Ensino Médio

Transcrição

Ensino Médio
BRASIL/ÁFRICA
HISTÓRIAS CRUZADAS
Ensino médio
Belo Horizonte/São Paulo
2012
Sumário
Introdução...................................................................................................................... 5
Os anos finais do Ensino Fundamental e a diversidade étnico-racial....................................... 10
A proposta deste caderno....................................................................................................... 13
Tecendo Projetos, cruzando histórias...................................................................................... 13
Algumas recomendações......................................................................................................... 20
Referências............................................................................................................................. 23
África, berço da humanidade:...................................................................................... 25
Da África para o mundo: a longa viagem humana.................................................................. 36
Por que a África..................................................................................................................... 38
Processo de evolução: o que estamos entendendo como seres humanos.................................. 39
O desenvolvimento das habilidades – produção da cultura..................................................... 42
O projeto África Berço da Humanidade................................................................................. 54
Com as mãos na massa: África berço da humanidade: somos todos africanos emigrados....... 64
Subprojeto de Língua Portuguesa: Uma viagem ao túnel do tempo, afinal de onde
os homens vieram?............................................................................................................ 67
Subprojeto de História: Evolução histórica da espécie humana.............................................. 77
Subprojeto de Artes Visuais: pinturas rupestres o que elas podem revelar do
nosso passado?............................................................................................................... 102
Subprojeto de Ciências: Humanos – quem somos nós?......................................................... 109
Referências Bibliográficas..................................................................................................... 114
brasil/áfrica: histórias cruzadas fundamental ii
Projeto Reinos africanos:............................................................................................ 117
O projeto Reinos africanos: civilizações e patrimônios culturais herdados
pela humanidade............................................................................................................. 127
Com as mãos na massa: Reinos africanos: civilizações e patrimônios culturais
herdados pela humanidade............................................................................................. 138
Atividade disparadora: Uma viagem no tempo..................................................................... 138
Produto Final: Mostra cultural Reinos africanos: civilizações e patrimônios
culturais herdados pela humanidade............................................................................... 141
Subprojeto de História: Uma viagem no tempo e espaço social............................................ 142
Subprojeto de Língua Portuguesa: Rainhas e Princesas africanas: outras percepções
da África a partir da literatura ....................................................................................... 159
Subprojeto de Geografia: Transformações no espaço e nas sociedades humanas................... 164
Subprojeto de Artes Visuais: O que podem revelar os objetos artísticos africanos
sobre as civilizações que ali floresceram?........................................................................ 169
Subprojeto de Ciências: Uma máquina do tempo é possível?................................................ 175
Subprojeto de Matemática: Sistemas de medidas de tempo................................................... 179
Referências Bibliográficas..................................................................................................... 183
A arte do fazer:........................................................................................................... 185
METALURGIA: uma tecnologia de base africana................................................................ 193
O Projeto A Arte do Fazer: tecnologia em África.................................................................. 197
Com as mãos na massa: A Arte do Fazer: tecnologia em áfrica............................................ 202
Produto Final: exposição de máquinas simples..................................................................... 205
Subprojeto de História: Aventuras da tecnologia africana..................................................... 206
Subprojeto de Ciências: investigando máquinas simples....................................................... 209
Sub-projeto de Português: Como usamos máquinas simples................................................. 227
Referências........................................................................................................................... 232
4
Introdução
A contribuição africana para a sociedade mundial
O fato de a história da África ter sido negligenciada até os anos 50 é apenas
um dos sintomas de um fenômeno mais amplo. No século XIX, os europeus
conquistaram e subjugaram a maior parte dos países da Ásia, enquanto na
América tropical o subdesenvolvimento e a dominação exercida pelos povos
de origem européia sobre as populações afro-americanas e indígenas reproduziram as condições do colonialismo nas áreas onde as convenções do direito
internacional apontavam um grupo de Estados independentes. No século XIX
e no início do século XX, a marca do regime colonial sobre os conhecimentos
históricos falseia as perspectivas em favor de uma concepção eurocêntrica da
história do mundo, elaborada na época da hegemonia européia. A partir daí,
tal concepção é difundida por toda parte graças aos sistemas educacionais instituídos pelos europeus no mundo colonial. Hoje, essa visão eurocêntrica do
mundo praticamente desapareceu das melhores obras históricas recentes; mas
ela ainda predomina em numerosos historiadores e no grande público tanto
ocidental quanto não ocidental.
Os estudos pelas ciências sociais e humanas atravessam, em seu conjunto,
uma dupla revolução, iniciada logo após a Segunda Guerra Mundial. Trata-se,
brasil/áfrica: histórias cruzadas fundamental ii
por um lado, da transformação da história, partindo da crônica para chegar a
uma ciência social que trate da evolução das sociedades humanas; por outro,
da substituição dos preconceitos nacionais por uma visão mais ampla. Em
favor destas novas tendências, chegaram contribuições de todos os lados: da
própria Europa; de historiadores da nova escola na África, na Ásia e na América Latina; dos europeus de ultramar - da América do Norte e da Oceania.
Seus esforços para ampliar o quadro da história voltam-se ao mesmo tempo
para os povos e regiões até então negligenciados, assim como para certos
aspectos da experiência humana antes ocultos sob concepções tradicionais e
estreitas da história política e militar. Nesse contexto, o simples advento da
história africana já constitui em si uma preciosa contribuição. Mas isso poderia simplesmente acabar criando mais uma história particularista, válida em
si e capaz de colaborar com o desenvolvimento da África, mas não de trazer à
história do mundo uma contribuição mais eloqüente.
O chauvinismo foi um dos traços mais marcantes da antiga tradição histórica, particularmente na tradição européia do início do século XX. À medida
que rejeitavam as tendências eurocêntricas de sua própria história nacional,
cabia aos historiadores de cada continente a tarefa de avançar em direção a
uma história do mundo verídica, na qual a África, a Ásia e a América Latina
tivessem um papel aceitável no plano internacional.
Nessa batalha, o ensino científico da história dos povos constitui a arma
estratégica decisiva. O racismo pseudo-científico ocidental do século XIX tinha situado os africanos na base da escala estabelecida em torno à cor da
pele, por serem os que mais se diferenciavam dos europeus, que outorgaram
a si mesmos o nível mais alto. Os racistas não cessavam de proclamar que a
história da África não tinha importância nem valor: não havia entre eles nada
de admirável que não houvesse sido copiado de outros povos. É assim que os
africanos se tornaram objeto - e jamais sujeito - da história. Eram considerados aptos a recolher as influências estrangeiras sem dar em troca a mínima
contribuição ao mundo.
Bem mais insidiosa ainda foi a sobrevivência das conclusões fundadas nas
alegações racistas, depois que estas perderam sentido. O postulado “a história
da África não oferece interesse porque os africanos são uma raça inferior” tornou-se insustentável, mas certos intelectuais ocidentais se recordavam vagamente de que “a África não tem passado”, ainda que houvessem esquecido a razão.
6
Introdução
A herança do racismo não cessava de consolidar um chauvinismo cultural
que considerava a civilização ocidental como a única verdadeira “civilização”. Em meados do século, o grau de alfabetização determinava a linha de
demarcação entre a civilização e o resto. Em grande parte iletradas na época
pré-colonial, as sociedades africanas eram rebaixadas à categoria de “primitivas”. O chauvinismo cultural, acompanhado pela ignorância, conduzia as
autoridades ocidentais a estabelecerem no limite do deserto a demarcação
entre a alfabetização e o analfabetismo. Reforçava-se assim a desastrosa tendência em separar a história da África do Norte da história do conjunto do
continente.
Entretanto, a exclusão dos “não civilizados” do reino da história era apenas uma das facetas de um elemento bem mais importante da tradição histórica ocidental. As próprias massas ocidentais eram atingidas por esta exclusão
em conseqüência do caráter didático da história, uma vez que a apologia dos
homens célebres era capaz de propor modelos a serem imitados. Se os historiadores europeus se desinteressaram tão completamente por um amplo setor
de sua própria sociedade, como poderiam interessar-se por outras sociedades
ou por outras culturas?
Lentamente, porém, irá estabelecer-se a aliança potencial entre os que trabalham para ampliar o campo de estudo da sociedade ocidental e os que se
dedicam a dar um impulso maior às pesquisas históricas para além do mundo
ocidental. A principal preocupação dos historiadores da África era desmentir
a afirmação segundo a qual a África não possuía passado ou só um passado
sem interesse. Num tímido início e como primeiro passo para uma “descolonização” da história africana, tratou-se resgatar os aspectos do passado da
África que se assemelhavam ao do Ocidente, sem ratificar os mal-entendidos
suscitados pelas divergências de cultura. Poucos reconheciam, por exemplo,
que uma das grandes realizações da África fora provavelmente a sociedade
sem Estado e que o Estado africano se havia organizado de maneira a realmente apresentar autonomias locais. Este primeiro esforço limita-se a modificar os julgamentos de valor.
Um segundo passo em direção à descolonização da história do período
colonial se dá paralelamente à vaga de movimentos nacionalistas pela independência. Os especialistas em ciência política que escreveram no período dos
movimentos de independência derrubaram as barreiras. Durante os anos 60,
7
brasil/áfrica: histórias cruzadas fundamental ii
os estudiosos começaram a retroceder o tempo, buscando as raízes da resistência e dos movimentos de protesto no início da época colonial e, mais longe
ainda, nas primeiras tentativas de resistência aos europeus. Estes trabalhos
constituem uma importante contribuição para corrigir os desvios da história
colonial, mas ainda estamos longe de considerar a história da África com objetividade.
No último estágio, a descolonização da história africana da época colonial
deverá derivar de uma fusão da revolta contra o eurocentrismo e do movimento antielitista. Os progressos da história analítica constituem um importante
passo nessa direção. A independência em relação aos arquivos se mostra tão
essencial para o período colonial quanto para o período pré-colonial, cuja documentação é relativamente rara. O problema da “história colonial” sempre
foi que, ao contrário do que se passou e se passa na Europa ou nos Estados
Unidos, os arquivos foram criados e alimentados por estrangeiros. No mundo colonial, o historiador corre o risco de chegar a resultados desastrosos, se
negligenciar a possibilidade de levar em conta outro ponto de vista, que ele
pode obter através de testemunhos orais de pessoas que viveram sob o domínio colonial.
8
Linha do tempo com base
nos volumes da História
Geral da África
brasil/áfrica: histórias cruzadas fundamental ii
Nossa Herança Africana
Kemetic, (egípcia) Vale do Nilo, África – Olmeca, México –
Songai, Gao, Africa
Monumentos Históricos de Três Civilizações Clássicas
Resumo da Perspectiva Sócio Cultural
“Outro requisito imperativo é de que a história (e
a cultura) da África devem pelo menos ser vistas de
dentro, não sendo medida por réguas de valores estranhos... Mas essas conexões têm que ser analisadas nos
termos de trocas mútuas, e influências multilaterais em
que algo seja ouvido da contribuição africana para o
desenvolvimento da espécie humana”.
J. Ki-Zerbo, UNESCO, História Geral da Africa (p.19).
Cícero disse e o ex-presidente John F. Kennedy repetiu: “Existe muito pouco que é mais importante para qualquer pessoa saber do que a sua história,
cultura, tradições e língua; pois sem esse conhecimento uma pessoa fica nua
e sem defesa diante do mundo”.
Nosso Começo Africano
5 milhões A.C Homo Sapiens originarão se na África.
40.000
Homo Sapiens foram encontrados ao longo da África, Ásia e
Europa.
15.000-7000 Vastas civilizações aquáticas de povos do Nilo-Saara na pré-história africana. Os lagos eram maiores e mais numerosos;
os pântanos mais extensos; rios e cursos d’agua eram mais
cheios e compridos.
8000
Nossos ancestrais africanos apareceram na área do atual rio
Níger.
10
Linha do tempo com base nos volumes da História Geral da África
7000-5000
Primeiras formações de dunas de areia.
5000
Os kemetianos (egípcios) desenvolveram o primeiro calendário relatado.
2700
Durante a Antiga e Média Idade das Pedras os africanos orientais produziram comidas, caçaram e pescaram na área chamada de Sahel, o atual Saara.
2500
Os Kemetianos completam a construção da pirâmide no antigo vale do Nilo egípcio.
Todas as civilizações originais são civilizações de rio. Por isso que o vale do
rio Nilo tem sido o símbolo das civilizações clássicas africanas.
2000 A.C Os rios Joliba e Quorra juntam-se para formar o rio Níger no
oeste da África.
500
Ferro em geral era utilizado na África Oriental.
Império Gana
A África Oriental era chamado de Sudão Francês em contraste com o Sudão Anglo – Saxão cuja capital foi Cartum. Sudão significa Negro em Árabe
- povo negro, terra negra. Isso pode ser indicação de um modelo de migração
da África Ocidental com as suas três civilizações clássicas Axum, Núbia e Kemet – para África Oriental, na qual as três civilizações clássicas Gana, Mali e
Songai se desenvolveram. Esses povos desejando ou não contribuíram para o
desenvolvimento da Europa e das Américas.
300-1076 D.C O império de Gana ergueu-se devido ao controle dos recursos
minerais (cobre, ferro e ouro) e do comércio de sal; a sua localização em uma área agrícola; a sua organização, poderosa
força militar e comércio.
O período do “Obscurantismo” na Europa.
1203
Sumanguru torna-se o imperador de Ghana.
Grande Zimbábue
11
brasil/áfrica: histórias cruzadas fundamental ii
1200-1400 D.C No 13a e 14a século, os ancestrais do povo de Zimbábue
que falavam a língua Shona construíram o Grande Zimbábue, a maior cidade ao sul do Saara. É estimado que perto
de um milhão de blocos de granitos sólidos foram usados
na construção dessa estrutura sem argamassa.
Império Mali
1240
Sundiata Keita, um príncipe Mandingo, derrotou Sumanguru Kante na grande batalha de Kirina e fundou o império
Mali.
A mãe de Sundiata, Sogolon, estimulou a superar tremendos obstáculos
pessoais e ele tornou-se um dos maiores lideres da África.
1255Sundiata Keita morre, mas deixa Mali segura no controle
do ouro e do comércio de sal na África Oriental.
O algodão africano e as formas como a palavra ouro eram usadas na África
foram encontrados nas Américas. Por volta de 1312, Gossypium herbaceum,
um trançado de algodão africano foi desenvolvido em tecido por povos nativos das Américas. Palavras africanas que significavam ouro na África Oriental
também eram utilizadas na pré- América Hispânica. Navegadores africanos
levaram o comércio do ouro da África oriental para as Américas. Similaridades notáveis, incluindo pirâmides e hieroglifos, sugerem evidentes influências
africanas em uma das mais antigas civilizações do México, a cultura Olmeca.
Em Laventa, Três Zapotes e San Lorenzo, colossais cabeças mexicanas foram
esculpidas em pedras, possuindo notáveis semelhanças com o povo africano.
1-1312
Reis dos mares africanos viajaram para o Novo Mundo.
Abubakar II, Rei de Mali, organizou duas expedições diferentes para a
área que hoje é o México. A primeira expedição consistiu em duzentos navios
equipados e cheios de homens e duzentos navios cheios de ouro, água e suple-
12
Linha do tempo com base nos volumes da História Geral da África
mentos. A segunda expedição, em que o próprio Abubakar II liderou, dizem
que incluiu 2000 navios com homens e equipados com suplementos.
1307-1332
Reino de Mansa Musa ou Kankan Musa que fez uma peregrinação a Meca e ao Egito em 1324, onde ele foi nomeado
califa do Sudão.
A peregrinação de Mansa Musa para Meca mostrou o seu império como um Eldorado aos olhos do resto do mundo. Ele foi a Meca e Cairo com
60.000 carregadores e servos cobertos de ouro, cada um carregando um bastão de ouro pesando acima de três kilos. Mansa Musa comprou terras e casas
em Meca e Cairo para acomodar os peregrinos no Sudão. Ele também trouxe
80 pacotes de ouro consigo cada uma pesando acima de 3.8 kilogramas. Em
Meca ele informou que se tornou rei de Mali quando seu tio não mais retornou de uma viagem marítima. Ele estabeleceu as clássicas universidades de
Gao, Djenne e Sankoré em Timbuktu, e construiu mosteiros e monumentos
por todo o seu império. Riqueza, arte e cultura desenvolveram-se. Quando ele
morreu, o império de Mali era maior que a Europa.
Império Songai
1335 D.C
Ali Kolon e Soulaymane Nar rejeitaram a hegemonia de
Mandingo e formaram uma nova dinastia Songai em Gao.
1359-1450
Mali – dividida por guerras civis – foi finalmente absorvida
pelo império Songai.
1464-1492
Sonni Ali Beer consolidou o antigo Império Mali.
Sonni Ali Beer é chamado de “O Grande” porque governou por 28 anos;
combateu em 32 guerras; e teve 32 vitórias – sempre o conquistador e nunca
o conquistado. Por isso ele não era querido por árabes e europeus invasores e
escritores. Sonni Ali aceitou o Islã contanto que não afetasse a cultura Songai
13
brasil/áfrica: histórias cruzadas fundamental ii
nativa. Ele desenvolveu a administração do exército, técnicas de agricultura e
irrigação e controle de taxas.
1492Após 800 anos de ocupação por africanos, o decreto de
expulsão forçou milhares de mulçumanos e judeus africanos a abandonarem a Espanha. Sonni Ali Beer morreu. Colombo descobriu a América. O Renascimento começa na
Europa.
1-1528
Askia Mohammed tornou-se imperador de Songai.
Askia Mohammed prestou grande atenção para a educação escolar e desenvolveu as três grandes universidades clássicas de Gao, Sankoré e Djenné.
Askia Mohammed construiu o famoso mosteiro conhecido hoje em dia por
“Le Tombeau des Askia” em Gao, Mali. Durante a sua famosa peregrinação a Meca, ele também visitou Cairo em 1496-1497. Um exército de 800
homens a cavalo o acompanhou e ele levou 300.000 dinares de ouro para
cobrir suas despesas. Ele comprou uma concessão em Meca para os peregrinos do Sudão e distribuiu o resto do ouro lascivamente. O ouro e o comércio
de sal foram a fundação da riqueza do império de Songai. Comércio, arte e
cultura floresceram.Durante o seu reinado o império Songai unificou vários
estados e alargou-se da Nigéria até o lago Tchad e o Oceano Atlântico –
uma área maior que dez modernos estados africanos. O império de Songai
foi o mais poderoso e estável império da África oridental jamais visto e foi
um modelo exemplar para os “Estados Unidos da África”. Askia Mohammed morreu em 1528.
A Massiva Diáspora Africana
1588-1591A derrota do império Songai. O antropólogo St. Clair Drake
reconheceu que a derrota do império Songai como um importante evento “divisor de águas”. “Se a derrota da armada da Espanha, em 1588, marcou um
clímax na história da Europa, isso afetou o mundo negro profundamente,
um evento na África Oriental três anos depois marcou um clímax de grande
importância simbólica na história dos negros”. O império Songai, o maior e
14
Linha do tempo com base nos volumes da História Geral da África
mais estável dos reinos negros do Sudão, foi derrotado por Marrocos em 1591
e dividido em um grupo de pequenos estados rivais. O caminho foi então
aberto para a penetração imperialista francesa e britânica.
1501
Isabella, Rainha da Espanha, enviou africanos escravizados
à Ilha Hispaniola (atual República Dominicana e Haiti) para trabalhar nas plantações de açúcar.
50 milhões de Africanos. Durante o comércio europeu de escravos, britânicos, franceses, espanhóis, portugueses e alemães transportaram forçadamente
cerca de cinqüenta milhões de africanos para o Novo Mundo.
1562-1612
Yanga, uma africana escravizada da região do Alto Nilo,
e outros escravos foragidos fundaram vilas livres (quilombos)- palenques- como San Lorenzo de los Negros no pé
das montanhas Veracruz, na Nova Espanha (México). Os
espanhóis capturaram e executaram Yanga em 1612.
No Suriname, e em outras partes das Américas, africanos quilombolas fugiram da escravização nos anos 1600 e formaram comunidades, onde viveram
de acordo com as tradições africanas.
1619Um navio alemão trouxe africanos com contrato de serviços para a colônia britânica de Jamestown, Virginia. Por
volta de 1633 leis estabelecidas nas colônias tornaram os
africanos escravos por toda a vida.
1655-1695
Zumbi era o líder da nação quilombola de Palmares, localizada na Serra do Brasil. O quilombo foi fundado no
começo do século XVI. No seu apogeu, Palmares chegou a
contar com até 20.000 residentes.
1717-1722
Africanos orientais foram trazidos para Pensacola (área
que incluía a Louisiana colonial).
15
brasil/áfrica: histórias cruzadas fundamental ii
Em 1719 os capitães de dois navios franceses que trouxeram africanos
orientais a Pensacola, O Aurore e St. Louis, tinham instruções precisas para
dar prioridade máxima seleção daqueles “negros” que sabiam cultivar arroz,
índigo, tabaco e algodão e aos que carregavam os barris de arroz de forma
adequada para plantar do jeito certo. Alguns grupos étnicos na África Oriental hoje ainda são conhecidos como especialistas no cultivo desses grãos, que
foram cruciais no desenvolvimento das colônias do Novo Mundo.
1789A Revolução Francesa. O tesouro público da França estava falido. A recém-criada constituição incluía a “Declaração dos Direitos do Homem e Cidadão” e como também o
slogan “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”.
1791
Bukman, um padre vodu, convocou os escravizados africanos no Haiti a se revoltarem usando tambores vodu.
1794
A França aboliu a escravidão.
1803
A aquisição de Louisiana. Napoleão recebeu 15 milhões
para a venda do vasto território de Louisiana, que dobrou
o tamanho dos Estados Unidos.
A Revolução Haitiana estabeleceu a primeira república negra independente
no Novo Mundo em 1804. Toussaint’t L’Ouverture foi o líder militar da revolução. O nome do avô de Toussaint’t era Gao-Genu. È possível que ele tenha
vindo de Gao (Mali), a capital do império Songai? Seu nome significa “Gao-Demônio” na língua Sonay. Gao-Genu é também uma alteração comum de
Gunu ou Gounou, a ramificação Songance da população de Songai.
1804Napoleão se declarou imperador; ele estabeleceu o Primeiro Império Francês e o Código de Justiça Napoleônico; e
ele restabeleceu a escravidão.
1807-1808
A importação de africanos escravizados foi banida na Grã-Bretanha e no Estados Unidos. 16
Linha do tempo com base nos volumes da História Geral da África
1809Napoleão estabeleceu o sistema bacharelado no ensino dos
liceus e reorganizou o sistema de finanças Francês.
Mulheres africanas resistiram à escravidão no continente e nas Américas
por mais de trezentos anos, incluindo: Rainha Nzingha da Angola, que lutou
uma guerra de 30 anos contra portugueses e assinou um acordo em 1656;
Grandy Nanny, uma jamaicana quilombola e gênia em estratégias de guerrilha, que usou a mágica Ashanti para lutar contra os britânicos, mas foi traída
e aceitou um acordo em 1739; Harriet Tubman, que pessoalmente liderou
mais de 300 africanos escravizados nos Estados Unidos para a liberdade na
“Underground Railroad” por volta de 1850; e a Rainha Yaa Asantewa que
lutou com os britânicos em 1900 na guerra de Ashanti.
1833Escravidão foi abolida no Império Britânico
1848Escravidão foi abolida nas colônias francesas.
Revoltas escravas nos Estados Unidos incluíram: Gabriel Prosser, 1800;
Nova Orleans, 1811 e 1854; Guerras Seminole na Flórida, 1817; Dinamarca
Vesey, 1822; Nat Turner , 1831; sedição de Cinque’s L’Amistad mutiny, 1839;
as incursões de John Brown’, 1859...
1858
Os camponeses em Três Zapotes, México acharam uma
enorme cabeça de pedra com traços africanos pronunciados e com o estilo de penteado sete-tranças.
1865A Proclamação da Emancipação eliminou com a escravidão nos estados confederados, que se separaram dos Estados Unidos durante a Guerra Civil, seguida pela 13 º Emenda da constituição dos Estados Unidos.
1884
Depois que a fonte de trabalho escravo acabou, a África foi
dividida pelos países europeus na Conferência de Berlim; a
era da colonização do continente africano começou.
17
brasil/áfrica: histórias cruzadas fundamental ii
Alguns Líderes da Independência Nacional Africana
Kwame Nkrumah, Gana Julius Nyerere, Tanzânia
Modibo Keita, Mali
Mahamane Alassane Haidara, Mali
Amadou Bello, Nigéria
Léopold Sedar Senghor, Senegal
Ben Bellah, Argelia
Sékou Touré, Guinée-Konakry
Patrice Lumumba, Congo Gamel Abdel Nasser, Egito
Sylvanus Olympio, Togo
Gnassingbe Eyadema, Togo
William Tumban, Libéria
F. Houphouet-Boigny, Costa do Marfim
Djibo Bakary, Níger Maurice Yaméogo, Burkina Fasso
Diori Hamani, Níger
Ahmadou Ahidjo, Camarões
Idi Amin, Uganda
Samora Machel, Moçambique
Jomo Kenyatta, Quênia
Robert Mugabe, Zimbábue
Tom Mboya, Quênia
Nelson Mandela, África do Sul
Agostinho Neto, Angola Hastings Kamazu Banda, Malawi
Hassan II, Marrocos
François Tombalbaye, Chad
Nnamdi Azikiwe, Nigéria
J.E Caseley-Hayford, Gana
Attaher Maiga , Mali Mokhtar Ould Daddah, Mauritania
Idrissa Oumarou, Medalha de Ouro, Mali
1960
Só após 100 anos do fim da repressão pós-escravidão e do
início dos movimentos de libertação africanas nas Américas é que a maioria dos países africanos ganhou sua independência da colonização européia, por volta de 1960.
Alguns Grandes Heróis Africanos Antigos
Abraha, Imperador da Etiópia cuja adoção do Cristianismo mudou o mundo.
Abraha Al-Arsham, Imperador do Iêmen e da Etiópia.
Akhenaten, Faraó do Egito e pai do monoteísmo.
18
Linha do tempo com base nos volumes da História Geral da África
Hatshepsut do Egito, a rainha mais capaz da longínqua Antiguidade.
Yusuf I, Sultão da África e vencedor dos Campeões de Cristandade.
Yakub Al-Mansur, Grande Governante Mouro da Espanha.
Abu Asan Ali, “O Sultão Negro” do Marrocos.
Aboubakar II, “Rei do Mar de Mali”.
Sundiata Keita, Fundador do Império Mali.
Mansa Musa, Império de Mali.
Sonni Ali Beer, Fundador do Império Songai.
Askia O Grande, construiu o Império Songai.
Ann Zingha, Rainha de Matamba, Angola.
Osei Tutu, Fundador da Nação Ashanti.
Moshesh, Rei de Basuto, Guerreiro e Estadista.
Chaka, Poderoso Conquistador Zulu.
Cetewayo, Rei Zulu, derrotou um exército britânico.
Shamba Bey Lingongo, Rei Congolense.
Bahazin Hosu Bowelle,“O Rei Tubarão”, Rei-poeta Africano, que derrotou a França do seu Trono
de Ouro.
Samory Touré, “O Napoleão do Sudão”.
Imperador Menelik II da Etiópia, “Rei dos Reis, Eternamente Vitorioso Leão de Judah”, derrotou
a Itália em 1896.
Prempeh do Peitoril de Janela de Ouro, Rei de Ashanti.
Glaoui Pasha, “A Pantera Negra” do Marrocos.
Firhoun Ag Alinsar, herói Touareg da África Oriental.
Babemba, Lutador Contra a Colonização Francesa em Sikasso, Mali.
Haile Selassie, O Destemido Imperador da Etiópia.
