da celebração do contrato nos
leva a visualizar todas as hipóteses, ao contrário daquela que, mesmo o fato sendo
previsível, por algum motivo – até mesmo previsível – tornou-se o contrato excessivo, desequilibrou-se.
Imagine, como exemplo, defender a teoria da imprevisão para aumento abusivo em contrato em dólar, como aconteceu recentemente em larga escala nos contratos de leasing de automóveis, aonde a moeda americana, nos últimos anos, já valorizou e desvalorizou inúmeras vezes. É para que descartássemos essa teoria - da imprevisão -, para substituí-la pela da onerosidade excessiva ou equilíbrio contratual –
onde a eqüidade das partes é que deve nortear a elaboração contratual e o seu integral cumprimento, aliás, isto já era defendido há dois mil anos, no direito romano48.
V.
ÉTICA E ECONOMIA
O conceito de ética nos últimos anos, isto quer dizer, no século XX e neste
começo do século XXI, vem se intensificando, tornando-se, sem dúvidas, um dos temas mais debatidos, em diversas outras áreas, inclusive com grande intensidade no
direito49. André Franco Montoro in Retorno à Ética na Virado do Milênio, respondendo ao questionamento do porquê a ética voltou a ser um dos temas mais traba47 Álvaro Villaça Azevedo – Teoria Geral dos Contratos Típicos e Atípicos – editora Atlas – 2002 – São Paulo – pág. 35.
48 Vide - Direito Romano Moderno – Introdução ao Direito Civil Brasileiro – J. Cretella Junior – Editora Forense –
7ª. Edição, 1998 – Rio de Janeiro – Direito Romano – José Carlos Moreira Alves – Editora Forense – 6ª. ed. Revisada e acrescentada – Rio de Janeiro – 1998 e Manual de Direito Romano Alexandre Correia e Gaetano Sciascia, Sedegra Sociedade Editora e Gráfica Ltda, Rio de Janeiro – sem data.
49 A respeito da matéria. Adolfo Sanchez, Vazquez, Ética, 17ª. Ed., Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1997; Álvaro L.M. Valls, O que é Ética, 1ª. Ed., São Paulo, Editora Brasiliense, 1994; Mario A. L. Guerreio, Ética Mínima para Homens Práticos, 1ª. Ed., Rio de Janeiro, Instituto Liberal, 1995; Sebastião Amoedo, Ética no Trabalho, 1ª. Ed., Rio de
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faculdade de direito de bauru
lhados do pensamento filosófico contemporâneo, afirmou que a resposta talvez
possa ser indicada no célebre título do romance de Balzac, ‘Ilusões Perdidas’.
‘Quiseram construir um mundo sem ética. E a ilusão se transformou em desespero. No campo do direito, da economia, da política, da ciência e da tecnologia, as
grandes expectativas de um sucesso pretensamente neutro, alheio aos valores éticos e humanos, tiveram resultado desalentador e muitas vezes trágico’50.
A popularização da terminologia ética, nestes últimos cem anos, aumentou de
forma inusitada, podendo, inclusive, ser justificada em razão da sua beleza fonética,
onde a sua simples menção transmite a sensação de cultura, cercada de mistério,
por ser uma nomenclatura indefinida, utilizada, principalmente, em lugar de conduta - ‘conduto’, procedimento moral ou de comportamento51, além de todo o entusiasmo motivado em decorrência da recente virada ao terceiro milênio, momento
em que nós, normalmente, aceitamos como sendo o oportuno para repensar nossas atitudes, ideologias, e etc., até porque, neste século que se encerrou, testemunhamos duas guerras mundiais, além da concentração da riqueza, da fome e a miséria dos países pobres, o ataque ao meio ambiente, com a devastação da natureza, enfim, toda a sorte de menoscabos aos valores mais prezados pelos homens, que,
diante de tudo isso, faz-se necessária uma revisão ética52.
A ética tornou-se o centro primordial das discussões, seja a respeito do meio
ambiente, na matança de animais para consumo alimentar ou não, nos ricos e pobres, na eutanásia, no suicídio, no aborto, e, inclusive, nas relações de direito concorrencial e societário, entre concorrentes, controladores - investidores, controladores - empregados, controladores – coletividade, tratando da ética e da responsabilidade social53.
Janeiro, Quality Mark, 1997; Coletânea de artigos sob o título: Ética na Constituição; Emmanuel Carneiro Leão, Ética na Comunicação; Ester Kosovski, Ética, Imprensa e Responsabilidade Social, Ética e Contemporaneidade, Sujeito e Destruição do Destino, Moniz Sodré, Ética, Política e Psicanálise, Fábio Lacombe, Desejo de Ética; Bertrand de
Jouvenel, A Ética da Redistribuição, 1ª. ed., Porto Alegre, Editora Ortiz, 1996; José Nedel, Ética na Comunicação, Revista Cultura e Fé, n. 83, ano 21, Porto Alegre, Instituto de Desenvolvimento Cultural, 1988, Herbert de Souza, Ética, Coletânea Polêmica, 1ª. Ed., São Paulo, Editora Moderna, 1997, Ética Prática, Peter Singer, tradução Jefferson Luiz
Camargo, 3ª. Edição, Ed. Martins Fontes, São Paulo, 2002, Ética na Virada do Século – Busca do Sentido da Vida –
Coleção Instituto Jacques Maritain, coord. Maria Luiza Marcilio e Ernesto Lopes Ramos, São Paulo, LTr, 1997.
50 Pág. 17e 18 – Ética na Virado do Milênio – Busca do sentido da vida – coord. Maria Luiza Marcílio e Ernesto Lopes Ramos – 2ª. Ed., ed. LTr - 1999.
51 “A Ética, apenas atributo pessoal? – Ética no Direito e na Economia – pág. 95.
52 Para Celso Ribeiro Bastos (rodapé: Ética no Direito e na Economia – Ética na Economia – pág. 217.
53 Ética e responsabilidade social nos negócios – pág. 75, Patrícia Almeida Ashley (coord.) – editora Saraiva, 2002 –
São Paulo – observa que “Ética e responsabilidade social nos negócios são temas ainda em desenvolvimento no Brasil. Não houve o registro de nenhum boom que merecesse menção honrosa nas diversas mídias existentes. Mas, sem
dúvida, o cenário já se alterou bastante e tende a mudar gradativamente. É grande a expectativa no que concerne à
propagação de um ideário social no meio empresarial brasileiro. Algumas empresas instaladas no Brasil têm responsabilidade social como assunto constante em suas agendas. Muitos empresários brasileiros já perceberam que con-
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A análise do cotidiano daqueles que estão próximos de nós deixa transparente que o comportamento ético não determina a crença no céu e no inferno. A vida
deve ter sentido se estivermos correndo atrás de um objetivo maior do que os nossos interesses pessoais, algo que nos possibilite visualizar a vida, com uma importância que ultrapassa os limites do estado consciente, sendo que uma maneira de
solucionar isto é através da adoção do ponto de vista ético, ou seja, exigindo que se
ultrapasse o próprio ponto de vista e, ao contrário disso, que seja assumido o ponto de vista de um outro espectador, desde que ele seja imparcial. Dito de outra maneira, agir com ética é uma maneira de transcender as próprias angústias e preocupações e do ponto de vista mais objetivo cabível, identificar-se54.
Mesmo com essa proliferação de estudos recentes, o tema ficou praticamente restrito, em dois mil anos, aos três livros de Aristóteles55, sendo que, desde o seu
legado em Ética a Nicômaco, “... os reclamos de procedimento ético cresceram sempre, em intensidade e extensão. Não existe área, da vida ou da organização social,
em que as preocupações éticas não se manifestem”56.
Muitas dúvidas pairam quando escutamos a palavra ética ser divulgada, de forma indiscriminada. Contudo, questiona-se: Ético é ser bom? Ético é ser justo? Ético
é ser idôneo? Ético é não ser egoísta? O que é ser bom, justo ou egoísta?57.
Entendemos que não existe uma definição padrão, pelo contrário, com a proliferação de estudiosos a respeito da Ética, inúmeros conceitos foram lançados58.
tribuir para o bem-estar da comunidade em que atuam é o divisor de águas entre as empresas que se omitem e as
que atuam positivamente em seu meio, respeitando-o e valorizando os diversos públicos que dele fazem parte”.
54 A Filosofia do Direito de Immanuel Kant, Grandes Filósofos do Direito, pág. 237/238, “[As Leis da Liberdade como
Morais, jurídicas e Éticas.] – As Leis da Liberdade, diferentemente das Leis da Natureza, são Leis morais. Na medida em
que se referem apenas a ações externas e sua legalidade, são chamadas de jurídicas; mas, se também exigirem que, enquanto Leis, sejam elas mesmas os Princípios de determinação de nossas ações, são éticas. A concordância de uma ação
com as Leis Jurídicas é sua Legalidade; a concordância de uma ação com as Leis Éticas é sua Moralidade ...”.
55 Aristóteles (384-322 a.C.), de 300 a.C a 1677 d.C. Ética a Nicômaco, Ética de Eudêmico e Grande Ética.
56 Gerlado Camargo Vidigal - Ética na Economia – pág. 84.
57 Aristóteles – Ética a Nicômaco, pág. 140, editora edipro, tradução, estudo bibliográfico e notas Edson Bini, 1ª ed.,
2002, Bauru, SP, “... visto que um homem injusto é alguém não eqüitativo, além de ser injusto, iníquo, está claro
que correspondendo ao iníquo (desigual) há uma mediana, nomeadamente aquele que é igual, pois em qualquer
tipo de ação na qual há um mais e um menos, é também admissível o igual. Se, então, o injusto é o iníquo (desigual), o justo é o igual – uma posição que recomenda a si mesma a todos sem necessidade de evidência; e uma vez
que o igual é uma mediana, o justo será uma espécie de mediania, também”.
58 “1- Adolfo Sanchez, Vazquez, Ética, 17ª. ed., Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1997; p. 12:‘Assim como os problemas teóricos morais não se identificam com os problemas práticos, embora estejam estritamente relacionados,
também não se podem confundir a ética e a moral. a ética não cria a moral. A ética é a teoria ou ciência do comportamento moral dos homens em sociedade. Ou seja, é ciência de uma forma específica do comportamento humano.’ 2 - Álvaro L.M. Valls, ‘O que é Ética’ , 1ª. ed., São Paulo, Editora Brasiliense, 1994; p. 7:‘A ética é daquelas coisas
que todo mundo sabe o que são, mas que não são fáceis de explicar, quando alguém pergunta. Tradicionalmente
ela é entendida como um estudo ou uma reflexão, científica ou filosófica, e eventualmente até teológica, sobre os
costumes ou sobre as ações humanas. Mas também chamados de ética a própria vida, quando conforme aos costu-
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Assim, parece que a Ética não é simplesmente um estudo, uma filosofia, ou até
qualquer outra definição mais simples ou complexa, que surgiu há mais de dois mil
anos e cultivou muitos admiradores nestes últimos cem anos, principalmente após
a segunda metade do século XX59.
mes considerados corretos etc.’ 3 - Mario A. L. Guerreio, Ética Mínima para Homens Práticos, 1ª. ed., Rio de Janeiro, Instituto Liberal, 1995, p. 25: ‘A ética é uma disciplina filosófica cujo objetivo de investigação é a procura de
princípios regulativos das condutas corretas e incorretas.’ 4 - Sebastião Amoedo, Ética no Trabalho, 1ª. ed., Rio de
Janeiro, Quality Mark, 1997, p.17: ‘Para que possamos consensar um sentido ético comum é necessário distinguir
claramente a ética normativa ou prescritiva. A descritiva descreve a forma como as pessoas agem e explica sua ação
em termos de julgamentos de valor e pressuposições. A normativa ou prescritiva estuda a forma como as pessoas
devem agir e analisa os julgamentos de valor e pressuposições que justificam tais ações. A normativa ou prescritiva
é encontrada em nossos Códigos, muitos deles baseados no princípio da reciprocidade.’ 5- Coletânea de artigos sob
o título: Ética na Constituição, 1ª. ed., Rio de Janeiro, Mauad Editora, 1995. 5.1-Emmanuel Carneiro Leão, ‘Ética na
Comunicação’, p. 17: ‘No aspecto dinâmico de sua constituição, a Ética é uma luta obstinada e sem tréguas contra
as abstrações na conduta humana.’ 5.2-Ester Kosovski, ‘Ética, Imprensa e Responsabilidade Social’, P. 35: ‘Clama-se
por ética na política em tempo de corrupção, cinismo e apropriação indébita televisionada, Aética, preocupação
constante de filósofos, desde Sócrates, Aristóteles, Platão, passando por Spinoza, Kant e Hegel e agora mais do que
nunca devido ao anseio por aquilo que tanta falta faz. Na experiência ética, a pessoa é regida pela sua própria liberdade de opções, o que para muitos é mais difícil do que refrear-se por pressões exógenas.’ 5.3- Wilson Batista, ‘Ética e Contemporaneidade, Sujeitos e Destruição do Destino’, p. 40: ‘Ética, como ciência, é hoje disciplina de um
campo do conhecimento humano chamado filosofia.’ 5.4-Moniz Sodré, Ética, Política e Psicanálise, p. 53: ‘Fica cada
vez mais evidente, portanto, que ética não é a ciência dos homens ou da moral, tal como se confundem os campos
a partir da tradução latina (mor, moris). Ética é de fato uma ontologia, uma teoria do ser que, no interior da Filosofia, indaga sobre os meios para atingi-las.’ 5.5 - Fábio Lacombe, Desejo de Ética; p. 96: ‘A Psicanálise promove, através de sua metodologia, não uma repulsa à ética, revelando que, em função dela, os sujeitos se perderam de si próprios e se engajaram numa dinâmica de relacionamento que se restringiu aos limites de uma relação de objetos.’ 6Beltrand de Jouvenel, A Ética da Redistribuição, 1ª. ed., Porto Alegre, Editora Ortiz, 1996, p. 33: ‘Tratando-se a redistribuição (da renda) unicamente no campo da ética, nossa primeira preocupação deve ser distinguir nitidamente o ideal social da equiparação da renda de outros aos quais ele está sentimental, mas não logicamente associado’
e, p. 72: ‘O redistribuitivismo traça seu rumo de ação partindo inteiramente da sociedade que busca reformar. Um
crescente poder de consumo é a promessa feita, e cumprida, da sociedade mercantil capitalista – e é essa também
a promessa dos reformistas modernos. E, na verdade, essa escolha da direita ou da esquerda deve, no fim das contas, ser considerada não uma escolha verdadeiramente ética, mas sim uma aposta;’ 7- José Nedel, ‘Ética na Comunicação’, Revista Cultura e Fé, n. 83, ano 21, Porto Alegre, Instituto de Desenvolvimento Cultural, 1988, p. 65. ‘Ética não é a filosofia primeira. Nesta qualidade, é antecedida pela filosofia teórica ou especulativa, e por ela condicionada. Pressupõe, assim, não só uma filosofia primeira, ou metafísica geral, que trata do ser enquanto ser; como também várias metafísicas especiais, particularmente a antropologia filosófica, a filosofia da natureza ou cosmologia e a
teologia natural ou teodicéia’ 8- Herbert de Souza (Betinho), Ética, Coletânea Polêmica, 1ª. ed., São Paulo, Editora
Moderna, 1997, p. 13: ‘Ética é um conjunto de princípios e valores que guiam e orientam as relações humanas. Esses princípios devem ter características universais, precisam ser válidos para todas as pessoas e para sempre”, in
Carlos Brandão - pág. 91.”, onde o autor transcreve inúmeras definições de Ética.
59 “Na segunda metade do século 20, é impressionante o volume de publicações sobre ética, em todas as partes do mundo e em todos os setores do conhecimento. As publicações, estudos, pesquisas e debates sobre o
tema estendem-se a todas as áreas da atividade humana. Ética na política, no direito, na indústria, no comércio,
na administração, na justiça, nos negócios, no esporte, na ciência, na economia, na comunicação. As obras sobre ética em seus múltiplos aspectos enchem as estantes das bibliotecas e das livrariais. ‘Ética para Amador’ é
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A Ética possui algo inerente à alma, que pode ser mais ou menos desenvolvida com a educação ou mesmo pelos desafios profissionais e sociais. Em outras palavras, pessoas pobres que pautam suas condutas em certas regras, que podem ser
consideradas, por alguns, como éticas, quando deixam de ser pobres, inclusive pelo
estudo e educação, tornam-se, muitas vezes, antiéticas. É claro que inversamente
também, ricos que pautam suas condutas pela ética e deixam de praticá-las, quando
tornam desapossados de seus bens. Certas pessoas não conseguem que a ética se
extravase, o que, normalmente, agracia quem pauta suas condutas nela, a sensação
de bem estar, o que é um fenômeno muito misterioso.
Neste sentido, Miguel Reale leciona: “todos os homens procuram alcançar
o que lhes parecer ser o ‘bem’ ou a felicidade. O fim que se indica com a palavra ‘bem’ corresponde a várias formas de conduta que compõem, em conjunto,
o domínio da Ética”. No mesmo sentido, Geraldo Camargo Vidigal diz “... que no
caso da Ética, o fundamento e validade de todo o sistema de ordens repousa nas
idéias do Bem e do Vero, onde os preceitos da ética e da moral pressupõem subordinação e observância de cada pessoa, bem como de suas associações, nas diversas maneiras que adotam, os princípios e normas jurídicas, a jurisprudência
consolidada e a doutrina, interpretada pelo merecimento que a comunidade dos
juristas conferem aos diversos autores”60.
Assim, o mundo corporativo deveria pautar com ética, seja nos atos de concentração concorrencial ou societário. Isto porque, ao mesmo tempo em que há
o cumprimento da legislação, as empresas apresentam a todos suas vantagens,
onde o princípio da transparência, realizado de maneira devida, é um grande motivador e demonstra a real situação para aquele momento.
A ética, por sua vez, como pressuposto à informação voluntária ou obrigaória, da mesma maneira que o dever de informar, transmite segurança, se realmente for aplicada. Se isto realmente acontecer, ou seja, se as regras de conduta corporativa forem observadas sob os parâmetros éticos, poderemos, quem sabe um
dia, deixarmos de aplicar pena restritiva de liberdade para administrador, conseo título do estudo de Fernando Savater que se tornou o best-seller dos livros vendidos na Espanha, com sete
edições num só ano, em 1991. E a parte da Filosofia mais estudada neste final de século é a Axiologia, a Filosofia dos ‘Valores’ (ver relação ao final deste artigo) Paralelamente a essa intensa produção da ciência, da arte e
da filosofia, multiplicam-se em toda a parte movimentos populares ou associativos reivindicando ética na vida
pública, na vida social e no comportamento pessoal. Movimentos semelhantes à famosa ‘campanha das mãos
limpas’, na Itália, vêm ocorrendo em quase todas as Nações. No Brasil, esses movimentos provocaram processos inéditos em nossa história, que culminaram com a punição de altos funcionários, a cassação de mandatos
de parlamentares e do próprio Presidente da República. Esses fatos relevam – no campo da produção intelectual e do comportamento social – um incontestável retorno às exigências de ética”, in pág. 17 – Ética na Virado do Milênio – Busca do sentido da vida – coord. Maria Luiza Marcílio e Ernesto Lopes Ramos – 2ª. Ed., ed.
LTr - 1999.
60 Geraldo Camargo Vidigal - Ética na Economia – pág. 83.
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lheiro, advogados, e etc., como os ordenamentos cada vez mais estão inserindo
sanções mais rígidas61.
Da mesma forma, as legislações não precisariam dividir a receita auferida pela autuação de empresas, que sofrem processos por seus ex-empregados, que denunciam
fraudes, normalmente praticadas sob a anuência de seus superiores hierárquicos, chamados de whistleblowers, que recebem proteção de demissão sem justa causa.
No estágio que a humanidade está, mesmo com as inúmeras atitudes que corriqueiramente presenciamos, de desmandos corporativos, sonegação, corrupção e etc.,
não deve ser desprezada a conscientização da informação voluntária, enaltecendo a ética e a transparência, pois a grande maioria dos administradores são pessoas com certo
grau de cultura que as diferenciam da grande maioria, o que, aparentemente, nos leva
crer que a conscientização dessas, pode ser mais fácil do que os dela desprovidos.
Nesse sentido, não restam dúvidas que a regulamentação dos mercados é imperiosa, inclusive nos moldes da lei Sarbanes-Oxley, editada recentemente nos Estados Unidos. Assim, critérios de um direito concorrencial maduro, aliado à boa Governança Corporativa são essenciais para o cenário mundial atual, onde a ética deve
imperar, sob pena de termos que, cada vez mais, agravar as sanções, o que, como
tem sido demonstrado, não é o melhor remédio.
A interpretação da vontade do legislador não deixa dúvida para que se entenda que o simples cumprimento da norma já seria suficiente para agir com ética, frise-se, no que pertine ao mundo corporativo, mas não que se tem ouvido falar nos
últimos tempos62.
61 Livro do modesto carvalhosa e Nelson eirizik – pág 530 – “O Capítulo VII-B, inserido na Lei n. 6.385/76, demonstra, inicialmente, a preocupação do legislador em incriminar condutas que eram tidas apenas como ilícitos administrativos. Tal postura é passível de críticas, uma vez que, conforme vem demonstrando a moderna teoria crítica do Direito Penal, não se deve tentar lograr a estabilidade das bases econômicas e financeiras de um Estado democrático mediante o uso de um instrumento repressivo, rotulador e, em princípio, irracional, como é o sistema punitivo criminal.
Com tal procedimento, estar-se-ia, na realidade, procurando compensar a injustiça da estrutura socioeconômica com
a irracionalidade no âmbito jurídico Assim, a legislação penal da espécie reflete uma ‘nova onda’ punitiva, uma injustiça ‘politicamente correta’, a incorporar a idéia ingênua de que se poderia corrigir as desigualdades do sistema mediante a utilização arbitrária e opressiva dos instrumentos de repressão penal contra os mais ricos. Verifica-se, ademais,
nos tipos penais introduzidos pela Lei n. 10.303/2001, uma incriminação de condutas até agora somente punidas administrativamente pela CVM, o que reflete na própria redação das normas; são elas extremamente imprecisas, fundadas em standards, cujo conteúdo somente poderá ser preenchido mediante a aplicação de disposições legais ou regulamentares do mercado de capitais, estranhas ao Direito Penal. Tal característica, a exemplo do que ocorre com a
Lei n. 7.492/86, deverá causar grandes dificuldades aos aplicadores da Lei n. 10.303/2001, não familiarizados com o direito societário e com a disciplina legal do mercado de valores mobiliários. Finalmente, deve ser observado que a Lei
n. 10.303/2001 previu penas privativas de liberdade, cumuladas com multa, quando já é consenso, na doutrina contemporânea do Direito Penal, que a prisão constitui uma realidade violenta, expressão de um sistema de justiça opressivo e desigual, devendo portanto ser utilizada o menos possível, como último recurso, no caso de delinqüentes perigosos, para os quais não haja outra solução.
62 Benedicto Ferri Bastos, observando a ética no mundo corporativo, afirma: “Fechado este parêntese colateral, podemos abordar diretamente a questão da Ética na Economia, porque se supõe que, nesta matéria ela tem princípios
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Não devemos esquecer que, como tudo na humanidade, com o passar do
tempo, alteram-se os modos comportamentais63, o que deve ser observado, inclusive, para as condutas éticas, em que os bens materiais sempre tiveram certa importância, independentemente de local, classe social, etc64.
próprios. Esta suposição nos parece falsa. A profusão de códigos e leis que pretendem disciplinar a atividade econômica parece, ao contrário, uma evidência de que ela é refratária à Ética. E, de fato, tanto como a Política a Economia é
um ramo de atividade entroncado diretamente na vontade do poder, que em si mesma é uma paixão capaz de dominar tudo o mais. A auri sacra fames, a fome do dinheiro, que rege supremamente a atividade econômica, pode ser
interpretada ao mesmo tempo como uma paixão execranda que submete todos os impulsos altruístas, e como um santo pendor de posse a realização, sem o qual nenhuma atividade econômica adquire sua autencidade. Desde a pechincha do preço à realização empresarial a mais alta, essa parece ser a energia e o princípio motor da Economia e a Economia pode ser entendida como uma judiciosa e eficaz utilização dos recursos. Esta colocação arquetípica do ideal
econômico não escapa, como as outras atividades humanas, da confusa dualidade que caracteriza sua manifestação,
onde Zoologia e espírito se mesclam de forma indestrinçável. Aqui, como nos demais casos, não se pode perder de
vista o processo de civilização e educação que se desenvolve na coordenada temporal dos séculos e milênios, em que
a cultura vai se depurando. E aqui, como nos demais casos, a Ética é o retor corretivo dos desmandos. Há uma tendência sociologicamente constatada de os diferentes grupos sociais desenvolverem Códigos de Conduta e Éticas próprias, de resultados ambíguos. A Éticas Profissionais podem, de um lado, servir como um instrumento de formulação
de padrões elevados de conduta, como um sistema de seleção e autopoliciamento que tornam os princípios éticos
mais atuantes e eficazes. Isso, no entanto, apenas na medida em que se conformam aos padrões gerais da Ética. Pois,
de outro lado, quando pretendem se colocar como instância e foro privilegiado de julgamento, tendem a criar, como
as justiças especiais, dificuldade ao controle externo, levantando uma barreira à fiscalização e sanção geral da lei e da
sociedade, servindo de escudo a privilégios corporativos heteronômicos.” Benedicto Ferri de Barros – A Ética no Direito e na Economia –A Ética na Política e na Economia – pág. 190.
63 Celso Bastos, pág. 234 – Ética na Economia, leciona: “Mas é preciso atentar para o fato de que eles são a resposta da ordem jurídica aos anseios e às inspirações da comunidade num dado momento histórico. O Direito não cria
esses valores do nada. Vai hauri-los justamente na formação cultural do povo nas últimas décadas. E a inquietação
atual está centrada no respeito à dignidade da pessoa humana. Este é o sentido pela qual a Ética deverá caminhar.
Este percurso está apenas se iniciando.
64 Neste sentido, Benedicto Barros, complementa: “Não só o coração tem razões que a razão desconhece; o bolso
e as tripas também os têm. O equívoco fundamental dos idealistas e racionalistas de todas as eras foi o de ignorar,
omitir ou minimizar esse fato, quando na realidade humana, como Schopenhauer vira, as entranhas ocupam um espaço e têm uma energia infinitamente superior à razão. O que, de sua parte, ele omitiu ou minimizou, foi o fato de
que a vontade e as entranhas são capazes de reconhecer nos valores, na Ética, sobretudo, o único denominador comum capaz de pô-los de acordo e fazer abortar confrontos de outra forma mortais para todas as partes. A vontade
de poder e a auri sacra fames (fome de dinheiro) são as duas únicas coisas infinitas na ‘natureza’ dos Sapiens-sapiens. Associados em simbiose obscena, como historicamente têm estado, são capazes de originar os insaciáveis buracos negros em que tanto povos, nações e épocas têm se afundado e sido destruídos. Entretanto, contrapostas a
essas paixões meramente zoológicas, encontra-se também no Sapiens-sapiens uma paixão singular, rara e mais poderosa do que elas, que é a de criar cultura sob o signo dos valores lógicos, éticos e estéticos. E é essa paixão tecendo a história humana constrói o reino Espírito, cidadela inexpugnável de sua sobrevivência como espécie, a Utopia universal e eterna do gênero humano, que o situa além da morte, do acaso e do destino. O respeito às variedades culturais etnologicamente dadas a essas características que singularizam o homem, não podem ir ao ponto de
inviabilizar o julgamento axiológico, de borrar a distinção entre civilização e barbárie, de confundir o que é com o
que deve ser. Que objetividade e significado restará ao conhecimento do humano quando essas questões forem
consideradas impertinentes ou inaplicáveis? E é aqui que a Ética se impõe como o mínimo denominador comum
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Assim, em razão de inúmeras experiências que passamos no século passado,
novos valores surgirão para esse novo milênio, nos quais a economia tem uma preocupação especial com a ética, e, da mesma forma, o direito terá que ser mais do que
um mero repositório de normas, para, ao invés disso, consagrar valores, explícita ou
implicitamente embutidos na norma geral.
Prima facie, parece-nos que a economia é insuscetível de tratamento moral.
Sempre temos a idéia que sua produção eficaz é a força motriz, e a sua eficiência é mensurada por fatores tecnológicos e racionais65, portanto, alheios aos fatores morais. Contudo, recentes experiências corporativas têm demonstrado que isso não é uma regra
sem exceção, inúmeras empresas pelo mundo afora estão deixando de contratar com
outras que exploram mão-de-obra infantil ou não respeitam normas ambientais, etc.
É claro que, durante muitos anos, e a história nos demonstra através de inúmeros casos, a busca da eficiência66 criou diversas situações de imoralidade, como de
cárcere privado em algumas fazendas brasileiras, trabalho infantil, com remuneração
irrisória e condições insalubres, em outras palavras, exploração do homem de forma desumana. É evidente que, hoje em dia, pouquíssimas situações no mundo corporativo afrontam à dignidade humana, comparando-se a anos atrás, e pelo que nos
parece essa conscientização aumentou muito nos últimos anos67.
entre os homens. Entretanto, sendo o homem o bicho que é, do ponto de vista da prática, em lugar de apelarmos
para seu espírito com sermões éticos, melhor controlaríamos seu comportamento vigiando as contas públicas, os
monies and treasures a que se referiu Bacon. Posto que sendo o dinheiro o meio social máximo para a realização
dos fins e o bolso o órgão mais sensível do ser humano, é por aí que a Ética chegará mais facilmente à Política.” Benedicto Ferri de Barros – A Ética no Direito e na Economia –A Ética na Política e na Economia – pág. 191/192.
65 Celso Ribeiro Bastos: “Ao contrário da Ciência do Direito, a da Economia – embora pressuponha a existência de
uma atividade humana especificamente econômica – tem-se revelado distante das preocupações éticas, é dizer, das
noções de bem, mal, dever, obrigação e responsabilidade. Tem-se a impressão de que as inquietações econômicas
se resumem a definir preços, taxas de juros, lucros, rendas que possam explicar os fenômenos econômicos. Um
mundo econômico, pois, insensível aos valores que levam o homem a comportar-se de modo mais harmonioso. A
realidade econômica, contudo, é bem mais complexa. John Kenneth Galbraith, professor emérito da Universidade
de Harvard, alerta que ‘a redistribuição dos rendimentos continua, porém, a ser para os economistas o assunto mais
difícil de tratar. E conclui: ‘O problema mais importante de toda a análise e ensino da economia é o que determina
os preços que se pagam pelos bens e pelos serviços prestados. E como é que são distribuídos os resultados desta
atividade econômica. E o que é que determina a parte que vai para os lucros e, se bem que de forma menos distinta, a que vai para a renda da terra e para outros meios fixos e imutáveis utilizados na produção”, in Ética na Economia – Ética no Direito e na Economia – pág. 226”.
66 Luiz Edson Fachin, entende que, “a ética e boa-fé, sob o aspecto do purismo conceitual, fazem parte de universos
isolados. Na clássica visão do Direito Civil, entendida esta com olhos voltados a codificação napoleônica, seria até mesmo inconcebível a possibilidade de justaposição de temas tão distantes. A ética não encontra espaço no plano da ideologia liberal clássica, comprometida, somente, com a circulação de riquezas, principalmente a imobiliária, pela via contratual ou sucessória causa mortis.(rodapé: Repensando Fundamentos do Direito Civil Brasileiro Contemporâneo –
Luiz Edson Fachin – coordenação – artigo: Paulo R. Ribeiro Nalin – Renovar – Rio de Janeiro – 1998 – pág. 173 a 210.
67 Celso Bastos: - pág. 234 – Ética na Economia: “Mas é preciso atinar para o fato de que as idéias econômicas, por
mais técnicas que nos possam parecer, sempre deverão pautar-se pelo sentido da Ética. E é assim que tem ocorrido
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Portanto, para harmonizar a eficiência das grandes corporações, com distribuição de riqueza, numa economia de livre iniciativa, deve ser realizada a cooperação das sociedades empresárias, ou seja, por seus administradores, com a colaboração do Estado, que, ao contrário de vários anos que esteve ausente, deve intervir
para regulamentar de forma ordeira, estimulando, disciplinando e retirando obstáculos jurídicos68, no intuito de que a mesma se realize de forma plena, mas, por outro lado, não deixando, na auto-regulação.
Portanto, não existe nada de ilegítimo em a sociedade empresária auferir lucro, nos moldes da nossa norma geral, contudo, o que se busca é conscientizar, do
dever moral desta, ao incorporar esse mister, de orientar suas ações, segundo parâmetros éticos.
VI. CONCLUSÕES
Vale aqui fazer uma observação, para concluir que esse novo milênio trará inúmeras mudanças sociais, econômicas e culturais ao mundo inteiro pela influência da
globalização. No que diz respeito ao Direito brasileiro, essas novas concepções devem ser percebidas pela coletividade e principalmente, pelos nossos julgadores – judicial ou administrativamente - não como se fosse uma panacéia, mas como objeto
de reforma para algo que está tentando recuperar a eqüidade, quem sabe perdida
nesse imenso universo de leis, tratados, convenções, decretos, portarias, instruções,
resoluções, ordens de serviços, etc., atualmente existente no mundo do direito. Para
Georges Ripert “não devemos acreditar na evolução fatal do direito, e considerar
toda reforma como um progresso, nem tampouco negar cegamente a necessidade de fazer evoluir o direito e reformar instituições”69.
na história do pensamento econômico. Assim se deu com o liberalismo, assim sucedeu com o socialismo. Muito embora se esteja preocupado em explicar toda a trama em torno do fato econômico. Seja do ponto de vista do Estado
como o detentor do meio de produção, seja da parte da iniciativa privada, como instrumento regulador por excelência da Economia -, o certo é que nunca poderá se perder de vista a perspectiva humana. Afinal, a finalidade precípua
desses sistemas tem sido a de melhorar a qualidade de vida dos homens, ou, melhor dizendo, a busca da plena satisfação das necessidades da coletividade. E quem obteve maior êxito foi o Estado Liberal, tanto que há um predomínio
deste sistema no mundo. O liberalismo é, sem sombra de dúvida, o verdadeiro propulsor da civilização moderna”.
68 Miguel Reale leciona que: “Diríamos que o Direito é como o rei Midas. Se na lenda grega esse monarca convertia em ouro tudo aquilo que tocava, aniquilando-se na sua própria riqueza, o Direito, não por castigo, mas por destinação ética, converte em jurídico tudo aquilo em que toca, para dar-lhe condições de realizabilidade garantida, em
harmonia com os demais valores sociais”, in Lições Preliminares de Direito, São Paulo, Saraiva, 27ª. ed. ajustada ao
Novo Código Civil, 2003, p. 22.
69 Georges Ripert, in O regime democrático e o direito civil moderno - São Paulo, Saraiva, 1937, pág. 445.
inclusão social
AÇÕES AFIRMATIVAS FRENTE A PARTICULARES
Ana Cláudia Pires Ferreira de Lima
Juíza do Trabalho Substituta do TRT da 15ª Região.
Mestranda no Centro de Pós-Graduação da Instituição Toledo de Ensino de Bauru - SP
(área de concentração: Sistema Constitucional de Garantia de Direitos).
Os grandes inovadores éticos não foram homens e mulheres que soubessem mais que os outros; foram homens e mulheres cujos desejos
eram mais impessoais e de maior âmbito que os homens e mulheres comuns. A maioria dos homens e mulheres deseja sua própria felicidade;
considerável percentagem deseja a felicidade de seus filhos; poucos desejam a felicidade da nação, e apenas alguns desejam a felicidade de
toda a humanidade.
Bertrand Russel1
1.
INTRODUÇÃO
A sociedade contemporânea é uma sociedade plural, em todos os aspectos: social,
econômico, de origem, cultural, político e jurídico. A concepção de direito e democracia
vem sofrendo uma evolução constante, principalmente nos últimos 50 anos, a partir do
pós-guerra.
1 RUSSEL, Bertrand, apud PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. São Paulo: Max Limonad, 2003, p.17-18.
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252
Detentora de um dos modelos mais apreciados de democracia, Atenas não
considerava em seu regime político a vontade dos escravos, dos metecos2 e das mulheres, que eram excluídos do rol dos cidadãos. Os escravos só passaram a ser considerados como integrantes do povo, nos Estados Unidos da América, por interesse
dos Estados sulistas, quando o critério adotado para fixação do número de representantes de cada Estado na Câmara Federal foi o da população de cada Estado. Dessa
forma, a democracia originária, concebida como governo do povo e distribuição
eqüitativa do poder, paradoxalmente, excluía determinados grupos sociais.
Interessante notar que os estrangeiros residentes no Brasil, embora detentores dos direitos fundamentais, não têm qualquer representatividade (art. 14, §2º da
CB), nem sequer a nível local (municipal) se não forem naturalizados. O art. 12, II,
da CB exige, para a naturalização, a residência no país há mais de quinze anos ininterruptos e sem condenação penal, à exceção dos originários de países de língua
portuguesa, dos quais se exige a residência por um ano ininterrupto e idoneidade
moral. Considerando como povo a totalidade dos atingidos pelas normas de uma
determinada localidade, a Comunidade Européia assegura aos estrangeiros o direito de votarem nas eleições do município em que residem.
A análise do conceito de povo nos leva ao conceito de minorias, bem como ao
de exclusão social. Buscando soluções para o problema da exclusão social abordaremos o tema da implementação do princípio da igualdade, nas suas formas de combate à discriminação e da promoção da igualdade jurídica material. Como instrumento de promoção da igualdade, adentraremos no tema das ações afirmativas,
dando-se ênfase à implantação de políticas afirmativas em face de particulares, bem
como o confronto destas com o princípio da autonomia da vontade.
As ações afirmativas cumprem a finalidade pública de assegurar a diversidade
e a pluralidade na sociedade contemporânea.
2.
POVO E DEMOCRACIA
POVO, do latim populus (grande número de homens), é indicativo de uma
porção de homens ou um grande número de pessoas, sem referência ao aspecto político ou jurídico, em que se apresentem:
Juridicamente, povo designa a totalidade de pessoas, que habita
um território dado, já se apresentando como elemento formador de
uma nacionalidade. É assim a população de um território ou a
massa de indivíduos que compõem um Estado. (...). Embora povo,
2 Segundo o Dicionário Aurélio: Meteco - “Designação que se dava ao estrangeiro domiciliado em Atenas. “O censo de Demétrio de Falera dá a Atenas 20.000 cidadãos, 10.000 metecos e 400.000 escravos” (Oliveira Martins, Quadro das Instituições Primitivas, p. 309).”
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como vocábulo jurídico, não se confunde com a palavra nação,
que significa este mesmo povo vinculado por um interesse comum
e subjugado por uma firma consciência de sua nacionalidade, representa o elemento fundamental do Estado, que nele se apóia,
pois que todo poder político, que exerce, em princípio, promana
dele e em nome dele é exercido.3
Na história da humanidade, a palavra povo, embora juridicamente devesse
corresponder à totalidade de pessoas habitantes de um determinado território, somente parte dessas pessoas era representada politicamente.
O homem sempre se organizou em sociedade e esta sempre foi subdividida
em classes ou estamentos, criando-se distinções entre os homens por motivo de origem, etnia, economia e forma de atividade laboral (física ou mental), sendo que antigamente o labor nem era digno de valor, sendo relegado aos escravos, tratados
como “coisas” - objeto de propriedade.
A não-consideração dos escravos como integrantes do povo é bem demonstrada por Fabio Konder Comparato ao mencionar o discurso de Charles
Pinckeney, representante da Carolina do Sul, por ocasião da discussão da criação do Senado nos Estados Unidos da América, segundo o qual, o povo norteamericano dividia-se em três classes: “os profissionais liberais (‘que, devido às
suas atividades, devem sempre ter um grande peso no Governo, enquanto este
permanecer popular’), os comerciantes e os proprietários rurais. ‘Estas três classes’, concluiu, ‘embora distintas quanto às suas atividades, são individualmente
iguais na escala política, podendo ser facilmente provado que elas têm um só interesse’.”4
O mesmo autor relata que nos Estados Unidos da América, os escravos somente passaram a ser considerados membros do “povo” por interesse dos sulistas,
quando o critério adotado para fixação do número de representantes de cada Estado na Câmara Federal foi o da população de cada Estado. Ainda assim, a representatividade dos escravos era apenas formal.
Na sociedade francesa do final do século XVIII, o termo povo tinha conotação
diversa, compreendendo apenas os operários e os lavradores, ou seja, o “estamento geral da nação”, oposto ao estamento dos grandes personagens e dos nobres.
Para fugir da ambigüidade do termo povo, do art. 3º da Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão constou: “O princípio de toda soberania reside essencialmente na Nação. Nenhum corpo, nenhum indivíduo pode exercer autoridade que dela
não emane expressamente”. Após a queda da monarquia, a nova Declaração dos Di3 SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 1996, vol III, p.407-408.
4 COMPARATO, Fábio Konder in prefácio à 3ª ed. “Quem é o Povo?”, MÜLLER, Friedrich, São Paulo:Editora Max Limonad, 2003. Trad. Peter Naumann, p.16-17.
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reitos do Homem e do Cidadão apresentou-se como sendo feita diretamente em
nome do “povo francês”, e não de seus representantes.
Friedrich Müller salienta a pluralidade do conceito de povo. Uma coisa é a totalidade do povo, como centro de imputação das decisões coletivas. Outra coisa é a
fração dominante do povo, cuja vontade efetivamente predomina nas eleições, referendos e plebiscitos. Essa fração dominante do povo é formalmente majoritária. Indaga-se quem é, concretamente, a maioria votante que se pronuncia em nome do
povo.5
Muller ressalta que só se pode falar em “povo ativo” (totalidade dos atingidos
pelas normas de um Estado) quando são respeitados os direitos fundamentais individuais e políticos. Aponta, ainda, as causas que legitimam a democracia em conformidade com o Estado do Direito: procurando dotar a possível minoria dos cidadãos
ativos de competências de decisão e de sancionamento claramente definidas; em segundo lugar, a legitimidade ocorre pelo modo, mediante o qual todos, o “povo inteiro”, a população, a totalidade dos atingidos são tratados por tais decisões e seu
modo de implementação.6
Aristóteles distingue os regimes políticos, em função da titularidade do poder supremo em: monarquia, aristocracia e politéia – quando o poder político é exercido em
benefício da comunidade como um todo; tirania, oligarquia e democracia – quando a
finalidade perseguida pelos governantes é a sua vantagem particular. Assim, na sua visão, oligarquia é o governo dos ricos e democracia o governo dos pobres.
Para o aperfeiçoamento democrático, não basta a atribuição de maiores poderes decisórios ao povo, através da ampliação do uso obrigatório de referendos e consultas populares. É preciso quebrar o monopólio dos meios de comunicação de
massa em mãos da minoria dominante, bem como instruir o povo para que tenha
consciência e discernimento no exercício de seus direitos políticos, não se deixando manipular pelos detentores do poder (soberanos do mercado).
Rosseau distinguia a vontade geral – que só diz respeito ao interesse comum,
da vontade de todos – que se refere ao interesse privado, sendo apenas a soma de
vontades particulares.
Não se pode permitir que a maioria do povo “esmague democraticamente” a minoria, em nome do interesse nacional, nem que a minoria, se detentora do poder de
controle social, se utilize periodicamente do voto majoritário popular para legitimar todas as exclusões sociais, em nome da democracia. Não existe soberania inocente:
Voltamos, assim, à velha distinção aristotélica entre a democracia
pura e simples – em que a maioria do povo exerce o poder supremo no seu próprio interesse – e o regime político moderado, a de5 Ibid., p.20-21.
6 MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? São Paulo:Editora Max Limonad, 2003. Trad. Peter Naumann, p.77.
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mocracia justa, em que o bem comum predomina sobre todos os
interesses particulares. Ora, o bem comum, hoje, tem um nome:
são os direitos humanos, cujo fundamento é, justamente, a igualdade absoluta de todos os homens, em sua comum condição de
pessoas.
(...)
... nem por isso se pode dar por resolvido o dilema de se reconhecer a efetiva vigência dos direitos humanos, fora do positivismo estatal e do jusnaturalismo abstrato.7
Agostinho Ramalho Marques Neto8, em sua palestra no 12º Congresso Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho, fez uma crítica ao neo-liberalismo – processo de ruptura do liberalismo clássico, que caminha para a perda de direitos sociais, uma vez que o neo-liberalismo, na sua visão capitalista, ataca o modelo do
bem-estar social, taxando-o de oneroso, afastando-se da lógica do social.
O liberalismo clássico afirma a igualdade, ainda que formal, estando comprometido com aspectos da afirmação da democracia e cidadania. O neo-liberalismo
prega a desigualdade, dizendo que a competição é saudável, em busca da eficiência,
implicando no desmonte do Estado, na desestatização, prevalecendo a lei do mais
forte, havendo necessidade de adaptação à realidade.
Na visão de Marques Neto, o neo-liberalismo traz, como conseqüências, numa
visão macropolítica, a migração da soberania do Estado para a soberania do Mercado. Numa visão micropolítica, o enaltecimento do consumidor, ao invés do cidadão,
por si só.
As garantias do mercado estão substituindo as garantias jurídicas, razão pela
qual é preciso mudar o modelo do mercado para que não seja tão perverso, o que
é possível com a aplicação do princípio ético da dignidade da pessoa humana, no
combate à discriminação e para a promoção da inclusão social.
3.
EVOLUÇÃO HISTÓRICA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Os Direitos Fundamentais, expressão utilizada pelos doutrinadores alemães,
Direitos do Homem ou Direitos Humanos, assim denominados pelos autores angloamericanos e latinos 9, têm por finalidade, segundo Hesse10, criar e manter os pressupostos elementares de uma vida na liberdade e na dignidade humana.
7 Ibid.
8 Pscicanalista; Professor nas áreas de Filosofia do Direito e Filosofia Política e Vice-Diretor Geral da Faculdade São
Luís – Maranhão.
9 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 13ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2003, p.560.
10 HESSE, Konrad, “Grundrechte”, in Staatslexikon, v.2., apud Paulo Bonavides, ob. cit., p. 560.
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Os direitos humanos tiveram sua origem no cristianismo, no iluminismo - que influenciou a Revolução Francesa - e na doutrina social, em oposição ao Estado liberal.
Foi no Iluminismo que teve origem a construção do conceito moderno de direitos do homem. A teoria do contrato social, defendidas em várias versões por Locke, Kant e Rousseau, tinha por finalidade conter o poder absoluto das monarquias,
delineando-se outra forma de legitimação do poder estatal.
A teoria de Jean Jacques Rousseau exaltava a sabedoria das maiorias, enfatizando a importância da democracia e da soberania popular. Para ele, entendimento
compartilhado por Hobbes, através do contrato social, os indivíduos alienavam toda
sua liberdade para um corpo social ao qual todos pertenciam, prevalecendo a vontade das maiorias. Locke, por sua vez, preocupava-se com a proteção dos direitos individuais em face do Estado:
No modelo de contrato social que formulou, os indivíduos não
alienavam todos os seus direitos, como em Hobbes e Rousseau. Eles
retinham direitos naturais, inatos e inalienáveis, que os governantes tinham de respeitar, e cuja infringência justificava até mesmo
o exercício do direito de resistência. Dentre tais direitos, o mais essencial, segundo Locke, era a propriedade, cuja proteção representava a mais importante função estatal.11
Os ideais iluministas embasaram a Revolução Francesa - com seu lema “liberdade, igualdade e fraternidade”- e o movimento de independência das 13 Colônias
norte-americanas. Neste período vigorou o positivismo jurídico:
A fórmula utilizada para a racionalização e legitimação do poder
pelo Iluminismo era a Constituição, lei escrita e superior às demais normas, que deveria estabelecer a separação dos poderes
para contê-los – le pouvoir arrête le pouvoir, como afirmou Montesquieu – e garantir os direitos do cidadão, oponíveis em face do
Estado. O papel que então se atribuía à Constituição estava bem
delineado no art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão de 1789, segundo a qual “toda a sociedade, na qual a garantia dos direitos não é assegurada, nem a separação de poderes
determinada, não tem constituição.12
Entretanto, o positivismo jurídico, que previa a igualdade formal, não foi suficiente para torná-la eficaz, pois amparados num ordenamento jurídico positivado,
11 Ibid., p. 22.
12 Ibid., p.24.
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os detentores do poder discriminavam, escravizavam e matavam inocentes nos campos de concentração... Os horrores da escravidão e das guerras foram tantos, que a
humanidade despertou para a necessidade de se voltar para sua essência, clamando
pela proteção da dignidade da pessoa humana.13
É a verdadeira “revolução copernicana” no mundo jurídico, assim denominada pelo Constitucionalista Português Jorge Miranda, no sentido de que:
com a positivação recente dos direitos fundamentais, e as teorizações sobre eles realizadas no constitucionalismo contemporâneo,
13 A concepção dos direitos humanos foi se transformando conforme a evolução histórica da humanidade, sendo
os mesmos classificados, sob o ponto de vista cronológico, em:
1. Direitos fundamentais da primeira geração: são os direitos individuais, que têm por maior expressão os direitos da liberdade – direitos civis e políticos – concebidos como direitos de resistência ou de oposição perante o Estado.
2.Direitos fundamentais da segunda geração: são os direitos sociais, culturais e econômicos bem como os direitos
coletivos ou de coletividades, introduzidos no constitucionalismo das distintas formas de Estado social, depois que
germinaram por obra da ideologia e da reflexão antiliberal do século XX. Nasceram abraçados ao princípio da igualdade, do qual não se podem separar, pois fazê-lo equivaleria a desmembrá-los da razão de ser que os ampara e estimula.13
Exigem do Estado uma ação positiva para dar concretude ao princípio da igualdade, uma vez que só a igualdade formal (perante a lei) não basta para suprimir o constante desequilíbrio entre as partes de uma relação jurídica.
Inicialmente, tiveram eficácia duvidosa, em face de sua própria natureza de direitos que exigem do Estado determinadas prestações materiais nem sempre resgatáveis por exigüidade, carência ou limitação essencial de meios e recursos. Foram remetidos à chamada esfera programática, em virtude de não conterem para sua concretização aquelas garantias habitualmente ministradas pelos instrumentos processuais de proteção aos direitos da liberdade.
Atualmente, os direitos fundamentais de segunda geração tendem a tornar-se tão justiciávies quanto os da primeira. Com efeito, até então, em quase todos os sistemas jurídicos, prevalecia a noção de que apenas os direitos da liberdade eram de aplicabilidade imediata, ao passo que os direitos sociais tinham aplicabilidade mediata, por via do
legislador.
3. Direitos fundamentais da terceira geração: são os direitos relativos à fraternidade, assim identificados por Vasak13:
direito ao desenvolvimento, direito à paz, direito ao meio ambiente, direito de propriedade sobre o patrimônio comum da humanidade e o direito de comunicação. Têm primeiro por destinatário o gênero humano mesmo, num
momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta.
Etiene-R. Mbaya, formulador do chamado “direito ao desenvolvimento” utiliza a expressão “solidariedade” para caracterizar os direitos da terceira geração. “O direito ao desenvolvimento diz respeito tanto a Estados como a indivíduos, segundo assevera o próprio Mbaya, o qual acrescenta que relativamente a indivíduos ele se traduz numa pretensão ao trabalho, à saúde e à alimentação adequada.”13
4. Paulo Bonavides classifica como Direitos fundamentais da quarta geração: O direito à democracia, o direito à
informação e o direito ao pluralismo. Deles depende a concretização da sociedade aberta do futuro, em sua dimensão de máxima universalidade, para a qual parece o mundo inclinar-se no plano de todas as relações de
convivência.13
Interessante notar que o lema da Revolução Francesa do século XVIII profetizou a evolução histórica dos direitos
fundamentais: liberdade (1ª geração), igualdade (2ª geração) e fraternidade (3ª geração). Paulo Bonavides13 atenta
para o equívoco da expressão “gerações”, sendo mais apropriado substituí-la por “dimensões” dos direitos fundamentais, uma vez que a superveniência de uma “geração” depois da outra não substitui os direitos da “geração” anterior, pelo contrário, os mesmos se acumulam.
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sobretudo de influência alemã, o centro do universo jurídico deixa de ser a lei (entendida, principalmente, como a produção normativa infraconstitucional), posição que passa a ser ocupada pelos próprios direitos fundamentais. Com isso, coloca-se como centro e fundamento do ordenamento jurídico, enquanto direito positivo, a dignidade da pessoa humana, matriz de todos os direitos
fundamentais.”14
A Nova Hermenêutica Jurídica marca a ruptura do apego ao positivismo jurídico, eis que tem como base os valores e princípios centrados na dignidade da pessoa humana.
O direito do estado de direito do século XIX e da primeira metade do século XX é o direito das regras dos códigos; o direito do
estado constitucional democrático e de direito leva a sério os
princípios, é um direito de princípios. [...] o tomar a sério os
princípios implica uma mudança profunda na metódica de
concretização do direito e, por conseguinte, na actividade jurisdicional dos juízes.15
Paulo Bonavides ressalta, porém, que de nada adiantam as teorias sobre direitos fundamentais se os Estados não se aparelharem de meios e órgãos para a proteção dos mesmos e, sobretudo, produzir uma consciência nacional de que tais direitos são invioláveis.
O Estado Liberal, ao conceber os direitos fundamentais como direito de defesa do indivíduo frente ao Estado, para que este observasse os direitos e garantias individuais, não intervindo na vida privada do indivíduo, traçou um marco divisório
entre o público e o privado.
Atualmente, os direitos fundamentais são opostos não somente em face do
Estado, mas também frente a particulares, uma vez que também estes devem respeitar os direitos fundamentais, mormente a dignidade da pessoa humana. Assim, toda
relação humana, quer seja entre particular e ente público ou entre particulares, deve
se pautar em valores éticos, respeitando os direitos inerentes ao homem, tais como
a vida, a liberdade, a igualdade, a dignidade etc.
14 GUERRA, Marcelo Lima. Direitos fundamentais e a proteção do credor na execução civil. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2003, p. 82.
15 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. A “principialização” da jurisprudência através da Constituição, in Revista de processo, São Paulo, 2000, v. 98, p. 84, apud MEDINA, José Miguel Garcia, Execução civil: princípios fundamentais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 34.
