As representações sociais da morte na literatura - PPGHC

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As representações sociais da morte na literatura - PPGHC
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
INSTITUTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA COMPARADA
As representações sociais da morte na
literatura grega:
uma análise comparada entre Homero e Eurípides
Bruna Moraes da Silva
Rio de Janeiro
2015
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
INSTITUTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA COMPARADA
As representações sociais da morte na literatura grega:
uma análise comparada entre Homero e Eurípides
Bruna Moraes da Silva
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
História Comparada do Instituto de História da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHC-UFRJ)
como requisito parcial para a obtenção do grau de mestre.
Orientador: Prof. Dr. Fábio de Souza Lessa
Rio de Janeiro
2015
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
INSTITUTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA COMPARADA
As representações sociais da morte na literatura grega:
uma análise comparada entre Homero e Eurípides
Bruna Moraes da Silva
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
História Comparada do Instituto de História da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHC-UFRJ)
como requisito parcial para a obtenção do grau de mestre.
__________________________________________________________
Prof. Dr. Fábio de Souza Lessa (Orientador)
__________________________________________________________
Prof. Dr. Alexandre Santos de Moraes
__________________________________________________________
Prof.ª. Drª. Regina Maria da Cunha Bustamante
Rio de Janeiro
2015
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Agradecimentos
Meus primeiros agradecimentos são dados a Deus por sempre me guiar, me proteger e
me ensinar a superar os obstáculos da vida. Agradeço, do mesmo modo, aos meus pais, que
continuamente me deram apoio em todas as etapas de minha caminhada pessoal e acadêmica,
assim como a todos meus familiares.
Ao meu orientador Fábio de Souza Lessa, pelo suporte desde a graduação e pela força
de vontade de ajudar seus orientandos, seja dentro ou fora da universidade. Sou muito feliz pelo
companheirismo que construímos.
A minha querida amiga Renata Cardoso de Sousa, que está sempre ao meu lado quando
preciso. Aos professores Alexandre Moraes, Regina Bustamante e Deivid Valério Gaia, que
acrescentaram muitíssimo em minha jornada, auxiliando-me sempre que necessário: o apoio de
vocês foi fundamental para seguir escrevendo. A Tatiana Gandelman, por todo o conhecimento
que nos levou acerca do grego e pelo seu jeito simples e carinhoso de ser.
Agradeço, do mesmo modo, àqueles que estão ao meu lado no dia-a-dia, especialmente
a meu namorado Gabriel Mendes Gouvêa e ao seu constante otimismo, ensinando-me que “tudo
vai dar certo”. Seu amor foi essencial em meu caminho. A Joana Pra Baldi, pelo carinho que
me dedicou quando mais precisei. A Tiago Miquelino, pelos conselhos e, por desde 2008, ouvir
acerca de meus “greguinhos”.
Ofereço, igualmente, meus agradecimentos à secretaria do PPGHC e sua solicitude
quando necessitei de ajuda e também a CAPES pelo apoio financeiro, que me auxiliou nos
custos provenientes de minha pesquisa ao longo desses dois anos.
Obrigada a todos pelo carinho e incentivo.
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Valar Morghulis – Todos os Homens Devem Morrer
(MARTIN, G.R.R. As Crônicas de Gelo e Fogo)
vi
Resumo
Na presente dissertação, analisamos, em perspectiva comparada, as representações
sociais da morte e do pós-morte nas epopeias de Homero – Ilíada e Odisseia – e nas tragédias
de Eurípides – Alceste, Hécuba, Troianas e Ifigênia em Áulis – de modo a compreender as
singularidades, repetições e diferenças em relação ao nosso campo de estudo. Através da
metodologia comparada proposta por Marcel Detienne e da Análise de Discurso, debatida nos
estudos de Eni P. Orlandi, observamos como os elementos tanáticos presentes nas obras
estudadas são capazes tanto de revelar questões das sociedades em que se inseriam quanto
desvelar o que o fim da vida representa para elas.
Palavras-Chaves: Morte; Homero; Eurípides; História Comparada; Análise de Discurso.
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Abstract
In this dissertation, we analyse, based in comparative perspective, the social
representations of death and after death in Homer's epics – Iliad and Odyssey – and in
Euripides’ tragedies – Alcestis, Hecuba, Trojan Women and Iphigenia at Aulis – in order to
understand the singularities, repetitions and differences in relation to our field of study. Using
the comparative methodology proposed by Marcel Detienne and the Speech Analysis, discussed
in studies of Eni P. Orlandi, we observe how the tanatical elements in the studied works are
able both to reveal issues of the societies that they were part of as to unfold what the end of life
represents for them.
Keywords: Death; Homer; Euripides; Historical Comparison; Discourse Analysis
viii
Sumário
INTRODUÇÃO _________________________________________________________ p. 10
CAPÍTULO 1| Morte épica e morte trágica: por que representá-las? ____________ p. 27
1.1| Ser herói, fazer-se exemplo ______________________________________________ p. 29
1.2| Da morte nos palcos à morte na pólis ______________________________________ p. 39
CAPÍTULO 2| Entre elogio e lamento: o papel dos vivos perante a morte _________ p. 54
2.1| A discursividade homérica e euripidiana: seus contextos funerários ______________ p. 56
2.2| O géras thanónton: responsabilidade dos vivos e merecimento dos mortos ________ p. 62
2.2.1| O lamento e a comunicação da dor da perda _________________________ p. 66
2.2.2| A morte como um processo ______________________________________ p. 74
CAPÍTULO 3| As representações sociais do post mortem ________________________ p. 84
3.1| Alma homérica e alma trágica: a psykhé em comparação ______________________ p. 87
3.2| O mundo dos mortos entre o Homero e Eurípides __________________________ p. 103
CONCLUSÃO ________________________________________________________ p. 115
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS _____________________________________ p. 120
DOCUMENTAÇÃO ESCRITA _____________________________________ p. 120
OBRAS DE REFERÊNCIA ________________________________________ p. 120
BIBLIOGRAFIA INSTRUMENTAL E ESPECÍFICA _________________ p. 121
WEBGRAFIA ___________________________________________________ p. 130
ix
Introdução
A morte é um fenômeno que suscita debates, medos, crenças e tabus ao longo dos
milênios de nossa história. Sabemos que a ela todos estão fadados, ainda que cada sociedade
possua uma forma de representar esse momento, cercando-se de elementos simbólicos para
caracterizá-lo, integrando-o em seu universo mental e em suas práticas institucionais
(VERNANT, 1988, p. 34).
Desde a década de 1950, em meio aos estudos desenvolvidos na Escola dos Annales, a
questão da morte vem atraindo atenções da Ciência Histórica. Como apontado por Lebrun, é
através da formulação de Lucien Febvre que se inicia “a abertura de uma vasta investigação
sobre os sentimentos fundamentais dos homens e suas modalidades” (FEBVRE apud
LEBRUN, 1993, p.564). Sendo assim, uma série de trabalhos que dizem respeito a essa temática
começam a ser desenvolvidos, influenciados especialmente pelos estudos demográficos e das
mentalidades que a Nova História propunha.
Nomes como Pierre Goubert (1952), Louis Henry (1956) e François Lebrun (1971),
destacaram-se nos estudos acerca da mortalidade nas sociedades, já outros como os de Philippe
Ariès (História da Morte no Ocidente - 1975) e Pierre Chaunu (La Mort à Paris - XVIe et XVIIe
siècles - 1978), focaram-se nas atitudes do homem diante da morte (LEBRUN, 1993, p.564-5).
Estudiosos ligados aos campos da Arqueologia, Antropologia e Linguística, também realizaram
análises profícuas a respeito do fim da vida. Trabalhos como o de Edgar Morin (O homem e a
morte – 1970) e do antropólogo brasileiro José Carlos Rodrigues (O tabu da morte – 1983),
utilizado como base teórica neste trabalho, são frequentemente destacados nas investigações
dessa questão.
À vista disso, na presente dissertação, que possui como foco de estudo a sociedade grega
antiga, igualmente fazemos da morte nosso objeto central. Evidenciando-a como um evento
biológico socialmente refletido, visamos a análise, em perspectiva comparada, das
representações sociais da morte e do pós-morte presentes nas epopeias de Homero – Ilíada e
10
Odisseia1 – e nas tragédias de Eurípides – Alceste (438 a.C.)2, Hécuba (425-4 a.C.)3, Troianas
(415 a.C.)4 e Ifigênia em Áulis (405 a.C.)5.
Assumindo uma abordagem antropológica, pautada especialmente nos estudos de José
Carlos Rodrigues (2006/1991), como citado, focar-nos-emos em como os indivíduos e grupos,
representados nessas obras, relacionam-se com esse momento, dando destaque as práticas e
crenças presentes em nosso corpus documental e verificando os perigos sociológicos que o
desaparecimento dos indivíduos comporta (RODRIGUES, 1991, p. 11)6.
Desse modo, objetivamos não apenas analisar nossa documentação em sua superfície
linguística, mas temos como proposta destacar o papel social dos discursos analisados dentro
da comunidade em que eram cantados (epopeias) e representados (tragédias), evidenciando de
que maneira o trato com a morte nelas presente é capaz de revelar questões das sociedades que
as compuseram, mas também de desvelar o que o fim da vida representa para elas. Defendemos
ao longo deste trabalho que muitos dos costumes e crenças a respeito da morte estão
representados nos gêneros épico e trágico gregos, sendo a literatura documentação profícua
para o trabalho do historiador7.
1
Analisamos essas obras a partir das seguintes traduções: a de Haroldo de Campos (bilíngue), comparando sempre
que necessário com a de Carlos Alberto Nunes, para a Ilíada; e a de Donaldo Schüller (bilíngue), também
realizando comparações com a de Trajano Vieira, para a Odisseia. Na maior parte dos casos, optamos por Haroldo
e Schuller. Porém, quando não fizermos uso delas, apresentaremos em nota de rodapé a escolha por nós realizada.
2
Alceste, analisada por nós através da tradução de David Kovacs (bilíngue), possui como tema, em linhas gerais,
o sacrifício feito pela personagem que dá nome a obra ao aceitar morrer no lugar de seu marido Admeto. Sendo
assim, nosso objeto é tema central dessa representação, envolvendo não somente o momento do fim da vida,
através do luto e do funeral, mas também as crenças relacionadas ao pós-morte, com a presença de criaturas como
Thánatos e Caronte.
3
Hécuba, obra que analisamos por intermédio da tradução de Christian Werner (Biblioteca Martins Fontes, 2004),
conjugado ao uso da plataforma Perseus para a consulta do texto em grego, possui como contexto o período pósguerra de Troia. A questão central é o sacrifício de Polixena, filha da personagem que intitula a tragédia, a pedido
do phantásma de Aquiles. Há ainda a presença de um assassinato tramado e de diversas representações de luto.
4
Troianas, obra igualmente analisada através da tradução de Werner (Biblioteca Martins Fontes, 2004) junto a
base Perseus, possui como temática a escravidão das mulheres troianas após a Guerra de Troia, a tristeza de
Andrômaca ao ver seu filho Astiánax assassinado e o debate de Menelau sobre matar ou não sua esposa Helena.
Ela destaca a perda de familiares, luto, além da temática da guerra estar implícita ao destacar a escravidão imposta
às mulheres do lado perdedor do conflito.
5
Ifigênia em Áulis, para qual utilizamos a tradução de David Kovacs (bilíngue), Harvard University Press, relatanos sobre o sacrifício de Ifigênia, exigido pela deusa Ártemis e planejado por seu próprio pai, Agamêmnon,
objetivando que os navios aqueus pudessem zarpar para Troia. Novamente, o tema do sacrifício é visto, assim
como a coragem da personagem principal ao enfrentar sua morte. O tema da guerra também está presente,
demonstrando debates que podem ser conectados aos problemas que a pólis ateniense vinha passando.
6
Conforme elucidado por Nicole Belmont, no volume vida/morte da Enciclopédia Einaudi, “Desde logo percebese que, para falar das representações da vida e da morte numa dada cultura, há que apelar progressivamente para
a quase totalidade dos elementos desta cultura: a mitologia, os ritos e as cerimônias, a organização social, as
práticas diárias, etc.” (1997, p. 14).
7
As análises de Antônio Celso Ferreira (A fonte fecunda) e Antônio Cândido (Literatura e sociedade), possibilitam
reforçar nossa posição a respeito da validez da documentação literária para o entendimento das sociedades. O
primeiro autor defende que a literatura possibilita uma via de acesso ao universo cultural e valores sociais dos
homens. Além disso, destaca que, para fazermos uso dela em um trabalho histórico, devemos verificar a que
público se destina, que papel cumpre, que representações do mundo cria (FERREIRA, 2009, p. 61 e 74). Antônio
11
A escolha pelas obras de Homero foi suscitada pela constante presença em seus versos
de cenas de mortes. Como recorda-nos Garland, é pelo aedo8 que “nossas mais antigas e
completas imagens da morte grega são providas” (1985, p.1), fazendo questão de enfatizar em
suas obras a superioridade dos deuses9 e a condição mortal do homem10, “que feito folhas viçam
por/ um tempo, florescendo, nutridos de frutos, / mas, vida breve, logo perecem, exânimes”
(HOMERO. Ilíada, XXI, vv. 462-466).
A Ilíada, ao narrar as diversas batalhas durante a Guerra de Troia11, confronta-nos a
todo o momento com a morte de guerreiros, assim como seus funerais e até mesmo o contato
com aqueles que já não se encontravam mais em vida, com a alma12, a psykhé dos mortos –
temas de análise na presente dissertação. A Odisseia também não deixa de perpassar nosso
objeto: apesar de não ter seu cenário composto pela guerra, demonstra-nos igualmente homens
deixando a vida e, especialmente, em dois de seus Cantos, o mundo dos mortos e como aqueles
que lá se encontravam agiam. Como bem definiu Vernant, no que compete à morte, a Ilíada é
uma cena guerreira, e a Odisseia, infernal (1988, p. 60).
Analisando essas epopeias – que têm como característica principal a narrativa em versos
sobre os grandes feitos dos heróis – foi possível verificar a importância de se demonstrar o fim
da vida para o público que ouvia o aedo: a aristocracia guerreira. Esta, além de se deleitar com
as narrativas acerca de sua genealogia, educava-se através de seus versos. A poesia oral, como
Cândido também nos aponta, ao longo de seu trabalho, que a realidade social é componente da estrutura literária
e que a integridade desta deve ser entendida através de uma interpretação dialética entre texto e contexto, tendo o
poeta o papel de combinar e criar ao devolver sua obra à realidade. Ademais, o estudioso dá destaque ao papel
social da literatura, verificando nela a produção de efeitos práticos sobre a sociedade, reforçando, por exemplo,
valores dessa (CANDIDO, 2000, p. 28 e 30).
8
Ser aedo na Grécia Antiga era exercer o ofício de compor e cantar narrativas heroicas, sendo essas dotadas de
um caráter divino, visto que seriam as Musas as responsáveis por levar a esses homens o conhecimento.
9
Schein destaca que “Homero foi responsável pela visão religiosa, característica em todo o período arcaico e
clássico, que enfatizava a ignorância humana e impotência em face de uma ordem cósmica mais alta mesmo
quando fazia os seres humanos os assuntos e objetos de toda ação significante, sofrimento, e especulação” (1984,
p. 62).
10
Segundo Vernant, “Os deuses são os athánatoi, os imortais; os homens, os brótoi, os perecíveis, fadados às
doenças, à velhice e a à morte” (2006, p. 45).
11
Não podemos afirmar que a guerra ocorreu, apenas que Tróia existiu e que teria sido possíveis conflitos entre
Aqueus e Troianos, especialmente por motivos comerciais, como o desejo de pilhagem e a busca de novas rotas
comerciais e riquezas, pois a cidade recebia grande fluxo de bronze. A possibilidade de uma guerra causada por
um rapto de uma mulher, como é descrito como motivo na Ilíada, é mais remota. A localização de Troia também
foi motivo de grandes debates, apesar do fato de que “os gregos da época clássica (500-323 a.C.) e mesmo da
época helenística (331-23 a.C.) e romana não tinham dúvida alguma com relação a localização de Tróia [...]”
(VIDAL-NAQUET, 2002, p. 23). Onze Troias foram encontradas pela arqueologia, sendo a mais provável para as
cenas da guerra da epopeia a de número VII A e a VI. Porém, como ressaltado por Vidal-Naquet, “é impossível
fazer coincidir uma epopeia com uma escavação. [...] É melhor ler a Ilíada ou contemplar uma coleção de vasos
gregos nos quais se representaram diversos episódios da guerra legendária” (VIDAL-NAQUET, 2002, p. 25).
12
Apesar da pluralidade de significados dados ao termo alma, nós o designamos como o único elemento que
sobreviveria a morte e que poderia, ou não, realizar determinadas funções no corpo do homem enquanto vivo,
como àquelas conectadas ao psíquico.
12
nos remete Krausz, “traça paradigmas de comportamento, padrões do que é e do que é aceitável,
e justificativas para modos específicos de organização social” (2007, p.20), isto é, reverbera,
nos discursos nela presente, uma série de normas a serem seguidas em sociedade.
Ante a morte, essas normas aparecem especialmente no momento em que os heróis
demonstravam a honra e a coragem que o homem deveria ter ao enfrentar esse momento,
buscando a glória eterna entre seu povo através de seus atos e, inclusive, de uma bela morte13.
O canto de Homero também lembrava à sociedade as atitudes que deveriam ser seguidas em
relação ao morto, como o luto e a realização de um funeral digno, além de conter as diferentes
crenças em relação ao pós-vida, como citado. De acordo com Alexandre Moraes,
Neste cenário, as razões que transformaram a questão da morte em um tema
privilegiado para o canto dos aedos são plenamente compreensíveis. É
inegável que as audiências, que conviviam com o risco de uma morte
inesperada, estivessem atentas aos discursos que pudessem agregar algum tipo
de valor a esse momento limite do curso de vida (MORAES, 2013, p.99).
Todavia, a existência de Homero, unida a diferentes questões acerca da composição de
suas obras, assim como seu período de criação e a possibilidade de terem sido produzidas por
indivíduos diferentes, faz parte de um grande debate historiográfico iniciado no século XVIII,
existente e não concluído até hoje: a chamada Questão Homérica.
