- Programa de Pós-Graduação em Educação

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- Programa de Pós-Graduação em Educação
LEIDIANE GARCIA
VIOLA-DE-COCHO/MS: UM ESTUDO DO PROCESSO DE ENSINOAPRENDIZADO E DE SUA RESISTÊNCIA FRENTE À GLOBALIZAÇÃO
CULTURAL NAS CIDADES DE CORUMBÁ E LADÁRIO
CORUMBÁ- MS
2013
LEIDIANE GARCIA
VIOLA-DE-COCHO/MS: UM ESTUDO DO PROCESSO DE ENSINOAPRENDIZADO E DE SUA RESISTÊNCIA FRENTE À GLOBALIZAÇÃO
CULTURAL NAS CIDADES DE CORUMBÁ E LADÁRIO
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Educação/ Educação Social da
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul como
quesito parcial para a obtenção do grau de Mestre.
Orientador: Profº Drº Hajime Takeuchi Nozaki
CORUMBÁ- MS
2013
A dissertação de mestrado intitulada VIOLA-DE-COCHO/MS: UM ESTUDO DO
PROCESSO DE ENSINO-APRENDIZADO E DE SUA RESISTÊNCIA FRENTE À
GLOBALIZAÇÃO CULTURAL NAS CIDADES DE CORUMBÁ E LADÁRIO,
apresentada por LEIDIANE GARCIA, como exigência para a obtenção do grau de Mestre em
Educação à banca examinadora e ao Programa de Pós-Graduação em Educação, área de
concentração em Educação Social do Campus do Pantanal – Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul, obteve conceito ______.
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________
Prof. Dr. Hajime Takeuchi Nozaki
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
________________________________________
Profª Drª Mônica de Carvalho Magalhães Kassar
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
_______________________________________
Profª Drª Letícia Costa Rodrigues Vianna
Consultora da UNESCO em Brasília
Corumbá, MS - 27 de junho de 2013.
Agradecimentos
A CAPES- Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior pela
concessão da bolsa de estudo.
Ao meu orientador, Profº Drº Hajime Takeuchi Nozaki, obrigada! Obrigada pela
paciência, pela exigência e, principalmente, por me permitir ser sua orientanda e conviver
com o profissional inspirador e comprometido com a Educação no âmbito do ensino e
pesquisa.
À Profª Drª Mônica de Carvalho Magalhães Kassar, por entender a relevância desta
pesquisa e por suas contribuições sempre construtivas.
À Profª Drª Letícia Costa Rodrigues Vianna, consultora da UNESCO, em Brasília.
Obrigada por suas críticas, sugestões e pela honra de aceitar participar desta construção.
Aos professores do Programa de Pós- Graduação em Educação: Nadir Zago pela
inspiradora internalização do seu vasto conhecimento; Edelir Salomão Garcia, Maria de
Lourdes Jeffery Contini (Biluca), Anamaria Santana e Ana Lúcia Espíndola.
À secretária do Mestrado em Educação, Cleide de Paula Canela.
Às alunas do mestrado Ana Carolina Pontes Costa, Andressa Santos Rebelo, Célia
Maria Sampaio de Carvalho Carneiro, Dayane Cabral Leite, Islane Morrone Quinteiros, Karla
Helena Bastos dos Santos, Kelly Patrícia Carneiro Costa e Thatiana Teixeira Pécora.
Aos integrantes do GENTE - Grupo de Estudos Nucleado do Trabalho e Educação,
obrigada pela paciência, pela contribuição para minha construção e elaboração teórica para
esta pesquisa. À Luciana Xavier Lima, Janaina Montagner, Leandro Dias Gomes, Luiz Carlos
Vargas, Débora Daracelli Braga de Almeida Mendonça e Regiane Aparecida Costa Andrade,
a quem estendo meu carinho e agradecimento pela troca possibilitada através do estágio.
Aos tocadores de viola-de-cocho, pela confiança em dividir seus conhecimentos sobre
a prática e ensino da viola-de-cocho realizada em Corumbá e Ladário. À Heloísa Urt (in
memória).
Aos amigos de Mato Grosso que me possibilitaram conhecer a dimensão da prática da
viola-de-cocho. Meu agradecimento especial ao professor Abel dos Santos Anjos Filho, ao
artesão de viola-de-cocho Alcides Ribeiro e à Leonice Ribeiro.
Aos meus ex-alunos Adhemar Neyer Ramos Ortiz, Caleb Brandon Almendras
Fernandez, Jhon Carlos Román Taceó, Josias Camilo Ramos, Lucas Monteiro Vilhena, Luís
Fernando Arias Soto, Maycon Vianna Silveira, Ronaldo Arias Marcos e Saul Rojas Parada,
por apostar comigo na prática da viola-de-cocho e do violão clássico, apesar do pouco
reconhecimento pelo trabalho desenvolvido em âmbito institucional.
À Ana Cecília Demarqui Machado, pelo incentivo à pesquisa na pós-graduação.
À Marcelene P. de Arruda, pelo apoio diário.
À minha mãe e professora, Gregória Garcia, por ter proporcionado o investimento em
meus estudos, a independência e a compreensão por minha ausência. Te amo!
O mais importante nesse processo, senão em todo processo investigativo, é o ser
humano. Porque ele, sim, é único. É único o ser humano em que nos transformamos por meio
da troca com o outro, da escuta e da reflexão sobre o todo no eu.
Talvez, daqui a algum tempo, aquele indivíduo que, ao ver o pneu do seu carro furar
na estrada e prontamente, sem conhecê-lo, oferece ajuda e o recebe em casa como visita, não
será mais encontrado. Esse foi um exemplo que escutei da professora Mônica Kassar na
qualificação deste trabalho.
Talvez não encontremos, ainda, aquele outro sujeito que o recebe em casa e serve um
lanche antes do almoço, numa bandeja cheia de conhecimento! O mesmo sujeito que divide o
almoço e nos prende de tal forma, em sua acolhida, que até nos dificulta entender qual é a
hora de partida, de tão bom o almoço servido, o abraço, a companhia na espera pelo ônibus, o
ar fresco, a sombra da árvore onde a conversa estica em tantas reticências... Na realidade,
apenas a sensação que fica ao lembrar desses momentos é capaz de contar. Aquele sujeito que
ficou feliz em saber que é lembrado, e que você está ali! Aquele que divide com você a
esperança de que tudo se modifique, e a tristeza de não ser lembrado.
Esses são os sujeitos encontrados aqui. Essa é a realidade.
RESUMO
Essa pesquisa tem como objeto de estudo a viola-de-cocho, um instrumento musical de cordas
dedilhadas construído artesanalmente pelo homem pantaneiro das cidades de Corumbá e
Ladário, em Mato Grosso do Sul. Os primeiros registros de sua existência foram feitos há
pelo menos 70 anos. Porém, só no ano de 2004, devido às dificuldades enfrentadas pelos
tocadores na construção e prática da viola-de-cocho foi realizado o registro do modo de fazer
a viola-de-cocho e atribuído ao instrumento, o título de Patrimônio Cultural do Brasil, emitido
pelo IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. A titulação conferiu-lhe
notoriedade e atenção; entretanto, ainda há a necessidade de produções no campo científico
que lhe deem visibilidade e que produzam conhecimento sobre a sua constituição como
expressão local. Logo, com esta pesquisa, objetivou-se investigar, por meio da estratégia do
estudo de caso e com base no referencial teórico metodológico materialista histórico dialético,
como se desenvolveu o ensino e o aprendizado da viola-de-cocho nos municípios de Corumbá
e Ladário. O estudo bibliográfico e as entrevistas realizadas junto aos tocadores revelaram
transformações e adaptações realizadas na construção do instrumento, nas festas e
apresentações em que está sendo inserida a execução da viola-de-cocho, na localidade. Ao
passo que, impõe-se gradativamente em resistência ao complexo musical contemporâneo
advindo da globalização cultural.
Palavras-chaves: viola-de-cocho, globalização cultural, patrimonialização
ABSTRACT
This research has as object of study the instrument viola-de-cocho, a plucked string musical
instrument handmade by the pantaneiro man from the cities of Corumbá and Ladário, Mato
Grosso do Sul. The first records of its existence were made 70 years ago. And only in 2004,
due to the difficulties faced for the tocadores in the practice and construction of viola-decocho the register in the way to make viola-de-cocho and attributed to the instrument, the title
of Brazil’s Cultural Heritage, issued by IPHAN - National Institute of Historic and Artistic
Heritage. The title gave it notoriety and attention; however, there is still the need for
productions at the scientific field. That gives it visibility and that produces knowledge about
its constitution as an local expression. The objective of the research was to investigate by the
strategy of case study and based on the dialectical historical materialistic methodological
theoretical referential, how has been developed the teaching and the learning of viola-decocho in the cities of Corumbá and Ladário. The bibliographic study and the interviews with
the players revealed transformations and adaptations that were made in the construction of the
instrument, in the parties and presentations that viola-de-cocho are being inserted in the
locality. So, it is gradually imposing itself in resistance to the contemporaneous musical
complex that comes from the cultural globalization.
Keywords: viola-de-cocho, cultural globalization, patrimonialising
Lista de Abreviaturas e Siglas
BIRD– Banco Mundial
BM– Banco Mundial
CCQs – Círculos de Controle de Qualidade
CNFCP– Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular
FMI– Fundo Monetário Internacional
Funarte– Fundação Nacional de Arte
GATT– Acordo Geral de Tarifas e Comércio ou WTO- Organização Mundial do Comércio
I.L.A.- Instituto Luiz de Albuquerque
IPHAN– Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
MinC.– Ministério da Cultura
NAFTA– Acordo Norte Americano de Livre- Comércio
OMC– Organização Mundial do Comércio
PNPI– Programa Nacional do Patrimônio Imaterial
SPAN- Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
UERJ- Universidade do Estado do Rio de Janeiro
UFMT– Universidade Federal de Mato Grosso
UFMS– Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
UNESCO– Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e a Cultura
Lista de Figuras ou Imagens
Figura 1: Bordonua
Figura 2: Vendedor de tabaco (cantor cego) – vendedoras de pão-de-ló
Figura 3: Monocórdio. (TRAVASSOS; CORRÊA, op. cit., p. 17)
Figura 4: Alceu Maynard Araújo coletando dados com microfone (esq.), adulfe ou pandeiro,
viola e o reco-reco. Foto: Oliveira (2004a, p. 147)
Figura 5: Mochinho. (OLIVEIRA, 2004a, p. 144)
Figura 6: Capa do Catálogo Viola-de-Cocho (TRAVASSOS; CORRÊA, op. cit.)
Figura 7: Capa do Catálogo Viola-de-Cocho Pantaneira (DIAS; VIANNA, op. cit.)
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 01
CAPÍTULO I: PANORAMA HISTÓRICO DA VIOLA-DE-COCHO
1.1.
A viola ............................................................................................................. 08
1.2.
Viola-de-cocho
do
surgimento
as
dificuldades
contemporâneas
................................................................................................................................ 17
CAPÍTULO II: UMA NOVA ORDEM ECONÔMICA MUNDIAL: NOVA CULTURA
MUNDIAL?
2.1. O método materialista histórico dialético como referencial para realização do
estudo de caso do processo de ensino e aprendizado da viola-de-cocho
.......................................................................................................................................29
2.2.
A
globalização
econômica
e
cultural......................................................................................................................... 36
CAPÍTULO III: O REGISTRO DA VIOLA-DE-COCHO COMO ESTRATÉGIA
PARA SUA CONSERVAÇÃO
3.1. A política de patrimonialização do IPHAN- Instituto do Patrimônio
Histórico
e
Nacional
Artístico
...................................................................................................................................... 49
3.2 O Registro do Modo de Fazer Viola-de-cocho e o Patrimônio Cultural do Brasil,
viola-de-cocho ............................................................................................................. 55
3.3.
Entre
o
Patrimônio
Cultural
e
o
Fetiche
de
Mercadoria
...................................................................................................................................... 59
CAPÍTULO
IV:
O
ESTUDO
DE
CASO
DO
PROCESSO
DE
ENSINO-
APRENDIZADO DA VIOLA-DE-COCHO
4.1.
O
percurso
para
realização
do
estudo
de
caso............................................................................................................................... 65
4.2. Os tocadores de viola-de-cocho ........................................................................... 67
a) Caracterização dos tocadores de viola-de-cocho .....................................................67
b) Aprendizagem da construção e execução da viola-de-cocho ................................. 70
c) Apresentação ........................................................................................................... 81
d) Ensino ..................................................................................................................... 93
e) Mídia ..................................................................................................................... 104
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..............................................................................................111
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................................. 116
ANEXOS .............................................................................................................................. 122
1
INTRODUÇÃO
A pesquisa desenvolvida nesta dissertação foi influenciada pela minha experiência
como educadora musical dos instrumentos violão e viola-de-cocho, da organização não
governamental Escola de Artes Moinho Cultural Sul-Americano, no período de 2008 a 2010,
em Corumbá- MS.
A princípio, a formação como violonista e a possibilidade de desenvolver o ensino do
instrumento
viola-de-cocho
revelaram-me
algumas
dificuldades,
tais
como:
o
desconhecimento em relação ao instrumento, sua execução e a existência ou não de
metodologia de ensino formal sistematizada.
Até então, também desconhecia que se tratava de um instrumento peculiar aos estados
de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, mais precisamente do homem pantaneiro da região de
Corumbá e Ladário. Essa situação revelou não só o desconhecimento sobre a cultura popular,
mas também a falta de acesso a essa prática, uma condição compartilhada com indivíduos da
localidade, senão deste estado.
Desse período de reconhecimento e estudo, três influências foram de extrema
importância para o meu direcionamento à pesquisa e ao delineamento do problema discutido.
Em primeiro, o contato com um tocador de viola-de-cocho, que me possibilitou a vivência
prática do instrumento, da construção e da tradicional brincadeira em pares do siriri e do
improviso rítmico e poético, exclusivo do tocador, o cururu.
Num segundo momento, o estímulo à reflexão foi aguçada pela pesquisadora Marli
Lopes da Costa, da UERJ - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, que trouxe ao meu
conhecimento a política implementada pelo IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional. Nessa ocasião, em 2008, completavam três anos da efetivação do registro
do Modo de Fazer Viola-de-Cocho no Livro de Saberes e da menção do título de Patrimônio
Cultural do Brasil pela mesma instituição.
Por último, o seu presente posterior, o livro “Viola-de-cocho - novas perspectivas”, de
1993, da autoria do professor Abel Santos Anjos Filho, que me trouxe o sucinto conhecimento
da dimensão histórica da viola-de-cocho e o contato com o autor, no ano de 2009. A
contribuição do professor, através dos registros musicais contidos em seu livro e das suas
breves orientações para a execução da viola-de-cocho, foi de fundamental importância.
Assim, concretizei a iniciação musical dos meus então alunos de violão popular e
clássico ao instrumento viola-de-cocho, com base na leitura de partitura e cifras, na
2
organização não governamental supracitada. Ainda no ano de 2009, sete alunos foram
preparados para acompanhar os movimentos do espetáculo Moinho in Concert, A Rainha
Nuvem, pela primeira vez junto à viola-de-cocho.
Foi possível entender que, estudos mais aprofundados sobre a viola-de-cocho,
instrumento característico da identidade musical e cultural dos estados de Mato Grosso e
Mato Grosso do Sul, vêm sendo realizados. Essas ações demarcam a iniciativa individual de
músicos, pesquisadores e instituições de diferentes esferas em realizar registros dessa práxis,
pertinente à tradição oral e transmitida pelos mestres de saberes da viola-de-cocho.
Fato é que as pesquisas realizadas até então são enfocadas na representatividade dessa
manifestação popular encontrada no estado de Mato Grosso. Este, por sua vez, gradualmente
tem seus mestres tocadores engajados em associações e respaldados por políticas públicas de
incentivo à cultura.
Também popularizam seus saberes e tradições, anualmente, no Festival de Cururu
Siriri de Mato Grosso, realizado na cidade de Cuiabá desde o ano de 2002. Além desse
evento, a viola-de-cocho é inserida em diferentes representações, como nas artes plásticas,
como recurso de marketing e em orquestra. O destaque dado ao instrumento pode ser visto
também no pioneiro processo de escolarização formal da viola-de-cocho, integrada, desde o
ano de 1996, à grade curricular da graduação em Artes, na UFMT – Universidade Federal de
Mato Grosso.
Já nas duas cidades de Mato Grosso do Sul onde há registro do instrumento, Corumbá
e Ladário, o cenário é contrastante e persiste praticamente inalterado no que se refere ao
processo de ensino-aprendizado do instrumento por meio dos tocadores remanescentes da
tradição e de novas experiências que conduzam o instrumento a outras experimentações.
Nesses municípios, são crescentes a apreciação e a prática do repertório popular da indústria
cultural nacional e internacional, e também podem ser visualizados os resultados advindos de
uma crescente valorização da Educação Musical. Conforme Arroyo (2002, p. 18- 19), essa
modalidade de ensino “[...] abrange todas as situações que envolvam ensino e/ou
aprendizagem de música, seja no âmbito dos sistemas escolares e acadêmicos, seja fora
deles.”
Se, por um lado, o ensino de música erudita tem crescido gradativamente em escolas e
projetos, tornando esta região rota constante dos espetáculos em nível nacional e regional, por
outro lado, no tocante às funções populares, disputam espaço com práticas socialmente
cultivadas pela mídia e com força desigual, frente à tradição cultural manifesta
espontaneamente.
3
Entende-se como funções populares as “[...] manifestações populares de um grupo, ou
comunidade, onde seus membros se reúnem para atividade conjunta, no contexto específico
de um evento: uma festa, uma comemoração, uma devoção, um mutirão, uma data religiosa.”
(CORRÊA; MARCHI; SAENGER, 2002, p. 104).
Dependendo fundamentalmente da memória dos tocadores mais antigos e da
transmissão oral, feita de geração em geração, ainda corre-se o risco de que elementos de
importante valor, não só musical, quanto hábitos, costumes e conhecimentos sejam
esquecidos, quando não rejeitados pela geração posterior. Ainda que já tenham sido realizadas
pesquisas no âmbito do inventário para registro no Livro de Saberes, há necessidade de
estudos que se aprofundem nas particularidades das festas, do modo de fazer os instrumentos,
entre outras atividades encontradas nessas localidades.
Esse movimento acentua-se, aliado ao processo eminente de urbanização do Brasil e à
migração da população das áreas rurais para as cidades, em busca de diferentes condições de
vida. Noutro contexto, as práticas musicais e sociais de determinados grupos são remetidas ao
passado e não mais possuem a função social motivadora de antes. Assim, como no caso
específico da viola-de-cocho, outros pequenos grupos e suas tradições tendem a cair no
esquecimento.
Lima Filho (2005) indica que o Brasil ascendeu economicamente sem considerar a
identidade de seus habitantes, especificamente no que se refere à “cultura” e a “raça”. Assim,
tudo e todos que não se enquadraram no modelo vigente foram definidos por “[...] uma marca
de não-identidade,
uma negatividade ‘própria’, concebida como supostamente natural,
porém, em verdade, socialmente produzida [e naturalizada].” (ibid., p.5-6, grifo do autor).
Jameson (2001) vai além e revela que esse movimento de sobreposição e
emudecimento da cultura popular local ou tradicional corresponde, para muitos autores, ao
cerne da globalização, acentuada após a Segunda Guerra, como resultante das estratégias do
“capitalismo tardio” ou capitalismo multinacional, para se sobrepor às constantes crises
enfrentadas.
Assim, a instauração da economia globalizada atinge não somente a esfera econômica,
mas, por meio do desenvolvimento tecnológico, alcança seus objetivos mundialmente,
provocando a fusão do “[...] cultural no econômico- e o econômico no cultural.” (ibid., p. 22),
o que corresponde à chamada pós-modernidade. Jameson (ibid.) salienta que a pósmodernidade caracteriza-se pelo total desapego à preservação do passado e que: “A produção
de mercadorias é agora um fenômeno cultural, no qual se compram os produtos tanto por sua
imagem quanto por seu uso imediato.” (p. 22).
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De acordo com o pensamento marxista, o valor de uso de uma mercadoria é atribuído
conforme sua utilidade, determinado por sua dimensão quantitativa, realizado no uso ou no
consumo e possuindo, ao mesmo tempo, o valor de troca (MARX, 1996).
Porém, o que se materializa na atual conjuntura da economia mundial é que, ao passo
de sua constituição como mercadoria, assim como o alimento, as vestimentas e outras funções
atribuídas às mercadorias, são restringidos os valores da cultura, em seu fazer como
manifestação cultural, que vão além de sua imagem, do status social, do fetiche e de seu
prazer imediato.
É incluída nesse contexto da cultura como economia globalizada que a viola-de-cocho
vem perdendo seu espaço nos ambientes em que anteriormente detinha prestígio, como em
reuniões, festas lúdico-religiosas, aniversários, mutirões e demais práticas coletivas. Em
consequência, se tal prática é restrita ou não transmitida, códigos e símbolos de sua
manifestação são esquecidos ou simplesmente relegados ao espetáculo anual de eventos
turísticos da cidade e sujeitos a sofrer todas as intervenções anteriormente inaceitáveis, para
se tornarem mais mercadorias de consumo, descartáveis e extirpadas de seus significados
singulares.
Partindo dessa condição atualmente apresentada, muitos tocadores desistem de tal
prática, seja pela desmotivação ou por perderem, em algum lugar da memória, os
conhecimentos não transmitidos a novos instrumentistas e igualmente não registrados para
além de sua memória.
Diante do problema apresentado, justifica-se a necessidade de realizar esta pesquisa
com os tradicionais tocadores de viola-de-cocho de Corumbá e Ladário, visto que possibilitará
discutir, reconhecer e registrar dados peculiares à execução do instrumento nesses dois
municípios, tão pouco focalizados em pesquisas acadêmicas. Buscou-se relacionar essa
discussão às estratégias capitalistas para sobreviver às suas crises constantes, especificamente
à globalização e seu impacto na cultura nacional.
As primeiras pesquisas relacionadas à viola-de-cocho foram registradas desde os anos
1940 e davam conta dos primeiros sinais de existência desse instrumento no estado de Mato
Grosso. Desse momento até o ano de 2012, as investigações acerca dessa práxis nas
localidades nas quais é praticada foram ampliadas. Porém, determinadas especificidades das
regiões de sua ocorrência ainda estão carentes de estudos que se aprofundem no conhecimento
da prática musical de seus tocadores e dos processos de repasses de saberes, como ocorre na
região de Corumbá e Ladário, em Mato Grosso do Sul.
5
São necessárias pesquisas que enfoquem não somente o resultado material de sua
atividade, mas que visualizem os sujeitos ativos na execução do instrumento viola-de-cocho.
Pois há risco contínuo de que as peculiaridades dessa prática registrada nas localidades de
Corumbá e Ladário venham a desaparecer devido à incipiente produção científica nessa área.
Além disso, é fundamental conhecer, compreender e criticar sua condição de
sobrevivência, as estratégias adotadas para sua conservação e o reconhecimento de sua
resistência frente ao processo de desenvolvimento urbano, social e tecnológico mundial e
local.
Assim, este trabalho teve como objetivo investigar como se desenvolveu o ensino e o
aprendizado da viola-de-cocho em Corumbá e Ladário. Intentou discutir as transformações
econômicas mundiais da globalização e questionar qual o impacto para as tradições populares
de forma a transformá-la ou extinguir sua prática no ambiente rural ou urbano da localidade
pesquisada. Ainda buscou abordar o papel das políticas culturais para conservação e
transmissão dos conhecimentos dessa prática.
Para tanto, questionou-se: em que contexto histórico-social e musical se deu a criação
ou a transformação da viola-de-cocho? Que viola-de-cocho é essa executada em Corumbá e
Ladário? Qual a condição de existência da cultura popular frente ao processo de globalização?
Quais fatores motivaram o registro da viola-de-cocho? Posterior ao registro da viola-decocho, quais são as estratégias ou projetos voltados ao ensino de novos tocadores de viola-decocho? Como se desenvolveu o processo de ensino-aprendizado dos tradicionais tocadores
desse instrumento? Que influência ou impacto a produção musical em massa tem gerado ao
ensino e à prática musical dos tocadores?
Para responder a essas e outras questões que surgiram no desenvolvimento desta
pesquisa, foi utilizada a abordagem crítico-dialética como suporte teórico-metodológico na
discussão pretendida. Sob essa perspectiva, o sujeito, homem ontológico, é entendido como
indivíduo social que é capaz de se modificar e transformar sua condição por meio do trabalho,
numa constante metamorfose (GAMBOA, 2006).
Tal perspectiva buscou propiciar que o sujeito e o objeto desta pesquisa fossem
considerados como parte integrante de um todo, compreendendo sua condição no contexto em
que estão inseridos. Procurou-se a análise de suas partes e a recuperação de elementos
constituintes em seu contexto, sem que suas especificidades fossem rejeitadas.
A investigação aqui evidenciada é um estudo de caso do processo de ensino e
aprendizado da viola-de-cocho e das manifestações atreladas ao instrumento produzido
artesanalmente pelo homem pantaneiro, das cidades de Corumbá e Ladário, em Mato Grosso
6
do Sul. Dada à flexibilidade desse modelo de pesquisa e à independência facultada ao
pesquisador, recorreu-se a outras fontes sugeridas por Gil (2009, p. 6), “[...] como, por
exemplo, a observação, a entrevista e a análise de documentos.”
Assim, este estudo de caso objetivou debater, também, sobre a política de patrimônio
cultural do IPHAN e se o registro no Livro do Modo de Fazer a Viola-de-cocho e título de
Patrimônio Cultural do Brasil resultaram em estratégias com vistas à manutenção dessa
prática. E, principalmente, se há iniciativas que visem à transmissão dos conhecimentos a ela
atrelados, registrados junto aos órgãos competentes. Sobretudo, trata-se de entender como
essa prática sobrevive, apesar do contexto afastado dos grandes centros culturais e
econômicos, conseguindo impor-se como resistência a uma indústria globalizada e em franca
expansão.
Entre os procedimentos de coleta de dados adotados, foi utilizada a “análise
documental”, conforme sugere Ludke e André (1986). Foram consultadas, a princípio, as
produções bibliográficas relacionadas ao processo de ensino-aprendizado não formal e
informal da viola-de-cocho e à análise histórica de sua origem. Recorreu-se também a outras
fontes, como a Constituição Federal de 1988 e os documentos que definem a natureza dos
bens nacionais, além dos acervos digitais disponíveis no site do IPHAN, nos quais se
encontram os documentos oficiais do inventário da viola-de-cocho, do registro do modo de
fazer da viola-de-cocho e de sua titulação como Patrimônio Cultural do Brasil.
Outro procedimento empregado no campo empírico foi a entrevista semiestruturada
registrada em áudio e vídeo. Tal escolha ocorreu por favorecer a melhor interação entre o
pesquisador e o sujeito da pesquisa, permitindo a ambos o aprofundamento no tema sugerido
e o estabelecimento de confiança na troca de informações (ibid.). Esse registro tornou-se
viável por capturar expressões verbais e faciais dos sujeitos entrevistados, e, também, das
manifestações populares em sua ocorrência e do seu modo de fazer o instrumento.
A princípio, foram registrados o 1º e o 2º Encontro de Cururu e Siriri do Pantanal de
Corumbá ou Encontro de Cururueiros, organizados no ano de 2010 e 2011, em Corumbá
durante a Festa de São João. Foi registrada a Festa de São João de Corumbá, entre os anos de
2011 e 2012, em que se apresentaram os tocadores. O acompanhamento dessas atividades
levou à elaboração de um cadastro com 11 tocadores de viola-de-cocho das cidades de
Corumbá e Ladário e à fixação dos critérios para seleção dos sujeitos para as entrevistas.
Para as entrevistas, foram escolhidos os tocadores de viola-de-cocho nascidos ou não
nas cidades de Corumbá ou Ladário-MS, que residem em um desses municípios. Contou-se
com a colaboração dos tocadores participantes ativos das manifestações do siriri, do cururu e
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da louvação ao São João. Também colaboraram aqueles que constroem e ensinam a executar
o instrumento, têm conhecimento sobre o modo de tocar os ritmos siriri e cururu, as músicas
(letras e ritmos) e da dança, e que reconhecem as afinações e as crenças.
Privilegiaram-se aqueles sujeitos que tenham desenvolvido ou que desenvolvam
atividades que incentivam o repasse de saberes através do ensino formal, não formal ou
informal do instrumento.
As entrevistas foram realizadas a partir de um roteiro com questões pontuais sobre o
ensino e o aprendizado do instrumento viola-de-cocho. E, também, questões que abordavam a
sua resistência diante das modificações no plano econômico, social e cultural dos dois
municípios. Os entrevistados assinaram o Termo de Consentimento Livre Esclarecido
(TCLE), que lhes assegura o anonimato e a ciência de que seus depoimentos foram usadas no
estudo.
Assim, esta dissertação foi organizada em quatro capítulos. No primeiro capítulo, foi
feita uma breve reflexão histórica do instrumento viola-de-cocho, buscando contextualizar sua
presença e as dificuldades encontradas nas cidades de Corumbá e Ladário.
No segundo capítulo apresentou-se a fundamentação teórico-metodológica adotada, a
abordagem crítico-dialética. Logo em seguida, a discussão foi realizada no campo da
economia política da globalização e da cultura.
Em seguida, no terceiro capítulo, a discussão foi direcionada à política de patrimônio
cultural executada pelo IPHAN e ao processo de registro no Livro do Modo de Fazer a Violade-cocho e do título de Patrimônio Cultural Imaterial. Depois, estendeu-se o debate ao último
capítulo, no qual se efetivou uma análise do processo de ensino e aprendizagem da viola-decocho desenvolvido nas cidades de Corumbá e Ladário- MS.
Por fim, nas considerações finais, retornou-se às questões inicialmente expostas, para
propor uma reflexão da investigação empreendida no campo teórico e empírico.
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CAPÍTULO I
PANORAMA HISTÓRICO DA VIOLA-DE-COCHO
Este capítulo tem como objetivo apresentar o instrumento artesanal viola-de-cocho,
desde o seu surgimento.
A breve passagem histórica que efetuamos a seguir refere-se ao fato de que a viola foi
instrumento presente nas práticas musicais portuguesas colonizatórias e, posteriormente,
contribuiu para a formação do complexo musical e instrumental brasileiro a constituir-se em
seu contínuo uso ou adaptação pela população. O objeto de nosso estudo, a viola-de-cocho,
absorveu várias influências da viola portuguesa. Logo, quando a discussão aqui apresentada
mencionar o instrumento viola, trata-se da viola com cordas duplas feitas de arame, de forma
que a referência à viola-de-cocho ocorrerá sem alteração da nomenclatura.
A seguir, serão apresentados os registros sobre o instrumento catalogados nas
produções científicas. Por último, a problemática de sobrevivência atual do instrumento, na
localidade de Corumbá e Ladário, em Mato Grosso do Sul.
1.1
A viola
Entendem-se os instrumentos de cordas ou cordófones, segundo a denominação
apresentada no Dicionário Grove de Música (1994), “[...] como aqueles instrumentos que
produzem som por meio da vibração de suas cordas; vibração essa, causada quando
‘dedilhados, pinçados, percutidos ou tangidos com arco’” (p. 455 apud GARCIA, 2012, p.
35). Eles ainda podem ser classificados conforme sua especificidade em três grupos de
instrumentos do: “tipo da cítara”, como o piano e outros; “tipo do alaúde e da lira”, entre eles,
o violão, a viola-de-cocho, o alaúde, o bandolim e outros; e, por último, os instrumentos do
“tipo da harpa”. (ibid.).
Especificamente sobre o cordófone identificado pelo termo “viola”, a literatura
apresenta vasto leque instrumental. O uso do termo é recorrente, assim como as interpretações
que remetem objetivamente à memória musical e visual do que se reconhece como viola. Há
que citar exemplos distintos dos termos que vez por outra são utilizados e da
complementaridade do “[...] substantivo composto: viola clássica, viola da gamba, viola
caipira, viola branca, viola sertaneja, viola-de-cocho, entre outros.” (GARCIA, 2012, p. 35),
exemplos que, em geral, não se referem a um mesmo instrumento.
9
Constata-se tal variabilidade em Portugal, de onde veio esse cordófone e onde há,
também, exemplos diferenciados de acordo com determinadas localidades, como: a viola de
dois corações, a viola campaniça, a viola beirôa, entre outras. No Brasil, o termo e a sua
estrutura física também foram sujeitos às modificações inseridas conforme seu uso e a região
onde o instrumento é encontrado. Corrêa (2002) acrescenta que:
No Brasil, as tradições musicais de origem portuguesa foram-se alterando conforme
a realidade de cada região e os diferentes níveis de interação com culturas distintas,
principalmente a negra e a indígena. Dessa mescla de culturas, surgiram outros
instrumentos de cordas ligados a manifestações populares, notadamente a viola-decocho e, mais raras, a viola de buriti, a de cabaça e a de bambu. Segundo James
Amado [1969], o poeta popular Gregório de Matos- séculos XVII- era também
violeiro e tocava uma viola de cabaça construída por ele próprio. (p. 55, grifo do
autor).
Ballesté (2008) sustenta que essas indefinições devem-se também ao fato de que: “A
nomenclatura parece variar de acordo com grupos sociais, localização espacial e período
histórico.” (p. 1).
Especificamente a que chamamos de viola, ao nos referir à viola caipira, é o mesmo
que viola de arame ou o inverso, conforme o Dicionário Grove de Música (1994):
Instrumento folclórico brasileiro, semelhante ao violão, mas de menor tamanho, com
cinco ou seis pares (“ordens”) de cordas metálicas dedilhadas, com afinação
variável. Originária de Portugal, onde é conhecida em certas regiões como “viola de
arame”, a viola é característica da música sertaneja brasileira; também chamada
popularmente de “pinho”. (p. 996, grifo do autor).
A história da viola revela que, tanto em Portugal quanto no Brasil, foi registrada em
variabilidade de proporções físicas, modelos e afinações e, também, integrada a diferentes
práticas sociais e culturais. Se ora foi considerada um instrumento de prestígio pela elite e
também pela população menos abastada, noutras circunstâncias não detinha importância
devido ao perigo que poderia causar sua execução aos valores e à sociedade da época.
Nogueira (2009) assevera que essa imagem relacionada ao instrumento não é um
evento atual, mas uma situação anterior à sua chegada no Brasil. Segundo a autora, na Corte
de D. Afonso V, em Portugal, em 1459, os Procuradores de Ponte de Lima endossaram uma
representação sobre os danos que a viola causaria à sociedade:
10
[...] aos males que por causa das violas se sentem por todo o Reino; e pelas gentes
que delas se serviam para, tocando e cantando, mais facilmente escalarem as casas e
roubarem os homens de suas fazendas, e dormirem com suas mulheres, filhas ou
criadas, que, ‘como ouvem tanger da viola’, vamlhes desfechar as portas.
(OLIVEIRA, 1966, p. 127 apud ibid., p. 207).
Essa ênfase dada ao efeito alucinógeno que a execução da viola causaria não seria o
único caso ocorrido no reinado de D. Afonso V. Budasz (2001 apud CASTRO, 2007, p. 20)
revela que, aquele que “[...] fosse pego nas ruas com ‘viola’ após 9:00h da noite e que ficando
comprovado que não fosse para festa ou casamento, deveria ser detido, ter sua ‘viola’, armas e
roupas confiscadas.”
Assim, até o século XV, a viola em Portugal integrou práticas musicais do povo e da
elite; tornou-se tão popular que sua presença era constante em “[...] folguedos rurais e de rua,
ao serviço de amores, devaneios, diversões, folias, serenatas, cantares trovadorescos, jograis,
danças, entre outras manifestações.” (ibid., p. 20). Também foi mencionada frequentemente
nos autos de Gil Vicente (1465-1537) e, em certas ocasiões, considerada um importante
elemento para a “boa educação” dos indivíduos da época, sugere Castro (ibid.).
No Brasil, com a chegada de Pedro Álvares Cabral e sua esquadra, em 1500, a cena
musical nativa se transformaria, com o ensino de música a se desenvolver através da
aproximação aos colonizadores. Nesse período, chegaram também às primeiras ordens
religiosas que viriam a iniciar o processo educacional e a catequização dos gentios.
Primeiramente, os franciscanos, responsáveis pela primeira missa realizada no Brasil, pelo
frei Henrique de Coimbra, conforme Saviani (2008). Posteriormente, chegaram outras ordens
como os “[...] carmelitas, mercedários, oratorianos e capuchinhos, tendo desenvolvido alguma
atividade educativa” (ibid., p. 41).
Saviani (2008) declara que, devido à dificuldade de colonização encontrada pelos
portugueses e as primeiras ordens religiosas, o rei de Portugal Dom João III designou o
primeiro governador geral do Brasil, Tomé de Sousa, que chegou ao Brasil em 1549, junto a
uma comitiva composta por padres jesuítas.
Na ocasião, o rei Dom João III revelou tê-los enviado junto à comitiva para que
convertessem os gentios ao catolicismo, “[...] de modo que os gentios ‘[pudessem] ser
doutrinados e ensinados nas coisas de nossa santa fé’” (DOM JOÃO III, 1992, p. 145-148
apud ibid., p. 25). Dessa forma, distinguindo-se das ordens religiosas que anteriormente
chegaram à colônia, os jesuítas estabeleceram-se no Brasil com o apoio da Coroa Portuguesa
(ibid.).
11
Aos jesuítas foi atribuída também a missão de edificação, daquela terra que se
reconhecia como as Índias. Não possuíam peso compatível à tarefa de domesticar os gentios,
enxergados pela metrópole portuguesa como “[...] “aquele outro” estranho, raro, singular, no
qual o divino e o diabólico se alternavam. O “Outro” que, como bem diz Michael de Certeau,
oscilava entre o além e o aquém do humano, e que mais do que convertido deveria ser
civilizado [...]” (DEL PRIORE, 1991, p. 11). Essa sim, era a tarefa decisiva para a
consolidação da recém-criada Companhia de Jesus frente à igreja romana.
Porém, o rei não era o único a incentivar o processo de catequização e a consequente
sujeição dos nativos aqui encontrados. Loureiro (2003) esclarece que a chegada dos jesuítas
ocorreu num período de cisão religiosa na Europa, crucial para o reestabelecimento da fé
católica, suscitada com a Reforma Protestante conduzida por Martinho Lutero. Esse período
rompeu com posicionamentos adotados pela igreja até então; em contrapartida, a reforma
liderada por Lutero defendia a “[...] responsabilidade [do indivíduo] pela sua fé, e ao ver na
Bíblia a fonte dessa fé [...]” (ibid., p. 40, grifo do autor).