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DA IMPLEMENTAÇÃO DO DIREITO À IGUALDADE
Conforme exposto, os direitos humanos tiveram sua origem como direito de
resistência do indivíduo frente ao Estado, impondo-se a este um não fazer, ou seja,
não interferir nas relações privadas, sendo estas regidas pelo princípio da igualdade
formal. Entretanto, a igualdade perante a lei não assegurava igualdade fática entre
os detentores de poder econômico e a pessoa comum, sem acesso à Justiça, sem conhecimento sobre seus direitos, com poucas alternativas de escolha em vários aspectos de sua vida, havendo a necessidade de se exigir do Estado também uma ação
positiva para a consecução da Justiça Social.
O conceito de inconstitucionalidade material está relacionado aos princípios
superiores de justiça, igualdade e dignidade da pessoa humana. A pior das inconstitucionalidades não é a formal, mas sim a material. “Não há constitucionalismo sem
direitos fundamentais. Tampouco há direitos fundamentais sem a constitucionalidade da ordem material cujo norte leva ao princípio da igualdade, pedestal de
todos os valores sociais de justiça.”16
Tornou-se necessário repensar o valor da igualdade, a fim de que as especificidades e as diferenças sejam observadas e respeitadas. Assim, ao lado do sistema
geral de proteção, a exemplo da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão
na França, do Bill of Rights (integrada pela Declaração Universal de 1948 e pelos Pactos da ONU de Direitos Civis e Políticos e de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966), em que o endereçado é toda e qualquer pessoa, genericamente concebida, organiza-se o sistema especial de proteção, que adota como sujeito de direito o indivíduo historicamente situado, ou seja, o sujeito de direito “concreto”, na peculiaridade e particularidade de sua relações sociais. Os sistemas normativos internacional e nacional passam a reconhecer direitos endereçados às crianças, aos idosos, às mulheres, às pessoas vítimas de tortura, às pessoas vítimas de discriminação
racial, dentre outros.17
Dentre os instrumentos internacionais que buscam responder a determinada
violação de direito, temos a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas
as formas de Discriminação Racial, a Convenção Internacional sobre a Eliminação de
todas as formas de Discriminação contra a Mulher, a Convenção Internacional contra a Tortura, a Convenção sobre os Direitos da Criança.
No Brasil, o processo de especificação do sujeito de direito ocorreu de forma
fundamental com a Constituição Brasileira de 1988, com os capítulos específicos dedicados à criança, ao adolescente, ao idoso, aos índios, bem como dispositivos constitucionais específicos voltados às mulheres, à população negra, às pessoas portadoras de deficiência, etc.
16 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 13ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2003, p. 601.
17 PIOVESAN, Flávia. Op. cit., p. 194-195.
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Flávia Piovesan ensina que, na ótica contemporânea, a concretização do direito
da igualdade, com o conseqüente respeito à diferença e à diversidade, implica a implementação de duas metas: o combate à discriminação e a promoção da igualdade.
4.1. Combate à discriminação
Ao se referir às Convenções da ONU sobre a Eliminação de todas as formas de
Discriminação Racial e sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher, Flávia Piovesan conceitua a discriminação como:
... toda distinção, exclusão, restrição ou preferência que tenha por
objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo
ou exercício, em igualdade de condições, dos direitos humanos e
liberdades fundamentais, nos campos político, econômico, social,
cultural e civil ou em qualquer outro campo. Logo a discriminação significa sempre desigualdade.18
O combate à discriminação é uma forma de garantir a todos o pleno exercício dos direitos civis e políticos, como também dos direitos sociais, econômicos e culturais.
A discriminação ocorre quando somos tratados de forma igual quando somos
diferentes e de forma diferente quando somos iguais.
O combate à discriminação encontra-se positivado no ordenamento jurídico
brasileiro através do art. 5º, inc. XLI e XLII da Constituição Brasileira ao prever que
“lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”, e que “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”. A Lei 7.716, de 05.01.89 definiu os crimes
resultantes de preconceito de raça ou cor, sendo a mesma alterada pela lei 9.459/97
para ampliar seu objeto, incluindo no tipo penal a discriminação ou preconceito de
etnia, religião ou procedência nacional.
No combate à discriminação das mulheres, há a Lei 9.029, de 13.04.95, que
proíbe a exigência de atestados de gravidez e esterilização e outras práticas discriminatórias para efeitos admissionais ou de permanência da relação jurídica de trabalho, bem como a Lei 10.224, de 15 de maio de 2001, que dispõe sobre o crime de
assédio sexual.
18 Ibid., p. 197.
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4.2. Promoção da Igualdade
Para garantir e assegurar a igualdade, não basta apenas proibir a discriminação, mediante legislação repressiva. São essenciais as estratégias promocionais capazes de estimular a inserção e inclusão desses grupos socialmente vulneráveis nos espaços sociais.
A discriminação e a intolerância à diferença e diversidade gera exclusão social.
Simplesmente combater a discriminação, não contribui para a promoção da igualdade,
que é uma forma de inclusão social de grupos que sofreram e sofrem discriminação.
As ações afirmativas surgem como instrumento de inclusão social, buscando
remediar um passado discriminatório, objetivando acelerar o processo de igualdade, com o alcance da igualdade material por parte de grupos vulneráveis, como as
minorias étnicas e raciais, as mulheres, os deficientes físicos, dentre outros.19
As ações afirmativas cumprem a finalidade pública de assegurar a diversidade
e a pluralidade social.
A Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial prevê “discriminação positiva” através da adoção de medidas especiais de proteção ou incentivo a grupos ou indivíduos, para promover sua ascensão na sociedade, até um nível de equiparação com os demais. Da mesma forma, a Convenção sobre a Eliminação
de todas as formas de Discriminação contra a Mulher também permite a “discriminação positiva”, visando a acelerar o processo de equiparação de status entre homens e
mulheres. Tratam-se, portanto, de medidas compensatórias para remediar as desvantagens históricas, aliviando o passado discriminatório sofrido por esse grupo social.
A busca da igualdade material é expressada na Constituição Brasileira, em seu
º
art. 7 , XX, referente à proteção do mercado de trabalho da mulher mediante incentivos específicos, e art. 37, VII, que determina a reserva, por lei, de percentual de cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência.
A nível infraconstitucional, podemos citar como leis brasileiras que buscam a
promoção da igualdade jurídica material: a “Lei das cotas” (Lei n. 9.100, de 1995),
que determina a reserva de 20% dos cargos para as candidaturas das eleições municipais às mulheres; a Lei 9.504, de 30.09.1997, que estabelece que cada partido ou
coligação deverá reservar o mínimo de trinta por cento e o máximo de setenta por
cento para candidaturas de cada sexo, e a Lei 9.799, de 26.05.99, que insere na CLT
regras sobre o acesso da mulher ao mercado de trabalho.
5.
AÇÕES AFIRMATIVAS
Para Joaquim B. Barbosa Gomes, a introdução das políticas de ação afirmativa
representou a mudança de postura do Estado, outrora neutro, que aplicava suas po19 Ibid., p. 199.
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líticas governamentais indistintamente, ignorando a importância de fatores como
sexo, raça e cor. Nessa nova postura, o Estado encoraja entes públicos e privados a
levarem em contas tais diversidades, com a finalidade de concretizar, na medida do
possível, a representação de cada grupo na sociedade ou no respectivo mercado de
trabalho tanto nas escolas quanto nas empresas.20 O mesmo autor define as ações
afirmativas, atualmente, como:
... um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à
discriminação racial, de gênero e de origem nacional, bem como
para corrigir os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como a educação e o emprego.21
Carmem Lúcia Antunes Rocha destaca que a igualdade jurídica não pode ser pensada apenas em relação ao momento em que se tomam as pessoas postas em dada situação submetida ao Direito, devendo-se considerar toda a dinâmica histórica da sociedade.
Há que se ampliar o foco da vida política em sua dinâmica, cobrindo espaço histórico que se reflita ainda no presente, provocando agora desigualdades nascentes de preconceitos passados, e não
de todo extintos. A discriminação de ontem pode ainda tingir a
pele que se vê de cor diversa da que predomina entre os que detêm
direitos e poderes hoje.22
Segundo Renata Malta Vilas-Bôas:
Ações afirmativas são medidas temporárias e especiais, tomadas
ou determinadas pelo Estado, de forma compulsória ou espontânea, como propósito específico de eliminar as desigualdades que
foram acumuladas no decorrer da história da sociedade. Estas
medidas têm como principais ‘beneficiários os membros dos grupos que enfrentaram preconceitos’.23
20 GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação Afirmativa e Princípio Constitucional da Igualdade. Rio de Janeiro: Renovar,
2001, p.38-39.
21 Ibid., p. 40.
22 ANTUNES ROCHA, Carmem Lúcia. “Ação Afirmativa – o Conteúdo Democrático do Princípio da Igualdade Jurídica”, in Revista Trimestral de Direito Público n. 15/85, apud GOMES, Joaquim B. Barbosa. Op. cit. p. 42-44.
23 VILAS-BÔAS, Renata Malta. Ações afirmativas e o princípio da igualdade. Rio de Janeiro: América jurídica, 2003,
p. 29.
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Barbosa Gomes aponta como objetivos da ação afirmativa: coibir a discriminação do presente; eliminar os efeitos persistentes da discriminação do passado, que
tendem a se perpetuar; implantar e uma certa “diversidade” e uma maior “representatividade dos grupos minoritários nos mais diversos domínios de atividade pública
e privada, em harmonia com o caráter plúrimo da sociedade; eliminar as “barreiras
artificiais e invisíveis” que emperram o avanço de negros e mulheres, independentemente da existência ou não de política oficial tendente a subalternizá-los, e, por
fim, as ações afirmativas cumpririam o objetivo de criar as chamadas personalidades
emblemáticas, ou seja, exemplos vivos de mobilidade social ascendente: mecanismos de incentivo à educação e ao aprimoramento de jovens integrantes de grupos
minoritários.24
Nesse contexto, a ação afirmativa seria instrumento de aplicação de um dos
três princípios éticos (individualidade, responsabilidade e solidariedade), qual seja,
a solidariedade vertical, em relação aos antepassados e em relação ao futuro.
Sob o ponto de vista ético, solidariedade é toda experiência consciente e o
comportamento decorrente desta gera uma unidade em uma diversidade. Só se tem
solidariedade a partir de uma base comum quando também está presente a diversidade. Se não houver diversidade, há “egoísmo de um grupo” (ex. união para determinado objetivo). Tem que ser uma experiência consciente, criando-se uma mentalidade. Não há solidariedade se não houver mudança de mentalidade. A solidariedade reconhece o outro na sua individualidade. A simples comoção não gera solidariedade. Só há solidariedade quando houver atos concretos (ação).
Não é preciso simpatizar-se com alguém para ser solidário ao mesmo. Acabada a necessidade e findo o gesto concreto de solidariedade, termina a solidariedade. O amor, pelo contrário, é uma luta de permanência. No relacionamento afetivo,
não há solidariedade, pois não há diversidade. A solidariedade exige reciprocidade,
o amor não; a solidariedade busca a unidade numa diversidade; a solidariedade não
é permanente, mas sim temporária.
A solidariedade vertical é tratada por parte da doutrina como questão de reciprocidade. Esta deve ser compreendida num sentido amplo, tal como a consciência
de que o que se usufrui hoje da sociedade é algo construído pelos antepassados. Há
solidariedade em relação aos antepassados quando se preservam monumentos históricos, quando se preserva a história. Há solidariedade quando se reconhece as vítimas da história. Nem sempre os vencedores da história possuem dignidade.
Assim, podemos classificar a ação afirmativa como um ato de solidariedade
vertical, ao se reconhecerem os grupos excluídos no passado (a exemplo dos negros
e das mulheres) e os compensar no presente (através de políticas de inserção no
mercado de trabalho, de acesso à educação etc), buscando a igualdade social (uni-
24 Ibid., p. 49.
faculdade de direito de bauru
264
dade) – respeitando-se as diversidades, proporcionando aos integrantes de tais grupos sua inclusão social.
6.
DIREITOS FUNDAMENTAIS FRENTE A PARTICULARES E A AUTONOMIA DA VONTADE
Nas judiciosas lições de Daniel Sarmento,
o princípio da dignidade da pessoa humana exprime, em termos
jurídicos, a máxima Kantiana, segunda (sic) a qual o Homem
deve sempre ser tratado como um fim em si mesmo e nunca como um meio. O ser humano precede o Direito e o Estado,
que apenas se justificam em razão dele. (g.n.)25
A Constituição, portanto, tem a finalidade de tutelar a pessoa humana, devendo o princípio da dignidade da pessoa humana ser aplicado em sua plenitude, inclusive nas relações privadas, uma vez que
a opressão e a violência contra a pessoa provêm não apenas do Estado, mas de uma multiplicidade de atores privados, presentes em
esferas como o mercado, a família, a sociedade civil e a empresa,
a incidência dos direitos fundamentais na esfera das relações entre particulares se torna imperativo incontornável.26
6.1. Teorias da eficácia dos direitos fundamentais na esfera privada
O Estado Liberal, ao conceber os direitos fundamentais como direito de defesa do indivíduo frente ao Estado, para que este observasse os direitos e garantias individuais, não intervindo na vida privada do indivíduo, traçou um marco divisório
entre o público e o privado.
Atualmente, os direitos fundamentais são opostos não somente em face do
Estado, mas também frente a particulares, uma vez que também estes devem respeitar os direitos fundamentais, mormente a dignidade da pessoa humana. Assim, toda
relação humana, quer seja entre particular e ente público ou entre particulares, deve
se pautar em valores éticos, respeitando os direitos inerentes ao homem, tais como
a vida, a liberdade, a igualdade, a dignidade etc.
25 SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na constituição federal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris,
2002, p.59.
26 SARMENTO, Daniel. “A vinculação dos particulares aos direitos fundamentais no direito comparado e no Brasil”.
A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 193-194.
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265
Defendendo a tese de que o homem deve ser livre não somente perante o Poder Público, mas também perante toda a sociedade, Norberto Bobbio assim dispôs:
No importa tanto que el individuo sea livre ‘respecto del Estado’ si
después no es livre ‘en la sociedad’. No importa que el Estado sea
liberal si después la sociedad subyaciente es despótica. No importa
que el individuo sea livre políticamente se no lo es socialmente
(...). Y, entonces, para llegar al corazon del problema de la libertad, es necesario dar un paso atrás: del Estado a la sociedad civil.27
Atualmente, nesta sociedade tão complexa, não basta a observância dos Direitos Humanos tão-somente nas relações públicas, ou seja, em que o Estado seja parte (segundo a concepção antiga do direito de resistência do indivíduo frente ao Estado), sendo imprescindível o respeito aos direitos humanos em toda e qualquer relação, pública ou privada. Daí, se falar em horizontalização dos direitos humanos, ou
seja, a observância destes nas relações entre particulares:
Fala-se em eficácia horizontal dos direitos fundamentais, para
sublinhar o fato de que tais direitos não regulam apenas as relações verticais de poder que se estabelecem entre Estado e cidadão, mas incidem também sobre relações mantidas entre pessoas e entidades não estatais, que se encontram em posição de
igualdade formal.28
Dentre as teorias a respeito da eficácia dos direitos fundamentais nas relações
privadas, vamos examinar: 1) a da negação da aplicação dos direitos fundamentais
na esfera privada, relativizada com a teoria “State Action” e a “public function theory”; 2) a teoria da eficácia indireta e mediata dos direitos fundamentais na esfera privada, e 3) a teoria da eficácia direta e imediata dos direitos fundamentais na esfera
privada.
6.1.1. A tese da não-vinculação dos particulares aos direitos fundamentais
e a doutrina da “State Action”
Segundo a doutrina liberal clássica, os direitos fundamentais somente eram
aplicados em face do poder público, sob a concepção de limite ao exercício do poder estatal, não se destinando a reger relações entre particulares.
27 BOBBIO, Norberto. Igualdad y libertad. Trad. Pedro Aragón Rincón. Barcelona: Ediciones Paidós, 1993, p. 143.
28 SARMENTO, Daniel, “A vinculação dos particulares aos direitos fundamentais no direito comparado e no Brasil”.
A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas, op. cit, p. 5.
266
faculdade de direito de bauru
Até hoje, a teoria da “State Action”, ou seja, de que os direitos fundamentais
somente podem ser opostos em face do poder público, é aplicada pela doutrina e
jurisprudência norte-americana, canadense e suíça, sob o fundamento de que o Direito Constitucional (que alberga os direitos fundamentais) não pode destituir a
identidade do direito privado; este, sim, regulador das relações privadas, onde prevalece o princípio da autonomia individual.
Curiosamente, as ações afirmativas tiveram origem num Estado que nega a
oposição dos direitos fundamentais a particulares. A negação da horizontalização
dos direitos fundamentais se dá sob o fundamento de que os direitos fundamentais,
previstos na Constituição Norte-americana, impõem limitações apenas para os Poderes Públicos e não atribuem aos particulares direitos frente a outros particulares
com exceção apenas da 13ª Emenda, que proibiu a escravidão.
Também são invocados outros argumentos teóricos para a doutrina da não
oposição dos direitos fundamentais aos particulares, tais como a autonomia privada
e o pacto federativo. Em relação a este, ressalta-se que, nos Estados Unidos, compete aos Estados, e não à União, legislar sobre Direito Privado, a não ser quando a matéria normatizada envolva o comércio interestadual ou internacional. Afirma-se,
pois, que a “State Action” preserva o espaço de autonomia dos Estados, impedindo
que as cortes federais, a pretexto de aplicarem a Constituição, intervenham na disciplina das relações privadas.29
A doutrina da “State Action”, ou seja, da oposição dos direitos fundamentais
somente perante o Poder Público, sofreu algumas atenuações a partir da década de
40, passando a Suprema Corte a adotar a chamada public function theory, “segundo a qual quando particulares agirem no exercício de atividades de natureza tipicamente estatal, estarão também sujeitos às limitações constitucionais”.30 Esta teoria
permitiu a oposição de direitos fundamentais em face de empresas privadas concessionárias de serviços públicos, tendo a Suprema Corte americana também a aplicado para vincular partidos políticos ao princípio da igualdade, diante da recusa de alguns comitês dos estados do sul dos EUA em admitir a filiação ou a participação de
pessoas negras em suas eleições primárias, bem como para reconhecer a ilicitude da
negativa de acesso aos negros a um parque privado, mas aberto ao público; tendo
reconhecido também a ilicitude da proibição de pregação por parte de testemunhas
de Jeová nas terras de uma empresa, constituída por ruas, residências, estabelecimentos comerciais, enfim, uma verdadeira “cidade privada”, equiparando-se, portanto, ao Estado.31
A doutrina da “State Action” vem sofrendo várias críticas. A propósito, o comentário de d. Kairys:
29 Ibid., p.228.
30 Ibid., p. 201.
31 Ibid., p.201-202.
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267
na esfera pública (...) conceitos básicos de liberdade, democracia
e igualdade são aplicáveis. No entanto, na esfera privada, que inclui quase toda a atividade econômica, nós não permitimos nenhuma democracia ou igualdade, apenas a liberdade para comprar e vender32
Prevalece a regra da soberania do Mercado.
Erwin Chemerinsky propõe que a teoria da “State Action” deveria ser substituída por um modelo de ponderação, no qual os tribunais avaliariam, diante de cada
caso, o que seria mais importante proteger: a liberdade individual do ator privado
ou os direitos da suposta vítima do seu comportamento. No mesmo sentido, John
E. Nowak e Ronald D. Rotunda, segundo os quais a incidência dos direitos fundamentais nas relações privadas deveriam não ser equacionada pela busca de um coeficiente mínimo de ação estatal envolvido no caso em discussão, mas sim por meio
de uma ponderação de interesses – balancig test, ponderando-se, de um lado, a liberdade daquele particular para agir da forma contestada e, do outro, o direito do
terceiro supostamente lesado.33
A jurisprudência americana “admite atualmente a competência da União para
legislar sobre direitos humanos mesmo quando nenhum ator estatal esteja envolvido, o que ocorreu com a promulgação de diversos diplomas na década de 60, na
fase áurea do movimento em prol dos direitos civis nos EUA, dentre os quais destaca-se o Civil Rights Act de 1964.”34
Entretanto, a jurisprudência americana oscila na aplicação da public function
theory, a exemplo do caso Columbia Broadcasting System v. Democratic Nacional
Committee, no qual
o fato de as redes de rádio e televisão nos EUA sujeitarem-se ao licenciamento e à regulamentação do governo federal não bastava
para vinculá-las aos direitos constitucionais, e, baseada neste entendimento, rechaçou a alegação de que a CBS estaria violando liberdades constitucionais, ao se recusar a admitir propaganda
paga de grupos pacifistas contra a Guerra do Vietnam.35
Outro caso em que houve retrocesso no sentido de dar caráter privado a certas atividades outrora consideradas públicas é o Rendell-Baker v. Kohn (457 US 830
– 1982), “em que a Corte julgou não ser dever do Estado coibir discriminação em
32 KAIRYS, D. The politics of law. New York: Pantheon Books, 1982, p. 151. apud SARMENTO, Daniel, op. cit. p. 206.
33 SARMENTO, Daniel, op. cit. p. 208-209.
34 Ibid., p. 229.
35 Ibid., p. 233.
268
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uma escola privada, mesmo quando essa escola opera sob contrato governamental
para cumprir certas obrigações no que concerne à educação especial de parcela de
seus estudantes.”36
Joaquim B. Barbosa Gomes conclui que a doutrina da “ação governamental”
– como denomina a “State Action”, tem hoje a sua síntese explicativa na seguinte
parte do julgamento proferido pela Suprema Corte no caso Lugar v. Edmondson Oil
Co (457 US 922 – 1982):
Nossos precedentes têm insistido em que a conduta supostamente
causadora da privação de um direito constitucional (federal) seja
razoavelmente atribuível ao Estado. Esses precedentes traduzem
uma abordagem bipolar do problema da ‘atribuição razoável’.
Em primeiro lugar, a privação tem que decorrer do exercício de algum direito ou prerrogativa criada pelo Estado ou por uma pessoa
pela qual o Estado seja responsável. (...) Em segundo lugar, a pessoa acusada de causar a privação há de ser alguém de quem razoavelmente se possa dizer que se trata de um ‘ator estatal’. Isto
por ser ele uma autoridade do Estado, por ter atuado juntamente
com uma autoridade estatal ou por Ter obtido significativa ajuda
de agentes estatais, ou porque a sua conduta é de alguma forma
atribuível ao Estado.37
Barbosa Gomes ensina que, para complementar a doutrina da “ação governamental”, é preciso conjugá-la com os dispositivos do Estatuto dos Direitos Civis de 1964, sendo que o empecilho dessa doutrina (da “Ação Governamental”) à
oposição dos direitos fundamentais frente a particulares tem sido contornado
graças a soluções emanadas do Judiciário e do Congresso, que vêm outorgando
aos órgãos competentes os poderes necessários ao combate à discriminação praticada na esfera privada.
Dentre os diversos instrumentos de atuação nessa área destaca-se
a utilização pelo Congresso da chamada Cláusula de Comércio,
do seu poder de regulamentar e implementar os dispositivos da
Constituição (‘Enforcemente Power’) e do poder de tributar e de
dispor sobre o dispêndio de recursos públicos (‘Taxing and Spending Power’).38
36 GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação Afirmativa e Princípio Constitucional da Igualdade. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p.88.
37 Ibid., p.88-89.
38 Ibid., p. 89-90.
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6.1.2. Teoria da eficácia indireta e mediata dos direitos fundamentais nas
relações privadas
Essa teoria, desenvolvida na doutrina alemã, por Günter Dürig, em 1956, consiste em dar aos direitos fundamentais uma dimensão objetiva, ou seja, os direitos
fundamentais exprimem uma ordem de valores que se irradia por todos os campos
do ordenamento, inclusive sobre o Direito Privado, cujas normas têm de ser interpretadas ao seu lume.
Juan María Bilbao Ubillos critica, com propriedade, a teoria da aplicação mediata e indireta dos direitos fundamentais – que condiciona a aplicação dos direitos
fundamentais à intermediação pelo legislador ordinário:
A nuestro juicio, um derecho cuyo reconocimiento depende del legislador, no es um derecho fundamental. Es um derecho de rango
legal, simplemente. El derecho fundamental se define justamente
por la indisponibilidad de su contenido por el legislador. No parece compatible con esta caracterización la afirmación de que los
derechos fundamentales sólo operan (entre particulares) cuando
el legislador así lo decide.39
6.1.3. Teoria da eficácia direta e imediata dos direitos fundamentais nas
relações privadas
Discorrendo sobre a teoria da eficácia direta dos direitos fundamentais na esfera privada, Daniel Sarmento40 ensina que a mesma foi primeiramente defendida
por Hans Carl Nipperdey, a partir do início da década de 50, na Alemanha. Sua teoria consistia em que alguns direitos fundamentais, pela sua natureza, poderiam ser
invocados diretamente nas relações privadas, independentemente de qualquer mediação por parte do legislador, sob o fundamento que as ameaças aos direitos fundamentais no mundo contemporâneo não provêm apenas do Estado, mas também
dos poderes sociais e de terceiros em geral. Seguindo a doutrina de Nipperdey, Walter Leisner defendeu a idéia de que, pela unidade da ordem jurídica, não seria admissível conceber o Direito Privado como um gueto, à margem da Constituição e
dos direitos fundamentais.
39 BILBAO UBILLOS, Juan María. La eficacia de los derechos fundamentales frente a particulares. Madrid: Centro
de Estudios Constitucionales, 1997, p.443.
40 Sarmento, Daniel. “A vinculação dos particulares aos direitos fundamentais no direito comparado e no Brasil”. A
nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Op. cit., p. 220.
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270
6.2 Tendências atuais
José Joaquim Gomes Canotilho aponta a superação da dicotomia eficácia mediata/eficácia imediata a favor de soluções diferenciadas
Reconhece-se, desde logo, que a problemática da chamada «eficácia horizontal» se insere no âmbito da função de protecção dos direitos fundamentais, ou seja, as normas consagradoras dos direitos, liberdades e garantias e direitos análogos constituem ou transportam princípios de ordenação objectiva – em especial, deveres de
garantia e de protecção do Estado – que são também eficazes na
ordem jurídica privada (K. Hesse). Esta eficácia, para ser compreendida com rigor, deve ter em consideração a multifuncionalidade ou pluralidade de funções dos direitos fundamentais, de forma
a possibilitar soluções diferenciadas e adequadas, consoante o «referente» de direito fundamental que estiver em causa no caso concreto. (...) ...a procura de soluções diferenciadas deve tomar em
consideração a especificidade do direito privado, por um lado, e o
significado dos direitos fundamentais na ordem jurídica global
por outro.41
CANOTILHO explica que as soluções diferenciadas a encontrar não podem,
hoje, desprezar o valor dos direitos, liberdades e garantias como elementos de eficácia conformadora imediata do direitos privado, não podendo, de modo algum,
acobertar “uma «dupla ética no seio da sociedade» ( J. Rivero).” Cita, como exemplo
da «dupla ética», a consideração como violação da integridade física e moral a exigência de testes de gravidez às mulheres que procuram emprego na função pública
e, ao mesmo tempo, a tolerância e aceitação dos mesmos testes quando o pedido
de emprego é feito a entidades privadas, em nome da “produtividade das empresas”
e da “autonomia contratual e empresarial”.42
Ressalta-se que a aplicação de direitos fundamentais frente ao Estado deve ser
distinguida da aplicação de direitos fundamentais entre particulares, uma vez que
nesta relação jurídica ambos os pólos são titulares de direitos fundamentais, sendo
que a “medida” da incidência dos direitos fundamentais em cada caso, nas palavras
de Robert Alexy43, “um problema de colisão”.
41 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição.Coimbra: Livraria Almedina,
2003, 7ª ed., p. 1289.
42 Ibid., p. 1294.
43 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Tradução de Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de
Estúdios Constitucionales, 1993, p. 511.
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271
Conforme José Carlos Vieira de Andrade, há colisão ou conflito sempre
que a Constituição proteger, simultaneamente, dois valores ou bens em contradição concreta. Como solução para a colisão de direitos, Luís Roberto Barroso
explica a técnica da ponderação de bens:
A doutrina mais tradicional divulga como mecanismo adequado à solução de tensões entre normas a chamada ponderação
de bens ou valores. Trata-se de uma linha de raciocínio que procura identificar o bem jurídico tutelado por cada uma delas, associá-lo a um determinado valor, isto é, ao princípio constitucional ao qual se reconduz, para, então, traçar o âmbito de incidência de cada norma, sempre tendo como referência máxima
as decisões fundamentais do constituinte. A doutrina tem rejeitado, todavia, a prederterminação rígida da ascendência de determinados valores e bens jurídicos, como a que resultaria, por
exemplo, da absolutização da proposição in dubio pro libertate.
Se é certo, por exemplo, que a liberdade deve, de regra, prevalecer sobre meras conveniências do Estado, poderá ela ter de ceder, em determinadas circunstâncias, diante da necessidade de
segurança e de proteção da coletividade.44
O método de balanceamento, assim como toda interpretação jurídica, deve
ser analisado de acordo com o caso concreto (direitos em conflito), pois o bem que
prevalecer num determinado caso pode ser relegado para segundo plano diante das
circunstâncias de outro caso. Nos dizeres de Canotilho, “é indispensável a justificação e motivação da regra de prevalência parcial assente na ponderação, devendo terse em conta sobretudo os princípios constitucionais da igualdade, da justiça, da segurança jurídica.”... “O apelo à metódica de ponderação é, afinal, uma exigência de
solução justa de conflitos entre princípios.”45
O método da ponderação de bens ou valores deve ser aplicado em conjunto com os princípios da unidade da Constituição e os postulados da razoabilidade e da proporcionalidade. Estes últimos devem orientar o juízo de ponderação na distribuição dos custos do conflito, no sentido de que o sacrifício
imposto a uma das partes seja razoável e não seja proporcionalmente mais intenso do que no benefício auferido pela outra parte.
Luís Roberto Barroso ressalta que as normas jurídicas, em geral, e especificamente as normas constitucionais, não trazem em si um sentido único, obje44 BARROSO, Luís Roberto. – Interpretação e aplicação da constituição, São Paulo: Saraiva, 1999, p. 192.
45 CANOTILHO, José Joaquim Gomes, op.cit., p. 1113.
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tivo, válido para todas as situações sobre as quais incidem, cabendo ao intérprete um papel criativo na sua concretização.”46
Lenio Luiz Streck47 preconiza a Constituição dotada de uma “força normativa,
dirigente, programática e compromissária”, sendo que o processo de interpretação
dos textos normativos do sistema depende do sentido que temos da Constituição:
Desse modo, fazer jurisdição constitucional não significa restringir o processo hermenêutico ao exame da parametricidade formal
de textos infraconstitucionais com a Constituição. Trata-se, sim, de
compreender a jurisdição constitucional como processo de vivicação
da Constituição na sua materialidade, a partir desse novo paradigma instituído pelo Estado Democrático de Direito.
...
Entendo, assim, que a justiça constitucional deve assumir uma
postura intervencionista, longe da postura absenteísta própria do
modelo liberal-individualista-normativista que permeia a dogmática jurídica brasileira. A toda evidência, quando estou falando de
uma função intervencionista do Poder Judiciário, não estou propondo uma (simplista) judicialização da política e das relações
sociais (e nem a morte da política).
...
Quando falo em “intervencionismo substancialista”, refiro-me ao
cumprimento dos preceitos e princípios ínsitos aos Direitos Fundamentais Sociais e ao núcleo político do Estado Social previsto na
Constituição de 1988, donde é possível afirmar que, na inércia dos
poderes encarregados precipuamente de implementar as políticas
públicas, é obrigação constitucional do Judiciário, através da jurisdição constitucional, propiciar as condições necessárias para a
concretização dos direitos sociais-fundamentais48.
A mais alta corte brasileira também tem aplicado, de forma direta, os direitos fundamentais para dirimir conflitos de caráter privado, inclusive nas relações
trabalhistas:
46 Barroso, Luís Roberto & Ana Paulo de Barcellos. “O começo da história. A nova interpretação constitucional e o
papel dos princípios no direito brasileiro.” A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 331-332.
47 Constitucionalizando Direitos: 15 anos da constituição brasileira de 1988/ Fernando Facury Scaff (org.). – Rio de
Janeiro: Renovar, 2003. Lênio Luiz Streck. “Análise Crítica da Jurisdição constitucional e das possibilidades hermenêuticas de concretização dos direitos fundamentais. P. 142.
48 Ibid., p. 155/158.
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CONSTITUCIONAL. TRABALHO. PRINCÍPIO DA IGUALDADE. TRABALHADOR BRASILEIRO EMPREGADO DE EMPRESA ESTRANGEIRA:
ESTATUTOS DO PESSOAL DESTA: APLICABILIDADE AO TRABALHADOR ESTRANGEIRO E AO TRABALHADOR BRASILEIRO. C.F, 1967,
art. 153, p. 1o.; CF., 1988, art. 5o., caput.
I – Ao recorrente, por não ser francês, não obstante trabalhar para
empresa francesa, no Brasil, não foi aplicado o Estatuto do Pessoal
da Empresa, que concede vantagens aos empregados, cuja aplicabilidade seria restrita ao empregado de nacionalidade francesa.
Ofensa ao princípio da igualdade: (C.F., 1967, art. 153, p. 1º., CF,
1988, art. 5º, caput)
II – A discriminação que se baseia em atributo, qualidade, nota intrínseca ou extrínseca do indivíduo, como o sexo, a raça, a nacionalidade, o credo religioso, etc., é inconstitucinal. Precedente do
STF: Ag 110.846 (AgRg) – PR, Célio Borja, RTJ 119/465. (RE n.
161.243-6/DF, 1996, STF, 2a Turma, Rel. Min. Carlos Mário Velloso).
7.
AÇÕES AFIRMATIVAS FRENTE A PARTICULARES
Ao indagar se as regras anti-discriminação aplicam-se somente às entidades
públicas ou também atingem atos discriminatórios resultantes de atos e práticas de
cunho privado, Barbosa Gomes esclarece que o Congresso e a Corte Suprema dos
EUA responderam afirmativamente, indo além, uma vez que admitiram como legítimo o combate não apenas àquele tipo de discriminação manifesta, intencional, mas
igualmente à chamada discriminação de resultados, também denominada discriminação por ‘disparate impact’, que insere o princípio da proporcionalidade no campo dos direitos civis.49
A Constituição brasileira de 1988 erigiu os direitos fundamentais à sua máxima importância, tanto é que os posicionou em primeiro plano, antes de dispor sobre a organização do Estado, além de lhes atribuir a condição de cláusula pétrea (art.
60, § 4º, IV ). Estabeleceu, ainda, em seu artigo 5º, §§ 1º e 2º a aplicação imediata das
normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais, bem como o reconhecimento de outros direitos e garantias que não estejam nela expressos, decorrentes
do regime e dos princípios adotados pela mesma ou por tratados internacionais em
que a República Federativa do Brasil seja parte.
No Brasil, portanto, é aceita a oposição dos direitos fundamentais frente a particulares, a exemplo da política da afirmação para assegurar a inserção de deficientes físicos no mercado de trabalho privado (Lei n. 7.853, de 24.10.89 e o Decreto n.
49 GOMES, Joaquim B. Barbosa, op. cit., p. 51.
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3.298, de 20.12.99, que a regulamenta, determinando, em seu art. 36, que as empresas com cem ou mais empregados preencha de 2 a 5% de seus cargos com beneficiários da Previdência Social reabilitados ou com pessoa portadora de deficiência habilitada, nas proporções que apresenta em seus incisos).
Ressalta-se que, havendo conflito de direitos fundamentais, o mesmo deve ser
solucionado à luz da Nova Hermenêutica Jurídica Constitucional, que busca a concretização dos princípios inseridos na Constituição, verificando-se as peculiaridades
do caso concreto, utilizando-se do postulado da proporcionalidade.
8.
CONCLUSÃO
Na evolução da história da humanidade, busca-se a concretização do princípio
jurídico da igualdade, sendo que, no Estado Democrático de Direito, a humanidade
reconhece as discriminações perpetradas em relação a determinados grupos, a
exemplo dos negros e das mulheres que não eram considerados cidadãos.
A implementação material do princípio da igualdade se dá não somente através do combate à discriminação, mas também através da promoção da igualdade,
possibilitada através de políticas de ações positivas.
As ações afirmativas surgem como políticas temporárias de agilização da promoção do princípio da igualdade onde há diversidade, com a finalidade de compensar as discriminações que certos grupos sofreram no passado, cujos reflexos perpetuam-se até hoje.
As ações afirmativas, como meios de promoção da igualdade jurídica material,
podem ser opostas frente a entes públicos e também frente a particulares, sendo
que havendo conflito de direitos fundamentais, o caso deve ser analisado de acordo
com a Nova Hermenêutica Jurídica Constitucional.
9.
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apud GOMES, Joaquim B. Barbosa. Op. cit.
BARROSO, Luís Roberto. – Interpretação e aplicação da constituição, São Paulo:
Saraiva, 1999.
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VILAS-BÔAS, Renata Malta. Ações afirmativas e o princípio da igualdade. Rio de
Janeiro: América jurídica, 2003, p. 29.
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A EMENDA
CONSTITUCIONAL N. XIV E AS MINORIAS
NOS ESTADOS UNIDOS
Adhemar Ferreira Maciel
Consultor jurídico.
Ministro aposentado do Superior Tribunal de Justiça.
Antigo professor da Faculdade de Direito Milton Campos e da Universidade de Brasília.
1.
INTRODUÇÃO
Em seu livro Tempos Interessantes, HOBSBAWN diz que desde sua fundação
“os Estados Unidos têm sido objeto de atração e fascínio para o resto do mundo, porém também de difamação e desaprovação”.1 De minha parte, não consigo disfarçar
meu fascínio pelos Estados Unidos, sobretudo por seu direito constitucional. Mesmo agora, depois do Onze de Setembro de 2001, quando se procura abalar os alicerces fincados pelos Founding Fathers, procuro ver na belicosidade e ganância
americanas apenas uma situação passageira, emergencial. Para quem vem, ainda que
modestamente e de longe, acompanhando a evolução dos direitos humanos nos Estados Unidos, não deixa de ser amargo ler notícias nos jornais de que também agora se está permitindo a prática de tortura em prisioneiros, em suspeitos, que nem
mesmo os diplomatas da ONU se acham a salvo de violação de correspondência (email) e escutas telefônicas. Mas, é importante ter em conta que é a própria imprensa americana que veicula a notícia.
1 HOBSBAWN, Eric. Tempos interessantes. Trad. S. Duarte. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 439.
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2.
faculdade de direito de bauru
O CASO LOVING V. VIRGINIA, 388 U. S. 1 (1967). SENTENÇA QUE
REFLETE A SOCIEDADE, MAIS DO QUE O PRÓPRIO JUIZ. REVERSÃO NA SUPREMA CORTE. O VOTO DE EARL WARREN
Se um juiz nunca pode ser julgado por uma única sentença, ao reverso, uma
sentença pode revelar mais do que o pensamento e o sentimento do juiz. Pode revelar o que pensa e sente uma sociedade inteira, ou pelo menos grande parte dela.
No caso, a sociedade é a da Virgínia, nos Estados Unidos. O fato se deu em 1958,
com o casamento entre Mildred Jeter, uma negra, e Richard Loving, um branco, no
Distrito Federal (District of Colombia). O casal, após as bodas, voltou para a Virgínia, que, à semelhança de 15 outros Estados, então vedava matrimônio inter-racial.
O dispositivo legal, com a rubrica “Punição em razão de Casamento” (Punishment
for Marriage), dizia:
Se alguém se casar com uma pessoa de cor, ou alguém de cor se casar com uma pessoa branca, esse alguém cometerá felony, e será
punido com prisão em penitenciária por não menos de um, e não
mais de cinco anos.2
O órgão judicante de primeiro grau considerou que o casamento se dera fora
do Estado da Virgínia para burlar a lei. Marido e mulher foram condenados a um ano
de prisão. A execução da sentença, todavia, foi suspensa sob a condição de que os
condenados ficassem fora do Estado durante 25 anos...
Vamos transcrever excerto da sentença, que sob o tegumento da ignorância e
sofisma, revela a profundeza do ódio racial:
O Todo Poderoso criou as raças branca, negra, amarela, malaia e
vermelha, e as colocou em continentes separados.3 Em decorrência disso, não deveria haver tais casamentos. Pelo fato de haver Ele
(Deus) separado as raças, mostra que era sua intenção não deixar
que as raças se misturassem.4
2 A tradução foi livre. No original: “If any person intermarry with a colored person, or any colored person intermarry with a white person, he shall be guilty of felony and shall be punished by confinement in the penitentiary for
not less than one nor more than five year” (Disponível em: http://www.multiracial.com/government/loving.html).
3 In casu, o enquadramento racial por continente faz lembrar a teoria de Johann F. Blumenbach (1752-1840), pioneiro
da antropologia física, que no final do século XVIII classificou as raças em caucásica, mongólica, americana e malaia (Cf.
RECASÉNS SICHES, Luis. Tratado de sociologia. Trad. João Baptista Coelho Aguiar. Rio de Janeiro: Globo, v. I, p. 377).
4 Tradução livre. No original: “Almighty God created the races white, black, yellow, malay and red, and he placed
them on separate continents. And but for the interference with his arrangement there would be no cause for such
marriages. The fact that he separated the races shows that he did not intend for the races to mix.” (Disponível em:
http://www.multiracial.com/government/loving.html).
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
41
279
O marido apelou. O tribunal de apelação, ao negar provimento ao recurso,
entendeu que a lei era constitucional, pois tratava negros e brancos de modo
igual. Na Suprema Corte, o chief justice WARREN, que falou pelo colegiado, após
sublinhar que a decisão violara as cláusulas do due process e da equal protection of laws, invocou uma série de decisões anteriores, arrematando:
A liberdade de casar-se já foi há muito reconhecida como um
dos direitos individuais vitais, essenciais na busca pacífica da
felicidade para os homens livres. (...) Negar esse direito fundamental com arrimo em tão insuportável base como as classificações raciais, incorporadas nessas leis, classificações tão diretamente subversivas do princípio da igualdade (existente) no
âmago da Emenda n. 14, é, por certo, privar todos os cidadãos
dos Estados de liberdade sem o devido processo legal. A Emenda
n. 14 exige que a livre liberdade de escolha para se casar não
seja restringida por discriminações raciais odiosas. Sob nossa
Constituição, a liberdade de casar-se, ou não se casar, com uma
pessoa de outra raça está no (próprio) indivíduo, e não pode
ser infringida pelo Estado.5
Casos como o de Mildred/Richard se contam a mancheias. Veremos um ou
outro, todos relacionados com a Emenda Constitucional n. XIV.
3.
A EMENDA CONSTITUCIONAL N. XIV (1868) INTEGRA MATERIALMENTE O BILL OF RIGHTS (1791)
Ainda que o Poder Judiciário norte-americano, em sua longa e riquíssima
história,6 tenha muitas vezes decidido contra a Law of the Land, ou seja, contra
a Constituição, as leis federais e os tratados assinados pelo governo, sobretudo
no concernente às minorias raciais, não se lhe pode deixar de creditar grandes
decisões, que engrandecem os juízes de todo o mundo, proferidas na proteção
dos mais desvalidos. Como as decisões do judiciário refletem um momento da
sociedade, veremos a evolução (e às vezes involução) da jurisprudência da Suprema Corte dos Estados Unidos no pertinente às cláusulas do “devido processo legal” e da “igualdade perante as leis”.
5 Loving v. Virginia, 388 U. S. 1 (1967).
6 Em 24 de setembro de 1789, o presidente George Washington indicou o nome de John Jay para presidir a Suprema Corte. A primeira sessão, marcada para o dia 1.º de fevereiro de 1790, não se realizou por falta de quórum: dos
5 membros, só havia 3 juízes (Cf. CUSHMAN, Clare (Ed.). The supreme court justices – illustrated biographies –
1789-1993. Washington, D.C.: Congressional Quarterly, p. 3).
280
faculdade de direito de bauru
Em 9 de julho de 1868, foi ratificada a Emenda n. XIV à Constituição dos Estados Unidos (1787). Essa Emenda foi fruto da Guerra da Secessão (Civil War ou War
Between the States).7
Sob o ponto de vista material, como já se falou, a Emenda n. XIV integra o Bill
of Rights, ratificado quase setenta e sete anos antes. Seu escopo já não era mais a
“supremacia do governo federal” em relação aos governos estaduais, “mas a proteção dos indivíduos no gozo dos direitos e imunidades garantidas a eles pela Constituição Federal”.8 Em decorrência, a Emenda n. XIV abriu aos tribunais federais a possibilidade de controlar atos de autoridades estaduais no concernente aos “privilégios ou imunidades” dos cidadãos dos Estados Unidos, bem como ao “devido processo legal” e à “igual proteção perante as leis”.9 É de capital importância que nos
detenhamos nesse pormenor: adequação de atos de autoridades estaduais à nova
ordem jurídica então instituída no país.
4.
A ELABORAÇÃO DE THE ARTICLES OF CONFEDERATION. SUA PRETENSA “REVISÃO” EM 1787. A NOVA LAW OF THE LAND: SUJEIÇÃO
DOS JUÍZES ESTADUAIS A TRIBUNAIS FEDERAIS
Uma pitada de história da criação da Nação norte-americana se faz indispensável. Em 11 de junho de 1776, uma assembléia formada por revolucionários (First
Continental Congress) nomeou uma comissão para elaborar documento – The Articles of Confederation – que seria a base de uma Confederacy, os “Estados Unidos
da América” (art. I).10 Coube a John Dickinson (1732-1808), delegado da Pensilvânia
e Delaware, 11 fazer o esboço do documento que foi adotado, com poucas modificações, em 15 de novembro de 1777.12 Cada uma das antigas Colônias inglesas do
Novo Mundo, desde 1776, por assim dizer, já constituía um Estado soberano. Com
7 A cláusula equal protection da Emenda n. XIV se acha intimamente ligada à Emenda n. XIII (1865) e à Emenda n.
XV (1870). A Emenda n. XIII aboliu a escravidão; a Emenda n. XV impede discriminação eleitoral em razão de “raça,
cor ou de prévio estado de servidão”.
8 WILLOUGHBY, Westel W. Principles of the constitutional law of the United States. New York: Baker, Voorhis & Co,
1938, p. 145. No original: (…) but the protection of individuals in the enjoyment of the rights and immunities guaranteed to them by the Federal Constitution.
9 Ibidem, p. 147.
10 A linha divisória entre uma confederação e uma federação nem sempre é nítida. O próprio Estado federal pode
apresentar maior ou menor frouxidão integrativa entre suas unidades (Cf. ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria geral do estado. 2. ed. Trad. António Cabral de Moncada. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, p. 222). Mas, de qualquer sorte, toda federação se caracteriza como uma pessoa política frente aos Estados-Membros, dispondo, como tal, dos
instrumentos jurídico-políticos da “execução federal” e da “intervenção federal” (Cf. SCHMITT, Carl. Teoría de la
constitución. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, p. 438).
11 Disponível em: http://odur.let.rug.nl/~usa/B/jdickenson/johnd1.htm.
12 Cf. COMMAGER, Henry Steele (Ed.). Documents of American history, 6th ed. New York: Appleton-CenturyCrofts, Inc., 1958, p. 111.
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n.
41
281
o correr do tempo, verificou-se que o pacto firmado entre os Estados confederados
era insuficiente para resolver inúmeros interesses dos participantes, que temiam a
cobiça de nações belicosas como a própria Grã-Bretanha, França, Espanha e Rússia.
Em 25 de maio de 1787, uma assembléia (Convention) se reuniu na Filadélfia para
fazer a “revisão” de “Os Artigos da Confederação”. No lugar da proposta “revisão”,
saiu documento novo: a Constituição. A nova Law of the Land passou, então, a ser,
como já se falou, a Constituição adotada, as leis federais e os tratados assinados pelo
governo federal. Os juízes, que antes estavam presos às leis de seus respectivos Estados, ficaram obrigados à nova ordem. Daí a importância da Emenda n. XIV, como
se ressaltou por mais de uma vez.
A preocupação da Emenda n. XIV, no fundo, estava centrada nas minorias raciais,13 em especial no negro,14 que, em vários Estados-Membros, não podia viajar nos
mesmos vagões que os brancos, freqüentar as mesmas escolas, hospedar-se nos
mesmos hotéis, participar de júri popular, ocupar determinados cargos públicos,
morar nos mesmos quarteirões habitados por brancos etc.
Com fulcro na Emenda n. XIV, o Congresso, em 1875, aprovou uma lei de
direitos humanos (Civil Rights Act),15 estabelecendo penalidades para as autoridades que privassem as pessoas de seus direitos e liberdades. A importância dessa lei infraconstitucional estava no fato de o Congresso estabelecer, de modo
concreto e objetivo, tipos penais, ensejando o ajuizamento de ações judiciais
para sustentação dos direitos reconhecidos nas cláusulas constitucionais.16 Lamentavelmente, como aconteceu por mais de uma vez, a Suprema Corte estava
no seu papel político de dificultar o acesso à cidadania pelos menos favorecidos,
como negros, cules chineses, chicanos e mulheres: teve diversos dispositivos da
Civil Rights Act como inconstitucionais: entendeu que não cabia ao Congresso
definir direitos civis e muito menos estabelecer penalidades para infratores estaduais. Foi uma série de julgados, que recebeu in globo a denominação de Civil Rights Cases.17
13 Segundo o último censo (2000), os negros são numericamente superados pelos hispânicos, que alcançam 13%
da população norte-americana; os asiáticos, 4% (Hispânicos já são principal minoria nos EUA. São Paulo: Folha de
São Paulo, de 22/01/2003, p. A12).
14 Cf. PARENTI, Michael. Democracy for the few. 4th ed. New York: St. Martin´s Press, 1983, p. 309.
15 A CRA (Civil Rights Act) tem desde então sofrida alteração, como em 1957, 1960, 1964, 1977 e 1991. O título VII
da CRA está no volume 42 do United States Code (Disponível em: http://www.eeoc.gov/laws/viihtml).
16 Cf. WILLOUGHBY, ob. cit., p. 146.
17 Corrigan v. Buckley, 271 U. S. 323, 330 (1926); United States v. Wheeler, 254 U. S. 281, 298 (1920). Para maiores
detalhes sobre os Civil Rights Cases, ver TRIBE, Laurence. American constitutional law, 2nd ed. Mineola, New
York: The Foundation Press, Inc., 1988, p. 1.693 e seg.
282
5.
faculdade de direito de bauru
A SEÇÃO 1 DA EMENDA CONSTITUCIONAL N. XIV. A DUAL CITIZENSHIP
A seção 1 da Emenda, que nos interessa de perto, diz:
1. Todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos,
e sujeitas à sua jurisdição, são cidadãos dos Estados Unidos e do
Estado onde tiver residência. Nenhum Estado poderá fazer ou executar leis restringindo os privilégios ou as imunidades dos cidadãos dos Estados Unidos; nem poderá privar qualquer pessoa de
sua vida, liberdade, ou bens sem o devido processo legal, ou negar
a qualquer pessoa sob sua jurisdição a igual proteção das leis.18
Uma primeira observação é quanto ao conceito de “cidadão”, uma vez que
o texto fala em “cidadãos dos Estados Unidos e do Estado onde tiver residência”.
A dual citizenship (dupla cidadania) na atualidade tem valor praticamente histórico. Com exceção da Carta de William Penn,19 as demais Charters das colônias
inglesas do Novo Mundo continham dispositivos reconhecendo que os habitantes das colônias e seus descendentes eram súditos ingleses.20 Como já notamos,
com a Independência cada colônia se transformou num Estado soberano. Não
havia, pois, uma “cidadania nacional”, como aconteceu no Brasil (Estado unitário). Com a instituição de um novo Estado - o Estado federal –, preservou-se a
cidadania antiga (estadual), sem prejuízo da nova cidadania (nacional). Fenômeno semelhante pode ser observado na Suíça: cada Kantonsbürger é, simultaneamente, um schweizer Bürger (cidadão suíço).21
18 Constituição do Brasil e constituições estrangeiras. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas., 1987, v. I, p. 430. No original: Section 1. All persons born or naturalized in the United States and subject to
the jurisdiction thereof, are citizens of the United States and of the State wherein they reside. No State shall make
or enforce any law which shall abridge the privileges or immunities of citizens of the United States; nor shall any
State deprive any person of life, liberty, or property, without due process of law; nor deny to any person with its
jurisdiction the equal protection of the laws.
19 O quaker William Penn recebeu a charter for the colony em 1681. Conta-se que ele havia proposto dois nomes
para sua colônia: Nova Gales (New Wales) ou Silvânia (Sylvania). O rei Carlos II, todavia, em sua homenagem, preferiu Pennsylvania (Disponível em: http://xroads.virginia.edu/~CAP/PENN/pnintro.html).
20 Cf. FERGUSON, John H., McHENRY, Dean E. The American federal government. New York: McGraw-Hill Book
Company, Inc., 1950, p. 175.
21 Constituição da Confederação Suíça: “Art. 43. Qualquer cidadão de um cantão é cidadão suíço” (Constituição do
Brasil e constituições estrangeiras, ob. cit., v. II). BRASIL: É interessante averbar que tanto a Carta de 1824 (art. 6.º)
quanto a Constituição de 1891 (art. 69) falavam em “cidadãos brasileiros”. A Constituição de 1988, sobre a rubrica
“nacionalidade” (art. 12), só fala em “brasileiros”.
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6.
n.
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283
VIOLÊNCIAS CONTRA O NEGRO. O CASO DRED SCOTT V. SANFORD
Antes do advento da Emenda n. XIV havia muita discussão violenta para saberse se o negro alforriado poderia ser considerado “cidadão” em outro Estado-Membro.22 Notável – e lamentável –23 foi a decisão da Suprema Corte no caso Dred Scott
v. Sanford, 19 How. 393 (1857), que bem refletiu o mainstream da época.24 É comezinho, muitos dos fundadores da Nação norte-americana eram grandes proprietários
de escravos, a começar por George Washington, James Madison e John Rutledege.25
Dred Scott era escravo de um cirurgião militar ( John Emerson) no Estado do
Missouri, que reconhecia a instituição da escravidão.26 O militar foi servir no Forte
Snelling, que ficava em Território novo (hoje corresponde ao Estado de Minnesota),
22 Cf. COOLEY, Thomas M. The general principles of constitutional law in the United States of America. 4th ed.
Boston: Little, Brown, and Company, 1931, p. 315 e seg.