Em relação a unidade de suas obras, múltiplas questões são postas em pauta. É inegável
que a Ilíada e a Odisseia foram copiadas e recopiadas ao longo dos séculos, sofrendo
interpolações e mudanças em sua forma. Desde os trabalhos de Friedrich August Wolff (1795),
questiona-se a respeito da validade dos versos épicos devido às inconsistências encontradas,
levando a teóricos como Milman Parry e Albert Lord a defenderem que o sistema complexo de
fórmulas existentes nas epopeias não poderiam ser conectadas a apenas um indivíduo, sendo as
inconsistências dos poemas entendidas como resultado da performance dos poetas, pois ao
transmitirem suas obras de maneira oral, não poderiam realizar correções (MORAES, 2013,
p.30). Já outros estudiosos, denominados unitários, recusariam permitir que as inconstâncias
encontradas no texto modificassem a impressão geral sobre eles.
Ainda assim, apesar de não podermos comprovar a existência de apenas um Homero,
acreditamos, tal qual Sourvinou-Inwood, que “tenham eles sido compostos por um poeta ou
dois, as duas versões finais dos poemas são intimamente conectadas e são os produtos do
13
A bela morte, conceito muito debatido por Vernant (1978), consiste, como analisaremos em nosso primeiro
capítulo, em morrer jovem em campo de batalha, como um homem valoroso, demonstrando toda virilidade, honra
e coragem a fim de que a beleza juvenil do guerreiro fosse remorada e servisse de exemplo para gerações vindouras.
13
mesmo ambiente cultural” (1995, p. 13), sendo o fato de maior relevância para nós saber que
os gregos antigos, em sua maioria, como ressalta Colombani, estavam certos de que a
composição fora feita apenas por apenas um poeta (2005, p. 6) e que “não apenas o texto existe,
mas até mesmo a recepção definitiva dos poemas homéricos é historicamente atestada, pronta
para ser estudada empiricamente” (NAGY, 1996, p. 8).
No que compete ao contexto em que foram produzidas, ainda que seja sabido que a
Ilíada e a Odisseia foram fixadas na escrita no século VI a.C., sob a tirania de Pisístrato,
diferentes teses discutem a respeito de qual seria sua real época histórica. A partir das
escavações de Schlieman (1881), por exemplo, conectava-se a criação dessas poesias ao período
do evento que Homero narra em suas obras: a Guerra de Troia – usualmente localizada no final
da Idade de Bronze, também denominada Estrutura Palaciana e Sociedade Micênica,
abrangendo os séculos XV-XII a.C., aproximadamente (ROMILLY, 2001, p. 11).
Todavia, nota-se que esse núcleo micênico é diminuto (FINLEY, 1982, p. 43), além de
verificarmos nos versos épicos a presença de elementos posteriores a essa época, como a prática
da incineração dos mortos – contrapondo-se a inumação realizada no período dos palácios – e
a metalurgia do ferro – incomum na sociedade na qual seus heróis teriam vivido, que tinha o
bronze como metal predominante.
A partir desses dados, a teoria de que as obras homéricas foram criadas no Período
Micênico cai por terra, surgindo outras teses como a de Moses Finley (1982), na qual defendese que os séculos mais prováveis para a composição dos versos épicos seriam o X e o IX a.C.,
balizando sua hipótese na prerrogativa de que nas obras épicas “não há Jônia, não há dórios de
quem falar, não há armas de ferro, não há cavalaria nas cenas de batalha, não há colonização,
não há mercadores gregos, não há comunidades sem reis” (FINLEY, 1982, p. 45).
Outros autores como Snodgrass (1971) e Nagy (1996), sustentam que o autor dessas
epopeias teria sedimentado suas obras sobre uma longa tradição oral, nelas inferindo tradições
de diferentes períodos, não se podendo afirmar com garantia sua época de composição e até
mesmo retirando a validez dessa literatura como documentação histórica, recusa pronunciada
por Coldstream (1997, p. 18).
Todavia, grande parte dos helenistas, voltados para os estudos dos versos épicos, situam
essas obras no século VIII a.C., como é o caso de Redfield (1975) e Ian Morris (2003), hipótese
com a qual igualmente nos posicionamos, ainda que não tomemos como norte a totalidade dos
14
argumentos propostos pelos autores14, mas sim as relações que podemos estabelecer com esse
período às obras atribuídas a Homero.
O século VIII a.C. foi o início de grandes mudanças para a sociedade grega antiga,
especialmente na questão política. Vemos a formação da pólis, uma nova vida em sociedade na
qual os homens se uniam para decidir sobre diferentes questões em assembleia e na qual os reis
estavam perdendo o seu poder. Igualmente, esta foi a época em que os helenos experimentaram
um significativo crescimento demográfico, diminuíram as viagens de longa distância –
explorando os mares e dando início as colonizações e ao contato com o Oriente – e também
desenvolveram os santuários pan-helênicos, exultaram o passado aqueu e os heróis através de
cultos (CARLIER, 2008, p. 59-60).
As obras homéricas, ainda que não possa ser vistas como retratos desse período, não
deixam de reverberá-lo em seus versos. Segundo Neyde Theml, elas se inserem no conjunto de
fenômenos de mudança da sociedade durante o VIII século a.C., quando a expressão da língua
e da fala tiveram como resultado inovador a forma épica (1995, p. 147).
Na Ilíada e na Odisseia, ainda que o centro do poder seja o palácio, podemos encontrar
estruturas que estarão presentes na pólis15, como a assembleia, que se reúne por mais de uma
vez nas obras e dá lugar àquele que tem o cetro para expor suas opiniões, sinais de uma
incipiente iségoria; e também a contestação dos reis, sendo seu poder alvo de disputas e
discussão (CARLIER, 2008, p.246), como é possível verificar ao longo da Ilíada através das
contestações – especialmente por parte de Aquiles – àquele que seria o líder a expedição aqueia,
Agamêmnon, o basileus de Micenas.
Na Odisseia, segundo Pierre Carlier, representa-se “uma fase mais aguda do conflito
entre o rei e certos aristocratas. A conciliação das exigências opostos do rei e dos basileis parece
ter-se tornado difícil. Os antigos fundamentos da autoridade real, a hereditariedade, a
investidura divina de uma família, já não parecem ser admitidos de forma unanime (embora o
desfecho do conflito em Ítaca os confirme)” (2008, p. 247). Ainda nessa epopeia, podemos
igualmente verificar a citada expansão para o mar e o contato com diferentes povos,
conectando-se ao caráter proto-colonizador de Odisseu, defendido por Irad Malkin (1998, p. 3).
Ademais, ainda que a aristocracia não houvesse perdido seu poder, vemos o início da
desestabilização dessa camada social: com o surgimento da pólis, a abolição dos privilégios e
Ian Morris, por exemplo, considera os épicos homéricos como puro “arcaísmos e fantasia” (2003, p. 45), posição
que de nenhum modo nos afiliamos.
15
A épica, apesar de já trazer o termo pólis, com ele não quer dizer respeito à organização política, social,
econômica e administrativa que encontramos no Período Clássico. O termo designa vários elementos na obra,
como é o caso de lugares e ruas.
14
15
distinções começam a ser destacadas como a nova ideologia, demonstrando que esses poemas
são a expressão particular de um ponto de vista aristocrático que tendia ao colapso com as
mudanças estruturais que caracterizavam o século VIII a.C. (MORRIS, 2003, p. 45), sendo
neles necessário destacar a ética guerreira aristocrática a fim de legitimar sua posição, assim
como elevar seus heróis a uma exaltação que pode ser aproximada dos cultos existentes em sua
época.
À vista disso, cremos que a sociedade descrita em Homero, ainda que contenha
características próprias, que mesclem a aristocracia micênica com elementos do surgimento
políade, e não possam ser conectadas diretamente ao período histórico que supostamente o
poeta se encontra, não deixa de imiscuir questões do cotidiano do aedo, sendo visto diferentes
costumes do início do Período Arcaico (VIII-VII a.C.) fazendo parte da vida dos heróis
mitológicos.
Já no caso das tragédias de Eurípides – que não possuem, assim como Homero, dúvidas
acerca de sua composição ou época de criação16 – o principal motivo que nos levou a comparálas com as epopeias, além da direta referência feita aos mitos e personagens dessas obras, foi o
contexto em que elas se inseriam: o Período Clássico ateniense (V - IV a.C.). A democracia, a
transformação do homem em um ser político, o comprometimento com a coletividade, o gosto
pelo debate e o espírito crítico são algumas das características que podemos destacar para essa
época e que também se revelam nas obras do tragediógrafo.
Desse modo, defendemos, assim como diversos autores17, que através de suas
personagens, Eurípides colocava, no palco, os questionamentos e os problemas da pólis e, para
o caso das tragédias por nós escolhidas, um em especial: a Guerra do Peloponeso (431-404
a.C.)18. A atmosfera de morte e desilusão que esse conflito gerava em Atenas pode ser vista nos
temas dessas obras, rendendo a Eurípides tanto o título de pacifista, apresentando os males que
a guerra pode causar, quanto o de patriota19, evidenciando a necessidade de se sacrificar pela
comunidade (ROMILLY, 1999, p.103). Como nos remete Martha C. Nussbaum,
16
No que compete ao gênero literário do qual faz parte, não vemos a mesma configuração de poesia épica,
especialmente no que compete a sua duração. Mais curtas, feitas para serem apresentadas durante o festival das
Grandes Dionisías, elas faziam parte de um gênero teatral, que além de servir como entretenimento para o público,
levava “uma interpretação da vida diária, das práticas sociais que produziam o cotidiano” (CODEÇO, 2010, p.
16), demonstrando o que deveria ser seguido para o bem da pólis.
17
Podemos citar Romilly (1999), Vernant e Vidal-Naquet (2008) e Maria de Fátima Souza e Silva (2005), por
exemplo.
18
A peça Alceste é a única que não foi criada durante o conflito da Guerra do Peloponeso. Todavia, como veremos,
os conflitos entre Atenas e Esparta já eram iminentes em sua época de composição.
19
Devemos deixar claro que a noção de pátria é inexistente no período por nós estudado. Como elaborado por
Violene Sebiollete-Cuchet ao longo de sua obra (2006), apesar do discurso da pólis frequentemente se focar em
16
Uma tragédia não revela os dilemas de suas personagens como préanunciados; ela os mostra em sua busca por aquilo que tem pertinência moral;
e nos compele, como intérpretes, a ser igualmente ativos. A interpretação de
uma tragédia é mais confusa, menos definida e mais misteriosa do que a
avaliação de um exemplo filosófico; e mesmo que a obra já tenha sido
interpretada, permanece inesgotada, sujeita à reavaliação, de um modo tal que
não ocorre com o exemplo (NUSSBAUM, 2009, p. 13).
Analisando nosso objeto de estudo neste gênero literário, verificamos que as batalhas
são deixadas de lado para darem lugar a assassinatos tramados, sacrifícios humanos20 e suicídios
(esses mais mencionados que realizados). Através de suas vítimas, Eurípides demonstrava
como o fim da vida levava tristeza àqueles que ficavam e, especialmente, a preocupação com
os mortos (CANDIDO, 2005, p. 133). Isso porque, como ressalta Maria de Fátima Souza e
Silva, “é para o destaque das reações humanas, da vítima e dos parentes, que vão as atenções
do poeta” (2005, p.129).
Ademais, no que compete às crenças existentes em relação a vida após a morte,
Eurípides não deixa de nos revelar questões referentes a essa temática, sendo inegável que
muito do que verificamos em suas peças conectadas a ela fazia parte da tradição mito-poética
da qual Homero haveria se inspirado e representado em suas obras, sendo estas arquitextos para
Eurípides, isto é, portadoras de “um estatuto exemplar, que pertencem ao corpus de referência
de um ou de vários posicionamentos de um discurso constituinte” (CHARAUDEAU;
MAINGUENEAU, 2012, p. 64).
Todavia, ainda que ambos os poetas fizessem parte de um processo discursivo mais
amplo, as obras trágicas, além de adaptarem seus mitos ao que se queria passar para o público,
demonstravam as mudanças que o Período Clássico denota acerca do das crenças no post
mortem, demonstrando novos elementos conectados ao mundo dos mortos, por exemplo, assim
com as mudanças decorridas em relação a compreensão acerca dos processos vitais e dos
elementos supra-corpóreos, como é o caso de psykhé.
À vista disso, demonstrando as práticas e crenças funerárias em suas obras, defendemos
que, assim como no caso de Homero, o espaço teatral comunica e educa, tornando-se um meio
de se expressar frente aos outros. As peças de Eurípides tinham um forte valor instrutivo e
considerações institucionais, a palavra pátris, já encontrada desde Homero, não significaria o sentindo pelo qual
hoje conhecemos e sim o apego aos ancestrais, a terra e os laços entre membros da comunidade.
20
O tema do sacrifício humano é muito abordado por Eurípides, como veremos, enquanto em Homero só aparece
uma única vez, quando Aquiles sacrifica 12 jovens como libação ao amigo morto, Pátroclo (HOMERO. Ilíada,
XXIII, vv. 180-183).
17
levavam em suas encenações os ideais de cidadania a serem seguidos pelos helenos, assim como
os questionamentos presentes em sua época.
Assim sendo, diante desse corpus documental, podemos verificar como seu conteúdo
perpassa nosso objeto de estudo, levando-nos a evidenciar, como é proposto através da História
Comparada, as singularidades, repetições e diferenças apresentadas em relação à morte por cada
um dos poetas.
A fim de estabelecermos essa comparação, escolhemos como base metodológica da
presente pesquisa os procedimentos propostos pelo antropólogo Marcel Detienne, sintetizados
em sua obra Comparar o incomparável (2000), na qual evidencia tanto conceitos-chave para se
analisar comparativamente quanto realiza uma crítica, por vezes bastante ácida, aos paradigmas
metodológicos lançados por Marc Bloch. Isso porque, apesar do medievalista ter travado uma
luta contra a chamada história historicizante – na qual a singularidade dos fatos e o foco no
nacional postulavam-se como marco – recebe críticas por não ter realmente rompido com as
práticas históricas existentes em sua época.
Para Bloch, aplicar o método comparativo no quadro das Ciências Humanas consistia
em buscar as semelhanças e diferenças que apresentam duas séries de natureza análogas (1930,
p. 31), ou seja, analisar “sociedades vizinhas, contemporâneas e de mesma natureza”
(DETIENNE, 2000, p. 35). Detienne, ao contrário, influenciado pela antropologia, inaugura um
comparativismo construtivo, buscando relacionar as representações culturais das sociedades,
independente da distância que se encontrem, seja ela no tempo ou espaço (2000, p. 47),
criticando a máxima de só se poder “comparar o que é comparável”.
Defendendo que produções culturais, costumes, leis, mitos e ritos, devem ser o foco da
investigação dos pesquisadores, o helenista enfatiza que através do estudo comparado devemos
nos tornar tão familiares do pensamento ou da cultura analisada, que possamos “fazer como se
nela estivessem, como se pensassem com aquele pensamento” (DETIENNE, 2000, p. 44).
A partir disso, propõe alguns procedimentos metodológicos a serem seguidos, como é o
caso da construção de comparáveis que, nas palavras do autor, são relações em cadeia com uma
escolha inicial (DETIENNE, 2000, p. 58), ou seja, problemas definidos a partir do que se deseja
analisar, de uma categoria estabelecida pelo pesquisador.
Na presente pesquisa, partindo da categoria morte, definimos como comparável o
processo discursivo da elaboração de um código de conduta ante da morte, verificando-os nas
obras de Homero e Eurípides. A partir dessas definições, descortina-se um amplo campo de
estudo que possibilita a busca por proximidades e distanciamentos entre um gênero literário e
18
outro, objetivando-se “descobrir formas moventes e múltiplas com as quais as sociedades se
depararam, as representaram e se transformaram” (BUSTAMANTE; THEML, 2007, p. 11).
Já no que concerne à nossa metodologia de leitura analítica, adotamos a Análise de
discurso proposta por Eni P. Orlandi, disciplina que começou a ser desenvolvida no final dos
anos 60, na França, através dos trabalhos de Michel Pêcheux. Descrevendo seu processo de
investigação textual, podemos verificar que o que se busca através dessa perspectiva é ir além
de uma análise per se do discurso, colocando-se em destaque os processos e condições de
produção do mesmo, pois “o analista de discurso relaciona a linguagem à sua exterioridade”
(ORLANDI, 2012, p. 16). Através de sua pesquisa, a autora propõe não apenas uma simples
análise textual, mas sim a relação entre língua, ideologia e história.
Objetivando-se a compreensão do discurso, faz-se necessário a dessuperficialização do
corpus documental, analisando sua materialidade linguística, isto é, o como se diz, o quem diz,
em que circunstâncias. A partir disso, obtém-se um processo discursivo, pelo qual é possível
se compreender o modo como o discurso que analisamos se textualiza, assim como a ideologia
que ele constrói (ORLANDI, 2012, p.65). Há, desse modo, como denota Orlandi, um trabalho
simbólico no discurso, sendo esse capaz de provocar efeitos de sentido entre os locutores
(ORLANDI, 2012, p.21).
Outrossim, entendendo o discurso como uma “palavra que percorre um curso”
(ORLANDI, 2012, p.15), devemos ter em mente que ele é formado por interdiscursos, ou seja,
pelo o diálogo com tradições literárias existentes, verificando-se que “os sentidos resultam de
relações: um discurso aponta para outros que o sustentam, assim como para dizeres futuros.
Todo discurso é visto como um estado de um processo discursivo mais amplo, contínuo”
(ORLANDI, 2012, p.39).
Na presente dissertação, através da análise dos discursos de Homero e Eurípides,
analisando-os em sua discursividade, buscaremos interpretar como nosso comparável é
constituído nessas peças, levando em conta a posição sócio-histórica dos enunciadores a fim de
delinearmos a ideologia que os mesmos perpassam, sendo este conceito compreendido no
contexto helênico por nós analisado como “um conjunto de representações dos valores éticos e
estéticos que norteiam o comportamento social” (LESSA, 2010, p. 22).
Não objetivamos, assim, dominar “o” sentido do texto e sim “construir interpretações”
(CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2012, p. 10), sendo necessário operacionalizar a
presente pesquisa, destacando dois conceitos que a perpassam: o de representações sociais e o
de poder. O primeiro deles, engendrado por Moscovici no campo da Psicologia Social após o
19
resgate e reelaboração dos estudos de Durkheim, tornou-se objeto de estudo das Ciências
Humanas há algumas décadas. Denise Jodelet é uma das pesquisadoras que se dedicou a
analisar esse conceito, sendo esta pesquisa pautada em suas percepções acerca dele.
Segundo a autora, criamos representações a fim de nos ajustarmos ao mundo, dominálo física e intelectualmente, sabermos nos comportar, identificar problemas e resolvê-los. Essas
representações são vistas como sociais, pois convivemos com outros indivíduos, que nos
servem de apoio para compreender o universo que nos cerca, administrá-lo e enfrentá-lo, sendo
essa noção capaz de nos guiar “no modo de nomear e definir conjuntamente os diferentes
aspectos, tomar decisões e, eventualmente, posicionar-se frente a eles de forma decisiva”
(JODELET, 2001, p. 17).
