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ISSN 1517-2422 (versão impressa)
ISSN 2236-9996 (versão on-line)
cadernos
metrópole
políticas públicas e formas
de provisão da moradia
Cadernos Metrópole
v. 18, n. 35, pp. 1-312
abr 2016
hƩp://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3500
Book 35.indb 1
06/03/2016 17:30:25
Catalogação na Fonte – Biblioteca Reitora Nadir Gouvêa Kfouri / PUC-SP
Cadernos Metrópole / Observatório das Metrópoles – n. 1 (1999) – São Paulo: EDUC, 1999–,
Semestral
ISSN 1517-2422 (versão impressa)
ISSN 2236-9996 (versão on-line)
A partir do segundo semestre de 2009, a revista passará a ter volume e iniciará com v. 11, n. 22
1. Regiões Metropolitanas – Aspectos sociais – Periódicos. 2. Sociologia urbana – Periódicos.
I. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências
Sociais. Observatório das Metrópoles. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de
Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional. Observatório das Metrópoles
CDD 300.5
Indexadores: SciELO, Redalyc, Latindex, Library of Congress – Washington
Cadernos Metrópole
Profa. Dra. Lucia Bógus
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais - Observatório das Metrópoles
Rua Ministro de Godói, 969 – 4° andar – sala 4E20 – Perdizes
05015-001 – São Paulo – SP – Brasil
Prof. Dr. Luiz César de Queiroz Ribeiro
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional - Observatório das Metrópoles
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Secretária
Raquel Cerqueira
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políticas
p
o líí t i c a s p
públicas
ú b l i c ass e fformas
ormas
de
d e provisão
p ro v i s ã o d
da
am
moradia
oradia
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PUC-SP
Reitora
Anna Maria Marques Cintra
EDUC – Editora da PUC-SP
Direção
Miguel Wady Chaia
Conselho Editorial
Anna Maria Marques Cintra (Presidente), José Rodolpho Perazzolo, Karen Ambra, Ladislau Dowbor,
Lucia Maria Machado Bógus, Mary Jane Paris Spink, Miguel Wady Chaia, Norval Baitello Junior,
Oswaldo Henrique Duek Marques, Rosa Maria B. B. de Andrade Nery
Coordenação Editorial
Sonia Montone
Revisão de português
Eveline Bouteiller
Revisão de inglês
Carolina Siqueira M. Ventura
Revisão de espanhol
Vivian Motta Pires
Projeto gráfico, editoração
Raquel Cerqueira
Capa
Waldir Alves
Rua Monte Alegre, 984, sala S-16
05014-901 São Paulo - SP - Brasil
Tel/Fax: (55) (11) 3670.8085
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www.pucsp.br/educ
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cadernos
metrópole
EDITORES
Lucia Bógus (PUC-SP)
Luiz César de Q. Ribeiro (UFRJ)
COMISSÃO EDITORIAL
Eustógio Wanderley Correia Dantas (Universidade Federal do Ceará, Fortaleza/Ceará/Brasil) Luciana Teixeira Andrade (Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais, Belo Horizonte/Minas Gerais/Brasil) Orlando Alves dos Santos Júnior (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/Rio de Janeiro/Brasil)
Sérgio de Azevedo (Universidade Estadual do Norte Fluminense, Campos dos Goytacazes/Rio de Janeiro/ Brasil) Suzana Pasternak (Universidade de São Paulo,
São Paulo/São Paulo/Brasil)
CONSELHO EDITORIAL
Adauto Lucio Cardoso (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/Rio de Janeiro/Brasil) Aldo Paviani (Universidade de Brasília, Brasília/Distrito Federal/
Brasil) Alfonso Xavier Iracheta (El Colegio Mexiquense, Toluca/Estado del México/México) Ana Cristina Fernandes (Universidade Federal de Pernambuco, Recife/
Pernambuco/Brasil) Ana Fani Alessandri Carlos (Universidade de São Paulo, São Paulo/São Paulo/Brasil) Ana Lucia Nogueira de P. Britto (Universidade Federal
do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/Rio de Janeiro/Brasil) Ana Maria Fernandes (Universidade Federal da Bahia, Salvador/Bahia/Brasil) Andrea Claudia Catenazzi
(Universidad Nacional de General Sarmiento, Los Polvorines/Provincia de Buenos Aires/Argentina) Angélica Tanus Benatti Alvim (Universidade Presbiteriana Mackenzie,
São Paulo/São Paulo/Brasil) Arlete Moyses Rodrigues (Universidade Estadual de Campinas, Campinas/São Paulo/Brasil) Brasilmar Ferreira Nunes (Universidade
Federal Fluminense, Niterói/Rio de Janeiro, Brasil) Carlos Antonio de Mattos (Pontificia Universidad Católica de Chile, Santiago/Chile) Carlos José Cândido G.
Fortuna (Universidade de Coimbra, Coimbra/Portugal) Claudino Ferreira (Universidade de Coimbra, Coimbra/Portugal) Cristina López Villanueva (Universitat de
Barcelona, Barcelona/Espanha) Edna Maria Ramos de Castro (Universidade Federal do Pará, Belém/Pará/Brasil) Eleanor Gomes da Silva Palhano (Universidade
Federal do Pará, Belém/Pará/Brasil) Erminia Teresinha M. Maricato (Universidade de São Paulo, São Paulo/São Paulo/Brasil) Félix Ramon Ruiz Sánchez (Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, São Paulo/São Paulo/Brasil) Fernando Nunes da Silva (Universidade Técnica de Lisboa, Lisboa/Portugal) Frederico Rosa Borges
de Holanda (Universidade de Brasília, Brasília/Distrito Federal/Brasil) Geraldo Magela Costa (Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte/Minas Gerais/
Brasil) Gilda Collet Bruna (Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo/São Paulo/Brasil) Gustavo de Oliveira Coelho de Souza (Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, São Paulo/São Paulo/Brasil) Heliana Comin Vargas (Universidade de São Paulo, São Paulo/São Paulo/Brasil) Heloísa Soares de Moura
Costa (Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte/Minas Gerais/Brasil) Jesus Leal (Universidad Complutense de Madrid, Madri/Espanha) José Alberto
Vieira Rio Fernandes (Universidade do Porto, Porto/Portugal) José Antônio F. Alonso (Fundação de Economia e Estatística, Porto Alegre/Rio Grande do Sul/Brasil)
José Machado Pais (Universidade de Lisboa, Lisboa/Portugal) José Marcos Pinto da Cunha (Universidade Estadual de Campinas, Campinas/São Paulo/Brasil)
José Maria Carvalho Ferreira (Universidade Técnica de Lisboa, Lisboa/Portugal) José Tavares Correia Lira (Universidade de São Paulo, São Paulo/São Paulo/Brasil)
Leila Christina Duarte Dias (Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis/Santa Catarina/Brasil) Luciana Corrêa do Lago (Universidade Federal do Rio
de Janeiro, Rio de Janeiro/Rio de Janeiro/Brasil) Luís Antonio Machado da Silva (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/Rio de Janeiro/
Brasil) Luis Renato Bezerra Pequeno (Universidade Federal do Ceará, Fortaleza/Ceará/Brasil) Márcio Moraes Valença (Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, Natal/Rio Grande do Norte/Brasil) Marco Aurélio A. de F. Gomes (Universidade Federal da Bahia, Salvador/Bahia/Brasil) Maria Cristina da Silva Leme
(Universidade de São Paulo, São Paulo/São Paulo/Brasil) Maria do Livramento M. Clementino (Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal/Rio Grande do
Norte/Brasil) Marília Steinberger (Universidade de Brasília, Brasília/Distrito Federal/Brasil) Marta Dominguéz Pérez (Universidad Complutense de Madrid, Madri/
Espanha) Nadia Somekh (Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo/São Paulo/Brasil) Nelson Baltrusis (Universidade Católica do Salvador, Salvador/Bahia/
Brasil) Norma Lacerda (Universidade Federal de Pernambuco, Recife/Pernambuco/Brasil) Ralfo Edmundo da Silva Matos (Universidade Federal de Minas Gerais,
Belo Horizonte/Minas Gerais/Brasil) Raquel Rolnik (Universidade de São Paulo, São Paulo/São Paulo/Brasil) Ricardo Toledo Silva (Universidade de São Paulo, São
Paulo/São Paulo/Brasil) Roberto Luís de Melo Monte-Mór (Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte/Minas Gerais/Brasil) Rosa Maria Moura da
Silva (Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social, Curitiba/Paraná/Brasil) Rosana Baeninger (Universidade Estadual de Campinas, Campinas/São
Paulo/Brasil) Sarah Feldman (Universidade de São Paulo, São Carlos/São Paulo/Brasil) Vera Lucia Michalany Chaia (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
São Paulo/São Paulo/Brasil) Wrana Maria Panizzi (Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre/Rio Grande do Sul/Brasil)
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sumário
9
Apresentação
dossiê: políticas públicas e formas
de provisão da moradia
The Brazilian land issue in the design
of the na onal housing policies: considera ons
from the beginning of the 21st century onwards
15
A questão fundiária brasileira no desenho
das polí cas nacionais de habitação:
considerações a par r do início do século XXI
Tomás Antonio Moreira
Joana Aparecida Z. M. T. Ribeiro
FGTS and the market of real estate-backed
securi es: rela onships and trends
33
O FGTS e o mercado de tulos de base imobiliária:
relações e tendências
Luciana de Oliveira Royer
Links between the policy of incen ve
to the demand for land and housing and urban
integra on in areas of extensive urban growth.
The case of PRO.CRE.AR in La Plata
53
Vínculos entre la polí ca de incen vo
a la demanda de erra y vivienda e integración
urbana en áreas de crecimiento urbano extensivo.
El caso del PRO.CRE.AR en La Plata
María Eugenia Rodríguez Daneri
Squa er se lements in Brazil and in São Paulo:
improvements in the analyzes from the 2010
Census Territorial Reading
75
Favelas no Brasil e em São Paulo: avanços
nas análises a par r da Leitura Territorial
do Censo de 2010
Suzana Pasternak
Camila D’O aviano
Slum upgrading in the ABC Region in the context
of Programa de Aceleração do Crescimento-Urbanização de Assentamentos Precários
101
Urbanização de favelas na Região do ABC
no âmbito do Programa de Aceleração
do Crescimento-Urbanização
de Assentamentos Precários
Rosana Denaldi
Ricardo More
Claudia Paiva
Fernando Nogueira
Juliana Petrarolli
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Wai ng for the deeds. The regulariza on
process of the Virgen Misionera Neighbourhood
119
Housing policies and urban occupa ons:
dissent in the city
145
As polí cas habitacionais e as ocupações urbanas:
dissenso na cidade
Denise Morado Nascimento
Why could the Minha Casa Minha Vida Program
only have happened in a government headed
by the Labor Party?
165
Por que o Programa Minha Casa Minha Vida
só poderia acontecer em um governo pe sta?
Danielle Klintowitz
Minha Casa Minha Vida Program in the
Metropolitan Region of Fortaleza:
an analysis of ins tu onal arrangements
191
O Programa Minha Casa Minha Vida
na Região Metropolitana de Fortaleza-CE:
análise dos arranjos ins tucionais
Renato Pequeno
Sara Vieira Rosa
Transforma on of the urban periphery and new
forms of inequality in Brazilian ci es: a view
on the recent changes in housing produc on
217
Transformações da periferia e novas formas
de desigualdades nas metrópoles brasileiras:
um olhar sobre as mudanças na produção
habitacional
Maria Beatriz Cruz Rufino
Between sta s cs and the city: enrolment
and produc on of social demand for apartments
in the Minha Casa Minha Vida housing program
237
Entre as esta s cas e a cidade: o cadastramento
e a produção da demanda social por apartamentos
no Programa Minha Casa Minha Vida
Marcella Carvalho de Araújo Silva
Family arrangements of beneficiaries of the
Minha Casa Minha Vida Program: benefit’s
trajectories and percep ons of social welfare
257
Arranjos familiares de beneficiários do Programa
Minha Casa Minha Vida: trajetórias de bene cio
e percepções de bem-estar social
Vitor Matheus Oliveira de Menezes
Social effec veness of the Minha Casa
Minha Vida Program: conceptual discussion and
reflec ons based on an empirical case
283
Eficácia social do Programa Minha Casa
Minha Vida: discussão conceitual e reflexões
a par r de um caso empírico
Aline Werneck Barbosa Carvalho
Italo Itamar Caixeiro Stephan
309
Instruções aos autores
¿Y el tulo para cuándo? El processo
de regularización del barrio Virgen Misionera
Tomás Alejandro Guevara
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Apresentação
Após um longo período na obscuridade, o tema da habitação voltou a ganhar centralidade
na agenda política a partir de meados da década de 2000, não apenas no Brasil como em outros
países da América Latina. A expressão mais contundente dessa centralidade se deu, sem dúvida,
através de programas de construção de conjuntos habitacionais contando com subsídios públicos,
que se desenvolveu mais recentemente no Brasil e na Venezuela, seguindo em grande medida o
modelo adotado pelo Chile desde os anos 1980. Mas também é importante ressaltar a multiplicação
de ações de urbanização de favelas, das quais as mais conhecidas são as experiências brasileira e
colombiana, assim como os programas de regularização fundiária e urbanística.
A expansão das políticas habitacionais não se fez, todavia, sem ambiguidades. Nesse sentido,
o objetivo central do presente número da revista Cadernos Metrópole é construir uma perspectiva
crítica sobre a experiência recente, tentando identificar seus avanços, limites e possibilidades.
Um aspecto central das políticas habitacionais, como apontado pela literatura já clássica sobre
o tema, diz respeito à relevância da questão fundiária. Ermínia Maricato, em estudos recorrentes, tem
apontado o papel da propriedade privada da terra, ao longo da história do país, como o principal
obstáculo para a democratização do acesso à cidade. Neste número dos Cadernos, o texto de Tomás
Antonio Moreira e Joana Aparecida Z. M. T. Ribeiro, A questão fundiária na Política Nacional de
Habitação Brasileira, procura mostrar como as mudanças recentes na política habitacional, que
apontavam na direção da utilização de mecanismos e instrumentos de controle da valorização e da
especulação imobiliária, foram desconsideradas, a partir da criação do programa Minha Casa Minha
Vida. Nesse sentido, ao priorizar um programa que buscava incentivar o crescimento econômico
e cujo desenho dava ampla autonomia à ação do capital imobiliário, sem cuidar de mecanismos
regulatórios efetivos na direção dos avanços realizados no âmbito da Política Nacional de Habitação,
o programa acabou por gerar uma forte demanda por terra que influenciou uma progressiva
elevação de preços fundiários e imobiliários, atingindo todas as cidades brasileiras e revertendo os
avanços legislativos e institucionais anteriormente alcançados.
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Apresentação
Uma outra ambiguidade da política habitacional brasileira recente diz respeito ao
financiamento público e, particularmente, ao papel do FGTS como instrumento de captura de
poupanças e de financiamento de programas habitacionais voltados para camadas de menor renda.
O texto de Luciana de Oliveira Royer, O FGTS e o mercado de títulos de base imobiliária: relações e
tendências, mostra como os recursos do FGTS vêm sendo crescentemente utilizados para sustentar
o Sistema Financeiro Imobiliário (SFI), particularmente através da aquisição de títulos de crédito
de base imobiliária. O texto apresenta evidências significativas de que é a atuação do FGTS que
vem garantindo liquidez a esse mercado, sem que se tivesse estabelecido a necessária vinculação
com investimentos habitacionais, particularmente para a Habitação de Interesse Social, desviando
o Fundo de seus objetivos específicos e mostrando indícios de que o Sistema de Financiamento
Imobiliário, criado com objetivo de substituir o SFH, permanece sem sustentabilidade econômica.
A periferização aparece como tema recorrente nas análises do Programa Minha Casa
Minha Vida, como será visto nos textos presentes nesta edição, e em outras experiências latino-americanas, como mostra o estudo de Maria Eugenia Rodrigues Daneri, intitulado Vínculos
entre la política de incentivo a la demanda de tierra y vivenda e integración urbana en áreas de
crecimiento urbano extensivo. El caso del PRO.CRE.AR en La Plata. Analisando o caso da Província
de La Plata, na Argentina, a autora mostra as contradições de um programa de provisão de
moradias que, além de reforçar os processos de periferização, coloca a população em situações de
precariedade de infraestrutura, através de uma política de habitação que, de forma similar ao que
acontece com o Programa brasileiro, não dialoga com as políticas urbanas e com o planejamento
do uso do solo urbano.
A problemática habitacional tem como um de seus pontos centrais a questão dos
assentamentos informais, favelas ou assemelhados, um problema recorrente nas cidades latino-americanas e presente nas cidades brasileiras já há mais de um século e que tem sido objeto
de programas de urbanização e de regularização, como já apontado acima. O texto de Suzana
Pasternak e Camila D'Ottaviano, Favelas no Brasil e em São Paulo: avanços nas análises a
partir da Leitura Territorial do Censo de 2010, faz um balanço das mudanças recentes no Brasil,
apresentando uma importante inovação por utilizar, pela primeira vez, os dados disponibilizados
pelo Censo 2010 referentes à “Leitura Territorial”, para os setores de aglomerados subnormais.
O texto mostra o grande crescimento desses assentamentos na primeira década do século XXI,
passando de 6,5 milhões para 11,4 milhões, e 88% desses domicílios estão concentrados em 20
grandes cidades. Mostra ainda que as favelas passaram por um processo de intenso crescimento
na última década e que, não obstante as melhorias decorrentes dos programas de urbanização,
ainda se identifica forte precariedade, seja pelas condições geológicas do terreno, seja pelas altas
densidades, seja pelas condições de acesso à infraestrutura. Essa precariedade se revela mais
forte, particularmente, nas cidades do Norte e do Nordeste.
O tema das favelas traz à baila o princípio do direito à moradia e da função social da
propriedade na concepção e na implementação das políticas de habitação. Essa importância se
manifestava particularmente pela centralidade dos programas de urbanização de favelas e de
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Apresentação
regularização fundiária. A regularização fundiária e a urbanização de assentamentos precários
vinham ganhando importância crescente nas políticas públicas, em todos os níveis de governo,
todavia, nos anos recentes pudemos identificar uma reversão dessa tendência, como aponta o
texto de Rosana Denaldi et al., como ressaltaremos mais adiante. Esses programas passaram a
conviver, nos últimos anos, com ações de renovação urbana e de realização de grandes obras
que implicam despejos forçados e deslocamentos de parcelas importantes da população para
periferias distantes.
O estudo de Rosana Denaldi et al., Urbanização de favelas na Região do ABC no âmbito do
Programa de Aceleração do Crescimento-Urbanização de Assentamentos Precários, detém-se em
uma avaliação daquele que foi o mais importante programa de urbanização de assentamentos
precários no Brasil – o PAC-UAP – com foco na região do ABC paulista. O texto mostra que, por
um lado, os recursos do PAC permitiram ampliar largamente os investimentos municipais em
urbanização de favelas, ampliando fortemente a escala de intervenção. Por outro, identificam-se
dificuldades na viabilização do Programa, seja em nível nacional, seja no caso analisado (Região
do ABC paulista) com baixo nível de contratação e atraso significativo na execução das obras.
As conclusões apontam que os problemas identificados referem-se (a) à maior complexidade de
obras em assentamentos precários, seja pelas condições de terreno, seja pelo fato de se tratar
de um assentamento consolidado, seja, ainda, pela necessidade de uma articulação forte entre
as políticas de reassentamento e a realização de obras estruturais; (b) à baixa qualidade e nível
incompleto dos projetos de arquitetura e de engenharia, indicando inclusive a falta de experiência
técnica acumulada nesse campo; (c) aos procedimentos de gestão financeira e de andamento das
obras pelas equipes da Caixa, que também não se adequam à realidade das obras em favelas,
ressaltando-se a rigidez das normas de contratação e de acompanhamento. O texto ressalta
a importância que o programa não seja relegado a segundo plano por conta das dificuldades
encontradas, mas que se busque seu aprimoramento no sentido de melhorar as condições técnicas
da intervenção e da gestão.
O enfrentamento do problema das ocupações informais passa por dois tipos de políticas que
podem ou não ser combinadas: a urbanização, que significa a provisão de infraestrutura, melhoria
da acessibilidade e tratamento de situações de risco, e a regularização fundiária, que visa resolver os
problemas da titularidade da terra, assim como a situação de regularidade em relação à legislação
urbanística e edilícia. Como têm mostrado estudos históricos e recentes sobre a regularização
fundiária no Brasil, a legislação, embora tenha avançado, ainda não permitiu que se acelerem os
ritos jurídicos, e, portanto, permanecem obstáculos à regularização plena. Tal é também o caso na
Argentina, como mostra o trabalho de Tomás Alejandro Guevara, ¿Y el título para cuándo? El proceso
de regularización del barrio Virgen Misionera, que identifica claramente os obstáculos ao processo
de regularização nos casos analisados, mostrando que são necessárias ainda muitas mudanças na
legislação, uma vez que o campo jurídico permanece ainda fortemente condicionado à proteção ao
direito de propriedade. O autor aponta ainda que alguns dos instrumentos presentes na legislação
brasileira, como a usucapião especial urbana e as Zeis, poderiam ser úteis para resolver problemas
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Apresentação
identificados nos casos analisados, ressaltando a importância de avanços na legislação em geral
para os países latino-americanos.
O conjunto de textos que se segue versa, em linhas gerais, sobre o Programa Minha Casa
Minha Vida. Denise Morado Nascimento, em As políticas habitacionais e as ocupações urbanas:
dissenso na cidade , faz um interessante contraponto entre a ação do Programa, que leva à
periferização, e a experiência das ocupações em áreas centrais, a partir do caso de Belo Horizonte.
Danielle Klintowitz, com o texto Por que o Programa Minha Casa Minha Vida só poderia
acontecer em um governo petista?, apresenta um enfoque mais abrangente de análise, olhando o
Programa a partir de uma perspectiva nacional. Na primeira parte do texto, mostra como o programa
se afasta das diretrizes da PNH, ao enfatizar o papel do setor privado e também como essa primazia
acaba por gerar efeitos não desejados, já que a distribuição de recursos não segue a lógica da
distribuição do déficit habitacional. Na segunda parte, adotando um enfoque da ciência política, a
autora busca identificar a lógica da formação das coalizões que dão suporte aos diferentes aspectos
da política habitacional. Ressalta que, desde o início, o governo pautou duas agendas paralelas,
uma voltada para os movimentos sociais e outra para o setor imobiliário, tentando costurar as duas
agendas sob a égide (legitimadora) do SNHIS.
O tema dos problemas distributivos acima apontados é retomado em artigo de Renato
Pequeno e Sara Vieira Rosa, O Programa Minha Casa Minha Vida na Região Metropolitana de
Fortaleza-CE: análise dos arranjos institucionais, que buscarão explicá-los a partir dos arranjos
institucionais e do papel dos diferentes atores, no contexto da Região Metropolitana de Fortaleza.
Retomando o tema do acesso à terra em condições econômicas adequadas como fator explicativo
dos processos de distribuição de recursos, o texto aponta que esse fator não deve ser dissociado
de um olhar mais agudo sobre a natureza e o porte dos agentes privado envolvidos, já que esses
desenvolvem estratégias – inclusive fundiárias – diferenciadas. Ressalta ainda a importância de um
fortalecimento da gestão pública e do planejamento e de um redesenho do Programa com revisão
do arranjo institucional adotado.
Maria Beatriz Cruz Rufino retoma o tema da periferia em Transformações da periferia e novas
formas de desigualdades nas metrópoles brasileiras: um olhar sobre as mudanças na produção
habitacional, agora a partir do olhar da produção de conjuntos habitacionais e não mais apenas
dos loteamentos populares como era a tradição na literatura especializada. Partindo da análise dos
resultados de pesquisas sobre a expansão periférica recente capitaneada pelo Programa Minha Casa
Minha Vida, a autora desenvolve um interessante ensaio teórico em que postula “o deslocamento
da primazia da contradição entre capital-trabalho, sob o domínio do capital industrial, para a
primazia de uma contradição urbana, sob domínio do capital financeiro, responsável pela produção
de novas desigualdades”.
Marcella Carvalho de Araújo Silva, no texto Entre as estatísticas e a cidade: o cadastramento
e a produção da demanda social por apartamento no Minha Casa Minha Vida, em que discute o
processo de cadastramento das famílias que participam do Programa Minha Casa Minha Vida,
problematiza de forma particular a relação entre o cálculo do déficit habitacional, que é fonte
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Apresentação
de referência para o Programa e a constituição da demanda específica, a partir do processo de
cadastro. Tomando como estudo de caso o processo de cadastro operacionalizado pela equipe do
trabalho técnico social da Prefeitura do Rio de Janeiro em uma favela da Zona Norte da cidade, a
autora aponta para a complexidade das relações sociais que se configuram na esteira do processo
de reassentamento, sugerindo a existência de um conjunto de injustiças, assim representadas pela
população, tanto na classificação do risco e de quem é obrigado a sair, quanto na designação de
novas unidades no conjunto habitacional.
Já Vitor Matheus Oliveira de Menezes, em Arranjos familiares de beneficiários do Programa
Minha Casa Minha Vida: trajetórias de benefício e percepções de bem-estar social, trata de uma
avaliação das percepções dos beneficiários do Programa a partir de um estudo de caso de um
empreendimento situado em Salvador-BA, introduzindo como elementos analíticos a trajetória
e a inserção da população em redes familiares e sociais. O texto mostra que a percepção dos
atores é complexa e contraditória e que a importância dos vínculos familiares como elemento de
sustentação da reprodução social deve ser levada em conta nas análises sobre a efetividade das
políticas públicas.
No texto Eficácia social do Programa Minha Casa Minha Vida: discussão conceitual e reflexões
a partir de um caso empírico, Aline Werneck Barbosa Carvalho e Italo Itamar Caixeira Stephan
buscam refletir sobre a efetividade do Programa em municípios de pequeno porte, a partir da análise
dos empreendimentos realizados em Viçosa-MG. Partindo de um survey realizado em todos os
empreendimentos do município e tomando como base a comparação com a moradia anterior, o texto
conclui pela problematização dos resultados tendo em vista aspectos de acesso a infraestrutura e a
mobilidade espacial.
O presente número da revista Cadernos Metrópoles apresenta um balanço bastante
completo das tendências recentes na Política Habitacional, mostrando que, se os anos recentes
mostraram que essa política ganha maior centralidade na agenda pública, há ainda um longo
caminho a avançar para que o direito à moradia possa ser efetivamente assegurado para todas as
camadas da população.
Adauto Lucio Cardoso*
Organizador
(*) Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional.
Rio de Janeiro/RJ, Brasil.
[email protected]
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Book 35.indb 14
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A questão fundiária brasileira no desenho
das políticas nacionais de habitação:
considerações a partir
do início do século XXI
The Brazilian land issue in the design of the national
housing policies: considerations from the beginning
of the 21st century onwards
Tomás Antonio Moreira
Joana Aparecida Z. M. T. Ribeiro
Resumo
O Brasil evidenciou nas últimas décadas importantes
transformações no campo da política urbana e habitacional. O contexto institucional criado sinalizou
uma perspectiva promissora para articular a questão
fundiária à política habitacional. Apesar de haver
um consenso de que a terra urbana é componente e condição essencial para o êxito das ações que
efetivam tal política, as práticas habitacionais empreendidas raramente trataram desse componente
de maneira adequada. Este artigo analisa como a
questão fundiária é colocada no desenho das políticas nacionais de habitação. Analisa-se a abordagem
da questão fundiária na Política Nacional de Habitação, seus pressupostos e as contradições geradas ao
tentar compatibilizar seu protagonismo com a aceleração do crescimento econômico do país.
Abstract
Brazil has experienced significant changes in
recent decades in the fi eld of urban and housing
policy. The institutional context created signaled
a promising perspective to articulate the land
issue to housing policy. Although there is a
consensus that urban land is component and an
essential condition for the success of the actions
that concretize such a policy, housing practices
undertaken rarely deal with this component
in the proper way. This paper examine how
the land issue is inser ted in the design of
national housing policies. The work analyzes
the approach of land issue in National Housing
Policy, its purposes and the contradictions
generated to match its role with the acceleration
of economic growth.
Palavras-chave: política fundiária; política nacional
de habitação; Programa Minha Casa Minha Vida.
Keywords: land policy, national housing policy,
Program Minha Casa Minha Vida.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 15-31, abr 2016
hƩp://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3501
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Tomás Antonio Moreira, Joana Aparecida Z. M. T. Ribeiro
Introdução
e estabeleceu o Plano Diretor municipal como
instrumento básico dos conteúdos da política
urbana (ibid., 2011).
Nas últimas décadas, o Brasil assistiu a impor-
A criação do Ministério das Cidades e a
tantes transformações jurídico-institucionais
composição de secretarias nacionais, a partir
no campo das políticas urbana e habitacional,
de 2003, permitiram institucionalizar novas po-
cujo discurso intencionava reverter os graves
líticas, voltadas à construção de um pacto para
problemas da polarização e segregação so-
enfrentamento do quadro urbano e habitacio-
cioespacial intrínsecas ao padrão de desen-
nal no Brasil. Nesse contexto, a aprovação da
volvimento urbano do país. Tais problemas
Política Nacional de Habitação (PNH) em 2004,
estiveram intimamente relacionados à questão
com um conjunto de instrumentos que busca-
fundiária, uma vez que a limitação do acesso
ram integrar os diferentes níveis de governo e
ao solo para a população de baixa renda cons-
concentrar recursos expressivos para sua con-
tituiu uma das principais formas de exclusão
cretização, estabeleceu as “novas” bases insti-
social e de consolidação da precariedade urba-
tucionais e conceituais que passaram a orientar
na e habitacional nas cidades (Bonduki, 2011;
o Estado e demais agentes envolvidos no setor,
Moreira, 2012).
ao equacionamento das necessidades habita-
A Constituição Federal de 1988 e o Estatu-
cionais do país.
to da Cidade de 2001 (Lei Federal 10.257/2001)
A partir de 2005, a valorização da te-
instituíram um importante marco para a políti-
mática habitacional pelo governo federal, pa-
ca urbana, ao reconhecer o direito à cidade e à
ralelamente à melhoria da conjuntura macro-
moradia como princípios sociais fundamentais.
econômica, permitiu impulsionar a elevação
Estabeleceram novos mecanismos e instru-
dos investimentos em programas e projetos
mentos urbanísticos para planejar o desenvol-
habitacionais, conformando um cenário favo-
vimento das cidades, objetivando viabilizar os
rável que realçou um otimismo para o equa-
direitos referidos e criar canais de participação
cionamento das necessidades habitacionais do
que pudessem mediar as relações e decisões
país, sobretudo com a instituição do Progra-
estabelecidas entre o Estado e os agentes en-
ma de Aceleração do Crescimento (PAC) e do
volvidos no processo de produção do espaço
Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV)
urbano (Santos Jr. e Montandon, 2011).
(Bonduki, 2008).
A Constituição Federal, de 1988, buscou
Apesar da priorização da temática ha-
alavancar um processo de descentralização
bitacional, estudos recentes evidenciam que,
das competências governamentais, a partir do
embora os avanços no campo das políticas ur-
qual os municípios passaram a assumir auto-
bana e habitacional acenem uma perspectiva
nomia na definição, condução e execução de
positiva, seus resultados qualitativos indicam
suas políticas públicas. Ela também reafirmou
uma face paradoxal. A expressiva disponibili-
o princípio da função social da propriedade,
zação de recursos como dimensão estratégica
sob o qual o Estatuto da Cidade passou a se
para financiamento, subsídio e otimização da
apoiar, definiu diretrizes para seu cumprimento
cadeia produtiva da construção civil em nível
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A questão fundiária brasileira no desenho das políticas nacionais de habitação
federal, ao mesmo tempo em que permite al-
a terra e à moradia por meio do mercado for-
cançar parcelas populacionais de menor renda,
mal, para a população de baixa renda (MCida-
antes não atendidas, tem como foco ampliar a
des, 2006).
participação da iniciativa privada nos proces-
Preconizando a gestão participativa e
sos de produção. Ao inserir o protagonismo
democrática, adotando-se o direito à moradia
da política de habitação em um viés de ace-
como direito fundamental e a moradia digna
leração do crescimento econômico, passa-se
como vetor de inclusão social, a articulação
a reproduzir um padrão de segregação socio-
com a política urbana e a integração às ações
territorial e precariedade urbana e ambiental
das demais políticas sociais e ambientais foram
que retoma os erros e contradições recorrentes
estabelecidas como princípios fundamentais
na trajetória histórica da política habitacional
da PNH (MCidades, 2006). A partir desses prin-
brasileira (Bonduki, 2008; Rolnik e Klink, 2011;
cípios, a gestão e o controle social, o projeto
Shimbo, 2010).
financeiro e a política fundiária urbana ficaram
Esse novo contexto sinalizou uma perspectiva promissora para articular a questão
conceitualmente definidos como eixos centrais
de sua implantação (Bonduki, 2008).
fundiária à política habitacional. Apesar de ha-
Para o eixo da política fundiária, a PNH
ver um consenso de que a terra urbana é com-
estabeleceu como princípios a implementação
ponente e condição essencial para o êxito das
dos instrumentos e das diretrizes gerais da po-
ações que efetivam tal política, acredita-se que
lítica urbana dispostos pelo Estatuto da Cidade,
as práticas habitacionais empreendidas rara-
visando garantir o cumprimento da função so-
mente trataram desse componente de maneira
cial da cidade e da propriedade, bem como o
adequada e pouco se questionaram sobre qual
melhor ordenamento e controle do uso do solo,
premissa se estruturariam. Busca-se, portanto,
de forma a combater a retenção especulativa
analisar como a questão fundiária para a pro-
da terra e viabilizar o seu acesso pela popula-
dução de moradias é tratada e embasada no
ção de baixa renda (MCidades, 2006).
desenho das políticas nacionais de habitação.
Para o projeto financeiro, concebeu-se a
estruturação do Sistema Nacional de Habitação (SNHAB), que passou a definir as formas
Política Nacional de Habitação:
pressupostos e contradições
de articulação entre os diferentes níveis de governo e os demais agentes públicos e privados
envolvidos no setor habitacional, bem como as
regras, os componentes e as linhas de atuação
A formulação da Política Nacional de Habita-
que direcionariam recursos para a implementa-
ção (PNH) partiu da concepção de uma dívida
ção da PNH.
social acumulada no país, fruto das desigual-
O SNHAB se organizou em dois subsis-
dades sociais e da concentração de renda ca-
temas: o Sistema Nacional de Habitação de
racterísticas da sociedade brasileira, expressa
Interesse Social (SNHIS) e o Sistema Nacional
na segregação socioespacial vivida no espaço
de Habitação de Mercado (SNHM). O SNHM
das cidades e na restrição histórica do acesso
teve como objetivo garantir e sustentar a
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participação do setor privado na produção habitacional, visando ampliar a oferta e facilitar
o acesso ao financiamento da habitação pelos
setores populares não atendidos anteriormente
pelo mercado. Por sua vez, o SNHIS, instituído
pela Lei Federal 11.124/2005, teve como objetivos integrar os entes federativos e ampliar
os recursos federais, estaduais e municipais,
visando incrementar os subsídios destinados
ao atendimento habitacional das faixas populacionais de baixa renda, concentradoras da
maior parcela do deficit habitacional brasileiro
(Bonduki, 2009; MCidades, 2006).
A regulamentação do SNHIS se articulou
à criação do Fundo Nacional de Habitação
de Interesse Social (FNHIS), que passou a ser
gerido por um conselho correlato – o Conselho Gestor do FNHIS. Para a implantação do
Sistema e para acesso aos recursos do FNHIS,
Estados, municípios e Distrito Federal foram
impelidos à sua adesão mediante três requisitos: constituir fundo municipal de Habitação
de Interesse Social (HIS); instituir respectivo
conselho gestor paritário e com representatividade de movimentos sociais ligados à moradia;
e elaborar plano de habitação em seu nível de
gestão (Brasil, 2005). Para Cardoso e Aragão
(2013, p. 32),
a lógica da criação do Sistema Nacional
de Habitação de Interesse Social seria
fortalecer os órgãos públicos municipais
e estaduais para a implantação de políticas habitacionais. Os Fundos de HIS seriam os mecanismos que permitiriam aos
Municípios alavancar recursos próprios e
potencializar os recursos federais ou estaduais que lhes fossem repassados. Ao
mesmo tempo os Conselhos Gestores dos
Fundos locais promoveriam uma maior
participação da sociedade civil em relação
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à definição sobre a alocação e ao uso dos
recursos aportados para HIS.
A efetivação do SNHIS tocaria, nesse sentido, o eixo da gestão e do controle social da
PNH, uma vez que permitiria um novo modelo
de gestão de recursos – democrático, participativo e descentralizado – bem como a definição
de estratégias de enfrentamento da problemática da habitação direcionadas às realidades
locais (MCidades, 2006).
A definição de estratégias específicas
estaria expressa nos planos de habitação,
documentos que passariam a representar as
políticas habitacionais de cada nível de governo. Os planos estariam alinhados à PNH a
partir das diretrizes estabelecidas pelo Plano
Nacional de Habitação (PLANHAB), formulado
pela Secretaria Nacional de Habitação (SNH)
em 2008.
O PLANHAB procurou estabelecer propostas que considerassem a diversidade da
problemática habitacional no país, as especificidades regionais e municipais, bem como as diferentes visões dos segmentos ligados ao setor
da habitação (Bonduki, 2009). Como um instrumento da PNH, o PLANHAB teve como objetivo desenhar estratégias, tanto públicas quanto
privadas, para o equacionamento das necessidades habitacionais brasileiras, inseridas em
um horizonte temporal de quinze anos (20082023). Para que fosse possível alterar substancialmente o quadro habitacional, essas estratégias deveriam incorporar ações simultâneas de
longo, médio e curto prazo, ponderando quatro
eixos principais: (1) financiamento e subsídios;
(2) arranjos e desenvolvimento institucional; (3)
cadeira produtiva da construção civil; e (4) política fundiária urbana (MCidades, 2010).
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A questão fundiária brasileira no desenho das políticas nacionais de habitação
Para o primeiro eixo do PLANHAB, as
urbanizada, legalizada e bem localizada para
ações estabelecidas caminharam para a insti-
a provisão de HIS (unidades prontas ou lotes)
tuição de um novo modelo de financiamento e
na escala exigida pelas metas do PLANHAB”;
subsídios, pautado na criação de um fundo ga-
e (2) “regularizar os assentamentos informais,
rantidor de financiamentos habitacionais, que
garantindo a permanência dos moradores de
buscasse reunir diferentes fontes de recursos
baixa renda” (MCidades, 2010, p. 120).
para equacionar a solvabilidade das demandas
Os eixos estratégicos do PLANHAB deve-
populacionais com alto risco de crédito – pro-
riam ser seguidos pelas demais esferas de go-
blemática considerada como um dos grandes
verno, sobretudo pelos níveis municipais, consi-
obstáculos para enfrentamento da questão ha-
derando a descentralização das competências
bitacional do país.
federativas, estabelecida pela Constituição de
As ações relacionadas ao segundo eixo
1988, a partir da qual os municípios passaram
do PLANHAB – os arranjos e desenvolvimen-
a ter autonomia sobre suas políticas de desen-
to institucional – caminharam para iniciativas
volvimento urbano.
de fomento à elaboração dos instrumentos de
Os governos de Estado, por meio de seus
planejamento habitacional pelas diferentes
planos estaduais e metropolitanos, teriam o
esferas de governo, em especial os planos de
papel de articular propostas de ação voltadas
habitação, buscando concretizar a dimensão da
à questão habitacional de seu território, de
participação e do controle social das políticas
promover a integração entre os planos muni-
públicas urbanas preconizada pela PNH.
cipais de habitação e os planos de desenvolvi-
Para o eixo da cadeia produtiva da cons-
mento regional, bem como de apoiar os gover-
trução civil, o Plano Nacional procurou esta-
nos locais na implantação de seus programas
belecer diretrizes para estimular a ampliação
habitacionais com políticas de subsídio. Os
da produção habitacional e a modernização
municípios, por meio de seus Planos Locais de
das técnicas construtivas, tendo como meta
Habitação de Interesse Social (PLHIS), teriam
dinamizar processos e reduzir o custo final
a responsabilidade de levar adiante a efetiva-
do produto casa. Foram também definidas
ção dos pressupostos da PNH, considerando a
diretrizes no sentido de orientar os governos
moradia como um direito fundamental e como
locais e estaduais para a instituição de medi-
um vetor de inclusão social e, portanto, como
das que buscassem agilizar os procedimentos
um componente da política urbana (MCidades,
de aprovação e registro de empreendimentos
2010; Cardoso e Romeiro, 2008).
habitacionais, bem como simplificar os processos de licenciamento.
tratégicas do PLANHAB para o eixo da política
Em relação ao eixo da política fundiária,
fundiária, embora devessem ser levadas a cabo
as propostas do PLANHAB foram ao sentido de
nos PLHIS(s), estariam ainda associadas e de-
elencar diretrizes estratégicas que pudessem
pendentes de outros instrumentos de política
ser consideradas pelos governos municipais
urbana municipal, em especial dos Planos Di-
em suas políticas e ações, tendo-se dois ob-
retores e legislações a ele complementares. As
jetivos principais: (1) “garantir acesso a terra
diretrizes do PLANHAB apenas orientaram os
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Cabe problematizar que as diretrizes es-
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municípios a instituir ou regulamentar instru-
estratificadas em: famílias com renda de até
mentos previstos no Estatuto da Cidade, visan-
três salários mínimos; famílias com renda entre
do o cumprimento do princípio da função social
três e seis salários mínimos; e famílias com ren-
referenciado na Constituição – o que extrapola
da entre seis a dez salários mínimos.
o âmbito do PLHIS. Como diretriz independen-
Mesmo incluído no discurso de defesa da
te e restrita apenas à formulação do PLHIS, o
moradia digna, o PMCMV teve claros objetivos
PLANHAB recomendou a tarefa de “dimensio-
de impactar a economia por meio dos efeitos
nar a terra necessária para a produção de HIS”
multiplicadores da indústria da construção civil
(MCidades, 2010, p. 120), procedimento técni-
e de ampliar o mercado habitacional para famí-
co que se articula ao entendimento do concei-
lias com renda mensal de até dez salários mí-
to de necessidades habitacionais incorporado
nimos, mantendo o desenvolvimento do setor
pela PNH.
imobiliário – que vinha experimentando uma
A viabilização das ações do PLANHAB
profunda reestruturação desde 2006 – mas
se agrupou em linhas programáticas de aten-
que começava a sentir impactos adiante da cri-
dimento que buscaram estruturar programas e
se econômica internacional, ocorrida em 2008
subprogramas voltados a: (1) integração urba-
(Cardoso e Aragão, 2013).
na de assentamentos precários informais; (2)
O PMCMV permitiu um quadro favorável
apoio à melhoria da unidade habitacional; (3)
ao desenvolvimento da política habitacional
produção de habitação; e (4) desenvolvimen-
inserida no SNHM, bem como à ampliação do
to institucional. Cada linha concentrou fontes
financiamento, passando a viabilizar linhas de
orçamentárias, estipulou demandas e regras
crédito ao consumidor e ao produtor da habi-
de atendimento específicas. Em relação à linha
tação. Seu lançamento, no entanto, suscitou
de produção de habitação, o Programa Minha
críticas diferenciadas. Por parte dos defensores
Casa Minha Vida (PMCMV) ganhou prioridade
e movimentos sociais envolvidos no processo
e destaque na temática habitacional, represen-
de formulação da PNH, as avaliações iniciais
tando um forte mecanismo de implementação
vieram em sentido relativamente positivo, que
e alcance das metas da PNH.
apontavam como inédito o volume de subsídios
Lançado pelo governo federal e regula-
a ser alocado na política, o que poderia gerar
mentado pela Lei Federal 11.977, em 2009, o
um atendimento efetivo à população de mais
PMCMV buscou como meta a construção de
baixa renda e a diminuição do deficit habita-
um milhão de casas em um ano, tendo conti-
cional (ibid., 2013). As medidas previstas no
nuidade no período 2011-2014, com o objetivo
PLANHAB para o eixo da cadeia produtiva da
expressivo de mais dois milhões de unidades
construção civil, sobretudo a redução do custo
habitacionais. Em sua primeira fase, os recursos
da habitação, também foram salientadas por
para sua concretização foram distribuídos
seus impactos positivos no acesso à habitação
pelas unidades federativas de forma propor-
de interesse social e de mercado por terem sido
cional ao deficit habitacional estimado pela
incorporadas ao Programa (Bonduki, 2009).
Fundação João Pinheiro (FJP) para os estados
Simultaneamente a tais avaliações, crí-
brasileiros, e de acordo com as faixas salariais,
ticas mais negativas surgiram no sentido de
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A questão fundiária brasileira no desenho das políticas nacionais de habitação
evidenciar a ausência das demais estratégias
instrumentos do Estatuto da Cidade poderia
que o PLANHAB considerou centrais no equa-
auxiliar a reverter algumas contradições e, so-
cionamento dos problemas habitacionais, tais
bretudo, garantir a “boa localização” da mora-
como os arranjos institucionais e as estratégias
dia no território (Rolnik, 2010). Contudo, a es-
urbano-fundiárias. Cardoso e Aragão (2013,
fera federal teria possibilidades limitadas para
p. 44) reforçaram ainda oito dimensões mal
interferir em tal postura, uma vez que a política
equacionadas pelo PMCMV, identificadas pos-
urbana se tornou competência do município
teriormente na literatura crítica:
com a Constituição. Nesse sentido, o desfecho
(1) a falta de articulação do programa
com a política urbana; (2) a ausência de
instrumentos para enfrentar a questão
fundiária; (3) os problemas de localização
dos novos empreendimentos; (4) excessivo privilégio concedido aos setor privado;
(5) a grande escala dos empreendimentos (6) a baixa qualidade arquitetônica
e construtiva dos empreendimentos; (7)
a descontinuidade do programa em relação ao SNHIS e a perda do controle
social sobre a sua implementação; [...]
(8) as desigualdades na distribuição dos
recursos como fruto do modelo institucional adotado.
efetivo do controle sobre os impactos da localização dos empreendimentos e da elevação
do preço da terra recairia sobre as decisões e
capacidades institucionais locais e sobre a aplicabilidade dos instrumentos de política urbana
e dos Planos Diretores municipais.
Com efeito, nos últimos anos, evidenciam-se grandes conjuntos homogêneos viabilizados pelo PMCMV, em áreas periféricas e
sem infraestrutura (Ferreira, 2012). A ausência
de instrumentos de controle do uso e ocupação
do solo e de uma estratégia territorial integrada entre os diferentes níveis de governo, além
de comprometer a viabilização de empreendi-
Para Bonduki (2009), os impactos do
mentos em áreas centrais e de impulsionar a
PMCMV também recairiam na elevação do pre-
elevação do custo da terra urbanizada, tende a
ço da terra, visto que o tratamento incompleto
comprometer o equacionamento da problemá-
de algumas das propostas do PLANHAB – em
tica habitacional, contrariando as próprias dire-
muito decorrente das competências dos entes
trizes e pressupostos da PNH (Rolnik e Nakano,
federados – poderia gerar efeitos de grande
2009; Shimbo, 2010; Cardoso e Aragão, 2013).
risco no que se refere à localização dos empre-
Nesse panorama, tornou-se perceptí-
endimentos, levando à repetição dos mesmos
vel a contraposição entre o PMCMV e a PNH,
erros evidenciados no período de atuação do
que preconizara como pontos centrais de sua
Banco Nacional de Habitação (BNH), quando
implementação, além do projeto financeiro, a
a implantação de conjuntos habitacionais nas
gestão e o controle social e a aplicação de uma
bordas urbanas aprofundou a problemática
política fundiária urbana. A opção adotada pe-
dos preços de terra, bem como a segregação
lo PMCMV – dadas suas metas – esteve bem
socioespacial presente nas cidades (Silva, 1997;
mais orientada ao projeto financeiro e quan-
Rolnik, Cymbalista e Nakano, 2008).
titativo da política habitacional, sobretudo à
A articulação do PMCMV a uma política
ampliação do consumo do produto habitação
fundiária por meio da aplicação de alguns dos
a partir do alargamento do financiamento, do
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que ao enfrentamento das demais dimensões
os níveis de emprego no país – o que poderia
estratégicas da PNH.
repercutir no “erro de equiparar crescimento
Tal orientação economicista teve impac-
econômico a desenvolvimento social” (ibid.,
tos imediatos no SNHAB, tanto em relação à
p. 150), deixando de lado os resultados nega-
adesão dos entes federados, quanto na elimi-
tivos desse crescimento no espaço das cidades
nação dos repasses dos recursos do FNHIS para
(Rolnik e Nakano, 2009).
ações de provisão habitacional e na limitação
Os aspectos desses três eixos do
de sua atuação nas ações de urbanização de
PLANHAB acabariam por divergir das suas
assentamentos precários e de desenvolvimento
próprias estratégias traçadas para a política
institucional (MCidades, 2013; Cardoso e Ara-
fundiá ria. O objetivo da estratégia urbano-
gão, 2013).
-fundiária de garantir acesso a terra urbaniza-
O exposto evidencia desequilíbrios entre
da, legalizada e bem localizada para a provi-
as ações programáticas e os pressupostos con-
são de HIS, propõe diretrizes que consideram a
ceituais e estratégicos estabelecidos pela PNH.
aplicação de instrumentos urbanísticos para o
Contudo, no que diz respeito à produção de HIS
cumprimento do princípio da função social. Em
e sua relação com a questão fundiária urbana,
sua relação com a política habitacional, a apli-
observa-se que os próprios eixos estratégicos
cação desses instrumentos parte da premissa
do PLANHAB poderiam também incorrer em
de se reservar e destinar áreas para o interes-
contradições.
se social, retirando-as da disputa de capitais, o
Para Peixoto (2011), o eixo de financia-
que contraria os pressupostos dos demais eixos
mento e subsídio, o eixo dos arranjos institu-
que se pautam na estruturação capitalista da
cionais e o eixo da cadeia produtiva da cons-
produção da moradia, na qual a terra é tida co-
trução civil, que se propõem, respectivamente,
mo componente essencial dos lucros (Peixoto,
a resolver o problema da solvabilidade da
2011; Silva, 1997).
demanda, ampliar a participação da iniciativa
Como salienta Peixoto (2011, p. 150), a
privada e reduzir os custos do produto casa,
não superação das divergências e contradições
poderiam ser vistos como “metas que apostam
suscitará ainda “o risco de se incorrer num au-
no equacionamento da questão habitacional
toaniquilamento das proposições e de que as
por intermédio de estruturas de produção capi-
iniciativas que começam a ser esboçadas caiam
talistas tradicionais” (Peixoto, 2011, p. 150). A
no limbo dos planos que não saem do papel”.
otimização e o alargamento da produtividade
A superação dessas divergências e contradições
com base na construção civil e na dinamiza-
tem relação intrínseca com a dimensão fundiá-
ção do mercado imobiliário colocam-se como
ria da política habitacional e, portanto, com as
uma medida política estratégica, inclusive já
propostas de articulação aos instrumentos de
praticada na trajetória da política habitacional
política urbana a serem estruturadas nos con-
do BNH nas décadas de 1960 e 1970, que traz
teúdos estratégicos dos planos de habitação, no
como premissa elevar a atividade econômica e
âmbito das diferentes esferas de governo.
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A questão fundiária brasileira no desenho das políticas nacionais de habitação
Planos de habitação: conteúdos
estratégicos e limitações
o que seria enfrentado com a sua formulação
e implementação, apresentando para tanto
uma leitura crítica da realidade municipal ou
regional, tendo em vista: a inserção territorial
No intuito de implementar a PNH e incentivar
e dinâmica socioeconômica; as capacidades
a adesão de estados e municípios ao SNHIS, a
institucionais e administrativas para política de
partir de 2007, o Ministério das Cidades pas-
HIS; os recursos disponíveis e potenciais para
sou a investir no apoio à elaboração dos pla-
a habitação; os atores sociais e suas capacida-
nos de habitação e em ações de capacitação,
des de participação e controle da política ur-
buscando orientar equipes públicas e consulto-
bana; a oferta habitacional; a necessidade de
rias no desenvolvimento desses instrumentos
solo urbanizado; os marcos legais e regulató-
de planejamento.
rios; e as necessidades presentes e futuras por
As orientações quanto aos conteúdos
dos planos e as datas para adesão ao Sistema
A etapa das Estratégias de Ação deveria,
foram organizadas pela Secretaria Nacional de
com base no Diagnóstico Habitacional, definir
Habitação (SNH) e pelo Conselho Gestor do
os princípios, diretrizes e objetivos do plano ha-
FNHIS em resoluções e cartilhas normativas,
bitacional; as formas de sua implementação –
em especial no Guia de Adesão ao SNHIS (MCi-
seus programas e linhas de ação; as metas físi-
dades, 2008a), no Manual do FNHIS de Apoio
cas, financeiras, institucionais e normativas para
à Elaboração de Planos Locais de Habitação
sua aplicação; bem como seu prazo de vigência
de Interesse Social (ibid., 2008b) e no material
e os mecanismos para monitoramento, avalia-
do curso à distância oferecido pela SNH para
ção e revisão de suas propostas.
elaboração de PLHIS – EAD PLHIS (ibid., 2009).
Assim como na PNH, a política fundiária
Pelas diretrizes aí estabelecidas, o processo de
teria uma dimensão estratégica na formulação
formulação dos planos deveria ocorrer de for-
e implementação dos planos de habitação, ca-
ma participativa e em três etapas: uma etapa
bendo a ela estabelecer as bases para a rea-
de Proposta Metodológica; uma etapa para
lização dos programas habitacionais no nível
realização do Diagnóstico do Setor Habitacio-
local, sobretudo aqueles direcionados à pro-
nal; e uma etapa para formulação das Estraté-
dução de novas moradias (MCidades, 2006).
gias de Ação a serem implementadas no hori-
Nesse sentido, considerando as necessidades
zonte temporal do planejamento habitacional.
habitacionais presentes e futuras identificadas
A Proposta Metodológica deveria decla-
na etapa de Diagnóstico – e tendo em vista a
rar como se daria a formulação desse planeja-
diretriz estratégica do PLANHAB, os planos de-
mento: as etapas; o cronograma; os prazos e
veriam incluir informações conclusivas sobre a
as responsabilidades das equipes de trabalho
quantidade de terras necessárias e disponíveis
(do governo e da consultoria); as formas de
no território, contemplando medidas práticas,
participação e publicização do processo; bem
legislativas e administrativas para sua viabili-
como os atores sociais a serem envolvidos. Já
zação. Tais medidas deveriam levar em conta
o Diagnóstico Habitacional deveria explicitar
o marco legal urbanístico, sobretudo o Plano
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novas moradias.
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Tomás Antonio Moreira, Joana Aparecida Z. M. T. Ribeiro
Diretor, uma vez que esse passou a ser o ins-
de novas moradias exigidas pelo crescimento
trumento básico da política fundiária após a
demográfico; e (3) a inadequação, representa-
promulgação do Estatuto da Cidade (Cardoso
tiva da necessidade de melhoria de unidades
e Romeiro, 2008).
habitacionais. No âmbito da inadequação habi-
Para que fosse possível a inclusão de
tacional, colocam-se ainda como componentes:
informações e medidas conclusivas para en-
a carência de infraestrutura, o adensamento
frentamento da questão fundiária, a formu-
excessivo, a irregularidade da posse e da pro-
lação dos planos de habitação, como parte
priedade fundiária, e os domicílios com alto
do processo de implantação da PNH, exigiu a
grau de depreciação ou sem unidade sanitária
explicitação de alguns conceitos e a definição
domiciliar exclusiva (MCidades, 2009).
de terminologias relativas às necessidades ha-
As conceituações foram tratadas como
bitacionais e à precariedade da moradia, por
questões essenciais a serem levantadas no
parte da SNH. Como princípio, buscou-se uma
âmbito da elaboração dos planos de habita-
uniformização de conteúdos que permitisse a
ção, em suas diversas escalas. O conhecimento
construção gradual de um sistema de informa-
das diversas precariedades e necessidades ha-
ções e avaliação sobre a questão habitacional
bitacionais, tanto as acumuladas ao longo do
em nível nacional (MCidades, 2009).
tempo como as previstas para o futuro, seria
Em relação à precariedade da moradia, o
conteúdo estratégico e fundamental para a for-
conceito adotado pela SNH – referenciado no
mulação de políticas alinhadas à PNH. Contu-
PLANHAB – procurou delimitar quatro catego-
do, o próprio PLANHAB salientou para a carên-
rias representativas do fenômeno nas áreas ur-
cia de sistemas consistentes de informação e
banas: (1) cortiços, (2) conjuntos habitacionais
monitoramento da problemática da habitação
produzidos pelo poder público em situação de
nas diversas instâncias, as quais, em muitos
irregularidade ou de degradação, (3) loteamen-
casos, assumiam parâmetros desarticulados e
tos irregulares de moradores de baixa renda e
desordenados de quantificação e qualificação
(4) favelas. Essa delimitação serviria para apro-
das necessidades habitacionais, tornando mais
fundar a caracterização da problemática da
complexo o desafio de enfrentá-las (ibid., 2010;
moradia, o que poderia levar à formulação de
Pulhez, 2012).
diretrizes e estratégias de ação e intervenção
Com isso, como parte das iniciativas de
mais adequadas às características das necessi-
apoio e capacitação ao desenvolvimento dos
dades habitacionais.
planos, a SNH indicou uma série de fontes de
Em relação às necessidades habitacio-
dados e informações, bem como métodos es-
nais, a SNH procurou incorporar os três tipos
pecíficos que auxiliassem a abordagem das
de necessidades conceituadas pela Fundação
necessidades habitacionais, uma vez que a in-
João Pinheiro (FJP): (1) o deficit – representa-
consistência dos referenciais para dimensioná-
tivo da necessidade de reposição total do es-
-las poderia se colocar como fator complicador
toque de moradias precárias e do atendimento
para a definição de programas e estratégias de
da demanda reprimida; (2) a demanda futura –
ação. A recomendação de diversas fontes de
entendida como a necessidade de construção
dados – tais como a FJP, o Instituto Brasileiro
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A questão fundiária brasileira no desenho das políticas nacionais de habitação
de Geografia e Estatísticas (IBGE), o Centro
de Estudos da Metrópole (CEM) do Cebrap
(Centro Brasileiro de Análise e Planejamento),
para quantificação de uma mesma problemática, levaria, contudo, à tarefa de sua compatibilização, impelindo os entes federados a
tomar decisões técnicas ainda não muito experimentadas para identificar as necessidades
habitacionais (Pulhez, 2012; Denaldi, Leitão e
Akaishi, 2011).
Em relação aos entes estaduais, cabe
registrar que outros conteúdos estratégicos
foram ainda sugeridos pela SNH. Com base no
papel dos Estados na política habitacional, entendido como ente articulador e integrador das
ações municipais e regionais em seu território,
caberia aos planos estaduais de habitação, no
que diz respeito à questão fundiária: (1) o dimensionamento das necessidades fundiárias
- Revisão do zoneamento a fim de reservar parte do território para HIS;
- Planos de Expansão com percentual de
cotas para HIS;
- Plano de reparcelamento para implementação de HIS em áreas vazias
consolidadas;
- Revisão da Planta Genérica de Valores
com cobrança eficiente do IPTU;
- Aplicação de edificação compulsória e
IPTU Progressivo no Tempo sobre áreas
urbanizadas vazias;
- Identificação e demarcação das áreas
ocupadas por populações de baixa renda
ou comunidade tradicionais, como Zonas
Especiais de Interesse Social, ou ainda
interesses culturais, para a promoção de
ações de regularização fundiária de interesse social;
- Ações e medidas para o desenvolvimento de uma política municipal de prevenção e mediação dos conflitos fundiários
urbanos e rurais.
para produção de HIS; (2) a formulação de diretrizes, metas de ação, medidas e instrumentos
Os conteúdos estaduais expostos tam-
para a regularização fundiária de assentamen-
bém poderiam ser detalhados no âmbito dos
tos enquadrados no conceito de precariedade
planos de caráter metropolitano – sobretu-
habitacional; e (3) a definição de mecanismos
do de regiões onde se constata a ausência de
que pudessem estimular a aplicação de uma
terras disponíveis em quantidade e condições
política fundiária pelos municípios para efeti-
adequadas para atendimento das necessidades
vação de políticas habitacionais alinhadas aos
habitacionais de interesse social – e por meio
princípios da função social e da PNH (Cardoso
dos quais poderia se definir propostas de ação
e Romeiro, 2008). Sobre esses mecanismos de
mais abrangentes para o território regional.
estímulo à aplicação de uma política fundiária,
Além disso, assim como o PLANHAB, os planos
Cardoso e Romeiro (2008, p. 36) destacam co-
metropolitanos e estaduais deveriam estabele-
mo exemplo a
cer regras específicas para distribuição regional
de recursos, determinando parâmetros para os
[...] definição de indicadores para serem
considerados na pontuação como estímulo para recebimento de recursos do Fundo
Estadual de Habitação de Interesse Social
ou de Desenvolvimento Urbano pelos Municípios, tais como:
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municípios, no que diz respeito ao financiamento e subsídio de recursos para HIS (ibid.).
Ressalta-se, contudo, que o PLANHAB apenas
recomenda tais aspectos se a insuficiência de
cada município em atender suas necessidades
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Tomás Antonio Moreira, Joana Aparecida Z. M. T. Ribeiro
isoladamente for constatada, mesmo reconhe-
sucessivamente os prazos para adesão ao
cendo a ausência de instâncias que integrem e
SNHIS e para a finalização dos planos. Nes-
articulem a ação de estados e municípios em
sas adaptações, o Conselho do FNHIS passou
regiões metropolitanas (MCidades, 2010).
a incluir a possibilidade de elaboração da for-
Com relação aos entes municipais, os
ma simplificada do Plano (PLHIS Simplificado),
mesmos conteúdos estratégicos estabelecidos
pensada para municípios com população de
para os governos estaduais poderiam ser con-
até 50 mil habitantes.
siderados na formulação dos planos de habita-
Para Denaldi, Leitão e Akaishi (2011), as
ção, destacando-se, no entanto, a competência
alterações em relação às exigências de adesão
municipal de se legislar sobre a política urbana.
ao SNHIS estariam relacionadas tanto a fragi-
Por essa competência, os planos locais de HIS
lidades institucionais locais, quanto à falta de
teriam um papel mais efetivo no que se refere
uma cultura de planejamento habitacional, o
ao alcance dos princípios e objetivos da PNH.
que revela ainda a permanente necessidade
Esse alcance estaria vinculado à sua articula-
de capacitação técnica das instâncias adminis-
ção ou às propostas de análise e revisão da
trativas locais. Para Cardoso e Aragão (2013),
legislação urbana municipal, em especial os
de todo modo a lógica de implementação do
Planos Diretores, haja vista as limitações co-
SNHIS exigiria o fortalecimento da esfera pú-
nhecidas desses Planos e o curto alcance dos
blica local e a “necessidade da construção de
instrumentos urbanísticos do Estatuto da Cida-
uma nova cultura política e de novos mecanis-
de, evidenciados nos levantamentos organiza-
mos institucionais para as ações de política
dos por Santos Jr. e Montandon (2011). Nesse
urbana e habitacional” (Cardoso e Aragão,
sentido, a depender do grau de abrangência do
2013, p. 32).
Plano Diretor, a forma como se daria o alinha-
Acrescenta-se também nesse debate o
mento da habitação com a questão fundiária
fato de muitos municípios terem encontrado
poderia repercutir na inviabilização da terra pa-
dificuldades nos processos participativos de
ra os programas de produção de novas mora-
formulação dos PLHIS e na composição dos
dias por meio de estratégias urbano-fundiárias,
Conselhos de Habitação (MCidades, 2013).
como preconizado pela PNH e pelo PLANHAB.
Os Conselhos teriam papel fundamental na
Cabe destacar que o conteúdo dos pla-
continuidade das propostas dos planos habi-
nos habitacionais foi apresentado nas cartilhas
tacionais e em sua articulação com a política
e resoluções do Ministério das Cidades para
urbana, em razão de suas funções estruturais
todos os entes federados, indiferentemente de
na gestão dos recursos dos fundos municipais e
seu porte populacional ou estágio de desenvol-
na participação e controle social.
vimento institucional. Contudo, as constantes
A partir do lançamento do PMCMV,
necessidades de adaptação do governo federal
houve ainda uma relativa retração do SNHIS,
às dificuldades encontradas principalmente pe-
o que reduziu fortemente os ritmos de adesão
los gestores municipais, em especial dificulda-
e conclusão dos planos pelos entes fede-
des técnicas na elaboração dos PLHIS, leva-
rados. Com exceção dos estados e Distri-
ram o Conselho Gestor do FNHIS a prorrogar
to Federal – que cumpriram inteiramente as
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A questão fundiária brasileira no desenho das políticas nacionais de habitação
exigências estabelecidas, a maioria dos muni-
passam pela formulação dos Planos Diretores e
cípios acabou efetivando sua adesão na fase
dos Planos Locais de Habitação – permitindo a
inicial de funciona mento do Sistema, entre
adoção dos instrumentos urbanísticos do Esta-
2006 e 2008. Já a elaboração dos PLHIS(s), a
tuto da Cidade, bem como a compatibilização
conclusão média do Brasil, entre 2007 e 2013
de estratégias de acesso e gestão social da ter-
havia abrangido mais de 2.900 cidades, o cor-
ra –, as ações de produção habitacional priori-
respondente a 52,6% do total de municípios
zadas em nível federal com o PMCMV passam
do país (MCidades, 2013).
pela elevação dos financiamentos e subsídios
Mesmo diante do contexto paralelo do
sem qualquer vinculação aos instrumentos de
PMCMV e das dificuldades na formulação dos
planejamento municipal (Buonfiglio e Bastos,
PLHIS(s) e na implementação do SNHIS, a es-
2011). Há, nesse sentido, uma sobreposição
fera federal apostava que a elaboração dos
conflitante entre as atuações das diferentes
planos de habitação serviria não apenas para
esferas de governo diante das diretrizes e pres-
a viabilização da adesão ao Sistema Nacional,
supostos da PNH, bem como as metas do refe-
como também para tornar as demais esferas
rido Programa e, no que tange, em especial, a
de governo conscientes de suas problemá-
questão fundiária.
ticas habitacionais e das capacidades institucionais existentes para seu enfrentamento
(ibid., 2009).
Considerações finais
Embora a dimensão fundiária da PNH e
o marco regulatório urbanístico, representa-
Com base na caracterização do marco de
do pela Constituição Federal e pelo Estatuto
fundamentação da PNH, evidenciam-se dese-
da Cidade, não garantissem a efetividade no
quilíbrios entre suas dimensões estratégicas
equacionamento das problemáticas habitacio-
e ações programáticas, no que diz respeito à
nais – uma vez que os resultados efetivos de-
relação entre a questão fundiária e a produ-
penderiam de ações conclusivas e de decisões
ção habitacional.
políticas pautadas no princípio da função social
A expressiva disponibilização de recursos
da terra –, a esfera federal apostava que, com
como dimensão estratégica para financiamen-
a adesão ao SNHIS, ficariam estabelecidas, ao
to, subsídio e otimização da cadeia produtiva
menos em tese, as condições normativas, ins-
da construção civil em nível federal, ao mesmo
titucionais e os pressupostos conceituais que
tempo em que permite alcançar parcelas po-
permitiriam avanços na questão habitacional
pulacionais de menor renda, antes não atendi-
no país nas diferentes escalas territoriais.
das, tem como foco ampliar a participação da
Diante do desenho das políticas, pro-
iniciativa privada nos processos de produção.
gramas e planos destaca-se, no entanto, que
Com isso, aposta no equacionamento da pro-
a problemática fundiária ainda foi pouco en-
blemática habitacional por meio de estruturas
fatizada ou tratada de forma básica. Isso por-
privadas de obtenção da terra para a política
que, enquanto as ações dos municípios sobre
pública. Nessas estruturas, os lucros e os gastos
a questão fundiária da política habitacional
fundiários têm peso significativo, o que coloca
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a terra urbana na linha de disputa de capitais,
de uma política de aceleração do crescimento
contrariando a dimensão estratégica de aplica-
econômico, pautada por um programa que se
ção de uma política de solo que tenha como
desvincula de seu pressuposto gerador.
viés o controle social da apropriação da terra
Ainda que a estrutura da política nacio-
e a garantia de localizações que qualifiquem
nal possa ser descentralizada e venha a de-
o acesso aos benefícios do processo formal de
legar às esferas estadual e municipal o papel
urbanização para a população de baixa renda.
executor de suas ações, a esfera federal exerce
Eis uma tarefa fundamental para novas pesqui-
papel fundamental no comando, na coordena-
sas sobre a temática fundiária: como fortalecer
ção e na regulação de suas políticas territoriais,
a questão fundiária como objeto de controle
de forma que as prioridades de estados e mu-
social ao invés de permanecer como instrumen-
nicípios passam a ser profundamente condicio-
to de disputa de capitais. Somente sobre essa
nadas por suas metas e diretrizes. Sob tal as-
premissa conseguir-se-ia pautar, mas profunda-
pecto, a ausência de uma estratégia fundiária
mente, a questão fundiária e dar luz a políticas
integrada entre os diferentes níveis de governo
efetivas e inclusivas.
para a política habitacional corrobora não ape-
Apesar das novas políticas tornarem
nas para que os subsídios públicos disponibi-
possível conceber um discurso que levaria a
lizados sejam transferidos à especulação imo-
considerar a inclusão de uma nova política
biliária, mas para o agravamento da questão
fundiária na política de habitação nacional, a
fundiária urbana.
PNH cai em erros semelhantes aos praticados
Esse olhar sobre o desenho das políticas
no passado da política habitacional, nos quais
habitacionais, suas engrenagens e incongruên-
as ações de produção de moradias não foram
cias, indica a urgência de novos aprofunda-
acompanhadas de políticas de solo redistribu-
mentos sobre o papel fundiário nas políticas
tivas, mas, sim, foram fortemente influenciadas
habitacionais e sua premissa básica – de con-
pela problemática fundiária, tendo contribuído
trole social, para não recair no dilema de práti-
para aprofundar o quadro de precariedade e
cas fundiárias em que a questão da terra urba-
segregação socioespacial nas cidades.
na se mantém na linha de disputa de capitais.
Nesse sentido, ao mesmo tempo em que
Estudos sobre a elaboração e implementação
se assiste a estruturação e valorização de um
dos PLHIS contribuiriam, por exemplo, para
discurso fundamentado de política nacional de
desvendar o papel dado a terra urbana, bem
habitação, evidencia-se o enfraquecimento pre-
como compreender como a questão fundiária
coce dessa estrutura institucionalizada em prol
foi tratada.
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A questão fundiária brasileira no desenho das políticas nacionais de habitação
Tomás Antonio Moreira
Universidade de São Paulo, Instituto de Arquitetura e Urbanismo. São Carlos/SP, Brasil.
[email protected]
Joana Aparecida Z. M. T. Ribeiro
Universidade Paulista, Instituto de Ciências Exatas e Tecnologia, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. Jundiaí/SP, Brasil.
[email protected]
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Texto recebido em 2/jun/2015
Texto aprovado em 14/set/2015
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O FGTS e o mercado de títulos de base
imobiliária: relações e tendências
FGTS and the market of real estate-backed
securities: relationships and trends
Luciana de Oliveira Royer
Resumo
O artigo pesquisa as relações entre o Fundo de
Garantia do Tempo de Serviço e os títulos creditícios de base imobiliária. As contratações efetuadas com recursos do FGTS a partir de 2008 para
compra de títulos de base imobiliária acabaram
por alavancar o mercado desses títulos no país,
constituindo-se em um mecanismo gerador de
uma liquidez mínima para seu funcionamento. A
lógica do investimento nesses fundos é a lógica
da valorização e do retorno do investimento, sem
que exista necessariamente foco em uma política
pública de habitação e desenvolvimento urbano
voltada à universalização de direitos. É discutida a
disputa pelos recursos do fundo e seu papel como
um player desse mercado, no contexto da inserção do Brasil no capitalismo financeirizado.
Palavras-chave: financiamento habitacional; títulos
creditícios de base imobiliária; FGTS; financeirização.
Abstract
The article describes the relationships between the
FGTS and real estate-backed securities. FGTS is the
Brazilian government’s Severance Indemnity Fund:
the employer deposits 8% of a worker’s salary
into the fund and this is managed by the federal
government. Since 2008, contracts undertaken with
FGTS resources for the acquisition of real estatebacked securities have stimulated the real estate
bonds and securities market in Brazil, constituting
a mechanism that generates a minimum liquidity
for its own operation. The investment logic of real
estate funds is the logic of investment return and
gain, without necessarily focusing on a housing and
urban development public policy geared towards
the universalization of rights. The dispute over FGTS
resources and its role as a player in this market
are discussed in the context of Brazil’s inclusion in
financial capitalism.
Keywords: housing finance; real estate-backed
securities; FGTS; financialization.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 33-51, abr 2016
hƩp://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3502
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Luciana de Oliveira Royer
Introdução
O estudo sobre crédito, funding e arquitetura
financeira se mostra fundamental para quem
se dedica ao tema das cidades e do urbano em
geral. O debate sobre o financiamento do desenvolvimento urbano, sempre sob a perspectiva da universalização dos direitos em um país
nesse mercado é o tema da quarta parte do artigo, que trata da relação entre o Fundo e os
títulos de base imobiliária.
Por fim, nas considerações finais,
procura-se estabelecer alguns pontos para a
reflexão a partir do volume de investimentos
recentes do Fundo e as tendências que podem
ser observadas a partir desses investimentos.
com a desigualdade estrutural como o Brasil, é
um dos pontos cruciais para a estruturação e a
gestão de políticas públicas urbanas.
A utilização dos recursos dos chamados
Crédito e crédito
imobiliário no Brasil
fundos parafiscais, o SBPE e o FGTS, Sistema
Brasileiro de Poupança e Empréstimo e Fun-
O crédito imobiliário vem aumentando sua
do de Garantia do Tempo de Serviço, deve ser
participação no PIB de forma consistente e
assim um ponto importante do debate sobre o
vem respondendo por uma parcela crescente
assunto. Em especial o investimento do FGTS,
do desempenho das operações de crédito no
fundo que historicamente tem conseguido atin-
país, de acordo com o Relatório do Banco Cen-
gir parte da renda média e parte da baixa ren-
tral de 2013: “O crédito com recursos direcio-
da no crédito habitacional e é responsável por
nados continuou a expandir em seus principais
importantes investimentos em infraestrutura
segmentos, com destaque para a aceleração
urbana, deve ocupar um papel central na análi-
do crédito rural e para a manutenção do ritmo
se e pesquisas sobre o tema do financiamento
de crescimento dos financiamentos imobiliá-
público da infraestrutura urbana.
rios e dos investimentos com recursos do Ban-
O artigo está desenvolvido em quatro
tópicos, além da introdução. Na primeira parte,
co Nacional de Desenvolvimento Econômico e
Social (BNDES)”.1
será apresentado brevemente o contexto atual
A participação do crédito imobiliá-
do crédito imobiliário no Brasil. Na sequência,
rio nas operações de crédito e sua crescente
discute-se a criação do FGTS, suas mudanças
importância podem ser melhor visualizadas
recentes, seu desempenho, procurando traçar
ao se atentar para o volume de recursos das
um breve histórico do Fundo.
operações de crédito imobiliário (saldo da car-
Para poder discutir a entrada do FGTS no
teira de crédito com recursos direcionados –
mercado de títulos, a terceira parte do artigo
pessoas jurídicas – financiamento imobiliário
procura introduzir alguns aspectos da evolução
total): de 9,2 bilhões de reais em dezembro de
recente de títulos de base imobiliária no Brasil.
2008 para 66,2 bilhões de reais em dezembro
Algumas de suas características básicas, bem
de 2014. O volume movimentado pelo crédi-
como seu desempenho recente, são tratadas
to direcionado para pessoas físicas (finan-
nesse tópico. O papel relevante que o FGTS tem
ciamento imobiliário total) também cresceu
34
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O FGTS e o mercado imobiliário de títulos de base imobiliária
Gráfico 1 – Saldo operações de crédito ao setor imobiliário em relação ao PIB
10
9
Percentual do PIB
8
7
6
5
4
3
2
1
set/14
abr/14
nov/13
jun/13
jan/13
ago/12
mar/12
out/11
maio/11
dez/10
jul/10
fev/10
set/09
abr/09
nov/08
jun/08
jan/08
ago/07
mar/07
0
Título do eixo
Fonte: Elaboração própria. Sistema Gerenciador de Séries Temporais do Banco Central do Brasil.
consideravelmente no período: de um saldo
de 59,7 bilhões em dezembro de 2008 foi para
431,7 bilhões de reais em dezembro de 2014.
Ao analisar o FGTS, percebe-se que sua consti-
O Gráfico 1 ilustra esse crescimento na relação
tuição e seu desempenho ao longo dos quase
do crédito imobiliário/ PIB.
50 anos de existência o transforma em um pa-
A relação entre o crédito imobiliário e
trimônio do trabalhador de fato, como é afir-
o PIB, apesar do consistente crescimento, ain-
mado em muitos dos seus documentos oficiais
da é considerada baixa se for comparada com
(Brasil, MTE, 2015) e como veremos adiante.
outros países. Todo o chamado arcabouço re-
A constituição de um fundo que pudesse
gulatório permitiu uma expansão desse crédito
ser uma alternativa à estabilidade no emprego,
de forma a mitigar e minimizar os riscos ine-
obrigatória no Brasil até a existência do FGTS2
rentes a uma operação de longo prazo junto
e também que pudesse financiar parte da in-
aos agentes financeiros (Royer, 2014). E, prin-
fraestrutura urbana em um país que começava
cipalmente, o que tem garantido a expansão
a apresentar persistentes taxas de urbanização
sustentada desse crédito e a viabilidade das
parecia uma saída quase mágica para resolver
operações é o funding de crédito direcionado:
dois problemas de uma só vez. O financia-
caderneta de poupança (SBPE) e o FGTS (Royer,
mento da indústria da construção civil era um
2014; Magalhães Eloy, 2015).
problema relevante para a agenda pós-1964,
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Book 35.indb 35
Breve histórico do FGTS
35
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Luciana de Oliveira Royer
e o BNH atuou diretamente nesse setor. O viés
dessa forma essas instituições a operar em um
existente no BNH de uma política de incentivo
sistema integrado de associações de poupan-
industrial, constituindo um fundo robusto para
ças e empréstimos.
dar suporte à indústria da construção civil na-
Os recursos iniciais destinados ao SFH e
cional, foi estudado por importantes autores
previstos na lei de criação do BNH/SFH eram
(Maricato, 1987).
oriundos de uma contribuição de 1% incidente
Em 1965, a presidência do Banco Nacio-
sobre salários e também de subscrição compul-
nal de Habitação foi substituída por equipes
sória de letras imobiliárias emitidas pelo BNH
ligadas ao Ministério da Fazenda e do Planeja-
por locadores de imóveis com área superior a
mento, que aceleraram as medidas necessárias
160m², por institutos de previdência, SESC, Sesi,
para a implementação do modelo americano
Caixas Econômicas e promotores da construção
de crédito imobiliário. A concepção financista
de imóveis com valor entre 1.000 e 2.000 salá-
se tornou hegemônica, e a orientação a ser se-
rios mínimos, além de recursos subscritos pela
guida no funcionamento do sistema, cada vez
União. No entanto, mesmo depois de um ano
mais nítida. A Lei nº 4.864, de novembro de
de instituído o SFH, os recursos ainda não ha-
1965, que criou “medidas de estímulo à cons-
viam constituído um caixa significativo que pu-
3
trução civil”, é um exemplo do que o gover-
desse dar um mínimo de escala na produção de
no pretendia com a instituição de um sistema
unidades habitacionais e com isso fomentar a
financeiro destinado à habitação: incentivos
indústria da construção civil, um dos objetivos
tributários como a isenção de IPI para “prepa-
prioritários do sistema.
rações e blocos de concreto”, normatização de
Foi de fato a constituição de um fundo
índices e outros instrumentos para a correção
parafiscal como o FGTS, por meio da Lei no.
monetária de prestações e saldos devedores,
5.107, de 13 de setembro de 1966,4 que deu
independente se os financiamentos encontra-
outro impulso aos recursos antes restritos com
vam-se ou não no âmbito do SFH, mudança nos
os quais operava o Banco. O FGTS é um fundo
limitadores para aplicação dos recursos: 60%
financeiro formado pela contribuição mensal
dos recursos aplicados em habitações de valor
de empregadores aos seus empregados me-
unitário inferior a 300 salários mínimos (na Lei
diante depósito de 8% das remunerações em
nº 4.380, de 21 de agosto de 1964, que havia
conta vinculada,5 de natureza privada e sob
instituído o BNH, esse limite era de 100 salá-
gestão pública, conformando uma poupança
rios); 20% dos recursos aplicados em habita-
compulsória do trabalhador que o empregador
ções de valor unitário superior a 400 salários
recolhe na fonte. A magnitude dos recursos do
mínimos (na lei do BNH esse limite era 250
FGTS alçou o BNH à condição de segundo es-
salários). A Lei nº 4.864 permitiu também ao
tabelecimento bancário do país de sua criação
Banco Central autorizar as sociedades de crédi-
até o início dos anos 70 por conta da aplicação
to e financiamento a se transformar em socie-
e liquidez de seus recursos.6
dades de crédito imobiliário ou a manter car-
Essa mudança de perfil, portanto, se da-
teira especializada nas operações próprias das
ria exclusivamente pela origem financeira do
sociedades de crédito imobiliário, incentivando
dinheiro que comporia a base dos recursos a
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O FGTS e o mercado imobiliário de títulos de base imobiliária
ser utilizado na execução da política, tal era a
Com a extinção do BNH em 1986 e da
visão vigente à época do sistema, que preza-
migração de sua carteira de financiamentos e
va pelo equilíbrio econômico-financeiro e pela
do controle e operação do FGTS para a Caixa
constituição do sistema como um fim em si
Econômica Federal, extinguiu-se também o
mesmo. Dessa forma, ao mudar a origem do
Conselho Curador do FGTS. A hiperinflação e o
recurso que compunha o funding da política,
cenário macroeconômico de fato impactaram
muda também seu caráter, o que, se por um la-
no número de financiamentos feitos pelo fundo
do atenta para a necessidade de liquidez e sol-
depois de 1986.
vabilidade dos recursos do sistema, por outro
Um ponto de inflexão importante para
demonstra a preocupação em utilizar os fundos
compreendermos as escolhas atuais de investi-
e seus recursos com quem tivesse capacidade
mento do FGTS se deu na era pós-Collor. Ainda
financeira para isso, ou seja, financiar quem
no governo Sarney, como nos conta Schvasberg
podia pagar. Recursos orçamentários não eram
(1993), o Conselho Curador foi reestruturado,
utilizados para a execução dos programas, nem
contando com a presença de representantes
a título de subsídio, o que ampliava o caráter
dos trabalhadores, empresários e governo. Essa
regressivo da política. O BNH responderia a
reestruturação levou para o Conselho Curador
essa dificuldade desenhando programas que
as tensões do período, em especial quanto à
continham subsídios internos bem como pro-
distribuição territorial dos recursos do Fundo.
gramas que tivessem juros mais altos, como os
A retomada das operações com recursos
programas de cooperativas e mercado de hipo-
do FGTS em 1990 e 1991, depois de quase três
tecas. Além disso, alguns programas contavam
anos sem contratações de porte, caracteriza o
também com subsídios cruzados nos quais fa-
governo Collor. Cerca de 95% do total de in-
mílias de renda um pouco mais alta subsidia-
vestimentos em habitação popular nesses dois
vam famílias de renda menor.
anos foram feitos através do FGTS. No entanto,
De fato, o desempenho do FGTS ao longo
a maneira como foram efetuadas as liberações
do período de funcionamento do BNH assegu-
de verba e as contratações acabou objeto de
rou excelentes resultados quantitativos, de-
uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito,
monstrando que essa fonte de recursos era de
destinada a apurar irregularidades. Foram con-
crucial importância tanto do ponto de vista do
tratadas 526 mil unidades, 360 mil somente em
custo de captação do recurso para a execução
1991, volume que comprometeu o orçamento
de política habitacional para renda média e
dos anos seguintes, impedindo a realização de
média baixa, quanto do fomento à indústria da
novas operações. No final de 1996, contabiliza-
construção civil. Atualmente podemos verificar
vam-se 75 empreendimentos, com 26.553 uni-
que esse desempenho voltou a apresentar nú-
dades com características de empreendimen-
meros muito significativos: em 2014, somente
tos-problema (Souza, 1998). Havia uma discre-
em habitação, o FGTS contratou 51,8 bilhões
pância entre a baixa qualidade das habitações
de reais (financiamentos e subsídios) perfa-
e a faixa de renda a quem se destinavam;
zendo mais de 374,5 mil unidades naquele ano
muitas ficaram inacabadas e foram invadidas,
(dados Agente Operador FGTS).
por exemplo. Outras foram abandonadas ou
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Luciana de Oliveira Royer
permaneceram muito tempo sem ocupação por
Acompanhar criticamente a evolução
não terem uma demanda caracterizada, des-
dessas medidas de melhoria do ambiente ins-
tinada a ocupá-las. Os motivos que levaram a
titucional para o crédito imobiliário é relevante
isso foram vários, mas destacamos a má quali-
para se compreender os desenhos institucio-
dade das habitações, a localização inadequada
nais que daí advêm. A agenda de mudanças
e os preços incompatíveis com a demanda que
institucionais preconizadas pelas finanças glo-
supostamente seria atendida (Freitas, 2002).
bais (WB, 2002) no que concerne ao desenvol-
A instituição do financiamento direto
vimento do crédito imobiliário se insere nesse
à pessoa física e ao produtor dos imóveis ao
movimento. Melhoria do ambiente institucio-
invés da destinação de recursos para o em-
nal, fortalecimento do mercado secundário de
preendimento em si, desvinculado do futuro
títulos, desburocratização dos processos relati-
mutuário, foi uma das diferenças básicas que
vos à concessão de crédito (para bons “paga-
marcaram o período imediatamente pós-Collor.
dores”, diga-se) são parte da agenda de orga-
O programa Carta de Crédito Individual, criado
nismos como o Banco Mundial.
em 1995 nessa lógica é, ainda hoje, o principal
Importante ressaltar que o mercado de
programa de aplicação de recursos do FGTS,
títulos foi viabilizado modernamente no país
sendo o veículo formal do Programa Minha Ca-
depois das reformas conduzidas a partir do
sa Minha Vida.
início dos anos 1990, na chamada flexibilização da economia, com a “retirada gradativa
dos controles que obstaculizavam o livre fluxo
Aspectos da evolução recente
de títulos de base imobiliária
no Brasil
internacional de capitais” (Paulani, 2012). O
equacionamento da dívida externa brasileira
por meio de sua securitização se insere nesse contexto, por exemplo. O Brasil caminhava
para estabelecer sua posição no capitalismo
Títulos de base imobiliária podem ser carac-
financeirizado, absorvendo poupança externa
terizados como papéis que contêm uma pro-
e sendo uma opção atraente para o rentismo
messa de pagamento em um determinado
internacional (ibid.). Veremos adiante como es-
prazo e com uma determinada remuneração
sa inserção no capitalismo financeirizado pro-
cuja valorização e/ou fluxo de recursos se dá a
duz efeitos nas políticas de infraestrutura e na
partir de empreendimentos imobiliários. Os tí-
atuação do Estado.
tulos creditícios não são criação recente, visto
Não há como ignorar a importância do
que são parte integrante do sistema bancário
crédito e do fomento de mercados privados
e parte fundamental do mercado de capitais.
para o financiamento e promoção de políti-
Porém suas transformações e metamorfoses e
cas de infraestrutura, em especial da política
sua entrada na produção do parque imobiliário
habitacional. Apesar de parecer óbvio para os
urbano nos ajudam a entender as tendências
profissionais que atuam no âmbito do espaço
recentes da entrada da lógica das finanças no
e das ciências sociais aplicadas, a lógica que
espaço construído das cidades.
tem regido as políticas de crédito habitacional
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O FGTS e o mercado imobiliário de títulos de base imobiliária
e imobiliário são lógicas economicistas não
Um dos instrumentos financeiros centrais
apenas no Brasil, mas também nos países ditos
na lei do SFI é o Certificado de Recebível Imobi-
modelares por operadores do mercado imobi-
liário. O CRI é um título de crédito nominativo,
liário brasileiro: Espanha, México e Chile, por
de livre negociação, lastreado em créditos imo-
exemplo (Abecip, 2005).
biliários, constituindo promessa de pagamento
Como se sabe, o padrão de financiamen-
em dinheiro. Apresenta forma escritural, de mo-
to da política habitacional brasileira pós-1964
do que seu registro e negociação devem ser fei-
esteve centrado no crédito lastreado na cap-
tos por sistemas centralizados de custódia e li-
tação de poupança, tanto voluntária quanto
quidação de títulos financeiros privados, sendo
compulsória e muito pouco no repasse de re-
controlados pela CETIP (Central de Custodia e
cursos orçamentários de origem fiscal. A cons-
Liquidação Financeira de Títulos). São de emis-
tituição do SFH, nascido de uma conjuntura de
são exclusiva das companhias securitizadoras.
intervenção do estado na economia, regulação
Podem ser lastreados em fluxos de recebíveis
de mercados e direcionamento de recursos
(pagamentos) de empreendimentos imobiliá-
onerosos a partir de critérios políticos é bas-
rios específicos ou de um conjunto pulverizado
tante distinta da formatação do Sistema Fi-
de operações de crédito imobiliário.
nanceiro Imobiliário, criado em 1997 em pleno
Os CRI também compõem os ativos de
período de consecução do ajuste neoliberal no
fundos de investimentos, como dos Fundos de
Brasil, que pressupõe a livre negociação entre
Investimento em Direitos Creditórios (FDIC) e
as partes, limitando-se o estado a resolver as
dos Fundos de Investimentos Imobiliários (FII).
chamadas “falhas de mercado” (WB, 2002). To-
Apesar de terem sido criados em 1993, sua re-
da a argumentação de que falta um sistema de
gulamentação foi feita em 2008 por meio da
crédito destinado ao setor imobiliário, de que
Instrução CVM (Companhia de Valores Mobiliá-
o setor será alavancado caso esse sistema fun-
rios) nº 472.7 No caso especialmente dos FII,
cione, vem ao encontro da edição da lei do SFI
mas também no caso dos FIDC, seus ativos
(Royer, 2014).
compreendem uma gama relativamente diver-
A habitação acabou virando um exce-
sificada de instrumentos não necessariamente
lente pretexto para o discurso da alocação
vinculados a operações de financiamento habi-
de recursos do SFH na promoção de produtos
tacional. Segundo o Portal do Investidor,
imobiliários em geral, por meio do ambiente
financeiro do SFI. Na ocasião da criação deste
sistema, não faltaram os que criticassem o SFH
como ultrapassado, defendendo a sua substituição para que finalmente a questão habitacional fosse resolvida (Abecip, 2005). Mesmo
que o SFH continue produzindo seus resultados, ainda resistem os que veem no modelo
do SFI a grande oportunidade de combate ao
déficit de moradias no Brasil (FGV, 2007).
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[...] de acordo com a regulação vigente,
além de poder adquirir direitos reais sobre
bens imóveis, o FII pode também ter outros tipos de aplicações, tais como: letras
de crédito imobiliário (LCI); letras hipotecárias (LH); cotas de outros FII; certificados de potencial adicional de construção
(Cepac); certificados de recebíveis imobiliários (CRI); cotas de fundos de investimento em direitos creditórios (FIDC) que
tenham como política de investimento,
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Luciana de Oliveira Royer
exclusivamente, atividades permitidas aos
FII e desde que sua emissão ou negociação tenha sido registrada na CVM; além
de valores mobiliários de emissores cujas
atividades preponderantes sejam permitidas aos FII. (Brasil, CVM, 2013)
Já as operações com LCI (Letras de Crédito Imobiliário) cresceram, sobretudo, a partir do início de 2010, quando foram extintos os
limites de aplicação nesses papéis para efeito
de contabilização das exigibilidades do SFH.
As LCI contam ainda com a isenção de Impos-
A partir das regulamentações desses
to de Renda e com cobertura do Fundo Garan-
instrumentos, em conjunto com outras medi-
tidor de Crédito, ampliando sua atratividade
das e o aumento da concessão do crédito ao
junto aos investidores “pessoa física”. Apesar
setor imobiliário, o estoque de instrumentos do
do desempenho positivo desses instrumentos,
SFI cresceu sistematicamente depois do início
é importante ressaltar que apenas uma par-
de 2008, especialmente no caso dos CRI e das
cela minoritária das operações concerne ao
CCI (Cédulas de Crédito Imobiliário). Um fator
setor habitacional. Segundo dados do Anuá-
importante na expansão desses mercados foi
rio Estatístico da Uqbar, do total das emissões
a disseminação das vendas desses títulos no
de CRI no ano de 2010 apenas 15% estavam
segmento de varejo dos bancos. Inicialmente
associadas a financiamentos habitacionais.
restritas a clientes de private banking, as apli-
Em 2011, essa participação mais do que do-
cações em CRI exigiam um valor mínimo de
brou, chegando a 36,7%, mas permanecia
R$300 mil. Em 2011, o valor da aplicação míni-
ainda minoritária.
ma foi reduzido como uma forma de ampliar a
Os dados do estoque de operações de
distribuição desses títulos no varejo. A estraté-
mercado de capitais que tem vinculação com
gia foi ensejada pela maior demanda de títulos
o setor imobiliário mostram um crescimento
de renda fixa diante da trajetória de queda das
expressivo do volume de recursos operados
taxas de juros à época.
nesse mercado.
Tabela 1 – Estoque de títulos creditícios
vinculados ao setor imobiliário
Ano
Estoque – Vinculados ao setor imobiliário (R$ milhões)
CCI
CRI
Letra hipotecária
LCI
Total
2006
2.011
2.170
3.283
7.283
14.746
2007
2.636
2.867
1.955
7.844
15.303
2008
8.287
7.208
1.045
10.503
27.043
2009
12.703
10.567
3.727
15.510
42.508
2010
24.295
18.919
1.896
29.260
74.371
2011
43.790
27.795
2.024
46.832
120.441
2012
53.287
33.356
1.542
62.360
150.545
Fonte: Cetip (2013). Valores nominais.
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O FGTS e o mercado imobiliário de títulos de base imobiliária
Ainda que não seja possível compará-lo
Esses são os principais pontos levantados por
em nível de grandeza com outros mercados de
analistas de mercado ao se depararem com um
títulos (como os da dívida pública, por exem-
crescimento tão significativo desses títulos de
plo), o que chama atenção, em especial para o
2008 a 2012.8
propósito deste estudo, é o crescimento desse
Já o volume negociado nos mostra o
mercado e o aumento significativo dos recursos
crescimento do mercado secundário no Brasil
que estão sendo movimentados em uma série
com títulos de base imobiliária. Consegue-se aí
histórica relativamente recente.
identificar a importância crescente desse mer-
De fato, de um total de 14,7 bilhões de
reais em 2006, o estoque desses títulos foi para
mais de 150 bilhões de reais em 2012 (em va-
cado secundário e o papel destacado do CRI
pela sua natureza jurídica.
O anuário da Uqbar, consultoria especializada em securitização imobiliária, apresenta o
lores nominais).
A análise macroeconômica do aumen-
ano de 2012 como o momento
to do interesse do investidor por títulos que
[...] mais profuso de nossa recente história em oportunidades que vão surgindo
ao redor do mercado de títulos de securitização imobiliária e de segmentos correlatos. Dando sustentação a este ambiente construtivo, cresce com vigor o setor
imobiliário no Brasil e, de forma paralela,
quase todas as suas fontes de financiamento que possibilitam esta expansão.
(Uqbar, 2012, p. 2)
tenham isenção fiscal, características básicas
de um investimento em renda fixa, e retorno
condizente com a operação, pode ser aplicada
a quase todos os títulos de base imobiliária. A
queda da taxa básica de juros, também é apontada como um fator que obriga investidores de
todo o tipo e tamanho a buscarem a rentabilidade em outro tipo de papéis e investimentos.
Tabela 2 – Volume negociado de títulos creditícios
vinculados ao setor imobiliário
Ano
Volume negociado – Vinculados ao setor imobiliário (R$ milhões)
CCI
CRI
Letra hipotecária
LCI
Total
2006
11
256
6
2
275
2007
305
238
26
2
570
2008
1.584
516
161
103
2.365
2009
1.502
1.623
224
915
4.264
2010
1.258
4.067
158
1.348
6.831
2011
2.285
10.912
-
1.724
14.921
2012
1.387
14.688
239
3.592
18.695
Fonte: Cetip (2013). Valores nominais.
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Luciana de Oliveira Royer
A estruturação complexa das opera-
captura de recursos regulados do fundo pú-
ções, como FII adquirindo CRI, ou como CRI
blico para esse mercado. Segundo o mesmo
lastreados em outros CRI caracterizam esse
documento da consultoria especializada em
novo ambiente. O que nos interessa destacar
securitização imobiliária,
é a importância do papel do FGTS na primeira
alavancagem de CRIs feita com os recursos do
Fundo em 2008, gerando o desempenho esperado por seus operadores. Como veremos, os
aportes do FGTS para compra de CRIs ou ainda
em FII se dá anualmente, configurando uma
certeza de liquidez mínima para esse mercado.
Em 2012 o volume de CRI emitido foi de 13,58
bilhões, “maior do que a soma das emissões
[...] a estrutura de mercado de capitais,
tendo como investidor o FGTS, funcionou
como um vaso comunicante entre alguns
sistemas de financiamento imobiliário,
como o próprio sistema com as regras específicas do FGTS, o Sistema Financeiro de
Habitação (SFH) e o Sistema de Financiamento Imobiliário (SFI), fazendo com que
os recursos de um sistema realimentassem outro sistema. (Uqbar, 2012)
de 2010 e 2009”, segundo o Anuário Uqbar
(Uqbar, 2012).
Pela primeira vez, a maioria das opera-
As explicações para esse desempenho
ções de CRI foi realizada com lastro em crédito
nem sempre são diretas. Estão relaciona-
imobiliário em detrimento de locações. O mer-
das à necessidade da busca por uma melhor
cado existente até então sempre esteve mais
performance em ambiente de juros baixos. O
focado em operações corporativas, com base
discurso da captação de recursos no merca-
em contratos de locação atípica na modalidade
do para se fazer frente ao déficit habitacional
build to suit.
Tal mudança se apresenta totalmente em
linha com as alterações de mercado existentes
e com a revogação da Resolução nº 3347/2006
do CMN que trata das normas sobre direcionamento dos recursos captados em depósitos
de poupança pelas entidades integrantes do
SBPE e pela Resolução nº 3932/2010 do CMN.
A Resolução nº 3932, dentre outras disposições e alterações, determinou que só seriam
considerados CRI possíveis de serem incluídos
no chamado ”Mapa 4” das instituições financeiras aqueles que tivessem lastro em crédito
imobiliário (excluindo expressamente a possibilidade, ate então existente, de inclusão de CRI
com lastro em locações).
Ademais, a Resolução nº 3932 dispôs
que as instituições financeiras que realizassem
as operações de cessão de suas carteiras de
sempre aparece nas exposições de motivos e
analises de conjuntura das possibilidades desses instrumentos financeiros (Abecip, 2005).
No entanto, as mudanças regulatórias quanto ao direcionamento da poupança e o papel
do FGTS na alavancagem desse mercado, são
apontadas por analistas financeiros como
fatores preponderantes no desempenho recente da emissão desses títulos, procurando
estabelecer real e finalmente um mercado de
securitização imobiliária no Brasil. O FGTS,
no ano de 2011, adquiriu mais de três bilhões
em CRI (aproximadamente 20% das emissões
daquele ano) tendo sido fundamental para o
desempenho desse mercado naqueles anos. A
importância do FGTS na alavancagem de operações ligadas ao circuito financeiro do capital
imobiliário vai se tornando clara, mantendo a
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O FGTS e o mercado imobiliário de títulos de base imobiliária
crédito imobiliário às companhias securitizado-
Não é demais insistir ainda que o sucesso
ras de créditos imobiliários e que fossem vin-
desses instrumentos contou com a legitimação,
culadas à emissão de CRI, poderiam utilizá-los
ao menos no nível do discurso, do déficit ha-
para fins do cumprimento das exigibilidades de
bitacional brasileiro. No entanto, a entrada do
manutenção de no mínimo 65% do montante
que seriam “novas” fontes de recursos para
captado em deposito de poupança em opera-
um setor “atrasado” ou ainda totalmente de-
ções de financiamento imobiliário.
pendente da captação da poupança e do FGTS
parece contraditória, visto que são justamente
esses os recursos que se mostram fundamentais para girar o ciclo dos investimentos e tor-
Títulos de base imobiliária
e o FGTS
nar atrativos os títulos para os investidores.