Fonte: J.A Rogers (1972).World’s Great Men of Color (Os Maiores Homens de
Cor do Mundo) Volume I. New York: Collier Books.
A Hierarquia e a Administração Organizacional do Império
Songai
19
brasil/áfrica: histórias cruzadas fundamental ii
“Um estudo da maquinaria do Estado de Songai traz
à tona o seu carater moderno. O império herdou uma
tradição de guerra; os Songais não era fazendeiros nem
homens de negócios, mas sim guerreiros. Eles eram valentes, audaciosos e especialistas no desenvolvimento
de estratégias militares”.
S.M Sissoko, UNESCO (p.200)
Na língua Songai:
20
Faari, Sultan, Saa:
Títulos de governadores para diferentes áreas.
Faari Koy, Saa:
Ordem hierárquica de importância.
Amar Kondzago:
Vice-Rei da região de Tindirma.
Asara mundio:
Oficial, o xerife da cidade.
Anfara Kuma:
O tradicional Juiz (antes do islã)
Kan-Faari
Ordem especial para o irmão de Askia.
Gumey-Koy:
Porto, Comandante do Desembarcadouro.
Hii-Koy:
Comandante da Frota Marinha.
Yoobu-Koy:
Comandante dos Comércios.
Beeray-Koy:
Ministro, Chefe do Protocolo.
Barbusi-Mundio:
Chefe encarregado dos árabes berrabish .
Balama:
General do Exército Imperial.
Tara-Farma:
Comandante do Calvário.
Koyrabanda-Mundio: Ministro das Áreas de Fora da Cidade.
Faari-Mundio:
Ministro da Agricultura.
Saajo-Farma:
Ministro das Florestas.
Haari-Farma:
Ministro das Águas e Lagos.
Waaney-Farma:
Comissário para Propriedades.
Linha do tempo com base nos volumes da História Geral da África
Kalisa-Farma:
Ministro das Finanças.
Bana-Farma:
Oficial Responsável pelos Salários.
Day-Farma:
Oficial Responsável pelas Compras.
Tun-Koy, Faran ou Soyra: Status Militar Subordinado.
Koorey-Farma:
Ministro dos Estrangeiros Brancos e de Minorias.
Fonte Adicional: Youssouf Hamidou Miga, especialista na língua Songai, Gao, Mali.
Sonay (Song-hai) é o nome certo e o modo corrente de pronunciar Songhay,
Songhoy, Songhai, Sonrai, Sonrhai – termos relacionados ao povo Songai.
A Sobrevivência Cultural Africana no Novo Mundo
Notas sobre o Povo Sogai
Depois da morte de Sonni Ali Beer, em 1492, o seu sobrinho Askia Mohammed
ou Mamar (Mahamar) destronou Si Baro, o filho de Sonni Ali. Mamar (Askia) não
pode suportar o modo fraco e ineficaz de Si Baro ao tratar dos assuntos do Império.
Uma das tias de Si Baro bradou, “A si kia!” ou “ A si tia!” que significa: “ Ele não
será o Imperador” na língua Songai. Mamar tornou-se o Imperador Askia Muhammad. Quando alguns filhos de Sonni Ali Beer, cujo nome da família é Si–haama
(descendentes de Si), deixaram por bem Gao, eles deixaram o nome da família, Maiga, para os descendentes dos Askias. Movendo-se para leste, os Si-haamas fixaram
novas vilas e construíram novos exércitos, onde hoje é Níger, Burkina Fasso, Nigéria
e Benin. Os Si-haamas são o povo Sonance (Song-yaung-chay) que nunca quiseram
influências mulçumanas em seus assuntos, e eles acreditavam que nunca devem perder o contato com seus ancestrais. Os Sonances são um ramificação do povo Sonay
que é especializados em duas sub-áreas relacionadas:
1. O Sonance Gunu (Gounou) descendentes de Si Baro são especialistas na iniciação de garotas e na circuncisão de garotos. Esses Sonances são guardiões da mítica
faca de ouro.
2. O Sonance Ciria (Vermelho Sonay) descendentes de outros filhos de Sonni Ali
são especialistas em práticas Toru ou Korte (ironicamente chamado de “magia negra”). Ciência também é “magica” para aqueles que não são iniciados e não sabem
21
brasil/áfrica: histórias cruzadas fundamental ii
como ela funciona. Toru ou Korte é uma tecnologia pré-científica para preparar
recursos naturais para a promoção e proteção da saúde (contra cortes de facas ou
espadas, flechas ou balas, por exemplo). Ao invés de equipamentos eletrônicos os
Sonances Ciria usavam materiais orgânicos: jogavam búzios, gravetos e desenhavam
na areia para as divindades.Entretanto, os grandes mestres desta arte não precisam de tais equipamentos para prever o futuro.
Por último, o povo Sonance é os africanos que sabiam como voar. De fato, diziam
que eles voavam, sobretudo, à noite e perpendicular ao chão sem fogo ou luz atrás
deles.
Fonte: Adam Konaré Ba, Sonni Ali Ber, Niamey, Níger: L’Institut de Recherches
em Sciences Humaines, 1977 (pp 150-151). Traduzido do francês por Hassime
Maiga. Ph.D.
Ps: Além de Mali, a língua Songai também é falada na República Níger (Niamey,
Tilabeeri, Teerã, Ayerou, Gaya); Burkina Fasso (Bobo-Dioulasso, Dori); Benin (Parakou, Kandi); e Gana ( Kumasi, Tokoradi).
“A música, dança, folclore, religião, língua e outras
formas expressivas associada à cultura dos escravos
eram transmitidas oralmente para as gerações subseqüentes de negros americanos”.
-Portia Maultsby (1990).
O Povo Mandingo (Bambara, Malinké, Soninké, Sarakolé) são especialistas no cultivo de amendoim, quiabo, índigo, algodão. A primeira qualidade
de algodão ainda está sendo plantada e produzida pelos Malianos e tabaco
ainda é cultivado ao norte de Mali em Bamba (Gao). Hoje o ouro é o segundo
produto mais exportado de Mali depois do algodão.
O povo fulani e o povo nômade são os primeiros “cowboys” da África:
Fulanis pastaram gado; Nômades pastoram camelos, ovelhas e gado. Alguns
Fulani que pastoreavam foram trazidos para as Américas.
O povo Sonay-Zerma é especialista no cultivo de arroz, milho moído e
feijão e é conhecido pelos seus temperos e arte culinária.
Palavras africanas que significavam ouro eram usadas nas Américas - Guanin, caona, goanin ou guani. Em alguns grupos de línguas africanas o velho
22
Linha do tempo com base nos volumes da História Geral da África
som g/k foi substituído por s/ze: Kane/Kani (Sarakolé); Kanne (Peul); Sani/
Senni (Bambara) ou Sanu (Malinké).
O direito da mulher de ter uma propriedade e o seu poder no
mercado tem uma origem africana.
Vodu - vem da língua Fon de Benin – que significa “espírito” - é praticado por negros e brancos hoje na América. A língua Songai ainda é falada
hoje ao norte de Benin, que fez parte do Império Songai. A língua Vodu
e símbolos podem ser facilmente reconhecidos nas práticas hollay hooray
do povo Songai-Zerma de Mali e Níger, aonde eles são mais complexos e
profundos.
O “Hollay Hooray” na mitologia Songai é um elemento essencial de seus
estilos de vidas. De acordo com a mitologia Songai, o hollay (espírito) hooray
(dança) é considerado um duplo da pessoa, invisível, mas capaz de se transformar em qualquer coisa. Esse hollay (espírito) pode também encarnar em
um corpo dançante possuído e falar-lhe o que fazer e como fazer. Cada hollay
tem uma personalidade e um cheiro particular e, aqueles que foram iniciados
podem, assim, identificar qual espírito está presente: o hollay do Trovão Paz;
Guerra; Saúde; Cuidado e Fertilidade (e.g., Maternidade), etc.Além disso, a
Duna de Areia Koyma em Gao, Mali, é conhecida tradicionalmente como um
local internacional para práticas espirituais entre os africanos e o resto do
mundo.
O poder de Sonance é personificado por um crânio humano que representa
o ancestral primordial. O espírito ancestral também encarna no touro preto.
Nas áreas Songai um touro preto é sacrificado antes de lutar na guerra. No
Haiti, Boukman, um antigo escravo e um padre vodu, sacrificou um porco
preto em uma cerimônia vodu para sinalizar o começo das revoltas contra os
proprietários de escravos franceses.
A hospitalidade atribuída às pessoas do sul dos E.U.A tem
uma origem africana.
23
brasil/áfrica: histórias cruzadas fundamental ii
O Banjo, criação de ferramenta de fazer, a combustão, a tecnologia para
trabalhar com ferro, a construção de casas, e a culinária nas Américas refletem a influência e a sabedoria africanas.
Milhões de crianças brancas foram criadas ou influenciadas por descendentes
de africanos – incluindo o seu comportamento, música, língua, estilo e sabedoria.
No poema abaixo René Philombe, um poeta nascido em 1930 no Camarões, expressa com grande sensibilidade a universalidade da humanidade.
“O Homem que se Parece com Você”
Por que você me pergunta
se eu sou da África
se eu sou da América
se eu sou da Ásia
se eu sou da Europa?
Abra-se para mim meu irmão!....
Por que você me pergunta
sobre o tamanho do meu nariz
a espessura da minha boca
a cor da minha pele
e os nomes dos meus deuses?
Abra-se para mim irmão!...
Eu não sou o homem negro
eu não sou o homem vermelho
eu não sou o homem amarelo
eu não sou o homem branco
mas eu sou apenas um homem
Abra-se para mim irmão!...
Abra sua porta para mim
Abra seu coração para mim
24
Linha do tempo com base nos volumes da História Geral da África
Porque eu sou um homem
o homem de todos os tempos
o homem de todos os céus
o homem que se parece com você.
Fonte: Petites goutes de chant pour créer I’homme, in Le Monde, 8 février.1973. Traduzido do
francês por Dr.Hassimi Maiga.
Muhehm Books. 2 º . Edition, 1998. ISB 0-9652640. Editado por Dr. Hassimi Oumarou Maiga,
Sênior Researcher. Bureaux d’Etudes et de Recherches Appliqées pou le development en Afrique.
Berada, Gao, Mali (África Oriental).
25
Sumário de conteúdo
1. Os povos africanos: dinâmicas civilizatórias e experiências históricas.
a. A educação tradicional na África: a memória e a palavra
Valores civilizatórios: vida, corpo, socialização, morte, ancestrais e
ancestralidade, família, poder.
2. As sociedades africanas têm história.
a. Diversidade étnica e cultural.
b. Sociedades, movimentos populacionais, religiosos e políticos.
3. Diversidade e encontros religiosos no continente africano.
a.Islamismo
b.Cristianismo
c. Religiosidades africanas
4. Religiosidade de matriz africana no Brasil
a.Irmandades
b. Festas católicas / recriações negras / festas religiosas negras
c. Recriações da religiosidade “tradicional” africana
i. Batuque
brasil/áfrica: histórias cruzadas fundamental ii
ii. Xangô
iii. Umbanda
iv. Caboclos
v. Candomblé
5. Orixás, Inquises e Voduns
a. Nagô / Ketu
b. Bantu / Congo / Angola
c. Mina / Jêje
6. A experiência religiosa afro-brasileira
28
O povoamento do
continente: diversidade
étnica e cultural dos povos
africanos
brasil/áfrica: histórias cruzadas fundamental ii
Sabemos hoje que a humanidade surgiu em terras africanas. Assim, entende-se que esse continente foi responsável pela disseminação de homens e mulheres, saberes e técnicas, desde a época do Paleolítico Inferior (um dos mais
importantes períodos da história da humanidade), ou seja, a mais ou menos
300 mil anos atrás1. Partindo da África, a humanidade povoou os demais continentes através de correntes migratórias diversas. Em tempos posteriores, movimentos
populacionais inversos retornaram ao continente africano e entraram em contato
com os povos que nele permaneceram.
Tendo em vista a nossa origem comum, uma questão curiosa diz respeito às
diferenças de aparência entre os seres humanos. Na longa experiência histórica
da humanidade, a interação de muitos elementos foi responsável por produzir
diferenças nos traços físicos entre os grupos humanos, a diferenciação desses
traços passou a ser gradualmente herdada e transmitida hereditariamente aos
membros de um grupo. Os fatores responsáveis pelas diferenças de aparência
entre os grupos humanos estão essencialmente ligados à adaptação ao meio
ambiente, ou seja, a insolação, a umidade, a cobertura vegetal e a temperatura. Em contato, esses diferentes grupos interagem, inclusive sexualmente, e
permanecem contribuindo para a imensa diversidade humana. Vamos conhecer um pouco da história do povoamento da África e da variedade étnica do
continente.
A África oriental foi habitada por povos do tipo etiopóide, enquanto a
parte sul do continente foi ocupada por grupos san. As florestas tropicais e
equatoriais ocupavam no passado uma área muito maior que a atual, foi ali
provavelmente que os Pigmeus apareceram, constituindo um grupo distinto,
cujo tipo físico desenvolveu-se num meio ambiente de clima extremamente
úmido e virtual ausência de luz. A “raça” negra de tipo conhecido como sudanês ou “congolês” individualizou-se para se adaptar às condições das latitudes
tropicais, principalmente na África ocidental – a região que vai do Saara à
Nigéria meridional teria sido a área original desse grupo.
Na região da Líbia, a população se constituiu bastante heterogênea (afro-mediterrânea), as fontes históricas gregas indicam a presença de “etíopes”
1
30
Apesar de os vestígios mais antigos do gênero humano poder ser encontrado em diversos continentes
(África, América, Europa e Ásia), apenas na África é possível encontrar indícios de todas as fases da hominização, ou seja, apenas neste continente foi possível reconstituir os cerca de 70 milhões de anos da longa
evolução que levou dos primeiros primatas ao Homo sapiens.
O povoamento do continente: diversidade étnica e cultural dos povos africanos
de pele clara e outros de pele mais escura no sul. A composição étnica da população do vale do Nilo também parece ter sido complexa. O dessecamento
do Saara fez com que os povos da região procurassem a umidade do vale, o
que levou grupos etiopóides e afro-mediterrânicos misturarem-se a negros do
tipo sudanês. O mesmo tipo de miscigenação provavelmente ocorreu, pelas
mesmas razões, em todas as bacias fluviais e às margens dos lagos vizinhos ao
deserto: Baixo Senegal, Médio Níger e Chade.
Como regra geral, sem dúvida enfraquecida por numerosas exceções, os
antropólogos supõem que o africano da floresta tinha estatura baixa e pele
clara, enquanto o africano da savana e do Sahel seria esguio e de pele escura.
Todavia, o movimento da história não pode ser desprezado e nele se apresentam numerosas migrações e diversas interações entre os grupos humanos.
O caso dos Pigmeus e dos San merece observações mais detalhadas. No
passado, presumia-se existir uma identidade racial entre os Pigmeus da África
e os da Ásia meridional. Atualmente essa teoria parece ter sido rejeitada. Tudo
leva a crer que se trata do resultado de uma adaptação muito antiga de certo
tipo físico ao meio ambiente e que esse processo ocorreu durante um longo
período de isolamento. Atualmente, os Pigmeus podem ser encontrados nas
florestas do Camarões, no Gabão e em algumas regiões da República Centro-Africana, da República Democrática do Congo e em Ruanda. No passado,
ocuparam provavelmente uma área muito maior. Os Pigmeus da floresta equatorial e tropical foram aos poucos cedendo lugar a novas populações, constituídas de indivíduos mais altos e que falavam línguas bantu. Assim, pode-se
concluir que os grupos isolados de Pigmeus que subsistem atualmente são os
testemunhos de uma população mais extensa, que ocupava as florestas tropicais e equatoriais da África.
Por sua vez, os San constituem outro importante grupo do continente africano. São de pequena estatura, têm a pele amarelada ou acobreada e cabelo
em pequenos tufos. San deriva da raiz sa, que significa “acumular, colher frutos, arrancar raízes da terra, capturar pequenos animais”, os San eram povos
nômades que viviam da caça e da coleta. Os San constituem, com certeza, os
remanescentes do povoamento original do extremo sul do continente africano. Atualmente, estão confinados às regiões inóspitas e áridas da Namíbia e
do Calaari, alguns grupos isolados podem ser encontrados em Angola. No
passado, eles habitavam as savanas da África meridional e oriental até os
31
brasil/áfrica: histórias cruzadas fundamental ii
limites do Quênia, como testemunham os nomes de lugares e dos cursos de
água dessas regiões, sendo os nomes locais de rios e montanhas emprestados
das línguas san.
De qualquer modo, a mais antiga população da África meridional não deve
ser restringida aos Pigmeus nas florestas e aos San nas savanas. Ao lado destes,
outros povos existiram. Em Angola, sabe-se da existência dos Kwadi, que pela
língua e pelo gênero de vida se aproxima muito dos San. Os Otavi, remanescentes de grupos muito antigos, têm estatura pequena e vivem da caça e da
coleta, distinguindo-se dos San pela tez muito escura e lábios grossos. Autodenominam-se Nu-khoin, isto é, “homens negros”, em oposição aos Khoi-Khoi,
a quem chamavam “homens vermelhos”. Grupos como esses subsistem em
outras regiões do continente e ajudam a esclarecer a história tão complexa do
povoamento original das florestas e savanas da África central e meridional.
Outro exemplo que merece destaque se refere aos povos de línguas bantu.
O princípio da dispersão desse grupo pelo continente africano provavelmente
aconteceu no inicio da era cristã. Evidencias lingüística indicam a presença de
um núcleo original desses povos numa área correspondente à Nigéria oriental
e aos Camarões, com o vale do Benué como eixo. Tendo os povos do Saara
procurado ao longo dos rios e dos lagos da savana zonas propícias para a sua
vida agro-pastoril, teriam aí desenvolvido as técnicas do ferro e os recursos de
sobrevivência de tal maneira que gerou o crescimento da população, provocando o processo de migração para o sul.
Beneficiando-se da superioridade técnica conferida pelas armas e utensílios
de ferro, os povos Bantu dominaram facilmente as populações autóctones
compostas, entre outros, dos povos Khoi-Khoi, Nu-khoin, San e Pigmeus.
Todavia, essa dispersão ocorreu de forma muito lenta, mobilizando pequenos
grupos, que foram vivenciando fenômenos de empréstimos e trocas culturais
com outros povos. Hoje, a grande maioria das populações ocupantes da terça porção meridional do continente africano, da fronteira marítima nigero-cameruniana, no oeste, até o litoral fronteiriço somálio-queniano, no leste, e
a partir deste ponto até as proximidades de Port-Elizabeth, no sul, fala línguas
estreitamente aparentadas, denominadas línguas bantu. Esta família de línguas abrange mais de quatrocentos variantes.
Durante um longo período, os antigos grupos étnicos se multiplicaram,
migraram e se cruzaram, constituindo a imensa diversidade humana africa-
32
O povoamento do continente: diversidade étnica e cultural dos povos africanos
na. A essa enorme variedade humana corresponde uma não menos complexa
diversidade lingüística. Na África antiga é possível distinguir quatro grandes
famílias, todas elas possuem uma origem e uma história no interior do continente africano:
Classificação das línguas africanas segundo J. H. Greenberg (1963)* 2
Famílias
Nigero-cordofaniano
Principais divisões
Exemplos
Ocidente atlântico
Mandê
Diula, Peul, Temme
Voltaico
Kwa
Bantu
Adamaua oriental
Dogon, Mossi, Talensi
Akã, Ioruba, Ibo, Igala, Bini
Nilo-saariano
Sudanês
Saariano
Songai
Acholi, Shiluk, Mangbetu, Jie
Zanuri, Zaghawa, Teda
Khoisã
Khoisã
Sandawe
Hadza
Nama, Kung, Khomani
Afro-asiático2
Semítico
Berbere
Kushítico
Chádico
Árabe, Amárico
Berbere, Tamachek
(Tuaregue)
Somali, Galla, Afur, Bedja,
Sidamo
Haussa, Fali
Mbaka, Zande
*Fonte: M’BOKOLO, Elikia. África negra: história e civilizações. Salvador: EDUFBA; São Paulo:
Casa das Áfricas, 2009, p.72.
A África do Norte, incluindo a Mauritânia e a Etiópia, pertence à vasta
área das línguas impropriamente denominadas “afro-asiáticas”. As savanas
da África oriental foram, sem dúvida, a primeira região do continente a ser
povoada. Hoje são habitadas por negros de língua bantu, que dividem a região
2
As línguas pertencentes à família designada “afro-asiática”, excetuando-se o árabe, possuem origem e história africana.
33
brasil/áfrica: histórias cruzadas fundamental ii
com povos de língua kushítica ou pertencentes a outros grupos. No extremo
sul do continente e nordeste, encontram-se as línguas Khoisã. Entre o norte e
o sul do continente, intercala-se o vasto domínio das línguas nigero-cordofaniana e nilo-saarianas. Como podemos ver, a composição étnica e lingüística
da África é tão complexa quanto o povoamento gradual do continente por
diferentes grupos humanos.
Valores civilizatórios africanos: o poder da memória
Apesar do estudo da história africana recomendar atenção as particularidades de cada povo, não é tarefa impossível identificar certo fundo cultural
comum a um grande número de sociedades. Alguns valores civilizatórios nos
oferecem pistas sobre as formas como essas sociedades interpretavam a realidade e organizavam seus modos de ser, pensar e agir. Podemos destacar, por
exemplo, a experiência simbólica de povos da África abaixo do Saara, mas
especificamente de uma vasta região que compreende o Saara, o Sahel e uma
considerável porção central e meridional do continente.
Essas sociedades apresentam diferenças étnicas, lingüísticas e variadas formas de organização social e política, tendo em vista que umas constituem
sociedades com a presença do Estado, enquanto outras não construíram organização estatal. Por outro lado, no seu conjunto eram civilizações agrárias ou
agro-pastoris, apresentando expressivas diferenças no domínio das técnicas.
Vamos observar algumas generalidades desses povos que abarcam um considerável número de sociedades, ao tempo em que seguiremos o domínio da
religião e suas relações estruturais com a civilização africana.
As formas religiosas africanas oferecem modelos míticos, ancestrais e metafísicos sobre os quais devem se moldar as condutas dos indivíduos. A relação
com a natureza e a maneira de lidar com a terra, a arquitetura das casas, os
passos de dança, os gestos e as palavras, o sistema de parentesco e a organização política e administrativa carregam a experiência do sagrado.
A força vital
A força vital é a energia natural inseparável dos seres, o impulso do universo individualizado e refletido como consciência. Essa energia tem origem
34
O povoamento do continente: diversidade étnica e cultural dos povos africanos
divina e participa das práticas históricas, por isso, muito frequentemente sua
manifestação é sacralizada. É um atributo dos seres de todos os reinos – animal, vegetal e mineral – e se por um lado estabelecem individualizações e hierarquias, povoando a natureza de forças ligadas aos seus diversos domínios
(águas, pedras e matas), por outro lado colocam natureza, homem e sociedade
em constante necessidade de comunicação e troca. Essa energia deve está presente nos diversos aspectos da vida individual dos seres, portanto, também é
formadora da organização de suas sociedades.
Para os povos Ioruba, a força vital é traduzida na palavra àse, expressão
bem conhecida nos templos da religiosidade de matriz africana no Brasil e que
se refere ao conteúdo mais precioso de um Terreiro de Candomblé: o Axé. A
antropóloga Juana Elbein nos ajuda a entender o àse para os povos Ioruba:
(...) É a força que assegura a existência dinâmica, que permite o acontecer e o devir.
Sem àse, a existência estaria paralisada, desprovida de toda possibilidade de realização.
É o princípio que torna possível o processo
vital. Como toda força, o àse é transmissível;
é conduzido por meios materiais e simbólicos e acumulável. (...) Segundo Maupoli este
termo “designa, em Nagô, a força invisível, a
força mágico-sagrada de toda divindade, de
todo ser animado, de toda coisa”.
SANTOS, Juana Elbein dos. Os nagô e a morte. 9.ª
Edição. Petrópolis: Vozes, 1998, p.39.
Os africanos reconhecem e buscam os meios de representar a força vital do
fogo, das pedras, dos rios, riachos, cachoeiras e mares, das árvores, florestas e
animais. Dessa maneira, experimentam a força da natureza através do sagrado traduzido em narrativas e contatos com as folhas, caminhos e encruzilhadas, com as águas mansas e agitadas, as brisas e tempestades, o sol, o luar, a
lama e arco-íris. História e experiência, passado e presente.
35
brasil/áfrica: histórias cruzadas fundamental ii
A palavra
A palavra está intimamente ligada à noção de força vital e por isso é constitutiva do indivíduo e deve ser usada cuidadosamente, pois, uma vez emitida
retorna a natureza desencadeando ações e energias. Enunciada para atingir
determinado fim, interfere na realidade e provoca reações nem sempre controláveis. Ouvidas e interiorizadas, as palavras são percebidas como sementes
capazes de criar e desencadear acontecimentos. Está relacionada aos diferentes conhecimentos e suas formas de transmissão, também acompanha as ações
humanas buscando estabelecer ligações entre as energias do universo. Pertence ao domínio da política, da espiritualidade, das técnicas e das artes. Sua
condição essencial é revelada pela sua origem divina, transmitindo vitalidade
e desvendando as interdependências existentes no mundo visível e também
entre este mundo e o invisível.
Merece nossa atenção o que diz o sociólogo Roger Bastide acerca da palavra na civilização africana e as diferenças em relação à civilização ocidental:
(...) o Ocidente substitui cada vez mais, e sobretudo
a partir de Descartes, a ordem mítica por uma ordem
artificial mais ou menos fabricada pelos matemáticos
ou gramáticos, enquanto a África continua a conservar
nas palavras seus valores subjetivos, coletivos e culturais. O africano vê em tudo que percebe através dos
seus sentidos coisa diversa do que ele vê – descobre o
Outro, isto é, o sagrado, através dos minerais, vegetais
ou animais. Não é a palavra do homem que significa e
circunscreve os objetos; são os objetos ou coisas, que
são palavras, para o africano. Para nós, ao contrário,
o mundo não é mais que uma língua bem feita, por
ser obra humana e não mais palavras originadas nas
coisas; um conjunto de sinais ligados por regras fixas.
BASTIDE, Roger. Religiões africanas e estruturas de
civilização. Revista Afro-Ásia n.º 6-7, pp. 5-16, 1968.
36
O povoamento do continente: diversidade étnica e cultural dos povos africanos
Assim, percebemos com mais nitidez a importância da palavra em muitas
sociedades africanas, uma vez que proferi-las significa mais do que ordenar
sinais para compor o sentido de algo que expressamos, significa lançar em
movimento a própria natureza das coisas.
Os homens e as mulheres
Seriam constituídos de três elementos vitais: o corpo, o princípio de animalidade e espiritualidade, e o princípio de imortalidade. O corpo é a manifestação visível da existência humana, dividido em complexos externos e internos,
sendo ao mesmo tempo uma unidade em intensa comunicação. A parte externa é notada através da aparência, dos movimentos, da força que interfere nos
espaços naturais e cria espaços sociais. A parte interna são os órgãos ligados à
noção de vida física e impactados pelas maneiras de experimentar sentimentos
e emoções. O corpo também se constitui em referencial histórico, sendo assim
elemento de individualização, de trabalho e de reprodução social.
O princípio vital de animalidade e espiritualidade é geralmente identificado
com a energia divina que anima os corpos, por isso é capaz de revelar a vitalidade física e espiritual do corpo como manifestação de uma mesma realidade.
Esse princípio se revela catalisador e distribuidor das forças que atuam no
universo, daí que a sua ausência no corpo implica em fragilidade física, espiritual e morte.
