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2014
HISTÓRIA, POLÍTICA E PODER NA
IDADE MÉDIA
I SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA MEDIEVAL
III ENCONTRO DA ABREM CENTRO-OESTE
ANAIS | ISSN 2359-0068
EXPEDIENTE
HISTÓRIA, POLÍTICA E PODER NA IDADE MÉDIA
I SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA MEDIEVAL
III ENCONTRO DA ABREM CENTRO-OESTE
ANAIS | VOLUME 1, NÚMERO 1, 2014
ISSN 2359-0068
CEDOC
CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO UEG
EDITORES
PROF. DR. ADEMIR LUIZ DA SILVA
PROF. DR. FERNANDO LOBO LEMES
PROF. MS. IVAN VIEIRA NETO
COMISSÃO EDITORIAL
PROFª DRª RENATA CRISTINA DE S. NASCIMENTO (UFG/UEG/PUC-GO)
PROF. DR. FERNANDO LOBO LEMES (PUC-GO/CAPES)
PROF. DR. ADEMIR LUIZ DA SILVA (UEG)
PROF. MS. IVAN VIEIRA NETO (PUC-GO)
COMISSÃO CIENTÍFICA
ADEMIR LUIZ DA SILVA (UEG)
ARMÊNIA MARIA DE SOUZA (UFG)
ADRIANA VIDOTTE (UFG)
BRUNO TADEU SALLES (UEG)
CLEUSA TEIXEIRA DE SOUZA (UEG)
DIRCEU MARCHINI NETO (PUC-GO)
EDUARDO GUSMÃO DE QUADROS (UEG/PUC-GO)
JOSÉ JIVALDO (UFG)
MARIA DAILZA FAGUNDES (UEG/UFG)
RENATA CRISTINA NASCIMENTO (UFG/UEG/PUC-GO)
MS. MURILO BORGES SILVA (UFG)
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE GOIÁS
ESCOLA DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES E HUMANIDADES
PROGRAMA DE MESTRADO EM HISTÓRIA
CURSO DE GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
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DESLOCAMENTOS DEVOCIONAIS:
FOLIA DO DIVINO ESPÍRITO SANTO EM PIRENÓPOLIS/GO
João Guilherme da Trindade Curado1
Rosana Romenia Fernades Leal2
Adolpho Randes Mesquita Ferreira3
O desejo de peregrinar
está profundamente arraigado na natureza humana
(RUNCIMAN, 2003, p. 46).
Refletir sobre a devoção ligada à religiosidade humana é uma atividade que exige um campo
interpretativo extremamente amplo, uma vez que o mesmo vocábulo recebeu, ao longo da história,
interpretações diferenciadas, assim como as práticas exercidas em nome da fé. Apontamos
inicialmente o aspecto temporal como justificativa para a abordagem dos fervores religiosos ligados ao
catolicismo, e tendo por foco a tríade constituída pela: ampliação, comprovação e difusão devocional.
Para tanto, o foco centra-se em aspectos históricos que ao longo da trajetória humana constituiu
práticas sociais que sejam capazes de exemplificar a devoção. Assim chegaremos à Folia do Divino
Espírito Santo que acontece na goiana cidade de Pirenópolis.
1
Doutor em Geografia (IESA/UFG). Professor da Rede Estadual de Educação de Goiás. Professor Temporário da
Universidade Estadual de Goiás —Unidade Universitária de Pirenópolis. Integrante do Grupo de Pesquisa Saberes e
Sabores Goianos. O presente artigo está vinculado ao Projeto de Pesquisa “Girando Folia: apontamentos turísticos e
gastronômicos em uma das devoções ao Divino Espírito Santo — Pirenópolis/Goiás” (UEG), e ao Projeto de Pesquisa:
“Artes e Sabores nas Manifestações Populares” (Fapeg). [email protected]
2
Acadêmica do Curso de Tecnologia em Gestão de Turismo da UEG/UnU-Pirenópolis. Bolsista UEG/CNPq pelo Projeto
de Pesquisa “Girando Folia: apontamentos turísticos e gastronômicos em uma das devoções ao Divino Espírito Santo —
Pirenópolis/Goiás”.
[email protected]
3
Acadêmico do Curso de Tecnologia em Gastronomia da UEG/UnU-Pirenópolis. Integrante do PIVIC/UEG pelo Projeto
de Pesquisa “Girando Folia: apontamentos turísticos e gastronômicos em uma das devoções ao Divino Espírito Santo —
Pirenópolis/Goiás”.
[email protected]
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Perpassando por alguns momentos pretéritos, voltando desde o surgimento do homem sobre a
face da Terra, percebe-se que há indicativos de aspectos devocionais desde aquele momento, como por
exemplo, para com a natureza, cujo símbolo máximo para eles era o fogo, que não só protegia como
também ampliou a base alimentar dos primitivos (WRANGHAM, 2010), conduzindo-os por outros
caminhos que proporcionava, ainda, o festejar entre os grupos diferentes, possibilitando maior
sociabilidade.
No entanto, sendo a Folia do Divino uma das manifestações que compõem as comemorações
ao Divino Espírito Santo, faz-se necessário relembrar que esta devoção chegou ao Brasil no período
inicial de ocupação, devido à importância que tinha em Portugal e também em grande parte da Europa,
devido à difusão das ideias defendidas e professadas por Joaquim de Fiori (1132-1202), um abade
cisterciense que pregava o advento da Idade do Espírito Santo “que seria implantado definitivamente a
partir de 1260”, conforme ressaltou Brandão (1978, p. 143).
As concepções de Fiori estavam inseridas em um contexto bastante amplo, compreendido no
que sistematicamente denominou-se de Idade Média, séculos V ao XV. Período que mereceu alguns
recortes, como o apresentado por Camargo (2002), em que a autora afirma:
podemos dividir o período medieval em duas fases totalmente distintas do ponto de vista
cultural. A primeira corresponde ao período que se segue à queda do Império Romano (século
V) praticamente até os séculos IX-X, quando a situação política e econômica começa a se
estabilizar. A fase final (séculos XII-XV) equivale ao desenvolvimento da escolástica medieval
e à criação das universidades (século XIII) até a crise do pensamento escolástico e o
surgimento do humanismo renascentista (século XV-XVI).
As doutrinas teológico-filosóficas que predominavam no período que segundo Camargo (2002)
correspondeu à fase final da Idade Média, caracterizavam-se, sobretudo, pelas dificuldades de relação
entre a fé e a razão. Talvez esta seja uma das possibilidades pelas quais se fazia compreender os
ideários de deslocamentos realizados por peregrinos e em especial pelos cruzados.
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Mesmo sendo o período em questão bastante extenso, algumas características o permearam e
são ainda utilizadas pelos medievos como diretrizes essenciais para interpretações, conforme salienta
Franco Júnior (1995):
para o homem medieval, o referencial de todas as coisas era [o] sagrado, fenômeno psicossocial
típico de sociedades agrárias, muito dependentes da natureza e portanto à mercê de forças
desconhecidas e não controláveis. Isso gerava, compreensivelmente, um sentimento
generalizado de insegurança. Temia-se pelo resultado, quase sempre pobre, das colheitas (pp.
150-151).
Um dos exemplos de relação com o sagrado foi esboçado pela agricultura, por meio da
colheita, mas havia — ainda segundo Franco Júnior (1995) —, inúmeros outros fatores que
contribuíram para a perpetuação daquele ideário ao longo dos séculos que compuseram a Idade Média,
como a “presença freqüente das epidemias, que não se sabia combater”, assim como o desamparo
“diante de uma natureza freqüentemente hostil” (FRANCO JÚNIOR, 1995, p. 151).
Grande parte dos reflexos das mencionadas particularidades ideológicas medievais foram
transportadas pelas naus lusitanas que aportaram no Brasil, trazendo significativos aspectos culturais
que aqui foram adaptados à vontade, necessidade e às possibilidades locais, como as festanças ao
Divino, constituída dentre elas pela Folia ao Divino Espírito Santo que com seus vexilos à frente
faziam-se seguir por devotos em caminhadas impregnadas pelas ações de ampliação, comprovação e
difusão devocional.
As investigações propostas serão discutidas a partir de confrontações provenientes das
observações realizadas durante vivências de campo em Folias do Divino em Pirenópolis com alguns
estudos bibliográficos — sobre as Cruzadas em especial.
Giros Devocionais
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A construção de igrejas durante o período colonial brasileiro era um mecanismo também
utilizado como demarcação territorial. Mas muitas das vezes a presença física e imponente das
Matrizes, não supria as necessidades devocionais, agravadas pela ausência constante de representantes
do clero, principalmente em áreas mais afastadas dos maiores centros urbanos, então existentes.
Assim, é possível afirmar que no Brasil Colônia “a história do catolicismo é antes de tudo a história da
fé e das crenças vividas pelo povo” (HOORNAERT, 1974, p. 9).
Se para os cruzadistas “o Reino de Jerusalém, centro espiritual e topo hierárquico” (ROUSSET,
1980, p. 10) era o destino inconteste, para os brasileiros e não diferentemente, para os goianos, o
transitar por várias propriedades rurais ao encalço da Bandeira do Divino foi, e ainda é, para algumas
comunidades ou grupos, elemento significativo da comprovação devocional.
O giro da Folia constitui-se em um deslocamento prévio e combinado entre fazendeiros ou
moradores (no caso específico da Folia da Rua) e os Alferes, foliões que possuem a hierarquia máxima
dentro das Folias, e também os responsáveis pelas negociações que definirão o trajeto dos
deslocamentos devocionais pelos arrabaldes. A figura dos Alferes muitas vezes foi comparada à dos
paladinos, talvez, também, pelo fato daqueles seguirem à frente portando as Bandeiras do Divino que
abrem os caminhos para o séquito de foliões devotos.
Ainda sobre o giro faz-se necessário relembrar que tal deslocamento possui dinâmicas variadas
dependendo da Folia em questão. Para a Folia dos Reis Magos o trajeto é transposto a pé e durante a
noite, uma vez que seguem a Estrela do Oriente, conforme explicações de Pessoa e Félix (2007). Para
a Folia de São João, bastante comum no Brasil, o caminhar é diurno, uma vez que a noite é dedicada
aos rituais próximos à fogueira, conforme foi observado durante estudo sobre festas que acontecem no
distrito pirenopolino de Lagolândia (CURADO, 2011). Para a maioria das Folias do Divino Espírito
Santo o giro também é diurno, uma vez que a noite é reservada aos pousos. Um ponto de convergência
entre as folias conhecidas e as analisadas é que elas saem e retornam, quase sempre, a uma mesma
localidade; o que propicia a ideia de circularidade, obedecendo, ainda, o sair em direção ao poente e o
retorno pela nascente, orientação semelhante a adotada pelos cruzados, uma vez que saiam da Europa
em direção a Jerusalém.
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Ao considerar que a peregrinação exerce as funções de ampliação, comprovação e difusão
devocional, por meio da externalização das dificuldades encontradas no trasladar espaços e enfrentar
intempéries, é possível verificar ao longo do tempo as apropriações que as religiões delas fizeram em
benefício próprio da instituição que defendiam mediante as convicções da religiosidade de seus
adeptos, destarte
o costume da peregrinação, vale dizer, a marcha a uma cidade ou sítio marcado por um
acontecimento religioso, é antigo e, se não é universal, é pelo menos peculiar à maioria das
grandes religiões (cristã, muçulmana e budista) (ROUSSET, 1980, p. 20).
O ato de despegar-se fisicamente de lugares familiares para, em busca de uma devoção
enfrentar dificuldades no trajeto e no destino desconhecido — pela fé —, é uma atitude comum, ainda
que às vezes pareça estranho, como o era para “os homens da Idade Média [que] sentiam um profundo
respeito por Roma, a cidade que era propriedade do papa, mas nunca esqueciam Jerusalém, a cidade
eleita de Deus” (GRIMBERG, 1989, p. 27), para a qual deslocavam, inclusive, sob as bênçãos papais,
mesmo quando pretendiam além da chegada a posse daquela localidade.
De acordo com Giordani: “a aurora da Idade Média está marcada por um acontecimento bem
característico: as invasões” (1992, p. 21). Continua posteriormente relembrando que a “expansão e
defesa da fé cristã, primazia e independência da Sé Romana”, ocorria essencialmente pela “integração
dos bárbaros na Civilização ocidental cristã” ação que sucedia por meio da “orientação e organização
dos quadros espirituais e temporais da mesma Civilização” (1992, p. 23). Ações que constituíam as
tarefas elementares da Igreja Católica naquele contexto.
Destarte, vale ressaltar que inúmeras áreas anteriormente ocupadas por outros povos foram
anexadas ao “mundo cristão” que se incumbiu ainda da conversão da população ali residente, mesmo
propiciando confrontos mesclados aos instrumentos conversão, uma vez que o grande inimigo que
perseguiam eram os muçulmanos, que contraditoriamente, conforme observou Grimberg “nem uma só
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vez, no decurso do seu cativeiro, procuraram os Árabes levar os cavaleiros do Ocidente a mudarem de
religião” (1989, p. 75).
Mais uma vez percebemos a tentativa de imposição europeia sobre as demais culturas, neste
exemplo, especificamente pela falta de reciprocidade das ações dos católicos em relação aos
muçulmanos. Tivemos, posteriormente, reflexos que ainda perduram quando da encenação das
Cavalhadas, luta entre mouros e cristãos, sendo que estes representam o exército de Carlos Magno que
avançam e convertem os muçulmanos ao catolicismo.
Tal manifestação ocorre em diversas localidades mundo afora e constituem-se enquanto
elemento cultural de diversas comunidades. No Brasil ainda existem apresentações de Cavalhadas em
diversas cidades como em Pirenópolis, cidade goiana que em 2010 teve o conjunto de celebrações
ligadas às comemorações de Pentecostes reconhecida como Patrimônio Cultural do Brasil.
As Folias do Divino em Pirenópolis
Não foi encontrada até o presente momento uma documentação que indique o início dos
deslocamentos devocionais das Folias do Divino Espírito Santo pelo território pirenopolino. Tudo
indica que a Folia ocorresse anteriormente ao registro oficial da primeira Festa do Divino, que de
acordo com Jayme (1971) data de 1819.
A ruralidade da comunidade pirenopolina após o findar das atividades ligadas à produção
aurífera contribuiu sobremaneira para a constituição das identidades locais, assim como para o
estabelecimento de uma cultura na qual houvesse predomínio de aspectos voltados para o campo.
Inicialmente as Folias do Divino aconteciam na área rural, com uma organização exterior aos
domínios do clero, e se constituíam de pessoas devotas que providenciavam todas as etapas do giro,
que acontecia após a realização das colheitas, como comprovação das ligações existentes
permanentemente entre o homem e o ser sagrado, pois como apontou Hoornaert:
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existe uma ligação quase física entre Deus e o mundo: o criador mestre de todo poder intervém
a qualquer momento nos assuntos terrestres [...] Não existe discernimento entre transcendência
e imanência: existe continuidade perfeita entre natureza e sobrenatural (1974, p. 112).
Por isso a religião não é algo imaterial para comunidades ainda rurais como a pirenopolina, ela
materializa-se nas dádivas da colheita abundante que em troca, torna-se elemento de agradecimento ao
Deus, por intermédio do Divino Espírito Santo a quem é ofertado os alimentos que serão consumidos
pelos foliões. Estes ampliam ao mesmo tempo em que comprovam sua devoção ao girar e consumir,
em comunhão com os demais foliões, a comida agradecida em nome do Divino.
Entretanto, tais práticas devocionais nem sempre foram bem vistas ou compactuadas pela
Igreja, que quase nunca incentivou a realização de Folias, como observou Silva (2001) ao estudar a
Folia do Divino de Pirenópolis. Inicialmente relembra que “as folias do Divino foram o grande alvo da
atenção da Igreja Católica no período em que se desencadeou o processo de romanização” (p. 99),
normativas que se estenderam ainda, de modo geral, às demais festas populares.
De acordo com a referida autora duas eram as preocupações da Igreja: a falta de “controle
sobre os festejos rurais” e “o outro aspecto, que talvez instigasse até mais a Igreja, era a coleta de
esmolas. Grande parte dessas coletas não chegava aos cofres paroquiais” (SILVA, 2001, p. 99).
As esmolas doadas ao Divino pelos devotos e foliões não se destinam à Igreja. São frutos da
devoção e utilizadas como meio da comprovação da fé e se destinam à realização da Folia ou mesmo
da Festa do Divino. São assim disponibilizadas aos mais carentes, que por promessas, promovem
pousos de Folia ou ainda encaminhadas para o Imperador que conduz a Festa. Assim é possível outra
comparação das práticas da Folia com o período medieval, ao concordar com Le Goff de que a “Idade
Média é feita de matérias, de produtos que se permutam, de desordens físicas e mentais” (2013, p. 32).
Em observações promovidas durante os giros de Folia do ano de 2013, foi possível
compreender algumas das “desordens” apontadas pelo referido historiador. O folião é um cidadão que
em dias comuns, na cidade ou área rural de Pirenópolis leva uma vida simples, pautada em trabalho,
obrigações, convívio com a família e com a vida social local; nem sempre é um religioso fervoroso que
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frequenta a igreja e comunga dos preceitos estabelecidos. No entanto, ao se propor a girar a Folia, o
cidadão simples se transforma em um devoto que festa, mas que principalmente leva a Bandeira do
Divino a locais muitas vezes esquecidos pelos representantes religiosos. Tal situação proporciona ao
folião uma responsabilidade de difusão da devoção ao mesmo tempo em que amplia e comprova o
próprio fervor ao Divino.
Quanto às “desordens” físicas pudemos perceber quão cansativos são os trajetos por estradas
cheias de poeiras em meio ao cenário da seca que se faz presente no Cerrado no período em questão;
assim como o desconforto dos acampamentos que são montados, desmontados e transportados por
carros de apoio a cada amanhecer. Sem mencionar a desagregação temporária com a família e demais
pessoas do convívio cotidiano — situação amenizada pela fé ao Divino Espírito Santo protetor durante
a jornada que a cada ano contribui para que foliões ampliem, professem e difundam suas devoções.
Situação adversa acontecia por ocasião das Cruzadas, como relembra Flori, quando os “peregrinos,
assim que partiam, eram protegidos pela Igreja até a volta, bem como suas respectivas famílias e seus
bens” (2013, p. 321).
As Folias do Divino, assim como as demais, são permeadas por rituais que precisam ser
cumpridos para evitarem os “interditos”. Desde a saída da Folia, como no giro e nos pousos a
ritualidade tem por premissa principal as Bandeiras, para as quais há todo um respeito mesmo por
parte dos não foliões e até mesmo pelos não devotos, quando da circulação das mesmas pela cidade
nos momentos da saída e/ou da chegada.
Durante a trajetória entre os locais de realização dos pousos, os foliões fazem orações
individuais ou coletivas e de quando em quando cantam músicas conhecidas que não necessariamente
sejam religiosas. Já nas fazendas que abrigaram os pousos os foliões entoam cantos de teor religioso,
que geralmente são de conhecimentos de todos e que são destinados a alguns momentos específicos
como o agradecimento de mesa ou o agradecimento do “presente” indicado no arco da entrada o que
de acordo com Van Gennep (2011), simboliza a “transposição de mundos”, o que faz da fazenda ser a
sede, pelo período de um dia, o pouso das Bandeiras do Divino.
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A cantoria também é improvisada em trovas e versos durantes outros momentos rituais como a
chegada da Folia na fazenda que receberá o pouso, uma vez que enquanto os serventes (um dos
encargos da Folia) não encontram o “presente” (geralmente uma garrafa de pinga) a Folia não avança
para chegar ao altar. Assim, vários improvisos são realizados pelos cantores e músicos, sendo que o
mesmo acontece após a janta e agradecimento de mesa, por ocasião da retirada de esmolas, quando os
cantores trovam versos improvisados a partir da observação atenta de algumas características que
percebem nos devotos que seguram as bandeiras, sendo que o homenageado em seguida aos versos
recebidos procede doações, geralmente em dinheiro, aos responsáveis por “retirar a esmola”.
Os músicos da Folia em sua maioria são pessoas sem formação educacional e que moram ou
possuem vínculos estreitos com o mundo rural. Tocam e cantam de “ouvido” como costumam dizer
para informar que não estudaram música, o que os diferem dos trovadores medievais, uma vez que
segundo Sabaté “o nobre do século XII domina determinados códigos culturais, que incluem
conhecimentos como a poesia trovadoresca” (2013, p. 34). Se estes compunham para agradar a
nobreza, os foliões o fazem para comprovar a devoção ao Divino. Talvez, por isso, as músicas de Folia
do Divino comovem quase todos que as ouvem.
Muitas transformações ocorreram nas Folias nas últimas décadas como pudemos observar a
partir dos relatos de foliões que giram há tempos e justificam não terem sido apenas os aspectos
ligados diretamente à festa que se alteraram, até mesmo a estrutura das propriedades rurais, que
anteriormente eram maiores e a tropa se perdia por bivacavas, dando mais trabalho aos foliões
iniciantes que ocupam, segundo a hierarquia da Folia, os foliões tropeiros — os responsáveis pelos
cuidados com a tropa, como banho, soltura e recaptura dos animais nos pastos hoje localizados
próximos à casa que abriga o pouso.
Cruzadistas e foliões, cada um a seu modo e há seu tempo, empreenderam deslocamentos
devocionais por difíceis caminhos, enfrentando intempéries, cansaço, falta de conforto, afastamentos
dos entes queridos e do cotidiano, para em troca ampliar, comprovar e difundir a devoção, que tanto
para os de ontem quanto para os de hoje, constituem os fundamentos essenciais da razão de ser no
mundo.
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Considerações Finais
Ao ponderar que “a ideia de levar o Cristianismo a outros povos, ditos infiéis, não pode ser
desprezada no mundo medieval” (NASCIMENTO, 2013, p. 179), implica em compreender que mesmo
diante de tantos embates, e mesmo com a Guerra Santa a Igreja estimula o avanço territorial em busca
do domínio de Jerusalém, num ato de extrema violência da imposição da conversão pela fé ou pela
espada.
Em situação adversa está a Folia do Divino Espírito Santo de Pirenópolis que visa expandir a fé
por espaços pouco contemplados pelas visitas paroquiais e cujo clero se mostra contrário a tais
difusões e perpetuações de tal devoção popular. Como podemos observar em dois momentos
significativos: em um passado próximo com a instituição de normativas proibitivas e recentemente
com a criação de uma Folia do Divino Espírito Santo da Renovação cristã (a Folia do padre) que
objetiva se tornar a única Folia a percorrer as fazendas.
Outro ponto que merece destaque é a importância que a Festa do Divino, e não diferentemente
a Folia do Divino, possuem, conforme observações empreendidas por Mesquita e Oliveira (2013) que
alerta para o fato de que ambas “são bastante estudadas, contribuindo assim para registro e divulgação
dos conhecimentos ligados à manifestação cultural pirenopolina e que recentemente teve
reconhecimento patrimonial” (p. 517).
Enfim, diante das observações relacionadas à Folia do Divino Espírito Santo em Pirenópolis,
durante a festa de 2013, conjugadas com as leituras referentes ao período medieval é possível, por
meio de analogia, verificar a existência e a permanência da tríade: ampliação, comprovação e difusão
devocional por meio das peregrinações que abrangem escalas diferentes, assim como os interesses da
Igreja por meio dos variegados deslocamentos.
Referências Bibliográficas
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VAN GENNEP, Arnold. Os ritos de passagem: estudos sistemáticos dos ritos da porta e da soleira, da
hospitalidade, da adoção, gravidez e parto, nascimento, infância, puberdade, iniciação, coroação,
noivado, casamento, funerais, estações, etc. Trad. Mariano Ferreira. 2. ed. Petrópolis/RJ: Vozes, 2011.
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WRANGHAM, Richard W. Pegando fogo: por que cozinhar nos tornou humanos. Trad. Maria Luiza
X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2010. 226p.
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UM OLHAR PARA O FAZER HISTÓRICO DA BAIXA IDADE MÉDIA A
PARTIR DA CRÔNICA GERAL DE ESPANHA DE 1344
Adriana Mocelim4
A Crônica Geral de Espanha de 1344, atribuída ao Conde Pedro Afonso de Barcelos, é
representante de uma Crônica Geral, tendo recebido “forte influência da cronística castelhana que teve
na obra historiográfica de Alfonso X de Leão e Castela o seu modelo.”5 Segundo coloca Esteban
Sarasa Sánchez, inicialmente as crônicas se ocuparam de elementos ligados à história universal,
buscando associar suas origens ao livro do Gênesis, seguindo um modelo proposto por Eusébio de
Cesarea. Seguiam ainda
un orden cronológico que combinaba fechas de interés eclesiástico con acontecimientos
civiles que informaban dentro de una continuidad histórica providencialista. Los autores
de crónicas se ajustaron al esquema de las seis edades de la historia bíblica para
encuadrar los hechos narrados, pero con el paso del tiempo la evolución de este género
fue complicándose y enriqueciéndose hasta incorporar incluso fuentes no narrativas.6
As crônicas que foram produzidas na Península Ibérica a partir de Afonso III de Leão, inseremse em um contexto historiográfico marcado por um poder político que busca consolidar-se, “adquire
conciencia de sí y busca un medio de legitimación, justificación histórica y perduración en el ámbito
4
Doutora em História. Professora da PUCPR/NEMED. E-mail: [email protected].
KRUS, Luís. Crónica Geral de Espanha de 1344. In: MAGALHÃES, Isabel Allegro de. (Coord.) História e antologia da
literatura portuguesa, séculos XIII – XIV, a prosa medieval portuguesa. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkin, 1997.
p. 20.
6
SARASA SÁNCHES, Esteban. La construcción de una memoria de identidad. El género historiográfico en la Edad
Media: de lo europeo a lo hispano. In: IGLESIA DUARTE, José Ignacio de la e MARTÍN RODRÍGUEZ, José Luis.
(coord.). Actas: Los espacios de poder em la España Medieval: XII Semana de Estudios Medievales, Nájera, del 30 de
Julio al 03 de agosto de 2001. Instituto de Estudios Riojanos: Espanha, 2002. p. 414.
5
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cultural, concretamente, en la escritura cronística; acompañando el dominio político con la hegemonia
ideológica.”7
Um novo passo na produção cronística foi dado com a Crônica Geral de Espanha, de Afonso
X de Castela. Nesta obra estariam presentes quatro elementos fundamentais que, juntos, formam um
conjunto renovador em termos historiográficos, seriam eles: “la utilización de fuentes de forma
fragmentaria y selectiva, la inclusión de temas entresacados de la poesia popular, la aplicación de
fuentes árabes y el uso de la lengua vulgar.”8 O modelo historiográfico, presente no relato afonsino,
ressalta a “importancia que adquiere el nivel de la enunciación cronística, con el interjuego temporal
entre el pasado de la historia y el presente de la narración, y la muy elaborada construcción de la
categoría del yo-narrador.”9
Esse modelo encontrado na Crônica de Afonso X sofreu inúmeras reelaborações tanto no
âmbito castelhano-leonês quanto no ocidente da Península Ibérica. 10 Interessam, nessa análise, as
remodelações sofridas no reino português, sobretudo aquela realizada pelo Conde Pedro Afonso de
Barcelos, e seus refundidores. O Conde inserido, e participante de muitas ações, junto à Corte do Rei
Dinis é tido por Luís Filipe Lindley Cintra como
o mais culto dentre os filhos do Rei, que, já em tempo e certamente sob a influência de
seu próprio pai, mas também e principalmente sob a forte impressão causada pelo
contacto directo com os meios castelhanos onde então eram prolongadas e refundidas as
7
FUNES, Leonardo. Elementos para una poética del relato histórico. In: ARIZALETA, Amaia (éd.). Poétique de la
chronique. L’ecriture des textes historiographiques au Moyen Âge (Penínsule Ibérique et France). Toulouse – Le
Mirail, Université, 2008. p. 245.
8
SARASA SÁNCHES, Esteban. La construcción de una memoria de identidad. El género historiográfico en la Edad
Media: de lo europeo a lo hispano. In: IGLESIA DUARTE, José Ignacio de la e MARTÍN RODRÍGUEZ, José Luis.
(coord.). Actas: Los espacios de poder em la España Medieval: XII Semana de Estudios Medievales, Nájera, del 30 de
Julio al 03 de agosto de 2001. Instituto de Estudios Riojanos: Espanha, 2002. p. 423.
9
FUNES, Leonardo. Elementos para una poética del relato histórico. In: ARIZALETA, Amaia (éd.). Poétique de la
chronique. L’ecriture des textes historiographiques au Moyen Âge (Penínsule Ibérique et France). Toulouse – Le
Mirail, Université, 2008. p. 248.
10
Sobre as inúmeras remodelações pelas quais passou a Crônica Geral de Espanha de Afonso X, consultar as obras:
BARROS DIAS, Isabel de. Metamorfoses de Babel: a historiografia ibérica (sécs. XIII-XIV) construções e estratégias
textuais. Coimbra: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003; ESTEVES, Elisa R. P. Nunes. A Crónica geral de Espanha de
1344: estudo estético-literário. Évora: Pendor, 1997.
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obras de Afonso X, se dedica insistente e decididamente à imitação dos
empreendimentos do grande Rei de Castela no campo da historiografia.11
Esse contato do Conde com o trabalho historiográfico, desenvolvido em Castela, permitiu a ele
dedicar-se, segundo Lindley Cintra, a mandar traduzir e ampliar a Crônica dos Vinte Reis, a redigir o
Livro de Linhagens e arealizar uma refundição da Crônica Geral de Afonso X.
A autoria da Crônica de 1344 atribuída ao Conde Pedro de Barcelos só aconteceu após os
estudos realizados por Luís Filipe Lindley Cintra para a edição crítica da obra. 12 Antes dele outros
autores já haviam se dedicado a levantar a autoria do texto, destacando-se Ramón Menendez Pidal que
apresentou, na obra Crónicas Generales de España,13 três hipóteses acerca da autoria da obra,
elaboradas entre meados do século XVI e inícios do século XVII e a sua visão de que a mesma seria
anônima.14
É necessário apontar que a presente análise está sendo realizada tendo como base a edição
crítica realizada por Luís Filipe Lindley Cintra. Levando-se em conta que se trata da versão da Crônica
que passou por refundições e adaptações, porém esse fato não inviabiliza a análise e nem elimina o
fato de que inicialmente a obra foi escrita pelo Conde Pedro Afonso de Barcelos. As inúmeras
refundições e adaptações, realizadas a partir do texto inicial, demonstram sua relevância para o
contexto do reino português e porque não ibérico.
A redação da Crônica teria acontecido após a conclusão do Livro de Linhagens, podendo ter
sido o mesmo, assim como suas fontes, utilizado como base para sua redação. A respeito da data de
11
LINDLEY CINTRA, Luís Filipe. Introdução. In: Crónica Geral de Espanha de 1344. Fontes Narrativas da História
Portuguesa. Vol. I. Segunda Edição. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2009. p. 413.
12
“Creio porém que, partindo da surpreendente coincidência na utilização de fontes entre a Crónica e o Livro das
Linhagens do Conde D. Pedro, da contemporaneidade entre a mesma Crónica, redigida por volta de 1344, e o autor do
Livro morto em 1354, e da prévia determinação da origem portuguesa da Crónica, se pode ir além [...] e afirmar que, se não
é possível atribuir com toda a segurança a compilação da Crónica de 1344 a D. Pedro Afonso, Conde de Barcelos, já que
nenhum dado documental apareceu até hoje provando que a ele se devesse esta iniciativa, há pelo menos uma série de
circustâncias que dão um alto grau de probabilidade a esta nova hipótese.” 12 LINDLEY CINTRA, Luís Filipe.
Introdução. In: Crónica Geral de Espanha de 1344. Fontes Narrativas da História Portuguesa. Vol. I. Segunda Edição.
Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2009. p. 130.
13
MENÉNDEZ PIDAL, Ramón. Catálago de la Real Biblioteca, Tomo I. Manuscritos: Crónicas Generales de España.
Madrid, 1898. p. 17-23.
14
Ibid., p. 22.
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redação da primeira versão da Crônica Geral de Espanha de 1344, é encontrada, no texto da mesma, a
seguinte referência:
salvo estes condes de Castella, que nom forom reis, e salvo el Rei dom Sancho de
Navarra, o Mayor, que foy senhor de Castella pella raynha dona Elvira, sua molher, e
savando el Rey dom Afomso d’Aragõ, que foi tan be senhor de Castella pella raynha
dona Orraca, sua molher, que enton era senhor, que nõ vay em esta estória, foron reis de
Castella e de Leom trinta e sete. E, co os reis godos, que foron trinta e seis, fazem
sateenta e tres e, com el Rey Don Garcia e com outros sete que forom reis de Portugal,
foron per toda conta oyteeta e hũu, ataa a era de myl e trezentos e oyteenta e dous annos
que este livro foy feito, feria quarta, viinte e hũu dias de Janeiro da dita era.15
Esse trecho, que está inserido no corpo do texto, não corresponde, portanto ao período final de
redação da obra, serve como marco temporal de que nesta data, que corresponde à 21 de Janeiro de
1344, o autor chegara a esse ponto da narrativa.
Na primeira versão da Crônica havia um esquema de história universal de caráter puramente
genealógico, “concebida dentro do mesmo espírito e redigida no mesmo estilo que o esquema de
história universal presente no Livro de Linhagens. A Crônica começa, pois como obra de um
genealogista.”16
Após essa genealogia universal teria sido realizada a inserção de uma parte das obras do
historiador do século X Ahmed bem Mohammed Arrazi, cuja obra é conhecida como “Crônica do
Mouro Rasis”. A tradução dessa obra, na primeira metade do século XIV, marca o início da produção
historiográfica em língua portuguesa. A iniciativa deveu-se ao Rei Dinis, neto de Afonso X de Castela,
que “manda traduzir a Crónica do historiador árabe Ahmed Arrazi, não aproveitada nas obras do
15
Crónica Geral de Espanha de 1344. Vol. II. In: Fontes Narrativas da História Portuguesa. Ed. Crítica: Luís Filipe
Lindley Cintra. Lisboa: Academia Portuguesa da História, 1954. p. 379-380.
16
LINDLEY CINTRA, Luís Filipe. Introdução. In: Crónica Geral de Espanha de 1344. Fontes Narrativas da História
Portuguesa. Vol. I. Segunda Edição. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2009. p. 188.
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monarca castelhano,”17 tomando assim uma iniciativa que o aproximou do que desenvolvera Afonso X
em sua Corte castelhana.
O Conde fez uso de diversas fontes, tentando “recuperar alguns elementos do passado mais
distante ausente das fontes manuseadas para os períodos posteriores.”18 Prolongou as histórias dos reis
de Navarra e Aragão, trouxe a história dos reis da Sicília, versões genealógicas dos reis da Bretanha,
de Inglaterra e da França, sendo que “nenhuma dessas histórias era abrangida pela Crônica de Afonso,
o Sábio.”19 A Crônica Geral de 1344 resulta assim da união de uma versão da Crônica Geral de
Afonso X a extensos excertos da Crônica do Mouro Rasis, da Crônica dos Vinte Reis, do Liber
Regum, de textos poéticos e históricos. A primeira redação da Crônica de 1344 caracteriza-se por ser
uma obra marcada pela heterogeneidade de seu autor que se desloca entre a genealogia e a Crônica,
pensando em uma história genealógica universal.
Existe, no entanto, uma segunda versão da Crônica Geral de Espanha de 1344 escrita, segundo
Lindley Cintra, no período final do século XIV ou início do XV, essa é a versão editada por ele. Sendo
difícil, a partir dos registros encontrados, precisar com mais clareza a data efetiva da redação da
mesma.
Na segunda redação da Crônica de 1344 os redatores se preocuparam em fazer desaparecer
a heterogeneidade de que lhe advém um carácter de simples rascunho, [...] pela omissão
da história genealógica inicial e pela inclusão, em seu lugar, de um prólogo e de uma
série de capítulos inspirados na Primeira Crônica. Deram deste modo à obra uma
unidade que ela não tinha na sua versão original. 20
17
Ibid., p. 413.
BARROS DIAS, Isabel de. Metamorfoses de Babel: a historiografia ibérica (sécs. XIII-XIV) construções e estratégias
textuais. Coimbra: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003. p. 96.
19
LINDLEY CINTRA, 2009. Op. Cit., p. 35.
20
LINDLEY CINTRA, Luís Filipe. Introdução. In: Crónica Geral de Espanha de 1344. Fontes Narrativas da História
Portuguesa. Vol. I. Segunda Edição. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2009. p. 189.
18
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Recupera-se assim a narrativa dos tempos mais antigos da Península Ibérica, tentando-se
minimizar as alusões imperiais presentes no texto afonsino. Essa versão da Crônica, elaborada por
volta de 1400, tenta aproximá-la do padrão historiográfico castelhano, afastando grande parte dos
textos claramente genealógicos, porém não
sacrificou a perspectiva com que o Conde de Barcelos encarou a história peninsular da
Reconquista. Motivado para o registro da gesta hispânica num momento marcante da
afirmação da unidade ibérica, o da vitória cristã do Salado, Pedro Afonso concebeu o
passado peninsular como herança colectiva de proezas e façanhas, sendo nesse quadro
que o Portugal nobiliárquico e régio se devia distinguir com valorizada diferença,
mobilizando-se para cumprir um destino libertador e redentor, tal como melhor se
define numa outra obra do Conde, o Livro de Linhagens ou Nobiliário. 21
Na versão da Crônica Geral de Espanha de 1344, além da refundição da Crônica Geral de
Afonso X, da inserção de trechos genalógicos são encontrados diversos extratos que trazem o autor
Pedro Afonso de Barcelos. Tais trechos referem-se de maneira muito particular aos reinados de Dinis,
pai do Conde, e de Afonso IV, seu irmão. São textos, que muito possivelmente já estavam presentes na
versão escrita por ele em 1344 e que permaneceram na versão do final do século XIV, constituindo-se
em relatos de relevante interesse histórico, são “um precioso depoimento de um contemporâneo que,
pela sua posição, estava nas melhores condições de observar os fatos.” 22
Para poder escrever acerca desse período o Conde empregou sua vivência na Corte de Dinis,
sua ativa participação como mediador na demanda entre Dinis e o Infante Afonso durante a Guerra
Civil, que aconteceu no reino português entre 1319-1324, sua participação no reinado de Afonso IV,
além de relatos contemporâneos.
21
KRUS, Luis. Crónica Geral de Espanha de 1344. In: MAGALHÃES, Isabel Allegro de. (Coord.) História e antologia
da literatura portuguesa, séculos XIII – XIV, a prosa medieval portuguesa. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.
p. 21.
22
LINDLEY CINTRA, Luís Filipe. Introdução. In: Crónica Geral de Espanha de 1344. Fontes Narrativas da História
Portuguesa. Vol. I. Segunda Edição. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2009. p. 399.
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Ao se referir ao reinado de Dinis descreve com uma minúcia de detalhes acontecimentos nos
quais ele mesmo esteve presente, como nas viagens do Rei Dinis a Aragão em 1304. Nas referências
aos períodos do reinado em que atuou junto ao Rei Dinis, desempenhando importante papel na vida
pública, há inúmeras informações relativas à sua atuação, algumas delas com nítido carácter de
justificação.23
Tal qual já fizera Afonso X, na Crônica Geral de Espanha, preocupou-se o Conde com a
formatação de uma história de abordagem universalista, sendo assim onde ficaria então a novidade em
relação aos escritos já realizados na Corte de Afonso X? Segundo Lindley Cintra a novidade encontrase na abundância de novas fontes utilizadas na Crônica Geral de Espanha de 1344 e na ampliação das
seções dedicadas a Aragão, Navarra e Portugal. A técnica empregada pelo Conde para redigir a obra
seria a mesma já consagrada por Afonso X, “deste ponto de vista, o seu autor revela-se, com a única,
mas importante, excepção da reduzida série de capítulos directamente redigidos pelo compilador, um
discípulo fiel dos processos compilatórios da escola castelhana de fins do século XIII.” 24
Muito embora em seu conjunto a Crônica Geral de Espanha de 1344 seja fortemente
influenciada pela produção historiográfica castelhana, não se pode deixar de observar as diferenças
quanto ao conteúdo e a forma empregada na redação da Crônica portuguesa. Quanto ao conteúdo, ao
mesmo tempo em que permanece fiel ao ideário de uma história ibérica, trazendo o passado dos
diversos reinos cristãos da Reconquista, incluindo Portugal, não “deixa de manifestar uma sistemática
hostilidade para com a dinastia real de Castela e uma paralela tendência para exaltar o contributo
regional português na construção da história peninsular, acabando, desse modo, por atenuar a tese
afonsina do primado castelhano no protagonismo hispânico.” 25
Em relação à forma percebe-se que embora buscasse aproximar-se do processo de compilação
das fontes, próprio da cronística afonsina, acaba por proceder de “maneira menos sistemática e
organizada, repetindo informações oriundas das distintas fontes disponíveis e cometendo vários
23
Ibid., p. 397.
Ibid., p. 416.
25
KRUS, Luis. Crónica Geral de Espanha de 1344. In: MAGALHÃES, Isabel Allegro de. (Coord.) História e antologia
da literatura portuguesa, séculos XIII – XIV, a prosa medieval portuguesa. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.
p. 20.
24
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atropelos cronológicos na apresentação global das notícias compiladas, reflexos, por sua vez, de um
pouco trabalhado plano historiográfico prévio.” 26
Percebe-se, ao analisar a produção do Conde Pedro Afonso, uma aproximação entre a produção
linhagística e a produção cronística, buscando construir uma nova leitura do passado ibérico,
integrando o reino Português na história peninsular. Outro ponto que deve ser observado é o de que o
Conde Pedro Afonso ao escrever a Crônica, com feições universalistas, representava uma tendência
que estava sendo abandonada pela historiografia. Já na segunda versão, da Crônica Geral de Espanha
de 1344, percebem-se indícios de restrição do campo historiográfico
desaparecem a história genealógica universal do início e os resumos de história da
França, da Bretanha, da Inglaterra e da Sicília. É verdade que se substitui a genealogia
inicial por uma refundição de parte dos capítulos da Primeira Crónica Geral, referentes à
prehistória fabulosa da Ibéria e aos domínios grego, cartaginês e romano, e que se põe
no lugar do simples esquema de história gótica da primeira redacção um extracto da
parte correspondente da obra de Afonso X. Mas apesar da maior extensão e
pormenorização das partes agora introduzidas, elas dizem respeito só à história da
Península. 27
O foco principal da narrativa passa a ser somente o que está diretamente relacionado à
Península Ibérica, esta mudança de foco narrativo está diretamente relacionada ao contexto político
que marca o final do século XIV e início do XV, período supostamente de redação da segunda versão
da Crônica Geral de Espanha
O Conde Pedro Afonso estava inserido na Corte do Rei Afonso IV de Portugal, era seu irmão, e
tinha trânsito junto à nobreza portuguesa do início do século XIV, tal fato deve ser levado em conta ao
analisar a redação da Crônica, buscando interesses e motivações para a redação da obra. Os textos
26
Ibid., p. 20.
LINDLEY CINTRA, Luís Filipe. Introdução. In: Crónica Geral de Espanha de 1344. Fontes Narrativas da História
Portuguesa. Vol. I. Segunda Edição. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2009. p. 397. p. 418.
27
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produzidos na Corte de Afonso X foram sucessivamente copiados, resumidos e reescritos em épocas e
lugares diferentes, demonstrando assim a autoridade do texto, gerando ecos e continuações. Formou-se
em torno desses textos
uma estrutura complexa de inovações e dependências mútuas, pois à cópia e
reformulação do material veiculado pelos textos mais antigos foram sendo adicionados
novos factos e opiniões. A estes elementos vão-se ainda sobrepor às diferentes
ideologias daqueles que de um modo ou de outro puderam influir no processo e cujas
opiniões nem sempre coincidiram. 28
Em sendo a Crônica Geral de Espanha Afonsina uma obra que já alcançara uma posição
privilegiada no contexto peninsular, era necessário “reservar um lugar na história para o reino mais
recente da Península. Sendo o espaço físico, geográfico de Portugal já uma realidade, era necessário
conquistar também um lugar na memória e no imaginário. ”29
Entre as duas versões da Crônica Geral de Espanha de 1344 encontram-se indícios de
construção e consolidação de um projeto de identidade própria, e principalmente na segunda versão
um projeto de valorização monárquica. No momento de redação da segunda versão, final do século
XIV, não seria
muito adequado retomar um texto que fizesse a apologia de um Império Ibérico e/ou
supremacia de Castela. Um pequeno reino que não tinha cessado de lutar para aumentar
o seu território e para manter a sua independência relativamente a vizinhos cristãos,
consideravelmente mais poderosos, teria forçosamente que reflectir, também ao nível da
sua produção textual, uma das questões fundamentais para a Península Ibérica: a
28
BARROS DIAS, Isabel de. Modelos heróicos num fluir impuro. In: RIBEIRO, Cristina Almeida e MADUREIRA,
Margarida (Coord.). O gênero do texto medieval. Lisboa: Edições Cosmos, 1997. p. 107.
29
BARROS DIAS, Isabel de. Cronística afonsina modelada em português: um caso de recepção ativa. In: Hispania.
Revista Española de Historia, 2007. Vol. LXVII, núm. 227, septiembre-diciembre. p. 901.
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afirmação da existência dos diversos reinos autônomos, em oposição a correntes que
defendiam a união de um Império. 30
Percebe-se ao longo do relato cronístico uma maneira de refletir outra ordenação da Península
Ibérica, marcada pela partição territorial, que contraria as referências imperiais e apologia à unidade
ibérica presente nos relatos afonsinos.
Ao analisar a Crônica de 1344, Isabel de Barros Dias procura elementos que denotem
abbreviatio e amplificatio em relação ao texto base empregado pelos refundidores: a Crônica Geral de
Afonso X. A autora coloca que “o que se escolhe omitir, aquando da construção de um texto,
mormente de uma crónica que é o lugar da memória do passado, é tão significativo como o que se
escolhe integrar.” 31
Nesse sentido a autora aponta para uma série de alusões imperiais que estavam presentes na
Crônica Geral de Afonso X e que não mais estão presentes na obra de 1344. Tal fato pode já ser
percebido ao se tratar do período da ocupação do território da península ibérica pelos romanos e do
próprio Império Romano, sendo a ausência de determinadas descrições justificada na obra
E, porque esta história dos que conquistaram a Espanha até os Godos, fala de muitos
que vieram conquistá-la, é necessário, para que a história siga um rumo correto, que
aqueles príncipes que a ela vieram e fizeram grandes feitos, sejam colocados na história
algumas vezes, ressaltando coisas pequenas que fazem sentido na escrita, ainda que não
tenham muita relação com os feitos da Espanha, e deixar de lado alguns outros grandes
feitos que eles fizeram e que não pertencem a esta história.32
30
BARROS DIAS, Isabel de. Cronística afonsina modelada em português: um caso de recepção ativa. In: Hispania.
Revista Española de Historia, 2007. Vol. LXVII, núm. 227, septiembre-diciembre. p. 902.
31
Ibid., p. 904.
32
Crónica Geral de Espanha de 1344. In: Fontes Narrativas da História Portuguesa. Ed. Crítica: Luís Filipe Lindley
Cintra. Vol. II. Lisboa: Academia Portuguesa da História, 1954. p. 76.
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Ficaram de fora do relato cronístico até mesmo imperadores de origem ibérica, 33 sendo a
motivação para essa supressão entendida ao levar-se em “consideração que é graças a supressões deste
tipo que a crónica portuguesa pode desconstruir (por omissão) a argumentação e as diversas
insinuações imperiais do discurso afonsino.” 34
A autora encontrou ainda amplificações, em relação ao texto de Afonso X, nas descrições
relacionadas à Reconquista. Ainda que o relato esteja centrado nos reinos de Castela e Leão, o enfoque
dado aos reinos periféricos, em particular a Portugal, é significativo ao acentuar a presença dos reinos
menores no contexto da história peninsular. Deve-se levar em conta o maior acesso a fontes detalhadas
da história desses reinos, assim como o fato de que “o aumento da extensão textual dedicada aos reinos
periféricos altera o peso relativo dos vários reinos, sobretudo, quando também se abrevia, mesmo que
discretamente, as narrativas sobre os reis de Castela e Leão.” 35
Através de suas produções o Conde, e posteriormente os refundidores, buscavam criar um
espaço na memória e no imaginário da Península Ibérica para o Reino Português. Para tanto fizeram
uso da já consagrada historiografia preexistente, textos que remetem a uma autoridade, fazendo em
Portugal “o que já tinha sido feito anteriormente em Castela-Leão, aquando da reelaboração dos textos
afonsinos: desvia-se, modela-se o Modelo, em consonância com novas ideias e ideais distintos,
mantendo, no entanto, a referência prestigiante à Auctoritas do Rei Sábio. ”36
Tanto o Conde, na primeira versão, como os redatores da segunda versão da Crônica
trabalharam a partir do texto afonsino, porém não se tratou de uma mera tradução ou transcrição, o
texto é interpretado, comentado e recriado, levando-se em conta a realidade portuguesa.
Ao escrever uma Crônica tinha-se em mente a percepção da mesma como suporte da verdade,
como pode ser visto no trecho a seguir onde a intencionalidade do texto é clarificada: “se prestarmos
33
Segundo Isabel de Barros Dias ficaram de fora Galba, eleito imperador em oposição a Nero na Hispânia, Nerva e
Trajano, naturais da Hispânia, assim como Adriano. BARROS DIAS, Isabel de. Cronística afonsina modelada em
português: um caso de recepção ativa. In: Hispania. Revista Española de Historia, 2007. Vol. LXVII. Núm. 227,
septiembre-diciembre. p. 904.
34
Ibid., p. 905.
35
Ibid., p. 905.
36
Ibid., p. 927.
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atenção no proveito que nos vem das escrituras acharemos que por elas tomamos conhecimento da
verdade e somos conhecedores das coisas antigas da criação do mundo.”37
É possível perceber no trecho forte influência das definições ciceronianas da história que,
segundo Jacques Le Goff, permanecem válidas durante a Idade Média, cita dentre elas:
Quem ignora que a primeira lei da história é não dizer nada falso? E a segunda, ousar
dizer toda a verdade? (Cícero. De Oratore, II, 15, 62). E a célebre apóstrofe em que
reclama para o orador o privilégio de ser o melhor intérprete da história, o que lhe
assegura a imortalidade e na qual lança a definição da ‘história mestra da vida.’ [...]
Cícero chama à história luz da verdade.38
Além de suporte da verdade o texto cronístico era também portador dos exemplos que se
desejam preservar para a posteridade, adquirindo assim autoridade também ao nível moral ou ético. 39
Nesse sentido, segundo aponta Le Goff acerca do legado da história para os antigos, o que ela deixa
são “os exemplos dos antepassados, heróis e grandes homens. Devendo combater a decadência,
reproduzindo a título individual os grandes feitos dos mestres, repetindo eternos modelos do
passado.”40 A história é vista assim, como sendo uma fonte de exempla, não estando longe da retórica
das técnicas de persuasão.
Um texto cronístico ao reclamar para si uma verdade, que se quer
más profunda que la que se apoya en el razonamiento y la evidencia: su verdad es una
verdad moral, una verdad de adecuación modélica en la que una comunidad construye
su práxis y manifesta su voluntad de participar de una identidad y de una escala de
valores. Por lo tanto, esta verdad consensual, profundamente ligada a la tradición y el
37
Crónica Geral de Espanha de 1344. In: Fontes Narrativas da História Portuguesa. Ed. Crítica: Luís Filipe Lindley
Cintra. Vol. II. Lisboa: Academia Portuguesa da História, 1954. p. 5.
38
LE GOFF, Jacques. História e Memória. São Paulo: Unicamp, 2013. p. 112.
39
BARROS DIAS, Isabel de. Modelos heróicos num fluir impuro. In: RIBEIRO, Cristina Almeida e MADUREIRA,
Margarida (Coord.). O gênero do texto medieval. Lisboa: Edições Cosmos, 1997. p. 109.
40
LE GOFF. 2013. Op. Cit., p. 64.
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rito, sostiene ideológicamente la historicidad de este relato cronístico complementando
así la autoridad emergente de sú construcción narrativa 41
A produção historiográfica medieval apresentava em muitos casos a contraposição de versões
de autores diferentes, como pode ser observado no trecho da Crônica de 1344 destinado a apresentar
como morreu o Rei Tulga, dos godos:
conta o arcebispo dom Rodrigo e dom Lucas de Tuy que a perda deste Rei (Tulgas) foi
muito grande em toda a Espanha, que ele era de tão boa conversação, tanto para com
eclesiásticos quanto para com os leigos, que todos eram muito contentes em relação a
ele; que assim como aquele bom rei Recaredo, que destruiu a heresia dos arianos,
trabalhava na honra de Deus e interesse de seu povo, agia assim de forma que todos
pensavam dele coisas ainda melhores. Mas Sigeberto conta isto de outra maneira, diz
que era um moço ligeiro e de pouco juízo e que os godos lhe tiraram o reino por esta
razão e que o ordenaram clérigo de missa. Mas isto não pode ser acreditado, porque o
arcebispo dom Rodrigo e o bispo dom Lucas, que escreveram os feitos dos Godos o
mais certo e verdadeiro que puderam, são mais críveis que Sigeberto, que era francês. 42
A partir dessa contraposição de versões, ressaltando o fato de que, segundo o autor da obra,
dois dos autores seriam mais confiáveis por estarem mais próximos do objeto relatado, ao contrário de
Sigeberto, descredenciado para falar do Rei Godo pelo fato de ser francês.ACrônica de 1344
aproxima-se assim do que coloca Leonardo Funes: “las primeras crónicas (alfonsíes e post-alfonsíes),
mediante un trabajo de traducción (o de prosificación, según el caso) y de compilación de materiales
41
FUNES, Leonardo. La construccíon ficcional del acontecimiento histórico en el discurso narrativo de mediados del XIV.
In: Studia Hispanica Medievalia III. Actas de las IV Jornadas Internacionales de Literatura Española Medieval.
Buenos Aires: Universidad Católica Argentina, 1993. p. 66.
42
Crónica Geral de Espanha de 1344. In: Fontes Narrativas da História Portuguesa. Ed. Crítica: Luís Filipe Lindley
Cintra. Vol. II. Lisboa: Academia Portuguesa da História, 1954. p. 218.
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que ya tenían formato narrativo, fundaban la garantía de verdad de su relato en el hecho de haberlo
hallado em fuentes inobjetables.” 43
Outro ponto a ser destacado em relação à Crônica de 1344 é sua aproximação com os Espelhos
de Príncipes, obras que circulavam pela península Ibérica desde o século XIII, projetando modelos de
ações tanto para a nobreza como para os reis. Durante a análise do Livro de Linhagens, realizada para a
elaboração da dissertação de mestrado,44 já foram levantadas características que também o
aproximavam dos Espelhos de Príncipes.
Ao analisar a Crônica Geral de Espanha de 1344foram encontrados excertos que remetem às
características dos Espelhos de Príncipes, inseridos em outra forma textual: a historiografia. Essa
inserção “numa estrutura geográfica, temporal e dinasticamente bem situada, diminui um pouco o tom
de abstração que pende sobre os specula que circulavam de forma autónoma, mesmo quando
dedicados à alguém em particular.”45 Conforme coloca Isabel de Barros Dias esses trechos, inseridos
no discurso historiográfico, trazem além do enunciado normativo, dirigido a uma pessoa em particular,
retratos específicos dessas personagens, contendo a narrativa de seus atos e gestos.
A Crônica pode ser analisada como uma obra que privilegia determinadas “virtudes” ao mesmo
tempo em que ressalta o que deve ser evitado. A maneira como são apresentadas as relações entre
soberanos e seus súditos pode estar relacionada à ideologia pró-senhorial que marca a historiografia
mais tardia, e ainda ao reforço da autoridade monárquica da dinastia portuguesa de Avis, que ascende
ao trono no final do século XIV, momento da refundição da obra.
Referências Bibliográficas
43
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44
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45
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A MITOLOGIA NACIONALISTA DO SÉCULO XIX
Alex Rodrigo Simoni46
Restauração e protonacionalismo
Com o período revolucionário de 1789 na França, e os desdobramentos oriundos da revolução,
como a deposição monárquica absolutista e a apropriação de bens da Igreja Católica, a Europa fora
contagiada pela euforia iluminista da revolução, e isso afetou a maneira como o homem via a Europa
da Idade Média e suas instituições.
Instituições e classes estas ligadas ainda ao antigo regime, e que dedicavam muito esforço para
sobreviverem aos avanços de uma sociedade cada vez mais impulsionada pelo terceiro estado. Estas
instituições eram vista sob um prisma negativo por aqueles que compunham a nova sociedade.
Iluministas e membros do terceiro estado viam com desconfiança tudo que representasse ou
sequer lembrasse a Idade Média. A sobrevivência destas instituições estava pelo que tudo indica
abalada, perante a Europa pós-revolução. Porem as instituições ditas “feudais” sobrevivia à duras
penas, incomodando e muito os teóricos e iluministas do século XVIII.
Uma manifestação oposta pôde ser observada no século XIX, e bastante enfática e favorável a
Idade Média, já que esta mesma sociedade que à muito condenou as instituições “feudais”, passa agora
a lançar um novo foco sobre o que veria a ser a Idade Média, e o oficio do historiador foi de suma
importância para alavancar esta nova perspectiva sobre um fato histórico que anteriormente era odiado
e condenado, e muitas vezes sendo o culpado pelas mazelas da sociedade e de tudo que vinha
associado a ela.
Podemos chamar o século XIX, como o século da restauração ou contra revolução, e o papel
dos historiadores e teóricos, será de grande e significativa importância para consolidar o novo papel da
Idade media e das instituições agregadas a este período. A discussão da Idade média da mesma forma
Graduando de licenciatura em História – Faculdade de História - ICHS – Instituto de Ciências Humanas e Sociais UFMT – Universidade Federal de Mato Grosso/ E mail – [email protected].
46
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que fora abordada no século XVIII, veio à tona no século XIX, porem com uma diferença na função
desta discussão. O que antes era importante desconstruir na Idade Média, agora é fundamental
restaurar para consolidar as origens da moderna sociedade, juntamente com as instituições “feudais”
como a nobreza, e até mesmo a própria igreja. René remond, menciona a volta de um tradicionalismo
que deve ser resgatado.
[...] antes de 1789, tudo ia bem, não havia necessidade alguma de
justificar a monarquia, mas em 1815, após a experiência revolucionária, os
regimes e seus doutrinadores sentem a necessidade de teorizar a respeito. A
legitimidade reside no valor reconhecido da perenidade. É legítimo o regime
que dura, que representa a tradição, que tem atrás de si uma longa história. A
legitimidade é essencialmente histórica e tradicionalista. Essa identificação
com o tempo justifica-se, de modo positivo e pragmático: se um regime
permanece é porque correspondia às necessidades, é porque encontrou adesão
nos espíritos, é porque foi eficaz, é porque foi capaz de burlar as provas do
tempo. Aliás, o tempo sacraliza, confere prestígio às instituições veneráveis
herdadas de um tempo passado. (2002, pag. 09)
Entender o passado medieval, como forma de conhecer a suas origens, foi de suma importância
para consolidar as diversas classes que compunham o cenário politico e social do século XIX, pois
“ainda que estivessem estudando o passado, tinham os olhos voltados para o presente” (OLIVEIRA,
1999, pag. 176). Movimento bastante diferente do que propunham anteriormente os teóricos
iluministas que tinham o foco na antiguidade clássica, em detrimento a Idade Média.
A nação moderna foi muito bem estudada e elaborada, e usar a Idade Média, como forma de
consolida-la, foi extremamente necessário, pois esta comunidade foi imagina como nos afirma
Benedict Anderson. É claro que as camadas inferiores da sociedade, foram participativas neste
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processo, pois a fé ainda mexia com estes indivíduos, já que a Igreja e a religiosidade não deixaram de
ter grande influencia, mesmo com a revolução e todos os desdobramentos oriundos deste
acontecimento, tanto na França quanto no restante da Europa.
Os movimentos de restauração tiveram ressonância em toda a sociedade, como nos diz
Remond.
A Restauração, assim concebida, não seria capaz de limitar-se à pessoa
do soberano ou ao ramo dinástico; ela deve estender-se a todos os aspectos, a
todos os setores da vida coletiva, às formas políticas, às instituições jurídicas, à
ordem social. Ela implica na volta total ao Antigo Regime. Considerada a
Revolução como uma espécie de acidente, é bom que se feche o parêntese e
que se apaguem as conseqüências do acidente (2002, pag.09).
E a nova burguesia fazia parte deste contesto social, fazendo o uso de um extenso campo de
manobra ideológico, para o sucesso da campanha nacionalista e a criação de seus mitos.
Segundo Hobsbawm:
[...] estados e movimentos nacionais podem mobilizar certas variantes
do sentimento de vinculo coletivo já existentes e podem operar potencialmente,
dessa forma, na escala macropolítica que se ajustaria às nações e aos Estados
modernos. Chamo tais laços de “protonacionais” (1990, pag. 63).
Entender o protonacionalismo foi crucial, para colocar em prática o sentimento nacionalista,
resgatados pelos fatos memoráveis e históricos da Idade Média.
Sacralização da nação ou sagrado nacionalista?
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Segundo Heinz-Gerhard Haupt, o historiador alemão Hans- Ulrich Wehler, elucida, que um
vacuum foi criado pelo desmoronamento da igreja e a secularização da sociedade, durante o século das
luzes, abrindo brechas a um nacionalismo de estado que veio a ser inserido, tomando a posição que
antes pertencia a Igreja (2008, pag. 77). Porem está teoria suscita muitas criticas, já que a teoria de
vacuum, torna-se vaga, uma vez que a presença da igreja se manteve constante, apesar dos problemas
que vieram a surgir com o período das luzes e suas consequências, na França e em toda a Europa,
como mesmo diz Hobsbawm sobre o protonacionalismo latente.
Uma secularização no século XVIII, contribuiu para uma complexidade bem maior, onde seria
mais apropriado destacar uma sobreposição de tendências, relação entre igreja e estado, fusão ou até
mesmo repulsa a religião. Ou seja, não podemos criar uma generalização para os fatos decorrentes no
século XVIII e suas consequências a posteriori.
O liberalismo também foi participativo e fez uso constante das manifestações religiosas
tradicionais no século XIX. Como nos relata Remond.
Em outros países, também, diversas famílias espirituais estão
impregnadas dele, porque o liberalismo, mesmo sendo em suas linhas gerais
anticlerical, comporta contudo uma variante religiosa; é assim que existe um
catolicismo liberal, personificado por Lacordaire ou Montalembert. Trata-se,
portanto, de um fenômeno histórico de grande importância, que dá ao século
XIX parte de sua cor e que muito contribuiu para sua grandeza, porque o
século XIX é um grande século, a despeito das lendas e do julgamento que se
costuma fazer de suas ideologias ( 2002, pag. 15).
A religião não se limitou a uma parte do discurso nacionalista que veio a instalar-se na Europa
do século XIX, já que tudo indica para uma discussão mais ampla de sua participação. A nação veio
associada à ideia de sacrifício que era preciso legitimar, e a um uso mais favorável à Idade Média que
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anteriormente tinha uma conotação negativa, e agora entrou em um patamar de exaltação das origens
do povo europeu. Com isso novas interpretações referentes à Idade Média ganhavam cada vez mais
força em diferentes partes da Europa de maneiras e apropriações diferentes, na criação de mitos
nacionalistas. Segundo Haupt religião e nacionalismo, compartilham de traços e funções comuns,
como mitos de origem, santos e mártires, objetos, lugares e cerimonias santas, como sacrifício e
funções de legitimação e mobilização (2008, pag. 77).
Religião e nacionalismo tinham laços muito estreitos, o que favorecia a uma fusão ou osmose.
O nacionalismo do século XIX almejava firmar-se, como sendo um meio de colocar ordem e
estabelecer princípios norteadores na sociedade revolucionaria europeia. E com isso manteve severos
atritos com a instituição máxima da representação medieval
. Refiro-me, a este instituição como sendo a igreja católica, que até o período prérevolucionário do século XVIII, mantinha uma grande influencia nos cuidados morais da sociedade
por meio do ensino, funcionamento interno das Igrejas e organização publica das cerimonias
unificadoras, dos heróis míticos e de ideologias integradoras. As resistências foram grandes, por parte
dos nacionalistas para conseguir o controle da ótica medieval.
O interesse pela Idade Média foi forte entre os nacionalistas, que muito queriam fazer um
resgate da origem europeia, e a igreja católica também, empenhou-se neste resgate medieval, até
mesmo como forma de estabelecer um avivamento pós período iluminista do século XVIII.
“Os católicos desenvolveram uma forma de interpretação do passado que valorizava a fé cristã”
(SOUZA, 2012, pag. 136). Foi neste período que o papa Leão XIII, resgatou a Idade Média, elegendo
como ilustre filosofo e teólogo Santo Tomás de Aquino, movimento caracterizado como Neotomismo.
A escolástica foi colaboradora para restabelecer novamente a grandiosidade e importância que
a igreja católica teve para a Europa. A historiografia europeia nacionalista também via a importância
deste movimento de resgate medieval.
E o turbilhão existente entre igreja e estado pelo direito de interpretação e apropriação da idade
media ocorria em proporções dispares pela Europa.
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Na terceira republica francesa, os atritos entre igreja e Estado encontraram uma expressão mais
radical. O anticlericalismo teve a sua expressiva participação no cisma com a igreja católica que
almejava sua participação no ensino, mas o estado declarava-se laico. Em 1880 foram os hospitais
laicizados, que eram anteriormente mantidos pela igreja. Em 1884 foi à vez do divorcio ser legalizado,
colocando mais turbulência entre igreja e Estado. Está separação da igreja pelo Estado causava
também atritos com a população, por não concordarem com esta separação. Onde, “[...] na Idade
Média que os intelectuais católicos se firmaram para a defesa de suas ideias. Para eles, não se pode
falar de uma França como ela se encontra no XIX, sem apontar para a constituição do reino da Gália,
sobre a égide do cristianismo” (SOUZA. 2012, Pag. 139)
O cristianismo católico estava muito presente na França no século XIX, como sempre esteve,
pois não podemos falar de secularização olhando apenas para Paris no século XIX, quando temos
também todas as outras cidades que mantinham este elo católico, mesmo que as duras penas, pós
iluminismo.
Na Itália também houve atritos, quando a Santa Sé, se mostrou contraria a unificação, estando
do lado da contra revolução. O estado preconizou severas medidas à Santa Sé, como o direito de
inspeção e consentimento à ordenação dos bispos. Porem a Igreja não deixou passar em vão este
episodio, condenando o Estado através do “Syllabus” os “oitentas erros”, e em 1870 afirmava sua
infalibilidade papal. Com isso houve também divisão dentro da própria igreja, onde alguns sacerdotes
participavam na unificação italiana, indo de frente com a posição da Santa Sé, que não dava seu apoio
a este movimento nacionalista. Remond nos mostra que.
Em 1861, ano que se segue à unificação da Itália (exceção feita de
Roma e de Veneza, que ainda não estão unificadas), o país legal não conta com
mais de 900.000 eleitores numa população de 22 milhões de habitantes,
embora apenas um terço desses 900.000 exerçam o direito de voto, pois os
demais se abstêm. Uma das razões que explicam uma taxa de abstenção tão alta
é a dissensão que opõe a Igreja à nova Itália, com os católicos fiéis boicotando
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as eleições nos territórios que outrora faziam parte dos Estados da Igreja. A
abstenção, ou o que se chama non expedit, depois da tomada de Roma, em
1870, será erigida como regra de conduta pela Santa Sé, e os católicos italianos
ver-se-ão impedidos de participar da vida política até 1904, a fim de deixar
clara sua intenção de não ratificar a espoliação feita ao chefe da Igreja (2002,
pag. 48).
A Itália nacionalista não mediu esforços para uma provocação a Igreja católica, a construção de
um movimento em favor de Giordano Bruno, pensador anticlerical, no campo de Fiori, em Roma. E
também uma comemoração em 1895, no dia 2 de setembro com a festa da tomada de Roma. E este
movimento pôde ser visto como uma construção de um processo de Nation Building anticlerical.
No século XIX, também foi observado um atrito severo entre igreja e estado nas partes Checas
do império Austro-Húngaro. Em 1848, os nacionalistas se referiam cada vez com mais frequência a
Jan Hus, um herético que fora queimado durante o concilio de Constança. Mas que era visto pelo
movimento nacionalista como um personagem importante na consolidação nacional, do progresso e
em uma religião individual fundada na ética. Tanto para historiadores quanto para os autores de peças
de teatro, ou tudo que pudesse enaltecer Hus, como fator de sacralização da nação, que pelo seu
sacrifício teria idealizado o nascimento da nação Checa.
Uma interpretação nacional e laica de Hus fazia que a igreja católica entrasse cada vez mais em
atrito com o Estado por não concordar com esta apropriação mitológica. A figura de Hus tomava
interpretações opostas entre igreja e Estado.
Da mesma forma que o mito religioso, o mito politico aparece como
fundamentalmente polimorfo: é preciso entender com isso que uma mesma
serie de imagens oníricas pode encontrar-se veiculada por mitos aparentemente
os mais diversos: é preciso igualmente entender que um mesmo mito é
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suscetível de oferecer múltiplas ressonâncias e não menos numerosas
significações.
Significações não apenas complementares, mas também frequentemente
opostas (GIRARDET, 1987, pag. 15)
Já a Alemanha foi um caso singular, quando o império não fazia uma justa oposição entre
estado laico e católico, mas sim entre protestantes e católicos. O conflito causado na Alemanha tinha
como foco uma nova interpretação histórica da origem do povo germânico, que não fosse
necessariamente católico, mas sim protestante. O imperador declarava-se protestante o que contribuía a
sua legitimação. A disputa entre católicos e protestante se acirrava com a Kulturkampf - luta cultural
implantada por Otton Von Bismarck. O Chanceler sempre fazia questão de enaltecer a penitencia de
Canossa, como algo a não ser mais repetida e não curvar-se perante o Papa, pois a nação alemã,
consolidava-se com força e determinismos próprios. Outro exemplo de oposição católica foi Martinho
Lutero que também teve uma forte e celebrada memoria.
A legitimação nacionalista, pôde ser cada vez mais usada pelas novas construções ideológicas
de cunho religioso, com a intenção de sufocar as já existentes, ou na procura de uma origem longínqua,
e muitas vezes míticas, como o fundamento da nação.
Muitas das novas nações idealizaram-se com base em uma comunidade de fieis utilizando os
símbolos cristãos já existentes, tendo a liturgia religiosa para a salvação nacional. O que nos leva a
considerar como uma sacralização da nação ou o sagrado nacionalizado. Com isso não podemos
afirmar ou usarmos generalizações sobre as premissas nacionalistas na construção dos mitos.
Segundo Haupt.
Essas lutas entre, pelo menos, dois sistemas de símbolos, duas logicas
de integração e duas organizações da memoria coletiva e oficial opuseram, em
vários Estados europeus, o Estado e a Igreja Católica, de Portugal a Itália, da
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França à parte Checa do Império Austro-Húngaro. Nesses conflitos, as lutas de
poder para o predomínio efetivo e / ou simbólico ocorriam nos diferentes
Estados em formas semelhantes ou diferentes (2008, pag. 80).
As politicas de memoria se apoiavam constantemente no passado para celebrar a longevidade
da unidade nacional e na cristianização da nação, [...] São Venceslau, na Checoslováquia; Bonifácio na
Alemanha; Joana D’arc ou São Luís, na França ou para comemorar a ruptura com a Igreja católica no
passado, [...] Jan Hus, Martinho Lutero, Giordano Bruno [...], mas nunca deixando de utilizar o antigo
regime como referencia (HAUPT, 2008, pag. 87).
O sentimento nacionalista passou por um leque de direcionamentos, no âmbito de consolidação
das origens, tanto com viés religioso, quanto com um viés estadista apoiado na aproximação ou recusa
da religiosidade da idade média.
Tradições eram inventadas, com bases nacionalistas, protonacionalistas e novos fatos
adquiridos através de uma nova couraça mitológica. Tudo com o idealização de pertencimentos e
aglutinação nacional.
Uma Europa secularizada, pouco se aproxima do século XIX, o que fica mais evidente é uma
Europa, que se reinventa no sagrado. A tradição mantem-se primordialmente para a organização social,
com laços ainda muito estreitos ao antigo regime. O romantismo e o historicismo, foram propulsores
ao alavancar a idade média e seus ícones mitológicos.
Referencias Bibliográficas
SOUZA, Luciano Daniel de. A Apropriação da Idade Média e o Neotomismo como elementos da
Reação Católica às Mudanças na França do século XIX. Revista Mundo Antigo, Assis – São Paulo,
Ano I, V.01, N 02, pag. 131-40, dezembro, 2012.
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HAUPT, Heinz-Gerhard. Religião e nação na Europa no século XIX: algumas notas comparativas.
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RIBEIRO, Rita. A nação na Europa – breve discussão sobre identidade nacional, nacionalismo e
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Minho, [ s d ].
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Estud. av. vol.22 no.62 São Paulo Jan./Apr. 2008.
CURTO,Diogo Ramada; JERÓNIMO,Miguel Bandeira; DOMINGOS, Nuno . Nações e nacionalismos
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RÉMOND, René. O século XIX: 1815-1914. São Paulo: Editora Pensamento-Cultrix, 2002.
HOBSBAWM, Eric J. Nações e Nacionalismo desde 1780. São Paulo, paz e Terra, 2008.
GIRARDET, Raoul. Mitos e mitologias politicas. Tradução Maria Lucia Machado, São Paulo,
Companhia das letras, 1987.
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O SENTIDO MODERNO DE UM MITO MEDIEVAL: A PAPISA JOANA NO TRATADO
POLÊMICO DE ALEXANDER COOKE (1610)
Allan Regis da Silva47
Introdução
O conceito de mito, cuja semântica vai de verdade revelada e/ou velada à quimera, à ideia falsa
cuja legitimidade nasce do engano, por ignorância ou ingenuidade, é por isso mesmo problemático
quanto a definição - por sua ambiguidade semântica. O mitólogo Joseph Campbell em seu clássico O
Herói de Mil Faces, usa o deus grego Proteu, adivinho dos mares e metamorfo, como metáfora das
infinitas formas que o mito assume, não obstante para o autor, haja uma essência mítica. 48 Marcel
Detienne, em Os Mestres da Verdade na Grécia Arcaica, define o discurso mito-poético como aquele
da lógica da contradição, da semelhança dos opostos - onde verdade e engano se confundem.49
Se aceitarmos esta ambivalência como característica fundamental do mito e a usarmos como
parâmetro de análise, veremos que ela dá origens a muitas outras, o que vêm mobilizando debates
entre os pesquisadores desde o final do século XVIII, quando o mito se tornou objeto do conhecimento
científico.50 Contudo, se o mito abarca essa dimensão ambivalente, onde pra uns é verdadeiro e para
outros é falácia, a última leva uma vantagem fora do plano teórico maior que a primeira.
No cotidiano, universo onde os mass media preponderam e despejam em cascata um fluxo de
informações enorme, não é difícil encontrar aqui e ali o vocábulo mito empregado como engano,
equívoco, uma ideia falsa que muitos tomam por verdade. Uma pesquisa rápida na internet revela o
Graduando em História na Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT. E-mail: [email protected].
CAMPBELL, Joseph. The Hero with a Thousand Faces. New Jersey: Princeton University Press, 2004, p. 353.
49
DETIENNE, Marcel. Os Mestres da Verdade na Grécia Arcaica. Rio de Janeiro: Zahar, 1988 apud CAIMI, Claudia.
Literatura e Pensamento: A lógica da Ambiguidade e a Lógica da Não Contradição. Matraga, Rio de Janeiro, v. 15, n. 22,
pp. 85-98, jan./jun. 2008. Disponível em: http://www.pgletras.uerj.br/matraga/matraga22/arqs/matraga22a04.pdf. Acesso
em: 07 de jan. 2014.
50
O teórico do mito Robert A. Segal divide as questões definidoras da postura dos pesquisadores em: natureza, função e
significado do mito. Cf. SEGAL, Robert A. Myth: A Very Short Introduction. New York: Oxford University Press, 2004,
pp. 2-4.
47
48
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mito do “gordinho saudável”,51 “mitos e verdades sobre truques de cozinha”52 etc. Esse emprego do
conceito é por demais disseminado e seria inútil multiplicar os exemplos.
Na academia, muitas obras fazem o mesmo uso semântico de mito, simplesmente o opondo à
verdade que se pretende enunciar desconstruindo-o. É o caso de O Mito do Contexto de Karl
Popper,53Um amor Construído: O Mito do Amor Materno de Elisabeth Banditer,54 e muitos outros.
Quando objeto da etnologia ou antropologia, mito tende a ser um conceito colado às sociedades
etnológicas ou primitivas: da antropologia evolucionista de um Edward Tylor ou um James Frazer,
passando pelo romantismo de Lucien Lévy-Bruhl ao estruturalismo de Claude Lévi-Strauss, mito é
primitivo. Assim, mito se opõe diametralmente à modernidade; “mito moderno” nessa lógica seria uma
contradição de termos.
Ao questionar os empregos mais comuns a que mito é associado (ao falso, fantasioso, e ao
primitivo) propomos uma definição que vai ao encontro de abordagens funcionalistas como a de
Bronislaw Malinowski, e universalistas como as de Joseph Campbell e Karen Armstrong – ambas
destoando das abordagens mais comuns. A discussão sobre a natureza do mito não é meramente
teórica: ela está amarrada ao problema de se abordar uma fonte histórica do século XVII tratando-a
como mito stricto sensu.
O tratado de ordem polêmica é o “Papisa Joana: Um Diálogo entre um Protestante e um
Papista; prova manifesta, que uma mulher, chamada Joana, foi Papa em Roma” (Pope Joan: A
Dialogue Between a Protestant and a Papist; manifestly proving, That a Woman, called Joan, was
Pope of Rome), do anglicano Alexander Cooke, publicado pela primeira vez na Inglaterra em 1610.55
‘Gordinho
saudável’
é
um
mito,
diz
pesquisa.
BBC
Brasil.
Em:
http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2013/12/131203_gordinhos_saude_mito_lgb.shtml. Acesso em: 08 de fev. de
2014.
52
FLORES, Magê. Descubra o que é mito e verdade entre 20 conhecidos truques de cozinha. Em:
http://www1.folha.uol.com.br/comida/2014/01/1404048-descubra-o-que-e-mito-e-verdade-entre-20-conhecidos-truques-dacozinha.shtml. Acesso em: 08 de fev. de 2014.
53
POPPER, Karl. O Mito do Contexto. Lisboa: Edições 70, 1999.
54
BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: O mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
55
COOKE, Alexander. Pope Joan: A Dialogue between a Protestant and a Papist; manifestly proving, that a Woman, called
Joan, was Pope of Rome. In: The Harleian Miscellany: A Collection of Scarce, Curious, & Entertaining Pamphlets and
Tracts, as well in Manuscript as in Print. Selected from the Library of Edward Harley, Second Earl of Oxford.Londres,
1808.
51
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Nele o autor tenta provar a existência histórica de uma personagem conhecida e amplamente
acreditada na Baixa Idade Média: a Papisa Joana.56
Para entender a posição de Alexander Cooke e o conteúdo de seu tratado, nosso itinerário
passará pela crença incontestada da Papisa na Idade Média; a polêmica sobre sua veracidade na
Primeira Modernidade; e finalmente como o Pope Joan: A Dialogue de Cooke se insere no contexto de
sua época. A partir daí retornaremos para a questão do mito, e a partir de sua definição analisaremos o
tratado do polêmico Alexander Cooke.
A Ambivalência da Papisa no Medievo
A partir do século XIII no Ocidente Medieval, surgiram relatos aos montes sobre uma mulher
que teria reinado soberana sobre o trono de Pedro. Inicialmente eram interpolações de manuscritos
medievais, principalmente crônicas papais: as menções à Papisa eram feitas nas margens das páginas,
as vezes apenas em umas poucas linhas. As muitas versões sobre sua história atestam sua
popularidade: segundo Peter Stanford, desde sua gênese até o século XVII, a história da Papisa está
registrada em mais de 500 crônicas sobre o papado e outros assuntos religiosos, 57 além de ter se
tornado tema de peças de teatro e personagem de tarô. Da Idade Média à contemporaneidade, a história
da Papisa Joana vem mobilizando religiosos, artistas, literatos e diretores de cinema.
Embora haja uma variedade de versões, tendo em foco somente o período medieval, grande
parte dos relatos desenvolvem esse enredo: Travestida de homem, uma mulher constrói uma carreira
intelectual proeminente, e tal é seu sucesso que chega a tornar-se papa. Não obstante, o ápice de sua
trajetória a leva a um destino trágico: Durante seu reinado engravida de um amante, e ao dar à luz é
desmascarada e punida (geralmente com a morte).
56
Historicamente falando, a primeira crônica que menciona a papisa é a Chronica Universalis Mettensis (1250), do
dominicano francês Jean de Mailly.
57
STANFORD, Peter. A Papisa: A busca pela Verdade Atrás do Mistério da Papisa Joana. Rio de Janeiro: Gryphus, 2000,
p. 39. Cf. Frederick Spanheim, de Papa Foemina (1691).
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A Historiografia positivista a desprezava como mero produto da imaginação, 58 contudo na
segunda metade do século XX, a ‘imaginação’ ganha relevância como objeto do conhecimento
histórico. Dessa nova postura nascem estudos importantes como The Myth of Pope Joan de Alain
Boureau, e The Mystery of Pope Joan de Rosemary & Darrol Pardoe. Para todos os efeitos, tanto a
historiografia do século XIX como a do XX concordavam em uma coisa: a Papisa Joana e sua epopeia
patética não passariam por eventos reais ao olhar crítico do historiador. 59 O maior problema daqueles
que tentaram caminho contrário é que há um hiato de séculos entre as primeiras fontes do século XIII e
a época de seu suposto pontificado e além disso, a história do papado na época em que dizem que ela
reinou é bem documentada e não há brechas cronológicas para encaixar o pontificado de Joana. 60
Entre as respostas sobre o que teria engendrado a lenda, os estudiosos apontam
majoritariamente para as tensões políticas entre ordens mendicantes e o papado no século XIII.
Inocêncio IV (reinado1243-54) e Alexandre IV (reinado 1254-61) restringem uma série de direitos de
ordens mendicantes, em especial com a corrente dos franciscanos espirituais e os dominicanos. Nesse
sentido, a história da Papisa Joana seria, ao menos em parte, fruto de uma construção dominicana e
franciscana de um papado ilegítimo.61
A despeito do contexto particular em que foi engendrada, a história da Papisa Joana
ultrapassou-o, e se disseminou aos quatro ventos no Ocidente, como disse Alain Boureau: “um
episódio não sobrevive se não ganha sentido, se não pode ilustrar uma verdade geral”. 62 Não é objetivo
deste estudo discutir as condições que renderiam à Papisa uma vida mais longa que a de seus artífices
no século XIII, porém é importante o fato de que para os medievais o relato da papisa era verdadeiro,63
58
STANFORD, Peter. Idem, p. 257.
Ignatus von Dollinger, teólogo do século XIX, não alivia: para se acreditar na existência de Joana “o sujeito deve lutar
violentamente com todos os princípios do criticismo histórico”. In: STANFORD, Peter. Idem, p. 251.
60
O Hiato varia de 705-7 a 1100-1207, mas a data mais consagrada é a de 857-9, o que renderiam 400 anos de
escamoteação histórica.
61
RUSTICI, Craig. The Afterlife of Pope Joan: Deploying the Popess Legend in Early Modern England.Ann Arbor:
University of Michigan Press, 2009, p. 10.
62
BOUREAU, Alain. La Papesse Jeanne: Fonctions et Fromes d’une Legende au Moyen Âge, 1984, p. 449 apud JÚNIOR,
Hilário Franco. Joana, Metáfora da Androginia Papal. In: ______. Os Três Dedos de Adão: Ensaios de Mitologia Medieval.
São Paulo: Edusp, 2010.
63
A Papisa ganhou até um busto na Catedral de Siena, Toscânia, no século XIV, junto a centenas de papas, onde
permaneceu até o século XVI. (Citar Pardoe e Pardoe, p. 7 fich.).
59
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e mais importante, que nas das dezenas de versões pulularam até o século XVI, a representação da
Papisa era ambígua.
Podemos encontrar desde escritos que associam Joana ao demônio, seja o último a
denunciando ou, a ajudando a se tornar papa: “sob a direção do Demônio, foi feita cardeal e finalmente
papa”,64 até os que a redimem: “...na rua que leva do Coliseu à Igreja de São Clemente, ela deu à luz,
como tinha escolhido fazer para a remissão de seus pecados”. 65 As representações pictóricas da papisa,
que incluíam no século XV uma carta de tarô, implicavam uma atitude suficientemente “tolerante ou
pelo menos ambivalente para permitir representações de Joana no auge de seu sucesso”, isto é, as
recorrentes imagens da papisa entronizada.66
A Primeira Modernidade e o Tratado Polêmico de A. Cooke
A grande ruptura na história dessa personagem lendária vêm com a Reforma Protestante. A
crença na papisa, que seguia inabalada desde o final do século XIII sofreu grande revés e ironicamente,
nunca esteve mais viva! O caso é que a Papisa Joana se transforma no teto de vidro dos católicos e a
pedra na mão dos protestantes: em vista das acusações polêmicas de que o episódio da Papisa se ligava
diretamente à corrupção e decadência moral da Igreja, e em linhas gerais, os católicos passaram a vê-la
como “fábula”.
Ficção? Verdade? A Papisa Joana já aparecia em debates nos séculos XIV e XV, mas foi
preciso esperar até o século XVI para que a história per si se torna tema de debates. Assim é que,
enquanto no Medievo a crença na Papisa era generalizada e ambivalente, com a Reforma, ela se torna
unilateral, e suas representações passam a “enfatizar sua queda e degradação”. 67 Entre 1548 e 1700, as
trocas e farpas entre protestantes e católicos renderam pelo menos quarenta panfletos dedicados
64
Stephen of Bourbon, De Div. Mat. Praed.; Scriptores Ordinis Praedicatorum, I (1719), p.367 apud PARDOE, Darrol;
PARDOE, Rosemary. A Papisa Joana: O Mistério da Mulher Papa. São Paulo: Ibrasa, 1990, p. 22, ps.: a edição original é
de 1261.
65
Felix Haemerlein, De Nobil. et Rust. Dial. (c.1490), f.99. In: Ibid., p. 40. O tema do destino da alma da Papisa Joana se
tornou recorrente nos séculos XIV e XV, período onde sua ambivalência se torna mais tácita.
66
RUSTICI, Craig. Idem, pp. 18-21.
67
Ibid., p. 18. O busto da papisa na Catedral de Siena foi removido a mando do Duque da Toscana em 1600 não por acaso.
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exclusivamente à Papisa Joana, sem contar as reedições, traduções e textos perdidos que só se tem
ciência através de citações.68
Quase todos os países da Europa envolveram-se na controvérsia, e países como Inglaterra e
Alemanha foram terrenos férteis para a literatura polêmica.69Pope Joan: A Dialogue Between a
Protestant and a Papist é o texto mais elaborado e republicado na Inglaterra na Primeira Modernidade
sobre o assunto. Seu autor, o pastor anglicano Alexander Cooke, tinha pelo menos outros três tratados,
um dos quais ele dizia que era odiado por todos os católicos que tinham lido seus trabalhos. O tratado
sobre a Papisa foi publicado em 1610, depois em 1619, traduzido para o latim e publicado em
Oppenheim em 1616 e 1619; traduzido para o francês em 1633 e transformado em monologo em 1675,
1740, e 1785 com o título: A Present for a Papist: or The Life and Death of Pope Joan, publicado sob
o epíteto “um amante da verdade.70
Cooke constrói o tratado em forma de diálogo, que era uma técnica bastante difundida entre
os escritores dos séculos XVI e XVII. Nele, um protestante e um papista - como os protestantes
costumavam chamar os católicos - estabelecem um debate sobre a existência da Papisa Joana e,
naturalmente o Protestante leva a melhor: munido de toda erudição e atento a todas as minúcias do
assunto, o Protestante de Cooke mostra conhecimento da literatura e tradição eclesiásticas que supera a
todo o momento o do próprio Papista.71
O espírito político em sua obra é patente e fulguroso: embora seu objetivo seja provar “para o
papista, ou leitor católico” que “uma mulher, chamada Joana, foi Papa de Roma”, sua dedicatória ao
arcebispo anglicano de York deixa mais claro o sentido da obra:
É lamentável considerar quantas estrelas caíram do céu recentemente, quantas deusas na terra
se afastaram da fé, e deram ouvidos ao espírito de erros e às doutrinas dos caluniadores, quais
sejam, os papistas; [...] ...meu propósito, neste momento, é expor a vergonha deles em negar
verdades conhecidas; [...] ...contudo mais aparentemente sua imprudência aparece em negar o
68
RUSTICI, Craig, Idem, p. 42.
PARDOE, Darrol; PARDOE, Rosemary. Idem, p. 87.
70
RUSTICI, Craig. Idem, pp. 37, 43.
71
PARDOE, Darrol; PARDOE, Rosemary. Loc. cit.
69
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relato da Papisa Joana, que é provado por uma nuvem de testemunhas [...] pois eles [os
católicos] são levados a fingir, forjar, enganar, a bancar os tolos, e, em claro Inglês, mentir de
todas as maneiras possíveis para encobrir sua vergonha nisso.72
A metodologia de Cooke é a seguinte: para provar ao católico que a Papisa Joana existiu, ele
abre mão de jogar com os depoimentos de autores protestantes (Pantaleon, Functius, Robert Barnes,
John Bale etc.), “...porque tu [católico] tens condenado eles, e seus livros também, para o inferno;” e
em vez disso, o autor argumenta sobre Joana apenas com testemunhos católicos, “...através dos
depoimentos de teus irmãos, os filhos de tua própria mãe”.73 Assim, de maneira sistemática o Papista e
o Protestante no diálogo debatem sobre todos os pontos obscuros e minúcias que giravam entorno da
Papisa Joana.
Todavia, como aponta Craig Rustici,74 ao adotar o ponto de vista dos católicos Cooke acaba
por conflitar com ideias protestantes básicas, ideias que fundavam e distinguiam o protestantismo do
catolicismo, tal como a inconfiabilidade da tradição, das imagens e o obscurantismo dos rituais. Esta é
a grande dificuldade retórica que os polemistas tiveram de enfrentar. Por exemplo, Cooke defende que
era perfeitamente possível que Joana tivesse conseguido conviver entre homens escondendo seu
verdadeiro sexo. Para provar ele defende que a prática do travestimento não era nenhuma novidade:
...se suas estórias forem verdadeiras; que diversas mulheres tem vivido entre os homens, em
aparência masculina despercebidas, então a dama Joana viveu seu papado. Pois Marina,
dizem, viveu toda sua vida entre monges, e ninguém sabia mas ela era um monge: Eufrosina
72
COOKE, Alexander. Pope Joan: A Dialogue between a Protestant and a Papist; manifestly proving, that a Woman, called
Joan, was Pope of Rome. In: The Harleian Miscellany: A Collection of Scarce, Curious, & Entertaining Pamphlets and
Tracts, as well in Manuscript as in Print. Selected from the Library of Edward Harley, Second Earl of Oxford.Londres,
1808, p. 63-4. Grifo nosso. Todas as traduções são nossas.
73
Ibid., p. 65.
74
RUSTICI, Craig. The Afterlife of Pope Joan: Deploying the Popess Legend in Early Modern England. Ann Arbor:
University of Michigan Press, 2009, p. 40.
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viveu trinta e seis anos entre monges, e era conhecida como monge: assim como Eugênia,
Pelagia, e Margareta e nenhum homem suspeitou de suas fraudes ".75
Todas santas. A dificuldade que impera aqui é que muitos elementos das narrativas dessas
santas tem motivos mitológicos e, estão muito mais para o mundo da ficção do que para o da história.
Enquanto protestante Alexander Cooke não pestaneja em pôr dúvida na existência de santos, como ele
faz mais cedo no diálogo com George, Cristóvão, Catarina de Alexandria e Hipólito, “considerando
que em toda a antiguidade, não há nenhuma menção de quaisquer desses santos”.76 E não obstante ele
usa da tradição que ele repudia para justificar seu ponto de vista. Assim, Cooke trabalha na zona
limítrofe entre o catolicismo e o protestantismo, onde a consciência do outro é um tomar consciência
de si. Como veremos, este é um ponto essencial para a articulação com o mito.
Mito: Narrativa, Crença e Justificação do Presente
Retornamos ao problema do mito. Não há de fato uma mitologia como “ciência dos mitos”,
com seus conceitos próprios e assentada em seu próprio domínio. Cada disciplina abarca várias teorias
do mito, quer dizer, o estudo do mito implica sempre uma teoria muito mais abrangente que se ocupa
com seu estudo. Assim, as teorias psicanalíticas do mito são sempre teorias da psicanálise aplicadas ao
mito, ou estruturalismo aplicado ao mito, e assim por diante. Para complicar, o mito se tornou desde o
Oitocentos, objeto de muitas ciências: a filologia, a antropologia, a literatura, a psicologia etc. Na
pluralidade das abordagens duas características são gerais: mito implica uma estória e também uma
crença. Embora possam ser levadas separadamente, ela frequentemente andam juntos – uma estória
em que se tem por verdadeira.77
Estamos por excelência no campo do simbólico. Como mencionei anteriormente, há uma
pendulação, para nos focarmos somente no campo acadêmico, dos autores em definir mito como
75
COOKE, Alexander. Idem, p. 114.
Ibid., p. 72.
77
SEGAL, Robert A. Myth: A Very Short Introduction. New York: Oxford University Press, 2004, p. 3-4.
76
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falácia ou verdade. No primeiro caso, é claro, o mito ainda é uma a crença em uma estória ou
simplesmente uma crença que no entanto, não deve ser acreditada: o papel do autor é justamente
desconstruir esse imaginário que invariavelmente destoa da realidade. No segundo caso a questão da
crença é levada para o primeiro plano, e é dada a ela algo de verdadeiro: conteúdos inconscientes,
coesão social, sentido existencial, contato com o sagrado etc. Outra discordância entre as teorias é
sobre o lugar do mito nas sociedades humanas: uns acham que eles pertencem às sociedades “arcaicas”
e tradicionais”, outros o apontam como produção universal do gênero humano.
As brigas e desconstruções dos mitos não nos levam muito longe. Antes de tudo, é preciso
compreendê-los e ponderar sua importância. Depois das contribuições de Bronislaw Malinowski,78 é
difícil ignorar alguma “verdade” no mito. Para o antropólogo o mito é verdadeiro porque “funciona”,
porque é “eficaz”, tanto no âmbito existencial, reconciliando o homem com os aspectos da existência
que não podem ser mudados, quanto social, nesse caso: “O mito entra em cena quando um rito,
cerimônia, ou uma lei social ou moral demanda justificativa, garantia de antiguidade, realidade, e
santidade”.79
É nesse sentido que a historiadora das religiões Karen Armstrong diz que o mito só acorrera
uma vez (nessa dimensão outra do tempo) mas que também ocorre o tempo todo (pois os resultados
dos eventos míticos são a atual configuração do mundo).80 Na esteira de Malinowski, Mircea Eliade,
Joseph Campbell e Karen Armstrong abrem ainda mais o campo do mito, mostrando como padrões
mitológicos das sociedades tradicionais estão presentes no mundo ocidental moderno.81 Esta é o que se
pode chamar escola universalista do mito, embora guardem diferenças metodológicas, todos
concordam com a universalidade do fenômeno, e também com sua eficácia na economia existencial.82
É necessário porém, não agir como um fundamentalista: o mito não é verdadeiro por si mesmo, é
78
MALINOWSKI, Bronislaw. Myth in Primitive Psychology. In: Magic, Science and Religion and Other Essays. Illinois:
The Free Press, 1948.
79
Ibid., p. 84-5.
80
ARMSTRONG, Karen. Breve história do mito. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 12.
81
Cf. ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. São Paulo: Perspectiva, 1972; Idem, The Sacred and the Profane: The Nature of
Religion. New York: Harcourt, 1987; CAMPBELL, Joseph. The Hero with a Thousand Faces. New Jersey: Princeton
University Press, 2004; ARMSTRONG, Karen. Op. cit.
82
LEEMING, David. Do Olimpo a Camelot: Um Panorama da Mitologia Europeia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004, p.
10.
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sempre verdadeiro em relação a alguma coisa, seja uma crença religiosa ou a eficácia da ordem social.
Por fim, e tão importante quanto, é que o mito, enquanto material simbólico assim como a arte e a
religião, opera na lógica da ambivalência, da união de contrários, em oposição ao racionalismo, cuja
lógica é a da não-contradição.83
O Mito da Papisa Joana e a Deslegitimação da Sucessão Apostólica
Autores como Pardoe e Pardoe e Craig Rustici não abordam a Papisa à maneira mítica, a
estória da Papisa chamam de relato, lenda, estória, eventualmente mito, mas sem um plano conceitual
mais sério. Se considerarmos requisitos crença e estória não há maiores problemas em se falar “O
mito da Papisa Joana”, já que como vimos, a crença da Papisa no Medievo parecia geral. No século
XIII a versão mais popular do mito o colocava o pontificado de Joana 400 anos antes daquele tempo,
no século IX. Para Malinowski assim como também para Eliade, esse é um dado fundamental: o mito
amarra no passado a fundação a justificação de uma condição presente, ele funda uma realidade. De
fato isto é verdadeiro para todas as ressignificações que a Papisa Joana sofreu durante o tempo. No
caso da Primeira Modernidade, havia o peso de sete séculos de tradição.
No Medievo, a crença generalizada na papisa e sua pendulação entre o santo e o demoníaco
expressam sua qualidade mítica, ambivalente par excellence. Na Primeira Modernidade, onde o tratado
de A. Cooke desempenhou papel importante, a Papisa perde a ambivalência de sua personalidade - que
se torna totalmente negativa “por causa da sordidez do fato”84 – mas em compensação, a “verdade” de
sua história acaba por se mostrar revelada e velada ao mesmo tempo: revelada pois a tradição, as
crônicas e imagens medievais da papisa perpetuam e atestam uma crença que chega até o período da
83
CAIMI, Claudia. Literatura e Pensamento: A lógica da Ambiguidade e a Lógica da Não Contradição. Matraga, Rio de
Janeiro,
v.
15,
n.
22,
pp.
85-98,
jan./jun.
2008.
Disponível
em:
http://www.pgletras.uerj.br/matraga/matraga22/arqs/matraga22a04.pdf. Acesso em: 07 de jan. 2014.
84
COOKE, Alexander. Pope Joan: A Dialogue between a Protestant and a Papist; manifestly proving, that a Woman, called
Joan, was Pope of Rome. In: The Harleian Miscellany: A Collection of Scarce, Curious, & Entertaining Pamphlets and
Tracts, as well in Manuscript as in Print. Selected from the Library of Edward Harley, Second Earl of Oxford. Londres,
1808, p. 82.
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Reforma, velada pois essa tradição é justamente repudiada pelos protestantes, e que não obstante era o
único veículo pelo qual eles poderiam alcançar o escândalo a mulher pontífice.
Voltando a Alexander Cooke, Pope Joan: A Dialogue é um tratado em forma de diálogo.
Assim como o famoso mito da caverna, também exposto em diálogo, do livro VII da República de
Platão não poderia tornar a obra em si um mito, não se pode tomar o tratado polêmico de Cooke como
mito. Mas em todo o caso pode-se trata-lo como um trampolim: o tratado expõe, a despeito das
controvérsias sobre os detalhes, um núcleo narrativo que, na visão de Cooke, é certa: “uma mulher
chamada Joana existiu, e foi papa em Roma”, eis a estória. Essa estória carrega, como Cooke não
cansa de negar, todo o peso de testemunhos e da crença católica, e mais, o peso da tradição ancorada
no “passado”: o século IX, onde quase todos os manuscritos católicos diziam que foi pontificado da
Papisa85.
Para se estabelecer uma estória como mito é a questão do sentido é importante. Se Joana foi
papa no século IX, qual é a justificativa que tornaria essa afirmativa viva no presente? Para Cooke, as
consequências da monarquia usurpada, “pois uma mulher não é capacitada para ordens sagradas; uma
mulher não pode bancar o papa”,86 é que ela põe seriamente em dúvida o sistema sacramental católico:
“Essa não é uma Igreja verdadeira, qual não possa dar, por escrito autentico e simples, completamente
legítimo, ordenado, sem qualquer violação, notória solidez na sucessão dos bispos. [...] Através dela [a
Papisa Joana] foi aberta uma fenda na sucessão de seus papas; ela, nenhuma tola, mas uma meretriz,
estragou seu jogo ".87 Por causa do pontificado de Joana
...os sacerdotes papistas entre vocês podem muito bem duvidar da legalidade de sua missão,
pois, a não ser que os sacerdotes papistas sejam tornados sacerdotes por um bispo legítimo,
seu sacerdócio não é digno de continuar, a menos que vocês papistas leigos sejam absolvidos
por um padre legítimo, sua absolvição nada vale, e, a menos que as palavras da consagração
85
COOKE, Alexander. Idem, p. 119.
Ibid., p. 139.
87
Ibid., p. 140. “Em uma igreja verdadeira, um bispo deve ordenadamente suceder o outro, ou tudo é manchado”, op. cit.
86
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ser proferida por um padre legítimo, atento ao seu objetivo, não se segue nenhuma mudança
substancial nas criaturas do pão e do vinho.88
A existência e as ações da Papisa Joana no nono século, não uma santa, mas uma meretriz,
explicam não só o quadro decadente da Igreja Católica, como justificam e conferem legitimidade à
própria identidade e tomada das rédeas da Cristandade pelo Protestantismo. À iconografia católica, o
Protestantismo opõe a iconoclastia; à obscuridade dos rituais, eles opõem uma liturgia enxugada; à
tradição apoiada na... tradição, os protestantes opõem o princípio “sola escriptura”, o que passa
invariavelmente a um questionamento do papel e da natureza do papado.89
Uma vez que a jurisdição universal do Papado provinha da linhagem direta de São Pedro, os
protestantes não poderiam macula-lo. E isso porque a ideia da “Reforma” era de retorno às origens, à
Igreja Primitiva, a qual deve sua fundação justamente ao apóstolo Pedro. Por isso Cooke, em vez de
questionar São Pedro ou ‘a Igreja’, questiona a corrupção e depravação de um sem número de papas:
“Silvestre o Segundo, aquele famoso mago, que se entregou, de corpo e alma, para o diabo”. “Benedito
IX, aquele monstro repulsivo”, “Gregório VII, vulgarmente conhecido pelo nome de Hildebrando, que
pôs em chama tanto a Igreja quanto a sociedade”. “João XII, que, quando estava jogando dados, fez
suas preces à Júpiter e Vênus, e para esses deuses idolatras dos pagãos”.90
Não é exagero dizer que o tratado de Cooke, pela própria dimensão e pretensão a que é
remetido esboça um quadro geral das questões que gravitavam em volta da Papisa Joana em meados
do século XVII. Isto também é verdade, uma vez capturando a representação que o pastor anglicano
faz de Joana, para se falar com a boca cheia “mito da Papisa Joana”: a estória de “uma mulher,
chamada Joana, [que] foi Papa em Roma”; mito que conferia, junto com uma porção de outros, como o
da Igreja Primitiva, a legitimidade e a Identidade necessárias à afirmação da Reforma.
88
COOKE, Alexander. Pope Joan: A Dialogue between a Protestant and a Papist; manifestly proving, that a Woman, called
Joan, was Pope of Rome. In: The Harleian Miscellany: A Collection of Scarce, Curious, & Entertaining Pamphlets and
Tracts, as well in Manuscript as in Print. Selected from the Library of Edward Harley, Second Earl of Oxford. Londres,
1808, p. 141. Grifo nosso.
89
RUSTICI, Craig. The Afterlife of Pope Joan: Deploying the Popess Legend in Early Modern England. Ann Arbor:
University of Michigan Press, 2009, pp. 36-60.
90
COOKE, Alexander. Idem, p. 135.
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Referências Bibliográficas e Fontes
Fonte Primária
COOKE, Alexander. Pope Joan: A Dialogue between a Protestant and a Papist; manifestly proving,
that a Woman, called Joan, was Pope of Rome. In: The Harleian Miscellany: A Collection of
Scarce, Curious, & Entertaining Pamphlets and Tracts, as well in Manuscript as in Print. Selected
from the Library of Edward Harley, Second Earl of Oxford.Londres, 1808.
Fontes Secundárias
‘Gordinho
saudável’
é
um
mito,
diz
pesquisa.
BBC
Brasil.
Em:
http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2013/12/131203_gordinhos_saude_mito_lgb.shtml.
Acesso em: 08 de fev. de 2014.
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http://www1.folha.uol.com.br/comida/2014/01/1404048-descubra-o-que-e-mito-e-verdade-entre20-conhecidos-truques-da-cozinha.shtml. Acesso em: 08 de fev. de 2014.
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Ensaios de Mitologia Medieval. São Paulo: Edusp, 2010.
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SAGRADO OU EFICAZ?
O SENTIDO DO MATRIMÔNIO EM CASTELA MEDIEVAL
Amanda Oliveira de Faria Junqueira91
As Sete Partidas, corpo normativo do século XIII, representa uma compilação de costumes e
leis de Castela medieval, por meio dos quais podemos perceber aspectos característicos da sociedade
medieval e compreender melhor a sua dinâmica.
O matrimônio é uma das questões apresentadas na obra e que, muito mais do que apenas um
sacramento, pode ser entendido como uma das formas de aliança e interação social. A Quarta Partida,
que trata sobre os noivados e os casamentos, é introduzida afirmando que “[...] esse é um dos mais
nobres, e mais honrados dos sete Sacramentos da Santa Igreja. E por isso deve ser honrado, e guardado
[…]”92. Essa afirmação enfoca o lado sagrado dos matrimônios. O homem e a mulher seriam fruto de
um único corpo que Deus teria criado, dando origem a duas partes que seriam companheiras. Essas
deveriam manter-se unidas pelo amor e jamais separadas aos olhos de Deus. De acordo com o
documento, a união dessas partes originaria linhagens que manteriam o mundo povoado.