O desempenho do FGTS tem demonstrado o quão relevante é este fundo para a
Ao que tudo indica, portanto, um “cliente” fun-
produção de habitação de interesse social. De
damental para o crescimento do mercado de
2008 a 2014, 231,2 bilhões de reais foram des-
títulos de base imobiliária é o FGTS. Uma série
tinados para o financiamento à construção e
de resoluções do CMN e do CCFGTS, editadas
à aquisição de imóveis, conforme Tabela 3. Ou
praticamente ano a ano desde 1998, mostram
seja, o Fundo tem hoje um papel fundamental
que os CRI e outros títulos de mesma natureza
na provisão de habitação para renda média e
foram ganhando espaço no mercado de capi-
baixa no país. Magalhães Eloy demonstra que
tais, ampliando sua participação na captação
esse papel, no entanto, poderia ser ainda maior
de recursos do FGTS que seriam destinados
já que o gasto ainda estaria aquém da capa-
inicialmente para o atendimento a empreendi-
cidade de investimento do FGTS (Magalhães
mentos destinados à baixa renda.
Eloy, 2015).
Tabela 3 – Execução de itens do orçamento do FGTS 2008-2014
Valores
em R$ mil
Execução do Orçamento FGTS
Ano
Habitação
Descontos/subsídios
Saneamento básico
Infraestrutura
2008
13.590.867
1.887.114
4.438.847
–
2009
20.205.413
3.971.321
1.948.801
–
2010
33.241.715
6.406.883
553.129
5.300.270
2011
37.842.316
6.444.327
1.251.620
1.782.502
2012
39.583.015
7.511.490
615.517
781.315
2013
42.805.021
8.494.310
4.841.437
3.717.843
2014
43.930.537
7.896.549
6.731.361
6.209.627
Fonte: Agente Operador do FGTS. Valores atualizados para 2014 pelo IPCA.
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Luciana de Oliveira Royer
No entanto o FGTS tem sido usado
também e cada vez mais para alavancar pro-
a ser construído, a estratégia de negócios e a
margem de retorno dos investimentos.
gramas e posições de mercado. O argumento
As resoluções do CCFGTS nº 578/2008,
central contido nos documentos técnicos é de
602/2009, 637/2010, 681/2012, 702/2012,
que a gestão do Fundo tem buscado a melhor
725/2013 foram editadas para regulamentar
rentabilidade possível para as necessárias apli-
esse tipo de investimento, que cresceu signi-
cações financeiras, e que dessa forma o Fundo
ficativamente durante o período 2008-2012.
se mantém saudável e respondendo a todos os
Em uma das resoluções, os “considerandos”9
compromissos que tem, especialmente os com-
apontavam para a importância da alocação de
promissos com seus cotistas.
recursos do FGTS nesse mercado:
De acordo com entrevistas realizadas
junto ao Agente Operador do FGTS e análise
de documentos, houve pressão no âmbito do
Conselho Curador desde a Resolução CCFGTS
nº 578/2008 para que fosse autorizada a utilização dos recursos do FGTS em operações
imobiliárias feitas diretamente ou por meio de
títulos de base imobiliária. Nessas operações
estão incluídas as debêntures para grandes empresas com a condição de executarem unidades
habitacionais e também compras de CRIs “performados”, ou seja, CRIs com lastro em empreendimentos habitacionais, fundos de investimento imobiliários e investimentos especiais.
Desses investimentos especiais, um dos
mais “especiais” é o Fundo Imobiliário Porto
Maravilha. O FGTS foi autorizado a investir
3,5 bilhões de reais no fundo, sendo seu único cotista. O FII Porto Maravilha foi criado com
o propósito de realizar negócios de natureza
imobiliária na operação urbana do porto, segundo seu prospecto. É ainda o maior FII do
país e adquiriu todo o estoque de Cepacs da
operação, visando utilizá-los para comprar par-
Considerando que, além do financiamento tradicional, o FGTS vem incentivando o
mercado secundário, que cresce no País,
disponibilizando linhas de crédito para
aquisição de direitos creditórios vinculados ao desenvolvimento de projetos no
setor imobiliário;
Considerando que os investimentos do
FGTS nesses ativos elevam o nível de liquidez do setor imobiliário;
Considerando que os recursos da linha
de investimentos criada em 2008 para
aquisição de cotas de Fundos de Investimentos Imobiliários – FIIs, de Fundos
de Investimento em Direitos Creditórios – FIDCs e de debêntures, com lastro
em operações de habitação, no valor de
R$3.000.000.000,00 (três bilhões de
reais), já estão integralmente comprometidos com operações contratadas e em
vias de contratação no âmbito do Agente
Operador do FGTS;
Considerando que além dessas operações
já viabilizadas, existe demanda adicional
apresentada ao Agente Operador da ordem de R$ 5.000.000.000,00 (cinco bilhões de reais) (...). (Brasil, MTE, CCFGTS
nº 602/2009) (grifo próprio)
ticipação nos empreendimentos imobiliários no
De fato, existia demanda adicional e, pe-
seu perímetro (Pereira e Moschiaro, 2015). Ao
la evolução dos números das chamadas ope-
adquirir todo o estoque de Cepac e por ser o
rações de mercado, essa demanda foi irrigada
único controlador do fundo, o FGTS controla
com os recursos do FGTS, como se pode verifi-
também o tipo de empreendimento imobiliário
car pela Tabela 4.
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O FGTS e o mercado imobiliário de títulos de base imobiliária
Tabela 4 – Estoque de títulos creditícios
vinculados ao setor imobiliário
Ano
Aquisição de CRI + Aplicação de FI-FGTS +
Carteira administrada Debêntures/FII/CRI/FIDC (Contratado)
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014
9.344.058
7.576.630
7.172.104
8.246.509
7.167.361
2.401.094
2.907.220
Fonte: Agente Operador do FGTS. Valores atualizados para 2014 pelo IPCA.
Os dados das operações de mercado
Ainda que seja importante acompanhar
mostram um grande crescimento até 2012. Em
essa trajetória mais recente das chamadas
2008 as operações totalizavam mais de 9,3 bi-
operações de mercado, percebe-se que desde a
lhões de reais e em 2012, 7,2 bilhões de reais
regulamentação do uso do FGTS nesse merca-
(valores atualizados para 2014).
do de títulos imobiliários, outra forma de ope-
De 2008 a 2012 os valores aplicados em
racionalizar os recursos está acontecendo. Há
operações de mercado foram sistematicamen-
uma injeção de recursos em investimentos que
te maiores do que os alocados para subsídios
se caracterizam como rentáveis para o próprio
habitacionais. A partir de 2013 essa curva se
Fundo, dinamizando um mercado imobiliário
inverte, com o investimento em financiamentos
que abriria frentes de expansão em áreas da ci-
habitacionais continuando a subir, assim co-
dade que não seriam utilizadas sem um aporte
mo os subsídios. Uma das possibilidades para
de recursos públicos, como a área portuária do
compreensão dessa inversão é a trajetória de
Rio de Janeiro. Reforça-se o caráter de colchão
subida da Selic a partir de 2013, e a chama-
de liquidez que tem o Fundo, porém de forma
da deterioração do ambiente fiscal do país que
diversificada, investindo diretamente também
geraria uma crise de confiança. Também as
em operações de mercado. A lógica que per-
incertezas quanto à continuidade de recursos
passa esses investimentos é uma lógica de va-
para o programa MCMV e mudanças no am-
lorização dos investimentos, como não poderia
biente econômico mundial podem ser compor
deixar ser. Certamente é realizado com todas
a motivação para esse comportamento. Esses
as normas prudenciais para um investimento
motivos impactariam o mercado imobiliário e
desse tipo, mas o que vale observar é a atuação
consequentemente o mercado de títulos de ba-
do FGTS como um player no mercado imobiliá-
se imobiliária.
rio e no mercado de títulos imobiliários, sendo
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Gráfico 2 – Evolução da taxa Selic 2008-2014
16
14
12
10
8
6
4
2
1/7/2014
1/10/2014
1/4/2014
1/1/2014
1/7/2013
1/10/2013
1/4/2013
1/1/2013
1/7/2012
1/10/2012
1/4/2012
1/1/2012
1/7/2011
1/10/2011
1/4/2011
1/1/2011
1/7/2010
1/10/2010
1/4/2010
1/1/2010
1/7/2009
1/10/2009
1/4/2009
1/1/2009
1/7/2008
1/10/2008
1/4/2008
1/1/2008
0
Fonte: Banco Central do Brasil. Elaboração própria.
Gráfico 3 – Evolução comparativa de recursos do FGTS:
Subsídio habitacional (Desconto) x Gastos em operações de mercado (título)
14.000.000
12.000.000
10.000.000
8.000.000
6.000.000
4.000.000
2.000.000
0
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014
Fonte: Agente Operador do FGTS. Valores atualizados para 2014 pelo IPCA. Elaboração própria.
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O FGTS e o mercado imobiliário de títulos de base imobiliária
decisivo na alocação de recursos, na escolha do
pelo fomento ao mercado imobiliário no país,
tipo de investimento e de sua localização.
que geraria empregos, e pela obtenção de rentabilidade para o próprio Fundo, garantindo
sua saúde financeira. No entanto, como discuti-
Considerações finais
do anteriormente, o fomento se dá ao próprio
mercado de títulos, ainda que a base imobiliá-
Os fundos conhecidos como parafiscais (SBPE
ria desses títulos movimente de certa forma a
e FGTS) detém uma importância crucial para a
indústria da construção.
promoção de politicas habitacionais desde sua
Nesse mesmo período, 231,2 bilhões de
criação ainda na década de 60. O FGTS, espe-
reais foram destinados a financiamentos habi-
cialmente, tem um papel importante no aces-
tacionais, mostrando a importância do FGTS
so ao crédito para famílias de media e baixa
para uma política publica de habitação, ao
renda. A forma de constituição desse fundo,
contribuir efetivamente para a construção de
uma poupança compulsória, e sua remunera-
um parque habitacional. Para atingir faixas de
ção a taxas que podem variar abaixo de taxas
renda média e baixa, a politica de subsídios
inflação, tem se justificado pela importância
do fundo destinou, também de 2008 a 2014,
da utilização de seus recursos na consecução
42,6 bilhões de reais, o que foi fundamental
de uma politica habitacional consistente e di-
para a viabilização dos empréstimos. Ainda
rigida pelo Estado em um contexto de grande
que seja bastante relevante a discussão sobre
déficit, inadequação habitacional e de infraes-
o spread das operações do Fundo e o tipo de
trutura urbana.
subsídios concedidos pelo FGTS (Magalhaes
Porém, e no contexto da inserção do país
Eloy, 2015), não há como negar que a con-
na atual etapa do modo de produção mundial
cessão de crédito e o subsídio conseguiram
centrado nas finanças, o FGTS tem proporcio-
atingir um número significativo de famílias
nado a criação e, de certo modo, a manutenção,
que estaria fora de qualquer possibilidade de
de um mercado de títulos de base imobiliária.
crédito habitacional.
Esse colchão de liquidez e principalmente, a
Porém ao viabilizar crescentemente as
diminuição das incertezas e riscos pela com-
chamadas operações de mercado, o FGTS atua
pra antecipada e certa de títulos emitidos por
como um importante player nesse mercado,
companhias securitizadoras desses créditos,
comportando-se como investidor institucional
faz do FGTS um player importante nesse mer-
em um contexto de valorização dos títulos, bus-
cado. Nas operações de mercado do FGTS,
cando cada vez mais rentabilizar esses títulos.
constituídas pela aquisição de CRI, aplicação
Além de constituir-se em uma disputa pe-
no Fundo de Investimento do FGTS (infraes-
la utilização de seus recursos, os investimentos
trutura), debêntures, fundos de investimento
nessas operações de mercado de base imobiliá-
imobiliário (entre eles o do Porto Maravilha) e
ria impacta a produção do espaço construído,
fundos de direitos creditórios, o FGTS investiu
a escolha e o tipo dos empreendimentos, sua
de 2008 a 2014 aproximadamente 55,8 bilhões
localização, tendendo a promover e consolidar
10
de reais. O investimento tem sido justificado
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frentes de expansão imobiliária nas cidades.
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Luciana de Oliveira Royer
Ao buscar a valorização e a rentabilidade desses títulos nesse ambiente de negócios, o FGTS
acaba por transformar os próprios cotistas do
fundo em rentistas, como aponta Paulani:
Não é demais lembrar que é também o
Estado que patrocina a distribuição de
recursos dos trabalhadores para viabilizar a formação do grande capital, com
a consequente geração de capital fictício que normalmente a acompanha. (...)
transforma a classe trabalhadora como
um todo em “rentista”. Ainda que seus
ganhos sejam magros, essa posição a
obriga a torcer para o capital e, mais
ainda, para o capital fictício, que afinal
é gerido pelos próprios trabalhadores.
(Paulani, 2012, p. 14)
O controle social de fato sobre esses recursos e sua utilização parece ser um debate
importante a ser feito, no contexto da construção de uma política pública de universalização
de direitos.
Luciana de Oliveira Royer
Universidade de São Paulo, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. São Paulo/SP, Brasil.
[email protected]
Notas
(1) Relatório de Economia Bancária e Crédito, publicação anual do Banco Central do Brasil (BCB). Até
o conclusão deste ar go, o Relatório de 2013 era o mais recente a ser disponibilizado.
(2) Depois da criação do FGTS em 1966, era facultado ao trabalhador escolher entre a poupança
voluntária ou o regime de estabilidade obrigatório após 10 anos de contrato de trabalho. Ao
empregador era obrigatório, após a opção do empregado, o recolhimento mensal de 8% do
salário do empregado. Depois da Cons tuição de 88, o FGTS consolidou-se como um direito
social e a estabilidade após de 10 anos de emprego foi ex nta.
(3) Lei nº 4.864, de 29 de novembro de 1965, que cria medidas de es mulo à Indústria de Construção
Civil. As citações entre aspas a seguir no texto são de excertos da referida lei.
(4) Atualmente o FGTS é regido pela Lei nº 8.036, de 11 de maio de 1990, e regulamentado pelo
Decreto nº 99.684, de 8 de novembro de 1990. Dados ob dos nos relatórios de gestão do FGTS
disponíveis em www.caixa.gov.br/fgts.
(5) Constituem, ainda, recursos do Fundo: dotações orçamentárias específicas; resultados das
aplicações dos recursos do FGTS; multas, correção monetária e juros moratórios devidos;
receitas oriundas da Lei Complementar nº 110/01; demais receitas patrimoniais e financeiras.
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O FGTS e o mercado imobiliário de títulos de base imobiliária
(6) Sobre o FGTS é importante ainda salientar que o objetivo do Fundo, expresso na lei que
atualmente o regulamenta é: (1) assegurar ao trabalhador optante a formação de um pecúlio
rela vo ao tempo de serviço em uma ou mais empresas, para ampará-lo em caso de demissão
e a seus dependentes em caso de falecimento; e (2) fomentar polí cas públicas por meio do
financiamento de programas de habitação popular, de saneamento básico e de infraestrutura
urbana. As normas e diretrizes do FGTS são estabelecidas por seu Conselho Curador, órgão
tripar te, composto atualmente por oito integrantes de órgãos e en dades do Governo Federal,
quatro representantes dos trabalhadores e quatro representantes dos empregadores. O agente
gestor do FGTS é o Ministério do Trabalho e Emprego, a gestão da aplicação dos recursos do
FGTS é efetuada pelo Ministério das Cidades, cabendo à Caixa Econômica Federal o papel de
Agente Operador. A Caixa Econômica Federal é também Agente Financeiro do FGTS, par lhando
essa função com outras ins tuições (bancos).
(7) Definição que consta de publicação da CVM destinada ao público em geral acessível em
http://www.portaldoinvestidor.gov.br/portaldoinvestidor/export/sites/portaldoinvestidor/
publicacao/serie_guias/CVM-Guia-01-FII.pdf
(8) Entrevista feita com analista da Anbima, em setembro de 2013.
(9) Os “considerandos” são conhecidos por ser na técnica legisla va um resumo da exposição de
motivos de uma lei. Como se trata de uma resolução e não de uma lei, os “considerandos”
adquirem força explica va do mo vo da edição daquela resolução.
(10) Em valores de 2014 atualizados pelo IPCA, de acordo com a tabela apresentada. As agregações
apresentadas na sequência também são atualizadas para 2014 pelo IPCA.
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Texto recebido em 7/nov/2015
Texto aprovado em 12/dez/2015
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 33-51, abr 2016
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Vínculos entre la política de incentivo
a la demanda de tierra y vivienda
e integración urbana en áreas
de crecimiento urbano extensivo.
El caso del PRO.CRE.AR en La Plata
Links between the policy of incentive to the demand for land
and housing and urban integration in areas of extensive
urban growth. The case of PRO.CRE.AR in La Plata
María Eugenia Rodríguez Daneri
Resumen
La presente investigación tiene como propósito
analizar el modo en que la política habitacional de
incentivo a la demanda impulsada por PRO.CRE.
AR incide en los procesos de expansión urbana,
analizando los rasgos principales de la integración
urbana: aspectos urbanos, ambientales y normativos.
Los avances del trabajo permitieron reconocer que
uno de los factores que tiene peso significativo es
la localización del Programa en áreas no urbanas,
como también en aquellas áreas que siendo urbanas,
tienen grandes déficit de servicios y equipamientos
públicos. Ello da cuenta de la dificultad que tiene el
municipalidad para gestionar el acceso al suelo en
condiciones urbanas de calidad, en una ciudad que
se expande insustentablemente y donde el problema
de la tierra es constante.
Palabras clave: política habitacional; integración
urbana; expansión urbana; instrumentos; La Plata.
Abstract
This research aims to analyze the way in which
the housing policy of incentive to the demand
stimulated by PRO.CRE.AR influences urban
expansion processes, examining the main features
of urban integration: urban, environmental and
regulatory issues. It was possible to notice that one
of the most significant factors is the location of the
Program in non-urban areas, as well as in urban
areas that still have large deficits of public services
and facilities. This accounts for the difficulty that
the municipal government has in managing access
to land in quality urban conditions in a city that
expands unsustainably and where the land problem
is constant.
Keywords: housing policy; urban integration;
urban sprawl; instruments; La Plata.
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hƩp://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3503
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María Eugenia Rodríguez Daneri
Introducción
promueven la expansión física y extensiva de la
La presente investigación 1 tiene como
áreas periféricas sobrevaluadas, pero al
propósito analizar las relaciones de la
mismo tiempo carentes de servicios, evidencia
creciente política de incentivo a la demanda
la desigualdad de acceso a los servicios
habitacional (Programa Crédito Argentino del
urbanos y equipamientos públicos que, a
Bicentenario – PRO.CRE.AR) con el crecimiento
su vez, está vinculada a asuntos tales como
urbano extensivo en el Partido de La Plata.
la seguridad de tenencia, la pobreza, la
En particular, se propone reflexionar sobre las
exclusión y fragmentación social, el riesgo
condiciones de integración urbana emergentes
de inundaciones, la expulsión de actividades
de dicho programa.
agropecuarias periurbanas, entre otros
ciudad. (Rocca et al., 2010).
La tendencia hacia la expansión en
Esta investigación se enmarca en un
procesos. En consecuencia, puede deducirse
trabajo de investigación mayor que estudia
que las políticas públicas resultan insuficientes
los procesos de expansión urbana, sus
para dar cuenta de las múltiples demandas
características diferenciales y la evaluación de
que posee la población de espacios para la
la incidencia de las políticas de ordenamiento
reproducción y producción social.
territorial, y de tierra y vivienda implementadas
En este contexto, el artículo explora
por los gobiernos locales en distintos municipios
el modo en que la política habitacional de
de la Provincia de Buenos Aires. El mencionado
fomento a la demanda, impulsada por el PRO.
estudio permitió verificar que en los procesos
CRE.AR, incide en los procesos de expansión
de expansión urbana los usos dominantes
urbana analizando los rasgos principales de la
han sido los residenciales, conducidos en gran
integración urbana, es decir aspectos urbanos,
medida por el sector privado, pero también por
ambientales y normativos.
una importante acción de las políticas públicas,
El estudio se estructura en tres
en particular las políticas de tierra y vivienda
partes, en la primera se presenta el marco
y de producción de infraestructuras (Rocca et
teórico- metodológico donde se desarrollan
al., 2010).
los principales conceptos que vinculan la
Si bien la normativa provincial vinculada
problemática del crecimiento extensivo con
al ordenamiento territorial (Decreto Ley n°
las políticas urbanas, instrumentos y objetivos
8912/1977) establece un marco para regular
de intervención que permiten identificar los
el crecimiento urbano, implantando estándares
componentes para el desarrollo del estudio de
de toda nueva subdivisión del suelo, y
caso. En la segunda se abordan los principales
estableciendo las formas de completamiento
ejes que hacen a la integración urbana, poniendo
urbano de acuerdo a necesidades de
a prueba dos tipos de iniciativas emergentes
incremento poblacional y dotación de
del PRO.CRE.AR. En la última se exponen las
infraestructuras, la creciente necesidad de
conclusiones del estudio, donde se reflexiona
suelo y el desarrollo de mercados inmobiliarios
sobre los factores que afectan directamente a la
especulativos que encarecen el precio del suelo,
integración urbana del caso de estudio.
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Vinculos entre la política de incentivo a la demanda de tierra y vivienda...
Crecimiento extensivo:
políticas urbanas,
instrumentos y objetivos
de integración urbana
producción y configuración de las ciudades
en el contexto capitalista actual, donde la
expansión descontrolada y los cambios en la
demanda de suelo, definen gran parte de la
problemática urbana actual. Así, el modelo
resultante justifica la necesidad del manejo
Se partió de un marco teórico general que
del crecimiento urbano a partir de políticas
permitió interpretar los procesos actuales de
públicas planificadas e integrales como un
crecimiento urbano extensivo en Latinoamérica
desafío en el mundo entero.
y sus vínculos con la planificación y gestión
Está confirmada la tendencia mundial
urbana, y los procesos socio-territoriales
hacia la urbanización y la forma insustentable
subyacentes. En articulación con el anterior,
en que esta viene desarrollándose. A
la exploración se basó en un marco teórico
nivel global, el modelo dominante es la
sustantivo que profundiza en las relaciones
metropolización expandida y descontrolada,
entre el acceso al suelo urbano y los distintos
con configuraciones urbanas difusas y
instrumentos de la política urbana.
extendidas y agudización de los problemas
sociales y ambientales con patrones de
segregación y exclusividad del crecimiento
Crecimiento urbano extensivo:
teoría sobre la realidad
latinoamericana
(Aguilar, 2006; De Mattos, 2010). La expansión
urbana en la mayoría de las regiones
metropolitanas latinoamericanas muestra
un panorama de pobreza, informalidad e
ilegalidad de los patrones de uso del suelo, y
La expansión urbana es tanto un producto
una ausencia de infraestructura, equipamientos
como un proceso que expresa el crecimiento
y servicios básicos (Lungo, 2007) como
urbano por extensión con modalidades
correlato de las dificultades del acceso a la
específicas históricamente determinadas por
tierra y vivienda urbana.
el contexto social, económico y político en que
Sobre estos procesos ha tenido una
se materializa. Dichas modalidades se expresan
gran actuación el crecimiento incontenible
territorialmente en la estructura de la ciudad,
de la inversión inmobiliaria, con procesos
así como en las nuevas relaciones entre la
de creciente mercantilización del desarrollo
ciudad y su entorno, entre distintas ciudades, y
urbano, en los que la plusvalía urbana se
el territorio en sus diferentes escalas.
ha transformado en el criterio urbanístico
Para abordar esta problemática la
dominante (De Mattos, 2010). Ello justifica la
investigación se enmarcó en las coincidencias
necesidad de comprender mejor la expansión
teóricas generales que pueden trazarse
de las ciudades en países en desarrollo y
entre distintos autores que relacionan la
asegurar, a través de planes y políticas de
tendencia a la urbanización global con las
gestión de la expansión urbana, el desarrollo
profundas transformaciones en las formas de
ordenado de las ciudades para hacerlas más
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eficientes, equitativas y sostenibles (Shlomo y
expansión urbana. Esto, sumado a la falta de
otros, 2012). En el mismo sentido se necesita
proyectos y/o mecanismos de gestión que
comprender mejor las políticas urbanas,
viabilicen desde una modalidad proactiva,
instrumentos y objetivos de intervención sobre
disminuye las posibilidades de la regulación
las áreas de crecimiento extensivo para evaluar
municipal dejando a criterio de las iniciativas
su contribución a la integración urbana.
privadas u otros organismos sectoriales la
En línea con lo anterior, resultan
conducción del proceso.
fundantes los estudios de Aguilar (2002), De
Asimismo, también verifica la
Mattos (1999) y Cicolella (1999) porque a través
conjugación de factores estructurantes y
del análisis del crecimiento de las grandes
específicos en la impulsión de la expansión
ciudades confirman que los más importantes
urbana extensiva. Pueden reconocerse como
cambios se dan en los espacios de crecimiento
causas estructurales del proceso, no solo las
extensivo con patrones de dispersión urbana
importantes transformaciones económicas y
que incorpora progresivamente pueblos
productivas producidas en los centros urbanos,
y periferias rurales dentro de un sistema
sino también los altos déficits de tierra y
metropolitano cada vez más amplio y complejo.
vivienda accesibles para las clases medias y
Por su parte, el trabajo de Rocca (2013)
bajas, las demandas de nuevos estándares
es particularmente significativo porque en la
habitacionales para las clases medias y altas,
exploración comparativa de las características
conjugados con políticas públicas nacionales,
de los procesos de expansión urbana en
provinciales y locales que favorecen los
ciudades de distinto tamaño y situación
procesos expansivos.
territorial dentro de la Provincia de Buenos
C a b e p r e c i s a r q u e, l o s f a c t o r e s
Aires, analiza sus causas y vínculos con la
específicos que articuladamente con los
política territorial durante los últimos 35
anteriores, han contribuido a moldear la
años. Este trabajo comprueba que existe una
situación en cada ciudad, se vinculan con
consolidación de áreas de expansión urbana
transformaciones en los perfiles productivos,
con altos contrastes sociales y espaciales,
las pertenencias regionales, la dotación
y en términos cuantitativos, se verifica un
de recursos naturales, sus condiciones de
crecimiento acelerado y extensivo de las
accesibilidad, entre otras cuestiones.
áreas urbanizadas en relación al incremento
poblacional y de la cantidad de viviendas.
Para comprender la integralidad de la
problemática de crecimiento urbano extendido
Otro aspecto interesante en la
es necesario entender las dificultades de
investigación que desarrolla Rocca (2013) es
acceso a la ciudad, porque el mercado legal
el análisis de las normativas de zonificación
del suelo resulta inaccesible a la población de
municipal – instrumento generalizado en
bajos ingresos. Sobre este proceso, tiene una
el territorio bonaerense – donde se verifica
alta incidencia la regulación del suelo porque
que al no tener Planes que las enmarquen
no implica una intervención significativa en
resultan indeterminas en cuanto a principios
el mercado que favorezca el acceso a la tierra
y lineamientos de las áreas previstas para la
de los sectores sociales de menores ingresos
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(Clichevsky, 2003). Las posibilidades que
Azuela (2007), donde propone reivindicar el
tiene la población de acceder a vivir en una
valor social del suelo en las políticas en torno
determinada área urbana se relaciona con las
al mercado de suelo urbano que reconozcan el
condiciones de pobreza y el funcionamiento
valor estratégico de la tierra y las características
del mercado legal de tierras y vivienda. Según
particulares del funcionamiento de sus
la autora el mercado legal del suelo resulta
mercados, para impulsar un uso sostenible
inaccesible a la población de bajos ingresos;
del suelo al incorporar objetivos sociales y
y las políticas estatales sobre regulación
ambientales y beneficiar a los segmentos
del mercado privado del suelo han influido
más vulnerables de la población urbana. Para
decisivamente en el acceso porque no
ello es imprescindible que el Estado, tanto en
implicaron una intervención significativa en
el ámbito municipal como el nacional, tenga
el mercado tendiente a favorecer el acceso a
un rol activo en la promoción del desarrollo
la tierra de los sectores sociales de menores
urbano a través de políticas e instrumentos
ingresos.
integrados que puedan favorecer la integración
Por su parte, las políticas de Tierra y
como objetivo de cualquier acción territorial.
Vivienda, mayormente generadas desde los
Morales (2005), por su parte, sostiene
niveles de gobierno intermedio y superior, no
que dejar la asignación del recurso suelo a los
han sido articuladas adecuadamente con los
intereses particulares implica una distribución
gobiernos locales, considerado su incidencia en
desigual de dicho recurso. La definición del
la conformación de áreas de expansión urbana,
interés público del suelo urbano podría integrar
contribuyendo a la dispersión y fragmentación
componentes que aseguren que la ciudad
espacial y social. Estas políticas, actuando con
sea: equitativa, convivida, integrada al medio
objetivos sectoriales, impulsaron el crecimiento
natural, y productiva. Por ello la importancia
hacia áreas no previstas, y presionaron sobre
de la regulación del suelo a través de diversos
otros usos de la tierra de menor relevancia
instrumentos.
económica, como pueden ser los espacios
Distintos autores (Fernández Wagner,
verdes abiertos o los agropecuarios (Lancioni et
2006; Del Río, 2011) coinciden en que en
al., 2012).
Argentina, durante las últimas décadas, los
principales instrumentos implementados por
la política habitacional, con las diferencias que
Instrumentos de tierra
y vivienda en el contexto
de las políticas urbanas
Morales (2005) realiza entre “las de oferta
de vivienda construida”, y “las de fomento
de la demanda”, intentaron dar respuesta a
esta problemática, pero al no articularse con
políticas urbanas también favorecieron el
El crecimiento urbano extensivo requiere
un abordaje multidimensional acorde a la
Fernández Wagner (2006) señala que
complejidad de la problemática. En este
se ha centrado el foco en la construcción
sentido resulta útil la propuesta de Antonio
masiva de viviendas, pero al no existir una
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crecimiento extensivo de la ciudad.
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María Eugenia Rodríguez Daneri
correspondencia entre la planificación
beneficiar a los segmentos más vulnerables de
urbana y la disponibilidad de un conjunto de
la población urbana.
instrumentos organizados en tal sentido, tiene
una serie de consecuencias negativas o al
menos contradicciones, entre las que destaca
la existencia de escasez de suelo de propiedad
pública disponible. Se debe enfrentar la
problemática de habitar la ciudad de modo
complementario con el desarrollo de una
regulación del suelo urbano y la planificación
en la esfera local.
En la misma línea, Del Río (2011)
señala que, en gran medida, este esquema de
urbanización es producto de la incapacidad
de la gestión urbana para intervenir e
introducir mecanismos de regulación de los
mercados de suelo urbano; de la connivencia
de intereses de actores públicos y privados
tendientes a dinamizar el capital inmobiliario;
y de la difusión de concepciones urbanísticas
excluyentes mediante los estándares
normativos o de zonificación, que rara vez
asimila las prácticas y procesos populares de
producción del hábitat.
Es importante destacar que la mayor
oferta residencial desarrollada en Argentina
desde 2003 no implicó precisamente mejores
condiciones de acceso a la vivienda, en tanto la
inversión inmobiliaria se hace como reserva de
valor y solo para la población de mayor poder
adquisitivo (Baer, 2008).
Por lo tanto, el gobierno no debería
ignorar su responsabilidad de adoptar
políticas en torno al mercado de suelo
urbano que reconozcan el valor estratégico
de la tierra y las características particulares
del funcionamiento de sus mercados, para
impulsar un uso sustentable del suelo al
incorporar objetivos sociales y ambientales y
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La integración como objetivo
Lo anteriormente escrito afirmó que la
expansión urbana en Latinoamérica se
caracteriza por procesos imbricados de
fragmentación, dispersión, segregación,
desintegración y desigualdad, en términos
espaciales, sociales, económicos y políticos.
Los gobiernos enfrentan cotidianamente
la necesidad de integrar las poblaciones
vulnerables y marginadas en los territorios
urbanos. En relación con esto, Sabatini (2008)
explica que la segregación de los grupos
populares en la periferia de las ciudades tiene
impactos urbanos y sociales. Entre los primeros
destacan los problemas de accesibilidad y la
carencia de servicios y equipamientos en sus
lugares de residencia; y entre los segundos,
los problemas de desintegración social. Ello,
representan formas de empobrecimiento o de
degradación social vinculados a las desventajas
que conlleva la falta de integración física.
En la misma línea, Vidal Rojas (1997)
entiende la fragmentación urbana como un
proceso territorial mayor, que se construye
a través de tres subprocesos: fragmentación
social, fragmentación física y fragmentación
simbólica. En cualquiera de los casos supone
la independencia de las partes (fragmentos) en
relación al todo (sistema urbano). El abordaje
de la cuestión de la fragmentación urbana
reconoce fundamentalmente dos líneas de
análisis aunque con diferentes matices en
cada una de ellas, por un lado, aquella que se
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Vinculos entre la política de incentivo a la demanda de tierra y vivienda...
halla ligada a procesos de desigualdad social y
barreras materiales y/o inmateriales; por el otro,
Metodología
la que se relaciona con las discontinuidades
en el proceso de expansión urbana a respecto
Él marco teórico sirvió para la construcción de
de la trama producto de los procesos de
la metodología, del mismo modo los distintos
metropolización (Valdes, 2001).
estudios que analizan y evalúan soluciones
En la búsqueda de operativizar estos
habitacionales. Esto permitió llegar a la
conceptos que definen procesos involucrados
conclusión que la integración urbana puede
en los procesos de expansión Del Río
entenderse a partir de la relación interrelación
(2008) señala que la calidad urbana es la
de distintos ejes. En función de esto, se
cualificación del espacio urbano que expresa
construyó una matriz de análisis (Cuadro 1),
la articulación compleja entre accesibilidad a
de carácter exploratorio, donde se analizaron
las infraestructuras, conectividad al trasporte
distintos ejes que permitieron reflexionar sobre
público y proximidad a la centralidad urbana.
los factores que determinan la integración
Así que sistematiza una serie de variables que
urbana de las localizaciones del PRO.CRE.AR.
tiene por objetivo caracterizar las condiciones
En la matriz, la primera columna
de calidad urbana. Se refiere a la centralidad
representa los ejes de análisis, que son aquellas
urbana la relación entre accesibilidad/
que a partir de su interrelación definen la
conectividad, consolidación urbana de servicios
integración urbana. En la segunda columna
en la vía pública, conexión a servicios sanitarios
se detallan las variables que se evalúan de
básicos, calidad de ocupación de la vivienda y
cada eje de análisis. La tercera columna
calidad constructiva de la vivienda.
está compuesta por el tratamiento del dato,
También propone analizar variables
por ejemplo: distancia en metros hasta la
a nivel socioeconómico para determinar la
centralidad más cercana, en una escala del 1
posición relativa de las tipologías analizadas
al 4 expresando de izquierda a derecha mejor
en la estructura socioespacial. Finalmente, se
condición a mayor déficit.
identifica la distancia al borde de la mancha
Para la producción car tográfica y
urbana para analizar la inserción de conjuntos
tablas síntesis se ensambló un Sistema de
habitacionales sobre áreas rurales o de borde
Información Geográfica (SIG) y se relacionó
urbano.
con técnicas de análisis espacial para
En términos generales la integración
relacionar la localización del Programa con
urbana expresa como se relacionan los
las variables de análisis, con el fin de analizar
distintos componentes físicos, ambientales, y
los rasgos principales de la integración
socioeconómicos de la ciudad y a su vez actúa
urbana que emerge del Programa. En algunos
como un indicador que permite aproximar el
casos se utilizaron medidas tradicionales de
nivel de calidad urbana de una ciudad, siendo
distancia generando buffers, en otros casos se
la integración social un proceso vinculado y
ajustó una medición distinta de acuerdo a las
condicionado por la misma.
necesidades de cada variable.
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María Eugenia Rodríguez Daneri
Cuadro 1 – Matriz de análisis
Tratamiento del dato
Eje
Variable
1
Ambiental
Riesgo hídrico
Servicios básicos
Muy bajo / bajo
4
Medio
Alto
Con agua
Con cloaca
Sin servicios
A menos de 300
Entre 300 y 600
Entre 600 y 900
A más de 900
A menos de 600
Entre 600 y 900
Entre 900 y 1.200
A más de 1.200
Subcentralidades
A menos de 2.200
Entre 2.000 e 3.000
Entre 3.000 y 4.000
A más de 4.000
Transporte público
A menos de 300
Entre 300 y 600
Entre 600 y 900
A más de 900
Urbana
Complement.
Rural
Rural
salud
Equipamiento
educativo
Regulatorio
3
Con agua y cloaca
Equipamiento
Urbano
Sin riesgo
2
Zonificación de
usos de suelo
Fuente: elaboración propia.
A continuación se repasan los criterios de
• El eje urbano hace referencia a la
definición de cada uno de los ejes de análisis
distribución de bienes y servicios. En este eje es
que componen la matriz:
importante evaluar si el Programa está ubicado
• El eje ambiental refiere a cuáles son las
cercano a centralidades o subcentralidades
condiciones ambientales en que se localiza
urbanas, a equipamientos públicos, si cuenta con
el Programa. Es decir, interesa conocer si el
cobertura de servicios básicos, entre otras cosas.
Programa está localizado en áreas con riesgo
Para ello las variables que se analizan son:
de inundaciones. Para ello, la variable que se
evalúa es:
2) Servicios básicos agua y cloaca. El análisis
de la cobertura se realiza a partir de los datos
1) Riesgo Hídrico. Para analizar la
obtenidos de ABSA respecto de los servicios de
localización en relación al riesgo hídrico se
agua y cloaca e identificando si la localización
toma como base la cartografía elaborada por
del Programa se encuentra dentro de estas
el Centro de Investigaciones en Suelos y Agua
áreas servidas.
de Uso Agropecuario (CISAUA) en el marco
3 y 4) Equipamientos públicos de Salud2 y de
de un estudio de Riesgo Hídrico en el Partido
Educación.3 El análisis de los equipamientos
de La Plata. Para construir el mapa de Riesgo
públicos implica indagar la localización del
Natural de Inundación, dicho estudio se basó
Programa respecto de la distribución de los
en las distintas inundaciones (2002 y 2008)
equipamientos públicos. Es decir, cuales son
que afectaron al partido y que demuestran
las distancias que se deben recorrer para poder
el colapso del sistema de desagües tanto del
acceder a ellos mediante la generación de
casco urbano como de su periferia.
buffers que miden la proximidad directa.
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Vinculos entre la política de incentivo a la demanda de tierra y vivienda...
5) Centralidades Urbanas. El análisis de
Este análisis resulta fundamental para
centralidad se realiza a partir de comprender
poder realizar la evaluación del siguiente
que ésta es producto de atracción de flujos,
punto:
espacios de consumo, concentración de
• los sectores urbanos más críticos del
actividades comerciales y financieras. Para
partido. Se realizara a partir de la evaluación
ello se identifican los subcentros urbanos
y relación de las distintas variables; para ello
y subcentros de servicios establecidos en el
se realizará un cruce entre las mismas, que se
Código de Ordenamiento Urbano4 vigente; y a
encuentren en los últimos dos casilleros de la
través de la generación de distintos buffers se
matriz, los cuales indican las situaciones más
evaluar la proximidad directa.
críticas. Es decir, todas aquellas localizaciones
5
6) Transporte público. Las redes de
que cuenten con al menos 3 variables en la
transporte cumplen un papel fundamental para
escala 3 y 4 de la matriz se georreferenciaran
facilitar las interrelaciones en la sociedad, y en
en GIS para comprobar si el conjunto de
particular en este estudio son fundamentales
localizaciones define sectores dentro de la
para facilitar la conectividad de las otras
ciudad.
variables. Para ello se calculan cuáles son las
distancias que se deben recorrer para poder
acceder a ellos mediante la generación de
buffers que miden la proximidad directa.
• Por último, el eje regulatorio refiere a cuál
es la inserción del Programa en relación a las
Relaciones entre el PRO.CRE.AR
e integración urbana en áreas
de crecimiento urbano extensivo
áreas y usos normados según el Decreto-Ley
8912/77 y el Código de Ordenamiento Urbano
El Partido de La Plata forma parte de la RMBA,
del partido de La Plata, en particular con
en particular de su litoral sur, es Capital de la
aquellas áreas que no son urbanas. La variable
Provincia de Buenos Aires, por lo tanto, sede
que se analiza es:
de gobierno y de la administración de los tres
7) Regulación de usos de suelo. El análisis
Desde fines de los 70, el municipio de
identificar cuáles son las zonas destinadas
La Plata transita un proceso de planificación
al uso residencial e identificar qué relación
urbana basado en una serie de instrumentos
tienen éstas con la localización del Programa.
normativos municipales, enmarcados en la
Entendiendo que las áreas apropiadas para la
legislación provincial, con el propósito ordenar
localización del Programa son las urbanas.
el crecimiento urbano. Si bien desde esa fecha
Como síntesis, del análisis de la
localización se identifica:
a la actualidad cuatro han sido las ordenanzas
municipales, que tomaron la zonificación del
• los factores que afectan la integración
territorio como instrumento de ordenamiento
urbana del caso de estudio. A partir de
urbano territorial, ninguna de ellas fue
identificar los ejes que tienen mayor incidencia
concebida en el marco de un plan que defina el
en la configuración de las mayores criticidades.
modelo urbano y territorial, ni las estrategias,
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poderes provinciales.
de la regulación se realiza a partir de
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María Eugenia Rodríguez Daneri
programas y proyectos que en conjunto
urbano para cada una de las periferias del
contribuyan a implementar un proyecto de
Partido.
ciudad consensuado por los distintos actores
del Partido de La Plata (Rocca y Ríos, 2010).
Las tendencias que definen el perfil de
la periferia noroeste están vinculadas con una
El trabajo que realizaron Rocca y Ríos
revalorización del suelo urbano que genera
sobre los procesos de expansión urbana
expectativas por parte del sector inmobiliario,
en el Partido de La Plata permitió verificar
particularmente en las áreas que han tenido
que la ciudad creció por extensión en todas
mayor desarrollo económico y que verificaron
sus direcciones. Inicialmente en las áreas
mejoras en las condiciones de accesibilidad
de borde y en distintos asentamientos
y cualidades ambientales específicas,
ubicados sobre las principales vías de acceso,
manteniendo en ese sentido su diferenciación
posteriormente la mancha urbana se extendió
respecto a las restantes periferias. En cambio,
sobre corredores viales con bajas densidades
las tendencias de dispersión en la periferia
uniendo los distintos asentamientos
sureste (cercanía a Villa Garibaldi) y en la
originados en torno a espacios ferroviarios,
sudoeste (inmediaciones de la R36) están
y presentando interrupciones básicamente
asociadas a sectores de recursos medios que
por la presencia de planicies de inundación
intentan acceder con menores costos a ámbitos
de arroyos, cavas, grandes equipamientos
en contacto con la naturaleza.
y espacios destinados a la producción, y
terrenos vacíos expectantes.
Si bien este fenómeno dio respuesta
a nuevas demandas sociales de espacio,
Por otra parte, la materialización de
particularmente de vivienda, tanto el desarrollo
infraestructuras viales ejecutadas en la
económico sostenido, como la cohesión social y
década de los 90, pertenecientes al sistema
la sustentabilidad ambiental, parecen constituir
de autopistas metropolitanas, dio lugar a
condiciones difíciles de alcanzar en el marco de
nuevas vinculaciones con la ciudad de Buenos
este proceso.
Aires, reforzando la inserción urbana de La
Fi n a l m e n t e, l a s m o d a l i d a d e s d e
Plata en la Región Metropolitana de Buenos
apropiación del suelo por parte de sectores de
Aires, y generando tensiones en el proceso
escasos recursos expresadas en asentamientos
de expansión urbana. Nuevos frentes de
informales y villas, vinculados a los cursos de
urbanización a nivel local en relación a la Auto
agua y espacios ferroviarios, en mayor medida
vía Ruta 2, la Ruta 36 y la Autopista La Plata –
se localizan en las periferias sureste y sudoeste,
Buenos Aires.
pero a su vez resulta una tendencia que se
Se verifica que el crecimiento urbano
incorpora al escenario actual de la periferia
extensivo ha modificado la configuración
noroeste y alerta sobre nuevas condiciones de
de gran parte del territorio conformando
riesgo hídrico sobre la población.
distintos sectores urbanos donde se identifican
Esto, pone de manifiesto nuevas
claramente tres ejes de crecimiento: noroeste,
tendencias de “la periferia dual, fragmentada
sudoeste y sureste; presentando características
social y espacialmente”, en ámbitos pobres,
distintivas desde el punto de vista social y
degradada, desestructurada; y con espacios
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Vinculos entre la política de incentivo a la demanda de tierra y vivienda...
Foto 1 – Ejes Noroeste, Sudoeste y Sureste, respectivamente
Fuente: Elaboración propia (2014).
“en transición”, donde se pronuncian procesos
metropolitana repercuten en un aumento de
de dispersión urbana, simultáneamente con
movimientos residencia-trabajo y en altos
avances de la urbanización sobre el área
déficit de equipamientos e infraestructuras de
complementaria y rural destinada al cinturón
servicios y comunicación.
hortícolas (Rocca y Ríos, 2010) (Foto 1).
En consecuencia con lo anterior, el
El programa analizado
avance de la urbanización desencadena un
retroceso de las actividades productivas. Tierras
PRO.CRE.AR Bicentenario es una iniciativa del
que se destinaban a explotaciones primarias
Gobierno Nacional que proyecta la entrega
intensivas presentan ahora otros usos del suelo
de 400 mil créditos hipotecarios para la
propios de un área urbana. Ello genera nuevos
construcción, compra de terreno y construcción,
loteos y una gran especulación de los agentes
ampliación, terminación y refacción de
inmobiliarios con el fin de obtener el máximo
viviendas, como así también para adquirir
beneficio. Así, la periferia se ve afectada por
aquellas que son construidas por el Programa
una dinámica de retención – especulación en
a través de desarrollos urbanísticos. Tiene como
el marco de un proceso de suburbanización
objetivos:
que progresa principalmente hacia el noroeste
• Atender las necesidades habitacionales de
tendiendo a conectar la ciudad con Buenos
los ciudadanos de todo el territorio nacional,
Aires (Frediani, 2010).
contemplando las diferentes condiciones
Se puede sintetizar, entonces, que la
socioeconómicas y la multiplicidad de
expansión urbana en La Plata se relaciona
situaciones familiares con líneas de crédito
con los siguientes problemas: avance de la
para la construcción de viviendas particulares y
urbanización sobre actividades productivas
desarrollos urbanísticos de alta calidad.
agropecuarias, y sobre áreas ambientalmente
• Impulsar la actividad económica a través
degradadas, dispersión con baja densidad
del incentivo a la construcción de viviendas y
poblacional, incompatibilidad de usos del
su efecto dinamizador.
suelo, aumento del valor de la tierra urbana y
no urbana, entre otros. Fenómeno que a escala
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• Generar empleo en todo el país mediante
mano de obra directa e indirecta.
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María Eugenia Rodríguez Daneri
Sus propósitos son generar desarrollo,
de la sanción de la Ordenanza n°11094/13
trabajo, consumo, y descomprimir el mercado
se autoriza la re-zonificación de tierras. De
inmobiliario, mejorando las condiciones de
esta manera la Ordenanza contempla la
quienes no pueden tener acceso mediante el
formación de un registro de oferentes de
crédito hipotecario o el ahorro personal con
tierras, propietarios de hectáreas actualmente
destino a la vivienda propia. Este instrumento
indivisibles, por estar zonificadas como rurales
se implementa en el marco de una política de
o rurales intensivas, y al mismo tiempo se
fuerte intervención pública en la política de
genera un registro de beneficiarios PRO.CRE.
vivienda, desarrollada desde el año 2003 a
AR, que son los que podrán comprar estos
partir de la implementación de los Programas
lotes una vez subdivididos y listos para ser
Federales de Vivienda.
aceptados por el crédito.
Durante muchos años en Argentina, la
Simultáneamente, como una segunda vía
posibilidad de obtener créditos hipotecarios
de acceso a las tierras, la ordenanza brinda la
se vio restringida. En el año 2012, la creación
posibilidad de que grupos de beneficiarios del
de un fondo fiduciario (PRO.CRE.AR), dio la
PRO.CRE.AR compren fracciones indivisas de
posibilidad de acceder a la vivienda a través
tierra con destino a la construcción de vivienda
de un crédito con tasas acomodadas en treinta
(consorcio), para que, una vez garantizados los
o cuarenta años. Esto generó una demanda
requisitos que estipula la ordenanza, puedan
enorme que luego fue condicionada por
ingresar esas tierra al registro de oferentes con
una oferta especulativa que reaccionó como
el proyecto de subdivisión.
acostumbran los mercados, es decir sacando el
máximo nivel de ganancia posible.
Pese a que el Decreto Ley 8.912/77,
que regula las urbanizaciones, indica que
Para aplacar este fenómeno cada
“las áreas o zonas que se originen como
municipio debía aumentar la oferta de suelo
consecuencia de la creación, ampliación o
urbano, pero en las diferentes estrategias
reestructuración de núcleos urbanos y zonas
para llevarlo aparecieron las diferencias.
de usos específicos, podrán habilitarse total
En consecuencia, el Programa ha tenido un
o parcialmente sólo después que se haya
impacto distinto en cada Partido; y, como
completado la infraestructura y la instalación
se dijo anteriormente, está directamente
de los servicios esenciales fijados para el
relacionado a las capacidades con que cada
caso, y verificado el normal funcionamiento
municipio cuenta para implementar distintos
de los mismos”; la Ordenanza 11094/13 solo
instrumentos de gestión, regulación, etc.,
exige tendido eléctrico, alumbrado público y
teniendo en cuenta ciertos componentes
apertura de calles transitables, apoyándose
básicos de la urbanización: suelo, servicios
en la Ley de Hábitat 14.449, que cuando se
básicos, accesibilidad, condiciones urbano-
trata de re-zonificar parcelas rurales, "llama"
ambientales.
al artículo 83 del Decreto Ley 8.912/77 que
En el Partido de La Plata se impulsó el
hace referencia a la convalidación por provincia
mecanismo que fue denominado “registro
de las ordenanzas municipales que intentan
de oferentes de terrenos”, donde a través
ampliar la zona urbana.
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Vinculos entre la política de incentivo a la demanda de tierra y vivienda...
En este proceso, la tierra aumentó su
valor en forma extraordinaria, y el registro
Lógicas de localización y análisis de
integración urbana del PRO.CRE.AR
de oferentes de terrenos solo quedó limitado
por la condición de que el precio máximo de
a) Eje Ambiental
cada lote sea de 150 mil pesos, dejando que
1) Riesgo hídrico
esa ganancia excepcional quede en manos
Los resultados obtenidos en la
del propietario de la tierra, y en muchos de los
especialización del riego hídrico y de los registros
casos estas tierras no se encuentran dentro de
PRO.CRE.AR muestran que, si bien la mayoría de
la mancha urbana actual.
los registros de los dos cosos se encuentran en
Se seleccionaron dos unidades
la escala 1 y 2 de la matriz, una considerable
de análisis en correspondencia con dos
parte de los mismos están ubicados en zonas
operatorias llevadas a cabo por el Programa,
con riesgo, lo que implica no solo un conflicto
y desarrolladas en el mismo recorte temporal:
ambiental sino también un importante conflicto
primer trimestre del año 2014. Las unidades
para las familias asentadas en dichos lugares,
de análisis seleccionadas son:
por estar expuestas no solo a inundaciones (de
La Línea Construcción (Caso 1), destinada
a aquellas familias que cuenten con un terreno.
En este caso se examinó la información oficial
de permisos de obra otorgados en el primer
trimestre del año 2014.6 Como primer resultado
de ello se obtuvo que de los 1.282 permisos
de obra aprobados, 437 pertenecen a la Línea
Construcción del PRO.CRE.AR.
L a L í n e a C o m p r a d e Te r r e n o y
Construcción de Vivienda (Caso 2), destinada
a familias que aún no disponen de un
terreno. Para este caso se utilizaron las diez
re-zonificaciones de fracciones indivisas
aprobadas por el municipio platense, en el
primer trimestre del año 2014, que prevé una
oferta de 890 lotes distribuidas en distintos
sectores del partido.
acuerdo al grado del riesgo) sino también al
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Book 35.indb 65
anegamiento de dichos sectores.
El análisis demuestra que el Programa
ha llevado a la ocupación urbana de zonas
no aptas, de esta forma gran parte de las
planicies de inundación de los arroyos han sido
integradas a las áreas urbanas sin ningún tipo
de restricción. Ello evidencia la importancia
de evaluar, previamente a la aprobación de
futuros registros, cuáles son los sectores
más convenientes para la localización del
Programa en relación al Riesgo; ya que una vez
establecidos los mismos se torna muy compleja
su reubicación debido al costo económico que
esto representa, y más aún el importante costo
social que implica trasladar una población ya
consolidada.
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b) Eje urbano
1) Infraestructuras de servicios básicos: Agua
y Cloaca
Los resultados en materia de cobertura
la cobertura educativa); pero, respecto de cada
línea, se encuentran mayores déficit en la línea
compra de terreno y construcción, que en la
línea construcción.
distan considerablemente de las condiciones
Se entiende que la accesibilidad a
que establece el Programa – los lotes deben
los equipamientos públicos, medidos por la
tener los servicios básicos. La cobertura de
distancia física a ellos, debiera ser equitativa
infraestructura de servicios en las áreas
para todos. Pero los resultados demuestran que
donde se localizaron los registros representó,
no es así para todos los casos, creándose en
en el Caso 1, tener el mayor porcentaje de
consecuencia desigualdades física-territoriales
localizaciones sin ninguno de los dos servicios.
respecto a su distribución.
Para el Caso 2, la cobertura de servicios resultó
aún más crítica ya que ninguno de los registros
de esta línea cuenta con los servicios básicos.
3) Centralidades o subcentralidades urbanas
Se observa que hay una gran
cantidad de registros localizados cercanos
El resultado permite observar la
a subcentralidades, en particular el Caso 1
desigualdad socio-espacial que subyace en
muestra mejores resultados que el Caso 2. No
la expansión de la cobertura. Esto da cuenta
obstante, al visualizar la espacialización de
no solo de las malas condiciones en que se
los mismo, en el eje Sureste se verifica que
localizan ambas líneas, en particular el Caso
ninguno de los registros, de ambas líneas,
2, y del impacto que genera en las familias,
cuenta con un subcentro urbano cercano a
tanto en lo económico como en lo ambiental,
estas localizaciones.
sino también de la falta de articulación entre
Lo que implica grandes dificultades en el
las distintas políticas sectoriales (en este
acceso, medidos por la distancia física a ellos,
caso vivienda e infraestructura de servicios).
a servicios y actividades de diferentes escalas,
La falta de cobertura de ambos servicios
entre otras cosas; entendiendo también que los
implica además una baja calidad de vida para
centros urbanos son un punto de referencia y
las familias localizadas en gran parte de la
de expresión simbólica de las condiciones de
periferia del partido.
vida de sus habitantes; y que además ofrecen
2) Equipamientos de Salud y Educación
La espacialización de los Casos y de los
algunas alternativas de empleo.
4) Transporte público
equipamientos muestra que hay una dotación
En cuanto a la cobertura del servicio en
de equipamientos que sirve a una población
el Caso 1 se puede decir que gran parte de la
distribuida de forma irregular en una superficie
población no encuentran mayores limitaciones
más o menos extensa en el territorio. Pero al
con la cobertura, a excepción de aquellas
analizar la localización y cobertura de ambos
familias localizadas en un sector del eje no que
equipamientos se verifica que, tanto en las
corresponde a la delegación de Arturo Seguí.
mejores como en las peores situaciones, hay
Donde se encuentran mayores
una gran coincidencia (un poco más deficitaria
dificultades es en los registros del Caso 2, esto
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Vinculos entre la política de incentivo a la demanda de tierra y vivienda...
conlleva a una gran dificultad en relación a la
Zonas Industriales Mixtas; y Rurales Extensivas,
conectividad de las variables anteriormente
perteneciente al área rural.
analizadas, ya que es en definitiva la que
De los registros de la otra línea (Caso
permite que las familias accedan a servicios y
2), se puede observar que ninguno de ellos
equipamientos públicos en general.
se encuentra dentro del Área Urbana. Como
c) Eje regulatorio
anteriormente se explicó esta línea impulsó,
El cruce de los registros con la normativa
en el P0artido de La Plata, la re-zonificación
dio como resultado que en el Caso 1 casi la
de tierras, es decir, los cuatro registros que se
mitad se encuentra en zonas o sectores no
encuentran en zona de reserva urbana (C/RU del
destinados al uso residencial. Entre ellos,
Área Complementaria), los cinco registros que
las mayores tendencias de localización se
están en la zona rural intensiva y el único registro
encuentran en el Área Urbana, no obstante
que se localiza en zona rural extensiva (R/RI y
un gran porcentaje de estos (20% del total) se
R/RE del Área Rural), mediante la sanción de la
encuentran en sectores de arroyos y bañados.
Ordenanza n°11094/13 pasarán a renombrarse
Si bien se encuentran dentro del área urbana
como zonas residenciales de promoción (U/R3
no deja de presentarse como una problemática
del Área urbana), solamente por la condición de
debido a que se asientan en zonas de máximo
rezonificación de dichas zonas.
riesgo de inundación. Si bien el código
En conclusión, tanto los registros del
establece limitaciones al uso, parcelamiento
Caso 1 que se localizan en área no urbanas,
y volumen edilicio, no impide que se pueda
como aquellos registros que a partir de la
construir en dichos sectores.
rezonificación serán considerados “dentro del
Ta m b i é n e x i s t e u n p o r c e n t a j e
área urbana”, en su mayoría se encuentran
considerado (17%) localizados, dentro del Área
desprovistos de buenas condiciones urbanas y
Rural, en Zonas Rurales Intensivas, desprovistas
ambientales, ello significa registros localizados
en muchos casos de infraestructura de servicios
en sectores con déficit de infraestructuras de
y equipamientos sociales pero, en general,
servicios, con escasa conectividad, con déficit
cercanas a las principales vías de acceso que
de equipamientos y cercanos a los sectores
vinculan el partido con la región.
productivos, lo que implica contaminación de
Por otra parte, el 12% de los registros
algunos recursos e incompatibilidad de usos;
se localizan, dentro del Área Complementaria,
todo ello sólo por condición de no pertenecer
en Zonas de Reserva Urbana, que según la
al área urbana.
normativa esta destinados al ensanche del
La Foto 2 muestra el paisaje obtenido
Área Urbana: “El uso dominante de esta zona
como resultado de la urbanización de suelos
es el Rural Intensivo compatible con el uso
destinados al uso agropecuario:
residencial limitado, estando condicionadas
El Cuadro 2 expresa los resultados
las intervenciones a la consolidación de
obtenidos del análisis de la localización del
las zonas del Área Urbana adyacentes”; y
Caso 1; por su parte, el Cuadro 3 muestra los
en menor medida, dentro de la misma área
resultados obtenidos del Caso 2. En ambos
complementaria, en Corredores de Servicio y
casos, los resultados están expresados en
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Foto 2 – Resultado de la urbanización de suelos destinados al uso agropecuario
Cuadro 2 – Matriz de análisis: resultados Caso 1
Tratamiento del dato – %
Eje
Integración urbana
Ambiental
Urbano
Regulatorio
Variable
1
2
3
4
Riesgo hídrico
53,5
32,8
1,2
12,5
Servicios
15,1
19,4
5,8
59,7
Equipamiento salud
22,9
24,3
15,4
37,4
Equipamiento educativo
12,5
23,8
24,9
38,8
Subcentralidade
52,2
18,8
6,7
22,3
Transporte
50,1
31,0
10,1
8,8
Zonificación de usos de suelo
69,6
12,8
17,7
Fuente: elaboración propia.
Cuadro 3 – Matriz de análisis: resultados Caso 2
Tratamiento del dato – %
Eje
Integración urbana
Ambiental
Urbano
Regulatorio
Variable
1
2
3
4
Riesgo hídrico
40
40
10
10
Servicios
0
0
0
100
Equipamiento salud
0
10
20
70
Equipamiento educativo
0
0
20
80
Subcentralidade
30
0
40
30
Transporte
10
20
40
30
Zonificación de usos de suelo
0
–
40
60
Fuente: elaboración propia.
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Vinculos entre la política de incentivo a la demanda de tierra y vivienda...
porcentaje de registros según se localizan en
relación al tratamiento del dato.
7
los mayores porcentajes de localizaciones en
la escala 1, esto significa que a pesar de tener
relevancia el hecho de que haya registros
Evaluación de la integración urbana
localizados en áreas con riesgo ambiental,
Una vez analizadas cada una de las variables
situación favorable.
resulta necesario analizarlas integradamente
para poder sintetizar los siguientes puntos:
la mayor cantidad de registros están en una
Por último, en el mismo cuadro, se
puede ver que el eje que muestra el mayor
Identificar los factores que afectan
porcentaje de registros en la escala 4 de
la integración urbana del caso de estudio
la matriz es el eje urbano. Es decir que los
es necesario para identificar cuáles son
principales factores que afectan a la integración
los ejes que tienen mayor incidencia en la
urbana son aquellos que hacen referencia a la
configuración de las mayores criticidades. El
distribución de bienes y servicios.
siguiente cuadro representa en porcentajes la
En cambio, en el Cuadro 5 – Síntesis del
Caso 2, el mismo eje que anteriormente era
síntesis de los tres ejes:
El Cuadro 4 – Síntesis del Caso 1 muestra
el que mejores resultados arrojaba, en este
que el eje que posee el más alto porcentaje de
caso es el que presenta los peores valores en
registros está en la escala 1 es el regulatorio,
la escala 1; mostrando los valores más altos
esto significa que si bien no cumple con las
en las escalas 3 y 4. Esto quiere decir que
mejores condiciones en general es el que
esta operatoria encuentra al eje regulatorio
muestra mejores resultados en relación a la
como uno de los mayores conflictos
integración urbana.
emergente del Programa en la operatoria
Siguiendo en la observación del cuadro,
se puede verificar que el eje ambiental muestra
donde la adquisición del suelo es un factor
determinante.
Cuadro 4 – Síntesis Caso 1
Ambiental
52%
35%
1%
13%
Urbano
29%
24%
13%
34%
Regulatorio
59%
11%
15%
15%
Cuadro 5 – Síntesis Caso 2
Ambiental
40%
40%
10%
10%
Urbano
8%
6%
24%
62%
Regulatorio
0%
26%
37%
37%
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María Eugenia Rodríguez Daneri
Casi en la misma línea se encuentran
los valores del eje urbano, que muestran sus
Para concluir, viendo la síntesis de cada
operatoria se puede decir que:
porcentajes más bajos de localizaciones en
• En el eje ambiental las localizaciones no
los niveles 1 y 2, y los más altos en el 3 y 4.
presenta grandes conflictos en ninguna de
Ello implica que este eje se presenta como el
las dos operatorias. Aunque sería importante
más crítico en relación a las condiciones de
que no hubiera porcentajes en los niveles 3 y
integración urbana.
4 por el riesgo que conlleva la localización de
Por último, podría decirse que los
familias en estos sectores.
mejores resultados son aquellos vinculados
• En el eje urbano se presenta como uno
al eje ambiental, con los porcentajes de
de los principales factores que afectan a
localizaciones más altos en la escala 1 y 2, que
la integración de las localizaciones con su
significan casi el total de los registros, teniendo
entorno urbano. Si bien en muchos casos se
muy poca incidencia las escalas 3 y 4.
trata de decisión política para revertir estos
Foto 3 – Síntesis de las operatorias del Caso 1 y 2
Fuente: elaboración propia (2014).
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Vinculos entre la política de incentivo a la demanda de tierra y vivienda...
conflictos, hoy en día se presenta como una
Por último, el plano síntesis del Caso 2,
gran problemática porque el conjunto de estas
muestra claramente que, a excepción de un
variables hacen a la calidad de vida de la
solo registro localizado en la delegación de
población.
Arturo Seguí, todos los registros restantes (9 de
• En el eje regulatorio las localizaciones del
10) tienen al menos 3 variables en la escala 3 y
Caso 1 no presenta muchos inconvenientes,
4 de la matriz, por cada registro. Esto significa
pero en el Caso 2 sí. El hecho de que haya
que para esta operatoria, los sectores críticos
tanta diferencia entre las dos líneas evidencia
son todos.
las dificultades que tiene el estado municipal
para abordar la gestión del suelo urbano.
La identificación de los sectores
Conclusiones
más críticos del partido se realizó a partir
de la evaluación de las distintas variables
Como resultado de la exploración, se pudo
i n t e r r e l a c i o n a d a s. C o m o s e e x p l i c ó
ver, en primera instancia, que los procesos
anteriormente en la metodología, en este
de expansión urbana han generado cambios
plano síntesis se espacializarán todas aquellas
en la configuración territorial, acrecentando
localizaciones que cuenten con al menos tres
los débiles límites entre lo urbano y lo rural.
variables en la escala de 3 y 4 de la matriz para
Estos proceso, configuraron dos territorios
evaluar si el conjunto de las mismas definen
bien diferenciados: por un lado el Casco
sectores dentro del partido.
Urbano, sumado a algunos sectores acotados
El plano síntesis del Caso 1, muestra
del eje noroeste y sudoeste, caracterizado por
claramente que se definen tres sectores
tener un diseño más ordenado y por contar
bien críticos, la intensidad del color muestra
con los servicios básicos para casi el total de
mayor cantidad de variables en la escala de 3
su población; y por otro lado, la periferia en
y 4 por cada localización. Estos tres sectores,
donde la expansión se desarrolló sin normas
diferenciados del resto, corresponden dos a
clara que regulen la producción del suelo. En
las periferias del ejes noroeste, precisamente
este sentido, la normativa como instrumento
a las delegaciones de Arturo Seguí/Melchor
de la política urbana, resultó insuficiente para
Romero, y Ringuelet/Gonnet, y sector restante
gestionar el territorio.
corresponde al eje sureste ubicado en la
delegación de Villa Elvira.
ser el claro reflejo del reconocimiento de las
Por otra parte, pero en menor medida,
tendencias que se observan en el territorio,
se identifican conflictivos algunos sectores del
dimensionadas y evaluadas integralmente en
eje sudoeste, localizado en el los barrios de San
cuanto a sus repercusiones territoriales, desde
Carlos/Los Hornos, y otro en el eje noroeste,
lo social, económico, ambiental, espacial y
ubicado en los barrios de Gorina/Hernandez. La
funcional. Para reducir las marcadas diferencias
gran cantidad de registros en el plano muestra
entre la población que puede llegar a acceder y
que la mayoría de ellos presentan variables en
los que no lo logran. Las desigualdades sociales
condiciones problemáticas.
que se han profundizado como producto de la
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La zonificación como instrumento debería
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María Eugenia Rodríguez Daneri
falta de integración entre distintas políticas
como para el desarrollo urbano y territorial
generan sectores diferenciales dentro de las
municipal. Y en particular, reforzar la necesidad
ciudades.
de que la política habitacional sea abordada
La implementación del PRO.CRE.AR
de manera articulada con otras políticas
debería garantizar, paralelamente al acceso
para brindar el acceso al suelo urbanizado,
a la tierra, una adecuada integración entre
y conducir el crecimiento urbano de manera
calidad urbana y ambiental. Para ello el
sustentable, asegurando la integración física,
municipio, en el marco de la Ley, cuenta
espacial y social de la población.
con mecanismos de gestión que posibilitan
Para finalizar, interesa destacar que el
al estado asumir el rol de promotor de la
desarrollo del estudio permitió reconocer los
producción del suelo urbano y redistribuir los
factores que afectan a la integración urbana
beneficios de la urbanización.
de cada una de las operatorias analizadas, que
Ahora bien, pareciera necesario reforzar
han permitido concluir que uno de los factores
la necesidad de que la política para la vivienda
de peso significativo es la localización de los
se ajuste a la diversidad de territorios. Las
mismos en áreas no urbanas, pero también
características y problemáticas de las ciudades
aquellas áreas que, aun siendo urbanas, tienen
metropolitanas requieren un manejo específico
grandes déficit de servicios y equipamientos.
en cuanto a escala de las demandas, a la
Lo mencionado anteriormente evidencia las
provisión de suelo y los valores inmobiliarios.
dificultades que tiene el Estado municipal para
Asimismo, reforzar la necesidad que
gestionar el territorio en general, y brindar
la política, en general, sea coordinada entre
el acceso a suelo en condiciones urbanas
los tres niveles del Estado, ya que una mala
de calidad, en una ciudad que se expande
implementación local puede resultar negativa
insustentablemente y donde el problema de la
tanto para el buen desarrollo de la iniciativa
tierra es constante.
María Eugenia Rodríguez Daneri
Universidad Nacional de La Plata, Facultad de Arquitectura y Urbanismo, Centro de Investigaciones
Urbanas y Territoriales. La Plata, Buenos Aires, Argentina.
[email protected]
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Vinculos entre la política de incentivo a la demanda de tierra y vivienda...
Notas
(1) Desarrollada en el marco de una Becas Interna de Entrenamiento en Inves gación de la FAUUNLP. Dirigida por la Arq. Licia Ríos y codirigida por el Arq. Alejandro Lancioni.
(2) Se toma para el análisis todos los centros públicos de salud.
(3) Se considera equipamiento educa vo a todos aquellas ins tuciones de ges ón pública inicial,
primaria y secundaria.
(4) Ordenanza 10.703 del año 2010
(5) Para el análisis de la cobertura de transporte se ene en cuenta solo el recorrido del colec vo y
del ferrocarril, no las paradas y estaciones.
(6) Recopilados de documentos obrantes de la Dirección de Obras Par culares.
(7) El tratamiento del dato y las escalas se explican en el apartado “Metodología”.
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Texto recebido em 31/maio/2015
Texto aprovado em 13/nov/2015
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Favelas no Brasil e em São Paulo:
avanços nas análises a partir
da Leitura Territorial do Censo de 2010*
Squatter settlements in Brazil and in São Paulo: improvements
in the analyzes from the 2010 Census Territorial Reading
Suzana Pasternak
Camila D’Ottaviano
Resumo
Pensando nas formas de acesso à moradia da população de baixa renda no Brasil, este artigo pretende analisar, especificamente, as condições de
moradia da população favelada, procurando, a
partir dos dados censitários disponíveis, identificar
o que significa morar numa favela no Brasil na primeira década do século XXI, a partir de algumas
questões principais: houve aumento da população
favelada no Brasil? Onde esse aumento foi mais
expressivo? Como se deu esse aumento: a partir
do surgimento de novas favelas ou no aumento
das favelas existentes? Quais as características dos
domicílios favelados? Houve melhora nos indicadores relacionados à infraestrutura? É também um
esforço inédito de análise da base de dados “Leitura Territorial” dos domicílios favelados, base única
disponibilizada pelo Censo 2010.
Abstract
In light of the forms of access to housing for lowincome population in Brazil, this paper analyzes,
specifically, the living conditions of slum dwellers
using available census data. It evaluates the
meaning of living in a slum in Brazil during the
first decade of the 21st century according to some
key issues: was there an increase in the number of
slum dwellers in Brazil? Where was this increase
most significant? Was this increase produced by
new slums or by the increase in slums’ population
density? What are the characteristics of slum
households? Was there any improvement in
infrastructure-related indicators? The paper is
also an unprecedented effort to analyze the 2010
Census "Territorial Reading", a single database
for slum households.
Palavras-chave: favelas; assentamentos precários; habitação popular; pobreza urbana; censo
demográfico.
Keywords: squatter settlements, shanty towns,
popular housing, urban poverty, demographic
census
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 75-99, abr 2016
hƩp://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3504
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Suzana Pasternak, Camila D’Ottaviano
Pensando nas formas de acesso à mo-
a realidade das favelas cariocas: o Documen-
radia da população de baixa renda no Brasil,
to Censitário intitulado “As favelas do Distri-
este artigo pretende analisar, especificamen-
to Federal” (IBGE, 1953). Nesse momento, no
te, as condições de moradia da população
entanto, os levantamentos quantitativos eram
favelada, procurando, a partir dos dados cen-
muito desiguais do ponto de vista geográfico.
sitários disponíveis, identificar o que significa
Nas publicações para São Paulo, por exemplo,
morar numa favela no Brasil na primeira dé-
apenas em 1980 dados específicos sobre fave-
cada do século XXI. O trabalho insere-se nu-
las apareceram.
ma linha de estudos que, ao reconhecer o que
Num primeiro momento, a conceituação
vem sendo chamado de “heterogeneidade
de favelas era dada por um grupo de moradias
da pobreza urbana”, destaca a importância
que tivessem pelo menos duas das característi-
da análise e entendimento das característi-
cas a seguir:
cas demográficas e também físico-territoriais
dessa pobreza urbana.
Historicamente, o acesso à moradia para
a população de baixa renda no Brasil se deu,
●
proporções mínimas – agrupamentos pre-
diais ou residenciais formados com número geralmente superior a cinquenta;
●
tipo de habitação – predominância de ca-
em geral, de forma precária e a partir de três
sebres ou barracões de aspecto rústico, cons-
tipos básicos de moradia: os cortiços, as fave-
truídos principalmente com folha de flandres,
las e os loteamentos periféricos, com moradia
chapas zincadas ou materiais similares;
própria e autoconstrução. Falar de favela é fa-
●
condição jurídica da ocupação – construções
lar das cidades grandes e médias no Brasil no
sem licenciamento e sem fiscalização, em terre-
final do século XX e início do século XXI. Em-
nos de terceiros ou de propriedade desconhecida;
bora tenha nascido como uma marca da cidade
●
melhoramentos públicos – ausência, no to-
do Rio de Janeiro, já no início do século XX,
do ou em parte, de rede sanitária, luz, telefone
nas últimas décadas do século, as favelas se
e água encanada;
fizeram presentes na maior parte das grandes
●
urbanização – área não urbanizada, com
cidades brasileiras e, desde 2000, também nas
falta de arruamento, numeração ou emplaca-
cidades médias.
mento. (Guimarães, 2000, p. 353)
Até meados do século passado, as fave-
A partir do Censo de 1991, o IBGE pas-
las eram um fenômeno quase que exclusivo da
sou a adotar o conceito de aglomerado subnor-
cidade do Rio de Janeiro. Assim, o primeiro le-
mal.1 O conceito, bastante genérico, buscava
abarcar a diversidade dos assentamentos irregulares existentes no país. Aglomerado subnormal abarca favelas, invasões, grotas, baixadas,
comunidades, vilas, ressacas, mocambos, palafitas, entre outros. Foi nesse Censo Demográfico que os dados relativos às favelas foram levantados de forma homogênea por todo o país.
O último censo nacional, de 2010, foi o que
vantamento sobre favelas foi realizado apenas
em 1948, e somente no Rio de Janeiro, capital
federal. Em 1950, o IBGE (Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística) decidiu, pela primeira
vez, incluir a favela na contagem de população, tendo como estudo de caso específico o
Distrito Federal. Em 1953, o próprio IBGE publica o primeiro documento de estudo sobre
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Favelas no Brasil e em São Paulo
trouxe a maior quantidade de avanços em re-
inovou também ao criar uma nova categoria de
lação à identificação e levantamento de dados
levantamento chamada de “Leitura Territorial”,
dos aglomerados subnormais, a partir de uma
levantamento bastante completo das caracte-
pesquisa morfológica específica, com a iden-
rísticas do entorno imediato dos domicílios.
tificação georeferenciada e visita de campo
A questão das favelas assume hoje uma
preparatória nos aglomerados. Em função da
dimensão histórica sem precedentes na história
antiga sub-enumeração e do avanço de 2010, a
do Brasil. Dados do Censo de 2010 mostram
quantificação das favelas pelo Censo 2010 aca-
que o número de brasileiros vivendo nessas
bou sendo muito mais confiável, gerando um
condições passou de 6,5 milhões no ano 2000
grande crescimento numérico de favelas, em
para 11,4 milhões em 2010, distribuídos em
especial na região Norte do país.
6.329 aglomerados subnormais situados em
De acordo com o Manual de Delimitação dos Setores, o Censo 2010 classifica como
concentrados em 20 grandes cidades.
aglomerado subnormal “cada conjunto consti-
Não há ainda, em 2015, dados oficiais
tuído de, no mínimo, 51 unidades habitacionais
que indiquem que o número de favelas tenha
carentes, em sua maioria, de serviços públicos
aumentado ou diminuído nos últimos anos.
essenciais, ocupando ou tendo ocupado, até
Para o município de São Paulo, o último levan-
período recente, terreno de propriedade alheia
tamento foi o do Censo de 2010, que contou
(pública ou particular) e estando dispostas, em
1.643 comunidades. Urbanistas e sociólogos
geral, de forma desordenada e densa. A identi-
concordam em dizer que o número deve ter
ficação atende aos seguintes critérios:
aumentado. Reportagem do jornal Folha de
a) Ocupação ilegal da terra, ou seja,
construção em terrenos de propriedade
alheia (pública ou particular) no momento atual ou em período recente (obtenção
do título de propriedade do terreno há
dez anos ou menos);
b) Possuírem urbanização fora dos padrões vigentes (refletido por vias de
circulação estreitas e de alinhamento irregular, lotes de tamanhos e formas desiguais e construções não regularizadas por
órgãos públicos) ou precariedade na oferta de serviços públicos essenciais (abastecimento de água, esgotamento sanitário,
coleta de lixo e fornecimento de energia
elétrica). (IBGE, 2011)
Além dos avanços relativos às enumeração e características específicas dos domicílios favelados, o Censo Demográfico de 2010
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323 municípios; 88% desses domicílios estão
S.Paulo (2015b), de 25 de agosto de 2015, mostra terrenos desocupados em maio de 2014,
totalmente invadidos por unidades de moradia
em agosto de 2015, na zona leste do município. Na Mooca, em menos de um mês, um terreno vazio, entre as pistas da Radial Leste, foi
ocupado por cerca de 50 famílias. Na avenida
Tiquatira, um terreno da CDHU (Companhia de
Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo), vazio em meados de 2014,
tem hoje 2.500 casas de alvenaria, com mercadinho, lan house e uma igreja, ocupando uma
área de 47 mil m2, a poucos metros da marginal do Tietê. Além disso, segue o processo de
adensamento das favelas existentes. Em São
Paulo, temos também um outro fenômeno recente para o qual ainda existe classificação: a
construção de moradias irregulares dentro do
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Suzana Pasternak, Camila D’Ottaviano
perímetro de conjuntos habitacionais consoli-
deu esse aumento: a partir do surgimento de
dados, como é o caso do Cingapura Barão de
novas favelas ou no aumento das favelas exis-
Antonina, junto à marginal Pinheiros, onde o
tentes? Quais as características dos domicílios
terreno entre os edifícios existentes foi dividido
favelados? Houve melhora nos indicadores re-
entre 23 famílias, das quais sete já construíram
lacionados à infraestrutura?
suas moradias (Folha de S.Paulo, 2015a, 24 de
julho de 2015).
Em 2010, aproximadamente 6% da população vivia em domicílios localizados em
A crise econômica, o preço dos aluguéis,
aglomerados subnormais. O dado mostra a
a falta de oferta de moradias para a população
importância, para programas habitacionais
de baixa renda são os principais motivos para o
abrangentes, do estudo e entendimento das
crescimento sistemático das favelas, seja com
condições de moradia e das características es-
novas ocupações novas, seja a partir da vertica-
pecíficas dos domicílios favelados.
lização e adensamentos crescentes.
A partir da utilização de dados censitá-
Por outro lado, a realidade nas favelas
rios de 2000 e 2010, pretende-se caracterizar
brasileiras tem mudado muito nos últimos 20
a dinâmica das áreas de favela e da população
anos. Além de programas de melhorias urba-
favelada na década nas diferentes regiões bra-
nísticas e benfeitorias, com grandes obras de
sileiras. Como estudo de caso específico será
saneamento, de reurbanização ou de constru-
analisada a realidade dos espaços favelados da
ção de novas unidades habitacionais, alguns
metrópole e do município de São Paulo.
programas de regularização fundiária, sobretu-
Este artigo representa também um es-
do após a vigência do Estatuto da Cidade, em
forço inédito de análise da base de dados
2001, têm mudado a forma de acesso à mora-
relativa à Leitura Territorial dos domicílios
dia numa favela.
favelados, procurando contribuir na análise
Após uma década com vários programas
de uma base de dados primários ainda não
locais de urbanização de favela, mas, principal-
explorada e também no entendimento mais
mente, após a implementação do PAC – Pro-
abrangente da caracterização dos domicílios
grama de Aceleração do Crescimento, 2007, e
favelados brasileiros.
de seu desdobramento, o PAC-Urbanização de
Entende-se que uma análise cuidado-
Assentamentos Precários, é importante enten-
sa dessas informações inovadoras pode servir
der qual o impacto efetivo que esses programas
como instrumental para o aprimoramento de
tiveram na configuração dos espaços favelados
políticas e programas de urbanização de fave-
no Brasil, se houve ou não melhoria efetiva na
las no Brasil, uma vez que dados antes apenas
condição de moradia , e consequentemente na
disponíveis a partir de levantamentos de cam-
condição de vida, da população favelada ao
po específicos estão agora disponíveis para
longo da primeira década no século XXI.
todos os aglomerados subnormais recenseados
A partir dessa preocupação, este trabalho
em 2010. Essas análises permitem um esboço
procura responder a algumas questões: houve
do que seria possível – inclusive custos – em
aumento da população favelada no Brasil? On-
projetos de urbanização de favelas. Os dados
de esse aumento foi mais expressivo? Como se
relativos ao relevo, acesso e adensamento dão
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Favelas no Brasil e em São Paulo
estimativa, em nível nacional e regional, da
Assim como os aglomerados, os domicí-
quantidade de unidades domiciliares a remover
lios e a população favelada também vêm au-
e reconstruir e da possibilidade de urbanização
mentando desde 1980, a taxas maiores que a
(por exemplo, assentamentos não urbanizá-
população total. Entre 1980 e 1991, os domi-
veis, como situados em áreas de declividade
cílios totais para o país cresceram a 3,08% ao
acentuada, aterros , solos contaminados, etc.).
ano, enquanto os favelados cresceram a 8,18%
E, por último, procurará contribuir para o
anuais. No período seguinte – entre 1991 e
entendimento sobre o que, no Brasil, significa
2000 – os domicílios totais cresceram a 0,88%
morar em favela atualmente.
anuais, enquanto os favelados tiveram uma taxa de incremento anual de 4,18%. Entre 2000
e 2010, a taxa de crescimento anual do parque
domiciliar brasileiro foi 0,57%, enquanto a dos
Favelas no Brasil,
primeiras análises
domicílios favelados atingiu 6,93%. A população favelada em 1980 alcançava 2,25 milhões
de pessoas; a de 1991, mais de 5 milhões; a do
As favelas estão presentes em todas as regiões
ano 2000, cerca de 7,2 milhões; e, a de 2010,
brasileiras. Sua distribuição varia pelo território
para um total de 3.224.529 domicílios em aglo-
brasileiro. Em 1991, os aglomerados favelados,
merados subnormais, era estimada em mais de
segundo o Censo Demográfico, eram 3.187;
14 milhões. Se a população favelada represen-
no ano 2000, atingiram 3.906 assentamentos
tava 1,62% da total em 1980, esse percentual
e, em 2010, o Censo Demográfico contabilizou
sobe para 2,76% em 1991, para 3,04% no ano
6.329 aglomerados.
2000 e alcança 5,61% em 2010.
Tabela 1 – Favelas, por grande região
Região
1991
2000
2010
59
185
467
Norte
Nordeste
Sudeste
Sul
Centro-Oeste
Brasil
517
674
1.349
2.225
2.621
3.954
327
392
489
59
34
106
3.187
3.906
6.329
Fonte: Censos de 1991, 2000 e 2010.
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Tabela 2 – Domicílios totais e favelados, por grande região
1991
2000
2010
1980
1991
2000
2010
Norte
Região
1.219.496
1980
2.376.607
3.353.764
3.988.832
12.721
97.760
178.326
463.444
Nordeste
8.036.803
10.920.830
13.911.413
14.957.608
69.974
286.130
306.395
926.370
Sudeste
13.761.346
18.839.621
24.699.909
25.227.877
357.330
675.846
1.038.608
1.607.375
Sul
4.826.030
6.598.962
85.092.284
8.904.120
30.077
73.325
110.411
170.054
Centro-Oeste
1.812.176
2.657.621
3.791.248
4.349.562
10.493
11.257
16.808
57.286
29.657.831
41.395.632
54.267.618
57.427.999
480.595
1.141.324
1.650.548
3.224.520
Brasil
Fonte: Censos de 1980, 1991, 2000 e 2010.
Tabela 3 – Taxa geométrica de crescimento anual dos domicílios totais e favelados,
por grande região, em porcentagem
Domicílios totais
Domicílios favelados
Região
1980-1991
1991-2000
2000-2010
1980-1991
1991-2000
2000-2010
Norte
6,25
3,90
1,75
20,37
6,91
10,02
Nordeste
2,83
2,73
0,73
13,66
0,76
11,70
Sudeste
2,90
3,06
0,21
5,96
4,89
4,46
Sul
2,89
2,87
0,45
8,44
4,65
4,41
Centro-Oeste
3,54
4,03
1,38
0,64
4,55
3,05
Brasil
3,08
3,05
0,57
8,18
4,18
6,93
Fonte: Censos de 1980, 1991, 2000 e 2010 (IBGE).
Tabela 4 – Alguns aspectos da infraestrutura domiciliar
dos domicílios favelados, por grande região, 2010
Algumas características dos domicílios
Forma de abastecimento
de água – %
Tipo de esgotamento sanitário – %
Destino do lixo – %
Grandes
Regiões
Existência de energia elétrica – %
Coletado
Rede geral
de
distribuição
Outra
Rede geral
de esgoto
ou pluvial
Fossa
séptica
Outra
Não tinham
banheiro
ou
sanitário
Diretamente
por serviço
de limpeza
Em
caçamba
de serviço
de limpeza
Outra
De companhia
distribuidora
e com
medidor de
uso exclusivo
do domicílio
Outra
Não existe
energia
elétrica
Norte
59,91
40,09
18,42
26,96
52,20
2,41
84,85
8,79
6,36
68,09
31,34
0,57
Nordeste
89,81
10,19
49,07
13,57
35,64
1,73
72,63
19,87
7,50
82,99
16,60
0,41
Sudeste
94,59
5,41
72,00
4,15
23,63
0,22
74,21
23,21
2,58
69,21
30,63
0,15
Sul
96,62
3,38
63,36
13,14
22,37
1,13
92,80
5,88
1,31
63,24
36,43
0,33
Centro-Oeste
94,46
5,54
19,79
23,00
56,91
0,30
67,02
22,44
10,54
58,58
41,17
0,24
Brasil
88,34
11,66
56,33
10, 94
31,71
1,02
76,14
19,25
4,61
72,51
27,20
0,30
Fonte: Censo de 2010.
80
Book 35.indb 80
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 75-99, abr 2016
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Favelas no Brasil e em São Paulo
A Tabela 4 mostra os principais resultados dos aspectos de infraestrutura nos domicí-
lagos ou direto no mar.
lios favelados, por região brasileira, em 2010.
Um indicador que apresenta melhora
A situação dos domicílios favelados no Brasil
significativa, mostrando resultados dos esfor-
como um todo em relação ao abastecimento
ços municipais, é o relativo à coleta de lixo.
de água não é alarmante, já que apenas 12%
Para o Brasil como um todo, existe coleta do-
deles não são abastecidos por rede publica. Na
miciliar em 76,4% dos domicílios, oscilando
região Norte, entretanto, esse indicador é preo-
entre 67% no Centro Oeste e 85% no Norte.
cupante, já que 40% das unidades domiciliares
Para quem conhece e visita as favelas com
não estão ligadas à rede pública de abasteci-
frequência, esse dado espanta: o que mais
mento de água, e 38% se servem de poços e/
chama a atenção nesses assentamentos, em
ou nascentes. Para o Brasil como um todo a
geral, é a existência de lixo nas ruas e espaços
proporção de domicílios em aglomerados sub-
livres. Vale a pena lembrar que a afirmação
normais que utilizam poços ou nascentes al-
censitária de que existe coleta domiciliar não
cança quase 10% das unidades habitacionais.
indica sua frequência. Além disso, em 20,18%
Na região Nordeste, a situação ainda se revela
dos domicílios a coleta dá-se por caçambas,
crítica, com quase 8% das casas utilizando po-
ou seja, o lixo deve ser levado até um recipien-
ço ou nascente.
te para que a coleta possa acontecer. Coleta
Em relação ao destino dos dejetos, a
em caçamba, aliada a uma frequência irregu-
situação mostra-se ainda mais preocupante:
lar de coleta e a altas densidades demográfi-
apenas 56% dos domicílios nas favelas bra-
cas resultam sempre em acúmulo de detritos
sileiras estavam ligados à rede de esgota-
sólidos, possibilitando a presença de baratas,
mento sanitário em 2010. Ou seja, 352 mil
roedores e outros vetores indesejáveis. Mes-
unidades declararam-se conectadas a fossas
mo no Sudeste, a coleta de lixo em caçambas
sépticas, o que em geral costuma dar proble-
atinge 24% dos domicílios.
mas de manutenção e, consequentemente, de
No Brasil como um todo, a densidade de-
contaminação do lençol freático, 513 mil uti-
mográfica nos assentamentos subnormais atin-
lizam fossa rudimentar, 200 mil jogam seus
giu 67,5 hab/ha, e no Sudeste essa média é de
dejetos diretamente às valas, rios, lagos. Os
99 hab/ha. A média mistura locais com assen-
valores são particularmente altos no Norte e
tamentos densíssimos, onde a densidade média
no Nordeste, onde apenas 18,42% e 49,07%
municipal atinge 326 hab/ha como em Itapevi,
respectivamente apresentavam ligação à re-
na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP),
de pública de esgoto. Na região Sul só 63%
286 hab/ha em Osasco (RMSP) e 297 hab/ha
dos domicílios tinha ligação à rede pública,
em São Paulo. Esses valores médios elevados
enquanto 20% tinham fossa e 15% jogavam
indicam favelas com densidades altíssimas, on-
seus efluentes em valas, rios, lagos ou mar.
de a coleta de lixo, para ser eficaz, deveria ser
Mesmo no Sudeste, onde a situação sanitária
diária ou mesmo mais de uma vez ao dia.
apresenta indicadores melhores, 4,24% das
O aspecto infraestrutural com maior su-
casas têm fossa rudimentar, 6,65% jogam
cesso nas favelas brasileiras refere-se à energia
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 75-99, abr 2016
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seus dejetos em valas e 11% o fazem em rios,
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Suzana Pasternak, Camila D’Ottaviano
elétrica: 96,16% dos domicílios favelados a
unidades em terrenos planos e/ou declives mo-
recebem, 72,51% deles com medidor de uso
derados. Mas um total de 668 mil moradias em
exclusivo. As favelas do Nordeste são as que
terrenos de forte declividade fornece um indi-
apresentam maior proporção de medidores ex-
cador importante para projetos de urbanização:
clusivos, com 83% das suas unidades de mora-
são 230 mil no Nordeste e 398 mil no Sudeste
dia os utilizando. No Sudeste, o uso de medidor
que poderão necessitar de remoção ou traba-
exclusivo restringia-se a 69% dos domicílios,
lhos de contenção de encostas.
no Sul a 63% e no Centro Oeste a 58%.
Enfatizando outros aspectos do relevo, a
O Censo de 2010 permitiu, pela primeira
Tabela 5 fornece informações importantes so-
vez, uma melhor leitura territorial dos assen-
bre a localização dos domicílios: 19,20% dos
tamentos subnormais, através de verificação
domicílios favelados brasileiros situam-se em
da topografia do local, declividade, densidade
encosta; 17,63% em colinas suaves; e 40,20%
demográfica, ocupação, existência de espaça-
em terrenos planos. Tal como informa a Tabela
mento entre domicílios, de arruamento, acessi-
6, é no Nordeste e no Sudeste que a locali-
bilidade e número de pavimentos de cada uni-
zação em encostas aparece mais fortemente.
dade de moradia.
Embora a proporção seja pequena, de apenas
Verifica-se que, para o Brasil como um
0,35%, o número absoluto de domicílios em
todo, 21% das favelas têm seus domicílios em
terrenos contaminados não é desprezível: são
local de declividade acentuada. No Nordeste e
mais de 11 mil para o Brasil, sendo mais de
o Sudeste, esses domicílios em aclive/declive
4 mil só no Sudeste. Em faixas de domínio de
forte são ¼ do total. Em princípio, podem ser
rodovias, ferrovias, gasodutos e oleodutos, e
unidades sujeitas a deslizamento. Nas regiões
transmissão de energia, localizam-se 113.921
Norte e Centro-Oeste, o percentual de moradias
unidades domiciliares, que terão seguramente
em declives acentuados é baixo, dominando as
que enfrentar algum tipo de remoção. Cerca
Tabela 5 – Relevo: declividade dos domicílios em aglomerados subnormais,
por grande região, 2010
Domicílios em aglomerados subnormais com declividades
Grandes Regiões
Plano
Aclive/declive moderado
Aclive/declive acentuado
Norte
83,12
14,69
2,19
Nordeste
51,76
23,48
24,76
Sudeste
44,00
31,26
24,74
Sul
54,51
28,09
17,40
Centro-Oeste
48,59
47,50
3,91
Brasil
52,49
26,76
20,75
Fonte: Censo Demográfico de 2010. Leitura territorial.
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Favelas no Brasil e em São Paulo
Tabela 6 – Localização dos domicílios em aglomerados subnormais,
por grande região, 2010
1,10
0,07
Sudeste
0,26
1,68
1,45
Sul
1,97
1,42
Centro-Oeste
0,43
Brasil
0,35
Unidade de conservação
1,47
Manguezal
0,36
Praia/ dunas
Nordeste
Sobre rios, córregos, lagos
ou mar (palafitas)
0,24
Margem de córregos, rios
ou lagos/lagoas
Faixa de domínio de linhas de
transmissão de alta tensão
–
Outras
Faixa de domínio de
gasodutos e oleodutos
0,05
Plano
Faixa de domínio de ferrovia
0,57
Norte
Colina suave
Faixa de domínio de rodovias
–
Grandes
Regiões
Encosta
Aterros sanitários, lixões e
outras áreas contaminadas
Domicílios em aglomerados sub normais – %
0,53
2,63
76,15
4,29
10,72
4,82
–
–
–
0,88
23,91 18,42
38,77
2,35
8,81
0,14
2,34
1,10
0,28
0,22
1,04
22,30 22,02
30,53
2,97
14,54
0,90
0,24
0,59
1,24
1,40
–
0,76
20,03 16,25
35,38
7,29
13,54
–
0,28
1,40
0,29
0,85
–
–
0,30
7,38
58,27
0,74
26,61
–
–
–
1,22
1,43
1,12
0,13
0,85
19,20 17,63
40,20
3,17
12,51
1,18
0,81
0,69
0,74
4,19
Fonte: Censo de 2010. Leitura territorial.
de 27,5 mil estão sob linhas de alta tensão,
A densidade média dos assentamen-
correndo forte perigo. No Sudeste, mais de
tos subnormais é relativamente alta, quando
1% dos domicílios encontram-se nessa situa-
comparada às densidades demográficas mé-
ção, assim como 1,45% em faixas de domínio
dias dos municípios como um todo: 67,5 hab/
de ferrovias e 1,68% em faixas de domínio de
ha. Esses assentamentos ocupam uma área de
rodovias. São espaços onde não deveria haver
169.170,3 hectares, superfície maior que a do
qualquer tipo de uso, especialmente residen-
município de São Paulo, com 150.900 hecta-
cial, e que são aproveitados para ocupações.
res e densidade média de quase 75 hab/ha em
Mais de 400 mil domicílios favelados locali-
2010. A densidade média das favelas no Sudes-
zam-se em margens de rios ou lagos, e 38 mil
te ultrapassa a média paulistana. Lembrando
são palafitas (1,18% do total). Como seria es-
que 64,57% dos domicílios favelados no Brasil
perado, as palafitas abundam no Norte (59%
têm um só pavimento, esse indicador aponta a
do total de domicílios em palafitas estão na
pouca área livre existente nesses assentamen-
região Norte). No Sudeste, quase 20 mil casas
tos e a decorrente dificuldade de implementa-
localizam-se em unidades de conservação.
ção de projetos de urbanização.
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Tabela 7 – Domicílios, população, área e densidades
nos aglomerados subnormais, por grande região, 2010
Setores censitários em aglomerados subnormais
Grandes
Regiões
Número de
domicílios
particulares
ocupados
Total
População
residente em
domicílios
particulares
Área
(ha)
Densidade
demográfica
(hab/ha)
Densidade
de domicílios
particulares
ocupados
(dom/ha)
Norte
1.915
463.444
1.849.604
46.513,8
39,8
10,0
Nordeste
4.005
926.370
3.198.061
45.198,8
70,8
20,5
Sudeste
8.804
1.607.375
5.580.869
56.290,3
99,1
28,6
871
170.054
590.500
15.038,2
39,3
11,3
Sul
273
57.286
206.610
6.129,2
33,7
9,3
15.868
3.224.529
11.425.644
169.170,3
67,5
19,1
Centro-Oeste
Brasil
Fonte: Censo de 2010. Leitura territorial.
Tabela 8 – Pavimentos dos domicílios em aglomerados subnormais,
por grande região, 2010
Domicílios por pavimentos – %
Grandes Regiões
Um pavimento
Dois pavimentos
Três pavimentos ou mais
Norte
97,04
2,77
0,19
Nordeste
70,87
25,08
4,04
Sudeste
47,38
44,52
8,10
Sul
92,29
7,71
–
100,00
–
–
64,57
30,21
Centro-Oeste
Brasil
5,23
Fonte: Censo de 2010. Leitura Territorial.
Tabela 9 – Ocupação do setor censitário pelos domicílios favelados
Domicílios ocupados em setores censitários de aglomerados subnormais – %
Grandes
Regiões
Em todo setor
(95% ou mais)
Na maior parte
Em metade do
Na menor parte
do setor
setor
do setor
(entre 60 e 94,99%) (entre 40 e 59,99%) (entre 5 e 39,99%)
Em nenhuma
parte do setor
(menos de 5%)
18,25
58,11
10,46
11,17
2,01
Nordeste
9,93
20,24
20,44
41,71
7,69
Sudeste
6,49
21,30
16,53
32,56
23,12
Sul
9,92
25,73
21,91
29,86
12,58
13,02
62,28
11,38
9,95
3,37
9,46
27,25
16,98
31,57
14,74
Norte
Centro-Oeste
Brasil
Fonte: Censo de 2010. Leitura territorial.
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Favelas no Brasil e em São Paulo
Embora a maioria das unidades residen-
intensamente o espaço disponível, com 18%
ciais faveladas ainda seja horizontal, a pro-
dos domicílios em setores totalmente ocupa-
porção de casas com dois pavimentos é alta:
dos e 58% das unidades em setores muito
30,21% das unidades brasileiras. Na região
ocupados (entre 60% e 95% de ocupação).
Sudeste, essa porcentagem chega a 44,52%, e
E, embora a região Sudeste apresente a maior
8,10% têm 3 e mais pavimentos. No Nordeste
densidade demográfica, é a que mostra a
também, a proporção de domicílios com mais
maior proporção de domicílios em setores pou-
de um pavimento alcançou 29,12%. Já em lo-
co ocupados (com 5% de índice de ocupação).
cais com mais área disponível, como no Cen-
Assim, no Sudeste, há mais “espaço de respi-
tro-Oeste e no Norte, a quase totalidade é de
ro”, que permitiria realocação de moradias, se
unidades com apenas um pavimento.
preciso, assim como no Sul. No Nordeste, isso
Observando a ocupação do solo do setor
censitário pelo parque domiciliar, para o país
também parece possível, mas a ocupação tem
menos superfície livre disponível.
como um todo ainda há espaço vago nos seto-
A Tabela 10 complementa as indicações
res censitários dos aglomerados favelados: em
acima, evidenciando os espaçamentos entre
32%, a ocupação do solo do setor censitário
os domicílios já existentes, sem contar setores
situa-se entre 5% e 40%. O índice de ocupa-
mais vazios do assentamento. Para o Brasil
ção é menor no Centro Oeste, atingindo valor
como um todo, em 73% dos domicílios fave-
mais alto nas favelas do Nordeste, onde 20%
lados não há espaçamento nenhum, ou seja, a
dos setores mostravam ocupação entre 60%
única possibilidade de expansão seria a verti-
e 95%, 20% acusavam índice de ocupação de
cal. Só existe espaçamento grande em menos
metade do setor e 41% dos domicílios ocupa-
de 25 mil casas, 0,76% do total de unidades
vam setores com 5% a 40% de ocupação.
faveladas. No Nordeste, a proporção de uni-
As favelas da região Norte também utilizam
dades de moradia sem nenhum espaçamento
Tabela 10 – Existência de espaçamento entre unidades habitacionais,
aglomerados subnormais, grandes regiões, 2010
Domicílios ocupados em setores censitários de aglomerados sub normais
Grandes Regiões
Sem espaçamento
Espaçamento médio
Espaçamento grande
Total
Norte
298.247
158.721
6.476
463.444
Nordeste
761.193
157.905
7.272
926.370
1.219.434
379.442
8.499
1.607.375
58.778
109.371
1.905
170.054
4.906
52.035
345
57.286
2.342.558
857.474
24.497
3.224.529
Sudeste
Sul
Centro-Oeste
Brasil
Fonte: Censo de 2010. Leitura territorial.