Além disso, a reforma deu um passo importante para a criação de escolas, com
objetivo de catequização e também no estabelecimento da música como veículo de
aproximação aos fiéis. Podemos afirmar que a prática e o processo de educação musical
conquistaram, nesse período, cenário de destaque com o ensino de canto e leitura musical,
vindo a ocupar grau de importância na realização das cerimônias religiosas.
A Igreja Católica, nessa condição, contrapõe-se às modificações geradas pela Reforma
Protestante, criando a Companhia de Jesus. Segundo Loureiro (ibid.), essa ordem religiosa
focalizou sua atuação na “catequese” realizada em igrejas e escolas, centralizando-se na
educação da juventude leiga, a fim de formá-la segundo o modelo da época. Assim,
semelhantemente à educação protestante, tomou também a música como disciplina presente
na “formação do bom cristão”, integrando-a nas celebrações.
Logo, coube aos jesuítas chegados em 1549 no Brasil não só a incumbência de
catequizar o nativo, mas demarcar o início do processo de “educação como fenômeno da
aculturação” (SAVIANI, op. cit.).
Esse processo educacional religioso pode ser entendido em três fases, segundo Mattos
(1958; apud SAVIANI, ibid.): a primeira fase, reconhecida como período heroico, iniciada em
1549 com a instalação dos jesuítas no Brasil, estendeu-se até o século XVI, quando seu final
foi pela morte do padre José de Anchieta e a implantação do Ratio Studiorum. Então começou
a segunda fase, com a sua estruturação, compreendendo os anos de 1599 a 1759. A terceira
fase, pombalina, teve início após a expulsão dos jesuítas pela Coroa portuguesa.
12
Naquele momento da chegada da missão jesuítica, a colônia era formada por uma
sociedade primitiva, diferente do modelo europeu de sociedade dividida em classes. Aqui
existia uma sociedade ou uma “[...] economia natural e de subsistência. Natural porque
‘capaz de satisfazer às necessidades dos membros do grupo social sem nenhuma troca’; e de
subsistência porque ‘orientada no sentido de satisfazer às necessidades registradas do grupo
local’” (FERNANDEZ, 1989, p. 76 apud ibid., p. 33, grifo do autor).
Uma sociedade na qual, diferentemente do que se poderia esperar seus colonizadores e
missionários, a música era praticada pelos gentios com naturalidade e transmitida
informalmente, durante cerimônias e demais práticas cotidianas, explicita Loureiro (op. cit.).
O registro de informações sobre a realização dessas cerimônias, realizado pelo viajante Jean
de Léry, em 1557, detalha como e em que circunstâncias a prática musical se dava:
Essas cerimônias duravam cerca de duas horas e durante esse tempo os quinhentos
ou seiscentos selvagens não cessaram de dançar e cantar de um modo tão
harmonioso que ninguém diria não conhecerem música. Se, como disse, no início
dessa algazarra, me assustei, já agora me mantinha absorto em coro ouvindo os
acordes dessa imensa multidão e sobretudo a cadência e o estribilho repetido a cada
copla: Hê,He ayre, heyrá, heyrayre, heyra, heyre, uêh. E ainda hoje, quando recordo
essa cena, sinto palpitar o coração e parece-me a estar ouvindo (MIGNONE, 1980,
p. 45 apud ibid., p. 43).
Nessa ocasião, os jesuítas contribuíram para o estabelecimento do processo
pedagógico na educação e para a construção da identidade musical brasileira. Assim,
conforme Beyer (1994, apud ibid.), trouxeram tanto para a educação dos indígenas quanto
para a sua formação musical, a influência europeia.
Do século XVI, um dos poucos registros da viola no Brasil indica sua chegada pelas
mãos dos portugueses e que, em pouco tempo, existiam exemplares levados para as regiões
colonizadas pelos portugueses. Logo a sua chegada foi utilizada pelos jesuítas, colonos e na
catequese dos nativos e, com o passar do tempo, o instrumento ganhou prestígio social,
compondo as práticas musicais com acompanhamento da voz, conforme ressalta Dias (2010).
Taborda (2002) confirma a importância da ação dos jesuítas na gradativa inserção da
viola na prática musical da colônia:
13
(...) notícias certas sobre violas de arame só aparecem de fato nas cartas dos jesuítas,
que chegaram ao Brasil com Tomé de Souza em 1549. Foram eles que introduziram
aqui de modo sistemático as violas e os demais instrumentos europeus. O padre
Fernão Cardim, ao viajar pela Bahia, Pernambuco, Espírito Santo, Rio de Janeiro e
São Vicente (São Paulo) entre os anos de 1583 e 1590, fornece informações sobre o
que viu nas missões jesuíticas visitadas, em cartas endereçadas ao Provincial em
Portugal. Por toda a parte, foram os visitantes recebidos por índios, “[...] uns
cantando e tangendo a seu modo”, outros “[...] com uma dança de escudos à
portuguesa, fazendo muitos trocados e dançando ao som da viola, pandeiro, tamboril
e flauta” (Cardim, 1980, p. 145). Em algumas aldeias, “[...] há escolas de ler e
escrever, onde os padres ensinam a ler, a contar, a cantar e tanger; tudo tomam bem,
e há já muitos que tangem flautas, violas, cravos.” (CARDIM, 1980, p. 55 apud
TABORDA, 2002, p. 142).
Ainda no século XVI dá-se um dos primeiros registros da prática da viola em solo
brasileiro, em 1583, quando apresentado um “auto pastoril” em homenagem ao padre
Cristovão de Gouveia, segundo Tinhorão (1998, p. 41 apud ANJOS FILHO, 2002, p. 35).
Com o passar do tempo a viola foi um importante recurso para catequização dos
gentios pelos jesuítas e sempre presente “[...] nos mais diversos gêneros musicais desde sua
chegada, ocupando lugar de destaque no acompanhamento da voz, e descrito como
instrumento participante de saraus e festas populares.”, ressalta Castro (op. cit., p. 22).
O processo de educação desenvolvido pelos jesuítas utilizou-se principalmente da
fusão entre as danças indígenas e as músicas religiosas, baseado no ensino do “cantochão e
dos autos”, interpretado pelos nativos junto à dança, descreve Loureiro (2003). Um exemplo
dessa fusão entre a música europeia ensinada pelos missionários jesuítas e a indígena ocorreu
quando: “O padre José de Anchieta aproveitou-se de uma dança religiosa dos índios, chamada
cateretê, para atraí-los ao cristianismo; introduziu esta dança nas festas de Santa Cruz,
Espírito Santo e São Gonçalo.” (SANT’ANNA, 2001, p. 91 apud DIAS, 2010, p. 26).
A importância atribuída à música na catequese fez com que ela integrasse o
currículo das “Escolas de ler e escrever”. Segundo Serafim Leite, no Seminário de
Órfãos, os jesuítas ensinavam, além da gramática e do latim, música e cantochão.
Para isso, chegaram a criar uma cartilha musical, denominada Artinha, usada pelos
mestres nas aulas de iniciação musical, ao mesmo tempo em que se processava a
alfabetização, datando dessa época o tratado do solfejo intitulado “Escola de Canto
Órgão”, do baiano Caetano Melo de Jesus. (LOUREIRO, op. cit., p. 44)
A relação música e religião eram tão intrincadas que, na inauguração do Colégio dos
Meninos de Jesus fundado pelo padre jesuíta Manuel da Nóbrega- sendo um na Bahia e outro
em São Vicente, conforme Saviani (2008)- foi encenado, em 1553, o auto Mistérios de Jesus,
composto pelo padre José de Anchieta, menciona Loureiro (2003). Mesmo que José de
Anchieta não tenha sido músico profissional, mas sim, um amante dessa modalidade da arte,
14
preocupou-se continuamente em trazer para as suas composições teatrais a música, os
elementos da cultura e da língua tupi, desenvolvidas junto às suas missões pelo Brasil nas
“Escolas de ler, contar e tocar instrumentos musicais” (ibid.).
Posteriormente, a prática instrumental e do cantochão, integrou a grade curricular da
Ratio Studiorum (Ordem dos Estudos). (LOUREIRO, 2003; SAVIANI, 2008).
Em 1684, na Bahia, o padre Gregório de Matos Guerra iniciou sua atuação como
músico e boêmio, executando uma viola feita de cabaça construída pelo próprio, conforme
Tinhorão (1998 apud ANJOS FILHO, 2002). Essa seria o primeiro sinal de adaptação
artesanal da viola registrado no país. Tal transformação, ao longo da história, demonstraria
vasta ramificação da viola em solo brasileiro, como uma resultante do processo de
aculturação.
Taborda (2002) nos traz informações preciosas sobre esse processo de aculturação a
que foram sujeitos instrumentos como a viola ou viola de arame:
As informações sobre a introdução da viola no Brasil nos levam a crer que esta se
deu pelos jesuítas, que não só pertenciam às classes dominantes como também eram
a elite intelectual da colônia, e pelos colonos portugueses. É interessante notar que,
ao introduzir a viola na catequese de forma sistemática, os jesuítas transmitiram
rudimentos da técnica de execução, assim como da técnica de confecção; ainda vivo
no Brasil atual, há um tipo de viola rústica – a viola de cocho – tipo de instrumento
de madeira não envernizada, dotado de cordas de tripa (atualmente já de nylon),
usado no acompanhamento dos cururus, dos siriris e dos cateretês, gêneros
originados da catequese. (p. 143).
Com o Tratado de Tordesilhas, Portugal e a Espanha receberam uma parcela do país,
no período de 1494 a 1750. (ANJOS FILHO, 2002; SIGRIST, 2008). Consta que na porção
correspondente ao atual estado de Mato Grosso do Sul, viveram antes da chegada
colonizadores europeus, diferentes tribos indígenas, como:
[...] os Paiaguá, que ocupavam toda a extensão do rio Paraguai (Guató- canoeiros e
Guaná); os Guaicuru (cavaleiros e guerreiros), que se espalhavam pela Serra de
Bodoquena- de Bela Vista até a região de Coxim; os Terena que habitavam a região
de Aquidauana; os Guarani localizados na fronteira MS/Paraguai; os Caiapó, que
viviam na região do Bolsão (divisa com Goiás, Minas e São Paulo); os Caiuá, no sul
do estado, na região de Dourados (Serra de Maracajú até divisas com São Paulo e
Paraná). (SIGRIST, 2008, p. 48, grifo da autora).
15
Em 1580, essa disputa territorial entre Espanha e Portugal foi ofuscada com a união
das duas coroas, permitindo com que os portugueses partissem em expedições para o CentroOeste em busca de ouro. (SIGRIST, 2008).
Concomitantemente, após a descoberta do ouro na região Centro- Oeste, pelo
bandeirante Antônio Pires de Campos e também, por Pascoal Moreira, a região passou a atrair
povoadores portugueses e pessoas de diferentes origens em busca do ouro. (ANJOS FILHO,
op. cit.). Tal fato é confirmado pelas informações de Barboza de Sá (1975 apud ibid.)
indicando que a informação havia se espalhado por Minas Gerais, Rio de Janeiro e na
Capitania de São Paulo, influenciando um novo ciclo migratório para a região, por volta de
1720; sendo, em 1748, fundada a Capitania de Mato Grosso.
Para chegar até a porção sul de Mato Grosso, as Bandeiras percorreram “[...] o rio
Tietê e o rio Paraná [...]” até alcançar os rios locais, “[...] os rios Pardos, Coxim, Piquiri ou
Anhanduí, Ivinhema e outros.” (SIGRIST, op. cit., p. 48). Junto chegaram os primeiros
“brancos” vindos de São Paulo, estabelecendo-se na região de Camapuã e em Cuiabá (idem).
Em 1750, o Tratado de Madrid põe fim ao Tratado de Tordesilhas, redefinindo o
território pertencente à Espanha e a Portugal. Destaca-se a terceira cláusula do tratado, na qual
consta “[...] que entre outras coisas, que pertenceria Portugal ‘tudo o que tem ocupado no
distrito de Mato Grosso’.” (POVOAS, 1964, p. 21; apud ibid., p. 55). De forma, possibilitou
maior ocupação da região, senão a expropriação do território em prol da coroa. Tal
característica é própria de uma ainda nascente nação capitalista, visto que, enquanto essa
porção da América era explorada para enriquecimento ilícito, os seus algozes europeus
apropriavam-se das riquezas nativas. Em contrapartida, coube à Espanha quase toda a
América, conforme lavrado no Tratado de Madrid.
Com a expulsão dos jesuítas em 1759, foram fechados os colégios existentes nas
colônias. Iniciou-se outro período da educação no Brasil, a fase pombalina, conforme Saviani
(op. cit.). Esse período foi demarcado pelas aulas régias (aulas leigas), que incorporaram
aspectos do modelo formal de ensino jesuíta ao novo modelo não formal de ensino, como na
prática da música de influência europeia nas cerimônias e demais atividades. (LOUREIRO,
op. cit.)
Juntamente com a influência portuguesa e jesuítica na prática da música brasileira, a
espanhola, a música indígena e a diversidade étnica e cultural africana foram de grande valia
para a constituição da música colonial brasileira. (LOUREIRO, op. cit.; MARIZ, 2005).
Sigrist (op. cit.) acrescenta que as missões jesuíticas espanhola e portuguesa influenciaram
16
fortemente na acepção religiosa, impressas nas “manifestações culturais e na educação
religiosa”.
Essa estabilidade foi rompida com a expulsão dos jesuítas do Brasil, mas colaborou
para a formação do que Sigrist (ibid.) denomina como “religiosidade popular”. Seria o
equivalente ao ocorrido com a aplicação das aulas régias, pois pessoas leigas ou com
conhecimentos restritos sobre a Bíblia tornaram-se intérpretes e se multiplicaram pelo país.
Foi esse contexto efervescente da região do então Mato Grosso, um ambiente profícuo
para o processo de aculturação e construção da identidade musical de seus habitantes.
Intensamente visitada por personagens de diferentes origens, em específico os portugueses,
absorveu as tradições e a religiosidade (ibid.); bem como as influências musicais e o aparato
instrumental.
Quanto ao elemento instrumental, melhor dizendo, as diversas ramificações da viola
no Brasil, a origem do instrumento viola-de-cocho ainda é incerta, pois poucos são os
registros de viajantes da época e não há documentos oficiais, cartas ou qualquer outro
documento em que se demarque claramente a sua constituição como instrumento. Relatos
orais, transmitidos de geração em geração, e estudos mais recentes mencionam possíveis
vestígios de seu surgimento na região de Mato Grosso, reconstituídos a partir da memória oral
da população mais antiga e das aproximações aos instrumentos já anotados no país no período
correspondente à sua colonização.
Esse dado não é exclusivo, pois, conforme Kieffer (1996), poucos foram as
informações sobre a música em notação musical, desde a chegada dos primeiros músicos
viajantes ao país, como fez Jean de Léry, ao anotar pela primeira vez o canto entoado pelos
índios tupinambás, publicado em 1585. O que era comum eram as descrições sobre a música,
com apontamento das letras das melodias entoadas, porém não formalizados, realizadas
também pelos viajantes Hans Standen, André Thévet e Fernão Candim (ibid.).
Foi a partir do inicio do século XVIII, que apontamentos precisos foram feitos. Essas
poucas anotações chegaram ao conhecimento público somente no séc. XIX, devido aos “[...]
relatos, iconografia e música grafada [...].” (KIEFFER, 1996, p. 136).
Além disso, não ocorreu uma busca para denotar a especificidade de mais um
exemplar da viola desenvolvida no Brasil, o que, conforme Ballesté (2007), dificulta o exame
minucioso a respeito da ramificação desse cordófone.
17
1.2
Viola-de-cocho: do surgimento às dificuldades contemporâneas
Julieta de Andrade (1981) efetuou um estudo histórico da viola-de-cocho, resultante de
sua empreitada na região de Mato Grosso, coletando informações sobre o instrumento.
Segundo a autora (ibid.), a viola-de-cocho seria descendente do instrumento alaúde. A autora
chegou a essa constatação ao confrontar as características registradas sobre o instrumento
viola-de-cocho com a classificação dos “grupos” ou “famílias” de instrumentos sugeridos por
Hornbostel-Sachs.
Considera-se, nesse caso específico: “Os cordófones, cujas cordas vibram quando
golpeadas, dedilhadas, ou friccionadas, se reduzem a quatro tipos fundamentais: cítaras,
alaúdes, liras e harpas.” (ibid., p. 49). No que diz respeito aos alaúdes, foram agrupados na
“família de alaúdes” e classificados de acordo com suas proporções em três grupos: “[...]
curtos, médios e compridos.” (ibid.)
O surgimento do primeiro exemplar do Al’Ud ou Alaúde deu-se no século VIII a.C.,
no Irã. O instrumento foi posteriormente difundido pela Ásia, Europa, África e Américas,
locais onde gradativamente se transformou e assumiu características específicas.
A partir do confronto das características similares identificadas entre a viola-de-cocho
e o alaúde curto vindo do Irã até a Europa, entre os séculos V e VII, Andrade (1981) supõe
que a viola-de-cocho poderia ter sido originada do processo de aculturação sofrido pelo antigo
alaúde. Confirmaram-se então, as seguintes peculiaridades: “[...] a) o comprimento do braço;
b) a quantidade e o material das cordas; c) o fato de serem cordas simples; d) cravelhal
tombado fortemente e cravelhas posteriores; o detalhe de ser um alaúde cavado, inteiriço.”
(ibid., p. 74).
Também é possível sugerir a influência da Espanha nesse processo de transformação
do instrumento, conforme Andrade (op. cit.), já que, assim como os alaúdes lá encontrados, a
viola-de-cocho possui características semelhantes: “[...] a) o tamanho mínimo ou ausência
total de orifício acústico, ocorrente em cordófones ibéricos, do século X e XII; b) a
nomenclatura das diversas partes do cocho; c) iluminaturas, desenhos constantes de
Cancioneiros em obras espanholas da época, mostrando instrumentos muito semelhantes.”
(ibid., p. 74).
Outras possibilidades quanto à criação ou transformação da viola-de-cocho são
sugeridas por Anjos Filho (2002). Primeiramente, a proximidade entre as violas de mão
portuguesas e a viola-de-cocho. Entre os aspectos similares a se destacar, estão segundo Anjos
Filho (op. cit.): as proporções físicas e o cravelhame inclinado para trás; além de traços já em
18
desuso na viola-de-cocho encontrada em Mato Grosso do Sul, mas registrados em Mato
Grosso, como o furo no tampo ao invés da rosácea. Percebeu-se a utilização de quatro e seis
cordas, condição também já existente em outros momentos da viola-de-cocho; hoje, exibe
cinco cordas.
É importante mencionar que a viola de mão originou outros modelos ainda hoje
existentes em Portugal, já citados inicialmente nessa pesquisa, como a “[...] viola braguesa,
toeira, campaniça e beirôa.” (ibid., p. 107). Quanto à viola-de-cocho, possui a afinação chamada
canotio solto (1ª ré, 2ª lá, 3ª si, 4ª mi e 5ª lá), registrada com afinação igual a da viola braguesa
registrada por Travassos e Corrêa (1988) e Anjos Filho (1993); semelhança ressaltada também
por Corrêa (2002). Acrescenta-se que, canotio é o nome dado à quarta corda da viola-de-cocho,
executada solta ou presa, conforme sua afinação; por isso, chama-se afinação canotio solto ou
canotio preso.
Outra similaridade identificada por Anjos Filho (op. cit.) foi registrada no livro
“Guitares Hispano-Americaines de Bruno Montanaro R.”, um instrumento chamado
bordonua, que possui proximidade ao corpo da viola-de-cocho e traz em seu tampo a mesma
madeira.
Além desse detalhe, o instrumento anotado no livro tinha o que, segundo Anjos Filho
(ibid.), atualmente, corresponde à viola pantaneira- viola construída a partir do mesmo
processo utilizado por luthiers. Há similaridades, como: a utilização de cinco cordas duplas
afinadas ao modelo da afinação do canotio preso (1ª mi, 2ª si, 3ª fá , 4ª ré e 5ª lá)1 (ibid.); e,
segue o mesmo processo de construção da viola-de-cocho, o que para Anjos Filho (ibid., p.
154), “[...] remonta também ao estilo de fabricação da chamada guitarra latina.”
O autor encontrou também outros instrumentos que lembram à viola-de-cocho, como a
“mejorana” e também, o “socavón”, conhecido como “bocona” (ibid.).
No dizer de Pedro Caldeira Cabral, e também de José Alberto Sardinha, as culturas
musicais ibéricas, nomeadamente a de Castela e a de Portugal, estiveram por muito
tempo irmanadas pelas mesmas fontes que as originam. Isto nos vem explicar a
bordonua como fruto da colonização espanhola na América e a viola-de-cocho como
fruto da colonização portuguesa no Centro-Oeste brasileiro. (ibid., p. 154).
1
Cabe mencionar a proximidade da afinação do violão, que segue o padrão: 1ª mi, 2ª si, 3ª sol, 4ª ré, 5ª lá e 6ª
mi. A 3ª corda dessa afinação da viola-de-cocho em fá difere em um semitom da afinação utilizada no violão;
verifica-se ausência da 6ª corda, que no violão preserva a afinação com intervalo de uma 8ª abaixo, em relação à
afinação da primeira corda.
19
Figura 1: Bordonua2 possui 91,5 cm e 18 trastes. (ibid.)
No Brasil, o relato mais antigo sobre o instrumento viola-de-cocho, mais precisamente
na cidade de Cuiabá, data do final do século XIX, pelo cientista alemão Karl Von Der Stein
(1940). Ele menciona as práticas musicais das festas religiosas da região, caracterizando não
só o que poderia ser a viola-de-cocho, mas, de forma breve, outros instrumentos que teria
encontrado integrados à prática musical, como o:
Koschó, descrito como um violino de cordas de tripa, feito de madeira de salgueiro;
Krakaschá, pedaço de bambu ou uma cuia comprida com entalhes, que se toca com
outro pedaço de bambu;
Adufe, pandeiro com moedas de cobre como soalhas;
Viola, descrita como violino de cordas de arame;
Marimba dos negros, usada às vezes no cururu. (TRAVASSOS; CORRÊA, 1988,
p.16, grifo dos autor)
Ficam em evidência características sobre as quais imperam dúvidas entre os autores,
como o Koschó ou cocho. Apesar de ter sido relatado como um instrumento de corda
friccionada, não está claro ou, se assim fosse, teria sido relatado junto a um arco para usar na
sua execução, sugerem Travassos e Corrêa (1988).
Já a Viola ou viola de arame poderia ser a viola caipira presente constantemente na
execução do cururu paulista. O termo viola de arame aparece atualmente em algumas
produções científicas para designar a viola de cordas de aço ou viola caipira, denominada
também, como a viola instrumental, em referencia a viola utilizada na prática de concerto,
conforme Nogueira (2008; 2009).
2
Fonte: httpupload.wikimedia.orgwikipediacommonsaa2Bordonua.jpg
20
Conforme Travassos e Corrêa (1988), esse relato sobre a prática musical da localidade
confirma a existência do Krakaschá3 integrado às manifestações populares da região. Esse
instrumento, conforme o uso de seus tocadores e localidade onde é registrado pode também
ser conhecido como reco-reco artesanal ou ganzá, geralmente executado com um pedaço de
madeira ou osso. O Adulfe ou adulfo era um pandeiro artesanal, já mencionado em outras
obras direcionadas a essa região, como integrante do cururu e, também, integrado ao cururu
paulista junto ao acompanhamento da viola caipira. (TRAVASSOS; CORRÊA, 1988;
OLIVEIRA, 2004a).
Por último, o instrumento Marimba dos Negros, que a princípio não se inclui neste
contexto. Porém, indaga-se: “Teria o autor [Karl Von Den Stein] visto o instrumento atuando
em outro gênero musical?” (TRAVASSOS; CORRÊA, op. cit., p.17). Podemos considerar
que:
A marimba, espécie de harmônica, é feita de lâminas de ferro fixadas a uma
prancheta de madeira e sustentadas por um cavalete. Cada lâmina vibra sob a
pressão dos polegares do tocador, que a obriga a vergar, o que produz um som
harmônico. Um pedaço enorme de cabaça colocado ao lado do instrumento dá-lhe
um som muito mais grave e quase semelhante ao de uma harpa. (DEBRET, 1834,
tomo II, prancha 41 apud CASTRO, op. cit., p. 32)
Castro (ibid.) traz vários trabalhos de Jean Baptiste Debret, produzidos a partir de sua
estada no Brasil entre 1816 a 1831, integrado à Missão Artística Francesa. No período,
coletou informações sobre a sociedade do século de XIX, que reuniu sob o título Viagem
Pitoresca e Histórica ao Brasil (1934- 1939) ao retornar a Paris. (ibid.).
Nesse trabalho, inclui-se 153 pranchas, onde no “[...] tomo II, prancha 41- [intitulada]
vendedor de tabaco (cantor cego) – vendedoras de pão-de-ló.” (CASTRO, op. cit., p.31, grifo
do autor), há a evidência da execução do instrumento musical marimba de negro, por um
escravo à esquerda; à sua frente, outro executa o berimbau ou urucungo.
3
Esse nome pode ser uma onomatopeia causada pela fricção da baqueta com o corpo do instrumento ou uma
derivação de algum termo indígena. É um reco-reco feito artesanalmente de bambu, que recebe outro nome entre
os tocadores de viola-de-cocho: ganzá. O ganzá é, porém, parente do popular chocalho, e nada tem a ver com o
reco-reco.
21
Figura 2: Vendedor de tabaco (cantor cego) – vendedoras de pão-de-ló.
Entre os anos de 1900 e 1901, Max Schmidt esteve em Mato Grosso, revelou a prática
da viola-de-cocho pelos índios guatós através de registros fotográficos, segundo Travassos e
Corrêa (op. cit., p. 17): “[...] o instrumento é praticamente idêntico à viola de cocho atual, com
5 cordas simples, braço bastante curto, orifício no tampo ligeiramente maior que os que se
fazem atualmente e caixa de ressonância com a base mais estreita do que as atuais.”
Em 1947, o pesquisador Alceu Mainard de Araújo encontrou, na região do Médio
Tietê, instrumentos similares à viola-de-cocho. (ibid.).
‘Instrumento musical feito de madeira. A caixa de ressonância é escavada na
madeira. Caixa de ressonância e braço constituem uma só peça. Há uma pequena
abertura na frente anterior, feita a canivete. Na parte anterior da caixa de ressonância
é pregada uma tampa de madeira. Na haste que é o braço não há divisões de metal,
chamadas ‘trastos’. Ela é lisa como na rabeca e no violino. Na ponta da haste há só
uma cravelha que serve para estirar a única corda. Nesse cocho havia uma corda ‘si’
de violão. A corda é presa na borda posterior, e estendia sobre a parte anterior até a
haste, na rachadura que há na cravelha. Próximo da pequena abertura colocam um
rastilho de taquara. Conforme a toada é afinada a corda, e depois, o tocador com o
polegar da mão direita fá-la vibrar, e com a mão esquerda ele ‘acha’ a nota que deve
ser dada. Antigamente acompanhavam o Cururu tocando este instrumento.’
(ARAÚJO, 1949, p. 58 apud ibid. , p.17, grifo do autor).
O desenho a seguir, nos permite relacionar as características anteriormente
apresentadas por Araújo às proporções do corpo do instrumento encontrado (ibid.):
22
Figura 3: Monocórdio (TRAVASSOS; CORRÊA, op. cit., p. 17).
O outro instrumento encontrado por Araújo (ibid.) em São Paulo foi relatado em
depoimento por um cururueiro, que descreveu as características aproximadas de um
instrumento como é o instrumento viola-de-cocho, diferentemente do acima citado, visto que
possui 4 cordas, como já mencionado por Anjos Filho (2002):
‘Conhecemos outro tipo de ‘cocho’, feito como o anterior, mas usa quatro cordas.
As cordas são de tripa de mico. Pedro Chiquito, cururueiro, contou- nos que viu
perto de Pereiras, na casa de um caboclo, velho ‘canturião’, um cocho com cordas de
tripa de mico, e que afina ‘a moda de cavaquinho’, ‘ré- sol- si- ré.’ (ARAÚJO, 1977,
p. 135 apud TRAVASSOS; CORRÊA, op. cit., p. 18).
Rossini Tavares de Lima (1962 apud ANDRADE, 1981) colheu o depoimento de um
cururueiro da região de Piracicaba, que revelou a utilização da guitarra pelos jesuítas para a
execução do cururu. Além da prática musical, fica evidente nesse relato, a utilização do
instrumento para intimidação dos índios e consequente apropriação de objetos ou coisas de
valor encontrados na escavação da terra.
‘Então eles trouxero jesuíta
Na sua companhia acompanhado
Então o que é que acontecia
Justamente nesse dia
Que é pra terra sê cavocado.
E eles não podia tê vantage
Aqui no meio dos selvage,
Eles erum trupelado,
Oclide, mais então que eles fazia,
Puis enquanto um dormia
Outro cantava trovado,
Porque eles tinham uma guitarra
Então uma guitarra erum tocado.
Então, veja os home arrodiava,
Veja bem que eles cantava
Pros índio ficá sustado.’ (ANDRADE, 1981, p. 69).
23
Conforme Andrade (op. cit.), a informação transmitida ao cururueiro de que a guitarra
executada pelo jesuíta surgiu primeiro e depois o cocho, causou-lhe estranheza. Esse fato é
recorrente, pois para alguns tocadores de viola-de-cocho mais antigos foi a partir da viola-decocho que surgiram os demais instrumentos cordófones a que temos acesso hoje.
“Agora vô dizê para mecê
Primeira viola que existiu no mundo,
Bem entendido, aqui do nosso lado,
Ai, de dizê o nome até ôço
Pois ela chamava cocho
Era bem desfigurado,
Porque aqui no Estado de São Paulo
É cururu que mecê vê por todu lado”.
(Folclore de São Paulo- Melodia e Ritmo, páginas 13 e 14; apud ibid., p. 69- 70).
Além da confirmação da inserção do cocho na execução do cururu em São Paulo pelos
cururueiros mais experientes, foi mencionada a utilização do adufe ou adufo (pandeiro
artesanal) e do reco-reco. (ibid.).
No registro fotográfico abaixo, colhido junto a um grupo de violeiros da região de
Piracicaba nos anos 1950, demonstra-se o acompanhamento do reco-reco (dir.), da viola de
dez cordas e do adufe, (OLIVEIRA, 2004a, p. 147). Em Mato Grosso e Mato Grosso do Sul,
persiste a utilização do reco-reco, enquanto há registro do uso do adulfo no cururu em
pesquisas.
Figura 4: Alceu Maynard Araújo coletando dados com microfone (esq.), adulfe ou pandeiro, viola
e o reco-reco. Foto: Oliveira (ibid., p. 147).
Oliveira (ibid.), em sua pesquisa “O tronco da roseira: uma antropologia da viola
caipira”, realizada na região que compreende o Médio Tietê, revela, especificamente, um
modelo de viola chamado mochinho. Trata-se de um instrumento construído artesanalmente
24
na região de Piracicaba, até meados dos anos 1930, quando se iniciou efetivamente a
fabricação das primeiras violas industrializadas pela fábrica Del Vechio, com modelos de
viola maiores, com melhor acabamento e sonoridade. Em seu braço constam 10 trastes ou
trastos, sem cravelhame inclinado, com cordas duplas e construído artesanalmente.
Figura 5: Mochinho4. (ibid., p. 144).
Porém, é importante frisar que:
Segundo o conhecimento popular a origem da viola-de-cocho em Mato Grosso se
deu quando um artesão, fabricante de canoas, colher de pau, gamelas e outros
utensílios de madeira, residente na beira do Rio Cuiabá, certo dia viu uma
embarcação atracar próximo à sua casa. (ANJOS FILHO, op. cit., p.67).
À margem do Rio Cuiabá, na Vila Real do Bom Jesus de Cuiabá, desceu de uma
embarcação “[...] um homem a princípio identificado como sendo de ‘origem paraguaia’ [...]
que chegara à procura de trabalho, trazia consigo um curioso instrumento de cordas que
‘principiou a bater’, assim que pisou em terra firme.”, este viajante logo foi embora levando
seu instrumento (ANJOS FILHO, 1993, p.21, grifo do autor).
Segundo Anjos Filho (ibid.), tal instrumento chamou a atenção desse artesão que, pela
impossibilidade de vê-lo e ouvi-lo mais uma vez, buscou recriá-lo de acordo com as
possibilidades existentes em sua localidade:
4
Viola construída artesanalmente para a iniciação musical de crianças para que, posteriormente, assumissem a
prática com a viola em tamanho real. Cabe observar o corpo em formato de oito, similarmente a alguns modelos
da viola-de-cocho produzidos artesanalmente.
25
Constatou que por perto de sua moradia havia uma certa madeira macia e leve com a
qual muitas vezes construía cochos para dar de comer aos animais. Num gesto de
profunda criação, após consultar os índices referenciais à sua volta, construiu com
ferramentas rústicas um cocho de madeira macia com formato semelhante ao ícone
anteriormente visto e memorizado. Deu então a este cocho macio o formato de uma
viola (também parecida com o formato de uma cabaça ou porongo cortado em
sentido longitudinal, muito comum nesta região). Com uma lâmina da raiz da
figueira confeccionou um tampo fino que fixou sobre o cocho recém construído com
uma cola feita a partir da poca de peixe, macerada e cozida juntamente com uma
folha de bananeira. Transformou, assim, o seu cocho primitivo em perfeita caixa de
ressonância, faltando- lhe apenas as cordas para que pudesse vibra... (ibid., p. 6768, grifo do autor).
Como era de costume confeccionar cordas para a pesca com a fibra de Tucum, ela foi
utilizada para encordoar o instrumento pelo artesão. Porém, segundo o autor: “Não houve
quem não perguntasse ao moço, pelo caminho, que instrumento era aquele semelhante a uma
viola. E o artesão, em sua simplicidade, logo foi dizendo: “Viola”... Mas, viola? Que viola?
Viola “dum cotcho?...” (ANJOS FILHO, 2002, p. 68, grifo do autor), o que posteriormente,
viria a ser associado ao cocho, com a definição do nome do instrumento como viola-de-cocho,
trecho contado por “Luís Marques da Silva” a Anjos Filho (1993; 2002).
Atualmente, é comum a definição da nomenclatura da viola-de-cocho, pelo processo
de construção a partir da escavação de um tronco de árvore. Dessa forma, a viola-de-cocho
encontrada nos estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul é associada à “[...] técnica de
escavação da caixa de ressonância da viola em uma tora de madeira inteiriça [...]”, segundo
Dias e Vianna (2003, p. 19). Trata-se do mesmo processo realizado para a escavação do cocho
utilizado para a alimentação dos animais na fazenda. (ibid.).
O instrumento diferencia-se de construtor para construtor. Cada um possui uma marca
pessoal, um jeito, uma digital, que define a sua viola-de-cocho e que a faz diferir das violasde-cocho de outros tocadores. Há tocadores que, atualmente, primam por criar uma marca
para identificar o instrumento confeccionado com sua técnica, seja pela cor da madeira do
espelho, pelo formato da paleta e das cravelhas, pelos desenhos ou por outros detalhes
específicos.
Junto à viola-de-cocho, a execução de seus ritmos tradicionais é acompanhada
geralmente por instrumentos de percussão construídos artesanalmente, entre eles, o mocho,
também chamado de tamboril e o ganzá. O mocho, sempre presente na execução do ritmo
siriri, é uma espécie de bumbo ou alfaia, que aparece na bibliografia pesquisada em
diferenciadas versões: como “[...] um banco cujo assento de couro é percutido com baquetas
de madeira[...]” (TRAVASSOS; CORRÊA, op. cit., p.1).
26
Andrade (op. cit., p. 34) sugere outras formas catalogadas em sua pesquisa, como:
“[...] um caixote qualquer, uma bruaca de couro bem seca ou ainda um banquinho de
madeira.” percutido por baquetas, apresentadas neste contexto como “matracas” ou
“pauzinhos”.
E, junto ao popular mocho, o acompanhamento do instrumento de percussão ganzá
como preferem chamar os tocadores, sempre esteve presente junto à viola-de-cocho na
execução dos ritmos do siriri e cururu. Trata-se de uma espécie de reco-reco, chamado
também de “cracachá”, percutido da seguinte maneira:
“As ranhuras são friccionadas por baqueta, pedaço de pau, garfo ou pedaço de osso
de costela de boi. Alguns cracachás são preparados fendendo-se um dos gomos do
bambu para se obter o ruído característico de madeira oca. Na falta de cracachá, usase prato de ágate, raspado com garfo.” (id.).
A autora ainda menciona a participação de outro instrumento de percussão chamado
“Adulfe” ou “adulfo”, uma espécie de pandeiro artesanal, que acompanharia o ganzá junto à
viola-de-cocho no cururu.
A seguir descrevem-se as duas danças ou ritmos característicos desse complexo
instrumental, o cururu e o siriri.
Consta que o ritmo cururu seria uma invenção jesuítica utilizada para catequização dos
índios junto à cruz. Não tão distante, o termo poderia ter sido originado pela confusão
ocasionada pela repetição da última sílaba da palavra cruz, que “Em Tupi dizia-se Curuçá e
em guarani curuzu [...]”. (CASCUDO, 1984, p. 264 apud ANJOS FILHO, 2002, p. 86).
Outra versão foi apresentada por João Ribeiro, em referencia ao cerimonial realizado
pelos índios bororos do Mato Grosso, o “bacururu”, o qual teria originado o nome do ritmo
cururu, segundo Câmara Cascudo (ibid.).
Por último,
[...] Cururu é sapo em nheengatu, mas ninguém registrou que os cururuzeiros
paulistas, goianos e matogrossenses dançassem acocorados, aos saltos, imitando os
batráquios, como a dança dos cabindas. Cururu virá da mesma cepa das loas, das
louvações, pequenas representações, com ou sem bailado, vivas nos fins do séc.
XVIII e que passaram a significar apenas a louvação-poesia, com a intercorrência do
desafio em versos improvisados, elemento português e não ameríndio ou africano.
(CASCUDO, 1984, p. 263 apud ibid., 2002, p. 85- 86).