No entanto, as leis referentes ao casamento nos levam a observar outros aspectos importantes
que demonstram as mutáveis regras sociais e os valores dessa sociedade. Uma delas é o poder da
palavra. A palavra de um homem valia mais do que uma assinatura ou um documento em papel, e o
compromisso era mantido enquanto fosse conveniente aos envolvidos. A palavra de um homem selava
seriamente um compromisso, como mostra a Lei I ao dizer que o noivado é uma promessa feita pelos
homens por palavras quando quisessem se casar. Segundo a Lei V, “ [...] verdadeiro é o casamento que
91
Universidade de Brasília. [email protected].
As Sete Partidas de Don Afonso Nono. Quarta Partida. Pg. 505. Onde, porque esta orden del Matrimonio establescio
Dios mismo por si, por esso es vno (9) de los mas nobles, e mas honrrados (10) de los siete Sacramentos de la Sancta
Eglesia.
92
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se
faz
por
palavras
de
presente,
e
o
outro
que
se
faz
por
palavras,
e
se
cumpre de fato [...]”93.
O noivado sugere, portanto, uma oposição importante entre o presente e o passado no qual a
promessa feita no presente tem mais valor do que a promessa feita para o futuro. Se considerarmos
uma mesma promessa de casamento feita da mesma forma e sob as mesmas condições sociais a duas
mulheres, a promessa feita no presente tem preferência sobre a promessa futura.
As circunstâncias eram diversas e variáveis. Mas, pelo tom do discurso da Partida, o importante
era a relevância dos acontecimentos ou das decisões no momento presente, o que nos leva a deduzir
que as perspectivas de realizações futuras perdiam importância frente àquilo que podia ser alcançado
imediatamente ou brevemente. O futuro é incerto e não compete ao homem preocupar-se com ele com
tanto afinco. Pactos, alianças e acordos que beneficiam a sociedade a curto prazo são, nesse sentido,
privilegiadas.
A Lei VIII apresenta, porém, outra situação em que são feitas duas promessas futuras de
casamento. Nesse caso, destaca-se o alto valor que se atribuía ao juramento, quando se afirma:
[...] se alguém noivar simplesmente sem nenhuma jura por palavras do
tempo que está por vir; e depois algum destes noivar da mesma forma com
outro, ou
com outra, e lhe jurar que a cumpriria […] o segundo noivado
deveria valer, pela jura que foi feita nele […]94.
Sobre este trecho fazemos, no entanto, uma análise diferente; aqui se apresenta o valor do
juramento, uma confirmação de cumprimento da promessa feita, levando-nos a refletir além da simples
93
As Sete Partidas de Don Afonso Nono. Quarta Partida. Título I; Ley V. Pg. 512.Verdadero es el casamiento que se faze
por palabras de presente, e el otro que se faze por palabras,e se cumple de fecho, segund dize en la ley ante desta ; e ha en
el la significança de tres Sacramentos (1).
94
As Sete Partidas de Don Afonso Nono. Quarta Partida. Título I; Ley VIII. Pg.514. […] si algunos se desposassen
simplemente sin jura ninguna por palabras del tiempo que es por venir; e des- sassen, el vno fuesse de hedad complida,
pues desto alguno deltas se desposasse en essa misma manera con otro, o con otra, e le jurasse que lo "cumpliría [...]el
segundo desposorio deuia valer, por la jura que le fue fecha en el [...]
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promessa, mas sobre os motivos que levam o envolvido a fazer duas promessas, e a jurar sobre apenas
uma delas.
Aos poucos percebemos que mais do que promessas e juramentos, há motivos e interesses que
permeiam as ações de forma significativa. Exemplo disso é a passagem da Lei VI que determina:
“Podem noivar, tanto os varões como as mulheres, desde que tenham sete anos, porque aí então
começa a haver entendimento, e são de idade em que já apreciam os desposórios”. 95 O trecho expressa
a necessidade de que o ator da ação tenha consciência da sua escolha, pois essa seria importante para a
sua vida social.
Da mesma forma, a Lei X, Titulo I, diz: “Que os pais não podem noivar suas
filhas, sem elas estarem presentes, ou sem a sua aprovação.”
96
Percebe-se que, embora o pai tenha
interesse na realização do casamento, a filha deve estar presente no momento em que o noivado será
formalizado, pois “[…] o matrimônio não se pode fazer por um só, nem os noivados.”
97
O noivado
deve ser realizado com o consentimento dos dois nubentes, o que nos remete à ideia de que um
acordo/aliança para ser válido precisa do consentimento explícito das duas partes interessadas.
Até aqui, o discurso das Partidas é bastante claro e as deduções que fazemos parecem quase
óbvias e naturais. Entretanto, na medida em que os casamentos ajudavam a formar e a alimentar as
alianças sociais e políticas, eles também estariam sujeitos às circunstâncias cambiantes da própria
política, apesar de estarem revestidos das características sacramentais, o que os tornaria eternos. Mas,
o fato, é que o casamento parece estar submetido à lógica do “que seja eterno enquanto dure”; claro
que não se trataria do sentimento, mas das condições que permitiram aquele casamento. A eternidade,
portanto, não se restringe a um futuro infinito, mas a um presente que pode modificar a situação eterna.
Pensemos então que se uma situação eterna, como o próprio casamento, pode ter um fim, seria o
sacramento do matrimônio superior às transformações cotidianas da vida medieval?
95
As Sete Partidas de Don Afonso Nono. Quarta Partida. Título I; Ley VI. Pg.512. Desposar se pueden, también los
varones como las mugeres, desque ouieren siete años (1), porque estonce comiencan a auer entendimiento, e son de hedad,
que les plaze las desposajas.
96
As Sete Partidas de Don Afonso Nono. Quarta Partida. Título I; Ley X. Pg.516. Que los padres non pueden desposar sus
fijas, non estando ellas delante, o non lo otorgando.
97
As Sete Partidas de Don Afonso Nono. Quarta Partida. Título I; Ley X. Pg.517. [...] porque bien assí como el matrimonio
non las puede fazer por vno sol, otrosi nin las desposajas.
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A Lei III, Título II, ensina que os casamentos assentam-se em três bases: fé, linhagem e
sacramento. O sacramento seria um bem que nunca deveria ser anulado, pois o que Deus uniu o
homem não teria o direito de separar. A mesma lei também reconhece que, embora a lei divina
estabeleça a indissolubilidade do matrimônio, ele pode ser desfeito por alguns motivos. A Lei IV,
Título II, acrescenta que há duas razões para que os casamentos sejam realizados: a primeira, para
fazer filhos e acrescentar as linhagens dos homens; e a segunda para guardar os homens do pecado da
fornicação. No entanto, a mesma lei também considera que há outras razões que presidem a realização
dos casamentos, como a formosura das mulheres, a riqueza, a inimizade entre linhagens, dentre outras,
mas, ainda assim, dever-se-ia observar principalmente as duas razões citadas acima, por serem
primordiais aos olhos de Deus. Os exemplos mencionados sugerem a conclusão de que a dimensão
sacramental é muito importante para a vida da sociedade medieval, mas que ela se mistura à dimensão
política e social, e que é necessário perceber todos esses aspectos em conjunto.
De qualquer forma, em outros trechos, as Partidas não deixam de reafirmar a solidez dos laços
matrimoniais, como na Lei VII, Título II:
[…] se algum dos que fossem casados, cegasse, ou ficasse surdo, ou
aleijado, ou perdesse seus membros por dores, ou por enfermidade, ou outra
maneira qualquer; por nenhuma dessas coisas, nem ainda ficasse leproso, um
não deveria separar-se do outro, por guardar a fé e a lealdade, que se
prometeram no casamento […] 98.
Essa passagem nos coloca diante de dois aspectos fundamentais da sociedade e que, portanto,
também estão presentes nas Partidas, em diferentes momentos: a fé e a lealdade. A fé como
manifestação da forte espiritualidade, mas também como cimento político que garante o vigor dos
98
As Sete Partidas de Don Afonso Nono. Quarta Partida.Título II; Ley VII.: Pg.523. [...] mas si alguno de los que se
fuessen casados, cegasse, o se fiziessi bros por dolores, o por enfermedad, o por beuir comunalmente en vna casa con los
otra manera qualquier; por ninguna destas otros gafos, de guisa que non ouiessen cacosas,nin aunque se fiziesse gafo (5),
non niaras apartadas. Ca estonce el que fuesse
deue el vno desamparar al otro; por guar- sano, non seria tenudo (8) de morar con eldar la fe, e la lealtad, que se
prometieron en en tal lugar; como quier que de fuera sea el casamento [...]
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laços pessoais que se estabelecem; e a lealdade como característica complementar à anterior, essencial
aos arranjos sociais, que embora sujeitos a constantes mudanças são legítimos enquanto valem.
A Quarta Partida trata especificamente sobre as leis ou costumes que dizem respeito aos
casamentos, mas é importante considerar que todas as partes da obra estão interligadas porque dizem
respeito a uma mesma sociedade que é afetada simultaneamente por todos os temas tratados. Essa
integração dos diferentes atos constitutivos da vida medieval, sugere a necessidade de estudar também
as demais Partidas, com o objetivo de colocar o tema do matrimônio na perspectiva de outros atos e
valores e, assim, tentar compreendê-lo dentro do todo.
A Primeira Partida apresenta os entendimentos referentes à fé e aos preceitos cristãos.
Inicialmente, o Título I constata que “[...] as gentes latinas chamam de leis as crenças [...]” 99. Tal
explicação inicial aponta para a fusão entre a razão e aquilo no que se acredita, considerando que não
havia uma real diferença entre o que se denominava lei ou crença. Assim como as crenças, as leis eram
diferentes, variáveis, e não se aplicavam de maneira absoluta, o que corrobora com a ideia
anteriormente apresentada de que o funcionamento da sociedade medieval baseia-se em tradições.
De qualquer forma, uma das conclusões a que se pode chegar, ao longo da análise deste
documento, é de que a perspectiva em que o discurso apresenta fatos e circunstâncias não é pautada
pelos indivíduos, mas por uma chave coletiva que aborda pessoas pertencentes a grupos que, por sua
vez, formam a sociedade. Os matrimônios, assim como outros pactos na sociedade medieval, não se
limitam a duas partes individualizadas, mas são problematizados e normatizados na perspectiva do
corpo social.
A primeira lei do Título I diz:
Estas leis são estabelecimentos para que os homens saibam viver bem e
ordenadamente, segundo o prazer de Deus, e também como convém à
99
As Sete Partidas de Don Afonso Nono. Primeira Partida. Título I; Pg.5. [...] las gentes latinas llamam leys las creencias
[...]
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boa vida deste mundo, e a guardar a fé do nosso Senhor Jesus Cristo de
forma
correta, tal como ela é.100
As Partidas apresentam homens e mulheres vivendo em sociedade, mas, sobretudo, para o bem
comum (“a boa vida deste mundo”). Assim, viver bem neste mundo significa não somente viver
segundo as leis de Deus, mas viver de acordo com as orientações e preceitos que aqueles que estão
preparados para “estabelecer” a boa vida e a ordem assentam como tal. É natural pensarmos que viver
bem implica em fazer alianças e arranjos que favoreçam a coesão da sociedade, e considerando que se
trata de uma vida coletiva em que as alianças não são somente úteis, mas necessárias, mesmo as
alianças consideradas sagradas podem ser desfeitas de acordo com as necessidades do grupo.
A Lei VII trata da distinção das leis; as leis dos homens e as leis de Deus ao dizer:
À crença de nosso Senhor Jesus Cristo pertencem as leis que falam da fé.
[...] E ao governo das gentes pertencem as leis que juntam os corações dos
homens por amor; e isto é direito e razão: e destes dois deriva a justiça
correta, que faz os homens viverem cada um como convém. E os que assim
vivem não têm porque se desamar, mas se querer bem. Assim, as leis que são
direitas, fazem juntar a vontade de um homem à de outro com amizade. 101
Devido à sua origem divina, as leis de Deus devem ser respeitadas, temidas e cumpridas. Já as
leis dos homens teriam sido criadas com o objetivo de unir os corações e com o amparo da justiça
garantir que cada um viva como convém ao bem comum. Seguindo as boas leis, os homens acabariam
100
As Sete Partidas de Don Afonso Nono. Primeira Partida. Título I; Lei I. Estas leys son establescimientos porque los
omes sepan bivir bien e ordenadamente, segun el plazer de Dios e outro si segundo conviene a la buena vida deste mundo,
e a guardar la f[e de nosso senhor Jesu Christo, cumplidamente, assim como ella es.
101
As Sete Partidas de Don Afonso Nono. Primeira Partida. Título 1; Lei VII. Pg. 7. La creencia de nuestro senhor Jesu
Christo pertenescen las leys que fablan de la fé. […] E al governamiento de las gentes pertenescen las leys que ayuntan los
coraçones de los omes por amor e esto es derecho e razon: ca destas dos sal ela justiça cumplida que faze a los omes biver
cada uno como conviene. E los que ansi biven, no han porque se desamar, mas porque se querer bien. Porende las leys que
son derechas, fazen ayuntar la voluntad del um ome com el outro desta guisa por amistad.
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unidos pelo amor e pela amizade. Desta forma, casar-se segundo as leis é conveniente, desejável, mas
separar-se também o pode ser.
A segunda lei, ao tratar do direito natural, diz:
Ius naturale em latim, e direito natural em romance, quer dizer o direito
natural que têm os homens naturalmente, e ainda os animais que têm sentido.
Assim, segundo o movimento desse direito, o macho se junta com a fêmea, a
que chamamos casamento, e por ele criam os homens seus filhos [...] 102
Segundo essa lei, o direito natural pode significar o direito de toda criatura a unir-se a outra
segundo sua própria vontade. E o movimento natural desse direito levaria os homens ao casamento.
Portanto, se reconhece uma espécie de impulso da natureza dessas criaturas, que as leva a se juntarem
e a procriarem.
Se voltarmos à Quarta Partida, encontraremos a Lei III do título IV, que ampara
a conclusão de que existem diferentes motivos que levam à realização das alianças matrimoniais para
satisfazer interesses condenáveis, ao dizer:
Sobre as condições que se põem os homens nos noivados, e nos
casamentos, há separação em muitas maneiras. Porque há delas que são
convenientes, e podem os homens colocar a sua vontade, são tais; como
quando algum diz a uma mulher: Casarei contigo se me deres cem maravedis,
ou tal Castelo/ ou outra coisa semelhante destas.103
102
As Sete Partidas de Don Afonso Nono. Primeira Partida. Título 1; Lei II. Pg. 5. Ius naturale em latin, tanto quiere dezir
em romance, como derecho natural que han em se los omes naturalmente, e aun los animálias, que han sentido. Ca segund
ele movimento deste derecho, el másculo se ayunta com la fembra, a que nos llamamos casamento, e por ele crian los omes
a sus fijos.
103
As Sete Partidas do Sábio Don Afonso o Nono. Quarta Partida. Título IV; Lei III. Pg. 539.
Cerca de las condiciones que ponen los omes en las desposajas, e en los casamientos, há departimiento en muchas
maneras. Ca tales y ha délias que son conuenibles, e guisadas, e tales que non. […] E las que son guisadas , e conuenibles,
e pueden los ornes poner a
su voluntad, son átales ; como quando alguno dize a alguna muger : Casarme contigo
si me ieres (2) cien marauedis, o tal Castillo ; o otra cosa semejante destas.
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No trecho, é possível perceber claramente o interesse por bens materiais na realização de um
acordo matrimonial. A Lei III exemplifica um caso em que o casamento seria subvertido por lógicas
que favoreciam apenas o interesse egoísta de uma das partes.
A Lei IV do mesmo título apresenta outra situação em que os noivos são submetidos a
condições para se casarem, mas que estão submetidas a uma lógica que extrapola os interesses
particulares.
Condições convenientes são necessárias em todas as vontades, que se faça em
alguns noivados e matrimônios e é a que se faz desta maneira, como quando
algum cristão noiva com uma mulher judia, ou moura, quer por palavras de
presente, ou de tempo que está por vir, dizendo assim: Eu te recebo, ou prometo
te receber por minha mulher se te fizeres cristã.104
Essa lei apresenta a conversão como condição para haver um casamento cristão. O sacramento
do matrimônio é um pacto entre dois lados cristãos. Talvez se possa também acrescentar, que, com
essa exigência, o casamento acabou por contribuir para o alargamento do mundo cristão.
Pelas Partidas, percebe-se que o casamento e sua normatização abrange a todas as camadas da
sociedade. A introdução do título V coloca em questão a situação de um servo ao querer se casar. O
título diz:
[…] tao depreciada coisa é esta servidão, que o que nela cae, não tão somente
perde o poder de não fazer de si o que quiser, mas ainda da sua pessoa mesma
não é poderoso, se não enquanto manda o seu senhor. [...] queremos neste
dizer, dos outros impedimentos que sucedem outros deles, por razão de ser os
104
As Sete Partidas do Rei Don Afonso Nono. Quarta Partida. Título IV; Lei IV. Pg 543
Conuenible condición ha menester en todas guisas, que se faga en algunas desposajas, e matrimonios: e es la que se faze
desta manera, como quando algún Christiano se desposasse con alguna mnger Judia, o Mora (1), quier por palabras de
presente , o del tiempo que es por venir, diziendo assi: Yo te recibo, o prometo de recebir por mi muger, si te fizieres
Christiana.
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homens de servil condição. E mostrar primeiramente, se podem casar, e com
quem, e se casarão com o consentimento de seus senhores.105
A servidão é um fato que não somente afeta a vida de uma pessoa, mas fazia parte da própria
concepção de sociedade. Desta forma, a servidão é natural e deve ser regulada na perspectiva do
casamento. Em situação de servidão, as pessoas submetiam sua vida à do senhor, pelo que o desejo de
se casar dependeria das conveniências do senhor, que deveria julgar o pedido à luz dos benefícios da
linhagem que ele comandava.
Por último, destacaremos alguns aspectos sobre as interdições matrimoniais. O Título VI
apresenta a proibição à realização de casamentos, que merece atenção por tratar-se de uma situação
que na atualidade parece muito óbvia e inquestionável, mas que supunha algumas implicações
importantes para a vida em sociedade na Idade Média. O título apresenta o tema dos casamentos
consanguíneos e diz:
Embora antigamente os membros de uma mesma linhagem casassem entre si,
os Santos Padres que vieram depois, com base nas leis velhas e novas, o proibiram. E
mostraram muitas razões porque não era ajuizado que assim o fosse. Primeiramente,
porque os parentes se criariam e viveriam não se amando por outro amor, senão aquele
da linhagem.´...[...] O que provocava entre eles muitas discórdias e muitas inimizades:
assim que o que de uma parte se preocuparia em unir seu sangue por matrimônio,
separava a outra por inimizades. E, assim, todos os homens viveriam separados, cada
As Sete Partidas do Rei Afonso Nono. Quarta Partida. Título V. Pg. 542. […] tan despreciada cosa es esta seruidumbre,
que el que en ella caè, non tan solamente pierde poder de non fazer de lo suyo lo que quisiere, mas aun de su persona
misma (aj non es poderoso (3), si non em quanto manda su señor.[...] queremos en este dezir, de los otros embargos que
acaescen otrosí en ellos , por razón de ser los ornes de seruil condición. E mostrar rimeramente, si pueden casar, e con
quien, e si an de casar con consentimiento de sus señores. E que derecho deue ser guardado, en el casamento que es fecho
entre sieruo , e libre.
105
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um por si, em sua linhagem, à maneira de bandos, por não querer se juntar aos
estranhos em casamento.106
Segundo o trecho apresentado, o casamento entre parentes era proibido, primeiramente, para
estimular a ampliação dos laços políticos e sociais, e por se entender que o reforço endogâmico
estimulava a violência. Embora não se diga claramente, mas intui-se uma preocupação pelo futuro da
sociedade, caso não se rompesse a dinâmica dos casamentos endogâmicos.
*
*
*
Pode-se perceber, portanto, uma interpenetração entre a razão e a crença, para usar as palavras
das Partidas, o que permitia que o sacramento do matrimônio adquirisse um papel político e social
importante. Dessa maneira, esse fator interferia nos tipos união e interação social dos diferentes
grupos, consequentemente, afetando a formação das famílias e o acúmulo e distribuição de seus bens.
Novamente, pode-se perceber a fusão que acontece entre o que hoje se consideraria lado espiritual e os
diferentes fatores sociais, colocando em evidência uma lógica social que justifique diferentes acordos e
pactos assentados em conveniências coletivas.
Esse conjunto de leis, que expressa também uma justiça casuística, nos faz concluir até aqui,
que o sacramento do matrimônio não se limita apenas a uma lei divina, mas o teor sagrado desse
fenômeno deve ser compreendido na perspectiva da sua eficácia na vida da sociedade. O sagrado que
remete ao temor a Deus e ao cumprimento de suas leis se manifesta no cotidiano dos homens
106
As Sete Partidas do Rei Afonso Nono. Quarta Partida. Título VI. Pg. 546. Ca maguer antiguamente (1) los del linaje
casauan vnos con otros, los Santos Padres que vinieron después, también en la vieja Ley, como en la nueua, lo
defendieron.E mostraron muchas razones (2), por que non touieron que era guisado > que fuesse. Primeramente, porque
los parientes se criassen, e biuiessen em vno, non se amando por otro amor, si non por el debdo del linaje. […] e sobre
esto vernian entre ellos muchos desacordamientos, e muchas enemistades : assi que lo que de vna parte cuydarian ayuntar
su sangre por matrimonios, de la otra despartirían por enemistades. E sin todo esto, porque todos los ornes biuirian
apartadamente, por si cada vno, en su linaje, como en manera de vandos (3), pues que a los estraños non se ouiessen de
ayuntar por casamiento.
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medievais, mas as vantagens desse tipo de acordo social contribuem para que o casamento continue
sendo um costume vivo nessa sociedade.
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O CORAÇÃO DE DOM DINIS
Ana Luiza Mendes107
No Paço da Universidade de Coimbra é possível visualizar uma estátua imponente. Dom Dinis
(1279-1325)108 está posicionado no local correto. Está altivo próximo à Universidade que fundou. A
figura por si só chama a atenção, mas outro aspecto interessante é como os novos tempos estão
tratando a imagem do antigo. Havia nessa escultura, em medos de 2012, uma pintura, um grafite, em
forma de coração.
Num primeiro momento é de se olhar com tristeza ao visualizar o desrespeito que a atualidade
tem com o seu passado. Porém, ao observar o monumento e, a partir dele, visualizar a história
pertinente ao personagem que o dá forma, é possível conseguir não pensar nesse coração como uma
agressão, mas como uma forma de retratar um rei apaixonado pela caça, pelas mulheres, pela poesia,
pelo reino que comandou por 46 anos. A pichação foi intencional? Possivelmente nunca teremos uma
resposta concreta, porém o que é possível inferir é que ela serviu como fonte de inspiração para
escrever sobre Dom Dinis e seu coração. Não aquele da estátua, mas aquele que pulsou em cantigas e
no trono de Portugal.
Dinis, segundo filho de Afonso III (1210-1279) e Beatriz de Castela (1242–1303), nasce em
1261 sob os auspícios de São Dionísio Areopagita, do qual recebeu o nome. Nome que, como afirma
Pizarro, “não é nome de rei de Portugal”109. Seu nome deveria ser Sancho, se a sequência fosse
seguida. Mas Sancho não poderia chamar-se, pois o anterior foi tirado do trono pelo irmão, Afonso III.
Definitivamente tal nome não traria bons agouros para o infante herdeiro. Assim sendo, chamou-se
Dinis, nome de santo, santo patrono da realeza francesa, com a qual a família real portuguesa tinha
relações pessoais e familiares. Dinis passou, portanto, a ser nome de rei.
Doutoranda em História – UFPR. E-mail para contato: [email protected]
Período de reinado.
109
PIZARRO, José Augusto Sotto Mayor. D. Dinis. Lisboa: Temas e Debates, 2008, p. 278.
107
108
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Assume como tal em 1279, aos 18 anos, já com a necessidade de legitimar o seu poder perante
a rainha mãe que tentou atuar no governo do reino através de uma regência que Dinis rechaçou. Esse
fato é tema da Crônica de Alfonso X, mas não aparece em documentos portugueses. O trecho da
Crônica parece revelar um jovem Dinis seguro de si como governante, afirmando assim o seu poder ao
se desprender da figura materna e também da de seu avô, Afonso X de Castela (1221-1284), que não
foi apoiado pelo neto no conflito com o infante D. Sancho (1258-1295), anos mais tarde.
Ao analisar esses acontecimentos, é possível perceber que Dom Dinis é um político estrategista
e pragmático. Os laços familiares nesses eventos ficam em segundo plano se as vantagens políticas
ligadas a eles não são favoráveis. Assim, Dom Dinis rechaça a regência encabeçada pela mãe porque
tem a necessidade de se impor como rei. Da mesma forma, a oposição contra o rei de Castela também
pode ser compreendido como uma estratégia política, uma vez que o apoio a Sancho lhe traria maiores
vantagens políticas.
Dom Dinis herda um reino com rendimentos assegurados, mas que ele desenvolve ainda
mais110, além de fomentar a economia ao estabelecer tratados de comércio com a França e a Inglaterra,
aprimora a atividade náutica e constitui o Almirantado como instituição e, consequentemente, a
Marinha portuguesa. Também promoveu uma maior funcionalização e profissionalização ao “exército”
e o povoamento do reino ao delegar aforamentos e cartas de povoação destinados a aproveitar terrenos
insalubres, a povoar matas e regiões próximas ao mar. Também foi responsável pelo desenvolvimento
agrícola, donde recebeu o epíteto O Lavrador, ao qual unem-se O Rei-Agricultor, o Rei-Poeta, o ReiTrovador.
Percebe-se pelas alcunhas que o rei se propôs a desenvolver as diversas áreas que constituíam o
seu reino e não se esquivou de promover a difusão da cultura que, segundo Antonio Luiz Lachi, a
partir de Dinis ganha autonomia e sua corte torna-se um centro cultural apreciável, de forma a
deslocar-se de Castela para Portugal.111 Além de contar com uma corte culta, com trovadores e
jograis, ele próprio se serviu da pena e lançou seus versos de amor e sátira. Segundo vários autores,
110
MATTOSO, José (dir.) História de Portugal. A Monarquia Feudal (1096-1480). Editorial Estampa, 1997, p. 211.
LACHI, Antonio Luiz. D. Dinis, o pai da pátria de Portugal: a criação da Universidade portuguesa e seu significado
para o reino. Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 4 | n. 8 | jul./dez. 2002, pp. 199-212.
111
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Dinis foi o melhor poeta da lírica galego-portuguesa. “Sob o olhar da corte, rei é sinônimo de modelo,
e Rei-Trovador sinônimo de ‘Arte Poética’ a seguir”.112 De fato, sua técnica era exemplar, usufruindo
da mais rica rima poética e dos seus conhecimentos da lírica provençal, contribuiu para o
enriquecimento do trovadorismo português com o maior número de cantigas conhecidas (ou
preservadas) de um mesmo autor, 137 no total, dentre cantigas de amor, amigo e escárnio e
maldizer.113 Ainda na área cultural, Dinis fomentou traduções de diversas obras, como as Partidas de
Afonso X, a Crônica Geral de Espanha e da História e Geografia da Península, do árabe Rásis, além
de criar a Universidade, em finais do século XIII, donde podia-se escolher entre Teologia, Direito ou
Medicina, primeiramente em Lisboa, sendo transferida no início do século XIV, para Coimbra.
Percebe-se, portanto, uma profusão no âmbito cultural, sobretudo, em relação ao reinado
anterior. Essa situação pode ser compreendida, segundo Lang, devido ao fato de que o reino português
gozava de uma maior organização e prosperidade, de forma que se podia dedicar-se mais à
sociabilidade refinada e ao entretenimento cultural.114
Tal organização diz respeito à política de afirmação do reino português perante aos demais
reinos ibéricos, como a delimitação das fronteiras do reino em relação a Castela, através do Tratado de
Alcanizes (1297), efetuado já nos primórdios do reinado de Dom Dinis, corroborando com a sua
política de afirmação e legitimação do seu poder como rei exercida também diante da sua própria
nobreza quando, em 1283, revoga concessões e privilégios feitos a ela desde 1279, ou seja, desde o
início do seu reinado, segundo o argumento de que tais concessões e privilégios foram um engano. Tal
atitude faz parte da uma política de controle senhorial, disseminada ao longo do reinado, que culmina
na progressiva extinção de cargos exercidos pela nobreza, de forma a demonstrar que os poderes e
NOBRE, Cristina. Amor e poesia nas cantigas d’amor de D. Denis. Educação e Comunicação, 6, pp.50-65. Disponível
em: https://iconline.ipleiria.pt/bitstream/10400.8/242/1/n6_art4.pdf. Acesso em: 26/07/2013, p.50.
113
A Arte de Trovar, manuscrito contido no Cancioneiro da Biblioteca Nacional, um dos cancioneiros que compilam as
obras do trovadorismo galego-português, é que dita as normas sobre como os gêneros se constituem. Assim, as cantigas de
amor são aquelas em a voz é masculina; a voz feminina são características das cantigas de amigo; as cantigas de escárnio e
maldizer são satíricas, com a diferente de que na primeira a sátira é velada, indireta e na segunda é direta, revelando-se o
nome da pessoa a quem se dirige a sátira. Vide: LOPES, Graça Videira; FERREIRA, Manuel Pedro et al. (2011-), Cantigas
Medievais Galego Portuguesas [base de dados online]. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, FCSH/NOVA. Disponível
em: <http://cantigas.fcsh.unl.pt>. Acesso em: 05/03/2014.
114
LANG, Henry R. Cancioneiro d’el Rei Dom Denis e estudos dispersos. MONGELLI, Lênia Márcia; VIEIRA, Yara
Frateschi (org). Niterói: Editora da UFF, 2010, p. 82.
112
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privilégios que detinham não eram um dado adquirido115, mas uma concessão do “verdadeiro” poder: o
do rei.
Assim, Dom Dinis vai afirmando o seu poder que passa a ser reconhecido e solicitado para
contribuir para solucionar querelas entre os outros reinos ibéricos, pois passa a ser “considerado como
um interlocutor essencial e como uma autoridade política respeitada por todos”.116 Porém a autoridade
precisa ser firmada e reconhecida também no plano interno. Para tanto é preciso desenvolver o reino
e é justamente a partir de suas ações nesse contexto que recebe o epíteto de O Lavrador ou O
Agricultor, uma vez que promove o desenvolvimento agrícola do reino português conjuntamente com
o estímulo ao povoamento de regiões dantes precariamente povoadas e desenvolvidas.
Estas ações fazem-nos perceber que Dom Dinis tinha uma exímia habilidade política para se
impor, governar e desenvolver. Pode-se inferir que sua educação tendia para isso, mas não somente.
Para além do fato de ser neto do rei sábio, seu pai também contava com uma corte em que o
trovadorismo recendia. Influenciado por diferentes fatores – a corte do pai e do avô, o contato com os
provençais – permitiu que edificasse em si mesmo a figura de um Fiel do Amor.
É bom frisar que a fidelidade é ao Amor e não às damas para quem canta de forma efêmera.
Efêmera porque não só uma única dama habitou seu coração. Dom Dinis teve 6 filhos bastardos, filhos
de diferentes mulheres. Há de se convir que as mães de seus bastardos não foram as únicas a adentrar
em seu leito. Leito que, possivelmente, não era muito frequentado pela Rainha, visto o fato de somente
terem tido 2 filhos em mais de 40 anos de consórcio. Mas ela fez o seu papel de gerar o herdeiro do
trono e, ainda, criou os bastardos do rei. Isabel, portanto, antes de ser santa, foi uma rainha
extremamente funcional, ativa, situação talvez influenciada pelo fato de ter tido poucos filhos, o que
lhe dava condições para reger o reino ao lado do marido. Marido que a escolheu a dedo, por apresentar
as condições políticas mais favoráveis, a de uma aliança com Aragão e, assim um fortalecimento
perante Castela, mas também pela formação culta de Isabel que a fez a Rainha ideal para Dom Dinis
que teria reconhecido suas qualidades na cantiga Pois que vos Deus fez, mha Senhor, na qual afirma
115
116
PIZARRO, José Augusto Sotto Mayor. Op. Cit, p.121.
Idem, p. 95.
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que a Senhor erades bõa pera rei.117 Esta cantiga suscita dúvidas entre os estudiosos sobre se
realmente de destinava à Rainha, mas o fato é que poderia ser, uma vez que Isabel realmente era boa
para rei e boa para reinar.
Esta é uma das 76 cantigas de amor compostas por Dom Dinis nas quais ele canta as tristezas
de amores não correspondidos e as alegrias conquistadas com os amores correspondidos. Através de
suas composições também declara a autenticidade do seu sentimento, sobretudo em contraposição ao
sentimento cantado pelos provençais. Na cantiga Proençaes soen mui bem trobar ele atenta para o fato
de que os provençais dizem amar verdadeiramente, mas que só o fazem na época da flor, ou seja, na
primavera. “Nessa cantiga, o rei trovador, através de uma retórica literária, defende não só a sua arte,
como trovador, mas a arte do seu reino”118 e, dessa forma, possibilita a identificação de uma produção
que se reconhece como independente e distinta daquela que possivelmente contribuiu para a sua
formação trovadoresca.
Evidentemente que, tanto portugueses quanto provençais irão, através de uma retórica poética,
defender a sua arte. Contudo, Dom Dinis teve “uma capacidade de renovação do cânone e uma
recepção muito criativa de temas e formas poéticas da poesia trovadoresca provençal, que ele tão bem
conhecia”.119 Assim, ele promove a renovação da tradição poética trovadoresca e, deliberadamente, fez
da sua língua poética, a língua da chancelaria, moldando tanto a cultura quanto a política e,
consequentemente a sociedade medieval portuguesa, uma vez que sua aptidão cultural e social tinha
um caráter coletivo. Como afirma Elisa Nunes Esteves, a aptidão cultural e pelas Letras tinha um
sentido coletivo “porque D. Dinis não era apenas um aristocrata letrado, era rei, e essa condição régia
determina que ele encare a transmissão do conhecimento e da cultura entre os seus súbditos como uma
missão de relevo”. 120
Para alguns estudiosos, Dom Dinis teria se imposto pela cultura. Contudo, é possível visualizar
pelas suas ações que sua afirmação se deu por meio de medidas que contribuíram para o
117
LANG, Henry R. Op. Cit. p. 204.
MENDES, Ana Luiza. A história que se faz cantiga nas barcarolas galego-portuguesas. São Paulo: Ixtlan, 2014.
119
ESTEVES, Elisa, Nunes. ESTEVES, Elisa Nunes. O poeta D. Dinis. Congresso Internacional Dom Dinis. Disponível
em: http://rdpc.uevora.pt/bitstream/10174/4207/1/Congresso%20Internacional%20Dom%20Dinis3.docx . Acesso em:
26/08/2012., p. 4.
120
Idem, p. 8-9.
118
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desenvolvimento do reino em suas diferentes facetas. Diante desses elementos, é possível afirmar que
Dom Dinis parece ser, portanto, o gestor da conexão de elementos que culminaram na definição do
reino e, posteriormente, do ser português. Diante de todas essas medidas tomadas pelo rei, a fim de
promover o seu reino, podemos dizer que o seu coração não pertencia à Rainha, nem aos amores
literários ou aos reais. O coração de Dom Dinis pertencia a Portugal.
Referências Bibliográficas
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O CULTO MARIANO NA PENINSULA IBÉRICA: RELIGIÃO E RELIGIOSIDADE
CATÓLICA NO LIVRO DO ROSARIO DE NOSSA SENHORA DE NICOLAU DIAZ121
André Rocha Cordeiro
O presente trabalho é resultado das primeiras reflexões de pesquisas do projeto de Iniciação
Científica (PIC) sob o título: “O culto mariano na Península Ibérica: religião e religiosidade católica no
‘Livro do Rosário de Nossa Senhora’ de Nicolau Diaz”. A obra supracitada foi publicada em Lisboa,
no ano de 1573, e neste trabalho, nos auxiliará a compreender a importância e a função do culto
mariano na Península Ibérica, entre os séculos XV e XVI, principalmente como a figura de Mariafoi
utilizada para combater os que se opunham aos dogmas católicos. Neste sentido, a Igreja reformulou e
criou novas festas litúrgicas marianas e novas denominações à Virgem tais como Nossa Senhora das
Neves, Nossa Senhora Rainha e Nossa Senhora das Dores, entre outras. Além disso, edificou
santuários e criou ordens religiosas sua memória, tais como a Congregação Mariana do Colégio
Romano, fundada por Juan Leunis (1532-1584), e incorporou no discurso oficial da Igreja a figura de
Maria, como instrumentos de fé e de salvação.
A figura de Maria está intimamente ligada ao próprio início da Religião Cristã, uma vez que
sua imagem e apresentada no Novo Testamento como a Mãe e discípula de Jesus no primeiro milagre
das Bodas de Caná, posteriormente em meio às primeiras comunidades cristãs, relacionadas aos
grandes momentos da história da Salvação.
Teólogos e Mariólogos discutem sobre a personalidade Maria nas Escrituras do Novo
Testamento, bem como a sua relação com as mulheres do Antigo Testamento, especialmente Eva, a
primeira Mulher. Maria é essencialmente a “Mãe de Deus”, e sua relação com Cristo é defendida pela
Mariologia como uma “relação axial”. Segundo Boff (2004, p. 15), “se Jesus é o centro do
Cristianismo, Maria é central, por ser a pessoa que está mais próxima deste centro”.
121
Artigo desenvolvido a partir dos resultados de Projeto de Iniciação Científica (PIC) do Departamento de História (DHI)
da Universidade Estadual de Maringá (UEM) sob a orientação do professor José Carlos Gimenez.
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Graduando de Licenciatura em História pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). E-mail:
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Ludimila Campos afirma que a veneração a Maria ganhou destaque entre as primeiras
comunidades cristãs, pois a ela foram transferidos muitos dos sentimentos devocional da cultura grecoromana, especialmente da adoração “às deusas da fertilidade e mães da terra” (CAMPOS, 2012, p.20).
Ainda segundo Ludmila Campos esta atitude fez com que o número de adeptos da nova religião
aumentasse e reconhecesseem Maria características das divindades que antes cultuavam. Prova desta
religiosidade e assimilação mariana pode ser comprovada nos “muitos templos, títulos e na iconografia
clássica, dedicados anteriormente às deusas greco-romanas e orientais” (CAMPOS, 2012, p. 21).
Apesar dessa transferência, a doutrina cristã sempre defendeu que “Maria não é deusa: ela foi criada.
Se Ela está integrada na Trindade é por participação graciosa e não por exigência da natureza” (BOFF,
2004, p. 20-21).
Outra fonte de propagação da figura de Maria pode ser encontrada no Proto-Evangelho
Apócrifo de Tiago, também chamado de Evangelho de Maria que, segundo Klein (2012, p. 82-83),
“procura explicar a virgindade de Maria”. Neste aspecto, tanto a relação de Maria com as Deusas da
antiguidade como o Proto-Evangelho demonstram que o hibridismo religioso-cultural, responsável
pelo culto a Virgem, surgiu da devoção popular e não da cúpula eclesiástica.
No século III, durante a perseguição dos cristãos pelo Império Romano, Maria aparece como
uma figura que ampara os devotos da nova religião. Deste período, temos a oração Sub tuum
praesidium, a mais antiga que se conhece (BOFF, 2004; CAMPOS, 2012), e que foi descoberta em
1917, no Egito. Escrita em grego, essa oração em forma de súplica à Virgem, é atribuída a um eremita
egípcio, e nela é solicitando a sua proteção contra os romanos. Nela temos o testemunho de que “Maria
já então era “venerada sob o titulo de Mãe de Deus” (Theotókos)”.
O desenvolvimento da devoção a Maria entre os séculos II e V provocou uma série de conflitos
no interior da Igreja. Para muitos o culto a virgem ultrapassava os limites litúrgicos e doutrinais da
instituição, o que fez com que o imperador bizantino Teodósio II, por meio de uma circular,
convocasse todos os bispos metropolitas do Oriente e do Ocidente, para o Concílio de Éfeso, em 431.
Neste concilio o principal debate se deu sobre natureza de Jesus e a maternidade de Maria. Nestório,
bispo de Constantinopla, defendia que Maria deveria ser chamada apenas de “Genitora de Jesus”, ou
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seja, Maria seria mãe apenas da natureza humana de Jesus e não da sua divindade. Por sua vez o bispo
de Alexandria, Cirilo, afirmava ser Maria a verdadeira “Genitora de Deus”. (FISCHER-WOLLPERT,
1999).
Segundo Llorca, no concilio de Éfeso que Maria foi declarada como a Theotokos (grego:
Θεοτόκος), modelo de obediência cristã, antítese da desobediência de Eva, primeira mulher. Desta
forma, a figura de Maria surge como portadora de esperança e possibilidade de remissão dos erros da
humanidade cometidos pela primeira mulher (LLORCA, 2009).
Em memória àquele Concilio e as suas resoluções, o pontífice Sisto III (390-440, papa desde
432), fez aplicar mosaicos como motivos marianos no Arco do Triunfo da Igreja de Santa Maria
Maior122, em Roma (FISCHER-WOLLPERT, 1999). Segundo Boff, “consta-se que o culto popular a
Maria “cresceu maravilhosamente” na história, “mormente desde o Concílio de Éfeso”(BOFF,2004, p.
116).
Segundo Llorca (2009) expressão dessa veneração a Virgem se apresenta na introdução de
múltiplas festas litúrgicas em sua honra. Testemunhos indicam que as primeiras festas à virgem estão
relacionadas com o próprio ciclo vital de Maria.
Ainda segundo Llorca (2009) a festa da Apresentação de Jesus, ou festa da Candelária,
celebrada a partir do século IV, em 14 de fevereiro, é a primeira mariana com data fixa. Já a procissão
das candeias foi introduzida apenas no século VII. Outra festa importante é a festa da Anunciação de
Maria, que surgiu na Ásia Menor e se generalizou pelo Oriente a partir do século VI. A festa da Morte
e Assunção de Maria, comemorada em 15 de agosto, tem sua primeira noticia na região de Jerusalém
no século V e, dessa região, se espalhou para o Oriente e Ocidente. No século VII, em Roma, fixou-se
o dia 8 de setembro como a data de celebração do Nascimento de Maria.
Na Hispânia a festa da Anunciação de Anjo Gabriel é a principal celebração mariana, e é
realizada no dia 25 de março. No entanto, as festividades à Maria se diversificaram, e a que recebeu
maiores denominações foi a festa da Assunção, também chamada de festa de Santa Maria Alta, Santa
122
A Basílica de Santa Maria Maior, é uma das Igrejas Papais de Roma (ou basílicas patriarcais). É considerada, pelos
cristãos, a Igreja do Ocidente mais antiga dedicada a Virgem Maria.
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Maria a Grande, Santa Maria Maior, Senhora dos Anjos, Senhora da Glória e dos Altos Céus,
realizadas em 15 de agosto (Gomes: 2000, p. 378).
Ainda segundo Gomes (2000), desde o século X, foram registradas nos calendários litúrgicos
de Portugal, as festas da Purificação (2 de Fevereiro), da Natividade (8 de Setembro) e da Expectação
(18 de Dezembro). Já no século XIV foram generalizadas as festas da Visitação (2 de Julho), da
Senhora das Neves (5 de Agosto) e da Imaculada Conceição (8 de Dezembro). Importante ressaltar,
que por ser um culto antigo, a devoção a Virgem no território Ibérico se propagou entre populares,
clero, nobreza e realeza.
Outra forma de expressar a devoção a Virgem se fez por meio da edificação de Santuários e
Basílicas. Cidades, serranias e promotórios marítimos lhe foram dedicados, além de tornar-se
“padroeira de todas as catedrais e muitas igrejas matrizes do reino” (GOMES, 2000, p.378).
Segundo Georges Duby (1993), Maria tomara lugar de destaque nas expressões artísticas, que
as devoções laicas do século XII lhe concederam. Assim, teólogos admitiram que a iconografia de
Maria se juntasse com a de Jesus no centro das catedrais. Para Gomes (2000), primeiro representaram
Maria associada ao seu filho: na infância, com o Menino Jesus no colo, ou com Jesus em sua morte,
junto à Cruz.
Na primeira metade do século XIII, os artistas passaram a representam a Virgem em sua Glória,
e não mais em dor ou ternura. Porém nos século XIV e XV ocorreu uma evolução na representação das
imagens Maria, ao apresentá-la de forma individualizada, “as conhecidas configurações da Virgem
Coroada” (GOMES, 2000, p. 379). A iconografia da “coroação de Maria na catedral celebra, de facto,
solenemente, a soberania da Igreja romana” (DUBY, 1993, p.156), e esta temática, bem como a de
Maria, a direita de Cristo em realeza, espalharam-se em um período que a própria Igreja reivindicava a
soberania universal.
Miranda (2011) ao estudar as peregrinações à Nuestra Señora de Guadalupe, diz que no final do
século XIV o culto à Virgem começou a ganhar destaque em Portugal.
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Já no final do século XIV, Maria não é somente mãe do Senhor, a Virgem
Santa, mas também é a rainha que está no céu vestida de glória, ao lado de seu
filho e que por Ele tem poder sobre os homens. Mas Nossa Senhora não é uma
rainha distante, ao contrário, coopera na redenção dos homens e por isso se faz
intercessora, medianeira, advogada. E mais do que isso, sendo a mãe dos
homens e assim é consoladora, rica em ternura e justiça, aquela que
compreende o sofrimento e a dor. Maria é o vinculo entre os homens e Deus, a
devoção a ele enternece os corações, aproxima os homens. (MIRANDA, 1995,
p. 94, apud MIRANDA, 2011, p. 19).
Com o surgimento das ordens mendicantes franciscanas e dominicanas no século XIII houve
uma alteração na espiritualidade cristã, principalmente por aproximar, ainda mais, a figura de Jesus e
de Maria. Esta alteração é percebida por meio das representações marianas, de “Inspiradora Virgen
Madre de Cristo, a Madre Misericordiosa Del Pueblo, Mediadora delante de Cristo y Soberana Reina
de Cielos y Tierra que protege a sus fieles.” (JOHNSON, 2002, p. 378).
Penteado (1995) destaca a importância das ordens religiosas em difundir expressões e cultos
religiosos, em especial os dominicanos que espalharam o culto a Nossa Senhora do Rosário. Embora
não existam dados seguros de quando esta prática surgiu, acredita-se que o Saltério de Maria composto
por 150 recitações marianas tenha surgido por volta do século XIII, porém a forma que atualmente
conhecemos apareceu apenas no século XV, difundido pelos Dominicanos.
Segundo Miranda, no século XV a figura de Maria-mãe ganhou destaque entre os portugueses,
chegando inclusive a ultrapassar a figura de São Tiago Apóstolo, ao atrair um grande contingente de
peregrinos que excediam o culto oficial promovido pela Igreja portuguesa. [...] “peregrinavam por
santuários dedicados à Maria além das fronteiras lusas, narrativas com a vida e milagres da Virgem,
além da expansão de novas devoções” (MIRANDA, 2011, p. 30).
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Segundo Susana Goulart Costa, o culto mariano também contribuiu para dar um novo impulso
de renovação cristã no confronto com o Protestantismo, notadamente quando a Igreja promoveu
algumas devoções por meio de confrarias e associações. Para esta autora,
[...] os organismos de carácter associativista como as Misericórdias e as
Confrarias que, também anteriores a Trento, foram um veículo da expressão
reformista ao dinamizarem as devoções ao Rosário, às Almas do Purgatório e
ao Santíssimo Sacramento; as peregrinações; os cultos; as devoções; as festas e
muitas outras temáticas são vertentes tentaculares que, com maior ou menor
êxito, se tornaram um espelho da actividade reformadora. (COSTA, 2009, p.
239).
Penteado (1995) complementa esta análise aoinformar que as confrarias surgidas do Santíssimo
Sacramento, das Almas do Purgatório e de Nossa Senhora do Rosário - devoções promovidas pela
Igreja na sequência do Concilio de Trento - não se tratavam de cultos novos, criados na Idade
Moderna, mas eram antigas devoções propagadas pela Igreja e que foram retomadas ou reforçadas.
Ainda que a devoção ao rosário já existisse entre as confrarias, ela cresceu no Pontificado de Pio V
(1504-1572, papa desde 1566), após a vitória de Leopanto, ocorrida contra os turcos no dia 7 outubro
de 1571 (PENTEADO, 1995). A vitória contra os turcos foi vista por aquele pontífice como uma
providência da Virgem do Rosário. Com isso ele solicitou que nessa data realizasse, em Roma, a
recitação em sua honra. No entanto, esta data foi fixada no calendário cristão pelo papa Gregório XIII
(1502-1585, papa desde 1572), e o seu culto foi estendido para toda a cristandade por Clemente X, isso
no século XVII (GARCIA-VILLOSLADA; LLORCA, 2010, p. 1082).
Para reforçar, ainda mais, o culto mariano, a Igreja se empenhou em confirmar as devoções e
festas à virgem. Congregações Religiosas, que buscam vivenciar o exemplo de Maria, surgiram neste
mesmo período, que segundo Garcia-Villoslada, foi “el jesuita flamenco Juan Leunis estableció en el
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Colegio Romano de Roma la primera Congregación mariana” no ano de 1563 (GARCIAVILLOSLADA, 2009).
Os discursos utilizados pela Igreja frente ao protestantismo também podem ser encontrados no
Livro de Nicolau Diaz, que além de revelar uma fala institucionalizada, propõe a recitação cotidiana
do rosário da Virgem, bem como a forma de adesão a Confraria do Rosário de Nossa Senhora.
Apesar das pesquisas já realizadas, os conhecimentos biográficos sobre Nicolau Diaz não são
suficientes, e derivam de poucas informações publicadas como textos introdutórios nas diferentes
edições do Livro do Rosário de Nossa Senhora. João Francisco Marques (2000, p. 420), assim como
Antônio José de Almeida (2006, p. 281) não confirmam a data do seu nascimento, mas apontam o ano
1525, porém afirmam que ele faleceu em 1596.
Sabe-se, porém, que ele era Padre Mestre em Santa Teologia e pertencia a Ordem de São
Domingos (Dominicanos ou Ordem dos Pregadores). Para Marques ele era “Devoto da Paixão e da
Virgem, apostado em conciliar a oração vocal e mental, a piedade interior e as práticas exteriores de
devoção escreveu o Livro do Rosário de Nossa Senhora (1573) e o Tratado da Paixão de Cristo Nosso
Senhor (1580)” (2000, p. 420).
Segundo Antônio José de Almeida, O Livro do Rosário de Nossa Senhora, de autoria do Frei
Nicolau Diaz, teve sua primeira edição no ano de 1573 na cidade de Lisboa, e saiu dos prelos de
Francisco Correia. Além desta primeira edição outras três foram publicadas nos anos de 1576,1582 e
1583, todas divulgadas em vida do autor, que faleceu em 1596 (ALMEIDA, p. 281).
Segundo Pedro Penteado, o Livro do Rosário de Nossa Senhora, foi uma das obras de maior
difusão no início da Época Moderna, em Portugal. Na obra se encontra uma coletânea com as
indulgencias e milagres da Virgem do Rosário, e faz uma referencia especialmente a terceira e quarta
parte da obra, que são dedicadas à temática (1995, p.35).
O Livro do Rosário de Nossa Senhora possui quatro partes distintas, assim intituladas: Livro
Primeiro – Princípio do Rosário, Livro Segundo dos Mistérios do Rosário, Livro Terceiro dos Perdões
e Livro Quarto dos Milagres.
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A primeira parte ou primeiro livro, o autor expõe a origem da devoção à Virgem do Rosário a
partir da ótica dominicana e da missão de Domingos de Guzmán, pai e fundador da ordem. O autor
expõe ainda, as diferentes denominações desta forma de piedade (Rosário, Coroa de Nossa Senhora e
Saltério de Nossa Senhora), os benefícios concedidos aos que compartilham desta devoção, e que
integram a Confraria do Rosário. Um milagre também é apresentado de início deste livro, embora na
obra o autor dedique uma parte exclusiva aos milagres do Rosário. Ao final deste primeiro Livro o
autor faz a exposição das duas principais orações do Rosário: Pater Noster e Ave Maria, assim como a
significação de cada palavra ou frase que o devoto realiza em oração.
Na segunda parte da obra, Livro dos Mistérios do Rosário, o autor propõe ao leitor uma forma
de se rezar e meditar os mistérios de Cristo, combinado oração vocal, pela recitação dos mistérios e
das orações, e oração mental, por meio da reflexão da própria oração realizada, e pelo mistério a ser
contemplado. Em um primeiro momento o autor ensina ao leitor como recitar o rosário.
Posteriormente, ele expõe os três mistérios: Dos Gozos de Maria, das Dores e da Glória123.
Na terceira parte da obra, Livro terceiro dos Perdões, o autor apresenta os benefícios e perdões
concedidos aos devotos do rosário. Além disso, o livro traz as bulas e concessões dos pontífices Leão
X, Clemente VII, Paulo III, Julio III, Pio IV, Pio V, Urbano IV, João XXII e Gregório XIII.
É importante ressaltar, como afirma Penteado, neste período a utilização de perdões e
benefícios para a promoção de piedades e devoções, contra o protestantismo, traduzia-se em uma
“estratégia eclesiástica que apostava na promoção de indulgências e na criação da sua necessidade para
desenvolver o culto do Rosário, e aumentar a apetência pela criação destas associações” (PENTEADO,
p.35)
A quarta e última parte da obra, intitulada Livro quarto dos Milagres, Nicolau Diaz apresenta
alguns milagres concedidos aos fieis e devotos do Rosário de Nossa Senhora. São cerca de cinquenta
milagres, além de instruções de como se inscrever como confrade na confraria do Rosário, Benção das
rosas e do rosário e instruções para a Festa do Rosário.
123
Em 16 de outubro de 2002, o Papa João Paulo II, publicou sua carta apostólica Rosarium Virginis Mariae, na qual
decretou o ano do Rosário (de outubro de 2002 à outubro de 2003). Propôs também cinco novos mistérios, denominados
Mistérios da Luz ou Luminosos, para meditação do rosário. Assim o rosário passou a ser composto por quatro terços.
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Por meio do Livro do Rosário, de Nicolau Diaz, publicado no na segunda metade do século
XVI, é possível percebermos que o culto à Virgem Maria, faz parte de uma longa tradição que
ultrapassou a Idade Média e incorporou e atualizou diferentes temas relacionados ao próprio momento
em foi concebido. Sendo assim, este culto se renovou e se renova para proporcionar um contato
especial com a mãe de Cristo. Ainda que culto tenha surgido das camadas populares, ele foi, de forma
paulatina, incorporado aos grandes temas da Instituição Eclesiástica, ao sustentar a criação de
comunidades associativas, sejam elas leigas ou clericais, criar ordens religiosas, patrocinar obras de
artes e arquiteturas, denominar localidades e dedicar igrejas à Virgem.
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GÊNERO E SANTIDADE FEMININA NOS PROCESSOS DE CANONIZAÇÃO E
INQUISIÇÃO DA PENÍNSULA ITÁLICA NO SÉCULO XIII – UM ESTUDO COMPARADO
DOS CASOS DE SANTA CLARA E SANTA GUGLIELMA
Andréa Reis Ferreira Torres124
O objetivo desta comunicação será apresentar o projeto de pesquisa que será desenvolvido ao
longo do curso de mestrado, no Programa de Pós-Graduação em História Comparada da UFRJ, sob a
linha de pesquisa Poder e Discurso. Nossa filiação a tal linha de pesquisa se dá por nossa opção por
lidar com formas discursivas acerca da santidade feminina medieval, tal como representadas nos
processos, inquisitorial e de canonização, bem como por nossa utilização do arcabouço teórico dos
Estudos de Gênero, seguindo as reflexões da autora Joan Scott, que envolvem uma reelaboração do
conceito de poder como processos discursivos geradores de campos sociais de força.
Assim, presente proposta de pesquisa parte de algumas reflexões acerca das possibilidades de
construção da santidade no final da Idade Média Central, por meio dos registros de dois processos
produzidos na Península Itálica no século XIII, o Processo de Canonização de Santa Clara de Assis e
o Processo Inquisitorial Contra os Devotos e as Devotas de Santa Guglielma.
Clara viveu de 1194 a 1253 na cidade de Assis e foi a fundadora do ramo feminino da ordem
dos franciscanos. Pertencia a uma família da baixa nobreza, sendo seu pai um cavaleiro, mas rompeu
seus laços familiares aos 18 anos, fugindo de casa para se juntar a Francisco de Assis e seus frades
menores. Os relatos a respeito de sua vida a caracterizam como alguém que buscou sempre o ideal da
vida evangélica, propondo uma forma de vida para o grupo de religiosas que se formou ao seu redor.
Foi justamente nesse ponto, na sua busca por transportar os ideais franciscanos para a religiosidade
feminina, que se constituiu o maior interesse sobre sua figura. A situação de uma mulher medieval ter
conseguido implementar uma forma de vida tida como original foi ainda mais peculiar porque, no
124
Mestranda do PPGHC/IH/UFRJ. E-mail: [email protected].
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mesmo momento histórico, o papado permitia apenas a entrada para a vida religiosa baixo uma das
ordens já aprovadas.125
O processo de canonização de santa Clara126 consiste em um códice no qual estão registrados
os depoimentos de vinte testemunhas interrogadas no período de 24 a 28 de novembro de 1253,
realizado a partir da instalação do processo pelo bispo Bartolomeu de Espoleto no claustro de São
Damião, a partir da bula Gloriosus Deus, de 18 de outubro do mesmo ano, na qual o papa Inocêncio IV
ordenava ao dito bispo o início dos procedimentos referentes à canonização de Clara (SILVA, M.
2012, p. 1).
Atualmente o processo se encontra na Biblioteca Nacional de Florença e contém a totalidade
das atas preservadas desde fins do medievo. Os historiadores o afirmam por conseguirem encontrar no
manuscrito elementos textuais utilizados na redação de hagiografias produzidas posteriormente a 1254,
como obras de Tomás de Celano e Mariano de Florença (SILVA, M. 2012, p. 3).
Já o processo inquisitorial aqui analisado apresenta as atas contidas no manuscrito A. 227 inf.
da Biblioteca Ambrosiana de Milão, referentes à fase final da repressão eclesiástica contra as devotas e
os devotos de santa Guglielma.127 No manuscrito estão contidos quatro quaderni deimbreviature
(livros de protocolo) do notário milanês Beltramo Salvagno, com os registros dos atos praticados pela
Inquisição, em sua maioria no período que compreende os meses de julho a dezembro de 1300. A
documentação produzida pelo notário Salvagno não apresenta a totalidade dos atos inquisitoriais
125
As informações introdutórias aqui apresentadas sobre Clara foram consultadas em PEDROSO, 1994, p. 3-18.
A edição crítica que estou utilizando foi produzida em 2003, por Giovanni Boccali, padre e religioso franciscano que
dedica seus estudos a escrituras sagradas e fontes franciscanas. O autor possui uma extensa produção relacionada aos
documentos preservados sobre a vida de santa Clara, incluindo estudos críticos, transcrições e traduções de hagiografias
escritas sobre ela e documentos produzidos pela própria santa, além de outras obras tratando de documentos franciscanos
medievais. (BOCCALLI, 2003).
127
A edição crítica que estou utilizando foi publicada em 1999, por Marina Benedetti, professora associada do
Departamento de Estudos Históricos da Universidade de Estudos Milaneses. Suas principais áreas de pesquisa são história
da Igreja medieval e história dos movimentos heréticos e os temas por ela abordados são heresias, inquisição, santidade,
história dos frades Menores e Predicadores, história das mulheres, da cultura e da transmissão e preservação de manuscritos
medievais e do início da Idade Moderna. (BENEDETTI, 1999).
126
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registrados em tais circunstâncias. Outros textos teriam sido produzidos por outro notário, de nome
Maifredo Cera, mas estes não foram transmitidos ou permanecem ainda por ser descobertos.128
O manuscrito teria sido descoberto no século XVII por um monge cartuxo na Lombardia,
(BENEDETTI, 1998b, p. 14), e posteriormente transferido para a Basílica de San Lorenzo, em Milão,
onde foi estudado por Giovanni Pietro Puricelli, e por fim doado a Biblioteca Ambrosina, na mesma
cidade, onde permanece até hoje.
Segundo a maior parte dos historiadores consultados, no que concerne às origens de Guglielma,
ela teria nascido por volta de 1240, na Boêmia e se mudado para Milão no ano de 1260. 129 Nesta
cidade, se estabeleceu em uma propriedade nos arredores da abadia de Chiaravalle e começou a
conquistar fama de santidade ainda em vida, reunindo um grupo bastante heterogêneo de seguidores,
dentre eles irmãs humiliatas, monges e leigos conversos da abadia cisterciense. Após sua morte em
1281, o grupo de devotos, com exceção dos monges, acabou sendo perseguido por heresia, tendo por
principal alegação para isso a crença de que Guglielma seria a encarnação do Espírito Santo.
Nosso objeto de análise nesta pesquisa se concentra na construção da santidade dessas duas
mulheres, a partir dos processos que trazem relatos de suas vidas e ensinamentos.130 Entendendo as
santidades de Clara e Guglielma como concebidas a partir de relações, de poder e interesses,
estabelecidas em diferentes momentos e por diferentes agentes, podemos desenvolver algumas
reflexões. Primeiro, acerca de como os grupos de devotos vivenciavam as experiências religiosas
relacionadas ao culto de suas santas, de maneiras bastante variadas, mesmo dentro de contextos
aparentemente próximos, ou seja, comunidades religiosas da Península Itálica do século XIII. E, ainda
nesse sentido, acerca de como se formaram as imagens das duas santas, uma exaltada e reconhecida
pelo papado e outra renegada e considerada herética por esta instituição.
128
Apesar de sua incompletude, vale ressaltar a importância dos registros de Salvagno, uma vez que são raras as fontes
inquisitoriais preservadas referentes a este recorte espaço-temporal (BENEDETTI, 1999. p. 11).
129
A origem boêmia de Guglielma a faria filha do rei Otakar I e, logo, irmã de santa Inês de Praga. Essa ascendência, no
entanto, é tema de controvérsias entre os historiadores, sobretudo pelo fato de não existirem documentos diretos que a
comprovem (BENEDETTI, 1998, p. 21-29, 141-145, 151).
130
Seguindo o conceito elaborado por Andréia Frazão da Silva, podemos afirmar que em nossa pesquisa entendemos
santidade como “o conjunto de comportamentos, atitudes e qualidades que num determinado lugar e tempo são critérios
para considerar o indivíduo como venerável, seja pelo reconhecimento oficial da Igreja ou não” (SILVA, A., 2002, p. 8).
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Durante o século XIII, o papado instituiu as bases para um projeto de reforma em que o poder
reivindicado pelo pontífice possuía um caráter universal e fundamentado na hierarquia eclesiástica.
Assim, neste período, se consolida a imagem de um papado que “vê o seu papel como o de um grande
suserano entre todos os outros suseranos seculares” (SILVA, A. 1995). Esse projeto de centralização e
de universalização papal teve consequências diretas no controle do reconhecimento da santidade, no
combate às crenças e práticas heréticas e na aceitação de determinadas formas de vida religiosa.
No caso do combate a heresia, utilizando o exemplo de nossa documentação, podemos dizer
que as circunstâncias de produção do processo inquisitorial estão profundamente relacionadas com o
fato de que durante o século XIII houve uma virada na qual a cidade de Milão, até então considerada a
"mais heterodoxa" do cristianismo ocidental, passou a agir segundo a unidade de interesses entre as
autoridades públicas e a hierarquia eclesiástica (MERLO, 1996, p. 543).131
Já no que diz respeito ao desenvolvimento dos processos de reconhecimento da santidade ao
longo do século XIII, para o qual teremos como fonte os registros acerca de santa Clara de Assis,
percebemos que estes também apresentam elementos de um contexto bastante particular de
centralização do poder papal e pode contribuir para um aprofundamento da questão acerca da
institucionalização da santidade da qual os processos de canonização são o maior expoente.
Acerca da ação papal especificamente relacionada ao reconhecimento da santidade de Clara,
um fator chama logo a atenção: a enfática determinação em fixar tal reconhecimento. Inocêncio IV, ao
presidir seus ritos funerais, tinha a intenção de celebrá-los como Ofício das Santas Virgens, uma
solenidade dispensada apenas em honra de santas já reconhecidas. Tendo sido persuadido a evitar essa
atitude pelo Cardeal Rainaldo, futuro Alexandre IV,132 não tardou, após isso, em promover a abertura
do processo de canonização de Clara. Este acabou por se tornar um dos mais rapidamente finalizados
131
Com isso, grupos heréticos dualistas e de pobreza evangélica foram perdendo espaço, mas diferentes formas de
envolvimento religioso não foram impedidas, apenas passaram a sofrer, de forma cada vez mais enfática, a intervenção das
autoridades eclesiásticas, inclusive pelas mãos da Inquisição, instituição recentemente organizada em torno da figura dos
frades predicadores.
132
Pelo teor da Bula de Canonização, documento promulgado ao final do Processo pelo próprio papa Alexandre IV,
podemos supor que não estava em questão para este papa, então cardeal, a validade da santidade de Clara, mas sim a
necessidade imprescindível de seguir as regras que ditavam o reconhecimento da santidade na sua formulação
institucionalizada pelo papado (PEDROSO, 1994, p. 133-137).
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do período, além de ter tido a particularidade de ter uma bula papal como iniciadora do
procedimento.133
Diante do exposto até o momento, podemos afirmar que nossa problemática se concentrará em
responder como a construção da santidade feminina se articulava com o desenvolvimento e a
institucionalização de processos de inquisição e de canonização e como, ainda dentro dessa
construção, se davam as relações de poder entre leigos, religiosos, entidades eclesiásticas locais e o
papado.
Quanto às obras que fazem parte de nosso levantamento acerca do processo de canonização de
Clara nos concentraremos na bibliografia mais recente acerca de nosso objeto, ou seja, a santidade de
Clara tal como representada em seu processo de canonização.
De uma forma geral, os autores tendem a enfatizar bastante a ideia de que o papado tinha
interesse em promover o culto a Clara como modelo de santidade feminina. Catherine Mooney (1999),
argumenta que a maior parte dos historiadores interessados na vida da santa compartilha o ponto de
vista de que ela era a perfeita imagem feminina da santidade medieval. Contudo, critica o fato de tais
autores não terem discutido mais profundamente os significados que tal alegação poderia ter para o
contexto específico em que Clara viveu e em que foram produzidos escritos sobre ela (MOONEY,
1999, p. 53). A autora, em contrapartida, afirma que a tendência a aproximar as imagens de Clara e de
Maria – a única mulher perfeita – foi mais enfatizada pelos autores homens que escreveram sobre ela,
enquanto a própria Clara, em seus escritos, teria feito de sua imagem a mais próxima possível do ideal
da Imitação de Cristo (MOONEY, 1999, p. 75). Com isso, podemos perceber que a autora não faz, ela
mesma, nenhuma reflexão maior a respeito da busca pela desconstrução das dicotomias, proposta pelos
Estudos de Gênero, mostrando apenas que os homens medievais procuravam reafirmar diferenças tidas
como sexuais e que, somente tendo contato com os escritos produzidos pelas próprias mulheres do
período, seria possível analisar de que outro modo as imagens destas poderiam ser construídas
(MOONEY, 1999, p. 77).
133
Esta particularidade está relacionada ao fato de que, normalmente, os pedidos para abertura de processos de canonização
partiam de bispos ou comunidades religiosas fixadas na região onde se desenvolvia o culto ao santo em questão.
(PATTENDEN, 2008, p. 210).
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A categoria gênero também é utilizada no artigo de Duarte, Santos, Dias e Silva, para as quais
“um processo de canonização emana de um poder constituído, um poder masculino, isto é, da
hierarquia eclesiástica católica” (DUARTE et al., 2009, p. 161). Apesar de afirmarem ter desenvolvido
sua análise a partir das reflexões de Scott acerca do gênero, é possível perceber que as autoras
direcionam seu pensamento para as formas dicotômicas criticadas pela teórica, uma vez que afirmam a
existência de poderes e interesses especificamente masculinos enquanto provenientes de homens.
Apesar disso, o artigo se mostra relevante para nossa pesquisa ao fazer uma sistemática interpretação
das virtudes de Clara enfatizadas ora na Bula de Canonização – documento exclusivamente papal –,
ora nos depoimentos das irmãs, mostrando como a Igreja buscou destacar a virgindade como principal
característica da santa, enquanto no segundo suas devotas estavam mais atentas a outras qualidades,
como a prática da oração, da penitência e, sobretudo, da pobreza (DUARTE et al., 2009, p. 170).
Pela mesma linha, mas sem se preocupar em teorizar gênero, segue Miriam Silva (2012) em
seu artigo sobre a canonização de Clara. A autora, ao passo que discute os atributos ressaltados por
devotas e eclesiásticos, apresenta uma análise acerca dos procedimentos formais elaborados para a
oficialização da santidade e os relaciona com textos normativos da época.
Jacques Dalarum, por outro lado, mostra uma preocupação maior em definir o que entende
como gênero e em alinhar suas análises a essa formulação. Para ele, o conceito de gênero “explica
identidades sexuais como uma construção cultural” (DALARUM, 2004, p. 12). Assim, pretende
buscar aproximações entre Clara e a masculinidade, bem como entre Francisco e a feminilidade,
mostrando o que os dois santos apresentam enquanto diferenças quanto à percepção de suas próprias
identidades sexuais. O autor não trata exclusivamente do processo de canonização, no entanto, parecenos pertinente citá-lo pela associação que faz entre Clara e a prática da Imitatio Christi de maneira
mais aprofundada. Ele ressalta que as testemunhas alegam que a santa nunca recebe a comunhão, mas
“partilha do corpo de Cristo”, o que demonstra uma aproximação da divindade muito maior do que
aquela sugerida pela Bula de Canonização ou pelas Legendas (DALARUM, 2004, p. 22).
Miles Pattenden, também buscando aprofundar uma análise a partir dos Estudos de Gênero,
critica o ponto de vista de Mooney acerca oposição binária que a autora cria entre os escritos
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“femininos” de Clara e o teor “masculino” do que escreveram sobre ela (PATTENDEN, 2008, p. 210).
Além disso, o autor faz uma discussão acerca da relação entre o ramo feminino e o masculino da
ordem franciscana, mostrando como os escritos relativos tanto a Clara quanto a Francisco expressam
os interesses papais voltados ao controle das formas de vida religiosa naquele tempo (PATTENDEN,
2008, p. 225).
Os primeiros estudos feitos a partir do Processo inquisitorial contra os devotos e as devotas de
santa Guglielma seguiram os passos de Giovanni Pietro Puricelli, o responsável pela primeira edição
crítica das atas no século XVII. A partir desta obra, se sucederam inúmeros trabalhos que trataram o
processo inquisitorial, mas os autores pareceram mais preocupados com as questões relativas
exclusivamente às origens, ao desenvolvimento e a repressão da heresia guglielmita. 134 Uma vez que
procuraremos enfatizar a questão da santidade de Guglielma, tais obras não serão diretamente
discutidas neste momento.
Uma inovação significativa em relação à santidade de Guglielma no contexto da heresia
aparece em Stephen Wessley, que traz o tema da Imitatio Christi para o seio dos estudos sobre os
guglielmitas. No entanto, não desenvolve a questão e não faz nenhuma associação entre esta prática e o
feminino. Por outro lado, traça como principal ponto de surgimento da heresia uma “reação ao
sacerdócio exclusivamente masculino”, que poderia “oferecer às mulheres entusiastas a justificação
para exercer as funções sacerdotais” (WESSLEY, 1978, p. 293).
Em 1984, a historiadora Caroline W. Bynun, em uma de suas vastas obras acerca da
espiritualidade feminina na Idade Média, menciona o caso de Guglielma, quando afirma que, em
determinadas situações, homens viam em mulheres místicas e profetisas uma via para a renovação da
Igreja (BYNUM, 1991, p. 138). Além disso, o ideal da Imitação de Cristo, tão presente nas formas de
espiritualidade do século XIII trazia implicações diretas para a forma como vinham se desenvolvendo
experiências religiosas associadas a mulheres (BYNUM, 1991, p. 139). A associação entre a
134
Uma discussão bibliográfica para as obras às quais nos referimos aqui pode ser encontrada em Luisa Muraro (1997).
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experiência de sofrimento de Cristo, vista como analogicamente feminina, já que corporal, acabou por
conferir às mulheres uma autoridade e lugar de fala que era geralmente ocupado apenas por homens.135
Em 1985 foram lançados dois trabalhos dedicados à história dos guglielmitas, ambos
preocupados em resgatar os relatos do processo inquisitorial e dar-lhes uma roupagem mais
enfaticamente relacionada a teorias feministas. A obra de Muraro se propõe uma releitura acerca de
tudo que já havia sido produzido sobre Guglielma, trazendo, inclusive uma proposta de tradução de
partes do processo. Para ela, o ponto principal da heresia dos guglielmitas estava nas representações
femininas da santidade, no fato de Guglielma ser Deus e Maifreda sua “vigária” na terra, o que
acabaria com uma hierarquia entre os sexos, pelo poder de uma figura feminina como topo da
elaboração teológica e da organização clerical (MURARO, 1997, p. 29).
Já para Patrizia Costa, a questão central estava na insatisfação, própria do período, com relação
à hierarquia eclesiástica. Ou seja, o que estava em jogo era a afirmação da necessidade de substituição
da Igreja masculina por uma feminina, uma vez que esta poderia ser a via possível de uma renovação
dos valores que permeavam os membros da hierarquia eclesiástica. Alguns outros elementos são
discutidos pela autora para afirmar que a heresia se constituiu pelo grupo de devotos, como um todo,
após a morte de Guglielma e sem uma maior preeminência desta na formulação teológica tal qual
acabou por sofrer com a repressão inquisitorial. A autora chama a atenção para o fato de que embora
em vida Guglielma se vestisse de maneira muito simples, as roupas que os devotos haviam preparado
para seu uso quando de sua ressurreição, eram luxuosamente elaboradas, assim como as que Maifreda
usava durante a celebração da missa, criando uma associação entre santidade e autoridade clerical, aqui
representadas por modelos femininos (COSTA, 1985, p. 108).
Bárbara Newman talvez seja a autora que mais profundamente analisa a questão da relação
entre Guglielma e o Espírito Santo. Ela busca traçar uma linha evolutiva ao longo da Idade Média
acerca das representações da santidade e espiritualidade femininas, utilizando para isso dois modelos
135
A relação entre espiritualidade feminina e o controle do corpo é melhor explicada pela autora na obra Holy Feast and
Holy Fast: the religious significance of food to medieval women. Berkely: University of Carolina Press, 1987. Neste livro,
Bynum argumenta que o jejum e o sofrimento se tornam uma forma de alcançar a divindade e que o sofrimento aqui deixa
de ser visto como uma forma de misoginia internalizada, que previa a punição do corpo luxurioso, e passa a ser vista em
termos de uma relação com a experiência humana de Cristo, esta vista como metaforicamente feminina.
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que, segundo ela, abarcam as transformações ocorridas neste período. O primeiro modelo seria o da
virago, o ideal da virgem viril, ou seja, a mulher que, afastando-se da prática sexual – esta vista como
a mais significativa da corporeidade – e internalizando características masculinas, tornava-se capaz de
se aproximar do divino e alcançar a santidade. Já o segundo modelo, a Mulher-Cristo, teria surgido a
partir do que Newman chama de uma mudança nas “estratégias de gênero”, que levou as mulheres,
sobretudo dos séculos finais da Idade Média, a refletirem ou reproduzirem, através de sua
espiritualidade, um aspecto feminino de Deus, materializado através da Imitação de Cristo
(NEWMAN, 1995, p. 3-4).
Marina Benedetti é a autora com a mais extensa bibliografia acerca de Guglielma e seus
devotos (1998, 1999, 2010) e com a qual esta pesquisa mais dialogará. Ela trabalha com a hipótese de
construções elaboradas pelos inquisidores a partir de alguns depoimentos, que acabaram por delimitar
o movimento guglielmita como herético, uma vez que apenas parte dos devotos realmente acreditava
na associação entre Guglielma e o Espírito Santo. Portanto, para ela existe uma separação entre
Guglielma enquanto santa e enquanto encarnação da terceira pessoa da Trindade (BENEDETTI, 1998,
p. 75). Um dos principais pontos ressaltados pela autora para afirmar que a imagem de Guglilema “ao
negativo”, herege, foi construída pelos inquisidores a partir do depoimento de alguns poucos devotos,
é o fato de ela ter tido sua santidade reconhecida e promovida pelos monges da abadia de Chiaravalle
em Milão (BENEDETTI, 1998, p. 52).
Podemos perceber, após realizar essa discussão bibliográfica, que são muitas as possibilidades
de dialogar com a historiografia acerca de nosso objeto e da nossa problemática. E também que a
originalidade de nossa pesquisa se demonstra pela ausência de obras que comparem os dois
documentos que iremos analisar. Sendo assim, acreditamos não só poder abordar o tema da santidade a
partir de fontes pouco utilizadas para tal, como também contribuir para as múltiplas discussões acerca
das construções da santidade de Clara e Guglielma representadas nos seus respectivos processos.
Quanto aos nossos objetivos, podemos afirma que o principal deles será analisar e comparar as
perspectivas de santidade apresentadas por dois documentos produzidos por autoridades diretamente
ligadas ao papado. Para alcançar este objetivo central, delineamos alguns objetivos secundários: 1.
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Determinar, por meio da comparação, as diferenças e similaridades formais entre os dois tipos de
processo (canonização e inquisição); 2. Discutir as possibilidades de estudar as questões relativas ao
reconhecimento da santidade e de condenação por heresia a partir desses dois documentos; 3.
Confrontar, a partir do uso da categoria gênero, os atributos de santidade conferidos às duas santas ao
longo da documentação, sobretudo aqueles ligados às práticas que a historiografia tende a identificar
como Imitatio Christi; 4. Analisar como se fazia presente nos dois processos o discurso papal acerca
da espiritualidade feminina e o enquadramento das comunidades religiosas e semi-religiosas, aqui
mencionadas, aos padrões institucionais objetivados pela Igreja; 5. E como esse enquadramento se
associou às imagens de santidade de Clara e de Guglielma.
Ao nos defrontarmos com a análise dos documentos referentes à santidade tida como
marcadamente feminina, observamos que seria de grande importância buscar um aporte teórico que
privilegiasse a abordagem dos significados do feminino, enquanto representações que partem de
conflitos ligados às relações de poder envolvidas na construção dos ideais de santidade e dos saberes
referentes à constituição de discursos136 relativos à experiência religiosa, consideradas no contexto
como ortodoxas ou heterodoxas.
Encontramos então campo fértil para nossa análise na área dos Estudos de Gênero, que permite
uma aproximação à percepção de múltiplas visões do feminino, deslocando a questão de uma posição
normativa para o âmbito dos discursos que permeiam o cultural, o social e o político. Essa percepção é
balizada pela compreensão de que o gênero está presente em todos os aspectos da experiência humana
e de que os saberes acerca da diferença sexual são delimitados por mecanismos de produção que
abarcam todas as relações existentes entre os agentes e as instituições de uma determinada sociedade.
A noção de gênero como o saber acerca da diferença sexual é proposta por Joan Scott (1990), autora
que considera a importância de se incorporar o gênero ao discurso historiográfico por ser uma
categoria que permite analisar os elementos mais fundamentais de toda a organização de uma
sociedade.
Utilizamos o conceito, elaborado por Andréia Frazão, de que discurso é “uma construção humana coerente, coletiva,
dinâmica, e organizada sobre uma determinada temática” além de não se limitarem “ao universo das ideias” e não
antecederem “a organização social [...], já que é inseparável dela” (SILVA, 2002, p. 195).
136
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Assim, o uso da categoria gênero em nossa análise tem por principal objetivo permitir a
compreensão acerca de como as diretrizes de gênero interferem na construção dos ideais de santidade e
como esta construção se relaciona com as instituições ligadas ao papado, na Península Itálica do século
XIII. Além disso, nos interessa perceber quais são as formas pelas quais os processos interrogatórios
constroem discursos genderizados sobre as figuras femininas que receberam diferentes tipos de culto.
Seguiremos ainda as ideias de Joan Scott como técnica de leitura do corpus documental. Uma
vez que a autora procura no pós-estruturalismo o aporte teórico e metodológico para suas reflexões, o
método da desconstrução lhe pareceu relevante para análise de textos em que podem ser percebidas
construções de oposições binárias que, dadas como pressupostos naturais, por vezes levam a uma
compreensão superficial e funcionalista de categorias como homem/mulher, igualdade/diferença.137
Assim, nos apropriaremos do método tal qual utilizado por ela, ou seja, para desconstruir ideias de
igualdade e diferença observadas a partir das duas figuras de santidade selecionadas, de Clara e
Guglielma, bem como para tratar do discurso dos devotos, acerca de como vivenciavam a veneração a
elas, como presente nos processos. O que buscamos com isso é superar as dicotomias, como
santa/heresiarca, religiosidade regular/religiosidade leiga, Imitação de Cristo/Imitação de Maria, dentre
outras. Desse modo, nosso método se divide em duas partes principais: identificar as dicotomias e,
posteriormente, analisar, comparativamente, as suas contradições e os seus limites.
A utilização do método comparativo, por sua vez, será aplicada seguindo os pressupostos de
Jürgen Kocka, para quem “comparar em História significa discutir dois ou mais fenômenos históricos
sistematicamente a respeito de suas singularidades e diferenças de modo a se alcançar determinados
objetivos intelectuais” (KOCKA, 2003, p. 39).
Pretendemos, portanto, a partir da utilização dos modelos de comparação propostos por Kocka,
contrapor a forma como os dois processos, inquisitorial e de canonização, constroem a santidade
feminina e articulam os elementos constituintes das relações de poder engendradas em sua produção.
Entendemos que o método pode ser de particular valor para nossa pesquisa, uma vez que permitirá
analisar as particularidades de cada caso de santidade, a partir da proposta definida como descritiva de
137
Scott usa a definição Jacques Derrida de desconstrução como o método que envolve a análise das operações construtoras
de diferença nos textos, ou seja, as formas pelas quais a diferença faz os significados se constituírem (SCOTT, 1994, p. 3).
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Kocka (2003, p. 39), propondo uma abordagem, a partir de cada processo, que não esteja
necessariamente afiliada ao que conhecemos a priori acerca do fenômeno da santidade medieval.
Além disso, a comparação entre fenômenos permite utilizar um processo inquisitorial para
estudar a santidade, no sentido de aprofundar o conhecimento que se tem acerca desta, quando em
comparação com o processo de canonização, definido como o documento por excelência adequado ao
estudo da santidade em seu nível, e em seu desenvolvimento, institucional.
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CENOBITAS E ANACORETAS: APONTAMENTOS SOBRE AS CONFERÊNCIAS XVIII E
XIX DE JOÃO CASSIANO
Bruno Uchoa Borgongino138
Em minha recém-iniciada pesquisa de doutorado, o corpus documentalem análise compreende
os textos escritos pelo monge marselhês João Cassiano a respeito da profissão monástica. Dentre esses
textos, constam as Collationes patrum, mais conhecidas como Conferências, possivelmente redigidas
entre 426 e 428.139 O documento é composto por vinte conferências que, segundo João Cassiano,
seriam transcrições em latim dos ensinamentos proferidos por proeminentes ascetas orientais. Em cada
uma dessas lições era abordado um tema pertinente ao monacato.
Nas conferências XVIII e XIX, atribuídas aos abades Piamun e João respectivamente, foram
enumerados e descritos os tipos existentes de monges, incluindo os cenobitas e os anacoretas. O
objetivo da presente comunicação é realizar alguns apontamentos a respeito da caracterização do
monaquismo cenobítico e anacorético nessa documentação.
As tipologias monásticas
O monaquismo cristão teve início no Egito, no começo do século IV. 140 A hagiografia dedicada
a Antão, escrita por Atanásio de Alexandria, era o referencial de vivência monástica mais difundido
nesse momento. Na narrativa, foram enfatizadas a luta perpetrada pelo protagonista em favor do
138
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História Comparada (PPGHC) da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ) e vinculado ao Programa de Estudos Medievais (PEM). E-mail de contato: [email protected]
139
CHADWICK, Owen. John Cassian. A study in primitive monasticism.London: Cambridge University, 1950. p. 7-50. p.
188-189.
Para essa comunicação, utilizarei a edição bilíngue com o original em latim e tradução em francês, publicada pela coleção
Sources Chrétiennes da Éditions du Cerf. Publicada em três volumes, as conferências XVIII e XIX encontram-se no
terceiro. Cf.: JEAN CASSIEN. Conférences. Paris: Cerf, 1959, 3v. V. 3.
140
Existem diversas tendências interpretativas no que tange à emergência a vida monacal cristã. Para um breve panorama
das propostas de explicação para esse fenômeno histórico, cf.: DUNN, Marilyn. The emergence of monasticism, From the
Deser Fathers to the Early Middle Ages. Malden: Blackwell, 2003. p. 1-2.COLUMBÁS, García M. El monacato primitivo.
Madrid: BAC, 1998.
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isolamento e da renúncia aos bens mundanos.141 Em consonância com tal perspectiva, a documentação
do período apresentava como norte para a conduta dos monges a xeniteia, ou seja, a alienação de si
mesmo necessária para abdicar dos antigos hábitos e para se devotar inteiramente a Deus.142
Provavelmente na década de 320, surgiu na região de Tebas o movimento pacominiano,
centrado na ideia de suporte mútuo entre monges pertencentes a uma mesma comunidade (koinonia).
Posteriormente, Basílio de Cesareia, em textos que vinculavam preceitos monásticos, indicava uma
forma de profissão comunal pautada na caridade, na ascese moderada e na necessidade de
subordinação a um superior.143
No Ocidente,144 autores proeminentes interessaram-se em promover essa modalidade
comunitária de monacato. Maribel Dietz destacou que a dificuldade por parte do clero em controlar
ascetas carismáticos, sobretudo quando itinerantes, resultou na defesa da estabilidade física
(stabilitas)145 – que, além da permanência num espaço determinado, implicava sobretudo na
persistência numa vivência social marcada pela solidariedade.146
Conforme apontado por Daniel Carner, os monges detinham autoridade perante o laicato e
ainda recebiam patronato aristocrático pelos méritos e serviços espirituais, por vezes resultando numa
rivalidade com a elite eclesiástica. Tal conjuntura suscitou debates que concerniam ao lugar e aos
privilégios do monge no âmbito da hierarquia clerical.147
A redação de textos que definiam diferentes categorias de vida monacal estava relacionada com
o esforço clerical de regulamentar as atividades de ascetas. Segundo Dietz, essas tipologias
141
DUNN, Marilyn. Op. Cit. p. 2-11
CARNER, Daniel. “Not of this world”: the invention of monasticism. In: ROUSSEAU, Philip. A companion to Late
Antiquity. Malden: Blackwell, 2009. p. 588-600.
143
DUNN, Marilyn. The emergence of monasticism, From the Deser Fathers to the Early Middle Ages. Malden:
Blackwell, 2003. p. 25-41.
144
O início da difusão do monaquismo no Ocidente ocorreu na segunda metade do século V. Para uma síntese desse
processo, cf.: MARAVAL, Pierre. D´Antoine à Martin: aux origines du monachisme occidental. Vita Latina, n. 172, p. 7282, 2005.
145
DIETZ, M. Wandering monks, virgins and pilgrims. Ascetic travel in Mediterranean world 300-800. University Park:
The Pennsylvania University, 2005. p. 70-71.
146
GOMES, F. J. S. Peregrinatio e stabilitas: monaquismo e cristandade ocidental nos séculos VI a VIII. In: III Encontro
Internacional de Estudos Medievais da ABREM, 2001, Rio de Janeiro. Anais do III Encontro Internacional de Estudos
Medievais da ABREM. Rio de Janeiro: ABREM, 1999, v. 1. p. 391-398.
147
CARNER, Daniel. Wandering, begging monks. Spiritual authority and the promotion of monasticism in Late Antiquity.
Berkeley, Los Angeles, London: University of California, 2002. p. 1-13.
142
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distinguiam classes “boas” e “más” de monges, explicitando assim as formas apropriadas e
inapropriadas de profissão.148
A historiadora apontou como primeira listagem desse gênero o texto anônimo Discussões de
Zaqueu e Apolônio, escrito provavelmente entre 360 e 380, no qual foram apresentados cinco tipos de
monges – dois bons, dois ruins e um intermediário.149 Em 384, Jerônimo propôs uma nova
classificação em sua epístola 22, dirigida à Eustáquia. Nela, apontava a existência três classes no
Egito: os cenobitas, que viviam em comunidades, os anacoretas, que habitavam solitariamente o
deserto, e a classe remnuoth, composta por ascetas inferiores.150
João Cassiano, ao apresentar uma categorização das modalidades monacais, prosseguiu com
um debate iniciado nas Discussões de Zaqueu e Apolônio e na epístola 22. Conforme demonstrarei
adiante, as Conferências vinculavam uma listagem muito próxima da realizada por Jerônimo, porém,
com algumas especificidades.
Tipologia proposta por João Cassiano
Provavelmente entre 378 e 388, João Cassiano habitou num mosteiro em Belém, onde recebeu
sua formação. Após abandonar o local o seu colega Germano, peregrinou pelo Egito e visitou diversas
comunidades do Delta do Nilo. Entre 400 e 403, foi ordenado como diácono em Constantinopla, onde
permaneceu até 403 ou 404 – ocasião de sua deposição do cargo e exílio. Após um período em Roma,
estabeleceu-se em Marselha durante a década de 410.151
Nas Conferências, o monge narrou encontros que teve com destacados ascetas durante seu
itinerário no Oriente. Segundo Augustine Casiday, alguns especialistas avaliaram que o documento
teria apenas valor teológico, uma vez que vinculava diversas imprecisões históricas a respeito do
148
DIETZ, M. Op. Cit. p. 71
Ibidem. p. 75.
150
JEROME. Letter XXII. To Eustochium. In: SCHAFF, P. Jerome: the principal works of St. Jerome. New York:
Christian Literature, 1892. p. 22-41. p. 37.
151
CHADWICK, Owen. John Cassian. A study in primitive monasticism. London: Cambridge University, 1950. p. 7-50.
149
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monaquismo oriental. Criticando tal perspectiva, Casiday sublinhou que o objetivo de João Cassiano
não era estabelecer uma exposição fidedigna dos acontecimentos, mas transmitir uma tradição.152
A conferência XVIII, em que João Cassiano apresentou sua tipologia monástica, foi atribuída
ao abade Piamun. Segundo o relato, o personagem foi encontrado na cidade de Diolcos, localizada
num dos afluentes do rio Nilo. O planejamento do trajeto teria como objetivo justamente conhecer os
ascetas da região, tendo em vista que os mosteiros locais foram fundados pelos antigos.153
João Cassiano iniciou a abordagem do tema em questão no capítulo IV da conferência.
Primeiramente, enumerou classes de monges semelhantes às de Jerônimo: duas boas, o cenobita e o
anacoreta, e uma ruim, os sarabaítas.154 Porém, no capítulo VIII, acrescentou uma quarta, que não
nomeou e qualificou como ruim.155
Cabe frisar que as duas maneiras negativas de profissão monástica eram diametralmente
opostas às duas positivas. Assim, enquanto os sarabaítas consistiam numa forma decadente de
cenobitismo surgida ainda no período apostólico, a quarta espécie apresentava uma vã imagem do
anacoretismo.
Quantos às duas modalidades qualificadas como boas, foram aprofundadas na conferência XIX.
Contendo ensinamentos atribuídos ao abade João, teria ocorrido poucos dias depois do encontro com
Piamun, no mosteiro do abade Paulo. Segundo João Cassiano, João foi um anacoreta que abandonou o
deserto para viver num cenóbio por motivos que são esclarecidos no decorrer da conferência. 156 Por
ocasião dessa narrativa, o autor do documento indicava o ingresso numa comunidade, mais adequado à
maioria do que o ascetismo solitário.
152
CASIDAY, Augustine. Tradition as a governing theme in the writings of John Cassian. Early Medieval Europe, v. 16, n.
2, p. 191-214, 2008. p. 191-192.
153
JEAN CASSIEN. Conférence XVIII: de trois espèces de moines. In: Conférences. Paris: Cerf, 1959, 3v. V. 3. p. 10-36.
p. 11.
154
Ibidem. p. 13-14.
155
Ibidem. p. 21-22.
156
JEAN CASSIEN. Conférence XIX: de la fin du cénobite et de celle de l´ermite. In: Conférences. Paris: Cerf, 1959, 3v.
V. 3. p. 37-55. p. 38-39.
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Portanto, a tipologia delimitada por Cassiano instituía os preceitos a serem adotados tanto
profissão comunitária quanto na solitária, desqualificando os monges que não observassem o prescrito.
Além disso, promovia a classe cenobítica ao avaliá-la como mais apropriada que as demais.
Cenobitas
A epístola 22 de Jerônimo caracterizava os cenobitas como monges que perseveravam numa
comunidade que era unida pela subordinação completa a um superior. 157Os atributos conferidos por
João Cassiano à essa categoria eram os mesmos: “La prémière est celle des cénobites, c´est-à-dire de
ceux qi vivent ensemble dans une communauté, sous le gouvernement et a discrétion d´um
ancien”.158Na conferência XIX, afirmou que a perfeição cenobítica consistia em mortificar e crucificar
todas as suas vontades e jamais pensar no dia de amanhã.159
Contudo, o marselhês distanciou-se de Jerônimo ao apresentar uma origem histórica para o
cenobitismo que o vinculava à sociedade dos primeiros cristãos conforme descrita no Ato dos
Apóstolos:160
La vie cénobitique prit naissance au temps de la prédication apostolique. C´est elle, en effet,
que nous voyons paraître à Jérusalem, dans toute cette multitude de fidèles, dont le livre des
Actes nous trace ce tableau (...).161
157
JEROME. Letter XXII. To Eustochium. In: SCHAFF, P. Jerome: the principal works of St. Jerome.New York:
Christian Literature, 1892. p. 22-41. p. 37.
158
JEAN CASSIEN. Conférence XVIII: de trois espèces de moines. In: Conférences. Paris: Cerf, 1959, 3v. V. 3. p. 10-36.
p. 14.
159
Idem. Conférence XIX: De la fin du cénobite et celle de l´ermite. In: Conférences. Paris: Cerf, 1959, 3v. V. 3. p. 37-55.
p. 46.
160
A menção à sociedade formada pelos apóstolos como referência ao monaquismo já havia sido realizada por autores
precedentes, conforme levantamento realizado por Bartelink. A especificidade dessa alusão na obra de João Cassiano
consiste em defini-la como origem do monacato cristão. Cf.: BARTELINK, G. J. M. Monks: the ascetic movement as a
return to the aetas apostolica. In: HILHORST, A. (ed.). The apostolic age in patristic thought.Leiden, Boston: Brill, 2004.
p. 204-218.
161
JEAN CASSIEN. Op. Cit. p. 15.
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Na perspectiva adotada por João Cassiano, a morte dos apóstolos e o aumento do número de
crentes de fé débil resultaram na perda do fervor primitivo. Dessa forma, tanto os gentis quanto os
líderes da comunidade cristã relaxaram da antiga austeridade.162
Os cenobitas, entretanto, mantinham o mesmo espírito dos primórdios do cristianismo. O
marselhês apontou que esses crentes fugiam das cidades e da companhia daqueles que consideravam
lícito viver negligentemente. Ao se estabelecerem em lugares isolados, formavam cenóbios.163 Assim,
os monges que conviviam com outros praticavam as regras que os apóstolos destinaram a toda a
ecclesia. Somente com o passar do tempo que os cenobitas constituíram um grupo distanciado dos
demais fieis.164
Em oposição ao cenobita, João Cassiano estabeleceu o sarabaita – categoria muito similar ao
remnuoth de Jerônimo. Assim como os cenobitas, viviam conjuntamente em mosteiros, contudo,
apenas tangenciavam a perfeição ascética, sem adotá-la verdadeiramente. João Cassiano acusava-os de
não observarem a disciplina adequada, nem subordinarem-se aos superiores e, por fim, de não
aprenderem a controlar suas vontades.165
Em decorrência da falta de obediência e de uma conduta arbitrária, trabalhavam arduamente,
até mesmo de noite. Ao contrário dos cenobitas, que, segundo João Cassiano, disponibilizavam seus
ganhos à comunidade, os sarabaitas guardavam o dinheiro. Enquanto os cenobitas renunciavam aos
bens e adotavam a pobreza perpétua, os sarabaitas viviam com abundância.166
De acordo com os ensinamentos atribuídos ao abade Piamun, essa categoria ruim de monge
surgiu da decadência no seio da comunidade cristã, tendo como primeiros adeptos Ananias e Safira.167
Na narrativa do Ato dos Apóstolos, o casal descumpriu a norma de doar todos os seus bens no
momento de ingresso na comunidade dos fiéis, escondendo parte do patrimônio dos outros fieis. Por
162
Ibidem. p. 15.
Ibidem. p. 15-16.
De acordo com João Cassiano, “mosteiro” designa somente o lugar onde habitam os monges, enquanto “cenóbio” nomeia
tanto o caráter da profissão quanto o gênero de vida daqueles que vivem em comum sob o mesmo teto. Cf.: JEAN
CASSIEN. Conférence XVIII: de trois espèces de moines. In: Conférences. Paris: Cerf, 1959, 3v. V. 3. p. 10-36. p. 22.
164
Ibidem. p. 16.
165
Ibidem. p. 18-19; 22.
166
Ibidem. p. 20.
167
Ibidem. p. 18.
163
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conta desse delito, ambos foram severamente punidos por Pedro. Na conferência XVIII, a sanção do
apóstolo foi apresentada como um exemplo que deveria impedir outros de cometerem a mesma
infração.168
Isabelle Rosé demonstrou que, entre os séculos II e VIII, os autores cristãos frequentemente
referiam-se a Ananias e Safira no intuito de estabelecer um contra-modelo de vida cristã. No começo
da literatura monástica, interpretava-se o comportamento do casal como uma conservação particular
das suas posses. Na análise da autora, Cassiano empregou o vocabulário e os esquemas argumentativos
dos polemistas anti-heréticos ao estabelecer um ancestral para os adeptos de uma forma errônea de
monaquismo.169
Saliento, ainda, que atribuir aos cenobitas e aos sarabaitas um passado apostólico presente nas
Escrituras contribuía para corroborar suas ponderações sobre a temática. Robert Louis Wilken
classificou as Escrituras como inescapáveis no começo do medievo, tendo em vista que influíam na
maneira de pensar e eram utilizadas para dar forma para a vida comunal e política. 170 Segundo
Lobrichon, os escritos que compunham o conjunto das Escrituras eram considerados como a lei dos
cristãos, um código ou norma intangível marcada por um sinal sagrado.171
Portanto, o recurso às Escrituras na narrativa sobre a origem e desenvolvimento das formas de
monaquismo comunitário consistia, implicitamente, em estabelecer quais categorias de ascetas
estavam em conformidade com os desígnios divinos. Pelas características positivas associadas ao
cenobitismo, prescrevia como diretrizes o controle de si, a obediência a uma liderança e a abdicação do
patrimônio pessoal. Os atributos desqualificados nos sarabaitas indicavam as práticas ascéticas
condenáveis.
Anacoretas
168
Ibidem. p. 18.
ROSSÉ, Isabelle. Ananie et Saphire ou la construction d´um contre-modèle cénobitique (IIe – Xe siècle). Médiévales, n.
55, p. 33-52, 2008. p. 34-38.
170
WILKEN, R. L. The novelty and inescapability of the Bible in Late Antiquity. In: DiTOMMASO, L.; TURCESCU, L.
(eds.). The reception and interpretation of the Bible in Late Antiquity. Leiden, Boston: Brill, 2008. p. 8; 13.
171
LOBRICHON, Guy. Bíblia. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático do Ocidente
Medieval. São Paulo: Edusc, 2002. 2v. V.1, p. 105-117. p. 105; 110.
169
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Jerônimo definiu o anacoretismo como um isolamento no deserto.172 João Cassiano acrescentou
um elemento à caracterização:
La deuxième est celle des anachorètes, qui, après avoir ètè formés aux maisons des cénobites et
s´être rendus parfaits dans la vie ascétique, ont préféré le secret de la solitude.173
O cenobitismo, nesse sentido, consistia num antecedente necessário ao monge antes de
experimentar a solidão ascética. A conferência XVIII, inclusive, alegou que os primeiros anacoretas
surgiram no âmbito das comunidades monásticas, sendo Paulo e Antônio seus primeiros adeptos. O
desejo de afastar-se da sociedade foi associado à busca por desenvolvimento espiritual:
Ce ne fut pas, comme pour certains, la pusillanimité ni le vice de l´impatience, mais le désir
d´um progrès plus sublime et le goût de la divine contemplation, qui leur firent gagner les
secrets de la solitude; bien que, dit-on, le premir [Paulo] ait été contraint de fuir au désert par
les embûches de ceux de as parenté, em um temps de persécution.174
Na conferência XIX, o autor definia o que seria a perfeição anacorética: “la perfection de
l´ermite est d´avoir l´esprit dégagé de toutes les choses terrestres, et de s´unir ainsi avec le Christ,
autant que l´humanie faiblesse em est capable”.175
De acordo com João Cassiano, esses solitários imitavam personagens das Escrituras tais como
João Batista, Elias e Eliseu.176 Enumerou, ainda, passagens das Escrituras que, em sua perspectiva,
aludiam a este tipo de monge – a saber: Epístola aos Hebreus, Jó, Salmos, Lucas, e Atos dos
172
JEROME. Letter XXII. To Eustochium. In: SCHAFF, P. Jerome: the principal works of St. Jerome.New York:
Christian Literature, 1892. p. 22-41. p. 37.
173
JEAN CASSIEN. Conférence XVIII: de trois espèces de moines. In: Conférences. Paris: Cerf, 1959, 3v. V. 3. p. 10-36.
p. 14.
174
JEAN CASSIEN. Conférence XVIII: de trois espèces de moines. In: Conférences. Paris: Cerf, 1959, 3v. V. 3. p. 10-36.
p. 17.
175
Idem. Conférence XIX: De la fin du cénobite et celle de l´ermite. In: Conférences. Paris: Cerf, 1959, 3v. V. 3. p. 37-55.
p. 46.
176
JEAN CASSIEN. Op. Cit. p. 17.
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Apóstolos.177 Por meio da associação entre o anacoretismo e as Escrituras, o marselhês ressaltava o
valor dessa profissão.
Em contraposição aos anacoretas, havia a quarta classe de monge. Na avaliação de João
Cassiano, essa categoria era composta por monges que adotavam uma vã imagem do anacoretismo.
Oriundos de mosteiros, optavam pela reclusão por não conseguirem perseverar na paciência e na
humildade e por desdenhar da submissão aos superiores. Por conta do prestígio dos solitários, essa
categoria má de monges não eram acusados dos vícios, ainda que destituídos de virtude.178
Então, o abandono de um cenóbio para fugir ao deserto não necessariamente era uma opção
legítima, na perspectiva do marselhês. Aludindo ao intento pecaminoso no afastamento do quarto tipo
de monge, a conferência possibilitava o rechaço dos impulsos ascéticos rigorosos por meio de um
critério subjetivo e inverificável – mas preservando o prestígio dos renomados anacoretas antigos. Por
fim, estabelecia o ingresso num mosteiro como etapa necessária no curso da progressão espiritual.
A preferência pelo cenobitismo
Conforme exposto, João Cassiano caracterizava a anacorese como uma iniciativa de cenobitas
que se isolavam em busca de maior perfeição. Ao final da conferência XVIII, o autor alegou que a
lição do abade Piamun estimulou um desejo pré-existente de adotar a profissão anacorética:
A ce discours de l´ábbé Piamun, le désir qui déjà nous avait inspiré de quitter l´école
élémentaire du monastère cénobitique, pour tem,dre au degré supérieur des anachorètes,
s´enflamma encore davantage.179
177
Ibidem. p.17-18. Optei por listar na ordem de citação na conferência em análise.
JEAN CASSIEN. Op. Cit. p. 22.
179
JEAN CASSIEN. Conférence XVIII: de trois espèces de moines. In: Conférences. Paris: Cerf, 1959, 3v. V. 3. p. 10-36.
p. 36.
178
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A despeito da exaltação da modalidade monacal solitária, João Cassiano definiu o cenobitismo
como a forma mais apropriados de vida ascética. No decorrer da conferência XIX, o marselhês
argumento em favor dessa ideia por meio do discurso do abade João.
Conforme relatado no começo do texto, o personagem que ministrou os ensinamentos integrou
uma comunidade monástica por trinta anos, abandonando-a para ir ao deserto. Após duas décadas de
isolamento, retornou ao um cenóbio. Por meio da sua fala, elucidou os motivos que suscitaram a
mudança de profissão: os perigos espirituais presentes no anacoretismo e as vantagens de habitar um
mosteiro.180
O abade João não desqualificou a vida solitária, pelo contrário, enalteceu seus méritos: durante
a reclusão, esquecia-se do fardo do corpo frágil, da percepção sensorial do mundo externo e até mesmo
se havia comido, tamanha dedicação à contemplação às coisas de Deus. Contudo, as constantes visitas
de outros monges diminuíram o fervor pela perfeição e as preocupações materiais eram grandes
entraves à atividade ascética.181
Ainda de acordo com a narrativa, o personagem preferiu aderir novamente ao ideal cenobítico
por nessa profissão a necessidade de atenção às demandas mundanas seriam menores:
Ici, nul besoin de prévoir le travail quotidien; nulle préoccupation de vente ni d´achat; rien de
cette inéluctable nécessité de faire as provision de pain pour l´année; point l´ombre de
sollicitude à l´endroit des choses matérielles, pour parer, soit à ses propres besoins, soit à ceux
de nombreux visiteurs; aucune prétention, enfin, de gloire humanie, qui souille, aux yeux de
Dieu, plus que tout le reste, et rend parfois inutiles même les grands travaux du désert.182
Na avaliação do conferencista, os anacoretas de seu tempo não mantinham a mesma
austeridade dos predecessores. Novamente, João Cassiano utilizou a proposição da decadência
180
Idem. Conférence XIX: De la fin du cénobite et celle de l´ermite. In: Conférences. Paris: Cerf, 1959, 3v. V. 3. p. 37-55.
p. 40.
181
Ibidem. p. 41-42.