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Suzana Pasternak, Camila D’Ottaviano
atingiu o máximo, com mais de 82% das uni-
premente em termos de arruamento é no Su-
dades habitacionais sem espaço algum entre
deste, onde apenas 14% dos domicílios estão
elas. No Sudeste, em 23% dos domicílios há
em setores completamente arruados. E 11% em
espaçamento médio, o que significa que dá
setores sem rua nenhuma. Percebe-se que na
para abrir passagens e também garantir ilumi-
região Sudeste existe mais de 600 mil domicí-
nação e ventilação.
lios sem acesso, o que vai se refletir na informa-
As três últimas tabelas da Leitura Terri-
ção seguinte, nas Tabelas 12 e 13, onde se vê
torial procuram mostrar a existência de arrua-
que no Sudeste só 40% dos domicílios são ser-
mento e a acessibilidade possível nas favelas
vidos por rua, enquanto em 53% deles o acesso
brasileiras. A Tabela 11 mostra que apenas 21%
se dá por beco ou travessa. Isso se reflete nas
dos domicílios em aglomerados subnormais si-
611.873 unidades no Sudeste só acessíveis a
tuam-se em setores censitários com arruamento
pé ou por bicicleta e nas 24 mil que não são
completo; 28,9% localizam-se em setores com
acessíveis por caminho ou trilha nenhuma. No
arruamento na maior parte do setor (entre 60
Nordeste, a presença de escadarias é marcante,
a 95% do setor). Quase 7,5% ficam em seto-
com 9% dos domicílios acessíveis por escada, e,
res sem nenhum arruamento. A situação mais
portanto, apenas a pé.
Tabela 11 – Existência de arruamento nos setores censitários subnormais,
regiões brasileiras, 2010
Domicílios particulares em setores censitários de aglomerados subnormais com arruamento – %
Grandes
Regiões
Em todo setor
(95% ou mais)
Na maior parte
Em metade
Na menor parte do
do setor
do setor
setor
(entre 60 e 94,99%) (entre 40 e 59,99%) (entre 5 e 39,99%)
Em nenhuma
parte do setor
(menos de 5%)
Norte
51,72
32,50
6,51
6,73
2,53
Nordeste
15,25
23,45
22,74
33,45
5,11
Sudeste
14,04
28,00
19,77
27,47
10,73
Sul
25,38
34,95
16,96
17,44
5,27
Centro-Oeste
36,97
55,35
3,80
2,51
1,37
Brasil
20,81
28,19
18,29
25,23
7,48
Fonte: Censo de 2010. Leitura territorial.
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Favelas no Brasil e em São Paulo
Tabela 12 – Domicílios em aglomerados subnormais
por tipo de via de circulação, regiões brasileiras, 2010
Domicílios em aglomerados sub normais – %
Grandes
Regiões
Rua
Beco/
Travessa
Escadaria
Rampa
Passarela/
pinguela
Caminho/
trilha
Não existe via
de circulação
interna
Norte
81,44
11,70
–
0,06
5,46
1,16
0,17
Nordeste
50,10
36,20
8,78
1,07
0,14
3,32
0,37
Sudeste
40,09
53,09
3,43
0,12
0,25
1,52
1,49
Sul
76,04
21,03
0,13
0,17
0,12
2,12
0,39
Centro-Oeste
96,49
1,96
–
–
–
1,55
–
Brasil
51,81
39,69
4,24
0,39
0,96
2,02
0,89
Fonte: Censo Demográfico de 2010. Leitura territorial.
Tabela 13 – Acessibilidade possível para domicílios
em aglomerados subnormais, grandes regiões, 2010
Domicílios em aglomerados sub normais – %
Grandes
Regiões
A pé / bicicleta
Não existem
vias internas
Caminhão
Carro
Motocicleta
Norte
34,19
46,58
11,38
7,68
0,17
Nordeste
19,79
30,28
19,12
30,44
0,37
Sudeste
17,96
22,16
20,33
38,07
1,49
Sul
30,46
49,04
9,90
10,20
0,39
Centro-Oeste
18,48
76,18
3,04
2,31
–
Brasil
21,49
30,38
17,84
29,40
0,89
Fonte: Censo 2010. Leitura territorial.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 75-99, abr 2016
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Suzana Pasternak, Camila D’Ottaviano
seguinte, entre 2000 e 2010, a situação se in-
A Região Metropolitana
de São Paulo
verte, mostrando que, apesar do crescimento
da proporção de casas faveladas na periferia,
a taxa de crescimento na capital foi enorme:
A Região Metropolitana de São Paulo apre-
24% do crescimento absoluto das casas no
senta a maior concentração de favelas do Bra-
Município de São Paulo foi devido ao cresci-
sil, com 1.703 aglomerados (27% do total de
mento das unidades em favela. Nos municí-
favelas brasileiras) e população favelada de
pios periféricos, o crescimento de domicílios é
mais de 2 milhões de pessoas (19% da popu-
integrado pelo crescimento de 52.503 unida-
lação favelada brasileira). Apenas as cidades
des faveladas, o que representa 11% do cres-
de São Paulo, Guarulhos, Osasco e Diadema
cimento do parque domiciliar dando-se em
tinham, no ano 2000, 938 favelas – cerca de
assentamentos favelados. Embora a faveliza-
¼ das favelas do país. Em 2010, esses quatro
ção esteja atingindo os municípios da periferia
municípios contavam com 1.348 aglomera-
metropolitana, na última década a concen-
dos, 21% do total de aglomerados no Brasil.
tração relativa aumentou na capital. Entre os
Conforme mostra a Tabela 14, a proporção
39 municípios metropolitanos, incluindo São
de domicílios favelados nos municípios peri-
Paulo, 24 apresentam favelas no seu tecido
féricos vem aumentando desde 1991. Assim,
urbano. Em alguns municípios da metrópole,
essa proporção era de 5,71% em 1991, alcan-
o percentual de domicílios favelados é grande,
ça 8,4% em 2000 e chega a 9,79% em 2010.
superior a 10%: Taboão da Serra (11,02%),
A taxa de crescimento das casas faveladas
São Paulo (11,42%), Osasco (12,06%), Santo
nos municípios periféricos foi bem maior que
André (12,67%), Embu (13,14%), Guarulhos
a dos domicílios favelados na capital entre
(15,98%), São Bernardo (20,04%), Mauá
1991 e 2000 (quase o dobro). Já na década
(20,24%) e Diadema (20,97%).
Tabela 14 – Região Metropolitana de São Paulo.
Taxas geométricas de crescimento domiciliar totais e favelados,
1991 a 2010, em porcentagem e proporção de domicílios favelados
Proporção de favelados – %
Taxas com totais – %
Taxas com favelados – %
Unidade Geográfica
1991
2000
2010
1991-2000
2000-2010
1991-2000
2000-2010
Município de São Paulo
5,58
7,41
9,95
1,62
1,64
4,86
4,68
Outros municípios
5,95
9,23
9,58
2,88
2,11
8,02
2,49
Região Metropolitana
5,72
8,14
9,79
2,11
1,83
6,18
3,74
Fonte: Censos Demográficos de 1991, 200 e 2010.
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Favelas no Brasil e em São Paulo
Tabela 15 – RMSP – Densidade demográfica e de domicílios 2010
Setores censitários em aglomerados sub normais
Total
Nº de
domicílios
particulares
ocupados
População
residente em
domicílios
particulares
RMSP
3.246
596.479
MSP
1.998
outros
1.248
RMSP
Área (ha)
Densidade
demográfica
(hab/ha)
Densidade de
domicílios
particulares
ocupados (dom/ha)
2.162.368
8.834,8
244,8
67,5
355.756
1.280.400
4.304,6
297,4
82,6
240.723
881.968
4.530
195,0
53,1
Fonte: Censo 2010. Leitura territorial.
Tabela 16 – RMSP: domicílios em aglomerados subnormais,
por número de pavimentos, 2010
Domicílios em aglomerados subnormais
RMSP
Um pavimento
Dois pavimentos
Três pavimentos ou mais
RMSP
37,71
57,97
4,32
MSP
30,48
65,28
4,24
outros
48,40
47,17
4,44
Fonte: Censo Demográfico de 2010, leitura territorial.
A densidade demográfica média nas fa-
sobretudo em assentamentos favelados, onde
velas da metrópole apresenta-se bastante alta,
o espaçamento entre unidades, quanto existe, é
com 244,8 hab/ha. Para a região Sudeste co-
pequeno. Mas chama a atenção que a propor-
mo um todo, ela foi de 99,1 hab/ha em 2010.
ção de unidades com dois e mais pavimentos
Alguns municípios da metrópole têm densida-
na metrópole seja superior às construções ho-
des especialmente altas, como Diadema (458,9
rizontais: 62,3% têm dois e mais pavimentos,
hab/ha), Cotia (355,8 hab/ha), Caieiras (340.5
enquanto 37,7% são horizontais. No município
hab/ha), Itapevi (326,8 hab/ha). O município de
central, isso é ainda mais evidente: 69,5% das
São Paulo também tem densidade demográfica
casas têm mais de um pavimento. Nos outros
elevada nas favelas, com 297,4 hab/ha. A den-
municípios metropolitanos, essa porcentagem
sidade para o município como um todo não al-
alcança 51,6% dos domicílios. A mudança dos
cança 80 habitantes por hectare.
materiais de construção, com a introdução de
As altas densidades domiciliares são
lajes de concreto e alvenaria de bloco, aliada à
reflexo, em geral, da verticalização das unida-
falta de espaços vagos mesmo nas favelas, re-
des, embora, é claro, podem-se verificar altas
sultou num tecido verticalizado, distinto das fa-
densidades demográficas sem verticalização,
velas dos anos 1960, horizontais e de madeira.
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Suzana Pasternak, Camila D’Ottaviano
Tabela 17 – RMSP: presença de espaçamento entre domicílios favelados, 2010
Domicílios em setores censitários de aglomerados subnormais – %
RMSP
Sem espaçamento
Espaçamento médio
Espaçamento grande
RMSP
85,21
14,61
0,18
MSP
84,26
15,56
0,19
Outros municípios
86,63
13,20
0,17
Fonte: Censo Demográfico de 2010, leitura territorial.
Tabela 18 – RMSP: localização dos domicílios nos aglomerados subnormais, 2010
Colina suave
Plano (1)
0,33
0,85
0,76
0,38
1,81
20,26
24,78
19,60
3,06
MSP
24,69
1,75
2,43
0,33
0,74
0,94
0,09
1,22
19,06
22,05
23,18
3,50
Outros
25,24
1,21
0,65
0,34
1,01
0,49
0,81
2,69
22,04
28,80
14,31
2,40
Unidade de
conservação
Outras
Faixa de domínio
de LT de alta
tensão
1,71
Encosta
Faixa de domínio
de gasodutos
e oleodutos
1,53
Faixa de domínio
de ferrovia
24,91
Faixa de domínio
de rodovias
Sobre rios, córregos,
lagos ou mar
(palafitas)
RMSP
RMSP
Aterros sanitários,
lixões e outras áreas
contaminadas
Margem de
córregos,
rios ou lagos/lagoas
Domicílios em aglomerados subnormais – %
Fonte: Censo de 2010, leitura territorial.
Tabela 19 – RMSP: existência e tipo de acesso, aglomerados subnormais, 2010
Domicilios em aglomerados sub normais
Rua
Beco/
Travessa
Escadaria
Rampa
Passarela/
Pinguela
Caminho/
trilha
Não existe via
de circulação
interna
RMSP
33,80
58,50
3,30
0,13
0,24
1,80
2,23
MSP
26,71
64,53
3,27
0,11
0,34
1,37
3,67
outros municípios
44,29
49,58
3,34
0,17
0,09
2,44
0,09
RMSP
Fonte: Censo de 2010. Leitura territorial.
Tabela 20 – RMSP: tipo de acessibilidade ao domicílio, 2010
Domicílios em aglomerados subnormais
RMSP
Caminhão
Carro
Motocicleta
A pé / bicicleta
Não existem
vias internas
RMSP
11,65
22,15
9,13
54,84
2,23
MSP
8,16
18,56
8,50
61,11
3,67
16,82
27,45
10,06
45,58
0,09
outros municípios
Fonte: Censo de 2010. Leitura territorial.
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Favelas no Brasil e em São Paulo
A falta de espaçamento entre unidades
domicílios favelados só são acessíveis a pé,
domiciliares é evidenciada pela Tabela 17: em
situação ainda mais drástica na capital, onde
85% dos domicílios, não há nenhum espaça-
isso acontece em 61% das unidades domicilia-
mento entre eles. Essa proporção praticamente
res. Apenas 34% das casas nos aglomerados
se mantém tanto no município da capital como
são acessíveis por caminhão e/ou carro, propor-
nos outros municípios da metrópole. Em me-
ção bem maior nos municípios da periferia, on-
nos de 1% há espaçamento grande, situação
de isso se dá em 44% das unidades. Em proje-
equivalente à média brasileira. O tecido dos
tos de urbanização, esse é um fator importante
aglomerados subnormais é denso, sem espaços
a ser levado em conta.
vazios, com pouca área livre e pouca superfície
para expansão das unidades, que acabam por
ter que se verticalizar.
O município de São Paulo
A maior parte dos domicílios favelados
localizam-se em margens de rios, córregos e la-
O crescimento da população favelada no mu-
gos, tanto no município de São Paulo (24,69%)
nicípio de São Paulo na década de 1980 foi
como nos outros municípios metropolitanos
de 7,07% anuais, quase o dobro da taxa de
(25,24%). São um total de 148.808 unidades
crescimento populacional da população muni-
de moradia em lugar removível, ao menos em
cipal no mesmo período (3,66% anuais). Entre
princípio. Outros 212 mil estão em encostas, su-
1991 e 2000, a população favelada continuou
jeitos a deslizamentos. Quase 2.000 situam-se
a crescer mais que a população como um todo:
em áreas contaminadas, devendo, com certeza,
2,50% ao ano, enquanto a municipal aumentou
serem realocados, sobretudo na capital. Vale a
a uma taxa de apenas 0,92% anuais. E, entre
pena lembrar que na metrópole paulista locali-
2000 e 2010, as taxas faveladas se mantiveram
zam-se 18% dos domicílios favelados em áreas
maiores que as municipais, atingindo valores
contaminadas no Brasil. Em faixas de domínio
superiores à da década de 1990: 3,22% ao ano,
diversas, temos quase 23 mil casas faveladas,
para uma população municipal com crescimen-
a maior parte sob fios de alta tensão, menos
to de 0,76% anuais, mais do que quatro vezes
na capital que na periferia metropolitana. Per-
o crescimento municipal.
cebe-se também que não há muita variação no
Até o ano 2000, o crescimento da popu-
padrão de localização na capital e na periferia.
lação paulistana era nitidamente periférico: a
O arruamento nos aglomerados metro-
Tabela 22 mostra as taxas de crescimento da
politanos é deficiente: apenas 33,80% dos do-
população por anéis,2 onde se percebe que en-
micílios são servidos por ruas. Em quase 60%,
tre 1991 e 2000 as taxas dos três anéis centrais
o acesso só pode se dar por becos, em 3,5%
como negativas, enquanto a do anel periférico
por escadas ou rampas. A situação na capital
se responsabilizava por praticamente todo o
é mais precária: 27% dos domicílios dão para
crescimento municipal. Esse panorama muda
ruas e 65,5% para becos ou travessas.
na primeira década do século XXI, com os anéis
O arruamento deficiente leva a uma
não acessibilidade: na metrópole, 55% dos
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central e interior com taxas positivas e mais altas que a dos anéis exterior e periférico.
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Suzana Pasternak, Camila D’Ottaviano
Tabela 21 – Município de São Paulo.
População total e favelada por anel, 1991 a 2010
População favelada
População total
Anel
1991
1996
2000
2010
1991
1996
2000
2010
central
211
0
0
0
384.048
334.173
318.599
360.266
interior
6.156
2.920
4.557
621
686.610
609.305
583.956
648.269
74.053
6.329
94.610
80.247
1.413.723
1.319.467
1.316.367
1.426.682
exterior
230.416
27.361
220.365
343.520
3.265.900
3.194.496
3.304.779
3.414.917
periférico
398.223
463.822
611.096
850.422
3.860.378
4.378.382
4.911.845
5.403.336
MSP
711.050
749.318
932.628
1.280.400
9.610.659
9.853.823
10.435.546
11.253.470
intermediário
Fonte: Censos de 1991 a 2010; Contagem de População de 1996.
Tabela 22 – Município de São Paulo
Proporção de favelados na população total, 1991 a 2010, por anéis
População favelada
Anel
1991
1996
2000
2010
central
0,05
0,05
0,00
0,00
interior
0,90
0,90
0,78
0,10
intermediário
5,24
5,24
7,19
5,62
exterior
7,06
7,06
6,67
10,06
10,32
10,32
12,44
15,74
7,40
7,40
8,94
11,38
periférico
MSP
Fonte: Censo de 2010. Leitura territorial.
Tabela 23 –- Município de São Paulo. Taxas geométricas anuais de crescimento
populacionais, população total e favelada, por anéis, em porcentagem
População total
População favelada
Anel
1991-2000
2000-2010
1991-2000
2000-2010
central
-2,05
1,24
-100,00
0,00
interior
-1,78
1,05
-2,70
-18,07
intermediário
-0,79
0,81
2,25
-1,63
exterior
0,13
0,33
-0,40
4,54
periférico
2,71
0,96
3,97
3,36
MSP
0,92
0,76
2,50
3,22
Fonte: Censo de 2010. Leitura territorial.
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Favelas no Brasil e em São Paulo
Tabela 24 – MSP: Densidade demográfica e de domicílios, por anéis, 2010
Setores censitários em aglomerados subnormais
Anel
Total
Número de
domicílios
particulares
ocupados
População
residente em
domicílios
particulares
Área
(ha)
Densidade
demográfica
(hab/ha)
Densidade
de domicílios
particulares
ocupados
(dom/ha)
Pessoa /
domicílio
–
central
–
–
–
–
–
–
interior
7
1.725
6.211
7
913,18
253,62
3,60
99
22.903
80.247
158,24
507,12
144,73
3,50
552
94.496
343.520
789,77
434,96
119,65
3,64
periférico
1.340
236.632
850.422
3.349,82
253,87
70,64
3,59
MSP
1.998
355.756
1.280.400
4.304,63
297,45
82,65
3,60
intermediário
exterior
Fonte: Censo Demográfico de 2010. Leitura Territorial.
Tabela 25 – MSP: Topografia dos setores censitários
nos aglomerados subnormais, por anéis, 2010
Domicílios em setores censitários de aglomerados subnormais
Anéis
Plano
Aclive/declive moderado
Aclive/declive acentuado
anel central
0
–
0
–
0
–
anel interior
1.725
100%
0
0%
0
0%
anel intermediário
20.656
90%
2.020
9%
227
1%
anel exterior
40.335
43%
29.874
32%
24.287
26%
anel periférico
72.377
31%
98.385
42%
65.870
28%
135.093
38%
130.279
37%
90.384
25%
MSP
Fonte: Censo Demográfico de 2010. Leitura territorial.
Para as favelas, o crescimento na déca-
significativas nos anéis exterior e periférico.
da de 1990 era grande no anel periférico, com
A proporção de população favelada nos três
quase 4% anuais. O aumento da população fa-
anéis mais centrais diminuiu na última década
velada no anel intermediário também não era
(Tabela 23).
desprezível: 2,25% anuais. Na década seguinte,
A área total ocupada pelos assenta-
de 2000 a 2010, a situação muda: embora os
mentos subnormais em 2010 é de 4.404,63
dois anéis mais periféricos cresçam bastan-
hectares, ou seja, menos de 3% da superfí-
te, é no anel exterior que a taxa é maior. De
cie total municipal. Essa área, entretanto, é
qualquer forma, o município se distingue por
ocupa da por 11,38% do volume populacio-
apresentar uma favelização predominante-
nal. Isso vai resultar em densidades altas, co-
mente periférica, com proporção de favelados
mo atestam os dados da Tabela 25, na qual
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Suzana Pasternak, Camila D’Ottaviano
se percebe que as densidades das áreas fave-
É também no anel intermediário onde as casas
ladas nos anéis interior (913 hab/ha) e inter-
com apenas um pavimento se apresentam com
mediário (507 hab/ha) são altíssimas. Mesmo
menor proporção, apenas 9,20% das unidades,
no anel exterior (434 hab/ha), a densidade
enquanto quase 90% têm dois pavimentos.
demográfica nas favelas é elevada. Apenas
No anel exterior, tem-se a menor porcen-
no anel periférico ela é um pouco menor, de
tagem de domicílios sem espaçamento, mas
253 hab/ha.
uma proporção de unidades com três e mais
As altas densidades se refletem na exis-
pavimentos elevada: 6,52%. Talvez a existência
tência de espaçamento entre unidades domi-
de pouco menos de 20% das casas com algum
ciliares e no número de pavimentos das uni-
espaçamento e a presença de maior verticali-
dades. Para o município como um todo, em
zação está se refletindo na alta taxa de cres-
84,26% dos domicílios não há espaçamento,
cimento dos domicílios favelados nesse anel
proporção semelhante à da Região Metro-
entre 2000 e 2010, ainda mais alta que no anel
politana de São Paulo, onde em 85,21% das
periférico. A topografia do anel exterior é um
unidades não havia espaçamento. No anel in-
pouco mais adequada que a do anel periférico:
termediário é onde existe o maior adensamen-
no exterior, 26% dos domicílios situam-se em
to, com quase 97% das unidades de moradia
terrenos com declive acentuado, enquanto no
não apresentando nenhum espaço entre elas.
periférico essa proporção sobe para 28%.
Tabela 26 – MSP: Existência de espaçamento entre domicílios
em aglomerados subnormais, por anéis, 2010
Domicílios em setores censitários de aglomerados subnormais
Distritos
Sem espaçamento
Espaçamento médio
Espaçamento grande
–
–
–
–
82,0%
311
18,0%
0
0
22.194
96,9%
602
2,6%
107
0,5%
77.229
81,7%
17.179
18,2%
88
0,1%
anel periférico
198.907
84,1%
37.260
15,7%
465
0,2%
MSP
299.744
84,3%
55.352
15,6%
660
0,2%
anel central
–
anel interior
1.414
anel intermediário
anel exterior
–
Fonte: Censo Demográfico de 2010. Leitura territorial.
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Favelas no Brasil e em São Paulo
Tabela 27 – MSP: número de pavimentos dos domicílios
em aglomerados subnormais, 2010, por anéis
Domicílios em setores censitários de aglomerados subnormais
Anéis
Um pavimento
Dois pavimentos
–
–
1.149
67%
0
0%
9%
20.572
90%
223
1%
26.595
28%
61.740
65%
6.161
7%
79.144
33%
148.794
63%
8.694
4%
108.423
30%
232.255
65%
15.078
4%
–
–
–
anel interior
576
33%
2.108
anel exterior
anel periférico
anel intermediário
MSP
Três pavimentos ou mais
–
anel central
Fonte: Censo Demográfico de 2010. Leitura territorial.
Considerações finais
ras a taxa de crescimento favelada tenha
Uma primeira leitura dos dados censitários
aumentado entre as duas últimas décadas, é
mostra o número de assentamentos subnor-
na região Nordeste onde esse aumento apare-
mais – proxy das favelas – com forte aumento
ce de forma mais nítida, com 11,70% de taxa
no Brasil, praticamente dobrando em 19 anos.
de crescimento dos domicílios favelados, taxa
Se a taxa de incremento anual dos domicílios
quase nove vezes maior que na década 1991 a
totais entre 1991 e 2000 era de 0,89% ao ano,
2000. Acredita-se que grande parte desse au-
a mesma taxa para os domicílios favelados foi
mento se deva à melhoria de coleta de dados
de 4,18% anuais, ou seja, 4,8 vezes maior. No
sobre aglomerados subnormais no último Cen-
período seguinte, entre 2000 e 2010, essa ra-
so Demográfico (2010). Mesmo no Sudeste e
zão alcançou mais de 12 vezes (0,57% em con-
no Sul as taxas foram altas, de 4,46% e 4,41%
traposição a 6,93% ao ano). Em 2010, 5,61%
ao ano, respectivamente.
da população brasileira, ou 3,2 milhões de
Com relação ao acesso à infraestrutura
pessoas, vivia em favelas. Apesar da diminuição
básica, morar em favela no Brasil já não é o
da pobreza e da fome durante a primeira dé-
mesmo que no século passado: 88% dos domi-
cada do século XXI, as condições de moradia
cílios favelados são servidos por rede pública
são ainda bastante ruins. O preço elevado da
de água, 56% por rede de esgoto, 76% têm
terra e da moradia faz com que a alternativa da
algum tipo de coleta de lixo e 72% usufruem
ocupação seja uma das poucas possíveis para
de energia elétrica com medidor domiciliar
grande parte da população brasileira.
instalado. A situação infraestrutural é pior no
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Embora em todas as regiões brasilei-
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Norte e no Nordeste. Por outro lado, o grande
e em alguns segmentos espaciais do municí-
incremento de domicílios favelados observado
pio de São Paulo alcança quase 1.000 hab/ha.
no últimos anos talvez esteja recriando fave-
Densidades altas nesse tipo de tecido urbano
las precárias de madeira. Dados preliminares
indicam problemas de insolação, ventilação e
indicam o aumento desse fenômeno na capi-
circulação, ou seja, indicam unidades residen-
tal paulista: novos assentamentos ressurgem,
ciais com condições precárias de salubridade
primeiro com barracas de lona, depois, de ma-
e um tecido urbano denso pouco adequado à
deira e só posteriormente são substituídos por
implantação de redes de infraestrutura urbana,
casas de alvenaria.
como rede água ou esgotamento sanitário.
A análise da leitura territorial, realizada
Na Região Metropolitana de São Paulo,
pela primeira vez no Censo de 2010, mostra
o incremento anual da população favelada é
que quase 20% dos assentamentos favelados
também superior ao da população total. En-
no Brasil situam-se em encostas, e no Nordeste
tretanto, na década de 2000, percebe-se uma
e no Sudeste, a proporção atinge ¼ dos domi-
inversão no crescimento das favelas: elas cres-
cílios, 12% alocam-se em margens de cursos
cem mais no município da capital que nos ou-
d’água, e na Região Sudeste essa porcenta-
tros municípios da metrópole, mesmo em uma
gem é de 14%. Assim, para se pensar numa
década onde podem ser contabilizadas várias
estratégia intervenção em áreas de favela, é
remoções de favela (como, por exemplo, no
preciso levar em conta que 32% dos domicílios
perímetro da Operação Urbana Água Espraia-
favelados situam-se em locais com topografia
da – ver Ferreira, 2014). A densidade demo-
complicada. O levantamento aponta que 89 mil
gráfica das favelas na metrópole paulista é
moradias faveladas estão localizadas em sobre
quatro vezes maior que a densidade média no
antigos aterros sanitários ou lindeiras a vias
país, ou seja, atinge 245 hab/ha, num tecido
expressas, rodoviárias ou ferroviárias totalizam.
urbano também sem espaçamento e com 62%
O dado é relevante, pois, nesses casos, a única
dos domicílios com mais de um pavimento.
solução possível seria a de remoção.
Tanto a população municipal como a fa-
Para que se efetue uma remoção dentro
velada vinham crescendo mais intensamente
dos princípios que têm norteado a política de
na periferia da cidade. Entre 2000 e 2010, a
intervenção em favelas, seria necessário realo-
população total nos anéis centrais volta a cres-
car as moradias na mesma favela ou em local
cer com taxas significativas, embora essas ta-
próximo. Os dados censitários indicam essa
xas resultem em números absolutos irrisórios:
solução como problemática, já que em 72,6%
um total de 216.296 habitantes, 26% do incre-
dos casos não há espaçamento entre os do-
mento populacional na década. Já a população
micílios. A solução que tem sido encontrada
favelada perdeu números absolutos nos anéis
é o adensamento e a verticalização: 30% dos
centrais e ganhou nos anéis exterior (123 mil
domicílios favelados no Brasil já contam com
pessoas) e periférico (239 mil favelados). Nota-
três pavimentos. A densidade demográfica nas
-se, por outro lado, que a taxa de crescimento
favelas brasileiras ainda não é alta, de 67,5
dos favelados no chamado anel exterior ultra-
hab/ha, mas no Sudeste já chega a 99 hab/ha
passa a taxa no anel periférico. As densidades
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Favelas no Brasil e em São Paulo
demográficas municipais são altas: no anel in-
mostrando o resultado da política de urbaniza-
terior chega a 913 habitantes por hectare. Mes-
ção de favelas, tanto municipal como federal.
mo no anel periférico, onde ela é menor, alcan-
Mas 30% das unidades não apresenta ainda
ça 254 hab/ha. Cerca de 90 mil unidades do-
destino de dejetos adequado. Quase a totalida-
miciliares situam-se em encostas com declive
de das casas faveladas do município usufruíam
acentuado, sobretudo nos anéis exterior e pe-
da rede pública de água, assim como de ener-
riférico. E a verticalização das casas nas favelas
gia elétrica, e em 67,15% dos domicílios o me-
do município é grande: 70% das moradias tem
didor era individual. Assim, o espaço favelado
mais de um pavimento. Alguns distritos apre-
tem certa especificidade urbanística, mas suas
sentam grande proporção de favelados. Entre
unidades de moradia aproximam-se das unida-
os 96 distritos que compõem o município, há 10
des pobres de qualquer loteamento.
com mais de 20% da população em favelas. Os
Mesmo não sendo objeto deste artigo,
dados ilustram o fato de que, entre as 355.756
um rápido passar de olhos em algumas infor-
unidades domiciliares em favela no município
mações sobre os favelados na capital reitera
de São Paulo, em 2010, 24,70% alocam-se às
dados importantes: os favelados paulistanos
margens de cursos de água, quase 2% são
são mais jovens que a população do município
palafitas e 2,5% estão em unidades de con-
como um todo: apenas 1,48% têm 65 anos e
servação. Isso soma cerca de 102 mil domicí-
mais, contra 4,57% para o total, em 2010. E
lios, estimando-se em mais de 377 mil pessoas
22% do total dos paulistanos têm até 30 anos,
sujeitas e constantes riscos de alagamento ou
enquanto entre os favelados essa proporção é
solapamento. A favela ocupa o espaço de for-
de 28%. Os favelados são majoritariamente
ma específica: é precariamente arruado e mais
pretos ou pardos (61%), enquanto no muni-
denso que o espaço formal, dois complicado-
cípio como um todo, essa porcentagem era
res para serviços urbanos importantes, como
37%. E, reiterando que o favelado paulistano
o acesso de ambulância, polícia, bombeiros e
não é migrante recente, 75% dos não natu-
coleta de lixo. Aliás, a presença de montes de
rais de São Paulo moradores nas favelas estão
lixo e entulho, atraindo artrópodes, mosquitos
no município há 10 anos e mais. O percurso
e ratos, é uma constante. Em relação à morfolo-
dos favelados distancia-se do imaginário po-
gia, a casa favelada paulistana no ano de 2010
pular, que o tinha como sendo direto da zo-
era predominantemente de alvenaria (96,31%),
na rural nordestina para a favela paulistana.
com uma média de 4,10 cômodos por domicílio
Não raro, o favelado experimentou situação
e 2,24 pessoas por dormitório. Entre as unida-
habitacional distinta no município, geralmen-
des construídas em alvenaria, 26% estão sem
te casa alugada. A impossibilidade do paga-
revestimento. A aparência de um eterno can-
mento de aluguel ou de permanência em casa
teiro de obras domina a favela. A precariedade
de parente condicionaram a ida para a favela.
do esgotamento sanitário persiste: pelo Censo
O favelado tende a ser negro ou pardo, mas
de 2000, 51% das casas faveladas paulistanas
não é migrante recente nem teve na favela
estavam ligadas à rede pública de esgotos,
sua primeira residência (ver Meirelles, 2014,
proporção que aumenta para 67,4% em 2010,
e Valladares, 2005). O favelado é, antes de
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tudo, um trabalhador pobre: em 2010 o total
A análise dos dados censitários, com
dos ocupados com mais de 10 anos somava
especial destaque à “Leitura Territorial”, mos-
546.525, 42,25% do total populacional. Entre
tram que a intervenção pública em áreas de
esses ocupados, mais de 85% eram emprega-
favela ainda é uma necessidade premente, se-
dos, a maioria (65%) com carteira de traba-
ja no que diz respeito à infraestrutura urbana
lho. A moradia favelada foi invadida por bens
mas também em relação à melhoria das uni-
industrializados. Além dos básicos: fogão,
dades habitacionais. Por outro, com o intenso
rádio e geladeira, a presença maciça da tele-
crescimento das favelas durante a primeira
visão plana e em cores é praticamente univer-
década do século XXI por todo o Brasil, seja
sal, assim como a do celular. Em 2010, mais de
em números absolutos ou em densidade, faz
26% dos domicílios favelados no município ti-
com que o desafio da intervenção em áreas
nham microcomputador com acesso à internet
faveladas esteja cada vez mais complexo. Em
e 23,5% possuíam automóvel, porcentagem
algumas áreas a intervenção sem remoção não
superior à de 2000, de 17,9%. As favelas não
é uma possibilidade. Porém, essa não pode ser
são um mundo social à parte. A proximidade
a justificativa para processos de remoção indis-
com distintos segmentos urbanos faz com que
criminada, como temos observado em várias
espaços favelados apresentem diversos perfis
cidades brasileiras (ver Viana, 2015; Nobre e
socioeconômicos.
Bassani, 2015).
Suzana Pasternak
Universidade de São Paulo, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Departamento de História. São
Paulo/SP, Brasil
[email protected]
Camila D'Ottaviano
Universidade de São Paulo, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Departamento de Tecnologia.
São Paulo/SP, Brasil
[email protected]
Notas
(*) Versão preliminar deste ar go foi apresentada no XIX Encontro Nacional de Estudos Populacionais,
realizado em São Pedro, de 24 a 28 de novembro de 2014.
(1) Para efeito deste ar go, aglomerado subnormal é usado como proxy de favela.
(2) Divisão por anéis a par r de metodologia desenvolvida por Taschner (1990).
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Texto recebido em 12/set/2015
Texto aprovado em 30/nov/2015
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Urbanização de favelas na Região do ABC
no âmbito do Programa de Aceleração
do Crescimento-Urbanização
de Assentamentos Precários
Slum upgrading in the ABC Region in the context
of Programa de Aceleração do Crescimento-Urbanização de Assentamentos Precários
Rosana Denaldi
Ricardo Moretti
Claudia Paiva
Fernando Nogueira
Juliana Petrarolli
Resumo
Este trabalho trata das intervenções em favelas
localizadas na Região do ABC e financiadas no
âmbito do Programa de Aceleração do Crescimento – Urbanização de Assentamentos Precários (PAC-UAP).1 Esse programa canaliza recursos
para ações de urbanização de 49 assentamentos
precários do tipo favela ou loteamentos irregulares
nessa região. Observa-se que é baixa a execução
dos contratos de financiamento e repasse. A caracterização dos assentamentos e das intervenções
fornece um panorama geral da execução do programa e possibilita identificar seus entraves. Conclui-se que, para compreender os baixos índices de
execução das obras de urbanização de favelas será
importante entender a característica desses territórios, natureza das intervenções, regulamentação
e operacionalização do programa e as limitações
institucionais dos governos municipais.
Abstract
This paper analyzes interventions in slums located
in the ABC Region (State of São Paulo, Brazil) that
have been financed in the context of Programa
de Aceleração do Crescimento – Urbanização de
Assentamentos Precários (PAC-UAP). Through
this program, financial resources aimed at the
upgrading of 49 precarious settlements (slums)
are allocated to this region. The research shows
evidence of low efficiency in the implementation
of projects. Our characterization of the settlements
and interventions provides a general panorama of
the program’s implementation and its bottlenecks.
It is concluded that, to understand the lack of
efficiency in slum upgrading, it is important to
understand the characteristics of these territories,
the nature of interventions, the regulation and
operationalization of the program, and the
institutional limitations of municipal governments.
Palavras-chave: favela; assentamentos precários;
urbanização de favelas; região do ABC.
Keywords: slums; precarious settlements; slum
upgrading; ABC Region.
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hƩp://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3505
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Rosana Denaldi et al.
Introdução
estrutural da política habitacional e das estruturas institucionais. O primeiro programa federal que permitiu a intervenção em favelas foi
O lançamento do Programa de Aceleração do
o Promorar, instituído no período de existência
Crescimento – Urbanização de Assentamentos
do Banco Nacional de Habitação (BNH) e que
Precários (PAC-UAP) 2 marcou um novo mo-
também pode ser considerado como um pro-
mento da política de urbanização de favelas
grama alternativo.
no país: o governo federal, pela primeira vez,
A ação governamental restringiu-se à
aplica recursos volumosos nesse tipo de inter-
produção de novas unidades habitacionais e a
venção. Vale ressaltar que, até início da primei-
intervenção do tipo “urbanização de favelas”
ra década de 2000, o principal protagonista
entrou para agenda federal apenas na década
nessa área era o município e os valores investi-
de 1990. No governo de Itamar Franco (1992 a
dos pelo governo federal em programas de ur-
1994) foi formulado o programa “Habitar Bra-
banização de favelas até então foram irrisórios
sil” que canalizou recursos orçamentários para
(Denaldi, 2004).
financiar a produção de moradias e a urbaniza-
Historicamente, a provisão de moradias
ção de favelas. No âmbito do programa “Ha-
para população de menor renda não se deu
bitar Brasil”, foram atendidas cerca de 15 mil
pela via do mercado formal ou do Estado. A fa-
famílias em 1993; em 1994, cerca de 35 mil, no
vela foi uma das alternativas habitacionais en-
âmbito desse e do programa “Morar Pequenas
contradas pela população que não conseguiu
Comunidades” (Souza, 1997).
acessar o mercado formal de moradias.
No governo do presidente Fernando Hen-
Nos países periféricos, como o Brasil, os
rique Cardoso (FHC) foram instituídos e ade-
gastos com a moradia não foram incorporados
quados vários programas visando a atender
aos salários pagos pela indústria e nem assu-
a população de favelas. O programa “Habitar
midos pelo Estado. Maricato (1996) aponta que
Brasil” foi mantido e reestruturado, e foram
a “favelização” das cidades está relacionada
lançados os Programas de Ação Social e Sanea-
com as características excludentes do mercado
mento (PASS), “Pró-Moradia” e “Pró-Sanea-
imobiliário formal e com a “urbanização com
mento”, os dois últimos utilizando recursos
baixos salários”. Para a autora, o Estado fez-
do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço
-se presente no espaço da acumulação, mas se
(FGTS). Em 1999, no segundo governo de FHC,
ausentou do espaço da miséria. O crescimento
foi firmado um contrato de empréstimo com
das favelas é, portanto, resultado também da
o Banco Interamericano de Desenvolvimento
ausência e conivência do Estado.
(BID) para desenvolvimento do Programa Ha-
A erradicação foi a alternativa mais
bitar Brasil/BID (HBB), também voltado para
defendida até a década de 1960. A partir da
promover a melhoria das condições de habita-
década de 1970, quando o Estado interveio,
ção em favelas nos moldes do “Habitar Brasil”.
admitindo a urbanização das favelas, ele o
No entanto, os recursos orçamentários investi-
fez valendo-se de “programas alternativos”
dos nesse período pós-BNH foram irrisórios. O
de pequena abrangência e desligados do eixo
volume dos recursos alocados, assim como a
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Urbanização de favelas na Região do ABC...
regulamentação para sua utilização, não per-
Ministério das Cidades, em parceria com o Mi-
mitiu ampliar a escala de urbanização de fave-
nistério do Planejamento, Orçamento e Ges-
3
las no Brasil.
termos de número de obras concluídas, ou em
verno do presidente Luiz Inácio Lula da Silva,
andamento, não foram alcançados. Segundo os
o setor habitacional foi reorganizado institucio-
dados do 11° Balanço, até outubro de 2014,
nalmente e os investimentos na área de habita-
apenas 12% das obras de urbanização da sele-
ção foram retomados. O investimento em habi-
ção de 2007/2008 foram concluídas e nenhuma
tação no país cresceu no período compreendi-
obra de urbanização de assentamentos precá-
do entre os anos de 2003 e 2010, revertendo a
rios da seleção de 2011 foi finalizada.
estagnação presente no setor desde a extinção
Segundo Caldas e Vale (2014), até 2014,
do BNH. Os dois principais programas habita-
a média de execução das operações selecio-
cionais lançados pelo governo federal foram o
nadas no âmbito da carteira do PAC1 (entre
PAC-UAP, em 2007 e o Programa Minha Casa
2007 e 2010) era de 65% e do PAC2 (a partir
Minha Vida (PMCMV), em 2009.
de 2011) de 5%. Os autores também ressaltam
O PAC-UAP é voltado para urbanização
de favelas e desenvolvido por meio de parceria entre governos estaduais ou municipais,
que são os agentes promotores da intervenção, e o governo federal. Financia obras de
urbanização (infraestrutura, saneamento,
drenagem e contenção geotécnica), equipamentos sociais, produção de novas moradias,
requalificação habitacional, trabalho social e
regularização fundiária.
Desde 2007, foram contratados R$33 bilhões em urbanização de favelas, sendo R$20,8
bilhões na primeira fase do programa (PAC1),
distribuídos em 3.113 empreendimentos, e
que se deixou de utilizar cerca de 10% dos recursos disponibilizados.
Como vimos anteriormente, o PAC, desde
2007, selecionou o total de R$41,5 bilhões em empreendimentos de urbanização de favelas. Desse total, 1.702 operações, no valor de R$4,3 bilhões, não chegaram a ser contratadas, por deficiência
técnica ou documental ou por desistência
dos proponentes, ou ainda, tiveram seus
contratos cancelados por não iniciarem
as obras nos prazos acordados e repetidamente prorrogados ou paralisarem as
mesmas por períodos acima dos toleráveis. (Caldas e Vale, 2014)
R$12,7 bilhões na segunda fase do programa
A baixa execução do programa não de-
(PAC2), correspondendo a 415 empreendi-
veria representar, entretanto, sua extinção ou
mentos e 575 mil famílias beneficiadas (Brasil,
diminuição de importância, uma tendência
2014, p. 192).
que se observa diante da prioridade dada ao
Apesar do investimento significativo, há
PMCMV, possivelmente em detrimento dos in-
indícios de que esse programa vem perden-
vestimentos direcionados a outras modalida-
do importância na agenda federal. Um dos
des de intervenção como a urbanização de fa-
motivos seria o baixo índice de execução dos
velas. Grande parcela4 da população brasileira
projetos em todo território nacional. Os balan-
vive em favelas e seus assemelhados, e portan-
ços nacionais dos resultados, produzidos pelo
to, o tema da urbanização permanece central, e
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tão, apontam que os resultados projetados em
A partir de 2003, início do primeiro go-
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Rosana Denaldi et al.
o programa federal a ele destinado precisa ser
município como “urbanizadas”, 39% recebe-
mantido e aprimorado.
ram algum tipo de melhoria (urbanização par-
Nesse contexto de aumento do inves-
cial) e apenas 7% não receberam intervenções
timento federal em projetos de urbanização
(Diadema, 2009). Em Santo André, também de
de favelas, baixa execução dos contratos e
acordo com informações municipais, 32% dos
limitado conhecimento das possibilidades e
assentamentos são considerados urbanizados
dificuldades para ampliar a escala e elevar a
(Santo André, 2006) e em São Bernardo do
qualidade das intervenções em favela, torna-
Campo, 37% (São Bernardo do Campo, 2011).
-se necessário implementar uma agenda de
A maioria dos assentamentos precários
pesquisa sobre o tema que possa contribuir
localiza-se em áreas com restrição ambien-
para o aprimoramento e valorização dessa po-
tal. Observou-se que 56% dos assentamentos
lítica pública.
encontram-se em Área de Preservação Permanente (APP) e 27,82% em área de proteção e
recuperação de mananciais. Estudos revelam,
Favelas na Região do ABC:
dimensão do problema
e intervenção
ainda, a existência de um percentual elevado
de domicílios em áreas de risco.5
O ABC é uma das regiões pioneiras em
matéria de urbanização de favelas. Diadema foi
uma das primeiras cidades brasileiras a esta-
A Região do ABC localiza-se no estado de São
belecer, em 1983, uma política abrangente de
Paulo, mais precisamente na Região Metropo-
urbanização de favelas e embora as interven-
litana de São Paulo. Segundo dados do Censo
ções nem sempre tenham alcançado um pata-
Demográfico de 2010, realizado pelo Instituto
mar adequado de qualidade, inovou ao tratar
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
a questão da urbanização de favelas não mais
residem nessa região 2,5 milhões de habitan-
como mera intervenção pontual ou programa
tes, distribuídos em 865.145 domicílios. Des-
alternativo. Os Municípios de São Bernardo do
ses domicílios, 115.270 estão localizados em
Campo e Santo André também iniciaram a im-
“setores subnormais”.
plementação de programas de urbanização de
Outras fontes de informação, contudo,
favelas no final da década de 1980.
apresentam números diferentes. Os Planos Lo-
Em São Bernardo do Campo, o primeiro
cais de Habitação de Interesse Social (PLHIS)
programa de urbanização de favelas foi estru-
da região apontam a existência de 622 assen-
turado em 1989, na primeira gestão do prefeito
tamentos do tipo favela, que abrigam em torno
Maurício Soares. A intervenção em favelas, no
de 138 mil domicílios.
âmbito de uma política municipal de habitação
Muitas favelas da região foram urbani-
em Santo André também foi iniciada no mes-
zadas ou parcialmente urbanizadas nos pe-
mo período. Em 1989, no primeiro governo do
ríodos anteriores, porém, nem sempre com a
prefeito Celso Daniel, foi criado um programa
qualidade adequada de intervenção. Em Dia-
de urbanização de favelas além de terem sido
dema, 54% das favelas são consideradas pelo
instituídos importantes instrumentos, como
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Urbanização de favelas na Região do ABC...
a Lei de Áreas de Especial Interesse Social
a obtenção de recursos e iniciando a interven-
(AEIS) e de Concessão de Direito Real de Uso
ção em áreas mais complexas e que demanda-
(CDRU). No caso de Diadema, a continuidade
vam remoções de moradias, portanto, produção
político-administrativa propiciada pela eleição
de novas unidades habitacionais. Esse período
consecutiva de três governos progressistas do
coincidiu com a institucionalização das políti-
mesmo partido (Partido dos Trabalhadores),
cas de urbanização de favelas também no âm-
de 1983 a 1996, garantiu que a política para
bito do governo federal.6
favelas fosse consolidada e aprimorada. Já no
O aprimoramento da intervenção rela-
caso dos municípios de São Bernardo do Cam-
ciona-se com a valorização do projeto e com a
po e Santo André a alternância política resul-
concepção da integração das favelas à cidade.
tou na interrupção do programa e sua poste-
Essa concepção leva os municípios a construí-
rior retomada.
rem equipamentos públicos dentro da favela
Denaldi (2003) lembra que a concep-
ou no seu entorno imediato, como praças,
ção das políticas desenvolvidas nesse período
centros comunitários, centros esportivos, cre-
orientava-se para o reconhecimento legal da
ches e postos de saúde. Nesse período, na re-
posse da terra e a garantia de “direitos sociais
gião, destacou-se o programa de urbanização
mínimos”, como o acesso ao saneamento. As
de favelas denominado “Santo André Mais
intervenções realizadas consistiam na aber-
Igual”, lançado em 1997, que se propunha a
tura de vias e vielas para execução de obras
articular, institucionalmente, diversos progra-
de saneamento e pavimentação. Sempre que
mas setoriais e concentrá-los espacialmente
possível adotava-se um lote mínimo de 45 a
nas favelas em processo de urbanização. Vale
50 metros quadrados. As obras eram executa-
pontuar que esse programa ganhou visibilida-
das com recursos exclusivamente municipais,
de nacional e internacional.7
uma vez que eram inexistentes ou irrisórios
A partir de 2007, com o lançamento do
os recursos destinados pelas esferas estadual
PAC-UAP, inaugurou-se um novo período. O
e federal para intervenções dessa natureza.
aumento do volume de recursos federais para
Ações como produção de novas moradias e
urbanização permitiu aumentar a escala de in-
requalificação de moradias não eram desen-
tervenção no âmbito municipal.
volvidas. Na década de 1980, a ação municipal
A Região do ABC tem 49 assentamentos
caracterizou-se pela intervenção “emergen-
com algum tipo de intervenção no âmbito do
cial”, destinada a promover, em algum grau, a
PAC-UAP. Esses assentamentos abrigam cerca
melhoria das condições de infraestrutura, com
de 49 mil famílias, o que corresponde a 40%
projetos quase sempre executados in loco e
do total de famílias que habitam assentamen-
que se atinham, na grande maioria dos casos,
tos precários na região. Desse conjunto de as-
aos limites do território ocupado pela favela
sentamentos, 25 encontram-se no Município de
(Denaldi, 2003, p. 191).
Diadema, 13 em São Bernardo do Campo, nove
No período seguinte (1993-2006), a in-
em Santo André e dois em Mauá. Tais assen-
tervenção foi aprimorada, ingressando na fase
tamentos abrigam 14.901 famílias residentes
de elaboração de projetos de urbanização para
no município de Santo André, 15.617 em São
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Figura 1 – Assentamentos com intervenção do PAC-UAP
na Região do ABC
Fonte: IBGE (2010); Moretti et al. (2014).
Nota: as manchas em preto representam os assentamentos precários, segundo o IBGE (2010),
e as manchas brancas representam os assentamentos precários com intervenção
do PAC-UAP em cada município.
Bernardo do Campo, 10.020 de Diadema e
8.239 de Mauá.
Desse total de investimentos, mais da metade destinou-se ao Município de São Bernardo
O investimento total do PAC-UAP na
do Campo – aproximadamente R$685 mi-
Região do ABC é de 1,3 bilhão de reais e foi
lhões – seguido pelo Município de Santo André,
viabilizado por meio de 36 operações finan-
que conta com o montante de R$277 milhões.
ceiras firmadas no âmbito do programa. Esse
Diadema e Mauá contam respectivamente com
montante não inclui os recursos canalizados
R$162 e R$73 milhões em recursos do PAC-UAP.9
para produção habitacional através do Progra-
Os percentuais de contrapartida dife-
ma Minha Casa Minha Vida (PMCMV), essen-
rem muito entre os municípios, variando de
cial para viabilizar soluções de remanejamento
5%, no caso de Mauá, a 41%, no caso de São
e reassentamento. Desse montante, cerca de
Bernardo do Campo, que apresenta valores de
R$874 milhões, ou 67% do total, correspondem
contrapartida que se aproximam aos de repas-
a repasses/financiamento do governo federal e
se/financiamento.
R$430 milhões (33%) a contrapartidas dos governos municipais e estadual.8
106
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Os recursos do PAC-UAP chegaram à região, até dezembro de 2013, por meio de 36
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Urbanização de favelas na Região do ABC...
Termos de Compromisso (TC).10 Os TC podem
A maioria dos assentamentos que re-
canalizar recursos para mais que um assenta-
cebem investimentos do PAC-UAP na região
mento, da mesma forma que um único assenta-
apresenta densidades entre 500-1000 habitan-
mento pode receber recursos por meio de dois
tes por hectare (hab/ha), existindo uma varia-
ou mais TC. Portanto, não necessariamente um
ção de densidade muito grande: de 89 hab/ha
TC canaliza recursos para promover a urbani-
a 1.127 hab/ha (ambos localizados no Municí-
zação completa de um único assentamento ou
pio de Diadema). O porte dos assentamentos
complexo, podem canalizar recursos para um
também é muito variado (número de famílias
setor do assentamento, tipo de problema ou
consideradas nos projetos de urbanização):
etapa da obra de urbanização.
dois assentamentos abrigam mais que 5.000
Observa-se que a intervenção em favelas
famílias, nove assentamentos contam com um
na região ganhou escala com o lançamento
número de famílias entre 1.001 e 5.000 e 25
do PAC-UAP; entretanto, seguindo a tendência
com menos de 500 famílias envolvidas.
nacional, é baixa a execução do programa na
Observou-se que 45% dos assentamen-
região. Na Região do ABC, a exemplo do que se
tos da região estão localizados em terrenos
observa no cenário nacional, também tem si-
com predomínio de relevo acidentado e 17%
do baixa a execução do programa. Do total de
com presença significativa de relevo acidenta-
operações contratadas, até setembro de 2013,
do, demandando intervenções de estabilização
quase 30% ainda não tinham sido iniciados e
geotécnica. Foram também investigados os
apenas 6% estavam concluídos, ou seja, ape-
gravames ambientais incidentes sobre os as-
nas duas das 36 operações contratadas foram
sentamentos com intervenção do PAC na Re-
finalizadas até aquele momento (período de
gião do ABC. No conjunto dos assentamentos
sete anos de vigência do PAC-UAP).
11
estudados, existem 16 assentamentos localizados em Área de Proteção e Recuperação de
Mananciais (APRM) da Represa Billings. Vinte
Características dos assentamentos
e investimentos do PAC-UAP
e cinco assentamentos (51%) desse conjunto
apresentam gravames relacionados a Áreas
de Preservação Permanente (APP) de cursos
d’água. Quatorze assentamentos, dentre os 49
No âmbito da pesquisa “Urbanização de As-
estudados (29%), apresentam gravames rela-
sentamentos precários no âmbito do Progra-
cionados a APP de nascente.
ma de Aceleração do Crescimento na Região
No conjunto estudado, somente em
do ABC”, financiada pelo Conselho Nacional
nove assentamentos não foram identificadas
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
situações de risco nas condições pré-interven-
(CNPq) – Chamada MCTI/CNPq/MCidades nº
ção. Risco associado a deslizamentos é o mais
11/2012 –, foram caracterizadas as interven-
expressivo, presente em 55% das favelas estu-
ções de urbanização de favelas, em execução
dadas. Também foram citados riscos de inunda-
ou programadas, na Região do ABC e para as
ção (em 37% dos assentamentos) e de solapa-
quais se destinam recursos do PAC-UAP.
mento ou erosão de margens de córregos (em
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39%). Observa-se que, em muitos dos assenta-
construção de novas unidades habitacionais
mentos, há incidência de mais de um processo
tanto no próprio assentamento (remanejamen-
geodinâmico gerador de riscos.
to) como fora dele (reassentamento) e 22% do
Identificou-se que a maioria dos assenta-
tipo urbanização com produção de novas mo-
mentos beneficiados pelo programa PAC-UAP
radias fora do assentamento (reassentamento).
já recebeu algum tipo intervenção de urbani-
A substituição total das moradias do assen-
zação em períodos anteriores. De acordo com
tamento por unidades habitacionais13 (UHs)
informações municipais, dos 49 assentamentos
novas foi registrada em apenas sete assenta-
que contam com recursos do PAC-UAP, 39 deles
mentos (14%) e a remoção total do núcleo e
(80%) receberam intervenções realizadas com
reassentamento da população em outro local
recursos de outras fontes nas últimas três dé-
em apenas quatro assentamentos (8%).
cadas. A informação sobre a infraestrutura exis-
Segundo informações municipais, muitos
tente antes da intervenção do PAC-UAP confir-
assentamentos já haviam sido parcialmente
ma essa informação. Os municípios declararam
“urbanizados”, ou seja, receberam algum ti-
que 92% dos assentamentos tinham redes de
po de melhoria em períodos anteriores. Desse
água, integral ou parcial, antes da intervenção;
conjunto de 49 assentamentos precários objeto
12
85% de esgoto e 90% de drenagem.
de intervenção no âmbito do PAC-UAP, mais da
As intervenções foram classificadas em
metade (53%) das intervenções representam
seis tipos como mostra a Tabela 1. Conclui-se
complementação de urbanização. Quase meta-
que 27% das intervenções são do tipo urba-
de (43%) tem por objetivo a urbanização com-
nização com construção de novas unidades
pleta dos assentamentos precários e apenas 4%
habitacionais no próprio assentamento (rema-
pretendem urbanizar apenas um setor do assen-
nejamento), 22% são do tipo urbanização com
tamento. Destaca-se que, no caso de Diadema,
Tabela 1 – Tipo de intervenção no âmbito do PAC-UAP na Região do ABC
Nº de
assentamentos
%
Urbanização com consolidação das famílias na própria área (sem realocação)
3
6
Urbanização com construção de UHs no próprio assentamento
13
27
Urbanização com construção de UHs no próprio assentamento e com reassentamento
de parte da população removida em outro local
11
22
Urbanização com reassentamento externo da população
11
22
Substituição total das moradias do assentamento por UHs novas
7
14
Tipo de intervenção
Remoção total do núcleo e reassentamento da população em outro local
4
8
Total ABC
49
100
Fonte: Moretti et al. (2014).
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a intervenção em 18 assentamentos (72% do
construção de quatro conjuntos habitacionais
total do município) é do tipo complementação
por meio do PMCMV vinculado às urbaniza-
da urbanização e, nos casos de São Bernardo e
ções do PAC-UAP no ABC, totalizando 1.652
Santo André, predomina a intervenção do tipo
UH e aproximadamente R$ 107 milhões de in-
urbanização completa. A eliminação de riscos é
vestimento, de acordo com as informações for-
elemento indutor da urbanização.
necidas pelos municípios.
Comparando o número de unidades ha-
Entretanto, a quantidade de novas mo-
bitacionais em risco antes e depois de iniciadas
radias contratadas no âmbito do PMCMV, até
as intervenções, observa-se redução de quase
dezembro de 2013, não era suficiente para
75% em São Bernardo do Campo, Mauá e Dia-
atender ao universo de famílias que precisa-
dema e quase 80% em Santo André. Estima-se
vam ser removidas e reassentadas no âmbito
que, com a conclusão das obras, se alcance a
do PAC-UAP. Os municípios estavam articulan-
redução de 100%.
do novas propostas no âmbito do PMCMV
Além dos recursos captados no âmbi-
para concluir o processo de urbanização. Se-
to das modalidades do PAC-UAP e vinculados
gundo informações municipais, existem cerca
aos 36 TC, foram e estão sendo viabilizados
de dez projetos de conjuntos habitacionais em
recursos no âmbito do Programa Minha Casa
elaboração ou processo de aprovação para
Minha Vida (PMCMV) para viabilizar soluções
captação de recursos no âmbito do PMCMV e
de remoção (remanejamento ou reassentamen-
que viabilizam a construção de cerca de 2.500
to). Até dezembro de 2013, foi contratada a
novas moradias.
Tabela 2 – Unidades habitacionais por tipologia de risco
nos municípios do ABC antes e depois da intervenção do PAC-UAP
Município
Nº de UHs
Inundação
SA
Antes da
intervenção
30
ABC
Diadema
Mauá
Atual
Antes da
intervenção
Atual
Antes da
intervenção
Atual
Antes da
intervenção
Atual
–
1.413
186
972
149
–
–
Deslizamento
1.900
481
983
426
611
192
1.218
304
Solapamento
1.300
–
334
66
78
21
–
–
Outros
1.185
420
121
67
–
24
–
–
Total de UHs
em risco
4.415
901
2.851
745
1.661
386
1.218
304
Fonte: Moretti et al. (2014).
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Tabela 3 – Recursos contratados e previstos para viabilizar
a urbanização dos assentamentos no âmbito do PAC-UAP
Município
PAC-UAP – R$
PAC-UAP +
PMCMV contratado
PAC-UAP + PMCMV
contratado e previsto*
Santo André
384.934.543,31
460.404.756,49
460.404.756,49
São Bernardo do Campo
684.740.634,21
716.659.226,37
763.123.226,37
Diadema
161.653.694,61
161.653.694,61
267.733.694,61
72.531.819,27
72.531.819,27
150.483.819,27
1.303.860.691,40
1.411.249.496,74
1.641.745.496,74
Mauá
Total
* a estimativa prevista de investimento do PMCMV foi calculada a partir do número de UHs necessárias para conclusão
da urbanização, informada pelas prefeituras, multiplicada pelo valor do teto do programa na RMSP (R$96mil).
Fonte: MCidades e entrevista com técnicos das Prefeituras Municipais.
O custo total de investimento por família
município, observam-se variações ainda maio-
no âmbito das contratações do PAC-UAP não
res – de R$4 mil a R$90 mil,15 mas esses dados
representa o custo total (realizado ou neces-
devem ser lidos com cautela.
sário) de investimento para concluir a inter-
Em alguns casos, esse valor é baixo de-
venção de urbanização, incluindo as ações de
vido ao fato de o investimento total do PAC-
produção de moradias para reassentamento.
-UAP considerado corresponder a interven-
Como mencionado anteriormente, o recurso
ções em apenas parte da área e o número de
captado no âmbito do programa, em muitos
famílias corresponder ao total do assentamen-
casos, é insuficiente para concluir todas as
to. Esse é o caso do Núcleo Nova Conquista,
obras de urbanização e viabilizar os reassen-
em Diadema, que apresenta o menor valor de
tamentos. Além disso, a maioria dessas áreas
investimento por família (R$ 4 mil): o núcleo
foi urbanizada parcialmente ou recebeu algum
abriga 2.300 famílias, mas o setor atendido
tipo de melhoria em períodos anteriores. Essas
pelo PAC-UAP corresponde apenas a um setor
melhorias foram executadas com recursos pró-
conhecido como “Setor Krones”. O restante
prios do Estado e Municípios ou recursos fede-
do assentamento foi urbanizado anteriormen-
rais captados no âmbito de programas, dentre
te, com recursos provenientes de outras fon-
outros, como o “Habitar Brasil/BID”.
tes. Caso semelhante pode ser verificado no
A média do investimento por família no
Núcleo Sacadura Cabral, em Santo André, que
âmbito das contratações do PAC-UAP na região
conta com investimento de aproximadamente
é de R$ 27mil, e essa varia de R$9 mil reais por
R$ 4.600 por família, contudo, trata-se de um
família, no caso de Mauá, a R$44 mil por fa-
pequeno setor da favela que já foi urbaniza-
14
mília, em São Bernardo do Campo. Quando
da na década de 2000 com recursos munici-
a análise é feita por assentamento, e não por
pais, federais e da União Europeia. No caso do
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núcleo que conta com o maior valor de inves-
Observando o panorama geral apresen-
timento por família (R$ 90 mil). No caso do
tado, o primeiro ponto a ser destacado é que
Silvina Oleoduto (localizado em São Bernardo
a característica física dos assentamentos loca-
do Campo), a presença de um oleoduto impõe
lizados na Região do ABC são aquelas descri-
a remoção de grande parcela das famílias e
tas para as regiões metropolitanas e indicam a
eleva o custo de intervenção.
complexidade de intervenção nesses territórios.
Os referidos valores de investimento
A maioria dos assentamentos está localizada
por família elevam-se quando somados aos
em áreas com presença de gravames ambien-
recursos contratados e planejados (previsão)
tais, relevo acidentado e situações de risco.
no âmbito do PMCMV. Considerando a viabi-
Soma-se isso ao fato de os assentamentos en-
lização da captação de recursos para constru-
contrarem-se consolidados, com alta densidade
ção das unidades habitacionais necessárias, o
e setores urbanizados em períodos anteriores
investimento médio por família na região subi-
com qualidade inadequada. Essa característica
rá para R$ 33.658, com variação por município
indica a complexidade da intervenção física e
de R$18.265 por família, no caso de Mauá, e
do trabalho social. Apontando, dessa forma,
R$ 48.865 por família, no caso de São Bernar-
a necessidade de realização de diagnósticos
do do Campo.
integrados, obtenção de autorização ou licenciamento ambiental e execução de complexas
obras de saneamento, drenagem e consoli-
O que explicaria o baixo
desempenho do programa?
dação geotécnica. Isso, muitas vezes, implica
intervir na escala do entorno ou microbacia.
Além disso, quase sempre requer a remoção de
A análise das características dos assentamen-
percentual significativo da população residente
tos e intervenções realizadas no âmbito do
para viabilizar obras de infraestrutura e elimi-
PAC-UAP na região permite apontar um con-
nação de situações de risco.
junto de fatores que explicariam o baixo de-
Evidentemente, a intervenção numa
área desse tipo é mais complexa do que a
sempenho do programa na região.
Tabela 4 – Investimento médio por família de acordo
com as fontes de financiamento e situação de contratação ou previsão
PAC-UAP Total
R$
PAC-UAP + MCMV
contratado – R$
PAC-UAP + PMCMV
(previsão) – R$
Santo André
25.833
30.898
30.898
São Bernardo do Campo
43.846
45.890
48.865
Diadema
16.133
16.133
26.720
Município
Mauá
8.805
8.805
18.265
Região
26.732
28.933
33.658
Fonte: Moretti et al. (2014).
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intervenção que se realiza numa área vazia
período, alterem-se as condições de ocupação
(desocupada). Ainda que o município contasse
e características do sítio. Mesmo contando com
com um projeto executivo completo e de bom
um projeto de boa qualidade, muitas vezes, é
nível, – o que não tem sido observado, – seria
necessário produzir revisões e complementa-
de difícil execução em curto prazo, tendo em
ções que alteram o escopo original. A lógica
vista essa complexidade física e social.
de projeto, financiamento e controle da exe-
Os projetos produzidos nem sempre es-
cução das obras de urbanização de favelas se-
tão baseados em diagnósticos integrados, qua-
gue aquela que é adotada na implantação de
se nunca estão completos e têm um grau insu-
uma obra nova, em que o território ainda não
16
ficiente de detalhamento. Esse fato aumenta
foi ocupado. Porém, tem-se na prática uma in-
a imprevisibilidade já existente em projetos
tervenção que mais se assemelha a uma obra
dessa natureza e provoca a necessidade de pro-
de reforma, onde a intervenção ocorre em uma
dução ou alteração de projetos e de revisão de
situação já existente e em mutação. Considera-
planilhas (quantitativos e orçamento) durante
-se importante e oportuno o debate sobre no-
a execução da obra, levando frequentemente
vas formas de projetar, orçar e reembolsar as
a sua paralisação temporária. Vários autores17
obras de urbanização de assentamentos precá-
apontam que apenas na década de 1990 o pro-
rios, considerando essa especificidade.
jeto de urbanização de favelas foi valorizado.
Soma-se a essa combinação “comple-
Nesse período, foram formuladas diretrizes de
xidade de intervenção, qualidade do projeto
intervenção que consideravam a necessidade
e território em transformação”, a rigidez de
de integração do assentamento à cidade e fos-
contratação e medição das obras de urbani-
sem definidos padrões específicos de execução
zação de favelas apontadas pelos técnicos e
de obras. Ainda há limitado acúmulo no campo
gestores municipais.18 A rigidez das normas de
da elaboração de projeto e obra para favela.
contratação e medição não é compatível com a
Outro aspecto a ser considerado é que
se trata de um território em permanente trans-
característica do projeto, território e complexidade de intervenção.
formação pela ação de seus moradores ou do
Outro tema a ser explorado relaciona-se
meio físico. É comum que uma obra se inicie
com a natureza da intervenção, custos de ur-
apenas dois anos depois de concluída a elabo-
banização e desenho do PAC-UAP. As propostas
ração do projeto ou três anos após a conclusão
para produção de novas moradias no âmbito
de seu diagnóstico integrado. Após a conclusão
do PMCMV, atreladas às urbanizações desse
da elaboração do projeto, é preciso muitas
conjunto de assentamentos estudados, com-
vezes obter a autorização ambiental para só
provam o fato. Os municípios informaram que
então apresentá-lo para avaliação da Caixa
estão sendo pleiteados recursos adicionais do
Econômica Federal (CEF), ou órgão financiador,
PMCMV para concluir a urbanização de 22%
para depois formalizar a contratação e iniciar o
dos assentamentos analisados, apontando a
processo de licitação. Esses procedimentos de
necessidade de construção de no mínimo mais
licenciamento, avaliação, contratação e licita-
2.500 moradias, envolvendo recursos da ordem
ção são morosos. Também é comum que, nesse
de R$230 milhões. Em alguns casos, como o
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Urbanização de favelas na Região do ABC...
Jardim Oratório, em Mauá, faltam recursos tan-
relaciona tanto com a inexistência de projetos
to para construção de novas moradias, como
completos e de boa qualidade, portanto, com a
para resolver as situações mais complexas de
limitada capacidade administrativa do municí-
risco e infraestrutura, como miolos de quadra e
pio, como com as regras e limites de financia-
topos de morro.
mento do programa.
Conclui-se que a urbanização de gran-
Os custos de urbanização por família e
de parcela desses assentamentos foi iniciada
limites de investimento por item do programa
em períodos anteriores e que o valor desti-
também podem dificultar a execução de solu-
nado e contratado, embora expressivo, não
ções adequadas e tornar ainda mais morosa a
será suficiente para concluir a intervenção.
execução das obras de urbanização, principal-
Esse fato pode corroborar com a morosidade
mente nos casos de intervenções executadas
da execução dos contratos, uma vez que pa-
na primeira fase do programa. As característi-
ra realizar alguns tipos de serviços (tais como
cas físicas e de ocupação dos assentamentos
abertura de viário, canalização e recuperação
são muito distintas, e em muitos casos a in-
de córrego, recuperação de área de risco) é ne-
tervenção é complexa, e pode custar mais que
cessária a provisão de moradias para viabilizar
os limites de repasse por família estabelecidos
a remoção. Portanto, a ausência de projeto e
pelo programa. Novamente, nesse caso muitas
financiamento integrado para todos os com-
vezes o município faz uma conta de chegada e
ponentes da intervenção pode comprometer a
não contrata a execução de todos os serviços
execução das obras contratadas.
e obras necessários. A orientação operacional
Por fim, a lógica do projeto apresentado,
nº 01/2011 do Ministério das Cidades, instituí-
o volume de recurso solicitado para o Ministé-
do em 22 de fevereiro de 2011, exclui do en-
rio das Cidades e os limites de financiamento
quadramento itens muito variáveis como obras
por componente do programa podem dificultar
para eliminação de risco, o que significa que
ou impossibilitar a conclusão da urbanização.
não são estabelecidos limites de investimento
Observa-se, como no caso do Jardim Oratório,
para tais itens, além de possibilitar requisi-
o estudo de caso da segunda etapa dessa pes-
ção de recurso adicional para construção de
quisa, que muitas vezes os municípios tentam
unidades habitacionais executadas no âmbito
encaixar em “determinado valor captado”
do PMCMV, entretanto, há indícios que, em
alguns serviços e obras necessárias, mas que
alguns casos, ainda assim os limites estabele-
esse montante é insuficiente para conclusão
cidos pelo programa não são suficientes para
da obra. Nos casos em que se observa a difi-
executar a intervenção como um todo. Para
culdade ou impossibilidade de captação de re-
“fechar a conta”, o município aumenta sua
cursos para produção habitacional, executa-se
contrapartida ou exclui serviços. Muitas vezes
o que é possível sem a remoção da população
a execução das obras fica comprometida por-
ou com a remoção parcial. Essa “conta de che-
que o município não consegue cumprir a con-
gada” acaba comprometendo a qualidade da
trapartida ou a exclusão dos serviços compro-
intervenção. Observa-se que essa prática se
mete a execução de outros.
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Rosana Denaldi et al.
Entretanto, conforme mencionado ante-
Conclusão
riormente, apenas 6% das obras estão concluídas e a média de execução do PAC1 é de 54%
A primeira constatação é que os recursos do
e do PAC2 3%.
PAC-UAP permitiram ampliar significativa-
Conclui-se que, para compreender os bai-
mente a escala de intervenção em favelas na
xos índices de execução das obras de urbani-
Região do ABC. Conclui-se que cerca de 40%
zação de favelas nessa região e no Brasil, será
dos domicílios em assentamentos precários
importante entender a característica desses
estão localizados em assentamentos que re-
assentamentos, a natureza dessas interven-
cebem algum tipo de intervenção no âmbito
ções, as limitações institucionais dos governos
do PAC-UAP.19 Em que pese o fato de a urba-
municipais e da CEF, além de identificar os
nização da maioria desses assentamentos ter
obstáculos colocados pela regulamentação do
sido iniciada em períodos anteriores e os inves-
programa e forma de contratação e gestão dos
timentos alocados muitas vezes serem ainda
projetos por parte do governo federal (MCida-
insuficientes para concluir a urbanização e in-
des e CEF).
tegração do assentamento na cidade, trata-se
As informações produzidas no âmbito
de uma intervenção de grande abrangência em
desse trabalho são insuficientes para tecer con-
termos do número de assentamentos benefi-
clusões sobre o baixo índice de execução das
ciados. Vale ressaltar que as intervenções do
obras, mas permitem apontar alguns fatores
tipo urbanização de favelas na Região do ABC
que podem contribuir para explicar esse de-
foram iniciadas na década de 1980 e, mesmo
sempenho do programa. Dessa forma, buscou-
com as interrupções decorrentes das alternân-
-se indicar hipóteses que deverão ser confirma-
cias de governo, foram mais de 30 anos de
das por outros estudos.
práticas de urbanização de favelas antes do
O tema do custo de urbanização por fa-
lançamento do PAC em 2007 e apenas cerca
mília em Regiões Metropolitanas (RM) também
de 20% dos domicílios estão localizados em
merece ser estudado. O panorama dos investi-
assentamentos integralmente urbanizados no
mentos realizados mostrou que há uma grande
20
período anterior. Portanto, as intervenções
variação de custo de investimento por família
realizadas no âmbito do PAC terão um signifi-
e por empreendimento. Evidentemente, em ca-
cativo impacto na região.
da caso, a natureza da intervenção, existência
Uma segunda constatação é que, mesmo
de gravames ambientais, estágio de urbaniza-
antes do término das obras, as intervenções já
ção, qualidade e partido do projeto justificam,
obtiveram significativo resultado na redução
em grande parte, essa variação. Na região do
de riscos e recuperação ambiental dos assenta-
ABC, onde predominam casos complexos, os
mentos, em especial aqueles relacionados aos
custos de urbanização tendem a ser superiores
aspectos de drenagem e recuperação da mar-
aos limites estabelecidos pelo programa. Cabe
gem dos cursos d’água.
destacar que a urbanização de favelas envolve
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Urbanização de favelas na Região do ABC...
uma análise de custos mais abrangente do que
aumento está associado a um conjunto de fa-
a das obras de consolidação urbanística. A rede
tores, entre os quais o aumento do percentual
de proteção e o capital social constituído em
de famílias removidas para atendimento às
um núcleo de assentamento informal é difícil
exigências de proteção ambiental, e a adoção
de ser computado, mas não pode ser ignorado.
de estratégias de intervenção que demandam a
Porém, é importante reconhecer a tendência
incorporação de diferentes componentes além
de aumento dos custos de urbanização de as-
da execução de obras complexas que extrapo-
sentamentos informais nos últimos anos. Esse
lam os limites da favela.
Rosana Denaldi
Universidade Federal do ABC, Centro de Engenharia, Modelagem e Ciências Sociais Aplicadas. Santo
André/SP, Brasil.
[email protected]
Ricardo Moretti
Universidade Federal do ABC, Centro de Engenharia, Modelagem e Ciências Sociais Aplicadas. Santo
André/SP, Brasil.
[email protected]
Claudia Paiva
Universidade Federal do ABC, Centro de Engenharia, Modelagem e Ciências Sociais Aplicadas. Santo
André/SP, Brasil.
[email protected]
Fernando Nogueira
Universidade Federal do ABC, Centro de Engenharia, Modelagem e Ciências Sociais Aplicadas. Santo
André/SP, Brasil.
[email protected]
Juliana Petrarolli
Universidade Federal do ABC, Programa de Pós Graduação em Planejamento e Gestão do Território.
Santo André/SP, Brasil.
[email protected]
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Rosana Denaldi et al.
Notas
(1) Apresenta os resultados da pesquisa “Urbanização de assentamentos precários no âmbito
do Programa de Aceleração do Crescimento na Região do ABC”, produzida pelos autores e
financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) –
Chamada MCTI/CNPq/MCidades nº 11.
(2) U lizaremos a sigla “PAC-UAP” para tratar das operações de financiamento e repasse de recursos
do Governo Federal no âmbito do PAC, que tem como finalidade promover obras de urbanização
de assentamentos precários.
(3) Segundo balanço divulgado pelo governo federal, em 1999, o investimento realizado no
período de 1995 a 1999, foi de R$773 milhões no programa Pró-Moradia, de R$2,664
milhões no Pró-Saneamento, de R$695,1 milhões no Habitar Brasil e de R$803 milhões no
PASS (Brasil, 1999, apud Denaldi, 2003, p. 24).
(4) Segundo IBGE (1996), em 2010 existiam 11,4 milhões de pessoas vivendo em aglomerados
subnormais no Brasil. Maricato (1996) estima que de 40% a 50% da população das grandes
cidades brasileiras vive na informalidade, sendo 20% em favelas.
(5) Em mapeamentos realizados entre 2009 e 2013 em assentamentos precários de seis dos sete
municípios da região, foram identificadas mais de 24 mil moradias em situação de risco
associados a deslizamentos, solapamento de margens de córregos e inundações, das quais
9.374 estavam em risco alto ou muito alto.
(6) Sobre a evolução da polí ca de urbanização de favelas, ver Denaldi (2003) e Cardoso (2006).
(7) Principais premiações: “Prêmio Gestão Pública e Cidadania” concedido pelas Fundações Getúlio
Vargas e Ford, em 2000; eleita uma das 16 melhores prá cas do mundo, escolhidas para serem
relatadas na Conferência das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos – Istambul + 5 em
2001; Prêmio Internacional de Dubai de Melhores Prá cas, do Centro das Nações Unidas para
Assentamentos Humanos, o Habitat, em 2002. Ver Denaldi (2012).
(8) Na Região do ABC, no âmbito do PAC-UAP, o governo federal aporta cerca de R$873 milhões no
Programa, os municípios, R$360 milhões, e o governo estadual, R$70 milhões.
(9) Após a conclusão da primeira etapa da pesquisa, tomou-se conhecimento que o Núcleo Vila
Ferreira, localizado no Município de São Bernardo do Campo, também conta com recursos do
PAC-UAP. Esse relatório não incorpora as informações sobre esse assentamento.
(10) O PAC-UAP tem Subprogramas e Ações em que se categorizam as intervenções, são elas:
Projetos Prioritários de Inves mentos – Intervenções em Favelas (PPI-IF), Projetos Prioritários
de Inves mentos – Saneamento Integrado (PPI-SI), Fundo Nacional de Habitação de Interesse
Social (FNHIS), ProMoradia e PAC-Risco. Segundo pesquisa feita com os agentes promotores das
intervenções,15 TC estavam inseridos na Ação PPI-IF, nove no FNHIS, cinco no PPI-Saneamento
Integrado, três no ProMoradia, dois são do PAC-Risco e dois termos não temos informação a
esse respeito.
(11) Os dos Termos de Compromisso concluídos até setembro de 2013 inserem-se no município e São
Bernardo do Campo. São eles TC. 233.651-94/2007, para urbanização do Núcleo Vila Esperança
e o TC. 229.052-61/2009, que nha como objeto a construção do Conjunto Habitacional Três
Marias e a urbanização dos núcleos Sítio Bom Jesus/Alvarenga Peixoto, Divineia Pantanal e
Jardim Ipê.
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Urbanização de favelas na Região do ABC...
(12) Em alguns casos, essas redes foram ou estão sendo refeitas em razão de haver interferência com
outras obras ou para melhorar a qualidade da prestação dos serviços.
(13) São muito peculiares as situações de subs tuição total de moradias existentes novas. Esse po
de intervenção foi observado apenas nos municípios de São Bernardo do Campo e em Diadema.
No caso dos assentamentos denominados Pau do Café em Diadema e Jardim Esmeralda em
São Bernardo do Campo, as habitações existentes eram muito precárias. No caso do núcleo
Jóquei, em Diadema, tratava-se de uma pequena área de risco localizada em um complexo
de favelas, e o recurso do PAC foi des nado apenas para remoção das famílias dessa área que
foram levadas para um conjunto habitacional localizado no complexo que teve a maior parte de
sua área consolidada. A situação mais singular talvez seja a do assentamento Silvina Oleoduto
no município de São Bernardo do Campo. A favela localizava-se entre a rodovia Anchieta e o
Oleoduto da Transpetro, configurando-se também como área de risco. A solução encontrada foi
remover as famílias para conjunto habitacional localizado no entorno.
(14) São aqui considerados o valor total de inves mento dos Termos de Compromisso do PAC-UAP no
ABC, dividido pelo número total de moradores dos assentamentos beneficiados pelo programa,
fornecidos pelas Prefeituras e CDHU.
(15) Valores aproximados.
(16) Afirmação baseada nos resultados da pesquisa “Urbanização de Assentamentos precários no
âmbito do Programa de Aceleração do Crescimento na Região do ABC”.
(17) Ver Bueno (2000); Denaldi (2003); More
et al. (2009).
(18) Informações fornecidas na oficina realizada em 1º de setembro de 2013, na UFABC – Campus
de Santo André, para apresentar e debater os primeiros resultados na visão panorâmica dos
empreendimentos do PAC-UAP na Região do ABC. Par ciparam dessa oficina os representantes
dos municípios estudados, Caixa Econômica Federal e Companhia de Desenvolvimento
Habitacional e Urbano.
(19) De acordo com o IBGE (2010), a Região do ABC tem cerca de 115 mil domicílios em assentamentos
precários (setores subnormais) e, de acordo com informações municipais registradas nos PLHIS,
211 mil domicílios, e cerca de 138 mil são assentamentos “irregulares e precários” e 73 mil
apenas “irregulares”.
(20) A informação produzida tem como fonte os PLHIS elaborados pelos municípios de São Bernardo
do Campo (2010), Santo André (2006; 2011), Mauá (2011) e Diadema (2009) elaborados em
diferentes períodos. O dado pode estar subes mado.
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Rosana Denaldi et al.
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Texto recebido em 12/jun/2015
Texto aprovado em 7/nov/2015
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¿Y el título para cuándo? El proceso
de regularización del barrio Virgen Misionera
Waiting for the deeds. The regularization process
of the Virgen Misionera Neighbourhood
Tomás Alejandro Guevara
Resumen
Este artículo presenta resultados preliminares de
un trabajo de investigación en curso sobre políticas
habitacionales y urbanas en San Carlos de Bariloche.
Reconstruye el proceso de regularización del barrio
popular de origen informal Virgen Misionera. Los
habitantes están arraigados en el lugar y el barrio
está completamente consolidado, pero todavía
persisten problemas y conflictos vinculados a
la titularidad de las tierras con los propietarios
originales y emergen conflictos vinculados a la
consolidación del barrio. En un contexto donde los
precios de los terrenos se dispararon en los últimos
quince años, el artículo reflexiona sobre los límites
de las estrategias de regularización utilizadas en
nuestro país y plantea la necesidad de reformular
el contenido y el alcance del derecho de propiedad.
Palabras clave: regularización; lote abandonado;
derecho de propiedad; asentamientos informales;
políticas habitacionales.
Abstract
This paper presents preliminary results of an
ongoing research on housing and urban policies in
San Carlos de Bariloche, Argentina. It reviews the
regularization process of an informal settlement
called Virgen Misionera. The neighborhood and
its population are fully consolidated, but there
are still problems and conflicts related to the
ownership of land plots and, thus, conflicts related
to the urban consolidation of the settlement
emerge. In a context where land prices soared
in the last fifteen years, the article reflects on
the limits of the regularization strategies used in
Argentina and raises the need to reformulate the
content and scope of property right.
Keywords : regularization; abandoned plot;
property right; informal settlements; housing
policies.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 119-144, abr 2016
hƩp://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3506
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Tomás Alejandro Guevara
Introducción
Jugó un rol central en la organización
de base de los habitantes y en el impulso del
Esta ponencia presenta resultados preliminares
proceso de regularización el Equipo Pastoral
de un trabajo de investigación en curso sobre
de Tierras (EPT) ligado a la labor pastoral
políticas habitacionales y urbanas y procesos
del Cura Juvenal Curulef y posteriormente
de producción del hábitat en la ciudad de San
incorporado como uno de los ejes de trabajo
Carlos de Bariloche. Reconstruye el proceso
de la Fundación Gente Nueva, que surgió
de regularización protagonizado por un barrio
como un desprendimiento de dicho trabajo
popular de origen informal en San Carlos
pastoral. Para llevar adelante la regularización
de Bariloche, denominado Virgen Misionera,
del barrio, el EPT apeló a diferentes estrategias,
ubicado a la altura del kilómetro 7,5 de la
entre otras: compra directa a los propietarios,
Avenida Pioneros, en la Delegación Cerro Otto
impulso a juicios de prescripción adquisitiva
de la zona oeste del ejido urbano de la ciudad.
(usucapión), articulación con el Estado para
Junto a Barrio Parque Villa Llanquihue en el
negociar condonación de deudas de otros
km 24,5 de la Avenida Exequiel Bustillo, Don
inmuebles a cambio de la propiedad de lotes
Bosco en el km 19 de la misma avenida, ambos
ocupados, gestión de recursos de programas
de la Delegación Lago Moreno, y otros pocos
nacionales de regularización de nivel
más, son de los escasos barrios populares que
nacional y, recientemente, implementación
rompen con el profundo patrón de segregación
de la operatoria de regularización dominial
socioresidencial imperante en la ciudad, que
establecida por la Ley Nacional 24.374 de
relega a la zona denominada “El Alto” en la
1994 conocida como “Pierri”. Los habitantes
Delegación Sur y a la zona del arroyo Ñireco
están arraigados en el lugar y el barrio está
a los barrios populares y a los conjuntos de
completamente consolidado en términos
viviendas de interés social.
urbanísticos, pero todavía persisten problemas
Si bien los habitantes más antiguos del
y conflictos vinculados a la titularidad de las
barrio, que vivían de una forma semi rural con
tierras con los propietarios originales, los cuales
un uso extensivo de la tierra, criando animales
reclaman sus derechos de propiedad sobre
y aves de corral, se localizaron en la zona hace
inmuebles que en muchos casos abandonaron
más de 60 años, antes de que se loteara gran
durante años.
parte de la tierra suburbana de la zona oeste,
También emergen nuevos conflictos
el proceso de regularización se inició recién
vinculados a la consolidación y densificación
décadas después, durante los años ochenta
del barrio, como son: la presión demográfica
y aún hoy se encuentra inconcluso. Durante
de las segundas y terceras generaciones de
estos años, el barrio alternó momentos de alta
habitantes que demandan acceso al suelo
y baja en la conflictividad vinculada a la tierra,
para construir sus viviendas, o lo hacen en el
enfrentando periódicamente amenazadas
mismo lote que sus padres, sobrecargando la
de desalojo y soportando la animosidad
infraestructura y el espacio, que se encuentra
y estigmatización de una gran parte de la
en un entorno natural delicado; la calidad del
sociedad barilochense.
espacio público y el equipamiento, por los
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¿Y el título para cuándo?
conflictos que suscitan intentos de ocupación
Social (IMTVHS) de San Carlos de Bariloche para
de espacios que cumplen una función
la aplicación de la operatoria en la ciudad, que
comunitaria, como ocurrió con la cancha
se puso en marcha en 2014 en algunos barrios,
de fútbol o la plaza; la oposición frente a
Virgen Misionera entre ellos. Si bien existe una
la posibilidad de nuevas tomas de terrenos,
enorme expectativa sobre la capacidad de esta
estigmatizando así los viejos ocupantes a los
operatoria para saldar una histórica deuda
nuevos ocupantes; conflictos con comunidades
con miles de habitantes de barrios populares
de pueblo originarios que demandan
de origen informal de Bariloche, una mirada
restitución de tierras que le pertenecerían a sus
más desapasionada muestra que existe una
comunidades, etc.
proporción importante de estos terrenos que
La relativa abundancia de tierra de
no podrán ser regularizados por esta vía, ya
expansión en la ciudad y el abandono por
sea por la oposición legal de propietarios o
parte de los propietarios permitió durante años
herederos, por la fecha de la ocupación de
que los procesos de regularización pudieran
los mismos, o porque por sus características
avanzar de forma más o menos exitosa. No
(tamaño, valuación fiscal, etc.) no pueden
obstante, en los últimos quince años, en un
acogerse al mencionado régimen. Es previsible
contexto donde los precios de los terrenos
entonces que la problemática persista y se
se dispararon, especialmente después de la
hace necesario buscar otras alternativas de
devaluación de 2002, empezaron a aparecer
resolución de conflictos.
nuevos conflictos vinculados a la voluntad
El presente artículo reflexiona sobre los
de propietarios o herederos de recuperar la
límites de las estrategias de regularización
posesión de sus terrenos, que ahora tienen un
dominial utilizadas en nuestro país, a partir
extraordinario valor. El desfasaje de los precios
del caso del barrio Virgen Misionera de San
de los terrenos con el ingreso promedio de
Carlos de Bariloche, y plantea la necesidad
los sectores populares, incluso medios, vuelve
de reformular el contenido y el alcance del
prácticamente imposible cualquier arreglo de
derecho de propiedad, en vistas a poner de
tipo económico que posibilite la regularización
relieve su función social, su carácter de bien de
de la posesión.
uso antes que de cambio y el derecho humano
En este marco, en 2000, el Gobierno
básico fundamental a su acceso.
Provincial adhirió a través de la Ley Provincial
3.396 al régimen de regularización de
ocupaciones establecido por la Ley Nacional
24.374. Lo mismo hizo la Municipalidad de San
Carlos de Bariloche, a través de la Ordenanza
El proceso de urbanización
de Bariloche
1.283 de 2003. Pero recién a fines de 2013,
la autoridad de aplicación, el Instituto de
El proceso de urbanización de la ciudad de San
Planeamiento y Promoción de la Vivienda de Río
Carlos de Bariloche comparte algunos rasgos
Negro (IPPV), firmó un convenio con el Instituto
con muchas otras ciudades de perfil turístico
Municipal de Tierras y Vivienda para el Hábitat
en nuestro país.1 La expansión urbana de la
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Tomás Alejandro Guevara
ciudad estuvo estrechamente vinculada a la
costo de mantener funcionando la sociedad era
masificación del turismo, especialmente entre
mayor que el beneficio marginal de terminar
las décadas de 1940 y 1970. Algunos de los
de vender los lotes remanentes (Paolinelli,
loteos más viejos incluso datan de la década
Guevara y Oglietti, 2014). Por otro lado, la
de 1930, cuando la gestión de la Dirección de
comercialización se hacía muchas veces en los
Parques Nacionales, creada en 1934 por la Ley
grandes centros urbanos donde estaban los
12.103, impulsó la creación de villas turísticas
potenciales compradores de lotes en ciudades
para financiar obras de infraestructura que mo-
turísticas, los cuáles ni siquiera viajaban para
dernizarían la aldea de montaña. La llegada del
conocer la ubicación del mismo, lo cual sólo se
ferrocarril en 1934, la inauguración del aero-
explica por un contexto donde todavía la tierra
puerto en 1966 y la conectividad por ruta as-
tenía valores relativamente bajos en relación
faltada en 1968 fueron condiciones fundamen-
a los ingresos medios de la población y existía
tales de esta masificación. Durante esta etapa,
la posibilidad de pagar a plazos.2 En muchos
se produjo un proceso acelerado de loteo de
casos, también, los títulos de propiedad
las tierras adjudicadas en el período previo, sin
no estaban del todo saneados, existiendo
tener en cuenta la dotación de infraestructura,
numerosos casos donde se vendieron dos
la demanda habitacional local o criterios míni-
veces lo mismo por diferentes promotores,
mos de planificación urbana. Abaleron (2001)
se vendían propiedades con títulos falsos o
estima más de 3.900 hectáreas loteadas, prin-
imperfectos, etc. Pasaron muchos años antes
cipalmente en áreas boscosas. Esta política de
de que los propietarios fueran a tomar efectiva
laissez faire determinó una expansión acelera-
posesión del lote, a veces no lo hicieron nunca,
da del ejido urbano, de bajas densidades y bajo
o al menos nunca invirtieron en su desarrollo.
nivel de consolidación.
Como consecuencia de este proceso caótico
Así, tempranamente se subdividió una
y especulativo, en pocos años se lotearon
gran parte de las tierras disponibles para la
miles de hectáreas de suelo de expansión, sin
expansión urbana. La regulación era muy
ningún tipo de correlato con las necesidades
laxa en esa época, habilitaba la subdivisión
habitacionales de la ciudad, especialmente en
sin mayores requisitos que la agrimensura y
la zona oeste del ejido urbano. Entre 1960 y
la presentación de los planos, favoreciendo la
1980 se produce un crecimiento demográfico
subdivisión especulativa de tierras, desligada
acelerado de la ciudad, en gran medida
de las necesidades de desarrollo local. Este
explicado por la migración de población que
tipo de loteo significó enormes beneficios
era atraída por el desarrollo turístico: en 1980,
para los propietarios originales y para las
la población alcanzó los 51.268, convirtiéndose
sociedades comerciales que fueron surgiendo
en la ciudad más poblada de Río Negro. Si
para la subdivisión y comercialización de esta
bien la tasa de crecimiento demográfico se fue
tierra. De hecho, la inversión requerida era
reduciendo progresivamente, en 2010 registró
tan baja que en muchos casos la sociedad
algo más de 112.000 habitantes, lo que implicó
comercial se liquidaba antes de terminar de
casi multiplicar por cuatro la población al cabo
vender la totalidad de los lotes, porque el
de cuatro décadas, convirtiéndose en la tercera
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¿Y el título para cuándo?
Mapa 1 – Ejido Urbano de San Carlos de Bariloche
Fuente: Elaboración propia.
ciudad más poblada de la región patagónica.
esta expansión. Pese a esto, la existencia
No obstante, gran parte de esta población
de grandes emprendimientos turísticos a
se fue localizando en el eje de expansión sur,
lo largo del eje oeste, en la costa del Lago
donde se localizaron los barrios populares.
Nahuel Huapi -especialmente el Hotel Llao
Esta expansión tan acelerada y con un
Llao en el km 24,5 de la Avenida Bustillo
gran componente especulativo en el mercado
construido a fines de la década de 1930-
de suelo determinó muchos problemas en
determinó que fuera del interés del Estado
términos de la consolidación de la trama
la expansión de los servicios, favoreciendo
urbana. El primero de ellos, la dotación
la consolidación progresiva la trama urbana
de servicios públicos. Rápidamente, la
en espacios intersticiales. Como resultado,
extensión del ejido urbano aumento hasta
la Municipalidad de San Carlos de Bariloche
convertirse en uno de los más grandes del
tiene una limitación estructural para atender
país, con más de 27 mil hectáreas. Es sabido
de forma cabal la totalidad del ejido urbano
que el costo de las infraestructuras de red
bajo su jurisdicción. En algunas situaciones, lo
aumenta exponencialmente con la distancia.
propietarios ni siquiera se hicieron cargo de sus
Asimismo, cuando la densidad es muy
obligaciones fiscales, generando un problema
baja, se vuelve económicamente inviable
presupuestario importante para el gobierno
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Tomás Alejandro Guevara
local. La expansión urbana descontrolada
“34 hectáreas” producto de la relocalización
encarecía la prestación de servicios sin que
de al menos 7 barrios que se ubicaban a lo
siquiera aumentara de manera correspondiente
largo de la costa del Lago (Pérez, 2004).
la base fiscal. Esto fue paliado parcialmente
por medio de la organización autogestiva
de los vecinos de los barrios que fueron
generando soluciones para la dotación de agua
potable, tanques comunitarios, empresas de
potabilización, tendido de cloacas y otras obras
Breve reseña histórica
del proceso de urbanización
del barrio
de infraestructura. Estos procesos organizativos
fueron el germen de la institucionalización
No es objeto de este artículo hacer la histo-
a fines de la década de 1980 de las actuales
ria del barrio Virgen Misionera. 3 No obstan-
Juntas Vecinales, que ya son más de cien en
te, es fundamental tener en cuenta algunas
toda la ciudad.
coordenadas históricas básicas para com-
Uno de los principales problemas que
generó el proceso de urbanización descripto
prender el derrotero del proceso de urbanización en el barrio.
tiene que ver con la existencia durante años,
Las tierras en las que se asienta eran
incluso décadas, de lotes baldíos que no eran
parte de la herencia de Francisco Pascasio
construidos por sus dueños. Incluso, una parte
Moreno, Perito de la parte de Argentina en el
no poco significativa de estos lotes estaban
conflicto limítrofe entre la Argentina y Chile que
en notorio estado de abandono, sin cerco,
siguió a la firma del tratado en 1881. Por los
sin desmalezar (Paolinelli, Guevara y Oglietti,
servicios prestados a la Nación, Moreno recibió
2014). Estos lotes abandonados fueron objeto
grandes cantidades de tierras en la región. Una
de ocupaciones en muchos casos, antes o
parte importante de esa herencia fue donada
después de ser loteados, dando origen a barrios
para constituir lo que hoy es el Parque Nacional
enteros a lo largo del ejido de Bariloche.
Nahuel Huapi, el resto quedó como parte de
Algunos de estos barrios emprendieron
procesos de regularización dominial y
su herencia particular, incluyendo estas tierras
donde se localiza el barrio.
urbanística, en general, por iniciativa de la
Los primeros pobladores datan al
población local y de sus organizaciones de
menos de la década de 1940, es decir, previo
base. La municipalidad no tuvo un accionar
al proceso de subdivisión de gran parte de la
relevante en esta materia durante muchos
tierra periférica a Bariloche. La población allí
años. En el mejor de los casos, optó por la
asentada vivía en condiciones semi-rurales,
omisión. En el peor de los casos, cuando los
prácticamente sin ningún tipo de delimitación
barrios se localizaban en zonas que eran
de las propiedades (cercos, alambrados),
consideradas “no apropiadas” para la imagen
combinando la vivienda con usos productivos
de ciudad turística que se quería promover,
destinados al autoabastecimiento (ganado
se buscó la relocalización compulsiva, como
de pastoreo, animales de corral, etc.). Esta
ocurrió por ejemplo con el barrio denominado
situación de origen tiene implicancias
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¿Y el título para cuándo?
Mapa 2 – Plano catastral Barrio Virgen Misionera
Fuente: Elaboración propia.
importantes para entender los reclamos de
como “ocupaciones negativas”, donde “se les
la población allí asentada para mantener su
superpone una plantilla urbana” a la población
residencia en el lugar. Concretamente, una
preexistente. 4 Este caso no fue privativo
parte de esta población ya vivía en la zona
de Virgen Misionera, sino que situaciones
antes de que el loteo en cuestión se realizara,
similares se vivieron en Villa Don Bosco, Alto
es decir, antes de que los lotes urbanos
Campanario, Villa Llanquihue e incluso Melipal.
existieran legalmente como tales. De hecho,
Las características del barrio, vinculadas
en muchos casos, ha sido posible reconstruir
al origen popular de sus habitantes y la
a partir de testimonios que la subdivisión
localización del mismo, cuestionaba el patrón
y venta de los lotes se hizo obviando que ya
vigente de segregación socioeconómica
había población radicada en el mismo, cuestión
que establecía que la zona oeste estuviera
que el propietario adquiriente del lote nunca
destinada a sectores medios-altos y a las
conoció al momento de comprar la propiedad.
actividades vinculadas al turismo, lo que
Esto fue caracterizado por un entrevistado
generó rápidamente situaciones conflictivas.