27
As versões deixam brechas para justificar a realização dessa dança em círculos e em
passos que remetem ao andamento marcado nos rituais indígenas, visualizados em raros
momentos da atualidade e, principalmente, sua função religiosa, logo, social.
Assim, o cururu é praticado exclusivamente por homens (IPHAN, 2009). Com a sua
viola-de-cocho empunhada, executam-na em pé, com o corpo inclinado e dançando em
círculos, em homenagem ao santo, sem que se direcione a função religiosa para qual
geralmente é utilizada. Num momento ou outro, entre os passos, dão pequenos saltos,
diferentemente da versão já apresentada inicialmente, a imitação do sapo ou cururu.
O pesquisador Rossini Tavares de Lima, em pesquisa referente ao cururu no estado de
São Paulo, teve acesso as aproximações relacionadas a essa forma de dançar com o corpo
curvado, na Dança de São Gonçalo. Segundo o pesquisador,
“S. Gonçalo era um menino pobre. Vivia descalço, por não ter dinheiro para
comprar sapato. Por isso, andava triste e chorava constantemente. Certo dia, um
sapateiro de mau coração deu-lhe um calçado, cujos pregos da sola se achavam à
mostra. Assim mesmo o santo calçou-o e quando andava dava uns passos e
mancava. Com esse sapato, ele também dançava mancando. Surgiu desse modo a
dança do Cururu, que nos seus movimentos recorda o suplício de S. Gonçalo.”
(LIMA, 1957, p. 12-13 apud ibid., p. 50-51).
No acompanhamento vocal dos cantadores estão à viola-de-cocho e o ganzá. É
possível que, pela característica do ritmo marcado do cururu na viola-de-cocho, imitativa do
mocho ou de caráter percussivo, não seja incluído o mocho no acompanhamento, até mesmo
pela estabilidade de movimento que ao executante do mocho causaria, visto que, segundo a
tradição, os executantes tocam, cantam e dançam ao mesmo tempo.
O cururu é presença garantida em festas de santos, geralmente organizadas por
devotos que se reúnem em casa e convidam um grupo de cururueiros para tocar e dançar, seja
para pagar uma promessa atendida por um santo de sua devoção, como forma de demonstrar
sua fé ou cumprir com a tradição de homenagear o santo de devoção anualmente. Todos os
gastos com essa reunião, na maioria das vezes, são custeados pelos realizadores da festa, ou
recebem incentivos. (IPHAN, op. cit.).
Outro ritmo executado é o siriri. Para Anjos Filho (op. cit.) há três possibilidades para
a origem do nome siriri, entre elas, que pode ter surgido: do ruído causado por cupins alados;
de uma dança infantil ou, pode ter sido originado de uma espécie de passarinho que possui
mesmo nome. (ibid.).
28
Sua prática se desenvolve junto a um conjunto instrumental acompanhador, composto
pela viola-de-cocho, o ganzá e o mocho, outro modelo muito utilizado hoje, composto por
uma armação em madeira imitando o banco, com paredes ou caixa de ressonância aberta,
revestido em sua superfície por couro e preso por tarraxas.
Quanto à participação de determinados integrantes, há conflitos na literatura no que
concerne a indeterminações motivadas pela criatividade de seus integrantes em cada região.
Anjos Filho (op. cit., p. 88) afirma que “[...] é uma dança da qual participam pessoas de
qualquer idade e sexo, geralmente em pares, e que se utilizam de alguns tipos básicos de
coreografia, tais como a dança de roda e a dança de fileira.” Ou, há a predominância de um
único gênero, o feminino. (IPHAN, 2009).
O levantamento bibliográfico referente à viola-de-cocho e o complexo artístico e
coreográfico revelou uma produção bibliográfica respeitável sobre a sua prática no estado de
Mato Grosso. Por outro lado, há pouca visibilidade em publicações específicas sobre a prática
desse instrumento junto aos seus tocadores nos municípios de Corumbá e Ladário, em Mato
Grosso do Sul.
No capítulo seguinte, a discussão será realizada no âmbito da globalização econômica
e cultural. Objetivaremos discutir se há possibilidade de resistência e manutenção desses
conhecimentos, em face da intensa transmissão de informações e novos referenciais culturais
a que os indivíduos são expostos rotineiramente.
29
CAPÍTULO II
UMA NOVA ORDEM ECONÔMICA MUNDIAL:
NOVA CULTURA MUNDIAL?
O objetivo deste capítulo é apresentar o método utilizado na pesquisa e discutir a
globalização econômica e cultural.
Primeiramente, será apresentado o método materialista histórico dialético, referencial
teórico-metodológico que dá suporte ao estudo. Em seguida, a discussão parte das
transformações do modo de produção em âmbito global, para, então, entender quais as
implicações na esfera cultural.
2.1 O método materialista histórico dialético como referencial para a realização do
estudo de caso do processo de ensino e aprendizado da viola-de-cocho
De acordo com Engels (1999), a concepção materialista da história entende as
modificações sociais e as “revoluções políticas” como resultado das transformações ocorridas
no “modo de produção” e na “relação de troca” da economia. À medida que os homens
identificam essas contradições latentes na sociedade em que se encontram, desenvolvem-se
transformações no modo de produção.
Considera-se que as modificações sociais ocorrem na realidade material e não no
plano das ideias, como afirmava Hegel, com o reconhecido idealismo. Foi como estudioso e
principalmente crítico do pensamento hegeliano que Marx estruturou as bases de seu método
de pesquisa. Tal pensamento constituiu-se materialista, justamente ao ultrapassar esse limite
determinado na esfera das ideias ou da ideologia, um campo que pretendia, por si só,
determinar a verdade, sem refutá-la.
É comum a diferenciados pensadores a ênfase a uma análise que se baseia no senso
comum, no mundo das ideias ou no que se convencionou denominar ideologia. Porém, há de
se ressaltar que Marx e Engels (1989), ao retomarem essa discussão em a Ideologia Alemã e
criticar o pensamento hegeliano, rumaram para análises do real. Até então, muitos filósofos só
fizeram retornar ao pensamento de Hegel, afirmando tê-lo superado.
Nesse período houve um conflito científico entre jovens e velhos hegelianos, num
limitado campo da crítica da religião. Mas não havia reflexão que desse conta da relação
existente entre a “filosofia” e a “realidade”, especificamente da ligação entre a “crítica” e o
30
seu “meio material”, como questionaram Marx e Engels (ibid.). Justamente porque muitos
“[...] filósofos se limitaram a interpretar o mundo diferentemente, [enquanto] cabe
transformá-lo.” (MARX, 1978b, 53, grifo do autor).
Suas análises eram iniciadas a partir da realidade. Assim, afirmavam Marx e Engels
(op. cit., p. 12) que: “São os indivíduos reais, sua ação e suas condições materiais de
existência, tanto as que eles já encontraram prontas, como aquelas engendradas de sua própria
ação. Essas bases são pois verificáveis por via puramente empírica.”
São as relações sociais que medeiam às relações de produção e determinam também as
demais relações. Nessa condição, a matéria é a ação do homem elaborada e reelaborada em
sua produção. (CHAUÍ, 1985).
A matéria de que fala Marx é a matéria social, isto é, as relações sociais entendidas
como relações de produção, ou seja, como o modo pelo qual os homens produzem e
reproduzem suas condições materiais de existência e o modo como pensam e
interpretam essas relações. A matéria do materialismo histórico-dialético são os
homens produzindo, em condições determinadas, seu modo de se reproduzirem
como homens e de organizarem suas vidas como homens. Assim sendo, a reflexão
não é impossível. Basta percebermos que o sujeito da história, seu agente, embora
não seja o Espírito, é sujeito: são as classes sociais em luta. (ibid., p. 52- 53).
Logo, para que seja feita essa apreensão do acontecimento real, é necessário que sejam
reais também os indivíduos que se constituem em modificação e realizam modificações. São
essas as bases da história e das transformações do homem pelo homem no decorrer da
história.
Um exemplo dessa constituição histórica e social é o desenvolvimento ontológico do
macaco em homem, na superação dos estágios primitivos ao criar seu meio de subsistência.
(MARX; ENGELS, 1989; ENGELS, 1980). Foi somente a partir da escassez de meios de
subsistência é que o homem migra para outras regiões e, posteriormente, com o crescimento
de sua espécie e o aparecimento de novas necessidades, estrutura suas formas de organização
e da produção material.
No momento em que o homem intervém na natureza e produz novos meios de
subsistência, dá-se o marco de sua existência (MARX; ENGELS, 1989). Assim, se a realidade
demonstra uma coisa material que percebemos, é porque também ela resulta de uma realidade
que a produziu. Logo, “A primeira coisa a fazer, em qualquer concepção histórica, é portanto
observar esse fato fundamental com todo o seu significado e em toda a sua extensão, e dar-lhe
o lugar a que tem direito.” (ibid., p. 23).
31
A ação de produzir os próprios meios para satisfazer as suas necessidades conduz o
homem a novas necessidades. Configura-se, em seguida, a primeira relação social por meio da
família, logo ampliada com o crescimento populacional e novas condições de vida. (ibid.).
A divisão social do trabalho é iniciada com a “divisão sexual de procriação” e em
seguida, nas atividades em família. (CHAUÍ, 1985). Essa mesma divisão é transposta as
relações sociais como um todo, entre o detentor dos meios de produção e o possuidor da força
de trabalho, entre o trabalhador braçal e o intelectual. (MARX; ENGELS, 1989).
Assim, historicamente a produção segue simultaneamente como uma “relação natural”
e “social”, tanto no trabalho quanto na vida do homem (ibid.). Segundo Marx e Engels (op.
cit.), há uma simbiose entre “modo de produção” e o “estágio social” de determinada
sociedade, por isso, afirmam que é preciso “[...] estudar e elaborar incessantemente a ‘história
dos homens’ em conexão com a história da indústria e das trocas.” (p. 25, grifo do autor).
A contradição surge com a divisão do trabalho em várias modalidades, por exemplo, o
trabalho material e intelectual.
A maneira como os homens produzem seus meios de existência depende, antes de
mais nada, da natureza dos meios de existência já encontrados e que eles precisam
reproduzir. Não se deve considerar esse modo de produção sob esse único ponto de
vista, ou seja, enquanto reprodução da existência física dos indivíduos. Ao contrário,
ele representa, já, um modo determinado da atividade desses indivíduos, uma
maneira determinada de manifestar sua vida, um modo de vida determinado. A
maneira como os indivíduos manifestam sua vida reflete exatamente o que eles são.
O que eles são coincide, pois, com sua produção, isto é, tanto com o que eles
produzem quanto com a maneira como produzem. O que os indivíduos são depende,
portanto, das condições materiais da sua produção. (ibid., p. 13, grifo do autor).
Esse posicionamento vem ao encontro da forma de representar-se em sociedade
utilizada pelos tocadores de viola-de-cocho. Reproduzindo o pensamento de Brandão (1984 p.
71), “fazem isso pra não esquecer quem são”. Logo, ultrapassando a denominação de tradição,
toda sua prática, pensamento, brincadeiras, festas e demais formas de expressão dos
indivíduos representam o seu modo de vida constituído em determinada condição histórica.
Mas representa justamente quem são esses sujeitos, o que e como produzem em determinadas
condições ambientais, econômicas e sociais.
Chauí (op. cit., p. 19-20) reafirma o pensamento de Marx e Engels (1989), ao dizer
que são as “relações sociais” que nos possibilitarão questionar e determinar “[...] o quê, como
e por que os homens agem e pensam de maneiras determinadas, sendo capazes de atribuir
sentido a tais relações, de conservá-las ou de transformá-las.” Isso significa entender essas
32
relações sociais não como um simples ponto de partida para determinado fim, mas reconhecêlas como parte da constituição do homem historicamente (ibid.).
Nessa condição, a história é compreendida de acordo com a “produção material” e
intelectual, sendo a “sociedade civil” manifesta enquanto “Estado”, a base para compreensão
da produção concretizada desde a sua formação (MARX; ENGELS, 1989).
A história não é sucessão de fatos no tempo, não é o progresso das ideias, mas o
modo como homens determinados em condições determinadas criam os meios e as
formas de sua existência social, reproduzem ou transformam essa existência social
que é econômica, política e cultural. (CHAUÍ, 1985, p. 20).
Diferentemente da concepção idealista da história, a concepção materialista histórico
dialética “[...] não explica a prática segundo a idéia, explica a formação das idéias segundo a
prática material; [...]” (MARX; ENGELS, 1989, p. 36). É o que permite entender, que é o
desmonte das relações sociais estabelecidas, o verdadeiro objetivo a impulsionar uma teoria:
“A revolução, e não a crítica [...]” (ibid.).
Dessa forma, o objeto não deve ser apreendido por meio de “intuição”, como
sugeriram os idealistas, mas deve ser identificado como práxis. Justamente porque, como
sugere Marx (1978a, p. 52, grifo do autor): “Toda vida social é essencialmente prática.”
Como definiu Chauí (op. cit., p. 20), “história é práxis”, ou seja, um constante
processo de criação e recriação da realidade. Conforme Marx (2011, p. 25): “Os homens
fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são
eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram
transmitidas assim como se encontram.”
Apesar desse entendimento, para muitos autores como identificou Marx (1978) a
investigação parte do “real” ao “concreto”. Para Marx (1978b), essa seria uma escolha
incorreta, pois conduziria a análise a uma gama de possibilidades e talvez não fossem
identificadas as partes constituintes do fenômeno pesquisado.
Logo, se a população fosse tomada como ponto de partida, levaria ao reconhecimento
dos elementos que a compõe. E, em determinada circunstância, a investigação seria levada a
retroceder, para que fosse identificada “[...] uma rica totalidade de determinações e relações
diversas” (ibid., p. 116).
33
O concreto é concreto porque é síntese de muitas determinações, isto é, unidade do
diverso. Por isso o concreto aparece no pensamento como processo de síntese, como
resultado, não como ponto de partida, ainda que seja o ponto de partida efetivo e,
portanto, o ponto de partida também da instituição e da representação. [...] o método
que consiste em elevar-se do abstrato ao concreto não é senão a maneira de
proceder do pensamento para se apropriar do concreto, para reproduzi-lo como
concreto pensado. Mas este não é de modo nenhum o processo da gênese do próprio
concreto. (ibid., p. 116- 117, grifo do autor).
O processo é desenvolvido do “[...] empírico concreto (todo sincrético) ao abstrato
(categorias diversas de análises) e deste ao concreto no pensamento.” (GAMBOA, 2006, p.
90). Ou seja, o objeto é determinado por diferentes circunstâncias materiais e históricas no
contexto em que está inserido. O concreto a que se refere Marx é o “concreto no
pensamento”, o conhecimento, que “[...] se constitui como um todo novo que resulta do
processo de inter-relação entre um objeto em construção e um sujeito também em construção.
Neste caso caminhamos do todo às partes e, destas ao todo situado e determinado pelos
contextos.” (ibid.). Entende-se, então, que:
[...] as categorias simples são a expressão de relações nas quais o concreto pouco
desenvolvido pode ter se realizado sem haver estabelecido ainda a relação ou o
relacionamento mais complexo, que se acha expresso mentalmente na categoria mais
concreta, enquanto o concreto mais desenvolvido conserva a mesma categoria como
uma relação subordinada. O dinheiro pode existir, e existiu historicamente, antes que
existisse o capital, antes que existissem os Bancos, antes que existisse o trabalho
assalariado. Deste ponto de vista, pode-se dizer que a categoria mais simples pode
exprimir relações dominantes de um todo menos desenvolvido, ou relações
subordinadas de um todo mais desenvolvido, relações que já existiam antes que o
todo estivesse se desenvolvido, no sentido que se expressa em uma categoria mais
concreta. Nesta medida, o curso do pensamento abstrato que se eleva do mais
simples ao complexo corresponde ao processo histórico efetivo. (MARX, 1978b, p.
118).
Para que todo esse emaranhado de construções e reconstituições seja captado no
campo empírico, obviamente que a “visão de conjunto” do acontecimento, como sugere
Konder (1981), não captaria todos os elementos constituintes da manifestação cultural
pesquisada, pois a sua natureza é dinâmica e possibilita não só um momento para o
processamento de “síntese” dos acontecimentos. Como demonstra Konder (1981, p. 37), “A
síntese é a visão de conjunto que permite ao homem descobrir a estrutura significativa da
realidade com que se defronta, numa situação dada. E é essa estrutura significativa- que a
visão de conjunto proporciona- que é chamada de totalidade.”
A “totalidade depende do nível de generalização”, especificamente se esse nível de
totalização é mundial ou local (ibid.). É importante reconhecer qual o campo abarcado na
34
“visão de conjunto”, qual contexto. É o caso específico desta pesquisa. Para podermos
compreender a condição da práxis investigada e das dificuldades de realização, precisamos
entender as totalidades que compõem o todo do fenômeno.
Portanto, deve-se apreender o fenômeno no plano micro, correspondente ao
surgimento da viola-de-cocho, os sujeitos que atribuem significados às manifestações, a
relevância histórica na localidade, o processo de ensino e aprendizado, os ambientes e práticas
em que estão incluídos o sujeito e o objeto da investigação. No plano macro, o aprimoramento
máximo das forças produtivas, a mercantilização da vida, o desenvolvimento urbano, a
formação de uma indústria cultural e, por fim, o quase sufocamento das formas locais de
expressão.
É essa visão que nos permitirá visualizar o problema investigado, percebendo a
totalidade como um conjunto de modificações que ocorrem em suas “partes” a compor o todo
modificado, sem fim determinado. Nesse aspecto, Konder (ibid.) indica que a dialética é
criteriosa e que seu raciocínio “[...] é obrigado a identificar, com esforço, gradualmente, as
contradições concretas e as mediações específicas que constituem o ‘tecido’ de cada
totalidade, que dão ‘vida’ a cada totalidade.” (p. 46, grifo do autor).
Para Marx (1978b), é impossível se posicionar diante das modificações em
determinado contexto e momento, levando em consideração somente a “consciência”, “[...] é
preciso explicar esta consciência a partir das contradições da vida material, a partir do conflito
existente entre as forças produtivas sociais e as relações de produção.” (p. 130). Pois,
[...] na produção social da própria vida, os homens contraem relações determinadas,
necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção estas que
correspondem a uma etapa determinada de desenvolvimento das suas forças
produtivas materiais. A totalidade destas relações de produção forma a estrutura
econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma superestrutura
jurídica e política, e à qual correspondem formas sociais determinadas de
consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo em geral
de vida social, político e espiritual. Não é a consciência dos homens que determina o
seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência. (ibid.,
p. 129)
São as “condições de vida” estabelecidas em sociedade, dizem Marx e Engels (1989, p.
37) “[...] que determinam se a comoção revolucionária, produzida periodicamente na história,
será suficientemente forte para derrubar as bases de tudo que existe; [...]” Isso depende
diretamente da existência, de “forças produtivas” e de uma “massa revolucionária” que se
posicione (ibid.).
35
Em determinados períodos da história são constituídas novas condições materiais e
relações, que são continuamente repassadas entre os sujeitos, mantendo-se determinados
aspectos dessa, mas também, alterando-a conforme sua vontade e necessidade. Pois “[...] as
circunstâncias fazem os homens tanto quanto os homens fazem as circunstâncias” (ibid., p.
36).
Então, para superar as “aparências” dos fenômenos investigados, temos que realizar
reflexões constantes que nos aproximem do que pode ser apreendido “imediatamente” no
objeto, como de forma “mediata”, afirma Konder (1981). Pois a natureza do objeto é
composta por esses dois polos.
A mediação trabalha junto com o conceito da contradição, na qual a realidade é
entendida como um processo não acabado, mas em constante transformação; não no plano
ideal, mas material (ibid.). Essa transformação dialética ao mesmo tempo nega e preserva
aspectos diferenciados no desenvolvimento histórico.
Mudança e permanência são categorias reflexivas, isto é, uma não pode ser pensada
sem a outra. Assim como não podemos ter uma visão correta de nenhum aspecto
estável da realidade humana se não soubermos situá-lo dentro do processo geral de
transformação a que ele pertence (dentro da totalidade dinâmica de que ele faz
parte), também não podemos avaliar nenhuma mudança concreta se não a
reconhecermos como mudança de um ser (quer dizer, de uma realidade articulada e
provida de certa capacidade de durar). (KONDER, 1981, p. 54).
Segundo Chauí (op. cit., p. 53): “A dialética é materialista porque seu motor não é o
trabalho do Espírito, mas o trabalho material propriamente dito: o trabalho como relação dos
homens com a Natureza [...]”. Trabalho de modificação da natureza pelo homem e para
homem, trabalho de criação ou produção. (ibid.).
“O que interessa [à dialética materialista] é a divisão social do trabalho e, portanto, a
relação entre os próprios homens através do trabalho dividido.” (ibid., p. 53- 54). Uma
separação que não se restringe à esfera da “divisão social do trabalho” no processo de
produção; ela se expande para a tessitura social, para as relações sociais. Em suma, na
contradição constante da luta de classes.
Uma relação é absorvida também em nível teórico, por se envolver em interesses de
grupos e classes, como bem enfatizam Netto e Braz (2009). A seguir, a partir do método da
Economia Política, discutiremos as implicações da globalização econômica e cultural.
36
2.2. A globalização econômica e cultural
A globalização é um fenômeno não tão recente como se apresenta, talvez por isso tão
intrigante, seja por indefinição de um conceito único que a explique decisivamente em seus
aspectos político, econômico, tecnológico, geográfico, cultural e social, ou por ser um
instrumento camaleão das necessidades capitalistas.
Logo, há discussões constantes entre correntes filosóficas e políticas variadas, e
sempre um contrassenso sobre seu caráter ideológico benéfico ou malévolo. Porém, o conflito
não é travado nesse nível, como uma mera classificação. É necessário compreender e discutir
o movimento econômico e político que a constituiu por entre a história do capitalismo e,
principalmente, as implicações na esfera cultural.
Segundo alguns autores, o atual estágio da economia globalizada corresponde à
terceira fase ou período do modo de produção capitalista. Poderíamos, então, identificar
historicamente que, já no século XV, esse processo se estabelecia junto ao sistema
mercantilista, momento em que países da Europa se destacavam como potências e grandes
investidoras na navegação. Foi também o período das primeiras expedições ao Brasil,
marcadas pela colonização.
Ocorreu, então, o primeiro suspiro expansionista em nível tecnológico, cultural,
político e religioso, sustentado, a princípio, por uma ainda incipiente busca de unificação do
mundo, que se descobria nas expedições por entre os mares, baseadas em saques, violência e
no desenvolvimento do comércio.
Nas colônias, o produtor possui seus próprios meios para realização de seu trabalho e
acumula riquezas sem que o faça da mesma forma ao capitalista, acentuando a oposição e o
conflito travado por ambos. Porém, o capitalista, aliado a metrópole, “[...] procura eliminar
pela força o modo de produção e apropriação baseado no trabalho próprio.” (MARX, 1996, p.
383).
Segundo Marx (ibid.), a “economia política” percebeu na colônia, o desenvolvimento
do “[...] modo capitalista de produção e acumulação e, portanto, a propriedade privada
capitalista exige o aniquilamento da propriedade privada baseada no trabalho próprio, isto é, a
expropriação do trabalhador.” (p. 392). Ainda,
37
O capitalismo tem de engendrar o sujeito livre e igual ante o direito, o contrato e a
moeda, sem o que não poderia existir sua ação seminal: compra e venda de força de
trabalho e apropriação de valor. Essa liberdade efetiva implica como paralelo seu a
igualdade abstrata da cidadania (O’ DONNEL, 1981 apud FRIGOTTO, 1996, p. 6364).
Poderíamos, então, identificar a globalização, nessa atual fase, como um processo de
recolonização do mundo, no sentido de Neves Baeta (1978, p. 45; apud SAVIANI, 2008, p.
31), ao indicar que o processo de catequização dos gentios foi antes de tudo, “[...] um esforço
racionalmente feito para conquistar homens; é um esforço feito para acentuar a semelhança e
apagar as diferenças.”, de caráter estritamente econômico e de exploração – uma estrutura que
se preservou e foi ampliada em seu desenvolvimento.
Arrighi (1996) investigou a expansão capitalista constatando seu desenvolvimento em
quatro períodos ou “ciclo sistêmico de acumulação”, entre o século XV ao XX, com duração
por três séculos, pelo menos.
[...] cada um deles associados ao Estado nacional ou Cidade–estado que exerceu a
hegemonia no período citado: um ciclo genovês, do século XV ao início do XVII;
um ciclo holandês, do fim do século XVI até a terça parte do século XVIII; um ciclo
britânico, da metade do século XVIII até o início do século XX; e, por fim, um ciclo
norte-americano, que teve início ao final do século XIX e que prossegue na
atualidade em sua fase de expansão financeira. (ARRIGHI 1996 apud LIMA
FILHO, 2004, p. 32- 33).
Esses dois últimos ciclos, iniciados no século XVIII e XIX, a que se refere Arrighi
(ibid.), compõem justamente aos dois primeiros estágios de constituição do imperialismo
norte-americano em âmbito mundial, o “colonialismo”, suprimido com a Segunda Guerra
Mundial, a que se refere Jameson (2001). O segundo estágio, começou com Guerra Fria, junto
à elaboração de novas estratégias econômicas desempenhadas pelos norte-americanos e os
coligados europeus (ibid.).
Para Samuel Huntington (apud ibid.), no terceiro estágio os EUA e seus aliados
realizaram a “estratégia tripartite”, definindo a adoção das seguintes estratégias políticas: “[...]
armas nucleares apenas para os Estados Unidos, direitos humanos e a democracia eleitoral à
americana, [...] limites à imigração e ao fluxo livre de força de trabalho.” (ibid., p. 19). Por
último, a propagação do “livre mercado”, a globalização.
38
A escala, o âmbito e a sofisticação técnica da atual expansão financeira são, é claro,
muito maiores que os das expansões anteriores. Mas essa maior escala, âmbito e
sofisticação técnica nada mais são que a continuação da sólida tendência da longue
durée do capitalismo histórico à formação de blocos cada vez mais poderosos de
organizações governamentais e empresariais como principais agentes da acumulação
de capital em escala mundial. (ARRIGHI, 1996, p. 309, grifo do autor).
Para que se compreendam esses arranjos do capitalismo, é importante reconstituir as
modificações estruturais de sua produção e como se posicionaram e modificaram os modos da
sociedade, sobretudo no século XX, com a transformação da cultura em bem material para
consumo da grande massa por meio da produção em massa.
Partimos do ano de 1911, quando o engenheiro mecânico Frederick Winslow Taylor
publicou o tratado chamado Os Princípios da Administração Científica, conforme Harvey
(2009). De base cartesiana, o modelo sugerido orientava que a alta produtividade poderia ser
atingida a partir da reestruturação da divisão do trabalho e do modo de execução, uma
estrutura implantada em algumas indústrias naquele momento e que seria adotada por Henry
Ford (ibid.).
Para Harvey (ibid., p. 121), o que diferenciava Ford enquanto industrial e definia o
fordismo como modelo para a fabricação de automóveis:
[...] era a sua visão, seu reconhecimento explícito de que uma produção de massa
significava consumo de massa, um novo sistema de reprodução da força de trabalho,
uma nova política de controle e gerência do trabalho, uma nova estética e uma nova
psicologia, em suma um novo tipo de sociedade democrática, racionalizada,
modernista e populista.
Harvey (ibid.) mostra que o industrial norte-americano Henry Ford, quando criou o
modelo de produção fordista, em torno de 19145, aprimorou modelos de organização e da
tecnologia desenvolvidos até aquele momento. Assim, com vistas ao aprimoramento da
organização da produção e do trabalho, utilizou a “[...] forma cooperativa de organização de
negócios, por exemplo, tinha sido aperfeiçoada pelas estradas de ferro ao longo do século
XIX [...]” (ibid., p. 121). Outro modelo usado por muitas empresas foi o das corporações ou
trustes, nos séculos XVII e XVIII, e os cartéis formados por industriais.
A inicial vontade de Ford era fabricar o modelo T, um automóvel que fosse funcional
e construído a baixo custo para ser consumido por àqueles que, até então, não poderia sequer
5
Harvey refere-se a esse ano como o início do fordismo, mas Gounet aponta 1913 como a data inicial da
automatização da produção fordista.
39
cogitar a hipótese, devido ao preço (GOUNET, 1999; HARVEY, 2009). Essa era uma
estratégia revolucionária para aquele período, justamente porque a produção de automóveis se
limitava a um modelo de luxo, produzindo de forma artesanal todas suas peças, ou, de “A a
Z”, expõe Gounet (1999). Além disso, exigia mão de obra especializada de operários e
mecânicos, que mais perdiam tempo em localizar e ajustar peças nos automóveis do que
otimizar uma produção demasiadamente demorada e pouco rentável (ibid.).
Como então foram superados os limites dessa forma de produção e do trabalho no
interior das indústrias de automóvel?
Para Gounet (ibid.), Ford modificou todo o modelo adotado para a produção de sua
empresa. Adotou o método taylorista ou de “organização científica do trabalho”, baseado
agora em cinco modificações fundamentais.
O primeiro foi a “racionalização” ou reaproveitamento do tempo de trabalho e redução
dos custos com uma superprodução de componentes, pois somente a “[...] produção em massa
pode reduzir os custos de produção e, portanto, o preço de venda do carro.” (p. 19).
Segundo, a divisão de tarefas, no qual a “racionalização” era levada ao máximo. Cada
operário se responsabilizava por realizar uma única atividade com movimentos repetitivos,
sem a exigência de especialização, caracterizando um trabalho fragmentário. Terceiro, Ford
criou uma “esteira rolante”, que tornou o trabalho ininterrupto, sem acúmulo de tarefas e da
produção, mas permitindo, principalmente, maior controle do trabalhador.
Quarto, Ford cria um modelo exclusivo de peças para seus carros e, para isso, passou
também a fabricá-las – a chamada integração vertical. E, por último, automatizou as fábricas,
reduzindo ainda mais o dispêndio de movimento e tempo empregado pelo trabalhador na
produção. Essa nova configuração do tempo e da divisão do trabalho no interior da indústria
de automóvel colocou o trabalhador numa posição fixa, sem necessidade de qualificação além
do que a sua força de trabalho empregada em movimentos mecânicos de homem máquina
pudessem lhe garantir.
Com o modelo taylorista de racionalização, o tempo de montagem caiu para 1h30min,
com automatização das linhas de montagem, em 1914 (ibid.). Ford criou também a jornada de
trabalho reconhecida como “oito horas e cinco dólares”, como estratégia para que a
mercadoria produzida fosse consumida pelo trabalhador em seu cotidiano e o dinheiro
movimentado, explica Harvey (2009).
Além disso, toda essa estrutura sugerida por Ford para construir uma indústria voltada
à “montagem de alta produtividade” implicava, também, uma sociedade que incorporasse esse
modelo em seu cotidiano (GOUNET, 1999).
40
A expansão da produção fordista deu-se na medida do impacto causado em empresas
artesanais levadas a bancarrotas e na adesão dos fabricantes de automóveis não adeptos ao
sistema de 5 dólares, entre 1923 a 1941 (ibid.). Mas, se em seu país de origem esse modelo
deu espaço ao conflito causado pela nova forma de organizar a produção e o trabalho,
expandiu-se com êxito pelo mundo. Na Europa, estagnou a produção existente anterior a sua
instalação, e no Japão foi também apropriada à produção nacional, ao passo da reestruturação
do modelo fordista na versão toyotista.
Harvey (op. cit..) deixa claro que o fordismo, gerou não só conflitos externos, como
também internos, no mercado de trabalho. Esse modelo ultrapassou a barreira de direitos,
quando gerou desigualdades que permeavam pela raça, gênero e origem étnica, além dos
salários baixos e da pouca garantia de estabilidade no emprego.
O ano de 1930 foi o marco do intenso desenvolvimento das máquinas, com:
Grandes fábricas, decomposição de tarefas na perspectiva taylorista, mão-de-obra
pouco qualificada, gerência científica do trabalho, separação crescente entre a
concepção e a execução do trabalho etc. O fordismo propriamente dito que se
caracteriza por um sistema de máquinas acoplado, aumento intenso de capital morto
e da produtividade, produção em grande escala e consumo de massa, tem seu
desenvolvimento efetivo a partir dos anos 30 e torna-se um modo social e cultural
de vida após a Segunda Guerra Mundial. (ALLIEZ, 1988 apud FRIGOTTO, op. cit.,
p. 70, grifo do autor).
A confiança de Ford era tamanha que, frente à crise da Grande Depressão, “o salário”
de seus funcionários foi elevado, para que existisse aumento do poder aquisitivo e,
consequentemente, circulação de dinheiro (HARVEY, 2009). Porém, apesar de todo o
idealismo ou a crença utópica de que poderia modificar tal situação, acabou tendo que reduzir
o número de funcionários de sua fábrica.
A Grande Depressão, também reconhecida como a crise de 29, foi, segundo Frigotto
(op. cit.), uma “crise de superprodução” da economia norte-americana, não um acontecimento
centralizado, mas uma crise que ocorreu no plano econômico, político e social mundial. Seus
resultados foram visualizados no aumento do desemprego e na redução da acumulação de
capital, prolongando-se por anos e atingindo países desenvolvidos e não desenvolvidos (ibid.).
Nesse momento, já pelos idos dos anos 1930, somente com a “intervenção do Estado”
a crise pôde ser superada. (FRIGOTTO, 1996; HARVEY, 2009). Coube ao presidente norteamericano Franklin Delano Roosevelt a adoção de uma série de medidas baseadas na teoria
keynesiana, reconhecidas como New Deal (HARVEY, op. cit.).
41
O New Deal posicionou-se como negativa às teorias de liberdade absoluta do mercado
e a favor da intervenção do Estado, tanto na economia como na esfera social, como um
regulador. Seguir o pensamento keynesiano significava entender que, nos períodos críticos da
recessão econômica, o Estado garantiria à população condições mínimas de vida, saúde
gratuita, educação, emprego com salário mínimo, redução da jornada de trabalho e segurodesemprego. Esses foram os princípios delineadores das políticas do Estado de Bem-estar
social, em amplitude mundial.
A entrada do Estado como imposição necessária no enfrentamento da crise de 29 foi,
ao mesmo tempo, um mecanismo de superação da virulência da crise e um
agravador da mesma nas décadas subseqüentes. A volta às teses monetaristas e
mercantilistas protagonizadas pelo ideário neoliberal explicita a ilusão de que o
problema crucial esteja nos processos de planejamento e, portanto, de interferência
do Estado na economia. (FRIGOTTO, op. cit., p. 66).
Nos anos 1950 e 60, a economia capitalista mundial viveu a chamada idade do ouro,
marcada pelo desenvolvimento do “regime de acumulação fordista- keynesiano”, conforme
Lima Filho (2004). Esse período foi reconhecido pela política do “Estado de bem-estar social
ou previdenciário”, política que sustentou o padrão de acumulação capitalista ao absorver
medidas que seriam comuns ao socialismo, conforme Hobsbawm (1992b, apud FRIGOTTO,
op. cit.). Para tanto, o estado passou a intervir na economia e nas políticas sociais,
direcionando suas estratégias à melhoria das condições de vida da população, reduzindo a
pobreza e revigorando o comércio.
Para Anderson (1995), a oposição neoliberal manifestou-se em relação ao Estado de
bem-estar social, a partir da obra inaugural de Friedrich Hayek, o livro O Caminho da
Servidão (1944), em que o autor investe contra a “[...] limitação dos mecanismos de mercado
por parte do Estado, denunciadas como uma ameaça letal à liberdade, não somente
econômica, mas também política.” (p. 9). Os neoliberais rebelavam-se, não em favor da
liberdade do cidadão ou de suas condições de sobrevivência frente à bancarrota econômica
comum a diversos países, mas sim pela impossibilidade de as empresas usufruírem da
desigualdade social e da não regulamentação social pelo Estado, o que permitiria a aplicação
das idealizações neoliberais.
A crítica neoliberal à política social, como uma tragédia anunciada dos gastos do
poder público, ganhou notoriedade quando o Estado de bem-estar social demonstrou seu
esgotamento e incapacidade de custear a acumulação privada e as despesas da política social
com a reprodução da força de trabalho. Não atendendo mais a nenhuma das esferas, o Estado
42
viu-se fadado ao abandono da política social e, como única saída viável, o retorno às “leis
naturais do mercado”, sugere Frigotto (ibid.). Voltou-se à política neoliberal para o Estado
mínimo, que significou, objetivamente, um marco de impotência estatal e indicativo do fim da
estabilidade conquistada até então, no nível social – saúde pública, previdência social e
emprego estável.
Os limites deste modelo de desenvolvimento se fazem sentir já ao final da década de
60 com a progressiva saturação dos mercados internos de bens de consumo duráveis,
concorrência intercapitalista e crise fiscal e inflacionária que provocou a retração
dos investimentos. Desenha-se, então, a crise do Estado de Bem-Estar Social, dos
próprios regimes sociais-democratas e principia-se a defesa à volta das “leis naturais
do mercado” mediante as políticas neoliberais, que postulam o Estado Mínimo, fim
da estabilidade no emprego e corte abrupto das despesas previdenciárias e dos
gastos, em geral, com as políticas sociais. Este modelo teve nos governos de
Thatcher, na Inglaterra e Reagan, nos Estados Unidos suas âncoras básicas.
(FRIGOTTO, op. cit., p. 73, grifo do autor).
Como bem adverte Frigotto (ibid.), a crise é inerente ao “[...] movimento cíclico da
acumulação capitalista, assumindo formas específicas que variam de intensidade no tempo e
no espaço.” (p. 62). A crise constitui o capitalismo e, por mais que sejam criadas novas
medidas para sua solução, em momentos posteriores, revela-se como motivadora de outras
crises – o capitalismo está para a crise, como a crise para si (ibid.).
Essa especificidade interna de declínio e ascensão da acumulação capitalista foi
reproduzida na década de 1970, como resultante das oscilações seguidas desde os anos 1930.
(ibid.). O divisor da transição do modelo fordista para uma nova estrutura de acumulação
constituiu-se baseado no desenvolvimento tecnológico, reconhecido como Terceira
Revolução Industrial indica Frigotto (1996).