Por fim, o princípio de imortalidade manifesta-se nas qualidades morais
e intelectuais dos indivíduos, por isso estabelece uma identidade social e histórica para o ser humano e, em certa medida, configura o seu destino. Esse
princípio liga-se a memória das sociedades, uma vez que o fim da existência
visível não significa o fim da experiência histórica, podendo o morto retornar
em recém-nascidos ou integrar-se no plano dos ancestrais para os quais a comunidade dispensa atenção privilegiada.
A socialização
Os processos de socialização têm por objetivo conformar as mudanças
ocorridas no indivíduo ao longo de sua vida no sentido de orientar a formação de uma personalidade final compatível com os interesses da sociedade
37
brasil/áfrica: histórias cruzadas fundamental ii
de manter e transmitir seus valores fundamentais. Por isso, a formação da
personalidade de um indivíduo é tarefa atribuída a todo o corpo social. Desde
crianças são formados grupos pelo critério de idade, assim, passam por experiências educacionais comuns, formando uma geração que irá se submeter aos
atos iniciáticos que marcam etapas vencidas e definem lugares sociais, valores,
direitos e deveres, estreitamente ligados em razão dos laços de solidariedade
construídos entre os membros dessa geração. Aqueles que não se submeterem
as etapas de socialização estarão condenados a ter uma vida limitada no interior das sociedades, dificultando-se o casamento, o acesso a terras, a utilização
da palavra nos conselhos de família e da comunidade, além de jamais assumirem funções importantes.
A morte
O princípio da imortalidade é fundamental para entendermos a importância
das cerimônias funerárias nessas sociedades. A morte se apresenta como fator
de desequilíbrio social, uma vez que desintegra as energias constitutivas do indivíduo, provocando o fim da figura visível da pessoa e a necessidade de novo
ordenamento dos papéis sociais. O desequilíbrio é ainda maior quando o morto
ocupava posição de destaque no interior do grupo, como chefes de família,
de comunidade ou reis. Nesse sentido, as cerimônias funerárias servem para
restabelecer o equilíbrio, funcionando como ritos de passagem (vida – morte)
e permanência (morte – ancestralidade). Dessa maneira, a sociedade controla a
desordem provocada pela morte e oferece continuidade à vida através da elaboração do ancestral que permanece numa relação vital com o grupo.
Os ancestrais e a ancestralidade
Os ancestrais existem não somente como força com a qual a comunidade
deseja se relacionar, mas, fundamentalmente, como princípio histórico capaz
de contribuir para a identidade profunda do grupo, ajudando a organizar e
a orientar as ações sociais. Todas as práticas sociais, umas mais que outras,
revestem-se de uma dimensão ancestral. É assim em relação às divindades e a
criação; também no que se refere à natureza, o homem e a sociedade; ao espaço, tempo e conhecimento; à família, comunidade, produção e trabalho; bem
38
O povoamento do continente: diversidade étnica e cultural dos povos africanos
como a educação e a legitimação do poder. A dimensão ancestral acaba por
definir as linhas gerais que regulam a estrutura e dinâmica dessas sociedades.
O campo da ancestralidade é constituído dos ancestrais nascidos dos homens
e mulheres, das divindades e também da energia criadora primordial. Esses
seres de diferentes substâncias ajudam a explicar o mundo e a organizar a realidade. Muito do que se chama equivocadamente de “tradicional” nas sociedades africanas se refere à dimensão ancestral, que de forma dinâmica segue
organizando no tempo e no espaço práticas sociais específicas sem prejuízo da
coesão e dos valores sociais.
A família
Nas sociedades agrárias predominam a família extensa, constituída por
grande número de indivíduos ligados por laços de parentesco. Nas formações
sociais matrilineares a mulher é a fonte de legitimação das descendências,
constituindo-se no núcleo fundamental da família, que tem sua base nas ancestrais femininas que lhe deu origem. Dessa maneira, mesmo a sucessão de
reis acontece por laços de ascendência materna, uma vez que a idéia básica
subjacente às sociedades de organização matrilinear é que nenhum homem
pode atestar a paternidade de um filho, enquanto a maternidade é incontestável e faz prosseguir a linhagem para fins institucionais.
O parentesco extenso compreende, além dos descendentes de ancestrais femininas comuns, pessoas de outras descendências, os descendentes de cativos agregados e até indivíduos pertencentes a outros grupos étnicos. A constituição familiar principal compreende o patriarca-chefe, sua esposa ou esposas e filhos, seus
irmãos e respectivas esposa(s) e filhos, suas irmãs, tias e sobrinhas solteiras ou viúvas e respectivos filhos. Já as famílias conjugais compreendem o esposo, esposa(s)
e filhos. No seu conjunto, formam uma comunidade familiar que divide o espaço
físico para as diferentes práticas sociais, especialmente às produtivas, constituindo aparatos materiais, políticos e jurídicos para administrar esse espaço.
A produção
A produção se realiza em caráter comunitário e visa atender às necessidades vitais e específicas do grupo. A terra tem caráter sagrado, não poden-
39
brasil/áfrica: histórias cruzadas fundamental ii
do qualquer homem ou mulher dela se apropriar. No entanto, todos podem
ocupá-la e utilizá-la seguindo regras ancestrais. Os fundadores dos núcleos familiares têm importância significativa na relação da comunidade com a terra,
pois foram eles que realizaram os rituais que sacralizaram essa relação, bem
como, foram eles que estabeleceram os acordos familiares que organizaram e
regulamentaram a ocupação, a produção e até mesmo a cessão de parcelas da
terra, sem que ocorra com isso a apropriação do solo por terceiros.
Os instrumentos de trabalho também são sagrados, uma vez que tirados
da terra e processados em fornos permitem sua utilização na produção. As
ferramentas atendem as necessidades sociais vitais da comunidade e não visam criar necessidades artificiais que concebam a evolução instrumental como
condição de bem-estar para os indivíduos. O trabalho é uma ação comunitária. Os jovens que ainda não completaram seus processos de socialização
dedicam-se integralmente ao trabalho comunitário. Os mutirões são comuns
e estabelecem relações de solidariedade. Os mais jovens devem trabalhar mais
que os mais velhos e as atividades são organizadas de maneira que, ao terminarem seus afazeres, os mais jovens possam ajudar os mais velhos a concluírem o trabalho. Idosos sem condição de segurar ou manipular a enxada
têm o direito de não mais trabalhar e seus mantimentos são garantidos pela
comunidade até a sua morte.
O poder
As unidades de produção ocupam papéis centrais no jogo do poder nas
comunidades onde não existe organização estatal. Essas unidades produtivas
são formadas pelas famílias que ocuparam a terra e estabeleceram com o chão
e com as outras famílias acordos sagrados, que definem as regras de ocupação, uso e cessão do solo. Portanto, o exercício do poder nessas sociedades
é bastante difuso, tornando-se ainda mais disseminado quando colocado em
relação à sociedade global, formada por todos os grupos formadores do mesmo complexo cultural.
Nas sociedades com Estado o poder se centraliza e se manifesta na figura
do Rei, que representa o conjunto das unidades de produção e cada grupo
formador de um determinado complexo cultural. No entanto, o rei não exerce
sozinho o poder. Assim como nas sociedades sem a presença do Estado, o jogo
40
O povoamento do continente: diversidade étnica e cultural dos povos africanos
se compõe pela participação de outros integrantes, como: conselhos de família
e de comunidade, chefias de família, indivíduos considerados “notáveis” imbuídos de encargos ancestrais, e também os iniciados para exercerem funções
políticas. Entretanto, o Rei exerce uma interferência decisiva, especialmente
na defesa da unidade política e na administração do território.
Nas sociedades matrilineares, ao conselho das mulheres (descendentes de
ancestrais femininas comuns) cabe indicar os nomes daqueles que podem legitimamente pretender acesso aos cargos da sociedade, incluindo-se aí o cargo
de Rei, respeitando-se evidentemente as outras leis de sucessão. No entanto,
essas sociedades são patriarcais. São os homens que ocupam os postos de chefia e mando, sendo responsáveis pela terra, pela família, pela ordem social e
comunicação com os ancestrais, além de dirigir e executar os atos fundamentais do culto aos ancestrais.
***
Os padrões civilizatórios aqui demonstrados fazem parte do universo simbólico de várias sociedades africanas. Respeitadas as devidas nuances e particularidades, esses arquétipos podem ser encontrados não apenas em comunidades rurais, mas também nos centros urbanos. E não obstante às ações
desestabilizadoras e os processos cruéis aos quais essas sociedades foram submetidas, elas sentiram, assimilaram e transformaram as desastrosas experiências coloniais em fases de sua história e não na totalidade de suas realidades.
Esse universo simbólico também fazia parte das formas de sentir, pensar e agir
de diversos grupos étnicos trazidos para o Brasil e foi a base sobre a qual os
afro-brasileiros construíram sua experiência histórica e cultural.
Os povos africanos: dinâmicas civilizatórias e
experiências históricas
Desde os tempos mais remotos da história da humanidade o continente
africano se apresenta como um espaço notavelmente aberto, onde surgiram
sociedades vigorosas e dinâmicas. Hoje, com base no trabalho de especialistas
de diversas áreas (especialmente paleontólogos), admite-se que a humanidade
surgiu neste continente, assim como, também ali se constituíram os primeiros
Estados politicamente organizados da experiência humana.
41
brasil/áfrica: histórias cruzadas fundamental ii
Estas evoluções muito antigas desfazem fortes preconceitos a respeito da
África. O mais perverso dentre eles apresenta o continente fechado e isolado,
cercado por barreiras naturais quase impossíveis de serem atravessadas, como
o deserto do Saara e os oceanos. A principal conseqüência desse preconceito
é a difusão da idéia de que a África não contribuiu para a história da humanidade, ou pior, que o continente africano nem mesmo teria produzido algo
de interesse, sendo um espaço mal povoado por “tribos” fechadas, isoladas
e sem história, tendo apenas muito recentemente, a partir do contato com os
europeus, começado a ter importância para a humanidade.
Ao contrário dessas idéias preconceituosas, sabe-se que a África estabeleceu relações intensas e contínuas com outras partes do mundo. Não são
poucos os registros que atestam relações muito antigas entre o continente africano e o mundo mediterrâneo, bem como com a Assíria e a Pérsia. Todavia,
a respeito dessas relações, insistiu-se na idéia de que gregos e romanos teriam
difundido seus modelos sóciopolíticos, culturais e técnicos para Cartago, o
Egito e o “resto da África”, regiões vistas como bárbaras e passivas diante das
influências do mundo mediterrâneo.
O que não era dito é que em qualquer relação entre duas ou mais regiões,
entre duas ou mais sociedades, as influências jamais terão um sentido único,
ou seja, a África e o mundo mediterrâneo participaram de um jogo de trocas
materiais e simbólicas. Assim, permutaram-se produtos, curiosidades, técnicas, idéias e crenças. Grupos humanos deslocavam-se nessas relações, disputas
militares aconteciam e hegemonias políticas se estabeleciam, bem como relações econômicas baseadas em interesses mútuos.
Essas relações foram duradouras, cada vez mais organizadas e voltadas
para os mais diversos interesses (estéticos, religiosos, econômicos, políticos
e simbólicos). Eram trocados produtos raros e artigos de luxo como incenso
e gomas arábicas, essências aromáticas, perfumes e madeiras consideradas
preciosas; produtos resultantes da caça como marfim, peles, cascos, plumas e
chifres; produtos resultantes da coleta como diversos óleos; objetos e seres que
despertavam curiosidades, como macacos, panteras, elefantes, rinocerontes; e
escravos, muito embora não fosse a África a monopolizadora no oferecimento
da mercadoria humana às sociedades da bacia do Mediterrâneo.
As relações comerciais ocorriam de diferentes maneiras e ocupavam regiões diversas. Podiam acontecer diretamente, saindo dos produtores através
42
O povoamento do continente: diversidade étnica e cultural dos povos africanos
de redes de comércio até chegar aos consumidores, ou passavam por vários
intermediários entre as zonas de produção e os lugares de consumo (trocas
por escala). O vale do rio Nilo, o mar Vermelho e as rotas através do Saara
se constituíam nos eixos que ligavam as diferentes regiões do continente ao
mundo mediterrâneo.
O vale do rio Nilo ofereceu desde tempos muitos distantes via natural de
passagem e trocas por escalas entre a região mediterrânea do continente e as
regiões ao sul, a ponto de vestígios arqueológicos testemunharem parentescos
íntimos entre as diferentes regiões do vale. No Saara é possível identificar redes de trocas desde pelo menos o primeiro milênio a.C., as chamadas “estradas dos carros”. A denominação se deve ao meio pelo qual o comércio era realizado, através de “carros” puxados por bois nas trocas locais e por cavalos
nas trocas de longa distância3. Já as relações da África com os povos asiáticos
e com os povos mediterrâneos através do mar Vermelho desenvolveram-se a
partir do II milênio a.C., inicialmente essas trocas se realizaram por escalas
nas quais os intermediários tinham papel fundamental (inclusive na difusão
de fábulas que visavam desencorajar o envolvimento ativo dos egípcios neste
comércio), com o tempo se estabeleceram redes de intensas trocas pelo mar.
Portanto, o continente africano foi e é palco de uma longa experiência histórica da humanidade. Aberto tanto para oferecer contribuições para os diversos
povos estrangeiros, quanto para absorver influências de outras sociedades. A
história da África demonstra que no contato com povos de outros continentes,
as sociedades africanas participaram ativamente de um jogo de trocas materiais
e simbólicas baseadas em interesses mútuos. Esse jogo incluía acordos diversos
e competições econômicas e às vezes disputas militares, provocando rivalidades
que podiam ser acompanhadas de perdas graves para um ou ambos os lados.
A antiguidade das sociedades africanas: movimentos
comerciais, religiosos e políticos
O continente que abrigou o surgimento da humanidade também foi palco
das primeiras sociedades politicamente organizadas. Tornou-se habitual a re-
3 Os camelos, até o início da nossa era, foram raros na África do norte, contudo sua utilização rapidamente
se generalizou a partir dos séculos III-IV.
43
brasil/áfrica: histórias cruzadas fundamental ii
ferência ao Egito para tratar desse tema, no entanto, a civilização faraônica é
o testemunho de um vasto domínio de vida africana, onde homens e mulheres
foram aos poucos conhecendo as terras, familiarizando-se com a vegetação e
passando a domesticá-la, assim como ao gado de grande porte, ovinos e caprinos, aprimorando saberes e técnicas, organizando-se socialmente de maneira
cada vez mais complexa. Evidências arqueológicas indicam a emergência do
Estado de Kush no IV milênio antes da nossa era, portanto, contemporâneo à
primeira dinastia dos faraós.
O Egito e o reino de Kush, localizado ao sul das terras egípcias, entre a primeira e a segunda catarata do rio Nilo, mantinham intensas relações comercias e importantes trocas simbólicas. Produtos raros e preciosos circulavam
entre os dois Estados: do Egito em direção a Kush seguiam utensílios de cobre
e diversos produtos artesanais, na trajetória inversa partiam marfim, óleos,
penas, incenso, gomas, madeira, ovos, peles variadas e recursos minerais, como hematitas, turquesas, ametistas, diorito e especialmente o ouro do vale
do Nilo. Além disso, as terras da Núbia funcionavam como entreposto para
as mercadorias que vinham de mais longe ao sul do continente (na região da
atual Uganda e da República Democrática do Congo). Tantas riquezas justificavam intenções expansionistas dos faraós egípcios, como a expedição militar
dirigida por Esneferu, o fundador da IV dinastia, que ficou conhecido por ter
levado do “país dos núbios” 7 mil prisioneiros e 200 mil cabeças de gado.
Kerma provavelmente era a capital do reino de Kush, embora Napata e
Meroé tenham se configurado importantes centros urbanos e comerciais. Os
chefes acumulavam funções religiosas, políticas, judiciárias, militares e comerciais. O Estado contava também com uma corte composta pelo rei e príncipes
de uma mesma dinastia. O rei, além de dirigir as relações comerciais, detinha
poderes políticos, militares e sobrenaturais, como a capacidade de regular as
chuvas, controlar as águas do rio, assegurar a fertilidade do solo, do gado e
dos homens. As insígnias reais demonstravam a distinção da corte em relação
aos demais membros da sociedade – machados, barras de cobre, placas de
ouro, peças de quartzo e mica, indicavam riqueza e poder superiores. É interessante notar que muitas características da realeza de Kush são semelhantes
às da nobreza egípcia, evidência de que o contato entre os dois Estados ia além
das relações comerciais.
44
O povoamento do continente: diversidade étnica e cultural dos povos africanos
No âmbito dessas intensas relações, autonomias políticas foram colocadas
em disputa e no século XVI a.C. Kush foi submetido ao Egito. O controle do
Estado passou às mãos de funcionários nomeados pelo faraó, que também foi
hábil ao instalar uma administração indireta através de alianças com os chefes
locais para exercer o poder e dividir suas benesses. Uma das estratégias utilizadas pelos faraós ficou conhecida como “a política de reféns”, esta obrigava
os chefes locais a enviar os seus filhos para serem educados na corte egípcia,
buscando conquistar além das terras os corações e mentes dos lideres de Kush.
Os impactos desse processo foram tão profundos que mais ou menos no ano
de 750 a.C. os kushíticos tomaram o poder no Egito e fundaram a XXV dinastia, conhecida como “dinastia etíope” ou “sudanesa”. A unificação efetiva
do reino (Egito e Kush) foi obra de Shabaka proclamado rei por volta de 710
a.C., sob autoridade exclusiva dos kushíticos e com capital em Napata. Todavia, a hegemonia política kushítica sob o Egito seria encerrada pela invasão
assíria e a tomada de Tebas pelas tropas de Assurbanipal no ano de 663 antes
da nossa era.
A partir do século VI a.C., os persas tentaram dominar militarmente as terras da Núbia, o que ocasionou a transferência da capital do Império de Kush
para Meroé, a jusante da sexta catarata do Nilo. É preciso dizer que esta mudança atendia bem mais que a objetivos estratégicos de defesa, uma vez que as
possibilidades de crescimento do Império a partir de Meroé eram muito grandes, tendo em vista as condições climáticas, o abastecimento de víveres do sul
e a excelente posição geográfica que fazia de Meroé entreposto obrigatório do
comércio regional e internacional. A distância não desencorajou totalmente os
persas, que logo após a conquista do Egito por Cambises em 525 a.C. enviou
espiões para sondar a situação de Meroé. Contudo, Kush apenas conheceu a
ruína sob os efeitos de uma desestruturação interna do Estado e sob as investidas do reino de Axum4.
Do ponto de vista da organização política, o soberano de Meroé era designado através de uma eleição. A escolha era realizada pelos chefes militares e
4
A emergência do reino de Axum (que se tornará mais tarde o Império da Etiópia), entre os séculos I e III
está relacionada às evoluções do comércio internacional através do mar vermelho. O reino experimentou o
período de maior prosperidade entre os séculos III e VI, quando controlava com o estreito de Bab el-Mandeb
uma das três encruzilhadas comerciais mais importantes do mundo antigo (com os estreitos de Málaca e de
Gibraltar) e impunha-se como intermediário obrigatório nas trocas entre os países do Mediterrâneo por um
lado e, pelo outro, os países da Ásia oriental e da Azânia.
45
brasil/áfrica: histórias cruzadas fundamental ii
por aqueles que ocupavam posições importantes na sociedade, tendo prioridade na sucessão os irmãos do rei falecido em detrimento da geração seguinte.
A filiação tinha ascendência matrilinear e as rainhas e princesas ocupavam
posição fundamental no sistema monárquico. Essas mulheres ficaram conhecidas pelo nome “Candaces” (rainha mãe). Inicialmente tinham como papel a
educação dos príncipes, além de participarem na escolha do rei e na cerimônia
de coroamento. Entre o século II a.C. e o século I da nossa era, essas mulheres
assumiram o poder em Meroé, tais como Shanakdakhete, Amanitêrê e Amanichakêtê, a famosa “Candace” que opôs vigorosa resistência à expedição
punitiva do general romano Petrônius em 23 a.C..
A realeza era sagrada e o soberano representava a integridade do reino,
sendo a beleza física do rei ou suas qualidades morais assimiladas à prosperidade e a glória do Estado. Por isso, os sacerdotes também eram muito importantes no funcionamento da sociedade, uma vez que eram responsáveis pelas
cerimônias rituais que atualizavam a coroação do rei, destinando-se a rejuvenescer o soberano e consequentemente o próprio reino. Os sacerdotes também
dirigiam a cerimônia de execução ritual do rei, recomendada e praticada caso
o reino acumulasse catástrofes e aflições. Todavia, os reis e a aristocracia de
Meroé estavam atentos aos expedientes religiosos que lhes podiam chegar do
estrangeiro se lhes parecessem eficazes. Assim aconteceu com as crenças egípcias, gregas e judias, destas últimas, mais tarde, na época da Candace Amanitêrê (20 a.C. a 15 d.C.), florescerá o cristianismo no reino. Muitas dessas
características, referentes à organização política e ao exercício do poder, serão
encontradas em muitos reinos africanos em diferentes momentos da história
do continente.
Encontros religiosos:
O cristianismo e o islamismo no continente africano
A história do cristianismo no continente africano remonta aos primórdios
das práticas religiosas cristãs. Existem relatos sobre a penetração da fé cristã
no Egito desde o século I da nossa era. O Império Romano contribuiu significativamente para a infiltração do cristianismo na África. Tanto no período
de hostilidade com as práticas cristãs (até o século III), que provocava mi-
46
O povoamento do continente: diversidade étnica e cultural dos povos africanos
grações dos religiosos para locais onde pudessem realizar seus cultos, quanto
no período do cristianismo oficial do império (séculos IV, V, VI), aqueles que
desobedecessem as ordens e exigências formais no que se referiam a religião
eram severamente perseguidos.
Não podemos esquecer que o Império Romano exercia forte influência em
praticamente todo o norte da África desde o ano 146 antes da nossa era, quando Cartago foi destruída. Por outro lado, as incursões romanas em direção as
fronteiras meridionais da África do Norte encontraram resistência constante
dos autóctones, que assumiu aspectos não só militares, mas também políticos,
étnicos, sociais e religiosos. Apesar das vitórias romanas, as populações locais
jamais foram totalmente subjugadas. Dessa maneira, a dominação romana
no norte e nas suas fronteiras ao sul não chegou a impedir que as populações
locais manifestassem suas devoções às suas divindades tradicionais. No século
VII, os árabes iriam conquistar a região e acabar com o domínio bizantino.
No Egito, o cristianismo também encontrou uma antiga tradição religiosa
muito bem representada nas expressões artísticas que recobriam as paredes
dos templos de rituais sagrados e imagens de deuses. Essa religiosidade tinha
por finalidade revigorar as forças benéficas do mundo e dos deuses, que estavam sempre em luta pelo equilíbrio, pela ordem e pela paz contra as forças
hostis do cosmo. A ancestralidade era outro elemento importante da religiosidade egípcia. O faraó, por exemplo, como governador soberano do povo,
ordenava que fosse sepultado em sarcófagos de ouro ou de prata, porém, habitava em uma casa de terra. Os faraós viviam com muitos amuletos no corpo
e também se cercavam de símbolos do culto aos animais totens, receavam o
mau olhado e recorriam a fórmulas mágicas para afastar infortúnios e trazer
sorte, bem como realizavam oferendas aos deuses para alcançarem fertilidade
e a plenitude. Dessa maneira, o comportamento religioso do faraó não se distanciava muito das práticas de um chefe de comunidade.
Partindo do Egito, a entrada do cristianismo e mais tarde do islamismo nos
Estados da Núbia é fundamental para entender a expansão dessas religiões na
África, uma vez que a Núbia sempre se configurou uma zona de contatos privilegiada do continente, não apenas entre o norte e o sul, mas também entre
o leste e o oeste. Indícios arqueológicos revelam que a fé cristã teria ganhado
adeptos entre os pobres da Núbia antes mesmo que a imperatriz Teodora de
Bizâncio enviasse a missão encarregada de cristianizar oficialmente a região
47
brasil/áfrica: histórias cruzadas fundamental ii
no século VI. Em 543, a imperatriz enviou a Núbia o padre Juliano com a
missão de batizar os reis segundo o ritual monofisista cristão, todavia, a essa
época, uma significativa parcela do povo já estava seduzida pela nova fé. Também, entre os séculos I e V não foi pequeno o número daqueles que fugiram
do Egito carregando sua fé para Assuã.
Além das fugas dos cristãos em busca de melhores lugares para professar
sua fé, concorriam para a cristianização da região as caravanas de mercadores
que além de produtos e interesses levavam suas crenças religiosas. Também a
diplomacia teve um papel fundamental na difusão das idéias cristãs. Entre os
séculos V e VI, Bizâncio buscou alianças com Axum contra a ameaça persa no
mar Vermelho e, em 524, um tratado formal permitia que Blêmios e Nobatas
(povos da Núbia) participassem de uma expedição bizantina ao Iêmen. Certamente esses contatos, acordos e transações políticas e comerciais favoreciam a
atividade dos sacerdotes cristãos.
No século VI já existia nas margens do Nilo uma igreja para atender à
comunidade cristã pobre e para os soberanos nobatas a conversão ao cristianismo foi um importante ato público. Para a corte nobata, além dos valores
religiosos, o cristianismo passou a representar a possibilidade da adoção de
uma ideologia religiosa capaz de garantir a submissão do povo e, ao mesmo
tempo, abrir-lhes as portas do Egito, onde bispos cristãos residiam desde o
século IV, sendo também lugar onde teriam acesso ao mediterrâneo e a cidade
mais influente da época - Bizâncio. Também no século VI, outro reino núbio
se desenvolveu até o sítio da antiga Meroé, sendo mais tarde chamado de
Makuria e com capital em Dongola.
Ao contrário do reino da Nobadia que adotara a doutrina cristã monofisista, Makuria foi convertida à ortodoxia cristã melquita, entre os anos de 567 e
570, por uma missão enviada pelo imperador Justino II, no entanto, a doutrina ortodoxa prevaleceu em Makuria apenas até o século VII, quando a região
passou a adotar os preceitos monofisistas. Na região da sexta catarata, ao
sul do território núbio, formou-se um terceiro Estado cristão - Alodia, tendo
como capital a cidade de Soba, não muito distante da atual Cartum. Portanto,
ao fim do século VI, temos uma Núbia já cristianizada a partir de três reinos:
Nobadia, ao norte; Makuria, no centro; e Alodia, ao sul.
Os Estados da Núbia, assim como o Egito, não eram colônias do Império
Bizantino, embora houvessem entre eles laços criados pelas missões dos pa-
48
O povoamento do continente: diversidade étnica e cultural dos povos africanos
dres Juliano (mais ou menos no ano 543 d.C.) e Longino (por volta do ano
580 da nossa era). Essas missões tiveram grande influência na organização
dos governos núbios, que foram modelados pela burocracia bizantina. Após a
invasão do Egito pelo Império Persa em 616, as comunicações entre a Núbia e
o Egito (que nessa época já era cristão) foram interrompidas. Também foram
cortados os contatos entre o clero núbio e o patriarcado de Alexandria, oficialmente responsável pela Igreja da Núbia. Em 641, o Egito caía sob o poder
dos Árabes e, durante séculos, a Núbia cristã permaneceu isolada da cultura
mediterrânica. Os árabes, por sua vez, não deram grande importância à conquista da Núbia. Após se estabelecerem no Egito, restringiram-se a impor aos
Estados núbios acordos de não-agressão pelos quais se comprometiam em
reconhecer a soberania desses Estados, liberdade de circulação e de comércio,
independência religiosa, além de prover o território núbio de uma quantidade
razoável de roupas e alimentos em troca de um tributo anual em escravos e
mercadorias da região.