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Tomás Alejandro Guevara
La población del barrio era estigmatizada en
La organización comunitaria en el barrio
los discursos y las referencias de la población,
tiene uno de sus hitos en la llegada del cura
especialmente por parte de los habitantes
Juvenal Curulef a San Carlos de Bariloche en la
de barrios lindantes como Pinar del Lago o
década de 1980.6 Comenzó su trabajo pastoral
Pinar de Festa. Pese a estas representaciones
en la Parroquia de Virgen de las Nieves en
negativas, son innegables y numerosos los
1981, pero al poco tiempo fue trasladado a
vínculos funcionales, especialmente en materia
la recientemente creada Parroquia de Virgen
de mercado de trabajo para cubrir actividades
Misionera, donde concentraría su actividad
de servicios, mantenimiento y reparaciones,
pastoral hasta su fallecimiento en 2014. En
que se fueron estableciendo a través de los
torno al cura párroco se comenzó a congregar
años entre estos barrios de origen popular
un grupo de vecinos de Bariloche, algunos que
ubicados en el eje oeste que colindan con
vivían por la zona y otros que no, otros que
barrios de sectores socioeconómicos medios
trabajaban en el Centro Atómico Bariloche, que
5
y altos. Esta interdependencia lo diferencia
comenzaron a desarrollar tareas comunitarias
situaciones más conflictivas, de menor
de base, en línea con las posturas al interior de
interrelación, que pueden ser interpretadas más
la Iglesia resultantes del Concilio Vaticano II,
cabalmente en clave de “resistencia”, como el
la Teología de la Liberación, la proliferación de
caso del Barrio 10 de Diciembre, analizados en
la Comunidades Eclesiales de Base, etc. En el
otras oportunidades (Guevara y Núñez, 2014 y
caso de Río Negro, gran parte de esta actividad
Núñez y Guevara, 2014). Lo cual no quita que
está ligada a la figura de Miguel Hesayne,
no existiera un conflicto explícito en términos
obispo de la diócesis de Viedma desde 1975
de apropiación y uso del espacio urbano en la
y con el impulso a la realización del Primer
ciudad. La situación de no legitimación de la
Sínodo Pastoral de la diócesis de Viedma en
permanencia de los ocupantes en ese lugar,
los años 1983 y 1984. Este grupo pastoral
en un contexto de gobiernos autoritarios,
comenzó a desarrollar tareas comunitarias de
dictaduras entre 1966-1973 y 1976-1983,
diversa índole, donde se destacaron las tareas
generaron presiones en pos del desalojo del
educativas que dieron origen a varias escuelas
barrio en virtud de su condición de ocupantes.
de gestión social con el correr de los años y a la
Como consecuencia, rápidamente empezó a
conformación en 1989 de la Fundación Gente
surgir algún tipo de organización barrial que
Nueva, una organización no gubernamental
buscaba dar respuesta a las demandas de los
que trabaja con diferentes problemáticas
habitantes del barrio en pos de la seguridad
sociales. 7 La acción de este grupo estaba
de tenencia de sus viviendas. Pero la no
claramente orientada a la inserción territorial
legitimación también persistió en el contexto
en un entorno barrial específico como forma de
de recuperación democrática y tuvo que ser
encarar el trabajo pastoral.8
objeto de disputa y construcción paciente y
Rápidamente la labor educativa hizo
sistemática por parte de los habitantes del
emerger también demandas vinculadas a las
barrio y sus organizaciones de base.
necesidades habitacionales de las familias
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¿Y el título para cuándo?
ahí asentadas y de familias que empezaban a
(EPT) que jugó un rol muy relevante en la
llegar a la zona buscando donde asentarse. En
ocupación concertada del barrio y en el impulso
la década de 1970, por ejemplo, fue importante
a los procesos de regularización que se iniciaron
la migración de origen chilena, especialmente
desde la década de 1980. Posteriormente,
después del golpe militar que derrocó a
cuando se conforma en la década de 1980 la
Salvador Allende. También era importante la
Fundación Gente Nueva, el EPT pasó a formar
llegada de población de comunidades rurales
parte de la misma, como uno de sus principales
aledañas, expulsadas por la crisis sostenida
ejes de acción, si bien mantuvo una relación
que atravesaba y sigue atravesando la que era
estrecha con la Parroquia de Curulef.
la principal actividad económica, la ganadería
Desde la creación de la Fundación Gente
ovina. Al calor de este proceso de poblamiento
Nueva, el proceso de urbanización del barrio
se fueron conformando asambleas en las
siguió su derrotero habitual de los barrios
escuelas como lugar de reunión, donde la
populares de: a. expansión, en la medida
problemática del acceso al suelo era una
que se iban ocupando los lotes vacantes; b.
cuestión acuciante. Conceptualizaba su trabajo
consolidación, con el mejoramiento progresivo
en términos de propiciar el paso de “lo legítimo
de las viviendas por parte de las familias,
a lo legal”, apostando a las ventajas positivas
la concreción de las redes de servicios y
de encuadrar legalmente la tenencia de la tierra
equipamiento colectivo; y c. densificación, con
de los habitantes del barrio. En el documento
la temprana aparición de segundas, terceras
“La tierra, un bien de todos. Encuadre eclesial”
y más viviendas en algunos lotes, tanto para
de Curulef (c. 1992), el párroco identifica
responder a la demanda habitacional de
como una de las causas estructurales de la
la propia familia, como estrategia para la
pobreza en América Latina la falta de acceso a
obtención de una renta a través del alquiler
la tierra rural y urbana, heredada del modelo
informal de las mismas (Di Virgilio, Arqueros
de explotación colonial. De hecho, se plantea
y Guevara, 2011). Asimismo, la dotación
cabalmente que el acceso a la tierra es
de servicios e infraestructura del barrio fue
“signo de liberación”. En el mismo sentido,
extendiéndose y completándose a lo largo
señala el camino a transitar el desarrollo de
de los años, con un fuerte componente de
intervenciones territoriales concretas por
organización comunitaria, como sucedió en
parte de los grupos pastorales, a través de las
gran parte de la ciudad. En la actualidad el
comunidades eclesiales de base, planteando
barrio no cuenta todavía con la red de cloacas.
una iglesia “al servicio de las organizaciones
En 2011, según un relevamiento realizado por
populares”, alineándose con las doctrina social
el EPT, casi el 37% de los hogares identificaba
de la iglesia y con las orientaciones derivadas
como la primera necesidad del barrio la
del Concilio Vaticano II (1962-1965) y de las
extensión de la red de cloacas,9 seguida de las
reuniones de Medellín (1968) y Puebla (1979).
tareas de mantenimiento y pavimentación de
A raíz de esta creciente demanda
ligada a la problemática de la tierra terminó
En sus comienzos, el rol del EPT se
conformándose un Equipo Pastoral de Tierras
limitó a organizar y viabilizar las ocupaciones
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las arterias viales (30%).
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de lotes baldíos, privilegiando aquellos que
irregular sobre la necesidad de regularizar de
se encontraran en condiciones de abandono,
alguna forma la tenencia de los mismos. Es
especialmente aquellos lotes que tenían
necesario aclarar que si bien desde que se
deuda acumulada de impuestos y tasas con la
conforma el EPT el precio de los lotes no cesó
Provincia y el Municipio. Para ello, fue central
de aumentar, todavía durante la década de
el desarrollo de diferentes estrategias para
1980 e incluso durante la década de 1990 los
ir “limpiando” los terrenos que podían ser
precios del mercado inmobiliario guardaban
ocupados o no. No obstante, como siempre
cierta proporción con el ingreso medio de los
aclaran los entrevistados, la ocupación siempre
habitantes de la ciudad, lo que no los volvía
fue una decisión individual del ocupante, “por
completamente inaccesibles. De hecho, en gran
su cuenta y cargo”, según la expresión de
medida el problema era de financiamiento, por
un miembro del equipo. El EPT se limitaba a
lo que el EPT funcionó muchas veces como
asesorarlo en esa decisión para tratar de evitar
un intermediario que viabilizaba las compras
la mayor cantidad de problemas que pudieran
por parte de los ocupantes a los propietarios.
surgir de esta situación y a servir de mediador
Incluso el EPT adquirió lotes que no estaban
frente a los propietarios en los casos en que
ocupados y los fue adjudicando en procesos
estos podían ser encontrados. Pese a esto, toda
asamblearios en función de una lista de espera
la labor realizada en torno al grupo pastoral
que se iba conformando. No obstante, desde
liderado por el cura Curulef en el barrio le
la devaluación de 2002, la aceleración de los
valió la oposición de muchos sectores sociales
precios del mercado inmobiliario generó un
del barrio y de la ciudad, que lo vinculaban
desfasaje por completo en estas variables, que
estrechamente a los sectores populares como
explica en gran medida el renovado interés de
una forma de estigmatizarlo, mientras que el
los propietarios en años recientes por recuperar
cura hacía de esto una bandera y su principal
sus propiedades y la casi total imposibilidad por
virtud. Lo que se planteaba era un conflicto
parte de los ocupantes de negociar condiciones
social en torno de la apropiación y el uso
de compraventa accesibles económicamente
del espacio urbano por parte de diferentes
en función de sus ingresos.
sectores sociales y la legitimidad de cada uno
El EPT se dio varias estrategias para
para localizarse en determinados puntos de la
propiciar la regularización dominial de los lotes
ciudad (Herzer, Gil y de Anso, 2012).
ocupados durante las primeras dos décadas
Durante la década de 1980 y 1990
de su funcionamiento. En general, su rol se
comenzó el trabajo orientado a regularizar
limitó al de intermediadora y organizadora
las situaciones de ocupaciones de hecho. En
de las demandas. Básicamente, se planteaba
primer lugar, porque empezaron a aparecer
intermediar en una negociación directa con el
propietarios registrales de los lotes ocupados
dueño, en pos de habilitar la compra del lote
que querían recuperar la posesión de los lotes.
por parte de los ocupantes. Es necesario tener
En segundo lugar, porque la aparición de estos
en cuenta que dado el perfil social del EPT,
propietarios comenzó a generar la inquietud
con gran cantidad de profesionales, el mismo
del resto de familias en situación de ocupación
tenía mayor capacidad para movilizar redes
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y recursos (Di Virgilio, 2011) que facilitaran
que permitió fortalecer la legitimidad en el
tanto la relación con las diferentes instancias
barrio. Lo mismo sucedió con muchas otras
del poder ejecutivo, pero también del poder
organizaciones que fueron naciendo al calor
judicial, acceso a escribanos, abogados, etc.
del proceso de organización comunitaria que
La respuesta por parte de los propietarios
tenía como una de sus referencias fuertes a
fueron muy variables. En algún caso, el EPT
la parroquia, como el Club Social y Deportivo
llegó a conseguir la cesión sin cargo del lote
Arco Iris o la radio comunitaria. La misma
por parte del propietario, cuando este percibía
heterogeneidad puede encontrarse entre las
que la recuperación era inviable. En otros
diferentes generaciones de ocupantes, llegando
casos, el EPT compraba lotes que después eran
al extremo de que el EPT, según testimonios de
revendidos con facilidades a los ocupantes,
sus miembros, reciba en la actualidad críticas
oficiando de intermediador. A veces, se limitaba
de algunos habitantes de larga data por no
a servir de mediador en las negociaciones que
haber reservado tierra para sus hijos y nietos y
se hacían entre privados.
haberla cedido a gente de afuera del barrio, con
Las respuestas de los mismos vecinos del
una mención particular para con los migrantes
barrio también fueron variables. Fue marcada
chilenos recientes, mostrando algunos de los
la crítica y oposición de los vecinos “legales”,
clivajes conflictos dentro del grupo social que
es decir, aquellos que contaban con los títulos
conforma el barrio.
de propiedad en regla. Este sector estuvo
No obstante este rol de mediador y
durante mucho tiempo nucleado alrededor
organizador, la labor del EPT nunca descuidó la
de la Junta Vecinal Virgen Misionera y fue un
interpelación a los diferentes niveles del Estado
activo opositor a la política de regularización
y en numerosas oportunidades cuestionó
impulsada por el EPT. Durante años fue uno
la orientación de las políticas públicas que
de los principales actores que propició la
no daban cuenta de manera cabal de la
actuación legal de los propietarios en pos
problemática acuciante del acceso al suelo.
del desalojo de ocupantes. Incluso llegaba al
Tampoco partían de un diagnóstico inocente
extremo de ocuparse de contactarlos cuando
de la problemática, sino que no dudaban en
vivían en otras localidades y ofrecerse a ser
señalar el carácter estructural del problema
custodio de los mismos en su ausencia, según
habitacional en la sociedad barilochense y
los testimonios. De hecho, una entrevistada
que afectaba de manera predominante a los
relató concretamente cómo el Municipio
sectores más vulnerables.
había impulsado durante la década de
En la actualidad, de un total de alrededor
1990 la conformación de la Junta Vecinal
de 570 lotes identificados catastralmente en
Virgen Misionera en oposición al proceso de
el barrio, prácticamente la mitad de los lotes
organización de base del barrio, promoviendo
(42%) han recibido algún tipo de intervención
su estigmatización y desalojo.10 En los últimos
por parte del EPT (ver Tabla 1).11 De este total,
años, no obstante, ante un cambio en la
sólo 25 han sido finalmente escriturados
conducción de la entidad, la Junta Vecinal jugó
a nombre de sus actuales ocupantes. Este
un rol más positivo y favorable al proceso,
porcentaje tan reducido de regularización
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dominial definitiva, después de más de 25 años
Dentro del universo de lotes ocupados,
de intervención por parte de la organización,
había un conjunto de alrededor de 50 lotes
es un primer indicador que nos muestra de
que eran propiedad de la firma El Sol S.A., cuyo
la complejidad y los obstáculos jurídico-
principal accionista era Vinelli, un conocido
institucionales con los que se enfrente este
loteador y agente inmobiliario del país, con
tipo proceso.
gran actuación en la ciudad de Bariloche y en la
Existe un total de 125 lotes que han
costa atlántica de Buenos Aires. Este conjunto
iniciado o podrían iniciar el trámite de
de lotes requirió de una negociación especial,
regularización previsto por la Ley Pierri
por la concentración de la propiedad en un
(mientras no se encuentren incompatibilidades
sólo propietario, lo cual permitía solucionar el
adicionales), lo que representa un universo de
problema de decenas de familias de una sola
180 hogares; mientras que 24 están excluidos
vez. Esto permitió ordenar la negociación, pero
de la misma de entrada porque su ocupación
no por ello la hizo más fácil, porque se trataba
data de una fecha posterior a 2006, una de
de un experimentado agente inmobiliario. La
las restricciones que fija la Ley 3.396. Algo
Ordenanza 1120-CM-2001 finalmente aprobó
más de 50 lotes están en condiciones de ser
un convenio de compensación de deudas
escriturados, ya sea por tener boleto de compra
municipales con la firma El Sol S.A. Por este
venta o por estar enmarcado en la operatoria
convenio, el Municipio adquirió la propiedad de
prevista por la Ordenanza 1120-CM-2001.
51 lotes que fueron posteriormente vendidos
Tabla 1 – Universo de actuación del EPT, estado de situación
y proyección de trabajo
N
%
Cantidad de lotes en catastro
569
100,0
Cantidad de lotes con intervención EPT
239
42,0
Lotes que podrían iniciar trámite Pierri
87
15,3
Lotes para escriturar Ordenanza 1120-CM-01
39
6,9
Lotes que iniciaron trámite Pierri
38
6,7
Lotes escriturados
25
4,4
Lotes ocupados recientemente (excluidos Pierri)
24
4,2
Lotes en condiciones de escriturar
13
2,3
Lotes para prescripción administrativa
6
1,1
Lotes con reclamos de comunidades originarias
4
0,7
Fuente: Elaboración propia del autor en base a datos del EPT.
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en cuotas a los ocupantes mediante boleto
Esta regularización era tanto dominial como
de compra-venta aprobado en la misma
urbana, pero la falta de presupuesto la dejó
ordenanza. Algunos de estos lotes ya fueron
limitada a lo dominial. México y Perú son
completamente pagados y están pendientes
dos de los países pioneros en la materia, ya
de escrituración (8 lotes), otros tienen cuotas
en la década de 1960 y 1970. Sin embargo,
pendientes (18 lotes, otros tienen problemas
la dinamización de estas políticas se produce
de mensura y/o subdivisión, pero muy pocos
durante la década de 1990, impulsadas por
han logrado escriturar definitivamente el
organismos internacionales que, influidos
lote (4 lotes). La operatoria, a su vez, era
por la tesis de Hernando de Soto (De Soto,
incorporada en la Ley Provincial 3.370 que
Ghersi y Ghibellini, 1986), entendieron que la
establece una escrituración de bajo costo para
regularización dominial tendría por sí misma
este tipo de situaciones.
efectos beneficiosos en las condiciones de vida
de la población, al promover su inserción social,
movilizar capitales y facilitar la integración
Políticas de regularización
de barrios populares de origen
informal en Bariloche12
en otras esferas tales como la laboral,
educativa, etc. No obstante, los procesos no
necesariamente han llegado a buen puerto y
tampoco han provocado los efectos previstos.
En numerosas situaciones que lograron ser
Clichevsky (2003), distingue tres tipos de polí-
regularizadas se desarrollaron nuevos procesos
ticas de regularización: 1) aquellas que tienen
de informalización asociados a problemas de
por objetivo sanear la situación dominial; 2)
sucesión, de subdivisión, de venta y/o alquiler
aquellas que tienen por objetivo sanear la si-
en el mercado inmobiliario informal (Ward et
tuación urbano-ambiental y 3) las integrales
al., 2011).
que articulan i. y ii. Según esta investigadora,
En la década de 1990 la situación de
las experiencias de políticas de regularización
la pobreza urbana con respecto al acceso
integral han sido escasas. Generalmente, las
al suelo se agrava notablemente. En este
políticas de regularización se implementaron
contex to, los procesos de reforma del
de manera desarticulada, siendo mucho más
Estado y de reestructuración económica que
extendidas las políticas de tipo i. Ello se debió a
caracterizaron a esta década impactaron
que este tipo de intervenciones es menos cos-
fuertemente en el funcionamiento del mercado
toso, tiene mayor visibilidad en términos políti-
de suelo urbano y generan cambios en las
cos y ha recibido una fuerte promoción de par-
políticas de regularización implementadas.
te de algunos organismos internacionales por
Desde entonces, el paradigma de políticas
sus supuestos efectos multiplicadores.
habitacionales se traslada de las políticas
Las políticas de regularización surgieron
de vivienda tradicional, a los lotes con
en la década de 1960 especialmente en aquellos
servicio y posteriormente a la legalización
países donde la normativa urbana muy rígida
y mejoramiento de barrios. Las políticas de
había generado situaciones de informalidad.
regularización dominial han avanzado mucho
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más sobre tierras públicas, que sobre tierras
nivel nacional, los pocos intentos de articular
privadas, donde el Estado debe primero
una política integral y universal fracasaron
expropiar o ser mediador en una negociación.
y se recayó una y otra vez en la sanción
En Argentina la regularización es un
de normativa específica para cada caso,
proceso reciente a nivel nacional, aunque
segmentando las soluciones y vulnerando
algunos municipios la han implementado
el principio de igualdad ante la ley de los
desde hace más de 20 años. La reforma
habitantes de las diferentes urbanizaciones
constitucional de 1994 no significó un avance
informales. Esta situación expresa, en parte,
en términos de acceso al suelo, a diferencia
un cierto consenso del sistema político acerca
de las últimas enmiendas en otros países de
de no cuestionar las relaciones de propiedad y
la región, con excepción de algunos derechos
el acceso a la tierra y a la vivienda, poniendo
vinculados a las problemáticas de los pueblos
a la propiedad privada por encima de los
13
originarios y ambientales. La Constitución
derechos sociales, económicos y culturales
de la República Argentina (CA) no establece
de las familias de menores ingresos y no
la función social de la propiedad, sino que en
reconociendo que existe una pugna entre dos
su artículo 17 establece la inviolabilidad de la
derechos legítimos que debe ser procesada por
propiedad privada. No obstante, el artículo 14
instituciones adecuadas.
bis establece el derecho a una vivienda digna
En el marco de la reforma del Estado y de
y el artículo 41 establece el derecho a un
la aplicación de las medidas de corte neoliberal
ambiente sano. Esta conjunción de derechos,
durante la década de 1990, se sancionaron
que muchas veces colisionan en realidad, debe
a l g u n a s n o r m a t i va s q u e h a b i l i t a r o n
ser resuelta políticamente por las autoridades
mecanismos de transferencia y regularización
competentes (tanto el legislativo como el
de tierras para el hábitat de sectores populares:
ejecutivo) o en última instancia por el poder
●
judicial. El Código Civil regula todo lo atinente
23.697 habilitó la posibilidad de que el Estado
a la propiedad de la tierra y de la vivienda,
Nacional transfiera a privados la propiedad
pero lo hace enmarcándose en los principios
de tierras fiscales que previamente fueran
constitucionales de la inviolabilidad de la
declaradas innecesarias para la gestión.
propiedad. Esto genera grandes obstáculos
●
en materia de regularización dominial,
1990, habilitó la transferencia de las tierras
porque en general tiende a primar el derecho
fiscales sobre las que se asentaban las villas
de propiedad irrestricto, por sobre otras
de emergencia de la Ciudad de Buenos Aires.
consideraciones, como la función social de
El Decreto 2.411 de 1990 extiende este mismo
la propiedad, que permitiría problematizar
criterio para todas las villas del Gran Buenos
En 1989, la Ley de Emergencia Económica nº
De manera similar, el Decreto 1.001 de
por qué un terreno apto para urbanizar está
Aires.
siendo retenido por su dueño, por poner sólo
●
un ejemplo.
tierras en propiedad del Estado Nacional que
Asimismo, la Ley 23.967 de 1991 transfiere
En este marco, es notoria la ausencia
se hallen ocupadas por viviendas permanentes
de una política de regularización unívoca a
y que sean innecesarias para el cumplimiento
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¿Y el título para cuándo?
de su gestión, a las Provincias y Municipios
regularización dominial “privada”, liderada
para su posterior venta o incorporación a
por una organización social de base territorial,
planes sociales de vivienda social.
y que se valió para ello del marco normativo
●
La Ley 24.374 de 1994, conocida como “Ley
Pierri” habilitó la transferencia de tierras
derechos reales, básicamente el Código Civil.
privadas a sus ocupantes reales. El objetivo
Sólo a partir del proceso que culminó
era acortar los plazos administrativos del
con la sanción de la Ley Provincial 3.396
instituto jurídico de la posesión veinteañal o
en 2000, se empezó a discutir una política
usucapión del Código Civil. Se constituye en
de regularización dominial sistemática en
una suerte de usucapión pero que cursa en
la provincia, independientemente de lo que
sede administrativa, que tiene las ventajas
pudieran haber hecho algunos gobiernos
de reducir los plazos de 20 a 10 años para
locales por su cuenta. Uno de los principales
el perfeccionamiento de las actas-escrituras
interesados en la implementación de esta
y reducir notablemente los costos en
operatoria era la Municipalidad de San Carlos
comparación con juicio de usucapión. Esto
de Bariloche (MSCB), donde se calculaban
no obsta para que, en caso de que exista
que había más de 10 mil lotes en condiciones
oposición por parte del propietario, el trámite
irregulares que podrían ser regularizados en
se suspenda y en todo caso deba resolverse
ese marco. 14 No obstante, la Ley Provincial
en sede judicial. El único costo que tiene la
3.396 nunca fue reglamentada, por lo que su
operatoria es una contribución del 1% del
implementación no avanzó durante más de 13
valor fiscal de los inmuebles, con la finalidad de
años.
dotar de financiamiento a la misma.
Ya en 2003 la Municipalidad de San
Otra de las normativas relevantes en
Carlos de Bariloche había sancionado la
términos de regularización es el instituto de
Ordenanza 1283 para adherir al régimen
la expropiación, que si bien fue originalmente
nacional, evidenciando una preocupación por
concebida para contar con suelo para la
la problemática. La situación habitacional
construcción de infraestructura y equipamiento
seguía recrudeciendo en la ciudad a lo largo de
colectivo, fue adaptándose también para su
la década.15 El encarecimiento de los precios
implementación en urbanizaciones informales.
de los terrenos, su desfasaje con respecto a
La expropiación garantiza la ocupación y
cualquier nivel de ingreso medios de sectores
elimina el riesgo de desalojo, sin contemplar
populares y medios, la falta de acceso a
necesariamente acciones tendientes a la
financiamiento y una por lo menos errática
regularización de la urbanización ni a la
política de suelo urbano municipal no hacían
transferencia del dominio.
más que restringir aún más el acceso al suelo
●
De esta forma, el caso que analizamos en
urbano para las mayorías, planteando en los
este trabajo es previo a la masificación de las
hechos la ocupación como uno de los únicos
políticas de regularización en nuestro país y no
canales de acceso efectivo.
contó en sus inicios prácticamente con ninguna
Si bien todavía en 2013 la implementación
intervención estatal, por lo que era una
de la regularización no había tenido avances
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que regula las relaciones entre privados y los
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Tomás Alejandro Guevara
sustanciales, la discusión impulsada desde
Vecinales (reconocidas legalmente o no) como
fines de la década de 1990 sobre la aplicación
Villa Llanquihue, Jamaica, Asociación Civil
de la Ley Pierri en Río Negro y en Bariloche
Norte-Sur, Pastoral Social, Pastoral Carcelaria,
sirvió para visibilizar una problemática que
Movimiento de Ocupantes e Inquilinos (MOI-
estaba completamente invisibilizada. Uno de
CTA), la Federación de Tierras y Viviendas,
los principales barrios que planteó la discusión
etc. Como parte de este proceso de impulso y
fue el Barrio Villa Llanquihue, ubicado en el km
discusión se originó gran parte de la normativa
23,5 de la Avenida Bustillo. Este barrio popular
existente en la materia, entre otras:
de origen informal había sido producto de la
●
ocupación progresiva de lotes abandonados
Viviendas para el Hábitat Social (Ordenanza
por sus propietarios, pese a lo cual habían
1815-CM-2008)
empezado a emerger amenazas de desalojo
●
por las demandas de algunos titulares
forma institucionalización de la Mesa de
registrales. En 2007, la Ordenanza 1704-CM-07
Organizaciones (Ordenanza 1595-CM-2006)
Creación del Instituto Municipal de Tierras y
Creación del Consejo Social de Tierras, como
Creación del Banco de Tierras (Ordenanza
creo el “Programa de Regularización dominial
●
Villa Llanquihue”, que constituye un “Paraguas
1594-CM-2006)
de seguridad Jurídica” 16 en relación a la
●
situación dominial del barrio. Este programa
(Ordenanza 1825-CM-2008).
Declaración de Emergencia Habitacional
contemplaba la declaración de utilidad pública
Incluso, en octubre de 2007 se organizó
y sujeto a expropiación del conjunto del
un Encuentro de Organizaciones de la tierra
barrio, como una forma de evitar amenazas
en la ciudad de San Carlos de Bariloche
de desalojo y garantizar la permanencia de
impulsado por organizaciones de este espacio
los habitantes, hasta tanto se llevara adelante
y se generaron articulaciones e intercambios
la efectiva regularización. En septiembre del
con organizaciones e instituciones provinciales
mismo año fue aprobada la ley Provincial 4237
y nacionales, como el Seminario Instrumentos
en la Legislatura de Río Negro, conocida como
Jurídicos de Regulación del Suelo en la Ciudad
“Ley Villa Llanquihue”.
Autónoma de Buenos Aires, realizado en mayo
Al calor del trabajo y las demandas de
cierto sector de la población y de su expresión
del 2007 en el Anexo Cámara de Diputados de
la Nación.
organizada en organizaciones de base se
Pero la puesta en marcha de la
fue conformando un espacio que impulsaba
operatoria de regularización seguía siendo
reivindicaciones en materia habitacional y que
una promesa incumplida. Recién el 29 de
buscaba incidir en la orientación de las políticas
noviembre de 2013 se firmó un convenio con
públicas implementadas. Este espacio de
el IPPV que habilitaba la implementación
carácter informal se conformó en 2006 con la
descentralizada de la operatoria por parte de la
denominación de “Mesa de Organizaciones”,
MSCB, como caso excepcional en la provincia.
donde participaban numerosas expresiones
La Resolución municipal 743 de 2014 dispuso
populares, entre otras: el EPT-FGN, Comisión
la implementación de la operatoria en función
de Tierras del Barrio 10 de Diciembre, Juntas
del convenio firmado, designando como
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¿Y el título para cuándo?
autoridad de aplicación al IMTVHS. Asimismo,
conformación de las “Casas de Tierras”; el
afectó a la operatoria a la Escribanía General
Municipio de San Carlos de Bariloche optó
de Gobierno Municipal, que se encarga de todo
por crear una Escribanía General de Gobierno
el trabajo notarial involucrado. La resolución
Municipal para llevar adelante todo el trabajo
fijó un rango de inmuebles a ser alcanzado por
notarial involucrado en la operatoria.
la operatoria de hasta $350.000 de valor fiscal
2
y hasta 1.500 m de superficie. Para garantizar
otros barrios para iniciar el proceso de
el financiamiento de la operatoria, se creaba un
regularización (Villa Llanquihue y Nahuel
Fondo Específico Afectado a la Regularización
Hue ) , pero habilitó a aquellos barrios
Dominial “Ley Pierri” y se establecía que para
q u e c o n t a r a n c o n o r g a n iz a c i o n e s d e
el cómputo de la contribución se tomara un
base interesadas a par ticipar en una
valor fiscal mínimo de $150.000 para aquellos
implementación descentralizada. Este fue el
inmuebles con valuaciones menores.
caso de Virgen Misionera, donde el EPT junto
Lo central para la implementación
con la Universidad Nacional de Río Negro, en
de la operatoria es lo que se denomina
el marco de un proyecto de extensión avalado
documentación probatoria. Es decir, es
por el IMTVHS, conformó un equipo para la
necesario aportar pruebas que certifiquen
aplicación descentralizada de la operatoria
la ocupación con anterioridad al primero de
que está actualmente en ejecución.
enero de 2006. Esta documentación puede ser
Si bien existe una gran expectativa
muy diversa: boleto de compraventa, cesión
en términos de que la Ley 24.374 permita
de derechos, recibo de compra de lote, cesión
saldar de una vez por todas gran parte de la
de derechos posesorios, certificados médicos,
problemática habitacional del barrio, incluso
certificados de registro escolar, certificados de
los cálculos más optimistas dan cuenta de
vacunación, etc. Lo central es que tiene que
que una proporción elevada de los casos no
figurar nombre del titular, fecha de emisión
podrán acogerse a este régimen, sea porque
del documento y domicilio en el lote que se
algún propietario o derechohabitente se
busca regularizar.
oponga, sea porque por algún motivo no
En 2014, finalmente se puso en marcha
cumpla con los requisitos establecidos por la
la operatoria. Al momento de escribir este
ley -como la fecha de ocupación, la existencia
trabajo se estaban finalizando los primeros
de documentación que pruebe de manera
expedientes para llevar adelante la confección
fehaciente dicha fecha, el tamaño de los lotes,
de las primeras ac tas- escrituras a ser
su valuación, etc. De ahí que la problemática
registradas. A diferencia del caso más conocido
habitacional será persistente en este y otros
de ejecución de la Ley, la Provincia de Buenos
barrios populares en tanto no se rediscuta de
Aires, donde requirió de un convenio con el
manera profunda el contenido y la función del
Colegio de Escribano de la Provincia para la
derecho de propiedad.
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El IMTVHS en un principio privilegió
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Tomás Alejandro Guevara
Situación actual:
conflictos, demandas
y posibles respuestas
la ciudad. A modo ilustrativo, puede verse
que en algunos de los principales canales de
oferta del mercado inmobiliario – Revista
ABC Sur – se pueden encontrar oferta de
terrenos de entre 800 y 1.000 m2 por un valor
La situación actual en Virgen Misionera podría
de alrededor de 30, 40 o 50 mil dólares en
caracterizarse como una “tensa calma”, dado
barrios linderos como Rancho Grande, de perfil
que la situación en general es de relativa
socioeconómico medio y medio-alto, o incluso
estabilidad y seguridad en la tenencia de los
dentro mismo del barrio, en aquellas porciones
terrenos. Esto puede observarse en el bajo
regularizadas. Las propiedades edificadas, por
nivel de menciones que tiene la regularización
su parte, se ofertan a precios de alrededor
dominial (papeles de los terrenos) en el
de U$S140.000, dependiendo de la cantidad
mencionado relevamiento de 2011, en pleno
de metros cubiertos y las características de
reclamo por la implementación de la operatoria
la construcción. En barrios populares como El
de regularización. No obstante, empiezan a
Frutillar, ubicado a la vera de la Ruta Nacional
haber casos de propietarios, o herederos de
40 – a 6 kilómetros – sobre el eje de expansión
propietarios, que reclaman los derechos sobre
sur de la ciudad, un terreno puede costar
los lotes. Incluso, existen casos donde los
entre U$S10 y 20 mil, según las características
propietarios o herederos pretenden desconocer
del mismo, aunque hayan también oferta
las negociaciones realizadas en el pasado
de terrenos en pesos, que rondan los $100
con intermediación del EPT, amparándose
o $150 por metro cuadrado. Es posible que
en formalidades legales. En virtud de ello,
en el mercado informal lotes de barrios sin
empiezan a aparecer causas de desalojo por
regularizar como Nahuel Hue, ubicado a la
parte de propietarios que quieren recuperar
misma altura de El Frutillar pero del otro lado
la posesión de los lotes. Existen al menos dos
de la RN40, sean un poco más accesibles, pero
casos avanzados de conflicto en sede judicial
conllevan un riesgo importante en materia de
que podrían terminar con la restitución de los
seguridad de la tenencia y no cuentan con
terrenos a sus titulares registrales, después de
tendido de red de gas natural.
años de posesión por parte de sus habitantes.
Por otro lado, la aplicación de la
La puesta en marcha de la operatoria de
operatoria de regularización dominial en
regularización ha renovado las expectativas de
curso no alcanza ni mucho menos a todos
dar respuesta definitiva a una vieja demanda,
los casos. Existen numerosas ocupaciones
pero no termina de estar claro qué nivel de
posteriores a 2006 que quedan excluidos de
concreción tendrán estas expectativas.
la operatoria, además de otras situaciones
Dijimos más arriba que desde 2002
que no pueden ser encuadradas dentro de
los precios de los terrenos no han cesado de
la ley (ocupación de más de un lote, lotes
subir. No obstante, no hay datos sistemáticos
de superficie elevada, alto valor fiscal del
fiables como para realizar un diagnóstico del
mismo, casos donde no se puede respaldar
mercado de suelo urbano y de inmuebles en
la posesión con documentación probatoria,
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¿Y el título para cuándo?
etc.). Además, la operatoria de regularización
este tipo de situaciones que es denominada
no obsta para que en caso de que aparezca
usucapión especial urbana. Este instrumento
oposición por parte del titular de dominio, la
establecido en la Constitución de 1988, fue
misma se frene y se deba resolver el conflicto
incorporado en la Ley 10.257 conocida como
en sede judicial, con altas probabilidades de
“Estatuto de la Ciudad”, promulgada en 2001.
terminar en favor del propietario si la posesión
Esta ley respondió a la incorporación en la
no alcanza los veinte años requeridos. La
Constitución de 1988 de un capítulo dedicado
Ley 24.374 sólo establece un procedimiento
a la política urbanística, donde se establecían:
abreviado y de carácter administrativo para
a) que la política de desarrollo urbanístico
la prescripción adquisitiva del dominio, pero
tiene por objeto ordenar el pleno desarrollo
no elimina el dominio del propietario original
de las funciones sociales de la ciudad y
en el caso de que este comparezca antes de
garantizar el bienestar de sus habitantes; b)
los 10 años, plazo en el cual se perfeccionan
la obligatoriedad de un Plan Director para
las actas-escrituradas labradas en el marco de
toda localidad mayor a los 20 mil habitantes;
implementación de la Ley.
c) la función social de la propiedad urbana; d)
En aquellos casos donde los veinte
el parcelamiento y edificación obligatoria en
años que establece el código civil para la
aquellas áreas definidas por el Plan Director;
realización de la usucapión ya se cumplieron
e) la usucapión especial urbana de parcelas
no parece haber mayores inconvenientes y
de hasta 250 m2 al cabo de cinco años. Este
difícilmente pueda revertirse la tenencia por
derecho sólo podía ser otorgado una única
parte del ocupante, independientemente de la
vez y para aquellos hogares que no poseyeran
titularidad del dominio, pero existen muchos
otra propiedad.
casos donde este plazo no se ha cumplido aún.
Este último instrumento fue recogido
Incluso pudiera darse la situación paradójica
en el Est atuto de la Ciudad entre los
de que el movimiento y difusión generado
instrumentos de la política urbana (Capítulo
por la implementación de la operatoria, que
II, Sección V). Se preveía la posibilidad de
incluye publicación de edictos y notificaciones
realizar incluso una usucapión colectiva
al domicilio de los titulares de dominio, genera
en aquellos c asos donde no pudieran
el efecto indeseado de “avivar” a muchos de
ser delimitados con claridad los terrenos
los propietarios que estaban completamente
ocupados, constituyendo un condominio
olvidados de su propiedad. Esto de hecho es
especial que es indivisible salvo resolución
uno de los temores concretos por parte de
favorable de dos tercios de los condóminos.
los habitantes, algunos de los cuales se han
Las resoluciones relativas a la administración
negado a iniciar el trámite de regularización
de este condominio especial se tomarán por
17
por ese motivo.
Existen otras formas de solución de
esta problemática que se han intentado en
sumatoria de posesiones con el poseedor
anterior mientras éstas fueran continuas.
países de la región. En Brasil, por ejemplo,
La usucapión especial urbana supera
se creó una figura para tratar de resolver
la visión civilista del derecho de propiedad,
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simple mayoría. Asimismo, se habilitaba la
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Tomás Alejandro Guevara
que lo consideraba absoluto e ilimitado,
popular. El problema no es tanto registral, de
perpetuo y exclusivo. Esto implicaba que tenía
titularidad de dominio, sino de seguridad de la
el derecho de no usar, no gozar y no disponer
tenencia. Es una cuestión de entender el suelo
de su propiedad, generando una carga sobre el
urbano en su faz de bien de uso antes que bien
conjunto de la comunidad y el Estado.
de cambio o patrimonial.
Otro de los instrumentos de la política
El centro del problema tiene que ver
urbana fijados en el Estatuto de la Ciudad,
con la concepción patrimonialista que nutre
orientado a la regularización de la tenencia del
nuestro ordenamiento jurídico, que interpreta
suelo urbano, es la creación de Zonas Especiales
al derecho de propiedad como un derecho
de Interés Social (ZEIS). Las Zeis fueron creadas
inviolable y perpetuo, sin importar la conducta
por la Ley Prezeis de 1987, modificada en 1995
del titular del dominio, es decir, sus obligaciones
y 1997. Sin embargo, la evidencia en Brasil
y no sólo sus derechos. Esta concepción
es contradictoria sobre la utilización de este
patrimonialista desconoce de manera flagrante
instrumento, porque según algunos autores la
la renuncia o el descuido por parte de muchos
declaración de una ZEIS no modifica la tenencia,
propietarios con respeto a su propiedad
ni modifica la percepción de la seguridad de la
urbana, lo que genera múltiples inconvenientes
tenencia (De Souza y Zetter, 2004). Si bien los
de tipo urbanístico, económico y social para
Zeis fueron importantes para eliminar el riesgo
el conjunto de la sociedad. Esto configura un
de desalojo de las ocupaciones, la definición de
acto de abandono por parte del propietario
Zeis sirvió para la introducción de mecanismos
que debe ser tomado como causal de extinción
del mercado formal en los asentamientos,
de dominio, para permitir la recuperación de
generando desplazamientos de la población
estos terrenos abandonados para el patrimonio
más vulnerable, al generarse expectativas de
del Estado, como se desarrolla en Paolinelli,
una ulterior legalización de la tenencia.
Guevara y Oglietti (2014).
Pese a la diversidad de instrumentos
El abandono puede, o debiera, ser
y experiencias, el acceso al suelo urbano y la
considerado un uso abusivo del derecho
seguridad de la tenencia son cuestiones todavía
de propiedad, por lo que es causal de
pendientes en los países de nuestra región, lo
extinción del dominio, sin requerir mayores
que redunda en una permanente – y cada vez
operatorias o acciones de regularización para
mayor – conflictividad social. Esta situación
el saneamiento del dominio. El artículo 2607
pone de manifiesto las limitaciones de las
CC18 establece que el dominio se pierde por
políticas de regularización implementadas y
abandono, aunque otro aún no se la hubiere
la necesidad de replantear los alcances y el
apropiado. Aunque otras normas del mismo
contenido del derecho de propiedad. Pareciera
código dan la idea de que el dominio es
que no existe política de regularización que
perpetuo, independientemente del ejercicio
sea suficiente en un contexto general de
que se realice de esto, mantener la ficción
restricción de acceso al suelo urbano, porque
de una “propiedad sin propietario” acarrea
la irregularidad vuelve a generarse de manera
perjuicios que la hacen incompatible con el
permanente, por la misma dinámica del hábitat
valor de justicia que debe ordenar y orientar
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¿Y el título para cuándo?
la actuación de la realización colectiva de la
Tanto la extinción del dominio por
comunidad (Paolinelli, Guevara y Oglietti,
abandono como la prescripción administrativa
2014 ). Esto se debe a que el abandono
son instrumentos que no estuvieron
determina el incumplimiento de la función
originalmente pensados para la regularización
social de la propiedad, incorporado a nuestro
de la tenencia en barrios populares de origen
ordenamiento jurídico a través de tratados
informal, sino que su origen está vinculado a
internacionales con rango constitucional desde
las obras de infraestructura civil por parte del
la reforma de 1994.19 Extinguido el dominio
Estado, como caminos, escuelas y otras. La
por abandono, queda allanado el camino
falta de instrumentos adecuados para atacar la
para que el Estado adquiera la propiedad del
informalidad urbana, ya que los existentes fijan
inmueble en virtud de su dominio eminente
plazos demasiado largos y costos superiores
sobre todas las cosas que se encuentran
a los que puede afrontar en general un hogar
situadas dentro de los límites territoriales de
de ingresos bajos, hacen que las alternativas
la República que carecen de dueño, en nuestro
disponibles no sean aplicables en la mayoría
caso, en virtud del abandono del propietario.
de los casos y los procesos de regularización
Posteriormente, se podría proceder a transferir
terminen naufragando, como suele ocurrir con
los terrenos a nombre de los ocupantes para
los juicios de usucapión.
regularizar la tenencia de forma definitiva,
Creemos que existe evidencia suficiente
ceder el uso en comodato individual o
por parte de la investigación académica y
colectivo, o cualquier otra forma de asegurar
de la implementación de políticas públicas
la tenencia del suelo para el desarrollo del
en materia de regularización de barrios
hábitat en condiciones dignas, eliminando
populares de origen informal, para reclamar
toda la conflictividad y burocracia involucrada
una reformulación del alcance y el contenido
en las políticas de regularización. Este criterio
del derecho de propiedad del suelo urbano
y no otro está en la base por ejemplo de la
y de los inmuebles, en virtud de garantizar
utilización de la prescripción administrativa,
el cumplimiento de la función social de la
establecida por la Ley 24.320, en la Provincia
propiedad y el derecho a la ciudad para los
de Buenos Aires para la regularización de
sectores populares.
asentamientos informales (Scattolini, 2011).
Para ello, se procedió a disponer la cesión de
los derechos posesorios de los ocupantes en
favor del Estado, que posteriormente inscribe
Conclusiones
los inmuebles y los vuelve a transferir hacia
sus ocupantes. No obstante, este mismo
Este artículo presentó resultados preliminares
instrumento podría utilizarse para anticiparse
de un trabajo de investigación en curso sobre
a la conformación de los asentamientos, de
políticas habitacionales y urbanas en San
manera que el Estado pudiera incorporar
Carlos de Bariloche. Se caracterizó el proceso
tierras para generar una política de acceso al
de urbanización de la ciudad, que presenta
suelo urbano de forma sostenida.
algunos rasgos comunes con otras ciudades de
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Tomás Alejandro Guevara
perfil turístico, especialmente aquellas donde
pueden ser encuadrados en el marco de dicha
el atractivo se basa en el medio ambiente
ley. También emergieron nuevos conflictos
privilegiado, entre otros la fuerte incidencia
vinculados a la consolidación y densificación
de la especulación inmobiliaria, la excesiva
del barrio.
expansión suburbana resultante y la presencia
La situación actual en Virgen Misionera
de un stock importante de propiedades
podría caracterizarse como una “tensa calma”,
abandonadas por sus propietarios que fueron
dado que la situación en general es de relativa
progresivamente ocupadas.
estabilidad y seguridad en la tenencia de los
En este marco, se reconstruyó el proceso
terrenos. La relativa abundancia de tierra de
de regularización del barrio popular de origen
expansión en la ciudad y el abandono por
informal Virgen Misionera, ubicado a 7,5
parte de los propietarios permitió durante años
kilómetros del centro de la ciudad, sobre la
que los procesos de regularización pudieran
ladera del cerro Otto. El poblamiento data
avanzar de forma más o menos exitosa. No
de más de 60 años, por lo que los habitantes
obstante, en un contexto donde los precios de
están arraigados en el lugar y el barrio está
los terrenos se dispararon en los últimos quince
completamente consolidado, pero todavía
años y se recrudecieron los conflictos por el
persisten problemas y conflictos vinculados a
acceso a la tierra, el artículo reflexionó sobre
la titularidad de las tierras con los propietarios
los límites de las estrategias de regularización
originales y emergen conflictos vinculados a la
utilizadas en nuestro país que parecen ser
consolidación del barrio.
insuficientes como muestra la experiencia
Desde mediados de la década de
de Virgen Misionera. Asimismo, se planteó
1980, gracias al trabajo del cura Curulef y la
la necesidad de reformular el contenido y el
Fundación Gente Nueva se impulsó un proceso
alcance del derecho de propiedad para dar
de regularización progresiva, pero que todavía
respuesta definitiva a las problemáticas del
hoy está inconcluso. Recientemente se está
acceso y la tenencia segura, poniendo de
implementando la Ley 24.374 en la ciudad y en
relieve la función social de la propiedad y las
el barrio, pero existen numerosos casos que no
obligaciones de los propietarios.
Tomás Alejandro Guevara
Universidad Nacional de Río Negro, Sede Andina, Centro Interdisciplinario de Estudios sobre
Territorio Economía y Sociedad. San Carlos de Bariloche/Río Negro, Argentina.
[email protected]
140
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¿Y el título para cuándo?
Notas
(1) La ciudad de Bariloche es una localidad fuertemente determinada por el sector turís co (Méndez,
2010), independientemente de contar un importante sector de administración pública y un
pujante sector de economía popular. En 2006, más de la mitad (51,3%) de su PBG fue generado
por el sector turístico y actividades conexas (Monasterio 2006), mientras que el “complejo
turís co” representaba en 2005 más del 45% de los empleos totales Abaleron (2007).
(2) Se encontraron numerosos tes monios de folletería espuria en estas subastas masivas, donde se
comercializaban localizaciones que no se correspondían con la ubicación real de los lotes.
(3) Remi mos para una mirada histórica a Agüero (2007).
(4) Entrevista con Gustavo Gennuso, miembro original del Equipo Pastoral de Tierras, realizada en
febrero de 2013.
(5) Una situación similar se puede encontrar con el Barrio Parque Villa Llanquihue o Don Bosco con la
Junta Vecinal Llao-Llao, por ejemplo.
(6) Al momento de empezar a escribir este ar culo se conoció la no cia del fallecimiento de Curulef,
después de una larga enfermedad.
(7) En el año 1982 se fundó la Escuela Virgen Misionera, en el año 1985 nace el Taller Mugica y
en 1987 se inaugura el Jardín Arco Iris, todo en el barrio. Asimismo, en el año 1989 nace el
Secundario Amuyén. La experiencia educa va lleva a la Fundación a trabajar más tarde en el
Barrio 2 de Abril (34 Hectáreas), donde en 1994 comienza a funcionar el Taller de Capacitación
Angelelli y un año después el Jardín Mundo Nuevo. En el 2000 se crea el secundario para adultos
Jaime de Nevares funcionando en dependencias del Colegio Amuyén y se inaugura también la
Escuela primaria Nuestra señora de la Vida. Finalmente, en 2008 empezó a funcionar la Escuela
Técnica Nehuen Peuman. La Fundación Gente Nueva es una de las organizaciones más grandes
del país en materia de ges ón social educa va.
(8) Al respecto decía Monseñor Hesayne en su Exhortación Pastoral Postsinodal:
(9) “Se trata de evangelizar a todo el hombre rionegrino y a todos los hombres rionegrinos. Vale decir
que la acción evangelizadora ha de llegar a la totalidad de cada una de las personas individuales
y a la totalidad del pueblo de nuestra provincia: al corazón de cada hombre y mujer, a la cultura
de nuestro pueblo y a sus estructuras y ambientes sociales.”
“2.2. Tengamos en cuenta, en primer lugar, a los dueños primi vos de nuestro suelo, a la "gente
de la erra", los mapuches, dominados, avasallados, despreciados y oprimidos por el "huinca",
el blanco cris ano. (…). Digamos lo mismo acerca de sus numerosos descendientes que pueblan
los barrios marginados de nuestras ciudades, desarraigados de su terruño y de sus costumbres.
“2.3. Una buena parte de la mano de obra en la Patagonia la cons tuyen desde hace empo
muchos hermanos chilenos, que siguen cruzando la frontera en número considerable,
apremiados por la realidad socio-económico-política del país. Tenemos para con ellos un
especial deber de fraternidad y de hospitalidad”.
“5.3. En consecuencia, la primera instancia en nuestra acción evangelizadora es reconocer
la pobreza-miseria concreta en Río Negro: el hambre y falta de vivienda de muchas familias;
la desocupación y marginación de muchos trabajadores; la opresión en que subsisten los
aborígenes, primeros dueños de esta tierra patagónica; los peones de chacras y campos
desprotegidos socialmente; los trabajadores golondrinas; los migrantes, especialmente chilenos;
los pobladores de barrios periféricos, centros suburbanos y zonas rurales.
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Los pobres no son una abstracción, tienen nombre y apellido y son víctimas de situaciones
y estructuras injustas que debemos superar. Con esos pobres, entonces tendremos que
identificamos para ser la Iglesia de Jesucristo, sin olvidar, por supuesto, a los enfermos y
moribundos, ancianos y presos, que sufren otra forma de pobreza.”
“5.5. En las propuestas de nuestro Sínodo aparece clara y reiteradamente la necesidad de la
presencia de la Iglesia en los barrios más pobres, en las zonas marginadas, la necesidad de
pensar la evangelización no desde el centro sino desde la periferia, la necesidad de estructurar
la Iglesia desde los valores de los pobres, compar endo sus problemas, alegrías y esperanzas,
lejos de paternalismos o beneficencias. Para más de uno de nosotros eso significará morir a
nosotros mismos, a nuestros esquemas "clasistas", para elevarnos a la dignidad humana de hijos
de Dios y capacitarnos, en todos los órdenes de la vida, como miembros ac vos de la Iglesia.”
“5.10. "Desde los pobres a todos" no es simplemente una estrategia pastoral. Es la dirección
existencial tomada por Jesucristo en su peregrinaje histórico. Para nosotros, es la única forma
en que podemos captar el plan de Dios y ser fieles a él. Puestos en oración sincera ante
Dios, personal y comunitariamente, decidiremos qué tenemos que hacer como individuos
o instituciones, en orden a una vida cristiana auténtica, con relación al uso o renuncia de
bienes materiales, y con relación a compromisos polí cos o búsqueda de alterna vas sociales
realmente evangélicas.
"Desde los pobres a todos" no es nada más ni nada menos que el camino para lograrnos como
Iglesia pobre, desprovista de medios de poder humano contando en forma ilimitada con la
fuerza de Jesús Resucitado; lugar de comunión visible, mediante verdadera par cipación de
bienes y personas; camino de gozo y esperanza de un mundo rionegrino más justo y fraterno,
para gloria de Dios bendito.”
“6.1. No hay vida cristiana sin comunidad. Sólo en comunidad podemos escuchar, acoger
y anunciar a Jesucristo. Ella nos permite lograr concretamente la comunión eclesial y
cons tuirnos así en un signo posi vo de que han germinado en el corazón humano los valores
del Reino: del Reino que Jesús anuncia luchando contra la opresión, la injus cia, la marginación
y discriminación de cualquier tipo, como testimonio de una real "comunión" con Dios y los
hombres.”
(9) La Junta Vecinal se encuentra recaudando fondos mensualmente para la realización de este
proyecto, para lo cual se hizo un presentación para pedir financiamiento a un organismo de
nivel nacional.
(10) Entrevista con integrante original del grupo pastoral de Curulef y miembro fundador de la
Fundación Gente Nueva, realizada en octubre de 2014.
(11) Estos datos surgen de la sistematización que se hizo de los archivos y documentos del EPT
en el marco de un proyecto de extensión co-financiado por la SPU y la UNRN, que dirige el
autor, tulado “Alterna vas de resolución de conflicto vinculado al hábitat: asocia vismo y
regularización”.
(12) Se recuperan en esta sección elementos de Di Virgilio, Arqueros y Guevara (2012)
(13) Ar culos 75 inc. 17, 41 y 43.
(14) Este número sale de es maciones informales, no hay datos oficiales, por parte de funcionarios
del Instituto Municipal de Tierras y Viviendas para el Hábitat Social en el año 2012, cuando
parecía inminente la puesta en marcha de la operatoria.
(15) En 2006 se había producido la toma masiva de más de 2.000 lotes que dio origen al actual barrio
de Nahuel Hue, en la zona denominada Pampa de Huenuleo.
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(16) Según la expresión de uno de los técnicos involucrados en su formulación
(17) Coherentes con su visión sobre el accionar de la anterior conducción de la Junta Vecinal Virgen
Misionera, algunos miembros del EPT achacan a los ex integrante de la comisión, el haberse
contactado con dueño an guos en virtud del inicio de la implementación de la operatoria de
regularización.
(18) Esta numeración se corresponde con el viejo Código Civil, que fue reemplazado recientemente,
pero con posterioridad a la elaboración de este ar culo, por un nuevo Código Civil y Comercial,
sin mayores novedades rela vas a los derechos reales. Pese al reclamo de diversos sectores, no
se incorporó al nuevo código la reglamentación de la función social de la propiedad incorporada
por tratados internacionales como el Pacto Internacional de Derechos Económicos, Sociales y
Culturales. De esta manera, el vacío legal sobre cuáles son los alcances del derecho de propiedad
habrá de mantenerse en el empo, alentando la interpretación hegemónica sobre el alcance
ilimitada de este derecho y generando una innecesaria conflic vidad social en aras de mantener
una ficción jurídica inconducente.
(19) En estos días se está por sancionar en el Congreso de la Nación una nueva versión unificada
de los Códigos Civil y Comercial. Si bien exis eron numeroso pronunciamientos por parte de
organizaciones e ins tuciones por la incorporación explícita de la función social de la propiedad,
entre otras cuestiones relevantes relativas al hábitat, el pedido no encontró eco en los
legisladores.
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Texto recebido em 31/maio/2015
Texto aprovado em 11/set/2015
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As políticas habitacionais
e as ocupações urbanas:
dissenso na cidade
Housing policies and urban occupations:
dissent in the city
Denise Morado Nascimento
Resumo
O artigo trata do enfrentamento cotidiano no
acesso ao direito à moradia e à cidade. Como pano de fundo do debate teórico, têm-se as ocupações urbanas em contraponto aos empreendimentos do Programa Minha Casa Minha Vida em Belo
Horizonte, diante de uma crise urbana agravada
pela: (1) intensificação do padrão periférico das
cidades; (2) vinculação do capital imobiliário ao
capital financeiro; (3) imobilidade política em se
realizar a reforma urbana; (4) imposição da propriedade privada condominial; (5) ineficiência do
judiciário; (6) associação Estado-capital; (7) discursos estrategicamente construídos, em nada
propositivos. O objetivo é entrelaçar dimensões
teóricas (Jacques Rancière, Aristóteles, Marx e
Chantal Mouffe) vinculadas às possibilidades de
redistribuição dos processos de tomada de decisão em torno da cidade.
Abstract
The article deals with the daily struggle for access to
the right to housing and the city. Aligned with the
theoretical debate, we have the urban occupations
in contrast with the Minha Casa Minha Vida
Program in the city of Belo Horizonte (Southeastern
Brazil), within an urban crisis aggravated by: (1) the
intensification of the peripheral pattern of cities;
(2) the fact that the real estate capital is linked to
the financial capital; (3) the political immobility in
carrying out the urban reform; (4) the imposition
of the private condominium property; (5) the
inefficiency of the judiciary; (6) the State-capital
association; (7) strategically built discourses, which
are not propositional. The goal is to intertwine
theoretical dimensions (Jacques Rancière, Aristotle,
Marx and Chantal Mouffe) with the possibilities of
redistribution of decision-making processes around
the city.
Palavras-chave: ocupações urbanas; moradia; políticas habitacionais; direito à moradia; Minha Casa
Minha Vida.
Keywords: urban occupations; housing; housing
policies; right to housing; Minha Casa Minha Vida
Program.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 145-164, abr 2016
hƩp://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3507
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Denise Morado Nascimento
Introdução
Parece haver um desencantamento generalizado entre os cidadãos diante da incapacidade de construir e de deliberar decisões em
instâncias supostamente democráticas, porém,
continuamente alimentadas pelos processos
brutais de mercantilização das coisas e das relações sociais. No capitalismo contemporâneo,
tudo parece estar (ou, de fato, está) reduzido
a mercadoria.
Por outro lado, é preciso reconhecer os
movimentos de resistência que, contrários ao
modelo hegemônico neoliberal vigente, vêm
construindo outras ações práticas e políticas
calçadas, essencialmente, pelo direito à moradia e à cidade. Inegavelmente, não podemos
dissociar as razões (objetivas ou subjetivas) dos
movimentos de resistência das condições das
As ocupações são uma realidade cabal e só
não enxerga quem não quer ver. São tão
intensas quanto necessárias, pois são a política habitacional mais efetiva no Brasil de
hoje e ainda serão até que a reforma urbana seja feita e as cidades deixem de ser
planejadas para a minoria rica, passem a
privilegiar os outros 99% que a constroem
todos os dias. As ocupações são espaços
de saberes, de experiências populares, partes componentes do embrião que gerará o
novo. (Leonardo Péricles)1
O Poder Público não pode mais negar
a existência das ocupações urbanas e a
necessidade de elas se verem inseridas à
cidade e aos serviços públicos nela oferecidos. As ocupações se apresentam
como solução de moradia para os mais
pobres e sua consolidação no tempo reforça ainda mais a aquisição do direito à
regularização fundiária. (Cleide Aparecida Nepomuceno, in Morado Nascimento,
2015, p.104) 2
cidades, assim como os protestos políticos de
junho de 2013, justificadas pelo fato de que é
O Tribunal de Justiça de São Paulo levan-
nas cidades que se dá a reprodução da força de
tou que, somente na capital paulista, foram
trabalho (Maricato, 2013).
abertas cerca de 100 mil ações de reintegra-
Estamos imersos em uma crise urbana
ção de posse nos anos de 2007 a 2015, sendo
que é cotidianamente agravada pela intensi-
1.659 entre janeiro e maio de 2015 (Shalom,
ficação do padrão periférico das cidades, pela
2015). De acordo com reportagem do Jornal
vinculação do capital imobiliário ao capital fi-
O Tempo, dados da Urbel revelam que existem
461.480 pessoas morando em ocupações irregulares em Belo Horizonte – cerca de 20% da
população local – sendo 10.400 nos “novos
acampamentos”, isto é, ocupações urbanas
(Miranda e Câmara, 2013).3
No horizonte deste artigo, estão as possibilidades de se colocar o direito de se decidir
sobre a cidade à frente do direito de se consumir a cidade. Entendemos a cidade que queremos ou a cidade justa para além da cidade que
deve democraticamente permitir o acesso aos
nanceiro, pela imobilidade política em se realizar a reforma urbana, pela imposição da propriedade privada condominial nas cidades, pela
ineficiência do judiciário, pela associação Estado-capital e pelos discursos estrategicamente
construídos, em nada propositivos.
Nesse cenário da cidade-negócio, as
ocupações urbanas em Belo Horizonte, foco
desse artigo, mas também no Brasil, se propagam como movimentos de resistência às políticas habitacionais:
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As políticas habitacionais e as ocupações urbanas
bens e serviços; referimo-nos às possibilidades
(Rancière, 1996a, p. 10). Se considerarmos a
efetivas de redistribuição dos processos de to-
concepção política da ação humana a partir da
mada de decisão em torno de uma cidade que
prática dos homens, assim colocada por Marx,
é de todos. Baseados nessa visão, pressupomos
podemos pressupor que há um dissenso entre
que os moradores das ocupações urbanas to-
como o Estado governa a cidade – políticas
mam a cidade como um corpus político coleti-
públicas urbanas –, e o que os cidadãos que-
vo e estão interessados em viver sob outro modelo de cidade, onde as suas ações no espaço,
portanto, ações humanas, prevaleçam sobre as
escassas possibilidades de apropriação do espaço e de vida urbana contemporânea impostas pela associação Estado-Capital.
O artigo será entremeado por: (1) Jacques Rancière, que diz que o ato de fazer política nasce do dissenso; (2) Aristóteles, que trata
a experiência de pensamento na dimensão prática para transformar a realidade insatisfatória;
(3) Marx, e os conceitos de comunidade e comum; e (4) Chantal Mouffe, que insiste que a
dimensão do político está ligada à dimensão
do conflito. O objetivo aqui é entrelaçar e dar
sentido a essas dimensões naquilo que nos interessa: as políticas habitacionais e as ocupações urbanas bem como as práticas compartilhadas entre movimentos sociais, moradores e
universidade contrários à cidade neoliberal.
rem da cidade. O direito à cidade, apresentado
como pauta central dos movimentos urbanos
de resistência atuais, conforma-se, assim, para
além da visita à cidade ou do desejo de acesso. Nomeado por Lefebvre como direito à vida
urbana, refere-se ao direito de mudar a cidade
ou, em outras palavras, o direito de decidir sobre a cidade que se quer (Harvey, 2013).
A cidade ou o espaço urbano é constituído pela relação de forças entre os atores
sociais que o alimentam, o preservam ou o
transformam de acordo com seus interesses em
torno da disputa de seus objetos – incluindo
moradia, museus, escolas, hospitais, espaços
públicos, parques, transporte, serviços urbanos.
Em outras palavras, a sociedade contemporânea está estruturada pela disputa por espaço
urbano, por lugares, essencialmente a moradia,
mas também estrutura a mesma disputa, a partir do desentendimento que se tem ou não da
cidade onde queremos viver ou da cidade que
cotidianamente produzimos.
Dissenso e conflito
Hoje, o dissenso assentado no capitalismo contemporâneo gira para além dessa dis-
Diante do capitalismo contemporâneo, basea-
puta de lugares, agravada pelo cenário brasilei-
do no sistema de mercado neoliberal que tem
ro que coloca a casa como ativo financeiro (pe-
o Estado como agente interveniente no cam-
lo subsídio ou pelo microfinanciamento) para
po socioeconômico, ao lado de produtores e
entrar no circuito econômico financeiro global,
consumidores livres para produzir e consumir,
alimentado pela maquinaria da propriedade
o trabalho próprio da política parece ser “ape-
privada e pela massificação internacionalizada
nas o de adaptação pontual às exigências do
da casa.4 As ocupações urbanas trazem em si o
mercado mundial e de uma distribuição equita-
dissenso já que retiram do mercado imobiliário
tiva dos lucros e dos custos dessa adaptação”
um espaço que seria mais um ativo financeiro.
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Denise Morado Nascimento
O dissenso, explicitado por Rancière
expressivas da população. Assim, evitamos que
(1996a), não é o conflito entre aquele que diz
as leis (más ou boas, mas sempre dúbias) sejam
branco e aquele que diz preto. É o conflito en-
identificadas como único pressuposto na análi-
tre aquele que diz branco e outro que diz bran-
se do conflito, isto é, a legalidade da ação.
co também, mas não entende a mesma coisa;
As ocupações urbanas visibilizam a vi-
ou não entende de modo nenhum que o outro
da urbana que se quer, sendo a cidade per se
diz a mesma coisa com o nome de brancura.
e não fragmento socioespacial independente
Isto é, o dissenso não diz respeito apenas às
da ilegalidade que lhe confere existência. As
palavras e não pode ser confundido com des-
ocupações urbanas existem em razão do exer-
conhecimento. Incide sobre a própria situação
cício amplo do direito de moradores de mudar
dos que falam. Não é meramente oposição en-
a cidade quando decidem ocupar um terreno,
tre, por exemplo, governo e pessoas que o con-
de forma organizada, e emergirem uma rede
testam, mas o “conflito sobre a própria confi-
de atores sociais (ativistas, organizações civis
guração do sensível” (Rancière, 1996b, p. 373).
e grupos de universidades), como ação política
Não deve ser antagonismo, como também diz
coletiva efetivada por um desvio na forma em
Mouffe (2006), mas agonístico na medida em
que a cidade se constrói. Ou, tomando as pala-
que adversários (e não inimigos) com ideias a
vras de Rancière (1996b, p. 370), como ruptura
serem combatidas dividem simbolicamente o
na “lógica da dominação suposta natural”, ins-
espaço (ou a cidade).
tituindo-se um mundo comum, tornado comum
A análise do conflito que desvela a exis-
pela própria divisão – uma comunidade políti-
tência das ocupações urbanas, entendido como
ca. Nas ocupações urbanas, essa comunidade
dissenso, leva-nos ao seguinte pressuposto. Se,
política se configura em razão da identificação
por um lado, as ocupações urbanas emergem
primeira de um todo (a cidade) que rompe com
como áreas ilegais diante das premissas jurídi-
aquilo ou desvia daquilo que lhe é de direito
cas que colocam o direito de propriedade como
(políticas habitacionais); por isso, não existem
o mais sólido e amplo de todos os direitos sub-
apenas em virtude da reunião de um grupo que
jetivos patrimoniais, por outro, tornam-se legí-
demanda acesso aos bens e serviços urbanos.
timas diante do Estatuto da Cidade que ordena
Tratando-se das políticas habitacionais,
ações de interesse social para a democratiza-
referimo-nos ao Programa Minha Casa Minha
ção de utilização do espaço urbano, calcadas
Vida (PMCMV) – FAR, programa federal de fi-
pela função social da propriedade. Sendo a ile-
nanciamento de moradias nas áreas urbanas
galidade urbana não mais a exceção diante da
para famílias de baixa renda de até R$1.600,00
crise urbana, mas a regra, torna-se claro que,
(Faixa 1), por meio de uma instituição financei-
para além das (enormes) questões jurídicas,
ra, CAIXA, em parceria com municípios e em-
há que se repensar os modos de intervenção
presas privadas.5 Os beneficiados contam com
no espaço, o papel e a relevância da norma e
subsídio integral e isenção de seguro, garanti-
da lei, as relações de poder instituídas; enfim,
dos pelo governo federal, e são alocados por
uma rede de aparatos que empurram para a
sorteio a partir de critérios de prioridade fede-
informalidade e para a ilegalidade parcelas
rais e municipais.
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As políticas habitacionais e as ocupações urbanas
Políticas habitacionais
em Belo Horizonte6
Extensos estudos avaliativos sobre o PMCMV
têm sido publicados em eventos e periódicos
acadêmicos, essencialmente, sobre: os agentes
resultando em alta inadimplência e conflitos com os síndicos. Na prevalência de relações privadas e de espaços isolados, são
favorecidas as mediações do narcotráfico
e de milícias, organizações que tomaram
a gestão de alguns dos condomínios estudados pelas equipes. (Nota Pública Rede
Cidade e Moradia)
e operações do Programa; demanda habitacional e a oferta do Programa; desenho, projeto
A Prefeitura de Belo Horizonte (PBH),
e produção dos empreendimentos; e a inserção
por meio da Urbel em parceria com as cons-
urbana e segregação socioespacial dos mes-
trutoras, tem implementado majoritariamente
mos. Destacamos aqui os trabalhos relacio-
tipologias rígidas e homogêneas de aparta-
nados à Rede Cidade e Moradia que avaliou
mentos de dois quartos com 39 a 44m2 (em
empreendimentos em 22 municípios de seis es-
atendimento ao padrão médio de família bra-
tados: Pará, Ceará, Rio Grande do Norte, Minas
sileira – pai, mãe e dois filhos), distribuídos em
Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo.7 Neste arti-
dois por andar e organizados em edifícios de 4
go, referimo-nos, em especial, aos estudos de
ou 5 pavimentos em formato “H” ou “em fita”,
avaliação do PMCMV na Região Metropolitana
dispostos em condomínios privados nas franjas
de Belo Horizonte (RMBH); contudo, todos os
periféricas urbanas, desagregadas socioespa-
trabalhos da rede apontam para problemáticas
cialmente das cidades.
estruturais do Programa que tem impactado as
cidades e a vida das famílias beneficiárias.
É particularmente preocupante nos conjuntos analisados, a forma-condomínio
que predomina; preocupante, sobretudo,
para os setores mais vulneráveis na Faixa
1 – com menor renda, com menor escolaridade, com vínculos de trabalho mais
precários, fortemente dependentes de
programas sociais e de transferência de
renda. Uma situação inexplicável de não
aplicação de tarifas sociais para os serviços de água e de energia pelas concessionárias se alia a taxas de condomínio
e tem impactado fortemente o aumento
das despesas associadas à moradia, já
gerando problemas sérios de sustentabilidade econômica e social dos conjuntos.
Verificamos, em vários casos estudados, o
colapso da gestão condominial por conta
dos custos de manutenção de espaços coletivos em relação à renda dos moradores,
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Tradicionalmente caracterizado como
moradia das classes médias dos grandes centros, o apartamento vem ganhando terreno
como moradia de grupos de mais baixa renda,
principalmente a partir da expansão da produção imobiliária na década de 2000. Trata-se de
uma tipologia que potencializa o uso do solo
e, portanto, a apropriação da renda fundiária e,
no caso do PMCMV, por meio da propriedade
privada condominial.
A Urbel explicita que a configuração espacial do apartamento do PMCMV, baseada na
tripartição funcional modernista dos setores
da casa – social, serviço e íntimo – e no pré-dimensionamento a partir do mobiliário, vem
de outros programas de governo como o PAR
(Programa de Arrendamento Residencial), tendo sido construído historicamente e nacionalmente inclusive com a participação de técnicos
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Denise Morado Nascimento
da PBH. Esses programas anteriores subsidia-
e da consequente diversidade dos conjuntos.
ram o PMCMV, não só em seus arranjos ins-
Nesse sentido, há um equívoco conceitual nos
titucional e financeiro, mas também em suas
pressupostos técnicos-financeiros presente nos
diretrizes técnicas para o projeto. Como a Caixa
discursos tanto das construtoras quanto da
não pode legislar, até mesmo porque as prefei-
Urbel. Ao fim, as diretrizes mínimas exigidas
turas têm suas legislações municipais próprias,
tornam-se máximos a serem cumpridos, con-
a referência do mobiliário dada pelas especifi-
tribuindo para a padronização dos ambientes
cações mínimas do programa, referendadas pe-
e das cidades.
la Caixa, objetiva limitar minimamente a área
O discurso “de fazer o que a lei manda”,
da unidade. A Urbel acata essas especificações
sob a ótica de todas as construtoras como cum-
por entender que é possível conseguir bons ar-
pridoras do seu dever, e que converge com o
ranjos de projetos trabalhando com o referen-
discurso da Caixa, “eles fazem o mínimo que a
cial do mobiliário ao invés de definir medidas
gente pede”, tem alimentado continuamente a
mínimas para os cômodos e defende que a
produção do PMCMV. Todas as regras e exigên-
melhoria da “arquitetura” e da tipologia em-
cias do PMCMV, ainda que estabelecidas pela
pregada deve estar vinculada à padronização
Caixa e Ministério das Cidades e cumpridas
dos processos e dos componentes que agilizam
pela iniciativa privada, permitem o protago-
projeto e construção.
nismo das construtoras na definição espacial,
Paradoxalmente, a padronização de
construtiva e territorial, gerando-se, ao final,
processos e de componentes não obrigatoria-
um padrão nacional de moradia social acatado
mente atrela-se à padronização de soluções
pelos municípios, independentemente das ca-
de projeto (tanto das unidades quanto dos
racterísticas físicas dos terrenos, das condições
espaços públicos), não sendo, portanto, impe-
bioclimáticas locais e das necessidades habita-
ditivo de flexibilização e variedade tipológica
cionais dos moradores.
Figura 1 – Apartamentos PMCMV/FAR em Belo Horizonte
Residencial Jaqueline, Belo Horizonte
Construtora Marka
Fonte: Urbel /Portal PBH.
150
Book 35.indb 150
Residencial Hibisco, Jd. Vitória, Belo Horizonte
Construtora Emcammp
Fonte: Praxis (2014).
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As políticas habitacionais e as ocupações urbanas
Figura 2 – Apartamentos PMCMV/FAR no Brasil
Residencial Mangabeira, Uberlândia
Construtora Emcammp
Fonte: www.emcammp.com.br.
Bairro Carioca, Rio de Janeiro,
Construtora Direcional
Fonte: Jornal Extra Globo (2013).
A implantação do padrão nacional de
refere à inserção urbana, desenho, projeto e
moradia social no formato de condomínio pa-
produção, afirmamos que o programa tem tor-
rece ter como fim a simplificação burocrática
nado secundário a segregação socioespacial
de alguns aspectos, especialmente no que tan-
e todas as questões que a acompanham visto
ge à aprovação de projetos e à responsabilida-
que não superam a felicidade dos moradores
de pela gerência dos espaços comuns. Entre-
em ter finalmente alcançado o “sonho da casa
tanto, tal padronização amplia-se nos espaços
própria”, imposição historicamente construída
coletivos, predominantemente conformados
no país, desde o período Vargas: “ficamos livre
pela área de estacionamento, por uma área
do aluguel”; “o apartamento é bom”; “agora
coberta (com pia externa e banheiros, denomi-
estou em um lugar sequinho”; “o apartamento
nada “centro comunitário”) e, eventualmente
é meu”; explicitam os moradores.
uma quadra, ou um campinho, ou um parquinho infantil, todos resultantes da implantação
genérica e repetitiva dos blocos. Tais espaços
PMCMV e déficit habitacional
acabam-se tornando objetos de conflito entre
os moradores e, por consequência, de uso res-
A PBH (Urbel, 2015) entregou até setembro de
trito regulamentado pelos síndicos e/ou con-
2015, 2.705 unidades habitacionais PMCMV/
trolado pelo tráfico.
FAR; ou seja, 3,45% do déficit habitacional de
Paradoxalmente, ao fim de um ciclo de
crítica do PMCMV, principalmente no que se
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78.340 unidades, segundo a Fundação João Pinheiro (FJP, 2013), sendo:
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Denise Morado Nascimento
na região Nordeste: 1.470 unidades no Jar-
quanto em termos relativos no ano subsequen-
dim Vitória II (Bairro Jardim Vitória); 410 uni-
te. Essa elevação pode ser atribuída ao aumen-
dades no Conjunto Habitacional Parque Real
to no componente ônus excessivo com aluguel;
(Bairro Conjunto Paulo VI);
2) na produção estimada de unidades PMCMV/
●
● na
região do Barreiro: 80 unidades no Resi-
FAR para 2016, incluem-se cerca de 11.000
dencial Parque dos Diamantes (Bairro Diaman-
unidades da região Granja Werneck (região
te); 150 unidades nos Residenciais Coqueiros I
Norte), área-objeto tanto da Operação Urbana
e II (Bairro Tirol)
Consorciada Izidoro (Ouci) quanto das ocupa-
●
na região Norte: 135 unidades no Residen-
cial Jaqueline (Bairro Jaqueline);
ções urbanas Rosa Leão, Vitória e Esperança
com aproximadamente 4.000 famílias, em
na região Leste: 240 unidades no Residen-
atual processo de reintegração de posse, mas
cial Orgulho de Minas II (Bairro Vera Cruz); 220
com despejo suspenso pelo Superior Tribunal
unidades no Residencial Amazonas (Bairro Ve-
de Justiça de Minas Gerais, ocupações essas
ra Cruz);
detalhadas mais à frente.
●
e, estão em execução mais 1.974 unidades:
Os mecanismos que permitem fazer “ro-
na região Nordeste: 780 unidades no Con-
dar” o PMCMV em Belo Horizonte induzem o
junto Habitacional Parque Real – Residenciais
processo de planejamento da habitação social
Água Marinha e Granada (Bairro Conjunto
voltado única e exclusivamente para a produ-
Paulo VI)
ção quantitativa de unidades, em um processo
●
na região do Barreiro: 580 unidades nos
alienado da análise macro de dinâmica socio-
Residenciais Serras de Minas I e II (Bairro Ja-
territorial própria de uma região metropolitana
tobá), 300 unidades no Residencial Pinheiros
e da realidade social, física e política do municí-
(Bairro Diamante), 76 no Residencial Parque do
pio. À cidade, são impostas políticas de produ-
Jatobá (Bairro Vale do Jatobá)
ção massificada de condomínios privados sem
●
●
na região Norte: 58 unidades no Residen-
cial Colibris (Bairro V. Tabelião Ferraz)
●
na região Leste: 180 unidades no Residen-
cial Manaus (Bairro Vera Cruz)
urbanidade e de higienização de territórios já
ocupados. Em razão dessa ineficiência da gestão pública e da intensificação da carestia da
vida urbana na RMBH, os movimentos sociais
Segundo a Urbel (2015), o PMCMV/FAR
passam a se orientar pela maior efetivação e
apresenta potencial para construção, até 2016,
legitimação das ocupações urbanas, objetivan-
de 23.973 unidades (incluindo-se as unidades
do promover alternativa à provisão habitacio-
em execução), o que representaria cerca de
nal para os pobres.8
34% do déficit habitacional de Belo Horizonte
Dessa forma, o dissenso diante da luta
apontado pela FJP (2013). Destacamos, porém,
sociopolítica pela moradia enfrentada pelos
duas questões: 1) das nove regiões metropoli-
pobres na cidade e das premissas quantita-
tanas pesquisadas pela FJP (2014), cinco delas,
tivas do PMCMV amplia-se: a posse da terra
Fortaleza, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São
urbana por meio do parcelamento horizontal
Paulo e Curitiba, apresentaram aumento no
de lotes individualizados junto com a casa
déficit habitacional tanto em termos absolutos
autoconstruída passam a compor o único e o
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As políticas habitacionais e as ocupações urbanas
imediato caminho a ser percorrido. Vale des-
fundamentais”, ressalta Leonardo Péricles
tacar que, em Belo Horizonte, as ocupações
(Morado Nascimento, 2015, pp. 107-108).
urbanas de prédios vazios são vistas com
grandes reservas, geralmente entendidas pelos moradores como negação do seu modo
de viver, mas também impeditivas da posse
individualizada do terreno. “Contradições
Pensamento prático,
comunidade e comum
existem, essa aparente liberdade de construir,
de conquistar o lote e agora ‘construir minha
No atual cenário de crise política, econômica
casinha’ tem muito de positivo, mas por ser
e urbana, embebida pela produção de mo-
mais uma das ‘liberdades’ dentro de um siste-
delos habitacionais favoráveis à associação
ma altamente desigual, isso [o individualismo]
Estado-Capital, como agir? O que fazer diante
acaba sendo aparente em muitos casos”, in-
das tragédias urbanas cotidianamente vividas
forma Leonardo Péricles (Morado Nascimento,
pelos pobres nas grandes cidades? Que pos-
2015, pp. 107-108). Tal contradição – o caráter
sibilidades os movimentos sociais agregam
individualista da autoconstrução – é parte de
quando inseridos em uma rede de atores dis-
outro conflito interno; as disputas políticas
tintos como, por exemplo, grupos de pesquisa
entre movimentos sociais, nem sempre re-
das universidades?
lacionadas ao enfrentamento cotidiano com
Em seu livro Metafísica, Aristóteles des-
o poder público. A autoconstrução de casas,
velou a experiência do pensamento racional
essencialmente pela alvenaria de tijolos cerâ-
em três dimensões: 1) a teorética, que trata
micos, “não é vista como uma ação política
de explicar a realidade, a natureza e o mundo;
de formação dentro do contexto da ocupação
o que é próprio da ciência e da filosofia; 2) a
urbana”, lembra Tiago Castelo Branco, mas é
poiética, que trata de fazer, de confeccionar
símbolo de solidez imediatamente incentivada
algo novo, belo ou útil, que é próprio da arte
e fomentada pelos movimentos sociais para
e da técnica; e 3) a prática, que trata de agir
dificultar um eventual despejo (Morado Nas-
para transformar uma realidade insatisfatória,
cimento, 2015, p. 112).9
próprio da ética e da política (Wolff, 2010).
Para além dos conflitos internos, as
Acatando o que disse Aristóteles, exer-
ocupações urbanas naturalmente são afetadas
cer o pensamento prático faz-se necessário pa-
também pelos conflitos da cidade: a violência
ra agir sobre as coisas e interferir na realidade.
doméstica e a presença do tráfico. Contudo, “o
Calçado pelos pensamentos ético e político,
resultado das ocupações e das forças sociais
a prática completa-se por dois pensamentos:
que elas conseguem atrair para a disputa vai
“de um lado, uma razão para agir: é o pensa-
muito além da conquista da casa; impõe na
mento que diz que o mundo vai mal. Do outro,
sociedade, ou ao menos em uma parte dela,
uma finalidade para a ação: é o pensamen-
a discussão de um modelo excludente, es-
to que sabe o que é preciso fazer para que o
cancara a falta de compromisso do Poder Pú-
mundo vá bem” (Wolff, 2010, p. 47). A trans-
blico com a vida e com os direitos humanos
formação da realidade, assim, está assentada
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nas possibilidades de escolhas e de decisões
razão da língua, história, mitos, crenças e sím-
livres da dominação tecnológica e científica
bolos. Nesse sentido, Gemeinwesen reafirma-se
(no sentido da ciência) e da ordem política (no
pelo aspecto essencialmente político alinhado
sentido do Estado). Se assim é, o homem não
à ideia de autonomia que implica autodetermi-
se apropria do mundo, mas age no mundo e o
nação e autogoverno.
ponto de partida da experiência do pensamen-
Pogrebinschi (2009), contudo, explicita
to prático, então, é o dissenso diante do que
que o termo Gemeinwesen tem sido usado co-
há no mundo.
mo aproximação do termo commonwealth, mas
Marx (apud Pogrebinschi, 2009, p. 198)
não pode corresponder ao termo commune.10
também vincula o político à experiência huma-
A comunidade é identificada à Gemeinwesen
na: “só o sentimento próprio dos homens, sua
no sentido de fazer oposição ao Estado e subs-
liberdade, pode fazer a sociedade novamente
tituí-lo. Esse sentido político de Gemeinwesen
um dia se tornar uma comunidade em que os
sustenta o conceito de comunidade como as-
homens possam realizar seus objetivos mais
sociação do ser coletivo e do ser individual, do
elevados, uma pólis democrática”. Falar em
todo e das partes, abrangendo “não apenas
liberdade ou liberdade na comunidade, assim
indivíduos singular e empiricamente existen-
proposto por Marx, significa entender a comu-
tes, mas a natureza humana como um todo”
nidade como associação dinâmica e constan-
(Pogrebinschi, 2009, p. 194).
te de indivíduos independentes em torno de
No capitalismo contemporâneo, o dis-
propósitos comuns (Assoziation), e não como
senso sobre a cidade aflora a incapacidade
união estável ou isolada (verein). Interessa-
de se manter o indivíduo como membro da
-nos, aqui, os conceitos de comunidade e de
comunidade na medida em que os indivíduos
comum vindos de Marx como referências para
se encontram separados de sua essência po-
experiência do pensamento prático nas ocupa-
lítica (viver em um espaço organizado como
ções urbanas, explicitado mais à frente. Utiliza-
Gemeinwesen) e social (ser constituídos como
Gemeinwesen). O conceito de comunidade em
Marx permite emergir a “tensão que desde ali
já se estabelece entre aquilo que consiste supostamente na esfera das relações econômicas,
a sociedade civil, e o campo das relações políticas, o Estado” (Pogrebinschi, 2009, p. 196).
Em outras palavras, entendemos que a
separação histórica do indivíduo como membro
da comunidade, assim colocado por Marx, tem
reduzido nossa experiência do pensamento
prático, essencialmente na dimensão do pensamento político. Contudo, voltando à Rancière
(1996b, p. 371), entendemos que o retorno à
comunidade ou ao mundo tornado comum se
remos as análises históricas sobre o trabalho
de Marx realizadas por Pogrebinschi (2009).
Segundo a autora, Marx usa o vocábulo francês commune para referir-se às comunidades arcaicas ( Gemeinschaft ) e o termo
Gemeinwesen para referir-se às comunidades germânicas. Enquanto Marx usa o termo
Gemeinwesen como uma forma de organização política que se apresenta alternativamente
a quaisquer formas particulares que o Estado
porventura assuma, Gemeinschaft apresenta-se mais como conceito sociológico na medida
em que se refere a um agrupamento de pessoas
compartilhando um sentimento comum em
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As políticas habitacionais e as ocupações urbanas
faz a partir da identificação primeira de um to-
moradores, e à vinculação com distintos mo-
do pelo dissenso, não antagônico, mas como
vimentos sociais, grupos das universidades e
“um desvio extraordinário, um acaso ou uma
ativistas, apresentam características similares
violência em relação ao curso ordinário das coi-
quanto ao processo de ocupação, ao padrão
sas, ao jogo normal da dominação”.
construtivo e à realidade jurídica.
Entendemos que as ocupações urbanas
No cenário de agravamento do acesso à
não são problemas (como uma doença da cida-
cidade e à moradia descrito, surge, em fevereiro
de) que podem ser observados pelos seus sinto-
de 2008, a primeira ocupação organizada pelo
mas (diagnóstico de conflitos), em que valores
Fórum de Moradia do Barreiro, em um terreno
exclusivamente técnico-científico-políticos (da
vazio no Barreiro, em Belo Horizonte. Em razão
arquitetura, do planejamento urbano, da ciên-
da criação do Distrito Industrial do Vale do Jato-
cia ou do Estado) determinem soluções (por
bá no Barreiro, nos anos 1980, vários terrenos
meio de tratamentos ou da eliminação do pro-
destinados pelo planejamento urbano munici-
blema). Na esteira do pensamento de Rancière,
pal para a construção de fábricas e indústrias
Marx e Aristóteles (a comunidade política, o
permanecem ainda vazios.11 Alguns desses ter-
sentido político de Gemeinwesen e o agir po-
renos foram repassados do poder público pa-
lítico) acatamos a proposta de Mouffe (2006):
ra o setor privado por preços irrisórios, com a
a dimensão do político deve estar conectada
obrigação contratual de se construir indústrias
às possibilidades das práticas e dos discursos
e de se gerar empregos. Entretanto, inúmeros
(formas de participação) de adversários. O con-
terrenos não cumpriram sua vocação original e
flito deve ser entendido não como uma forma
transformaram-se em áreas abandonadas. Essa
de protesto ou de provocação, mas como uma
primeira ocupação autodenominou-se Camilo
prática micropolítica através da qual os envol-
Torres e constituiu-se da apropriação por cerca
vidos tornam-se agentes ativos no campo de
de 140 famílias.
forças e de interesses (Mouffe, 2008). Péricles
Em abril de 2009, surge a Ocupação
(Morado Nascimento, 2015, p. 108) amplia esse
Dandara, no bairro Céu Azul, em terreno de
entendimento: “nossa aliança com os setores
40 hectares, originando 887 lotes de 128 m²,
progressistas da arquitetura, do direito e de
organizada pelas Brigadas Populares. Essa
outras áreas do conhecimento, contribui pa-
ocupa ção representa importante marco so-
ra potencializar ainda mais essa inserção das
ciopolítico na cidade uma vez que contou
ocupações na arena política”.
com aporte técnico de arquitetos voluntários,
trabalhando junto com os moradores na ela-
As ocupações urbanas no
Barreiro, Belo Horizonte
boração de um plano urbanístico interno. A
partir desse momento, as ocupações urbanas
associam-se a outros atores, em especial a
grupos de universidades como, por exemplo,
Apesar de as ocupações urbanas se distingui-
Praxis (EA/UFMG), Serviço de Assistência
rem quanto ao número de famílias, ao local de
Judiciária (PUC/Minas), Escritório de Integra-
inserção, à organização e à mobilização dos
ção (PUC/Minas) e Polos Cidadania (Direito/
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Denise Morado Nascimento
UFMG). Trataremos, mais à frente, da parceria
12
dos conflitos ampliados e, por consequência,
da associação política de distintos atores so-
do MLB/MG com o Praxis.
Um ano depois, em fevereiro de 2010, a
ciais, conformando o movimento Resiste Izi-
Camilo Torres se expande sobre terreno contí-
dora, a Cohab (2015) constituiu uma mesa
guo e também abandonado, autodenominan-
de negociação em torno das quatro ações de
do-se Irmã Dorothy, com cerca de 135 famílias.
reintegração de posse dessas áreas propos-
Na mesma região do Barreiro, a duas quadras
tas pela PBH. A proposta acordada diz que a
dessas duas ocupações, surge a Eliana Silva,
primeira etapa da fase 1 da Ouci prevê a de-
em 2012, com 300 famílias mobilizadas pelo
socupação da Ocupação Vitória e o remaneja-
2 13
MLB/MG e organizadas por lotes de 63 m .
A
mento de seus ocupantes atuais para a área da
ocupação também teve seu projeto urbanísti-
segunda etapa – Ocupação Esperança –, para
co elaborado por arquitetos voluntários. Mais
que sejam edificadas no local 6.528 unidades
à frente, apresentaremos as práticas mediadas
habitacionais por meio do PMCMV/FAR, dis-
especificamente entre moradores da Ocupação
tribuídas em edifícios de oito pavimentos com
Eliana Silva e o grupo Praxis que se dão pelo
elevadores e apartamentos de 2 e 3 quartos.
compartilhamento de informações para a pro-
Na segunda etapa, serão construídas, na área
dução dos espaços coletivos e da moradia.
da Ocupação Esperança, 2.388 unidades, totali-
A partir de 2013, ocorre um processo de
zando 8.896 residências. A fase 2 da Ouci prevê
desencadeamento dessa provisão habitacional,
a construção de mais 2.036 unidades por meio
a reboque do êxito das ocupações Dandara,
do PMCMV/FAR.
Camilo Torres, Irmã Dorothy e Eliana Silva. Em
Durante o Carnaval de 2014, dezenas
maio, antecedendo as manifestações de ju-
de famílias ocuparam outro terreno abando-
nho de 2013, surge espontaneamente, sem a
nado no Barreiro; a Ocupação Nelson Mande-
vinculação inicial a qualquer movimento social
la surge sem organização prévia por parte de
organizado, a Ocupação Rosa Leão, na região
algum movimento social, mas, posteriormente,
Norte de Belo Horizonte; em junho, ao lado da
adquire apoio do MLB/MG, seguindo os mes-
Rosa Leão, surge a Ocupação Esperança e, em
mos rumos políticos e urbanísticos das outras
julho, a Ocupação Vitória. Milhares de famílias
ocupações. Hoje conta com 300 famílias auto-
começam a autoconstruir suas casas nessa
construindo suas casas em alvenaria.
região urbana vazia, conhecida como Granja
No início de 2015, surge a Ocupação
Werneck ou Izidora, com cerca de 3,5 milhões
Paulo Freire, organizada pelo MLB/MG, hoje
de m2 e investimentos imobiliários projetados
com 140 famílias (ainda não referenciada pelo
de 15 bilhões de reais, vinculados à Operação
Google Earth). Temos nessas cinco ocupações
do Barreiro cerca de 1.015 famílias.
14
Urbana Consorciada Izidoro (Ouci). Em razão
156
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As políticas habitacionais e as ocupações urbanas
Figura 3 – Região Izidora – Ocupações Vitória e Esperança
e proposta de empreendimento
Ocupações Esperança e Vitória
Fonte: Marcílio Gazzinelli (2015).
Proposta Empreendimento Granja Werneck
Construtora Direcional
Fonte: Cohab (2015).
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Denise Morado Nascimento
Figura 4 – Ocupações Urbanas no Barreiro, Belo Horizonte
Fonte: Google Earth (2015).
Ocupação Eliana Silva e Praxis
Como participante da ocupação desde o primeiro momento, Brígida é moradora e coordenadora da Ocupação Eliana Silva. Na fase
inicial, ajudava na cantina e cozinhava para os
ocupantes. Morou em uma barraca de camping
por seis meses, enquanto o marido, que era pedreiro, construía o muro e a base da casa. Essas primeiras ações foram fundamentais para
que eles garantissem seu terreno e o acesso ao
bairro situado logo em frente.
isso aqui é uma herança. E é o lugar que
eu mais me sinto bem é aqui porque eu já
morei em tudo que é lugar em Belo Horizonte. [...] Aqui eu tive melhoras grandes e eu morro de rir com as coisas que
acontecem. [...] Tenho amizade com todo
mundo. (Brígida, moradora da Ocupação
Eliana Silva)15
158
Book 35.indb 158
O casal morava anteriormente em Lindéia, bairro de Belo Horizonte, pagando aluguel; aos poucos, juntaram dinheiro para
comprar materiais de construção. Fizeram inicialmente a estrutura de concreto armado e,
em seguida, dois cômodos e um pequeno banheiro; eles têm intenção de abrir um comércio no futuro, aproveitando a boa localização
do lote. Pretendem ainda terminar a cozinha,
construir mais um quarto e deixar uma área
para a garagem.
Assim como Brígida, todos os outros moradores das ocupações urbanas entendem a
moradia como casa com quintal, autoconstruída
horizontalmente em terrenos urbanos ociosos
na cidade, que não cumprem a função social
da propriedade, imersa em processos decisórios
organizados e coletivos, referenciados pela sobrevivência e pela luta política. Ao contrário dos
pressupostos do PMCMV, moradia na Ocupação
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As políticas habitacionais e as ocupações urbanas
Eliana Silva é casa que se transforma ao longo
Por um lado, a comunicação entre todos
do tempo em razão das diversas necessidades
funciona como a ponte entre todas as partes.
habitacionais (tamanho e uso dos espaços) de
Por outro lado, acatando a proposta agonísti-
grupos distintos (diferenças culturais, econômi-
ca de Mouffe (2008), o conflito gira em torno
cas e sociais bem como número de moradores),
da moradia e da cidade que moradores e pes-
inserida na malha urbana que permite a fuga
quisadores querem construir e que o Estado
do aluguel majorado pela dinâmica imobiliária
quer remover.
metropolitana e da “fila” dos programas muni-
Nesse sentido, o agir cotidiano comum,
cipais de habitação. É importante dizer que, ain-
que tem o conflito como seu gerador (seja pe-
da que as dificuldades de acesso à moradia fo-
la presença dos moradores e pesquisadores,
mentem o conflito e a disputa pela cidade, am-
seja pela ausência do Estado), resgata a expe-
pliando e fortalecendo as ocupações urbanas, o
riência do pensamento prático na medida em
sonho da casa própria está igualmente presente
que se insere em uma comunidade política.
no imaginário dos moradores das ocupações ur-
Considerando que a comunicação efetiva só é
banas, muitos deles desejando ser proprietários
possível se, e somente se, as experiências e as
de apartamentos do PMCMV.
vivências são livremente expressas (a liberda-
Desde outubro de 2012, pesquisadores do
de de criação), o processo produtivo baseado
Praxis, coordenadores do MLB/MG e moradores
na informação compartilhada permite a elabo-
da Ocupação Eliana Silva juntos desenvolvem
ração de uma outra lógica da prática – o agir
atividades fundamentadas pelo compartilha-
não se faz pela reunião de um grupo nem pelo
mento de informações e pelo processo coletivo
indivíduo, mas a partir da informação que faz
de tomada de decisão, nomeado Diálogos, entre
sentido a cada um na busca e na criação pela
todos os envolvidos nos processos produtivos
identificação primeira do todo – a comunida-
dos espaços comuns e das moradias.16
de política.
Figura 5 – Casas na ocupação Eliana Silva, Belo Horizonte
Fonte: Praxis (2014).
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Denise Morado Nascimento
Figura 6 – Esgoto e Creche Tia Carminha na Ocupação Eliana Silva
Belo Horizonte
Fonte: Praxis (2012-2015).
Finalizando...
cidades, mas vê-se facilmente o dissenso na
A associação Estado-capital impõe à cidade a
dia: a cidade realiza o ciclo do capital de pro-
moradia financiada como produto massificado
dução de mercadoria, bem como é plataforma
de apartamentos genéricos nas periferias da
para efetivação dos capitais financeiro e imobi-
cidade, sem urbanidade e precarizadas pela fal-
liário por meio do consumo da casa.
prática político-econômica em torno da mora-
ta de serviços públicos e urbanos. Ainda que a
As contradições em torno da produção
PBH demonstre esforços para viabilizar quanti-
da cidade – as políticas habitacionais e as
tativamente o PMCMV, abarcada pelo discurso
ocupações urbanas – são devidas, em gran-
da redução do déficit habitacional, interesses
de medida, ao desenvolvimento da dinâmica
econômicos e argumentos políticos sobressa-
especulativa presente no mercado imobiliário
em diante das necessidades habitacionais dos
da RMBH. Isso posto, colocam-se em cheque
moradores de baixa renda. Não há mal-enten-
as premissas sociais do PMCMV uma vez que
dido ou desconhecimento sobre a complexa
sua produção se atrela mais ao mercado imo-
realidade da questão habitacional nas grandes
biliário. Repete-se a lógica de “pobres no lugar
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As políticas habitacionais e as ocupações urbanas
de pobres”, determinada pela implantação de
procedimentos da associação Capital-Estado
grandes parcelas populacionais dos contem-
em contraste com a liberdade de criação a par-
plados pelo PMCMV/FAR nas áreas menos va-
tir da realidade que se quer modificar.
lorizadas da cidade. Além disso, o PMCMV tem
prevalecido financeiramente e politicamente
diante de outras ações historicamente construídas, como regularização fundiária, urbanização de favelas e assentamentos precários,
crédito à autoconstrução, assessoria técnica,
melhorias habitacionais, locação social, todas
necessárias para a construção de uma ampla e
democrática política habitacional.
Na contramão, as ocupações urbanas
emergem como movimento livre de criação de
uma outra cidade, ainda que em terrenos precários e condições sociopolíticas vulneráveis e
até mesmo violentas. Nesse sentido, não há
como não desvelar os conflitos existentes em
torno, por exemplo, do compromisso dos movimentos sociais de Belo Horizonte pelas ocupações horizontais de terrenos. Se, por um lado,
produzem resistência pelo lote e pelo território
compartilhado, por outro, reforçam a propriedade individualizada (a casa) e o sacrifício corpóreo de trabalhadores (a autoconstrução) na
medida em que optam tanto por não acessar
serviços urbanos (energia, água e esgoto, principalmente) disponíveis em edificações verticais vazias e/ou subutilizadas na cidade quanto por não lutar por outros programas como,
por exemplo, a locação social.
O envolvimento de profissionais do Direito e da Arquitetura com a temática das
ocupações urbanas colocou o conflito
com uma nova fisionomia na arena política institucionalizada. É importante destacar que ela sempre esteve lá, até porque
as ocupações urbanas sempre caracterizaram a urbanização das cidades brasileiras, porém, o envolvimento desses
profissionais, pela importância que eles
assumem na fundamentação do sistema
capitalista, coloca a questão a partir de
instrumentos institucionalizados que neste caso serão aplicados com a intenção
de garantir o direito à cidade e à moradia
para um setor social que não tem acesso.
Tiago Castelo Branco Lourenço (Morado
Nascimento, 2015, p. 115)
Daí a importância de os movimentos
populares estarem conectados com as
universidades, entidades e grupos que
buscam disseminar novas práticas construtivas e de apropriação espacial no
território [...]. Trata-se de um processo
pedagógico de mão-dupla, no qual ambas as partes constroem conjuntamente
novas práticas que se contraponham
aos valores capitalistas calcados sobre
o individualismo. O horizonte possível
é a construção do bem comum urbano em oposição à “cidade-empresa”.
Joviano Mayer (Morado Nascimento,
2015, p. 119) 17
Inegavelmente, porém, o movimento de
resistência das ocupações urbanas deve ser
Ao nosso ver, as ocupações urbanas tor-
reconhecido. Holloway (2013) considera tal
nam legítimas as práticas que possibilitam a
movimento como fissuras do capitalismo, uma
coexistência humana em condições sempre
insubordinação aqui-e-agora, um movimento
conflituosas porque são sempre afetadas pela
de negação-e-criação. Esses movimentos são
dimensão do político – práticas e discursos de
legítimas forças para reprimir as práticas e
adversários.
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Denise Morado Nascimento
Denise Morado Nascimento
Universidade Federal de Minas Gerais, Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo,
Escola de Arquitetura, Departamento de Projetos. Belo Horizonte/MG, Brasil.
[email protected]
Agradecimentos
Fapemig, CNPq, Capes, ProEx/UFMG.
Notas
(1) Leonardo Péricles é coordenador do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB/MG) e
morador da Ocupação Eliana Silva; em post no Facebook, 7 de agosto de 2015.
(2) Cleide Aparecida Nepomuceno é Defensora Pública de Minas Gerais.
(3) A Urbel (Companhia Urbanizadora e de Habitação de Belo Horizonte) é o órgão da prefeitura
responsável pelo planejamento e execução das ações e intervenções de urbanização das
vilas, favelas e conjuntos habitacionais de interesse social e também pela produção de novas
moradias para famílias de baixa renda.
(4) Referenciamo-nos aos instrumentos neoliberais transvestidos em subsídios habitacionais no
Brasil, a reboque dos programas do Chile e do México.
(5) O FAR (Fundo de Arrendamento Residencial) recebe recursos transferidos do Orçamento Geral
da União (OGU) para viabilizar a construção de unidades habitacionais. Novas regras do PMCMV
foram anunciadas em 15/9/2015, devendo ainda ser oficialmente homologadas. O valor limite
da renda do PMCMV/FAR Faixa 1 deve ser alterado dos atuais R$1.600,00 para R$1.800,00. Para
famílias que recebem até R$800,00, a parcela será de R$80,00. Já quem recebe entre R$800,00
e R$1.200,00 pagará 10% da renda. Famílias com renda entre R$1.200,00 a R$1.600,00 terão
percentual de 15%; e para renda entre R$1.600,00 a R$1.800,00, será de 20%.
(6) Argumentos presentes nessa seção referem-se ao Relatório Final da pesquisa “Programa Minha
Casa Minha Vida: estudos avaliativos na Região Metropolitana de Belo Horizonte”, Edital
MTCI/CNPq/MCidades n. 11/2012, coordenado pela Profa. Dra. Denise Morado Nascimento.
Disponível em: h p://www.arq.ufmg.br/praxis/7_MCMV/index.html.
(7) Rede Cidade e Moradia: Adauto Lucio Cardoso – Ippur-UFRJ (Observatório das Metrópoles); Cibele
Saliba Rizek – IAU-USP (Leauc) e Peabiru; Denise Morado Nascimento – EA-UFMG (Praxis); José
Júlio Ferreira Lima – FAU-UFPA (Labcam); Lúcia Zanin Shimbo – IAU-USP (Habis); Luciana da Silva
Andrade – Prourb-UFRJ (CiHabE); Maria Dulce P. Bentes Sobrinha – DARQ-UFRN (Labhabitat);
Margareth Uemura – Ins tuto Pólis-SP; Raquel Rolnik – FAU-USP (LabCidade); Renato Pequeno
– DAU-UFC (Lehab); Rosangela Dias Oliveira da Paz – PUC-SP (Nmos/Cedepe).