23 O caso Dred Scott é apontado como um dos fatores que desencadeou a Civil War. Coube ao chief justice Roger
B. Taney falar pela Corte. Sob o aspecto jurídico, Taney, dentro do espírito da época, entendeu que a escravatura
estava mantida pela Constituição, que garantia o direito de propriedade (Daí a inconstitucionalidade do Missouri
Compromise). Apenas dois juízes – Benjamin R. Curtis e John McLean – dissentiram. Curtis foi proclamado um “herói” pelos abolicionistas. Taney, por questão de divulgação prévia de voto pela imprensa, por parte de Curtis, acusou o colega de açular a opinião pública contra a Corte. Desgostoso, Curtis, em 1.º de setembro de 1857, oficiou ao
presidente James Buchanan, pedindo sua exoneração (Cf. CUSHMAN, Clare (Ed.). The Supreme Court justices -illustrated biographies, 1789-1993. Washington, D.C.: Congressional Quarterly, 1993, p. 156 e seg.). TOCQUEVILLE,
que escreveu a segunda parte de A Democracia na América em torno de 1840 (antes, pois, da Emenda n. XIV ),
faz uma análise profunda e minudente do escravo nos Estados Unidos. Mostra que era mais fácil mudar as leis do
que os costumes. Assim, ainda que alguns Estados do Norte tivessem legalmente abolido a escravidão, o preconceito racial ali continuou mais vivo do que no Sul (A democracia na América. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1998 p. 393 e seg.). Esse fato pode ser facilmente constatado nas decisões da Suprema Corte, como se
verá mais para frente: o preconceito permanecia nos Estados do Norte. BRASIL: Nossa Carta política de 1824 não
continha uma linha sequer sofre a escravidão. Era como se não existisse. O próprio Teixeira de Freitas, quando fez
sua notável Consolidação das Leis Civis, embora tenha reconhecido a hediondez da instituição, preferiu contemplála à parte, no que ele denominou “Código Negro” (Cf. NABUCO, Joaquim. O abolicionismo. São Paulo: Publifolha,
2000, p. 90). NABUCO observa (p. 13 e seg.) que nos Estados Unidos o abolicionismo teve cunho religioso, humanitário. No Brasil, diferentemente, suas raízes foram políticas. Por outro lado, no Brasil, diferentemente dos Estados
Unidos, o negro não era considerado “raça inferior”. Fazia “parte integrante do povo brasileiro” (p. 14). Quanto ao
índio, no governo do Marquês de Pombal a miscigenação foi incentivada por lei (Alvará de 14/04/1755). Anos depois (1808), é verdade, foi expedida carta régia permitindo a preagem do índio e sua utilização gratuita (Cf. PRADO
JÚNIOR, Caio. A formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Publifolha, 2000, p. 95). Nos Estados Unidos, o índio foi sempre tratado como estranho. Com as grandes tribos se celebravam “tratados”.
24 Uma lei (federal) de 1793 – The Fugitive Slave Act – mandava que o juiz determinasse a reintegração do escravo fujão. Em 1842, uma decisão da Suprema Corte considerou inconstitucional lei estadual que impedia o uso de
força para captura de escravo foragido, uma vez que a Constituição garantia o direito de propriedade [Prigg v.
Pennsylvania, U. S. (16 Pet.) 539 (1842) ].
25 CHEMERINSKY, Erwin. Constitutional law – principles and policies. New York: Aspen Law & Business, 1997, p.
547.
26 A legislação ficou conhecida como Missouri Compromise (Cf. COOLEY, ob. cit., p. 315).
284
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onde o Congresso proibira a escravidão. Levou consigo seu escravo, que se considerou livre. Após lhe ter sido negada a alforria por seu amo, Scott entrou com uma
ação judicial. Perdeu. Seu caso foi parar na Suprema Corte, que decidiu que o Congresso não tinha poderes para impedir a escravatura, mesmo naqueles Territórios incorporados à União. Por outro lado, o autor da ação, por ser “uma pessoa de cor da
raça africana” (a colored person of the African race) não tinha legitimidade ativa,
pois não fazia parte do “povo dos Estados Unidos”, não sendo, portanto, “cidadão”
americano. Logo, não tinha legitimidade para ajuizar ações em tribunais dos Estados
Unidos [(...) bring suits in the courts of the United States.]. A Corte concluiu que os
Estados tinham competência para dar cidadania a qualquer pessoa, “mas eles não
podiam transformar o adquirente de tal status num cidadão dos Estados Unidos”.27
A Emenda n. XIV, com o correr do tempo, veio pôr cobro a decisões vergonhosas e abjetas como essa. Grupos de pressão passaram a exigir maior ativismo da
Corte. Aliás, como em todo governo verdadeiramente representativo, grupos minoritários pressionam, eleitoral ou extra-eleitoralmente, os poderes da República.
7.
A CLÁUSULA “PRIVILÉGIOS OU IMUNIDADES”
A segunda observação vem para a cláusula “privilégios ou imunidades” (privileges or immunities). A Emenda, como se viu da transcrição acima, fala que
“(n)enhum Estado poderá fazer ou executar leis restringindo os privilégios ou as
imunidades dos cidadãos dos Estados Unidos”. A expressão “privilégios ou imunidades” não era novidade, pois já constava da seção 2 do art. IV da Constituição: The Citizens of each State shall be entitled to all Privileges and Immunities of Citizens in
the several States. Aliás, como se observou em In Re Slaughter-House Cases, 83 U.
S. 36 (1872), a cláusula já vinha do art. IV dos Articles of Confederation (1777): “(...)
aos povos dos diversos estados da união..., aos habitantes livres de cada um desses
estados, com exceção dos mendigos, vagabundos ou fugitivos da Justiça, serão conferidos todos os privilégios e imunidades de cidadãos livres dos diversos estados”.28
Mais de um século depois do advento da Emenda n. XIV, em Baldwin v. Montana,29 a Suprema Corte reconheceu que “os contornos (da cláusula) não estão (ainda)
bem delineados”. É certo que em 1823, em Corfield v. Coryell,30 o justice Bushrod Washington tentou - e não foi lá muito preciso - conceituar a cláusula “privilégios ou imunidades”, dizendo que ela garantia interesses na proteção, por parte do governo, da
27 Disponível em: http://supreme.lp.findlaw.com/constitution/amendment14/01.html.
28 (…)the people of the different states in this union, the free inhabitants of each of these states, paupers, vagabonds and fugitives from Justice excepted, shall be entitled to all privileges and immunities of free citizens in the
several states…(COMMAGER, ob. cit., p. 111).
29 Baldwin v. Montana Fish & Game Comm., 436 U. S. 380 (1978).
30 Corfield v. Coryell, 6 Fed. Cas. 546 (No. 3230) (C.C.E.D. Pa. 1823).
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
41
285
vida e liberdade dos cidadãos na busca da felicidade e segurança.31 O mesmo diapasão
foi repetido, em circunstâncias outras, em Paul v. Virginia, 75 (8 Wall.) 168, 180 (1869):
a cláusula constitucional permite que um cidadão de um Estado saia e entre em outro
“na aquisição e gozo da propriedade e busca da felicidade” [(...) in the acquisition and
enjoyment of property and in the pursuit of happiness].32
Em resumo, o que se quis com a cláusula “privilégios ou imunidades” foi dar
um tratamento isonômico entre naturais-do-Estado (in-staters) em relação aos nãonaturais-do-Estado (out-of-staters) no pertinente aos direitos civis e a atividades econômicas. Com base nesse entendimento, a Suprema Corte decidiu no caso Doe v.
Bolton, 410 U. S. 179, 200 (1973), conexo (companion case) com o famoso Roe v.
Wade,33 que a mulher não teria que ser residente no Estado (Geórgia) para poder ali
se submeter a aborto. A cláusula “privilégios ou imunidades” - disse a Corte –
protege as pessoas que ingressam na Geórgia para exercer seu negócio, assim deve ela (também) proteger as pessoas que entram na
Geórgia em busca de serviços médicos que lá se acham disponíveis.
Um entendimento contrário significaria que um Estado poderia limitar a seus próprios residentes os serviços médicos gerais disponíveis dentro de suas fronteiras.
8.
A EMENDA N. V E A EMENDA N. XIV. CARACTERÍSTICAS DO DIREITO NORTE-AMERICANO: CASE LAW. DIFICULDADE DE ABSTRAÇÃO EM RELAÇÃO AO DIREITO BRASILEIRO
A seção 1 da Emenda n. XIV, como se viu da transcrição do texto, fala que:
Nenhum Estado poderá fazer ou executar leis restringindo os privilégios ou as imunidades dos cidadãos dos Estados Unidos; nem
poderá privar qualquer pessoa de sua vida, liberdade, ou bens sem
o devido processo legal, ou negar a qualquer pessoa sob sua jurisdição a igual proteção das leis.
A Emenda n. V, que faz parte do Bill of Rights, já rezava:
31 Cf. CHEMERINSKY, ob. cit., p. 352.
32 Neste caso – Paul v. Virginia - a questão principal gravitava em torno da possibilidade de o legislativo estadual
fixar, por conta e risco, normas sobre seguro. Entendeu-se que a política de seguros não era comércio inter-estadual, não sendo, pois, matéria regulável pelo Congresso (Disponível em http://www.nils.com/rupps/paul-v-virginia.htm).
33 Roe v. Wade, 410 U. S. 113 (1973).
286
faculdade de direito de bauru
ninguém poderá ser (...); nem ser privado da vida, liberdade, ou
bens, sem o devido processo legal; nem a propriedade privada poderá ser expropriada para uso público, sem justa indenização34
(No person shall (...); nor be deprived of life, liberty, or property, without due process of law; nor shall private property be taken for public use without just compensation).
A Emenda n. XIV, como é fácil no confronto com a Emenda n. V, foi destinada aos Estados.
A Emenda em comento (XIV) fala em “pessoa”. O direito anglo-americano tem
maior dificuldade em fazer abstrações do que o direito brasileiro, que pertence à família romano-germânica. Em Louisville, Cincinnati and Charleston R. Co v. Letson, 2 Howard 497 (1844), a Corte usou caminhos transversos para dizer que uma “corporation
is to be treated as if it were a citizen of the state in which it is incorporated”.35
O direito norte-americano é um direito judicial (case law). É direito edificado
com base nos precedentes. O juiz, ao julgar um caso concreto, procura valer-se da
ratio decidendi de outro julgamento, que constitui a legal rule a ser seguida por
ele. Muitas vezes, aproveita até mesmo o que foi expresso obiter dictum, isto é, incidentalmente e sem “efeito vinculante” (binding effect). Daí utilizar-se de raciocínio indutivo. Nosso direito é legal. Não precisa passar pelo crivo do Judiciário para
se firmar (enforcement). O caminho lógico utilizado por nosso magistrado já é outro: é dedutivo. O juiz, primeiro, examina as leis (a começar pela Constituição) para
“aplicá-las” ao caso concreto, ainda que possa reforçar sua fundamentação com a jurisprudência de tribunais e doutrina.36 O juiz americano, ao reverso, ainda que possa partir da lei escrita (statute), procura descobrir em tribunais superiores o que foi
firmado em casos que guardam similitude com o seu. Lá, há mais preocupação com
34 Constituição do Brasil e constituições estrangeiras, ob. cit., v. 1.
35 MAYERS, Lewis. The American legal system: the administration of justice in the United States by judicial, administrative, military, and arbitral tribunals. New York: Hasper & Brothers, 1955.p. 24. O direito romano, é certo, conheceu somente o homem como persona. Às entidades coletivas davam-se os nomes de collegium, corpus,
universitas etc. Com o passar do tempo, já na época clássica, as entidades coletivas ou massas de bens começaram
a ser personificadas. Assim se falava em universitas bonorum e universitas personarum (Cf. PEREIRA, Caio Mário
da Silva. Instituições de direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 1974, v. I, p. 258). BRASIL: O Código Civil brasileiro
preferiu a nomenclatura adotada pelo BGB alemão: pessoas naturais (natürliche Personen) e pessoas jurídicas (juristiche Personen). Nos Estados Unidos não é incomum, quando se quer precisar, usar-se a expressão natural person. O BLACK´s conceitua: “In general usage, a human being (i.e. natural person), though by statute term may include a firm, labor organizations, partnerships, associations, corporations, legal representatives, trustees, trustees
in bankruptcy, or receivers” (Law dictionary. 5th ed. St. Paul Minn: West Publishing, 1979).
36 Nos países de direito anglo-saxônico, o precedente judicial veio para limitar o arbitrium judicis; nos países de
direito romano-germânico, ocorreu o contrário: tirou-se a força dos precedentes, limitando o juiz à lei, já que ela
exprimia a “vontade geral da nação” (Cf. LATORRE, Angel. Introdução ao direito. Trad. Manuel de Alarcão. Coimbra: Livraria Almedina, 1978, p. 90).
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n.
41
287
a segurança jurídica do que aqui, daí o valor do precedente. Por outro lado, no Brasil a doutrina, que está mais próxima da justiça, tem mais relevância do que nos Estados Unidos. Ademais, o direito anglo-americano37 não tem, como o nosso, maiores preocupações com a terminologia científica,38 com as construções dos conceitos
jurídicos. Tudo isso acaba por repercutir na capacidade de abstração. Uma conseqüência prática pode ser logo apontada: nos Estados Unidos, muitos dos rotulados
“códigos”, como se dá com o U.S.C.A. (United States Code Annotated), não passam
de “compilações de leis” para nós, onde a legislação não está arranjada de modo sistemático e racional, mas pela ordem alfabética de assuntos.39
9.
A CLÁUSULA DUE PROCESS OF LAW. HISTÓRICO. EVOLUÇÃO. A
SUBSTANTIVE DUE PROCESS. O CASO BOWERS V. HARDWICK, 478
U. S. 186 (1986). O RECENTE (2003) CASO DE JOHN G. LAWRENCE AND TYRON GARNER V. TEXAS, NO QUAL A SUPREMA CORTE
DECLARA AS SODOMY LAWS VIOLADORAS DAS CLÁUSULAS DO
DUE PROCESS E DA EQUAL PROTECTION
Vamos enfocar, ainda que de modo rápido, a cláusula do devido processo legal. A due process-clause, que já constava da Emenda n. V, foi bem esmiuçada por
Edward Coke e por John Locke. Trata-se, seguramente, de uma das mais importantes proteções ao cidadão. Thomas M. COOLEY ressalta que essa cláusula foi utilizada não só para explicar os termos “vida”, “liberdade” e “propriedade”, mas também
para expandi-los contra legislação opressiva e desarrazoada.41 A cláusula não ficou
40
37 O direito norte-americano não se confunde com o direito inglês, embora ambos tenham como fundo o common
law. Por outro lado, diferenciam, e muito, um do outro: nos Estados Unidos, o precedente judicial é menos rígido
do que na Inglaterra (Cf. PIZZORUSSO, Alessandro. Curso de derecho comparado. Versão para o espanhol por Juana Bignozzi. Barcelona: Editorial Ariel AS, 1987, p. 166, 172 e 173. Cf., ainda, SÈROUSSI, Roland. Introdução ao direito inglês e norte-americano. Trad. Renata Maria Parreira Cordeiro. São Paulo: Landy, 2001, p. 94 e 109). Nos Estados Unidos, os juízes, muitos provindos do magistério universitário, procuram conformar as leis à Constituição,
o que não se dá na Inglaterra (Cf. DAVID, René. Tratado de derecho civil comparado – introducción al estudio de
los derechos extranjeros y al método comparativo. Versão espanhola por Javier Osset. Madrid: Editorial Revista de
Derecho Privado, p. 294 e seg.).
38 Cf. GUTTERIDGE, H. G., El derecho comparado – introductión al método comparativo en la investigación y
en el estudio del derecho. Barcelona: Artes Gráficas Rafael Salva, 1954, p. 182.
39 DAVID, René. Les grands systèmes de droit contemporains (droit comparé). 12. ed. Paris: Dalloz, 1966, p. 457.
O próprio DAVID, porém, ressalva que está havendo, por outro lado, uma preocupação acentuada com a sistematização dos conceitos, o que colocaria o direito estadunidense como “um Direito intermediário entre o grupo do
Common Law e o grupo do Direito francês” (Tratado de derecho civil comparado...., ob. cit., p. 300).
40 O tema já foi objeto de mais de um artigo do Autor (Cf. Dimensões de direito público. Belo Horizonte: Del Rey,
2000, p. 229. Cf. Due process of law. Revista de Informação Legislativa. Brasília: Senado Federal, n. 124, v. 31. Cf.
Due Process. Portugal, Braga: Scientia Jvdirica, ns. 250/252, 1994).
41 Ob. cit., p. 279.
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confinada ao mundo inglês ou americano. Mundializou-se. Desde nossa primeira
Constituição republicana (1891), já era utilizada, ainda que escassamente, por nossos juízes. A Constituição de 1988 a consagrou expressamente, dizendo no inciso
LIV do art. 5. º que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.
Coke, ao comentar o capítulo 39 da Magna Carta, escrita em latim, mostrou
que a expressão per legem terrae, ali inserida, se remontava ao reinado de Edward
III, e era equivalente ao due process of law. Se no início a cláusula era encarada
como de cunho puramente processual (garantia), evoluiu para proteger também direitos materiais. É a denominada substantive due process.42 Autores há, como John
Hart ELY,43 que afirmam que se falar em substantive due process é uma verdadeira
contradição em termos. Due process só pode ter – dizem os partidários dessa corrente - conotação processual. Mas, o fato é que a maioria dos autores, com arrimo
na jurisprudência consolidada da Suprema Corte americana, tem o substantive due
process como um dos esteios dos direitos e garantias individuais. A substantive due
process-clause implica, nesta perspectiva, a necessidade de o poder público ter que
justificar, mostrar a razoabilidade da subtração da vida, da liberdade ou da propriedade de alguém. “O substantive due process cura da existência de justificação suficiente para o ato de governo”.44
O justice HARLAN procurou mostrar em Poe v. Ullman45 que a cláusula, caso
fosse tomada só como garantia processual, seria ineficaz na defesa contra leis que
pusessem em risco a vida, a liberdade e a propriedade do indivíduo. Sintetizou, invocando Hurtado v. California:
Assim, as garantias do devido processo, embora tendo suas raízes
no per legem terrae da Magna Carta e considerada como salvaguardas processuais contra a usurpação e tirania, também se
transformaram neste país numa (verdadeira) barreira contra a
legislação arbitrária.
Na área administrativa, a Suprema Corte não tem sido muito rigorosa com a
aplicação da cláusula do devido processo legal.46 Admite que se contorne a regra do
42 WILLOUGHBY, ob. cit., p. 726.
43 Apud CHEMERINSKY, ob. cit., p. 421.
44 In other words, substantive due process looks to whether there is a sufficient justification for the government’s
action (CHEMERINSKY, ob. cit., p. 420).
45 367 U.S. 497, 540, 541 (1961).
46 BRASIL: No Brasil, por força do disposto no inciso LV do art. 5.º da Constituição, o qual garante expressamente
no “processo judicial ou administrativo” ampla defesa e contraditório, os tribunais têm anulado decisões que não
seguem de perto o devido processo.
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41
289
audiatur et altera pars, pelo menos quando se trata de início do processo administrativo.47 Em se tratando de direitos constitucionais, as decisões das administrative
agencies ou mesmo da administração direta (executive officers) podem ser atacadas
por meio de procedimentos judiciais.
No tocante à revisão judicial de questões decididas por tribunais militares, há
divergência na Corte. Em In Re Yamashita,48 julgado em plena Segunda Guerra Mundial, a Suprema Corte não conheceu, ainda que por votação divergente, de pedido
de certiorari. Também indeferiu ordens de habeas corpus para revisão de julgado
militar, que condenara um japonês por crime de guerra. O mesmo tornou a repetirse em Johnson v. Eisentrager, com votos vencidos de Douglas, Black e Burton.49 Em
Burns v. Wilson,50 a Corte denegou pedido de revisão de julgamento feito por tribunal militar da Ilha de Guam, no qual se alegava violação de direitos fundamentais.
A partir da década de 1960, a liberdade sexual atingiu seu ápice. Homens e
mulheres, que até então se mantinham escondidos em seus bastidores, presos a
seus tabus e costumes de milhões de anos, se soltaram. Passaram a reivindicar o direito de ser diferente da maioria em matéria de comportamento sexual. Em 1982, na
cidade de Atlanta, Michael Hardwick foi pego pela polícia nudus cum nudo in eodem lecto. Pela lei da Geórgia,51 cometera o crime de sodomia. Foi preso e humilhado. Alegando violação das Emendas Constitucionais IX e XIV (due process of law),
Hardwick entrou com uma ação. Perdeu em primeiro grau. Ganhou no segundo.
Bowers, procurador-geral do Estado, logrou obter certiorari na Suprema Corte. Por
maioria apertada, a Corte teve a lei como constitucionalmente válida. O advogado
de Hardwick foi o conceituado professor Laurence Tribe, que afirmou que a única
razão encontrada pela Corte para manter a constitucionalidade da lei fora o fato de
os legisladores estaduais terem entendido, por maioria, que praticar sodomia ofendia a moral pública.52 Ironicamente, arrematou:
Por conseguinte, a questão relevante não é o que Michael Hardwick estava fazendo na privacidade de seu próprio quarto de dormir, mas o que o Estado da Geórgia estava fazendo lá.53
Por causa da importância do caso, diversas entidades representativas, como a Catholic League for Religious and Civil Rights, a Lesbian Rights Project e a National Gay
47 Opp Cotton Mills v. Administrator, 312 U.S. 126, 152, 153 (1941).
48 327 U.S. 1 (1946).
49 339 U.S. 763 (1950).
50 345 U.S. 137, 140, 141, 146, 147, 148, 150, 153 (1953).
51 Georgia Code, § 16-6-2. Pena máxima: vinte anos de prisão.
52 American constitutional …ob. cit., p. 1.426.
53 No original: Therefore, the relevant question is not what Michael Hardwick was doing in the privacy of his own
bedroom, but what the State of Georgia was doing there (American… ob. cit., p. 1.428).
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Rights Advocates, foram admitidas como amici curiae. Pelo Colegiado, falou o justice
White. Houve votos lavrados em apartado. Muita notícia histórica veio a furo. Burger
mesmo lembrou, em seu voto, que na Inglaterra desde Henrique VIII existia lei incriminando a sodomia. Na Geórgia, formalmente a figura típica apareceu em 1816, com reiterações posteriores (1984). Chegou-se a invocar, para manutenção da constitucionalidade da lei georgiana, a consagração do crime pelo common law, o que ia ao encontro
às conquistas do direito penal moderno. Votaram com White, Burger, Powell, Rehnquist
e O´Connor. Divergiram: Blackmun, Brennan, Marshall e Stevens. O voto de Stevens foi
primoroso. Ele soube apanhar o Ministério Público da Geórgia, recorrente de certiorari, nas malhas da equal protection of laws: se não havia crime de sodomia em relação
heterossexual de casados, por que haveria entre solteiros do mesmo sexo? BLACKMUN,
ao consignar seu voto divergente, lembrou que
(...) o direito de as pessoas se acharem seguras em seus lares, expressamente garantido pela Emenda n. quatro, é talvez o mais textual das diversas provisões constitucionais que embasam nosso entendimento de direito de privacidade.54
Agora, em junho de 2003, as denominadas sodomy laws foram declaradas inconstitucionais. O fato se repetiu no condado de Harris, no Texas: John G. Lawrence e Tyron Garner foram flagrados em sodomia pela polícia de Houston. Condenados por um justice of the peace, requereram um de novo. Foram novamente condenados. Apelaram. Não lograram melhor sorte. Entraram com pedido de certiorari,
que foi admitido no final de 2002. No histórico julgamento de 26 de junho de 2003,
a Suprema Corte derrubou o entendimento firmado anteriormente (Bowers v.
Hardwick). Justice Kennedy falou pela maioria. Ficaram vencidos Scalia, Rehnquist
e Thomas. Houve alguns votos lavrados em apartado. Anthony KENNEDY, em seu
voto, frisou que “o Estado não pode rebaixar suas existências (dos recorrentes) ou
controlar seus destinos, transformando suas condutas sexuais privadas em crime”.
10. BILL OF ATTAINDER
Por causa de suas ligações íntimas com a cláusula do devido processo legal,
vamos fazer rápidas considerações sobre duas outras cláusulas que se acham engastadas nas seções 9 e 10 do art. I da Constituição: bill of attainder e ex post facto law.
A seção 9 do art. I diz: “No Bill of Attainder or ex post facto Law shall be passed”. Esta proibição, dirigida ao legislativo federal, é estendida aos Estados na seção
10: “No State shall... pass any Bill of Attainder, ex post facto Law, or...”.
54 TRIBE, American…., ob. cit., p. 1.425.
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O que se deve entender por um bill of attainder? Trata-se de provimento legislativo que pune determinada pessoa ou um grupo de pessoas sem o devido processo legal judicial.55 Haveria usurpação de função própria do judiciário pelo legislativo, com o fito de punir alguém.56 Aliás, uma das razões, de natureza histórica, para
a inserção da cláusula na Constituição, estaria em impedir que o legislativo tomasse
o lugar do judiciário na punição de pessoas.57
Para que se configure um bill of attainder, “a lei deve ser uma punição imposta pela legislatura sobre uma pessoa específica ou um grupo particular de pessoas”.58
Nos Estados Unidos, não se faz - como se faz na Inglaterra – distinção entre bill of
attainder e bill of pains ou bill of penalties.59 Às vezes, um bill of attainder decreta a morte de alguém; em outras, apenas o confisco de sua propriedade.60 Pouco importa: se se trata de ato legislativo com o fito de punir alguém determinado, estamos diante de um bill of attainder.
Na Inglaterra do passado, lançava-se mão, com certa freqüência, de bills of attainder ou de bills of pains nos casos em que a vítima estava fora do alcance da jurisdição
inglesa ou não tinha como ser condenada judicialmente.61 Há notícias de emprego de
bill of attainder desde 1321. No reinado de Henrique VIII, o Parlamento preferiu esse
odioso instrumento ao invés do instituto do impeachment. Thomas Wolsey (14711530), Thomas Cromwell (1489-1540), Katherine Howard (1520-1542)62 e o Duque de
Norfolk (1473-1554)63 e muitos outros foram punidos mediante bills of attainder.64
A Suprema Corte americana teve como bill of attainder lei do Congresso, de
24 de janeiro de 1865, que exigia do servidor público, no momento da posse, jurar
55 REHNQUIST assim conceitua o instituto: “A bill of attainder was a legislative act that singled out one or more persons and imposed punishment on them, without benefit of trial” (REHNQUIST, William H. The supreme court –
how it was, how it is. New York: Quill, 1987, p. 166).
56 BRASIL: No Brasil de nossos dias, tivemos autênticos bills of attainder com os atos revolucionários de cassação
de parlamentares, juízes, políticos e cidadãos em geral. O Ato Institucional n. 5, de 13 de dezembro de 1968, por
exemplo, no art. 4.º conferia ao presidente da República o poder de “suspender os direitos políticos de quaisquer
cidadãos pelo prazo de 10 anos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e municipais”. Não se tinha para quem
apelar, pois as portas do judiciário estavam fechadas aos atingidos pelas medidas excepcionais.
57 Cf. United States v. Brown, 381 U. S. 440 (1965).
58 CHEMERINSKY, ob. cit., p. 363.
59 Ibidem, p. 363. A diferença entre um bill of attainder e bills of pains and penalties estaria no fato de que o primeiro imporia pena de morte, os outros não (cf. COOLEY, The general principles..., ob. cit., p. 355).
60 Fletcher v. Peck, 10 U. S. (6 Cranch) 87, 138 (1810).
61 Cf. COOLEY, ob. cit., p. 354 e seg.
62 Katherine Howard, que era prima de Ana Bolena, foi a quinta mulher de Henrique VIII.
63 Thomas Howard, o terceiro duque de Norfolk, embora tenha apoiado o divórcio de Catarina de Aragão e Henrique VIII, caiu em desgraça. Foi acusado de alta traição: catolicismo. Um bill of attainder do Parlamento decretou
sua decapitação. Foi, porém, salvo pela morte do rei (Disponível em: http://www.tudorplace.com.ar/Bios/ThomasHoward(3DNorfolk).htm).
64 Disponível em: http://www.newadvent.org/cathen/02059c.htm.
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292
que jamais pegaria em armas contra os Estados Unidos ou daria ajuda voluntária a
seus inimigos.65 Em 1946, a mesma Corte também considerou bill of attainder ato
da Câmara dos Deputados (House of Representatives) que privou de vencimentos
três servidores tidos por subversivos.66 Já em Nixon v. Administrator of General Services, 433 U. S. 425 (1977), a Corte entendeu que uma lei federal – Presidential Recordings and Materials Preservations Act – que mandou custodiar as fitas e os papéis do presidente Richard Nixon não configurava um bill of attainder. Doutrinariamente, essa decisão pode ser questionada, uma vez que houve confisco individual
e punição.67 Em Fleming v. Nestor, 363 U. S. 603 (1960), a Suprema Corte considerou constitucional lei que privara um estrangeiro, deportado por ideologia comunista, dos benefícios previdenciários a que ele faria jus (aposentadoria por idade).
11. A EX POST FACTO-CLAUSE
Vamos, agora, abordar a ex post facto-clause. Famoso ficou o axioma de Paul
Johann Anselm von Feuerbach (1775-1833), o fundador da ciência penal moderna
alemã, nullum crimen, nulla poena sine praevia lege.68 Hodiernamente, as legislações de todos os povos civilizados não mais admitem a retroatividade de leis penais,
salvo para beneficiar. Há notícias de que na corte de Afonso IX, em 1188, já se havia
consagrado o princípio da reserva legal.69 Mas, de qualquer sorte, só com o advento
da Magna Carta é que o princípio da legalidade começa a aparecer para ganhar corpo no século XVIII. A Declaração de Direitos da Virgínia, de 1776,70 e as Constituições de outros Estados norte-americanos consagraram o princípio da legalidade. A
Déclaration des droits de 1789 é mais precisa na formulação do princípio da anterioridade da lei penal:
Art. 8 (...) nul ne peut être puni qu´en vertu d´une loi établie et promulguée antérieurement au délit, et légalment appliquée.71
65 Ex parte Garland, citado por WILLOUGHBY, ob. cit., p. 457.
66 United States v. Lovett, 328 U. S. 303 (1946).
67 CHEMERINSKY, ob. cit., p. 365.
68 Sobre Feuerbach, consultar a The Columbia Encyclopedia, 6th ed., 2001 (Disponível em: http://www.bartleby.com/65/fe/FeuerbP.html).
69 Cf. MAGALHÃES NORONHA, E. Direito penal. São Paulo: Saraiva, 1981, v. 1, p. 77.
70 Art. 8. That in all capital or criminal prosecution a man hath a right to ... that no man be deprived of his liberty, except by the law of the land or the judgment of his peers.
71 BRASIL: Desde nossa Carta política de 1824 (art. 179, 11) que se consagra o princípio da irretroatividade da lei
penal. A Constituição de 1988, no art. 5.º, depois de anunciar o princípio da reserva legal (inc. II), declara no inc.
XXXIX que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. A seguir (inc. XL),
reforça: “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”.
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Em O Federalista (n. 84), HAMILTON esclarece a motivo da inserção da cláusula ex post facto:
A definição de crimes após a consumação do fato – ou, em outras
palavras, sujeitar as pessoas a punições por atos cometidos quando não eram proibidos por lei – e a prática de prisões arbitrárias
têm sido, através dos tempos, os instrumentos favoritos e mais poderosos da tirania.72
Como leciona Joseph Story em seus Commentaries, quando se fez a Constituição entendia-se que a cláusula ex post facto era abrangente, impedindo a retroatividade de leis também no campo civil.73 Todavia, em Calder v. Bull, 3 Dall.
(3 U.S.) 386, 390 (1798), a Suprema Corte decidiu que a cláusula protegia tão-somente o processo penal. É evidente que o entendimento do que seja “punição”
é amplo. Alguns exemplos: em Ex parte Garland, 4 Wall. (71 U. S.) 333 (1867),
a Corte disse que a exigência prévia de juramento do advogado de que não participara da guerra contra a União (The War of Rebellion) violava a cláusula da irretroatividade de lei, uma vez que a lei instituía punição para fatos passados. Já
em Murphy v. Ramsey, 114 U. S. 15 (1885), a vedação legal de que polígamos votassem foi considerada constitucional: a lei não infligia uma pena ao polígamo,
mas estabelecia mera desqualificação eleitoral. Lei que permitiu o cancelamento
de naturalização fraudulenta após o cometimento da fraude não foi considerada
ex post facto law.74
Em 2000, a Suprema Corte, por 6 votos contra 3, entendeu que não violava a
ex post facto-clause a alteração legal de prazo, após a ocorrência do factum criminis, para pedir a concessão de livramento condicional. Robert Jones, que já cumpria
pena por homicídio, conseguiu fugir da prisão e cometeu novo homicídio. Foi sentenciado à prisão perpétua pelo segundo crime (1982). De acordo com a lei do Estado da Geórgia, o detento tinha o direito de requerer livramento condicional após
sete anos. Se negado, poderia, no prazo de três anos, tornar a pedir o beneficium.
Após haver Jones cometido o segundo homicídio, em 1982, foi alterado o prazo para
8 anos. Robert Jones ajuizou ação, alegando violação da Constituição. Perdeu na primeira instância. Ganhou na segunda. Tornou a perder na Suprema Corte. O “relator” foi o justice Anthony M. Kennedy, que entendeu que a simples majoração de
prazo para submeter-se pedido de concessão de livramento condicional não feria a
72 HAMILTON, Alexander, MADISON, James, JAY, John. O federalista. Trad. Heitor Almeida Herrera. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1984, p. 624 e seg.
73 Cf. Cf KILLIAN, Johnny H. (Ed.), BECK, Leland E. (Ed.) The constitution of the United States of America -analysis and interpretation. Washington: Library of Congress, 1987, p. 382.
74 Johannessen v. United States, 225 227 (1912).
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cláusula de irretroatividade de lei penal. Ficaram vencidos os juízes Stevens, Souter
e Ginsburg.75
12. A CLÁUSULA EQUAL PROTECTION. O QUOTA SYSTEM NAS UNIVERSIDADES E NO TRABALHO. DIFICULDADES. EXAGEROS. O CASO
UNITED STATES V. PARADISE. IMPASSE NA EXECUÇÃO DA SENTENÇA. O HISTÓRICO CASO DE HOMER PLESSY. A DOUTRINA FALACIOSA DO IGUAL, MAS SEPARADO. O MARCO BROWN V. BOARD
OF EDUCATION. A DE JURE SEGREGATION NA UNIVERSIDADE DE
MISSISSIPPI
Falaremos, agora, um pouco sobre a cláusula equal protection of the laws,
que se acha explícita na Emenda n. XIV. A Emenda n. V não fala expressamente em
“equal protection of the laws”. Acontece que a cláusula “due process of law”, em sua
generalidade, também abrange o princípio da isonomia. Trata-se, tecnicamente, de
extensão jurisprudencial.76 O chief justice Taft, ao votar em Truax v. Corrigan, 257
U. S. 312, 332, 333 (1921), bem encareceu a maior amplitude da cláusula do devido
processo legal. Os legisladores da Emenda n. XIV não se teriam contentado só com
a cláusula due process. Fizeram questão de incorporar o “espírito de igualdade” (spirit of equality) numa garantia específica, que veio a ser a equal protection of lawsclause, sem prejuízo da proteção genérica da cláusula do devido processo legal.77
Em Buckley v. Valeo, 424 U. S. 1, 93 (1976), a Corte decidiu que “discrimination
may be so unjustificable as to be violative of due process”.78 Efetivamente, não faria
sentido a União Federal exigir dos Estados-Membros observância do princípio da
igualdade perante as leis e, quanto a si, dispensá-la. Daí a jurisprudência da Suprema Corte ter, desde cedo, ampliado a abrangência da cláusula due process of law.
Desde Platão e Aristóteles que se tem ligado a igualdade à justiça. Se a última
- a justiça – é de difícil conceituação, o mesmo não acontece com a primeira (igualdade).79 Aristóteles, para justificar a escravidão, partia da desigualdade dos homens.80
Cícero e Sêneca, diferentemente, defendiam a tese de que todos os homens, por serem dotados da razão, tinham capacidade de atingir a virtude, sendo, por conseguinte, livres e iguais.
75 Garner v. Jones, 529 U. S. 244 (2000). Disponível em: http://oyez.org/cases/cases.cgi?com
mand=show&case_id=1264&page=voting
76 CHEMERINSKY, ob. cit., p. 527.
77 Apud WILLOUGHBY, ob. cit., p. 822 e seg.
78 Apud CHEMERINSKY, ob. cit., p. 527.
79 PERELMAN, Chaïm. Ética e direito. Trad. Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 213.
80 Os motivos que levaram à instituição da escravidão no Mundo Antigo foram bem distintos daqueles do mundo
moderno. No primeiro caso, havia “qualquer coisa de fatal, necessário e insubstituível” (PRADO JÚNIOR, Caio, ob.
cit., p. 110, nota de rodapé n. 16). No segundo caso, apenas a cobiça, o lucro.
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A “igualdade de tratamento”81 é fácil, pois puramente aritmética. Se eu tiver
“x”, e três pessoas a quem distribuir, pratico a igualdade dando “x/3” para cada uma.
O difícil está em saber a quem aquinhoar, ou o quanto aquinhoar. Se se leva em consideração “quem” recebe e “por que” recebe, a distribuição não pode ser aritmeticamente igualitária: os méritos são diferentes, os trabalhos são desiguais, a necessidade de um é o dobro da do outro e assim por diante.82 Afastados os devaneios filosóficos, a questão, como se percebe, é política. A lei é que vai valorizar a situação de
cada um, dizendo quem deve receber, e o que deve receber. Como são os homens,
e não os anjos que fazem as leis, a dificuldade permanece. A lei, então, deve preocupar-se com os fatores que desigualam para que ela possa ser mais igualitária. Comumente, a lei, ao estabelecer os critérios diferenciadores, superestima ou subestima, ou ambos, os traços conotadores.
A partir da queda do Ancient Régime, as Constituições passaram a contemplar
a igualdade formal. A Déclaration francesa de 1789 reservou dois dispositivos concernentes à igualdade perante a lei:
Article Premier. Les hommes naissent et demeurent libres et égaux
en droits. Les distinctions sociales ne peuvent être fondées que sur
l´utilité commune.
“Art. 6. (...). Elle (a lei) doit être la même pour tous, soit qu`elle protège, soit qu´elle punisse. Tous les citoyens, étant égaux à sés yeux, sont
également admissibles à toutes dignités, places et emplois publics, selon leur capacité et sans autre distinction que celles de leurs vertus et
sans autre distinction que celle de leurs vertus et de leurs talents.83
No Antigo Regime, o rei vendia ou contemplava seus apaniguados com cargos
ou títulos nobiliários. A nobreza e o clero não estavam sujeitos a tributos, ou os ti81 Laurence TRIBE distingue o direito de “tratamento igual” (equal treatment) do direito de “tratamento como um
igual” (treatment as an equal): “The right to equal treatment holds with respect to a limited set of interests -like
voting- and demands that every person have the same access to these interests as every person. Note that this right
to equal treatment clealy does not operate with respect all interests; any such universal demand for sameness would
prevent governement from discriminating in the public interest. On the other hand, the right to treatment as an
equal holds with regard to all interests and requires governement to treat each individual with equal regard as a
person” (American constitutional law, ob. cit., p. 1437 e seg.).
82 BOBBIO diz que dos três critérios – segundo o trabalho, segundo a capacidade e segundo a necessidade - o último –segundo a necessidade - é o mais justo (Teoria geral da política: a filosofia política e as lições dos clássicos. Trad. Daniela Beccaccia Versiani. Rio de Janeiro: Campus, 2000, p. 300).
83 A Lei Fundamental de Bonn, que traz a virtude da síntese e precisão, diz em seu art. 3.º: “(I) Alle Menschen sind
vor dem Gesetz gleich” (Todos os homens são iguais perante a lei”). BRASIL: Na esteira da Constituição francesa de
1791, a Carta brasileira de 1824 dizia no art. 179: “13) A lei será igual para todos, quer proteja, quer castigue, e recompensará em proporção dos merecimentos de cada um”. Todas nossas Constituições e Cartas contemplaram o
princípio da isonomia. A Constituição de 1988 dispõe no caput do art. 5.º: “Todos são iguais perante a lei (...)”.
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nham beneficamente diferenciados. A Revolução Francesa e a Revolução Americana
vieram para acabar com tudo isso. Abolidos foram os privilégios de sangue ou estamento. A lei devia ser igual para todos, quer na proteção, quer na punição. Trata-se
da denominada “igualdade de tratamento”.84 No andar do tempo, as próprias Constituições e leis infraconstitucionais passaram a contemplar a denominada “igualdade de situações”: a lei leva em conta não a igualdade, mas a desigualdade dos contemplados.
O poder de nomeação para cargos públicos, que já vinha do Regime Antigo,
foi sempre um excelente instrumento para politicalha no Brasil. O governo que entrava nomeava seus protegidos. Só com a Constituição de 1934 (art. 168) é que se
conseguiu institucionalizar o acesso aos cargos públicos através de concurso público.85 O sistema adotado passou a ser o do mérito, por meio de provas e títulos.86
Atenta aos novos tempos, porém, a Constituição brasileira de 1988 rompeu com a
tradição, ensejando que deficientes físicos tivessem tratamento diferenciado por
meio de quotas: “Art. 37, VIII, – a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão”. Como se vê, essa regra específica quebrou o princípio maior do “merit system”. Outro exemplo está na Lei (brasileira) n. 10.558/2002, que instituiu o “Programa Diversidade na Universidade”. Por meio desse programa, os “grupos socialmente desfavorecidos, em especial os “afrodescendentes” e os “indígenas”, podem ser
contemplados com bolsas, prêmios ou dinheiro para que freqüentem universidades.87 Como se percebe, é a lei tentando derrubar as “barreiras culturais”, dando tratamento diferenciado a pessoas que, por circunstâncias sociais e econômicas, fica-
84 PERELMAN (ob. cit., p. 214) distingue 6 modalidades de “justiça distributiva”: “a cada qual, a mesma coisa, a cada
qual segundo seu mérito, segundo suas obras, segundo suas necessidades, segundo sua posição, segundo o que a
lei lhe atribuir”.
85 “Art. 168. Os cargos públicos são acessíveis a todos os brasileiros, sem distinção de sexo ou estado civil, observadas as condições que a lei estatuir”. Hoje na Justiça do Trabalho, por exemplo, o número de juízas tende a se igualar ao de juízes. Em 2000, havia 1.092 homens e 978 mulheres (Disponível em: http://www.stf.gov.br/bndpj/justicaespecializada/JTrabalho9F_2000.asp). É oportuno lembrar, com Perelman (ob. cit., p. 415 e seg.), que a Corte de
Cassação da Bélgica, há pouco mais de cem anos (11/11/1889), entendeu que “o serviço da justiça era reservado
aos homens”, negando o registro de mulheres nos quadros da ordem dos advogados. O conservadorismo judicial
prevaleceu mesmo após o advento de lei autorizativa (07/04/1922) de inscrição de mulheres como “avoué”: decisão do mesmo tribunal, de 29/05/1945, obstou o registro feminino até que se fizesse melhor interpretação da lei
concessiva do direito... (PERELMAN, ob. cit., p. 416).
86 A Lei Fundamental de Bonn é expressa: “Art. 33, 2. “Todos os alemães têm igual acesso a qualquer cargo público, de acordo com sua aptidão, capacidade e eficiência profissional” (Jeder Deutsche hat nach seiner Eignung, Befähigung und fachlichen Leistung gleichen Zugang zu jedem öffentlichen Amte).
87 A Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal, em abril de 2002, aprovou, à unanimidade, projeto do
senador José Sarney, que estabelece quotas para negros ou pardos (20% das vagas, no mínimo) para o ingresso em
cargos públicos e universidades públicas ou privadas (Disponível em: http://www.mundonegro.com.br/notícias/index.php?noticiaID=60).
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ram intelectualmente a reboque. Seus arautos argumentam que se se aplicar cegamente a fórmula do mérito intelectual para se prover cargo público ou ingressar no
ensino superior, grande maioria dos menos favorecidos dificilmente teria acesso, dificultando ainda mais a nivelação democrática. Nesse particular, a Constituição da
República portuguesa é vanguardeira: dedica um capítulo aos “Direitos e deveres
culturais”, dizendo em seu art. 74.º. 1. que “(t)odos têm direito ao ensino com garantia do direito à igualdade de oportunidade de acesso e êxito escolar”.88
O “excesso de isonomia” tem levado a verdadeiros absurdos jurídicos e a injustiças em relação à maioria.
Nos Estados Unidos, sobretudo a partir da incrementação das denominadas “affirmative actions” (governo L. B. Johnson), tem vindo à tona a questão do “quota system.” Em 1967, o Congresso baixou uma lei de proteção e incentivo ao trabalho de pessoa acima dos 40 anos de idade. Trata-se do Age Discrimination of Employment Act.89
A partir daí, seja por questões raciais, físicas, sexuais, etárias, mentais etc. floresceu uma
verdadeira indústria advocatícia apoiada na discriminação. O pavor de ações judiciais
por discriminação se alastrou no meio patronal americano. Tudo era motivo para uma
boa demanda... Houve caso até de uma negra de pele mais clara (brancarrona), que
ocupava cargo de chefia, ser processada por discriminação racial no local de trabalho...
Nos tribunais federais, mais de 10% da massa processual (caseload) diz respeito a
ações por discriminação.90 A Civil Rights Act de 1991 incentivou ainda mais demandas
judiciais por equality of opportunity in the workplace.91 Casos interessantes e até bizarros têm vindo, desde então, à tona: instalação de cabinas sanitárias em local público
(public toilets) no centro de Nova York para usuários de cadeiras de rodas, adaptação
de elevadores em ônibus para movimentação de paraplégicos, substituição de maçanetas de portas para deficientes físicos, freqüência escolar de retardados mentais etc. Os
custos públicos são altos, com prejuízo manifesto para a maioria. Até que ponto é válida a aplicação de tais leis?
As características específicas que diferenciam as pessoas perante a lei na maioria das vezes têm apoio na raça, na origem (nacionalidade), no sexo, na incapacidade física e na idade.
Um exame mais atento nos mostra que, no fundo, é a diferença cultural e econômica que leva à discriminação racial. A “raça” que está em melhores condições culturais e econômicas passa a se afastar e, progressivamente, a repudiar a raça “inferior”.
88 CANOTILHO observa que tais preceitos de igualdade de oportunidade, êxito escolar etc até então não foram
cumpridos ou, se o foram, o foram erradamente (CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional. 4. ed. Coimbra:
Livraria Almedina, 1987, p. 402).
89 Cf. HOWARD, Philip K. The death of common sense – how law is suffocating America. New York: Random House, 1994, p. 125.
90 Ibidem, p. 134.
91 Ibidem, p. 142.
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Quanto à discriminação, a Suprema Corte dos Estados Unidos se tem mostrado rigorosa quando se acham em jogo direitos fundamentais. Foi o caso de uma lei
do Estado de Oklahoma, julgada inconstitucional, que mandava esterilizar quem fosse condenado por três ou mais vezes por crimes considerados de “torpeza moral”
(moral turpitude).92 A Corte ( William DOUGLAS) disse que o direito de procriação
advinha da liberdade do homem. “O poder de esterilizar, se exercido, pode ter efeitos sutis, de alcance não previsto e devastadores”.93
Dos fatores diferenciadores, o étnico e o da nacionalidade de origem do discriminado têm sido os mais comuns e, conseqüentemente, os mais agitados nos tribunais. Os casos são inúmeros. Vêm de longe. Depois do 11 de setembro de 2001,
então, o preconceito e a desconfiança contra povos de origem árabe aumentaram
assustadoramente.
Conhecida é a humilhação que um dos maiores homens, Gandhi, sofreu na
África do Sul (Transvaal e Estado Livre de Orange) quando foi atuar como advogado
num processo judicial. As leis locais proibiam pessoas de pele escura sair sem autorização da polícia entre 9 horas da noite e 6 da manhã, bem como andar na calçada
das ruas. Gandhi chegou a ser derrubado do passeio e chutado.94
No tocante à jurisprudência americana, vamos, mais a título de ilustração, pegar um ou outro caso. Em Strauder v. West Virginia, 100 U. S. (10 Otto), 303 (1879),
teve-se por inconstitucional lei estadual que só admitia como jurado “homem, branco, com mais de 21 anos de idade”. A Suprema Corte considerou inconstitucional tal
provimento, uma vez que impedia cidadão de mais de vinte e um anos de servir
como jurado por fator racial. Mais recentemente, em 1998,95 a Suprema Corte teve a
exclusão de negros de painel de jurados como causa suficiente para viciar indiciamento de branco... O caso é peculiar. Merece registro. Um branco, de sobrenome
Campbell, foi indiciado por homicídio pelo grand jury de Evangeline Parish (Louisiana). Não concordou. Entrou com ação judicial alegando que a decisão havia violado as cláusulas do due process e da equal protection: sistematicamente os jurados
negros - que perfaziam 20% do eleitorado local – eram recusados como jurados na
hora de composição do júri.96 Perdeu. O tribunal de apelação deu provimento ao recurso. A Suprema Corte estadual, todavia, reverteu o julgamento, afastando a pecha
de inconstitucionalidade. Na Suprema Corte, em decisão unânime, o júri foi anulado. Anthony KENNEDY, que falou pelo Colegiado, argumentou que o “réu tinha le92 CHEMERINSKY, ob. cit., p. 532.
93 “The power to sterilize, if exercised, may have subtle, far-reaching and devastating effects” [Skinner v. Oklahoma,316 U. S. 541 (1942)].
94 Cf. GHANDI, Mohandas K. Autobiography – the story of my experiments with truth. Versão para o inglês por Mahadev Desai. New York: Dover Publications, Inc.. p. 112.
95 Campbell v. Louisiana, 523 U. S. 392 (1998).
96 A “standing aside juros” consiste na recusa injustificada por parte da acusação no momento de formar o painel
de jurados (Cf. verbete do BLACK´S).
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gitimidade para litigar se seu indiciamento fora conseguido por meios ou processos
contravenientes ao devido processo”. Um indiciado branco tem direito de duvidar
da lisura e imparcialidade de um grand jury que adota método de discriminação racial na seleção de seus jurados.97 Outro caso envolvendo a exigência da seriedade e
imparcialidade da instituição do júri popular está em Batson v. Kentucky, 476 U. S.
79 (1986). Durante o julgamento de pessoa de cor (Batson), acusada de burglary98
e receptação, a acusação (prosecutor) ameaçou recusar quatro negros para a composição do corpo de jurados. POWELL falou pela Suprema Corte, dizendo que a
atuação do órgão acusador havia violado as Emendas ns. VI e XIV da Constituição: a
discriminação racial na seleção de jurados, além de privar o acusado de seus direitos fundamentais, também “minava a confiança pública na lisura de nosso sistema
de justiça”.99
Outro caso diz respeito a provimento legal que vedava negros de morar em
bairros de brancos, e vice-versa.100
Muitos Estados sulistas não admitiam negros em repartições públicas ou
mesmo na força policial. Foi o que se deu em United States v. Paradise, 480 U. S.
149 (1987). Trata-se de julgado que mostra a imiscuição do judiciário na administração pública a pretexto de diminuir a discriminação racial no ingresso e promoção na força pública, bem como a relutância de entidade pública em cumprir a decisão judicial. O voto vencedor foi conduzido por Brennan, com o apoio de Marshall, Blackmun, Powell e Stevens. Os dois últimos - Powell e Stevens – lavraram votos apartados. Divergiram: O´Connor, White, Rehnquist e Scalia.101 Desde quando
criado o Departamento de Segurança Pública do Estado do Alabama (Alabama
Department of Public Safety), não se havia admitido negros em seus quadros. Em
1972, a Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor (NAACP)102 aforou
uma ação na justiça federal de primeira instância, alegando maus-tratos à Emenda
n. XIV. O juiz federal Frank M. Johnson reconheceu a procedência da violação, asseverando que, diante das circunstâncias fáticas, a corte tinha o dever de eliminar
a discriminação que já vinha desde a instituição da corporação, 37 anos atrás. Em
decorrência, expediu uma ordem determinando que para cada branco admitido
97 Disponível em: http://oyez.nwu.edu/cases/cases.cgi?command=show&case_id=1099&page=abstract.
98 No Direito Penal brasileiro não existe um tipo equivalente. Modernamente, a burglary implica, com ou sem quebra de obstáculo, a invasão de residência ou edifício com o intuito de cometer ilícito penal. Algumas legislações estudais classificam o delito em três graus (cf. BLACK´S).
99 Disponível em: http: //oyez.nwu.edu/cases/cases.cgi?command= show&case_id=32&page=abstract
100 Cf KILLIAN, Johnny H. (Ed.), BECK, Leland E. (Ed.), ob. cit., p. 1.748: Buchanan v. Warley, 245 U. S. 60 (1917);
Harmon v. Tyler, 273 U. S. 668 (1927) e Richmond v. Deans, 281 U. S. 704 (1930).
101 Disponível em: http://caselaw.lp.findlaw.com/scripts/getcase.pl?navby=case&court =us&vol=480&invol=149.
102 Antes de ser indicado para a Suprema Corte, Thurgood Marshall foi advogado da NAACP (Disponível em:
http://supreme.lp.findlaw.com/supreme_court/landmark2.html).
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na corporação, fosse admitido um negro, até que o número dos discriminados
atingisse 25% do total da tropa. Os réus apelaram. A segunda instância (Fifth Circuit) negou provimento à apelação, asseverando que a sentença de primeiro grau
não havia, ao contrário, criada situação violadora das cláusulas due process e
equal protection. Ademais, a ordem judicial de “admissão de um por um” (onefor-one hiring) tinha efeito temporário, e vinha sanar injustiça pretérita. A execução da sentença foi acompanhada de uma série de embaraços administrativos,
dentre eles a diminuição do contingente da tropa. Em setembro de 1979, os autores da ação judicial alegaram preterição na promoção. A corporação contra-argumentou que para se chegar aos 25% da tropa ter-se-ia que admitir nada menos que
37,5% de negros, o que seria inviável. Em 1983, após marchas e contramarchas, os
autores da ação insistiram com o juiz federal para que na promoção para cabo fosse observada a mesma proporção: um branco/um negro. A corporação “aceitou”
que em 15 vagas para cabo, 4 fossem reservadas para não-brancos. Os autores discordaram. O juiz federal então disse que 12 anos já se tinham passado, e o caso
não estava solucionado a contento. No posto de major, por exemplo, não havia nenhum negro; 25 eram os capitães, nenhum negro; todos os 35 tenentes eram
brancos; 65 eram os sargentos, todos brancos. Dos 66 cabos, apenas 4 eram de cor.
