Edição n.º 2 - ESCS - Instituto Politécnico de Lisboa

Transcrição

Edição n.º 2 - ESCS - Instituto Politécnico de Lisboa
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ESCOLA SUPERIOR
DE COMUNICAÇÃO SOCIAL
PROPRIEDADE: ESCOLA SUPERIOR DE COMUNICAÇÃO SOCIAL • DIRECTOR: PAULO MOURA
PERIODICIDADE: TRIMESTRAL• MARÇO 2006 • Nº 2
250 à hora
POLÍTICA
Noites à
direita
Quando a discussão dos
blogues ganha forma e salta
para a vida real. Porque
também se pode fazer política
numa tertúlia. Pág. 9
em Lisboa
LETRAS
Música e
literatura
TODAS AS NOITES, QUANDO OS LISBOETAS SE RECOLHEM, A ESCURIDÃO TRAZ ÀS
RUAS DA CIDADE OS HÁBITOS ESQUIVOS DOS STREET RACERS. ATÉ QUE A POLÍCIA
APAREÇA, A ESTRADA É DOS ‘ACELERAS’.
Tomam-nos
o
espírito,
viciam a alma. A história
por trás de uma canção.
Sugestões de leitura onde o
pop e o heavy metal inspiram
a palavra. Pág. 24
MUNDO
BD na
Bélgica
O 8ª Colina é distribuído com o jornal Público e não pode ser vendido separadamente.
A tradição belga não é só
chocolate. Conheça Bruxelas,
a terra do Tintim e de outros
heróis. Pág. 14
MEDIA
Jorge Silva
designer
Fala da arte na Imprensa.
Aponta a inteligência e a
criatividade como meios
para alcançar o sucesso no
grafismo português. Pág. 22
DESPORTO
O jogo do
pau português
SOCIEDADE
FILIPE TEIXEIRA
Cinema
português
Uma italiana e um suposto americano com
ligações à Opus Dei encontram-se num banco da estação de Santa Apolónia. Passam o
resto do dia juntos, viajando pela cidade: Alfama, Belém, Bairro Alto. Descobrem uma
Lisboa diferente, que o realizador André Badalo mostra num filme rodado com baixo or-
çamento, e onde quase todas as personagens
falam inglês. Com apenas 24 anos, André
Badalo e a sua jovem equipa querem marcar a diferença no cinema português. Em “A
Escritora Italiana”, Lisboa é o cenário para
uma história de amor protagonizada por Lúcia Moniz e Diogo Morgado. Pág. 28
Há vida
no cemitério
Grupos de visitantes percorrem os caminhos labirínticos do Cemitério dos Prazeres. Porque um cemitério
também é feito de arte e de
história. Pág. 6
DOSSIER: UM DETECTIVE PORTUGUÊS
Os detectives não usam gabardina. Vivem no limite da lei, investigam os portugueses e cobram caro. Trabalho não lhes falta.
SOCIEDADE
MARÇO 2006 I 8ª COLINA
STREET-RACERS
A hora
do picanço
LUÍS FRANCO
ANDAM NA FAIXA DOS VINTE. SÃO INSENSATOS OU TALVEZ
HERÓIS, HERÓIS OU TALVEZ LOUCOS. APAIXONADOS PELA
VELOCIDADE, SUJEITAM-SE A TUDO - DE ACIDENTES DE
VIAÇÃO À CENSURA DA FAMÍLIA, DE MULTAS EXORBITANTES
AO RÓTULO DE “MARGINAIS”. SÓ CORREM DE MADRUGADA,
DENTRO DA CIDADE DE LISBOA OU EM ESTRADAS DA PERIFERIA. SEMPRE NA MIRA DA POLÍCIA.
SUSANA SANTOS
É a hora da escuridão taciturna,
das passadeiras desimpedidas e
das estradas vazias, tentadoras. O
alvoroço da cidade adormeceu há
muito. Indiferente ao avançar dos
ponteiros, que já ultrapassam as
duas e um quarto da madrugada,
um grupo de jovens conversa ao
relento, imperturbável pelo frio
e pela chuva, que cai miudinha
e intermitente sobre a chamada
‘Recta de Monsanto’. Ao longe, um
fragor irrompe com o arranque de
um motor, concentra as atenções
sobre um pequeno Fiat Uno Turbo IE, que desce a estrada imensa acordando vários ecos. “Há aí
carro para a turbina?”, desafia o
rapaz do volante, fazendo descer
o vidro e passando o olhar rápido
pelos carros desportivos estacionados ao acaso. Entre o grupo decide-se sem demora que é Pedro
J. quem deve ‘puxar’ com o seu
Citroën Saxo Cup. Mas Pedro discorda, olha em volta, alerta para o
brilho húmido da estrada. Hesita.
“Pff! Com esse arranco de primeira ou de segunda. É como ele quiser”, atira o rapaz do Fiat Uno, o
olhar diluído na sombra da pala do
boné, os lábios torcidos no esboço
de um sorriso. “Muito bem”, acede Pedro, de orgulho espicaçado.
“Arrancamos de primeira logo a
seguir à rotunda”. Não tem a certeza de estar a proceder bem, mas
tem a certeza de estar a proceder
segundo a sua vontade.
Ao contrário do que é habitual,
não há carros a derrapar na rotunda, nem círculos de pessoas a
conversar nas bermas. Em noites
de Inverno, até para os ‘aceleras’
os níveis de adrenalina se tornam
insuportáveis. E, vista assim, imersa numa penumbra só vagamente
entrecortada pela luz amarelada
dos candeeiros de rua, a admirável
estrada parece ter a medida da eternidade, o sentido inelutável do caminho sem volta para a perdição.
Pedro vai adiantar-se no arranque, vai atingir os 150 km/h e vai
vencer a corrida com larga vantagem. Pratica, afinal, street racing
há quase quatro anos, desde que
recebeu o seu primeiro automóvel - um Peugeot 106 GTI - como
prenda no dia em que completou
18 anos. “Nessa altura encontrávamo-nos num café em Cascais, o
‘Festa Brava’, e os ‘picanços’ eram
feitos na A5”, recorda. Rapaz boni-
to, de olhar brando e um sorriso irresistível, o cabelo castanho claro
a cair-lhe sobre a testa e uma covinha no rosto, tenciona candidatarse a agente da PSP, a profissão do
pai. Até lá, vai continuar a ‘picarse’ com os amigos, “em rectas com
poucos ou nenhuns carros e, de
preferência, a horas tardias”.
Todas as noites, à hora marcada,
o recinto das bombas de gasolina da
Encarnação, à beira da 2a Circular,
enche-se de ruídos de escape e animadas conversas. Trata-se de um
grupo de organização espontânea,
nascido de contactos criados através da internet. Dezenas de jovens,
todos do sexo masculino, entre os
20 e os 30 anos ou ainda adolescentes. Chegam em Citroën Saxo Cup,
Peugeot 106 GTI, Fiat Punto GT,
Honda Civic VTI, Volkswagen Polo
G40, Seat Ibiza TDI - os carros preferidos dos street racers. Porque “são
baratos, bonitos e andam bem”, justificam. Só correm de madrugada,
dentro da cidade de Lisboa ou em
estradas da sua periferia, sempre
na mira da polícia. Entre um sítio e
outro, repetem corridas informais sem local previsto, sem hora marcada, apenas todos juntos a ver quem
arranca mais rápido, quem chega
na frente, quem efectua a manobra
mais arriscada. A adrenalina a latejar, a circular furiosa nas veias, devorando o bom senso, justificando
as horas vividas à escala grandiosa
do risco, da coragem e da proximidade com a morte. Chegam a dormir
apenas quatro horas por noite, a
maioria ocupa o dia num emprego.
O preço da adrenalina
Diogo, 25 anos, destaca-se no numeroso grupo de rapazes. Magrinho,
de pescoço alto e frágil, tem um
ar de miúdo e um olhar que se ar-
queia como um arco-íris. Não fala atrai, já me deixei dessas coisas.
sem um sorriso. Dentro do Renault Por ora quero apenas divertir-me,
Clio RS - de vidros escurecidos - dá alinhar numas ‘brincadeiras’ com
à chave e acelera só para ouvir o os amigos”.
motor. Agora que mandou retirar
Com as mãos nos bolsos, proo catalisador e as panelas silen- tegidas do vento cortante, Pedro
ciadoras, o escape ruge como um e os amigos conferenciam sobre
leão. O cabelo rapado e as orelhas o sítio para onde ir em busca de
saturadas de argolas testemunham uma corrida capaz de animar a
a rebeldia que o caracteriza e que, madrugada. Com ar de entenditantas vezes, se torna maior do que dos, comentam cada carro que
ele e o leva a fazer coisas absurdas, chega. “Lindo!”, exclama um;
por absoluta tentação de desprezar “Que som!”, admira-se outro,
o perigo. “A minha família não ao verem estacionar um exuaprova, mas já se habituaram a vi- berante Audi S4 amarelo. Um
ver com o coração na boca.
deles fala pelos cotovelos, outro
Excêntrico
escuta apenas
mas respeitá- Uma noite, Diogo
e sorri, outro
vel, Diogo é despistou-se a 250
arrisca
uma
daquelas pespiada improvikm/h. “Saí de lá a rir!
soas de quem
sada, outro esse pode dizer E ainda fui levado para
taciona o olhar
que vivem para o hospital no carro do
maravilhado
aquilo.
“Cernos carros que
rapaz que se estava a
ca de 80% do
sonhava
ter,
meu ordenado ‘picar’ comigo”.
alheio às palaé aplicado no
vras dos vultos
carro”, revela o operador de call humanos que não ouve nem vê.
center. Tem o olhar esgazeado, Um rapaz de boné escuro e olhos
mas as palavras caem-lhe da boca esbugalhados anuncia que está
com uma força bruta, convicta. interessado em comprar um CiCom a mesma convicção, talvez, troën Saxo Cup ‘artilhado’, pede
com que Diogo pressionou o ace- para ser avisado caso alguém
lerador na noite em que se despis- conheça quem queira vender
tou na Ponte Vasco da Gama a 250 um, “de preferência preto”, “não
km/h. “Saí de lá a rir!”, exclama. mais de oito mil euros”.
“E ainda fui levado a alta velociUns metros adiante, de telemóvel
dade para o hospital no carro do encostado ao ouvido, Bruno alerta
rapaz que se estava a ‘picar’ comi- um amigo: “Vamos à Ponte [Vasco
go”. Não há quem o desminta, a da Gama] com os Hondas e com os
começar por Bruno D.: “Já bateu GTIs, aparece!”. Cabelo curto, penduas vezes: uma na Ponte [Vasco teado, a gola do casaco afogando-lhe
da Gama] e outra com o [Peugeot o pescoço, tem um sorriso repuxa106] GTI”. “Ó, essa nem conto!”, do de orelha a orelha e equilibra os
replica Diogo, com o desprendi- olhos rutilantes sobre umas olheiras
mento de quem diz as coisas sem escuras. “Faço street racing desde os
pensar muito nelas. Mas acrescen- 17 anos”, começa. “Comprei carro
ta, agora sério: “O perigo não me antes de ter carta, até tinha seguro e
SOCIEDADE 8ª COLINA I MARÇO 2006
tudo. Ia com ele para a escola de con- quinas’, há quem garanta: “O Mini
dução, estacionava-o lá ao pé e tirava vai à frente”. Mas, do cimo do seu
o carro da escola”, conta numa gar- metro e oitenta e cinco de altura,
galhada. Foi sócio-gerente de uma um rapaz constata que “não”, que
empresa de informática e, durante “quem vai à frente é o Punto”.
dois anos, pôde viver noites em que,
Raul S. está sem carro há quase
só em gasolina, desbaratava mais de um ano. Tentou vender o Citroën
100 euros. Hoje, com 24 anos, “ganha Saxo Cup a um ‘acelera’ que anbem”, o suficiente para manter qua- dou com ele à experiência durante
tro automóveis, o Punto GT com que mais de seis meses. Quando o recucorre, um Citröen Saxo comercial, perou, a pintura vinha riscada, os
um Mazda 323f e um Porsche 944.
pneus furados, os vidros partidos.
Apesar da vontade de seguir ca- Os espelhos reflectores haviam
minho, o momento adia-se. Dentro sido arrancados e faltavam peças
do carro, há já quem se impaciente: no motor. “Invejas”, acusa. Alto,
“‘Boraaaa!”. Mas Bruno sabe que largo de ombros, face magra de
vai chegar mais gente. Diogo, que energia e ânsia, fala com um empese tinha distraído a mimar o Clio nho vigoroso e abusivo. “Sou como
RS, chega-se à frente e sugere que a os gatos: tenho sete vidas!” Aos 28
correria comece
anos,
possui
por São Domin- O carro do Raul não
uma caixa de
gos de Benfica, tem bancos (para além
sapatos - que
onde Pedro diz
“não consegue
do de condutor), nem
conhecer uma
fechar” - repleta
recta magnífica. o forro das portas e da
de multas e está
Um rapaz grita base. “Tirei tudo para o
a tirar a carta
“Benfiiiica!” e
pela
terceira
tornar mais leve e
sorri.
Outros
vez. Sempre foi
enrugam a tes- mais rápido”.
de se aventurar
ta e dizem que
nas
estradas,
preferem ir para Monsanto. “Em de mota antes de ter carro, de biMonsanto vai aparecer a polícia”, cicleta BMX antes de ter mota.
contrapõe Diogo, com a certeza de “Cheguei a fazer a Roca a pé para
quem já sabe uma data de coisas. apontar as curvas num papel”. Ti“E por que não irmos para a Ar- nha, na altura, 16 anos. Quando,
rábida?”, tenta um rapaz de olhar mais tarde, comprou o primeiro
alucinado. “Metemos mas é pela carro, pôde finalmente ‘picar-se’
A2 e vamos até ao Algarve!”, brinca com amigos do costume, na MarDiogo. “‘Boraaaa!”. Bruno franze ginal pela madrugada fora, ou no
o sobrolho. “Deixa aí um bilhete”, Parque Industrial do Feijó aos dopropõe Diogo, com ar de gozo. “FO- mingos de manhã. “Não faço isto
MOS PARA MONSANTO”.
para ser visto como um rebelde ou
como um criminoso; faço-o por diViver para desafiar
versão”, assevera. “Diverte-me ter
“Os meus pais não aceitam que eu como base um carro semelhante
faça street racing. Não lhes minto ao dos outros e conseguir transsobre o sítio para onde vou, mas formá-lo em algo superior, ou seja,
não lhes digo o que vou fazer ao mais estável e mais veloz”. É por
certo. Digo apenas que vou tomar isso que o Saxo Cup do Raul não
café com uns amigos”, Pedro en- tem bancos (para além do banco de
colhe os ombros e sorri. “Sabemos condutor), nem o forro das portas
que isto é perigoso, mas tentamos e da base (só chapa). Não abre os
que seja o menos possível”, re- vidros, não tem porta-luvas nem
mata. Às sextas e sábados à noite limpa-vidros sequer. “Está todo
Monsanto pertence aos ‘aceleras’.
‘descascado’. Tirei tudo para o torNuma recta extensíssima, li- nar mais leve e mais rápido”.
mitada por duas grandes rotundas, um BMW Mini Cooper e um Bebé a bordo
Fiat Punto GT correm lado a lado, Simetricamente dispostos, os candeatingindo os 200 km/h. Dezenas eiros de rua projectam, sobre o alcade carros desportivos acumulam- trão negro, o seu clarão amarelado
se, serenamente encostados, nas e mortiço. Um Volkswagen Polo G40
faixas de estacionamento que
ladeiam a estrada. É meia-noite e um quarto; grupos de street
racers multiplicam-se até onde a
vista alcança. O céu está encoberto, o ar húmido, mas as nuvens,
embora muito baixas, não parecem ameaçar chuva.
“Há quem goste de ir ao futebol,
quem goste de ir a concertos. Nós
preferimos meter vinte euros de
gasolina e vir para aqui”, adianta
Pedro, que é adepto fanático do
Benfica e só compara o culto do
street racing à “devoção” que diz
sentir pelo clube. “O meu carro é
a minha vida, não consigo viver
sem ele”. No fundo da rua, esfregando as mãos com frio e abrindo
os olhos com espanto, comenta, entusiasmado, a disputa entre o Mini
Cooper e o Punto GT. À sua volta,
de olhar pregado nas velozes ‘má-
desce até à rotunda, ladeia o grupo
de Pedro cuspindo ‘rateres’ (explosões de gasolina no interior do escape), força a travagem no fundo da
rua. Inverte a marcha e volta a subir, derrapando no arranque. “Está
a chamar-te!”, descodifica Diogo.
“Está a chamar o Saxo!”. “Está é a
chamar o Clio! O Saxo está escondido”, replica Pedro, sob o olhar
divertido do primo, street racer há
sete anos. A boina preta virada para
trás, a barba fina despontando, David F. teve o seu primeiro ‘picanço’
na Suíça, onde, ainda adolescente,
descobriu um meio onde reina a camaradagem e uma prática que leva
os seus adeptos a alterar estruturalmente os automóveis e a organizar
corridas ilegais nas ruas das cidades. De média estatura, olhos escuros, nariz fino e corpo a fugir para o
franzino, tem uma empresa de construção civil e uma filha recém-nascida. Com um sorriso de pai vaidoso,
convida a espreitar para dentro do
Seat Leon cinzento, onde a pequena
Rafaela dorme tranquila nos braços
da mãe, protegida do frio.
Junto à rotunda ouvem-se carros a derrapar. Vrummmm. O
Mini Cooper e o Punto GT estão
de volta. Colocam-se lado a lado e
recomeçam a corrida. Uns metros
adiante, um Fiat Coupe 20V acaba
de deixar um Ford Sierra Cosworth para trás. Segundos depois, um
Mazda RX7, um Opel Corsa e um
Suzuki Swift largam numa correria insana. David acompanha-os
com o olhar até serem devorados
pela escuridão. À sua volta não
falta quem o tente atiçar: “Vai
lá!”, encoraja um; “Estão à tua
espera!”, tenta convencer outro.
A recusa é categórica: “Tenho a
bebé dentro do carro”.
A cada largada, um eco grave
prolonga-se pela estrada até ao
vazio da planície adivinhada ao
longe, como um cerco infinito
ao ritual diabólico. Na recta já
se conta para cima de uma dezena de automóveis. Florindo dos
passeios, vários sinais indicam
a velocidade máxima permitida
- 50 km/h - e advertem: reduza a
velocidade. Eles aceleram. Dez,
doze, quinze carros acelerando
para cima e para baixo, os pneus
girando vertiginosamente, os
motores zumbindo como uma
LUÍS FRANCO
obsessão, espectros à beira da es- de Benfica. “Monsanto já está
trada, espectros à beira da morte, muito apertado pela Polícia. É
invertendo a ordem das coisas, preciso explorar sítios novos”,
reinventando a alucinação numa argumenta. Na recta, o Mazda dá
disputa sem regras nem moti- espectáculo. Numa disputa com
vo aparente. Tão ardentemente o Suzuki, adianta-se e chega na
quanto se nela depositassem to- frente. “Eu já não me meto com
das as funções da sua alma - espe- o Mazda! Há para aí algum Fiat
rança e vontade de viver.
Panda que se queira ‘picar’ comiO tempo ficou mais fechado. O go?”, graceja-se com humildade.
céu, que estiara, faz agora caretas Os comentários sucedem-se, os
profetizando aguaceiros. Lado a diálogos cruzam-se e, apesar da
lado com um Citroën C2, um Seat hora tardia, não há bocejos nem
Leon cinzento sobe e desce a rec- pressa de ir para casa.
ta, sempre acima dos 180 km/h.
Vrummmm, “Sempre deu para
David tinha-se esgueirado para aquecer!”. David está de volta.
dentro do carUma veia pularo e acelerou “Carta de condução
lhe, ainda em
estrada
fora,
sobressalto,
e livrete”, exige,
decidido a venna testa muicer a corrida. autoritário, um dos seis
to alva. Sorri“Com a filha lá agentes policiais. Era o
dente, desliga
dentro e tudo”,
o motor em
fim do espectáculo.
constata Bruebulição e já se
no, risonho de
prepara para
tolerância. Foi mais forte o apelo se juntar à conversa. Mas uma
da estrada. Transfigurado pela sombra de desânimo cobre-lhe,
adrenalina, David aperta ligeira- de repente, a face inebriada.
mente a boca, põe uma rugazinha Uma carrinha de intervenção
na testa, arregala os olhos e acele- da PSP acaba de entrar na rua.
ra. E lá vai o Leon, bordejando ao Contorna a rotunda e estaca
ritmo dos 140 cavalos.
por trás do Leon, encurralandoo. “Na Ponte [Vasco da Gama]
Fugindo à polícia
costumam andar com carros à
Excitadíssimos, Pedro e os ami- civil, mas nós já os conseguimos
gos são incapazes de manter o si- identificar”, revela Pedro. “Os
lêncio: “O Corsa está em todas!”, que são apanhados fixam as ma“Está a chamar-te, vai lá!”, “O trículas e depois partilham com
Corsa não pára!”, “Vai lá! Vai o resto do grupo”, acrescenta enlá!”, “O Clio já devia estar na tre dois risos.
estrada!”. Encostado ao Renault
Era o fim do espectáculo. E
Clio RS, Diogo insiste na ideia começou a debandada geral,
de ir “espreitar” São Domingos sob uma chuva branda. “Carta
de condução e livrete”, exige,
LUÍS FRANCO
autoritário, um dos seis agentes policiais. Fala baixo, quase
em surdina, mas a sua voz distingue-se claramente no grande
silêncio que é agora Monsanto:
bastaram breves segundos para
restituir à longa estrada a sua
obscuridade fosca e silenciosa.
Com o David, ficou apenas Bruno. O seu carro foi levado pela
namorada. Diligente, o agente da
polícia confere os documentos e
manda seguir. O automóvel não
está alterado, fora comprado há
três dias... David arranca a fundo e liga os quatro piscas. Vence
a recta a 70 km/h, com as quatro
luzes a piscar. Lá em cima, às
voltas na rotunda, o grupo espera-o, prontinho para zarpar para
São Domingos de Benfica. A noite está a longas horas do fim. •
SOCIEDADE
MARÇO 2006 I 8ª COLINA
BAIRRO DO REGUEIRÃO DOS ANJOS
“Estamos enterrados na merda
mas estamos vivos”
SÍLVIA CANECO
“Estamos enterrados na merda
mas estamos vivos”. Rasteja junto
ao chão, camisa de quadrados rudes, cabelo rapado, corpo estreito,
mãos a arrastarem-se pelo caminho de pedra como se suplicassem.
Fala alto. Palavras que surgem tão
abraçadas que nem se lhes percebe
o sentido. Alguns dos sons ficam
encravados na garganta. Os que se
desprendem saem imperceptíveis,
bruscos, lestos, desarmados. Tem
os botões da camisa abertos e está
indefeso. Rendido a ela. A palavra
que ali ninguém ousa dizer. André é o nome fictício. Também não
ousa revelar o seu nome.
Um homem corpulento, de cabelos longos, cor de cinza, calças
de ganga gastas, vai arrastando as
pernas enquanto aquele não pára de
deslizar. Bate o pé direito abruptamente no chão. E grita-lhe do topo
da sua voz grave e feroz: “Queres
ou não queres que faça esta merda?”. André continua. Suplicante
nas muitas palavras que não se entendem. Rastejante. Arrastando os
membros de uma só vez, em gestos
velozes. Como um réptil.
NAZARET NASCIMENTO
O Regueirão dos Anjos
A descida é íngreme. Portas de garagem ferrugentas, letras esgravatadas
nas paredes sujas. Casas velhas de
HÁ O REGUEIRÃO DOS ANJOS E UM “BICHO” QUE RÓI A CARNE. HÁ ROSTOS SEM NOME POR BAIXO DAS ARCADAS. VOZES
QUE NÃO OUSAM DIZER A PALAVRA. FRASES NA PAREDE POR
DESCODIFICAR. “ESTAMOS ENTERRADOS NA MERDA MAS
ESTAMOS VIVOS” É UMA FRASE DE UM BAIRRO PERTO DO
INTENDENTE. E É O MELHOR RETRATO DE UM LUGAR ONDE
CHEIROS INSUPORTÁVEIS TOMARAM CONTA DAS RUAS E UM
VÍCIO TOMOU CONTA DOS CORPOS
um lado e do outro. Vidros partidos
nas janelas senis. Saídas esguias e cavernosas. “Alcatifas-Vinil-Flutuante”, “Confecções em pele, arranjos e
limpeza”. Por baixo de uma varanda
de metal com roupa ao sol uma placa
assinala: “Regueirão dos Anjos”.
O Regueirão é um bairro que desagua na Almirante Reis. Vizinho
do Intendente. Também problemático mas muito menos mediático. Os
problemas são basicamente os mesmos. Aqui ou ali não é difícil encontrar vestígios. Cartões no chão e pessoas a dormir nas ruas. Todas elas
com problemas de toxicodependência mais ou menos avançados. Aqui
ou ali não é difícil tropeçar numa seringa ou num limão podre. Ver uma
corda presa à força num braço. Ou
até alguém a procurar uma veia nos
sítios mais improváveis.
O homem de cabelos longos bate
o pé e berra cada vez mais do alto
da sua voz grave e da sua impaciência. “Pediste. Agora queres ou não
queres que faça esta merda?” Agarra-o pelo cinto das calças e coloca-o de joelhos soterrados no chão, à
força. Flecte as pernas para ficar
mais baixo e com a palma da mão
esquerda, grosseira, segura-lhe o
queixo bicudo. E, num ápice, fá-lo.
Palavras cruzadas
Não fosse esta cena e esta seria
até uma noite bem calma no Regueirão. É segunda-feira, onze da
noite, e as ruas são praticamente des esburacadas. Por baixo de uma
de ninguém. Por vezes, nas horas das arcadas, a abrir a porta de casa,
da distribuição de alimentos e aga- Arminda, nome fictício, apronta-se
salhos, chegam a juntar-se às deze- a colocar o indicador frente à boca
nas: habitantes mais desfavoreci- e ao nariz e a estender ligeiramendos, os que pernoitam pelas ruas te os lábios. Mal se ouve sibilar
daquele bairro e até foragidos do um “chiu”. Empurra para dentro,
Intendente, onde as carrinhas de espreita um e outro lado da rua e
caridade já desistiram de entrar. É arrasta a porta, apressadamente.
quase sempre um caos.
Não quer que ninguém se aperceOs presentes no único restauran- ba do que diz. Conduz até à janela
te do Regueirão olham apreensivos e num rodopio de gestos fala de um
e demoram a soltar um único som, só fôlego: “Já viu o que é isto todos
como se tivessem feito voto de silên- os dias? Eles não me fazem mal,
cio. Passam a missão de um para ou- mas quando andam aí doidos para
tro, tal qual batata quente. Quando arranjar aquelas porcarias. É quaum começa, a situação inverte-se. se sempre uma barulheira e ninFalam todos, atropelando-se. E con- guém consegue dormir. Vir à janetradizem-se. “Estes aqui nós man- la é um problema. Nunca se sabe
damo-los embora e eles
o que nos
obedecem”. “Aqui nin- Aqui ou ali não é difícil
espera.
guém se mete connosVeja lá
encontrar vestígios.
co”. “Às vezes andam
que
às
para aí aos gritos e a Cartões no chão e
v e z e s
cambalear”. “O proble- pessoas a dormir
chegam
ma é das carrinhas que
a
estar
nas ruas.
depois trazem para
a injecaí os do Intendente”.
tar-se
“Eles não fazem mal, coitadinhos”. todos nus”. À saída, dois homens
“Já viu o mau aspecto? Qualquer na casa dos trinta, olhos arregaladia estamos todos no desemprego dos, fazem um ar intrigado. Ali, os
por causa dessa bodega”.
olhares desconfiados são a sombra
Segue-se a via estreita. Casas de qualquer um que seja tido como
velhas de um lado e do outro. Vi- desconhecido, estranho, invasor.
dros partidos nas janelas senis.
Mensagens por decifrar nas pare- O cheiro da palavra proibida
Segue-se a via estreita, casas velhas de um lado e do outro, intensidade de tráfego anormal. Chega-se
a uma saída. Dois vãos de escadas
e sai-se do Regueirão. Minutos antes, uma das empregadas do restaurante aconselhava a não entrar
lá: “Olhe que é perigoso”. Curiosamente, estão quase inteiramente dadas ao abandono. O cheiro é
repelente. Fede. Cheira a urina.
Cheira a fumo. Cheira a vómito.
Cheira a podre. Cheira a merda.
Cheira à palavra que ninguém diz.
Cheira ao alimento que o bicho
que se apodera dos corpos pede. A
mistura entranha-se nas narinas,
cola-se às roupas, penetra na pele
como se não nos quisesse deixar.
Do cimo das escadas, L. Olívia
mete conversa. É mulato e tem uns
olhos grandes, cor de amêndoa,
vistosos. Está vestido de cabedal,
quase dos pés à cabeça. Prossegue
até ao quarto feito de improviso,
no passeio, debaixo do varandim
de um prédio. O único acompanhante, Brasileiro, sai alguns instantes depois, com a desculpa de
ir trabalhar, a arrumar carros. L.