(8) Em Belo Horizonte, as ocupações urbanas estão vinculadas principalmente ao Movimento de Luta
nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB/MG), Brigadas Populares, Comissão Pastoral da Terra; mas
também Fórum de Moradia do Barreiro e Movimento de Luta Pela Moradia (MLPM). Além disso,
as ocupações urbanas inserem-se em uma rede de atores dis ntos, desde a vistas até grupos
de pesquisa de universidades.
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As políticas habitacionais e as ocupações urbanas
(9) Tiago Castelo Branco Lourenço é diretor dos Arquitetos Sem Fronteiras.
(10) No manuscrito original de CríƟca da Filosofia do Direito de Hegel, Marx usou a palavra Kommune,
vindo depois a rasurá-la e subs tuí-la por Gemeinwesen (Pogrebinschi, 2009, p. 195).
(11) À época, a grande maioria dos terrenos pertencia à Companhia de Distritos Industriais (CDI),
atual Companhia de Desenvolvimento do Estado de Minas Gerais (Codemig).
(12) O grupo de pesquisa Praxis (Prá cas sociais no espaço urbano) está sediado pelo Departamento
de Projetos e pelo Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo (NPGAU) da
Escola de Arquitetura da UFMG, coordenado pela Profa. Dra. Denise Morado Nascimento. Mais
informações: h p://www.arq.ufmg.br/praxis. Iniciamos parceria com a Ocupação Irmã Dorothy,
em 2009, e com a Ocupação Eliana Silva em outubro de 2012.
(13) A primeira Ocupação Eliana Silva se iniciou na madrugada do dia 21/4/2012, quando cerca de
200 famílias, organizadas pelo Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), ocuparam
um terreno público na região do Barreiro, em Belo Horizonte. As famílias permaneceram no
terreno em barracos de lona por pouco menos de um mês. Nos dias 11 e 12 de maio, as então
300 famílias moradoras da ocupação foram removidas do terreno pela Polícia Militar. No dia 22
de agosto de 2012, com o apoio do MLB, as famílias que se man veram organizadas realizaram
uma nova ocupação, também em um terreno vazio, localizado a aproximadamente 1km do local
inicialmente ocupado.
(14) Segundo informação da Profa. Margarete [Leta] Silva, pesquisadora do Praxis, nos mapas de
Belo Horizonte, até pelos menos 1937, o ribeirão que deu nome à área conhecida como Granja
Werneck está grafado como Ribeirão da Izidora. Assim como o Ribeirão da Onça, ambos foram
masculinizados nos mapas seguintes. Há informações de que Izidora teria sido uma escrava (ou
uma mulher escravizada) alforriada que ali cons tuiu sua descendência. É possível que o nome
venha dela – Izidora da Costa. Assim, os movimentos sociais referem-se à região como Izidora e
a PBH como Izidoro.
(15) Em entrevista para o grupo de pesquisa Praxis, 2014.
(16) Mais informações: Projeto Diálogos. Disponível em: http://www.arq.ufmg.br/praxis/blog/
dialogos/dialogos.html.
(17) Joviano Mayer é militante das Brigadas Populares.
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Denise Morado Nascimento
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Texto recebido em 13/out/2015
Texto aprovado em 9/dez/2015
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Por que o Programa Minha Casa
Minha Vida só poderia acontecer
em um governo petista?
Why could the Minha Casa Minha Vida Program only have
happened in a government headed by the Labor Party?
Danielle Klintowitz
Resumo
No período de gestão do Partido dos Trabalhadores (PT) no governo federal, configurou-se uma
dupla agenda para a política habitacional: a primeira ligada à plataforma de reforma urbana, com
previsão de descentralização e gestão participativa, e a segunda consubstanciada na premissa de
reestruturação do setor imobiliário, estruturada
em uma política exclusiva de provisão habitacional com promoção privada e financiamento
público. Esse modelo de governança garantiu a
distribuição de benefícios a ambas coalizões que
representavam essas agendas, além de ter legitimado a política habitacional na agenda pública.
No presente trabalho, analisou-se a trajetória do
principal programa habitacional desenvolvido na
época (MCMV), discutindo suas implicações para
o direito à moradia e o papel dos atores do setor
habitacional neste contexto.
Abstract
Since the Labor Party has been governing Brazil,
there has been a double agenda for the housing
policy: the first one is linked to the urban reform
platform, with a forecast of decentralization
and participatory management, and the second
is embodied in the premise of restructuring of
the real estate sector, structured in an exclusive
housing policy with private promotion and public
funding. This governance model has ensured
the distribution of benefits to both coalitions
representing these agendas, and has legitimized
the housing policy within the public agenda.
In this paper, we analyze the trajectory of the
main housing program developed in this period
(MCMV), discussing its implications to the right
to housing and the role of actors in the housing
sector within this context.
Palavras-chave: política habitacional; reforma urbana; mercado imobiliário; Programa Minha Casa
Minha Vida; coordenação de interesses.
Keywords: housing policy; urban reform; real
estate market; Minha Casa Minha Vida Program;
coordination of interests.
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hƩp://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3508
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Danielle Klintowitz
Introdução
Ao tornar-se Presidente da República,
Luiz Inácio Lula da Silva reconhecendo, de
maneira inovadora, os movimentos de moradia
Historicamente, a política habitacional brasi-
como players do setor, conformou uma estra-
leira agregou em torno de si muitos interes-
tégia de coordenação de interesses ousada,
ses públicos e privados. Durante o século XX,
colocando na mesa de negociação movimentos
assistiu-se a uma forte articulação funcional
de moradia e setor produtivo, coalizões com in-
no relacionamento entre Estado e setor produ-
teresses historicamente opostos.
tivo, o que garantiu a priorização de políticas
Estruturou-se, apoiado nesse contexto,
habitacionais mais voltadas ao crescimento
um programa habitacional – o Minha Casa
econômico do que ao direito à moradia. Com
Minha Vida (MCMV) – que ganhou status de
a redemocratização e a desestruturação da
política por seu vigor de recursos e apoio mul-
política federal de habitação até então estru-
tifacetado conquistado. O desenho desse pro-
turada no Banco Nacional de Habitação (BNH),
grama atendeu à necessidade de sustentação
emergiram movimentos sociais urbanos, como
da reestruturação do setor produtivo da cons-
o Movimento Nacional de Reforma Urbana
trução civil e mercado imobiliário, que estava
(MNRU) – transformado posteriormente em
em curso, com investimentos keynesianos que
Fórum Nacional da Reforma Urbana (FNRU) –,
impactaram a sustentação macroeconômica
que conquistaram o estabelecimento de um
do país, dialogando pouco com as necessida-
progressista arcabouço jurídico para o desen-
des habitacionais das cidades brasileiras e com
volvimento urbano e praticaram de forma par-
o Sistema Nacional de Habitação de Interesse
ticipativa, junto com governos locais de esquer-
Social (SNHIS) que estava em construção desde
da, algumas experiências de implementação no
2005.
território, constituindo uma nova matriz rela-
No entanto, apesar dos ganhos assimé-
cional com o Estado que ficou conhecida como
tricos conquistados pelos movimentos de mo-
o “modo petista de governar”.
radia em relação à coalizão do setor produtivo
Com a ascensão ao governo federal do
e do enfraquecimento definitivo do SNHIS, a
Partido dos Trabalhadores (PT) que teve des-
coordenação de interesses que se estabeleceu
de sua fundação uma estreita relação com os
no MCMV tornou-se extremamente eficiente
ideários da reforma urbana, criaram-se amplas
e se expandiu para além dos interesses dessas
expectativas nos atores ligados a essa platafor-
coalizões, sendo capaz de se ramificar em vá-
ma de que o novo momento representaria um
rias escalas de coordenação: entre o setor pú-
marco de ruptura no legado histórico da polí-
blico e privado; entre os diferentes ministérios;
tica habitacional voltada ao desenvolvimento
entre União e municípios.
econômico e o início de um ciclo virtuoso de
Esse arranjo que se estabeleceu então
implementação do “modo petista de governar”
foi capaz de garantir que ambas as agendas
na escala federal.
concorrentes – de reforma urbana e do setor
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Por que o Programa Minha Casa Minha Vida só poderia acontecer...
produtivo – convivessem de maneira articula-
dificuldades financeiras às grandes empresas
da, mesmo que preservassem suas contradi-
que naquele momento detinham grande soma
ções. Criou-se um imbricamento cooperativo
de investimentos imobilizados em bancos de
que permitiu construir uma política habitacio-
terra.
nal que se tornou uma das principais forças
1
desse governo.
Nesse cenário, a conjuntura econômica
foi o pretexto determinante para ampliação
Com o arranjo criado nesse ambiente,
dos mecanismos e volume de recursos destina-
estabeleceu-se um “regime de política” (Couto
dos ao setor habitacional. Através do MCMV,
e Abrucio, 2003) no qual se alcançou um enten-
com o objetivo explícito de socorrer o setor
dimento quase hegemônico acerca da política
produtivo da construção civil e mercado imo-
habitacional com seu lastreamento em inte-
biliário e evitar o aprofundamento da crise do
resses objetivos dos atores envolvidos. Assim,
mercado, o governo federal colocou o proble-
neutralizaram-se possíveis conflitos dos ato-
ma da habitação definitivamente nos termos
res e suas coalizões com Estado, imbricando e
propostos pelo setor imobiliário. Segundo
engendrando-os na defesa da própria política,
dados do Ministério do Planejamento (Brasil,
mesmo que apenas parte dessa fosse conve-
2014), entre 2009 e 2014 foram investidos
niente para concretização de seus interesses e
R$251,8 bilhões no MCMV, considerando os
que apenas parte de seus interesses fosse efeti-
subsídios diretos e linhas de crédito disponibili-
vamente atendida.
zadas. Esses recursos foram responsáveis pela
Neste artigo, busca-se discutir como se
deu essa coordenação de interesses na cons-
contratação de 3,75 milhões de unidades habitacionais em todo o Brasil.
trução e implementação do Programa Minha
O MCMV foi elaborado pela Casa Civil e
Casa Minha Vida e quais os rumos que a polí-
pelo Ministério da Fazenda, em diálogo direto
tica habitacional nacional tomou a partir dessa
com os setores imobiliários e da construção,
nova configuração.
desconsiderando diversos avanços institucionais na área de desenvolvimento urbano, bem
como a interlocução com o restante da socie-
MCMV: entre o direito
à moradia e reestruturação
do setor produtivo
dade civil. O Ministério das Cidades (MCidades) que tinha na sua origem um forte imbricamento com os atores ligados à plataforma da
reforma urbana foi posto de lado na concepção
inicial, sendo chamado a contribuir apenas de-
No contexto de euforia do mercado imobiliário
pois de elaborada a macroestrutura de funcio-
com o aumento dos recursos disponíveis e com
namento do Programa.
a reforma institucional que garantia a seguran-
Inicialmente pensava-se em uma estra-
ça dos negócios e lançamentos grandiosos, a
tégia destinada apenas às famílias de estratos
crise internacional do subprime de 2008 amea-
médios – com renda acima de três salários
çou a possibilidade de venda dos empreendi-
mínimos (SM) – com possibilidade de aces-
mentos em construção, impondo ainda sérias
so a financiamentos e que necessitavam um
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Danielle Klintowitz
percentual menor de subsídio atrelado a eles.
políticas habitacionais, em que o atendimento
Como se tratava de um programa destinado
não é distribuído de acordo com as necessida-
a reduzir as perdas financeiras do setor pro-
des reais, mas de acordo com os interesses dos
dutivo, os empresários do setor não queriam
formuladores e implementadores.
correr riscos. No entanto, o MCidades lutou
As metas do programa por faixa de aten-
pela entrada das famílias de menor renda no
dimento pouco dialogam com o déficit habita-
programa, o que implicava maiores subsídios
cional acumulado por faixa de renda no país.
públicos. Os subsídios são fundamentais para
Na primeira fase do Programa (MCMV1), en-
o acesso das famílias de baixa renda ao mer-
quanto 91% do déficit estava concentrado na
cado habitacional e, ao mesmo tempo, trazem
faixa 1 (renda até três SM), apenas 40% das
vantagens também ao setor produtivo que tem
unidades produzidas destinaram-se a esse
o mercado habitacional ampliado com famílias
público. Como consequência, apenas 6% do
que de outra maneira estariam fora.
déficit habitacional das famílias com menor
O Presidente Lula, orientado pela busca
renda foi atingindo,3 enquanto 93% e 95% do
de soluções de arbitragem que caracterizou seu
déficit das faixas de renda mais altas (2 e 3) fo-
governo (Singer, 2012), viu aí uma possibilida-
ram atendidos, respectivamente. Na segunda
de também de ganho de capital político junto
etapa (MCMV2), embora a meta para a faixa
à base de menor renda, além da ampliação do
1 tenha sido expressivamente ampliada em
mercado habitacional fundamental para as em-
detrimento das demais faixas, o combate ao
presas do setor. Assim, criou-se um programa
déficit dessas famílias ainda é percentualmen-
com um patamar histórico de subsídios para as
te muito inferior ao atendimento às famílias
famílias com renda de até três SM.
com maior renda.
No entanto, o modelo do MCMV im-
No modelo institucional desenhado para
plementado privilegiou a concessão maciça
o MCMV, a análise de projetos, bem como a
de subsídios para faixas de renda mais altas
contratação de obras e medição de etapas fina-
(Faixa 2) que poderiam adquirir financiamen-
lizadas é parte dos procedimentos de respon-
tos maiores com menores percentuais de sub-
sabilidade da Caixa Econômica Federal (CEF),
sídio. Ao mesmo tempo, também se elevou a
não cabendo aos municípios responsabilidade
faixa de renda financiada pelo Fundo de Ga-
formal pelos resultados alcançados. Nesse mo-
rantia sobre o Trabalho (FGTS), com melhores
delo, o promotor do empreendimento passa a
condições de juros, e parte dessa demanda
ser o setor privado, o poder público assume um
poderia ser atendida pelo Sistema Brasileiro
papel apenas de financiador e organizador da
2
de Popança e Empréstimo (SBPE), liberando
demanda. Cabe ao mercado privado a promo-
recursos do FGTS com financiamento mais ba-
ção dos empreendimentos habitacionais ela-
rato para famílias de menor renda (Bonduki,
borados de acordo com as exigências técnicas
2014). Assim, apesar dos expressivos subsí-
mínimas do MCMV, principalmente no que se
dios concebidos de maneira inédita no país
refere ao cálculo do valor da unidade habita-
para as faixas de renda mais baixas, o Pro-
cional, de forma a se enquadrar no perfil finan-
grama ainda reproduz as antigas lógicas das
ciado e, ao mesmo tempo, garantir maior taxa
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Por que o Programa Minha Casa Minha Vida só poderia acontecer...
Tabela 1 – Metas do MCMV e déficit habitacional acumulado
por faixas de renda
MCMV 1
Déficit
acumulado
(em %)
Metas
do MCMV 1
(em %)
Déficit
acumulado**
(em mil)
Metas
do MCMV1
(em mil)
Faixa 1
91
40
6.550
400
6
Faixa 2
6
40
430
400
93
Faixas de renda*
Faixa 3
Total
% Déficit
acumulado
atendido
3
20
210
200
95
100
100
7.190
1.000
14
MCMV 2
Déficit
acumulado
(em %)
Metas
do MCMV 2
(em %)
Déficit
acumulado***
(em mil)
Metas
do MCMV2
(em mil)
% Déficit
acumulado
atendido
Faixa 1
72
60
4.698,76
1.440
31
Faixa 2
15
30
941,05
720
77
Faixa 3
13
10
850,19
240
28
100
100
6.490
2.400
37
Faixas de renda
Total
* As faixas de renda do Programa MCMV não são as mesmas faixas estabelecidas pela metodologia da Fundação João Pinheiro (FJP) para coleta dos dados. Enquanto o MCMV trabalha com a faixa 2 para famílias com rendimento entre 3 e 6 SM, a FJP
faz o cálculo do déficit para famílias com rendimento entre 3 e 5 SM. Optou-se por estabelecer esta relação como proxy, já
que estas são as únicas informações disponíveis. No entanto, as análises precisam considerar esta pequena distorção.
** com base no déficit habitacional 2000 (FJP, 2004).
***com base no déficit habitacional 2010 (FJP, 2013).
Fonte: Elaboração própria. FJP (2004 e 2013) e CEF (2013).
de lucro possível em seus projetos. Nesse con-
voltado para as empresas que acessam direta-
texto, apesar do histórico patamar de recursos
mente os recursos do FAR ou do FGTS,4 moda-
orçamentários destinados a subsídios para
lidades com protagonismo do mercado privado
atender a população de mais baixa renda no
(Brasil, 2014).
MCMV, os empreendimentos para essa faixa de
Nestas modalidades do MCMV destina-
renda são fortemente marcados por uma lógica
das a empresas (FAR – faixa 1, FGTS – faixa
de produção do mercado imobiliário privado, o
2 e FGTS – faixa 3), o fluxo de contratação e
que nem sempre dialoga com as necessidades
produção desenhado garantem o protagonis-
relacionadas ao direto à moradia.
mo direto das empreendedoras. A operaciona-
Apesar de existirem outras modalidades,
lização se dá mediante o repasse de recursos
como o Programa Nacional de Habitação Ru-
do governo federal para construtoras, que, por
ral (PNHR), Minha Casa Minha Vida Entidades
sua vez, constroem os empreendimentos habi-
(MCMV-E), o Sub-50, destinado a municípios
tacionais. Mesmo na modalidade faixa 1, que
com menos de 50 mil habitantes e uma mo-
conta com expressivos subsídios, a produção se
dalidade para urbanização, analisando-se os
dá por oferta privada ao poder público, isto é, a
montantes alocados nos diferentes fundos e as
construtora define a cidade onde pretende fa-
unidades contratadas, observa-se que o núcleo
zer o empreendimento, o terreno, o projeto e o
central do MCMV, desde o início, foi aquele
número de unidades; aprova junto aos órgãos
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Gráfico 1 – Contratações
do MCMV 1 e 2 nas diferentes
modalidades (%)
Gráfico 2 – Contratações do MCMV
nas modalidades destinadas
a empresas e outros (%)
modalidades
empresas – 88%
outras
modalidades–12%
Fonte: Brasil, Balanço PAC 2 – 4 anos de execução.
Dez 2014.
Fonte: Brasil, Balanço PAC 2 – 4 anos de execução.
Dez 2014.
competentes e vende integralmente o que pro-
Um dos impactos mais imediatos so-
duzir para a CEF, sem gastos de incorporação
bre os programas desenvolvidos no âmbito
imobiliária e comercialização e sem riscos de
do Fundo Nacional de Habitação de Interes-
inadimplência dos compradores.
se Social (FNHIS) diz respeito à eliminação
dos repas ses de recursos para as ações de
provisão habitacional para municípios e coo-
A implementação do MCMV,
o enfraquecimento do SNHIS
e a desarticulação aos processos
de planejamento urbano
e habitacional
perativas habitacionais, o que implicou a realização inte gral da provisão habitacional
nos termos das modalidades previstas pelo
MCMV, e o FNHIS não pôde mais ter programas alternativos para essa modalidade. Vale
destacar ainda que, a partir de 2010, priorizou-se a alocação de recursos desse fundo
Com esse desenho adotado para o programa,
em obras complementares a projetos em an-
fortemente ancorado na promoção das ha-
damento financiados com recursos do PAC,
bitações pelo setor privado, o MCMV entrou
que inclui o MCMV, o que mostra um caráter
em choque com os princípios do SNHIS que
subsidiário do FNHIS nas decisões de política
era pautado pelo papel estratégico do setor
habitacional (Cardoso, Aragão, Araújo, 2011;
público e pela descentralização federativa, ig-
Relatório de Gestão do Conselho Gestor do
norando em larga medida premissas e deba-
FNHIS, 2013).
tes acumulados em torno do Plano Nacional
Outra importante implicação para o
de Habitação de Interesse Social (PlanHab)
FNHIS foi o esvaziamento de recursos desse
(Krause, Balbim e Lima Neto, 2013; Cardoso,
fundo. Entre os anos de 2003 e 2010, rever-
Aragão e Araujo, 2011).
tendo definitivamente a estagnação presente
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Por que o Programa Minha Casa Minha Vida só poderia acontecer...
Tabela 2 – Recursos orçamentários executados do FNHIS,
PAC e PMCMV (2006-2014)
FNHIS
PAC Favelas
MCMV
Total
Ano
%
Bilhões de R$
%
%
Bilhões de R$
2006
Bilhões de R$
1
40
1,52
60
Bilhões de R$
-
-
3,52
2007
0,3
13
1,97
87
-
-
3,27
2008
0,8
23
2,7
77
-
-
4,5
2009
1,01
10
3,88
38
5,25
52
10,62
2010
0,17
2
1,88
22
6,68
77
8,96
2011
0,51
4
2,15
16
10,98
80
13,84
2012
0,13
1
3,2
20
12,55
79
16,09
2013
0,21
1
3,65
19
15,63
80
19,68
2014
0,05
0,2
2,7
14
16,8
86
19,69
Fonte: Elaboração própria. SIGA Brasil - Acompanhamento da execução orçamentária da União, entre 2006 e 2014.
no setor habitacional desde a extinção do BNH
que não integram o modelo desenhado para
em 1986, o investimento federal, incluindo os
o funcionamento do SNHIS. É importante res-
investimentos com recursos onerosos do SBPE
saltar, também, que os recursos destinados ao
e do FGTS, saltou de R$7,9 bilhões, em 2003,
FNHIS não só são menores em termos absolu-
para R$101,5 bilhões em 2010 (Brasil, 2014).
tos em relação aos outros fundings nesse pe-
No PPA de 2012 a 2015, dos 26% dos recursos
ríodo, como percentualmente sua participação
do Orçamento Geral da União (OGU) alocados
nos recursos destinados à habitação perde
para infraestrutura, 32,6% foram destinados
importância, chegando a menos de 1% dos
à habitação, o que equivale ao montante de
recursos totais orçamentários no final do pe-
R$389,7 bilhões dedicados ao setor em quatro
ríodo estudado.
anos de planejamento orçamentário. Entretan-
Com quase a integralidade dos recursos,
to, quando se observam os dados referentes à
desenhou-se um programa – o MCMV – que
alocação de recursos, percebe-se claramente
acabou se transformando de maneira hege-
que o FNHIS foi desprivilegiado, apresentando
mônica no eixo central da política habitacional
um significativo declínio a partir 2010, quando
no Brasil, fixando sua atuação apenas na pro-
se iniciam as contratações do MCMV.
dução de novas moradias, atendendo plena-
Os recursos crescentes para o setor habi-
mente aos interesses do mercado imobiliário e
tacional são alocados em outros fundings a fim
da construção civil, mas relegando ao esqueci-
de financiar programas habitacionais – PAC
mento outras modalidades de enfrentamento
Favelas e Minha Casa Minha Vida (MCMV) –
às diferentes necessidades habitacionais.
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O próprio PAC Favelas,5 que priorizava
da disposição do mercado privado em apresen-
a modalidade de urbanização, acabou sendo
tar projetos nas cidades onde o negócio é mais
prejudicado em detrimento do MCMV. O PAC
atrativo; e como a meta estabelecida de con-
tem um arranjo institucional em que os gover-
tratação de unidades era muito alta (3,75 mi-
nos locais são promotores das intervenções,
lhões somando as fases 1 e 2 do MCMV), não
tornando o processo mais lento sem propiciar
existiu até o fim da segunda fase do Programa
a celeridade no retorno do capital político e fi-
espaço para priorizar os municípios que haviam
nanceiro empregado pelo mercado imobiliário.
cumprido essas disposições legais. As contrata-
Como afirma Fix (2011), a temporalidade políti-
ções obedeceram apenas a disposição de lucro
co-eleitoral do MCMV parece se ajustar melhor
do mercado e as análises de viabilidade da CEF.
ao ritmo do capital financeiro – que promete
atropelar resistências de todos os tipos – do
que àquele das lutas urbanas e dos direitos sociais que a urbanização representa.
A desarticulação da estrutura do MCMV
O impacto MCMV
sobre o direito à cidade
aos processos municipais de planejamento urbano e habitacional suscitou o abandono des-
No entanto, na literatura sobre o tema ainda
ses processos de planejamento e desenvolvi-
resta a dúvida se os municípios que tinham pro-
mento institucional que estavam em curso nas
cessos de planejamento estabelecidos tiveram
esferas subnacionais. O governo federal retirou
vantagens em relação às contrações de uni-
a capacidade financeira, e consequentemente
dades no MCMV. Para verificar a existência da
decisória e de atuação do SNHIS, em detrimen-
correlação entre a existência dos instrumentos
to da alocação dos recursos em outro modelo,
de planejamento que estavam sendo fomenta-
e, em consequência, os municípios também se
dos pelo MCidades e a contratação do MCMV
desmobilizaram no atendimento às regras des-
realizou-se uma regressão linear com os dados
se Sistema e direcionaram suas energias para a
de contratação disponíveis (Klintowitz, 2015).6
obtenção do maior número possível de unida-
Além de verificar a correlação entre instrumen-
des habitacionais por meio do MCMV (Rolnik,
tos de planejamento e o número de unidades
Klintowitz e Iacovini, 2014).
contratadas no âmbito do MCMV nos municí-
A Lei nº 11.977/2009 que dispõe sobre o
pios brasileiros, nessa regressão buscava-se in-
MCMV, define como um dos critérios de prio-
ferir o que explica o “sucesso” da contratação
rização dos municípios, além da desoneração
do Programa nos diferentes municípios bra-
fiscal e doação de terrenos em áreas consolida-
sileiros, já que os dados mostram que alguns
das, a implementação de instrumentos do Esta-
municípios extrapolaram o atendimento de
tuto das Cidades. No entanto, essas regras de
suas metas, enquanto outros não conseguiram
priorização nunca foram cumpridas. Segundo
contratar nem a metade da meta estipulada.
os entrevistados da CEF (Klintowitz, 2015), as
Para verificar o sucesso das contratações
contratações do Programa não adotam essas
em alguns municípios, coletou-se variáveis que
normativas de priorização porque dependem
poderiam explicar maiores contratações de
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Por que o Programa Minha Casa Minha Vida só poderia acontecer...
unidades habitacionais no MCMV em alguns
(conselho, fundo e plano) com o número de
municípios em detrimento de outros. Para ava-
contratações. Da mesma forma, a existência
liar a contração em cada município brasileiro
de instrumentos urbanísticos de planejamento
foi utilizado um banco de dados fornecido pela
e gestão do solo, não apresentam correlações
CEF. Esse banco de dados continha informações
com o sucesso de contratações do MCMV.
sobre todas as unidades habitacionais contra-
Apenas as variáveis do bloco de análise
tadas na primeira fase do MCMV que finalizou
relacionado às dimensões territoriais demons-
com 1 milhão de unidades em maio de 2011.
traram correlações. Essas variáveis apresenta-
Como variável dependente elaborou-se um
ram uma correlação positiva entre as tipologias
“índice de sucesso de contratações” que foi
de cidades identificadas como “periferia dos
calcula do a partir da divisão do número de
polos regionais” e “grandes cidades isoladas”
unidades contratadas pela meta estabelecida
e o sucesso de contratação de unidades do
pelo governo federal – em número de unida-
MCMV1 na Faixa 1, demonstrando que nesses
des. Como as metas de contratação do MCMV
tipos de cidades se realizam percentualmente
são estipuladas a partir do déficit habitacional,
mais contratações do MCMV em relação a seu
essa variável relaciona as necessidades habita-
déficit habitacional. Uma explicação para es-
cionais representadas pelos déficits dos muni-
sa correlação está relacionada ao mercado de
cípios com o número de unidades contratadas.
terras desses municípios. Essas tipologias de ci-
Inicialmente constatou-se que as contra-
dades apresentam menor dinâmica imobiliária,
tações da modalidade faixa 1 do MCMV não
com menor disputa pela terra, em relação a ou-
apresentavam relação direta com os números
tras tipologias que não mostraram correlações
do déficit habitacional de cada município. Exis-
com o sucesso de contratação das unidades do
te uma grande diversidade de situações nas
MCMV. A baixa dinâmica de terras poderia en-
relações entre o número de unidades contrata-
tão ser uma explicação para o maior número
das no âmbito do MCMV1 e o déficit de cada
de contratações, pois, os promotores privados
município. Uma parte significativa de municí-
do MCMV escolhem com total liberdade as
pios acima de 20 mil habitantes (29%) não tem
cidades onde querem produzir empreendimen-
nenhuma unidade contratada apesar de terem
tos e, segundo entrevistas (Klintowitz, 2015), o
metas estabelecidas pelo Governo Federal;
preço dos terrenos tem se apresentado como
40% dos municípios tiveram um range de uni-
uma das principais variáveis para esta escolha.
dades contratadas entre 10 e 50% em relação
Em relação ao porte populacional, obser-
ao seu déficit, enquanto 6% dos municípios
va-se também uma correlação positiva entre o
têm mais unidades contratadas do que o nú-
sucesso de contratação e as faixas populacio-
mero do déficit habitacional calculado.
nais entre 50 mil e 500 mil habitantes, demons-
Os resultados em relação ao “índice de
trando que o programa tem dificuldades em
sucesso”, por sua vez, também indicaram que
“rodar” nas cidades maiores, onde novamente
não existe nenhuma correlação entre a adesão
o mercado de solo é mais dinâmico e a terra
dos municípios ao SNHIS, sua regularidade e
para produção de habitação de interesse social
implementação dos itens exigidos pelo Sistema
torna-se mais escassa e cara.
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O resultado demonstrou, então, que exis-
Como as gerências regionais da CEF
tem fortes indícios de que a variável explicativa
(Gidur) têm metas de contratação, tem-se as-
mais forte para o sucesso de contratação das
sistido, ainda, distorções entre as necessida-
unidades do MCMV é realmente o preço da
des habitacionais existentes nos municípios
terra. As variáveis relacionadas à instituciona-
e a contratação de unidades residenciais no
lização do setor habitacional, que teve grande
âmbito do MCVM orquestradas pela própria
fomento nos primeiros anos do MCidades, as-
CEF e seus gerentes que têm usado diferen-
sim como o investimento na implementação de
tes artifícios para alcançar as metas exigidas
instrumentos de planejamento e gestão do solo
(Klintowitz, 2015). Com a anuência da CEF e
urbano do Estatuto da Cidade, não tiveram sig-
do MCidades, os municípios menores, onde o
nificância na contratação desse programa.
preço da terra urbanizada é menor, estão con-
Fica evidente que o modelo implementa-
seguindo obter mais unidades do MCMV.
do pelo MCMV dialoga com as lógicas do mer-
Em consequência desses fatores, apesar
cado imobiliário, mas não com as lógicas da
de as capitais dos estados brasileiros concen-
política habitacional defendida pela plataforma
trarem 37,5% do déficit habitacional, o de-
da reforma urbana e pelo próprio MCidades em
sempenho proporcional apresentado nesses
seus primeiros anos, já que a definição de on-
municípios para os imóveis da faixa 1 na fase
de haverá maior número de unidades são de-
1 do Programa é muito reduzido (24%) em
terminadas pelas facilidades e perspectivas de
comparação com os outros recortes territo-
maiores ganhos dos produtores privados e não
riais (76%).
pela existência de necessidades habitacionais,
Confirmando os dados obtidos na re-
planejamento e priorizações da gestão pública.
gressão linear apresentada, Lima Neto, Krause
Tabela 3 – Contratações para municípios acima de 50 mil habitantes
(MCMV 1, faixa 1)
Recorte
territorial
Déficit urbano
– Faixa 1
Unidades
contratadas
– famílias até
R$1.600 (OGU)
(área urbana)
Unidades
contratadas
– famílias até
R$1.600 (FGTS)
(área urbana)
Total unidades
contratadas
Desempenho
contratação
sobre déficit
> 100 mil
habitantes
826.963
272.363
56.518
328.881
33
40
50 a 100 mil
habitantes
504.594
159.278
21.866
181.144
18
36
1.238.247
204.221
32.364
236.585
24
19
725.090
179.459
78.268
257.727
26
36
Capitais estaduais
RM de capitais
estaduais (sem a
capital)
Fonte: Ministério das Cidades (2014).
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Por que o Programa Minha Casa Minha Vida só poderia acontecer...
e Furtado (2015), em estudo que busca
e sua localização, os autores ainda afirmam
desvendar as correlações entre a produção
que a ênfase do MCMV1 e 2 foi de produção
dos empreendimentos do MCMV na faixa 1 e
de casas, e o quesito de localização e inserção
o déficit habitacional, na dimensão intrame-
na cidade resultado das forças e interesses co-
tropolitana, revelaram que a maior produção
nhecidos e presentes na ordenação típica do
habitacional em municípios nas metrópoles es-
urbano e não fez parte da formulação progra-
tudadas se dá nos municípios mais periféricos
mática do MCMV.
e com menor participação na atividade econô-
A identificação das necessidades habi-
mica metropolitana. Os autores demonstram,
tacionais representada exclusivamente pelo
ainda, que a média da distância dos empreen-
déficit habitacional, incorporado ao modelo
dimentos ao centro de cada RM aumentou no
de política habitacional produzido pelo MCMV,
MCMV2, o que nos permite supor que o efeito
traz resultados muito diversos dos sentidos do
de valorização imobiliária, decorrida do próprio
“direito à cidade” defendidos pela plataforma
MCMV1, já apresenta impactos para a própria
da reforma urbana, como se observa na série
produção dos novos empreendimentos do Pro-
de estudos de caso que tem sido realizados a
grama. A partir de seus estudos sobre as corre-
respeito da implementação do MCMV nas cida-
lações entre a produção dos empreendimentos
des brasileiras.
Tabela 4 – Avaliação dos Moradores do MCMV 1, faixa 1,
sobre o atendimento por serviços na moradia atual,
em comparação com à moradia anterior (em %)
Características avaliadas
Acesso
à infraestrutura
básica
Acesso
à cidade
Melhorou
Piorou
Ficou igual
Não respondeu
Rede de esgoto
49,7
8,4
41,5
0,4
Pavimentação
47,4
15,2
36,5
1,0
Coleta de lixo
40,2
11,3
47,8
0,6
Iluminação pública
38,0
19,1
42,2
0,8
Fornecimento de energia elétrica
35,4
7,2
57,0
0,4
Fornecimento de água encanada
32,8
20,0
46,9
0,3
Acesso aos veículos
34,8
23,2
39,5
2,5
Calçadas
36,7
28,5
34,0
0,9
Acesso a comércio
21,3
61,2
17,1
0,5
Acesso a equipamentos e serviços públicos
20,1
44,0
33,5
2,4
Policiamento
26,8
39,9
31,5
1,8
Transporte público
30,2
38,7
30,0
1,1
Acesso ao trabalho
20,5
44,7
29,4
5,4
Acesso à escola
26,9
35,9
27,7
9,5
Correios
22,3
33,7
42,9
1,2
Fonte: Elaboração própria. Pesquisa Rede Moradia Cidade (2014). Chamada MCTI/CNPq/MCIDADES n° 11/2012.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 165-190, abr 2016
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175
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Danielle Klintowitz
A pesquisa realizada pela Rede Moradia
7
Cidade, 2014, por exemplo, revelou que a loca-
duas (Estado e setor empresarial) como nos governos anteriores.
lização das novas moradias produzidas no âm-
As três pontas, no entanto, não são con-
bito do MCMV tem importantes impactos nos
duzidas na busca de uma agenda comum. Para
beneficiários em relação ao acesso a serviços e
não contrariar nenhum dos interesses, o gover-
equipamentos públicos. Apesar de no Estado de
no opta por uma coordenação de interesses
São Paulo 43% das famílias pesquisadas terem
com a constituição de duas agendas paralelas,
vindo de assentamentos precários e 56% de
em que cada um dos interesses se vê contem-
áreas de risco, enquanto o acesso aos serviços
plado (Klintowitz, 2015). A habitação passa a
básicos de infraestrutura melhorou em relação
ter duas agendas paralelas para que convivam
à moradia anterior, as características classifi-
no governo em uma estratégia de layering
cadas como de acesso à cidade (acesso ao co-
(Mahoney, Thelen, 2010), que institui camadas
mércio, ao trabalho, a equipamentos e serviços
incrementais, tanto sobre os aparatos institu-
públicos; policiamento, transporte público, à es-
cionais herdados dos governos anteriores como
cola e aos correios) apresentaram significativa
em um processo de combinação entre essas
piora em relação à moradia anterior.
duas agendas em disputa.
A persistência do SNHIS ao longo do
tempo como o modelo de política habitacional
A tríplice aliança
na coordenação de interesses
em torno do MCMV
ideal que se busca alcançar e a realpolitik implementada pelo MCMV que utiliza regras que
em nada convergem para o modelo idealizado
pelo SNHIS, sem contudo eliminá-lo definitivamente, podem ser explicadas pela ideia de
No Governo Lula, a necessidade de ampliação
das bases e alianças inaugura uma nova estrutura de relacionamento do governo com a
sociedade. Enquanto em governos anteriores
o relacionamento Estado-sociedade no setor
habitacional esteve estritamente vinculado às
articulações do Estado com as coalizões do setor produtivo, no governo Lula, desde sua origem, os movimentos sociais ligados à moradia
são trazidos à arena de negociação sem que,
ao mesmo tempo, o Estado se furte a estruturar
uma relação estreita com o setor empresarial.
Cria-se o que se pode chamar de uma triple
aliança, ou uma matriz de relacionamento que
passa a ter três pontas (Estado, setor empresarial e movimentos sociais), e não mais apenas
176
Book 35.indb 176
decoupling, trazida por Meyer e Rowan (1977),
na qual há um respeito “ritualístico” às regras
originárias, isto é, apesar de não serem as regras que comandam as instituições, esses “mitos geradores” permanecem como uma espécie
de direção moral da política. Assim, o modelo
proposto pela plataforma da reforma urbana
permanece como o modelo utópico – SNHIS –
que parece dar a “direção moral” à política,
enquanto o modelo que favorece ao setor empresarial – MCMV – é aplicado na prática como
a “política real”, inviabilizando a possibilidade
do SNHIS concretizar-se. Oliveira (2010) identifica esse modelo descrito para a política habitacional, como a prática geral desenvolvida nos
governos petistas, denominando esse processo
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 165-190, abr 2016
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Por que o Programa Minha Casa Minha Vida só poderia acontecer...
de “Hegemonia às Avessas”. Segundo o autor,
governar em que se buscou agradar todos os
nesse governo constrói-se uma áurea na qual
setores e classes de forma a minimizar os con-
parece que os atores e suas coalizões histori-
flitos, radicalizações e mobilizações contrárias
camente dominados passam a comandar a po-
ao governo.
lítica, pois fornecem a “direção moral” e estão
à testa de organizações do Estado e dispõem,
ainda, de poderosas bancadas no Congresso
Nacional; no entanto, o conjunto de aparências
esconde uma nova dominação na qual “não
são mais os dominados que consentem em sua
própria exploração; são os dominantes – os capitalistas e o capital, explicite-se – que se consentem em ser politicamente conduzidos pelos
dominados, com a condição de que a ‘direção
moral’ não questione a forma de exploração
capitalista” (Oliveira, 2010, p. 27). A defesa do
setor produtivo da indispensável resolução do
Assim, enquanto o setor produtivo tem
déficit habitacional explica-se muito bem sob
importantes ganhos materiais com o MCMV
essa abordagem.
em detrimento da redução do direito à cidade
Com a dupla agenda instalada, por um
de milhões de famílias de baixa renda, a po-
lado cria-se uma ilusão para os atores ligados
lítica habitacional preconizada pelos atores
à plataforma da reforma urbana de que um
da plataforma da reforma urbana continua
dia se construirá um modelo de planejamento
persistindo no imaginário e em poucos inves-
e gestão habitacional descentralizado com au-
timentos institucionais da Secretaria Nacional
tonomia dos governos locais e de provisão por
de Habitação, como parte dos ganhos dos ato-
meio de autogestão e, por outro, atende-se aos
res ligados à plataforma da reforma urbana. As
interesses do segmento produtivo que deman-
atas das reuniões do ConCidades mostram esse
da estabilidade de ganhos. As regras e progra-
processo de layering (Mahoney e Thelen, 2010)
mas vão se somando e se sobrepondo de forma
com clareza. Enquanto o MCMV vai tomando
a agradar todos, sem excluir nenhum interesse
a primazia da política habitacional, na mesma
do processo.
reunião do Conselho se debatem medidas para
As duas agendas – da reforma urbana e
melhorar esse programa e discutem-se as preo-
do setor produtivo –, que caminham paralela-
cupações sobre o conteúdo dos Planos Locais
mente como se ambas fossem prioritárias para
de Habitação (PLHIS) como se esses ainda fos-
o governo, foram claramente uma das base de
sem relevantes na condução da política habita-
sustentação do “lulismo”. Singer (2012) deno-
cional no plano local (Klintowitz, 2015).
mina “lulismo” a estrutura de arbitragem para
Observa-se, portanto, que o próprio
presidir um governo de coalizão desenvolvida
layering criado com essa dupla agenda é
um importante artifício de manutenção da
no Governo Lula. Estruturou-se um modo de
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No lulismo, pagam-se altos juros aos
donos do dinheiro e ao mesmo tempo
aumenta-se a transferência de renda para
os mais pobres. (...) Enquanto os meios de
pagamento crescem, cada fração de classe pode cultivar o seu lulismo de estimação. (...) Por isso o presidente pode pronunciar, para cada uma delas, um discurso
aceitável, usando conteúdos diferentes
em lugares distintos e, sobretudo, tomando cuidado para que os conflitos não impliquem em radicalização e mobilização.
(Singer, 2012, p. 202)
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Danielle Klintowitz
arbitragem que busca contentar todos os
planos sem mobilizações contrárias da socieda-
atores. O layering torna-se mais eficiente, pois
de, como preconizava o lulismo (Singer, 2012).
as novas sistemáticas esvaziam as anteriores,
Por sua vez, os movimentos de moradia,
trazendo amplos benefícios tanto ao Estado
vislumbrando a possibilidade de vinculação de
como ao mercado privado sem, contudo, tra-
grande volume de recursos para a política ha-
zer o ônus político de desmontar o ideário – o
bitacional, também quiseram estabelecer uma
SNHIS – construído a partir da luta de um im-
aliança com os empresários do setor produtivo
portante movimento social aliado do gover-
em torno da PEC da Moradia Digna que pre-
no – o FNRU. Assim, sem que se desmonte
cedeu a instalação do MCMV. E demonstrando
os “mitos geradores” (Meyer e Rowan, 1977)
que a política tem a capacidade de reconfi-
constituídos pelas institucionalidades conquis-
gurar os atores e as coalizões, principalmente
tadas pelos ativistas da reforma urbana, volta-
quando envolvem importantes recursos ca-
-se a praticar políticas urbanas e habitacionais
pazes de reconfigurar o curso da política pú-
semelhantes às realizadas em momentos an-
blica como um todo (Couto e Abrucio, 2003;
teriores da história brasileira, que favorecem
Sabatier e Weible, 2007; March, 2010), os
outros interesses, sem ajudar, contudo, na im-
movimentos convictos de sua posição no jogo
plementação da reforma urbana.
político, compuseram essa aliança apesar dos
Além da manutenção simbólica do
SNHIS, a medida mais importante medida
conflitos ocasionados com os aliados históricos, companheiros de FNRU.
para a sustentação da hegemonia dessa polí-
O governo, por sua vez, ao mesmo tempo
tica refere-se às alianças estabelecidas e ga-
que reiterava os laços com os movimentos de
nhos obtidos pelos movimentos de moradia
moradia nas interlocuções no ConCidades, mas
com o MCMV.
principalmente no atendimento às demandas
Em um contexto de arbitragem, os em-
nos processos de interlocução estabelecidos
presários do setor produtivo da construção
nos gabinetes, estabelecia novos laços com o
civil e mercado imobiliário que já tinham
empresariado do setor, tanto nas arenas públi-
interlocução estabelecida com o governo, ao
cas criadas, como principalmente nos espaços
entender que o governo petista era conforma-
de gabinetes.
do por um ambiente de coordenação de inte-
Assim, o ConCidades se constitui, então,
resses em que seriam necessárias a convivência
como espaço de encontro e articulação entre
entre as diferentes coalizões, e, se possível, a
os vários atores. Mas as negociações eram fei-
construção de alianças entre elas, usaram o
tas em outras arenas que eram não públicas,
ConCidades, antes mesmo da ideia da formu-
dando mais liberdade e autonomia nas nego-
lação do MCMV, para articular sua interlocução
ciações aos atores envolvidos.
com os movimentos de moradia em busca da
No entanto, mesmo com a ampla coa-
criação de laços e alianças,8 como parte da es-
lizão formada em torno da PEC da Moradia
tratégia para construir uma ampla coalizão em
Digna, sua negociação não foi bem-sucedida;
favor das demandas do setor produtivo, de mo-
já o núcleo estratégico do governo (Casa Ci-
do que o governo pudesse implementar seus
vil, Ministério do Planejamento e Ministério da
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Por que o Programa Minha Casa Minha Vida só poderia acontecer...
Fazenda) era contra sua aprovação pela cren-
com o Governo anteriormente enxergavam no
ça de que a vinculação do orçamento engessa
Programa a concretização de seus interesses
as possibilidades de ação política do governo.
(Klintowitz, 2015).
Contudo, em 2008, com a crise internacional
adotou-se na prática, no MCMV, o cenário de
investimento proposto pela PEC da Moradia
Digna, alcançando um investimento aproximado de 2% do Orçamento Geral da União (OGU)
O MCMV e os movimentos
de moradia
em subsídios habitacionais.
Com os objetivos alcançados, os laços
Contudo, para os movimentos sociais de mora-
efêmeros entre os empresários da construção
dia, mesmo defendendo o programa adiante da
civil e movimentos de moradia se afrouxaram
plenária do ConCidades, o percurso do projeto
(Tarrow, 2009) e cada coalizão passa a cuidar
da PEC da Moradia Digna ao Programa MCMV
de seu quinhão. Mesmo que de certa forma
não foi tão direta quanto para o setor produ-
uma congregação de interesses em torno da
tivo. Assim como o projeto da PEC, que não
manutenção do MCMV permaneça, a atua-
havia incorporado a proposta da autogestão,
ção destas coalizões demonstra que a alian-
ao ser anunciado o MCMV destinava-se ape-
ça entre elas se afroxou pela busca de seus
nas para a promoção da moradia por empresas
próprios interesses. Como descrito por um
privadas de construção civil. Um fato simbólico
empresário do setor da construção civil: “O
que demonstra que inicialmente os movimen-
sucesso do programa Minha Casa Minha Vida
tos de moradia não estavam contemplados
é o fracasso da articulação política do Mora-
como atores que fariam parte dos beneficia-
dia Digna” (Klintowitz, 2015). No entanto, se
dos com o MCMV foi a falta de representação
por um lado empresários e movimentos pas-
desses movimentos na mesa de lançamento do
sam a não ter mais as mesmas sinergias do
Programa em 25 de março de 2009. Os movi-
momento anterior, por outro, as alianças des-
mentos precisaram reivindicar sua participação
sas coalizões com o governo se fortaleceram
para serem chamados para o cerimonial.
enquanto o MCMV vigora com extraordinário
fonte de benefícios.
sidente da República aos seus apelos, os mo-
Essa aliança se manifesta no ConCida-
vimentos de moradia solicitaram audiências
des no qual apenas os conselheiros dos seg-
especiais com o Presidente Lula e com a Mi-
mentos acadêmicos e profissionais, ONGs
nistra Chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff,
e poder público municipal e estadual mani-
para requerer sua parte no programa. Essas
festavam-se com críticas a respeito do des-
reuniões privadas resultaram positivas e ape-
colamento do MCMV com o SNHIS e sobre a
sar da estrutura do Programa já estar definida
necessidade de discussão mais profunda do
nesse momento, foi criada uma nova modali-
MCMV nesse conselho, enquanto os repre-
dade especial – o MCMV Entidades – voltada
sentantes de movimentos de moradia e do
especificamente para promoção de moradia
setor empresarial que já haviam negociado
por entidades sem fins lucrativos, incluindo as
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Contudo, acreditando no apoio do Pre-
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Danielle Klintowitz
associações e cooperativas habitacionais au-
próprios atores que passaram a atuar como
togestionárias. Kingdon (2011) argumenta que
cooperantes do governo, ao invés de críticos
um bom empreendedor de política pública é
e formuladores (Gohn, 2010). Contudo, se por
capaz de incorporar uma proposta para uma
um lado os movimentos de moradia continua-
mudança no fluxo na política com a solução
ram a não participar efetivamente dos pro-
de um problema existente que também precisa
cessos decisórios da política habitacional e as
ser resolvido, articulando assim os problemas,
arenas participativas foram desconsideradas,
a política pública e política. Assim, Lula, como
por outro, fica claro que esse governo não
bom empreendedor de política, aproveitou a
deixou mais de levá-los em consideração na
oportunidade trazida pelo MCMV para resolver
lista de atores contemplados com a distribui-
também o problema dos movimentos de mo-
ção dos benefícios dos investimentos na área,
radia, e ganhar a sua chancela para o MCMV.
mesmo que de forma assimétrica se compara-
Utilizando-se da mesma lógica de arti-
dos aos benefícios obtidos por outros atores.
culação do setor produtivo que conseguiu es-
Garantiram-se, assim, recursos para financiar a
truturar o MCMV em audiências privadas nos
produção social da moradia realizada de forma
ministérios, sem passar pelos foros públicos
organizada, pelos futuros beneficiários e apoio
em que estavam inseridos, os movimentos de
dos movimentos de moradia ao MCMV (Ferrei-
moradia também negociaram sua modalidade
ra, 2014; Rodrigues, 2013).
com o governo em audiências privadas sem
Embora o aporte de recursos na moda-
passar por arenas públicas. Apesar disso, parte
lidade MCMV-E seja muito reduzido diante do
das lideranças, conforme comprovam as atas
montante global do programa (apenas 2%)
das reuniões do ConCidades que discutiram o
(Rodrigues, 2013), não se pode negar que sua
9
MCMV, parecia não se preocupar muito com
existência foi uma vitória para essa coalizão e
as arenas em que se davam a decisão sobre a
que está diretamente relacionada ao fato de
política, já que tal programa traria importante
que tais movimentos passam a ter um novo
benefícios materiais para os movimentos de
status de player no âmbito político (Rolnik,
Klintowitz e Iacovini, 2014). Esse novo status
político trouxe o importante reconhecimento
aos movimentos sociais, e não apenas ao setor privado da construção civil, como parceiros
do governo no processo de implementação da
política de habitação de interesse social (Tatagiba e Texeira, 2014), e, ao mesmo tempo,
os reafirmou como apoiadores do governo, e
principalmente, do MCMV. Um indicador fundamental da importância dada pelo governo à
concertação com os movimentos de moradia
foi a criação de uma assessoria da Presidência
da Caixa, especialmente para fazer o MCMV-E
moradia. Dessa forma, os próprios movimentos sociais de moradia, defensores históricos
dos espaços participativos de decisão sobre as
políticas urbanas, retiram a negociação da arena pública para a arena privada, conformando-se em não fazer parte do processo decisório
das macroestruturas da política habitacional,
desde que sejam atendidos por meio de negociação nos gabinetes aos quais conquistaram
o acesso.
A estratégia de retirada da negociação
das arenas públicas para pactuações individuais com cada um dos atores enfraquece os
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Por que o Programa Minha Casa Minha Vida só poderia acontecer...
“rodar”, e que buscava informar para a má-
autogestionária, foi significativa a participa-
quina, nas palavras do próprio presidente à
ção dos movimentos na formação das listas
época da CEF – Jorge Hereda, que as Entida-
de beneficiários das unidades produzidas pela
des e sua modalidade MCMV-E eram prioritá-
promoção privada no âmbito do MCMV pa-
rias para o governo.
ra a faixa 1 em diferentes municípios onde o
O MCMV-E passou a ser a principal for-
poder público local, responsável pela indicação
ma pela qual os movimentos sociais de mora-
da demanda, têm reservado um percentual
dia participam da implementação da política
das unidades produzidas para o atendimento
pública (Ferreira, 2014). Em uma pesquisa (Ta-
de famílias indicadas por movimentos sociais.
tagiba e Texeira, 2014), realizada no âmbito
Em muitos municípios do Brasil, a indicação de
da avalição do MCMV-E, todas as lideranças
um percentual de unidades pelos movimentos
entrevistadas afirmaram de forma categórica
de moradia passou a se constituir como uma
o interesse em continuar atuando no MCMV-E,
política municipal, ampliando muito os ganhos
apesar de demonstrarem muita clareza sobre
dos movimentos de moradia com o MCMV. Na
os problemas e limites do programa.
cidade de São Paulo, por exemplo, o Conselho
Conquistado em uma lógica estrutural
de Habitação decidiu como critério para prio-
privatista que já estava assentada e que se des-
rização da demanda que 25% das unidades
tinava ao protagonismo da promoção privada
serão destinadas a benificiários indicados pelos
da moradia, o MCMV-E surgiu como uma espé-
movimentos de moradia.10
cie de armadilha perversa. As entidades que de-
É importante destacar que os ganhos de
sejam produzir com recursos do MCMV-E estão
unidades com o MCMV, obtidos pelos movi-
aprisionadas às lógicas do mercado imobiliário
mentos, são importantes para que as lideran-
privado e precisam disputar terrenos com as
ças possam atender às suas bases, compostas
grandes construtoras do país. Apesar de parte
principalmente por famílias em busca de uma
de os movimentos de moradia que defendem
moradia, uma vez que nisso consistirá seu po-
historicamente a produção por autogestão, es-
der de convocação junto a novos integrantes
pecialmente a UNMP, estarem tentando utilizar
do movimento. Nessa conjuntura, a distribuição
os recursos do MCMV-E para concretizar pro-
de serviços e benefícios sociais passa cada vez
jetos com esse viés, a inserção da modalidade
mais a ocupar o lugar dos direitos e da cida-
para os movimentos de moradia em um arca-
dania, constrangendo não somente a demanda
bouço institucional que já estava estruturado
por direitos, como as próprias arenas públicas
para a lógica da produção privada, inviabiliza
construídas para esse fim (Gohn, 2010), já que
de muitas maneiras a boa execução do MCMV-
essa distribuição de benefícios depende apenas
-E (Rodrigues e Mineiro, 2012).
da boa vontade e da competência de articula-
Nesse esquema que foi criado, mostrou-
ção com os setores envolvidos. Nesse contexto,
-se mais lucrativo para muitas entidades indi-
apesar de os ganhos serem reais, não potencia-
carem beneficiários do que produzir a mora-
lizam mudanças estruturais.
dia. Assim, além do ganho de uma pequena
Em governos de esquerda os movimen-
parte dos recursos do MCMV para a produção
tos sociais tendem a valorizar a maior oferta
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de participação estatal e a disputar nessas ins-
conflito implícito dos cálculos de trade off en-
tâncias seus projetos e interesses. Contudo, ao
tre as mudanças estruturais e o atendimento
mesmo tempo, tendem também a orientar sua
imediato às bases.
ação por uma disposição menos conflituosa e
uma postura de maior conciliação, evitando a
pressão sobre os governos e diminuindo o uso
do protesto como forma de negociação, seja
para garantir suas demandas, seja para garan-
A implicações do MCMV
para o FNRU
tir a governabilidade a partir de uma agenda
de esquerda (Dagnino e Tatagiba, 2010). Nesse
As diferentes naturezas dos segmentos que
cenário, a identidade desses movimentos passa
compõem o FNRU sempre ocasionarma ten-
a se definir muito mais por sua relação com o
sões internas a essa coalizão. No contexto do
Estado ou com os partidos do que a partir de
MCMV, os movimentos de moradia defenderam
sua localização societária (Gohn, 2010) com
a existência do MCMV, mesmo que com restri-
resultados perversos no que se refere à ques-
ções a algumas de suas normativas, e não qui-
tão da autonomia. Ao mesmo tempo, ao serem
seram cobrar do Governo mudanças internas
atendido dessa forma, de alguma maneira es-
ao programa pelos canais institucionais ou em
tão dando uma chancela de qualidade da polí-
mobilizações públicas muito conflituosas, ao
tica, como no caso do Programa MCMV.
mesmo tempo, os outros segmentos constituin-
É importante considerar que os movi-
tes do FNRU quiseram fazer críticas mais con-
mentos de moradia são um tipo peculiar de
tundentes à estrutura do programa e promover
movimento social. Por um lado, lutam pela
processos de pressão e enfrentamento público
mudança das estruturas da sociedade, sendo
(Klintowitz, 2015).
justamente essa característica que os aliou ao
A falta de consenso interno no FNRU fez
Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU) na
com que essa articulação tivesse um posicio-
luta pelo direito à cidade. Por outro lado, têm
namento mais discreto em relação ao MCMV.
uma base a ser atendida com bens materiais
Essa contradição, ao mesmo tempo, favoreceu
concretos – casas –, sendo justamente o que
o Governo que não teve que enfrentar essa
os levou a estabelecer alianças com os empre-
oposição, no entanto, fragmentou e enfraque-
sários do setor produtivo. Essa dupla caracte-
ceu a coalizão da reforma urbana que não
rística implica, muitas vezes, escolhas prag-
conseguiu resolver suas discrepâncias internas.
máticas que favorecem alianças que geram
Enquanto esse afastamento ideológico entre os
ganhos imediatos, mas que podem, ao mesmo
segmentos não pareceu afetar os movimentos
tempo, implicar o desvio do caminho que leva-
de moradia, essa circunstância teve signifi-
rá à estagnação das mudanças estruturais que
cativa importância para os outros segmentos
defendem. Essas características também os
que, por não terem numerosas bases como os
diferencia de outros segmentos que compõem
movimentos, ficam enfraquecidos como atores
o FNRU – ONGS, setores profissionais e aca-
com poder de pressão, mobilização e negocia-
dêmicos – que não estão submergidos pelo o
ção junto ao Governo. Os movimentos, por sua
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Por que o Programa Minha Casa Minha Vida só poderia acontecer...
vez, usaram seus canais diretos de articulação
também, uma parcela importante do eleitora-
para negociar suas demandas particulares,
do que vive em assentamentos irregulares no
ligadas aos programas, mas não para bus-
país. Assim, de forma surpreendente, por não
car articulações mais estruturais em torno da
dialogar em nada com o MCMV, a mesma lei
plataforma da reforma urbana, o que também
que o instituiu foi também responsável por es-
fragilizou o FNRU como coalizão e em sua ca-
tabelecer uma normatização para a regulariza-
pacidade de advocacy.
ção fundiária de assentamentos localizados em
Apesar de diminuir os canais de articula-
áreas urbanas de interesse social, que há muito
ção direta e o empenho em busca do apoio ao
se tentava, sem sucesso, aprovar no âmbito do
governo dos segmentos de ONGs e acadêmi-
Congresso Nacional.
cos ligados ao FNRU, o Governo não os alijou
totalmente do processo de construção da nova política habitacional. Ao elaborar a Medida
Provisória (MP 459) que instituiria o MCMV, o
presidente Lula concedeu aos defensores da
A coordenação federativa
do MCMV
plataforma da reforma urbana um capítulo
inteiro sobre a regularização fundiária, sendo
Paralelamente, em um governo que tinha um
responsável por levar à concretização de uma
projeto de manutenção de poder relacionado à
matéria de suma importância para a questão
articulação federativa, não se poderia desenhar
fundiária no Brasil, e que estava em tramitação
uma política de habitação que não garantisse
há muitos anos no Congresso Nacional sem si-
ganhos para os municípios e para seus pre-
nais de que teria um desfecho rápido.
feitos. Sob o pressuposto de que a promoção
O capítulo sobre regularização fundiária
habitacional pelos entes locais impedia que
da MP 459/2009 teve sua redação totalmente
os programas “rodassem” no ritmo desejado
baseada em um texto que já havia sido pro-
(Loureiro, Macário e Guerra, 2013; Klintowitz,
duzido na Câmara dos Deputados, no âmbito
2015), mas com o intuito de que os governos
do processo que discute, desde o ano 2000, a
locais aderissem à nova política, o modelo do
futura Lei de Responsabilidade Territorial Urba-
MCMV foi construído delegando aos municí-
na (LRTU) (PL 3 057/2000). O texto da MP foi
pios basicamente o papel de organização da
retirado do substitutivo produzido pelo último
demanda (por meio de cadastros encaminha-
relator, o Deputado Renato Amary (PMDB-SP) e
dos à CEF para a seleção dos beneficiários) e,
que estava pronto para a votação em plenário,
de modo facultativo, à criação de condições
mas que enfrentava muita oposição. O proces-
para facilitar a produção, mediante a flexibili-
so já havia passado por três relatores sem su-
zação da legislação urbanística e edilícia dos
cesso (Silva e Araújo, 2013).
municípios e/ou da doação de terrenos. Nesse
Com esse ato, Lula vislumbrou a pos-
modelo a necessidade de institucionalidade da
sibilidade de contentar – com um programa
gestão é muito pequena, demandando ape-
(MCMV) que a princípio os descontentaria –,
nas a existência de um cadastro, sendo esse
os outros atores ligados à reforma urbana, e,
justamente o instrumento mais presente nos
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municípios brasileiros. Em 2009, ano de início
tempo perceberam que os benefícios recebidos
do PMCMV, 81% dos municípios já o tinham
seriam tantos ou maiores do que se fossem
(Arretche, 2012).
os promotores dos empreendimentos, com a
Indicar a demanda significa, por um lado,
vantagem de que não precisariam despender
um baixo investimento do ponto de vista finan-
muitos esforços para isso. Diante desse quadro,
ceiro e institucional e, por outro, um grande
é possível afirmar que políticos locais se bene-
recurso no sentido de angariar possíveis votos
ficiam do programa, o que ajuda a entender
em pleitos municipais. A influência dos benefí-
por que a maioria dos municípios concentrou
cios eleitorais proporcionados pela inaugura-
seus esforços unicamente na viabilização de
ção de novos empreendimentos habitacionais,
empreendimentos do MCMV em seu território,
produtos cujo significado vai além das conside-
deixando de lado seus processos de planeja-
rações sobre o seu impacto econômico e social,
mento ou criação de outras alternativas para
tem um importante potencial para gerar capital
solução das necessidades habitacionais (Rol-
político. Os empreendimentos habitacionais
nik, Klintowitz e Iacovini, 2014; Polis, 2014).
construídos no âmbito do MCMV são, assim,
Trata-se de uma postura pragmática, que capta
“fatos políticos” de dimensão local, regional e
o máximo de benefícios políticos com um míni-
nacional, conferindo legitimidade ao exercício
mo de esforço institucional e financeiro. Nesse
do poder por sua elevada visibilidade no con-
contexto, em muitos municípios, como é o caso
junto das realizações dos governos (Camargos,
de São Paulo, foi retirado do orçamento munici-
1993). Cada unidade produzida vale para duas
pal o recurso que antes se destinava à pasta da
contagens, ou seja, o capital político gerado
habitação sob o argumento de que a política
serve tanto para o município quanto para o go-
habitacional já tinha o recurso proveniente do
verno federal (Klintowitz e Iacovini, 2014; Rol-
MCMV (Rolnik, Klintowitz e Iacovini, 2014).
nik, Klintowitz e Iacovini, 2014).
Com a estrutura criada inicialmente
Vendo a possibilidade de ganhos de capi-
para o MCMV, os únicos prejudicados seriam
tal político com o MCMV, muitos governos es-
os municípios menores, que na MP 459 não
taduais também estão querendo “participar da
estavam contemplados. Originalmente, não
festa”. Esses governos têm adicionado recursos
parecia fazer sentido expandir a atuação para
aos disponibilizados pelo governo federal para
esses municípios, já que não eram municípios
que se consiga implementar empreendimentos
interessantes ao setor produtivo, principal-
nas capitais onde a terra é mais cara e, com is-
mente na faixa 1, com empreendimentos de
so, têm aproveitado também do capital político
grande escala para reduzir custos e ampliar os
gerado pelos empreendimentos produzidos. As-
lucros (Shimbo, 2010). No entanto, ao serem
sim, um mesmo programa tem unido diferentes
comunicados dos novos rumos da política ha-
esferas de governo, de diferentes partidos, em
bitacional, esses municípios menores reivindi-
suas inaugurações.
caram e negociaram no Congresso Nacional a
Se, inicialmente, os governos locais se in-
inclusão de uma modalidade para municípios
comodaram com o formato do Programa que
com menos de 50 mil habitantes. Criou-se,
tirava deles o protagonismo, com o passar do
então, uma nova modalidade para o MCMV
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Por que o Programa Minha Casa Minha Vida só poderia acontecer...
SUB 50 – a oferta pública – conhecida como
geral de formulação do MCMV, foram sendo
“SUB-50”. Junto com o MCMV-E e o MCMV-
criadas concertações no próprio programa para
-Rural, o SUB-50 representa as únicas exce-
beneficiar o maior número de atores possíveis.
ções ao modelo de provisão habitacional com
Esse modelo de concertação só pode-
promoção privada.
ria ser estabelecido em um governo como o
Nessa modalidade, os munícipios têm
de Lula, que já começou com o apoio de uma
um papel mais protagonista sendo responsá-
grande base de movimentos sociais. A inova-
veis por acessar o recurso por meio de edital
dora articulação da tríplice aliança que uniu
disponibilizado pelo MCidades. No entanto,
empresários do setor produtivo e movimentos
essas três modalidades são marginais dentro
de moradia, opositores históricos, em defesa
do Programa e representam apenas 11% do
de uma política, e de seu governo de maneira
total de unidades previstas. Contudo, mesmo
geral, não seria possível de ser construída em
não sendo pensado pelo executivo federal, a
um governo que não chegasse ao poder com
inclusão desses municípios menores no bolo do
a áurea da defesa dos direitos dos excluídos e
MCMV trouxe importantes apoios públicos da
ao mesmo tempo com o pacto com o empresa-
CNM (Confederação Nacional dos Municípios)
riado para a garantia do crescimento da econo-
e Frente Nacional do Prefeitos (FNP) para o go-
mia do país e dos ganhos do capital nacional.
verno federal.
As articulações para a coordenação de
interesses em torno da política habitacional
aqui demonstrada ocorreram no âmbito das
Considerações finais
gestões do Presidente Lula. Embora o receituário tenha sido seguido na primeira gestão de
O que se percebe ao percorrer este caminho
Dilma, percebe-se que falta a essa presidente
que desvela o arranjo institucional de coorde-
o componente carismático de Lula e a vocação
nação de interesses em torno do MCMV criada
para a coordenação de interesses intrínseca a
para sustentação desse programa que se trans-
esse ex-presidente conforme constata Singer
formou na única política habitacional do Bra-
(2012): “O sucesso de soluções intermediárias
sil por dois mandatos presidenciais é que esse
arbitrais, depende em grande medida, da fi-
arranjo foi típico do lulismo, em que todos os
gura providencial do líder que dá a cada um
atores têm seus interesses atendidos, mesmo
o seu quinhão” (Singer, 2012, p. 201). O que
que de forma assimétrica, e de modo a garantir
garantiu a estabilidade desta política foi jus-
a continuidade dos ganhos apoiam a política
tamente a força da coordenação de interesses
estabelecida e o governo de forma mais ampla.
que foi articulada de modo a criar um “regime
Enquanto se mantém viva a utopia do ca-
de políticas públicas” (Couto e Abrucio, 2003)
minho preconizado pela plataforma da reforma
urbana que alimenta os atores ligados a essa
No governo Dilma, no entanto, a política
plataforma; cada um dos atores envolvidos no
e os arranjos institucionais e de atores per-
setor habitacional, inclusive esses próprios ato-
maneceram praticamente os mesmos, porém
res, tem ganhos próprios já que, no contexto
demonstraram esgarçamentos, mesmo antes
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quase hegemônico.
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Danielle Klintowitz
da importante crise política que se deflagrou
atores. Os poucos espaços de decisão acerca
já no começo de seu segundo mandato. E
do MCMV-E, em que se modificam normati-
como esses arranjos, no setor habitacional e
vas e se disputam recursos, foram ocupados
também em outras políticas públicas, foram
pelos movimentos de moradia ligados ao
essenciais para as estratégias para a própria
FNRU, mas com a possibilidade do lança-
manutenção do poder do governo, seu esgar-
mento da terceira fase do MCMV, assistiu-se
çamento pode inviabilizar o projeto de manu-
a uma clara disputa das novas lideranças de
tenção mais à frente.
moradia que buscavam brechas para que seus
Outro fato curioso que surge a partir
interesses também fossem atendidos de mo-
da instalação do regime da política pública
do que passassem a fazer parte da coordena-
do MCMV, é a disputa pelo espaço entre os
ção de interesses estabelecida.
Danielle Klintowitz
Instituto Pólis, Urbanismo. São Paulo/SP, Brasil.
[email protected]
Notas
(1) Segundo dirigente da Secretaria Nacional de Habitação, na campanha eleitoral de 2014, as
pesquisas apontaram que o programa com maior recall, isto é, o que era mais lembrado pela
população quando pensavam nas polí cas federais, era o MCMV (Klintowitz, 2015).
(2) O FGTS e o SBPE foram criados e regulamentos em 1966 como para promover o respaldo
financeiro necessário à estrutura organizacional do BNH. O FGTS, tendo como fonte de recurso
a poupança compulsória de parte dos salários formais captada pelo Governo Federal, é até hoje
a principal fonte de recursos de financiamento do desenvolvimento urbano do país com juros
mais baixos do que os pra cados no mercado. Já no SBPE, cujo os recursos são provenientes
das cadernetas de poupança voluntárias é des nado para o financiamento habitacional dos
segmentos de mais alta renda com juros menos subsidiados.
(3) É importante notar que, para efeitos metodológicos, este cálculo da focalização do Programa
MCMV em relação ao déficit assume que todas as unidades produzidas no âmbito do programa
estão atingindo as famílias computadas como déficit e que não há nenhum vazamento. No
entanto, sabe-se que parte dos atendimentos não são des nados ao atendimento do déficit
calculado pela FJP. Além dos vazamentos pulverizados comuns em programas públicos, parte
do atendimento do MCMV está sendo u lizada para permi r o atendimento às famílias que
sofreram remoções forçadas para a implementação de novos empreendimentos, como no caso
das obras para a Copa do Mundo 2014 e as Olimpíadas 2016.
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(4) O PMCMV, em sua componente urbana, foi operacionalizado para a modalidade da faixa 1 a
par r da alocação de recursos orçamentários da União no Fundo de Arrendamento Residencial
(FAR) – inicialmente no montante de 14 bilhões de reais – e, em menor grau, ao Fundo de
Desenvolvimento Social (FDS) – inicialmente no montante de 500 milhões de reais –, ambos
gerenciados pela CEF. O FAR já vinha sendo u lizado na produção de unidades habitacionais para
famílias com renda entre três e seis SM, dentro do Programa de Arredamento Residencial (PAR),
recebendo recursos transferidos do Orçamento Geral da União (OGU) e do FGTS, e foi u lizado
no MCMV para viabilizar a modalidade que passa recursos orçamentários diretamente para
as empresas. Já o FDS é um fundo contábil de natureza financeira que funciona com recursos
provenientes do Orçamento Geral da União – OGU, com prazo indeterminado de existência,
sendo seus recursos des nados para o financiamento de projetos de inves mento de interesse
social, nas áreas de habitação popular exclusivamente para famílias com renda de até R$ 1600,
por meio da concessão de financiamentos a beneficiários organizados de forma associa va por
uma En dade Organizadora – EO (associações, coopera vas, sindicatos e outros), Organizadora
– EO.
(5) O PAC Favelas, voltado à urbanização de assentamentos precários, apesar de não dialogar
diretamente com o SNHIS e de passar por fora do FNHIS, é defendido por muitos atores ligados
à plataforma da reforma urbana à medida que promove uma atuação mais integrada entre as
polí cas urbanas (habitação, saneamento, mobilidade) do que a provisão de novas moradias
que atua de maneira exclusiva na construção de casas.
(6) Optou-se por realizar este exercício esta s co apenas nos dados de contratação da primeira
fase do MCMV, pois os dados do MCMV2, disponibilizados pela CEF, apresentavam muitas
inconsistências e não foi possível conseguir uma base mais adequada junto ao gestor do
programa até o final desta pesquisa.
(7) A Rede Moradia Cidade foi uma rede nacional de pesquisadores que se reuniram para realizar
uma avaliação no âmbito da chamada MCTI/CNPq/MCidades n° 11/2012 sobre a inserção
urbana dos conjuntos produzidos no âmbito do MCMV em seis estados brasileiros. A rede
foi formada por pesquisadores de 11 ins tuições (universidades federais do Ceará, Pará, Rio
Grande do Norte, Minas Gerais, Rio de Janeiro (Ippur e Prourb), universidades estaduais,
USP (IAU e FAU), Pon cia Universidade Católica de São Paulo, Peabiru e Ins tuto Pólis) que
construíram uma metodologia em conjunto para iden ficação de similaridades e diferenças da
implantação desses conjuntos no território nacional. Essa avaliação realizou uma pesquisa com
3.900 famílias com moradias de unidades habitacionais produzidas no âmbito do MCMV, faixa 1,
nas diferentes cidades estudadas.
(8) Uma fala de um entrevistado de um conselheiro do ConCidades do setor da construção civil
explicita esta estratégia: “Como a distribuição de participação do Conselho [das Cidades],
de uma certa forma era um pouco desequilibrada e no fim o governo e os movimentos
sociais acabam tendo uma grande maioria, a gente percebeu que a participação nossa [dos
empresários] não deveria ser na votação. Não nha como a gente ganhar a votação, a gente
sempre perdia. Mas nha a discussão, a discussão não é voto, porque na verdade, eu acho que
uma coisa que era legal do Conselho é um trabalho de ar culação para trabalhar um pouco o
consenso, eu acho que era uma cultura, uma coisa que foi bom, era trabalhoso, mas foi bom.
Então percebemos que a nossa par cipação deveria ser na ar culação polí ca, na proposta de
ideias, na elaboração de algumas propostas que pudéssemos de alguma forma vender as nossas
ideias (...) Dessa forma nós conseguimos construir uma parceria com os movimentos sociais,
que foi uma coisa muito legal, eu acho que a gente começou no embate com os movimentos
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Danielle Klintowitz
sociais, a gente nha visões muito diferentes em algumas coisas, mas conseguimos construir um
consenso” (Klintowitz, 2015).
(9) Ata da 20ª Reunião do Conselho Nacional das Cidades (MCidades, 2009, s/p).
(10) Valores de imóveis podem inviabilizar projetos habitacionais de São Paulo, Rede Brasil Atual.
Disponível em: <http://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2014/02/prestes-maia-estano-grupo-dos-que-201ctalvez201d-nao-valham-a-pena-des nar-para-habitacao-social-afirmasecretario-de-habitacao-4272.html>. Acesso em: 11 fev 2014.
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Danielle Klintowitz
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Texto aprovado em 6/dez/2015
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O Programa Minha Casa Minha Vida
na Região Metropolitana de Fortaleza-CE:
análise dos arranjos institucionais
Minha Casa Minha Vida Program in the Metropolitan Region of
Fortaleza: an analysis of institutional arrangements
Renato Pequeno
Sara Vieira Rosa
Resumo
Considerando o estado do Ceará, os resultados até
aqui obtidos revelam a concentração dos conjuntos habitacionais do programa Minha Casa Minha
Vida em alguns municípios metropolitanos, assim
como a sua baixa disseminação pelos centros regionais habilitados à obtenção de recursos do
Fundo de Arrendamento Residencial e do Fundo
de Garantia por Tempo de Serviços. Diante desse
quadro, buscou-se compreender as razões para a
baixa efetividade do programa mediante a análise
compreensiva dos arranjos institucionais, considerando o papel dos diferentes agentes envolvidos,
notadamente as práticas dos setores empresarial
imobiliário e da construção civil, as ações do Estado nas diferentes esferas de governo e os conteúdos dos instrumentos de planejamento e gestão do
solo urbano e habitacional.
Abstract
Considering the State of Ceará (northeastern Brazil),
the results obtained so far reveal the concentration
of the housing estates of the Minha Casa Minha
Vida Program in some metropolitan cities, as well
as the low dissemination of the program across
the regional centers authorized to obtain funding
from Fundo de Arrendamento Residencial and from
Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). In
light of this panorama, we aimed to understand the
reasons for the low effectiveness of the program
through a comprehensive analysis of institutional
arrangements, considering the role of the various
actors involved, in particular the practices of the
business, real estate and building sectors, the State's
actions in the different spheres of government, and
the contents of the instruments for planning and
managing urban land and housing.
Palavras-chave: política habitacional; arranjos
institucionais; construção civil; programa Minha
Casa Minha Vida.
K e y w o r d s : housing policy; institutional
arrangements; building sector; Minha Casa Minha
Vida Program.
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hƩp://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3509
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Renato Pequeno, Sara Vieira Rosa
Introdução
Faz parte deste estudo a abordagem pluriescalar incluindo diferentes dimensões: a região (estado ou metrópole); o município, com
Neste artigo, pretende-se apresentar os resulta-
destaque para os que que concentraram maior
dos obtidos por meio de investigação científica
número de unidades habitacionais; o setor reu-
realizada ao longo de 2013 e 2014, a qual te-
nindo um conjunto de bairros, notadamente
ve como objeto de estudos os empreendimen-
aqueles que concentram empreendimentos; o
tos habitacionais construídos pelo Programa
empreendimento, incluindo seu entorno; a uni-
Minha Casa Minha Vida (PMCMV) na Região
dade habitacional.
Metropolitana de Fortaleza (RMF) e entregues
No caso deste artigo, pretende-se dar
até o final de 2012. Realizada em rede junto
foco na análise do eixo que trata dos arranjos
a outros 11 núcleos de pesquisa de diferentes
institucionais e dos instrumentos da política
regiões brasileiras, a mesma teve como obje-
urbana e habitacional utilizados para a imple-
tivos: – analisar o processo de implementação
mentação do PMCMV na RMF. Partindo-se das
do PMCMV no nível local, verificando o papel
questões norteadoras, adota-se como primei-
dos agentes envolvidos em suas diferentes atri-
ro procedimento a identificação do quadro de
buições e interesses e a compatibilidade entre
atores envolvidos com a implementação do
as políticas urbana e habitacional; – desenvol-
PMCMV na RMF, considerando as diferentes
ver uma análise do padrão de inserção urbana
esferas de governo, as diversas modalidades
dos empreendimentos produzidos no âmbito
em que o programa se subdivide e levando em
do programa MCMV no território dos muni-
conta as distintas escalas em que o mesmo se
cípios selecionados, de forma a caracterizar o
materializa. No caso, partimos de questões re-
impacto urbano dos empreendimentos produzi-
lacionadas às dificuldades de implementação
dos por meio do programa, notadamente sobre
do PMCMV no Ceará, assim como aos motivos
os padrões de segregação socioespacial vigen-
de sua concentração espacial na RMF. Nesse
tes, assim como sobre condições de acesso a
sentido, destaca-se que a análise da distribui-
oportunidades de desenvolvimento humano e
ção espacial dos empreendimentos, assim co-
econômico por parte dos moradores; – desen-
mo a avaliação do grau de satisfação dos mo-
volver estudos de natureza qualitativa, sobre
radores poderá ser obtida em outros trabalhos
empreendimentos selecionados que expressem
dos mesmos autores (Pequeno e Rosa, 2015).
diferentes situações de inserção urbana, visan-
Para sua realização destacam-se como
do identificar os impactos sociais e econômicos
procedimentos metodológicos: a análise geo-
nas famílias beneficiárias do programa (Santo
estatística de bases de dados obtidas junto à
Amore, Rufino e Shimbo, 2015). Esses, por sua
Caixa Econômica Federal (CEF) consideran-
vez, se adequaram a três eixos temáticos: ar-
do o quadro de empreendimentos aprovados
ranjos institucionais; condições de inserção
até o final de dezembro de 2012; a condução
urbana e segregação espacial; qualidade do
de entrevistas semiestruturadas com os di-
projeto arquitetônico e urbanístico e impactos
ferentes agentes envolvidos; a leitura crítica
junto aos beneficiários.
dos documentos obtidos junto às instituições
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O Programa Minha Casa Minha Vida na Região Metropolitana de Fortaleza-CE
diretamente envolvidos com a implementação
diferenciada pelos municípios da metrópole.
do PMCMV; trabalhos de campo visando veri-
Primeiro, tem-se a concentração de empreen-
ficar in loco as condições de implementação.
dimentos nos municípios mais populosos como
Conforme proposto no projeto, as pri-
Fortaleza, Caucaia e Maracanaú, justamen-
meiras visitas serviram para que a pesquisa
te onde se concentra a maior parte do déficit
fosse apresentada às instituições envolvi-
habitacional os quais correspondem ao alvo
das, em seus objetivos, procedimentos e re-
principal desta pesquisa; segundo, observa-se
sultados esperados, deixando claro o papel
o conjunto de municípios situados no corredor
do grupo envolvido e o caráter exploratório
industrial da BR 116, composto por Horizonte,
dessa investigação. Da mesma forma, escla-
Pacajus e Chorozinho, os quais apresentam
recia-se o apoio do Ministério das Cidades, a
ampla representatividade das unidades cons-
abrangência nacional da pesquisa dada a sua
truídas pelo programa em relação ao total de
realização em rede e os retornos a serem da-
domicílios; em seguida, no litoral leste, tem-se
dos ao longo da mesma sob a forma de resul-
um agrupamento de quatro municípios onde
tados preliminares.
as pressões do setor imobiliário e turístico tra-
Contudo, já nas primeiras visitas, o diá-
zem dificuldades para a produção habitacio-
logo e a obtenção de informações foi extrema-
nal de interesse social; no extremo sul, onde
mente fácil, considerando o conjunto de insti-
se encontra um núcleo urbano Maranguape e
tuições públicas envolvidas. Com isso, a junção
Guaiúba com maior predomínio de atividades
dos relatórios técnicos das políticas urbana e
rurais, poucos empreendimentos foram contra-
habitacional (nem sempre concluídos) com as
tados; finalmente, no litoral oeste da RMF tem-
informações fornecidas pelo Ministério das
-se um conjunto de cinco municípios sob forte
Cidades e pela CEF, referentes às localizações,
influência do complexo industrial e portuário
empresas envolvidas, porte e prazos, facilitou
do Pecém e da área de produção de petróleo
as idas a campo para análise do conjunto de
em Paracuru: São Gonçalo, Paracuru, Paraipa-
empreendimentos realizados na RMF.
ba, Trairi e São Luis do Curu, os quais apesar
Vale aqui mencionar que a RMF reúne
da tendência de adensamento e da crescente
atualmente 19 municípios estimando-se mais
demanda habitacional tiveram poucas unida-
de 3,9 milhões de habitantes. Desses destaca-
des construídas (Pequeno, 2015).
-se um grupo de municípios conurbados a For-
Neste artigo, busca-se inicialmente carac-
taleza que totalizam quase 85% da população
terizar os agentes envolvidos em seus papéis,
metropolitana: Aquiraz e Eusébio ao leste; Itai-
seus interesses, parcerias e conflitos, visando
tinga, Pacatuba e Maracanaú ao sul; e Caucaia
apresentar a situação existente do programa
ao oeste. Em todos os demais verifica-se um
na RMF e no Estado do Ceará. Em seguida, são
padrão de urbanização dispersa, reconhecen-
discutidos os resultados dessa investigação a
do-se diversos núcleos urbanos em meio a um
partir da análise de alguns processos elenca-
vasto território com características rurais.
dos. Por último, apontam-se algumas diretrizes
Entretanto, no caso do PMCMV, observa-se que o programa se distribuiu de maneira
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com vistas a aprimorar o PMCMV no que se refere aos seus aspectos institucionais.
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Renato Pequeno, Sara Vieira Rosa
Os arranjos institucionais
e os agentes da produção
infraestrutura nem serviços; as condições de
desenvolvimento institucional nos municípios;
a especulação imobiliária.
Vale mencionar que esse setor passou
A análise do PMCMV no que se refere aos seus
por restruturação ao longo da pesquisa, sub-
arranjos institucionais, presentes na implemen-
dividindo-se em Gihab (Gerência Executiva
tação do PMCMV na RMF e no Ceará, requer a
de Habitação) e Gigov (Gerência Executiva de
prévia compreensão do papel dos agentes so-
Governo), em que a primeira se destina a pro-
ciais envolvidos, considerando seus interesses
jetos envolvendo o setor empresarial e a outra
e em especial sua participação no processo de
a projetos estritamente associados às deman-
produção da cidade. No caso, é importante des-
das governamentais.
tacar a necessidade de reconhecer três tipos de
Da parte do Ministério das Cidades,
agentes: – aqueles diretamente associados ao
verifica-se localmente que o mesmo se volta
Estado, assumindo as diferentes atribuições do
para uma atuação específica associada a gran-
planejamento e da gestão do programa; – os
des projetos, em que os processos decisórios
que se incluem no setor empresarial, responsá-
requeiram maiores discussões e o montante
veis pela incorporação, edificação e comerciali-
de recursos envolvido seja maior. Vale desta-
zação das unidades habitacionais; – o público-
car que ao longo da pesquisa presenciou-se a
-alvo, os quais podem ser desdobrados entre
realização de seminário que tratou de ações
demandas individuais atendidas e demandas
voltadas para a construção de grandes conjun-
coletivas oriundas de remoções ou de movi-
tos periféricos quando técnicos da ex-Gidur se
mentos sociais.
opuseram à aprovação desses empreendimen-
Quanto aos agentes do setor público
tos, dada a concentração dos mesmos num
diretamente vinculados ao Estado, vale men-
setor periférico desprovido de infraestrutura
cionar as diferentes atribuições vinculadas às
urbana e serviços. Vale destacar que esses em-
esferas de governo, indicando diversas res-
preendimentos estavam sob o comando dos
ponsabilidades e revelando discrepâncias na
governos estadual e do município de Fortale-
tomada de decisão. Na esfera federal de go-
za com o apoio do setor da construção civil,
verno, é possível reconhecer o amplo papel da
das concessionárias de infraestrutura urbana
Caixa Econômica Federal como agente opera-
e mesmo algumas entidades dos movimentos
dor do PMCMV dada a sua capilaridade em
sociais e de seus articuladores.
direção aos estados e municípios através da
Quanto ao governo estadual observa-se
Gidur (Gerência de Desenvolvimento Urbano).
que desde a extinção da Cohab as ações do
As reuniões realizadas com esse setor indica-
governo tornaram-se cada vez mais reduzidas,
ram o modo diferenciado como as faixas eram
buscando o mesmo se eximir de quaisquer res-
atendidas pelo PMCMV bem como as dificulda-
ponsabilidades neste setor (Cardoso, 2002). To-
des na contratação de empreendimentos da
davia, com o aumento progressivo de recursos
Faixa I, destacando-se dentre outros motivos:
disponibilizados para habitação pelo Ministério
as precariedades urbanísticas em setores sem
das Cidades foi criada a Secretaria Estadual das
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O Programa Minha Casa Minha Vida na Região Metropolitana de Fortaleza-CE
Cidades, em 2007, estruturada em coordenado-
após mudança de governo; destaque dado ao
rias nos moldes do Ministério, exceção feita ao
setor habitacional no orçamento municipal; –
de mobilidade urbana.
equipe, tanto no porte como na sua capacidade
Em sua composição, a Secretaria das
administrativa; - bases de dados disponíveis; –
Cidades do Ceará explicita o papel que a pro-
disponibilidade e aplicabilidade de instrumen-
dução habitacional passou a apresentar nos
tos da política urbana e habitacional; – interse-
últimos anos, indicando duas frentes: – a pre-
torialidade (Arretche, 2012).
sença de coordenadoria de projetos especiais,
No caso de Fortaleza, município com
em sua maioria voltados para o enfrentamento
mais de 2,5 milhões de pessoas, houve um
da questão da moradia mediante o reassen-
brusco rompimento na gestão municipal após
tamento de famílias removidas de favelas em
as eleições de 2012, havendo ampla restrutu-
situação de risco ou comunidades próximas a
ração, substituindo secretários e promovendo
projetos de grande porte realizados pelo go-
o retorno de gestores, como no caso do setor
verno; – a coordenadoria de habitação direta-
habitacional. Na capital cearense o PMCMV
mente vinculada às ações do PMCMV, em suas
encontra-se concentrado na Secretaria de Ha-
diversas modalidades, para a qual as análises
bitação Popular de Fortaleza (Habitafor). Com
se concentram.
equipe bastante reduzida, suas atribuições até
Dadas as dificuldades enfrentadas para
aqui se restringem à realização do trabalho so-
que o PMCMV atingisse a meta pretendida de
cial, visitando as famílias selecionadas e contri-
UHs no Ceará, a coordenadoria de habitação
buindo na apresentação dos empreendimentos
assumiu papel fundamental na condução de co-
por ocasião da entrega das UHS e na organi-
mitê interinstitucional. Um papel preponderan-
zação dos condomínios. O papel dos técnicos
temente político visando implementar medidas
vinculados a projetos e obras mostrou-se ainda
que tornem a produção de UHs mais atraente
mais restrito. Voltado às ações de planejamen-
para o setor da construção, ampliando recursos
to e na perspectiva de ampliar o programa em
por UH, atendendo às demandas de empreitei-
Fortaleza mediante a implantação de grandes
ros e articulando junto às concessionárias a im-
conjuntos, o setor pouco interfere na qualidade
plementação de redes de saneamento.
dos projetos arquitetônicos, muito menos na di-
Sobre o papel dos governos municipais
observa-se que o PMCMV tem no município o
e na progressividade da construção.
recorte espacial principal tendo em vista a lo-
Fortaleza tem promovido a contrata-
calização do empreendimento em relação aos
ção de terceiros para a realização dos planos
instrumentos da política urbana, as atribuições
diretor municipal e local habitacional de in-
que o mesmo assume em termos de aprovação,
teresse social como verdadeiro problema de
definição de critérios, formulação de demanda,
origem. Na ausência de recursos humanos pa-
acompanhamento e gestão do trabalho social.
ra a sua implementação e diante do precário
A análise do papel dos municípios, enquanto
controle social a ser efetuado pelos conselhos,
estrutura de poder foi realizada a partir das
esses tendem a ser subutilizados desde a sua
seguintes variáveis: – continuidade na gestão
aprovação, representando por vezes um mero
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versidade tipológica, na flexibilidade projetual
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Renato Pequeno, Sara Vieira Rosa
certificado para acesso aos recursos vinculados
do setor industrial e em especial dos setores
às políticas específicas.
imobiliário e turístico.
A intersetorialidade também se mostra
Sendo um dos maiores municípios cea-
em dificuldades. Por um lado, em função do
renses em superfície e possuidor de amplo
quadro exíguo de técnicos; por outro, devi-
déficit habitacional, Caucaia torna-se desde o
do à concentração do PMCMV num mesmo
início do PMCMV um dos principais alvos do
órgão. Constatou-se que a divisão estanque
setor da construção civil. Alguns fatores devem
entre as políticas urbana e habitacional, em
ser apontados para a expansão do programa
que a primeira se encontra sob o comando
nesse município nas suas primeiras fases: a
da Secretaria de Urbanismo e Meio Ambien-
agilidade na formulação de cadastro de de-
te e a segunda tendo à frente a Secretaria de
mandas, a facilidade na obtenção de terrenos,
Habitação, ampliam a dissociação entre as
os quais ainda que não fossem dotados de
mesmas. Além disso, observa-se que a forma
infraestrutura tinham na orientação da políti-
como a política urbana vem sendo conduzida
ca municipal no sentido de contratar obras e
revela alguns aspectos: o foco na regulamen-
mostrar resultados, compromisso na sua rea-
tação dos instrumentos que dinamizam o mer-
lização. Mesmo a intersetorialidade percebida
cado imobiliário e induzem o desenvolvimento
especialmente com o apoio da secretaria de
urbano segundo seus interesses; o engaveta-
ação social merece ser destacada dado que
mento das zonas especiais de interesse social
esse corresponde ao setor mais importante em
não havendo qualquer facilitação no acesso à
termos de poder municipal para que o progra-
terra urbanizada para empreendimentos habi-
ma venha a deslanchar.
tacionais de interesse social.
Todavia, vale mencionar a fragilidade
Em Caucaia, onde vivem mais de 353
institucional reconhecida no porte da equipe,
mil habitantes, o programa encontra-se numa
nas condições de acesso aos dados e na neces-
coordenadoria especial vinculada ao gabinete
sidade de contratação de serviços técnicos a
do vice-prefeito, contando com a participa-
terceiros para a realização dos instrumentos da
ção de técnicos das secretarias de planeja-
política urbana e habitacional, os quais tendem
mento urbano e de ação social. Tratando-
a ser subutilizados.
-se do segundo maior município do Estado,
Maracanaú corresponde ao terceiro
Caucaia tem seu crescimento demográfico
maior município da RMF com mais de 221 mil
diretamente associado ao transbordo de de-
habitantes, tendo no setor industrial sua prin-
mandas oriundas de Fortaleza, as quais se
cipal atividade econômica. Sua criação se deu
agravam na ausência de uma política urbana
nos anos 1980 após a implantação de distrito
metropolitana. Alvo de processos de planeja-
industrial e a construção de milhares de unida-
mento urbano desde o final dos anos 1990,
des habitacionais no entorno do mesmo atra-
Caucaia remanesce sem uma política urbana
vés do sistema BNH e Cohab-CE. Entretanto, só
definida, sendo seu plano diretor alvo de mui-
em meados dos anos 1990 que o setor indus-
tas mudanças e ajustes vinculados a projetos
trial se consolida, trazendo consigo serviços e
e interesses específicos do governo estadual,
refletindo na conurbação junto a Fortaleza e na
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melhoria das condições das infraestruturas e
melhores condições de implantação para mui-
serviços urbanos desse município.
tos empreendimentos em curso.
Nesse município verifica-se uma situação
No caso do setor privado, envolvido com
bastante peculiar em termos de gestão munici-
a produção habitacional através do PMCMV,
pal, evidenciando-se que a continuidade na ad-
cabe de início diferenciar os muitos agentes en-
ministração faz maior diferença quando se tem
volvidos presentes na RMF integrantes do setor
um processo de planejamento em curso, assim
da construção civil: proprietários fundiários,
como quando os processos de planejamento
incorporadores, empresas de construção civil.
urbano e habitacional ocorrem no âmbito do
Esses por sua vez mostram-se bastante hetero-
setor público e menos dependentes de consul-
gêneos na sua composição.
torias externas.
rifica-se historicamente na RMF a presença de
ponsáveis pelo setor de planejamento urbano,
crescente oligopólio, ampliando a concentração
foi possível compreender a forma como se dá
de terras e promovendo a segregação dos mais
a atuação desse município adiante da questão
pobres em áreas cada vez mais periféricas. Aos
habitacional. Revelou-se a associação entre o
proprietários de terras, vinculam-se construto-
planejamento e o controle urbano, trazendo
res, responsáveis, muitas vezes, não apenas pela
além disso o diferencial de formular estudos
edificação das unidades, mas também pelo pro-
de viabilidade para novos empreendimentos,
cesso de incorporação dos terrenos e até pela
considerando os limites impostos pela legisla-
sua comercialização. Esses construtores tam-
ção urbanística. Além disso, a disponibilidade
bém atuam como promotores imobiliários me-
de bases de dados, o georreferenciamento das
diante a aquisição de terrenos e posterior cons-
informações e sua aplicação para o controle e
trução de UHs voltadas para famílias de renda
a gestão do solo urbano trazem ao município
média, configurando-se numa linha de atuação
um diferencial se comparado aos demais.
restritiva quanto ao público-alvo.
Considerando o PMCMV, observou-se
Contudo, desde as últimas décadas com
que o município, no que se refere à faixa de
a retomada da produção habitacional, verifica-
interesse social, conta com coordenação es-
-se a ampliação do espectro de atuação dessas
pecífica, atuando na atribuição de critérios, na
empresas, as quais passaram a atuar mediante
definição das demandas e na realização do tra-
os recursos disponibilizados por programas fi-
balho social. Também tomam parte dessa coor-
nanciados pela CEF. Da mesma forma, a ado-
denação, atividades de regularização fundiária,
ção de políticas habitacionais multiorientadas
deixando clara a compreensão de que o direito
levou a que os serviços de urbanização de fave-
à moradia requer suporte interdisciplinar, do
las e de provisão de moradia de interesse social
qual o profissional do setor jurídico é impres-
viessem a ser alvos dessas empresas do setor
cindível. Por outro lado, no referente aos pro-
da construção civil.
jetos de habitação popular de mercado (HPM),
Vale aqui mencionar que o Programa de
verifica-se que o município busca garantir
Arrendamento Residencial (PAR) constituiu-se
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Referente aos proprietários fundiários, ve-
A partir de diálogos com técnicos res-
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num precursor daquilo que ocorreu nas primei-
também como empresas que conseguem con-
ras fases do PMCMV. Por meio desse programa,
tratar empreendimentos (Cardoso, 2012). No
algumas empresas do setor comandadas pelo
caso da RMF, observa-se na primeira fase que
Sinduscon-CE passaram a produzir UHs com
não apenas as pequenas empresas que vinham
recursos da CEF, atendendo a um público-alvo
atuando com recursos do PAR buscaram apro-
com renda entre três e seis salários mínimos,
var projetos. Empresas de maior porte, acostu-
sob a forma de pequenos condomínios fecha-
madas à produção de residências para famílias
dos em bairros menos valorizados, em sua
de maior poder aquisitivo obtiveram êxito na
grande maioria situados em Fortaleza. Todos
contratação de empreendimentos nas faixas 2
eles seguindo um mesmo projeto arquitetônico
e 3, denominadas habitação popular de merca-
previamente aprovado.
do (Shimbo, 2012).
No caso do PMCMV, verifica-se ao longo
Outras empresas foram criadas mediante
de sua recente execução, o destaque obtido
o estímulo do PMCMV através da transferência
pelo Sinduscon-CE, como instituição que pas-
de capitais de outros setores produtivos, tendo
sou novamente a articular junto à CEF maior
em vista o lucro que o programa poderia ga-
celeridade na aprovação dos empreendimen-
rantir. Em função da oferta de recursos trazida
tos do programa. Como impacto dessas ações,
pelo programa às grandes capitais do Nordeste,
definiu-se um projeto referência que agilizou a
grandes empresas do setor da construção civil
tramitação dos processos junto ao setor técni-
atuantes na produção habitacional passaram
co da Caixa, ainda que em detrimento da quali-
a expandir suas atividades. Com isso, intensifi-
dade urbanística e arquitetônica dos empreen-
cou-se processo migratório de empresas vindas
dimentos e especialmente na qualidade de vida
do centro sul em busca de grandes contratos
dos seus moradores. Prevaleceu, no caso, a
em função de uma demanda solvável presente,
realização do sonho da casa própria, a qual le-
a qual, no caso de Fortaleza, superava a capa-
vou à delegação de responsabilidades aos con-
cidade de resposta do setor da construção local
dôminos como o pagamento pela energia para
(Rufino, 2012).
iluminação dos espaços coletivos e castelos de
No entanto, em função das limitações no
água, segurança, limpeza dos espaços coleti-
porte dos empreendimentos presentes na pri-
vos, saneamento básico mediante miniestações
meira fase do PMCMV, as empresas locais ain-
de tratamento de esgotos. No caso, a estratégia
da mostraram capacidade de execução. Mesmo
adotada, corresponde ao simples ajuste do pro-
assim, algumas delas vieram a decretar falên-
jeto referência utilizado no PAR às normativas
cia após a entrega das unidades habitacionais
do PMCMV, induzindo ainda maior homogenei-
(UHs), cujos moradores só não ficaram alijados
zação dos projetos, mesmo que o público-alvo
de seus direitos por conta das garantias contra-
seja outro.
tuais, havendo a contratação de empresas res-
Vale mencionar que o PMCMV traz um
ponsáveis pela manutenção dos mesmos. Nou-
novo elemento para as análises sobre a pro-
tros casos de falência das construtoras, em que
dução habitacional em termos de diversidade
os empreendimentos não estavam concluídos,
não apenas do público-alvo beneficiário, mas
houve a intervenção da CEF, contratando novas
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empresas, preferencialmente aquelas com ex-
da moradia. Todavia, quando se considera o pa-
periência positiva no PMCMV. O caso dos em-
pel da população beneficiária, verifica-se que a
preendimentos denominados Escritores cons-
mesma se restringe à condição de receptora dos
truídos em Fortaleza é exemplar, por se tratar
resultados, com limitado poder de interferência
de um conjunto de condomínios contíguos uns
na qualidade em termos sociais, econômicos,
aos outros, cuja empresa entrou em processo
culturais, arquitetônicos e urbanísticos.
falimentar. Após negociações com a CEF, algu-
Cadastrados pelos municípios e selecio-
mas das primeiras empresas assumiram novos
nados segundo critérios compartilhados entre
contratos, cada uma delas contemplada com
as prefeituras e as normativas do PMCMV, as
um condomínio.
famílias receberam tratamento individualizado,
Todavia, na segunda fase, devido à pos-
salvo as situações em que o programa atende
sibilidade de aumentar o número de UHs até
a demandas fechadas para reassentamentos
5.000, passou a ocorrer um predomínio das
por conta de intervenções urbanas. Reuniões
grandes empresas do setor. Com isso ocorreu
de apresentação do PMCMV conduzidas pelos
a chegada de empresas oriundas de outras
órgãos municipais responsáveis pelo cadastra-
capitais portadoras de procedimentos de ge-
mento, assim como as visitas para confirmação
renciamento da construção e know-how para
de informações e as reuniões iniciais do traba-
empreendimentos de maior porte. Ainda nessa
lho social se revelam como momentos participa-
segunda fase, e seguindo os objetivos de cele-
tivos que antecedem a assinatura dos contratos.
ridade e volume almejados pelo PMCMV, novos
Todavia, mesmo no caso da modalida-
grandes conjuntos foram contratados, dessa
de entidades do PMCMV passa a ocorrer a
feita com a inserção de grandes empresas que
interferência direta do setor empresarial. Por
vêm a assumir grandes contratos. Mais ainda,
um lado, o setor da construção civil incide
observa-se a tendência de que as pequenas
no fomento à criação de entidades, forjando
empresas da fase inicial do PMCMV passem a
demandas sociais e tirando proveito de bene-
assumir empreendimentos de maior porte rea-
fícios que o município possa oferecer dado o
lizados no interior, resultado das ações do go-
caráter social e participativo do PMCMV-Enti-
verno estadual visando disseminar o PMCMV
dades. Por outro, apesar da cultura do mutirão
junto aos centros regionais.
em Fortaleza e da participação dos movimen-
Sobre os beneficiários e as entidades vin-
tos no processo decisório, há casos em que
culadas aos movimentos sociais de moradia é
os construtores assumem o empreendimento
possível tecer algumas considerações. Tratando-
como se esse fosse um outro qualquer, dife-
-se de um amplo programa habitacional reco-
renciando das demais modalidades apenas
nhecidamente de interesse social, dado o obje-
com relação à identificação da demanda. Sob
tivo de reduzir o déficit, era de se esperar que o
o risco de manipulações na criação de entida-
programa viesse a promover processos de pla-
des, destaca-se a vulnerabilidade do PMCMV
nejamento e discussões relacionados à questão
às práticas de coronelismo urbano.