O impacto sobre o conteúdo do trabalho, a divisão do trabalho, a quantidade de
trabalho e a qualificação é crucial. Ao mesmo tempo que se exige uma elevada
qualificação e capacidade de abstração para o grupo de trabalhadores estáveis (mas
não de todo) cuja existência é cada vez mais de supervisionar o sistema de máquinas
informatizadas (inteligentes!) e a capacidade de resolver, rapidamente, problemas,
para a grande massa de temporários, trabalhadores ‘precarizados’ ou, simplesmente,
para o excedente de mão-de-obra, a questão da qualificação e, no nosso caso de
escolarização, não se coloca como problema para o mercado. (ibid., p. 77, grifo do
autor).
Nesse contexto, a acumulação flexível, ou o que se convencionou a chamar mais
especificamente de Toyotismo ou Ohnismo – em referência ao empresário Kiichiro Toyoda e
ao engenheiro criador do método, Taiichi Ohno – tomou amplitude no mundo ocidental
43
definitivamente nos anos 1970 (GOUNET, 1999). Nesse método foi aprimorada a estrutura
fordista, de forma a suplantar aquele homem-máquina de até então. Também no aspecto da
qualificação da mão de obra, para se chegar a essa máquina que se tornou o homem em sua
vida.
Ainda sob a égide da expansão fordista, o “método de produção” foi levado ao Japão
nos anos 1920 por empresas norte-americanas. Já em 1933 foi criada a indústria japonesa de
molde fordista, a Nissan. Logo foram percebidos os resultados da produção em massa e a
baixo custo dos norte-americanos no país, tornando-se ameaça à expansão da nascente
indústria japonesa e alvo das sanções políticas e econômicas, em 1936. (GOUNET, op. cit.).
Em suma, a grande revolução realizada no método fordista da produção japonesa foi a
criação de seu modelo exclusivo de produção e, ao mesmo tempo, refinado tecnicamente. Ele
foi sendo introduzido entre os anos 1950 e o período crítico da acumulação taylorista/fordista
nos anos 70, tornando-se reconhecido como modelo japonês, “[...] métodos flexíveis,
[acumulação flexível], just-in-time, método kanban ou [simplesmente] toyotismo, [...]”
(GOUNET, op. cit., p. 25, grifo do autor), aplicado na empresa Toyota.
Outra palavra de ordem desse modelo é a “flexibilidade” do sistema produtivo, da
produção e do desenvolvimento do trabalho. Para a flexibilidade do sistema produtivo e como
é realizada a produção, há a necessidade de um trabalhador com igual característica. Para
tanto, o trabalhador tornou-se “polivalente” no interior da fábrica toyotista. Assim, ao invés
de operar uma única máquina e de forma racionalizada como no modelo taylorista/fordista,
assume um número compatível a cinco e auxilia os demais operadores de máquina, num
sistema totalmente automatizado e informatizado (ibid.).
Mas o aprimoramento técnico toyotista com o modelo just-in-time e com o trabalho
que pede um trabalhador flexível e, acima de tudo, apto intelectualmente para as operações,
atende às necessidades do sistema ao alienar esse trabalhador mais uma vez, estimulando o
seu envolvimento enquanto é envolvido no trabalho. É importante reconhecer que todas as
modificações ocorridas num novo método de produção – senão na reinvenção do anterior, é o
que justamente acontece. E são, antes de tudo, estratégias de reafirmação da aplicabilidade do
sistema capitalista ou de responder afirmativamente, que esse sempre poderá lidar com as
crises na produção, na economia, na política, no aspecto social de forma satisfatória e no
campo do trabalho, sempre com uma saída inovadora e com vias alternativas.
Tomaney (1996, p. 157- 158 apud ANTUNES, 2009, p. 50, grifo do autor) revela que
não ocorreu “[...] uma ‘japonização ou toyotização da indústria’, mas sim [...] uma
44
reconfiguração ‘do poder local de trabalho e no próprio mercado de trabalho, muito mais em
favor dos empregadores do que dos trabalhadores’.”
Aponta, ainda, três dificuldades encontradas na adesão a “especialização flexível”:
[...] ‘primeiro, a utilidade da dicotomia entre produção de massa e especialização
flexível; segundo, a incapacidade de dar conta dos resultados do processo de
reestruturação e tratar das implicações políticas disso; finalmente, o fato de que,
mesmo onde exemplos de especialização flexível podem ser identificados, isso não
necessariamente tem trazido benefícios para o trabalho, como eles supõem’. (ibid.,
p. 164 apud ANTUNES, 2009, p. 51, grifo do autor).
Foi dentro dessa contradição eminente que a reestruturação do trabalho, no método
japonês, configurou-se e superou as limitações do modelo fordista. O lema inicial identifica
uma das estratégias adotadas, como bem define Gounet (op. cit., p. 26): “A produção é
puxada pela demanda e o crescimento, pelo fluxo.” Isso permite que a produção seja
direcionada a determinado modelo de automóvel mais consumido e conforme as encomendas.
Assim, o estoque é reduzido ao máximo e, ao mesmo tempo, tem imediata reposição.
Reduz-se o estoque para atender às características geográficas não favoráveis do país,
mantendo somente o estoque de reserva para evitar o desperdício de matéria prima ao
construir séries de modelos distintos e não vendáveis. Essa produção foi restringida,
permitindo reduzir o gasto com transporte e, de fato, a redução de tempo e gasto que acarreta
na produção total.
Isso, aliado à sujeição a péssimas condições de trabalho, à exploração da “divisão
sexual do trabalho”, à utilização da mão de obra de imigrantes “dekasséguis”, como afirma
Antunes (2009), mas, fundamentalmente, baseado na inibição da manifestação do trabalhador
por seus direitos no interior da fábrica. Frente às constantes greves enfrentadas nos anos 1950
– princípio da implantação do método – as reações às novas estratégias resultaram em greves
com apoio dos sindicatos e no seu desmonte em favor dos fabricantes, para tornar-se mais um
instrumento de dominação pelo capital, com a criação dos sindicatos- casa, como fez a Nissan
e demais seguidores (GOUNET, op. cit.).
Todas essas modificações no método de produção e seu impacto no campo do trabalho
correspondem às transformações necessárias para suplantar as crises capitalistas e retornar à
produtividade, com outras estratégias. Mas, ainda assim, são propostas em consonância com a
capacidade de produção em curto espaço de tempo, exigida para atender ao consumo num
mercado mundial estruturado após a Segunda Guerra Mundial.
45
Conforme a analogia feita por Marx e Engels (1999), o processo de produção burguês
ou capitalista ocorre como a um feiticeiro, que perde o comando de sua magia, ou seja, o
modo de produção e troca foi intensificado de tal forma que o feitiço virou contra o feiticeiro.
“Cada crise destrói regularmente não só uma grande massa de produtos já fabricados,
mas também uma grande parte das próprias forças produtivas já desenvolvidas.” (ibid., p. 45). Esse fato é recorrente, pois, quando chegado o esgotamento com uma “superprodução” de
mercadorias, vê-se que não só se reproduziu em sua máxima força, mas, junto a ela, um
exército combinando força de trabalho humana, a produção material, os meios de produção e
troca (ibid.).
São essas as “forças produtivas sociais” que Marx e Engels (ibid.) indicam não mais
serem viáveis ao desenvolvimento das relações de “propriedade burguesa” e passam a
ameaçá-la. Como gerou riquezas não só para si, o que há de fazer é escolher: “De um lado,
pela destruição violenta de grande quantidade de forças produtivas; de outro, pela conquista
de novos mercados e pela exploração mais intensa dos antigos.” (p. 5). Tal fato conduziria a
colapsos intensos e com restritas formas de contraposição.
Na atualidade, esse movimento toma forma na transposição das transformações da
produção automobilística à produção cultural. Jameson (1995) explica que há um movimento
de reciprocidade, uma fusão entre o econômico e o cultural. Não há mais diferença entre um e
outro.
Uma das características da pós-modernidade é a transformação da cultura em
economia e da economia em cultura. É uma imensa ‘desdiferenciação’ (se você não
se importa com essa horrível palavra), na qual as antigas fronteiras entre a produção
econômica e a vida cultural estão desaparecendo. Cultura é negócio, e produtos são
feitos para o mercado. Carros são bens culturais, à medida que apelam para o
imaginário e libidinal (em relação aos investimentos) de um público sofisticado.
(ibid., p. 5, grifo do autor).
Ocorre que, após 1945, iniciou o que, para muitos autores, é denominado como
imperialismo norte-americano ou “imperialismo cultural”, com o crescimento da indústria
cinematográfica norte-americana de Hollywood, o fast food e o estilo de vida americano.
Sustentado por estratégias de marketing e integrado a pacotes políticos, sua implantação deuse primeiramente na Europa, reforçado por organismos como NAFTA, GATT e OMC,
conforme Jameson (2001).
Para Lima Filho (2004), o pleno desenvolvimento da globalização aconteceu somente
com o surgimento do neoliberalismo. Entre as estratégias para a sua realização, estavam a:
46
[...] abertura dos mercados nacionais de bens e serviços, abertura de mercados
financeiros e remoção de quaisquer barreiras aos fluxos de capital,
desregulamentação das relações capital-trabalho, privatização de empresas estatais,
programas de ajuste estrutural que redefinem a ação do Estado no âmbito da
economia e das políticas sociais. (ibid., p. 35).
Podemos citar, também, o desenvolvimento tecnológico ocorrido desde os anos 1960,
como outro facilitador na associação econômica e cultural, que contribuiu para a formação de
uma “sociedade da informação” (LIMA FILHO, op. cit.).
Em outras palavras, a própria cultura vira mercadoria, o mercado é o substituto da
cultura e consumir é o estilo de vida, espírito de época, ou lógica cultural. Nesta
“nova” lógica cultural que ocorre no contexto do fenômeno de globalização do
capital, elaborações entusiastas identificam a emergência de imperativos finalistas
de diversas ordens: fim da ideologia, das classes sociais, da social democracia, do
Estado de Bem- Estar etc. Ao cenário social que é caracterizado pela reunião dessas
manifestações, frequentemente e imprecisamente designado como “pósmodernismo”, se atribui uma dinâmica nova e distinta de organização societária, à
qual não mais se ajustaria as determinações do capitalismo clássico, ou seja, o
primado da produção industrial e a onipresença da luta de classes, o que equivaleria
a reivindicar- para a caracterização da globalização - uma nova e específica
periodização histórica. (ibid., p. 46- 47).
Sempre aliando o desenvolvimento dos “instrumentos de produção”, da tecnologia e
dos custos de seus produtos, o modo de produção capitalista envolve a todas as nações em seu
modo de produção e de vida civilizado, ou seja, “[...] cria um mundo à sua imagem e
semelhança.” (MARX; ENGELS, op. cit., p. 4).
Marx e Engels (ibid.), em o Manifesto do Partido Comunista, expõem, com clareza, a
amplitude alcançada pelo modo de produção burguês ou capitalista, em seu desenvolvimento
histórico, estabelecendo que, sob sua vigência, não há margem para que qualquer tradição
permaneça. Justamente por ser esse modo de produção fonte de transformação é que interfere
indistintamente nas “relações sociais”.
Busca incessantemente desenvolver-se onde já existe um vestígio de sua passagem.
Caso necessário, abre novas portas para ampliar sua capacidade de manipulação das relações
sociais e de produção de mercadorias. Para isso explora mão de obra feminina, infantil e
imigrante a preço baixo, expropria terras e derruba indústrias nacionais em nome do
desenvolvimento, para ampliar seu mercado.
Por assim ser, fica evidente que a produção de mercadorias atinge, em nossa época,
patamares em que se dificulta reconhecer a realidade, do que é vendável. Constitui-se o
mercado mundial, como denomina Marx e Engels (ibid.), ou a globalização econômica, como
47
sugere Jameson (op. cit.) um “fenômeno cultural”, que interfere nas relações sociais e no
modo de vida dos indivíduos de origens distintas, em qualquer lugar do mundo.
A globalização cultural manifesta sua avassaladora natureza ao passo do máximo
aprimoramento da produção de mercadorias, por meio de recursos técnicos a cada momento
mais prodigiosos, levados a pontos longínquos do mapa. Ultrapassa os limites de fronteira,
provoca a falência das “indústrias nacionais”, leva novo estilo de vida, de pensamento e de
organização social (ibid.). Enfim, gerencia um novo modo de vida.
[...] Em lugar das antigas necessidades, satisfeitas pelos produtos nacionais, nascem
novas necessidades, que reclamam para sua satisfação os produtos das regiões mais
longínquas e dos climas mais diversos. Em lugar do antigo isolamento de regiões e
nações que se bastavam a si próprias, desenvolvem-se um intercâmbio universal,
uma universal interdependência das nações. E isto se refere tanto à produção
material como à produção intelectual. (MARX; ENGELS, op. cit., p. 3).
Tudo isso ocorre em prol de uma unificação do mundo, das fronteiras, da derrubada de
barreiras protecionistas, em prol da acumulação do capital. A cultura, como expressão local,
regional ou nacional, é convertida, reelaborada e vendida como mercadoria pela indústria do
entretenimento ou cultural. Como indicou Dias (2008), o mercado se aprimorou de tal
maneira, que absorve “[...] os produtos [antes] ‘marginais’, considerados como sendo de
difícil assimilação, a partir do pressuposto de que, para o mercado, tudo interessa.” (p. 30,
grifo da autora). Respectivamente, os seleciona de acordo com seus critérios de venda e do
que é aceitável pela massa de consumidores.
Marx e Engels (op. cit.) identificaram sinais desse amadurecimento da produção
burguesa, anteriormente à sua efetivação. Podemos citar características que parecem ser
enumeradas já neste século, como a dificuldade ou impossibilidade de preservar a propriedade
intelectual das criações nacionais e a especificidade de cada nação, bem como qualquer
criação que expresse o limite entre o nacional, o regional ou o local. Para os autores, o modo
de produção burguesa:
Fez da dignidade pessoal um simples valor de troca; substituiu as numerosas
liberdades, conquistadas com tanto esforço, pela única e implacável liberdade de
comércio. Em uma palavra, em lugar da exploração velada por ilusões religiosas e
políticas, a burguesia colocou uma exploração aberta, cínica, direta e brutal. (p. 3).
Como alega Jameson (2001), a história revela que “[...] nenhum império dura para
sempre.” (p. 26), apesar de que, no nível tecnológico, não retrocederemos. O nível cultural
48
sugere atenção, pois a globalização econômica e cultural pode provocar o desaparecimento da
identidade cultural.
Jameson (op. cit.) supõe que a imagem “disneyficada” seria a única forma de reviver
ou relembrar, por meio de uma representação e sensação, a projeção do que se deduz como a
cultura de determinada localidade. É preciso ir além, pois essa é uma ameaça, mas não o fim.
Há que se pensar em políticas já registradas em pauta e, também, renová-las para se
conflitarem com condições a cada período mais audaciosas.
Mas, principalmente, há a exigência eminente, não só em nível cultural, mas também
como cultura artística, de debates e engajamento de profissionais, estudiosos, leigos e
políticos sérios, enfim, da sociedade em geral, de refletir o papel da cultura, a sua função e
contribuição como visão política, não somente sob a máscara do entretenimento. Como
formação intelectual, humana e artística, se é que essa palavra já não se consome à
simplificadora utilização ou vulgarização habitual. É preciso ultrapassar a política do pão e
circo e, talvez, desconectar-se.
A resistência de determinadas expressões culturais caminhará sempre entre a
contramão e a preferência da maioria. O peso do incentivo capital para sua manutenção pode
ser o mesmo que manipula ou tenta mobilizá-la.
No próximo capítulo, a discussão ocorrerá na esfera do registro do modo de fazer a
viola-de-cocho e de sua titulação como Patrimônio Cultural Brasileiro. Objetiva-se discutir
quais são as contribuições do registro da viola-de-cocho, a manutenção de sua prática e
resistência à mercantilização.
49
CAPÍTULO III
A PATRIMONIALIZAÇÃO DA VIOLA-DE-COCHO COMO
ESTRATÉGIA
PARA SUA CONSERVAÇÃO
O objetivo deste capítulo é discutir de que forma o reconhecimento da viola-de-cocho
como patrimônio cultural pode contribuir para a conservação dos conhecimentos e práticas
nas localidades pesquisadas, inseridas num contexto econômico e cultural globalizado.
Assim, principia-se com a reflexão sobre o procedimento metodológico específico de
análise às propostas de patrimonialização ao qual é sujeito o bem a ser registrado. Em
seguida, a discussão é direcionada aos condicionantes que motivaram o registro da viola-decocho e do complexo artístico e coreográfico a ela atrelado nos estados de Mato Grosso e
Mato Grosso do Sul.
Por fim, o debate amplia-se ao impacto das estratégias capitalistas na produção e
transformação das expressões culturais nacionais em mercadorias, como no caso do
patrimônio cultural nacional. Posteriormente, identifica-se como, por meio desse instrumento
legal, o ensino pode garantir a continuidade da manifestação pesquisada, frente a esse
complexo arranjo.
3.1 Os procedimentos para a patrimonialização
O reconhecimento de bens materiais e imateriais como patrimônios culturais
brasileiros vem sendo noticiado constantemente nos meios de comunicação do país,
atendendo, assim, aos objetivos de levar ao conhecimento da política. Assim, as estratégias de
preservação e de salvaguarda do bem patrimonializado são divulgadas à sociedade, seja para
denunciar a lesão ao patrimônio nacional por furto, venda ilegal, seja para divulgar a
importância.
Especificamente no estado de Mato Grosso do Sul, temos vivenciado a efetivação do
tombamento de bens em nível federal, como o Forte Coimbra e o Conjunto Histórico,
Arquitetônico e Paisagístico do Casario do Porto de Corumbá (LIMA, 2009), para citar alguns
exemplos. Já no âmbito do patrimônio imaterial até então registrado no estado, está o
reconhecimento do modo de fazer viola-de-cocho como Patrimônio Cultural, em 14 de janeiro
de 2005, juntamente com o seu complexo artístico e coreográfico, o siriri e o cururu, e os
50
instrumentos acompanhadores, o ganzá e o mocho. Esse reconhecimento foi inspirado pelo
Registro do modo de fazer viola-de-cocho no Livro de Registro dos Saberes do Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), que se deu em 2004.
Entretanto, devemos ter em mente que todo esse aparato que chegou ao
reconhecimento da sociedade foi principiado no século anterior, como uma estratégia para
identificação da identidade nacional, elaboração de instrumentos de proteção e conservação
das expressões nacionais, frente à modernização em plano global.
Após a Segunda Guerra Mundial, com a ocorrência de um intenso movimento de
reconstrução dos países atingidos pelo conflito, iniciou com a mesma intensidade um
processo de modernização e aceleração sem precedentes na história, a globalização. Trata-se
de um período que Jameson (2001) denomina como marcado pelo “protecionismo cultural”,
de outra forma, num momento em que “[...] a cultura se torna decididamente econômica, e
esse tipo especial de economia claramente define uma agenda política, ditando formas de ação
política.” (p. 24).
No mesmo momento, o FMI (Fundo Monetário Internacional), o BM (Banco
Mundial), a OMC (Organização Mundial do Comércio) e outras instituições foram criadas
para garantir os interesses dos “novos senhores do mundo” ou “do governo mundial de fato”,
como denomina Frigotto (1996, p. 61). Nesse momento foi também criada a UNESCO –
Organização das Nações Unidas para Educação, a Ciência e a Cultura.
A UNESCO foi criada em novembro de 1945, com o objetivo de preservar e registrar
as tradições de grupos que corriam risco de desaparecimento frente à transformação na qual o
mundo estava envolvido. Assim, coube à instituição a responsabilidade de organizar meios de
preservação da identidade nacional em nível mundial (IPHAN, CNFCP, MinC, 2009). Como
parte das estratégias de preservação adotadas pela organização no Brasil, em 1947, surge a
“Comissão Nacional do Folclore”, reconhecida atualmente como Centro Nacional de Folclore
e Cultura Popular. (Vianna, 2001, p. 98 apud FONSECA, 2004; ibid.).
No que tange aos instrumentos legais de defesa dos bens nacionais, gerados a partir da
organização dessas instituições, Vianna (2004), indica que, desde os anos 1920, vem sendo
desenvolvida a “legislação brasileira de salvaguarda e proteção do patrimônio cultural”. E
que, a partir de 1930, instrumentos como o tombamento, começaram a ser testados.
No aspecto jurídico, a Constituição Federal de 1934, definiu a necessidade e
responsabilidade de conservação do patrimônio cultural e natural brasileiro. (FONSECA,
2009). Podemos citar, como um dos primeiros resultados desse esforço, a lei de Tombamento
de Bens Móveis e Imóveis, instituída pelo Decreto-lei nº 25, de novembro de 1937, pelo
51
presidente Getúlio Vargas. Aprovado em meio à ditadura, o decreto de certa forma
representou a conduta arbitrária do presidente frente à dissolução do Congresso Nacional,
mas, ainda assim, o decreto foi um “instrumento de vanguarda”, sugere Telles (2008).
O decreto definiu a base para a aplicação do procedimento de tombamento ao
considerar como patrimônio nacional, em seu art. 1º, os “[...] bens móveis e imóveis
existentes no país e cuja conservação seja de interêsse público, quer por sua vinculação a fatos
memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico,
bibliográfico ou artístico.” (BRASIL, 1937, p. 1). Reconhece-se o patrimônio brasileiro, por
meio da obrigatoriedade de inscrição do bem sujeito, em um dos Livros do Tombo e na
avaliação pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, em concordância com as
características estabelecidas no art. 4º:
1)
no Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, as coisas
pertencentes às categorias de arte arqueológica, etnográfica, ameríndia e popular, e
bem assim as mencionadas no § 2º do citado art. 1º.
2)
no Livro do Tombo Histórico, as coisas de interesse histórico e as obras de
arte histórica;
3)
no Livro do Tombo das Belas Artes, as coisas de arte erudita, nacional ou
estrangeira;
4)
no Livro do Tombo das Artes Aplicadas, as obras que se incluírem na
categoria das artes aplicadas, nacionais ou estrangeiras. (ibid., p. 2, grifo nosso).
Esse esforço inicial para identificar e reconhecer a natureza do bem nacional inovou ao
incluir, no procedimento, o bem de origem estrangeira que estivesse em posse no país. Apesar
desse diferencial, é consenso entre vários pesquisadores que, mesmo garantindo a proteção
dos bens móveis e imóveis, o IPHAN – órgão responsável por sua aplicabilidade – por muitos
anos atuou na proteção dos chamados “pedra e cal”, ou seja, monumentos e construções.
(COSTA; CASTRO, 2008; FONSECA, 2004; OLIVEIRA, 2004b; TELLES, op. cit.;
VIANNA, op. cit.).
Essa referência à proteção de determinado bem em relação aos demais pode ser
explicada pela ausência de instrumentos próprios, que dessem suporte às especificações de
cada Livro do Tombo estabelecido no decreto. Cabe também mencionar que as sanções
estabelecidas pelo decreto trouxeram outro elemento gerador de dissenso e críticas,
diretamente relacionado aos valores atribuídos como multa, entendidos como surreais,
especificamente por Telles (op. cit.).
Entretanto, sua relevância está na inicial instrumentalização do tombo, considerando o
tempo de sua homologação e as interfaces com outros instrumentos criados.
52
Em 1936, Mário de Andrade havia elaborado um anteprojeto de um órgão destinado a
atuar em defesa do patrimônio histórico e artístico nacional, encomendado pelo Ministro da
Educação e Saúde Gustavo Capanema. O projeto definia um moderno conceito de patrimônio,
ao considerar a cultura popular e erudita em equivalência, menciona Fonseca (2009).
O anteprojeto foi utilizado como base para a criação da instituição responsável pelo
patrimônio histórico e artístico nacional, que surgiu em 1937, por meio do decreto nº 25 com
o nome de SPHAN – Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o mesmo
decreto que regulamentou o instituto do tombamento (GOLÇALVES, 1996; FONSECA, op.
cit.).
Apesar dessa rica colaboração, o Decreto nº 25 não considerou a dimensão imaterial
dos bens nacionais, que foi investigada e registrada em acervo pelo Centro Nacional de
Folclore e Cultura Popular, na Campanha de Defesa do Folclore, desde 1958 e também no ano
2000 através do decreto nº 3.551, pelo IPHAN.
Foi em 1988, com a criação da Constituição Federal, que os bens de natureza móveis
foram considerados em sua pluralidade, como bem de natureza material e imaterial, em
contraposição aos privilégios registrados até então.
Inserido na Constituição, o aparato legal construído pelo Decreto 25/37 ganhou maior
valoração ao definir com clareza a dimensão dos bens nacionais. Entre as atribuições
estabelecidas, coube ao Estado a responsabilidade sobre os “direitos culturais” e estabelecer a
aproximação dos sujeitos aos bens nacionais. Do mesmo modo, o Estado deveria zelar as
manifestações populares e promovê-las por meio da criação de leis de incentivo ao patrimônio
imaterial, além de punir os que prejudicassem ou danificassem o bem (BRASIL, 2010).
O artigo 216 da Constituição Federal define cinco itens que, direta ou indiretamente, já
delimitam as características dos livros de Registro dos Bens de Natureza Imaterial, presentes
no Decreto-lei 3.551 de 2000. Os itens definidos no artigo ficam dispostos em categorias, da
seguinte maneira:
I- as formas de expressão; II- os modos de criar, fazer e viver; III- as criações
científicas, artísticas e tecnológicas; IV- as obras, objetos, documentos, edificações e
demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V- os conjuntos
urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico,
paleontológico, ecológico e científico. (BRASIL, op. cit., p. 35).
O conceito de patrimônio material e imaterial foi gradualmente sendo estruturado por
meio das influências geradas pelo Decreto 25/37 e da Constituição Federal de 1988, conforme
53
Oliveira (op. cit.). Foram, também, essas transições que permitiram vislumbrar, efetivamente,
a necessidade de outros aparatos que fossem ao encontro das peculiaridades dos bens de
natureza imaterial.
Em novembro de 1997 foi realizado pelo IPHAN, em Fortaleza, o “Seminário
Patrimônio Imaterial: estratégias e formas de proteção” (Carta de Fortaleza, 1997). O
seminário permitiu, por meio da elaboração coletiva, identificar necessidades, discutir e
elencar estratégias junto à sociedade e às instâncias atuantes no campo da cultura. O
diferencial desse evento foi o empenho em criar “instrumentos legais” que atendessem às
especificidades do patrimônio imaterial, em face de sua quase invisibilidade nos instrumentos
gerados anteriormente (ibid.).
Verificou-se a necessidade de documentar o patrimônio cultural nacional por meio de
novas pesquisas e da reunião dos dados já registrados em “banco de dados” público. Também
a urgência da elaboração de estratégias de preservação e promoção do patrimônio cultural em
parceria com o IPHAN, Ministério da Cultura (MinC.), Departamento de Identificação (DID)
e demais instituições (ibid.). A elaboração da Carta de Fortaleza foi a expressão do
pensamento comum resultante do Seminário, que possibilitou gerar, posteriormente,
instrumentos distintivos para a conservação do patrimônio imaterial.
O Decreto nº 3.551, de 4 de agosto de 2000, resultante dessa articulação,
instrumentalizou efetivamente a patrimonialização dos bens de natureza imaterial, com o
Registro dos Bens de Natureza Imaterial. Isso foi feito por meio da criação de quatro livros de
registro: o de Saberes, destinado ao registro do “conhecimento e modos de fazer” dos sujeitos
das manifestações; das Celebrações, para “rituais e festas”; das Formas de Expressão, nas
quais se inscrevem “[...] manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas;”, e dos
Lugares, destinado aos locais nos quais são vivenciadas essas manifestações (IPHAN, 2000a,
p. 1).
O registro dos bens em algum dos quatro livros indica a “[...] continuidade histórica do
bem e sua relevância nacional para a memória, a identidade e a formação da sociedade
brasileira.” (ibid., p. 1). De forma que, de acordo com a necessidade de adequação ao bem
sujeito ao registro, há a possibilidade da criação de diversos livros pelo Conselho Consultivo.
(ibid).
O Registro é um procedimento de validade jurídica análogo ao tombamento, mas com
diferenças intensas, que visa promover o patrimônio imaterial. Para que o bem seja registrado
é necessária à organização da sociedade, dos produtores ou artesãos de determinado bem e a
54
condução de pesquisa que revele o valor desse bem na totalidade em que está inserido,
justificando a necessidade do Registro.
A princípio é elaborada uma solicitação de registro, reunida documentação que
comprove tal necessidade e encaminhada ao presidente do IPHAN, para que seja analisada
pelo Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural (IPHAN, 2000a). Caso seja necessário,
poderá ser aplicada a metodologia do Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC).
O INRC é outro instrumento de preservação do patrimônio material e imaterial criado
com o intuito de valorizar e realizar pesquisas sobre as referências culturais nacionais, a partir
de sua metodologia para inventariar os bens sujeitos ao registro (IPHAN, 2000b).
Posteriormente, os dados registrados podem ser reunidos no inventário e enviados
junto à solicitação do registro. O bem inventariado em consonância com a documentação
exigida para seu registro necessita, ainda, ser examinado periodicamente após seu registro,
para que mantenha o título recebido (IPHAN, 2000a).
Como bem destaca Veloso (2006), esse foi um dos grandes diferenciais do conceito de
referência cultural, pois direciona a sua atividade aos sujeitos das manifestações, “[...] os
produtores dos bens culturais e não no produto final.” (p. 443) – festa ou objeto. Além disso,
os dados produzidos permitem o conhecimento das manifestações culturais e sua
continuidade, através da divulgação em sociedade.
A aplicação desse procedimento de registro foi possível com a criação do Programa
Nacional do Patrimônio Imaterial, o PNPI, um programa criado para “[...] [viabilizar] projetos
de identificação, reconhecimento, salvaguarda e promoção da dimensão imaterial do
patrimônio cultural.”, (IPHAN, 2000b, p. 1) que estejam ligados a uma das linhas de:
“Pesquisa, documentação e informação, Sustentabilidade, Promoção e Capacitação”. (ibid., p.
2). Para a realização dessas ações, o programa conta com o auxílio instituições públicas e
demais instituições que atuem na área.
Entre os projetos inicialmente financiados pelo PNPI, está o Projeto Celebrações e
Saberes e Cultura Popular, direcionado a quatro linhas: “[...] os usos culinário do feijão e da
mandioca, as celebrações que têm o boi como tema, o barro e a cerâmica tradicional e as
formas de expressão proporcionadas pelas violas e instrumentos de percussão.” (IPHAN,
2000b, p. 2), sob a responsabilidade do Centro Nacional de Folclore e Cultura
Popular/CNFCP.
As referências culturais contrapõem-se ao tradicional procedimento utilizado no
tombamento de bens materiais, que de certa forma atenderam à demanda mercantil. Dessa
maneira, valorizou-se o patrimônio como coisa, como mercadoria, e não como representação
55
social, nacional ou mesmo como representação de determinado grupo social ou comunidade,
que, sem voz, não era atendido por nenhum instrumento, como é o caso do Decreto-Lei 25/37.
Até o ano de 2012, foram registrados 23 bens, entre eles o Modo de Fazer Viola-decocho. E em consonância com os demais instrumentos de preservação do patrimônio, a
Salvaguarda é direcionada a “proteção” e promoção dos bens culturais já registrados. Junto
aos parceiros desenvolvem-se atividades que promovam a transmissão e a reprodução dos
saberes relacionado aos bens junto à comunidade. (IPHAN, 2000b).
3.2 O Modo de Fazer Viola-de-cocho como Patrimônio Cultural Imaterial
Desde os anos 1980, a temática da manifestação cultural viola-de-cocho começou a ser
investigada pelo Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular (CNFCP), conforme Vianna
(2005). Prova disso que, em 1988, foi realizada uma primeira exposição na Sala do Artista
Popular, no Rio de Janeiro, resultante da pesquisa empreendida pelos pesquisadores Elizabeth
Travassos e Roberto Nunes Corrêa, com o título Viola-de-cocho.
Dessa exposição, resultou a publicação de um catálogo com o mesmo nome, contendo
registros obtidos na pesquisa realizada em Mato Grosso e um LP intitulado Cururu e outros
cantos das festas religiosas - MT. Foi uma pesquisa de relevância, por realizar um primeiro
mapeamento da produção bibliográfica relacionada a essa manifestação cultural e,
principalmente, por conter aproximações à literatura e relatos das primeiras aparições da
viola-de-cocho em São Paulo e em Mato Grosso.
Figura 6: Capa do Catálogo Viola-de-Cocho (TRAVASSOS; CORRÊA, op. cit.).
56
Essa pesquisa auxiliou na elaboração do parecer do Instituto Nacional de Propriedade
Intelectual relativo ao pedido de registro da marca viola-de-cocho, em Mato Grosso, no ano
de 1996. O registro foi indeferido, por se tratar de um elemento tradicional e histórico do
folclore brasileiro. O caso ocorrido motivou o processo de patrimonialização do instrumento
em MT e também a criação do decreto 3551/2000 pelo Grupo de Trabalho Patrimônio
Imaterial (o GTPI, criado a partir da Carta de Fortaleza) como um instrumento que atesta
direitos coletivos inalienáveis sobre as expressões das culturas populares tradicionais frente
aos direitos individuais de propriedade intelectual.
No ano de 2001, foi encaminhado ao CNFCP, um aviso relativo à prática da viola-decocho na região de Corumbá e Ladário, em Mato Grosso do Sul. Ali, raros indivíduos tinham
prática com as técnicas de construção artesanal da viola-de-cocho. Outro fator preponderante
era a idade dos cururueiros e a pouca ou quase nenhuma iniciativa de repasse desses
conhecimentos, o que poderia deflagrar a ocultação dessa prática nesses municípios.
(VIANNA, 2004; 2005).
Entendendo a urgência e a necessidade de planejar atividades que possibilitassem não
somente o repasse de saberes, mas que resultassem em estratégias para a manutenção e
preservação na localidade, em 2002, o CNFCP desenvolveu o Projeto Viola-de-cocho
Pantaneira, com o intuito de vivificar o modo de fazer a viola-de-cocho (DIAS; VIANNA,
2003). Esse projeto contou com a parceria da Petrobras Distribuidora, junto ao Programa
Artesanato Solidário e com a participação de indivíduos e instituições envolvidas com o tema.
Tinha por objetivo a geração de conhecimento a ser disponibilizado para o público
geral; a elaboração de um plano de manejo ambiental para garantir matéria-prima; a
realização de oficinas de educação ambiental, confecção e execução musical do
instrumento para repasse da tradição; a elaboração de uma estratégia para a
colocação do instrumento no mercado; e sua difusão por meio de cartões postais,
publicações e uma exposição na Sala do Artista Popular, no próprio espaço físico do
CNFCP. (CNFCP, IPHAN, MinC, 2009, grifo nosso).
No ano de 2003, a partir da pesquisa realizada na região de Corumbá e Ladário, foi
produzida outra edição do catálogo. Os resultados obtidos foram compartilhados com o
público na publicação Viola-de-cocho Pantaneira.
57
Figura 7: Capa do Catálogo Viola-de-Cocho Pantaneira (DIAS; VIANNA, op. cit.).
Em conjunto a essas ações foram desenvolvidas as pesquisas para o Inventário
Nacional de Referências Culturais – INRC da Viola-de-cocho, na esfera do PNPI e dentro do
Projeto Celebrações e Saberes da Cultura Popular. Cabe ressaltar a importância do Projeto
Celebrações e Saberes realizado pelo CNFCP, entre os anos de 2000 a 2006, como um projeto
auxiliar do Decreto 3.551. (VIANNA, 2004, 2005; CNFCP, IPHAN, MINC, 2009).
Essa pesquisa contribuiu para elencar itens importantes para o plano de salvaguarda e
para a instrução do registro do modo de fazer a viola-de-cocho. Nessa condição, o inventário
por meio da metodologia do INRC documentou todos os dados possíveis sobre o bem sujeito
ao registro, como: todo tipo de arquivo impresso, de áudio-vídeo, fotos, reportagens e CDs
com gravações públicas. Enfim, todo e qualquer material em que estivesse registrada a sua
relevância para a localidade e o seu uso no contexto social e histórico.
Foi o que tornou possível efetuar o levantamento da documentação exigida para o
registro e o reconhecimento da forma de construção da viola-de-cocho e das manifestações
culturais a ela atreladas na localidade, como o siriri e o cururu.
58
[...] a especificidade da viola-de-cocho como instrumento musical; os riscos de
descaracterização; os riscos de desaparecimento; os riscos de desapropriação, dado o
fato recente de ter sido objeto de registro de marca junto ao INPI- registro que não
se consolidou; o fato de ter sido tombada nos dois estados da federação onde são
encontradas (mesmo não sendo o tombamento o instrumento mais apropriado do
ponto de vista da nova legislação, ele reflete o reconhecimento oficial do valor
patrimonial do bem cultural), e a importância de ampla divulgação nacional desse
bem cultural tão especial e representativo da riqueza e da pluralidade culturais
brasileiras. (VIANNA, 2005, p. 55)6.
Os resultados obtidos com a pesquisa para o inventário da viola-de-cocho
contribuíram para inscrição do modo de fazer o instrumento no Livro de Registro dos
Saberes; e no Livro das Formas de Expressão foi registrado o siriri e cururu, no ano de 2004.
(Parecer nº R 004/ 2004; VIANNA, 2005). Em 14 de janeiro de 2005, o modo de fazer a
viola-de-cocho tornou-se Patrimônio Cultural do Brasil (IPHAN, 2009).
O dossiê resultante dessa investigação foi publicado no livro do Modo de Fazer Violade-Cocho, que inclui um breve histórico do instrumento, os procedimentos artesanais de
construção, a afinação, os ritmos, as danças, as festas, o registro musical em notação e a
menção dos reconhecidos tocadores dos dois estados.
Conforme Vianna (op. cit.), a prática da viola-de-cocho está inserida numa totalidade
onde é acessível à produção da indústria cultural. Tal condição proporciona, aos sujeitos, o
acesso e conhecimento de novos modos de viver, de cultura e, mais precisamente, de
consumo. Entretanto, ao mesmo tempo em que exclui o seu modo de manifestar-se, a
execução da viola-de-cocho é reformulada e inserida em novas práticas musicais.
Com a realização do inventário, foi possível identificar que:
A continuidade desse bem está diretamente relacionada à transmissão da tradição
artesanal e musical; à preservação da capacidade humana de apreender e apreciar
musicalidades diversas e alternativas, mas compatíveis com o mercado de música
popular; à difusão do seu valor cultural por vários meios; e, também, à preservação
do patrimônio ambiental, imprescindível à continuidade do seu modo de produção
tradicional. (CNFCP; IPHAN; MinC, 2009, s/p, grifo nosso).