Tudo isso mostrava que o “cenário antecedente é intolerável e não deve continuar.
O momento chegou para a corporação (Department) dar passos positivos e substanciais a fim de abrir as fileiras superiores a soldados negros”.103 Desse modo, durante certo tempo, metade das promoções deveriam ser reservadas a policiais de
cor, desde que devidamente qualificados. A questão chegou à Suprema Corte através de certiorari. A recorrente foi a União Federal. O justice BRENNAN manteve
a decisão recorrida, ponderando:
O remédio aqui imposto é uma medida efetiva, temporária e flexível. Ela só se aplica se os negros aptos forem aprovados, somente se o Departamento demonstrar necessidade objetiva de
promover, e somente se o Departamento falhar em implementar
um processo de promoção que não tenha um impacto negativo
nos negros.104
Uma das sugestões da dissidência foi para se utilizar como critério a proporção de negros na população ou na força de trabalho.
103 “The preceding scenario is intolerable and must not continue. The time has now arrived for the department to
take affirmative and substantial steps to open the upper ranks to black troopers”.
104 Tradução livre: “The remedy imposed here is an effective, temporary, and flexible measure. It applies only if
qualified blacks are available, only if the Department has an objective need to make promotions, and only if the Department fails to implement a promotion procedure that does note have an adverse impact on blacks”.
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Muitos são os casos envolvendo segregação racial em meios de transportes. O
mais célebre deles é sem dúvida o de Homer Plessy,105 quando a Suprema Corte sustentou a sofística doutrina do “Separado, mas Igual” para chancelar judicialmente o
que a sociedade de então exigia, mesmo fugindo ao espírito da Constituição e de
suas Emendas. No Estado sulino da Louisiana, havia sido feita uma lei que obrigava
a separação de brancos e negros em vagões de estrada de ferro. Plessy, um negro
que ali residia, resolveu desafiar o establishment. Adquiriu bilhete e entrou num vagão para brancos. Assentou-se. Minutos depois estava preso. Seu caso foi parar na
Suprema Corte (Henry B. BROWN), que sustentou a esdrúxula tese do Separate,
but Equal: desde que os negros tivessem “iguais acomodações”, não se poderia falar em “discriminação”, mas apenas em “segregação”. Já em Mitchell v. United States, 313 U. S. 80 (1941) e em McCabe v. Atchison, T. & S. F. Rv.235 U. S. 151 (1914), a
Corte teve como violadoras da Interstate Commerce Law provimentos que estabeleciam carros-dormintórios ou carros-restaurantes só para brancos.106
A questão de ingresso de negros em estabelecimentos de ensino para brancos
oferece um sem-número de julgamentos. A partir de 1938, com Missouri ex rel. Gaines v. Canada, 305 U. S. 337 (1938), a Corte começou a abandonar a doutrina do
“Separado, mas Igual”. Em 1950, no caso Sweatt v. Painter, 339 U. S. 629 (1950), ficou assentado que só na aparência uma faculdade de negros era igual a uma de
brancos. Com o famoso caso Brown v. Board of Education, 347 U. S. 483 (1954),
caiu por terra a doutrina do Separate, but Equal. A votação foi unânime, graças à habilidade do presidente (chief justice) Earl Warren. No Estado do Kansas, a menina
Linda Brown teve sua matrícula recusada em curso primário (para brancos) por ser
de cor. Seu pai ajuizou ação, alegando violação da equal protection-clause. WARREN
convenceu seus pares de que, no fundo, a segregação desenvolvia nas crianças um
sentimento de inferioridade, que as acompanharia pelo resto de suas vidas. Indagava: “Isso é justo?” Não era.107
Não obstante as decisões proferidas em 1954 e 1955 nos casos Brown v.
Board of Education, em alguns Estados permanecia, no fundo, a de jure segregation, isto é, segregação advinda de normas (legais ou internas do estabelecimento
de ensino). Foi o que ocorreu com a tradicional Universidade do Mississippi, criada
em 1848. A Universidade não tomara reais providências para acabar com o dual university system. Permanecera “neutra”. Cinco de suas unidades eram ocupadas maci-
105 Plessy v. Ferguson, 163 U. S. 537 (1896).
106 Cf. KILLIAN (Ed.), ob. cit., p. 1.749.
107 Em 1959, o presidente Eisenhower indicou Potter Stewart para ocupar a vaga deixada por Burton. Na Comissão
de Constituição e Justiça (Judiciary Committee), ao ser sabatinado, Stewart disse que manteria a doutrina desenvolvida em Brown v. Board of Education. Isso foi suficiente para que senadores sulistas provocassem o retardo de
sua confirmação pelo pleno do Senado (Cf. TRIBE, Laurence. God save this honorable court - how the choice of Supreme Court justices shapes our history. New York: New American Library, 1986 p. 108).
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çamente por brancos, contra três, ocupadas predominantemente por negros. Registre-se, por oportuno, que só em 1962 é que um único negro logrou, assim mesmo
por força de decisão judicial, ingressar na Universidade. Em 1975, a Universidade foi
acionada ao argumento de que nada fazia para, efetivamente, acabar com a segregação racial. Ali ainda vigia a velha e superada separate, but equal-doctrine, com escolas para brancos e escolas para negros. O desfecho do caso só se deu em 1992.108
O justice White falou pela Corte. Houve apenas um voto, assim mesmo de discordância parcial, que foi de Scalia.109 A Corte, então, dentro da linha firmada em Brown
v. Board of Education, relembrou que um Estado só cumpriria seus deveres constitucionais se erradicasse definitivamente sua política e prática imposta pelas regras
do dual system, que continuava a fomentar a segregação racial.110
Outro caso que merece menção, por envolver indiretamente minoria racial em
faculdades, é de um estudante branco, Allan Bakke, que, por duas vezes, teve sua matrícula recusada na Escola de Medicina da Universidade da Califórnia (Davis). A Universidade, dentro do programa de quotas, reservara dezesseis lugares para negros em
cada cem vagas. Bakke alegou que suas notas escolares eram maiores do que as dos
contemplados pelo programa. Seu caso foi parar na Suprema Corte dos Estados Unidos.111 Com o voto de Lewis Powell, Bakke acabou tendo sua matrícula confirmada. Todavia, não se conseguiu orientação jurisprudencial na decisão.112 Em Fullilove v. Klutznick, 448 U. S. (1980), porém, a maioria, ainda que não muito expressiva (6 X 3), foi
alcançada no tocante à constitucionalidade de provimento que, cumprindo programa
de affirmative actions, estabelecia quotas para o setor de construções. No meado da
década de 1970, verificou-se que menos de 1% de verba pública federal era destinada
pelos Estados e Municípios ao incremento de empresas com capital proveniente de
minorias raciais. Os não-brancos, porém, constituíam entre 15% e 18% da população.
Com base em tais dados, o Congresso baixou provimento legislativo ensejando a criação da MBE (Minority Business Enterprise), determinando que um mínimo de 10%
do fundo federal fosse destinado ao incentivo de empresas constituídas de pelo menos 50% de sócios que pertencessem a grupos raciais minoritários (negros, hispânicos, orientais, indianos, esquimós, aleutas etc). Ao argumento de que a MBE violava a
cláusula da equal protection of laws, um grupo de construtores ajuizou ação na justi108 United States v. Fordice, 505 U. S. 717 (1992).
109 Disponível em: http://www2.law.cornell.edu/cgi-bin/foliocgi.exe/historic/query= [level+case+citation!3A[group+thomas!3A][level+case+citation!3A]]/doc/{@115218}/hit_headings/words=4?
110 Disponível em: http://www2.law.cornell.edu/cgi-bin/foliocgi.exe/historic/ query=[level+case+citation!3A[group+thomas!3A][level+case+citation!3A]]/doc/{@115098}/hit_headings/words=4?
111 Regents of the University of California v. Bakke, 438 U. S. 265 (1978).
112 TRIBE lembra que seria simplesmente temerário inferir desse julgamento (Bakke) qualquer posição firme quanto à área da equal protection. Apenas Powell - lembra – afirmou que o sistema de quotas da universidade violara a
cláusula equal protection (TRIBE, Laurence H. Constitutional choices. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1985, p. 222).
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ça federal de primeiro grau (U. S. District for the Southern District of New York). Perdeu. Houve apelação (Second Circuit). Nova sucumbência. O caso alcançou a Suprema Corte por meio de certiorari. O chief justice BURGER falou pela Corte, frisando
que o caso ali submetido a julgamento era daqueles que exigia exame mais acurado.
“O Congresso“ - disse-, “depois da devida consideração, percebeu a necessidade premente de se buscar novos acessos no esforço contínuo para atingir a meta da igualdade de oportunidade econômica”.113
13. OUTROS CASOS ENVOLVENDO QUESTÕES RACIAIS. KOREMATSU
V. UNITED STATES. CHINESES E LAVANDERIAS. TENTATIVAS LEGAIS DE EVITAR-SE O INTER-RELACIONAMENTO SEXUAL ENTRE
NEGROS E BRANCOS
Evidentemente, o preconceito racial, embora mais centrado no negro, era
contra o “não-branco” (non-white), ou melhor, contra o non-Wasp.114 Casos envolvendo chineses, coreanos, hispânicos, japoneses são numerosos. Vamos noticiar alguns. Comecemos com Yick Wo v. Hopkins, julgado em 1886. Na cidade de S. Francisco, foi baixado um provimento municipal condicionando alvará para instalação de
lavanderia ao arbítrio de determinados funcionários. A Suprema Corte entendeu
que a ordinance em si nada tinha de inconstitucional. Sua nulidade, todavia, estava
na discricionariedade concedida a determinadas autoridades administrativas na escolha não só dos locais, mas das próprias pessoas. Firmou-se, então, uma doutrina,
aplicada muitas vezes mais tarde, de que não bastava à lei ser aparentemente imparcial se ela, no fundo, ensejava ao administrador público, na hora de sua aplicação,
“dois pesos e duas medidas de modo tal a poder fazer discriminações injustas e ilegais entre pessoas em situações semelhantes”.115
No célebre caso Korematsu v. United States, 323 U. S. 214 (1944),116 mais de
100.000 japoneses ou nipo-descedentes - crianças e adultos - foram confinados em
campos de concentração no interior dos Estados Unidos, ao argumento de que poderiam ajudar o Japão na guerra contra os aliados. Belicamente, o confinamento não
se justificava. “Somente a raça foi usada para determinar quem deveria ser arrancado (de seus lares) e encarcerado, e quem deveria permanecer livre”.117 A Corte teve
113 Tradução livre. No original: “Congress, after due consideration, perceived a pressing need to move forward with
new approaches in the continuing effort to achieve the goal of equality of economic opportunity” .
114 White Anglo-Saxon Protestant.
115 Apud WILLOUGHBY, ob. cit., p. 824 e seg. A tradução foi inteiramente livre. No original; “(...) with an evil eye
and an unequal hand so as practically to make unjust and illegal discriminations between persons in similar circunstances (…)”
116 Ver A sombra duradoura de Fred Korematsu, artigo doutrinário do Autor, in Dimensões do direito público, ob.
cit., p. 45.
117 CHEMERINSKY, ob. cit., p. 553.
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como constitucional o Decreto n. 9.066, de Franklin Delano Roosevelt, que permitiu ao general John De Witt arrebanhar os “japoneses” que viviam na costa oeste.
Pela mesma razão, a ordem que determinava o toque de recolher de nipo-americanos durante a Segunda Guerra foi considerada constitucional.118
Há muitos casos relativos a casamentos, guarda de filhos ou simples interracial cohabitation. Foi o que se deu em McLaughin v. Florida, 379 U. S. 184 (1964).
Uma lei da Flórida apenava com prisão de até 12 meses, e multa até 500 dólares, coabitação entre pessoas de cor e brancos, desde que não fossem casadas entre si.119 O
propósito da lei – segundo seus defensores – era acabar com o adultery and fornication e impor a sexual decency. A Suprema Corte anulou as penas, sem entrar
no mérito ( White). Stewart e Douglas entenderam que, no fundo, a cláusula da
equal protection ficara ferida pela lei, uma vez que se a coabitação se desse entre
pessoas de mesma cor o preceito legal não seria aplicado.
Mais um caso da Flórida, provocado por guarda de filho: Linda Palmore e Anthony Sidoti, ambos brancos, se divorciaram120 A filha do casal, de três anos, ficou
com a mãe. Tempos depois, o pai (Anthony) pediu a guarda da criança, ao fundamento de que sua ex-mulher estava morando com um negro. Na Suprema Corte
(Burger), a votação foi unânime. A Corte, depois de reconhecer que, embora a questão do preconceito racial pudesse vir a afetar mais tarde a menina, não havia justificativa constitucional capaz de impedir à mãe natural de ficar com sua filha.121
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22/01/2003.
Disponível em: http://www.eeoc.gov/laws/viihtml. Acesso: em 2003.
118 Hirabayashi v. United States, 320 U. S. 81 (1943).
119 “Any Negro man and white woman, or any white man and Negro woman, who are not married to each other,
who shall habitually live in and occupy in the nighttime the same room shall each be punished by imprisonment
not exceeding twelve months, or by fine not exceeding five hundred dollars.”
120 Palmore v. Sidoti, 446 U. S. 429 (1984).
121 Disponível em: http://caselaw.lp.findlaw.com/scripts/getcase.pl?navby=case&court= us&vol=466&invol=429.
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BENEFÍCIO ASSISTENCIAL DE PRESTAÇÃO CONTINUADA
NOVA INTERPRETAÇÃO À LUZ DO ESTATUTO DO IDOSO
Eduardo Antonio Ribeiro
Advogado.
Especialista em Direito Civil e Direito Processual Civil pela UNIMEP/Piracicaba.
Mestre em Direito pela ITE/Bauru.
RESUMO
ESTATUTO DO IDOSO. BENEFÍCIO ASSISTÊNCIA. Trata o presente artigo
de uma análise acerca da nova ótica dada ao benefício assistencial, devido às pessoas carentes a partir de 65 anos, em especial ao critério de avaliação da condição
de hipossuficiência, frente à interpretação até então dada à matéria pelos
Tribunais.
I.
INTRODUÇÃO
A promulgação da Lei 10.741, de 1º de outubro de 2003, Estatuto do Idoso, cuja
vigência se deu a partir de 01 de janeiro, trouxe entre outras inovações a reedição de
normas e a necessidade de uma reflexão sobre o momento do idoso em nosso País.
Motivado por uma situação de contraste entre as gerações passadas, presente
e futuras, procura-se não apenas demonstrar a importância de todas no contexto da
formação cultural, como também assegurar de alguma forma uma coexistência mais
digna àqueles que a lei trata como “idosos”.
A lei, é certo, abrange diversas situações, tratadas em capítulos que cuidam
dos direitos e garantias do idoso.
310
faculdade de direito de bauru
A expressão direitos, que aqui se refere a direitos do homem idoso, embora
impregnada de um sentido histórico, serve para indicar a situação de defesa do cidadão perante o Estado à vista de interesses jurídicos de caráter social1. Em contrapartida, por garantias, no sentido constitucional, deve-se entender os meios assecuratórios para obtenção ou reparação de um direito violado2.
É dentro desse enfoque que surge para o direito o Estatuto do Idoso.
II.
EVOLUÇÃO DA MATÉRIA NO DIREITO PÁTRIO
Em sucintas palavras, podemos dizer que o benefício é o sucessor da denominada renda mensal vitalícia, instituída pela Lei 6.179/74, sob a égide da Constituição
de 1967, que recebeu e, equivocadamente, recebe por alguns a denominação de
“amparo previdenciário”.
Posteriormente, a Constituição Federal de 1988 tratou da matéria no artigo
203, inciso V, sendo que a Lei 8213/91, em seu artigo 139, inicialmente previu o benefício denominando-se de “renda mensal vitalícia”. Esse dispositivo acabou revogado pela Lei 9528/97, quando através da Lei 8742/93, houve a implantação do benefício de prestação continuada, adotando-se, então, a denominação hoje utilizada3.
Nesse período, somado às sucessivas alterações legislativas, houve uma evolução também sob aspectos pessoais para a concessão do benefício, como, por exemplo, no que diz ao requisito idade, que inicialmente estava fixada em 70 anos, passando para 67 e agora para 65 anos. Ainda com relação à evolução, quando de sua
criação, o benefício era constituído em uma renda mensal de 1/2 salário mínimo.
No entanto, embora se trate de benefício de pagamento continuado, cujo objetivo é não deixar ao desamparo a pessoa idosa, valorando assim a dignidade da pessoa humana, certas restrições foram impostas pela legislação ordinária, através da Lei
8742/93, a fim de disciplinar os critérios e requisitos para a concessão do benefício.
III. REAVALIAÇÃO DOS REQUISITOS PARA A CONCESSÃO DO BENEFÍCIO
O artigo 34 da Lei 10.741/03, prevê ao idoso que contar com 65 anos e não
possuir meios para prover a própria subsistência e nem de tê-la provida por sua família, a possibilidade de obter o benefício mensal de 1 (um) salário mínimo, que
será custeado pelo Estado, através da ação conjunta de toda a sociedade, considerando sua base de financiamento.
Trata-se, na verdade, de uma ampliação de incidência do benefício assistencial
(e não previdenciário, daí não confundir com aposentaria), na medida em que hou1 Luiz Alberto David Araujo; Vidal Serrano Nunes Júnior, Curso de direito constitucional, p. 78.
2 Ibid., p. 79.
3 Sergio Pinto Martins, Direito da seguridade social, p. 474.
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n.
41
311
ve uma redução na idade mínima para possibilitar a concessão do benefício, que antes da edição da Lei 10.741/03 estava limitado a 67 (sessenta e sete) anos de idade.
A maior celeuma, no entanto, criada pela Lei 8742/93, que regulamentou a
aplicação do dispositivo, cuja previsão constitucional encontra-se no artigo 203, inciso V, foi com relação ao artigo 20, § 3º, que limitou a concessão do benefício, considerando incapaz de prover a manutenção da pessoa idosa a família cuja renda
mensal per capita fosse inferior a 1/4 do salário mínimo.
IV. TRATAMENTO DA MATÉRIA NOS TRIBUNAIS
A questão referente aos critérios para aferição da hipossuficiência, contudo, se
acirrou, para saber se o parâmetro fixado em 1/4 do salário mínimo deveria ou não
ser considerado objetivamente e se o § 3º do artigo 20 seria ou não inconstitucional.
Alguns Tribunais, dentre eles o Tribunal Regional Federal da 3ª Região, passou
a entender que o critério utilizado não deveria ser considerado objetivamente para
todas as situações, pois serviria apenas como parâmetro para a interpretação do dispositivo legal:
o limite de renda familiar ditada pelo art. 20, §3º, da Lei n.º
8742/93 funciona como mero parâmetro objetivo de miserabilidade de forma a se entender que a renda per capita inferior a 1/4
(um quarto) do salário mínimo configuraria prova inconteste da
necessidade, dispensando outros elementos probatórios. Por outro
lado, caso suplantado tal limite, nada impede seja demonstrada a
pobreza e a efetiva necessidade do benefício por todos os meios de
prova. Provada nos autos da total incapacidade laborativa e a
premente necessidade de receber o benefício assistêncial, deve-se
concedê-lo4.
No entanto, a questão ainda assim se ressente de uma interpretação que possibilite sua aplicação uniforme, mesmo porque, há questão constitucional pendente de análise, pois paralelamente existe entendimento, não acolhido pelo STF, no
sentido de que o artigo 203, inciso V, da Constituição Federal, seria auto-aplicável.
Foi através da ADIN n.º 1232-1, julgada improcedente, que a matéria passou a
tomar um lineamento, etendendo o STF, por maiora de votos, que incumbe à lei indicar os critérios de hipossuficiência a serem utilizados na aplicação da norma. Logo,
segundo essa concepção, o artigo 203, inciso V, da Constituição Federal, não seria
auto-aplicável. Assim esclareceu o voto vencedor:
4 Processo n. 2001.03.99.001361-5, 1a Turma, São Paulo, julgado: 28.05.02, Juiz Carlos Loverra.
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312
se a legislação resolver criar outros mecanismos de comprovação,
é problema da própria lei. O gozo do benefício depende de comprovar na forma da lei, e esta entendeu de comprovar desta forma. Portanto, não há interpretação conforme possível porque,
mesmo que se interprete assim, não se trata de autonomia de direito algum, pois depende da existência da lei, da definição.
Nada obstante ao teor dessa decisão, ainda assim os órgãos jurisdicionais continuaram a divergir sobre a matéria, como na Reclamação n. 2.281, que teve como
reclamada a Exma. Juíza Federal do Juizado Especial Federal de São Paulo, apreciada em 13 de fevereiro de 2003, onde o STF, através da Ministra Ellen Gracie, proferiu decisão no sentido de que
todos aqueles que forem atingidos por decisões contrárias ao entendimento firmado pelo STF no julgamento de mérito proferido
em ação direta de inconstitucionalidade, sejam considerados
como parte legítima para propositura de Reclamação5.
Assim, diante da decisão daquela Corte Constitucional, a questão, inicialmente, parecia ter se estabilizado, pois vindo a decisão do STF os demais tribunais passariam então a segui-la.
V.
NOVA INTERPRETAÇÃO FRENTE AO ESTATUTO DO IDOSO
Com a edição do Estatuto do Idoso, a questão dos critérios para aferição de
hipossuficiência, pelo menos com relação a este grupo social, parece ter recebido
nova interpretação. É que o artigo 117 das disposições finais e transitórias do estatuto, prevê que o
poder executivo encaminhará ao Congresso Nacional projeto
de lei revendo os critérios de concessão do Benefício de Prestação Continuada previsto na Lei Orgânica da Assistência Social,
de forma a garantir que o acesso ao direito seja condizente
com o estágio de desenvolvimento sócio-econômico alcançado
pelo País.
Portanto, o critério utilizado para a aferição de hipossuficiência, advindo através do julgamento da ADIN n.º 1232-1, pelo STF, consistente na aferição de receita
5 Hermes Paes Alencar, Benefícios previdenciários, p. 175.
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n.
41
313
familiar inferior a 1/4 do salário mínimo, não mais poderá ser considerado como parâmetro para se efetuar essa classificação social.
Mesmo porque, havendo determinação legal para que se reavalie o critério
de aferição de hipossuficiência, implícito está que a decisão proferida pelo STF
padece de explícita reconsideração a fim de adequar-se à atual conjuntura sócioeconômica.
Em conclusão, se o efeito vinculante da decisão proferida pelo STF se estende aos demais órgãos do Poder Judiciário, ao próprio STF não existe autovinculação6. Em conseqüência, havendo dispositivo legal que determine nova avaliação da
matéria, e este parece ser o sentido da expressão “encaminhará” contido no artigo
117, nem o STF e nem os demais órgãos do Poder Judiciário devem estar adstritos
ao critério de avaliação de hipossuficiência econômica de pessoa idosa conforme interpretação dada pela ADIN 1232-1, posto que, doravante, aquele critério legal deverá servir apenas como parâmetro a ser considerado pelo julgador.
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6 Zeno Veloso, Controle jurisdicional de constitucionalidade, p. 199.
A ALTERABILIDADE DO NOME DOS FILHOS PELO
DESCUMPRIMENTO DO PODER FAMILIAR MÚTUO
Jesualdo Eduardo de Almeida Júnior
Pós-Graduado em Aspectos Modernos do Direito Contratual.
Pós-Graduado em Direito das Relações Sociais.
Mestrando em sistema constitucional de garantia de direitos.
Advogado militante.
Professor de Processo Civil da Associação Educacional Toledo, de Presidente Prudente,
e de Direito Civil da Faculdade de Direito de Assis – FEMA/IMESA.
1.
INTRODUÇÃO
Trata-se de um caso concreto e bastante pitoresco. Um casal teve a saborosa surpresa de saber que a mulher estava grávida. Motivo de festa para toda uma família!
Tão logo descoberta a notícia, começaram as especulações sobre o nome a
ser dado à futura criança. Se fosse menina, decidiram de comum acordo, chamarse-ia Cláudia1.
E assim se deu. Pelo ultra-som, descobriram que se tratava de uma menina.
Cláudia estava por vir.
O enxoval todo constou o nome de Cláudia. Pais, avós, tios, amigos, todos,
chamavam a criança apenas de Cláudia.
Contudo, quando do seu nascimento, por a mãe estar acamada, o pai corre a
fazer o registro, e dá à menor o nome de Ana Cláudia.
1 Embora se trata de um caso real, os nomes foram alterados a fim de se preservar os verdadeiros envolvidos.
faculdade de direito de bauru
316
Dada a notícia à mãe, está se vê verdadeiramente desrespeitada, humilhada,
enganada... Cai em profunda depressão. Simplesmente abomina o nome dado à filha, a ponto de nunca chamá-la pelo nome de registro e ordenar aos achegados que
também assim ajam.
O relacionamento do casal degringola. A harmonia simplesmente se desfaz. Por um ato impensado do pai, a família, recém-aumentada, está sob o risco
da derrocada.
Novamente conversam sobre o fato, e o pai reconhece o erro e permite que o
nome da filha seja alterado para Cláudia, tal como era previsto antes do nascimento.
Ocorre, contudo, que esbarram na previsão legal da inalterabilidade do prenome. Então, pergunta-se: estaríamos perante um caso de alteração do prenome
sem previsão expressa em lei?
2.
DA ORIGEM DO NOME
Nomem est quod uni cuique personae datur, quo suo quaeque proprio et certo vocábulo appellatur2
A identificação de uma pessoa se dá pelo seu nome, que a individualiza; pelo
estado, que define sua posição na sociedade política e na família, como indivíduo; e
pelo domicílio, que é o lugar de sua atividade social.3
À nossa pesquisa interessa tão-somente o nome, que vem a ser a identificação
da pessoa natural. É o principal elemento de individuação de homens e mulheres.
Tem importância não apenas jurídica, mas principalmente psicológica: é a base para
construção da personalidade.4
Maria Helena Diniz5 assim define o nome:
O nome integra a personalidade por ser o sinal exterior pelo qual
se designa, se individualiza e se reconhece a pessoa no seio da família e da sociedade; daí ser inalienável, imprescritível.
De fato, o nome está inserido no vasto rol dos direitos de personalidade, que
gozam de especial proteção da lei. Aliás, Washington de Barros Monteiro6 argumenta que “o nome é dos mais importantes atributos da personalidade, justamente por
ser o elemento identificador por excelência da pessoa.”
2 “Nome é aquilo que é dado a cada pessoa e que serve para designá-la por um termo próprio e preciso”.
3 GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil, 3ª. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1971, p. 139.
4 COELHO, Fábio Ulho. Curso de direito civil. São Paulo: Saraiva, 2003, v. 1, p. 184.
5 Curso de direito civil. Parte geral. São Paulo: Saraiva, 1995, v. I, p. 102.
6 Curso de direito civil. Parte geral. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 100.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
41
317
Neste desiderato, o artigo 16, do Código Civil brasileiro, assegura que “toda
pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o prenome e o sobrenome.” Recebe-o ao nascer e conserva-o até sua morte.
Ainda, segundo Washington de Barros Monteiro7:
Em todos os acontecimentos da vida individual, familiar e social,
em todos os atos jurídicos, e todos os momentos, o homem tem que
se apresentar com o nome que lhe foi atribuído e com que foi registrado. Não pode entrar numa escola, fazer contrato, casar, exercer
um emprego ou votar sem declinar o próprio nome.
De fato, no volver da história, o nome das pessoas sempre ocupou um papel
de imprescindibilidade. Entre os gregos, esse nome era único e individual (Sócrates,
Sófocles etc). Aliás, essa era a tendência dos povos da Antigüidade8. Coube aos hebreus o início da inclinação em se assegurar o sobrenome enquanto característica
da família a que pertencia a pessoa. Assim, nomes como José, filho de Jacó, Davi, filho de Jessé etc, passaram a ser comuns entre os judeus do passado.
Os romanos tinham, basicamente, três nomes: o prenome, para distinção entre os membros da família; o nome, que se referia à família (gens), e o cognome, que
distinguia as diversas famílias de uma mesma gens.9
Os saxões incorporaram son para demonstrar que alguém era filho de outro.
Assim, Peterson era o filho de Peter.
No sistema brasileiro atual, o nome da pessoa compõe-se de um prenome e
do respectivo apelido de família. Prenome é a expressão que invidualiza a pessoa, ao
passo que o sobrenome é o nome de sua família. Portanto, todos têm direito de ser
individualizados dentre os integrantes de sua família.10
Conforme Fábio Ulhoa Coelho11, “quem atribui o prenome à pessoa são os
seus pais, em conjunto”, salvo se um deles estiver falecido quando do registro do
nascimento.
Pontes de Miranda12 também advoga que a imposição do nome aos filhos é tarefa de competência de ambos os pais:
A imposição do prenome compete aos pais; não necessariamente
ao pai. Se esse é que comparece a registro, o prenome é o que ele
7 Loc. cit.
8 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 2004, Vol. I., p. 242.
9 FRANÇA, R. Limongi. Do nome civil das pessoas naturais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1975, p. 30.
10 Algumas vezes, tem-se ainda o agnome, sinal distintivo que se acrescenta ao nome completo (Filho, Júnior etc)
11 Loc. Cit.
12 Tratado de direito privado, V. I, p. 115.
faculdade de direito de bauru
318
impõe. Se é a mãe, nada tem de inquirir o oficial do registro, quanto ao prenome que o pai preferiria. Ambos têm o dever de cuidar
do filho (art. 384, II), que é distinto do dever de registrá-lo;
Assim, a imposição do nome aos filhos é tarefa conjugada a ser exercida por
ambos os pais.
3.
DO PODER FAMILIAR
Dita o artigo 1630, do Código Civil brasileiro, que “os filhos estão sujeitos ao
poder familiar, enquanto menores.” Em seu texto o Código Civil altera a expressão
“pátrio poder”, substituindo-a pela expressão “poder familiar”. A principal importância relativa a essa mudança seria o fato de que
há muito tempo o poder familiar não é mais tido como um direito
absoluto e discricionário do pai, mas sim como um instituto voltado à proteção dos interesses do menor, a ser exercido pelo pai e
pela mãe, em regime de igualdade, conforme determina a Constituição Federal...13
Com efeito, o “poder familiar é o conjunto de direitos e deveres atribuídos aos
pais, no tocante à pessoa e aos bens dos filhos menores”.14
Para Silvio de Salvo Venosa15 “o poder paternal já não é, no nosso direito, um
poder e já não é, estrita ou predominantemente, paternal. É uma função, é um conjunto de poderes-deveres, exercidos conjuntamente por ambos os progenitores.”
Deveras, nem poderia ser diferente, na medida em que a Constituição Federal
disciplina, em seu artigo 5º, I que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”, e no artigo 226, § 5º que “os direitos e deveres
referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher”.
Deste modo, sob o manto da igualdade entre os cônjuges, prevista inclusive
em nível constitucional, nosso atual Código Civil, no artigo 1631, assegura que o poder familiar será exercido por ambos os cônjuges, assegurando-se a qualquer um deles, em caso de discordância, buscar o poder judiciário. É de se ver, in verbis:
Art. 1631. Durante o casamento e a união estável, compete o poder
familiar aos pais; na falta ou impedimento de um deles, o outro o
exercerá com exclusividade.
13 SANTOS NETO apud SILVA, R. B. T. Novo Código Civil Comentado. São Paulo. Ed. Saraiva. 2002.
14 GONÇALVEZ, Carlos Roberto. Direito Civil: Direito de Família. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2002, V. II.
15 Direito civil. Direito de família. São Paulo: Atlas, 2003, p. 355.
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319
Parágrafo único. Divergindo os pais quanto ao exercício do poder
familiar, é assegurado a qualquer deles recorrer ao juiz para solução do desacordo.
Igual redação se extrai do artigo 21, do Estatuto da Criança e do Adolescente:
Art. 21. O pátrio poder será exercido, em igualdade de condições, pelo pai e pela mãe, na forma do que dispuser a legislação
civil, assegurado a qualquer deles o direito de, em caso de discordância, recorrer à autoridade judiciária competente para a
solução da divergência.
Tem-se, pois, de maneira irrefutável, que o poder familiar é exercido em
conjunto.
José Maria Catán Vasques16 adverte que “las funciones atribuidas a los padres
tienem su fundamento en el Derecho natural. Se advierte aqui, uma vez más, el fondo ético e la institución.” E acrescenta: “Se habla así del deber de los padres de dar
nombre al hijo y obrar para la tutela del nombre”.
Logo, vê-se que o direito à aposição do nome ao filho é decorrência do poder
familiar (antigo pátrio poder), a ser exercido pelos pais.
Maria Celina Bodin de Moraes também é no mesmo pensar:17
A escolha do prenome deve ser feita pelos pais, em respeito ao teor
do art. 226, § 5º, da CF (a previsão de igualdade dos cônjuges) c/c
o art. 21 do Estatuto da Criança e do Adolescente (i. é, atribuição
do pátrio poder a ambos os genitores). Embora a Lei de Registros
Públicos incumba ao pai, e apenas em sua ausência à mãe, o dever de proceder à declaração do nascimento do filho (art. 52), a escolha do prenome da criança caberá a ambos os genitores, não
havendo mais qualquer justificativa que possa excluir a mãe desta decisão.
Cônsono Limongi França18, existe o “direito de pôr e tomar o nome e o direito ao nome propriamente dito”. Na seqüência, esclarece que direito de pôr o nome
é a prerrogativa que alguém tem de atribuir a outrem certa designação personativa,
cabendo-lhe, em especial, aos pais. Argumenta que se o nome foi atribuído por
16 La patria potestad. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1960, p. 178
17 Sobre o nome da pessoa humana. Porto Alegre: Síntese Publicações, 2004, Cd-Ron nº 46. Produzido por Sonopress Rimo Indústria e Comércio Fonográfico Ltda.
18 Op. Cit., p. 178.
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320
quem não tinha o direito de o fazer, isso emergeria como causa justificativa da alteração do nome. Reporta-se ao artigo 82, do Código Civil de 1.916, que reclama agente capaz para a validade dos atos jurídicos. Por conseguinte, se quem apontou o
nome ao registro não podia fazê-lo, o ato jurídico seria nulo.19
Por conseguinte, cabe a ambos, em iguais condições, o exercício do pátrio poder (ou modernamento poder familiar). E em caso de discordância, permite-se-lhes
o socorro ao judiciário, conforme previsto nos já citados artigos 1631, do Código Civil, e 21, do Estatuto da Criança e do Adolescente, que destacam que “divergindo os
pais quanto ao exercício do poder familiar, é assegurado a qualquer deles recorrer
ao juiz para solução do desacordo.”20
Vê-se, então, que o comportamento do esposo, em desrespeitar o ajuste do casal quanto ao nome da filha, fere de morte o exercício conjunto e igualitário do poder
familiar. Assim, com vistas a reparar o ilícito, impõe-se a alteração do registro civil.
4.
DA MUTABILIDADE DO NOME
Conquanto, em tese, o nome da pessoa seja imutável, a jurisprudência, a doutrina, e mesmo a história, estão recheadas de casos em que se impunha a modificação das designações pessoais. Pontes de Miranda21 sustenta que:
No terreno fático, as pessoas, em Roma, podiam mudar o nome, no
prenome, ou no sobrenome, ou todo ele, se o fazia sem fraude (sine
aliqua fraude). Já o ser exigida a ausência de fraude era novo. O
mesmo ê dizer-se que se tinham a aposição, o uso e a mudança dos
nomes como acontecimentos do mundo fático, só interessando,
como tais, ao mundo do direito, e não como fatos jurídicos; porque, ainda no caso de mudança com fraude (L.única, C., de mutatíone nominis, 9, 25), era a fraude que entrava como fato (jurídico) ilícito. Não nos parece que se possa ler a Constituição de Diocleciano e Maximiano como enunciadora de princípio de não entrada da mudança no mundo jurídico. Não se disse que a mudança não entrava, e sim que a mudança com fraus era ilícita (no
sentido de contrária ao direito). Certamente, quando Baldo disse:
“Mutatio nominis non fraudulosa libero homini est permisso” e os
outros o repetiram, deram azo a que se pensasse em limitação ao
dogma romano da livre mutabilidade do nome.
19 Op. cit., p. 259.
20 Código Civil, art. 1631, par. único.
21 Loc. cit.
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41
321
Vê-se, então, que Roma tinha por regra a modificação do nome, desde que
não houvesse intuito fraudulento.
Contudo, nosso atual regime abona a tese da definitividade do nome, na
medida em que a Lei 6015, de 31-12-73, no artigo 58, reza, in verbis: “O prenome será definitivo, admitindo-se, todavia, a sua substituição por apelidos públicos notórios.”
Todavia, na jurisprudência, vem se sedimentando que a regra da imutabilidade é de ser abrandada, para se atender ao uso, constante, diuturno, que se faz
do nome que se porta, não apenas como o meio de identificação, ou sinal exterior distintivo da pessoa, mas também, e principalmente, considerando o direito da personalidade ao nome22.
Logo, em casos excepcionais, poderá ser deferida a modificação do nome.
Fábio Ulhoa Coelho23 assim os descreve:
Em casos excepcionais, porém, é possível sua mudança, a saber:
a) vontade do titular, no primeiro ano seguinte ao da maioridade civil; decisão judicial que reconheça motivo justificável
para alteração; c) substituição do prenome por apelido notório; d) substituição do prenome de testemunha de crime; e) adição ao nome do sobrenome do cônjuge; f) adoção.
Maria Helena Diniz24 ainda sugere que poderia haver essa alteração em casos de “embaraços no setor comercial ou em atividade profissional, evitando-se
homonímias”.
Ademais, Limongi França relembra que era de nossa cultura jurídica a mutação do prenome por causas justificativas:
Entre nós, no direito anterior ao Regulamento nº 18.542, apesar
do art. 25 do Decreto nº 9.886, de 1888, só permitir o suprimento ou restauração do registro civil, “mediante justificação com
as formalidades legais”, foi uso consagrado a modificação do
nome, quer para evitar confusão, quer para fins comerciais,
quer ainda por motivo ético respeitável.
22 Por mutação entenda-se a substituição ou acréscimo de expressões, posto que a simples retificação do nome,
em razão de erro de grafia, é expressamente previsto na Lei de Registro Públicos, no artigo 110, que dispõe, in verbis: “A correção de erros de grafia poderá ser processada no próprio cartório onde se encontrar o assentamento,
mediante petição assinada pelo interessado, ou procurador, independentemente de pagamento de selos e taxas.”
23 Op. cit., p. 186.
24 Op. Cit., p. 105.
322
faculdade de direito de bauru
Maria Helena Diniz25, ao admitir que a imutabilidade do prenome deve ser relizativizada em casos excepcionais, sugere que o nome prevalente deve ser aquele
pelo qual a pessoa é conhecida, e não a constante do registro. Neste desiderato: “A
jurisprudência tem entendido que o prenome deve constar do registro é aquele
pelo qual a pessoa é conhecida, e não aquele que consta do registro”.
E, de fato, razão assiste à ilustre autora. O Tribunal de Justiça de São Paulo, por
exemplo, já decidiu que “nada impede que se abra exceção ao artigo 57 da LRP,
quando a pessoa interessada sempre foi conhecida pelo nome que deseja adotar”26.
Neste julgamento, autorizou-se que Maria Aparecida Melo passa-se a se chamar Maria Luciana.
No mesmo sentido, houve nova decisão deste Tribunal determinando-se a alteração de um prenome de Bernardo para Victor, na medida em que o indivíduo era
conhecido por Victor, não obstante seu registro conter Bernardo27
É lapidar a lição que se extrai do aresto relatado pelo Desembargador Nogueira Garcez, nos idos de 197828: “prenome imutável é aquele que foi posto em uso,
embora não conste do registro”.
Portanto, a regra da imutabilidade do prenome destina-se a garantir a permanência daquele com que a pessoa se tornou conhecida no meio social29.
Além disso, Nelson Martins Ferreira30, sustenta que a imutabilidade do prenome não deve ser entendida num sentido absoluto, sendo a retificação admitida por
interpretação humana e social dos dispositivos legais. Na seqüência, o mesmo autor,
reportando-se à jurisprudência que cita, traz interessante acórdão lavrado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo31, que também admite a mutação do prenome:
No exato dizer de Erich Danz, “a vida não está a serviço dos conceitos, mas sim estes ao serviço da vida.” Seria absurdo que, pelo respeito supersticioso da letra de um aritgo de lei, se forçasse uma pessoa a
mudar de nome. Prenome imutável é aquele que foi posto em uso,
embora não constante de registro. O que a lei quer é que não haja alteração do prenome no meio social, e não no livro de registro.
Conquanto a Lei brasileira tenha adotado a imutabilidade do prenome (artigo
58 da LRP), não pode o seu aplicador ignorar a realidade existencial das pessoas,
25 Loc. Cit.
26 In RT 532/86.
27 in RT 412/178.
28 in RT 517/105.
29 in RT 534/109.
30 O nome civil e seus problemas. Rio de Janeiro: José Bushatsky Editor, 1952, p. 109.
31 In RT 107/208.
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41
323
posto que a intransigência formal não impede sejam examinados e considerados os
fatos que podem causar a infelicidade de determinada pessoa.
Saliente-se que, com freqüência, se vê nos votos permissivos da alteração de
prenome o argumento de que
a alteração permitida não é apenas com relação ao nome em si,
suscetível de expor ao ridículo o seu portador, mas ao nome ligado a circunstâncias particulares, nas quais se pode atender ao elemento psicológico do interessado.
Infere-se, pois, que a modificação do prenome é de ser aceita, ainda que excepcionalmente.
5.
DA POSSIBILIDADE DE TRANSFORMAÇÃO DO PRENOME COMPOSTO
O nome Ana Cláudia é, por assim dizer, um prenome composto. Conforme Maria Helena Diniz32, o “prenome pode ser simples (João, Carlos) ou duplo (José Antônio, Maria Amélia) ou ainda triplo ou quádruplo, como se dá nas famílias imperiais.
Neste passo, o artigo 58, da Lei de Registros Públicos, permite a transformação de prenome simples em prenome composto, como, por exemplo, de Angelino
para Angelino Francisco33
Portanto, admite-se modificação do prenome simples para prenome composto. Pela mesma razão, há de se admitir a modificação do prenome composto para
prenome simples. Neste diapasão, são os ensinamentos de Washington de Barros
Monteiro34:
De modo idêntico, não infringe o disposto no artigo 58 simples acréscimo ou justaposição de outro nome ao já usado pelo registrado.
Pela mesma razão, permite-se a transformação de prenome simples em composto, ou de simples em duplo e vice-versa (por exemplo, de Elisa Ercília para Elisa.
Outra razão adicional para a autorização da retificação do registro civil no caso
comentado.
32 Op. Cit., p. 102.
33 Esse exemplo, inclusive, é tirado de Washington de Barros Monteiro, op. Cit., p. 106.
34 Op. Cit., p. 106.
324
6.
faculdade de direito de bauru
DA INEXISTÊNCIA DE DANOS À TERCEIRO
Outrossim, segundo remansosa jurisprudência, não poderia caber a alteração
do prenome se houvesse intuito fraudulento ou doloso. E, no caso em tela, esse vícios estão de pronto afastados.
No caso em tela, a infante contava com menos de 01 (um) ano. Em razão disso, ainda não detinha vida social nem tampouco um conhecimento público e generalizado. A eventual modificação de seu prenome em nada afetaria as relações com
terceiros, e sequer lhe atingiria, na medida em que ainda não tem a exata compreensão dos fatos.
Acrescente-se, ainda, que é conhecida pelos seus parentes e amigos como
Cláudia, exatamente o nome que pretende. Destarte, não há a menor possibilidade
de danos em relação a terceiros.
7.
NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO DO NÚCLEO FAMILIAR
Prega a Constituição Federal, no artigo 226: “A família, base da sociedade, tem
especial proteção do Estado.” Neste passo, tudo o que for possível para a preservação da família, deve ser feito.
Segundo Sérgio Rezende de Barros35 o afeto é o que conjuga:
Cônjuges são, como o próprio nome diz, os que se sentem conjugados por uma origem ou destino de vida em comum. Nessa conjugação de vidas, atua o afeto. O que define a família é uma espécie
de afeto que - enquanto existe - conjuga intimamente duas ou mais
pessoas para uma vida em comum. É o afeto que define a entidade familiar. Mas não um afeto qualquer. Se fosse qualquer afeto,
uma simples amizade seria família, ainda que sem convívio. O
conceito de família seria estendido com inadmissível elasticidade.
Na realidade, o que identifica a família é um afeto especial, com
o qual se constitui a diferença específica que define a entidade familiar. É o sentimento entre duas ou mais pessoas que se afeiçoam
pelo convívio diuturno, em virtude de uma origem comum ou em
razão de um destino comum, que conjuga suas vidas tão intimamente, que as torna cônjuges quanto aos meios e aos fins de sua
afeição, até mesmo gerando efeitos patrimoniais, seja de patrimônio moral, seja de patrimônio econômico. Este é o afeto que define
a família: é o afeto conjugal. Mais conveniente seria chamá-lo afe35 A ideologia do afeto. Porto Alegre: Síntese Publicações, 2004, Cd-Ron nº 46. Produzido por Sonopress Rimo Indústria e Comércio Fonográfico Ltda.
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n.
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325
to familiar, uma vez que está arraigada nas línguas neolatinas a
significação que, desde o latim, restringe o termo cônjuge ao binômio marido e mulher, impedindo ou desaconselhando estendê-lo
para além disso.
Desta complexa lição, extrai-se que o afeto familiar é o que, deveras, conjuga
a união. Pois bem, convivência significa harmonia, coordenação.
Como se viu, a aposição do nome apenas pelo pai causou um grave transtorno no seio da família. O relacionamento, que dantes cordial, agora resulta extremamente conturbado. A mãe, inclusive, está atravessando tratamento psicológico por
conta disto, conforme farta documentação acostada.
Deveras, essa situação gerou um grave transtorno no seio familiar. A esposa se
sente traída, diminuída. Há manifesta infração ao artigo 1566, do Código Civil, que
dentre tantos efeitos pessoais que impõem aos cônjuges, alista com ênfase o respeito e consideração mútuos.
Os direitos e deveres pessoais entre os parceiros heterossexuais servem como
sustentáculo familiar, e seu descumprimento gera uma situação antijurídica, sendo
sabido que a violação dos ditos deveres podem levar à separação e, igualmente, ao
divórcio, com a ruptura do vínculo matrimonial.36
Deste modo, o respeito aos deveres matrimoniais, incluídos indubitavelmente a lealdade, é imperativo legal, cujo descumprimento pode ocasionar, inclusive a
ruptura da entidade familiar.
A fim de preservar esse núcleo familiar, restabelecendo-se a concórdia, impõese a modificação do nome da filha do casal para Cláudia.
Há, deste modo, evidente interesse individual e manifesta vantagem social
para a alteração do nome, mitigando-se, por conseguinte, o princípio da inalterabilidade do registro.
8.
À GUISA DE CONCLUSÕES:
a) os cônjuges haviam estabelecido que o nome de sua filha seria CLÁUDIA,
e não ANA CLÁUDIA;
b) ao registrá-la como Ana Cláudia, o marido feriu o poder familiar cabível à
esposa, e também maculou o princípio da igualdade dos esposos;
c) a esposa está em tratamento psicoterapêutico por conta do ocorrido;
d) a vida conjugal se desestabilizou depois dos fatos;
e) a imutabilidade do prenome é relativa, podendo, em casos tais, ser revista;
36 ALMEIDA JÚNIOR, Jesualdo Eduardo. As relações entre cônjuges e companheiros no novo código civil. Rio de
Janeiro: Temas e Idéias Editora, 2004, p. 54.
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326
f ) ademais, trata-se de mero nome composto, que passará a ser simples. Não
implica maiores complicações ou complexidades;
g) a menor conta com menos de 01 (um) ano. Logo, não há intuito fraudulento, nem prejuízo para terceiros;
h) todos chamam a menor apenas como CLÁUDIA. Alterar-lhe o nome apenas
e tão-somente declarará situação fática já em curso;
i) Tem-se, por irrefutável, a necessidade da autorização da modificação do
prenome.
9.
BIBLIOGRAFIA
ALMEIDA JÚNIOR, Jesualdo Eduardo. As relações entre cônjuges e companheiros
no novo código civil. Rio de Janeiro: Temas e Idéias Editora, 2004.
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327
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. Parte geral. 39ª. ed., São
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PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 20ª. ed., Rio de Janeiro:
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STRECK, Lênio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica – Uma nova crítica do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002.
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VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil. Direito de família. 3ª. ed., São Paulo: Atlas,
2003.
ADOÇÃO, o descompasso do novo Código
Civil frente ao Estatuto da Criança
e do Adolescente
Iriana Maira Munhoz
Formada pela Faculdade de Direito de Bauru, ITE.
Pós-Graduada em Direito Civil e Processual Civil pela ITE.
Advogada Militante.
1.
NOTAS INTRODUTÓRIAS
A adoção alinha-se entre os mais complexos temas do conjunto de conhecimentos específicos que tem por centro o ser humano em fase de formação. É um tema que
nos leva a uma grande reflexão, pois não se trata apenas de um procedimento legal para
ganhar legitimidade em relação a uma criança ou a um adolescente, muito pelo contrário, a adoção nos leva a dar e receber muito amor do nosso semelhante.
A partir da Constituição Federal de 1988, ingressou em nosso sistema jurídico
pelo art. 227, a doutrina da Proteção Integral, ou seja, a imposição do reconhecimento
da peculiaridade da condição da criança e do adolescente, seres humanos em formação que passam por dois ciclos rápidos, o da infância e da juventude, pois nesta condição, encontram maior dificuldade para se oporem aos obstáculos para seu pessoal desenvolvimento. Essa proteção integral é estendida à criança pobre ou rica, pois se faz
de uma forma universalizada, sem que implique qualquer discriminação.
É com esse pensamento, não só jurídico como também afetuoso, que vamos
analisar a chegada do novo Código Civil frente ao ECA, que foi elaborado em consonância com a Constituição Federal de 1988.
330
2.
faculdade de direito de bauru
ADOÇÃO DO CÓDIGO DE 1916 E O ECA
O Código de 1916 disciplinava a adoção dos maiores de 18 anos. Essa era feita por escritura pública, sem interferência do magistrado, ao contrário do Estatuto
da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90), que disciplinava a adoção dos menores até 18 anos, e além dessa idade, por exceção, quando ao completar 18 anos, o
adotado já estivesse sob a guarda ou tutela dos adotantes. No procedimento estatutário, a adoção depende de sentença judicial.
A adoção feita pelo antigo Código de 1916, de acordo com o art. 374, extinguia-se por ato bilateral (adotante e adotado), ou seja, por mera conveniência das
partes, por se tratar de um negócio jurídico entre maiores e capazes, dessa forma a
lei possibilitava seu desfazimento igualmente por escritura pública. Diferentemente
da adoção civil, a adoção estatutária não se coaduna com o conceito de revogabilidade, pois ao imitar a natureza, a adoção deve ser irrevogável.
Por um período, tivemos em nosso sistema duas modalidades de adoção: a
adoção plena, espécie de adoção pela qual o menor adotado passa a ser irrevogavelmente, para todos os efeitos legais, filho dos adotantes, desligando-se de vínculo
com os pais de sangue e parentes, salvo os impedimentos matrimoniais. Já na adoção simples, espécie de adoção revogável, não há qualquer parentesco civil entre o
adotado e os parentes do adotante, nem extinção dos direitos e deveres resultantes
do parentesco natural, com exceção do pátrio poder, que se transfere do pai natural para o adotivo.
O ECA reformulou integralmente o instituto da adoção, acabando com a dicotomia adoção plena - adoção simples, prevalecendo a adoção sem qualificativo, de
efeitos pleno e irrevogável, que atribui a condição de filho ao adotado com os mesmos direitos e deveres, inclusive sucessórios, desligando-o de quaisquer vínculos
com seus parentes, salvo os impedimentos matrimoniais (artigos 41 e 48 do ECA).
Como já vimos em nossa introdução, o parágrafo 6º do artigo 227 da Constituição Federal de 1988, representa, sem dúvida, o maior avanço do Direito de Família pátrio de todos os tempos, pelo seu alcance ético, social e humanitário. Logo, ao
nosso ver, já não havia mais como sustentar a adoção do Código Civil de 1916, cujos dispositivos estavam enraizados em concepções contratualistas, que remontam
ao direito romano, altamente discriminadoras, portanto inconstitucionais. Este artigo é considerado o ponto de partida para a edição do Estatuto da Criança e do Adolescente em nosso país.
3.
O NOVO CÓDIGO CIVIL FRENTE AO ECA
O Código de 2002, já nasceu perdendo oportunidades, com relação ao instituto da adoção, deixando de regrar muitos fatos já existentes em nossa sociedade,
como, por exemplo, a adoção por homossexuais, a adoção de nascituros, enfim, si-
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41
331
tuações que vêm se deparando com a falta de regulamentação, deixando os operadores do direito em uma desconfortável posição.
Com relação aos homossexuais, não temos nenhuma regra legal no Código ou
no Estatuto, que permita ou proíba a adoção. A doutrina se divide, tendo autores
conservadores não admitindo a adoção por homossexuais, mas também havendo
autores mais progressistas, como José Luiz Mônaco da Silva, que se posiciona a favor da adoção por homossexuais (podendo assumir também sua guarda ou tutela),
dependendo precipuamente do comportamento do homossexual frente à sua comunidade, isto é, ficará na dependência de o juiz apurar a conduta social do requerente em casa, no trabalho, na escola, no clube, enfim, no meio social onde vive.
Portanto, ressalta José Luiz Mônaco, que seja o requerente heterossexual ou
homossexual, o procedimento a ser seguido será o mesmo, pois o que impedirá a
colocação da criança em família substituta será na verdade, o comportamento desajustado do adotante, mas jamais sua sexualidade. Assim, se ele cuidar, educar a criança, dentro dos padrões aceitos pela sociedade brasileira, a sua homossexualidade
não poderá servir de pretexto para o juiz indeferir a adoção.