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Processos associados
aos arranjos institucionais
sua realização, foram elaborados quadros que
permitiram a totalização dos empreendimentos
e a relativização da produção de empresas segundo as variáveis supracitadas.
Nesta seção, almeja-se discutir as principais
dinâmicas associadas aos arranjos institucionais, elencadas segundo a predominância dos
Ações do setor empresarial
agentes diretamente envolvidos e em função
do uso de instrumentos de planejamento e
No que se refere às ações do setor empresa-
gestão do solo urbano. Desde já destacamos
rial foram identificados como principais pro-
que tal classificação corresponde a um recurso
cessos: a) diversidade de empresas atuando
metodológico para a melhor compreensão dos
no PMCMV diferenciadas quanto à origem,
processos, reconhecendo-se que para cada um
ao produto, à demanda, ao porte; b) continui-
deles é possível perceber protagonismos, inte-
dade das mesmas empresas construtoras do
rações e impactos, cujas intensidades revelam
PAR desde o início do PMCMV nas diferentes
preponderâncias e submissões daqueles envol-
faixas, utilizando tipologias A&U semelhantes;
vidos com o PMCMV.
c) aumento da produção habitacional por meio
Um primeiro grupo de dinâmicas socioes-
de contratos de grandes empreendimentos HIS
paciais se refere às práticas do setor empresa-
faixa 1 conduzidos por empresas de maior por-
rial as quais revelam no curto prazo alterações
te (local e nacional).
na forma de atuação desse setor, bem como o
seu poder de força junto ao Estado; em seguida
tem-se um segundo agrupamento de dinâmicas que tratam das ações de instituições governamentais atreladas à operação e à imple-
Diversidade de empresas atuando
no PMCMV diferenciadas quanto à origem,
ao produto, à demanda, ao porte
mentação do PMCMV; por fim, busca-se reunir
alguns processos associados aos instrumentos
Considerando o quadro de empresas do setor
de planejamento urbano e habitacional e ges-
da construção civil envolvidas com o PMCMV
tão do solo urbano.
no Estado do Ceará, verifica-se que o mesmo
As análises aqui realizadas estão em-
obteve nos primeiros anos ampla dispersão, to-
basadas no estudo de bases de dados obtidas
talizando 59 empresas. Responsáveis pela con-
junto à CEF correspondentes aos empreen-
tratação de 146 empreendimentos, observa-se
dimentos aprovados desde o lançamento do
que, em sua grande maioria, as empresas são
PMCMV até 31/12/2012. Esses dados indicam
locais, especialmente concentradas no atendi-
por empreendimento, o total de UHs, o valor do
mento à faixa 1 voltada para habitação de in-
empreendimento, a empresa responsável, sua
teresse social (HIS). Todavia, quando se analisa
origem, a tipologia utilizada, a faixa e a modali-
o número de contratos por empresa, verifica-
dade do empreendimento, dentre outros. Para a
-se um processo de concentração em torno de
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algumas empresas. No caso, as construtoras
empresas Damascena, Passaré e Messejana SPE
Montenegro, Sumaré, Engeplan. Época, Fuji-
contrataram empreendimentos nas faixas 2 e 3.
ta e Interpar se destacam com cinco ou mais
Entretanto, a presença de empreendi-
conjuntos, totalizando 65 contratos, os quais
mentos contratados como sociedades de pro-
equivalem a 42% do total assinado até o final
pósito específico (SPE) corresponde a uma das
de 2012.
mudanças reveladas nos primeiros anos do
Dessas empresas merecem ser desta-
PMCMV. No caso, são 22 contratos, grande
cadas: primeiro, a Época com 17 empreendi-
parte deles aberta pela empresa MRV consor-
mentos, totalizando 3.341 UHs. Sob a forma de
ciada com a local Magis. Juntas essas empre-
pequenos condomínios justapostos e adotando
sas tornaram-se responsáveis por mais de 11%
como tipologia arquitetônica edifícios com dois
do total contratado pelo programa, todos os
pavimentos com apartamentos sobrepostos, a
empreendimentos nas faixas 2 e 3. No caso,
empresa abriu frentes nos municípios de Forta-
mais de 38% do que foi realizado na faixa 2 e
leza e Caucaia, sendo a única a atuar nas três
mais de 52% do que foi produzido para a fai-
faixas de renda do PMCMV. Da mesma forma,
xa 3. Outras empresas, ainda que venham de
chama atenção a atuação da Construtora Fuji-
outros estados, como a Rodobens, ao chegar
ta, responsável por 5.920 unidades, das quais
ao Ceará, abre nova razão social, seguindo a
5.536 apartamentos estão na faixa 1, em um
lógica das SPEs.
único empreendimento com localização periférica denominado Cidade Jardim, o qual vem a
inaugurar a nova fase do programa com a produção de grandes conjuntos de baixa altura e
alta densidade.
Continuidade das mesmas empresas
construtoras do PAR desde o início
do PMCMV
Desse total de empresas, vale destacar a
chegada de empresas oriundas de outros esta-
A RMF ao longo da primeira década do
dos. De Pernambuco, duas empresas obtiveram
século XXI teve no PAR uma das formas de pro-
contratos na faixa 1, e uma delas, a Constantini
dução habitacional, o qual atendeu à demanda
vem de Petrolina, assumindo um empreendi-
que não conseguia ter acesso à produção do
mento com mais de 700 unidades em Juazei-
mercado imobiliário formal e que não se en-
ro do Norte. De São Paulo, duas empresas têm
quadrava no público-alvo dos programas com
contratos nas faixas 2 e 3, a Fibra e a Rossi res-
projetos voltados para famílias de baixa renda
pectivamente, as quais buscaram encontrar no-
realizados pelo Estado tidos como HIS.
vos mercados. Além disso, constata-se que do
Lançado ao final dos anos 1990, o PAR
total de empresas com contratos assinados até
ao longo dos anos 2000 foi amplamente utili-
o final de 2012, vinte delas atuam apenas na
zado por construtoras locais, realizando empre-
faixa 1, cinco empresas (Época, Fujita, Suma-
endimentos de pequeno porte introduzindo em
ré, Abelardo Rocha e Montenegro) atuam nas
bairros periféricos e populares a produção imo-
faixas 1 e 2 e apenas uma (Época) tinha con-
biliária formal mediante a forma condomínio
tratos nas três faixas. Destaca-se ainda que as
fechado. Dessa forma, o setor contribuiu com
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a exacerbação da fragmentação espacial, de-
PMCMV, trazendo para essas empresas um
finindo setores com ampla presença de muros
novo tipo social de usuário.
justapostos às áreas de ocupação, onde o aces-
Na primeira fase do PMCMV, a Época
so era dificultado seja pela largura das vias,
Engenharia merece destaque com a assinatu-
seja pela definição de regras características da
ra de 18 contratos (3.341 UHs) em Fortaleza e
cidade informal.
Caucaia, dos quais 14 voltados para a faixa 1.
Neste período que antecede o lançamen-
Situados em bairros periféricos e precários em
to do PMCMV, foram construídos 91 empreen-
termos de infraestrutura, esses empreendimen-
dimentos pelo PAR, totalizando 11.266 UHs.
tos seguiram a forma adotada pelo PAR, no
Em média, cada condomínio tem 124 moradias,
caso condomínios com prédios de apartamen-
representando o porte de muitos dos conjuntos
tos sobrepostos, assim como a justaposição de
que viriam a ser produzidos pelo PMCMV na
condomínios, cujos muros passam a interferir
sua primeira fase.
fortemente na paisagem. Observa-se que ape-
Quatro empresas se destacaram na
sar de o programa, na sua primeira fase, limi-
produção habitacional pelo PAR com mais de
tar os contratos a 500 unidades, o que inclusi-
1.000 unidades em pelo menos seis empreen-
ve permitiria a implantação de conjuntos de
dimentos: Época Engenharia; CRD, Engeplan e
pequeno porte pelos mais diversos bairros da
Montenegro. Somadas à Construtora Sumaré,
cidade, a estratégia adotada por essa empresa
à ECB Engenharia Comércio Bezerra Ltda. e à
finda por reconduzir aos flancos periurbanos
Fujita Engenharia, essas correspondem ao gru-
os beneficiários do PMCMV, favorecendo com
po de construtoras que atuaram tanto no PAR
isso o aumento da segregação residencial. Por
como no PMCMV. Juntas, essas empresas são
sua vez, ao final da segunda fase, a empresa
responsáveis por mais de 53% do total de em-
Fujita Engenharia, que havia realizado apenas
preendimentos, os quais englobam quase dois
um empreendimento pelo PAR, passa a predo-
terços do total de unidades produzidas pelo
minar na produção HIS, com a contratação do
programa na RMF.
primeiro grande conjunto do PMCMV da RMF
Sob o comando do Sinduscon-CE, essas empresas construíram empreendimentos
com 5.536 unidades habitacionais agrupadas
num mesmo setor da cidade.
residenciais, disseminando-se pelo município
Essa nova forma de produção por meio
de Fortaleza em pequenos recortes de tecido
de grandes conjuntos, ao requerer maior expe-
urbano, agrupando-se prioritariamente em
riência das empresas de modo a evitar os riscos
alguns bairros de Fortaleza. Do total de 91
da suspensão dos contratos e da não conclusão
empreendimentos, 90 encontram-se na RMF.
dos imóveis, tende a promover a oligopolização
No caso da RMF, vale mencionar que algumas
da produção habitacional, visto que as peque-
dessas empresas prosseguiram no atendi-
nas empresas locais que vinham se inserindo
mento à demanda por habitação popular de
nesse ramo tendem a passar por dificuldades
mercado (HPM). Entretanto, a maior parte
em demonstrar sua viabilidade econômico-
dos novos empreendimentos se volta para a
-financeira para a realização de conjuntos de
habitação de interesse social na faixa 1 do
maior porte.
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Aumento da produção HIS
via contratação de grandes
empreendimentos
intensa tende a predominar, favorecendo as
maiores construtoras. Segundo, observa-se
que grandes empreendimentos requerem amplas superfícies, as quais só são obtidas em
Passado o seu lançamento em 2009, o PMCMV
terrenos periféricos, e que por serem mais ba-
no Ceará só veio a ter grandes contratos assi-
ratos, ampliam a margem de lucro dos constru-
nados em fins de 2012. Num total de 153 em-
tores e incorporadores.
preendimentos realizados para todo o estado,
A opção por grandes empreendimentos
viabilizou-se a construção de 37.768 UHs, as
leva ainda a que municípios metropolitanos
quais ainda se mantiveram abaixo da meta
venham a ser priorizados por grandes empre-
estadual pretendida na primeira fase do pro-
sas, restando os demais centros regionais dis-
grama. Desses, cerca de 10.429 UHs correspon-
tantes da RMF para as menores que tendem a
diam a nove empreendimentos contratados em
abrir novas frentes. Além disso, diante do am-
2012, representando mais de 27% do total e
plo déficit a ser atendido na RMF, o mercado
sinalizando mudanças trazidas na segunda fase
torna-se mais favorável às grandes empresas
do PMCMV.
com maior experiência no setor HIS e com ca-
Chama atenção que 5.536 apartamentos
tenham sido contratados junto à Construtora
No caso da RMF, é possível reconhecer
Fujita S/A por meio de cinco empreendimentos
disputas entre as duas maiores: a local Fujita
justapostos, utilizando a mesma estratégia da
S.A. e a mineira Direcional. A primeira, empresa
primeira fase por empresas em construir con-
cujo empreendimento encontra-se em anda-
domínios vizinhos. Da mesma forma, outros
mento, qualifica-se para novos contratos, como
dois empreendimentos com 2.084 UHs no total
um primeiro MCMV na modalidade entidades
foram contratados em Sobral, a serem cons-
com mais de 3.000 unidades. A segunda, em-
truídos pela empresa Direcional num mesmo
presa que tem atuado em outros estados do
setor da cidade em áreas contíguas. A mesma
Brasil, já é considerada a 12ª maior empresa
empresa também consegue emplacar um novo
do setor com receita bruta de mais de 1.4 bi-
contrato na RMF, no caso dos municípios de
lhão de reais e mais de 14.500 empregados.
Maracanaú, às margens do 4º Anel Viário, onde
De acordo com base de dados fornecida pelo
outras 2.096 residências entraram em constru-
MCidades/CEF, a Direcional ao final de 2013
ção. Um outro empreendimento realizado pela
já tinha contratos na Faixa 1 do PMCMV que
empresa pernambucana Constantini em Jua-
beiravam 40.000 unidades habitacionais dis-
zeiro do Norte, 3º maior município do Ceará
tribuídos em oito estados brasileiros contrata-
completa esse quadro. Esse representa mais de
dos majoritariamente em 2012. Dessa mesma
35% do total construído pelo PMCMV faixa 1
empresa, já se encontram em construção em
naquele município.
Fortaleza e Maracanaú novos grandes conjun-
O que esses números revelam? Primeiro,
tos os quais apresentam proximidade na sua
a mudança no porte dos empreendimentos,
localização periférica antevendo-se problemas
sinalizando que uma forma de produção mais
no acesso às infraestruturas e aos serviços
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pacidade de gerenciamento da construção.
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revelando-se em possíveis casos de negação do
No caso do desenvolvimento urbano e da ha-
direito à cidade.
bitação, houve a extinção da Superintendência de Desenvolvimento Urbano (Sedurb) e da
Companhia Estadual de Habitação (Cohab-CE),
Ações dos governos
estadual e municipais
reduzindo-se as ações governamentais em am-
Para compreender a atual situação dos arranjos
das Cidades, quando foram ampliados os re-
institucionais relacionados ao PMCMV na RMF,
cursos voltados para a produção habitacional
é imprescindível a análise dos mesmos em ou-
e o planejamento urbano, o governo estadual
tras escalas. No caso desse artigo, o olhar se
buscou promover ações, incrementando sua
volta para o estado do Ceará sinalizando os
capacidade de gestão. Todavia, permaneceu
motivos de sua concentração na região me-
seguindo a prática de privilegiar o projeto em
tropolitana bem como para a região Nordeste
detrimento do processo de planejamento e
investigando as dificuldades encontradas para
desconsiderando a necessária associação das
a sua disseminação nos demais municípios en-
políticas urbana e habitacional.
bas as frentes.
Todavia, desde a criação do Ministério
quadrados para obras do PMCMV.
Fortaleza, por sua vez, detentora de nú-
Dentre as dinâmicas identificadas ao lon-
meros alarmantes no que se refere à problemá-
go desta pesquisa, merecem ser destacadas: a)
tica da moradia, passa lentamente a assumir o
obras do PAC urbanização de favela associadas
seu papel, acelerando o processo com oportu-
às áreas de risco e à mobilidade concentram in-
nidades trazidas com os recursos de programas
teresses dos governos estadual e municipal na
criados nos primeiros anos do governo Lula ou
primeira fase do PMCMV; b) dificuldades na ex-
mesmo de outros como o Programa Habitar
pansão do PMCMV junto aos centros regionais
Brasil BID que até então não vinha sendo im-
levando a que o Governo promova medidas
plementado na sua componente de desenvolvi-
dinamizadoras; c) contratação de empreendi-
mento institucional.
mentos de grande porte para municípios/cen-
Some-se a isso a aproximação entre as
tros regionais na faixa 1, posteriores a outros
gestões estadual e municipal nos primeiros
contratados das faixas 2 e 3.
anos do Ministério da Cidade, integrando
seus objetivos e compatibilizando suas ações
Obras do PAC assentamentos precários
concentram interesses dos governos na
1ª fase do PMCMV
no campo da política urbana e habitacional,
ambas priorizando projetos de intervenções
vinculados à mobilidade e à remoção de áreas
de risco.
Sem que se tenha um processo de pla-
Desde o início do século XXI, o governo esta-
nejamento que articulasse as políticas urbana
dual do Ceará teve a diminuição de sua má-
e habitacional, os projetos e as respectivas
quina administrativa, delegando responsabi-
obras assumiram caráter pontual, sugerin-
lidades de políticas públicas aos municípios.
do discrepâncias entre os mesmos quanto ao
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O Programa Minha Casa Minha Vida na Região Metropolitana de Fortaleza-CE
porte e à forma de intervenção. Além disso,
a Habitafor conduz o cadastro de famílias, atin-
vale destacar a presença das gerenciadoras e
gindo em poucos dias mais de 120 mil famílias.
a terceirização de boa parte dos serviços, le-
Tamanho desafio requereria a participação de
vando a que as instituições públicas não consi-
outros agentes, como o setor da construção
gam construir um modus operandi para novos
civil, o qual, além de mostrar-se reticente, fez
projetos. Atribuições como o trabalho social
a rápida leitura de que o PMCMV demandaria
ao serem repassadas às consultorias externas
sua maior articulação com a CEF. Da parte do
agravaram ainda mais a situação, levando por
município, aguardavam-se medidas relaciona-
vezes a população atingida à situação de inse-
das à política fundiária, facilitando a obtenção
gurança e desamparo.
de terrenos. Entretanto, dada a necessidade da
Nesse sentido, desde que o PMCMV foi
lançado, os governos estadual e municipal, ape-
situação tornou-se mais difícil, quase inviável.
sar de apoiarem a sua implementação, tiveram
Diante dos movimentos sociais fragiliza-
a maior parte de seus esforços concentrada em
dos e em processo de reorganização, dado que
projetos habitacionais vinculados à urbaniza-
algumas antigas lideranças e seus articulado-
ção de favelas em situação de risco, assim co-
res passaram a compor os quadros do gover-
mo de provisão habitacional para famílias re-
no municipal, o município remanesce com as
movidas por obras de mobilidade urbana.
ações já contratadas, reproduzindo o mesmo
No caso do governo estadual, seus olhos
processo de atuação do governo estadual sem
se voltavam para os chamados projetos espe-
promover avanços em busca de projetos auto-
ciais: Projeto Maranguapinho e Cocó que vi-
gestionários. No caso, o projeto Vila do Mar, ini-
sam, além da intervenção em áreas de risco e
ciado ainda nos anos 1990 como Costa Oeste
o reassentamento em grandes conjuntos peri-
sob a gestão do governo estadual, considerava
féricos, construir obras de drenagem e conten-
a remoção de milhares de famílias de ocupa-
ção de enchentes; o projeto Dendê, atendendo
ções à beira mar, no front oeste de Fortaleza,
à comunidade próxima ao Centro de Feiras e
e seu reassentamento em áreas distantes, ha-
Eventos construído pelo governo estadual, vi-
vendo ainda a opção pela indenização. Poste-
sando o desadensamento da área e a sua urba-
riormente passou para a Prefeitura de Fortaleza
nização, mediante o reassentamento de famí-
em 2005, quando a mesma redefiniu os cami-
lias nas proximidades, de modo a requalificar
nhos do mesmo, modificando suas diretrizes
o seu entorno cujos terrenos vazios aguardam
em termos de reassentamento das famílias.
melhorias na área para que possam vir a ser
Contando com recursos do PAC Urbanização
incorporados pelo mercado imobiliário. Tudo
de Favelas, o projeto assume caráter especial,
isso faz com que nos primeiros anos o governo
tornando-se um dos ícones da gestão. Sem que
estadual tenha uma ação mais tímida em rela-
estivesse associado a qualquer secretaria, o
ção ao PMCMV, visto que dispunha de verbas
projeto é exemplar no sentido de que sua ges-
garantidas para a execução dessas obras.
tora mencionava ter status de secretária.
No caso de Fortaleza, a situação é similar.
Ao mesmo tempo, muitos projetos de
Desde o momento do lançamento do PMCMV,
urbanização de favelas foram iniciados pela
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presença de infraestrutura nesses terrenos, a
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Habitafor, os quais trouxeram em seu conteúdo
implementado. Somado às condições precárias
a provisão habitacional como estratégia de in-
de funcionamento do conselho municipal de
tervenção, dado que as áreas selecionadas es-
habitação, a instituição perde força junto aos
tavam em situação de risco. Com isso, verifica-
movimentos sociais, especialmente os novos
-se um amplo processo de remoção de comuni-
oriundos de manifestações contrárias à copa.
dades marcado pela dicotomia no processo de
Com isso, desde o início da nova gestão,
reassentamento: por um lado, para pequenos
a Prefeitura de Fortaleza passou a apostar no
conjuntos próximos; por outro, para conjuntos
PMCMV como fonte de recursos para imple-
de maior porte em áreas distantes.
mentação de suas metas e promessas de cam-
Situações díspares como os projetos
panha, mediante a contratação de grandes
Maria Tomásia e Papicu podem exemplificar a
conjuntos com recursos do FAR, via CEF e Ban-
dualidade das ações dessa fundação. No pri-
co do Brasil, inclusive contando com o apoio do
meiro, teve-se a construção de 1.200 unidades
governo estadual, visto que os mesmos reto-
habitacionais destinadas ao reassentamento
maram as suas parcerias.
distante de famílias removidas de áreas de risco em bairros de renda média alta, num setor
com sérios problemas de inserção urbana. Por
conta disso, o projeto enfrentou queixas dos
Problemas na expansão do PMCMV
junto aos centros regionais
seus moradores desde o início, com muitos
casos de desistência e abandono dos imóveis.
Desde que o PMCMV foi lançado, o estado do
No segundo, optou-se pelo reassentamento nas
Ceará tem enfrentado dificuldades na dissemi-
proximidades. Próximo a um grande shopping
nação do programa, considerando os centros
recentemente concluído, as famílias foram par-
regionais e os demais municípios enquadrados
cialmente reassentadas em conjunto habita-
para realizar contratos nas modalidades aten-
cional implantado em terreno vizinho median-
didas com recursos do FAR, ou mesmo, com
te recursos do governo federal e de operação
recursos aprovados pelo CCFGTS. Na primeira
urbana consorciada. Longe de considerar as
fase, apenas 11 dos 42 municípios enquadra-
estratégias distintas como resultado de uma
dos conseguiram obter êxito na contratação,
política multiorientada, essa dicotomia retrata
incluindo-se tanto os metropolitanos como
a sua indefinição dada a falta de princípios e
aqueles com população acima de 50 mil ha-
critérios pré-definidos.
bitantes. Por outro lado, percebe-se a ampla
Apesar da diversidade de programas go-
dispersão do programa MCMV na sua compo-
vernamentais, dos quais os recursos foram ob-
nente Oferta Pública de Recursos atendendo a
tidos, observa-se a adoção de um mesmo tipo
quase a totalidade dos municípios do Estado
habitacional. Ainda que paralelamente tenha
com contratos de 30 e 60 UHs operacionaliza-
sido conduzido processo de planejamento para
dos por bancos privados sem sede no Ceará.
elaboração de política habitacional e posterior-
Isso levou o governo estadual através
mente de plano local de habitação de interes-
da Secretaria das Cidades a estabelecer algu-
se social, verifica-se que nenhum dos dois foi
mas medidas, considerando o déficit estadual,
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a disponibilidade de recursos e a representa-
eram da RMF. Desses, destaque para o municí-
tividade política que as obras trazidas pelo
pio de Eusébio, onde o único empreendimento
PMCMV poderiam trazer. Vale lembrar que o
contratado era para a faixa 2 com recursos do
atual governador era secretário das Cidades,
CCFGTS, confirmando a tendência de que esse
e como candidato ao governo do estado, na
município seja opção para investimentos do
época, teve todo o interesse na contratação de
mercado imobiliário formal. Posteriormente, a
novos empreendimentos pelo interior do Ceará.
Secretaria das Cidades passou a divulgar que
Dentre as fatores causais para as difi-
novos empreendimentos estavam em estágio
culda des de contratação nos centros regio-
avançado com vistas à sua contratação. Os im-
nais levantados junto aos agentes envolvidos
pedimentos continuavam os mesmos como os
podem ser mencionados: as más condições de
problemas fundiários dos terrenos escolhidos e
infraestrutura urbana nos municípios impe-
a falta de infraestrutura urbana. Contudo, se-
dindo a aprovação dos contratos junto à CEF;
gundo uma nova base de dados fornecida ao
o desinteresse do setor da construção civil lo-
final de 2013 pelo Ministério das Cidades, es-
cal dadas as dificuldades encontradas na rea-
ses novos contratos teriam sido realizados para
lização dos projetos mesmo na RMF; as con-
as faixas 2 e 3 com recursos CCFGTS e de por-
dições precárias da mão de obra local; a in-
te bem menor, grande parte deles com menos
disponibilidade dos municípios na concessão
de 10 unidades, o que nos leva a crer que se
de terras para HIS, ainda que grande maioria
tratem de empreendimentos contratados por
tenha revisto seus planos considerando o Es-
construtores na condição de Pessoa Física.
tatuto da Cidade.
Relato do Coordenador de Habitação da
Secretaria das Cidades apontou como medidas adotadas: a) a criação de comitê para que
Dificuldades na contratação de conjuntos
para centros regionais na faixa 1
os agentes envolvidos viessem à concertação
de suas demandas quanto às infraestruturas;
Em viagens de campo realizadas aos municí-
b) a definição por parte das prefeituras de
pios do interior, obteve-se a informação da pos-
terrenos para os conjuntos; c) a complemen-
sível contratação de novos empreendimentos
tação de recursos em 8.000,00 reais por UH
pela faixa 1 do PMCMV para alguns dos mu-
creditado pelo governo do estado como con-
nicípios enquadrados. Por meio dessas viagens,
trapartida para os novos contratos. Tudo isso
alguns relatos são recorrentes como: a realiza-
para motivar o setor da construção civil a em-
ção de reuniões públicas com o Secretário das
preender esforços e abrir frentes de trabalho
Cidades divulgando o programa e indicando a
nesses municípios.
localização e disponibilidade de terreno; a rea-
Todavia, ao final da segunda fase, ape-
lização de cadastro de famílias para posterior
nas 16 municípios, incluídos os da primeira
seleção; a definição da empresa e mesmo a
fase, conseguiram aprovação de contratos com
apresentação do projeto.
recursos do FAR e do CCFGTS, apesar dos es-
Confirmados por notícias da mídia lo-
forços governamentais, e os novos integrantes
cal, algumas características comuns a esses
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municípios e seus respectivos contratos po-
e meios de transporte, assim como redes de
dem ser apontados: o porte do empreendi-
abastecimento de água e de saneamento.
mento na ordem de 500 unidades; a localiza-
Ao atender às pressões pela construção
ção periurbana, via de regra diametralmente
de empreendimentos maiores e concentrados
oposta às frentes de expansão do mercado
num só terreno, ao priorizar o baixo custo do
imobiliário e dos empreendimentos das faixas
terreno como critério para a sua compra, tem-
2 e 3; a sinalização de uma segunda etapa do
-se como consequência o crescimento desor-
empreendimento no curto prazo; a realização
denado e disperso. Com isso, favorecem-se os
por empresa com experiência nesse ramo de
proprietários de terras em setores intermediá-
serviço, tendo Fortaleza como sede; a proximi-
rios entre o centro e a periferia, cujas glebas
dade do empreendimento do PMCMV em rela-
vazias passam a ser valorizadas em detrimento
ção ao setor industrial; a unicidade do projeto
da perda de qualidade de vida dos futuros mo-
e a adoção de casa térrea unifamiliar como
radores e mesmo do abandono dessas unida-
tipo habitacional.
des pela ausência de cidade no seu entorno.
Situação exemplar pode ser obtida em
A questão trazida à tona com as difi-
Russas onde a localização de conjunto habi-
culdades de implantação de empreendimentos
tacional com 500 UHs ocorre em terreno vizi-
voltados para famílias na faixa de interesse
nho à indústria de calçados Dakota, numa das
social evidencia problemas associados à dis-
saídas da cidade. Apesar de amplos terrenos
sociação entre as políticas urbana e habitacio-
vazios nos interstícios entre a periferia e os
nal, assim como a ineficácia dos instrumentos
bairros intermediários e pericentrais, a opção
até aqui elaborados como os planos diretores
dessa localização evidencia problemas de in-
municipais e os planos locais de habitação de
serção urbana para o futuro próximo. No mes-
interesse social.
mo município, tem-se a construção de alguns
empreendimentos por meio do PMCMV para
as faixas 2 e 3 em terrenos de pequeno porte,
atendendo à demanda com maior capacidade
de pagamento em terrenos melhor localizados.
Aplicabilidade dos instrumentos
de planejamento urbano
e habitacional
Disso observa-se que mesmo para um centro
regional com população de 30 mil habitantes
No que se refere à aplicabilidade dos instru-
na zona urbana, o programa ao desconsiderar
mentos de planejamento e gestão do solo ur-
os instrumentos da política urbana pode vir a
bano associados à implementação do PMCMV,
induzir a especulação imobiliária e a segrega-
destacam-se as seguintes dinâmicas: a) a baixa
ção residencial.
efetividade da legislação urbanística municipal
Situações como essas indicam a neces-
na definição das áreas para os PMCMV, inexis-
sidade de uma abordagem intersetorial na
tindo casos de utilização do Estatuto da Cida-
implementação desse programa, consideran-
de; b) a ausência de articulação entre os planos
do que o porte dos empreendimentos requer
diretores municipais e problemas na implan-
equipamentos sociais, condições de circulação
tação de conjuntos periféricos evidenciando
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a necessidade de planos de expansão urbana
momento a pertinência da localização dos
e habitacional metropolitano; c) o reconheci-
mesmos diante do conteúdo da política urba-
mento de problemas recorrentes na realização
na e mesmo da lei de uso e ocupação do solo
do trabalho social influenciam negativamente
é questionada. Sobre a localização do empre-
a organização dos grupos atendidos e a apro-
endimento, as opções são: inserido na malha
priação dos equipamentos de uso coletivos pe-
urbana, periferia e área de transição urbano
los moradores.
rural, onde uma não exclui a outra. No que se
refere ao uso predominante: residencial uni
ou multifamiliar, comercial, industrial, misto,
Baixa efetividade da legislação
urbanística na definição das áreas
para os PMCMV
as opções mostram-se presas a um modelo
de zoneamento funcionalista que não retrata
a realidade das cidades brasileiras. Quanto à
densidade de ocupação, entre alta, normal ou
Ao analisarmos as áreas onde os empreendi-
baixa, faltam maiores elementos para definir o
mentos habitacionais do PMCMV estão sendo
que essa classificação significaria, além de di-
inseridos, observa-se que as mesmas não le-
ferenciar a densidade quanto à região e quan-
varam em consideração os conteúdos dos pla-
to à localização na cidade. Por fim, no que diz
nos diretores municipais, no que se refere aos
respeito à disponibilidade de transporte fal-
instrumentos do Estatuto da Cidade, os quais
tam elementos para justificar o que seria bom,
poderiam facilitar a aquisição de terrenos me-
regular ou insuficiente.
lhor localizados e dotados de infraestrutura e
serviços urbanos.
mencionado nas entrevistas o uso de qualquer
Fortalecendo a hipótese da total disso-
instrumento do estatuto da cidade, como as
ciação entre as políticas urbana e habitacional,
Zeis vazias, que apesar de disponíveis na le-
assim como a constatação de que a definição
gislação urbana da maior parte dos municípios
das áreas decorre da decisão dos construtores
não foram utilizadas. Em Fortaleza, o Plano
e da aceitação das demais instituições de fi-
Diretor Participativo de 2009 reúne mais de 60
nanciamento, os casos estudados ilustram es-
áreas consideradas como Zeis vazias, sem que
sa situação. Prevalecem critérios como o custo
nenhuma tenha sido alvo de projeto (Ancona,
do terreno, fundamental para o construtor.
2009; Rolnik, 2010).
Mesmo a disponibilidade de infraestrutura e
Nos casos analisados para Fortaleza, os
serviços, apesar de serem mencionados como
empreendimentos aprovados pelo FAR na 1ª
disponíveis no entorno, derivam em problemas
fase se localizam nas Zonas de Requalificação
para os moradores, visto que nem sempre es-
Urbana I e II (ZRU), marcadas pela precarieda-
tavam em condições de uso.
de das infraestruturas, pela presença de áreas
Além disso, compreende-se que desde
de ocupação e loteamentos irregulares. Fos-
o preenchimento da FIT (Ficha de Informa-
sem considerados os conteúdos e as recomen-
ções sobre o Terreno) e da FRE (Fichas Resu-
dações da legislação, esses seriam construídos
mo dos Empreendimentos) que em nenhum
apenas em setores dotados de infraestrutura
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Em nenhum dos casos estudados, foi
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e serviços urbanos, e, por conseguinte, aptos
ocasião dos debates em Fortaleza dizia res-
aos novos empreendimentos.
peito à ausência da questão metropolitana
Com vistas à terceira fase do PMCMV e
nos seus conteúdos. Disso decorre uma série
buscando cumprir as promessas de campanha,
de conflitos de uso do solo e incompatibili-
a PMF partiu para a aprovação de grandes
dades de ocupação do território. Sem preten-
conjuntos num setor da cidade considerado
der esgotar a lista de problemas, podem ser
como Zona de Ocupação Restrita (ZOR), onde
aqui citados: zonas de litígio em que os limi-
as recomendações são contrárias ao tipo de
tes municipais não são reconhecidos; lotea-
empreendimento. Controlar e inibir a ocupa-
mentos aprovados em municípios vizinhos,
ção dessas áreas devido às condições esparsas
às vezes parcialmente, propiciando situações
de ocupação e às carências de infraestrutura e
de irregularidade fundiária e insegurança
serviços, apesar de apontadas no plano diretor,
na posse por seus moradores; produção de
não conseguem impedir a aprovação desses
loteamentos clandestinos, os quais remanes-
novos grandes conjuntos.
cem sem controle urbano; descontinuidades
Mesmo para os casos de Maracanaú e
viárias, influenciando negativamente a imple-
Caucaia, os problemas se repetem com outros
mentação de redes de infraestrutura urbana;
elementos. Em Maracanaú, os conjuntos pro-
transposição de demandas sociais relaciona-
duzidos com recursos do FAR encontram-se em
das à maior proximidade das periferias nas
áreas descontínuas, distantes da centralidade
zonas conurbadas de núcleos e centralidades
principal do município, em zonas com maior
urbanas de municípios vizinhos; avanço das
fragilidade ambiental. Sua localização em ter-
áreas de risco no contra-fluxo dos rios urba-
renos distantes e próximos ao eixo transversal
nos desde Fortaleza em direção aos municí-
ao município vindo de Fortaleza em direção
pios à montante; degradação dos recursos
à Maranguape contribui para o crescimento
naturais vinculada à falta de infraestrutura
desordenado do município. Por sua vez, em
e de serviços urbanos; dificuldades no aces-
Caucaia, alguns dos empreendimentos aprova-
so aos equipamentos sociais, via de regra
dos desconsideram as recomendações do pla-
vinculado ao domicílio; custo excessivo dos
no, que demonstram seu viés segregacionista,
transportes coletivos para um grupo cada vez
tornando proibitivo o uso com fins HIS para al-
maior de pessoas que comutam de um muni-
guns setores, assim como estabelecendo lotes
cípio ao outro, na ausência de um processo
mínimos de 250 metros quadrados.
de planejamento metropolitano.
Vale destacar que se entende como processo de planejamento territorial metropoli-
Ausência de articulação entre os PDs
municipais e necessidade de planos
de expansão urbana metropolitano
tano não apenas a formulação de um plano,
mas a definição de papéis e responsabilidades,
assim como da sua institucionalização, implementação e operacionalização, sem os quais,
Desde a elaboração dos planos diretores mu-
estar-se-ia tão somente produzindo relatórios
nicipais, uma das questões levantadas por
e normativas fadadas às gavetas e prateleiras.
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O Programa Minha Casa Minha Vida na Região Metropolitana de Fortaleza-CE
Na ausência desse processo, desde o
subsidiado não tem o seu real valor reconhe-
lançamento do PMCMV, os grandes vazios ur-
cido; da presença de muitos problemas deri-
banos de Maracanaú e Caucaia tornaram-se
vados das más condições de inserção urbana
alvo de projetos, dado o menor custo da terra
induzindo famílias a buscar outras formas de
urbana (sem infraestrutura), vindo a contribuir
moradia, levando-as ao abandono e à venda
com a consolidação da conurbação entre eles
dos imóveis.
e Fortaleza em duas direções: sudoeste e oeste
Disso vem à tona a necessidade de pro-
respectivamente. Nessas bordas, inicia-se a im-
cesso de planejamento metropolitano voltado
plantação de pequenos empreendimentos iso-
para estabelecer mecanismos de articulação
lados sob a forma de condomínios horizontais,
entre os planos municipais quanto às frentes
os quais passam a ter seu entorno complemen-
de expansão dos municípios, assim como para
tado por empreendimentos contíguos, decor-
definir em conjunto o uso de instrumentos que
rendo num território fragmentado e descontí-
garantam de forma consorciada a urbanização
nuo, onde os espaços extramuros denunciam a
e a posterior disponibilidade de terra urbaniza-
necessidade de um plano urbanístico.
da para novos empreendimentos, evitando-se o
Além disso, o setor sudoeste de Fortaleza, conhecido como Grande Bom Jardim
agravamento dos problemas aqui apresentados
(Santoro, 2012).
torna-se alvo de projetos de reassentamento
habitacional de famílias removidas de áreas
de risco integrantes do Projeto Maranguapinho
com recursos do PAC, os quais contemplam: a
Problemas recorrentes na realização
do trabalho social
urbanização das áreas de risco, recuperadas como espaços livres para a cidade; as obras de
Os problemas associados à redução do papel
infraestrutura; a provisão habitacional somada
do Estado tornam-se mais evidentes quando
a pequenos equipamentos coletivos.
se investigam os impactos do trabalho social
Complementa a problematização em tor-
junto aos beneficiários, o qual, em seus obje-
no desta dinâmica socioespacial, a compreen-
tivos específicos, visa contribuir com a orga-
são de que as demandas de Fortaleza tendem
nização das famílias beneficiadas. Vale des-
a migrar para os municípios vizinhos, especial-
tacar que esse corresponde a um dos poucos
mente nas faixas 2 e 3 que inclusive podem vir
processos em que se pode investigar a forma
a pressionar os empreendimentos da faixa 1.
como se dá a interação entre o poder local e
Isso decorre dentre outros fatores: da pequena
a população, evidenciando-se a necessidade
oferta adiante da demanda reprimida; da infor-
de maior detalhamento do programa no nível
malidade na aquisição do imóvel como marca
local referente aos procedimentos para defini-
de um setor onde não existe controle urbano;
ção das famílias beneficiadas.
da produção em quantidade nos municípios
Considerando a necessária abordagem
vizinhos e a oferta atendendo a cadastros mu-
intersetorial que o enfrentamento da ques-
nicipais, onde na ausência de um efetivo e efi-
tão da moradia requer, deve ser mencionado
caz trabalho social, o bem imóvel amplamente
que o trabalho social tem limitações diante
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dos problemas a serem enfrentados, os quais
Quanto ao tipo de atividade realizada pe-
muitas vezes advêm das más condições de lo-
lo técnico de trabalho social ocorrido por oca-
calização, da forma como se deu a produção
sião do contato com os moradores, observa-se
habitacional, assim como em decorrência das
que o foco esteve concentrado na mudança e
disparidades de poder entre os agentes envol-
na organização do condomínio, conforme afir-
vidos na tomada de decisão.
maram mais de 2/3 dos moradores. Questões
De qualquer maneira, o trabalho social
vinculadas às condições de inserção urbana,
no PMCMV acaba por se constituir no único e
como a proximidade de equipamentos sociais
derradeiro momento de interação entre o mu-
e sua apropriação pelos beneficiários foram
nicípio e os beneficiados, ganhando com isso
mencionadas por menos de 17% do total dos
maior importância, no sentido que se coloca
entrevistados; da mesma forma, pouco mais de
como esclarecedor das condições em que os
20% disseram ter havido encaminhamentos e
imóveis são entregues e como facilitador do
discussões associadas à realização de cursos
processo de organização comunitária.
profissionalizantes. Dada a importância desses
Tendo em vista a vida em condomínio
pontos para a melhoria nas condições de vida
que a tipologia urbanística e arquitetônica
e para a permanência das famílias nos condo-
predominantemente é adotada no PMCMV
mínios, recomenda-se que esses pontos sejam
na RMF, o trabalho social ganha ainda maior
melhor explorados nas atividades do trabalho
importância pelo fato de incluir no orçamen-
social.
to das famílias novas, despesas com taxas de
Decorrem da fragilidade da realização
condomínio às quais elas não estão habitua-
do trabalho social, problemas como a inadim-
das, assim como a necessidade de comparti-
plência no pagamento das taxas e a desorga-
lhar responsabilidades. O problema se agrava,
nização afetando diretamente a gestão dos
se considerarmos a amplitude do espectro de
condomínios associada à participação das
renda na faixa 1, variando de famílias com
famílias nas reuniões. Além disso, a presença
renda inferior a 1 salário mínimo oriundas de
recorrente de uso misto, repasse a familiares,
áreas de ocupação a famílias com renda de
venda, aluguel, invasão e desocupação: situa-
1.600,00 reais provenientes de casas em que
ções pontuais que somadas indicam problemas
pagavam aluguel.
desde a formulação do cadastro até a seleção
De acordo com as entrevistas realizadas
de beneficiários.
com moradores dos conjuntos já habitados,
constatou-se que o contato dos moradores com
os técnicos de trabalho social é bastante redu-
Considerações finais
zido e descontínuo. A metade dos entrevistados
mencionou ter tido contato antes da mudança,
Neste artigo, buscou-se apontar e discutir um
um quarto dos moradores apenas após a mu-
quadro de dinâmicas vinculadas às condições
dança, e o restante informou que nunca teve
em que se encontram os arranjos institucio-
contato com os técnicos.
nais vinculados ao PMCMV na RMF. Essas
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O Programa Minha Casa Minha Vida na Região Metropolitana de Fortaleza-CE
foram classificadas quanto às ações dos seto-
capital, experiência e pacote tecnológico para
res imobiliário e da construção civil; quanto às
enfrentar a produção de grandes conjuntos pe-
práticas do Estado considerando as diferentes
riféricos. Tende a restar às demais a busca por
esferas de governo; quanto à associação entre
novos empreendimentos em centros regionais
os instrumentos de planejamento urbano e ha-
do estado, tão logo a terceira fase do PMCMV
bitacional. Apesar de terem a RMF como foco,
venha a ser dotada de recursos.
fez-se necessário a realização de abordagem
Cumpre destacar que o PMCMV ao dis-
pluri-escalar, incluindo a região Nordeste, sub-
ponibilizar amplos recursos para a contratação
divida em estados; o estado do Ceará em seus
de empreendimentos residenciais, atendendo a
municípios diferenciados pelo porte de sua po-
diferentes faixas de renda, a serem realizados
pulação; a própria RMF da qual foram selecio-
pelo setor da construção civil, pôs em cheque
nados os municípios com maior produção habi-
os instrumentos da política urbana formulados
tacional atrelada ao programa.
nos últimos anos. Da mesma forma, no nível lo-
No caso, Fortaleza como o mais populoso
cal colocou numa mesma arena os diferentes
revelou dificuldades vinculadas à especulação
agentes sociais, em que num cenário otimista
imobiliária comandada pelo setor da incorpora-
poderiam ser pactuadas medidas que favore-
ção e da construção civil. Além disso, percebeu-
cessem a todos, ou num cenário pessimista, as
-se num primeiro momento, a continuidade das
disputas poderiam vir a se acirrar refletindo no
empresas de pequeno e médio porte que atua-
aumento das disparidades socioespaciais (Ma-
vam através do PAR, as quais passaram a ter
ricato, 2011).
contratos no PMCMV. Ainda que diversificadas,
Para tanto, a RMF, historicamente mar-
com o passar do tempo denotou-se a concen-
cada por suas desigualdades sociais traduzidas
tração em torno de poucas empresas em ter-
nas condições precárias de moradia para mui-
mos de quantidade de unidades habitacionais.
tos e no privilégio com que poucos desfrutam
Diante destas dificuldades, o PMCMV passa
dos benefícios da urbanização, representou um
a ser mais efetivo nos municípios vizinhos a
recorte espacial exemplar e dos mais férteis.
Fortaleza: Caucaia ao oeste e Maracanaú ao
A concentração do desenvolvimento ur-
sudoeste, onde as facilidades para obtenção
bano no município-polo, para onde convergem
de terrenos e a disponibilidade de demanda
a maior parte dos investimentos, a criação de
viabilizaram lucros no curto prazo. Além disso,
instituições públicas municipais voltadas para
tratando-se de empreendimentos de pequeno
o enfrentamento do problema habitacional na
porte, as mesmas empresas que vinham atuan-
última década, as tentativas do governo esta-
do na provisão habitacional pelo PAR sob o
dual de retomar ações na produção habitacio-
comando do Sinduscon obtiveram êxito na efe-
nal, as dificuldades vivenciadas nos processos
tivação de contratos.
de planejamento urbano na esfera municipal,
Todavia, mais recentemente configura-
a força dos oligopólios que comandam o setor
-se a tendência de oligopolização do progra-
imobiliário e as más condições de distribuição
ma por meio de grandes empresas dotadas de
das redes de infraestrutura, para citar apenas
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Renato Pequeno, Sara Vieira Rosa
algumas, são características cuja simultanei-
instrumentos como os consórcios imobiliários
dade e sobreposição na RMF reforçam sua
e adotar instrumentos de combate à especula-
condição especial como objeto de estudo.
ção imobiliária, vincular as demandas prioritá-
Diante do quadro de problemas relacio-
rias definidas nos planos locais de habitação
nados às dinâmicas que retratam a situação
a terrenos vazios próximos habilitados ao uso
dos arranjos institucionais, pretende-se aqui
residencial são algumas das medidas a serem
sugerir algumas diretrizes visando contribuir
tomadas de modo a facilitar essa interação en-
com a melhoria do PMCMV. Primeiramente,
tre as políticas urbana, habitacional e outra a
recomenda-se o redesenho das atribuições dos
elas vinculadas.
agentes envolvidos no programa, especialmen-
Por fim, acredita-se que a elaboração de
te em relação àqueles que fazem parte do qua-
planos de estruturação urbana para os setores
dro funcional dos municípios, cuja ausência dos
em que o PMCMV passa a se concentrar corres-
processos decisórios deriva em grande parte
ponde a um requisito primordial a ser cumpri-
dos problemas detectados.
do. Especialmente no caso das periferias, onde
Em seguida, tendo em vista a aprovação
prevalecem os desmandos do setor imobiliário
de conjuntos habitacionais de grande porte,
e a informalidade urbana, esses planos corres-
torna-se imprescindível a associação entre as
ponderiam ao maior detalhamento em relação
políticas urbana e habitacional – nas suas di-
ao uso do solo, trazendo consigo diretrizes es-
retrizes e nos seus instrumentos – bem como
pecíficas de desenho urbano destinadas a so-
às demais políticas setoriais envolvidas com
lucionar problemas vinculados à distribuição
a expansão urbana de modo a amenizar os
demográfica, à estrutura viária, à mobilidade,
impactos sobre os moradores e a mitigar os
às necessidades por equipamentos sociais, às
impactos decorrentes das más condições de
demandas por infraestruturas urbanas, aos es-
inserção urbana. Fazer uso das zonas espe-
paços livres e à delimitação das áreas de pre-
ciais de interesse social do tipo vazios, utilizar
servação permanente urbana.
Renato Pequeno
Universidade Federal do Ceará, Departamento de Arquitetura e Urbanismo, Laboratório de Estudos
da Habitação. Fortaleza/CE, Brasil.
[email protected]
Sara Vieira Rosa
Universidade Federal do Ceará, Departamento de Arquitetura e Urbanismo, Laboratório de Estudos
da Habitação. Fortaleza/CE, Brasil.
[email protected]
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O Programa Minha Casa Minha Vida na Região Metropolitana de Fortaleza-CE
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Texto recebido em 14/out/2015
Texto aprovado em 10/dez/2015
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Transformação da periferia e novas
formas de desigualdades nas metrópoles
brasileiras: um olhar sobre as mudanças
na produção habitacional
Transformation of the urban periphery and new forms
of inequality in Brazilian cities: a view on the recent
changes in housing production
Maria Beatriz Cruz Rufino
Resumo
Este artigo tem como objetivo discutir as recentes
transformações nas periferias das grandes metrópoles brasileiras, considerando a expansão da
produção imobiliária nesses territórios, suportada
em grande medida pelo lançamento do Programa
Habitacional Minha Casa Minha Vida. Partindo de
uma análise histórica e teórica, procuramos mostrar
o deslocamento da primazia da contradição entre
capital-trabalho, sob o domínio do capital industrial, para a primazia de uma contradição urbana,
sob domínio do capital financeiro. Nossa hipótese
é que a periferia, cuja formação foi caracterizada
“trinômio casa própria-loteamento periférico-autoconstrução”, consolida-se na atualidade como estratégia essencial na ampliação dos ganhos e na
expansão da produção imobiliária. Essa estratégia
de valorização do capital parece impor novas formas de desigualdades, que procuramos explorar.
Abstract
This article’s objective is to discuss recent
transformations in the periphery of Brazil’s
largest cities, considering the expansion of real
estate in these territories, strongly supported by
the Government’s housing program Minha Casa
Minha Vida. Using historical and theoretical
analyses, we demonstrate the shift in the primacy
of the contradiction between capital and labor,
dominated by industrial capital, towards the
primacy of an urban contradiction, dominated
by financial capital. Our hypothesis is that the
appropriation of the periphery has consolidated
into an essential strategy in the amplification
of gains and in the expansion of real estate.
This strategy of capital appreciation seems to
impose new forms of inequality, which we have
attempted to explore here.
Palavras-chave: financeirização; metrópole; periferia; mercado imobiliário.
Keywords: financialization; metropolis; periphery;
real estate market.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 217-236, abr 2016
hƩp://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3510
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Maria Beatriz Cruz Rufino
Introdução
do estoque de crédito habitacional (Mendonça
A primeira década do século XXI é marcada por
cursos para a habitação a partir da utilização
uma intensificação da produção imobiliária no
do FGTS foi multiplicada em cerca de cinco
Brasil, manifestada pelo aumento do volume
vezes. Esse aumento foi ainda mais expressivo
da produção e por forte valorização imobiliá-
no caso do SBPE, em que os volumes contrata-
ria. Em 2010, a valorização imobiliária alcan-
dos em 2010 superam em mais de dez vezes as
çada foi de 23%, representando a segunda
contrações do ano de 2005.
e Sachsida, 2012).
Entre 2005 e 2010, a contratação de re-
maior taxa mundial (Cf. revista Exame, de 30
Nesse cenário fortemente favorável à ex-
de maio de 2012). Um conjunto de trabalhos e
pansão do consumo da produção imobiliária, a
pesquisas desenvolvidos recentemente (Royer,
abertura de capital das grandes incorporadoras
2009; Fix, 2012; Shimbo, 2010; Rufino, 2012)
se consolidou como uma nova possibilidade de
mostram que esse quadro de intensificação
captar recursos do mercado financeiro. Num
da produção imobiliária das cidades brasilei-
primeiro ciclo de captação, entre 2005 e 2007,
ras insere-se no movimento geral de conver-
25 empresas, predominantemente localizadas
gência entre capital financeiro e imobiliário e
no eixo Rio-São Paulo, conseguiram captar cer-
repercute em mudanças estruturais na organi-
ca de 12 bilhões de reais, consolidando o setor
zação do setor imobiliário e na reconfiguração
imobiliário como uma importante área do mer-
das cidades brasileiras.
cado de capital financeiro e atraindo grande
No Brasil, a aproximação do capital fi-
atenção de investidores estrangeiros, que che-
nanceiro ao setor imobiliário foi suportada,
garam a representar “mais de 75% desse vo-
em grande medida, pela redefinição do mar-
lume dos capitais” (Rocha Lima Jr. e Gregório,
co regulatório do setor e pelo crescimento da
2008). Procurando ampliar seus investimentos,
oferta de financiamentos, a partir da impor-
muitas dessas empresas passaram a se desta-
tante recupe ração das principais fontes de
car por direcionar sua produção para a popula-
financiamento habitacional, organizadas pelo
ção de menor renda (Shimbo, 2010).
Estado no Sistema Financeiro Habitacional
Essa nova estratégia do mercado imo-
(SFH) e posteriormente reforçadas na imple-
biliário impulsionou um importante movimen-
mentação do Programa Habitacional Minha
to de transformação e expansão das periferias
Casa Minha Vida.
das grandes metrópoles, cuja formação ori-
Relacionado ao crescimento econômico
ginal, esteve particularmente relacionada ao
do país, as tradicionais fontes do SFH – o Fun-
intenso processo de urbanização da América
do de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e
Latina a partir dos anos 1960, sendo pautada
o Sistema Brasileiro de Poupança e Emprésti-
pelo “trinômio casa própria-loteamento perifé-
mos (SBPE) – começam a apresentar resulta-
rico-autocontrução” (Bonduki, 2004).
dos excepcionais, configurando-se como base
Tradicionalmente a produção imobiliária
fundamental da expansão do setor, sendo res-
de mercado, principalmente concentrada nas
ponsáveis no ano de 2012 por cerca de 95%
áreas centrais, tendeu a reforçar a dicotomia
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Transformação da periferia e novas formas de desigualdades...
entre centro equipado e territórios precaria-
sob domínio do capital financeiro, responsável
mente ocupados. Esses territórios precários
pela produção de novas desigualdades.
contrastavam e valorizavam ainda mais os
No desenvolvimento deste artigo, ini-
espaços mais bem servidos e mais equipados.
cialmente recuperamos e discutimos uma im-
Esse duplo movimento explicitava diferenças e
portante produção bibliográfica que proble-
levava a cidade a um rápido processo de ex-
matizou a formação da periferia, interpretada
pansão, pautado por baixa densidade e infor-
como expediente de rebaixamento do custo de
malidade nas construções, que passou a ser
reprodução da força de trabalho e importante
descrito como sendo “um padrão periférico
instrumento de ampliação dos ganhos na in-
de crescimento urbano” (Bolaffi, 1979). Nesse
dústria, expressando dessa maneira as intensas
contexto se fortaleceu uma visão segmentada
desigualdades da urbanização brasileira.
e dual da urbanização, “onde uma produção
Considerando um salto de mais de 30
organizada do espaço – moderna e indus-
anos, passamos a investigar as mudanças nas
trial – se contrapunha a outro espaço, onde à
periferias das grandes metrópoles na atualida-
apropriação desorganizada do lote se somava
de, manifestadas pela disseminação de grandes
a produção precária da casa-própria por traba-
condomínios residenciais direcionados para a
lhadores” (Pereira, 2005).
população de menor renda. A atuação do setor
É sobre essas periferias, que na atuali-
público, por meio de uma política de financia-
dade se evidenciará a expansão da produção
mentos e subsídios com meta de construção de
imobiliária de mercado, consubstanciando no-
três milhões de habitações, o Programa Minha
vas relações de produção das periferias. Esse
Casa Minha Vida foi decisivo na complexifica-
movimento faz com que a forma de produção
ção desses territórios.
para mercado, dominante nos mecanismos de
Essa nova estratégia de produção do
valorização, se torne também predominante
espaço, compreendida dentro de um proces-
no processo de urbanização. Em sua obra,
so de financeirização da produção imobiliária,
a Produção Social do Espaço, Gottidiener
impõe uma nova lógica de produção da perife-
(2007) já pontuava que a produção do espaço
ria que faz emergir novas formas de desigual-
decorria não apenas dos processos econômi-
dades. São essas questões que procuramos
cos, mas também e, mais especificamente, de
discutir na última parte, antecedendo as con-
uma articulação conjunta entre Estado e setor
siderações finais.
imobiliário, que formavam uma coalizão de
interesses entorno da valorização imobiliária
e representavam a vanguarda das transformações espaciais.
Partindo de uma análise histórica e teórica da periferia, procuramos mostrar o desloca-
A formação da periferia como
expediente de rebaixamento
da força de trabalho
mento da primazia da contradição entre capital-trabalho, sob o domínio do capital industrial,
Em 1970, pela primeira vez a população urba-
para a primazia de uma contradição urbana,
na havia superado a rural no Brasil.1 O rápido
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Maria Beatriz Cruz Rufino
crescimento da população urbana representou
ilegais em relação à legislação de uso do solo
ainda a consolidação de grandes aglomerados
e ocupados sem qualquer infraestrutura, asso-
metropolitanos. Institucionalizadas em 1973,
ciou-se à percepção de um quadro crescente
as regiões metropolitanas passam a concentrar
de problemáticas urbanas – insuficiência de
mais da metade da população urbana (Brito e
transporte público, incapacidade do poder pú-
Pinho, 2012). O acelerado processo de urbani-
blico em prover saneamento, infraestruturas e
zação no Brasil, muito superior ao dos países
serviços urbanos para toda a cidade.
desenvolvidos nesse mesmo período, foi um
Ao procurar compreender a lógica de
fenômeno até então sem precedentes, direta-
produção desse espaço, vários estudos acadê-
mente relacionado ao forte crescimento indus-
micos contribuirão para o desenvolvimento de
trial e seu caráter concentrador.
uma importante crítica ao Estado e a visão de
Entre 1940 e 1980, o PIB brasileiro cres-
planejamento urbano dominante, que se nega-
ceu com média de 7% ao ano, correspondendo
va a considerar a cidade real (Tanaka, 2007).
ao período de maior crescimento econômico in-
As periferias metropolitanas brasileiras foram
dustrial brasileiro, resultante em grande medi-
caracterizadas de uma forma bastante precisa
da da maior diversificação do parque industrial,
pela literatura sociológica e urbana nos anos
com o crescimento das indústrias voltadas a
1970 e 1980.
bens de produção como os automóveis, princi-
Oliveira (1979) tem um importante papel
palmente concentrado no estado de São Paulo
na transposição do pensamento crítico brasi-
(Singer, 1968).
leiro para o urbano, articulando a produção da
Conforme desenvolve Maricato (2001),
periferia com as condições de super exploração
as mudanças na economia brasileira influen-
da força de trabalho na industrialização. Para
ciaram diretamente o padrão de produção
esse autor, o moderno (a industrialização) cres-
da cidade, atraindo imenso contingente de
ce e se alimenta do atrasado (a super explora-
população rural (dada as condições precárias
ção do trabalho); disso resulta, “a contradição,
de vida no campo e as dificuldades de acesso
e não apenas o paradoxo, de como uma enor-
aos meios de produção), mas mantendo as
me massa de assalariados não chega a consti-
intensas desigualdades que impunham à po-
tuir-se um mercado para a produção capitalis-
pulação mais pobre a moradia em áreas com-
ta, seja na residência, seja em melhoramentos
pletamente inadequadas ao desenvolvimento
urbanos” (Oliveira, 1979).
urbano racional.
Estando a autoconstrução no cerne da
Nas décadas de 1950 e 1960, a cidade
produção da periferia, como forma de produ-
de São Paulo, por exemplo, registrou taxas de
ção predominante, o autor destaca sua relevân-
crescimento superiores a 5%, correspondentes,
cia como mecanismo de rebaixamento do custo
no plano espacial, a um forte espraiamento da
de reprodução da força de trabalho:
metrópole, associado em grande medida à in-
tos populares distantes das áreas urbanizadas,
Trata-se, também neste caso, de como se
dá a produção de uma riqueza social que
não é valor, que não é capital, mas é posta a serviço do capital, na medida em que
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tensa migração da população pobre. Essa expansão, viabilizada pela abertura de loteamen-
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Transformação da periferia e novas formas de desigualdades...
contribua para rebaixar seja o custo da
reprodução da força de trabalho, no caso
da residência, seja o custo da urbanização, no caso das pequenas obras públicas
feitas por moradores em seus bairros, em
suas ruas. (Oliveira, 1979, p.16)
fortalecimento da habitação como problema,
assumindo quantitativamente a forma de um
gigantesco déficit habitacional. Se durante
muitos anos o rebaixamento do custo de reprodução da força de trabalho a partir da precarização da habitação vinha sendo funcional
Nesse mesmo debate, Kowarick (1979)
ao capital, o enfrentamento da questão habi-
também destaca a autoconstrução como meca-
tacional revela-se como prioridade, sendo in-
nismo essencial para o rebaixamento do custo
corporado no discurso político e resultando no
de reprodução da força de trabalho. Referen-
desenho de políticas de maior vulto.
ciando-se nas dinâmicas de São Paulo, o autor
afirma que:
A solução mais importante do ponto de
vista quantitativo na cidade de São Paulo
é a autoconstrução, esta magnífica fórmula que o capitalismo dependente deflagrou para rebaixar o custo da reprodução
da força de trabalho, compatibilizando
uma alta taxa de acumulação com salários crescentemente deteriorados. (Kowarick, 1979)
Ao mostrar sensibilidade a um grave
problema social, no qual até então a ação do
Estado havia sido bastante limitada, o Governo Militar procurava assegurar o apoio da
população e garantia à manutenção da ordem
social. Ao mesmo tempo, ao incorporar mecanismos financeiros na expansão do crédito,
suportava a expansão das empresas de construção. Em 1964, é instituído o Plano Nacional
da Habitação e criado o Banco Nacional da
Habitação (BNH), órgão gestor do SFH e da
A formação da periferia é nesse sentido
Para Bolaffi (1979), a ampliação dos in-
do por Kowarick (1979) como a sistemática
vestimentos do Estado, principalmente a partir
exclusão das camadas populares do acesso aos
da habitação e de melhorias urbanas, consoli-
serviços de consumo coletivo.
da-se como uma importante estratégia de en-
Os espaços periféricos são assim carac-
frentamento da crise. “Tudo indica, portanto
terizados como os mais distantes e de menor
que o ‘problema da habitação popular’...não
renda diferencial, ocupados pela população de
passou de um artifício político formulado para
mais baixa renda inserida de maneira mais pre-
enfrentar um problema econômico conjuntu-
cária no mundo do trabalho (Kowarick, 1979;
ral” (Bolaffi, 1979).
Bonduki e Rolnik, 1979). Representariam terri-
A intervenção do Estado, pautada em
tórios sem Estado, quase totalmente intocados
grandes conjuntos habitacionais periféricos
pelas políticas públicas, exceto pelos empreen-
impulsionaram novas frentes de desenvolvi-
dimentos habitacionais massificados, implanta-
mento metropolitano, tornando mais complexa
dos a partir de finais dos anos 1960.
a organização desses territórios e sinalizando
A expansão da periferia nas grandes
algumas transformações.
cidades e mais claramente o agravamento
A partir da década de 1980, o contexto
dos processos de favelização sustentaram o
de estagnação e inflação mudou a dinâmica de
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política habitacional.
produto da espoliação urbana, termo defini-
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Maria Beatriz Cruz Rufino
crescimento urbano que se estruturava desde
A consolidação de grandes conjuntos
o início dos anos 1940 do século passado. No
habitacionais populares e o início da implanta-
Brasil, entre 1991 e 2000, houve um aumento
ção de condomínios fechados, embora não re-
de 22,5% do número de favelas. Enquanto os
presentem processos predominantes na expan-
domicílios cresceram 1,01% em todo o país, os
são da periferia são indicativos da ampliação
domicílios em favelas cresceram 4,18%. A fa-
da complexidade desses territórios. No contí-
vela, no momento de crise, se coloca como um
nuo processo de expansão metropolitana, es-
espaço privilegiado para reprodução da força
sas novas dinâmicas se mesclaram ainda com
de trabalho, por garantir acesso mais fácil ao
retenção especulativa da terra, tida como im-
mercado de trabalho por sua proximidade a re-
portante estratégia para ampliação dos ganhos
giões centrais (Torres e Oliveira, 2001).
dos loteadores.
Apesar do grande incremento de favelas, representando o aumento do adensamento e empobrecimento de porções mais centrais (Sempla,1990), as periferias das grandes
metrópoles continuaram a crescer em ritmo
muito mais acelerado que as áreas já conso-
A produção imobiliária
na periferia: o Programa
Minha Casa Minha Vida
lidadas. Essa relação fica evidente quando se
examinam as taxas de crescimento dos aglo-
O mercado imobiliário brasileiro historicamen-
merados metropolitanos ao longo das quatro
te foi caracterizado por seu caráter restrito,
últimas décadas. Apesar da sensível redução
oferecendo apenas produtos de luxo, que
das taxas de crescimento populacional, a par-
normalmente abrangiam menos de 30% da
tir da década de 1980, a periferia dos núcleos
população e estavam principalmente localiza-
metropolitanos crescerá com taxas mais ele-
das nas áreas mais consolidadas e valorizadas.
vadas repercutindo em maior incremento po-
Nesse contexto a classe média tendia a se
pulacional. Essa dinâmica reafirma o padrão
apropriar dos recursos subsidiados utilizados
de urbanização extensiva – processo de incor-
na promoção pública de moradias, deixando
poração horizontal de áreas rurais adjacentes
a população de baixa renda sem alternativas,
aos núcleos urbanos – impondo um caráter
que não a ocupação de terras e a construção
metropolitano às nossas periferias (Torres e
ilegal de suas casas. Tais dinâmicas levaram a
Oliveira, 2001).
uma massiva concentração do déficit habita-
É também a partir da década de 1980
que começa a se discutir a transformação na
cional entre as famílias mais pobres (Maricato, 2001).
estrutura das cidades a partir da implantação
A partir de 2003, com o governo Lula, é
pontual de condomínios fechados, gerando
possível observar maiores esforços no sentido
espaços onde os diferentes grupos sociais es-
de construção de uma política habitacional
tão muitas vezes próximos, porém separados
(Cardoso et al., 2011), garantindo o direciona-
por muros e dispositivos de segurança (Cal-
mento dos recursos subsidiados para a popula-
deira, 2000).
ção de menor renda.
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Transformação da periferia e novas formas de desigualdades...
Figura 1 – FGTS – Unidades financiadas por faixas de renda
100%
75%
50%
25%
0%
2002
2003
2004
2005
2006
2007
0 a 3 SM
2008
3 a 5 SM
2009
mais de 5 SM
Fonte: Estatísticas Básicas do Bacen (SFH–FGTS) organizados pelo Observatório das Metrópoles.
Nesse sentido, em paralelo ao vertigino-
momento, há uma inversão dessa tendên-
so incremento dos fundos paraestatais, como
cia, com o avanço da importância do finan-
Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FG-
ciamento para as faixas consideradas de
TS), procurou-se garantir seu direcionamen-
mercado, mas ainda com rendimentos infe-
to para Habitação de Interesse Social (HIS),
riores a 10 salários mínimos.
2
conforme os objetivos originais do fundo. A
Além do direcionamento de maior parte
reformulação na constituição e na forma de
dos financiamentos oriundos do FGTS para fa-
atuação Conselho Curador do FGTS em 20033
mílias com mais de três salários, constatou-se
e as resoluções editadas principalmente a par-
nesse período uma expressiva recuperação dos
4
tir de 2004 conseguiram dar maior efetivida-
valores absolutos do fundo. Recuperação ain-
de ao direcionamento do fundo para a produ-
da mais evidente para o caso do FGTS. Entre
ção de Habitação de Interesse Social (HIS),
2005 e 2010, a contratação de recursos para
viabilizada em vários casos pela concessão de
a habitação a partir da utilização do FGTS foi
subsídios (Royer, 2009).
multiplicado em cerca de cinco vezes, sendo
Essa tendência de reforço da HIS é
esse aumento ainda mais expressivo no caso
bastante evidente até 2007, quando 65%
do SBPE, em que os volumes contratados em
das unidades financiadas pelo FGTS foram
2010 superam em mais de dez vezes as contra-
direcionadas para população de até três
ções do ano de 2005, como pode se observar
Salários Mínimos ( SM ) . A par tir desse
no Gráfico 2.
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Figura 2 – Contratação de recursos para habitação SBPE/FGTS
(em R$ bilhões)
R$90 bi
R$60 bi
R$30 bi
R$0 bi
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
SBPE
2010
FGTS
Fonte: Estatísticas Básicas do Bacen (SFH – SBPE/FGTS) organizadas pelo CBIC Dados.
Na raiz dessa mudança estariam um am-
Shimbo (2010) ilumina com bastante
biente macroeconômico favorável e o “apri-
clareza os processos que levaram ao cresci-
moramento” institucional por meio da lei
mento exponencial de uma produção de mer-
10.931/2004, que ampliou a segurança jurídica
cado mais direcionada para a população de
do crédito imobiliário facilitando a retomada
menor renda, mostrando os nítidos vínculos
de imóveis através de instrumentos como a
com o processo de abertura de capitais de
Alienação Fiduciária.
grandes empresas de incorporação. Como a
Com taxas de juros um pouco mais
precificação das empresas no mercado de ação
baixas, “tanto o interesse de investidores
esteve baseada na projeção de lançamentos
pelo mercado da construção civil pareceu
imobiliários a partir da propriedade da terra, a
aumentar, como o interesse das institui-
abertura de capital dessas empresas foi ante-
ções financeiras pela concessão de crédito
cedida da consolidação de grandes bancos de
de longo prazo deu sinais de que essa con-
terras, que se tornaram condição central para
cessão poderia ser uma atividade lucrativa”
uma valorização fictícia das empresas. Segun-
(Royer, 2009, p. 72). O crescimento econômi-
do Shimbo (2010), no final de 2007 as empre-
co evidenciado no período ajuda a explicar o
sas de capital aberto dispunham de terrenos
aumento da captação de recursos para esses
espalhados por todo país num montante total
fundos, que retomam um papel essencial no
correspondente a cerca de 37 bilhões de reais,
financiamento imobiliário e na expansão e di-
suficientes para construir mais de 400 mil ha-
versificação do mercado imobiliário.
bitações (Shimbo, 2010).
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Transformação da periferia e novas formas de desigualdades...
Fundados no discurso do grande déficit
condomínios/bairros imobiliários em periferias
habitacional, na ascensão das classes C e D e
metropolitanas de várias regiões do Brasil,
na disponibilidade de financiamento no âmbito
desenvolvendo em grandes glebas empreendi-
do SFH, grande parte da produção é direciona-
mentos semelhantes que passam a reunir até
da para o chamado segmento econômico. Es-
mais de 5.000 unidades.
sas condições são exacerbadas nos relatórios
Nesse momento fica evidente a associa-
de grandes consultorias internacionais e nas
ção entre a intensificação de uma produção
análises dos jornais e revistas, que apontam
residencial massificada em áreas periféricas e o
importantes mudanças no setor em decorrência
processo crescente de centralização do capital
desse direcionamento:
nas grandes empresas de incorporação – que
Esse nicho é o grande filão da indústria,
tendo em vista o déficit habitacional do
país, estimado em 7,2 milhões de moradias. E como já há um leque de possibilidades de financiamentos bancários a
prestações baixas, os investimentos em
empreendimentos econômicos não apenas se tornaram viáveis, como assumiram
o status de "projetos principais" das empresas, que, agora, precisam ampliar seu
portfólio para adentrar em um modelo de
negócio com características peculiares e
até então pouco explorado.5
do projeto de articulação entre Mercado Imobiliário e Estado, proposto no início da década de
2000, quando fora lançado o Projeto Moradia.
Concebido como um dos projetos de desenvolvimento para o país na campanha de Lula, a
proposta visava associar o enfrentamento da
questão social a crescimento e geração de empregos, considerando para isso a ativação do
mercado imobiliário. Como explicita Bonduki
(2009) “para concentrar o FGTS na baixa renda, seria indispensável a retomada da produ-
Visando assegurar a ampliação dos ga-
ção habitacional pelo mercado, para atender a
nhos na produção de habitação para esse seg-
classe média, reativando o crédito imobiliário,
mento, evidencia-se a articulação de três estra-
particularmente do SPBE (recursos da poupan-
tégias fundamentais: padronização da constru-
ça), que não vinha cumprindo os dispositivos
ção, geração de economia de escala e procura
legais que exigem a aplicação dos seus fundos
de terrenos baratos. A busca pela disponibilida-
em habitação, pois o governo FHC, baseado no
de de grandes glebas e terrenos mais baratos
rigor monetarista, enxergava o financiamento
irá direcionar investimentos para as periferias,
habitacional como inflacionário”.
ativando as regiões das metrópoles antes não
Na sequência da ativação da produção
consideradas pela atuação do mercado formal.
imobiliária para setores anteriormente não
Paradigmáticos nesse processo são os
atendidos pelo mercado, evidencia-se uma
empreendimentos da empresa Bairro Novo.
forte aliança “entre movimentos de luta pela
Originada de uma parceria celebrada em 2007
moradia e setores empresariais representados
entre uma grande incorporadora nacional
no Conselho Nacional das Cidades” (Santo
(Gafisa) e uma empreiteira de atuação inter-
Amore, 2015, p. 16). Essa aliança é oficializa-
nacional (Odebrecht), essa empresa passa a
da com o lançamento da Campanha Nacional
ser responsável pelo lançamento de grandes
pela Moradia Digna – uma prioridade social,6
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se consolidam como as principais beneficiadas
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“cuja meta era a aprovação de uma Proposta
produção, reforçando a expansão da produ-
de Emenda Constitucional (PEC) que vinculas-
ção do segmento econômico dos grandes gru-
se 2% dos recursos orçamentários da União e
pos imobiliários.
1% dos estados, Distrito Federal e municípios
Com o objetivo de criar condições de
aos seus respectivos Fundos de Habitação de
ampliação do mercado habitacional para
Interesse Social, lastreando permanentemente
atendimento das famílias com renda de até
a política nacional de produção habitacional”
10 SM, o Programa MCMV estabeleceu um
(Santo Amore, 2015).
conjunto de subsídios proporcionais à renda
No contexto de lançamentos grandiosos
das famílias. Além dos subsídios, o Programa
e de avanço de articulação de setores e grupos
garantiu o aumento do volume de crédito para
antes vistos como rivais, a crise internacional
aquisição e produção de moradias, a redução
de 2008 colocou em ameaça a liquidez dos
de juros, e segurança ao negócio imobiliário a
grandes empreendimentos em construção, im-
partir da criação do Fundo Garantidor da Habi-
pondo ainda sérias dificuldades financeiras às
tação – que aporta recursos para pagamento
grandes empresas que naquele momento deti-
das prestações em caso de inadimplência por
nham grande soma de investimentos imobiliza-
desemprego e outras eventualidades (Cardoso
dos em bancos de terra.
et al., 2011).
Nesse momento, a retórica da importân-
Segundo dados do Ministério das Cida-
cia da atividade da construção imobiliária foi
des, nos últimos quatro anos foram investidos
reforçada, seja pelo seu papel na provisão de
mais 190 bilhões de reais, considerando os
novas habitações contribuindo na solução do
subsídios diretos e linhas de crédito disponibi-
‘déficit habitacional’, seja como motor de rea-
lizadas. Esses recursos foram responsáveis pela
tivação da economia nacional, legitimando a
contratação 2.980.177 unidades imobiliárias
condução de massivos esforços para ampliação
em todo o Brasil. O Programa está atualmente
dos financiamentos e subsídios ao setor. Esses
dividido em três faixas de renda (1, 2, 3). Na
esforços ganharam status de Programa habi-
faixa 1, que abrange as famílias com renda
tacional e de política anticíclica, com o lança-
até 1.600 reais, os subsídios podem chegar até
mento do Programa Minha Casa Minha Vida
96%, dependendo da renda da família. Nesta
(MCMV) em março de 2009 e a promessa de
faixa o crédito disponibilizado para as famílias
produção de um milhão de casas. Em junho de
deve ser pago em 10 anos. Na faixa de 2, os
2011, foi lançada a segunda etapa do Progra-
subsídios podem chegar até 25.000 reais e o
ma, considerando agora a construção de mais
crédito disponibilizado deve ser pago em 30
dois milhões de habitações.
anos. Na faixa 3, não existe subsídios diretos,
O socorro questionável prestado pelo
mas cumpre lembrar que os juros do crédito
Governo Federal, por meio do lançamento do
disponibilizado são bastante inferiores aos do
Programa MCMV, garantiu a solvência do es-
mercado, e conta-se ainda com isenção de ta-
toque construído, reforçou a valorização das
xas e impostos.
ações das grandes empresas do setor e deu
No desenho do Programa MCMV, as
fôlego para a retomada do crescimento da
grandes empresas participaram de maneira
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Transformação da periferia e novas formas de desigualdades...
decisiva, tornando-se protagonistas em sua
Como os preços finais estão pré-deter-
implementação. A importância dessas gran-
minados pelos tetos estabelecidos para as
des empresas pode ser também mensurada
diferentes faixas, a maximização dos ganhos
pela grande concentração da produção por um
do setor privado continua a ser garantida pe-
número pequeno de grandes empresas. Uma
la redução do custo de construção e do preço
análise de uma amostra específica dos empre-
da terra. A necessidade de redução de custos
endimentos contratados até agosto de 2012,
de construção reforçou os esforços em curso
revelou que apenas dez empresas participaram
no sentido de padronização, industrialização e
da produção de cerca de 44% das unidades
ampliação da escala dos empreendimentos.
produzidas. Dessas dez empresas, seis tinham
capital aberto na bolsa de valores.
definido como limite máximo para cada em-
No Programa cabe ao mercado a pro-
preendimento a construção de 500 unidades
moção dos empreendimentos imobiliários,
habitacionais ou condomínios segmentados em
elaborados de acordo com as exigências
até 250 habitações, o que se verificou foi a con-
técnicas mínimas estabelecidas pela Caixa
solidação de grandes blocos, acomodando mais
Econômica Federal (CEF), responsável pela
de mil unidades (Cardoso et al., 2011). A partir
gestão e operacionalização do PMCMV. O
de 2011, o Programa passa a permitir empreen-
papel dos estados e municípios, nesse mo-
dimentos de até 1.500 unidades, e em 2012,
delo, passou a ser o de organizar a demanda
esse máximo é elevado para 5.000 unidades.
para a faixa de menor renda (faixa 1) e criar
Embora tenham sido constantes alguns esfor-
condições complementares para facilitar a
ços no sentido de assegurar condições mínimas
produção em todas as faixas, através da de-
de qualidade dos empreendimentos, a partir da
soneração tributária e da flexibilização da le-
edição das sucessivas normativas do Programa,
gislação urbanística e edilícia dos municípios
o que parece prevalecer são as estratégias de
(Cardoso et al., 2011). Para as demais faixas,
ampliação dos ganhos por parte das empresas.
os imóveis são disponibilizados no mercado
Quando se analisa a localização da produ-
para compradores que se adequem ao perfil
ção dos empreendimentos Minha Casa Minha
do Programa.
Vida nas regiões metropolitanas, verifica-se
Mesmo prevalecendo o discurso da fina-
a predominância da localização dos empre-
lidade social do Programa, a distribuição dos
endimentos fora dos municípios-polo, mos-
recursos entre as diferentes faixas de renda
trando desarticulação do ProgramaPrograma
tendeu a privilegiar os produtos direcionados
com a concentração dos déficits e políticas
a faixas de maior renda nas quais a atuação
habitacionais locais. Embora no Brasil pratica-
das grandes empresas nacionais de incorpo-
mente não exista planejamento na esfera me-
ração era mais dominante. Embora o déficit
tropolitana, o Programa legitimou a metropoli-
para as faixas 2 e 3 juntas correspondesse a
zação do déficit, permitindo que os empreendi-
7
23,5% do total do déficit em 2007, 55% das
mentos fossem implementados nos municípios
unidades contratadas até abril de 2013 foram
mais distantes do núcleo, assegurando maiores
destinadas para as famílias nessas faixas.
ganhos ao setor privado.
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Apesar de inicialmente o PMCMV ter
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Maria Beatriz Cruz Rufino
Até agosto de 2011, 8 das cerca de
existentes tem, entretanto, caráter seletivo,
440.000 unidades contratadas pelo Programa
associando basicamente dois aspectos princi-
nas Regiões Metropolitanas, cerca de 57%
pais: menor custo da terra e disponibilidade
estavam localizadas nos municípios da perife-
de alguma infraestrutura de mobilidade. Tal
ria metropolitana. Para os empreendimentos
seletividade tende a reforçar uma metropoli-
da faixa 1, essa tendência é ainda mais forte.
zação linear, ao longo dos eixos e infraestru-
Nessa faixa, cerca de 65% dos empreendi-
turas de mobilidade existentes, tornando mais
mentos construídos pelo Programa estão lo-
custosa a implementação de infraestruturas e
calizados nos municípios mais periféricos das
ampliando a distância dos moradores aos lo-
Regiões Metropolitanas. Nesses municípios
cais de emprego.
o recebimento de grandes empreendimentos
Com a produção simultânea de empreen-
habitacionais é visto como alternativa de di-
dimentos para as diferentes faixas, a faixa 1 é
namização econômica, substituindo o papel
direcionada para as piores localizações na me-
outrora desempenhado pela indústria, e fonte
trópole. Como o Programa não previu, em sua
de imensos ganhos políticos ao possibilitar um
primeira etapa, a construção de equipamentos
grande número de unidades de HIS, anterior-
públicos, essas áreas, mesmo produzidas a par-
mente inviabilizadas pela dependência de re-
tir de relações capitalistas avançadas, surgem
cursos municipais. Nesse sentido, se justificam
com carências de equipamentos públicos e per-
amplas isenções fiscais, recomendadas nas
manecem sem acesso a comércios e serviços,
normativas do Programa, e flexibilização dos
os quais muitas vezes passam a ser oferecidos
instrumentos urbanísticos.
por meios informais.
Estudos mais recentes, que apresentam
Embora existam particularidades regio-
com precisão a localização geográfica desses
nais, um dos resultados claros do Programa é
empreendimentos em regiões metropolitanas
o esgarçamento das periferias, consolidando o
específicas, como Rio de Janeiro, Fortaleza e
alargamento e a metropolização da produção
Belém (Cardoso et al., 2011; Pequeno, 2013;
imobiliária, disseminando a valorização imobi-
Lima et al., 2013), mostram ainda que o fato
liária em áreas que até então não haviam sido
de parte desses empreendimentos estar loca-
objeto de investimentos imobiliários.
lizada no município-polo não assegura con-
O horizonte desse processo parece ser
dições de localização satisfatórias. Nesses
a extensão de uma urbanização segregada
municípios, prevalece a localização em áreas
e privada (Lencioni, 2003) às periferias, mul-
precárias e periféricas, onde já se localizavam
tiplicando sociabilidades restritas a grandes
grandes loteamentos populares, conjuntos
condomínios que oferecem como áreas coleti-
habitacionais e favelas. Assim, os empreendi-
vas espaços precários e pouco apropriados por
mentos do Programa, além de abrirem frentes
seus moradores.
pioneiras de urbanização, têm contribuído pa-
Até janeiro de 2014, o Programa Minha
ra o adensamento de áreas periféricas, apro-
Casa Minha Vida já havia contratado mais de
priando-se de grandes lotes remanescentes.
3,2 milhões de moradias, tendo sido entregue
A apropriação de novas áreas e dos tecidos
1,51 milhão de unidades.
228
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Transformação da periferia e novas formas de desigualdades...
Novas periferias ou novas
formas de produção
de desigualdades?
ambientais. “Áreas de inundação, sujeitas a
deslizamentos, localizadas próximas a aterros
de lixo e junto a depósitos de resíduos tóxicos
caracterizam, muitas vezes, as mais precárias
condições residenciais da periferia metropolita-
A partir dos anos 1990, um conjunto de novos
na, onde diversas situações de desigualdades e
estudos passa a revelar o sensível avanço de
risco se sobrepõem” (Torres e Oliveira, 2001).
investimentos do Estado nas periferias, princi-
Esses processos revelam a imposição de cres-
palmente nas áreas de saneamento e educa-
centes dificuldades de acesso à moradia pe-
ção, além dos investimentos pontuais em pa-
los mais pobres, reforçando a importância da
vimentação das ruas locais (Marques e Bichir,
propriedade privada da terra mesmo em áreas
2001). Muitos dos avanços alcançados podem
mais periféricas.
ser vistos como resultado da crescente organi-
O reconhecimento de novas estratégias
zação dos movimentos sociais, que emergem
de reprodução do capital, manifestada pelo
do contexto de precariedade e ausência dos
avanço das relações capitalistas na produção
bens de consumo coletivo, e passam a reivindi-
imobiliária na periferia, indica importantes
car pelo direito à cidade.
transformações no processo de urbanização,
Para Torres e Oliveira (2001), a presença
sinalizando novas relações com o processo de
desses serviços não significa que as desigual-
industrialização. De fato, a produção de uma
dades tenham sido eliminadas, manifestando-
“nova periferia” não se articula mais a um ace-
-se por outras dimensões menos óbvias, como
lerado crescimento industrial, pelo contrário,
a ausência ou precariedade de emprego, au-
pode ser vista como um importante meio de
mento dos níveis de violência e maior distância
dinamização da economia em si. Para Volochko
dos equipamentos de saúde, entre outros as-
(2011), já a partir da década de 1980, fica mais
pectos (Torres e Oliveira, 2001). Nessa mesma
claro um descolamento da questão habitacio-
periferia também passam a se reconhecer no-
nal e da problemática industrial, dando relevo
vas desigualdades, manifestadas pelas “favelas
à urbanização como processo autônomo e do-
de periferia” e ampliação das moradias em si-
minante, não mais diretamente relacionado à
tuação de risco ambiental.
industrialização (Pereira, 2005).
Embora o crescimento das favelas te-
Se antes a indústria estava presente co-
nha sido interpretado como consequência de
mo um forte elemento de atração dos trabalha-
um cenário de crise, configurado a partir dos
dores, a nova lógica de produção imobiliária fi-
anos 1980 e resultando no adensamento e
nanceirizada repõe a importância industrial vi-
empobrecimento de porções mais centrais, o
sando uma verdadeira fabricação habitacional,
que passa a se verificar a partir da década de
que segue escalas e métodos crescentemente
1990 é a emergência das favelas na periferia,
industrializados e se apoia na retórica de um
dando origem a um fenômeno da “hiperperife-
déficit habitacional como poder de barganha de
ria” (Torres e Marques, 2001, apud Torres e Oli-
seus interesses e estratégias (Volochko, 2011).
veira, 2001), muitas vezes associadas a riscos
A partir de uma ação do Estado, manifestada
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Maria Beatriz Cruz Rufino
pela implementação do Programa MCMV, essa
um empresário do setor imobiliário, “Não exis-
lógica é estendida e legitimada.
te terreno ruim. Tem terreno caro e terreno juri-
Nesse Programa, uma ampla conver-
dicamente incomprável [sic]. Qualquer terreno
gência de interesses entre agentes públicos e
você viabiliza um empreendimento, por mais
privados, acaba por reforçar o movimento de
popular que ele seja”. Impõe-se, assim, uma
confluência do capital financeiro à produção
grande fluidez ao valor da terra, que assume
imobiliária (Fix, 2012). Essa aproximação re-
sua condição potencial de ativo financeiro.
sultará por vezes em arranjos em que a frágil
Pelo desenho do Programa, o conflito
correlação de forças entre os agentes envolvi-
mais latente, da órbita que envolvia a empresa
dos (grandes empresas versus prefeituras mu-
de construção e os proprietários fundiários, é
nicipais) favorecerá a imposição de um padrão
deslocado para o âmbito do Estado, que pe-
de produção imobiliária que preconiza amplia-
la elevação sucessiva dos valores limites das
ção crescente dos ganhos na reprodução do
unidades e flexibilização das normas de uso e
capital no espaço. Esse padrão se sobreporá
ocupação, passa a legitimar o aumento do pre-
a condições extremamente desiguais de de-
ço da terra e apropriações de áreas cada vez
senvolvimento urbano das cidades brasileiras,
mais precárias.
que, por influír no preço da terra, são determi-
A ausência de equipamentos, comércios
nantes na definição das estratégias da produ-
e serviços e a grande distância a áreas que
ção do espaço.
concentram empregos são minimizadas pela
Aqui cabe lembrar que esse movimen-
satisfação da propriedade privada da casa,
to, antes de encontrar a propriedade privada
modalidade exclusiva de acesso à habitação
da terra como obstáculo, a potencializa como
no âmbito do Programa MCMV. Essa dissemi-
condição à sobrevida do capitalismo, concreti-
nação da propriedade privada, associada a sua
zando as reflexões de Lefebvre sobre a centra-
intensa valorização, permite ao governo fede-
lidade da propriedade privada (2008, p. 160):
ral contabilizar o aumento do capital residencial como um dos resultados mais positivos do
Longe de constituir um obstáculo ao crescimento no quadro do capitalismo, ela
foi seu ponto de apoio, e, entretanto, ela
destina esta sociedade a um caos espacial
sobre o qual peço que lhes reflitam...
Programa,9 exaltando e legitimando a valorização imobiliária.
Essa valorização imobiliária vem sustentando imensos ganhos às empresas e aos proprietários de terra. De acordo com ranking da
A disseminação dessa lógica de produção
consultoria Economatica, no terceiro trimestre
às periferias faz com que a expansão da produ-
de 2009, estavam no Brasil 12 das 20 constru-
ção imobiliária capitalista aconteça em muitos
toras de capital aberto mais lucrativas da Amé-
casos dissociada das condições gerais de urba-
rica Latina e Estados Unidos.
nização, antes tidas como determinantes para
Por outro lado, a capacidade de reali-
viabilização de empreendimentos imobiliários.
zação do valor desses imóveis para seus pro-
Nessa lógica, qualquer terreno adquire poten-
prietários é limitada. Primeiro, porque pelas
cial para a valorização do capital. Na fala de
condições estabelecidas pelo Programa, a
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Transformação da periferia e novas formas de desigualdades...
população beneficiada com os maiores níveis
absoluto de 52.960 domicílios (IBGE-PNAD
de subsídios só poderá realizar a venda legal
2007-2012). A redução relativa do déficit nesse
desses imóveis após dez anos. Segundo, por-
período, de 9% para 8,53%, deve-se, entre-
que a baixa qualidade construtiva e rápida
tanto, ao contexto de intensificação da produ-
obsolescência desses grandes empreendimen-
ção imobiliária, com aumento significativo do
tos, constatada por pesquisas e reportagens
número total de domicílios.
em diferentes meios de comunicação, põe em
Os resultados do Programa podem ser
questão a capacidade de venda desses móveis
questionados principalmente quando se exami-
pelos preços indicados no mercado. Esses en-
na com maior cuidado a distribuição do déficit
traves, entretanto, não vêm impedindo a conti-
entre as diferentes classes e entre seus com-
nuidade de práticas de vendas irregulares, nor-
ponentes.10 Em 2008, 70,2% do déficit estava
malmente feitas a preços bastante inferiores
concentrado entre a população de até três SM.
aos praticados no mercado. Além disso, a sele-
Essa proporção avançou para 73,6% em 2012.
ção dos beneficiários do Programa vem sendo
Para essa faixa de renda, o aumento absoluto
objeto de alguns questionamentos.
do déficit foi 215.492 domicílios.
Os impactos da disseminação dessa lógi-
Cumpre ressaltar que o déficit brasileiro
ca de produção sobre as periferias não se res-
é essencialmente urbano. Em 2012, 85% do
tringem aos proprietários, tende ainda a pro-
déficit estava concentrado nas áreas urbanas.
mover novas formas de desigualdades, à medi-
Foi justamente nessas áreas que o déficit ha-
da que dificulta a produção de habitação mais
bitacional apresentou maior aumento absoluto,
acessível e entrava o seu acesso por outros
com ampliação de cerca de 224.000 domicílios.
meios de produção, que permanecem a aconte-
Quando se avaliam os componentes des-
cer com maior precariedade. Essa contradição,
se déficit urbano, é importante reconhecer que
levada à periferia, tende a extinguir as condi-
houve um importante avanço na resolução das
ções de acesso à moradia dos mais empobreci-
situações de precariedade, que representavam
dos na cidade. Nesse sentido, as desigualdades
cerca de 12% do déficit em 2008 e passaram a
se impõem com maior força entre os mais em-
representar 8% do déficit em 2012 (ver Figura
pobrecidos e não beneficiados por essa lógica
3). Por outro lado, houve um importante avan-
de disseminação da propriedade imobiliária.
ço do déficit relacionado ao ônus excessivo
Tal contradição se explicita nas limita-
com aluguel, que representava 40% em 2008
ções do Programa MCMV na resolução do pro-
e passou a representar cerca de 50% em 2012.
blema que se propõe resolver – o déficit ha-
Cumpre lembrar que a componente “ônus ex-
bitacional. Quando se observa a evolução do
cessivo de aluguel”, que corresponde às situa-
déficit entre 2008 (ano que antecede a imple-
ções em que as despesas com o aluguel são su-
mentação do Programa) e 2012, constata-se
periores ou igual a 30% do orçamento familiar,
que esse avançou de 5.191.565 domicílios para
só incluem domicílios com renda total de até
5.244.525, representando um acrescimento
três salários mínimos.
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% Déficit habitacional
Figura 3 – Distribuição do Déficit habitacional por componente (urbano)%
Precariedade habitacional
Densidade excessiva
Coabitação
2008
2009
2011
2012
Ônus excessivo em aluguel
Fonte: Estatísticas Básicas do Bacen (SFH–SBPE/FGTS) organizadas pelo CBIC Dados.
Esses números iluminam com clareza os
aluguéis aumentado, em média, 138% (dados
aspectos contraditórios do avanço das relações
Fipe-Zap). Esses aumentos foram significativa-
capitalistas sobre na produção do espaço. Se
mente superiores à inflação, que no referido
por um lado, pode-se perceber a superação de
período foi de 43,2 % (IGPM).
parte das situações de precariedade, caracteri-
A disseminação de uma lógica estri-
zadas por domicílios produzidos com materiais
tamente capitalista vem contraditoriamente
precários e normalmente autoconstruídos, o
reforçando processos antigos, como as ocupa-
avanço do déficit por ônus excessivo de aluguel
ções. As mobilizações de junho de 2013, que
é muito mais expressivo.
trouxeram em suas raízes reivindicações urba-
Nesse sentido, a produção imobiliária da
nas, fizeram disparar na cidade de São Paulo
periferia não pode ser compreendida de manei-
as ocupações, em resposta a essa lógica que
ra isolada, inserindo-se em todo o movimento
impõe o afastamento contínuo dos mais pobres
de ampliação da valorização imobiliária da
das cidades.
metrópole, que por sua vez reforça os deslocamentos para a periferia e influencia também a
valorização do estoque já construído, elevando
Considerações finais
os aluguéis de maneira geral. Essa dinâmica
explica o significativo avanço do ônus excessi-
Embora a força do termo periferia permaneça
vo por aluguel.
presente nas leituras da metrópole contempo-
Na cidade de São Paulo, entre janeiro de
rânea, o que se evidencia na atualidade é um
2008 e janeiro de 2014, os aluguéis tiveram
esvaziamento da carga teórica que o constituiu
um aumento médio de 96,2%. No Rio de Ja-
(Tanaka, 2007). Grande parte das interpre-
neiro, esse aumento foi ainda maior, tendo os
tações da época partia da análise da relação
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Transformação da periferia e novas formas de desigualdades...
entre os processos de urbanização e de in-
socioespacial que ora aproxima, ora distancia
dustrialização, os quais tendiam a promover
as atividades urbanas e os grupos sociais.
graves desequilíbrios socioespaciais. O reco-
De certa maneira, há uma substituição
nhecimento de dinâmicas diferenciadas, que
da ideia anteriormente preponderante do es-
já aparecem desde finais da década de 1980 e
paço urbano como condição de reprodução do
são reforçadas com o avanço de uma produção
capital (industrial em geral) para a de que o ob-
imobiliária nesses territórios na atualidade,
jetivo é, imediatamente, a produção do espaço,
impõe o desafio de uma atualização teórica,
passando a ocorrer, então, uma subordinação
que considere uma nova lógica de produção
direta do espaço ao investimento industrial
do espaço e as novas formas de produção de
(imobiliário) e à reprodução do capital, como
desigualdades.
problematizou Lefebvre:
A busca contínua de oportunidades para a valorização imobiliária, representada pela
incorporação de novos espaços e pela intensificação da ocupação dos espaços existentes,
define o atual processo de crescimento da metrópole e reforça o espaço como raridade. A generalização dessa nova lógica de produção do
espaço encontrará nas bordas das metrópoles
um espaço marcado por grande desigualdade
O processo que subordina as forças produtivas ao capitalismo se reproduz aqui,
visando à subordinação do espaço que
entra no mercado para o investimento
dos capitais, isto é, simultaneamente o
lucro e a reprodução das relações de produção capitalistas. Os lucros são imensos
e a lei (tendencial) de queda da taxa de
lucro médio é muito eficazmente bloqueada. (Lefebvre, 1999, p. 164)
que se expressa em extremos como a apropriação de espaços públicos por moradias precárias
e a forte retenção especulativa da terra.
terpretadas como a resultante da contradição
A produção imobiliária organizada na
entre capital trabalho no curso do processo
metrópole por um nível de centralização do
de industrialização, sua análise na atualidade
capital muito mais elevado tende a tornar a
revela a primazia de uma contradição urba-
estrutura urbana ainda mais desigual e segre-
na que se exprime na totalidade da produção
gada. Parte da enorme rentabilidade obtida
do espaço. O avanço de uma nova lógica de
pelo setor imobiliário é alcançada a partir da
produção nesses espaços tende a exacerbar a
reprodução da segregação herdada e da his-
reprodução do capital em detrimento das ne-
tórica valorização imobiliária dessa estrutura
cessidades da reprodução social. É nesse sen-
desigual, que se dá pela contínua redefinição
tido que toma força uma contradição urbana,
da segregação e elevação do gradiente de pre-
representada pela transição de uma produção
ços. As diferenças entre áreas centrais, mais ca-
urbana entendida como meio para a reprodu-
ras, e as periféricas, mais baratas, continuarão
ção das relações sociais para uma hegemonia
existindo, mas serão redefinidas e multiplica-
da produção imobiliária, representada pela pri-
das pela fragmentação, numa hierarquização
vatização do espaço e do valor.
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Se, originalmente, as periferias eram in-
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Maria Beatriz Cruz Rufino
Maria Beatriz Cruz Rufino
Universidade de São Paulo, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. São Paulo/SP, Brasil.
[email protected]
Notas
(1) De acordo com dados do Censo/IBGE, 1970.
(2) O Fundo de Garantia por Tempo de Serviço foi criado pela Lei n. 5107/66, como um fundo
indenizatório que garantisse uma reserva de recursos para a manutenção do trabalhador
durante os períodos de desemprego, que, já se previa, se tornariam mais frequentes com
a flexibilização das relações de trabalho decorrentes das mudanças na Consolidação das Leis
do Trabalho. O fundo foi formado com a poupança compulsória de 8% dos salários mensais
recolhidos pelo empregador sobre as folhas de pagamento, acumulando um montante que
foi usado pelo Estado para financiar investimentos nos setores sociais como Habitação e
Saneamento, mas também na infraestrutura (Castro, 1999, p. 74).
(3) Em 2003, após a criação do Ministério das Cidades, esse passou a ser o responsável pela gestão
da aplicação dos recursos do Fundo, tendo, entre outras atribuições, “a de estabelecer metas
a serem alcançadas nos Programas de habitação popular, saneamento básico e infraestrutura
urbana” (Royer, 2009, p. 87).
(4) Com destaque para a Resolução nº 460 do CCFGTS, de 14 de dezembro de 2004, que “garan u
60% dos recursos de aplicação do FGTS para a área de habitação popular, de acordo com a lei
8.036/90, 30% para saneamento básico, 5% para infraestrutura urbana e 5% para operações
especiais (percentual progressivamente reduzido até sua ex nção a par r de 2008)” (Royer,
2010, p.87). A resolução 460 também foi responsável pela cons tuição de um novo modelo
de subsídios “permi ndo que os recursos do Fundo alcançassem efe vamente a população de
mais baixa renda, até um salário mínimo” (Royer, 2009, p. 88). Essa resolução permi u ainda a
ampliação das aplicações globais dos recursos, que a ngiram o montante de R$4.447.337 mil,
em 2005 (Relatório de Gestão do FGTS do ano de 2006, apud Royer, 2009, p. 88).