A viola-de-cocho é um instrumento construído artesanalmente a partir dos recursos
naturais encontrados no Pantanal mato-grossense e sul-mato-grossense, como madeiras e dos
animais eram feitas as cordas de tripa e a cola. Dessa maneira, preservar o instrumento impõe
6
Em Mato Grosso e Mato Grosso do Sul a viola-de-cocho foi tombada por falta de conhecimento sobre os
novos instrumentos que atendem à dimensão imaterial (VIANNA, 2005). Junto ao IPHAN, foi registrada
conforme os novos instrumentos do PNPI. Atualmente, o tombamento está sendo reconduzido para Registro.
59
a preservação dos recursos ambientais, do modo de construção, dos saberes, dos fazeres e da
sua execução.
Nessa condição, o tombamento não atenderia à necessidade de manutenção dessa
práxis, pois é direcionado a bens materiais que possuem estabilidade física. No caso dos bens
imateriais, por exemplo, o modo de fazer a viola-de-cocho, está diretamente relacionado à
ação e à criação constante dos sujeitos possuidores desse saber, no que se refere aos modos de
fazer, representar e expressar.
Assim, dada à vivacidade das manifestações culturais, o registro é o instrumento
adequado para salvaguardar os bens imateriais. O Registro possibilita documentar, apoiar as
adaptações às condições de produção de acordo com a legislação ambiental vigente, divulgar,
promover o bem patrimonializado e o indivíduo responsável por sua manutenção.
Justamente por ser o registro um instrumento capaz de colocar em destaque o sujeito, é
que se assegura a salvaguarda do bem frente ao processo de coisificação impulsionado pela
globalização cultural, que discutiremos a seguir, com base na teoria marxista.
3.3 O Patrimônio Cultural e o Fetiche de Mercadoria
A tentativa de registro da marca viola-de-cocho no Instituto Nacional de Propriedade
Intelectual (INPI) em Mato Grosso demonstrou a fragilidade e a desproteção a que estavam
sujeitas as manifestações culturais. É nessa condição que a possibilidade de conferir a
titularidade coletiva pelo Estado e a sociedade pode frear o processo de expropriação e, por
meio da patrimonialização, garantir o direito dos seus produtores.
Entre o princípio da criação da legislação específica da patrimonialização de bens
materiais e imateriais que atendesse às necessidades de conservação e promoção da identidade
cultural no Brasil, percorreu-se o tempo desde os anos 1930 ao novo século. Foi, então,
constituída a forma de representar e garantir, aos sujeitos de direito, estratégias que
possibilitassem sua persistência frente a toda modificação da base econômica e política que no
mundo se configurou.
É nessa condição de uma economia globalizada que pequenos grupos, e,
especificamente, a cultura de diversos países com suas tradições, costumes e crenças, estão
sendo dominadas com o impacto provocado pelo capital financeiro, ao transformar os
diferentes âmbitos da vida em mercadoria, como salienta Jameson (op. cit.).
60
Como bem destaca Lima Filho (2005), a globalização rompeu com os limites
geográficos nacionais e culturais, ao mesmo tempo em que, acentuou conflitos proporcionais
a sua expansão. Se, de um lado, os países que podem se posicionar a ponto de promover uma
“desconexão”, como propõe Samir Amin (apud JAMESON, 2001), são os mesmos que se
posicionam como senhores do mundo. Resta, então, saber como fazê-lo, como se contrapor a
esse movimento ou, ao menos, como conservar nossa identidade nacional. Conservar a
identidade não é torná-la imutável, mas permitir que se transforme. Contudo, que não se
transforme a partir de simulacros do que é até determinado momento.
Se, por um lado, a qualificação do patrimônio nacional por meio de instrumentos
legais, como vimos, permite a consideração das formas de expressão, saberes, lugares e os
modos de fazer dos sujeitos, por outro viés, sua aplicabilidade depende fundamentalmente do
reconhecimento desses direitos pela sociedade como um todo, num período que pode até
mesmo fazer com que chegue desatualizado ao seu conhecimento e sem que vá ao encontro
das suas verdadeiras necessidades.
Assim, enquanto a patrimonialização contribui para a valorização dos bens culturais
nacionais e para atestar titularidades coletivas, a natureza desse sistema impõe-se na tentativa
de favorecer, de forma indireta, a mercantilização do patrimônio.
Acontece que a estratégia de salvaguarda elencada para a manutenção das
manifestações culturais e sustento dos sujeitos desses fazeres pode, em determinadas
condições, provocar a reafirmação do bem no mercado, devido ao fetiche gerado por seu
título. Tal fetiche é inerente a um modo de produção globalizado e gerador de mercadorias.
Torna-se, assim, fundamental a atenção às modificações recorrentes na estrutura
econômica, pois são elas que indicam as modificações que se vivenciam na esfera social e
cultural. É, também, imprescindível a vigilância num dos resultados possíveis e talvez não
cogitados no processo de patrimonialização, como é o caso do surgimento de uma indústria de
turismo, junto à cultural.
Afinal, sob os auspícios dessa base econômica que faz tudo acontecer como
mercadoria, seria intrigante identificar que os instrumentos de proteção aos bens nacionais
fossem fonte de reafirmação de valor somente simbólico, mas não monetário. E, talvez,
ilusório almejar que as manifestações de determinado grupo antes não reconhecidos, assim o
fossem, sem possibilitar outras formas de exploração, como a violação dos direitos autorais e
a utilização da manifestação cultural como entretenimento, e não como expressão da crença,
valores e modos de vida dos sujeitos.
61
Porém, a realidade é contraditória e não idealizada. Marx e Engels (1999)
identificaram, em sua época, que chegaria um momento do modo de produção burguês em
que as características que diferenciam e qualificam cada nação poderiam desaparecer. Pois, a
esse modo, o objetivo no plano econômico não é dar melhores condições de vida aos
indivíduos, mas explorar a força de trabalho humana na produção de riqueza, na geração de
lucro ao capitalista.
Veloso (2006) alerta justamente para essa revalorização do patrimônio como coisa –
como mercadoria e para o fetiche do patrimônio, no sentido em que Marx (1996) entende a
mercadoria. Para Marx (ibid.), uma coisa é considerada mercadoria quando gera valor de uso
não para seu produtor, mas para os indivíduos que a adquirem por meio da troca.
No momento em que ocorre a socialização do trabalho de cada produtor, os produtos
se socializam de forma independente a seus criadores e recebem uma nova propriedade
metafísica, o fetiche da mercadoria. O fetiche é o valor constituído para além da matériaprima utilizada e do tempo de trabalho humano necessário, empregado na produção do objeto.
Nesse aspecto, não se considera o trabalho empregado pelo artesão à madeira
cultivada e utilizada, o valor atribuído pela comunidade, sua representação como
manifestação cultural de determinados sujeitos, como construção histórica e social do homem.
Em suma, todo processo anterior à constituição do produto final. Considera-se determinado
bem como objeto de troca, como mercadoria, seja para decoração, lembrança de determinada
localidade, lazer ou fazer.
Nem todo produto do trabalho humano é considerado mercadoria. Inclui-se o produto
realizado para a subsistência e para o uso pessoal do produtor. Exemplificaremos a relação do
produto do trabalho humano em seu valor de uso e o produto do trabalho humano em seu
valor de uso e troca, a seguir.
Este exemplo é pensado a partir da análise de Marx (1996) sobre a natureza da
mercadoria inserida no sistema burguês, o capitalismo. Cabe salientar que, anterior ao registro
da viola-de-cocho dos estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, ela já havia sofrido com
o processo de mercantilização e a tentativa de registro da marca. Mas é importante considerar
que as estratégias adotadas também sofrem com a mesma contradição do sistema e que,
apesar do artesão construir sua viola-de-cocho para uso pessoal, também o faz para vender.
Não são todos os tocadores que constroem seu próprio instrumento e não só o tocador da
viola-de-cocho utiliza o instrumento com a mesma finalidade ou com vistas à mercantilização.
É esta a análise: o que torna determinada coisa ou objeto mercadoria? O uso? A troca?
Dessa forma, apesar de o instrumento viola-de-cocho ser produto do trabalho humano útil
62
empregado na transformação da madeira em valor de uso, não é considerada mercadoria, pois,
em geral, o artesão gera exclusivamente valor de uso para si. Mas à medida que ele gera valor
de uso não para si, mas para outro indivíduo, a condição do instrumento se modifica.
À medida que o instrumento constituído a partir da natureza, valor de uso, é trocado
por outro valor pelo seu artesão, ele poderá ser considerado valor de troca, portanto,
mercadoria. O valor de uso expressa-se qualitativamente e o valor de troca quantitativamente
(MARX, op. cit.). Desse modo, não basta que o instrumento se expresse nessa dupla natureza;
deverá representá-la em quantidade como mercadoria.
A partir dessa realização dos produtores da viola-de-cocho e da sua socialização, em
que predomina a relação entre esses bens, dá-se uma condição propícia para a realização do
fetiche como mercadoria e entretenimento, como tentativa de transformação do patrimônio,
daqueles modos de fazer, representar e os lugares onde ocorrem as manifestações.
O processo de mercantilização e o fetiche não acontecem a partir da
patrimonialização; trata-se de um processo dentro da sociedade produtora de mercadoria.
Tampouco quer dizer que a patrimonialização evita o processo de mercantilização, pois não
vai romper com a sociedade produtora de mercadoria, apesar de assegurar as titularidades
coletivas.
Da mesma forma em que se buscam gerir instrumentos de proteção, é importante
reconhecer que, inseridos no sistema capitalista, os instrumentos de proteção sofrem com a
mesma contradição imanente à natureza desse modo de produção. Ela não cessa. É inerente.
E, por mais que sejam geridos meios de proteção, as mesmas estratégias retornam ao
meio de criação. Basta observar que quem produz a proteção é, ao mesmo tempo, quem ataca.
Pois esse bem patrimonializado é revalorizado por seu título e notoriedade, mas também, em
determinadas condições, como mercadoria por terceiros, sob a forma de um fetiche ou até de
um pastiche, copia e reinvenção de “estilos mortos”, como sugere Jameson (1985). Isso
ocorre especificamente, conforme Veloso (op. cit.), quando bens culturais patrimonializados,
tornam-se mercadorias, então, toma forma o “fetiche do patrimônio”.
Brandão (1984) relata uma prática que pode nos ajudar a compreender esse cenário.
Tal situação diz respeito a um dançador de congo da região de Minas Gerais, com evidente
distanciamento e não reconhecimento das práxis de determinadas localidades, o dançador
comenta: “Isso o povo daqui faz por uma devoção. É uma devoção que a gente tem com o
santo, e por isso canta e dança conforme fez agora. Agora, tem gente que aparece que chama
isso de folclore.” (p. 5).
63
Essas manifestações ou expressões, como queiram chamar, por serem práticas de
socialização com seus, o grupo e outros; ocorrem como um processo de ensino-aprendizado
informal. Assim, seja no âmbito da prática musical na execução da viola-de-cocho, do ganzá,
do mocho e do canto bem como da dança, há um processo em que os conflitos entre
intencionalidade e espontaneidade se mesclam.
Como bem definido por Brandão (ibid.), ao transcrever outro caso vivenciado por um
búlgaro que assistia à Festa do Divino Espírito Santo e às Cavalhadas de Cristãos e Mouros,
em Pirenópolis, Goiás: “‘As pessoas [parecem] que estão se divertindo’, disse, ‘mas elas
fazem isso pra não esquecer quem são’.” (p. 10, grifo do autor).
Podemos defini-la de várias formas e com o mais alto grau de elaboração. Mas são
eles, os sujeitos que fazem vivas determinadas brincadeiras, usos, costumes, linguagens e seu
modo ao seu modo, que o desenvolvimento esqueceu. É isso que faz viva não somente na
lembrança, mas na expectativa de que se modifique.
Como afirma Londres (2000, p. 11; apud VELOSO, 2006, p. 443, grifo da autora):
“[...] os bens culturais não valem por si mesmos, não têm um valor intrínseco. O valor lhes é
atribuído por sujeitos particulares e em função de determinados critérios e interesses
historicamente condicionados.”
É importante considerar que, em todo esse processo de patrimonialização do modo de
fazer o instrumento viola-de-cocho, existiu não somente o conflito de poderes, senão um
conflito de classes, tanto entre os sujeitos requerentes do registro em Mato Grosso quanto em
Mato Grosso do Sul. Isso pelo grau em que o instrumento e as tradições se fazem presentes
numa localidade, em relação à outra, do mesmo modo que em seu modo de construir, tocar e
representar.
Mas, como enfatiza Veloso (2006, p. 445), “[...] mesmo com o processo de
democratização e modernização da sociedade brasileira, o poder local e sua capacidade de
manipulação da tradição, da memória coletiva e da identidade local não podem jamais ser
desprezadas.”
Acontece, nesse espaço, segundo Veloso (op. cit.), um processo de “reversão
ideológica”, de ao mesmo tempo “[...] o patrimônio cultural, normalmente [ser] associado à
tradição e à história [...]” (p. 445), mas também ser, de certa forma, um instrumento dentro de
um jogo de forças. É onde ainda se apresenta uma acentuada disputa entre instituições e onde
há a tentativa de modificar todo um aparato constituído coletivamente pelos sujeitos, haja
vista que a história é escrita coletivamente, e não por sujeitos isolados (ibid.).
64
Para além do aparato legal constituído por anos de reflexão e debate, ao ponto da
formulação dos instrumentos de registro e tombamento do patrimônio nacional, a intervenção
do “poder local” frente à manifestação cultural é um campo que ainda exige análise e
fiscalização apurada, como reforça Veloso (ibid.).
Para encerrar essa discussão, é importante reconhecer a patrimonialização dos bens
culturais nacionais como um instrumento específico para identificação, proteção, manutenção
e revigoramento de determinadas práticas que, de outra forma, cairiam no esquecimento ou
seriam alvo do descrédito e da falta de conhecimento.
No próximo e último capítulo, retomaremos o debate feito até aqui no âmbito do
procedimento de patrimonialização, dos condicionantes do registro da viola-de-cocho em
Corumbá e Ladário e, ainda, sobre o risco da mercantilização do patrimônio nacional. Porém,
focaremos a práxis da viola-de-cocho e, mais especificamente, o seu processo de ensino e
aprendizagem.
A discussão, sustentada pelo debate travado até este capítulo, se desenvolverá no
campo empírico com o estudo de caso do processo de ensino e aprendizado da viola-de-cocho
nas cidades de Corumbá e Ladário, em Mato Grosso do Sul. Entende- se que essa realidade
não é um ambiente isolado, mas uma localidade ainda em desenvolvimento no plano político,
econômico e cultural, nos quais o acesso a diferenciados exemplos musical, cultural e o
conflito entre os poderes se defrontam.
65
CAPÍTULO IV
O PROCESSO DE ENSINO APRENDIZADO
DA VIOLA-DE-COCHO EM CORUMBÁ E LADÁRIO
Este capítulo trata de analisar como ocorreram o ensino e o aprendizado dos tocadores
de viola-de-cocho, com base no material produzido no campo empírico, junto aos
remanescentes da tradição do siriri e do cururu em Corumbá e Ladário, MS.
A princípio, serão apresentadas as observações das atividades desenvolvidas, com
enfoque no instrumento e seus tocadores na localidade. Em seguida, o estudo de caso do
processo de ensino-aprendizado da viola-de-cocho e sua resistência frente à globalização.
4.1. O percurso para a realização do estudo de caso
Foram observadas as atividades que envolveram a execução instrumental da viola-decocho e o repasse desses conhecimentos a novos tocadores entre o ano de 2010 a 2012.
O primeiro contato com os tocadores da viola-de-cocho deu-se no registro da
tradicional Festa de São João, no ano de 2010. Nessa ocasião, ocorreu o 1º Encontro de
Cururu e Siriri do Pantanal de Corumbá7, organizado pela Fundação de Cultura de Corumbá,
sob a responsabilidade da diretora-presidente Heloísa Urt. Esse encontro, realizado no Centro
de Convenções Miguel Gomes, contou com a participação de representantes de instituições do
campo da cultura da localidade e os tocadores de Corumbá, Ladário e do Pantanal.
Em 28 de setembro de 2010, foi feita uma visita ao ILA – Instituto Luís de
Albuquerque8, a fim de levantar dados referentes ao número de tocadores de viola-de-cocho.
Lá existia um pequeno acervo aberto ao público sobre o processo de construção da viola-decocho. Numa sala do segundo andar do prédio, estavam expostas quatro violas-de-cocho
encordoadas, sendo uma em processo de escavação, um souvenir, um ganzá e um corte de
ximbuva, uma das madeiras utilizadas na confecção do instrumento.
Nessa mesma sala, num mural, estavam fixadas fotos da 1ª Oficina de Construção da
Viola-de-cocho realizada junto ao Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular - CNFC,
Petrobras Distribuidora e Programa Artesanato Solidário e a Fundação de Cultura de
7
Nome utilizado no material de divulgação do ano de 2010. O evento é reconhecido, também, como Encontro
dos Cururueiros.
8
Esse prédio foi construído entre 1918 e 1922, no centro da cidade de Corumbá. Hoje é sede da Fundação de
Cultura de Corumbá e comporta, também, a Biblioteca Estadual Dr. Gabriel Vandoni de Barros e o Museu do
Pantanal.
66
Corumbá, em 2002 e que resultou na publicação da Viola-de-cocho Pantaneira (DIAS;
VIANNA, 2003). Nesse mural, visualizavam-se todas as etapas do processo de construção da
viola-de-cocho, por meio de fotos e de quadros com informações desde o processo do corte da
árvore até a escavação da madeira. Esse acervo ficou disponível ao público até o ano de 2012,
período de pouco reconhecimento, devido à falta de divulgação.
Em 23 de fevereiro de 2011, participei de uma reunião entre Heloísa Urt, então
diretora-presidente da Fundação de Cultura de Corumbá, e os tocadores de viola-de-cocho, de
ganzá e mocho. Nessa ocasião, tive a possibilidade de conversar com os tocadores de violade-cocho sobre os objetivos da pesquisa e realizar o cadastro dos tocadores dispostos a
participar do estudo de caso.
No ano de 2011, o 2º Encontro de Cururu e Siriri do Pantanal de Corumbá ocorreu
com a apresentação dos cururueiros durante a Festa de São João de Corumbá, num Palco
montado no Porto Geral. Participaram a Oficina de Dança da Prefeitura Municipal de
Corumbá e dois grupos de siriri formados por familiares dos tocadores. Além de participar da
brincadeira em pares, cantaram e executaram os instrumentos de percussão.
Em 2012, no final de mandato da prefeitura, não ocorreu o 3º Encontro de Cururu e
Siriri do Pantanal de Corumbá. Sem a participação da antiga diretora-presidente da Fundação
de Cultura de Corumbá, Heloísa Urt, a Festa do São João de Corumbá ateve-se à descida dos
tocadores pela Ladeira Cunha e Cruz, o levantamento de mastro e a louvação dos cururueiros
para o levante do mastro.
Entre novembro de 2012 e 2013, foi realizada uma segunda oficina de construção da
viola-de-cocho, promovida pelo IPHAN de Corumbá. Foram realizadas 18 aulas ministradas
pelos tocadores de viola-de-cocho, com a participação de alunos de 14 a 17 anos de idade que
puderam acompanhar o corte da madeira, manusear as ferramentas utilizadas para a confecção
da viola-de-cocho e construir o seu próprio instrumento.
Essas oficinas são parte de um Plano de Salvaguarda da Viola-de-cocho, elaborado
pelo IPHAN, que realizou uma “[...] cartilha do Plano de Manejo da Viola [-de-cocho], a
compra de equipamentos para as oficinas, realização de oficinas de cururu e siriri e a gravação
das oficinas para composição de um DVD” 9.
9
Informações colhidas junto a Natália Leal da Silva, Técnica em História da Superintendência do IPHAN em
Mato Grosso do Sul, via e-mail: 17 de dezembro de 2012, 20: 31: 43.
67
4.2. Os tocadores de viola-de-cocho
A análise apresentada neste capítulo é baseada, principalmente, em dados empíricos
resultantes das entrevistas com os tocadores, a partir do questionário semiestruturado.
Participaram voluntariamente dessa entrevista oito tocadores de viola-de-cocho com
idade mínima de 29 anos e idade média entre 66 a 94 anos, naturais da cidade de Corumbá e
Ladário-MS e do estado de Mato Grosso, com residência no município de Ladário ou de
Corumbá.
Os sujeitos aceitaram participar voluntariamente e ficaram cientes de que seriam
identificados por nomes fictícios, para resguardar a sua identidade e para que tivessem a
liberdade de se expressar. São eles: Carlos, Pedro, Sérgio, Marcos, Lucas, Roberto, Bruno e
Matheus.
O procedimento de observação, registro e entrevista dos tocadores desenvolveu-se em
três etapas: na primeira etapa, foi efetuado o registro em áudio-vídeo e fotográfico e a
observação dos tocadores participantes da Festa São João de Corumbá, entre os anos de 2010
e 2012. Na segunda etapa, foi feito o cadastro dos tocadores de viola-de-cocho, que incluiu as
seguintes informações: nome, data de nascimento, profissão, cidade e estado de origem,
endereço residencial, telefone residencial e celular para contato, instrumento que executa e se
constrói o instrumento.
A última etapa corresponde à realização do estudo de caso do processo de ensino e
aprendizado.
A análise será norteada por tópicos organizados a partir do questionário
semiestruturado, elaborado com base na discussão vinculada à pesquisa: a) caracterização dos
tocadores; b) aprendizagem da construção e execução da viola-de-cocho; c) apresentações; d)
o ensino; e) mídia.
a) caracterização dos tocadores
Alguns dos tocadores participantes nasceram em Corumbá ou Ladário ou mudaram-se
para os municípios antes da divisão do estado de Mato Grosso10, em 11 de outubro de 1977,
quando foi criado o estado de Mato Grosso do Sul. Logo, no desenvolvimento da análise será
respeitada essa nova divisão, para fácil assimilação do leitor.
10
Através da Lei Complementar nº 31, assinada pelo então presidente Ernesto Geisel.
68
Carlos foi entrevistado em sua casa no dia 14 de novembro de 2012, a partir das
14h30min, meia hora antes do horário agendado. Na ocasião, estava se preparando, fazendo a
barba com o auxílio de um pequeno espelho, colocado sobre uma mureta localizada na lateral
do corredor da sua casa. Foi numa pequena varanda no final do corredor o local da entrevista,
ambiente em que se mesclou a paisagem sonora do ambiente aberto ao enfrentamento da
linguagem coloquial envolvida por seu sotaque, além do volume de voz já reduzido pelo
envelhecimento e pela gripe.
Nascido em 11 de julho de 1919, na cidade de Poconé, Mato Grosso, foi registrado em
Várzea Grande, já que na sua cidade não havia como fazê-lo e seus pais não eram casados.
Somente após a oficialização do casamento de seus pais pôde ser registrado.
Em Corumbá, MS, chegou aos 13 anos de idade, fugindo numa embarcação que partiu
de Cuiabá, MT. Em Mato Grosso do Sul, permaneceu junto a um tio, período em que
trabalhou com limpeza em embarcação. Dos 13 aos 17 anos de idade, trabalhou em Murtinho,
em Porto Esperança, na construção da ponte e permaneceu em Corumbá, trabalhando em
serviços braçais, como mestre de pedreiro, em uma olaria; aposentou-se como estivador.
À época da entrevista, era funcionário do Instituto Moinho Cultural Sul-Americano,
onde atuava quando chamado para realizar apresentações, gravações e para conversar com as
crianças que estudavam na instituição.
Pedro foi entrevistado em sua casa na cidade de Ladário, com início às 10h20min do
dia 20 de novembro de 2012. Logo que me recebeu, disse-me que talvez não pudesse
contribuir muito com a entrevista, pois detinha pouco conhecimento. Disse-lhe que iríamos
descobrir que sabia mais do que imaginava.
Nascido em 21 de janeiro de 1944, numa porção do Pantanal sul-mato-grossense
chamada Baía ou Barra do Castelo, foi registrado no município de Ladário, MS. Pouco ficou
na cidade, permanecendo boa parte de sua vida entre Corumbá e a Baía do Castelo,
acompanhando seu pai, que era peão de fazenda no Pantanal.
Descende de uma família tradicional de cururueiros mato-grossenses, que emigraram
para o Pantanal sul-mato-grossense. Viu-se obrigado a dar continuidade à prática da viola-decocho após o falecimento de seu pai. Desde então, dedica-se à construção e à execução do
instrumento.
Sérgio nasceu em 8 de novembro de 1946, na cidade de Barão do Melgaço, Mato
Grosso, e vive em Ladário desde 1993.
Sérgio recebeu com felicidade minha ligação e prontamente aceitou o convite para
entrevistá-lo em sua casa. Conforme seu relato, os outros tocadores são sempre lembrados e
69
não ele. Sua entrevista ocorreu em 29 de novembro de 2012, a partir das 8h45min, na cidade
de Ladário. Lá possui um bar, onde comercializa bebidas para complementar sua
aposentadoria de pescador.
Marcos nasceu em 21 de maio de 1951, na Fazenda Santa Maria das Capivaras,
localizada entre o rio Pequiri e o rio Tarigara, em MT. No ano de 1974, com 23 anos, após
uma grande enchente que atingiu o estado de Mato Grosso e a região que hoje corresponde ao
estado de Mato Grosso do Sul, veio para Corumbá e começou a trabalhar em fazenda.
Iniciamos a sua entrevista às 9h do dia 17 de dezembro de 2012, em sua casa na cidade
de Corumbá. Desde o primeiro contato, pareceu-me reticente em conversar, pois acreditava
não saber tantas ou quantas informações, assim como os cururueiros mais antigos, como
Carlos e Lucas, por quem possui profundo respeito.
Para a entrevista, Marcos fez questão de trajar as vestes usadas em apresentações,
lenço no pescoço e chapéu na cabeça.
Em 18 de dezembro de 2012, entrevistei Lucas em sua casa localizada num
assentamento na região de Ladário. Lucas nasceu em 05 de fevereiro de 1939 num sítio na
cidade de Várzea Grande, Mato Grosso, onde trabalhou junto ao pai na lavoura e brincou o
siriri e o cururu com seus irmãos. Em 1966, emigrou para essa região a trabalho. Lá se
aposentou como motorista.
A entrevista de Roberto foi realizada em 19 de dezembro de 2012, com início às 9h.
Roberto nasceu em 12 de dezembro de 1942, em Barão do Melgaço, Mato Grosso. Veio para
Mato Grosso do Sul junto com a família para trabalhar numa fazenda no Pantanal, em 1973.
Na ocasião de sua entrevista, Roberto morava numa alameda escondida em cima de um
rochedo, entre a cidade de Corumbá e o rio Paraguai. A varanda de sua casa fica acima de um
parque formado por uma parte alagada do rio. Ali ficam pequenas piscinas com vitórias-régias
– uma visão deslumbrante do Pantanal.
Não teve possibilidade de estudar quando jovem. O trabalho como peão de fazenda e o
difícil acesso a uma escola fez com que estudasse já adulto, após aposentar-se por problemas
de saúde.
Cheguei à casa de Bruno no dia 20 de dezembro de 2012, às 9h30min. Bruno nasceu
em 2 de dezembro de 1940 na cidade de Barão do Melgaço, Mato Grosso e veio para Mato
Grosso do Sul junto com a família, a trabalho. Fui informada de que Bruno executava violade-cocho, porém, ao chegar à sua casa, percebi que o conhecia e que executava ganzá, e não
viola-de-cocho. Foi então que me revelou já ter estudado viola-de-cocho, por isso decidi
entrevistá-lo.
70
Bruno, assim como seu irmão Roberto, não pôde estudar. Como era o irmão mais
velho, ajudava a mãe nos afazeres de casa, no cuidado dos irmãos e no trabalho no campo.
Hoje aposentado devido a problemas de saúde e com o agravante de ter perdido a visão do
lado direito, está à espera do agendamento de cirurgia do olho esquerdo para que não perca
essa vista também.
A entrevista de Matheus foi realizada em 21 de dezembro de 2012, às 8h, no Instituto
Luís de Albuquerque, onde trabalha na Fundação de Cultura de Corumbá. Nasceu em
Corumbá, MS, em 31 de julho de 1984. É o mais jovem artesão de viola-de-cocho entre os
tocadores.
b)
Aprendizagem da construção e execução da viola-de-cocho
O nome do instrumento viola-de-cocho é uma analogia relacionada à sua caixa de
ressonância e o cocho onde se alimentam os animais. Tal semelhança deve-se também, ao
mesmo processo utilizado na escavação de um tronco da árvore ximbuva ou sarã no formato
do cocho. Segundo os artesãos mais antigos com os quais conversei, para construí-la deve-se
cortar a madeira na lua minguante, para que a madeira não crie brocas ou não broqueie. O
processo de construção dá-se por meio de ferramentas rústicas, como o facão, o enxó goiva, o
enxó chato, a marreta e o facão. Esses aspectos pontuados são um dos elementos que
caracterizaram a originalidade e o ineditismo de cada viola-de-cocho produzida por esses
artífices.
O modo como o aprendizado da construção e execução da viola-de-cocho foi realizado
é denominado educação musical informal e educação não-formal. Entende-se como educação
musical informal aquela em que o indivíduo, ao mesmo tempo em que transmite
conhecimentos indiretamente, ou seja, sem intencionalidade de ensinar, também aprende
hábitos, costumes e tradições propagados de geração em geração oralmente (GARCIA, 2010).
O conhecimento é apreendido e transmitido pelo indivíduo informalmente no contexto social
em que está inserido. Segundo Gohn (2006; apud ibid., 2010), isso ocorre em espaços onde há
o desenvolvimento de relações sociais, como na igreja, em casa, no bairro, entre outros
ambientes.
Em equivalência, a educação musical não-formal é intencional e como é peculiar ao
ensino informal, ocorre em diferentes ambientes. No entanto, o ensino informal e não-formal,
por vezes, ocorrem em complementaridade ao processo de aprendizado da execução e
construção do instrumento. Essa mescla ocorreu justamente, pois os tocadores tiveram acesso
71
desde muito cedo à prática da viola-de-cocho, como ouvintes, e à construção, como
observadores de seus familiares.
No discurso dos tocadores é constante a indicação de que aqueles interessados em
aprender a executar a viola-de-cocho deveriam e devem, ainda hoje, primeiro aprender a
construir sua própria viola-de-cocho, para então aprender a executá-la. Foi dessa maneira que
Carlos, Lucas e Pedro iniciaram a construção da viola-de-cocho.
A vivência musical informal de Carlos, 94 anos, deu-se através de seu pai, que tocava
viola-de-cocho, prática que não lhe era permitida. A motivação do limite imposto pelo pai não
foi explicada pelo sujeito que, sem delonga, disse-me: “Aí, eu andei fazendo a viola-decocho! Aprendi fazer! Aí, eu fui e fiz uma fábrica de viola-de-cocho aqui!”
Nota- se a inversão constituída entre o modo de construção da viola-de-cocho peculiar
ao artesanato e sua identificação industrial com a expressão fábrica, uma analogia com a
quantidade de violas-de-cocho produzidas e uma constante do modo de produção capitalista:
grande produção, fábrica, indústria.
O discurso de Carlos pode ser entendido através das restrições indicadas também pelo
pai de Lucas, 74 anos, como condição para que iniciasse a prática instrumental:
Oh, o cururueiro deve ter o instrumento dele! Você pega a viola dos outros, você
quebra ela e já desafina, faz do jeito que o cara não gosta. Então, você deve ter o
seu. Faz o seu e aí tudo bem! Aí eu olhava o negócio como estava sendo feito.
Curioso, eu queria brincar, queria o meu: consegui fazer o meu!
O primeiro contato de Carlos com o modo de construir e tocar a viola-de-cocho deu-se
ainda em Mato Grosso. Foi num sítio nas imediações de Poconé, onde conheceu um senhor
que, segundo Carlos, inventou a viola-de-cocho e ensinou os moradores a construir e a tocar.
Observando, aprendeu como faziam e, ao chegar a Corumbá, passou a construir. Chegou
fugido de seus familiares, aos 13 anos de idade. Por volta dos16 a 17 anos de idade, aprendeu
a executar o instrumento sozinho.
Eu aprendi sozinho! [...] Eu sabia como que era. Aí, eu aprendi fazer a viola! Aí, eu
fiz a viola aqui em Corumbá. Aí, eu cortei pau aqui em Corumbá. O pau aqui era
bom pra fazer [viola-de-cocho]! Aí, eu fiz viola aqui pra vender para o pessoal.
Fazia viola como essa, aí, pra vender. Fiz muita viola aqui pra vender! Fiz trezentas
e poucas violas, aqui e vendi tudinho! E, aprendi tocar e cantar! Aí, foi bom, porque
eu... Aprendi! Ensinei os outros e foi bom pra mim. (Carlos).
72
Pertencendo a uma família tradicional de cururueiros, Pedro, 69 anos, sempre
conviveu com a execução da viola-de-cocho, praticada por seu pai e seus tios nas festas de
santo ou, como chamam, festas de ano, organizadas pela família.
Entre 14 e 16 anos de idade, aprendeu a construir a viola-de-cocho, observando seu tio
Vitor, marido da irmã de sua mãe.
Me mostrou! Ele fazia e eu... Ele não explicava, né! Não, você tem que fazer esse
detalhe aqui, não pode fazer isso porque pode acontecer aquilo, pode quebrar, tem
vários detalhes, né! A pessoa vê que está fazendo, não vê o que [você] está fazendo;
ele sabe que está ali. Mas você não sabe por que ele já não fez aqui primeiro, do que
fazer ali; são detalhes que a pessoa tem que aprender fazer, que é pra não perder o
serviço dele ou por algum defeito que vai aparecer depois de pronto nela. Então, lá
ele tinha muito sarã. Aí, pegava o machado e cortava. Era só no machado e facão!
(Pedro).
Mesmo sem orientação detalhada sobre o processo de construção do instrumento e de
seu aprimoramento enquanto construía, iniciou a construção de sua primeira viola-de-cocho.
Assim, confeccionava seu instrumento solitariamente, enquanto seu tio construía as violas-decocho encomendadas por pessoas que, segundo Pedro, “[...] cantavam o cururu, mas não
sabiam fazer a viola, como até existe hoje!”
O ensino, de acordo com o discurso do entrevistado, era um processo involuntário,
sem a intencionalidade de fazer com que o garoto imitasse o tio, na tentativa de construir o
instrumento sozinho.
[...] ele era muito bom pra fazer uma viola e o pessoal encomendava! E eu, como
moleque, era meio curioso, gostava de estar ali perto. Então, eu acompanhava ele a
fazer a dele e aí, quando foi um dia, eu fiz uma! Saiu matado! Mas, ele: não, então
faz essa aí pra você! Não é que ele falou: eu vou ensinar você a fazer! Era a minha
vontade de querer fazer a viola. Aí, fiz uma tudo torta, tudo tal! Foi a primeira viola.
Mas não estava; não podia considerar fazedor de viola, né! [...] (Pedro).
Ainda garoto, mudou-se para junto do pai, a trabalho, para um lugar chamado Rita
Velha, na região do rio São Lourenço, localizada em Mato Grosso, próximo à divisa com o
estado de Mato Grosso do Sul. Ali, começou a trabalhar como mascate e a caçar animais
como jacaré e capivara, para retirar o couro e vender a atravessadores ou para fazer a troca do
couro por mercadorias, junto aos ribeirinhos.
Numa dessas viagens para mascateio, ocorreu o contato com os índios da etnia guató,
que moravam na região do rio Carcará, num lugar chamado Canapisto, perto da Baía do
Burro, MT. Estreitado o laço de amizade com os índios, foi morar com eles no acampamento,
73
onde os acompanhava na caçada e na construção da viola-de-cocho feita de sarã, madeira
abundante e de fácil acesso na localidade.
Nessa ocasião conheceu um rapaz chamado Vicentino, um índio, que lhe ensinou os
detalhes para a construção da viola-de-cocho e com quem fez duas violas-de-cocho.
Ele estava fazendo a viola e eu falei: Pomba cara, eu quero fazer uma pra mim
também dessa, aí! Porque a que eu fiz primeiro era de ximbuva, ela não fica bem
branquinha igual ao sarã. Não fica bem branquinha, bem bonitinha igual ao sarã. Aí,
ele tirou um corte pra ele e outro pra mim! E aí, esse já foi: não, você tem que fazer
isso, o detalhe é esse. Você tem que bater aqui, assim! Você tem que ver... Inclusive
falar até na lua pra cortar. Porque quem entende de lua bastante é índio, não é? Ele
conta o mês pela lua, né! O índio conta o mês pela lua. (Pedro).
Continuou construindo viola-de-cocho para seu uso ou para presentear a parentes e
amigos, pois aqueles que faziam viola-de-cocho, naquela época, não comercializavam.
Somente após ter acesso ao modo de construir sua viola-de-cocho é que Pedro buscou
aprender a executar o instrumento. Para isso, observava seu pai cantar e tocar viola-de-cocho
nos ensaios realizados em casa, junto aos seus companheiros. Se a disciplina de ensaio e
estudo em grupo era reforçada por esse ambiente musical, a transmissão desses
conhecimentos às crianças não acontecia do mesmo modo:
Não, era assim: tinha três, quatro garotos, quase do mesmo tempo. Pegava a viola e
ficava escutando os mais velhos. [...] Então, era um negócio que a pessoa aprendia
porque era gurizada, um ia tocando e outro ia pegando no meio daquele. Aí, muitas
vezes, algum deles que chegavam e falavam: Não, tá errado! Ponteia aqui! Essa
corda, aí, tá faltando mais um pouquinho. (Pedro).
Os tocadores mais velhos, não sentavam junto às crianças para ensinar: “Pra sentar pra
ensinar, não”! disse Pedro. E quando os garotos tentavam pegar a viola-de-cocho e sentar ao
lado dos adultos para aprender eram repreendidos:
Se o papai estava ensaiando com o meu tio ali, muitas vezes, dependendo da idade,
não chegava nem lá perto deles; mandava sair de lá! O que criança quer perto de
mais velho? Vai escutar conversa fiada, escutar conversa de mais velho. Pode sair
daqui! Então, ficava difícil pra aprender. Eu cheguei várias vezes de pegar viola e
entrar junto. Acompanhar seu Carlos na viola, acompanhei! Ele... foi o único que
nunca me impediu de tocar viola! Mas, na hora de cantar, não! Entendeu? (Pedro).