As representações são, assim, as interpretações que os indivíduos ou grupos constroem
sobre determinados objetos, podendo estes serem pessoas, coisas, ideias ou fenômenos naturais;
reais, imaginários ou míticos. Dessa forma, esses sistemas de interpretação organizam e
orientam nossas condutas, sendo tanto processo como produto dessa apropriação que os sujeitos
fazem da realidade que os cercam, elaborando-a psicológica e socialmente.
Ademais, devemos enfatizar que as representações sociais circulam nos discursos, sendo
um fenômeno observável, podendo revelar diferentes elementos da sociedade como normas,
crenças, valores e atitudes. Através da simbolização e interpretação dos objetos, as
representações sociais, assim, também apresentam um caráter prático, sendo orientadas para
ação e para a gestão da relação com o mundo, contribuindo para a construção de uma realidade
comum a um corpo social (JODELET, 2001, p. 36).
Dessa maneira, a autora nos orienta que devemos analisá-las no contexto em que são
produzidas, evidenciando questões que devem ser postas em pauta para podermos lidar como
esse conceito: 1) Quem sabe e de onde sabe? (Condições de produção e circulação) 2) O que e
como sabe? (Processos e estados) 3) Sobre o que e com que efeitos? (Estatuto epistemológico
das representações) (JODELET, 2001, p. 28).
Nesta dissertação, objetivando analisar as interpretações e construções simbólicas que
os poetas fazem sobre a morte, verificamos como o conceito de representações sociais nos
auxilia na construção de nossas hipóteses. Ademais, visto que elas servem “para agir sobre o
mundo e o outro, o que desemboca em suas funções e eficácias sociais” (JODELET, 2001,
p.28), podemos verificar como as representações do fim da vida também são capazes de revelar
relações de poder, agindo sobre a sociedade em que esses discursos circulam.
20
A fim de compreendermos este outro instrumento teórico por nós utilizado, valemo-nos
novamente dos estudos de José Carlos Rodrigues. Em sua obra Ensaios em Antropologia do
poder (1991), o estudioso evidencia não apenas sua visão acerca do conceito, mas também a
relação que ele mantém com o fenômeno da morte. Segundo Rodrigues, todas as sociedades
constituem-se como um sistema de regras, comportando “dimensões coercitivas que desenhem
os seus contornos e que garantam sua sistematicidade” (1991, p. 24-5). Buscando firmar-se
contra o caos e a entropia, elas organizam comportamentos, pensamentos e sentimentos,
devendo assim serem estruturadas como poder.
Ao definir esse conceito, o autor destaca que o poder não pode ser visto localizado em
alguma instância social, indivíduo ou grupo específico, propondo que o analisemos não como
“alguma coisa que alguns homens dominem” e sim “algo que domine os homens”, sendo
inerente à sociedade (RODRIGUES, 1991, p. 39). Dessa maneira, o poder, para Rodrigues
possui uma natureza mágica e simbólica, sendo, antes de tudo cósmico, “cósmico, no sentido
de que é o que funda, mantém, faz e refaz a regularidade, a norma, a ordem, a saúde”, mas que
pode ser visto materializado na própria sociedade, que é o primeiro partido do poder”
(RODRIGUES, 1991, p. 16).
Relacionando esse conceito à morte, evidenciando o papel dos vivos frente a ela,
Rodrigues destaca que “não há sociedade que não seja obrigada a assumir atitudes firmes diante
do desaparecimento de seus membros. Todas se veem coagidas a se estruturar como poder,
capaz de enfrentar os contra-poderes do aniquilamento” (RODRIGUES, 1991, p.12). Através
dessa estruturação realiza-se, igualmente, uma “rotinização forçada da morte”, incluindo-a em
um sistema de regularidades e expectativas, esforçando-se para enquadrá-la em categorias.
Assim, através da manipulação estratégica de símbolos, pela qual o poder se elabora,
podemos compreendê-lo “como se fosse um fenômeno de comunicação e significação inscrito
e enquadrado em um contexto cultural, este mesmo embebido de poder, comunicação e
significação. Como se fosse um fenômeno que se reproduzisse em cada ação social, agindo
sobre ações, em lugar de sobre pessoas” (RODRIGUES, 1991. p.42).
Conectando os conceitos aqui debatidos, podemos verificar como através da
representação da morte, os discursos épicos e trágicos são capazes de exercer relações de poder
com a sociedade na qual estavam inseridos, sendo, como Rodrigues denomina, canais para que
esse fenômeno cósmico seja exercido (1991, p. 39).
Conjugado ao nosso quadro teórico-metodológico, o suporte bibliográfico igualmente
nos auxilia na compreensão de nossa problemática e no seu desenvolvimento. Realizando uma
21
revisão dos estudos existentes que abordam o tema da morte, de suas crenças e práticas na
Antiguidade grega, verificamos diferentes enfoques de análise. Podemos destacar investigações
voltadas para o âmbito arqueológico apenas, outras para a história da religião ou da linguística
e ainda aquelas dedicados a uma antropologia histórica (ANDRADE, 2003, p. 135-6). Ademais,
algumas são destinadas a dar um panorama mais amplo sobre o tema, abarcando diferentes
períodos e documentações, e outras se focam em questões mais pontuais, como a morte heroica
e o sacrifício humano21.
Buscando analisar as percepções acerca da morte nas obras de Homero e Eurípides,
Robert Garland (The greek way of death - 1985) e Christiane Sourvinou-Inwood (“Reading”
Greek Death: to the end of the classical period - 1995) são os que mais nos fornecem
informações sobre o nosso objeto de pesquisa. Além de se dedicarem à documentação escrita,
os artefatos arqueológicos são utilizados por eles para se analisar diferentes períodos da
Antiguidade grega, por vezes realizando comparações. O olhar antropológico desses autores
também não está ausente em suas pesquisas, demonstrando-nos, de certo modo, uma pretensão
ao tentar reconstruir as ideias e práticas religiosas relacionadas com a morte que existiam na
Grécia Antiga. Ambos os autores analisam as crenças no além-vida, a importância e
configuração dos funerais e do luto, além de trazerem diferentes discussões bibliográficas a
respeito do tema. Muitos de seus pressupostos se assemelham tanto entre si quanto em relação
aos nossos.
Seguindo a mesma direção de Garland e Sourvinou-Inwood, Maria Serena Mirto (Death
in the Greek World: from Homer to the classical age - 2007) destaca-se nos estudos sobre a
morte na Antiguidade grega ao enfocar os ritos e crenças a respeito da morte de Homero ao
Período Clássico, verificando, assim como nós, as similitudes e mudanças entre um e outro.
Utilizando-se tanto de Arqueologia quanto de obras literárias, tal qual os autores supracitados,
questões como as etapas do funeral, a necessidade do luto, as honras a serem prestadas aos
mortos a fim de que estes sejam mantidos na memória social, além da vida após a morte, são
tópicos essenciais em sua obra. Ademais, a autora busca enfatizar a relação entre os vivos e os
mortos e o papel daqueles frente ao fim da vida, discutindo as dimensões sociais e políticas
desse momento.
Dentre esses autores que buscam dar uma visão mais ampla do fenômeno da morte na
Antiguidade grega, demarcando tanto o uso da arqueologia quanto a vertente antropológica, o
21
A fim de situarmos as obras de acordo com o período de composição, apresentamos em nossa discussão
bibliográfica os anos de lançamentos das mesmas e não das edições por nós utilizadas.
22
trabalho de Emily Vermeule (Aspects of death in early greek art and poetry- 1979), ainda que
contenha fragilidades, é profícuo para nossos estudos ao nos fornecer diversos dados sobre as
representações da morte descritas nessas documentações, como o luto, a organização do funeral,
o Hades e a psykhé. No entanto, indo de encontro aos autores supracitados, que veem na
literatura uma maneira pela qual as representações sociais do fim da vida podem ser desveladas,
Vermeule parece valorizar os artefatos materiais frente à poesia, visto que, para ela, os poetas
sabiam tanto a respeito do pensamento grego sobre a morte quanto sabemos hoje em dia
(VERMEULE, 1979, p. 4-5), aproximando-se da perspectiva de outro estudioso com o qual
dialogamos: Francisco Diez Velasco. Este autor, que apesar de igualmente utilizar tanto a
documentação literária quanto a arqueológica a fim de evidenciar as crenças acerca do que
aconteceria após a vida ter seu fim em seus diversos trabalhos, sobrepõe a importância dos
artefatos materiais diante da literatura, afirmando que essa “só conteria opiniões” (VELASCO,
2006, p. 97). Apesar disso, acreditamos que suas análises, especialmente em relação ao Hades,
acrescentam nossos debates sobre o além-vida.
Voltando-nos aos estudos tanáticos mais pontuais, isto é, que se dedicam a analisar
alguns aspectos da morte ou do pós-morte, temos como contribuição um trabalho recente,
elaborado por Stamatia Dova (Greek heroes in and out of Hades – 2012). A autora se torna
referência para nossos estudos ao analisar em sua obra a relação dos heróis com o mundo dos
mortos, dedicando-se especialmente ao caso da katábasis na Odisseia, mas também
investigando outras produções literárias como a Alceste, de Eurípides e O Banquete, de Platão,
focando-se na relação entre a morte e o heroísmo e evidenciando questões como a glória
alcançada após a vida ter seu fim.
Jean-Pierre Vernant é outro autor que se destaca em nossa revisão bibliográfica. Além
de nos remeter em diversas obras sobre questões a respeito da importância do mito, das epopeias
de Homero e das tragédias na sociedade grega22, também é essencial para entendermos como
os gregos viam a morte, descrita pelo autor como a alteridade por excelência (VERNANT,
1988, p. 34). Além disso, Vernant nos demonstra a importância da rememoração social dos que
já se foram, especialmente no caso dos heróis homéricos, dando destaque ao conceito de bela
morte, explicitando a necessidade de se realizar feitos honrosos e até mesmo uma morte gloriosa
22
Diversos estudos contidos em nossa bibliografia também se dedicam a analisar a importância da epopeia e da
tragédia na sociedade grega. Obras mais antigas como as de Romilly (1999), Vernant e Vidal-Naquet (2008), assim
como produções mais recentes como as de Maria Cecilia Colombani (2005), Alexandre Moraes (2012) e os
diversos artigos que compõe os compêndios organizados por Justina Gregory (2005) e Robert Fowler (2004)
destacam essa temática.
23
para atingir seu lugar na memória dos que ficaram, perspectiva também discutida por Schein,
em sua obra The mortal Hero (1984), utilizada nesta pesquisa.
A discussão pontual acerca da alma na Antiguidade grega também faz parte de muitas
obras acadêmicas. Vernant novamente se destaca no estudo desse tema, discorrendo em
diversos trabalhos sobre como os heróis das epopeias lutavam para manter a vida, sua psykhé,
e também como esse elemento se caracterizava ao se encontrar no Hades. Já Erwin Rohde
(Psique. La idea del alma y la inmortalidad entre los griegos - 1894), um dos pioneiros no
estudo sobre a psykhé, apresenta as diferentes características dadas a esse elemento ao longo da
Antiguidade grega, abordando tanto as epopeias quanto as tragédias, apesar de dar maior
atenção às primeiras. Porém, algumas de suas hipóteses são criticadas por outros estudiosos,
como Werner Jaeger23, e também por nós. Ao buscar defender, por exemplo, que a psykhé
homérica agia através dos sonhos (ROHDE, 1983, p.11), perspectiva considerada de caráter
animista24, o estudioso não é capaz de citar nenhuma passagem em que isso ocorra, mas se
utiliza de uma obra posterior, de Píndaro, para validar seu pressuposto.
E. R. Dodds (Os gregos e o irracional - 1951) é igualmente um helenista que buscou
refletir sobre a mentalidade dos antigos gregos, também dando enfoque ao uso de termos como
psykhé, thymós, menos e até, por exemplo, analisando tanto as epopeias quanto as tragédias e
demonstrando as características e funções dos órgãos e intervenções psíquicas que poderiam
agir sobre eles, investigação que Bruno Snell (A descoberta do espírito), ainda em 1948, isto é,
anteriormente a Dodds, busca realizar em sua obra. O autor, preocupado em investigar a
maneira pela qual os gregos desenvolveram em sua cultura o que chamamos de pensamento
humano, descreve em seu trabalho o longo processo pelo qual a sociedade antiga teria sofrido
seu desenvolvimento do espírito, apontado diversas etapas perpassadas a fim de se apreender a
natureza do homem e sua essência (SNELL, 1992, p.12), seus elementos psíquicos e supracorpóreos, como é o caso da alma – seja na epopeia ou na tragédia.
23
Apesar de uma pequena parte da obra de Jaeger (1992) se destinar ao estudo sobre a psykhé em Homero, suas
hipóteses a respeito desse elemento aproximam-se das nossas: segundo ele, por exemplo, a psykhé homérica é uma
“alma-vida”, que deixa o corpo após a morte, mas que não pensa, nem sente, e thymós uma “alma-consciência”,
vinculada aos órgãos e processos corporais (1992, p.87). Ainda assim, para o autor o principal significado do termo
psykhé, em Homero, é o de “vida”, e não o de “sombra do morto”, como apontava Rohde (JAEGER, 1992, p. 87).
Porém, apesar de defendermos que psykhé significa tanto o princípio vital do homem homérico, quanto sua sombra
no Hades, não concordamos ser possível averiguar através dos poemas uma valorização de um significado sobre
o outro.
24
Segundo a teoria animista, “o homem primitivo, meditando sobre o estranho fenômeno do sonho e
(principalmente) sobre a diferença entre o corpo morto e o vivo, teria chegado à conclusão de que deve existir um
ser invisível, uma ‘alma’, em que repousaria a vida e cuja ausência, temporária ou definitiva, causaria o sono, ou
a morte” (OTTO, 2006, p. 29).
24
Giovane Reale (2002), que dialoga por diversos momentos em sua obra com os estudos
de Snell, oferece-nos, igualmente, muitas informações sobre esses elementos, dedicando-se a
explicar pormenorizadamente a composição do corpo homérico e de outros elementos que
poderiam agir sobre ele. Outro autor que também nos auxilia a entender as crenças a respeito
desses princípios supra-corpóreos na sociedade grega, mas somente no caso homérico, é Jan
Bremmer (1993). Ao comparar as epopeias com a mitologia védica, o estudioso defende a
hipótese, também apreciada por nós, de que haveria dois tipos de alma distintas e
independentes, que unidas constituiriam a concepção moderna que temos sobre o termo
(BREMMER, 1993, p.66): uma alma livre, representando a própria vida do homem e sua parte
que se destinaria ao Hades, denominada psykhé; e uma corporal, referindo-se aos órgãos
responsáveis por diversas funções ligadas tanto ao psíquico quanto ao físico.
Luis Krausz (2007), que igualmente dedica parte de sua obra à análise da psykhé na
Antiguidade, ainda que assuma diversas das prerrogativas lançadas por Bremmer acerca deste
elemento, auxilia-nos através de uma revisão bibliográfica sobre a temática, discutindo as
diferentes percepções acerca desse termo para os gregos, evidenciando como diversos autores
pensaram essa temática. Além disso, sua obra também se destaca pela atenção dada à
importância da epopeia e dos aedos na sociedade grega, evidenciando seu papel didático.
Outra análise pontual relacionada à morte presente nesta dissertação diz respeito aos
sacrifícios humanos, encontrados, sobretudo, nas obras euripidianas. Nicole Loraux (Maneiras
trágicas de matar uma mulher - 1988) e Maria de Fátima Souza e Silva (Ensaios sobre
Eurípides - 2005), além de destacarem acerca dessa temática, debatendo as relações existentes
entre o texto e o contexto das tragédias que apresentaram a morte pelo cutelo do degolador,
auxiliam na elaboração das hipóteses por nós desenvolvidas ao fornecerem diversas
informações sobre a morte, como é o caso do luto e da relação que os vivos estabeleciam com
os falecidos. As exemplificações recorrentes no texto das autoras, com passagens e personagens
das tragédias, conseguem reiterar de forma clara o que é defendido por elas.
Demais autores que se dedicaram a análise do sacrifício na Grécia Antiga, como Dennis
Hughes (Human sacrifice in Ancient Greece - 1991) e Albert Henrichs (Animal Sacrifice in
Greek Tragedy. Ritual, metaphor, problematizations - 2013) também são referências para nós.
O primeiro, dedicando-se a um estudo que conjuga tanto a dimensão do sacrifício no cotidiano
grego quanto nas obras literárias também dá destaque às relações entre o cotidiano e o universo
literário. O segundo, ao analisar a temática dentro das obras trágicas, destaca a importância de
25
demonstrá-la ao público no teatro, evidenciando as relações com o contexto em que o autor
estava inserido.
Assim sendo, em vista deste referencial bibliográfico acerca da morte na Antiguidade
grega, conjugado a uma leitura atenta de nosso corpus documental e um quadro teóricometodológico que nos auxilia a compreendê-lo, evidenciaremos na presente dissertação como
as produções culturais acerca do fim da vida são múltiplas e variáveis, apresentando as
similitudes e diferenças de um poeta para o outro.
Dividiremos este trabalho em três capítulos, cada qual conectado a uma hipótese: o
primeiro dedica-se a analisar as representações sociais da morte nas obras de Homero e
Eurípides de uma maneira mais ampla, sustentando como estas se constituem como referências
para avaliarmos as concepções acerca da morte e do pós-morte nos Períodos Arcaico (VIII –
VI a.C.) e Clássico (V- IV a.C.), assim como seus estatutos pedagógicos em meio à sociedade;
o segundo propõe compreender a importância dos ritos funerários em nosso corpus documental.
Destacaremos o papel dos vivos perante a morte, revelando que tanto Homero quanto Eurípides
demonstram em seus versos uma verdadeira política associada ao fim da vida ou, ainda mais,
uma ideologia funerária, estando o aedo cantando em prol dos ideais aristocráticos do Período
Arcaico – já sob ameaça – e Eurípides descrevendo o agón entre estes ideais e os da Atenas
democrática; o terceiro e último capítulo tem como foco as crenças descritas pelos poetas em
relação ao destino dos mortos e as existentes acerca da existência de uma alma, da psykhé,
demonstrando que as percepções do além-vida não se tratam apenas de representações espaçotemporais, mas igualmente de uma visão sociológica e antropológica, que se modifica de acordo
com às circunstâncias sociais e culturais. Demonstraremos como Homero, inserido em um
período no qual a palavra mágico-religiosa se faz destaque, evidencia, por diversas vezes, essas
crenças post mortem; ao contrário de Eurípides, que ao pôr em foco a palavra-diálogo, referese diminutamente a esse mundo imaginário, inserindo questões do lógos racional, que começa
a se fazer presente em seu contexto de produção25.