(5) Reportagem “O assédio das grandes” na revista Construção Mercado n. 79, de fevereiro de 2008.
(6) Ver histórico da Campanha na página da internet, disponível em: h p://www.moradiadigna.org.
br/moradiadigna/v1/index2.asp?p=11. Acesso em: maio 2015.
(7) De acordo com dados do IBGE/PNAD 2007.
(8) De acordo com dados do Ministério das Cidades.
(9) De acordo com o Sumário Execu vo da Pesquisa “Casa Própria: Capital Residencial e Qualidade de
Vida”. Desenvolvida pelo Ipea, 2013.
(10) Habitações precárias, coabitação familiar, ônus excessivo com aluguel e adensamento excessivo
em domicílios locados.
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Transformação da periferia e novas formas de desigualdades...
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Entre as estatísticas e a cidade:
o cadastramento e a produção
da demanda social por apartamentos,
no Programa Minha Casa Minha Vida
Between statistics and the city: enrolment
and production of social demand for apartments
in the Minha Casa Minha Vida housing program
Marcella Carvalho de Araújo Silva
Resumo
Este trabalho investiga as controvérsias geradas
pelo anúncio da remoção dos moradores de uma
favela condenada por área de risco para um condomínio popular do Minha Casa Minha Vida. Com
o intuito de compreender a contradição entre a
produção de moradias e o recente aumento no
déficit habitacional, este artigo foca no momento crucial da identificação do problema social no
mundo, em que a abstração técnica do “risco” depende de classificações de situações concretas: o
cadastramento social. Analisando os desacordos
entre moradores que pretendem permanecer na
favela e aqueles que pleiteiam a mudança, proponho uma reflexão sobre as dinâmicas do que estou chamando de um mercado imobiliário liminar,
uma configuração espaço-temporal específica,
entre a favela e o condomínio popular.
Abstract
This paper analyses the controversies brought out
by the announcement of the removal of dwellers of
a slum located in a natural disaster risk area to a
“popular condominium” of the Minha Casa Minha
Vida Program in Rio de Janeiro. It aims primarily
to understand the contradiction between the
expansion of housing supply and the recent increase
in the housing deficit. Thus, the core analysis focuses
on the identification of the social problem in the
world, in which the technical abstraction of “risk”
depends on classifications of concrete situations:
the so-called social enrolment. Investigating the
disagreements unfolded between dwellers aiming
to keep living in the slum and those willing to move
to the apartments, this paper proposes a reflection
on the dynamics of what I have coined liminal real
estate market, a specific space-time configuration
between the slum and the popular condominium.
Palavras-chave: remoção; Minha Casa Minha
Vida; cadastro social; mercados imobiliários informais; mercados imobiliários liminares.
Keywords: removal process; Minha Casa Minha
Vida; social enrolment; informal real estate
markets; liminal real estate markets.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 237-256, abr 2016
hƩp://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3511
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Marcella Carvalho de Araújo Silva
Introdução
bem colocou Desrosières (2002), ela serve para
O Programa Minha Casa Minha Vida (doravan-
rações econômicas e justificar ações políticas.
te PMCMV) foi lançado em 2009 com a maior
Em diversos setores e especificamente naquele
escala e volume de recursos já oferecidos em
que nos interessa aqui, o conflito político passa
forma de subsídio à aquisição da casa pró-
pela disputa em torno das estatísticas. Elas, po-
pria para setores historicamente excluídos do
rém, são marcadas por paradoxo constitutivo:
denunciar problemas sociais, descrever inte-
mercado imobiliário formal. Com recursos do
ao mesmo tempo em que o objeto dos conflitos
FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Ser-
são números que se pretendem confiáveis, a
viço), SBPE (Sistema Brasileiro de Poupança
confiabilidade é posta em questão a todo mo-
e Empréstimo), FAR (Fundo de Arrendamento
mento (ibid., p. 12).
1
Residencial), OGU (Orçamento Geral da União)
Com o intuito de compreender a contro-
e FNHIS (Fundo Nacional de Habitação de Inte-
vérsia atual acerca da política habitacional – ou
resse Social), em suas fases 1 (2009-2011) e 2
em outras palavras, da necessidade de se pro-
(2011-2013), o Programa ofereceu subsídios a
duzir casas, como e para quem construí-las –
três faixas de renda familiar: subsídios integrais
devemos entender o processo de objetivação
a famílias acometidas por desastres naturais;
de fenômenos sociais em dados estatísticos.
subsídios de 95% às famílias cujos rendimen-
O IBGE define “família” como: “a) o conjun-
tos variam entre 0 a R$1.600, a “faixa de inte-
to de pessoas ligadas por laços de parentesco
resse social”; e subsídios parciais àquelas cuja
ou de dependência doméstica que morem no
renda mensal fica entre R$1.600 a R$3.100 e
mesmo domicílio; b) pessoa que more sozi-
R$3.100,01 a R$5.000, as duas últimas consi-
nha num domicílio particular; c) conjunto de,
deradas “faixas de mercado”.
no máximo, cinco pessoas que morem em um
Contudo, a comparação entre estudos de
mesmo domicílio particular, embora não es-
2008 e 2013 (mas referente aos dados do Cen-
tejam ligadas por laços de parentesco ou de
so 2010) da Fundação João Pinheiro sinaliza
dependência doméstica” (Alves e Cavenaghi,
um aumento no déficit habitacional brasileiro:
2004, p. 4). “Domicílio”, por sua vez, é defi-
em 2008, o déficit era de cerca de 5,5 milhões
nido pelo IBGE como “o local ou recinto es-
de unidades habitacionais; em 2010, esse nú-
truturalmente independente, que serve de
mero subiu para cerca de 7 milhões de famílias
moradia a famílias, formado por um conjunto
2
sem casa, no Brasil. Como é possível que, após
de cômodos, ou por um cômodo só, com en-
um ano de vigência da política habitacional
trada independente, dando para logradouro
mais significativa da história do país, o déficit
ou terreno de uso público ou para local de uso
3
habitacional tenha aumentado?
comum a mais de um domicílio” (ibid.).
Para a compreensão dessa aparente
Ressalva seja feita que o censo domiciliar
contradição, em primeiro lugar, devemos pro-
de 2010 mudou a relação entre família e do-
blematizar a produção desses números. A esta-
micílio, em comparação ao censo de 2000. Se-
tística é uma linguagem consolidada e ampla-
gundo recomendações da ONU de 2007, exis-
mente compartilhada no campo político. Como
tem dois enquadramentos possíveis da relação
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Entre as estatísticas e a cidade
família e domicílio: o de house-keeping, que
entre famílias e domicílios à identificação dos
privilegia a relação entre a renda e a moradia,
segmentos da população sobre os quais o
e o de house-dwelling, que enfoca a unidade
problema incide. Segundo os estudos da Fun-
doméstica construída (Motta, 2014). Cada uma
dação João Pinheiro, 70% do déficit quanti-
dessas perspectivas implica contabilizações
tativo incidem sobre a população cujos rendi-
distintas do problema do déficit habitacional e,
mentos variam entre 0 e 3 salários mínimos,
consequentemente, a proposição de diferentes
o equivalente à faixa 1 do PMCMV. Localizar
políticas habitacionais. Uma casa que abrigue,
essa população se torna um desafio central ao
por exemplo, pai e mãe, um filho solteiro e um
programa. Na metodologia do Minha Casa Mi-
filho casado, cujo cônjuge viva sob o mesmo
nha Vida, cabe aos municípios desenvolverem
teto, seria considerada um problema de “coa-
Planos Locais de Habitação de Interesse Social,
bitação”, no primeiro caso. Desse ponto de
que diagnostiquem de modo mais esmiuçado
vista, qualquer domicílio que abrigue mais de
o déficit habitacional local e a relação entre as
uma família que divida os custos da moradia
situações de moradia e as rendas das famílias.
é contabilizado no cálculo do déficit e torna-
A localização espacial das famílias de baixa
-se, portanto, alvo da política habitacional de
renda é então mediada por dois importan-
produção de novas unidades habitacionais.
tes instrumentos de imaginação urbanística,
No segundo caso, a categoria “domicílio” pre-
empregados para identificar no espaço as si-
pondera sobre a de “família”: o que importa
tuações de precariedade: as “áreas de risco”,
é o espaço construído, independentemente de
conforme definição do Mapeamento de Riscos
quem more lá. Esse mesmo caso hipotético se-
em Encostas e Margens de Rios, do Ministério
ria contabilizado de forma diferente, não como
das Cidades (2007), e os “aglomerados sub-
duas famílias em situação precária, mas apenas
normais”,4 definidos pelo IBGE.
uma. Em termos de política habitacional, esse
Entre a representação do problema social
cálculo pode desconsiderar a coabitação e criar
e a projeção de ações de enfrentamento, há,
um problema de superlotação de apartamen-
portanto, que se compreender as mediações
tos em conjuntos habitacionais e condomínios
feitas entre o espaço social e o espaço urba-
populares. O cálculo do déficit habitacional que
no. Essa mediação é feita pelo cadastro social.
embasa o programa Minha Casa Minha Vida se
Esse é um momento crucial do programa, pois
pauta pelo segundo critério, de relação entre
é o cadastramento das famílias que cria a “de-
famílias e domicílios, mas a administração do
manda social”, aquela referente à população
programa se dá pela classificação da relação
de baixa renda, sobre a qual incide o déficit
entre famílias e renda em diferentes “faixas”.
habitacional. Esse procedimento é muito mais
Essa aparente dissonância pode ser me-
complexo do que se supõe. É preciso com-
lhor compreendida se levarmos em considera-
preender que entre a multiplicidade de casos
ção que o segundo desafio da atual política
singulares e a generalidade das categorias
habitacional (e de qualquer política habita-
estatísticas existe um esforço classificatório,
cional, necessariamente territorializada) é re-
que enfrenta momentos de dúvida e controvér-
lacionar a estatística obtida pelas correlações
sias. Quem classifica? Quais são os critérios da
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classificação? Aquele que é classificado pode
(BID) e o Programa das Nações Unidas para o
questionar a classificação que lhe é atribuída?
Desenvolvimento (PNUD), por meio do Progra-
Essas são todas perguntas relevantes à com-
ma Habitar/Brasil/BID. As prefeituras, responsá-
preensão de como as operações classificatórias
veis pela implantação do programa, se veem,
antecedem e criam as condições de possibilida-
então, diante da dificuldade de equacionar
de para as intervenções práticas.
todos esses critérios e classificar situações in-
O cadastramento, para a faixa de interes-
definidas, que variam desde famílias com ren-
se social, no programa Minha Casa Minha Vida
das superiores ao teto de R$1.600 vivendo em
consiste na elaboração de um “dossiê”, junto
“áreas de risco” a famílias com renda muito
às secretarias municipais de habitação. Os/As
baixa que não cumprem os critérios de priori-
chefes das famílias pleiteantes devem apresen-
dade do programa.
tar RG, CPF, certidão de casamento (quanto for
Com o intuito de compreender como se
o caso), comprovante de residência (emitido
dá o processo de classificação do mundo den-
pela associação de moradores, na ausência de
tro das categorias da administração, este artigo
logradouro) e declaração de renda (sem a ne-
pretende, a partir de uma etnografia prelimi-
cessidade de comprovação com contracheque,
nar,6 refletir sobre as negociações e os conflitos
já que há muitos casos de trabalhos informais).
desencadeados ao longo do processo de cadas-
Há dois tipos de cadastramento possí-
tramento de uma favela localizada em área de
veis para a chamada “população de baixa ren-
risco.7 Trata-se de uma pequena favela da Zona
da”: o “espontâneo”, em que os próprios indi-
Norte da cidade do Rio de Janeiro,8 construída
víduos pleiteiam o subsídio da compra de um
na beira de um rio, que nunca recebeu qualquer
apartamento; e o “social”, em que as prefeitu-
intervenção pública de urbanização. Ainda que
ras devem fazer o mapeamento das “áreas de
haja postes da Light, o calçamento é todo fruto
risco”, elaborar um PLHIS – Plano Local de Ha-
de mutirões. Essa favela está dividida em duas
bitação de Interesse Social, cadastrar in loco
partes: uma mais larga e mais antiga, onde co-
as casas a serem reassentadas e apresentar a
meçou a ocupação do terreno nos anos 1960;
resultante “demanda social” às empreiteiras,
e outra mais recente e estreita, cujas casas são
para que aí então sejam construídas as novas
as próprias paredes de contenção da água do
unidades habitacionais.
5
O procedimento de classificação que dá
acesso ao subsídio dos apartamentos é fei-
rio. Em período de chuvas, não raro acontecem
enchentes, que invadem casas e destroem os
pertences das famílias.
to pela equipe de trabalho técnico social das
prefeituras e leva em consideração: a renda
mensal das famílias; os critérios de prioridade
Casas marcadas para remoção
determinados por cada município; e os cálculos
dos déficits habitacionais quantitativos e quali-
As ameaças de remoção fazem parte da histó-
tativos, desenvolvidos em parceria da Fundação
ria dessa favela. Em um esforço de recuperar
João Pinheiro com o Ministério das Cidades, o
a memória de sua ocupação, em 2010, quando
Banco Interamericano de Desenvolvimento
ela foi mais uma vez ameaçada de remoção,
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Entre as estatísticas e a cidade
coletei inúmeros relatos sobre as estratégias
afastado do centro, também na Zona Norte.
empregadas ao longo dos anos pelos morado-
Segundo Dona Catarina, a associação de mo-
res para resistência: barricadas de mulheres e
radores foi decisiva nesse processo de conven-
crianças, enfrentamento da polícia e dos tra-
cimento dos moradores de que era melhor não
tores, negociações com parlamentares. Nesse
resistir e aceitar “trocar a casa”. “Uma expul-
mesmo ano de 2010, após intenso rebuliço e
são”, disse ela. Foi a associação que interme-
abaixo-assinado de moradores do “asfalto” do
diou as negociações entre as agentes comuni-
bairro, a remoção deixou de ser um assunto.
tárias da SMH e os moradores individualmente,
Em 2012, ela reapareceu. Dessa vez, com força,
“sem reunião, sem discussão com a comuni-
por meio de boatos e “casas marcadas”. “Um
dade”. Segundo uma das fortes fofocas10 que
terrorismo”, segundo Dona Catarina, uma das
circulam, ao presidente e ao vice foram dadas
primeiras ocupantes da favela.
opções de indenização em dinheiro por suas
Exatamente por ter feito inúmeras en-
casas e as de alguns familiares, opção negada
trevistas de história de vida com moradores
aos demais moradores, que só poderiam “tro-
da favela, fui chamada em 2013 a participar
car a casa” por um apartamento.
da resistência à remoção que, desde o ano an-
A atuação da SMH se deu tanto por
terior, vinha finalmente se concretizando. Em
meio da marcação de casas com as inscrições
outubro, Dona Catarina pediu que eu lhe en-
“SMH-número”, como pela presença de agen-
tregasse nova cópia do CD com a gravação de
tes comunitárias, dotadas de mapas, topogra-
suas memórias. Foi graças a esse recurso que
fias e censos. Elas explicavam aos moradores
fui apresentada à defensora pública, que já en-
o problema que as acometia e buscavam con-
tão se juntava à luta pela permanência da fave-
vencê-los de que os apartamentos do “condo-
la. Eu entro nessa história, portanto, como um
mínio popular” representavam “ascensão de
instrumento de compilação da memória local,
vida” – “quem não quer morar em um apar-
importante recurso de luta política. As minhas
tamento, com a mesma infraestrutura de qual-
9
gravações são uma das tantas provas que os
quer condomínio da Barra da Tijuca, guaritas,
moradores vão mobilizar para questionar a
seguranças privados, portões, áreas de lazer e
justeza da medida de remoção: aquelas horas
até ‘espaço gourmet’?”. Elas ainda mediavam
gravadas recontam o imenso investimento de
a organização de visitas agendadas e guiadas
tempo, afeto e dinheiro dos moradores da fave-
pela prefeitura ao condomínio popular.
la, para garantir um teto para si. Não era justo
que a prefeitura os quisesse tirar.
Em 2012, a ameaça da chegada dos tra-
que se autocumpria. As casas marcadas para
tores atemorizou alguns moradores, que, receo-
remoção viraram casas abandonadas. Alguns
sos de perderem suas casas e ficarem sem lu-
moradores negociaram a demolição de suas
gar para morar, renderam-se à opção dada pela
antigas casas diretamente com a SMH, pro-
equipe de trabalho técnico-social da prefeitura
duzindo ruínas em meio à favela, onde proli-
de “trocá-las” por apartamentos em um con-
feraram ratos, insetos e lixo. Outras casas
domínio popular, construído em bairro mais
foram abandonadas e ocupa das por novos
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A mudança das primeiras 120 famílias
fez da remoção dali em diante uma profecia
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moradores, gente desconhecida que gerou
“comunidade” ou a autoproclamação como
desconfiança entre os “antigos”.
“condomínio”, na tentativa de, mudando de
Em meio a esse processo, os moradores
nome, acabar com o problema.12 Mas de todas
que queriam permanecer na favela buscaram
as estratégias, a mais importante foi a media-
se mobilizar. Sr. Alberto, que se formou uma
ção da Defensoria Pública.
liderança ao longo do processo de resistência,
É importante destacar que a oposição
entrou em contato com a Pastoral de Favelas,
entre moradores que querem permanecer e
que sugeriu a formação de uma comissão de
moradores que pretendem se mudar para o
moradores imediatamente. Por meio da Pasto-
condomínio não nasceu imediatamente. Du-
ral, eles contataram o Núcleo de Terra e Habi-
rante alguns meses, os próprios moradores
tação da Defensoria Pública. A essa “luta”,
que queriam ficar me levavam para conversar
agregou-se ainda um vereador do PT, com ex-
com moradores que queriam sair. A despeito
pressiva votação na região. Foi por ele que a
das fofocas, havia um esforço coletivo de que
comissão de moradores conseguiu solicitar à
cada família seguisse com sua vida como me-
Comlurb a retirada do entulho das demolições
lhor lhe aprouvesse. Moradores antigos com
já realizadas. Progressivamente, à comissão so-
casas amplas e consolidadas entendem como
maram-se outros moradores, o que foi gerando
perfeitamente justo que moradores de barra-
discordâncias internas quanto às estratégias a
cos de madeira – que ainda existem na favela –
serem empregadas. Marta, funcionária do go-
ganhem um apartamento. Em um de nossos
verno do Estado, muito mais jovem do que Do-
encontros, Sr. Alberto me conduziu por uma
na Catarina e Sr. Alberto, em meio às eleições
visita guiada por toda a favela e me apontou
municipais de 2012, buscou o apoio de militan-
as tantas “casas boas”, cujos valores não con-
tes do PSOL.
dizem a um apartamento, e também diversas
Entre as estratégias dispersas emprega-
casas precárias, cujas paredes fazem a conten-
das por membros da comissão de moradores,
ção do rio, estão corroídas e são extremamen-
houve um primeiro empenho na construção
te insalubres. A comissão não é contra os apar-
11
de uma comunidade imaginada (Anderson,
tamentos em si. Como Ingrid, que também luta
2008) para a favela. Sr. Alberto desenhou uma
pela permanência, me colocou em uma longa
bandeira que os representasse, lançando mão
conversa que tivemos em uma das lanchonetes
de alguns elementos da história de ocupação.
da rua do comércio da favela, a prefeitura de-
Seu objetivo era, com a determinação da “so-
veria “ajudar que cada um edificasse sua vida
berania do povo”, materializada na bandeira,
como quisesse”.13
estabelecer o domínio dos moradores sobre
De modo a frear a remoção que já então
aquela porção de terra. Paralelamente, a comis-
se autocumpria, no final de 2013, a Defensoria
são de moradores providenciou a instalação de
conseguiu que fosse expedida uma liminar que
uma placa, sinalizando, na rua principal mais
condicionava a mudança para os apartamentos
próxima, a entrada da favela, tirando-a assim
à elaboração de um plano de urbanização pa-
da invisibilidade. Ainda houve uma pontualíssi-
ra os que ficassem. Esse seria o melhor acordo:
ma discussão sobre a apresentação de si como
contemplaria os casos de “risco” e de casas
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Entre as estatísticas e a cidade
precárias, que a comissão de moradores reco-
em risco – uma pilastra ou apenas um cômodo
nhecia existirem; e contemplaria os moradores
dentro das áreas demarcadas, implicando per-
que autoconstruíram suas casas, investindo
das de espaço nas casas; c) eram construções
tempo, dinheiro, suor e afetos. Contudo, se se
geminadas – a demolição de uma implicaria
pretendia o mais justa possível, a liminar criou
a desestabilização de outra; e d) opunham o
um forte impasse e a polarização dos dois gru-
vizinho de cima que queria sair e o vizinho de
pos de moradores.
baixo que queria ficar.
Num primeiro momento, no início de
Após essa visita técnica, o plano de de-
2014, a Defensoria solicitou a assistência téc-
fesa dos moradores foi pleitear uma reorga-
14
nica de urbanistas do Ippur/UFRJ, para a va15
nização do espaço da favela: aqueles mora-
lidação da classificação feita pela Geo-Rio da
dores da área do rio seriam remanejados pa-
intensidade dos pontos de risco e de sua loca-
ra as moradias daqueles que já se mudaram
lização na topografia da favela. Na visita das
para os apartamentos, e a área mais antiga
duas técnicas, uma legião de moradores foi se
e larga da favela seria urbanizada. Assim, as
agregando ao pequeno grupo de técnicos e li-
casas desocupadas não seriam reocupadas
deranças, ansiosa para saber se suas casas “es-
de forma desordenada ou virariam ruínas,
tavam em risco mesmo” e se sairiam.
acirrando, de forma não desejada, o processo
Os dilemas impostos pelo espaço cons-
de remoção.
truído da favela às duas urbanistas foram inú-
Contudo, a espera pela concretização do
meros. A elas cabia a tarefa de relacionar a
plano de urbanização tem postergado as mu-
topografia que a defensora conseguiu junto
danças das 120 famílias já cadastradas no Mi-
à prefeitura ao espaço vivido da favela. Para
nha Casa Minha Vida. Enquanto eles não mu-
os moradores, a leitura dos mapas padecia de
dam, não é possível reordenar o espaço da fa-
certo mistério. Mais do que uma visita técni-
vela e começar as obras de urbanização. As fo-
ca, foi preciso compreender os usos que eram
focas e a tensão só aumentam, as expectativas
dados àquelas construções e as relações entre
e ambições dos dois grupos são frustradas.16
elas. O que fazer com um centro comunitário
antiquíssimo, no qual funcionam alguns projetos sociais, mas que está dentro do limite
As injustiças do cadastramento
técnico de risco, dada a proximidade com
o rio? Como conciliar a técnica e a política?
Ainda que as “áreas de risco” procurem repa-
Alguns pontos eram consensualmente enten-
rar um problema social, elas não podem ser
didos como “risco”, por urbanistas, lideranças
tomadas como dadas. A “área de risco” é uma
e moradores que se somavam àquela cami-
categoria da ambientalização das lutas sociais
nhada de reconhecimento do espaço. Outros,
(Acselrad, 2010), que engloba deslizamentos
contudo, eram alvos de controvérsias, pois a)
de terra e pedras, e enchentes de rio. Mais
do ponto de vista técnico, deveriam sair, em
do que isso, ela deve ser entendida como uma
virtude da baixa incidência de luz e problemas
racionalização administrativa, que procurou
de circulação de ar; b) estavam parcialmente
criar um instrumento técnico que permitisse a
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reparação da injustiça social da perda de casas
a identificação das áreas de risco esbarra em
por catástrofes naturais.
dificuldades políticas para sua operaciona-
Aqui cabe resgatar a reflexão a posteriori
lização. O momento da identificação e seus
de Cesar Benjamin sobre sua experiência co-
critérios específicos criam inúmeras situações
mo secretário de desenvolvimento social da
indeterminadas, de dissonância entre a gene-
prefeitura do Rio, em 1988, primeiro passo de
ralidade da categoria “risco” e a singularidade
uma genealogia que venho tentando desen-
das situações concretas das famílias. Da aplica-
volver da problemática do risco como deriva-
ção da categoria da administração no mundo
ção da problemática da moradia. Em final de
nascem inúmeros conflitos entre os diferen-
1988, ele escreve um artigo sobre o principal
tes modos de classificar situações e pessoas
problema a ser enfrentado pela urbanização:
(Boltanski e Thévenot, 2006). A análise da te-
administrar a lógica do “sistema dominante”
matização das controvérsias daí geradas como
dentro da favela. O “direito à existência” das
injustiças permite compreender melhor as com-
favelas implicava a consolidação de uma “bur-
plexidades envolvidas na política habitacional.
guesia favelada” (termo tomado de emprésti-
Há ao menos três injustiças no processo
mo de Machado da Silva, 1967), proprietária
de cadastramento social. Em primeiro lugar,
de casas, cômodos e quitinetes, e a conseguin-
as famílias residentes em áreas de risco não
te privação do “direito à favela” daqueles que
necessariamente concordam com essa classifi-
viviam de aluguel. O conflito entre esses seg-
cação do lugar onde moram. Muitas já enfren-
mentos estratificados nas favelas seria, então,
taram diversas enchentes, perdas de imóveis e
o motor da contínua favelização: a alternativa
pertences e se identificam com essa classifica-
ao aluguel seria ou a migração para outras e
ção técnica. Diversas outras, porém, resistem a
novas favelas, ou a expansão das fronteiras
essa classificação e alegam a dissociação entre
das favelas consolidadas, com a ocupação de
a categoria da administração e sua experiência
áreas precárias. Como a urbanização implicava
vivida. Esses moradores que não identificam
a consolidação da lógica da mercantilização
suas casas como sujeitas ao risco, porém, po-
das casas, consequentemente, como efeito
dem muito bem reconhecer a identificação de
não previsto, havia a formação de uma “po-
outros. O reconhecimento do problema “área
pulação mais empobrecida, menos enraizada
de risco” aparece muitas vezes combinado ao
e mais sujeita a riscos de diversos tipos, espe-
recurso de sua atribuição ao outro: o problema
cialmente nas áreas de encosta” (Benjamin,
existe, entendo que haja situações em que é
1988, p. 37). Ao longo de sua gestão, Benja-
justo que os moradores sejam cadastrados no
min procurou então compreender esse univer-
programa habitacional, mas esse não é o meu
so do “risco” e categorizá-lo.
caso. E aqui surgem inúmeros esforços de di-
Se a problematização e consequente
ferenciação entre casos concretos, cujas estra-
elaboração de um regime de racionalidade pa-
tégias passam pela valoração (simbólica e mo-
ra o risco criaram um instrumento técnico da
netária) da casa, como Sr. Alberto fez em nossa
mais alta valia para arquitetos e urbanistas,
visita guiada.
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Entre as estatísticas e a cidade
Uma segunda injustiça é a dissonância
entre situações de moradia e renda familiar.
uma injustiça inclusive por membros da comissão de moradores.
Há famílias com rendimentos superiores ao
Uma terceira injustiça diz respeito aos
teto de R$1.600 que se autoidentificam com
comércios da favela, pois eles não são indeni-
a situação de risco e há também famílias com
zados ou trocados por novos espaços nos con-
rendimentos inferiores que não se identificam,
domínios populares, estritamente residenciais.
mas se encontram em situações objetivamen-
Em meio à controvérsia da remoção da favela
te mais precárias. No primeiro caso, é preciso
cujo caso embasa este texto, os comerciantes
que, na elaboração do dossiê de cadastramen-
da rua de principal atividade econômica pas-
to, as famílias declarem rendas inferiores aos
saram a encarar dilemas familiares. Um deles
seus rendimentos reais. Isso pode se dar de
é bastante emblemático: a casa do pai, como
forma espontânea, por meio da simples omis-
tantas nas favelas, foi fracionada em um co-
são, principalmente daqueles auferidos da/na
mércio e em duas outras casas, assim que seus
informalidade; ou de forma mais impositiva,
filhos se casaram. Uma única construção, por-
por meio da ameaça de interrupção dos dos-
tanto, continha uma loja e três casas indepen-
siês, enquanto as famílias não se enquadrarem
dentes – ou três domicílios distintos, segundo
como “população de baixa renda”. Em um dos
os critérios do programa. Apesar de concordar
casos que acompanhei, um casal, nascido e
com a classificação da sua moradia em área de
criado na favela, teve que construir uma barrei-
risco, o pai passou a resistir à mudança para o
ra de concreto na porta de casa, que impedisse
apartamento, pois não seria indenizado por sua
o esgoto da vala em frente de entrar na sala.
loja de material de construção, sua única fonte
Além disso, a casa quase não recebia luz e a
de renda. Sua filha e seu filho, por outro lado,
umidade estava deixando sua filha pequena
queriam se mudar para seus apartamentos no-
com sérios problemas respiratórios. Como esta-
vos e sair da beira do rio.
vam ambos convictos de que deveriam sair da
favela, a esposa decidiu pedir demissão de seu
emprego formal e o casal declarou apenas o
salário do marido. Posteriormente, essa decisão
se mostrou problemática, devido à demora na
mudança para o apartamento. Eles compõem
Entre a favela e o condomínio
popular: os mercados
imobiliários liminares
a segunda leva de moradores, cujas mudanças
ficaram embargadas até a apresentação de um
Em sua pioneira pesquisa, de caráter
plano de urbanização para a favela. Outro ca-
compreensivo, sobre as remoções de favelas
so crítico era de uma senhora com baixíssimos
para o então recém-construído conjunto habi-
rendimentos, cuja casa estava mais afastada
tacional de Cidade de Deus, Valladares (1978)
da beira do rio. Afastada do “risco iminente”,
analisa as estratégias dos moradores de fave-
ela não teria tanta prioridade na mudança para
las, para resistir e para se apropriar da política
o condomínio popular, o que era considerado
habitacional. Sua etnografia trata as remoções
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como processos políticos altamente complexos
como pela invisibilização dos mercados infor-
e chama a atenção para sua dimensão econô-
mais da favela.
mica, pouco levada em consideração. Naquele
A composição e os mecanismos próprios
momento, as discussões da sociologia urbana
dos mercados imobiliários informais vêm sendo
não levavam em conta o valor de troca da au-
investigados, desde o reconhecimento, por par-
17
toconstrução. Segundo o argumento inovador
te de arquitetos e urbanistas, dos efeitos de va-
de Valladares, era exatamente o caráter de bem
lorização que políticas de urbanização acabam
de capital da moradia popular que explicava a
gerando.18 A mercantilização das casas não é
contradição que se enfrentava: a política habi-
criada pela política habitacional nas favelas.
tacional alimentava a favelização que procura-
A invisibilidade e a desconsideração dos mer-
va combater, pois os moradores “passavam”
cados imobiliários informais, em que a auto-
as casas e os apartamentos novos, para fazer
construção vira bem de capital e circula como
poupança, pagar dívidas ou investir em outras
mercadoria, não permite compreender a ques-
frentes (de moradia e trabalho).
tão do patrimônio dos moradores das favelas
Partindo da discussão proposta por
e contribui para uma oposição reducionista en-
Valladares, o primeiro passo da análise dos
tre aqueles que querem deixar a favela como
efeitos das políticas habitacionais atuais deve
“cooptados” e aqueles que querem permane-
ser o reconhecimento da existência de merca-
cer como “resistentes”.
dos imobiliários informais nas favelas. Segun-
Os mercados informais de solo são um
do moradores que pretendem sair da favela
dos principais mecanismos de acesso à terra
aqui estudada, alguns militantes de fora, liga-
urbana de uma parte considerável da popula-
dos a movimentos sociais que se juntaram à
ção pobre das cidades latino-americanas, em
resistência à remoção, só enxergam a urbani-
geral, e brasileiras, em particular. Cerca de 22%
zação como uma bandeira legítima, deixando
da população do Rio de Janeiro, por exemplo,
de lado uma discussão sobre condições de ha-
mora em favelas ou loteamentos clandestinos
bitabilidade. Uma moradora que paga aluguel
(IBGE, 2010). Com a redução expressiva dos
por uma quitinete na favela e aguarda a libe-
processos de ocupações de terras, em virtude
ração de seu apartamento questionou um mi-
da diminuição da oferta de espaços ociosos,
litante que fazia uma fala combativa em uma
os mercados informais de comercialização e
reunião, se ele trocaria o apartamento dele
locação se tornaram o principal mecanismo de
“no asfalto” pela quitinete onde ela está resi-
acesso à moradia (Abramo, 2003).
dindo na beira do rio. Para os moradores que
Ao contrário do que se pensa sobre os
querem sair, a situação de precariedade onde
mercados informais, existem atividades regu-
vivem não é politicamente reconhecida, em
lares de compra, venda e locação de imóveis.
virtude de uma romantização, alegam eles, so-
São mercados pujantes e independentes, que
bre as relações entre os moradores de favelas,
sofrem os efeitos de políticas de urbanização
que passa tanto por uma exaltação acrítica de
e de habitação, mas que funcionam a des-
supostos vínculos comunitários, com os quais
peito delas. Em importante pesquisa sobre
os próprios moradores não se reconhecem,
o funcionamento desses mercados, Abramo
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Entre as estatísticas e a cidade
(2009) identifica que as principais ofertas de
dos anos. Alguns dos moradores que resistem
moradia se dão pelo fracionamento de lotes
à remoção gostariam de sair da favela. Não
familiares, em favelas consolidadas, e pela
querem que a prefeitura lhes dite como e pa-
pontual comercialização de lotes novos, em
ra onde, mas, para eles também, sair da favela
loteamentos clandestinos.
significa ascensão social. Ingrid, membro da
Especial atenção deve ser dada à locação
comissão, vinha, desde antes do anúncio da
informal. Em algumas capitais brasileiras, ela
remoção, requerendo um empréstimo junto à
apresenta peso mais do que expressivo como
Caixa Econômica Federal, para financiamento
forma de acesso à moradia: em Recife, 58% do
da compra de um apartamento em prédio pró-
mercado informal são mantidos por aluguéis;
ximo à favela. Ela seria mais um ator do merca-
no Rio, esse valor chega a 29% (Abramo e Puli-
do imobiliário limiar (Cavalcanti, 2010, 2014),
ci, 2009). Mais significativo do que os números
não fosse a instalação de uma UPP na região e
em si é o diagnóstico de crescimento substan-
a elevação do preço dos imóveis além do que
cioso do peso dos aluguéis nos mercados infor-
o seu salário e o do marido poderiam pagar.
mais, entre 2002 e 2006, quando os valores no
A mudança para um apartamento em um con-
Rio dobraram. Em survey recente (Cavalcanti,
domínio popular, em bairro mais distante, não
no prelo), realizado em quatro favelas da Zo-
é, contudo, o meio de realizar sua mobilidade
na Oeste da cidade, exatamente na frente de
social. Comparando o tamanho, a qualidade
expansão imobiliária, os números de aluguéis
construtiva e a localização do apartamento à
sobem ainda mais: 34% da população alugam
sua enorme casa de três andares e quintal mu-
o imóvel onde mora.
rado, o casal não vê entre eles uma vantagem
Além do seu peso cada vez mais expres-
de mercado, sequer uma equivalência de valor.
sivo, também é preciso compreender melhor as
A vizinhança, as redes de solidariedade impor-
relações de locação informal em favelas. Pes-
tam, mas há uma série de valorações em jogo:
quisa qualitativa recente em duas favelas que
foram anos trabalhando para (e, às vezes, lite-
receberam intervenções do programa Fave-
ralmente trabalhando na) construção daquele
la Bairro indica que a locação já é a principal
patrimônio. A área construída, a localização,
porta de entrada de novos moradores a algu-
os requintes de arquitetura e decoração e a
mas favelas e que o aluguel de quitinetes, por
“liberdade urbanística” de que fala Abramo
exemplo, é muito mais rentável do que a venda
(2003) – de construir “puxadinhos” e lajes,
dos imóveis (Magalhães et al., 2013).
para uso familiar, comercialização ou locação –
Por fim, é preciso analisar os mecanis-
valorizam-na muito além dos 60 e poucos me-
mos de construção social do valor em mer-
tros quadrados dos apartamentos nos blocos
cados informais e os efeitos de valorização
pré-fabricados dos condomínios populares do
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de políticas urbanas. O primeiro ponto a ser
Minha Casa Minha Vida, que sequer podem
levado em consideração diz respeito ao valor
ser comercializados por um período de dez
de troca das casas e não apenas o seu valor
anos. Segundo alguns daqueles que lutam pela
de uso, o enorme apego que em geral as pes-
permanência me disseram, se a indenização ou
soas têm por aquilo que construíram ao longo
o tamanho do apartamento fossem maiores,
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talvez se mudassem, como alguns filhos e vi-
chamando de mercados imobiliários limina-
zinhos fizeram.
res. Sua liminaridade diz respeito à suspensão
Do mesmo modo, é possível compreender a
do curso regular das dinâmicas dos mercados
ação daqueles que se mudam para o aparta-
informais e subsequente evidenciação das re-
mento. Eles percebem na “troca” um valor
gras de seu funcionamento, tal como no senti-
justo. Alguns alegam a precariedade de suas
do da liminaridade proposta por Turner (1974,
casas, como alguns barracos de madeira e
1987). Os mercados imobiliários liminares são
muitas casas cuja parede é a única contenção
então concebidos como configurações espaço-
do rio, pessoas que já “perderam tudo” com
-temporais específicas, em que operam 1) os
as enchentes e para as quais o apartamen-
dispositivos da política habitacional, os múlti-
to significa “melhoria de vida”. Outros veem
plos critérios de classificação da “população de
na futura possibilidade de mercantilização do
baixa renda”, o cálculo dos déficits habitacio-
apartamento uma alternativa para acumular
nais quantitativos e qualitativos, os critérios de
capital. Um morador que se mudou na primeira
prioridade que hierarquizam os beneficiários,
leva, mas que manteve o comércio na favela,
em suma os instrumentos do cadastro social,
já fez uma pesquisa de mercado, avaliando os
que produzem a “demanda social”; 2) os me-
valores dos apartamentos em outros empreen-
canismos do mercado imobiliário informal, as
dimentos subsidiados na mesma região do seu
estratégias de multiplicação de casas, a partir
condomínio. Ele nutre a esperança de “fazer
da máxima divisão de edificações em unidades
poupança”, nos próximos anos. Para eles, como
domiciliares independentes, das ocupações de
Valladares (1978) já havia destacado nos anos
terrenos e/ou propriedades ociosos, das mu-
1970, a moradia é também um bem de capital
danças temporárias para quitinetes e casas
e não exclusivamente de consumo.
alugadas, entre outras estratégias de maximi-
Como podemos perceber pelo caso da
zação do número de apartamentos recebidos,
favela aqui analisada, assim como as próprias
ao longo cadastramento de beneficiários; e 3)
dinâmicas do mercado imobiliário informal se
os projetos das famílias, apreendidos a partir
alteram com a mudança do horizonte de possi-
de suas narrativas sobre "melhorar de vida" e
bilidades, criada pelo anúncio do programa Mi-
da avaliação comparativa entre o valor da casa
nha Casa Minha Vida, as elaborações sobre o
e o valor do apartamento, com as devidas espe-
que significa "melhorar de vida" passam pela
culações e projeções sobre o futuro.
valoração comparativa entre a casa e o aparta-
Os mercados imobiliários liminares são
mento, a partir do emprego de diversos e com-
um objeto inspirado nos mercados imobiliá-
plexos instrumentos de mensuração e também
rios limiares, sugeridos por Cavalcanti (2010,
da avaliação da factibilidade da realização de
2014). Segundo a autora, os mercados limia-
projetos de vida.
res são configurações específicas, que têm a
Nesse sentido, de modo a compreen-
proximidade física entre a favela e o asfalto
der as dinâmicas complexas que perpassam
como um fator determinante. Eles são forma-
a atual política habitacional, sugiro pensar os
dos pela valorização dos preços dos imóveis
condomínios populares a partir do que estou
no mercado informal, decorrentes de políticas
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de urbanização, de um lado, e pela desvalo-
a possibilidade de mudança e, se ela se efeti-
rização dos preços dos imóveis no mercado
va mesmo a contragosto, consideram-na uma
formal próximo a favelas, devido ao proble-
“remoção”; b) aceitam um único apartamento,
ma da segurança pública, de outro. A equi-
considerando a “troca” justa; ou c) desenvol-
valência de valores pecuniários entre casas e
vem táticas que burlam a equivalência abstrata
apartamentos nos mercados limiares permite
entre uma casa e um apartamento, dividem su-
a “saída da favela”, entendida como “melho-
as casas com baias em inúmeras unidades ha-
ria de vida”. A vizinhança com “favelados”,
bitacionais derivadas (domicílios independen-
contudo, é compreendida como um sinal da
tes, para o PMCMV) e, assim, maximizam o nú-
decadência de moradores de apartamentos
mero de apartamentos recebidos, criando, por-
do “asfalto”, cujos preços diminuem substan-
tanto, eles mesmo a equivalência “justa”. São
tivamente. Uma vez que os valores pecuniários
essas dinâmicas que tornam a mudança para
se equivalem, as fronteiras entre a favela e o
um apartamento positiva ou negativa. Para
asfalto devem ser constantemente negociadas.
famílias que já perderam suas casas inúmeras
Nesse sentido, os mercados limiares são um
vezes em desabamentos e/ou enchentes e para
objeto da clássica sociologia econômica, que
aquelas que vivem de aluguel, o apartamento
busca compreender os embasamentos sociais
tende a ser visto como uma “melhoria de vi-
do mercado e principalmente os valores consti-
da”. Para aqueles que tinham “casas grandes”
tutivos do cálculo racional.
e “casas boas”, com acabamentos requintados,
A proposição de mercados imobiliários
liminares como um objeto pretende apreender
muitos quartos e banheiros, o apartamento é
uma “decadência”.
as controvérsias geradas pela imposição de
uma equivalência de valor entre casas e apartamentos, nos casos de remoções de áreas de
risco. Nesses casos, com a impossibilidade de
indenizações, as casas devem ser “trocadas”
Algumas luzes dos mercados
imobiliários liminares
(termo nativo) pelos apartamentos. Contudo,
como procurei demonstrar com o estudo de
Deslocamento no espaço. Minha inserção nas
caso apresentado, não há consenso acerca da
lutas da comissão de moradores anteriormente
justeza da medida de “troca”. Há aqueles que
narradas foi pontual e sem pretensões acadê-
consideram os apartamentos além do valor
micas. Parte do trabalho de campo de minha
das casas e outros que os consideram aquém.
tese de doutorado foi realizada em Parque São
Como nessas trocas, as casas não chegam a ter
José, município de Duque de Caxias, Região
valor pecuniário, os moradores mobilizam ou-
Metropolitana do Rio, onde acompanhei sis-
tros critérios para valoração da casa: os anos
tematicamente o trabalho da equipe técnico-
despendidos na autoconstrução, a estrutura
-social da Secretaria Municipal de Planejamen-
e os requintes de acabamento, a localização
to, Habitação e Urbanismo, relativa à fase de
na cidade. Dependendo do valor final que
ocupação dos condomínios, posterior ao cadas-
atribuam às casas, os moradores a) rejeitam
tramento. A experiência de uma moradora de
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um desses condomínios populares resume bem
aqueles contemplados pelo PMCMV. Essa vizi-
a complexidade da dinâmica nos mercados
nha de Suzy mantém o apartamento fechado,
imobiliários liminares.
se beneficiando do cartão Minha Casa Melhor,
Suzy pagava R$120 por uma “quitinete
enquanto busca um locatário. Uma das amigas
mofada” na favela Barreira do Pilar, onde vivia
próximas de Suzy, por outro lado, ainda não foi
com os dois filhos. Conseguia pagar o aluguel
sorteada e continua pagando R$150 para viver
graças ao incremento de renda do Bolsa Famí-
com os cinco filhos em um terraço na Barreira
lia. Desde que sua filha mais velha adoeceu,
do Pilar.
sua vontade de sair da favela aumentou imen-
Esse relato contém alguns dos princi-
samente. Segundo ela, houve muita “injustiça”
pais aspectos da complexidade do Minha Casa
nos sorteios precedentes, que beneficiaram
Minha Vida. Em primeiro lugar, ele sinaliza as
“muita gente que não precisa”. Por isso, ela
diferentes narrativas relacionadas à obtenção
resolveu mostrar que “precisava mais”. Acam-
de um apartamento. Na fala de Suzy, apare-
pou com outros moradores do Pilar em frente à
cem as narrativas da espera (de sua amiga) e
prefeitura de Caxias, levando a filha doente nos
as narrativas da melhoria (a sua própria). Há
braços. Suzy não participou de uma ocupação
ainda a narrativa da frustração que, em geral,
de propriedade ociosa realizada por moradores,
diz respeito àqueles que “tinham casa boa” e
pois considerava sua “necessidade” menor do
não concebem a mudança para o apartamento
que a dos “invasores” – o Bolsa Família ainda
como uma “melhoria de vida”, como é o caso
dava conta de arcar com suas despesas. Após
de Lucas, um dos vizinhos de Suzy. Cada uma
alguns dias acampada, ela conseguiu um “en-
dessas narrativas dissonantes – espera, me-
caminhamento institucional” direto do gabine-
lhoria e frustração – dizem respeito às avalia-
te do prefeito e a prioridade no cadastramento.
ções retrospectivas que os indivíduos fazem do
Em pouco tempo, conseguiu uma “casa digna”,
montante de seu patrimônio. São os elementos
onde sua filha doente pudesse morar.
empregados na construção de uma ou outra
Em sua conversa com a equipe de traba-
narrativa, que permitem compreender de quê
lho social, Suzy mostrou veementemente sua
o patrimônio era constituído – quantos imóveis
indignação com as “injustiças” do processo de
e com quais características, levando em con-
ocupação dos condomínios. Segundo ela, são
sideração os critérios de formação de preços
duas as principais: o sorteio de pessoas “sem
próprios dos mercados informais – e como ele
necessidade”, que têm “casa boa” (na favela),
se encontra atualmente, com a obtenção de
e os apartamentos vazios. Em alguns casos,20
um apartamento.
esses problemas estão relacionados, acirrando
Em segundo lugar, o relato ainda apre-
as indignações. Em um dos apartamentos do
senta algumas estratégias empregadas pelos
seu bloco, a beneficiária “não tinha necessida-
moradores, nos mercados imobiliários limi-
de” de um apartamento, por ter “casa boa” na
nares. O processo de produção da “demanda
favela. Mesmo em se tratando de área de ris-
social” passa pela classificação a que nos re-
co, em virtude dos constantes tiroteios locais,
ferimos anteriormente, mas também por táticas
a prefeitura não demoliu as casas de todos
de autoenquadramento de alguns moradores.
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Dependendo da situação de moradia do indiví-
que garante a reprodução e mesmo agrava-
duo, essas estratégias são variadas. Locatários
mento do déficit habitacional. Como, no ca-
como Suzy podem participar de ocupações de
dastro social, são os donos dos imóveis que
propriedades ociosas e pleitear um apartamen-
ganham apartamentos em condomínios popu-
to; outros se endividam e compram os imóveis
lares, a política habitacional, de modo não pre-
onde moram na favela, de modo a trocá-lo
visto, garante acumulação também no mercado
por um apartamento. Há famílias que empre-
informal. Quem tem mais casas ganha mais
gam uma combinação de estratégias: dividem
apartamentos. Não raro, inquilinos são despe-
a casa onde todos moram juntos em unidades
jados, para que membros das famílias dos do-
habitacionais menores ou distribuem membros
nos de imóveis sejam cadastrados. Nem todos,
por ocupações de propriedades, de modo a
ou muito poucos, conseguem ou têm a opor-
multiplicar o número de apartamentos rece-
tunidade de comprar um imóvel no mercado
bidos. Mais uma vez, o que está em jogo com
imobiliário liminar e garantir sua troca por um
essas táticas é a construção ou recuperação de
apartamento. Assim, os expressivos números
um patrimônio.
de locatários em mercados informais não são
O relato de Suzy nos permite, portanto,
levantar uma hipótese acerca do mecanismo
atendidos pelo programa e acabam buscando
moradia em ocupações ou outras favelas.
Marcella Carvalho de Araújo Silva
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Estudos Sociais e Políticos, Departamento de
Estudos Sociais. Rio de Janeiro/RJ, Brasil.
[email protected]
Notas
(1) Cf. Nota Pública da Rede Cidade e Moradia: h ps://raquelrolnik.wordpress.com/2014/11/10/
programa-minha-casa-minha-vida-precisa-ser-avaliado-nota-publica-da-rede-cidade-emoradia/
(2) Se ainda forem levadas em consideração as condições de habitação, ou o chamado déficit
habitacional qualitativo, os números aumentam para 15,5 milhões de famílias. Segundo a
Fundação João Pinheiro (2012), que faz os levantamentos de déficit habitacional no Brasil, há
cinco critérios para o cálculo de déficit qualita vo: inadequação fundiária urbana, adensamento
excessivo dos domicílios, cobertura inadequada, domicílios sem banheiro e carência de
infraestrutura.
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(3) h p://www.cartacapital.com.br/poli ca/como-nao-fazer-poli ca-urbana-3066.html
(4) Um aglomerado subnormal é, segundo definição desde 1987, “o conjunto cons tuído por 51 ou
mais unidades habitacionais caracterizadas por ausência de tulo de propriedade e pelo menos
uma das seguintes caracterís cas: irregularidade das vias de circulação e do tamanho e forma
dos lotes; e/ou carência de serviços públicos essenciais (como coleta de lixo, rede de esgoto,
rede de água, energia elétrica e iluminação pública)” (IBGE, 2010).
(5) Ainda que precários, segundo os dados da Secretaria Municipal de Habitação do Rio de Janeiro,
ob dos junto ao Observatório das Metrópoles, até julho de 2012 haviam sido contratadas
99.943 unidades habitacionais (doravante UH) para as três faixas de renda, em toda a Região
Metropolitana do Rio de Janeiro, das quais 56.961 localizadas no município do Rio. Para a “faixa
de interesse social”, haviam sido contratadas 34.077 UH na RMRJ, das quais 27.077 distribuídas
por 82 “condomínios populares” na capital. Desses 82 condomínios populares contratados, 48
estavam prontos até 2012. Segundo a classificação do Observatório das Metrópoles, 32 foram
ocupados por famílias “removidas”, 12 por famílias “sorteadas” e quatro ainda aguardavam
ocupação.
(6) A discussão que se segue é parte da minha pesquisa de doutorado ainda em desenvolvimento.
(7) Gostaria de fazer um esclarecimento preliminar sobre o objeto deste ar go. Recorrentemente,
as áreas de risco são contabilizadas nas esta s cas que pretendem denunciar a “retomada das
remoções” no Rio (Azevedo e Faulhaber, 2014; Faulhaber, 2012; Comitê Popular Rio Copa e
Olimpíadas, 2014). Como demonstro no meu estudo de caso, há inúmeros fatores arbitrários
em jogo também nas remoções de áreas de risco. Contudo, não podemos negligenciar o fato
de que a autoconstrução nem sempre garante condições de habitabilidade e que os mercados
informais, muitas vezes, deixam moradores vivendo em situações precárias, problemas
esses que a urbanização não é capaz de sozinha resolver. Ainda que controverso, já que no
Rio ele está sendo usado como instrumento para remoções sem embasamento técnico, além
de manter vários paralelos com o an go BNH (Andrade, 2011), o PMCMV deve ser analisado
em toda sua complexidade. Por todo o país, inúmeras ocupações de terras e propriedades
ociosas são feitas com o objetivo explícito de pressionar prefeituras por cadastramento no
PAC ou PMCMV (Cavalcan , Blank e Fontes, 2012; Boulos, 2012), concebendo, pois, ambos os
programas como formas de acesso à moradia. Trato neste ar go exclusivamente de um caso de
área de risco, a par r do qual pretendo inves gar as complexidades da discussão sobre moradia
e especialmente dos mecanismos de administração da habitação de interesse social. Fica em
aberto a questão se as dinâmicas por mim analisadas e as hipóteses que levanto são aplicáveis
também a casos de “remoções olímpicas”.
(8) Tendo em vista garan r o anonimato dos moradores que lutam, de diferentes formas, ou para
permanecer em suas atuais moradias, ou para ter acesso à moradia digna, o nome da favela e de
seus residentes e sua localização são omi dos.
(9) Como estratégia metodológica, enquadro as remoções como momentos crí cos, que mobilizam as
capacidades crí cas dos atores de se posicionarem diante de uma controvérsia. Nesse sen do,
a tematização da divergência como injustiça, a exigência de provas de justeza das medidas
propostas (Boltanski e Thévenot, 2006) e a elaboração de projetos alterna vos que contemplem
o “bem de todos” (Werneck, 2012) compõem o regime de jus ficação das posições adotadas.
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(10) Segundo Elias (2000), as fofocas são um importante objeto da inves gação sociológica, por
tornarem evidentes os conflitos intra e intergrupos. No caso aqui analisado, as fofocas são uma
forma de estabelecer as fronteiras entre a associação de moradores, endereçando a ela a tudes
condenáveis, e, por contraste, construir o grupo da comissão de moradores, que estaria “de
fato” interessado no “bem da comunidade”.
(11) Em sua reflexão sobre Estados pós-coloniais, Benedict Anderson (2008) aponta os censos, os
mapas e os museus como instrumentos fundamentais da produção e reprodução de narra vas
nacionais dos novos países independentes. São eles, respec vamente, os responsáveis pela
invenção de uma população, de um território, de uma história e patrimônio compar lhados,
que embasam a atuação do Estado. É interessante perceber que, na luta pelo acesso à terra
urbana, os membros da comissão de moradores mobilizem um recurso como o desenho de uma
bandeira, a par r de elementos da história a mim narrada e materializada no CD que entreguei
a essas lideranças, como instrumento de luta polí ca. O que subjaz a essa estratégia é o discurso
sobre a soberania de um grupo político sobre determinada porção de terra, com base na
construção de uma narra va comunitária.
(12) Uma das favelas em Curicica, Zona Oeste, onde trabalhei durante o programa Morar Carioca,
ameaçada de remoção parcial pelas obras da Transolímpica, também instalou uma placa na sua
entrada, declarando- se “condomínio”.
(13) O verbo “edificar” é par cularmente significa vo, pois apresenta uma dimensão material – de
construção, edificação de casas – e uma dimensão religiosa – entre os evangélicos, a missão de
edificação diz respeito a projetos de vida.
(14) Ins tuto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, da Universidade Federal do Rio de
Janeiro.
(15) Fundação Ins tuto Geotécnica do Estado do Rio de Janeiro.
(16) No primeiro semestre de 2015, os apartamentos de alguns desses moradores começaram a
ser ocupados por outras famílias, no condomínio popular. Houve muita especulação de que o
tráfico local es vesse autorizando as ocupações. De modo a garan r que os apartamentos que
vistoriaram não fossem ocupados, alguns moradores da favela se mudaram antes de receber
oficialmente as chaves.
(17) Sobre isso, cf. coletânea organizada por Maricato (1982).
(18) Cf. o número 10 da Coleção Habitare, in tulado Favela e mercado informal: a nova porta de
entrada dos pobres nas cidades brasileiras (2009). O livro traz os primeiros resultados da
pesquisa da Rede Infosolo, compilando dados sobre importantes capitais brasileiras.
(19) Cf. Lacerda e Melo (2009) sobre os mecanismos de formação de preços e dinâmicas de
coordenação oferta e procura em mercados informais em Recife.
(20) Essa correlação não é necessária. Há muitos apartamentos vazios que aguardam a regularização
da situação de sorteados ou suplentes de beneficiários. Eles geram enorme especulação nos
condomínios e são uma das principais dúvidas que os moradores levam à equipe de trabalho
social. Na percepção amplamente compar lhada, é “injusto” que haja apartamentos vazios
tanto por opção pela não mudança por parte de moradores sorteados – que, em alguns casos,
se beneficiam do cartão Minha Casa Melhor, para compra de R$5mil em móveis, e alugam os
imóveis –, como por demora em sorteio, já que muitos têm parentes ou conhecidos cadastrados
e em filas de espera.
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Marcella Carvalho de Araújo Silva
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Texto recebido em 31/maio/2015
Texto aprovado em 2/dez/2015
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Arranjos familiares de beneficiários
do Programa Minha Casa Minha Vida:
trajetórias de benefício e percepções
de bem-estar social*
Family arrangements of beneficiaries of the Minha Casa
Minha Vida Program: benefit’s trajectories
and perceptions of social welfare
Vitor Matheus Oliveira de Menezes
Resumo
Por meio de uma abordagem qualitativa, neste artigo analisam-se as percepções de beneficiários do
Residencial Jardim Cajazeiras, conjunto habitacional do Programa Minha Casa Minha Vida destinado
à faixa 1 e localizado em Salvador (BA), sobre a efetividade da política pública. Buscamos problematizar, assim, as dinâmicas dos arranjos familiares dos
beneficiários, introduzindo a noção de trajetória de
benefício, que diz respeito à compreensão do benefício pelo Programa a partir das trajetórias de vida
dos moradores do Residencial, levando em conta o
benefício como uma situação social que perpassa
o acesso a bens materiais e simbólicos e configurações (e reconfigurações) das distintas esferas de
sociabilidade dos atores sociais. Como analisado
através de entrevistas, a dimensão dos arranjos familiares na situação de benefício, e sua capacidade
em prover bem-estar para os beneficiários, se apresentou como elemento fundamental da experiência
de acesso à política pública.
Abstract
This article analyzes, through a qualitative
approach, the perceptions of beneficiaries of
Residencial Jardim Cajazeiras (a housing estate
of the Minha Casa Minha Vida Program located
in the city of Salvador, northeastern Brazil) about
the effectiveness of the public policy. Thus, we
problematize the dynamics of the beneficiaries’
family arrangements, introducing the notion
of benefit's trajector y, which concerns the
understanding of the benefit as a social situation
that pervades the beneficiaries’ access to material
and symbolic goods and configurations (and
reconfigurations) of their different spheres of
sociability. The dimension of family arrangements
in the situation of benefi t, and their capacity to
provide welfare to the beneficiaries, proved to
be a fundamental element of the experience of
access to the public policy.
Palavras-chave: Programa Minha Casa Minha Vida; arranjos familiares; processos de vulnerabilidade; pobreza; bem-estar social.
Keywords: Minha Casa Minha Vida Program;
Family Arrangements; Processes of Vulnerability;
Poverty; Social Welfare.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 257-282, abr 2016
hƩp://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3512
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Vitor Matheus Oliveira de Menezes
Introdução
distantes da origem dos habitantes “pressupõe
o rompimento dos vínculos sociais e daqueles
estabelecidos com o território”. Seria importan-
O Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV)
te, segundo a autora, que, na impossibilidade
foi instituído através da Lei n. 11.977, em 7 de
de construção de moradias próximas às habita-
julho de 2009, dispondo sobre a “finalidade
ções originais dos beneficiários, fossem criadas
de criar mecanismos de incentivo à produção
“condições para que as famílias se adaptem
e aquisição de novas unidades habitacionais
o mais rapidamente possível à sua nova posi-
ou requalificação de imóveis urbanos e produ-
ção dentro do espaço urbano, de forma a gerar
ção ou reforma de habitações rurais” (Brasil,
substancial redistribuição de renda real para
2009). Dessa forma, o PMCMV foi estruturado
essa população” (ibid.). Embora estejamos em
em subprogramas (Programa Nacional de Ha-
concordância com a crítica da autora sobre a
bitação Urbana, Programa Nacional de Habi-
construção de habitações distantes dos bairros
tação Rural, MCMV-Entidades) e dividido em
de origem dos beneficiários, discordamos do
estratos diferenciados de renda (0 a 3 salários
elemento analítico que subjaz seu argumento.
mínimos, 4 a 6 salários mínimos e 7 a 10 salá-
Defendemos aqui a necessidade de estudos
rios mínimos).
que complexifiquem a dimensão dos vínculos
Diversos problemas relativos ao Progra-
sociais dos beneficiários, para além da “pres-
ma foram abordados pela literatura especiali-
suposição” do rompimento, levando em conta
zada, assim como sistematizados por Cardoso
uma compreensão científica da dinâmica social
e Aragão (2013, p. 44):
dos conjuntos habitacionais. Dessa forma, com-
(i) a falta de articulação do programa com
a política urbana; (ii) a ausência de instrumentos para enfrentar a questão fundiária; (iii) os problemas de localização dos
novos empreendimentos; (iv) excessivo
privilégio concedido ao setor privado; (v)
grande escala dos empreendimentos; (vi)
a baixa qualidade arquitetônica e construtiva dos empreendimentos; (vii) a descontinuidade do programa em relação ao
SNHIS e a perda do controle social sobre a
sua implementação; (viii) a desigualdade
na distribuição de recursos como fruto do
modelo institucional adotado.
preendemos como de fundamental importância
a análise dos arranjos familiares dos beneficiários, problematizando as percepções dos interlocutores sobre o bem-estar social no momento
de pós-ocupação do Programa. Busca-se analisar, pois, de que forma os beneficiários vivenciam no cotidiano o acesso a recursos materiais
e simbólicos, evidenciando os arranjos familiares como dimensão privilegiada de análise de
tal processo social.
Argumentamos aqui, em uma perspectiva sociológica, que o benefício deve ser entendido como uma situação social. Para Agier
Marguti (2013, p. 250), por sua vez, nos
(2011), a situação social tem duas caracte-
apresenta a preocupação com a análise da
rísticas fundamentais: em primeiro lugar, os
dimensão dos vínculos sociais dos beneficiá-
atores sociais definem a situação, existe um
rios nos conjuntos habitacionais do PMCMV,
sentido compartilhado. Em segundo lugar, a
levando em conta que a alocação em regiões
situação expressa constrangimentos globais
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Arranjos familiares de beneficiários do Programa Minha Casa Minha Vida
e locais aos atores. Relacionam-se, no nosso
políticas públicas e das dimensões de bem-
caso de estudo, significados partilhados pelos
-estar. Dessa forma, o significado da noção de
beneficiários sobre o acesso à política pública
bem-estar social está relacionado à satisfação
e possibilidades e constrangimentos gerados
das necessidades básicas dos indivíduos, a
pelo benefício. O acesso à moradia termina por
partir do atendimento de expectativas social-
servir como novo contexto da vida urbana dos
mente construídas e pela participação na vi-
beneficiários, pelo qual os padrões de vínculos
da em sociedade, tendo em vista o acesso ao
sociais produzidos na ordem próxima, ou o não
consumo, a possibilidade de participação em
atendimento de expectativas sobre os suportes
relações associativas, a inserção estável no
relacionais, estão relacionados a percepções
mercado de trabalho e a cobertura de riscos
de efetividade da política pública. O vínculo
sociais, o que nos leva a relacionar o bem-es-
social se apresenta, então, como uma relação
tar à situação de vida de um indivíduo ou de
interpessoal inserida em uma rede social mais
um grupo social (Cepal, 2013). Para Marques,
ampla, sendo definido a partir de distintas
Castello e Bichir (2012), o acesso ao bem-estar
esferas de sociabilidade. Para este trabalho,
social pelas esferas do mercado, da família e
concentraremos nossos esforços na dimensão
do Estado é condicionado pelas configurações
dos arranjos familiares, visto a importância da
das redes sociais interpessoais, relacionadas
esfera familiar como suporte cotidiano e para
aos procedimentos das políticas públicas, ele-
a provisão de bem-estar em contextos de po-
mentos inter-relacionados no nosso objeto de
breza, principalmente ao levarmos em conta a
estudo. Levando em conta a dimensão sub-
característica familista do regime de bem-estar
jetiva do bem-estar expressa em narrativas,
brasileiro (Ribeiro, 2010).
apontamos a centralidade em nosso trabalho
De início, defende-se neste artigo a
de elementos associados aos vínculos sociais
análise da política pública a partir de seus
dos beneficiários, a partir do relato do acesso
resultados e impactos, por meio da noção de
a recursos materiais e simbólicos em dada tra-
efetividade subjetiva (Figueiredo e Figueire-
jetória social.
do, 1986), pondo em destaque as percepções
Recentemente, o Instituto de Pesquisa
dos beneficiários sobre transformações em
Econômica Aplicada (Ipea), em parceria com o
suas condições de vida, inquirindo-se o aten-
Ministério das Cidades, desenvolveu a “Pesqui-
dimento de expectativas socialmente produ-
sa de Satisfação dos Beneficiários do Progra-
zidas e compartilhadas. Segundo Figueiredo
ma Minha Casa Minha Vida”. O questionário
e Figueiredo (1986), tal proposta busca levar
proposto, trabalhado através da escala de tipo
em conta os desdobramentos materiais, psi-
Likert, foi dividido em cinco partes: a funciona-
cológicos e culturais da noção de bem-estar
lidade da unidade habitacional; o entorno da
social. Partindo de uma preocupação seme-
moradia; a inserção urbana; as despesas com
lhante, a Comissão Econômica para América
a moradia; e a percepção de bem-estar do be-
Latina e o Caribe – Cepal (2013) argumenta
neficiário (Brasil, 2014). Entretanto, mesmo
a necessidade de estudos contemporâneos
demarcando uma pergunta inicial semelhante
que problematizem os aspectos subjetivos das
ao nosso estudo (percepções dos beneficiários
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Vitor Matheus Oliveira de Menezes
sobre o PMCMV), entendemos que este artigo
habitacional disponibilizado em 31 de outubro
apresenta uma contribuição significativa para
de 2011 e destinado à faixa 1 do Programa
os estudos sobre o Programa. Isso porque bus-
(população com renda entre 0 e 3 salários mí-
ca problematizar não somente o atendimento
nimos). Os dados apresentados neste artigo
de expectativas em relação à política pública,
fazem parte de um estudo mais amplo, no qual
mas também traçar questionamentos sobre a
foram entrevistados 10 beneficiários do con-
dimensão relacional do espaço urbano, ao ana-
junto habitacional. Para esse trabalho especifi-
lisar as dinâmicas dos arranjos familiares dos
camente, foram selecionadas as falas de cinco
beneficiários (tais como a inclusão/exclusão/
entrevistados, levando em conta a existência
reconfiguração dos beneficiários em redes fa-
de um padrão unificador do compartilhamento
miliares, as trajetórias ocupacionais, a dimen-
da situação de benefício. Dessa forma, os en-
são socioespacial dos arranjos familiares, etc.)
trevistados selecionados para este artigo apre-
como fundamentais para a compreensão das
sentaram a importância (mesmo que por vezes
percepções sobre bem-estar social (em nível
não efetivada) de uma ampla rede de parentes-
material e simbólico) e efetividade do PMCMV.
co para o acesso ao bem-estar social. Os outros
A nossa argumentação converge, pois,
entrevistados, por sua vez, relataram a centra-
para a perspectiva de que as percepções dos
lidade da família nuclear para organização do
beneficiários sobre os resultados do Programa
cotidiano, estruturada com base em uma inser-
relacionam-se aos processos de vulnerabilida-
ção estável no mercado de trabalho. Optou-se,
de experienciados no cotidiano. Dessa forma,
pois, através de uma preocupação heurística,
introduzimos neste trabalho a noção de traje-
pela realização de etapas distintas de análise
tória de benefício, que diz respeito à compreen-
e divulgação científica dos achados, facilitando
são do benefício pela política pública a partir
a exposição e problematização dos discursos.1
das trajetórias de vida dos beneficiários, sendo
Assim, são problematizadas entrevistas
o benefício uma situação social que perpassa o
semiestruturadas 2 em quantidades variadas
acesso a bens materiais e simbólicos e configu-
com cinco moradores do conjunto habitacio-
rações (e reconfigurações) das distintas esferas
nal. Os entrevistados foram acessados por
de sociabilidade dos atores sociais. Assim, o be-
meio de mediação do Movimento Sem Teto da
nefício pelo Programa deve ser compreendido
Bahia (MSTB), presente no Residencial atra-
como uma experiência social, na qual são atri-
vés de atividades e espaços de sindicância. As
buídos significados a partir da vida social que
entrevistas, então, foram realizadas nos domi-
se desenrola no espaço urbano.
cílios ou em espaços comunitários do conjunto habitacional. No que diz respeito à análise
dos dados, fez-se uso da análise de conteúdo
Metodologia
(Bardin, 1977), iniciada através do processo de
categorização, no qual foram produzidos dois
Partimos de um estudo qualitativo realizado
grupos de categorias: as diferentes percepções,
entre 2013 e 2014 em Salvador, capital baia-
positivas ou negativas, sobre o PMCMV; e a no-
na, no Residencial Jardim Cajazeiras, conjunto
ção de vínculo social, amplamente trabalhada
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Arranjos familiares de beneficiários do Programa Minha Casa Minha Vida
pela sociologia, centrando os nossos esforços
entende as relações entre os indivíduos e gru-
na dimensão do arranjo familiar. Após essa
pos relativamente amplos (como famílias, vizi-
etapa, realizamos um registro descritivo dos
nhança, corporações, etc.), enquanto a ordem
discursos enquadrados nas categorias. Poste-
distante é “regida por grandes e poderosas
riormente, a partir da inferência, foram estabe-
instituições”, com destaque para o Estado
lecidas algumas premissas entre os dois grupos
(Lefebvre, 1991, p. 46). A ordem próxima e a
de categorias, partindo de discussões já traba-
ordem distante representam a produção do
lhadas na sociologia sobre os processos de vul-
urbano a partir de diferentes grupos, em nível
nerabilidade, a percepção sobre a vida social
macro e micro, definindo uma pluralidade de
e a inclusão/exclusão dos atores em redes so-
agências. Tal relação entre ambas as ordens
ciais interpessoais. Por fim, pela interpretação,
termina por demarcar a cidade como uma me-
buscou-se relacionar a efetividade subjetiva da
diação, contendo e mantendo a ordem próxima
política pública à dimensão dos arranjos fami-
e se sustentando através de uma ordem distan-
liares dos atores beneficiários. Buscamos com-
te, projetando-a sobre o espaço. No entanto, a
preender, assim, as diferentes atribuições de
ordem próxima não é pré-definida, ela também
significado produzidas pelos interlocutores do
toma para si o imediato temporal e espacial
estudo (Minayo, 2012).
através das ações cotidianas (Lefebvre, 1991).
Para dar conta dessa problemática, tra-
Levando em conta os processos de se-
remos no próximo tópico contribuições que
gregação e dispersão dos grupos sociais nas
permitam a intersecção entre nossa proposta
cidades, a partir do fenômeno da “integração
de estudo e a dimensão de bem-estar social
desintegrante”, Lefebvre (1991, p. 91) proble-
(entendido não como uma aspiração individual,
matiza: “diante de quem e para quem é que se
mas como um produto histórico e sociopolíti-
estabelece a simultaneidade, a reunião dos con-
co), a partir da desigual distribuição de bens e
teúdos da vida urbana?”. Partindo da perspec-
serviços na cidade, a constituição de redes so-
tiva de que essas possibilidades estão distribuí-
ciais e o regime de bem-estar no caso brasilei-
das desigualmente entre os citadinos, Lefebvre
ro, argumentando a importância do estudo dos
aponta que o direito à cidade seria uma exi-
arranjos familiares para compreensão do fenô-
gência, um “apelo” pelo direito à vida urbana
meno em análise.
em sua plenitude, o acesso à cidade a partir de
seu valor de uso, que garantiria a virtualidade
do agir aos seus habitantes. Ou seja, o acesso
Espaço urbano, arranjos
familiares e bem-estar social
irrestrito à estrutura urbana que traria em si a
virtualidade da ação dos atores na ordem próxima (Lefebvre, 1991). Assim, discutindo sobre
o contexto parisiense do pós-segunda guerra,
Para Lefebvre (1991), a cidade seria uma obra
o autor apresenta que a habitação não havia
de agentes históricos e sociais, representan-
se tornado um serviço público, mas, sim, um
do uma mediação entre a ordem próxima e a
apêndice dos direitos do homem expressos na
ordem distante. Por ordem próxima, o autor
cidade pela economia de mercado. Em verdade,
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mesmo a atuação estatal na produção de moradias não teria revertido as orientações e
concepções adotadas pela economia de mercado (ibid.). Com ressalvas de contextualização, podemos apontar que essa discussão está
presente nos estudos atuais sobre o PMCMV.
Nos conjuntos habitacionais, nos fala Lefebvre
(1991, p. 19), haveria a adoção mais funcional
da noção de habitat pela burocracia estatal, a
esta vida urbana tenta voltar as mensagens contra elas mesmas, as ordens, as
coações vindas do alto. Tenta apropriar-se
do tempo e do espaço frustrando as dominações, desviando-se de seus objetivos,
usando de astúcia. Ela intervém também,
mais ou menos, ao nível da cidade e do
modo de habitar. O urbano é assim, mais
ou menos, a obra dos citadinos em lugar
de se impor a eles como um sistema: como um livro já acabado. (p. 66)
partir da soma de coações no cotidiano, não
correspondendo à “apropriação pelos grupos e
indivíduos das suas condições de existência”.
Voltando a Santos (2006), vemos que a
rede social deve ser compreendida como social
Segundo Santos (2002), o valor do indi-
e política, transpondo materialmente uma abs-
víduo dependeria do lugar onde se encontra si-
tração conceitual e mostrando-se no presente
tuado na cidade, tendo em vista o acesso desi-
como um suporte corpóreo do cotidiano na re-
gual a bens e serviços essenciais. A rede urbana
lação dos elementos da rede com a vida social
teria significados diferenciados segundo a po-
(Santos, 2006). No entanto, o autor argumen-
sição financeira e espacial dos grupos sociais,
ta que as redes não carregam em si somente
demarcando dois extremos: de um lado, exis-
a uniformidade, mas também a desigualdade
tem os citadinos que dominam os recursos, po-
de seu aproveitamento social, no uso diverso
dendo desfrutar do trabalho alheio que, trans-
que os agentes sociais desempenham através
formado em mercadoria, torna-se fluxo. Da
da atuação, controle e regulação. As redes de-
mesma forma, o próprio habitante transforma-
vem ser percebidas como ferramentas de poder
-se em fluxo, deslocando-se pela cidade a partir
e de disputa por diferentes intencionalidades,
da ativação da rede de transporte pública ou
apresentando não somente a homogeneidade
privada. Em outro extremo, existem os pobres
e ordem, mas também o conflito e a desordem
de recursos, “prisioneiros do lugar”, inseridos
(Santos, 2006).
em constrangimentos à apropriação de fluxos
Marques (2007), por sua vez, nos convida
externos e pela incapacidade de transformar-se
a pensar o estudo de redes sociais através de
em fluxo através do deslocamento. Como nos
sua inserção no espaço urbano, desenvolven-
diz Santos (2002, p. 140), “para estes, a rede
do a análise de uma ontologia relacional da
urbana é uma realidade onírica, pertence ao
pobreza, aferindo os efeitos de desagregação
domínio do sonho insatisfeito, embora também
e pertencimento das relações socioespaciais.
seja uma realidade objetiva”.
Entendemos, a partir de Marques (2007), a on-
Prosseguindo, podemos afirmar com
tologia relacional da pobreza como uma ten-
Lefebvre (1991) que a cidade termina por envol-
tativa de compreender a pobreza urbana para
ver o habitar, constituindo-se como a forma de-
além dos atributos dos atores (em análises ba-
finidora do local de vida privada. Dessa forma,
seadas na carência de bens e serviços), levando
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Arranjos familiares de beneficiários do Programa Minha Casa Minha Vida
em conta os vínculos sociais estabelecidos em
designa o sistema de provisão de bem-estar
determinadas esferas de sociabilidade pela po-
brasileiro como “familístico-mercantil”, e a
pulação pobre.
característica de crescente vulnerabilidade do
As redes sociais, como nos mostra Agier,
espaço urbano seria, segundo ele, resultado da
são definidas a partir dos critérios de coope-
fragilização de tal modelo (Ribeiro, 2010). As-
ração, ou seja, segundo a natureza da relação
sim, segundo Campos e Teixeira (2010), o mo-
social que está na base da existência da rede.
delo latino de regime de bem-estar, incluindo-
Dessa forma, “a hipótese é que há uma rela-
-se aí o Brasil, caracteriza-se pelo elevado grau
ção substancial entre o tipo de laço social, a
de desempenho atribuído à família, resultado
função e o conteúdo moral da rede” (Agier,
da presença insuficiente do Estado na esfera do
2011, p. 80). É evidente, pois, que as diferen-
bem-estar social.
tes dimensões de sociabilidade dotam as redes
Levando em conta o marcado familismo
de características específicas, tanto na forma
da provisão de bem-estar no caso brasileiro,
quanto na função dos suportes relacionais. As-
argumenta-se que a família se apresenta como
sim, trazemos para esse trabalho a noção do
elemento fundamental para gestão de recursos
arranjo familiar como categoria central, o que
em situações de escassez. Mas além disso, a fa-
nos remete à discussão sobre o papel das famí-
mília é um elemento-chave para a “proteção e
lias na provisão de bem-estar e a problemati-
socialização de seus componentes, transmissão
zação das relações intrafamiliares.
do capital cultural, do capital econômico e da
Ribeiro (2010), baseado na tipologia de
propriedade do grupo, bem como das relações
Esping-Andersen, aponta que os ativos capa-
de gênero e de solidariedade entre gerações”
zes de atribuir condições materiais e sociais de
(Carvalho e Almeida, 2003, p. 109). Assim co-
reprodução objetiva e subjetiva aos seus por-
mo Carvalho e Almeida (2003) apontam, no
tadores são acessados através de três esferas
contexto brasileiro e latino-americano, devi-
distintas: o mercado, o Estado e a família ou
do às características do mercado de trabalho
comunidade. Para o autor o Brasil, situado em
e desigualdade de acesso aos bens e serviços
um contexto de capitalismo periférico, realizou
públicos, a família e os “entornos sociais ime-
um processo inacabado de mercantilização da
diatos” ganham importância para o atendi-
força de trabalho, de maneira análoga a uma
mento de carências de bens materiais, culturais
desruralização do país, criando uma massa
e simbólicos.
urbana marginal excluída ou incluída de for-
Tais bens não são fundamentais apenas
ma precária nas relações mercantis. Esse pro-
para a subsistência, mas também para a cria-
cesso seria fundado a partir da “combinação
ção da identidade individual e grupal e para
das livres forças de mercado e na mobilização
a “alimentação de uma interioridade”. Assim,
das estruturas familiar-comunitárias” (Ribei-
para pessoas e grupos em situação de vulne-
ro, 2010, p. 222). Dessa forma, para Ribeiro a
rabilidade social, “é a família, sobretudo, que
reprodução social esteve historicamente esta-
pode transmitir-lhes, entre outros aspectos, um
belecida no Brasil através da combinação mer-
patrimônio de 'defesas internas'” (Carvalho e
cado – família/comunidade. Por isso, o autor
Almeida, 2003, p. 118). Martins (2006), por sua
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vez, argumenta que a noção de família deve
força de trabalho e o papel do vínculo social
ser complexificada através do uso da noção de
para a compreensão da vulnerabilidade.
“arranjos familiares”, expandindo a discussão
Marques (2007) aponta, a partir de es-
sobre as relações da família para além dos la-
tudo de redes sociais no contexto de pobreza
ços consanguíneos, integrando redes sociais
urbana em São Paulo, a importância da habi-
locais e expandindo a noção da família para
tação para a estruturação dos vínculos sociais
além do domicílio. Segundo Carvalho e Almei-
dos pobres. Os diversos suportes relacionais
da (2003), por vezes tratada como o núcleo
de cunho institucional ou informal (tais como
familiar residencial, a família também pode ser
associações comunitárias, religiosas e relações
compreendida a partir de laços consanguíneos,
de vizinhança) assumiam no local de moradia
consensuais e jurídicos, constituindo amplas re-
a centralidade dos nós da rede social. Em con-
des de parentesco.
traste, as redes sociais da população de classe
Sobre a noção de vulnerabilidade so-
média se encontravam mais espalhadas pelo
cial, central neste estudo, Castel (1995) cha-
espaço urbano, estando centralizadas no con-
ma atenção para a possibilidade de o concei-
texto das relações de trabalho. Assim, ao es-
to de exclusão tratar o fenômeno da pobreza
tarmos tratando do benefício da moradia pela
como um estado que se realiza em si mesmo.
população pobre em Salvador, entendemos a
Em contrapartida, o autor propõe a noção de
importância de estabelecer a centralidade da
vulnerabilidade como um processo social, em
habitação para o entendimento dos suportes
que estariam relacionadas diferentes zonas
relacionais e o processo de vulnerabilidade
de inserção dos distintos grupos na sociedade
dos moradores. Apresentamos como dimensão
(ibid.). A maior parte da classe trabalhado-
fundamental a habitação (e as transformações
ra estaria inserida, segundo Castel (1995), na
decorrentes do benefício), mas destacamos,
“zona de vulnerabilidade”, equilibrando-se en-
dialogando com Castel (1995), impactos das
tre a zona de integração e zona de exclusão.
trajetórias ocupacionais nas expectativas dos
A precarização do trabalho, a desestruturação
suportes relacionais.
dos ciclos vitais e a fragilização dos suportes
Aproximando-nos das análises sobre o
relacionais demarcam o processo de crescente
contexto de Salvador, destacamos a argumen-
vulnerabilidade e de passagem para a zona de
tação de Carvalho e Pereira (2008, p. 110), na
exclusão. Enquanto o extremo “ótimo” da rela-
qual se apresenta que “a urbanização e o de-
ção inclusão versus exclusão apresenta o forta-
senvolvimento brasileiros vêm se mostrando,
lecimento do vínculo social, a zona de exclusão
historicamente, incapazes de assegurar melho-
é marcada pela ruptura do vínculo ao trabalho
res condições de trabalho e de subsistência pa-
e aos suportes relacionais. Dessa forma, em
ra o conjunto da população urbana”. A capital
outros termos, vemos no pensamento de Cas-
baiana foi marcada historicamente por uma
tel (ibid.) a busca por compreender a pobreza
urbanização extremamente desigual, culminan-
como um processo social que objetiva a proble-
do na produção de uma cidade demarcada por
matização das privações dos indivíduos, espe-
“cidades” distintas, tendo em vista a alocação
cialmente as características específicas de sua
desigual de infraestrutura e serviços (Carvalho
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e Pereira, 2008). Acompanhando o padrão
Anteriormente ao benefício pelo PMCMV,
centro-periferia típico das metrópoles latino-
os beneficiários entrevistados residiam em lo-
-americanas, a urbanização de Salvador se deu
calidades do Miolo e do Subúrbio Ferroviário,
a partir do espraiamento urbano, por meio da
além de ocupações urbanas como na Avenida
expansão horizontal da pobreza com base na
Gal Costa. Seguindo a terminologia de Car-
autoconstrução de moradias, distanciando-se
valho e Pereira (2008), tais localidades estão
de centros irradiadores de bens e serviços.
representadas em sua maioria, em nível demo-
Como nos apresentam Carvalho e Pe-
gráfico, pela categorização ocupacional da po-
reira (ibid.), as transformações decorrentes do
pulação em “popular” e “popular inferior” (a
crescimento demográfico entre os anos 1940 e
tipologia completa consiste em superior, média
1950 foram seguidas de um projeto de moder-
superior, média, média inferior, popular e popu-
nização excludente entre os anos 1960 e 1970.
lar inferior). A categoria popular é entendida
Tal projeto foi marcado pela construção de
como “áreas onde predominam trabalhadores
grandes obras que acompanharam e antecipa-
manuais da indústria e comércio, assim como
ram vetores do crescimento urbano, de maneira
prestadores de serviços com alguma qualifi-
análoga à crescente pobreza urbana manifesta
cação” (Carvalho e Pereira, ibid., p. 88). Já as
na ocupação de terras e autoconstrução de
classificadas como popular inferior represen-
moradias por famílias de baixa renda. Nos anos
tam uma conjugação dos trabalhadores das
1980, um conjunto de intervenções terminaram
áreas populares, como “prestadores de servi-
por configurar de maneira decisiva “um novo
ços não qualificados, trabalhadores domésti-
padrão de produção do espaço urbano, com a
cos, ambulantes e biscateiros” (ibid.). Haveria,
configuração de três vetores bem diferenciados
segundo os autores, uma convergência entre
de expansão da cidade: a Orla Marítima norte,
estrutura sócio-ocupacional e apropriação do
o 'Miolo' e o Subúrbio Ferroviário” (Carvalho e
espaço urbano, e tal apontamento pode ser
Pereira, 2008, p. 85). O Residencial Jardim Ca-
confirmado pela observação do território de
jazeiras, objeto de nosso trabalho, encontra-se
Salvador, onde existe clara conformação entre
no segundo vetor, o Miolo da cidade de Salva-
as categorias ocupacionais e a provisão de in-
dor, localizado
fraestrutura urbana.
no centro geográfico do município, [que]
começou a ser ocupado pela implantação
de conjuntos residenciais para a “classe
média baixa” na fase áurea da produção
imobiliária através do Sistema Financeiro de Habitação, tendo a sua expansão
continuada por loteamentos populares e
sucessivas invasões coletivas, com uma
disponibilidade de equipamentos e serviços bastante restrita. (Carvalho e Pereira,
2008, p. 86)
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Tendo em vista esse panorama, destacamos que os beneficiários do Residencial Jardim
Cajazeiras expressam um elemento conflituoso na trajetória do benefício pelo PMCMV. Por
um lado, a nova moradia é reconhecida como
elemento positivo na melhoria da qualidade
de vida dos entrevistados. Todos os entrevistados apresentaram essa percepção, sem exceção. No entanto, outra percepção também foi
apresentada sem exceções: a baixa qualidade,
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ou inexistência, da infraestrutura urbana na lo-
provisão de bem-estar no Residencial Jardim
calidade da nova moradia. Apontamos, assim,
Cajazeiras, estabeleceremos como primeira
que a transformação das condições de mora-
aproximação dois beneficiários. Os dois bene-
dia, através do benefício pela política pública,
ficiários estão em situação de considerável vul-
gerou uma expectativa não atendida de trans-
nerabilidade financeira e apresentam opinião
formações de igual intensidade nos serviços lo-
semelhante quanto à melhoria das condições
cais, como a proximidade de postos de saúde,
de moradia pós-benefício. No entanto, apon-
escolas, creches e comércio.
tam opiniões completamente distintas no que
Tal problemática, nota-se, é recorrente
diz respeito à percepção de efetividade da polí-
nos conjuntos habitacionais do PMCMV. Como
tica pública. O argumento a ser utilizado é que
destaca Shimbo (2010), a valorização seletiva
a diferenciação da efetividade subjetiva pelos
do espaço urbano realizada pelas empreiteiras
dois beneficiários diz respeito às características
serve como qualificação das áreas da cidade a
distintas de configuração\reconfiguração dos
partir do público-alvo dos empreendimentos,
vínculos sociais e dos suportes relacionais dos
destacando-se a manifesta periferização dos
beneficiários no momento da pós-ocupação.
condomínios destinados à população situada
A Interlocutora 1, integrante do Movi-
na faixa de 0 a 3 salários mínimos (Cardoso
mento Sem Teto da Bahia (MSTB) e atualmente
e Aragão, 2013). Soma-se a isso “certo des-
desempregada, residia anteriormente no bairro
compasso na resposta dos governos locais e
de Peri Peri, onde também mantinha laços de
estaduais na instalação de postos de saúde,
parentesco. Há dois anos se tornou beneficiária
pronto atendimento, creches e escolas próxi-
do PMCMV e destaca em sua primeira fala a
mos às áreas dos empreendimentos” (Brasil,
percepção sobre a dificuldade de manutenção
2014, p. 83). Dessa forma, o problema apre-
dos laços de parentesco após o benefício:
sentado por Carvalho e Pereira (2008), sobre
a contiguidade entre categorias ocupacionais
e infraestrutura urbana, termina por ser reproduzido na provisão de moradias pelo PMCMV,
contexto fundamental para entendermos as
entrevistas trabalhadas a seguir.
[os locais onde os condomínios do Programa Minha Casa Minha Vida estão] são
locais longe, eles [os moradores] ficam
distantes dos seus familiares, pessoas que
na falta de um café, na falta de um açúcar, podiam ta trocando. Eu mesma sou
exemplo disso. (Interlocutora 1)
A entrevistada se situa, então, em um
Arranjos familiares
e trajetórias de benefício
no Residencial Jardim
Cajazeiras, Salvador-BA
contexto de ausência de relações de intercâmbios materiais. Tal ausência é evidenciada como
consequência direta do Programa, já que a distância entre o local atual de moradia e a residência dos parentes e dos antigos vizinhos não
pode ser transposta. Quando questionada sobre
Para iniciarmos a discussão empírica sobre
a sua situação financeira atual, a entrevistada
a configuração dos arranjos familiares e a
optou por nos dar uma resposta performativa:
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Arranjos familiares de beneficiários do Programa Minha Casa Minha Vida
Vem cá pra eu te mostrar uma coisa [a
entrevistada leva o entrevistador para a
cozinha]. Eu estou desempregada, estou
sem dinheiro. Olhe pra minha geladeira.
Só tem água, né? […] Esse feijão aqui foi
a colega que me deu. Não tem nada. Essa semana aqui também só tem isso […]
porque o lugar que a gente mora, que a
gente já tem uma ancestralidade local,
onde os familiares da gente moraram e a
gente continua vivendo no local, a gente
tem aquela troca, né? […] Aquela troca
que aqui deixa de existir, porque você não
tem parente perto. (Interlocutora 1)
Para a entrevistada, a sua alocação no
to para além da moradia são inter-relacionadas
como as duas grandes desvantagens de morar
no conjunto habitacional do Programa:
As desvantagens… transporte… o
vínculo familiar que você não tem mais,
você perde esse vínculo. Os vínculos das
amizades antigas… E outra coisa, isso
provoca, isso tem provocado, em mim já
provocou e provoca muitas vezes até…
uma opressão assim… psicológica. A
gente se sente oprimido, porque a gente
não pode estar perto de quem a gente
gosta. (Interlocutora 1)
PMCMV resultou na ruptura de vínculos fami-
A centralidade das “amizades antigas”
liares centrados na antiga localidade de mora-
aponta que, para a entrevistada, as amizades
dia. As redes sociais de proteção são percebi-
estavam presentes em um momento anterior
das pela interlocutora como redes de “troca”,
ao seu benefício pela política de provisão
passíveis de serem ativadas em situações de
habitacional. A ruptura do vínculo familiar e
insegurança financeira e alimentar. No entanto,
das amizades mais próximas, além de impac-
a sua experiência dentro do condomínio não se
tar nas condições materiais da interlocutora,
seguiu a uma reconfiguração de vínculos es-
também apresentaram como resultado uma
tabelecidos através de outros espaços sociais,
“opressão psicológica”. Assim, as redes de
tais como a vizinhança e o associativismo local.
proteção devem ser entendidas para além
Dessa forma, a sua situação de desemprego
da troca material, evidenciando a dimensão
não pode ser contornada através da ativação
simbólica do bem-estar e a possibilidade ou
de outras esferas da vida social externas ao
não da percepção de pertencimento. Como
mercado ou ao Estado. A impossibilidade de
destacado por Carvalho e Almeida (2003),
manter os laços de parentesco ativos, expres-
os entornos sociais imediatos teriam impor-
sos na explicação “não tem parente perto”,
tância fundamental para o atendimento de
evidenciam a dificuldade da entrevistada em
carências dos moradores das cidades bra-
se deslocar pelo espaço urbano, ampliando as
sileiras. Além disso, a família teria a função
relações cotidianas para além da localidade
da transmissão de um patrimônio de defesas
da moradia. Isso se daria, segundo ela, atra-
internas, fortalecendo o acesso a bens ma-
vés da precariedade do transporte público e da
teriais e simbólicos (ibid.). Nessa entrevista
dificuldade do pagamento da tarifa de ônibus,
podemos perceber o impacto do isolamento
como relatado pela fala “pego um cartão de
do indivíduo pobre de suportes relacionais, a
passe, boto o dedo na frente assim pra não ver,
partir da intensificação da percepção de vul-
e entro. Se [o cobrador] ver, manda descer”.
nerabilidade da beneficiária.
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A dimensão do vínculo e do deslocamen-
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Assim, ao mesmo tempo em que ela relata a dificuldade em participar da vida social
do conjunto habitacional, também nos diz que
não consegue se deslocar de forma satisfatória
no espaço urbano para além da atual moradia.
Os vínculos sociais tidos como importantes,
presentes na vida da entrevistada antes do benefício, terminaram por ser obstruídos. Vemos
aqui o fenômeno da pobreza urbana descrito
por Santos (2002), através da impossibilidade
da apropriação dos fluxos urbanos, sendo esses
mercadorias; e a incapacidade de transformação do citadino em fluxo, a partir do seu deslocamento pela cidade. Isso, aliado à ruptura
do vínculo familiar, visto pela beneficiária como
esfera central de provisão de bem-estar e segurança financeira, levaram a moradora a entender o benefício pelo Programa como elemento
fragilizador em um processo mais amplo de
vulnerabilidade social.
No entanto, a sua participação no movimento social é vista como uma atenuante da
sensação de insegurança, a partir das relações
de troca dentro do movimento e o fato de os
integrantes do MSTB relatados terem vindo
do mesmo local de moradia da interlocutora,
se mostrando como um fragmento da rede
social que permaneceu ativo no conjunto habitacional. No entanto, para a entrevistada, esse
fragmento não é suficiente para estabelecer a
proteção social desempenhada pela família durante o período anterior ao benefício:
Tinha minha prima, tinha minha outra tia
Sueli. Tinha meus primos ali perto, que
quando eu precisasse podia recorrer a
eles. Aqui já é diferente, né? Eu não tenho
mais aquela... quem de vez em quando
me dá um suporte é Nêgo, é Mira, que é
do movimento, que a gente veio de lá pra
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cá também... entendeu? É uma dificuldade. (Interlocutora 1)
Vemos, dessa forma, que o benefício
através da política pública é percebido e relatado pela entrevistada com arrependimento,
mesmo com as melhorias reconhecidas pela
interlocutora das condições de moradia. Isso
porque as expectativas e necessidades de proteção social da beneficiária não foram atendidas, devido ao rompimento de laços sociais
familiares centrados no antigo domicílio. Tendo
em vista a sobrecarga da proteção social no
arranjo familiar, característico do sistema familista de proteção social, a ausência do vínculo
familiar acarreta a percepção de insegurança
financeira e vulnerabilização.
De maneira contrária, destacamos uma
experiência distinta vivenciada pelo Interlocutor 2. Mesmo em situação de instabilidade
financeira, apresenta opinião muito diferente da Interlocutora 1. O entrevistado é antigo
morador de Itacaranha (bairro de Escada), e
após um incêndio, no qual perdeu sua moradia,
foi alocado no PMCMV. Atualmente o interlocutor é vendedor autônomo, se utilizando da
sua casa, que fica no térreo de um dos blocos
do Residencial Jardim Cajazeiras, para vender
pequenas mercadorias (bombons, pipoca, refrigerantes, etc.). Além de não ter aposentadoria,
por problemas de cadastro não conseguiu ter
acesso ao Bolsa Família, embora cumpra os critérios de elegibilidade do Programa. Essa situação se apresenta como um contexto de grande
insegurança, somando-se à sua idade elevada
(62 anos) e ao fato de atualmente morar sozinho. Questionado se passou ou está passando
por situação de insegurança financeira, o entrevistado respondeu:
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Arranjos familiares de beneficiários do Programa Minha Casa Minha Vida
Sim, porque eu fiz meu Bolsa Família, desde o meu cadastro do Minha Casa Minha
Vida e nunca… já recorri na prefeitura,
fui no NAD, peguei toda a papelada e
inclusive joguei na Coelba e na Embasa,
mas o meu Bolsa Família jamais… não
sou aposentado e meu trabalho é esse como autônomo, como citei anteriormente.
(Interlocutor 2)
Certamente o fato de o beneficiário ser
atendido pelo Programa após o incêndio em
Escada impacta na percepção do beneficiário
sobre os resultados da política pública, tendo
em vista a resolução de uma situação emergencial e extrema. Como o entrevistado relata,
“era muito lá embaixo [sua qualidade de vida],
eu não tinha onde morar, não tinha mesmo, e
hoje tenho”. No entanto, esse não é o único
balizador do discurso do Interlocutor 2. Vejamos alguns elementos que evidenciam como a
reconfiguração dos laços sociais do entrevistado impactou na percepção sobre a efetividade
da política pública.
Como relata, o beneficiário tem três ir-
Após o benefício pelo PMCMV, o Interlocutor 2 passou a morar com uma amiga advinda do antigo bairro, já que ela havia ficado sem
casa e ele havia sido atendido primeiro na fila
do cadastro. Esse fato marcou profundamente
a inserção do entrevistado no condomínio. Ao
ser questionado sobre a comparação entre sua
vida antes e após o benefício pelo Programa, o
Interlocutor 2 respondeu:
Rapaz eu continuo lutando aí, correndo
atrás de uma aposentadoria aí que nunca sai... mas, por enquanto tá ótimo. Tá
ótimo. Inclusive essa pessoa que morou
aqui me ajudou muito, entendeu? Continuo com esse trabalho aqui porque ela
deixou pra mim, tá? Me deu a maior força, e eu tô aqui, e no dia que puder ajudar ela, ajudarei […] é uma pessoa que
tem um coração de ouro. Inclusive veio
de lá, junto comigo, por isso eu segurei
aqui dois anos, sem problemas, sem discussões, sem brigas, e tudo combinado,
ótimo […] Faz três semanas que ela se
mudou. Tá ótimo. Liga pra mim, eu ligo
pra ela, tá beleza.
mãs em Itacaranha, que se mantiveram no
bairro após sua alocação no conjunto habita-
Na primeira parte da fala, o entrevistado
cional. No entanto, o entrevistado, ao contrá-
leva em conta a sua insegurança financeira,
rio da Interlocutora 1, apresentou uma noção
levando-o a realizar grande esforço pessoal,
mais fluida de centralização de suas redes so-
como visto na frase “continuo lutando aí, cor-
ciais a partir da localidade do bairro (em detri-
rendo atrás de uma aposentadoria que nunca
mento da noção de “ancestralidade local” re-
sai…”. Logo após, a avaliação positiva sobre
latada pela Interlocutora 1). Por muito tempo
sua vida atual retoma a sua antiga colega de
morou fora de Salvador, a partir de trabalhos
moradia, que, além de tornar possível o seu
assalariados ou autônomos, se destacando
novo trabalho como vendedor ambulante no
uma longa estadia no interior do Maranhão.
condomínio, esteve presente como uma figura
Vê-se que a provisão de recursos assume im-
de apoio e ajuda. Além disso, essa pessoa se
portância no discurso do entrevistado a partir
mostra como uma figura importante de uma
de seu trabalho, mesmo que precário e ausen-
antiga rede de vizinhança que, assim como ou-
te de amparo na legislação trabalhista (como
tras pessoas de Itacaranha, se deslocou para o
a aposentadoria).
condomínio após o incêndio em Escada.
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A ida de moradores de Itacaranha se
estabelecidas no cotidiano do conjunto habi-
mostra como um elemento importante de pos-
tacional. Os espaços institucionais e informais
sibilidade de manutenção dos laços sociais do
mostram-se nas falas do entrevistado como a
entrevistado. No entanto, a partir de sua par-
configuração de uma nova rede social, capaz
ticipação na vida cotidiana do condomínio, o
de assumir a responsabilidade pela provisão de
morador conseguiu reconfigurar seus vínculos,
bem-estar em casos de maior vulnerabilidade.
tendo como centro o local de moradia, garan-
Por vezes, o sistema de provisão familista inte-
tindo suporte e apoio social.
gra em seus conceitos a noção de comunidade
(Ribeiro, 2010), já que o acesso a bens e ser-
Muitas [pessoas] vieram de lá de onde eu
morava, e através da minha relação com
todo mundo fui conhecendo todo mundo.
Todos aqui chega, seu Madruga [apelido],
pronto é ali. Todos, todos. (Interlocutor 2)
viços por vezes é alcançado por interações na
dimensão da vizinhança. Além disso, é possível
que a própria família se expanda para além da
consanguinidade (Martins, 2006), fenômeno
que exigiria mais dados para sua afirmação em
Sobre a possibilidade de recorrer à ajuda
financeira por parte de moradores do condomínio, o Interlocutor 2 afirma:
É, por enquanto não precisou de ajuda,
mas eu tenho pessoas que já me prometeram que se houver alguma dificuldade
recorrer a eles. Inclusive moram no mesmo bloco que eu […] Conhecemos-nos
aqui. Em reuniões, palestras, brincar um
pouco, um dominozinho que brincamos
ali no quiosque. E assim vamos fazendo
amizades. (Interlocutor 2)
nosso caso.
Assim, alguns elementos evidenciam-se ao compararmos os dois atores sociais
em análise. Enquanto para a Interlocutora 1 o
benefício pelo PMCMV significou desfiliação
social e ruptura de laços sociais antigos e importantes, ligados ao parentesco e às relações
de vizinhança, para o Interlocutor 2 houve
a possibilidade de manutenção dos vínculos
sociais existentes anteriormente, garantindo
proteção social e pertencimento. Vale lembrar
que a Interlocutora 1 salienta a importância da
Prosseguindo, o entrevistado aponta que
presença de integrantes do movimento social
tal situação garante uma maior segurança,
no condomínio, um fragmento de rede social
“com certeza”, visto a percepção de redes so-
que ameniza os efeitos da ruptura de vínculos.
ciais que podem ser ativadas em caso de maior
No entanto, tal fato se mostra insuficiente
vulnerabilidade. Fato esse bastante possível,
para garantia de bem-estar para a beneficiá-
visto a instabilidade de sua renda a partir do
ria. Já para o Interlocutor 2, a manutenção de
trabalho autônomo e a ausência de aposenta-
vínculos significou uma moradia temporaria-
doria e cadastro no Bolsa Família. Vemos a par-
mente conjunta e uma possibilidade de traba-
tir do Interlocutor 2 que os suportes relacionais
lho, que se manteve mesmo após a saída da
mais imediatos podem ser compostos pelos la-
antiga moradora.