Como resultado dessa dificuldade de orientação, desenvolveu sua percepção musical,
o que lhe permitiu reproduzir o sotaque do cururu executado pelos tocadores. Pedro e seus
74
primos organizaram-se num pequeno grupo para aprender a tocar e cantar, pois ali ninguém
sabia.
Nós ficávamos muitas vezes olhando e até pensava assim: vamos... vamos... vamos
aproveitar enquanto o tio tá sozinho, ali! Ele tá tocando ali sozinho, vamos ver se
nós entramos lá com ele? Chegava, começava, ele já deixava a violinha dele e saía!
Ele deixava a viola dele. Deixava tocar a viola dele, mas não pegava pra tocar pra
ensinar. Entendeu? Seu Carlos pode dizer isso. Ele até deixava a viola dele. Mas até
hoje, você vê que seu Carlos vai conversar, a viola dele não sai do colo! Ele
conversa com todo mundo, mas a viola dele tá no colo dele. Ele não deixa! (Pedro).
Assim, desde os 18 anos de idade, Pedro sempre esteve brincando siriri nas festas de
santo organizadas por seus pais, como a festa do Senhor do Divino. Participava das festas
promovidas por seus tios, como o São João, a festa do Senhor do Divino e também a festa de
Santo Antônio.
Sempre presente nas festas de ano que se promoviam nas fazendas, brincou o siriri,
prática em que melhor se desempenhou no acompanhamento na dança, no canto e na
execução. Na brincadeira do cururu, a dificuldade foi ocasionada pela necessidade de um
companheiro que conhecesse a toada e do preparo anterior à brincadeira.
O acesso a instrumentos como o violão e a sanfona era restrito, assim como a
execução de ritmos como o chamamé. A prática musical dava-se através da reprodução
acústica da viola-de-cocho e dos instrumentos acompanhadores, o que lhe permitiu preservar
o modo de organização instrumental dessa prática.
A participação no cururu começou com a adaptação de utensílios domésticos para
percutir os ritmos executados junto ao ganzá.
Eu entrava, assim, eu pegava duas colheres, colheres dessa de comer. Virava elas
costa com costa e batia na mão. Paqui papaqui, paqui papaqui, paqui papaqui, paqui
papaqui... e sapateava com ele! E o pessoal gostava, gostava daquilo porque
acompanhava. Muitas vezes tinha gente que falava: olha, pega a colher lá pra nós!
Ou, então, pega um prato. Não tinha aqueles pratos, aquele prato [esmaltado]?
Pegava um prato e uma colher. E oh, fazia a vez do ganzá! Saía em cima do ritmo,
também. (Pedro).
O uso de colheres e pratos para percutir imitando o ganzá é inusitado, quando inserido
com os instrumentos que compõem a massa sonora junto à viola-de-cocho. Andrade (op. cit.)
relata um conjunto instrumental composto por “[...] cracachás, pratos, garfos, matracas batidas
em mochos, caixotes e bruacas, e, finalmente, adulfos, também chamados de adufinhos.” (p.
35).
75
Segundo Anjos Filho (2002), esse é um costume de influência portuguesa, pois “[...]
também utilizavam talheres para, raspando as bordas rugosas de certos pratos, criar o mesmo
efeito do reque-reque. Utilizavam também, garrafas que tilintavam por intermédio de garfos.”
(p. 142).
Noutros casos, aprendia-se por imitação, sem qualquer orientação, um processo
característico da educação musical informal. A princípio, a imitação ou reprodução de
exercícios e técnicas foi o veículo de o aprendiz também reproduzir os conhecimentos dos
mestres (BENJAMIN, 1987). À medida que o outro executa, já há modificação e,
contraditoriamente, a reprodutividade técnica do som ou mesmo da técnica de execução, que
gradualmente se desenvolveu também por meio de gravações e registros em diferentes mídias.
A partir da vivência musical junto aos seus pais, os tocadores Marcos, 62 anos e
Sérgio, 67 anos, buscaram seus próprios meios para iniciação musical, ora através do
desenvolvimento da percepção auditiva, ora da memória visual. Para Marcos, a prática foi
iniciada com a viola-de-cocho de seu pai, às escondidas, quando ele saía para trabalhar na
roça.
Sérgio, ao observar os modelos das violas-de-cocho empunhadas pelos tocadores nas
festas, escolhia o modelo que construiria. Era no momento em que se estruturava a roda do
cururu que a atenção era redobrada para encontrar a que lhe agradasse: “[...] era aquela que eu
guardava na minha memória. Aí, eu fazia o molde, assim numa tabuinha eu desenhava e fazia,
sem ninguém ensinar.”
Os irmãos Roberto, de 71anos e Bruno, de 73 anos, primos de Carlos por parte de
mãe, vivenciaram desde cedo as reuniões dos cururueiros junto ao pai, em casa, e nas festas
de santo. O pai construía a viola-de-cocho e o ganzá ou reco-reco, com quem Bruno aprendeu
a tocar e a construir.
Na infância, em Mato Grosso, contam que as crianças que se interessassem em
aprender a tocar o ganzá, começavam a construir primeiramente seu instrumento. Já aqueles
que quisessem tocar a viola-de-cocho iniciavam a execução noutro instrumento, a viola de
acuri.
O que se interessava na viola, pegava um talo de acuri e fazia uma porção de
cordinhas, colocava uma travessinha e começava a treinar pra tocar. [...] Acuri é um
coqueiro que dá aquele caixão pendurado. A senhora corta a folha dele lá, pega o pé
dele, vai nas costas dele ou na barriga dele e tira. Faz umas cordinhas e coloca um
pau aqui e outro aqui e toca! Pra treinar é uma violinha de acuri [...] Só que na
violinha de acuri não aprende a pontear, não aprende a afinar [...] O difícil da viola é
isso, afinar ela! (Bruno).
76
A viola de acuri era um instrumento artesanal, limitado pela ausência de um braço
sobressalente e sem o controle da afinação. O uso desse instrumento era um recurso para o
estudo inicial dos ritmos percutidos em suas cordas.
Tendo aprendido a brincar na violinha de acuri, Bruno iniciou sua breve experiência
na execução da viola-de-cocho, mas logo desistiu, devido à dificuldade com a afinação do
instrumento. Optou, então, pelo ganzá, com o qual brincou desde os 12 anos de idade, junto
ao pai, que o acompanhava na viola-de-cocho.
Eu não me interessava porque toda a vida eu achava aquele ganzazinho mais fácil.
Eu acompanhava ele na viola [de acuri] porque aquele você não precisa estar
afinando e a viola-de-cocho manda muito a afinação dela. Porque se souber tocar e
não souber afinar, nada feito! É, tem que saber afinar ela e pra quem não sabe, igual
a mim, acho que é difícil. Agora, pra quem sabe, é rápido, ele agarra ali e tom...
tom... tom... as cordas estão parelhinhas, cada uma num jeito. Já põe a primeira, a
segunda, a terceira, a quarta, já põe tudo no jeito de tocar. (Bruno).
A afinação é uma dificuldade constantemente apontada pelos tocadores de viola-decocho, quando aprendizes. Como também define Roberto:
Tocar viola não é difícil! O difícil é afinar a viola pra dar tudo certo a afinatura
[afinação] [...] as cordas tem que ser umas mais baixas do que outras porque ela da
mesma altura não dá som, não dá! Não dá diferença [...] porque se não souber afinar
a viola, não toca. Como é que vai tocar?
Bruno, como um não tocador de viola-de-cocho, demonstrou-se um profundo
conhecedor das práticas que envolvem o instrumento. Contou que, próximo das festas de
santo, saíam para caçar animais para fazer as cinco espessuras de cordas para a viola-decocho, confeccionadas com tripa de macaco, de boi ou de ouriço.
Até mesmo da cobra caninana era feita a corda. Retirava-se um nervo de seu corpo,
torcendo-o, para expor ao sol. Do porco magro era utilizado o intestino, mas se estivesse
gordo, inutilizaria a corda, arrebentando facilmente.
Outro agravante para a durabilidade das cordas, segundo Bruno, é o modo de ataque
das cordas na execução do instrumento. Há duas formas ou técnicas de execução usadas pelos
tocadores, ou dois tipos de tocador de viola-de-cocho: “[...] Tem gente que toca com essa
unha [dos dedos indicador, médio e anular] e essa unha, meia horinha já arrebenta a corda. E
outros tocam com esse [costas dos dedos] e não tem perigo de arrebentar.” (Bruno).
77
Tocador de ganzá desde a sua iniciação musical junto ao irmão Bruno, Roberto, há 4
anos, aos 67 anos de idade, começou a fazer aula de viola-de-cocho na casa de Lucas em
Ladário, aos sábados, mas ainda assim não sente-se seguro. Em sua infância, em Mato
Grosso, existiam tocadores experientes que se dedicavam a ensinar aos jovens a execução do
instrumento. No entanto, em festa ou numa comemoração eram impedidos, pois no momento
da roda de cururu somente os profissionais participavam. Tendo finalizado a brincadeira na
roda, os tocadores organizavam uma nova roda para a cantoria dos jovens, junto à orientação
do professor, o mestre cururueiro.
Na roda de cururu, o direito autoral das composições criadas pelos cururueiros era
respeitado com rigor. Conforme elucida Lucas, aquele que entrasse na roda de cururu para
cantar a toada de outro tocador seria expulso. Essa era uma condição própria do cururu,
aceita, naturalizada e vigiada pelos cururueiros na roda. Isso explica o discurso de que todo
cururueiro deve criar sua própria toada.
[...] você não podia cantá toada do outro, você tinha que ter o seu! Se você entrasse
num cururu e cantasse a toada do outro, o cara ia te tirar fora. Pode cair fora! Essa
toada é minha e você não pode cantá. Faz a sua. Então, o cara tinha que fazer a dele.
Então, assim que era o negócio! (Lucas).
Roberto chegou a Corumbá em 1973. Somente após aposentar-se do trabalho em
fazenda no Pantanal é que se aproximou da prática da viola-de-cocho, a convite de Carlos.
Persistente, Roberto, com pouco movimento do dedo médio da mão esquerda, o que
limita a articulação e a mudança de posição, fez 2 meses de aulas semanais em grupo com
Lucas. Segundo conta, aprendia como na brincadeira, sem hora determinada para parar. A
participação nas aulas em grupo permitiu-lhe perder o medo de se apresentar publicamente,
devido ao modo como se deu o processo de ensino e aprendizado não formal, como esclarece:
“[...] o que ele aprendeu eu aprendi e o que eu aprendi ele aprendeu.” (Roberto).
No aprendizado individualizado, o enfoque e a reação modificavam-se, pois ficava
reticente à opinião e constrangido em tocar em grupo com os outros tocadores. Em grupo, o
medo do público, de errar no momento de falar e tocar não aparecia. “Apresentar é
complicado, tem que estar firme [...] ensaiar pra poder apresentar bem.” (Roberto).
Assim como Roberto, Matheus, de 29 anos, também é exceção entre os demais
tocadores, pois tiveram orientação direta de um tocador na execução da viola-de-cocho. Ainda
assim, Matheus, diferindo-se dos demais tocadores, não teve acesso à prática da construção e
execução instrumental entre seus familiares. Aprendeu a construir a viola-de-cocho por volta
78
dos 19 anos, ao participar de uma primeira oficina, em 2002. Participaram dessa oficina 20
alunos selecionados em escolas públicas na localidade. Ele foi o único a terminar a formação.
Desde então, adotou o artesanato como profissão, tirando carteira de artesão,
confeccionando a viola-de-cocho e o souvenir na Casa do Artesão, para venda e
complementação de sua renda salarial.
Como a oficina não foi ministrada em todas as etapas, o que incluiria aprender o modo
de fazer e de tocar, Matheus não aprendeu a tocar viola-de-cocho.
[...] por isso que hoje eu tenho dificuldade, eu não sei tocar a viola-de-cocho ainda
direito. [...] A minha dificuldade é na afinação, primeiro passo pra aprender a tocar,
tem que estar afinada com o ritmo da outras violas. Porque na parte dos dedos, da
classe das casas, não tenho essa dificuldade, mais é de afinar e de pegar o ritmo.
O aprimoramento de sua técnica de construção da viola-de-cocho sucedeu-se através
de aulas com o artesão Alcides Ribeiro, na cidade de Cuiabá, em Mato Grosso, em 2007, com
o apoio da Fundação de Cultura de Corumbá. Com o artesão, Matheus conta que aprendeu a
fazer o acabamento da madeira e o “[...] design da viola [-de-cocho], o modelo, porque cada
artesão tem seu modelo.”
Como o aprendizado da execução da viola-de-cocho dificilmente se deu com a
orientação de um cururueiro mais experiente, geralmente os interessados em aprender a
executar o instrumento envolviam-se nas rodas dos tocadores para aprender a tocar. Conforme
Sérgio, “[...] pra ver, pra dançar, pra tocar, pra ver como é que era. Aí, gostava já ficava! Aí
não perdia uma festa.”
Construtores como Lucas, Marcos e Sérgio raramente confeccionam a viola-de-cocho
por falta de matéria prima, a madeira, e dos utensílios para escavação e acabamento do corpo
do instrumento. Problemática que também atinge Pedro e Matheus que, pela proximidade e
troca de conhecimentos sobre o processo de construção, reúnem-se na marcenaria da casa de
Pedro para construir violas-de-cocho com madeiras em diferenciados estágios de
amadurecimento.
A renovação provocada por Pedro na criação de suas violas dá-se não pela
manutenção e adaptação do tradicional modelo de construção do instrumento à condição de
uma sociedade moderna produtora de mercadorias, mas sim por vias que possibilitam sua
sustentabilidade ao reutilizar madeiras que talvez fossem descartadas pela ação do tempo.
Diferindo-se de outros artesãos que constroem a viola-de-cocho na localidade, Pedro
79
reaproveitava madeiras que, para muitos, estariam inaptas, seja por estarem secas, perfuradas
por brocas, com rachaduras, ou por terem sido cortadas na lua errada.
Devido às restrições das leis ambientais, os artesãos têm dificuldade de conseguir
madeiras para a construção da viola-de-cocho e a autorização para o corte de árvore. Assim,
têm utilizado constantemente cortes de madeira secas, doadas por amigos, ou cortes ainda
verdes, quando são derrubadas ou quando caem naturalmente e são disponibilizadas pela
prefeitura da cidade de Corumbá.
A viola-de-cocho confeccionada por Pedro diferencia-se das demais, por sua marca
pessoal, o S, fixado no braço do instrumento, presente também dentro de um coração com um
pequeno “s” fixado em seu interior e uma circunferência similar a um alvo fixado no tampo
do instrumento – um detalhe peculiar, a machetaria. Segundo Pedro, o que diferencia sua
viola-de-cocho é a marca que criou:
Sempre tem essa marca. Eee... quando ela está com essa marca aqui meio pouca,
mas tem uma letra “s”, um “s” feito de madeira bem aqui! [na divisão entre o braço
e o tampo da viola [-de-cocho]. E muitas vezes tem um coraçãozinho, aqui e dentro
dele coloco um essezinho de madeira encaixada.
Esses desenhos a que chamamos de marca surgiram justamente ao reaproveitar o corte
de madeiras ressecadas pela ação das altas temperaturas registradas na localidade e para
consertar as rachaduras provenientes da escavação. Assim, começou a adornar as
imperfeições do instrumento criando desenhos feitos de madeira, como cedro, angelim e
pinho, para inserir no corpo do instrumento.
Para construir uma viola-de-cocho, conforme os procedimentos tradicionais,
manualmente, com ferramentas rústicas como a enxó e o facão, Pedro levava, em média, de
um a três dias, em dedicação exclusiva. De acordo com a qualidade da madeira, verde ou seca
e da resistência de quem a construía, o instrumento poderia ser feito em até sete dias,
conforme Lucas. No acabamento da viola-de-cocho, os artesãos tinham utilizado lixa para uso
manual e também aparelhos elétricos, como lixadeiras e motosserra.
Os tocadores e artesãos não eram organizados em associação. Não existia espaço
físico para confecção continuada do instrumento ou equipamentos; não havia local específico
para exposição e venda da viola-de-cocho e souvenir, ou local para o ensino de novos
tocadores. Assim, as violas-de-cocho confeccionadas ocasionalmente por esses construtores
eram entregues, geralmente, a Matheus para que as vendesse a turistas, pelo valor de 200 a
350 reais. Havia casos em que o preço mínimo da viola-de-cocho atingia o valor de 100 reais.
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O discurso dos tocadores era repleto de contradições, que denotavam a
despreocupação de terceiros em deixá-los cientes dos objetivos e destino das atividades
realizadas com sua colaboração, como o uso das entrevistas e o direito de imagem, entre
outros.
Segundo Lucas, a maior dificuldade encontrada era a licença para fazer o corte da
madeira e a venda da viola-de-cocho.
E aqui você vai fazer o quê? Eu faço aqui e dependuro ali na parede, acabou! Perdi
meu tempo à toa. Vender pra quem? Lá, por acaso que aparece um: o senhor tem
uma viola [-de-cocho] pra vender aí? Tem! Aí compra aquele e aí acabou! Então, eu
faço só pra mim tocar, pra mim brincar, se divertir e pronto! Não tem como fazer
esse serviço. Já aí você se sustentar de viola [-de-cocho], não! (Lucas).
A última vez que conseguiu madeira foi ao cair uma árvore no portal de entrada da
cidade de Corumbá e Ladário, e autorizado o corte, pela prefeitura, para que fosse aproveitada
na construção do instrumento. Coube a Matheus cortar a madeira e dividir os cortes com
Pedro, Lucas e Sérgio. Suas violas-de-cocho eram vendidas pelo valor de 300 reais cada,
casualmente, quando por ventura aparecia um comprador.
É porque se fosse contínuo, tudo bem. Mas, não é! Principalmente, por exemplo, a
viola [-de-cocho], se for pra mim fazer aqui, só pra mim conseguir a licença pra tirar
essa madeira é um mistério muito grande, perco muito dia, perco muito tempo, é
demorado. E aí eu vou, faço essa viola [-de-cocho], faço uma, por exemplo, me dá
uma encomenda de três violas [-de-cocho] e aí, eu faço ela; aí eu chego e dependuro
aí, vou vender pra quem? Não tem pra quem vender. E é trabalhoso, não compensa
fazer isso. (Lucas).
Matheus encontrava-se em condição divergente quanto à restrição da matéria-prima
para a construção do instrumento:
A madeira nós não temos dificuldade, basta procurar o órgão competente, que é a
Secretaria do Meio Ambiente [...] e a bióloga já indica a árvore que a pessoa pediu
pra derrubar de uma casa de um terreno porque vai fazer uma construção. A única
dificuldade é o transporte da madeira e a pessoa pra fazer o corte. No caso, o órgão
competente só dá a liberação. E nós teríamos que ter uma pessoa do nosso grupo só
para fazer o corte.
Como era inconstante a obtenção da madeira para a construção e a venda da viola-decocho, esses construtores não conseguiam gerar renda fixa para sua subsistência. Sérgio
observou que as duas últimas violas-de-cocho que produziu foram vendidas após um ano, a
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turistas, por Matheus. Dessa maneira, sobrevive com sua aposentadoria ocasionada por um
acidente de trabalho que o impossibilitou de continuar atuando como pescador.
Foi construindo viola-de-cocho com facão que Lucas cortou seu dedo indicador. E
depois, ao trabalhar em fazenda, perdeu a metade do mesmo dedo, o que limitou a
mobilidade, abandonando a prática do violão. Da viola-de-cocho ficou afastado por anos, até
o momento em que conseguiu adaptar a sua técnica de mão esquerda para executá-la. “Eu tive
que treinar esse aqui [polegar], pra ficar no lugar desse [indicador]. No lugar que esse faz o
serviço [dedo indicador], esse aqui [polegar] fica fazendo.” (Lucas).
Como o dedo polegar faz a função do dedo indicador ao apertar as cordas, vinha
utilizando mais a afinação do canotio solto (4ª corda solta), que lhe dava maior mobilidade.
Com a afinação do canotio preso, o polegar passava por trás do braço do instrumento para
pressionar a 4ª corda e, consequentemente, a 5ª corda. “É não dá pra prender por causa do
dedo que fazia ele e esse daqui [dedo polegar] não dá pra chegar.” (Lucas).
O valor da viola-de-cocho construída por Matheus variava entre 250 e 350 reais, sem
um preço único para todos os instrumentos construídos em tamanho original, aqueles
utilizados para execução musical. A viola-de-cocho com pedestal pirografado vendia a 15
reais; o souvenir com uma caixa com vidro para colocar na parede chegava a 45 reais. O
trabalho era sempre feito por encomenda, num prazo médio para entrega que variava de 15 a
30 dias, pois as peças eram feitas nas horas vagas.
Bruno há pouco havia vendido três violas por 150 reais cada uma. Enfatiza: “A
senhora pode até fazer a viola [-de-cocho] rapidinho, mas às vezes não vem aquele pessoal
que se interessa comprar. Como que a senhora vai ficar?”
c)
apresentação
Para os tocadores da viola-de-cocho, festa é sinônimo de louvação ao santo de sua
devoção, comemorada com a brincadeira do siriri e o improviso trovado do cururu. As festas
eram organizadas pela comunidade ou irmandade, com a colaboração de todos, de diferentes
formas, como na preparação da comida e bebida para consumo irrestrito dos colaboradores
para com o promesseiro.
Todos os cururueiros faziam festa um na casa do outro, cantavam o cururu e dançavam
siriri. “Era em todo tipo de festa mesmo!” – comentou Roberto. Entre as festas em que os
tocadores participaram, estão: Nossa Senhora da Conceição Aparecida, Santo Antônio, São
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Pedro, São João, São Sebastião, Nossa Senhora de Santana, além de aniversários e
casamentos.
Festas como estas foram tradicionalmente organizadas pela população ou, como dizem
os tocadores, pela irmandade. A articulação dos indivíduos em irmandade ocorreu, conforme
Rocha (1997), como um meio de solucionar as dificuldades econômicas encontradas pelos
promesseiros na realização da festa para o santo de sua devoção e o pagamento de promessa.
Dessa forma, os custos com a realização da homenagem foram sendo divididos entre o
promesseiro e os demais participantes da festa.
[...] por isso eu creio que era tudo mais fácil de fazer, porque todos eram unidos e
todo mundo gostava daquela brincadeira. Cururu, principalmente, todo mundo
gostava de ver o cururu! Cururu de roda, cururu muito bonito! O pessoal sapateava
na levantação de mastro, assim como no São João, o pessoal passava no meio da
fogueira. Eu passei no meio da fogueira umas três vezes, eu passei no meio da
fogueira. E eu criei fé e eu falei: Meu Deus! Eu vou ter que passar no meio da
fogueira e eu passei. E os cururueiros que iam cantar também passavam no meio da
fogueira. Parece que está passando ali no pedregulho, mas não queima, não! Pode
passar. (Roberto).
Nas fazendas, as festas de santo eram organizadas por criadores ou fazendeiros. Como
tinham melhores condições financeiras, a festa durava uma semana, então, participavam os
peões da fazenda que sabiam cantar e tocar. O convite para festa era feito pelo promesseiro ao
percorrer a localidade com a bandeira do santo homenageado, quando também recebia
colaborações para a festa.
As festas como a de Santo Antônio, São João, São Pedro e São Sebastião, das quais
Lucas participou em sua infância em Várzea Grande, MT, eram organizadas pela comunidade
e tinham como motivo central pagar promessa e homenagear o santo de devoção.
Nós saíamos com a bandeira do santo, a procissão, levantava o mastro, voltava pra
dentro e mandava apagar as velas, cantando cada um no seu trovo, apagava as velas
e daí nós íamos. Outro cantava pra rezar, né! Depois da reza, aí parava tudo pra
rezar, tirava o terço e rezava, cumpriu a promessa. Aí, saía a nomeação dos festeiros
do ano, era: rei, rainha, juiz, capitão do mastro tudinho, aquela turma toda era pra
outro ano. No outro ano, já tinha o rei que trazia o boi, o capitão do mastro o mastro,
alferes de bandeira, a rainha, todo aquele juizado, não é! Tudo promesseiro dessa
festa. (Lucas).
As pessoas se reuniam junto ao grupo de tocadores e no momento da brincadeira se
revezavam durante toda a noite para ajudar a pagar promessa. Ali comiam, bebiam e
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brincavam. “Terminou e ele cumpriu a promessa dele, então, livramos ele. Então, só era
assim, não tinha apresentação.”, explica Lucas.
O termo apresentação aparece no discurso dos tocadores quando há a inserção de
aparelhos de reprodução sonora, como a vitrola e o rádio, que vão sendo adaptados às
cerimônias. O acesso à tecnologia no cotidiano e nas festas de santo era restrito. Não havia
baile, somente a brincadeira do cururu e siriri, como na festa de São José promovida pelo pai
de Roberto na região de Barão de Melgaço, em Mato Grosso.
Gradualmente, houve a introdução de aparelhos de reprodução sonora, como a vitrola.
De início, uma vez ou outra, permitia-se um espaço ao baile realizado ao som do aparelho,
conforme conta Roberto:
Meu pai, quando fazia São José, era siriri e cururu, às vezes lá na última noite é que
tinha uma vitrola, tocavam lá e dançavam, não eram muitos que sabiam dançar. As
meninas tinham vergonha de dançar esse negócio de baile, pra não abraçar. Tem
muitas coisas que deixam a pessoa acanhada e o siriri, não! E as festas eram todas
com cururu e siriri em semanas.
O baile é compreendido por Roberto como uma festa em que há inserção de aparelhos
de reprodução sonora e a execução de gêneros musicais diferentes dos habituais naquele
contexto, o que condicionava, também, a uma nova forma de expressão através da dança.
Além do siriri e cururu, o baile incluía música sertaneja: “Depois que terminava tudo a reza,
aí vinha o baile sertanejo. [...] O baile tocava música sertaneja caipira.” (Sérgio).
Essa reelaboração promovida pelo gradual acesso à mídia altera sutilmente o modo
como os indivíduos se relacionam e se manifestam, enfim, modifica as práticas culturais que
diferem e integram os indivíduos ao contexto social e econômico em que estão envolvidos
(IANNI, 1996).
Em algumas festas, a execução musical ou a brincadeira era dividida em salas
separadas por palha de acuri, reservando respectivamente uma sala para a prática do cururu,
do siriri, do baile e da reza. No salão de baile executava-se o rasqueado no violão, enquanto
que, na viola-de-cocho, somente o siriri e o cururu:
84
A música de antigamente que falavam rasqueado no salão de baile, porque hoje
mudou um pouco porque fala chamamé, outros falam polca. Lá era rasqueado,
música antiga. Mas a maioria não tinha esse negócio de vanerão, quando tinha era a
valsa, tocava valsa, mas mais era rasqueado. E mais, era no violão, no violão sem
nada, porque lá nesses 22 anos nós não conhecemos geladeira e nem tomava água e
nem nada. Não tinha televisão também! Para escutar alguma notícia, pra nós era o
rádio, com rádio a pilha ouvíamos rádio de toda a parte, até do Paraguai. Chegava 4
ou 5h da tarde colocávamos uma antena com taquara cumprida com fio, ouvíamos
rádio até do Paraguai só rasqueado, só chamamé, então, nós ouvíamos de lá. [...]
Tinha lugar que não tinha música, nós dançávamos com música de rádio. A rádio
fazia um pouquinho de propaganda e voltavam a tocar, a turma fazia festa. (Marcos).
Na sala do siriri, a viola-de-cocho era acompanhada pelo tamborim ou tamboril, hoje
chamado de mocho. Quem convidava para a dança em Poconé, MT, eram as mulheres
trajadas com roupas enfeitadas ou, enquanto os homens cantavam, as mulheres respondiam.
Mas, conforme Marcos, a dança não ocorria como uma brincadeira de roda, como as
registradas na Festa de São João de Corumbá.
Já na sala do cururu, “dificilmente você via uma mulher cantando cururu na época. No
meio dos cururueiros, dificilmente!” (Marcos). Como a participação da mulher no cururu não
era comum, elas sentavam-se para assistir à cantoria do cururu, de maneira que a prática do
cururu foi se restringindo aos homens. Raras eram as mulheres que se dispunham à
brincadeira do cururu junto aos cururueiros, como a mãe de Bruno, que era cururueira.
[...] ela pegava viola [-de-cocho], ela tocava. Ela pegava o ganzá, ela tocava. Falava:
eu quero que canta tal toada! Que é uma toada que a gente faz. Porque o cururu a
senhora quer uma toada, a gente faz na hora. Não precisa de estudo, não tem que
fazer pesquisa pra fazer, não! A senhora faz uma toada na hora. E a minha mãe
fazia! E agora acabou, essas mulheres não querem mais.
A participação feminina na execução na roda do cururu não é consenso entre os
tocadores, que divergem entre a rejeição expressa na reprodução do discurso familiar, em seu
posicionamento como tocador ou mesmo num posicionamento moderno, de que não existe
rejeição ou preconceito em relação à participação feminina. Para Matheus, não há mulheres na
prática, pois: “Como são só homens, tem mais é bagunça! Então, eles tomam ali sua
pinguinha e começam a brincadeira entre eles.”
Quando o cururu era pouco reconhecido nas localidades de Corumbá e Ladário, MS,
Roberto conta que os tocadores apresentavam-se nas imediações com pequenos grupos, como
o seu, formado por outros dois tocadores, entre eles Carlos, na viola-de-cocho e Bruno, no
tamborim ou tamboriu. “Nós tirávamos o siriri e fazíamos a moçada dançar!” (Roberto).
85
Participavam de festas como a de São João, no dia 23 a 24 de junho e no dia 29, na
Festa de São Pedro organizada por um padre no Bairro Cervejaria, em Corumbá, até o ano de
2009. Atualmente, a homenagem a São Pedro é feita exclusivamente com a bandeira do santo
que percorre a ladeira ao barco, onde é fixada.
Em Ladário, no Bairro Alta Floresta, acontecia a festa de São Gonçalo, feita pelo
tocador Néquinho, para pagar promessa. “Ele fazia São Gonçalo, então, era promessa dele.
Todo ano nós brincávamos lá e ajudava ele cumprir a promessa, rezávamos, nós brincávamos
o cururu lá. Aí morreu também e acabou!” (Lucas).
Também numa região de Corumbá, conhecida como Barro Preto, era feita a festa para
Santa Ana ou Sant’Ana, quando também efetuavam o levantamento do mastro no momento
da louvação:
Aqui no Barro Preto, também tinha São João e tinha outra festa, eu não lembro qual
que era... Sant’Ana, também tinha o mastro pra subir! Então, quando era época de
carnaval, tinha até um... um grupo que saía cantando cururu, levava a...a noiva, o
noivo numa carrocinha era aquela coisa que eles faziam, aquele blocozinho com
viola-de-cocho! Quer dizer que era uma tradição de Corumbá e isso foi... foi
acabando, foi acabando eee... não ensinou mais outros. Se continuassem aquelas
festas desse jeito, teríamos muitos cururueiros novos! Mas parou... pra quantos anos
que faz isso, oh....! (Pedro).
Até o final de 1960, a festa de São João de Corumbá foi noticiada nos jornais
impressos locais como um evento central do calendário festivo da cidade, conforme Sigrist
(2005). Em 1970, um novo estilo de vida foi instaurado com a chegada da televisão na região,
influenciando um novo hábito no cotidiano dos moradores (SIGRIST, 2005; 2008). Verificase, então, que tanto a mídia quanto os novos espectadores envolvem-se numa constante
fetichização e apropriação da cultura popular como um recurso mercadológico nesse novo
complexo, enquanto a população se adapta aos novos valores estéticos noticiados pela
televisão.
Ao encontro desse processo, a “[...] Secretaria de Cultura de Corumbá absorve a festa
do espaço público como um acontecimento cultural e, portanto, um atrativo para o turismo.”
(SIGRIST, 2005, p. 12). Assim, após dez anos do acesso à televisão pelos locais e da exibição
da Festa de São João em plano estadual, em 1980, iniciou-se o gradual desenvolvimento
turístico da cidade de Corumbá (ibid.).
Dessa forma, a realização dessa festa, no contexto histórico-social e cultural da
localidade, veio sofrendo não somente com as transformações econômicas, como também
com a interferência da disputa de forças nascentes, conforme Rocha (1997). Nas fazendas, a
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festa de São João prosseguia, mas na cidade, o “poder público e grupos eruditos” davam os
primeiros sinais das modificações provocadas na manifestação popular, atuando “[...] desde a
intromissão de elementos provenientes de camadas não populares, até a repressão oficial.”
(ibid., p. 66).
A brincadeira realizada pelos tocadores das imediações de Corumbá e Ladário ficou
por muito tempo esquecida na localidade. A retomada da prática da viola-de-cocho e da
brincadeira em grupo pelos cururueiros foi revigorada, segundo Lucas, com o incentivo da
professora e pesquisadora Eunice Ajala Rocha 11, que reuniu os tocadores de Corumbá e
Ladário, formando um grupo de tocadores remanescentes. “É ela que foi a fundadora desse
cururu aí!” – comenta Lucas.
[...] Essa dona Eunice que levantou esse cururu aqui em Ladário. Ela procurou por
nós aí tudo! Inclusive ela chegou mandar uma turma cantar em Brasília, coisa e tal.
Na época dela que surgiu esse grupo aqui que estava tudo morto aqui, ninguém sabia
de nada. Foi ela que levantou o cururu aqui em Corumbá! Essa dona Eunice.
(Lucas).
Desse modo, o que até então foi compreendido como uma brincadeira realizada em
festas promovidas pela irmandade tornou- se uma prática pública em apresentações, a partir
do momento em que os tocadores passaram a se apresentar em grupo nas festas locais,
organizadas pela prefeitura e em eventos diversos. A apresentação, no discurso dos tocadores,
é um termo ainda recente, que designa a prestação de serviço mediado por um acordo verbal,
que chamam de contrato.
Há, no discurso dos tocadores, o desenvolvimento da prática da viola-de-cocho tanto
como manifestação lúdico-religiosa, devocional, quanto o entendimento da apresentação
como uma representação dessa prática.
Como o motivo central da organização não é exclusivamente a homenagem ao santo e
ajudar a pagar promessas, mas sim uma relação comercial, como mencionou Lucas, a
execução se profissionalizou, pois deixaram de atuar gratuitamente na festa de São João de
Corumbá, em específico. Assim, quando a festa onde se faz a apresentação não é para
“cumprissão de promessa”, como sugere Lucas, determina-se o valor de seu cachê, pois é
somente uma relação comercial.
11
Foi Secretária Municipal de Educação e Cultura do Município de Corumbá, de fevereiro de 1984 a dezembro
de 1985 (ROCHA, 1997).
87
Aqui nós pegamos o santo aqui em cima e vamos acompanhando até a hora de
levantar o mastro. Levantou o mastro, está encerrado. O contrato deles com a gente é
pra erguer o mastro e dançar o siriri, tocou o siriri pra dançar, [...] encerrou. (Lucas).
A festa na região assume características próprias. Na descida da ladeira para banhar o
santo no rio Paraguai, há o acompanhamento de uma banda de metais, diferentemente da
região em que Bruno nasceu: “A única coisa que é diferente lá do nosso lado é que a gente
leva o santo na água pra tomar banho cantando e aqui é com música, não é! Vai andando e
cantando com o São João, o pessoal com aquela banda tocando, não é.”
Gradativamente, a festa ganha formas e modificações que caracterizam e diferenciam
a festa da localidade, desde a forma de realização da louvação a execução da dança do siriri,
similar à quadrilha tradicional da festa junina. Isso acontece, segundo Pedro, por falta de
professor, de ter alguém para instruí-los:
Muitas vezes a gente vê dançando o siriri é uma quadrilha. Ela tá diferente do siriri
original. Quem não conhece meio que se mistura mesmo, mas quem conhece mesmo
bem, vê que tá alguma coisa. Mas eu não acho que é tão errado isso não, o
importante é que esse grupo jovem venha entrar nisso aí, porque é uma coisa, tanto
faz quadrilha ou o cururu, é nossa música tradicional, nossa brincadeira tradicional
de nossas festas. Então eu não acho que isso aí vai estragar ou não deveria de ter,
não. Poderia até continuar mais ainda! Mas ela sai um pouquinho, sai um pouco fora
do ritmo mesmo.
O ritual profano-religioso flexibilizou-se segundo as condições impostas pelo
crescimento econômico e o acesso aos novos meios de comunicação, inicialmente através da
inserção de aparelhos de reprodução sonora durante a realização das festas aos grandes shows.
Junto à festa, a prática acústica da viola-de-cocho foi adaptada por seus tocadores, ao
perceberem que seriam sufocados pela propulsão sonora das apresentações musicais com as
quais compartilham o mesmo espaço. Assim, foi inserida captação sonora ao instrumento ou
utilizado microfone de lapela para execução do siriri no palco.
Todos os sujeitos entrevistados apresentam-se em conjunto, anualmente, no Arraial do
Banho de São João de Corumbá 12, participando desde a descida com o santo pela Ladeira
Cunha e Cruz ao banho do santo e cantoria para levantamento do mastro.
Para essa atividade, os tocadores recebiam, da Fundação de Cultura de Corumbá, um
cachê que variava entre 350 e 1.000 reais, de acordo com o instrumento que cada tocador
12
Nome utilizado no material de divulgação do período de 2009 a 2011. O título mescla o “arraial” das danças
das quadrilhas com o banho do santo. A festa é reconhecida, também, como a Festa do Banho de São João ou
Festa de São João de Corumbá.
88
executava e sua função. Por exemplo, os tocadores de ganzá recebiam 200 reais, os tocadores
de viola-de-cocho, 300 reais e os mestres cururueiros Carlos e Lucas recebiam o maior valor
pago, segundo Matheus. Como a renda é indireta, não conseguiam se sustentar com as
apresentações.
Marcos explicou que: “[...] normalmente, você não pode dizer que não quer, porque
não tem outra opção. Você participa porque você gosta, pra ficar perto dos companheiros, dos
amigos.”
Para o tocador Matheus, o lugar da viola-de-cocho é o Banho de São João. Ali existe
um significado ou um simbolismo para que cada tocador homenageie seu santo de devoção,
ao descer a ladeira tocando a sua viola-de-cocho.