25
Segundo Marcel Detienne, a palavra mágico-religiosa é intemporal e inseparável das condutas e dos valores
simbólicos. Conecta-se àqueles que têm acesso privilegiado às divindades, trazendo seus desígnios ao
conhecimento de homens excepcionais, como é o caso dos aedos e adivinhos. Ela se oporia a palavra-diálogo que,
segundo o helenista, “é laicizada, complementar à ação, inscrita no tempo, provida de autonomia própria e
ampliada às dimensões de um grupo social” (1988, p.45).
26
Capítulo 1
Morte épica e morte trágica: por que representá-las?
Durante muito tempo, na historiografia, as obras literárias foram deixadas de lado em
prol de documentos oficiais, os únicos capazes de revelar as verdades sobre o passado. Analisar
poesias épicas, tragédias antigas ou modernas, era cabido a outras áreas do conhecimento que
não à História. Porém, já há algumas décadas, esses materiais começaram a ser verificados
como documentações profícuas para o estudo das sociedades, sendo a literatura constatada por
muitos autores, como é o caso de Antônio Celso Ferreira, como uma via de acesso ao
entendimento dos inúmeros universos culturais aos quais o historiador tem contato (2009, p.
61).
Destarte, devemos ter em mente que os textos literários não devem ser analisados apenas
como um objeto de estudo nele mesmo, mas sim como parte de uma dinâmica social, como
artefatos históricos e culturais que nos remetem às “representações do passado, construídas a
partir de um olhar, de determinados códigos e valores” (GRUNER, 2008, p.11 - grifos do
autor).
Partindo dos pressupostos de nossa metodologia de análise textual, problematizando o
que nos é passado através das obras homéricas e euripidianas, objetivamos defender ao longo
deste capítulo como seus discursos detêm uma dimensão simbólica, possuindo um papel social
frente à comunidade em que eram cantadas e representadas, reforçando os códigos de condutas
a serem seguidas em relação à morte, mas igualmente demonstrando-se como caminhos para se
compreender as tensões que cerceavam os poetas em seu contexto de produção.
Tendo em mente a relação dessa mensagem simbólica com o cenário no qual os poetas
analisados estavam inseridos, “podemos dizer que o lugar a partir do qual fala o sujeito é
constitutivo do que ele diz” (ORLANDI, 2012, p.39). Sendo assim, devemos analisar os versos
dessas obras em sua discursividade, isto é, tendo em mente que o discurso é contextualizado,
não se podendo atribuir um sentido a um enunciado fora de um contexto (CHARAUDEAU;
MAINGUENEAU, 2012, p.171), fazendo-se necessário construir dispositivos de interpretação,
objetivando-se procurar ouvir naquilo que o sujeito diz o que ele não diz, mas que está presente
nos sentidos de suas palavras (ORLANDI, 2012, p.59). Ademais, a partir do conceito de
representação social, como aqui já exposto, evidenciaremos os possíveis objetivos dos poetas
27
ao realizarem a simbolização da morte em seus poemas, destacando como este instrumento
teórico é capaz de verificar o âmbito sociocultural nas suas especificidades históricas.
À vista disso, sustentamos que a arte poética na sociedade grega não possuía apenas o
papel de entreter o público a qual se direcionava: a epopeia e o teatro constituíam-se, como
apontado por diversos estudos, em verdadeiros veículos educativos, capazes de reforçar os
valores preconizados pela sociedade, fazendo parte da chamada paideía.
Significando, literalmente, educação de meninos, perfazendo-se em um conceito muito
amplo e complexo, paideía pode ser simplificado como um conjunto de atividades educacionais
e culturais da sociedade grega, que possuía como objetivo a construção de um cidadão com
areté (excelência, virtude), honra e coragem, através de atividades que levavam a harmonia
entre o corpo e a mente26.
Apesar de ser um termo que aparece apenas no século V a.C., em uma tragédia de
Ésquilo, como ressaltado por Jaeger (2010, p. 335), suas práticas são muitos anteriores,
levando-nos a utilizar esse conceito para as epopeias de Homero que, inclusive, devemos deixar
claro, não instruíram apenas os homens de seu tempo27.
As obras aqui analisadas, cada uma a sua maneira, como veremos, irão inspirar seu
público através dos exemplos heroicos, de um passado que deve ser rememorado e transmitido
de geração a geração. Até mesmo Aristófanes, em sua comédia As Rãs28¸ destaca o papel
educativo da poesia, demonstrado esse grau de interferência na sociedade:
ÉSQUILO
[...] Responde-me: em que é que devemos admirar um poeta?
EURÍPIDES
Pela sua inteligência e bom conselho, porque tornamos melhores os homens
nas cidades.
(ARISTÓFANES. As Rãs, vv.1006-9).
Como ressaltado por Jaeger “Não se pode evitar o emprego de expressões modernas como civilização, cultura,
tradição, literatura ou educação; nenhuma delas, porém, coincide realmente com o que os gregos entendiam por
paidéia. Cada um daqueles termos se limita a exprimir um aspecto daquele conceito global, e, para abranger o
campo total do conceito grego, teríamos de empregá-los todos de uma só vez” (2010, p.1).
27
No Período Clássico, as crianças aprendiam a ler com suas obras e chegavam a sabê-la de cor, mesmo com seus
14 mil versos - Ilíada - e 12 mil versos - Odisseia, além de tocarem cítara recitando seus versos. Ademais, segundo
Romilly, “foi encontrado, no Egito, o testemunho concreto de que ainda na época helenística Homero servia para
exercícios escolares da escrita, de paráfrase, de transcrições em língua moderna ou de comentários” (2001, p. 111).
28
Em As Rãs, vemos um inconformado Dioniso que deseja ir até o Hades a fim de restaurar o mundo trágico na
sociedade ateniense. Tendo como objetivo de sua katábasis (descida ao Hades) a busca do tragediógrafo Eurípides,
acaba, após diversas discussões deste com Ésquilo, resgatando o último do mundo inferior.
26
28
Utilizando o mito em suas composições, tanto as encenações trágicas como as epopeias
de Homero não apenas destacam as crenças e valores associados à sociedade em que estavam
inseridas, mas também, como ressalta François de Polignac, evidenciam que toda obra é
suscetível de criar um espaço de comunicação e significação que pode interferir em outros
espaços (2010, p.483), revelando-se canais de poder ao buscarem organizar e orientar a conduta
dos homens, estabelecendo-se como um sistema de regras frente o fim da vida (RODRIGUES,
1991, p.24).
A fim de entendermos esse espaço de comunicação e os efeitos que os discursos
poéticos causavam em seu público, devemos verificar, como proposto por Jodelet, as condições
de produção e circulação29 das obras aqui analisadas, a materialidade linguística dos discursos,
entendendo-as como próprio produto do contexto em que estavam inseridas e demarcando as
funções e eficácias sociais das representações sociais relacionadas à morte que são postas em
pauta por esses poetas (JODELET, 2001, p.28).
Dessa maneira, no presente capítulo, destacaremos como e com que fins essas
representações da morte, inseridas no universo mitológico das tragédias e epopeias, são criadas,
objetivando, assim como Vernant, responder a seguinte questão: “em que limites e sob que
formas o mito está presente numa sociedade, e uma sociedade presente em seus mitos? ” (2010,
p. 6).
1.1| Ser herói, fazer-se exemplo
Ao analisarmos as obras homéricas, responsáveis por compilar uma série de mitos30 e
ritos da sociedade grega, podemos encontrar uma distância com a realidade menor que
imaginamos. Objetos de análise desde a Antiguidade, a Ilíada e a Odisseia foram consideradas
importantes meios de difusão da cultura helênica, tendo seu valor paidêutico verificado tanto
na sua época de composição quanto posteriormente, chegando a ser apontadas, conforme
Fowler, como apenas sobrepujadas em importância na literatura ocidental pela Bíblia (2004, p.
XV).
Como ressalta Sourvinou-Inwood, “Quando objetivamos reconstruir os significados que um texto possui para
seus contemporâneos, nós devemos primeiramente tentar, tanto quanto possível, reconstruir suas circunstâncias de
produção, seu meio histórico, social e cultural, sua função e audiência, que irão fornecer a matriz para a
reconstituição das pretensões, códigos e estratégias operadas pelo escritor e a audiência que ele estava se dirigindo
(1995, p.4).
30
Sob a perspectiva de Vernant, o mito, apesar de ser alvo de muitas discussões sobre seu caráter fantasioso, é um
esboço do discurso racional, do lógos, podendo responder questões sobre universo, além de constituir “durante
mais de um milênio o fundo comum da cultura, um quadro de referência não apenas para a vida religiosa como
também para outras formas da vida social e espiritual [...]” (2010, p. 188).
29
29
No período de florescimento da Filosofia, cerca de quatro a cinco séculos após a
provável data de composição das epopeias homéricas, diferentes nomes destacaram o papel
social que essas obras exerciam, conciliando “uma veneração sem limites pelo poeta e uma
crítica, por vezes bastante cáustica, do texto transmitido” (CARLIER, 2008, p. 12-3). Platão,
por exemplo, apesar de defender a expulsão de Homero de sua pólis ideal31, não poupou elogios
a sua função educativa, destacando-a nos diálogos entre Sócrates e Glauco, em sua República:
Assim, Glauco, lhe falei, quando ouvires os admiradores de Homero declarar
que esse poeta foi o educador da Hélade e que é digno de ser estudado no que
entende com problemas da educação e das relações humanas, e também que
devemos viver de acordo com seus ensinamentos, precisarás acatá-los e beijálos como a pessoas de muito merecimento, e concordar que Homero não só é
o poeta máximo como o primeiro dos trágicos [...]
(PLATÃO. República, X, 606–607a).
Cantando a glória imorredoura dos heróis, o aedo angariava, assim, prestígio na
sociedade que fazia parte, sendo a narrativa de seus versos considerada um ofício na Grécia
Antiga e Homero, mesmo com sua existência posta sob dúvida, o maior expoente dessa
categoria. Utilizando-se de diferentes técnicas, o aedo não narrava apenas batalhas, mas
também os mitos e costumes da sociedade helênica32 e por ser inspirado por seres divinos, as
Musas, suas epopeias adquiriram credibilidade diante de seu público, tendo um valor sagrado e
sendo o poeta considerado um mestre da verdade, como nomeia Detienne (1988). Dessa forma,
duvidar de seu canto “seria, na verdade, duvidar das filhas de Zeus” (MORAES, 2012, p. 114).
Mesmo narrando acerca de um período passado, do qual Homero só teria conhecimento
através da tradição oral, dessuperficializando o discurso por ele proferido, relacionando a
linguagem a sua exterioridade (ORLANDI, 2012, p.16), constatamos que os valores
demonstrados em suas epopeias, como apontado por Scodel, eram partilhados pelo grupo social
que as ouvia: a aristocracia guerreira (2004, p.45), uma classe fechada e com intensa
consciência de seus privilégios, de seu domínio e de seus costumes (JAEGER, 2010, p. 42). As
imagens dessa pequena elite representada em Homero pelos heróis, pode ser vista “como um
31
Platão acreditava que Homero prejudicava sua pólis ideal, pois utilizava em suas epopeias personagens que
expressavam tão livremente suas emoções que prejudicavam o controle das mesmas por parte da audiência
(GRIFFIN, 2004, p.157). Ademais, para o filósofo, o aedo demonstraria em suas obras uma impiedade e
imoralidade atreladas aos deuses, igualmente o criticando por isso (CARLIER, 2008, p. 12).
32
Alexandre Moraes nos remete que o sistema religioso grego “dispensou a existência de sacerdotes profissionais,
livros sagrados e dogmas que orientassem as condutas. Com isso, acabou por atribuir aos poetas orais a
possibilidade de amoedar os mitos, criá-los e difundi-los com uma razoável fluidez” (MORAES, 2012, p. 93).
30
modelo destinado a explicar e justificar o tipo de estrutura social mantido pela aristocracia”
(KRAUSZ, 2007, p.45).
Através das récitas épicas, especialmente em banquetes33, os homens que faziam parte
desse grupo financiavam os aedos a fim de ouvir acerca de sua genealogia, designando o tema
a ser cantado. Esse fato pode ser verificado, inclusive, dentro das próprias obras homéricas. O
aedo Demódoco, o acolhido pelo dêmos, como a etimologia do seu nome designa, no Canto
VIII da Odisseia recebe do protagonista da obra a indicação do que deverá ser cantado, além
de diversas palavras de elogio34:
Saciados de porções regadas a vinho, dirigiu
Odisseu estas palavras a Demódoco: ‘Reconheço
que de todos o mais destacado és tu. O que sabes
vem da Musa, filha de Zeus ou de Apolo. Cantas
preciso o universo dos cometimentos aqueus: atos,
infortúnios, padecimentos, como se tivesses sido
testemunha ou bem informado por outro. Adiante!
Canta a beleza do cavalo, construído por Épio,
guiado pela pelo saber de Palas Atena, engodo repleto
de guerreiros, conduzido por Odisseu contra a
acrópole inimiga, causa da queda de Tróia. Se
narrares isso com arte, não tereis dúvidas em
proclamar que pelo favor de divindade propícia
chegastes a produzir um canto divino’
(HOMERO. Odisseia, VIII, vv.485-498).
Cantando o que era solicitado por seus ouvintes, os versos dos poetas nos demonstram,
assim, diferentes questões do ambiente em que seu público estava inserido. Os poemas
deveriam fazer significado para esse público (REDFIELD, 1994, p.23) e como ressalta Mirto,
“as várias aventuras dos heróis dão sentido, estabilidade e ordem ao mundo real e são a base
para as normas, ritos e costumes na sociedade que lembra aqueles heróis” (2012, p.116).
Através dos mitos heroicos, entrava-se, assim, em contato com uma série de tradições dos
gregos antigos, além de crenças presentes nessa sociedade. Schein ressalta, inclusive, que a
33
Apesar de grande parte das récitas ser realizada nessas ocasiões para esse grupo específico, as epopeias heroicas
também foram cantadas posteriormente em festas como os Jogos Olímpicos e das Panateneias, nas quais as obras
de Homero possuíam um papel relevante. Pierre Carlier ainda cita que elas poderiam ser recitadas para as pessoas
da cidade que se reuniam em praça pública (2008, p. 15). Ademais, como ressalta Alexandre Moraes, o aedo tinha
um papel itinerante, ou seja, ia de cidade em cidade buscando seu público e recitando seus versos. Assim, “Diante
das expedições colonizadoras e das viagens de reconhecimento do espaço mediterrâneo os aedos assumiram a
importante tarefa de informar os costumes helênicos às comunidades locais, ajudando a situá-las na rede de
influências desta aristocracia tradicional” (MORAES, 2012, p. 141).
34
Como ressaltado por Alexandre Moraes, os aedos faziam questão de demonstrar a importância de seu papel
dentro de suas obras, sendo isso chamado por ele denominado de “esforço de autoglorificação” (2012, p. 13).
31
audiência de Homero teria reconhecido em Troia muitos de suas formas sociais e valores
(SCHEIN, 1984, p.169).
Igualmente, como citado, em um período de desestabilização do poder da aristocracia,
na qual verificamos a formação da pólis – em que a abolição dos privilégios e distinções
começam a ser evidenciada como a nova ideologia – destacar a ética guerreira dessa camada
social nos poemas épicos não se perfaz apenas como uma nostalgia de um passado remoto, mas
um esforço no século VIII a.C. de legitimar essas elites ameaçadas (MIRTO, 2012, p.119).
Desse modo, destinando sua récita à aristocracia guerreira, as virtudes essenciais a ela eram
postas em destaque, especialmente aquelas que poderiam ser vistas em combate, fazendo
alusões aos conflitos do período micênico. Como defendido por Yvon Garlan,
Todos esses heróis, que o poeta situa cronologicamente duas gerações antes
da invasão dórica, dão de fato uma imagem da aristocracia grega tal como se
apresentava pouco antes do fim da ‘idade obscura’: são antes de tudo valentes
guerreiros, iguais aos que se encontram, armados da cabeça aos pés, nos
flancos de vasos geométricos da segunda metade do século VIII (GARLAN,
1991, p.11).
Focando-nos, assim, em analisar as representações sociais da morte inseridas nos
poemas épicos, isto é, o objetivo discursivo passado pelas obras homéricas e sua formação
ideológica, podemos verificar que a temática do heroísmo ao enfrentar o fim da vida é a que se
mais destaca. Através da Ilíada e das 240 mortes que a perpassam (GARLAND, 1985, p. 18),
deparamo-nos, a todo o momento, com os ideais a serem seguidos tanto na maneira de matar
quanto de morrer. Já a Odisseia, mesmo não sendo uma narrativa bélica, também nos confronta
por diversas vezes com a temática herói vs morte: ao final de seu retorno para casa, o
protagonista da obra encontra-se sozinho, estando todos seus companheiros já mortos.
Ademais, nos contratempos enfrentados pelo herói Odisseu, a condição mortal é assinalada
tanto através dos perigos por ele enfrentado (Sereias, monstros, entre outros) quanto através de
encontro com deuses e com personagens que apesar de poderem ser atingidas pelo fado da
morte, estão afastadas do universo do homem comum, dos comedores de pão, como é o caso
dos ciclopes e dos lotófagos.
Dessa maneira, consideramos que apesar de cada um dos poemas possuir seu eixo
temático, como a ira de Aquiles na Ilíada e o nóstos35 de Odisseu, na Odisseia, a morte se torna
35
A palavra nóstos, derivada do verbo néomai, significa retorno, aqui evidenciando a volta de Odisseu para seu
lar (CHANTRAINE, 1968, p.744-5). Ademais, segundo Malkin, o termo nostoi designa os heróis que voltaram da
Guerra de Troia e, por muitas vezes, fundaram diversas cidades (1998, p.1-3).
32
um leitmotiv das obras homéricas. O autor dessas epopeias nos leva, assim, a verificar diversas
condutas a serem seguidas tanto por aqueles que estão na iminência de morrer quanto pelo
grupo social do qual fazem parte, que terá de lidar “contra e através do desaparecimento de seus
membros”, construindo-se como um sistema de regras para tal (RODRIGUES, 1991, p.11) 36.
Como destacado por Luis Krausz,
A poesia oral desempenha papel central como instrumento para a transmissão
dos valores culturais que organizam o comportamento dos indivíduos e seu
relacionamento mútuo. Costumes, parâmetros humanos, maneiras de encarar
a vida, a morte e os deuses, são transmitidos de uma geração à outra por meio
de uma memória coletiva estruturada por mitos e em forma poética
(KRAUSZ, 2007, p.17 – grifos nossos).