E os nascituros, que posição ocupam em nosso Código Civil e em nosso Estatuto? Como é sabido, temos três teorias com relação ao momento em que se instaura a personalidade jurídica do nascituro: natalista, concepcionalista, personalidade
condicionada.
A teoria natalista dispõe que o nascituro não tem personalidade jurídica, ele
somente a adquire se nascer com vida. A teoria concepcional propõe que a personalidade jurídica se instaura desde a concepção e, por fim, a teoria da personalidade condicionada, que é uma vertente intermediária entre a natalista e a concepcional, propõe que o nascituro tem personalidade jurídica desde a concepção, mas esta
depende da confirmação que sobrevirá com o nascimento com vida. Que doutrina
o nosso Código Civil Brasileiro adotou?
A doutrina se divide: os tradicionalistas dizem que nosso Código é natalista
(Silvio Rodrigues, Orlando Gomes etc.); os modernistas têm defendido a idéia de
que nosso Código é adepto da personalidade condicionada. São representantes dessa idéia Francisco Amaral, Silmara Quinelato. Os estatuístas se afiliam aos autores
mais progressistas.
O ECA, em seu art. 8º, se coloca na defesa do pré-natal, protegendo não só a
gestante, mas também o nascituro, integrando-se na teoria da personalidade condicionada, e o capítulo que trata deste artigo é Do Direito à Vida e à Saúde, sendo esses direitos uma derivação dos direitos fundamentais do artigo 227 da Constituição
Federal. Diante do exposto, fica a interrogação, qual sistema cuidaria da proteção da
adoção de um nascituro?
O novo Código Civil apenas fez a transposição das regras estatutárias para
seus artigos, mas de forma defeituosa. Vejamos outros itens que o legislador deixou
de levar para o Código de 2002:
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332
- O Legislador não trouxe o art. 39 do ECA, o qual disciplina a proibição da
adoção por procuração.
- A irrevogabilidade da adoção, prevista no art. 48 do ECA, não foi traduzida
para o novo Código.
- O estágio de convivência entre adotante e adotado, previsto no art. 46 do ECA.
- A determinação de cancelamento do assento de nascimento do adotando,
nem tampouco um assento de nascimento novo.
O professor Nelson Nery propõe uma alternativa que, de antemão, se busca
conservar o estatuto, pois o Estatuto não é uma legislação comum, pelo fato de ser
especialmente voltada para interesses e direitos da proteção integral constitucional.
Logo, as leis que sobrevierem só o revogarão se estiverem em consonância com as
diretrizes constitucionais, ou seja, de acordo à CF, é zelar pela proteção integral em
cada caso concreto.
4.
CONCLUSÃO
Feitas essas anotações, colhidas através de um universo bastante vasto de informações, nada obstante seja um tema ainda bastante dividido na doutrina, torcemos para que os operadores do direito encontrem soluções para os diversos obstáculos encontrados pelo o instituto da adoção, soluções essas que não precisam estar em consonância com as normas legais, mas acima de tudo, em consonância com
o bem estar do adotado. Pois, este direito do adotado, seja ele nascituro, criança ou
adolescente, é não só um direito constitucional, mas um dever do nosso Estado de
zelar pela Proteção Integral desses seres humanos em desenvolvimento.
5.
BIBLIOGRAFIA
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PEREIRA, Tânia da Silva. Estatuto da Criança e do Adolescente: estudos sociojurídicos. Rio de Janeiro: Renovar, 1992.
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SILVA, José Luiz Mônaco da. A Família Substituta no Estatuto da Criança e do Adolescente. São Paulo: Saraiva, 1995.
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil. Direito de Família. São Paulo: Atlas, 2003.
DELINQÜÊNCIA JUVENIL
Marissol Labanca de Medonça
Estudante do Terceiro Semestre de Direito pela Universidade Estadual de Santa Cruz.
Ailson Pinhão de Oliveira
Graduado em Filosofia e especialista em Psicopedagogia.
Professor da Universidade Estadual de Santa Cruz - UESC .
Mestrando em Cultura e Turismo, convênio UESC/UFBA.
1.
INTRODUÇÃO
O Estado não responde satisfatoriamente às exigências da família e da sociedade, haja vista que os programas instituídos, como amparo legal no sentido de proteger o infanto-juvenil, só caminharão na sua plenitude quando deixar de haver falhas por seus responsáveis, na consecução do bem público, priorizando uma política que atenda prioritariamente à criança e ao adolescente. As crianças e adolescentes à margem de uma sociedade eivada de compromissos, às vezes relegada a segundo plano, diferenciadas em seus potenciais de vida, culminando naquela interpretação errônea que, em vez de se procurar conhecer a fundamentação legal desse dispositivo, interpretando-o de forma coesa, algumas pessoas em condições supremas
pensam em superá-lo, deixando de aplicá-lo como força impulsionadora do bem-estar e de credibilidade nos problemas voltados entre a criança, o adolescente e a lei.
O Estado é a organização jurídica e política da nação por isso, a vida em sociedade
é determinada através da ação em conjunto e na proteção contra efeitos negativos
de comportamento, e organização em grupo. Estamos diante da cooperação racional e o conflito, administrar a questão é tarefa essencial à organização estatal na bus-
faculdade de direito de bauru
334
ca do bem comum, a concretização dos direitos fundamentais da criança e do adolescente, através dos programas de proteção sócio-educativos. Mister se faz dizer
que a razão primeira que faz o homem unir-se em sociedade é a preservação da vida,
da liberdade e da segurança.
O sentido da organização do Estatuto está inserindo no texto legal as medidas
sócio-educativas, e deverá ser cumpridas. O que se observa é a falta de interpretação pela polícia judiciária e pela magistratura que levam ao não cumprimento e à falta da não aplicabilidade de sanções punitivas ao adolescente, invocando a deficiência da lei como fator propulsor da delinqüência juvenil.
Certamente, dizer das imperfeições da lei não é tarefa meramente acadêmica
reservada às abstrações intelectuais; ao contrário, trata-se de ponto fundamental à
nossa sensibilidade e ao nosso papel social. Quando o adolescente é levado a delinqüir, não é porque a lei seja imperfeita, benéfica e estimuladora, mais sim pela falta
de compromisso do homem pelo bem-estar social.
O artigo 5º da Constituição é taxativo quando elenca os direitos das crianças
e dos adolescentes, os quais são os mesmos de toda e qualquer pessoa, e o ato infracional cometido pelo adolescente tem que ser considerado como conduta típica,
prevista na lei, devendo ser processado com observância a todas as garantias a que
o próprio Estatuto denomina “devido processo legal”.
O que se pretende é que o estado abra espaço para o cumprimento da lei, superando os óbices que, por imperativos, negligenciam, deixando de ser cumpridos,
conflitando a relação dos homens em sociedade, impedindo a conquista do Bem
Comum. Afinal, cumprir a lei é dever de todos e obrigação do Estado.
Este estudo teve como objetivo verificar se o Estado, enquanto aplicador da
lei, é beneficiador e causador da delinquência juvenil.
Com base em estudos sobre a análise histórica do Estatuto da Criança e do
Adolescente e da diferença entre os termos “criança” e “adolescente” apresentou-se
o papel do responsabilidade do Estado em relação à delinqüência juvenil.
2.
VISÃO HISTÓRICA
A criminalidade infanto juvenil já assinalava diferenças no tratamento aos
menores de vinte e um anos de idade, em 1830. O Código Penal Brasileiro, portanto, não via aqui a criminalidade como um fato novo isolado. Algumas teorias
foram lançadas, porém, a teoria do discernimento, se assim podemos dizer, determinava que o menor de quatorze anos que conflitasse com a lei, seria por determinação judicial custodiado à Casa de Correção; todavia, esta medida dava ao
infrator a possibilidade de permanência até os dezessete anos de idade; por outro lado, a esses menores, a aplicabilidade da pena de cumplicidade, ou seja, 2/3
da pena corrida a adultos e, aqueles entre dezessete e vinte e um anos de idade
eram favorecidos com tênue.
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n.
41
335
Em 1890, com a publicação do Código da República, esse trouxe em seu bojo
aquilo que os legisladores chamaram de “irresponsabilidade de pleno direito” a menores de nove anos, quanto aos maiores de nove anos e menores de quatorze anos, que
na prática da infração penal as fizessem com discernimento, fossem recolhidos a estabelecimento industrial, cuja norma estava na conveniência do magistrado até os dezessete anos; foi imposto como obrigatoriedade o castigo de “cumplicidade” aos maiores
de quatorze anos e menores de dezessete e manteve tênue da maioridade.
Nota-se que as legislações não tinham nenhum dispositivo de propostas sócio-educativas, pois a falta destas implicava no “cumprimento da pena” aos menores
em presídios; portanto, como se vê estas legislações (1830/1890) apenas abraçavam
o instituto da repressão, despido de medidas educativas. Já nos idos de 1899, foi
criado nos Estados Unidos da América - EUA o primeiro e único Tribunal de Menores, que serviu de modelo a toda a Europa.
O Brasil deu uma guinada nos idos de 1924, quando foi instalado na Cidade
do Rio de Janeiro, o primeiro Juizado de Menores, sob a presidência do eminente
Dr. José Cândido Albuquerque Mello Matos, criador do primeiro Código de Menores, conforme Decreto nº 17.943 A, de 12/10/1927. A preocupação maior do eminente foi olhar a situação social, moral e econômica de seus responsáveis. Em decorrência de uma situação nova, sua excelência adequou aos estabelecimentos destinados a proteger crianças necessitadas e transgressoras. Este Decreto teve vigência até 1979, quando foi revogado pelo Código de Menores, dando nova interpretação, pondo o menor em situação irregular. Mas todos os países, incluindo o Brasil,
o mundo já havia aberto as portas para a Proteção Integral ao Menor contida na Declaração Universal sobre os Direitos da Criança e tantos outros documentos se expandiram com os mesmos objetivos.
O que vem a ser situação irregular? Entendemos que se trata de um desvio de
conduta, levando o menor à delinqüência mais genérica; para tanto foram, definidas
situações que autorizam a atuação da autoridade judiciária, resumindo-se posteriormente na prática de infração penal e de cunho grave as inadaptações familiar e social. Essas situações davam ao juiz a condição do recolhimento desses menores até
completarem vinte e um anos. O ser anti-social e com desvio de conduta, embora
incapazes e relativamente capazes, tinham que ser recolhidos como garantia da ordem familiar e comunitária.
A sociedade brasileira não cruzou os braços; no sentido de atender a criança
e ao adolescente investindo em movimentos e campanha culturais. O movimento
nacional fez com que a Carta Magna de 1988 trouxesse em um de seus artigos a proposta da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança na Organização das
Nações Unidas - ONU que descreve:
... é dever da família, da sociedade e do Estado, assegurar à criança e ao adolescente absoluta prioridade os direitos concernentes à
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faculdade de direito de bauru
vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade, à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda
forma de negligência, discriminação, exploração, violência,
crueldade e opressão.1
Estendeu-se, também, a criação de programas à saúde, ao trabalho, à escola,
igualdade na relação processual e obediência aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição de pessoa em desenvolvimento, quando necessária
for a aplicação de medidas privativas de liberdade, incentivo à adoção e guarda, proibição de discriminação. Esta Carta Magna de 1988, bem como as demais, definiu a
inimputabilidade aos menores de dezoito anos, inclusive pondo-os às normas de lei
específica. Com o advento da Constituição da República Federativa do Brasil de
1988, sob a égide da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 e sancionada pelo Presidente da República, dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente, definindo, para efeitos da lei, quem é considerado criança (aquela até os doze anos de
idade incompletos) e adolescente (entre doze e dezoito anos de idade), reforçando
a teoria da proteção integral, definiu os direitos da criança, deveres dos pais, do Estado e da sociedade.
Houve mudanças gerais em relação ao Código de Menores, pois o que era
considerado ato infracional e abandono como desvios de conduta, o Estatuto considera como crime ou contravenção penal.
Portanto, crianças e adolescentes necessitados estão afetos à Assistência Social
e adolescentes infratores, à repressão por meio de medidas sócio-educativas.
O Estatuto prevê medidas de repressão ao adolescente infrator, tratando-o
com punições em processos imediatos, não acolhendo demandas e, sobretudo, descaso ao fato.
3.
ANÁLISE DA DIFERENCIAÇÃO DOS TERMOS CRIANÇA E ADOLESCENTE
A legislação aplicada às crianças e adolescente era o Código de Menores, o
que mais tarde sofreu várias alterações dando mais sustentação à aplicação da norma, vindo a ser substituído pelo Estatuto da Criança e do Adolescente ormente a palavra “menor” deixou de pertencer à nova legislação em virtude de os legisladores
entenderem que era uma prévia condenação, marcando a criança e o adolescente
em um mundo de preconceitos. Com qualidades sinônimas, entre elas de “delinqüente” infrator e de acordo com o regionalismo eram cognominados de “pivete”,
“trombadinha”.
1 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 3ed. Brasília: Revista dos Tribunais 1988. p 141.
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n.
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337
Portanto, o termo “menor” foi substituído por criança e adolescente. Com
isso, procurou o ECA definir o que seja criança e adolescente e, nesse sentido, alguns autores já definiram a palavra criança como sendo: para Ferreira (1977) “ser
humano de pouca idade, menino ou menina; pessoa ingênua”.
Já o entendimento de Silva (1999) sobre a criança é “o indivíduo da espécie
humana na infância”; adolescente é “indivíduo na adolescência, que se entende
como o período que sucede a infância. Inicia-se com a puberdade e acaba com a
maioridade”.
Os termos “criança” e “adolescente” têm criado polêmica no mundo jurídico,
assim como em alguns ramos da medicina, não são poucos os autores e juristas,
para uns o início da adolescência é aos 12 anos, não quer dizer que deixou de ser
criança; todavia, mesmo com a celeridade processual, aos doze anos de idade o adolescente começa a ter a sua personalidade fixada, daí para outros, poderá ser responsabilizado diante de fatos que temorizem a sociedade; em verdade, argúem que
a aplicação das medidas sócio-educativas não constitui violência, pois se há lei tem
que ser cumprida, embora o próprio Estatuto defina, como sendo medidas sócioeducativas, o que difere das penas cominadas ao adulto.
4.
CONCLUSÃO
As legislações anteriores ao estatuto da criança e adolescente não tinham nenhuma proposta sócio-educativa. Com a falta dessas propostas, o menor cumpria
pena em presídios junto com outros presos. Isto fez com que a delinqüência juvenil aumentasse.
A diferença entre o termo criança e adolescente, com o início da adolescência
aos 12 anos, fez com que a criança não cumprisse nenhuma medida sócio-educativa. Isso aumentou também a delinqüência juvenil, pois as crianças, mesmo tendo
consciência de suas atitudes, ficam impunes.
Destarte, o Estado não é beneficiador do aumento da delinqüência juvenil,
pois o que faz a delinqüência aumentar é a interpretação errônea e a falta de conhecimento do conteúdo desse diploma legal.
5.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Martin Claret, 1974.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 3. ed. Brasília: Revista dos
Tribunais, 1988.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de1988. 31.ed. aut. e amp. São Paulo: Saraiva, 2003. 364p. (Legislação).
338
faculdade de direito de bauru
BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n º. 8.069, de 13-7-1999). 11ed.
aum. São Paulo: Saraiva, 2001. 359 p.
FERREIRA, Aurélio Buarque Holanda de. Novo dicionário da língua portuguesa. 2.
ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977.
SILVA, Plácido e. Vocabulário jurídico, 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, v.1.
assunto especial
“Código de defesa do
consumidor: proteção dos
interesses da massa de consumidores
socialmEnte relevantes pelo
legislador”
O Consumidor de Energia Elétrica
Segundo o Código de Defesa do Consumidor
Carlos Augusto Ramos Kirchner
Engenheiro Mecânico formado pela Escola de Engenharia de São Carlos USP.
Militante por 28 (vinte e oito anos) na área de construção da CESP.
Especialista em Direito Civil e Processual Civil pela ITE-Bauru.
I.
INTRODUÇÃO
A energia elétrica pode ser associada à melhoria da qualidade de vida, como
fator de produção, desenvolvimento econômico e geração de empregos. A exclusão
social também se dá por falta de acesso à energia. O desenvolvimento tecnológico,
ao mesmo tempo em que propicia um bem para a humanidade, aumenta a distância entre os “sem energia” e os “com energia”. O progresso e todos os aparatos que
permitem o funcionamento de equipamentos urbanos hoje não funcionam sem
energia elétrica. A Internet e o acesso à informação estão intimamente ligados a ela.
Os serviços de energia elétrica são absolutamente essenciais. A garantia do
funcionamento do Estado e da realização dos fins consagrados constitucionalmente
para a sociedade civil pressupõe o fornecimento de energia elétrica1. Aos direitos
fundamentais – a vida, a liberdade, a satisfação das necessidades básicas de alimentação, saúde, educação e moradia – vem se somar o acesso à energia.
A partir da segunda metade do século XX, o sistema de produção industrial
sofreu grande transformação com o conceito de qualidade de vida em sociedade
massificada e passou a ser definido em função da capacidade para o consumo. Os
1 JUSTEN, 1997 (a) p. 396.
342
faculdade de direito de bauru
fornecedores, cientes desta situação, passaram a investir em novas técnicas de venda, no aprimoramento do marketing, tudo para atrair os consumidores a adquirirem os bens e serviços postos à disposição no mercado.
A tutela consumerista surgiu, assim, da constatação de que os consumidores
encontravam-se num plano de inferioridade nas relações de consumo, que o Direito precisava reconhecer por meio de um princípio jurídico.
A Organização das Nações Unidas – ONU publicou em 1985 a Resolução
39/248 reconhecendo no art. 1º que o consumidor é a parte mais fraca na relação
de consumo.
No Brasil, a Constituição Federal deixou implícito o princípio da vulnerabilidade, no delineamento do art. 5º, XXXII, mas o Código de Defesa do Consumidor –
CDC (Lei 8.078/90 – Anexo I) o consagrou expressamente em seu art, 4º, I, verbis:
“A Política Nacional de Relações de Consumo tem por objetivo o ... I – reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo”2.
O CDC buscou viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica
(art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores (art. 4º, III).
O presente trabalho não tem a pretensão de resolver todos os problemas jurídicos relacionados à convivência Concessionária e Consumidor, mas sim destacar
aspectos que envolvem a aplicação do Código de Defesa do Consumidor em consonância com a legislação que rege a concessão dos serviços públicos, legislação e regulamentação do setor elétrico e atuação da agência reguladora e fiscalizadora.
Iremos discorrer sobre as questões:
• Os serviços públicos de energia elétrica estão sobre abrangência do Código de Proteção e Defesa do Consumidor – CDC?
• Pode ser suspenso pela Concessionária o fornecimento de energia por falta de pagamento do consumidor?
• Em que situações cabe à Concessionária obrigação de indenização relativa
a equipamentos eletrodomésticos do consumidor decorrentes de danos
causados por oscilações de tensão na rede de distribuição de energia, curtos circuitos ou mesmo descargas atmosféricas (precipitação de raios)?
É apresentada uma base legal de proteção ao consumidor de energia elétrica.
São destacados aspectos constitucionais, aspectos da Lei n.º 9.427/96 que regulamenta a atuação do órgão regulador do setor elétrico, aspectos da Lei de Concessões voltadas aos consumidores, aspectos da Lei n.º 8.884/94, que dispõe sobre a
prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica, além dos aspectos
principais do CDC aplicáveis ao serviço público de energia elétrica.
2 AZEVEDO, 2002, p. 69.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
II.
n.
41
343
ABRANGÊNCIA DO CDC
Os serviços públicos de energia elétrica e outros como o de água e esgoto
são controlados pelos critérios protecionistas da legislação consumerista do
CDC. Os serviços públicos estão expressamente previstos no CDC, no art. 22, que
dispõe, in verbis:
Art. 22. Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.
Parágrafo único. Nos casos de descumprimento, total ou parcial,
das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas
compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma
prevista neste código.
Não há de se argumentar que os serviços de energia elétrica não sejam “serviços públicos”, uma vez que art. 21, inciso XII, letra b) da Constituição Federal não
deixa quaisquer margens de dúvidas e, ainda, querer sustentar que não sejam “essenciais”, pois ninguém em sã consciência há de contestar que, sem energia, a vida
na Terra seria outra e a grande maioria dos atuais habitantes não foram preparados
para enfrentar.
Assim, não procedem alegações de determinadas Concessionárias que não estariam subordinados da relação jurídica subjacente àquela legislação especial. A
prestação de serviços públicos se insere no conceito de relação jurídica de consumo3 daí decorrendo a abrangência do CDC.
E nem há de se dizer que haja diferença se a Concessionária é uma empresa
pública estatal ou privada. Conforme afirma Marçal Justen Filho, em seu livro Concessões de Serviços Públicos,4
A concessão não produz modificação do regime jurídico que preside a prestação do serviço público. Não acarreta transformação
do serviço público em privado. A outorga da concessão não representa modalidade de desafetação do serviço, retirando-o da órbita pública e inserindo no campo de direito privado.
Os serviços de energia são disponibilizados à população através da concessão
de um serviço público de maneira que o Poder Concedente, representado pela
3 RIZZATTO NUNES,. 2000, p. 366.
4 JUSTEN, 1997 (a), p. 66.
faculdade de direito de bauru
344
Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL, outorga a uma Concessionária de serviço de distribuição de energia elétrica, para que, pelo prazo normalmente de 30
anos, atenda às necessidades da população, seja no âmbito residencial, comercial,
industrial ou poder público.
Outro questionamento que pode ser feito quanto à abrangência do CDC seria
quais são os consumidores de energia que efetivamente se enquadram como consumidores perante o CDC. No art. 2º do código, é definido como sendo toda pessoa física ou jurídica que adquira ou utilize o produto como destinatário final. Os autores Raul Luiz Ferraz Filho e Maria do Socorro Patello de Moraes5 afirmam que:
Conclui-se que, em termos de energia elétrica, somente os consumidores residenciais são consumidores finais. Se a energia é utilizada na fabricação de quaisquer produtos, ou nos acondicionamento destes para fins de comercialização, isso se constituirá em
mais um insumo do processo produtivo ou mercantil, retirando do
industrial ou do comerciante a condição de destinatário final.
Discorda-se da conclusão dos autores acima, data venia, pois se ainda se admitisse que parte da energia foi utilizada no processo produtivo e “agregada” ao produto,
o que, como se demonstra a seguir, é equivocado, a outra parte da energia foi utilizada
para outras finalidades como na área administrativa da indústria. Mas igualmente não é
aceitável se afirmar que a energia elétrica foi “agregada” ao produto. A energia elétrica
é entendida como uma coisa móvel6 e não como uma matéria. Seria o mesmo que defender a tese que a empresa não estaria submetida à legislação trabalhista pelo motivo
da mão de obra de seus empregados ter sido “agregada” aos produtos fabricados.
Assim, e por exemplo, qualquer cobrança indevida, exagerada ou abusiva incluída na conta de energia elétrica pode ser contestada por uma ação proposta por
um consumidor, seja ele residencial, comercial, industrial ou poder público. Sendo
medida que atinjam o conjunto dos consumidores de uma Concessionária poderá
ser adequada à utilização de ações civis públicas ou coletivas propostas pelos órgãos
legitimados pela Lei 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública), tendo como rés a Concessionária e/ou a ANEEL.
III. ANEEL NÃO SUPRIME O CÓDIGO
O consumidor de serviço público, em especial de energia elétrica, pode participar do processo de controle com o fito de obter uma adequada e eficaz prestação
de serviços públicos (art. 6º, X, do CDC).
5 FERRAZ E MORAES, 2002, p. 92.
6 CALDAS, 2002, p. 35.
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n.
41
345
Desta forma, o consumidor, como usuário de atividades econômicas prestadas segundo o regime jurídico do art. 175 da Constituição Federal (serviços públicos), deve ser considerado sob o ponto de vista de sua interação com o Estado – representado no caso pela ANEEL – na busca do direito citado acima.
A participação do consumidor usuário do serviço público é prevista na Lei
8.987/95 (Lei das Concessões):
Art. 3º As concessões e permissões sujeitar-se-ão à fiscalização pelo
poder concedente responsável pela delegação, com a cooperação
dos usuários”. Art. 30 – “Parágrafo único. A fiscalização do serviço será feita por intermédio de órgão técnico do poder concedente ou por entidade com ele conveniada, e, periodicamente, conforme previsto em norma regulamentar, por comissão composta de
representantes do poder concedente, da concessionária e dos
usuários.
A participação dos consumidores no controle da prestação dos serviços públicos, notadamente quando prestado por empresas privadas, implica que se assuma
uma postura ativa no processo, como parte interessada que é, cobrando providências dos órgãos competentes no sentido de correção de distorções e aplicação de
penalidades.
O consumidor deve e pode recorrer Concessionária, ao Procon, ao órgão estadual que porventura tenha delegação da ANEEL ou à própria agência reguladora.
O conhecimento de seus direitos como consumidor certamente aumenta suas chances de ser atendido. Pode, entretanto, recorrer diretamente ao Judiciário, em ações
individuais ou coletivas.
Não há de se restringir a atuação do Judiciário perante a agência reguladora.
O autor Marçal Justen Filho7 assim se expressou:
A estruturação da agência tem de assegurar, por isso, a vinculação
de suas decisões à satisfação do interesse público, através de uma
organização que preserve o princípio da República.
[...]
A fórmula das agências pode propiciar a superação de defeitos
inegáveis da organização estatal de modelo clássico, sem que isso
implique uma garantia de infalibilidade.
Mais do que isso, a implantação de agências num sistema como
o brasileiro envolve a adoção de instrumentos de controle des-
7 JUSTEN, 2002 (b), p. 375 e p. 400.
346
faculdade de direito de bauru
tinado a atenuar seus defeitos e evitar a concretização de potenciais malefícios.
O grande risco que se corre, entre nós, consiste na implantação
impensada, apressada de um sistema de agências incompleto. A
ausência de providências destinadas a acompanhar o desempenho das agências e de submetê-las ao dever de prestação de contas
à sociedade e a outros órgãos políticos pode conduzir à potencialização de seus defeitos e à desnaturação de suas virtudes.
Em suma, seria um equívoco irreparável imaginar que todas as
soluções seriam obtidas através da pura e simples criação de agências independentes. Não basta a existência da agência nem é recomendável se lhe assegurar autonomia sem instituição de instrumentos de controle correspondentes.
[...]
14.6.1. A impossibilidade de autonomia em sentido absoluto
A formulação de um conceito operacional de autonomia, válido
para os fins do presente estudo, conduz à rejeição da possibilidade de reconhecimento de autonomia em sentido absoluto, sob
qualquer ângulo que se considere sua interrelação com as demais
entidades jurídicas.
A autonomia total e absoluta consistiria no poder incondicionado
de auto-organização, sem submissão a qualquer limite externo.
Sob esse prisma, a autonomia absoluta equivale à soberania, assegurada apenas ao Estado brasileiro.
Mas ainda quando se enfrentassem manifestações menos absolutas de autonomia, continuaria a deparar-se com qualificação não
aplicável à figura da agência. Assim, por exemplo, poderia considerar-se autonomia como a atribuição de poderes para atuação
ou organização independente da participação formal de outros
órgãos jurídicos. Também sob esse ângulo, tem de negar-se a autonomia das agências.
Por um pressuposto de cunho sistêmico, a ordem jurídica nacional
se alicerça sobre uma concepção democrática. Por isso, não há nenhum órgão político dotado de competências para organizar-se e
atuar sem o concurso ou a interferência de outros órgãos, eis que
tal seria incompatível com o princípio da separação dos poderes.
Não se vislumbra, então, como juridicamente possível que a autonomia da agência implique a atribuição a ela de poderes originários, de qualquer natureza, com subtração a um sistema de controles hierárquicos. A autonomia que se reconhecer às agências,
qualquer que o seja, nunca poderia equivaler a imunizá-las às in-
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
41
347
fluências das demais instâncias de poderes estatais, nem poderá
resultar em sua transformação em órgãos dotados de liberdade
para prosseguirem seus fins sem submissão ao esquema tradicional de separação de poderes.
Complementando o afirmado acima, não foram reduzidas pela implantação das
agências como a ANEEL as competências dadas aos consumidores/usuários seja pelo
CDC seja pela Lei de Concessões. Aliás, num regime democrático não poderia ser de
outra forma, pois quem paga a conta do serviço público e do funcionamento da própria agência, cujos custos estão incluídos na tarifa de energia elétrica, tem toda a legitimidade de intervir no processo sempre que tiver seus direitos ameaçados.
IV. TARIFAS COBRADAS DOS CONSUMIDORES DE ENERGIA
Ao longo dos últimos anos, as tarifas de energia elétrica tem subido muito acima da inflação. É preciso que se entenda de que forma são indexadas as tarifas. Os
Contratos de Concessão prevêem reajustes anuais das tarifas, com fórmula em que os
custos das Concessionárias foram divididos em duas partes: “Custos Não Gerenciáveis” e “Custos Gerenciáveis”. Os primeiros, que compõem a chamada parcela “A” da
fórmula compreendem a aquisição de energia junto às empresas Geradoras, custos de
fiscalização da ANEEL (0,5% do faturamento da Concessionária), Transmissão de energia, ONS – Operador Nacional do Sistema Elétrico, CCC – Conta de Consumo de
Combustíveis, ESS – Encargos de Serviços de Sistema, CDE – Conta de Desenvolvimento Energético, Compensação Financeira pelo Uso de Recursos Hídricos, etc.
Ao contrário de outros setores da economia em que os empresários aumentam
seus lucros ou têm prejuízos em função de bem administrar ou não a compra de sua
matéria prima, no setor de energia elétrica, as empresas Distribuidoras simplesmente
repassam seus “Custos não Gerenciáveis” para seus consumidores cativos.
Os chamados “Custos Não Gerenciáveis” acabaram se tornando no desaguadouro de custos adicionais, ineficiências e incompetências diversas, que após “jogos
de empurra” vão inflar aumentos tarifários. Assim, nos últimos anos, a parcela “A”
tem puxado aumentos das tarifas de energia mais do que a parcela “B” – Custos Gerenciáveis, apesar desta parcela sofrer variação pelo IGPM, indexador que suplantou
os demais indexadores da economia, nos últimos anos.
Foram se agregando custos duvidosos nas tarifas, os próprios aumentos do
“Custos Não Gerenciáveis” no interregno dos doze meses, quando ocorrem reajustes, são contabilizados à parte, em contas de variação acumulada (CVA) atualizados
por taxa selic e repassados aos reajustes tarifários. O ONS, que é uma empresa privada de propriedade dos agentes do setor elétrico, portanto, gerenciada por eles,
acaba virando “Custos Não Gerenciáveis”. Empresas Concessionárias de Distribuição escolhem comprar de empresas do mesmo grupo econômico a preços muito
348
faculdade de direito de bauru
mais altos dos oferecidos por Geradoras estatais e, ainda assim, são considerados
como se “Custos Não Gerenciáveis” fossem.
Nada justifica uma empresa Concessionária pagar um preço maior ao adquirir a energia para atendimento de seu mercado de referência. A energia elétrica é um produto homogêneo e indiferenciado e que é produzida, transmitida
e distribuída através do sistema elétrico interligado. Assim, não existe uma energia de melhor ou pior qualidade. Também não faz qualquer sentido querer justificar um preço maior quando se tratar de um contrato de maior duração. Ficou
patente para o consumidor que quando há necessidade de racionamento de
energia quem tem de pagar pela perda de receita da energia que deixou de ser
consumida é ele próprio.
Em todos os contratos de concessão firmados entre o Poder Concedente
(ANEEL) e empresas Concessionárias de Distribuição, consta, normalmente como
subcláusula da cláusula sétima:
A CONCESSIONÁRIA obriga-se a obter a energia elétrica requerida
pelos usuários ao menor custo efetivo, dentre as alternativas
disponíveis, quando comparado com os custos observados no
contexto nacional e internacional.
No afã de impor medidas para regular o setor elétrico, a ANEEL impôs regras
que acabaram dando vasas que as Concessionárias descumprissem o próprio Contrato de Concessão em sua determinação mais elementar e óbvia.
Uma outra esperteza do modelo setorial vigente é o de considerar a geração e comercialização como atividades competitivas, exigindo um mínimo de regulação, enquanto que a transmissão e a distribuição, eram considerados como
monopólios naturais, demandando forte regulação. Como atividades competitivas, a geração e comercialização, cuidariam do “negócio” de energia, com os preços praticados tratados de forma sigilosa. Verdadeira afronta à inteligência das
pessoas e abuso aos consumidores de energia, já que tais “negócios sigilosos”
são transferidos integralmente para o “bolso” dos consumidores. Foi preciso
uma forte intervenção do Ministério Público Federal para que a ANEEL retirasse
o caráter sigiloso das negociações de compra e venda de energia realizadas no
âmbito do MAE – Mercado Atacadista de Energia (ver Anexo II).
Uma política tarifária que contemple o acesso à energia elétrica para as famílias enquadradas como de baixa renda é fundamental. Entidades da sociedade
civil e defesa dos consumidores efetuaram um estudo sobre o assunto e encaminharam ao Ministério de Minas e Energia uma proposta de um novo critério para
beneficiar com descontos na contas de luz consumidores com baixo poder aquisitivo (ver anexo III).
Revista do instituto de pesquisas e estudos
V.
n.
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349
SUSPENSÃO DO FORNECIMENTO DE ENERGIA
Parte da doutrina entende que a suspensão da prestação do serviço público
pela falta de pagamento do consumidor é absolutamente correta, não podendo invocar o princípio da continuidade.
Segundo a Lei das Concessões (Lei 8.987/95), poderá ser suspenso o fornecimento de energia elétrica em determinadas situações:
Art. 6º Toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários, conforme estabelecido nesta Lei, nas normas pertinentes e no respectivo contrato.
§ 1º Serviço adequado é o que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas.
§ 2º A atualidade compreende a modernidade das técnicas, do
equipamento e das instalações e a sua conservação, bem como a
melhoria e expansão do serviço.
§ 3º Não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupção em situação de emergência ou após prévio aviso, quando:
I - motivada por razões de ordem técnica ou de segurança das instalações; e,
II - por inadimplemento do usuário, considerado o interesse da coletividade.
A Lei n.º 9.427/96, que instituiu a ANEEL, prevê a interrupção do fornecimento de energia mesmo para consumidor que preste serviço público:
Art. 17. A suspensão, por falta de pagamento, do fornecimento de
energia elétrica a consumidor que preste serviço público ou essencial à população e cuja atividade sofra prejuízo será comunicada
com antecedência de quinze dias ao Poder Público local ou ao Poder Executivo Estadual.
§ 1º O Poder Público que receber a comunicação adotará as providências administrativas para preservar a população dos efeitos
da suspensão do fornecimento de energia elétrica, inclusive dando publicidade à contingência, sem prejuízo das ações de responsabilização pela falta de pagamento que motivou a medida.
A ANEEL, através da Resolução 456/2000, que trata das Condições Gerais de
Fornecimento de Energia Elétrica, estabeleceu que a Concessionária poderá suspender o fornecimento, após prévia comunicação formal ao consumidor, em caso
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de atraso no pagamento da fatura relativa à prestação do serviço público de energia elétrica.
Segundo esta corrente doutrinária, a legislação das concessões de serviços públicos e a superveniente para o setor elétrico estaria a indicar que o art. 22 do CDC,
que afirma a obrigatoriedade dos serviços essenciais serem contínuos, não se aplicaria quando a interrupção for causada por razões de ordem técnica ou de segurança das operações ou, ainda, por inadimplemento do usuário, considerando o interesse da coletividade.
Dentro desta concepção, o autor Luiz Alberto Blanchet8 assim se expressou:
O princípio da permanência do serviço público protege exclusivamente aqueles que se encontram em situação jurídica protegida, e
o consumidor inadimplente evidentemente não se encontra em tal
situação, inclusive em função do princípio da igualdade dos usuários perante o prestador do serviço. Além de que, até por motivos
de natureza material e não apenas jurídica, não pode prevalecer
aquele paradoxal entendimento, pois basta que o inadimplemento seja maciço ou apenas considerável para se inviabilizar qualquer prestador de serviço público, resultando, daí sim, na interrupção do serviço, e não somente em relação ao inadimplemente,
mas também com o usuário que sempre cumpriu sua contraprestação. Esta regra é válida para todo o serviço público cuja remuneração (paga pelo usuário) represente uma contraprestação, ou
contrapartida, de caráter contratual, pela prestação do serviço,
ou seja, é aplicável a todo serviço remunerado por tarifa (preço
público), e não por taxa, e tampouco por preço político.
A outra parte da doutrina diz exatamente o contrário, ou seja, que a
prática de corte de energia elétrica é abusiva, uma vez que se trata de um serviço essencial que deve ser prestado de forma permanente, sem interrupção. Esta tem sido
a jurisprudência que tem prevalecido nos Tribunais e que passaremos a expô-la.
Conforme já mencionado, o CDC estabeleceu o princípio da vulnerabilidade,
reconhecendo esta fragilidade na sociedade de consumo, possuindo a favor do consumidor a boa fé objetiva9.
Constata-se, na maioria dos casos, que o consumidor deixa de efetuar o pagamento, e o faz não por opção mas porque situações sobre as quais não detém controle o impedem de fazê-lo, por exemplo, atraso de recebimento de salário, problemas de saúde na família, etc.
8 BLANCHET, 1995, p. 41-42.
9 MARTINS, 2000, p. 101.
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Não são incomuns situações de débitos indevidos, praticadas pela Concessionária que, com a ameaça de desligamento, impossibilita o direito de revisão. É justamente nesta situação que se presta o Código do Consumidor na tutela da parte
mais frágil contra abusos praticados pelos fornecedores.
O art. 6º, X, do CDC consigna que é direito básico do consumidor “a adequadas eficaz prestação dos serviços públicos em geral”. Já o art. 4º do CDC estabelece
a política nacional das relações de consumo, cujo objetivo é atender às necessidades
dos consumidores, respeitando a sua dignidade, saúde e segurança, providenciando a melhoria da qualidade de vida.
Buscou, ainda, alcançar o CDC, a ação governamental no sentido de proteger
efetivamente o consumidor, garantindo que os produtos e serviços possuam padrões adequados de qualidade, segurança, durabilidade e desempenho (art. 4º, II,
d), devendo o Estado ainda providenciar a
harmonização dos interesses dos participantes das relações de
consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a
necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de
modo a viabilizar os princípios nas quais se funda a ordem econômica (art. 170 da CF), sempre com base na boa fé e equilíbrio nas
relações entre consumidores e fornecedores (art. 4º, III)10.
O art. 175 da CF e a Lei n.º 8.987/95 que o regulamenta, consta a obrigação de
manter o serviço adequado, e o art. 6º da referida lei, que “toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento do usuário” e afirmando que serviço adequado é o que satisfaz, dentre outras, as condições
de continuidade.
Assume especial importância o entendimento da chamada Teoria da Lesão e o
Direito do Consumidor a reparação por danos praticados pelo fornecedor. Diz o CDC:
Art. 6º São direitos básicos do consumidor:
[...]
VI - a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos;
Dentro da mesma abordagem, no art. 22 se estabelece:
Parágrafo único. Nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista neste código.
10 Idem, p. 102.
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A Concessionária é coagida a cumprir com seus deveres e reparar danos decorrentes de suas falhas.
É sabido que as práticas abusivas ocasionam um desequilíbrio nas relações de
consumo, podendo ocasionar lesão na parte mais desfavorecida.
A lesão é vício do negócio jurídico em grau de igualdade de dolo ou vício do
negócio jurídico, sendo certo que fato de a parte contratar não implica que a mesma não possa discutir o contrato, buscando a revisão das cláusulas com onerosidade excessiva.
Por isso, no caso de manifesta vantagem excessiva a doutrina denomina este
fato de dolo de aproveitamento, que é vedado pelo Código de Defesa do Consumidor em relação à parte vulnerável11.
A possibilidade de a Concessionária efetuar o desligamento da energia elétrica do consumidor inadimplente ocasiona uma lesão ao direito do consumidor,
dificultando direito de acesso à justiça, para discussão do débito indevido, consolidando a vantagem excessiva para a Concessionária que dispõe assim de poderes de autotutela.
Muitas vezes, quando o consumidor é surpreendido com uma conta de luz
muito superior às que recebe normalmente nos vários meses anteriores e ao ligar
para Concessionária pelo fone 0800, é orientado para pagar e depois enviar a reclamação por escrito, juntando cópia da conta paga, que será analisada posteriormente pela área competente da empresa.
O CDC, presumindo o consumidor como a parte contratual mais fraca, impõe
aos fornecedores de serviços um mínimo de atuação conforme a boa-fé.
O CDC não permite que se utilize de qualquer tipo de constrangimento, conforme art. 42:
Art. 42. Na cobrança de débitos, o consumidor inadimplente não
será exposto a ridículo, nem será submetido a qualquer tipo de
constrangimento ou ameaça.
Parágrafo único. O consumidor cobrado em quantia indevida tem
direito à repetição do indébito, por valor igual ao dobro do que
pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais,
salvo hipótese de engano justificável.
Mais ainda, o CDC considera crime qualquer procedimento que exponha o
consumidor ao ridículo já que em seu art. 71 prevê:
Art. 71. Utilizar, na cobrança de dívidas, de ameaça, coação, constrangimento físico ou moral, afirmações falsas incorretas ou enga11 MARTINS, 2000, p. 103.
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nosas ou de qualquer outro procedimento que exponha o consumidor, injustificadamente, a ridículo ou interfira com seu trabalho, descanso ou lazer:
Pena Detenção de três meses a um ano e multa.
Ao ameaçar e efetivar a interrupção no fornecimento de energia, estaria a
Concessionária imputando ao consumidor um constrangimento e expondo-o ao
ridículo?
Sendo o fornecimento de energia um serviço essencial, sua interrupção acarreta lesões que podem ser mensuráveis e podem ensejar ao consumidor vir a propor ações não só para restabelecer o fornecimento mas para reparar os danos causados, físicos e morais.
Tem-se, na verdade, duas legislações que concorrem entre si, a Lei 8.987/95
(Lei das Concessões), reforçada pela Lei 9.427/96 (Lei da ANEEL) e a Lei 8.078/90
(CDC). Uma interpretação poderia ser no sentido que as duas primeiras citadas por
serem posteriores e colidirem com a Lei do CDC a teria derrogado no que conflita.
Ambas as normas jurídicas pertencem à mesma hierarquia, sendo que a lei de concessões é posterior à lei do consumidor.
A Constituição Federal nem diz que pode e que não pode interromper serviço essencial. Sendo que o art. 175, que veio a ser regulamentado pela Lei de Concessões, realça que a lei disporá sobre os direitos dos usuários e a obrigação de manter serviço adequado.
Diz o autor Plínio Lacerda Martins12:
Destarte, em caso de antinomia entre o critério de especialidade (Código do Consumidor) e o cronológico (lei da concessão do serviço público) não aplica-se o critério lex posteriori revoga o legis a priori, e
sim, o critério lex posteriori generalis non derrogat priori speciali.
Há de se atentar que a norma do consumidor como norma especial contém o sistema jurídico de relação de consumo, não podendo ser revogada por norma posterior que regula a concessão e permissão de serviço público, e não o direito do usuário/consumidor.
Não se pode perder de vista que se não fosse prevalecer a interpretação acima, a interrupção de um serviço essencial iria se sobrepor aos seguintes preceitos
constitucionais:
XXXII - o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor (art. 5º).
12 MARTINS, 2000, p. 107.
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Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho
humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os
seguintes princípios:
[...]
V - defesa do consumidor.
Art. 48. O Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborará código de defesa do consumidor (disposições transitórias).
A premissa é, qualquer norma infraconstitucional que ofender os direitos consagrados pelo Código do Consumidor está ferindo a Constituição e, mutatis mutandis, deverá ser declarada como inconstitucional13.
De forma clara, esclarece Arruda Alvim14 neste sentido:
Garantia constitucional desta magnitude, possui, no mínimo, como
efeito imediato e emergente, irradiado da sua condição de princípio
geral da atividade econômica do país, conforme erigido em nossa
Carta Magna, o condão de inquinar de inconstitucionalidade qualquer norma que possa consistir em óbice à defesa desta figura fundamental das relações de consumo que é o consumidor.
O direito do consumidor possui garantia fundamental na Constituição, sendo
que a interrupção do fornecimento de energia causa não só lesão, mas fere a dignidade da pessoa humana, além de se constituir num óbice ao acesso à Justiça.
Ao permitir a suspensão no fornecimento de energia, está-se praticando um
fragrante retrocesso ao direito do consumidor, concedido pela Constituição. Por
este motivo, o princípio do retrocesso veda que lei posterior possa desconstituir
qualquer garantia constitucional.
Desta forma, as decisões recentes da justiça têm acolhido a inconstitucionalidade do dispositivo legal previsto no art. 6º § 3º da Lei 8.987/95 que autoriza
a interrupção de serviço público por falta de pagamento mesmo na condição de
essencial.
Nas decisões judiciais se tem constado que o desligamento de energia fere a
Constituição, constituindo-se em prática abusiva, permitindo a imposição unilateral
de dívidas sem observância do devido processo legal, além de submeter o consumidor a constrangimento e ameaça de cobranças de dívidas, que deveriam exigir a utilização de mecanismos legais de cobrança de crédito.
13 MARTINS, 2000, p. 108.
14 ARRUDA ALVIM, 1995, p. 15.
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Tais decisões têm chegado ao STJ que tem mantido as decisões dos Tribunais
quanto à ilegalidade da suspensão do fornecimento, como a que se observa abaixo,
do Ministro Relator José Delgado, no Acórdão RESP 430812 / MG, prolatado em
23/09/2002, segundo a Ementa da 1ª Turma e fundamentos a seguir expostos:
ADMINISTRATIVO. DIREITO DO CONSUMIDOR. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. AUSÊNCIA DE PAGAMENTO DE TARIFA DE ENERGIA ELÉTRICA. INTERRUPÇÃO DO FORNECIMENTO. CORTE. IMPOSSIBILIDADE. ARTS. 22 E 42, DA LEI Nº 8.078/90 (CÓDIGO DE PROTEÇÃO E
DEFESA DO CONSUMIDOR).
1. Recurso Especial interposto contra Acórdão que entendeu não
ser cabível indenização em perdas e danos por corte de energia
elétrica quando a concessionária se utiliza de seu direito de interromper o fornecimento a consumidor em débito. O corte de energia, como forma de compelir o usuário ao pagamento de tarifa ou
multa, extrapola os limites da legalidade.
2. Não resulta em se reconhecer como legítimo o ato administrativo praticado pela empresa concessionária fornecedora de energia
e consistente na interrupção do fornecimento da mesma, em face
de ausência de pagamento de fatura vencida.
3. A energia é, na atualidade, um bem essencial à população,
constituindo-se serviço público indispensável, subordinado ao
princípio da continuidade de sua prestação, pelo que se torna impossível a sua interrupção.
4. O art. 22, do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, assevera
que “os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são
obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos”. O seu parágrafo único expõe que “nos
casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas
neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados na forma prevista neste código”. Já o art. 42,
do mesmo diploma legal, não permite, na cobrança de débitos, que o
devedor seja exposto ao ridículo, nem que seja submetido a qualquer
tipo de constrangimento ou ameaça. Os referidos dispositivos legais
aplicam-se às empresas concessionárias de serviço público.
5. Não há de se prestigiar atuação da Justiça privada no Brasil, especialmente, quando exercida por credor econômica e financeiramente mais forte, em largas proporções, do que o devedor.
Afronta, se assim fosse admitido, os princípios constitucionais da
inocência presumida e da ampla defesa.
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6. O direito do cidadão de se utilizar dos serviços públicos essenciais para a sua vida em sociedade deve ser interpretado com vistas a beneficiar a quem deles se utiliza.
7. É devida indenização pelos constrangimentos sofridos com a
suspensão no fornecimento de energia elétrica.
8. Recurso Especial provido para determinar o retorno dos autos
ao Juízo de origem a fim de que, e nada mais, o MM. Juiz aprecie
a questão do quantum a ser indenizado.
Pelo que ficou consagrado pela Jurisprudência, é considerado como prática
abusiva o corte de energia elétrica por falta de pagamento por parte da Concessionária na cobrança de dívidas, expondo o consumidor a constrangimento, o que deve
ser evitado com a cobrança efetuada pelos meios legais normais admitidos.
Como a própria Constituição estabelece, em seu art. 5º, XXXV que “a lei não
excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito” não delegou
à Concessionária de serviços públicos de ser seu próprio juiz.
No caso de inadimplência, e em vista da Jurisprudência vigente, restará à Concessionária, com o resguardo do princípio de isonomia, ingressar em Juízo para cobrar o que é devido, cabendo-lhe, inclusive, pedir ao Juiz autorização para interromper o serviço de energia elétrica, demonstrando estar sendo atingido não apenas
seus interesses próprios, mas o interesse público.
Entre a vertente que defende o direito de suspender o fornecimento de energia quando não efetuado o pagamento e a vertente que entende que não se pode
interromper o fornecimento de energia, talvez o futuro nos reserve uma posição intermediária que possa agasalhar os dois lados, qual seja, do inadimplente poder consumir uma cota mínima necessária para suas necessidades mais vitais e essenciais.
Só o futuro poderá confirmar ou não esta acertiva, que também dependerá de avanços tecnológicos para seu controle.
VI. RESSARCIMENTO DE DANOS DOS CONSUMIDORES
Uma quantidade muito grande de equipamentos elétricos se encontram conectados a tomadas elétricas que fazem parte de instalações elétricas que convergem em quadros de distribuição, que, por sua vez, interligados à rede de energia da
Concessionária. Se uma perturbação nesta rede de energia vier a ocasionar danos
equipamentos elétricos, cabe indenização ao consumidor para ressarcimento dos
prejuízos causados? No caso de dúvida, ou seja, o consumidor tem de provar que o
dano foi causado pela Concessionária?
Devem ser respeitados os preceitos do § 6º do art. 37 da Constituição Federal, in verbis:
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§ 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado
prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus
agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
A Lei 8.987/95 (Lei das Concessões) estabelece no caput do art. 25:
Art. 25 Incumbe à concessionária a execução do serviço concedido,
cabendo-lhe responder por todos os prejuízos causados ao poder concedente, aos usuários ou a terceiros, sem que a fiscalização exercida
pelo órgão competente exclua ou atenue essa responsabilidade.
A Lei n.º 8.078/90 (Código de Proteção e Defesa do Consumidor) estabelece
no art. 14 que:
Art. 14 O fornecedor de serviços responde, independentemente da
existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem
como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua
fruição e riscos.
1° O serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que o
consumidor dele pode esperar, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais:
I - o modo de seu fornecimento;
II - o resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam;
III - a época em que foi fornecido.
2º O serviço não é considerado defeituoso pela adoção de novas
técnicas.
3° O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando
provar:
I - que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste;
II - a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.
4° A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa.
É muito importante fixar o conceito de responsabilidade objetiva envolvida na
prestação dos serviços públicos, de forma que a Concessionária deve responder
pelo risco de sua atividade, independente de quem seja a culpa dos danos causados
ao consumidor de energia. Situação que bem ilustra este fato foi a que ocorreu no
dia 11 de março de 1999 quando do blecaute que deixou às escuras por cerca de 4
horas 60 milhões de habitantes em 10 Estados das regiões Sul, Sudeste e Centro-
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Oeste do país. O restabelecimento do sistema interligado nacional foi também bastante desastroso, pois em muitas regiões ainda aconteceu o retorno instável do sistema com novas quedas da energia, com variações de tensões bastante acentuadas.
Milhares de consumidores tiveram seus televisores, computadores e outros equipamentos elétricos avariados, com prejuízos de grande monta. É evidente que a responsabilidade de um acidente desse vulto não poderia ser atribuídos às 42 Concessionárias de Distribuição envolvidas, tendo sido inicialmente justificado como sendo a causa de um raio na Subestação da CESP em Bauru, posteriormente, desmentida por uma nova versão em que se apurou que uma sobrecarga no sistema interligado, ou seja, ao tentar passar mais energia do que a capacidade de transporte de
uma linha de transmissão existente ao norte do Estado de São Paulo, o sistema de
proteção interrompeu este transporte, transferindo automaticamente a carga para
outras linhas; com a repetição do problema nestas outras linhas, veio a provocar o
chamado efeito dominó que foi “derrubando” todo o sistema interligado de transmissão de energia.
A associação que representa as Concessionárias distribuidoras de energia logo
se manifestou que o blecaute motivou-se por causas estranhas às responsabilidades
das distribuidoras, que, em decorrência, não deveriam suportar nenhum ônus resultante de possíveis pleitos de consumidores relacionados com danos provocados
pelo evento.
Entretanto, o mencionado dispositivo constitucional, em matéria de responsabilidade civil, adotou o sistema objetivo, segundo o qual o dever de indenizar da
Concessionária de Serviço Público não se sujeita ao elemento subjetivo, ou seja, não
fica na dependência de culpa do agente. A ANEEL determinou que as Concessionárias efetuassem o ressarcimento nos casos em que os consumidores pudessem comprovar os prejuízos sofridos.
Assim, até 23 de junho de 1999, mais de 14.000 solicitações de ressarcimento
haviam sido protocoladas junto às Concessionárias; tem sido deferidas, até então,
mais de 60% delas.
Acredita-se que muitos destes consumidores que tiveram seu pedidos de indenização indeferidos, se entrassem com ação na Justiça teriam seu pleito atendido.
É possível que muitas pessoas que tinham eletrodomésticos quebrados em casa tenham aproveitado a oportunidade de tentar pleitear o ressarcimento junto às Concessionárias, que exigiam três orçamentos especificando as peças que estavam sendo reparadas do aparelho e que deveriam guardar relação direta com a sobretensão
causada durante o blecaute. Quem não conseguiu apresentar os orçamentos de forma adequada, certamente teve seu pedido negado pela Concessionária.
É evidente que mesmo em situações locais que podem envolver apenas uma
ou mais quarteirões com domicílios atendidos por um transformador da Concessionária, com pequeno número de consumidores envolvidos, os prejuízos causados
por uma variação de tensão devam igualmente ser ressarcidos.