Olívia vê-o desaparecer ao longe
e apressa-se: “O feitio dele não dá
para ir aí para os dormitórios. Ele
gosta mais de se sentir solitário do
que de ser contradito. É o que se
passa com muita gente daqui”.
L. Olívia, nome com que se identi-
SOCIEDADE 8ª COLINA I MARÇO 2006
fica nos desenhos que pinta e que ter tomado o pequeno almoço”.
se apronta a mostrar, de sorriso Entreabre os olhos e faz um ar degarboso. Há três anos que está liciado com os seus pensamentos:
num dormitório, mas não são ra- “Se eu agarrasse nos 10 ou 20 euros
ras as vezes em que acaba por dor- que gasto e fosse a um bom restaumitar no Regueirão. Conhece bem rante, beber um bom vinho…”
a palavra que não diz. Ao seu lado
Um rapaz muito alto, de barrete
uma seringa denuncia-o. “Isso é de vermelho, passa e faz ar de caso.
um gajo que chegou aí ontem e se Olha dos pés à cabeça. Inspeccioinjectou e bazou”, afirma, baixan- na. “Posso-te ajudar? Já te vi ali em
do o rosto logo de seguida como baixo… Precisas de alguma cena?”
um menino envergonhado, com L. Olívia interfere. Responde que
a culpa a transformar-se no sal está tudo sob controle. O outro
dos olhos. “Já
continua a não
tentei parar e A mistura entranha-se
estar satisfeito:
não consegui.
“Vê lá, se ‘tás
nas narinas, cola-se
Prefiro fumar
à procura da
a injectar mas às roupas, penetra na
cena eu arranàs vezes a sede pele como se não nos
jo tudo o que
é tanta que é
tu
quiseres”.
quisesse deixar.
tudo o que vier.
Avança
aos
Sinto-me bem
galopes, olhos
naquele momento e depois sinto- azuis, enormes, esbugalhados, enme mal com a situação. Às vezes terrados no chão.
com a ansiedade da droga chego a
passar fome. Como há muitos aqui
A memória é testemunha
que a esta hora ainda não devem
A L. Olívia nada do que passa no
Regueirão lhe é alheio. “Não somos inchar e a dor é horrível. Dói como
muitos mas sofremos do mesmo”, se um bicho nos estivesse a comer
adianta. “Alguns andam para aí a a carne”, desabafa, mostrando os
fazer uns biscates para comprarem buracos fundos cravados nos brae quando chegam ali ao Intendente ços e nas pernas. E continua, olhos
são assaltados ou levam com dro- concentrados na pele sem carne: “O
ga falsa. É um problema. Pensam vício é isto mesmo: um bicho. Róique compraram
nos por dentro.
heroína ou co- Num zás a agulha
A
ansiedade
caína e acabam
é tanta que se
enterra-se na pele e
por injectar asvende tudo e supirinas desfei- as mãos suplicantes
jeita-se a tudo.
tas, farinha ou desenterram-se
A alimentação
mesmo aquele
e a higiene já
do chão.
pó castanho…
não importam.
aquele que se
O bicho rói-nos
mistura no leite…”
e queremos travá-lo. O vício fazDiz que já viu gente a morrer nos animais. A ansiedade é como…
por causa do vício. Homens que se- uma besta… um tumor. Ou nós desdosos se injectaram no pescoço e fi- pejamos alguma coisa no corpo ou
caram com um cancro na garganta. ela não pára de atormentar”.
Meninas mulheres a procurarem A cena daquela noite entre André
uma linha azul nos contornos de e o homem dos cabelos longos, cor
um peito. A memória é testemu- de cinza, acabou assim: o jovem
nha e o corpo é vítima. “O injectar de camisa quadriculada já não diz
faz isto, fica-se com hematomas. E palavras que se entendam. Enterquando a droga é falsa começa a ra os nós dos dedos das mãos por
entre as pedras, como se o chão
fosse uma cova sem fundo. Treme.
O homem dos cabelos longos age
com a velocidade e a indiferença
dos mais experientes. O gesto tem
de ser certeiro. As mãos de André
estão enterradas no chão. E suplicam. As mãos do outro hesitam
entre um e outro lugar próximos
do olho esquerdo. Num zás uma
arma bicuda prestes a agir. Num
zás a agulha enterra-se na pele e as
mãos suplicantes desenterram-se
do chão. A seringa salta por entre
o véu dos cabelos longos cinzentos
que partem sem um dizer. O rapaz
de camisa aos quadrados afundase no chão, peito da camisa aberto,
olhos bem abertos ao céu, extasiado. Mergulha na noite. Por trás de
si, a frase escrita na parede é palavra de ordem. E fala do “bicho”,
do “vício”, do “tumor”. E também
não diz a palavra que ninguém diz.
Estamos enterrados na merda mas
estamos vivos. •
MOVIMENTO MASSA CRÍTICA
Passeio dos alegres
INÊS HENRIQUES
Novembro, última sexta-feira do
mês, 18.00h, Marquês de Pombal. O
corrupio da hora de ponta desfila a
passo de caracol à volta da rotunda.
Rostos desfigurados pela fadiga e
pela urgência amontoam-se nos autocarros ou esperam eternamente
nas paragens. Não vale deixar ninguém passar à frente na fila. Um ruído de corneta sobrepõe-se timidamente ao concurso de buzinadelas
e cativa o olhar dos mais curiosos
para a porta do Hotel Fénix. Daquele palanque propositado confundem-se com as figurinhas natalícias
das decorações do Marquês: barretes vermelhos, Pais-Natal a rigor,
uma rena Rodolfo. Só as bicicletas,
os capacetes e os coletes reflectores
os distinguem. Uma lista de assinaturas passa de mão em mão, distribuem-se os flyers para dar a outrem,
enfeitam-se as bicicletas com fitas e
luzes e os dois “gurus das manobras” mais arriscadas deleitam o
olhar dos transeuntes. À partida,
a chuva pára milagrosamente e as
vinte e cinco bicicletas cumprem
o ritual ostensivo: duas voltas desembaraçadas à rotunda, por entre
a roda-viva de automóveis, antes
da mensagem colada a preceito nas
costas: “Um carro a menos”.
Um movimento global
Em 2003, na cidade do Porto, um
núcleo de pessoas ligadas ao Grupo
de Acção e Intervenção Ambiental
(GAIA) iniciava naturalmente um
passeio de bicicleta pelas ruas da cidade, como forma de protesto contra
a utilização crescente dos meios de
transporte poluentes. A ideia surgira em São Francisco, nos EUA, no
ano de 1992, sob a designação de Critical-Mass e, em breve, despertaria
LUÍS FRANCO
curiosidade em centenas de cidades
por todo o mundo. Em Portugal, o
movimento chegou em poucos meses a Lisboa e começou por ser muito
reivindicativo, reclamando o fim do
“despotismo do automóvel” e o espaço da bicicleta nas ruas e alertando
para o facto de o sector dos transportes ser um dos mais poluentes. Eram
muitos os participantes que usavam
máscaras antipoluição durante o
passeio, numa atitude um pouco
agressiva perante os automobilistas.
Ricardo Sobral participa na
“Massa Crítica” (MC) desde a sua
primeira edição em Lisboa e arrisca que, a certa altura, a afluência
de pessoas começou a decrescer,
devido a um certo tom “de manifestação, de que as pessoas já estão
fartas”, que o movimento assumiu.
A necessidade de reconquistar a
atenção dos cidadãos obrigou a que
o protesto se transformasse numa
“acção directa, saudável, pacífica,
didáctica e divertida”. Ricardo vê
a MC como uma “celebração, uma
festa” e considera-se ele próprio
um “actor que encarna várias personagens” no “palco” que é a rua.
Hoje é um Pai-Natal e vai oferecer
chupa-chupas e rebuçados durante
o passeio, ao invés das habituais
“flores às senhoras”.
Um movimento espontâneo
A MC sempre se definiu como sendo
um movimento “apartidário, não
comercial, onde não há hierarquia
de cargos” e sobretudo espontâneo,
feito pelos que comparecem ao passeio mensal e divulgam a causa. Mas
as causas foram-se alargando. Os
participantes já não são apenas utilizadores de bicicleta ou activistas
ecológicos e a própria alteração do
nome do movimento acompanhou
essa evolução: de “Bicicletada”, ainda no Porto, passou a designar-se
por Massa Crítica, à semelhança das
restantes cidades em que a “coincidência organizada” acontece. Não
só porque se pretende estimular a
utilização de outros meios de transporte não poluentes que não apenas
a bicicleta e até “há pessoas que
aparecem na MC de trotineta, skate
A maior preocupação da MC em
ou patins”, mas também porque as termos de segurança é relativa ao
críticas e as intenções são hoje mais actual Código da Estrada português,
abrangentes. Para Ricardo, o mais que Ricardo descreve como sendo
importante não é só a mobilidade “atrasado” em relação à maioria dos
urbana sustentável, mas sobretudo países europeus, porque ainda vê a
a qualidade de vida e a “vivência” bicicleta “como um meio de transna cidade. É preciso criar condições porte arcaico”. Primeiro, porque
e vontade de viver, trabalhar e estu- acaba com a prioridade em cruzadar em Lisboa. É preciso aumentar mentos para este meio de transporte
a “comunicação entre as pessoas na (art. 32º). Em segundo lugar, porque
estrada”, acabar com a inseguran- obriga o ciclista a ter uma condução
ça, reduzir os congestionamentos defensiva e a circular o mais próxie o stress que daí advêm. É preciso mo possível de bermas ou passeios
encurtar as distâncias e provar que (art. 90º), retirando-lhe a responsaa bicicleta é uma alternativa realis- bilidade de avaliar a sua própria
ta para muitos percursos, que não segurança e o direito a circular pelo
tem apenas fins recreativos, mas centro da via.
também uma utilização urbana viáCom o apoio de outras entidades,
vel e que é uma ilusão dependermos como a Federação Portuguesa de Cido automóvel para organizarmos as cloturismo e Utilizadores de Biciclenossas vidas. É preciso, em última ta (FPCUB), os participantes da MC
análise, criar uma espécie de “con- estão a recolher assinaturas junto
fronto social” salutar, “que é a base dos seus apoiantes, para que a necesdo desenvolvimento em sociedade” sidade de alterar o Código da Estrada
e que, para Ricardo, pode começar seja discutida na Assembleia da Rena estrada, pela
pública.
convivência en- “O Código da Estrada
Quando
o
tre automobilisgrupo regressa
português é atrasado
tas e ciclistas.
ao Hotel Fénix,
porque ainda vê a
duas horas deUm movimen- bicicleta como um meio
pois, já a massa
to cansado
dispersou junto
de transporte arcaico.”
Há muito que Riàs portas de casa
cardo Sobral não
e algum cansaço
faz uso da carta de condução no seu é visível entre os resistentes. Condia-a-dia e está habituado a deslocar- tam-se histórias de um percurso
se sempre de bicicleta, pela estrada decidido na altura: Avenida Fontes
e mesmo pelas ruas mais íngremes Pereira de Melo, Saldanha, Avenida
de Lisboa. Por isso, quando no ano da República, Campo Grande, Avelectivo passado interrompeu os es- nida 5 de Outubro…Entre aplausos
tudos de Antropologia na Faculdade e ovações à passagem dos Pais-Nade Ciências Sociais e Humanas da tal sobre rodas, alguma apreensão,
Universidade Nova de Lisboa para já familiar, dos condutores pouco
fazer Erasmus na Dinamarca, sen- habituados àquela invasão do seu
tiu dificuldade em se adaptar à rede tradicional espaço público. A cornacional de ciclovias. Ao contrário neta já não é tímida e celebra o sende muitos utilizadores de bicicleta, timento de missão cumprida, mais
acredita que estas infra-estruturas uma vez. Deu nas vistas, mas não
não são fundamentais em termos de superou o ruído do tráfego, agora
segurança, pois a estrada deve ser mais disperso junto à rotunda. Na
partilhada e as bicicletas “não de- próxima MC é “preciso trazer múvem ser segregadas do trânsito”.
sica para compor a festa”. •
SOCIEDADE
MARÇO 2006 I 8ª COLINA
NECROTURISMO
Mortinhos por uma visita
SÍLVIA DIAS E
TÂNIA REIS ALVES
As nuvens negras e carregadas
a anunciar um fim-de-semana
molhado não os assustam. Vêm
munidos de gabardinas e guarda-chuvas, mas as máquinas fotográficas que trazem ao pescoço
estão prontas a disparar. São
turistas na sua própria cidade,
cheios de bom humor, apesar
da hora matutina. Estamos no
Cemitério dos Prazeres e só falta que Licínio Fidalgo, o guia,
cruze os portões enfeitados com
símbolos maçónicos para que
mais uma visita se inicie. Enquanto isso não acontece, compram-se os bilhetes de acesso.
Dois euros por pessoa, grupos de
dez sai mais barato, os estudantes não pagam.
Para ingressar no mundo dos
mortos é preciso mostrar o número de contribuinte. Olhares
de espanto, as frases do costume:
“É este o país que temos”.
O guia aparece. Nas mãos traz
a cábula, que pede desculpas por
utilizar, e uma grande lanterna
amarela. Conta que existem dez
percursos possíveis para as visitas, mas que estes também podem ser estabelecidos consoante
os interesses e a disponibilidade
dos visitantes, fala da história
do cemitério, mas não consegue HÁ PESSOAS QUE SE PASSEIAM DENTRO DOS MUROS DOS
agarrar a atenção dos seus ouvintes por muito tempo: fora dos PRAZERES SEM CHORAR NINGUÉM. NÃO TRAZEM RAMOS
portões, a polícia multa algumas
caras conhecidas que esperam DE FLORES, NÃO SE VESTEM DE ESCURO. VÊM EM BANDO
pelo enterro de um dos seus com
os carros estacionados em local E NÃO ESCONDEM O BOM HUMOR. HÁ VISITAS GUIADAS AO
indevido. Por falta de espaço,
nos Prazeres só podem ser en- CEMITÉRIO DOS PRAZERES.
terrados polícias, bombeiros,
possuidores de jazigos perpétuos
e… artistas.
Nem sempre foi assim. O cemitério foi construído em 1502 devido
a uma grande epidemia de cólera,
que fez que os doentes residentes
num sanatório da zona passassem idades entre os vinte e os trinta e se iniciou em Julho de 2002, mas
a ser ali enterrados. O cemitério poucos anos, que vêm conhecer o que até hoje se mantém na capela
foi crescendo e os seus jazigos cemitério dos Prazeres por esta- do cemitério. Os outros seguemmudando ao sabor dos estilos ar- rem a fazer uma visita à zona de no bem dispostos, dizem piadas
quitectónicos que iam surgindo. Campo de Ourique. Seguem ago- enquanto sobem os degraus que
Passados quara pela ampla conduzem ao primeiro andar. O
se 500 anos da Ouvem-se exclamações
rua principal, que pensariam os artistas que
sua criação e
ladeada
por discutem com o polícia se os visde agonia, o mais velho jazigos entre sem rir assim? Licínio Fidalgo, o
tendo como objectivo acabar do grupo atira: “Ok,
o
imponente historiador feito guia, mostra as
com a imagem estamos convencidos,
e o grotesco. vitrinas com objectos recolhidos
triste e fria dos
Alguns
estão em jazigos abandonados de vários
não queremos morrer!” bem cuidados, cemitérios de Lisboa: crucifixos,
cemitérios,
a
Divisão de Geslimpos, noutros imagens de santos, candelabros
tão Cemiterial de Lisboa decidiu, os vidros das portas foram quebra- mais ou menos ornamentados.
em 1999, organizar visitas guiadas dos por uma qualquer ventania, as Fala das questões práticas que têm
aos Prazeres. Inspirou-se no que prateleiras cederam à podridão do de ser resolvidas por quem gere
já acontecia noutros países e tem tempo e os caixões pendem aban- um cemitério: os bichos que, por
tentado aproveitar o potencial donados, deixando nuas as ossa- debaixo da terra, se encarregam
histórico e arquitectónico de 17 das centenárias que ali encerra- de desfazer pele e ossos, as lamas,
000 jazigos encerrados em quatro ram um dia.
os caixões abertos para a traslamuros que as pessoas habitualdação de ossadas quase intactas.
mente preferem não transpor.
Gargalhadas no Museu
Ouvem-se sussurros, exclamações
O grupo de hoje é diferente. É O guia é o primeiro a entrar no de agonia, o mais velho do grupo
constituído por doze amigos, com Museu, cuja exposição inaugural atira: “Ok, estamos convencidos,
RITA FÃO
não queremos morrer!”. O guia nomeá-la [à morte] para provocar
responde como quem pede descul- uma tensão emocional incompatível
pas: “Pois, isto é um apelo à vida.” com a regularidade da vida quotidiaPara quem convive com a morte na”, lê-se num dos placards.
todos os dias, o refúgio no humor,
por vezes negro, torna-se inevitá- Há música nos Prazeres
vel. O guia do cemitério diz que já Saímos do Museu. Afinal o sol não
viu muitos mortos, muitos fune- quis perder a visita e espalha os seus
rais, muita consternação. Não quer braços pelos Prazeres. Não estamos
encarar a morte como algo banal, num depositário de mortos, estamas afirma que “se não se souber mos num “bilhete de identidade ao
fazer humor com isto, podemos contrário”, como lhe chama Licínio
acabar às cabeçadas aos jazigos”.
Fidalgo, que diz que através de um
Brincadeiras à parte, Licínio diz passeio pelos cemitérios é possível
que é fundamental que as pessoas reconstituir a História. Os próprios
comecem a optar pela cremação e nomes são testemunhas da mudanexplica como funciona o processo: ça dos tempos: Eduardo Laemmert
“Para se lançar as cinzas ao mar Bulce, Sefalim Cordeiro, Theodoro
é necessário pedir autorização ao Emílio Martin.
porto de Lisboa”. Faz uma pausa. “É
Por entre as alamedas rodeadas
claro que podemos sempre optar por de ciprestes a fazer lembrar poemandá-las pela
mas romântisanita e puxar o
cos, o guia vai
“Se não se souber
autoclismo…”.
apresentando
Os outros explo- fazer humor com isto,
ao grupo os túdem numa gar- podemos acabar às
mulos que por
galhada que só
algum motivo
cabeçadas aos jazigos”
termina junto
considera espea um pequeno
ciais. Mostra os
ecrã onde correm imagens dos fune- símbolos maçónicos que nalguns
rais de pessoas ilustres: Amália Ro- deles se encontram dissimulados:
drigues, Salazar, o Rei D. Carlos.
o olho, o compasso, os números 3,
O espaço agora é de contemplação. 5 e 7, correspondentes ao aprendiz,
Reina o silêncio e a única fonte de luz ao companheiro e ao grão-mestre.
são as pequenas lâmpadas colocadas Faz sobressair da massa organizapor cima de placards expositivos que da do mármore túmulos de pessofalam da forma como a morte é enca- as que na morte se quiseram fazer
rada nos dias de hoje. Impõe-se aqui acompanhar por esculturas dos
um sentimento que preenche todo o melhores artistas. “Luz Soriano.
espaço e não deixa sair as palavras Notável se tornou este cidadão endos visitantes… “Hoje em dia, basta tre os seus contemporâneos”. Este
SOCIEDADE 8ª COLINA I MARÇO 2006
SÍLVIA DIAS
homem dedicado à causa constitu- sica que agora se ouve consegue
cional e às letras desenhou o seu cortar o silêncio que entretanto se
próprio jazigo, que se ergue diante instalou. Os artistas já enterraram
dos restantes, “com a figura do ho- o seu morto e os Prazeres estão
mem em tamanho real no alto da desertos. Estarão? A música é susepultura”. Mas Luz Soriano não ave, o ritmo conhecido. Há mesmo
se limitou a garantir a sua memó- música nos Prazeres! A curiosiria ao longo dos tempos. Licínio dade matou o gato, mas em terra
Fidalgo conta que ele também de mortos quem está vivo é rei.
deixou algum dinheiro à Câmara Arrisca-se. Vira-se uma esquina e
para que esta construísse uma es- outra e outra. Vozes. Sobe-se uma
cola para os desvalidos. A única ruazinha em curva. Uma camionecondição que impôs foi “que não ta da Câmara está a ser limpa e asfosse feita pelo cigano que não lhe pirada em pleno cemitério. Os dois
construiu o mausoléu tal como ele homens que a limpam aproveitam
pediu”, diz a rir.
para fazer o gosto ao ouvido ao som
A última morada de Sarah de de um bossa-nova. Mais uns que
Matos quase passa despercebida. É não vieram chorar os mortos…
por acaso que alguém se debruça so
bre ela e se demora a ler as suas ins- Um jardim de pedra
crições desgastadas com o peso dos A um canto do cemitério ergueanos. “Já foram expulsos os Jesuí- se orgulhoso o jazigo Palmela. É
tas. Passados 20
uma construção
anos a tua mor- “Os jazigos fenomenais
quase faraónite foi vingada. erigidos aos mortos
ca, mais ampla
Irmãos
Clélia
do que muitas
são uma falta de
e Reynaldo”. O
moradias e que
grupo solta fra- humildade atroz”
tem como única
ses de espanto
função recolher
e interrogação. Alguns riem do co- os mortos da família Palmela. Nem
mentário incomum. O guia conhece o jardim foi esquecido. Abre-se um
a história daquele túmulo. Conta pequeno portão ferrugento e perque Sarah era órfã e entrou para corre-se uma espécie de trilho que
um convento com 14 anos, morren- conduz ao jazigo. Os empregados
do logo a seguir em circunstâncias da família estão presentes mesmo
pouco claras. Alegadamente viola- após a morte. Encontram-se enterda por um padre, engravidou, tendo rados dos dois lados do trilho. No
como castigo as purgas de sulfato piso térreo do jazigo uma enorme
de sódio da irmã Colette, a amante madonna de mármore impressiooficial do padre. Em 1911, passados na os visitantes com as lágrimas
exactamente vinte anos da morte de que solta pelo filho que lhe cai dos
Sarah, e com a expulsão das ordens braços. Licínio elogia-lhe a expresreligiosas levada a cabo pela I Repú- sividade, a perfeição das mãos. A
blica, os seus irmãos não puderam escultura é digna de museu.
deixar de assinalar o feito.
Descemos. O guia vai finalA história é macabra. Só a mú- mente fazer uso da enorme lan-
UM ESPAÇO EM LISBOA
NAZARET NASCIMENTO
A um Paço do Parque
Quando D. Pedro José de Noronha
(1716-1788), 3º Marquês de Angeja,
deu início à plantação de um jardim
botânico no seu Paço do Lumiar, não
poderia imaginar que, duzentos anos
mais tarde, o fruto do seu trabalho
passaria para as mãos do Estado
português e que os portões da sua
propriedade estariam abertos das
10h às 18h aos olhares dos visitantes.
O bilhete dá acesso a um retiro.
A cidade cresceu, mas travou ali.
Abertas as portas do Parque Montei-
ro-Mor, no Lumiar, a azáfama fica de
fora e os ecos ruidosos de Lisboa em
hora de ponta rugem mais baixo.
Entre os museus do Traje e do
Teatro, a atracção turística é predominantemente verde. Um jardim
botânico com sementes no século
XVIII, um tapete de relva cercado por
vegetação colorida, a sombra de árvores frondosas em bancos toscos e
caminhos de terra batida e estátuas,
muitas estátuas. Aqui e ali, o toque
humano e artístico.
terna amarela que até agora ape- sa por baixo das suas pernas crunas lhe serviu de indicador. As zadas. Não tem pressa no andar.
catacumbas do Palmela são uma É então que surge atrás de si um
espécie de labirinto que se esten- casal que transporta sacos de sude em volta de quatro paredes. A permercado carregados de latas.
atmosfera é sinistra. Ninguém A melodia do metal desperta a
quer ficar para trás e perder a luz indolência do gato, que os segue
amarela do guia a cada vez que com ligeireza. A terra é dos morele cruza uma esquina. Ninguém tos, mas a hora é de alimentar os
quer ficar sozinho com os caixões vivos. Luís José observa a cena
que se encontram incrustados e vai dizendo que prefere ir para
naquelas quao
cemitério
tro paredes.
do
que
para
“No Inverno e no Outono
À saída do
um qualquer
o Jardim da Estrela é
jazigo, os olhos
outro jardim.
habituados à mais frio porque tem
Amante
da
escuridão tu- mais sombras do que os
natureza e do
mular sentem
Sol, acha que
Prazeres”
a invasão clara
“no Inverno e
da luz do sol. O
no Outono, o
grupo percorre o caminho de re- Jardim da Estrela, por exemplo,
gresso. Lá longe reconhece-se a é mais frio porque tem mais somsilhueta dos portões de ferro que bras do que os Prazeres”.
guardam o cemitério. A visita
Num discurso fluente, fala de
está a chegar ao fim. O grupo dis- Lisboa e da sua História. Sabe
persa-se e já só se ouvem palavras de cor os nomes das sete colinas:
soltas que ressoam até encontrar Castelo, Graça, Monte, Santa
uma presença humana.
Catarina, Penha de França, S.
Luís José de Faria tem 78 anos e Pedro de Alcântara e Estrela.
está sentado de jornal ao colo. Diz Para pensar nisso, na vida, nos
que já visitou os Prazeres por curio- meandros que a compõem, nos
sidade, e que lá se encontram “au- sentimentos que a complexifitênticos monumentos históricos”. cam e nos fluxos energéticos que
Mas considera que “os jazigos feno- a modificam, deixa-se ficar pelo
menais erigidos aos mortos são uma banco deste jardim de pedra com
falta de humildade atroz”. “Parece- vista para cruzes e anjos, porque,
me muito pouco cristão”, conclui.
diz ele, “aqui estou sossegado e
Languidamente, um gato pas- os mortos não me fazem mal.” •
O Jardim das Esculturas é desde
1995 a casa de obras assinadas pela
mão de artistas, como Catarina Baleiras, José Coêlho ou João Cutileiro, com exposições permanentes ou
temporárias.
A entrada pode ser a saída, dependendo do percurso que se fizer.
Passados os portões de um dos dois
museus e comprado o bilhete, o visitante é livre de respirar ar puro. •
Catarina Santana
TOPONÍMIA
A rua do
Poço dos Negros
Partilhada pelas freguesias de
Santa Catarina e S. Paulo, esta rua
– outrora caminho obrigatório entre a cidade e Belém – é sugestão
de passagem nos guias turísticos
de Lisboa. Ou não fosse ela percorrida pelo famoso 28.
A designação, diz-se, deve-se
à existência de um poço, onde,
na sequência de uma peste, terão sido sepultados negros do
Mocambo. Este bairro de pescadores e escravos estendia-se da
Lapa actual até Santos e era um
arrabalde da Lisboa ribeirinha do
séc. XVI. Uma rua onde a toponímia nos confronta com a presença
africana.
Sabia que…
…entre 1791 e 1792 a Academia
das Ciências se instalou no Palácio da Flor da Murta, na Rua do
Poço dos Negros?
…Alfredo Marceneiro entrou pela
primeira vez numa casa de fados
na Rua do Poço dos Negros? •
Teresa Mourão-Ferreira
POLÍTICA
EDITORIAL
por Paulo Moura
Geração
8ª Colina
Atenção! Isto não é o elogio do
street racing. Na 8ª Colina somos a favor do cumprimento
das leis. Mas tivemos de acelerar até aos 250 à hora nas ruas
de Lisboa, para sabermos o que
se sente. Depois, demos uma volta de bicicleta pela cidade, com o
“Movimento Massa Crítica”. De
passagem, sentámo-nos a ouvir
uma tertúlia política, as “Noites
à Direita”. Para contrabalançar,
conversámos com um vereador
socialista. E para desanuviar
fomos ver a arte espalhada em
mupis pelas ruas, dos “Zart21”,
e as filmagens de “A Escritora
Italiana”, na igreja de Samora
Correia. Assistimos à criação
de objectos de design industrial
por estudantes universitários.
Reflectimos sobre as relações
entre música e literatura.
Falámos com um designer
genial e com um treinador de
futebol muito original.
Jogámos ao pau, a única arte
marcial portuguesa. Espiámos
a fuga dos cérebros do país, privámos com um detective. Descemos ao Inferno no bairro do Regueirão dos Anjos, visitámos até
o cemitério. E sobrevivemos.
Voltámos à calma da 8ª Colina, para escrever. Porque a 8ª é
um lugar de serenidade.
É um jornal-escola, um laboratório de jornalismo. Não
apenas para aprender mas
também para descobrir. Porque temos a noção de que o
jornalismo está em mudança.
Os leitores querem novos temas, uma nova linguagem, os
jornalistas têm novas técnicas de
expressão e de investigação. E se
há uma mudança, onde poderíamos estar senão no seu centro?
A geração de futuros jornalistas que faz este jornal trabalha
no Messenger, lê e escreve blogues e jornais digitais, frequenta
chats, faz dowloads de música
para os ipods, comunica por
email e SMS, pesquisa na net. É
a geração da cibercultura, mas
mais além. Incorporou toda a tecnologia, todo um estilo de comunicação e de trabalho. Adoptou
um novo estilo de vida mas não
se deixa dominar por ele.