E o significado maior é porque a erguida do mastro é com a viola-de-cocho. [...] Na
descida do andor é feito uma fila dos cururueiros, no caso eles descem todos
puxando a descida do andor no banho do santo. Eles tocam nesse momento, tem
outros músicos, mas eles tocam nesse momento da descida do andor e na erguida do
mastro. Tocam até a descida do rio para dar banho no santo e depois na erguida do
mastro. (Matheus).
Para muitos tocadores, esse foi o primeiro e único evento em que se apresentam na
cidade, dada à demarcação histórica e social do festejo.
Participando da louvação do santo e do levantamento do mastro, junto aos tocadores
de viola-de-cocho, no São João de Corumbá, Lucas observou inversões na disposição das
funções de cada indivíduo no levantamento do mastro: o capitão do mastro era representado
pelo secretário da Fundação de Turismo; o alferes da bandeira, pelo prefeito; e a coroa era
responsabilidade de um deputado, atual prefeito da cidade.
O capitão do mastro é... sempre foi o Carlos Porto [Fundação de Turismo], que
sempre esteve como capitão do mastro. Aí é ele que arruma o mastro. Aí, o Ruiter
[prefeito] é o alferes da bandeira. Ele carrega a bandeira. Ele desce já com a
bandeira. Aí, o da coroa é esse que foi prefeito agora... [Paulo Duarte]. Isso! Ele que
vai com a coroa e o alferes da bandeira é o Ruiter. Nós somos os promesseiros pra
levantar o mastro. (Lucas).
Essa intervenção pode ocorrer devido à idade já avançada dos tocadores e à pouca
receptividade dos mais jovens em assumir essa função. Conforme Lucas, os responsáveis pelo
procedimento de inserção da bandeira do santo no mastro, a coroação e o levantamento do
mastro têm sido historicamente realizados pelos tocadores de viola-de-cocho ou pelas
89
rezadeiras, como também informa Rocha (1997). Além disso, quem realiza a festa define as
funções, nesse caso, o festeiro, diz Lucas.
Quem desempenha a função de capitão do mastro, alferes da bandeira e a coroação do
santo é quem “o festeiro designar!”, afinal, ele é quem realiza a festa e, nesse caso, o festeiro
era Heloísa Urt, então diretora-presidente da Fundação de Cultura de Corumbá, informou
Lucas. “É ela que decidia tudo ali, desde a descida; aquele bonecão que descia também ela
que decidia. Então, agora não sei esse ano quem é que vai comandar essa história” (Bruno). O
bonecão a que se refere é similar aos bonecos gigantes utilizados no carnaval da cidade de
Olinda, Pernambuco.
Como no levantamento do mastro participa qualquer pessoa, segundo Bruno, essa é a
ocasião em que os políticos locais executam o levantamento do mastro. Dessa maneira os
representantes políticos municipais intervêm nessa execução, desvinculando a cerimônia
lúdico-religiosa dos tocadores para a encenação política. Então os promesseiros, que são os
cururueiros, cantavam para o levantamento do mastro:
Os promesseiros pra levantar o mastro. Aí depois que chegamos lá nós fazemos
nossa roda ali no pé do mastro onde ele está, aí nós cantamos pra colocar a bandeira,
aí depois outro canta pra colocar a coroa, aí outro canta autorizando pra levantar o
mastro. (Lucas).
Em seguida, a organização da festa selecionava três ou quatro tocadores, entre os dez a
doze tocadores que compõem o grupo de cururueiros, para apresentar-se alternadamente num
curto espaço de tempo. Entre os tocadores selecionados, está Carlos, representando Corumbá,
fazendo a abertura da cantoria; seguido por Lucas, representante de Ladário, finalizando com
a apresentação conjunta aos demais tocadores na execução do siriri. “Mas todos os violeiros
[tocadores] sabem, mas eles ficam de fora, assim que funciona aqui. No cururu, não! No
cururu todos participam e todos podem cantar.” (Marcos).
Os tocadores não se reúnem para ensaios contínuos. Em geral, o fazem de última hora,
quando chamados por Matheus, o representante da Fundação de Cultura junto ao grupo.
Assim, pessoas que não tocam se apresentam junto ao grupo, conta Bruno: “Eles não pegam o
som da viola [-de-cocho] e fica muito ruim. [...] Não sabem o que estão fazendo, mas está ali.
Tudo é uma participação, mas está errado porque, além de tudo, uma coisa que pode ser
bonito, já sai tudo de qualquer maneira.”
São diversas as dificuldades enfrentadas pelos tocadores da viola-de-cocho que os
conduzem a desistir dessa prática. Entre elas, podemos citar: a mudança de religião, a falta de
90
apoio e recurso financeiro para locomoção, a idade avançada e a pouca receptividade do
público.
Diante dessa contradição expressa entre o abandono da prática musical e a resistência,
os tocadores têm buscado seus próprios meios de se contrapor contra a exclusão gerada pela
produção cultural da indústria musical brasileira e pela mídia de acesso diário, apresentandose em grupo ou até mesmo solo, em escolas e eventos.
Pedro, por exemplo, começou a se apresentar após insistência da então presidente da
Fundação de Cultura de Corumbá, para que aceitasse gravar uma reportagem para a Rede
Globo, junto a outros tocadores. “Assim mesmo eu não queria, porque eu tinha vergonha.”
disse Pedro.
Em 2012, participou do VII Encontro e Feira dos Povos do Cerrado, promovido pela
Rádio Terra, em Brasília e fez sua primeira apresentação sozinho. Comenta Pedro: “Nunca fiz
apresentação, assim! Eu levei, levei susto! Quando eu fui pra Brasília, que tinha que cantar.
Eu levei um susto!”
Como aprendeu a tocar viola-de-cocho sozinho e teve pouco contato com os
tocadores, já que os “mais velhos que são bons!” e pelos quais possui imenso respeito, não se
sente seguro em relação à sua prática e à receptividade do público.
Porque tive pouco contato com os senhores mais velhos que são bons, que... eu
entrei numa roda grande pra cantar. Entrava, mas era uma roda só de rapazinho
novo, que... julgava que sabia, mas estava fazendo barulho, não é? E agora, com
quem já é professor essas coisas, já é mais difícil um pouco. [...] Mas, sempre que eu
saio por aí, que apresento... que vou cantar, o pessoal aplaude! Agora, não sei se
aplaudem pra não me deixar com vergonha ou... (Pedro).
Apesar de sua dificuldade de tocar em público e acreditar que o seu conhecimento não
se equipara ao conhecimento dos mestres tocadores, tem se apresentado anualmente na Festa
de São João de Corumbá e em outras atividades indicadas pela Fundação de Cultura de
Corumbá.
Entre 14 e 17 de setembro de 2006, Lucas foi enviado a Brasília para participar do I
Encontro Sul-Americano das Culturas Populares e do II Seminário Nacional de Políticas
Públicas para as Culturas Populares. Na ocasião, teve que se apresentar sozinho, pois não foi
concedido recurso financeiro para enviá-lo com mais dois companheiros. “E tem outra coisa,
eu fui com ooo... levei três violas [-de-cocho], o que me socorreu esses dias tudo que eu
estava lá foi que eu vendi essas violas [-de-cocho]! Eu fui com 150 reais, só pra aguentar
todos esses dias lá.” (Lucas).
91
Em Ladário, até o ano de 2010, Lucas manteve um grupo de siriri com seus familiares,
chamado Renascer. Fizeram uma participação no 2º Encontro de Cururu e Siriri do Pantanal
de Corumbá ou 2º Encontro de Cururueiros, durante a Festa de São João de Corumbá, em
2010. Mas o grupo acabou, pois alguns integrantes mudaram de religião e não mais
concordam em participar da brincadeira e da louvação ao santo.
Eu formei um grupo aqui em Ladário chamado Renascer, estava bom! Participamos
uma vez no ano retrasado [2010], se não me engano no São João em Corumbá. Aí,
oh! Desfez o grupo. Um passou pra crente, outro não sei o quê! Porque era crente
não podia dançar o siriri. Eu sei que acabou! E estava beleza! Nós treinávamos
sábado e domingo, estava no jeito. Acabou! Então, assim que acontecem as coisas.
Eu tenho aí o livreto das modas do siriri e tenho o mocho, que eu já fiz desmontável
pra viajar com ele: desmonto ele e enfio no saco. Tenho ganzá no jeito, tudo no
jeito! Isso era pra tocar o siriri com essa turma de Ladário que acabou... acabou.
(Lucas).
Roberto é um caso singular. Mesmo tendo mudado de religião, prosseguiu com a
prática e as apresentações junto aos tocadores Lucas, Bruno e Sérgio, na execução do siriri
para os dançarinos da Oficina de Dança de Corumbá.
Eles me disseram que, depois que entra pra igreja, essas festas não pode. Eu falei:
mas esse aí eu participo desde muito tempo e já venho participando de festival e eu
recebo esse dinheiro dali e é uma ajuda pra mim. Eu falei: eu peço perdão pra Deus
e vou lá! [...] Se for da vontade dele eu vou e se não for, que me tire desse caminho e
pronto! Mas ele tem me dado bastante oportunidade e não tem me impedido ainda,
estou livre ainda.
Segundo Roberto, é difícil sobreviver apresentando-se na localidade, porque o preço
que pagam não compensa. Com a construção do reco-reco não tem retorno financeiro, pois é
para presentear seus amigos. “Mas não dá pra se sustentar, porque aqui não tem um comércio
pra isso! Aqui não tem. Até pra se sustentar com a viola, essas coisas não dá! É uma ajuda.”
(Roberto).
Noutras circunstâncias, a extração da mais-valia do objeto produzido conduz o artesão
a não mais confeccionar os instrumentos musicais: “[...] não querem pagar e a procura é
pouca. E às vezes aparecem pessoas que querem levar pra ganhar lá na frente.” (Roberto).
Além disso, não existe estrutura que mantenha essa prática da construção da viola-de-cocho e
de seus instrumentos acompanhadores. “O mercado aqui é muito fraco! Não tem um mercado
forte, parece. Eu não sei lá fora.” (Roberto).
92
Lucas e Carlos, esses são maduros já na cultura né, eles já têm um conhecimento da
coisa. Eles sabem fazer a viola, sabe tudo da viola, da onde que veio, como começou
aqui em Corumbá. O Carlos sabe disso daí, ele que diz que trouxe isso daí de lá de
Cuiabá pra cá, não sei se é isso. A gente fica ali, não vai falar nada! [...] Todo esse
siriri, toda essa moda de siriri ele falou: esse fui eu que fiz! Mas eu tenho
conhecimento que já quando eu era guri, eu ia cantar essa música Mamãe Olha
Carneiro, Marrequinha da Lagoa, O Engenho Novo e outros siriris! Ele falou que ele
que trouxe, mas eu não sei. (Roberto).
Hoje, se entendermos a execução dos instrumentos musicais e as apresentações como
trabalho, entendemos também como um trabalho alienado, pois é, em determinadas
condições, uma perda em si.
Quanto à participação na festa de São João na cidade de Ladário, Lucas conta ter sido
vaiado por jovens que assistiam:
Apresentamos uma vez só aqui em Ladário, assim mesmo, ainda tivemos que... até o
cafezinho nós tivemos que pagar. É! E depois é o seguinte, nesse São João aqui
mesmo de Ladário, na hora que nós estávamos cantando, nós fomos vaiados e aí
nesse São João. E na frente da igreja, ainda fomos vaiados ali. Daí saímos e nem
terminamos aqui, não levantamos mastro nem nada, largamos e fomos pra Corumbá,
pegamos ônibus e fomos embora.
Além da pouca receptividade do público local, a construção e a venda das violas-decocho produzidas pelos tocadores trazem outra dificuldade constante.
Porque não tem espaço, nós não temos um setor exato. Como eu vinha dizendo, nós
não temos onde vender, nós não temos, por exemplo, as pessoas que ajudam que
mexem com cururu são poucas. Então, a gente vai afastando... vai afastando do
assunto. Só lá por acaso, que parece que a gente entra no assunto, mas não é como
antigamente que era bom, que tinha bastante não é aqui? E sempre promovia,
chegava dia de sábado quando não tinha nada pra fazer dia de sábado, nós fazíamos
nosso treino conjunto. Aí tinha o finado meu cunhado, juntava lá e brincava, era o
siriri era o cururu tudo! Quer dizer que o prazer era imenso, né. Hoje em dia, não!
Está difícil, está acabando de uma vez. (Lucas).
Sérgio tem preferência em tocar o cururu, apesar de tocar o siriri, mas não gosta. Tem
participado da Oficina de Dança, tocando o mocho ou então, o ganzá; mas salienta que: “Mas,
assim gostar igual à Lucas... Lucas tem o mocho, tem tudo em casa e eu não, só a viola!”
Agora, na execução do cururu é diferente:
93
Ah! É uma diversão pra mim, né! Porque aquilo pra mim é um... Poxa! Eu estava
num cururu, eu não tô pensando em nada. Estou pensando só é cantar, aquela alegria
pra mim, me sinto bem! Pra mim parece que eu tô pensando só ali, naquilo ali! Até
Pedro às vezes fala: Poxa! Fizemos uma entrevista uma vez, aí ele falou pra mim né:
O quê? Você sabe mais coisas do que Carlos! Eu falei: eu sei muita coisa, mas eu
não gosto de falar, né. Não tenho necessidade de falar, mas você é meu amigo e eu
passo pra você. E eu sempre passo as coisas pra Pedro. Já pra Lucas, não! Ele não
aceita. Ele não aceita. Ele não aceita, ele quer ser o maior. Aí é onde... não pode!
(Sérgio).
Apesar de conhecer muitas músicas, Sérgio inventa ou improvisa na hora, para elogiar
ou quando é ofendido por alguém. Ele diz: “[...] eu sou capaz de cantar um trovo. É tudo
trovado!” E para isso, precisa de um companheiro para trovar.
Atualmente, a festa de São João na localidade tornou-se um evento turístico,
integrando o calendário festivo. Seu preparo depende fundamentalmente da organização da
prefeitura.
[...] ocorre na época de mudança de prefeito, de secretário também, porque cada
secretário e presidente da Fundação de Cultura ou prefeito, cada um tem a cabeça
diferente. Então, essas mudanças deveriam colocar pessoas que gostam de tudo, que
entende sobre o que é cultura. No caso aqui, no ano que vem o prefeito, no caso ele
entende um pouco de cultura, no caso a secretária teria que ser alguém que entenda
um pouco de cultura também. Mas assim, espero que não ocorra muita mudança,
mas geralmente as mudanças ocorrem nessa época de passagem de governo
municipal. (Matheus).
d)
ensino
O ensino da viola-de-cocho vincula-se à preocupação de não ver a cultura morrer e ao
cuidado de possibilitar a continuidade da execução instrumental, por intermédio de novos
tocadores. Em geral, esse processo foi desenvolvido sem que se estabelecesse relação
econômica para subsistência, mas também, com essa rara finalidade.
Há poucos registros entre os parentes dos tocadores que tenham se interessado em
aprender a tocar e a construir a viola-de-cocho. Geralmente, os tocadores ensinam àqueles que
os procuram em apresentações ou em casa.
Entre os oito tocadores com os quais conversei, foram identificadas três condições
contrastantes de dificuldades e possibilidades práticas do ensino da construção e execução da
viola-de-cocho. Em primeiro, a condição como profissional em que se encontrava Carlos;
segundo, a possibilidade da prática profissional como construtores e a ação colaborativa entre
94
Pedro, Lucas e Matheus; e, por último, o distanciamento de Marcos, Sérgio, Roberto e Bruno,
que desenvolvem suas práticas em separado.
No atual contexto mundial, em que uma parcela da população tem acesso à mídia e em
que, também, o processo de tecnificação ou racionalização da produção de mercadorias
alargou os patamares de tecnificação, as artes, como a música, passam por um processo de
homogeneização da produção cultural, por meio do acesso à produção mundial. Dessa
maneira, subsistir, gerar renda, ou mesmo complementar a renda salarial com a produção
musical em pequena escala e com gêneros não afamados pela indústria cultural tornou-se um
artigo de luxo.
Nesse espaço, e com certo grau de isolamento, Carlos possuía situação confortável em
relação aos demais sujeitos, pois era contratado por uma instituição, o Instituto Moinho
Cultural Sul-Americano, e podia ficar à disposição para atuar quando chamado.
Só vou tocar no Moinho. Eu sou funcionário do Moinho! [...] Eu ganho do Moinho
por mês. Todo mês eles me pagam aqui! [...] Eles me pagam quinhentos “cruzeiros”
[reais]! Eles me buscam aqui, me levam lá, eu ensino, toco, canto, faço e eles me
trazem aqui!
Uma posição de certa forma confortável, pois é reconhecido por ser o mestre
cururueiro mais velho, respeitado pelos demais tocadores e uma figura pública. Apesar da
idade já limitar o vigor para sua atividade como tocador em apresentações, não há
dificuldades quanto a se sustentar com a prática da viola-de-cocho como cururueiro, no ensino
da brincadeira do siriri e do cururu, ou em performances. Como avalia Marcos, é Carlos o
representante da viola-de-cocho em Corumbá.
Foi “pelo prazer de não deixar acabar” a execução do instrumento que Lucas começou
a transmitir seus conhecimentos a novos tocadores. Sempre procurado por pessoas que se
interessavam em aprender a executar a viola-de-cocho e como não existia relação comercial
de troca ou venda do instrumento ou por aula, ensinava gratuitamente, tudo feito em favor da
continuidade desse saber. A satisfação era ver aquele que já tivesse ensinado tocar, brincar e
dançar.
95
Muitas vezes, o camarada não sabia fazer, mas queria brincar e aí pedia pra gente:
faz uma viola [-de-cocho], eu compro de você, né! A gente fazia pra ele e muitas
vezes, nem vendia, dava pra eles! Não tinha negócio de preço e nem coisa nenhuma.
Eu fazia viola [-de-cocho] pra fulano lá, chegava, agradecia e estava tudo bem! O
importante é que ele muitas vezes nem sabia brincar, mas tinha vontade e queria. E
com o que a gente incentivava era uma boa, porque dava um cururueiro bom,
quando ele estivesse numa festa o cara estava cantando e tocando. Era a alegria que
a gente tinha. (Lucas).
Lucas ensinou muitas pessoas a tocar viola-de-cocho. Entretanto, após ver as
dificuldades enfrentadas por seus amigos Carlos e Severino ao ministrar a primeira oficina de
construção da viola-de-cocho13, em 2002, desmotivou-se dessa prática. “Eu fui visitar eles e
estavam uma média de 18 pessoas e no final das contas ficou só Matheus, o resto foi saindo,
saindo, só ficou ele. Não aprendeu tudo, mas está no jeito!” (Lucas).
Essa restrição não o impediu de ensinar a construir a viola-de-cocho, de novembro de
2012 a fevereiro de 2013, na segunda oficina de construção da viola-de-cocho, primeira
realizada junto ao IPHAN de Corumbá, como parte do Plano de Salvaguarda da Viola-decocho. Junto a Lucas, estiveram Matheus e Pedro ministrando as oficinas. Cada tocador
recebeu 200 reais por aula, para ensinar sua técnica de construção, a cinco alunos por oficina.
Todo equipamento, material e transporte dos alunos e dos tocadores foi de responsabilidade
do IPHAN; e, também contou, com a parceria da Secretaria de Meio Ambiente, que forneceu
a madeira para a construção das violas-de-cocho.
A oficina teve como objetivo específico ensinar aos meninos e meninas a construir o
seu próprio instrumento para, então, aprender a executar as toadas de seus mestres Lucas e
Pedro.
[...] a gente vai ter que emprestar uma da gente, pra ele praticar naquele pra ver se
ele pega. Ele tem que aprender a tocar, tocar e cantar, e o batido, ele tem que ter o
batido certo! Ele tem que pegar aquele ritmo e o batido certo. Então tudo isso! Pra
ele tocar, pra ele cantar também, ele tem que cantar no ritmo da viola [-de-cocho],
do batido, porque se ele pular, aí ele destronca tudo. Então tem tudo isso pra ele
fazer. (Lucas).
Apesar de encontrar soluções próprias junto aos tocadores, Lucas demonstra
preocupação com a aprendizagem da execução da viola-de-cocho no que diz respeito à
execução do ritmo e das toadas simultaneamente.
Outro fator é a desistência dos alunos e a continuidade dessa prática na região de
Corumbá e Ladário. O medo evidenciado no discurso de Lucas é também causado pela pouca
13
Essa oficina culminou na publicação do Viola-de-cocho Pantaneira (2003).
96
resistência dos alunos no momento de escavação da viola-de-cocho, principalmente as
meninas, que logo davam espaço para que o mestre continuasse a escavação. Outro elemento
apontado foi o número de aulas e sua duração. Para ele, são insuficientes para aprender a
construir e tocar.
O meu medo é que seja a mesma coisa que aconteceu com eles. Porque o cururu é
pra quem tem interesse, empenho e gosta! Senão, nada feito. E assim mesmo, nós
começamos está 15, tem dia que só aparece 5, já começou o fracasso por aí. Deus
ajuda que chega pelo menos no final com 4 que interessa. O projeto é bom! Eles
querem que aprendam de tudo até... a dançar o siriri. Bom, a meninada está
interessada, vamos ver se vai chegar até lá! Mas, eu espero que sim, senão vai
acabar a brincadeira. (Lucas).
Os alunos acompanharam, na primeira aula, o corte ou a tiração da madeira, segundo
Lucas.
Estão desistindo. Eu acredito assim, o começo foi muito bom, desde a tiração da
madeira, estavam tudo com bom apetite, com vontade, né. Aí, já tá fracassando! Já
tem oficina que só chega cinco, já; de 15 já, né! Quer dizer, que já está uma grande
diferença. E depois é o seguinte, outra que eu acho que... é muito curto o prazo, três
horas, só duas vezes na semana. Até pra gente é ruim, porque você começa a viola [de-cocho], ela é pra você começar e terminar. Você começa ela e para ela quando
você vai começar, aquela madeira já secou, vão começar a escavá-la e já trinca, já dá
defeito porque é uma madeira que já tá ruim. Agora mesmo, paramos lá hoje, só dia
7.
Anterior à realização dessa oficina, a Fundação de Cultura de Corumbá organizou uma
oficina com os tocadores de viola-de-cocho, junto à Banda Municipal Manoel Florêncio, para
formar novos tocadores. Para Lucas, como esses participantes eram músicos, não possuíam
dificuldade na afinação, na execução e em conciliar os estudos com as aulas da oficina de
construção.
Ia entrar gente que já estava mais ou menos mexendo na música. Quer dizer que ia
facilitar grande pra gente! Melhoria. Inclusive fizemos uma oficina lá pra fazer a
corda da viola de tripa de porco, já foi por ela. E estava essa turma, turma boa!
Rapaziada inteligente, aquele eu sei que ia dar certo, sem perca. E a turma boa! Não
era de compromisso de colégio assim como esta. Ele não pode perder aula, né!
Então, tá trabalhando ali. Por isso que é assim, com prazo curto que é pra ele sair e
não perder a aula lá. Então, não tem como esticar! Mas, tinha como fazer com
pessoas livres dessa né, mas eles quiseram assim, deixa que vai assim mesmo!
97
Lucas se mostra impaciente e preocupado com o tempo para ensinar aqueles que
possuem maior dificuldade com a aprendizagem, pois precisa isolá-los, para que possam ter
orientação. “[...] Então, esse a gente vai ser especial pra gente. Agora, você faz a tentativa
com ele duas, três vezes e não quer nada! Aí então vou desistir, poxa! Porque o tempo é
pouco. Aí tem que isolar mesmo, porque não tem jeito, vai perder o tempo à toa.” (Lucas). Já
aqueles que “são inteligentes”, direciona-os para a formação de um grupo.
Essa postura de Lucas tem gerado desconforto a outros tocadores como Sérgio, que
recorre a uma expressão muito utilizada entre os tocadores para definir aquele que, assim
como Lucas, não quer ensinar. Diz-se que o tocador: “[...] quer ser enterrado junto com a
viola dele! Pelo que ele fala, né!” Como é um dos tocadores mais antigos, Sérgio tem
percebido que Lucas não gosta de ensinar. “Só que ele não fala pra nós que não gosta de
ensinar! Ele já quer pegar a pessoa certa, no dia da apresentação.”
Para Matheus, a participação na oficina como mestre é sua primeira experiência com
ensino da construção da viola-de-cocho, mas não se reconhece como tal: “[...] eu não me
considero mestre, mas eu falo por causa do mais antigo, [...] acho que sou muito novo para me
considerar mestre, tenho pouca experiência na área, conhecimento.”
A breve experiência de Pedro com o ensino da construção da viola-de-cocho iniciou
ao ensinar um sobrinho, ao qual orientou durante o processo de construção da viola-de-cocho
desde a elaboração do molde, a escavação e a finalização do instrumento. Tem também
orientado Matheus a aprimorar o modo de construir e a afinar o instrumento nas horas vagas,
depois de muita insistência do rapaz.
Como aprendeu observando e imitando os mais velhos junto aos seus primos, quando
ensina, Pedro preocupa-se em demonstrar como ocorre o processo de execução: “Eu dou uma
viola [-de-cocho] pra ele e aí eu vou mostrar. Primeiro mostro as posições na minha mão, né;
como deve de ser. Aí, eu passo pra ele e aí, vou colocar os dedos dele no lugar também, né?”
A ênfase é de que o aluno tenha a sua própria viola-de-cocho e estude em casa, como
esclarecem os tocadores, para se apegar ao instrumento: “Ele [o aluno] vai mexendo com a
viola [-de-cocho], lá! Pra ele pegar intimidade com ela, né? E quando vem, vem com a viola
[-de-cocho] e quando chega aqui, vamos afinar a viola [-de-cocho]. Vamos afinar tudinho até
ele pegar a afinação.” (Pedro).
Agora, para ensinar a fazer a viola-de-cocho, a atenção é redobrada em todo o
processo.
98
Deixo a madeira mais ou menos no jeito, pra ele; nós estamos com o projeto pra
ensinar, assim! É, leva a madeira já como você viu, ali, aquelas pranchas. Aí, nós
vamos medir a altura dela, se vai ser preciso aplainar mais e vamos mandar. A gente
pega, faz um pouquinho e manda: toma, agora tá aqui as ferramentas! Você vai fazer
assim, assim; porque a espessura tem que chegar nessa marca, aqui. Aí, quando
chegar naquele lugar ali, a gente vai colocar o molde lá pra ele. Olha, esse aqui é o
molde, nós vamos riscar e você vai começar por esse lado aqui e não pode cortar
essa linha de jeito nenhum. Então, tem que estar ali o tempo todo, cuidando pra que
ele não erre, pra não perder o material dele, né. Porque o nosso projeto, esse projeto
pra ensinar, lá! É pra ensinar o aluno a fazer a viola dele. (Pedro).
Na ocasião de sua entrevista, havia ocorrido a primeira aula da oficina de construção
da viola-de-cocho, referente ao corte da árvore para a construção, a que Pedro fez referência
no decorrer desta discussão. Contrariado com a divisão dos alunos na realização dessas
oficinas, afirma que o ideal seria que todos os alunos participantes estivessem juntos aos três
professores, ou seja, que a oficina acontecesse ao mesmo tempo. Justifica:
O cururu não é feito só pra um ou pra dois, senão vai ensinar errado. Pelo menos na
época de tocar, de aprender tocar, teria que estar tudo junto; porque sem ter... duas,
três pessoas só, não vai formar um cururu. Não vai formar o cururu! Seria bom esses
15 estar junto, fazer uma roda de cururu com eles, lá mesmo na oficina vamos
ensaiando; porque quando terminasse de fazer a viola [-de-cocho], eles já estavam
mais ou menos com uma noção do que iria acontecer naquilo ali. Eu acho que
deveria... por aí, saía melhor!
Pedro acredita que a viola-de-cocho tem chamado atenção das pessoas, pois estão
percebendo sua importância e a problemática da prática vivenciada na região de Corumbá e
Ladário, como menciona ao se referir à procura por aprender a tocar e construir o
instrumento: “Olha, eu estou achando que o povo está vendo que ela não é coisa tão ruim, ela
é boa e está ficando extinto! Que se não tiver aluno pra esses dois, três anos tocando,
aprendendo tocar, pode crer que aqui na nossa região [...]”
Há muita dificuldade em ensinar novos alunos a construir, tocar, cantar e brincar. Um
dos fatores considerados e que podem vir a interferir no aprendizado de novos tocadores ou
cururueiros é a religião.
Pedro cita o caso do filho de seu primo que, inclusive, recusou-se a participar desta
pesquisa. Revelou que seus sobrinhos aprenderam a cantar o siriri e o cururu, causando-lhe
espanto, pois mudaram de religião e hoje são adventistas. Entende que essa condição pode
interferir na prática da viola-de-cocho, pois o motivo dessa prática lúdico-religiosa, uma
brincadeira, segundo a definição usada pelos tocadores, tem como prática explorar o
99
conhecimento sobre os santos católicos, por meio de trovas desafiadas em duplas de
cururueiros.
Isso influencia. É, influencia! Porque no ensinamento de várias religiões não querem
música pra isso, não quer isso e não quer aquilo. Inclusive até na história do cururu,
o cururu você pode crer que ele é um instrumento religioso, música religiosa! Ele até
não é apresentado pra tocar pra baile, pra outras coisas se não for pra festejar um
santo, né. E, muitas vezes em religião quando fala em santo, não existe, né? Ainda
mais, quando fala que tem uma imagem, lá a pessoa pensa que a pessoa acredita
naquela imagem, né? É de certo que se a pessoa pensar na imagem: tá errado, né?
Mas sim, no santo, apóstolo, essas coisas. Então, aí esbarra nessa parte! Então, o que
eu estou falando, que eu fiquei surpreso que o menino desses meus parentes, eles são
adventistas. E os filhos deles têm uns três desse grupo que canta o cururu! Toca e
canta! (Pedro).
Apesar da condição imposta pela religião, adverte que a prática do cururu por seus
parentes não acontece publicamente na Festa de São João. Ao mesmo tempo, a mudança de
religião não impediu que alguns de seus parentes continuassem a praticar a viola-de-cocho e a
brincar o cururu, mas somente em ambientes familiares.
Quer dizer, que não é o problema esbarra mesmo, na parte da religião. Esbarra
mesmo! Não é todo. Porque tem da família nossa, muitos que não deu continuação,
por causa do quê? Porque muitos deles mudaram a religião. Até inclusive o meu tio,
que era muito cantadô de cururu, [...] ele morreu afogado lá no Castelo. Esse cantava
muito cururu! E ele virou adventista. Mas virou adventista, mas não deixou de
cantar cururu! Não, ele cantava cururu na casa dele, aniversário deles tudo; só não
festejou mais o santo, só isso. Encontrava com meu pai, com os outros irmãos, [...]
outros sobrinhos dele, com o coisa mesmo, formava a rodinha dele, lá na casa dele e
cantava no terreiro. Cantava atééé... cansar! Ééé... adventista. (Pedro).
Pedro enfatiza: “Quer dizer que, quem canta cururu depois que apreende, ele pode
fazer o que quiser. Mas tem esse problema, a tradição mesmo é a festa do santo, né!” Esse
trecho rompe com o discurso tradicional dos tocadores, que limitam o campo de prática do
cururu ou do próprio uso do instrumento a outras funções, ao afirmar a independência do
tocador de como e em que ambiente expõe a sua louvação ou a brincadeira.
O que tem lhe impedido de ensinar também é a falta de interesse das pessoas em
aprender a tocar viola-de-cocho e a ausência de apoio dos familiares aos alunos mais jovens.
Relata um caso ocorrido no primeiro dia da oficina de construção da viola-de-cocho, quando
foi realizado o corte da árvore:
100
Porque nós esbarramos numa, numaaa... numa dificuldade com o aluno, que muitas
vezes não é o aluno; muitas vezes é o pai, os pais do aluno que já é de uma faixa
etária que não... não quer saber desse negócio de cururu, essas coisas... não se
importa. Inclusive, se não me engano naquela reportagem que estava fazendo
naquele dia da árvore, lá! Teve um menino que falou que ele, ele estava empolgado
em aprender tocar. Pra aprender a fazer e tocar! Então, aí perguntaram pra ele, lá: o
quê ele achou, o quê os pais dele acharam disso. Se ajudavam ele, se davam força
pra ele. Ele falou: Não, meu pai riu de minha cara! Ele disse, assim mesmo: que o
pai dele riu dele! Falou algumas coisas, lá: Não, pai, o negócio é importantíssimo,
isso aí! É muito bom, é muito bonito, é muito divertido! Ele mesmo disse! [...] Mas
aí é que eu não sei! Não sei se é desinteresse das famílias deee... ou não sabe o
significado disso, eu não sei por quê. Eles... Muitas vezes até o aluno quer! Muitas
vezes o aluno quer. (Pedro).
Outro impedimento para ensinar adolescentes a construir viola-de-cocho é a
fiscalização do Conselho Tutelar, devido à utilização de ferramentas e à possível associação
da construção da viola-de-cocho à exploração do trabalho infantil:
Nós não temos mão de obra especializada. Porque não vamos fazer a criança nesse
caso, nós não vamos fazer a criança de escravo, porque ele vai ensinar, vai aprender
fazer e quando ele ficar adulto... Porque quem vai aprender a fazer a viola-de-cocho
e cantar, ele acaba saindo com alguma prática de alguma coisa com o professor dele.
Muitas vezes, ele aprende fazer uma viola [-de-cocho], mas ele pode aprender a
fazer uma outra coisa na marcenaria dele, também. (Pedro).
Pedro justifica dizendo que, muitas vezes, encontra crianças andando altas horas da
noite sozinhas ou em grupo, “[...] debaixo de uma sombra, no escuro lá! Quieto, parece que
está sondando, está... é igual um bicho arisco, escondido ali.” E são esses que entram em
festas públicas, como as de São João, para desorganizar a brincadeira.
Há três aspectos em que os alunos encontram dificuldades, citados continuamente
pelos tocadores: a afinação, o canto e a associação da prática da viola-de-cocho ao modo de
execução do violão.
Segundo os tocadores, a dificuldade na afinação da viola-de-cocho encontrada pelos
mais jovens, hoje, é causada pela execução de outros estilos musicais no instrumento, por
exemplo, o ponteado, conhecido também como dedilhado ou solo, uma melodia executada
isoladamente. “A pior dificuldade é o camarada afinar ela, afinar, fazer e tocar. Primeira coisa
que o caboclo pega, já vai fazê a posição de violão e ele não é!” (Lucas).
Porque a viola [-de-cocho]... é... tem uma coisa que os garotos de hoje ééé... acabam
ficando sem aprender a afinar a viola [-de-cocho], porque eles querem pegar a
viola[-de-cocho] e ponteá! Como você, sabe tocá... outras coisa na viola[-de-cocho]!
E ele aprendendo aquilo, já fica mais difícil pra ele pegá o ritmo da viola[-decocho], de tocá o cururu, dele afiná! (Pedro).
101
A diferença entre o violão e a viola-de-cocho, para Lucas, é que: “Você vê que até os
pontos é diferente, oh, só três. Agora tem um professor de faculdade lá de Cuiabá, ele toca
qualquer música na viola [-de-cocho].” Ainda sobre a utilização do instrumento além do
acompanhamento, como o realizado na execução do siriri e cururu, Lucas demonstra rejeição:
É! Mas só que, aqui, a gente já tem que pôr esse ponto dele até aqui, fazer o braço lá
mais comprido, aí vai. Quer dizer que aí, já é o treino. Já é outra coisa, não é? Mas
ela não é pra isso! É. Já está pegando outro rumo, pra instrumento musical. Agora, o
verdadeiro dela desde que eu me entendi por gente é esse aqui, e eu não pretendo
mudar. Ele é assim.
É importante considerar que, mesmo Pedro apontando os empecilhos que a prática da
viola-de-cocho, em outros estilos de música, pode causar no aprendizado da afinação, não
coloca obstáculo à prática. “Então, depois que ele aprender a afinar, que ele aprender bater o
cururu, o sotaque dele do cururu, do siriri. Aí, depois ele por si próprio vai buscar... aprender
a tocar outra coisa” (Pedro).
É possível observar que um dos impeditivos para o bom resultado do processo de
ensino e aprendizado pode ser reforçado por um discurso que emoldura uma série de
dificuldades para a execução do instrumento, como neste trecho, em que Carlos também
justifica o motivo da pouca execução do instrumento: “Quer tocar viola [-de-cocho], toca!
Mas, afinar a viola [-de-cocho] é difícil! Eu não sei por que o pessoal acha difícil. Ele é
cabuloso de lidar! [...] Viola-de-cocho é, é... não é fácil, não! Se vê que não é todo mundo que
toca viola [-de-cocho]!”
Se a dificuldade em aprender é motivada pela afinação, cabe entender que ela exige de
seu executante atenção e percepção musical, por meio do desenvolvimento da memória
musical. Além disso, a afinação da viola-de-cocho, como todos os instrumentos de cordas,
sofre intensamente com a alteração climática, algo acentuado por sua rusticidade, a tensão de
suas cordas e pela não utilização de técnicas de construção que suavizem esses impactos.
Porque ele, por causa da afinação da viola [-de-cocho], depende muito do ouvido!
Conhecer o tom da viola [-de-cocho], da corda por corda, e coisa e tal. E muitas
vezes você vai afinar, pontear, você vai pegar uma corda, essa e aquela, essa e
aquela. E, essa do cururu, não! O cururu você vai pegar todas as cordas pra afinar,
depois que ela estiver pronta você vai bater as cordas que são parceiras da outra.
(Pedro).
102
Ensinar a cantar é mais difícil, pois “[...] muitas vezes o aluno não tem o dom de
cantar.” Pedro, toma como exemplo, os alunos da oficina de construção. Outro agravante é
que muitas vezes os alunos não conseguem acompanhar o ritmo da melodia porque estão
acostumados com outro tipo de música.
Ele não consegue acompanhar. Que muitas vezes ele... bom! Embora que agora os
alunos que estão aprendendo, que vão aprender o que é pra aprender. Tá acostumado
cantar aquele aiaiai, que tem aí, né! E quando muda o ritmo, muitas vezes eles não
gostam nem de música sertaneja; eles já acham mais... ficam embaraçados. Então,
fica mais difícil! Você tem que fazer eles entrar na vontade de cantar, no gosto da
coisa, senão não vai. (Pedro).