182
Ibidem. p. 43.
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histórica dos fiéis, mas sublinhando, dessa vez, a impossibilidade de seus contemporâneos de obterem
os benefícios do isolamento por conta do relaxamento disciplinar.183
Ainda que delimitando o que seria a perfeita profissão no cenobitismo e no anacoretismo, João
Cassiano negava que um homem fosse capaz de concretizá-las – salvo algumas notáveis exceções,
como o abade Moisés, Pafnucio, Macário do Egito e Macário de Alexandria. Em comunidade, o asceta
não alcançaria a pura contemplação; em solidão, não se apartaria das perturbações dos bens materiais.
Entretanto, o fracasso do anacoreta decorreria do ímpeto de sair do cenóbio antes de completar sua
formação e corrigir antigos vícios.184 Assim, mesmo para que possa haver possibilidade de algum
sucesso no deserto, seria indispensável a permanência prévia numa comunidade.
Robert A. Markus, em sua análise das conferências XVIII e XIX, atestou que João Cassiano, ao
propor que o mosteiro constituía no último lugar para uma vivência genuinamente cristã, não se
interessava nas consequências desse argumento para o restante da ecclesia. Seu intento era caracterizar
os monges como uma elite ascética que observava os preceitos apostólicos. Por outro lado, ao
estabelecer o anacoretismo como objetivo quase inatingível, prescreveu o cenobitismo como a única
opção viável de ascetismo.185 Logo, as ponderações de João Cassiano visavam instituir a classe
cenobítica como um grupo superior no âmbito da comunidade cristã, favorecendo sua adoção em
detrimento de outras modalidades.
Considerações finais
Em sua origem, o movimento monástico caracterizava-se pelo isolamento ascético pautado na
abdicação de bens terrenos e de si próprio em favor da contemplação a Deus. O surgimento das
experiências monacais comunitárias possibilitou ao clero promover o monacato numa forma passível
de ser regulamentada e adequadamente inserida na hierarquia eclesiástica.
183
Conférence XIX: De la fin du cénobite et celle de l´ermite. In: Conférences. Paris: Cerf, 1959, 3v. V. 3. p. 37-55. p. 4344.
184
Conférence XIX: De la fin du cénobite et celle de l´ermite. In: Conférences. Paris: Cerf, 1959, 3v. V. 3. p. 37-55. p. 4548.
185
MARKUS, Robert A. O fim do cristianismo antigo. São Paulo: Paulus, 1997. p. 169; 183-184.
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As tipologias monásticas consistiam em listagens que discriminavam as modalidades
aprováveis e reprováveis de vida monacal. Por meio de suas Conferências, João Cassiano participou
desse debate, apresentando uma relação com os dois tipos bons e o tipo ruim de monge previstos por
Jerônimo, porém acrescentando uma quarta classe, que seria desprezível.
Para cada categoria positiva, havia uma negativa diametralmente oposta. A profissão
cenobítica, baseada na partilha comunitária de bens, no controle de si e na sujeição a um superior,
tinha como antagonista os sarabaitas; o anacoretismo, adotado por ascetas que optavam pela solidão
após uma formação num cenóbio, contrapunha-se ao quarto tipo.
João Cassiano associou as origens do monaquismo à sociedade formada pelos primeiros cristão
relatada no Ato dos Apóstolos. Em sua perspectiva, os apóstolos estabeleceram preceitos a serem
seguidos por todos fiéis, mas que, em decorrência da decadência do fervor espiritual, houve um
relaxamento disciplinar. O cenobitismo teria nascido com homens ainda estimulados pelos preceitos
apostólicos formando comunidades para perseverar na antiga austeridade. Dessa forma, as outras
modalidade surgiram posteriormente à profissão cenobítica, seja por anseio de aperfeiçoamento ou
pela perda do antigo rigor ascético.
Sem desqualificar completamente o anacoretismo, João Cassiano recomendou a adoção da
modalidade cenobítica. Sendo a perfeição em qualquer tipo de monaquismo possível apenas para
homens excepcionais, aderir a uma comunidade representaria uma possibilidade mais viável à maioria.
Na solidão do deserto, o monge estaria propenso à distração com questões materiais; no cenóbio, tais
preocupações mundanas seriam menos recorrentes. Foi por esse motivo que o abade João, protagonista
da conferência XIX, abandonou o anacoretismo para regressar ao cenobitismo.
As ponderações do marselhês concernentes às classes monásticas relacionavam-se com um
esforço, presente ao longo das Conferências, de ressaltar os méritos dos ascetas e caracterizá-los como
uma elite espiritual, mesmo que isso significasse a depreciação dos demais fiéis. Ao fim, a categoria
favorecida na documentação analisada foi a cenobítica – a mais suscetível à normalização.
Fontes e Referências Bibliográficas
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O QUE VEMOS É O QUE LEMOS? UMA ANÁLISE DO BEATO DE LIÉBANA –
COMENTÁRIO A APOCALIPSE DE SÃO JOÃO / CÓDICE DE FERNANDO I E D. SANCHA
(1047)
Carolina Akie Ochiai Seixas Lima186
A temática que cerca esta pesquisa de doutorado relaciona-se à obra Commentarium in
Apocalypsin (Comentário ao Apocalipse de São João), texto escrito pelo monge hispânico, Beato de
Liébana187, em 1047, na região de Astúrias a pedido de Fernando I – Rei de Leão. O interesse por esta
obra se explica pelo fato de que tal códice ganhou notada importância na Alta Idade Média e durante
os séculos seguintes por suas fortes descrições e atraentes simbolismos relacionados ao Apocalipse.
Sua linguagem apocalíptica vinculada ao Anticristo foi muito importante para os escritos patrísticos e
186
Doutoranda em História pelo PPGHis-UFMT (Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de
Mato Grosso) e pesquisadora do Vivarium – Laboratório de Estudos da Antiguidade e do Medievo. Contato:
[email protected]
187
Em ARAGUZ e MARTÍNEZ temos, Beato de Liébana (? – 798), também conhecido como São Beato (nome que
aparece no calendário litúrgico de santos), um santo católico cuja festividade se celebra no dia 19 de fevereiro, foi monge
do Monastério de São Martinho de Turieno (atual mosteiro de Santo Toríbio de Liébana), viveu na comarca cântabra
lebaniega na segunda metade do século VIII. Posteriormente foi abade do Monastério de Valcavado e também conselheiro
e confessor da Rainha Adosinda (filha de Afonso I, das Astúrias, foi rainha consorte das Astúrias até o ano 783), sua obra
mais conhecida é o ‘Commentarium in Apcalypsin’, texto enormemente difundido durante a Alta Idade Média devido ao
seu enfoque de alcance teológico, político e geográfico, foi escrito para explicar o mais complexo e hermético texto bíblico
‘Apocalipse’. Isto faz do texto do Beato um texto de capital importância por sua riqueza iconográfica e por seu valor
testemunhal. Pouco se conhece da vida deste lebaniego, seu nome real era Beato (masculino de Beatriz), foi um grande
defensor da ortodoxia católica. Ao Beato devemos também o hino ‘O Dei Verbum’ , de onde pela primeira vez na história
se apresenta o apóstolo Santiago como evangelizador da Espanha, criando uma devoção que facilitou o descobrimento de
sua tumba por Teodomiro, bispo de Iria Flavia . Este acontecimento foi fundamental para unir os cristãos do norte em uma
causa comum, a do nascimento de um sentimento nacional, a partir desse momento a Hispânia começou a ser conhecida em
âmbito internacional altomedieval. Provavelmente, o Beato foi o primeiro escritor espanhol influente neste contexto
europeu medieval.
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para as homilias no medievo188. Para a realização deste estudo será usado o Códice de Fernando I e D.
Sancha, datado de 1047, fac-símile disponível na Biblioteca Nacional da Espanha, em formato
digital189. Como tema desta pesquisa, trabalharemos com os aspectos mais característicos desta obra,
que naturalmente cercam a interpretação de suas iluminuras e seu conteúdo textual. Nesse sentido,
analisaremos os elementos léxicos que se relacionam ao apocalipse, tais como: Cristo entronado e
cercado pelos quatro cavaleiros evangelistas, o Juízo Final, o inferno, imagens diabólicas, dragões no
abismo e bestas com sete cabeças, elementos esses muito recorrentes no imaginário medieval em
correlação imediata com seu texto, escrito em latim cristão, em escritura visigótica190.
“El Beato de Liébana”, como é conhecido pelos estudiosos na Europa, foi um monge espanhol
que faleceu no ano de 798, escreveu o manuscrito intitulado “Comentário ao Apocalipse”. Durante os
séculos posteriores (IX, X, XI), esta obra foi copiada e ilustrada em estilo moçárabe. As cópias,
conhecidas como “Beatos”, se destacam pelo valor artístico de suas iluminuras, estas, por sua vez, se
caracterizam pelos fortes contrastes de cores e pela disposição em que se encontram no decorrer da
obra, ora em posições horizontais, ora em diferentes ângulos, hoje se conservam mais de 20 cópias
188
Estudos que fazem menção à importância do Beato: ROCHA, F. L. Arianos entre inimicos ecclesiae catholicae: um
afrontamento no comentarii liber apocalipses de Apringio de Beja – séc. VI, 2009.; PARMEGIANI, R. F. Leituras
imagéticas do apocalypse na alta idade média, 2011.; PARMEGIANI, R. F. O maravilhoso apocalíptico: representações do
inferno e de seres diabólicos nas iluminuras dos Beatos, 2011.; PARMEGIANI, R. F. Leituras medievais do apocalipse:
comentário ao Beato de Liébana, 2009.; KLEIN, P. K. Beatus a Liébana: In Apocalypsin Commentarius, Manchester, The
John Rylands University Library, Latin MS 8, 1990.; COSTA, R. Beato de Lébana (730-785) e uma iluminura dos quarto
cavaleiros do apocalipse de São João: análise iconográfica, 2001.; IRUSTA, M e ANGUIS, F. El Beato de Liébana, 2013.;
Factum arte: The digital recording: Beato de Liébana – Commentary on the Apocalypse of Sait John, 2005.; JIMÉNEZ, M.
J. Beato de Liébana, profeta del milenio, 2009. ARAGUZ, A. M. e MARTÍNEZ, Las visions apocalipticas de Beato de
Liébana, 2003.; ECHEGARAY, J. G. Beato de Liébana y los terrores del año 800, 1999. GARCIA, E. R. Beato de Liébana:
um testigo de su tempo (S. VIII), [pdf]; HERNANDEZ, A. C., ECHEGARAY, J. G., FREEMAN, L. G. e SOTO, J. L. C.
Obras completas y complementarias II Documentos de su entorno historico y literario, 2009. POOLE, Kevin. Beatus of
Liébana: Medieval Spain and the Othering of Islam. In: KINANE, Karolyn & RYAN, Michael (ed.). End of Days: Essays
on the Apocalypse from Antiquity to Modernity. Jefferson: MacFarlane & Co., 2009, p. 47-66. WILLIAMS, John. The
Illustrated Beatus: The eleventh and twelfth centuries. Harvey Miller, 2002. CURT, J. The book of revelation: its historical
background and use of traditional mythological ideas, 1973.
189
Este códice está disponível on-line no endereço http://bdh.bne.es/bnesearch/detalle/1806167 ou na
http://www.wdl.org/pt/. Último acesso em:18/agosto/2013.
190
MARCOS, Jose-Juan. Fuentes para Paleografia Latina. Caceres, España: Edição do autor, 2011. Esta obra nos
auxiliará nos estudos referentes à escritura visigótica.
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deste manuscrito191. A vida deste religioso também tem sido estudada, dada a importância de sua obra,
foi abade do monastério de Valcavado e também conselheiro e confessor da Rainha Adosinda.
Defensor da ortodoxia católica, combateu com sua obra literária a teoria do adocionismo, em que
Cristo era um simples homem sobre o qual desceu o Espírito de Deus192.
Os “Comentários ao Apocalipse” se compõem basicamente de um prólogo, um resumo e 12
livros de núcleo da obra. Algumas das cópias incluem também outros textos. As várias edições desta
obra, encontradas em diversas bibliotecas do mundo, foram escritas em épocas diferentes e respondem
a um modelo pictórico que tem origem hispana e norte-africana, suas imagens demonstram influências
carolíngias, islâmicas e irlandesas. Uma característica inovadora para a época, presente na obra, são as
ilustrações que acompanham todo o desenrolar do tema apocalíptico, o que não se via nas Bíblias até
então193.
Lembrando que tanto o texto escrito quanto suas inúmeras iluminuras contribuíram de forma
efetiva para a formação de uma leitura do texto bíblico Apocalipse, último livro do Novo Testamento
da Bíblia Cristã é que nos propomos a realizar durante o doutorado uma análise que trace a relação
mais efetiva entre a imagem e o texto.
O texto escrito pelo Beato marcou profunda e duradouramente a cultura eclesiástica medieval,
notadamente da península Ibérica. Seus ‘Comentários’ ecoaram nas visões sobre a história, na teologia
da salvação e na eclesiologia partilhada por bispos e monges ibéricos por inúmeras gerações. Sua obra
é diretamente constitutiva do que se pode chamar de tradição cristã e seus ecos podem ser encontrados,
inclusive, no Novo Mundo. Em 1995 um grupo de estudiosos194 do Beato publicou uma obra bilíngue,
aliás, única, do ‘Commentarium in Apocalypsin’, uma versão latino-espanhola acompanhada de
estudos introdutórios e notas. Sabendo-se que há apenas esta obra traduzida em espanhol hodierno e
não havendo obra de tal vulto publicada em português, nem na Europa e nem no Brasil é que nos
191
EVANS, Joan. Cluniac Art of the Romanesque Period. Cambridge: Cambridge University Press, 1950; HAMSAY, H.
L. The Manuscripts of the Commentary of Beatus de Liebana on the Apocalypse.Londres: E. Bouillon, 1902.
192
HERNÁNDEZ, A. C. (org.) Beato de Liébana: obras completas y complementarias II...op. cit..
193
KLEIN, Peter K. Beatus a Liébana. InApocalypsin… op. cit.Os ‘beatenses’, como são conhecidos aqueles que estudam
o Beato de Liébana, podem encontrar nesta obra um estudo detalhado das cópias dos manuscritos.
194
HERNANDEZ, A. C., ECHEGARAY, J. G., FREEMAN, L. G. e SOTO, J. L. C. Obras completas.
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propomos a realizar a leitura integral da obra manuscrita em latim e traduzi-la para o português,
apresentando ao final uma versão bilíngue latino-portuguesa que obviamente será a primeira.
E para ilustrar, apresentamos a árvore genealógica do Beato, ou seja, seu stemma, as famílias
em que os vários manuscritos ilustrados podem ser divididos:
De acordo com o stemma apresentado por Klein195 podemos apresentar as seguintes famílias
nas quais se subdividem os manuscritos do Beato nas bibliotecas de vários países:
Família I
1. Madrid, Biblioteca Nacional, Ms. Vtr. 14-1 (olimHh 58); Kingdonof León, ca. 930-950 (=A1).
2. Paris, BilbiothèqueNationale, Ms. Lat. 8878; Saint-Sever (Gascony),between 1028 and 1072 (=
S).
3. El Escorial, Biblioteca delMonasterio, Cod. &.II.5; Castile, second half of the tenth century (=
E).
195
KLEIN, Peter K. Beatus a Liébana. InApocalypsinCommentarius… op. cit.
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4. Madrid, Real Academia de la Historia, Cod. 33; San Millán de la Cogolla (Castile), early and
lat eleventh century (=A2moz and A2rom).
5. Santo Domingo de Silos, ArchivodelMonasterio, Fragm. 4; Northern Spain, late ninth or early
tenth century (= Fc).
6. Burgo de Osma, Museo de la Catedral, Ms. 1; Northern Spain, 1086 (= O).
7. Rome, Biblioteca Cosiniana (Academia dei Lincei), Ms. Lat. 369; Spain, eleventh –
twelfthcentury (= C).
8. Lisbon, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Cod. 160; Lorvao, 1189 (= L).
9. Lean, ArchivoHistorico Provincial, Perg.,Astorga 1; Northern Spain (León?), second half of the
twelfth century (= Le).
10. Paris, BibliothèqueNationale, Ms. Nouv. acq. lat. 1366; Navarre, about 1200 (= N).
Família IIa
1. New York, Pierpont Morgan Library, M. 644; San Miguel de Escalada, (León), ca. 950-960, by
the painter Magius (= M).
2. Valladolid, Biblioteca de laUniversidad, Ms. 433; Kingdomof León (Valcavado7), 970 (= V).
3. Seo de Urgel, Archivo de la Catedral, Cod. 4; Northern Spain (Rioja ?), second half of the tenth
century (= U).
4. Madrid, BibliotecaNacional, Ms. Vitr. 14-2 (olim B.31); San Isidoro at León, 1047, by the
scribe Facundus, for King Fernando I of Castile-León (= J).
[OBS: Este é o manuscrito selecionado para esta pesquisa].
5. London, British Library, Add. MS 11695; Santo Domingo de Silos (Castile), completed 10911109, by the painter Petrus (= D).
Família IIb
1. Madrid, ArchivoHistorico Naciona1, Cad. 1097 B (olimeod. 1240); San Salvador de Tabara
(Kingdom León), completed 968-970, by the painters Magius and Emeterius (= T).
2. Gerona, Museo de la Catedra1, Ms. 7; Kingdom of León (Tabara ?), 975, by the painters
Emeterius and Ende (:::G).
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3. Turin, Biblioteca Nazionale, Ms. I.II.l (olim lat. 93); Catalonia (Ripoll?, Gerona?),
earlytwelfthcentury (= Tu).
4. Manchester, John Hylands University Library, Latin MS 8; Castile, late twelfth century (= R).
5. Madrid, Museo Arqueológico Nacional, Ms. 2 + Paris, Private Collection (olimMarquet de
Vasselot) + Madrid, Biblioteca de laFundaciónZabálburu (olimHeredia Spínola) + Gerona,
Museo Diocesano; from San Pedro de Cardeña (Castile), late twelfthcentury (= Pc).
6. Paris, BibliothèqueNationale, Ms. Nouv. acq. lat. 2290; from San Andrés de Arroyo (Castile),
early thirteenth century (= Ar).
7. New York, Pierpont Morgan Library, M. 429; from Las Huelgas, near Burgos (Castile), 1220
(= H).
8. Mexico City, Archivo General de la Nación, Ilustr. 4852; Castile, mid- thirteenth century (=
Mex).
Partindo desta divisão em famílias e do stemma em que se encontram os manuscritos é que
podemos afirmar que o nosso objeto de pesquisa pertence à família IIa. Esta divisão pode nos fornecer
alguns dados fundamentais, tais como, a localização dos manuscritos e seus iluminadores.
A escolha pelo manuscrito que se encontra na Biblioteca Nacional de Madrid justifica-se pelo
fato de ser esta a mais importante de todas as cópias espalhadas por bibliotecas do mundo inteiro, a sua
importância se dá pelo fato de que este códice é considerado o mais valioso dentre os 35 exemplares
sobreviventes da referida obra. O principal argumento para a escolha do códice em questão (ver
Família IIa – item 4) está relacionado ao fato de que este códice, conhecido por hispanistas como
‘Beato de Fernando I y DoñaSancha’ (também chamado Beato Facundo ou J de Neuss) seria já
plenamente Românico e incluso no período Proto-gótico – séculos XI e XII – considerado o mais
interessante do ponto de vista histórico e artístico196.
Este trabalho objetiva fundamentalmente realizar o estudo e a tradução para o português da
obra ‘Comentário ao Apocalipse de São João’ do Beato de Liébana (1047). Levaremos em
196
ARAGUZ, A. M. e MARTÍNEZ, C. B.
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consideração o fato de que este texto foi um dos textos patrísticos mais utilizados na arte e na
literatura.
Autores espanhóis como ARAGUZ e MARTÍNEZ197 no artigo Las Visiones Apocalipticas de
Beato de Liébana (2003), ECHEGARAY198 em seu artigo Beato de Liébana y los terrores Del año
800 (1999), de forma incansável, tratam das representações imagéticas do Beato como uma das mais
extraordinárias manifestações da arte ocidental. Afirmam estes autores, que os Beatos serviram de
modelo para artistas de todos os tempos, pois suas iluminuras constituíram um dos grandes valores da
arte espanhola, legado que deixou marcas até os nossos dias.
Suscitamos um trabalho além da imagem e para o texto, pretendendo aliar as duas questões
texto-imagem e imagem-texto. Sendo assim, em uma primeira etapa, iniciaremos com a tradução do
latim para o português, afim de que se possa efetivamente realizar a estruturação da primeira versão
bilíngue latim-português do Beato, utilizando, como já foi apresentado, o códice Beato de Fernando I
y DoñaSancha (também chamado Beato Facundo ou J de Neuss) que é o nosso objeto de pesquisa e
nosso corpus.
Seguindo uma segunda etapa onde faremos a seleção dos elementos léxicos que cercam o
universo maravilhoso e imaginário ligado à tradição teológica apocalíptica. O que nos impele ao
trabalho com esta obra do Beato de Liébana é o fato de que, nas palavras de Zumthor 199, “... a Idade
Média – também – uma idade da escritura...”, e é exatamente, a escritura o fato que nos apresenta uma
problemática para a pesquisa, o porquê da relevância de um trabalho realizado no século XI levou
tantos escritores, especialistas, teóricos, historiadores, linguistas e estudiosos afins ao interesse por seu
conteúdo verbal e não-verbal?
De acordo com Jiménez200 em seu artigo, Beato de Liébana, profeta del milenio, o Apocalipse
é um dos livros mais difíceis de entender e mais enigmáticos dos que compõem a Bíblia Cristã, assim,
197
ARAGUZ, A. M.; MARTÍNEZ, C. B. Las Visiones Apocalipticas de Beato de Liébana. Ars Medica. Espanha: Revista
Humanidades, 2003.
198
ECHEGARAY, J. G.Beato de Liébana y los terrores delaño 800, 1999.
199
ZUM THOR, P. A letra e a voz. A “Literatura” Medieval. São Paulo, Companhia das Letras, 1993.
200
JIMÉNEZ, Manuel González. Revista on-line Universidade de Sevilha. (institucional.us.es/revistas/rasbe/37art_8pdf)
“... los Comentarios sobre el Apoclipses, de Beato de Liébana que, desde su redacción em los finales de siglo VIII hasta
bien entrado El siglo XIII fue, junto com las Etimologias de San Isidoro de Sevilla, uno de los libros de mayor circulación
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a obra do Beato segue sendo uma dos monumentos iconográficos românicos mais importantes para a
compreensão do último livro revelado e das leituras que se sucederam a ele até os nossos dias.
Para realização desta pesquisa, utilizaremos como apoio os estudos do medievo que se
relacionem com a história cultural, a cultura eclesiástica e a cultura folclórica na Idade Média e, ainda,
estudos filológicos que versem sobre a questão do latim cristão. Nesse sentido, tomamos o que diz
Elia201, ‘... o próprio latim cristão popularizante, como nota Devoto (Storia dela Linguadi Roma, p.
526) não é ao pé da letra “popularizante” e sim um sistema onde abundam as construções “simples,
realistas, adaptadas a quem, tendo a convicção, deve atentar primeiro nas coisas, depois nas palavras”.’
Assim, o estudo da palavra em relação à imagética e à iconografia nos impelirá à busca dos corpora
desta pesquisa.
Segundo Araguz e Martínez202 as fascinantes visões apocalípticas foram motivos de inspiração
para os monges artistas que ao longo de cinco séculos criaram e recriaram suas escrituras e imagens
que se cristalizaram nas bases da arte medieval e, sobretudo românica. O estilo plano, colorido e
abstrato dessas iluminuras conferiu um ar inusitado de modernidade a estes códices. Os Beatos dos
séculos IX-XI pertencem ao período hispano-visigótico e são os mais interessantes do ponto de vista
histórico e artístico.
Entendendo que os Beatos serviram de modelo para artistas que esculpiram e pintaram murais
de igrejas românicas e posteriormente góticas é que concentraremos nossos esforços nesta pesquisa
para adentrarmos ao mundo beatense. Propomo-nos, então, a estudar o Beato, tanto pelo seu conteúdo
simbólico-doutrinal como pela sua estética muito adequada a mentalidade medieval, ávida de signos
transcendentes e de sua necessidade em evadir-se das tentações terrenas através deste simbolismo
em Europa. Com sin miniaturas. Porque éstas –a pesar de su beleza sobrecogedora y de su indudable influjo sobre la
iconografia romanica y gótica- no se superponen o se sobre imponen al texto, sino que dimanan de él y son criaturas suyas.
(...) La obra de Beato es todo um monumento impressionante de erudición e interpretación.”
201
ELIA, S. Preparação à Linguística Românica. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1979.
202
Araguz, A. M. e Martínez, C. B. Las visiones apocalipticas de Beato de Liébana. In: Ars Medica. Revista de
Humanidades, 2003. (p.55-6) “Los beatos son, pues las copias iluminadas Del Comentario al Apocalipsis de Beato de
Liébana. No ay ninguna outra obra alto medieval hispana ricamente ilustrada como este conjunto de códices, (...) cada
beato suele tener um centenar de miniaturas – y calidad de lãs ilustraciones, que se difundieron ampliamente durante más
de cinco siglos. Sus imágenes dieron lugar, según Humberto Eco, a las mas prodigiosas creaciones iconográficas de toda la
historia del arte occidental.”
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verbal e imagético. A temática das ilustrações que compõem a obra constitui um suporte argumental da
religiosidade do período Românico – séculos XI e XII – incluindo temas que perduraram até a chegada
do Gótico.
A trajetória que cercará esta pesquisa nos levará finalmente a uma terceira etapa, em que será
organizada a edição bilíngue (latim-português) da obra estudada. Nesta etapa do trabalho de
doutorado, daremos preferência pela edição modernizada da obra para que possamos atender aos mais
diversos leitores e pesquisadores interessados no contexto que cerca o tema apocalíptico e, também,
atender um público leitor não especializado.
Levando em consideração tudo o que foi exposto, podemos dizer que a hipótese levantada nesta
pesquisa deva cercar o fato de que até agora os pesquisadores beatenses, mencionados anteriormente,
tem se preocupado incansavelmente em analisar a imagem, ou seja, as iluminuras presentes no Beato
de forma que esta se apresente separadamente do texto em si.
Assim, pergunto por que até o momento nenhum teórico aventou a possibilidade do trabalho
teórico-metodológico através de uma análise da imagem-texto e do texto-imagem do Beato? Pretendo
responder essa indagação lançando mão do que diz Didi-Huberman a respeito da imagem:
Toda continuação do texto, que mereceria um comentário específico, acaba por
desenvolver uma verdadeira dialética da imagem: sugere uma ampla compreensão
histórica na qual a arte religiosa – e seu “realismo metafísico”, como diz Carl
Einstein – sofreria o momento da antítese de um “ceticismo” que dissocia “não
apenas as crenças e as noções abstratas, mas também a visão e a herança visual”
tradicionais...203
Entendemos que para este estudo não há como dissociar a imagem da escrita e ainda, não há
como estudar uma interdependência entre imagem-escrita sem ao menos nos perguntarmos o quê de
203
DIDI-HUBERMAN, G. O que vemos, o que nos olha. 2 ed. São Paulo: Editora 34, 2010.p. 222.
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fato as imagens representam no interior e para o interior desta obra de tão notada relevância para o
mundo cristão.
Reafirmando a importância que daremos ao enfoque interpretativo das imagens para o texto e
para o contexto em que estas nos são apresentadas é que tomamos, novamente, o que diz DidiHuberman:
Uma imagem, ao contrário, é aquilo no qual o Pretérito encontra o Agora num
relâmpago para formar uma constelação. Em outras palavras: a imagem é a dialética
em suspensão (Bildist die DialektikimStillstand). Pois, enquanto a relação do
presente com o passado é puramente temporal, a relação do Pretérito com o Agora é
dialética: não é de natureza temporal, mas de natureza imagética (bildlich). Somente
as imagens dialéticas são imagens autenticamente históricas, isto é, não arcaicas. 204
Neste ponto há a necessidade de frisar a importância da análise da ‘imagem dialética’ de DidiHuberman205 para o nosso trabalho em relação ao olhar sobre a imagética e a iconografia postulado por
Panofsky206. Entendemos que a posição do primeiro nos permitirá traçar a interrelação que aqui nos
propomos fazer, entre imagem-texto e texto-imagem, o que a nosso ver, Panofsky não consegue suprir
através de sua teoria da interpretação da imagem.
Nesse sentido, podemos recorrer ao que dizem Araguz e Matínez:
A partir delsiglo X, las miniaturas de losbeatosconstituyen uno dos los grandes
valores del arte español de todos los tempos. Estas ilustracioneshan adquirido una
modernidadinusitada, dado que únicamente dentro de laactualvaloracióndelsigloXXi
es como mejor se admiran em todo su esplendor.207
204
Idem, p. 182.
DIDI-HUBERMAN, G., p.182
206
PANOFSKY, E.Significado nas artes. São Paulo, 2004.
207
ARAGUZ, A. M.; MARTÍNEZ, C. B. Las Visiones Apocalípticas de Beato de Liébana. Ars Medica. Espanha: Revista
Humanidades, 2003. p. 64.
205
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Na etapa de edição do códice, para elaboração da versão bilíngue (latim-português) serão
utilizados dicionários, manuais de paleografia e obras afins que nos auxiliem na tradução,
compreensão e interpretação da obra datada de 1047, que contém 317 páginas escritas em escritura
visigótica e 98 gravuras iluminadas.
Levando em consideração a importância e a relevância dos estudos do medievo é que nos
interessamos por esta obra que já foi estudada por inúmeros pesquisadores de áreas afins, mas ainda
carece de um estudo que traga aos pesquisadores brasileiros uma análise acerca da relação textoimagem ou imagem-texto no sentido de que os estudos já realizados trazem insuficiências
interpretativas. Por fim, Echegaray, um dos maiores estudiosos do beato, nos lembra que:
la figura de Beato de Liébana, consagrada por ladifusión prodigiosa de su obra y la
beleza extraordinaria de sus códices miniados (los “beatos”), debe ser considerada
como la de uno de lospersonajes de mayortrascendencia em todo el alto Medievo.208
Para exemplificar, apresentamos o fólio 17r do Beato de Líebana (1047), disponível na
Biblioteca Digital Hispânica, Sala Cervantes – Biblioteca Nacional de Madri:
208
ECHEGARAY, J. G. Beato de Liébana
dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/563027.pdf
y
los
terrores
delaño
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800.
1999.
p.
94
In:
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Para seleção e análise dos elementos léxicos e imagéticos relacionados ao Apocalipse presentes
no códice, tomaremos como base o que postula Elia (1979, p.54) no sentido de que “... já não é mais
possível querer traçar os lineamentos dos idiomas neolatinos sem colocar, na base de tais pesquisas, a
contribuição vigorosa trazida pelo Cristianismo.” O autor nos apresenta uma distinção importante que
faz a escola do latim cristão entre “cristianismos diretos” e “cristianismos indiretos”.
Utilizaremos, então, para análise dos termos relacionados ao Apocalipse, o seguinte:
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a) Cristianismos diretos – são as formações vocabulares que designam “coisas cristãs”, em
sentido lato: ideias, usos, instituições, etc.
b) Cristianismos indiretos – aqueles que, por sua natureza, não estão associados ao
Cristianismo, e que, portanto, não estão em relação direta com a doutrina cristã.
Nesse sentido, tomemos as imagens apresentadas no fólio 17r de onde extraímos os seguintes
termos ‘colligitur’; ‘tempus’, ‘mundum’, ‘Ioseph’, ‘Iacob’, ‘Maria’, ‘Anna’ e ‘Deangelo’, vejamos por
exemplo: o primeiro termo significa em latim209 ‘reunir, juntar, colher’ ‘que é colhido’, o segundo
termo significa ‘tempo, momento, instante’, o terceiro termo significa ‘o mundo, o universo, a
criação’, vejamos que estes termos, por sua natureza, não estão ligados ao Cristianismo, portanto
poderíamos considera-los “cristianismos indiretos”, já os nomes próprios e o substantivo ‘Deangelo’
que aparecem aqui estão de alguma forma ligados ao mundo cristão, pois em sentido lato designam
nomes bíblicos recorrentes, portanto podem ser considerados ‘cristianismos diretos”.
Esta pequeníssima amostra de análise pode exemplificar um pouco do que tentaremos fazer
durante a trajetória da nossa pesquisa.
Assim, diz C. Mohrmann (Apud Elia, p. 58)210 “São principalmente esses fatos linguísticos que
nos dão o direito de falar de uma língua especial dos cristãos, já que são os testemunhos irrefutáveis de
uma diferenciação social a operar uma diferenciação linguística. (In Etudes, I, p.33).”
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209
210
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O CASAMENTO NO ISLÃ MEDIEVAL:
UMA BREVE ANÁLISE DOS ENSINAMENTOS DE AL-GHAZALI
Celia Daniele Moreira de Souza211
Compreender o trabalho do teólogo islâmico Al-Ghazali (1058-1111) não é uma tarefa simples.
Primeiramente, o legado de sua obra permanece até hoje como uma fonte de conhecimento acerca da
fé islâmica, arraigando um status tão elevado a ponto de ser utilizado ao lado do Alcorão e da Suna212
como forma de compreensão da “mensagem de Deus”. É dele também a iniciativa mais profícua de se
distanciar o Islã do pensamento filosófico grego, que marcara fortemente a produção intelectual no
período clássico, a ponto desta nunca mais se recuperar após sua crítica. Aliado a esta desaprovação do
neoplatonismo de sua época, Al-Ghazali buscou unir a prática sufi com a charía213 no final de sua
vida, elaborando de maneira inédita uma confluência de tradições opostas no seio do Islã.
Dentre os escritos deixados pelo filósofo persa, temos na obra “O Renascimento das Ciências
Religiosas” (Ihya Ulum Al-din) uma tentativa de sintetizar todo o conhecimento islâmico para
aplicação na vida do crente. Esta extensa obra, que pode ser definida como um “manual de conduta”,
foi dividida em quatro partes temáticas, sendo elas: a Oração (Rubʿ al-ʿibadat), a Vida Cotidiana (Rubʿ
al-ʿadat), a Perdição (Rubʾ al-muhlikat) e a Salvação (Rubʿ al-munjiyat), cada uma contendo dez
capítulos. As duas primeiras partes dedicam-se aos crentes e à sociedade nas suas atividades e
atribuições diárias, enquanto as duas últimas se voltam para o cuidado interior, a alma do crente, os
vícios a se superar e as virtudes a se perseguir.
211
Celia Daniele Moreira de Souza é mestranda do Programa de Pós-Graduação em História Comparada (PPGHC) da
UFRJ. Seu e-mail de contato é [email protected].
212
Literalmente “costume”, “norma”. Tradição certificada que estabelece normas jurídicas e um sistema doutrinal com base
em hadices (relatos da vida dos companheiros do Profeta) e na sira (biografia do Profeta). GÓMEZ GARCÍA, L.
Diccionario de islam e islamismo. Madrid: Espasa, 2009. p.310.
213
Lei islâmica, a via que Deus indicou à humanidade para que faça sua Vontade, cujo cumprimento provê a salvação. A
charía se baseou nas regulações da vida do muçulmano no Corão e no modelo ético que se desprende da vida do profeta
Mohamad nos Hadices (coletânea de passagens da vida do profeta) e na Sira (biografia do profeta). Ainda que a tradição
sustente que a charía emane diretamente de Deus e, portanto, seja eterna e universal, foi por meio da interpretação humana
das fontes primigênias (no Corão há cerca de noventa versículos que tratam de questões legais), que se formularam as leis
civis e morais através da fiqh, a ciência islâmica do Direito. Ibid, p.59.
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O capítulo dois da segunda parte, “O Livro de Etiqueta do Casamento” (Kitab Adab al-nikah),
é a fonte aqui analisada; nele encontram-se as considerações de Al-Ghazali acerca do casamento, e
assim como em toda a obra,combinam-se os elementos da ortodoxia sunita e o misticismo sufi, os
quais demonstram um modelo ideal de muçulmano para a sociedade, visando claramente criticar e
reprimir quaisquer desvios desta fórmula pré-estabelecida.
Neste artigo, pretendo analisar as primeiras impressões a respeito da fonte citada a fim de
contribuir para as pesquisas de minha dissertação de mestrado.
AL-GHAZALI: “O MAIOR MUÇULMANO APÓS O PROFETA”214
Para compreender a dimensão da obra de Al-Ghazali, assim como a abordagem escolhida pelo
autor para estabelecer as regras do casamento dentro da sociedade arabopersa no final do séc. XI, é
necessário conhecer, ainda que brevemente, a sua trajetória enquanto “doutrinador” e também como
“doutrinado” na fé islâmica.
Nascido na Pérsia, Abu Ḥamid Muhammad ibn Muhammad Al-Ghazali teve seu destaque nas
ciências religiosas em Bagdá como professor na madrassa215 de Al-Nizamiyya, a maior do mundo de
então. Apesar do grande êxito, quatro anos depois abandonou seu posto para percorrer o mundo em
busca de iluminação religiosa, quando assim obteve um próximo contato com a tradição sufi e
redefiniu sua forma de pensar a própria religião. Após dois anos nesta jornada, em 1097, começou a
escrever o “Renascimento das Ciências Religiosas” e retornou à Pérsia, onde permaneceu atuando
como professor, porém renunciando à vida de antes e vivendo na pobreza.216
O contexto da época de Al-Ghazali demonstra a motivação de seu discurso conservador. Na sua
jornada espiritual entre 1095 e 1097, em que percorreu as cidades de Damasco, Jerusalém, Hebron,
214
Segundo o arabista Montgomery Watt, Al-Ghazali teria sido aclamado por tal título. Preface. In: Al-Ghazali: The
Muslim Intellectual. London: Kazi, 2003. p. VIII.
215
Lugar onde se estudam as ciências religiosas (ilm), especialmente a jurisprudência islâmica (fiqh). GÓMEZ GARCÍA,
L. Diccionario de islam e islamismo. Madrid: Espasa, 2009. p. 195.
216
GRIFFEL, F. A Life between public and private instruction: Al-Ghazali’s biography. In: Al-Ghazali’s Philosophical
Theology. Edição Kindle, 2009. s/p.
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Meca e Medina, Al-Ghazali certamente tomou conhecimento217 do avanço dos franj218 em sua
Primeira Cruzada a partir de 1096, com os relatos de atos bárbaros por estes perpetrados, até mesmo de
canibalismo.219 O motivo para sucessivas conquistas dos francos fora justificado pelo ambiente de
disputas de poder que permeavam a realidade do Califado Abássida, na época de Al-Ghazali,
subordinado à figura de um Sultão de etnia turca seljúcida. 220 Essa desestruturação política teria
começado além das fronteiras abássidas com o surgimento da Ordem dos Assassinos devido a
contenda de sucessão do Califado Fatímida, expandindo-se para o contexto seljúcida, quando passou a
perseguir e matar todos aqueles que se opusessem ou representassem um perigo à sua seita, como no
caso do vizir Nizam Al-Mulk (idealizador e fundador da madrassa onde Al-Ghazali trabalhou) em
1092, e quem de fato exercia o poder no sultanato.221 A sua morte teria ocasionado o agravamento da
fragmentação política, com a perda de legitimidade dos governantes a tal ponto que até mesmo as
menores cidades se colocavam como emirados independentes, e tomavam suas decisões à revelia do
poder central.222
Em contrapartida ao caos político, a reorganização econômica no período seljúcida se voltou
para a vida religiosa: as madrassas representaram os centros de ortodoxia, uma releitura da tradição
islâmica que vinha como uma resposta generalizante à heterodoxia revolucionária representada
também pela seita ismaelita223 dos Assassinos.224 A produção de Al-Ghazali decerto fora influenciada
pelo contexto vivido, como o mesmo alega que a sua vida pregressa estivera fora do caminho de Deus,
e ele construiria esse caminho fundindo o escolasticismo dos sunitas com a mística dos sufis.225
217
Griffel informa que na autobiografia de Al-Ghazali o mesmo não comenta sobre os cruzados, entretanto em um obra em
persa lhe atribuída, há uma referência da luta para reaver as terras muçulmanas. Ibid, s/p.
218
Como eram chamados os cruzados, uma corruptela de “francos”.
219
MAALOUF, A. Os canibais de Maara. In: As Cruzadas vistas pelos árabes. São Paulo: Brasiliense, 2001. p. 45-47.
220
LEWIS, B. O Eclipse dos árabes. In. Os árabes na História. Lisboa: Editorial Estampa, 1983. p. 152 e 163.
221
LEWIS, B. Op. cit., p. 168.
222
MAALOUF, A. Op. cit., p. 49.
223
Ramo xiita que mescla uma hermenêutica alegórica do Alcorão com teorias neoplatônicas, articulando uma cosmogonia
esotérica e uma concepção cíclica da história da humanidade. GÓMEZ GARCÍA, L. Diccionario de islam e islamismo.
Madrid: Espasa, 2009. p. 171.
224
LEWIS, B. Op. cit., p. 169.
225
GRIFFEL, F. Leaving Baghdad, Traveling in Syria and the Hijaz, and Returning to Khorasan. In: Al-Ghazali’s
Philosophical Theology. Edição Kindle, 2009. s/p.
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A mudança do paradigma da vida de Al-Ghazali é extremamente importante na análise de sua
obra e na própria definição de sua posição nesta sociedade: a que ponto a sua obra estabeleceria uma
continuidade ou uma ruptura com os valores clássicos deixados pela sahaba226?
Em todas as temáticas de “Renascimento”, Al-Ghazali buscou manter um equilíbrio
equidistante entre o misticismo e a ortodoxia, algo que explicaria o seu sucesso, pois isto abrangeria a
maioria dos muçulmanos de ambas as tradições, até mesmo aqueles na intercessão delas (como seria o
caso dele mesmo).227 Além disso, Al-Ghazali se utilizaria de um ponto de vista que, ao invés de
excluir, agruparia as formas de religiosidade, uma vez que sua proposta seria clara no que concerne ao
monoteísmo e a unidade, pois a ideia não seria questionar esse pressuposto, mas para além do “Existe
apenas um Deus” e “Não há outro deus, senão Deus”, verificar todo o universo e tudo que se apresenta
como expressões deste único Deus.228
Essa natureza conciliadora e doutrinante de seu trabalho é percebida no capítulo sobre
casamento, em que o autor busca legitimar um código de conduta que ao mesmo tempo atenda à
tradição e ao misticismo, esta como uma intimidade com o divino. A proposta de Al-Ghazali é criticar
a importância dos assuntos mundanos na vida do crente, lembrando-os que a vida humana é
passageira, devendo estar atentos ao Dia do Juízo, seja para serem recompensados ou punidos.229
Assim, ao construir uma aproximação entre tradições religiosas originalmente dissonantes, AlGhazali quer também se aproximar do que seria a essência do Islã, aquilo que levaria o crente à
salvação. A sua escolha, portanto, possui um caráter paradoxal, por buscar uma origem combinando
elementos novos, algo que se assemelharia, por fim, a sua própria trajetória pessoal.
226
Todos aqueles que tiveram contato com o Profeta e seu testemunho constituiu os hadices, a base da Suna. Ibidem, p.
292.
227
Hanif sugere que o número de seguidores e admiradores de Al-Ghazali se justificaria, porque sua obra abrange a maior
parte das pessoas, sejam elas teólogos ortodoxos ou sufis, ou ainda quem tivesse a fé dividida entre essas duas tradições;
Al-Ghazali abordaria, ao mesmo tempo, aquelas atitudes que seriam constantes no inconsciente religioso islâmico,
expressas tanto na espiritualização quanto no fundamentalismo. HANIF, N. Al-Ghazali (1058-1111). In: Biographical
Encyclopaedia of Sufis: Central Asia and Middle East. New Delphi: Sarup & Sons, 2002. p. 179.
228
O autor usa a palavra “psicologia” como equivalente de “conhecimento de Deus”, para afirmar que Al-Ghazali elabora
uma psicologia em sua obra, entretanto não considerei “confortável” o uso deste termo, e sim sendo melhor a noção de
“proposta” e “abordagem”. BAKHTIAR, L. Introduction. In: Al-Ghazzali on love, longing and contentment. Trad. de Jay
R. Crook. Edição Kindle, 2001. s/p.
229
GRIFFEL, F. Causes and Effects in the Revival of the Religious Sciences. In: Al-Ghazali’s Philosophical Theology.
Edição Kindle, 2009. s/p.
HISTÓRIA, POLÍTICA E PODER NA IDADE MÉDIA
I SEMINÁRIO DE HISTÓRIA MEDIEVAL | III ENCONTRO DA ABREM CENTRO-OESTE | ANAIS | ISSN 2359-0068
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O CASAMENTO: A RELAÇÃO LÍCITA ENTRE HOMEM E MULHER
Em suas primeiras considerações acerca do casamento, Al-Ghazali atesta que o matrimônio é
um suporte da religião e que o objetivo do presente capítulo é explicar suas causas, meios e fins, visto
o quão digno este é para fortalecer o crente frente às investidas do “inimigo de Deus”.230
Passada essa apresentação da “necessidade” do casamento para a fé, o autor inicia uma seção
com as “Vantagens e desvantagens do casamento”, que apenas pelo título é um contrassenso à tradição
islâmica; como casar constitui uma obrigação na vida do muçulmano, a “metade da religião”231
considerar haver desvantagens confere certa “heresia”, por se afastar daquilo pregado pela ortodoxia
islâmica. Tal abordagem das desvantagens, entretanto, possui o caráter integrador da obra de AlGhazali, já que o mesmo tenta justificar e por fim conciliar com a charía, a prática sufi do ascetismo.
Pensando nestas condições, Al-Ghazali ao longo do capítulo enumera didaticamente prós e
contras para o matrimônio, assim como as virtudes que devem ser buscadas em uma esposa e os
defeitos que devem ser execrados, as obrigações do homem para com sua família e os seus direitos
dentro do casamento. Dentro desta perspectiva, Al-Ghazali basicamente forja dois tipos de homens
“bons muçulmanos”: aquele que busca por meio do casamento elevar sua espiritualidade até Deus,
tendo filhos, tratando bem sua família e trabalhando dignamente; e aquele que visa a “amizade de
Deus” (wilayah232) em uma solitária jornada, sem a preocupação em lidar com atividades mundanas. 233
Cabe ressaltar que o ascetismo comentado por Al-Ghazali não significa “falta de sexo”, ou até
mesmo a oposição ao casamento, mas sim uma oposição à constituição de uma família. O desejo
sexual não poderia ser negado ao crente, e o autor mesmo afirma que “quando um homem experimenta
AL-GHAZALI, M. Al-Ghazali’s introduction. In: Marriage and Sexuality in Islam. Trad. de Madelain Farah. Selangor:
Islamic Book Trust, 2012, p. XIX.
231
MAHDI, A. A Família no Islã. Disponível em: http://www.islamreligion.com/pt/articles/390/ Acessado em: 04 Mar
2014.
232
Termo na lexicografia sufi que corresponde a “santidade” ou “amizade de Deus”. JABRE, Le Lexique de Ghazali, p.
278 apud AL-GHAZALI, M. Advantages and disadvantages of marriage. In: Marriage and Sexuality in Islam. Trad. de
Madelain Farah. Selangor: Islamic Book Trust, 2012, p. 5.
233
AL-GHAZALI, M. Op. cit., passim.
230
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uma ereção, ele perde dois terços de sua religião”234. Por tal motivo, ele sugere que o crente, antes da
oração, deveria ter relações sexuais com sua mulher ou concubina, a fim de purificar seu coração e
assim poder experimentar a graça de Deus em sua plenitude. 235 A concubina, a escrava, é a solução
encontrada para aqueles que não possuem condições para se casar ou têm medo de arcar com as
obrigações de uma família, entretanto Al-Ghazali alerta: “A menor destas (transgressões) é se unir a
uma concubina, o que leva a escravizar sua prole; pior que isso é a masturbação; e mais abominável
das três é a fornicação”.236
A união sexual com uma concubina é permitida sob o status de um “casamento”, mas não
havendo obrigação e normas para com a escrava ou quaisquer direitos e deveres dela como esposa,
algo semelhante a um “casamento temporário” (muta)237, porém plenamente permitido no Alcorão238.
A questão para o sufismo, segundo o autor, não é a negação do desejo sexual, mas a libertação do
crente das obrigações maritais que, por uma incompetência pessoal ou do destino, o impeçam de elevar
sua espiritualidade. O ideal é que o homem encontre a Deus por meio do casamento, mas alguns
empecilhos poderiam prejudicá-lo, como a falta de condições financeiras e dignas para sustentar uma
família (que Al-Ghazali denuncia em sua sociedade e que, segundo ele, levava homens bons a
cometerem atos torpes); a incapacidade de ter relações sexuais (logo, gerar progenitura); e a falta de
postura para ser o chefe de uma família (gerando a desobediência e infidelidade da esposa, e falta de
controle de seus bens), o que por fim faria com que fosse melhor não casar para não ser corrompido
pela própria vida.239
Nesse ponto, entre prós e contras ao casamento, a relação entre homem e mulher aparece com
aspectos conflituosos: ao mesmo tempo em que ele fala que a companhia feminina alivia o coração
234
Ibid, p. 32.
Ibidem, p. 35.
236
Ibid, p. 37.
237
É uma prática xiita empregada a todas as mulheres, ainda que estritamente a passagem corânica apenas reconheça a
possibilidade de estabelecer relações maritais de caráter temporário com escravas. GÓMEZ GARCÍA, L. Diccionario de
islam e islamismo. Madrid: Espasa, 2009. p. 236.
238
ALCORÃO. As Mulheres. O Alcorão: Livro Sagrado do Islã. Trad. de Mansour Challita. Rio de Janeiro: BestBolso,
2010. Surata 4, vers. 24.
239
AL-GHAZALI, M. Disadvantages of Marriage. In: Marriage and Sexuality in Islam. Trad. de Madelain Farah.
Selangor: Islamic Book Trust, 2012, p. 52-64.
235
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com seu humor “pouco inteligente”240, traz a alegria dos filhos e livra o homem das obrigações
domésticas, deixando-o livre para se dedicar a Deus241, ela também é vista como a imagem do “mal”,
como um potencial risco de desviar o fiel do caminho de Deus, se o mesmo não estiver preparado para
o casamento e/ou não tiver escolhido uma boa esposa. Al-Ghazali alerta:
(...) esteja a salvo de suas maldades (mulheres); porque sua intriga é enorme, seu mal é
propagador; suas maiores características são as más maneiras e as mentes fracas, e isto não pode ser
corrigido exceto por meio de certa quantidade de gentileza misturada com diplomacia. (tradução
nossa).242
A relação entre homem e mulher seria movida, sobretudo, pela cautela deste para com ela, e a
segurança de um homem que tivesse condições de casar seria buscar uma boa esposa, a fim de que ela
fosse um auxílio à fé, e não uma distração.243 Para cumprir essa proposição, Al-Ghazali dispõe as
qualidades requisitadas para uma mulher, como fé e um bom caráter para manter a família no caminho
da retidão; beleza do rosto para produzir o desejo do marido; um pequeno dote 244 que demonstre sua
humildade; ser capaz de gerar muitos filhos e assim aumentar as chances de ir para o paraíso245;
virgindade para evitar que a mulher possa comparar a qualidade do sexo do marido com de outro
homem, e também para o homem não ter nojo da esposa por ela ter sido tocada intimamente por outro
homem; e boa linhagem, pois isto garantiria que os filhos fossem criados bem.
Ainda que haja uma preocupação com o bem-estar da família, a mulher possui claramente para
o autor um papel secundário no casamento. Ela é fundamental para que haja a família, mas sua posição
é desprovida de mérito, como uma ferramenta a ser utilizada pelo homem para concretizar os desígnios
240
AL-GHAZALI, M. Op. cit, p. 95.
Ibid, p. 160.
242
Ibidem, p. 105.
243
Ibid, p. 57.
244
Segundo a tradição islâmica, o noivo deve pagar o dote à família da esposa, a qual deve estipular o valor pela noiva.
Este dote é utilizado como garantia à esposa em caso de divórcio, para que a mesma não fique desamparada. Al-Ghazali
critica os dotes exacerbados, pois para ele seriam formas de enriquecer às custas do noivo.
245
Ao longo do capítulo, Al-Ghazali faz diversas referências aos filhos mortos ainda na infância como salvo-conduto dos
pais para entrar no paraíso. Ele também faz referência a um filho para abonar cada pecado.
241
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de Deus. Al-Ghazali salienta que o casamento é como a escravidão para a mulher, um pai deve saber a
quem dar a mão de sua filha, pois ela se tornará literalmente escrava de seu marido 246. Suas vontades,
suas escolhas, sua vida seria totalmente subordinada ao marido, e este deveria ser um bom muçulmano
para manter sua família na religião. A impressão passada ao se ler o texto de Al-Ghazali é que se
considera a mulher eternamente infantilizada, sem condições plenas de gerir a própria vida; o amparo
masculino não seria apenas uma consequência ao se formar uma família, mas uma necessidade, para
que a mulher não desvirtuasse seu caminho e o daqueles que a cercam.
Todavia, para manter a mulher sob sua jurisdição, o homem deve seguir regras de boa
convivência. Al-Ghazali lista os deveres masculinos para com sua família: a harmonia conjugal deve
ser buscada, o autor pede que o marido tenha piedade das limitações mentais das mulheres e tolere
suas ofensas, pois Deus o recompensará por ser indulgente com as maneiras más delas; para isso ele
sugere outro dever, o de namorar, brincar e divertir sua esposa para alegrar o coração dela, pois Deus
detestaria o homem áspero e arrogante com sua mulher. A postura de autoridade do homem seria
fundamental ainda para essa harmonia, como ele diz: “Miserável é o homem que é escravo da sua
esposa”247 e “Na verdade, quem obedecer aos caprichos de sua esposa, será lançado por Deus ao
fogo”248. Deste modo, a postura firme do homem é necessária para a retidão da família, pois as boas
ações só poderiam vir dele.
O ciúme masculino, ainda, aparece como algo gerado pelas atitudes da mulher, pois o homem
deveria ser moderado em seu ciúme, não suspeitar sem fundamento da sua esposa. Para tanto, a mulher
não poderia dar “motivos”, não saindo na rua e não sendo vista por ninguém, a fim de resguardar o
coração do marido de desconfianças. A compensação por isso seria a forma como o marido cuidaria do
bem-estar da esposa e de sua família: ainda que seja recomendada moderação ao gastar, o homem
deveria dar todo o apoio financeiro à sua mulher, como assevera o autor: “o mais favorecido dentre vós
é aquele que é o mais generoso com sua esposa”249.O homem deveria zelar ainda pela igualdade entre
246
AL-GHAZALI, M. Conditions of the woman. In: Marriage and Sexuality in Islam. Trad. de Madelain Farah. Selangor:
Islamic Book Trust, 2012, p. 91-92.
247
Ibid, p. 103.
248
Idem.
249
AL-GHAZALI, M. Cohabitation, marriage and obligations. In: Marriage and Sexuality in Islam. Trad. de Madelain
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as esposas, e caso não fosse possível ser justo com todas, se divorciar. O autor cita o caso de
Mohammad e de sua esposa inegavelmente preferida Aisha, e que mesmo a amando mais, passava
igualmente uma noite com cada cônjuge; entretanto, uma delas ficou velha e feia, não mais
despertando o desejo do Profeta, logo ele decidira se divorciar dela; a mesma, como solução, pediu que
ele a mantivesse como esposa e em troca ela daria sua noite para que ele passasse com Aisha. Como
foi um acordo entre ambos, o Profeta pode passar duas noites com Aisha, permanecendo justo com
todas as esposas.250
Outras recomendações são também dadas no tratamento à esposa visando à concórdia no lar, e
a questão sexual é algo a ser destacada. Al-Ghazali literalmente descreve as etapas de como deve
ocorrer a relação sexual, começando por uma recitação do Alcorão, em seguida elencando regras
quanto à posição, não devendo o crente deitar com o rosto em direção a Meca; o homem deveria estar
por cima da mulher e cobrir seu corpo e o dela com um tecido (não se pode ficar nu como “um burro
selvagem”, segundo o autor). A mulher ainda seria orientada a ficar quieta e, no fim, o homem deveria
louvar a Deus na ejaculação.251 Essas orientações mostram-se muito diferentes dos diversos tratados a
respeito do sexo elaborados no Islã clássico,252 em que o desfrutar do prazer sexual em sua magnitude
seria uma forma de praticar a fé, sendo até mesmo um dos deleites a ser vivenciado no paraíso (no
exemplo recorrente das huris253). Para Al-Ghazali a única finalidade do sexo seria a procriação, o que
não exclui o prazer, mas este não poderia ser o objetivo principal, pois seria considerado uma forma de
Farah. Selangor: Islamic Book Trust, 2012, p. 114.
250
Aisha, por sinal, é frequentemente citada pelo autor para exemplificar a harmonia no lar e as qualidades de uma esposa
ideal. Ibid, p. 120.
251
Todas as descrições deste parágrafo estão referenciadas nesta nota. Ibid, p. 123-125.
252
No período pré-moderno, havia uma ciência a respeito do sexo chamada ilm al-Bah, sob cujos princípios se produziram
diversas obras, semelhante ao que Michel Foucault definiu como ars erotica. FRANKE, P. Before Scientia Sexualis in
Islamic Culture: ‘Ilm al-Bah between Erotology, Medicine and
Pornography.
Disponível
em:
http://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/13504630.2012.652843#.UjPDqMYjK3o Acessado em: 2 Set. 2013.
253
Virgens companheiras dos crentes no paraíso.
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“politeísmo oculto”254. Ele cita a necessidade de satisfazer sexualmente a mulher, e mais ainda a
preparação para o sexo com “preliminares”, e relata um hadiz:255
O Profeta disse, “Não permitais que nenhum de vós vá ao encontro de vossa esposa como um
animal, permitais que haja um emissário entre eles”, ele foi questionado, “O que é esse emissário, oh
mensageiro de Deus?”, ele disse, “O beijo e as palavras doces”.256 (tradução nossa)
Dessa forma, Al-Ghazali estabelece toda uma conduta para que o casamento seja um meio de
concordância com a religião, e fortaleça a ligação entre homem e Deus, tal como pregada pelo sufismo
como um caminho de elevação espiritual.257 Ao lado da premissa do casamento, o autor recorre à
possibilidade do ascetismo como condição para manter a retidão diante de Deus, e não apenas como
um ato egoísta frente à sociedade, pois melhor seria evitar a geração de uma prole do que tê-la e
condená-la ao inferno.258 As atitudes do homem muçulmano o tempo todo refletem a sociedade como
um todo, e este é um aspecto do Islã, o “homem singular” e o “homem coletivo” são duas realidades
que se inter-relacionam, pois tudo é realizado em vista da coletividade e ao mesmo tempo possuindo
um valor para o indivíduo.259
AS FUNDAMENTAÇÕES DE AL-GHAZALI
Quanto à forma como Al-Ghazali aborda o casamento, é importante salientar os fundamentos
religiosos que utiliza para justificar suas passagens. Primeiramente, a massiva maioria dos exemplos é
fundamentada por hadices, e neste caso em alguns há um problema de legitimidade. Para explicar tal
problema, é necessário compreender como os hadices são considerados fidedignos dentro da tradição
islâmica.
254
Ele afirma ainda que o sêmen deve apenas ser despejado no útero, pois o mesmo pode não ser uma alma, mas é uma
alma a existir. AL-GHAZALI, M. Cohabitation, marriage and obligations. In: Marriage and Sexuality in Islam. Trad. de
Madelain Farah. Selangor: Islamic Book Trust, 2012, p. 129 e 134.
255
Breves relatos que se referem a palavras, gestos e comportamentos de Mohamad em diversas circunstâncias. GÓMEZ
GARCÍA, L. Op. cit., p. 125.
256
AL-GHAZALI, M. Op. cit.,p. 125.
257
SCHUON, F. A Via. In: Para compreender o Islã. Rio de Janeiro: Nova Era, 2006. p. 240.
258
AL-GHAZALI, M. Op. cit., p. 53.
259
SCHUON, F. Op. cit., p. 36-37.
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Os hadices são relatos orais de histórias vivenciadas pelos companheiros do Profeta ao seu
lado, e que posteriormente foram compilados por autor e verificados conforme sua veracidade. O
atestado de autenticidade de um hadiz é determinado por sua cadeia de transmissões (isnad), isto é,
remontando a relação de geração em geração do autor do hadizcom o Profeta. Com base nessa
metodologia, existem três tipos qualitativos de hadices, conforme a comprovação de sua autenticidade:
a) Hadiz Sahih: seria um hadiz forte, o qual possui o isnad completo, com todos os autores
encadeados precisos e considerados justos.
b) Hadiz Hassan: seria um hadiz intermediário, o qual possui as características acima do
Sahih, entretanto com uma precisão incerta em suas informações.
c) Hadiz Daif: é aquele que possui um encadeamento frágil, sendo considerado fraco.
Dentro desta classificação, temos quinze tipologias que justificam a fragilidade do
hadiz, as quais basicamente refletem alguma falta (caráter duvidoso do transmissor,
invenções de transmissores) ou omissão do encadeamento de autores.260
Baseando-se nestas informações, verificamos os hadicesutilizados por Al-Ghazali, sendo no
total 192 hadices levantados, 41 tidos como sahih, 83 como hassan e 58 como daif, além de 9 serem de
origem desconhecida (não foram encontradas quaisquer referências sobre os mesmos) e um
considerado puramente falso. Al-Ghazali cita o Alcorão 50 vezes como legitimação de seu código de
conduta.261
A maioria dos hadices considerada fraca relaciona-se com a doutrina sufi, como quanto à
possibilidade do homem não casar pelo risco da família destruir a sua integridade espiritual, o corpo
ser corrompido pelos órgãos sexuais, filhos e mulher como razão da ruína financeira do homem,
quantidade de filhos como salvo-conduto de pecados (logo um homem sem pecados não precisaria ter
260
ISBELLE, M. Sunnah: breve histórico. Disponível em: http://sbmrj.org.br/biblioteca/acervo-virtual/sunnah-brevehistorico. Acessado em: 03/03/2014.
261
O levantamento dos hadices foi realizada pelo teólogo al-Hafith al-Iraqi (1325–1403) e destacada na trad. de Madelain
Farah aqui utilizada. Para este artigo, apenas verifiquei a quantidade de hadices presentes e separei os mesmos quanto à
autenticidade e autor.
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filhos); alguns também se relacionam a uma visão misógina, simbolizando a mulher a imagem do mal
encarnado, impedida de sair à rua ou incitando a obediência cega da esposa ao marido,262 entre outros.
Ainda assim, muitos hadices com caráter misógino são considerados genuínos na tradição
islâmica, como a descrição da mulher como só interessada por “joias e roupas”, sendo mentalmente
inferior ao homem e mais suscetível ao “pecado”. Essas passagens não são apenas relatos de homens,
mas atribuídas a mulheres, como Umm Habibah, seguidora do Profeta e Aisha, esposa dele, esta última
possuindo 17 hadices citados ao longo do capítulo.
O uso destes hadices reflete claramente aquilo que Al-Ghazali quer contestar e, sobretudo,
derrotar, recorrendo no texto a referências religiosas (ainda que algumas frágeis), a fim de evocar uma
superioridade fundadora por meio da religião. É sabido, no entanto, que os hadices devem ser lidos de
acordo com seu contexto, visto que a sua aplicabilidade, por mais que pareça “genérica”, corresponde
a uma realidade histórica, e não deveria ser utilizada em qualquer circunstância.263
Mais que ser fidedigno à essência da religião, o texto de Al-Ghazali foca em combater as
práticas sociais e culturais em voga que, para ele, estavam em desacordo com os princípios do Islã. Em
muitos momentos no texto, o autor critica as “inovações” na conduta do casamento, que para ele
refletem a infidelidade do crente à fé islâmica.264 A força de seu código de conduta nitidamente advém
destas referências religiosas, mas também (senão principalmente) por sua notoriedade enquanto jurista
em Bagdá e, posteriormente, na Pérsia.
CONCLUSÃO
O estudo dos ensinamentos de Al-Ghazali a respeito do casamento lícito propicia uma visão
pluralizada da sociedade islâmica arabopersa do século XI: de um lado a doutrina sufi, com seu
esoterismo, misticismo e a interiorização da fé, do outro a doutrina sunita, com a estruturação política
262
AL-GHAZALI, M. Advantages and disadvantages of marriage. In: Marriage and Sexuality in Islam. Trad. de Madelain
Farah. Selangor: Islamic Book Trust, 2012, p. 48.
263
SAEED, A. Parallel texts from the Qu’ran and dealing with hadith. In: Reading the Qu’ran in the twenty-fist century: a
contextualist approach. Abingdon: Routledge, 2014, p. 81.
264
Ibid, p. 34, 48, 149, 155.
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e social da religião islâmica. Dentre elas, o embate entre o novo e o antigo, as críticas de Al-Ghazali
para conter o que ele considera “inovações” desviantes do Islã trazidas por outros grupos étnicos; a
questão social delicada, em que o governo era dirigido pelos seljúcidas, uma dinastia turca com
exército igualmente turco e sunita, a qual se encontrava em constante disputa de poder, sob a
supervisão de um Califado Abássida sem mais o esplendor de outrora; e ainda o início da Primeira
Cruzada. Do outro lado, estava também outra dinastia, o califado fatímida, que representava não só um
forte oponente no âmbito político à Bagdá, como também religioso, por ser xiita, e a dissidência da
Ordem dos Assassinos.265
Assim, ler o manual de Al-Ghazali é encarar uma tentativa de sistematizar uma tradição, de
fazê-la presente na vida em sociedade, que estava em intensa troca cultural. O receio de Al-Ghazali às
“novidades” era justificado por sua realidade social, mas seu próprio apego às tradições sufis
interiorizadas em sua viagem mostra que a busca por uma origem imaculada da religião não pôde
escapar às novas influências que se apresentavam em seu contexto. Como teólogo e jurista, AlGhazali demonstra no texto que temia que a mensagem do Islã se perdesse ou se deturpasse, portanto
seu apelo categórico para a normatização da vida do crente em todos os seus aspectos pretendia mais
que sintetizar a lei de Deus em um prático guia, mas sim tornar a lei palpável e diária no cotidiano dos
muçulmanos de seu tempo.
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DOMINGOS DE GUSMÃO E A CONSTITUIÇÃO DA ORDEM DOS PREGADORES
César Evangelista Fernandes Bressanin266
Introdução
Esta comunicação faz parte da pesquisa em andamento no Mestrado em História da Pontifícia
Universidade Católica de Goiás que busca historicizar a missão dominicana francesa em Porto
Nacional, antigo norte de Goiás, atual estado do Tocantins, no período de 1886 a 1940.
Neste trabalho busca-se conhecer as origens da Ordem Dominicana, reconhecida como a
Ordem dos Pregadores, no século XIII, e o trabalho de seu fundador, Domingos de Gusmão,
canonizado em 1233, pelo Papa Gregório IX.
Objetiva-se aqui entender um pouco sobre o movimento de Domingos de Gusmão e a
institucionalização de sua Ordem nos anos posteriores à fundação e buscar compreender alguns
elementos que foram essenciais à constituição dela, como os estudos e a pregação.
Domingos de Gusmão e a Ordem dos Pregadores
No final do século XII, mais exatamente no início da década de 1170, nas planícies de
Caleruega, uma pequena cidade da região de Castela, na Espanha, nasceu Domingos de Gusmão. Filho
de Joana de Aza e de Félix de Gusmão, descendentes de famílias nobres e importantes daquela
província.
Era uma família católica como a maioria das famílias desta época. Neste berço cristão
Domingos foi educado e encaminhado para a vida eclesiástica. Aos sete anos foi entregue a um seu tio
sacerdote que lhe ministrou a primeira educação. Em sua juventude foi encaminhado pelos pais à
Universidade de Palência onde estudou artes antes de prosseguir os estudos teológicos.
266
Graduado em História (UFT). Mestrando em História pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO).
Técnico em Assuntos Educacionais (UFT). E-mail: [email protected]
HISTÓRIA, POLÍTICA E PODER NA IDADE MÉDIA
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Um episódio interessante durante seus estudos na universidade foi em relação aos livros. Eram
poucos os estudantes que possuíam seus próprios pergaminhos. Como era de família abastada estas
obras não lhe faltavam. Sobreveio à região uma grande crise, uma carestia que castigou o povo, de
forma especial os mais pobres. Contam os biógrafos de Domingos que ele não hesitou em vender seus
preciosos pergaminhos feitos de pele de ovelha para comprar comida e distribuí-la aos pobres.
Justificou sua ação dizendo que não podia estudar sobre peles mortas enquanto tantos pobres morriam
de fome.
Seria este episódio uma antecipação da futura opção de Domingos pela pobreza e pelos pobres
ao longo de sua trajetória eclesiástica e na organização da instituição que fundou? São
questionamentos que a pesquisa em fluxo, objetiva responder.
Concluído os estudos teológicos, que por sinal foram anos intensos de dedicação, Domingos
ordenou-se padre e entrou para a comunidade dos Cônegos Regulares de Osma, na Espanha. Era uma
comunidade de sacerdotes que se dedicavam à vida comunitária, à oração e ajudavam o bispo na tarefa
de pregação e na pastoral da diocese. Este estilo de vida religiosa rígida foi implementada no
catolicismo no século XII num processo de reforma do clero (FORTES, 2011). Aos poucos Domingos,
como membro desta comunidade, tornou-se o braço direito do bispo Diego de Acebes.
Por volta de 1203, o bispo de Osma, Diego de Acebes, empreendeu uma missão diplomática ao
norte da Europa em nome de Affonso, rei de Castela. Nesta empreitada, Diego levou consigo
Domingos. Passando pelo sul da França, depararam-se com a dura realidade do arrefecimento da fé por
parte dos cristãos. Existia na região um grupo de pregadores hereges denominados de ‘Cátaros’267 que
influenciava o povo cristão a afastar-se da comunhão com a Igreja Católica e com seus representantes.
267
Grupo de heréticos que desafiou seriamente os principais dogmas do Cristianismo ortodoxo. Suas crenças derivavam
dos ensinamentos de um mestre religioso do século III na Mesopotâmia chamado Mani, que tentou conciliar o Cristianismo
com antigas idéias persas e interpretou o mundo como o campo de batalha entre as duas poderosas forças do Bem e do Mal,
a vida do espírito e a vida da carne. As atitudes resultantes, vagamente rotuladas de maniqueísmo, levaram à rejeição da
teologia cristã básica referente ao papel de Deus na criação, à humanidade do Cristo na Encarnação e à ressurreição do
corpo. A desconfiança profunda dos cátaros em relação às coisas materiais, consideradas províncias do demônio, fez com
que os mais convictos dentre eles renunciassem à atividade sexual, especialmente quando se tratava de procriar,
praticassem uma forma austera de vegetarianismo e se recusassem a cumprir obrigações seculares, como aquelas que
pediam a formulação de um juramento. Os cátaros entraram na Europa ocidental no começo do século XI, vindos da
Bulgária, e muitos foram condenados à morte e executados, por suas crenças heréticas, em Orléans. O mais famoso grupo
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Como sabemos,
O século XIII foi um período marcado por vários movimentos religiosos. Já no
século anterior começavam a se multiplicar e fortalecer as “seitas heréticas”
que incomodariam os planos homogeneizantes da Igreja. Como reação a esse e
outros fenômenos, o século XIII vê nascer as ordens mendicantes, que tinham
como um de seus principais objetivos expor aos fiéis a fé cristã, tentando, desta
forma, erradicar as interpretações heterodoxas do cristianismo, disseminadas
pelos hereges (FORTES, 2011, p. 23).
Os cristãos católicos dessa região deixavam-se influenciar por este grupo e se convertiam à
pregação dos hereges em virtude da força com que pregavam e pelo exemplo de vida evangélica que
davam. Muita gente se revoltava contra os maus exemplos dos sacerdotes e monges católicos que
pouco tinham de vivência evangélica e acabavam por abraçar o exemplo e o testemunho dos cátaros.
Esta realidade chamou a atenção do bispo de Osma e de Domingos. Eles perceberam que o
modo de vida que os hereges tinham era a causa do sucesso de suas pregações: andavam de dois a dois,
nada levavam consigo, viviam das esmolas que recebiam e conheciam profundamente as Sagradas
Escrituras. Por isso convenciam o povo e confundiam os clérigos que se dispunham discutir com eles.
Assim, Diego e Domingos, ao retornarem da missão diplomática instalaram-se no sul da França
e começaram a pregar contra os hereges. Juntou-se a eles outros clérigos e alguns enviados do Papa, da
Ordem dos Cistercienses, que comandados pelo Bispo de Osma empreitaram um trabalho intenso de
pregação (SAXÔNIA, s/d).
É neste contexto que começa a surgir a Ordem dos Pregadores, conhecida como Ordem
Dominicana. Em meio ao conturbado mundo herege do sul da França, Domingos se destaca como
floresceu no sul da França em fins do século XII, e foram chamados de albigenses por terem seu principal centro em Albi,
no Languedoc. Os adeptos estavam divididos em duas categorias: os perfecti, ou “perfeitos”, e os credentes, ou “crentes”,
que viviam uma vida normal mas se esperava que recebessem a absolvição ou consolamentum em alguma fase da
existência, antes de morrer. Após a absolvição, esperava-se que também esses se sujeitassem à intensa austeridade dos
perfecti (LOYN (Org.), 1997, p. 202-203).
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pregador do evangelho. Foram muitos anos de profícuo trabalho entre os movimentos heréticos. Neste
espaço de tempo, Domingos268 fundou um mosteiro de monjas “para acolher algumas moças nobres,
cujos pais, por motivo de pobreza, as tinham confiado aos hereges que as sustentavam e instruíam”
(SAXÔNIA, s/d, p. 18). Este mosteiro ficava entre Fanjeaux e Montreal, num lugar chamado Prouille,
no sul da França.
Esta fundação foi fundamental para os trabalhos de pregação entre os incrédulos, pois dava
sustento espiritual à empreitada evangelizadora e era referência para os pregadores.
Com o retorno do Bispo Diego para sua diocese de Osma e a volta dos monges cistercienses as
suas terras, Domingos ficou sozinho com alguns companheiros que não o deixaram. Aos poucos outros
homens foram se juntando a Domingos na pregação. Os primeiros a se apresentarem foram de
Tolouse, Pedro de Seila e Tomás.
O primeiro, Frei Pedro, doou a Frei Domingos e seus companheiros as belas e
nobre [sic] casas que possuía em Tolosa e nos arredores de Narbona. É a partir
desse tempo que eles começaram a morar nessas casas de Tolosa e todos os que
estavam em sua companhia começaram a se aprofundar na humildade e adotar
as práticas da vida religiosa (SAXÔNIA, s/d, p. 22).
Estavam lançadas as bases da Ordem dos Pregadores. Como a pregação, a vida apostólica e o
exemplo de Domingos e seus companheiros cresciam e, aos poucos, se tornavam renomados na região,
o Bispo de Toulouse, Fulco, após aprovação do cabido de sua catedral, passou a entregar para
Domingos a sexta parte do dízimo de sua diocese para que pudessem investir em sua jornada, na
alimentação e na aquisição de livros, que serão sempre os baluartes da Ordem.
268
Em relatos anteriores da Ordem Dominicana a fundação deste convento é atribuída ao Bispo de Osma, Diego. A partir
da narração de Humberto de Romans a fundação deste mosteiro é atribuída à Domingos de Gusmão.
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O Bispo Fulco foi um grande colaborador para o nascimento da Ordem. Em 1213 convocou-se
o IV Concilio de Latrão269 que teve início em novembro de 1215. Domingos de Gusmão se juntou ao
Bispo de Toulouse em direção ao Concílio. Domingos aproveitaria a viagem e a oportunidade para
solicitar do Papa Inocêncio III a confirmação e a aprovação de sua fundação, a Ordem dos Pregadores.
Ao final do Concílio, já em 1216, Domingos retornou de Roma com o mosteiro de Prouille sob
a proteção papal e com uma exortação do pontífice: “fazer com que os seguidores de Domingos em
Toulouse, que assumiram o ministério da pregação como missão, adotassem uma regra monástica
conhecida” (FORTES, 2011, p. 22).
Esta era, também, uma exigência que brotou do Concílio e que proibiu a aprovação de novas
regras para novas ordens religiosas.
Já em Toulouse comunicou seus companheiros pregadores dos resultados do encontro com o
Papa. Eles se reuniram e escolheram a Regra de Santo Agostinho incorporando a elas algumas
“questões disciplinares concernentes ao modo de viver” (ROMANS, s/d, p. 17), especialmente em
relação a “alimentação e jejum, leito e vestuário” (SAXÔNIA, s/d, p. 23), “constituindo desta maneira
uma espécie de esquema das Constituições” (FORTES, 2011, p. 33) que futuramente comporão as
Constituições oficiais da Ordem dos Pregadores.
Mas por que escolher as regras de Santo Agostinho? De acordo com Fortes (2011), existe um
grande debate entre os historiadores sobre a adoção desta regra pela Ordem dos Pregadores,
Há aqueles que veem nessa escolha uma atitude “natural”, por ter Domingos
sido até um cônego regular, sendo a regra agostiniana a forma de vida desses
religiosos. Outros querem ver nesta opção uma maneira de o grupo ser
269
Desde os primeiros dias do Império Cristão até o início do século XIV, Latrão foi a principal residência do papa, com
sua igreja no local da atual São João de Latrão. Concílios religiosos eram aí realizados regularmente e, durante o período
de forte monarquia papal nos séculos XII e XIII, aí tiveram também lugar assembleias gerais ou concílios ecumênicos. Seu
objetivo principal era efetuar uma reforma unificadora da Igreja em todo o Ocidente [...] O maior e mais importante, porém,
foi o Quarto Concílio de Latrão, convocado por Inocêncio III em 1216 como o clímax de seu enérgico pontificado; ocupouse não só da reforma moral, mas também de decretos que esclareceram a doutrina e abordaram a supressão da heresia.
(LOYN (Org.), 1997, p. 548).
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prontamente visto como uma Ordem. Ainda outros consideram que a regra de
Agostinho possibilitaria aos pregadores cumprir sua missão como tal, sem abrir
mão de sua posição como cônegos (FORTES, 2011, p. 32).
Era o ano de 1216. Escolhida as regras e principiadas as Constituições de uma nova Ordem
religiosa, a Ordem dos Pregadores, o Bispo de Toulouse entregou para Domingos e seus
companheiros, que eram mais ou menos dezesseis, a Igreja de São Romano. Este lugar funcionou
como o primeiro convento da Ordem.
Neste mesmo ano faleceu o Papa Inocêncio III e foi eleito novo pontífice o Cardeal Cêncio
Savelli, que tomou o nome de Honório III. Domingos temeu que o novo Papa não fosse favorável a
aprovação da Ordem como Inocêncio III que abriu muitos caminhos para os frades pregadores.
No entanto, o novo Papa foi solícito e concedeu a Domingos de Gusmão, sem nenhum tipo de
reservas, a aprovação da Ordem dos Pregadores em 1216 (ROMANS, s/d), mais especificamente a 22
de dezembro de 1216 pela bula Nos atendentes (NEVES et all, 1966, p. 7).
O que fascinava Domingos de Gusmão eram a pregação e uma intensa vida apostólica. Para
Domingos,
Seguir a vita apostolica quer dizer: viver o ideal dos Doze e dos discípulos, tal
como mostra o livro dos Atos, na oração, no culto e na comunhão fraterna;
estar inteiramente disponível e desimpedido para a qualquer momento, a tempo
e contratempo, anunciar a Palavra de Deus no Evangelho; para isso a abraçar o
desprendimento e abraçar a cruz (NEVES et all, 1966, p. 16).
Tudo o que pensava e vivia, Domingos propôs e inculcou a seus seguidores. O evangelismo
proposto por Domingos desde seu primeiro contato com os hereges sempre foi a tônica que buscou
para sua fundação.
Na perspectiva de Domingos de Gusmão,
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Pobreza, despojamento, humildade e obediência, silêncio, mortificação, toda
observância monástica como toda atitude interior só adquirem sentido pleno e
só são indispensáveis na medida em que se põem a serviço da vocação
evangélica que lhe é fundamental: anunciar o evangelho, principalmente aos
pagãos (NEVES et all, 1966, p. 17).
A aprovação de uma Ordem de Pregadores foi para o contexto do século XIII um processo
explícito de renovação pela qual o catolicismo passava. Renovação ocasionada pela crise. Somente aos
bispos e a alguns clérigos era permitido pregar. O alcance do ensinamento do Evangelho era restrito e
o exemplo que a Igreja dava em seu esplendor e riqueza era contraditório com o que ensinava.
A cristandade medieval do século XIII passava por profundas transformações. O mundo feudal
estava em crise. O comércio em desenvolvimento e a sociedade urbana em formação. A Igreja
Católica, apesar de poderosa necessitava de novos instrumentos de evangelização para atingir as novas
classes que surgiam e combater as heresias (SANTOS, 1996).
Domingos “percebeu que a pregação feita única e exclusivamente pelos bispos não era
suficiente” (NEVES et all, 1966, p. 23). O seu projeto de evangelização, “essencialmente apostólico e
missionário” (SANTOS, 1996, p. 9) visava o novo mundo nascente com seus problemas.
A Ordem dos Pregadores, chamada e conhecida popularmente como Ordem Dominicana,
nasceu em meio a um grande ardor apostólico de seu fundador. Seus membros tornaram-se “grandes
missionários evangelizando os quatro cantos do mundo. A ordem Dominicana foi de fato o primeiro
instituto realmente missionário na história da Igreja” (SANTOS, 1996, p. 11).
Os frades pregadores eram “totalmente dedicados à pregação da Palavra de Deus [...] para
erradicar a heresia, extirpar o vício, ensinar a fé e adestrar os homens na boa moral” (HINNEBUSCH,
1982, p. 50-51).
Na visão de Hinnesbusch (1982), Domingos, ao fundar a Ordem dos Pregadores, ofereceu um
amplo serviço à Igreja e aos fiéis, pois abriu os caminhos da pregação para sua Ordem.
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Isto se torna claro quando verificamos a pouca pregação que se fazia e o
escasso material de pregação produzido durante os séculos que vão desde á
época dos grandes padres até os dias de Domingos. Antes da metade do século
XIII a grande escassez de pregadores que levara a fundação da Ordem dos
Pregadores já tinha desaparecido (HINNESBUSCH, 1982, p. 51).
Os caminhos que Domingos abriu para a Pregação se estenderam para outras ordens religiosas
e para outros clérigos que eram proibidos de pregar, pois não eram bispos. O primeiro século da
fundação da ordem testemunhou um florescimento significativo na cristandade medieval e mostrou a
“potencialidade ministerial da vida religiosa” (HINNESBUSCH, 1982, p. 59).
Parafraseando Mandonnet (1938, p.83), podemos afirmar que a Ordem dos Pregadores atendeu
as urgências da cristandade dos primórdios do século XIII e, através da pregação e da vida apostólica,
mesclando práticas religiosas antigas e inovadoras, atenderam as necessidades de um tempo novo.
Domingos de Gusmão vivenciou, especialmente quando esteve pregando aos hereges, a
necessidade de que sua comunidade fosse de homens entregues à vida da pregação, pobres, membros
de uma comunidade fraterna, assíduos à vida de oração e dedicados aos estudos da Palavra de Deus e
da teologia.
Aqui estão os princípios básicos da constituição da Ordem dos Pregadores, os elementos
fundantes permanentes e característicos deste instituto de homens missionários que os diferenciava de
outras ordens nascentes270, também no século XIII.
Rapidamente, a Ordem dos Pregadores se espalhou por toda a Europa. Para Domingos de
Gusmão, “o grão, se guardado em montes, estraga-se; se porém, semeado, frutifica” (BERNARDOT,
1940, p. 21). Como líder de sua fundação “enviou seus frades a toda parte, espalhando-os como
sementes para darem frutos de salvação” (ROMANS, s/d, p. 19). Em 1217 enviou frades para a
Espanha, Paris e Orléans e em 1218 para Bolonha.
270
Como a Ordem Franciscana, fundada por Francisco de Assis, também no século XIII.
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Com conventos em diversas partes, por conselho do Papa Gregório IX, realizou-se em 1220 o
primeiro Capítulo Geral da Ordem dos Pregadores, em Bolonha. Este capítulo foi presidido por
Domingos e “foi o ponto de partida de uma expansão missionária ainda maior” (NEVES at all, 1966,
p. 40). A partir dele os dominicanos atingiram os pagãos Cumanos, lançaram as bases da fundação
dominicana na Dinamarca e na Suécia, nos países do Báltico e da Escandinávia, bem como na Rússia e
em países da Europa Central. “Em meados do século XIII, a Ordem possuía não só alguns conventos,
mas províncias florescentes na Dinamarca, Polônia, Hungria, Grécia e Terra Santa (NEVES et all,
1966. p. 40).
Domingos de Gusmão acompanhou por cinco anos os primeiros passos de sua fundação e a viu
crescer e espalhar-se para diversos lugares, conforme era seu desejo. No entanto, em 1221, após o
segundo capítulo da Ordem, em Bolonha, Domingos adoeceu gravemente e faleceu no dia 06 de
agosto. Sua obra permaneceu e cresceu consideravelmente. Em 2016, a Ordem dos Pregadores
completará oitocentos anos de fundação e de atuação.
Vale aqui destacar dois momentos distintos no primeiro século de existência da Ordem dos
Pregadores. O primeiro momento é o do movimento liderado por Domingos de Gusmão, o processo de
formação, as primeiras inspirações e os sonhos que resultou na fundação de uma Ordem religiosa
aprovada e reconhecida oficialmente pela Igreja Católica.
O segundo momento é o da institucionalização desta Ordem que não acontece com Domingos
de Gusmão, mas com os Mestres Gerais da Ordem que o sucederam, em especial, Jordão da Saxônia
(1222 a 1237) e Humberto de Romans (1254 a 1263).
Para Fortes, “é justamente durante o processo de institucionalização que a identidade [da
Ordem dos Pregadores] se afirma mais fortemente” (FORTES, 2011, p. 69). A ideia foi concebida por
Domingos, no entanto, seus sucessores foram responsáveis em dar uma identidade institucional à
Ordem.
Esta institucionalização da Ordem dos Pregadores foi dando a ela características que a fizeram
reconhecida ao longo dos séculos. Percebe-se, nesta ocasião, um intenso desejo de continuar na Ordem
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as primícias de sua fundação. Elementos presentes na vida de Domingos e dos primeiros frades foram
reforçados no processo de consolidação dessa instituição.
Alguns elementos constitutivos essenciais à Ordem dos Pregadores devem ser enfatizados,
entre eles os estudos, a pregação e a vida apostólica. A pregação e a vida apostólica já foram
caracterizadas anteriormente. Enfatizaremos aqui o lugar e a importância dos estudos para os Frades
Pregadores.
Os estudos tem um lugar de evidência na Ordem Domincana. “Domingos queria estudar para
pregar, e pregar para colocar as almas no reto caminho da salvação [...] antes mesmo de receber o
nome ou o status de comunidade de religiosos, adotou esta perspectiva” (FORTES, 2011, p. 121).
As Constituições e Ordenações da Ordem dos Pregadores reza no artigo 76 que,
São Domingos, numa atitude bastante inovadora, inclui intimamente no
propósito da Ordem o estudo, ordenado ao ministério da salvação. Ele próprio,
que levava sempre consigo o evangelho de Mateus e as Epístolas de São Paulo,
enviou os irmãos aos centros de estudos e distribuiu-os pelas grandes cidades,
para estudarem e pregarem e fazerem conventos (LCO, 76).
Diferentemente dos antigos monges, que apesar de estudarem, tinham o trabalho e a oração
como programa principal de vida, os dominicanos consideravam o estudo um meio essencial,
especialmente para a pregação e para o trabalho apostólico. “Deve tender nosso estudo, principal e
ardentemente, a auxiliar a alma de nosso próximo” (BERNARDOT, 1940, p. 68).
A importância dos estudos na vida dos Frades Pregadores é corroborada pela tática que
Domingos usou no início da Ordem. Como vimos, ele enviou seus frades dois a dois e às cidades
consideradas grandes centros universitários, como Paris e Bolonha. Desde os primórdios a Ordem
esteve presente dentro das Universidades, primeiramente possibilitando estudos aos frades, depois
estando à frente de centros Universitários e atuando como mestres, especialmente da Teologia.
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Na consolidação da Ordem dos Pregadores e na sua institucionalização, as constituições e
ordenações recomendam que em cada convento floresça a vida intelectual e que existam centros onde
os frades se dediquem aos estudos (LCO, 91).
Domingos em sua juventude foi um grande estudioso e sentiu a grande necessidade que o
apóstolo tem de estudar quando esteve em contato com a heresia. Os heréticos eram muito bem
preparados e tinham sólidos argumentos. A pregação popular era insuficiente para contestá-los. Sem
dedicação ao estudo e à oração era impossível convencê-los e vencê-los. Eis a grande preocupação de
Domingos com os estudos (D’AMATO, 1992, p. 51).
Humberto de Romans, um dos mestres da Ordem, nas décadas posteriores à morte de
Domingos e no período da sua institucionalização, tece grandes elogios aos estudos, enfatizando sua
importância e seu lugar na vida do frade pregador. Para ele,
o estudo preserva do pecado, forma o homem interior, mostra claramente a via
do dever, torna o religioso mais útil aos demais, aumenta a estima da Ordem
entre o povo, liberta da melancolia, dá força para suportar as fadigas da vida
religiosa e apostólica, e sobretudo é instrumento de progresso espiritual, pois
todo conhecimento da verdade é ocasião para crescer na caridade ( D’AMATO,
1992, p. 52-53).
O lugar privilegiado de estudo dentro da Ordem dos Pregadores não significava “um simples
trabalho intelectual, uma especulação abstrata e fria” (BERNADOT, 1940, p. 69) nem mesmo um
enfeite do espírito, mas um serviço de amor e uma exigência de fidelidade ao próximo. Estudava-se
muito, mas não para si. O estudo estava sempre na perspectiva da pregação e da vida apostólica.
A formação dos frades pregadores percorre muitos anos de dedicação aos estudos com o intento
de obter uma sólida formação doutrinal, tudo em perspectiva do trabalho missionário dos frades que só
obtém sucesso se os estudos estiverem constantemente em atualização e aprofundamento.
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Era a dedicação aos estudos o grande diferencial dos frades pregadores em relação às demais
ordens e institutos de vida religiosas existentes. O estudo assíduo, comprometido e perseverante dos
membros da Ordem dava a ela um caráter erudito e intelectual que rendeu à Ordem dos Pregadores
uma tradição singular de personagens que se destacaram na História da Igreja e da própria Ordem
quanto ao conhecimento e ao ensino das escrituras sagradas e da Teologia. Entre eles, Alberto Magno
e Tomás de Aquino, ainda no século XIII, que com suas pesquisas e reflexões deixaram um grande
legado não só aos discípulos de Domingos de Gusmão, mas a toda a cristandade.
Tomás de Aquino foi “o fruto mais belo e, diria, o produto típico de uma Ordem que tem
paixão pela verdade” (D’AMATO, 1992, p. 53). Verdade que é expressa como divisa no brasão da
Ordem dos Pregadores ‘Veritas’ e que só se alcança pelos estudos.
No entanto, para a Ordem dos Pregadores, “deve a verdade que se estuda, descer ao coração,
apossar-se profundamente da alma e aí tornar-se um princípio soberano e universal de ação”
(BERNADOT, 1940, p. 69), resumindo assim o ideal da Ordem dos Pregadores, “contemplata aliis
tradere”, ou seja, contemplar e comunicar aos outros os frutos da contemplação (TURCOTTE, 1958,
p. 12).
Considerações finais
Este é um texto em gestação, pois em gestação ainda se encontra a pesquisa. Aqui foram
esboçadas algumas ideias que precisam ser aprofundadas.
No entanto, não se pode negar que
Domingos de Gusmão deixou uma herança significativa para a História da Igreja e para a humanidade,
uma Ordem de Pregadores, fundada em pleno século XIII, onde a pregação no catolicismo era
privilégio de quem chegasse ao episcopado.
Não vejo como ‘providencialismo’ o surgimento da Ordem Dominicana, neste contexto, como
expressa os biógrafos e outros que escreveram sobre Domingos e sua Ordem. Domingos foi, na
verdade, um desafiador do catolicismo institucional da época, que pouco ensinava e muito menos
exemplificava, pelos modos de viver e de ser de seus líderes.
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Tempos novos, novas necessidades. Domingos foi um homem de seu tempo, aberto às inópias
de sua sociedade e do seu mundo. Buscou fazer, a partir do que sabia como eclesiástico, o bem.
Assumiu o missionarismo religioso que aprendeu com o seu companheiro e pai espiritual, Diego, o
bispo de Osma, e o transpôs para os seus seguidores, os frades pregadores, que continuam inseridos em
realidades diversas, tentando ser um pouco de ‘fermento na massa’.
Referências Bibliográficas
BERNARDOT, P. São Domingos e a sua ordem. Tradução de Sebastião Tauzin. Rio de Janeiro:
Cruzada da Boa Imprensa Ltda, 1940.
D’ALMATO, Alfonso. O projeto de São Domingos. Tradução de Virgílio Ambrosini. São Paulo:
Estúdio Dominicano, 1992.
FORTES, Carolina Coelho. “Societas Studii”: a construção da identidade e os estudos na Ordem dos
Frades Pregadores do século XIII. Tese (Doutorado em História). Universidade Federal Fluminense,
Rio de Janeiro, 2011.
HEFELE, C.J. von; LECLERCQ, H.; GIBBS, M.; LANG, J.; HUGHES, P. Latrão. In: LOYN, Henry
R. (Org.). Dicionário da Idade Média. Tradução de Álvaro Cabral; revisão técnica, Hilário Franco
Júnior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.
HINNEBUSCH, Willian A. Breve História da Ordem dos Pregadores: os Dominicanos. Tradução de
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MANDONNET, Pierre St. Dominique, l'idée, 1'homme, et 1'oeuvre. Desclée de Brouwer & Cie:
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NEVES, Lucas Moreira et al.Dominicanos DCCL. São Paulo: Duas Cidades, 1966.
ROMANS, Humberto de. Narração sobre São Domingos. Subsídios de Formação Dominicana [s.l.:
s.n, s/d].
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I SEMINÁRIO DE HISTÓRIA MEDIEVAL | III ENCONTRO DA ABREM CENTRO-OESTE | ANAIS | ISSN 2359-0068
http://seminariointernacionaldehistoriamedieval.wordpress.com/
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RUNCIMAN, S.; NELLI, R. Cátaros. In: LOYN, Henry R. (Org.). Dicionário da Idade Média.
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JUSTIÇA PARA O DIABO NAS CANTIGAS DE SANTA MARIA
Clarice Machado Aguiar271
As Cantigas de Santa Maria são um corpus documental produzido em meados do século XIII,
em Castela. Elas são atribuídas ao rei Alfonso X272. Nesse corpus está reunida uma série de milagres
atribuídos à Virgem Maria, sob a forma de cantigas, que são descritas pelo rei, compilador dos
milagres, como uma obra de amor dedicada a Santa Maria. A beleza e a bondade da Virgem são
sempre destacadas e louvadas em todas as cantigas.
O corpus documental em questão é uma das obras mais conhecidas do medievo ibérico.
Existem inúmeros estudos que o utilizam como fonte, talvez devido à abrangência de temas que ele
registra. Como não se trata somente de uma obra literária, mas também com conteúdo musical e
iconográfico, ela é utilizada por medievalistas de todos os campos do conhecimento. Por exemplo, no
campo da música, existirem orquestras ao redor do mundo que buscam a reprodução das cantigas no
formato medieval tradicional, sendo um dos trabalhos mais peculiares o de um grupo musical
japonês273 que há anos trabalha com essas partituras e desde 2005 difunde seu trabalho em áudio
digital. No Brasil, há também grupos que se dedicam a estudar a parte musical, como é o caso do
Grupo de Música antiga da UFF, mas o maior sucesso das Cantigas de Santa Maria deu-se entre os
estudiosos da Literatura Medieval, que publicaram muitos trabalhos baseados nessa fonte.
Embora conscientes de que estamos lidando com uma fonte amplamente (para alguns,
exageradamente) difundida, a nossa proposta é de analisar a fonte por um viés até agora desprezado: o
diabo. A relevância do tema, para a compreensão da própria obra, se assenta principalmente pelo fato
271
Aluna de graduação da Universidade de Brasília (UNB). E-mail: [email protected]
Alfonso X foi um rei castelhano-leonês, do sécul XIII, que viveu entre 1221 e 1284. Seu reinado durou 30 anos e
iniciou-se em 30 de maio de 1252, quando tinha 31 anos. Foi um rei muito importante que contribuiu para o crescimento
econômico de Leão e Castela. É muito conhecido por suas características legisladoras, e foi sob o seu reinado que se
compuseram as “Siete Partidas”, e outras obras que se tornaram referência. Entrou para a história com o cognome de “O
Sábio”.
273
O trabalho da orquestra encontra-se disponível para download no link <http://www.3to4.com/Cantigas/e_index.html>.
Acesso em: 20 nov. 2013.
272
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de o personagem estar muito presente ao longo dos milagres narrados. Ele assume o papel de tentar e
de provocar os mortais que acabam por executar atos considerados vis, e, dessa forma, consegue
recrutar um grande número de almas. Ele é um verdadeiro colecionador de almas.
O papel de Santa Maria como advogada dos humanos é um assunto bastante trabalhado,
principalmente por aqueles historiadores que estudam as representações da mulher nas Cantigas de
Santa Maria. Também para o nosso trabalho esse papel é importante, sobretudo no que se refere ao
aspecto judicial, uma vez que nosso objetivo é o de compreender a lógica da atuação do diabo na
narrativa dos milagres, na perspectiva da justiça.
É relevante esclarecer que o corpus documental é importante para o historiador não apenas por
registrar milagres, o que ajudaria a perceber a visão religiosa da época, mas sobretudo porque em seu
discurso estabelece o que era certo/justo e errado/injusto. Tal constatação pode ser feita em situações
esperadas, como a de que o homem bom vai para o céu e o mau para o inferno, como resultado do
julgamento a que são submetidas as almas no momento da morte. Nas Cantigas essa dicotomia é
incerta, uma vez que com a realização dos milagres, também os pecadores podem livrar-se do fogo
infernal. A parte selecionada para esta comunicação desse tribunal celestial é aquela em que
detectamos que um dos lados sente-se injustiçado. O Diabo, frequentemente reclama sobre a perda de
almas que, com muito custo, havia conseguido, devido a intromissões injustas. Dessa maneira, é
possível perceber a lógica da justiça não somente no campo dos homens, mas também na esfera
sobrenatural.
Antes de entrar no campo da justiça, no que se refere às ações do diabo, faz-se necessário
esclarecer a noção de mal que lhe associa diretamente. De que forma o mal é configurado nas Cantigas
e como ele se relaciona aos demais personagens presentes no documento, bem como a forma pela qual
se entende a justiça na perspectiva do demônio, que se sente lesado pelos milagres, são aspectos que
este trabalho pretende responder.
O mal é descrito na Cantiga 30274 como o antagônico ao bem, mas a noção de “bem” no
documento é muito diferente daquela que vigora nos dias de hoje. Nas Cantigas, a noção de bem está
274
ALFONSO X. Cantigas de Santa Maria. Castela, 1221-1284. Pg 79. Disponível em: <http://csm.mml.ox.ac.uk/>. Acesso
em: 7 ago. 2013
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ligada à sua prática, são os atos corretos praticados pelos homens e que lhe propiciam um lugar no céu.
Portanto, trata-se de fazer o bem. Nesse sentido, a utilização recorrente do verbo fazer, associada à
palavra bem, reforçam a ideia de que tanto a justiça quanto a injustiça existem apenas se derivarem de
ações conscientes.
Seguindo essa lógica o mal aparece no sentido de fazer o mal, de ir contra os preceitos da
sociedade cristã e de pecar. Nas Cantigas o mal é relacionado ao pecado e por isso o Diabo é o
principal agente na hora que o homem comete maldades. Exemplos dessa função do bem e do mal
estão presentes em quase todo o documento, podendo ser considerada como uma das principais lógicas
que liga o discurso como um todo. Por exemplo, na Cantiga 24 275 o narrador, compilador dos milagres,
afirma que “fazemos o mal”, na cantiga 42276 diz que não devemos “fazer o mal”.
Quando um homem comete atos considerados maus, quase sempre está numa situação em que
sofre a tentação do diabo. Entretanto, se a ação do diabo não é explícita, ela é citada durante a cantiga,
numa estratégia que dá destaque ao seu papel social na lógica celeste. O comportamento característico
do diabo de levar as pessoas a cometer atos errados não é um simples divertimento; é seu castigo após
a queda, decorrente do fato de ter desafiado Deus, que lhe deu essa punição. Portanto, fazer o mal e
desencaminhar os homens é a sua sentença.
No campo dos homens, porém, o mal é apresentado como escolha daquele que o faz e, mesmo
que o demônio apareça associado à ação, ele não deve ser considerado o culpado pelos pecados. Para
entender melhor, na Cantiga 30,277 o narrador afirma que “se escolhemos o mal não vamos ao céu”. O
homem, nas Cantigas, vê-se diante de situações nas quais é tentado a escolher entre o bem e o mal, o
verbo tentar é muito importante na lógica do texto, pois indica que há mais de um caminho a seguir. Se
a escolha recair sobre o mal, entretanto, há ainda a possibilidade de se redimir e de salvar a alma, por
meio da confissão, da oração e, principalmente, do arrependimento sincero.
Em diversas cantigas, aqueles que foram condenados por fazer o mal são isentados de seu
castigo, ao mostrarem profundo arrependimento. Dessa forma, o reconhecimento do erro pode ser
275
ALFONSO X, op. p 61.
ALFONSO X, op. p 110.
277
ALFONSO X, op. p 79.
276
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considerado como um possível antagonista do mal que assumiria o caráter de erro sem consequências.
Tal como se pode apreciar nas Cantigas, o mal não é apenas uma característica associada ao
diabo, mas é a razão da sua existência e o motivo da sua forte presença entre os homens. É importante
compreender que o mal não é apenas o impulso inicial do diabo, mas que os dois constituem uma só
coisa. Então, quando alguém faz o mal trabalha para o diabo, como se pode ver na Cantiga 76, que
descreve um ladrão que fez muitas maldades da seguinte forma: “ladrão muito forte, jogador e brigão
e tanto andou com o demo em torno que o fez cair nas mãos do juiz”.278 Nessa passagem fica claro que
homens que cometem o mal, mesmo que não estejam sob a tentação direta do diabo, ‘andam com ele’,
pois ele é a maldade . Enquanto o homem tem a escolha entre os dois polos, o demo está condenado a
um deles, a maldade, sem a possibilidade de escolha e, dessa forma, seus atos não devem ser
considerados injustos, pois fazem parte da sua natureza. Na Cantiga 74, isso fica explícito, quando se
diz: “o demo, onde todo o mal há” 279. Essa afirmação reforça a ideia do diabo como o mal em si e não
como um personagem que teria a possibilidade de escolher outro caminho.
Como parte integrante do plano divino, o demônio aparece como um personagem que cumpre a
função que lhe foi designada por Deus, e, nesse sentido, é possível que suas ações possam ser
consideradas justas dentro da lógica celeste. Na Cantiga 45 280 aparece um homem que fez maldades
durante a vida toda, mas, ao final de seus dias, arrepende-se de seus pecados e retira-se para um
monastério. Mas antes de poder se redimir e de praticar o bem, morre. Os demônios aparecem para
buscar sua alma, mas são confrontados por um anjo que também a reivindicam. Em um momento de
debate, no qual os dois lados discutem quem merece o morto, os demônios dizem, em sua defesa, que
sabendo Deus ser muito justo, irá julgar a situação concluindo que, a alma em questão, deve ir para o
inferno. No final da Cantiga o homem acaba ressuscitando, ganhando uma segunda chance para se
redimir de seus pecados e, talvez um dia, poder subir aos céus. Mesmo perdendo a disputa, fica claro
que os demônios se julgam merecedores da alma, e, em sua defesa, recorrem à lógica celestial que é
explicitada ao longo da narrativa. Ela consiste na certeza de que Deus sentencia ao inferno aqueles
ALFONSO X, op.“ladron mui fort’, e tafur e pelejador; e tanto ll’ andou o dem’em derredor, que o fez nas mãos do juyz
vir. ALFONSO, X. Cantigas de Santa Maria. Castela, 1221-1284. p 189. Tradução livre.
279
“o dem', en que todo o mal jaz”. p181. Tradução livre
280
ALFONSO X, op. p101.
278
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que cometem o mal e se desviam através dos pecados. Se o homem comete o mal, sua alma passa a
pertencer ao demônio.
Outra situação na qual se percebe o apurado sentido de injustiça de que se sente vítima o
demônio, é na operação de milagres, uma vez que eles interferem no esforço e no empenho que ele
dedica a corromper os homens e a possuir suas almas. Na Cantiga 49281 o narrador explica que Santa
Maria guia os homens para não cair nas artimanhas do demo. Essa passagem demonstra que o diabo
está realmente tentando enganar o homem por meio de grandes investidas, mas que a Virgem está lá
para atrapalhar essa intenção. Na Cantiga 41282, ele é chamado de enganador, uma definição que revela
seu esforço, embora na mesma cantiga ele também seja descrito como brincalhão, embora suas
intenções não se pautem pelo puro divertimento.
O esforço do demônio para desencaminhar os homens fica evidente no tipo de vítimas que
geralmente escolhe. Nas Cantigas, os alvos da tentação não são pessoas simples, o que, evidentemente,
tornaria sua tarefa muito fácil. Ladrões e desordeiros tampouco recebem sua atenção, pois suas almas
já estão condenadas. A associação entre demônios e esses humanos considerados inferiores e simples
estabelece-se apenas no momento da morte, quando pequenos demônios (jamais o demônio-mor)
aparecem para levar-lhes a alma. Portanto, os escolhidos para serem tentados pelo demônio são
homens justos e nobres.
Na Cantiga 16,283 o alvo é um cavaleiro que se apaixona por uma bela mulher. No final da
cantiga descobre-se que, sem o saber, estava enamorado pelo próprio demônio. Na Cantiga 58,284 o
alvo é uma monja tentada a fugir com um cavaleiro trazido pelo diabo que, com muito esforço, tentava
desencaminhá-la. Ambas as escolhas e o empreendimento do demônio revelam um trabalho árduo, que
as cantigas destacam e reconhecem.