Está a recuperar a serenidade, para repensar o mundo. E,
porque reconhece os limites da
imodéstia mas não os da ambição, a “Geração 8ª Colina” quer
fazer um jornalismo de rigor,
de revelação, mas também de
inteligência, de emoções e de
sentimentos. Voltar a cidade do
avesso, vibrar com ela, circundar o prisma da realidade, sintonizar-se com a vida. Fazer um
jornalismo total.
Percorrer Lisboa a 250 à hora
e voltar à calma da 8ª Colina. •
MARÇO 2006 I 8ª COLINA
OPINIÃO
A agenda do Presidente
FRANCISCO
SENA SANTOS
Aquela ideia de Arthur Rimbaud
de que os livros de poesia deveriam transformar a vida dos seus
leitores pode ser transportada da
poesia para a política, levando consigo o desejo de que os políticos se
apliquem a discernir e decidir políticas que sejam, de facto, capazes
de transformarem a nossa vida.
Será que poderemos ter pela
frente, nos próximos cinco ou dez
anos, tempos mais energéticos e
propícios à cultura da exigência, à
circulação de estímulos criativos
e ao aumento da felicidade partilhada? Conjugo esta pergunta com
uma outra – Para que serve um Presidente da República?
Ao Presidente da República não
cabe governar. Pode atrapalhar a
governação – e Cavaco repetiu que
sabe disso, queixou-se muito dos “bloqueios” que a presidência de Mário
Soares causou ao seu governo, na
altura pior, quando o cavaquismo
que trouxe a Portugal modernização
e auto-estradas derrapou da fase de
esplendor (1985/91) para a de desgaste
em lume brando nos anos (91/95) em
que ficou consumida a folga de bonança que a economia tinha ganho. O
Presidente Cavaco não quererá fazer
ao primeiro-ministro Sócrates aquilo
que o primeiro-ministro Cavaco reprovou ao Presidente Soares, é a opinião que predomina entre os peritos
na análise política. Mas António Barreto adverte que Cavaco “é imprevisível”, e José Pacheco Pereira, embora
entenda que “as tensões entre dois
políticos [Cavaco e Sócrates] com
forte legitimidade oriunda do voto”
não deverão dar origem a conflitos “a
curto ou médio prazo”, admite que “a
mais longo prazo as coisas podem vir
a ser diferentes”. Há quem veja um
equador na coabitação entre Cavaco
e Sócrates: a presidência portuguesa
da União Europeia, no segundo semestre do ano que vem. Até lá, pelo
menos, salvo grande surpresa, os dois
vão remar na mesma direcção. Depois, logo se verá.
Cavaco assentou a sua campanha
eleitoral no propósito de “ajudar” o
país. Tem, entre as suas áreas sob
intervenção presidencial, muito por
onde ajudar. Para começar, o lugar
de Portugal na Europa e no Mundo.
Onde está a discussão sobre o
projecto europeu? E sobre a Euro-
As duas teses
PEDRO
DINIZ DE SOUSA
Assim que a procissão de encenações Cavaco-Presidente arrancou
nos media, instituiu-se a “histerização” do derrube do Governo por
um Dom Sebastião ávido de vingança, extremoso pai amargurado
com o rumo dado à mesada pelo
novo rebento do regime e enfim,
em geral, com os vexames a que foi
sujeito por tantos a partir de datas
como o dia quente em que a portagem da Ponte ex-Salazar lhe caiu
em cima ou a noite fria em que “O
Independente” foi fundado.
Ora, desde a Constituição de
1982 que o PR não pode demitir o
Governo por “falta de confiança política”. A actual Lei diz, artigo 195º:
“O PR só pode demitir o Governo
quando tal se torne necessário para
assegurar o regular funcionamento
das instituições democráticas, ouvido o Conselho de Estado”.
Os defensores da tese da instabilidade vêem o diabo no corpo
na expressão “assegurar o regular
funcionamento das instituições democráticas”. E com efeito, susceptível de engenhosas leituras, ela temse revelado refém da conjuntura
económica nacional. A estabilidade
das relações PR-Governo coincidiu
quase rigorosamente com a saúde
dessa conjuntura. Nomeadamente,
tivemos instabilidade institucional
continuada, com um PR forte, entre
1976 e 1987 e após 2003, e uma estabilidade irrepreensível nos quinze
anos em que o ouro da UE melhor
alimentou as nossas ilusões.
Por outro lado, vamos admitir
que Luís Delgado pode confiar na
reabilitação da figura weberiana
da legitimidade carismática. Se
Sócrates não é um líder carismático, Cavaco é mais do que isso.
Ele protagoniza a poderosa ritualização de um mito nacional - o do
ministro das finanças silencioso,
austero e forte, que, por via dessas
qualidades, muda de pasta, passando a ministro de tudo e todos.
Já que falamos de Salazar, reabilitemos ainda a máxima que lhe era
cara, segundo a qual em política, o
que parece, é. Admitindo que assim
é, há a hipótese de vir a parecer que
Cavaco vai demitir Sócrates.
O cenário seria trágico para o
país: por cada mudança de Governo perdemos mais uns biliões de
euros em interrupções de projectos e reinvenções da roda. Como
se precisássemos mesmo de uma
roda rosa e de outra laranja, como
se aqueles que enriquecem com os
jobs não soubessem que o segredo
está em misturar as cores, como
fazem as crianças e os nórdicos.
Se a um sistema eleitoral semiproporcional de círculos plurinominais, já de si gerador de alguns
governos instáveis, e perante uma
situação de maioria absoluta, admitimos ainda a opção da “bomba
pa dos projectos? E sobre o papel da
Europa no planeta onde os Estados
Unidos ainda imperam, mas onde
a China (esfomeada de petróleo) e
a Índia, mais o Brasil e a África do
Sul revolvem o equilíbrio geo-político e puxam a decisão para Oriente e para Sul? Avançamos para um
mundo multipolar mas com o polo
europeu emaranhado em dúvidas?
O debate, em Portugal, associado
ao anunciado referendo ao Tratado Constitucional europeu levou
sumiço antes ainda de se instalar,
mas a questão subsiste: o tratado
foi rejeitado em dois países (França
e Holanda) mas aprovado em treze,
e a discussão, depois da actual hibernação estratégica, qualquer dia
voltará a rolar. E que ideias vão animar o debate sobre a Europa num
país como Portugal onde tantas
vezes encontramos tanta opinião
tão pouco informada? Mais: onde
os preços são europeus mas onde
os salários são portugueses. Aí está
um debate para o qual o Presidente
da República pode ajudar, e muito.
Complementar à questão europeia, há a África, e as áfricas. África é um símbolo mundial da exclusão. Há a África que é o continente
vizinho e há as áfricas internas,
nas grandes metrópoles europeias,
modeladas pelas desigualdades radicais do mundo globalizado. Como
tratar o desespero que se difunde
nos subúrbios entre gente que não
vê uma estrada de saída? Como
se pode exigir uma vida sensata a
quem não tem a segurança de um
posto de trabalho? Aqui está outra
frente que pode beneficiar com a
ajuda do Presidente da República.
E há tanto mais com lugar na
agenda do Presidente. Há as questões de segurança e de defesa nacional. Há a promoção da comunidade
de países de língua portuguesa – é
devido lembrar como o Presidente
Sampaio ajudou à independência
de Timor. Há a defesa da língua
portuguesa, a oitava mais falada
(128 milhões de falantes) num mundo onde a diversidade linguística
se confronta com a uniformização
imposta pela extensão abrasiva do
inglês. Há os gestos de incentivo às
artes e aos artistas, à cultura, ao
investimento nos saberes, ao progresso da ciência, à valorização do
ambiente. Muitas vezes basta um
gesto de atenção.
Tanto por onde o Presidente da República pode ajudar a
transformar a vida. •
atómica presidencial”, no regime
semi-parlamentar que temos, então
bem podemos encomendar a alma
do país ao criador. Para citar alguém, Deus nos livre!, neste caso de
um sistema político com tamanho
potencial de instabilidade.
Há porém, felizmente, a tese da
estabilidade, que surpreendentemente só começou a ganhar adeptos
no dia seguinte ao das eleições, quando os media procederam à abertura
oficial de mais um período de “estado de graça”. A frase do artigo 195º
tem um âmbito estritamente político
(“instituições democráticas”) - não
se aplica a um mau desempenho do
Governo na economia, mesmo traduzido em convulsões sociais. Sampaio,
por exemplo, não podia ter derrubado Santana Lopes evocando signos
como “instabilidade”, provocada por
umas tais “trapalhadas”, se o Governo tivesse a legitimidade - que não
tinha - do mandato popular.
Por outro lado, contra o perigoso cenário de um “irregular
funcionamento” das relações PRGoverno, existe a afinidade entre
Cavaco e Sócrates: ambos partilham ou partilharam experiências,
um estilo, estigmas, opções governativas, ideias políticas, silêncios
mediaticamente
monumentais.
Nada que se aproxime do oceano
que separava Soares e Cavaco, na
célebre década da coabitação.
A estabilidade deste Governo
tem, finalmente, dois trunfos escondidos: Santana Lopes e o inevitável
Paulo Portas. Eles são o braço
político da elite social que humilhou Cavaco Silva na década de 90; eles usurparam-lhe a
herança populista da direita, populismo sem o qual o PSD nunca foi
nem será governo; eles seduziram
a nova geração da clientela partidária. Como evitar, a prazo, o seu regresso ao poder? Eis uma equação
para cuja solução o professor não
evitará recorrer, em primeira instância, à defesa do poder socialista.
POLÍTICA 8ª COLINA I MARÇO 2006
UMA TERTÚLIA POLÍTICA SAÍDA DOS BLOGUES
Noi
tes
à
Di
rei
ta
Dos posts para o mundo real
NO FINAL DE NOVEMBRO, A SOCIEDADE DE GEOGRAFIA
ENCHEU-SE, A HORAS DE JANTAR, PARA OUVIR ANTÓNIO
BORGES E DANIEL BESSA DISCUTIR ECONOMIA. NÃO SE
TRATOU DE UM DEBATE POLÍTICO COM HONRAS TELEVISIVAS EM HORÁRIO NOBRE, MAS SIM DA TERCEIRA EDIÇÃO
DAS “NOITES À DIREITA (*PROJECTO LIBERAL)”.
JOÃO CAMPOS
A comunicação social apareceu, e
as palavras dos oradores saíram
na imprensa e na rádio na manhã
seguinte. É verdade que os convidados eram, no mínimo, mediáticos – António Borges e Daniel
Bessa aceitaram o convite e foram
dar o seu contributo ao debate, moderado por António Pires de Lima.
Mas a terceira edição das “Noites
à Direita” foi a verdadeira expansão da blogosfera política para os
media tradicionais. Do debate imediato, quase espontâneo, por vezes
agressivo, que se trava nos blogues
saiu uma iniciativa que, em Junho, reflectir sobre a Liberdade,
no Café Nicola, e que, em Setembro, na Sala de Inverno do Teatro
São Luiz, discutiu a Cultura.
Um debate proposto por gente
de Direita, mas onde a Esquerda
não fica esquecida. “Quero ouvir
a Esquerda e a Direita”, afirma
Paulo Pinto Mascarenhas, fundador do blogue O Acidental e
promotor das “Noites à Direita”.
Na opinião do promotor, “não
há [nas “Noites à Direita”] uma
divisão entre esquerda e direita.
Queremos ouvir todos, independentemente de serem mais à direita ou mais à esquerda, mais
conservadores ou mais liberais.
Consideramos essencial o debate
político.” No fundo, o que se pro-
cura é trazer o debate que tantas
voltas tem conhecido nos blogues
para o “mundo real”.
Mas por que foram blogues de
Direita a promover um evento desta
natureza? Afinal, também se pode
falar de uma “blogosfera de Esquerda” – responsável por um verdadeiro fenómeno na Internet, que recentemente conheceu o fim –, o blogue
“O Barnabé”. E tantos outros. “A
Esquerda não precisa”, afirma Paulo Pinto Mascarenhas, que defende
a ideia de serem poucos os colunistas marcadamente de Direita a escrever na imprensa portuguesa.
Não surpreenderá, portanto,
que os dois primeiros debates fora
das regras mais ou menos informais da blogosfera tenham incidido sobre temáticas normalmente
vistas como “património da Esquerda”: a Liberdade e a Cultura.
Uma ideia que Paulo Pinto Mascarenhas confirma, mas que quer
desmistificar. “Há ainda a ideia de
que a Direita é aquela coisa velha,
ligada à Igreja, que só gosta dos
clássicos e de arte sacra, incapaz
de ir a um museu de arte contemporânea por achar horríveis
aquelas pinturas estranhas. Não
é verdade”, afirma o promotor do
debate, com a esperança de poder
mudar as coisas.
Portas abertas à Direita
A Direita das Noites “é uma Direita
que não quer ficar fechada”, assume Paulo Pinto Mascarenhas. Assim, abriu portas ao mundo real e
saiu dos limites da blogosfera mais
uma vez. O debate já não espera
somente pelo próximo post. No entanto, o promotor deste evento não
renega a importância dos blogues,
“já que foi lá que tudo começou e
porque continuam a ser um elemento essencial. Mas a discussão
alargou-se”, considera Pinto Mascarenhas. Sem intenção de “mudar
o regime”, a atitude é liberal, como
Apetite pelo debate
Com o boom dos blogues em Portugal, surgiram inúmeros blogues de
discussão política. Hoje, no debate
político que diariamente se trava
na blogosfera, podemos encontrar
as mais variadas posições políticas,
desde a direita à esquerda, desde liberais a conservadores. Igualmente
heterogénea é a autoria destes blogues – se é verdade que muitos artigos são escritos por políticos ou por
indivíduos envolvidos no espectro
político nacional, também há ad-
vogados, juristas e até jornalistas
a contribuir diariamente para a
discussão de temas nacionais e internacionais. Figuras mediáticas
como Pacheco Pereira, Constança
Cunha e Sá, Vasco Pulido Valente
ou Joana Amaral Dias têm os seus
próprios blogues e dão a conhecer
as suas posições sobre os mais diversos assuntos.
Alguns blogues políticos:
A Blasfémia
(http://ablasfemia.blogspot.com)
O Acidental
(http://oacidental.blogspot.com)
O Insurgente
(http://oinsurgente.blogspot.com)
O Espectro
(http://o-espectro.blogspot.com)
Bloguítica
(http://bloguitica.blogspot.com
O Abrupto
(http://abrupto.blogspot.com)
o subtítulo “projecto liberal”, que o
pequeno asterisco introduz, mostra
a quem quiser ver. Nos debates, a
participação tem sido crescente,
tendo contado nesta última edição
com mais de duzentas pessoas.
Superada a confusão partidária
inicial – a suspeita de que as “Noites à Direita”, no seu início, em
Julho, teriam uma conotação com
partidos do espectro político português –, o debate expandiu-se e ganhou fama dentro e fora do mundo
virtual dos blogues, até quase tornar a Sala Portugal, da Sociedade
de Geografia de Lisboa, demasiado
pequena para acolher tanta gente,
em plena hora de jantar.
Com a Economia como tema,
e com dois convidados ilustres,
debateu-se o futuro económico, a
viabilidade do modelo social, a intervenção do Estado na economia,
reformas essenciais, globalização,
entre tantos outros temas que foram surgindo. Houve discursos,
troca de ideias, perguntas, respostas, interpelações. Sempre com
espírito aberto e com rasgos de humor a quebrar o vago frio que se
fazia sentir na sala.
Agora que o debate rompeu os
limites dos blogues e se afirmou na
comunicação social, quais as metas
a atingir? “Discutir temas mais concretos”, esclarece Paulo Pinto Mascarenhas. “E descentralizar. Estamos
muito centrados em Lisboa, é aqui
que tudo se passa. Queremos sair
das fronteiras da capital, ir a cidades
de Norte a Sul do país e, quem sabe,
promover iniciativas do género nos
media. Falta alargar o debate a nível
nacional”. As primeiras pedras já
foram colocadas. •
10 POLÍTICA
MARÇO 2006 I 8ª COLINA
RUI FRANCISCO: VEREADOR DA CÂMARA DE ODIVELAS
“Não contem connosco para
baralhar e voltar a dar!”
VERA ESTEVES
Tem 34 anos, é o mais jovem vereador do Município de Odivelas
e tem as prioridades bem assentes. Desde cedo que o gosto pela
política se fez notar e uma carreira nesta área não foi uma surpresa para os familiares e amigos. Nos últimos quatro anos foi
membro do Conselho da Administração da ODIVELGEST (empresa municipal) e actualmente
está a tirar uma licenciatura em
Estudos Europeus. É ainda Animador Desportivo na Câmara de
Loures. Com ideias claras sobre
o que deve ser feito para melhorar as condições da cidade onde
nasceu e cresceu, Rui Francisco
promete honrar as promessas
que a equipa a que pertence fez
em campanha eleitoral. E afirma que a CDU teve um óptimo
resultado, pois foi a única força
que viu crescer o seu número de
apoiantes. Uma conversa sobre
um governo local que enfrenta a
crise, tal como o país.
Por que razões o PS saiu vencedor? O que faltou à CDU?
Os resultados eleitorais reportam
sempre ao resultado anterior. Nós
partimos de um quadro altamente
desfavorável: fomos a terceira força
em 2001 e elegemos apenas dois vereadores, enquanto o PS tinha cinco e
o PSD quatro. Hoje somos a segunda
força política, duplicámos o número de vereadores e ficámos a cerca
de 1700 votos de ganhar a Câmara.
Estes resultados são fruto de uma
O VEREADOR DA CDU NA CÂMARA DE ODIVELAS APRESENTA
A SUA PERSPECTIVA SOBRE OS RESULTADOS ELEITORAIS
DAS ÚLTIMAS AUTÁRQUICAS ONDE O PARTIDO SOCIALISTA
SAIU VENCEDOR. EM ENTREVISTA AO 8ª COLINA, FALA TAMBÉM DA SITUAÇÃO FINANCEIRA E DOS RECENTES DESPEDIMENTOS EFECTUADOS NA CÂMARA.
grande expressão popular. Quem,
como nós, andou em campanha
pelas ruas, sentiu a necessidade de
mudança. Estamos satisfeitos com
a posição alcançada. Um resultado
excelente teria sido ganhar. Mas
não é de um dia para o outro que se
conquistam certas franjas da população. Contudo, a CDU foi a única
força que aumentou a sua dimensão
eleitoral e é a única que pode cantar
vitória nestas eleições.
Porque não entraram em acordo com o PS, visto serem a segunda força?
Só havia a possibilidade de acordo
se o PS tivesse vontade de mudar
as coisas, pois não participaríamos numa gestão em que fosse
“mais do mesmo”. Antes de falarmos em distribuições de pelouros,
colocámos várias questões, na
perspectiva duma negociação: a
auditoria financeira à Câmara, os
serviços municipalizados, o futuro da empresa municipal que vai
gerir as águas do nosso concelho,
a extinção da Odivelcultur, a suspensão de novas urbanizações até
à aprovação do Plano Director Municipal (PDM). Não houve acordo
sobre nenhuma delas. Logo, não
temos necessidade de participar
na gestão nem de termos pelouros
a qualquer custo. Foi o que aconteceu com o PSD, certamente. Foi
atrás do primeiro aceno de pelouro, independentemente do programa e da estratégia que estava em
cima da mesa.
O PS não se mostrou interessado em mudar de rumo?
Não. O grande cartão amarelo
que o eleitorado lhe deu nesta
campanha não serviu de nada.
Perdeu grande parte do eleitorado e vai perder mais se continuar
com a mesma política. As pessoas precisam de mudança – e não
é uma mudança de nomes nem de
partidos –, uma mudança de po-
consequentemente, pagar a quem
deve. É muito importante que a
Câmara crie uma boa imagem
junto das pessoas com quem se relaciona, sejam empresas privadas,
colectividades ou associações.
Mas a vossa proposta de auditoria externa foi recusada.
Logo numa das primeiras reunilítica, de acções concretas. O PS ões, solicitámos uma auditoria
assumiu perante todos que não externa às contas do município.
queria mudar. E, não querendo Não que duvidemos dos técnicos
mudar, uma vez que não pode municipais. Queremos apenas
governar sozinho, governa com saber em rigor a situação finano PSD. Esse sim está disponível ceira da Câmara: o que se deve e
para aceitar o que quer que lhe a quem se deve. Essa auditoria
dêem sob que condições forem.
deveria servir para definir uma
Esta aliança servirá para vin- estratégia de erradicação das
cular todas as propostas da Pre- dívidas do município (avaliadas
sidente de Câmara?
em milhões de euros). Na política
O cenário político criado permite a tem-se como generalizada a ideia
esta coligação de gestão viabilizar de que toda a gente promete e nintodas as propostas. Todavia, não é guém cumpre. Nós assumimos e
a mesma coisa, do ponto de vista honrámos este compromisso com
da repercussão política, ter uma a população.
Câmara que decide com quatro vo- O Município quererá esconder
tos contra. Há
alguma coisa?
aqui um contra “É importante que a
Isso é uma lei– o peso político Câmara crie uma boa
tura que só os
que a segunda
eleitores e os
imagem junto das
força mais vomunícipes têm
tada do conce- pessoas”
de fazer. Nós
lho tem. Aliás,
pugnámos para
a propósito da moção que apresen- uma transparência das contas. E o
támos sobre o PIDDAC [Programa PS e o PSD terão de se justificar junto
de Investimentos e Despesas de dos munícipes por que é que rejeitaDesenvolvimento da Administra- ram a nossa proposta.
ção Central], a Presidente teve de A má gestão financeira praticafazer uso do seu voto de qualida- da no Município de Odivelas dede porque nós votámos contra e o ver-se-á apenas às verbas insufiPSD absteve-se.
cientes atribuídas pelo Estado?
Caso tivessem ganho, qual seria Todas as Câmaras passam por dia primeira medida a tomar?
ficuldades financeiras devido ao
A primeira medida a tomar seria desequilíbrio entre despesas e refazer um levantamento exausti- ceitas. A questão das finanças, em
vo daquilo que a Câmara deve e,
VES
VERA ESTE
POLÍTICA 11
8ª COLINA I MARÇO 2006
Odivelas, coloca-se ao nível das receitas, do investimento do Estado
através do PIDDAC, das receitas
através da lei das finanças locais e
do urbanismo. Quanto às receitas,
O despedimento colectivo de
vejo esta Câmara muito pouco emfuncionários da câmara terá
penhada em fazer que a Adminissido uma medida de contenção
tração Central cumpra a lei das Fide despesas ou uma forma de
nanças Locais. O Estado não paga o
afastar certas pessoas?
que deve às autarquias e o PIDDAC
Aguardamos ainda algumas innão consegue responder às necesformações para fazer uma anásidades dos municípios. Em Odilise mais sólida sobre essa mavelas, por exemplo, o número de
téria. Pediram-se inclusive os
habitantes aumentou e o número
números de contratos de avença
de efectivos da polícia diminuiu.
à Presidente de Câmara. Não
Existe desinvestimento em vez de
se sabe se foi uma medida para
investimento. Para os actuais godiminuir despesas correntes,
vernantes, o urbanismo é a solução
nomeadamente o concurso de
para as receitas. Mas há que fazer
pessoal. Mas não acredito que os
um planeamento do urbanismo
vereadores deixem de ter assesque respeite o ambiente e a qualisores e que os assessores deixem
dade de vida. Antes que os prédios
de ter assessores. Não vão deixar
se transformem em caixotes, antes
de ter uma panóplia de apoio
que as pessoas vivam umas em
que lhes é legítimo – exagerado
cima das outras e antes que os espaços verdes desapareçam. É algo
que um concelho ainda jovem como atribuídos pelouros. Porquê?
o de Odivelas tem de travar já.
Legitimamente, a Presidente disA situação da Câmara de Odive- tribuiu os pelouros pela força polas deve-se então à inoperância lítica que representa e pela força
do Estado
política com quem
e à passivi- “O objectivo é exercer o
fez um acordo de
dade da auestatuto de oposição em gestão, neste caso
tarquia?
o PSD. Nesta persO concelho defesa das pessoas”
pectiva, ficámos
ainda hoje
sem responsabilié credor do Estado em 2,2 milhões dades directas na gestão de qualde contos. A solução para isto não quer pelouro porque não fazemos
é procurar receitas neste cresci- parte do acordo de gestão.
mento do betão armado, mas sim A distribuição desproporcional
pugnar para que quem nos deve, dos pelouros foi uma estratégia
nos pague. Hoje, temos os serviços para vos afastar do poder?
municipais espalhados fisicamente
pelo concelho. Talvez pudéssemos,
“Não é com um comunicado ou um e-mail que se despede uma pessoa”
com esse financiamento que nos é
devido, ter um edifício de serviços
centrais administrativos e uma
rede de equipamentos mais adequada aos interesses das pessoas.
Aos vereadores da CDU não foram
Necessariamente. O que radica na
ausência de um acordo entre a CDU
e o PS. Estando fora desse acordo,
não podemos exercer o poder executivo, executar as nossas políticas e as
nossas propostas nas diferentes áreas de intervenção do município. No
mas legítimo – para diminuir as
despesas. As pessoas despedidas
não tinham cargos políticos nem
proximidade com políticos. Com
efeito, não foram saneamentos
políticos mas também não foi a
propósito do funcionamento de
serviços.
Mas esses trabalhadores foram avençados nestes últimos
quatro anos?
Alguns terão tido oportunidade de ingressar nos quadros da
autarquia, mas outros não. Desempenhavam funções estabelecidas, não temporárias, no normal funcionamento da Câmara,
com um superior hierárquico. O
conteúdo funcional destes trabalhadores não se esgotou, logo al-
entanto, do poder, no sentido mais
lato, não estamos excluídos, pois temos assento na reunião de Câmara.
Quais eram os pelouros para os
quais se sentiam mais aptos a
desempenhar funções?
Pela constituição do corpo de
vereadores da CDU, tínhamos
condições para desempenhar
funções em qualquer área, mas
mais especificamente na área do
Urbanismo, do Sócio-cultural,
da Acção Social e da Educação.
Mas mais importante do que os
pelouros era existir um acordo
de gestão que considerasse quatro ou cinco aspectos fulcrais.
Que aspectos são esses?
O acordo teria de representar
uma ruptura com o passado. Tínhamos de nos certificar que
terminariam as práticas de gestão passadas. Neste sentido, era
guém tem de os substituir. Resta
saber se esse alguém também foi
contratado, pois não se resolve o
problema criando outro.
Qual terá sido o motivo?
Talvez tenha sido uma medida
para chamar a atenção e para
dar a entender que até se está a
fazer alguma coisa. Contudo, não
se pode poupar em funcionários
quando estes estão a desempenhar funções de interesse para a
Câmara. Estamos a falar de pessoas que deram o seu contributo
para aquilo que hoje é a Câmara.
E não é com um comunicado ou
um e-mail que se despede uma
pessoa com seis ou sete anos de
casa a desempenhar uma função
sistemática.
importante haver consenso em
relação à extinção da Odivelgest,
aos serviços municipalizados, à
suspensão do licenciamento de
obras até à conclusão do PDM e à
auditoria financeira às contas da
Câmara. De outra forma dizemos:
“Não! Não contem connosco para
baralhar e voltar a dar!” Não foi
isso que motivou grande parte do
eleitorado a votar em nós.
Vão conseguir mostrar trabalho sem um papel activo junto
da população, sem pelouros?
Aquilo que tem que ver com
mostrar trabalho é ir para a rua,
porque não há outra forma de o
fazer. Só tendo uma ligação directa às associações de moradores,
às colectividades e às estruturas
juvenis é que conseguimos dar a
conhecer as nossas propostas, as
razões pelas quais as apresentámos e se tiveram ou não êxito. Só
assim as pessoas terão uma perspectiva clara de quem defende os
seus interesses e de quem honra
os compromissos.
O estatuto de oposição será
suficiente para alcançarem a
vitória nas próximas eleições
autárquicas?
Solicitámos o estatuto de oposição e foi-nos concedido o direito
de fiscalizar todos os actos de
gestão do município, mediante
um conjunto de prerrogativas. O
nosso objectivo é exercer esse estatuto em defesa dos interesses
das pessoas. Foi essa a razão que
nos levou a pedi-lo. Não foi uma
estratégia para a vitória.
O que terá de fazer a CDU nestes próximos quatro anos?
A CDU terá de fazer um trabalho
de valorização das suas propostas tanto a nível da Câmara e das
freguesias, como a nível da Assembleia Municipal. Terá de ir
ganhando as pessoas para as suas
causas. E terá de contar também
com muito desinteresse e com um
afastamento gradual e progressivo das pessoas face às políticas
que vão sendo seguidas.
Foi um balanço positivo?