Porém, acredita que, ensinando a tocar e a cantar, as barreiras ficarão equilibradas.
Mesmo porque sempre há “[...] algum aluno que já tem o dom de cantar, não é? Então, esse
que está aí vai ser mais... um pouco mais... mais fácil de achar.” (Pedro).
A prática e ensino da viola-de-cocho estão difíceis, porque “[...] ninguém quer ter mais
a viola [-de-cocho]!” (Carlos). Ao justificar a pouca procura das pessoas em estudar a violade-cocho, destaca o contraste da modificação dos gêneros musicais executados ao violão em
sua época e a utilização do instrumento diferentemente, na atualidade. É a mistura de gêneros
musicais usual na indústria da música nacional que o deixa transtornado:
Não sei o que foi que o povo está acabando! Se veja o toque de violão hoje. Se vê...
o toque... solo deles hoje... de cavaquinho. Por exemplo, o solo deles hoje é diferente
do nosso. Eles não solam mais, rasqueado, samba, baião, catira; essa coisa, nada
disso! Já misturam tudo! Vira aquela bagunça. (Carlos).
Carlos assegura que não há nenhuma instituição ou projeto em Corumbá que favoreça
a transmissão dos conhecimentos sobre a viola-de-cocho a novos tocadores, isso porque: “Não
tem. Porque não querem! As pessoas não querem aprender.”, responde, gesticulando,
indignado, abrindo os braços.
Os irmãos Roberto e Bruno contam que nas fazendas em Mato Grosso era comum que
a formação musical ocorresse junto às rodas que se formavam para ensaio e para estimular a
prática e o aprendizado da execução do ganzá e da viola-de-cocho. Diferentemente, na região
de Mato Grosso do Sul, o motivo que conduz à prática da viola-de-cocho é a apresentação, e
não a formação de novos tocadores cotidianamente.
103
Eles se reuniam quase toda semana, isso era quase todo sábado que eles se reuniam,
eles ensaiavam e também tinha a aula dos alunos, também pra crescer aquela cultura.
A cultura em Cuiabá, ela é forte por isso! Porque o pessoal toma interesse em
aprender e ensinar também. E aqui é meio assim parado porque o pessoal parece que
não liga muito, parece que é só na época de uma festinha. No São João que mais é
lembrado e depois some. Aí não tem nenhuma expectativa nessa parte, aí. (Roberto).
Roda similar à mencionada formou-se durante a conversa com Bruno. Fomos
acompanhados por crianças da vizinhança, que se aproximaram e assistiram atentas à
gravação e à cantoria dos dois irmãos. Bruno que tem dificuldade em ensinar a tocar ou
construir seu instrumento, por não ter alunos, não os convida para a execução, por medo da
rejeição: “Os guris não vão querer. Eu tenho medo que nenhum se interesse. Aqui tem
bastante guri, mas só vêm jogar bola. [...] Não falo! Acho que vão rir da minha cara.” Assim,
quando se apresenta junto a Carlos em eventos ou na instituição na qual o amigo trabalha,
ensina aqueles que o abordam, senão, não se manifesta.
Esse tem sido um dos fatores que prejudicam o ensino: o medo da rejeição. Sérgio,
mesmo conseguindo ensinar, tem medo de ser criticado, pois há diversificados gêneros
musicais. Pensa que aqueles que não gostarem poderão vir a rejeitar sua prática e dizer que o
que faz não existe. Como o fato ocorrido com um conhecido: ao vê-lo construindo a viola-decocho, disse-lhe para abandonar essa prática, pois não é reconhecida. Sérgio reitera: “Se não
olharem pra mim, se as pessoas não derem valor. Ah! Nós também não. Nós vamos ser
enterrados junto com a viola [-de-cocho].”
Sérgio tem orientado Matheus informalmente a afinar a viola-de-cocho, assim como
fazem os demais cururueiros nas apresentações, como Marcos, Lucas e Pedro. Comenta
Sérgio: “Mostro e pego a viola e ainda dou pra ele e vou ensinando como é que tem que fazer,
como que é a afinação.” Por ser o ensino individual, a sua prática é também sua preferência,
pois lhe permite atenção e ensinar corretamente.
Um dos empecilhos encontrados pelos tocadores para transmitir esse conhecimento é
ter quer trabalhar em outras atividades para se sustentar, pois essa prática não lhes possibilita
subsistir. “Não conseguimos porque nós não temos ajuda, não tem nada. Aí fica difícil!”
(Sérgio). Como não possui a mesma situação de Carlos, restringe-se a construir a viola-decocho e a participar das apresentações junto à Oficina de Dança de Corumbá e na Festa de
São João de Corumbá, anualmente. Além dos problemas para se obter a matéria-prima para o
ensino da construção, como observa Roberto, aprender a tocar viola-de-cocho sem ter o
instrumento “[...] é igual a estudar sem ter o livro pra ler, não dá! Tem que ter o instrumento
para poder estudar.”
104
Marcos ensina seu irmão esporadicamente, quando aparece em sua casa, mas como
não tem instrumento, percebe muita dificuldade em aprender. Marcos tem ensinado Matheus
e, aos poucos, tem passado orientações ao seu bisneto a respeito da execução do ritmo do
cururu e do siriri, e de como cantar: “Esse aqui é o siriri, você vai cantar dessa maneira. O
cururu é esse e o siriri é esse. O som de cada um muda, o siriri é um e o cururu é outro. É
como a dança do rasqueado, da valsa, baião, então cada coisa se muda, não é? Então, assim é
o cururu e o siriri.” (Marcos).
Como não existe local específico destinado ao processo de ensino da viola-de-cocho,
os tocadores têm buscado seus próprios meios de repassar seus conhecimentos aos indivíduos
interessados, de maneira que, constantemente, utilizam-se do processo informal e não-formal
de ensino, possibilitado pelo acesso ao público, durante as apresentações.
e)
mídia
O acesso à mídia, em específico, à televisão e ao rádio, é constante pela maioria dos
tocadores. O acesso à internet é limitado aos sujeitos que não foram alfabetizados. As
reportagens produzidas são compreendidas como um veículo para a divulgação de suas
atividades e para as quais atribuem valor e sentido, um incentivo, é a expressão utilizada
continuamente.
Segundo Lucas, a divulgação do instrumento viola-de-cocho e de seus tocadores deuse primeiramente por meio da internet, após ter sido reconhecida como Patrimônio Cultural,
atingindo positivamente na prática e na construção do instrumento na localidade. Matheus
acrescenta que o alcance da divulgação promoveu o conhecimento local, através do registro
da viola-de-cocho, a que se refere quando “foi tombada como Patrimônio Histórico”. Em
outros municípios do estado de Mato Grosso do Sul, o conhecimento sobre essa prática das
cidades de Corumbá e Ladário não alcançou o mesmo êxito.
Há, no discurso do tocador, um conflito de ordem técnica, entre o procedimento usado
para atender às necessidades do bem viola-de-cocho, através do registro do modo de fazer a
viola-de-cocho como patrimônio imaterial e do instrumento como Patrimônio Cultural do
Brasil, e o instituto do tombamento, já aplicado em outros bens encontrados na localidade,
como é o caso do complexo denominado Casario do Porto, em Corumbá.
O rádio é outro meio de comunicação de uso habitual pelos tocadores. Mesmo
popular, constituiu-se um veículo de repressão à prática da viola-de-cocho na localidade.
Pedro cita um exemplo que vivenciou há pouco, quando ouviu, numa rádio local, a Rádio
105
Clube, críticas à atuação dos cururueiros. Nessa mesma rádio, seu pai sempre se apresentou,
tocando o cururu.
[...] essas pessoas vêm com a viola [-de-cocho] e agora querem fazer cururu aqui!
Cururu é de Cuiabá! Aqui não tem ninguém que faça viola [-de-cocho], aqui nem
“fazedor” de viola [-de-cocho], não existe. Quem é que vem com esse tchá tchá tchá,
tchá tchá tchá, aqui? Mas, não sabe nada, não faz nada, não canta cururu! [...]
(Pedro).
A narrativa do radialista levou sua filha a entrar em contato com a emissora para
informá-los de que seu pai, Pedro, construía violas-de-cocho e que, caso se interessassem em
compra-las, poderiam ir até a sua residência. Ianni (1996) adverte sobre o impacto que a
tomada de posição pela mídia pode causar no posicionamento social:
Nesse sentido é que a mídia adquire e expande sua influência no imaginário de
muitos, da grande maioria. Ela detém amplo controle sobre o modo pelo qual os
fatos importantes ou secundários, locais, nacionais, regionais ou mundiais, reais ou
imaginários, difundem-se pelo mundo, influenciando mentes e corações. Pode
transfigurar o real em virtual, da mesma maneira que o virtual em real. (p. 109).
O mundo vive uma quebra de conforto, um rompimento que Harvey (2009) já havia
descrito na contradição modernidade e pós-modernidade. Podemos entender que, se
anteriormente, por exemplo, os indivíduos buscavam resposta, conforto e direcionamento em
suas religiões, na pós-modernidade há outra influência dando independência com a qual o
sujeito, mais uma vez, busca respostas noutro lugar. Agora, o ser humano não convive
exclusivamente com problemas de ordem individual ou restritos ao limite geográfico da
cidade ou país onde vive, mas com impactos de proporções globais divulgados através dos
meios de comunicação, pois o homem não é mais o centro do mundo, mas sim, o mundo é o
homem.
As entrevistas e as gravações da roda de tocadores ou mesmo do processo de
construção da viola-de-cocho e as atividades realizadas pelos tocadores são organizadas ou
indicadas pela Fundação de Cultura de Corumbá. Assim, os tocadores não possuem o hábito
de questionar para qual finalidade o material é produzido, como na entrevista dada ao Globo
Ecologia, da qual Sérgio participou.
Na televisão, as reportagens geralmente enfocam Carlos e Lucas, os dois cururueiros
mais antigos, e não todos os tocadores que integram a roda de cururu, o que tem conduzido
106
alguns tocadores a desistir de participar de apresentações e reportagens, acreditando, como
expõe Pedro, que “ninguém gostou da nossa música e da nossa apresentação”. Acrescenta:
Eu, por exemplo, sou suspeito de dizer que minha letra é boa e que minha voz é boa,
né? Eu sou suspeito! Eu posso dizer: Olha, não gostaram da minha letra de certo, da
minha voz; eu canto muito feio, eu canto muito mal. Então, tô fora! Deixa só o
fulano, lá. É o que tá acontecendo, que o cururu parou foi por aí! Porque muitos que
poderiam ter chance, ter a vontade de ensinar deixou. Não, nós não vamos, porque lá
na mídia, nós não aparecemos! É só fulano de tal que aparece, então deixa lá com
ele, lá. E foi ficando, que aí tem muitos cururueiros bons que poderiam ensinar
cantar, que nunca foi mostrado direto numa entrevista.
A primeira entrevista de Pedro foi para o programa Mais Você. Desde então, tem
percebido o reconhecimento do seu trabalho na construção da viola-de-cocho. Um exemplo
desse impacto pôde vivenciar quando participou da VII Encontro e Feira dos Povos do
Cerrado, em 2012, em Brasília:
E quando cheguei, lá! É que eu vi, que a mídia também mostra, também. Porque eu
encontrei várias pessoas que eu nunca vi na vida, falar: Ah, eu já vi o senhor! Eu
conheço o senhor! Já falou assim, né. Eu vi o senhor ensinando a fazer viola [-decocho], lá no Mato Grosso [do Sul], numa cidade lá. Não falou o nome, né! Numa
cidade lá, eu vi o senhor no Globo Rural. Aqui! Então quer dizer que... é muito
bonito, eu vi o cururu de lá! Cururu muito bonito.
Mas foi no ano de 2012 que um fato ocorrido numa entrevista dada ao programa Meu
Mato Grosso do Sul, exibido pela TV Morena, afiliada da Rede Globo, lhe causou indignação
e consciência do impacto da mídia na transmissão de informações. Aconteceu que foram
entrevistados Carlos e Pedro, que aproveitou para mostrar seu processo de construção e as
viola-de-cocho que confeccionou. Porém, na reportagem exibida, a sua viola-de-cocho foi
apresentada como se tivesse sido trabalho do Carlos.
Foi mostrado a minha viola [-de-cocho], aí quando chegou na hora, apareceu a
entrevista de outra pessoa, que só ele tem a ver porque ele sabe fazer também. Mas
as violas [-de-cocho] que foram apresentadas são as minhas. Eu vi em casa, aí eu
fiquei o quê? Frustrado! Porque eu entrevistei, eu perdi meu tempo de estar ali e
chegar na hora o meu serviço foi apresentado como se fosse de outra pessoa.
(Pedro).
Como menciona Ianni (1996), com o aprimoramento tecnológico, a mídia passou a
influenciar constantemente as escolhas, decisões e julgamentos dos indivíduos em sociedade e
fazendo com que, também a cultura, fosse consumida de acordo com os parâmetros
107
divulgados. O caso vivenciado por Pedro, em sua particularidade, poderia desvirtuar o seu
trabalho como artesão da viola-de-cocho ou até mesmo a transmissão de suas técnicas a novos
construtores, como ele exemplifica:
Numa coisa ele interfere, sabe por quê? Por exemplo, uma pessoa, vamos supor,
conhece o seu Carlos e ele não me conhece, ele viu aquilo lá e eu venho e falo: eu
vou ensinar vocês fazer viola [-de-cocho]! A viola [-de-cocho] é assim, assim,
assim... essa viola [-de-cocho] aqui foi eu que fez. Ele olha a viola [-de-cocho], lá e
fala: essa viola [-de-cocho]aí eu já vi outro fazedor que fez! Eu conheço outro
fazedor, ele que faz essa viola [-de-cocho] aí.
Segundo Yúdice (2006, p. 28), a “globalização” permitiu a comunicação entre
indivíduos de diferentes lugares do globo, dando a impressão de “liberdade” tanto no aspecto
social, quanto na realização artística, mas, dificultando a afirmação das práticas culturais
locais de cada país.
Assim, especificamente após a Guerra Fria a atualidade:
A arte se dobrou inteiramente a um conceito expandido de cultura que pode resolver
problemas, inclusive o de criação de empregos. Seu objetivo é auxiliar na redução
das despesas e, ao mesmo tempo, ajudar a manter o nível de intervenção estatal para
a estabilidade do capitalismo. Uma vez que todos os atores da esfera cultural se
prenderam a essa estratégia, a cultura não é mais experimentada, valorizada ou
compreendida como transcendente. (ibid., p. 28- 29).
A partir dessa condição foi estruturado um novo modelo de financiamento a arte, que
atendeu as aspirações econômica e social da esfera pública e privada (ibid.). Pode-se entender,
então, que o investimento numa manifestação cultural que não trará lucros diretos e também
indiretos compatíveis aos gerados em shows, por exemplo, dificilmente receberá patrocínio
para sua realização.
Diferindo-se dos demais países latino-americanos definitivamente inseridos numa
economia cultural globalizada e receptiva à produção cultural norte-americana, o Brasil
posiciona-se confortavelmente junto à sua produção nacional (JAMESON, 2001). No Brasil,
constituiu-se uma indústria cultural que se movimenta a partir das práticas culturais nacionais,
e, especificamente na música, se apropria de gêneros tradicionais, tornando-os estilos de vida
e novos gêneros musicais, como tem sido testemunhado na música sertaneja, conduzida do
acompanhamento da viola caipira à difusão em grandes produções em shows e na mídia
eletrônica.
108
É justamente nessa condição que a música tem sido utilizada como um propulsor da
mundialização cultural, por sua “capacidade de exponibilidade” (BENJAMIN, 1987), ao
passo da constante popularização e acesso contínuo às mídias digitais e eletrônicas, não mais
restrita a execução do instrumentista presencialmente. Como sugere Yúdice (2006), a cultura
tem sido considerada um “recurso” da lógica econômica e política da globalização, ao ponto
de sua descaracterização.
Nessa condição, a “metáfora da mão invisível liberalista” incorporada pela
globalização, transmite através do acesso tecnológico a percepção de que todos os países terão
as mesmas possibilidades econômicas e sociais. (IANNI, 1996).
O alcance da mídia e do desenvolvimento eletrônico no cotidiano de indivíduos
alienados pelas informações lançadas em seu cotidiano pode ser identificado em entrevistas,
na adaptação da prática do cururu e do siriri em meio a outros gêneros musicais, como em
festas, como o São João, e também na composição e na dança.
Assim, a música veiculada nos meios de comunicação como a televisão, a rádio e a
internet não somente se equiparam à diversão, como as praticadas pelos cururueiros, mas
como um entretenimento, diante dessa sociedade produtora de mercadorias. Gradativamente,
a interferência da vivência musical pós-moderna é encontrada na execução da dança do siriri.
Olha! Eu por exemplo, pra mim é a mesma coisa! Porque é “farra”, não é? Agora
eles [os jovens] misturam muito as coisas! A dança. A dança, por exemplo, você vai
dançar o siriri! O siriri a gente dança. Tem o siriri, tem o rasqueado, tem o samba e
tem a música só do sapateado do siriri. Já eles misturam tudo! Eles misturam tudo!
Tem hora que você não sabe o que eles estão fazendo, se estão dançando ou se estão
fazendo esculhambação! É tudo misturado! Não, não sou [a favor]! Porque
esculhambação, comigo não. (Carlos).
Em meio a todos esses gêneros musicais, Sérgio sente que a prática da viola-de-cocho
está baixa, pois para os cururueiros fica a sensação de que para quem os ouve ou assiste “[...]
não existe aquilo ali. Eles estão por cima da gente!” Complementa: “O mundo mudou, o povo
está todo mudado! Eu acho que é porque os antigos têm outro ritmo e esses de agora têm
outro tipo de convivência. Nós somos de outra geração, já! Então, para nós fica difícil.”
(Sérgio).
Naturalmente, tocadores como Sérgio têm feito experimentações na execução da
viola-de-cocho, a partir de gêneros musicais que tem o hábito de ouvir, como a música
sertaneja. A tentativa de utilização da métrica da música sertaneja na execução do cururu em
suas composições não foi assertiva, como observa: “Já tentei, não dá certo! Até semana
109
passada mesmo, eu queria inventar uma música do cururu, mas não deu certo. Não deu, a letra
é muito diferente!” (Sérgio).
Outro impedimento a novas experimentações e mesmo ao uso tradicional da viola-decocho vem dos demais tocadores, devido à dificuldade de ensaio e pela resistência ao uso do
instrumento em outras práticas.
A participação na Festa de São João impõe aos tocadores de viola-de-cocho a
adaptação constante da execução do siriri e do cururu no contexto da festa junto aos shows,
conduzindo-os à profissionalização dessa prática.
Nós aí somos assim, nós somos convidados lá pra levantar o mastro e o siriri;
terminou, nós ficamos lá se a gente quiser. Então, eu sou um deles que eu não
acompanho! Levou São João no rio pra dar banho, de lá volto. Terminou, erguemos
o mastro tá encerrado. Então, a parte do cururueiro está encerrado. Falam lá no
microfone, agora é só forró e chamamé! Nem dançar a gente vai e nem assistir, pega
condução e cada um vai pra sua casa. (Bruno).
Entre os gêneros musicais a que os tocadores são contrários, estão o forró e o funk
carioca, por sua letra e pela forma de dançar. Segundo Roberto, “[...] hoje é só eles que sabem
dançar!”
Não gosto desses cantores modernos de agora, está difícil de escutar. [...] O pessoal
está abandonando a música caipira, já não estão cantando mais é só outras músicas
[forró, ...]. A gente até assiste, mas eu não gosto, não! Eu gosto mais de música
sertaneja que uma música mais popular. Tem música que eu acho que eles estão
falando uma grande bobagem no meu modo de pensar, mas de certo que enquanto
eu estou cantando o cururu, ele fala a mesma coisa, esse cara é um bobo. (Bruno).
Lucas participa anualmente da execução do siriri e do cururu na Festa de São João de
Corumbá e geralmente, após a sua apresentação, assiste à quadrilha.
Aí já entra aqueles cantores com aquelas danças tudo desengonçado, já não é do meu
estilo, do meu tempo! Então, até ali no São João, por exemplo: assistir à missa dele
ali, a gente desce aquela procissão, beleza! Chega lá, nós levantamos o mastro,
dançamos o siriri, está tudo ok. Aí eu assisto um pouco da quadrilha que é bonito
também, aí o resto já não vai mais. (Lucas).
No São João, Sérgio conta que as pessoas se aproximam para dizer que o cururu já
acabou ou que deveria acabar. Isso interfere na procura por estudar a viola-de-cocho. Segundo
Sérgio, as pessoas sentem vergonha e criticam:
110
Ah, esse aí é por causa desse outro tipo de música, de outras culturas de agora, né,
que é tudo diferente. Eles querem abandonar essa, a cultura antiga, por causa desse
novo. E aí fica difícil pra nós! Vamos supor, nós vamos com nossa violinha lá pra
Corumbá, aí tem gente curioso que fala: Aí, vai fazer o que lá? Isso aí já acabou! E
nós, nós ficamos quietos, nós não falamos nada. Vai e representa!
É justamente pela divulgação promovida pela mídia que Roberto e Bruno acreditam
que outros gêneros musicais possuem mais espaço em festas. Para os tocadores de viola-decocho, “a mudança na geração provocou” a redução dessas práticas em festas, além do acesso
à televisão e a outros meios de comunicação, que podem ter influenciado na escolha musical
das pessoas. O discurso deixa evidente o conflito entre a diversidade de gêneros e práticas
sociais que impõe a globalização, ao mencionar que:
[...] a geração de hoje não aceita os antigos, não aceita! Os antigos não aceitam esses
de agora. Aí é um jogo! Fica um tanto pra um lado, parece que fica tudo dividido. Aí
aquela geração não combina com esse daqui; que esse daqui é diferente, aí é
criticado! Aí é difícil, né. Difícil isso aí! (Sérgio).
Como resultante desse reforço às práticas musicais midiáticas, a experiência prática da
viola-de-cocho na localidade reduz-se a uma data festiva do calendário local, acentuando o
conflito entre a tradição musical e a modernidade.
111
Considerações Finais
O principal objetivo desta pesquisa foi entender como ocorreu o processo de ensino e
aprendizagem dos tocadores de viola-de-cocho de Corumbá e Ladário, MS.
Com o estudo da literatura disponível, associado à realização do estudo de caso,
identificaram-se as transformações concretizadas no instrumento viola-de-cocho, como as
adaptações à matéria-prima, à técnica de construção e aos instrumentos utilizados em sua
confecção. No que tange ao complexo musical e coreográfico do siriri e do cururu,
permanecem as mesmas temáticas do cotidiano do campo e da louvação, sem novas
composições.
Como é tradição, senão exigência, segundo a história narrada, cada tocador aprendia a
tocar quando estava na adolescência, em torno de 13 a 15 anos de idade e, noutros casos, já
quando adultos. Isso porque, segundo os tocadores, todo tocador deve ter a sua própria violade-cocho, logo, deve aprender anteriormente a construí-la. Afinal, não existe produção
artesanal constante da viola-de-cocho para a venda, como também não há um processo
industrializado de sua produção, como aconteceu com instrumentos populares, como a viola
caipira e o violão moderno.
Não é comum os sujeitos identificarem-se como mestres cururueiros, motivo pelo qual
decidi identificar os sujeitos de forma geral, como tocadores. O cururueiro é, segundo o
discurso dos sujeitos, aquele que possui conhecimento da Bíblia e da vida dos santos
católicos; sabe improvisar numa roda de cururu, dança, constrói, canta e compõe tanto o siriri
quanto o cururu e demais elementos, em suma: é completo! O tocador de viola-de-cocho é
aquele que simplesmente toca o siriri na viola-de-cocho e pode ou não compor, construir,
tocar o cururu, mas não improvisa na roda.
Os tocadores que constroem a viola-de-cocho não têm feito constantemente por não ter
os instrumentos específicos, que vão desde a ferramenta, devido ao seu custo, até a madeira
para escavação, pois não podem escolher e pegar a que quiserem – precisam da liberação da
prefeitura.
Apesar do fato de que esta pesquisa não trate diretamente da Festa de São João de
Corumbá, ela tem sido o único espaço para a execução da viola-de-cocho junto aos tocadores
de Corumbá e Ladário. Festas como essa foram historicamente organizadas pela comunidade
ou irmandade, mas com a intervenção de órgãos preocupados em gerar trabalho e renda
indireta, essa prática vem sendo modificada. Por isso é imprescindível reconstituir, junto aos
indivíduos, o sentido de pertencimento e de organização conjunta à população.
112
O ambiente onde a religiosidade de indivíduos conhecedores da Bíblia e seus rituais
continuam em constante transformação, agora por estarem inseridos definitivamente no
contexto econômico e cultural globalizado, que deforma a diferença cultural numa hegemonia
mercantil homogeneizada. É especificamente através do acesso diário à mídia, como a rádio, a
televisão, a internet, CDs e DVDs, que esse processo se estreita.
O grande desafio a seguir na prática da viola-de-cocho é o fortalecimento de seu uso
tanto no siriri e no cururu, quanto em diferenciados gêneros musicais, que possam vir a
atribuir novos significados e reafirmar a tradição desse instrumento, como já tem sido feito no
estado de Mato Grosso. Além disso, seria favorecido, ao seu executante, o desenvolvimento
de sua percepção auditiva ou musical e o entendimento das possibilidades do instrumento
como acompanhador e solista, uma execução que preserve o aprendizado da execução
informal e formalmente, com aparato teórico-metodológico desenvolvido. Talvez seja esse o
caminho para que exista maior apropriação dos conhecimentos transmitidos entre as gerações
de tocadores e respeito a essa práxis.
Não basta somente buscar meios de socializar os conhecimentos gerados a respeito da
prática da viola-de-cocho histórico e musicalmente; há a necessidade de ajustar essa práxis
aos novos executantes, e instrumentalizá-los. Assim é preciso incentivar e patrocinar esses
tocadores, para que promovam suas reuniões e festas ao molde que reconhecem e para o
conhecimento e reconhecimento local dessas práticas. Isso não quer dizer isolamento, mas
sim, possibilitar que, na cidade, continue a existir essas práticas da coletividade e de forma
contínua, num sentido mais próximo com os seus, seja no bairro, na cidade ou em povoados.
Reduz-se, assim, a interferência direta do Poder Público e privado.
Afinal, a divisão do estado não provocou somente uma divisão geográfica, mas uma
divisão cultural, que mesmo sem intencionalidade de ver nascer a prática da viola-de-cocho
em Mato Grosso do Sul, se revigorou.
É necessário, também, pensar em processos que tendam a promover com urgência a
autoestima desses tocadores, diante da insegurança e do descrédito presentes no discurso.
Pois, tendo incorporado a hierarquia característica da educação de influência religiosa, de que
os mais velhos sabem mais e que são esses tocadores mais conhecidos que sempre poderão
fornecer mais informações sobre o instrumento do que outro sujeito, como se referiu Roberto,
desestimularam-se.
Criou-se uma imagem, por pessoas externas a essa práxis, de que determinado
indivíduo é o detentor de todo saber relativo ao instrumento e à sua prática, como é o caso de
113
Carlos, restringindo a atuação e a continuidade pelos demais tocadores. Afinal, todos os
tocadores são os detentores de saber, sob diferentes aspectos.
Assim, formulado o impedimento, a experiência dos tocadores no ensino a seus
familiares e aos demais indivíduos foi raramente mencionada como atividade constante.
Entre as necessidades identificadas para a manutenção dessa prática, é preciso instruir
os tocadores remanescentes da tradição do cururu e do siriri sobre o processo de
patrimonialização da viola-de-cocho e esclarecer a que vem agregar. Não basta entender que
essa prática deve ser preservada, mas a partir de que bases irá transmitir o quê e o que
significa essa manifestação popular numa sociedade tecnológica em que o modelo de
sociedade na qual originou o instrumento viola-de-cocho e o motivo religioso de sua execução
vem se modificando.
Como discutido nesta pesquisa, o conhecimento da produção cultural mundial
promovido com agilidade por meio da expansão tecnológica proporcionada pela globalização
é uma condição emblemática do atual estágio econômico e da utilização da cultura como um
recurso da lógica capitalista. Seus reflexos são detectados na formação de uma indústria
cultural nacional, até mesmo regional ou local, na qual as festas populares expandem-se da
organização pela comunidade à realização por instituições públicas, com vistas ao lucro
indireto e à elaboração de um pastiche festivo nas festas peculiares às tradições populares.
A acepção do bem na sociedade capitalista é vista como uma coisa valorada por uma
nomeação que lhe é atribuída socialmente, o ponto de fetichizar determinado objeto. Cabe,
ainda, entender a partir de que parâmetros quantitativos se dará esse acontecimento, pois é
incompatível a comparação da produção artesanal com a industrial. Ao passo de aproximar-se
ao valor simbólico e social a que ter a posse de um exemplar de um bem alvo de iniciativas de
patrimonialização, qualifica valores não somente na esfera imaterial, que seja, ao modo de
construção artesanal, as técnicas utilizadas para sua constituição; como social, por deter
através da troca (D-M), um exemplar, original ou souvenir deste que possui um valor como
patrimônio cultural nacional.
A discussão teórica sobre o fetiche do patrimônio ou o fetiche da viola-de-cocho foi
pensada como condição possível ao bem cultural encontrado nos estados de Mato Grosso e
Mato Grosso do Sul. Dessa forma, o fetiche dá-se, ou não, de formas distintas nos dois
estados, no que diz respeito à construção contínua e à venda, ou mesmo numa pequena
demanda produzida ao uso do instrumento viola-de-cocho em diferentes gêneros musicais.
As dificuldades enfrentadas para a construção da viola-de-cocho não limitam a
realização do fetiche do patrimônio, mesmo que seja em pequena escala em Mato Grosso do
114
Sul, se comparada à produção no estado de Mato Grosso. O fetiche não se expressa
quantitativamente, mas sim pela natureza do objeto observado pelo indivíduo, o comprador,
para o qual é valor de uso e, consequentemente, valor de troca.
Assim também, não há como comparar a produção desse instrumento construído
artesanalmente a instrumentos já industrializados, como a viola caipira e o violão moderno.
Ao passo que a produção artesanal ou o modo como é construída a viola-de-cocho agrega
valor ao instrumento comprado por conhecedores e, também, por aqueles que subitamente
tomam conhecimento de seu valor como bem cultural.
Mesmo a viola-de-cocho sendo desvalorizada no contexto pesquisado, no que se refere
à produção, à compra e também à sua inserção na execução musical nas cidades de Corumbá
e Ladário, há, em determinadas circunstâncias, aqueles indivíduos que, se aproveitando do
baixo custo do instrumento, compram-no para revenda por valor superfaturado. Isso
caracteriza o princípio da mais-valia, extraído a partir do fetiche gerado por sua singularidade
cultural, pois a compra de determinada coisa ou objeto em que será extraída a mais-valia será
possível para aquele a quem o objeto possui valor.
É preciso ter consciência de que o fetiche não é determinado pela razão quantitativa da
produção de violas-de-cocho, mas sim por características metafísicas geradas a partir da
socialização do objeto produzido, por sua função social ou representatividade social para um
pequeno grupo de executantes, apreciadores, ou mesmo curiosos.
Logicamente, não é objetivo da iniciativa de patrimonialização praticada pelo IPHAN
mercantilizar o bem ou adaptar a construção da viola-de-cocho ao processo de construção da
lutheria ou industrializá-la. O enfoque de sua atuação é possibilitar condições para a
manutenção da prática e da construção da viola-de-cocho aos moldes reconhecidos pelos
cururueiros e em oposição à ofensiva mercantilização.
O discurso retórico permanecerá como anúncio do conflito dialético entre
transformação e resistência a qualquer condição imposta por modificações de ordem
simbólica, ideológica e, principalmente, política e econômica, que signifique mudança. O que
é de fundamental importância é o apreço pela tradição, como forma de preservar elementos
característicos de um complexo cultural historicamente constituído pela massa de indivíduos
marginalizados pela sociedade e, ao mesmo tempo, a avaliação desses pressupostos para a
invenção dessas mesmas tradições (HOBSBAWN; RANGER, 2008) intencionalmente ou sem
intenção de que assim se efetive pelos tocadores.
115
Há, ainda, uma identidade a se conhecer e se reconhecer, a cultura popular do
indivíduo ainda referido como subalterno mediante a ofensiva capitalista, que utiliza a cultura
de diferentes lugares como um pastiche, contribuindo para a expansão da indústria cultural.
116
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122
ANEXOS
123
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Eu______________________________________________________________
fui
convidado (a) a participar desta pesquisa desenvolvida pela pesquisadora Leidiane Garcia,
aluna do curso de Mestrado em Educação, área de concentração em Educação Social, da
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul intitulada “Viola-de-cocho/ MS: um estudo
sobre o processo de ensino- aprendizado e de sua resistência frente à globalização cultural
nas cidades de Corumbá e Ladário.”, que tem por objetivo estudar o processo de ensinoaprendizado do instrumento viola-de-cocho nas cidades de Corumbá e Ladário.
Fui informado (a) que minha participação consistirá em responder, voluntária e
gratuitamente, perguntas em entrevista registrada em áudio-vídeo com previsão de 1h de
duração.
Fui esclarecido(a) que tudo que disser poderá ser utilizado na pesquisa e em
publicações com absoluto sigilo da minha identidade, das pessoas de quem falarei e das
instituições (fábricas, escolas) citadas por mim.
Declaro que o(a) pesquisador(a) que me entrevistou leu e esclareceu todas as minhas
dúvidas deste termo e quanto a minha participação na pesquisa, deixando claro que eu só
assinasse este termo se me sentisse livre para participar e sabendo que terei liberdade para
responder ou não as perguntas, ou para parar de respondê-las quando quisesse.
Concordo em participar desta pesquisa e assinarei este termo em duas vias, sendo que
uma ficará comigo e outra com o pesquisador.
Fui informado, ainda, que caso necessite de maiores esclarecimentos, poderei ligar
para o telefone (67) 3509-3447 e falar com o orientador Profº Drº Hajime Takeuchi Nozaki,
poderei ligar para o telefone (67) 9122-8385 e falar com a pesquisadora Leidiane Garcia e
poderei ligar para o telefone (67) 3345-7187 e procurar algum representante do Comitê de
Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).
Declaro que recebi todas as informações acima e que participarei desta pesquisa de
forma livre e esclarecida.
Corumbá,_________de_________________________de 2012.
__________________________________
_______________________________
Assinatura do (a) Entrevistado (a)
Assinatura do Pesquisador (a)
124
ROTEIRO DA ENTREVISTA COM OS TOCADORES DE VIOLA-DE-COCHO
ENSINO- APRENDIZADO
1.
Você nasceu na cidade de Corumbá? Mora em Corumbá ou Ladário há quanto tempo?
2.
Como aprendeu tocar viola-de-cocho?
3.
Além da viola-de-cocho, você toca mais algum instrumento?
4.
Nesse período as pessoas procuravam estudar esse instrumento? Quem eram as
pessoas que procuravam estudar?
5.
A sua família se envolvia em atividades relacionadas à prática musical desse
instrumento ou festas?
6.
Você tocava em público? Quais eram as festas em que participava tocando? Em grupo
e/ou sozinho?
7.
O que tocava na viola-de-cocho?
8.
Atualmente você ensina a tocar o (s) instrumento (s) musical (s)? Por quê? Gosta de
ensinar?
9.
Ensina a afinar a viola-de-cocho? Ensina a construir? Ensina a cantar? Que tipo de
música ensina a tocar? Caso não, o que o impede de ensinar?
10.
Quem são as pessoas procuram-no para estudar viola-de-cocho? Por quê?
11.
Ensina da mesma forma que aprendeu? Como ensina a tocar viola-de-cocho?
Explique.
12.
É necessário que estudem em casa? Por quê? Você indica quanto tempo devem
estudar?
13.
Ensina o aluno individualmente ou em grupo? Qual forma mais gosta?
14.
Pelo que já observou, aprendem melhor quando estudam em grupo ou quando estão
sozinhos com você? Os alunos lhe acompanham ou tem dificuldades?
15.
Quando estudam em grupo, divide os alunos por idade, conhecimento ou existe outro
critério ou não pensa nisso? Qual é o tempo de duração? São realizadas uma ou mais vezes
por semana?
16.
Existe algum projeto ou instituição, que possibilite a transmissão dos conhecimentos
sobre a construção e execução da viola-de-cocho? Caso a resposta seja sim, como ocorre?
17.
Consegue se sustentar com a prática da viola-de-cocho em apresentações? Por quê?
18.
E, com a produção artesanal desse instrumento (s)? Por quê?
19.
E, ensinando?
125
20.
Por que não consegue se sustentar com sua prática com a viola-de-cocho?
RESISTÊNCIA
1.
Tem encontrado dificuldades relacionadas à prática da viola-de-cocho e em transmitir
conhecimentos? Quais são estas dificuldades? O que você tem feito para modificar as
dificuldades?
2.
O instrumento viola-de-cocho, o ganzá, o mocho, a dança e o canto, possuem a mesma
importância e o mesmo lugar nas festas da região de Corumbá e Ladário? Em quais festas? A
quem ou a que você atribui essa condição?
3.
E na mídia, televisão, rádio e outros, como a viola-de-cocho é vista?
4.
O que pensa sobre a música veiculada nesses meios de comunicação (na rádio, na
televisão e internet)?
5.
A sua música possui espaço nesses meios de comunicação (rádio, televisão e internet)?
Por quê?
6.
Qual a influência desses meios de comunicação na sua prática musical?
7.
E no ensino do instrumento, interfere ou não? Por quê?
8.
O que executa na viola-de-cocho e ensina, recebe influência desses meios (televisão,
rádio ou internet)? Exemplo.
9.
O que pensa sobre esses meios de comunicação?
10.
O que pensa desses gêneros ou estilos musicais que conhecemos por meio desses
meios de comunicação? Gosta?
11.
O que pensa da inclusão de estilos musicais diferenciados nas festas ou festa em que
participa tocando?
12.
Como você define a prática da viola-de-cocho diante das várias informações musicais
a que os indivíduos têm acesso diariamente? Interfere ou ajuda a criar músicas na viola-decocho? Por quê?
13.
E, como ocorre o ensino da viola-de-cocho? Interfere? Por quê?
14.
Sabe explicar porque ocorrem essas mudanças na cultura?

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