Através de batalhas singulares, ritualizadas e minuciosamente detalhadas37, valores
como honra (timé)38 e coragem (andreía)39, eram destacados frente à morte. Inseridos na
chamada shame cultura (cultura da vergonha) (DODDS, 2002), a sociedade homérica
marcava-se, assim, por uma dualidade honra/vergonha, na qual os guerreiros eram motivados
pelo aidós, que segundo Schein é “o medo da desaprovação ou da condenação pelos outros que
faz um homem ficar e lutar bravamente” (2010, p. 177).
Os heróis homéricos objetivavam, acima de tudo, o alcance da glória individual, atrelada
às suas características e valores pessoal, ao seu próprio status, diferente do que irá ocorrer
posteriormente, a partir do século VII a.C., com a emergência das falanges hópliticas, na qual
o comprometimento coletividade era posto em destaque. Desse modo, como ressaltado por
Clarke,
O herói homérico é dirigido para a ação devido à necessidade de validação
social: status, respeito, honra aos olhos de outros homens. A primeira vista
isso sugere um senso de identidade humana, que é social ao invés de
existencial; mas verifica-se que a mortalidade é a pedra angular dessa ética,
36
Devemos deixar claro que apesar de evidenciarmos neste capítulo a importância dos vivos frente a morte,
aprofundaremos mais essa temática apenas no capítulo seguinte.
37
Como destaca Vermeule, “O objetivo de um bom poeta épico, em um canto de guerra, é matar as pessoas com
detalhes pitorescos, poder e espírito elevador. Homero faz isso extraordinariamente bem” (1979, p.94).
38
Analisando o atributo da honra, Rutherford define bem o que podemos entender por esse conceito na Grécia
Antiga: “No coração do sistema de valores dos heróis de Homero está a honra, τιμή, expressa pelo respeito de seus
pares e personificada em formas tangíveis – tesouros, presentes, mulheres, um lugar honorável no banquete. Em
tempo de guerra é inevitável que a honra seja ganha sobretudo pelas proezas em batalha, habilidade como um líder
e um lutador. Outras qualidades são também admiradas – habilidade como orador, piedade, bom senso e conselho,
lealdade, hospitalidade, gentileza, mas essas são secundárias e a última poderia de fato estar sem lugar no combate”
(1996, p. 40).
39
Ao analisar o caso grego, Ryan Balot destaca que a palavra coragem se aproxima do ideal de andreía dos gregos,
que podemos conectar com o universo masculino, visto que ela deriva da palavra anér, homem. Sendo assim, esse
elemento estaria ligado à capacidade do homem dentro do campo de batalha de “superar o medo a fim de alcançar
uma meta pré-concebida” (2004, p. 407)
33
pois a necessidade mais urgente de tudo é perpetuar o próprio status na forma
da fama continua após a morte (CLARKE, 2004, p.77).
Essa fama após a morte seria alcançada através de dois tipos de glória, como destaca
Detienne: Kléos, cedida pelos deuses, e Kûdos, a que vingará na memória social (DETIENNE,
1988, p.19). Inserindo-se em uma sociedade aristocrática marcada por uma ética agonística40,
na qual cada homem vive em função do olhar do outro e também de sua autoafirmação, morrer
áphantos e nónymos, ou seja, sem ser remorado, tornando-se invisível frente à sociedade, era
um dos piores fins para esses guerreiros41. Segundo Krausz,
Desfrutar de elevada estima social era considerado pelos guerreiros retratados
em Homero como o mais elevado objetivo da vida, ao mesmo tempo em que
o Kléos, a reputação de um indivíduo e sua fama, especialmente depois da
morte, era considerado como o mais elevado dos valores, em nome do qual
todos os outros deveriam ser sacrificados – até mesmo a própria vida. A Timé,
durante a vida, tinha como contrapartida o Kléos no futuro (KRAUSZ, 2007,
p.47).
A fim de alcançarem essa glória individual, duas atitudes são destacadas para que o
homem homérico possa ficar marcado na memória coletiva: 1) Matar o inimigo, que quanto
mais valoroso, mais honroso seria; 2) Morrer belamente, enfrentando a morte com coragem.
Como nos recorda Stamatia Dova, há uma crença de que “as circunstâncias da morte de alguém
afetam a preservação social de sua memória” (2012, edição Kindle, posição 459), além de
representarem a citada “rotinização forçada da morte” que nos remete Rodrigues, na qual o fim
da vida é incluído em um sistema de regularidades e expectativas, sendo até mesmo enquadrado
em categorias (1991, p.12).
Jean-Pierre Vernant e a Teodoro Rennó Assunção são alguns dos autores que se
dedicaram a estudar esse tema, porém possuindo diferentes perspectivas. Enquanto o primeiro
valoriza a morte em batalha como fator chave para rememoração, a chamada bela morte42, o
segundo privilegia os feitos realizados em vida pelo herói, afirmando que “é preciso ainda estar
Agonístico, segundo Renata Cardoso de Sousa, é um termo que não existe na língua portuguesa, sendo “um
adjetivo derivado de um processo de aportuguesamento cuja base etimológica é a palavra agón (competição). Foi
utilizado para caracterizar a sociedade helênica no que diz respeito à noção de competição: o indivíduo está sempre
sob o olhar do público, sendo sinalizado por ele quando comete atos dignos (honrados) e indignos (vergonhosos)
” (2012, p.31).
41
Diversas passagens nos remetem a isso, como a seguinte: “Não quero vil/ e sem glória morrer. Algo de grande
quero/ aos vindouros legar’” (HOMERO. Ilíada, XXII, vv. 304-306);
42
É necessário ressaltar que o termo bela morte não aparece nas epopeias de Homero, ele é cunhado
posteriormente, encontrado no período políade, na Oração Fúnebre de Péricles, narrada por Tucídides, em sua
obra Guerra do Peloponeso.
40
34
vivo para fazer algo” (ASSUNÇÃO, 1994/1995, p. 54). Porém, acreditamos que as duas visões
não são excludentes e que ambas podem ser encontradas nas obras homéricas. A Ilíada destaca
como paradigma a bela morte em batalha, sendo Aquiles a sua máxima. Já a Odisseia leva aos
seus ouvintes outra possibilidade de glória além daquela encontrada na morte jovem em
combate: o nóstos de Odisseu. Como ressalta Mirto,
Os poemas homéricos demonstram dois resultados possíveis de ação heroica.
A primeira é uma compreensão radical conferida uma vez por todas com a
morte, que é comemorada no poema épico. A segunda é a ética de
compromisso e de pretensão, a capacidade de criar estratégias não
convencionais, de modo a superar novos obstáculos nunca conheci na guerra,
para sobreviver a qualquer custo.
(MIRTO, 2012, p.129).
Desse modo, como também é ressaltado por Schein: “A vida é vivida e a morte é morrida
de acordo com esse código de valores: para ser totalmente humano - isto é, ser um herói significa matar ou ser morto por honra e glória” (1984, p. 71).
No caso da bela morte, para atingi-la, seria necessário morrer jovem em batalha,
demonstrando-se toda virilidade, honra e coragem. A beleza juvenil do guerreiro seria, assim,
sempre remorada, servindo de exemplo para gerações vindouras, visto que o herói deve
experimentar a morte, sendo este momento que dá a ele poder (NAGY, 1999, p.9)43. Ademais,
como ressalta Alexandre Moraes,
Do ponto de vista épico, morrer jovem cumpre uma dupla função: por um
lado, valoriza os méritos guerreiros da vítima, que se dispôs ao enfrentamento
sem o receio de privar-se dos anos de vida de que ainda poderia gozar; por
outro lado, valoriza a potência do algoz, capaz de superar um adversário no
auge de suas capacidades físicas (MORAES, 2013, p.98).
43
Em contraste ao feito de morrer belamente, havia a feia morte, que seria motivo de esquecimento por parte da
sociedade daquele que fora morto. A morte de um ancião em batalha e não na velhice, por exemplo, como
relembrado por Príamo, no Canto XXII, vv. 71-76, da Ilíada, encaixar-se-ia nessa categoria; assim como morrer
ferido pelas costas, demonstrando que o homem estaria fugindo de seu inimigo. As personagens também poderiam
aferir a feia morte ultrajando o corpo do inimigo: “O aikía, o ultraje, consiste em desfigurar, em desumanizar o
corpo do adversário, em destruir nele todos os valores que nele se encarnam, valores indissoluvelmente sociais,
religiosos, estéticos e pessoais”, buscando o desonrar e privá-lo de uma figura bela que poderia permanecer na
memória social, mas que será mandada para o mundo obscuro do esquecimento (VERNANT, 2009, p. 429).
Schein, por exemplo, ao analisar o aikía cometido por Aquiles ao corpo de Heitor, ressalta-nos que “A verdadeira
ofensa de Aquiles ao purgar seu ódio e solidão no corpo de Heitor não é contra Heitor, mas contra a família e a
comunidade que desejam chorá-lo e enterrá-lo. Ele está violando a necessidade social por partes dos vivos de
enterrar os mortos com decoro ritual e formal, a fim de humanizar o fator morte e fazer isto mais tolerável” (1984,
p.188). O corpo deixado ao relento, sujeito a tornar-se alimento para os animais, como pássaros e cachorros, é,
assim, diversas vezes citados na Ilíada contrastando-se a um funeral digno.
35
Através da metodologia de análise de discurso, aplicada em nossa documentação,
podemos verificar como a fala de Odisseu, por exemplo, refere-se ao morrer belamente em
campo de batalha. Ao pensar que teria seu fim no mar, sem as honras fúnebres, o protagonista
da Odisseia profere as seguintes palavras:
Bem que a deusa me advertiu que eu deveria
sofrer antes de retornar à minha terra. Os
males estão aí. Cumpre-se o previsto. Com que
cadeia de nuvens coroa Zeus o céu! Raivoso está
o mar. Enfureceram-se os ventos de todas as
origens. Devo morrer assim? Três, quatro vezes
mais felizes foram os dânaos que findaram nos
campos de Tróia no interesses dos Átridas. Quisera
ter alcançado meu destino na morte quando os
troianos me cercaram em massa com pontas de
bronze para arrebatar o corpo do pélida Aquiles.
Eu teria sido sepultado com honras. Os aqueus
cantariam minha glória. O que me espera agora?
Desaparecimento obscuro
(HOMERO. Odisseia, V, vv. 300-313).
Diversas outras passagens da Ilíada e da Odisseia nos demonstram essa categoria de
morte. O exemplo de maior destaque, como aqui já citado, é o caso de Aquiles, que apesar de
não ter sua morte descrita nas epopeias de Homero refere-se a todo o momento ao futuro que
lhe está reservado, a moira44 que o espreita:
Pés-de-prata a deusa Tétis, madre,
me avisou: um destino dúplice fadou-me
à morte como termo. Fico e luto em Tróia:
não haverá retorno para mim, só glória
eterna; volto ao lar, à cara terra pátria:
perco essa glória excelsa, ganho longa vida;
tão cedo não me assalta a morte com seu termo
(HOMERO. Ilíada, IX, vv. 410-416).
Através do dicionário de Anatolle Bailly, podemos ver que a moira é descrita como “parte, porção designada a
cada um, sorte, destino, a felicidade e a infelicidade dos homens, destino funesto que leva à morte” (2000, p.1292).
Além disso, ela pode ser personificada na deusa da morte e da desgraça. Porém, segundo Walter Otto, há, na
verdade, uma “despersonificação”, já que “a figura mítica é o fenômeno originário” e “[...] muitas vezes é possível
demonstrar que o nome do deus foi o que precedeu e o conceito abstrato derivou dele” (2006, p. 111). Em Hesíodo,
elas são marcadas por garantir tanto porções boas quanto ruins aos homens em seu nascimento (HESÍODO.
Teogonia, vv.217-222), mas em Homero, não vemos a Moira como responsável por dar bênçãos aos heróis, como
ressaltado por Schein (1984, p. 47), mas sim como um elemento que está sempre ao lado deles, decidindo o que
se seguirá em suas vidas, inclusive o momento de suas mortes.
44
36
Maria Cecilia Colombani ressalta que “não se trata de uma decisão complementar ao
curso da vida. É a decisão subjetiva por excelência. É através dela que o sujeito adquire seu
verdadeiro estatuto” (2005, p. 43). Os homens devem, assim, acatar o seu destino, mesmo que
esse seja trágico, selando com sua bela morte sua vida de areté, de virtude45, fazendo dela uma
resposta à fatalidade do fim da vida, positivando-a através da memória e de uma nova condição
de existência social e alcançando, como destacado por Stamatia Dova, uma imortalidade
cultural acima da natural (2012, edição Kindle - posição 3853). De acordo com Vernant,
“ultrapassa-se a morte acolhendo-a em vez de a sofrer, tornando-a a aposta constante de uma
vida que toma, assim, valor exemplar e que os homens celebrarão como um modelo de ‘glória
imorredoura’” (1978, p. 40).
Porém, como citado, não apenas o morrer levaria essa glória aos heróis. Conforme
defendido por Assunção (1994/1995), as ações em batalha eram essenciais para isso e matar
um inimigo codificava-se como um grande feito, como podemos ver através da fala de Heitor:
Caso eu vença, por vontade
de Apolo, despojado o morto, o levarei
à sacra Ílion. Ao templo do deus flechador
devoto as armas, dou de volta o corpo às naves
do belo-convés, para que o sepultem junto
ao Helesponto, erguendo-lhe um túmulo. Um dia
no futuro, em sua nau polirreme sulcando
as ondas do mar cor-de-vinho, um navegante
dirá: ‘Vejam, é a tumba de um herói de atanho,
um valente; matou-o Héctor fulgurante.’
Dirá. E minha glória viverá perene’
(HOMERO. Ilíada, VII, vv. 81-91).
Aquiles, igualmente, não é somente rememorado por sua bela morte: como ressaltado
por Schein, matar Heitor, sua maior façanha e ato de bravura na Ilíada, também irá lhe garantir
a sua glória eterna (1984, p. 186). Ademais, aqueles que não morreram em campo de batalha,
como é o caso de Odisseu46, como citado, também são relembrados, justamente pelos seus
grandes feitos e, ainda no caso deste herói, por ter conseguido através da métis, de sua astúcia,
Como ressaltado por Finley, “Toda a norma, todo o juízo e toda a ação, todas as aptidões e talentos tem por
função definir a honra ou seja realizá-la. A própria vida não pode constituir obstáculo. Os heróis homéricos amam
a vida impetuosamente, assim como fazem e sentem todas as coisas com paixão, sendo difícil imaginar
personagens de que o mártir esteja mais ausente; e, contudo, a própria vida deve ceder perante a honra” (1982,
p.108).
46
Tirésias, no canto de ida ao Hades, faz alusão à morte de Odisseu como tranquila e longe do mar (HOMERO.
Odisseia, XI, vv. 134-135). E novamente no Canto XXIII, vv. 280-3, o próprio Odisseu relembra esse fato: “assim,
/ não sumirei em ondas salgadas, terei morte/ suave que me visitará quando eu já estiver/ cansado de anos, cercado
de gente próspera”.
45
37
driblar a morte, como ressaltado por Assunção (2003, p. 103). Nagy destaca o herói como
duplamente vitorioso, visto que ganhou kléos e nóstos (1999, p.39) e Stamatia Dova evidencia
que ele é a prova viva que a glória pode ser alcançada através de uma morte pacífica em idade
avançada (2012, edição Kindle, localização 1270).
Desse modo, através de seus atos e até mesmo de uma bela morte, o herói tornar-se-ia
imortal mesmo após sua vida ter encontrado seu fim, sendo a poesia o meio pela qual essa glória
é conferida, já que concede aos vivos a memória dos que já se foram (DETIENNE, 1988, p. 2021). Assim como o funeral digno e a ereção de uma estela funerária possuem o papel de
rememorar o morto, como veremos no capítulo seguinte, a palavra do poeta serviria para que
essa memória também não fosse esquecida: “túmulo e palavra se revezam nesse trabalho de
memória que, justamente por se fundar na luta contra o esquecimento, é também o
reconhecimento implícito da força deste último: o reconhecimento do poder da morte”
(GAGNEBIN, 2006, p.45).
Como ressalta Stephen Prickett, “A tarefa normativa de uma sociedade oral não é inovar,
mas sim lembrar” (2006, p.70 - grifos do autor). Desse modo, as representações sociais da
morte vinculadas nas obras homéricas, mais que o papel de educar, também possuíam a função
de tornar os homens imortais mesmo após sua morte biológica: “A memória, preservada por
meio da poesia oral, torna-se, assim, uma forma de transcender as limitações intrínsecas à
condição humana, para alcançar um âmbito habitualmente reservado aos deuses” (KRAUSZ,
2007, p.18). O discurso homérico destaca, assim, sua ideologia paidêutica, voltada sobretudo
para as camadas aristocráticas que se deleitavam com suas narrativas. Como ressaltado por
Antônio Cândido,
[...] a arte é social nos dois sentidos: depende da ação de fatores do meio, que
se exprimem na obra em graus diversos de sublimação; e produz sobre os
indivíduos um efeito prático, modificando sua conduta e concepção do mundo,
ou reforçando neles o sentimento dos valores sociais (CANDIDO, 2005,
p.29).
As epopeias, por conseguinte, vão destacando entre o matar e o morrer as
representações sociais da morte, salientado seu papel social ao demonstrá-las frente ao público
que as ouvia. Evidenciando os códigos de conduta a serem seguidos diante da morte, elas
destacam sua propriedade intrínseca de poder, sendo reconhecidas como instrumentos presentes
em um sistema de comunicação e significação que garantem a sistematicidade da comunidade
a qual o aedo se dirige (RODRIGUES, 1991, p.25). As palavras de Homero eram, assim,
38
revestidas de autoridade e possuíam um papel efetivo em meio a sociedade ao levar os ideais
pregados para a aristocracia ao qual ele se dirigia (REDFIELD, 1994, p.40), demonstrando
como a linguagem pode ser vista como uma mediação entre o homem e a realidade social
(ORLANDI, 2012, p.16).
Tendo assim analisado o porquê de representar a morte nas obras homéricas, destacando
seu papel social, investigaremos, do mesmo modo, as tragédias Eurípides no item a seguir,
evidenciando igualmente o caráter educativo do teatro e dando destaque as proximidades,
similitudes e diferenças entre um poeta e outro, corroborando o viés comparativista desta
dissertação.