Claro. Havia um descontentamento muito grande com a gestão
do PS e nós soubemos capitalizar
esse descontentamento numa
grande expressão eleitoral na
nossa força. Segue-se um período
de quatro anos em que vamos estar na oposição, sem pelouros, o
que nos permite fazer um trabalho muito mais sério no combate
às políticas de gestão autárquica
PS/PSD. Estamos convencidos
de que iremos conseguir os 1700
votos que nos faltaram e de que,
nas próximas autárquicas, nos
apresentaremos como a força
mais credível para gerir os destinos do concelho. •
12 ENSINO
MARÇO 2006 I 8ª COLINA
FALTA DE EMPREGO CIENTÍFICO EM PORTUGAL
Bolsa, para que te quero?
CADA VEZ MAIS PORTUGUESES PROCURAM BOLSAS DE INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA PARA O
ESTRANGEIRO PARA MELHORAR O CURRICULUM. O ESTADO NÃO TEM UMA POLÍTICA CONCRETA
PARA A CRIAÇÃO DE EMPREGO CIENTÍFICO. E MESMO ASSIM CONTINUA A DAR BOLSAS.
SUSANA TEODORO
E LAÍS CASTRO
emprego científico, visto que o tecido empresarial português aposta
“Tive muita sorte. Quando fui en- pouco em Investigação e Desenvoltregar o meu projecto à Gulbenkian vimento (I&D). “As empresas não
havia uma pilha enorme de outros vão começar a investir em C&T de
planos. Havia maquetas e tudo!” E hoje para amanhã. É preciso que o
no final apenas dois desses projec- Estado dê o primeiro passo e crie
tos foram aceites. Paulo Lage foi um condições para isso.”
dos contemplados. Com o financia- Para Vera Domingues a cultura
mento da Gulbenkian vai fazer uma empresarial portuguesa é muito
especialização artística em teatro tradicional. A maioria das emprena Companhia de Pesquisa Teatral, sas é familiar e por isso não aposSão Paulo. Vai ficar lá quatro meses, ta no crescimento através da inosendo possível
vação. E como
renovar a bolsa
inovação
A maioria das empresas a
por mais quatro
vem das pessose o encenador é familiar. Não aposta
as com formaAntunes Filho no crescimento através
ção avançada,
estas acabam
assim o achar. A
da inovação
Gulbenkian vai
por ter grancobrir a viagem
des dificuldae as despesas de propinas, alojamen- des de integração no mercado de
to, transporte e alimentação. E tendo trabalho apesar da qualificação.
em conta os custos de vida no Brasil, Há assim um enorme fosso entre
com o valor recebido Paulo Lage ain- a investigação científica e o aproda poderá levar uma vida desafogada veitamento desses conhecimentos
Mas a ideia deste jovem encenador para a inovação. Por isso cabe ao
não é permanecer no Brasil e já tem Estado encontrar mecanismos
contratos de trabalho para quando que facilitem a criação de emprevoltar a Portugal.
go científico.
Este é um caso de excepção num
país onde os bolseiros que vão para Emprego Científico: Ilusão.
fora acabam por ter muitas difi- Bolsas: realidade
culdades em regressar a Portugal Em Portugal alguns dos mecanisdepois de terem a sua formação mos que poderiam levar a uma
concluída. Isto porque, apesar das maior integração dos quadros de
inúmeras bolsas concedidas anu- C&T nas empresas seriam a conalmente, não só pelas instituições cessão de benefícios fiscais, a coloprivadas mas também pelo Estado cação de doutorados em empresas
(através da Fundação da Ciência e (com ordenados pagos pelo Estado)
Tecnologia - FCT), o emprego cien- e a abertura das vagas bloqueadas
tífico em Portugal é ainda uma as- nas universidades e laboratórios de
estado (consequência da actual polípiração longe de se concretizar.
Este é, aliás, o principal “cavalo tica económica de contenção orçade batalha” da Associação de Bol- mental). A concentração dos centros
seiros de Investigação Científica de investigação a nível físico (é pre(ABIC). De acordo com Vera Do- ferível ter menos e maiores) e uma
mingues, um dos membros da as- maior abertura ao investimento essociação, deve ser o Estado o prin- trangeiro também seriam formas de
cipal interveniente na criação de flexibilizar o mercado da C&T.
CARTOON
Contudo, estas não têm sido as
prioridades do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior
(MCTES) nos últimos anos. Na última legislatura foram retirados
benefícios fiscais às empresas que
investem em I&D. E no âmbito do
programa de ‘Apoio à Inserção de
Mestres e Doutores em Empresas’,
que impõe altos critérios para selecção, somente três pessoas preencheram os requisitos necessários em 2004.
A ABIC tentou confrontar o MCTES com o problema do emprego
científico na única reunião conseguida com o Secretário de Estado,
Manuel Heitor, desde a posse do
Governo de Sócrates. Mas a primeira proposta do político foi o
aumento do número de bolsas para
doutoramentos. Vera Domingues
admite que é preciso continuar a
formar os investigadores portugueses, mas chama a atenção
para o facto de as
bolsas provirem
de fundos comunitários, o que
significa que
o Estado se vê
assim aliviado de gastar
nessa área: “O
Estado considera que apostar em
I&D é uma despesa e
não um investimento.”
De facto, o Estado é o
principal investidor em
I&D segundo o “Inquérito ao Potencial Científico
e Tecnológico Nacional – 2001”.
Contudo, a ABIC considera que
esse investimento é na sua maioria direccionado para a concessão
de bolsas, quando deveria existir
um equilíbrio na despesa realizada
tanto com a atribuição das bolsas
como com a criação de emprego
científico.
de concluída a formação e o Estado
Efectivamente, de 2004 para 2005 acaba por estar a investir na qualia FCT aumentou o número de ficação de quadros que depois são
bolsas concedidas. As Ciências aproveitados por outros países. Mas
da Saúde foram as mais benefi- há formas de evitar esta situação.
ciadas, seguindo-se as Ciências A Fundação Luso-Americana
Exactas com um acréscimo de para o Desenvolvimento (FLAD)
cerca de 10%. Outra área muito também concede bolsas (somente
privilegiada pela FCT foi a das para os EUA), mas obriga a que os
Ciências e Tecnologia, com cer- formandos regressem a Portugal.
ca de 25% do total de bolsas atri- Isto porque apenas patrocina um
buídas em 2005.
visto em particular – o J1 – que
Mas este aumento nos últimos dois exige que os beneficiários regresanos poderá não ser totalmente posi- sem ao seu país de origem durante
tivo. Com a possibilidade de adquirir dois anos, se quiserem depois volbolsas sucessivas, quem as recebe tar a ter um visto para trabalhar
vê-se obrigado a
ou estudar nos
sobreviver atraEUA.
“O Estado considera
vés deste finanFoi o caso de
ciamento, ao in- que apostar em I&D é
André
Levy,
vés de conseguir uma depesa e não um
que desenvolum emprego na
veu um projecinvestimento”
sua área.
to na área da
Nuno
Crato,
biologia
com
professor no ISEG (Instituto Supe- um financiamento conjunto da
rior de Economia e Gestão) e presi- FLAD, FCT e da universidade que
dente da Sociedade Portuguesa de o recebeu nos EUA. André teve de
Matemática, tem outra perspecti- regressar a Portugal mas conseva: “As bolsas ajudam as pessoas a guiu encontrar uma pequena lacupreparar-se e, muitas vezes, o facto na no sistema: “O Serviço de Imide não terem empregos fixos e de gração dos EUA diz que o regresso
saltarem de uma bolsa para outra é ao “home country”. Mas quando
constitui um factor de mobilida- perguntei se “home country” pode e um incentivo para melhorar. deria ser qualquer país da União
Mas claro que tudo tem um limite.” Europeia, já que existe livre trânDoutorado em Matemática Aplica- sito de pessoas, eles responderam
da nos Estados que o retorno é a qualquer país da
Unidos, onde União Europeia.”
trabalhou vá- Sem imposições que obriguem a
rios anos como voltar ao país, sem emprego na
investigador e área da C&T, sem apoios estatais
professor uni- na área da Investigação aplicada
v e r s i t á r i o , à inovação e com o Estado a finanCrato consi- ciar cada vez mais bolsas, parece
dera que haver condições para que cada
é natu- vez mais “cérebros” portugueses
ral que- “fujam” do país.
rer
um
emprego fixo, A “fuga dos cérebros”
mas que isso é É exactamente isto que reflecte o
hoje em dia muito último estudo do Banco Mundial
difícil. E portanto não sobre o Brain Drain. Portugal apaacha muito problemáti- rece em 21° lugar no ranking dos paco o facto de cada vez mais íses com maior taxa de emigração
portugueses procurarem for- de quadros qualificados. Isto tornamação no estrangeiro e acabarem nos o país da Europa mais afectado
por ficar lá.
pela “fuga de cérebros”, que atinge
20% do total de licenciados.
Evitar a fuga. Como?
As bolsas estatais servem de facto
Para isto também contribui o facto para formar investigadores e aude em Portugal o principal conces- mentar a qualificação das pessoas,
sor de bolsas, a FCT, não impor aos mas como o Estado falha em abrir
formandos o regresso ao país depois oportunidades de emprego em I&D. •
?
por Edgar Silvestre
ENSINO 13
8ª COLINA I MARÇO 2006
ESCOLA SUPERIOR DE ARTE E DESIGN DAS CALDAS DA RAINHA
Universitários dinamizam
design industrial
RAMPA XY POR DIOGO MANGAS
Construiu um objecto que facilita o
transporte dos garrafões de água.
O sol é cada vez mais quente
com o avançar da hora. Na sala
SP53 está agora um outro aluno
da turma de 5º ano. As ideias surgiram-lhe facilmente mas o mestre
não aprova quase nenhuma. Tem
de trabalhar mais. «Até chegar a
algo surpreendente... E brilhante»,
vai dizendo o professor, gesticulando, com o seu ar descontraído.
Ar de quem tem experiência. Ar de
quem detém o saber. Ar de quem
sabe o segredo do sucesso. Diogo Mangas, 25 anos, não deixa de
evidenciar preocupação pela rejeição das ideias: “Vou ter de pensar
mais... ainda mais!”, desabafa.
No trabalho de grupo do ano
passado optou por criar uma protecção para motociclistas e um cabide para a casa de banho: ”como
um dos problemas detectados foi
a falta de cabides nas casas de
banho, concebemos um tipo de
cabide que permite, não só a colocação de vários objectos ao mesmo
tempo, como também preencher o
vazio característico deste tipo de
espaços”, explica o Diogo.
OS ALUNOS UNIVERSITÁRIOS PORTUGUESES TÊM TIDO
UMA PALAVRA A DIZER NO CAMPO DO DESIGN INDUSTRIAL.
IDEIAS INOVADORAS QUE GANHAM PRÉMIOS E CONCURSOS.
NA ESCOLA SUPERIOR DE ARTES E DESIGN PODEMOS ENCONTRAR ALGUNS DESTES JOVENS.
ANA QUITERES
O relógio bate as 10:30. Caldas da
Rainha. Já é hábito por aqui o frio
da época. O edifício de cor branca
como a cal deixa entrar pelas enormes janelas o sol quente que contrasta com o frio cortante lá fora.
Escola Superior de Artes e Design.
O ambiente é calmo. No primeiro
andar, ao fundo, a placa “SP53”
indica a chegada ao local. Sala de
projecto 53, o horário está exposto
na porta, para os mais distraídos. A
porta está entreaberta. Apenas um
professor e um aluno se encontram
lá dentro. É que esta é uma aula diferente. De início às 9:30, termina
às 18:30. São nove horas, com uma
hora de almoço, que estão divididas
por cerca de 30 alunos, cada um tem
os seus vinte minutos para expor as
ideias ao mestre.
Catarina Vieira, uma das alunas, concorda com este método
mas também acha importante estar por dentro dos projectos dos
colegas para poder trocar ideias. A
Catarina tem 24 anos e é aluna do
curso de Design Industrial .
O curso
É neste curso que nascem muitos
dos projectos que mais tarde podem
ser comercializados. Os projectos do
4º ano são mais direccionadas para a
funcionalidade. “Os alunos contactam as entidades e procuram saber
as suas dificuldades numa área”,
explica Luís Pessanha, professor da
cadeira de Projecto de produto.
Nesta cadeira do 4º ano os projectos são feitos em grupo, são mais
demorados e exigem soluções práticas para serem aplicadas no dia
a dia. As ideias nascem, os planos
são desenvolvidos e criados. «A
Escola financia anualmente pelo
menos um destes projectos, normalmente é o que exige mais recursos” esclarece Luís Pessanha.
Há 2 anos a Escola financiou o
projecto para o INEM. Uma mala de
primeiros socorros. Este trabalho
foi desenvolvido pelos alunos a pedido do próprio Instituto Nacional
de Emergência Médica. «A mala já
foi usada pelo INEM para testes e é
aguardada a decisão final para se
saber se será adquirida», comenta
Luís Pessanha. Uma mala de primeiros socorros foi também feita
pelos alunos deste curso e já está
em uso pelos Bombeiros Voluntários e Cruz Vermelha da Figueira
da Foz. A particularidade deste
objecto é que foi desenvolvido para
No 5º ano as regras do jogo são
ser usado nas bicicletas dos bom- outras. O professor da cadeira, Ferbeiros que circulam nas praias.
nando Brízio, explica: «agora os
O projecto do grupo da Catarina projectos são individuais, há menos
no 4º ano também foi financiado, tempo para os realizar e por isso os
mas por uma empresa. Isto acontece alunos acabam por optar por coisas
não raras vezes. As empresas fazem mais fáceis, mas que lhes dêem o
parcerias com a Escola de modo a mesmo gozo». Este professor guarpoderem financiar o produto. Ana- da um dos principais “segredos” da
lisaram-se as dificuldades e a ideia profissão de designer. Revela-o aos
surgiu no seio do grupo: baldes e alunos, conforme lhes dá conselhos.
escadotes que facilitem a apanha Por enquanto não o confessa... A
da fruta. «Como estamos na Região cadeira do 5º ano está direccionaOeste, direccionámo-nos mais para da para a relação do objecto com a
a pêra rocha, no entanto são protóti- pessoa. Aqui não contam tanto as
pos viáveis para outros tipos de fru- necessidades mas sim o gosto do
ta ou legumes», explica a aluna.
“novo dono” pelo objecto: «o que
A empresa Líder Oeste, que resulta numa enorme variedade de
financia
proobjectos, pois dejectos que fa- “A Escola financia
pende muito da
cilitem a agriprópria personaanualmente pelo menos lidade do aluno
cultura,
tem
fundos
desti- um dos projectos,
que o constrói»,
nados a jovens normalmente é o que
comenta
Fercom
ideias
nando Brízio.
exige mais recursos”
como esta e
Dois dos proassim decidiu
jectos já realizacustear este projecto. «Os estudos dos este ano na cadeira tiveram aliserão feitos para o ano na apanha cerces bastante distintos: “Botão” e
da pêra rocha ou ainda antes na “Água”. Estas foram as diferentes
apanha do tomate de estufa», in- palavras – passe para dois trabaforma a Catarina. O grupo teve lhos também eles dissemelhantes.
também o patrocínio de uma outra
A Catarina optou no primeiro
empresa, desta feita de serralha- projecto por um candeeiro: «Fiz
ria, que se ofereceu para construir uma malha através de vários boos escadotes gratuitamente.
tões e construí a partir disso um
Embora estes alunos tenham candeeiro», explica. Mas o projecconseguido manter o projecto até to levado mais seriamente pelos
uma fase mais avançada, nem alunos foi o que tinha como base
sempre isto acontece. «Temos de a água. Aqui a Catarina optou
ter em conta que nesta cadeira por responder a uma necessidade
pensamos sempre em ficar na fase própria. “Eu via as dificuldades
ante-projecto, porque não há tem- por que passava quando tinha de
po para mais», explica o professor. transportar água”, lembra a aluna.
Reconhecimento internacional
No ano passado este aluno participou num concurso internacional de design e a sua “Rampa XY”
deu-lhe o 1º lugar do pódio. O concurso feito pela ET Foundation
proporcionou ao Diogo mostrar
o seu projecto internacionalmente. Este vencedor, na categoria de
“Student Class 2005 Design Competition”, ganhou 3.000 dólares e
foi convidado a estar presente em
Chicago, local da exposição dos
trabalhos bem como da entrega
dos prémios. A rampa XY, toda
feita em alumínio, foi idealizada
com o objectivo de eliminar algumas dificuldades sentidas nos locais onde existem obstáculos difíceis de ultrapassar com veículos.
O sol vai-se pôr. O calor extinguiuse e apodera-se do edifício, branco
como a cal, um frio que se entranha.
Pela “SP53” passaram um, dois,
três... Trinta alunos. Vinte, trinta, quarenta... Centenas de ideias.
Umas boas, outras que não passaram disso. De ideias. Outras irão
crescer, passar a planos, depois a
projectos. Uns não passarão disso,
outros virão a ganhar concursos,
ser reconhecidos, comercializados.
Tal como a Rampa XY, ou os protótipos para a apanha da fruta, outros
projectos vão ganhar vida.
Por agora a Catarina e o Diogo vão
para casa, tal como os outros colegas,
para pensar em ideias. Mas para se
ser designer não basta ter ideias.
«Tem de se trabalhar sempre
mais. Pensar, imaginar e voltar a
pensar, e outra vez...» diz Fernando
Brízio. É desvendado o segredo. •
14 MUNDO
MARÇO 2006 I 8ª COLINA
BRUXELAS: CAPITAL MUNDIAL DE BANDA DESENHADA
Vidas desenhadas
MARGARIDA VAQUEIRO LOPES
tanto ao nível das personagens
como dos seus autores e a Bélgica
assiste à multiplicação de jornais
exclusivamente dedicados ao género. É por causa disto que agora, ao
lado de Tintim, Spirou, ou Astérix,
caminham também os Estrumpfes
ou Ric Hochet. Apesar de um carácter especialmente lúdico, a BD
abre aos adolescentes de todos os
lados uma realidade desconhecida,
que pela mão – ou pelo pé, pelo voo,
pela nave espacial - dos seus heróis
descobrem o mundo que os rodeia.
CORRESPONDENTE EM BRUXELAS
“Pode-me mostrar tudo o que tem
da Tigresse Blanche, por favor?
São só aqueles? Hum, aqueles já li
todos”, diz a senhora de cerca de
40 anos acabada de entrar na Le
Dêpot (O Depósito), uma das inúmeras lojas de compra e venda de
Banda Desenhada existentes na
Rue du Midi, em Bruxelas.
As prateleiras repletas de livros,
– novos e usados – as paredes decoradas por cartazes das mais variadas
personagens franco-belgas e as vitrinas mostrando Tintins e Astérix em
miniatura fazem perceber a importância da BD na cidade e no país.
“Vem cá muita gente, sempre. E
lêem tudo: BD franco-belga, europeia, canadiana!”, explica MarieLouise, a proprietária sexagenária
da Le Dêpot, enquanto se prepara
para atender uma outra cliente, já
na casa dos sessenta, que também
procura novos álbuns para a sua
colecção pessoal.
Desde o seu nascimento, no início do século XX, a BD franco-belga
não mais deixou a realidade do país.
É uma das formas de literatura
mais desenvolvidas na Bélgica, e
como tal, uma das mais populares.
Para os belgas é um orgulho, para
os turistas uma curiosidade, para os
estudiosos alvo de teses de doutoramento e demais dissertações.
Mas os Estrumpfes e o Tintim
não são só personagens dos livros.
Passaram já para as paredes dos restaurantes, bares, e junto com tantas
outras figuras menos conhecidas,
fazem parte da decoração exterior
de vários edifícios da capital belga.
Passeando pelas ruas perpendiculares à Grand–Place, não é difícil
“esbarrar” com o Capitão Haddoc,
que se passeia por uma parede colorida, seguido pelo Milu, o fiel cão
de Tintim, e pelo jovem repórter.
Nicolas, vendedor da La Bulle
d’Or (O balão de ouro), na Boulevard Anspach, afirma que, “apesar
de ser uma tradição de tantos anos, a
verdade é que os jovens pegam nela
e a continuam. Porque, enquanto
os franceses, por exemplo, são um
povo mais sério e tentam divulgar
a pintura, a escultura e esse tipo de
coisas, os belgas são mais populares.
E toda a gente lê BD, aqui”. Ele próprio, na casa dos vinte, transpira entusiasmo quando fala desta tradição
tão belga: conhecer as personagens
de BD, aos 17 ou 18 anos passar para
os clássicos, ler os livros, guardálos em casa e esperar ansiosamente
pelo próximo álbum!
Mas é fácil de compreender…a
loja está a abarrotar de bonecos,
cartazes e de livros do último sucesso espanhol: BlackSad. Com três
álbuns editados, Nicolas refere que
“está a vender muito bem. É um
estilo muito mais contemporâneo,
mais dinâmico, bastante diferente
dos clássicos. E há pessoas de todas
as idades a ler. Sim! Os jovens começam com Manga (estilo japonês
CATARINA MEALHA
ALÉM DO PARLAMENTO EUROPEU, DA GRAND PLACE E DAS
DELICIOSAS GAUFFRES, BRUXELAS É TAMBÉM CONHECIDA
POR SER A CAPITAL DA BANDA DESENHADA. AQUI NASCERAM MUITOS DOS CLÁSSICOS DA BD E ESTE TIPO DE LITERATURA É UM DOS GRANDES ORGULHOS DE QUALQUER BELGA.
de BD) mas passam para os clássicos, e os adultos continuam sempre
a ler. É característica nossa!” Num
dia-a-dia, o difícil é não viver como
as personagens que povoam o imaginário dos adeptos deste tipo de
literatura.
Tintim, Spirou e Lucky Luke
Em 1938 nasce Spirou, aquele rapazito de farda vermelha que nos
habituámos a ver com o amigo
Fantásio, mas que viveria ainda
bastantes anos e aventuras sozinho antes de o conhecer. Acolhe
no seu jornal muitos outros heróis
e só alguns anos mais tarde conheceria a saborosa experiência de viver sozinho num álbum só dele.
Tintim, o jovem repórter que
ainda hoje encanta miúdos e graúdos viveu as suas primeiras aventuras na publicação Petit Vingtième (suplemento para escuteiros
da Revista Vingtiéme Siécle do
qual Hergé era director) , em 1929,
mas só 17 anos depois seria o herói principal da revista com o seu
nome! Com ele o texto e a imagem
surgem pela primeira vez juntos,
num casamento perfeito, dentro
dos balões tão originais desta arte.
E seria à volta destes dois heróis
– agora chamados clássicos - que a
BD cresceria da forma exponencial
que se registou. Separados pelos
cerca de 50km que afastam Bruxelas (cidade natal de Tintim) de
Charleroi (cidade onde nasceu Spirou), os criadores destes dois rapazes e de tantas outras personagens
distinguir-se-iam pela adopção de
características muito particulares.
Hérgé, Jacobs e Tibet são só
alguns dos realistas que dão vida
aos amigos de Tintin e ao próprio
repórter. Já Spirou goza da companhia [e da criação] de Jijé, Morris,
Peyo e claro, do seu pai Dupuis.
O aparecimento de vários autores foi permitido, de forma realmente involuntária, pela II Guerra
Mundial e por toda a censura que
os alemães fizeram recair sobre as
pranchas aos quadradinhos. Ainda que tivessem praticamente desaparecido de circulação, Spirou,
Tintim e alguns outros continuavam à espreita. A partir de 1945
todos eles saltaram novamente
para os respectivos quadrados e
revistas, trazendo atrás de si amigos como Lucky Luke (1947, por
Morris), Tif et Tondu (1949, Will
e Ferninand Dineur), os Estrumpfes (1958, por Peyo) ou Yoko Tsuno (1971, Roger Leloup).
A Banda Desenhada abre aos adolescentes de
todos os lados uma realidade desconhecida,
que pela mão – ou pelo pé, pelo voo, pela nave
espacial - dos seus heróis descobrem o mundo
que os rodeia.
Se Spirou, em Charleroi, se inclina para o humor e leva consigo os
companheiros de jornal com quem
partilha o espaço (Os Túnicas Azuis
ou Les Petits Hommes), o jovem e
inteligente Tintim prefere uma abordagem mais realista. Com a ajuda do
Professor Girassol e do Capitão Haddoc, mantém nas tiras da sua revista Michel Vaillant ou Ric Hochet.
A partir de 1945 os jornais abrem
as portas aos jovens artistas que depois da II Guerra, livres da censura, podem dar largas à imaginação.
Os belgas precisam de sonhar, de se
evadir, de descobrir novos horizontes. E a explosão da literatura para
jovens e de criação de personagens
ao desbarato vê chegada a sua oportunidade. Nascem as lendas da BD,
Uma tradição belga
E de repente, todos lêem BD. E mais
do que os jovens, os adultos podem
agora deliciar-se com as personagens criadas exclusivamente para
eles. A partir de 1970 nascem as primeiras heroínas – românticas, soft–
core e hard-core - e heróis de Banda
Desenhada para adultos. Com a publicação Trombone Ilustré (Trombone Ilustrado), nos anos 70 e 80, a
Bélgica francófona conhece pela primeira vez um material mais adulto
e mais elaborado. Acontece então o
ponto de viragem na história da BD
– e não só a nível Belga!
Um travo “colonizador” de
enfatização da sabedoria e da
obrigação de educação do homem
branco comum aos povos francófonos (nomeadamente belgas e
franceses) pode ser encontrado
em vários álbuns publicados entre
os anos 40 e 70. A primeira edição
de Tintim em África é flagrante a
esse respeito: numa certa altura o
repórter está a dar uma aula aos
congoleses sobre o país destes e
qual não é o espanto quando nos
deparamos com uma aula sobre a
Bélgica! Na segunda edição, cuja
tiragem só foi feita depois da independência do Congo, aparece a
mesma cena mas agora a matéria
leccionada é Matemática. ”Sim, é
verdade! Mas era como nós [belgas] víamos as coisas na altura”,
explica com alguma vergonha
Amandine, aluna de Jornalismo
do Institut des Hautes Études en
Communication Sociale, em Bruxelas, e ainda hoje fã da BD, especialmente dos álbuns do Tintim.
E, hoje, na Bélgica, nem os ministros têm vergonha de passear
com um livro de quadradinhos
na mão, porque afinal há que
realçar toda a importância pedagógica destes heróis que não largam as mãos dos belgas. E então
começamos a perceber porque
nos surpeendemos com um Estrumpfe a espreitar da parede de
uma loja ou porque encontramos
o Scorpion a lutar na fachada de
um prédio, mesmo de costas para
a Basílica de Bruxelas.
A Capital da Europa é também
a Capital da BD e é tão importante ver as personagens a passear
nas ruas como os turistas que alimentam a economia da cidade e
os cidadãos que trabalham para o
desenvolvimento do país. •
8ª COLINA I MARÇO 2006
DOSSIER
A vida de um detective
privado
15
16 DOSSIER DETECTIVES PRIVADOS
MARÇO 2006 I 8ª COLINA
SÃO PESSOAS COMUNS, INDIFERENCIÁVEIS NUMA MULTIDÃO,
MAS QUE PODEM TER UM MICROFONE OU UMA OBJECTIVA APONTADOS PARA SI.
SERÁ CASO PARA DIZER TENHA CUIDADO, TENHA MUITO CUIDADO...
INÊS VIEIRA, ISABEL ALVES
E PATRÍCIA SILVA
“Não era disto que estavam à espera num detective, confessem
lá”, atira com um sorriso Mário
Costa enquanto abre a porta do
elevador. De facto, Mário Costa
está longe de pertencer ao imaginário dos filmes de Sherlock
Holmes ou de James Bond. Não
é atlético e esguio como o espião
ao serviço de sua majestade, nem
usa gabardina como o perspicaz
Holmes.
O escritório fica no 5º andar,
mas o elevador só vai até ao 4º.
A partir daí, só a pé. Ao lado da
porta do elevador, uma seta vermelha onde se lê “Mário Costa”
indica o caminho. O detective
não recebe os clientes na rua,
num parque de estacionamento,
ou nos cafés, porque, para si, um
detective sério tem de ter escritório aberto.
Detective particular há quase
30 anos diz-se especialista em infidelidades e não aceita casos de
outra natureza. “ A maior parte
dos detectives tem a ver com o
desvendar do crime. Eu não trabalho com crimes, só com a família”. Infidelidade e ciúmes são a
grande fonte de trabalho deste investigador que se considera mais
um “ajudante das pessoas” do que
detective. “Eu tenho de ser um
bom ombro, alguém que tenha pachorra para estar com um cliente
cerca de 2 horas, a ouvir histórias
que já ouvi de outros 300 clientes
iguaizinhos”. Procurado tanto
por homens, como por mulheres,
as histórias repetem-se. Ambos
querem saber se o cônjuge trai.
É no seu pequeno escritório
que recebe os clientes. Atrás de
si multiplicam-se nas paredes os
artigos de jornais emoldurados.
Todos sobre os ossos do ofício e,
em todos, menções a Mário Cos- revelado muito lento. “São coisas
ta. Mapas. Europa, Portugal e muito complexas que envolvem a
Lisboa. Na porta, o do Porto. Um lei da protecção de dados, do sibusto de Sherlock Holmes. Um gilo, da devassa de vida privada,
relógio com um casal de noivos. etc...”, diz João Santos.