Um dos melhores exemplos para demonstrar o grande esforço feito pelo personagem é a
Cantiga 57285. Nessa passagem o alvo é um senhor descrito como muito devoto, bom e caridoso. Para
281
ALFONSO X, op. p 118.
ALFONSO X, op. p 110.
283
ALFONSO X, op. p 44.
284
ALFONSO X, op. p 138.
285
ALFONSO X, op. p 116.
282
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enganá-lo, o demônio terá que se dedicar muito. Assumiu a forma de um belo homem, morto em
batalha, e se apresenta ao senhor, assumindo papel de servo. O narrador descreve que ele começa a
fazer todas as vontades desse nobre, atendendo a todos os seus caprichos com tanto esmero que é
promovido a escudeiro. Chega até mesmo a praticar o bem e a fazer caridade, mostrando que, embora
ele seja a encarnação do mal, fará qualquer coisa para cumprir seu papel. Seu disfarce é tão bom que o
único a desmascará-lo é um bispo, descrito como homem de santidade sem tamanho. Ou seja, mesmo
o homem nobre e bom não foi capaz de perceber as artimanhas do diabo, pois essas são tão bem feitas
que foi preciso um clérigo com grande conhecimento sobre questões teológicas para desmascará-lo.
Após observar os três exemplos citados acima, percebe-se a preferência do diabo principalmente por
aqueles que integram a ordem dos cavaleiros, ou fazem parte do clero. Homens descritos como justos e
caridosos também costumam ser alvos do diabo.
O argumento de que o diabo não pode ser entendido como promotor da injustiça nas Cantigas,
baseado na possibilidade de escolha dos homens entre o bem e o mal, é reforçado por situações onde
ao ver-se frente à tentação o homem decide rezar a Santa Maria, para afastar as artimanhas do demo.
Um exemplo é a Cantiga 82286. Nela, um monge bom, casto e muito fiel, que conjuga os atributos
preferidos do diabo, que já foram apontados anteriormente, tentava dormir em sua cama quando
começa a ver porcos assombrosos ao seu redor. O clérigo começa a espantar essas alucinações, que se
revelam como pequenos diabretes. Quando se veem frustrados, o diabo-mor aparece, pois aqueles
diabinhos eram fracos diante da enorme santidade do homem. O demônio ameaça feri-lo com seus
ganchos. Assustado, o frade concentra seus pensamentos em Santa Maria que aparece e espanta aquele
que lhe causava espanto.
Essa cantiga é interessante por diversos fatores. Primeiro, mostra um homem que ao perceber
que irá cair em tentação concentra-se em sua fé e escolhe seguir outro caminho. Em segundo plano há
a questão da maldade contra a santidade. Os primeiros diabretes que aparecem são fracos diante de um
homem santo, o que nos revela que praticar o bem já é uma forma de se manter afastado do mal. O
diabo-mor é mais poderoso que seus subalternos e que o monge, mas diante de Santa Maria sai
286
ALFONSO X, op. p 199.
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correndo, pois ela é mais poderosa.
Outra situação bastante comum narrada nas Cantigas, mostra ser possível que o homem evite o
mal e a tentação, bastando amar a Deus e a Santa Maria como é o caso da Cantiga 284 na qual se diz:
“Quem bem crer na virgem com todo o coração guardar-se a do demo e de sua tentação”.287 Tal
afirmação também está presente em passagens bastante interessantes do documento que são chamadas
“cantigas de louvor” que são sempre os trechos do documento cuja numeração é múltipla de dez.
Nessas passagens as qualidades da Virgem são sempre louvadas, bem como sua capacidade de
proteger do mal e sua piedade com relação às almas pecadoras. Na Cantiga 130 reafirma-se que “Ela
faz todo bem entender e entendendo nos faz conhecer nosso senhor e seu bem haver e que perdemos
do demo o pavor”.288
Ao longo das cantigas existem diversas descrições físicas do demônio. Quando assume
características humanas ele aparece sob forma masculina ou feminina, de grande beleza, para esconder
sua verdadeira natureza, pois quando se revela, é uma criatura escura e feia. Na Cantiga 237, o diabo é
"repugnante289", e uma característica bastante comum que se lhe associa está descrita na Cantiga 74:
"mais negro ca pez290", ou seja, mais preto que o piche. Dentre suas qualidades, destacam-se o ser
enganador291, mau e arteiro292. Assumindo todas as características que claramente são consideradas
negativas, o ser como pura maldade fica evidente em sua aparência, chegando ao ponto de
encontrarmos na Cantiga 137 a seguinte passagem: "demo, que sempre mal cheira 293". Na Cantiga 74
há uma passagem que relata que um pintor costumava retratar o demônio com aparência feia, e,
enfurecido, com a situação este resolve tomar satisfações: "porque me tem em desdém, ou porque me
faz tão mal parecer aa todos que me vêem?" O pintor, então, lhe responde: "Eu o faço com grande
ALFONSO, X. “Quen bem fiar na Virgen de todo coraçon gurada-lo-á do demo e de ssa tentaçon” . ALFONSO, X.
Cantigas de Santa Maria. Castela,. P 603. Tradução livre.
288
ALFONSO X, op. p 303.
289
ALFONSO X, op. p 506.
290
ALFONSO X, op. p 181.
291
ALFONSO X, op. “per consello do demo enganador”. p 231. Tradução livre
292
“ ALFONSO X, op. En esta guisa o demo | cho de mal e arteiro” ALFONSO, X. Cantigas de Santa Maria. Castela, 12211284. p 166. Tradução livre
293
ALFONSO X, op. “non caesse pelo demo, que senpre mal cheyra”. ALFONSO, X. Cantigas de Santa Maria. Castela,
1221-1284. p. 324. Tradução livre
287
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razão porque você sempre o mal faz e o bem não294". Enfurecido com a resposta, o demônio tenta
matar o pintor. Portanto, depreende-se que o diabo sente-se injustiçado com relação ao julgamento que
o pintor fazia de sua aparência.
A passagem, assim como outras, é importante para destacar que o demônio percebe quando
algo não lhe é favorável e ultrapassa a linha da justiça estabelecida por Deus. Como um personagem
ativo das Cantigas, suas falas expressam frequentemente seu sentimento de estar sendo injustiçado,
como na Cantiga 45 quando os diabretes reclamam com o anjo sobre a alma que lhes está sendo
roubada.
A realização de milagres não é o único momento em que se pode comprovar esse sentimento de
injustiça ao longo das Cantigas. Nas chamadas cantigas de louvor, que não tratam de milagres, há
referências frequentes aos acontecimentos do Éden. Quando Adão e Eva caíram na tentação do
demônio condenaram todas as almas ao inferno. Na Cantiga 270 há trechos que fazem alusão à perda
do paraíso e à condenação ao inferno: “Quando nossa primeira mãe nos fez perder por
desobediência295.” E, posteriormente, completa: “Per Adan e per Eva fomos todos caer en poder do
diabo296”. Entretanto, antes da queda dos humanos, o próprio nascimento do diabo está ligado à
tentação, quando Lúcifer desafia Deus e se transforma na figura infernal demoníaca como sentença
divina. No contexto das Cantigas, o fato é que, desde esse momento até a entrada da Virgem Maria na
história, ele tinha cumprido seu papel sem interferências.. A Cantiga 60 também faz alusão à perda do
paraíso: “Eva nos foi deitar com o demo em sua prisão”297; “Eva nos encerrou os céus sem chave”.298
O nascimento de Jesus Cristo é um marco que perturba profundamente o poder que o demônio
possuía, pois após sua morte na cruz e sacrifício a humanidade recupera a possibilidade de se salvar.
Dessa forma, o diabo que, anteriormente, poderia tentar e conquistar as almas, perde a partir de então
um número significativo da sua coleção. A sentença que Deus havia estabelecido anteriormente é
mudada e, por meio de Santa Maria, o salvador dos homens nasce. Os milagres narrados nas Cantigas
294
ALFONSO X, op. p 181.
ALFONSO X, op. p 577.
296
ALFONSO X, op. p 578.
297
ALFONSO, X. “Eva nos foi deitar do dem’en sa prijon” . p 144. Tradução livre
298
ALFONSO, X. “Eva nos ensserrou os çeos sen chave… “ p. Tradução livre
295
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seriam apenas mais uma situação na qual Maria atrapalha os planos do diabo e o impede de realizar
seu trabalho; para ele, a maior injustiça de todas tinha sido cometida no momento da anunciação. O
nascimento de Cristo é, inclusive, o motivo pelo qual, posteriormente, a Virgem poderá realizar os
milagres.
Em decorrência desse momento que marca a virada na situação do diabo e das almas humanas,
as duas cantigas usadas como exemplo, nas quais se descrevem os acontecimentos do Éden, concluem
suas sentenças mostrando que Maria e Jesus agora recebem o papel de corrigir o erro de Adão e Eva.
Em ambas as cantigas, depois de apontar o pecado cometido por Adão e Eva, anuncia-se que Jesus e
Maria venceram o diabo. Na Cantiga 270, após a afirmação de que por Adão e Eva perdemos o paraíso
é dito que um novo Adão cortou a cabeça do dragão299 que , no caso, é uma uma metáfora que evoca o
diabo. Na Cantiga 60 também há uma passagem semelhante, pois afirma-se que Eva fechou as portas
do céu para todos, mas que Maria as abriu novamente300.
Os dois personagens, Maria e Jesus, são vistos como os responsáveis pela salvação do homem
e como aqueles que atrapalharam o diabo, pois ele terá de usar suas artimanhas para tentar ganhar
todas as almas que foram perdidas. Agora, com muito mais trabalho, frente a dois novos inimigos
poderosos. Santa Maria aparece em diversas cantigas como aquela que protegerá o homem e vencerá o
demônio, como é o caso da Cantiga 145: “louvando a Virgem que nos é escudo contra o diabo e suas
tentações301”. Na Cantiga 160 também aparece questão semelhante, ao se afirmar que devemos orar à
Virgem, pois ela sempre por nos rogará e “o diabo vencerá e com ela nos levará302”.
O diabo nas Cantigas de Santa Maria sente-se injustiçado devido à atuação da personagem
ALFONSO, X. “Per Adan e per Eva fomos todos caer
en poder do diabo; mais quise-sse doer
de nos quen nos fezera, e vo-sse fazer
nov' Adan que britass' a cabega do dragon.
Todos con alegria cantand' e en bon son…” p 578.
300
ALFONSO X, op. "Eva nos enserrou
os çeos sen chave,
e Maria britou
as portas per Ave." p 578.
301
ALFONSO X, op. “loando a Virgen que é noss’ escudo contra o diabo e sas tentações”. p 340
302
ALFONSO X, op. “E o demo vencerá
e nos consigo levará
Santa Maria”. p 365. Tradução livre
299
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principal. Além de Maria atrapalhar suas tentações, transforma-se em escudo que protege os homens
dos trabalhos do demônio. A Virgem também aparece, junto ao seu filho, como a causa do diabo ter
perdido livre acesso às almas. Sendo a personificação do mal e de sua manifestação em forma pura, o
diabo manifesta-se da forma como Deus sentenciou. Ele está sempre tentando desencaminhar os
homens, mas suas ações são justificáveis.
Fonte Primária
ALFONSO
X.
Cantigas
de
Santa
Maria.
Castela,
1221-1284.
Disponível
em:
<http://csm.mml.ox.ac.uk/>. Acesso em: 7 ago. 2013
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A FILOSOFIA MEDIEVAL E SUAS CONEXÕES COM A CONTEMPORANEIDADE
Claudio Pedrosa Nunes303
Introdução
O que é filosofia medieval? Quais os períodos principais da filosofia medieval? Quais as
principais contribuições da filosofia medieval para o pensamento jusfilosófico contemporâneo? Estas
são as questões básicas que reputamos adequadas para identificar o conteúdo e as utilidades de uma
das ciências ou disciplinas mais importantes do conhecimento erudito: a filosofia medieval.
Relacionar as principais características da filosofia medieval e identificar seu conteúdo
como ciência ou disciplina do conhecimento não são tarefas singelas. Num período temporal de quase
mil anos, natural que se vislumbrem variados aspectos, perfis e características desse segmento
filosófico.
É nesse contexto que procuraremos, em meridiana síntese, elaborar uma incipiente teoria a
respeito das bases centrais de reconhecimento e do mérito da filosofia medieval, sugerindo diretrizes
capazes de, em nosso entender, instigar a descoberta de perspectivas e vislumbrar os desafios que
certamente movem as preocupações dos estudiosos da filosofia da Idade Média.
Aliado a isso, reputamos importante sugerir algumas possíveis conexões entre os institutos
filosóficos medievais e as categorias jusfilosóficas correlatas do direito contemporâneo, seja no sentido
de reunir elementos especiais de auxílio hermenêutico, seja no sentido de corrigir equívocos a que
muitos estudiosos das ciências humanas incorrem no tocante ao direito natural.
O que é filosofia medieval?
303
Doutor em Ciências Jurídico-Filosóficas pela Universidade de Coimbra. Professor Adjunto da UFPB. Líder e
pesquisador do grupo de estudo e pesquisa Direito e Justiça na Europa Medieval. Autor do livro A Conceituação de Justiça
em Tomás de Aquino: um estudo dogmático e axiológico, Juruá, 2013.
HISTÓRIA, POLÍTICA E PODER NA IDADE MÉDIA
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A indagação em foco certamente atrai a persecução das características e do mérito da
filosofia medieval. A filosofia medieval caracterizou-se sobretudo pela busca de sintonia entre o
conhecimento clássico grego e romano com a teologia da Igreja Romana. O desenvolvimento das
ciências, o surgimento das universidades e a formação dos conglomerados urbanos também são fatos
que identificam o perfil da sociedade medieval e, com esta, o próprio florescimento do pensamento
filosófico de então.
Nesse contexto, a doutrina cristã, então elevada a dogma constitutivo da razão de ser das
instituições, exerceu um papel condensador e aglutinador no sentido de conferir legitimidade ao
ambiente secular a partir da sedimentação da cultura da autoridade da Igreja. Tal conjuntura era
derivada da afirmação dos eclesiásticos como autoridades estabelecidas por conduto da vontade e da
bondade de Deus, por meio dos quais a sociedade humana alcançaria o adequado equilíbrio.
Assim, a filosofia medieval avançou nos mais variados sentidos, desde as justificativas da
existência do mundo e de seu Criador304 até os pormenores da justiça comutativa305 e do direito
contratual, com seus naturais desdobramentos nas mais comezinhas relações interpessoais.
No âmbito do direito, o pensamento filosófico medieval revelou-se fértil e profícuo. O
direito natural representou a principal categoria jurídica substrato da filosofia do direito e do estado do
Medievo, cujo conteúdo emanava da conjugação das teorias gregas e romanas a respeito da aplicação
da justiça. Assim é que o direito natural medieval é consequência sobretudo da doutrina clássica do
justo, doutrina esta que considerava, entre outros aspectos, a definição da justiça e do justo a partir da
observação e do sentido da ordem natural das coisas, tal qual se extrai da contemplação da natureza.
Mas o direito natural avançou na atmosfera filosófica medieval especialmente quando
estudado e aplicado sob a ótica da razão, destacando-se nesse particular a doutrina jusfilosófica de
Tomás de Aquino. Com efeito, a filosofia tomista do direito natural é pautada numa ordem racional das
coisas, ordem esta que introduz no mundo jurídico as ideias e construções humanas na definição do
que é direito e do que é justo.
304 A existência de Deus e a criação do mundo são especialmente evocadas na prima pars da Suma Teológica de Tomás
de Aquino, a partir da Questão 2.
305O tratado da justiça encontra-se na secunda secundae da Suma de Tomás de Aquino, a partir da Questão 58.
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Fiel que era à doutrina aristotélica da razão, Aquino conseguiu conjugar a razão humana à
ordem natural das coisas e, com isso, produziu uma doutrina que alçou o direito natural a categoria
jusfilosófica de grande autoridade. O direito natural como categoria jusfilosófica de excelência é
consubstanciado no exercício da razão do bem, do correto e do justo a partir da inserção da lei natural
do bem na consciência dos homens. Em outras palavras, é conatural a todos os homens, por conduto do
intelecto e da vontade de Deus, a concepção de que deve fazer o bem e evitar o mal, atribuindo a cada
um o que é seu de direito.
Assim é que o direito natural não e senão a inserção da lei natural de Deus na consciência e
na razão humanas e através do qual o homem é dirigido a agir corretamente em suas relações sociais.
Portanto, na jusfilosofia medieval, o direito natural tem franca e estreita relação com a justiça, seja a
justiça geral, seja a especial. Afinal, como vem anota Tomás de Aquino, “o direito é o objeto da
justiça”306.
Por outro lado, o objeto material da filosofia medieval é complexo e multiforme,
conquanto nesse período de quase mil anos (Séculos V a XIV aproximadamente) as transformações
socioeconômicas e socioculturais tenham sido significativas. Não obstante, se pudermos eleger um
objeto material sensível em todo o Medievo, mesmo por mera especulação, diremos que tal objeto é,
desenganadamente, Deus.
Deus é, na filosofia medieval, o centro das atenções e em face do qual se formulam todos
os problemas filosóficos a debater, explorar e resolver. Mas Deus, na filosofia medieval, não é
somente aquela entidade ou ser transcendental ou metafísico sobre o qual se exerce uma devoção.
Deus é, para os filósofos medievais, uma “instituição”, ou seja, o Criador de tudo o que se tem e se
move, formalmente, na face da terra. É a origem, o princípio e a fonte formal, por excelência, de todo
o organismo social, político, econômico, jurídico e cultural pulsante na sociedade dos homens307.
Eis, portanto, os principais aspectos que perfazem, ao menos em parte, o que podemos
conceber por filosofia medieval. Não se trata, pois, de uma pseudo ou falsa filosofia, mas de uma
306Cf. Questão 57, secunda secundae, da Suma Teológica.
307Cf. ETIENNE GILSON. In: A filosofia na idade média, p. 621.
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filosofia sólida cujas intensas investigações conduziram a soluções aceitáveis e adequadas que se
revelam úteis e proveitosas até os dias de hoje.
Os períodos centrais da história da filosofia medieval
No tocante aos períodos históricos principais da filosofia medieval, podemos relacionar os
seguintes: a) o período de estudo da doutrina greco-romana; b) o período de predomínio da patrística;
c) o período efusivo da escolástica. Cada um desses períodos conserva suas peculiaridades e
características intrínsecas, que abrangem conjunturas políticas, jurídicas e sociais especiais, como
veremos a seguir.
No primeiro período citado (estudo da doutrina greco-romana), ocorre o que Kaufmann
denomina transição gradual entre a filosofia estóica e a filosofia cristã308. Nesse período, a doutrina
do direito natural é preservada em seu assento fundamental segundo o qual o bem está cravado no
coração dos homens como a base da ordem social e política, decorrendo, pois, da organização
verificável nas próprias coisas da natureza. Essa concepção jusfilosófica, que teve em São Paulo e em
Cícero seus principais expoentes, norteou a doutrina medieval do direito natural construída por Santo
Agostinho e Santo Tomás de Aquino, com as peculiaridades de cada qual. Trata-se de uma filosofia que
tem na ordem da natureza (natureza propriamente dita) sua fonte irradiadora.
O período da patrística, por sua vez, resultou do predomínio das lições e concepções dos
padres da Igreja Romana, em que se inclui o próprio Agostinho. É na patrística que a doutrina
agostiniana da vontade pautada na fé aufere sua grande importância na orientação da conduta social.
Só a fé em Deus é capaz de conduzir os homens ao bem divino e à salvação, já que a pura razão
humana está impregnada do pecado original e da consequente corrupção da natureza humana.
Tal concepção pessimista da sociedade, segundo Del Vecchio309, não ofuscou, entretanto,
a utilidade da filosofia agostiniana na formação e na organização social, política e jurídica da alta
Idade Média. Nesse contexto, a comparação sempre inevitável entre a Cidade de Deus e a Cidade dos
308Cf. Introdução à filosofia do direito e à teoria do direito contemporâneas, p. 74.
309Cf. Lições de filosofia do direito, p. 591.
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Homens não é senão um bálsamo catalisador que promove a orientação do comportamento dos
indivíduos e da missão secular que legitima o alcance e a manutenção do poder do Estado.
A autoridade da Igreja Romana e de seus padres é, por assim dizer, o fio condutor de
ingresso na Cidade de Deus (a eternidade do Céu e do Paraíso) para o alcance do qual o Estado tem
significativa importância. Em outras palavras, a obediência dos titulares do Estado (Cidade dos
Homens) à Igreja e seus padres é o caminho adequado que constitui a própria razão de ser do Estado e
em face do que este logra alguma virtude, minimizando sua origem consequente ao pecado original.
Aos padres da Igreja e à patrística em geral coube a sedimentação de um sentido honroso
para o Estado a partir do direcionamento de suas ações para auxílio aos fins espirituais da Igreja e da
salvação das almas. Desde que o Estado esteja subordinado à Igreja, estará razoavelmente justificada
sua existência no mundo secular, atribuindo-se-lhe a utilidade que merecer.
Acusa-se, entretanto, a patrística de ignorar a distinção entre a sociedade criada e o mundo
de Deus ou, noutras palavras, entre o natural secular e o sobrenatural divino, o que fomentou injustiças
como o emprego das práticas ordálias. A vida terrena e a vida eterna, assim, estão intensamente
conjugadas, de modo que algo reputado como decorrência da crença em Deus era concomitantemente
considerado para as soluções das pendências humanas. Crença e verdade empírica, enfim, se
confundiam310.
Por conta dessa conjuntura, o direito natural tornou-se dicotômico na filosofia patrísticoagostiniana. O direito natural primário é identificado com a ordem natural anterior ao pecado original,
onde reina o paraíso e tudo é comum a todos em bens e virtudes. O direito natural secundário, por sua
vez, é identificado com o período pós-queda, isto é, que se seguiu ao pecado original, onde a
necessidade da propriedade privada e do governo para debelar a anarquia eram as instituições que, por
imperativo natural, conduziriam a um mínimo de ordem.
Foi no período da escolástica, por outro lado, que os dogmas reinantes na patrística foram
mitigados, senão suprimidos. A reta razão passa a ser um dos institutos mais importantes desse
período, onde as coisas emergentes do mundo empírico alcançariam especial relevo. Com raízes na
310Nesse sentido é ERNST-WOLFGANG BÖCKENFÖRDE. In: História da filosofia do direito e do estado:
antiguidade e idade média, p. 245.
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filosofia de Aristóteles, a escolástica teve no desenvolvimento da razão a base de seu conteúdo
didático. Em outras palavras, não há escolástica sem a busca da explicação das coisas do mundo por
meio do emprego da razão. E foi a universidade e os parlamentos o palco principal das manifestações
dos filósofos escolásticos.
O século XIII notabilizou-se como o tempo do surgimento e apogeu das universidades e
do desenvolvimento do racionalismo. Segundo Jean Pépin, a causa da eclosão das universidades no
século XIII fora especialmente o desejo dos letrados de defender interesses e ideologias comuns,
através de associações corporativas311. O autor menciona a Universidade de Bolonha como a pioneira
(onde predominavam os juristas), sendo logo depois criadas as Universidades de Paris e Oxford.
Na Idade Média, a cultura e a civilização européias passaram por significativa
transformação, tendo como base a doutrina cristã católica. A partir da baixa Idade Média, as
descobertas científicas emergiram da efervescência da cultura e da necessidade de organização das
cidades. Um novo mundo espiritual e cultural passara a constituir o dia-a-dia da comunidade. Aloysio
Ullmann, com acuidade, indica as caracterísiticas mais relevantes dessa nova cultura: a) teocentrismo;
b) unidade da fé, embora vulnerada por heresias; c) filosofia e teologia escolástica; d) hipertrofia do
Pontificado e do Império; e) feudalismo, corporações e cruzadas; f) ordens mendicantes; inquisição; g)
resgate da cultura clássica romana e grega312.
Não é por outra razão que a escolástica constituiu-se no período mais efusivo do
desenvolvimento das ciências e, com ela, da evolução do pensamento racional. Nesse contexto, a
doutrina escolástica, capitaneada por Tomás de Aquino, pensava o engrandecimento do Cristianismo a
partir de sua evolução rumo ao saber científico, o que não significava menoscabo, desautorização ou
superação dos dogmas religiosos cristãos e da supremacia da autoridade de Deus e da Igreja.
Assim é que a escolástica destacou-se como um saber de origem literária. Relacionava-se
com os doutores e estudiosos em geral e estimulava a leitura e a pesquisa em tempo integral, tendo em
Aristóteles um referencial dogmático por excelência. A escolástica, assim, representou o início de uma
311Cf. São Tomás de Aquino e a filosofia do século XIII. História da filosofia. De Platão a São Tomás de Aquino, p.
257.
312 Cf. A universidade medieval, p. 31. O citado autor bem identifica o ambiente cultural de então com a seguinte e
oportuna indagação: “Não é, sob este aspecto, a Idade Média, um contínuo Renascimento?”.
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cultura voltada para o prestígio do saber científico, da pesquisa e da investigação. Numa época em que
havia o predomínio intenso da doutrina da fé cristã católica, é fácil entender o porquê dos
enfrentamentos entre cientistas pagãos e doutrinadores religiosos.
A escolástica identificava-se naturalmente com a filosofia e a teologia porque concentrava
um método de estudo voltado para a leitura de textos. Como bem assinala Urbano Zilles, não se
conhecia o que se chama “culto dos laboratórios”, mas sim o “culto das bibliotecas”313. Entre as obras
mais lidas e estudadas, a Bíblia talvez fosse a principal, do que resulta natural que as grandes disputas
científicas envolvessem ciência e religião. O mesmo Urbano Zilles confere três (03) características
essenciais à escolástica: a) doutrina e método baseados no ambiente teológico e filosófico reinantes nas
escolas medievais; b) conteúdo nuclear de sua doutrina baseado na revelação cristã; c) conteúdo (de
seu método) fundado na exegese e na exposição lógico-silogístico (disputatio).
Embora a escolástica seja considerada um método originário sobretudo do pensamento
cristão, é evidente que seu desenvolvimento é derivado também da influência das doutrinas judaicas e
islâmicas, além da inequívoca influência do pensamento filosófico grego, destacando-se especialmente
a filosofia de Platão e, posteriormente, de Aristóteles.
A escolástica representou, portanto, a confluência entre teologia e filosofia. Esta
confluência tornou-se nítida a partir da evolução da doutrina de conciliação entre fé e razão,
preconizada por Tomás de Aquino. Com a escolástica tomista a teologia distanciou-se um pouco de sua
natureza inicial eminentemente religiosa para, com auxílio da filosofia, aproximar-se de um conceito
de ciência. Coube sobretudo ao aquinatense aglutinar teologia e filosofia, consequência direta de sua
doutrina de conciliação e harmonização entre fé e razão, isto é, entre religião e ciência. Para isso, o
método escolástico então vigente não somente facilitou a difusão da doutrina tomista, mas também lhe
deu caráter científico e de aprendizado formal314.
Temos para nós que o método escolástico - altamente proveitoso para o aprendizado e
desenvolvimento da oratória e da lógica – mantém-se em sua base fundamental até os dias de hoje nas
313Cf. Fé e razão no pensamento medieval, p. 53.
314A propósito da confluência entre teologia e filosofia na Idade Média, vide ainda URBANO ZILLES. In: Fé e razão no
pensamento medieval, op. cit., p. 56.
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universidades, sendo de grande utilidade nos cursos jurídicos e mesmo nas ciências sociais em geral.
Sua influência se faz sentir mais precisamente no ensino contemporâneo da pós-graduação, em que o
discente de cursos de especialização, mestrado ou doutorado nada discute ou escreve sem antes ter
como norte um mínimo de leitura de livros, revistas e outras obras científicas sob prévia recomendação
e orientação de um mestre.
Também não se pode negar que o método escolástico-medieval de ensino repercute
grandemente na seara dos debates e argumentos judiciais que hoje se adotam no Brasil e em outros
países. Uma ou outra tese jurídica será tanto mais apta a ser acolhida quanto mais acentuado for seu
poder de convencimento e sua base silogística adequada. Evidentemente que todos os debates terão
como norte um padrão que constitui sua finalidade, qual seja, a busca da verdade dos fatos com o
objetivo de aplicação correta da lei com vista à pacificação social. Aliado a isso está a menção das
fontes de autoridade que seguramente dão suporte científico aos argumentos.
Outrossim, nas audiências instrutórias dos processos, os depoimentos pessoais das partes e
a veracidade dos testemunhos dependerão em grande medida da lógica e da segurança das declarações,
algo que comporte a medida adequada das limitações e das virtudes humanas numa perspectiva
perfeitamente factível. Por isso, não é exagerado aduzir que o método escolástico-medieval de ensino –
em que pese despercebido na atualidade – é a base dos sistemas contemporâneos de descobrimento das
verdades jurídicas315. Será mesmo difícil prever, a curto ou médio prazo, outro método que suplante o
método lógico-escolástico de busca da verdade jurídica e mesmo real, ainda que se utilizando de todo
o aparato tecnológico dos dias que correm.
Não é exagerado especular, por processo lógico, que a estrutura atual do ensino da pósgraduação pode ter sido consequência direta da eficiência e êxito que a escolástica proporcionou ao
ensino científico universitário, desde seu surgimento e apogeu no século XIII, destacando-se o período
de ouro do magistério de Tomás de Aquino.
315
Sobre a verdade no direito, ANTÔNIO CAVALCANTE DA COSTA NETO, em saborosa monografia, realça o
mito que encerra quando considerada numa clausura ou pureza que culmina por isolar a própria ciência jurídica. Tal
maneira de entender a verdade não é alheia ao método escolástico tomista que já considerava também verdade uma teoria
que se aproxima ao máximo da certeza do correto, justo e bom (Cf. Direito, mito e metáfora: os lírios não nascem da lei,
p. 94).
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Francisco Carpintero ratifica que a hipertrofia e autoridade da razão foi uma das
características marcantes da escolástica tomista316. Expõe que o entendimento da razão estava
baseado na dicotomia entre razão prática e razão teórica. A razão teórica consubstanciava uma
faculdade que conduzia ao conhecimento cognoscitivo. Assim, os dados que extraímos das coisas
observadas pelos nossos sentidos compõem a razão teórica que assimilamos. A razão prática, por sua
vez, é a que reclama aquilo que havemos de fazer em vista dos dados que nos proporciona a razão
teórica. Equivale dizer que a razão prática encerra o exercício das faculdades criadoras do homem.
Na escolástica tomista vê-se o desenvolvimento da razão prática mais que da razão teórica.
A vontade consequente à razão prática é, pois, resultado de uma potência inteligente do homem,
potência esta que a própria natureza dirigiu ao homem para o sentido do bem e não do mal. Em outras
palavras, a inteligência natural do homem é sempre dirigida à formulação e promoção do bem, de
modo que o não-bem (ou, para alguns, o mal) é algo não-natural às faculdades cognoscitivas do
homem. O “mal” supõe, assim, algo alheio à natureza em geral e, por conseguinte, à natureza do
homem.
A razão prática, portanto, emerge das faculdades cognoscitivas potenciais do homem para
conduzi-lo ao caminho da criação do que é (naturalmente) bom, correto e justo. É nesse sentido que a
escolástica tomista rompe com o que podemos conceber como a estagnação contemplativa das coisas
(razão teórica), alterando as coisas a partir da ação criadora do homem, ação criadora esta naturalmente
voltada para o bem, o justo e o correto.
Carpintero sustenta ademais que o confronto da razão teórica com a razão prática é a base
da teoria moral que vingou no Medievo tomista a partir de uma nova concepção do intelecto humano
proporcionada pela escolástica317. O intelecto humano passara, destarte, de um estágio inicial de mera
assimilação para um estágio avançado de percepção com vista à ordenação das ações do homem.
Tomás de Aquino concebera ademais a idéia de que o bem e o mal não são senão
definições emergentes de uma classificação menos qualificada que o homem conferiu ao justo e ao
316
Para o autor “La noción de razón que llega hasta el siglo XVII, esto es, la de la Antiguedad y Edad Media, estaba
basada em el juego de la razón teórica y la razón práctica” (Cf.Justicia y ley natural: Tomás de Aquino y los otros
escolásticos, p. 45).
317
Cf. Justicia y ley natural: Tomás de Aquino y los otros escolásticos, op. cit., p. 48.
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correto. Noutro dizer, havendo sempre algo de bom naquilo que não é bom, o homem retém em si
(pensamentos, atos etc.) apenas o que é bom nesse particular e, assim, incorre em injustiças, pecado
etc. O homem, assim, superdimensiona a “parte” boa do que efetivamente (no todo) é mal318. Essa
explicação formulada por Aquino acerca do bem o do mal também representou inovação em face do
sentido pejorativo que se atribuía à dicotomia bem-mal, rompendo, de certa forma, com o rigor da
doutrina voluntarista anterior à escolástica tomista.
Contribuições da filosofia medieval para o pensamento jusfilosófico contemporâneo
Na contemporaneidade, o direito é cultivado como uma ciência especialmente autônoma,
quase sempre confundida com instrumentos e procedimentos constitutivos do conteúdo do direito
positivo319. Nesse contexto, falar em direito é referir-se sobretudo a métodos construídos por grupos
de homens para superação de problemas subjacentes à busca do poder e/ou do domínio.
Esse modelo de direito-poder ou direito-domínio tem causado complexidades e desacertos
que fulminam a natureza própria do direito e as proposições do direito-justo bem delineadas pelos
pensadores medievais. Pôr o direito à mercê de fatores e interesses político-partidários, econômicos ou
de falsas ideologias e valores é conspirar contra sua essência de objeto do justo, coreto e bom.
O direito tanto mais se elevará quanto mais tiver voltado ao sentido do justo bem cultivado
no Medievo tomista. Não se trata, é claro, ao contrário do eu pensarão alguns, de verter o direito numa
pura categoria teológico-filosófica. Trata-se de atribuir ao direito as qualidades que lhe são ínsitas, isto
é, as qualidades de uma ciência (ou não) que esteja voltada para o bem-justo da humanidade.
A metodologia medieval-tomista idealizada para o direito sem dúvida resgata as qualidades
que nunca deveriam ou devem ser olvidadas pelos cultores do direito, porque ela é alicerçada na
natureza própria do homem feito criatura de Deus e, por isso, voltado naturalmente para o bem e para a
318
CARPINTERO anota que “Todo esto se complica por nuestra relativa incapacidad para distinguir lo bueno y lo
malo, pues Tomás entendia que en casi todo lo bueno hay algo de malo, y en casi todo lo malo hay algo de bueno; en tal
caso el hombre tiende a lo que es malo ‘porque retiene algo de bueno’ y es que el pecador es una persona que actúa mal
porque prefiere el bien de menos calidad” (Cf. Justicia y ley natural: Tomás de Aquino y los otros escolásticos, op. cit.,
p. 48-49).
319
Nesse sentido, vide ROBERT ALEXY em Begriff und Geltung des Recht, Freiburg-München: Alber, 1992.
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ordem natural das coisas. Noutro dizer, o direito-justo que informa a doutrina tomista do direito natural
é, em essência, a melhor qualificação que se pode atribuir ao direito enquanto pretensa ciência
humana.
Já no Medievo, Tomás de Aquino enfrentou problemas jurídicos tão complexos quanto os
que os juristas da atualidade enfrentam e com uma escassez de recursos e auxílios muito maior que nos
dias de hoje. Basta mencionar a questão d furto famélico (Questão 66, Artigo 7, secunda secundae, da
Suma), do aborto (Questão 118, Artigo 2, prima secundae, da Suma), da atuação do Juízes (Questão
60, Artigos 1 a 5, secunda secundae, da Suma), da legitimidade dos titulares do poder (Questão 96,
Artigo 5, prima secundae, da Suma), dentre muitas outras. Nem por isso, o direito foi corrompido em
relação àquilo que lhe é mais caro: o justo racional subjacente à natureza e á ordem natural que o
Criador revelou ao homem por meio do direito natural.
Diante disso, a grande contribuição jurídico-metodológica dos pensadores medievais para a
contemporaneidade está principalmente no resgate da natureza própria do direito, natureza esta que
reclama estudo e aplicação do direito como instrumento de realização da justiça. Com isso, estar-se-á
pondo o direito no lugar natural que possui e para que foi criado, constituindo sua própria razão de ser.
Com efeito, o direito natural de Tomás de Aquino encerra uma categoria metodológica que
vem oportunamente dissipar incongruências e heresias que hoje conspiram acentuadamente contra o
direito e sua essência. Exemplos se sucedem no dia-a-dia judiciário que definitivamente causam
grande alvoroço no tocante ao que efetivamente devemos apreender em termos de “direito” (contrário
do torto e do errado). Normas jurídicas que deturpam as posições de credor e devedor, de vítima e
criminoso, de honesto e ímprobo são reflexos dessa perversão do direito320.
320Em matéria processual civil, por exemplo, o artigo 649 do Código de Processo Civil (Lei nº 5.869/73) e a Lei nº
8.009/94 tornam impenhoráveis praticamente todos os bens dos devedores, conspirando contra a ordem natural segundo a
qual o patrimônio do devedor deve ser destinado ao pagamento das dívidas que voluntariamente contraiu. Em matéria
processual penal, o instituto do habeas corpus, previsto nos artigos 647 e 648 do Código de Processo Penal, é quase sempre
permissivo automático concedido a autores de crimes graves para permanecer indefinidamente em liberdade, conspirando
contra a justiça comutativa. Em matéria eleitoral, por conduto do Código Eleitoral (Lei nº 4.737/65), titulares de governo e
parlamentares já condenados em regular processo judicial de improbidade continuam no exercício do cargo executivo ou
legislativo até o epílogo de longos e intermináveis recursos (artigo 216), sob a ilógica e falsa premissa de que todos, ainda
que sucessivamente condenados, são presumivelmente inocentes.
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Situações de perversão do direito-justo (dar a cada um o que é seu na medida de seus
méritos e deméritos) culminam com a utilização do direito para fins nocivos à conivência social,
transformando-o em base científica, dita legítima, de dominação, opressão e injustiças.
O quadro desolador que desafia o direito do nosso tempo pode e deve ser alterado a partir
da superação do preconceito desmesurado proposto a tudo que diga respeito à Idade Média. A cultura
jurídica medieval não deve ser confundida com os processos ordálios nem com uma teologia
transcendental supostamente cultivada sob interesses deselegantes da Igreja Romana. Ao menos no
que toca à jusfilosofia de Tomás de Aquino, o direito alcançou prestígio dogmático e axiológico muitas
vezes conflitantes com a doutrina da Igreja. Basta relembrar a refutação de Aquino aos padres da
Inquisição, como se observa da Questão 64, Artigo 4, secunda secundae, da Suma Teológica321.
A história da filosofia medieval nos revela, efetivamente, um modelo metodológico que
representa um ponto de partida fundamental para qualquer direito que se pretenda compatível com as
ciências humanas e legitimado pela natureza racional do homem. A invocação de Deus como requisito
medular do direito medieval não é senão um qualificativo que, no Século XIII, ostentava a mesma
importância que os consensos democráticos talvez ostentem nos dias de hoje na civilização ocidental
Fato é que, seja qual for o tempo e lugar, há um direito comum a tudo e a todos, cujo
mérito está na especial homenagem que devota à ordem natural das coisas sobre as quais o homem
deve militar. Enfim, é direito legítimo aquele que compele o devedor a pagar suas dívidas, que pune
comutativamente os autores de delitos, que afasta sumariamente o príncipe que se divorcia da
promoção do bem comum. Direito é, portanto, o objeto da justiça, na melhor estrutura jurídicometodológica medieval.
Considerações finais
321 Sobre os julgamentos conduzidos por clérigos, conforme a citada Questão 64, Artigo 4, secunda secundae, da Suma,
TOMÁS afirma: “Aos clérigos não é lícito matar, por dupla razão. 1º São escolhidos para o serviço do altar, no qual se
representa a paixão de Cristo imolado, ‘que, ao ser espancado, não espancava’. Portanto, não compete aos clérigos espancar
e matar (...). 2º Outra razão é que aos clérigos se confia o ministério da Lei Nova, que não comporta pena de morte ou
mutilação corporal”.
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Ao que vislumbramos dos fatos e avanços do mundo medieval, surpreende-nos a
pertinência da temática em meio às disciplinas e atividades jusfilosóficas em voga no mundo ocidental.
O sistema de liberdades e deveres básicos que integra constituições e leis não se distingue, em seu
âmago, ao menos teoricamente, das noções do justo e do correto que permeavam o direito natural
medieval.
Institutos jurídico-filosóficos hoje elevados a princípios constitucionais não são senão uma
reprodução, às vezes literal, daqueles construídos desde o Medievo tomista. Exemplos lapidares são os
preceitos de justiça social que norteiam variados sistemas jurídicos (vide, v.g.,os artigos 1º e 3º da
Constituição Federal do Brasil).
Quando se observa retrospectivamente o Século XIII nem sempre se reconhece o fato de
que os pensadores medievais foram inovadores e precursores de uma nova concepção teológicofilosófica, com imbricações jurídicas que desafiam e avançam no tempo e corrigem injustiças de
normas artificiais.
É tempo, pois, de se redescobrir o pensamento filosófico medieval, inclusive com atenção
à sua exitosa história, rompendo com a cultura descabida e reproche ao Medievo. Com idéias e ações
extraordinariamente empíricas e, como tal, contemporâneas, os medievais são induvidosamente
autoridades culturais também no nosso tempo.
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O PAPEL DA ECCLESIA NA LEGITIMAÇÃODO REX VISIGOTHORUM RECAREDO E
NA DESCONSTRUÇÃO DA IMAGEM DE HERMENEGILDO
Cynthia Valente322
Córdoba, fevereiro do ano do senhor de 584. Hermenegildo está refugiado em uma Igreja
Católica. Ao seu encontro chega seu irmão e antagonista Recaredo, vencedor da guerra civil que
assolou o reino visigodo de Leovigildo entre 579 e 584.
O irmão leva Hermenegildo até seu pai, em Toledo, sede do reino visigodo, onde, segundo as fontes, o
filho derrotado ajoelha-se e pede perdão ao pai. O rei Leovigildo, então, levanta, beija o filho, mas o
despe de suas vestes reais e o manda em desterro para Valência. Ao que consta, o pai envia um
sacerdote ariano para forçar a conversão de Hermenegildo, esse recusa e acaba sendo enviado à
Tarragona, onde permanecerá preso. Ali, em 585 é decapitado por um godo de nome Sisberto.
Em 587, com a morte de Leovigildo, Recaredo assume o trono visigodo e buscando o apoio do
clero católico, se converte e, durante o III Concílio de Toledo, em 589, transforma o Catolicismo em
religião oficial.
Recaredo era agora é um rex visigothorum, apoiado pelo clero católico.
Essa transformação não seria tão estranha se, pouco tempo atrás ele não fosse o antagonista do
auto-intitulado rei católico Hermenegildo, que a essa altura já não era mais lembrado como mártir, mas
que agora era reconhecido apenas como um déspota que traíra o próprio pai.
A manipulação da imagem dos dois irmãos teve total participação do clero católico. Dotados de
grande erudição, esses clérigos católicos, e principalmente os bispos, tinham papel de destaque na
comunidade, eram formadores de opinião e propagadores da ideologia vigente, ideias que encontravam
acolhida em meio a uma população em grande parte iletrada.
Pretendemos mostrar aqui a participação da ecclesia visigoda nos âmbitos do poder real
visigodo.
322
Mestranda em História NEMED/UFPR –[email protected]
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Começaremos pelo papel de grande importância que teve o Bispo Leandro de Sevilha na
conversão católica de Hermenegildo.
Em 573, Hermenegildo e seu irmão Recaredo, foram proclamados pelo pai, consortes régios. O
primeiro foi enviado em 579 para as províncias do sul, recém conquistadas e com forte presença
hispano-romana, para que as administrasse. Juntamente com ele, foi sua esposa Ingunda, neta de sua
madastra Gosvintha, e filha de Brunilda, a esposa do rei austrasiano Sisberto.
Ingunda era católica, fato que levou primeiramente à uma situação muito conflituosa com sua
avó ariana, o que favoreceu sua aproximação com o Bispo Leandro de Sevilha, um ardoroso católico.
Portanto, a conversão de Hermenegildo ao Catolicismo era uma questão de tempo.
Várias foram as motivações da guerra civil que se seguiu. O filho rebelde teve o apoio da
aristocracia hispano-visigoda do sul que estava sob jugo de Leovigildo. Esse grupo era
majoritariamente católico.
A rivalidade entre católicos e arianos, que perdurou por muito tempo na Península Ibérica, tinha
também relação com uma questão de identidade. Os Godos enxergavam no Catolicismo uma questão
identitária, para eles essa fé estava ligada aos hispano-romanos, por isso o marco de identidade estava
no Arianismo.
Desde a conversão dos Godos pelo Bispo ariano Ufila, essa fé permanecia como uma
característica de identidade desses bárbaros, em diferenciação com a fé católica hispano-romana.
Uma outra questão a ser levada em conta foi a relação que a rainha Gosvintha, madastra de
Hermenegildo, mantinha com sua neta Ingunda, que também era a esposa do rebelde. Todas as
tentativas de conversão forçada e agressão física sofridas pela princesa austrasiana por sua avó, podem
ter contribuído para formar uma rede de intrigas que alimentou o antagonismo entre pai e filho.
O historiador Santiago Castellanos ainda levanta a hipótese de uma conexão austrasiana, na qual
Gosvintha teria tramado para que Hermenegildo se rebelasse contra o pai e garantisse o poder para a
linhagem de Atanagildo, nesse caso, a questão religiosa ficaria em segundo plano, pois o que
interessava era a sucessão do reino. A guerra então teria tido uma motivação sucessória323.
323
CASTELLANOS, S. Los godos y la cruz. Recaredo y la unidad de Spania. Alianza
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O apoio do poderoso Leandro de Sevilha também foi fundamental. A ligação do bispo e de
Ingunda era grande, tanto que ele batizou e converteu Hermenegildo. Além disso, o grande apoio que
esse filho de Leovigildo teve no sul se deu graças à influência de Leandro de Sevilha na comunidade
hispano-romana.
Leandro era um grande combatente da heresia ariana, sempre pronto para lutar pela conversão de
infiéis. Portanto, era uma figura politicamente antagonista do rei ariano. Ao que sugerem as fontes, ele
procurou o apoio do Império Bizantino.
O fato é que, entre os anos de 579 e 586, o bispo sevilhano viajou para Constantinopla. Sobre tal
viagem muito se especulou. Obviamente, Leandro viajou em busca de apoio militar de Bizâncio para
Hermenegildo. Constantinopla estava envolvida em outras pelejas e não deu atenção imediata ao caso,
mas acabou cedendo e prometeu apoio logístico.
Esse apoio não chegou, pois Leovigildo soube da intenção de Leandro e acabou comprando a
neutralidade bizantina com ouro.
Interessante levantar aqui o fato de que Isidoro silenciou com relação à viagem do irmão
Leandro à Constantinopla. Tal atitude por parte do grande Isidoro foi intencional.A situação se
invertera, Recaredo tornara-se o rex visigothorum e transformara a religião católica em credo oficial do
reino em 589 durante o III Concílio de Toledo presidido por Leandro de Sevilha.
Obviamente, Isidoro manipulou o registro da ligação do irmão Leandro com Hermenegildo,
inclusive este último foi tratado por ele como tirano e traidor. A manipulação da informação por parte
do clero demonstra claramente a participação do mesmo no fortalecimento da imagem do Reino
Visigodo sob a coroa de Recaredo.
Percebemos, portanto, que a revolta liderada por Hermenegildo visava a usurpação do trono das mãos
do rei Leovigildo, e que mesmo enfrentando essa guerra, esse último conseguiu ao final do seu
reinado, garantir a hegemonia visigoda sobre a Hispania, como nos mostrou o historiador Renan
Frighetto324.
Editorial. Madrid, 2007.
FRIGHETTO, R. A antiguidade tardia. Roma e as monarquias romano-bárbaras numa época de transformações. Séculos
II-VIII. Juruá: Curitiba, 2012. p.170.
324
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Tais transformações, que a monarquia visigoda sofreu nas últimas décadas do século VI, teve total
participação de membros influentes do clero católico.
A ecclesia desse período na Hispania possuía membros de alta erudição.
Fora das camadas mais altas da sociedade visigoda, leia-se a aristocracia e o clero, o restante da
população era praticamente iletrado. Isso fez com que a camada eclesiástica fosse vista como uma
liderança natural no interior de suas comunidades. Posição cada vez mais interessante e que passou a
ser mais incentivada pela ecclesia.
Tanto que a preocupação com a instrução do clero torna-se presente desde os primeiros concílios. Os
monastérios construídos no território ibérico funcionaram perfeitamente como centro de formação
desses clérigos. A partir do período não seriam mais admitidos sacerdotes analfabetos.
Essas e outras exigências começam a ser cobradas a partir do IV Concílio Toledano, celebrado
em 633, quando ficaram proibidos a assumir o cargo de bispo, além dos iletrados, os culpados de
algum delito, praticantes de heresia ariana, batizados ou rebatizados nela, aqueles que sofreram algum
tipo de desonra natural ou imposta, os que foram casados duas vezes, os que foram casados com
viúvas, os que tiveram amantes, os escravos, os membros dos serviços civis e militares e os homens
menores de quarenta anos325.
O candidato deveria também ter passado por todos os cargos eclesiásticos e teria que ser eleito
pelo povo e pelo clero de sua cidade. Além da consagração, que devia contar com a participação de
três bispos em uma cidade escolhida pelo metropolitano326.
Todas essas exigências para a nomeação de um bispo eram mais do que coerentes com o papel
que a ecclesia vinha construindo dentro da comunidade hispano-visigoda. A melhor formação de
clérigos se daria a partir de uma eficaz propagação da ortodoxia católica, e a sua consequente e futura
participação no poder do reino.
A união de forças que provavelmente ocorreu entre o Bispo Leandro de Sevilha e Ingunda teve como
objetivo a conversão e o batismo de Hermenegildo e a penetração católica no seio da nobreza visigoda.
325
326
THOMPSON, E.A. Los Godos en España. Alianza Editorial: Madrid, 2007. p.349. Livre tradução.
Ibid. p.350. Livre tradução.
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Com a derrota dessa empreitada, os clérigos católicos, como Juan de Bíclaro e Isidoro de
Sevilha, trataram de manipular a participação de Leandro e de membros da ecclesia na frustrada
rebelião.
Finda a guerra civil, o rei Leovigildo manteve o Arianismo como credo oficial do reino, o que
ainda criaria divisões internas na aristocracia nobiliárquica. Com sua morte, em 586, e a ascensão ao
trono do seu filho Recaredo, essa situação começou a se modificar.
Em 587, o novo rei se converte ao Catolicismo, primeiro passo para unir os segmentos
aristocráticos visigodo e hispano-romano.
Era de suma importância conquistar o apoio do clero católico que tinha figuras de grande
influência como Leandro de Sevilha. Por isso a necessidade de construção de uma nova imagem para o
reino e para aqueles que estiveram de alguma forma envolvidos com a guerra.
Isidoro de Sevilha, em seu Las Historias de los Godos, Vándalos y Suevos, trata de minimizar o
antagonismo do irmão Leandro com o rei Leovigildo, dizendo que esse era muito impiedoso, perseguia
os católicos e relegou vários bispos ao desterro, além de confiscar bens da igreja 327. Ao mesmo tempo,
qualificou Hermenegildo como usurpador328.
Havia um projeto em construção que começou com Leovigildo, cujas arestas foram aparadas por
Recaredo, que seria a união hispano-visigoda sob o Reino Toledano, com o auxílio de uma única fé.
A conversão de Recaredo foi ao encontro dessa proposta de reino. Sua conversão teve como
objetivo um reino unido em uma só religião. O objetivo do monarca era trazer para o reino o apoio dos
clérigos católicos e da aristocracia hispano-romana que professava essa fé.
A imagem de Recaredo retratada por Isidoro de Sevilha na História dos Godos, Suevos e
Vândalos, é exatamente a de um príncipe da igreja. Segundo ele, o monarca em nada lembrava o pai
Leovigildo; enquanto esse dominava pela espada, o filho usava a fé. Isidoro ainda afirma que
327
ALONSO, C.R. Las Historias de los Godos, Vándalos y Suevos de Isidoro de Sevilla. Estúdio, edición critica y
traducción. Centro de Estúdios e Investigación. León, 1975.p.257.
328
Ibid. p.255. Livre tradução.
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Recaredo, com sua conversão, foi responsável por apagar a mancha da história dos Godos, o
Arianismo329.
A partir da conversão de Recaredo, o clero católico assume uma posição de muita influência na
corte régia. Situação que, apesar da grande influência dos bispos nas comunidades, ainda não fazia
com que esses fossem vistos com simpatia pelos monarcas arianos.
Juan de Bíclaro, clérigo católico, contemporâneo dos irmãos Leandro e Isidoro de Sevilha, Bispo de
Girona, teve grande influência na construção da imagem dos irmãos antagonistas.Não podemos
esquecer que os bispos católicos tiveram um papel decisivo tanto na conversão de Hermenegildo,
quanto na conversão de Recaredo e do próprio reino.
Não nos parece exagerado enxergar nas obras de Juan de Bíclaro e Isidoro de Sevilha, materiais
altamente ideológicos que estavam a serviço de um propósito.
Na Cronicae, obra escrita pelo Bispo de Girona, ele atribuiu à rainha Gosvintha o papel de
instigadora da guerra sucessória que se seguiu. Ela teria ficado furiosa com a conversão do enteado ao
Catolicismo pelo Bispo Leandro de Sevilha, e teria apelado ao rei pela unidade330.
Podemos supor que dificilmente o rei Leovigildo ficaria inerte diante da conversão de seu filho
Hermenegildo ao Catolicismo. Mesmo com a influência darainha Gosvintha, o rei sentiu que seu
reinado poderia ruir devido ao apoio que os católicos dariam a ele.
Juan de Bíclaro, assim como Isidoro de Sevilha, responsáveis pela transmissão da história oficial
goda à época do rex visigothorum Recaredo, utilizaram os termos tyrannum filium331, para
Hermenegildo.
O termo dá margem à interpretação de que Hermenegildo assumiu ilegitimamente o trono, imagem
essa que deveria entrar em harmonia com a história oficial goda escrita por Juan de Bíclaro e mais
tarde por Isidoro de Sevilha. Com isso, a conversão ao Catolicismo e o martírio de Hermenegildo serão
postos de lado nos trabalhos dos dois bispos.
329
Ibid. p.261. Livre tradução.
CAMPOS, J. Juan de Biclaro Obispo de Gerona. Su vida y su obra. Consejo Superior de Investigaciones Científicas.
Madrid, 1960. p.132
331
Ibid. p.132.
330
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A ecclesia inaugurava uma época de entrelaçamento com o poder régio, ao assumir para si a
tarefa de construção de uma unidade católica régia no trono visigodo.
Em 589, o Bispo Leandro de Sevilha preside o III Concílio Toledano, que transformará, pelo aval do
rex visigothorum Recaredo, o Catolicismo em religião oficial. Os antagonistas agora tinham o mesmo
objetivo e serviam à mesma causa. A essa altura, Hermenegildo era uma lembrança desagradável tanto
para o clero quanto para o poder régio.
Segundo ressalta Thompson, durante o III Concílio de Toledo nada foi dito de maneira direta ou
indireta sobre Hermenegildo e seu martírio332. A manipulação da memória estava em mãos hábeis.
A história dos Concílios Toledanos começa no século IV. O primeiro realizou-se em 397, e teve
como tema principal a condenação das heresias e a reafirmação do credo niceísta, já que esse tinha se
tornado a vertente teológica oficial do Império em 380.
Nesse período, os clérigos católicos eram tolerados dentro da Hispania ariana apenas por benevolência
do rei. Essa insegurança católica pode ser percebida nesses primeiros encontros, nos quais o clero
sempre agradecia a benevolência do rei por permitir a sua realização.
Já o III Concílio Toledano tem uma natureza totalmente distinta. O clero católico já apresentava
bastante poder. Apesar dos concílios serem convocados somente pelo rei e com a anuência deste,
bispos e padres gozavam de muita autonomia e influência dentro das comunidades, inclusive podemos
arriscar dizer que tanto o poder régio quanto o poder da ecclesia, estavam em igualdade de forças.
A realidade é que a partir da conversão do reino e da construção da imagem do rex visigothorum,
clero e monarquia dependerão um do outro, mesmo com rusgas entre seus máximos expoentes.
Um bom exemplo sobre essa medição de forças é o caso do Bispo Metropolitano Ildefonso de
Toledo, que assume em 657 a sede do bispado, mas durante o período em que esteve à frente da Igreja
Toledana, nenhum concílio foi convocado pelo rei Rescesvinto. Somente após a morte do bispo, em
667, é que o monarca convocará uma nova reunião. Provavelmente por divergência entre ambos.
O Bispo Ildefonso de Toledo era proveniente do grande Mosteiro de Agali, famoso centro de
saber e formação de grandes nomes da igreja como Isidoro de Sevilha. O irmão mais novo do Bispo
332
THOMSON, E.A. Los Godos en España. Alianza editora. Madrid, 2007. p. 120. Livre tradução.
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Leandro assumiria a dianteira na tarefa de construção de uma única identidade dentro da Hispania
visigoda.
Em A História dos Godos, Vândalos e Suevos, de Isidoro de Sevilha, nota-se já no começo a
proposta de união dos povos de diferentes origens que habitavam o reino visigodo. Já no início da
obra, Isidoro clama pela Espanha, terra sagrada e mãe de príncipes e povos.333
A obra, de claro matiz ideológico, cita Hermenegildo como usurpador do reino. Apenas uma linha é
dedicada para tratar de uma guerra que durou 5 anos e sobre o fato de que seu irmão estava totalmente
envolvido com o “príncipe usurpador”. O nome de Leandro de Sevilha não é ligado a Hermenegildo
em nenhum momento, assim como o episódio de seu martírio sequer é lembrado.
Ao final, há uma comparação entre o rei ariano Leovigildo e o rex visigothorum Recaredo. Falase muito das virtudes do mesmo, e do quanto ele é diferente do pai, para melhor, exaltando sua
bondade e fé. Para Hermenegildo, nenhuma palavra. Os feitos de Recaredo são citados de forma a que
não restem dúvidas de como esse monarca católico era valoroso, e para tanto, seu passado ariano e a
guerra contra o irmão católico acabaram sendo totalmente suprimidos. Recaredo é ainda tratado como
um príncipe religiosíssimo.334 As guerras das quais ele participou são justificadas também por Isidoro,
pois eram contra povos inimigos do reino e contavam com total apoio da fé. Segundo o bispo, o rex
visigothorum Recaredo era tão amável, delicado e de notável bondade, seu rosto refletia tanta
benevolência e tinha em sua alma tanta benignidade, que influía no espírito de todos, inclusive
ganhava o afeto e o carinho dos maus!335
Portanto, diante de um Recaredo dotado de tamanha perfeição, não haveria contexto para narrar a
história de Hermenegildo como mártir.
Conclusões Parciais
O período histórico em que se situa o Reino Visigodo de Toledo pode ser chamado de Antiguidade
Tardia. Um período de transição e de ruptura política dentro do Império Romano. O historiador Renan
333
ALONSO,C.R. Las Historias de los Godos, Vándalos y Suevos de Isidoro de Sevilla. Estudio, edición critica y
traducción. Centro de Estúdios e Investigación. León, 1975.
334
Ibid.p.263. Livre tradução.
335
Ibid.p.267. Livre tradução.
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Frighetto chama a atenção para essas transições que ocorreram no Mediterrâneo, cronologicamente,
entre os séculos III e VIII.336
Um período no qual se formou a monarquia romano-bárbara na Península Ibérica, em que
elementos hispano-romanos foram se misturando aos elementos Godos. Um período no qual o
Catolicismo, como ocorreu em outros lugares da Europa, vinha ganhando espaço entre pagãos e
heréticos.
Mas essas rupturas não foram tranquilas. No que se refere à conversão do reino ao Catolicismo
menos ainda. Antes confinadas, em sua maioria, na província de Bética ao sul, onde hoje é a
Andaluzia, a aristocracia hispano-romana e católica viu no príncipe Hermenegildo uma forma de
chegar ao trono, pois, insuflado pela esposa católica Ingunda e pelo Bispo Leandro de Sevilha, se
converteu e reclamou o trono para si.
Esse apoio dos grupos aristocráticos e nobiliárquicos do sul a Hermenegildo não passou despercebido
a seu irmão Recaredo. Uma das motivações de sua conversão e a do reino foi angariar o apoio desses
grupos bem como o do clero católico.
Além disso, interessava a ele a construção de uma imagem real onde seu poder fosse amparado
por algo divino e incontestável. A construção de um modelo de príncipe serviria para justificar essa
realeza divina.
O clero católico viu na aliança com Recaredo a possibilidade de chegar ao poder e impor o
Catolicismo aos demais súditos reais, enterrando de vez o Arianismo que tanto os incomodava.
Obviamente seria necessária toda uma construção identitária para o novo modelo de rei e de
reino. Não cabia então o fato do novo monarca estar ligado à uma guerra onde ele lutou contra seu
irmão e mártir católico. Daí, portanto, a necessidade de manipulação da história por parte de Juan de
Bíclaro e Isidoro de Sevilha.
A mudança de fé no reino não se deu rapidamente. No interior, os cultos pagãos continuaram
atuando por muito tempo até que a ecclesia se fortalecesse e passasse a espalhar monastérios e com
FRIGHETTO, R. Cultura e Poder na Antiguidade Tardia Ocidental. Juruá. Curitiba, 2005.p.20
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eles a sua própria ortodoxia. Muitas pessoas que continuaram praticando a fé ariana passaram a ser
pressionadas e suas igrejas foram convertidas em católicas.
Mas o Catolicismo não retrocedeu, aos poucos a ecclesia se fortaleceu e se constituiu enquanto
instituição, passando de uma comunidade para uma Igreja Católica de culto niceísta, a nova ortodoxia
oficial.
Quando a rusga teológica entre Oriente e Ocidente começou a dar sinais de fortalecimento, o
então Papa Gregório Magno, que foi amigo do Bispo Leandro de Sevilha enquanto era Bispo de Roma
- e no momento preciso em que se desenrolava a guerra civil visigoda -, escreveu um texto onde
defendia a presença de uma grande quantidade de santos e mártires - a cristandade ocidental precisava
dos seus para se comparar à oriental e seus inúmeros santos e mártires.
Nesse ponto, a conversão e o martírio de Hermenegildo foram resgatados no texto Diálogos do
Papa Gregório Magno, dando-nos outra versão dos acontecimentos, diferenciando-se das fontes
oficiais que apagaram da memória a história de um príncipe e elevaram a rex visigothorum a figura de
outro.
Referências Bibliográficas
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A MEMÓRIA COMO ATO EDUCATIVO
Divania Luiza Rodrigues Kono337
Terezinha Oliveira338
Refletir sobre a importância histórico-educacional da memória é relevante para conhecermos o
valor educacional atribuído à memória pelos homens do passado, como os do século XIII, bem como
para a reflexão atual, na qual a memória, como capacidade intelectiva é percebida como pouco
necessária até mesmo em ambientes escolares.
Lauand (1998, p. 1) ao se referir ao potencial educativo dos sermões de Santo Agostinho (354430) localiza a importância da memória como principal instrumento de aprendizagem naquele
momento. O autor afirma que “Ao contrário da pedagogia atual, que não valoriza e até chega a
desprezar a memória, muito mais do que a mera faculdade natural de ‘lembrar-se’ ou o exercício de
habilidades mnemônicas, era vista como a base de todo o relacionamento humano com a realidade”.
Devemos considerar o fato da escassez de recursos de escrita para a época, em que até a escrita manual
era dificultosa. Neste caso, ter os textos na memória era imprescindível para que a pregação e a
aprendizagem fossem realizadas.
Entendemos que pela leitura do passado, buscamos elementos para compreender o homem em
sociedade. Todavia, essa busca ao passado é orientada pelo olhar e por perguntas do presente. Marc
Bloch (2001, p. 55) – medievalista e um dos fundadores junto com Lucien Febvre, em 1229, da
Revista Annales - entende a história como a "ciência dos homens" e acrescenta "dos homens no
tempo". Para este historiador, o objeto da história não é o passado e não se resume na acumulação de
acontecimentos, mas é preciso compreender os fatos ao longo do tempo, estabelecendo suas relações
com o presente.
337
Mestrado em Educação. Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPE/UEM). Universidade Estadual
de Maringá (UEM). E-mail: [email protected]
338
Pós-doutorado na área de História (USP, 2005). Universidade Estadual de Maringá (UEM). E-mail: [email protected]
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Destacamos, com essas reflexões, que o contexto atual de rapidez e de muitas informações
apresenta novos desafios de preservação da memória, portanto, novos desafios ao campo educacional,
que tem como uma de suas características fazer lembrar o passado. A memória, enquanto preservação
do que é ou foi importante para o coletivo dos homens, ainda é consenso. A necessidade de preservar a
memória, o passado que nos identifica como homens de nosso tempo constituem-se como elemento
educativo fundamental.
Neste sentido, optamos pela pesquisa que se estrutura nas orientações da História Social, que ao
valorizar a diversificação de documentos, permite conexões interdisciplinares na análise sobre o
passado, valorizando os diferentes sujeitos, suas relações e a compreensão do processo histórico
relativo às permanências e às transformações temporais (CASTRO, 1997). Notamos que os fenômenos
educacionais se desenvolvem no tempo, nas relações humanas, definindo-se com as mudanças na
sociedade e, por isso, a educação que é um ato de formação humana, se transforma.
O século XIII é marcado por grandes transformações aos homens do Ocidente, especialmente,
pelo desenvolvimento comercial e urbano, pelo surgimento das Universidades e das Ordens
Mendicantes, como a Ordem dos Pregadores, da qual Alberto Magno foi membro. No século XIII, há
escassez de recursos de escrita e a memória é fundamental para a aprendizagem, o conhecimento, a
transmissão de cultura e um dos fundamentos para as relações humanas (LAUAND, 1998).
Alberto Magno, também conhecido como Alberto de Colônia, nasceu em Lauingen, na região
da Suábia, às margens do Danúbio, na diocese de Augsburg, na Alemanha (CANAVERO
TARABOCHIA, 1987). A data de seu nascimento é imprecisa, sendo mencionadas pelos estudiosos,
principalmente, os anos de 1193 e 1206, mas há referência também ao ano de 1200. Tarabochia
Canavero (1987) - pesquisadora italiana - destaca que, na vida de Alberto Magno há poucas datas
seguras e, apenas a data de sua morte em 1280, em Colônia, pode nos ajudar, de certa maneira, a
estabelecer a data de seu nascimento.Na cronologia publicada, na Alemanha, pelo Instituto Alberto
Magno - responsável desde 1931 pela edição histórico-crítica das obras albertianas e pesquisas - o
nascimento do mestre dominicano ocorre em 1200ca.
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Nos estudos de Garreau (1994), há alguns elementos relativos à formação inicial de Alberto
Magno, os quais podemos relacionar à importância da memória para a aprendizagem, no contexto do
século XIII. Segundo o estudioso francês, as primeiras noções da língua latina, a leitura e a escrita,
podem ter sido ensinadas a Alberto Magno por algum clérigo de Lauingen. Um ensino mais completo,
no entanto, ocorria nas escolas conventuais, como a dos beneditinos de Santo Ulrico, em Augsburgo. É
provável que, Alberto Magno e seu irmão Henrique339, tenham frequentado esta escola renomada.
Nesta fase, Alberto Magno aprendeu os ensinamentos pela memória, o que era essencial para a
aprendizagem naquele momento histórico que carecia de recursos, até mesmo de livros. “De memória
se aprendia o Saltério: papel muito importante é o da memória em um século em que os livros são
escassos e custosos”340 (GARREAU, 1944, p. 29 Tradução nossa).
Posteriormente, como teólogo dominicano e mestre universitário, Alberto Magno escreveu
numerosas obras, das quais muitas ainda não são de acesso ao grande público. Dedicou a sua vida aos
estudos, ao ensino e à evangelização. Participou de debates intensos de seu tempo e lutou pela
fidelidade ao conhecimento produzido por ele e pela ordem dos pregadores. De seu envolvimento com
as questões de sua época, observamos o seu compromisso intelectual, direcionado para o bem comum.
O conceito de bem comum, pode ser explicado com a concepção política de Aristóteles. No
livro Política, Aristóteles define o Estado, como superior ao indivíduo, ou seja, a coletividade superior
ao indivíduo. O bem comum está relacionado ao bem supremo, ao bem geral, ao bem de todos, ao
interesse público. Portanto, o bem comum é superior ao bem particular, da pessoa. Ainda que o bem
comum se diferencie do bem particular, da pessoa, não o anula, pois um dos fins do bem comum é
garantir que cada indivíduo se realize para bem servir a comunidade.
Com relação à obra De bono, a matéria principal abordada no documento e da qual se
organizam os tratados sobre as virtudes, refere-se, como o título indica, Sobre o bem. Na primeira
parte, o bem é enfocado do ponto de vista da moral. Quanto à estrutura, cinco tratados compõem a
339
Alberto teve um irmão mais novo Henrique (Henri de Lauingen), que também participou da Ordem de São Domingos e
chegou a ser prior do convento de Würzburg (GARREAU, 1994; CRAEMER-RUEGENBERG, 1985; TARABOCHIA
CANAVERO, 1987).
340
“De memoria se aprendia el Salterio: papel muy importante el de la memoria en un siglo en que los libros son escasos y
costosos” (GARREAU, 1944, p. 29).
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obra De Bono: o primeiro, do bem em geral; o segundo, da fortaleza; o terceiro, da temperança; o
quarto, da prudência; o quinto, da justiça. Esta obra data do período de juventude de Alberto Magno e
foi escrita, provavelmente, no ano de 1242, quando era Bacharel na Universidade de Paris. Em Paris,
como expõe Steenberghen (1984?), Alberto Magno se dá conta do progresso do aristotelismo 341 na
Faculdade de Artes e, a partir disso, empreende sua obra filosófico-científica, que lhe rendeu “renome
sem igual”, ainda em vida. Neste texto, abordaremos alguns aspectos do Tratado sobre a Prudência Tratado IV De prudentia - no qual, o mestre dominicano trata com maior ênfase a questão da memória.
Alberto Magno, vinculado à Igreja e à Universidade, instituições que exercem um papel
fundamental na formação dos homens, no seu papel evangelizador e educador – de religiosos, fiéis e
discípulos - apresenta a memória vinculada a uma virtude: a prudência. O mestre dominicano fala da
educação da memória e pela memória. A memória apresentada por Alberto Magno leva-nos a pensar
na memória retórica, usada como técnica de memorização (mnemotécnica) nos sermões, por exemplo,
mas, principalmente, como ato educativo para orientar determinados comportamentos, já que se
encontra vinculada a uma virtude.
A prudência é identificada como a maior das virtudes, ou o “auriga” das virtudes. A prudência
orienta todas as outras virtudes, pois sem a prudência para orientar a reta razão, a tomada de decisão
certa, não há amparo para a virtude da fortaleza, da temperança e da justiça.
A prudência é a primeira das virtudes cardeais e não só é a primeira entre as outras na
classificação, mas, “domina” toda virtude moral (PIEPER, 2010). Ainda que nossos hábitos de
pensamento e de linguagem dificultem a nossa concordância e até o entendimento da questão, a prática
da Justiça, da Fortaleza ou da Temperança requer ao mesmo tempo, e até antes, que o homem seja
prudente. Não basta o desejo de Justiça sem antes conhecer a realidade (PIEPER, 2012).
341
A obra De bono foi escrita no período de juventude de Alberto Magno, quando ele ainda não conhecia toda a obra de
Aristóteles. Neste período, do texto grego Ética a Nicômaco - Liber Ethicorum – se conheciam as traduções latinas
realizadas por Robert Grosseteste, bispo de Lincoln, entre 1240 e 1249. Dessa obra, de relevância para a Escolástica
medieval, Alberto Magno não conhecia o Livro VI. Portanto, ainda não conhecia as páginas relativas à justiça e à prudência
em Aristóteles. A tradução latina da Ética a Nicômaco foi completada e revisada por Guilherme de Moerbecke, no ano de
1260, o que consolida um novo vocabulário e um novo quadro conceitual para o pensamento político (TARABOCHIA
CANAVERO, 1987; MARTINS, 2011).
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A afirmação da supremacia da prudência, como exposta por Pieper (2010), contém algo mais
que uma ordem entre as virtudes cardeais, mas ela possui uma enorme importância prática. A
prudência expressa, em linhas gerais, o conceito de base da realidade, que se refere à esfera da moral
“[...] o bem pressupõe uma verdade, e a verdade o ser”342 (PIEPER, 2010, 13, Tradução nossa). Assim,
a supremacia da prudência significa que
[...] a realização do bem requer um conhecimento da verdade. ‘O primeiro que
se exige de quem faz é que conheça’ diz Santo Tomás. Quem ignora como são
e estão verdadeiramente as coisas não pode fazer o bem, pois o bem é o que
está de acordo com a realidade343 (PIEPER, 2010, p. 13, Tradução nossa).
A prudência, nesse sentido, inclui, por exemplo, um “axioma pedagógico, pois
A educação e auto-educação, a fim de emancipação moral, deve ter o seu
fundamento na respectiva educação e auto-educação da virtude da prudência,
ou seja, na capacidade de olhar objetivamente para a realidade a respeito de
nossas ações e de regulamentos para o ato, de acordo com sua natureza e
importância344 (PIEPER, 2010, p. 14).
Com o autor, notamos que o sentido da prudência e a sua posição privilegiada está em que
vejamos a realidade, como realmente são os elementos que compõem a situação que nos exige uma
decisão (PIEPER, 2012, p. 96). A tomada de decisão implica conhecimento da realidade, o que se
constitui em elemento educacional fundamental: conhecer para tomar decisão. Não só conhecer e
“[…] el bien presupone ¡a verdad, y la verdad el ser” (PIEPER, 2010, 13).
“[…] la realización del bien exige un conocimiento de ¡a verdad. «Lo primero que se exige de quien obra es que
conozca », dice Santo Tomás. Quien ignora cómo son y están verdadeiramente las cosas no puede obrar bien, pues el bien
es lo que está conforme con la realidade ” (PIEPER, 2010, 13).
344
“La educación y autoeducación, en orden a la emancipación moral, han de tener su fundamento en la respectiva
educación y autoeducación de la virtud de la prudencia, es decir, en la capacidad de ver objetivamente las realidades que
conciernen a nuestras acciones y hacerlas normativas para el obrar, según su índole e importancia” (PIEPER, 2010, p. 14).
342
343
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decidir, mas decidir para o bem. As reflexões de Pieper (2012) nos possibilitam pensar que a virtude,
desse modo, se refere a uma atitude exigida e realizada, primeiramente, pelo homem individualmente.
Não se deve apenas esperar uma mudança da sociedade, mas antes observar a mudança no indivíduo.
A virtude, o comportamento moral é que leva o homem a agir para o bem da comunidade; este
conhecimento é necessário para o bem do homem, que move-o para a ação, construção e elaboração
prática do bem comum.
Na segunda parte do Tratado, Alberto Magno aborda as partes que compõe a prudência memória, inteligência e providência - de acordo com as divisões de Marco Túlio (Cícero), de
Macróbio e de Aristóteles. Ao tratar da prudência, Alberto Magno, explicitou suas ideias sobre o que é
a memória (art. 1) e qual é a arte da memória (art. 2), procurando mostrar que há duas naturezas de
memória: a natural e a artificial (471). A memória artificial – que se aprende pelo ensino – é formada
por lugares e imagens.
A elaboração de Alberto Magno acerca da prudência/memória é fruto de um contexto de
transformações sociais, para o qual ele se posicionou e produziu sua obra. Algumas reflexões nos
conduzem a pensar o momento vivido pelo mestre dominicano. Em que medida a elaboração
Albertiana da memória constituída por imagens contribuiu para atender a educação dos homens de seu
tempo? Por que Alberto trata da questão da memória articulada à virtude da prudência?
Entendemos que estudar como os homens do passado compreenderam o seu tempo e como
elaboraram propostas para os embates que os envolviam possibilita aos homens do presente vislumbrar
possibilidades educativas desse conhecimento. Neste sentido, concordamos com Oliveira (2009, p.
683) quando afirma que “[...] os processos históricos, os fenômenos educativos e as instituições
escolares e universitárias de outros tempos históricos podem servir de pontos de partida para uma
reflexão dos homens contemporâneos diante das suas questões”.
A memória recebe maior ênfase no tratado, pois entre as partes da prudência, diz Alberto
Magno, ela é a mais importante, pois é a que ajuda o homem a olhar para o passado, orientando as
decisões do presente (inteligência) e as do futuro (providência). A memória é entendida como parte da
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prudência, pois - de acordo com a definição de Cícero, “[...] é a faculdade pela qual o ânimo relembra
as coisas que foram” (ALBERTO MAGNO, 1951, p. 245).
Podemos afirmar que Alberto Magno, no Tratado sobre a Prudência, elabora uma didática para
a memória. Para ele a memória é melhor constituída por imagens – de coisas e de palavras posicionadas em série e em um lugar específico. As imagens maravilhosas, segundo Alberto Magno,
são imagens exuberantes e que marcam o fato a ser lembrado. É necessário o uso de imagens mentais
imponentes para que o sujeito possa lembrar-se de algo importante.
Quando olhamos para esta questão, observamos que a proposta de uso de imagens agentes assim denominadas pela estudiosa da arte da memória Frances Yates (2007) - para constituir a
memória não é algo recente. Notamos que na atualidade muitos processos educacionais – não apenas
os escolares - se orientam para marcar ou registar na memória, por meio de imagens, o que é
importante para os homens de determinado contexto social.
Hoje, resguardadas as mudanças e as permanências, temos suportes diferentes e específicos
para a exibição de imagens surpreendentes e exuberantes para constituir a memória, como as
produzidas e veiculadas, por exemplo, por meio da televisão e do cinema. A compreensão do que é ser
letrado, educado, nos dias atuais, passa pelo reconhecimento de que imagens e sons são tão
importantes para criar conhecimento e comunicar quanto o material impresso. Assim, "[...] as
experiências compartilhadas com os outros seres humanos são, na maioria das vezes, derivadas das
imagens e sons contidos nas telas" (DALEY, 2010, p. 483). Neste sentido, observamos que a memória
e o uso de imagens, na perspectiva Albertiana, são essenciais ao processo educativo. A ação e a obra
de Alberto Magno são produtoras de memória e de imagens, cujos elementos nos levam a recuperar
alguns pontos da história da educação.
Observamos a importância desta questão para a formação humana, visto que sem a memória
não há aprendizagem de qualquer saber. A memória é a base para toda a aprendizagem. Desde o
nascimento, pela memória, acumulamos experiências fundamentais para toda a vida e para a própria
existência humana, pois uma sociedade que não possui memória, do seu passado, não tem história e
não tem condições de planejar o seu futuro, portanto, também o presente. Desse modo, consideramos o
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desenvolvimento do tema da memória essencial para a organização dos homens em sociedade. A
memória está ligada à preservação e produção de conhecimentos e permite a ligação dos homens com
a sua história, a compreensão das transformações das relações humanas, essencial para a sua
autonomia e não dominação.
Lauand (1995, p. 1) nos ajuda a lembrar que o homem é um ser que esquece e é a partir desta
constatação que se desenvolve a educação no Ocidente. Para o autor, a memória, além de um processo
intelectual, está associada ao aspecto afetivo, em que nos lembramos do que nos é importante. Assim,
ao se referir à relação educação e memória, afirma que a memória, além de uma atividade intelectiva,
está relacionada ao afetivo, ao coração. O autor esclarece, por meio de exemplos da linguagem, esta
questão, que não é por acaso que “Em diversas línguas, o lembrar, o memorizar está associado não já
(ou não só...) a um processo intelectual, mas ao coração: saber de memória é, em inglês, by heart; em
francês, par coeur; e esquecer-se de alguém, em italiano, é scordarsi, sair do coração”. Neste aspecto,
lembramos que a memória está ligada à produção e preservação de conhecimentos. Guardamos na
memória o que nos é importante, o que nos marcou efetivamente e afetivamente.
Oliveira (2007, p. 125) considera a memória um elemento formativo do ser “[...] uma questão
vital que define o comportamento e a identidade do sujeito histórico”. A autora destaca que a memória
não é uma qualidade inata do homem, mas é por meio do intelecto que aprendemos a fazer uso da
memória. As nossas lembranças estão relacionadas com a nossa capacidade de associar os
acontecimentos importantes e aqui reside o aspecto da afetividade. Desse modo, segundo Oliveira
(2007) quanto mais nos afastamos de nossas lembranças, menos nos aconselhamos acerca do presente
e do futuro do conhecimento.
Nessas leituras notamos que pela leitura do passado, da consulta aos registros, dos clássicos,
encontramos elementos para compreender o homem em sociedade. A história nos auxilia na
compreensão das transformações de nossas ações, para as quais buscamos o passado com perguntas do
presente. Assim, pensamos que os textos medievais ao repercutirem no tempo são obras clássicas e
indicam um caminho prudente para a compreensão do passado. A consulta ao De bono pode auxiliar
na compreensão da educação dos homens do século XIII - situados em um tempo e um espaço
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específico. Por outro lado, no presente, essas ideias permanecem na medida em que tratam da essência
humana (OLIVEIRA; RIBEIRO, 2009). O fundo permanente da obra está na necessidade de clareza
em planejar a educação de modo que atenda a formação do homem para a vida em sociedade.
Os autores que se tornaram clássicos, segundo Oliveira e Mendes (201, p. 9) “[...] são aqueles
que souberam captar as questões da sua época e as responderam com mais profundidade do que seus
contemporâneos”. Neste sentido, Steenberghen (1984?, p. 112) ao falar da importância da obra
filosófica de Alberto Magno afirma que “O que caracteriza os grandes gênios é terem a clara visão das
necessidades do seu tempo”. O autor ressalta que Alberto Magno teve esta intuição, que se expressa na
reorganização dos estudos em bases mais amplas, enriquecendo a cultura cristã com o que o saber
profano tinha produzido de válido.
Nesta perspectiva, concordamos que o caráter histórico e educacional das obras clássicas se
expressa por elas proporcionarem o diálogo com o passado e por traduzirem as grandes questões
humanas. A preservação da obra De bono ao longo dos séculos é um exemplo de preservação da
memória, de conservação do que é importante, o que nos auxilia na compreensão dos homens no
século XIII, as relações destes com aqueles que os antecederam e os posteriores. A arte da memória
empreendida por Alberto Magno estava amparada em Tratados clássicos de retórica e a sua
repercussão conservou-se séculos depois, influenciando a educação religiosa cristã.
Assim, pensamos como Dias (2009, p. 59), que o passado é indispensável para o processo de
compreensão das realidades educacionais e de toda a realidade presente. É importante esclarecer que,
“[...] para que a história, a memória histórica, faça sentido para os homens do presente, em especial
para as novas gerações, é imprescindível o nosso compromisso social, a nossa responsabilidade com a
educação dessas gerações” (DIAS, 2009, p. 59). E estudar as produções humanas, está intimamente
relacionado ao ato de educar, por meio do qual, relembramos, fazemos recordar, selecionamos,
destacamos o que uma sociedade precisa lembrar para não cair no esquecimento.
Referências Bibliográficas
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YATES, Frances A. A arte da memória. Tradução de Flavia Bancher. Campinas, SP: Editora da
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CÍRCULOS LITERÁRIOS NO PRINCIPADO AUGUSTANO:
CONSIDERAÇÕES SOBRE A POESIA DE HORÁCIO
Erick Messias Costa Otto Gomes345
O objetivo de nossa comunicação é apresentar uma leitura da obra do poeta romano Horácio
(século I a.C.) que leva em consideração as relações de patronagem e clientelismo que se estabelece
entre o poeta e Mecenas, e mais tarde entre Horácio e Augusto. São três as características que regem
tais relações: 1) reciprocidade ou troca de bens e serviços; 2) assimetria na posição social das duas
partes e os tipos de bens comercializados; 3) e duração da relação. Todas essas características
aparecem em Horácio, e isso significa que um patrono poderia oferecer benefícios materiais, bem
como locais e uma audiência ao poeta, em troca de seus versos, ou seja, em troca de uma poesia que
exalte o seu benfeitor. Tais perspectivas corroboram para a análise dos últimos poemas da vida de
Horácio, em especial os que compõem o livro IV das Odes e o Carmen Saeculare, em que os feitos de
Augusto são mais exaltados. A relação estabelecida entre Horácio e Augusto interfere na construção
dos poemas do livro IV das Odes, haja vista que Horácio é cliente de Augusto, devendo lhe dedicar
seus poemas e, além disso, é o próprio Augusto quem pede a Horácio para escrever dois dos poemas
que compõem o livro.
Dessa forma, nosso objetivo é refletir sobre a relação estabelecida entre o poeta Horácio e o
imperador romano Augusto, levando-se em consideração as relações de patronagem e clientelismo
estabelecida entre ambos. Nosso texto se dividirá em duas partes: primeiro, uma breve discussão
historiográfica a respeito do governo e legitimação do imperador Augusto; por fim, será apresentada a
relação entre Horácio, Mecenas e Augusto, de forma a esclarecer o porquê de se analisar as imagens
do imperador presentes na obra do poeta.
CONTEXTO DA POESIA HORACIANA: O PRINCIPADO DE AUGUSTO
Mestrando do programa de pós-graduação da Faculdade de História – UFG. Bolsista CNPq. E-mail:
[email protected]
345
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De acordo com Gilvan Ventura da Silva (2001, p. 31), as discussões em relação à natureza do
Principado, a despeito de todas as posições, detém o consenso em um aspecto: a concentração de poder
nas mãos do princeps em detrimento das instituições que compunham a República romana, como as
magistraturas civis e militares e as assembleias. Para o autor, a grande controvérsia refere-se à
determinação dos fatores que permitiram a Augusto atrair para si poderes típicos dos diversos órgãos
republicanos, e elevar-se em prestígio acima de qualquer outro cidadão (SILVA, 2001, p. 31).
Uma primeira vertente é aquela que afirma que o poder de Augusto fundava-se sobre um
regime de caráter militar, sendo o imperador capaz de mobilizar força física contra qualquer um que se
opusesse ao governo. Martin Goodman (1997, p. 123), em The Roman World: 44 BC - AD 180, afirma
que Augusto, a partir de 25 a.C., gradualmente estabeleceu “uma nova imagem de si mesmo em que
nenhum indício de violência, ou qualquer necessidade de violência, pode ser vislumbrada.” Essa
imagem não tinha por objetivo mascarar seu poder, mas legitimá-lo, afinal, nos anos do triunvirato até
a Batalha do Ácio (44 a.C.-31 a.C.), Otávio mostrou pouca simpatia para as regras da res publica,
quando recrutou por iniciativa própria um exército de legionários do ex-César, confiscou as receitas
fiscais da província da Ásia, sem qualquer justificação, e marchou em Roma, em um estado de alta
traição. Augusto acumulou uma variedade de poderes em um grande esforço para disfarçar a
obviedade de sua confiança na força militar nua para a sua retenção de poder (GOODMAN, 1997, p.
45). Para o autor, dessa forma, os poderes republicanos adquiridos por Augusto não passariam de uma
máscara que encobriria seu verdadeiro poder, o poder militar. Para a elite política em Roma, este se
retratou como igual em relação aos outros aristocratas do Senado, superior apenas em virtude do
prestígio livremente concedido a eles pelo povo em reconhecimento a excelência de suas qualidades
(Augusto, Res Gestae, 34). Entre os poderes, destacam-se o imperium maius proconsulare (para o
resto de sua vida), que lhe deu o direito formal de intervir em províncias não especificamente
atribuídas a ele, e a partir de 23 a.C., detinha o poder de tribuno para a vida, o que lhe deu o direito
indefinido de vetar toda a legislação proposta pelos outros tribunos. Para Goodman (1997 p. 127), esta
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confusão de poderes legais reunidos por Augusto mostrou-se tão eficaz que cada imperador após ele
garantiu sua eleição para a mesma combinação.
Em Karl Galinsky (2005, p. 3-7) encontramos uma postura mais flexível, pois afirma que
Augusto exerceu seu poder de duas formas: uma mais rígida, de caráter militar, e outra baseada em sua
auctoritas (“influência”), na qual o imperador influenciou o desenvolvimento das artes e da literatura
latina, as quais continham elementos essenciais para sua legitimação. A ideia de restaurar os costumes
dos antepassados era uma constante na política, como o próprio imperador afirma em suas Res Gestae,
que “nenhum cargo concedido contrariamente ao costume dos antepassados eu aceitei” (AUGUSTO,
Res Gestae, VI).
Em Walter Eder (2005), no artigo Augustus and the Power of Tradition, encontramos a
interpretação segundo a qual Augusto evitaria uma associação do seu poder com um monarca, apesar
de buscar o reconhecimento por suas ações, mostrando-se como o restaurador da república romana.
Certamente, a res publica não pode ser simplesmente considerado como República, porque seu homem
mais poderoso não queria ser visto como um monarca. Pela mesma razão, no entanto, devemos hesitar
para caracterizar o governo de Augusto como monarquia (EDER, 2005, p. 15). Nesse ponto, Walter
Eder baseia-se em Ronald Syme e considera o sistema fundado por Augusto como um Principado, uma
nova forma de governar fundada sobre leis. Mas o autor lembra que não devemos ver o Principado, em
retrospecto, como um produto acabado, sendo planejado por Otávio, como se este tivesse um roteiro
pré-determinado assim que se formou o triunvirato após a morte de César. As tradições republicanas
não foram um obstáculo, mas uma vantagem para Augusto, haja vista que ele soube muito bem lhe dar
com as contingências que os distintos momentos impunham às suas decisões. Dessa forma, o autor
afirma que devemos periodizar o governo de Augusto em dois momentos: um primeiro, até 19 a.C., no
qual Augusto se concentrou principalmente em restaurar formalmente as instituições republicanas cujo
quadro foi deixado para um indivíduo poderoso; e em segundo, ele deixou este nível formal e criou a
ideia de uma pátria em que o legado do passado se fundiria com orgulho cívico no presente (EDER,
2005, p. 17-18), e, dessa forma, cria-se a imagem da grandeza de Roma, sendo Augusto, o principal
cidadão.
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Segundo Erich S. Gruen (2005), no capítulo intitulado Augustus and the Making of the
Principate, nem Augusto nem seus contemporâneos usaram o termo “Principado” para definir seu
governo. Havia sim uma designação de princeps para Augusto, mas isso indicava um sinal de estima e
de autoridade. De acordo com Gruen, a noção de principatus como denominação de um tipo de regime
não é encontrada nas memórias autobiográficas de Augusto, a Res Gestae, nem nas obras de escritores
contemporâneos. Ou seja, havia os poderes republicanos, não o Principado. Nas palavras do autor, as
instituições republicanas podiam ter sobrevivido, entretanto, quem as governou teria sido o poderio
militar (GRUEN, 2005, p. 34). Para corroborar com essa hipótese, Erich Gruen afirma que o acúmulo
de poderes e seu exercício por um longo período de tempo foi sem precedentes e dificilmente
compatível com os princípios da República Romana.
Nos autores até aqui analisados, encontram-se duas posturas: por um lado, uma perspectiva
segundo a qual o poder de Augusto seria de base militar (GRUEN), e as instituições republicanas
serviriam para nada mais do que disfarçar esse caráter (GOODMAN); por outro lado, autores como
Galinsky e Eder assumem uma postura mais moderada, afirmando que o poder do princeps se baseava
tanto no exército quanto em sua auctoritas (GALINSKY), e que devemos periodizar esse período da
história romana para melhor entendermos a natureza do poder augustano (EDER). Não podemos
concordar com a primeira posição, segundo a qual o poder do imperador se valeria unicamente de uma
base militar, e que as instituições republicanas seriam apenas um disfarce que encobririam a realidade.
Por outro lado, nossa pesquisa pretende uma postura mais mediada, segundo a qual não negamos a
importância nem a efetividade do poder militar para a formação e permanência do Principado, mas
consideramos a auctoritas uma forma de legitimação da potestas, afinal, o poder baseado unicamente
no uso da força direta, teria sua existência constantemente ameaçada. Há a necessidade de uma
aceitação, um consenso mínimo por parte dos diversos grupos sociais para a legitimação e a
permanência de um poder político. Nenhum regime político é capaz de se sustentar se não forem
criados valores que possam tornar a ação dos agentes do poder constituído algo perfeitamente
admissível, legítimo e até mesmo desejável (SILVA, 2001, p. 33).
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Uma das formas de constituir e propagar essas representações, em ambiente romano, é por
meio das narrativas literárias, da poesia, a qual criaria um consenso em determinadas imagens,
legitimando, no nosso caso, as ações políticas do governante. Segundo Gilvan V. da Silva, esses
valores criariam uma "mística imperial", ou seja, os símbolos que passaram a identificar Augusto,
conferindo-lhe, aos olhos dos seus contemporâneos, a autoridade necessária para empreender a tarefa
de restaurar a República (SILVA, 2001, p. 39). Tais símbolos, para Silva (idem), são, entre outros: 1)
enviado e protegido de Júpiter; 2) ser divino (ou próximo da natureza dos deuses); 3) defensor de
Roma; 4) fonte da uirtus romana e, por último, 5) vingador de César. Todos esses símbolos são
encontrados de um modo geral na poesia horaciana, e em especial no livro IV das Odes escrito em 13
a.C., ou seja, em um contexto no qual Augusto já havia se estabelecido, eliminado opositores e
reconhecido como o salvador da República, o que corrobora para a ideia segundo a qual o governante,
mesmo depois de estabelecido, deve se legitimar, construir uma imagem que o mostra como
importante e até mesmo necessário para a manutenção da ordem (BALANDIER, 1982). Daí se
justifica o recorte de nossa pesquisa na obra horaciana: tais poemas possuem, a nosso ver, símbolos
que formam a cultura política em torno do Principado de Augusto.
HORÁCIO E A RELAÇÃO SEUS PATRONOS
Peter White (2005, p. 327), em Poets in the New Milieu: Realigning, afirma que, apesar de
Augusto ter influenciado, direta ou indiretamente, o destino de carreiras em oratória, política,
jurisprudência e militar, a literatura foi a um campo sobre a qual ele teve menor influência. O autor
afirma que o que permitiu o desenvolvimento da poesia sob Augusto foi a relação de patronagem dos
poetas com os aristocratas, em especial Mecenas, que também é patrono de Horácio, apesar de ser
chamado de “amigo”, e não de “patrono”. Além disso, White propõe que uma coerência social não
implica uma coerência ideológica, não sendo possível afirmar que Horácio, por ser cliente de Mecenas,
seria favorável ao regime de Augusto, simplesmente pela proximidade do imperador com Mecenas.
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Mesmo se isso fosse possível, as evidências são demasiado escassas para se afirmar uma influência
real de Augusto na poesia (WHITE, 2005, p. 331).
Contrapondo-se a essa interpretação, Jasper Griffin (2005), em Augustan Poetry and
Augustanism, argumenta que não há quase nenhuma menção a Otávio nos poemas antes de sua vitória
no Ácio, em 31 a. C. Para a autora isso ocorre porque, após Otávio se estabelecer como único líder,
havia uma pressão em torno dos poetas para estes enaltecerem o regime (GRIFFIN, 2005, p. 314),
sobretudo dos poetas ligados a Mecenas. Havia duas formas de exaltação do regime: “(a) no sentido
diretamente “político” de reforçar a posição pessoal de Otaviano/Augusto como chefe de Estado
permanente, ou (b) no sentido mais geral de alistar apoio para o renascimento moral e social, que deve
distinguir a sua Roma dos desastres da República tardia” (GRIFFIN, 2005, p. 314). Nesse mesmo
sentido, Paolo Fedeli (2009), em Il IV libro delle Odi di Orazio: poesia o propaganda?, afirma que
houve uma pressão por parte do princeps sobre Horácio para a escrita do quarto livro das Odes, de
modo a comemorar as vitórias dos jovens descendentes da família imperial. Para o autor, Augusto
pode legitimamente reivindicar a poesia horaciana, não só pela sua localização, mas também pela
amizade íntima e cordial que o ligava ao poeta e a honra que ele havia concedido ao escolher como o
poeta da cerimônia solene de 17 a.C. (FEDELI, 2009, p. 104). Nas palavras de Fedeli (2009, p. 106),
“devemos concluir que o quarto livro é um poema de pura propaganda, escrito por um poeta, cortesão
que colocou seu talento e inspiração a serviço do príncipe”.
Consideramos que ambas as análises são extremas sobre a relação do poeta com o princeps:
por um lado, White afirma que há quase uma total liberdade de Horácio quando este escreve sua
poesia, e por outro, Griffin e Fedeli são deterministas em relação à influência de Augusto sobre
Horácio, sendo o poeta um propagandista que escreve sob pressão do princeps. R. G. Nisbet e Nial
Rudd (2004, p. xxi), em seus comentários sobre os poemas horacianos, afirmam que uma análise da
relação de Augusto com Horácio deve evitar essas posturas extremas, pois, por um lado, se se
considera que o poeta aceita a ideologia de Augusto, esquece-se que houve o uso da violência para o
estabelecimento do regime; mas, por outro, se se considera Horácio como subversivo e contrário ao
governo, não se leva em consideração a proximidade e a amizade de ambos.
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Através de uma interpretação que supera esse impasse, Phebe Lowell Bowditch (2010, p. 55),
em Horace and Imperial Patronage, afirma que os membros da elite evitavam usar os termos
“patrono” e “cliente” para se referirem às relações entre um benfeitor e seu protegido aristocrático,
preferindo as conotações mais igualitárias de amicitia, ou “amizade”. As relações de patronagem
possuíam três características principais: reciprocidade ou troca de bens e serviços, assimetria na
posição social das duas partes e os tipos de bens comercializados, e duração da relação (BOWDITCH,
2010, p. 55). Todas essas características aparecem em Horácio, e isso significa que um patrono poderia
oferecer benefícios materiais, bem como locais e uma audiência ao poeta, em troca de seus versos, ou
seja, em troca de uma poesia que exalte o seu benfeitor. Do mesmo modo, Bowditch (2020, p. 71-72)
indica que no contexto da publicação do livro IV das Odes, a relação de patronagem de Horácio é
estabelecida muito mais com Augusto do que com Mecenas, o que corrobora para uma interpretação
distinta daquela proposta por White, na qual podemos afirmar que há uma confluência dos interesses
de Augusto com a poesia de Horácio.
Corrobora para essa perspectiva a análise de Michèle Lowrie (2007, p. 78), em Horace and
Augustus, na qual a autora afirma que a poesia de Horácio está cada vez mais preocupada com a
posição do primeiro homem da res publica, em especial quando Augusto se estabelece, pois nesse
contexto Horácio já se dirige a ele diretamente, sem a necessidade da mediação de Mecenas. Após os
Jogos Seculares (17 a.C.), essa relação se fortalece ainda mais, o que pode ser percebido em
referências diretas de Horácio a Augusto nas Odes IV (13 a.C.), em que há elogios diretos a Augusto,
como no poema IV, em que o princeps é representado como essencial para a cidade, e o retorno do
imperador garantiria paz, segurança e execução de suas leis. Muitos eventos extraordinários são
elogiados neste livro, como vitórias militares e a vinda da paz. Um tema recorrente, especialmente na
parte final do livro, são os valores romanos. Virtus, uma palavra comum em Horácio, tem um papel
especial a desempenhar aqui, assegurando aos líderes os padrões do mosmaiorum (“vamos cantar
nossos líderes, que têm realizado a virtude conforme nossos pais,” Odes IV.15.29). As referências
diretas e indiretas à pessoa do imperador, mostrando-o como o guardião dos valores dos antepassados
e, sobretudo, como o único capaz de manter a res publica, são cada vez mais intensas. Através da
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leitura da obra, percebemos que há um tom laudatório nesses poemas, em que a pessoa do imperador é
elogiada (nem sempre diretamente) em boa parte da obra (HORÁCIO, Odes IV, 2, 4, 7, 10, 14, 15).
Em termos gerais, as relações clientelistas romanas eram muito profissionais. O patrono
estendia favores e proteção aos seus clientes, que vão desde o desembolso de dinheiro ou pequenas
doações de alimentos, de apoio jurídico, financeiro ou social em larga escala. Em troca, o cliente
realizava, por seu patrono, quaisquer serviços que poderia oferecer, como assistir ele na sua atividade
diária, apoiando-o na política ou simplesmente preenchendo sua lista de convidados em uma festa
(McNEILL, 2001). Clientes literários possuíam habilidades únicas, é claro, e cumpriam as suas
obrigações por outros meios mais adequados; era prática comum para os poetas produzir poemas que
visam garantir a fama imortal de seus patronos.
Ser apoiado por um poderoso patrono poderia, na melhor das hipóteses, ser muito positivo
para um escritor. O favor de um grande indivíduo pode oferecer um caminho seguro para o sucesso e a
fama: a sua riqueza proporciona segurança financeira, enquanto o seu destaque social e influência
eleva o artista entre os círculos mais amplos. No entanto, o artista que aceita o apoio de um patrono
também corre o risco de exposição a uma série de dificuldades imprevistas e potenciais fontes de
constrangimento. Se o seu patrão é ruim, ele enfrenta a possibilidade de maus-tratos. Em qualquer
caso, ter um patrono é assumir o risco de perder a independência pessoal, como ser gradualmente
forçado a aderir à vontade do patrono ou adaptar seu trabalho, de modo a acomodar seus gostos e
interesses. Nesses casos, até mesmo o patrão mais bem-intencionado pode inadvertidamente interferir
na individualidade de seu cliente. De acordo com Randall McNeill (2001, p. 10-11) o mecenato é,
nesse sentido, sempre um jogo de poder. Existem muitas armadilhas potenciais a ser contornadas, mas
os benefícios potenciais são igualmente grandes. Nem há um padrão fixo de interação que todas as
relações patrão-cliente são obrigadas a seguir. As relações podem transcender as limitações inerentes
ao relacionamento formal e tornar-se, através do contato regular e estreito, uma verdadeira amizade
entre o cliente e seu benfeitor.
Dessa forma, associação de patrocínio permitiu o desenvolvimento de uma relação de
intimidade, cujo grau de interação podia variar de acordo alteração das circunstâncias sociais, embora
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as trocas recíprocas permanecessem constantes. Para Horácio, os benefícios diretos de Mecenas, como
a fazenda em Sabina e o apoio financeiro que Mecenas pode ter oferecido ao poeta, numa fase inicial,
exigia semelhantes serviços de sua parte em troca, apesar de suas reivindicações de liberdade de tais
obrigações. Horácio por sua vez, cumpriu as suas obrigações sociais, dedicando as Sátiras, Epístolas 1,
e as Odes 1-3 para Mecenas, bem como, fez referências específicas de seu patrono em muitos poemas
individuais (McNEILL, 2001, p.28). Sua relação com Augusto, por sua vez, também se baseou nesse
tipo de relação, como pode ser percebido na realização dos Jogos Seculares, nos quais Augusto oferece
a Horácio um público e um evento para sua poesia ser cantada, e em troca o poeta exalta as virtudes
associadas ao governo augustano. Dessa forma, concluímos lembrando que qualquer tipo de análise da
poesia de Horácio, desde seus primeiros escritos até os últimos, deve levar em consideração as
relações de patronagem e clientelismo, haja vista que são essas interações sociais que lançam luz sobre
uma série de temas que aparecem na obra do poeta, como as imagens de Augusto, objeto de nossa
pesquisa.
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UMA CONSTELAÇÃO DE SANTOS: HIPÓTESES SOBRE A DISSEMINAÇÃO DA
SANTIDADE MINORITA NOS CATÁLOGOS HAGIOGRÁFICOS DA ORDEM DOS
FRADES MENORES (ITÁLIA, SÉCULOS XIII-XIV)
Felipe Augusto Ribeiro346
Introdução
Este trabalho constitui uma etapa de nossa pesquisa de Mestrado. Nele, procuraremos percorrer
o trajeto de elaboração e institucionalização que a Ordem dos Frades Menores fez de uma santidade
para si própria, enraizada na região central da Itália. A problemática do artigo busca entender os
motivos e procedimentos que levaram a Ordem a terminar mapeando, já no século XIV, os seus santos
por toda essa área. Para tanto, parte-se da premissa geral de que esse procedimento se justificou nas
relações políticas que a instituição estabeleceu com o mundo comunal, ou seja, foram as demandas
feitas pelas comunas das cidades onde os frades se sediavam que fomentaram, justificaram e
legitimaram a construção dessa santidade profundamente localizada.
O nosso percurso se inicia em 1245, data da redação do Dialogus de gestis [ou vitis] sanctorum
fratrum minorum, uma compilação hagiográfica, de autoria anônima347, que recolhe as Vidas de 20
frades espalhados por toda o centro da Itália, dentre eles Santo Antônio de Pádua (1195-1231) e o
próprio São Francisco de Assis (1182-1226) – os dois primeiros biografados na obra, porque os únicos
canonizados dentre os 20 –; daí, a estrutura da obra parece derivar a santidade dos demais frades do
fundador e de Antônio, entendido como o ápice dessa dignidade. Então saltamos para 1335, quando se
faz outra compilação de Vidas, o Catalogus sanctorum fratrum minorum, também anônimo (mas
346
Mestrando em História e Culturas Políticas na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pesquisador do
Laboratório de Estudos Medievais (LEME). E-mail: [email protected].
347
Alguns editores dessa obra, como Fernando Delorme e Vergilio Gamboso, atribuem a sua autoria a Tomás de
Pavia O.F.M. (1212-1280), mas sem certeza. Ficamos, portanto, com o anonimato. De qualquer forma, certamente o autor
era um minorita, porque ele se declara assim.
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também de autoria minorita). Essas obras (juntas de outras que aqui não citaremos) compõem um
verdadeiro catálogo e mapa santoral das províncias minoritas.
Motivações e públicos dos catálogos minoritas
Quanto à sua estrutura retórica, o Dialogus é bastante interessante. A princípio, trata-se de uma
hagiografia como qualquer outra, inclusive no que tange à repetição dos topoi pertinentes ao gênero –
como também nota Vergilio Gamboso (1986: 30) –: a manifestação da graça divina nos feitos e nas
vidas dos santos e o seu consequente potencial para ensinar os homens através dos exemplos 348. No
entanto, ele caracteriza-se por dois traços bastante peculiares, revelados pelo autor em seu prólogo.