Atribui-se ao rei Merkurios, que subiu ao trono em 697, a unificação da
Núbia, fazendo de Dongola a sua capital. A Mercurios também é conferido
a conversão da Makuria ao monofisismo. A união dos reinos núbios provocou significativo desenvolvimento e centralização política e econômica para a
região. O norte da região teve elevado crescimento populacional, chegando a
alcançar o número de 50.000 pessoas. As enchentes do Nilo e o relativo progresso técnico levavam a um melhor aproveitamento das terras e consequentemente ao aumento da produção do trigo, da aveia, do sorgo e da vinha, bem
como das tamareiras, elevando assim o nível de vida dos indivíduos. Também
o comércio foi estendido até regiões mais distantes. Makuria, por exemplo,
vendia marfim para Bizâncio, além de cobre e ouro para a Etiópia. Caravanas
de mercadores, em camelos ou em barcos a remo, penetravam o interior do
continente até os territórios das atuais Nigéria e Gana.
O rei Kyriakos “o grande”, sucessor de Merkurios, detinha o controle político sob trinta governadores. Os reis da Núbia guardavam enorme semelhança política com os faraós. Além de serem considerados altos sacerdotes e por
isso poderem intervir nos assuntos religiosos, também desempenhavam certas
funções litúrgicas do universo sagrado, como celebrar a missa e administrar
os sacramentos. Até o século IX, a Núbia gozou de um período de prosperi-
49
brasil/áfrica: histórias cruzadas fundamental ii
dade, sem ser muito perturbada pela vizinhança dos mulçumanos, em geral
pacíficos.
A partir do século X, os reinos núbios sofreram maior pressão árabe vinda,
sobretudo, do Egito. Nesse momento, as investidas árabes tinham como objetivo além da garantia dos pagamentos dos tributos a conversão dos Estados da
Núbia ao Islã. As tensões entre o Egito e a Núbia, consequentemente entre o
islamismo e o cristianismo, irão se estender até o século XIV, com expedições
militares organizadas pelas duas partes. As vitórias das tropas egípcias nos séculos XIII e XIV levaram a um substancial aumento nos tributos e também ao
estabelecimento de um controle político efetivo sobre a Núbia, uma vez que
até a designação dos reis passou a depender cada vez mais dos egípcios. Em
1315, o rei escolhido foi um muçulmano – Abdallah Ibn-Sanbu, e a catedral
de Dongola foi transformada em mesquita em 1317.
A dominação política da Núbia pelos árabes era seguida por uma islamização profunda das sociedades do vale do Nilo, daí espraiando-se para o sul, o
leste e o oeste. Desde pelo menos o século X, os árabes já dominavam economicamente a região e também já era numerosa a população convertida à religião
do profeta Maomé. Os comerciantes que, a partir do Egito, desciam ao longo
do vale do Nilo levavam a língua, a cultura árabe, o seu modo de vida e a fé
islâmica. Em algumas regiões, os árabes adotaram as línguas locais e procuraram se incorporar à massa das populações, sem com isso deixar de propagar
o Islã. Em outras áreas, ao contrário, foram os núbios que adotaram a língua
árabe, apropriando-se de nomes e genealogias. Em todo o território, lentamente, o Islã iria se estender sobre as organizações estatais. Todavia, muitos grupos
adotavam o Islã, mas conservavam suas antigas crenças e práticas religiosas.
A áfrica do Oeste
A organização dos Estados conhecidos do oeste do continente africano
transcendia os limites étnicos e lingüísticos dos diversos povos que ocupavam
essa vasta região (serere, wolof, tucolor, barbassin, baink, balanta, sape, bulon, mandinga, bambara, akãs, etc.). As dinastias reinantes se baseavam em
filiações que ultrapassavam os vínculos étnicos e lingüísticos, fazendo com
que os Estados se configurassem por um sistema de alianças locais, acordos
com as sociedades periféricas estrangeiras, clientes e fornecedores.
50
O povoamento do continente: diversidade étnica e cultural dos povos africanos
Os contatos árabes com a região nos remetem ao princípio do século VIII.
Tem-se conhecimento de pelo menos duas comunidades de árabes na região
– a do Kanem e a do reino de Gana. A comunidade do Kanem deve sua formação aos perseguidos do regime dos abássidas, esses fugitivos se instalaram
na região e conservaram os sinais exteriores da sua identidade. Outros árabes
que se instalaram nesse território foram enviados como soldados pelos omíadas contra o reino de Gana, constituíram-se num grupo fechado pela forma
de uma rigorosa endogamia, embora rapidamente tenham abraçado costumes
religiosos das populações vizinhas. Todavia, até o século XIV a presença árabe
nessa região foi em número reduzido, sendo conhecidos como viajantes, comerciantes e letrados muçulmanos. A essa época, também é possível constatar
a presença de judeus cristãos no comércio transaariano.
Por muito tempo o Islã se manteve marginal na região, estabelecendo relações
de coexistência com as religiões locais, que eram dominantes tanto no que diz
respeito ao número de adeptos quanto às influências no plano social e político. A
simplicidade dogmática do Islã e sua relativa adaptabilidade às culturas africanas
contribuíram para sua difusão nessas terras, muito embora na fase inicial de penetração do islamismo as conversões não foram rápidas ou em massa, todavia, a
conversão podia se constituir numa forma de proteger a vida e a liberdade, uma
vez que era lícito e louvável para os muçulmanos declarar guerra santa contra
comunidades vistas como pagãs. Porém, tudo indica que as populações locais
buscavam atender as obrigações exteriores da religião de Maomé, conservando
secretamente ou discretamente suas práticas religiosas tradicionais.
Os “cinco pilares” da religião muçulmana se constituíam nas práticas exteriores da fé islâmica demonstradas por significativa parcela dos convertidos
africanos. Veja abaixo o quadro explicativo dos cinco pilares do Islã:
Sahada
A profissão pública de fé: “Não há outro deus além de Ala e Maomé
é o seu profeta”.
Salat
A oração ritual pronunciada cinco vezes ao dia.
Ramadã
O jejum feito uma vez por ano.
Zakat
A esmola para prover as necessidades dos pobres e dos órfãos.
Hadjdj
A peregrinação à Meca, que deve ser realizada uma vez na vida caso
o fiel disponha dos meios.
51
brasil/áfrica: histórias cruzadas fundamental ii
Contudo, com o passar do tempo, as sociedades africanas conheceram as
implicações morais, sociais, jurídicas e econômicas do Islã, que certamente
diziam muito mais sobre as sociedades árabes e bem menos sobre os dogmas
de fé. Nessa região, os almorávidas podem ser considerados pioneiros no desejo de impor o Islã a qualquer custo em todos os níveis do convívio social.
Também príncipes africanos convertidos, para serem respeitados pelos árabes,
tentavam impor a homogeneização dos modos de vida de maneira a torná-los
conformes com os preceitos, a lei e o direito do Islã. Assim, nomes muçulmanos passaram a ser adotados de maneira generalizada; as regras de filiação e
de herança foram aos poucos modificadas, privilegiando as regras de patrilinearidade em detrimento dos mecanismos matrilineares; houve transformação
dos hábitos alimentares; incorporação de comportamentos e estéticas geralmente importadas ou adaptadas do Magreb, bem como, novas atitudes em
relação à condição feminina e a vida cotidiana das mulheres.
Nesse sentido, da perspectiva das formações estatais, foram desenvolvidas
diferentes concepções do Islã no continente africano. Desde a implantação do
islamismo em associação à religiosidade tradicional, até um Islã impositivo
com todo o seu vigor a ponto de tentar introduzir o conjunto da lei islâmica e
declarar guerra santa contra os infiéis. Do ponto de vista das populações, em
alguns casos houve um progresso rápido do Islã motivado por fatores políticos, sociais ou geográficos, esse é o caso, por exemplo, dos mandinga e songai
que abraçaram o Islã sem a definitiva renúncia das antigas crenças.
As motivações que impulsionavam os africanos a aceitar o Islã eram de
natureza muito diversa. Os comerciantes, de maneira geral, adotaram muito
cedo o islamismo, pois, com um trabalho que impunha percorrer diferentes
rotas, sem proteção contra populações e governantes, o Islã oferecia uma rede
de fraternidade capaz de dar maior segurança aos negócios. Os reis e imperadores encontraram no Islã a possibilidade de separar a realeza das restrições
impostas pelas crenças tradicionais, ao tempo em que percebiam a oportunidade de aumentar seus recursos políticos, econômicos e espirituais. O mesmo
aconteceu com os reis africanos da África do Oeste que encontraram o cristianismo em fins do século XV.
Os súditos não raramente estabeleciam resistências à conversão tanto ao
Islã quanto ao cristianismo. Alguns por motivos profissionais se recusavam a
partilhar das novas convicções religiosas – o trabalho do ferro, por exemplo,
52
O povoamento do continente: diversidade étnica e cultural dos povos africanos
não apenas dependia de ritos religiosos tradicionais como seus executores (os
ferreiros) eram considerados especialistas nas artes da magia, pois dominavam o fogo, mantinham contato com as entranhas da terra para obter sua
matéria prima e produziam tanto utensílios como armas. Para essa resistência
cultural africana também concorriam às convicções do povo e o desejo de se
manter fiel aos costumes ancestrais.
Referência bibliográfica:
BASTIDE, Roger. Religiões africanas e estruturas de civilização. Revista AfroÁsia n.º 6-7, pp. 5-16, 1968.
HAKEM, A. M. Ali & VERCOUTTER, J.. A civilização de Napata e Meroé. In.:
MOKHTAR, G. (org.). A África antiga. História Geral da África, vol. II. São
Paulo: Ática / Paris: UNESCO, 1982.
HAMPÂTÉ BÂ, Amadou. “A tradição viva”. In: KI-ZERBO, Joseph (org.).
História Geral da África, vol. I. São Paulo: Ática / Paris: UNESCO, 1982.
HAMA, Boubou & KI-ZERBO, Joseph. “Lugar da história na sociedade
africana”. In: KI-ZERBO, Joseph (org.). História Geral da África, vol. I. São
Paulo: Ática / Paris: UNESCO, 1982.
KI-ZERBO, Joseph. História da África Negra, Vol. I. 2.ª Edição. Lisboa: EuropaAmérica, 1972.
LECLANT, J.. O império de Kush: Napata e Meroé. In.: MOKHTAR, G. (org.). A
África antiga. História Geral da África, vol. II. São Paulo: Ática / Paris: UNESCO,
1982.
LEITE, Fábio. Valores civilizatórios em sociedades negro-africanas. África:
Revista do Centro de Estudos Africanos. USP, São Paulo, 18-19 (1): 103-118,
1995/1996.
LWANGA-LUNYIIGO, Samwiri & VANSINA, Jan. “Os povos falantes de banto
e a sua expansão”. História Geral da África, vol. III.
M’BOKOLO, Elikia. África negra: história e civilizações. Salvador: EDUFBA;
São Paulo: Casa das áfricas, 2009.
OLDEROGGE, D. A.. “Migrações e diferenciações étnicas e lingüísticas”. In: KIZERBO, Joseph (org.). História Geral da África, vol. I. São Paulo: Ática / Paris:
UNESCO, 1982.
53
brasil/áfrica: histórias cruzadas fundamental ii
SANTOS, Edmar Ferreira. Memória e História Afro-Brasileira: Experiências
Preservadas, Recriadas e Contadas pelo Povo-de-Santo na Bahia. Comunicação
apresentada no Simpósio Internacional Memória, (Auto)biografia e Formação.
Salvador: Universidade do Estado da Bahia, 2008.
SANTOS, Juana Elbein dos. Os nagô e a morte. 9.ª Edição. Petrópolis: Vozes,
1998.
SHEHATA, Adam & VERCOUTTER, J.. A importância da Núbia: um elo entre
a África central e o Mediterrâneo. In.: MOKHTAR, G. (org.). A África antiga.
História Geral da África, vol. II. São Paulo: Ática / Paris: UNESCO, 1982.
SHERIF, Nagm-El-Din Mohamed. A Núbia antes de Napata (3100 a 750 antes
da era cristã). In.: MOKHTAR, G. (org.). A África antiga. História Geral da
África, vol. II. São Paulo: Ática / Paris: UNESCO, 1982.
SILVA, Alberto da Costa e. A enxada e a lança: a África antes dos portugueses. 3.ª
Edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
Referências
BARTH, Frederik. Grupos étnicos e suas fronteiras. In_ Poutignat, Philippe &
Streiff-Fenart, Jocelyne. Teorias da Etnicidade. São Paulo: Editora da Unesp.
1997, pp.187-227.
CRAEMER, W., VANSINA, J. e FOX, R. “Religious Movements in Central
Africa: A Theoretical Study”, in: Comparative Studies in Society and History,
Cambridge, Cambridge University Press, 1976
HEYWOOD, Linda. (org.) Central Africans and Cultural Transformations in the
American Diaspora. Cambridge University Press, 2002.
KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). Rio de
Janeiro: Companhia das Letras, 2000.
MINTZ, Sidney W. & PRICE, Richard. O nascimento da cultura afro-americana:
uma perspectiva antropológica. Rio de Janeiro: Pallas: Universidade Cândido
Mendes, 2000.
OLIVEIRA, Maria Inês Côrtes de. “Quem eram os “negros da Guiné”?” A origem
dos africanos na Bahia. Revista Afro-Ásia 19-20. 1997, pp. 37-74.
PARÉS, Luis Nicolau. A formação do Candomblé: história e ritual da nação jeje
na Bahia. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2006.
54
O povoamento do continente: diversidade étnica e cultural dos povos africanos
REIS, João José. “Ethnic Politics among Africans in Nineteenth-Century Bahia”.
In: LEVEJOY, Paul E. and TROTMAN, David V. Trans-Atlantic Dimensions of
Ethnicity in the African Diaspora. London - New York: Continuum, (.?.).
SANTOS, E. F. O poder dos candomblés: perseguição e resistência no Recôncavo
da Bahia. Salvador: Editora da UFBA, 2009.
SILVEIRA, Renato. Pragmatismo e milagres de fé no extremo ocidente. In: REIS,
João José. Escravidão e invenção da liberdade. São Paulo: Brasiliense, 1988.
pp.166-197.
SLENES, Robert W. “Malungo, ngoma vem!”: África encoberta e descoberta
no Brasil. In_ Cadernos do Museu da Escravatura. Luanda: Museu Nacional da
Escravatura / Instituto Nacional do Patrimônio Cultural, ano 1995, pp. 5-24.
THORNTON, John K. On the trail of Voodoo: African Christianity in Africa and
the Americas. Américas, v.44, n.° 3, pp.261-278.
VERGER, Pierre. Fluxo e Refluxo do tráfico de escravos entre o Golfo do Benin e
a Bahia de todos os Santos. São Paulo: Corrupio, 1987 [1968].
ADAM, S. “A importância da Núbia: um elo entre a África central e o
mediterrâneo”. In: MOKHTAR, G. (Org.). História Geral da África, vol. II. São
Paulo: Ática; Paris: Unesco, 1983.
KI-ZERBO, Joseph. História da África Negra, Vol. I, 2.ª Edição. Lisboa: EuropaAmérica, 1972.
MAHJOUBI, A. “O período romano na África do norte”. In: MOKHTAR, G.
(Org.). História Geral da África, vol. II. São Paulo: Ática; Paris: Unesco, 1983.
M’BOKOLO, Elikia. África negra: história e civilizações. Salvador: EDUFBA;
São Paulo: Casa das áfricas, 2009.
MICHALOWSKI, K. “A cristianização da Núbia”. In: MOKHTAR, G. (Org.).
História Geral da África, vol. II. São Paulo: Ática; Paris: Unesco, 1983.
SALAMA, P. “De Roma ao Islã na África do norte”. In: MOKHTAR, G. (Org.).
História Geral da África, vol. II. São Paulo: Ática; Paris: Unesco, 1983.
YOYOTTE, J. “O Egito faraônico: sociedade, economia e cultura”. In:
MOKHTAR, G. (Org.). História Geral da África, vol. II. São Paulo: Ática; Paris:
Unesco, 1983.
55
Encontros religiosos no
continente africano
brasil/áfrica: histórias cruzadas fundamental ii
Cristianismo
Desde o princípio das práticas religiosas cristãs, existem informações sobre a presença do cristianismo no continente africano. O Egito foi a porta
de entrada da religiosidade cristã na África já no primeiro século da nossa
era. Tudo indica que o cristianismo chegou ao continente africano levado por
diversas migrações de cristãos perseguidos pelo Império Romano, que buscavam locais onde pudessem realizar seus cultos.
Mais tarde, quando o cristianismo se tornou a religião oficial do Império
Romano, aqueles cristãos que desobedeciam as exigências do culto formal do
Império continuaram sofrendo repressão, o que fez o início da expansão cristã
no continente africano ter pelo menos duas vias: a oficial, divulgada pelo Império Romano, e a popular, praticada pelos cristãos perseguidos.
As invasões militares romanas em direção as fronteiras da África do Norte
encontraram resistência constante das populações locais. A resistência dos
povos da “África negra” assumiu aspectos não só militares, mas também políticos, étnicos, sociais e religiosos. Apesar das vitórias romanas, as populações
locais jamais foram totalmente subjugadas. Dessa maneira, a dominação romana no norte e nas suas fronteiras ao sul não chegou a impedir que as populações locais manifestassem suas devoções às suas divindades tradicionais.
A vasta região da Núbia é de fundamental importância para entender a expansão do cristianismo e mais tarde do islamismo na África. A Núbia sempre
foi uma zona de contatos de norte a sul, leste a oeste do continente. Indícios
arqueológicos revelam que a fé cristã teve lugar na região antes do século VI,
provavelmente levada por um grande número de cristãos que entre os séculos
I e V fugiram do Egito carregando sua fé.
Além das fugas dos cristãos em busca de melhores lugares para professar
sua fé, concorriam para a cristianização da região as caravanas de mercadores
que além de produtos e interesses levavam suas crenças religiosas. Também a
diplomacia Romana teve um papel fundamental na difusão das idéias cristãs.
Os acordos comerciais e as alianças militares entre o Império Romano do
Oriente (Bizâncio) e os Estados da Núbia em muito ajudava as atividades religiosas dos sacerdotes cristãos.
Do século VII ao século XI, o cristianismo quase que desapareceu do norte
da África, subsistindo com mais força na Núbia e na Etiópia. No Egito, sobre-
58
Encontros religiosos no continente africano
viveu uma importante minoria cristã. As divisões internas do cristianismo no
continente africano (coptas, núbios, etíopes) e suas relações pouco submissas
com Roma e mais tarde Bizâncio, além da maior concentração na atividade
monástica em detrimento do proselitismo, contribuíram para a perda de espaço dos cristãos nessas regiões.
A partir do século XV, primeiro com os portugueses depois com holandeses, germânicos e ingleses, o cristianismo terá novas experiências no continente africano, especialmente na costa ocidental. O monarca do reino do Congo,
por exemplo, converteu-se ao cristianismo em fins do século XV, quando mudou seu nome de Nzinga Nkuwa para D. João I.
Os súditos do reino do Congo, porém, vivenciaram o cristianismo de maneira diversa: uns acolheram a nova fé, outros a ela aderiram por conveniência e a maioria acomodou a nova crença as suas formas tradicionais de
religiosidade. Esse processo de cristianização levou ao “aportuguesamento”
das instituições civis e políticas do Congo, mas não exterminou as tradições
bakongo, servindo mais a interesses econômicos e de governo do que a interesses propriamente religiosos.
Como se sabe, a prática evangelizadora européia, tanto na África quanto
nas Américas, não foi pacífica. Parceira do projeto colonial, além da violência simbólica também a violência física era parte do processo. Apesar de em
1624, em Angola, já haver catecismos elaborados nas línguas kimbundo e kikongo e, em 1658, haver um catecismo para uma missão em Alladá utilizando
a palavra vodu para se referir ao deus cristão, e o nome do vodum Lisá ser
usado para identificar Jesus Cristo, a política da “pregação pela espada e pelo
açoite” foi largamente utilizada.
O clérigo Balthazar Afonso, em 1585, contente com as táticas dos exércitos
de Portugal tomando pequenas vilas de assalto descreveu: “Os portugueses
queimaram vivos os pagãos em suas choupanas e várias cabeças eram expostas a fim de amedrontar os adversários. Em outra ocasião 619 narizes foram
cortados pelos portugueses”. Como justificativa para tamanha crueldade, os
portugueses divulgavam que para um povo bárbaro como o africano, o cristianismo não poderia ser levado sem a força.
Na África ocidental, exceto o caso português a partir do século XVI, a
maior difusão do cristianismo se fez entre os séculos XVII e XIX, especialmente através do protestantismo. No sul do continente, desde o século XVII a
59
brasil/áfrica: histórias cruzadas fundamental ii
colonização holandesa disseminou o calvinismo na região. Em fins do século
XIX, nas demais regiões africanas, a divisão neocolonial do continente pelas
potências européias em muito contribuiu para a divulgação da fé cristã.
Dessa época para cá, novos movimentos religiosos surgiram na África, com
destaque para numerosas igrejas africanas independentes. Essas igrejas são de
maioria pentecostal e misturam elementos do messianismo cristão com práticas da religiosidade tradicional africana.
Islamismo
A penetração dos primeiros árabes mulçumanos no continente africano
aconteceu no Egito em meados do século VII. A partir da presença mulçumana no Egito, o islamismo alcançou uma vertiginosa expansão, chegando à
África ao norte do Saara, onde se estabeleceu de maneira firme e relativamente
rápida. Na conquista árabe da África do Norte, o islã operou uma impressionante mudança social, praticamente ofuscando o cristianismo como religião
e modo de vida, ao contrário do Egito, onde o cristianismo conseguiu sobreviver com mais força. Nessa primeira onda de conquista, os mulçumanos não
atravessaram o deserto do Saara, no entanto, seus valores religiosos e culturais se espalharam pelas rotas de comércio através do deserto.
A partir do século X, os reinos núbios sofreram maior pressão mulçumana
vinda, sobretudo, do Egito. Nesse momento, as investidas islâmicas tinham
como objetivo além da garantia dos pagamentos dos tributos a conversão dos
Estados da Núbia à fé do profeta Maomé. A dominação política da Núbia
pelos árabes muçulmanos foi seguida por uma islamização profunda das sociedades do vale do Nilo, daí espraiando-se para o sul, o leste e o oeste. Nesse
sentido, não podemos esquecer os povos berberes convertidos ao islã, que
através de diferentes rotas de comércio pelo deserto do Saara, foram importantes divulgadores do islamismo.
Os comerciantes mulçumanos que desciam ao longo do vale do Nilo levavam a língua, a cultura árabe, o seu modo de vida e a fé islâmica. Em algumas
regiões, os árabes muçulmanos adotaram as línguas locais e procuraram se
incorporar à massa das populações, sem com isso deixar de propagar o Islã.
Em outras áreas, ao contrário, foram os núbios que adotaram a língua árabe,
apropriando-se de nomes e genealogias. Em todo o território, lentamente, o
60
Encontros religiosos no continente africano
Islã iria se estender sobre as organizações estatais. Todavia, muitos grupos
adotavam o Islã, mas conservavam suas antigas crenças e práticas religiosas.
No oeste do continente, a presença dos árabes mulçumanos foi em número
reduzido entre os séculos VIII e o XIV, sendo conhecidos como viajantes, comerciantes e letrados. Por muito tempo o Islã se manteve marginal na região,
estabelecendo relações de coexistência com as religiões locais, que eram dominantes tanto no que diz respeito ao número de adeptos quanto às influências
no plano social e político.
A simplicidade dogmática do Islã e sua relativa adaptabilidade às culturas
africanas contribuíram para sua difusão nessas terras, muito embora na fase
inicial de penetração do islamismo as conversões não foram rápidas ou em
massa. Todavia, a conversão podia se constituir numa forma de proteger a
vida e a liberdade, uma vez que era lícito e louvável para os muçulmanos
declarar guerra santa contra comunidades vistas como pagãs. Porém, tudo
indica que as populações locais buscavam atender as obrigações exteriores da
religião de Maomé, conservando secretamente ou discretamente suas práticas
religiosas tradicionais.
Com o passar do tempo, as sociedades africanas conheceriam as implicações morais, sociais, jurídicas e econômicas do Islã, que certamente diziam
muito mais sobre as sociedades árabes e bem menos sobre os dogmas da fé.
Aos poucos, o islã tentaria ganhar mais espaço a qualquer custo e em todos
os níveis do convívio social. Príncipes africanos convertidos, para serem respeitados pelos árabes, tentavam impor a homogeneização dos modos de vida
de maneira a torná-los conformes com os preceitos, a lei e o direito do Islã.
Nesse sentido, nomes muçulmanos passaram a ser adotados de maneira
generalizada; as regras de filiação e de herança foram aos poucos modificadas,
privilegiando as regras de patrilinearidade em detrimento dos mecanismos
matrilineares; houve transformação dos hábitos alimentares; incorporação de
comportamentos e estéticas geralmente importadas ou adaptadas do Magreb,
bem como, novas atitudes em relação à condição feminina e a vida cotidiana
das mulheres.
As motivações que impulsionavam os africanos a aceitar o Islã eram de
natureza muito diversa. Os comerciantes, de maneira geral, adotaram muito
cedo o islamismo, pois com um trabalho que impunha percorrer diferentes
rotas, sem proteção contra populações e governantes, o Islã oferecia uma re-
61
brasil/áfrica: histórias cruzadas fundamental ii
de de fraternidade e solidariedade capaz de dar maior segurança aos negócios. Os reis e imperadores encontravam no Islã a possibilidade de separar a
realeza das restrições impostas pelas crenças tradicionais, ao tempo em que
percebiam a oportunidade de aumentar seus recursos políticos, econômicos e
espirituais. O mesmo aconteceu com os reis africanos da África do Oeste que
encontraram o cristianismo em fins do século XV.
Por outro lado, os súditos estabeleciam resistências à conversão tanto ao
Islã quanto ao cristianismo. Alguns por motivos profissionais se recusavam a
partilhar das novas convicções religiosas – o trabalho do ferro, por exemplo,
não apenas dependia de ritos religiosos tradicionais, como seus executores
(os ferreiros) eram considerados especialistas nas artes da magia, pois dominavam o fogo, mantinham contato com as entranhas da terra para obter sua
matéria prima e produziam tanto utensílios como armas. Para essa resistência
cultural africana também concorriam às convicções do povo e o desejo de se
manter fiel aos costumes ancestrais.
As relações entre as sociedades africanas e o Islã são de grande importância
para compreendermos as dinâmicas políticas, econômicas, sociais e culturais
do continente africano, especialmente das regiões norte, nordeste e também
do Sahel, onde o contato com o islamismo, desde pelo menos o século VII, é
parte da experiência cotidiana das populações. Nessas regiões, a religião de
Maomé jamais deixou de conquistar novos adeptos, chegando aos dias atuais
com grande força e influência.
A religiosidade africana
A África Ocidental experimentou uma intensa urbanização entre os séculos
VII e XI, essa longa história contraria a idéia muito difundida de que a África
teria sido antes dos mercadores muçulmanos do norte, um aglomerado de aldeias, cujas etnias, culturas e línguas isoladas não exerceriam influência umas
sobre as outras.
As cidades, a partir do momento que surgiram, tornaram-se centros culturais que irradiavam influências para vastas áreas em torno delas. Essa complexidade dos espaços culturais e sociais constituiu-se antes do século XI, e é
o que explica, por exemplo, a difusão de línguas como o manden, o ioruba e
o haussá.
62
Encontros religiosos no continente africano
Na África do Oeste e Central (regiões de onde foi trazida a grande maioria
dos indivíduos escravizados no Brasil), a religião organizava a vida comunitária e ajudava a consolidar as estruturas sociais. Além disso, a religiosidade
orientava as relações entre os seres humanos, os ancestrais e a natureza, ocupando um lugar fundamental na educação e, portanto, na transmissão dos
valores sociais.