Uma pilha de revistas e jornais
no chão. “Sou um leitor compul- Quando o detective mente
sivo. Leio de tudo... a Ana, a Ma- Sentado à secretária, Mário Costa
ria... e essa merda toda”. Diz que fuma cigarros atrás de cigarros.
é uma forma de
Com um ar de
conhecer medesdém, puxa
“Há homens a quem
lhor o universo
uma
enorme
feminino para eu digo a verdade e há
tira de recortes
poder aconse- outros a quem eu
de jornais com
lhar as suas
anúncios de oua omito”
clientes. Colatros detectives,
da no armário,
que tem colada
a edição especial do Tal&Qual à parede com fita-cola. São os seus
dedicada “às 10 facadas matrimo- colegas e não só. “Burlões”, como
niais”. Na secretária, mais uma o próprio lhes chama. “Qualquer
panóplia de livros e papelada em pessoa que arranja um anúncio
que se distingue unicamente pela no jornal e faz um site pode ser delombada o Código de Processo Pe- tective. Se pegarmos nos anúncios
nal. Um elemento desenquadrado de jornal que estes gajos põem, neno contexto de uma actividade nhum tem morada. Depois é só seque vive com um pé na ilegalida- guranças de discotecas, de centros
de.
comerciais, polícias em part-time.
Isto está entregue à bicharada!”
No limite da lei
São vários os casos que conhece
De acordo com a actual legis- de mulheres enganadas por falsos
lação, a profissão não é ilegal. detectives, que recebem dinheiro
Como explica o jurista Antón a adiantado, fingem investigar ou
lei geral”. Mas para o presiden- simplesmente desaparecem. Por
te da ANDPP a pressão sobre as medo de represálias, os “pseuautoridades competentes deve do-detectives” só trabalham com
persistir. Segundo João Santos mulheres. Porque são mais vulé necessário que o Ministério da neráveis, porque são mais paAdministração Interna (MAI), cientes, porque são mais fáceis de
que tutela a actividade, a regula- ludibriar e, principalmente, pormente e defina o que é da compe- que não fazem queixa à polícia.
tência de um detective privado.
Não se queixam por vergonha de
A ANDPP já entregou inclusi- admitir que recorreram a um deve um ante-projecto lei baseado tective e de expôr o seu problema.
na regulamentação que existe Mário Costa aceita muitos casos
noutros países. Cabe, no entanto, em 2ª-mão, de mulheres que já
ao MAI levar a proposta à Assem- tiveram uma primeira má expebleia da República para que seja riência. Também aceita casos de
aprovada. Todo o processo se tem homens, que outros recusaram.
Os seus muitos anos de experiência levam-no a agir consoante
o cliente que tem na frente. A
catalogação é bastante simples:
homem e mulher. Apologista do
casamento, mesmo que seja só de
aparências, habituou-se a ver na
mulher a vítima e no homem o
agressor. “Sou um defensor estúpido das mulheres”. E quanto ao
homem? “É mais besta, mais básico, não sabe perdoar”. Daí que
admita sem nenhum problema de
consciência: “há homens a quem
eu digo a verdade e há a homens a
quem eu a omito. Já às mulheres,
não me lembro de uma única vez
em que tenha mentido”. A omissão da verdade é justificada pela
desconfiança quanto à idoneidade do cliente, que muitas vezes
revela ser violento e vingativo.
Em alguns casos em que considerou a integridade da vítima em
perigo, o detective chegou mesmo a apresentar queixa à polícia,
embora considere que deva ser a
vítima a fazê-lo.
te o preço dispara para acima dos
5000 euros.
Grande parte dos casos que rejeita, deve-se à impossibilidade de os
clientes conseguirem pagar, mesmo podendo fazê-lo a prestações.
“Não faço caridade, só aceito clientes com muito dinheiro”. Não são
apenas os honorários de 75 Euros
por hora que explicam orçamentos
tão elevados. “Obviamente, tudo
isto é corrupção. As pessoas que
me dão este tipo de informação são
pessoas que estão a colocar o seu
trabalho em perigo”. Mário Costa
afirma ter informadores em todo o
lado. Onde? Não pode dizer. Outra
explicação é não trabalhar sozinho. Consigo colabora uma equipa
de 11 pessoas, geralmente casais,
incluindo um casal de idosos, dois
irmãos, filhos de um inspector
da Judiciária, a própria filha e o
namorado dela. As equipas são
formadas por um casal e um segurança, os primeiros ficam num
carro, o outro no carro de apoio.
A sua função é sobretudo trabalho
de rua, ou seja, vigilância e per“Extras” coíseguição. Mas
bem a contrasempre com or“Qualquer pessoa que
tação do dedens muito esarranje um anúncio
tective
pecíficas dadas
“Está tudo aqui num jornal e faz um site
pelo coordenaescondido”.
dor, até porque
pode ser detective”
Mário
Costa
Mário
Costa
afasta o teclado
receia que os
e procura num bloco de notas de seus colaboradores de hoje se
formato A3 a folha com a tabela de transformem na concorrência de
preços dos seus serviços. Tudo tem amanhã. “Eles têm pouca margem
um preço e é tudo muito caro. Des- de manobra, muitas vezes não sade equipamentos, como o telemó- bem quem é o cliente, não sabem
vel espião e escutas, procura de in- nada. Só que há um determinado
formações como o registo predial, carro para seguir”. João Santos
Via Verde e análise de ADN, entre assume uma postura semelhante à
outros, tudo tem um preço acima do colega. A sua equipa faz apenas
dos 1000 Euros. Isto, se existirem trabalho de campo e de vigilância.
nomes e moradas, senão facilmen- E mais não especifica. “Perguntas
O que diz a lei
CONSTITUIÇÃO
Artigo 26º: “A todos são reconhecidos os direitos […] ao bom nome e
reputação, à imagem, à palavra, à
reserva da intimidade da vida privada
e familiar […]
CÓDIGO CIVIL
Artigo 79º: “O retrato de uma pessoa
não pode ser exposto reproduzido ou
lançado no comércio sem o consentimento dela […]”
Artigo 80º:“Todos devem guardar
reserva quanto à intimidade da vida
privada de outrem”
CÓDIGO PENAL
Artigo 192º: “Quem, sem consentimento e com intenção de devassar
a vida privada das pessoas, designadamente a intimidade da vida
familiar ou sexual: a) Interceptar,
VERA MOUTINHO
gravar, registar, utilizar, transmitir
ou divulgar conversa ou comunicação telefónica; b) Captar, fotografar, filmar, registar ou divulgar
imagem das pessoas ou de objectos
ou espaços íntimos; c) Observar ou
escutar às ocultas pessoas que se
encontrem em lugar privado; ou d)
Divulgar factos relativos à vida privada […] de outra pessoa; é punido
com pena de prisão.
Artigo 199º: “Quem sem consentimento, a) Gravar palavras proferidas por outra pessoa e não
destinadas ao público, mesmo
que lhe sejam dirigidas; ou b) Utilizar ou permitir que se utilizem
as gravações referidas na alínea
anterior, mesmo que licitamente
produzidas; é punido com pena de
prisão até 1 ano ou com pena de
multa até 240 dias.
DETECTIVES PRIVADOS DOSSIER 17
8ª COLINA I MARÇO 2006
Detectives unidos
Constituída em 1992, a Associação Nacional de Detectives Privados Portugueses
(ANDPP) tem actualmente cerca de 30 filiados. Desde a sua criação até hoje que o
seu principal objectivo se mantém: regulamentar a actividade de detective privado
em Portugal. Uma actividade que, ao contrário do que se julga, não é ilegal. É, inclusivamente, reconhecida pelo Ministério do
Trabalho e da Solidariedade Social, sendo
possível declarar-se como detective privado nos impressos do IRS. Em Portugal, a
profissão existe unicamente para efeitos
contributivos.
Poderia pensar-se que esta é uma situação
de dois pesos e duas medidas por parte do Estado português. Mas é o próprio Presidente
da ANDPP, João Santos, que admite ser difícil enquadrar a regulamentação da activi-
da minha área profissional não ve mostra compreensão: “o derespondo. Não me chamo Mário sespero muitas vezes dá nisso”.
Costa. Papagaios é outra história. Ciúme, vingança, património,
Aqui existe profissionalismo”. No controlo de filhos são o tipo de
entanto, deixa escapar que para si preocupação que lhe dá trabatrabalham oito polícias no activo.
lho. E, frequentemente, trabalho
Mário Costa confessa que só bizarro. Já se viu obrigado a protrabalha com profissionais, por curar um cão que um namorado
isso a selecção é necessariamente rejeitado roubou por vingança.
criteriosa. Têm de ter qualquer Outra história que lhe deu partipo de formação superior, falar ticular prazer foi fazer a vida
no mínimo duas línguas e uma negra à amante do rapaz que caenorme capacidade de se torna- sou com a mulher rica. Resultarem invisíveis. Roupas e carros, do: foi obrigada a mudar de casa
só de cores neutras. Os seguranças duas vezes, casas que tinham
recruta-os pelos conhecimentos sido compradas pelo jovem com
de artes marciais e pela aparência o dinheiro da mulher. A amante
discreta, “nada de armários, só ti- ficou também sem o carro. Não
pos normaizinhos”, mas capazes será um caso típico, mas não se
de neutralizar qualquer ameaça.
afasta muito da norma. E não
Mário trabalha sobretudo no será com certeza de casos raros
escritório, mas, quando a activi- que se faz um dia de um detective,
dade de campo ganha dimensões mas até o mais comum dos casos
internacionais, acompanha sem- parece muito estranho a quem
pre a equipa. Frequentador habi- não pertence ao meio. Como o
tual dos aerode um marido
portos, estes já
que
suspeita
“Houve um Presidente
se transformaser enganado
ram mais num de Câmara que me
pela mulher e
palco do que pediu para matar o
entrega ao denum simples
tective roupa
namorado da filha.”
local de partiinterior dela
da e chegada.
para análise.
O seu voo é sempre anterior ao “Chegam ao ponto de comprar
do casal investigado. É necessá- roupa igual para deixar no lurio chegar antes para preparar gar da que levaram. Isto é mais
terreno. O check-in do voo de doentio do que se possa pensar”,
regresso dava um filme. Sabe de diz Mário Costa enquanto retira
cor o papel do coxo e marreco, de um invólucro amarelo fluoque conquista a simpatia dos as- rescente uma tanga branca que
sistentes de bordo e consegue o chegou há dias do laboratório. O
lugar da última fila. Depois disto, cliente pretendia saber se a peça
vigiar é uma tarefa muito mais de roupa tinha vestígios de sésimples. Captar as cenas preten- men do suposto amante. O detecdidas? Fácil: “basta-me ir à casa tive ri-se.”Teve azar, não havia.
de banho lá da frente e quando Fica para a próxima”. •
passo filmo. Quando volto torno a filmar”. Um verdadeiro Big
Brother, do qual as vítimas nunca se chegam a aperceber.
Ciúme, traição, vingança
“Houve um Presidente de Câmara que me pediu para matar o
namorado da filha”. Mário está
habituado a que lhe peçam tudo.
Ainda está muito enraizada a
ideia de que um detective é alguém disposto a qualquer coisa,
até mesmo matar. Mas o detecti-
Nota: na altura em que foi feita a
entrevista ao detective João Santos,
este ocupava o lugar de Presidente
da ANDPP. Actualmente o cargo
exercido por António Ferreira.
VERA MOUTINHO
dade na lei portuguesa, muito proteccionista
em relação ao direito à privacidade.
A Associação pretende ser um garante
de credibilidade para quem recorre aos serviços de um detective. É por isso que atribui uma “carteira profissional” aos seus
associados, um documento que serve apenas para identificar o seu titular como um
detective reconhecido pela ANDPP.
Ser filiado e ter carteira profissional significa obedecer a um conjunto de critérios:
é necessário ter formação (normalmente
tirada no estrangeiro), tem que trabalhar
exclusivamente como detective e já ter
dado início à actividade e não pode ter registo criminal. Este último aspecto é para
João Santos fundamental para credibilizar
a actividade. Já o jurista Monteiro Cardoso acredita que seja um requisito inconsti-
tucional. “Não se pode privar a pessoa do
direito à reinserção social se já tiver pago
pelo seu crime”.
Em vias de sofrer uma reestruturação
ao nível dos seus corpos directivos, a Associação não tenciona alterar os requisitos de admissão. Pretende sim acrescentar competências às que já tem, sobretudo
ao nível da formação. Reconhecendo que
a ANDPP não tem capacidade para formar detectives, João Santos afirma que
“a solução passará necessariamente por
um protocolo a desenvolver com alguma
entidade privada que dê essa formação”.
Em Espanha, país onde João Santos tirou
o seu diploma de detective, existem já
cursos superiores para a profissão, mas
afirma que os objectivos iniciais da Associação são bem mais modestos.
18 DOSSIER DETECTIVES PRIVADOS
MARÇO 2006 I 8ª COLINA
SUSANA TEODORO
A loja do espião
10h30 da manhã. Uma hora
depois do horário normal
de abertura de qualquer estabelecimento comercial.
Encontrar uma porta fechada e uma persiana preta cerrada não era à partida o que se estava à espera.
Ouvir vozes e ver um feixe
de luz por entre as folgas
da persiana causa ainda
mais estranheza. No vidro,
afixado, pode ler-se num
papel, “em caso de ausência, por favor contacte-nos
para o nº...” Não era o caso,
contudo a porta estava fechada. Já dentro da loja
percebe-se porquê. Carlos
Oliveira, responsável pela
AllSpy na Rinchoa, afirma
que é importante preservar a privacidade dos seus
clientes. Define-a como
uma empresa de segurança
e vigilância. “Uma câmara
tanto pode servir para espreitar um tubo entupido,
como para vigiar alguém.
Tudo depende do uso que
as pessoas lhe dão, mas isto
não é uma loja de materiais
de espionagem”. Mas que
outra finalidade poderá ter
um maço de cigarros com
uma mini-câmara de vídeo
e um microfone escondidos
no seu interior, que com
apenas um furo de agulha no pacote conseguem
captar som e imagem com
elevada qualidade? Este é
apenas um dos exemplos.
Expostos nas prateleiras,
uma série de objectos que
fariam corar o “Q” dos
filmes do 007. Um guardachuva com um microfone
sem fios com um raio de cobertura de 15 metros; uma
bolsa de mão com câmara
e microfone, um livro com
páginas e câmara dissimulada que apenas através de
um furo de agulha capta
imagens com uma qualidade impressionante; um
despertador; um relógio de
parede; uma calculadora;
um rato de computador,
telemóveis, canetas. Toca o
telemóvel. E do outro lado
alguém pergunta: “tem
uma caneta à mão? Tenho,
tenho, com microfone e
tudo. E escreve? Escreve!”,
responde Carlos Oliveira,
enquanto retira uma da
prateleira. Utensílios que
além da missão de espionagem cumprem ainda a
função para a qual foram
supostamente criados. Alta
tecnologia que custa muito
caro. Quanto custa é, geralmente, a primeira pergunta que as pessoas fazem. Os
preços podem chegar aos
1000 Euros. Uma factura
que tende a aumentar, porque comprar, por exemplo,
um receptor de imagem,
leva muitas vezes a que se
compre também o gravador. O serviço pode ser personalizado. “Adaptamos o
material de acordo com o
que as pessoas pedem. Um
livro pode ser forrado com
uma capa de pele igual há
que existe na estante lá
de casa”. Grande parte da
clientela é particular e bastante heterogénea. Pais que
querem vigiar as baby-sitters, patrões desconfiados
dos empregados e, claro,
detectives privados. Segundo o responsável pela
AllSpy, os clientes vão “do
ladrão ao polícia, e os jornalistas estão no meio”. •
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DESPORTO 19
8ª COLINA I MARÇO 2006
ADRIANA CORREIA: ÁRBITRA
“Na arbitragem os homens
têm sempre prioridade”
TIAGO GALHANO
Não há nada que um homem faça,
que uma mulher não consiga também fazer. Certamente o Conselho
de Arbitragem não pensa assim,
caso contrário seriam vistas mais
mulheres a arbitrar jogos. Adriana
Correia é uma árbitra um pouco desiludida com a desigualdade de oportunidades no mundo da arbitragem.
A pura das verdades é esta: a arbitragem em Portugal continua a ser
“um mundo de homens”. Adriana
considera tudo isto uma questão de
machismo, pois quando se trata de
promoções aos escalões principais,
os homens estão sempre no topo das
preferências. A jovem árbitra falanos ainda de situações normais da
profissão, como o comportamento
do público, dos jogadores e dos árbitros, e da forma como estes agem
quando o árbitro é uma mulher.
Quando decidiste ser árbitra?
Decidi ser árbitra ainda muito
nova, tinha 14 anos. Acho que o
meu pai foi a principal influência,
pois foi árbitro praticamente a
vida toda. Mas com a arbitragem
conciliei duas grandes paixões
que tenho: o desporto e o futebol.
Para além de ser bom para o físico
é também uma forma de estar na
vida e, na altura, talvez quisesse
desafiar a maioria masculina.
Frequentei o curso de arbitragem
de 2003, tinha 15 anos. O curso teve
a duração de 2 meses, tínhamos
duas aulas por semana e durante
a instrução apitámos dois jogos,
como iniciação. Mas o curso privilegiava a teoria. Grandes nomes da
arbitragem como o Vítor Pereira e
o Pedro Henriques, o qual admiro
muito, davam aulas sobre leis de
jogo, nutricionismo e posicionamento em campo, por exemplo.
Em que escalões ou divisões arbitras jogos?
Como ainda não tenho 18 anos só posso apitar jogos de iniciados e juvenis.
Mas quando tiver idade passo para
a 1ª e 2ª divisões distritais e então já
posso arbitrar jogos de seniores.
Houve algum jogo que te tenha
marcado, mais do que os outros?
Posso dizer que o Sporting – Porto em iniciados terá sido o mais
importante. Em primeiro lugar
era um jogo ao estilo dos grandes
clássicos, com a lotação do Estádio
da Pontinha quase esgotado. No
entanto, era em ponto pequeno (risos). Em segundo lugar, fui auxiliar do Pedro Henriques, um grande árbitro e grande amigo meu.
A que te dedicas para além da
arbitragem?
Entrei este ano para a faculdade,
no curso de Bioquímica. O meu
sonho era ser médica, mas as médias não o permitiram. Nos meus
tempos livres faço muito desporto
ADRIANA CORREIA TEM 17 ANOS. MAS HÁ UMA COISA QUE A
DISTINGUE DA MAIOR PARTE DAS ADOLESCENTES. É UMA ÁRBITRA DE FUTEBOL. O AMOR PELA ARBITRAGEM SURGIU AOS 14
ANOS, PRINCIPALMENTE POR INFLUÊNCIA DO PAI, UM ÁRBITRO
DE VIDA INTEIRA.
como natação, ténis e ainda danço é próprio de uma mulher. Mas para
salsa, que me ajuda a relaxar.
além disso é indispensável ser-se imÉ difícil conciliares a arbitragem parcial, justo e gostar de futebol.
com a vida social e estudantil?
De momento uma das tuas funA arbitragem tira muito tempo aos ções é arbitrar jogos de iniciaamigos. Os jogos são sempre ao fim- dos. Ser mulher ajuda a tarefa?
de-semana e, por exemplo, ao sába- Penso que sim. Nos jogos de iniciado é complicado sair, pois preciso dos não podemos ter uma postura
de descansar. Tenho treinos às ter- rígida e andar sempre a “mostrar
ças e quintas, e quinta à noite ainda cartões”. Temos de adoptar uma
tenho o núcleo de arbitragem até à atitude pedagógica, falar com eles
meia-noite, onde se aprende mais (“Sr. jogador, sabe que vai expulso
qualquer coisinha. Com isto tudo se continuar a fazer dessas.”). E nispassei a sair muito menos, e depois so as mulheres são melhores, sem
ainda há a escola, que acaba por ser dúvida alguma. Só expulsei uma
o mais importante.
vez um miúdo por ter sido muito
Discutes erros de arbitragens mal-educado comigo.
com os amigos?
Porque achas que há tão poucas
Claro, por ser árbitra não quer di- mulheres, quase nenhumas, a
zer que não critique as arbitragens apitar jogos?
como qualquer outra pessoa. Mas Em primeiro lugar, penso que as
é uma crítica construtiva (o que mulheres são mais sedentárias. E
devia ter feito, etc.). Não faz par- depois há a questão do costume: o
te dos meus hábitos insultar. Eu, futebol é muito machista. Para as
como ninguém,
mulheres o despercebo da coi- “Confundem-nos
porto continua
sa e sei que é
a ser um “bichocom uma boneca de
preciso dar um
de-sete-cabedesconto. Tudo porcelana”
ças” e o futebol
acontece numa
continua a ser
fracção de segundo, assinalar ou um desporto para homens. E, além
não assinalar.
do mais, o facto de arbitrar assusta
Achas que uma mulher dirige me- qualquer mulher. No entanto, aquelhor um jogo do que um homem?
las que decidem ir em frente, como
Acho que sim. Temos mais sensibi- é o meu caso, são sempre alvo de inlidade para manter a calma e não justiças: em termos de treino e de enpuxar logo dos cartões (risos). Isso sino temos exactamente as mesmas
E quando erram?
É importante dizer que nós temos de
tomar decisões instantaneamente.
É a tal fracção de segundo. Por isso
não há espaço para remorsos. O sentimento de culpa de um possível erro
desaparece com o decorrer do jogo.
E a pressão dos jogadores e
adeptos influencia as decisões?
Bastante. No meu caso, sinto que o público interfere muito devido à minha
TIAGO GALHANO
relativa inexperiência. É a tal coisa:
não temos preparação psicológica
para enfrentar de tudo num campo. E
os adeptos acabam por ser muito piores do que os jogadores. Não sabem
pôr-se na nossa pele e descarregam
todo o stress acumulado durante a semana em nós. Depois, há todo o tipo
de público: aqueles que estão revoltados por um árbitro ser uma mulher,
que dizem coisas do tipo: “Devias ‘tar
era a coser meias!” (risos), e ainda as
mulheres, que são particularmente
ofensivas. São pessoas que não têm
qualquer respeito pelo que fazemos.
E se formos ver bem as coisas, quem
mais merece críticas são os jogadores, pois ganham muito mais do que
nós. Se um jogador falha um penalty,
teve azar e isso é esquecido rapidamente. Se eu falhar e não assinalar
um penalty chamam-me “gatuna” e
sujeito-me a ouvir de tudo.
Os jogadores agem de forma diferente quando o árbitro é uma
mulher?
condições do que os homens, mas Sente-se muito a diferença (risos).
quando é altura de subir e passar Primeiro, têm um pouco mais cuidaaos escalões principais, um homem do na forma como se dirigem a mim.
tem sempre prioridade. Mesmo que Não falam da mesma forma grosseium homem e uma mulher estejam ra como falariam com um árbitro.
em “pé de igualdade”, dá-se sempre Costumas ser assediada pelos
o benefício da dúvida ao homem.
jogadores?
E como é em relação aos colegas Sim, há muitos jogadores que pedem
de arbitragem masculinos?
o meu número (risos). Até já houve
Já senti muitas vezes discrimina- um caso de um jogador que conseção da parte deles. A começar pelo guiu o meu número, não sei como, e
aperto de mão. Costumo dizer que andou a chatear-me durante algum
nos confundem com uma boneca de tempo com mensagens. E, como não
porcelana. Tenho tido casos, quan- podia deixar de ser, há a questão do
do integro uma equipa liderada por cumprimento: perguntam-me se em
um homem, em que ele se vira para vez do aperto de mão podem dar um
mim e diz qualquer coisa do género: beijinho. São situações normais,
“Aqui quem manda sou eu, por isso acho eu, e nunca expulsei nenhum
não interfiras nem atrapalhes”. Sou por ter sido inconveniente (risos).
um árbitro
Quando as equicomo
eles! “Perguntam-me se em
pas de arbitragem
Não há nesão mistas, como
vez do aperto de mão
cessidade de
é nos balneários?
me tratarem podem dar um beijinho”
Nos balneários tede forma dimos, normalmenferente e desagradável. E há outra te, de gerir a situação. Se houver
coisa, também incompreensível, ou condições equipamo-nos e tomanão. Voltamos a falar do machismo. mos banho em separado. Se não
Quando um árbitro tem de escolher houver, nós temos prioridade, é
os elementos para formar a sua equi- claro, e os homens esperam pela
pa de arbitragem, os homens estão vez deles (risos).
sempre no topo das preferências e, Que mentalidades teriam de
no entanto, nós mulheres apresenta- mudar para que se vissem mais
mo-nos nas mesmas condições.
mulheres a arbitrar jogos?
Achas que as mulheres podem Principalmente a mentalidade dos
deixar interferir as emoções homens. Tudo é dirigido por homens.
mais do que os homens?
O Conselho de Arbitragem é exclusiÉ um equívoco pensar que as mu- vamente dirigido por homens, nem
lheres são mais sentimentalistas uma única mulher. A ausência de
do que os homens. Se errarmos tal- mulheres na arbitragem pode ter
vez não seja por sermos mulheres, aqui uma das suas explicações. Para
mas sim por não termos treino psi- além disso, não existe qualquer tipo
cológico à altura. No curso de arbi- de incentivos para a participação das
tragem temos aulas de psicologia, mulheres. Temos de apoiar e incentimas isso não é suficiente. Assim, var as gerações vindouras. Acredito
vemo-nos obrigadas a aprender a que qualquer dia uma mulher abrirá
lidar com a pressão por nós, com a as portas para as divisões de topo e
experiência ganha nos jogos.
chegará então o nosso momento. •
20 DESPORTO
MARÇO 2006 I 8ª COLINA
PEDAGOGIA DO TREINO
SÍLVIA CARVALHO
“Ó mãe já chega”. “Ó pai não vás
lá”.Era o que se ouvia no final do
jogo de iniciados entre Oriental e
Olivais Sul. Muitas crianças, principalmente os próprios jogadores
da equipa dos Olivais, choravam
e imploravam para que os pais
acabassem com os tumultos que tinham provocado, no final do jogo.
Depois de terem insultado arduamente um dos árbitros durante
a partida, os apoiantes da equipa
visitante entraram em campo para
pôr em prática as ameaças feitas.
Esta claque, composta principalmente por mães dos pequenos
jogadores, entrou em campo de
bandeiras em punho. Uma das
mães descalçou as botas e fez delas
armas de arremesso. Os dois polícias presentes entraram em campo
e tentaram acalmar a situação. Um
tentou proteger o árbitro, o outro
encarou a mãe descalça e ambos
cairame rebolaram no chão.
Passados alguns minutos, e já
com a ajuda da equipa técnica dos
Olivais, os polícias conseguiram
escoltar os árbitros até à sua cabine. As mães continuaram de fora a
gritar, mas o alvo agora era outro:
os jovens jogadores da equipa do
Oriental, por alegada falta de educação e demasiada violência durante o
jogo. A manhã acabou com a saída
da equipa orientalista do campo.
Mas não sem antes ouvir as ameaças dos apoiantes dos Olivais, que
prometiam vingança para o jogo
da segunda volta.
Pedro Perfeito, treinador da
equipa do Clube Oriental de Lisboa, lamentou o que se passou no
final do jogo e lamentou também
a razão que leva a estes acontecimentos: a sobrevalorização da
competição nas camadas jovens.
Esta pressão competitiva, vinda
dos treinadores e muitas vezes vinda também dos pais, é, nos dias de
hoje, uma das principais causas do
abandono prematuro do desporto.
“Para eles o desporto deixa de ser um
prazer para passar a ser uma obrigação”, reforça o mister Perfeito.
O treinador como educador
Foi sobre isto que nos falou António Rosado, professor de Pedagogia
do Desporto, na Faculdade de Motricidade Humana, da Universidade Técnica de Lisboa. Para ele, o
treinador tem a função de “orientar o desenvolvimento do atleta,do
ponto de vista técnico, táctico e desportivo, mas sem esquecer o atleta
como pessoa”. Teoricamente não
seria complicado, contudo o professor Rosado admite que muitas vezes para os treinadores isso são só
boas intenções, porque na prática
“podem não conseguir fazê-lo porque não têm formação, ou, quando
a têm, não têm competências”.
Como professor de Pedagogia
tenta transmitir aos seus alunos que
eles se “devem preocupar com a educação dos jovens em primeiro lugar
e só depois com a educação desportiva”. Porque acima de tudo, e remete-nos para os primórdios dos Jogos
Olímpicos da Grécia Antiga, “o
SÍLVIA CARVALHO
“O treinador é um
orientador na vida”
O ACOMPANHAMENTO DE UMA EQUIPA DE FUTEBOL COM
Um espaço muito reduzido e sem
muitas condições para treinarem.