Primeiro, ele informa que compôs sua obra num estilo de gesta e numa narrativa sucinta, visando a
estimular os “modernos” (isto é, seus contemporâneos) quanto à sua fé349; diz também que optou por
redigi-la em forma de um diálogo entre dois frades (que não são identificados; são personagens através
dos quais o autor falará) – um “narrador” e outro “ouvinte” – para melhor agradar ao “leitor” e aos
seus religiosos ouvidos350.
Toda a obra é oralmente muito marcada, o que denuncia a sua intenção de ser lida em público
(um uso comum que se dava às hagiografias). A estruturação da narrativa em forma de diálogo tem o
claro objetivo de melhor convencer o público dessa leitura:
assim, se a verdade dos fatos contados causará estupor ou dúvida nos fracos, ofuscando a
questão que importa [da graça e da fé provadas nos santos], poder-se-á demonstrar como a
“In nomine Patris et Filii et Spiritus Sancti. Amen. Venerabilium gesta patrum dignosque memoria titulos
antiquorum studio [studia] pietatis annalibus commendare fructum utilitatis plurimae posteritati fidelium consuevit afferre.
Primum, quidem, ut omnium artifex et virtutum altissimus operator in sanctis suis majestate mirabilis praedicetur; alterum
autem, ut fides tenera parvulorum experimento sensibili provocata virtutum infirmioris aetatis pocula desuescat
adhibitoque sibi vitae perfectioris speculo cibi solidioris edulo roboretur [...]” (DIALOGUS, 1923: 1).
349
“[...] praesenti opusculo compigenda suscepi, ut habeat pia fratrum devotio gestorum seriem stilo compedii coaretatam
[sic] gaudentesque brevitate modernos sermo succinctus [ilegível] ad divinae laudis judicia propensiori studio devotius
admiranda” (Idem: 2).
350
“Ad tollendum denique fastidioso lectori stomachum et uberiorem audiendi gratiam religiosis auribus afferendam
duorum fratrum personas ad invicem conferentium more dialogi ad medium deducentes, unum narrantis vice proponimus
et alterum audientis [...]” (Idem: 3).
348
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coisa concorda com as leis da sagrada Escritura e que nada é difícil para a onipotência criadora
quando há uma fé capaz da graça divina e dócil ao adestramento351.
Destacam-se também as fontes que seu autor acusa ter empregado:
Porém, não pretendi aqui escrever todos os mais destacados feitos das suas virtudes [dos
santos], manifestadas em quase todo lugar da terra; restringi-me, de preferência, às ocorrências
das quais, sob ordem do sumo pontífice e na presença dos investigadores delegados pela sé
apostólica, foi feita deposição com testemunho fidedigno, aprovada depois de um controle
diligente e do registro pelo notário público; outras [ocorrências] foram colhidas, com certeza,
de verídico testemunho tomado de frades ainda pertencentes à nossa ordem352.
Essas fontes foram, portanto, o material colhido pela comissão inquisitorial indicada pelos
papas para conduzir os processos canonizatórios dos santos biografados – ao menos é esse o caso das
narrativas sobre Ambrósio de Massa (†1240) e Benvindo de Gubio (†1232), que foram alvos de
inquisitiones (e dos canonizados Francisco e Antônio, é claro); os demais não o foram –, e os
testemunhos de outros frades que haviam convivido com os pretensos santos.
O motivo para ambas as escolhas é o mesmo: convencer o público. Fosse pelo prazer da
audição, fosse pela origem fiável das informações. Num primeiro momento, essa motivação se explica
pelo próprio paradigma pedagógico da hagiografia: seu métier é ensinar, e para ensinar é preciso
convencer. Gamboso (1986) lembra que essa estrutura dialógica inspira-se no modelo oferecido por
Gregório Magno (540-604. Papa entre 590 e a data de sua morte) em seus famosos Dialoghi. A
“[...] quatenus, si quid stuporis aut dubii rerum gestarum veritas enarrata conduxerit auribus infirmorum, quaestione
vicaria vere sacrae Scripturae legibus ostendatur accommodum nec quidquam omnipotentiae creatici fore difficile, sed
divinae capax gratiae fides adsit credula disciplinae” (Idem: 3-4).
352
“Nec sane singula quaeque virtutum illorum insigna toto paene terrarum orbe difusa duxi praesentibus exaranda, sede
ea potissimum, quae vel de mandato summi pontificis coram disquisitoribus per sedem apostolicam delegatus fideli
narratione deposita et examinatione testium diligenti pariter approbata sunt ac per manum publicam annotata, sive etiam
fratrum nostri ordinis adhuc superstitum veridica mihi relatione comperta” (Idem: 2-3).
351
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vinculação à grandeza dessa obra justifica em si mesma a escolha do anônimo por imita-la: amparado
em uma forma de grande autoridade, o autor poderia manusear melhor o seu conteúdo.
O destinatário imediato da obra é composto pelos “fracos” (infirmus), por aqueles que não
creem na potência divina e na ortodoxia católica, ou seja, os hereges. A tópica do combate às heresias
é alvo da insistência do autor, como quando ele reafirma os propósitos de sua obra:
[...] a fim de que este ensaio de perfeição, colocado à luz, sirva de incitação aos imitadores por
meio do exemplo das virtudes e que a provada sinceridade da vida acompanhe a fé nos
milagres, os quais, sabe-se, são oferecidos aos que creem, mas não aos incrédulos353.
É a essas pessoas que o esforço de convencimento da obra se destina. Para ver quem são esses
incrédulos é preciso recorrer a outras passagens da obra. Logo no início de seu prólogo, o autor
assinala a terceira – e, aparentemente, a mais importante – finalidade dela:
O último fruto [da compilação dos feitos dos venerabilium patrum] é: que a teimosia da
depravação herética, que se esforça para ofuscar, com a nuvem do rancor, os raios da verdade
conhecida, convencida sobre a louvável vida dos pais mortos e sobre os sinais prodigiosos,
rejeite os erros e retorne, arrependida, à unidade da fé católica, ou então que, serrando o mordaz
e rangente dente da inveja, se contenha, barrada no gargalo da iníqua cegueira354.
Traça-se um retrato bastante expressivo da heresia. Estão presentes as metáforas canônicas da
serpente venenosa, de dentes mordazes, e da nuvem que obstrui os raios de luz. Também emprestam
sua força à assertiva do hagiógrafo as imagens da inveja, do rancor e do erro. Os hereges são retratados
como “cegos”, conforme acima, e “adormecidos”, como no trecho a seguir:
“[...] quatenus declaratum perfectionis specimen aemulatores suos exemplo virtutis invitet et signorum fidei, quae
nequaquam fidelibus, sed incredulis data noscuntur, probata vitae sinceritas suffragetur” (Idem: 3).
354
“[...] postremum vero, ut haereticae pervicacia pravitatis, quae veritatis agnitae radios livoris nubilo nititur obumbrare,
patrum decendentium vita laudabili signorumque prodigiis obtestata spretis erroribus resipiscat in catholicae fidei
unitatemaut certe rigentis invidiae mordaci dente compresso perfidae caecitatis augustiis interculsa tabescat” (Idem: 2).
353
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[...] ultimamente, nos nossos dias, querendo [Deus] despertar novamente a fé adormecida,
depois dos admiráveis feitos dos antigos pais, revivendo a lembrança dos seus milagres, renova
os prodígios e potentemente repete as suas maravilhas355.
A santidade dos minoritas é apontada, portanto, como remédio contra as heresias: a veritas que
ela carrega consigo pode tirar os hereges de seu erro e trazê-los de volta à “unidade da fé católica”.
Seus feitos virtuosos, bem como os seus milagres – em vida ou em morte – veiculam a mensagem
apostólica que se requer de um candidato a santo, convertendo os “incrédulos”.
90 anos depois, o Catalogus aparece com um prólogo bastante restrito, se comparado ao
Dialogus, conquanto a obra também liste santos frades. Ainda que seu autor introduza o texto com as
mesmas tópicas retóricas – que visam também a legitimar seu trabalho – e marque a necessidade do
combate às heresias, não se fala nada quanto ao método que será empregado (naturalmente, porque
tratar-se-á somente de uma lista) nem se desdobra tanto sobre as motivações que impulsionam a
compilação.
Agora, porém, nestes dias novíssimos, nos quais se aproxima o fim dos tempos e a caridade se
resfria, porque o mal continua grande e a iniquidade continua abundando, o mesmo sol Cristo é
coberto e obscurecido, no céu, por uma nuvem de vícios. Mas, neste mesmo céu, Francisco, o
assinalado de Cristo, fez resplandecer o claro e reluzente sinal do sol, assim como a beata Clara
[de Assis] fez brilhar a lua [a Virgem Maria], para que a luz permitisse caminhar por onde
Jesus Cristo indicou [...]356.
Mas a tópica da atualização de Cristo por Francisco vai além:
“[...] novissime diebus nostris consopitae quodam modo fidei somnum satagens excitare post stupenda priscorumpatrum
magnalia mirabilium suorum memoriam afferens signa renovat et miranda potenter immutat” (Idem: 4).
356
“Nunc autem diebus istis novissimis, in quibus finem saeculorum devenerunt, caritate frigescente, quia dies mali erant
et sunt et nimis iniquitas abundavit, ipse sol Christus in eodem coelho vitiorum nube operto et obscurato ad ipsum coelum
clarius illustrandum signatum solem idest Franciscum Christi signiferum splendere fecit et lunam idest beatam Claram
incendentem clare per semitas Jesu Christi clare voluit [...]” (CATALOGUS, 1903: 1).
355
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[...] e neste mesmo céu está a santa igreja, que conta não só com doze estrelas, mas com
inúmeras outras, que são os santos frades menores que aqui serão inscritos, nomeadamente, e
que, cremos, agora também estão conscritos no céu. Eles fizeram parte de sua ordem
iluminadamente, e com sua palavra e seu modo de vida manifestaram milagres que iluminam
toda a orbe terrestre; agora, porém, na perpétua eternidade, como fúlgidas estrelas, permanecem
fixas e estáveis no céu, junto da santíssima Trindade357.
Ou seja, os santos frades menores atualizam toda a igreja e renovam toda a christianitas e sua
fé. Logo em seguida o autor acrescenta:
Mas estão ausentes [no céu da igreja], por mais que sejam estrelas luminosas, os santos
conscritos nesta obra, porque são muitos os frades, em 128 anos [de Ordem Minorita] e cerca
de trinta e seis províncias para toda a ordem, que professaram a regra evangélica de vida e a
assumiram, e porque ainda há muitas milhas de terra para tão exíguo número deles358.
Crê-se, portanto, que, embora a igreja não tenha reconhecido esses santos, eles merecem tal
reconhecimento, porque:
[...] vale lembrar, fazer prodígios não é prova de santidade, conforme [asseverou o papa]
Gregório [IX], porque o milagre que deve ser considerado é aquele que vem de Deus, porque é
melhor senti-lo dessa fonte do que de si mesmo. Este são os prodígios dos santos frades
“[...] et in eodem coelho idest sancta ecclesia non solum stellas duodecim numeravit, vero etiam multitudinem stellarum,
scl. Sanctorum fratrum minorum infrascriptorum, omnibus eis nomina vocans, qua nunc in coelis, ut credimus, sunt
conscripta; qui manentes in ordine suo cum luce et língua conversationis et manifestis miraculis orbem totum clarius
illustrassent, nun autem in perpetuas aeternitates ut perfulgidae stellae fixae manent et stabiles in coelho et cum coelho
beatissimae Trinitatis” (Idem: 2).
358
“Sed absit, ut tantam multitudinem fratrum a CXXVIII annis citra in triginta sex provinciis totius ordinis, qui fuerunt et
sunt professi regulam et evangelicam vitam et ex hac vita assumpti, et adhuc multa milia degunt in terris, ad tam exiguum
numerum redigam, ut istos dumtaxat sanctos et stellas reputem luminosas, qui in hac cédula sunt conscripti” (Ibidem).
357
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menores; seus milagres são seus veneráveis exemplos [de vida], os quais consistem em uma
moral santa e em obras de perfeição359.
Esse trecho nos faz pensar que o destinatário do Catalogus fosse o papado, a quem ela poderia
ter tentado convencer sobre as canonizações desses frades, pois o autor tenta validar essas santidades
segundo os novos critérios teológicos definidos por Gregório IX na bula Dei sapientia, com a qual ele
abriu o processo de canonização de Ambrósio de Massa, um dos biografados pelas compilações (e que
nunca fora inscrito no catálogo universal, mas apenas recebeu a traslatio em 1252). Ali Gregório diz
justamente que o milagre legítimo é o que se manifesta post-mortem, como prova divina de uma vida
perfeita. Contudo, em seguida o autor explicita que não direcionou seu texto ao papado: “não pretendo
oferecer o testemunho da santidade dos bons frades menores à observância da regra apostólica, mas,
em parte, à devoção das pessoas e, em outra parte, à insistente fraqueza [da fé]”360. Ora, é esta mesma
a direção que o autor do Dialogus dá à sua obra. Sem ignorar, como ficou claro, que ambas as obras
estão conversando com uma questão posta pelos papas, elas não parecem estar se submetendo a uma
nova análise por parte dos pontífices, como se esperassem mudar seus vereditos; ao contrário, o
Catalogus fala claramente para os irmãos, como neste trecho:
Então, vós, caríssimos frades, não quereis, com a leitura desta obra, desejar ou procurar
milagres nos frades menores, porque esses milagres podem tanto ser verdadeiros como falsos;
amai, ao contrário, os milagres da caridade e da piedade, porque, embora invisíveis, eles são
mais importantes e melhor retribuídos pelo Senhor, já que a glória que produzem entre os
homens é menor361.
“Quia, ut verum fatear, signa facere non est secundum Gregorium probatio sanctitatis, sed unumquemque ut se diligere,
de Deo autem vera, de próximo autem meliora quam de se ipso sentire. Ista ergo sunt sanctorum fratrum minorum signa
mirifica, ista miraculorum testimonia veneranda, quae in morum sanctitate et operum perfectione consistunt” (Ibidem).
360
“Ideoque sufficeret cuilibet bono fratri minori ad suae testimonium santitatis apostolicae regulae servata professio, nisi
aliud interdum exposceret partim tepor, partim devotio populorum” (Ibidem).
361
“Vos igitur, fratres carissimi, hanc chartam lecturi nolite in fratribus minoribus solum amare vel quaerere signa, quae
possunt boni cum reprobis habere communia, sed caritatis atque pietatis miracula amate, quae tanto sunt securiora,
quanto occulta, et de quibus apud Dominum maior sit retributio, quo apud homines minor est gloria” (Ibidem).
359
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Embora oDialogus se proclame para um público maior que a própria Ordem, as suas condições
de produção são as mesmas do Catalogus; Gamboso concorda que o público principal da obra, embora
não seja isso o explicitado pelo seu autor, são os próprios frades: o louvor que se faz à Ordem exorta
os irmãos a seguirem o caminho da perfeição e a obedecer os ensinamentos do fundador, imitando os
exemplos oferecidos, a ponto dos diálogos parecerem uma “conversação em família” (1986: 31).
Ambos os catálogos, enfim, foram feitos para servirem de instrumento ao estudo e à pregação dos
frades. A intenção era muni-los de exempla da própria ordem, a serem oferecidos aos “incrédulos”,
como mostra o Dialogus. E, mais que isso, o objetivo primeiro parece ser exortar os próprios frades a
seguir esses exemplos, em especial quanto a duas características marcantes que se repetem na imagem
elaborada para os frades narrados: a obediência e a humildade. Essas qualidades permeiam todo o
relato que se faz de Ambrósio de Massa, por exemplo, um dos mais extensos e detalhados da obra. É
como se Ambrósio fosse feito de arquétipo para os demais frades (e, por que não, para todo cristão).
Não porque os modelos de Francisco de Assis e Antônio de Pádua não bastassem: o caso é que se
parece querer deriva-los para os demais irmãos, numa continuação dessa santidade.
Entre tensões minoríticas e resistências aos papas
Para Roberto Paccioco (1990), a representação que esses catálogos fazem dos frades, bem
como o uso da tópica do combate às heresias e a atualização da santidade franciscana (sem mencionar
o procedimento dialético e as fontes de que se valeram o Dialogus) situam-se num contexto muito
preciso, o do desenvolvimento da auto-sacralidade minorita. Para ele, a busca pela universalidade de
seus santos, através da canonização, mostra o empenho da Ordem em tornar unívoca a santidade de seu
fundador, que fora objeto de disputa – e, consequentemente, sempre reescrita, remodelada e resignificada – até meados do século XIV. O Dialogus teria sido, portanto, o primeiro passo desse
continuum, e o Catalogus uma etapa capital dele.
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No entanto, embora Paccioco não esteja errado, para nós essa não é uma explicação suficiente.
Conforme pontua Gamboso, esses catálogos nunca ultrapassaram as províncias do centro da Itália
(1986: 15), portanto jamais poderiam dizer respeito a um processo pertinente a toda a Ordem. Como
citamos na nota 13, o autor do Catalogus, por exemplo, faz questão de lembrar que os santos dessa
área foram esquecidos durante a expansão da Ordem. De maneira que, se esses catálogos querem
resolver conflitos internos à instituição, esses são os conflitos referentes aos minoritismos particulares
da Úmbria e do Vale do Pó, onde se disputava intensamente a herança franciscana362.
Da mesma maneira, Paccioco (1996) também não erra em propor que essas compilações
hagiográficas tenham servido de resistência dos minoritas à crescente regulação e controle do papado
sobre a santidade e à restrição e normatização dos processos inquisitoriais, mas as nossas fontes não se
colocam nessa resistência. Gamboso novamente nos dá outra baliza, assinalando que o autor do
Dialogus, por exemplo, não se posiciona nem nas querelas internas nem nas externas à Ordem (1986:
66-67), ou seja, não toma partido de nenhuma facção de frades, nem se opõe – muito menos apoia – os
papas. Logo, limitar o lugar desses catálogos a essas duas dinâmicas é, a nosso ver, perder de vista um
bocado de sua importância.
É certo que, como o próprio hagiógrafo revela363, o Dialogus fora encomenda de Crescêncio de
Iesi (†1263), Ministro-Geral da Ordem entre 1244 e 1247, comumente vinculado pela historiografia à
facção “espiritual” da Ordem – e Gamboso (1986: 11-12) recorda que sua eleição enfrentou oposições
de todos os lados, inclusive dessa suposta facção – e que também encomendara a Vita secunda sancti
francisci a Tomás de Celano (1200-1265) – segundo Paccioco (1990), com o mesmo intento de
consolidar uma santidade franciscana ainda fragmentada. Entretanto, o mais certo, talvez, fosse dizer
que Crescêncio se vinculou ao grupo dos primeiros companheiros de Francisco, pois são eles que
atendem prontamente a um decreto seu, do qual não temos registros mas é denunciado pela famosa
Carta de Greccio (1246) como o requisitante da coleta de milagres e memórias que darão, pouco
362
Sobre o tema das tensões e desenvolvimentos minoríticas, especificamente, referenciamos Pellegrini (1984) e Merlo
(1991).
363
“Eapropter et ego temetsi inutilis servus Christi ad divinae gloriam majestatis et laudem mira virtutum opera, quae
[per] sanctos suos quosdam ordinis nostri fratres in diversis mundi partibus exhibere dignata est omnipotentia Conditoris,
obedientia reverendi patris ministri generalis fratris scl. Crescentiipraeceptrice veritate praevia praesenti opusculo
compigenda suscepi [...]” (DIALOGUS, 1902: 1-2).
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tempo depois, por todo o centro da Itália, material aos catálogos – o que houve, portanto, foi a vitória
de um projeto particular para a santidade de Francisco, longe de um consenso. O restante da “base” da
Ordem pouco se mobilizou em prol dessa iniciativa, porque tinha outros projetos para ela. Mas se essa
santidade pretendia solucionar conflitos, para além daquela região não havia nada a resolver.
Outras hipóteses para o contexto de produção e consumo dos catálogos
A questão é que, em primeiro lugar, esses catálogos relatam os frades com tamanha parcimônia
(fosse por falta de informações acerca deles ou não) – o Catalogus vai limitar-se a mapeá-los,
província por província, dizendo, com pouquíssimas palavras, quem eram e onde morreram (onde
estão suas relíquias) – que nos dá a impressão de que pretendiam somente organizar o elenco dos
irmãos mortos em fama de santidade mesmo. Provavelmente porque serviriam de fonte para os
martirológios locais, de cada convento, cada província; nesse sentido, Paccioco parece esquecer que o
papado concedia relativa liberdade para que esses martirológios (e cultos sobre seus santos) locais e
particulares fossem criados, mantidos e atualizados364. Em segundo lugar, a insistência que o Dialogus
faz sobre a tópica do combate às heresias parece carregar consigo um significado a mais além do
retórico, de legitimar a santidade registrada. Já no Catalogus, a construção da imagem de uma
constelação de santos que reluz – não através de milagres, mas de exempla! – e abre os olhos dos fiéis
para a ortodoxia acentua e continua, quase um século depois, a carga semântica de uma ordem repleta
de homens virtuosos e extremamente úteis às comunidades onde estão. Afinal, os frades não estão
presentes nessas obras apenas para fazer imagem: os autores enfatizam sua eficácia na conversão dos
hereges mobilizando as imagens (de significados deveras intensos) que transcrevemos; a “a louvável
vida dos pais mortos” e os seus “sinais prodigiosos” devia ser, segundo o Dialogus, colocada diante da
testa (obtestata) dos hereges (ver transcrição na nota 9), porque só assim eles perceberiam seus erros.
364
Vale lembrar que os mendicantes foram privilegiados nisso, com ampla liberdade na organização de sua própria liturgia.
O dito martirológio romano, esse sim gerenciado pelos papas, não era algo absolutamente universal, em contraste com os
catálogos particulares: ao contrário, era destinado à cidade de Roma e àquelas igrejas seculares que não gozavam do
privilégio de ter um martirológio próprio. Entre os minoritas, que em tudo seguiam o Rito Romano, os santos da Ordem
eram inseridos conforme os dia do martirológio romano, completando-o e tornando-o híbrido.
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A santidade dos frades é capaz de dissuadir a heresia porque manifesta de forma sensível a graça
divina; essa sensibilidade não está tanto nos milagres quanto na perfeição da vida, e, sutilmente, essa
perfeição é colocada sobre o duplo pilar da obediência e da humildade. Ora, essas não são as duas
coisas que se esperava do herege – visto como um prepotente e indisciplinado – para que ele se
convertesse à ortodoxia e retornasse “à unidade da fé católica”?
Se, como bem mostra Alfredo Lucioni (2009: 279-281), a divergência dos que foram taxados
de hereges podia dizer respeito, por exemplo, à adesão a um partido político oposto ao papal, a
qualificação de “desobediência” torna-se identificadora do herege; ele é um desviante voluntário, que
conhece a verdade mas não a aceita por conta de outros interesses que não os religiosos, e o discurso
de fé é empregado para reenquadrá-lo no todo da obediência (que implica tanto a subserviência
política quanto a comunhão religiosa, entorno de uma verdade defendida por um dos lados litigiosos).
Similarmente, no campo teológico e religioso os movimentos heréticos da época caracterizaram-se
pelo retorno constante e radical às Escrituras e ao cristianismo primitivo; isso pode justificar a
tentativa dos autores dos catálogos de asseverar que seus frades compõem o corpo da igreja, bem como
repetem, atualizam e continuam os seus antigos pais. Por isso, cremos, redunda o discurso anti-herético
nos catálogos, voltado para províncias onde dissidentes eram encontrados e fugiam à influência
política de uma instituição imaginada e criada para evangelizar e moralizar365.
A disseminação das heresias justificou a elaboração de um verdadeiro discurso (que é difícil,
para nós, verificar se foi traduzido em um sentimento), durante a chamada Reforma Gregoriana acerca
da necessidade da renovação da fé e do reavivamento de uma christianitas cansada e distante do
caminho da salvação (LUCIONI, 2009: 286; PACCIOCO, 1990; GAMBOSO, 1986: 12-13); os
prólogos de nossas fontes se inserem nesse discurso perfeitamente. Mas quase sempre as questões
heréticas tinham como subsídio problemas relativos à autonomia de uma ou outra região, igreja ou
diocese (LUCIONI, 2009: 295).
365
Também nos escusaremos de repassar toda a extensa discussão sobre o lugar e as motivações político-sociais da Ordem
Minorita. Por ora, basta-nos recomendar algumas referências a esse respeito: Todeschini (1977; 2007), Lambertini (2010) e
Evangelisti (2002).
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Se o mapeamento da santidade tiver sido realmente concebida como um instrumento na solução
desses conflitos, torna-se óbvio o procedimento de regionaliza-la, pois os problemas eram regionais.
Leonhard Lemmens (1903) frisa que, embora para quase todos os frades retratados faltasse
informações substanciais para se fazer uma hagiografia, as que foram coletadas pelo Dialogus (e
outras fontes) eram de conhecimento do autor do Catalogus, 100 anos depois; no entanto, este
hagiógrafo se limitou a fazer apenas uma listagem rápida porque era o necessário: dar a conhecer, aos
confrades e ao restante do mundo, esses santos. Tomando novamente o exemplo de Ambrósio de
Massa: se o Dialogus lista 55 milagres seus (depois de traçar um perfil apresentador para ele), isto é
tudo o que dele temos no catálogo: “em Orvieto frade Ambrósio, homem santo, célebre por muitos
milagres”366. A intenção era mesmo marcar, em cada diocese, os santos frades cuja fama de santidade
pudesse ser instrumentalizada pela Ordem e, além disso, cuja reputação pudesse garantir a aceitação de
seu ofício político-religioso. Ademais, tratava-se de personagens que, antes de serem representados,
imaginados, viveram nos lugares onde se relata, e estabeleceram laços e vínculos com a comunidade
local, portanto, ao contrário de evocar santos “estrangeiros” para providenciar essa legitimação, cada
província procurou proclamar seus santos domésticos, muito mais significativos e, por conseguinte,
eficazes para as suas comunidades
Para Paccioco (1990), os santos desses catálogos não foram canonizados porque não atenderam
ao perfil requisitado pelo papado: não foram representados satisfatoriamente como anti-heréticos e
evangélicos, apostólicos. De fato, a tomar como exemplo do relato que o Dialogus faz de Ambrósio de
Massa, embora o prólogo da obra insista nesse perfil (porque o autor está sintonizado com a demanda
papal) em nenhum momento ele aparece pregando ou convertendo hereges. Ao contrário, o seu perfil é
o de um personagem extremamente vinculado à sua comunidade, da qual ele cuidava, em vida,
socorrendo os pobres e os doentes, bem como ouvindo as suas confissões, e, em morte, beneficiandoos com milagres de cura e exorcismo, principalmente, e com o exemplum que sua virtude deixara
(DIALOGUS, 1923: 133-188). Algumas cartas que versam sobre problemas que a cidade de Orvieto,
onde Ambrósio viveu, mostram-no intervindo em conflitos, pacificando litigantes e socorrendo a
366
“In Urbe veteri frater Ambrosius, vir sanctus, multis miraculis claruit” (CATALOGUS, 1903: 13).
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população. E eram muitos esses problemas! De maneira que justifica-se a propaganda que os catálogos
fazem de seus santos, capazes de proteger e conduzir moralmente suas comunidades por meio de seus
exemplos.
Considerações finais
Por isso os catálogos são, a nosso ver, mais reflexos dessas demandas do mundo citadino do
que das querelas intestinas da Ordem. Demandas de um universo fragmentado pela dissidência, fosse a
dos frades, dentro da instituição, fosse a da comunidade inteira, povoada de grupos atrelados a
posicionamento político-religiosos diversos. E, mais que isso, as hipótese que aqui delineamos
pretendem, numa etapa posterior da pesquisa, levar em conta o momento político das cidades
abordadas nos catálogos: elas se encontravam sob regimes comunais tão ansiosos por se sacralizar
quanto a própria Ordem Minorita.
Nesse sentido, Paccioco (1990) tem razão em falar de uma “territorialização da santidade”
minorita. A gestão do sacro era local, não universal. Os catálogos atrelam essa santidade muito
intimamente a uma comunidade, porque, na falta do reconhecimento papal, vale o reconhecimento dos
fiéis. Uma vinculação que não fora unilateral, sem dúvidas: estamos falando de um período de declínio
dos regimes comunais no centro da Itália. A insistência dos prólogos que aqui analisamos talvez
comungue, então, a uma ideia de que as comunidades sob esses regimes declinavam porque seus
cidadãos afastavam-se do caminho da retidão. E a Ordem se apresenta, diante disso, como um guia
iluminado, capaz e orientado por Deus, para reconduzir essas sociedades rumo à salvação, à salus.
A historiografia tem mostrado, já há algumas décadas, que os regimes comunais, ansiosos por
construir a própria sacralidade e assegurar a própria legitimidade, apegaram-se intensamente a santos
novos, e no atendimento dessa ansiedade os minoritas foram pródigos; o que não é de se espantar,
afinal, a sua busca institucional, regionalmente, era a mesma367. Nesse processo de auto-representação
367
Sobre esse tema indico a leitura dos anais compilados por André Vauchez (1995), sobre a religião cívica.
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e auto-construção, o discurso de uma renovação religiosa e do combate às dissidências cumpriu papel
decisivo.
Por fim, não se pode esquecer que, por trás da alegação de que os processos canonizatórios de
frades como Ambrósio de Massa não satisfizeram os critérios papais e por isso não foram aceitos, o
que o papado tentava fazer era controlar o poder e a liberdade que dava tanto aos minoritas quanto às
cidades sobre as quais exerciam influência, e dar um santo a uma cidade era dar-lhe bastante poder e
glória. Este parece ter sido, afinal, o caso de Orvieto e Corneto – onde eram cultuados Ambrósio e
Benvindo, respectivamente –, cidades de menor envergadura (em relação a Assis ou Pádua, por
exemplo), que não eram imponentes o bastante para barganhar com os pontífices, malgrado tenham se
esforçado nisso, como mostram as bulas através dos quais os papas respondem às frequentes súplicas
de seus cidadãos, representados sempre por embaixadores nomeados pelas comunas (como a já citada
Dei sapientia). Mais um indício, portanto, de que a demanda pela santidade não parte somente dos
frades ou do papa, mas, sobretudo, dos seus consumidores finais, os cidadãos (como vimos, o
Catalogus dirige-se nomeadamente à “devotio populorum”)368.
Fontes e Referências Bibliográficas
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Fragmenta
Minora.
Roma:
Tipografia
Salustiniana,
1903.
Disponível
em:
<http://archive.org/stream/fragmentaminora00lemmgoog#page/n1/mode/2up>. Acesso em: 14 mar
2014.
DIALOGUS de vitis sanctorum fratrum minorum. Editado pelo frade Leonardo Lemmens (O.F.M.).
Fragmenta
Franciscana.
Roma:
Tipografia
Salustiniana,
1902.
Disponível
em:
<http://archive.org/stream/dialogusdevitis00lemmgoog#page/n7/mode/2up>. Acesso em: 14 mar 2014.
368
Crucial em nossa hipótese é entender a importância que essa devoção, cotidiana, exercia na vida política,
comunitária, religiosa medieval. Para tanto, ver Thompson (2005).
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(Gilbert de Tournai, Paolino da Venezia, Francesc Eiximenis). In: La propaganda politica nel Basso
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Disponível em: <http://www.retimedievali.it>. Acesso em: 14 set 2012.
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Florença: jan-jun 2010. Disponível em: <http://www.retimedievali.it>. Acesso em: 20 set 2012.
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[Tradução nossa].
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VAUCHEZ, André (org.). La religion civique à l’époque médiévale et moderne (Chrétienté et
Islam). Actes du colloque organisé par le Centre de recherche « Histoire sociale et culturelle
de l’Occident. XIIe-XIIIe siècle », de l’Université de Paris X-Nanterre et l’Institut universitaire de
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ZERNER, Monique. Introdução. In: ______ (org.). Inventar a heresia? Discursos polêmicos e poderes
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FONTES MEDIEVAIS PARA O ESTUDO DA ORDEM FRANCISCANA
Fernanda Amélia Leal Borges Duarte369
Introdução
A Ordem Franciscana é conhecida desde sua formação por ser adepta da renúncia material e da
pobreza como condição de vida religiosa. Mas como foi este processo de formação?
As fontes que iremos utilizar neste estudo são: as regras não Bulada e a Regra Bulada. As
regras foram escritas durante o século XIII com a finalidade de delinear as convicções religiosas da
Ordem Franciscana e formam sua base estrutural.
A discussão deste texto está centrada numa análise de comparação dos documentos citados e na
compreensão das propostas iniciais de Francisco de Assis no que se remete aos aspectos da pobreza
como um modo de vida durante o século XIII. Chiara Frugoni (2011) salienta a perspectiva de
Francisco como um homem comum que se converte a vida religiosa.
Para o desenvolvimento do texto utilizou se também como fonte o testamento de Francisco
escrito antes de sua morte no ano de 1226. Na analise deste documento compreende a posição de
Francisco diante dos novos caminhos que seguia a ordem e seu pedido de que todos os irmãos
mantivessem os princípios do evangelho.
Breve histórico da formação da Ordem Franciscana.
A Ordem Franciscana teve seu inicio no século XIII e seu fundador foi Francisco de Assis.
Nasceu e viveu na cidade de Assis com seus pais, começando sua vida religiosa segundo a tradição no
ano de 1206. Antes de seguir os preceitos religiosos Francisco era um jovem comum gostava de se
369
Graduada em História pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul/UFMS e atualmente esta no curso de mestrado
em História na PUC GO.email: [email protected]
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divertir com os amigos e ajudava o pai na loja de tecidos da família. Sobre sua juventude compreende
se que: (...) “nessa fase da vida Francisco é movido não pela compaixão pelos mais fracos, e sim pelo
código social dos amigos nobres,” (...) (FRUGONI, 2011; p.22)
A historiografia franciscana tradicional relata que Francisco se converteu em 1206 após ouvir
um “chamado” do crucificado na Igreja de São Damião. A partir deste dia Francisco modifica seu
modo de vida. O moço que tinha uma vida de nobre passa a adotar uma vida em condições de pobreza.
A pobreza era assumida de forma voluntária, seja para o auxílio ao próximo. Sobre esta a
relação do pobre como a sociedade pode-se dizer que:
(...) o Franciscanismo contribuiu para a introdução no mundo medieval de uma nova
representação do pobre, não mais visto como mero instrumento para a salvação do rico, e
nem como alguém imerso em um estado pecaminoso, mas sim como um ser humano a ser
valorizado por si mesmo (....) (BARROS, 2011;p118)
O modo de vida, a perspectiva religiosa e as mudanças na visão social em relação à pobreza
proposta por Francisco logo foram se expandido e alcançando pessoas que se identificavam com esta
nova singularidade, de vivenciar o evangelho na prática cotidiana. A partir do momento que o
número de companheiros de Francisco aumenta surge à necessidade de fazer este modo de vida, ser
regulamente aceito pela Igreja, que na época era rígida com os novos movimentos religiosos.
Francisco viaja a Roma com seus companheiros para conversar e apresentar ao papa Inocêncio
III uma Regra que mostrava sobre sua proposta de vida religiosa cristã, e obediência a Igreja. Depois
de avaliações do papado sobre o modo de vida dos Franciscanos a regra é aprovada verbalmente.
Esta primeira “regra” apresentada ao papa se extraviou no decorrer do tempo, não se tem
documentação oficial da Igreja a respeito desta regra. A historiografia tradicional da ordem a descreve.
Mas o testamento370 escrito por Francisco descreve sobre este primeiro encontro com o Papa.
370
Fontes Franciscanas, organizada pelo FreiDorvalino Francisco Fassini (OFM). Santo André, São Paulo; Editora O
mensageiro de Santo Antonio, 2004. O documento Testamento p.83
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E depois que o senhor me deu Irmãos, ninguém me mostrou o que deveria fazer,
mas o próprio Altíssimo me revelou que eu deveria viver segundo a forma do
Santo Evangelho. E eu o fiz escrever com simplicidade e com poucas palavras e o
senhor Papa mo confirmou.
Após ter aprovação papal inicia os trabalhos missionários dentro das convicções religiosas de
Francisco.
Nesse momento começa a pregação itinerante. De tempos em tempos, haverá
nessa pregação uma etapa marcada por um episódio célebre ou significativo, e nos
demoraremos nos pontos extremos da viagem – para Roma ou fora de Itália. Mas,
salvo breves retiros, Francisco e seus companheiros estão sempre nas estradas,
pregando nas cidades e nas aldeias. (...) (LE GOFF; 2005, p 69 e 70)
Os trabalhos foram se ampliando e também o número de frades foi aumentando e novamente às
dificuldades de oficialização da Ordem Franciscana apareceram. Diante deste fato foi necessário que
Francisco escrevesse outra regra.
Regra não Bulada e Regra Bulada
A Regra não Bulada e Regra Bulada foram os documentos escritos por Francisco como
objetivo de delinear as convicções do modo de vida que a ordem Franciscana deveria seguir. Mas
porque Regra Bulada e Regra não Bulada? A regra não Bulada foi a primeira escrita por Francisco em
1221, e que não foi aceita pelos membros da ordem e pelo Papa Honório III. A Regra Bulada seria a
segunda escrita em 1223 e supervisionada pelo ministro geral Frei Elias de Cortona e pelo papa
Honório III e que viria a ser a regra oficial da Ordem Franciscana.
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A regra não Bulada foi escrita diretamente por Francisco de Assis, durante a leitura deste
documento percebe - se logo de inicio a preocupação da ordem de estar dentro dos preceitos e
obediência à Igreja, mas no decorrer desta leitura compreende que os capítulos estão determinando um
modo de vida em obediência ao evangelho e que em muitos momentos tem citações dos versículos.
Como no primeiro capítulo Os irmão devem viver sem nada de próprio, em castidade e em
obediência371:
A regra e a vida destes irmãos é esta: viver em obediência, em castidade e sem nada de
próprio e seguir a doutrina e os vestígios de Nosso Senhor Jesus Cristo, que diz: se queres
ser perfeito, vai e vende tudo o que tens e dá aos pobres e terás um tesouro no Céu; e
vem, segue-me. (...)
O ato da obediência entre Igreja e evangelho faz refletir sobre: o preceito obediência se deve ter
pelas regras da Igreja ou pelas regras do franciscanismo proposto por seu fundador na vivência do
evangelho? A leitura leva a compreender que obediência aos legados do papa são importantes e
necessários para manutenção da Ordem. Mas o principal objetivo da Regra é a solidificação do modo
de vida que os frades deveriam seguir dentro dos preceitos do evangelho.
As principais regras de obediência são a castidade, pobreza e caridade. A pobreza está presente
em quase todos os capítulos, mas além de um modo de vida é a busca por uma prática de caridade nas
atividades pastorais.
Para boa parte do monaquismo tradicional o século XII, por exemplo, a vita
apostólica que ansiavam por viver era pouco mais do que uma vida comum de
pobreza individual e orações, não apresentando um programa de trabalho pastoral
e de ação no mundo junto às populações mais humildes. Contudo, no próprio seio
371
FONTES FRANCISCANA, organizada pelo FreiDorvalino Francisco Fassini (OFM). Santo André, São Paulo; Editora
O mensageiro de Santo Antonio, 2004. Documento Regra não Bulada, p.41
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do movimento monástico, e também entre os cônegos, foi se desenvolvendo a
idéia de que uma verdadeira vita apostólica deveria passar a incluir algum tipo de
atividade pastoral. É este ideal que iria se materializar nas primeiras décadas do
século XIII com a proposta dos mendicantes. Desta maneira, o franciscanismo
deverá ser visto dentro de quadro geral onde se desenvolve uma nova forma
religiosa de se situar no mundo, ao mesmo tempo em que se apresenta como uma
forma de responder aos desafios de seu tempo. (BARROS; 2011, p. 113).
O modo de vida franciscano na regra não Bulada é voltado para a vivência do evangelho, e
compreende isto quando os capítulos pontuam os caminhos da humildade, pobreza, amor ao próximo e
também quando são citandos os cuidados com os doentes principalmente os leprosos que eram
rejeitados pela sociedade na época. Portanto a regra não Bulada tem características de um seguimento
espiritual. “Ao formular as normas de vida para si e seus companheiros, havia considerado como ponto
de referencia apenas o evangelho, a ser difundido sobre a terra” (...) (FRUGONI; 2011, p.117) Como
observou nono capítulo Do pedir esmola372:
Todos os irmãos empenhem-se em seguir a humildade e a pobreza de nosso senhor Jesus
Cristo e recordem-se de que nada mais nos importa ter do mundo inteiro, a não ser, como
diz o apóstolo: tendo alimentos e com que nos vestir, estejamos contentes com isso, e
devem alegra-se quando estiverem entre pessoas vis e desprezadas, pobres e débeis,
enfermos, leprosos e mendigos de rua. (...)
A regra Bulada é uma documentação que tem objetivo de oficializar a Ordem Franciscana.
Alguns capítulos são iguais ou parecidos com a da regra não Bulada, mas não tem a profundidade nos
assuntos da obediência na vivência do evangelho. Tendo a característica de determinar a
372
FONTES FRANCISCANA, organizada pelo FreiDorvalino Francisco Fassini (OFM). Santo André, São Paulo; Editora
O mensageiro de Santo Antonio, 2004. Documento Regra não Bulada,p.47 e 48.
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institucionalização e os preceitos das hierarquias dentro da ordem deixando praticamente de lado a
igualdade entre os frades.
(...) A maior parte das citações do evangelho da regra de 1221 foi suprimida,
como foram suprimidas as passagens líricas, em favor de fórmulas jurídicas. Um
artigo que autorizava os frades a desobedecerem aos superiores indignos também
foi suprimido. Da mesma forma, tudo que se referia aos cuidados a serem
dispensados aos leprosos e todas as prescrições que exigiam uma pobreza rigorosa
a ser vivida pelos irmãos. A regra não insistia mais na necessidade do trabalho
manual e não mais proibia que os frades tivessem livros. (...) ( LE GOFF; 2005, p.
86)
Quando se faz a leitura da regra Bulada compreende que seus capítulos são menores comparados com
a da regra não Bulada. Alguns capítulos encontram se resumidos e no mesmo espaço várias
advertências ou conselhos do modo de vida, como por exemplo, no capítulo terceiro: Do oficio divino
e do jejum e de como os Irmão devem ir pelo mundo373.
(...) em outros tempos, porém, não estão obrigados a jejuar, a não ser na sexta-feira mas,
em tempos de manifesta necessidade, os irmãos não sejam obrigados ao jejum corporal.
Aconselho ainda, admoesto e exorto os meus irmãos no senhor Jesus Cristo que, ao irem
pelo mundo, não entre em letígios, nem em brigas de palavras vãs , nem julguem os
outros. Mas, sejam brandos, pacíficos e modestos, mansos e humildes falando
honestamente com todos, como convém. E não devem andar a cavalo a não ser quando
coagidos por manifesta necessidade ou enfermidade. Ao entrarem numa casa, digam
primeiro: paz a esta casa. (...)
373
FONTES FRANCISCANA, organizada pelo FreiDorvalino Francisco Fassini (OFM). Santo André, São Paulo; Editora
O mensageiro de Santo Antonio, 2004. Documentos Regra Bulada, p.64
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Neste capítulo argumenta a necessidade de se fazer os jejuns e as orações durante a quaresma e
depois inicia o assunto sobre como deve ser o comportamento dos frades em suas missões pelo mundo,
não utilizar o cavalo como transporte e somente em caso de enfermidade e um conselho de desejarem a
paz em todos os lares que entrarem. Enquanto na regra não Bulada cada um destes assuntos tem um
capítulo especifico e é argumentado detalhadamente com advertências e conselhos374.
O capítulo sétimo Da penitência a ser imposta aos irmãos que pecam é outro ponto de
discordância em relação a primeira regra, pois neste capítulo compreende a necessidade de dar a
penitência ao frade que não está dentro da obediência das regras da ordem Franciscana. Além de ser
contrário às propostas do fundador da ordem, (...) “O mesmo Francisco que se recusava a punir e
corrigir os frades insurgentes à pobreza e simplicidade originais, pois, dizia, o próprio magistério se
fundava no evangelho e não no poder” (...) (FRUGONI; 2011, p.161)
Estes foram apenas alguns pontos de comparação e analise para compreender a necessidade da
Igreja Católica em oficializar em breves preceitos uma ordem que foi capaz de modificar o pensamento
religioso e social no século XIII. A modificação nas representações da pobreza e destacando a
verdadeira pratica do evangelho no cotidiano.
Francisco, já no final de sua vida escreve outro documento, o testamento que aborda
brevemente sua trajetória na vida religiosa e adverte sobre o seguimento da regra dentro dos preceitos
do evangelho. (...) “o próprio altíssimo me revelou que eu deveria viver segundo a forma do santo
evangelho375” (...). A autora Frugoni também faz algumas argumentações a respeito da insatisfação de
Francisco com a regra Bulada.
374
Na regra não bulada os capítulos são: Capítulo 3 Do divino e do jejum, capítulo 11 Os irmãos não blasfemem nem se
destratem, mas amam-se uns aos outros, capítulo 14 Adverte como os frades devem ser quando saem para fazer suas
missões e o capítulo 15 Os irmãos não andem a cavalo.
375
FONTES FRANCISCANA, organizada pelo FreiDorvalino Francisco Fassini (OFM). Santo André, São Paulo; Editora
O mensageiro de Santo Antonio, 2004. Documento testamento, p 84
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Foi provalvemente
em Celle, durante um período de melhora, que ditou o seu
testamento. Poucas páginas, complexas e trágicas, nas quais recapitula sua vida e sua
experiência, reafirmando pela fidelidade à sua primeira Regra, ao trabalho manual, a
assistência dos leprosos, obrigando a si e os frades ao mesmo respeito: como se pudesse
recomeçar desde o inicio e confiar, como irmãos que está prestes a deixar, num longo
futuro novos projetos. Reivindica a originalidade de sua obra desejada por Deus, e não
por uma Igreja pela qual tem respeito, mas na qual também guarda distância. (...)
(FRUGONI; 2011; p.161)
A proposta de vida na prática da pobreza e da vivencia do evangelho na regra não Bulada
poderia ter causado grandes mudanças nos aspectos religiosos cristãos e seria um perigo para a
estrutura das normas eclesiásticas. Talvez este seja o motivo das modificações realizadas no segundo
documento, a chamada regra Bulada.
Breves considerações
Estes são breves considerações sobre algumas fontes medievais que auxiliam a entender a
formação do franciscanismo e as suas propostas e mudanças no decorrer de sua composição no
contexto do século XIII.
Estas indagações que foram norteadas ajudam a entender a influencia e o poder da Igreja
Católica medieval, analisando se as praticas de uma regra que propõem viver o evangelho e outra que
determina a oficialização e os seguimentos de uma ordem que representou os marginalizados da
sociedade na sua época.
A ordem Franciscana como instituição deixa de um lado de preservar na sua pureza original as
convicções de Francisco, mas teve papel importante no contexto medieval ao abrir as discussões sobre
o trabalho de assistência e da vida apostólica tendo como base somente o evangelho. Discussões que
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permearam o franciscanismo no século XIII e que possibilitam estudos na historiografia no âmbito da
religiosidade e social.
Fontes e Referências Bibliográficas
FONTES FRANCISCANA, organizada pelo FreiDorvalino Francisco Fassini (OFM). Santo André,
São Paulo; Editora O mensageiro de Santo Antonio, 2004.
BARROS. José D´ Assunção. Considerações sobre a história do franciscanismo na Idade média.
In Estudos da Religião, v.25, n. 40, 110-126, jan/jun. 2011.
FALBEL. Nalchman. Os espirituais franciscanos. São Paulo; Perspectiva: FAPESP: editora da
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FRUGONI. Chiara. Vida de um homem: Francisco de Assis. São Paulo, Companhia das Letras,
2011.
LE GOFF. Jacques. São Francisco de Assis. 7ª edição; Rio de Janeiro, 2005.
LE GOFF. Os Intelectuais na Idade Média. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988.
MIALETO. André. A Transcendência imanente no ordenamento social da Idade Média: os limites
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www.veredasdahistoria.com
VAUCHEZ. André. A espiritualidade na Idade Média Ocidental. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.
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A CRISE NO CAMPO E A PROTEÇÃO À NOBREZA: A LEI DAS SESMARIAS EM
PORTUGAL DURANTE O REINADO DE D. FERNANDO (1367-1383)*
Fernando Lobo Lemes
PUC/Goiás | PNPD/CAPES
Retomar o estudo da Lei das Sesmarias pode parecer redundância ou mesmo, caso se percorra
caminhos ainda não trilhados, pretensioso. Apesar do desafio que representa, a intenção de buscar
compreender melhor o contexto no qual foi elaborada, correlacionando-a com acontecimentos
coetâneos, nos aparece como elemento propulsor para tal iniciativa.
Mesmo porque, fala-se muito na Lei das Sesmarias, mas o conhecimento histórico do período
no qual foi gestada, parece relegado a planos de pouca importância para o estudioso.
Deste modo, imaginamos ser fundamental a compreensão dos motivos que conduziram à sua
concepção já que, apesar de filha do século XIV, transcendeu o próprio tempo de sua criação e
ultrapassou os limites do solar lusitano espalhando-se pela vasta extensão dos domínios ultramarinos
portugueses.
Deslocando a problemática do domínio jurídico para um mergulho mais detido no emaranhado
histórico do Trezentos medieval português, pensamos contribuir para um maior esclarecimento aos
interessados no estudo de história rural, pois com a Lei das Sesmarias, “aproveitando e fazendo reviver
certos preceitos antigos, leis esparsas e costumeiras isoladas, erige-se uma das primeiras leis agrárias
da Europa que mereça tal nome”.1
Procuramos através da correlação do texto da lei e a história de seu tempo, demonstrar o que
nos parece determinante na sua elaboração e aplicação: a Lei das Sesmarias num contexto em que
conflitos entre trabalhadores rurais e proprietários de terra permite-nos entrever a aurora de um novo
* Uma versão preliminar deste estudo foi publicada com o título A Lei das Sesmarias e Portugal no século XIV na Revista
Jurídica da UniEVANGÉLICA, nº 9, jan-jun, 2004, p. 99-119.
1
RAU, Virgínia. Sesmarias Medievais Portuguesas. Lisboa, Presença, 1946, p. 26.
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modelo de relações, levadas a cabo por transformações políticas, econômicas e sociais que
desencadearam, por sua vez, uma alteração profunda nos valores e na visão de mundo da época.
A Lei das Sesmarias, como toda produção histórica e social dos homens, é indissociável de sua
própria gênese. Qualquer referência a ela, portanto, implica necessariamente noutras:
espacialmente, a nação lusitana – o Portugal de D. Fernando (1367-1383), último rei da primeira
dinastia. Temporalmente, o século XIV.
Os séculos XIV e XV são genericamente tidos como período de transição, contudo constituem
uma época cujas referências na historiografia ocidental em sua maioria não discordam: tempo de crise
profunda, ampla, que atingiu indiscriminadamente toda a sociedade e espaço europeus.
Embora tomados em conjunto, é prudente não exagerar nas conclusões, ora homogeneizando,
ora unificando peculiaridades e características próprias do período. Nos diz A. H. de Oliveira Marques,
estudioso do assunto, referindo-se especificamente a Portugal, mas cujo raciocínio podemos
certamente generalizar para toda a Europa: “A crise não foi una [...] Subdividiu-se em crises várias,
parcelares, quer no tempo quer no espaço. Assumiu formas várias também, mais ou menos acentuadas
e actuantes conforme as décadas e os locais”.2
Quanto ao mesmo assunto nos diz também Bernard Guenée: “[...] quaisquer que sejam os
pontos comuns, são grandes as diferenças entre 1300, 1400 e 1500 [...]”.3 Portanto, precaução
inevitável para o historiador que se aventura por este território: atenção e cuidado com as demarcações
espaço-temporais que envolvem a análise dos acontecimentos do século XIV e XV.
Neste contexto, Portugal “[...] não destoou do panorama geral europeu, antes se integrou
perfeitamente nele, conquanto com aspectos ‘sui generis’, próprios da sua situação geográfica
excêntrica e do regionalismo intenso que caracterizava o mundo feudal”.4
Ao longo destes dois séculos Portugal caminhou lado a lado com os demais reinos do
continente europeu. Até certo ponto o mesmo solo, os mesmos sistemas políticos, os mesmos ideais, a
mesma crise.
2
MARQUES, A H. Oliveira. Portugal na Crise dos Séculos XIV e XV. Lisboa, Presença, 1987, p.152.
GUENÉE, Bernard. O Ocidente nos Séculos XIV e XV: Os Estados. São Paulo, Pioneira/Edusp, 1981, p. 325.
4
MARQUES, A H. Oliveira. Op. cit., p. 47.
3
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Contudo, “[...] Em poucas épocas da história medieval portuguesa terá havido um tão grande
sincronismo entre acontecimentos verificados em Portugal e acontecimentos semelhantes verificados
noutras partes da Europa, como durante o reinado de D. Fernando”.5 Vale também dizer que, se uma
onda torrencial de crise invadiu toda a Europa durante o século XIV, em Portugal foi exatamente
durante o reinado de D. Fernando o seu ponto mais agudo.
Era como se num crescendo constante, todas as dificuldades do reino caminhassem sem solução,
durante toda a extensão do século XIV, em direção ao governo de D. Fernando.
Palco de implacável convulsão, antecâmara da guerra civil que se instalaria logo após sua
morte, seu governo, fazendo chamar “[...] comdes, e prellados, e meestres, e outros fidallgos, e
cidadaaos de sua terra [...] E feito huum dia jumtamento de todos”,6 promulgou, provavelmente em
1375 (ou pouco antes), elaborada por juristas da época, a Lei das Sesmarias.
Ao longo dos séculos, acusada de violentar a liberdade do cidadão e de ser um verdadeiro
ataque à propriedade individual, além de recurso violento para aumentar os proventos do erário régio,
nela encontramos uma harmonia imparcial com as condições de seu tempo: a violência da lei
correspondeu à violência da crise.
A possibilidade de uma legislação que assume força e importância cada vez maior durante o fim da
Idade Média, advém, na verdade, das diretrizes de um governo cujas características básicas definem
um constante processo de centralização administrativa que, neste caso específico, oferece condições
para compreendermos melhor a elaboração de tão amplo código legal, tal como se observa na Lei
das Sesmarias.
O modelo administrativo que sobrevive no século XIV, em todo o mundo ocidental europeu,
característico de um Estado burocrático centralizado utiliza-se, cada vez mais, de uma legislação e
impostos gerais que “[...] foram gradualmente impondo uma única administração, um único senhor e
um único conceito de súdito”.7
5
Idem, p. 512.
LOPES, Fernão. Crônica de D. Fernando. Porto, Civilização, 1986, p. 237.
7
MARQUES, A H. Oliveira. Op. cit., p. 48.
6
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CRISE NO CAMPO E DIVERSIFICAÇÃO DA ECONOMIA
Não se pode duvidar da importância indiscutível da agricultura na Europa dos tempos medievais. Tal
importância podemos ver espelhada no progresso técnico galgado nesta atividade durante os séculos
XIV e XV, como também em tempos precedentes, muito ao contrário do que se tem ensinado ao longo
dos anos.
Os aperfeiçoamentos técnicos e adaptações a situações novas, às vezes inesperadas e adversas,
apesar de insuficientes para conter as crescentes dificuldades, permitiram amenizar os sofrimentos
diante da crise que se instalou já no século XIV.
Sabemos hoje que as dificuldades podem promover avanços. Os homens do Trezentos e
Quatrocentos português, no anseio por medidas que dessem solução aos problemas vigentes, para além
das técnicas, elaboraram e decretaram leis, ordenações e circulares que pudessem servir de remédio
para os males detectados.
A agricultura, que acudia no essencial não apenas as necessidades nacionais como alimentava a
exportação crescente para o estrangeiro, responsável e mantenedora da riqueza e privilégios dos
grandes senhorios, carecia, em meio à crise que se avultava, do fomento imediato que lhe restituiria a
força e o impulso produtivo.
Foi assim que, num movimento praticamente simultâneo entre os reinos europeus, buscou-se a
redenção da agricultura. Primeiro na Inglaterra, onde o parlamento decretou, em 1349-1351, o Estatuto
dos Trabalhadores cujo texto, na opinião de Virginia Rau, “[...] podemos comparar com a Lei das
Sesmarias não só nos males a remediar, como também em relação à taxa dos salários e a limitação da
faculdade do trabalhador rural procurar livremente ocupações mais remuneradoras”.8 A Ordonnance
francesa de 1351 repetia dispositivos semelhantes. Aquém Pirineus, no mesmo ano, as cortes de
Castela, reunidas em Valladolid, decretaram a regulamentação dos salários. Os príncipes germânicos
impuseram controles similares na Bavária, em 1352.9
8
9
RAU, Virgínia. Op. cit., p. 87.
ANDERSON, Perry. Passagens da Antiguidade ao Feudalismo. São Paulo, Brasiliense, 1987, p. 196.
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Em Portugal, duas décadas mais tarde, D. Fernando reconheceria, no preâmbulo da Lei das
Sesmarias, a necessidade vital da agricultura, “[...] mais profeitosa e necessária pêra a vida e
mantimento dos homeens e das aljmaljas que Deus criou pêra serviço do homem e ajnda pêra ganhar e
auer algo sem pecado e com homrrra e em boa forma colhando em esta razom”.10
Fundamento do Portugal Trecentista, Portugal agrário, cujo processo de urbanização traçou, a partir
de então, perenes linhas que demarcaram, e ainda demarcam, relevantes divisões no interior de suas
próprias fronteiras, a agricultura interligou-se às condições gerais do reino. Uma má condição
agrícola, portanto, refletiria, na estabilidade geral da sociedade e da economia portuguesa.
Entretanto, a indicação de uma queda na produção aparece clara nos documentos da época, em
todas as partes do reino. A falta do trigo e da cevada, elementos essenciais para economia,
conseqüência de uma queda abrupta na produção, promovia a ausência destes produtos e sua
conseqüente alta nos preços.11
Contudo, o que teria realmente provocado a queda na produção e levado à falta e carestia dos
cereais?
A lei dirá: o desamparo e o abandono das terras “[...] deitadas em rossijos sem proll e com
dapno dos poboos”.12
Sem sombra de dúvida, o documento não mente. Mas estaria nele, na superfície do texto,
explícita claramente toda verdade? A complexidade da crise que envolve o século XIV e,
particularmente, o reinado de D. Fernando, nos leva a uma afirmação negativa para a questão
colocada: não, ainda outros elementos estariam a dificultar o equilíbrio da produção agrícola
portuguesa e, até mesmo, induzindo ao abandono e desamparo das terras.
O solo europeu havia sofrido “intensos desbravamentos [...] que provocaram uma
transformação radical das paisagens, a mais espetacular na história do campo. Por toda parte, os
10
Lei das Sesmarias. In RAU, Virgínia, Op. cit., p. 267.
Interessante notar que em todo o texto da Lei das Sesmarias não se percebe a preocupação dos juristas em considerar as
sucessivas desvalorizações monetárias, das quais trataremos adiante, ocorridas durante o século XIV e, especialmente,
durante o reinado de D. Fernando, como causa, nem ao menos parcial, da elevação dos preços dos produtos agrícolas. A
ênfase é dada “antre todallas razões”, na queda da produção ou, como diz o próprio texto, “per mingua das lavouras”.
12
Lei das Sesmarias. Op. cit., p. 267.
11
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camponeses fizeram recuar os bosques, as landas e as terras incultas”.13 Os pauis portugueses, que
exemplificam a “[...] conquista dos grandes pântanos, tão difícil e embora imperfeitos é, com certeza, a
realização humana mais espantosa da época”.14
A este respeito, diz Anderson que a “derrubada de florestas e as terras desoladas não haviam
sido acompanhadas de um cuidado considerável em sua conservação” e, ainda, que “as terras aradas
mais antigas estavam sujeitas ao desgaste e deterioração pela própria antiguidade de seu cultivo. Desta
forma, conclui: “[...] o processo da agricultura medieval incorria agora em suas próprias perdas”.15
Dificuldades na aplicação de fertilizantes, de maneira que a camada superior do solo era
rapidamente exaurida, enchentes e tempestades de poeira freqüentes, complementam o rol das
manifestações de um equilíbrio ecológico precário que incidiam sobre os limites de uma técnica cuja
evolução se processava de forma relativamente lenta. Tudo isso impelia a um emperramento dos
mecanismos de reprodução do sistema vigente à época, agrário por excelência.
Conseqüência nefasta desta insidiosa situação, o século XIV viu pontilhado ainda nos seus anos
iniciais a face cruel da fome: 1315 e 1316 foram anos de péssimas colheitas, fazendo mesmo decair
o índice de nascimentos em toda a Europa.16
Particularmente em Portugal, já em 1349, circulou em todo o reino, lei de D. Afonso IV, endereçada
aos “[...] juyzes e uereadores e homens boons”, sobre o impacto inicial da “[...] pestilência que hy
ouue”17 que, se não faz referência direta à outras causas da crise que não a Peste Negra de 1348,
pelo menos nos deixa entrevê-las: as condições da agricultura do reino iam já de mal a pior.
Um pouco mais tarde, D. Pedro, em lei datada de 18 de fevereiro de 1364, dirigida aos “homens
boons e concelho de Santarém”, queixava-se, referindo-se à falta de mantimento naquela vila, que
“[...] os reis que antes mym foram morauam per longos tempos e auyam auondamento de todas
13
HEERS, Jacques. O Ocidente nos Séculos XIV e XV: Aspectos Econômicos e Sociais. São Paulo, Pioneira/Edusp, 1981,
p. 31.
14
HEERS, Jacques. Op. cit., p. 31.
15
ANDERSON, Perry. Op. cit., pp. 191-192.
16
Idem. p. 193.
17
Livro das Leis e Posturas. Folhas 158v-160. In RAU, Virgínia. Op. cit., pp. 260-263.
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aquellas cousas que lhe cumpriam sem graueza”.18 Aqui o saudosismo denota a crescente debilidade
agrícola.
Uma vez mais, a legislação veio a reboque dos fatos. A crise agrícola apontada pela maioria dos
documentos da época parecia não se permitir limites: ao desgaste inevitável do solo, juntavam-se
outras conseqüências de um desequilíbrio ecológico produzido pelos avanços da própria agricultura.
Além disso, outros fatores de não menos relevância, somados à situação ecológica precária, viriam
agravar ainda mais os momentos de profunda dificuldade pelos quais passavam os campos do reino
português.
Que a produção de cereais foi sensivelmente reduzida durante os séculos XIV e XV, não resta
dúvidas. Em contrapartida, “forçoso é reconhecer que o vinho, o azeite, o sal e a fruta conheceram
fases de expansão, tornando-se fonte de riqueza e objeto de exportação para o estrangeiro”.19
Portugal seguia então uma tendência mais ampla de internacionalização de sua economia, pois, de
acordo com Anderson, “[...] a diversificação da economia feudal européia junto com o crescimento
do comércio internacional haviam levado algumas regiões a diminuir a produção do milho, dos
cereais, às custas de outros (vinhas, linho, lã ou pecuária), e assim, a um aumento na dependência
da importação – e aos perigos correlatos”.20 Neste sentido, na expressão de Oliveira Marques,
Portugal “europeizou-se”.
O panorama geral do século XIV revela, então, uma crise avassaladora ou uma transformação
profunda no processo produtivo do reino português ?
Assim, melhor talvez que definir esta condição através da noção de crise, seria dizer, ainda com
Oliveira Marques, “[...] que houve, sobretudo uma transformação na economia portuguesa que, se a
tornou mais dependente de compras no exterior, a converteu também em economia de troca com a
demais Europa”.21 Tal foi a transformação que se pôs em marcha que às dificuldades do campo se
contrapunham os movimentados portos das cidades litorâneas portuguesas, sobretudo Lisboa e
Porto.
18
A.N.T.T., Chancelaria de D. Pedro I, livro I, folha 93. Idem. pp. 264-266.
MARQUES, A. H. Oliveira. Op. cit., p. 50
20
ANDERSON, Perry. Op. cit., p.192.
21
MARQUES, A. H. Oliveira. Op. cit., p. 51.
19
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No reinado de D. Fernando quando, de acordo com Fernão Lopes, “começou de reinar o mais rico
Rei que em Portugal foi ataa o seu tempo”, passavam por Lisboa, “[...] assim como Genoeses, e
Prazentjns, e Lombardos, e Catelãaes Daragom, e de Maiorgua, e de Millam, que chamavom
millaneses e Corsijns, e Bizcainhos, e assi doutras nações, a que os Reis davom privillegios e
liberdades”. Neste tráfego intenso, “[...] faziam vijr, e enviavom do reino gramdes e grossas
mercadorias”, e “afora as outras cousas de que em esta çidade abastadamente carregar podiam,
soomente de tonees, afora os que levarom depois os navios na segumda carregaçom de março”.22
Fernão Lopes nos dá a medida da abundância. A dar-lhe crédito, não detectaríamos crise alguma,
pelo menos não em Lisboa, para onde se dirigiam “[...] de desvairadas partes mujtos navios a ella,
em guisa que com aquelles que vijnham de fora, e com os que no reino havia jaziam mujtas vezes
ante a çidade quatro centos e quinhemtos navios de carregaçom”.23
Assim, uma ambigüidade, uma dicotomia entre campo e cidade parece preencher os olhares
voltados para o reino português do século XIV. Entretanto, considerando este século na perspectiva
de um afunilamento, digamos assim, da crise em direção ao governo de D. Fernando, nele se
chocará o observador com uma conjuntura nunca antes mais negra, nunca menos alentadora.
Desalento que, provavelmente, superou em muito as expectativas otimistas dos centros urbanos com
relação aos campos.
Agravando ainda mais as sérias e já seculares dificuldades do reino, o governo de D. Fernando, o
Inconstante, instalou o temor sobre a população. Em primeiro lugar, a persistente tendência belicosa
do rei, cujo reinado, “de quase um quarto de século não foi pacífico, quer interna quer
externamente”.24
Envolveu-se em três guerras contra Castela, cujas causas não podem ser compreendidas
perfeitamente fora do quadro europeu da Guerra dos Cem Anos. Por outro lado, de acordo com
Oliveira Marques, e bem ao contrário de seu pai, “[...] desdenhava da companhia de populares,
22
LOPES, Fernão. Op. cit., pp. 4-5.
Idem, Ibidem.
24
TAVARES, Maria José Pimenta Ferro. “Para o Estudo do Pobre em Portugal na Idade Média”. In Revista de História
Econômica e Social, v. 11, Lisboa, 1983, p. 35.
23
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preferindo-lhes a nobreza”.25A mesma nobreza que esteve nos bastidores das aventuras bélicas em
que se envolveu.
Tais guerras, enfim, empurravam ainda mais intensamente o reino português rumo ao abismo que
atropelava a vida do povo. A destruição dos campos e das cidades levava ao empobrecimento da
população, dificultando o trabalho e a produção.26
Fernão Lopes, fonte indispensável para o estudo do assunto, nos dá noticias, também, da eclosão de
revoltas e uniões populares. No entanto, “[...] reflexo evidente da profunda instabilidade social em
que mergulhava o reino à entrada do último quartel do século XIV”,27 estes movimentos tiveram
profunda relação com as guerras com Castela e a situação geral durante o reinado de D. Fernando e
não apenas com o casamento do monarca como o quer Fernão Lopes.28
A resposta régia a tais movimentos assumiu sempre o caráter de extrema violência, o que não
impediu a eclosão de novas manifestações.
Outro acontecimento determinante para os anos
fernandinos e indicador da inconstância e variações de posições que caracterizaram o seu governo
foi o Grande Cisma do Ocidente.29 A política externa promovida por D. Fernando, fez oscilar as
opções, flutuando “[...] de obediência em obediência, consoante o fazer e o desfazer das alianças
diplomáticas: de Urbano VI passou a Clemente VII (1378) – embora com hesitações no começo -,
deste novamente a Urbano VI (1381) e, uma segunda vez, a Clemente VII (1382)”.30
25
MARQUES, A H. Oliveira. Op. cit., p. 510.
“A política belicista do reinado de D. Fernando tivera graves conseqüências para todo o país. As reservas de ouro foram
gastas na sua quase totalidade, tanto em despesas de armamento (exército e frota) quanto por envio para Aragão. A moeda
teve de ser desvalorizada sucessivas vezes, entre 1369 e 1373. Os preços subiram em flexa. As destruições causadas pelo
inimigo irritaram profundamente as populações atingidas em especial os lisboetas cuja cidade fora em grande parte
saqueada e incendiada”. Idem, Ibidem.
27
ANTUNES, José. OLIVEIRA, Antônio Resende de. MONTEIRO, João Gouveia. “Conflitos Políticos no Reino de
Portugal entre a Reconquista e a Expansão – Estado da Questão”. In Revista de História das Idéias, v. 6, Lisboa, 1984, p.
27.
28
Após a primeira guerra contra Castela, assinou-se a paz cujos termos foram definidos no Tratado de Alcoutim, no qual D.
Fernando obrigou-se a casar com D. Leonor, filha do rei de Castela. De acordo com Arnaud, o rei “[...] jura perpétua
amizade aos reis de Castela e França”. Mas, tal condição, para Arnaud, “foi um desastre com um sem número de
conseqüências sucedendo-se em cadeia”. ARNAUD, Salvador Dias. “D. Fernando: o Homem e o Governante”. In Anais,
v. 32, Lisboa, 1989, p. 22.
29
A partir de 1378 a eleição do “antipapa” Clemente VI dividiu a Cristandade em duas obediências, caracterizando o
Grande Cisma do Ocidente.
30
MARQUES, A H. Oliveira. Op. cit., p. 519.
26
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Some-se, ainda, a tudo isso as ações da implacável natureza: os maus anos agrícolas de 1371 e 72 (a
que se seguiram outros em 1374, 75 e 76) degeneraram a cinzenta conjuntura, até quase o
inimaginável.
A complexidade estrutural das transformações que envolviam todo o século XIV e, particularmente,
a difícil conjuntura fernandina, devem ser adicionadas ao desamparo e abandono das terras, a fim de
compreendermos as causas reais que teriam induzido à mingua das lavouras e à queda na produção
de cereais e, portanto, à sua falta e carestia.
Finalmente, havendo consenso a respeito das dificuldades que se abatiam sobre o reino e tendo
tomado conselho “como o inffamte Dom Joham nosso jirmãao e com o comde dom Joham Afomso
e com os prelados e Prioll do Spital e meestres da caualarija e com os outros fidalgos e çidadãaos e
homeens boons dos nossos regnos”, D. Fernando tentou remediar o mal, ordenando “[...] que todos
que ham herdades suas próprias ou teuerem emprazadas ou aforadas ou per outra qualquer quisa ou
título (...) seiam constranjudos para as laurar e semear”.31
Caso não pudessem fazê-lo, “por seerem mujtas ou em muitas desuairadas comercas”, que
utilizassem parte da propriedade e cedessem a outrem “por a parte ou a pensom çerta ou a foro”. 32
O não cumprimento da ordenação levaria à expropriação.
Além disso, ordenou a nomeação de dois homens bons que seriam responsáveis pela aplicação da
lei, por vigiar e constranger ao cultivo, por fazer um inventário onde constassem nomes de todos os
indivíduos aptos ao trabalho, cada um em sua respectiva região, e, enfim, por determinar o valor das
propriedades.
Para os que não cumprissem suas determinações, caso fossem nobres, seriam punidos com o
pagamento de 500 libras. Se não nobre, a quantia se reduziria a 300 libras, muito embora seguida de
desterro.
Como se vê, à falta e carestia de cereais a Lei das Sesmarias contrapõe a necessidade imperiosa do
aumento da produção, através da compulsão daqueles que possuem terras à atividade produtiva. O
31
32
Lei das Sesmarias. In RAU, Virgínia. Op. cit., p. 267.
Lei das Sesmarias. Idem, Ibidem.
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termo “constranger”, várias vezes utilizado no texto, dá o tom da ação imposta pela legislação em
apreço.
O fato é que a Lei das Sesmarias, ao diagnosticar a crise, toma como norteadores de suas linhas os
sintomas mais aparentes aos olhos dos homens da época, mas deixa entrever uma eleição de causas
da crise que guarda, nas entrelinhas do texto, um jogo de interesses que encontra na lei mecanismos
utilizados num conflito entre partes com expectativas opostas.
A FALTA DE BRAÇOS E O ABANDONO DAS ÁREAS RURAIS
Se frente à falta e carestia de cereais a opção da Lei das Sesmarias é pelo aumento da produção,
coagindo o proprietário a cultivar a terra mediante a sanção da expropriação, outras medidas foram
impostas com a intenção de dar solução ao problema do abandono das terras.
De acordo com a Lei das Sesmarias “[...] os homens deixam e se partem delas entendendo em
outras obras e outros mesteres, que não são tão profeitosos para o bem comum”.33 Parece, então,
correto entendermos que os interesses do camponês encontravam-se direcionados noutro sentido
que não o das lavouras de cereais. Uma questão se coloca: o que teria conduzido os trabalhadores ao
abandono das lavras?
As condições precárias da agricultura, tratadas anteriormente, certamente devem ter tido peso
significativo para que tal fato ocorresse. Contudo, ainda outros motivos se nos aparecem como
argumentos que elucidam a ausência de homens nas lavouras e até mesmo, a “opção”, digamos
assim, do trabalhador rural diante das violentas transformações que se operavam na sociedade
portuguesa.
A falta de braços nas áreas rurais do reino é queixa constante durante os séculos XIV e XV.
Somada à queda do índice de natalidade, em conseqüência dos constantes declínios na produção,34 a
Peste Negra parece ter provocado uma aceleração no que poderíamos chamar de crise de mão-de33
Lei das Sesmarias. Idem, Ibidem.
De acordo com Oliveira Marques, “[...] o rol das crises frumentárias permite afirmar que a fome em Portugal constituía
fenômeno tão normal e recorrente como a peste. [...] Nem todas elas, é óbvio, produziram fomes gerais no país. Mas todas
34
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obra que, por sua vez, dá-nos indícios de que foi anterior à epidemia, datada pelos historiadores de
1348.
As conseqüências da Peste abalaram e marcaram profundamente a história demográfica européia e
portuguesa.
Na opinião de Heers, “[...] é difícil avaliar exatamente as perdas, mas sabe-se que impediam
qualquer recuperação demográfica e provocavam uma queda no número de casamentos e
nascimentos”. E, prossegue ainda Heers, “durante todo o século XV, a peste graça em estado
endêmico; está presente na mente de cada um e aumenta o sentimento de angústia e miséria”.35
À época, por vezes exagerados, chegaram a reclamar a perda de 2/3 da população. No entanto,
Oliveira Marques chega a admitir que um terço a metade dos povos pereceram em poucos meses. O
mais agravante é que à epidemia de 1348, seguiram-se outras, impedindo a normalidade
demográfica.36
A peste encontra-se, em Portugal, com o governo de D. Afonso IV que, na circular de 1349, tentou
dar alento à agricultura do reino, considerando como problema principal a falta de braços provocada
pela peste, argumentando que, devido às heranças recebidas, muitos trabalhadores “nom querem
obrar de seus mestres e serujços como antes faziam e que por esto os dessa vila e termho rrecebem
grandes perdas e danos”.37
Devastado pela peste, o reino sofria da escassez permanente de mão-de-obra, o que impulsionava
para o alto o valor dos soldos pagos ao camponês. Como diz a circular, apenas se sujeitavam (os
camponeses) ao trabalho, “se lhis derem quanto eles quyzerem”.38
A Lei das Sesmarias constitui-se num diploma complexo que, nas palavras de Virgínia Rau, resume
e incorpora leis precedentes oferecendo-nos a possibilidade de dela extrairmos e compreendermos
as características gerais da legislação utilizada na época.
elas ajudaram a travar uma recuperação demográfica e a manter reduzido o nível de habitantes”. MARQUES, A H Oliveira.
Op. cit., 30.
35
HEERS, Jacques. Op. cit., p. 80.
36
MARQUES, A H. Oliveira. Op. cit., p. 21.
37
Livro das Leis e Posturas. Folhas 158v-160. RAU, Virgínia. Op. cit., p. 260.
38
Livro das Leis e Posturas. Idem, Ibidem.
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Praticamente, todas as leis que lhes são coetâneas fazem referência à escassez de braços e à alta dos
preços e soldadas indicando como causa a mortalidade incontrolável introduzida pela peste.
Ora, não se pode reduzir os efeitos da peste sobre a escassez de mão-de-obra no reino, durante o
século XIV. Mesmo porque, tendo provocado a redução no número de homens, pode ser
considerada como forte componente explicativo para o abandono das lavouras pelos camponeses, já
que o mesmo volume de trabalho teria de ser realizado por uma quantidade menor de trabalhadores.
Contudo, terá tido realmente a Peste Negra os efeitos avassaladores sobre as relações no campo ou
terá ela sido habilmente utilizada como pretexto para a confecção de leis que coagissem o camponês
a se submeter às baixas pagas e às condições precárias de vida e trabalho, num momento em que
por todo o reino sofria-se as conseqüências de um processo de transformação geral da sociedade?
Vale lembrar que as áreas rurais não foram tão atingidas pela peste como se pensa. Heers nos alerta
que “[...] as cidades e as comunidades eclesiásticas foram acometidas mais duramente que o
campo”.39
Vários autores situam na peste de 1348, o início de uma crise que se alongará por todo o século
XIV. Deles não discordamos.
Contudo, a questão da paga ao camponês, tema indissociável da legislação da época, ou mesmo a
existência de um conflito de interesses entre aqueles que pagavam e aqueles que trabalhavam,
certamente é menos recente que a peste.
“Episodicamente”, recorda Borges Coelho, com termos talvez pouco adequados ao estudo da época,
“a peste pôde provocar a alta dos salários e a rarefação da mão-de-obra, mas ainda que ela não
tivesse atuado, a luta entre empregadores e assalariados não teria perdido a agudeza”.40
Acontece, assim nos parece, que, ao advento dos novos tempos que representam os séculos XIV e
XV, no contexto da Idade Média lusitana, correspondeu um maior acirramento das relações no
campo, já que para a produção e comercialização de cereais a demanda maior, embora ainda
existente, parece ceder lugar a produtos direcionados de antemão para a exportação.
39
HEERS, Jacques. Op. cit., p. 80.
COELHO, Antônio Borges. A Revolução de 1383 – Tentativa de Caracterização. Lisboa, Editorial Caminho, 1981, p.
39.
40
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É sintomática a preocupação, constantemente expressa no texto da Lei das Sesmarias, com a
produção apenas do trigo, cevada e milho, o que leva, inclusive, Virgínia Rau a afirmar que “[...] o
verdadeiro vício que macula tal lei é o de ter tentado organizar toda a vida rural portuguesa em volta
das searas, da agricultura propriamente dita, menosprezando o montado e o rebanho, o olival e a
vinha, a importância das colheitas arbustivas e arbóreas”.41
Desta forma, imaginamos poder dizer que a Lei das Sesmarias tentava obliterar um processo que há
muito se desenrolava, pois, como veremos, ao constranger o trabalhador, sob várias penalidades, ao
trabalho na lavoura, procurou manter, ou ao menos prolongar, a sobrevivência de um tipo de
senhorio completamente abalado pela crise transformadora.
No entanto, sabemos que “[...] embora permanecendo feudal, a sociedade portuguesa conseguiu,
gradualmente, ir sapando o senhorio típico, apropriando-se da exploração direta da terra e das casas,
empurrando o senhor para uma condição de arrendatário e tornando-o vulnerável às flutuações da
moeda e dos preços”.42
Entretanto, se a Lei das Sesmarias em parte beneficiava o típico senhor medieval, ela também o
tolhia em certos aspectos, como, por exemplo, ao fixar o valor das pensões, ou rendas, que
deveriam ser pagas pelos lavradores aos proprietários, impossibilitando, assim, exigências ou
pressões por parte dos senhores das herdades sobre os camponeses. O que equivale dizer: perda de
privilégio e limite imposto ao poder do senhor.
Que a Lei das Sesmarias constitui-se em violento recurso para ampliar o erário régio, já afirmamos
em páginas anteriores. Mas, é preciso não se esquecer que a coroa não agia só ou isoladamente.
Cabe então perguntar: quem velava pelo cumprimento da lei? Ao longo do texto notamos
claramente que todo o poder de constranger, “[...] assim os senhores das herdades [...] como os
lavradores que os filham”, 43 passava pelas mãos dos homens-bons.
41
RAU, Virgínia. Op. cit., p. 144.
MARQUES, A H. Oliveira. Op. cit., p. 22.
43
Lei das Sesmarias. Op. cit., p. 272.
42
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São eles que, desde o mais tenro ataque aos privilégios dos senhores feudais, se ocupavam da
administração das vilas, através dos concelhos espalhados pelo reino, fazendo uso das leis de forma
a legislar em causa própria.
Sobre eles, Borges diz o suficiente: “A classe dos homens bons alardeia força e poder. Tem nas
mãos o governo das principais vilas, [...] impõe leis e determinações agrícolas favoráveis aos seus
interesses e desenvolvimento; recebe nas próprias mãos o poder de as aplicar”.44
Portanto, permitimo-nos entender que a Lei das Semarias ao mesmo tempo que propõe mitigar os
grandes problemas portugueses, o fez de forma direcionada, privilegiando extratos ou estamentos
sociais em detrimento de outros. Talvez, por esses e outros motivos, poderíamos classificá-la como
uma lei que, de diversas formas, tentou entravar a marcha de uma sociedade que se transformava.45
Se é verdade que os interesses dos camponeses encontravam-se direcionados noutro sentido que não
o da produção de cereais, evidentemente induzido pelas dificuldades de caráter ecológico, técnico,
epidêmico, pelo baixo preço das soldadas, pela baixa taxa de natalidade e, cabe considerar, pelas
imposições legais que tornavam tensa sua relação com os senhores das herdades e, mesmo, com
outros grandes proprietários de terras, que outras direções o atraiam produzindo, então, as tão
propaladas lavras abandonadas? Que sentido tomavam os passos dos trabalhadores rurais num reino
cercado por tamanha carestia? Que outras obras e atividades atraiam camponeses em pleno século
XIV?
Naquele momento, as cidades representavam, por excelência, o espaço das novas relações. Talvez
mesmo o símbolo de uma até então inexistente liberdade.
Apesar ter sofrido muito mais intensamente que o campo aqueles períodos difíceis, “[...] as cidades
dominavam a vida da época nos séculos XIV e XV, afirmando e opondo-se nitidamente às áreas
rurais”.46
Mesmo acompanhando o surto da explosão urbana européia durante o período, Portugal teve freada
sua expansão demográfica durante o século XIV o que, entretanto, não impediu um considerável
44
COELHO, Antonio Borges. Op. cit., p. 143.
RAU, Virgínia. Op. cit., p. 143.
46
HEERS, Jacques. Op. cit., p. 125.
45
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crescimento urbano em toda a extensão do reino. Registre-se, ainda, exatamente em detrimento da
produção agrícola, uma imigração incontida oriunda do campo.47
A respeito de seu processo de urbanização, tal como toda história da agricultura portuguesa, o
desenvolvimento urbano, mesmo concomitantemente à reconquista, sofreu significativa
diferenciação quanto às regiões norte e sul, onde podemos entrever o elevado grau de influência
deixado pelos povos árabes, fixados desde longa data em praticamente toda extensão da península.
Borges Coelho chega mesmo a encontrar em Portugal da segunda metade do século XIV, uma
agricultura do tipo feudal, estabelecida mais ao norte no Entre-Douro, Minho e Ribeiras e uma
“nova agricultura” desenvolvendo-se na Estremadura, Alentejo e Algarve onde, coincidentemente,
encontravam-se os principais centros urbanos da época. Isto ao mesmo tempo em que “[...] os
núcleos mais consideráveis de burgueses rurais encontravam-se no centro e, particularmente, no
sul”.48
Anotemos de passagem a relação intrínseca entre campo e cidade, urbanização e agricultura, cuja
polarização talvez tenha determinado o perfil e as características principais do processo de
desenvolvimento mais amplo do Portugal Trecentista.
AS OPÇÕES DA LEI: COAÇÃO AO TRABALHO E PROTEÇÃO DA NOBREZA
De rarefeita e mal distribuída constituía-se essencialmente a população portuguesa. Fator
complicante diante da mobilidade populacional que se instalava ante o advento de uma espectativa
que impulsionava os passos do agricultor em sentido inverso ao campo: às atividades urbanas
associava-se maior liberdade e melhor paga.
À itinerância dos homens do campo e ao êxodo para as cidades correspondiam centros urbanos
super povoados onde a promiscuidade e comportamentos devassos faziam deles espaços propícios
para freqüentes crises.
47
48
MARQUES, A H. Oliveira. Op. cit., p. 510.
COELHO, A. Borges. Op. cit., p. 34.
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À medida exata do abandono das áreas rurais, se justapunham cidades em franca expansão que lhes
roubavam, num crescendo constante, os braços indispensáveis que no campo serviam.
Se opondo ao fato, a Lei das Sesmarias projeta soluções: visando evitar o êxodo ou, melhor ainda,
retroceder ou fazer ceder o movimento de abandono das lavras determinou a obrigatoriedade do
regresso às atividades da lavoura a “todollos os quer fooram ou soyam a seer lauradores. E outrossy
filhos e netos dos lauadores e todollos os outros moradores asi nas cidades e villas como fora
dellas”. Que usem “do dicto mester e oficio da lauoira”, em propriedades suas ou servindo a outrem
por soldadas, de acordo com a ordenação ou contrato local.49
A lei contudo, deixando transparecer suas preferências, como lembrou Fernão Lopes, cria e permite
exceções: “[...] que fossem constrangidos pêra lavrar, salvo se ouvessem de seu vallor de
quinhemtas libras [...]”.50
Na busca incontida, cujo objetivo maior era conter os males sociais que afetavam a agricultura do
reino, a lei agrária de D. Fernando demonstrou o quanto as cidades funcionavam como imãs,
exercendo uma incontrolável atração sobre diferentes grupos em todo o reino. Eram pra elas, para
as cidades medievais, no sentido dos centros urbanos portugueses, que caminhavam os homens do
campo, quando não ficavam a saltitar de herdade em herdade à procura de melhor soldada.
Foi na diversidade inovadora das obras e trabalhos urbanos que esbarraram as duras e violentas
determinações legais fernandinas, o que determinou, pelo menos em parte, a sua inutilidade como
lei agrária que, limitada mesmo no âmbito da agricultura, tentou condicionar os movimentos de toda
uma complexa sociedade, cujo ritmo intenso das mudanças impunham a necessidade de medidas
para as quais a visão dos homens sobre sua própria época torna-se o verdadeiro entrave e
impedimento, a intransponível barreira que se constrói na incapacidade de uma sociedade ver-se tal
qual é.
Com o abandono persistente das lavras, problema nunca ausente, tentou-se, por outras vias,
aumentar o contingente de trabalhadores rurais.
49
50
Lei das Sesmarias. Op. cit., p. 269.
LOPES, Fernão. Op. cit., p. 239.
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A conjuntura social no reinado de D. Fernando, e mesmo antes dele, fez proliferar grupos e bandos
de desocupados e vadios. A pobreza nunca ampliara tanto os espaços de sua atuação.
Verdade seja dita, durante o reinado de D. Fernando a nobreza cresceu em número e opulência, em
detrimento do povo, da chamada arraia miúda, sobre os quais “[...] incidia toda a força dos
impostos, pois eles eram os não privilegiados numa sociedade de privilegiados”.51
Nobreza a quem o rei deu rédeas soltas, “[...] favorecendo a criação de opulentos senhorios e
multiplicando a concessão de títulos nobiliárquicos”.52
Paralelamente, no entanto, e de forma talvez inevitável, a pobreza crescia em bem maiores
proporções. “Época paradigmática [...]”, nos diz Maria José Tavares, “foi sem dúvida o final do
século XIV. De norte a sul, do litoral à raia castelana, a documentação fala-nos de um
empobrecimento generalizado”.53
Para o governo de D. Fernando as expectativas não desmetem o agravamento da situação e a
ampliação incontida da miséria: “A pobreza e o despovoamento era a situação de boa parte do
reino”.54
Guerras, peste e fome compunham um cenário enegrecido ainda mais pelas emissões e
revalorizações monetárias, levadas a cabo durante a década de 1370.
A fim de obtermos, ainda que inexata, uma idéia parcial da situação difícil que envolvia o período, é
suficiente passarmos os olhos por sobre as revalorizações ocorridas de 1371 a 1372.
De acordo com Tavares, “[...] a primeira revalorização se cifrou num reajustamento de 30 por
cento, enquanto a segunda atingia, em relação ao primeiro curso, o valor de 88,3%,
aproximadamente”.55 Cortes realizadas no mesmo período, queixavam-se da carestia, alegando o
aumento dos preços.
Neste âmbito negro de crise, pobres e envergonhados pela pobreza não se confundiam com os falsos
mendigos, vadios e ociosos, a que faz referência a Lei das Sesmarias.
51
TAVARES, Maria J. P. Ferro. Op. cit., p. 39.
MARQUES, A. H. Oliveira. Op. cit., p. 512.
53
TAVARES, Maria J. P. Ferro. Op. cit., p. 34.
54
Idem. p. 35.
55
TAVARES, Maria J. P. Ferro. “A Nobreza no Reinado de D. Fernando e sua atuação em 1383-1385”. In Revista de
História Econômica e Social, n. 12, Lisboa, 1983, p. 49.
52
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Foi então que a lei projetando suas garras exibiu-as resolutamente.
Em primeiro lugar, tratou daqueles que iam servir nobres, se excusando, assim, do trabalho na
lavoura, recolhendo-se “[...] aos paços dos ricos homeens e fidalgos pêra o auerem viuenda mais
folgadas e mais solta”,56 mandando-lhes, após identificados, ao trato das lavras.
Num segundo momento, a lei procurou debelar os vadios e ociosos que andavam pela terra sem que
se dedicassem ao trabalho “[...] em prol das lavouras do reino”.57 Entre eles, detectou-se, numa
ordem especificada seqüencialmente, três tipos.
Aos falsos criados, aqueles que estão a “[...] andar chamandosse nossos ou da raynha ou do jfante
ou de quallquer outro que nom seia conhoçudo [...]” a lei mandava que “[...] seiam logo presos e
recadados pellas justiças dos lugares [...] E se certidões nom mostrarem como viuem [...] que sejam
constrangidos para seujr”.58 Aos que se opunham à determinação, seguia-se a pena: seriam
açoitados e depois obrigados a trabalhar por preços fixados.
Aos pedintes, aparentemente numerosos no reino, se as justiças dos lugares “[...] acharem que som
taes e de taes corpos e de tal hidade que possam serujr em algum mester ou obra de seruiço”,
mesmo que em alguma parte do corpo fossem minguados e com toda essa mingua pudessem fazer
alguma obra, que fossem “[...] constranjudos pêra serujr”.59
Aos falsos religiosos, cuja existência refletia o estado de corrupção do Clero (condição de
conhecimento popular à época), que se acham a andar e a viver em “[...]abito de religiosos que nom
som professos dalguuas das hordeens aprouadas” a lei mandou dizer-lhes que “[...] uâo laurar e
husar do mester da lauoira fazendosse lauradores per ssy se o fazer poderem e quiserem, ou sse nom
que siruam aos outros lauradores no mester da lauoira”.60
Ainda quanto a esses últimos, diz a lei que devem ser desmascarados e, caso não sejam “[...]
achados tam fracos ou uelhos ou doentes [...] que nom possam servir”– o que possibilita que a
justiça dê-lhes alvarás para que possam pedir – serão, na primeira vez que forem apanhados,
56
Lei das Sesmarias. Op. cit., p. 270.
Idem. p. 271.
58
Idem, Ibidem.
59
Idem, Ibidem.
60
Idem, Ibidem.
57
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açoitados. Reincidindo, seriam açoitados com pregão e expulsos ou, nos termos da lei, “[...]
deitados fora de nossos regnos”.61
Esta referência aos pedintes, falsos criados e religiosos, nos leva a constatar que a pobreza,
promovida pelas dificuldades crescentes, espalhava-se por todo o reino, e seus atores (mendigos,
falsos pedintes, bando de vagabundos e vadios) certamente ansiavam, se não pelo conforto da
nobreza, ao menos pelo básico para a sobrevivência.
À falta de braços no campo, a Lei das Sesmarias indicava ainda outra solução: constranger ao
trabalho as mãos ociosas e desocupadas que vagavam improdutivas e oneravam o reino.
Imaginavam os juristas de D. Fernando ser possível transformar em remédio para os problemas do
reino os sintomas da própria crise.
RESTRIÇÃO À PECUÁRIA: PENALIDADES PARA O PEQUENO PRODUTOR
As centúrias do Trezentos e Quatrocentos em Portugal, conviveram desde cedo com outro delicado
problema que a Lei das Sesmarias, por sua vez, reconheceu e também procurou remediar: a
pecuária.
Se a fatalidade das epidemias, do desequilíbrio ecológico, da fome, das transformações na economia
e na sociedade portuguesas, empurravam o reino para o agravamento das dificuldades agrícolas no
decorrer no século XIV, a esses fatores se incorporava a criação de gado, pois “[...] não tardou que a
extensão das pastagens e o aumento do gado criassem problemas aos agricultores”.62
Tal foi a gravidade dos problemas que o eco dos conflitos entre agricultores e pecuaristas ressoou
insistente nas violentas linhas da Lei das Sesmarias.
A falta de bois para a lavoura foi logo detectada e na hierarquia do próprio texto da lei antecedeu a
vários outros problemas, o que provavelmente demonstra a grande preocupação dos juristas com o
tema.
61
62
Idem, Ibidem.
MARQUES, A. H. Oliveira. Op. cit., p. 104.
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À falta de bois a lei respondeu com a obrigatoriedade da posse deles para a lavoura. Acontece,
porém, que não “[...] poderiam achar pêra os comprar se non por muy grandes preços mais que o
que ualeriam aguisadamente”. Ora, se o preço era excessivamente elevado, a lei acenou para o
tabelamento do preço de venda dos bois, “[...] segundo for taussado pellas justiças dos lugares”.63
Convém anotar, e não podemos deixar passar desapercebido, e a lei não o deixou, que num
momento de crise de mão-de-obra, onde impera a falta de braços, a pecuária não sofre tão
cruelmente as conseqüências como a agricultura, já que, por suas características próprias, exige
menos braços para sua manutenção e, por outro lado, pode compensar a baixa nos rendimentos
devido à forragem dos animais ser de fácil obtenção nos campos anteriormente cultivados.64
Diante disso, a lei, que essencialmente visava o fomento à agricultura, indica o parco
aproveitamento de extensas terras utilizadas para a criação do gado, que deixam de ser lavradas.
Restringe, então, a criação de gado a apenas aqueles indivíduos que mantivessem uma atividade
agrícola: “[...] Porém defendemos e mandamos que daquj em deante não sofram nem consentam a
nenhuu que aia nem traga guaados seus nem doutrem se nom manteuer lauoira”.65
Olhando assim, num primeiro momento, temos a impressão do caráter contrário da lei ao aumento
da atividade pastoril, parecendo mesmo menosprezar o montado e o rebanho.66
Mas na visão de Borges, a Lei das Sesmarias não se opõe ao aumento da criação de gado, ao
contrário, o que ela faz é decretar “[...] o enterro dos pequenos produtores de gado”. Pois, nas suas
palavras, “[...] o pequeno criador que vive somente do mester [...] não pode mais subsistir”. E,
ainda, “[...] o grande e rico proprietário que traz os seus gados pastoreados por mancebos ou
vaqueiros seus assoldadados é praticamente o único que pode dedicar-se à criação de gado”.67
Para Borges, não há como detectar oposição da lei ao aumento da criação de gado, mas sim uma
concentração dessa rendosa atividade nas mãos dos mais ricos.
63
Lei das Sesmarias. Op. cit., p. 268.
MARQUES, A. H. Oliveira. Op. cit., p. 105.
65
Lei das Sesmarias. Op. cit., p. 279.
66
RAU, Virgínia. Op. cit., p. 274.
67
COELHO, A. Borges. Op. cit., p. 36.
64
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Quanto a nós, vemos nos limites impostos para a criação de gado mais uma demonstração, na Lei
das Sesmarias, da tendência de sua utilização em prol dos grupos mais abastados do reino, aqueles
que detinham o poder de aplicação das leis, “[...] ao poderoso, nobre ou não, ao oligarca municipal,
normalmente um letrado ou um homem bom”68 que, na verdade, se opunham ao povo miúdo
presente nos documentos da época.
CONCLUSÃO
Vestida com os adereços de seu tempo, que conformam a imagem de uma estrutura legislativa
composta ao longo da história portuguesa, desde a reconquista, passando pela delimitação dos
espaços geográficos do reino - que ainda hoje permanecem -, até a data da sua elaboração pelos
juristas fernandinos, a Lei das Sesmarias vinculou-se diretamente, à antiga idéia de tirar a terra aos
proprietários que a não cultivassem, obrigando-os a faze-lo ou, mais diretamente, determinando a
obrigação de cultivo e o aproveitamento como condições de posse.
Contemporânea singular de um século em transformação pode informar as gerações posteriores o
quanto “[...] a economia da terra tinha perdido o seu equilíbrio, e a desorganização agrária corria a
par com a instabilidade monetária e a alteração dos valores sociais”.69
Filha valorosa da conjuntura decadente de um governo expôs o drama do período fernandino, onde
a profundidade e o alcance das contradições podem levar à perplexidade o analista contemporâneo,
cujos olhos alcancem a desintegração de valores que por toda parte se mostrava.
É bem verdade que, na Lei das Sesmarias, não se exclui a possibilidade da pequena produção, do
cultivo familiar ou do pequeno produtor de gado. Mas a simples obrigatoriedade de cultivar trigo,
cevada e milho e não todos os produtos comuns à auto-subsistência, e as limitações impostas à
pecuária, dificultando a vida do pequeno criador, lançava geralmente esses fora da corrida. “Aliás,
as numerosas disposições sobre a obrigatoriedade de trabalhar por soldada, até os aleijados, a
necessidade de mais vultosos meios de produção e a particularidade de serem os homens bons a
68
69
TAVARES, Maria J. Ferro. Op. cit., p. 49.
RAU, Virgínia. Op. cit., p. 103.
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velar pela aplicação da lei, até no estabelecimento da renda justa, indicam qual o caminho
favorecido pela lei”.70
Apesar de realçada como feito principal do reinado, a agricultura não foi a única preocupação do
governo fernandino. Há anos foi a produção agrícola, agora também o comércio teria a sua
atenção.71
Isso não nos deixa dúvida alguma: D. Fernando não se fechou às conturbadas transformações
impostas pelo seu tempo, nem tampouco cedeu inocentemente às pressões que sofria pelos flancos
na acirrada batalha social em que se transformou seu reinado.
Acarinhou, sim, a nobreza. Mas antes, em meio à tormenta que o envolvia, procurou dar saídas à
nação que comandava. A par da agricultura, estimulou a navegação antes e como nenhum outro rei
o havia até então feito. Pecou, contudo, na direção em que, durante toda a sua vida, insistiu avançar:
o desejo incansável de expansão dos limites do reino em direção as fronteiras castelanas. Porque,
como nos diz Virginia Rau, “[...] sabemos que foi nos portos movimentados, nas cidades marítimas
e comerciais, nas rotas do oceano, nas possessões ultramarinas, que se alcançou a estabilidade e o
equilíbrio da grei”.72
Com relação à Lei das Sesmarias, cremos agora poder melhor divisá-la, colocada, mesmo que de
forma simplificada, como produto de um conturbado momento da história portuguesa e européia
como foi o século XIV.
Resíduo dos acontecimentos daquele século constitui-se, por isso mesmo, num portal de entrada
indispensável que nos pode introduzir à análise da condição dos homens do Portugal Trecentista.
Em Lisboa, a 22 de outubro de 1383, morria D. Fernando, sepultado no convento de São Francisco,
na mesma cidade. Mas a produção essencial de seu reinado, a Lei das Sesmarias, legado histórico-
70
COELHO, A. Borges. Op. cit., p. 43.
Além de acudir a agricultura através da Lei das Sesmarias, D. Fernando ainda “[...] protegeu a marinha e o comércio
externo [...], discriminou contra os judeus [...] reformulou a administração pública, tanto civil [...] quanto militar [...],
discriminou os mercadores estrangeiros e até se virou episodicamente contra os privilégios senhoriais. Mas as medidas que
mais devem ter agradado respeitam ao amuralhamento das cidades e vilas [...]. Menos populares terão sido os
agravamentos de impostos (sisas) com o respectivo regulamento em 1374 e, claro está, as quebras de moeda determinadas
de 1369 a 1372.” MARQUES, A. H. Oliveira. Op. cit., pp. 518-519.
72
RAU, Vigínia. Op. cit., p. 110.
71
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legislativo de seu tempo, permaneceu perene, embora adaptada às conjunturas e governos de
monarcas posteriores.
Foi-se D. Fernando, deixando atrás de si dezesseis anos de “[...] contradições: guerras, alvorotos,
queixas, protestos a um lado; leis extraordinárias de fomento agrícola e marítimo ao outro”.73
Partiu-se D. Fernando, sucumbindo ao tempo, deixando à sua frente a Revolução.
Referências Bibliográficas
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ANTUNES, José. OLIVEIRA, Antônio Resende de. MONTEIRO, João Gouveia. “Conflitos Políticos
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COELHO, Antônio Borges. A Revolução de 1383 – Tentativa de Caracterização. Lisboa, Editorial
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GUENÉE, Bernard. O Ocidente nos Séculos XIV e XV: Os Estados. São Paulo, Pioneira/Edusp, 1981.
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1964.
RAU, Virgínia. Sesmarias Medievais Portuguesas. Lisboa, Presença, 1946.
TAVARES, Maria José Pimenta Ferro. “Para o Estudo do Pobre em Portugal na Idade Média”. In
Revista de História Econômica e Social, v. 11, Lisboa, 1983, pp. 29-54.
73
COELHO, A. Borges. Op. cit., p. 65.
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TAVARES, Maria José Pimenta Ferro. “A Nobreza no Reinado de D. Fernando e sua atuação em
1383-1385”. In Revista de História Econômica e Social, n. 12, Lisboa, 1983, pp. 45-89.
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A CRÔNICA DO ANÔNIMO DE CANTERBURY: CONFLITO E DIPLOMACIA NA
GUERRA DOS CEM ANOS (1346 – 1365)
Fernando Pereira dos Santos376
Crônicas na historiografia medieval inglesa
Desde o final do século XIII, o reino inglês testemunhou alterações climáticas uma grande
mudança climática que ocasionou déficits na produção de lã e nas safras agrícolas, que movimentava
em grande parte a economia do reino. Concomitantemente ocorriam turbulências políticas, com um
Parlamento cada vez mais organizado em grupos de magnates e gentry, interessados em garantir os
interesses locais perante ao reino; o coup d’état sofrido por Eduardo II, culminando em sua deposição
e suposto assassinato; as epidemias de Peste Negra, ou Great Pestilence, como eram chamadas
contemporaneamente (WAUGH, 1991, p. 85), que afetaram em escalas distintas vilarejos e cidades e
logicamente, os duradouros conflitos contra escoceses e franceses.
Todas estas questões não poderiam passar desapercebidas despercebidas pelos escritores
coevos. Chaucer, em seu Pardoner’s Tale, aponta para a grande mortandade causada pela peste377;
Ockham, em tratados escritos no exílio, questionava as isenções da Igreja em relação ao pagamento de
taxas para a Coroa em períodos de conflitos (OCKHAM, 2002, p. 141 – 197); e Froissart, que com
suas belas descrições dos embates cavaleirescos, povoaram o imaginário ocidental acerca da profissão
de armas. Além deles, indivíduos cujos nomes não viriam a reveberar pela posteridade, como seus
supracitados contemporâneos, permaneceram no anonimato, porém, seus registros atentam para as
vicissitudes de ordens diversas. O autor da Song against the king’s taxes (WRIGHT, 1839, p. 182 –
187) alerta para o risco de rebelião das camadas camponesas devido as onerosas cobranças das
Mestrando em História - Programa de Pós Graduação em História – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – UNESP
– Universidade Estadual Paulista, Campus de Franca, São Paulo - Brasil. Pesquisa realizada sob o fomento da Fundação de
Amparo à pesquisa de São Paulo (FAPESP). Email: [email protected]
377
Cf.
Beidler,
G.
P.
The
Plague
and
Chaucer’s
Pardoner.
Disponível
em:
http://www.jstor.org/discover/10.2307/25093795?uid=2129&uid=2134&uid=2&uid=70&uid=4&sid=21103334147741
Acessado em 30 jan 2014.
376
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purveyances378, assim como o clérigo responsável pela composição da Vita Edwardi Secundi credita a
ameça escocesa e francesa a liderança política titubeante de Eduardo II (VITA EDWARDI, 2005, p.
107 – 109) após a derrota sofrida em Bannockburn em 1314. Dentre esses indivíduos anônimos que
nos legaram suas impressões, um deles ganha destaque com a tradução de seu texto lançada em 2008.
Trata-se da chamada The Chronicle of Anonymous of Canterbury (Crônica do Anônimo de
Canterbury), realizada pelos professores Chris Given-Wilson, da Universidade de Saint Andrew, e
Charity Scott-Stokes, da Universidade de Cambridge, ambos no Reino Unido.
O emprego de crônicas medievais oferecem uma ampla perspectiva não apenas sobre os “fatos”
ali narrados, mas também, sobre os lugares comuns dos saberes para homens e mulheres que
registraram os eventos passados. Entretanto, a delimitação entre o que poderia ser entendido como
passado e presente, os usos da memória e as finalidades a serem alcançadas pela composição de tais
manuscritos tem sua própria historicidade, cada vez mais enfatizada pelos estudos históricos
contemporâneos.
Sob a perspectiva oferecida pelos olhares lançados sobre as crônicas entre a segunda metade
do século XIX e a primeira metade do XX por nomes como Gabriel Monod, Thomas Tout e Jans
Verbruggen, tais documentos eram relegados a um segundo plano em detrimento de outros tipos de
fontes. Monod parte do princípio de que os medievos empenhados em tal tarefa sequer poderiam ser
considerados historiadores, por serem incapazes de representarem os eventos e de relatá-los de uma
maneira original e pessoal, o que, segundo a abordagem da escola positivista onde o mesmo se
insere, aloca os cronistas ao papel de meros compiladores (MONOD, 1876, p. 1).