1.2| Da morte nos palcos à morte na pólis
Ir ao teatro no Período Clássico ateniense não significava apenas assistir a peças
previamente escolhidas buscando-se entretenimento: seus espaços e limites são muito amplos
e ele pode ser visto, conforme defendido por Vernant e Vidal-Naquet, como uma verdadeira
instituição social, através da qual se comunica e educa, sendo um meio de se expressar frente
aos outros. Desenvolvido pela e para a pólis, a localização central do teatro no território ático,
próximo a espaços políticos importantes como a agorá e pnýx, demonstrava sua relevância na
sociedade ateniense. Junto a instituições que debatiam acerca desta, o teatro também se
destacava com tal intuito (VERNANT; VIDAL-NAQUET, 2008, p.10)47.
Endereçadas a um público mais amplo que as obras de Homero, as encenações não se
restringiam apenas à aristocracia guerreira, mas se endereçavam à totalidade dos cidadãos e até
mesmo a mulheres, metecos e escravos48. Durante o governo de Péricles, inclusive, apesar do
pagamento de entrada, as pessoas com menor condição financeira conseguiam assistir aos
espetáculos, pois havia o procedimento da liturgia, exigida dos mais ricos para manter
determinados encargos da pólis, como nesse caso.
47
Ainda sob a tirania de Pisístrato, as encenações ganharam espaço em uma celebração de caráter políticoreligioso, especialmente através das Grandes Dionisías. Não se restringindo apenas a apresentação das peças, esse
festival, que durava cerca de cinco a seis dias, comungava, já sob a democracia, uma série de atividades, como
libações e sacrifícios aos deuses, anúncio dos cidadãos honrados que serviram a pólis, exibição do tesouro e
apresentação dos efebos órfãos. Como ressaltado por Goldhill, “Mais do que qualquer coisa, talvez essa cerimônia
demonstre a exposição pública da ideologia cívica ante a cidade e seus convidados. Antes dos dramas, o grande
festival da cidade coloca no palco uma afirmação e exibição da democracia e de sua ideologia cívica” (1986, p.77).
48
A participação das mulheres é discutível, mas sem dúvida admissível, visto que apesar de ser um festival que
envolvia política, ele era acima de tudo religioso, o que comumente abria portas para essas não-cidadãs. Os metecos
poderiam assistir desde que pagassem e os escravos, se acompanhados de seu senhor.
39
No que compete à representação das tragédias, o valor instrutivo das peças encenadas
já foi objeto de análise de diversos pesquisadores e até mesmo de nomes da Antiguidade.
Aristófanes, aqui já citado, novamente em As Rãs, descreve o caráter educativo do teatro. No
final de sua peça, tendo sido Ésquilo o escolhido para voltar do mundo dos mortos, recebe as
seguintes palavras do deus que lá reinava:
HADES
Boa viagem, pois, ó Ésquilo, vai e fala a nossa cidade, com bons conselhos, e
educa os ignorantes, porque eles são muitos
(ARISTÓFANES. As Rãs, vv.1500-1).
Através de suas personagens, que pertenciam a um passado mito-poético, muitas,
inclusive, retiradas das epopeias homéricas, os tragediógrafos mostravam nas encenações os
ideais de cidadania a serem seguidos pelos helenos. A tragédia levava aos palcos a necessidade
da construção de uma sociedade voltada ao bem comum, mostrando que todos, em sua unidade,
fazem parte de algo maior, da pólis, de uma koinonìa politiké (comunidade política). O palco
torna-se, assim, um exercício de civilidade.
Porém, através dos mitos, não se refletia a sociedade nos palcos e sim se fazia um
questionamento da mesma. Como ressaltado por Anderson,
Mitos gregos, em geral, encarnam e exploram instituições sociais
fundamentais e as crenças e valores associados a elas. A tragédia grega, em
particular, examina essas instituições e valores dramatizando momentos de
extrema crise, conflito violento e sofrimento emocional, momentos em que os
valores tradicionais são ameaçados e laços sociais quebrados. Poetas gregos,
incluindo tragediógrafos, às vezes empregavam mitos para fins abertamente
didáticos, apresentando os personagens heroicos como modelos
decididamente positivos ou negativos, inspirando emulação ou merecendo
censuras (ANDERSON, 2005, p.124).
Os mitos eram remodelados pelos tragediógrafos de acordo com o se queria passar para
o público. Através de imagens tristes, que fugiam do esperado pela sociedade, objetivava-se
provocar aquilo que Aristóteles considera uma das funções do drama: a kathársis, a purgação,
(ARISTÓTELES. Poética, VI, 1449b, 24), que segundo Redfield detinha uma combinação
entre emoção e aprendizado (1994, p.67).
Os festivais davam licença aos atenienses escaparem das restrições e delimitações que
a pólis demandava, purgando suas emoções e interrogando-se, como ressalta Vernant, sobre si
mesmos e sobre a solidez de seu sistema de valores (2012, p.396). Sendo assim, utilizando-se
o mito como pano de fundo das encenações, “é para o sentido de ser um cidadão ateniense que
40
a tragédia se volta, como veremos, com sua específica retórica de questionamento”
(GOLDHILL, 1986, p. 69).
À vista disso, o teatro torna-se espaço do tudo dizer, de debater, mas também de
transgredir. Essa transgressão autorizada, delimitada aos palcos, conecta-se, de certo modo,
ao deus que dá origem a festa nas quais as encenações ocorriam: segundo Vernant, o teatro no
mundo grego é uma forma de se tornar o outro e isso está muito relacionado à imagem de
Dioniso, que representa o homem deixando de ser ele mesmo, experimentando algo fora das
normas, através de elementos como o banquete, a embriaguez e o travestimento. De acordo
com o autor, “Dioniso é o deus que, num dado momento, faz tudo passar para outra dimensão,
e é isto que o teatro realiza no centro da cidade grega” (VERNANT, 2002, p.354). Desse modo,
vemos múltiplos lugares em apenas um. Como ressalta Vanessa Codeço, “espaço híbrido.
Espaço onde se constrói a pólis, destrói suas bases, purgam seus efeitos e renasce uma pólis
com valores atualizados e mais fortes que quando o momento anterior ao festival. Esse é o
teatro antigo grego” (2010, p. 64).
E como vemos a tragédia euripidiana nesses múltiplos espaços? Como as
representações sociais da morte em suas peças podem destacar o caráter ao mesmo tempo
transgressor e educador do teatro? Quais as relações de poder que ele exerce com o público e a
ideologia perpassada por seu discurso?
Para isso compreendermos, faz-se necessário colocarmos em destaque aquilo que
verificamos em nossa introdução acerca do conceito representação social e de nossa
metodologia de análise de discurso: a relação dessa mensagem simbólica com o contexto de
produção, isto é, sua materialidade linguística. Como ressaltado por Vidal-Naquet e Vernant ao
discorrem sobre a tragédia,
Esse texto não pode ser compreendido plenamente sem que se leve em conta
um contexto. É em função deste contexto que se estabelece a comunicação
entre o autor e seu público do século V e que a obra pode reencontrar, para o
leitor de hoje, sua plena autenticidade e todo seu peso de significações
(VERNANT; VIDAL-NAQUET, 2008, p.8).
Sendo assim, devemos analisar de onde nos fala Eurípides, examinando as condições
na qual compõe suas tragédias.
Como aqui já citado, a produção de suas obras, em quase sua totalidade, foi
desenvolvida em um momento de muitas turbulências para o território ático: a Guerra do
Peloponeso (431-404 a.C.). Esse conflito, travado entre atenienses e espartanos unidos aos seus
41
respectivos aliados, pôs em destaque o confronto entre a democracia dos primeiros e a
oligarquia dos últimos, sendo ocasionado especialmente pelos interesses de Atenas, inserida em
um movimento expansionista, em duas colônias de Corinto.
Além de levar à morte diversos guerreiros, a guerra também confluiu com uma peste
que assolou a pólis de Eurípides durante os primeiros anos de conflito. Reclusos dentro das
muralhas da ásty, estratégia elaborada por Péricles, os habitantes de Atenas ficaram desprovidos
de alimentos, vendo a fome e a doença se espalhando. Após diferentes fases estratégicas,
momentos de paz e de conflito direto, a rendição ateniense ao inimigo deu-se como a escolha
mais viável.
E por que esse conflito bélico se relaciona com as obras de Eurípides e com as
representações da morte nelas engendradas? Como ressaltado por Victor Davis Hanson, ao
analisar a Guerra do Peloponeso,
De fato, os principais atores e observadores da guerra eram grandes nomes da
civilização helênica – Alcibíades, Aristófanes, Eurípides, Péricles, Sócrates,
Sófocles, Tucídides e outros –, muitos dos quais floresceram, foram
desacreditados ou pereceram por causa de seu envolvimento na luta. Grande
parte da mais importante literatura clássica – tal como Os Arcanânios de
Aristófanes,
As
Troianas
de
Eurípides,
o
Simpósio
de Platão e o Édipo Rei de Sófocles – trata de questões da guerra ou emprega
o conflito como um pano de fundo dramático (HANSON, 2012, p.23).
Desse modo, defendemos que o tragediógrafo colocava nos palcos através do passado
mítico “o campo de batalha das lutas internas da cidade” (SEGAL, 1993, p. 195). Através
especialmente de temáticas bélicas, como é o caso de Hécuba, Troianas e Ifigênia em Áulis, o
“mais trágico de todos os poetas”, como Aristóteles o denomina (ARISTÓTELES. Poética.
XIII. 1453a, 29-30), punha em destaque tanto os ideais a serem seguidos frente a morte quanto
os males que o conflito bélico poderia causar. Porém, não deixava de lado a necessidade de
travar a guerra, de enfrentar a morte com coragem, demonstrando, como ressaltam VidalNaquet e Vernant, a utilização da ambiguidade como meio de expressão e modo de pensamento
do universo trágico, permitindo aos espectadores, assim como os deuses, “escutar ao mesmo
tempo os dois discursos opostos e seguir o confronto do princípio ao fim, através do drama”
(VERNANT; VIDAL-NAQUET, 2008, p.73 e 78).
Diferentemente de Homero, os valores destacados acerca da morte nas peças de
Eurípides não se conectam a habilidade no combate e a busca pela glória individual. O valor
guerreiro deixa de ser o ponto central na tragédia como era na epopeia e a atenção se dá no fim
da vida de suas personagens e nos consequentes lutos e funerais a elas prestados, levando-nos
42
a ver como suas obras são marcadas pela capacidade de despertarem piedade e compaixão em
seus espectadores (ROMILLY, 2010, p.57). O poeta teria humanizado a tragédia grega, levando
aos palcos os sofrimentos extremos de mães perdendo seus filhos, maridos suas esposas e
mulheres nobres sendo escravizadas.
Ademais, quando a guerra se torna temática das peças do tragediógrafo, os
acontecimentos posteriores ou anteriores a elas que são citados. As mortes não se dão, assim,
em campo de batalha. Os golpes fatais tão minuciosamente descritos pelo aedo pouco se
destacam nas cenas de morte da tragédia que, devemos lembrar, são postas ao nível do discurso
e não encenadas.
Representar a morte para Eurípides torna-se, assim, uma maneira de demonstrar o
sofrimento desse momento, assim como os apelos políticos suscitados pelo contexto em que
estava inserido, evidenciando seu estatuto epistemológico. Entre assassinatos tramados e
sacrifícios voluntários, o poeta vai construindo suas representações, transformando a morte no
símbolo da tristeza e das necessidades preconizadas em sua pólis. Eurípides denunciava, como
nos suscita Romilly, a intrusão da violência na vida política (2010, p.49).
Voltando-nos à análise de discurso e verificando o domínio no qual essas representações
se encontram, podemos verificar em cada uma das peças diversas mensagens a serem passadas
pelo público, tornando-se o espaço teatral não apenas um meio de educar a sociedade, mas
também de debater acerca dela. As peças, que possuem uma materialidade própria e
significativa (ORLANDI, 2012, p.18), significam em meio aos espectadores e permitindo-nos
“escutar” outros sentidos presentes no texto (ORLANDI, 2012, p.26).
Em Troianas, por exemplo, a escravização das mulheres se faz temática central,
demonstrando os males da guerra para os vencidos. Mas a morte também se destaca ao se
colocar em cena o fim da vida do pequeno Astiánax, filho do já falecido Heitor com sua esposa
Andrômaca. O sofrimento de sua mãe e avó destaca-se nessa peça que, devemos ressaltar, foi
composta no período da conquista de Melos por Atenas, na qual se levou a morte dos homens
e a escravização de mulheres e crianças da ilha. Como ressalta Brian Kibuuka,
Embora as personagens de Troianas sirvam, entre tantas outras questões,
como símbolos dos eventos ocorridos de Melos, tal não se restringe apenas ao
evento em si: é a representação da militarização demasiada e da política
preventiva que determina as decisões em Atenas e torna os cidadãos cúmplices
e coparticipantes dos crimes cometidos contra os suplicantes, contra os mais
frágeis (KIBUUKA, 2012, p.115).
43
Evidencia-se, assim, como através da temática bélica, reutilizando-se o mito da Guerra
de Troia, o autor foi capaz de demonstrar o que estava acontecendo em seu cotidiano, denotando
os males do conflito por ele vivido. Todavia, o tragediógrafo não chega a condenar a guerra em
si, mas sim os atos brutais que que ela provoca nos homens, afastando-os dos ideais da paideía.
O comedimento, a sophrosýne tão almejada pelos gregos, estava sendo ultrapassada na ocasião
da Guerra, fazendo com que os homens tivessem anuladas as suas virtudes, como é o caso da
condenação de Astiánax à morte.
A hýbris (desmedida) e a harmatía (falha) são os destaques das ações dos heróis
euripidianos, que se relacionam com os desmandos da pólis ateniense durante a guerra49. Além
da stásis, na qual gregos atacavam gregos, aumentava-se cada vez mais os números de atentados
atrozes, tendo a Guerra do Peloponeso, como destaca Donald Kagan, rompido “a tênue fronteira
que separa a civilização da selvageria” (KAGAN, 2006, p.22).
A morte voluntária de Ifigênia e Polixena também são destaques para analisarmos as
representações sociais que Eurípides constrói acerca da temática do sacrifício. Tema de
impacto, que fugia as normas da sociedade grega, dedicar um homem ao cutelo do degolador,
como ressaltado por Albert Henrichs e outros autores, estava presente apenas no imaginário dos
helenos: esses acreditavam que o sacrifício humano teria feito parte de seu passado histórico,
mas que teria sido abolido de sua sociedade (HENRICHS, 2013, p.182), sendo, desse modo,
encontrado, sobretudo, nas documentações poéticas.
Recordando-nos da história de Ifigênia em Áulis, vemos que Agamêmnon, pai da
personagem que intitula a obra e chefe dos guerreiros aqueus, é colocado diante de um dilema:
sacrificar sua própria filha para que a deusa Ártemis permita que o exército consiga avançar
sobre Troia, visto que uma calmaria acometia as frotas helenas. Ponto nodal da peça, o conflito
apresentado logo em seu início acompanhará as personagens ao longo dela: o amor cívico à
Hélade é posto em disputa com os liames familiares. Como ressalta Maria de Fátima Sousa e
Silva, “o autodomínio e a enorme generosidade que devem nortear o indivíduo, em função de
interesses coletivos, chocam com os laços pessoais, enleiam parentes próximos, cujos
sentimentos se revelam na riqueza de toda uma gama contraditória” (2005, p.129).
O sacrifício humano exigido, apesar de causar grande tristeza, torna-se, assim, “uma
resposta a um perigo que ameaça a coletividade na sua própria existência” (BONNECHERE,
Como nos recorda Vanessa Codeço, “Se o coração humano é o grande laboratório do trágico, a Moira em
Eurípides deixa de ter sentido e é substituída pelos transbordamentos afetivos e pela harmatía, isto é, falta, erro,
desmando oriundos das paixões. Nesse sentido, entendemos a afirmação de Aristóteles (Poética. 1460b, 32),
quando nos diz que a mola mestra de Eurípides para o trágico não era a Moira, mas, sim, harmatía. (p.86)
49
44
1998, p.194). Verificamos, dessa maneira, que o motivo religioso se atrela ao político, sendo
este último o que prevalecerá por grande parte da obra. O foco dos versos de Ifigênia em Áulis
se dá no constante agón entre as personagens50, nas tentativas de persuasão e nas cenas de
súplica. Se, politicamente, é o momento das dificuldades associada à guerra que marca as obras
de Eurípides, no plano intelectual o poeta pertence à época dos sofistas (ROMILLY, 2011, p.
129-30), “utilizando largamente uma forma literária que tomou da vida coeva, a saber o debate
organizado” (ROMILLY, 1999, p.38).
Destarte, vemos diferentes querelas entre as personagens ao longo dos versos: irmãos
debatendo sobre a melhor atitude a ser tomada, uma mãe copiosa por ver que sua filha não
encontrará o himeneu (casamento) e sim a morte51, e finalmente a jovem que será sacrificada
passando da súplica pela sua vida à aceitação voluntária do rito de sangue.
Atentos à análise de discurso, podemos verificar como apesar de triste, Agamêmnon se
mantem firme na decisão de sacrificá-la, visto que o amor a Hélade deve sobrepujar os desejos
individuais:
AGAMÊMNON
Não é Menelau que me escraviza, nem eu segui seu
propósito: é pela Hélade. Por ela eu devo te sacrificar, quer queira ou não: ela
é minha governante. Na medida em que isso depende de você, minha filha, e
de mim, ela deve ser livre, e nós, gregos, não devemos ter nossas mulheres
raptadas forçadamente
(EURÍPIDES. Ifigênia em Áulis, vv. 1269-1275).
Como fim do confronto retórico, dá-se a citada transformação de vítima para agente
heroicizada, surgindo uma das passagens mais marcantes de toda a obra, que destaca a aceitação
de Ifigênia e os motivos para tal:
Segundo Romilly, “no agón, cada um defendia o seu ponto de vista com toda força retórica possível, num grande
desdobramento de argumentos que, naturalmente, contribuíam para esclarecer o seu pensamento ou a sua paixão”
(1999, p.39).
51
A fim de atrair sua filha para o local do sacrifício, Agamêmnon arquiteta um casamento fictício entre Ifigênia e
o herói Aquiles. Através da chamada “ironia trágica”, a relação entre o matrimônio e a morte sacrificial é assim
vista nos usos das metáforas pelo tragediógrafo, sendo objeto de estudo de diversos autores, como Nicole Loraux.
Os símiles animais utilizados para as jovens virgens, como novilha (móskos), são, inclusive, como apontado por
Segal, também empregados para jovens que se dirigem ao altar nupcial (SEGAL, 1990, p.116). Segundo Ito,
“Tanto o casamento quanto o sacrifício envolvem uma morte voluntária (real ou simbólica), designando um
resguardo do convívio social. Ambos visam levar a um futuro que é propiciado pela violência, perda e submissão
à ordem social. Participação no sacrifício significa participação em uma sociedade e, por implicação, submissão a
suas regras e requerimentos, e uma autorização por uma parte em seus benefícios” (2005, p. 362).