No entanto, é necessário lembrar que ao nos referirmos à África do Oeste
e Central estamos falando de uma vasta região, povoada por diferentes povos
e diversas culturas. Mesmo assim, é possível identificar em diversos grupos
que ocupavam e ocupam essa extensa região, características entendidas como
elementos centrais das diferentes culturas, ou seja, sistemas de símbolos, ritos
e crenças, especialmente de caráter religioso.
Entre as características comuns é possível destacar a importância atribuída aos ancestrais, à memória, à palavra, à natureza, às práticas divinatórias
(adivinhações), a presença de cultos coletivos, de encantamentos e de lideranças sacerdotais. Os cultos para os ancestrais ou para as divindades contavam
com significativo aparato material, que incluía instrumentos musicais, danças,
trajes apropriados, cantos, palmas, ritmos e linguagem própria. Objetos de
madeira, metal, couro ou cerâmica, bem como, riachos, cachoeiras, rios, raízes, folhas, árvores e animais, poderiam guardar encantamentos ou a força de
ancestrais e divindades, podendo ser utilizados para proteger, aliviar aflições e
curar doenças ou infortúnios.
A possessão (momento em que a divindade ou o ancestral, incorpora em
um membro da comunidade religiosa e vem receber homenagens, compartilhar emoções e orientar decisões) também é parte fundamental da complexa
experiência religiosa desses povos.
Quadro de algumas divindades cultuadas nessas regiões*
Bantu
Gbe
Ioruba
Descrição
Inkissi
Vodum
Orixá
Divindade
Força Invisível.
Zambi
Mawu
Olorum
Ser criador – Deus.
63
brasil/áfrica: histórias cruzadas fundamental ii
Bombojira
Elegbara
Exu
Senhor dos caminhos e da
comunicação.
Inkôssi
Mukumbi
Rôji
Mukumbi
Gu
Ogum
Senhor dos metais e da
guerra.
Katendê
Agué
Ossãyn
Senhor das folhas.
Kavungu
Azansú
Sakpatá
Omolú
Obaluayê
Senhor da terra e das
doenças e da cura.
Zazi
Sogbô
Xangô
Senhor dos raios e do
trovão.
Lemba
Olissá
Oxalá
Senhor da paz, da geração
e da procriação.
Angorô
Bessém
Dangbê
Oxumaré
Senhor da continuidade,
dos ciclos da vida.
Também no Brasil, essas divindades permanecem cultuadas nos Terreiros de Candomblé de
Congo-Angola (Bantu), Mina-Jeje (Gbe) e Nagô-Ketu (Ioruba).
A religiosidade era uma forma básica do convívio social e não estava restrita apenas aos momentos de celebração dos rituais, assim, as orientações
religiosas influenciavam todas as ações da vida. Dessa maneira, não é possível
desvincular a religião de outras esferas sociais, como a política e a economia.
Nas sociedades da África Ocidental, diversas formas de atividade religiosa
foram progressivamente institucionalizadas, isto é, os valores e práticas que
visavam comunicação com o mundo invisível foram adequados a formas de
organização social mais ou menos estáveis, adquirindo um caráter normativo.
Nesse sentido, poderíamos fazer uma distinção entre dois tipos de instituição religiosa para esses povos: por um lado, aquelas que contribuíam para
reforçar as estruturas de poder e o desenvolvimento de engrenagens de controle e integração social, e por outro lado, aquelas mais abertas, dinâmicas e
transformadoras, que surgiam, frequentemente, na margem da sociedade e
comportavam um discurso contestador das estruturas de poder ou das hierarquias sociais, podendo se apresentar também como concorrentes ou complementares à religião “oficial”. Formando assim, no primeiro caso, o que poderíamos chamar de instituições centrais, e no segundo, instituições periféricas.
64
Encontros religiosos no continente africano
Para entendermos melhor, é possível exemplificar através do Culto aos Voduns no reino de Whydah, com capital em Savi, no final do século XVII. Tanto
neste reino como no reino vizinho de Alladá, o Culto aos Voduns era uma
instituição sociopolítica que, entre outras funções, aprovava e sancionava a
autoridade do rei e dos chefes das linhagens. Entre as principais divindades,
havia a serpente, as árvores e o mar.
Dangbê (a serpente) era a divindade real em Whydah, entre suas principais
atribuições encontrava-se a chuva, sendo assim invocada para a obtenção de
boas colheitas. As árvores intervinham, mediante o recebimento de oferendas,
nas febres e traziam cura aos doentes. E o mar, era invocado para acalmar-se
e para deixar que os produtos chegassem à costa. No entanto, Dangbê era
considerada a divindade suprema, uma vez que estendia sua influência sobre
o domínio das árvores e do mar.
As influências das divindades acabavam refletindo-se no poder dos sacerdotes, que também eram consultados pelos dirigentes políticos nas decisões
referentes às transações comerciais e aos conflitos armados. Com poderes sobre a agricultura, a saúde, o comércio e as guerras, os sacerdotes possuíam
status político e social que fazia os reis e chefes de linhagem providenciar os
recursos necessários às práticas religiosas e a subsistência dos sacerdotes.
O rei de Whydah não media esforços e recursos para agradar Dangbê, organizando grandes procissões anuais ao seu templo nas proximidades da capital Savi. Para isso, também presenteava os sacerdotes e os chefes de linhagem.
Dessa maneira, os chefes do poder civil tinham interesse em sustentar o culto
religioso, pois, de outro modo, não teriam como recuperar parte dos tributos
pagos ao rei. Entre outras funções, a atividade religiosa compensava economicamente os grupos sociais diante do poder da monarquia, uma vez que esses
grupos, tal como as divindades, eram presenteados com dinheiro, panos ou
peças de seda, mercadorias européias e africanas, gado, alimentos e bebidas.
Por seu turno, essa aliança entre o poder civil e religioso garantia aos sacerdotes um número considerável de devotos consagrados às divindades, que
contribuíam (os devotos e seus familiares) com produtos e trabalho para as
atividades do templo. Assim, a atividade religiosa mantinha-se envolvida em
uma dinâmica de trocas de recursos (econômicos, físicos e espirituais) que
justificava a sua existência e conservação como instituição central na organização social, política, econômica e cultural do reino de Whydah. Além disso,
65
brasil/áfrica: histórias cruzadas fundamental ii
a religiosidade proporcionava integração social e oferecia assistência, soluções e referências culturais e morais que iam ao encontro das necessidades
da população, especialmente em tempos difíceis, como os de secas, guerras,
enfermidades e morte.
O exemplo acima é importante, pois, permite entender como uma sociedade da África Ocidental desenvolveu instituições religiosas centrais na sua organização política e econômica, fundamentais na dinâmica das suas relações
sociais. Segundo Parés (2006), é possível listar as características principais
do Culto aos Voduns no reino de Whydah: a) A atividade religiosa possuía
espaços sagrados estáveis dedicados às divindades (templos com altares); b) A
religião dispunha de um corpo de sacerdotes hierarquizado; c) A religiosidade
possuía uma coletividade de devotos; d) A religião tinha atividades litúrgicas
periódicas; e) A atividade religiosa era de natureza iniciática; f) As oferendas
para as divindades eram fundamentais à atividade religiosa.
Outro exemplo, agora de cultos periféricos na África Ocidental, pode nos
ser oferecido pelo Culto ao Vodum Sakpatá, no reino do Daomé. Nas primeiras décadas do século XVIII, após a conquista dos reinos de Alladá e Whydah,
o rei Agaja e o seu sucessor, Tegbesu, adotaram a política de apropriação dos
cultos dos povos submetidos, em alguns casos, transportando altares e sacerdotes para a capital do reino, a cidade de Abomey. Com essa política, os reis
do Daomé visavam, por um lado, a acumulação do poder religioso e maior
influência sobre os territórios conquistados e, por outro lado, buscavam acalmar a possível cólera das divindades dos povos vencidos. Ao mesmo tempo,
procuravam manter um controle real das diversas congregações religiosas,
uma vez que algumas delas eram vistas como foco de contestação ao poder
central de Abomey.
Com a progressiva expansão da varíola na área do reino do Daomé, os sacerdotes de Sakpatá alcançaram um grande prestígio. Eles eram considerados
as únicas pessoas capazes de intervir em casos de epidemias, sendo responsáveis pelas curas individuais, pelos rituais para aplacar a cólera da divindade
e pelas festas de agradecimento para aqueles que escapavam da morte que,
aliás, passavam a ser adeptos do Vodum. Por outro lado, também eram considerados conspiradores e contestadores do poder, sendo muitos deles expulsos
do Daomé. No século XVIII, quatro reis do Daomé pegaram varíola, sendo
que três morreram por causa da doença. Assim, o Vodum Sakpatá tornou-se
66
Encontros religiosos no continente africano
um símbolo daqueles que estavam descontentes e contestavam a monarquia
de Abomey. Por seu turno, o poder central do reino oscilava entre a vontade
de banir o culto a Sakpatá e o medo de não poder enfrentar as epidemias sem
o auxílio dos seus sacerdotes.
Os exemplos acima, tomados da África do Oeste anterior à colonização
européia, demonstram bem a dinâmica histórica dessas sociedades, onde a religiosidade se apresenta como um aspecto vivo da experiência cotidiana, articulando indivíduos e grupos sociais, apresentando-se por vezes em dimensões
conservadoras, porém, outras vezes, contestadoras de instituições políticas,
sociais, econômicas e culturais.
As sociedades Atlânticas
Em seus locais de culto, as divindades africanas eram representadas em
pedras, riachos e rios, fontes de água, árvores, animais ou objetos fabricados
de pedaços de madeira e conchas. Os europeus, católicos e protestantes, que
entraram em contato com as sociedades da costa ocidental africana a partir
do século XV, consideraram esses povos e suas culturas atrasadas e selvagens.
Para os comerciantes e missionários europeus, os africanos desconheciam o
valor real dos objetos e por isso adoravam pedras, pedaços de madeiras, conchas e outros artigos sem valor para a lógica do capitalismo mercantil.
Ao tempo em que o contato entre as sociedades africanas e européias se
intensificava, os europeus desenvolverão idéias preconceituosas acerca da religiosidade africana. Amparadas em visões de mundo cristãs, essas idéias são
bem representadas por duas palavras muito utilizadas naquela época: feitiço
e fetichismo. Desde o seu nascimento, a noção de “fetiche” representou uma
nítida visão hierárquica da cultura, relacionada a formas de dominação colonial nas quais atuaram visões de mundo européias católicas e protestantes.
Ou seja, as práticas rotuladas de “fetichistas” eram consideradas pelos
europeus irracionais e inferiores. Para esses colonizadores, de uma maneira
geral, as formas de religiosidade encontradas na costa africana representavam o atraso espiritual e material das sociedades daquela parte do mundo.
Do mesmo modo, as palavras feitiço, feitiçaria e bruxaria, foram largamente
utilizadas pelos europeus para desqualificar as práticas religiosas africanas.
67
brasil/áfrica: histórias cruzadas fundamental ii
A palavra portuguesa “feitiço” tem origem no adjetivo latino facticius, que
significa “algo feito com as mãos”. Desde a Idade Média européia, o termo
feitiço significa “práticas mágicas” ou “bruxarias” realizadas por pessoas simples e ignorantes. No século XVI, os portugueses viviam em uma sociedade
com larga presença do encantamento mágico e da feitiçaria. Em contato com
rituais e objetos que encontraram na África, eles traduziram essas práticas
como formas de feitiçaria.
No imaginário católico europeu, a feitiçaria era vista como um pacto com
o Diabo. Na maioria dos casos, o pacto poderia não ser provado: o indivíduo
era preso e podia até ser declarado inocente, contudo, na maioria das vezes,
depois de anos de aprisionamento e tortura. A repressão a feitiçaria na Europa não era uma perseguição a outra religião, era uma perseguição de pessoas
que pactuavam com o demônio. É interessante observar, que o Diabo não faz
parte do conjunto de divindades cultuadas nas diversas culturas africanas.
Em fins da Idade Média européia, perseguir a feitiçaria não estava entre
os principais objetivos da Inquisição. Para a Igreja Católica, a perseguição a
outras religiões eram mais importe, pois, a prática de outra fé era considerada
heresia. A feitiçaria não era heresia, ou seja, não era vista como a prática de
outra fé. A feitiçaria era mais um corpo de valores e práticas relacionadas ao
medo e ao desejo, ao inesperado, ao maravilhoso, ao destino.
O feitiço era absolutamente relevante para o navegador que cruzava os
oceanos, afinal, quem gostaria de ter pela frente eventos e aventuras tão incertas e perigosas? Os navegadores portugueses usavam amuletos e reconheciam
feitiços nas coisas e pessoas extraordinárias que eles encontravam no caminho, por exemplo, na África.
Os relatos de viajantes e mercadores protestantes na África apresentam os
portugueses como um povo pitoresco do sul da Europa, responsável por um
modo de colonização muito improvisado e precário, incapazes de cristianizar
verdadeiramente a região. Esses viajantes e mercadores protestantes (holandeses, dinamarqueses, ingleses) asseguravam que a maneira de colonizar portuguesa deveria ser destruída e substituída por uma estratégia mais efetiva de
comércio, negociação e apropriação do território. Evidente que por trás das
opiniões “religiosas”, escondia-se a concorrência entre os povos europeus pelo comércio com a costa atlântica do continente africano.
68
Encontros religiosos no continente africano
A crítica elaborada por viajantes protestantes ao fetiche (palavra que deriva do “feitiço” português), sem dúvida, foi endereçada a África, porém,
de maneira mais ampla, foi dirigida às sociedades atlânticas da costa africana. As sociedades atlânticas, em muitos sentidos, eram sociedades africanas
e européias ao mesmo tempo, compostas por indivíduos de diversas nações e
crenças, resultado da experiência de comércio entre os dois continentes1. Essas
sociedades representavam um perigo no olhar dos mercadores nórdicos, pois,
em linhas gerais, eram sociedades muito semelhantes às européias, o que causava enorme desconforto a ética protestante.
O discurso protestante sobre o fetiche na África foi, em muitos sentidos,
uma transposição da rejeição ao catolicismo na Europa. As acusações direcionadas aos fetichistas africanos são frequentemente as mesmas endereçadas aos
católicos europeus. Na visão dos protestantes, a igreja católica enganava as
pessoas, participava de governos injustos e mantinha o povo irracionalmente
atrelado a ilusão religiosa, obtendo com isso favores, propriedades e lucro.
Para os protestantes europeus, adorar pedras, conchas e pedaços de madeira,
dizendo que isso era religião, camuflava os objetivos dos “sacerdotes fetichistas” em obter vantagens pessoais e econômicas, portanto, era comparável as
práticas católicas na Europa.
Assim, podemos concluir que, no contato com os europeus, as práticas
religiosas africanas foram submetidas a um duplo olhar:
Por um lado, o olhar católico que identificava a religiosidade africana como feitiçaria, que apesar de não figurar entre as práticas mais reprimidas pela
Igreja, fazia parte de uma longa história de demonização de práticas e valores
não-cristãs, que nos remete aos princípios da colonização e procedem de uma
tradição cristã medieval de repressão a idolatria, a superstição e a bruxaria.
Por outro lado, o olhar protestante, que ao mirar as sociedades atlânticas
da costa africana, referiu-se aos objetos de culto encontrados na África como
“fetiche”, afirmando que aquelas sociedades eram espaços de corrupção pública, criados por uma religiosidade imoral, associada a governos injustos e a
povos mantidos irracionais pela ilusão religiosa.
1
Na literatura antropológica, esse fenômeno é chamado de crioulização.
69
brasil/áfrica: histórias cruzadas fundamental ii
É preciso não esquecer que essas formas de ver as religiosidades africanas
foram reproduzidas no Brasil e justificaram os preconceitos, as discriminações
e as perseguições das quais foram vítimas sacerdotes, sacerdotisas e adeptos
das práticas e valores religiosos de matriz africana desse lado do atlântico.
Referências bibliográficas
ADAM, S. “A importância da Núbia: um elo entre a África central e o
mediterrâneo”. In: MOKHTAR, G. (Org.). História Geral da África, vol. II. São
Paulo: Ática; Paris: Unesco, 1983.
BACELAR, Jeferson e CAROSO, Carlos (orgs.). Faces da tradição afro-brasileira:
religiosidade, sincretismo, anti-sincretismo, reafricanização, práticas terapêuticas,
etnobotânica e comida. Rio de Janeiro: Pallas; Salvador, BA: CEAO, 2.ª edição,
2006.
HEYWOOD, Linda. (org.) Central Africans and Cultural Transformations in the
American Diaspora. Cambridge University Press, 2002.
KI-ZERBO, Joseph. História da África Negra, Vol. I, 2.ª Edição. Lisboa: EuropaAmérica, 1972.
LEWICKI, Tadeusz. “O papel do Saara e dos saarianos nas relações entre o Norte
e o Sul”. In: História Geral da África, vol. III. (no prelo)
MAHJOUBI, A. “O período romano na África do norte”. In: MOKHTAR, G.
(Org.). História Geral da África, vol. II. São Paulo: Ática; Paris: Unesco, 1983.
M’BOKOLO, Elikia. África negra: história e civilizações. Salvador: EDUFBA;
São Paulo: Casa das áfricas, 2009.
MICHALOWSKI, K. “A cristianização da Núbia”. In: MOKHTAR, G. (Org.).
História Geral da África, vol. II. São Paulo: Ática; Paris: Unesco, 1983.
PARÉS, Luis Nicolau. A formação do Candomblé: história e ritual da nação jeje
na Bahia. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2006.
PIETZ, Willian. “The Problem of the Fetish I”, Res: Anthropology and Aesthetics,
n. 9, spring, 1985, pp. 5-17.
__________. “The Problem of the Fetish II: The Origin of the Fetish”, Res:
Anthropology and Aesthetics, n. 13, spring, 1987, pp. 23-45.
70
Encontros religiosos no continente africano
__________. “The Problem of the Fetish IIIa: Bosman’s Guinea and the
Enlightenment Theory of Fetichism”, Res: Anthropology and Aesthetics, n. 16,
fall, 1988, pp. 106-23.
REIS, João José. “Ethnic Politics among Africans in Nineteenth-Century Bahia”.
In: LEVEJOY, Paul E. and TROTMAN, David V. Trans-Atlantic Dimensions of
Ethnicity in the African Diaspora. London - New York: Continuum, 2004.
SALAMA, P. “De Roma ao Islã na África do norte”. In: MOKHTAR, G. (Org.).
História Geral da África, vol. II. São Paulo: Ática; Paris: Unesco, 1983.
SANSI-ROCA, Roger. The Fetish in the lusophone Atlantic. In; NARO, N.
P.; SANSI-ROCA, R.; TREECE, D. H. (Ed.). Cultures of the lusophone black
Atlantic. New York: Palgrave Macmillan, 2007. part 1.
SANTOS, Edmar F. O Poder dos Candomblés: Perseguição e Resistência no
Recôncavo da Bahia. Salvador: EDUFBA, 2009.
SILVA, Alberto da Costa e. A Manilha e o Libambo: A África e a escravidão de
1500 a 1700. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.
SLENES, Robert W. “Malungo, ngoma vem!”: África encoberta e descoberta
no Brasil. In: Cadernos do Museu da Escravatura. Luanda: Museu Nacional da
Escravatura / Instituto Nacional do Patrimônio Cultural, ano 1995, pp. 5-24.
VAINFAS, Ronaldo & SOUZA, Marina de Mello e. “Catolização e poder
no tempo do tráfico: o reino do Congo da conversão coroada ao movimento
antoniano, séculos XV-XVIII”. Revista Tempo, 6, 1998, pp.95-118.
VANSINA, Jan & DEVISSE, Jean. “A África do século VII ao XI: cinco séculos
formadores”. In: História Geral da África, vol. III.
YOYOTTE, J. “O Egito faraônico: sociedade, economia e cultura”. In:
MOKHTAR, G. (Org.). História Geral da África, vol. II. São Paulo: Ática; Paris:
Unesco, 1983.
71
brasil/áfrica: histórias cruzadas fundamental ii
72
Encontros religiosos no continente africano
73
brasil/áfrica: histórias cruzadas fundamental ii
74
Encontros religiosos no continente africano
75
BRASIL/ÁFRICA: HISTÓRIAS CRUZADAS FUNDAMENTAL II
76
Encontros religiosos no continente africano
77
BRASIL/ÁFRICA: HISTÓRIAS CRUZADAS FUNDAMENTAL II
A Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte (congregação religiosa católica, formada por mulheres adep-
78
Religiosidade Africana no
Brasil
brasil/áfrica: histórias cruzadas fundamental ii
tas do Candomblé) com sede na cidade de Cachoeira,
ganhou visibilidade após a veiculação nacional na imprensa e televisão de uma carta assinada pelo escritor
Jorge Amado. O texto alertava a opinião pública e as
autoridades políticas sobre uma “tradição” de origem
africana que estava ameaçada na Bahia.
A experiência religiosa africana e afro-brasileira
Procurar compreender a experiência religiosa africana e afro-brasileira é
uma tarefa fascinante. Sobretudo por que através do fenômeno religioso podemos entender histórias, princípios e valores civilizatórios de diversas sociedades da África2. No Brasil, as instituições religiosas criadas pelos negros preservaram e recriaram esse legado civilizatório que irradia diferentes manifestações
culturais formadoras da nossa identidade. Esse texto apresenta algumas reflexões
sobre o contexto da África Ocidental e Central e a importância desses povos africanos para a formação da cultura e religiosidade brasileira.
Na África Centro-Ocidental, a religião ocupava um lugar fundamental na transmissão de valores que organizavam a vida comunitária, consolidavam as estruturas
sociais e orientavam a relação entre os humanos e a natureza. Falar desse modo, não
significa dizer que as culturas dessas regiões eram homogêneas, muito pelo contrário. Entretanto, diferentes grupos sociais da África Central por um lado, e povos da
África Ocidental por outro, compartilhavam entre si muitas características entendidas como elementos centrais das diversas culturas, ou seja, sistemas de símbolos,
ritos e crenças, especialmente de caráter religioso.
Entre as características comuns é possível destacar a importância atribuída aos
ancestrais, à memória, à palavra, à natureza, às práticas divinatórias (adivinhações),
a presença de cultos coletivos, de encantamentos e de lideranças sacerdotais. Os cultos para os ancestrais ou para as divindades contavam com significativo aparato material, que incluía instrumentos musicais, danças, trajes apropriados, cantos, palmas,
ritmos e linguagem própria. Objetos de madeira, metal, couro ou cerâmica, bem
como, riachos, cachoeiras, rios, raízes, folhas, árvores e animais, poderiam guardar
2
80
Para entender a experiência religiosa na África é preciso antes de tudo saber da imensa diversidade do que
se chama “religiosidade tradicional africana” e dos diferentes encontros com o islamismo e o cristianismo.
Religiosidade Africana no Brasil
encantamentos ou a força de ancestrais e divindades, podendo ser utilizados para
proteger, aliviar aflições e curar doenças ou infortúnios. A possessão (momento em
que a divindade ou o ancestral, incorpora em um membro da comunidade religiosa
e vem receber homenagens, compartilhar emoções e orientar decisões) também é
parte fundamental da complexa experiência religiosa desses povos.
A religiosidade era uma forma básica do convívio social e não estava restrita apenas aos momentos de celebração dos rituais, assim, as orientações religiosas influenciavam todas as ações da vida. Dessa maneira, não é possível desvincular a religião
de outras esferas sociais, como a política e a economia. Nas sociedades da África
Ocidental, diversas formas de atividade religiosa foram progressivamente institucionalizadas, isto é, os valores e práticas que visavam comunicação com o mundo
invisível foram adequados a formas de organização social mais ou menos estáveis,
adquirindo um caráter normativo. Nesse sentido, poderíamos fazer uma distinção
entre dois tipos de instituição religiosa: por um lado, aquelas que contribuíam para
reforçar as estruturas de poder e o desenvolvimento de engrenagens de controle e
integração social, e por outro lado, aquelas mais abertas, dinâmicas e transformadoras, que surgiam, frequentemente, na margem da sociedade e comportavam um
discurso contestador das estruturas de poder ou das hierarquias sociais, podendo se
apresentar também como concorrentes ou complementares à religião “oficial”. Formando assim, no primeiro caso, o que poderíamos chamar de instituições centrais, e
no segundo, instituições periféricas.
Para entendermos melhor, é possível exemplificar através do Culto aos Voduns
no reino de Whydah, com capital em Savi, no final do século XVII. Tanto neste
reino como no reino vizinho de Allada, o Culto aos Voduns era uma instituição
sociopolítica que, entre outras funções, aprovava e sancionava a autoridade do rei e
dos chefes das linhagens. Entre as principais divindades, havia a serpente, as árvores
e o mar.
Dangbe (a serpente) era a divindade real em Whydah, entre suas principais atribuições encontrava-se a chuva, sendo assim invocada para a obtenção de boas colheitas. As árvores intervinham, mediante o recebimento de oferendas, nas febres e
traziam cura aos doentes. E o mar, era invocado para acalmar-se e para deixar que
os produtos chegassem à costa. No entanto, Dangbe era considerada a divindade
suprema, uma vez que estendia sua influência sobre o domínio das árvores e do
mar. As influências das divindades acabavam refletindo-se no poder dos sacerdotes,
que também eram consultados pelos dirigentes políticos nas decisões referentes às
81
brasil/áfrica: histórias cruzadas fundamental ii
transações comerciais e aos conflitos armados. Com poderes sobre a agricultura, a
saúde, o comércio e as guerras, os sacerdotes possuíam status político e social que
fazia os reis e chefes de linhagem providenciar os recursos necessários às práticas
religiosas e a subsistência dos sacerdotes.
O rei de Whydah não media esforços e recursos para agradar Dangbe, organizando grandes procissões anuais ao seu templo nas proximidades da capital Savi. Para
isso, também presenteava os sacerdotes e os chefes de linhagem. Dessa maneira, os
chefes do poder civil tinham interesse em sustentar o culto religioso, pois, de outro
modo, não teriam como recuperar parte dos tributos pagos ao rei. Entre outras funções, a atividade religiosa compensava economicamente os grupos sociais diante do
poder da monarquia, uma vez que esses grupos, tal como as divindades, eram presenteados com dinheiro, panos ou peças de seda, mercadorias européias e africanas,
gado, alimentos e bebidas.
Por seu turno, essa aliança entre o poder civil e religioso garantia aos sacerdotes
um número considerável de devotos consagrados às divindades, que contribuíam
(os devotos e seus familiares) com produtos e trabalho para as atividades do templo.
Assim, a atividade religiosa mantinha-se envolvida em uma dinâmica de trocas de
recursos (econômicos, físicos e espirituais) que justificava a sua existência e conservação como instituição central na organização social, política, econômica e cultural
do reino de Whydah. Além disso, a religiosidade proporcionava integração social e
oferecia assistência, soluções e referências culturais e morais que iam ao encontro
das necessidades da população, especialmente em tempos difíceis, como os de secas, guerras, enfermidades e morte.
O exemplo acima é importante, pois, permite entender como uma sociedade da
África Ocidental desenvolveu instituições religiosas centrais na sua organização política e econômica, fundamentais na dinâmica das suas relações sociais. É possível
listar as características principais do Culto aos Voduns no reino de Whydah: a) A
atividade religiosa possuía espaços sagrados estáveis dedicados às divindades (templos com altares); b) A religião dispunha de um corpo de sacerdotes hierarquizado;
c) A religiosidade possuía uma coletividade de devotos; d) A religião tinha atividades litúrgicas periódicas; e) A atividade religiosa era de natureza iniciática; f) As
oferendas para as divindades eram fundamentais à atividade religiosa.