Tout faz uma crítica ambivalente. Por um lado, ele ataca os que acreditam que a simples
consulta aos registros oficiais, como as atas do Parlamento, poderiam trazer a verdade sobre o passado
à tona sem qualquer tipo de crítica sobre as mesmas. Por outro, embora seja um defensor do uso de
crônicas em pleno início do século XX, o mesmo afirma que os cronistas possuiam parcas
oportunidades de lidar adequadamente com a história de períodos distantes. Tais indivíduos teriam
378
As camadas camponeses foram duramente sufocadas não somente pelas pesadas taxações mas também pela corrupção
dos agentes do monarca, que praticavam atos ilícitos e abusavam de seu poder, segundo fontes contemporâneas, para seu
próprio benefício (WAUGH, 1991, p. 159 – 160).
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pouca noção de historicidade, seriam incapazes de apreenderem atmosferas que distavam das deles e,
“como crianças, não eram capazes de distinguir entre a verdade, buscada por um processo intelectual, e
o produto romântico da imaginação” (TOUT, 1922, p. 10 – 12). Já Verbruggen, em meados da década
de 1950, faz uma severa crítica sobre o uso de tais crônicas, afirmando que “a narrativa é incompleta, e
como o clero (de onde provieram a grande maioria dos textos medievais) era ignorante sobre questões
militares, inventavam relatos [...], e pela carência de critérios, geralmente apresentam uma ingenuidade
surpreendente”379 (VERBRUGGEN, 1997, p. 10).
Richard Southern (1912 – 2001), afamado historiador de uma geração privilegiada que teve
entre seus congêneres Jacques Le Goff e Bernard Guenée, destaca no primeiro de seus quatro discursos
à Sociedade Histórica Real (Royal Historical Society) o papel dos historiadores do medievo, ou
melhor, suas inserção dentro de uma tradição intelectual vigente, seu “lugar social” e as
intencionalidades que permeiam seus escritos não apenas como fontes repositórias para eventos, mas
como objetos de estudos em si. Nesse sentido, ele aponta para os usos da história pela geração que o
precede e, consequentemente, da qual é herdeiro, onde enfatiza o trabalho realizado por William
Stubbs, antiquário responsável pela edição de inúmeros manuscritos medievais. Segundo Southern,
Stubbs e seus contemporâneos realizaram um trabalho meritório e vigoroso na edição e catalogação
daquela corpora de textos, porém com um grande demérito:
[...] (Stubbs) contentou-se em usar as crônicas e histórias (histories) do passado
como simples depositórios de fatos que precisam ser peneirados e purificados
cuidadosamente para se tornarem utilizáveis para nossos propósitos, mas que
não requerem nenhuma profunda investigação profissional dos princípios de
seleção, ênfase ou composição que determinaram sua preservação. [...] Elas (as
fontes textuais) eram um material bruto para seus próprios trabalhos e de outros
historiadores. Ele as examinou pela confiabilidade, e se perguntou se as
mesmas forneciam novos fatos que não poderiam ser encontrados em qualquer
379
Todas as traduções doravante realizadas são de minha autoria.
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outro lugar. Em suma, ele pouco se importava com as mentes dos homens que
inconscientemente determinavam que materiais deveriam estar disponíveis
para seu ofício (BARTLETT, 2004, p. 11).
Assim, a crítica feita por Southern ressoa uma preocupação que começa a tomar corpo, já em
meados da década de 1960, quando as noções de cientificidade da disciplina histórica são colocadas
em cheque por nomes como Paul Veyne e Hayden White. Até então os estudos sobre a história
medieval eram amplamente devotados à identificação do que poderia ser entendido como
historicamente “verdadeiro”, e tal abordagem é extremamente problemática para tratar de questões
acerca das noções contemporâneas de história, realidade, fato e ficção. Para a compreensão dos textos
medievais, é necessário que se entenda seus artifícios retóricos e suas técnicas literárias (SPIEGEL,
1997, p. XV), ao qual podemos acrescentar, dependendo da natureza do mesmo, o emprego de estudos
em áreas correlatas, como a filosofia e a teologia.
No campo específico da cronística, os textos e seus compositores não mais passam a serem
abordadas como os supracitados “repositórios de fatos”, mas sim como partes constituintes de uma
realidade fragmentada na qual estavam inseridos e que podem fornecer indícios sobre os modos de
pensar e entender o mundo em voga naquelas sociedades. A inserção do manuscrito medieval em seu
contexto leva em conta inúmeros elementos, dentre os quais sua relação intra e intertextual com textos
que o precedem, pois estão inseridos dentro de tradições que abarcam tanto aquilo que era válido de
registro como a sua forma de composição e escrita, continuando-os ou mesmo citando-os ipsis litteris;
ou mesmo no aspecto físico, onde vários manuscritos eram organizados e catalogados em um conjunto
único.
Atualmente, um grande número de estudos acerca dos textos cronísticos tem sido realizados por
pesquisadores de áreas diversas como a História e a Literatura, passando pela Linguística e
Codicologia. Dentro da medievalística britânica, historiadores de diferentes gerações como Antonia
Gransden, John Taylor e Andy King, cada qual a seu modo, trabalham com as especificidades que
aquele tipo de documentação possui e, deste modo, impulsionam o uso daqueles textos em conjunto
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com outros documentos. Portanto, nossa meta não é atentar às especificidades dos códices onde os
quatro manuscritos da The Chronicle of Anonymous of Canterbury existentes se encontram380 e nem
mesmo problematizar a questão da validade de análises de tais textos como fontes, mas sim apresentar,
concisamente, questões diversas, as quais consideramos relevantes naquela narrativa.
A crônica e seus elementos
Na última década, crônicas igualmente escritas durante a segunda metade do século XIV
foram igualmente vertidas para o inglês moderno por historiadores, como a The Chronicle of
Geoffrey le Baker (A crônica de Geoffrey le Baker); a Scalacronica e a The True Chronicles of
Jean le Bel (As crônicas verdadeiras de Jean le Bel). Tais traduções são de extrema importância,
uma vez que a escrita da história, no reino da Inglaterra, foi relegada para segundo plano entre as
décadas de 1340 e 1360, e assim são contabilizados escassos registros contemporâneos legados por
aquele período. O declínio na produção histórica deve-se a fatores diversos381, merecendo destaque
a disseminação e alta mortandade causada pela Peste Negra no período entre 1348 - 1355, uma vez
que os responsáveis pela composição e manutenção de tais crônicas não estavam imunes as
vicissitudes daquele momento382 (GIVEN-WILSON; SCOTT-STOKES, 2008, p. XXXVII).
Escrita a partir de 1357, a The Chronicle of Anonymous of Canterbury não pode ser dissociada dos
eventos de grande magnitude ocorridos nos últimos anos, como as vitórias inglesas nas batalhas de
Crécy, Neville’s Cross e Poitiers, além da captura dos monarcas João II da França e Davi II da
Escócia (GRANSDEN, 2000, p. 109).
380
As duas únicas edições impressas da crônica, realizadas respectivamente por James Tait (1914) e Chris Given-Wilson;
Charity Scott-Stokes (2008), apresentam informações levantadas a respeito das origens e disposição atual que se encontram
os manuscritos.
381
Uma discussão mais detalhada sobre o declínio da produção da escrita da história, principalmente aquela produzida em
casas monásticas na Inglaterra entre finais do século XIV e início do século XV são apontadas mais detalhadamente por
Given-Wilson (2008).
382
Devemos atentar, entretanto, que a disseminação da Peste Negra ocorreu de maneira disforme pela Ilha, e enquanto
algumas áreas foram severamente afetadas, outras parecem ter sofrido pouco ou quase nenhum dano (WAUGH, 1991, p. 85
– 92); (Horrox, 1994).
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Na presente edição, a tradução do texto é feita através do cotejamento entre os quatro
manuscritos existentes, que até então não haviam sido estudados como cópias de um mesmo texto
original. Mesmo não sendo possível precisar quem foi seu autor, duas hipóteses foram traçadas para
tentar evidenciar ao menos seu local de composição. Na primeira, elaborada no século XVI pelo
historiador Henry Wharton, atribui a autoria do texto a Stephen Birchington, monge de Canterbury,
baseado em similaridades apresentadas entre o texto daquela crônica em comparação aos outros que
também fazem parte do mesmo conjunto de manuscritos.
Tal hipótese, entretanto, é descartada por seu editor do século XX, James Tait (TAIT, 1914, p.
63). Para Tait, o autor do manuscrito não poderia ser o referido Birchington, porquanto a narrativa é
terminada pouco após da batalha de Nájera, em 1367, e Stephen Birchington teria começado sua
carreira em Canterbury apenas em 1382. Acredita-se, embora não se chegue a uma denominação
precisa, que seu autor tenha sido um clérigo da catedral de Canterbury, o qual possivelmente tomou
proveito de sua posição geográfica privilegiada entre Londres e Calais, o porto de desembarque de
tropas inglesas no continente, para aceder ao contato com viajantes que obrigatoriamente teriam de
passar por aquela região (TAIT, 1914, p. 69).
Como as crônicas de Le Bel e Thomas Gray, há evidências ao longo do texto de que o cronista
não apenas realiza sua narrativa baseado em crônicas anteriores, mas de algum modo é testemunha dos
eventos que narra devido a sua localização, permitindo-lhe ouvir também indivíduos diretamente
envolvidos nos conflitos, desde guerreiros até mesmo o próprio rei da França durante seu cativeiro na
Inglaterra na primeira metade da década de 1360. Seu principal interesse, assim como os cronistas
anteriores, é na guerra. Entretanto, o interesse de seu autor é voltado majoritariamente a diplomacia,
aos tratados firmados com os inimigos continentais e a burocracia concernente ao conflito em
dissonância a alguns de seus contemporâneos mais insignes, tais como Jean Froissart, Thomas Gray,
Geoffrey le Baker e o heraldista de Sir John Chandos em sua La vie du prince noir (A vida do príncipe
negro), que apresentam como seu mote os eventos descritos e narrados em torno da figura e dos feitos
guerreiros do rei ou de personagens destacados durante o conflito.
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Por conseguinte, quando relata eventos bélicos como as chevauchées383, cercos e batalhas, o
Anônimo faz de forma breve e concisa, porém dedica inúmeras páginas a descrições sobre quem,
quando, como, e, se possível, quais resultados obtidos pelas assinaturas de tréguas, ordenamentos
parlamentares, etc. Do mesmo modo, esse cronista nos oferece a listagem e enumeração dos nobres
mortos, feridos ou capturados em batalha, bem como de questões ligadas à política interna do reino
que foram tratadas apenas de forma sumária por outros congêneres. Um exemplo disto é a descrição do
First Treaty of London (Primeiro Tratado de Londres), datado de 1358, que lida com os termos de
pagamento de resgate do monarca João II da França, capturado pelos ingleses e levado à Londres
como refém. O crônista em questão aponta para os termos deste tratado, e sua descrição destoa de
todas as outras conhecidas até hoje, sugerindo assim que ele possa ter tido acesso a um “rascunho”, ou
mesmo que ele tenha visto uma cópia em posse dos religiosos encarregados da condução de
negociações diplomáticas em seu retorno às terras continentais (SCOTT-STOKES; GIVEN-WILSON,
2008, p.XXVI).
Um segundo ponto que merece destaque é a descrição que o Anônimo realiza sobre os
inimigos, majoritariamente franceses. Ao longo do século XIV, foi um lugar comum a descrição dos
adversários sob um viés depreciativo, onde suas ações bélicas são adjetivadas de forma pejorativa.
Cronistas ingleses e escoceses, por exemplo, tinham por dentre suas metas, de forma velada ou não,
uma espécie de “propaganda de guerra”. Assim, a lista de adjetivações imputadas aos escoceses em
crônicas inglesas na primeira metade do século XIV passa por vocábulos como thieves (ladrões), traitors
(traidores), deceivers (enganadores), wretches (vis), sots (beberrões) e cursed caitiffs (covardes malditos)
(PENMAN, 2007, p. 218), e ao longo da presente crônica igualmente observamos a presença desse tipo
de nomenclatura que, de modo geral, atribue aos inimigos atitudes que não condizem com a conduta
esperada no campo de batalha segundo os parâmetros cavaleirescos. Desse modo, seu autor afirma que
os franceses são malefactors (malfeitores) e emitem palavras enganosas (deceitfull words), fogem em
pânico (flee in fear) da batalha, violam mulheres (ravish women) e comem carne (eat meat) em
383
De acordo com Coredon e Williams (2004, p. 70), as chevauchées consistiam na queima e pilhagem do território de um
inimigo, com fins de enfraquecê-lo e forçá-lo tanto ao combate direto como para destruir as fontes de provisões que
alimentavam guarnições de mais difícil acesso.
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períodos sagrados como a Quaresma. Ainda nesse sentido, posteriormente a ratificação do tratado de
Brétigny em 1360, o cronista destaca a ação bélica dos oponentes no extremo sul da ilha, onde um
grupo de franceses secretamente desembarcou em Wilchesea e “atacou com intenções hostis (hostiliter
intrauerunt) a cidade, e cruelmente tiraram a vida de todos os que conseguiram e, após tais ações,
embarcaram o botim em seus navios e atearam fogo a vinte e quatro embarcações” (SCOTT-STOKES;
GIVEN-WILSON, 2008, p. 59 - 63).
Imputar às ações do inimigo atos de “crueldade” fora uma das estratégias retóricas empregadas
ao longo do medievo como uma ferramenta para tornar ilícitas suas ações em âmbitos diversos. Logo,
eram comuns representações e esquematizações imputadas ao outro, sejam elas a de pagãos, como
ocorridas durante a Reconquista, ou mesmo de contraventor das leis seculares e divinas, que a seu
modo ganham nuances demeritórias com fins de justificar o embate àquele grupo que partilha de um
mesmo éthos. Pode-se conjecturar que, se em períodos anteriores a Baixa Idade Média, o inimigo a ser
combatido vinha de regiões exteriores a cristandade ocidental, naquele momento, observavam-se
grandes conflitos entre grupos internos àqueles territórios, como no caso dos reis e nobres da Inglaterra
e da França (BARAZ, 2003, p. 123).
Como dito previamente, o autor demonstra grande interesse pela documentação oficial tanto
para fins de divulgação dos resultados da empreitada inglesa em solo francês como também sobre a
política interna do reino, dominada pelos constantes pedidos de Eduardo III frente ao Parlamento para
alimentar sua máquina de guerra. Nesse sentido, o autor copia quase literalmente o estatuto do
Parlamento de 1362 concernente às taxações sobre os gêneros mercantis conhecidas como
purveyances, que de modo geral eram compras compulsórias de bens a preços inferiores a seu valor
real, e em muitos casos sequer eram pagos, além de inúmeras outras denúncias de desvios e
apropriações indevidas de víveres e dinheiro por parte dos agentes do rei (WAUGH, 1991, p. 204 –
205). Registros prévios acerca de queixas contra tais medidas no reinado de Eduardo III datam de
1327, 1344, 1346 – 1348 e 1352, levando-nos a inferir sobre o grande impacto causado na economia
local por aquele tipo de ação, tornando seu registro, com finalidades de recuperação daqueles bens em
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momentos futuros, de grande relevância para o cronista e também,possivelmente, para seus
mantenedores laicos.
O cronista anônimo de Canterbury realiza uma compilação de dados, sem qualquer tipo de
comentário, quando insere outros textos em sua obra, ao contrário de contemporâneos como William
of Pagula e Walter of Milemete, cada qual a seu modo, tomam posições particulares acerca de tal
prática. Seu conteúdo não se destaca em relação à outros textos contemporâneos, como dissemos
anteriormente, devido a seu caráter meramente compilatório, que o coloca, a primeira vista, dentro de
um enorme conjunto de textos marcados por tal característica. Porém, podemos encará-la sob um outro
viés. Todo documento histórico é uma construção permanente (KARNAL; TATSCH, 2009, p. 12), e
assim as fontes tornam-se elementos de interesse para o historiador e ganham importância justamente
pela problematização que realizamos. Logo, a opção do cronista por majoritariamente compilar dados,
mesmo para períodos contemporâneos a produção daquele texto, nos faz considerar o que para ele foi
o método válido para atestar a verdade depositada nos escritos tão almejada naquele tempo.
Ao contrário de seu contemporâneo Walter of Milemete, que emprega a técnica retórica
amplamente difundida de comparação das ações do monarca do presente com as de outros governantes
de períodos anteriores para justificar a cobrança das purveyances (MILEMETE, 2002), o clérigo
cantuariense recorre a cópia da documentação para legitimar a veracidade de sua narrativa. Observa-se,
que ao descrever de modo reprobatório as justas ocorridas em 1362 em Smithfield, ele inicialmente
cita a Proclamação Pública (public proclamation) feita pelo rei Eduardo III naquele ano em favor da
realização das mesmas, atestando assim que o episódio ocorrera, para apenas então emitir seu ponto de
vista (o de um clérigo contrário a realização do evento). Desse modo, ao reportar que houve um grande
incêndio no convento do hospital de São João de Jerusalém em Londres, bem como “a morte de um
cavaleiro durante o torneio” (GIVEN-WILSON; SCOTT-STOKES, 2008, p. 121), também é
observado o emprego de outra técnica retórica, onde associa a ocorrência de infortúnios a ações que
iriam contra a vontade de deus.
Destarte, tal estratégia integra a concepção de história presente em boa parte das crônicas
naquele período. A função exemplar dos textos, indissocíavel da já supracitada retórica, buscava a
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persuasão moral dos indivíduos para que seguissem os bons exemplos do passado e se afastassem dos
maus. Um dos propósitos básicos da escrita da história era a edificação, mais preocupada com a
propagação de uma espécie de “idealismo moral” do que com a análise concreta da realidade
(SPIEGEL, 2002, p. 79). Somado a função exemplar, no século XIV, os cronistas ingleses registram de
forma mais ávida dois tipos de eventos em particular: os conflitos anglo-franco-escoceses e as tensões
políticas internas em grande parte decorrentes de tais contendas (TAYLOR, 1987, p. 3). Não obstante,
as histórias provenientes de crônicas aristocráticas e monásticas demonstravam que gradualmente
surgia um novo interesse no registro de detalhes dos eventos, com vistas a uma apreciação do passado
como algo distinto da sociedade presente, embora ainda não seja possível precisar o grau desta
distinção, pois ela é envolta pela utilização de antigos modelos para a organização de informações
sobre o passado, como a história universal, empregados até o século XIII, ainda em voga.
(GELLRICH, 1995, p. 124).
No reino inglês especificamente, não houve um centro de produção da história oficial, como a
Torre do Tombo em Portugal, mas sim cronistas que representavam os interesses monásticos e
aristocráticos aos quais estavam ligados, e no caso do cronista em questão é possível que seu texto
tenha servido, ou ao menos, tencionado asseverar os direitos do monarca em território francês. Se a
forma de governança passa por uma lenta transformação em relação a períodos anteriores devido a
produção de um imenso volume de documentação burocrática produzida em âmbitos que vão do
gerenciamento dos manors384 por proprietários de terras em vilarejos até os registros das atividades do
parlamento, a escrita da história também é tocada pelo letramento crescente, e em sua maioria os
agentes burocráticos do rei eram clérigos formados em universidades. O cronista anônimo de
Canterbury pode justamente ser um destes clérigos que aparentemente possuia grande mobilidade nos
escalões governamentais, colocando-o em posição vantajosa para a coleta de material para sua crônica,
pois as habilidades adquiridas pelos eclesiásticos para cumprir suas tarefas nas paróquias tornavam-os
exímios administradores (WAUGH, 1991, p. 141 – 142).
Conclusão
384
Uma propriedade rural que compreende aos domínios do senhor (incluindo as terras de seus servos campesinos) e outros
bens fixos empregados para arrendamentos e atividades diversas (COREDON; WILLIAMS, 2004, p. 184).
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Nossa exposição sobre alguns dos elementos constituintes da crônica, bem como de seu
contexto de produção, é voltada para a reflexão de questões que permeiam os estudos medievais
contemporâneos. Se a crônica do Anônimo de Canterbury não figura entre as grandes crônicas de seu
tempo, como o “best-seller” Polychronicon de Ranulf Hidgen, ao menos permite novos olhares sobre
questões da diplomacia e dos descontentamentos gerados em um período de guerra no medievo.
Concluindo, o texto ganha valor meritório não apenas pela relação entre fato/ficção na Idade
Média, mas também pelas seleção de temas e documentos feita pelo Anônimo para representar sua
realidade. Comumente, as guerras no medievo são recordadas pelas nomenclaturas topônímicas e pelas
descrições de feitos de membros dos grupos governantes, porém não se deve relegar ao segundo plano
os esforços feitos nas últimas décadas para que igualmente seja concebida a história daqueles que
registraram e construíram a história do período. Homens e também mulheres sobre os quais por vezes
não se sabe muito mais do que sua ocupação em alguns períodos da vida, data de nascimento e morte,
e cujos nomes evanesceram, como temia Henry Knighton no prólogo de sua Chronicon, legaram textos
que nos possibilitam, nas palavras do clérigo agostiniano “reavivar questões que, caso não tivessem
sido escritas, teriam definhado” (GIVEN-WILSON, 2004, p. 57-58). Nesse caso, resta-nos a dupla
tentativa de repensar sua imagem de agentes passivos, altamente dependentes dos mantenedores laicos
que muitas vezes foi pintada pelos períodos posteriores, e também historicizar o seu fazer não como
algo preso a fixidez de regras para sua escrita, mas sim na permeabilidade exercida sobre tal atividade
por escolhas pessoais no modo de composição e seleção de materiais, afetando assim diretamente o
conteúdo produzido e divulgado em suas crônicas.
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REFLEXÕES ACERCA DA FIGURA DO BISPO NO REINO VISIGODO E SUA
REPRESENTAÇÃO NO CÓDIGO LEGISLATIVO VISIGÓTICO
Flora Gusmão Martins385
Introdução
A presente comunicação vincula-se ao projeto de pesquisa intitulado As relações de poder nos
reinos romano-germânicos: o processo de organização eclesiástica e a normatização da sociedade,
sob a orientação de uma das coordenadoras do Programa de Estudos Medievais da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Professora Leila Rodrigues da Silva. Neste trabalho pretendemos expor
parte da minha pesquisa de iniciação científica, que consiste em estudar as referências ao episcopado
na Lex Visigothorum, um código de leis compilado no reino visigodo do século VII. Neste texto
apresentaremos algumas reflexões acerca da figura do bispo na conjuntura acima mencionada, com
base na bibliografia lida sobre o assunto, bem como uma análise parcial do código legislativo
visigótico, com o objetivo de compreender melhor
a caracterização do episcopado na Lex
Visigothorum, um documento de caráter jurídico e político, e o papel do mesmo no contexto em
questão.
Sobre o reino visigodo e o episcopado
Os visigodos exerceram, em grande medida, hegemonia na Península Ibérica principalmente
nos séculos VI e VII, até a chegada dos árabes, no início do século VIII. Foi um reino bastante
instável, principalmente na questão da sucessão ao trono real, além de enfrentar frequentes ameaças
externas. Uma característica marcante deste reino é a relação estabelecida entre a monarquia visigoda e
o cristianismo, na qual o episcopado, como veremos, é figura central. De acordo com Ruy de O.
385
Graduanda em História na Universidade Federal do Rio de Janeiro e bolsista de iniciação científica pelo CNPq no
Programa de Estudos Medievais. Email: [email protected]
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Andrade Filho essa aliança apresentava vantagens para ambos os lados – o cristianismo pretendia se
consolidar como religião hegemônica e sua estreita relação com a monarquia visigoda era uma forma
de enfrentar os desafios e tornar mais sólido seu predomínio, enquanto para a monarquia essa aliança
representava um reforço ao poder real, e uma tentativa de elevar o monarca acima das disputas
aristocráticas.386
O bispo, como mencionado acima, assumia um papel central nessa relação, e também na
administração do reino como um todo. Segundo Martín Viso as condições do desenvolvimento do
poder episcopal no periodo estão marcadas pelo caráter de religião oficial do cristianismo, e da relação
do mesmo com o poder real. Para este autor, já na época de Constantino, o bispo havia sido
incorporado no aparato estatal, com funções judiciais, e já no século V, este já havia chegado a uma
posição de grande liderança na civitas. Desta forma, membros da aristocracia passam a fazer, cada vez
mais, parte do episcopado e, nos séculos seguintes, a maior parte dos bispos era pertencente a famílias
aristocráticas.387 Neste sentido, Fuentes Hinojo reforça
El trato honorífico que dispensaban emperadores y reyes bárbaros al clero, unido al progresivo
incremento del patrimonio, privilegios y autoridad espiritual de la Iglesia, hizo del episcopado
uma dignidad apetecible para la aristocracia romana. Cuando, hacia 470, los notables de las
Galias e Hispania cobraron conciencia de la incapacidad del Estado romano para ayudarles y
ofrecerles perspectivas de carrera, optaron por asumir el gobierno de la Iglesia, lo que les
permitía alcanzar privilegios y mantener un estatus elevado a nivel local. Los habitantes de las
ciudades no se opusieron. Antes bien, en una época de inseguridad y violencia, prefirieron
contar con hombres que poseían la experiencia y relaciones políticas adecuadas para ayudar a
la comunidad.388
386
ANDRADE FILHO, Ruy de O. Um espelho esmaecido. O reino visigodo de Toledo: cristianismo e monarquia. Revista
Signum, Cuiabá, v. 14, n. 1, p. 124-151, 2013.
387
MARTÍN VISO, Iñaki. Organización episcopal y poder entre la Antigüedad Tardía y el Medievo (siglos V-XI): Las
sedes de Calahorra, Oca y Osma. Iberia, v. 2, p. 151-190, 1999.
388
FUENTES HINOJO, Pablo. Patrocinio eclesiástico, rituales de poder e historia urbana en la Hispania Tardoantigua
(siglos IV AL VI). Studia historica. Historia antigua, Salamanca, n. 26, p. 315-344, 2008.
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Desta forma, o episcopado passou a ser formado por membros de famílias aristocráticas,
geralmente que já haviam recebido uma formação voltada para cargos de liderança ou já estavam
inseridos na política e administração do reino. No caso do reino visigodo do século VII, o episcopado
já estava consolidado como posição de grande poder e, por meio de sua relação com a monarquia e seu
caráter de religião oficial, e também de sua consolidação como autoridade da instituição eclesiástica,
participava efetivamente da administração e da política da Hispania visigoda, conjuntamente com suas
funções religiosas de líder da comunidade cristã.
Tanto a monarquia como a instituição eclesiástica empreendiam esforços para normatizar a
sociedade e, considerando a aliança existente entre as duas, ambas dialogavam e, de certa forma,
participavam das tentativas de legislação uma da outra. Um fator a ser ressaltado que reforça ainda
mais a relação existente entre elas é o concílio geral. Nesta assembléia, convocada pelo monarca, na
qual estavam presentes bispos e importantes figuras da nobreza do reino, eram tomadas decisões que
não concerniam apenas a questões religiosas, mas também a questões políticas, econômicas e
administrativas. Determinadas decisões, para adquirirem força legal, eram incorporadas ao código
legislativo visigótico. Além disso, podemos também atentar para o ofício palatino389, no qual alguns
autores defendem a possibilidade da participação ou assistência episcopal no mesmo; porém, de acordo
com Ortiz de Guinea, essa possibilidade não pode ser de fato determinada, pela falta de documentação
sobre o assunto390, apesar de defender que a assembléia estava aberta à assistência dos bispos.
O que podemos notar é que os membros do episcopado eram figuras centrais na Hispania
visigoda, personagens de poder que agiam diretamente no funcionamento do reino. Assim, vamos
primeiramente apresentar o corpus documental a ser analisado e, posteriormente, tentar demonstrar
como o bispo é representado no mesmo, exemplificando com algumas leis escolhidas por sua
relevância no ponto a ser ressaltado.
389
Chamado também de Aula Regia, ou Palatium Regis, consistia em uma assambléia que reunia um grupo de pessoas de
cargos importantes que tinham como objetivo aconselhar o rei em suas decisões, na justiça, principalmente nos delitos de
traição, intervir na eleição de um novo monarca e deliberar acerca da legislação.
390
ORTIZ DE GUINEA, Lina Fernández. Participación episcopal en la articulación de la vida politica hispano-visigoda.
Studia Historica. Historia Antigua, Salamanca, v. 12, p. 159-167, 1994.
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Lex Visigothorum
O documento
A Lex visigothorum é um código legislativo do reino visigodo do século VII. Até a sua
publicação, o Direito no reino visigodo consistia em uma legislação escrita, que foi sucessivamente
compilada em diversos códigos, por diferentes reis, que coexistia com um direito consuetudinário. O
rei Chindasvinto (641-652), desde seus primeiros anos de governo, pretendia publicar uma nova
legislação, tendo promulgado diversas leis, algumas baseadas no direito romano e outras no direito
godo, mas seu projeto foi de fato realizado por seu filho Recesvinto (653-672). Ambos os monarcas
tinham como um dos principais objetivos equilibrar as diferenças legais existentes no território,
estabelecendo uma única legislação para todos os habitantes do reino. A Lex Visigothorum proibia a
utilização de outros códigos junto ao novo, excluia o emprego do direito consuetudinário e do livre
critério do juiz, e afirmava que se aparecesse um caso que não estivesse previsto na lei, este deveria ser
levado ao soberano. Wamba, Ervigio e Égica, monarcas posteriores, acrescentaram ou modificaram
algumas leis. A LV está dividida em doze livros, cada livro em capítulos/títulos, e cada um destes
possui determinado número de leis. Estas se distinguem da seguinte forma: leis antigas, antiquae, que
pertenciam ao direito visigótico mais antigo e leis de monarcas anteriores, sendo que algumas foram
alteradas ao serem incorporadas ao código; as leis de Chindasvinto, as leis de Recesvinto, e
posteriormente as dos reis Wamba (672-680), Ervígio (680-687), que chegou a fazer uma revisão do
código, e Égica (687-700).
Segundo o autor Zeumer existem três classes de fontes para a história da legislação visigótica:
as leis datadas - (aquelas que sabemos quando foram elaboradas, sejam por conter a data específica ou
por conter o nome do legislador, que são a Lex Romana de Alarico II, uma lei do rei Têudis,
numerosas leis soltas do rei Recaredo I e seus sucessores, a Lex Visigothorum compilada por
Recesvinto e sua nova edição feita por Ervigio); as leis não datadas (fragmentos do palimpsesto de
Paris, leis visigóticas admitidas pelo direito nacional bávaro e as leis chamadas antiquae); notícias de
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outras fontes sobre a legislação visigótica (um exemplo é a Historia Gothorum, de Isidoro de Sevilha,
que informa sobre Leovigildo e sua revisão das leis antigas). 391
Garcia Gallo, outro estudioso da Lex Visigothorum, levanta a publicação de novas fontes, tal
como uma nova caracterização e uma nova datação daquelas já conhecidas. Ele afirma, assim como
Zeumer, que somente as seguintes fontes chegaram completas e com as datas e autores até nós: o
Breviário de Alarico II, 506, a lei de Teudis, 546, e a Lex Visigothorum, em duas redações – a de
Recesvinto, 654, e de Ervigio, 681. Os textos restantes encontram-se incompletos, diversas vezes não
foi possível definir a data, o autor, e até mesmo seu caráter, e muitos tem trabalhado com as
possibilidades e conjecturas, considerando que inúmeros códices chegaram até nós muito deteriorados,
em estados que dificultam a leitura e a sua caracterização, e que os especialistas, por mais que se
esforcem para apresentar o texto mais correto possível, muitas vezes consideram dados hipotéticos.392
A versão por nós analisada foi traduzida por S.P. Scott para o inglês em 1910, e encontra-se
disponível on-line.393
Análise do documento
A partir de uma análise inicial394 selecionamos algumas leis presentes no código visigótico que
podem esclarecer melhor a figura do bispo no contexto do reino visigodo do seculo VII. Anteriormente
mencionamos a incorporação do episcopado ao sistema judicial e sua consolidação como uma figura
de autoridade não somente religiosa, mas também civil. Na Lex Visigothorum encontramos diversas
leis que apresentam essas características, como a B02T01 lei XXVIII 395 que afirma que se qualquer
magistrado, investido de funções judiciais, tomar uma decisão infundada, ou impor uma sentença
injusta sobre qualquer um, então o bispo em cuja diocese isso foi feito, deve convocar o juiz acusado
391
ZEUMER, Karl. História de la Legislacíon Visigoda. Barcelona: Universidade de Barcelona, 1944.
GARCIA GALLO, Alfonso. Consideraciones críticas de los estúdios sobre la legislación y las costumbres visigodas.
Anuario de historia del derecho español, n. 44, p. 343-464, 1974.
393
SCOTT, S. P. (Ed.). The Visigothic Code (Forum Judicum). Boston: Boston Book Company, 1910.Disponível em:
http://libro.uca.edu/vcode/visigoths.htm
394
A primeira etapa desta pesquisa de iniciação científica foi realizar um levantamento das referências ao episcopado em
todo o código visigótico, e, a partir deste, criamos uma tabela tipológica, na qual as leis em que aparece a palavra bispo
foram divididas nos seguintes temas: trasngressão da legislação civil, função de juiz/autoridade civil, refugiados, punição
do clero, bens e propriedades da igreja e judeus.
395
Utilizaremos aqui a letra para nos referir ao livro (book) em que se encontra a lei, a letra T para o capítulo (title) e o
numeral romano para o número da lei.
392
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de ter agido injustamente, e, juntos tomarão a decisão correta, na presença de eclesiásticos ou de outras
pessoas de respeitabilidade. Porém se o juiz recusar-se a corrigir o julgamento injusto dado por ele,
depois que bispo exortou-o a fazê-lo, o bispo tem o privilégio de rever o caso, e de julgar sozinho. Ou
a B06T04 lei III, na qual se o juiz é incapaz de julgar a verdade, por causa da intervenção de alguma
pessoa poderosa, ou o patrocínio de um nobre, ou pelo medo do poder real, ele deve levar o assunto à
atenção do rei. Caso não seja possível, deve levar a informação ao bispo, ou ao governador da
província, a fim de que se possa investigar devidamente.
Neste caso podemos notar o poder do bispo de tomar decisões, e mesmo de corrigir aquelas
tomadas por algum juiz acusado de injustiça. É interessante pensar a autoridade que os membros do
episcopado possuem nessa conjuntura, sendo considerados líderes religiosos e, por isso, honrados e
justos. A autora Claudia Rapp apresenta em seu livro três modelos de autoridade associadas ao bispo:
autoridade espiritual, autoridade ascética e autoridade pragmática. A primeira significa que o indivíduo
recebeu o “espírito” de Deus, a sua fonte é externa ao indivíduo, sem uma preparação ou participação
pessoal, e pode existir no indivíduo independetemente do reconhecimento por outros. A segunda tem
sua fonte no esforço individual, na prática de um comportamento virtuoso, na tentativa de atingir um
ideal pessoal de perfeição, é acessível à todos, é visível e depende do reconhecimentos por outros. A
tercecira é baseada nas ações do indivíduo, mas diferentemente da prática ascética, esta se volta para o
benefício dos outros, e é restrita, pois depende dos recursos de cada um, de sua posição social e
riqueza, é sempre pública, e seu reconhecimento depende do sucesso dessas ações. Os três tipos se
relacionam e precisam todos estar presentes para se compor a autoridade do bispo.396 Podemos
considerar que os três tipos mencionados contribuíram para que os bispos no geral recebessem funções
de ordem judicial, se tornassem autoridades reconhecidas pela comunidade.
Assim, o bispo se torna uma autoridade reconhecida. Devido a diveras questões, como a
estreita relação existente entre a monarquia e a instituição eclesiástica, sua posição de liderança dentro
da comunidade cristã, que implica determinados valores cristãos como a honestidade e a justiça, os
396
RAPP, Claudia. Nature of Leadership in Late Antiquity. In: ___. Holy bishops in Late Antiquity. The nature of
Christian leadership in an age of transition. Berkeley, Los Angeles, Londres: University of California, 2005. p. 03-22.
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bispos se tornam autoridades não somente na esfera religiosa, mas também política e civil, adquirindo
funções como a de juiz. Podemos ressaltar outras leis que demonstram o poder decisório dos mesmos,
como nas leis que fazem referência a refugiados. No código são apresentados dois casos. O primeiro
trata do rapto de mulheres - se os pais da mulher raptada resgatarem-a, o raptor deverá ser entregue a
eles, e de forma alguma deverá ser permitido que ela se case com ele, e se esta fosse a intenção, os dois
devem ser condenados a morte. No entanto, se refugiarem-se com o bispo, suas vidas serão
concedidas, mas eles devem ser separados e entregues como escravos para os pais da mulher.397 O
segundo é sobre oficiais do exército que desertam ou permitem que seus subordinados façam o mesmo
- sempre que um centurião desertar, em face o inimigo, e retornar para casa, ele será decapitado.
Porém, se ele buscar refúgio no altar, ou com o bispo, ele deve pagar 300 solidi ao governador da
cidade, e não será condenado à de pena de morte. Em ambos os casos é interessante notar que o bispo
tem o poder de decidir em relação à vida ou à morte dos transgressores.
Até agora ressaltamos leis que reforçam o poder episcopal, porém, como dito anteriormente, a
aliança existente entre monarquia e cristianismo gerava, além de benefícios para ambos os lados,
conflitos. Além
disso podemos lembrar que ambas as instituições empreendiam tentativas de
normatização do reino visigodo e, por meio de sua estreita relação nessa conjuntura, podemos perceber
que questões de ordem religiosa são tratadas no processo legislativo da esfera política, e vice-versa.
Algumas leis, apesar de seu caráter civil, demonstram tentativas de legislar sobre algumas questões
concernentes à instituição eclesiástica, como aquelas que tratam dos bens e propriedades das igrejas398,
ou da relação de membros do clero com mulheres399 que no geral reafirmam as decisões tomadas nos
concílios, ou que o bispo, apesar de ser uma figura de autoridade, também pode ser punido se
trasngredir a lei, como no caso se este ignorar uma convocação ao tribunal 400 ou se fugir diante de um
invasão do reino401, entre outros.
B03T03 – Lei II.
B05T01 – Lei II; B05T01 – Lei III; B05T01 – Lei IV; B05T01 – Lei V; B05T01 – Lei VI.
399
B03T04 – Lei XVIII.
400
B02T01 – Lei XVII.
401
B09T02: Lei VIII.
397
398
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Conclusão
Após esta análise do documento, na qual temos como objetivo elucidar a caracterização do
bispo, figura principal no corpo eclesiástico no contexto em questão, num código legislativo de caráter
civil e político, podemos perceber o bispo como figura central no reino visigodo, tendo funções que
perpassam pela esfera religiosa assim como pela política. Lembramos também que o episcopado passa
por um processo de consolidação de sua autoridade religiosa, e, na conjutura em questão, em que a
aliança entre monarquia e instituição ecleiástica é bastante marcante, já apresenta um caráter de
autoridade também civil. As leis selecionadas para este trabalho apresentam essa característica que o
episcopado adquire no reino visigodo, demonstrando que o mesmo é uma autoridade religiosa e civil
reconhecida naquela comunidade.
Vale lembrar que estas esferas caminham juntas na conjutura estudada, e que a relação entre
monarquia e cristianismo está muito presente no código legislativo visigótico. Estudando este corpus
documental podemos compreender melhor o episcopado, como este tinha diversas funções baseadas
em sua autoridade, e de que forma se constituiam as relações de poder entre o corpo eclesiástico e a
monarquia.
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O ACRÉSCIMO DA BORDADURA DOS CASTELOS NO BRASÃO NACIONAL
PORTUGUÊS POR
D. AFONSO III (1248-1279): O CONCEITO DE DIFERENÇA
HERÁLDICA
Franklin Maciel Tavares Filho
Ainda cabem esclarecimentos acerca do momento em que se estabelece o entendimento típico
da heráldica no sentido de que os membros da família devem diferenciar suas armas das do chefe
familiar, de forma que o observador compreenda os diferentes graus de pertencimento àquela casa.
No caso dos quatro primeiros reis de Portugal, carecemos de fontes que nos permitam levar o
sentido das armas reais mais além do contexto puramente dinástico. No mais, qualquer interpretação
das armas reais como sinais de identidade do reino, pelo menos até então, me soa anacrônica. Contudo,
com D. Afonso III, as armas reais são objeto de uma alteração que parece envolver a essência da
entidade representada.
Com efeito, D. Afonso III introduziu no escudo real uma bordadura vermelha carregada de
castelos dourados. Esta bordadura corresponde a uma diferença: por se tratar de um filho segundo, o
infante D. Afonso não poderia usufruir das armas plenas que pertenciam a seu irmão maior D. Sancho
II, deposto em 1245 pelo papa Inocêncio IV.
Segundo a explicação tradicional, estes castelos dourados representariam os castelos
conquistados por D. Afonso III aos mouros. Contudo, Rui de Pina, no início de sua crônica do reinado
de D. Afonso III, ao tratar deste tema, declara que circulavam três versões a respeito da origem da
bordadura. A primeira afirmava tratar-se dos castelos da região de Riba-Coa, o que o cronista rechaça
sob o argumento de que este território foi anexado somente por D. Dinis mediante o tratado de
Alcañices (12 de Setembro de 1297). Outra defendia que esta bordadura fazia alusão ao Condado de
Bolonha, hipótese também refutada por Pina com base em argumentos óbvios, ou seja, ainda que
Afonso III usasse estas armas a título meramente pessoal, nunca poderia passar a seus sucessores na
Coroa Portuguesa.
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A última defendia tratar-se a bordadura de uma alusão aos castelos do Algarve, idéia também
defendida por Pina: “Porque depois de com a dita Dona Beatriz lhe foram dadas vilas e castelos do
Reino de Algarve, e pôs na Orla do dito Escudo, e Quinas, os castelos dourados em campo vermelho.”
Além disso, segundo o autor, estes castelos não eram fixos.
Esta interpretação de Rui de Pina foi utilizada pelos diversos autores que se ocuparam deste
tema até o século XX. Ao aceitar sem crítica a versão divulgada por Rui de Pina, os autores dos
séculos XVI ao XIX tenderam a aumentá-la em diversas ocasiões. No século XX, diversos estudiosos
retomaram sem questionamentos esta causalidade.
Coube a Armando de Mattos disponibilizar novas pistas para a investigação do tema, rejeitando
a ideia de Santos Ferreira, visto haver encontrado exemplares sigilográficos de D. Afonso III em que o
escudo já ostentava a bordadura com castelos, anteriores ao seu casamento com D. Beatriz de Guzmán.
Ao invés desta explicação, Armando de Mattos sustentou que a bordadura seria a diferença do infante
D. Afonso, como filho secundogênito, citando como exemplo casos similares ocorridos na Casa Real
Francesa. Entretanto, se prestarmos atenção no trecho do Vocabulário de Santos Ferreira acima
transcrito, notaremos por certo a presença desta ideia, embora me pareça haver faltado a este autor
promover um vínculo lógico subsequente.
Ainda que tenha apontado a datação imprecisa atribuída por Armando de Mattos ao referido
selo de D. Afonso III, o Marquês de São Payo apoiou a tese relacionada à diferença colocada no
escudo por conta de D. Afonso tratar-se de filho segundo. Complementaria posteriormente sua
argumentação apresentando como prova o selo armoriado de Afonso III enquanto era Conde de
Bolonha.
Afonso, com efeito, fez uso na França, quando Conde de Bolonha, de um escudo dividido em
duas partes, as armas de sua mulher Matilde de Bolonha junto com castelos. Segundo Miguel Metelo
Seixas, a utilização destes castelos, uma clara alusão às armas de Castela herdadas de sua mãe D.
Beatriz, revela a importância deste vínculo genealógico para D. Afonso. Com efeito, a monarquia
castelhano-leonesa vivia então um período de esplendor ao qual não era alheio o próprio renome
pessoal de Alfonso VIII de Castela (1158-1214), soberano cuja brilhante política matrimonial havia lhe
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permitido vincular a Casa de Castela as mais importantes famílias reais da Cristandade Ocidental. Este
prestigioso monarca era avô de D. Afonso III, assim como de Luis IX da França (São Luís).
O brilho da monarquia castelhana, neste momento, justifica o fato de todos os netos de Alfonso
VIII tomarem das armas de Castela os elementos de diferenciação para seus escudos de armas, com
exceção evidente dos primogênitos e soberanos D. Sancho II e São Luís, os quais traziam as armas de
seus reinos sem qualquer diferença, como demonstrou Faustino Menéndez Pidal de Navascués.
O castelo de ouro sob o campo vermelho integrou, com efeito, as armas dos seguintes netos de
Alfonso VIII: na casa de Portugal, D. Afonso III e seu irmão D. Fernando, senhor de Serpa; na casa de
Leão, Fernando III de Castela e Leão e seu irmão Alfonso, conde de Molina; na casa da França,
Roberto, Conde de Artois, Afonso, Conde de Poitiers e Carlos, Conde de Anjou; e na casa de Aragão,
Alfonso, o príncipe herdeiro. De todos eles, dois usaram uma bordadura vermelha carregada com
castelos de ouro bastante similar à de Afonso III: Alfonso, conde de Molina e Carlos, conde de Anjou.
Desta forma, o prestígio das armas castelhanas era tão intenso que figuraram sempre de forma
privilegiada na descendência de Alfonso VIII. A título de exemplo, temos a abundante presença de
castelos de ouro nos vitrais da Saint-Chapelle de Paris, erguida por São Luís em homenagem à sua
mãe, a rainha e regente Branca de Castela, em contraste com as armas de sua esposa, Margarida de
Provença, de presença insignificante. Cabe mencionar a presença de D. Afonso na corte francesa
durante a regência de sua tia Branca de Castela, sendo possivelmente influenciado a assinalar de forma
clara a origem de suas armas.
Resta, contudo, uma questão a ser explicada: se de fato se justificava o uso desta diferença
heráldica enquanto seu irmão D. Sancho estava vivo, depois de sua morte nada impediria que o novo
rei assumisse as armas do Reino, sem diferença alguma. Na verdade, este era justamente o
procedimento mais corriqueiro do ponto de vista dos usos heráldicos, visto que D. Afonso deixava de
ter de recorrer a uma diferença, podendo ostentar armas plenas, em princípio, mais prestigiosas. Por
que razão não o fez?
Em primeiro lugar, durante os anos de guerra civil entre os dois irmãos, as armas com a
bordadura já haviam se convertido em sinal ou símbolo dos partidários de D. Afonso. Em segundo, o
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próprio prestígio da monarquia castelhana terá influenciado decisivamente na manutenção dos sinais
da genealogia comum. De fato, devemos recordar que numa monarquia tão ciosa de seus símbolos
próprios e de seu caráter sagrado como era a Casa Real Francesa, especialmente durante o reinado de
São Luís, seu monarca mais prestigioso, a capela palaciana, lugar privilegiado da emblemática real,
encontrava-se repleta de sinais da aliança com Castela.
Contudo, cabe evidenciar que na versão tradicional, defendida por João Paulo de Abreu e Lima,
a bordadura com castelos se associa com a posse do Algarve pela Coroa portuguesa, como se este
reino houvesse possuído armas próprias incorporadas a partir de então às armas reais portuguesas
paralelamente à adoção do título de rei do Algarve associado ao de Portugal. Este processo
corresponderia a uma manifestação de heráldica territorial, pois pressupunha a criação de armas para
um território conquistado por D. Afonso III. As armas reais portuguesas passariam, então, a constituirse num núcleo central dinástico, de certo modo identificativos do Reino de Portugal, e por uma
“periferia” territorial identificativa do reino do Algarve.
Ainda que hoje se rejeite, pelos motivos antes apresentados, a ideia da bordadura com origem
nas armas do Algarve, a verdade é que esta foi sustentada pelos diversos cronistas dos séculos XV e
XVI, sendo posteriormente repetida por diversas obras da Idade Moderna e do século XIX. Só o fato
de os cronistas conceberem a existência das armas do Algarve prova que possuíam noção da heráldica
territorial. Na Idade Moderna, este raciocínio foi levado às ultimas consequências, criando-se um
ordenamento imaginário para as armas do reino do Algarve separadas das do reino de Portugal, um
escudo de gules com sete castelos de ouro. Estas armas foram utilizadas, sobretudo, para ilustrar
mapas, ou seja, uma vez mais em um contexto de simbologia territorial.
Quando pensamos, contudo, na origem da bordadura de castelos como diferença de filho
segundo, podemos concluir que quando D. Afonso III criou estas armas, isto apenas contribuiu para
reforçar o caráter dinástico da heráldica real. Em verdade, o acréscimo da bordadura possui um cunho
claramente genealógico, ao fazer referência à dinastia castelhana a qual, seguida de sua varonia,
constituía a ascendência mais ilustre do rei.
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O fato de que esta diferença tenha se perpetuado além da morte do primogênito D. Sancho II só
se explica por razões políticas: as armas com a bordadura constituiriam uma insígnia do novo soberano
e de seu projeto de renovação da monarquia portuguesa, sendo retomada por seus sucessores. Assim
sendo, a perpetuação da bordadura reflete a interferência de dimensão dinástica na simbologia da Casa
Real, incorporando-se um elemento de origem genealógica no simbólico estatal.
O conceito de diferença heráldica é uma das grandes invenções criadas pelos heraldistas
medievais. Uma vez organizada a Heráldica, esta foi, durante longo período, coletiva e nunca
individual. De fato, em seus primórdios, concentrou-se principalmente em quatro pólos: os brasões
familiares, de corporações, imaginários, e eclesiásticos. Em momento posterior, outros campos vieram
a surgir, entre eles, a heráldica estatal.
Assim, a genialidade dos teóricos, ao terem criado o conceito de diferença na heráldica
familiar, por volta de 1175, tratou-se de verdadeira revolução. Entretanto, este conceito, que veio a ser
usado principalmente nos brasões familiares, conservou uma das características medievais, mantendo
os conjuntos, mas dividindo-o. Individualizou um ou mais ramos, mas da mesma estirpe.
Bártolo di Sassoferrato, em seu Incipit Tractatus de Insigniis et Armis (1355), aceita haver
diferenças de ramos na mesma família; entretanto, segundo o autor, estes não são individuais visto que,
tal como o sobrenome, pertencem à família. Daí que seu uso não traga qualquer qualidade pessoal ao
usuário. De fato, no que se refere à heráldica, o estigma da bastardia, num primeiro momento, era
inexistente. Para Sassoferrato, os brasões familiares não indicam um estamento social sendo,
unicamente, um meio de identificação.
Este jurista entende a diferença como um artifício heráldico utilizado unicamente a fim de
distinguir os diversos ramos familiares. Com regularidade, uma série de marcas distintivas era exposta
nos brasões de cada irmão de uma mesma família. De fato, a diferença é um conceito intrinsecamente
ligado à heráldica familiar. Seu funcionamento e suas regras estão intimamente ligadas,
principalmente, aos hábitos familiares, às modas, épocas, a uma série de circunstâncias.
O banco de pinchar foi a diferença mais utilizada entre 1270-1275. Entretanto, com o tempo,
seu uso se restringiu aos membros das famílias reais. Entre 1250 e 1350 torna-se corriqueiro o uso
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como diferença de figuras de leões e aguietas, entre outras. Todavia, já na segunda metade do século
XIV prefere-se o uso de um pequeno móvel.
O cumprimento da posição jurídica proposta por Sassoferreto era de responsabilidade dos
Oficiais de Armas. Eles detinham o poder de corrigir os brasões que não estivessem dentro das regras
da armaria e registrá-los. Quando um escudeiro nobre passava a cavaleiro o arauto lhe dava as armas
da respectiva família, com a diferença e a registrava de imediato.
Segundo Paul Adam-Even, mesmo os brasões dos eclesiásticos, das mulheres e crianças
portavam diferenças. Entretanto, segundo Michel Pastoureau, as mulheres não estão sujeitas a esta: as
jovens que não estão casadas, em geral, possuem as mesmas armas que seu pai, enquanto que as
mulheres casadas, em geral, possuem armas que combinam dentro do mesmo escudo as armas do pai e
do marido.
O estudo das diferenças contou com dois teóricos com posições diferentes a respeito do tema.
John Ferne (1560-1609) defendeu a posição de que as primeiras diferenças que existiram na heráldica
familiar se tratavam de cargas de figuras ou peças. Em contrapartida, Robert Gayre (1907-1996) parte
do princípio de que as primeiras diferenças utilizadas foram as alterações das cores, embora aceite a
existência, no primeiro quartel do século XIII, de cargas com figuras e peças.
Ao estudar as diferenças heráldicas, este segundo autor teorizou uma distinção estrutural,
agrupando-as em diferenças maiores e menores. As diferenças maiores são as alterações das cores nos
brasões familiares. As menores consistem na carga do brasão familiar de figuras e peças.
Aceitando-se esta posição, importante no que se refere ao desenvolvimento do método de
estudo das diferenças, Jean Baptist Christyn, em sua obra Jurisprudentia heróica, de jure belgarum
circa nobilitatem (1668), e o clérigo inglês Nicholas Hupton, em Libellus de Officio Militari (1446),
teriam sido os primeiros a, além de já usarem as diferenças maiores e menores, juntarem a esta última
a bordadura. Estabelecia-se, desta forma, a concepção de que as peças também poderiam servir de
diferença.
Podemos considerar a alteração das cores como a forma mais lógica de se introduzir uma
diferença heráldica. De tal maneira se desenvolveu este gênero de diferença que Jean Baptist Christyn,
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na obra citada acima, informa que nas regiões anglo-francesas a alteração das cores era usada
vulgarmente. Seu uso normalizou-se e, no Sacro Império tornou-se a diferença mais usual. Entretanto,
embora a alteração das cores tenha sido a primeira diferença aplicada, também acabou sendo a
primeira a ser abandonada, no século XIII.
Em fins da Idade Média, deu-se uma evolução heráldica diversa nas diferentes regiões
européias. Na região do Sacro Império as diferenças menores acabam por desaparecer, passando as
cores a funcionar como diferença maior no brasão. Na Escócia, o sistema desenvolveu-se até a sua
regulamentação, ocorrida no século XVII. Na Itália, a expansão aragonesa no Reino de Nápoles levou
à difusão da diferença maior ao passo que no norte esta ia desaparecendo. Da França, a diferença
menor e as figuras foram transmitidas à Inglaterra. Com o decorrer do tempo, a diferença menor
extinguiu-se na França, visto que uma de suas principais figuras, a flor de lis, era de uso exclusivo da
família real.
Entretanto, na segunda metade do século XIII, entre 25 e 30 % dos brasões familiares franceses
recenseados possuíam diferenças, embora sejam raras na região sul. O apogeu do uso das diferenças
situa-se entre 1320-1330.
Em Portugal, a partir do reinado de Afonso III o ordenamento do escudo, já portando a
diferença mencionada, se manteve estável até o advento da dinastia de Avis. Em momento posterior, a
iconografia das armas reais foi sendo aumentada com ornamentos exteriores: a coroa, os anjos
tenentes, o elmo, o timbre etc.
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REPRESENTAÇÕES RELIGIOSAS NO MEDIEVO (SÉCULO XII - XIII):
UMA LEITURA ATRAVÉS DA PERSPECTIVA SEMIOLÓGICA
Golda Meir Gonçalves da Silva402
Considerando que o cristianismo institucional marcou com sua produção sígnica a prática e a
ideologia social do Baixo Medievo, analisaremos dinâmicas e representações403, investidas
semanticamente no seu percurso histórico gerativo, que revelam continuidades, similitudes e diálogos.
Através da dialética comunicativa proposta por Barthes (1974) pensamos neste trabalho as relações
entre plebe, trono e altar.
O saber passando pelo crivo do dogma, aliou-se a “verdade divina” no medievo. Todos os
objetos, instrumentos e paramentos tornaram-se pretextos para a expressão e contextualização da fé
cristã. Inclusive a literatura e a filosofia greco-romana foram significadas para fornecer arquétipos de
autoridade e legitimação do imaginário cristão medieval.
A Igreja cristã por muito tempo se esforçou por ritualizar seu culto, revestindo-o com o brilho e
o ornato litúrgico dando-lhe sentido e formalizando sua mensagem através da articulação do signo e do
ser. Mas, entre os séculos XII e XIII, começou a perder o monopólio e o controle do saber.
Desenvolveu-se concomitantemente uma cultura laica, mais técnica e concreta, voltada as
necessidades econômicas e políticas do momento histórico referido segundo Le Goff (1991). Naquele
período, apesar de mudanças já se anunciarem, revelando transformações na geografia populacional, a
vida no campo prevalece sobre a vida nas cidades o que pode justificar, na semiologia religiosa, um
sistema sígnico composto de tantos elementos da experiência cotidiana camponesa.
O conhecimento no medievo estava ligado a religião, não apenas no que se refere a teologia,
mas também as artes, a filosofia e ao direito. Ele é constituído de algo subjetivo, intangível e
misterioso de acordo com Verger (1999). A Igreja controlava o saber humano e estar informado não
402
Graduanda do curso de Licenciatura em História, na Universidade Federal de Goiás, Campus Jataí. E-mail:
[email protected].
403
Termo da filosofia clássica será aqui utilizado para insinuar que as linguagens são signos representativos das
coisas do mundo. (GREIMAS; COURTÉS. 1979, p. 382-383.)
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era um valor social coletivo, mas privilégio de alguns. Mesmo no medievo, a Igreja, detinha o
conhecimento do poder de comunicar, porém essa comunicação era prioritariamente unilateral. Quanto
mais passivo o receptor se mantivesse, maior se considerava o êxito do emissor. Porque, ainda que a
condição de um signo seja a interpretação, conforme a compreensão de Eco (1991), deve se entender
que na liturgia do medievo o interpretante era o próprio produtor do signo e que aos demais cabia
internaliza-lo.
A Igreja ocidental visando solidificar o modelo da cristandade tendo por base o Sacro Império
Romano-Germânico buscou subsídios no legado cultural da Antiguidade, fundindo personagens
históricas e mitológicas com a visão eclesiástica do Baixo Medievo. Para tal incorporou, mesclou e
sintetizou o conhecimento conforme as necessidades intelectivas do seu contexto, habilitando emissor
e receptor para entender, do mesmo modo, as manifestações que propôs através de ícones404;
símbolos405; e signos406. Na mística religiosa, a Igreja compartilha a cultura e o espírito de seu tempo.
E, como ideologia, o valor sígnico adquire peso de identidade, paralisando, ainda que parcialmente, a
construção e desconstrução dos sujeitos envolvidos e assim (quase) perdendo seu aspecto de crise
constante.
O objeto religioso é demasiadamente abstrato para a concretude medieval. A construção sígnica
de um reino divino que alcançasse o reino terreno através da verossimilhança entre o poder daquele
que representava e o poder do representado, criou significados e significantes convincentes da
realidade existente para além do mundano. A partir da análise de Eco vemos que Ícones, signos e
símbolos conseguiram correlacionar corpo e alma, divino e terreno, poder secular e poder espiritual
404
Ícone aqui entendido conf. Peirce como um signo definido por sua relação de semelhança com a realidade exterior,
oposto a índice e que se caracteriza pela relação de contiguidade natural. Aqui pensados como resultado de um conjunto de
procedimentos mobilizados para produzir efeitos de sentido condicionado pela concepção cultural da realidade e pela
ideologia dos produtores e usuários. (GREIMAS; COURTÉS. 1979, p. 222-223.)
405
De acordo com Hjelmslev símbolo é uma grandeza suscetível a várias interpretações. No rastro de Saussure e Peirce esta
grandeza possui um estatuto autônomo, não admitindo, num contexto sócio-cultural dado, uma única interpretação, mas
sendo mesmo assim fundamentado numa convenção social. (GREIMAS; COURTÉS. 1979, p. 423-425.)
406
E os signos pensados como unidades constituídas pela relação de pressuposição recíproca entre grandezas do plano de
expressão e conteúdo. Este elemento pode ser considerado como uma forma de expressão encarregada de traduzir uma
ideia ou uma coisa investindo-a de uma manifestação expressa de acordo com uma determinada conceituação. (GREIMAS;
COURTÉS. 1979, p. 422-423.)
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como “entidades emitidas” ou “emissíveis intencionalmente com o fim de comunicar”, “organizadas
num sistema descritível segundo categorias precisas” (1991, p. 22)
Nas imagens de síntese, dos desdobramentos desse poder, construídas a partir do discurso
religioso, constituídas de códigos visuais, conceituais e verbais, o divino se tornou possível e desafiou
as leis físicas e naturais, se transformando na própria natureza. A Igreja se esforçou para apagar os
sinais dessa construção, tentando aparenta-la como simples gestos da realidade. Mas, a partir das
reflexões de Eco esse construto pôde ser percebido ao analisarmos o sentido dessas significações em
seu lugar de produção e onde ele aflorou como mais um aparato expressivo (1991, p. 31) conforme
veremos nas dinâmicas e representações referenciadas neste trabalho.
Nos processos comunicativos entre sociedade e Igreja podemos observar que através de ícones
da literatura e filosofia clássicas se ajuizavam os comportamentos que poderiam motivar reprimendas e
louvor. As figuras literárias e filosóficas ganharam funções didático-moralizantes. Os elementos
culturais pagãos foram assimilados e compreendidos dentro de uma ótica cristã, cuja função fora
reprimir vícios e espalhar a virtude de acordo com Curtius (1957, p. 51). Utilizava-se o legado cultural
clássico, mas não se pretendia imitar seus padrões, como assevera Pernoud407. A proposta desse mundo
de referências fora promover, segundo Eco, “atitudesproposicionais”, possibilidades intencionais a
partir de “fenômenos extensionais”, porque reelaborou um significado convencional de acordo com a
situação dada (1991, p. 71-72). O mito clássico fora utilizado para demonstrar que a aproximação dos
prazeres mundanos acarretaria o afastamento de uma vida santa. Portanto, não imbuído de qualidades e
virtudes cristãs, o mito manifestaria características perversas e nocivas à comunidade de Cristo. Nesse
sentido os significados e significantes foram estruturados enciclopedicamente, como parte de um
conjunto de interpretações postuladas de forma progressiva de onde se deduziam os dados,
favorecendo mais o uso que a interpretação dos elementos simbólicos. Procedimento que favoreceu
construções semânticas parciais.
A censura à postura das personagens clássicas, nesta perspectiva, legitimava a ótica cristã
medieval. O amor feminino, por exemplo, elemento de louvor na tradição clássica, na cultura cristã
407
Luz sobre a Idade Média. Publicações Europa-América, versão s/d.
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medieval fora elemento distanciador da palavra bíblica. E serviu de contraponto ao primado do homem
sobre a mulher e do espírito sobre o corpo corruptível. Já os textos de Ovídio, foram ornados com
significados constituídos a partir das virtudes de Cristo. Essas representações textuais, em termos de
conteúdo, apontavam para um vazio nas escrituras consideradas sagradas segundo Bragança Júnior
(1998).
Historicamente, no entendimento de Moser, os símbolos são carregados de informações que
apontam para uma dimensão transcendente (2014) e sincretizam os elementos significativos naturais
ao corpus expressivo, próprio da Igreja medieval, composto por elementos locais e temporais. Para
Bragança Júnior, os discursos clássicos representavam no medievo antigos valores, que poderiam ser
reprimidos e/ou louvados, mas também adquiriram e expressaram novas ideias permeadas pela
mensagem cristã (1998), funcionando como elemento referencial.
O uso de símbolos pela Igreja é tradicional, já se prestou a elemento de identificação dos
cristãos em meio a perseguições político-religiosas, como ornamentos nos templos e vestes, como
elemento de evangelização aproximando e identificando os seus fieis. E assim como afirma Buyst:
Essa capacidade de manifestar o mistério de Deus e de nos colocar em relação com ele é
própria dos símbolos e do pensamento simbólico. A lógica racional não alcança o mistério. Ou
seja, o pensamento simbólico é mais amplo, ultrapassa o pensamento racional e o
complementa. (2002, p 31).
O celibato como discurso reformador teve sua primeira imposição no Concílio de Elvira em
306. Mas foi no I Concílio de Latrão, em 1123 que se proibiu o casamento e o concubinato de
sacerdotes católicos. Instituído para atender a um projeto de reforma social, conhecido como Reforma
Gregoriana, ocorrido entre os séculos XI e XIII, cujo fim era a solidificação do poder da Igreja na
Idade Média. De acordo com Bourdieu (1998, p. 85-96), esta foi uma prática construída gradualmente,
um esquema social conduzido pela Igreja mostrando que os códigos de conduta e as ideologias podem
se atualizar e ainda ocupar uma posição dominante. E, ainda que toda representação significasse a
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deidade conforme afirma Moser (apud GREIMAS/COURTÉS, 1979, p. 103), o celibato foi
confirmado e reafirmado ao longo da história e está vinculado a construção identitária do sacerdócio
católico. O ideal de pureza e castidade, desde o século XI, baliza o discurso de autoridade hierárquica
eclesiástica. Pessavento (2003, p. 39) dirá que “as representações são matrizes geradoras de práticas
sociais, dotadas de força integradora e coesiva, bem como explicativas do real. Indivíduos e grupos
dão sentido ao mundo por meio das representações que constroem sobre a realidade”. E sobre si
mesmos, não apenas na imediaticidade, mas ao longo do tempo.
O celibato garantia ao clero, no contexto medieval, uma aura de virtude distanciada e superior
ao restante dos cristãos. A Igreja converteu uma opção de fé individual em um sinal de superioridade
dos clérigos sobre os leigos segundo Vainfas (1986). De acordo com Jacques Le Goff (1992, pp. 150162) a diferença entre clérigos e laicos era marcada pela castidade e pelo casamento respectivamente,
ou seja, pela pureza e impureza. A Igreja impôs um modelo exclusivista de conduta clerical
convocando a sociedade a rejeitar os resistentes ao celibato. É nesse contexto que a mulher foi tornada
o maior inimigo das virtudes clérigas. A culpa de Eva legitimava a culpa das mulheres medievais por
todos os desvios sexuais dos clérigos e da sociedade como um todo. O celibato fora utilizado pela
Igreja como metáfora fundada por uma moral cristã medieval e fundadora de uma identidade clerical.
A ação, nesse caso, remete a uma implicação, é o signo simbólico de uma ideologia.
Os signos icônicos litúrgicos e os simbólicos sacramentais também revelam a relação de poder
entre a Igreja e a sociedade e sustentam o seu discurso purificador e santificador. A consagração da
hóstia, como corpo vivo de Cristo, fora descaracterizada por Lutero como ato sacrificial e tida a partir
desse pensador como ritual de comunhão, o que revela os desdobramentos semânticos de um ícone,
que escapando ou não ao objeto é pura significação. Para Carlo Ginzburg (2001, p. 102), o dogma da
transubstanciação negando os dados sensíveis em prol do real profundo e invisível pode ser tomado
como uma vitória extraordinária da abstração no medievo, porque o significado extrapolou o
significante sem dele se desvincular.
A confissão é outro símbolo do poder da Igreja medieval, representa um ato de julgamento,
purificação e preparação para a comunhão com Cristo e preconizou a extinção do desejo como
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sacramento. Assim como a postura corporal, ato significativo na celebração da liturgia onde todos os
gestos e palavras conferiam ritmo e harmonia, mas também indicavam um código de conduta, um
modelo de comportamento social e um espaço-tempo de hierarquias bem demarcadas. Estas
manifestações verbais e gestuais funcionaram como metáforas. Porque de acordo com Conesa e
Nubiola (1999), os elementos simbólicos eclesiásticos no medievo não se voltavam apenas às
faculdades visuais, mas para todos os demais sentidos, se manifestando como sinais dos pensamentos,
da vontade e dos sentimentos humanos na sua relação com o mundo e com o espiritual. Os símbolos,
no entendimento de Santaella (1983), estimularam a capacidade contemplativa, conduziram a uma
distinção e discriminação das diferenças e induziram a capacidade de generalizar classificando e
categorizando as observações realizadas sobre o contexto. Portanto, aplicados coerentemente
proporcionaram uma linguagem harmônica para o significado a que se propuseram.
A suntuosidade e a qualidade das vestes sacerdotais também foram influentes meios de
comunicação na Igreja Medieval. Através da pompa, beleza e luxo das vestimentas se fazia analogia
entre o poder espiritual e temporal. Entre os elementos utilizados na liturgia observa-se a combinação
entre cores, que procurava atrair a atenção dos fieis, exprimir a realeza divina em seus diversos
tempos, definir o lugar dos sujeitos e a ordem eclesiástica. Utilizadas como elementos mediadores, as
cores foram sinais simbólicos muito importantes na celebração litúrgica e demarcaram, desde o
medievo, a hierarquia eclesiástica. O simbólico tentou explicar a complexidade da experiência
demonstrando que o tecido do mundo conhecido não era acidental, mas necessário, essencial e
convencionado culturalmente. Que a operação atua sobre a expressão na produção do tecido social e
implica transformações significativas no nível do conteúdo. Portanto o signo pôde oferecer um
significado indireto, sujeito a interpretações sucessivas de acordo com as inferências sofridas espaçotemporalmente. Em Eco, a partir da “união de um significante e de um significado”, a veste como
signo icônico diferenciou o sacerdote e comunicou uma ideologia (1991, pp. 17-19). Os paramentos,
revestidos de elementos simbólicos, reviveram na ação litúrgica do medievo a experiência de Cristo e
dos cristãos.
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O sistema sígnico religioso medieval fora pensado para potencializar o respeito e o temor
social. Todas as técnicas disponíveis no período foram utilizadas para amparar este construto que
amplificou a comunicação entre o divino e o terreno através de aparatos, icônicos e simbólicos, que
assessoravam as habilidades físicas, sensoriais e cognitivas dos sujeitos sociais envolvidos segundo
Carniello (2007 apud PROSS, 1972). O emissor se aparatava para compor mensagens que poderiam
ser decodificadas pelo receptor, cuja atitude pode ser tida como ingênua, mas apenas se
desconsiderarmos a limitação de acesso às fontes dessa construção. Os espaços hierárquicos no
medievo não se limitavam apenas as esferas de poder, mas especialmente as esferas do saber. Assim as
mensagens surgidas de tais artifícios adquiriram significação ideológica e moral. Na esteira de Martin
(1990) compreende-se que as imagens reproduzidas nessas mensagens conduziram a movimentos
afetivos e que sua produção implicou uma fusão entre interior e exterior, verossimilhança e realidade.
Eco (1991, p. 17) concebe esse sistema de oposições, por entender que algo, percebido como ausente
fora postulado por outra coisa como presença. E que esta ausência demarcada simbolicamente
precisava, para significar, ser solidária com seu fantasma.
A simbologia nas construções discursivas da Igreja medieval pôde ser observada através da
liturgia da palavra408, batismal409 e eucarística410. Segundo Todorov (1978 apud ECO, 1980) há, “em
todo discurso, uma produção indireta de sentido”. Portanto, deve-se entender que o estímulo-resposta
não é movido por um ideal totalmente explicitado. O texto como símbolo, nesse caso, é uma
experiência mística. Com efeito, na leitura de um texto simbólico, cada elemento exprime uma riqueza
de sentidos, porque a expressão e compreensão de um sentido total está além da capacidade humana.
As festas litúrgicas também foram símbolos que demonstravam o fervor religioso no medievo.
Podiam ser de louvor, em honra, em agradecimento ou em memória. Ambas representavam a presença
da Igreja na vida da sociedade medieval. O espaço do louvor também pôde extrapolar o objeto
concreto e guardar a significação simbólica que representava o mundo invisível. O modo simbólico
aqui remete a critérios de controle social da vontade individual e coletiva. Supondo que todo signo
408
Rememora os feitos históricos de Deus e dos seus ao longo do tempo.
Renova e reforça a passagem para uma vida cristã.
410
Transubstanciação da hóstia no corpo de Cristo.
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religioso deva ser utilizado como símbolo, se encontra nele aquilo que nele é projetado de acordo com
a compreensão de Eco(1991, pp. 223-231). Portanto, os espaços demarcados dentro da Igreja se
relacionam com as divisões sociais estabelecidas política, econômica e/ou culturalmente.
Na Idade Média o corpo também fora utilizado como objeto significante entre Igreja e
sociedade, pensado como punição para o ser e como pecado para negação do ser. Neste sentido as
expressões corporais nesse período foram signos do imaginário religioso do momento histórico. São
vários conceitos de corpo na história do pensamento ocidental medieval. Santaella (2012) analisa o
corpo, nesse período, como pulsional e, ao mesmo tempo, como imaginário e simbólico.
Para
Foucault (2013) o corpo é parte do campo político, de suas relações de poder e de acordo com o
pensamento medieval é um sistema prisional. No entendimento de Greiner (2005) o corpo está
dividido no medievo em soma e dema, ou seja, corpo morto e corpo vivo, sendo morta a matéria e viva
a alma. O corpo sólido, tangível, sensível, visível, que possui uma forma, segundo a compreensão
deCardim (2009) é o túmulo ou a prisão da alma. Nessa esteira Le Goff (2007) entende que a Idade
Média fora inicialmente o período de renúncia do corpo, por este ser compreendido como fonte de
pecado.
A partir dessas perspectivas, podemos considerar que o corpo fora espaço de informações e de
manifestações culturais no medievo. E que tudo no ser comunicava o ser. Os rituais de auto sacrifício
do corpo, por exemplo, foram utilizados como forma de comunicação, contenção, controle e expressão
religiosa, quando da espetacularização desse ato na Baixa Idade Média. A autoflagelação era tida como
forma de comunicação interior entre o indivíduo e Deus, mas também com o mundo exterior entre o
sujeito religioso e a sociedade. Nessa prática, que tem sua origem na visão providencialista medieval,
tanto o corpo, quanto o sacrifício foram formas de expressão e linguagem, que ora se comunicava com
o mundo tangível, ora com o intangível. E obedecendo a função didático-moralizante imposta a
produção sígnica da Igreja, a exemplo do sacrifício de Jesus era preciso expiar esse objeto corrupto e
corruptível. O sacrifício representava o poder sagrado atuando sobre o corpo, ou seja, a vida atuando
sobre a morte. Nesse ato a coisa consagrada era o instrumento mediador entre a humanidade e Deus,
entre a perdição e a salvação. Mas, era a intervenção religiosa que dava o verdadeiro sentido simbólico
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ao ato de acordo com Mauss (2005). Eco compreende que “O homem medieval que vive na própria
carne o modo simbólico” vagueava num espaço onde tudo queria dizer outra coisa, portanto onde tudo
era de algum modo um poder semiótico, com um sentido a ser decodificado (1991, p. 234).
Esse teatro também servia como construção simbólica de uma espécie de realidade, onde as
representações objetivavam um mesmo movimento, de acordo com Boudieu (2010). E Martín-Barbero
(2008) diz que a Igreja fora a grande distribuidora dessas imagens de devoção e flagelo. Debord (1997)
entende que a espetacularização do flagelo não era apenas um conjunto de imagens, mas uma relação
social entre pessoas mediadas por símbolos comunicativos de um imaginário significante
contextualmente. Existindo assim uma função de poder e dominação, que combinava o imaginário
social e o sacrifício corporal espetacular. Portanto, esse espetáculo tinha a função de informar, divertir,
universalizar ideias e acorrentar o pensamento de acordo com a análise de Berthold (2011). O tema
explicito era a submissão do mundo a Deus personificado pela própria Igreja no corpo de seus fieis
submetidos ao flagelo, e em cujas mãos estavam céu e inferno. O modo simbólico se encontra aqui na
manifestação artística, pensado poeticamente e disposto estrategicamente para ser reconhecido a fim
de veicular novos conteúdos implicitos, exigindo para tal circunstâncias comunicativas
sobredeterminadas pelo contexto.
As relíquias também foram elementos do sistema sígnico litúrgico medieval, nos quais o
sagrado era essencial para a sua existência. Porém o sagrado precede ao objeto e permanece sem ele.
Contudo esses objetos eram os signos icônicos que comunicavam este sagrado. Suas formas emitiam
um poder simbólico informativo proporcionando a dialética, proposta por Roland Barthes (1974), da
produtividade comunicativa respaldada na fé e na religiosidade medieval católica, como bem se vê em
Pseudo-Dionísio, o Aeropagita, já no século V:
Contudo, este Raio divino não poderá nos iluminar se não estiver espiritualmente celado na
variedade de figuras sagradas, acomodadas ao nosso modo natural e próprio, conforme a
paternal providência de Deus.
Por isso, nossa sagrada hierarquia foi estabelecida por
disposição divina à imitação das hierarquias celestes, que não são deste mundo. Mas as
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hierarquias imateriais se revestiram de múltiplas figuras e formas materiais para que, conforme
nossa maneira de ser, elevássemos-nos analogicamente desde estes signos sagrados até a
compreensão das realidades espirituais, simples, inefáveis. Nós, homens, não poderíamos de
modo algum elevar-nos pela via puramente espiritual para imitar e contemplar as hierarquias
celestes sem a ajuda de meios materiais que nos guiassem, como requer nossa natureza.
Qualquer pessoa que reflita se dá conta que a aparente formosura é sinal de mistérios sublimes;
o bom odor que sentimos manifesta a iluminação intelectual; as luzes materiais são imagem da
copiosa efusão de luz imaterial; as diferentes disciplinas sagradas correspondem à imensa
capacidade contemplativa da mente; as ordens e graus sagrados daqui de baixo simbolizam as
harmoniosas relações do Reino de Deus; a recepção da Sagrada Eucaristia é sinal da
participação em Jesus, e o mesmo ocorre com os seres do Céu que, de modo transcendente,
recebem os dons, dados simbolicamente a nós.
A fonte de perfeição espiritual nos proveu de imagens sensíveis que correspondem às
realidades imateriais do Céu, pois cuida de nós e quer fazer-nos à sua semelhança. Deu-nos a
conhecer as hierarquias celestes; instituiu o colégio ministerial de nossa própria hierarquia à
imitação da celeste; enquanto é possível humanamente, em seu divino sacerdócio, revelou-nos
tudo isso por meio das santas alegorias contidas nas Sagradas Escrituras, para elevar-nos
espiritualmente desde o sensível e conceitual através de símbolos sagrados, até o simplíssimo
cume daquelas hierarquias celestes. (1995, p. 119-122)
Anselmo de Aosta também elabora um pensamento sobre a produção simbólica de sua época:
Pois uma coisa é a coisa estar no intelecto, e outra, entender que a coisa existe. Porque quando
o pintor pensa antecipadamente o que tem de fazer, certamente o tem no intelecto, mas ainda
não entende que exista o que ainda não fez. [...] Contudo, após pintar, ele a tem no intelecto, e
entende que existe o que fez. (apud GUERREIRO, 2002, p. 128).
Não sendo os objetos materiais os únicos componentes do sistema signico religioso no
medievo, buscamos a reflexão de São Boaventura (1996) sobre a palavra como elemento simbólico da
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teologia. Este pensador lhe define três aspectos correspondentes: em relação ao emissor a considera
signo de um conceito da mente, que se transforma em voz sem desprender-se do conceito mental que a
gerou; em relação a enunciação a palavra é regra e esta submetida a ser modo, espécie e ordem; e em
relação ao receptor a palavra consiste em exprimir, instruir e mover. Portanto a palavra é o símbolo
que move os fieis e a expressão máxima da linguagem religiosa no medievo. Pedro Abelardo (1994, p.
33-35), sobre a importância da linguagem diz que ela revela algo de si, a si pertinente. Talvez por esta
razão a palavra seja na liturgia símbolo do mando de Deus, representação da divina voz criativa, uma
fala impositiva, uma ordem.
Duby diz que a Idade Média é resolutamente um período masculino (DUBY/PERROT, 1990).
E que as exigências na postura das mulheres eram complexas, limitadoras e revelavam a significação
moral do conjunto sígnico religioso. O simbolismo religioso fora responsável pela concepção do que
deveria ser uma mulher, o padrão estabelecido estava estampado no modelo sacrossanto de Maria, “a
Virgem”. Weinmann (2008) diz que o mundo de mulheres e crianças, por volta dos sete anos, entre os
séculos XII e XIII, era indiferenciado, um mundo de contatos face-a-face, de palavras faladas e não
escritas. E que a comunicação com esses grupos se efetuava simbolicamente, através de imagens
visuais e verbais. Os signos referenciais aqui foram necessários para a projeção do modelo desejado e
não importa se esse modelo era uma mentira, porque isto em nada influenciaria no seu funcionamento
como símbolo. Em semiótica a falácia tem função, posto que haja sempre significação nas mentiras. O
importante para esta análise, de acordo com Eco é identificar “condições de significação e condições
de verdade”, ou seja, “uma semântica intencional e uma semântica extensional” relacionada (1980,
pp. 48-49).
Apesar do discurso misógino característico do medievo, pelo menos as mulheres voltadas para
a vida religiosa adquiriram certa autoridade e autonomia. Segundo Pernoud (1984) a mulher se tornou
naquele momento uma síntese da perfeição sensual e racional, a mediadora fundamental para mudar e
enobrecer o homem. A sistematização simbólica tentou universalizar o culto e, por conseguinte, os
componentes e comportamentos em torno. O contexto da baixa Idade Média não permitia a
manutenção da exclusão do feminino, portanto fez-se necessário submete-lo ao seio da Igreja, que
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estrategicamente o promoveu ao mesmo tempo em que o silenciava. O objeto aqui não é o mais
importante, porque é conduzido por meio de uma interpretação restrita assemelhando-o ao seu
conteúdo semântico. Sua presença visa satisfazer a um valor de verdade da expressão dada apenas a
fim de inseri-lo em sua função sígnica.
Outro ícone importante da liturgia sagrada medieval fora os santos, vistos a partir do século XII
como símbolo do vínculo local com a “Igreja universal”. Inicialmente escolhidos pela origem nobre e
pelo envolvimento nas atividades sociais. Com a Reforma de Gregório VII, passa-se a considerar o
exemplo de vida e os milagres realizados. A figura do santo era o auxílio simbólico. E o santo o
reflexo do criador, o representante de determinado grupo, dentro do corpo amplo da Igreja, o
intercessor, que inscrevia e incluía a diferença dos membros no corpo homogêneo da religião. Em Eco
podemos compreender que a falácia aqui está interessada na extensão dos enunciados como
“proposições assertivas semióticas” (1980, pp. 52-53), porque são atribuídos conteúdos a um código
convencionado, no qual os componentes são unidades de um sistema semântico amplo, que permite
compreende-los individual e culturalmente. Portanto, a crença no mito, se mito, é relevante,
independentemente do fato, posto que revele a força social dos signos.
A estrutura arquitetônica religiosa também se tornou ícone representativo da vida comunitária.
As Igrejas atraiam o mercado em torno de si, as cidades medievais se desenvolviam em torno dessas
construções. A grandeza de sua expressão reduzia a importância dos elementos terrenos para glorificar
a superioridade de Deus. Nesse contexto a Igreja é o próprio mundo. Fora dela o quadro de destinos
possíveis antes composto por céu e inferno, ganha mais um elemento simbólico o purgatório. Bem
representado pela condição humana na imagem do labirinto, sendo a escolha dos fieis ou infiéis o
determinante do caminho na vida para além da morte. E o cristianismo a única doutrinação que
oferecia um Deus pessoal e único capaz de salvar a humanidade de sua miséria material. Essa entidade
concreta se tornou uma “unidade cultural” distinta e diversa de outras que “permaneceu imutável
através da substituição dos significantes que veiculava” (ECO, 1980, p. 57).
As referências imagéticas foram utilizadas para conferir poder, velar e desvelar o mistério
divino através da Igreja. A produção sígnica religiosa em sua relação com a realidade medieval
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objetivava afetar os sentimentos e adquirir significado ideológico e moral de acordo com a
compreensão de Martin (1990). Esta cultura não é só comunicação e significação, mas pode ser
entendida semioticamente, porque todo o conteúdo cultural pode tornar-se uma “entidade semântica”
(ECO, 1980, pp. 21). Mesmo os objetos físicos concretos podem adquirir valor simbólico socialmente
quanto ao seu funcionamento. E a Igreja se tornou um produtor ideal de signos, por construir um
sistema de códigos altamente formalizado e por se ligar a fenômenos sujeitos a mutações e
reestruturações, com seus significantes e significados instituídos para comunicar e influenciar todo o
universo em torno a cada signo forjado.
Percebe-se que a produção de sistemas sígnicos para expressar ideias não é recente, remonta
desde a Antiguidade Clássica. E considerando os métodos semióticos para a análise, Eco (1977, pp.
180) estudou os signos e os compreende como qualquer processo visual que reproduza objetos
concretos para comunicar um objeto ou um conceito correspondente seja ele mental, visual ou verbal.
E Tzvetan Todorov em 1978 (apud ECO, 1980) distingue dois grupos de estudos possíveis para estes
signos: os “códigos”411, e os “sistemas de comunicação”412. Dessa perspectiva a produção simbólica
do medievo elege os elementos, os processos, as formas artificiais ou naturais que representam a
ordem de realidades e de valores que estruturam os esquemas ideológicos, culturais e sociais do
período. Tal esquema fundamenta, expressa e legitima os padrões de conduta ritual da Igreja,
estabelecendo modelos de conduta social. Sendo a Igreja, ao mesmo tempo, produto e produtor dessa
cultura.
Le Goff (1992) entende que o historiador precisa analisar sua fonte segundo o imaginário em
que esta está imersa. Mas Eco propõe que todas as verdades são risíveis. A simbologia, assim como
qualquer documento ou método não anula a realidade, mas pode ser um instrumento mediador
poderoso na análise das relações sociais e dos processos comunicativos. A Igreja soube explorar o
potencial comunicativo de seu produto simbólico, utilizou-se desse recurso com o objetivo de
estabelecer um modo de vida e garantir-se como a ideologia dominante e este uso não fora ingênuo.
411
Os códigos reúnem, dessa perspectiva, as formas de linguagens.
Nos sistemas de comunicação os diferentes modelos de comportamento social servem para comunicar ideologias e
modelos de conduta.
412
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Como interpretante assegurou a validade dos signos que produziu, tornando-se, ela mesma, um signo
cuja definição implicaria um processo semiótico ilimitado. A Igreja viveu uma situação de fronteira, na
qual a produção sígnica permitiu formar e interpretar mensagens e textos, conferindo sentido a amplas
porções do seu discurso em que a inferência obedecia a uma regra, objetivando como resultado uma
função semântica pré-definida para comunicar ideias e estabelecer um sistema de controle social e
cultural rigoroso que se estendeu por longo período e do qual a cultura atual ainda guarda inúmeros
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O SAGRADO E O PODER RÉGIO:
O MOSTEIRO DA BATALHA ENQUANTO PANTEÃO DINÁSTICO DE AVIS
Hugo Rincon Azevedo413
Estudar a função real perpassa obviamente o campo das representações. Obras arquitetônicas, a
imagem construída pelos cronistas, pelos intelectuais e pela literatura dos séculos XIV e XV sobre a
importância e a conduta dos monarcas de Avis constituem-se em fontes essenciais que tem por
princípio difundir uma imagem consentida de rei, no dizer de Armindo de Sousa414 (1996, p. 5 e 6).
Os estudos relativos à construção de um ideal de monarca, amparado por uma simbologia
própria, fortaleceram-se, como objeto de pesquisa, desde a obra percussora de Marc Bloch 415, Os Reis
Taumaturgos (1993), onde este analisou a sagração dos reis da França, conferida através de um ritual
carregado de símbolos. Para Jacques Le Goff416, “pesquisando as origens, Bloch já encontra os dois
temas essenciais de sua obra: o vínculo entre o poder taumatúrgico e a sagração (ou, mais
precisamente, a unção); e as políticas desse recurso ao sagrado”. (LE GOFF, 1993, p.20). Ao longo da
Idade Média, os soberanos ocidentais foram ampliando seus poderes, buscando uma aproximação e
igualdade dos poderes temporais aos atemporais. Os monarcas desejavam possuir tanto poder quanto
tinha a Igreja. Segundo afirma Marc Bloch, “os soberanos do Ocidente haviam-se tornando
oficialmente sagrados graças a uma nova instituição: a consagração eclesiástica e, mais
particularmente, seu rito fundamental, a unção.” (BLOCH, 1993, p. 75). Nesse aspecto, a obra Os Reis
413
Graduando
em
História
pela
Pontifícia
Universidade
Católica
de
Goiás.
Bolsista de Iniciação Científica do CNPq.
E-mail: [email protected]
414
Armindo de Souza. Imagens e Utopias em Portugal nos fins da Idade Média: A Imagem Consentida de Rei, in Revista
Portuguesa de História, Tomo XXXI, Volume II, Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Instituto de
História Econômica e Social, 1996.
415
Marc Bloch. Os Reis Taumaturgos - O caráter sobrenatural do poder régio: França e Inglaterra, SP: Companhia das
Letras, 1993.
416
Jacques Le Goff. Prefácio. In: Marc Bloch. Os Reis Taumaturgos - O caráter sobrenatural do poder régio: França e
Inglaterra, SP: Companhia das Letras, 1993.
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Taumaturgos417 discute a crença no rito régio da cura das escrófulas. Essa concepção de uma realeza
que dialoga com a sacralidade também está presente nas concepções medievais que tiveram lugar em
Portugal.
Vejamos, por exemplo, a construção de um modelo lusitano de “Rei Sábio”, inserida na obra
literária de D. Duarte418. No Leal Conselheiro o autor exprimia as “speciaaes condiçooes e virtudes
que se requerem ao boo consselheiro419”.
Múltiplos aspectos da conduta régia foram objeto de análise ao longo das obras duartinas,
destinadas em grande parte a nortear o perfeito comportamento de reis e príncipes. Até a organização
das atividades cotidianas de forma cronológica, aspecto bastante estudado por historiadores e literatos
especialistas nos escritos de D. Duarte, associa-se a ideia de uma maior eficiência das atividades
administrativas do monarca ideal. Este discurso doutrinal foi algo característico nos monarcas de Avis.
Estes, inseridos na prática de centralização presente nos séculos XIV e XV, necessitavam de meios que
garantissem e fortalecessem seu poder. Segundo Marcella Lopes Guimarães 420, “a vida virtuosa é para
D. Duarte, sobretudo necessária aos reis cujos reinos não lhes foram outorgados pera folgança e deleita
çom, mas pera trabalhar de spritu e corpo mais que todos”. (GUIMARÃES, 2004, p.75). A idealização
do monarca, em sua função de árbitro, precisava garantir a superioridade do poder real frente aos
demais segmentos sociais. A privança régia se constitui, devido a isso, em aspecto fundamental na
balança do poder político.
Os mecanismos de poder mais essenciais no jogo político fundamentavam-se, como se sabe, no
direito e na justiça, assim, o melhor rei seria aquele que conserva seu reino em paz. A superioridade
régia baseava-se também na prática de se fazer leis. Todas as leis postulavam a submissão dos súditos
ao monarca. Não devemos esquecer, contudo, que o rei antes de ser rei, é cristão e como qual deve se
comportar. As várias funções do rei como justiceiro, protetor, legislador e juiz estavam imbuídas do
417
Marc Bloch. Op. Cit. 1993.
Filho de D. João I e segundo monarca da casa de Avis, D. Duarte I de Portuga teve em seu governo uma importa
preocupação com a construção da memória da nova dinastia.
419
D. Duarte (Obras), introdução e seleção de Afonso Botelho. Edição comemorativa aos 600 anos do nascimento do rei.
Lisboa: Verbo, 1991.
420
Marcella Lopes Guimarães. Estudo das Representações de Monarca nas Crônicas DeFernão Lopes (Séculos XIV e XV) O espelho de rei“Decifra- me e te devoro”, Curitiba: Tese de Doutorado mimeo. UFPR, 2004.
418
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idealismo cristão. O reino e/ou o povo estavam confiados ao governo do rei, o que significa que o
poder do rei não derivava do povo, do reino ou de qualquer indivíduo, mas da graça divina, embora
através da colaboração humana. Se o poder do rei é de origem divina, o poder real é, portanto, sagrado.
Para Mircea Eliade421, o sagrado “manifesta-se sempre como uma realidade inteiramente diferente das
realidades “naturais” (...) equivale ao poder, e em última análise à realidade por excelência”.
(ELIADE, 2010, p. 16 e 18). Dentro desta perspectiva de sagrado, pretende-se ao longo deste texto,
analisar as relações entre o sagrado e a construção simbólica do poder monárquico em torno dos Avis,
a partir da figura do fundador da dinastia, D. João I.
Acreditava-se que “o poder real provinha directamente de Deus”. (MARQUES, 1987, p. 286).
Segundo Oliveira Marques422, ao longo do século XIV e XV essa doutrina ganhou força em Portugal,
principalmente a partir dos finais do reinado de D. Dinis. Para Marques, essa doutrina, paradoxalmente
laica, tinha cunho “nacionalista” e buscava colocar o poder do soberano local frente ao poder papal,
não aceitando autoridades imperiais, buscando garantir a independência do reinado. Segundo
Marques423,
Já desde finais do reinado de D. Dinis, pelo menos, era esta a doutrina corrente
em Portugal. <<O regimento dos ditos reinos por Deus nos é outorgado>>,
afirmava Afonso IV em 1340, cabendo aos reis <<responder ante Aquele que é
rei e príncipe de todos os reis e nos pôs em seu lugar para cumprir direito e
justiça em estes reinos>>, continuava D. Fernando. Na própria eleição de 1385,
os eleitores haviam sido somente instrumentos da vontade divina, que fizera
vagar a coroa a fim de a transferir para D. João I. Assim, o rei era-o <<pela
graça de Deus>>, fórmula desde havia muito consagrada pelo uso mais
reinterpretada em função dos interesses do Estado. (MARQUES, 1987, p. 286).
421
Neste texto, pretende-se utilizar do conceito de sagrado presente na obra: Mircea Eliade. O sagrado e o profano. São
Paulo: Martins Fontes, 1992.
422
A.H. de Oliveira Marques. Nova História de Portugal, vol. IV – Portugal na Crise dos Séculos XIV e XV. Lisboa, 1987.
423
Idem. Ibidem. 1987, p. 286.
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A sacralização da imagem de D. João I, dentro do contexto da doutrina citada por Oliveira
Marques424, provavelmente, se inicia nas batalhas contra Castela durante a Crise Dinástica (13831385). A vitória no Cerco de Lisboa (1384), possivelmente, deu inicio a construção da imagem de D.
João I, como rei escolhido por “Deus”. Neste ano, em meio a inúmeras derrotas e baixas do lado
português, mas que em meio a essa derrota na guerra, que aparentava ser eminente, aconteceu o que na
visão dos partidários de D. João, era um “milagre”;
Mas a salvação chegou. Pela peste. Os sitiantes morriam às centenas por dia e
quando a rainha foi tocada pela epidemia. Juan I mandou levantar o cerco.
Corria o dia 3 de Setembro de 1384. A explicação deste acontecimento, na
prosa do cronista, como no coração do povo à época, só poderia ser lida à luz
do milagre. O Senhor enviara um Messias para salvar o seu povo. Assim,
acreditariam as gentes, assim o gravou em memória Fernão Lopes, nas
profecias messiânicas e milenaristas sobre predestinado chefe. (COELHO,
2010. p. 455).
Com a vitória de D. João sobre as forças de Castela, através da “ajuda” que a epidemia da
peste425 deu aos combatentes portugueses (que na visão do cronista foi por uma “intervenção divina”),
iniciou a criação de uma imagem do Rei Salvador, aquele que foi escolhido por Deus para salvar seu
povo, como é demonstrada na crônica de Fernão Lopes426 e por Maria Helena Coelho427 (2010) quando
afirma que para os seguidores de D. João, “Deus” enviou um “Messias” para salvá-lo, fazendo parte do
424
A doutrina do Poder Real de providência divina.
Grande epidemia, com origem do Oriente, que devastou a Europa entre os séculos XIV e XV, a Peste Negra também
influenciou na disputa da Crise Dinástica portuguesa, segundo os levantamentos bibliográficos e documentais, beneficiou
na guerra os partidários de D. João I. Para ver mais sobre os efeitos da Peste Negra em Portugal, ver a obra “Portugal na
Crise dos Séculos XIV e XV” de A. H. Oliveira Marques, 1987.
426
Cronista português do século XV, Fernão Lopes escreveu sobre a História portuguesa, desde a fundação até os monarcas
da Casa de Avis no século XV. Este foi contratado por D. Duarte, segundo rei da Dinastia de Avis e filho de D. João I,
possivelmente, com o intuito de deixar registrado o legado e a memória do Mestre de Avis.
427
Maria Helena da Cruz Coelho. D. João I. In: MENDONÇA, Manuela. (Org.) História dos Reis de Portugal – Da
Fundação à perda da independência. Lisboa: Academia Portuguesa de História. 2010.
425
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imaginário da cristandade medieval por seu caráter messiânico. Esse acontecimento pode ter sido um
dos primeiros elementos a serem usados através do imaginário religioso para a legitimação de D. João,
que no período ainda estava em meio à crise dinástica e na disputa pelo trono português. Essa ideia de
“rei predestinado” surgido a partir dessa vitória portuguesa pode ter sido um marco inicial para a
construção da legitimação da Casa dos Avis e a idealização do poder monárquico desse que viria a ser
o futuro Rei de Portugal.
No ano de 1385, segundo relatos de Fernão Lopes e cronistas da época 428, D. João já era
aclamado rei por parte do povo. Segundo Coelho, a justificativa para a legitimação e recebimento do
título de rei a D. João era de que o Mestre de Avis “era filho de rei, lutara pela defesa do reino,
partilhara com os seus concidadãos o cerco de Lisboa e mostrava-se devoto, caritativo e justo para com
os seus súbditos. Exercia, pois, com correcção, o poder”. (COELHO, 2010. p. 458).
A grande batalha que contribuiu para a consolidação de D. João enquanto rei foi batalha de
Aljubarrota. A produção historiográfica produzida no século XV, especialmente as crônicas de F.
Lopes, trazem diversas informações sobre a valorização dos feitos do monarca, visando consolidar o
poder da nova Dinastia. Nas narrativas a cerca da batalha, os números de soldados entre os exércitos
portugueses e castelhanos divergem entre os cronistas e autores pesquisados. Mas o que todos estes
tem em comum em é que o exército castelhano havia mais que o dobro de homens em relação ao
exército português.429 A impressionante vitória portuguesa em uma batalha onde o lado inimigo era
mais forte possuía maior contingente de homens e arsenal bélico, além de confirmar a ascensão de D.
João I como rei de Portugal, pode ter contribuído dentro do imaginário da cristandade medieval
portuguesa, para idealizar o poder do rei através de seu caráter messiânico, centralizando o poder em
Relatos presentes em a “Crônica de D. João I de boa memória”, escrita por Fernão Lopes. Maria Helena Coelho, em sua
obra sobre D. João I, em “História dos Reis de Portugal” (2010), reforça o relato de Lopes, no qual parte do povo de
português naquele momento aclamava D. João I rei de Portugal.
429
Vale ressaltar, que este texto não pretende tomar as narrativas sobre a Batalha de Aljubarrota como verdade indiscutível
ou absoluta, até porque se considera que este não é a ideia deste texto. Mas a batalha épica narrada por Fernão Lopes em
que essa impressionante vitória portuguesa sobre Castela, na qual o número de soldados do lado rival era bem superior,
pode se discutir a própria valorização dada pelo cronista pelo acontecimento histórico. Remete-se também ao mito
fundador de Portugal, quando D. Afonso Henriques derrota os mouros e o reino de Leão, com “ajuda divina”, fundando o
reino de Portugal. Essa valorização e tom épico dado à batalha pelo cronista podem ser mais um elemento a ser analisado
para a tentativa de consolidação da dinastia avisina e para a idealização do poder monárquico dos reis da Casa de Avis.
428
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suas mãos, com o maior apoio do povo, que conseguiria a partir deste acontecimento. Ao vencer a
batalha de Aljubarrota,
D. João I justificava pelas armas o seu título de rei e viabilizava o reino de
Portugal. E à luz da religiosidade da época este sucesso teria sido mesmo
abençoado por Deus, pela Virgem e pelos santos, por todos S. Jorge. À Virgem
se entregara D. João em sua honra virá a erguer o grande Mosteiro de Santa
Maria da Vitória. (COELHO, 2010. p. 462).
Durante seu reinado, D. João I procurou ritualizar e propagandear o poder real, demonstrando-o
em cerimônias régias e religiosas, utilizando-se de representações e símbolos que demonstravam seu
poder. (COELHO, 2010, p. 486). Uma dessas representações será o Mosteiro da Batalha. Outra
representação de poder desde período pode ser encontrada na tentativa da ligação do Mestre de Avis
com o fundador da monarquia portuguesa, D. Afonso Henriques. Segundo Gomes (1997), ao citar duas
semelhantes narrativas sobre o “mito fundador” português, produzidas no final do século XIV 430 e
início do século XV431 no mosteiro de Coimbra. Estes são;
Textos muito próximos, quase preparados para uma oração solene a proferir
diante de D. João I, o monarca fundador da nova dinastia de Avis e simbólico
Em uma memória produzida em 1385, sobre o rei fundador e a construção da nova “nação”, encontra-se que: “El Rey
Dom Afonso primeiro rey de Portugal Em lide E em canpo veençeo .V. Rex Mouros .silicent. em o campo d’Ourique.
Onde lhe apareçeeo noso Senhor lhesu Christo posto em cruz por cuja Semelhança do divinal misterio pos em seu escudo
as armas em cruz, as quaaes ora trazem os rex de Portugal. E so este pendom E sinal da cruz que auante dele andaua Em
todalhas batalhas E escaramuças que entrava ele era vencedor. O qual Rey ante da dicta batalha se chamou Rey dos
portugueses jectando fora os emfiees E poborando o reeino”. António Cruz. Op. Cit. 1968, p. 29. In: Saul António Gomes,
Op. Cit. 1997, p. 288.
431
Em outra memória datada de 1420, relata que no Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra: “jaz o mujto Exçelente primeiro
Rey em Purtuguall Dom Afonso Anrriquiz mijlitante senhor. Este foy o que acreçentou a muj alta fama e honrra da
dinjdade da Coroa dos Rex de Purtuguall. O qual vençeo .V°. Rex mouros Em canpo d’Ourique. Onde lhe apareçeo lhesu
Christo posto em Cruz. E aly foy alçado por rey. E pos em o seu escudo das armas que a uossa Senhoria traz. E uençeo o
conde de Trastamara que lhe Ocupaua o reino. E vençeo Mjramollim com XII rex mouros daalem E daquém mar. Este Rey
geitou fora os emfiees. E poborou a terra dos fiees Catolicos E a sua fama e nome nom he pera esquecer”. António Cruz.
Op. Cit. 1968, pp. 29-30. In: Saul António Gomes, Op. Cit. 1997, p. 288.
430
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refundador da independência nacional portuguesa tal como esta se entendia em
Quatrocentos. (GOMES, 1997, p. 288).
Para o autor, nesse período o discurso cronistico entra no patamar da “mitologia politicoreligiosa”, e D. João I, enquanto rei de origem divina, “escolhido por deus” para salvar Portugal do
domínio castelhano e que por procedência divina venceu as batalhas garantindo a independência do
reino, aproximou-se da figura do rei fundador, D. Afonso Henriques, sendo o Mestre de Avis o
“refundador” da “nação”. Segundo Gomes,
Entrando em Quatrocentos, efetivamente, o discurso cronistico português sobre
a morte regia, particularmente a dos reis fundadores, eleva-se ao nível da
mitologia politica, por um lado, e de uma mitologia religiosa, por outro,
procurando fazer germinar um surpreendente processo de postulando, como se
verificaria logo deste os alvores do século XVI, tendem a beatificação canónica
de Afonso Henriques. (GOMES, 1997, p. 289).
Dentro do contexto de aproximação da imagem dos dois monarcas, as vitórias nas batalhas de
Aljubarrota (1385) e Ourique (1139), de D. João I e D. Afonso Henriques, respectivamente,
aproximam-se também no contexto da “providência divina” ao rei escolhido. Segundo Maria Eurydice
Ribeiro (2012),
É na dimensão mítica que o acontecimento adquiriu na memória coletiva. (...)
A vitória alcançada, apesar da desigualdade das forças, exigiu uma explicação
que no século XII só poderia ser encontrada na providência divina. Tratava-se,
afinal, de uma guerra santa, e nada mais natural que o príncipe guerreiro
recebesse a ajuda dos céus. (RIBEIRO, 2012, p. 163).
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As produções cronisticas nos mosteiros portugueses, especialmente Coimbra e Alcobaça,
acerca da fundação de Portugal e da valorização da imagem de D. Afonso Henriques surgiram
especialmente a partir do reinado de D. João I e posteriormente de seus sucessores da casa de Avis.
Dentro de um contexto de uma dinastia nova, que necessitava de meios que garantissem sua
legitimação, a construção da imagem do Mestre de Avis ligada ao do rei fundador, provavelmente
contribuiu para a exaltação do poder do novo monarca. Se Afonso Henriques foi o fundador, D. João I
garantiu a independência do reino, ambos por “providência divina”, reis escolhidos “pelos céus” para
governar Portugal, e por tanto, com seus poderes de origem sagrada.
Assim como o rei fundador, o Mestre de Avis era um rei escolhido por “Deus” e deveria
defender a fé cristã e combater os inimigos de Cristo, política adotada por D. João I e seus sucessores
na casa de Avis de combate aos infiéis e na expansão em África. Segundo Ribeiro (2012),
Logo, era a Cristo que Afonso Henriques devia o título real. A fundação do
novo reino, prossegue o documento, estava ligada diretamente à defesa da fé
cristã; o rei deveria combater os inimigos de Cristo, fundamentando seu reino
na vitória dessa fé. (RIBEIRO, 2012, p. 176).
O combate ao infiel e a defesa da fé cristã foram processos fundamentais do reinado de Afonso
Henriques e essas características são retomadas no reinado da nova dinastia. Para Renata
Nascimento432 (2013),
A defesa da fé cristã frente ao islã permaneceu no imaginário ibérico, e esse
objetivo serviria de “pano de fundo” para a ação dos monarcas portugueses em
432
Renata Cristina de Souza Nascimento. A Expansão das fronteiras da Cristandade no século XV: sacralidade e
legitimidade do projeto político da casa de Avis. In: Fátima Regina Fernandes. Identidades e fronteiras no medievo ibérico.