50
45
IFIGÊNIA
Ouça, mãe, os pensamentos que vieram a mim enquanto refletia. É
determinado que eu deva morrer: mas para fazer isso de forma gloriosa – essa
é a coisa que quero fazer, limpando-me de toda mancha de baixeza. Considere
comigo, mãe, a verdade do que estou dizendo. A Hélade, em todo seu poder,
olha agora para mim, e de mim depende o poder de liberar seus navios e
destruir os frígios, para que os bárbaros não façam nada com as mulheres no
futuro [e para não permitir que levem mulheres da rica Hélade, já que pagaram
pela perda de Helena, a quem Paris raptou]. Todo esse resgate é realizado
através de minha morte, e a fama que ganharei por libertar a Hélade me fará
abençoada.
Verdadeiramente, não é certo que eu esteja tão apaixonada por minha vida:
você me deu para todos os gregos em comum, não para você somente.
Inúmeros hóplitas e inúmeros remadores ousaram, já que seu país foi
injustiçado, lutar bravamente contra o inimigo e morrer em nome da Hélade:
deve minha vida ficar no caminho de tudo isso? Qual justo apelo poderemos
fazer para conter esse argumento?
(EURÍPIDES. Ifigênia em Áulis, vv.1374-1391).
Ao contrário dos heróis de Homero, a glória que Ifigênia deseja atingir não é mais por
uma motivação individual, mas sim coletiva, por sua comunidade, exaltando as novas
prerrogativas que o ambiente bélico da sociedade clássica evidenciava52. Como destaca Jaeger,
“A novidade aqui é que o país, a comunidade da pólis, que assume, por assim dizer, a função
do canto homérico que elogia a virtude de seus heróis. Na nova fase da vida grega,
consubstanciada na cidade ou na pólis, a comunidade garante a memória eterna daqueles que
deram a vida por ela” (1959, p.138). Andres ressalta, inclusive, que o sacrifício pela pátris era
uma virtude comum entre os gregos, sendo “completamente lógico” que as doutrinas
declamadas por Péricles na Oração Fúnebre53, evidenciando a subordinação do indivíduo à
pólis, sejam vistas nas obras de Eurípides (ANDRES, 1980, p. 58).
Porém, sustentamos que a morte da personagem destaca o caráter ambíguo das
tragédias, aqui já citado. Sendo assim, não apenas evidenciar os desejos coletivos acima dos
individuais, mas também demonstrar os males da guerra através de um ato de transgressão
tornam-se objetivos do poeta. Este, através desse jogo dramático, marca o teatro como um
52
Apesar da morte pela coletividade vista no Período Clássico, os ideais aristocráticos do guerreiro não deixam de
estar presentes naqueles que morrem pela pólis: honra, coragem, aidós deveriam ser parte deles.
53
A oração fúnebre é considerada por Loraux (1994) como um gênero discursivo como características específicas,
delineado por regras retiradas de orações do passado. O usualmente discursado referia-se aos mortos em combate,
aos jovens e suas virtudes cívicas, destacando seu heroísmo e destemor e servindo de exemplo para os vivos.
Todavia, na oração pronunciada por Péricles, descrita por Tucídides, a ode dada a glória coletiva vê-se
transformado em uma ode à glória da pólis democrática. Verificamos um desvio no discurso de Péricles acerca do
que usualmente era proferido aos mortos de guerra: enquanto que em Homero os guerreiros são reverenciados, na
oração narrada na História da Guerra do Peloponeso, o enaltecimento da glória desses homens é posto em segundo
plano em prol do louvor aos ideais democráticos e expansionistas atenienses, verificando-se, que a coragem
pregada por Péricles não seria motivada pelo aidós, como o era em Homero, mas pelo pensamento racional da
construção de uma koinonìa politiké (BALOT, 2004, p.416).
46
instrumento que é capaz de provocar a reflexão do público, assim como a purgação das emoções
através de imagens tristes, de atos que não eram esperados em meio à sociedade grega, abrindose um “parêntese institucional” (LORAUX, 1988, p.114).
O final da peça destaca mais ainda a citada denúncia à violência da guerra, vendo como
Eurípides se opõe a ela: Ifigênia, através da intervenção divina de Ártemis, é salva no momento
em que se daria o sacrifício, sendo substituída por um cordeiro e destinada a viver em meio aos
deuses54. Desse modo, como nos recorda Romilly, vemos no teatro do poeta analisado “como
um deus chega ao final para dissipar todos os mal-entendidos e pôr um fim à violência”
(ROMILLY, 2010, p.40).
Hécuba também possui um exemplo acerca dessa ambiguidade trágica. Tendo sua
história narrada após o embate entre aqueus e troianos, essa peça, considerada um díptico, ou
seja, dividida por duas temáticas independentes, destina sua primeira parte a apresentar o
sacrifício da filha da personagem que dá nome a obra: Polixena55. Assim como Ifigênia, jovem
e virgem, de sangue real, a princesa de Troia, agora escrava, é exigida como géras (honraria)
de guerra de Aquiles, que já morto vem sob a forma de um fantasma requisitando honrarias de
sangue sobre seu túmulo. Elevado a uma categoria divinizada, o herói se torna capaz de intervir
nas questões humanas, não permitindo a volta das frotas aqueias se o sacrifício não fosse
realizado. Novamente vemos um agón a ser desenvolvido ao longo da peça: põe-se em debate
a necessidade de prestar honras aos mortos, assim como a tristeza dos cativos.
Através da votação em assembleia, levando a democracia ateniense ao interior do mito,
os guerreiros, entre discordâncias e defesas sobre o sacrifício da jovem, decidem por acatar o
pedido do semideus. Vemos sua mãe, a rainha Hécuba, questionando a transgressão do ato
sacrificial, tentando a todo custo retirar o jovem pescoço de sua filha do aço do degolador56.
Porém, novamente as necessidades cívicas são postas sobre os desejos individuais e os liames
familiares:
54
Em Ifigênia em Táuris, peça composta anteriormente a que aqui analisamos, vemos que o destino da princesa é
o sacerdócio junto ao templo da deusa Ártemis.
55
O restante da peça dá destaque a vingança de Hécuba contra o assassino de seu filho Polidoro. Ao ter quebrado
o ideal de hospitalidade, matando seu rebento, o rei trácio Polimestor tem seus herdeiros mortos pela rainha troiana,
que igualmente o cega.
56
Hécuba questiona a transgressão através das seguintes palavras: “A propósito, que sofisma eles definiram/ao
dirigir esse voto de morte contra essa jovem? /É o dever de imolação humana que os conduz/ao túmulo, onde mais
convém o sacrifício bovino? (EURÍPIDES. Hécuba, vv.258-261 - grifos nossos).
47
ODISSEU
Para nós, Aquiles é digno de honra, mulher,
após morrer belamente, como varão, pela Hélade.
Não é isto vergonhoso, se, quando vivo, como amigo o tratamos, mas, quando
morto, não o tratamos mais?
Pois bem: o que alguém dirá caso de novo surgir
um exército reunido e uma luta de inimigos?
Iremos combater ou prezaremos a vida,
vendo que quem morre não é honrado?
E para mim, enquanto vivesse, mesmo que pouco
tivesse no dia-a-dia, tudo seria suficiente;
mas o meu túmulo eu quereria que fosse visto
sendo honrado: de fato, a graça é duradoura
(EURÍPIDES. Hécuba, vv.309-320).
Todavia, ao contrário de Ifigênia, Polixena, encontrando-se em uma situação de
escravidão, após ter seu lar destruído com o fim da guerra, aceita a morte assim que sabe sobre
o que lhe acometerá. Prefere-a ao futuro que lhe está reservado, a se tornar cativa ao contrário
do que a esperava: um casamento digno da realeza. Dessa maneira, profere por diversas vezes
o mesmo discurso: “Matai-me deixando-me livre, pois entre os mortos envergonho-me de ser
chamada escrava, sendo rainha” (EURÍPIDES. Hécuba, vv.551-2). Como ressalta Andres, ao
comparar as duas jovens virgens aqui analisadas, “não é o amor à pátria que move Polixena
para se entregar ao sacrifício. Não é seu povo que tem que salvar por seu sacrifício, mas é
precisamente o herói do país que venceu o SEU quem a reclama como oferenda para seu túmulo.
Mas ela aceita porque vê na morte uma liberação” (ANDRES, 1980, p.63).
Levando a virgem à morte, verificamos, assim como em Troianas, relações diretas com
o cotidiano. De acordo com Kibuuka, no período em que Hécuba foi composta, a pólis de
Mitilene havia iniciado uma revolta contra Atenas, que teve por fim a morte dos escravos dessa
região em honra aos guerreiros que morreram em combate (KIBUUKA, 2012, p.100).
Assim, como aqui já perpassado, o sacrifício de Polixena estaria levando ao público
ateniense duas questões essenciais: sua morte representaria, como ressalta Segal, “o forte
decreto da violência e violação que a guerra leva às mulheres” (1990, p.111), evidenciando os
males do conflito bélico, devido a escravidão imposta aos vencidos. Através da aceitação de
seu sacrifício, Polixena demonstraria a todos que o fim da vida é escolha mais honrosa que a
submissão ao inimigo. Porém, Eurípides igualmente nos recorda que os deveres cívicos devem
ser seguidos pelos homens em relação aos seus mortos, dando as honrarias necessárias aos que
já se foram, visto que não realizar esse ato seria, nas palavras de Odisseu, atitude digna de um
bárbaro (EURÍPIDES. Hécuba, vv.326-331).
48
Dessa maneira, o tragediógrafo põe a virgem, assim como no caso de Ifigênia, com a
coragem de um guerreiro que enfrenta a morte: “por certo te seguirei, graças à necessidade,
desejando morrer; por outro lado, se eu não quiser, parecerei vil e uma mulher que preza a vida”
(EURÍPIDES. Hécuba, vv.346-8). Segal ressalta que “como Ifigênia em Áulis, a quem ela é
constantemente comparada, Polixena prova ser a vítima ideal: ela não faz nenhum apelo ao seu
status de suplicante, não oferece nenhuma resistência (vv. 342-45), e submissamente consente
em servir e exaltar com seu corpo a honra de um guerreiro” (1990, p.114).
Como destaca Nicole Loraux, “por ignorar o casamento e os trabalhos de Afrodite, a
moça adquire por meio do imaginário social noções relativas ao mundo da guerra [...] As
virgens não poderiam combater ao lado dos varões mas, quando o perigo é extremo, seu sangue
corre para que a comunidade dos andres viva” (1988, p. 67)57. Essa proposta também é elabora
por outros autores, como Hughes:
A devoção altruísta dessas vítimas lendárias, particularmente pungente no
caso de moças jovens, serviu para inspirar o exército a coragem e patriotismo
em face do inimigo [...] Assim, os contos de mulheres que morreram de forma
abnegada para salvar seu país, efetivamente inspiraram homens a estarem
preparados para fazer o mesmo, embora às mulheres nos mitos seja concedida
uma morte sacrificial, em vez de uma morte 'viril' no campo de batalha
(HUGHES, 2003, p. 76).
Em Alceste, o eixo temático do sacrífico conecta-a à Hécuba e Ifigênia em Áulis. Porém,
apesar do ponto em comum, podemos verificar que tanto as vítimas quantos os motivos para tal
ato se diferenciam de uma peça para outra. Em Alceste não mais vemos a morte de uma jovem
virgem e sim de uma esposa e mãe. Ademais, o sacrifício não se dá através de uma exigência
externa e sim da escolha voluntária da personagem homônima à peça ao entregar sua vida por
seu marido. Aceitando morrer em seu lugar, a jovem esposa traz à cena uma atitude feminina
nobre que transforma os personagens masculinos em pouco heroicos. Ademais, ao realizar esse
sacrifício, Alceste coloca acima de tudo a salvação de seu lar, da sua família. Se Ifigênia acolhe
seu sacrifício em prol da Hélade, Alceste o faz pelo oîkos, visto que, como ressalta Luciene
Silva,
Ao permitir que a personagem vivesse alguns anos mais e se tornasse
mãe, Eurípides nos faz crer que Alceste, ao sacrificar-se por Admeto,
fê-lo principalmente em prol das crianças, que poderiam ter o futuro
totalmente comprometido pelo fato de o pai, um rei, não estar mais entre
Escolhendo jovens virgens como personagens, Maria de Fátima Souza e Silva destaca que “da natureza feminina
julgava Eurípides poder tirar melhores efeitos patéticos” (2005, p. 130).
57
49
elas, e, ainda, possuírem como mãe uma estrangeira (SILVA L., 2000,
p.15)58.
Desse modo, podemos verificar, como recorda Fernando Brandão dos Santos, que ao
contrário do que vemos no universo masculino, no qual a morte heroica põe em configuração a
comunidade política, a bela morte da protagonista da peça dá destaque ao interior do palácio e
ao seu papel como esposa e mãe (1988, p.110). De acordo com Lessa, diante de uma ameaça à
pólis, a esposa não era mais vista com passividade. Quando o homem necessitava se ausentar
da casa, o papel da mulher era modificado, assim como suas tarefas. No caso da Guerra, elas
passavam a ser responsáveis pelas atividades produtivas (LESSA, 2004, p.82).
Voluntariando-se frente à morte, Alceste é, assim, consagrada com a mulher mais nobre,
possuindo atributos que, na sociedade grega, são conectados a mulher ideal, a mélissa59. Dessa
forma, os versos proferidos pela criada do palácio na tragédia euripidiana sintetizam o ato de
nobreza encontrado em Alceste, sendo a protagonista destacada como um modelo de virtude a
ser seguido pelo público, evidenciando o caráter instrutivo do teatro grego: “Sem dúvida a mais
nobre [ἁρίστη]! Quem dirá que ela não o é? De que devemos chamar a mulher que superar seu
ato? Como poderia qualquer mulher dar maior prova que o lugar de honra que ela dá ao seu
marido desejando por ele morrer?” (EURÍPIDES. Alceste, vv.152-6).
Porém, contrapondo-se ao modelo feminino encarnado na figura da protagonista, vemos
igualmente sendo posto em debate na obra analisada a covardia de Admeto. Destacando-se a
baixeza do homem, Eurípides evidencia em sua obra um exemplo a não ser seguido,
demonstrando uma personagem que falha com seus deveres masculinos e de cidadão. Não
defendendo seu oîkos (casa, lar), não possuindo coragem e virilidade, desrespeitando seus pais
e se submetendo ao páthos (paixão, excesso) do luto e a vontade da esposa aceitando não mais
se casar, Admeto é assim desmoralizado, sendo visto na peça como “o maior dos covardes”
(EURÍPIDES. Alceste, vv.694-699).
Destarte, Eurípides põe em evidência a hamartía do rei de Feras ao querer evitar a
condição de mortal (SILVA L., 2000, p.15). Sendo assim, verificamos uma inversão irônica do
58
Devemos ressaltar que originalmente o mito de Alceste demonstrava sua morte no momento de seu casamento
e não posteriormente, como o faz Eurípides.
59
A mélissa (mulher-abelha) era vista como o modelo feminino ideal na Atenas Clássica. Conforme denota Fábio
de Souza Lessa, um conjunto de virtudes era convencionalmente relacionado a esse modelo, como “o exercício de
atividades domésticas; a submissão ao homem; a abstinências aos prazeres do corpo, considerados como
masculinos; o silencio; a fragilidade e a debilidade; a reprodução de filhos legítimos - preferencialmente, do sexo
masculino; a vida sedentária e reclusa no interior do oîkos (grupo doméstico); e a exclusão da vida social, pública
e econômica” (2010, p.15-6). Todavia, ainda que houvesse um arquétipo a ser seguido, isso não significa que ele
fosse rigidamente posto em prática ou que as mulheres o aceitassem passivamente.
50
tema heroico da bela morte. Visualiza-se, assim, uma troca de papeis: Admeto, biologicamente
do sexo masculino, assume o gênero feminino e vice-versa, sendo possível verificar em
Eurípides o rompimento dos padrões aceitáveis em meio à sociedade, assim como a valorização
dos códigos de condutas a serem seguidos.
Como ressaltado por Schein, “uma das características mais distintivas da tragédia ática
é a maneira pela qual os poetas convidam sua audiência e seus leitores a repensarem as
instituições e os valores tradicionais, provocando contradições entre eles (ou dentro deles) à luz
desse desencanto” (1988, p.179). À vista disso, perto de personagens pouco heroicas, como seu
marido e sogro, Alceste se destaca como heroína e Eurípides, utilizando-se de uma inversão
para fazer uma crítica a sua sociedade, desacredita o papel do homem, apontando suas falhas
assim como as da pólis, instituição pela qual o gênero masculino deveria velar.
Dessuperficializando o discurso, analisando a posição sócio-histórica do enunciador,
verificamos, como aqui já exposto, que apesar de Alceste não fazer parte propriamente do
período bélico, a época em que foi composta não deixa de contar com a iminência da guerra:
Péricles, em seu papel de estratego de Atenas, assinou, ainda em 445/6 a.C., a Paz dos Trinta
Anos, postergando o início do conflito (TUCÍDIDES. I, 44) e dando claros indícios de que os
confrontos entre as poléis estavam sendo postos em debate. Desse modo, defendemos que a
violência que a pólis de Eurípides vinha impondo através de suas ações desmedidas é por ele
posta nos palcos através de suas representações sociais, visto que, essa noção é capaz de nos
guiar “no modo de nomear e definir conjuntamente os diferentes aspectos, tomar decisões e,
eventualmente, posicionar-se frente a eles de forma decisiva” (JODELET, 2001, p.17).
Voltando-se para o oîkos, dando voz ao universo feminino e retirando-o de sua
passividade, podemos verificar que a mulher passa a representar “os valores que a pólis rejeitou:
a terra, os afetos, a família. Por isso, ela expressa uma possível força renovadora para a crise da
pólis” (FERNANDES, 2012, p.87). Igualmente, ao morrer gloriosamente, assim como os heróis
em campo de batalha, Alceste consegue alcançar uma resposta ao destino incontestável da
morte, pondo em primeiro lugar a coragem e a glória do nome da vítima, alcançando o canto
dos poetas: “Poetas cantarão muitas vezes em seu louvor [...] Tão grande é o tema para a canção
que você deixou para os poetas com a sua morte” (EURÍPIDES. Alceste, vv.445-454).