ços não-consanguíneos, através da composição
Da mesma forma, a possibilidade de re-
do domicílio para além das relações de paren-
configuração de vínculos aponta dimensões
tesco e a proteção social advinda das relações
diferenciadas nos dois entrevistados. Como
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Arranjos familiares de beneficiários do Programa Minha Casa Minha Vida
vimos, a incapacidade de recompor laços sociais
sobre a vida em sociedade. Assim, a percepção
e a ruptura com amizades antigas e redes de
do ator social sobre a política pública não se
parentesco provocou na Interlocutora 1 o que
mostra como um resultado mecânico e estático
ela chama de “opressão psicológica”. Por outro
de sua situação enquanto beneficiário. Ambos
lado, é recorrente nas falas do Interlocutor 2 a
os entrevistados relataram significativa melho-
presença de novos vínculos sociais reelaborados
ria da qualidade da moradia após a alocação
a partir do novo local de moradia, como visto
no Residencial Jardim Cajazeiras. No entanto,
anteriormente, a partir da possibilidade de ati-
de forma conflituosa, se relacionam a essa di-
vação de uma rede social de apoio em caso de
mensão as expectativas quanto aos vínculos
maior insegurança, tendo como centro o bloco
sociais mantidos, rompidos e reconfigurados a
onde reside o beneficiário, estabelecido a partir
partir da alocação no conjunto habitacional.
da vida cotidiana no condomínio. Ainda, como
A responsabilização das famílias pela
segue, é possível perceber nas falas do entrevis-
provisão de bem-estar, destacando-se a ex-
tado a imagem do condomínio como um local
pansão da noção de família para o papel das
acolhedor, ao contrário das falas da Interlocuto-
redes de vizinhança e os arranjos familiares,
ra 1, cuja moradia é vista como inserida em um
tem como resultado a centralidade do vínculo
local de desagregação social.
para a segurança financeira e alimentar de
seus membros. Além disso, a participação
Aqui todos nós somos uma irmandade.
Pelo menos comigo né, não sei os demais
[…] A relação comigo todo mundo é...
você vê as crianças como chega aí ó. “É
seu Madruga, é Seu Madruga”. E me adoram essas crianças. E me ajudam muito
com esses bombons. Graças a Deus. Não
tenho outra renda. O meu Bolsa Família,
nunca. E aqui eu tô levando. E é assim
que eu vou levando. Meus bombons, minhas pipoquinhas e meus refrigerantes.
(Interlocutor 2)
na vida social se relaciona a uma situação de
conforto, de atendimento de expectativas e
interesses, elementos que estarão inseridos
na percepção do beneficiário sobre a política
pública. Os impactos do Programa não são entendidos pelos atores pela simples existência
de uma moradia melhor, mas também a partir
do aspecto relacional da vida urbana, podendo
levar a situações de insegurança e “opressão
psicológica” ou situações de segurança e ideia
da vida em comunidade.
O que é central para compreendermos
Assim, a percepção sobre os impactos
essas discussões é que o benefício pelo Progra-
efetivos da política de provisão de moradias es-
ma, estando inseridos no bojo do benefício o
tá intimamente relacionada à percepção sobre
deslocamento espacial da moradia e a reconfi-
as condições de pobreza e vulnerabilidade dos
guração de vínculos sociais, se mostra como um
beneficiários. Passando, pois, para a análise de
processo social. O espaço, pois, deve ser com-
outras entrevistas, vemos a argumentação da
preendido a partir de múltiplas situações, onde
Interlocutora 3 sobre a maior dificuldade em
diferentes trajetórias de vida e relações inter-
lidar com as contas mensais após o benefício
pessoais configuram percepções diferenciadas
pelo Programa:
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Vitor Matheus Oliveira de Menezes
Rapaz, eu não vou mentir a você não, a
situação aqui… A dificuldade aumentou,
porque gera-se dívidas que você não tinha antes e que hoje você é obrigado a
ter, como por exemplo, há uma prestação
que você paga do Minha Casa Minha Vida. É pouco, mas já é uma prestação. Aí
vem a luz, aí vem a água, aí vem o condomínio. Aí você quer ter uma vida melhor,
aí você contrata uma internet… a situação fica mais complicada, mais difícil. (Interlocutora 3)
Quando questionada sobre o repertório
utilizado para lidar com a atual dificuldade financeira, a Interlocutora 3 aponta os amigos
próximos e familiares como vínculos prioritários de provisão de bem-estar em situações de
maior vulnerabilidade. Então, vê-se que as relações informais e interpessoais são colocadas
em primeiro plano, ao invés das relações institucionalizadas. Atualmente a beneficiária trabalha
como vendedora no próprio condomínio, tendo
um ponto de venda em frente ao conjunto habitacional. Seu marido é operário da construção
civil e juntos têm dois filhos, e o mais velho
trabalha e mora fora do condomínio e a mais
nova, com 10 anos, reside junto com o casal.
Curiosamente, a Interlocutora 3 aponta que os
diferentes vínculos com os familiares residentes
fora do conjunto habitacional não foram enfraquecidos, pelo contrário, se fortaleceram após o
benefício. Como nos relata a entrevistada, a razão para isso advém do status da moradia atual
do PMCMV, em detrimento da antiga moradia
sujeita à precariedade e ao estigma da favela:
Você era discriminado, né [na antiga moradia], “ah, mora na favela, mora num
barraco”, e hoje não, a pessoa que está
aqui tem um status de vida melhor do que
o que tinha lá no Gal Costa.
272
Book 35.indb 272
Normalmente, quando você passa por
algum problema financeiro, a quem você
recorre?
Só meus amigos e familiares
Seus familiares atualmente moram aqui
ou em outro bairro?
Não, a maioria mora em outros bairros.
Eu só tenho uma filha que também faz
parte desse projeto. O restante de minha família mora tudo por aí por Salvador espalhado.
E você continua mantendo contato
com eles?
Continuo. Agora é que eles vêm me visitar. Muitos quando eu morava na favela
nem lá iam. (Interlocutora 3)
O benefício é relatado, dessa forma,
através da melhoria da qualidade de vida pelo reconhecimento de status da moradia atual.
Utilizando-se de vínculos não institucionalizados para a provisão de bem-estar, a entrevistada relata, para além da melhoria da moradia,
a aproximação de familiares após o benefício,
movimento inverso ao relatado pela Interlocutora 1. Os suportes relacionais centrados na
dimensão da família terminaram por se fortalecer após a alocação da Interlocutora 3 no
conjunto habitacional, fenômeno que nos leva
a argumentar que o benefício não somente gera constrangimentos para a manutenção dos
vínculos sociais (devido à distância), mas também virtualidades geradas pela nova condição
social da moradia.
O PMCMV é apontado pela entrevistada
como “um projeto bom. Muito bom, muito bem
pensado”. No entanto, a beneficiária relata a
dificuldade encontrada por alguns moradores
no que diz respeito às despesas pessoais após
o benefício:
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Arranjos familiares de beneficiários do Programa Minha Casa Minha Vida
Quando o governo tira aquelas famílias
de determinado lugar que eles já estão
habituados a morar, é a mesma coisa desse pessoal que mora na orla do subúrbio,
pega esse pessoal de lá do subúrbio e joga lá em Simões Filho, eles não vão ficar
lá, eles não vão. Muitos deram, porque
você pegar uma unidade dessa e dar por
15, 20 mil, pra mim isso não é dinheiro,
é dar. Muitos deram porque não tiveram
condições de pagar. (Interlocutora 3)
Além disso, a Interlocutora relata a sua
percepção de dificuldade do estabelecimento
de novos vínculos centrados no conjunto habitacional. Em comparação à sua antiga moradia,
na ocupação da Av. Gal Costa, ela relata:
A ocupação que a gente tinha lá na
ocupa ção era mais fraternal, era mais
amigo mesmo, 'fulano tá passando dificuldade', e aqui não tem isso não, é
cada um por si. Aquela amizade, aquela
preocupação que tinha, um morador da
ocupação com outro, aqui não existe isso
não. Aqui é cada um na sua e a vida continua. (Interlocutora 3)
Assim, a sua permanência no conjunto
habitacional representa o sucesso em manter
uma fonte de renda, através do ponto de venda
no condomínio, e da manutenção dos vínculos
sociais anteriores ao benefício. Mesmo com a
incapacidade em ativar uma rede social local
vínculos para além da moradia, sendo esses
importantes para a provisão de bem-estar.
De maneira semelhante, a Interlocutora 4
realiza uma distinção sobre a possibilidade de
ativação da rede de vizinhança pós-benefício
e a rede familiar. Quando questionada sobre o
repertório utilizado para lidar com situações de
insegurança financeira, a beneficiária relata:
Eu busco, assim… ao meu redor eu não
posso buscar muito, porque é vizinho, pra
já não tá aquela coisa de ficar chato pedindo, não busco muito. Mas assim, tem
as tias, que moram em Paripe, tem outras
tias que moram no Lobato, avó… sempre
eu to buscando ajuda deles, para que não
venha a faltar as coisas para meus filhos.
E você consegue manter o contato
com eles?
Consigo.
[…]
Como é que você acha que é a relação
dos moradores aqui dentro?
Não são unidos.
Você acha que era mais unido na antiga
moradia ou aqui?
Era mais unido na antiga. Lá cada qual
defendia seu cada qual, e ainda eles defendiam a gente. Era um ajudando o outro. (Interlocutora 4)
capaz de suprir com o bem-estar, visto que a
A possibilidade de ajuda dos familiares
esfera familiar e de amizades próximas são
se mostra bastante útil no contexto de vida
prioritariamente procuradas em situações de
da beneficiária, onde existe “muita [insegu-
insegurança financeira, a beneficiária relata
rança financeira], muita mesmo”. Mesmo não
o fortalecimento das relações intrafamiliares,
mantendo contato de proximidade com os mo-
tendo em vista a existência da moradia atual
radores da sua atual localidade, aponta para
como elemento valorativamente positivo.
a utilização da família como uma rede social
Na percepção da beneficiária, o enfraqueci-
para o provimento de bem-estar para os filhos.
mento dos laços comunitários locais se deu
Atualmente a entrevistada está sem emprego
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de maneira análoga ao fortalecimento dos
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Vitor Matheus Oliveira de Menezes
fixo, sendo a única provedora de uma casa
Analisando mais a fundo a questão en-
com duas crianças, sobrevivendo atualmente
tendemos, a partir das falas da entrevistada,
através do cadastro no Bolsa Família e traba-
que a localidade atual da moradia não tem cre-
lhando como diarista e catadora de camarão
che próxima ou escola com turno integral, sen-
no Mercado do Peixe. A Interlocutora 4 nos fa-
do o cuidado com os filhos uma das principais
la que vive uma situação de grande vulnerabili-
dificuldades para a beneficiária.
dade e incerteza, tendo como objetivo atual de
vida comprar uma guia para trabalhar de ambulante. No entanto, o aumento das despesas
com o benefício e a dificuldade de encontrar
emprego a impossibilitam de atingir, por ora,
seu objetivo.
Quando questionamos o principal ponto
positivo do PMCMV, obtemos como resposta a
transformação das condições de moradia. Antes residente em Peri Peri, a moradora também
já vivenciou com os dois filhos a situação de
rua. A casa para ela, por motivos óbvios, representa um elemento constituidor de segu-
O colégio aqui também não tem muita escolha. É lá em Pau da Lima.
É você que leva eles?
Eu levo, às vezes quando eu vou fazer
uma faxina, que é 70, 80 reais, eu peço
uma pessoa pra levar pra mim, dando
o cartão de passagem pra ela e divido
aquele dinheiro que eu ganho na diária
com a pessoa. Quando eu acho um emprego lá na Pituba, eu não posso, já perdi
vários, por falta de uma creche, de um colégio que entre de manhã e pega de tarde,
como tem vários, eu não consigo. Então
já perdi vários empregos. (Interlocutora 4)
rança, qualidade de vida e autoestima. O fato
de “só estar aqui, nessa casa maravilhosa” já
Prosseguindo com a análise, segundo a
estabelece o apontamento da entrevistada de
entrevistada a situação seria muito mais fácil
que o benefício teve um saldo positivo.
se na atual moradia habitassem familiares que
No entanto, ao ser questionada sobre o
pudessem ajudar no cuidado com os filhos, re-
principal ponto negativo do Programa, a be-
tirando uma parte da sobrecarga advinda com
neficiária nos responde que é a existência do
a ausência de serviços estatais adequados. O
desemprego. Vemos que na primeira respos-
desemprego, principal ponto negativo do Pro-
ta, sobre o elemento positivo, a entrevistada
grama, é uma consequência de dois fenôme-
se utiliza de um elemento condizente com as
nos: a) a ausência de serviços de cuidado ins-
consequências diretas do Programa, estando
titucionalizados, que retirem a sobrecarga da
a moradia incluída como principal objetivo da
família, e principalmente da mulher, no cuida-
política pública. No entanto, como vemos, pa-
do e provisão de bem-estar para os membros
ra a evidência sobre a negatividade da política
da família; b) e a ausência de redes familiares
pública, a beneficiária nos traz um elemento
no atual local de moradia, que conseguissem,
central para sua vida social e para a percepção
na ausência do serviço estatal, arcar com uma
de vulnerabilidade, mas que não está direta-
parte das responsabilidades com o cuidado,
mente relacionado às consequências mais cor-
tornando possível para a entrevistada obter
riqueiramente relacionadas ao Programa.
emprego com maior estabilidade. A existência
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Arranjos familiares de beneficiários do Programa Minha Casa Minha Vida
do trabalho não remunerado do cuidado, e sua
sobrecarga advinda com a ausência de serviços
estatais (Campos e Teixeira, 2010), termina por
impactar negativamente na inclusão da Interlocutora 4 (uma mulher em situação de pobreza
constituindo família monoparental) no mercado de trabalho pago, fundamental para o aumento da renda familiar.
É por isso que a Interlocutora 4 ressalta o
desemprego como principal ponto negativo do
Programa. A baixa presença do Estado no sistema familista de provisão de bem-estar acaba
gerando uma sobrecarga nos suportes relacionais da família e da comunidade local. Quando
esses falham (uma falha já prevista, por impossibilidades objetivas), a entrada na esfera do
mercado como espaço de provisão também é
obstruída. O benefício pela política pública acaba gerando uma percepção bastante conflituosa da entrevistada, onde de um lado vemos
melhorias das condições materiais da moradia
e o consequente aumento do bem-estar; e de
outro o deslocamento de suportes relacionais
concomitante à insuficiência dos serviços estatais, impossibilitando o aumento da renda pela
esfera do trabalho remunerado.
A partir de dados provenientes da Interlocutora 5, podemos confrontar novos elementos para análise. Segundo a entrevistada, o
benefício se deu de maneira análoga ao enfraquecimento da renda familiar:
Tinha tudo no barraco, mas não tinha segurança. Só que lá era um meio de eu ganhar dinheiro, tinha um bar, muito grande,
bem feito, eu ganhava dinheiro durante o
mês que dava para minha despesa. Aqui
eu não tenho condição de ganhar nem 50
centavos, porque o condomínio também
não ajuda, o governo era pra fazer uns
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box aí na frente, pra entregar pra quem tinha já o comércio, e isso não foi feito pela
prefeitura. (Interlocutora 5)
São colocados em análise pela interlocutora, assim, dois fenômenos. O benefício,
por um lado, representou a mudança da moradia, vista como uma transformação positiva.
No entanto, a fonte de renda estava alicerçada
na antiga localidade de habitação, e o benefício não trouxe consigo a provisão pelo Estado
de novas condições de trabalho.
E pelo menos eu tô aqui só problema porque eu sou uma pessoa doente, em tratamento […] Então, pra você ver, lá em
Sussuarana era todo mundo amigo, quem
tivesse, quem não tivesse comia do mesmo jeito. Aqui não é assim. Aqui o ritmo
mudou, vamos ver quem pode mais […]
Na Sussuarana era o contrário, eu dava
para os outros. Não tinha pena de dar uma
cesta básica, não tinha pena de dar um
dinheiro nem de emprestar. E aqui tá tão
difícil, porque eu procuro onde conseguir
trabalho e não consigo. (Interlocutora 5)
Chama a atenção o fato de que, na entrevista, a beneficiária se reporta ao benefício
pela palavra “tragédia”. Como evidenciado
acima, tal tragédia se daria a partir de alguns
elementos articulados, semelhante ao apontado por Castel (1995) sobre o processo de
vulnerabilidade social. O benefício terminou
por enfraquecer, visto a ausência da atuação
estatal no que diz respeito à provisão de condições adequadas de trabalho, a fonte de renda
da beneficiária. Somado a isso, o seu marido
também se encontra desempregado, fato que
inviabiliza a provisão domiciliar.
O antigo local de habitação da beneficiária é apontado como um local, a despeito das
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condições precárias da moradia, de forte inte-
tão frequente. A percepção de efetividade da
ração entre as pessoas. Tais interações serviam
política pública pela entrevistada, então, reto-
como a provisão de bem-estar em situações
ma dois fenômenos simultâneos relacionados
extremas (“quem tivesse comia, quem não ti-
ao processo de vulnerabilidade. Em primeiro
vesse comia do mesmo jeito”). Já a moradia
lugar, o benefício significou a perda da fonte de
atual é apontada como um local de individua-
renda da entrevistada, sendo esse o conteúdo
lização (“vamos ver quem pode mais”), onde a
mais presente na entrevista. Em segundo lugar,
entrevistada não está inserida em relações de
a Interlocutora 5 foi deslocada de uma rede de
intercâmbios materiais. Além disso, através da
vizinhança que poderia, em condições mais ad-
existência de uma fonte de renda com relativa
versas, servir como fonte de intercâmbios ma-
estabilidade, na moradia anterior a Interlocuto-
teriais em situações de maior insegurança. O
ra 5 assumia uma posição importante como um
seu entendimento sobre a individualização dos
nó da rede social, sendo provedora de bem-
seus vizinhos no momento pós-benefício, alia-
-estar para outros membros da localidade. Na
do à insuficiência da ativação da família para
situação atual de benefício, a entrevistada, sem
além das situações de extrema vulnerabilidade,
fonte de renda e sem inserção em redes asso-
articula-se com a ineficácia do Estado em pro-
ciativas, encontra dificuldades evocadas como
ver condições de trabalho, conformando uma
uma “tragédia”.
percepção extremamente negativa sobre os im-
Mas além disso, a entrevistada relatou
pactos da política pública em sua vida.
certa capacidade de ativar a família como rede
Vimos, com base nesse conjunto de en-
social em situações de extrema vulnerabilidade.
trevistas, que a inclusão ou exclusão do benefi-
Eu, meu filho, quem me ajuda foi uma
família que me criou. São uma família de
empresários da Comercial Ramos, então
eles praticamente, a maior ajuda, a maior
força é deles. Quando eu to precisando de
alguma coisa eu ligo, aí 'venha que a gente vai no mercado', se alguém tá doente e
eu não tenho um centavo, 'venha que eu
vou te arrumar'. (Interlocutora 5)
ciário de redes sociais interpessoais resulta em
novas configurações da percepção de efetividade do Programa. A existência de redes sociais
familiares e/ou de vizinhança se mostrou importante veículo de provisão de bem-estar na
existência de insegurança financeira. Devemos,
dessa forma, conceber a capacidade ou incapacidade de ativar os nós dessas redes como elementos fundamentais para o entendimento do
Vemos aqui o reforço da argumentação
processo de vulnerabilidade dos atores sociais.
de Martins (2006) sobre a necessidade de ex-
O benefício, através da reconfiguração territo-
pandir a família para além dos laços consan-
rial e das novas condições de moradia, se mos-
guíneos. No entanto, a ativação da rede fami-
tra como um novo elemento em tal processo.
liar não resulta em uma situação de segurança
Defendemos aqui que, na produção de subjeti-
para a entrevistada, mas somente a possibili-
vidades sobre a efetividade da política pública,
dade de lidar com situações mais adversas.
ou seja, a percepção do beneficiário sobre os
Com base nas falas da beneficiária, a utilização
resultados do Programa, o benefício se rela-
referida do suporte relacional da família não é
ciona com outros elementos da vida social do
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morador. Tal relação, como vimos, é conflituosa,
partir do benefício, mas sim trajetórias distintas
demarcando tal fenômeno como inserido na
dos beneficiários que configuram percepções
configuração da pobreza urbana. A percepção
diferenciadas sobre a política pública.
da efetividade da política pública também é, de
É necessário destacar também que o
certa forma, a percepção do ator sobre o seu
benefício pelo Programa pode apresentar co-
processo de vulnerabilidade.
mo resultado a produção de novas formas
Destacamos que, como apresentado por
de configuração das redes sociais. Tais redes
Marques (2007), as redes sociais em situação
podem ser distintas do padrão observado por
de pobreza encontram centralidade na loca-
Marques (2007), baseado na centralidade da
lidade de moradia. Sejam redes interpessoais
localidade da moradia para o estabelecimen-
informais, ou redes associativas, religiosas e
to dos vínculos sociais da população pobre.
políticas, os atores sociais em situação de po-
Como vimos, alguns entrevistados relataram
breza tendem a se relacionar através da dimen-
que, de maneira análoga ao enfraquecimento
são do habitar. O benefício pelo PMCMV se
das redes locais, foi possível perceber o forta-
mostra, então, como um dado extremamente
lecimento ou manutenção de redes sociais de
importante. O acesso à política pública termi-
proteção para além do conjunto habitacional. A
na por gerar uma reconfiguração territorial do
família como uma rede, centrada não somente
beneficiário, a partir do distanciamento espa-
a partir do critério da moradia, pode ser ativa-
cial entre os vínculos anteriores ao benefício,
da em situações de adversidade para além do
centrados na antiga moradia, e a atual locali-
espaço urbano mais imediato. No entanto, tal
dade de habitação. A manutenção desses vín-
possibilidade deve ser contextualizada a partir
culos e o surgimento de padrões satisfatórios
das virtualidades e constrangimento dos ato-
dos suportes relacionais, ou o oposto baseado
res, e não ao simples desejo de utilização dos
na incapacidade de manter ou gerar tais redes
suportes relacionais. Merece destaque também
de suporte, terminam por constituir elementos
que, mesmo para os entrevistados que relata-
fundamentais para a compreensão da pobreza
ram a centralidade dos vínculos para além do
e vulnerabilidade do beneficiário.
conjunto habitacional, o benefício representou
Como vimos a partir das entrevistas, a
o fortalecimento da moradia como espaço de
vida em sociedade no conjunto habitacional é
organização da vida social e investimento de
referida diversas vezes a partir da baixa coesão
recursos materiais.
dos moradores. Essa baixa coesão é apontada
Sintetizando esse ponto, vemos que dife-
a partir de uma comparação com os padrões de
rentes trajetórias de benefício, sendo esse en-
relações sociais da antiga moradia. No entanto,
tendido como um processo social, configuram
como também é possível destacar, a ativação
distintas percepções sobre as consequências
de novos vínculos sociais a partir das relações
da política pública na vida dos beneficiários.
interpessoais é percebida por alguns beneficiá-
Tentamos aqui escapar de visões deterministas,
rios como o fortalecimento da vida em socieda-
que estabelecem uma relação direta e apriorís-
de. O que queremos apresentar aqui é que visi-
tica entre a existência de redes sociais e a ava-
velmente não existe um padrão generalizante a
liação positiva ou negativa da política pública.
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O nosso foco, como destacamos, é problemati-
por si, incluiria tais indivíduos em nível produti-
zar como diferentes trajetórias de benefício no
vo e simbólico. Mesmo defendendo que a inter-
momento pós-ocupação terminam por repre-
-relação entre os atores se mostra de extrema
sentar tendências de percepção do beneficiário
importância para o entendimento do processo
sobre a vida social.
de vulnerabilidade, para nós os resultados for-
Vale destacar, por fim, que não consideramos profícuo o imaginário neoliberal de
talecem a necessidade de responsabilização do
Estado, e não das famílias.
centralidade da dimensão da família e/ou comunidade para provisão de bem-estar. Sob o
amparo do Banco Mundial, a desresponsabi-
Considerações finais
lização do Estado e a instituição da dimensão
do mercado como dimensão “justa” de distri-
Neste artigo buscamos problematizar as per-
buição de bens e serviços, aliado à mobilização
cepções dos moradores do Residencial Jardim
das redes comunitárias locais, potencializaram
Cajazeiras, destinado à faixa de 0 a 3 salá-
um quadro marcado por “baixos níveis de
rios mínimos, sobre o benefício pela política
crescimento econômico; deterioração das con-
pública. Para isso, negamos a existência de
dições de trabalho e renda da população; per-
uma relação direta e sem mediações entre as
sistência das desigualdades sociais e espaciais;
diretrizes da política (e a forma como foram
e uma reorientação profunda das políticas so-
implementadas) e o público-alvo. Como apre-
ciais” (Carvalho e Almeida, 2003). Mesmo com
sentamos detalhadamente através da fala dos
mudanças importantes no que diz respeito ao
entrevistados, a percepção dos beneficiários
fortalecimento do papel do Estado no Brasil,
sobre os resultados da política pública se dá
Carvalho (2008) nos aponta que o quadro so-
através da relação conflituosa entre diversos
cial das grandes cidades ainda é considerado
elementos constituidores da vida social. Assim,
grave. Assim como defendido por Campos e
utilizando a noção de efetividade subjetiva e
Teixeira (2010) e Ribeiro (2010), a problemati-
trabalhando a noção de que os beneficiários
zação do viés familista da interação entre Esta-
são atores inseridos em diversas dimensões de
do/mercado/família mantém-se como elemento
sociabilidade das redes sociais, questionamos
fundamental para compreensão da provisão de
os impactos dos vínculos sociais para a percep-
bem-estar no caso brasileiro.
ção de efetividade do PMCMV pelos moradores
Quando trazemos para análise a relação
do Residencial Jardim Cajazeiras. Como dimen-
entre os vínculos sociais, os processos de vulne-
são específica de sociabilidade, trouxemos para
rabilidade e a percepção de efetividade da po-
a discussão a categoria de arranjos familiares.
lítica pública é porque tais elementos, de fato,
A moradia por si é reconhecida como ele-
se relacionam na produção de uma urbanidade.
mento positivo gerador de maior estabilidade
No entanto, a solução dos conflitos percebidos
na vida dos beneficiários, tendo em vista a me-
nas falas dos entrevistados não se dará pelo
lhoria das condições estruturais e a valoração
fortalecimento do associativismo local, e nem
simbólica diferenciada entre habitação anterior
pela defesa de que o crescimento econômico,
ao benefício e a moradia pelo Programa. Vale
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Arranjos familiares de beneficiários do Programa Minha Casa Minha Vida
destacar que essa avaliação também é situa-
centrados na família constituem dimensão
cional, observada na realidade desse conjunto
fundamental da provisão de bem-estar para
habitacional, sendo possíveis outras avaliações
a população pobre, fenômeno potencializado
por parte de beneficiários que passaram por
pela tipificação familista característica do con-
processos diferenciados de benefício e pós-
texto brasileiro.
-ocupação. Para os fins deste trabalho, ganha
Assim, de maneira extremamente sintéti-
realce que a moradia pelo PMCMV trouxe
ca, a associação do benefício à exclusão do be-
consigo o fortalecimento de expectativas dos
neficiário em redes sociais de apoio e suporte
beneficiários de acesso a bens e serviços, e o
constituiu uma série plural e diversa de avalia-
não atendimento de expectativas relacionadas
ções negativas sobre a política pública, sendo
às condições de infraestrutura urbana do bairro
essa vista como um processo contraditório de
onde se localiza o conjunto habitacional mos-
melhorias materiais da moradia e fragilização
tra-se como elemento negativo na avaliação do
dos suportes relacionais centrados na família.
Programa. No entanto, tais problematizações
Do contrário, quando o benefício pelo Progra-
poderiam se limitar a tratar o beneficiário co-
ma está associado à inclusão dos beneficiários
mo atomizado da vida em sociedade, produzin-
em redes de suporte (algumas centradas nas
do percepções sobre a política pública basea-
relações institucionais e/ou informais no con-
do em cálculos utilitaristas de custo-benefício.
junto habitacional), ou à manutenção de redes
Como contraponto, apresentamos como eixo
existentes anteriores ao benefício, vemos uma
fundamental do trabalho a visão de que os be-
tendência a avaliações positivas dos beneficiá-
neficiários representam trajetórias distintas de
rios sobre os resultados da política pública. Pa-
benefício, através de características das condi-
ra nós, isso se fez presente porque a percepção
ções materiais (de renda e de habitação pós-
sobre os resultados da política relaciona-se à
-benefício) e de aspectos relacionais da vida
percepção dos beneficiários sobre o processo
urbana. Entender a percepção de efetividade
de vulnerabilidade que eles, de maneiras dis-
da política pública pelos beneficiários significa,
tintas, vivenciam no cotidiano. Argumentamos,
para nós, problematizar tais trajetórias.
pois, que os arranjos familiares constituem di-
Como demonstrado no corpo do traba-
mensão central de produção de percepções dos
lho, analisamos em nossa pesquisa dados que
beneficiários sobre os resultados da política
estabelecem a importância dos vínculos so-
pública, a partir das características das redes e
ciais para a produção de subjetividades sobre
das trajetórias dos atores (em relação ao mer-
a política pública. Em verdade, a percepção de
cado de trabalho, ao espaço urbano, etc.).
efetividade da política pública está inter-rela-
Argumentamos aqui que os nossos es-
cionada à produção de percepções sobre di-
forços convergiram em uma direção comum.
versas dimensões da vida em sociedade, e tais
Discutir sobre a percepção dos beneficiários
dimensões conformam distintos processos de
em relação aos resultados de uma política
vulnerabilidade dos beneficiários. Assumindo
pública de provisão de moradias significa, em
a centralidade da categoria dos arranjos fami-
nível mais geral, compreender a produção do
liares, apontamos que os suportes relacionais
espaço urbano que vivenciamos em nossas
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Vitor Matheus Oliveira de Menezes
cidades. Da mesma forma que o benefício pelo
Programa representa a melhoria de condições
materiais de moradia, também está associado
ao fortalecimento das expectativas dos benefi-
“sujeito da experiência” já plenamente constituído a quem as “experiências
acontecem”, a experiência é o lugar da
formação do sujeito.
ciários em relação aos serviços e infraestrutura
A produção de subjetividades sobre a po-
urbana. Além disso, o benefício constitui um
lítica pública e, assim, sobre a vida em socieda-
novo contexto social onde vão se desenrolar
de desenrola-se como uma experiência inserida
as diferentes dimensões de sociabilidade dos
no processo de vulnerabilidade dos beneficiá-
atores beneficiários. Compreender a pobreza
rios. A prática de atribuição de sentidos sobre
urbana perpassa, pois, a tentativa de trazer pa-
o benefício, tendo em vista as disputas por con-
ra a discussão a inter-relação entre condições
dições materiais e de significado referidas por
materiais e dimensões relacionais da vida nas
Brah (2006), se dá como constituição do bene-
cidades. A trajetória de benefício, contribuição
ficiário como ator social. As distintas configura-
analítica de nosso esforço, se mostra como
ções dos arranjos familiares após o benefício,
uma experiência social situacional, provocan-
e sua capacidade em prover bem-estar para os
do transformações na dimensão do habitar dos
beneficiários, se apresentaram como elemento
beneficiários e servindo de contexto (com suas
fundamental da experiência de acesso à polí-
possibilidades e constrangimentos específicos)
tica pública.
para as relações sociais dos moradores.
Dessa forma, entendemos que a aná-
Mas o que significa dizer que o benefício
lise das trajetórias de benefício mostrou-se
é uma experiência? Como apontado por Brah,
uma possibilidade profícua de estudo sobre o
2006, p. 360),
PMCMV, levando em conta a dimensão mate-
“experiência” é um processo de significação que é a condição mesma para a
constituição daquilo a que chamamos
“realidade”. Donde a necessidade de re-enfatizar uma noção de experiência não
como diretriz imediata para a “verdade”,
mas como uma prática de atribuir sentido, tanto simbólica como narrativamente:
como uma luta sobre condições materiais
e significado […] Contra a ideia de um
rial e simbólica da sociabilidade urbana e suas
interfaces, a partir dos arranjos familiares, com
a provisão de bem-estar. A nossa contribuição
se apresenta, então, como um estudo sobre a
política pública a partir da análise sociológica
dos arranjos familiares dos beneficiários, problematizando os distintos processos de vulnerabilidade vivenciados a partir da situação social de benefício.
Vitor Matheus Oliveira de Menezes
Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de
Pós-Gradua ção em Ciências Sociais. Salvador/ BA, Brasil
[email protected]
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Arranjos familiares de beneficiários do Programa Minha Casa Minha Vida
Nota
(*) Parte dos dados trabalhados no artigo foi publicada nos Anais do VI Encontro Nacional de
Sociologia e Polí ca.
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Texto recebido em 31/maio/2015
Texto aprovado em 13/dez/2015
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Eficácia social do Programa Minha
Casa Minha Vida: discussão conceitual
e reflexões a partir de um caso empírico*
Social effectiveness of the Minha Casa Minha Vida Program:
conceptual discussion and reflections based on an empirical case
Aline Werneck Barbosa Carvalho
Italo Itamar Caixeiro Stephan
Resumo
Este artigo visa contribuir para o debate sobre a
eficácia social de empreendimentos do Programa
Minha Casa Minha Vida em cidades de pequena dimensão populacional e territorial, mediante análise
dos conjuntos habitacionais implantados na cidade
de Viçosa-MG. Os procedimentos metodológicos
compreenderam levantamento de dados primários
na Secretaria Municipal de Políticas Sociais, aplicação de questionários e observação direta nos conjuntos habitacionais estudados, além de dados secundários disponibilizados por órgãos governamentais e de pesquisa. Esses dados foram analisados
com base nos indicadores de eficácia social elencados a partir da revisão de literatura. Concluiu-se pela ineficácia social dos empreendimentos,
sobretudo devido às condições de infraestrutura,
mobilidade urbana e acesso aos equipamentos de
saúde, educação e lazer, fatores responsáveis pela
segregação socioespacial dos residentes.
Abstract
This article aims to contribute to the debate on
the social effectiveness of developments of the
Minha Casa Minha Vida Program in small cities
by analyzing housing estates built in the city of
Viçosa (southeastern Brazil). The methodological
procedures included primary data collection in
the Municipal Department of Social Policies,
administration of questionnaires and direct
observation in the housing estates that were
studied, as well as the analysis of secondary data
provided by governmental and research agencies.
These data were analyzed based on social
effectiveness indicators listed from the literature
review. It was concluded that the developments
lack social effectiveness, mainly due to conditions
related to infrastructure, urban mobility and
access to health, education and leisure facilities,
factors that are responsible for the socio-spatial
segregation of residents.
Palavras-chave: política habitacional; política
habitacional brasileira; política habitacional em
pequenas cidades; habitação de interesse social;
Programa Minha Casa Minha Vida.
Keywords: housing policy; Brazilian housing
policy; housing policy in small cities; social
housing; Minha Casa Minha Vida Program.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 283-307, abr 2016
hƩp://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3513
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Aline Werneck Barbosa Carvalho, Italo Itamar Caixeiro Stephan
Introdução
A coleta de dados primários compreendeu o
levantamento das fichas de cadastramento dos
beneficiários do PMCMV arquivadas no Depar-
Este artigo tem como objetivo contribuir
tamento de Habitação da Secretaria de Políti-
para o debate sobre a eficácia social dos
cas Sociais do município de Viçosa, a aplicação
empreendimentos habitacionais construídos
de questionários e a observação direta do com-
por meio do Programa Minha Casa Minha Vi-
portamento dos moradores nos conjuntos ha-
da (PMCMV) em núcleos urbanos de pequena
bitacionais estudados, registrados por meio de
dimensão populacional e territorial, cujas dinâ-
levantamento fotográfico e anotações de cam-
micas urbanas – fundiárias e imobiliárias – são
po. A observação direta e o levantamento fo-
distintas daquelas próprias das grandes cidades
tográfico dos conjuntos foram feitos concomi-
e metrópoles.
tantemente à visita destinada à aplicação dos
Os processos decorrentes da implanta-
questionários. As visitas ocorreram nos meses
ção de conjuntos habitacionais do PMCMV
de junho a dezembro de 2014. Foram aplica-
nas grandes cidades têm sido objeto de estudo
dos 110 questionários abrangendo os três em-
na área das Ciências Sociais e, mais especifi-
preendimentos, o que correspondeu a um erro
camente, da Arquitetura e Urbanismo (Cardo-
amostral de 7,8% com 95% de nível de con-
so, 2013; Mendonça e Costa, 2011; Maricato,
fiança. Já os dados secundários se originaram
2011; Hirata, 2011; Valença e Bonates, 2010,
de pesquisa em documentos e dados oficiais
entre outros, além de numerosas teses e dis-
disponibilizados publicamente por órgãos go-
sertações sobre o tema). Entretanto, ainda falta
vernamentais e de pesquisa, como o Ministé-
uma visão abrangente dos resultados do Pro-
rio das Cidades, IBGE e Prefeitura Municipal de
grama nas demais unidades locais, que confor-
Viçosa. A coleta desses dados compreendeu o
mam o maior número e a maior extensão do
levantamento dos projetos arquitetônicos dos
território brasileiro. Referindo-se aos efeitos
empreendimentos no Instituto de Planejamen-
territoriais do PMCMV, Cardoso (2013, p. 15)
to Municipal – Iplam e consulta a relatórios e
assinala que “(...) há ainda muitos pontos a
outros documentos na Secretaria Municipal de
serem aprofundados e que certamente exigirão
Políticas Sociais. Por fim, os dados coletados fo-
maiores esforços de pesquisa e de reflexão”.
ram tabulados e analisados com base nos indi-
Com esse foco, procurou-se descrever os
empreendimentos do PMCMV implantados na
cadores de eficácia social elencados a partir da
revisão de literatura.
cidade de Viçosa-MG e o perfil da população
Com a finalidade de realizar uma refle-
neles residente, com a finalidade de estabele-
xão acerca dos resultados encontrados, este
cer relações entre as características físicas e a
artigo foi estruturado em duas grandes partes.
satisfação dos moradores, e compreender a efi-
Na primeira, empreendeu-se uma discussão
cácia social desse Programa no município.
conceitual sobre os dois principais temas que
Para tanto, foi realizada pesquisa descri-
fundamentam a posterior análise empírica: os
tiva, com abordagem qualitativa e quantitati-
impactos do Programa Minha Casa Minha Vi-
va, apoiada em dados primários e secundários.
da apontados pela literatura e o conceito de
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Eficácia social do Programa Minha Casa Minha Vida
eficácia social, importante indicador utilizado
Assim, no final do governo Fernando
na avaliação de políticas públicas. Na segunda
Henrique Cardoso (1995-2002) e no primei-
parte, realizou-se uma reflexão acerca da efi-
ro governo do ex-presidente Luís Inácio Lula
cácia social do Programa nos três empreendi-
da Silva (2003-2006), foi se configurando um
mentos que constituem o objeto empírico deste
contexto favorável à participação do setor pri-
artigo: os conjuntos Benjamin José Cardoso,
vado na promoção habitacional. A estabilidade
César Santana Filho e Floresta.
macroeconômica do país a partir do final da
década de 1990, com o Plano Real, e as novas
orientações na política econômica a partir do
Discussão conceitual
governo Lula, devido especialmente à redução
das taxas de juros, alteraram o interesse dos investidores e de agentes financeiros em relação
O PMCMV no contexto
da política habitacional brasileira
à construção civil e ao mercado imobiliário.
No âmbito da habitação de interesse social, em 2003, já no governo do ex-presidente
O Programa Minha Casa Minha Vida deve ser
Lula, começaram a ser implementadas mu-
compreendido num contexto mais amplo, eco-
danças no quadro geral que caracterizava a
nômico e político, que caracteriza a política ha-
situação institucional da política habitacional.
bitacional brasileira e o cenário internacional a
Criou-se o Ministério das Cidades, que passou
partir da década de 1990.
a ser o órgão responsável pela Política de De-
Do ponto de vista da habitação de
senvolvimento Urbano e pela Política de Ha-
interesse social, o período que se estende de
bitação, ampliando-se os investimentos nos
1988 – quando entra em vigor a atual Cons-
setores da habitação e adequando-se os pro-
tituição Federal – até 2003, quando se cria o
gramas existentes às características do déficit
Ministério das Cidades, é marcado pelo vazio
habitacional e de infraestrutura urbana.
deixado pela extinção do Banco Nacional de
O período que se seguiu à criação do Mi-
Habitação – BNH e pela ausência de uma es-
nistério das Cidades foi marcado pela retomada
trutura de âmbito federal organizada para a
do planejamento estatal no setor habitacional e
condução das políticas urbana e habitacional.
urbano, bem como pelo aumento do volume de
Em meados da década de 1990, sob forte
recursos e subsídios para a habitação de inte-
influência das políticas de recorte neoliberal,
resse social (Denaldi, 2012; Buonfiglio e Bastos,
inicia-se um processo de estímulo ao merca-
2011). Em 2004 aprovou-se a Política Nacional
do imobiliário para a produção de moradias
de Habitação e o Sistema Nacional de Habitação
voltadas para as classes média e média-alta,
(SNH) e, em 2005, o Sistema Nacional de Habi-
mediante a aprovação de importantes marcos
tação de Interesse Social (SNHIS) e o Fundo Na-
institucionais e de instrumentos financeiros, ca-
cional de Habitação de Interesse Social (FNHIS),
pazes de garantir a segurança de investidores
com o objetivo de garantir que os recursos públi-
no setor habitacional (Shimbo, 2011; Cardoso e
cos sejam destinados exclusivamente a subsidiar
Aragão, 2011).
a população de mais baixa renda (Brasil, 2005).
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Concomitantemente, a partir de 2004,
Apesar de ser criado como medida an-
foram criadas várias medidas com o objetivo
ticíclica para fazer frente à crise econômica,
de dar segurança jurídica e econômica ao mer-
o PMCMV representou uma política social de
cado privado de imóveis e estimular o setor
grande escala, que estimulou a criação de em-
da construção civil. Nessa época teve origem
pregos e de investimentos no setor da constru-
um processo de financeirização imobiliária,
ção civil, atendendo à demanda habitacional
mediante a abertura do capital de empresas
de baixa renda que o mercado por si só não
de construção civil na Bolsa de Valores. Essas
alcançava até então (Arantes e Fix, 2009; Hira-
empresas lastrearam seus papéis em estoque
ta, 2011; Klintowitz, 2011).
de terras e lançamentos imobiliários, obtendo
vultosos lucros.
Amplamente implementado a partir do
ano de 2010, a meta inicial do PMCMV era
Entretanto, esse contexto é alterado
a construção de 1 milhão de moradias na
pela crise econômica mundial que se inicia
área urbana, sendo 400 mil destinadas a be-
nos Estados Unidos em 2008. Diante do no-
neficiários com renda familiar até 3 salários
vo quadro, o governo brasileiro decide adotar
mínimos, para a qual está previsto subsídio
medidas de expansão de crédito e apoio aos
integral, e o restante para famílias inseridas
setores que se encontravam em dificuldades,
em duas faixas de renda (3 a 6 e 6 a 10 sa-
dentre eles o setor imobiliário. Para continuar
lários mínimos), correspondendo a cada uma
expandindo o mercado habitacional, lança o
delas um tipo de modalidade de financia-
Programa Minha Casa Minha Vida – PMCMV
mento de produção da habitação. Lançada
(Cardoso e Aragão, 2011).
a segunda versão do Programa, pela Lei n.
Instituído pela Lei n. 11.977, de 7 de ju-
12.1214/2011, estabeleceu-se como nova me-
lho de 2009, o PMCMV constitui, atualmente,
ta a construção de 2 milhões de moradias na
o principal programa habitacional do governo
área urbana, até 2014.
federal, cujo objetivo consiste na construção
Na primeira fase do Programa, que cor-
maciça de moradias visando à melhoria do sis-
responde aos anos de 2009 e 2010, foram
tema habitacional para a população de baixa e
contratadas 1,005 milhão de moradias. Já na
média renda. No âmbito do PMCMV estão pre-
segunda fase, que começou em 2011, foram
vistos dois subprogramas: o PNHU – Programa
contratadas 2,385 milhões de unidades. Os
Nacional de Habitação Urbana e o PNHR – Pro-
dados referentes ao programa em julho de
grama Nacional de Habitação Rural. O PNHU
2013 eram da ordem de 3.012.848 unidades
“tem por objetivo promover a produção ou
contratadas e, até julho de 2014, o Governo
aquisição de novas unidades habitacionais ou
Federal havia entregue 1,7 milhão de mora-
a requalificação de imóveis urbanos” (Art. 4º,
dias, beneficiando 6,4 milhões de pessoas
Lei n. 12.124/2011), enquanto cabe ao PNHR
e totalizando um investimento de R$361,6
“subsidiar a produção ou reforma de imóveis
bilhões,1 dos quais 60% voltaram-se para a
aos agricultores familiares e trabalhadores ru-
menor faixa de renda, o que indica o direcio-
rais (...)” (Art. 11, Lei n. 12.124/2011), nas pro-
namento do programa para a população de
priedades rurais, posses e agrovilas.
menor poder aquisitivo.
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Eficácia social do Programa Minha Casa Minha Vida
A despeito desses vultosos resultados quantitativos, vários pesquisadores têm
O conceito de eficácia social
de uma política urbana
apontado a má qualidade da produção habitacional do Programa, bem como a localização
A implantação da habitação de interesse social
periférica dos empreendimentos, ditada na
sem a devida preocupação com o meio é uma
maioria das vezes por interesses especulativos
tendência no cenário das cidades brasileiras,
do mercado de terras (Maricato, 2012; Rolnik
cujo resultado é a exclusão da camada de baixa
e Klink, 2011; Penalva e Duarte, 2010; Hirata,
renda dos locais privilegiados na cidade, devido
2009; Bonduki, 2009).
ao interesse privado. A literatura na área de Ar-
Autores como Shimbo (2011), Cardoso
quitetura, Urbanismo e Planejamento Urbano
e Aragão (2011) e Valença e Bonates (2010)
mostram que se torna cada vez mais comum a
apontam que a política habitacional no Brasil,
construção de conjuntos habitacionais afasta-
a partir dos anos 1990, tem procurado conso-
dos desses locais e, em muitos casos, distantes
lidar instrumentos financeiros alinhados com
de equipamentos e serviços coletivos e de uso
os mercados globais, reestruturando a maneira
social, o que gera desperdícios.
de os interesses privados operarem no sistema,
Os efeitos sociais e territoriais das políti-
entretanto têm fracassado em relação aos re-
cas habitacionais podem ser medidos a partir
sultados sociais.
de metodologias de avaliação de políticas so-
Ao mesmo tempo em que se assiste a um
ciais. A avaliação é um instrumento central e
salto qualitativo na forma de gerir o tema mo-
indispensável para a compreensão do sucesso
radia a partir da criação do Ministério das Ci-
e do fracasso das políticas públicas, constituin-
dades e de instrumentos como a Política Nacio-
do-se como importante ferramenta de gestão
nal de Habitação, o SNHIS e o FNHIS, do ponto
(Marinho e Façanha, 2001, p. 1).
de vista da produção de cidade, vários estudos
Referindo-se à avaliação de políticas e
têm demonstrado a permanência dos mesmos
programas sociais, Cotta (1998, p. 107) res-
cenários urbanos e efeitos socioespaciais, onde
salta que “(…) a avaliação desempenha um
a periferia absorve a moradia popular advinda
papel central no esforço de racionalização
do PMCMV, em regiões desprovidas de infraes-
dos programas e projetos sociais. A ausência
trutura e serviços urbanos adequados (Silva e
de controles e de metodologias de avaliação
Silva, 2013; Maricato, 2009).
geralmente leva a um gasto social ineficien-
Entretanto, a maioria desses estudos
volta-se para as metrópoles e cidades médias,
recursos disponíveis”.
enquanto pouco tem sido investigado sobre a
A avaliação pode ocorrer em todas as
eficácia social do PMCMV nas pequenas cida-
fases do ciclo de desenvolvimento de uma po-
des, que constituem a grande maioria das uni-
lítica (policy cicle): fase de formulação, imple-
dades locais no Brasil.2
mentação e controle dos impactos. Essa última
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te e, consequentemente, ao desperdício dos
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Aline Werneck Barbosa Carvalho, Italo Itamar Caixeiro Stephan
fase “(...) é imprescindível para o desenvolvi-
Para os autores acima citados, os progra-
mento e a adaptação contínua das formas e
mas sociais devem ser avaliados por critérios
instrumentos de ação pública”. Nela se “(...)
de eficácia, “uma vez que, esperadamente, os
apreciam os programas já implementados no
investimentos que mobilizam devem produzir
que diz respeito aos seus impactos efetivos. In-
os efeitos desejados” (ibid., p. 7).
vestigam-se os déficits de impacto e os efeitos
Essa posição é corroborada por outros
colaterais indesejados para poder extrair con-
autores. Jannuzzi (2002) considera que na
sequências para ações e programas futuros”
avaliação dos programas implementados, os
(Trevisan e Van Bellen, 2008, p. 531). Nela se
resultados devem ser aferidos através de “in-
apreciam os impactos efetivos dos programas
dicadores-produto” de diferentes tipos, “para
já implementados, investigando-se “(...) os
medir a eficácia no cumprimento das metas
déficits de impacto e os efeitos colaterais inde-
específicas e a efetividade social das soluções
sejados para poder extrair consequências para
sugeridas” (p. 61). Trevisan e Van Bellen (2008)
ações e programas futuros” (ibid, p. 531).
também sugerem o uso do indicador de eficá-
Conforme Carvalho (2003, p. 186), a ava-
cia nas avaliações posteriores à implementação
liação de impacto “é aquela que focaliza os
de programas (avaliação ex-post ou somativa),
efeitos ou impactos produzidos sobre a socie-
que visam trabalhar com impactos e processos.
dade e, portanto, para além dos beneficiários
De modo geral, a eficácia é utilizada como cri-
diretos da intervenção pública, avaliando-se
tério para avaliar o alcance dos objetivos e me-
sua efetividade social”.
tas das políticas ou programas, representando,
Embora não haja consenso quanto aos
como ressalta Chiechelski (2005, p. 4), “uma
aspectos metodológicos e conceituais da ava-
medida de aproximação ou distanciamento en-
liação de políticas, a literatura especializada
tre os objetivos/metas previstos e os resultados
costuma propor a avaliação de políticas e pro-
efetivamente praticados”.
gramas em termos de sua eficácia, eficiência e
3
Para Fagundes e Moura (2009, p. 99), a
efetividade (Trevisan e Van Bellen, 2008; Mon-
avaliação de eficácia é entendida como “uma
teiro, 2002; Jannuzzi, 2002; Marinho e Façanha,
avaliação da relação entre os objetivos e ins-
2001; Aguillar e Ander-Egg, 1994).
trumentos explícitos de um dado programa”,
Segundo Marinho e Façanha (2001, p. 2),
porém, isso “não significa apenas aferir o al-
“(...) a efetividade diz respeito à capacidade
cance das metas propostas por um programa
de se promover resultados pretendidos; a efi-
ou política”, mas também avaliar os efeitos in-
ciência denotaria competência para se produzir
diretos resultantes da intervenção, sejam eles
resultados com dispêndio mínimo de recursos
relacionados ou contrários à intencionalidade
e esforços; e a eficácia, por sua vez, remete
da ação.
a condições controladas e a resultados dese-
Nessa mesma linha, Monteiro (2002, p. 2)
jados de experimentos (...)”. A escolha desses
aponta que “(...) a análise de impacto vai se
critérios depende do que se deseja privilegiar
interessar pelas consequências, previstas ou
na avaliação.
imprevistas, que um determinado programa de
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Eficácia social do Programa Minha Casa Minha Vida
governo poderá ter sobre um grupo social”. O
acompanhamento dos projetos da política de
foco no impacto da ação governamental leva o
habitação popular; o padrão das casas do con-
avaliador ao contato da realidade social “para
junto habitacional em relação ao padrão das
investigar em que medida aquela realidade so-
residências ocupadas anteriormente pelas fa-
freu alguma efetiva mudança” (p. 2). Citando
mílias; o padrão das residências circunvizinhas
Mohr (1995, p. 4), o autor completa dizendo
e das residências das demais localidades/bair-
que “o impacto de um programa pode ser en-
ros do município; a distância entre o conjunto
tendido como o resultado de uma comparação
habitacional e os locais de trabalho dos seus
entre aquilo que ocorreu após a implementa-
moradores; o padrão de infraestrutura (água,
ção do programa e aquilo que teria acontecido
esgoto, luz, drenagem, pavimentação e arbo-
se o programa não tivesse sido implementa-
rização) do conjunto habitacional em relação
do”. Dessa forma, seria possível identificar “se
ao padrão de infraestrutura na localidade de
os indivíduos estão em melhor situação por
residência anterior das famílias; a existên-
causa desta atividade governamental do que
cia de equipamentos e serviços coletivos, no
estariam sem ela” (Monteiro, 2002, p. 2).
espaço do conjunto habitacional ou nas suas
Essa perspectiva de comparação entre
imediações, comparado com o que existia nos
uma situação anterior e posterior à implan-
bairros onde sua população residia anterior-
tação de uma política é também considerada
mente; as condições socioeconômicas dos mo-
por Marinho e Façanha (2001) e Ramos e Sá
radores antes e depois da ocupação do con-
(2002). Referindo-se especificamente à ava-
junto habitacional; e, por fim, a satisfação dos
liação de políticas urbanas e habitacionais,
moradores quanto às condições da moradia
Ramos e Sá (2002) consideram que a mensu-
em seu conjunto, em relação às quais estavam
ração do grau de eficácia social associa-se a
anteriormente submetidos (Ramos e Sá, 2002,
“variáveis que caracterizam a estrutura pro-
pp. 164-167). Portanto, a medida da eficácia
dutiva do território municipal, em particular
social vai indicar se a condição existente no
à localidade onde o conjunto está situado, e
conjunto habitacional é melhor, pior ou seme-
à sua posição em comparação com as demais
lhante àquela vivenciada pelo beneficiário no
áreas do município e com a área onde sua po-
seu bairro de origem.
pulação anteriormente se fixara” (p. 164). A
Por sua afinidade com os critérios de
partir desse conceito, a avaliação do grau de
avaliação anteriormente expostos e por sua
eficácia social deve abranger um amplo con-
aderência à questão específica da habitação de
junto de variáveis, dentre elas: a classe-alvo
interesse social, optou-se por adotar o critério
da política (população atendida, segundo os
comparativo proposto por Ramos e Sá (2002)
níveis de renda, escolaridade, emprego e pro-
para a avaliação da eficácia social da implanta-
cedência); o conteúdo, grau de formalização e
ção do PMCMV em Viçosa.
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Aline Werneck Barbosa Carvalho, Italo Itamar Caixeiro Stephan
acelerado de verticalização no Centro da cida-
Reflexões a partir
de um caso empírico
de (Paula, 2013). Embora o município disponha de Plano Diretor e legislação urbanística
atualizada de controle do uso e ocupação do
O Programa Minha Casa
Minha Vida em Viçosa
solo,5 a falta de atuação mais decisiva do poder público municipal sobre o mercado imobiliário tem resultado num padrão de ocupação
O município de Viçosa localiza-se na Zona da
2
que concentra a população mais abastada nas
Mata mineira. Ocupa área de 300,15 km e tem
áreas centrais e servidas por infraestrutura, en-
72.220 habitantes, sendo 56.445 residentes na
quanto os bairros destinados à população de
área urbana, o que representava 78,17% da
menor renda crescem em direção às encostas,
população, em 2010 (IBGE, 2010). Entretanto,
ocupando áreas de relevo muito acidentado ou
4
a população flutuante, constituída principal-
em direção às porções mais distantes da man-
mente por estudantes, imprime à cidade uma
cha urbana.
dinâmica imobiliária que a distingue das demais cidades de mesmo porte populacional.
Dados da Fundação João Pinheiro, referentes ao ano 2010, indicaram um déficit
A economia local gira em torno das ati-
habitacional básico de 2.023 unidades, cor-
vidades da Universidade Federal de Viçosa e
respondendo a 8,9% do total de domicílios
de outras universidades e faculdades implan-
do município, dos quais 1.339 conformam o
tadas no município, e, consequentemente, das
déficit habitacional na faixa de renda até três
demandas, necessidades, padrão financeiro,
salários mínimos, ou seja, 66,18% do déficit to-
hábitos e gostos dos estudantes, professores e
tal. A maior porcentagem do déficit (46,05%)
funcionários universitários. Impulsionada prin-
corresponde a domicílios com ônus excessivo
cipalmente pelo mercado imobiliário e pelo
de aluguel, 43,51% à situação de coabitação
setor de serviços, a cidade enfrenta uma série
familiar e apenas 5,54% corresponde a domi-
de problemas, como a especulação imobiliária,
cílios precários. Um montante de 2.339 domi-
que reorganiza a distribuição da população e
cílios urbanos tem algum tipo de inadequação
reconfigura a paisagem urbana, e a desigual-
habitacional: 1.347 (57,6%) não têm rede de
dade social, expressa nas características morfo-
esgotamento sanitário, 817 (34,9%) não têm
lógicas dos bairros periféricos e de suas tipolo-
rede de abastecimento de água e 317 (13,5%)
gias habitacionais.
não descartam o lixo corretamente (Fundação
A partir da década de 1970, a cidade
João Pinheiro, 2013).
passou por um processo de rápida urbanização,
Apesar desse quadro, pode-se dizer que
motivado principalmente pela expansão das
a produção de moradia para a população de
atividades da Universidade Federal de Viçosa.
baixa renda foi inserida na agenda das políti-
A elevada demanda por moradia estudantil e
cas públicas em Viçosa apenas a partir de 2010,
a oferta limitada de terrenos na zona central
com a contratação de unidades habitacionais
têm estimulado a especulação imobiliária, que
pelo PMCMV. Antes disso, houve algumas
eleva os preços dos lotes e produz um processo
ações esporádicas, provenientes de iniciativas
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Eficácia social do Programa Minha Casa Minha Vida
isoladas da administração municipal ou de en-
Benjamin José Cardoso e conta com 123 ca-
tidades da sociedade civil organizada.
sas, localizadas em lotes de 10m x 15m (Figu-
A partir da aprovação do Plano Diretor,
Como se pode observar, são empreendi-
tação em Viçosa ficou a cargo de três órgãos
mentos de reduzidas dimensões, com um pe-
municipais: a Secretaria de Assistência Social,
queno número de unidades habitacionais. As
cujo Departamento de Habitação e Urbanismo
casas e apartamentos têm em média 39 m2 e
é responsável por gerenciar o PMCMV ou ou-
têm sala, dois quartos, banheiro, área de ser-
tros programas habitacionais; o Conselho Ges-
viço e cozinha. O padrão construtivo e de aca-
tor do Fundo de Habitação de Interesse Social
bamento segue rigorosamente o prescrito pelas
(CGHIS), a quem cabe o estabelecimento de di-
especificações do Programa, sendo construídos
retrizes e critérios para a priorização de linhas
em alvenaria estrutural.
de ação e alocação de recursos do Fundo de
Os conjuntos Benjamin José Cardoso e
Habitação de Interesse Social (FHIS); e o Insti-
César Santana Filho localizam-se a cerca de 1,5
tuto de Planejamento Municipal (Iplam), encar-
km do centro da cidade, porém o relevo muito
regado da elaboração e execução da política
acidentado e as más condições de infraestru-
urbana do município e de sua articulação com
tura da via de acesso (calçamento em pé de
a política habitacional.
moleque e falta de calçadas) dificultam a aces-
No período compreendido entre 2011 e
sibilidade dos pedestres e do transporte cole-
2014, foram implantados três conjuntos ha-
tivo. O acesso principal é feito, então, por um
bitacionais do PMCMV para atender a popu-
caminho alternativo, que amplia a distância e
lação com renda inferior a três salários míni-
o tempo de percurso, além das condições pre-
mos: Benjamim José Cardoso, César Santana
cárias de um trecho da via principal próxima
Filho e Floresta.
aos empreendimentos, que não tem calçamen-
O conjunto Benjamim José Cardoso (co-
to, calçadas, nem iluminação pública. A falta
nhecido como “Coelha”) foi o primeiro em-
desses recursos é grave, principalmente em
preendimento do PCMV construído na cidade.
períodos de chuva, pois impossibilita o tráfe-
Entregue em setembro de 2011, localiza-se
go do ônibus escolar, que é responsável pelo
próximo ao Bairro Santa Clara e tem 132 uni-
transporte de crianças e adolescentes até as
dades habitacionais unifamiliares implantadas
instituições de ensino. Nas suas proximidades
em lotes de 10m x 13m. Os outros dois con-
não há equipamentos urbanos como escolas,
juntos foram concluídos e entregues em 2012.
creches e estabelecimentos de atendimento
O conjunto habitacional Floresta é um condo-
básico à saúde (Unidade Básica de Saúde), e
mínio vertical, constituído por 80 unidades
o comércio restringe-se a um bar. O serviço
habitacionais reunidas em cinco edifícios de
de Correio foi recentemente instalado, mas os
quatro pavimentos.O conjunto César Santana
moradores reclamam que não há telefone pú-
Filho (também chamado de Sol Nascente) foi
blico nem telefonia fixa, o sinal de telefone ce-
o terceiro empreendimento entregue à popu-
lular é fraco e irregular, os horários de ônibus
lação; está localizado a 500m do Conjunto
são insuficientes e a principal via de acesso aos
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ras 1 e 2).
em 2000, o gerenciamento do setor de habi-
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Figura 1 – Localização dos habitacionais Benjamin José Cardoso (Coelha),
César Santana Filho (Sol Nascente) e Floresta
Viçosa, MG, 2011
Legenda
1) Conjunto Habitacional Floresta
(1)
2) Conjunto Habitacional
Sol Nascente
3) Conjunto Habitacional
Benjamim José Cardoso
Logradouros
(2)
(3)
Fonte: Acervo dos pesquisadores.
Figura 2 – Vista dos conjuntos habitacionais: a) Benjamin José Cardoso;
b) Floresta. Viçosa; c) César Santana Filho
Viçosa, MG, 2011
Fonte: Acervo dos pesquisadores.
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Eficácia social do Programa Minha Casa Minha Vida
conjuntos residenciais ainda não foi pavimen-
município deixou de exercer um importante pa-
tada. A mesma situação de relevo acidentado
pel na localização dos conjuntos habitacionais,
repete-se no Condomínio Floresta, embora as
que foram construídos em áreas mal servidas
condições de acessibilidade sejam melhores e
por equipamentos urbanos comunitários, so-
haja equipamentos sociais e estabelecimentos
bretudo nos conjuntos Benjamin José Cardoso
comerciais nas suas proximidades.
e César Santana Filho.
Os três conjuntos foram produzidos por
empresas locais, de pequeno porte, que se encarregaram de todo o processo de provisão habitacional, desde a escolha e compra do terre-
A eficácia social do Programa Minha
Casa Minha Vida em Viçosa
no até a incorporação e construção das unidades, cabendo ainda às empresas a correção de
Adotando como referência o método de avalia-
eventuais problemas construtivos, pelo prazo
ção da eficácia social proposto por Ramos e Sá
de cinco anos.
(2002), foram analisadas variáveis que caracte-
Ao poder público municipal couberam
rizam a localidade onde o conjunto habitacio-
a realização do cadastro dos interessados e a
nal está situado em comparação com a área
organização dos documentos para serem en-
onde sua população anteriormente se fixara.
viados à Caixa Econômica Federal, visando à
Os resultados da avaliação foram obtidos a
seleção final dos beneficiários, o que foi feito
partir de dados obtidos na Secretaria Municipal
no âmbito do Departamento de Habitação da
de Políticas Sociais, dos questionários aplicados
Secretaria Municipal de Políticas Sociais. Tam-
aos moradores e da observação direta realiza-
bém ficaram a cargo do município a aprovação
da nos três conjuntos habitacionais.
dos projetos e a contrapartida exigida pelo Pro-
As variáveis utilizadas para a avalia-
grama, que se deu sob a forma de implantação
ção do Programa foram agrupadas em cinco
da infraestrutura de serviços urbanos nas vias
dimensões, quais sejam: focalização do em-
de acesso aos empreendimentos, já que o mu-
preendimento, interação social, segregação
nicípio não tem banco de terras.
social, segregação espacial e satisfação com
A construção dos empreendimentos ocor-
a moradia.
reu durante o processo de elaboração do Plano
Local de Interesse Social (PLHIS), deslocando o
a) Focalização do Programa
foco das discussões em torno da implantação
Essa dimensão refere-se ao público-alvo da
de um processo permanente de planejamento
política e visa avaliar se os empreendimentos
habitacional no município. O Conselho Muni-
atendem à classe social para o qual o Progra-
cipal de Habitação de Interesse Social (CGHIS)
ma foi implantado. As principais características
teve papel secundário no processo, responsabi-
sociais e econômicas das famílias residentes
lizando-se apenas pela elaboração de critérios
nos três conjuntos habitacionais foram sinteti-
para seleção dos beneficiários. Assim sendo, o
zadas na Tabela 1.
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Aline Werneck Barbosa Carvalho, Italo Itamar Caixeiro Stephan
Tabela 1 – Perfil socioeconômico das famílias residentes nos conjuntos
habitacionais Benjamin José Cardoso (BJC), César Santana Filho (CSF) e Floresta
Viçosa-MG (2014)
Caracterização das famílias
BJC
%
CSF
%
Floresta
%
Sexo do proprietário
Feminino
91,3
78,9
81,3
Faixa etária dos
proprietários
17 (emancipado)
18 a 20 anos
20 a 45 anos
> 45 anos
0
1,6
72,4
26,0
0,8
4,1
71,5
23,6
0
3,8
72,5
23,7
Estado civil
dos proprietários
Casado + união estável
Solteiro
33,4
46,8
25,2
41,4
42,5
30,0
Número de filhos
Até 3 filhos
4 e 5 filhos
6 filhos ou mais
76,5
18,5
5,0
75,7
17,4
6,9
76,0
17,7
6,3
Família com pessoas
com deficiência
Geral
Usuário de cadeira de rodas
2,4
0,8
9,8
0,8
10,0
0,0
Renda familiar
Até 3 SM
Até 1 SM
100,0
66,9
100,0
63,4
100,0
63,8
Benefício do governo
Sim
62,7
59,4
63,8
Condições de propriedade
da moradia anterior*
Imóvel alugado
Imóvel cedido/coabitação
Barraco/cortiço
Próprio
Imóvel em área de risco pela Defesa Civil
66,9
32,3
0
0,8
0,8
56,9
37,4
3,3
0
2,4
66,2
28,8
3,7
0
1,3
* Obs.: Existem imóveis alugados e/ou em coabitação que estão em área de risco.
Fonte: Resultados da pesquisa.
Os beneficiários dos três conjuntos habi-
conjuntos habitacionais Benjamin José Cardoso
tacionais têm características sociais bastante
e César Santana Filho. A maior parte tem no
semelhantes. A maioria dos proprietários são
máximo tem filhos, o que é um indicativo de
mulheres, conforme recomendado pelas diretri-
predominância de famílias pequenas ou mé-
zes do PMCMV, e constituem-se como famílias
dias. Esse resultado poderia justificar, de certa
jovens (cujos chefes têm entre 20 e 45 anos),
forma, a existência de apenas dois quartos nas
o que sugere que ainda podem ter um longo
residências, porém a construção de mais um
tempo de moradia no conjunto, podendo vir a
quarto sobressaiu nas entrevistas como um dos
constituir futuros laços de solidariedade com
principais desejos de reforma dos moradores
os vizinhos e sentimentos de pertencimento ao
nos conjuntos Benjamin José Cardoso e César
lugar. Também chama atenção o significativo
Santana Filho. Outro resultado importante, em-
percentual de famílias cujos chefes são soltei-
bora o percentual seja pequeno, é a existência
ros, superando o percentual de formatos fami-
de famílias com seis filhos ou mais, pois isso
liares nucleares (casados + união estável) nos
representa mais de três pessoas por dormitório,
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Eficácia social do Programa Minha Casa Minha Vida
caracterizando inadequação habitacional por
conjuntos habitacionais investigados. Mais do
adensamento, dado importante diante da ava-
que isso, chama a atenção o elevado percentual
liação da eficácia social do programa. Embora
de beneficiários cuja renda familiar não excede
também seja pequeno o número de pessoas
1 salário mínimo e que recebem benefício do
com deficiência, deveria ter sido previsto um
governo, na maioria das vezes na forma do Pro-
percentual de unidades adaptadas a pessoas
grama Bolsa Família.
com necessidades especiais.
Esses resultados indicam a clara focaliza-
Antes de se mudar para os conjuntos ha-
ção do Programa no município.
bitacionais, a maioria das famílias residia em
imóveis alugados, sobressaindo também o per-
b) Interação social
centual de moradores do conjunto César Santa-
A interação social foi avaliada a partir dos se-
na Filho que viviam anteriormente em condição
guintes indicadores: relação com os vizinhos
de coabitação.
do conjunto habitacional e do entorno, espaço
Por fim, todos os beneficiários perce-
de convívio e espaços de lazer para as crianças
bem no máximo 3 salários mínimos, nos três
(Tabela 2).
Tabela 2 – Percepção dos moradores dos conjuntos habitacionais
Benjamin José Cardoso (BJC), César Santana Filho (CSF) e Floresta
quanto à interação social no conjunto e no bairro anterior
Viçosa, MG, 2014
BJC – %
Interação social
CSF – %
Floresta – %
Conjunto
Bairro
anterior
Conjunto
Bairro
anterior
Conjunto
Bairro
anterior
Bom / ótimo
40
72
50
63
67
80
Regular
45
18
43
30
27
13
Péssimo / não tem
15
10
7
7
6
7
Bom / ótimo
68
60
42
52
67
67
Regular
20
23
28
23
10
6
Péssimo / não tem
12
17
30
25
23
27
Bom
17
62
26
62
45
30
Ruim / não tem
83
38
74
38
55
70
Espaços de lazer
Bom
15
52
40
35
31
38
para as crianças
Ruim / não tem
85
48
60
65
69
62
Relação com os vizinhos
Relação com os moradores
dos bairros vizinhos
Espaços de convívio
Fonte: Resultados da pesquisa.
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As relações dos moradores com vizinhos
várias regiões e bairros de Viçosa, o que de-
nos próprios conjuntos foram bem avaliadas
mandará maior tempo para a constituição de
pela maioria dos entrevistados, o que não sig-
laços afetivos e de relações de pertencimento
nifica que não existam conflitos entre eles. Por
ao lugar.
outro lado, as relações entre vizinhos eram me-
As relações de sociabilidade entre os mo-
lhores nos bairros anteriores do que as estabe-
radores podem ser construídas ou fortalecidas
lecidas no conjunto. Para isso podem concorrer
pelos encontros em locais de lazer das crianças
vários fatores, dentre eles o pequeno tempo de
ou de convívio dos adultos. Entretanto, esses
moradia no local. Os moradores do conjunto
espaços foram considerados como “ruins” ou
Benjamin José Cardoso são os que estão me-
“inexistentes” pela maioria dos entrevistados,
nos satisfeitos com a interação com os vizinhos
nos três conjuntos habitacionais. A situação
no próprio conjunto e que apontam maior dis-
dos espaços de convívio nos bairros de origem
crepância com as interações estabelecidas nos
é um pouco melhor do que nos conjuntos, ex-
bairros de origem.
ceto no caso do Conjunto Floresta, provavel-
Por sua vez, as relações com os mora-
mente devido à existência de dois salões para
dores dos bairros vizinhos ao conjunto habi-
festas ou reuniões no condomínio. Já os espa-
tacional foram consideradas como “boas” ou
ços de lazer para crianças são tão ruins nos
“ótimas” tanto na atual situação de moradia
bairros de origem quanto nos conjuntos, exceto
quanto na anterior, com exceção dos morado-
no caso do conjunto Benjamin José Cardoso,
res do conjunto César Santana Filho. O bom
onde sobressai a precariedade desse tipo de es-
relacionamento apontado pelos moradores
paço. Estes resultados apontam para a falta de
talvez possa ser atribuído ao fato de muitos
espaços que propiciem maior interação social
serem oriundos de bairros não muito distantes
dos moradores.
do conjunto habitacional.
Esses resultados apontam para a fragili-
c) Segregação social
dade dos laços sociais estabelecidos nos con-
Nessa dimensão analisaram-se três variáveis
juntos habitacionais até o momento, mas não
que interferem na inserção social das famílias
permitem outras inferências, já que o tempo
residentes nos conjuntos habitacionais: bairro
de moradia nos conjuntos é muito pequeno
de origem, profissão do chefe da família e es-
e as pessoas residentes são originárias de
colaridade (Tabela 3).
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Eficácia social do Programa Minha Casa Minha Vida
Tabela 3 – Síntese de indicadores sociais das famílias residentes
nos conjuntos habitacionais Benjamin José Cardoso (BJC),
César Santana Filho (CSF) e Floresta
Viçosa, MG, 2014
Segregação social
Bairro de origem*
Escolaridade**
CSF – %
Floresta – %
Nova Viçosa
15,1
–
Santa Clara
11,1
19,5
–
–
10,8
13,8
Santo Antônio
Zona rural
Profissão do chefe de família*
BJC – %
–
1,6
4,9
–
Diarista + Doméstica
55,3
36,9
45,3
Do lar
11,4
15,6
16,9
Outras profissões
33,3
47,5
37,8
Ensino Fundamental
64,1
65,6
60,8
Obs.: * Foram incluídos os bairros e as profissões com percentual maior ou igual a 10%.
** Foi incluído o item de maior ocorrência.
Fonte: Resultados da pesquisa.
Os indicadores de endereço (local de mo-
vindas do Bairro Santa Clara – o restante dos
radia), profissão e escolaridade são represen-
moradores dos “Predinhos dos Araújos” – e
tativos da vulnerabilidade social das famílias
do Bairro Santo Antônio, considerado bairro de
residentes nos conjuntos habitacionais. O en-
renda média-baixa. No condomínio Floresta,
dereço carrega consigo o estigma da localiza-
grande parte das famílias também veio do Bair-
ção no espaço urbano, na medida em que o es-
ro Santo Antônio.
paço físico expressa a realidade social dos seus
Conclui-se, inicialmente, que as pessoas
moradores. Os dados referentes aos bairros de
que residem nos conjuntos habitacionais têm
origem dos moradores dos conjuntos habita-
origens diferentes e, portanto, podem ser
cionais indicaram uma grande gama de locali-
depositários de costumes, crenças e valores
zações, inclusive na área rural, mas na maioria
culturais distintos, o que os caracterizaria co-
são bairros ocupados por população de renda
mo um grupo social não homogêneo (embora
baixa ou média-baixa.
seja homogêneo em termos de renda), fato
No conjunto Benjamin José Cardoso
que pode interferir nas relações sociais desen-
predominaram famílias vindas do Bairro Nova
volvidas no espaço de morar. Apesar disso, a
Viçosa, também considerado bairro periférico
maioria dos moradores indicou boas relações
e de baixa renda, e dos "Predinhos dos Araú-
de convivência com os vizinhos. Conclui-se,
jos", conjunto de edifícios que foram invadi-
também, pela grande mobilidade intraurba-
dos no Bairro Santa Clara e cujas condições
na gerada pela construção dos conjuntos do
de moradia eram muito precárias. No conjunto
PMCMV, já que os beneficiários são oriundos
César Santana Filho, predominaram famílias
de várias partes do município.
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Aline Werneck Barbosa Carvalho, Italo Itamar Caixeiro Stephan
A baixa qualificação e a baixa escolari-
As condições de acesso aos conjuntos
dade dos residentes nos três conjuntos habi-
habitacionais e aos equipamentos urbanos de
tacionais contribuem para o perfil profissional
saúde, educação e lazer são consideradas pio-
dos chefes de família, constituído na maioria
res na situação atual de moradia do que no ca-
por diaristas, domésticas, trabalhadoras do
so dos bairros de origem. Apenas no conjunto
lar e prestadores de serviços em geral, cuja
Floresta o acesso ao local de trabalho foi consi-
baixa remuneração contribui para perpetuar a
derado melhor do que era anteriormente.
condição de baixos salários e de vulnerabili-
As más condições de acesso e, portanto,
dade social.
de mobilidade urbana, potencializam a segregação social e espacial dos moradores.
d) Segregação espacial
Da mesma forma que ocorre com as con-
A segregação espacial foi avaliada a partir das
dições de acesso, a maioria dos serviços de in-
condições de infraestrutura urbana e de aces-
fraestrutura urbana foi considerada como em
so ao trabalho e aos equipamentos urbanos de
piores condições nos conjuntos habitacionais
saúde, educação e lazer (Tabelas 4 e 5).
do que nos bairros de origem (Tabela 5).
Tabela 4 – Percepção dos moradores dos conjuntos habitacionais
Benjamin José Cardoso (BJC), César Santana Filho (CSF) e Floresta
quanto às condições de acesso aos equipamentos urbanos
e ao local de trabalho no conjunto e no bairro anterior
Viçosa, MG, 2014
BJC – %
Condições de acesso a equipamentos
urbanos e ao trabalho
Acesso ao local de moradia
Acesso ao trabalho
Acesso à escola
Acesso à creche
Conjunto
Bom
22,5
Ruim
77,5
Bom
Acesso aos espaços de lazer
Floresta – %
Conjunto
Bairro
anterior
Conjunto
Bairro
anterior
87,2
28,2
92,3
60,0
76,7
12,8
72,4
7,7
40,0
23,3
35,3
93,6
38,9
94,4
51,5
35,2
Ruim
64,5
6,4
61,1
5,6
48,5
64,8
Bom
53,0
97,0
60,0
85,0
48,0
96,0
Ruim
47,0
3,0
40,0
15,0
52,0
4,0
Bom
35,0
93,0
39,0
68,0
43,0
93,0
Ruim
65,0
0,0
52,0
16,0
57,0
7,0
0,0
7,0
9,0
16,0
0,0
0,0
Bom
43,2
92,3
30,8
92,5
56,7
90,0
Ruim
56,8
7,7
69,2
7,5
43,3
10,0
Bom
28,2
94,9
37,5
97,5
46,4
92,9
Ruim
71,8
5,1
62,5
2,5
53,6
7,1
Não tem
Acesso à Unidade Básica de Saúde
CSF – %
Bairro
anterior
Fonte: Resultados da pesquisa.
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Eficácia social do Programa Minha Casa Minha Vida
Tabela 5 – Percepção dos moradores dos conjuntos habitacionais
Benjamin José Cardoso (BJC), César Santana Filho (CSF) e Floresta
quanto à infraestrutura urbana no conjunto e no bairro anterior
Viçosa, MG, 2014
BJC – %
Infraestrutura urbana
Conjunto
Calçamento das vias internas
Drenagem pluvial
Esgotamento sanitário
Iluminação pública
Serviço de Correio
Telefonia móvel
Telefonia fixa*
Conjunto
Bairro
anterior
90,0
92,5
75,0
90,0
63,3
10,0
7,5
25,0
10,0
36,7
7,0
Bom
72,5
90,0
49,0
87,0
73,0
83,0
Ruim
27,5
10,0
46,0
10,0
27,0
17,0
0,0
0,0
5,0
3,0
0,0
Bom
80,0
80,0
100,0
80,0
100,0
100,0
Ruim
20,0
20,0
0,0
20,0
0,0
0,0
Bom
85,0
87,5
80,0
77,5
100,0
93,3
Ruim
15,0
12,5
20,0
22,5
0,0
6,7
Bom
55,0
95,0
50,0
92,0
77,0
97,0
Ruim
45,0
5,0
48,0
8,0
23,0
3,0
0,0
0,0
2,0
0,0
0,0
0,0
Bom
55,0
92,5
64,0
97,0
50,0
Ruim
45,0
7,5
36,0
3,0
50,0
10,0
Bom
92,5
95,0
52,0
97,0
50,0
90,0
Ruim
7,5
5,0
40,0
0,0
50,0
10,0
Não tem
0,0
0,0
8,0
3,0
0,0
0,0
Bom
13,0
97,0
10,0
90,0
73,0
87,0
Ruim
93,0
0,0
90,0
87,0
3,0
83,0
3,0
17,0
3,0
Não tem
0,0
0,0
7,0
7,0
10,0
10,0
Bom
0,0
–
0,0
–
27,6
13,8
Ruim
0,0
–
0,0
–
72,4
86,2
100,0
–
100,0
–
0,0
Bom
28,2
95,0
47,5
89,7
63,0
83,0
Ruim
71,8
5,0
52,5
10,3
37,0
10,0
0,0
0,0
0,0
0,0
0,0
7,0
Não tem
Acesso ao transporte coletivo
Conjunto
Ruim
Não tem
Coleta de lixo
Floresta – %
Bairro
anterior
Bom
Não tem
Abastecimento de água
CSF – %
Bairro
anterior
Não tem
0,0
Fonte: Resultados da pesquisa.
Os serviços de drenagem pluvial, ilumi-
pior situação é encontrada no conjunto César
nação pública, coleta de lixo, correio, telefonia
Santana Filho, por causa de uma canaleta pa-
móvel e transporte coletivo foram considera-
ra escoamento de água das chuvas que passa
dos piores nos três conjuntos habitacionais.
nos fundos das residências e que costuma fi-
Os problemas de drenagem pluvial ocorrem no
car sem limpeza, gerando mau cheiro. Não foi
espaço interno dos empreendimentos, embora
implantada rede de telefonia fixa nos conjun-
haja rede de drenagem com bocas de lobo; a
tos Benjamin José Cardoso e César Santana
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Aline Werneck Barbosa Carvalho, Italo Itamar Caixeiro Stephan
Filho, e a ineficácia do sinal de celular é uma
quanto nos bairros de origem; de fato, a cober-
grande reclamação dos moradores. No caso
tura da autarquia responsável pela prestação
da iluminação pública, a insatisfação se deve
do serviço (SAAE – Serviço Autônomo de Água
às vias principais de acesso e não à iluminação
e Esgoto) é muito ampla no município.
no interior dos conjuntos. O serviço de lixo é
considerado pior devido à menor frequência da
coleta durante a semana. De modo semelhante,
e) Percepção dos moradores quanto
à moradia
há poucos horários de ônibus durante o dia, o
Por fim, analisou-se a percepção dos morado-
que é motivo de reclamação por parte de mui-
res quanto às condições de moradia no con-
tos moradores.
junto comparativamente aos bairros de origem
Alguns serviços de infraestrutura foram
(Tabela 6).
considerados melhores do que nos bairros an-
A percepção dos moradores quanto à
teriores. Isso foi observado especialmente no
nova moradia é melhor do que quanto às con-
conjunto Floresta, em relação aos itens: acesso
dições de infraestrutura e de acesso aos equi-
ao trabalho e aos espaços de convívio, infraes-
pamentos urbanos e, também, melhor quando
trutura de esgoto, telefonia móvel e fixa, embo-
comparado às condições de moradia anterio-
ra essa última seja muito pouco utilizada, tanto
res. Isso pode ser interpretado como satisfação
no conjunto quanto nos bairros de origem. No
em relação ao produto (casa ou apartamento)
conjunto César Santana Filho, o único serviço
entregue pelo PMCMV ou pode significar que
considerado de melhor qualidade do que nos
os beneficiários moravam em condições pre-
bairros de moradia anterior é o abastecimen-
cárias. O banheiro e o número de quartos, por
to de água. Os serviços de água e esgoto fo-
exemplo, foram considerados como mais ade-
ram avaliados como bons tanto nos conjuntos
quados no caso dos conjuntos habitacionais do
Tabela 6 – Percepção dos moradores dos conjuntos habitacionais
Benjamin José Cardoso (BJC), César Santana Filho (CSF) e Floresta
quanto às características da moradia no conjunto e no bairro anterior
Viçosa, MG, 2014
BJC – %
Condição da moradia
Adequado
Inadequado
CSF – %
Floresta – %
Conjunto
Bairro
anterior
Conjunto
Bairro
anterior
Número de quartos
52,5
70,0
87,5
Banheiro
77,5
75,0
85,0
Tamanho da cozinha
10,0
90,0
Tamanho da área de serviço
20,0
22,8
Espaço para refeições no conjunto
habitacional
Conjunto
Bairro
anterior
45,0
80,0
56,7
50,0
100,0
82,1
20,0
62,5
30,0
82,8
30,0
57,9
71,4
17,2
82,8
–
31,6
–
21,1
–
Fonte: Resultados da pesquisa.
300
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Eficácia social do Programa Minha Casa Minha Vida
Tabela 7 – Satisfação dos moradores dos conjuntos habitacionais
Benjamin José Cardoso (BJC), César Santana Filho (CSF) e Floresta
com a moradia e com o bairro anterior
Viçosa, MG, 2014
Relação com o bairro e com a moradia
Relação com
o bairro anterior
Relação com
a moradia
BJC – %
Muito bom / Bom
Razoável
Não gostava
CSF – %
Floresta – %
82,5
7,5
10,0
87,5
12,5
0
83,3
13,3
3,3
Gostava mais da moradia anterior do que da atual
por causa dos vizinhos
4,5
7,14
6,3
Gostava mais da moradia anterior do que da atual
por causa do bairro
6,8
8,93
3,1
Gostava mais da moradia anterior do que da atual
porque não gosta de morar em condomínio
–
–
3,1
A moradia anterior era muito adequada às
necessidades da família
29,5
17,9
34,4
Gosta mais da moradia atual
54,5
57,1
46,9
4,7
8,9
6,2
Não se manifestou
Fonte: Resultados da pesquisa.
que nas moradias anteriores, sobretudo para
política, apresenta-se no Quadro 1 a síntese
os entrevistados dos conjuntos César Santana
comparativa das condições de moradia exis-
Filho e Floresta. Uma queixa constante é a pe-
tentes nos bairros de origem versus a condição
quena dimensão da cozinha e da área de servi-
vivenciada nos conjuntos habitacionais.
ço e a falta de espaço para refeições.
A satisfação com a moradia anterior,
à interação social no conjunto e no bairro de
manifestada por 40,8% dos entrevistados no
origem é bastante variável, como se observa
conjunto Benjamin José Cardoso, 33,9% no
no Quadro 1. Mesmo assim, foi avaliada como
conjunto César Santana Filho e 46,9% no con-
“boa” ou “regular” pela maioria dos entrevis-
junto Floresta, deve-se menos às características
tados, com mostrado anteriormente.
da casa e mais às condições do bairro, nelas
Apenas no conjunto Floresta o acesso
incluindo-se não só as próprias características
ao local de trabalho foi considerado melhor
do local, mas também as relações de solidarie-
do que era anteriormente. Todos os demais
dade entre vizinhos (Tabela 7).
indicadores (acesso aos próprios empreendi-
De posse dos dados tabulados e reto-
mentos, às Unidades Básicas de Saúde, esco-
mando o método proposto por Ramos e Sá
las, creches e espaços de convívio/lazer) foram
(2002) para medir a eficácia social de uma
muito mal avaliados pelos entrevistados. As
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A percepção dos moradores em relação
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Aline Werneck Barbosa Carvalho, Italo Itamar Caixeiro Stephan
Quadro 1 – Comparação das condições de acesso, infraestrutura
e moradia nos conjuntos habitacionais Benjamin José Cardoso (BJC),
César Santana Filho (CSF) e Floresta em relação ao bairro de origem
dos moradores, segundo a percepção dos entrevistados
Viçosa, MG, 2014
Condição do conjunto habitacional
em relação ao local de moradia anterior
BJC – %
CSF – %
Floresta – %
Interação social
Relação com os vizinhos
Relação com os moradores dos bairros vizinhos
Espaços de convívio
Espaços de lazer para as crianças
Pior
Melhor
Pior
Pior
Pior
Pior
Pior
Semelhante
Pior
Semelhante
Melhor
Semelhante
Pior
Pior
Pior
Pior
Pior
Pior
Pior
Pior
Pior
Pior
Pior
Pior
Pior
Melhor
Pior
Pior
Pior
Pior
Semelhante
Pior
Igual
Semelhante
Pior
Pior
Semelhante
Muito pior
Não tem
Pior
Pior
Pior
Melhor
Semelhante
Pior
Pior
Pior
Muito pior
Não tem
Pior
Pior
Pior
Igual
Melhor
Pior
Pior
Pior
Melhor
Melhor
Pior
Pior
Semelhante
Muito pior
Semelhante
Não tem
Melhor
Melhor
Melhor
Pior
Pior
Não tem
Melhor
Melhor
Melhor
Pior
Pior
Não tem
Melhor
Condições de acesso
Condições de acesso ao conjunto
Acesso ao trabalho
Acesso à escola
Acesso à creche
Acesso à Unidade Básica de Saúde
Acesso aos espaços de lazer
Infraestrutura urbana
Calçamento das vias no interior do conjunto
Drenagem pluvial
Serviço de abastecimento de água
Esgotamento sanitário
Iluminação pública
Coleta de lixo
Correio
Telefonia móvel
Telefonia fixa
Acesso ao transporte coletivo
Condições da moradia atual
Número de quartos
Banheiro
Tamanho da cozinha
Tamanho da área de serviço
Espaço para refeições
Adequação da moradia atual em relação à anterior
Fonte: Resultados da pesquisa.
más condições de acesso e, portanto, de mo-
Quanto à infraestrutura, as condições
bilidade urbana potencializam a segregação
de drenagem das águas pluviais, iluminação
social e espacial dos moradores desses conjun-
pública, coleta de lixo e acesso ao transporte
tos habitacionais e, portanto, denotam pouca
coletivo foram consideradas de pior qualida-
eficácia social.
de em todos os três conjuntos habitacionais.
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Eficácia social do Programa Minha Casa Minha Vida
A telefonia móvel e a telefonia fixa só foram
Os resultados encontrados indicam
melhor avaliadas no conjunto habitacional Flo-
que nenhum dos empreendimentos pode
resta. A telefonia fixa inexiste nos conjuntos
ser considerado eficaz do ponto de vista so-
Benjamin José Cardoso e César Santana Filho
cial. Praticamente todas condições foram
e, embora no conjunto Floresta tenha sido
consideradas piores do que aquelas vivencia-
avaliada como melhor do que nos bairros de
das pelos entrevistados nos seus bairros de
origem, trata-se de um serviço pouco utilizado
moradia anterior. A situação é mais grave no
pelos moradores, que preferem utilizar o telefo-
caso da infraestrutura urbana e das condições
ne celular. Por outro lado, a ineficácia do sinal
de acesso aos próprios empreendimentos,
de celular nos conjuntos César Santana Filho e
aos locais de trabalho e aos equipamentos ur-
Benjamin José Cardoso agrava as condições de
banos de saúde, educação (escolas e creches)
segregação espacial impostas pela localização
e lazer.
periférica dos moradores e os torna ainda mais
isolados do restante da cidade.
A precariedade dos acessos aos conjuntos (condições das vias principais de acesso,
Os serviços de abastecimento de água
dificuldade de acesso ao transporte coletivo,
e esgotamento sanitário foram os únicos
aos locais de trabalho e aos equipamentos
bem avaliados pelos entrevistados, tanto nos
de educação, saúde e lazer) constituem fa-
conjuntos habitacionais quanto nos bairros
tores que segregam espacialmente a popula-
anteriores.
ção moradora nos conjuntos habitacionais e,
No caso da unidade habitacional pro-
portanto, também são indicativos de falta de
priamente dita, os resultados se invertem, já
eficácia social. Da mesma forma, a má qua-
que, na percepção dos entrevistados, a mo-
lidade da infraestrutura urbana, sobretudo
radia anterior era pior do que a atual. São
nos acessos aos conjuntos habitacionais (co-
três os aspectos considerados negativos na
mo falta de calçadas, pavimentação inade-
moradia atual: o tamanho da cozinha, a falta
quada, falta de pavimentação e de ilumina-
de um espaço para refeições e o tamanho da
ção pública) isolam os moradores do restante
área de serviço.
da cidade e também reforçam a segregação
social e espacial.
Tais carências relativas à má localização
Conclusões
dos empreendimentos não são distintas das
apontadas pelos estudos sobre o PMCMV nas
Este artigo teve como objetivo empreender
uma reflexão sobre a eficácia social dos con-
Por sua vez, as más condições dos ser-
juntos habitacionais Benjamim José Cardoso,
viços urbanos no interior dos conjuntos (dre-
César Santana Filho e Floresta implantados
nagem pluvial, falta de sinal de celular, falta
em Viçosa-MG, por meio do Programa Minha
de telefonia fixa, calçamento, etc.) denotam
Casa Minha Vida (PMCMV) para a população
um desrespeito do poder público pelos mo-
com renda familiar igual ou inferior a três sa-
radores, que são tratados como cidadãos de
lários mínimos.
“segunda categoria”.
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cidades médias ou nas metrópoles.
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Aline Werneck Barbosa Carvalho, Italo Itamar Caixeiro Stephan
O provimento da habitação de inte-
Conclui-se, portanto, pela ineficácia so-
resse social pelo poder público municipal
cial dos conjuntos habitacionais do PMCMV
limita-se à provisão da unidade habitacional,
em Viçosa, sobretudo devido à concentração
desvinculada de uma política urbana que vise
de uma população socialmente homogênea e
à localização adequada das moradias desti-
numa área desprovida de condições adequa-
nadas à população de baixa renda. Essa visão
das de infraestrutura urbana e de acesso aos
torna-se a principal responsável pela falta de
equipamentos de saúde, educação e lazer, fa-
eficácia social dos empreendimentos cons-
tores que estão associados à localização des-
truídos em Viçosa. Ainda que os moradores
ses empreendimentos.
estejam mais satisfeitos com as casas atuais
Cientes de que os resultados desse es-
do que com as anteriores, entende-se que a
tudo não podem ser generalizados, longe de
habitação – que abrange todos os elementos
esgotar o tema, espera-se com essas reflexões
que circunscrevem a vida cotidiana dos mora-
ter lançado luz sobre algumas questões que
dores e, portanto, extrapola a mera unidade
também conformam o debate sobre as novas
habitacional – não atende aos critérios de efi-
formas de produção habitacional nas peque-
cácia social.
nas cidades brasileiras.
Aline Werneck Barbosa Carvalho
Universidade Federal de Viçosa, Departamento de Arquitetura e Urbanismo. Viçosa/MG, Brasil.
[email protected]
Italo Itamar Caixeiro Stephan
Universidade Federal de Viçosa, Departamento de Arquitetura e Urbanismo. Viçosa/MG, Brasil.
[email protected]
Notas
(*) Os resultados apresentados neste artigo são frutos da pesquisa denominada “Eficácia Social
do Programa Minha Casa Minha Vida em Viçosa-MG”, financiada pela Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de Minas Gerais – Fapemig.
(1) Dados ob dos no site da Caixa Econômica Federal (Caixa). Disponível em: h p://www20.caixa.
gov.br/Paginas/No cias/No cia/Default.aspx?newsID=1011. Acesso em: 22 jan 2015.
(2) Se considerarmos como pequenas cidades aquelas cujos municípios têm população inferior a
100.000 habitantes, isso equivale a 94,6% dos municípios brasileiros, segundo dados Ins tuto
Brasileiro de Geografia e Esta s ca (IBGE), em es ma va de 2014.
(3) Costa e Castanhar (2003) enumeram vários critérios de avaliação: eficiência, eficácia, impacto
(efe vidade), sustentabilidade, análise custo-efe vidade, sa sfação do usuário e equidade.
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Eficácia social do Programa Minha Casa Minha Vida
(4) Segundo dados da publicação "Retrato Social de Viçosa IV", em 2010 a população flutuante de
Viçosa girava em torno de 15.000 pessoas e era formada basicamente por estudantes (Cruz,
2012).
(5) Lei n. 1383/2000 e Lei n. 1420/2000, respec vamente.
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Book 35.indb 305
305
06/03/2016 17:30:39
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Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 35, pp. 283-307, abr 2016
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Agradecimentos
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais, pelo apoio.
Marina Galatro Menta Guedes, estudante de Arquitetura e Urbanismo do Departamento de
Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Viçosa e bolsista Fapemig, que colaborou
com os autores na elaboração do ar go.
Texto recebido em 31/maio/2015
Texto aprovado em 11/set/2015
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Instruções aos autores
ESCOPO E POLÍTICA EDITORIAL
Trata-se de periódico dirigido à comunidade acadêmica em geral, especialmente, às áreas de
Ciências Sociais, Arquitetura e Urbanismo, Planejamento Urbano e Regional e Demografia.
Os artigos recebidos para publicação deverão ser inéditos e serão submetidos à apreciação dos
membros do Conselho Editorial e de consultores ad hoc para emissão de pareceres. Os artigos receberão duas avaliações e, se necessário, uma terceira. Será respeitado o anonimato tanto dos autores
quanto dos pareceristas.
Caberá aos Editores Científicos e à Comissão Editorial a seleção final dos textos recomendados
para publicação pelos pareceristas, levando-se em conta sua consistência acadêmico-científica, clareza
de ideias, relevância, originalidade e oportunidade do tema.
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Os artigos podem ser redigidos em língua portuguesa ou espanhola. Os artigos apresentados
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imagens devem ser em formato TIF, com resolução mínima de 300 dpi e largura máxima de 13 cm;
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(Transferência de Documentos Suplementares). Em caso de dúvida, consulte o Manual de Submissão
pelo Autor.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
As referências bibliográficas, que seguem as normas da ABNT adaptadas pela Educ, deverão ser
colocadas no final do artigo, seguindo rigorosamente as seguintes instruções:
Livros
AUTOR ou ORGANIZADOR (org.) (ano de publicação). Título do livro. Cidade de edição, Editora.
Exemplo:
CASTELLS, M. (1983). A questão urbana. Rio de Janeiro, Paz e Terra.
Capítulos de livros
AUTOR DO CAPÍTULO (ano de publicação). “Título do capítulo”. In: AUTOR DO LIVRO ou ORGANIZADOR
(org.). Título do livro. Cidade de edição, Editora.
Exemplo:
BRANDÃO, M. D. de A. (1981). “O último dia da criação: mercado, propriedade e uso do solo em
Salvador”. In: VALLADARES, L. do P. (org.). Habitação em questão. Rio de Janeiro, Zahar.
Artigos de periódicos
AUTOR DO ARTIGO (ano de publicação). Título do artigo. Título do periódico. Cidade, volume do
periódico, número do periódico, páginas inicial e final do artigo.
Exemplo:
TOURAINE, A. (2006). Na fronteira dos movimentos sociais. Sociedade e Estado. Dossiê Movimentos
Sociais. Brasília, v. 21, n. 1, pp. 17-28.
Trabalhos apresentados em eventos científicos
AUTOR DO TRABALHO (ano de publicação). Título do trabalho. In: NOME DO CONGRESSO, local de
realização. Título da publicação. Cidade, Editora, páginas inicial e final.
Exemplo:
SALGADO, M. A. (1996). Políticas sociais na perspectiva da sociedade civil: mecanismos de controle
social, monitoramento e execução, parceiras e financiamento. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL
ENVELHECIMENTO POPULACIONAL: UMA AGENDA PARA O FINAL DO SÉCULO. Anais. Brasília,
MPAS/ SAS, pp. 193-207.
Teses, dissertações e monografias
AUTOR (ano de publicação). Título. Tese de doutorado ou Dissertação de mestrado. Cidade, Instituição.
Exemplo:
FUJIMOTO, N. (1994). A produção monopolista do espaço urbano e a desconcentração do terciário de
gestão na cidade de São Paulo. O caso da avenida Engenheiro Luís Carlos Berrini. Dissertação de
mestrado. São Paulo, Universidade de São Paulo.
Textos retirados de Internet
AUTOR (ano de publicação). Título do texto. Disponível em. Data de acesso.
Exemplo:
FERREIRA, J. S. W. (2005). A cidade para poucos: breve história da propriedade urbana no Brasil. Disponível em: http://www.usp.br/fau/depprojeto/labhab/index.html. Acesso em: 8 set 2005.
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Rede Observatório das Metrópoles
Estado
Instituição
Coordenador
Baixada Santista
Universidade Federal de São Paulo
Marinez Villela Macedo Brandão
Belém
Universidade Federal do Pará
Juliano Ximenes Pamplona
Belo Horizonte
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Alexandre Magno Alves Diniz
Brasília
Universidade de Brasília
Rômulo José da C. Ribeiro
Curitiba
Universidade Federal do Paraná
Olga Lucia C. de Freitas Firkowski
Fortaleza
Universidade Federal do Ceará
Maria Clélia Lustosa Costa
Goiânia
Universidade Federal de Goiás
Celene Cunha Monteiro A. Barreira
Maringá
Universidade Estadual de Maringá
Ana Lucia Rodrigues
Natal
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Maria do Livramento M. Clementino
Porto Alegre
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Paulo Roberto Rodrigues Soares
Recife
Universidade Federal de Pernambuco
Maria Angela de Almeida Souza
Rio de Janeiro
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Marcelo Gomes Ribeiro
Salvador
Universidade Federal da Bahia
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São Paulo
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Lucia Maria Machado Bógus
Vitória
Instituto Jones dos Santos Neves
Pablo Silva Lira
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