Curitiba: Juruá, 2013.
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África após o advento da Dinastia de Avis no poder (1385). (NASCIMENTO,
2013, p.177).
A expansão da fé cristã e o ideal cruzadístico presente na representação de poder da casa de Avis
entram em um contexto de sacralização da nova dinastia. Para Nascimento433,
O processo de sacralização da monarquia, a partir da ascensão de D. João I,
insere-se na necessidade da construção de um cerimonial de poder representado
por diversos elementos que constituíram a legitimidade de Avis após um
complicado processo de substituição dinástica. (NASCIMENTO, 2013, p.
177).
Outro processo fundamental na sacralização da nova monarquia foram os rituais e cerimônias
religiosas propagadas no reinado de D. João I. Maria Helena Coelho (2010) afirma que D. João I
durante seu reinado, procurou,
Ritualizar e mesmo propagandear o poder real, dando-lhe visibilidade em
cerimónias, representações, e símbolos que o ostentavam, o legitimavam e o
engrandeciam. Esse simbolismo e ritualidade consolidavam a íntima relação
entre rei e a comunidade dos súbditos do reino. (COELHO, 2010. p. 486)
A utilização da representação como elemento simbólico faz parte da interpretação de
Bourdieu434 (2010) referente à utilização do poder simbólico pelos grupos dominantes. Para o autor,
“com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não
querem saber que lhe são sujeitos ou mesmo que o exercem”. (BOURDIEU, 2010. p. 9). Esse pode
433
Idem. Ibidem. 2013, p. 177.
Pierre Bourdieu. O Poder Simbólico. Trad. Fernando Tomaz. (português de Portugal) – 14. ed. Rio de Janeiro; Bertrand
Brasil, 2010.
434
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ser utilizado pelo grupo dominante para “a legitimação da ordem estabelecida por meio do
estabelecimento das distinções (hierarquias) e para a legitimação dessas distinções”. (BOURDIEU,
2010. p. 10). O poder simbólico descrito por Bourdieu, possivelmente esteve presente nos ritos,
cerimônias e monumentos utilizados pelos monarcas de Avis como meio de propagar a sua autoridade
e poder real.
“Em mosteiros e igrejas, patrocinados pela Coroa, esculpiam-se ou pintavam-se o nome e os
símbolos do rei e do reino, inscrevendo-os a sacralidade régia no interior da sacralidade eclesiástica”.
(COELHO, 2010, p. 486). Nesse contexto, o grande representante do poder da Dinastia de Avis, e de
seu fundador, D. João I, provavelmente foi o Mosteiro de Santa Maria da Vitória, que se tornou o
símbolo mor de seu reinado. Os rituais fúnebres eram as passagens de maior representação do poder
régio avisino, e estes rituais, ligados ao Panteão da Batalha, contribuíram para a idealização do poder
da casa de Avis em Portugal quatrocentista.
Como afirma Le Jan435 (1995), uma das grandes formas de representação de poder da nobreza e
a realeza medieval foram os ritos funerários, ao analisar a importância dos ritos funerários da Dinastia
Merovíngia436, Le Jan afirma que,
Os ritos funerários servem também para os nobres manifestarem seu poder a
superioridade de seu grupo familiar. Antes mesmo da cristianização, membros
das elites principescas, a exemplo dos “pequenos chefes” rurais, eram
inumados em sepulturas privilegiadas, visíveis e reconhecíveis. Com a
cristianização, a difusão da inumação ad sanctos – próxima das relíquias de
santos em igrejas privadas festem até na morte sua superioridade social, por
meio de uma maior proximidade com o sagrado, bem como inscrevam suas
virtudes oriundas de seus ancestrais em um contexto que se tornou cristão. Os
435
Régine Le Jan. A ideologia do poder no reino dos francos. Trad. Marcelo Cândido da Silva. In: Néri de Barros Almeida,
Marcelo Cândido da Silva (Orgs.). Poder e Construção Social na Idade Média. História e Historiografia. Goiânia:
Editora UFG, 2012.
436
Dinastia governante do Império ou Reino Merovíngio, o império perdurou entre os anos de 481 a 751, governando a
região da antiga Gália, província do Império Romano. Império formado por reinos franco-cristãos constituíram no mais
poderoso reino da Europa Ocidental.
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nobres possuem suas igrejas privadas, onde há altares com relíquias e objetos
litúrgicos e para as quais designam a pessoa consagrada para assegurar o culto.
A cristianização não modifica o exercício do poder, mas transforma
profundamente a ideologia do poder nobre: o sagrado. (LE JAN, 2012, p. 37).
Os rituais funerários enquanto símbolos de representação de poder ganharam força ao longo das
formações dos reinos cristãos e posteriormente, das monarquias nacionais. Possivelmente, no caso da
instauração da Dinastia de Avis, D. João I e seus sucessores, utilizaram do Mosteiro da Batalha como
Panteão Régio e espaço do sagrado, que os permitiriam propagar o poder real através de ritos e
cerimonias fúnebres e religiosas. Construído no local da vitória de Aljubarrota, o Mosteiro da Batalha
mais tarde torna-se também a necrópole real da Dinastia de Avis. Inspirada pelos majestosos mosteiros
que abrigavam os corpos de membros de grandes dinastias europeias, este mosteiro, tornou-se o local
escolhido pelo rei para o seu “descanso eterno” e o de sua linhagem. A primeira a ser sepultada no
mosteiro foi à rainha D. Filipa (esposa de D. João I), que faleceu em 1415. A rainha havia sido
sepultada no mosteiro de Odivelas, mas posteriormente levada para o mosteiro da Batalha;
Em 1416 D. João I promoveu a trasladação da sua amada rainha para o
mosteiro de Batalha, que, ainda em obras, o acolheu primeiro numa cripta e
depois na capela-mor. Finalmente, em 1434, D. Filipa uniu-se, de novo, para
além da morte, ao seu rei, num túmulo conjugal, religiosamente albergado na
capela do Fundador. (COELHO, 2010. p.472).
Para a autora, “o Mosteiro de Santa Maria da Vitória assume-se, na verdade, como a memória
pétrea mais grandiosa do rei de Avis e de sua dinastia”. (COELHO, 2010. p. 489). Nesse contexto, o
Mosteiro da Batalha como Panteão Régio da casa de Avis, entra como um monumento, uma estrutura
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física que represente a idealização do poder monárquico e que faça a representação política dessa nova
dinastia perante a cristandade, como Saul Gomes437 (1997) afirma:
A sociedade do poder político tardo-medieval, corporizada na jovem dinastia
de Avis, que exercita fios plurais de propaganda por toda a Cristandade da sua
prática de poder como atitude essencialmente legitimadora. A edificação deste
rico
e
magnificente
complexo
arquitetônico
contextualizar-se-á,
necessariamente, num projecto de promoção internacional duma imagem
política desenvolvido pelos monarcas portugueses quatrocentistas, bem
integrados numa Europa dominada por cortes mecenáticas que disputavam
entre si o reconhecimento da maior força, prestígio e riqueza. (GOMES, 1997,
p. 19).
A sacralização do poder monárquico da Dinastia de Avis, a partir de seu fundador, D. João I,
partiu de diversos elementos de demonstração pública de poder real, da construção simbólica da nova
monarquia e do projeto de legitimação dinástica da casa de Avis. Como visto neste capítulo, havia a
ligação do sagrado com o caráter divino da figura do rei, sua imagem associada à construção do “mito
fundador”, D. João I comparado a D. Afonso Henriques, enquanto fundador e “refundador” da
monarquia lusitana e os ritos e cerimônias de propagação pública do poder régio foram elementos
importantes na consolidação da nova casa reinante.
Estudar o poder real e a construção de poderes políticos que legitimem a autoridade e
relação de superioridade de poder de grupos dominantes perante outras camadas sociais, possui grande
relevância para compreender os mecanismos políticos e de meios de propagação e de representações
de estruturas de poder e coesão social. É fundamental analisar como certos grupos, no caso uma
dinastia em processo de consolidação e centralização do poder monárquico de sua linhagem, utilizou
de uma construção arquitetônica, o Mosteiro da Batalha, como símbolo mor e de demonstração pública
437
Saul António Gomes. Vésperas Batalhinas – Estudos de História e Arte. Leiria: Edições Magno. 1997.
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de poder. Vale ressaltar que o período tardo-medieval, um período de consolidação das monarquias
centralizadas, outras dinastia em diferentes reinos tomaram de diversas práticas para a centralização do
poder em torno da figura do rei, as construções arquitetônicas ganharam força como recurso simbólico
de poder para esses monarcas. Estudando outros períodos da História, nota-se também a existência de
líderes políticos que utilizaram de monumentos que se tornaram uma demonstração física de poder.
Nesse contexto, pretende-se analisar a relação entre o Mosteiro de Santa Maria da Vitória, enquanto
monumento (construção arquitetônica), o sagrado, o processo centralizador, de consolidação e
legitimação da Dinastia de Avis em Portugal no século XV.
Gomes (1997) diz que o Mosteiro da Batalha, que se inicia com um ideal religioso, como
cumprimento de uma promessa, posteriormente ganha um grande monumento da “memória política da
nação”, o mosteiro tornou-se o símbolo da vitória e independência portuguesa perante Castela, ele
representa a ascensão ao poder de uma nova dinastia, a casa de Avis, e representa um ideal de
“grandeza que importava propalar nos círculos diplomáticos internacionais da época”. (GOMES,
1997).
Para Renata Nascimento, “o mosteiro da batalha era uma demonstração pública do poder real,
baseado na tentativa de afirmação de um reino centralizado”. (NASCIMENTO, 2013. p 147). Segundo
Gomes, “a demonstração pública do poder real que teve, ao longo do século XV, uma caminhada
triunfante no sentido da afirmação da sua dimensão absolutista”. (GOMES, 1997, p. 33). É possível
que esses ideais construídos pela dinastia de Avis a partir de D. João I em torno de seu poder
simbólico, baseado em ritos, cerimônias, rituais fúnebres, sua atuação como árbitro nas disputas
sociais do reino e como rei cristão tenha aumentado o poder do monarca, levando-o a práticas
centralizadoras, o aproximando da autoridade de um rei absolutista. Mas apesar da crescente
centralização de poder em torno da figura do rei, o poder deste não era absolutista. Como afirma
Marques438,
438
Oliveira Marques. Op. Cit. 1987. p. 287.
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O Rei, contudo, não era um déspota nem o seu poder absoluto se mostrava
ilimitado. Tinha deveres para com Deus – que o pusera no cargo – e para com
o Povo, tomado no seu conjunto. Estava submetido ao direito divino, ao direito
natural e às leis do Reino, mesmo as que ele próprio fizera. (MARQUES, 1987,
p. 287).
Neste contexto, o monarca português possuía poderes cada vez mais centralizados, na qual
submetia as outras camadas sociais sobre sua autoridade. Em meio a um projeto legitimador, a
autoridade do rei estava acima de outros grupos, e necessitava-se representa-la principalmente frente à
nobreza lusitana. Mas seu poder não era ilimitado, e estava sujeito às leis do reino, mas principalmente
as leis divinas.
Para compreender o processo do Mosteiro da Batalha enquanto Panteão Régio, as seleções das
fontes passam por crônicas régias e fontes reunidas e organizadas por Saul Antônio Gomes na obra
Fontes Históricas e Artísticas do Mosteiro e da Vila da Batalha - Séculos XIV- XVI (Volumes I IV).439 Possivelmente, o marco inicial para a escolha do Mosteiro de Santa Maria da Vitória enquanto
Panteão Dinástico foi à translação do corpo da Rainha D. Filipa para o mosteiro, após ter sido, em um
primeiro momento, sepultada no Mosteiro de Odivelas. Em seu testamento, encontrado na obra de
fontes organizadas por Gomes (2002), D. João I deixa clara a vontade de ser sepultado junto a sua
esposa, neste que naquele momento se tornava seu Panteão Dinástico;
Item mandamos que noso corpo se lamçe no Moesteiro de Samta Maria da
Vitoria, que nos mandamos fazer com a rrainha Felipa, mynha molher, a que
Deus acreçente em sua glorya, em aquell moymento em que ella jaaz, nom com
os seus ossos della, mas em huum ataude, asy e em tall guisa que ella jaça em
seu ataude e nos em o noso, pero jaçamos ambos em humm moymento, asy
439
O historiador reuniu em quatro volumes diversas fontes históricas a cerca do Mosteiro de Santa Maria da Vitória, entre
os séculos XIV e XVI. Esse acervo organizado por Saul Antônio Gomes é o principal referencial de fontes primárias
utilizadas nesta pesquisa. Ver: Saul Antônio Gomes. Fontes Históricas e Artísticas do Mosteiro e da Vila da Batalha Séculos XIV- XVI(Volumes I- IV), 2002.
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como o nos mandamos fazer. E esto seja na capella moor, asy como ora ela
jazz, ou na outra que nos ora mandamos fazer, despois que for acabada.
(GOMES, 2002, p. 135).
A eleição do Mosteiro de Santa Maria da Vitória para se tornar o local de descanso após a
morte, possivelmente, foi realizada pelo primeiro monarca de Avis, para cultuá-lo e preservar a
memória do seu reinado, dialogando com a sacralização do poder real. Segundo Gomes, “erigido para
um cerimonial em torno da morte, do passamento régio, o panteão batalhino acabou por transformar-se
num centro modelar dos rituais fúnebres do reino. Nele, as cerimônias ganharam o brilho próprio das
grandes Cortes europeias”. (GOMES, 1990, p. 353). Por tanto, a necrópole real e o espaço onde
permanecem os corpos dos reis, devem ser cultuados, pois o rei é sagrado, seu cargo é fruto da
“escolha divina”, o Mosteiro da Batalha, assim, é um espaço do Sagrado. Para Mircea Eliade, “todo
espaço sagrado implica uma hierofania, uma irrupção do sagrado que tem como resultado destacar um
território do meio cósmico que o envolve e o torna qualitativamente diferente”. (ELIADE, 2010, p.
30). Dentro da concepção de Eliade, o Mosteiro da Batalha seria um espaço do sagrado, ou melhor,
uma hierofania, um espaço onde ocorre a manifestação do sagrado. Pois ali estão os corpos de
membros da realeza, que possuem poderes de “origem divina”, portanto, sagrados, e este espaço, um
local de memória, que pode ser representada por uma ponte que ligam os vivos aos mortos440.
O Cronista Rui de Pina (1977, p. 489), relatou que D. João I “desposera ser enterrado no
Moesteiro de Santa Maria da Vitoria, que elle em memória da batalha vencêo, alli novamente
fundára...”, D. João I menciona o motivo inicial da edificação do Mosteiro, que era o agradecimento a
Virgem pela vitória perante Castela. No seu testamento, D. João escreveu que “porque nos
prometemos no dia da batalha que ouvemos com el Rey de Castela, de que Noso Senhor Deus nos deu
vitoria, de mandarmos fazer aa homra de dita Nossa Senhora Samta Maria”. (GOMES, 2002, p. 135).
440
Renata Cristina de Souza Nascimento. As Exéquias Fúnebres no Mosteiro da Batalha. Mirabilia - Revista de História da
UFES, p. 253. 2013.
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A preocupação dos monarcas da Casa de Avis com a memória post-mortem reflete em
possibilidades da idealização do poder dos reis através do seu Panteão Régio. Para Nascimento,
As diversas concepções perante a morte não diminuem a demonstração pública
de poder real, expressando a dimensão da importância da nova casa reinante. O
panteão também é uma representação do projeto expansionista preconizado por
Portugal nos fins da Idade Média, mesmo que este possa ser visto como
extensão da reconquista. Permanece, portanto a ideia da licitude da guerra feita
em defesa da cristandade.” (NASCIMENTO, 2013, p. 256).
O Mestre de Avis demonstrou preocupação com os cultos e missas a serem realizadas no
mosteiro, em sua memória e da rainha D. Filipa. A preocupação do monarca de Avis com a realização
dessas missas, provavelmente, transcende a preocupação com os destinos de sua alma, envolve
também a memória e ato de cultuar o seu reinado, sua pessoa, pois este rei, assim como seus
descendentes e sucessores, tem o poder por procedência divina. Em seu testamento, D. João I exige
que;
Nos dias dos finamentos da dita rrainha e meu, os frades d Alcobaça e os do
dicto Moesteiro e outros quaaesquer frades e cleriguos que hy venham digam
hum trimtayro rrezado em cada humm sahimento aalem das missas e Oras que
ham de dizer. E sejam sempre pagadas as ditas mysas pello proveedor e
scrivam do Moesteiro, segundo se custumarem de pagar as missas rrezadas
aaquelles tempos que se fezerem os ditos saymentos. (GOMES, 2002, p. 137).
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A importância do Mosteiro da Batalha enquanto Panteão Régio é registrado também no
testamento441 do Infante D. Fernando442. Datado de 1437, o infante reforça sua vontade de ser
sepultado em Santa Maria da Vitória. Em uma das clausulas, o infante manifesta o desejo de que,
Me levem ao Mosteiro de Santa Maria da Vitoria, onde escolhi minha
sepultura, e esto seja sem nehua pompa, nem outra sobeja despeza, mas asim
chamente, como leverião hum simples cavaleiro, e ali me ponhão na Capella de
El Rey meu Senhor e padre, no derradeiro arco, na outra parece que esta junto
com ele por altar e seja posto em hum moimento de pedra alto e cham, sem
nehum lavor nem pintura, salvo com hum escudo de minhas armas, e hum
tituleiro escripto em ele que diga asim aqui jaz o Infante D. Fernando Filho do
muy alto e mui poderoso Principe El Rey D. João de Portugal e do Algarve, e
Senhor de Cepta, e da muy nobre e excelente Rainha D.Felipa sua mulher, que
jazem em esta Capela. (GOMES, 2002, p. 210).
O Infante D. Fernando demonstra a importância do Mosteiro enquanto necrópole real e seu
desejo de ser sepultado junto ao seu pai, nas suas palavras o “mui Poderoso Principe El Rey D. João de
Portugal”. A preocupação do infante estende-se também a necessidade das missas e cerimônias a
serem realizadas para sua alma, D. Fernando pede que,
No dia que eu ali for trazido me fação minhas exequias simpresmente e o
trintario de missas rezadas, e outras cinco oficiadas, como no dia de minha
sepultura, e se perventura acontecer de eu hi nom ter Capella digam me depois
logo seguinte hum annal de missas rezadas, e se hi tiver Capella, comece sse
logo de cantar, segundo adiante leixo ordenado. (GOMES, 2002, p. 2010).
441
Testamento presente na obra: Saul Antônio Gomes. Fontes Históricas e Artísticas do Mosteiro e da Vila da Batalha Séculos XIV- XVI(Volumes I- IV), 2002.
442
Filho de D. João I e D. Filipa de Lencastre, D. Fernando, o Infante Santo, morto no cativeiro de Fez, em 1443, após ser
capturado durante uma expedição militar no norte da África.
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O mosteiro da Batalha se tornou a necrópole real da dinastia, encontrando-se sepultados nele
monarcas da casa de Avis e outros membros da realeza. Sua expressão enquanto Panteão Fúnebre foi
de grande significado ao longo do século XV. Praticamente todos os monarcas da casa de Avis, suas
consortes e descendentes foram sepultados no mosteiro ao longo deste século. Encontram-se
sepultados em Santa Maria da Vitória os reis: D. João I (+1433), fundador da dinastia e do mosteiro,
D. Duarte I (+1438), D. Afonso V (+1481) e D. João II (+1495). D. João II foi o último monarca da
casa de Avis a ser sepultado no Panteão da Batalha. Já no século XVI, os últimos monarcas da dinastia
optam pelo Mosteiro de Jeronimos como Panteão Fúnebre, D. Manuel I, D. João III, suas consortes e
descendentes.
Para443 Gomes (1990), enquanto panteão de D. João I,
Stª Maria da Vitória ganhou paulatinamente uma importância e dimensão
inicialmente, como escrevemos atrás, não previstas. Tornando Panteão régio, o
complexo monástico transformara-se num meio de afirmação e reforço da
legitimidade da nova dinastia, símbolo da sua dignidade e coesão. Tornou-se
um local sacro, princípio segurizante da nova face do poder régio português a
que era necessário dar um corpo visível, arquitetônico e simultaneamente
paradigma da majestade do monarca. (GOMES, 1990, p. 10).
Panteão de Avis, o Mosteiro de Santa Maria da Vitória é um “testamento político e de memória
fúnebre de um rei, que pretende o descanso eterno na Cidade de Deus e a perene lembrança na Cidade
dos Homens.” (COELHO, 2010. p. 487). O Mosteiro de Stª Maria da Vitória, também conhecido como
Mosteiro da Batalha, construído no local da grande vitória que consagrou o coroamento de um rei,
sendo o monumento “um reforço da legitimidade da nova dinastia”. (GOMES, 1997. p. 137). O
443
Saul Antônio Gomes. O Mosteiro de Santa Maria da Vitória no Século XVSubsídios para a História da arte portuguesa.
Coimbra. Faculdade de Letras. 1990.
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Panteão da Batalha “que teve seu início com D. João I, sua existência enquanto panteão régio é
fundamental na tentativa de perpetuação simbólica da Casa de Avis”. (NASCIMENTO, 2013, p. 249).
Enquanto panteão dinástico, o mosteiro deu legitimidade ao Mestre de Avis e sua linhagem, consagrou
a vitória e independência de Castela, e posteriormente tornou-se a necrópole real e símbolo mor da
representação do poder real de uma dinastia, tornando-se seu Panteão Régio.
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A CAVALARIA E AS SIETE PARTIDAS: REPRESENTAÇÕES E APROPRIAÇÕES DE
REALIDADES HISTÓRICAS
Isabela G. Parucker444
A Europa do século XIX vivenciou intensas mudanças econômicas e políticas, sociais e
culturais. Foi palco de novas formas de manifestações da cultura que respondiam aos anseios,
ambições e protestos de uma sociedade em transformação. Aquilo que conhecemos como Romantismo
– ainda que impossível de se considerar como um fenômeno homogêneo, claramente determinado num
intervalo espaço-temporal – marcou não apenas as artes, a arquitetura, a música, a literatura, mas a
própria história. Num momento em que os Estados começavam a se organizar em volta de ideais de
nacionalismo e nação, a história era fator de suma importância na elaboração e disseminação dessas
concepções e ideologias; buscava-se no passado elementos que ajudassem a compreender melhor
aquele presente. Ainda, como aponta Eric Hobsbawm445, o Romantismo, movimento difuso e fluido,
tem como característica um descontentamento dos jovens e artistas em relação à sociedade que surgiu
da “dupla revolução”. Nessa insatisfação, buscaram no passado valores que acreditavam estar perdidos
em seu tempo: os românticos apropriaram-se da Idade Média – de maneira bastante idealizada – em
sua tentativa de recuperar relações genuínas que não encontravam na sociedade burguesa. Enxergavam
na Idade Média o ideal de honra, fidelidade, lealdade; a sociedade capitalista e as novas relações
sociais resultantes dela, a seu ver, careciam desses valores.
É possível perceber como elementos da sociedade medieval sofreram essa influência romântica
em suas diversas apropriações na história. A noção que se tem de cavaleiro ainda nos dias de hoje é
marcada por uma visão romântica do que foi a cavalaria. Todavia, surge a questão: o que dizia a
própria época sobre a cavalaria?
Aluna de graduação em História na Universidade de Brasília – UnB; membro do Programa de Estudos Medievais –
PEM/UnB. [email protected]
445
HOBSBAWM, Eric J. “As artes” In: A Era das Revoluções: 1789-1848. 4ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982, pp.
275-299.
444
HISTÓRIA, POLÍTICA E PODER NA IDADE MÉDIA
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As Siete Partidas, por serem um documento que constitui o resultado de uma tentativa de
compilação de leis, levada a cabo pela coroa castelhana, no século XIII, são uma fonte importante para
entender a organização daquela sociedade. Registram costumes e tradições, apontam para a maneira
como aquelas pessoas entendiam o mundo de sua época. A cavalaria é uma referência recorrente em
diversas leis deste corpus documental: aparece em contextos e situações diferentes. Os cavaleiros são
apresentados como os defensores (um dos três estados da sociedade); são os responsáveis pela
proteção da comunidade, da terra. Cavalaria, contudo, representa mais que uma função: é vista também
como uma honra, como privilégio. Em alguns momentos do documento, a cavalaria é vinculada à ideia
de fidalguia, que é honra que vem aos homens por linhagem446, nas palavras do próprio documento. Os
cavaleiros devem, como definem várias leis desse mesmo Título, ser homens de boa linhagem. A
linhagem é característica essencial que define o homem apto a se tornar cavaleiro; isso significaria que
este homem teria, em seu sangue, um sentido apurado de honra, teria consciência de seu papel, do que
deve fazer, da maneira correta como se organiza a sociedade, da forma como devem ser as coisas. Essa
virtude é o que se entende, nesse sentido, como vergonha:
E sobre isto disse um sábio chamado Vegecio, que falou da ordem da cavalaria, que a
vergonha impede que o cavaleiro que fuja da batalha, e portanto que ele vença; uma vez
que muitos acharam ser melhor o homem fraco e sofredor que o forte e ligeiro que
fugisse. E por isto mais que todas as outras coisas decidiram que fossem homens de boa
linhagem, porque eles evitariam fazer coisas que lhes pudesse dar vergonha: e porque
esses foram escolhidos de bons lugares e de algo, o que quer tanto dizer na linguagem
de Espanha como bem, por isso os chamaram de fidalgos, que os mostra como filhos de
bem. (…) E portanto os fidalgos devem ser escolhidos de linhagem direita de pai e de
avô até o quarto grau a quem se chama bisavôs: e isto acharam por bem os antigos,
Livre tradução do trecho “Fidalguia segunt diximos en la ley ante desta es nobleza que vien á los homes por linage…”.
Las Siete Partidas, Partida Segunda, Título XXI, Ley III, 1807, p. 199.
446
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porque daquele tempo para trás, não se podem lembrar os homens; de quanto mais
longe vem a boa linhagem, tanto mais crescem esses homens em honra e fidalguia.447
No Título XVIII da Segunda Partida, Lei XII, a questão da vergonha aparece relacionada à
atividade dos que defendem os castelos: não cumprir com este encargo levaria à má fama, tanto para a
pessoa que o faz quanto para sua família448. Apesar de não mencionar a cavalaria especificamente, esta
lei refere-se à defesa dos castelos, função atribuída também aos cavaleiros, como é possível observar
em algumas passagens do documento. Como sugere a Lei, fugir dessa responsabilidade e,
consequentemente, cair em má fama, prejudica a linhagem. Nesse sentido, os protetores dos castelos
devem ser dotados não apenas de sabedoria, juízo e coragem449, como também da virtude da vergonha,
para que saibam cumprir seu dever e realizar sua parte para o funcionamento do corpo, executando a
sua tarefa dentro da comunidade. Além de honrados, os cavaleiros são identificados, então, como
pessoas dotadas de conhecimento, bom senso e intrepidez.
Observa-se, dessa forma, uma cavalaria que indica honra, que é um título, fator que nobilita.
Ainda, na passagem supracitada da Lei II do Título XXI, infere-se que a fidalguia e a linhagem são
elementos de tradição, uma vez que afirma-se que quanto mais distante é o alcance da linhagem, tanto
maior é a honra e a fidalguia desses homens. É possível perceber o aspecto da honra também quando
se afirma, nesse mesmo Título, na Lei I, que aqueles que andam a cavalo o fazem de forma mais
honrada que os que andam sobre outros animais450. O cavalo é, portanto, signo exterior de posição
447
Livre tradução do trecho "Et sobresto dixo un sabio que habie nombre Vegecio que falló de la órden de caballería, que la
vergüenza vieda al caballero que non fuga de la batalla, et por ende le face seer vencedor; ca mucho tovieron que era mejor
el home flaco et sufridor que el fuerte et ligero pra foir. Et por esto sobre todas las otras cosas cataron que fuesen homes de
buen linaje, porque se guardasen de facer cosa por que pudiesen caer en vergüenza: et porque estos fueron escogidos de
buenos logares et algo, que quiere tanto decir en lenguaje de España como bien, por eso los llamaron fijosdalgo, que
muestra atando como fijos de bien. (…) Et por ende los fijosdalgo deben seer escogidos que vengan de derecho linaje de
padre e et de abuelo fasta en el cuatro grado á que laman bisabuelos: et esto tovieron por bien los antiguos, porque aquel
tiempo adelante non se pueden acordar los homes; pero quanto desde adelante mas de lueñe vienen de buen linaje, tanto
mas crecen en su honra et en su fidalguia."Las Siete Partidas, Partida Segunda, Título XXI, Ley II, 1807, p.199.
448
Livre tradução do trecho "(…) por ende muerte nin otro peligro que es pasadero, non deben tanto temer como la mala
fama que es cosa que fincarie para a siempre á ellos et su linage, si non feciesen lo que debiesen en guarda del castiello."
Idem, Partida Segunda, Título XVIII, Ley XII, 1807, p. 160.
449
Partida Segunda, Título XVIII, Ley XII, 1807, p. 161.
450
Livre tradução do trecho "…en España llaman caballería non por razón que andan cabalgando en caballos, mas porque
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social elevada, é um elemento que também nobilita, indica nobreza. O cavaleiro pode ser entendido,
então, como alguém dotado de honra e status. A cavalaria sugere que a pessoa faz parte de uma boa
linhagem, e que ela é mais honrado que as pertencentes de outros segmentos da sociedade (aqueles que
não possuem cavalos, por exemplo). Além disso, o documento reconhece o cavaleiro como o mais
honrado dentre os defensores. O preâmbulo do Título XXI apresenta os defensores como um dos três
estados pelos quais Deus dividiu os homens na terra:
Defensores são um dos três estados pelos quais Deus quis que se mantivesse o mundo:
assim como os que rogam a Deus pelo povo são ditos oradores, e outrossim os que
lavram a terra e fazem nela as coisas por que os homens hão de viver e de se manter são
ditos lavradores; outrossim, os que hão de defender a todos são ditos defensores…451
Assim, considera-se a cavalaria não apenas como grupo que constitui um estado social, mas como o
grupo mais honrado dentre seus pares. Igualmente, é possível observar certa flexibilidade na ideia dos
três estados que compunham a sociedade da época, visto que eles poderiam ser formados por grupos
associados a uma função comum, mas compostos por pessoas diferentes.
É importante notar que o próprio título da cavalaria confere ao cavaleiro algumas prerrogativas.
No Título I da Sexta Partida, que define a temática dos testamentos, assinala-se que os cavaleiros
podem fazer testamentos tanto em suas casas, da mesma maneira que os outros homens, seguindo as
mesmas regras, como também em campo de batalha, caso se encontrem em perigo de morte. Essa
disposição legal fortalece laços de parentesco artificial (entre os cavaleiros e suas testemunhas e os
cavaleiros e seus novos herdeiros), bem como reforça a ideia de que a cavalaria é um título que implica
privilégios. Isso se explica pelo fato de que tal função está vinculada à proteção da comunidade:
bien así como los que andan á caballo van mas honradamente que en otra bestia, otrosí los que son escogidos para
caballeros son mas honrados que todos los otros defensores." Las Siete Partidas, Partida Segunda, Título XXI, Ley I, 1807,
p. 198.
451
Livre tradução do trecho "Defensores são uno de los tres estados por que Dios quiso que se mantuviese el mundo: ca
bien así como los que ruegan á Dios por el pueblo son dichos oradores; et otrosí los que labran la tierra et facen en ella
aquellas cosas por que los homes han de vevir et de mantenerse son dichos labradores; et otrisi los que han á defender á
todos son dichos defensores…" Idem, Partida Segunda, Título XXI, preâmbulo, 1807, p.197.
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E isto foi outorgado por privilégio aos cavaleiros por lhes fazer honra e mercê mais que
aos outros homens, pelo grande perigo a que se submetem ao servir a Deus, ao rei e à
terra em que vivem.452
Aqueles responsáveis pela defesa do rei, do povo e da terra estão sujeitos a situações arriscadas e
perigosas, devem saber lutar e encarar a morte quando necessário. Ainda, a partir dessa definição, é
possível inferir que o papel desempenhado pelo cavaleiro requer bravura, força, destreza e sabedoria.
Essa concepção da cavalaria concorda com aquela sugerida quando se tratou, nas Partidas, dos
defensores dos castelos, dos homens de armas, e vai também ao encontro da imagem idealizada do
cavaleiro hábil e corajoso.
Ainda no que diz respeito a direitos resultantes da cavalaria, a Lei III do Título IV, Quinta
Partida, que trata de doações, informa que aqueles que vivem sob o poder de um pai ou de um avô não
podem doar bens a não ser que segundo a prescrição daqueles. Entretanto, caso o filho ou neto faça
parte seja um cavaleiro, ele tem a possibilidade de fazer doações daquilo que ganhou em função da sua
cavalaria453. Deste modo, nota-se que a cavalaria garante à pessoa certas liberdades e até mesmo
regalias, dentre as quais dispor de bens, independentes daqueles da família, e da permissão para fazer
doações daquilo que recebe decorrente do cumprimento da sua função e do exercício de seu papel.
Outra forma de se perceber a cavalaria é como uma função relacionada às armas, como
apresentada na Lei IX do Título XVIII, ainda da Partida Segunda: o cavaleiro aparece como um dos
responsáveis pela defesa de castelos, designados por alcaides a servir juntamente com besteiros,
escudeiros e outros homens de armas nessa proteção.
452
Livre tradução do trecho "Et esto fue otorgado por privilégio á los caballeros por les facer honra et mejoría mas que á
los otros homes, por el grant peligro á que se meten por servir á Dios, et al rey et á la tierra en que viven." Las Siete
Partidas, Partida Sexta, Título I, Lei IV, 1807, p.362.
453
Livre tradução do trecho "Fijo ó nieto que estodiese en poder de su padre ó de su abuelo, non puede facer donación á
menos de otorgamiento de aqul en cuyo poder está, fueras ende si fuese caballero que hobiese fecho ganancias de su
caballeria." Las Siete Partidas, Partida Quinta, Título IV, Ley III, 1807, p. 171.
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O alcaide deve colocar nos castelos quantos cavaleiros e escudeiros e besteiros e outros
homens d’armas entender que convém, ou segundo o pacto que tivesse com o senhor de
quem é vassalo: e deve guardar para que aqueles que coloca [no castelo], se forem
fidalgos, que não tenham cometido traição ou injúria, nem que venham de linhagem de
traidores (...). E com relação aos outros homens d’armas que lá forem colocados, deve
se certificar que sejam homens conhecedores e fortes para ajudar bem e defender o
castelo quando necessário for...454
Aqui, observa-se o vínculo entre a cavalaria, as armas e a proteção da comunidade, e é reforçada a
ideia de fidalguia e boa linhagem para cavaleiros. Novamente, na Lei III do Título X, à cavalaria é
destinada a defesa do reino: os cavaleiros devem protegê-lo de malfeitores de dentro e de fora, que são
os inimigos455. De acordo também com a lei IX do Título XXI da mesma Partida, uma das razões para
que os cavaleiros sejam leais é que, se não o fossem, não poderiam ser bons guardiões e defensores de
todos: "(…) são postos para guarda e defesa de todos, e não poderiam ser bons guardadores os que
leais não fossem...”456. Um dos valores fortemente associados ao ideal do cavaleiro é a lealdade. Essa
passagem mostra, portanto, como o modelo funcionava na experiência prática: uma das condições
necessárias para ser cavaleiro é compreender a ideia da lealdade, e ser leal é fundamental para a
cavalaria.
Ainda em relação às armas, a cavalaria é assinalada como grupo daqueles que sabem manejálas quando, na Lei XIX do Título V, listam-se algumas habilidades que o rei deve dominar: usar armas
454
Livre tradução do trecho "Meter debe el alcayde en el castiello caballeros et escuderos et ballesteros et otros homes
darmas quantos entendiere quel convienen, ó segunt la postura que hobiese con el señor de quien lo toviere: et debe mucho
catar que aquellos que hi metiere si fueren fijosdalgo que non haya fecho ninguno dellos traycion nin aleve, nin venga de
linage de traydores (…). Et los otros homes darmas que hi fueren debe catar que sean homes conoscidos et recios para
ayudar bien et defender el castiello quando meester fuere…". Idem, Partida Segunda, Título XVIII, Ley IX, p. 157.
455
Livre tradução do trecho "(…) et otrosí debe la caballeria presta et los otros homes darmas para guardar el regno que
non resciba daño de los malfechores de dentro nin de los de fuera, que son los enemigos…" Idem, Partida Segunda, Título
X, Ley III, p. 89.
456
“(...)son puestos para guarda et á defendimiento de todos, et non podríen seer buenos guardadores los que leales non
fuesen…” Las Siete Partidas, Partida Segunda, Título XXI, Ley IX, p. 203.
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e montar cavalos, como os cavaleiros457. Nesse sentido, mais do que associado a uma função, o
cavaleiro é apresentado como alguém dotado de conhecimento e habilidades específicos, que domina o
uso de instrumentos de luta para defesa e proteção da comunidade. É, portanto, o detentor de um saber.
Já na Lei V do Título III, Partida Sétima, o cavaleiro é apresentado como uma das pessoas que
podem responder em nome dos reptados. Rieptos eram uma espécie de desafios com efeitos legais por
meio dos quais se buscavam resoluções para disputas e querelas. Alguém que fosse acusado e não
pudesse apresentar-se ao desafio, teria a possibilidade de responder por intermédio de outra pessoa. A
listagem458, nessa Lei, daqueles que assumiriam o lugar do reptado é interessante, pois mostra a
complexidade da lógica dos laços de parentesco dessa sociedade: o parentesco artificial (espiritual) é
tão importante quanto o sanguíneo. Indício disso é o fato de que companheiros de romaria ou
peregrinação, compadres, amigos, herdeiros ou aqueles que tivessem sido armados cavaleiros pelo
desafiado estariam aptos a responder pelo reptado. Como apontado na Lei XI do Título XXI, Partida
Segunda, não é possível que alguém que não seja cavaleiro “faça cavaleiro” a outra pessoa:
Feitos não podem ser os cavaleiros pela mão de homem que cavaleiro não seja, uma vez
que os sábios antigos que todas as coisas ordenaram com razão, não achavam que fosse
coisa de direito dar um homem a outro o que ele não fosse. (...) outro tal que não tem
poder nenhum de armar cavaleiro senão aquele que o é....459.
457
Livre tradução do trecho "Ca en fecho de armas et de caballeria conviene que sea sabidor para poder mejor amparar lo
suyo, et conquerir lo de los enemigos: et por ende debe saber cavalgar bien et apuestamiente, et usar toda manera de armas,
tan bien de aquellas que ha de vestir para guardar el cuerpo, como de las otras con que ha de ayudar…". Idem, Partida
Segunda, Título V, Ley XIX, p. 39.
458
"Non viniendo el reptado á responder al riepto á los plazos quel fueron puestos, puédolo reptar antel rey el que lo fizo
emplazar, tambbien como si el otro fuese presente. Pero si acaesciese hi padre, ó fijo, ó hermano ó pariente cercano, ó sñor
ó vasallo del reptado, ó alguno que sea amigo ó compadre dél, ó compañero con quien hobiese ido en romeria ó en otro
camino grande en que hobiesen comido et albergado de so uno, ó tal amigo que hobiese casado á él mismo, ó á su fijo ó á
su fija, ol hobiese fecho caballero ó herdero, ó quel ficiera cobrar herdat que habie perdido, ó que hobiese desviado su
amigo de muerte, ó de deshonra ó de grant daño, ol hobiese sacado de cativo, ó dado de lo suyo para tirarlo de pobreza en
tiempo quel era mucho meester, ó otro amigo con quien hobiese puesto cierta amistat, señalando algunt nombre cierto por
que se llamasen el uno al otro, á que dicen nombre de corte; cada uno destos bien podrie responder por el reptado si
quisiere, et desmentir al que lo reptó. Et esto puede facer por razon del debdo ó de la amistat que ha con él…” Idem, Partida
Septima, Título III, Ley V, 1807, pp 546-547.
459
Livre tradução do trecho "Fechos non pueden seer los caballeros por mano de home que caballero non sea, cas los
sabios antiguos que todas las cosas ordenaron con razón, non tovieron que era cosa con quisa nin que pudiese seer con
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Nesse sentido, além de ser possível observar um caráter relacional da honra – somente é possível
atribuir honra a alguém quando também se possui essa honra –, percebe-se na cavalaria certo grau de
parentesco. Aqueles que fazem cavaleiros devem ser também cavaleiros, pelo que compartilham, em
certa medida, uma mesma honra. São também pessoas com quem se convive, com quem se sai em
jornadas e campanhas e com quem se divide as funções de defesa e proteção do reino. Ao falar de
compadres, amigos ou companheiros de romaria, a Lei que trata dos rieptos alude à questão de laços
entre homens que viajam juntos por um longo caminho, que comem e se albergam em comum. Dessa
maneira, a cavalaria poderia ser entendida aqui como também uma expressão de laços sociais, de
parentescos.
A imagem que temos comumente de cavaleiros – personagens corajosos, honrados, com forte
senso de irmandade e companheirismo – pode ser associada às diversas maneiras pelas quais se
representava a cavalaria na Idade Média. As Siete Partidas oferecem uma variedade de situações e
contextos nos quais essa concepção se materializa, mostrando que não é um conceito fixo, único,
claramente definido: apresenta-se em articulação com outras noções (honra, linhagem, parentesco,
função dentro do corpo social). A noção de cavalaria que as Partidas sugerem compõe um modelo que
pode ser apropriado e reinterpretado posteriormente. Este modelo, contudo, tem uma origem concreta,
assentada em situações vividas e registradas ao longo da história. O modelo de cavalaria encontra nas
realidades aqui apresentadas um referente empírico concreto. Infere-se, portanto, que os cenários
propostos pelo retrato da cavalaria, segundo o documento, eram inspiradas pela própria vida, uma
representação da maneira como se entendia o mundo, a sociedade. É importante observar como uma
fonte, um corpus documental pode auxiliar na compreensão de realidades históricas, bem como na
tentativa de entender apropriações, ressignificações e releituras feitas acerca delas ao longo da história.
derecho dar un home á otro lo que non hobiese. (…) otro tal que non ha poder ninguno de facer caballero sinon el que lo
es…"Las Siete Partidas, Partida Segunda, Título XXI, Ley XI, 1807, p. 204-205.
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OS AGENTES DO CRISTIANISMO NA HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DA NAÇÃO
INGLESA DE VENERAVEL BEDA
Itajara Rodrigues Joaquim460
Devido às diversas possibilidades geradas a partir do referido tema, o trabalho desenvolvido
encontra-se ainda em estágio inicial. No ano de 597, o papa Gregório I envia para Bretanha uma
missão para tentar restaurar a ordem cristã naquela região. O grupo era composto por bispos e monges,
destacando-se Agostinho, que viria a ser o primeiro arcebispo de Canterbury, e tinham como objetivo
obter a conversão dos povos saxônicos ao cristianismo. Nesse esforço missionário encontraram lideres
saxônicos decididos a utilizar todos os recursos para manterem o seu próprio estilo senhorial local.
Venerável Beda, monge de origem saxônica nascido em 672. Em seu livro Historia Ecclesiastica
Gentis Anglorum461, um de seus escritos mais importantes, narra as relações entre os romanos e a
Britânia e posteriormente ao estabelecimento dos invasores saxões, anglos e jutos no final do século V
até as condições do clero no século VIII. Para Beda, o verdadeiro início da história da nação inglesa
enquanto povo seria a chegada da missão de Agostinho e a fundação da Igreja inglesa por esses
agentes do cristianismo.
A base do processo que conduziu o cristianismo, e os elementos culturais da antiguidade tardia para as
regiões alem das fronteiras com Império romano foi no mínimo complexo. Uma das primeiras formas
usada para divulgar o cristianismo que se tem memória foi o monasticismo.
Monks were ideally suited for missionary ventures, in that not only were they
tightly disciplined and under obedience to their superiors, but the monastic
ideal of renunciation involving physical relocation, and the enduring of bodily
Graduando - Vinculação Acadêmica: Universidade Federal de Mato Grosso -UFMT – Bolsista: Iniciação Científica
Voluntaria – Grupo de Pesquisa: Vivarium – Orientador: Prof. Dr. Marcus Cruz – [email protected]
461
História Eclesiástica da nação Inglesa.
460
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privation, made them ready to move into potentially hostile territories and to
put up with considerable hardship.(COLLINS, 1991.p. 233)462
Com o tempo mostrou-se fácil à administração de territórios diocesano sem nenhuma cidade
próxima. Muitos monastérios também serviam como escolas, as dimensões de suas atividades eram
muito importantes para a sociedade, principalmente nas cidades onde a antiga educação romana estava
em declínio ou era inexistente, eram como microcosmos dentro das sociedades locais. O monasticismo
parece ser um instrumento obvio para a expansão física do cristianismo nestes séculos, mas havia
algumas lutas contra esse desenvolvimento.“Individual monks and ascetics not under the authority of
recognized superiors or resident in fixed location were intensely distrusted”. (COLLINS, 1991.p.
233)463Muitas igrejas locais pregavam contra os monges solitários e sem nenhuma autoridade superior
que vinham pregar em suas comunidades, pois a vida monástica estava mais em cultivar uma vida
espiritual e contemplativa em olhar para o seu interior, do que realmente manter um trabalho que
exigisse algum tipo de esforço físico em nome de Deus.
Os mosteiros e santuários imponentes, habitados por monges e freiras com o
seus numerosos dependentes leigos, afirmavam-se como uma espécie de oásis
do sagrado numa paisagem em grande parte por dominar. (...) O Cristianismo
espalhou-se ao nível solo. Irradiou a partir de centros muito afastados entre si,
através de contactos intermitentes e muito carregados de emoção com as coisas
sagradas. (BROWN, 1999, p. 244).
A Gália era uma das regiões onde já havia uma grande tradição na participação monástica na
iniciação e na manutenção da fé cristã, tanto que quando papa Gregório I estava preparando seus
462
Monges eram o mais adequado para as missões, não somente por serem rigidamente disciplinados e obedientes a seus
superiores, mas o ideal de monástico envolvia renúncias e deslocamento físico e de privações para o corpo, faz com que
eles estejam preparados para se mudarem para lugares potencialmente hostis e com consideráveis dificuldades.
463
Monges individuais e devotos sem o reconhecimento de nenhuma autoridade superior ou sem local fixo de residência
não eram confiáveis.
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monges para a viagem ao reino de Kent, ele escreveu para os bispos de várias dioceses Franca, nas
quais os monges passariam, solicitando seus apoios aos missionários.
Papa Gregório I, também conhecido como Gregório o Grande, foi o primeiro papa a ter seguido
a vida monástica. Nascido no ano de 590 em uma rica família aristocrática romana com fortes ligações
religiosas, logo após a morte de seu pai, transformou a propriedade de sua família em Caelian Hill no
monastério de São André, ele também fundou outros monastérios nas terras de sua família na Sicilia. O
período em que Gregório nasceu foi um período de grande agitação na Itália, que havia sido atingida
por uma praga que causou fome, desespero e tumulto. Ele foi muito bem educado, aprendeu gramática,
retórica, ciência, literatura e direito. Conseguia escrever e ler corretamente em Latim, mas não
conseguiu aprender o Grego.
Gregório mantinha um respeito muito grande pela vida monástica, mesmo depois de seu
pontificado continuou mantendo o estilo de vida monástico de forma um pouco modificada. Foi do
mosteiro de Caelian Hill onde saiu o grupo de monges que acompanharam Agostinho na missão de
evangelização dos reinos anglo-saxões em 596.
No sexto século grande parte dos países ocidentais já havia sido cristianizados com apenas
alguns poucos pagãos restantes. Mas Gregório ainda estava muito preocupado em combater esse
paganismo existente. “We can see from Gregory’s letters his concerns with the eradication of
paganism from Sicily and Sardinia, and other sources tell of surviving heathen practices in Spain and
Gaul.”(BLAIR, 1995 p.42)464.
A Inglaterra não se encontrava entre os países já cristianizados, pois havia uma grande
diferença entre eles, mesmo as partes mais bárbaras do norte da Gália, onde a população rural já vivia
entre uma sociedade cristã estabilizada, os anglo-saxões viviam onde as raízes do paganismo era
profundamente propagado. Os reinos britânicos que haviam sofrido menos romanização antes de 597,
o cristianismo Romano foi substituído pelo paganismo e em algumas outras regiões o cristianismo
Romano havia se transformado em um cristianismo Céltico, onde eles apenas agregavam o deus
cristão a seus vários outros deuses. O cristianismo romano só sobreviveu nas regiões onde os anglo464
Podemos observar pelas cartas de Gregório sua preocupação com a erradicação do paganismo na Sicilia e na Sardenha e
as outras formas de paganismos ainda sobreviventes na Espanha e na Gália.
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saxões não tinham tanto poder. Peter Brown acredita que em certas regiões do Ocidente da Britânia é
possível que os saxões tenham recebido o Cristianismo dos príncipes romano-britânicos, ou até do seu
próprio campesinato, também ele romano-britânico, para quem o Cristianismo continuara a ser uma
religião popular.
De acordo com Peter Blair, algumas cartas de Gregório sugerem que talvez tenha sido o seu
profundo interesse na igreja gaulesa que levou a ele o conhecimento a respeito do paganismo britânico
e o interesse na conversão desse povo ao cristianismo. “The closeness of relations between the two
countries, attested historically and by the marriage of a Kentish king with a Frankish princess, is an
archaeological commonplace of the fifth and sixth centuries.”(BLAIR,1995 p.45).465
Gregório não estava muito bem informado a respeito da política e da relação ente os anglo-saxões e os
francos, em uma de suas cartas diz que escutou que a nação inglesa tinha o desejo de se converter a fé
cristã, mas os padres da região não demonstravam o devido interesse por eles.
(...) Gregory is quite explicit both about the wishes of the English and about
the negligence of the nearby priest, we can only speculate about the source of
his information. He never himself says that he ever met any people of English
race, though he may have done so. (BLAIR, 1995. p. 47)466
De acordo com Collins esse senso de responsabilidade pastoral do papa na evangelização do
povo, não era apenas um aspecto ideológico isso foi desenvolvido em Roma desde o quarto século
como um produto para o crescimento e disseminação das ideias e instituições monásticas. Portanto
empreendimento missionário não estava apenas na tentativa de evangelização desse povo, mas também
no intuito espalhar a doutrina, os costumes e as praticas litúrgicas romanas.
465
A relação de proximidade entre os dois países é atestada historicamente e pelo casamento entre um de Kent e uma
princesa franca, arqueologicamente é uma área comum entre o quinto e o sexto século.
466
Gregório é explicito a respeito de seu desejo dos Ingleses e a negligencia por parte dos padres da região, nós podemos
apenas especular sobre sua fonte de informações. Ele mesmo nunca conheceu nenhuma pessoa da raça Inglesa, talvez tenha
conhecido.
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A jornada para Inglaterra.
As Ilhas Britânicas estavam divididas entre pequenos governantes, também chamados de reinos. “A
patchwork of tiny polities had replaced the Roman state. In eastern Britain there was by now a similar
set of micro-kingdoms ruled by immigrant Anglo-Saxons” (WICKHAM, 2010, p151).467
Segundo John Burrow, os reis das diversas entidades políticas vigentes, onde o território foi dividido
pelos invasores, foram de crucial importância para o sucesso do empreendimento missionário cristão,
seu apoio era praticamente uma garantia de sucesso; sua oposição representava um sério revés.
As informações que temos a respeito da jornada dos missionários de Roma para Inglaterra são através
das cartas de Gregório I, escritas a partir de julho de 596, destinadas a clérigos e leigos que estavam
em posição de ajudar na missão.
(...) quando Gregório I enviou a sua imponente embaixada a Etelberto, rei de Kent, em 597,
esperava talvez a ressurreição rápida da ordem cristã antiga na Britânia, tal como existira no
último século do domínio romano: os bispos metropolitanos voltariam aos antigos centros
romanos de governo em Londres e York, cada um assistido por doze colegas para as cidades
menos importantes.( BROWN, 1999, p. 224).
Beda fala que a comitiva encontrou vários problemas antes mesmo de chegar a seu destino
final, o reino de Kent. Mesmo seguindo todas as ordens, os monges foram atacados covardemente
enquanto estavam no caminho. Por mais que os romanos já tivessem o conhecimento de guerras e da
fome, eles entraram em consenso e decidiram que seria melhor para eles retornarem para casa do que
continuar entrando em um território de selvagens bárbaros sem crença e do qual a língua eles nem
conheciam. Agostinho foi o escolhido para retornar a Roma e discutir os problemas da missão com
Gregório.
Gregório acreditava que a missão poderia falhar, não pela falta de fé de seus membros, mas
pela falta de liderança. Então ele mandou que Agostinho, agora como abade, retornasse para seus
467
Uma mistura de pequenos governos havia substituído o Estado Romano. No oriente da Bretanha havia agora algo
similar à micro reinos governado pelos imigrantes anglo-saxões.
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companheiros com uma carta de Gregório dizendo que eles deveriam confiar em Deus e obedecer e
seguir todos os comandos de Agostinho, “they were not let themselves be deterred by the difficulties of
the journey or by the tongue of evil-speaking men" (BLAIR, 1995, p. 49).468 Gregório encaminhou
também uma carta para o arcebispo de Arles os recebessem e os ajudasse a seguirem viagem.
Depois de serem encorajados e com a ajuda de um interprete franco, a comitiva com
aproximadamente 40 monges conseguiu chegar ao reino de Kent. Eles encontraram uma Britânia
muito diferente, com um rei saxônico decidido a utilizar todos os recursos, incluindo uma nova
religião, para manter o seu próprio estilo de senhorio local.
O rei era Etelberto, homem muito poderoso que foi casado durante quinze anos com uma
princesa franca cristã Berta. Beda, fala que os pais da princesa só aceitariam seu casamento com a
condição de que ela pudesse praticar sua fé cristã. Berta conseguiu praticar sua religião com um
capelão, também de origem franca. No momento os francos não estavam interessados na conversão de
Etelberto ao cristianismo, pois não queriam outro rei cristão e Etelberto não queria estar
espiritualmente subordinado ao reino franco. Mas com a chegada dos missionários romanos ele viu a
conversão ao cristianismo com uma nova perspectiva, para ele
(...) receber o batismo de Roma era completamente diferente. Etelberto podia
contactar
com
esse
centro
imaginado
do
mundo
cristão
latino,
tranquilizadoramente distante, e podia até passar por cima de Roma e procurar
o reconhecimento pelo próprio Imperador romano (BROWN, 1999, p, 224).
O processo de cristianização dos grandes lideres era muito difícil de se separar o puramente
religioso de um contexto cultural muito maior. A conversão ao cristianismo parecia ser algo muito
atrativo para aqueles que se convertiam, pois trazia junto com ele outros tipos de benefícios. O
cristianismo era uma religião de livros, que dependia do conhecimento da leitura e da escrita para se
ter o entendimento de suas características centrais, suas mensagens e as formas como elas eram
468
Eles não podem se deixar desencorajar pelas dificuldades encontradas na jornada ou pela língua do homem mau.
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interpretadas. Essas técnicas eram disseminadas dentro das sociedades onde o cristianismo estava
sendo introduzido para que se houvesse esse entendimento.
Gregório I, na tentativa de conversão do rei, mantinha contato com Etelberto e muitas de suas
cartas eram acompanhadas de presentes, honrarias ao rei e a piedade da rainha também era glorificada
em suas cartas. Acredita-se que a própria rainha tenha respondido varias das cartas em Latim de
Gregório, pois, ela era uma mulher muito bem educada. Segundo Peter Blair, essas cartas são muito
importantes, não só pelo seu conteúdo, mas por que marcam o principio das regras da nação Inglesa e a
transformação do barbarismo para uma nação civilizada.
Mesmo com todas as honrarias feitas ao rei, ainda existia uma insegurança em relação aos
visitantes, principalmente em ambientes públicos. Etelberto agia de forma cautelosa para que o ânimo
dos súditos, ainda fieis à religião pagã, não se exaltassem. Nem com o batismo do rei a situação
melhorou, eram tratados como “pessoas valiosas, mas potencialmente perigosas, que seria melhor
manter sob vigilância perto da corte régia” (BROWN, 1999, p, 225). Por mais que Agostinho tivesse a
permissão de fazer suas pregações e pequenas intervenções, foi aconselhado por Gregório a ser
cauteloso em suas ações e não tomar nenhuma medida drástica, como por exemplo, Gregório mandou
que os templos pagãos não fossem destruídos, e que os sacrifícios ao invés de serem feitos como
oferenda ao demônio, agora seriam utilizados de uma maneira diferente.
The temples were by no means to be destroyed, but only the images which they
housed. If the temples were well built they were to be consecrated to the
service of God so that the people might continue to worship in familiar places.
They should not be deprived of their customary sacrifices of oxen, (…) now
converted to Christian use, and celebrate with religious feasting, their animals
no longer sacrificed to devils, but killed for their own food with thanksgiving to
God.(BLAIR, 1995, p. 63).469
469
Os templos não deveriam ser destruídos de forma alguma, e sim apenas as imagens estavam alojadas dentro deles. Se os
templos fossem bem construídos deviam ser consagrados ao serviço de Deus, para que as pessoas possam continuar a
adorar em lugares familiares. Eles não deveriam ser privados dos seus sacrifícios habituais, que agora seriam convertidos
para o uso cristão, e comemorações de festas religiosas, e não mais sacrificados aos demônios e sim em ação de graças a
Deus.
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Além dessas medidas cautelosas para que o povo pagão fosse se acostumando aos poucos com
os costumes e regras cristãs, Etelberto publicou as Leis de Edelberto, fazendo com que se aproxima-se
da figura de Clovis, mas suas leis “não foram escritas em latim, mas em anglo-saxão. Trata-se de uma
clara indicação de firmeza de objetivos e capacidade de adaptação” (BROWN, 1999, p, 226). As leis
foram criadas também para que tivesse um documento que protegesse a igreja, o documento indicava
que os estrangeiros, tinham a proteção pessoal do rei e que a honra dos padres cristãos era tão sensível
quanto à do próprio rei. Para Gregório os reis não representavam apenas a força profana, deviam
também ser pastores. Acreditava que os reis eram responsáveis pelas almas de todo o seu povo, assim
como os bispos eram responsáveis pela sua congregação de abades e monges.
Posteriormente algumas autoridades demoraram a se converter ao cristianismo, mas quando se
convertiam realizavam grandes cerimônias. “Realizaram – se baptismos em massa e predicas – em
certa ocasião durante 36 dias a fio (...)” (BROWN, 1999, p, 227).
Mas o relacionamento entre o povo pagão e os grupos religiosos cristãos, não continuou em um
crescente avanço. Conforme os reis que protegiam missionários morriam ou saiam do poder, os
religiosos também acabavam por cair junto com eles.
Nos reinos saxônicos o Cristianismo fora apenas tolerado e, durante mais e
uma geração, os seus representantes foram cuidadosamente vigiados por reis e
por nobres que sabiam exactamente o que queriam de uma religião estrangeira.
(BROWN, 1999, p 228).
Para Veneravel Beda, assim se inicia a história dos ingleses enquanto povo com a missão de
Agostinho e a fundação da Igreja inglesa e esse é o verdadeiro ponto de partida de uma de suas
publicações mais importantes o Historia Ecclesiastica Gentis Anglorum.
O Venerável Beda e a História eclesiástica do povo inglês.
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Beda,o primeiro historiados inglês, conhecido também como Venerável Beda, monge de origem
saxônica nasceu aproximadamente no ano de 672, não se sabe ao certo seu local de nascimento, é
provável que tenha sido aos arredores de Wearmouth e Jarrow. Aos sete anos de idade foi entregue por
seus pais ao abade Benedict, para ser criado no mosteiro de Wearmouth e posteriormente foi
encaminhado para o mosteiro de Jarrow com o abade Ceolfrid. Não se tem nenhuma informação a
respeito de quem foram seus pais,
(…) but we may infer that they were Christians and, in view of their
association with such a man as Benedict Biscop, probably from the rank of the
well-born. At this time it was a common practice for parents who were anxious
for their children to be educated, to entrust them to the care of a monastery at
an early age, but such a step did not necessarily imply lifelong devotion to
monasticism, still less any desire to be rid of an unwanted child (BLAIR, 1995,
p, 5)470.
Passou toda sua vida no mosteiro, se dedicou aos estudos e às orações. Foi um grande estudioso de sua
época, conhecia latim, grego, filosofia, matemática, teologia, música e hebraico. Ele dividia seu tempo
entre seus maiores interesses, “I wholly applied myself to the study of Scriptures (…) I always took the
delight in learning, teaching and writing” (BEDE, 1994, p, xiv).471No ano de 691 ele é ordenado como
diácono e em 702 como padre. “Bede died in 735, a few years into his sixties” (GOFFART, 2005, p,
241)472. Ele viveu durante um período considerado calmo de sua sociedade,
Had he been born half a century earlier Bede might well have found himself
involved directly in some of the many wars arising from the attempts of
470
Mas podemos inferir que eles eram cristãos e, tendo em vista a sua associação com um homem como o Bispo Benedito,
provavelmente a partir da classificação do bem-nascido. Nessa época era uma prática comum que os pais deixassem seus
filhos aos cuidados de um mosteiro para que fossem educados, mas isso não implica, necessariamente, a devoção ao longo
da vida para a igreja, nem de se livrar de um filho indesejado.
471
Eu me aplico totalmente aos estudos das escrituras. (...) Eu sempre tenho prazer em aprender, ensinar e escrever.
472
Beda morreu em 735, com um pouco mais de 60 anos.
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ambitious rulers to extend their boundaries or to win supremacy over
neighbours, and had he died a little more than half a century later he would
have witnessed the first Viking attack on his own monastery (BLAIR, 1995, p,
5)473.
Ele também era muito bem relacionado, a primeira pessoa a ler o manuscrito de sua obra
Historia Ecclesiastica Gentis Anglorum, para fazer correções e apontamentos, foi o próprio rei da
Northumbria Aldfrith, homem com grande conhecimento.
Em seu livro Beda narra à história eclesiástica da nação inglesa, desde a chegada dos Romanos
até seu tempo. Para conseguir escrever eventos do qual ele não havia participado, utilizou acervo de
livros disponível na biblioteca, “ele tinha acesso a mais de trezentos livros, alguns dos quais tinham
estados relacionados com o Vivarium de Cassiodoro.” (BROWN, 1999, p. 233). Boa parte trazida de
Roma pelo abade Ceolfridg, e livros emprestados de outros monastérios. Também fazia uso de
correspondências do período, mas “it will be never possible to trace the growth of his historical
knowledge in detail or to determine exactly what material were available to him at particular times”
(BLAIR, 1995, p, 71).474
Beda escreve a respeito de seu próprio povo, ainda que em latim, e não possui sentimentos
relacionados com o império romano, apenas com a Igreja romana. Ele é escrupuloso na descrição dos
principais episódios da história romano-britânica, afirmava a veracidade de todos os fatos
cuidadosamente descritos com seu poder de dramaticidade em seu livro, “I would not that my children
should read a lie” (BEDE, 1994, p, xv).
475
Ele foi o primeiro autor a tratar os diferentes grupos de
colonos como uma única Nação Inglesa, de certa forma os ingleses devem a existência enquanto povo
aos fatos narrados por Beda e principalmente aos acontecimentos que levaram a unidade católica. Ele
473
Se tivesse nascido meio século antes Bede poderia muito bem ter se envolvido diretamente em algumas das muitas
guerras decorrentes das tentativas dos governantes ambiciosos para estender suas fronteiras ou para ganhar supremacia
sobre os vizinhos. E se ele tivesse morrido um pouco mais de meio século depois, ele teria testemunhado o primeiro ataque
Viking em seu próprio mosteiro.
474
Nunca será possível traçar o crescimento do seu conhecimento histórico em detalhes ou determinar exatamente que
material estava disponível em seu tempo.
475
Não deixarei que meus filhos leiam uma mentira.
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tinha uma grande preocupação com a questão da unidade da Igreja. O livro de Beda é a história de
como essa unidade foi alcançada, através da conversão da Inglaterra ao cristianismo e do
estabelecimento de sua Igreja, ocorrido no inicio do século seguinte à missão de Agostinho e anterior à
obra de Beda. (BURROW, 2013, p. 248.). Beda era influenciado por sua profunda e devotada fé cristã.
Ele escreveu os fatos não apenas para preservar a história eclesiástica de seu povo, mas com o intuito
de ajudar os outros clérigos a combater o paganismo e incentivar a boa conduta através do registro de
exemplos notáveis de bondade. Para ele questões disciplinares eram assuntos de bispos, não de
monges, exceto dentro de seus próprios monastérios, por isso, ao longo de sua história preferiu
reproduzir bons exemplos em vez de maus. Ele também queria obter a conversão do povo, tanto que o
texto foi originalmente escrito em latim, idioma utilizado pelo clero e não no idioma comum. Ele
gostaria que suas narrativas fossem utilizadas em pregações, mostrando tudo que o cristianismo havia
passado para combater o paganismo, e que agora os Britânicos estavam instruídos na fé cristã, eles não
poderiam continuar a persistir em seus erros antigos.
Referências Bibliográficas
BEDE. Historical Works. Vol I,Vol II. Ecclesiastical History of the English Nation. London: Harvard
University Press, 1994.
BLAIR, Peter Hunter. The World of Bede. New York: Cambridge University Press, 1995.
BROWN, Peter. A Ascensão do Cristianismo no Ocidente. 1º edição. Lisboa: Editorial Presença, 1999.
BURROW, John. Uma História das Histórias. De Heródoto e Tucídes ao século XIX. 1º edição. Rio
de Janeiro: Editora Record, 2013.
COLLINS, Roger. Early Medieval Europe 300-1000.London: Macmillan, 1991.
GOFFART, Walter. The Narrators of Barbarian History. (A.D 550-800).Indiana: University of Notre
Dame Press, 2005.
WICKHAM, Chris. The Inheritance of Rome. A History of Europe from 400 to 1000.London: Penguin
Books, 2010.
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UMA HEROÍNA PARA A TRAGÉDIA DA HISTÓRIA:A CONSTRUÇÃO LITERÁRIA DE
LUCRÉCIA BÓRGIA EM FERDINAND GREGOROVIUS (1874)
Jéssika Hingridi Rodriguês Vieira476
A encenação milimetricamente orquestrada, a desinibida busca pelo dinheiro, a desenfreada
caça pelo poder seguido de mínimos escrúpulos para se manter nele, a urgência das tentações
mundanas e o apelo ao discurso moral somente quando conveniente. Estes são alguns dos maiores
conflitos morais vividos pelos burgueses europeus do século XIX. E aí está igualmente uma lista de
características atribuída à família Bórgia, que governou a Igreja romana por volta de 1500. De fato,
são muitas semelhanças que nós temos observado entre o universo da corte papal de Lucrecia Bórgia e
o mundo burguês do século XIX.
Ferdinand Gregorovius, historiador protestante alemão, escreve uma biografia de Lucrecia
Bórgia, filha bastarda do papa Alexandre VI. Percebemos a partir de uma pesquisa rápida a fama
perversa de Lucrecia, tida nos inúmeros romances, séries, filmes, revistas em quadrinhos e séries
televisivas como uma mulher megera, dadas aos luxos e pouco - ou quase nada - dedicada aos
preceitos morais da tradição religiosa.
Notamos que a narrativa de Gregorovius possui grande carga de imaginação histórica.
Imaginação essa que o auxiliou no preenchimento das varias lacunas que as fontes ainda não haviam
suplementado. Mas como bom representante da erudição alemã do Oitocentos, o historiador usou e
abusou do uso de arquivos privados e particulares em busca de suprimentos que recheassem as suas
linhas. E ainda, como bom burguês do século XIX, soube imprimir em seus escritos o alto teor moral e
ético presente em sua sociedade, pois como homem de sua época estava envolvido numa tradição a
qual utilizava os seus textos como arma de persuasão social.
O erudito procurou relembrar o século XVI através de instrumentos científicos - buscando
fontes, comparações e investigações – clássicos da historiografia do século XIX. Porém, não deixou de
476
Graduada e mestranda em história na Universidade Federal de Mato Grosso. Email: [email protected]
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lado a sua subjetividade enquanto autor. Sua Lucrecia traduz uma época. Não a época do
Renascimento, mas sim o seu século burguês. As suas impressões, e frustrações para com o
catolicismo e a imoralidade, e mesmo sendo ele um homem tão apaixonado pela Itália clássica, atacou
os detentores da coroa papal com muita ironia, provocação e erudição.
Nosso objetivo geral nesse texto é analisar se a representação de Lucrecia Bórgia (Lucretia
Borgia, According to Original Documents and Correspondence of Her Day, Ed.1903) escrito por
Gregorovius trata-se de uma obra literária ou se é um texto de cunho puramente historiográfico. A
nosso ver Gregorovius, como bom historiador do século XIX se preocupou em escrever uma obra
historiográfica, atentada a “verdade”, vasculhando arquivos, a procura das fontes que lhes dessem
respostas. Mas com o objetivo de amarrar melhor a sua narrativa, acabou recheando o seu texto com
vários elementos literários caros ao mundo erudito burguês, além de estar envolvido em uma tradição
erudita da Era Vitoriana.
NARRANDO UMA VIDA: FERDINAND GREGOROVIUS
O século XIX foi um período intenso, abarrotado por guerras e disputas territoriais, ganâncias
políticas e desejos de uniões nacionais. Essa era a realidade dos dois países que fizeram parte da vida
do nosso historiador-fonte: a Alemanha e a Itália. Ambos possuíam pontos em comum: são regiões de
intensos conflitos de caráter liberal e nacionalista. Ambos se unificaram tardiamente, mesmo ouvindo
ao longe o burburinho dos vizinhos revoltosos. Tanto a península quanto a Germânia fizeram parte da
vida de Gregorovius que embora alemão, estudou a Itália por muitos anos, até que resolveu ser seu
morador por cerca de vinte anos. Quando falamos da Alemanha e da Itália pretendemos mostrar a
importância dessas regiões na caracterização da burguesia hegemônica, tanto política, social, quanto
cultural.
Dezenove de Janeiro de 1821, um inverno rigoroso despencava sobre a pequena cidade de
Neidenburg (Prússia oriental, hoje Nidzica na Polônia) que na época fazia parte do antigo Reino da
Prússia até que a Alemanha se unificasse. Nesse mesmo ano nasciam escritores que mais tarde se
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tornariam leituras clássicas, como os franceses Charles Baudelaire, Gustave Flaubert, e o russo
Dostoievski. Mas neste texto nos preocuparemos com outro contribuinte à literatura europeia. Nesse
dia vinha ao mundo uma personalidade conhecida pela igreja católica como o “amargo inimigo dos
Papas”477, Ferdinand Gregorovius.
Nascido e criado no famoso e tradicional castelo dos Cavaleiros Teutônicos, o caçula de oito
irmãos preferiu não seguir a carreira tradicional de sua família, como pastor luterano e nem jurista
como fora o seu pai. Para a alegria de sua família acabou se formando em teologia e filosofia na
Universidade de Königsberg com uma tese sobre o conceito de beleza em Plotino e os neoplatônicos.
Na década de 1840 enquanto estourava a Primavera dos Povos, fervilhando a Alemanha e a Itália,
Ferdinand escrevia algumas obras478 importantes para o seu crescimento enquanto escritor.
No momento em que a Inglaterra estava no seu auge econômico com a Revolução Industrial, e
a Confederação alemã restabelecia a Liga, Gregorovius que contava agora três décadas de vida se
mantinha muito ocupado intelectualmente. Fora nessa época que o mesmo se mudou para Roma e por
lá permaneceu por mais de vinte anos (1852-1874). Enquanto isso o papa Pio IX excomunga Victor
Emanuel, o conde Cavour e todos os membros do parlamento de Sabóia e a Itália borbulha com a II
Guerra de independência.
Em 1876 Gregorovius foi o primeiro alemão e o primeiro protestante a
ser nomeado membro e cidadão honorário da cidade de Roma pela Academia de Lincei, titulo deveras
importante que transforma a pessoa homenageada em conterrânea do local. Mas o mesmo não foi o
único a ter suas obras proibidas pelo sumo pontífice (ver pagina 05). A sua paixão por Roma fora
compensada, outrossim, com a nomeação de uma rua e uma praça. Alem disso, afixaram na parede do
primeiro quarto que usou (outubro de 1852) uma placa para imortalizar a sua estada ali.
Provamos a fama e a paixão de Gregorovius pela península itálica com as palavras do critico
literário Otto Maria Carpeaux que chega até a criar uma categoria denominada italianofilia. Segundo
Carpeaux Gregorovius,
477
Apelido dado ao estudioso alemão pelo jesuíta John A. Hardon.
Werdomar und Władislav. Aus der Wüste Romantik, 2 Teile (1845) (Werdomar e Wladislav. O romance no deserto,
duas partes); Die Idee des Polenthums. Zwei Bücher polnischer Leidensgeschichte (1848) (A ideia do Polenthums. Dois
livros de história da Polônia); Polen - und Magyarenlieder (1849) (Polônia – canções Magyar); e Göthe´s Wilhelm Meister
in seinen socialistischen Elementen entwickelt (1849) (Wilhelm Meister de Goethe Desenvolvimento em seus elementos
socialistas).
478
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Talvez o mais belo eco lit erári o dessa i t ali anofil i a encont re -s e
em Gregorovi us , f i l h o d a longínqua Prússia oriental, que passou a
vida inteira no país dos seus sonh o s n ó r d i c o s . N u m a i m e n s a
G e s c h i c h t e d e r S t a d t R o m I m M i t t e l a l t e r ( História da Cidade de
Romana Idade Média), descreveu, com o colorido de um romance histórico,
o período mais sombrio da história italiana: Romana Idade Médi a, em
ruínas, devast ada pel os bárbaros e pela pest e, gover nada por
prelados ignorantes e fanáticos – em Gregorovius há muito preconceito
de protestante. Mas era um poeta nato. A sua obra de medievalista é como o
pedestal da magnífica Itália livre da Renascença. A sua emoção revela se na epígrafe que escolheu para a obra máxima da sua italianofilia, os
Wanderjahre
in
Italien
( Anos
de
Viagem
na
Itália)
(...).
(C ARP EAUX,1963, p.2,299).
Já na década de 50 do século XIX Gregorovius escreveu obras como a tragédia Der Tod des
Tibério e o Geschichte des römischen Kaisers Adriano Zeit und seiner (1851) (A história de Tibério e a
história do Imperador romano Adriano) dentre outras479.
Envolvido cotidianamente em um cenário medieval e orientado pelo historiador de
Antiguidade, senhor Wilhelm Drumann, o jovem estudioso em historia480 se viu arrebatado por uma
grande paixão: a época medieval. Essa monumental obra composta por oito maciços volumes que
conta minuciosamente a história da Roma medieval se tornou leitura obrigatória ao lado de outros
479
Em 1853 publicou Der Ghetto und die Juden in Rom; (os judeus em Roma e no Gueto); No ano seguinte
escreveuCorsica. Em 1857 minutou Die Grabmäler der römischen Päpste. Historische Studien (Os túmulos dos papas.
Estudos históricos) e um 1858 um curta épico denominado Pompeji Eufórion, e ainda traduziu as canções de Giovanni Meli
(1856). Um volume de poemas foi publicado depois de sua morte em 1891 pelo seu conterrâneo Graf Schack. Mas o que
realmente o fez famoso foram Geschichte der Stadt Rom im Mittelalter (1859-1872) (História da cidade de Roma na Idade
Média) e Wanderjahre in Italien (1856-1877) (Anos de viajem na Itália).
480
A profissionalização do oficio do historiador só ocorre a partir dos anos de 1880 (DOSSE, 2009, p.172).
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clássicos medieval. Essa foi a primeiro de mais outras quatro obras listadas no temido livro proibido da
igreja católica – o famoso Index Librorum Prohibitorum.
Gregorovius se tornou conhecido principalmente pelo seu grande amor à Itália. Debruçou
muito tempo de sua vida aquele lugar. Escreveu sobre a Península, viajou diversas vezes por lá, morou
naquela terra e não se cansou em escrever sobre personalidades importantes daquela sociedade.
Quando escreve Wanderjahre in Italien – 1856 à 1877 (Anos de viagem na Itália), se preocupa em
descobrir o cotidiano dos moradores das cidades italianas percorridas. Sua peregrinação pela Itália
durou vinte e um anos, entre as décadas de 1856 a 1877. O viajante alemão, bem como muitos outros
do seu século preocupou-se em relatar as minúcias curiosas dos locais em que visitava, sempre
acompanhado de um ilustrador, que deixava gravado nos cinco volumes suas impressões sentidas e
vistas no local.
Nos anos de 1870 enquanto se dá a unificação alemã e os italianos assistem – enfim - de
camarote a entrada triunfal de Victor Emanuel em solo romano, Gregorovius ingressava na Academia
de Ciências de Baviera e produzia a obra a qual esse texto focaliza. A mais famosa biografia dedicada
aos Bórgia no século XIX: “Lucretia Borgia According to Original Documents and Correspondence of
Her Day”, escrita em alemão no ano de 1874.
Gregorovius não procurou seguir o referencial de
verdade iniciado pelo historiador burguês William Roscoe. Nosso protestante desejava “(...) descobrir
que tipo de personalidade seria descoberta em Lucrecia Borgia, mas de uma forma totalmente
diferente daqueles que tinham sido até agora examinados, mas ao mesmo tempo cientificamente, e de
acordo com os documentos originais” 481. (GREGOROVIUS, 1903, p.XXI). A sua Lucrecia Borgia é
escrita em homenagem ao duque de Sermoneta, Dom Michelangelo Gaetani, pertencente à família
Gaetani, inimiga mortal do “sangue quente” Bórgia.
Seu texto trata da vida da filha do sucessor de Pedro, primeiramente em Roma e depois em
Ferrara, perpassando por aspectos considerados cruciais aos valores de uma família burguesa: a
481
Tanto este como todos os outros trechos retirados da biografia de Lucrecia Bórgia escrita por Gregorovius estarão
traduzidos por mim. Decidi por assim fazê-lo para tornar a leitura mais agradável e de fácil compreensão para os leitores
que não se familiarizam ainda com a língua inglesa. De qualquer forma a fonte que utilizo aqui está disponível na internet
em formato PDF pelo Projeto Gutenberg: WWW.gutenberg.org.
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trajetória de vida dos seus pais e as suas influências; a sua educação os seus matrimônios dentre outros
assuntos pessoais que envolviam a família do papa Alexandre VI.
O alemão Ferdinand Gregorovius se tornou, ainda em vida, o grande especialista em História
da Roma Medieval e sua Lucrecia surgiria como uma biografia “historicamente verdadeira” no século
XIX. Insiste em dizer que:
No trabalho me prendi mais ao período que Lucrecia viveu em Roma do que o
tempo que passou em Ferrara, porque este último já havia sido descrito,
embora não em detalhe, enquanto o primeiro manteve-se puramente
lendário. Como eu tinha que basear meu trabalho inteiramente nas informações
originais, me esforcei para tratar o assunto de forma a apresentar um quadro
verdadeiramente característico da época, e animado pelas descrições concretas
de suas personalidades marcantes. (GREGOROVIUS, 1903, p. XXII)
Nos anos de 1880 nosso germânico produziu Der Kaiser Hadrian. Gemälde der römischhellenischen Zeit zu seiner Zeit (1884) (O Imperador Adriano. Pinturas da época romana – helênica em
seu tempo) e outros textos482.
Nos textos de Gregorovius todos podiam contemplar o seu descontentamento com os
possuidores da coroa papal. Critico, Gregorovius recebeu uma educação burguesa tradicional do
século XIX e em seus textos deixa claro a importância que dava as fontes como portadoras da verdade
histórica. Bem informado, possuía acesso a bibliotecas e a arquivos importantes, conhecia pessoas
482
Kleine Schriften zur Geschichte und Cultur, 3 Bände (1887-1892);(Pequenos textos sobre história e cultura, 3 volumes);
Geschichte der Stadt Atenas im Mittelalter. Von der Zeit Justinians bis zur türkischen Eroberung (1889) (História da cidade
de Atena, na idade Média. Desde a época de Justiniano à conquista Turca); Foram nesses anos também que Gregorovius
produziu mais quatro de suas obras escandalosas, proibidas pelo papa, a saber: Die Grabdenkmäler der Päpste, Merksteine
der Geschichte des Papsttums (1881) (Os graves monumentos dos papas. Pedras comerciais da história do papado); Urban
VIII im Widerpruch zu Spanien und dem Kaiser, eine Episode des 30 jähr-Kriegs (1881); Urbano VIII em Widerpruch, a
Espanha e o Imperador, um episodio da guerra dos 30 anos); Athenaïs. Geschichte einer byzantinischen Kaiserin (1882)
(Atenas, história de uma Imperatriz bizantina); e Wanderjahre in Italien, fünfter Band, Apulische Landschaften (1882)
(Anos de viagem na Itália, o quinto volume: campo Apúlia).
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influentes e fora bem quisto nas rodas de conversas eruditas.
Sabemos que a vida privada e
publica dos papas e de seus íntimos nunca fora de todo desconhecida. São muito poetas, cronistas,
romancistas e historiadores que se debruçaram não raras vezes sobre o tema papal. Gregorovius não
pode nos escapar quanto a isso, historiador protestante soube deixar impressa em seu texto os préconceitos de sua ideologia.
FERDINAND GREGOROVIUS: LITERATO OU BIOGRAFO?
O século XIX conheceu um breve, porém intenso – pelo menos entre uma minoria formada
pelas pessoas educadas e as que queriam se educar – florescer de produção biográfica, principalmente
após a década de 1840. Mesmo não sendo muito procuradas, as biografias testemunhavam o gosto das
camadas médias e superior da classe media; quando escrevia, o apetite biográfico – termo cunhado
por Carlyle - tinha se tornado natural nos níveis mais elevados da experiência burguesa vitoriana.
(GAY, 1999, p. 170).
Afinal, Ferdinand escreveu um romance histórico sobre a vida de Lucrecia Bórgia ou se
debruçou a escrever uma biografia?Para nos ajudar a responder essa pergunta recorreremos ao francês
François Dosse conhecido como um dos principais críticos da Nova História. Quando Dosse escreve
“Desafio Biográfico: escrever uma vida”, se preocupa em mostrar uma imagem geral sobre o gênero
biográfico, objetivo atingido de forma nada superficial.
Sua preocupação maior é principalmente
verificar os momentos de maior ou menor intensidade na escrita de biografias e mostrar ainda, como o
historiador se relacionou com o trabalho biográfico nos últimos dois séculos. Nisso o autor constrói um
panorama histórico próprio das produções biográficas, mostrando as diferentescaracterísticas a respeito
dessa forma de escrita durante o tempo. Dosse classifica o mapa biográfico em três fases. Na primeira,
chamada de idade heroica se inserem desde as obras da antiguidade clássica até a modernidade. Já no
século XIX as biografias produzidas são denominadas modais. E por fim, as biografias que expressam
a heterogeneidade e a multiplicidade de identidades da contemporaneidade pertencem à era
hermenêutica.
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Dosse classifica a biografia como um gênero híbrido, que se encontra entre a imaginação do
biografo – imaginação está que não é meramente pessoal, mas está inserida dentro de toda uma
tradição cultural vitoriana - e a vontade de reproduzir o real, - ou seja, o conteúdo historiográfico.483
Dosse salienta que o recurso a ficção no trabalho biográfico é, com efeito, “inevitável na medida em
que não se pode restituir a riqueza e a complexidade da vida real” (...)ao mesmo tempo em que o
biografo se vê tentado a apelar para a “imaginação em face do caráter lacunar de seus documentos e
dos lapsos temporais” (DOSSE, 2009, p.55).
Nessa discussão não podemos perder de vista a famosa tensão encontrada no trabalho do
historiador, que ao mesmo tempo que precisa se preocupar com a escrita de um relato mais verdadeiro
possível, também se vê atraído a usar e abusar da imaginação – emprestando à obra certo valor
artístico - para organizar e alinhar as peças do grande quebra-cabeça histórico, causada por lacunas que
ainda não enxergamos nas fontes históricas.
Porem, nem todos apoiam esse ecletismo dos historiadores. Muitos chegam a torcer o nariz,
principalmente quando sentem sua ossada sendo-lhes tirada. Um exemplo é o romancista italiano
Rafael Sabatini - em seu texto sobre The life of Cesare Borgia, 1946 – que se indigna profundamente
com a audácia de Gregorovius em escrever de forma poética. Sabatini fala de Gregorovius de forma
dura e irônica, dizendo que,
Os talentos marcantes de Gregorovius são ocasionalmente marcados pelo
egoísmo e pedantismo, por vezes, característico dos estudiosos de sua nação.
(...) ele afirma com determinação coisas que só Deus pode saber,
ocasionalmente, seu conhecimento, transcendendo o possível, sai do domínio
do historiador para a do romancista, quando, por exemplo, (...) quando ele nos
diz o que se passa na mente de Cesar Borgia na coroação do rei de Nápoles.
(SABATINI, 1946, p.149).
483
Essa definição de François Dosse sobre biografia se faz muito esclarecedora, principalmente quando recoremos a
discussão iniciada por Hayden White sobre o trabalho do historiador, sua narrativa e a sua busca pela verdade histórica.
(ver Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura, USP, 1994).
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A biografia vitorianase confunde com a hagiografia, mas agora as vidas relatadas não eram
somente de santos, mas de pessoas que poderiam servir de exemplos para o bom comportamento da
sociedade burguesa. (DOSSE, 2009, p.61).484 Não podemos perder de vista a importância da biografia
vitoriana, que se tornou como um guia erudito burguês, ou melhor, se traduziu culturalmente
hegemônico em toda a Europa ocidental do século XIX, ao qual, vemos Gregorovius como legatário.
O cuidado de usar biografia como fonte deve ser o mesmo do uso, por exemplo, de um mapa do
século XVI, ambos devem ser investigados com acuidade, devemos prestar atenção nas
intencionalidades, discursos e subjetividade do documento. Temos de levar em conta não só as
informações que estão postas, mas principalmente observar o que não está.
Devemos trabalhar
ausentes de ingenuidade, tomando todo o cuidado para não sermos seduzidos nem pela narrativa do
escritor nem pelas linhas desenhadas pelo cartógrafo. O próprio Michel de Certeau levou em conta o
hibridismo da biografia, ao dizer que a mesma: “trata-se de uma mistura de ciência e fantasia, cujo
relato parece racional, mas nem por isso esta menos sujeita a controles e possibilidades de falsificação”
(DOSSE, 2009, p.68).
Mesmo usando em suas linhas o coloridode um romance histórico (ver Otto Carpeaux, 1963) o
al em ão não escreveu um rom ance , m as sim um a biografi a históri ca, porém com
um a pi t ada de im agi nação hi st óri ca. As características de seu texto nos movem a essa
conclusão. Tanto a biografia quanto o romance histórico utilizam a junção do real e da imaginação,
porém o romance histórico se apoia principalmente na ficção para descrever fatos, costumes e
personagens, ao passo que a biografia é guiada pelo desejo de se aproximar do real.
484
No século XIX a biografia estava na moda, todos estavam curiosos sobre os feitos e vida dos seus contemporâneos.
Segundo Baudelaire esse “imenso apetite que temos por biografias nasce de um sentimento profundo de igualdade”
(DOSSE, 2009, p.170). É o que Peter Gay caracteriza de reconhecimento do “eu” burguês. As pessoas biografadas só o são
porque possuem em si alguma qualidade que o torna de interesse público. Na era moral vemos o sentimento de unidade e a
capacidade de colocar acima de suas ambições pessoais o coletivo. Pelas biografias e romances podemos perceber o ato de
educar moralmente, levando a essência de pertencimento à sua classe burguesa ainda comprimida, na mesma medida que
vincula o seu discurso às louváveis virtudes cívicas.
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O biografo parte da veracidade encontrada nas fontes, mas em sua bagagem carrega a
imaginação de poeta. Não podemos classificar o texto de Gregorovius como pertencente à época
heroica, pois não o vemos endeusar Lucrecia Bórgia. Pois “o século XIX com o progresso dos valores
liberais e democráticos além do aprofundamento da questão social agravou a crise do herói (...) a fim
de fazer valer outras lógicas mais coletivas, sociais”. (DOSSE, 2009, p.167).
Acreditamos poder inserir Ferdinand Gregorovius na biografia modal, já que a sua preocupação
em escrever a vida de Lucrecia Bórgia é de ilustrar o coletivo, revelando ao leitor o comportamento
médio das categorias sociais do momento. Nesse século XIX os relatos biográficos se esforçam em
articular individualidade e exemplaridade (DOSSE, 2009, 169). Lucrecia, filha do papa Alexandre VI,
deveria ilustrar a mais pura devoção ao senhor e aos fieis. Porém tudo a sua volta a afastava de Deus.
Seu pai, seus irmãos, seu bairro, sua cidade, seu país, tudo a sua volta a levava aos caminhos tortuosos.
A família Bórgia faminta pelo poder, não deixou de atingir a pele alva de Lucrecia.
Ao retratar Lucrecia, Gregorovius escreve um tratado moral. Não é a toa que durante todo o seu
texto ambientado no século XVI sempre volta à Alemanha do seu tempo, em assuntos caros à
burguesia, como a educação, o casamento, o divórcio, a virtude, a moral, a política, o lucro e a religião.
Na biografia social escrita por Gregorovius, vemos uma Lucrecia (individuo) como mero reflexo
da sociedade burguesa, pois, como ressaltou Lucien Febvre, o individuo é aquilo que lhe permitem ser
sua época e seu meio social (DOSSE, 2009, p.216). Assim, em seu Martinho Lutero, um destino,
Febvre confronta a psicologia de um individuo com o universo mental da Alemanha do século XVI.
A biografia de Gregorovius foi escrita originalmente em alemão em 1874, porém, temos em
mãos somente a sua versão em inglês, escrita em 1903, com 477 paginas em PDF disponível no site do
projeto Gutenberg (www.gutenberg.org). Trata-se, neste caso, da tradução inglesa, feita por John
Leslie Garner, da terceira edição alemã.
A Obra está dividida em duas partes: A primeira delas trata da vida de Lucrecia Bórgia em Roma
e a segunda narra sobre sua moradia em na cidade de Ferrara, Itália. Observando a disposição da
biografia, notamos o cuidado do autor em dispor os capítulos. Notamos a preocupação do autor em
ressaltar a família. Ao iniciar sua narrativa espalha diversas informações sobre o outro parente de
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Lucrecia Bórgia, o papa Calixto III e a sua saga papal. Dispõe um capitulo inteiro sobre o pai de
Lucrecia, o papa Alexandre VI. O próximo capitulo trata da mãe de Lucrecia, a misteriosa Vanozza
Catanei. A seguir discorre sobre seu primeiro lar em Roma, ao lado da amante do seu pai, Giulia
Farnese. O próximo capitulo, trata da educação da menina. Assim por diante, a biografia detalha a vida
de Lucrecia. Notamos ainda que o título dos capítulos estão recheados de ideais burgueses, como
família; educação; casamento, vida social, negociações e outros.
No prefacio de seu texto, Gregorovius confidenciou seu fascínio pelo mundo Bórgia, que nas
suas palavras, nunca vai parar de fascinar a historia e a psicologia:
Um amigo inteligente me perguntou uma vez porque tudo sobre Alexandre VI,
Cesar, e Lucrecia Bórgia, todos os pequenos fatos com relação a suas vidas,
todas as novas cartas descobertas deles despertava meu interesse muito mais do
que
qualquer
outra
historia
com
características
mais
importantes
(GREGOROVIUS, 1903, p. XVII).
Respondendo a esse mesmo amigo, Gregorovius deixa claro porque se deixou levar pela
história dessa família:
Os Bórgias tiveram como fundo a Igreja Cristã. Eles fizeram sua primeira
aparição a partir dela. Eles a usaram para o seu avanço, e a contrastante
conduta deles com o Estado Santo faz com que pareçam completamente
diabólicos. Os Bórgias são uma sátira sobre a ótima forma ou fase da religião,
rebaixando e destruindo. Eles estão em altos pedestais, e de sua presença
irradia a luz do ideal cristão. Desta forma nós o vemos e os reconhecemos.
Vemos seus atos através de um meio que é permeado com ideais religiosos.
Sem isso, eles são colocados em um estagio puramente secular, os Bórgias
teriam caído em uma posição muito menos visível do que a de muitos outros
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homens, e logo deixariam de ser algo mais do que representantes de uma
grande espécie. (GREGOROVIUS, 1903, p. XVII).
Gregorovius procurou em arquivos onde os seus documentos e lembranças são mais
numerosos: Roma, Ferrara e Modena nos arquivos da família Este e ainda em Mantua nos arquivos da
família Gonzaga. Segundo Gregorovius, desde a história publicada de Guicciardini, a figura de
Lucrecia possuía apenas uma lenda, segundo a qual, é a fúria, o veneno de um lado, a adaga na outra,
e ainda, que está personalidade perniciosa possuía todo o charme e graça (GREGOROVIUS, p.
XVIII).
Com François Dosse vemos que o objetivo dos trabalhos biográficos do século XIX era: fazer
justiça a certas figuras que a historia oficial esqueceu ou depreciou (DOSSE, 2009, p.76) como uma
espécie de “justiceiro histórico”,485 ou também definir seu empreendimento como uma desmistificação
da lenda, “em nome da verdade histórica ou ainda reduzir o biografado a um simples pretexto para
resgatar um momento, um contexto, uma época”. (DOSSE, 2009, p.100).
Na sua biografia Gregorovius obedece à tradição de justificar porque está escrevendo sobre
aquele determinado personagem da história renascentista e deixa claro que não é um justiceiro da
imagem de Lucrecia Bórgia como o foi William Roscoe:
Eu comecei a minha tarefa sem qualquer intenção preconcebida. Propus a
escrever, não um pedido de desculpas, mas uma história de Lucrecia,
amplamente esboçado, os materiais para os quais, como os que tratavam sobre
o período mais importante de sua vida, sua residência em Roma, já estavam em
minha posse. Eu desejava descobrir que tipo de personalidade seria descoberta
em Lucrecia Borgia, mas de uma forma totalmente diferente daqueles que
Ferdinand Gregorovius se refere à obra de Roscoe do seguinte modo: “Roscoe, doubting the truth of this legend,
endeavored to disprove it, and his apology for Lucretia was highly gratifying to the patriotic Italians. To it is due the
reaction which has recently set in against this conception of her” (GREGOROVIUS, 1903, p. XVIII).O inglês William
Roscoe foi o primeiro no século XIX a reivindicar uma biografia sobre a filha do papa Bórgia que lhes fizesse justiça. Sua
intenção era narrar Lucrecia como uma mulher do seu tempo, com responsabilidades, desejos, educação e praticas comuns
às mulheres de corte do século XVI.
485
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tinham sido até agora examinados, mas ao mesmo tempo cientificamente, e em
conformidade com os documentos originais. (GREGOROVIUS, 1903, XXI).
A preocupação de Gregorovius com os seus pares eruditos é aparente quando explica que a
intenção do seu livro é trazer uma escrita perfeitamente clara quanto ao uso consciente da história. Diz
com todas as letras que tem substituído história por romance.486Segundo ele, os registros originais
serviram como defesa contra aqueles que se esforçam para descobrir um motivo malicioso neste
trabalho (GREGOROVIUS, 1903, XXII). Logo mais reforça o caráter cientifico do seu trabalho no
trato com as fontes originais, e diz que se esforçou para mostrar um quadro verdadeiramente
característico da época, e animado pelas descrições concretas de suas personalidades marcantes
(GREGOROVIUS, 1903, p. XXIII).
O papado sempre envolvido com a política da península itálica despia sua santidade. Depois do
papa Sisto IV, Alexandre VI traçou um plano nepotista, com o claro objetivo de espalhar o seu sangue
espanhol por todos os braços de poder que conseguisse. A política de nepotismo é a característica –
segundo Gregorovius – que mais traduz a família Bórgia como um grupo feroz, principalmente Cesar –
retratado por Maquiavel como o príncipe ideal da Renascença.
Lucrecia viveu em um ambiente movido por brigas entre clãs, assassinatos por poder,
insurreições na busca por espaço, Na opinião de Gregorovius, a menina nasceu em um período terrível
na historia do mundo. O papado estava se despindo de sua santidade, a religião estava completamente
material, além de uma imoralidade sem limite algum. (GREGOROVIUS, 1903, p. 14).
Conclusão
Ferdinand Gregorovius projetou a Alemanha do século - em que viveu e que tentava contribuir
enquanto critico e produtor de conhecimento histórico – XIX à Itália do século XVI. Para tanto
encontrou na figura de Lucrecia Bórgia um perfeito gancho, que lhe permitia falar de forma critica e
486
Não posso dizer por enquanto, se sua preocupação de substituir história por romance esteve presente só nessa biografia,
pois ainda não tive contato com outras obras de Gregorovius.
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irônica sobre religião, moral, ética e pudor. Jean Delumeau fez o mesmo em seu clássico A civilização
do renascimento I e II, pois qualquer individuo quando escreve, sendo historiador ou não, acaba de
uma forma ou outra imprimindo o seu modo de ver o mundo.
Quando lemos o texto de Delumeau percebemos que mesmo escrevendo em épocas distintas e
tratando de objetos diferentes, acabam percebendo que existem alguns elementos sociais que sempre
aparecem. Gregorovius escreve uma biografia, já Delumeau minuta um texto acadêmico, mas em
ambos encontramos elementos comuns, como, por exemplo, o anacronismo de ler épocas passadas
com os olhos de hoje.
A Lucrecia de Gregorovius é um símbolo da mulher burguesa do século XIX, isso porque,
quando o alemão à escreve, imprime sobre ela sua época, características e preconceitos presentes na
cultura burguesa do seu século XIX. Definimos a importância da literatura como meio de dar sentido
àquela nova classe. A burguesia do século XIX, complexa, diversa ia conquistando seu espaço a cada
revolta liberal, a cada ato nacionalista. Penetrando em pormenores do cotidiano burguês, a literatura
age a partir da sua rica oratória, como persuasão social, afim de convencer e educar os seus leitores, ao
mesmo tempo em que se auto-realiza enquanto classe social.
A burguesia do século XIX se encaixa em um enorme quadro de pertencimento global, pois,
acaba seguindo modas e parâmetros de países ditos soberanos, tanto na política (França) quanto na
economia (Inglaterra). A Alemanha precisava - depois de tanto custo – ser soberana em algo, para tanto
escolhera a erudição. Se afirmava agora como uma grande nação germânica, e os seus pares teriam de
reconhecê-la Grande. Gregorovius nascera nesse contexto histórico, herdou dos seus contemporâneos
o manual vitoriano de se escrever. Traduziu em suas entrelinhas sua paixão pela grande Itália
renascentista, ao passo que ironicamente denunciava a imoralidade dos papas no tempo de gloria
católica.
Sabemos da complexidade do tema proposto, e conhecemos ainda que existe um enorme
caminho a ser trilhado, e nesta estrada, estamos ainda no inicio. Reconhecemos ainda a necessidade de
amadurecimento desta pesquisa e por isso escrevemos aqui uma conclusão inconclusiva. O intuito
deste é mostrar que Gregorovius - historiador e apaixonado pela erudição – não se presta a escrever um
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romance histórico sobre a vida de Lucrecia Borgia e o seu contexto familiar. Mas sim, se debruça a
historiar de forma cientifica, e assim através de árdua busca documental, acaba escrevendo uma
narrativa historiográfica sim, mas não desprovida de imaginação histórica. Portanto, podemos por
hora, classificar o seu texto como uma biografia histórica com pitadas de literatura.
Referências Bibliográfica
DELUMEAU, Jean. Civilização do Renascimento. Lisboa: Edições Estampa, 1994.
DOSSE, François. O desafio biográfico:escrever uma vida.São Paulo: EDUSP,2009.
CARPEAUX, Otto Maria. História da literatura ocidental, Vol.5 A época da classe burguesa. Rio de
Janeiro: Edições Cruzeiro, 1963.
GREGOROVIS, Ferdinand. Lucretia Borgia. New York: Appleton, 1903.
HOBSBAWM, Eric. A Era das Revoluções 1789-1848. Rio de Janeiro: Paz e Terra¸ 2009.
HOBSBAWM, Eric. A Era do Capital 1848-1875. Rio de Janeiro: Paz e Terra¸ 2011.
SABATINI, Rafael. Cesar Borgia. 1946 RJ: Editora Vecchi, 1946.
WATT, Ian. A ascensão do romance: estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding.São Paulo:
Companhia das Letras, 1990.
WHITE, Hayden. Trópicos do discurso: ensaios sobre acrítica da cultura.São Paulo: Editora USP,
1994.
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HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA: A CRÔNICA DOS GODOS E SUA PROBLEMÁTICA DE
DATAÇÃO
Jonathas Ribeiro dos Santos Campos de Oliveira487
INTRODUÇÃO
O historiador, ao voltar-se para o passado, buscando estruturar e projetar sua hipótese, não
encontrará terreno suficientemente sólido e seguro de forma a não ter suas colocações passíveis de
futuras problematizações. É um caminho fluido, movediço, incerto, totalmente dependente dos
alicerces nos quais estarão sedimentados seus provisórios argumentos. Estes, com o passar do tempo,
perderão sua rigidez, se de fato um dia tiverem, em virtude de novas proposições, e assim por diante.
Ao analisarmos as produções literárias medievais, fundamentalmente as obras produzidas na
Península Ibérica,488 a necessidade de uma abordagem cautelosa se apresenta como elemento
primordial. Sua importância é verificada em virtude da complexidade que muitas dessas obras exibem
nos seus mais diversos aspectos.
Dentre estes, e aproximando-se de nossa proposta, destacamos a datação de algumas obras que, em
virtude da falta de registros mais claros que indiquem seu momento de produção, ou, mesmo, por estes
terem se perdido no tempo, necessitam da hipótese coerente do historiador para sua alocação em data
plausível de origem.
Seguindo este rumo, trabalharemos a problemática existente sobre a datação das duas versões da
Crônica dos godos,489relacionada à qual delas seria a versão primitiva da obra, o que refletiria em suas
Graduado em História pela Universidade Estácio de Sá, e colaborador agregado do Programa de Estudos Medievais –
PEM/ UFRJ. E-mail: [email protected]
488
São destacadas as obras produzidas nesta região, especificamente as elaboradas a partir dos séculos IX e X, em virtude
de todo o processo de conflitos religiosos verificados na paisagem peninsular, e de ser este o momento no qual a
cristandade consegue reunir forças suficientes, segundo a historiografia aponta, para iniciar uma contraofensiva dos reinos
cristãos aos “inimigos” localizados mais ao sul, o que acabaria por ser expresso de diversas formas, como uma espécie de
discurso, em obras asturianas.
489
A Chronica Gothorum e a Brevis Historia Gottorum.
487
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próprias datações. Nesse sentido, dialogaremos com alguns autores que se debruçaram sobre o tema,
discutindo as coerências de seus apontamentos, frente ao que podemos notar do estudo comparado de
ambas as produções.
Para analisarmos as duas versões da Crônica dos Godos (Chronica Gothorum (CG)e Brevis
Historia Gottorum (BHG)), utilizamos as edições preparadas por Alexandre Herculano e publicadas
em sua obra: Portugaliae Monumenta Historica: Scriptores.490
CARACTERÍSTICAS E ORIGEM DA OBRA
A Crônica dos Godos, escrita em latim vulgar, teria sido produzida, segundo Herculano,491 entre os
séculos XII e XIII, na Península Ibérica, no mosteiro de Santa Cruz de Coimbra.
Ela conta a história “[...] das terras que formaram a Portugal e dos condes que governaram estas
terras [...]”,492 desde a chegada dos godos, até a fundação da monarquia portuguesa, com Afonso
Henriques. Sua autoria é incerta, só ficando claro, em sua narrativa, que seria oriunda de uma casa
religiosa.493
A estrutura interna da obra está dividida por Eras, tendo cada uma delas uma data494 em destaque e
sua sequencial descrição de acontecimentos, que se resume, fundamentalmente, aos fatos entendidos
como importantes495 e, por tanto, referenciais para o ano destacado.
490
CHRONICA Gothorum. In: HERCULANO, Alexandre. Portugaliae Monumenta Historica: Scriptores. Lisboa: [s.n.],
1856.V.1,p.5-17 e BREVIS Historia Gottorum. In: HERCULANO, Alexandre. Portugaliae Monumenta Historica:
Scriptores. Lisboa: [s.n.], 1856.V.1,p.5-17.
491
Ibidem.p.7.
492
[tradução do autor]. Escrita original: “[...] terres qui formeront le Portugal et des comtes que gouvernaient ces terres
[...].”. DAVID, Pierre. Études historiques sur la Galice et le Portugal du Vle au XIIe siècle.Lisboa: [s.n.], 1947.p.257.
493
As produções cronísticas portucalenses, até pelo menos o século XII, eram oriundas majoritariamente de mosteiros,
como os de St.ª Cruz de Coimbra, de St.º Tirso de Riba d’Ave e de São Mamede de Lorvão, entre outros. É possível que
seguissem as características de escritos cronísticos mais remotos, como os asturianos, haja vista as semelhanças estruturais
e em informações verificadas entre ambos os corpos produtivos.
494
A datação da obra está de acordo com a Era Hispânica, ou seja, apresentam uma diferença de 38 anos. Nesse sentido,
para obtenção da data segundo nosso calendário, é necessário que se subtraia, da data apresentada, 38 anos. Para ver mais
dados relacionados a tal datação, ver:
La Era hispânica y su origem.
Disponível em:
<http://www.ilya.it/chrono/pages/erasp.htm>. Acesso em: 30 Ago. 2013.
495
Importantes para o autor que via nos elementos trabalhados, verdadeiros referenciais para as Eras que destacava.
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A obra tem sua importância, dentre outros, em virtude de ter sido utilizada, assim como inúmeros
outros escritos, por autores posteriores como referencial para produções que se destinavam a contar a
história de fundação do reino português, como, por exemplo, a España Sagrada (1758), do Frei
Henrique Florez.496
Um dos primeiros autores a trabalharem, de alguma forma, a obra, apresentando-a em sua
produção, Monarchia Lusitana, do século XVII, e que daria início a uma incógnita que perduraria até
os dias atuais, foi o historiador português Antônio Brandão.497 Em seus escritos, ele informa à
existência, nos arquivos de Alcobaça e St.ª Cruz de Coimbra, de fragmentos de uma versão mais
resumida da crônica que utilizara. Segundo ele,
[...] ha dous exemplares della [da Crônica dos Godos], o que aqui vay impreffo foy
do Meftre Andre de Refende, & o tem em feu poder o Chantre de Euora Manoel
Seuerim de Faria. Outro mais breue, cujas palauras por effa mefma caufa allego
mais vezes, fe tirou de Alcobaça, & S. Cruz de Coimbra.498
A partir deste apontamento, uma problemática se estabelece: qual das duas versões (a resumida ou
a mais longa) seria a produção coimbrana dos séculos XII – XIII? Seria, uma delas, um resumo da
outra?