O TREINADOR PEDRO PERFEITO NUMA MANHÃ DE JOGO
Que o diga Armando, 14 anos, um
dos pupilos de Perfeito e, segundo
ele, “o cromo mais raro e procurado
REVELOU-SE UM ENSINAMENTO SOBRE O QUE SE DEVE E
da colecção. Acabado de vir do BeNÃO FAZER, QUANDO SE LIDA COM O DESPORTO JUVENIL. lenenses, chegou ao Oriental para
participar num treino de captação
nesse dito espaço. E de olho na relva
objectivo do desporto não é o rendi- Perfeito diz com orgulho já ter mais perguntou ao mister se era ali que
mento desportivo, não é ganharmos de cem filhos, no total da sua ainda treinavam. Pedro Perfeito hoje adtodos os fins de semana, mas sim o curta carreira de treinador. Foi ele mite: “eu enganei-o e disse-lhe que
desenvolvimento de uma concepção que nos abriu a porta da sua segunda não, que só as captações eram ali.”
de Homem na sociedade e de compe- casa para nos dar a conhecer o amCom as fotografias de todos
tências morais, atitudes e valores”. biente que se vive no seu balneário.
tiradas, estava na altura de caEsta visão mais pedagógica do que
minhar aqueles cerca de 500
competitiva reina no Clube Orien- “Os cromos da bola”
metros, atravessar a linha de
tal de Lisboa e, neste caso preciso, O dia começou com uma sessão de comboio e chegar ao Campo dos
na mente de Pedro Perfeito.
fotografias. Objectivo: colecção de Ferroviários, em Marvila.
O Oriental é um clube com uma cromos das camadas jovens do Clube
Durante o aquecimento foram
história de glórias e que hoje, ape- Oriental de Lisboa. Esta foi umas das chegando os apoiantes dos dois clusar de competir com a equipa prin- iniciativas para motivar os jogado- bes: pais, amigos ou simpatizantes
cipal na Segunda Divisão, dedica res mais novos do clube a participar dos clubes prometiam apoiar os
mais atenção à formação de novos e para se “orgulharem de fazer parte jovens jogadores que entrariam
jogadores. Esta atenção é resulta- da família orienem campo às
do da “carolice” de várias pessoas talista”. Equipadez e meia da
“É muito difícil
que dispõem do seu tempo, sem dos a rigor, jomanhã. Os do
pedir nada em troca, apenas com o gadores e equipa encontrar em algum
Oriental mais
intuito de dar aos jovens do bairro técnica subiram lado uma relação igual
discretos. Os do
um futuro melhor.
ao relvado para
Olivais Sul vesà que tenho com eles”
Estes jovens, na sua maioria, são começar a sessão
tidos a rigor e
de um bairro que para muitas pes- fotográfica, que
com bandeiras.
soas só o nome assusta: o bairro de fará deles “os verdadeiros cromos da Perto da hora de jogo as equipas
Chelas. E o clube, situado em plena bola”, segundo Pedro Perfeito.
recolheram às cabines, mas rapizona J, é a ocupação de tempos livres
Mas o relvado é mesmo só para damente um burburinho se insde centenas de crianças e adolescen- a fotografia. Os treinos e jogos ocor- talou no átrio de acesso. Só tinha
tes deste bairro problemático e tem rem num campo pelado alugado um chegado um árbitro. As equipas
contribuído, através dos treinadores pouco abaixo do estádio, ficando a concordaram ficar à espera do que
dos vários escalões, para a educação relva macia reservada aos pés dos faltava. “Em vinte minutos está
e formação da personalidade desses mais velhos do clube, ou seja, a equi- cá”, prometia o jovem árbitro que
adultos de amanhã, em vez de os dei- pa sénior. Contudo, a situação pode se apresentou à hora marcada com
xar à deriva no mundo perigoso que ser pior e os treinos podem ser num um ar tímido e embaraçado.
é vizinho de cada um deles. Pedro pequeno espaço junto do relvado.
Na cabine do Oriental, o ambien-
te não podia ser outro. Pedro Perfeito
teve como “estratégia anti-pressão”
falar de tudo menos do jogo que os levava ali: “Falámos de tudo e mais alguma coisa e só do torneio de Playstation falámos 23 minutos.” O torneio
ficou então combinado para as férias
de Natal, entre jogadores e equipa
técnica. Mas o mister deixou claro:
“eu trago a Play, mas vocês trazem
os comandos, porque se perderem
mandam o vosso comando ao chão, e
se partir o problema é vosso”.
Da relação com os jogadores
Perfeito orgulha-se também da forma como lida com os seus “filhos”
e garante-nos: “é muito difícil encontrar em algum lado uma relação igual à que tenho com eles e à
maneira que eu tenho para falar
com eles, porque é assim que eu
entendo que devo falar.” Acredita
por isto que o treinador é mais do
que um tutor na modalidade, “tem
de ser um orientador na vida, porque por vezes é mais através do
desporto que eles ouvem.”
Se assim for, será que os jovens
chegam a ter mais respeito ao treinador do que aos próprios pais?
“Acho que sim. Os treinadores têm
de ser um exemplo, mas às vezes
não o querem ser, querem é que
eles marquem golos.” E todos os
fins-de-semana, a competição é levada longe de mais e, como orientador da vida de muitos jovens, Pedro
deixa-nos a questão: “como é que se
pode querer que eles sejam bons indivíduos, se há treinadores que dizem: ‘Opa, aleija-o, queima tempo,
dá-lhe uma cabeçada’?” •
8ª COLINA I MARÇO 2006
DESPORTO 21
JOGO DO PAU
A arte marcial portuguesa vai desaparecer?
NAZARET GARCIA
São sete e meia da tarde e Nuno Rus- É UM JOGO POPULAR, UM JOGO DO CAMPO, UM JOGO VIOso come à pressa a sua sandes do
costume antes de dar início a mais LENTO. NÃO TEM APOIOS, OS GINÁSIOS REJEITAM-NO. O
uma aula de jogo do pau, no Ginásio
Clube Português de Lisboa (GCP).
JOGO DO PAU PORTUGUÊS ESTÁ EM CRISE.
São estas duas horas semanais que
o mestre aproveita ao máximo para
ensinar aos seus alunos tudo aquilo
que aprendeu desde 1968, altura em tradição bélica. Entre elas está a de combate foi-se reduzindo cada
que começou a praticar esta modali- de Alhos Vedros, a de Breixos de vez mais até que se viu “obrigadade, com apenas 15 anos. Hoje com Faria e o GCP. Neste último não da” a migrar com alguns mestres
cinquenta e dois anos, admite que se encontram inscritas mais de 12 para o Sul. Assim, chegou até à
muita coisa mudou: “o jogo do pau pessoas e, entre elas, não há nin- capital. Mas também não foi aqui
deixou de ser usado para defesa pes- guém com menos de 28 anos. Esta que atingiu o sucesso. Desde que
soal. Agora as poucas escolas que realidade revela um grande con- o bastão extensível, a arma mais
existem (excepto o GCP) só se dedi- traste com a sociedade do Norte utilizada pelas forças de segurancam à exibição. Adaptam técnicas de Portugal no século XVIII, onde ça a nível mundial, foi dado a coque não têm nada a ver com o jogo nas aldeias se ensinava o jogo do nhecer em Portugal, a utilização
do pau só para haver espectáculo”. pau desde a infância. O pau fazia do pau como instrumento de defeÉ por isso que há cerca de 10 anos parte da indumentária do homem sa deixou de fazer qualquer sentiNuno Russo desenvolveu um árduo do campo, associado às suas des- do. Nuno Russo apercebeu-se disestudo à volta do jogo do pau portu- locações a pé, mas usado sobretu- so e começou também a dar aulas
guês. Conseguiu assim preservar do como arma elementar para se de bastão. “Eles agora só querem
todas as especificidades técnicas defender dos inimigos. Para isso é bastão! É muito mais cómodo e
que muitos mestres entretanto já foram desenvolvidas várias técni- mais fácil de transportar. Eu esfalecidos deixaram com os seus dis- cas de movimento do pau.
tou a tentar manter o jogo do pau
Existiam diferentes níveis de jo- vivo à custa do bastão, porque
cípulos. Para que esta prática não
caísse na mera demonstração conti- gadores que se distinguiam através aqueles que fazem jogo do pau
nuou a desenvolver um jogo em que da cor da faixa que tinham à volta também fazem bastão”, explica
da cintura. A o mestre, que também se apercese confrontam
vários adversá- “Quando tenho algum
amarela indica- beu dos entraves que um pau com
rios e criou uma problema puxo do
va o principian- cerca de metro e meio pode trate; a vermelha o zer: “como técnica gosto mais do
armadura
de
bastão e dou umas
moço namora- jogo do pau mas na minha mota
protecção que
deiro, que tinha levo sempre o bastão. O pau não
se utiliza ape- cacetadas!”
nas em dias de
de estar prepa- dá jeito nenhum... quando tenho
treino especiais para que se possa rado para se defender dos outros algum problema puxo do bastão e
desenvolver o principal objectivo rapazes, e a preta aquele que já era dou umas cacetadas!”.
O jogo do pau é uma actividesta arte de combate: atingir e ma- casado. Nos dias de hoje esta escala
cromática é utilizada para distin- dade presente também noutros
goar o outro jogador.
guir não um papel social, mas sim cantos do mundo como na InContraste com o passado
diferentes etapas técnicas.
glaterra, França ou até mesmo
São poucas as escolas onde ainda
Com o aparecimento das armas na Índia, mas em cada um se
está activa esta modalidade, seja de fogo em substituição do pau desenvolveu uma especificidade
apenas como demonstração, como para a defesa pessoal, esta arte técnica. Para Nuno Russo o jogo
do Pau desde 1977, “desde que começámos a praticar. Nessa altura
justificava-se por que havia cerca
de 10 ou 12 escolas e conseguíamos
juntar cerca de 300 pessoas a jogar
ao pau. Agora somos menos de 100
praticantes efectivos!”, explica com
indignação Fernando Antunes.
O presidente da Federação
ainda recorda a existência de algumas ajudas como a oferta de
uma sede na Av. Estados Unidos
da América pela Câmara Municipal de Lisboa em 2003 e o subsídio
atribuído pelo Instituto do Desporto para que pudessem comprar os equipamentos mínimos de
funcionamento (fax, fotocopiadora, etc.). Hoje a sede ainda existe,
mas os subsídios desapareceram
e “neste momento nem sequer temos dinheiro para pagar a conta
da electricidade ou da água!”.
A própria especificidade violenta deste desporto faz com que
a procura por espaços disponíveis
para treinar seja ainda mais difícil. “Por ser bélica é violenta. E
por ser violenta estraga os sítios
onde treinamos. Por exemplo uma
paulada no chão de um ginásio faz
mossa enquanto uma bola de futeNAZARET NASCIMENTO
bol não faz”, constata o presidente.
Daí entende-se a falta de interesse
dos responsáveis dos ginásios pela
do pau tradicional português e utilização dos seus espaços para os
não meramente exibicionista é treinos do jogo do pau.
único, não só comparado com
São vários os entraves que se
os outros jogos do pau à volta do colocam perante aqueles que lutam
mundo mas também com qual- por manter uma das poucas (ou
quer outra arte marcial. “É um talvez a única) arte de combate trafacto que o nosso tecnicamente dicionalmente portuguesa. A tenbate a todos. Já desafiei muita dência para a mera exibição, o apagente com armas. Há pouco dei recimento de novos instrumentos
uma surra a um rapaz irlandês de combate mais discretos, a falta
com 12 anos de prática em artes de apoios e de divulgação tanto do
de combate japonesas e mandei- governo como das próprias empreo para o hospital! E ele era um sas locais e por aí em diante.
Na opinião de Fernando Antujovem com apenas 30 anos!”.
nes é imprescindível que se possa
Uma modalidade ao abandono
garantir o pagamento aos profesA maioria dos alunos que vão às sores, mas o projecto mais urgenaulas de Nuno Russo no GCP são- te neste momento é a necessidade
lhe já conhecidos desde que treina- de fazer um documentário televivam com ele no Ateneu Comercial sivo no qual se pudesse “filmar
Português em 1972. Um deles é enquanto é possível a infinidade
Fernando Ande técnicas que
tunes: começou “Nem sequer temos
se mantêm e
a treinar com 17 dinheiro para pagar a
que foram suranos e há 6 anos
gindo em todas
conta da electricidade
as escolas. Isto
que é presidente da Federação ou da água”
só por si envolNacional
do
ve uma grande
Jogo do Pau. Queixa-se da falta de quantidade de dinheiro”. Mas o
apoios tanto das câmaras munici- factor mais preocupante é a falta
pais, como de todas as outras insti- de interesse entre os jovens por
tuições a quem já pediu ajuda para esta modalidade já que o pratipoder sustentar a existência do cante mais novo que encontrámos
jogo do pau em Portugal. “Já apre- nas aulas de Nuno Russo tem 28
sentámos projectos à Câmara Mu- anos. Este ano foi publicado nos
nicipal de Lisboa, ao Ministério da Estados Unidos um livro sobre
Cultura, ao Instituto da Juventude, o jogo do pau português escrito
ao Instituto do Desporto, à Funda- em língua inglesa, com a autoria
ção Gulbenkian...todos acham que de Luís Preto, também aluno de
é uma pena porque se vai perder Nuno Russo. Em Portugal pouca
uma arte tradicional portuguesa ou nenhuma informação consemas não passamos disso”.
guimos encontrar sobre esta arte
Para além da Federação Nacio- de combate na qual reside a nosnal do Jogo do Pau existe também sa história enquanto povo lutaa Associação Portuguesa do Jogo dor do campo. •
22 MEDIA
MARÇO 2006 I 8ª COLINA
JORGE SILVA: DESIGNER
“Os jornalistas têm
pouca educação visual”
VERA MOUTINHO
Depois de uma hora de conversa, durante um almoço tardio, percebemos
que Jorge Silva critica muito. Critica
os jornalistas, os editores, os directores de jornais. Trabalhou muito
tempo com eles, talvez, numa relação que diz “desproporcional” entre
a arte e o jornalismo. Vinte anos no
jornal Combate, do Partido Socialista Revolucionário, dez no jornal O
Independente e quatro no Público.
JORGE SILVA É DIRECTOR DE ARTE EM JORNAIS E REVISTAS
HÁ QUASE 30 ANOS. DO ATELIER SILVA!DESIGNERS, CRIADO
EM 2001, SAÍRAM AS SARDINHAS COLORIDAS DAS FESTAS
DE LISBOA, OS MAGAZINES Y E MIL FOLHAS, A RENOVADA
AGENDA LX E O INIMIGO PÚBLICO.
Aos 46 anos, Jorge Silva, designer e
director de arte, acumula prémios
das maiores agências de design do
mundo, como a Society of News
Design, ganhos sobretudo com magazines. Hoje afastou-se (ou afastaram-no) dos grandes jornais. “Tenho
fama de duro e difícil, quando pensava que era um doce”. Corrosivo e
bem-humorado, Jorge Silva assegura que é possível ter ideias novas. De
resto, terá sempre como inspiração o
que o rodeia, como a gata que se passeia pelo atelier da Rua da Trindade
e que deu origem ao nome da revista
que faz para o Clube de Criativos de
Portugal: Alice.
No último congresso “O melhor
design jornalístico Portugal &
Espanha 2005”, realizado em
Lisboa o ano passado, fez uma
intervenção que se intitulava
“Por favor, não me surpreendas!”. Porquê este título?
Analisei um fenómeno que tem a
ver com a miséria do mercado português: os ilustradores têm pouco
trabalho, mesmo quando são bons.
Como são almas inquietas, não têm
tempo de sedimentar uma forma
gráfica. Ora, eu contacto um ilustrador pensando naquilo que ele
sabe fazer; se ele de repente muda
e faz outra coisa completamente
diferente, é uma irritação. Pode
parecer um academismo, mas a relação de confiança entre o director
de arte e o ilustrador é extremamente importante e mostra também a valorização do meu trabalho: eu não quero uma ilustração
para encher um buraco, mas sim
para um determinado conjunto de
texto, design ou fotografia. Quero
que o ilustrador faça aquilo que eu
sei que ele sabe fazer.
Isso quer dizer que a criatividade do ilustrador está limitada à
vontade de quem o contrata?
É verdade, mas quando eu digo ao
ilustrador ‘faz só uma mão’ ele não
aceita isso como uma limitação,
porque sabe que eu vou puxar pelo
trabalho dele o mais possível. Os
ilustradores que trabalham comigo
aceitam, com o tempo, essa “autoridade”. Mas é uma autoridade que
tem de ser fundamentada, senão
eles são os primeiros a regatear e a
“morder”. Podem fazer o trabalho
porque precisam do dinheiro mas
depois à noite ali no Bairro Alto estendem-nos a vida ao sol (risos).
O seu atelier já foi premiado
com mais de 40 prémios pela Society of News Design, por exemplo. Que significado têm estas
distinções?
Vaidade, isso é muito importante
nesta profissão. Depois, se quisermos arranjar argumentos simpáticos, posso dizer que os concursos
são uma espécie de combustível
para eu me superar. A rotina nos
jornais é fatal e às vezes despachase as coisas. Se não houver uma
inquietação permanente, a pessoa
tem um emprego e não uma profissão. Além disso, dão prestígio,
assusto os adversários e eventualmente ganho alguns clientes.
Qual é a fórmula – se é que ela
existe – para ganhar?
VERA MOUTINHO
Agenda LX
Jorge Silva ganhou em 2004 o disputado concurso de renovação da
Agenda Lx. Eduardo Prado Coelho definiu-a como uma “revista
que transporta uma agenda”. Para
Jorge Silva, o que fez a diferença
no seu projecto foi ver a agenda
“também da perspectiva de um
jornalista, a comunicar, enquanto que os outros se preocuparam
mais em fazer uma revista bonita.
Mantive-me na lógica de agenda e
levei para uma agenda municipal
feia e chata aquilo que eu aprendi
a fazer nos jornais”.
MEDIA 23
8ª COLINA I MARÇO 2006
UMA COLUNA NA COLINA
Só há uma maneira de ganhar prémios: concorrendo. E é muito complicado, num jornal então é brutal,
porque muitas vezes é impossível
encontrar uma edição antiga no
próprio jornal! Além disso, as
normas dos concursos são muito
rígidas: o material tem de ir muito
bem acondicionado, explicado…
quando são concursos estrangeiros temos pavor de que alguém se
engane. A ansiedade é terrível. E
depois os concursos são pagos, até
para poderem sobreviver. O que
acontece infelizmente é que alguns
directores de arte têm de adiantar
dinheiro do seu bolso. Isso aconteceu no Independente e no Público,
porque a direcção do jornal está-se
nas tintas para o concurso, a não
Quando surgiu, o suplemento
ser quando ganham, sobretudo se
de cultura Y do jornal Público
ganham mais prémios do que o didestacou-se pelo design enerário do lado… Isto dá uma ideia da
gético e pela manipulação da
relação de forças desproporcional
fotografia e ilustração. Em 2002,
que há entre a arte e a edição de
a Society of News Design atrium jornal. A arte é menosprezada
buiu a Jorge Silva 26 prémios
e tende a ser apenas utilitária.
pela direcção de arte do Y e do
Mas os jornais parecem recoMil Folhas, criado na mesma alnhecer a necessidade de ter um
tura. Apesar de tudo, o designer
director de arte.
reconhece que a qualidade vem
Os editores e os jornalistas queem primeiro lugar da equipa
rem ter um director de arte para
editorial: “aí tiro o chapéu aos
resolver os problemas gráficos e
jornalistas…”
servir de “colchão” contra as corporações extremamente agressivas que há dentro dos jornais, que
são os paginadores e os fotógrafos.
Isso tem a ver com o facto de serem os jornalistas a mandar nos
jornais. É uma perversão que não
se consegue resolver. Eu não tenho ódio à classe jornalística, mas
considero-a no geral visualmente
analfabeta e na área de gestão de
jornais com pouca capacidade de mais decorativa do que operacional,
decisão, tal como um designer que pelo menos no sentido em que eu a
tem de ser empresário, como eu entendo: como partner, igual aos
sou. Ninguém ensina os jornalis- editores ou jornalistas, e não apenas
tas a governar jornais, por isso é como o tipo que trabalha lá na “fase
que só dão prejuízo, permitindo a seguinte”, que é a de embrulhar a
infiltração alienígena dos departa- informação o melhor possível. No
mentos de marketing que hoje em Público tive confrontos regulares
dia governam os jornais vendendo com os editores por fazer valer as
livros, dvd’s, cd’s, talheres…
minhas opiniões! Às vezes são quesA arte poderia atenuar a crise tões como esta: uma altura a capa
vivida hoje pela imprensa?
do suplemento Y era sobre os Lamb
A arte por si só, não. A arte de co- (banda inglesa), que vinham mais
municar, sim. O problema é que a uma vez a Portugal. O editor insismaioria dos directores de arte não tia numa fotografia da banda para
tem condições para discutir com os a capa, porque era uma entrevista
jornalistas essa matéria. Primeiro e tinham de aparecer as caras…Eu
porque são confinados ao gueto de achava que podíamos variar e foi
fazerem bonecos e páginas bonitas, um sarilho para pôr dois carneiros
e depois porque não há formação, na capa sobre um fundo azul (nem
não há escolas que ensinem um di- sequer era uma metáfora muito
rector de arte a
complicada!).
ser uma espécie A direcção de arte [nos
Mas quase dede jornalista vijornais] tende a ter uma sisti da ideia,
sual. É curioso
porque a “choraque os fotógra- função decorativa.
deira” era tal…
fos têm carteiEsse jornalismo
ra de jornalista, e os directores de mata muito daquilo que um jornal
arte não. Se calhar deviam ter.
poderia ser. Agora, não é isso que
Os fotógrafos também não ti- salva os jornais da crise, como é evinham esse direito ao início. Ti- dente. O que os salva é ir, com inteliveram de conquistá-lo. Acredi- gência, ao encontro dos públicos.
ta que os directores de arte ou Como é que se faz então, na
designer lá chegarão, um dia?
área do design, o equilíbrio enNão sei. Com a crise, os jornais tre aquilo que se quer e aquilo
cortam onde podem e isso atinge o que se pode fazer?
design, porque não querem tipos Eu preocupo-me cada vez mais com
muito caros e chatos como eu a o público. Há umas semanas fiz um
moer-lhes a cabeça. Um problema projecto para uma newsletter da
dos jornais portugueses é a direc- Caixa Geral de Depósitos. Eram 12
ção de arte tender a ser uma função concorrentes, não sei se ganhei ou
Y
perdi, devo ter perdido…Tive de
me preocupar em ter legibilidade
e simpatia suficientes por estar a
trabalhar para aquele escalão, mas
ao mesmo tempo dando-lhes um
produto inteligente e bonito. Uma
das minhas facilidades hoje em dia
é fazer essa ligação, que vem da minha intuição e experiência.
Porque se esforça em dar não
só o design mas um projecto de
comunicação…
Sim, e por isso aquilo que eu faço
é raro nos outros designers ou
criadores da área dos jornais. Tiro
partido da minha experiência e
aplico-a em publicações mais pequenas e sectoriais, onde consigo
imprimir uma agilidade próxima
daquilo que vemos de melhor em
jornais e revistas. Sou extremamente competitivo e, digamos, letal, porque tenho experiência que
os meus concorrentes não têm:
eles não se preocupam com o que
está escrito.
Procura controlar tudo no seu
trabalho?
Não, pelo contrário, quando delego
um trabalho geralmente não quero envolver-me nele. A tendência
que tenho é para fazer certos projectos sozinho e quando passo um
projecto a alguém, desligo. Tenho
pessoas talentosas no atelier, mas
que não têm, nem de perto nem de
longe, a experiência que eu tenho
no segmento dos jornais. Quando
há concursos, sou eu quem faz o
trabalho para haver o máximo de
concentração. Trabalhar em equipa numa coisa é mais complicado,
porque ainda me vejo como um
criador solitário.
Como desenvolve o seu processo criativo?
A primeira coisa que faço é ir à livraria Tema comprar 100, 150 revistas. Ver o que é que os outros andam
a fazer na mesma área. Em tempos
que já lá vão, isso tinha o risco de eu
por vezes copiar o grafismo, não por
má fé… (risos) Quando apresentei
os projectos do Y e do Mil Folhas a
primeira coisa que fiz foi ver o que
os espanhóis andavam a fazer, porque eles estão muito à nossa frente.
Quando queremos fazer uma coisa
nova, às vezes a única solução é ir
buscar ao estrangeiro.
Há uma maior liberdade nos
magazines do que nos jornais
para fazer coisas novas ao nível do design?
Não é forçoso. E é mais fácil fazer
um bom jornal do que uma boa
revista, porque nas revistas a concorrência é terrível. Num jornal
consigo mais facilmente atingir
um nível de qualidade igual ao que
se faz lá fora, razão pela qual os
meus prémios e reconhecimento
incidem na parte dos suplementos
de jornal e menos nas revistas.
Actualmente está mais desligado dos jornais. Pensa voltar?
Os jornalistas têm pouca cultura
visual, isso é um grande problema
e uma das razões pela qual eu saí
dos grandes jornais e provavelmente já não poderei voltar. Há
uma falta de resposta da parte dos
editores de trabalharem ao meu
nível, ou seja, de serem capazes de
ver aquilo que escrevem. •
ÓSCAR MASCARENHAS
Cera mole e barro duro
com o mesmo Sol
O célebre caso de Judith Miller, exjornalista do New York Times que
chegou a estar presa por se recusar
a revelar uma fonte confidencial
gerou um importante confronto de
ideias entre duas instituições respeitáveis do jornalismo nos EUA:
de um lado, a Society of Professional Journalists (SPJ), que se rege
por um notável Código de Conduta,
atribuiu à jornalista o seu prémio
anual Primeira Adenda, por ela se
ter recusado a revelar uma fonte
confidencial de informação; do lado
oposto se colocou o atento e militante observatório FAIR – Fairness and
Accuracy In Reporting (Lealdade e
Rigor no Relato), sempre intransigente na denúncia da manipulação
e intoxicação da opinião pública,
que entendeu que era obrigação da
jornalista revelar a sua fonte confidencial e que, ao não o fazer, violou, ela sim, o espírito da Primeira
Adenda. O mesmo Sol que endurece
o barro amolece a cera.
Quatro meses depois de ter começado a II Guerra do Golfo, Joseph Wilson, que tinha sido embaixador dos EUA no Níger, escreveu
um artigo de opinião no New York
Times em que acusava a Administração Bush de ter exagerado no
alarme de que o Iraque possuía
armamento nuclear. Nesse artigo,
escrito a 6 de Julho de 2003, Wilson
negava existirem provas de que o
Iraque tivesse comprado óxido de
urânio ao Níger.
No dia 14 de Julho, o colunista
de direita Robert Novak escreveu
um artigo no Washington Post
acusando Joseph Wilson de ter
feito uso de informações colhidas
pela mulher, Valerie Plame Wilson, agente secreta da CIA. Wilson
considerou de imediato tratar-se de
uma conspiração vingativa entre a
Administração Bush e Novak para
o desacreditarem. Novak disse ter
sabido dessa informação por dois
altos funcionários da Casa Branca
que se recusou a identificar.
No decurso das suas investigações, o procurador Patrick Fitzgerald inquiriu alguns jornalistas de
Washington sobre os seus encontros com altos funcionários da Casa
Branca nos dias seguintes à publicação do artigo de Joseph Wilson.
Foi aí que esbarrou com o nome de
Judith Miller, corresponde em Washington do New York Times.
Judith alegou sigilo profissional. Mas, como testemunha, e
não arguida, não tinha direito ao
silêncio pela lei norte-americana.
Judith foi «condenada» a uma pena
inacreditável, parecida com as medidas de segurança do fascismo
português: manter-se-ia presa até
revelar a identidade da fonte contactada –a tortura por cativeiro. Ao
fim de 87 dias de calabouço, Judith
Miller afirmou que tinha obtido autorização de «Scooter» Libby para
revelar a identidade deste. Pela
sua intransigência em revelar a
fonte e pelo sofrimento que teve, a
SPJ deu-lhe o prémio da Primeira
Adenda. Mas a FAIR contesta.
Argumenta a FAIR que a confidencialidade de uma fonte não
é uma questão intransponível:
nenhum jornalista pode, por
exemplo, deixar de revelar que
alguém se dispõe a cometer um
homicídio, mesmo que este o revele em segredo. O sigilo profissional é uma protecção da fonte
para que a informação que ela
proporciona seja útil à opinião
pública. Para a FAIR, o sigilo do
jornalista deve servir para proteger um funcionário quando este
denuncia actos reprováveis do
Governo. Não pode servir para
esconder um funcionário que,
com a sua revelação, perpetra
um acto reprovável do Governo.
Ora, «Scooter» Libby, ao revelar
que Joseph Wilson era casado
com uma agente secreta da CIA
não estava a denunciar um acto
reprovável do Governo, mas a
praticar um acto reprovável de
descredibilizar Wilson só por vingança da Administração Bush.
Para a FAIR, Judith Miller
não é um anjo virginal nas suas
relações com a Administração
Bush. Judith foi, durante a Guerra do Golfo, uma das jornalistas
mais especialmente embedded,
ou seja, pôde estar por dentro de
operações altamente classificadas
em matéria de secretismo, sendo
possuidora ajuramentada de informação que não podia revelar
sequer à hierarquia do seu jornal.