Outro exemplo, agora de cultos periféricos na África Ocidental, pode nos ser oferecido pelo Culto ao Vodum Sakpata, no reino do Daomé. Nas primeiras décadas do século
XVIII, após a conquista dos reinos de Allada e Whydah, o rei Agaja e o seu sucessor, Te-
82
Religiosidade Africana no Brasil
gbesu, adotaram a política de apropriação dos cultos dos povos submetidos, em alguns
casos, transportando altares e sacerdotes para a capital do reino, a cidade de Abomey.
Com essa política, os reis do Daomé visavam, por um lado, a acumulação do poder
religioso e maior influência sobre os territórios conquistados e, por outro lado, buscavam acalmar a possível cólera das divindades dos povos vencidos. Ao mesmo tempo,
procuravam manter um controle real das diversas congregações religiosas, uma vez que
algumas delas eram vistas como foco de contestação ao poder central de Abomey.
Com a progressiva expansão da varíola na área do reino do Daomé, os sacerdotes
de Sakpata alcançaram um grande prestígio. Eles eram considerados as únicas
pessoas capazes de intervir em casos de epidemias, sendo responsáveis pelas
curas individuais, pelos rituais para aplacar a cólera da divindade e pelas festas
de agradecimento para aqueles que escapavam da morte que, aliás, passavam a
ser adeptos do Vodum. Por outro lado, também eram considerados conspiradores e contestadores do poder, sendo muitos deles expulsos do Daomé. No século
XVIII, quatro reis do Daomé pegaram varíola, sendo que três morreram por
causa da doença. Assim, o Vodum Sakpata tornou-se um símbolo daqueles que
estavam descontentes e contestavam a monarquia de Abomey. Por seu turno, o
poder central do reino oscilava entre a vontade de banir o culto a Sakpata e o
medo de não poder enfrentar as epidemias sem o auxílio dos seus sacerdotes.
Os exemplos acima, tomados da África Ocidental anterior à colonização
européia, demonstram bem a dinâmica histórica dessas sociedades, onde a religiosidade se apresenta como um aspecto vivo da experiência cotidiana, articulando indivíduos e grupos sociais, apresentando-se por vezes em dimensões
conservadoras, porém, outras vezes, contestadoras de instituições políticas,
sociais, econômicas e culturais.
Laços atlânticos, histórias cruzadas
Os africanos escravizados e desembarcados nas Américas inicialmente
compartilhavam a situação dramática da escravidão, mas não apenas, também partilhavam muitas características fundamentais nas diferentes culturas,
especialmente valores e práticas de caráter religioso. Esses indivíduos se adaptaram aos elementos do novo contexto. Atendendo as necessidades do cotidiano, recriaram estilos de vida dentro dos limites impostos pelo sistema escravista. Assim, instituições sociais e simbólicas foram reconstruídas, passando a
83
brasil/áfrica: histórias cruzadas fundamental ii
constituir a cena econômica, social, estética e religiosa do Novo Mundo. No
Brasil, tendo como base as tradições da África Ocidental e Central, da confluência de ritos, símbolos, mitos e crenças de culturas diversas, os africanos e
seus descendentes preservaram, recriaram e desenvolveram práticas religiosas
novas e plurais. Uma das formas de entender esses laços atlânticos é através
do estudo das identidades étnicas africanas e suas re-elaborações na diáspora.
A terminologia utilizada pelos portugueses no tratamento dos povos indígenas e africanos obscurecia as distinções culturais individuais. Termos como
“índio”, “gentio da terra” ou “negro da terra”, foram usados para designar os
diversos povos autóctones. Os antecedentes dessa lógica aparecem na experiência portuguesa no ultramar, demonstradas em expressões como “negros da
Guiné” e “gentios da Guiné”, primeiras designações de africanos escravizados
que aportaram na Bahia no século XVI. Essa redução da diversidade dos povos africanos a uma terminologia comum indica o cunho de mercadoria que
aquela população passa a ter na percepção dos portugueses no momento em
que o tráfico negreiro começa a se tornar o mais importante empreendimento
comercial de Portugal. É justamente na segunda metade do século XVI, quando as informações sobre os africanos passam a vir dos traficantes de escravos,
que essa homogeneização a uma única categoria, “negros da Guiné”, é levada
a efeito. Para os portugueses desta época, toda a África Ocidental era denominada Guiné, da Gâmbia ao Congo, sendo os mais importantes centros do
tráfico o Cachéu, São Jorge da Mina, São Tomé e Príncipe e o reino do Congo.
Ao estudarmos o tráfico de africanos para o Brasil é possível reconhecer
zonas onde se concentrou o comércio de escravos em determinados períodos
históricos. Essa constatação fez alguns especialistas subdividirem o estudo do
tráfico de escravos em ciclos – o período inicial do tráfico para o Brasil corresponderia ao ciclo da Guiné3. No entanto, a despeito das imprecisões dos termos
utilizados pelos traficantes, as subdivisões propostas buscam atender a uma tentativa de estudo do tráfico e não refletir a idéia de exclusivismo de certas áreas em
períodos determinados. Pois, em todo o tempo de duração do comércio de escravos,
3
84
Um dos autores que realizou a periodização do tráfico de escravos em ciclos foi Pierre Verger. Ele subdividiu
o tráfico em quatro ciclos: Ciclo da Guiné (segunda metade do século XVI), Ciclo de Angola (século XVII),
Ciclo da Costa da Mina (os três quartos iniciais do século XVIII) e o Ciclo da baía do Benin (de 1770 ao
período da ilegalidade no século XIX).
Religiosidade Africana no Brasil
africanos de origens diversas foram trazidos aos portos brasileiros para os mais variados serviços no campo e na cidade.
Os “ciclos” do tráfico poderiam fornecer informações mais precisas sobre as denominações dos povos africanos, contudo, os “nomes comerciais” utilizados pelos
traficantes para identificar os escravos se referem a vastas áreas geográficas, reinos
e portos de embarque, fazendo perdurar as dificuldades em conhecer as identidades específicas desses indivíduos. É evidente que a permanência durante séculos de
portugueses no continente africano somado ao estabelecimento de inúmeras redes
de trocas paralelas ao tráfico possibilitava um conhecimento maior dos africanos,
incluindo seus etnônimos. O que de fato estar encoberto nas designações generalizantes atribuídas pelos portugueses aos africanos é a intenção de transformar os
indivíduos escravizados em “coisas”, entendidos, a partir da captura, como simples
mercadoria.
O tráfico de escravos para a Bahia, nos séculos XVI e XVII, se fez, sobretudo com as costas da África ao sul do equador, Congo e Angola principalmente.
Já no século XVIII e XIX, o tráfico se voltou para a região do golfo do Benin.
Entretanto, em outras partes do Brasil, como Rio de Janeiro e Minas Gerais,
o comércio com as regiões do Centro-Oeste africano permaneceu intenso, o
que, evidentemente, demarca as diferentes características da composição étnica entre as diversas regiões do Brasil.
Na Bahia, em fins do século XIX, esses africanos eram identificados como
nagôs, jejes, guruncis, minas, haussás, tapas e bornus. Nessa tipologia, podemos notar a inscrição de nomes étnicos como “haussá” ao lado de nomes mais
generalizantes como “nagô”, “mina” ou “jeje”. No Rio de Janeiro do século
XIX, os africanos eram identificados em sete grandes nações africanas e várias
outras menores. As principais eram: mina, cabinda, congo, angola, caçanje,
benguela e moçambique. As menores: gabão, anjico, monjola, moange, rebola
(libolo), cajenge, cabundá, quilimane, inhambane, mucena e mombaça. Partindo desses nomes é possível voltar o olhar para a África Central, Austral, Oriental e Ocidental, na tentativa de iluminar a diversidade encoberta pelo tráfico.
Os diversos povos africanos encontrados no Rio de Janeiro do século XIX, provenientes, sobretudo, da África Central, expressavam certa unidade lingüística, incluindo também nesses termos os povos da África Austral. Eles constituiriam uma
família de línguas que foi batizada como “banto”. Sem dúvida alguma, os primeiros
a descobrirem essa semelhança lingüística, essa África no Brasil, foram os próprios
85
brasil/áfrica: histórias cruzadas fundamental ii
africanos. Com isso, temos uma dimensão de como a diversidade regional do tráfico
para o Brasil configurou de diferentes maneiras a vida dos indivíduos aqui desembarcados.
A idéia de que a comunicação entre os africanos escravizados teria inicio após a
viagem para a América, com a aquisição de um idioma europeu ou mesmo uma língua pidgin (crioula) baseada nele, cede espaço para uma compreensão mais ampla
do processo. A trajetória entre a captura e o tempo da chegada a América favorecia
a formação de uma linguagem comum e, esta comunidade de comunicação incluía
valores e atitudes culturais comuns, não devendo ser deixado de lado um conjunto
de saberes, compartilhado com os europeus, sobre os europeus e a Europa.
A experiência religiosa dos africanos no interior das irmandades católicas se
constitui num referencial para refletirmos sobre as recriações das identidades africanas no Brasil4. Nessas congregações, os africanos adaptaram a sua experiência religiosa ao cristianismo e não apenas isso. Estas organizações funcionavam como importantes centros de convívio e assistência social, procurando atender os indivíduos
a elas associados nas satisfações da vida, nos sofrimentos da doença e na hora da
morte. A construção de um parentesco de “nação” entre os membros das irmandades
constituía uma nova família africana que se afirmava culturalmente na diáspora.
Essa criação familiar refletia frequentemente as afinidades étnicas encontradas
na sociedade, identidades muitas vezes explicitadas pelo uso da palavra “parente”.
Afinidades e distinções étnicas eram derivadas do convívio e descobertas de semelhanças e diferenças entre os vários grupos, construindo relações de poder e definindo, em larga medida, a composição das irmandades e candomblés, assim como, o
agrupamento nos cantos de trabalho e nas juntas de alforria5.
Inicialmente, as distinções étnicas serviram a interesses segregacionistas do
poder civil ou da Igreja Católica, para manter as divisões existentes entre os
4
5
86
Ao contrário das irmandades, onde as adaptações culturais foram realizadas dentro
de uma instituição que existia no mundo europeu e, portanto, submetida a maior
controle da elite, as práticas religiosas africanas organizadas a partir do século XIX sob
a denominação de “candomblé” expressavam uma estrutura comunitária constituída
sobre princípios de ascendência africana. Entretanto, faz-se necessário assinalar, que
a história de importantes candomblés fundados no século XIX guarda relações com
membros das irmandades católicas formadas por africanos.
Outras organizações como os cantos de trabalho e as juntas de alforria foram
importantes nesse processo de reconstrução das “nações” africanas no Brasil
Religiosidade Africana no Brasil
escravos, visando manter os grupos culturalmente estrangeiros ou potencialmente hostis, especialmente nas regiões com intensa concentração de africanos. Assim, enquanto para a elite colonial, as irmandades de negros eram instrumentos de evangelização e domesticação da alma africana, por sua vez, os
negros africanizavam o cristianismo, afirmando suas identidade e aspirando
uma crescente autonomia.
Em relação ao candomblé, suas práticas foram fundamentais para a construção de alianças entre os grupos denominados “jeje”, “nagô”, “congo” e
“angola”. A habilidade para fazer alianças foi, desde o início, uma característica dos candomblés e, antes deles, dos calundus coloniais. Desde aquela época conquistavam a simpatia, participação, recursos e proteção, de crioulos,
mulatos e até mesmo alguns brancos, ao tempo em que eram perseguidos por
autoridades civis e eclesiásticas.
Como se pode notar, a importância do conhecimento sobre as identidades
(nações) africanas não reside unicamente na identificação dos diversos grupos
de africanos e descendentes que viveram e vivem no Brasil, mas, sobretudo, no
encontro, a partir dessas denominações, de histórias cruzadas, dos nossos laços atlânticos com a África, compreendendo melhor os desafios das múltiplas
trajetórias dos africanos para restabelecerem laços comunitários, reinventarem suas vidas e restabelecerem sua ligação com o mundo invisível, amparados em grande medida nas recriações de vínculos de identidade.
87
Língua Portuguesa
ENSINO MÉDIO
No nível médio, as possibilidades de trabalho no ensino da língua portuguesa, com ênfase no conhecimento da história e cultura afro-brasileira e africana, aumentam bastante, já que ao final do ensino médio o aluno deve considerar a Língua Portuguesa como fonte de legitimação de discursos e normas
sociais e como representação simbólica de experiências humanas manifestas
nas formas de sentir, pensar e agir na vida social.
A possibilidade de estudar sobre a contribuição de diferentes povos africanos na língua portuguesa, na construção do país, assim como, discutir sobre a
representação do negro na literatura brasileira, conhecer e analisar a literatura
afro-brasileira e africana contemporânea com seus autores e suas diversas publicações, o papel da mulher nesse contexto, entre outros, podem compor os
conteúdos no nível médio. Segue algumas possibilidades:
vvIdentificação e leitura de textos de autores negros publicados nos séculos
XIX e XX;
vvAnalise das obras literárias produzidas pelos autores selecionados;
vvCatalogação e leitura de textos produzidos pela imprensa negra no
Brasil;
brasil/áfrica: histórias cruzadas fundamental ii
vvIdentificação e leitura de textos de autores afro-brasileiros e africanos
publicado no século XXI;
vvEstabelecer diálogos intertextuais entre autores de países africanos e
afro-brasileiros;
vvComparar criticamente as representações produzidas por autores ne-
gros e não-negros;
vvAnalisar e discutir a reprodução de estereótipos negativos do negro/a
e suas culturas em vários tipos de textos;
vvIdentificação de outros artistas e intelectuais que compõem a vida cultu-
ral e historia do afro-brasileiro;
Sugere-se ainda, nesse nível, a leitura, análise e contextualização histórico-cultural de romances afro-brasileiros e africanos indicados para seleção do
vestibular em diversas instituições do ensino superior do Brasil. O que favorecerá aos estudantes confrontarem diferentes opiniões e pontos de vista sobre
as diferentes manifestações da linguagem verbal, além de relacionarem textos/
contextos, mediante a natureza, função, organização, estrutura, de acordo
com as condições de produção/recepção, objetivos que os estudantes devem
atingir ao concluir o ensino médio.
Os 22 (vinte e dois) textos aqui selecionados são de autoria de escritores e
escritoras afrodescendentes nascidos em várias regiões do país e que publicam
desde o início do século XX; Os textos escolhidos são entendidos como exemplares ilustrativos importantes para um primeiro contato dos adolescentes
com textos de escritores do Brasil e de países africanos, por outro lado, devido à precária circulação de textos dos citados autores, os textos selecionados
foram escolhidos a partir dos nossos acervos pessoais.
Os poemas e contos aqui citados versam sobre aspectos da cultura negra
no Brasil e representam personagens negros vivenciando situações diversas.
Os textos podem ser utilizados pelo professor em perspectiva comparatista a fim de ressaltar as semelhanças e diferenças existentes no interior das
culturas afrobrasileiras, assim como, as especificidades regionais. Podem ser
feitas atividades de leitura de poemas, memorização de versos ou poemas,
declamações, interpretações performáticas (produzidas pelos alunos, tais como, jograis, danças e outras performances de caráter artístico), produção de
raps e de outras formas musicais a partir dos textos propostos, organização
92
Língua Portuguesa
de debates e fóruns de discussões sobre os temas apontados e outros sugeridos pelos alunos, organização de murais e produção de desenhos, além
de outras atividades que serão organizadas tanto pelos professores quanto
pelos estudantes.
AUTORES E TEXTOS PARA SEREM TRABALHADOS
NÍVEIS FUNDAMENTAL II E MÉDIO
1- MAHIN AMANHÃ
Miriam Alves
Ouve-se nos cantos a conspiração
Vozes baixas sussurram frases precisas
Escorre nos becos a lâmina das adagas
Multidão tropeça nas pedras
Revolta
Há revoada de pássaros
Sussurro, sussurro;
“è amanhã, é amanhã.
Mahin falou, é amanhã
A cidade toda se prepara
Malês
Bantus
Geges
Nagôs
Vestes coloridas resguardam esperanças
93
brasil/áfrica: histórias cruzadas fundamental ii
Aguardam a luta
Arma-se a grande derrubada branca
A luta é tramada na língua dos Orixás
“ – è aminhã, aminhã
Sussurram
Malês
Geges
Bantus
Nagôs
È aminhã, Luiza Mahin falou.
(In: Cadernos Negros: os melhores poemas. São Paulo: Quilombhoje, 1998, p.104)
TEMA: A revolta dos Malês, revolta de escravizados africanos contra o regime escravagista ocorrida na Bahia em 18351
SUGESTÃO DE ATIVIDADES:
»»Promover diálogos com a disciplina história do Brasil para entender melhor o
que aconteceu na revolta;
»»Ler sobre Luiza Mahin – lendária personagem apresentada como mãe do poeta
Luis Gama e participante da revolta;
»»Pesquisar sobre o poeta Luis Gama e sua atuação como escritor e como abolicionista;
»»Catalogar um poema de autoria de Luis Gama.
2- VOZES MULHERES
1
94
Segundo o historiador João Reis, autor de um grande estudo sobre a revolta, Na madrugada de 25 de janeiro de 1835, um domingo, aconteceu em Salvado uma revolta de escravos africanos que ficou conhecida
como Revolta dos Malês. A expressão “malê” é de origem iorubá e significa muçulmanos. Segundo Reis, os
malês eram especificamente os muçulmanos de língua iorubá, conhecidos como “nagôs” na Bahia. Outros
grupos, até mais islamizados como os “haussás”, também participaram, porém contribuindo com muito
menor número de rebeldes.
A revolta envolveu cerca de 600 homens, o que parece pouco, mas esse número equivale aproximadamente a
24 mil pessoas nos dias de hoje. Os rebeldes tinham planejado o levante para acontecer nas primeiras horas da
manhã do dia 25, mas foram denunciados e a revolta não obteve o resultado esperado pelos participantes.
Língua Portuguesa
Conceição Evaristo
A voz da minha bisavó ecoou
Criança
Nos porões do navio
Ecoou lamentos
de uma infância perdida.
A voz da minha avó
Ecoou obediência
Aos brancos-donos de tudo.
A voz de minha mãe
Ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela.
A minha voz ainda
Ecoa versos perplexos
Com rimas de sangue
e
fome.
A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha
Recolhe em si
A fala e o ato.
95
brasil/áfrica: histórias cruzadas fundamental ii
O ontem- o hoje – o agora.
Na voz de minha filha
Se fará ouvir a ressonância
O eco da vida-liberdade
(In: Cadernos Negros 13. São Paulo: Quilombhoje, 1990, p.32-33.)
TEMA: Uma genealogia da atuação das mulheres negras no Brasil e na diáspora, os modos como elas reagiram ao regime escravagista e como usaram
suas vozes para protestar e para alterar as suas realidades.
SUGESTÃO DE ATIVIDADES:
»»Pedir aos alunos que falem sobre a história seus antepassados (bisavó, avó) – explicar o que é genealogia;
»»Analisar como a poetisa constrói sua genealogia e sua relação com a história do
negro no Brasil;
»»Caracterizar a atuação da bisavó, avó, mãe e filha - observando semelhanças e
diferenças.
4- SOU NEGRO
Solano Trindade
Sou Negro
Meus avós foram queimados
Pelo sol da África
Minh’alma recebeu o batismo dos tambores
Atabaques, gonguês e agogôs.
Contaram-me que meus avós
Vieram de Loanda
Como mercadoria de baixo preço
Plantaram cana pro senhor do engenho novo
E fundaram o primeiro maracatu
Depois meu avô brigou como um danado
Nas terras de Zumbi
96
Língua Portuguesa
Era valente como quê
Na capoeira ou na faca
Escreveu não leu
Pau comeu
Não foi um pai João
Humilde e manso
Mesmo vovó
Não foi de brincadeira
Nas guerras dos Malés
Ela se destacou.
Na minha alma ficou
O samba
O batuque
O bamboleio
E o desejo de libertação.
(In.: Canto Negro. São Paulo: Pallas, 2006. p. 16)
TEMA: História da resistência do afrobrasileiro ao processo de escravização.
SUGESTÃO DE ATIVIDADES:
»»Comparar com o poema “Vozes mulheres” de Conceição Evaristo;
»»Ressaltar que o poema também pode ser lido como uma genealogia deste sujeito
poético;
»»Observar as referências de: África, trabalho escravo (engenho), a liberdade, a revolta dos Malês, Zumbi, capoeira, música, rebeldia negra ao sistema escravagista
presentes no texto;
»»Produzir mural sobre a sua própria genealogia ou de outrem;
5 - UM
Adão Ventura
97
brasil/áfrica: histórias cruzadas fundamental ii
Em negro
Teceram-me a pele
Enormes correntes
Amarram-me ao tronco
De uma Nova África.
Carrego comigo
A sombra de longos muros
Tentando impedir
Que meus pés
Cheguem ao final
Dos caminhos.
Mas o meu sangue
Está cada vez mais forte,
Tão forte quanto as imensas pedras
Que os meus avós carregaram
Para edificar os palácios dos reis.
(In: A cor da pele. Belo Horizonte: Edição do Autor,1988, s/p)
TEMA: resistência, ligação com África, história do povo negro no Brasil
SUGESTÃO DE ATIVIDADES:
»»Analisar o poema em perspectiva comparatista com outros poemas lidos
»»Explicar significados possíveis para a expressão “ Nova África”
»»Observar que o poeta fala do presente e do passado, a partir da observação indicar as diferenças que ele aponta entre estes dois momentos;
6 -TATUAGEM
Geni Guimarães
Gosto muito
98
Língua Portuguesa
desta história feita
na folha de papel
absorvendo tintas.
Quero muito
o sutil da batalha
entrincheirada e viva
na alma viva do poema necessário.
Porém mais gosto
do sigiloso verso
esboçado em nossos corpos,
grafado no imutável verbo dos sentidos.
(In: Balé das emoções. Barra Bonita: Evergraf, s/d.)
TEMA: O corpo e poesia considerados como reflexos das histórias dos sujeitos; Uso do corpo como veículo de expressão e símbolo de resistência; reversão das representações negativas presentes no imaginário herdado de uma
cultura racista.
SUGESTÃO DE ATIVIDADES:
»»Você conhece alguém que possua tatuagem no corpo?
»»Qual o significado de uma tatuagem para você?
»»O texto fala da história de vida como sendo uma tatuagem, você concorda com
esta imagem?
»»Indique os versos em que a poeta trata o poema como ser vivo
»»Você acha que os poemas têm alguma relação com a história e com a vida dos
seus autores? Por que?
7 - MEU POEMA
De Paula, W. J.
O meu poema não basta.
Não leva o pão à mesa;
99
brasil/áfrica: histórias cruzadas fundamental ii
Não constrói a moradia.
Pelas venezianas
Meu poema perambula
À cata de soluções.
Pelas portas que destranca
Meu poema indica as saídas
Para os impasses da cor:
A escola distante;
A fome presente;
A preterição no trabalho;
O milagre que alisa o cabelo,
A alcunha de facínora;
A alternativa de embranquecer
Nossas almas.
Bem sei, o meu poema não basta,
Mas ai do povo
Que não tem seus cantores!
(In.: Cadernos Negros 3. São Paulo: Quilombhoje, 1980, p.55)
TEMA
A importância da literatura para a construção da história dos povos
100
Língua Portuguesa
SUGESTÃO DE ATIVIDADES:
»»Você já reparou que todos os países possuem uma literatura nacional?
»»Qual o texto da literatura brasileira de que você mais gosta?
»»Poeta, como cantor de um povo, deve falar dos aspectos positivos ou negativos
deste povo?
»»Você conhece algum texto de uma literatura estrangeira? Ele fala sobre a vida
das pessoas do país?
»»Para que aspectos da vida brasileira o poema acima pretende encontrar resoluções?
»»Por que você acha que o poeta afirma: “ Meu poema não basta” Você concorda?
8 - QUARTO DE DESPEJO: diário de uma favelada2 ( trechos)
Carolina de Jesus
1de junho
(...)
Eu não tenho que dizer da minha saudosa mãe. Ela era muito boa. Queria que eu estudasse para professora. Foi as contigencias da vida que lhe
impossibilitou concretizar o seu sonho. Mas ela formou o meu caráter, ensinando-me a gostar dos humildes e dos fracos. É por isso que eu tenho dó
dos favelados. Se bem que aqui tem pessoas dignas de despreso, pessoas de
espírito perverso. (...)
É quatro horas. Eu já fiz o almoço – hoje foi almoço. Tinha arroz, feijão
e repolho e lingüiça. Quando eu faço quatro pratos penso que sou alguem.
2 Quarto de Despejo é o diário de Carolina, uma catadora de papéis, semi-analfabeta, negra, pobre e favelada.
É, também, autora, personagem e narradora do livro. Em sua obra ela traz para o enredo do diário o
cotidiano de excluídos e marginalizados por questões sociais e étnicas. É um diário autobiográfico e um
documento sobre a vida de uma favela A publicação de Quarto de Despejo se deve ao jornalista Audálio
Dantas, que entendeu a importância do diário da favela do Canindé.
Incumbido de fazer uma reportagem sobre a inauguração de um parque infantil naquela favela, Dantas
ouviu uma mulher gritar “Vou colocar vocês no meu livro”. Curioso em saber de que “livro” se tratava, o
jornalista foi levado pela própria Carolina ao seu barraco. Mostrou-lhe então alguns cadernos recolhidos no
lixo, nos quais registrava o dia-a-dia da favela, a fome, as dificuldades para conseguir alimento, as brigas, as
mortes, enfim, o cotidiano de uma sociedade miserável, à margem da humanidade. Ele organizou os textos
e buscou meios de publicá-los.
.
101
brasil/áfrica: histórias cruzadas fundamental ii
Quando vejo meus filhos comento arroz e feijão, o alimento que não está ao
alcance do favelado fico sorrindo atoa. Como seu eu estivesse assistindo um
espetaculo deslumbrante. Lavei as roupas e o barracão. Agora vou ler e escrever. Vejo os jovens jogando bola. E eles correm pelo campo demonstrando
energia. Penso: se eles tomassem leite puro e comessem carne...
2 de junho Amanheceu fazendo frio. Acendi o fogo e mandei o João ir
comprar pão e café. O pão, o Chico do Mercadinho cortou um pedaço.
Eu chinguei o Chico de ordinário, cachorro, eu queria ser um raio para
cortar-lhe em mil pedaços. O pão não deu e os meninos não levaram lanche.
.... De manhã eu estou sempre nervosa. Com medo de não arranjar dinheiro para comprar o que comer. Mas hoje é segunda feira e tem muito papel na
rua (...) O senhor Manuel apareceu dizendo que quer casar-se comigo. Mas
eu não quero porque já estou na maturidade. E depois, um homem não ha
de gostar de uma mulher que não pode passar sem ler. E que levanta para
escrever. E que deita com lapis e papel debaixo do travesseiro. Por isso é que
eu prefiro viver só para o meu ideal. Ele deu-me 50 cruzeiros e eu paguei a
costureira. Um vestido que fez a Vera. A Dona Alice veiu queixar-se que o
senhor Alexandre estava lhe insultando por causa de 65 cruzeiros. Pensei: ah!
O dinheiro. Que faz morte, que faz odio criar raiz.
(In: Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 2005, p,43-44.)
8- DIÁRIO DE UMA FAVELADA
Ademiro Alves (Sacolinha)
Maria teve uma doença na perna
Curada com o tempo e com as rezas
Passou a adolescência de casa em casa
Na labuta de empregada
Carolina já adulta continuava sozinha
Andava aqui e ali
Sempre à procura de emprego
Nunca de migalhas
De Jesus herdou o nome
102
Língua Portuguesa
E a coragem
Foi jogada na favela
Esperta que era
Tirou proveito dela
Relatando os tropeços
Nasceu então o quarto de despejo
(In.: Cadernos Negros 29. São Paulo: Quilombhoje, 2006.p. 23)
TEMA: a produção de textos não depende de classe, nem de formação escolar,
qualqur pesso pode construir um texto, oral ou escrito. O poema presta uma
homenagem à escritora Maria Carolina de Jesus (décadas de 50 e 60).