Partindo destes problemas, nossa proposta tem por fim, justamente, destacar os argumentos
entendidos por nós como os mais coerentes, segundo a historiografia que se debruçou sobre o tema,
analisando a plausibilidade dos apontamentos feitos por cada autor.
496
Nessa obra o autor se utiliza da versão longa da crônica (Chronica Gothorum), modificando seu nome para Chronicon
Lusitanum. Segundo ele, a alteração do nome seria em virtude de entender que a obra narra os eventos relacionados à
formação do reino português, e não aos godos. Cf. FLOREZ, Henrique. Chronicon Lusitanum. In:______. España
Sagrada. Madrid: [s.n.], 1758.p.415.
497
Brandão destacaria ter obtido a crônica portucalense de Manuel Severin de Faria, Chantre de Évora. Já este teria tido
acesso à obra através de André de Rezende, seu detentor anterior.
498
BRANDÃO, Antonio. Terceira parte da Monarchia Lusitana: que contem a história de Portugal desdo Conde Dom
Henrique, até todo o reinado delRey Dom Afonso Henriques. Lisboa: Mosteiro de S. Bernardo, 1632.p.271. Disponível em:
<http://www. http:// http://purl.pt/14116/3/#/556>. Acesso em: 10 Out. 2013.
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A versão longa, apresentada por Brandão, assim como já destacado anteriormente, recebeu o nome
de Chronica Gothorum (CG),499 já a versão breve, citada por este autor, é conhecida por Brevis
Historia Gottorum (BHG).
PRINCIPAIS PROBLEMAS LEVANTADOS PELA HISTORIOGRAFIA
Alguns autores trouxeram contribuições importantes500 acerca da problemática de datação dessas
duas versões. Buscaram respostas, nos corpos estruturais das obras, cujo fim seria o de, entre outros,
indicar qual das duas seria a condizente como produção dos séculos XII – XIII.
Para Herculano, a versão breve seria a mais antiga, sendo a longa somente uma extensão
aprimorada da versão primeira. Segundo ele, conforme apresenta David,
[...] a versão longa da Chronica Gothorum faria uma amplificação literária. Um
exame mais aprofundado permite a conclusão que este resumo fora feito no texto
longo e apresenta todos os caracteres do século XVII […].501
Ao refletirmos sobre a hipótese de Herculano, em um primeiro momento, não encontramos certa
coerência. Tal posição se fundamenta ao analisarmos comparativamente tanto a CG, quanto a BHG
com outras obras produzidas, teoricamente, nos séculos XII e XIII.502
Muitas das primeiras obras portucalenses tomavam como referencial, para sua produção,
informações provenientes de escritos de épocas mais remotas, mas que se referiam ao passado
longínquo peninsular, contributivo para o processo fundacional do reino português. Sendo assim,
muitas das passagens verificadas nestas primeiras obras portucalenses acabavam tendo informações
499
Segundo David, a intitulação da obra como Chronica Gothorum seria de responsabilidade de André de Resende e a
Brandão. Cf. Op. Cit. DAVID, 1947.p.284.
500
Importantes no sentido de contribuírem, com seus apontamentos, para as discussões que se orientavam na elucidação das
complexas questões vinculadas as referidas obras.
501
HERCULANO apud In: DAVID, op. cit., 1947.p.283 [Tradução do autor]
502
Chronicon Conimbricense (CC) e Chronicon Complutense (Com) In: HERCULANO, op. cit., 1860.p.36;52.
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em comum. Trechos inteiros, algumas vezes, eram repetidos, de forma a manter a integridade da
narrativa a ser transmitida.
Nesse sentido, analisamos, comparativamente, a CG e a BHG com outras obras dos séculos XII e
XIII, buscando essas características em comum. Dentre estas, destacamos, por exemplo, num primeiro
momento, a lista de reis asturianos.503
Ao fazermos tal comparação, verificamos que: os reis Afonso I, Fruela I, Aurélio, Silo e
Mauregato, antigos reis asturianos, eram citados nas Chronica Gothorum (CG), Chronicon
Conimbricense (CC) e no Complutense (Com). Tal menção não fora feita na BHG.504
Ainda seguindo nessa mesma linha, avultamos outros dados que aparecem diferentes nas citadas
obras. Um deles é a datação de quantos anos teria durado o reinado de Pelágio, filho do duque Fávila,
que nas obras aparecem como sendo de 19 anos.505 Já na BHG, consta como sendo de 15 anos.506
503
A remissão aos reis asturianos tinha uma funcionalidade específica nas obras. Segundo Patrick Geary, os monarcas
teriam, com a citação linhagística nas crônicas, a possibilidade de manutenção de suas identidades familiares. Cf. GEARY,
Patrick. Memória. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru,
SP: EDUSC, 2006. 2v.,V.2.p.174. É razoável pensar que tal propósito fosse uma manutenção dos mesmos fins almejados
pelos monarcas asturianos com as citações linhagísticas nas crônicas, ou seja, demostrar que “... a monarquia (...) era a
herdeira legítima do reino visigótico.” MATTOSO, José. Portugal no reino Asturiano-leonês. In: ______ (et al). História de
Portugal. Lisboa: Ed. Estampa, 1992. Volume I: antes de Portugal.p.442. Ainda nesse sentido, segundo nos informa
Georges Martin, “[...] el linaje fue [...] un imaginario del parentesco que, mirando hacia atrás, vinculaba comúnmente a
los parientes a un antepasado primordial [...]” MARTIN, Georges. Linaje y legitimidad en la historiografía regia hispana
de los siglos IX al XIII. e-Spania, [S.l.], 2011.p.4. Disponível em: <http:// www.e-spania.revues.org/20335>. Acesso em: 19
Set. 2013.Nesse sentido, deixar marcada a linhagem régia através das obras, ligando-as aos reis de um passado mais
remoto, ou, mesmo, aos antigos condes governantes da região que viera a dar forma ao condado portucalense, servia como
um fator legitimador da posição do monarca reinante.
504
Já Bermudo I, Afonso II, Ordonho I e Ordonho II, só aparecem na CG. Vale destacar que, segundo David, a menção à
lista dos reis asturianos, notadamente de Pelágio ao advento de Afonso II, seria uma das características peculiar e
identificadora de escritos provenientes do que ele classifica como sendo os Annales Portucalenses veteres, isto é, um
conjunto de obras, dos séculos XI e XII, cujo fim fora o de resgatar o passado fundacional do reino português. Cf. David,
op. cit., 1947.p.257.
505
Segundo a Chronica Gothorum: “[...] Pelagius Fafilani ducis filius regnauit annis XIX.” In: HERCULANO, op. cit.,
1860.p.08 / Segundo a Chronicon Conimbricense: “Plagius regnauit annis XVIIII.” In: Ibidem.p.36 / Segundo o Chronicon
Complutense: “Pelagius regnavit annis XVIIII.” In: Ibidem.p.52 Tais dados, de igual forma, se alinham aos presentes em
produções ainda mais antigas, como é o caso, por exemplo, da Crônica de Afonso III (Século X). Nela é narrado que: “[...]
Pelagius post nonum decimum regni sui annum completum propria morte decessit [...]” GARCIA VILLADA, Zacarías.
Textos Latinos de la Edad Media Española. Sección primera: Crónicas, fascículo primero: Crónica de Afonso III. Madrid:
[s.n.], 1918.p.67
506
Segundo a Brevis Historia Gottorum: “[...] Pelagius Flauiani ducis filius regnauit an. XV.” In: Op. Cit.p.08.
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Outro seria relacionado ao reinado de Afonso, filho de Ordonho, que segundo as CG, CC, Com e
Al, teria sido de 18 anos.507 Já para a BHG, a duração apresentada seria de 8 anos.508
Sendo assim, pelas semelhanças sinalizadas, chegamos à conclusão de ser a CG,portanto, obra
provável da conjuntura produtiva das demais obras analisadas, ou seja, dos séculos XII e XIII.
Para além, ao retornarmos à hipótese de Herculano (de ser a versão longa uma produção posterior),
se tornaria incoerente pensar a elaboração de uma nova obra, escrita posteriormente, apresentando
elementos característicos encontrados em outras obras dos séculos XII e XIII, que nem a versão
original possuía.
Luiz Gonzaga de Azevedo,509pesquisador da primeira metade do século XX, acredita, em oposição
a Herculano, ser a versão breve somente um resumo da original.
Quanto a este apontamento, também não encontramos a devida coerência, se levarmos em
consideração que diversos dados, como, por exemplo, a datação de algumas “Eras” 510 ou, mesmo, os
dados numéricos presentes na versão longa, serem alterados na versão breve. 511 Nesse sentido, pensar
em um resumo que altere os dados originais não parece ser tão coerente, uma vez que o que se quer é,
justamente, abreviar a versão longa, e não a origem de uma nova produção, com novos elementos.
Segundo a Chronica Gothorum: “[...] Adefonsus Ordonii filius regnauit annis XVIII.” In: Ibidem HERCULANO,
1860.p.08 / Segundo o Chronicon Conimbricense: “[...] Ildefonsus ordonii filius cepit colimbriam........bracaram et
portugalem, uiseum, lamecum, egitania, et regnavit annis X.VIII.” In: Ibidem.p.36 / Segundo o Chronicon Complutense:
“Tunc positus est in regno Dominus Adefonsus XVIII [...]” Ibidem.p.52
508
Segundo a Brevis Historia Gottorum: “Alfonsus ab hoc Pelagio Rex XIII, eius nominis III, Regis Ordonii filius, cepit
regnare era DCCCCIIII.; regnauit an. VIII [...]” In: Ibidem.p.08.
509
Cf. AZEVEDO, Luiz Gonzaga de. História de Portugal. Lisboa: Edições Bíblion, 1942.V.4, p.174-198.
510
Podemos, notadamente, por exemplo, perceber a diferenciação entre as “Eras” presentes tanto na CG, quanto na BHG,no
seguinte fragmento: “Era CCCXLVIIII. egressi sunt Gothi de terra sua.” CHRONICA GOTHORUM In: Op. Cit.
HERCULANO, 1860.p.08 / “Era CCCXLVIII. Egressi sunt Gotti de terra sua.” BREVIS HISTORIA GOTTORUM In:
Ibidem.p.08. Podemos notar, pelo exemplo dado dos recortes do início de ambas as obras, que as datações das “Eras”
destacadas são diferentes. Enquanto que a CG narra a saída dos godos como sendo evento pertinente à Era 349, a BHG
apresenta como sendo pertinente a Era 348. Como outro exemplo, destacamos a Era que faz menção a morte do rei D.
Afonso, em Viseu. Segundo a CG, “Era MLVI. Obiit rex donnus Adefonsus Viseo.” CHRONICA GOTHORUM In:
ibidem.p.09. Já a BHG, “Era MLXVI. Rex Domnus Adefonsus obiit Viseo.” BREVIS HISTORIA GOTTORUM In:
Ibidem.p.09. Ou seja, enquanto a CG destaca o acontecido como sendo verificado na Era 1056, a BHG, para o mesmo
evento, nos traz a Era 1066. Tais diferenciações são repletas nas obras, não se limitando aos exemplos destacados.
511
A diferenciação de dados numéricos entre ambas as obras fica patente, por exemplo, nos seguintes trechos: “[...] ingressi
sunt Hispaniam, et regnauerunt ibi annis CCCLXXXVII [...]” CHRONICA GOTHORUM In: Ibidem.p.08 / “[…] Ingressi
sunt Hispaniam, vbi regnauerunt annis CCCLXXXIII.” BREVIS HISTORIA GOTTORUM In: Ibidem.p.08. Ambas são
pertinentes à mesma narrativa, ou seja, a quantos anos teria durado o reinado godo na “Espanha”, que, de acordo com a CG,
teria sido de 387 anos, enquanto que na BHG, consta como sendo de 383 anos.
507
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Cabe mais pensar a BHGcomo uma nova obra, que toma tanto a CG quanto outras obras
portucalenses, ou mesmo, os antigos escritos do século XI, como referenciais para sua produção. Só
assim, encontramos coerência na diferenciação dos dados verificados entre ambas as versões, ou,
mesmo, pelos que somente a BHGteria.512 Os dados presentes nela, não encontrados nas demais
crônicas, podem ser oriundos de textos que desconhecemos, que não os antigos anais ou cronicões
portucalenses.
Azevedo levanta sobre vários temas. Dentre eles, se destacam as questões em relação: aos supostos
fragmentos da versão breve existentes nos arquivos de Alcobaça e St.ª Cruz de Coimbra, conforme
informava Brandão; à credibilidade de quem as teria transmitido a este autor, no caso, Gaspar Álvares
de Lousada Machado;513 e, ainda, o acesso de Herculano à tais fragmentos.
Segundo o autor, “Herculano não viu êstes exemplares, mas admitiu a sua existência, fundado na
palavra de António Brandão [...]”.514 Assim, Azevedo reduz a possibilidade de Herculano ter tido
acesso aos fragmentos de uma versão breve da obra, supostamente existentes em Alcobaça ou em St.ª
Cruz de Coimbra, esvaziando, em importância, qualquer apontamento feito por este autor em relação
aos exemplares.
Para Azevedo, nem mesmo Brandão teria tido acesso a tais escritos, tendo ele, somente,
confundido fragmentos de outros antigos anais (alcobacenses, complutenses ou coimbranos) com uma
possível versão da CG.515 Segundo Azevedo,
Contemporâneo e amigo de André de Rezende foi o humanista João Vaseu (...1562), natural de Bruges, professor de Salamanca [...] Também êste conheceu e
512
Dentre esses dados, destacamos, por exemplo, a menção feita pela BHG,do tempo que teria durado a ocupação da cidade
de Coimbra pelos ismaelitas, que segundo a obra, teria sido de 70 anos. Dado somente encontrado na BHG. “[...] postea
cam Hismaelite reedificauerunt, et tenuerunt cam LXX.an.” BREVIS HISTORIA GOTTORUM In: HERCULANO, op.
cit., 1860.p.09.
513
Clérigo nascido em Braga; foi secretário do arcebispo de Braga D. Fr. Agostinho de Castro e escrivão da Torre do
Tombo. Cf. SOUSA, António Caetano de. Historia genealogica da Casa Real Portugueza, desde a sua origem até o
presente, com as Familias ilustres, que procedem dos Reys, e dos Serenissimos Duques de Bragança, justificada com
instrumentos, e Escritores de inviolável fé, e offerecida a el Rey D. João V . Lisboa: Academia Real, 1735.p.75. Acredita-se
que somente através dele, Brandão, supostamente, teria tido acesso a versão breve da obra.
514
AZEVEDO, op. cit., 1942.p.175
515
Cf. ibidem.p.176
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citou o exemplar extenso da Crónica dos Godos e devia conhecer e ter na mão o
códice de Alcobaça da mesma crónica, se êle lá existisse. Efectivamente, contanos Vaseu que, por influência do Cardial Infante D. Henrique, tirou do cartório
de Alcobaça todos os documentos, que lhe podiam servir para o seu trabalho.
Ora êle cita, frequentemente, um códice alcobacense, que não podia ser senão o
Complutense ou Alcobacense [...] Nada diz do códice, cuja suposta cópia é o
exemplar breve da Crónica dos Godos.516
Isto é, conforme o relato, Azevedo tenta dar mostra de que não haveria obra alguma nos arquivos
de Alcobaça que se assemelhasse a uma versão breve da Crónica dos Godos. Caso contrário, Vaseu
teria feito menção em seus próprios escritos.
Em relação à credibilidade de Lousada Machado, ao transmitir um suposto exemplar breve da obra
proveniente de Rezende (CG) a Brandão, Azevedo trabalha a ideia de ser, ele, um famoso falsário.517
Segundo apresenta,
[...] a Historia Brevis, ou exemplar resumido, não passa de uma composição,
preparada por êste [Lousada Machado]518conhecido corrutor de documentos, e
atribuida por êle a André de Rezende, para iludir a boa fé de António Brandão.519
Ou seja, ele, em seu argumento, atribui a Lousada Machado uma intenção de ludibriar Brandão
com uma suposta falsificação.520
516
AZEVEDO, op. cit., 1942.p.180
Cf. Ibidem.p.174
518
Grifo nosso.
519
AZEVEDO, op. cit., 1942.p.177
520
A imagem de Louzada Machado como famoso falsário é recorrente em diversas publicações. Nesse sentido, no
Diccionario Bibliographico Portuguez, é destacado que João Pedro Ribeiro, nas Observações Dipl., p.83;84, e nas Dissert.
Chronolog., Tomo II, p.210, daria prova “... da má fé com que procedia o tão preconisado antiquario, accusado não menos
que de fabricador e abonador de documentos apocriphos [...]” SILVA, Innocencio Francisco da. Diccionario
Bibliographico Portuguez. Lisboa: Imprensa Nacional, 1859.T.3,p.122.. Na mesma obra é citado outros autores que, da
mesma forma pensavam sobre Louzada Machado, como: Fr. Joaquim de Sancto Agostinho, Fr. Manuel de Figueiredo e D.
517
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Quanto às suposições de ser a BHG uma falsificação, vale refletir à luz da análise das duas versões
da Crônica dos Godos, independente de apontar qual das duas seja a primitiva. A falsificação em
relação a uma obra só pode ser considerada quando há uma tentativa de reprodução dos mesmos
elementos característicos de uma produção em outra, nesse caso, temporalmente deslocada, com o
intuito de fazer com que ela se passe pela original.
No caso das duas versões da crônica, não há tal situação, uma vez que ambas as versões são
efetivamente diferentes, ainda que com passagens em comum. Uma não é igual à outra
estruturalmente. Uma é breve e a outra é longa. Nesse sentido, o que temos não é uma falsificação de
uma da outra. Ambas são obras legítimas. Cada uma com sua distinção temporal. Se houver
falsificação, ela estará em relação ao período temporal, ou seja, um autor tentando fazer com que uma
produção se passe por uma obra temporalmente incoerente. As semelhanças textuais viriam em virtude
do referencial utilizado por cada um dos autores para elaboração de suas próprias obras.
Azevedo, ainda, questiona, com alguma coerência, o apontamento feito por Lousada Machado, de
ser a BHG uma edição de Rezende.521 Segundo Azevedo,
[...] Rezende deveria, ao menos, notar as relações evidentes dos dois cronicões,
que por vezes se repetem, o que êle nunca faz, falando só do extenso, e guardando
sobre o outro completo silêncio. Nunca cita o breve, a não ser quando êste repete
o mais extenso, o que equivale a nunca o citar, pois serve-se, claramente, do
extenso em partes, que faltam no breve.522
Assim, Azevedo tem por intento demonstrar que Rezende jamais teria tido acesso a tal versão
breve, contrariando o que chegou a acreditar Brandão e Herculano.
Antonio da Visitação Freire de Carvalho. Cf. ibidem.p.122.
521
Acredita-se que Rezende teria copiado uma versão breve de um códice de Alcobaça. Cf. AZEVEDO, op. cit.,
1942.p.177
522
Ibidem.p.177,178
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Azevedo aponta, ainda, que algumas passagens, verificadas na BHG, apresentam uma incoerência
temporal, fruto da utilização de “[...] frases pretenciosas e de giro mais culto [...]”, não sendo, assim,
condizente com escritos do século XII.523
Outro autor, Alfredo Pimenta,524 levantaria questionamentos relativos a algumas passagens da
BHG. Buscaria, em seus apontamentos, construir a ideia de existência de possíveis anacronismos
literários na versão breve. Nesse sentido, destaca que seus argumentos se baseariam em, pelo menos,
quatro passagens da BHG.
1- “Rex Alfonsus Viriatus Christianus vel primus Hercules Lusitanus [...]”;
2- “[...] et a munda Fluuia ad betim... propagauit imperium”;
3- “Eodem Tempore obsidetur Olisipo ad Alfonso Henricio”, e “Castellum de Germanello [...]
edificatur a Rege Alfonso Henriquio”;
4- “Obsidetur Castellum Ablantes, Abrantes vulgo”.
Segundo Pimenta,
No primeiro trecho, temos ‘Hercules Lusitanus’; em documento nenhum
medieval, o potugalensis se identifica com lusitanus. Tal identificação não é
anterior a 31 de Agosto de 1481: ‘Alphonsus igitur rex Lusitanorum...’ (D.
Garcia de Menezes, discurso ao Papa Sixto IV...).
No segundo trecho, temos ‘munda Fluuia’, em documento nenhum da IdadeMédia se dá ao Mondego, o nome que Estrabão, Ptolomeo e Plínio lhe deram –
Mundas, Monda, Moúnda, etc. – segundo os Mss.
Os docs. medievais dizem sempre: Mondecus, Mondeco, Mondego,
Mondegum. O termo Munda é erudito.
523
Cf. AZEVEDO, op. cit., 1942.p.183
PIMENTA, Alfredo. Migalhas Históricas, a chronica dos godos. Idade-Média (Problemas e Soluçoens). Lisboa:
Edições Ultramar, 1946.
524
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No terceiro texto, há ‘Alfonso Henricio’, ou ‘Henriquio’; já, algures, provei
que D. Affonso I nunca se chamou nem podia chamar-se Affonso Henriques; e
nunca, ao tempo lhe chamaram assim. Em filho legitimo do Rei, o patronymico525
era um absurdo.
No quarto texto, temos ‘Ablantes, Abrantes vulgo’; no séc. XII, a forma é
Ablantes; assim está no foral que D. Affonso I lhe concedeo, em 1179; assim está
na Confirmação de Affonso II.
A forma que os documentos nos revelam a seguir, é Avrantes. Como se vê, por
exemplo, no Liv. 4 de Affonso IV, a fl. 31, em documento de 20 de Agosto de 1338,
e assim se mantém até meados do séc. XV, onde começa a apparecer a forma
Abrantes. Temos, pois, Ablantes > Avrantes > Abrantes. Esta é que é a evolução
historica da palavra. Quem compoz ou cozinhou a Brevis historia, ao deparar, na
Chronica Gothorum, com o Ablantes, que lá está, quis esclarecer, e accrescentou:
‘Abrantes vulgo’! Este vulgo matou-o, porque, no séc. XII, não havia tal forma –
nem sequer sonhada.526
Assim, pelo anacronismo dos termos utilizados, segundo a análise do autor, dentre outros, ficaria
evidente a datação da versão breve como sendo de edição posterior à versão longa. Tal opinião se
alinharia a já apresentada por Azevedo, relativo aos termos utilizados.
Ao analisarmos as duas versões da Crônica dos Godos, verificamos que a CG, versão longa, que
contém elementos estruturais de sacralização da figura régia. Também possui, em sua segunda parte,
forte ênfase construtiva da imagem cavalheiresca de Afonso Henriques,527 o que permite concluir que
525
Sobrenome derivado do nome do pai.
PIMENTA, op. cit., 1946.p.274,275
527
Características que provavelmente seriam oriundas dos Annales D. Alphonsi (ADA), antigos escritos, do século XII,
provenientes do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, que tinham por fim dar ênfase a construção imagética de Afonso
Henriques. As intervenções divinas nas ações do monarca, situações recorrentes em diversas passagens da CG, parecem
servir como um fator que validava, pela devida providência, as investidas do monarca frente aos “inimigos”. Nesse sentido,
em aspectos gerais, acabavam por funcionar como elemento legitimador da monarquia atuante. Assim, os ADA teriam sido
utilizados, pelo compilador da CG, como referencial para construção da imagem de Afonso Henriques, sacralizando suas
ações e construindo, em sua figura, um ideal cavalheiresco. Estas características não são encontradas na BHG, o que nos
526
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foi produzida, provavelmente, em um momento de proximidade relacional existente entre a casa
produtora e a monarquia referenciada.
Pelas características que apresenta, conforme destacamos na nota 41, fica mais próxima à
possibilidade de ser, a CG,uma obra oriunda de casa religiosa. Possivelmente do mosteiro de Santa
Cruz de Coimbra.
O fato de encontrarmos, na CG, passagens comuns de serem verificadas em outras obras dos
séculos XII-XIII, já demonstrado anteriormente, que serviam como uma espécie de referencial às
produções do período, e, portanto, comuns a elas528nos direciona à hipótese de ser, ela, coerente como
possível produção desse recorte temporal. São passagens que não aparecem na BHG, e que de alguma
forma funcionam como elementos característicos designadores de uma particular conjuntura produtiva.
Já em relação à BHG, a falta de elementos de sacralização da figura régia nos dá indícios de que o
autor, provavelmente, não teve a intenção de dar ênfase à construção imagética do monarca de forma a
sacralizá-lo. Assim, seríamos direcionados a duas possibilidades: ou a casa produtora não era religiosa,
não partindo da linha que se oriente a uma construção de questões destinadas à sacralização da figura
régia; ou, se de casa religiosa, não haveria um bom relacionamento entre esta e o monarca
referenciado. Nesse sentido, penso ser mais coerente a primeira hipótese, se levado em consideração os
argumentos até então trabalhados.
Salientamos, que, com os pressupostos apresentados, não busco enrijecer os fatores motivadores da
construção imagética do monarca, mas sim, tentar traçar uma linha que aproxime as características
estruturais das obras de suas possíveis casas produtoras.
Temos em mente que tais proposições são considerações primárias, mas que buscam, justamente,
responder, de alguma forma, algumas questões estruturais encontradas em ambas as versões.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
leva a crer que provavelmente seu redator não tenha feito uso dos mencionados ADA, narrando somente as ações militares
do monarca portucalense.
528
Cf. AZEVEDO, op. cit., 1942.p.184
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Levando em consideração todos os argumentos apresentados, busco reforçar o grupo dos que
defendem a hipótese de ser a CG uma produção coimbrana dos séculos XII-XIII; portanto, a versão
primária da Crónica dos Godos. Já a BHG, seria uma composição feita posteriormente, provavelmente
entre os séculos XIV e XVII, oriunda de casa não religiosa.529
Penso na hipótese de não ser a BHG uma falsificação da CG, haja vista a presença dos dados que
somente ela possui, mas sim, uma produção que se utilizou da versão longa, entre outras fontes, 530
como referencial para estruturação de uma nova obra, ainda que contivesse muitas passagens em
comum.
Devo destacar que a discussão feita até então faz parte de um debate extremamente complexo, que
perdura desde o século XVIII até os dias atuais. No entanto, alguns autores que trabalham a Crónica
dos Godos, ou a ela fazem menção, negligenciam tal problemática, levando em consideração que a CG
é a versão primeira da obra, sem qualquer debate acerca do tema.
Busco, com os poucos apontamentos feitos, não, dar fim a tal questão, pois estaria longe disso, mas
destacar que tal problemática pode fazer a diferença no destino da pesquisa, e para além, animar os
pesquisadores para uma questão ainda não fechada, e que merece uma atenção especial.
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529
Gouveia apresenta como sendo obra do próprio Louzada Machado, produzida no século XVII. No entanto, não deixa
claro como chegou a tal conclusão. Cf. GOUVEIA, Mário. O limiar da tradição no moçarabismo conimbricense: os “Anais
de Lorvão” e a memória monástica do território de fronteira (séc. IX-XII). Medievalista. Lisboa,n.8, Jul 2010.p.28.
Disponível em: <http://www2.fcsh.unl.pt/iem/medievalista/MEDIEVALISTA8\gouveia8011.html.> Acesso em: 08 Mar.
2014.
530
A utilização de outras fontes, por exemplo, ganharia força pelo fato de usar outras datas como referenciais para menção
de alguns eventos ou, mesmo, para as “Eras” que se apresentam na CG.
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DA REPRESENTAÇÃO531 E ESTIGMATIZAÇÃO532 DOS JUDEUS NA HISPÂNIA
MEDIEVAL (TORTOSA, 1413-4)
Jordânia Lopes de Freitas533
INTRODUÇÃO
Os judeus ao longo da história sofreram diversos ataques direcionados à sua religião. No
período baixo medieval esta atitude hostil foi intensificada por parte da comunidade cristã, que os
considerava infiéis, pecadores, avarentos e praticantes de usura. A questão religiosa vai ao encontro de
problemáticas que tangenciam o campo político, o econômico, o social e o cultural. Em alguns
531
Utilizaremos a Nova História Cultural como referencial teórico. Esta corrente historiográfica só começou a ser utilizada
pelos historiadores culturais no final da década de 80. Conforme Bourdieu (1999, p.179), a religião entendida como um
sistema simbólico de comunicação e de pensamento é uma linguagem que torna uma força na sociedade, já que apresenta a
meta ordenar o mundo por meio da constituição de grupos. No sentido desta linha de debate poder e religião, a
institucionalização do poder e os conflitos ocasionados por este estão presentes na complexidade da esfera religiosa. Um
importante conceito a ser trabalhado neste artigo é o de Representação Social. Segundo Sandra Pesavento, as
representações substituem o mundo real e mesmo sendo “construídas sobre o mundo não só se colocam no lugar deste
mundo, como fazem com que os homens percebam a realidade e pautem a sua existência”. Esta substituição do mundo por
sua representação não significa que temos aí uma cópia fiel da realidade, “masuma construção feita a partir dele”. Sendo
assim, a categoria das representações é a da “verossimilhança e da credibilidade, e não de veracidade”. (PESAVENTO,
2004, p. 39-41). Chartier (1987, p. 17) esclarece que “as representações do mundo social assim construídas, embora
aspirem a universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses dos grupos que as
forjam”.
532
O termo estigma foi criado e utilizado pelos gregos para designar os “sinais corporais com os quais se procurava
evidenciar alguma coisa de extraordinário ou mau sobre o status moral de quem os apresentava”. Os sinais poderiam ser
feitos com fogo ou cortes pelo corpo da pessoa e indicavam que ela havia sido escravizada, era um criminoso ou mesmo
um traidor. Como consequência disso, a pessoa marcada, literalmente, era considerada poluída e deveria ser evitada,
principalmente, em lugares públicos. Durante a Era Cristã, “dois níveis de metáfora foram acrescentados ao termo: o
primeiro deles referia-se a sinais corporais da graça divina que tomavam a forma de flores em erupção sobre a pele; o
segundo, uma alusão médica a essa alusão religiosa, referia-se a sinais corporais de distúrbio físico. Atualmente, o termo é
amplamente usado de maneira um tanto semelhante ao sentido literal original, porém é mais aplicado à própria desgraça do
que à sua evidência corporal”. Nesse sentido, o conceito de estigma precisa ser trabalhado em conjunto com o de identidade
social, o “alinhamento grupal e a identidade pessoal, o eu e o outro”, levando-se em consideração “o controle de
informação, os desvios e o comportamento desviante, detendo-se em todos os aspectos da situação da pessoa estigmatizada
[...]”. Ainda, é importante frisar que ao utilizarmos o termo “estigma em referência a um atributo profundamente
depreciativo” se estabelece, “na realidade, uma linguagem de relações e não de atributos” (GOFFMAN, 1982, p. 11-4).
533
Mestranda do Programa de Pós-graduação em História das Relações Políticas e Sociais (PPGHIS\UFES). Bolsista do
CAPES. E-mail: [email protected]
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momentos, este antijudaísmo veio à tona e as comunidades judaicas foram perseguidas e atacadas,
como ocorreu nos reinos de Castela e Aragão no final do século XIV. Tendo em vista esse contexto de
conflito entre culturas e religiões diversas levantamos a problemática: qual seria o interesse da Igreja
Católica, no reino de Aragão, ao organizar um novo debate (Tortosa) entre cristãos e judeus no início
do século XV? O interesse de uma possível conversão em massa de judeus, para alguns setores da
Igreja e para os monarcas hispânicos serviria, de fato, para uma reafirmação da identidade cristã que se
encontrava em crise? 534
Procuraremos analisar a maneira pela qual a Igreja Católica, por intermédio das suas
campanhas contra os judeus colocou obstáculos na interação entre judeus e cristãos. Além do mais, a
Igreja buscou isolar ainda mais os judeus ao insistir em preservar a comunidade cristã de toda
“contaminação” proveniente dos meios judaicos. Algumas vezes, podemos perceber a tentativa de
estimular e intensificar a conversão forçada de judeus ao Cristianismo. Em 1391, no contexto das
perseguições, um elevado número de judeus das comunidades aragonesas e castelhanas foi obrigado a
escolher entre o batismo ou a morte. A juntar-se a toda essa adversidade para as comunidades judaicas
nos reinos ibéricos, promulgou-se, em 1415, a Bula de Benedito XIII cujo teor corroborou para o
status construído do Judaísmo como religião “inferior” e desprezível tanto para o monarca castelhano
quanto para o aragonês, assim como para alguns setores da Igreja.
Analisaremos a disputa judaico-cristã de Tortosa535 (1413-4), fazendo uso da Análise do
Discurso,536 promovida pelo monarca de Aragão e pelos prelados cristãos, com o apoio de alguns
534
A identidade cristã se encontrava enfraquecida por uma crise instalada no interior da Igreja haja vista a disputa entre os
três papas rivais (Gregório XII, Benedito XIII e João XXIII), bem como a existência de críticas ao poder secular/temporal
adquirido pela Igreja e seu distanciamento dos valores apostólicos.
535
Importa destacar que o relato cristão do Debate de Tortosa, em sua versão original, foi redigido por um escrivão papal
na ocasião do debate. Já o relato judaico, foi escrito em hebraico por Bonastruc Demaistre na primeira metade do século
XV. O editor Solomon ibn Verga fez alguns acréscimos no princípio do século XVI.
536
Com o objetivo de compreender os mecanismos discursivos, utilizaremos como metodologia a Análise do Discurso, que
pretende problematizar as formas de leitura de um objeto e seu sujeito, considerando-se as divergências características da
linguagem enquanto meio de enunciação de ideias. Conforme Pinto (1999, p. 7) a Análise do Discurso visa à explicação e
avaliação crítica das condições de produção, circulação e consumo dos sentidos relacionados aos discursos produzidos na
sociedade. Dessa forma, a Análise do Discurso entende que a linguagem não é neutra, mas carregada de sentido e
significado. Para alcançar os princípios particulares de uma ideia, seja falada ou escrita, é fundamental comprometer-se em
elucidar seu sentido simbólico e político. Por sua vez, o discurso religioso (ORLANDI, 2006, p. 239-240), tipo discursivo
no qual se insere o Debate de Tortosa, possui como característica principal a autoridade do sujeito responsável por dar voz
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judeus conversos, visando conferir maior credibilidade à identidade cristã a custo da estigmatização
dos judeus e sua religião. Os relatos sobre a disputa de Tortosa, tanto do lado cristão quanto do judeu
são fontes importantes, para se chegar a uma compreensão mais apurada das discussões entre as partes
envolvidas. O momento foi marcado pela discussão de questões cruciais para Judaísmo e Cristianismo
a respeito da função do Messias, o método utilizado para a compreensão das Escrituras e, por
conseguinte, a representação formulada a respeito de Deus. Juntamente desses aspectos teológicos,
encontram-se também os relacionados às angústias e ao afinco/tenacidade dos debatedores judeus,
dispostos a defender sua cultura, religião e, principalmente, sua preservação enquanto grupo étnico e
religioso.
A prática de debates promovidos pela Igreja Católica remonta a séculos, sendo que na Península
Ibérica os debates começaram no século VI. No entanto, o debate entre cristãos e judeus acontecido na
cidade catalã chamada Tortosa (1413-14) adquire maior envergadura não só pelo número de pessoas
envolvidas, mas também pelo tempo de duração (quase dois anos) e seu alcance. 537
A disputa foi chefiada por Benedito XIII e teve como objetivo principal a conversão geral dos
judeus ao Cristianismo. O cerne da discussão, entre judeus e cristãos, consistiu na retomada de boa
parte dos argumentos anteriormente desenvolvidos no debate de Barcelona (1263), por exemplo: a
Trindade, o Messias, o Talmude 538(com maior ênfase no conteúdo da Agadá).
ao texto, que se configura além dos participantes do debate, assentando sua premissa na orientação divina. O discurso
religioso aparece, então, mistificado e carregado de simbolismo.
537
Podemos listar os seguintes participantes do debate no lado cristão: o converso Jerônimo de Santa Fé (cujo nome
original era Yoshua ha- Lorqi), Pablo de Santa Maria (bispo de Burgos, que antes de sua conversão se chamava Salomon
ben Yishaq ha- Levi). Para representar as comunidades judaicas do Reino de Aragão, Catalunha doze rabinos atenderam
ao convite de Benedito XIII (Papa Luna): R. Matityahu ben Mosheh ha-Yishari, o médico e exegeta R. Zerahiah ha-Levi
(Ferrer Saladín) de Zaragoza, R. Astruc ha-Levi de Alcañiz, R. Yishaq Albo de Daroca y R. Bonjuda Yahazel Hacaslari de
Gerona; além destes tomaram parte no debate também R. Mose ibn Abas (Abenabes) um dos líderes da comunidade de
Zaragoza, Profiat Duran el Efodi (Profiat Durán se converte e depois foge e retorna ao Judaísmo); Yishaq ben Mosheh haLevi (depois de converso passou a chamar-se Honoratus de Bonafide), o poeta Salomon Bonafed e Dom Vidal de
Caballeria, filho de Dom Benvenisti de Caballeria (morto em 1411). Dom Vidal se converteu ao Cristianismo durante a
disputa.
538
O Talmude é também chamado de Lei Oral e sua compilação levou séculos para ser terminada. São duas versões
escritas em dois locais e em épocas próximas. A Mishná é o segundo nível; o primeiro é a Bíblia hebraica ou Antigo
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Precisamos problematizar o termo debate ao se levar em consideração as condições sob as
quais se desenvolveram. Os organizadores não proporcionaram as mesmas condições para ambas as
partes. Exemplo disso aconteceu no debate de Paris (1240) entre cristãos e judeus em que prevaleceu a
forma de interrogatório. Os participantes judeus (rabinos e sábios talmúdicos) foram colocados
separadamente em salas para que pudessem prestar os devidos esclarecimentos a respeito do teor do
Talmude.
Com relação ao debate de Tortosa, os judeus tinham que apenas responder aos questionamentos
de Jerônimo de Santa Fé; sendo vedada a eles a oportunidade de réplica. Para Serrano, os polemistas
cristãos queriam que os judeus reconhecessem falha na própria interpretação que faziam do Talmude,
no que respeita ao sentido messiânico, ao substituírem a palavra dos Profetas pelos ensinamentos dos
sábios de Israel (SERRANO, 1993, p. 8).
Segundo Maccoby (1996, p. 94), o método empregado no debate não privilegiou a discussão,
mas a instrução. Isso pode ser confirmado a partir das palavras do próprio Benedito XIII: “Eu não vos
fiz virem aqui para provar qual de nossas religiões é a verdadeira, pois para mim é perfeitamente claro
que a minha é verdadeira e que a vossa está ultrapassada”.
A representação negativa e o estigma (incrédulos, obstinados em rejeitar a verdade, deicidas)
que já havia sendo construída sobre os judeus há muito tempo tomou novo impulso com a articulação
de governantes e prelados cristãos no Debate de Tortosa.539 Como argumenta Montenegro (1998, p.
37) é preciso evitar os exageros (simplificação abusiva) ao se tratar da representação estereotipada de
judeus na Idade Média uma vez que outros grupos sociais excluídos recebiam uma rotulação similar a
dos judeus. Entretanto, no período baixo-medieval, ficou comprovado que o modelo depreciativo
Testamento; o terceiro nível são as duas Guemarot. A primeira parte chama-se Mishná e foi organizada somente no final do
séc. II, por R. Iehudá Hanassi. Na sequência foi escrita a Guemará (palavra aramaica que significa concluído), que se
divide em Guemará da Palestina e Guemará da Babilônia. Em decorrência disso se criara dois Talmudim: o de Jerusalém e
o da Babilônia, criados da junção da Mishná com as duas Guemarot. A Mishná ("repetição") é a totalidade da tradição oral
que inclui o Midrásh, Halahá e Agadá. A Guemará contém uma análise e comentário detalhado da Mishná e implica toda a
exposição estudada pelos chachamim (sábios) contida no Talmude.
539
Conforme Montenegro (p. 26) é importante esclarecer que a representação dos judeus que se fez na Idade Média está
relacionada ao aspecto religioso e não étnico. Os traços que definem o judeu seriam adquiridos e não hereditários. Havia
uma demasiada preocupação em retratar a questão teológica, em especial, a ideia de salvação
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creditado aos judeus superou o de outros grupos sob marginalidade social ou religiosa, com base na
maior homogeneidade de distintas áreas geo-históricas. 540
Na disputa de Tortosa os dois lados envolvidos se julgavam “vencedores”. Como ressalta
Feldmam, é importante destacar que a minoria judaica estava sujeita às consequências de sua
debilitada condição sociopolítica. Essa situação foi agravada pelo contexto econômico, político e
social da Europa Ocidental, onde havia um revigoramento das cidades a partir do renascimento
comercial e urbano. Nesse sentido, o clero recebia o apoio da burguesia cristã, que procurava ficar
livre dos concorrentes judeus. Na dianteira do processo, os reis estabeleceram uma aliança com a
burguesia cristã contra a nobreza com o objetivo de, novamente, conseguir centralizar seu poder. Em
troca, os burgueses contribuem com empréstimos, doações e apoio para a concretização de um Estado
Moderno e centralizado, com a criação de um exército mercenário para destruir os senhores feudais.
Com o intuito de retribuir o “favor” dos burgueses, os reis apoiam seus anseios em afastar os judeus da
economia e também da sociedade. A questão religiosa estava relacionada a uma problemática mais
ampla (FELDMAN, 2002, p. 3).
A intolerância de cunho religioso se apresentou sob uma forma inusitada, cujo exemplo gritante
são as perseguições de 1391. Neste episódio se superou a esfera das disputas teológicas entre cristãos e
judeus e se gerou a desestruturação cultural e material das comunidades judaicas hispânicas.
No ano de 1391, houve uma onda de perseguições e massacres de judeus nas comunidades
judaicas de Castela, episódio que também afetou as comunidades das cidades de Aragão e Catalunha.
Os camponeses e artesãos se sentiram estimulados pelas pregações de religiosos cristãos e deram
ensejo a superstições, atacando regiões no campo e depois nas cidades. Aqueles que se recusavam
aceitar a conversão e batismo estavam sujeitos a uma morte trágica. Famosas comunidades judaicas
foram destruídas, a exemplo da comunidade de Gerona, onde nasceu Nahmânides (WOLFF, 1971).
Nessa tentativa de homogeneização da sociedade, por meio da desqualificação da religião judaica,
buscou-se integrar os convertidos em 1391 e também os judeus que possivelmente iriam se converter
540
É fato que a tolerância aos judeus na Europa já vinha sofrendo investidas fortes desde as Cruzadas, com massacres de
judeus durante a 1ª Cruzada (1095). À medida que avançou a Reconquista, nos séculos XII ao XV, o diálogo entre judeus e
cristãos tornou-se cada vez mais difícil, pondo fim ao equilíbrio pluralista que teve lugar na Península Ibérica.
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nesta campanha. Para o historiador Suárez Fernandez, a obsessão pelo desaparecimento do Judaísmo
na Península Ibérica, que fazia parte do plano de homogeneização religiosa, somente foi alcançado
definitivamente em fins do século XV com a expulsão dos judeus (SUÁREZ FERNANDEZ, 1992, p.
10).
Na versão judaica do debate fica aparente uma atmosfera de terror. Os “delegados” judeus
tiveram motivo suficiente para temer por suas vidas. Jerônimo chegou a ameaçar os judeus com um
processo de “heresia”541 por não levarem o Talmude suficientemente a sério. Esta mudança de enfoque
é reveladora, visto que no debate de Paris a crença judaica no Talmude é que fora declarada “herética”
(MACCOBY, 1996, p. 97).
Faz-se necessário esclarecer o contexto político, social e religioso à época do debate. No
âmbito religioso, Benedito XIII não era o único papa da igreja Católica, pelo contrário, disputava o
posto ao pontificado em Avignon (França) com mais dois rivais. Conforme Maccoby (1991, p. 101), a
realização do debate foi vista por Benedito XIII como uma boa chance para conquistar o apoio e
aprovação dos eclesiásticos, e garantir sua manutenção como papa. No entanto, todas suas expectativas
foram frustradas a partir do Concílio de Pisa, em 1409, em que ficou acordado a nomeação de
Alexandre V. Em 1414, foi realizado um novo concílio (Constança), que estabeleceu a demissão dos
três papas rivais (Gregório XII, Bento XIII e João XXIII) e, nomeou Martinho V como sumo pontífice
da Igreja. Dessa forma, haveria somente um pontífice universal, cujo poder temporal ficaria
estabelecido, de fato, em Roma.
Outra manobra de Benedito XIII deu-se com a aproximação de Fernando de Antequera, --- era
membro dacasa real castelhana de Trastâmara ---, que foi indicado para o trono vacante de Aragão, em
1410, passando a se chamar Fernando I. Esta união culminou no estabelecimento de uma significativa
aliança política entre Igreja e governo contra os judeus. A partir daí houve uma intensificação das
represálias aos judeus.
O dominicano Vicente Ferrer, juntamente, com Pablo de Santa Maria (bispo de Burgos) foram
541
Durante a Idade Média, as opiniões judaicas não estavam sujeitas à Inquisição. A queima dos exemplares do Talmude,
durante o Debate de Paris, foi posteriormente reconsiderada pela parte cristã, que decidiu revogar esse procedimento por
ser ilegal.
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responsáveis por promover as ordenanças de Valladolid de 2 de janeiro de 1412 em que havia diversas
regras prejudiciais aos judeus. Essas leis consistiam em 24 proposições acerca da regulamentação das
relações sociais entre cristãos e judeus. Em decorrência da união de Castela e Leão sob um monarca,
embora os reinos permanecessem separados, as leis de Valladolid eram válidas tanto em Castela
quanto em Leão. Em Aragão, Fernando I procurou estabelecer ordenações (1412) parecidas com as
castelhanas contra os judeus (BEINART, 1992, p. 176). Algumas das regras prejudiciais aos judeus
especificadas nas ordenanças foram: confinações em bairros separados; homens teriam que deixar as
barbas crescerem; judeus não poderiam ostentar o título de dom; médicos judeus não poderiam dar
atendimento a cristãos; entre outros.
No debate de Tortosa, assim como já ocorrera no de Barcelona, o objetivo era desqualificar o
Talmude e aproveitar os seus estratos anteriores (escritos na época de Jesus, ou antes), ou seja,
procurava-se parte da literatura não contaminada pelo rabinismo. A intenção era demonstrar que o
Cristianismo era a “verdadeira concretização do Judaísmo inter-testamental” (MACCOBY, 1996,
p.33). Logo, os contendores cristãos não almejavam a destruição do Talmude já que acreditavam que
ele poderia tornar-se uma fonte da verdade cristã.
O ponto central da disputa de Tortosa foi, portanto, o Talmude.542 A partir dele, foram
discutidas variadas temáticas relacionadas às duas religiões, por exemplo: Jesus, o pecado original e
seu castigo, a redenção universal, a morte do Messias como expiação do pecado de Adão, as causas da
dispersão judaica, entre outras. No entanto, faz-se necessário esclarecer que o objetivo do Talmude era
criar uma regulamentação da vida judaica no período pós-destruição do 2º Templo. O propósito
almejado com a escrita do Talmude (Lei Oral) não era combater ou sequer denegrir o Cristianismo.
O rabino Charles Barouh Abraham argumenta que houve certa confusão, por parte dos prelados
cristãos no Debate de Tortosa, ao negarem alguns ensinamentos do Talmude por contrariar os
preceitos das Sagradas Escrituras. Segundo Abraham (2008, p. 3), o próprio Jesus viveu e ensinou de
542
Em Tortosa, muitas das acusações contra o Talmude foram aproveitadas do Debate de Paris liderado por Nicolas Donin
(o representante do lado cristão). Jerônimo de Santa Fé somente incrementou alguns argumentos antigos. Sendo assim, o
debate de Tortosa procurou explorar as posições dos dois debates anteriores de uma maneira contraditória, a saber: fazer
uso do Talmude com o objetivo de favorecer o Cristianismo e, ao mesmo tempo, condená-lo como blasfemo, anticristão e
obsceno.
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acordo com o sistema ético e moral inerente à Torá. Isso significa que não havia qualquer
incompatibilidade com o que posteriormente foi propalado pelo Talmude. Vai mais além ao afirmar
que a fé e a convicção, ou ainda a fé na que nasceu e viveu Jesus foi essencialmente um sistema ético e
moral:
Entonces Jesús se dirigió a la gente y a sus discípulos y les dijo: “En la cátedra
de Moisés se han sentado los escribas y los Fariseos. Haced, pues, y observad
todo lo que os digan” (Mateo, 23:1-3a). Aqui, de forma clara e inequívoca, Jesús
aboga no sólo por la observancia de la Torah she-bi-khtav, la Torah escrita sino,
específicamente, por la Torah she-be-al-peh, es decir, la Torah oral, la “tradición
de los ancianos” enseñada por los escribas y Fariseos, por aquellos que han
heredado la autoridad de Moisés y se han sentado en la “silla de Moisés”
(ABRAHAM, 2008, p. 2).
Como já mencionado anteriormente, uma das ênfases da interpretação na disputa de Tortosa foi
o papel das Sagradas Escrituras (também chamada de Revelação). As fontes primárias usadas pelos
polemistas cristãos foram, basicamente, o Antigo e o Novo Testamento. Os argumentos retirados do
Antigo Testamento seguiram uma linha de raciocínio comum à tradição cristã construída de maneira
sólida. No entanto, este fato não significou a inexistência de erros cometidos pelos polemistas.
Primeiramente, Jerônimo tenta provar a “veracidade” da fé cristã utilizando, muitas vezes, argumentos
que não dão subsídio para tanto. Esta estratégia, de um modo geral, faz com que se desacredite de
qualquer razão enunciada, já que se busca colocar no mesmo plano proposições cuja insuficiência se
apresenta de forma clara.
O segundo defeito apresentado por Jerônimo torna-se apreensível quando se percebe demasiada
obstinação acerca de alguns episódios em que seria mais prudente ceder por questão de diplomacia.
Como nos esclarece Pacio Lopes:
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En una discusión tan larga como ésta, es muy difícil no excedesse alguna vez en
puntos secundários, sobre todo siendo por vía oral, en la que por necesidad se
lanzan afirmaciones que uno no se ha parado antes a considerar debidamente.
Sin embargo, Jerónimo jamás retrocede ni rectifica, sino es muy veladamente.
Parece olvidar que las oportunas retiradas contribuyen tanto a la victoria de un
ejército como sus avances. Sin duda, juega en esto un papel importante el amor
propio. Por vía de ejemplo, citaremos la acusación de herejía, que mantiene
tenazmente contra los judíos a propósito del texto talmúdico que afirma haber
querido Dios hacer Mesías a Ezequías, impidiéndoselo la virtude de la justicia, al
alegarle que no habiendo hecho Mesías a Daniel, que tanto le alabó, menos debia
hacer a Ezequías, que ni siquiera le hizo un Canto por la victoria sobre
Senaquerib. Si lo que se busca no es humillar, sino convencer y convertir, lo
lógico era abstenerse de una acusación que tanto hiere, tratándose de una
cuestión accidental que nada influye en el processo. Esto aún tratándose de
herejía, cosa no clara, ni mucho menos, ya que puede admitirse perfectamente en
el sentido de un decreto divino condicional: Ezequías será el Mesías si hace ese
Canto; no lo será si no lo hace, porque el hacelo Mesías en tal caso sería contra
la justicia y la equidad (PACIO LOPES, 1957, p. 93).
Por fim, podemos destacar a falta de cordialidade e o excesso de dureza para com os judeus.
Preocupado em provar suas hipóteses, ele se baseia tão somente na razão, deixando de lado, por
completo, o lado humano dos judeus participantes da polêmica. Mas, é preciso levar em consideração
que Jerônimo era um recém convertido, o que potencializava essa característica.
O historiador Fernando Suarez Bilbao faz algumas ponderações acerca do final da disputa. Em
parte, não se pode desconsiderar que o debate de Tortosa teve um elevado número de batismos; o que
figurou como um êxito pessoal de Benedito XIII. Porém, não se conseguiu uma “solução final” para a
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questão uma vez que à medida que avultavam as pressões das autoridades religiosas e poderes cristãos,
crescia entre os judeus a capacidade de enfrentar desafios impostos à concretização de suas crenças.
Assim, Bilbao resume a questão: “[...] una persecución que no logra la extiparción del adversario
contra quien va dirigida, produz en ese mismo adversario defensas que le hacen superior a lo que antes
era; la persecución depura eliminando los elementos débiles” (2003, p. 464).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao se fazer um balanço das consequências do Debate de Tortosa, podemos afirmar que elas
foram bastante negativas para as comunidades judaicas hispânicas. Um considerável número de judeus
se desesperou e decidiu enfrentar as pias batismais. Jerônimo de Santa Fé chegou a defender a retirada
de algumas passagens do Talmude. Entretanto, a intenção de Benedito XIII, bem como alguns setores
da Igreja, em transformar o Cristianismo um símbolo de identificação “nacional” dos habitantes da
Hispânia não surtiu o efeito esperado.
Para Serrano, a existência da minoria judaica representava um problema tanto para a Igreja
como para a Monarquia visto que a primeira queria a exclusividade religiosa ao passo que a outra
desejava conseguir a unificação dos Reinos hispânicos. Os monarcas cristãos tenderam a confundir os
interesses de seu reino com os seus próprios, buscando-se a equiparação entre religião e comunidade
política; o que levou ao pressuposto de unidade e homogeneidade dos súditos (SERRANO, 1993, p.
19).
A Cristandade, portanto, estava imersa em um problema de cunho sociopolítico, religioso e
cultural, que estava além de sua capacidade de deliberar juntamente das autoridades laicas cristãs.
Nesse sentido, as medidas de caráter formal, --- que se configuravam em leis e ordenanças ---, bem
como as de cunho simbólico --- sendo o preconceito e estereótipo seu melhor exemplo --- revelaram-se
pouco eficaz para a “solução” do conflito envolvendo religiões diversas. Dessa forma, a solução que a
Igreja Católica almejava conquistar verificou-se muito distante da realidade. A situação foi em parte
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contornada já que novas ondas de preconceito direcionadas às crenças e à religião judaica acometeriam
a província de Toledo (Castela) em 1449.
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CONVIVÊNCIA E CONFLITO RELIGIOSO NA ÁFRICA DO NORTE: ENTRE TÁTICAS E
ESTRATÉGIAS
José Mário Gonçalves543
A presente comunicação é parte da minha pesquisa de doutorado, intitulada convivência,
tolerância e intolerância na África Romana: identidade e alteridade no epistolário de Agostinho de
Hipona (354-430), que escrevo sob orientação do Dr. Sérgio Alberto Feldman (Departamento de
História/UFES). Como indica o título, utilizo como fonte a correspondência que Agostinho de Hipona
trocou com inúmeros interlocutores, um corpus composto por 307 cartas, incluindo não somente as
cartas do bispo de Hipona, mas também a dos seus correspondentes (ENO, 1999). Ao analisar tais
cartas, o meu objetivo é verificar como conviviam cotidianamente os diversos grupos religiosos da
África Romana, considerando o contexto dacrescenteintolerânciada Igreja e do Impérioemrelação aos
diversos grupos religiosos de então.
Sabemos que o favorecimento do Cristianismo por parte do Imperador Constantino (306-337),
e seus sucessores (à exceção de Juliano), possibilitou um novo arranjo nas relações entre Império e
Igreja, invertendo a posição que os cristãos ocupavam nos séculos anteriores. Aqueles que antes
clamavam pelatolerânciadasautoridades,assumem agora uma nova posição e uma nova atitude,
passando a fomentaraperseguiçãoaospagãos,judeus,cismáticoseheréticos.
O Império, por sua vez, passa a interferir nas disputas internas do Cristianismo e na luta deste
contra o Paganismo. Com Teodósio I (378-395), o Cristianismo torna-se a religião oficial do Império e
os pagãos e hereges passam a ser alvo de franca perseguição. Uma série de medidas legais proíbem o
culto aos deuses, determinam a destruição de templos e instituem punições que vão da aplicação de
multas à execução dos transgressores (SILVA, 2006).
543
Doutorando em História Social das Relações Políticas na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e
professor no programa de Mestrado Profissional em Ciências das Religiões da Faculdade Unida de Vitória. E-mail:
[email protected]
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Entreosteólogos
e
bispos,nãofaltaramaquelesqueprocuraramlegitimaranovasituaçãoedefenderozeloimperialemfavor
da
Igreja oficial. Agostinho foi um dos que, no exercício do seu episcopadoemHipona, na
África,entrouemconflitocomheregesecismáticosesetornouumdosprincipaisdefensoresdaortodoxiacatóli
caedaintervençãoimperialemquestõesreligiosas.Para
ele,
os
desvios
de
fé
eramcrimesaindamaisgravesdoqueofurtoouohomicídio,poisenquantoestesafetavamocorpoeosbensmater
iais,aquelescondenavamaalmaaoinferno.SeaautoridadeinstituídaporDeusdeveriacoibirosúltimos,muito
maislegítimaseriaasuaaçãoparaimpedirosprimeiros.Emboranãodefendesseapenademorte,Agostinhoacre
ditavaqueaviolênciaimperialcontraosheregeseranãosomenteumdever,comotambémumatodeamorparaco
meles.Comoumpaicorrigeseusfilhos,Deuscorrigeosheregesecismáticospelainstrumentalidadedopoderim
perial (GADDIS, 2005).
OsprincipaisargumentosdeAgostinhoemfavordousodaforçacontraosdissidentesdaortodoxiafora
mforjadosnoseuembatecontraosdonatistas,ummovimentoseparatistasurgidodentrodaIgrejaafricananoiní
ciodoséculoIV.Emboraperseguida,aIgrejadonatistafloresceunoNortedaÁfricae,no
início
do
episcopadodeAgostinho,representavaamaiorpartedoCristianismonaregião (FREND, 2002).
Contraessaameaçaàhegemoniacatólica,Agostinhoinsistenaafirmaçãodequeasalvaçãosomentepod
eserencontradadentrodaIgreja
oficialequetodososquepregamdiferentedissodevemserproibidosdefazê-
lo.AsleisdoImpériocontraosheregesecismáticosdevemserfirmementecumpridas,mesmoqueousodaforças
ejanecessário.
A argumentação agostiniana fez uma longa e triste história no seio da cristandade ocidental. O
apelo ao uso da força contra dissidentes em matéria de religião tornou-se lugar-comum nos séculos que
se seguiram. O saldo de intolerância justificado e gerado por suas teses é enorme e não deve ser
minimizado. Em minha pesquisa de Mestrado, analisamos os discursos agostinianos para verificar de
que maneira ele procurou justificar a violência contra os dissidentes da ortodoxia católica
(GONÇALVES, 2009).
Agora,
em
minha
pesquisa
de
doutorado,procuroquestionaraideiadequeaexistênciadeumdiscursointolerantecorresponda,sempre,auma
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práticaintolerante. A escolha do epistolário agostiniano se justifica, uma vez que se trata de um gênero
literário que nos permite acessar, de maneira privilegiada, a vida cotidiana:
Ao ter acesso a esses fragmentos, o historiador espia por uma fresta a vida
privada palpitante, dispersa em migalhas de conversas a serem decodificadas em
sua dimensão histórica, nas condições socioeconômicas e na cultura de uma
época, na qual público e privado se entrelaçam, constituindo a singularidade do
indivíduo numa dimensão coletiva (MALATIAN, 2009, p. 200).
Estas fontes indicam que a intolerância é sempre contra balança da por algum nível de
tolerância, que torna possível a convivência entre grupos dissidentes que não somente disputam, mas
também compartilham o mesmo espaço e têm interesses comuns. O cristianismo imperial não
conseguiu se impor imediatamente e completamente emtodaaextensãodoImpério, pois as dissidências,
sob diversas formas: pagãos, judeus e hereges continuaram a existir, apesar dos esforços do Império e
da Igreja para enquadrá-los dentro dos limites da recém-estabelecida ortodoxia.
De grande importância para o meu trabalho é o conceito de apropriação como aparece na obra
de Michel de Certeau (1994). Em A invenção do Cotidiano, Certeau observa que diante de uma
situação de dominação, acontecem práticas cotidianas que revelam uma apropriação e reapropriação,
por parte dos dominados, daquilo que lhes é imposto. Tomando como exemplo o caso dos indígenas
frente a colonização espanhola, afirma:
Mesmo subjugados, ou até consentindo, muitas vezes esses indígenas usavam as
leis, as práticas ou as representações que lhe eram impostas pela força ou pela
sedução, para outros fins que não os dos conquistadores. Faziam com elas outras
coisas: subvertiam-nas a partir de dentro – não rejeitando-as ou transformandoas (isto acontecia também), mas por cem maneiras de empregá-las a serviço de
regras, costumes ou convicções estranhas à colonização da qual não podiam
fugir. Eles metaforizavam a ordem dominante: faziam-na funcionar em outro
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registro. Permaneciam outros, no interior do sistema que assimilavam e que os
assimilava exteriormente. Modificavam-no sem deixá-lo. (CERTEAU, 1994, p.
94-95)
Também faço uso da distinção que Certeau faz entre estratégias e táticas. As primeiras são
construídas a partir de cima e pressupõem um lugar de poder, de onde se pode gerir as relações com
um outro que lhe é exterior e que é visto como alvo ou ameaça.
A tática, ao contrário, é a ação calculada a partir de baixo, sem autonomia e que age no campo
que lhe é imposto, controlado pelo outro. Por isso, aproveitas as ocasiões, age de acordo com as
circunstâncias, pois não lhe é dado construir um projeto global. Vive, astuciosamente, daquilo que lhe
é dado. Enquanto a tática é a arte daquele que não tem poder; a estratégia é organizada a partir do
pressuposto do poder. Estas elaboram sistemas e discursos totalizantes, privilegiam o espaço. Aquelas
procuram usar com habilidade o tempo, as oportunidades que surgem e que lhe podem ser favoráveis
(CERTEAU, 1994).
Na África do Norte, nos tempos de Agostinho, as estratégias pertenciam ao poder estabelecido na
Igreja e no Império. Era esse poder, localizado nestas instituições, que determinava o regime de
verdade que validava certos discursos em detrimento de outros (FOUCAULT, 1979). Agostinho, como
bispo católico, falava em nome dessa verdade e seu discurso visava esclarecer e estabelecer o lugar e o
dever de cada um.
Aos “outros” - hereges, pagãos, judeus – restavam as táticas, as apropriações e reapropriações
desse discurso em seu próprio favor, tornando possível, ainda que de forma precária, a tolerância e a
convivência face aos discursos e práticas intolerantes da Igreja e do Império.
Na África Romana a realidade, era de intenso conflito religioso. Antes do governo de Constantino, as
perseguições aos cristãos deixaram marcas profundas, tanto no número de mártires, quanto no número
de traditores544 que produziram. Após a Cristianização do Império, a Igreja cristã se viu dividida entre
católicos e donatistas, num conflito que durou até a chegada dos árabes.
544
Traditores eram os cristãos que, durante a perseguição de Diocleciano (284-305), entregaram às autoridades os
livros e os utensílios sagrados para escapar do martírio.
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Além do cristianismo, compunham o cenário religioso da África Romana o judaísmo, o culto às
divindades romanas e, é claro, os cultos às divindades autóctones (MAHJOUBI, 2010). Este conjunto
de crenças e cultos coexistindo num mesmo espaço geográfico e cultural no qual apenas uma delas – o
cristianismo católico – tem o reconhecimento oficial era, fatalmente, campo para o conflito.
Entretanto, era necessário também conviver, pois, afinal de contas, as pessoas precisavam trabalhar,
constituir família, administrar os negócios públicos. Como conviver, então? Como poderiam aqueles
que não pertenciam a Igreja oficial enfrentar a intolerância e driblar as interdições que pesavam sobre
eles por causa de sua condição de “pagãos”, “hereges” ou “cismáticos”? Que táticas, no sentido acima
definido, podiam ser utilizadas a fim de permitir a estes grupos conviver e sobreviver?
Como exemplo desse tipo de tática, podemos citar um parágrafo da Epístola 33, de Agostinho a
Proculeiano, bispo donatista de Hipona. A carta é de 396, início do episcopado de Agostinho. Assim
ele relata a atitude daqueles que o procuram como bispo a fim de resolver demandas seculares:
Os homens desejam trazer a nossa presença os pleitos seculares quando
precisam de nós para resolvê-los; então, nos chamam santos e servos de Deus,
para que realizemos os negócios de seu interesse terreno. Realizemos. por fim,
o negócio da nossa salvação e da deles; não se trata de ouro, nem de prata, de
campos ou de gado, coisas todas pelas quais cada dia nos saúdam com a
cabeça inclinada, para que resolvamos suas contendas humanas; se trata da
nossa mesma Cabeça neste torpe e daninho pleito que há entre nós. Por mais que
baixem a cabeça os que nos saúdam para que os levemos a um acordo neste
mundo, não chegaram à humildade da nossa Cabeça, que se abaixou do céu até a
cruz; e entretanto, não entramos em acordo em relação a esta Cabeça. (Ep. 33,5.
Grifo nosso)
Este pequeno texto é bastante revelador de uma tática cotidiana usada pelos donatistas a fim de
poder resolver seus negócios perante os bispos católicos. Como se, sabe, a partir de Constantino, os
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bispos foram reconhecidos como possuidores de um certo poder judicial, capaz de resolver pendências
seculares antes que elas fossem levadas à justiça comum. A eles recorriam tanto cristãos, quanto
pagãos; ortodoxos ou heréticos (SILVA, 2006).
O trecho da Epístola 33 mostra como os demandantes se portavam diante do bispo quando
estava em jogo seus negócios seculares: chamavam-no “santo e servo de Deus” e também os saudavam
com a cabeça inclinada, num gesto de submissão. Ora, tais gestos se enquadram bem naquilo quePierre
Mayol apresenta como a conveniência, definida como “o gerenciamento simbólico da face pública de
cada um de nós desde que nos achemos na rua” (2009, p. 49). Essa arte do conviver, que produz
comportamentos estereotipados, tem como principal suporte o corpo, cujos gestos são códigos
socialmente compartilhados e, portanto, compreensível pela maioria das pessoas. O gesto de inclinar a
cabeça, acompanhado de palavras religiosas de adulação (“Santo e servo de Deus”) para se saudar um
bispo, mesmo que não se faça parte de sua igreja, era muito mais de uma demonstração de educação ou
respeito; era uma tática, através da qual se pretendia poder usufruir do benefício de ter a sua causa
julgada favoravelmente. O desgosto de Agostinho era que essa mesma reverência não se manifestava
quando o assunto era a religião e as questões relacionadas à salvação da alma.
Um outro caso interessante é tratado nas Epístolas 46 e 47, que correspondem ao diálogo entre
Agostinho e um certo Publícola, por volta de 398. Publícola era um proprietário de terras da região de
Arzuges, localizada provavelmente no sul da Tunísia ou na parte ocidental da Líbia (UHALDE, 2011).
A Epistola 46, que ele envia a Agostinho, está repleta de questões de natureza religiosa, que traduzem
as ansiedades de um cristão, provavelmente recém-convertido, diante da necessidade de conviver e
negociar com os “bárbaros” de além da fronteira. Entre as questões levantadas, está a seguinte:
Em Arzugues, segundo tenho ouvido, os bárbaros costumam prestar juramento
por seus demônios, ante o decurião da fronteira ou ante o tribuno. Se os
contratam para conduzir a carreta ou para cuidar dos produtos, de modo que os
proprietários e contratadores costumam contratá-lo como leais e os viajantes o
tomam como guias de confiança quando possuem uma carta do decurião. Agora
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me nasce está dúvida no coração: o proprietário que contrata um bárbaro, cuja
lealdade lhe parece firme porque jurou por seus demônios, não termina ele
mesmo maculado, assim como seus produtos, ou o viajante a quem o bárbaro
serve de guia? (Ep. 46,1).
Em sua resposta a esta questão, na Epístola 47, Agostinho afirma:
[…] quem se utiliza da fé daquele que jurou pelos deuses falsos, e a utiliza, não
para o mal, mas para o que é que é lícito e bom, não participa do pecado de
quem jurou pelos demônios, mas do bom propósito de quem guarda a fidelidade
[…] Não resta dúvida que é um mal menor jurar com verdade por um deus falso
do que jurar com mentira pelo Deus verdadeiro. (Ep. 47,2).
O relato dos acontecimentos da fronteira que perturbam Publícola bem como a resposta
condescendente de Agostinho, apontam para uma atitude que parecia ser comum no trato entre cristãos
e bárbaros, especialmente em regiões de fronteira e nas quais estão em jogo tanto a segurança das
pessoas, quanto das preciosas cargas comercializadas. Trata-se, antes de tudo de uma atitude
pragmática, uma das características da vida cotidiana. Tal pragmatismo permitia aos cristãos e aos
bárbaros recorrerem a uma prática comum que garantia a lealdade das partes envolvidas num contrato
de negócio, a prática de prestar juramentos, ainda que discordem a respeito das divindades neles
invocadas (UHALDE, 2011). Na cultura romana, a prática do juramento era um instituto tanto
religioso, quanto jurídico e dizia respeito não aos deuses em si, mas as pessoas que, por meio do ato
solene, se comprometiam com aquilo que juravam. Era, antes de tudo, uma questão de fides, de
fidelidade (AGAMBEN, 2011). Agostinho manifesta esta compreensão e a usa para tranquilizar a
consciência cristã de seu interlocutor.
Podemos falar aqui novamente de conveniência, visto que as partes envolvidas nos negócios
compartilhavam um código comum de práticas e signos, os quais procuravam obedecer a fim de
viabilizar a vida cotidiana. Interessante notar que, nesse caso, é a parte cristã que se encontra no poder
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que se adapta a uma prática pagã, pois aceita o juramento feito em nome dos deuses tradicionais
daquelas pessoas. Isto é compreensível, considerando a situação de fronteira na qual eles estão
situados, na qual a capacidade do poder Imperial e da Igreja em impor suas regras é menor. A
conveniência é uma via de mão dupla.
Um último caso que gostaríamos de citar aparece nas Epístolas 22 e 29 dirigidas
respectivamente, a Aurélio (bispo de Cartago) e a Alípio (bispo de Tagaste). A primeira é de 391 e a
segunda de 395. A questão que nos chama a atenção diz respeito à forma como o povo celebrava a
festa dos mártires na África cristã. Agostinho manifesta a sua indignação ao dizer: “As comilanças e as
bebedeiras são tidas por autorizadas e lícitas, até o ponto de serem celebradas em honra dos santos
mártires; e não somente nos dias de festa (quem não o lamentaria, se não o vê com os olhos carnais?),
senão cotidianamente.” (Ep. 22, 3). Tais atitudes, prossegue Agostinho mais adiante, “tem o povo
indouto por honra aos mártires e até para a consolação dos mortos” (22,6).
Esse costume, conhecido como laetitiae, era um dos mais arraigados do cristianismo africano
e remontava às antigas práticas locais de veneração aos mortos (BROWN, 2005). Em 394, Agostinho o
enfrentou e o proibiu, mas não sem custo, como escreve a Alípio dizendo que “certos indivíduos se
haviam alvoroçado, protestando que não podiam tolerar a supressão daquela solenidade que eles
chamam laetitiae” (Ep. 29,2). Em seguida, o bispo de Hipona relata o sermão que pregou no primeiro
domingo da Quaresma daquele ano, baseado na passagem do Evangelho que fala da expulsão dos
vendilhões do Templo e rico de alusões a outras passagens bíblicas que condenavam a embriaguez.
Apesar da comoção geral, os protestos contra a proibição continuaram no dia seguinte, o que exigiu de
Agostinho nova investida de retórica sacra. Segundo o seu relato, os reclamantes cederam às
exortações do seu bispo e somente os donatistas prosseguiram com o costume (29,8-11).
Observamos aqui que aquele costume era indício de uma permanência pagã no seio da
religião cristã, que podemos interpretar como uma forma através da qual aquelas comunidades
africanas mantinham vivas suas tradições ancestrais a partir de uma tática de apropriação do
imaginário cristão, revelando a distância existente entre o ideal de pureza doutrinária do bispo e as
práticas cotidianas dos seus fiéis.
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Como é possível notar nos três exemplos citados, o ambiente geral era de conflito e intolerância ou, na
melhor das hipóteses, de uma tolerância muito restrita. É digno de nota que Agostinho, representando
bem o pensamento do clero católico, deseja restringir ainda mais essa tolerância. Aos que se achavam
do outro lado da situação – donatistas, pagãos, hereges e judeus – agir com astúcia, procurando tirar
vantagem dos poucos e incertos espaços que lhes restavam.
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A BUSCA PELA UNIDADE POLÍTICA E RELIGIOSA: IGREJA E MONARQUIA NA
GALIZA DA SEGUNDA METADE DO SÉCULO VI.
Juliana Bardella Fiorot545
Introdução
Os primeiros séculos da Idade Média apresentaram-se como um período de desafio para a
Igreja Católica. Durante o Império Romano o cristianismo era considerado a religião oficial e a Igreja
mantinha uma relação próxima com os governantes. Com as invasões bárbaras somadas as mudanças
geopolíticas de território e o paganismo arraigado principalmente entre as populações rurais, a Igreja
perdeu grande parte do seu prestígio e se viu em uma encruzilhada: era necessário adaptar-se aos
novos tempos ou sucumbir as recentes transformações.
A Igreja Católica vislumbrou na unificação política do reino suevo o passo essencial para a
concretização de seus objetivos. O apoio da monarquia seria fundamental para legitimar as ações da
Igreja, no entanto, era necessário que houvesse entre estas duas instituições uma relação forte e
equilibrada. Portanto, nosso objetivo será o de demonstrar, ao longo do artigo, como ocorreu a
aproximação entre Igreja e Monarquia de forma gradativa, culminando em uma crescente interferência
eclesiástica no âmbito político a medida que a Igreja se esforçava na sua ação pela unidade.
Discutiremos ainda a questão da reorganização da Igreja através do seu projeto de
evangelização e convocação de concílios visando a instrumentalização e uniformidade do clero.
Daremos uma atenção especial para a figura de Martinho de Braga546 que foi extremamente atuante em
545
Mestranda em História pela Universidade Estadual Paulista (Unesp/Assis).Email: [email protected].
Martinho de Braga, homem letrado, teria nascido na Panônia entre 518 e 525, durante sua vida realizou diversas viagens
que contribuíram para sua formação clássica. Martinho teria viajado até a Galiza por estímulos divinos e teria sabido que o
reino suevo estava afastado da fé católica. Foi fundador de diversos mosteiros e ascendeu ao cargo de bispo de Braga após
reconhecida atuação religiosa na Galiza. Entre seus principais escritos podemos destacar: Formula vitae honestae, De
superbia, De ira e os Capitula Martini.
546
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todo o processo de reorganização da Igreja, obtendo destaque na tarefa de evangelização e
aconselhamento do monarca suevo Miro (570-583).
A relação entre Monarquia sueva e Igreja
No período de assentamento dos suevos na Península Ibérica as bases monárquicas do reino
organizaram-se criando um espaço para que a atuação da Igreja dentro da esfera política se fizesse de
forma gradual. Destacaremos ainda os efeitos tímidos das primeiras conversões realizadas no reino
suevo, mas que preparariam o ambiente para o andamento do projeto de unificação política e religiosa.
Os suevos teriam penetrado na Península Hispânica no ano de 409, tendo sobrevivido do saque
por um longo período, o que dificultou a fixação em um território. Em relação as demais tribos
germânicas, no que concerne ao tamanho e riqueza, os suevos estavam em desvantagem, portanto as
zonas menores e menos ricas da península foram destinadas a eles no período de distribuição de
territórios, quando Constantino teria cedido algumas províncias espanholas aos bárbaros (Rodriguez,
1977: 49). Assim sendo, o núcleo de ocupação dos suevos passou a ser a Galiza onde o reino pôde
efetivamente se desenvolver.
Durante o período de assentamento e organização dos suevos, que praticamente durou um
século e meio, verificamos que a postura da Igreja foi de afastamento com relação aos assuntos
políticos do reino. Este fato possibilitou a manutenção das características principais referentes ao modo
como a monarquia sueva estava organizada, no qual destacamos a valorização do elemento militar e a
hereditariedade como os critérios válidos para a sucessão do trono. Estas características são de origem
romana, o que atesta a influencia do Império na organização monárquica sueva, revelando traços da
romanização presentes também entre os germanos em geral. Renan Frighetto (2000: 50) expõe esta
questão: a forma de escolha do rex entre as tribos germânicas foi magistralmente descrita por Tácito
em sua Germania no século I d.C. Dentre os membros duma ‘nobreza de sangue’ elegia-se o ‘rei do
povo em armas’ aquele que guiaria o povo numa campanha militar. Portanto, a eleição do rei entre os
germanos estava diretamente associada a guerra, sendo ele um autentico primus inter pares daquela
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nobreza de ‘sangue’ e das clientelas a ela vinculadas com a função específica de conduzi-las em ações
de cunho militar.
Para demonstrarmos de forma clara como o critério de valorização militar e hereditariedade era
aplicado no reino suevo, destacamos as reflexões de Leila Rodrigues da Silva (2008: 39) acerca do
monarca Hermerico (primeiro rei a governar o território galego): (...)acreditamos que Hermerico
associou à sua procedência de uma stirps regia o reconhecimento militar que usufruía e introduziu,
como critério sucessório prioritário, a hereditariedade, ainda que tal prática não tenha se constituído
como algo comum nos anos iniciais dos demais reinos germânicos.
Os critérios de sucessão expostos acima se fizeram presentes em toda a dinastia da família de
Hermerico, envolvendo seu filho Réquila e seu neto Requiário. No entanto, um vazio documental
significativo (entre 469 e 570) acerca dos suevos nos impossibilita de averiguar a continuidade de
tais critérios de sucessão se prolongando por outras dinastias deste reino durante este intervalo de
tempo.
Se durante um século e meio a postura da Igreja foi de afastamento em relação ao reino suevo,
esta situação tenderá a mudar a partir das conversões dos monarcas visando determinados objetivos. A
primeira conversão ao catolicismo aconteceu em 449, ou seja, no governo do monarca Requiário
(pagão). Tal conversão foi considerada um acontecimento de grande importância para o período, pois
segundo Casimiro Torres Rodriguez (1977:112) “(...) produziu a fusão dos suevos com os galegos; a
maior parte dos suevos começa a constituir a aristocracia galega”. Percebemos, portanto, o início da
assimilação entre os germanos recém chegados ao território e a aristocracia local; este acontecimento
contribuiria para a unidade política do reino, não provocando disputas entre estes grupos além do fato
de que a monarquia passaria a ganhar o apoio da população cristã galaico-romana. Um outro momento
de conversão ocorrido durante o reino suevo aconteceu durante o governo do monarca ariano
Remismundo que converte-se ao catolicismo por volta de 466. Esta conversão estaria relacionada,
segundo Rodriguez (1977:197), ao casamento entre este e a filha de Teodorico II (visigodo). No
entanto, tal conversão não surtiu grandes efeitos no reino, ficando restrita apenas a nobreza palaciana e
militar (Silva, 2008: 46).
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Os resultados obtidos com as conversões até então realizadas no reino suevo não foram de
muito impacto para que a aliança entre monarquia e Igreja se efetiva-se, mas estas preparariam o
ambiente para que, de forma gradativa, as autoridades políticas e religiosas se unissem. No entanto, a
partir do reinado de Ariamiro (558-561), as relações entre Igreja e Monarquia se tornarão mais
próximas quando ocorre a participação deste monarca no primeiro Concílio de Braga. Os monarcas
posteriores547 a Ariamiro consumarão a aliança entre monarquia e Igreja alterando os rumos até então
tomados pelos governantes acerca do processo de unificação.
Durante o reinado de Miro, os suevos, ameaçados pelas forças visigodas de Leovigildo vão
procurar apoio entre os católicos francos e bizantinos. A partir deste momento a monarquia sueva
decide empreender um novo rumo ao seu projeto de unificação. O problema religioso também passou a
ser uma questão que interessava aos governantes. A cristianização possibilitaria aliados no campo
militar e proporcionaria uma maior assimilação entre as populações da Galiza (relação já iniciada
durante o governo de Requiário, mas que se estendeu somente ao âmbito da aristocracia). A
uniformidade da fé traria a unificação política tão desejada pelos suevos. No entanto, a Igreja não
concordava que apenas a hereditariedade e a valorização do elemento militar fossem suficientes para
garantir o fortalecimento do reino suevo e consequentemente sua unificação. Era preciso que o
monarca tivesse características cristãs e se comportasse como um instrumento de Deus garantindo
legitimidade a sua monarquia. Ao rei germano interessava estar em um patamar superior dos demais
membros da nobreza e as conversões garantiam a legitimidade da monarquia perante Deus, sendo
envoltas com o ritual da sagração que tornava o rei um verdadeiro ungido do Senhor. A partir de então
a Igreja passa a cuidar da formação intelectual dos monarcas como trataremos mais especificamente ao
longo do artigo.
A organização da Igreja na Galiza e os desafios enfrentados para a efetivação da unidade
religiosa.
547
Estamos nos referindo aos reis Teodomiro (561-570) e Miro (570-583)
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Especificamente no reino suevo os problemas enfrentados pela Igreja eram diversos,
impossibilitando a reorganização e fortalecimento da instituição. Como aponta Silva (2007:208):
“Neste contexto, destacaram-se as dificuldades inerentes ao débil grau de cristianização da Galiza e à
não manutenção do funcionamento regular das instâncias eclesiásticas.”
Os galegos tinham a religiosidade extremamente arraigada em seu cotidiano e a introdução de
uma nova fé não seria suficiente para convencê-los de que o cristianismo era melhor. Como a atividade
principal dessas populações estava ligada a terra, a maioria de seus cultos possuía uma vinculação com
as forças da natureza. Destacamos ainda que o problema do paganismo não era exclusivo nem da
época e nem restrito somente a região da Galiza. A religiosidade popular548 estava permeada em todos
os estratos sociais e impregnada no cotidiano daquelas populações há vários séculos. Percebemos o
quão difícil seria evangelizar549 estes povos para que enfim “aceitassem” o catolicismo como a
verdadeira e única religião.
Visando a instrumentalização, a uniformidade do clero e a discussão dos problemas que
desafiavam o projeto de unidade religiosa da Igreja no reino suevo, analisaremos os dois principais
concílios ocorridos na Galiza levando em consideração o período que compreende este estudo.
Primeiramente um fato de grande relevância merece ser notado a respeito dos dois concílios
que analisaremos a seguir. Os dois concílios foram realizados respectivamente nos anos de 561
(primeiro Concílio de Braga) e 572 (segundo Concílio de Braga). A primeira vista a data da realização
dos concílios é algo que merece ser notado, já que em um intervalo de onze anos tivemos a segunda
edição com um maior número de participantes (oito bispos no primeiro concílio e doze no segundo).
Isto nos mostra um fortalecimento da Igreja local empenhada em combater seus inimigos (paganismo e
priscilianismo) além de reforçar as regras de conduta do clero, o que garantiria uniformidade no
Segundo Oronzo Giordano a expressão “religiosidade popular carece de um significado unívoco, de um conteúdo
preciso, e nem sempre é aceita e compartilhada pacificamente por todos os estudiosos. (...) A religiosidade humana, no
sentido mais amplo da palavra, tem fontes profundas e variadas, que coincidem com a condição existencial do homem e
implicam na questão do seu próprio destino.” - Religiosidad popular en la Alta Edad Media. Madrid: Editorial Gredos,
1983, páginas 10-11.
549
Podemos pensar o conceito de evangelização como a ação da Igreja ao tentar levar os ensinamentos e a mensagem do
Deus católico, contida nas Sagradas Escrituras, aos povos considerados pagãos.
548
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comportamento destes. Para Silva (2007: 211) “o segmento episcopal institui regras e busca garantir o
cumprimento do estabelecido, condição necessária a sua coesão, estabilidade e fortalecimento.” Este
esforço de instrumentalização do clero serviu para que os membros da Igreja renovassem sua
consciência a respeito das práticas, sendo portanto, mais eficientes e seguros no trabalho de
evangelização dos fiéis em potencial.
Entre as regras estabelecidas pela Igreja nos concílios citados acima, destacamos a preocupação
com o priscilianismo550. No primeiro Concílio de Braga dos vinte e dois cânones que integram as atas,
dezessete referem-se ao priscilianismo, inclusive estipulando penas aos clérigos infratores que
compactuarem com esta doutrina:
(...) cualquier clérigo o monje o incluso seglar que se descubriere que todavía
cree o defiende algo semejante, como um miembro verdaderamente podrido sea
cortado inmediatamente del corpo de la Iglesia Católica, evitando de este modo
que su compañia inocule su malicia a los que creen rectamente, o que em ló
sucesivo a causa de la convivência com estos tales se siga algún oprobio para los
ortodoxos.551
O restante das atas referem-se ao modo comum como os bispos deveriam se cumprimentar, a
maneira correta do uso da estola, as formas de conduzir uma missa e um batizado, comportamento em
caso de mortes, etc.
Com relação ao segundo Concílio de Braga, presidido pelo bispo Martinho, destacamos que as
atas se compuseram de dez cânones sendo anexados a estes os Capitula Martini552 que focam na
550
O Priscilianismo, movimento condenado e considerado herético pela Igreja foi criado por Prisciliano de Ávila. Tem
como idéia principal a crença de que Pai, Filho e Espírito Santo formariam uma única pessoa. Teorias como do autor Lopez
Caneda (LOPEZ CANEDA, Prisciliano y su problema histórico. Salamanca, 1966, p.71) consideram a Galiza como a terra
pátria de Prisciliano relacionando-a ainda com a origem deste movimento. Os ensinamentos de Prisciliano tornaram-se
mais fortes principalmente após a morte deste que foi considerado um mártir pela população. Mas ainda hoje é uma
controvertida questão e discute-se sobre sua verdadeira ou não heterodoxia.
551
Segundo Concílio de Braga, 01.
552
Os Capitula Martini são uma tradução, feita por Martinho de Braga, de santos cânones do Oriente que, originalmente,
estavam na língua grega e foram traduzidos para o latim pelo bispo.
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questão da instrução clerical, dando atenção ainda para as proibições do clero com relação a feitura de
práticas mágicas ou a crença em qualquer forma de superstições, tais como encantamentos, ligaduras,
celebração e missa diante de túmulos, festejar as calendas, recorrer a ervas medicinais, etc.. Já as
preocupações discutidas nas atas demonstram serem praticamente as mesmas apontadas durante o
primeiro concílio. O enfoque maior se deu na proibição de que os bispos não recebessem nenhum
dinheiro por desempenharem suas funções como, por exemplo, nas cerimônias de crisma ou nos
batizados.
Após estas reflexões notamos que o processo de organização da Igreja constituiu-se como uma
tarefa árdua. O problema da religiosidade popular ainda se arrastará por séculos na Galiza e não será
efetivamente erradicado. No entanto, o próprio relaxamento do clero nas mais diversas situações, como
exposto acima, nos indica a falta de preparo da Igreja para a tarefa da evangelização. Para que a
unidade religiosa fosse alcançada um respaldo político era necessário, mas não suficiente para a
concretização deste objetivo. Seria necessária ainda uma reforma dentro da própria Igreja como
atestaram as discussões dos concílios analisados neste item.
A atuação de Martinho de Braga: a religiosidade popular e o modelo de monarca.
Martinho de Braga é reconhecido por sua atuação incansável no processo de organização e
fortalecimento da Igreja na Galiza, portanto não tratar das questões que envolvem seu nome no
processo de unificação religiosa desta região seria deixar uma lacuna neste estudo. No entanto,
devemos ter cautela ao indicarmos que qualquer tipo de sucesso obtido nesta empreitada tenha sido
obra somente do bispo em questão. Na verdade, Martinho só obteve resultados positivos em sua tarefa
porque a Galiza já desfrutava de um ambiente propício para que as ações do bispo de Braga fossem
recebidas e se desenvolvessem com maior facilidade. Como atesta Leila Rodrigues da Silva
(2008:100):
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(...)precisamos lembrar que o fato de não dispormos de obras literárias de
outros religiosos na região não pode ser interpretado como resultado de sua
omissão no processo de reorganização e fortalecimento da Igreja e da aliança
que esta instituição estabeleceu com a monarquia. A participação crescente das
autoridades locais pode ser verificada, entre outros exemplos, pelo aumento do
número de participantes no II Concílio de Braga em relação ao primeiro, bem
como na solicitação de orientações que fizeram a Martinho de Braga.
Martinho de Braga priorizou algumas frentes de ação para a consolidação da unidade religiosa
do reino. Destacaremos nas próximas páginas o trabalho do bispo no mosteiro de Dume bem como a
instrumentalização do clero, evangelização das populações rurais e a relação do bispo com o monarca
suevo Miro.
Ao chegar a Galiza, por volta de 550, Martinho teria se estabelecido em Dume onde um
mosteiro de mesmo nome seria construído através de recursos financeiros obtidos junto aos monarcas.
Foi nomeado abade do mosteiro e tratou de transformar o mesmo em uma espécie de escola, onde a
instrumentalização do clero seria feita através do aperfeiçoamento doutrinal e leitura e análise de obras
latinas. Martinho não teria formulado uma regra monástica a ser seguida pelos clérigos no mosteiro,
mas trabalhou na tradução de partes do manuscrito sobre a Vida dos Padres do Deserto que acabaria
servindo de base aos ensinamentos necessários. Esta obra, originalmente em língua grega, teria sido
trazida do Oriente pelo próprio Martinho. A Vida dos Padres do Deserto abordaria questões como a
penitencia, caridade, oração, pobreza, trabalho manual e outros tantos temas relacionados a doutrina e
os ensinamentos dos abades egípcios. Este manuscrito teria se espalhado pelos demais mosteiros que
integravam a Galiza o que garantiria uma homogeneidade de comportamento e doutrina entre os
eclesiásticos da região.
A Igreja, portanto, possuía o monopólio do ensino e visava a uniformidade de comportamento
dos membros do clero. Com a morte do bispo Lucrécio, metropolitano de Braga, Martinho assume
também esta nova função acumulando os cargos de abade e bispo.
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A evangelização das populações galegas por Martinho de Braga era vista como essencial, já
que estas pessoas representariam fiéis em potencial que iriam aderir ao projeto de unidade católica ao
professarem a nova fé. Seu esforço pela evangelização renderá uma obra extremamente conhecida
escrita pelo bispo e intitulada “De correctione rusticorum” (Da correção dos rústicos). Este sermão
foi escrito, por volta do ano de 572, a pedido de Polêmio, bispo de Astorga, que teria solicitado a
Martinho instruções sobre a correção dos “rústicos”. A intenção de Martinho era fazer uma obra
pastoral que instruísse este baixo clero com todas as proibições e obrigações necessárias a um bom
católico. As instruções do sermão seriam repassadas por este clero ao restante da população. No
entanto, devemos atentar para o fato de que a intenção de Martinho não era destruir as formas de
religiosidade praticada pelos galegos, pois como já dito, muitos membros do clero secular também a
praticavam, porém ele alerta que essas crenças são mal orientadas, devendo substituir o culto aos
falsos deuses da natureza pela verdadeira simbologia cristã, como as cruzes, os santos e as orações, por
exemplo. Os elementos ligados a natureza e cultuados pelos galegos não eram bem vistos por
Martinho, pois para ele, a natureza foi criada pelo Senhor e ele deveria ser o cultuado.
No sermão, o bispo de Braga concentra-se em inculcar algumas lições de moral comprovandoas com textos bíblicos, além de frisar, por muitas vezes, que a idolatria era obra demoníaca acusando
que a religiosidade praticada pelos galegos era o oposto daquilo que se deveria seguir para se chegar
ao Paraíso e evitar o inferno.Refletindo sobre a dificuldade dos galegos em adotar uma nova crença
com promessas de uma vida melhor e garantias de salvação, podemos perceber que talvez o
monoteísmo pregado pela Igreja não fosse tão atrativo para a população em geral. A idéia de que Deus
era o único responsável em gerir e garantir que tudo funcionasse no cotidiano dos galegos talvez
gerasse desconfiança, já que seriam muitas tarefas para que um único Deus atendesse a todos.
Veremos, assim, que a Igreja passa a adotar os santos, intermediários entre os homens e Deus, tendo
estes as mesmas funções que os deuses pagãos ao receberem os mais variados tipos de desejos e preces
dos galegos.
O problema da religiosidade popular ainda vai perdurar por um longo período no medievo.
Apesar da intensa relação entre a monarquia sueva e a Igreja em busca da unidade, a religiosidade
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continuará a ser praticada com intensidade não somente na Galiza, mas em muitas partes da Europa.
De fato, o problema da religiosidade popular constituiu-se como o grande desafio enfrentado pela
Igreja no período e nem a interferência ou o exemplo dos monarcas suevos contribuirá de maneira
considerável para que este problema seja sanado de forma completa.
Por fim, destacaremos a atuação de Martinho de Braga na escrita de obras dedicadas ao ideal de
monarca. No entanto, devemos nos perguntar primeiramente qual a intenção da Igreja em moldar os
governantes do reino suevo. Como já exposto no artigo, a valorização do elemento militar e a
hereditariedade como critério para legitimar o rei como governante não eram suficientes para a Igreja.
Para a efetivação da unidade política o monarca deveria estar em conformidade com o cristianismo.
Portanto, era necessário que este se tornasse um rei idealizado, isento de vícios e repleto de virtudes.
Martinho de Braga dedicou-se, portanto, a escrita de várias obras visando a elaboração de um modelo
de monarca ideal segundo os critérios do cristianismo. Silva (2008:102) analisa os objetivos de
Martinho com a escrita das obras que compunham o modelo de monarca ideal:
(...)Martinho ressaltou também a ideia de que cabia ao monarca um
comportamento capaz de suscitar o respeito e a admiração de todos aqueles que o cercavam. Estas
pessoas deveriam, pois reconhecê-lo como uma referencia de conduta. Dessa forma, buscava-se não
apenas a preparação de um governante de valores com o modelo apresentado, mas também a
introdução de valores para o homem comum, cujo exemplo a ser seguido contribuiria para a
cristianização.
Ressaltamos ainda que Martinho de Braga representou o auge da atuação eclesiástica no âmbito
da política ao propor o modelo de monarca. Assim, o espaço de atuação da Igreja cresceu a medida que
os eclesiásticos acumularam a função de conselheiros do monarca:
(...)a ação eclesiástica pode se manifestar na constituição de mecanismos de
influencia junto as autoridades políticas. Ao longo do processo de reorganização e fortalecimento da
Igreja na região, tais mecanismos puderam ser desenvolvidos e aperfeiçoados. Dessa forma, os
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religiosos passaram a desfrutar de um espaço de atuação crescente favorecido pela possibilidade de
orientação espiritual, participação na formação intelectual e aconselhamento pessoal das autoridades
políticas do reino. (Silva 1997:10)
Dentro do corpus Martiniano ressaltamos que as obras dedicadas visando um modelo de
monarca são: Formula Vitae Honestae, Exhortatio humilitatis, De superbia e Pro repellenda iactantia.
O modelo de monarca, proposto pelo bispo de Braga, não encontrava-se portanto em apenas uma obra.
Martinho dedicou-se a discorrer uma série de escritos tendo como objetivos principais expor a ideia de
um monarca que deveria ser um exemplo a ser seguido além de uma concepção moral de monarquia.
Pretendemos fazer uma breve análise sobre as obras dedicadas ao monarca Miro, para tanto,
destacaremos os eixos principais de cada uma delas. Na maioria de seus escritos o bispo dedicava as
linhas iniciais para referir-se a pessoa a quem a obra estava sendo dirigida. Com relação a Formula
Vitae Honestae notamos que esta foi escrita a partir de um pedido do próprio rei Miro a Martinho de
Braga:
No ignoro, Rey clementísimo, que la ardentísima sed de tu espíritu procura permanecer
insaciablemente em las copas de la sabiduría, y que andas ansiosamente en busca de las fuentes de
donde manan las águas de la ciência moral. Y por eso, muchas vezes estimulas a mi pequeñez com tus
cartas a que escribiendo com frecuencia alguna carta a tu alteza, te dirija algunas palabras bien sean de
consuelo o de exhortación.553
Em Formula Vitae Honestae quatro características principais são elencadas por Martinho e que
deveriam ser seguidas pelo rei suevo. Destacamos: a prudência, a magnimidade, a continência e a
justiça.
Com relação a prudência, o bispo de Braga aconselha o monarca a ser prudente em suas
decisões. O correto seria que o governante refletisse sobre suas possibilidades e tomasse suas próprias
decisões, pautando-se sempre na razão e não na dúvida; seria necessário refletir sobre o passado para
tomar as decisões corretas no presente (evitando cometer os mesmos erros passados) que por sua vez
553
MARTINHO DE BRAGA, Formula Vitae Honestae, 01.
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influenciaram o futuro do reino. O monarca deveria ainda ter precaução ao emitir suas opiniões a
alguém ou sobre algo. Segundo Silva (2008:109):
(...)a definição de prudência, presente no modelo de monarca elaborado no
reino suevo, indicava um comportamento vinculado a uma vivência de acordo com a razão e orientada
na busca de verdade, e não da dúvida; da essência e não da aparência; do duradouro, e não do efêmero;
do equilíbrio, e não dos excessos.
No que se refere a magnimidade o bispo ressalta a coragem e a clemência como necessárias a
um bom governante. Miro, não deveria guiar-se somente pelos seus impulsos guerreiros; a coragem
deveria ser prezada, mas a astúcia em excesso deveria ser evitada. Em situações difíceis o monarca
deveria optar pelo perdão ao invés da vingança, mantendo assim a serenidade e uma conduta honrosa
(Silva, 2008: 111). A continência ressaltada pelo bispo sugere, tal como a magnimidade, uma conduta
serena, no qual os impulsos deveriam ser evitados para que a moderação se fizesse presente durante o
governo do monarca. Além disso, Martinho frisa que o governante deve ter cautela com os falsos
elogios recebidos, não permitindo que estes influenciassem nas decisões de seu governo.
Para Martinho de Braga, a justiça estaria vinculada ao divino, sendo o monarca um instrumento
da vontade de Deus procurando ser justo com a população do reino e punindo, quando necessário,
aqueles que prejudicassem a harmonia política e social. No caso da justiça aplicada aos galegos que
não partilhavam do cristianismo o monarca foi considerado um instrumento de autoridade pelo bispo
de Braga:
No caso do reino suevo, sabemos que a religiosidade das populações visadas pelo processo de
cristianização abarcava, sobretudo entre os habitantes do meio rural, práticas priscilianistas e pagãs.
Assim, ao sublinhar a validade da justiça cristã para os que não compartilhavam da fé católica,
Martinho conferia a Miro um instrumento de ação junto a todos os habitantes do reino,
indiscriminadamente. Em outras palavras, oferecia-se ao monarca suevo, desde que estivesse pautado
no conjunto de orientações presente nas obras a ele dirigidas, um importante instrumento ideológico de
reforço a legitimação de sua autoridade.(Silva 2008: 119)
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Assim como as virtudes anteriormente abordadas são de extrema importância para a
modelagem do monarca suevo, destacamos ainda a humildade presente na Exhortatio humilitatis. Um
monarca humilde é aquele que se subordina a Deus e considera que todos os resultados obtidos no
reino são frutos da ação divina. Portanto, qualquer tipo de elogio ou agradecimento dedicado ao rei
suevo deveria ser reconhecido como obra divina.
As obras Pro repellenda iactantia e De superbia não caracterizam as virtudes necessárias ao
bom monarca, mas sim os vícios que deveriam ser evitados por este. Um monarca soberbo não estaria
valorizando a potencia divina, e repleto de orgulho e vaidade, consideraria que todos os feitos
gloriosos de seu governo eram advindos somente do seu sucesso como governante. Na obra De
superbia, Martinho chega a caracterizar a soberba como um tumor, ressaltando que este sentimento faz
com que os homens desejem ser Deus: “Este tumor de la soberbia, por el contrário, se dirige
propriamente contra Dios, y por eso lo considera como enemigo, puesto que dirigiéndose contra o alto,
el hombre siempre desea lo que es proprio de Dios.”554
O corpus Martiniano dirigido ao monarca abarca comentários de Martinho acerca das virtudes e
os vícios que deveriam ser cultivados ou evitados pelo governante. Desta forma, seus escritos e sua
atuação perante Miro não se resumiam apenas a caracterização dos elementos essenciais ao rei, mas
auxiliavam, através de conselhos como conservar esta postura, evitando os perigos ou pessoas mal
intencionadas que poderiam prejudicar o futuro do reino.
A partir da breve explanação sobre as características de cada obra, podemos compreender que
o monarca na verdade possuía uma espécie de missão. Sendo um instrumento de Deus que o guiaria
nas suas decisões, o sucesso de seu governo estaria associado ao bem estar geral da população,
contribuindo assim, para um ambiente favorável a aceitação da monarquia e da religião cristã pelos
súditos, mesmo que estes partilhassem de formas de religiosidades distintas.
Considerações acerca da unificação política e religiosa da Galiza no século VI
554
MARTINHO DE BRAGA. De superbia, 07.
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Após as reflexões expostas no artigo podemos perceber que a aproximação entre a Igreja e
monarquia sueva efetivou-se a partir da segunda metade do século VI. Verificamos que algumas
conversões já haviam se realizado durante o século V, no entanto estas não foram capazes de estreitar
os laços de forma eficaz entre as autoridades políticas e eclesiásticas no período. Porém, devemos
considerar que estas prepararam o ambiente, para que na segunda metade do século VI, esta aliança de
fato se efetivasse.
A relação que se estabeleceu entre Igreja e monarquia foi fruto de um processo lento e
gradativo, no qual a Igreja compreende que para reconquistar seu espaço como religião predominante
após a queda do Império, não bastava fazer uma reforma dentro de sua própria instituição; era
necessário legitimar suas ações junto aos governantes, obtendo apoio e o prestígio necessário junto aos
mesmos ao professar a “verdadeira e única fé”. Portanto, para a consolidação da unidade religiosa seria
necessário um esforço no sentido de também organizarem não só os vários âmbitos da Igreja que se
encontravam desgastados, mas também seria preciso organizar a instituição política, para que esta
possuísse características que estariam em conformidade com a doutrina pregada pela Igreja. Os
critérios necessários para a sucessão do reino suevo como a hereditariedade e a valorização militar não
se mostraram suficientes para que a monarquia fosse legitimada perante a concepção da Igreja. Era
necessário moldar o “monarca bárbaro” segundo os princípios cristãos (Silva, 2008:142).
Para a monarquia sueva a aliança com a Igreja foi extremamente benéfica. Afinal, através das
conversões os monarcas puderam, pouco a pouco, penetrar entre a população cristã galega obtendo seu
apoio. Assim, de forma gradativa observamos a penetração da Igreja dentro da esfera política, processo
que se acentuará durante o reinado de Miro. A conversão significava legitimar as ações tomadas pelo
governante no poder, sendo estas inquestionáveis, pois ele era considerado um ungido do Senhor sendo
seu instrumento, portanto questioná-lo seria o mesmo que contrariar as decisões estabelecidas por
Deus.
Quanto aos desafios enfrentados pela Igreja concluímos que a religiosidade popular foi de
longe o mais difícil a ser superado. Não somente na Galiza, mas em outras localidades da Europa no
período verificamos que a religiosidade pode ser definida como um “problema” permanente dentro da
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sociedade. O trabalho de cristianização deveria ser feito de forma paciente, onde as crenças pagãs
fossem sendo eliminadas ou substituídas pouco a pouco para que o projeto de aderência de novos
cristãos se fizesse de forma tranquila e sem traumas que pudessem gerar revoltas. A evangelização das
populações pode ser observada como uma das etapas do processo de reorganização da Igreja, que
contou ainda com a feitura de dois concílios no período que compreende esta pesquisa. O relaxamento
do clero era uma ameaça para o fortalecimento da Igreja. Os eclesiásticos deveriam ser reconhecidos
por serem diferentes do restante da população, portanto, o cumprimento das regras de conduta era
essencial. Os clérigos eram os porta-vozes de Deus e possuíam a capacidade de interpretar a palavra
divina, ajudando a conduzir as pessoas rumo a salvação eterna.
Por fim, ressaltamos a intensa ação de Martinho de Braga no processo de reorganização da
Igreja na Galiza. Como pudemos perceber sua atuação se deu sobretudo no âmbito da evangelização e
da criação de um modelo de monarca cristão. Graças ao gradativo processo de aproximação entre
Igreja e Monarquia, Martinho pode realizar suas ações sem grandes empecilhos, pois o terreno estava
propício para que a receptividade de suas obras e de suas ações se fizesse de maneira mais fácil. O
clero, no período do bispado de Martinho, representou o auge da influência religiosa no meio político.
Fontes e Referências Bibliográficas
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Madrid: Fundación Universitária Española.
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FRIGHETTO, Renan (2000). Cultura e poder na Antiguidade Tardia Ocidental. Curitiba: Editora
Juruá.
GIORDANO, Oronzo (1983). Religiosidad Popular em la alta Edad Media. Madrid: Editorial Gredos.
SILVA, Leila Rodrigues da (1997). Prudência, justiça e humildade: elementos marcantes no modelo
de monarca presentes nas obras dedicadas ao rei suevo. In: Revista de História FFLCH-USP, p.09-24.
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_____________________(2008). Monarquia e Igreja na Galiza na segunda metade do século VI. O
modelo de monarca nas obras de Martinho de Braga dedicadas ao rei suevo. Niterói: Editora da
Universidade Federal Fluminense.
_____________________(2007). Limites da atuação e prerrogativas episcopais nas atas conciliares
bracarenses. In: BASTOS, M.J; FORTES, C.C e SILVA, L.R (org.). Encontro regional da ABREM,
RJ, p. 208-215.
TORRES RODRIGUEZ, Casimiro (1977). Galícia Sueva. La Coruña: Fundación “Pedro Barrie de La
Maza Conde Fenosa”. Instituto “P. Sarmiento” de Estúdios Gallegos.
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