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Com base na qualidade do serviço de energia elétrica, a Concessionária é
obrigada a entregar a energia elétrica, quando a tensão nominal é de 127 V
(volts), no intervalo entre 116 V e 132 V. Tendo a tensão variado fora deste intervalo, a Concessionária assume a responsabilidade pelos danos causados. Ainda
que seja um fenômeno da natureza, como, por exemplo, uma descarga atmosférica que venha a causar variação de tensão localizada na rede de distribuição de
energia da Concessionária, igualmente será responsabilizada, pois deveria ter instalado sistemas de proteção adequados para que o problema não viesse a atingir
as instalações do consumidor de energia. De forma que, sempre assumirá de forma objetiva as responsabilidade por danos causados ao consumidor de energia,
somente se excetuando aqueles danos que o próprio consumidor tiver dado causa, como, por exemplo, um curto circuito ocorrido por deficiências internas da
própria instalação elétrica do consumidor.
Citamos um caso que pode vir a ocorrer: um automóvel desgovernado veio a
colidir com um poste que sustenta fios elétricos, que se desprenderam e caíram em
cima de um outro automóvel que estava regularmente estacionado junto ao meio
fio da rua. O sistema de proteção elétrico não atuou corretamente, deixando de interromper o fluxo de energia, o que veio a ocasionar um curto circuito e o automóvel vindo a se incendiar. O proprietário do automóvel incendiado pode acionar apenas a Distribuidora de energia que tem responsabilidade subjetiva do ocorrido, assegurado seu direito de regresso junto ao causador da colisão.
Foi divulgado mais de um caso em São Paulo em que queda de postes sem que
tivesse sido colidido por veículo e que resultou inclusive em morte de pedestre. A
Concessionária Eletropaulo, procurando se eximir de culpa, atribuiu a responsabilidade à empresa de telefonia que divide a utilização do posteamento com cabos de sua
propriedade. Não faz qualquer sentido este posicionamento uma vez que quem detém os ativos é a empresa de energia que aluga seu compartilhamento à empresa de
telefonia. Do ponto de vista de engenharia, ao proprietário das instalações cabe seu
correto uso. Assim, se a empresa de telefonia vier a instalar mais cabos nos postes, a
verificação dos esforços adicionais a que ficarão submetidos os posteamentos, a necessidade de reforços, adequações e substituições de peças são de responsabilidade
da empresa de energia. Esta recebe pelo aluguel dos postes e tem responsabilidade
em fiscalizar o que a empresa de telefonia vier a fazer com eles.
Uma situação similar real veio a ocorrer em São Paulo, relatada no Acórdão AC
246.939-115, em que a empresa Cobec – Comércio e Montagens Ltda. havia ingressado com ação contra a Eletropaulo por danos causados por curto circuito. A Eletropaulo requereu a denunciação à lide da Telesp e pagou 50% à autora que havia lhe
dado quitação. O ato judicial declarou a extinção do processo sem julgamento do
mérito. A Cobec entrou com apelação a que foi dado provimento pelo Tribunal sob
15 RIZZATTO NUNES, 2000, p. 329.
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a fundamentação que, embora a quitação dada no recibo da autora, a ré diz que
nada mais irá pleitear. É forçoso convir que o CDC é taxativo ao estabelecer que, tendo mais de um autor a ofensa, todos responderão solidariamente pela reparação dos
danos previstos nas normas de consumo (art. 7º, § único). Consta ainda do acórdão:
Ora, se assim é, a quitação somente pode valer pela importância
constante do recibo e compreensível que assim o seja, pois que, em
muitas vezes, os economicamente mais fracos somente conseguem
receber alguma coisa, com a declaração que nada mais irão pedir. Tal declaração, entretanto, o enriquecimento ilícito que é repudiado pelo Direito.
VI. BASE LEGAL DE PROTEÇÃO AO CONSUMIDOR DE ENERGIA
ELÉTRICA
Apresentamos aqui uma parte da legislação aplicável ao setor elétrico envolvendo relações de consumo ou impasses junto ao órgão regulador, a ANEEL que se
constitui na base legal que poderá ser parcialmente aplicada e, conforme o caso a
ser tratado.
Segundo dispõe a Constituição, em seu art. 5º, inciso XXXII:
Art.5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
XXXII - o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor;
A normatização de proteção à ordem econômica e, sobretudo, ao consumidor, em desapreço, em especial, à própria Constituição Federal quando enumera em
seu art. 170 os princípios da ordem econômica.
Art. 170 - A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos
existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
[...]
V - defesa do consumidor;
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A Constituição Federal determina que a lei disponha sobre os direitos dos
usuários (consumidores):
Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente
ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.
Parágrafo único. A lei disporá sobre:
[...]
II - os direitos dos usuários;
III - política tarifária;
IV - a obrigação de manter serviço adequado
No título “Da Organização do Estado” da Constituição Federalm consta:
Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar
concorrentemente sobre:
[...]
VIII - responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico;
No título “Da Tributação e do Orçamento”, seção II – da Limitação do Poder
de Tributar da Constituição Federal:
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos
Municípios
[...]
§ 5º - A lei determinará medidas para que os consumidores sejam esclarecidos acerca dos impostos que incidam sobre mercadorias e serviços.
A despeito de que jurista faça a conceituação de Serviço Público, nenhum outro
serviço que ofereça utilidade ou comodidade à população se enquadra, com tanta precisão, a todas as suas definições e requisitos como o serviço de energia elétrica. De fato,
a determinação constitucional do art. 21, inciso XII, letra b, caracteriza os serviços e instalações de energia elétrica como de alçada do Poder Público Federal.
A Lei n.º 9.427/96 instituiu a ANEEL e dela destacamos:
Art. 2º A Agência Nacional de Energia Elétrica - ANEEL tem por finalidade regular e fiscalizar a produção, transmissão, distribui-
362
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ção e comercialização de energia elétrica, em conformidade com
as políticas e diretrizes do governo federal.
Art. 3º Além das incumbências prescritas nos arts. 29 e 30 da Lei no
8.987, de 13 de fevereiro de 1995, aplicáveis aos serviços de energia
elétrica, compete especialmente à ANEEL:
[...]
IV - celebrar e gerir os contratos de concessão ou de permissão de
serviços públicos de energia elétrica, de concessão de uso de bem
público, expedir as autorizações, bem como fiscalizar, diretamente ou mediante convênios com órgãos estaduais, as concessões e a
prestação dos serviços de energia elétrica;
V - dirimir, no âmbito administrativo, as divergências entre concessionárias, permissionárias, autorizadas, produtores independentes e autoprodutores, bem como entre esses agentes e seus
consumidores;
[...]
IX - zelar pelo cumprimento da legislação de defesa da concorrência, monitorando e acompanhando as práticas de mercado dos
agentes do setor de energia elétrica;
[...]
XII - estabelecer, para cumprimento por parte de cada concessionária e permissionária de serviço público de distribuição de energia elétrica, as metas a serem periodicamente alcançadas, visando a universalização do uso da energia elétrica;
Os encargos do Poder Concedente estão relacionados nos arts. 29 e 30 da Lei
n.º 8.987/95 expressamente citados.
Destacamos algumas das atribuições da ANEEL elencadas no Decreto n.º
2.335 de 06.10.97 que regulamenta a Lei n.º 9.427/96:
Art. 3º A ANEEL orientará a execução de suas atividades finalísticas de forma a proporcionar condições favoráveis para que o desenvolvimento do mercado de energia elétrica ocorra com equilíbrio entre os agentes e em benefício da sociedade, observando as
seguintes diretrizes:
[...]
II - regulação e fiscalização realizadas com o caráter de simplicidade e pautadas na livre concorrência entre os agentes, no atendimento às necessidades dos consumidores e no pleno acesso aos
serviços de energia elétrica;
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363
[...]
IV - criação de condições para a modicidade das tarifas, sem
prejuízo da oferta e com ênfase na qualidade do serviço de energia elétrica;
[...]
Art. 4º À ANEEL compete:
[...]
IV - regular os serviços de energia elétrica, expedindo os atos necessários ao cumprimento das normas estabelecidas pela legislação
em vigor;
[...]
X - atuar, na forma da lei e do contrato, nos processos de definição
e controle dos preços e tarifas, homologando seus valores iniciais,
reajustes e revisões, e criar mecanismos de acompanhamento de
preços;
[...]
XVI - estimular a melhoria do serviço prestado e zelar, direta e
indiretamente, pela sua boa qualidade, observado, no que couber, o disposto na legislação vigente de proteção e defesa do
consumidor;
[...]
Vê-se, pois, que a própria legislação que rege as atividades da ANEEL manda
observar o princípio constitucional da defesa do consumidor, que tem sido completamente olvidado na forma de repasse de custos exagerados e abusivos.
Tem sido uma constante a ANEEL privilegiado a livre iniciativa das empresas em
detrimento do interesse público. Sobre o assunto, diz o autor Newton de Lucca16:
Problema mais complexo parece ser o relativo a um eventual conflito de
normas entre a proteção ao consumidor e a livre iniciativa. A primeira, como vimos, erigida em um dos princípios de nossa ordem econômica, enquanto a segunda se acha referida tanto como um dos fundamentos dessa mesma ordem
econômica, como constitui, igualmente, um dos fundamentos da própria República, tal como se acha estampado no inciso IV do art. 1º de nossa Magna Carta.
Para o Prof. Fábio Comparato, no artigo retro aludido, fica clara a idéia de que
deverá prevalecer sempre, na hipótese de conflito, o princípio da proteção do consumidor.
É o que se depreende da leitura do seguinte trecho:
16 LUCCA, 2000, p. 35.
364
faculdade de direito de bauru
Será possível afirmar que a proteção ao consumidor deve subordinar-se ao princípio da liberdade empresarial? Não é, pelo contrário, o inverso que deve se sustentado, como advertiu lucidamente
Adam Smith? Faz sentido defender-se, ainda hoje, que a livre concorrência é garantida pelo Estado em benefício dos próprios concorrentes e não do mercado como um todo e do consumidor em especial, como razão de ser objetivo desta liberdade empresarial?
Contra o que deve o consumidor ser protegido, senão contra os interesses próprios dos produtores e distribuidores de bens, ou prestadores de serviços? De que maneira se pode dar algum sentido concreto e coerente a mandamento constitucional de defesa do consumidor, se este há de se submeter a interesses de empresários?
Por sua vez, os aumentos em questão estão em evidente descompasso com as
diretrizes da Política Nacional de Relações de Consumo, estabelecida pelo Código
de Proteção e Defesa do Consumidor. Veja-se o disposto no artigo 4º e 6º do referido Código:
Art.4º. A Política Nacional de Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à
sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses
econômicos, a melhoria de sua qualidade de vida, bem como a
transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os
seguintes princípios:
I – reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no
mercado de consumo;
II – ação governamental no sentido de proteger efetivamente o
consumidor;
[...])
VI – coibição e repressão eficientes de todos os abusos praticados
no mercado de consumo [...];
VII – racionalização e melhoria dos serviços públicos;
Art. 6º São direitos básicos do consumidor:
[...]
X - a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral.
O art. 22 do Código de Proteção e Defesa do Consumidor assevera que os órgãos públicos são obrigados a fornecer serviços adequados e, quanto aos essenciais,
contínuos. Já o art. 42 não permite que o devedor seja exposto ao ridículo, nem a
qualquer tipo de constrangimento ou ameaça. Os referidos dispositivos legais se
aplicam às Concessionárias de Serviços Públicos de Energia:
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
41
365
Art. 22. Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.
Parágrafo único. Nos casos de descumprimento, total ou parcial,
das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas
compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma
prevista neste código.
Art. 42. Na cobrança de débitos, o consumidor inadimplente não
será exposto a ridículo, nem será submetido a qualquer tipo de
constrangimento ou ameaça.
Parágrafo único. O consumidor cobrado em quantia indevida tem
direito à repetição do indébito, por valor igual ao dobro do que
pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais,
salvo hipótese de engano justificável.
Dispõe, ainda o artigo 39 do mesmo CDC, quando trata das práticas abusivas:
Art. 39 É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços:
[...]
V- exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva;
[...]
X- elevar sem justa causa o preço de produtos ou serviços;
O artigo 51, § 1º, por sua vez, define:
§ 1º Presume-se exagerada, entre outros casos, a vantagem que:
[...]
III – se mostra excessivamente onerosa para o consumidor,
considerando-se a natureza e o conteúdo do contrato, o interesse
das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso;
O aumento arbitrário dos lucros, pela elevação excessiva dos preços, quando
não encontra justificativa no comportamento do custo dos respectivos insumos, é
infração prevista na Lei n.º 8.884/94, que dispõe sobre a prevenção e a repressão às
infrações contra a ordem econômica, nos termos de seu art. 21, parágrafo único, I.
Art. 20. Constituem infrações de ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda
que não sejam alcançados:
faculdade de direito de bauru
366
[...]
III- aumentar arbitrariamente os lucros;
Art. 21. As seguintes condutas, além de outras, na medida em que
configurem hipótese prevista no art. 20 e seus incisos, caracterizam infração da ordem econômica:
[...]
XXIV – Impor preços excessivos, ou aumentar sem justa causa o preço do bem ou serviço.
Parágrafo único. Na caracterização da imposição dos preços excessivos ou do aumento injustificado de preços, além de outras circunstâncias econômicas e mercadológicas relevantes, considerar-se-á:
O preço do produto ou serviço, ou sua elevação, não justificado
pelo comportamento do custo dos respectivos insumos, ou pela introdução de melhoria de qualidade.
Por fim, cabe ressaltar que toda prestação de serviço público pressupõe a verificação de alguns requisitos essenciais, que decorrem do interesse coletivo que o
cerca. O serviço público, ainda que prestado em regime de concessão, corresponde
à satisfação de uma necessidade básica da sociedade, de forma que, para que seja
oferecido de forma adequada, deve apresentar todos os pressupostos exigidos pela
lei de concessão e permissão de serviços públicos, Lei n.º 8.987/95.
Art. 6º. Toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários, conforme estabelecido nesta lei, nas normas pertinentes e no respectivo contrato.
§1º. Serviço adequado é o que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade de tarifas.
É a modicidade de suas tarifas que possibilita a utilização do serviço público
de forma universal, e não de uma maneira restrita, o que foge à sua natureza. Onerá-las com tal excessividade, criando privilégios às Distribuidoras, significa negar a
própria definição de serviço público.
VIII. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pode ser visto o setor elétrico dentro de 3 cenários. O primeiro ainda que quis
transformar a energia como uma mercadoria, passando o segmento de geração
como uma atividade privada dissociada do serviço público. O segundo que trata a
energia como um serviço público, como na verdade nunca deixou de sê-lo. E o terceiro em que prevalece os interesses dos consumidores no âmbito do CDC.
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n.
41
367
O poderio econômico deu uma sobrevida para o primeiro cenário e tem influenciado o segundo cenário contra os interesses dos consumidores, desvirtuando
interesses públicos e até a atuação da ANEEL.
O Direito dos consumidores nas relações de consumo não deve e não pode
substituir o Direito Administrativo que fixa suas regras no relacionamento entre Poder Concedente, Concessionária e usuário do serviço público, mas tem de se impor
na correção de desvios que ocorrem devido ao desequilíbrio entre as partes.
Práticas abusivas ocasionam desequilíbrio nas relações de consumo, causando
lesão na parte mais desfavorecida que são os consumidores.
Os consumidores têm a seu desfavor uma articulação pequena, órgãos com
poucos especialistas no setor elétrico e escassez absoluta de recursos. A seu favor,
pelo contrário, tem o posicionamento do Judiciário que levado a apreciar situações
em que fiquem demonstrada a lesão ao direito dos consumidores, tem-se posicionado, em sua maioria das vezes, a favor dos consumidores e em atendimento aos
preceitos constitucionais.
De forma unânime, a energia tem sido conceituada como um serviço essencial, o que significa que deva ser prestado de forma permanente sem interrupção,
salvo ocorrência de caso fortuito ou força maior que implique sua suspensão temporária. Não há como dissociar a energia elétrica da conservação, preservação da
vida, saúde, higiene, educação, trabalho e desenvolvimento da nação.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS
ARRUDA ALVIM e al. Código do Consumidor Comentado, 2. ed. São Paulo: RT, 1995.
BLANCHET, Luiz Alberto. Concessão de Serviços Públicos: Comentários à Lei
8.987/95 e à Lei 9.074/95 com as inovações da Lei 9.427/96 e da Lei 9.648/98. 2. ed.
Curitiba: Juruá, 1999.
CALDAS, Geraldo Pereira. Concessões e Serviços Públicos de Energia Elétrica: Face
à Constituição Federal de 1988 e o Interesse Público. Curitiba: Juruá, 2002.
AZEVEDO, Fernando Costa de . Defesa do Consumidor e Regulação. Porto Alegre:
Do Advogado, 2002.
FERRAZ Filho, Raul Luiz; MORAES, Maria do Socorro Patello de. Energia Elétrica:
Suspensão do Fornecimento. São Paulo: LTR, 2002.
JUSTEN Filho, Marçal. Concessões de Serviços Públicos. São Paulo: Dialética, 1997 (a).
____________ O Direito das Agências Reguladoras Independentes. São Paulo:
Dialética, 2002 (b).
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LUCCA, Newton de. Direito do Consumidor: Aspectos Práticos Perguntas e Respostas. 2. ed. São Paulo: Edipro, 2000.
MARTINS, Plínio Lacerda, Corte de Energia Elétrica por Falta de Pagamento. São
Paulo: RT/ Fasc. Civil Ano 89, v. 778, ago. 2000
RIZZATTO NUNES, Luiz Antônio. O Código de Defesa do Consumidor e sua Interpretação Jurisprudencial. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2000.
PUBLICIDADE ABUSIVA
Adriano Aparecido Bruno
Bancário.
Analista Júnior da Gerência de Administração de Crédito
de Terceiros – GITER da Caixa Econômica Federal.
Graduado em Administração e Direito, inscrito no CRA/SP
sob nº 77455 e na OAB/SP sob nº 168781.
Especialista em Direito Empresarial pela ITE-Bauru.
1.
INTRODUÇÃO
Numa manhã de 1991, os assinantes de uma importante revista de circulação
nacional, folheando o exemplar daquela semana, depararam-se chocados com um
anúncio da famosa marca de roupas Benetton: nele, acima do nome da grife, um
modelo vestido de padre beijava uma modelo vestida de freira.
A mesma reação se verificou com grande parte dos motoristas que transitavam
naquela manhã pelas grandes cidades, quando viram o referido anúncio em enormes outdoors espalhados pelas avenidas.
A polêmica se instalou no meio publicitário e fora dele, entre católicos e
não católicos, com todos se fazendo as mesmas perguntas: até onde a publicidade poderia ir na ânsia por despertar o desejo de consumo? A publicidade poderia ofender valores éticos, religiosos, sociais e morais dos consumidores ao anunciar um produto?
As respostas a essas questões, sob o aspecto legal e doutrinário serão apresentadas a seguir.
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2.
A PUBLICIDADE
Dos diversos conceitos doutrinários do significado da palavra publicidade,
o que parece ser mais conciso e objetivo é aquele apresentado na obra de Paulo Vasconcelos Jacobina: publicidade é a arte de criar, no público, a necessidade de consumir1.
Ainda segundo o ilustre jurista, os estudiosos preferem distinguir a publicidade da propaganda, dando à primeira um caráter comercial-negocial e à segunda um
caráter ideológico.
Porém, salienta que a norma legal que rege a matéria, qual seja a Lei 8078, de
11 de setembro de 1990 - o conhecido Código de Defesa do Consumidor – CDC trata os dois termos como sinônimos, na sua acepção comercial.
3.
A PUBLICIDADE ABUSIVA
Além de estabelecer que a publicidade deve se pautar pela veracidade de seu
conteúdo, o legislador brasileiro também buscou proteger os valores sociais, éticos
e morais dos consumidores, impondo determinados limites éticos às mensagens
publicitárias utilizadas como técnicas de venda de produtos e serviços, conforme se
depreende da análise do parágrafo 2º do referido artigo 37 do CDC:
Art. 37. É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva.
(...)
§ 2° É abusiva, dentre outras a publicidade discriminatória de
qualquer natureza, a que incite à violência, explore o medo ou a
superstição, se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança, desrespeita valores ambientais, ou que seja capaz
de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou
perigosa à sua saúde ou segurança.
Como ensina o Prof. Luiz Antonio Rizzatto Nunes, “o caráter da abusividade
não tem necessariamente relação direta com o produto ou serviço oferecido, mas
sim com os efeitos da propaganda que possam causar algum mal ou constrangimento ao consumidor”.2
Vê-se, ainda, que, embora o CDC não tenha conceituado a publicidade
abusiva, enumerou exemplificativamente algumas hipóteses que a caracterizariam como tal.
1 JACOBINA, P. V. A publicidade no direito do consumidor, p. 15.
2 NUNES, L.A Rizzato. Comentários ao código de defesa do consumidor, p. 459.
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n.
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3.1. Publicidade discriminatória
Conforme afirma Fernando Gherardini Santos, a publicidade discriminatória
“se utiliza de uma distinção depreciativa em relação a dois ou mais indivíduos de diferentes origens, raças, sexos, cores, credos ou idades, bem como quaisquer outras
formas possíveis de discriminação.”3
Segundo ele, “os valores protegidos encontram-se resguardados pela CF/88,
tanto no art. 3º, inc.IV, como no art. 5º, caput e incisos I, XLI, XLII.”4
Adalberto Paschoalotto5 lembra ainda da proteção conferida pelo inciso VIII
do art. 5º da CF/88 à convicção filosófica e política.
Fernando Gherardini Santos também ensina que “é indispensável o caráter
depreciativo para a configuração de abusividade discriminatória, pois, v.g., a mera
presença de pessoas de diferentes raças, sem a sugestão de superioridade de uma
em relação à outra não configura a discriminação prevista em lei.”6
E Walter Ceneviva esclarece que os termos “qualquer natureza” “se ligam ao
conjunto dos elementos caracterizadores da discriminação abusiva, podendo mostrar-se sob a forma visual, sonora, estática e cinética.”7
No Brasil, existem vários casos de anúncios que foram acusados de discriminatórios e levados à apreciação do órgão auto-regulamentador –- o Conselho Nacional de Auto-regulamentação Publicitária - Conar –- e do Judiciário.
Os exemplos mais famosos e polêmicos foram aqueles produzidos nas campanhas da marca italiana de roupas Benetton, incluindo o caso narrado no início
deste trabalho.
Nessa peça publicitária, que mostrava um padre beijando uma freira, o Conar foi instigado a se pronunciar em virtude de inúmeras reclamações de consumidores.
O processo administrativo tramitou até o Plenário do Tribunal de Ética o qual
considerou a publicidade ofensiva aos valores religiosos dos consumidores, tendo
aplicado as sansões consistentes na advertência do anunciante e recomendação da
sustação da veiculação do anúncio (Reclamação 177/91).8
A Benneton também produziu outro anúncio no qual exibia uma mulher negra com uma criança branca no colo. Neste caso, conforme lembra Adalberto Paschoalotto, “discutiu-se a existência de discriminação racial, especialmente porque o
anúncio lembrava a época escravagista. O Conar, porém, considerou o anúncio ‘ade3 SANTOS, F. G. Direito do marketing, p. 223.
4 SANTOS, F. G. Direito do marketing, p. 223.
5 PASCHOALOTTO, A. Os efeitos obrigacionais da publicidade no código de defesa do consumidor, p. 128.
6 SANTOS, F. G. Direito do marketing, p. 223.
7 CENEVIVA, W. Publicidade e direito do consumidor, p. 128.
8 www.conar.org.br/casos.aspx.
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faculdade de direito de bauru
quado à imagem institucional do anunciante, não infringindo a ética publicitária”
(Bol.29/90).9
Outro anúncio da mesma grife exibia a fotografia de duas crianças, uma branca e uma negra, sendo que esta apresentava um penteado assemelhado a dois chifres. Neste caso, o Conar determinou a sustação da veiculação da publicidade, observando o Relator que “um anúncio pode ser ofensivo a determinada raça sem caracterizar, pela ausência de dolo, a discriminação” (Representação 229/91).10
E ainda talvez o mais polêmico da “safra” de anúncios da Benetton foi a campanha que mostrava um paciente com AIDS no momento de sua morte. Neste caso,
o Ministério Público de São Paulo conseguiu sustar cautelarmente o anúncio sustentando o preconceito existente contra os portadores do vírus HIV.
Alguns outros anúncios levados à apreciação do Conar sob a acusação de discriminatórios:
- Anúncios da “Batata frita Füller” - Reproduziam o diálogo entre um garçom
e um freguês claramente gago. Houve longos debates, com a apresentação
de pareceres de psicólogos e médicos, sendo que ao final do julgamento
houve a recomendação para alteração do anúncio, ao fundamento conclusivo de que é reprovável a ”ironização de defeitos, tiques ou ademanes, colocando o portador em situação ridícula ou de injusta inferioridade.” (Reclamação 060/84)11
- Anúncio da Rede Zacharias de Pneus e Acessórios protagonizado por um
gago e um vesgo. O CONAR, em última instância, considerou o conteúdo
do anúncio além do limite do tolerável, por discriminar e trazer prejuízos
às pessoas portadoras de tais defeitos, tendo recomendado a sustação da
veiculação (Reclamação 88/90)12
- Anúncio intitulado “Conformem-se, dia 12 de outubro é o dia deles” da
empresa Network Indústria e Comércio de Roupas Ltda. veiculado em revista, exibia várias crianças, loiras e morenas claras, tentando pintar o rosto de uma babá negra, amordaçada e amarrada a uma cadeira. Os membros
do Conar, seguindo a conclusão do Relator, recomendaram a sustação da
veiculação do anúncio sob o fundamento de caracterização de desrespeito
à dignidade humana e às diferenciações sociais decorrentes do maior e do
menor poder aquisitivo (Reclamação 118/88).13
- Anúncio em outdoor intitulado “Seu filho vai voltar às aulas de tênis velho?
Jô Calçados.”, mostrava a foto de uma criança com a cabeça coberta por um
9 PASCHOALOTTO, A. Os efeitos obrigacionais da publicidade no código de defesa do consumidor, p. 128.
10 www.conar.org.br/casos.aspx
11 www.conar.org.br/casos.aspx
12 www.conar.org.br/casos.aspx
13 www.conar.org.br/casos.aspx
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373
saco de papel. O Relator do processo viu no anúncio a caracterização de
discriminação social: “Entendemos que o código ´saco de papel na cabeça´ significa vergonha de enfrentar os colegas de escola. É perfeitamente
lógico concluir que, ao ver essa imagem, alguém que usa o mesmo tênis do
ano anterior se sinta humilhado diante dos colegas. Em nosso entendimento, o anúncio visa a estabelecer claramente a discriminação social em benefício do anunciante.” O Conar recomendou a sustação de veiculação do
anúncio. (Representação 49/03)14
3.2. Incitação à violência
A segunda situação vedada pelo Código de Defesa do Consumidor, pois caracterizadora da abusividade, refere-se à publicidade que incite à violência.
De acordo com Suzana Maria Pimenta Catta Preta Federigui, “violência é o ato
de alterar, reverter, ou inverter de forma a derrubar obstáculos, e, como mensagem,
é a conduta que agride uma estrutura moral ou ética, material ou formal. Pode não
ser uma atitude, mas um estado de coisas. O indivíduo não resolve agir, mas reage
ao estímulo que incide sobre a insatisfação ou impotência.”15
Walter Ceneviva ressalta que “a instigação ou o estímulo devem conter tal habilidade que se caracterize sua irresistibilidade para o homem médio comum, sensato e razoável”.16
Fábio Ulhoa Coelho exemplifica:
um fabricante de armas não pode promover o seu produto reforçando a ideologia da violência como solução dos conflitos sociais,
ainda que uma publicidade com esse caráter dirigida a certos segmentos da população pudesse representar, no seu caso específico,
uma solução satisfatória do ponto de vista psicológico.17
Aliás, esse tipo de publicidade sofre inclusive restrições do Conar por meio de
sua Súmula nº 4:
Anúncio de armas de fogo não deverá ser emocional; não deverá
sugerir que o registro do produto seja uma formalidade superada
facilmente com os serviços oferecidos pelo anunciante; não fará
promoções, não apregoará facilidade de pagamento, redução de
14 www.conar.org.br/casos.aspx
15 FEDERIGUI, S.M. P.C.T. Publicidade abusiva – incitação à violência, p. 130.
16 CENEVIVA, W. Publicidade e direito do consumidor, p. 129.
17 COELHO, F.U. Comentários ao Código de Proteção ao Consumidor, p. 161.
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374
preços, etc. Além disso, não será veiculado em publicação dirigida
a crianças ou a jovens e nem na televisão, no período que anteceder às 23h até as 6h. Deverá, por outro lado, evidenciar que a utilização do produto exige treinamento e equilíbrio emocional e
aconselhará a sua guarda em lugar seguro e fora do alcance de
terceiros.18
Um exemplo desse tipo de publicidade foi recentemente levado à apreciação
do Conar. Tratava-se de uma campanha veiculada em outdoor e internet em que o
anunciante, Impacto Tiro e Defesa, utilizava argumentos que, no entender do órgão
auto-regulamentador, podiam estimular a violência. O Conar recomendou a sustação da veiculação do anúncio (Representação 105/03).19
3.3. Exploração do medo ou superstição
No tocante ao medo, Paulo Vasconcelos Jacobina ensina que proibição tem
“duplo sentido – impedir que o fornecedor crie um estado de pânico nos consumidores, para favorecer a aquisição de seu produto ou serviço”, como, por exemplo,
anunciando a venda de botes infláveis sob o pretexto de uma falsa enchente iminente, bem como impedir que se “explore algum temor pré-existente, resultante de alguma catástrofe, epidemia natural, etc”.20
Observa o jurista, entretanto, que prevenir ou remediar situações calamitosas,
sem ultrapassar as fronteiras do educacional, não caracteriza a abusividade, como no
caso da publicidade de camisinhas, coletes salva-vidas, etc.
Um caso real desse tipo de publicidade foi o inusitado anúncio da empresa carioca Bomboniére Novo México intitulado “Vítima da violência. Você ainda
será uma.”, no qual se prometia que o consumidor ainda seria vítima da violência urbana e acenava, como solução, com a loteria, a qual seria capaz de propiciar ao vencedor a oportunidade de abandonar o Rio de Janeiro. O Conar recomendou a sustação definitiva da veiculação do anúncio (Representação
133/94).21
Com relação à superstição, visa o dispositivo legal a evitar que a publicidade
vincule o produto ou serviço a alguma qualidade mágica, miraculosa ou sobrenatural que evidentemente não possui.
18 www.conar.org.br
19 www.conar.org.br/casos.aspx
20 JACOBINA, P. V. A publicidade no direito do consumidor, p. 97.
21 www.conar.org.br/casos.aspx
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3.4. Publicidade dirigida às crianças
Adalberto Paschoalotto resume bem a questão: “o público infantil é um alvo
cobiçado pela publicidade, seja porque constitui ele mesmo uma atraente mercado
de consumo, seja porque é um meio de atingir os adultos”.22
Para tanto, pretendeu o legislador proteger a criança da publicidade que explore a sua deficiência de julgamento e a sua falta de experiência.
Como observa Paulo Vasconcelos Jacobina, o Código de Auto-Regulamentação do Conar é um bom referencial interpretativo para se compreender o dispositivo legal, pois por um lado permite que se sejam utilizados na publicidade
os símbolos próprios do imaginário da criança, mas por outro restringe mensagens que levem a criança a se sentir diminuída ou menos importante caso não consuma o produto ou serviço oferecido,ou que a leva a constranger seus responsáveis ou importunar terceiros, ou promover comportamentos socialmente condenáveis à
criança.
Ou seja, conclui, deve a mensagem publicitária respeitá-la na sua ingenuidade
e credulidade.23
Um exemplo deste tipo de publicidade abusiva, analisado pelo Conar, foi um
anúncio da empresa Moda Juvenil Ernesto Borger S/A o qual era protagonizado por
modelos crianças, de ambos os sexos, que contavam, um para o outro, como conseguiram a roupa nova: “Eu falei pra minha mãe que não fazia mais a lição de casa...”;
”Eu falei pra ela que ia falar com a boca cheia.” etc., com a assinatura: ”Para ganhar
uma roupa Tobi vale qualquer truque...”. Neste caso, o Conar recomendou a suspensão definitiva da veiculação do anúncio e a advertência do anunciante, considerando que o anúncio, dentre outros motivos inaceitáveis, colocou o menor que não comete malcriações em situação de inferioridade em relação aos apontados como “espertos”, além de incitar o constrangimento dos responsáveis a adquirirem o produto, bem como a promoção e a estimulação de comportamentos condenáveis, sem
nenhuma preocupação para com os cuidados especiais que se deva observar em relação às crianças e jovens e a indução às más, ao invés de incentivar as boas maneiras (Representação 26/83).24
Também merece destaque um anúncio na TV da empresa Grendene S/A, intitulado “Xuperstar”, relativo ao produto “Tênis Superstar”, no qual Maria das Graças
Menegel, a famosa Xuxa, dirigia-se a uma platéia de crianças convocando-as para,
22 PASCHOALOTTO, A. Os efeitos obrigacionais da publicidade no código de defesa do consumidor, p. 131.
23 JACOBINA, P. V. A publicidade no direito do consumidor, p. 98.
24 www.conar.org.br/casos.aspx
376
faculdade de direito de bauru
quando seus tênis estivessem velhinhos, trocá-los pelo produto por ela apregoado,
o único da Xuxa. As crianças entreolhavam-se, e, tirando seus tênis, passavam a
transformá-los em “velhinhos”, ou pintando-os, ou usando um torno, ou cortandoos com tesoura etc. Em seguida, todas pleiteavam das mães um tênis novo, conforme o anunciado. O Conar recomendou a suspensão da veiculação do anúncio, acolhendo a manifestação do Relator na qual, dentre outros fundamentos, lembrava
não ser admissível que o anúncio deixasse implícita uma inferioridade do menor,
caso este não consumisse o produto oferecido, bem como que o instigasse a constranger seus responsáveis para comprá-lo (Representação 091/92).25
3.5. Meio ambiente
O CDC também não admite que a publicidade estimule a agressão ao meio
ambiente, demonstrando, assim, estar em perfeita sintonia com a Constituição Federal vigente, a qual dedicou grande importância à proteção ambiental uma vez que
os constituintes entenderam, acertadamente, que ela está diretamente ligada à preservação da qualidade de vida da pessoa humana.
A abusividade tipificada pelo CDC não está ligada à qualidade e características
do produto ou serviço anunciado, para os quais há sansões específicas, mas ao desrespeito a um valor socialmente relevante. A abusividade está na atitude negativa
presente no anúncio, na mensagem danosa transmitida ao consumidor.
Um exemplo de publicidade acusada de abusiva ao meio ambiente foi um
anúncio da Fuji Photo Film publicado em revista no qual divulgava a foto de uma tartaruga com três caixas de madeira empilhadas sobre o seu casto e atadas por cordas
ao seu ventre. A Associação Brasileira do Consumidor – Abracon ajuizou uma ação
judicial em relação à Fuji ao argumento de que tal publicidade violava flagrantemente os valores ambientais protegidos pela Constituição Federal e pelo CDC. A ação foi
extinta em face de acordo entre as partes, tendo a Fuji retirado o anúncio e doado
R$ 10 mil ao Projeto Tamar.26
3.6. Indução a comportamento prejudicial ou perigoso à saúde ou segurança
Da mesma forma que no caso do desrespeito ao meio ambiente, quando o
CDC caracteriza como abusiva a publicidade que induza o consumidor a um comportamento prejudicial ou perigoso à saúde ou segurança não está se referindo ao
produto ou serviço anunciado, mas à mensagem potencialmente danosa contida no
anúncio.
25 www.conar.org.br/casos.aspx
26 http://www.no.com.br/revista
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
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377
Um exemplo desse tipo de publicidade analisado pelo Conar foi o de um
anúncio veiculado em TV, do produto “Guaraná Taí”, o qual apresentava uma criança que se escondia dentro de uma geladeira. O Conar recomendar ao fabricante e à
sua agência de publicidade a retirada do comercial de veiculação, pois entendeu que
poderia tornar-se um estímulo para brincadeiras perigosas (Representação 047/85)
Outro caso interessante também objeto de apreciação pelo Conar foi o de um
anúncio na TV do xarope Broncofenil, da empresa Zurita Laboratório Farmacêutico
Ltda, que mostrava uma criança que abusava de situações que podiam afetar a sua
saúde, sob a justificativa de que sua mãe dispunha de um produto capaz de “curálo” de eventual conseqüência. O Conar recomendou a alteração do anúncio (Representação 64/88).27
3.7. Outras hipóteses
É consenso entre os doutrinadores que o rol das hipóteses caracterizadoras
da abusividade presente no art. 37, §2º do CDC é meramente exemplificativo, o que
importa dizer que a mesma norma veda igualmente que a publicidade, na tarefa de
despertar o desejo de consumo, agrida outros valores importantes para a sociedade. Assim, entende-se que não será admitida a publicidade que atente contra a moral, as tradições, os bons costumes, a decência, o comportamento ético, etc.
4.
CONCLUSÃO
Os consumidores são protegidos legalmente não somente quando induzidos
em erro ao adquirirem um produto ou utilizarem um serviço, mas também quando
são desrespeitados pela publicidade.
A publicidade não pode agredir os valores sociais, éticos e morais presentes
na sociedade, ainda que não seja esse o seu objetivo.
Existem limites que não podem ser ultrapassados, os quais estão exemplificados no artigo 37 do CDC.
A vedação à publicidade abusiva, da mesma forma que outras regras do CDC,
representa um marco importante no Direito brasileiro, fazendo parte da vanguarda
mundial na proteção aos direitos do consumidor, sendo que o seu surgimento em
1990 preencheu um vazio jurídico na matéria.
Pelas pesquisas efetuadas, verificou-se que a auto-regulamentação tem sido
eficiente em detectar e corrigir os abusos praticados nas campanhas publicitárias.
Também merece destaque a atuação do Ministério Público e das associações de defesa dos consumidores.
27 www.conar.org.br/casos.aspx
378
faculdade de direito de bauru
Por fim, cabe registrar que os anunciantes aparentemente têm sido mais cautelosos na elaboração de suas campanhas, evitando os erros do passado.
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– v. 14)
O CONSUMIDOR ANTE A PUBLICIDADE ILÍCITA
Renata Gomes de Moraes
Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Bauru – Instituição Toledo de Ensino.
Pós-Graduanda em curso de especialização em Direito Empresarial.
INTRODUÇÃO
Com a Constituição Federal de 1988, o consumidor brasileiro passou a ter
uma aliada, e, em obediência ao inciso XXXII, do artigo 5º, e inciso V do artigo 170,
ambos da Constituição Federal, e artigo 48 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias, foi editado o Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078 de 11 de
setembro de 1990).
A Lei n. 8.078/90 tem como fundamento principal a vulnerabilidade do consumidor, a hipossuficiência, porque ele precisa dos bens de consumo ou de serviço, e
não tem outra saída senão consumir ou contratar serviços, ficando à mercê daqueles que os oferecem.
No artigo segundo da citada lei, encontra-se a definição de consumidor, sendo a seguinte: “Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza
produto ou serviço como destinatário final”. Para que o produto ou o serviço sejam
utilizados pelo consumidor, eles passam por um longo caminho, que vai desde a
produção até a sua chegada às prateleiras, no caso do produto. Todavia, de nada
adianta produzir se a grande massa de consumidores sequer sabe da existência daquele produto ou daquela marca. É aí que entra em cena a publicidade, o elo entre
o produto e o consumidor.
Não há dúvida de que a publicidade é muito importante, também para o consumidor, pois o faz tomar conhecimento daquele produto que existe, e que, às vezes, ele
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380
nem suspeita, sendo seu uso muito importante em certas ocasiões. Porém, a publicidade nem sempre é realizada de maneira honesta. Assim, um dos grandes problemas da
atualidade é saber se a publicidade é lícita ou não. O legislador brasileiro demonstrou
grande preocupação sobre o assunto quando proibiu a publicidade enganosa e abusiva.
Considerando a importância de que se reveste o assunto, este trabalho objetivou fazer uma breve análise da publicidade como um todo e a responsabilidade decorrente de quando a publicidade é ilícita, sem, é claro, esgotar o assunto.
1.
PUBLICIDADE
Quando um instituto é estudado, busca-se primeiramente conceituá-lo. O Código de Defesa do Consumidor não conceituou “publicidade”, o que, em princípio,
dificultou o seu estudo. Porém, hoje na literatura, muito material pode ser encontrado no que diz respeito à conceituação do termo “publicidade”.
O jurista Hely Lopes Meirelles1 define publicidade como: “a divulgação oficial
do ato para conhecimento público e início de seus efeitos externos”. Esta é a visão
de um dos maiores estudiosos do Direito Administrativo, na qual, publicidade é um
dos princípios a que deve obediência o administrador público, quando exerce o poder que lhe foi conferido e edita seus atos.
Já para o constitucionalista José Afonso da Silva2, “a publicidade sempre foi
tida como um princípio administrativo, porque se entende que Poder Público, por
ser público, deve agir com a maior transparência possível”. Aqui, o nobre jurista também expressa publicidade como sendo um princípio administrativo, trazendo o conceito jurídico da palavra publicidade.
A publicidade não possui somente o conceito jurídico, mas também um conceito mercadológico, que é o elemento de ligação existente entre o fornecedor e
aqueles que utilizarão os produtos ou serviços, divulgando e promovendo tais serviços e produtos.
Portanto, publicidade é vista como um elemento que faz parte do negócio, na
verdade, essencial nos dias de hoje para que um produto seja conhecido e utilizado
pelos consumidores, consumidores estes que são uma grande massa indeterminada de pessoas.
Assim, a publicidade é essencial para que um produto ou serviço oferecido ao
consumidor dê lucro para o fornecedor.
Mas como surgiu esse modelo de publicidade conhecido atualmente?
A publicidade conhecida atualmente, e encontrada todos os dias nos diversos
meios de comunicação, surgiu com a Revolução Industrial e Comercial. Portanto,
sua evolução está totalmente ligada à evolução do capitalismo.
1 MEIRELLES, Hely Lopes, Direito administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 86.
2 SILVA, José Afonso da, Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 617.
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381
O capitalismo tem como objetivo principal e único o lucro; logo, a publicidade é considerada sua maior aliada, visto que por meio dela consegue-se atingir uma
quantidade cada vez maior de pessoas no mundo todo, ainda mais com as facilidades de comunicação que estão à disposição da sociedade mundial.
Hoje, é muito fácil comprar, não é preciso nem sair de casa para tanto. Compra-se o que quiser pela televisão, internet, por exemplo, e do mesmo modo os consumidores são bombardeados por publicidade de todo o tipo. Quem nunca recebeu
panfletos nas ruas (não importa se é pedestre ou se está de carro), pelo correio, internet, televisão, rádio ou mesmo anúncios propagados por auto-falantes pela rua?
A publicidade faz parte da vida do ser humano, quer ele queira, quer não; tal qual o
capitalismo, o objetivo é sempre o lucro.
A publicidade possui princípios norteadores, e deve estar de acordo com eles
para sua veiculação. O Código de Defesa do Consumidor não estabelece quais são
esses princípios, porém a doutrina os identifica.
Princípio da liberdade: sendo a publicidade uma forma de expressão, ela é
protegida pela Constituição brasileira e, sendo assim, livre (artigo 5º, IX da Constituição Federal: “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de
comunicação, independentemente de censura ou licença”).
Porém, tal liberdade não pode ser considerada absoluta, visto que a publicidade atinge pessoas de classes sociais distintas e de níveis de escolaridade diferentes.
Deve-se, então, proporcionar à sociedade a proteção da dignidade humana, dos
seus valores morais, éticos e da justiça social, em detrimento dos princípios constitucionais da livre concorrência e da liberdade de expressão.
Princípio da vinculação: tal princípio é previsto na legislação brasileira, no
artigo 30, do Código de Defesa do Consumidor:
Toda informação ou publicidade, suficientemente precisa, veiculada por qualquer forma ou meio de comunicação com relação a
produtos e serviços oferecidos ou apresentados, obriga o fornecedor que a fizer veicular ou dela se utilizar e integra o contrato que
vier a ser celebrado
Aqui, o legislador obriga o fornecedor a cumprir o que foi prometido quando
da veiculação publicitária.
No caso de o fornecedor recusar a cumprir a oferta veiculada, deve o consumidor valer-se do artigo 35 do Código de Defesa do Consumidor:
Se o fornecedor de produtos ou serviços recusar cumprimento à
oferta, apresentação ou publicidade, o consumidor poderá, alternativamente e à sua livre escolha: I – exigir o cumprimento forçado da obrigação, nos termos da oferta, apresentação ou publicida-
382
faculdade de direito de bauru
de; II – aceitar outro produto ou prestação de serviço equivalente;
III – rescindir o contrato, com direito à restituição de quantia
eventualmente antecipada, monetariamente atualizada, e a perdas e danos.
Os artigos 18 e 20 do Código de Defesa do Consumidor também prevêem a
responsabilidade do fornecedor em razão da publicidade veiculada.
Princípio da identificação: a publicidade deve ser clara, permitindo ao consumidor perceber na hora que o que está vendo ou ouvindo é uma mensagem publicitária (artigo 36 do Código de Defesa do Consumidor estabelece: “A publicidade
deve ser veiculada de tal forma que o consumidor, fácil e imediatamente, a identifique como tal”).
Princípio da lealdade: aquele que veicula a publicidade, deve ter respeito
por aqueles que vão recebê-la, ou seja, o consumidor, e também em relação aos seus
concorrentes.
Do princípio da lealdade decorrem três subprincípios, que são: transparência
da fundamentação da publicidade; veracidade e não enganosidade.
A publicidade possui como função tão somente a promoção de bem e serviços? Vidal Serrano Nunes Júnior3 relaciona as funções principais da publicidade,
como as funções de identidade; de criar prestígio; de criação e fixação de hábitos;
de criação de índices sociais relacionados ao consumo; de inovação; institucional
(quando ligada à empresa como instituição, e não para promover seus produtos ou
serviços) e de convencimento de intervenientes.
Todavia, a publicidade tem como função principal a promoção dos produtos
ou serviços dos anunciantes. É por meio dela que a massa de consumidores vai conhecer determinada empresa, determinado produto e vai convencer-se de que precisa daquele produto.
A linguagem publicitária é persuasiva e, até certo ponto, manipuladora, pois o
que se pretende é a promoção do produto, e para alcançar esse fim existe uma escolha de palavras, de discursos argumentativos, que leva o consumidor a acreditar
que precisa daquele produto, ou de tal marca para sentir-se bem, para viver melhor,
para ser alguém mais.
Para atingir o seu fim principal, isto é, servir de catalisador entre a mercadoria e o lucro, há técnicas publicitárias, que nada mais são do que modos de como a
campanha publicitária ou o anúncio publicitário deva chegar ao seu destinatário (o
consumidor). Vejamos algumas delas:
publicidade comparativa: esse tipo de anúncio faz uma comparação entre os serviços ou produtos do anunciante com os da concorrência, mostrando
3 NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano, Publicidade comercial – proteção e limites na constituição de 1988. São Paulo:
Juarez de Oliveira. p. 29-34.
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383
ao consumidor que os do anunciante são melhores por determinadas razões, ou
mais baratos, sugerindo ao consumidor que deve preferir “tal” marca, “tal” produto ou “tal” serviço. Essa técnica de publicidade deve ser bem objetiva, o Código de Defesa do Consumidor não a proíbe, apesar de pregar a lealdade também
entre concorrentes.
“puffing”: essa é uma técnica de exagero publicitário, não é proibida pelo Código de Defesa do Consumidor.
propaganda subliminar: é uma técnica que atinge o subconsciente do consumidor. Este não percebe que está sendo veiculado, naquele momento, uma mensagem publicitária; por isso, tal técnica é proibida pelo Código de Defesa do Consumidor (artigo 36).
“teaser”: o objetivo desta técnica publicitária é preparar o mercado para o
produto. O que ela faz é deixar uma curiosidade no ar, o consumidor fica na expectativa, e após um tempo o anunciante entra com o anúncio publicitário, lançando o produto ou serviço. Esta técnica é admitida pelo Código de Defesa do
Consumidor.
“merchandising”: essa é uma técnica em que não há uma apresentação ostensiva da marca. O produto ou serviço é anunciado nos meios de comunicação (vídeo, jornais), mas a marca não.
De nada adianta discorrer sobre a publicidade, suas técnicas, origem e princípios se não se sabe quais os seu sujeitos, pois no caso de uma possível responsabilização, por qualquer motivo, é extremamente necessária a identificação.
São, portanto, seus sujeitos: o anunciante (a pessoa física ou jurídica interessada em oferecer produtos ou serviços para a venda), a agência de publicidade (no
caso é a pessoa física ou jurídica contratada pelo anunciante para produzir a mensagem publicitária), o veículo (é a empresa ou pessoa física que fornece ao anunciante o meio pelo qual será transmitido o anúncio publicitário) e os destinatários (serão as pessoas sujeitas a tomar conhecimento do anúncio, ou seja, toda uma coletividade não determinada).
Já foi visto o que é publicidade e todos os seus aspectos mais importantes, porém não foi abordada a diferença existente entre publicidade e propaganda e também entre publicidade e marketing. Sabe-se que muitos autores consideram tudo
como sendo a mesma coisa, todavia isso não é o correto, muitas vezes até confundem seus conceitos.
Como já foi visto, a publicidade é o meio através do qual o anunciante vai promover o seu produto ou serviço. Aqui o anunciante busca o lucro, e, portanto, a ética pode ser deixada de lado.
O termo “propaganda”, muitas vezes, é confundido com publicidade, mas
deve-se esclarecer que o sentido é diferente. Propaganda vem do latim propagare
no sentido de propagação, no sentido de plantar uma idéia, e publicidade vem do
latim publicus, que significa tornar público.
384
faculdade de direito de bauru
Paulo Jorge Scartezzi Guimarães4 esclarece muito bem essa diferença em sua
obra “A publicidade ilícita e a responsabilidade das celebridades que dela participam”:
A publicidade tem sempre objetivo comercial, enquanto a propaganda tem objetivo diverso, qual seja, a divulgação de idéias religiosas, filosóficas, políticas, econômicas ou sociais, além do que a
publicidade é paga e tem o seu patrocinador identificado, o que
pode não ocorrer na propaganda” e continua “Em vários países
essa distinção também é feita. Assim, nos Estados Unidos são usadas duas palavras distintas, propaganda e advertising; na França,
propagande e publicité; na Espanha, propaganda e publicidade;
na Itália, propaganda e publicitá.
Observa-se, então, que a maior diferença entre elas é que a publicidade tem
objetivo comercial, enquanto a propaganda tem como objetivo a propagação de
idéias que não as relacionadas ao comércio.
Tendo verificado o conceito de publicidade, deve-se analisar o conceito de
marketing para concluir que não são a mesma coisa.
Armando Sant’Ana5 considera que o marketing “envolve todas as atividades
comerciais relacionadas com a movimentação de mercadorias e serviços desde a sua
produção física até seu consumo final”. Daí se extrai a conclusão de que a publicidade está incluída no marketing, e por isso não pode ser confundida com ele.
Outro que bem define o que é marketing é Marc Legrain6 que diz “é o estudo e
execução de políticas de produtos e preço, distribuição e comunicação que permitirão
à empresa atingir, com lucro, um objetivo fixado em função do mercado”.
Mais uma vez se percebe que o que tem em mente, o anunciante, é o objetivo de lucro; e ele utiliza-se do marketing para atingi-lo, sendo que muitas vezes o
anunciante não usa da ética para promover seus produtos e serviços. Em razão disto, muito se especula no que diz respeito ao marketing e ética.
Maria Cecília Coutinho Arruda7 opina sobre o assunto muito bem, senão vejamos:
A opinião pública a respeito do marketing tradicional é de que ele
se utiliza de manipulação, persuadindo ou sugerindo às pessoas a
4 GUIMARÃES, Paulo Jorge Scartezzini, A publicidade ilícita e a responsabilidade civil das celebridades que dela
participam. São Paulo: RT, 2001 (Biblioteca de direito do consumidor; v. 16) p. 94.
5 APUD CHAISE, Valéria Falcão, A publicidade em face do código de defesa do consumidor. São Paulo: Saraiva,
2001. p. 23.
6 APUD CHAISE, Valeira Falcão, OP. CIT. p. 35.
7 APUD GUIMARÃES, Paulo Jorge Scartezzini, A publicidade ilícita e a responsabilidade civil das celebridades que
dela participam, p. 76.
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compra de mais bens e serviços, convencendo-as de que uma determinada marca pode atender às necessidades de modo melhor
do que uma outra etc
A autora define bem o que pensa a maior parte da sociedade que se vê assoberbada de anúncios por todos os lugares e horários, vítima da busca desenfreada
pelo lucro daqueles que anunciam.
Apesar de o legislador não ter definido o termo “publicidade” no Código de
Defesa do Consumidor, como já foi tratado, existe uma grande preocupação por parte dele na proteção do consumidor quando o assunto é publicidade. O consumidor,
tratado como hipossuficiente por determinação constitucional, deve sim ser protegido de eventual publicidade ilícita, e o Código de Defesa do Consumidor o faz muito bem quando, em seu artigo 37, proíbe a publicidade enganosa e a abusiva, ou
seja, qualquer tipo de publicidade ilícita.
No que diz respeito ao consumidor, o legislador também se preocupou em
deixar bem claro que a proteção contra a publicidade ilícita é um direito que tal consumidor possui. Ensina o artigo 6º do Código de Defesa do Consumidor:
São direitos básicos do consumidor: IV – a proteção contra a
publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos ou serviços (grifo
nosso).
O mesmo código define o que é publicidade enganosa em seu artigo 37, parágrafo 1º:
É enganosa qualquer modalidade de informação ou comunicação de caráter publicitário, inteira ou parcialmente falsa, ou por
qualquer outro modo, mesmo por omissão, capaz de induzir em
erro o consumidor a respeito da natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades, origem, preço e quaisquer outros
dados sobre produtos e serviços
O ilustre jurista Adalberto Pasqualotto8 esclarece o que é falsidade, “é falsa
quando não há correspondência entre as afirmativas nela contidas e a realidade”.
Isto significa que quando o anúncio não corresponder com a realidade, deve ser
considerado enganoso.
8 PASQUALOTTO, Adalberto, Os efeitos obrigacionais da publicidade no código de defesa do consumidor. São
Paulo: RT, 1997 – (Biblioteca de direito do consumidor; v. 10). p 118.