SUGESTÃO DE ATIVIDADES:
»»pesquisar sobre a escritora Maria Carolina,
»»Fazer anotações sobre o contexto histórico das décadas de 50 e 60 do século XX
- tempo em que ela escreveu o diário;
»»destacar que a autora escreveu sobre sua vida na favela e nos seus diários podemos ler sobre uma série de situações vivenciadas pelas classes populares no
Brasil, vivenciadas principalmente pelas mulheres negras e pobres;
»»comparar a pesquisa realizada com o poema “Diário de uma favelada” de Sacolinha;
9 - ( poema sem título)
Landê Onawale ( pseudônimo de Reinaldo Sampaio)
O angoleiro
Se tira pelo tombo
Do ombro
do jongo
da ginga
...e não houve atlântico que apagasse tais pegadas...
(In: O vento. Salvador: Edição do Autor, 2003, p.59)
103
brasil/áfrica: histórias cruzadas fundamental ii
TEMA: A capoeira
SUGESTÃO DE ATIVIDADES:
»»Observar a maneira como os versos são distribuídos no papel e comparar com os
movimentos da capoeira;
»»Que é capoeira?
»»Quais os tipos de capoeira você encontra em sua região?
»»Existem, em sua região, outro jogos/danças que tenham origem parecida com a
origem da capoeira? Quais?
»»Por que o poeta faz referência a atlântico no último verso?
10 - SOMOS CANTO
Márcio Barbosa
Debaixo de nossa pele
E dentro
De nossas veias
Correm rios africanos
Somos Canto
Somos o riso de um atabaque
Feito do couro negro
De nosso corpo
E da voz
Que nasce em nossas almas...
Somos Canto
Em nossas gargantas
Uma rajada de metralhadora
Espera para ser vomitada
Com a força de nossos gemidos...
Por isso somos canto
Somos mais que esperança
Um tan-tan bate em nosso peito
E nos dá a força
104
Língua Portuguesa
De nossos mortos
Ah, Nossos Mortos, Nossos Mortos
A voz deles canta em nosso corpo
E assim
Cantamos também
Por isso somos canto, somos canto
E em nossos olhos
Brilham os sóis
Que queimarão a hipocrisia
Em nome da vida...
Ah. Somos Canto. Canto. Somos canto...
(In.: Cadernos Negros 5. São Paulo: Quilombhoje, 1982, p.40)
TEMA -musicalidade, africanidades, ancestralidade, corpo negro, resistência;
SUGESTÃO DE ATIVIDADES:
»»Você sabia que a música é um dos marcos culturais mais significativos dos povos
africanos e da diáspora?
»»Que instrumentos musicais que você conhece têm origem africana?
»»A música brasileira tem alguma ligação com as músicas de países africanos? Você
conhece algum destes países?
»» Por que o poeta afirma que dentro de nossas veias correm rios africanos?
»»Como você caracterizario o canto com o qual o poeta se define?
11- ZUMBI É SENHOR DOS CAMINHOS
Jônatas Conceição
Resgatar tua presença
Tua firmeza de propósito
De amor e liberdade
Pela raça
Caminhar na tua ausência
105
brasil/áfrica: histórias cruzadas fundamental ii
Fazendo dos passos
De todos os pés
A certeza de todos os encontros
Alcançar teu objetivo
Por essa mesma terra
Que de ti apoderaram
Mas que a ti permanece fiel
Nos objetos marcas caminhos
De suas entranhas
Retomar toda história
De todos os fatos
Contar todas as verdades
Para todas as idades
Do teu mito que
Para sempre se refaz em
Liberdade liberdade liberdade
(In: Poesia Negra: Scwarze Poesie . Koln: Diá, 1988, p.150( antologia bilíngüe))
TEMA: história do negro no Brasil, importância de Zumbi dos Palmares e do
quilombos como traços da resistência afrodescendente no Brasil.
SUGESTÃO DE ATIVIDADES:
»»Vc já ouviu falar em Zumbi?
»»Você sabe o que são quilombos?
»»Ainda existem quilombos no Brasil?
»»Pesquise sobre os quilombos que existiram ou existem em sua região.
106
Língua Portuguesa
12 - ÁFRICA-BRASIL
Esmeralda Ribeiro
De onde eu vim os griots contam histórias
os griots que aconselham o futuro da minha ida
amorosa
mas os griots esqueceram de perguntar ao governo
da África-Brasil
quando eles reconheceram, apesar de tudo,
o passaporte da minha cidadania Africana.
De onde eu vim ainda ouço notícias terríveis
De bombas, pessoas sem braço, sem perna,
Sem eira nem beira
Mas alguém perguntará:
E aqui nessa África-Brasil
Em que guerras estão camufladas
Nas periferias das nossas vidas?
Ah! Mas eu responderei:
É aqui mesmo
Aqui
Nessa África-Brasil que criarei filhos negros
Com a proteção das Iabás, das Mães Feiticeiras.
De onde eu vim ainda me contam lendas
como a do menino Kiriku
ainda vejo máscaras de Deuses Africanos
ainda assisto as danças tribais do meu povo
que lindo, que lindo,
Mas é aqui
Aqui
Nessa África-Brasil que eu misturo
danças, lendas, jongos, candombes e batuques
numa alquimia do saber.
(...)
(In: Caderno Negros 25, São Paulo: quilombhoje, 2002, p. 80-81)
107
brasil/áfrica: histórias cruzadas fundamental ii
TEMA: As aproximações histórico-culturais entre África e Brasil
SUGESTÃO DE ATIVIDADES:
»»Que elementos usados pela poeta pode ser identificados como parte do patrimônio cultural africano?
»»Você sabe o que são griots? Eles tem papel importante nas tradições que cultivam
a oralidade
»»Quais as principais diferenças apontadas entre África e Brasil?
»»E as semelhanças?
13- A PALAVRA NEGRO
Luis da Silva Cuti
a palavra negro
tem sua história e segredo
veias do são francisco
prantos do amazonas
e um mistério atlântico
a palavra negro
tem, grito de estrela ao longe
sons sob as retinas
de tambores que embalam as meninas
dos olhos
a palavra negro
tem chaga tem chega!
tem ondas fortessuaves nas praias do apego
nas praias do aconchego
a palavra negro
que muitos não gostam
tem gosto de sol que nasce
108
Língua Portuguesa
a palavra negro
tem sua história e segredo
sagrado desejo dos doces vôos da vida
o trágico entrelaçado
e a magia d’alegria
a palavra negro
tem sua história e segredo
e a cura do medo
do nosso país
a palavra negro
tem o sumo
sem o solo
a raiz.
(In Negroesia : antologia poética. Belo Horizonte: Mazza, 2007, p.17-18)
TEMA: A pluralidade de sentido da palavra negro, as possíveis mudanças
nos significados das palavras
SUGESTÃO DE ATIVIDADES:
»»Liste algumas palavras que você conhece e que possuem sentidos muito diferentes;
»»Que sentidos lhe vêm à mente quando você ouve a palavra negro?
»»Observe que o poeta parece querer fazer a palavra negro viajar entre os rios São
Francisco e Amazonas e também no Oceano Atlântico, o que isto lhe sugere?
»»O poema repete várias vezes a expressão “ a palavra negro tem” enumere alguns
destes atributos da palavra destacados pelo poeta.
»»Você acha que a cultura negra tem pontos semelhantes e diferentes? Por que?
14- CABELOS QUE NEGROS
Oliveira Silveira
Cabelo carapinha,
engruvinhado, de molinha,
que sem monotonia de lisura
109
brasil/áfrica: histórias cruzadas fundamental ii
mostra-esconde a surpresa de mil
espertas espirais,
cabelo puro que dizem que é duro,
cabelo belo que eu não corto à zero,
não nego, não anulo, assumo,
assino pixaim,
cabelo bom que dizem que é ruim
e que normal ao natural
fica bem em mim,
fica até o fim
porque eu quero,
porque eu gosto,
porque sim,
porque eu sou
pessoa, porque sou
pessoa negra e vou
ser mais eu, mais neguim
e ser mais ser
assim.
(In.: Cadernos Negros 25. São Paulo: Quilombhoje, 2002, p. 134)
TEMA – os vários tipos de cabelo das pessoas negras.
SUGESTÃO DE ATIVIDADES:
»»Você já reparou que os cabelos são muito utilizados para definir o fenótipo das
pessoas? Que você acha disto?
»»Você gosta do seu cabelo?
»»Que outros traços fenotípicos você considera que são mais usados para caracterizar as pessoas?
»»Observe que o poeta coloca no poema um traço que foi usado para depreciar e faz
deste traço um traço positivo. O mesmo aconteceu com a palavra negro no poema
de Luis da Silva Cuti. Os poetas criam sentidos novos para as palavras antigas,
ressignificando-as, você conhece outra palavra que tenha sido ressignificada na
contemporaneidade?
»»5 Qual o significado de assumir o cabelo neste texto poético?
110
Biologia
Biologia
ENSINO MÉDIO
111
Biologia
Biólogos, Professores de Ciências e Formadores de
professores
A Lei nº 10.639, de 2003, trouxe um importante desafio à educação em
nosso país: desenvolver pedagogias de combate ao racismo e a discriminações.
Fruto de reivindicações da sociedade e, mais energicamente, do Movimento
Social Negro, essa lei tornou ainda mais urgente que nós, professores, formadores
de professores e pesquisadores do ensino de Ciências, nos questionemos sobre
esse componente curricular pode contribuir para a educação de relações étnicoraciais justas.
Mas, por que trabalhar as relações étnico-raciais nas aulas de Ciências?
Destaco alguns argumentos levantados em Verrangia (2009a), como:
vvA persistente existência de desigualdades educacionais, que têm por base
as diferenças étnico-raciais em nossa sociedade;
vvo fato de que nosso país assumiu nacional e internacionalmente o com-
promisso de combater o racismo, inclusive por meio de uma educação
antirracista em todos os níveis do sistema;
113
brasil/áfrica: histórias cruzadas fundamental ii
vvo consenso existente entre educadores conscientes da importância de de-
senvolver ensino crítico e não alienante, manifesto, por exemplo, na Lei
nº9.394, de 1996, de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB);
vva relevância, também consensual na área da educação, da necessidade
de vincular o ensino à realidade dos alunos, suas vivências concretas,
socioculturais, que envolvem o pertencimento étnico-racial;
vva concepção biológica do conceito de raças, cunhada pelas Ciências Na-
turais do século XVIII, e seu uso para fins de dominação e alienação,
assim como a necessidade de contribuir, com conhecimentos científicos,
para sua superação;
vva necessidade de superar a ideia de neutralidade política das Ciências
Naturais e o compromisso de tratar adequadamente a diversidade cultural que forma a sociedade, no contexto de uma educação para uma
cidadania crítica.
Desafio da Lei 10.639/2003 – respeitar a diversidade
No caso específico da escola, na Educação Básica, a lei 10.639/03 e o Parecer CNE/CP 003/2004 nos propõem um desafio muito importante, que vai
além da obrigatoriedade de conteúdos escolares. O desafio de educar relações
étnico-raciais, isto é, proporcionar aos nossos alunos processos educativos
que os levem a superar preconceitos raciais, viverem práticas sociais livres de
discriminação e que contribuam para seu engajamento em lutas por justiça
social e étnico-racial. Esses processos devem também proporcionar às pessoas
negras e não-negras a oportunidade de construírem identidade étnico-racial
positiva, sendo, para tanto, necessário criar pedagogias de combate ao racismo e às discriminações (BRASIL, 2004, p. 15). Porém, os professores de
Ciências, muitas vezes, ficam de fora desse processo, muitas vezes por não
verem as inúmeras possibilidades que suas disciplinas abrem para tratar de
forma criativa, adequada e justa a diversidade étnico-racial, central na formação de cidadãos e cidadãs ativos e participantes. Muitas vezes, inclusive, os
professores sentem-se inseguros sobre se é, efetivamente, seu papel abordar
tal questão nas aulas de Ciências.
Nesse sentido, os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino de Ciências Naturais definem cidadania como:
114
Biologia
... participação social e política, assim como exercício
de direitos e deveres políticos, civis e sociais, adotando,
no dia-a-dia, atitudes de solidariedade, cooperação e repúdio às injustiças, respeitando o outro e exigindo para
si o mesmo respeito. (BRASIL, 1998, p.07, grifo nosso)
De forma mais clara ainda, essas diretrizes sugerem que os estudantes do
Ensino Fundamental, para tornarem-se cidadãos, devem ser capazes de:
conhecer e valorizar a pluralidade do patrimônio sociocultural brasileiro, bem como aspectos socioculturais de
outros povos e nações, posicionando-se contra qualquer
discriminação baseada em diferenças culturais, de classe
social, de crenças, de sexo, de etnia ou outras características individuais e sociais. (id. ibid., p. 07)
Sendo assim, não há porque o docente de Ciências sentir-se inseguro quanto a tomar seu papel nessa empreitada e envolver-se com atividades e projetos
ligados ao combate ao racismo e à discriminações.
Porém, no contato com docentes de Ciências em cursos que temos ministrado, percebemos que a maioria não consegue ver relações entre suas aulas e
as atividades que a escola pretende implementar, no sentido de discutir e promover relações étnico-raciais positivas. Muito/as procuram assumir postura
de combate à discriminação em sala de aula, repreendendo discriminações e
não discriminando. Porém, quando indagados acerca de atividades e conteúdos conceituais utilizados para abordar promover relações étnico-raciais positivas entre os estudantes, a maioria se mostrou desorientada, despreparada e/
ou insegura, com medo de “piorar a situação”.
Tendo em vista essas dificuldades, o presente material traz uma contribuição no sentido de trazer textos de apoio e propostas pedagógicas que colaborem para que o docente de Ciências, tendo em vista seu papel social e suas
próprias concepções políticas e conhecimentos teóricos, possa trabalhar de
forma adequada no sentido da educação das relações étnico-raciais no ensino
de Ciências Naturais.
115
brasil/áfrica: histórias cruzadas fundamental ii
Proposta
O Parecer CNE/CP 003/2004 explicita diretrizes a serem tomadas pelos
estabelecimentos de ensino a fim de direcionar sua práticas no sentido da reeducação das relações étnico-raciais. Esses princípios, dirigidos a sistemas de
ensino, estabelecimentos e professores/as, são três: consciência política e histórica da diversidade; fortalecimento de identidades e de direitos e ações educativas de combate ao racismo e a discriminações (BRASIL, 2004, p. 9-11).
De forma alinhada e complementar aos princípios apresentados anteriormente, Silva (2004) apresenta um “primeiro esboço” de uma proposta a ser
considerada no contexto de um projeto nacional de educação que leve em
conta a perspectiva dos negros brasileiros, por meio de princípios a serem levados em conta por instituições e sistemas de ensino. Assim, apresenta quatro
princípios a serem considerados junto aos já assumidos por esses sistemas e
instituições: a) “Enfrentamento e Superação de Racismos, Discriminações e
Intolerâncias”; b) “Reconhecimento de Valores, Processos de Raciocínio, Pensamentos Comportamentos Próprios a Diferentes Grupos Étnico-Raciais”; c)
“Rompimento com a Homogeneidade de Conhecimentos tidos como Superiores”; d) “Tratamento Diferenciado para Situações, Condições Específicas de
Diferentes Grupos Étnico-Raciais”.
Tendo em vista esses princípios e as diretrizes que regulamentam o ensino
de Ciências Naturais na Educação Infantil e Básica (Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação Infantil – Brasil, 1998b – Parâmetros Curriculares
Nacionais para o Ensino Fundamental e Médio, Brasil 1998a e ), propomos
abordagens e atividades que contemplem o objetivo de educar relações étnico-raciais justas e de abordar adequadamente a história e cultura africana e
afro-brasileira no componente curricular Ciências Naturais. Como exemplo,
partimos do princípio do a) citado, “Enfrentamento e Superação de Racismos, Discriminações e Intolerâncias”, e mostrando algumas possibilidades de
atuação nos diferentes níveis de ensino.
Ao fim do ensino médio o estudante deve compreender e utilizar a ciência,
como elemento de interpretação e intervenção, e a tecnologia como conhecimento sistemático de sentido prático. Nesse sentido, uma das capacidades e
habilidades que devem desenvolver é: “[...] entender o impacto das tecnologias associadas às Ciências Naturais, na sua vida pessoal, nos processos de
116
Biologia
produção, no desenvolvimento do conhecimento e na vida social” (BRASIL,
2000, p. 13).
A fim de contribui com esse objetivo, o professor de Biologia pode realizar
atividades que discutam o impacto do conhecimento científico na vida social.
Por exemplo, podem ser criadas atividades que explorem o papel das teorias
raciais dos séculos XVIII, XIX e XX na fundamentação do chamado “racismo
científico”. Em tais atividades podem ser realizados debates e pesquisas sobre
teorias e movimentos científicos que deram base ao conceito biológico de raças humanas, ainda fortemente presente no ideário da população brasileira e
que orienta tensas relações sociais. São também interessantes análises críticas
sobre a importância histórica de teorias científicas, como as teorias da evolução darwinista e da hereditariedade mendeliana, na formação de concepções
sobre raça, miscigenação, etnia, gênero, normalidade e defeito/desvio, aptidão
e inaptidão social etc. Neste mesmo sentido, pode ser ressaltada a importância
de dimensionar e avaliar, de forma crítica, o papel de movimentos científicos
como a eugenia na formação de imaginário social sobre raças, miscigenação
e etnia, e permanência de ideias criadas em seu contexto, do início do século
XX ao período atual. A coleta de dados, pelos estudantes, junto à população
pode ser uma forma de envolve-los e aprofundar tais relações na sala de aula.
Para o livro, darei exemplos mais específicos e sugestões de atividades e
pequenos textos.
117
Metemática
ENSINO MÉDIO
Um prodígio em cálculo mental oriundo da África
ocidental
Nos séculos 17 a 19, milhões de africanos foram capturados, traficados e
transportados como escravos da África para as Américas. Estes prisioneiros
eram portadores de muitos conhecimentos, adquiridos nas suas ricas culturas
de origem, frutos da invenção, da educação e da transmissão de geração em
geração. Por exemplo, no continente africano têm havido tradições bem enraizadas de cálculo mental.
[mapa]
brasil/áfrica: histórias cruzadas fundamental ii
Em 1724, um jovem de catorze anos, educado num contexto duma forte
tradição de cálculo mental, foi deportado da região do Golfo de Benin para
a América do Norte. Não se conhece o nome africano deste jovem. Hoje só
se conhece o nome dele como escravo, Thomas Fuller. Nunca viveu em liberdade, sempre continuou como escravo, mesmo depois da declaração da independência dos Estados Unidos em 1776. As suas capacidades extraordinárias
de cálculo mental foram exploradas pela sua ‘dona’, como podemos ler nos
seguintes fragmentos de dois relatos publicados no fim da vida dele:
RELATO DO ADMIRÁVEL TALENTO PARA CÁLCULO
ARITMÉTICO DUM ESCRAVO AFRICANO RESIDENTE
NA VIRGÍNIA
(Benjamin Rush na revista American Museum, Filadélfia, 1789)
Vive agora, a cerca de quatro milhas de Alexandria, no Estado de Virgínia, um
escravo negro de setenta e tal anos de idade com o nome de Thomas Fuller e que é
propriedade da senhora Elizabeth Coxe. Este homem possui um talento para cálculo
aritmético cuja história, na minha opinião, merece um lugar nos anais do pensamento humano. É natural de África e não sabe ler nem escrever. Dois senhores naturais
da Pensilvânia, a saber, William Hartshorne e Samuel Coates, homens honrados e
personalidades respeitáveis, ao viajarem pela região onde este escravo vivia, e tendo
ouvido falar das suas extraordinárias capacidades em aritmética, foram ter com ele e
ficaram impressionados com as respostas que ele deu às questões que lhe colocaram:
Primeira:
Ao perguntarem-lhe quantos segundos há num ano e meio, ele respondeu, em cerca de dois minutos, 47.304.000.
Segunda:
Ao perguntarem-lhe quantos segundos viveu uma pessoa com setenta anos, dezassete dias e doze horas de idade, ele respondeu, num
minuto e meio, 2.210.500.800. Mas um dos senhores, utilizando
uma caneta, ao fazer estes cálculos, disse-lhe que ele estava errado e
que a soma não era tão grande como tinha dito, ao que o velho respondeu imediatamente “espere, senhor, está a esquecer-se dos anos
bissextos”. Ao adicionar os segundos dos anos bissextos aos outros
o resultado obtido correspondeu exactamente à resposta de Fuller.
122
Metemática
Terceira:
A seguir foi-lhe colocada a seguinte questão: “suponha que um
agricultor tem seis porcas e cada uma tem seis porcas no primeiro
ano e todas aumentam na mesma proporção, quantas terá o agricultor ao fim de oito anos?” ... Respondeu: 34.588.806. ...
Na presença de Thomas Wistar e Benjamin W. Morris, dois cidadãos respeitáveis de Filadélfia, ele deu o resultado do produto de um número de nove algarismos
multiplicado por outro de nove algarismos. ... Foi levado ... a calcular com a mais
perfeita exatidão, quantas ripas precisava uma casa de certas dimensões para a sua
cobertura, quantos postes e barrotes era necessário incluir, e quantos grãos de milho
eram necessários para semear certa quantidade de terreno. Este cálculo aplicado
trouxe à dona do terreno benefícios consideráveis. ...
FALECEU - NEGRO TOM, O FAMOSO CALCULADOR
AFRICANO
(No jornal Columbian Centinel, 29 de Dezembro de 1790, Boston, Massachusetts)
Faleceu - NEGRO TOM, o famoso Calculador Africano, 80 anos de idade. Ele
era propriedade da senhora Elizabeth Coxe de Alexandria. Tom era um homem
muito escuro. Ele foi trazido para este país com 14 anos de idade e foi vendido como
escravo com muitos dos seus infelizes compatriotas.
Este homem era um prodígio. Apesar de não saber ler nem escrever, tinha adquirido perfeitamente a arte da enumeração. A capacidade de recordar e a força de
memória eram tão completas nele, que podia multiplicar sete por sete, o resultado por
sete, e o produto, assim produzido, por sete, sete vezes. Podia dar o número de meses,
dias, semanas, horas, minutos e segundos contidos em qualquer período de tempo
que alguém escolhesse, tendo em conta nos seus cálculos todos os anos bissextos que
houvesse; ... em cada cálculo, podia dar a resposta verdadeira em menos tempo que
noventa e nove homens em cem podiam obtê-la com as suas canetas. E, o que era talvez mais extraordinário, embora fosse interrompido ao executar o seu cálculo e levado
a conversar sobre qualquer outro assunto, as suas operações não eram de modo algum
perturbadas a ponto de o fazer começar de novo, prosseguia onde tivesse parado e era
capaz de indicar qualquer uma ou todas as fases do seu cálculo. ... Se a oportunidade
para se desenvolver tivesse sido igual à de milhares dos seus companheiros, nem a Sociedade Real de Londres, nem a Academia de Ciências de Paris, nem sequer o próprio
Newton, se envergonhariam em reconhecê-lo como um Irmão de Ciência.
123
brasil/áfrica: histórias cruzadas fundamental ii
Atividades relacionadas com a primeira questão colocada:
1. Calcule mentalmente o número de segundos numa hora.
2. Calcule o número de segundos num dia. Consegue fazer isto mentalmente? Caso não, calcule o resultado no papel e observe de quanto tempo precisa.
3. Calcule o número de segundos em 365 dias. Meça o tempo.
4. Calcule o número de segundos num ano e meio. A resposta do velho
Thomas Fuller está certa? Conseguiu calcular a resposta mais rapidamente? Precisa de caneta e papel?
Atividades relacionadas com a segunda questão colocada:
5. Calculando no papel ou utilizando uma máquina de cálculo, determine
o número de segundos em setenta anos de 365 dias.
6. Quantos anos bissextos estão contidos em setenta anos consecutivos?
7. Calcule o número de segundos em 70 anos consecutivos.
8. Quantos segundos viveu um homem com 70 anos, 17 dias e 12 horas de
idade?
9. Tomando em conta a informação contida na necrologia, porque Thomas Fuller conseguiu dar a resposta à segunda questão mais rapidamente do que à primeira questão?
Atividades relacionadas com a terceira questão colocada:
10. Depois de um ano, o agricultor tem as seis porcas iniciais mais as crias
de cada uma delas. Quantas porcas haverá depois de um ano?
11. Quantas porcas haverá depois de dois anos?
12. Quantas porcas haverá depois de três anos?
13. Quantas porcas haverá depois de oito anos?
124
Metemática
Atividades relacionadas com a multiplicação de números de
vários algarismos:
14. Imagine, o velho Thomas Fuller ainda era capaz de calcular mentalmente o produto de dois números de nove algarismos, por exemplo
253.178.269 x 574.892.365.
Calcule este produto no papel. De quanto tempo é que precisa? Verifique a resposta, utilizando uma máquina de cálculo.
15.Pode calcular mentalmente o produto de dois números quaisquer de
dois algarismos? Por exemplo,
37 x 48 = ?
16. Pode calcular mentalmente
258 x 792?
Hoje em dia, cálculos com números de três ou mais algarismos podem
ser feitos facilmente com uma máquina de cálculo ou um computador,
instrumentos que não havia no tempo de Thomas Fuller.
Imagine, se o escravo Thomas Fuller tivesse sido um homem livre, munido de uma máquina de cálculo ou dum computador, de que poderia ter
sido capaz?
Algumas respostas:
1. 60 x 60 = 3600 (segundos numa hora)
2. 3600 x 24 = 86.400 (segundos num dia)
3. 86.400 x 365 = 31.536.000 (segundos num ano de 365 dias)
4. 31.536.000 x 1,5 = 47.304.000, exatamente a resposta de Thomas Fuller!
5. 31.536.000 x 70 = 2.207.520.000 (segundos em 70 anos de 365 dias)
6. 70 : 4 = 17,5. Há 17 anos bissextos contidos em 70 anos.
7. 2.207.520.000 + 86.400 x 17 = 2.208.988.800 (segundos em 70 anos
consecutivos)
125
brasil/áfrica: histórias cruzadas fundamental ii
8. 2.208.988.800 + 86.400 x 17 + 3600 x 12 = 2.210.500.800, exatamente
a resposta de Thomas Fuller!
10. 6 + 6 x 6 = 6 x 7 = 42 (porcas depois de um ano)
11. 42 + 42 x 6 = 42 x 7 = 294 (porcas depois de dois anos)
12. 294 + 294 x 6 = 294 x 7 = 2058 (porcas depois de três anos)
13. 6 x (7 x 7 x 7 x 7 x 7 x 7 x 7 x 7) = 6 x 78 = 34.588.806 (porcas depois
de oito anos), exatamente a resposta de Thomas Fuller!
126
Notações matemáticas
provenientes de África
BRASIL/ÁFRICA: HISTÓRIAS CRUZADAS FUNDAMENTAL II
Será que no Brasil se utilizam diariamente idéias matemáticas que têm a sua
origem em África?
Será que todos os alunos e todos os professores de matemática no Brasil
utilizam algumas notações que vêm do continente africano?
A resposta parcial que se apresenta no texto a seguir pode surpreender...
Costuma-se falar em ‘números árabes’, referindo-se à notação 1, 2, 3, 4, 5
, 6, 7, 8, 9, e 0 para os números de um até nove, e para zero e à continuação
da construção decimal posicional 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20,
21, etc.