Era, portanto, uma jornalista da
home team. Para o ser, passou
por todos os crivos de segurança e
– mais do que provavelmente – de
fidelidade à Administração Bush.
Além disso, Judith «meteu os
pés pelas mãos» no inquérito, mais
parecendo querer encobrir Libby
do que remeter-se ao sigilo profissional. Umas vezes disse que não
se lembrava (?) outras de que não
estava certa de que os seus apontamentos se referissem a Valerie
Plame, enfim, mais cumplicidade
do que coragem. Para a FAIR, Judith não é heroína, é vilã.
Atira-se a moeda ao ar e ela cai
de pé: Judith não merece, de facto,
ser heroína da Primeira Adenda;
mas teve razão em guardar sigilo
profissional. É que só o facto de
ela ser da home team – fraco gosto,
mas para isso é que existe a liberdade de escolha – é que terá levado Libby a confidenciar-lhe a identidade
de Valerie. Confidenciar é fazer
confiança. Judith não tinha o direito de trair o seu correligionário,
porque ele não a traiu. À próxima,
escolha melhor os amigos, mas isso
já vai ser difícil para uma senhora
que acaba de fazer 58 anos. •
24 LETRAS
MARÇO 2006 I 8ª COLINA
Nunca A vi mas escrevo-Lhe todos os dias. Nunca Lhe toquei mas sei que os Seus contornos são os mesmos da minha alma. Sinto-o quando Ela me invade. Quando me possuiu. Me estripa. Me leva às lágrimas. Que tantas vezes são de alegria. E de saudades
do mundo de onde ambos somos. E onde ela ainda permanece. Tão impossível e tão real. Marionete. É o que sou. Em Seu poder.
Ondulo e salto. Escrevo. Muito. E sei que nessas alturas. Em que A persigo. Quando o corpo descontrola. E o espírito extravasa.
Volto ao mundo onde somos um só. Onde a essência dispensa embalagem. Ou ambiente. Onde a riqueza é a união da diferença. E
fazemos Amor. Numa pureza para além da forma. E apenas pressentida pelo significado do som Amor. Tão Impossível e tão real.
Depois tenho medo. Que nada me toque da mesma maneira. Que tudo seja silêncio e solidão. Mas amo-A para além dos medos e da manifestação das palavras. Pobres. Com que A tento aprisionar. Por mais uns segundos. Palavras onde não A vejo. Porque nunca A vi. Nunca
A cheirei. Nunca. Os meus lábios contra os Dela. Que não existem. Porque Ela vai para além dos sentidos. E por isso é tudo de melhor em
mim. Que é só meu. Que é de todos. E não é de ninguém. Tão impossível e tão real. • Ana Brasil
UM AMOR IMPOSSÍVEL
música nas letras
FOI PELO SEU TALENTO PARA ESCREVER LETRAS QUE FERNANDO RIBEIRO, QUE NUNCA TINHA CANTADO, SE
TORNOU VOCALISTA DOS MOONSPELL. CATARINA RESENDE ADORA OUVIR JORGE PALMA E DECIDIU ESCREVER
A HISTÓRIA DAS PERSONAGENS QUE SE FOI HABITUANDO A CANTAR. MARGARIDA REBELO PINTO USA A MÚSICA
COMO ESTÍMULO PARA PRECIPITAR EM SI AS EMOÇÕES QUE TRANSMITE PELA ESCRITA. DIFERENTES HISTÓRIAS DO JOGO ENTRE O SOM E A PALAVRA.
O GRITO
DA AMÉLIA
Do ventre de uma Santa Apolónia decadente. Assim
nasce Amélia, personagem que o músico Jorge Palma
tornou célebre em “Do Lado Errado da Noite”. Cerca de
vinte anos depois, a letra da música é inspiração e mote
para a primeira obra de uma escritora. Catarina Resende
pegou nos relatos cinematográficos da música de Jorge
Palma e voltou a dar vida aos personagens da canção.
“Do Lado Errado da Noite” é um livro simples, com
frases curtas e cheias de imagens que aceleram a acção e prometem tornar o leitor espectador da história.
Um livro narrado a sete vozes, onde cada personagem
escreve sobre os seus conflitos interiores e sobre os
erros que não quer repetir. “Não há nenhuma personagem que seja odiosa ou que seja o mau da fita. A
grande vantagem destas personagens, que foram do
Palma e agora são um pouco minhas, é que erram
como todos nós e reabilitam-se”, afirma a autora.
O livro que Catarina Resende considera ser “socialmente comprometido” traz a lume questões tão actuais como a violência doméstica, o alcoolismo e sobretudo a interrupção voluntária da gravidez. O título
surge assim como a metáfora do ilegal, do secreto e
do obscuro. E a Amélia quase como símbolo da luta
de muitas mulheres ou como um grito de mudança.
Catarina Resende prefere caracterizar o seu livro
como “um hino à tolerância”: “Quem leu costuma
dizer que é de facto um panfleto a favor da despenalização do aborto. Prefiro sempre dizer que é a favor
da tolerância. Acho que nós devemos olhar uns para
os outros e não termos a capacidade de julgar”.
A relação entre a música e o livro não poderia ser mais
óbvia. Para além de o título e de as personagens serem
as mesmas, na compra do livro recebe-se o CD de Jorge
Palma. Catarina Resende não nega que possa influenciar as vendas: “acredito que a maior parte das pessoas compre o livro porque vê o CD de Jorge Palma, até
porque sou uma ilustre desconhecida e o livro não é
nenhuma pérola da literatura. Mas este projecto nunca deixou de ser do Palma, uma vez que ele esteve presente em todos os momentos. E para mim não é uma
estratégia mas sim uma honra poder ter um CD dele
junto ao meu primeiro livro”.
Este é apenas o primeiro projecto da autora, que pretende continuar a escrever sob influência dos acordes
que contam histórias. “Há ainda letras de outros autores que retratam histórias muito bonitas e muito
portuguesas com as quais gostava de trabalhar. Seduz-me este processo de pegar numa letra que por natureza é uma coisa mais curta e desenvolver, dar-lhe
outros caminhos que podem ser ou não coincidentes
com as ideias de quem a compôs e musicou”.
Quando a música e a literatura podem também ser
uma voz só. Neste caso, livro e canção são também
uma única mensagem. A favor da benevolência. E de
indignação perante um Portugal profundo: o de ontem que não deixa de ser o de hoje. •
Sílvia Caneco
LETRAS 25
8ª COLINA I MARÇO 2006
LITERATURA
HEAVY -METAL
A capa com os tons mais fortes do verde e do vermelho serve de disfarce ao
universo negro que esconde. Muitos
destes contos, relatos fantásticos de
momentos em que a racionalidade
humana é levada ao limite, acabando
por descambar na loucura, são inéditos. Até agora, na literatura portuguesa, Lovecraft habitava uma sombra
apenas penetrada por almas que ansiavam pelo lado mais infiel da existência. Fernando Ribeiro, escritor e
vocalista dos Moonspell, confessa ter
sido uma dessas almas: “Fiquei absolutamente fascinado pela escrita em
si, pesada mas cativante; pela trama,
de um horror clássico mas intemporal
que continha em si os aspectos essenciais da curiosidade humana: a sede
de conhecer e a desolação a que essa
tendência irresistível conduzia”.
Fernando Ribeiro, que já tinha traduzido uma biografia ficcionada
em banda desenhada de Lovecraft,
colabora neste projecto organizado
pelo professor José Manuel Lopes
da Universidade Lusófona com a tradução do conto “Com a Lua” e com
várias introduções que, nas suas palavras, “serviriam de portais, pontes
e encruzilhadas para o leitor utilizar
antes, depois e durante a leitura dos
contos”. Apesar de ter dois livros de
poesia publicados e contar com inúmeras colaborações literárias em
diferentes revistas, o vocalista dos
Moonspell tem dificuldades em ser
reconhecido para além do rótulo da
banda que o tornou famoso. “Não
tenho escrúpulos em vender livros
a pessoas que também gostam de
Moonspell e que também gostam de
poesia porque estes estilos andam de
mão dada, a literatura com o heavy
metal”. Embora afirme que o panorama artístico português não está
preparado para reconhecer o heavy
metal como um estilo literário, Fernando Ribeiro insiste que os dois
géneros são irmãos pelos valores que
os guiam: “O que une o heavy metal
à literatura é a solenidade e a profundidade, o desejo de ir mais longe”,
explica. No caso específico de Lovecraft, o escritor influenciou, chegando a ser directamente citado, bandas
como Iron Maiden e Metallica. A mais
internacional das bandas de rock pesado portuguesas não foi excepção. O
vocalista e letrista dos Moonspell ad-
mite beber do universo
fantástico do escritor ao
escrever música e cita
a canção “Lunar Still”
do álbum “Antidote”
como a mais directamente inspirada na
interpretação retirada de Lovecraft. Uma
música que evoca a
ancestralidade
do
Homem pela criação de um ambiente místico repleto
de magia e sussurros que anunciam a presença de
um mal que nos acompanha desde a
origem. Um estilo musical que encontra ressonância e alimento em
Lovecraft. “Claro que o terror de Lovecraft é gótico, porque imenso, porque detalhado, porque opaco e talvez
a maneira como ele o descreve, pelo
uso de um modo muito próprio e de
um inglês muito único, tenha a ver
com essa dimensão barroca, do rendilhado, da essencialidade do pormenor na construção do todo”. •
Ana Brasil
INSPIRADO EM ROBBIE WILLIAMS
Foi Marcel Proust quem escreveu
que “a música seria o único exemplo da comunicação das almas, se
não fosse a intervenção da linguagem, a formação das palavras e a
análise das ideias”. “I’m in love
with a pop star” é um livro que
possibilita uma análise efectiva
das ligações entre estas duas
expressões artísticas.
Esta é a história de uma
teenager que decide fazer
o (im)possível para ter a
oportunidade de conhecer
um músico de renome internacional, por quem se
apaixonou. Na sua sétima
obra, lançada em 2003, a
mais POPular escritora
portuguesa dos últimos
anos aborda o universo musical. Margarida
Rebelo Pinto destaca
a música como sendo
“o mais poderoso medium depois da televisão, capaz de unir
pessoas de diferentes raças e credos”.
A música desempenha igualmente
um papel bastan-
te significativo no seu acto de criação. A autora de best-sellers gosta
de redigir ao som da música, num
diálogo entre a escuta e as palavras.
A cadência da melodia influencia a
sua escrita e Margarida Rebelo Pinto tenta aproveitar esse contágio:
“se estou a escrever uma discussão
em diálogo, procuro ouvir uma música com energia”. O tom da escrita,
assim como a construção narrativa
advêm de estímulos musicais. A
escritora dá preferência ao jazz e
à música clássica, embora não seja
incomum recorrer, por vezes, ao
próprio silêncio.
“I’m in love with a pop star” pretende fazer o Elogio da Normalidade, no qual uma rapariga normal
consegue ser mais feliz do que um
pop star que aparentemente pode
ter tudo. O “menino mimado” Robbie Williams serviu de inspiração
para construir a personagem Peter Franks, a estrela pop do livro.
Segundo a revista Grande Reportagem, a personagem só não tem o
nome do músico britânico porque
a autorização nunca foi concedida.
Acontece agora que, em entrevista
ao “8ª Colina”, a escritora dá o dito
por não dito e nega ter-se inspirado
no ex-membro dos Take That. Surgiram insinuações de uma eventual
obsessão de Margarida Rebelo Pinto por Robbie Williams. Porém, a
escritora rejeita qualquer identificação com a adolescente que protagoniza “I’m in love with a pop star”.
Talvez tudo não passe de especulação. Facto é ter havido uma tentativa frustrada de colar o lançamento
do livro à presença do cantor inglês
em Portugal para um concerto, em
Novembro de 2003.
Boatos à parte, Margarida Rebelo
Pinto conseguiu bater mais alguns
recordes com esta obra, editada pela
“Oficina do Livro”. Atingiu o top de
vendas em apenas 5 dias e vendeu
40.000 exemplares nos primeiros 2
meses, como resultado da apreciação do grande público pela escrita da
também professora e jornalista.
Fica a sugestão de leitura. Principalmente para aqueles críticos da autora que nunca passaram os olhos pelas
suas páginas. “O que caracteriza a
nossa época é o receio de parecermos
estúpidos ao fazer um elogio, e a certeza de passarmos por inteligentes ao
fazer reparos”. Jean Cocteau. •
Frederico Moreno
26 LETRAS CONTO
D
o trajecto que levava a sua
mão destra à boca soltava-se
um cheiro intenso a ervas
queimadas, uma essência
forte que passava mais uma
vez a temperar o seu odor.
Preso entre os dedos bem firmes, o cigarro
era um amuleto demasiado valioso que lhe
fazia lembrar o homem que fora. Enquanto o
de hoje ainda lhe era um pouco obscuro.
A forma como via o mundo e as coisas do
mundo tornara-se mais violenta, absorvialhe muito mais os sentidos, o que tantas vezes lhe provocava a dor.
A realidade chegava-lhe metamorfoseada,
sem se revelar nos primeiros instantes, e
depois ao entrar no corpo revolvia-lhe o interior, segurava-lhe a carne com dentes pontiagudos, enquanto não a conseguia desvendar, e esses momentos podiam prolongar-se
e traziam-lhe a aflição e uma agonia brava e
a dor. Ainda não se acostumara.
Do dia não se recordava. Nem da semana seguinte. Fora-lhe apagado da memória como
as folhas que se rasgam de um amor malogrado. Mas agora havia uma recordação muito mais rica e absorvente, que fazia questão
em se abrigar cautelosamente em si, para
não cair no esquecimento. Uma mulher.
Mas uma vez mais o buraco negro agarravalhe sem piedade uma porção da sua riqueza
e a vergonha e o receio que o olhar dela deixasse de ser cálido e passasse a ser como o
dos outros, afastou-o. Enquanto não se lembrasse não lhe dava qualquer sinal de existência. Como um ermita aguardava.
Por fim, a mente abria uma pequena fresta,
o suficiente para lhe revelar uma imagem
tão viva que se confundia com a vida. Podia
vê-los naquele instante de tempo roubado.
Eram verdes! Por fim conseguira lembrar a
cor que os pintava.
Tinha prometido voltar mas esquecera-se da
sua cor e não quisera revelar-lhe essa falta.
De há uns tempos para cá a memória insistia em negar a sua aparição e agora tentara
levar-lhe o que possuía de mais valioso, oferecido pela boca da mulher.
Bruscamente saiu pela porta, enquanto pelo
caminho se ouvia o ruído de objectos a cair no
chão. Mas o que é que isso lhe interessava?
A mão tocou o frio do aço da porta do prédio e empurrou o silêncio para fora. Um
som multiplicou-se por mil. Os automóveis
faziam-se notar. Estava muito trânsito.
Uma buzinadela mais forte por estar mais
próxima. Vozes segredavam. É melhor que
o deixes. Esta é a última vez que o desculpo. Preciso dele… Caminhava sem pensar
e em volta a vida perseguia-o. Pára de bater no teu irmão! Eu odeio-o! E um cheiro
demasiado açucarado, a morangos, talvez
em ponto de caramelo. Ainda tenho de ir
a casa, vou demorar-me um pouco. Depois
um perfume forte que chegava a ser enjoativo de tão impetuoso.
A cabeça começava a latejar mas a vontade
de a ver escalava a aflição e a dor ainda não
o agarrara e por isso prosseguia e cada vez
andava mais depressa, cada vez o desejo era
mais forte e já lhe podia sentir o aroma doce.
Já faltava pouco.
Sabia de cor o caminho. Para lá chegar não
precisava de ser guiado por nenhum dos
seus sentidos. Na verdade podia fechar a
entrada de cada um deles e chegar até ela
MARÇO 2006 I 8ª COLINA
Eram verdes
no mesmo instante. Sabia-a próxima como
quem sabe próxima a chuva ou o medo. Não
precisava de receber qualquer estímulo do
exterior pois uma parte dela eram memórias, religiosamente guardadas.
E de novo o frio do aço entre as mãos quentes e uma pequena pressão que seria o suficiente para se ver no interior do edifício. A
ausência de sons abraçou-o quando a porta
se fechou num ruído seco. Agarrou de novo
a lembrança. Eram verdes!
Subia os degraus e os pés, cegos, tropeçavam
na pedra fria. Por uma vez as mãos também
tocaram nesse mármore e sentiram o gelo
que irrompeu para dentro do corpo, colandose ao coração, e então surgiu o medo. Podia
vê-lo se olhasse para trás. Sentia-lhe o peso
das mãos a carregar-lhe o corpo, impedindo-o
de se levantar. Ouvia-lhe a respiração pesada
e áspera que lhe soprava a carne. Mas agora
estava demasiado perto para se deixar aterrorizar. Ainda tinha algum tempo até que a
dor o tomasse nas mãos. Já lhe sentia o odor
fresco e acre, mas ainda estava longe.
Levantou-se, subiu os degraus que se interpunham entre ele e ela e enquanto o fazia
chegava-lhe um perfume que tão bem conhecia por ser o dela, inconfundível. Hoje, flores
temperavam o odor da sua pele lívida, mas
podia reconhecer o cheiro que se libertava
da sua nuca e que se escondia no seu colo.
Reconhecia cada um dos recantos que compunham uma fragrância. E chegavam-lhe
também outros aromas que não conseguira
desvendar.
A porta estava à frente, à distância de dois
passos. Escutou alguns murmúrios.
Ela abriu a porta. O que fazes aqui? Sentiulhe o paladar sem que ela o beijasse. Vim
ver-te. Sentia-lhe o magnetismo do olhar. É
melhor ires-te embora…Como a beleza lhe
contornava o rosto. São verdes! O corpo dela
pulsava, agitado. De que falas? E um odor a
corpo húmido perfumava-a. Dos teus olhos...
Tal como quando estiveram juntos. Eu devia
ter-te dito… O quê?, quis ele saber.
- Quem era?
E depois esta voz que reconhecia, e que sabia não ser a dela, surgia de dentro da casa e
num momento rasgava o tempo entre os dois
e aproveitava também para lhe rasgar a alma.
O dono da voz viu-o. Ele não, e nem precisava de o ver.
- Ah, és tu? …Como é que soubeste que estava aqui?
Entra, foi o que a voz lhe disse. Não, foi o que
ele respondeu.
A porta fechou-se. Os degraus pareciam
não ter fim assim como a dor que já o segurava nos braços. Mas agora estava pronto
para se entregar a ela. Não tinha mais memórias para guardar.
- Pobre Rui, desde o acidente nunca mais se
recompôs.
- Acidente?
- Sim, não te cheguei a contar? Por isso é que
ficou assim…
- Assim?
- Cego. Não me digas que não reparaste?
- Não.
Os verdes olhos estiveram sempre distraídos. Não o souberam ver. •
Andreia Gonçalves
8ª COLINA I MARÇO 2006
AGENDA
C U L T U R A L
• FESTIVAIS
• CONCERTOS
• EXPOSIÇÕES E FEIRAS
Arctic Monkeys – Paradise Garage
Autores de um dos maiores hypes dos últimos
anos, os jovens britânicos Arctic Monkeys vêm
a Portugal, para a apresentação no novo álbum
Whatever People Say I Am, That’s What I’m Not.
Em Inglaterra as vendas do novo álbum ultrapassaram as 360 mil cópias, na semana do seu lançamento, o que levou a uma subida instantânea
da banda para o primeiro lugar do Top britânico.
A banda que já conquistou o Reino Unido prepara-se agora para triunfar em terras lusitanas. O
concerto está agendado para o dia 18 de Maio às
21.30. Os bilhetes custam 20 euros, preço único.
The Sisters of Mercy
The Sisters of Mercy, a emblemática banda britânica, volta a Portugal para um concerto no
Coliseu dos Recreios, no dia 5 de Abril. O espectáculo, que se adivinha revivalista, vai ser da
responsabilidade de Andrew Eldritch (voz e composição), Chris Catalyst (guitarra) Adam Pearson
(guitarra e vozes) e ainda Doktor Avalanche.
Os bilhetes variam entre os 20 e os 25 euros.
De volta para ficar
O MAIOR EVENTO DE MÚSICA DO MUNDO VOLTA A LISBOA NOS DIAS 26 E 27 DE MAIO, 2, 3 E
4 DE JUNHO. É O ROCK IN RIO LISBOA 2006!
Frida Kahlo
Chegou a vez de Lisboa receber as obras de
Frida Kahlo (1907-1954), uma mulher que ficou
conhecida pela sua arte polémica, pelos seus
amores impossíveis e pelo seu sofrimento físico. No Centro de Exposições do Centro Cultural
de Belém podem ser vistas cerca de 26 obras
de Frida Kahlo, entre elas “A Coluna Partida”
(1944), “O Camião” (1929), “Unos cuantos piquetitos” (1935), “Hospital Henry Ford” (1932) ou
“Auto-retrato com macaco” (1945). Na exposição estarão presentes também algumas fotografias e alguns objectos pessoais da pintora,
que registam diversos momentos desde a sua
infância à sua morte. A exposição estará aberta
de Terça a Domingo, das 10 às 19 horas, até ao
dia 21 de Maio.
Soulfly
Há vinte anos, o publicitário carioca Roberto Medina realizou um grande
sonho: fazer o maior festival de música de todos
os tempos. Assim nasceu
o Rock in Rio. Sob o slogan “Eu vou”, a campanha mobiliza a sociedade
e gera um envolvimento
pessoal com o evento.
2004 foi o ano da primeira experiência em território nacional. Nos seis
dias em que se realizou,
o Rock in Rio Lisboa recebeu cerca de 385 mil
pessoas de várias partes
do mundo. 2006 é o ano
do regresso da Cidade do
Rock a Lisboa e o Parque da Bela Vista será
novamente o espaço do
festival. A estética do recinto foi cuidadosamente
estudada e redefinida de
modo a oferecer um ambiente ainda mais confortável a todos aqueles que
se vão divertir no Rock in
Rio Lisboa 2006.
De braços abertos à
música
Este ano, o festival, maior
e melhorado, oferece um
Palco Mundo mais impressionante, uma Tenda
Electrónica mais alucinante, o Palco Futuro, o
Espaço Kids e o Espaço
Radical, com workshops
de snowboard numa pista
de neve verdadeira.
Os palcos estão a ser
pensados ao pormenor. O
design e a luz serão os ingredientes que, associados à música, vão fazer da
tenda electrónica um dos
destaques do Rock in Rio.
Por outro lado, considerando a projecção nacional e internacional do festival, esta segunda edição
em Lisboa decidiu abrir
um novo espaço próprio
para a divulgação dos novos talentos portugueses
e estrangeiros: o Palco
Futuro. Este palco, cujo
visual vai assemelhar-se
a uma garagem, remetendo ao início de carreira
das maiores bandas do
mundo, vai receber um
total de 15 bandas altamente promissoras!
Para além de promover
a cidade de Lisboa e posicioná-la no top das cidades mais apetecíveis
da Europa, a realização
do Rock in Rio Lisboa
2006 funciona também
como impulsionador das
actividades económicas
da capital portuguesa.
Os organizadores do festival garantem: “o mais
importante é que o Rock
in Rio vai ficar em Portugal. O Rock in Rio veio
para ficar!”
Já estão confirmadas as
participações de Ivete
Sangalo (Palco Mundo –
25/05/2006), Shakira (Palco Mundo – 26/05/2006),
Xutos & Pontapés (Palco Mundo – 27/05/2006),
Carlos Santana (Palco
Mundo – 02/06/2006),
Jota Quest (Palco Mundo – 02/06/2006), Roger
Waters
(Palco
Mundo – 02/06/2006), Rui
Veloso (Palco Mundo
– 02/06/2006) Da Weasel (Palco Mundo –
03/06/2006), Red Hot Chili
Peppers (Palco Mundo
– 03/06/2006). Também
Sting, Guns ‘n’ Roses e
Anastacia estarão na Cidade do Rock. Por confirmar estão os Simply Red.
As datas destes concertos
coincidem com o último
fim-de-semana de Maio
e o primeiro do mês de
Junho e esperam-se largos milhares de pessoas,
dada a afluência aos kits
de Natal do Rock in Rio
Lisboa 2006. Tal como a
organização previa, os
kits de Natal esgotaramse rapidamente. O público
aderiu em massa à sugestão de Natal da Better
World e da FNAC, superando todas as expectativas e alcançando e record
de kits vendidos: 10 mil!
Os kits eram compostos
por um voucher e uma tshirt com um layout exclusivo do Rock in Rio.
Os bilhetes estão à venda
desde o final de Fevereiro e o recinto já está
a ser preparado. Quem
adquiriu o voucher não
se pode esquecer de que
este não dá entrada directa no evento: deve ser
trocado por um bilhete,
entre 21 de Fevereiro e
31 de Março, numa FNAC.
Por esta altura, já estará
definido o cartaz do Rock
in Rio Lisboa 2006 na sua
totalidade.
Não percas o próximo
número do 8ª Colina com
mais pormenores!
Os Soulfly vêm finalmente a Portugal para a
apresentação do quinto álbum de originais,
Dark Ages, no dia 25 de Março no Paradise
Garage. A banda liderada por Max Cavalera,
antigo membro dos Sepultura, reúne autênticas estrelas do metal. Uma das colaborações
foi de Billy Milano, dos System of a Down, que
empresta a voz de forma singular à música
Molotov: a participação de Milano foi gravada
através do telefone!
Damian “Jr. Gong” Marley
O filho do lendário Bob Marley chega a Portugal no dia 28 de Março. Damian Marley, um dos
grandes artistas da nova geração do reggae,
consegue criar, através da mistura do reggae
com o R&B, o Hip-Hop e o Dance Hall, uma sonoridade única com letras fortemente marcadas
pela crítica social. O local escolhido para este
concerto foi o Coliseu dos Recreios e os bilhetes
variam entre os 20 euros e os 24 euros.
• FESTA
Feira da Ladra
O Campo de Santa Clara continua a receber todas as
terças e sábados a Feira da Ladra, uma das feiras
mais típicas de Lisboa. De madrugada aparecem os
primeiros vendedores, ambulantes ou particulares,
que por uma razão ou outra expõem as suas mercadorias mais inesperadas e inacreditáveis. O cliente
só tem de saber regatear. A Feira da Ladra remonta
ao tempo de D. Afonso III e já passou pela Ribeira
Velha, Paço da Ribeira, Rossio, Bemposta, Campo
de Santana e Passeio Público. Mas é, desde 1882,
no Campo de Santa Clara que se realiza. Pelas ruas
espalham-se bancas com os mais variados objectos. Lá podemos encontrar móveis usados, ferros
velhos, livros antigos, bugigangas, coleccionáveis,
roupas (novas ou usadas), brincos, óculos de sol, e
até podemos encomendar discos de colecção. Muitas vezes encontramos também obras de arte, pela
simples razão de que o artista não tem mais sítio
nenhum onde vender. É sabido que hoje em dia os
centros comerciais dominam o comércio em Portugal mas não há nada como passear em Lisboa e
encontrar um local onde todos são livres de vender
o que quiserem. É simples, rápido e directo.
• AR LIVRE
Primavera no CCB
O crime do expresso do Ocidente
A Festa da Primavera realiza-se no dia 26 de Março e envolve actividades para adultos e crianças.
Do Yoga ao Taichi, nos Jardins da Água do CCB,
passando pelo Mercado de Flores & Fruta, haverá também outros espectáculos que combinam o teatro e a dança, como o “Oh Suivant” e a
“Explosão da Fábula”. A entrada é gratuita, mas
sujeita à lotação de cada espaço. Os bilhetes devem ser levantados uma hora antes do seu início
nas bilheteiras criadas para este dia, no Centro de
Reuniões. Cada pessoa tem direito de levantar até
quatro bilhetes por espectáculo.
Alguém cometeu um crime, o Crime do Expresso do Ocidente, mas ninguém sabe quem
é o culpado. Felizmente a bordo está o famoso detective Herculano Poirite que vai tentar
descobrir o que aconteceu. Mas todos aqueles
que estiverem no comboio serão detectives e
suspeitos deste crime dos anos 40. Se procura
novas aventuras, faça um viagem no comboio
que parte da Estação de Santa Apolónia. Esta
recriação humorística da famosa novela policial de Agatha Christie está a cargo da empresa humorística, Bode Espiatório.
28 CULTURA
MARÇO 2006 I 8ª COLINA
ACABADO DE RODAR EM DEZEMBRO, UM NOVO FILME PORTUGUÊS
VERA MOUTINHO
da cidade a festivais estrangeiros
de cinema”. Com apenas 24 anos,
o realizador traz também algo de
muito pessoal ao filme: “ Eu sou do
Algarve, da terriola que é a Fuzeta…Quando vim estudar para cá,
Lisboa era um universo completamente diferente. Todas as ruas
e avenidas eram estranhas para
mim”. Por isso André Badalo acaba por documentar de maneira diferente uma Lisboa filmada vezes
sem conta. Uma diferença que se
prende sobretudo com o tempo:
“O filme passa-se todo num dia.
Começa no futuro, em 2035, e depois passa para o presente, 2005.