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Joaquim Manhães Moreira9 define muito bem o que é publicidade enganosa
“propaganda10 enganosa induz a erro em algum aspecto importante na decisão de
comprar ou consumir”.
Não é necessário que a publicidade efetivamente induza o consumidor ao
erro, basta o potencial de enganar que já estará caracterizada a publicidade enganosa por ser um crime de natureza formal, no caso, o dano ao consumidor seria mera
conseqüência, lembrando que o critério a ser utilizado quando da análise do potencial de enganar, deve ser o do “consumidor médio”, visto que o legislador buscou
proteger os consumidores mais fracos.
A publicidade enganosa pode ocorrer também por omissão, e o parágrafo 3º
do artigo 37 do Código de Defesa do Consumidor bem define o seu conceito “para
os efeitos deste Código, a publicidade é enganosa por omissão quando deixar de informar sobre dado essencial do produto ou serviço”. Logo, a omissão pode também
ensejar a publicidade enganosa, desde que havendo a tendência de induzir o consumidor ao erro.
Em ambos os casos (omissão ou comissão), a má-fé ou boa-fé do anunciante
não deve ser levada em consideração, uma vez que não são elementos essenciais
para a efetivação do crime.
Não há definição no Código de Defesa do Consumidor do que seja a publicidade abusiva, mas somente são elencadas no parágrafo 2º do artigo 37 as situações
consideradas como abusivas:
É abusiva, dentre outras, a publicidade discriminatória de qualquer natureza, a que incite à violência, explore o medo ou a superstição, se aproveite da deficiência de julgamento e experiência
da criança, desrespeite valores ambientais, ou que seja capaz de
induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança.
O rol do parágrafo 2º do citado artigo é exemplificativo, uma vez que o legislador trouxe a expressão “dentre outras”, significando que há outras possibilidades
de ocorrer a abusividade do anúncio.
Vejamos cada situação em particular:
- publicidade discriminatória: o princípio constitucional da igualdade deve ser
protegido em razão da sua importância. Qualquer forma de discriminação fere tal
princípio, o que não pode ser permitido pela sociedade.
- incitamento à violência: o Direito sempre regula as situações da vida cotidiana para assegurar a segurança, a honra, a vida, o patrimônio, enfim, aquilo que a so9 MOREIRA, Joaquim Manhães, A ética empresarial no Brasil. São Paulo: Pioneira, 1999. p. 51.
10 Leia-se “publicidade”.
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ciedade considera importante; sendo assim, não pode permitir que anúncios publicitários incitem à violência, o que atrapalharia a busca pela paz social. Um exemplo
disso é o controle que existe em relação à publicidade de armas de fogo, por exemplo, que possui restrições rígidas.
- exploração do medo: Pasqualotto11 expressa o que é a exploração do medo
na publicidade dizendo que “é uma forma de coação moral que pode ser exercida
pela publicidade”. O Direito não pode permitir que o hipossuficiente sofra tal tipo
de coação.
- exploração da superstição: não pode o anunciante valer-se da credulidade ou
da superstição dos consumidores para promover produtos e serviços.
- publicidade dirigida às crianças: é fato notório que as crianças influem, e
muito, no consumo familiar. Vários estudos já foram publicados demonstrando tal
influência. Exemplo disso é que, baseados em tais estudos, os supermercados têm
reservado áreas exclusivas para atrair seus pequenos consumidores. Pois bem, o público infantil, em razão da falta de malícia, da falta de conhecimento em razão da idade, não pode estar sujeito a este tipo de conduta. O anunciante deve ter certos cuidados para não se valer da ingenuidade típica das crianças para influenciá-las e assim vender seus produtos.
- desrespeito aos valores ambientais: uma das grandes preocupações mundiais é a preservação do meio ambiente.Tanto o Direito como a sociedade não devem permitir qualquer tipo de desrespeito quando o assunto for meio ambiente,
principalmente se por trás dele existe o intuito de lucro.
- capaz de induzir o consumidor a comportar-se de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança: o anúncio publicitário não pode proporcionar ao
consumidor um comportamento de risco. O “consumidor médio” (o protegido pelo
Código de Defesa do Consumidor) pode ser facilmente influenciado pelo que ouve,
pelo que vê, cabendo à sociedade a tarefa de defendê-lo.
O abuso é um conceito abstrato, que deve ser observado por aquele que aplicará a lei ao caso concreto. O civilista Cáio Mário12 entende assim: “abusa, pois, do
seu direito o titular que dele se utiliza levando um malefício a outrem, inspirado na
intenção de fazer mal, e em proveito próprio”.
2.
RESPONSABILIDADE CIVIL
O Código de Defesa do Consumidor não trata, de modo direto, da responsabilidade civil decorrente de danos possivelmente causados aos consumidores em razão da veiculação de publicidade ilícita, mas conclui-se pela responsabilização do
anunciante quando o legislador garante aos consumidores o direito à informação
11 PASQUALOTTO, Adalberto, Os efeitos obrigacionais da publicidade no código de defesa do consumidor, p. 130.
12 APUD CHAISE, Valéria Falcão, A publicidade em face do Código de Defesa do consumidor, p. 39.
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correta dos produtos e serviços oferecidos (inciso III do artigo 6º do Código de Defesa do Consumidor).
Da análise do artigo, decorre o seguinte problema: deve somente o anunciante
ser responsabilidade por eventuais anúncios ilícitos? As agências de publicidade, os
meios de comunicação (veículos), não poderiam ser juntamente responsabilizados?
Maria Cecília Coutinho de Arruda13 bem discorre sobre a responsabilidade no
caso de publicidade ilícita, devendo-se entender publicidade quando a autora refere-se à “propaganda”:
A propaganda14 em si não é boa ou má. É apenas um instrumento.
Seu poder de persuasão, porém, pode ser utilizado para promover
o que é verdadeiro e ético, ou contribuir para a corrupção das pessoas e para a degeneração do tecido social. A todos cabe a responsabilidade de fazer com que a propaganda15 promova, de fato, o
desenvolvimento pessoal e social.
Somente tendo em vista esse apontamento já se pode trilhar pela responsabilidade de todos aqueles que estão relacionados com o anúncio. Como se não bastasse, o Código de Defesa do Consumidor possui vários dispositivos que determinam a responsabilidade solidária daqueles que participarem de qualquer dano ao
consumidor (artigo 7º, parágrafo único; artigo 25, parágrafo primeiro; artigos 18 e
19, caput).
O anunciante será sempre responsabilizado, afinal de contas ele paga pelo
anúncio e, se deixa veiculá-lo, quer dizer que aprova tudo o que ele contém. Mas e
as agências de publicidade?
Pois bem, muito se discute quanto à responsabilidade delas Joaquim Manhães
Moreira16 prega a não responsabilização das agências:
A responsabilidade por fazer com que a propaganda17 atenda aos
princípios éticos é sempre da empresa que arca com seus custos e
que se beneficiará dos resultados. Este encargo é indelegável para
as agências de publicidade sob as perspectivas ética, legal e moral.
Entretanto, o próprio Código de Ética Publicitária responsabiliza as agências
pelos anúncios que promovem, cabendo também a elas a prova de todas as alega13 ARRUDA, Maria Cecília Coutinho de; WHITAKER, Maria do Carmo; RAMOS, José Maria Rodriguez, Fundamentos
de ética empresarial e econômica. São Paulo: Atlas, 2003. p. 88.
14 Leia-se “publicidade”.
15 Leia-se “publicidade”.
16 MOREIRA, Joaquim Manhães, A ética empresarial no Brasil, p. 52.
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ções, comparações e descrições contidas na publicidade. Há, na verdade, uma coresponsabilidade com o anunciante.
Assim, razão não há em discordar de Maria Cecília Coutinho de Arruda18 quando declara:
A propaganda19 é uma das potências econômicas de uma sociedade. Informalmente, diz-se que é a ‘alma do negócio’. Ela identifica
o patrocinador do produto, serviço ou idéia, e atribui-lhe a correspondente responsabilidade. Assim, o profissional de marketing
com freqüência é colocado em situações difíceis diante da sociedade e seus valores.
Se o profissional de marketing é colocado em “situações difíceis diante da sociedade e seus valores” é porque possui participação direta no anúnciol logo, é forçoso concluir pela responsabilização das agências de publicidade, em relação a danos decorrentes de anúncios ilícitos produzidos por elas.
Outro problema a ser estudado é se o veículo, ou melhor, o meio de comunicação deve ser responsabilizado pelos anúncios que veicula.
A polêmica é grande, mas deve ser analisada a credibilidade que o veículo possui frente aos consumidores.
Muito já se estudou para comparar se um veículo de maior credibilidade vende
mais produtos ou serviços do que outro de menor crédito. Os estudos apontam para
o óbvio, como bem sinaliza Marcos Cobra20: “diversos estudos indicam que uma fonte
de alta credibilidade é mais persuasiva do que uma fonte de baixa credibilidade”.
Sabe-se que os anunciantes pagam aos meios de comunicação pelo tempo e,
também, por quando o anúncio é veiculado. Há jornais e revistas, inclusive horários
de televisão ou rádio caríssimos, pois é sabido que a audiência é enorme, e que a
publicidade trará retorno garantido.
O meio de comunicação cobra, recebendo a quantia que estipula, logo não
tem como fugir da responsabilidade no caso de dano ao consumidor, mesmo porque deveria ter o controle daquilo que veicula, sabendo da influência e credibilidade que possui frente ao consumidor.
17 Leia-se “publicidade”.
18 ARRUDA, Maria Cecília Coutinho de; WHITAKER, Maria do Carmo; RAMOS, José Maria Rodriguez, Fundamentos
de ética empresarial e econômica, p. 89.
19 Leia-se “publicidade”.
20 APUD GUIMARÃES, Paulo Jorge Scartezzini, A publicidade ilícita e a responsabilidade civil das celebridades
que dela participam, p. 149.
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CONCLUSÃO
Há muito a estudar quando o assunto é publicidade, danos dela decorrentes
e defesa do consumidor.
O consumidor brasileiro deve ser protegido, é o que declara a Lei Maior do
país, e cabe aos estudantes e profissionais do Direito fazer cumprir os mandamentos constitucionais.
O presente trabalho buscou discorrer sobre a publicidade, seus conceitos nos
diversos ramos de atividade, seus sujeitos, suas técnicas, princípios norteadores e,
também, principalmente, sobre a publicidade ilícita (englobando a publicidade enganosa e abusiva) e a responsabilização dela decorrente.
O Brasil é um país pobre, onde poucos de seus habitantes sabem que podem
e devem lutar pelos seus direitos. Infelizmente, aqueles que lutam acabam percebendo que é muito difícil que, realmente, sejam compensados por algum dano sofrido. Assim, deve o consumidor buscar a responsabilidade daqueles que ganham, e
muito, com os anúncios, que são os anunciantes, seguidos das agências e dos veículos de comunicação. Desses, aquele que possuir a quantia suficiente para ressarcir o
dano ao consumidor deve responder por ele, cobrando dos outros o que achar que
lhe é devido, posteriormente.
Somente assim, responsabilizando todos aqueles que possuem relação com o
anúncio, é que o consumidor brasileiro terá como ver, realmente, o seu direito protegido.
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SILVA, J. A. Curso de direito constitucional positivo. 14. ed., São Paulo: Malheiros,
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A impossilbilidade da suspensão dos serviços
públicos essenciais em virtude
da inadimplência
Maurício Augusto de Souza Ruiz
Advogado militante.
Pós-Graduando em curso de especialização em Direito Civil e Processual Civil,
pelo Centro de Pós-Graduação da ITE-Bauru.
INTRODUÇÃO
O Estado soberano possui a responsabilidade de zelar pelos direitos e interesses de seus súditos e da mesma forma possui o poder de coerção, para que estes
cumpram seus deveres, porém estas são características de um estado de direito, no
qual vive a sociedade contemporânea.
O Estado de natureza ou natural, é marcado pelo isolamento dos indivíduos,
vivendo em constante luta. A única lei é a força, o mais forte pode tudo, enquanto
tenha forças para conquistar e manter seus domínios.
O modelo do estado de natureza foi superado há muito tempo, porém atualmente presenciamos em alguns casos, principalmente em litígios contra instituições financeiras e grandes grupos econômicos, o retorno deste, em detrimento do estado de direito.
Para tentar equilibrar a situação das partes, foram criadas normas de proteção
aos direitos do consumidor, sendo a principal, o Código de Defesa do Consumidor
(CDC). O CDC foi criado como mecanismo de regulamentação de direitos e deveres de consumidores e fornecedores, porém até os dias atuais, passados mais de treze anos da promulgação daquele, nos deparamos com situações de total afronta ao
codex consumerista.
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faculdade de direito de bauru
Ao comentar uma pequena fração de um artigo do CDC, nos deparamos com
um enorme problema jurídico-social aparente e comum à sociedade brasileira, a impossibilidade do corte no fornecimento de serviço público essencial na hipótese de
inadimplência.
Para analisarmos tal problema, devemos nos reportar aos conceitos dos princípios constitucionais básicos, bem como a legislação ordinária pertinente.
Em nossa Carta Magna, artigo primeiro, temos o ponto de partida para nossa
reflexão acerca dos serviços públicos e seu dever de continuidade por parte do Estado ou terceiros. Vejamos:
Art. 1 - A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constituise em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I - a soberania;
II - a cidadania;
III - a dignidade da pessoa humana;(destaque nosso)
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V - o pluralismo político.
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por
meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta
Constituição.
Em seu caput temos a forma de estado (Federação), a forma de governo (República), e o regime político (democracia), em seus incisos temos os fundamentos
ou objetivos da República Federativa do Brasil, entre eles estudaremos o princípio
da dignidade da pessoa humana.
O estudo do referido princípio retrata, em si, a própria justificativa do tema
estudado, o dever de continuidade da prestação de serviços públicos essenciais, em
especial o fornecimento de água tratada e energia elétrica
1.
O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
Princípios são fontes do direito, ou seja, são bases para o estudo e interpretação do sistema lógico – legal do ordenamento jurídico vigente.1
1 “Princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para a sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes
partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo” MELLO, Celso Antônio Bandeira.
Elementos de Direito Administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981. p. 230.
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A palavra princípio derivada do latim principium, significa o começo ou o início de algo.2
Princípios são os pilares de sustentação do estado de direito, e muitas vezes
não estão expressos nos textos legais, porém são considerados acima das leis por serem os limites norteadores de criação destas.
O princípio da dignidade da pessoa humana encontra-se localizado no inciso
III, do artigo primeiro de nossa Constituição Federal, promulgada em 1988. O estudo de tal princípio é de suma importância, representando o respeito aos direitos
fundamentais, elencados no artigo 5º da CF/88.
Para José Afonso da Silva, dignidade da pessoa humana é: ”um valor supremo
que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito a
vida”, in Curso de Direito Constitucional Positivo.São Paulo: Malheiros, 14ª edição,
1997.
Decorrendo deste, outros princípios fundamentais ao nosso estudo, tais
como o direito à: vida, à saúde, à honra, não ter tratamento desumano ou degradante, entre outros.
Talvez seja difícil para nós imaginarmos e aceitarmos a hipótese de um lar habitado por várias pessoas, muitas vezes por crianças, onde não haja água ou energia elétrica
(essencial à vida contemporânea), mesmo que os dutos de água encanada e tratada e os
fios de eletricidade passem à porta do local de moradia, mas tais pessoas não possuam
condições financeiras de arcar com as tarifas exigidas pelo Estado ou suas concessionárias, e, por esse motivo, os serviços públicos tidos como essenciais lhes são negados.
Com certeza, não há nada mais humilhante do que um lar sem água e sem eletricidade, em virtude do inadimplemento dos usuários. Ninguém deixa de pagar as
tarifas simplesmente porque quer, mas sim por absoluta necessidade; nosso país
vive, atualmente, uma séria crise financeira com o empobrecimento das classe média e baixa, crescendo a cada dia o nível de desemprego.
Acompanhamos pela mídia, diariamente, a ajuda do governo às instituições financeiras, e para as teles, eletros, entre outras, são concedidos empréstimos e incentivos, que nunca serão pagos, restando perguntar: de onde vem o dinheiro emprestado
a estes grupos? A resposta é simples: da arrecadação do governo com tributos.
Todos os cidadãos pagam involuntariamente tributos, pois ao adquirirmos
quaisquer produtos nos supermercados, embutidos aos preços destes já estão inseridos os tributos e assim em toda cadeia de consumo da sociedade.
2 “No sentido jurídico, notadamente no plural, quer significar as normas elementares ou os requisitos primordiais
instituídos como base, como alicerce de alguma coisa. E assim, princípio revelam o conjunto de regras ou preceitos, que se fixaram para servir de norma a toda espécie de ação jurídica, traçando, assim, a conduta a ser tida em
qualquer operação jurídica. Desse modo, exprimem sentido mais relevante que o da própria norma ou regra jurídica. Mostram-se a própria razão fundamental de ser das coisas jurídicas convertendo-se em perfeitos axiomas. ”DE
PLACIDO E SILVA. Vocabulário Jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 1967. p. 1220.
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faculdade de direito de bauru
O poder emana do povo; dessa forma, o povo é quem detém o poder3, além
do mais a arrecadação é feita com os tributos recolhidos do povo, e tais provisões
são “cedidas” às empresas com condições especialíssimas, nunca vistas ou praticadas ao próprio povo.
O povo recebe, como reciprocidade, a possibilidade permissiva ao Estado ou
suas concessionárias, os cortes nos fornecimentos, de serviços públicos essencias e
garantidos, pelo simples inadimplemento e, muitas vezes, não superam, sequer, meio
salário mínimo. Um verdadeiro absurdo e uma afronta ilegal e inconstitucional.
Vale ressaltar que o modelo de estado liberal, onde cada indivíduo ou entidade age livremente (resgatando o conceito do estado natural e o binômio lei/força),
está sendo gradativamente superado pelo conceito do estado social, onde o indivíduo age pelo bem da sociedade.
O estado liberal sempre vislumbrou o proprietário, atribuindo a este toda liberdade de ação no campo das relações privadas; já no estado social, o foco é o homem (pessoa humana), passando o estado a intervir nas relações entre indivíduos,
mesmo os de natureza privada, regulando-os.
Um exemplo deste modelo é o Código de Defesa do Consumidor, que regula
a maioria dos contratos celebrados pelos indivíduos, tudo para garantir uma melhor
pacificação social e equilíbrio jurídico-social.
2.
CONCEITO E CLASSIFICAÇÃO DOS SERVIÇOS PÚBLICOS
Para podermos conceituar determinado instituto jurídico, é necessário reunir todos os elementos e caracteres deste, para formularmos uma definição acerca do tema.
Em relação a serviço público, temos como elementos e caracteres, a prestação
(dever) pelo estado ou terceiros (concessionárias, permissionárias, etc.) eficaz,
prestado aos administrados em geral, sob regime de direito público, não estando
presentes na esfera privada (salvo educação e saúde), impossibilidade do concessionário invocar a exceptio non adimpleti contractus, para deixar de prestar o serviço,
submetidos aos princípios da legalidade, adaptabilidade, universalidade, impessoalidade, continuidade, modicidade de tarifas.
Nessa linha, propomos o seguinte conceito:
Serviço público, oriundo do dever de administração do Estado é a atividade prestada por este ou por terceiros, de forma eficaz, segura e geral, respeitando os princípios da legalidade, adaptabilidade, universalidade, impessoalidade, modicidade das tarifas e continuidade.
3 Na visão de Jean Jacques Rousseau, o verdadeiro detentor do poder é o povo.
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Os serviços públicos acima definidos podem ser classificados segundo vários
critérios e autores, para fins de nosso estudo o classificaremos apenas quanto à sua
essencialidade, classificando-os como essenciais e úteis.
A Lei nº 7.783, de 12 de junho de 1989, elencou os serviços considerados essenciais à população, dessa forma por exclusão consideramos úteis à sociedade todos os outros serviços públicos prestados pelo Estado.
Vale ressaltar, sejam essenciais ou úteis, os serviços públicos devem ser prestados respeitando os princípios a si inerentes.
São serviços públicos essenciais:
Lei nº 7.783, de 12 de Junho de 1989.
Art. 10 - São considerados serviços ou atividades essenciais:
I - Tratamento e abastecimento de água; produção e distribuição de energia elétrica, gás e combustíveis;(grifo nosso)
II - assistência médica hospitalar;
III - distribuição e comercialização de medicamentos e alimentos;
IV - funerários;
V - transporte coletivo;
VI - captação e tratamento de esgoto e lixo;
VII - telecomunicações;
VIII - guarda, uso e controle de substâncias radioativas, equipamentos e materiais nucleares;
IX - processamento de dados ligados a serviços essenciais;
X - controle de tráfego aéreo;
XI - compensação bancária.
Nessa linha, vemos como serviços públicos essenciais o tratamento e abastecimento de água e, entre outros, como: combustíveis, energia elétrica, gás. Como
retromencionado, para nosso estudo restringiremos apenas ao tratamento e abastecimento de água e geração e distribuição de energia elétrica.
3.
IMPOSSIBILIDADE DE CORTE NO FORNECIMENTO DE SERVIÇOS
PÚBLICOS ESSENCIAIS NA HIPÓTESE DE INADIMPLEMENTO DO
USUÁRIO
Os serviços públicos essenciais, em estudo, o abastecimento de água tratada
e energia elétrica, devem respeitar os princípios gerais do poder público, principalmente o da continuidade.
Podemos afirmar, com certeza, que o fornecimento de água e energia elétrica,
caracterizam-se como os mais essenciais dos serviços públicos, pois a água tratada é
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a base para nossa sobrevivência e saúde, e a energia elétrica indispensável à vida cotidiana, imaginanando-se um lar sem geladeira, não há como armazenar os alimentos que perecerão rapidamente.
Não podemos aceitar a idéia de que, em detrimento aos princípios da dignidade humana e em decorrência deste, o direito à saúde e a vida, daremos preferência ao direito patrimonial da autarquia ou concessionária, atitude muito comum no
já superado modelo de estado liberal, procedendo o corte no fornecimento de água
e energia elétrica em virtude de inadimplemento do usuário.
Os doutrinadores e os Tribunais não firmaram posição unânime acerca do
tema, porém é certo que não podemos em nenhuma hipótese aceitar que um direito patrimonial sobreponha-se ao princípio universalmente aclamado do respeito à
dignidade humana. Em outras palavras, os serviços públicos essenciais, em especial
o fornecimento de água e energia elétrica, não podem ser suspensos por inadimplência do usuário.
Vejamos o posicionamento do tributarista Roque Antonio Carrazza, in Curso
de Direito Constitucional Tributário, 12ª edição, 1999, Malheiros Editores, p. 363.
...o serviço público não comporta nenhum tipo de negociação,
quer da parte do Estado (que é obrigado a prestá-lo, nos termos da
lei), quer dos contribuintes (que, para a ele ter acesso, deve curvarse às exigências legais pertinentes). Aliás, como já enfatizamos, o
fator desencadeante do serviço público não é o pagamento que a
pessoa por ele alcançada faz ao Estado, mas exclusivamente a lei,
que determina sua prestação. Com ou sena pagamento de taxa, o
Estado não pode eximir-se de, em cumprimento à lei, prestálo...por este motivo, a nosso ver, o não pagamento, vg., da taxa de
água não autoriza o corte do fornecimento, pela pessoa que presta este serviço público. Ela deverá valer-se de outros meios jurídicos, como, p. ex., da execução fiscal, para receber o tributo vencido e não pago. Não poderá, no entanto, deixar de prestar, em favor do contribuinte inadimplente, o serviço público de fornecimento domiciliar de água potável, que, justamente porque serviço
público, tem mola propulsora a lei, e não o pagamento da taxa.
O serviço público é prestado em virtude do dever de administração do Estado, conforme nosso conceito retroapresentado, dessa forma decorre de um dever
constitucional do Estado, de mais a mais o corte no fornecimento caracteriza-se
como cobrança vexatória, prática vedada pelo Código de Defesa do Consumidor.
A solução para esse problema seria a criação de mecanismos limitadores de
consumo de energia elétrica e água, como, por exemplo, a criação de hidrômetros
que possuíssem dispositivo que o travasse após o abastecimento de determinada
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quantidade de água, e a cada mês o funcionário que faz a leitura dos hidrômetro
para verificar o consumo, destravaria o mecanismo, para que fosse fornecido novamente a cota mensal mínima necessária à vida humana, assim também com o fornecimento de energia elétrica, restando garantida a prestação do serviço público, e o
respeito às leis e a dignidade do usuário.
Assim, em nenhum momento do presente trabalho, afirmou-se que os direitos do Estado ou suas concessionárias estariam afastados; ao contrário, é certo afirmar que as empresas (públicas ou privadas) que prestam os serviços devem receber, desde que respeitado o princípio da modicidade, a cobrança deve ser feita dentro dos limites ordinários estipulados pela legislação em vigor, qual seja, execução
de seus créditos, além de inserção do nome dos devedores nos serviços de proteção ao crédito, entre outras práticas permitidas ao cidadão comum.
4.
CONCLUSÃO
Concluímos o presente trabalho com a certeza de os serviços públicos essenciais em especial o fornecimento de água e energia elétrica, não poderem ser interrompidos em virtude da inadimplência do usuário.
Tal impedimento decorre do princípio da dignidade humana, desdobrando-se
no direito à vida e à saúde do cidadão. A suspensão do fornecimento, caracteriza-se
como técnica de cobrança coercitiva e vexatória, práticas vedadas pelo CDC.
Além do mais, os serviços públicos são prestados, não em virtude do pagamento da tarifa, mas, em decorrência do dever de administração do Estado, e este
deverá (e não poderá) pessoalmente ou por terceiros (concessionários, permissionários, etc.), ser oferecidos de forma contínua.
Dessa forma, cabem mandados de segurança quanto aos atos abusivos dos administradores que determinarem a suspensão do fornecimento, ou em alguns casos
a ação cominatória quando, por estes, for negada a prestação do serviço.
Nada é mais valioso que a dignidade da pessoa humana, dessa forma não podemos suprimir algo tão importante em razão de interesses meramente patrimoniais.
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REALE, Miguel, O Direito como experiência, São Paulo, Saraiva, 1968.
RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO FRENTE À
INEFICIÊNCIADOS SERVIÇOS PRESTADOS
AOS JURISDICIONADOS
Marcelo Augusto de Souza Garms
Pós-Graduando em Direito Empresarial pelo Centro de Pós-Graduação da ITE-Bauru.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho visa a expor a existência da relação de consumo entre o
Estado por meio do Poder Judiciário e os jurisdicionados, sendo certo que objetivamos demonstrar a Responsabilidade Civil do primeiro, ou seja, do fornecedor, frente à ineficácia dos serviços prestados.
Nesse diapasão, enfocaremos o tema sob a ótica da demora da prestação jurisdicional com os conseqüentes prejuízos que a morosidade pode causar aos jurisdicionados, consumidores dos serviços judiciais, levando-se em conta, ainda, que
estes últimos pagam altos custos para movimentarem a máquina judiciária.
Cabe deixar consignado, que não temos a finalidade de expor os problemas
que o Poder Judiciário está enfrentando atualmente, nem tampouco tentar apresentar as respectivas soluções, mas sim expor o nosso ponto de vista quanto à problemática que diz respeito à deficiência dos serviços públicos prestados pelo mesmo,
diante da regras positivadas na Constituição Federal, no Código de Defesa do Consumidor, e no Pacto de São José da Costa Rica, convenção essa do qual nosso país é
signatário.
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402
1.
CONSIDERAÇÕES GERAIS
Antes de adentrarmos ao tema objeto do presente trabalho, que envolve os direitos dos consumidores, necessário se mostra tecer alguns comentários acerca de
questões que circundam e baseiam as finalidades do estudo em tela.
1.1. Breve comentário acerca da Responsabilidade Civil do Estado em
nosso Ordenamento Jurídico
Primeiramente, é necessário conceituar o instituto da Responsabilidade Civil.
Para tanto, trazemos a lição do nobre jurista SAVATIER, que dispõe como sendo “a
obrigação que pode incumbir uma pessoa a reparar o prejuízo causado a outra,
por fato próprio, ou por fato de pessoas ou coisas que dela dependam.”1
Por sua vez, a professora MARIA HELENA DINIZ conceitua o referido instituto
da seguinte forma:
A responsabilidade civil é a aplicação de medidas que obriguem
uma pessoa a reparar o dano moral ou patrimonial causado a
terceiros, em razão de ato por ela mesma praticado, por pessoas
por quem ela responde, por alguma coisa a ela pertencente ou de
simples imposição legal.2
A Responsabilidade Civil pode ser contratual ou extracontratual, bem
como objetiva ou subjetiva. A responsabilidade contratual é aquela que advém do
descumprimento das obrigações estipuladas contratualmente, onde um dos contraentes descumpre uma obrigação causando prejuízo ao outro contratante, nos termos do artigo 389 do Código Civil de 2002:
Artigo 389. Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado.
Já a responsabilidade extracontratual, também chamada de responsabilidade “aquiliana”, ocorre com a prática de ato ilícito, onde o causador do dano
fica obrigado a repará-lo, conforme a regra descrita no artigo 186 do Novo Código Civil:
1 Traité de la responsabilité civile, Paris, 1939, v. I, n. 1, apud Sílvio Rodrigues, Direito Civil, Responsabilidade Civil, v. 4, pág. 06.
2 Curso de Direito Civil Brasileiro, v. 7, p. 34.
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Artigo 186. Aquele que por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda
que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Para a configuração da Responsabilidade Civil extracontratual, mostra-se inquestionável demonstrar: a ação ou a omissão do agente; a culpa do agente; a relação de causalidade; e o dano experimentado pela vítima.
Quanto à existência ou não de culpa do agente, segundo o magistério abalizado de SÍLVIO RODRIGUES, temos que
na responsabilidade objetiva, a atitude culposa ou dolosa do agente causador do dano é de menor relevância, pois, desde que exista
relação de causalidade entre o dano experimentado pela vítima e
o ato do agente, surge o dever de indenizar, quer tenha este último
agido ou não culposamente.3
Desta forma, para responsabilizar o causador do dano, é necessário que seja
discutido se realmente o lesado suportou algum prejuízo, seja ele de natureza material ou moral, e se este prejuízo adveio do ato praticado pelo infrator; em outras
palavras, se houve o nexo de causalidade entre o ato e o dano. Superado tal obstáculo, se o responsável pelo evento danoso tiver que indenizar a vítima, cumpre indagar qual a forma e as condições para a reparação do prejuízo, para que o lesado
volte ao status quo ante.
Por sua vez, como descrito acima, a Responsabilidade Civil se divide, ainda,
em responsabilidade objetiva, que é aquela fundada na teoria do risco, onde a atitude culposa ou dolosa do agente causador do dano é de menor relevância, devendose provar a relação de causalidade entre o dano sofrido pela vítima e o ato do agente, quer tenha este agido ou não culposamente; e em responsabilidade subjetiva,
que surge da idéia de culpa oriunda do comportamento do sujeito, que agiu culposa ou dolosamente.
Quanto à Responsabilidade Civil do Estado, cabe deixar consignado o regramento contido no artigo 43 do Código Civil em vigor:
Artigo 43. As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis por atos dos seus agentes que nessa qualidade
causem danos a terceiros, ressalvado direito regressivo contra os
causadores do dano, se houver, por parte destes, culpa ou dolo.
3 Responsabilidade Civil, v. 4, pág. 11.
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Este artigo dispõe acerca da responsabilidade objetiva das pessoas jurídicas de
direito público, bem como do direito regressivo que estas possuem em relação aos
seus prepostos quando estes atuarem com culpa ou dolo. Aliás, tal regramento já vinha consagrado desde o texto constitucional de 1934.
Em continuidade, quanto ao instituto da Responsabilidade Civil do Estado, necessário discorrer acerca das teorias da culpa do serviço (ou administrativa, ou falta de
serviço), e do risco, que abrange as teorias do risco administrativo e do risco integral.
A teoria da culpa do serviço traz a idéia de Responsabilidade Civil do Estado
pela culpa do funcionário que exerce atividade pública, indagando-se apenas da falta objetiva do serviço, ou seja, quando o serviço não funcionava, funcionava mal ou
funcionava tardiamente. Então, independe a falha do agente, pois existindo má prestação do serviço que ocasione danos a terceiros, existe a obrigação de o Estado indenizar. Desta forma, cabe ao prejudicado provar a falta ou deficiência do serviço
público. A teoria em debate caracteriza-se como responsabilidade subjetiva.
Seguindo, temos a teoria do risco, que é embasada na idéia da desnecessidade
do elemento culpa para configurar a responsabilidade. A obrigação de ressarcir o dano
prescinde do elemento subjetivo, concentrando-se no elemento objetivo representado pelo nexo de causalidade entre a ação e o dano. De oportuno frisar que não há
como carrear para o Poder Público os ônus de todos os males suportados pela sociedade, pois devem existir limites do dever de vigilância por parte do Estado.
Por sua vez, a teoria do risco administrativo (responsabilidade objetiva do Estado) decorre da obrigação do Estado em recompor os danos que surgem no momento em que se vislumbra o nexo causal entre o dano e o ato lesivo. Desta forma,
não se cogita em demonstrar culpa do agente, pois basta que o prejudicado evidencie o prejuízo que seja atribuído à Administração.
Conforme a teoria do risco integral, a responsabilidade da Administração é admitida em qualquer caso, desde que haja o nexo causal entre o dano e o ato, mesmo que resulte de culpa ou dolo da própria vítima, não se admitindo excludente de
responsabilidade. Essa teoria foi considerada por HELY LOPES MEIRELLES como
modalidade extremada da doutrina do risco administrativo,
abandonada na prática, por conduzir ao abuso e à iniquidade social. Por essa fórmula radical, à Administração ficaria obrigada a
indenizar todo e qualquer dano suportado por terceiros, ainda
que resulte da culpa ou dolo da vítima. Daí por que foi acoimada
de ‘brutal’, pelas graves conseqüências que haveria de produzir se
aplicada na sua inteireza. Essa teoria jamais foi acolhida entre
nós, embora haja quem sustente sua admissibilidade no texto
Constitucional da República.4
4 Direito Brasileiro, pág. 558.
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A Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, definiu a Responsabilidade Civil do Estado como sendo de natureza objetiva, sob a modalidade do risco administrativo, nos termos do § 6º do artigo 37, assim disposto:
§ 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado
prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus
agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
1.2. Serviço Público Eficiente
A Magna Carta, através do disposto no caput do artigo 37, prevê e assegura a
todos um serviço público eficiente. A redação do dispositivo citado anteriormente
foi efetivada pela Emenda Constitucional nº 19, originando a seguinte redação:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos
Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios
obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (...).
Seguindo esses passos, temos que, através da simples leitura do artigo transcrito,
podemos concluir que o objetivo do legislador pátrio foi o de garantir a eficiência dos
serviços públicos prestados pela União, pelos Estados e Municípios, a serem perseguidos por todos os Poderes do Estado, ou seja, Executivo, Legislativo e Judiciário.
A mesma Emenda Constitucional também alterou o disposto no § 3º do referido artigo 37, assim dispondo:
§ 3.º A Lei disciplinará as formas de participação do usuário na administração pública direta e indireta, regulando especialmente:
I – as reclamações relativas à prestação dos serviços públicos em
geral, asseguradas a manutenção de serviço de atendimento ao
usuário e a avaliação periódica, externa e interna, da qualidade
dos serviços;
Portanto, os serviços públicos devem ter qualidade, e, no caso em estudo, a
prestação da tutela jurisdicional deve ser efetivada suprindo as expectativas dos litigantes, em tempo hábil.
De acordo com os ensinamentos do jurista LUÍS GUILHERME CATARINO, o
direito à tutela judicial efectiva não se encontra desligado do factor temporal, concretamente do prazo em que a mesma deve ser
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prestada pelos órgãos jurisdicionais. Um serviço público de Justiça, conformado por direitos e garantias funcionais (meios de acesso, informação, patrocínio, ‘subsidiação’) e processuais-materiais
(direito à acção, ao processo, ao recurso), não dispensa uma garantia processual cuja não verificação condiciona toda a eficácia
e utilidade do sistema: um prazo razoável de duração.5
Sendo assim, JORGE DE OLIVEIRA VARGAS entende que “se o serviço for deficiente, o usuário deve ser indenizado, já que ele é contribuinte (direta ou indiretamente) e tem direito a uma prestação de serviço público de qualidade.”6
Entrando na esfera processual, acerca da devida disponibilidade da Justiça aos
que clamam e custeiam a mesma, trazemos a lição de JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA,7 para quem “o processo deve dispor de instrumentos adequados a todos os
direitos; o resultado da demanda deve assegurar ao vitorioso a utilidade necessária com o mínimo de esforço e gasto”, configurando, assim, um serviço público
judicial de qualidade.
Para um melhor entendimento quanto ao alcance do princípio da eficiência,
o jurista BABYTON PASETTI, em sua obra indigitada “A Tempestividade da Tutela Jurisdicional e a Função Social do Processo”,8 invoca os ilustres estudiosos no direito
Alexandre de Morais, Donaldo Armelin e Canotilho, que discorrem, respectivamente, quanto ao tema em estudo, da seguinte forma:
Assim, princípio da eficiência é aquele que impõe à Administração
Pública direta e indireta e a seus agentes a persecução do bem comum, por meio do exercício de suas competências de forma imparcial, neutra, transparente, participativa, eficaz, sem burocracia e sempre em busca da qualidade, primando pela adoção dos
critérios legais e morais necessários para a melhor utilização possível dos recursos públicos, de maneira a evitar-se desperdícios e
garantir-se uma maior rentabilidade social.
a morosidade da prestação jurisdicional sempre foi uma questão
a desafiar a argúcia e o talento dos cientistas do processo e dos legisladores. A bula Clementina Saepe demonstra que há séculos, tal
problema afligia a todos, tal como ocorre na atualidade. Todavia,
não será ele resolvido apenas através de leis, devendo mesmo se
5 A Responsabilidade do Estado pela Administração da Justiça. O Erro Judiciário e o Anormal Funcionamento,
pág. 382.
6 Responsabilidade Civil do Estado Pela Demora na Prestação da Tutela Jurisdicional, pág. 50.
7 Estudos de Direito Processual em homenagem a José Frederico Marques, pág. 203.
8 A Tempestividade da Tutela Jurisdicional e a Função Social do Processo, págs. 48/49.
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arredar tal enfoque que constitui marca de subdesenvolvimento, o
de se pensar que problemas marcadamente econômicos possam
ter soluções meramente legislativas.
Em termos gerais – e como vem reiteradamente afirmando o Tribunal Constitucional na senda do ensinamento de Manuel de Andrade – o direito de acesso aos tribunais reconduz-se fundamentalmente ao direito a uma solução jurídica de actos e relações jurídicas controvertidas, a que se deve chegar um prazo razoável e
com garantias de imparcialidade e independência possibilitandose, designadamente, um correcto funcionamento das regras do
contraditório, em termos de cada uma das partes poder deduzir as
suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e resultado
das causas e outras. Significa isto que o direito à tutela jurisdicional efectiva se concretiza fundamentalmente através de um processo jurisdicional equitativo – due process – (...)
Assim sendo, temos que o processo e, conseqüentemente, os serviços prestados pelo judiciário, devem ser, sobretudo, eficientes, não bastando apenas uma
decisão correta, mas, também, uma tutela tempestiva, pois assim assegura a Lei
Maior.
1.3. O Monopólio da Jurisdição e suas Conseqüências
Nos primórdios da humanidade, o homem, para satisfazer os seus desejos
pessoais ou alheios, valia-se do uso da força. Nesses tempos tão remotos, prevalecia
a “lei do mais forte”, que, conseqüentemente, dominava o mais fraco.
Com o passar dos tempos, e com a devida evolução das sociedades, unidas
para conseguirem melhores condições de vida, enfim, o Estado passou a reger a
relação dos seres humanos, assumindo a obrigação de prestar a correspondente
tutela jurisdicional, proibindo a auto-realização do direito, objetivando, assim, suprir – ou ao menos amenizar – a desigualdade que existe entre as diversas classes sociais.
Segundo o artigo 345 do Código Penal Brasileiro, praticar o exercício arbitrário das próprias razões é ilícito passível de punição. Senão vejamos:
Art. 345. Fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei permite:
Pena – detenção, de 15 (quinze) dias a 1 (um) mês, ou multa, além
da pena correspondente à violação.
408
faculdade de direito de bauru
Portanto, cabe somente ao Estado a administração da Justiça que deve ser efetivada da melhor forma possível, sendo certo que ninguém deve ser juiz e parte ao
mesmo tempo, em outras palavras, fazer justiça com as próprias mãos.
O Estado, ao vedar a autotutela, obrigou-se a solucionar os diversos litígios.
Desta forma, o tempo de duração do processo não pode servir de empecilho à realização plena do direito do jurisdicionado, tendo o Estado a obrigação de prestar a
adequada tutela jurisdicional. Com efeito, os direitos à prestação jurisdicional efetiva e ao procedimento adequado são corolários do due process of law.
Resta claro, então, que a demora na prestação jurisdicional corresponde a um
vício do serviço exercido pelo Poder Judiciário. A lentidão da justiça é um fator agonizante para os que esperam uma decisão, puro reflexo de um Estado falido, pois o
fator tempo é o principal motivo da crise do Judiciário.
A duração excessiva de uma demanda constitui fenômeno que propicia a desigualdade, é fonte de injustiça social, porque a resistência do pobre é menor do
que a do rico, pois este último, em regra, pode aguardar sem sofrer grave dano.
Comentando a função social que possui a jurisdição e o processo, trazemos a
lição do ilustre processualista LUIZ GUILHERME MARINONI, para quem:
A demora excessiva do processo não se coaduna com o princípio
da igualdade substancial. O cidadão comum tem o direito a uma
resposta jurisdicional dentro de um prazo razoável, ou seja, dentro de um prazo que permita a realização efetiva do seu direito. A
morosidade é fator extremamente estimulante da descrença do
povo na justiça. Não são raras as vezes que o cidadão comum se
vê desestimulado ao recorrer ao Poder Judiciário por reconhecer
a sua lentidão, ou os males da litispendência.9
Nessa esteira de silogismo, temos que o Estado, único legitimado para a satisfação da justiça, deve fazê-la da melhor forma possível, pois avocou para si o direito
de reger as relações dos seus respectivos cidadãos através da elaboração das leis pertinentes, bem como regendo a efetividade da prestação da tutela jurisdicional, sob
pena de ser responsabilizado pelas falhas existentes no Poder Judiciário que ocasionam a tão odiosa morosidade da justiça nacional.
1.4. Do Pacto de São José da Costa Rica e seus Reflexos em nosso Direito Positivo
A Convenção Americana dos Direitos Humanos, assinada em 22 de novembro de 1969, e ratificada pelo Brasil em 25 de setembro de 1992, também conhe9 O acesso á justiça e os institutos fundamentais do direito processual, pág. 277.
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n.
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cida como Pacto de São José da Costa Rica, dispõe, entre outros dispositivos, que
visam a assegurar os direitos fundamentais dos serem humanos, no § 1º do artigo 8º, o seguinte:
§ 1.º Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por
lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra
ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.
Tais preceitos indicam a obrigatoriedade por parte do Estado de satisfazer a
pretensão dos jurisdicionados de uma forma célere, isto é, em um prazo razoável.
O dispositivo acima transcrito veio complementar o princípio do acesso à Justiça, e tem aplicabilidade em nosso ordenamento jurídico nos termos do regramento contido no § 2º do artigo 5º da Magna Carta:
§ 2.º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
O dispositivo em estudo, tratado pelo pacto em tela, é auto-aplicável em nosso país, segundo o § 1º do artigo 5º da Constituição Federal, pois o mesmo diz respeito aos direitos e garantias fundamentais. Vejamos, então, a redação da norma
constitucional descrita:
§ 1º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais
têm aplicação imediata.
Para que não pairem dúvidas quanto à efetiva aplicabilidade da norma prevista no § 1º do artigo 8º do Pacto de São José da Costa Rica, em nossa organização judiciária, vale trazer, na parte que interessa, o artigo denominado “Contribuições Previdenciárias. Não recolhimento, art. 95, ‘d’, da Lei 8.212/91. Inconstitucionalidade”10
de autoria do jurista CLÈMERSON MERLIN CLÈVE, onde o mesmo invoca a lição de
ANTÔNIO AUGUSTO CANÇADO TRINDADE, quanto à matéria em testilha. Senão
vejamos:
10 Contribuições Previdenciárias. Não recolhimento, art. 95, ‘d’, da Lei 8.212/91. Inconstitucionalidade, pág. 527.
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faculdade de direito de bauru
se para os tratados internacionais em geral, se tem exigido a intermediação pelo Poder Legislativo de ato com força de lei de modo a
outorgar às suas disposições vigência ou obrigatoriedade no plano
do ordenamento jurídico interno, distintamente no caso dos tratados de proteção internacional dos direitos humanos em que o Brasil
é parte, os direitos fundamentais nele garantidos, consoante arts. 5º
(2) e 5º (1) da Constituição de 1988, passam a integrar o elenco dos
direitos constitucionalmente consagrados e direta e imediatamente
exigíveis no plano do ordenamento jurídico interno.
(...)
Ou seja, com a Constituição de 1988 o Brasil que tradicionalmente
vinha aceitando a tese da necessidade de intermediação legislativa
(recepção) como meio de incorporação do direito internacional ao
direito interno (concepção dualista), passa a adotar um sistema misto, segundo o qual a sistemática anterior permanece em relação a todos os tratados, salvo aqueles envolvendo direitos humanos. Neste
caso, diante do que especifica o art. 5º, §§ 1º e 2º da Lei Fundamental da República, ocorrerá incorporação automática do tratado internacional concluído pelo país (concepção monista).
Ante o exposto, temos que o Pacto de São José da Costa Rica não necessita de
qualquer intervenção do Poder Legislativo para vigorar em nosso ordenamento jurídico, pois se trata de norma com aplicação imediata. Assim, podemos concluir que
o Estado fere, também, os princípios e as finalidades estipulados na Convenção
Americana sobre Direitos Humanos, pois este ignora a atual situação do Poder Judiciário, e via reflexa, o desespero dos que clamam por uma justiça célere e que respeite os fins sociais e os direitos e garantias fundamentais dos cidadãos.
Segue daí, então, a necessidade de novamente trazermos a lição do jurista CATARINO, para quem a
tutela judicial efectiva não pode ser vista como um direito sem
conteúdo temporal; é certamente duvidoso que exista constitucionalização dos prazos processuais, de tal forma que um mero incumprimento dos prazos processuais leve à violação daquele direito fundamental. Mas não se pode distinguir entre o direito à tutela judicial justa e o direito a um processo sem dilações temporais
indevidas.11
11 A Responsabilidade do Estado pela Administração da Justiça. O Erro Judiciário e o Anormal Funcionamento, pág. 384.
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A RESPONSABILIDADE OBJETIVA NO CÓDIGO DE DEFESA DO
CONSUMIDOR
A Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, dispõe acerca da proteção dos consumidores, e, sendo assim, oportuno se mostra definir o mencionado status. Para
tanto, traremos, primeiramente, a conceituação legal inserida no artigo 2º da lei em
comento:
Art. 2.º Consumidor é toda a pessoa física ou jurídica que adquire
ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.
Parágrafo único. Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações
de consumo.
Prosseguindo, por se tratar de matéria de difícil conceituação, transcrevemos
o entendimento de alguns juristas acerca da conceituação de consumidor, ensinamentos esses extraídos do livro intitulado “A proteção jurídica do consumidor”, de
autoria do nobre jurista JOÃO BATISTA DE ALMEIDA. Então, vejamos:
Consumidor, sob o ponto de vista econômico – assinala Filomeno
–, é ‘todo indivíduo que se faz destinatário da produção de bens,
seja ele ou não adquirente, e seja ou não, a seu turno, também
produtor de outros bens’. O conceito abrange, pois, não apenas
aquele que adquiri para uso próprio, ou seja, o destinatário final,
como aquele que o faz na condição de intermediário, para repasse a outros fornecedores. Daí a inconveniência de transplantar-se
a concepção econômica de consumidor para o campo jurídico
Vários autores nacionais lançaram-se à tarefa de expressar o conceito jurídico de consumidor.
Na visão do Prof. Waldirio Bulgarelli, consumidor é ‘aquele que se
encontra numa situação de usar ou consumir, estabelecendo-se,
por isso, uma relação atual ou potencial, fática sem dúvida, porém a que se deve dar uma valorização jurídica, a fim de protegêlo, quer evitando quer reparando os danos sofridos’.
Já para Othon Sidou, consumidor é ‘qualquer pessoa natural ou
jurídica, que contrata, para sua utilização, a aquisição de mercadoria ou a prestação de serviço, independentemente do modo de
manifestação de vontade, isto é, sem forma especial, salvo quando
a lei expressamente a exigir’.
O Prof. Fábio Konder Comparato, a seu turno, conceitua consumidores como aqueles ‘que não dispõem de controle sobre bens de
faculdade de direito de bauru
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produção e, por conseguinte, devem se submeter ao poder dos titulares destes’.
Antonio Hermen de V. Benjamín debruçou-se exaustivamente sobre o tema, discorrendo de forma detalhada sobre o conceito jurídico de consumidor, para exprimi-lo como sendo ‘todo aquele
que, para seu uso pessoal, de sua família, ou dos que se subordinam por vinculação doméstica ou protetiva a ele, adquire ou
utiliza produtos, serviços ou quaisquer outros bens ou informação colocados à sua disposição por comerciantes ou por qualquer outra pessoa natural ou jurídica, no curso de sua atividade ou conhecimento profissionais’.12
Para o estudo em tela, também se mostra necessário conceituar a idéia de fornecedor, estribada no artigo 3º do Código de Defesa do Consumidor. Vejamos:
Art. 3.º Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.
Da mesma forma, o § 2º da regra apontada acima dispõe sobre serviços:
§ 2.º Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária,
financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.
Seguindo os preceitos fornecidos pelos dispositivos legais apontados, temos
o Estado como pessoa jurídica de direito público e prestador de serviço, seguindo,
daí, a conclusão de que existe vínculo jurídico Estado-jurisdicionado, e tal corresponde a relação de consumo, sujeita às normas previstas no mencionado Código de
Defesa do Consumidor.
Comentando os dispositivos transcritos anteriormente, JORGE DE OLIVEIRA
VARGAS discorre que:
O Estado, através do Poder Judiciário, presta um serviço público, que é a prestação da tutela jurisdicional. Os jurisdicionados
12 A proteção jurídica do consumidor, págs. 27/28.
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são os consumidores deste serviço, o qual não decorre de relações de caráter trabalhista, e este serviço é remunerado quer
através do pagamento dos tributos em geral, pois se trata de serviço público essencial, quer através do recolhimento da taxa judiciária.13
Nesses passos, necessário retratar o consignado na seção II da lei em evidência, acerca “Da Responsabilidade pelo Fato do Produto e do Serviço”, mais precisamente no artigo 14 e seu respectivo § 1º:
Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da
existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem
como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua
fruição e riscos.
§ 1.º O serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que o
consumidor dele pode esperar, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais:
I – o modo de seu fornecimento;
II – o resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam;
III – a época em que foi fornecido. (...).
Portanto, temos que “o atraso na Administração da Justiça é uma das faces
mais visíveis daquilo a que podemos considerar de defeituoso ou anormal funcionamento do Estado-Juiz.”14
Isto significa dizer que o serviço judiciário é defeituoso quando não fornece
ao jurisdicionado o resultado que razoavelmente dele se espera. O resultado esperado não diz respeito ao resultado da demanda (procedência ou improcedência do
pedido), mas o resultado de haver uma resposta do Judiciário – positiva ou negativa – em relação ao pleito formulado, em tempo razoável.
No mesmo sentido, sempre afirmou GOMES CANOTILHO a necessidade da interpretação das normas processuais com um sentido
conforme com os direitos, liberdades e garantias constitucionalmente protegidos – devendo o direito a um processo sem dilações
indevidas ser considerado ‘como um direito constitucionalmente
consagrado, com carácter autónomo ou como dimensão constitu13 Responsabilidade Civil do Estado Pela Demora na Prestação da Tutela Jurisdicional, pág. 70.
14 A Responsabilidade do Estado pela Administração da Justiça. O Erro Judiciário e o Anormal Funcionamento, pág. 381.
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tiva do direito à tutela judicial efectiva e que tem como destinatários passivos todos os órgãos do poder judicial.15
Se o Judiciário não fornecer a resposta em tempo razoável, sempre tendo em
mente a complexidade do caso estudado, o serviço é defeituoso, e os prejuízos daí
decorrentes indicam o dever de o Estado indenizar, independentemente da existência de culpa, nos termos da teoria da responsabilidade objetiva, prevista constitucionalmente e anteriormente definida.
CONCLUSÃO
A prestação da tutela jurisdicional efetiva deve ser entregue em tempo hábil
para alcançar os fins sociais que dela se espera e que são de responsabilidade estatal, na medida em que se mostra necessária a cessação de situações de incerteza sobre a posição jurídica dos litigantes que utilizam o Poder Judiciário para a satisfação
dos seus direitos.
Uma Justiça morosa viola as leis em vigência no nosso ordenamento jurídico,
sendo que o excesso da dilação temporal fere frontalmente não apenas as normas
consumeristas, mas acima de tudo a Constituição Federal. A intempestividade judicial também desrespeita os preceitos contidos no Novo Código Civil e, ainda, na
Convenção Americana dos Direitos Humanos.
O Poder Judiciário encontra-se nesta situação caótica devido à irresponsabilidade, ou mesmo incapacidade dos nossos governantes. A Administração pública virou as costas para a Justiça, pois deixou de investir no Poder Judiciário de forma que
fizesse este acompanhar a evolução da sociedade e dos seus respectivos problemas.
Sendo assim, e diante dos dispositivos legais apresentados no discorrer deste trabalho, não devemos considerar que o mau funcionamento do Poder Judiciário dá-se
em razão de todo e qualquer atraso ou descumprimento dos prazos processuais. Porém, tendo o Estado o monopólio do poder jurisdicional, e reconhecendo aos cidadãos
o direito a uma tutela jurisdicional tempestiva, também não é suportável o entendimento segundo o qual os prazos que a tornam efetiva possam ser violados.