A ideia e a notação dum sistema decimal posicional, de origem indiana, foi
introduzida e aproveitada nas culturas islâmicas, em particular, para as transações comerciais. Noutras esferas da vida continuavam-se a utilizar vários
outros sistemas de numeração, como, por exemplo, a numeração alfabética,
em que se empregavam vinte e oito letras do alfabeto árabe para representar
os números 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9 (unidades), 10, 20, 30, 40, 50, 60, 70, 80,
90 (dezenas), 100, 200, 300, 400, 500, 600, 700, 800, 900 (centenas) e 1000.
Os chamados ‘números árabes’ utilizados progressivamente, a partir do
século 9, no ‘Oriente’, desde da Ásia central até ao Egito, e mais tarde em algumas regiões ao sul da Saara onde a Islã se estabeleceu, são os seguintes dez
símbolos
Reproduzido de Djebbar, 2001, p. 220
enquanto no ‘Ocidente’ muçulmano, ou seja, primeiro no Maghreb (Noroeste de África) e depois na Andaluzia (na Península ibérica), se transformaram e se utilizaram, desde o século 11, os símbolos de origem indiana até
obterem a forma
128
Notações matemáticas provenientes de África
1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 0.
[mapa do Maghreb e da Andaluzia]
É esta forma que mais tarde se transmitiu para outros países da Europa
e do Mundo, inclusive o Brasil. Por outras palavras, a variante da notação
decimal posicional que se utiliza e se ensina no Brasil vem do noroeste de
África medieval (Para mais informações, vide: Djebbar, 2001).
Cientistas do ‘Ocidente’ muçulmano desempenharam um papel importante
no desenvolvimento da matemática, em particular, do século 11 ao século
15. Eles escreviam na língua árabe, mas isto não significa que os próprios
cientistas eram árabes. Em geral, eram norte-africanos como, por exemplo,
Ibn al-Banna (1256-1321), Uqbani (1320-1408) e Ibn Qunfuh (1339-1407),
ou da Andaluzia como o geômetra Al-Mutaman, que foi rei da Zaragossa de
1081 a 1085. Às vezes, os matemáticos do ‘Ocidente’ muçulmano tinham uma
origem diferente, como veremos.
Uma contribuição importantíssima do Maghreb medieval para o desenvolvimento internacional da matemática foi a idéia de substituir palavras para
descrever várias operações aritméticas por símbolos. Observe o texto seguinte
do século 12:
Reproduzido de
Djebbar, 2005,
p. 93]
129
brasil/áfrica: histórias cruzadas fundamental ii
Trata-se dum texto na língua árabe, escrito da direita para a esquerda (e
não como em Português da esquerda para a direita). Mesmo assim, escrito em
Árabe, o leitor brasileiro reconhece-se imediatamente frações como e .
É o texto mais antigo, na medida em que se sabe hoje, em que aparece o
famoso traço para representar uma fração, com o numerador em cima do
traço e o denominador em baixo. Todas as crianças nas escolas brasileiras
aprendem esta idéia e notação originárias do norte de África. O matemático
que muito provavelmente tenha introduzido este símbolo e tenha sido o autor
do texto referido, chama-se Abdallah Ibn al-Yasamin.
[sugestão: incluir uma fotografia duma
flor de jasmim]
Ibn al-Yasamin significa filho da flor jasmim. A mãe dele era chamada flor
de jasmim. A mãe era uma escrava negra, proveniente da África ao sul do Saara. O pai era um norte-africano da população Berbere. Tendo tido um filho
com um homem ‘livre’, a mãe, em concordância com a lei da época, ganhou a
liberdade. O ‘filho sem pai’, descrito na época como ‘tão negro como a mãe’,
educado inicialmente pela ‘flor de jasmim’, estudou em Sevilha (Andaluzia) e
tornou-se um matemático, jurista e poeta famoso.
Como professor teve a idéia de escrever poemas para facilitar a aprendizagem da matemática por parte dos seus alunos. Durante séculos os seus ‘poemas matemáticos’ foram decorados pelos estudantes.
Não se conhecem as razões, talvez pelo seu sucesso que teve ou pelas posições publicamente assumidas, Ibn al-Yasamin foi assassinado em 1204 em
Marrakech nos Marrocos. Crianças no Brasil e em muitas partes do mundo
130
Notações matemáticas provenientes de África
atual aprendem algumas idéias e símbolos originados pelo ‘filho da flor jasmim’ ou do seu tempo e cultura.
Construção dum prisma octogonal
Um octógono regular pode-se construir com uma régua e um transferidor.
Um octógono regular também se pode construir com uma régua e um compasso.
Agora se apresenta uma outra maneira para construir um octógono regular. De fato, um método para construir um prisma cuja base é um octógono
regular.
A construção a ser apresentada foi inventada por um artesão-cesteiro do
povo Copi, povo este que vive no Sudeste de Moçambique, na zona litoral das
províncias de Gaza e Inhambane. O povo Copi é famoso pelas suas orquestras
de timbila, uma espécie de xilofone.
MAPA
O cesteiro utiliza tiras de folhas de uma palmeira. Na sala de aula poder-se-ão utilizar tiras de cartolina (ou de papel) da mesma largura, de preferência
tiras de cores diferentes.
1. Segue os seguintes passos de construção.
131
brasil/áfrica: histórias cruzadas fundamental ii
1. Coloque quatro tiras na seguinte posição:
[Oct 1 B-A]
2.Dobre as extremidades menores das quatro tiras, entrecruzando-as.
Desta maneira obtém-se um nó quadrado:
[Oct 2 B-A]
132
Notações matemáticas provenientes de África
3. Dobre a parte saliente da tira encarnada de tal modo que um lado dessa
tira passe pelo centro do nó quadrado. Assim, a tira muda de direção
por 45 graus, como a figura ilustra:
[Oct 3 B-A]
4. Dobre a tira azul do mesmo modo. As tiras encarnada e azul ficam paralelas, encostando-se mutuamente:
[Oct 4 B-A]
133
brasil/áfrica: histórias cruzadas fundamental ii
5. Dobre a tira verde da mesma maneira, deixando-a passar por cima da
tira encarnada e por debaixo da tira azul:
[Oct 5 B-A]
6. Para concluir o primeiro piso do prisma octogonal, dobre a tira amarela, entrecruzando-a, ou seja, deixando-a passar por cima da tira azul e
por debaixo da tira encarnada:
[Oct 6 B-A]
134
Notações matemáticas provenientes de África
7. Continue a dobrar e a entrecruzar as tiras na mesma ordem, produzindo
mais pisos do prisma até o material acabar. O prisma é octogonal. A
base é um octógono regular:
[Oct 7 B-A]
Atividades
1. Convide os alunos a fabricarem prismas octogonais da maneira descrita.
2. Convide os alunos a analisarem porque a base do prisma tem a forma
dum octógono regular.
Artesãos copi utilizam uma variante do método descrito para fabricar botões para poder fechar os trançados que fazem. A fotografia apresenta uma
pasta copi com um botão octogonal:
135
brasil/áfrica: histórias cruzadas fundamental ii
[Oct 8 B-A]
Observe de perto o botão octogonal:
[Oct 9 B-A]
136
Notações matemáticas provenientes de África
Em vez de utilizar quatro tiras diferentes, o cesteiro copi faz o nó inicial
com apenas duas tiras, seguindo os seguinte passos:
[Oct 10a B-A]
[Oct 10b B-A]
137
brasil/áfrica: histórias cruzadas fundamental ii
[Oct 10c B-A]
[Oct 10d B-A]
Agora, dobre a parte saliente (F) da tira encarnada para a direita, entrecruzando-a com as duas partes da tira verde:
[Oct 10e B-A]
138
Notações matemáticas provenientes de África
Tire a outra parte saliente (Y) da tira encarnada para a esquerda de tal modo que
o nó se aperte:
[Oct 10f B-A]
Completou-se assim o primeiro piso. A outra face do nó é a mesma que vimos
nas fotografias do trançado copi:
[Oct 10g B-A]
Atividade extra
3. Faça um prisma octogonal com duas tiras.
139
brasil/áfrica: histórias cruzadas fundamental ii
Numeração verbal em Português e em algumas
línguas africanas
Quando se conta na língua portuguesa de um até dez, utilizam-se dez palavras distintas: um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove e dez.
Continuando a contar, seguem-se mais palavras novas: onze, doze, treze,
catorze e quinze. Mas chegados a dezesseis, temos uma palavra composta; de
fato: dez-e-seis, correspondendo bem à notação simbólica 16, significando
uma dezena mais seis. Dezessete, dezoito e dezenove são também numerais
compostos. Chegados a vinte, temos uma palavra completamente nova. Quem
ouve a palavra vinte pela primeira vez, não pode adivinhar que se trata de
duas dezenas.
Atividade
1. Conte de vinte até cinqüenta. Há numerais compostos? Caso sim, como
são construídos a partir de numerais simples? A composição corresponderá bem à notação simbólica?
Por exemplo, o numeral trinta e cinco é composto pelo numeral trinta e
pelo numeral cinco. Supondo que se sabe que trinta significa três dezenas,
a composição trinta e cinco corresponde bem à notação simbólica 35.
Comparemos a maneira de contar até vinte em Português com a numeração verbal em algumas outras línguas.
2. Sabe contar em Inglês? Conte até vinte. Compare com a contagem em
Português. Quando aparecem numerais compostos em Inglês?
3. Quando se diz em Inglês fourteen, temos um numeral composto por four
(quatro) e teen ou ten (dez). A ordem em se compõe ou lê este numeral,
ou seja, em primeiro lugar diz-se quatro e só depois dez, corresponderá
bem à notação simbólica 14?
4. O que acontece com os numerais de quinze até dezenove em Inglês? A
ordem da composição corresponde bem à notação simbólica?
140
Notações matemáticas provenientes de África
5. Conte em Inglês de vinte até trinta. No caso dos numerais compostos,
eles correspondem bem à notação simbólica?
Comparando vinte e sete em Português com twenty seven em Inglês, podemos dizer que ambos estes numerais são compostos da mesma maneira, correspondendo bem à notação simbólica 27, onde o 2 representa duas dezenas
e o 7 sete unidades.
Comparando, em contrapartida, dezessete em Português com seventeen em
Inglês podemos dizer que a ordem em que a expressão em Português é construída corresponde bem à notação simbólica 17, enquanto a ordem em que a
expressão em Inglês é construída é inversa à notação simbólica: sete unidades
e depois uma dezena.
Esta inversão da ordem dos numerais de thirteen a nineteen na língua inglesa causa bastantes dificuldades na aprendizagem da notação simbólica e do
cálculo em crianças que aprendem a calcular em Inglês.
Comparemos agora a maneira de contar em Português com uma língua
africana. Comecemos com a língua Nyungwe falada no Nordoeste de Moçambique. Tal como em Português utilizam-se dez palavras distintas para os
numerais de um até dez: bodzi, piri, tatu, nai, xanu, tandhatu, cinomwe, sere,
pfemba e khumi. A partir de onze, os numerais em Nyungwe são compostos.
De onze a dezenove, diz-se, à letra, dez e um, dez e dois, dez e três, ..., dez e
nove (vide a tabela). A composição destes numerais corresponde bem à notação simbólica 11, 12, 13, ..., 19.
Em Português segue uma palavra nova vinte, enquanto em Nyungwe segue
um numeral composto makhumi mawiri, que significa ‘dezenas duas’, ou seja,
duas dezenas. O prefixo ‘ma’ em makhumi indica o plural, enquanto o plural
em Português é, em geral, indicado por um ‘s’ no fim duma palavra: uma escola, duas escolas’. Para exprimir trinta e cinco diz-se em Nyungwe, makhumi
matatu na cixanu, ou seja, três dezenas e cinco.
141
brasil/áfrica: histórias cruzadas fundamental ii
Numerais em Nyungwe
Expressões correspondentes
em Português
1
posi ou bodzi
um
2
Piri
dois
3
Tatu
três
4
Nai
quatro
5
Xanu
cinco
6
Tandhatu
seis
7
Cinomwe
sete
8
Sere
oito
9
Pfemba
nove
10
Khumi
dez
11
khumi na cim’bodzi
dez e um
12
khumi na ciwiri
dez e dois
13
khumi na citatu
dez e três
14
khumi na cinai
dez e quatro
15
khumi na cixanu
dez e cinco
16
khumi na citandhatu
dez e seis
17
khumi na cinomwe
dez e sete
18
khumi na cisere
dez e oito
19
khumi na cipfemba
dez e nove
20
makhumi mawiri
dezenas duas
24
makhumi mawiri na cinai
duas dezenas e quatro
30
makhumi matatu
dezenas três, três dezenas
40
makhumi manai
quarto dezenas
50
makhumi maxanu
cinco dezenas
100 Dzana
cem
6. Como se pode exprimir o numeral quarenta e sete na língua Nyungwe?
E trinta e cinco?
7. Tente exprimir oitenta e sete em Nyungwe.
8. Será que numeração falada em Nyungwe corresponde bem à notação
simbólica utilizada na escola?
142
Notações matemáticas provenientes de África
9. Compare os numerais falados para 23 em Português e em Nyungwe. Em
que língua o numeral falado corresponde melhor à notação simbólica?
Algumas respostas
6. Makhumi manai na cinomwe (dezenas quatro e sete) e makhumi matatu
na citatu (dezenas três e cinco).
7. Setenta é exprimida como dezenas oito, ou seja, makhumi masere. Assim, oitenta e sete, se diz em Nyungwe makhumi masere na cinomwe.
8. Corresponde bem.
9. A estrutura de vinte, trinta, quarenta, ... em Português é menos evidente que em Nyungwe. Assim, será, em princípio, mais fácil aprender a
contar e a notar os números simbolicamente para quem tem Nyungwe
como língua materna do que para quem tem Português como língua
materna.
Pode-se dizer que a numeração falada na língua Nyungwe do Noroeste de
Moçambique é puramente decimal: os numerais são todos compostos com
a ajuda dos numerais de um a nove, e os numerais para as potências de dez,
como cem, mil, etc. Diz-se também que na língua Nyungwe o numeral para
dez é a base para a contagem.
Existem outras línguas africanas que têm mais de uma base.
Por exemplo, na língua Makhuwa falada no Nordeste de Moçambique,
utiliza-se também a base cinco. Vejamos como se conta em Makhuwa. Para
seis não se utiliza uma palavra nova, como em Português, mas sim um numeral composto: thanu na moza, ou seja, cinco e um. Continuando a contar, diz-se thanu na pili, thanu na tharu, e thanu na cece, ou seja, cinco e dois, cinco
e três e cinco e quatro. Para dez introduz-se uma palavra nova, a saber, nloko.
Para se referir a 24, diz-se miloko mili na cece, ou seja, duas dezenas e
quatro. Para exprimir 37, os Makhuwa dizem miloko miraru na thanu na pili,
quer dizer, três dezenas e cinco e dois (vide a tabela).
143
brasil/áfrica: histórias cruzadas fundamental ii
Numerais em Makhuwa
Expressões correspondentes
em Português
1
emoza
um
2
pili
dois
3
tharu
três
4
cece
quatro
5
thanu
cinco
6
thanu na moza
cinco e um
7
thanu na pili
cinco e dois
8
thanu na tharu
cinco e três
9
thanu na cece
cinco e quatro
10
nloko
dez
11
nloko na moza
dez e um
12
nloko na pili
dez e dois
13
nloko na tharu
dez e três
14
nloko na xexe
dez e quatro
15
nloko na thanu
dez e cinco
16
nloko na thanu na moza
dez e cinco e um
17
nloko na thanu na pili
dez e cinco e dois
18
nloko na thanu na tharu
dez e cinco e três
19
nloko na thanu na cece
dez e cinco e quatro
20
miloko mili
dezenas duas, duas dezenas
30
miloko miraru
três dezenas
40
miloko micece
quatro dezenas
50
miloko mitanu
cinco dezenas
100 emiya
cem
10. Como se pode exprimir o numeral quarenta e sete na língua Makhuwa?
E trinta e cinco?
11. Será que numeração falada em Makhuwa corresponde bem à notação
simbólica utilizada na escola?
144
Notações matemáticas provenientes de África
Uma das vantagens de utilizar um número 5 como uma das bases dum sistema verbal de numeração, reside no fato de que poderá facilitar a execução
oral ou mental de cálculos onde a resposta ainda não tinha sido memorizada
no primeiro ano da escola fundamental. Por exemplo, 7+8 seria (5+2) mais
(5+3). Como 2+3=5, acha-se a resposta (5+5)+5, 10+5, ou 15.
As bases mais comuns em África são 10, 5 e 20. Algumas línguas como
Nyungwe (Moçambique) utilizam apenas a base dez. Outras tais como Balante (Guiné Bissau) usam 5 e 20 como bases. A numeração na língua Bété da
Costa do Marfim usa três bases: 5, 10 e 20 [Vide a tabela]. Por exemplo, 56
exprime-se por vinte vezes dois mais dez (e) cinco (e) um’ (20x2 + 10 +5 +1).
Os Bambara do Mali e da Guiné têm um sistema decimal-vigesimal, isto é, dez
e vinte constituem as bases.
Numeração na língua Bété
(Costa do Marfim)
estrutura
1
blo
2
sô
3
ta
4
mono
5
n’gboua
6
gbeplo
5+1
7
gbosso
5+2
8
gbota
5+3
9
kodablo
10
kogbo
11
kogbo-blo
10+1
12
kogbo-sô
10+2
13
kogbo-ta
10+3
14
kogbo-mono
10+4
15
kogbo-n’gbouo
10+5
16
kogbo-gbeplo
10+5+1
17
kogbo-gbosso
10+5+2
18
kogbo-gbota
10+5+3
19
kogbo-kodablo
145
brasil/áfrica: histórias cruzadas fundamental ii
20
goloblo
20x1
21
goloblo-ya-blo
20x1 + 1
22
goloblo-ya-sô
20x1 + 2
30
goloblo-ya-kogbo
20x1 + 10
34
goloblo-ya-kogbo-mono
20x1 + 10 + 4
40
golosso
20x2
50
golosso-ya-kogbo
20x2 + 10
56
golosso-ya-kogbo-gbeplo
20x2 +10 + 5+1
60
golota
20x3
70
golota-ya-kogbo
20x3 + 10
80
golomono
20x4
90
golomono-ya-kogbo
40x4 + 10
100
golo-n’gbouo
20x5
Atividade extra
12. Compare a numeração em Bété com a numeração Maia da Mesoamérica.
Tal como os povos noutras regiões do Mundo, os povos de África aprenderam durante a sua história que contar e calcular se tornam muito difíceis,
quando se utiliza, para cada número, uma palavra completamente nova e diferente. Se somente para os números de 1 a 100 se utilizassem palavras completamente diferentes e não relacionadas, imagine quão difícil seria memorizá-las
na ordem correta! Para além disto, seria quase impossível executar cálculos
com elas. Por isso tornou-se necessário evitar, na indicação de números, demasiadas palavras não relacionadas. A fim de ter métodos práticos e úteis de
contagem e para exprimir quantidades. A fim de poder fazer os cálculos eficazmente, os povos africanos inventaram sistemas de numeração bem estruturados, utilizando uma ou mais bases. Aquelas línguas em que se utiliza apenas
a base dez, como a língua Nyungwe do Noroeste de Moçambique, facilitam a
aprendizagem da notação simbólica dos números utilizada na escola.
146
Notações matemáticas provenientes de África
Referências
Gerdes, Paulus (coord.) (1993) A numeração em Moçambique. Contribuição para
uma reflexão sobre cultura, língua e educação matemática, Universidade pedagógica,
Maputo (nova edição: Lulu.com, Morrisville NC, 2007)
Gerdes, Paulus (2007), Sistemas africanos de numeração, em: Gerdes, Paulus:
Etnomatemática – Reflexões sobre Matemática e Diversidade Cultural, Edições
Húmus, Ribeirão, capítulo 1.
147
Como se aproximava a
área do círculo no Egito
Antigo?
brasil/áfrica: histórias cruzadas fundamental ii
Quase todos os textos matemáticos elaborados no Egito Antigo perderam-se com o tempo. Uma feliz exceção é uma coletânea de exercícios elaborada,
por volta de 1650 a.C., por um escriba de nome Ahmes (ou Ahmose). O texto,
escrito em papiro, foi re-encontrado no século 19.
O titulo do papiro de Ahmes é interessante: “Método correto de investigação da natureza para poder compreender tudo que existe, todos os mistérios
e todos os segredos.” De fato, trata-se da descrição ou definição mais antiga,
que se conhece hoje, da matemática.
A fotografia apresenta uma parte desse papiro. Aqui colocam-se e resolvem-se vários problemas relacionados com os volumes de pirâmides.
Dois exercícios no papiro de Ahmes tratam da determinação da área de
círculos. O problema número 50 tem a seguinte formulação:
150
Como se aproximava a área do círculo no Egito Antigo?
“Exemplo do cálculo da superfície dum terreno circular de 9 unidades de
diâmetro. Qual será a sua área?”
Imediatamente, o texto apresenta a solução:
“Tire um nono do diâmetro. O resto é 8. Multiplique 8 vezes 8. O resultado é 64.”
Por outras palavras, a área do referido círculo é igual a 64 unidades de
superfície.
Atividades:
1.Aplicando o método apresentado pelo egípcio Ahmes, calcule a área
dum círculo que tem um diâmetro de 18 unidades.
2. Utilizando o método egípcio, calcule a área dum círculo que tem raio de
9 unidades. Determine a área do mesmo círculo com o método aprendido na escola. Compare as respostas. Os resultados são iguais? Muito
diferentes? Ou quase iguais?
3. Conforme a fórmula aprendida na escola, a área dum círculo cujo raio
mede r unidades é igual a p r2, onde p é, aproximadamente, igual a 3,14.
Tente exprimir o método egípcio em termos duma fórmula. Compare as
duas fórmulas.
Conforme o método egípcio, a área dum círculo é igual a
(diâmetro menos um nono do diâmetro)2,
ou seja, igual a
(oito nonos do diâmetro)2 = ( 89 d)2 = ( 89 )2 d2
Tendo em conta que o diâmetro d é duas vezes maior que o raio r, temos
8
64
256
Área dum círculo = ( 9 )2 .(2r)2 = ( 81 ).4r2 = 81 r2 ≈ 3,16 r2
151
brasil/áfrica: histórias cruzadas fundamental ii
Podemos concluir que o método apresentado por Ahmes há mais de
3650 anos dá uma aproximação muito boa da área dum círculo. A diferença entre o valor de p e 3,16 é menor que 0,02. Por isso, o erro de
2
aproximação é menor que 314 , ou seja, menor que 1%.
O esboço que aparece ao lado do problema 48 no papiro de Ahmes sugere
que o método utilizado no Egito Antigo pode corresponder à aproximação do
círculo por um quadrado do qual se retiraram as quatro quinas. Vamos tentar
reconstruir como os egípcios antigos poderiam ter descoberto o seu método
para aproximar a área dum círculo.
Sabemos que no Egito Antigo se utilizavam malhas de quadrados para desenhar, copiar e ampliar figuras.
Atividades
4. Construa numa folha de papel quadriculado um círculo com um raio
que mede 9 unidades, onde a unidade corresponde ao lado de um dos
quadrados da malha. Faça isto de tal modo que o centro do círculo se
encontre na interseção de linhas da malha.
152
Como se aproximava a área do círculo no Egito Antigo?
5. Trace agora o polígono composto por todos os quadrados da malha que
parecem estar majoritariamente dentro do círculo.
6. A área deste polígono é aproximadamente igual à área do círculo: O que
está fora do círculo (vermelho) mas dentro do polígono (azul) parece ser
mais ou menos igual ao que está dentro do círculo mas fora do polígono.
Tente encontrar um quadrado que tem a mesma área que o polígono
considerado.
153
brasil/áfrica: histórias cruzadas fundamental ii
7. Compare a área de quadrado de cor laranja com a área do polígono
azul. As áreas serão iguais?
A área do quadrado laranja é igual à área do polígono azul, que, por sua
vez, é aproximadamente igual à área do círculo vermelho. O lado do quadrado de cor laranja mede oito nonos do diâmetro do círculo vermelho.
154
Como se aproximava a área do círculo no Egito Antigo?
Desta maneira, conseguimos deduzir que a área dum círculo é aproximadamente igual à área dum quadrado cujo lado mede oito nonos do diâmetro
do círculo. Quer dizer, vimos um caminho que nos leva à fórmula de aproximação da área do círculo no papiro de Ahmes, escrito, há mais de 3650 anos,
no norte de África.
Há várias outras maneiras para deduzir a fórmula egípcia. Por exemplo,
pegue numa corda flexível e longa. Utilize a largura da corda como unidade
de medição, e marque na corda, a partir do início, uma distância igual a 64
unidades. Enrole, em seguida, a corda numa espiral. Pare depois de ter enrolado as primeiras 64 unidades. A partir da marca de 64 unidades, pode contar
o número de unidades para, passando pelo centro, chegar ao outro lado. Será
um diâmetro de 9 unidades. Como a espiral enrolada se aproxima dum círculo de 9 unidades de diâmetro, segue-se que a área dum círculo de raio 9 é mais
ou menos igual à área dum quadrado de 8 unidades de lado.
Tanto no Egito Antigo como hoje em dia, por exemplo, em Moçambique
fazem-se esteiras ao coser as espirais sucessivas de bandas trançadas. A fotografia mostra uma esteirinha circular do Norte de Moçambique. Medindo e
enrolando cordas cada vez mais maiores,e depois contando os diâmetros correspondentes, poder-se-ão obter aproximações cada vez melhores da área do
círculo, e assim, aproximações melhores do valor de π.
Experimente!
155
brasil/áfrica: histórias cruzadas fundamental ii
8. Arranje 64 moedas iguais. Construa um quadrado cujo lado mede oito
vezes o diâmetro duma moeda. Com estas 64 moedas pode-se ‘encher’ o
quadrado da seguinte maneira:
Quantas dessas moedas caberão dentro dum círculo cujo diâmetro mede 9
moedas? Na figura nove moedas já estão colocadas. Será que cabem todas as
64? Ou mais, ou menos? Compare com os seus colegas.
Experimente.
A que conclusão se poderá chegar?
156
Como se aproximava a área do círculo no Egito Antigo?
Referências
Gerdes, Paulus (1985), Three alternate methods for obtaining the ancient Egyptian
formula for the area of a circle, Historia Mathematica, Nova Iorque, Vol. 12,
261-268.
Gerdes, Paulus (2003), Awakening of Geometrical Thought in Early Culture,
MEP Press, Minneapolis MN, capítulo 6.
Gerdes, Paulus (2007), Explorando esteiras circulares, em: Gerdes, Paulus
(2007), Otthava: Fazer Cestos e Geometria na Cultura Makhuwa do Nordeste de
Moçambique, Lulu, Morrisville NC, páginas 278-279 (nova edição: Editora da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2010).
Gerdes, Paulus (2002), Prazer na Geometria: Um belo botão do Sul de
Moçambique, Centro de Estudos para Etnomatemática, Maputo (brochura).
Gerdes, Paulus (2010), A way to interlace an octagonal prism invented by a Copi
basket maker in Southeast Mozambique, Visual Mathematics, Belgrado, Vol. 12,
No. 2 (http://www.mi.sanu.ac.rs/vismath/gerdes2010a/index.html).
Djebbar, Ahmed (1997), Ibn al-Yasamin, in: Selin, Helaine: Encyclopedia of the
History of Science, Technology, and Medicine in Non-Western Cultures, Kluwer,
Dordrecht, páginas 414-415.
Djebbar, Ahmed (2001), Une histoire de la science arabe, Éditions du Seuil, Paris.
Djebbar, Ahmed (2005), L’algèbre arabe: Genèse d’un art, Vuibert, Paris.
157

Documentos relacionados