Toda a história é um conjunto de
memórias e nós estamos a ver o
filme praticamente na cabeça do
Nicolau Breyner, num futuro em
que as emoções são retraídas, em
que o toque é proibido e as memórias são como tesouros. Então este
filme torna-se um tesouro, quer dizer, o tesouro desta equipa…”
A escritora italiana
VERA MOUTINHO
Quem passa do lado de fora da
Igreja Matriz de Samora Correia
não imagina o que se passa lá
dentro. “A igreja está fechada”,
acautela uma senhora, “a missa
é só as 19h”. No largo da igreja
uma fogueira de troncos enormes aquece meia dúzia de homens. E lá dentro, numa igreja
gelada de humidade, filmam-se
os últimos takes do filme “A Escritora Italiana”.
A sacristia denuncia a equipa
de filmagens: malas abertas com
maquilhagem, cabos e tripés no
chão, caixas que dizem “frágil”. Da
sala ao lado ouvimos o eco de uma
voz: “Silêncio! Vamos gravar! Cena
dezoito, plano quatro, take onze!”
Ana Rita Clemente é a assistente
de realização e faz parte de uma
equipa de quinze pessoas que nas
últimas quatro semanas do ano
trabalharam sem parar. O tempo
de rodagem é reduzido. Como o
orçamento. Neste último dia de
filmagens a equipa é menor, cerca
de cinco pessoas, uma câmara, um
projector: atrasos enviaram alguns
de férias mais cedo. Rita Clemente
conheceu o realizador André Badalo na Escola Superior de Teatro e
Cinema. “Fomos da mesma turma
durante o curso, tivemos oportunidade de trabalhar algumas vezes
juntos, mas nunca numa relação
tão próxima como esta”. Quando
André Badalo lhe ligou para o telemóvel a convidá-la para trabalhar
no filme, Rita contagiou-se com o
entusiasmo: “Foi uma abordagem
directa e espontânea, que me surpreendeu”. É uma equipa determinada, jovem: as idades vão dos
UMA EQUIPA JOVEM, NUM FILME FALADO EM INGLÊS MAS
INTERPRETADO POR ACTORES PORTUGUESES, COMO LÚCIA
MONIZ, DIOGO MORGADO E NICOLAU BREYNER. UM “CARTÃO
POSTAL DE LISBOA”, EXPLICA O REALIZADOR ANDRÉ BADALO. VISITA AO SET NO ÚLTIMO DIA DE FILMAGENS.
18 aos 25 anos. “Em menos de um
mês juntámo-nos, organizámo-nos,
conseguimos autorizações, actores, e começamos a filmar”, conta
Gilton Andrade, produtor do filme.
Gilton explica ainda que só foi possível avançar com a ideia graças
a um empréstimo de um amigo. O
Instituto do Cinema, Audiovisual e
Multimédia (ICAM) não foi sequer
uma opção: “ Temos a noção de que
o ICAM é um sistema viciado e que
só com uma cunha muito grande
é que se chega lá”. Mas há mais:
“Toda a equipa, incluindo actores,
está a trabalhar por amor à camisola. De borla. Neste momento, só
pensamos todos em fazer uma coisa
com qualidade”. Actores como Nicolau Breyner, Simone de Oliveira,
José Raposo, Lúcia Moniz e Diogo
Morgado compõem um elenco de
caras conhecidas que ajudarão a
promover o filme. Há até uma figu-
ração especial da cantora Mónica
Sintra. As ambições são muitas:
“Em Portugal é difícil convencer as
audiências. Nós queremos mudar
essa situação. Toda a gente está a
fazer esforços para que o filme seja
não só rentável mas que seja tam-
bém um boom no cinema português
e não mais um filme português em
que o espectador sai da sala e diz
‘Não foi mau’”.
Cartão postal de Lisboa
Ao fundo da igreja, no lado oposto
ao altar, um homem e uma mulher
discutem em inglês com um padre.
Lúcia Moniz e Diogo Morgado são
as personagens principais num
filme que coloca quase todos os
actores a falar inglês (só Simone
de Oliveira fala português), transformando-os numa espécie de alienígenas na cidade de Lisboa. Uma
italiana e um suposto americano
com ligações à Opus Dei encontram-se num banco da estação de
Santa Apolónia e passam o resto
do dia juntos, viajando pela cidade: Alfama, Miradouro da Graça,
Aqueduto das Águas Livres, Restauradores, Belém, Bairro Alto. O
realizador, André Badalo, explica
a motivação: “Quis fazer um cartão postal de Lisboa, até porque a
ideia é levar este filme e a imagem
Chave para o sucesso
O gerador dispara. Na sacristia,
tenta-se gravar a última cena do
dia e de toda a rodagem. O gerador
dispara de novo e a missa tenta
começar na sala ao lado. Cá fora,
o resto da equipa espera ansiosamente. Fala-se das expectativas
em relação ao filme, “estamos confiantes, temos tudo para dar certo”. Para Rita Clemente, há várias
razões para este filme não ser apenas mais um filme português: “primeiro temos a questão da língua,
por si só é uma inovação. Depois,
temos a Lisboa futurista de 2035,
através de uma criação que parte
dum imaginário construído e idealizado pelo realizador. E é na própria história que reside o maior
contraste: ultrapassou-se a barreira das intenções típica do cinema
português onde, na sua maioria,
existem tentativas de contar uma
história. E não nos podemos esquecer da questão financeira: não
é o primeiro filme com baixo orçamento, mas vendo o que foi possível fazer sem apoios, é uma prova
de vontade e criatividade para
além de qualquer impedimento, e
isso também marca a diferença”
Quando começou a escrever
o argumento, André Badalo pensou-o para uma curta-metragem.
O incentivo da actriz Lúcia Moniz levou-o a desenvolver a história e percebeu que tinha de ser
“uma longa”. Sentado nas escadas da igreja de Samora Correia,
hesita em descrever a primeira
imagem do filme em que pensou: “Já me lembro. A primeira
imagem foi do Diogo e da Lúcia
a despedirem-se no Miradouro
da Graça. Eu imaginei este filme
precisamente ao contrário: não
desde o momento em que eles se
conhecem, mas precisamente no
momento em que se despedem. E
avança com a chave para o sucesso: “É um filme com o qual todos
se podem identificar. Toda a gente vai sentir que em determinado
dia, a determinada hora, podia
estar sentado naquele banco da
estação dos comboios e encontrar
‘Aquela’ pessoa”. •
CULTURA 29
8ª COLINA I MARÇO 2006
CICLO SOBRE CINEMA NOVO PORTUGUÊS
Lê-se cinema
na Videoteca
SÃO SOUSA
CA
TA
RIN
AM
EA
LH
A
Um filme é uma palavra. Uma se- que seja unívoca. Assim, um epimana é uma frase. E no fim de seis sódio de O Nosso Caso abre cada
meses estará construído um texto semana, nos dias seguintes são
sobre o cinema português. A pro- apresentados os filmes que foram
gramação do ciclo “Ler Cinema” trabalhados por Regina Guimafunciona tal e qual a montagem rães e por Saguenail e no final da
de um filme. Mas em vez de usar semana é visto novamente aquele
como unidades básicas os planos, episódio. Agora com uma nova
utiliza os filmes como frases de um perspectiva, com uma outra leitutexto que “podem ser remistura- ra a apresentar pelo público.
das constantemente para criar ouA sala da Videoteca não é uma
tros textos infinitamente diferen- simples sala de cinema. Ela é um
tes”, explica Inês Sapeta Dias, a espaço para discussão e interacção
responsável por este segundo ano entre o espectador e as imagens.
do ciclo, organizado pela Videote- “Isso sim faz sentido: ver um filme
ca Municipal de Lisboa.
para depois podermos falar sobre
Em 2004, no primeiro “Ler Ci- ele”, relembra Inês Sapeta Dias.
nema”, Inês escreveu um texto Por isso, os espectadores são convipara ganhar um DVD, “ o António dados a “Ler Cinema” em voz alta,
[Cunha, director da Videoteca] através da proposta de uma progragostou muito, começámos a con- mação com dois ou mais filmes, do
versar e eu apresentei-lhe uma visionamento lento e comentado de
série de projectos”. Um deles era um filme ou da construção de um
a continuação do “Ler Cinema”. texto, que será depois lido e eventuEm Dezembro,
almente publicado.
Na verdade, está
depois de um ano
“Era óptimo que
previsto um livro
de pausa, o ciclo
com as conversas
estava quase a através do ‘Ler
começar e Inês, Cinema’ pudéssemos que vão acontecer
ao longo destes seis
de 25 anos, atarecontribuir para uma
meses e que contafava-se entre os
rão com realizadoúltimos detalhes reconciliação do
res e especialistas
para o Panora- público português
no tema.
ma – Mostra do
com o seu cinema”
Documentário
Depois de A
Génese no mês de
Português, organizado em parceria com o APOR- Janeiro, com a apresentação de
DOC, e um projecto que considera filmes de Manoel de Oliveira, e a
Terra Prometida em Fevereiro, so“mais pessoal”.
O “Ler Cinema” que abriu as bre a paisagem, Março será o mês
portas no passado dia 14 de Janei- de Jonas. Este episódio de O Nosro tem pouco a ver com o anterior, so Caso mostra o fechamento do
onde o objectivo era dar a conhecer Cinema Novo Português, o tema
grandes obras e correntes do cine- que ocupa a primeira parte do cima mundial, aumentando o arqui- clo, com uma programação quase
vo da Videoteca e apresentando-o exclusivamente nacional. Inês
ao público. Neste ano pretende-se confessa: “Era óptimo que através
aprofundar o conceito de “Ler Ci- do “Ler Cinema” pudéssemos connema”. Por isso, tudo gira em tor- tribuir para uma reconciliação do
no de uma leitura do Cinema Novo público português com o seu cinePortuguês: o filme O Nosso Caso, ma, porque tem coisas maravilhode Regina Guimarães e Saguenail. sas”. Numa segunda parte, a partir
A obra divide-se em seis episódios, de Setembro, o ciclo vai pegar no
cada um aponta a luz para uma filme Histoire(s) du Cinèma, de
dimensão deste cinema através Jean-Luc Godard, para pensar o
de montagens e remontagens que cinema a nível mundial. Sempre
se traduzem numa visão crítica. com diferentes leituras. Sempre
Numa leitura, que não se pretende com filmes feitos palavras.
30 CULTURA
MARÇO 2006 I 8ª COLINA
O PROJECTO ZART21
Tela urbana
MARTA PAIS LOPES
Um dia ventoso de Outubro. A
caminho do trabalho, a pensar
na almofada que ficou longe, em
casa, alguém passa pelas ruas
sem olhar em volta. Até que algo
chama a sua atenção: um mupi.
Uma estrutura onde normalmente estaria um anúncio publicitário tem hoje a imagem de uma
rapariga envolta na sua roupa,
numa posição estranha.
Esta é uma cena que se repetiu ao longo dos meses de Outubro e Novembro, em Lisboa. Pelo
menos é isso que esperam os autores da ‘Arte Urbana Para Intervenção’, um projecto “através do
qual se pretende que a cidade de
Lisboa se apresente como uma
plataforma de interacção entre a
arte contemporânea e as pessoas
que nela habitam, num campo de
experiência, de trajecto (casual
ou intencional) e de olhar.” Assim está descrito no site do grupo
responsável por esta exposição
peculiar, os “Zart21”.
Henrique Albuquerque, Isa
Duarte Ribeiro, João Silva, Paulo Romão Brás, Rita Nabeiro e
Sandro Resende. Este é o núcleo
LISBOA PERDEU PUBLICIDADE E GANHOU ARTE, NOS
PASSADOS MESES DE OUTUBRO E NOVEMBRO. ZART21: O
NOME DO GRUPO QUE ENCHEU OS MUPIS DA CIDADE DE
FOTOGRAFIAS E DESENHOS. PORQUE O QUE IMPORTA É
“LEVAR A ARTE ÀS PESSOAS.”
duro dos “Zart21”. O projecto
AUPI foi apresentado por Paulo
Brás, cuja ideia inicial era fazêlo só com fotografia, sua área de
eleição. No entanto, a exposição
de mupis acabou por se abrir
também ao desenho, à pintura, à
poesia, ao design gráfico, em 60
trabalhos de artistas do grupo e
não só. Por trás da arte escondese muita determinação, já que
este trabalho dependeu sempre
da Câmara Municipal de Lisboa,
que foi quem forneceu os circuitos de mupis e fez a avaliação dos
trabalhos. Segundo Paulo Brás,
“nem foi avaliação, foi mais triagem – isto pode entrar, isto não”.
Foram duas as imagens que não
puderam entrar. Henrique Albu-
querque e Sandro Resende, autores desses trabalhos, que tinham
nudez exposta, não reagiram bem
a esta notícia. Paulo também não
concordou com a decisão da Câmara, mas afirma: “Eu percebo a
posição da Câmara, em certa medida. Se estiveres numa galeria,
vai lá quem quer, mas ali não, é
a via pública. Temos de nos sujeitar a estes condicionalismos que
aparecem, acho que é normal.”
Mupi nº 63, Avenida da Liberdade foi a morada do trabalho
de Paulo Brás, uma fotografia,
como não podia deixar de ser.
Apesar de confessar não gostar
de dar explicações sobre o seu
trabalho, Paulo deixou escapar
que esta fotografia é inspirada,
em termos imagéticos, num tra- pela Base Recordings , uma probalho do fotógrafo Edward Wes- dutora discográfica, que aposta
tern, chamado “Ascendendo dos em novos projectos portugueses.
ângulos da água-furtada”. Pouco A música é a segunda paixão de
claro para o cidadão comum, tal Paulo. Além da produtora, trabacomo o seu conteúdo. O que se vê lha na Fonoteca de Lisboa, que,
é uma rapariga dobrada sobre si apesar de lhe dar muito prazer,
mesma, como em queda. O resto, é principalmente a sua fonte de
Paulo revela: “ela está vestida rendimento. “Tenho de pagar
com uma roupa do Manuel Alves renda e essas coisas todas”, afire do José Manuel Gonçalves. Tem ma Paulo, que não esconde que
a ver com a nossa sociedade ac- gostaria de viver apenas da arte.
tual: toda a produção, as marcas, Abriu também caminho para ouetc.
Depois,
tra forma de
é a queda...”. “Se estiveres numa
arte, com a sua
Esta fotogra- galeria, vai lá quem
primeira perfia é apenas
formance, no
quer, mas ali não, é a
uma das muiFestival Mau
tas que Paulo via pública”
2005, em Faro.
tirou. Esta sua
É
nos
paixão já o levou até Paris, onde “Zart21” que Paulo tem dado
expôs trabalhos numa exposi- mais corda à sua imaginação. O
ção incluída no Festival Portu- grupo já estava criado quando
gais 2005. É também editor de ele entrou, mas ainda foi a temimagem da revista Base. Tudo po de participar, em 2003, no prodepende dos apoios, já que a re- jecto ‘Penetrações’. Um edíficio
vista não é lucrativa. “Isto é só inabitado junto ao castelo de S.
amor à camisola”, afirma Paulo, Jorge. 3 andares e um sótão con“estou a fazer isto, não recebo vidaram cerca de 60 artistas a
nada, basicamente.” Além de fazer uma intervenção em qualcontactos e do design da revista, quer zona do edifício. Ainda em
Paulo Brás é ainda responsável 2003, foi a vez de o hospital Júlio
VERA MOUTINHO
CULTURA 31
8ª COLINA I MARÇO 2006
• Fotos de Paulo Romão Brás
de Matos receber uma intervenção dos “Zart21”. A cada artista foi pedida a criação de uma
cama, não para os doentes, mas
para mais uma exposição original num sítio diferente. Este é,
aliás, o objectivo dos “Zart21”,
como explica Paulo Brás: “Somos um grupo multidisciplinar,
cujos principais objectivos são
fazer exposições em sítios pouco
convencionais e fugir ao circuito das galerias.” Se questionado
• Foto de Sandro Resende
em relação à legitimidade des- maiores. Literalmente. Além de
tas novas formas de arte, tantas uma possível exportação da ideia
vezes posta em
para
países
causa,
Pau- “Queremos fugir ao
como Espanha
lo defende os
e Itália, o grucircuito das galerias”
“Zart21” sem
po pretende fahesitações:
zer uma nova
“não se põe a questão. Somos exposição em Lisboa, mas desta
um grupo artístico.”
vez em outdoors. Da próxima
“Levar a arte às pessoas” vez que passar na rua, levante os
– é com este horizonte sempre olhos do chão. Os “Zart21” podem
em vista que os “Zart21” vão fa- ter mudado o seu mundo urbano
zer o projecto AUPI seguir rumos de todos os dias. •
REVELAÇÃO: ISABEL SIMÕES
A visita guiada estava marcada para as 11
horas, mas já passam uns minutos. Dentro
da sala de exposições do piso -1 da Fundação Calouste Gulbenkian, uma rapariga
testa mais uma vez o projector. “Vamos esperar só mais um bocadinho para vermos
se vem mais gente”, informa e afasta-se,
num passo delicado mas firme. Entretanto,
passa-se os olhos pela folha informativa da
exposição, chamada 7/10 – 7 Artistas ao 10º
Mês: “O objectivo principal desta iniciativa bienal, iniciada no CAMJAP [Centro de
Arte Moderna José de Azeredo Perdigão]
em 1997, é o de dar a conhecer sete artistas
emergentes”. Uma das escolhas deste ano
é aquela rapariga de passo delicado mas
firme: a pintora Isabel Simões.
Sempre soube que queria entrar no mundo das artes, fosse para pintura, arquitectura ou design. Hoje, com 24 anos, a Isabel é
a mais jovem artista a ser convidada para
esta edição da exposição. Na verdade, o ano
passado correu muito bem à Isabel: acabou
o curso de pintura na Faculdade de BelasArtes da Universidade de Lisboa no passado
mês de Dezembro e mostrou, pela primeira
vez, a sua obra a nível internacional, ao ter
sido um dos três portugueses convidados
para a 2ª edição da Bienal de Praga, que decorreu entre 26 de Maio e 15 de Setembro,
sob o tema “pintura expandida”.
Logo no início da visita guiada, a artista explica que é de pintura, fotografia
e desenho que se constrói o seu trabalho.
Enquanto fala, vai espreitando as folhas
que tem na mão. As cábulas servem para
guiar o discurso calmo de quem fala pela
primeira vez em voz alta da sua obra a um
VERA MOUTINHO
Transfigurar cidades
público só seu. Nas paredes estão as pinturas de um cinema desactivado, uma ponte
sem acesso, um altifalante de comboio que
não funciona e um esgoto fora do chão. A
Isabel explica que escolhe sempre espaços
urbanos, fotografa-os (como quem desenha
um esboço) e pinta depois como ironia do
real, manipulando as imagens e mudandolhes o sentido, porque, segundo a artista,
“vemos na realidade aquilo que queremos”.
A figura humana é retirada da pintura
para deixar livre um espaço que é preenchido pelo espectador. Os olhos dos outros são
fundamentais à obra, que nunca fica presa no
momento da produção nem nos sentimentos
da produtora. Por isso, falar de uma maneira
pessoal do seu trabalho, como faz nesta visita
guiada, é bom mas não essencial: “A explicação do artista é redutora, porque ele só diz
aquilo que a obra representa para ele, mas a
obra é bem mais livre do que isso”.
Quando a Isabel fez a primeira viagem
de comboio entre Azeitão, onde mora desde
sempre, e Lisboa para entrar na Faculdade
de Belas-Artes, ia como aluna de Design de
Comunicação. Mudou de curso logo no primeiro ano, “porque via demasiadas pinturas na Faculdade e custava-me pensar que
ia lá passar 5 anos sem ter uma pintura
minha naquelas salas”.
Os espaços suburbanos que via da janela do comboio foram transportadas para as
telas, tal como a cidade cosmopolita que
encontrou do outro lado do rio. Mas a licenciatura, essa “não tem importância
nenhuma”. Para a pintora, a Faculdade
surgiu como uma possibilidade de discutir
e de mostrar o seu trabalho. E foi durante esse período que a Isabel se começou a
destacar: em 2003 foi finalista do 1º Prémio
Rothschild de Pintura e em 2004 participou
no Antecip’arte, na Estufa Fria, que foi “a
minha primeira exposição mais pública”.
Logo a seguir entrou para a Galeria Módulo, em Campolide, onde continua. Segundo
a Isabel, não é difícil entrar no circuito comercial da arte, pois “neste momento há
uma euforia nas artes plásticas por nomes
novos e há uma série de iniciativas que vai
buscar pessoas novas”.
Mas não se quer ficar por aqui. “Acho
muito importante sair um bocadinho, viajar pelo mundo fora e ver outras coisas. É
o que eu quero fazer no próximo ano”. Os
projectos estão delineados: fazer a sua primeira exposição individual na Módulo,
“lá para Abril, Maio”, mostrar o trabalho
que está a fazer agora sobre Tróia, “um
sítio que me fascina muito”, e seguir para
Berlim, onde entrará no mundo da Nova
Pintura e da Fotografia Alemã, “uma fotografia de arquitectura com que eu identifico muito o meu trabalho”.
E volta? “Talvez”. Mas onde quer que
esteja, a rapariga de cabelo bem curto e
aspecto frágil, com passo delicado mas
firme, vai continuar a pintar. Quanto ao
futuro, é cautelosa em relação aos resultados da projecção que tem tido, pois, diz,
“é muito mais difícil gerir uma carreira a
médio prazo do que aparecer nas primeiras vezes”. E a pintora Isabel Simões espera ficar cá algum tempo. •
São Sousa
MARÇO 2006 I 8ª COLINA
a última da colina
HUMOR
A COLUNA TORTA
pelas Damas de Humor
por Edgar Silvestre
Directos
VO
OR
OC
CML quer
reciclagem
de incêndios
A
DIN
AR
Seguindo directivas europeias, a Câmara
Municipal de Lisboa (CML) vai criar novos
ecopontos na cidade. O protocolo europeu
considera que é preciso mais que o papelão,
o vidrão ou mesmo o pilhão que ninguém
vê. A partir de agora, encontrará perto de si
o cidadão, ecoponto das cidades, e também o
fascinante ecoponto da palavra, o palavrão.
A grande novidade dos ecopontos é o fogão.
Tendo em conta os incêndios que todos os
anos assolam Portugal, a Europa quer que
os fogos sejam reaproveitados. “Vai facilitar a vida aos bombeiros portugueses”,
explicou o Comissário Europeu para a Sal-
vação dos Eucaliptos. “Fogos diferentes todos
os anos causam confusão e, por isso, não se
consegue combatê-los. Assim, os bombeiros
saberão com que fogo estarão a lidar.”
O cidadão comum pode ainda reciclar os
seus filhos, consoante o nome: as Anas no
anão e as Veras no verão. Se quiser que o
seu filho Carlos se torne um massagista alto
e musculado, fã número 1 do Elton John,
tem à sua porta o carlão.
Por último, uma novidade especial. Para
homens com baixa auto-estima e a precisar
de uma reciclagem urgente, a CML vai pôr
em cada bairro o polémico secção. •
ERA UMA VEZ EM LISBOA
A revolução do Vasco da Gama Indiano
A Grândola Vila Morena do Zeca
Afonso foi transmitida às 00:20 no
programa Limite da Rádio Renascença no dia 25 de Abril de 1974,
como senha radiofónica para o
início das operações militares.
Volta agora a ser ouvida numa
esquina da Rua Augusta quase
todos os dias. É assobiada repetidamente por um homem de braços
cruzados, sentado num banco quase junto ao chão. À sua volta vários
tons de verde. Parafernália militar:
mochila, botas, calças, camisola. A
razão: uma “revolução” contra o governo e contra os portugueses. Para
Velfredo de Sousa, cuja idade não
quis revelar, a democracia está em
crise e, por isso, a luta continua.
Luta contra aquilo que considera injusto. Por exemplo: os
polícias proibiram-no de cantar
em frente às lojas. O indiano acusa o Governo de ter só interesses
comerciais. Conta-nos uma história: «Há 2 anos, a Câmara Municipal de Lisboa mandou fechar
as fontes de água no Rossio. Eles
querem que nós bebamos CocaCola em vez de água!».
Este goês saiu da sua terranatal para trabalhar. Portugal é
a terra escolhida há 7 anos. Hoje,
sem abrigo, vive de um lado para
outro. Assobiar é o seu ganha-pão.
A viagem para Portugal foi
um grande percurso cheio de
aventuras. Atravessou 21 países à boleia. Passou pelo Médio
Oriente, Europa Oriental, Europa Central e, no fim, chegou
à terra de Vasco da Gama. «Em
1498, Vasco da Gama descobriu o
caminho marítimo para Goa. Em
1998, eu descobri o caminho terrestre para Portugal!» •
Nina Cunha
Há quase 50 anos que é assim.
Levanta a mesa e arruma tudo.
Varre as folhas do chão como
se estivesse em casa. Mas não
está. Porque não quer.
No canto do Jardim da Estrela que é a sua casa, ela é
como um símbolo, uma peça
que não encaixa ali. A roupa condiz na perfeição, e os
brincos de pérolas enquadram um rosto enrugado
pelas lembranças que não a
deixam. Todos a respeitam.
Porque a conhecem.
Enquanto brinca com a
vassoura com que varre, parece alhear-se de tudo: talvez
pense nos 11 filhos que não
quer ver, no marido que fugiu
para a América num barril
depois de vender o seu vesti-
do de noiva. Na criança que
foi forçada a não ter. Talvez
não. Porque está quase sempre a sorrir. Porque sabe que
valeu a pena trocar tudo pela
rua. Ali faz o que quer e pensa
só no que quer. Ou não pensa.
E é assim que está bem, quando não pensa.
Vive ali e só os que a conhecem percebem porquê. Só eles
têm o direito de rir dos olhares
de estranheza de quem não a
conhece: Uma senhora assim a
viver na rua…
“Ai menina, a minha vida…
isso era muita coisa para contar…”. Não passa despercebida
a ninguém. Há quase 50 anos
que é assim. •
Diana Paiva
NINA CUNHA
NINA CUNHA
Feliz num mundo à parte
Adoro directos com jornalistas,
nunca sabemos o que vamos encontrar. Em primeiro lugar, estamos sempre à mercê das perguntas do arco da velha que qualquer
jornalista faz só para encher chouriços, como “Morreu a sua mãe,
conte aqui à TVI, como se sente?”
ou “Quando estava a ser abusado
sexualmente como se sentia?”. No
dia em que um infeliz desses me
fizer uma pergunta tão imbecil, eu
direi “nunca tive essa experiência,
mas não deve ser pior do que ser
entrevistado por si”. Ou mais excitante, surgir um tipo qualquer por
detrás do jornalista a fazer meia
dúzia de macacadas. Nos jogos
de futebol, acho que os realizadores fazem de propósito, metem o
coitado do jornalista no meio das
claques de futebol, gente de bem
portanto, e seja o que Deus nosso
senhor quiser, apesar de o jornalista levar o seu brio profissional
até ao fim. Mais arrojado, quando
se faz uma entrevista àquelas famílias cuja casa ficou alagada e o
senhor Justino Assunção, é mesmo nome de desgraçado, pega no
filho ao colo e obriga a criança a
enfrentar a camâra, dá uma imagem lindíssima.
Mas o pessoal dos filmes e das
novelas também paga a factura
pelo facto de existirem pessoas
abelhudas que gostam de meter
o nariz onde não são chamadas.
Uma mega produção, milhões de
euros envolvidos, uma equipa técnica inteira a fazer uma cena que
demorou meses a preparar, dois
actores que dão o seu melhor para
serem credíveis, quando de repente surge um tipo não sabemos
de onde e diz “Olhe senhor Tom
Cruise dá-me um autógrafo?”.
Há pessoas que passam pela câmara, olham para a câmara, andam
mais um bocado e continuam a andar olhando para trás... ou então
interrompem tudo e perguntam,
“’Tão a gravar? Posso passar?” A
esses senhores e senhoras, respeitem quem trabalha, ou esperem
um bocado até que alguém repare
em vocês e diga “pode passar”, ou
então, passem e façam como se
não fosse nada connvosco.
Outro aviso, nós estamos sempre
à disposição daquelas pessoas que
são mais curiosas para responder
a perguntas que por acaso são
sempre as mesmas. Repito vezes
sem conta: “não, nós não sabemos
ainda quando isto vai para o ar” e
“não, nós não estamos a gravar
para os “Morangos com Açúcar”. •
Proprietário e editor: Escola Superior de Comunicação Social • Fundadora: Anabela de Sousa Lopes • Projecto: Telmo Gonçalves • Director: Paulo Moura • Chefe de redacção: Vera
Moutinho • Política: João Godinho, Liliana Batista e Vera Esteves • Sociedade: Sílvia Dias e Tânia Reis Alves • Ensino: Irina Melo • Mundo: Pedro Gonçalves • Cultura: São Sousa e Vera
Moutinho • Agenda Cultural: Liliana Batista e Rita Afonso • Letras: Ana Brasil e Andreia Gonçalves • Desporto: Dilpesh V. Laxmidas e Sílvia Carvalho • Media: Marta Mesquita • Humor: Ana
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