No que diz respeito à relação de consumo Estado-jurisdicionado, temos que
esta foi devidamente demonstrada no capítulo pertinente, pois a Administração pública é fornecedora dos serviços jurisdicionais, e os cidadãos consumidores do mesmo. Portanto, o Estado deve ser responsabilizado pela deficiência do serviço prestado pelo Poder Judiciário, conforme a falha apresentada e os danos causados, nos termos da responsabilidade civil estatal objetiva prevista no § 6º do artigo 37 da Constituição Federal.
15 A Responsabilidade do Estado pela Administração da Justiça. O Erro Judiciário e o Anormal Funcionamento, pág. 385.
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A título de exemplificação, levantamos a hipótese de um transgressor que fica
preso além do lapso temporal imposto pela pena que recaiu sobre sua pessoa em
virtude da demora na expedição ou cumprimento do alvará de soltura. Durante esse
intervalo injusto de cárcere privado, ocorre uma rebelião no presídio, e em razão
disso ele é gravemente ferido por marginais de alta periculosidade que escaparam
de celas vizinhas. Esses fatos, aliados à demora do Poder Judiciário, sem sombra de
dúvida causaram danos ao citado transgressor, originando daí o dever de o Estado
indenizá-lo.
Portanto, temos que o Estado deve investir para modernizar o Poder Judiciário, ampliando e aperfeiçoando os serviços prestados, de forma a oportunizar aos
jurisdicionados uma prestação jurisdicional tempestiva. Do contrário, estaremos
cada vez mais longe da função social do processo, pois justiça tardia é injustiça.
BIBLIOGRAFIA
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PASETTI, Babyton. A Tempestividade da Tutela Jurisdicional e a Função Social do
Processo, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002.
RODRIGUES, Sílvio. Direito Civil, Responsabilidade Civil, v. 4, 19ª ed., São Paulo: Saraiva, 2002.
RESPONSABILIDADE CIVIL DO ADVOGADO perante
O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
Cesar Augusto Alves de Carvalho
Graduado pela Faculdade de Direito de Bauru.
Pós-Graduando em Direito Civil e Processoal Civil.
Advogado militante.
RESUMO
O presente estudo visa tão-somente a esclarecer a responsabilidade civil do
advogado à luz do Código de Defesa do Consumidor, Lei 8.078/1990.
Longe de se querer esgotar referido tema, teremos como norte a responsabilidade civil subjetiva e suas peculiaridades, fazendo breve paralelo com a responsabilidade civil objetiva, sempre tendo como suporte eméritos doutrinadores que
divagam pelo assunto com enorme propriedade.
1.
APRESENTAÇÃO
O Direito do Consumidor, principalmente no que concerne à temática dos aspectos da responsabilidade civil que lhe estão inseridos, tem despertado um interesse crescente não só no Brasil, mas em nível mundial. A própria realidade social tem
dado palco para esse despontar como importante ciência jurídica. Sintomaticamente,
estudos e obras dos mais variados autores têm surgido, até com considerável freqüência, de modo que o patrimônio cultural sobre os referidos temas tem crescido substancialmente. Como nos parece que esses assuntos são passíveis de permanente evolução, resolvemos eleger, como tema de nosso trabalho, o estudo de um aspecto se-
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torizado dentro dessa análise, tanto quanto possível detalhada, selecionamos o tema
pelo que de mais instigante e pouco explorado nos parece ele conter. Chegamos, assim, à responsabilidade dos advogados perante o Código de Defesa do Consumidor.
A problemática da responsabilidade, por si só, é capaz de atrair, e dentro do Direito do Consumidor mais ainda. Por fazer conviver, tanto um complexo universo de relações econômicas cujas nuanças têm de ser devidamente consideradas, quanto importantíssimos aspectos jurídicos da responsabilidade civil no tocante ao Direito do Consumidor, a responsabilidade civil do advogado acabou por receber nossa predileção.
Embora sem pretensões de ineditismo ou de produzir uma obra irretocável, vimos, nessa área de estudo, pouco visada desde a edição do CDC, a possibilidade de fazer uma abordagem mais detida, capaz de buscar as peculiaridades próprias das relações de consumo envolvendo os advogados como fornecedores, consoante o estipulado pelo próprio Código. Cientes das limitações deste trabalho, mesmo assim a ele nos
dedicamos, não apenas por um dever acadêmico, mas, igualmente, pela vontade consciente de também tentar contribuir com alguma criação cultural, ainda que modesta,
para o aumento do estudo desse tema, que não tem sido a preferência da doutrina.
Ao buscar a especificidade, nosso desiderato foi o de tentar examinar, mais detalhadamente, o objeto proposto, sempre lembrando que, embora bastante específico,
nesse tema ligam-se aspectos de um número substancialmente expressivo de relações
sociais. Não são poucas as pessoas envolvidas: dos profissionais do direito, que, sob
essa condição fornecem serviços, aos clientes consumidores que os contratam, passando pelos terceiros porventura atingidos até, de forma indireta, toda a sociedade. Sendo fornecer serviços uma necessidade econômica e consumi-los, um desígnio do ser
humano, preocupar-se com as relações de consumo é quase uma imposição, mesmo
que, com freqüência, passe quase despercebida. Nem todos atentam para esse fato,
mas quem é fornecedor consciente de seus deveres não o olvida, bem como quem necessitou de um fornecimento e foi mal-servido, não esquece.
Quer queiramos ou não, a qualidade de nossas relações de consumo costuma
traçar muitos dos rumos de nossas vidas.
2.
OBJETIVO
O presente trabalho tem como objetivo principal, o estudo da responsabilidade
do advogado, apenas no âmbito civil e, quando pessoal, nos termos da legislação específica do Código de Proteção e Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078 de 11/09/1990).
A responsabilidade civil do advogado, em situações diversas das que estritamente o atingem na condição específica de fornecedor de serviços, não será aqui analisada.
Por respeito à linha estabelecida para o trabalho, apenas esporadicamente e
quando julgarmos muito oportuno e necessário é que mencionaremos situações diversas daquelas, salientando que, às vezes, não há mesmo como fugir de um pequeno desvio, sendo este útil à elucidação de pontos incluídos no tema.
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São, portanto, os aspectos da responsabilidade civil de ordem pessoal decorrentes de relações de consumo protagonizadas por profissionais do direito e seus
consumidores o objeto do nosso estudo.
Cumpre salientar que o presente estudo é de pesquisa bibliográfica, apresentando uns poucos tópicos de natureza exploratória.
3.
HISTÓRICO DA RESPONSABILIDADE CIVIL
É de grande relevância, antes de adentramos ao assunto à que nos propomos,
retroagirmos no tempo, até os primórdios da civilização humana, onde também se
inicia a responsabilidade civil propriamente dita.
Assim informa Maria Helena DINIZ1, com apoio em farta bibliografia, que, nos
primórdios da civilização humana, dominava a vingança coletiva, a qual se caracterizava pela reação conjunta do grupo contra o agressor que praticasse ofensa a um de
seus componentes. Nesse momento, o homem estava começando a viver em grupos e em constante peregrinação à procura de alimento, clima mais adequado, até
o momento em que começou a plantar e criar animais, fixando, dessa forma, a moradia em determinada localidade. Entretanto, a vida continuou ainda muito rude e
a regra do grupo, que impunha a vingança coletiva, sujeitava a todos os seus componentes. Pouco a pouco, com a estabilização do homem convivendo em coletividade, a reparação foi transmutando para o sistema da vingança privada. Com isso, o
indivíduo tinha o direito de se vingar pelo dano causado, com o apoio de toda a coletividade. Claro que essa mudança pouco veio a somar, pois o indivíduo reparava o
mal através do mal. Há certos ditos populares que advêm dessa época como: “olho
por olho, dente por dente” e “quem com ferro fere com ferro será ferido”, representando bem o lema da época.
Caio Mário da Silva PEREIRA2, citando Leonardo A. Colombo, acrescenta que:
vem do ordenamento mesopotâmico, como do Código de Hamirabi, a idéia de punir o dano, instituindo contra o causador um sofrimento igual; não destoa o Código de Manú, nem difere essencialmente o antigo direito Hebreu.
Conclui-se que a idéia de punir o mal com o mal era, portanto, comum naquela época.
Com o evolução, começaram a perceber que, após as punições do ofendido
ao seu ofensor, muitos deles acabavam mutilados e incapazes de sustentar a si e a
1 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, v. 7: responsabilidade civil / Maria Helena Diniz. 17 ed.
Aum. e atual. de acordo com o novo Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2003.
2 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade civil. 3. Ed., Rio de Janeiro: Forense, 1992, p. 1.
420
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seus familiares, resultando em ônus para a sociedade, pois seria ela quem passaria a
sustentá-los e as suas famílias.
Surgiu, então, a fase da composição. Nela se fazia a reparação da ofensa mediante o pagamento de certa quantia em dinheiro. Se o delito fosse contra a coisa
pública, ao Poder Público revertia-se o pagamento. Caso o delito fosse contra o particular, a ele era direcionado o pagamento. Nesse momento, era a autoridade pública que fixava o valor a ser pago pela reparação da ofensa.
Aos poucos, foi sendo sedimentada a idéia de reparação do dano através da
utilização do patrimônio do ofensor. Na composição, abandonaram-se agressivos
instintos do homem primitivo; inseriram-se, no lugar deles, o sentimento de que ao
prejudicado era mais conveniente esquecer a retaliação e entrar em composição
com o autor da ofensa para obter a reparação.
Prosseguindo em sua evolução, a sociedade inclinou-se para a composição tarifada, imposta pela Lei das XII Tábuas que, para certos casos, fixava a pena a ser
paga pelo ofensor. Era ainda a fase da responsabilização estabelecida diretamente
em casos concretos.
Foi só com a Lei AQUILIANA (ano de 286 A.C.) que a idéia da reparação pecuniária firmou-se definitivamente, bem como se estabeleceu a base da responsabilidade extracontratual.
L. P. Moitinho de ALMEIDA, por exemplo3, assim se expressa:
No direito romano nunca se estabeleceu a distinção entre responsabilidade contratual e responsabilidade extracontratual. A Lex
Aquilia apenas se aplicava quando o prejuízo havia sido causado
por um facto positivo e, sobretudo, na responsabilidade contratual, o prejuízo é muitas vezes causado por omissão.
Maria Helena DINIZ4 anota que a reparação prevista na Lei Aquilia era, inicialmente, só aplicável aos danos causados a bens alheios. Contudo, mais tarde veio a
ser aplicada aos danos causados por omissão ou verificados sem o estrago físico e
material da coisa.
Conforme diz Caio Mário amparado em Malaurie e Aynès5: “A partir de quando a autoridade pública assegura a punição do culpado, o aspecto civil se dissocia do penal”. Assim, passado o momento da vingança privada e já dentro da composição, começou a responsabilidade a ser reconhecida em espectro mais amplo e
com matizes mais variados.
3 ALMEIDA, L. P. Moitinho de. Responsabilidade civil dos advogados. Coimbra: Coimbra Editora, 1985, p. 9.
4 DINIZ, Maria Helena. Curso..., op. cit., p. 9-10.
5 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Op. cit., p. 3. A obra francesa a que se refere é o Cours de Droit Civil – Les Obligations, n. 12.
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O consagrado José de Aguiar DIAS é muito apropriado ao dizer:
Traçada em síntese, é esta, pois, a evolução da responsabilidade civil no direito romano: da vingança privada ao princípio de que a
ninguém é licito fazer justiça pelas próprias mãos, à medida que
se afirma autoridade do Estado; da primitiva assimilação da pena
com a reparação, para a distinção entre responsabilidade civil e
responsabilidade penal, por insinuação do elemento subjetivo da
culpa, quando se entremostra o princípio nulla poena sine lege.
Sem dúvida, fora dos casos expressos, subsistia na indenização o
caráter de pena. Mas os textos autorizadores das ações de responsabilidade se multiplicavam, não só os danos materiais, mas também os próprios danos morais.6
Foram séculos de evolução, mas no que pertine ao estudo a que nos propusemos a explorar, parece importante que, dentro dessa breve resenha histórica, delimitemos ainda um pouco mais, de modo a nos deter com maior atenção nos fatos
componentes do surgimento e evolução da responsabilidade civil de natureza contratual, direcionando o enfoque principal para o elemento culpa, que reinou absoluto no passado como o fundamento essencial a qualquer responsabilização.
Seguindo-se nessa entoada, um dos momentos mais relevantes da história da
responsabilidade civil é a solidificação, na Idade Média, de que o elemento subjetivo da culpa foi introduzido contra o objetivismo do direito primitivo. Assim foi feliz
José de Aguiar quando disse:
No Código Civil francês, tem a legislação moderna o seu modelo e
inspiração. Antes, porém, que surgisse esse monumento jurídico, o
direito francês já exercia sensível influência nos outros povos. De
interesse geral, portanto, recordar que, aperfeiçoando, a pouco e
pouco, as idéias românticas, ele estabeleceu nitidamente um princípio geral da responsabilidade civil, abandonando o critério de
enumerar os casos de composição obrigatória. Os Mazeaud, ressaltando a conquista francesa, fazem o confronto: a lei Aquilia
nunca pode abranger senão o prejuízo visível, material, causado
a objetos exteriores, ao passo que daí em diante se protege a vítima
também contra os danos que, sem acarretar depreciação material, dão lugar a perdas, por impedirem ganho legítimo. A actio
doli exigia a culpa caracterizada. No direito francês evoluído, a
6 DIAS, José de Aguiar. Responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Forense, 1979, v. 1, p. 1-3.
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reparação independe da gravidade da culpa do responsável. Domat, referido pelos mesmos tratadistas, precisa seu pensamento ao
estabelecer a categoria da culpa de que pode provir o dano: a que
acarreta, a um tempo, a responsabilidade penal do agente, perante o Estado, e a responsabilidade civil, perante a vítima; a das pessoas que descumprem as obrigações, culpa contratual; e a que não
se liga, nem a crime, nem a delito, mas se origina da negligência
ou imprudência. Era a generalização do princípio aquiliano: “In
lege Aquilia et levissima culpa venit.7
O Código Napoleônico se baseou nas lições de Domat e Pothier para escrever
os artigos 1.382 e 1.383. A responsabilidade civil, fundamentada na culpa, partiu daí
para inserir-se na legislação de todo o mundo. Maria Helena DINIZ relata que:
Mas a teoria da responsabilidade civil só se estabeleceu por obra
da doutrina, cuja figura dominante foi o jurista francês Domat
(Lois civiles, Liv. VIII, Seção II, artigo 1º), responsável pelo princípio
geral da responsabilidade civil: ‘Toutes les pertes et tous les dommages Qui peuvent arriver par le fait de quelque personne, soit imprudence, légéreté, ignorance de ce qu’on doit savoir, ou outres fautes semblables, si légères qu’elles puissent être, doivent être réparées par celui dont I’imprudence ou autre faute y a donné lieu’. Essa
idéia veio a ser adotada pelo artigo 1.382 do Código Civil francês,
que prescreve: ‘Tout fait quelconque de I’homme, Qui cause à autrui
un dommage, oblige celui par la faute duquel il est arrivé, à le réparer’, influenciando quase todas as legislações que estabeleceram
como seu fundamento a culpa.8
José de Aguiar9 expõe que a teoria da culpa
satisfez por dilatados anos a consciência jurídica, e é, ainda hoje,
tão influente que inspira a extrema resistência oposta por autores
insignes aos que ousam proclamar a sua insuficiência em face das
necessidades criadas pela vida moderna, sem aludir ao defeito da
concepção em si mesma
7 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. 6. Ed., São Paulo: Saraiva, 1982, v. 4, p. 2.
8 DINIZ, Maria Helena. Curso ..., cit., v. 7, p. 11.
9 DIAS, José de Aguiar, Da responsabilidade..., op. cit., v. 1, p. 42.
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n.
41
423
3.1. Responsabilidade civil
A responsabilidade civil vem como a obrigação que pode incumbir uma pessoa a reparar o prejuízo causado a outra, por fato próprio, ou por fato de pessoas
ou coisas que dela dependam.
Como avalia Silvio RODRIGUES10, o problema é saber se o prejuízo experimentado pela vítima deve ou não ser reparado por quem o causou. Sendo afirmativa, deve-se questionar de que maneira será referido prejuízo reparado. É esse o campo que a teoria da responsabilidade civil procura cobrir.
Assim é definida a responsabilidade civil pela Academia Brasileira de Letras11,
“é a imposição de reparar o dano causado a outrem, quer em razão da obrigação assumida (inexecução obrigacional), quer por inobservância de norma jurídica (responsabilidade extracontratual)”.
Ao tentarmos conceituar a responsabilidade civil, verificamos que diversos autores o tentaram, sem, contudo, finalizar o tema; o próprio Pontes de MIRANDA
questiona como caracterizar a responsabilidade e, incursionando por códigos e doutrinas, deixa sem resposta a indagação.
Para a professora Maria Helena DINIZ12:
a responsabilidade civil é a aplicação de medidas que obriguem
uma pessoa a reparar o dano moral ou patrimonial causado a
terceiros, em razão de ato por ele mesmo praticado, por pessoas
por quem ele responde, por alguma coisa a ele pertencente ou de
simples imposição legal.
Villaça de AZEVEDO13 entende que a responsabilidade civil é a situação de indenizar o dano moral ou patrimonial, decorrente do inadimplemento culposo, de
obrigação legal ou contratual, ou imposta por lei.
3.2. A responsabilidade civil nas relações de consumo
O Código de Defesa do Consumidor brasileiro, Lei 8.078/90, adotou, como regra geral, a responsabilidade objetiva, com base na teoria do risco, em que a obrigação de ressarcir aparece como conseqüência do nexo causal entre o proceder do
agente e o dano resultante.
10 RODRIGUES, Silvio. Direito civil: responsabilidade civil. São Paulo: Saraiva, 2002, v. 4, p. 6.
11 Dicionário Jurídico. 4 ed. Ac. Brasileira de Letras Jurídicas. Forense.
12 In Curso de Direito Brasileiro. 11. ed., v. 7, Saraiva.
13 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Teoria geral das obrigações. Ed. RT, 1994.
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424
3.2.1. Responsabilidade civil objetiva
O que se entende por responsabilidade civil objetiva? Entendemos que aquele que cria um risco de dano a terceiros deve ser obrigado a repará-lo, ainda que sua
atividade e o seu comportamento seja isento de culpa. Basta haver relação de causa
e efeito entre o comportamento do agente e o dano causado à vitima. Se configurado o dano, então a vítima deve ser indenizada.
Verifica-se que, na responsabilidade objetiva, o dolo ou a culpa não tem maior
relevância, pois como já dito, basta o nexo causal entre o dano e o ato para nascer
o dever de indenizar.
Tupinambá Miguel Castro do Nascimento define a responsabilidade civil objetiva da seguinte forma:
Assim, a responsabilidade é objetiva – isto é, passa a independer da
culpa, por exemplo, para as pessoas jurídicas de direito público pelos danos ocasionados, culposamente ou não, por seu agente (art. 37,
§ 6º da Constituição). Identicamente, há a responsabilidade por danos nucleares (art. 21, XXIII, letra ‘c’, da Constituição – ‘a responsabilidade da previdência civil por danos nucleares independe da existência de culpa’). Na lei infraconstitucional, é objetiva a responsabilidade da previdência social pelos acidentes do trabalho. A teoria
que embasa a responsabilidade objetiva é a do risco.14
Maria Helena DINIZ conceitua a responsabilidade civil objetiva da seguinte forma:
Na responsabilidade objetiva, a atividade que gerou o dano é lícita, mas causou perigo a outrem, de modo que aquele que a exerce, por ter a obrigação de velar para que dela não resulte prejuízo, terá o dever ressarcitório, pelo simples implemento do nexo
causal. A vítima deverá pura e simplesmente demonstrar o nexo
de causalidade entre o dano e a ação que o produziu.15
Ao adotar a teoria de risco no CDC, ou seja, da responsabilidade civil objetiva,
o legislador excetuou à regra como demonstrado no artigo 14, § 4º do dispositivo legal supracitado, informando que “a responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa”. Como explicitado, foi abandonada a regra da teoria de risco calcada na responsabilidade civil objetiva. Na verdade,
14 NASCIMENTO, Tupinambá M. C. do. Responsabilidade civil no código do consumidor. Rio de Janeiro: Aide Ed.,
1991, p. 43.
15 DINIZ, Maria Helena, Curso..., v. 7, cit., p. 53.
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houve a manutenção desse tipo de responsabilidade, dentro de uma sistemática embasada no critério da prova necessária e antecipada de que tenha ocorrido, por parte
do profissional, dolo ou culpa configurada por negligência, imprudência ou imperícia.
Esclareceu o legislador, ao justificar seu entendimento, informando que referida
medida prende-se ao fato de que os profissionais liberais realizam contratos de “meio”
e não de “resultado”. Como prescrito no código, cabe aos profissionais amparados pela
responsabilidade civil subjetiva aplicar todos os esforços e perícia técnica para realizar
seu ofício, sem estar comprometido com um resultado positivo. Assim, não poderia o
advogado assegurar um certo resultado em uma sentença a ser prolatada pelo juiz. Os
resultados estariam sempre dependentes de fatores alheios ao empenho e competência do profissional, sendo impossível assegurar a perfeição do resultado de seu serviço.
3.2.2. RESPONSABILIDADE CIVIL SUBJETIVA
A bem da verdade, aqui começa o estudo a que nos propusemos a fazer. Então, como definir a responsabilidade civil subjetiva? Ao que nos parece, responsabilidade civil subjetiva se inspira na idéia de culpa, de modo que a prova da culpa do
agente causador do dano é indispensável para que surja o dever de indenizar.
Tupinambá Miguel Castro do Nascimento define a responsabilidade civil subjetiva “onde o prejudicado deve comprovar, com suficiência, ter o agente agido
com culpa em sentido lato, isto é, com dolo ou culpa em sentido estrito”.16
Verifica-se a existência de quatro requisitos essenciais para a apuração da responsabilidade civil subjetiva, senão vejamos:
a) a ação ou omissão;
b) culpa ou dolo do agente;
c) o nexo de causalidade;
d) o dano sofrido pela vítima.
Constata-se que o dispositivo legal retrata os casos de responsabilidade aquiliana, já comentado, que assegura o castigo à pessoa que causa um dano a outrem,
obrigando-a a ressarcir os prejuízos dele decorrentes.
Todavia, cabe uma análise mais detalhada de cada um dos requisitos essenciais
supraditos. Assim, quando fala da ação ou omissão, refere-se a qualquer pessoa, isto
é, por ato próprio ou ato de terceiro que esteja sob a guarda do agente, bem como
os danos causados por animais ou coisas que lhe pertençam.
Quanto ao dolo, refere-se à ação ou omissão voluntária e à culpa, quando se
fala em negligência ou imperícia, que deve ser provada pela vítima.
O nexo de causalidade é a relação de causa e efeito entre a ação ou omissão
do agente e o dano sofrido pela vítima, pois sem ela não há de se falar em obrigação de indenizar.
16 NACIMENTO, Tupinambá Miguel Castro do. Responsabilidade..., cit., p. 44.
426
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Finalmente, o dano deve ser demonstrado, seja ele material ou moral, pois
sem prova, o agente não pode ser responsabilizado civilmente.
No Brasil, o ilustre Caio Mário da Silva PEREIRA foi um dos líderes do pensamento que demonstrava a falta de sintonia entre a teoria subjetiva e o desenvolvimento da sociedade, haja vista que, em vários casos, a adoção da teoria da culpa
mostrava-se inadequada para abranger todas as situações de reparação. Essa inadequação era verificada nos casos em que a aferição das provas, constantes nos autos,
não eram convincentes da existência da culpa, muito embora se admitisse que a vítima foi realmente lesada, e que existia supremacia econômica e organizacional dos
agentes causadores do dano.
Portanto, diante da exigência da prova do erro de conduta do agente, imposta à vítima, deixava-a sem a devida reparação em inúmeros casos.
Assim, observamos que a responsabilidade do mandatário judicial (Advogado)
é subjetiva, pois é verificada mediante a culpa.
3.3. Responsabilidade civil do advogado perante o CDC
O Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90), em seu artigo 3º, enquadra o advogado dentro do conceito de prestador de serviços, ou melhor dizendo,
fornecedor de serviços:
Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada,
nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados
que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação,
construção, transformação, importação, exportação, distribuição
ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.
§ 1º. [...]
§ 2º. Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária,
financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.
A atividade de consumo, considerada serviço, nada mais é que aquela exercida pelo advogado quando põe à disposição de seu cliente o seu conhecimento,
energia, esforço pessoal enquanto força de trabalho, mediante paga. É o serviço a
ser prestado que interessa ao cliente – consumidor – direcionado a um fim específico, embora não haja promessa de resultado.
O contrato de prestação de serviços, no dizer do saudoso Carlos Alberto BIT17
TAR , caracteriza-se, pois, pela obrigação assumida por uma pessoa, profissional ou
17 BITTAR, Carlos Alberto. Contratos Civis. Forense Universitária, 1990, p. 75.
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41
427
não, física ou jurídica, de prestar serviços a outrem, por um certo tempo, mediante
remuneração e sem vínculo de subordinação hierárquica ou de dependência técnica, pois ao contrário, a existência desses últimos fatores configura relação de emprego, e o contrato correspondente é o de trabalho.
Subtraindo entendimento das entrelinhas do citado § 2º do artigo 3º do CDC,
pode-se dizer que a obrigação do advogado é uma obrigação de fazer personalíssima, intuitu personae, e a obrigação do cliente é uma obrigação de dar. O vínculo jurídico que os une é meramente fruto de um acordo de vontades. Assim, pode-se dizer que o contrato de prestação de serviços advocatícios é, por natureza, consensual, bilateral, oneroso e comutativo.
O artigo 14 do CDC, em seu § 4º, determina que a responsabilidade pessoal
do profissional liberal seja apurada mediante a verificação de culpa.
O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência
de culpa, pela reparação de danos causados aos consumidores por
defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.
§ 4º. A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa.
É a consagração da Teoria da Responsabilidade Contratual ou subjetiva, ou
seja, uma exceção prevista no CDC, vez que este, no pertinente à Responsabilidade Civil, adotou a teoria objetiva como regra geral; basta que se leia o artigo
12 para que se confirme a assertiva.
Assim, se um advogado, em razão do seu ofício, causar dano ao seu cliente,
deverá reparar. No entanto, fugindo totalmente das premissas do Código do Consumidor, encaminha o agente causador do dano às normas do direito comum.
Antonio L. C. MONTENEGRO18 afirma que: “basta ler o artigo 48: As declarações de vontade constantes de escritos particulares, recibos e pré-contratos relativos às relações de consumo vinculam fornecedor, ensejando inclusive execução
específica, nos termos do artigo 84 e parágrafos”. E continua:
Isto significa a vinculação do fornecedor à oferta. Em relação a
ele, o contrato se aperfeiçoa desde logo, com o dever de prestar,
seja através de execução forçada da obrigação de clausula contratual, ou de deveres previstos no Estatuto da OAB, do Código de
Ética, ou nos casos em que o advogado comete erros grosseiros no
exercício da profissão.
18 MONTENEGRO, Antonio L. Ressarcimento de danos pessoais e materiais. Ed. Lúmen Júris, 1999, p. 388.
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Assim, nesses casos, o causídico será responsabilizado pelo prejuízo suportado pelo seu cliente (artigos 18 a 20).
Anota com inteligência MONTENEGRO19, comentando a instituição de uma
exceção à regra pelo CDC, quando instituiu a responsabilidade pela culpa para os
profissionais liberais, desde que exerçam a profissão pessoalmente. Diz ele que:
...se o profissional liberal se associa a outro, formando uma pessoa
jurídica, ou trabalhando para uma empresa, a responsabilidade
continua a reger-se pela teoria do risco.
Essa dualidade de regimes conduz na prática a situações de difícil
solução, em relação a certos profissionais liberais que, mesmo trabalhando para uma empresa, não estão subordinados a um comando absoluto, face a liberdade de arte ou ofício, que se lhes reconhece, a exemplo de médicos e advogados.
Para se cogitar de responsabilidade por dano resultante de serviço executado
por um profissional liberal, torna-se, a rigor, preliminarmente, indagar se esse dano
teve origem em erro escusável ou não.
Embora o erro seja um antecedente da culpa e a faça presumir, com ela não se
confunde, a ponto de tornar-se elemento indispensável tanto à responsabilidade pessoal
do profissional liberal quanto à pessoa jurídica da qual ela participa ou seja empregado.
O serviço de atribuição exclusiva do advogado compreende determinadas atividades que só ele pode executar, peticionando, participando de audiências, redigindo contratos, ações praticadas sob sua inteira responsabilidade e pelas quais ele responde pessoalmente. Injusto seria se, diligentemente praticando sua atividade, viesse a perder uma demanda e fosse responsabilizado por isso, daí a necessidade de se
comprovar a culpa do advogado que, na sua configuração, tanto ou mais do que o
simples exame da culpa em toda a sua extensão, cumpre, ainda, ter à vista a diretriz
seguida pelo advogado e a consagração ou não de erro grosseiro.
Ainda à luz dos ensinamentos do Desembargador MONTENEGRO20, salientamos que ao legislador é dado instituir a responsabilidade objetiva, ou o princípio da
culpa presumida, para qualquer setor da atividade humana, mesmo que tenha que
arranhar normas comezinhas do Direito.
Mas, quando a lei, seguindo tal diretivo, dá margem a dúvidas, quanto ao seu
alcance, abre-se oportunidade à doutrina e à jurisprudência para determinarem o
seu verdadeiro sentido.
É o que parece acontecer com o CDC, ao estabelecer a responsabilidade com
culpa para os profissionais liberais e, ao mesmo tempo, cuidar da responsabilidade
19 Ob. cit., p. 5.
20 Ob. cit., p. 5.
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objetiva, quando os seus serviços sejam prestados pelas pessoas jurídicas em forma
de sociedade civil ou comercial.
O fato de uma empresa assumir a posição de ré, em uma ação judicial, fundada na teoria estabelecida na lei, não tem o condão de desfigurar o trabalho de um
médico ou advogado, porque o exercício de sua profissão se rege por leis e regulamentos próprios, por cuja infringência há de se avaliar o erro profissional que propiciou o dano.
4.
CONCEITO DE “OBRIGAÇÃO DE MEIO” E “OBRIGAÇÃO DE RESULTADO”
Maria Helena DINIZ a define com simplicidade:
A obrigação de meio é aquela em que o devedor se obriga tão-somente a usar de prudência e diligência normais na prestação de
certo serviço para atingir um resultado, sem, contudo, se vincular
a obte-lo. Infere-se daí que sua prestação não consiste num resultado certo e determinado a ser conseguido pelo obrigado, mas tãosomente numa atividade prudente e diligente deste em benefício
do credor. Seu conteúdo é a própria atividade do devedor, ou seja,
os meios tendentes a produzir o escopo almejado, de maneira que
a inexecução da obrigação se caracteriza pela omissão do devedor em tomar certas precauções, sem se cogitar do resultado final.
Havendo inadimplemento dessa obrigação, é imprescindível a
análise do comportamento do devedor, para verificar se ele deverá ou não ser responsabilizado pelo evento, de modo que cumprirá ao credor demonstrar ou provar que o resultado colimado não
foi atingido porque o obrigado não empregou a diligência e a prudência a que se encontrava adstrito (AJ, 104:233). Isto é assim porque nessa relação obrigacional o devedor apenas está obrigado a
fazer o que estiver ao seu alcance para conseguir a meta pretendida pelo credor; logo, liberado estará da obrigação se agiu com
prudência, diligência e escrúpulo, independentemente da consecução efetiva do resultado. [...] A obrigação de resultado é aquela
em que o credor tem direito de exigir do devedor a produção de
um resultado, sem o que se terá o inadimplemento da relação
obrigacional. Tem em vista o resultado em si mesmo, de tal sorte
que a obrigação só se considerará adimplida com a efetiva produção do resultado colimado. Ter-se-á a execução dessa relação obrigacional quando o devedor cumprir o objetivo final. Como essa
obrigação requer um resultado útil ao credor, o seu inadimple-
430
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mento é suficiente para determinar a responsabilidade do devedor, já que basta que o resultado não seja atingido para que o credor seja indenizado pelo obrigado, que só se isentará de responsabilidade se provar que não agiu culposamente.21
Orlando GOMES segue na mesma linha de exposição:
Para compreender a discrepância, impõe-se a distinção entre as
obrigações de meios e as obrigações de resultado. Correspondem
as primeiras a uma atividade concreta do devedor, por meio da
qual faz o possível para cumpri-la. Nas outras, o cumprimento só
se verifica se o resultado é atingido22
Nesse sentido, também leciona J. M. Antunes VARELA23 quando diz:
No caso das obrigações de resultado, o cumprimento envolve não
só o ato de prestação, mas também a verificação do efeito que ela
visa obter. Nas obrigações de meios, o devedor cumpre, logo que
realiza o ato de prestação a que se encontra adstrito, independentemente do efeito que ela tenha surtido.
4.1. A visão da “obrigação de meio” e “obrigação de resultado” no direito
comparado
Essa distinção entre obrigação de meio e obrigação de resultado é também
muito conhecida e utilizada na doutrina estrangeira. Ela é tradicionalmente atribuída a Demogue24.
La Nature de L’Olbligation de Répartition. Il existe, en droit français,
une distinction classique, au sein des obligations, entre ‘obligations
de moyens’ et ‘obligations de résultat’. Cette distinction permet
d’abord d’apprécier la nature des obligations d’apres leur contenu:
le debiteur s’est-il engage à atteindre um résultat précis, son obligation dún but, sans toutefois en promettre le succès, son obligation est
de moyens. Elle fonde ensuite une différence sensible entre deux régi21 DINIZ, Maria Helena. Curso..., v. 2, p. 162 e 163.
22 GOMES, Orlando. Obrigações. 6. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 21.
23 VARELA, J. M. Antunes. Direito das obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 1978, v. 2, p.4.
24 COMPARATO, Fábio Konder. Obrigações de meios, de resultado e de garantia. In: Enciclopédia Saraiva do Direito. São Paulo: Saraiva, 1977, v. 55, p. 420-432.
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41
431
nes de preuve. L’obligation est-elle de moyens? La preuve de la faute
contractuelle du debiteur (l’inexécution de l’obligation de moyens)
repose sur le créancier. L’obligation est-elle de résultat? Le créancier
n’a pas à rapporter la preuve de la faute contratuelle du débiteur
(l’inexécution de l’obligation de résultat), celle-ci étant présumée dès
lors que le résultat promis n’a pas été atteint.
Ao tratar das conseqüências das obrigações de meio e de resultado, J. Miguel
Lobato GOMES25, produz excelente lição, quando diz:
Partiendo de este planteamiento, las consecuencias que suelen deduirce de esta distinción se concretan en el plano del cumplimiento o, más exactamente, en el terreno de la responsabilidad derivada del incumplimiento de la obligación. En particular, respecto de
la definición y la prueba del hecho generador de la responsabilidad contractual. En las obligaciones de resultado es suficiente
para determinar el incumplimiento que el acreedor establezca
que no se ha alcanzado el resultado prometido por el deudor. En
las obligaciones de medios, por el contrario, se hace necessario un
examen de la conducta del deudor, y el acreedor, para determinar
el incumplimiento de la obligación, deberá probar que el deudor
no ha actuado con la diligencia a la que se había obligado, lo que
hace que incumplimiento de la prestación y culpa vengan prácticamente a confundirse.
5.
INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA NO CDC
Há de que se observar que a inversão do ônus da prova está elencada no artigo 6º, VIII do CDC, como um dos direitos básicos do consumidor, o que implica que
tal providência, respeitados seus requisitos (verossimilhança de alegações ou hipossuficiência do consumidor), deverá ser implementada em todas as situações em que
for oportuna e necessária à facilitação da defesa dos direitos deste (consumidor)
quando em juízo.
Contudo, no tocante às situações que envolvam obrigações de meio, o julgador deve ter extremo cuidado para aplicá-la. Só em situações muito especiais, em
que o juiz verifique que a produção da prova é extremamente difícil ou absoluta25 GOMEZ, J. Miguel Lobato. Contribuición al estúdio de la distinción entre las obligaciones de medios y las obligaciones de resultado. Anuario de derecho civil, tomo XLV. Fascículo II. Madri. Centro de Publicaciones del Ministério de Justiça, Abril-Junho/1992, p. 714. Apud BANCO DE DADOS DE DOUTRINA BONIJURIS, Curitiba, Instituto
de Pesquisas Jurídicas Bonijuris, 1993, n. 249, p. 1.819.
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432
mente impossível para o consumidor, e, perfeitamente factível para o fornecedor, é
que, com muito critério e cautela, ele poderá utilizar desse recurso.
As situações são especialíssimas, sendo que na imensa maioria dos casos relativos a obrigações de meio, a posição do fornecedor deve, com muito fundamento,
poder contar com o privilégio da teoria da culpa sem inversão do ônus da prova.
6.
CONCLUSÃO
Os serviços prestados pelos advogados são, de forma geral, contratual. A responsabilidade do prestador de serviços existe de conformidade com o CDC e ainda
que de forma graciosa.
A atuação dos advogados pode infringir direitos daqueles para quem se está
prestando determinado serviço com relação à prática contratual, ou até mesmo
quanto à oferta e publicidade. Sempre que uma infração desse tipo ocorrer, os advogados responderão de forma igual à aplicável aos demais fornecedores em situações semelhantes.
A aplicação irrestrita da doutrina subjetivista fundada na culpa, embora seja a
melhor disponível para os casos de responsabilidade civil em contratos com obrigações de meio, não atende convenientemente a todas as situações de responsabilidade civil oriundas de serviço mal prestado pelos profissionais liberais, tendo sido fonte de considerável número de injustiças. A insuficiência de acentua nas obrigações
de resultado e nas infrações perpetradas através de condutas e práticas abusivas,
como a propaganda enganosa, cobrança de dívidas, etc.
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ALMEIDA, L. P. Moitinho de. Responsabilidade civil dos advogados. Coimbra: Coimbra Editora, 1985.
BITTAR, Carlos Alberto. Contratos civis. Forense Universitária, 1990.
COMPARATO, Fábio Konder et al. Relatório final do grupo de trabalho criado para
estudar e propor normas legais de proteção ao consumidor. Revista de Direito
Mercantil, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1976, n. 21/22, p. 139.
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DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1984, v. 7.
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433
_____. Curso de direito civil brasileiro, v. 7: Responsabilidade civil/ Maria Helena Diniz. 17. ed. aumentada e atualizada de acordo com o novo Código Civil. São
Paulo: Saraiva, 2003.
GOMES, Orlando. Obrigações. 6 ed., Rio de Janeiro: Forense, 1981.
GOMEZ, J. Miguel Lobato. Contribución al estúdio de la distinción tre las obligacionesde medios y las obligaciones de resultado. Anuario de Derecho Civil, tomo
XLV, fascículo II. Madrid: Centro de Publicaciones del Ministério de Justiça, abril-junho/1992, p. 714. Apud BANCO DE DADOS DE DOUTRINA BONIJURIS, Curitiba:
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KFOURI NETO, Miguel. A responsabilidade civil do médico. Revista dos Tribunais,
São Paulo: Revista dos Tribunais, abril/1990, n. 654, p. 65.
LÔBO, Paulo Luiz Neto. Comentários ao Novo Estatuto da Advocacia e da OAB.
Brasília: Brasília Jurídica, 1994.
MONTENEGRO, Antonio L. Ressarcimento de danos pessoais e materiais. Lúmen
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NASCIMENTO, Tupinambá Miguel Castro do. Responsabilidade civil no código do
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PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade civil. 3. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1992.
RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: responsabilidade civil. São Paulo: Saraiva, 2002, v.
4.
_____. Direito civil. 6. ed., São Paulo: Saraiva, 1982, v. 4
VARELA, J. M. Antunes. Direito das obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 1978, v. 2.
parecer
EXCLUSÃO SUMÁRIA DO REFIS POR AUSÊNCIA DE
CUMPRIMENTO DE REQUISITO FORMAL. OFENSA AOS
PRINCÍPIOS DA LEGALIDADE, RAZOABILIDADE,
PROPORCIONALIDADE E MOTIVAÇÃO.
INCONSTITUCIONALIDADE DA RESOLUÇÃO CG/REFIS
Nº 9 E Nº 20. OFENSA AO PRINCÍPIOS DO
CONTRADITÓRIO, AMPLA DEFESA E BOA-FÉ, E AOS
CONTIDOS NOS ARTS. 170 E 174 da CF - PARECER
Ives Gandra da Silva Martins
Professor Emérito da Universidade Mackenzie, em cuja Faculdade de
Direito foi Titular de Direito Econômico e de Direito Constitucional.
José Ruben Marone
Advogado em São Paulo.
Soraya David Monteiro Locatelli
Advogada em São Paulo.
CONSULTA
A empresa Consulente, honra-nos com consulta relacionada à sua exclusão do
Programa de Recuperação Fiscal - REFIS, nos seguintes termos:
1- A Consulente formalizou opção pelo REFIS – Programa de Recuperação Fiscal, lançado pelo Governo Federal através da Lei nº
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9.964, de 10 de abril nº 2000, seguindo as diretrizes do Decreto nº
3.431, de 24 de abril de 2000, isto em 30 de março de 2000.
2. Quando da opção, providenciou as obrigações acessórias, dentre elas, a de informar a desistência de Processos Administrativos
na Declaração REFIS através do site da Receita Federal e por meio
de simples petição nos respectivos Processos.
3. Durante 03 (três) anos e ? (meio) a empresa manteve-se totalmente adimplente com suas obrigações para com o REFIS, recolhendo o percentual equivalente a 1,2% (um vírgula dois por cento) do seu faturamento, assim como, pagando todos os tributos no
âmbito federal, inclusive, aumentou substancialmente o seu faturamento, decorrência do fomento na produção agrícola e industrial, de conseqüência, tendo significativa elevação nos volumes
monetários recolhidos para o REFIS.
4. Todavia, para surpresa da empresa em comento, foi abrupta e
ilegalmente surpreendida com a informação de exclusão do REFIS por meio de publicação de Portaria do CG/REFIS, apontando
como causa, unicamente, o descumprimento do artigo 5º, inciso
III da Lei nº 9.964/2.000, sem especificar qual ou quais Processos
deram causa à tal inobservância. Isto, obtido em consulta aleatória e informal no site da Receita Federal, ou seja, sem qualquer comunicação verbal ou por escrito, bem como, sem qualquer motivação e conseqüente chance de defesa para a empresa.
5. Estando a Receita Federal, à ocasião, fechada, em razão da greve dos seus servidores, e vendo seu direito líquido e certo de ser devidamente informada sobre as razões de sua exclusão do REFIS
inobservadas, impetrou Mandado de Segurança, antes do Manifesto de Inconformidade Administrativo, em favor da empresa, junto
à Seção Judiciária de seu Estado, tendo o Juiz Federal declinado
da competência, determinando a remessa do feito à Seção Judiciária do Distrito Federal, onde teve indeferida a liminar pleiteada.
6. Com as informações prestadas pela Autoridade Coatora (Presidente do Comitê Gestor do Refis), só então, a empresa veio a saber
que se tratava da não formalização de desistência de um de seus
Processos Administrativos, tendo, assim, peticionado no feito, informando e demonstrando que havia nos autos de referido Processo, antes da exclusão, uma petição ratificando a desistência desse,
em virtude da opção pelo REFIS e que, de mais a mais, eventual defeito formal jamais poderia penalizar a empresa com a medida
drástica e extrema da exclusão, com se deu.
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Diante disso, indaga especificamente o seguinte:
1ª questão:
Não seria inconstitucional a Portaria CG/REFIS que veiculou exclusão sumária da Consulente do REFIS, com efeitos a partir do dia seguinte ao de sua publicação, já que não cumpre os requisitos básicos do ato administrativo, como,
por exemplo, a motivação no real sentido da palavra, antes, apenas cita dispositivo legal, dentre outros?
2ª questão:
Não seria inconstitucional a exclusão da Consulente do REFIS, mesmo que
admitida a ausência da desistência formal de Processo Administrativo, diante
dos graves prejuízos a esta, para não mencionar o sério comprometimento de
continuidade de suas atividades, geração e manutenção de empregos na ordem
de 1.500 (hum mil e quinhentos) pessoas diretamente, aliado ao fato de que a empresa não apresentou nenhum problema de inadimplemento, seja do REFIS, seja
dos tributos gerados em datas subseqüentes à formalização da opção pelo Programa de Recuperação Fiscal, ao contrário, vem aumentando paulatinamente os
valores monetários recolhidos junto ao FISCO Federal?
RESPOSTA
Considerações gerais
Antes de passarmos a responder especificamente as questões apresentadas,
mister se faz proceder a breve análise da razão pela qual o Programa de Recuperação Fiscal - REFIS foi criado e das normas por este veiculadas, nos seguintes termos:
O Programa de Recuperação Fiscal – REFIS instituído pela Lei nº 9.964 de
10 de abril de 2000, tem como objetivo máximo a arrecadação de valores já considerados perdidos pelo Estado, tendo em vista a dimensão da crise econômica
por que passa a maioria das empresas nacionais, que não têm recursos para cobrir a alta carga tributária imposta pelo Governo para manter a Federação de tamanho incompatível com o PIB nacional e, simultaneamente, manter suas atividades operacionais.
Por outro lado, a opção pelo REFIS também permite àqueles contribuintes
inadimplentes, bem como àqueles que possuem débitos com exigibilidade suspensa por força do art. 151 do CTN, que regularizem sua situação fiscal, sem nefastos
prejuízos à sua produção.
Para tanto, não há como negar que a adesão ao REFIS tornou-se muito vantajosa para as empresas com nítida intenção de permanência no mercado e cientes de
suas obrigações fiscais, na medida em que o Programa de Recuperação conforma ca-
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racterísticas de moratória1 e de anistia2, previstas, respectivamente, nos artigos 151
e 175 do CTN, por reduzir a multa imposta pelo não-pagamento efetuado tempestivamente e permitir, ainda, o parcelamento da dívida, então consolidada, com base
em seu faturamento.
Firmou-se, portanto, uma possibilidade de acerto entre fisco e contribuinte,
no qual se atribui a este, de forma impositiva, uma série de obrigações e deveres
para fazer jus ao beneficio.
1 De acordo com Djalma Bittar, trata-se o REFIS de moratória de caráter geral, como explica nas seguintes palavras:
“Em outras palavras: a moratória em caráter individual se caracteriza pelo alcance das suas disposições, isto é, quando condicionalmente é concedida pela Administração através de norma geral e abstrata preexistente, em que credor e devedor se vinculam, posteriormente, através de um pacto simultâneo de aceitação das condições impostas
pelo credor.
Já na moratória em caráter geral, a norma abstrata e geral é colocada no sistema, objetivando situação emergencial,
visando uma coletividade que sponte propria se sujeitará ao seu campo de incidência, independentemente da vontade do credor, desde que obedecidas as regras previstas para o seu ingresso.
Portanto, não temos dúvidas em afirmar que o Refis é uma moratória de caráter geral e não individual como vem
apregoando parte da doutrina, nos termos da nossa explanação na Revista Dialética de Direito Tributário nº 62:
A homologação da opção pelo Comitê gestor tem função meramente administrativa, competindo-lhe, tão-somente, “O gerenciamento e a implementação dos procedimentos necessários à execução do Refis” (art. 2º Decreto
3.341/00).
De início, absolutamente necessário se torna frisar que a homologação da opção em nada se relaciona como ingresso do contribuinte no Refis, que, como já anotamos, fica condicionado a providências de responsabilidade da pessoa jurídica (art. 3º).
Aliás, a homologação do ato jurídico praticado pelo contribuinte ao emitir norma individual e concreta, nem mesmo é necessária para a validade do ato jurídico, eis que o ato homologatório da Administração é mero ato de fiscalização em que a Fazenda verifica o procedimento do particular, manifestando-se, tão-somente, sobre a sua regularidade. Nesse contexto, se nos afigura possível a definição de “homologação” como “ato de fiscalização da Administração, tendo como objeto ato jurídico já praticado, visando a avaliar a sua conformidade com os requisitos legais
previstos na lei que condiciona a sua emissão”.
(....)
Ao argumento de que o art. 15 do CTN facultaria ao Comitê gestor a exclusão das Consulentes “de ofício”, lembro
que o citado dispositivo regula as relações nascidas de pacto de natureza bilateral, em clara definição da moratória
individual, objeto de acordo firmado entre credor e devedor da obrigação, para solucionar pendência de interesse
circunscrito a determinado contribuinte, desconsiderado o aspecto social e coletivo.
Diz o art. 15 do CTN:
“A concessão da moratória em caráter individual não gera direito adquirido e será revogada de ofício, sempre que
se apure que o beneficiado não satisfaça ou deixou de satisfazer as condições ou não cumpria ou deixou de cumprir os requisitos para a concessão do favor, cobrando-se o crédito acrescido de juros de mora.” (RDDT nº 81, p.
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2 Para André Ramos Tavares, o REFIS tem natureza jurídica de anistia tributária. Neste sentido, explica:
“A anistia está prevista no Código Tributário Nacional, em seu art. 175, inciso II, como uma das formas de exclusão
do débito tributário. Paulo de Barros Carvalho atribui ao instituto uma dupla conceituação, ao anotar que a “Anistia
fiscal é o perdão da falta cometida pelo infrator de deveres tributários e também quer dizer o perdão da penalidade a ele imposta por ter infringido mandamento legal. Tem, como se vê, duas acepções: a de perdão pelo ilícito e
a de perdão da multa”.
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Entretanto, por óbvio, não podem esses deveres e obrigações, repita-se, impostos aos optantes, excederem os limites traçados pela Constituição Federal, sob
pena de manifesta insubsistência jurídica.
Debruçando-se sobre este tema, ANDRÉ RAMOS TAVARES3 assevera:
O REFIS nada mais é do que um sistema complexo de concessão legal de anistia tributária, cumulada com um parcelamento de dívidas (este, com natureza jurídica de moratória). Como norma geral do sistema tributário, não há, como se sabe, a possibilidade de
oferecer ou impor ao contribuinte qualquer situação que não esteja prevista em lei.
A Administração, em particular no campo tributário, segue o princípio da estrita legalidade. Neste sentido, já se pronunciou Diva
Malerbi, fundamentando-se em opiniões de renomados tributaristas: “O nosso conceito de tributo, diferentemente de outros países,
vem pressuposto na própria Constituição. Ele gravita em torno dos
dois grandes princípios: da legalidade e da igualdade (...) Todos
eles (tributos) têm fonte imediata e exclusiva na lei”.
Não há, portanto, praticamente campo para discricionariedade,
de forma que o agente tributário que realiza e implementa no
mundo real a programação legal jamais poderia dela desviar-se
para, v.g., impor condicionamentos não constantes da legislação,
ou mesmo deixar de exigir aqueles ali indicados.
A interpretação, quanto àquelas “garantias” exigidas pela Lei do
REFIS, há de ser a mais restritiva possível, se é que aquelas condicionantes de ingresso ao sistema suportam uma análise mais acurado do ponto de vista de sua constitucionalidade.
Nos dizeres de Ives Gandra da Silva Martins: “O que rege o direito de a fiscalização fiscalizar, respeitados todos os direitos e gaUma das principais características da anistia é o caráter retroativo, conforme dispõe o art. 180 do CTN: “A anistia
abrange exclusivamente as infrações cometidas anteriormente à vigência da lei que a concede”.
O REFIS, ao contemplar expressa redução da multa imposta aos inadimplentes, está anistiando, de forma parcial, as
penalidades a eles imputadas. Saliente-se, pois, que a Lei do REFIS, que data de 11 de abril de 2000, perdoa a parcela das multas decorrentes de débitos com vencimento até 29 de fevereiro de 2000. Além disto, beneficia os faltosos contemplando-os com o parcelamento do devido débito tributário restante, além de proporcionar a cobrança de uma taxa de juros menor. (“REFIS: ACEITAÇÃO DAS CLÁUSULAS PACTUADAS E OS LIMITES DO ACORDO
BILATERAL EM FACE DOS DIREITOS INDIVIDUAIS”. Refis Aspectos Jurídicos Relevantes. Coord. Guilherme Von
Muller Lessa Vergueiro. Editora Edipro – 1ª Edição. 2001. São Paulo.p.40).
3 “REFIS: ACEITAÇÃO DAS CLÁUSULAS PACTUADAS E OS LIMITES DO ACORDO BILATERAL EM FACE DOS DIREITOS INDIVIDUAIS”. Refis Aspectos Jurídicos Relevantes. Coord. Guilherme Von Muller Lessa Vergueiro. Editora Edipro – 1ª Edição. 2001. São Paulo. p.35/36.
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rantias fundamentais, não é a Constituição expressamente, mas
a lei que não pode ferir qualquer dos demais comandos constitucionais.
Aquele que ingressa no sistema proposto pelo REFIS o faz sem qualquer apuração de sua vontade no sentido tradicional, que implica em negociações e, assim, numa recíproca concordância. Não
há liberdade ou autonomia de vontades, comumente invocada na
apuração da validade de cláusulas pactuadas.
A conclusão a ser extraída deste aspecto é a de que, em não havendo verdadeiramente liberdade contratual, não se poderia pretender fundamentar nesta qualquer eventual ato de disposição, por
parte do contribuinte, de seus direitos individuais. A questão que
se coloca para este é a seguinte: para inserir-se no contexto de uma
lei de natureza fiscal, há de se submeter inteiramente aos seus condicionamentos. Se há previsão legal que oferece anistia ou parcelamento de débitos fiscais, ou qualquer outra medida beneficiadora, o máximo que se poderia exigir dos contribuintes seria o atendimento a requisitos objetivos (como a regularidade jurídica da
empresa; a exist~encia de patrimônio próprio; a não-agressão,
pelo exercício de sua atividade, ao meio ambiente; etc). Jamais poder-se-ia exigir do contribuinte que abandonasse direitos fundamentais consagrados constitucionalmente. É evidente que todos os
contribuintes se sentiriam constrangidos a fazê-lo, sob pena de
não participar daquilo que a lei oferece. É o Estado utilizando-se
de todo o seu poder para impor-se e impor suas conveniências arrecadatórias.
Além do exposto, também cabe ressaltar o tema à luz do princípio da legalidade em face do poder regulamentador do Executivo.
De rigor, o princípio da legalidade, esculpido no art. 5º, inc. II da C.F. 4, é princípio pertinente a todo o ordenamento jurídico nacional. Não há ramo de direito
que não seja informado pelo princípio da legalidade, sendo que a ordem jurídica só
existe à luz desse, sob pena de não haver o Estado de Direito5.
4 “Art. 5º ....
II. ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa s

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