Desse modo, no marco da ambiguidade trágica, defendemos que as personagens
femininas do poeta – Ifigênia, Polixena e Alceste – aproxima-se dos ideais hoplíticos ao
demonstrarem a prerrogativa da coragem frente a morte em prol da comunidade, sendo “a forma
51
de morte que elegeram a melhor por ser útil” (ANDRES, 1980, p.57), mas também realizando
através de seu discurso uma crítica cáustica ao movimento bélico ateniense.
Sendo assim, defendemos que Eurípides não pode ser taxado de pacifista ou patriota,
mas sim com um cidadão que vê tanto a importância da guerra para sua pólis quanto os males
que ela pode causar, visto que “a democracia exige do homem uma responsabilidade política e
social” (FERNANDES, 2012, p.80). Como ressalta Garlan, “em suma, passava-se com a guerra
o que hoje se passa com o inverno ou o mau tempo: de que se tem motivo de queixa e de eu se
protege ao máximo mas que se aceita afinal de contas como algo, senão agradável em si, ao
menos inerente à ordem natural e, às vezes, até benéfico” (1991, p.10). Assim, como destacado
por Cassandra em Troianas:
CASSANDRA
Carece, assim, que fuja da guerra quem é prudente; Mas, se ela chegar, coroa
não infame à cidade/É a bela morte; a não bela, coisa inglória
(EURÍPIDES. Troianas, vv.400-2).
As ações e debates são postos sob o olhar do público para por ele serem pensadas, mas
não logicamente aceitas e sim debatidas, contestadas, sendo Eurípides capaz de oferecer
diferentes pontos de vista sobre uma mesma temática (ROMILLY, 1995, p.176). O poder
exercido através de seu teatro não é, assim, como ressaltado por Rodrigues acerca deste
conceito, visto a partir de uma relação de ordem e obediência, pois a sociedade deve ser
concebida como um sistema e, mais especificamente, como um sistema de comunicação (1991,
p.39).
O poeta, através de suas tragédias, pôde se endereçar ao conjunto da sociedade políade,
representando em cena as experiências humanas em geral e levando a reflexão e a instrução. As
peças, assim, poderiam tanto informar acerca do contexto quanto modificá-lo, como ressalta
Croally (2002, p.56). De acordo com Goldhill, “o reconhecimento mais inquietante dos textos
trágicos é que próprias convicções, atitudes e posturas dos espectadores ou leitores tornam-se
implicadas, questionadas e rebaixadas no que, à primeira vista, parecem tão claramente os
conflitos desastrosos de outros” (1986, p.56).
A tragédia não é, portanto, mero espetáculo de entretenimento. A força de sua
dramatização, que assim como com Homero, fez Platão considerar a poesia trágica como um
mal para sua pólis, tinha efeitos práticos em seu público. Em meio a Guerra do Peloponeso,
conflito entre gregos, Eurípides expôs através de metáforas seus pensamentos que acima de um
artista são de um cidadão. Desse modo, o teatro não está apenas sujeito a um contexto político,
52
ele se faz contexto na medida em que possui um papel efetivo frente a sua sociedade,
evidenciando através das representações sociais da morte valores éticos a serem seguidos, assim
como pondo os problemas da pólis em debate. Como ressalta Marta Mega Andrade, “o teatro
não é um reflexo da realidade social; ele é realidade social na medida em que é a própria
realidade social que o fabrica, como um de seus mais atraentes produtos” (ANDRADE, 2001,
p.24).
Em virtude do apresentado, analisaremos no próximo capítulo como Eurípides e
Homero, ao longo de suas obras, demonstram através das representações da morte nelas
engendradas o papel dos vivos frente a esse momento, destacando os ritos funerários a serem
seguidos e as honrarias necessárias aos mortos.
53
Capítulo 2
Entre elogio e lamento: o papel dos vivos perante a morte
“A morte é um problema dos vivos” (ELIAS, 2001, p. 10). É assim que Norbert Elias,
em sua obra A solidão dos moribundos, refere-se a esse fenômeno que vai muito além da
destruição de um estado físico e biológico. Morrer, como sustenta Rodrigues, é acima de tudo
um perigo sociológico (1991, p.11), cabendo aos sobreviventes o desenvolvimento de
estratégias que lidem com o aniquilamento que a morte provoca.
Em diferentes sociedades, cada uma a sua maneira, verifica-se a apropriação desse
processo natural e a construção do mesmo no universo cognitivo dos indivíduos e grupos que
as formam. Organizando-se como poder, essas sociedades constituem-se como um sistema de
regras contra caos e a entropia que o fim da vida de um ente ou amigo querido pode causar em
meio a elas, “contra o que a mutila, contra o que quebra o curso normal das coisas, contra o que
ameaça sua coesão e solidariedade (RODRIGUES, 1991, p.15). Organizam-se, sobretudo, para
darem uma resposta social e afetiva aos falecidos, mas igualmente para não deixar que eles se
apaguem de sua memória, pois “se os vivos conhecem seu nome, o morto continua um pouco
vivo” (RODRIGUES, 1991, p.12).
Na sociedade grega antiga, isso não era diferente. Como aqui já citado, mesmo
compreendendo-se a morte como a alteridade por excelência, procurava-se maneiras de se lidar
com esse momento, sabendo que este outro deveria ser agregado ao corpo social. A notável
preocupação com a morte, mesmo com as especificidades de cada período, notabiliza-se,
sobretudo, pelo zelo que os sobreviventes consubstanciavam através do lamento e dos ritos
funerários, evidenciando-se como estes “são projetados para fornecer a qualquer pessoa que
tenha perdido a vida o acesso a uma nova condição de existência social, para transformar a
ausência do desaparecido em um estado positivo mais ou menos estável: o estatuto de morto”
(VERNANT, 1989, p.82).
Partindo desses pressupostos, possuímos como proposta do presente capítulo evidenciar
como os poetas por nós analisados apresentaram ao longo de suas obras as maneiras de se lidar
com a morte. Colocaremos como foco de análise não apenas uma mera descrição dos ritos de
lamento e de cuidado com o corpo, mas demonstraremos como a literatura épica e trágica são
capazes de ratificar em meio a sociedade grega as normas a serem seguidas pelos vivos diante
54
do falecido, assim como o contexto funerário em que se inseriam, podendo até mesmo
questioná-lo.
As representações sociais da morte concebidas por Homero e Eurípides, como aqui já
exposto, vão muito além de apenas narrar o fim da vida de grandes heróis e heroínas. Analisadas
a partir de seu local de produção, vistas como um fenômeno de comunicação social, elas se
destacam como dispositivos pedagógicos capazes de organizar as condutas dos homens e
expressar “aqueles (indivíduos ou grupos) que as forjam e dão uma definição específica ao
objeto por elas representado” (JODELET, 2001, p.21).
Dessuperficializando nosso corpus documental, podemos entender os discursos nele
proferidos não meramente como a transmissão de uma mensagem do emissor para o receptor
(ORLANDI, 2012, p.21), mas como um objeto simbólico que é capaz de produzir efeitos de
sentido ante a sociedade, efeito de poder que se manifestam através dos poetas e das relações
que suas obras mantêm com seu público.
Isto posto, sustentamos que, ante a necessidade de se institucionalizar o fim da vida, os
discursos presentes em nosso corpus documental perpassam uma verdadeira política em relação
a esse momento ou, ainda mais, uma ideologia funerária, conceito que deve ser entendido como
um sistema de representações no qual
Todos os elementos significativos que, dentro das práticas como dentro dos
discursos relativos à morte, referem-se às formas de organização social, às
estruturas do grupo, traduzem as diferenças, os equilíbrios, as tensões em meio
a uma comunidade, testemunham sobre sua dinâmica, sobre suas influências
sofridas, sobre as mudanças operadas (GNOLI; VERNANT, 1982, p.5-6).
Destarte, analisar essa ideologia funerária, como destacam d’Agostino e Schnapp, não
se trata apenas de “um fim em si mesmo, mas de um meio privilegiado de alcançar uma visão
social da Antiguidade” (1982, p.20), verificando-se, acima de tudo, a construção de uma ação
simbólica que é capaz de desvelar a estrutura social em que estão inseridos, seus valores e
prerrogativas (MORRIS, 1992, p.1), evidenciando temáticas como status, hierarquia social e
conflitos ideológicos.
Aplicando nossa metodologia de História Comparada, ainda que observemos diferenças
no que compete à intencionalidade dos poetas em seus discursos funerários e, como veremos,
peculiaridades em cada um dos contextos por eles vividos, as proximidades em relação ao nosso
comparável não podem ser deixadas de lado.
55
Pondo em evidência que o discurso é formado através de interdiscursos, pois em todo
dizer há sempre algo que se mantém (ORLANDI, 2012, p.35-6), acreditamos ser possível
verificar entre os versos épicos e trágicos traços em comum no que compete a ideologia
funerária neles representada. Como suscitado por Vermeule, diferentemente do que ocorre
acerca das crenças no pós-morte, temática de nosso próximo capítulo, as cerimônias religiosas
de luto e despedida realizadas em honra ao morto são provavelmente a forma de arte mais antiga
e que menos sofreu mudanças na Grécia (1979, p.12). Desse modo, verificamos que muitos dos
ritos presentes nas obras homéricas, que se distanciam cerca de três séculos das tragédias
euripidianas, nestas continuam presentes.
Não obstante, como citado, defendemos que as intencionalidades dos poetas eram
diferenciadas, necessitando-se pôr em andamento a dessuperficialização de nosso corpus
documental, pois como nos ressalta Orlandi, “os sentidos não estão só nas palavras, nos textos,
mas na relação com a exterioridade, nas condições em que eles são produzidos e que não
dependem só das intenções dos sujeitos” (ORLANDI, 2012, p.30).
2.1| A discursividade homérica e euripidiana: seus contextos funerários
As obras homéricas e euripidianas, como aqui já citado, possuem a temática da morte
como um constante em seus versos. Narram a respeito de como os heróis enfrentam o fim da
vida, assim como aqueles que ficam lidam com seus falecidos. Pôr em seus versos temática de
tamanho impacto não era uma escolha desintencionada. Seus discursos significavam em meio
a sociedade através de uma relação dialética entre o enunciador e seu público, seu contexto de
inserção, permitindo-nos vislumbrar outros sentidos presentes além do texto ipsis litteris, visto
que o discurso só “se faz (se significa) na/pela história” (ORLANDI, 2012, p. 95).
Analisar esses textos em sua materialidade linguística, dando destaque ao campo
discursivo conectado aos tratamentos devidos aos mortos, faz-nos, assim, revelar como as
circunstâncias nas quais os poetas se inseriam eram capazes de influenciar a maneira pela qual
suas representações se constituíam. Os ritos fúnebres por eles descritos podem ser
compreendidos, desse modo, não como práticas em si mesmas, mas como ritualizações, isto é,
como um conjunto de estratégias culturais específicas que, apesar de seguir certas prescrições,
é singular e dinâmico, sendo capaz, inclusive, de contestar a ordem social, materializando-se
56
nas performances poéticas e servindo como uma eficaz forma de comunicação simbólica
(BELL, 2009, p.74)60.
Investigando primeiramente as obras do aedo em sua discursividade, evidenciando seu
estatuto epistemológico, verificamos as conexões entre o que era narrado no épos e o que
ocorria em seu contexto de produção. Apesar de sabermos que os rituais funerários descritos
por Homero ganham proporções muitas vezes não vistas em outras documentações a respeito
da temática na época em que compunha61, seria errôneo afirmar que eles não mantinham
nenhuma relação com as prerrogativas dos grupos aristocráticos que o ouvia.
Como ressalta Marta Mega de Andrade, entre os séculos VIII a.C. – no qual localizamos
Homero – e VI a.C., os ritos fúnebres e os monumentos criados em prol da memória do morto
“estariam inseridos no contexto da celebração quase heroica de um indivíduo por seus méritos”
(2004, p.232), fato que pode ser sustentado pela afirmação de Morris, segundo a qual “heróis
homéricos não foram, talvez, figuras ‘reais’, mas no século oitavo, o herói estava sendo criado
como um ideal aristocrata” (1989, p.306).
Esse ideal, analisado nos rituais post mortem, relacionava-se, sobretudo, como a própria
citação de Marta Mega Andrade nos suscita, à necessidade de um elogio póstumo voltado para
indivíduos, marcado por monumentos fúnebres que, no Período Arcaico, eram celebrados partir
de seus antepassados, “como uma figura arquetípica de significado humano atemporal”
(HUMPHREYS, 1980, p.104), conectando-se ao culto dos ancestrais e, até mesmo, aos cultos
heroicos que, para muitos autores, teriam se iniciado no século VIII a.C. (ANTONACCIO,
1994).
Desse modo, os funerais não eram apenas um meio através do qual honrava-se os
mortos, mas igualmente uma oportunidade pela qual os kaloì kagathoí demonstravam seu
prestígio em meio à sociedade, destacando-se os indivíduos mais nobres e afirmando
hierarquias.
Por não existirem regras que delimitassem as famílias aristocráticas a respeito da
exibição desses rituais dedicados aos mortos que, como veremos, são existentes no Período
60
Para maiores informações acerca do conceito de ritualização e de sua aplicabilidade consultar SILVA, B.M. A
construção da paisagem religiosa no teatro grego: o ritual do sacrifício humano em Eurípides. Plêthos, 4, 1, p.99116, 2014.
61
Como destaca Sourvinou-Inwood, “Costumes funerários homéricos não tem correlativos em uma sociedade real;
eles são um constructo, uma fusão de elementos que tinha se originado em diferentes períodos e lugares” (1995,
p.108). Porém, segundo Garland, isso não invalida o fato de que muitas das práticas descritas pelo aedo existiam
ainda na Idade Clássica e até mesmo Helenística. O autor cita, inclusive, que os epitáfios de períodos posteriores
às epopeias continham muitas ideias presentes nos versos de Homero, demonstrando a influência de suas epopeias
na sociedade (1985, p. XI).
57
Clássico, a demonstração do status social é vista especialmente na suntuosidade que eles
comportam. Segundo Garland, “um funeral apresentava oportunidade inigualáveis para a
ostentação da riqueza, solidariedade entre parentes e orgulho familiar” (1985, p.20).
Nas obras homéricas, especialmente na Ilíada, o elogio dado é igualmente individual e
marcado pela suntuosidade62. Apesar de vermos guerreiros anônimos cremados em piras
coletivas (HOMERO. Ilíada, VII, vv.327-343)63, para os grandes heróis mortos em combate,
do qual conhecemos seu prestígio e/ou genealogia, como é o caso de Pátroclo, Heitor e Aquiles,
eram evidenciadas as honrarias necessárias, como é o caso dos cuidados com o corpo do morto,
as oferendas, banquetes e jogos fúnebres, ritos essenciais em meio aos núcleos aristocráticos.
Como debatido no capítulo anterior, inseridos na chamada shame culture (cultura da
vergonha), na qual o aidós, o medo da desaprovação é “a mais potente força moral que o homem
homérico conhece” (DODDS, 2002, p. 26), além da coragem diante da morte e dos inimigos
ser uma das prerrogativas para que o herói não fosse vítima da léthe, do esquecimento, aos
vivos era dada igualmente a responsabilidade dos cuidados do corpo do morto, assim como da
ereção de uma estela que o dignificasse e mantivesse seu nome na memória social,
apresentando-o como um exemplo para as gerações vindouras, inclusive as que ouviam o aedo.
Como nos recorda Odisseu, na obra em que protagoniza, “às honras fúnebres, / se somaria o
kléos, renome entre os aqueus” (HOMERO. Odisseia, V, vv.311-2)64.
Desse modo, dar essas honrarias aos mortos, seu géras thanónton, como veremos,
relacionava-se, nos poemas homéricos, sobretudo, ao fato da morte ser recompensada pela
rememoração, pois esses heróis eram, antes de tudo, ancestrais que deveriam ter seus nomes
reverberados tanto através da poesia épica quanto das suas tumbas (ANTONACCIO, 1994).
Como nos evidencia Bouvier, “morte não é um corpo que desaparece no vácuo, mas uma figura
que se inscreve na memória de cada um, que busca compartilhar as qualidades exemplares do
morto” (1999, p.65).
Já nos casos das obras trágicas por nós analisadas, não deixando de exaltar as qualidades
do herói/heroína morto (a), vemos que o seu foco não é o elogio, excetuando-se Alceste65.
62
Na Odisseia, quando Athená se dirige a Telêmaco, solicitando que fosse em busca de seu pai, refere-nos a essas
ricas exéquias dadas aos mortos: “Se ouvires que ele vive e que retorna a Ítaca, /Suporta a dura espera, mesmo se
de um ano, /Mas se ouvires que já morreu, erige um túmulo/Tão logo chegues, ricas oferendas fúnebres,
/Muitíssimas, concede (HOMERO. Odisseia, I, vv.287-291 - grifos nossos e tradução de Trajano Vieira).
63
Ainda que os guerreiros anônimos tenham sido cremados em uma única pira e a eles tenha sido erigido um único
sepulcro, seus ossos deveriam ser devolvidos ao final da guerra às suas famílias, para que assim pudessem darlhes as honras completas, como a própria passagem supracitada destaca.
64
Tradução de Trajano Vieira.
65
Alceste é a única peça de nosso corpus documental de cunho trágico que põe em maior destaque o elogio após
a morte, visto, inclusive, através do uso da saudação khaîre a rainha (EURÍPIDES. Alceste, vv.741-743/994-1005).
58
Diferente de Garland, que defende que a tragédia grega insiste a todo momento no dever de se
reverenciar (sebein) os mortos (1985, p.8), sustentamos que a ênfase em Eurípides se dá, na
verdade, nas dores dos vivos. Como ressaltado por Sheila Murnaghan, podemos verificar que
A tragédia é, então, uma canção de sobreviventes, um ensaio da inescapável
experiência humana - tão universal como a própria morte - de estar vivo
quando outros morreram. Preocupa-se com as várias maneiras em que os seres
humanos interpretam essa experiência, as conexões que eles fazem entre a
morte de um e a vida continuada de outro (MURNAGHAN, 1999/2000,
p.109).
À vista disso, como analisado no capítulo anterior, o tragediógrafo expõe através dos
funerais e do luto dedicados aos mortos, especialmente o lamento, a tristeza e o infortúnio
daqueles que ficam. Suas obras detinham um apelo emocional, sendo o uso da compaixão
(éleos) um dos maiores artifícios do poeta.
Em Alceste, por exemplo, a presença de crianças no palco, como destacado por Luciene
Lages Silva, é sinal da utilização deste recurso: as crianças veem o cadáver da mãe e lamentam
sobre ele, buscando-se através do discurso que seu público atinja a catarse necessária (2000,
p.16) e demonstrando-se que a compaixão é despertada a respeito do que é desafortunado
imerecidamente (ARISTÓTELES. Poética, IX, 1451a, 36-8).
Igualmente, em Troianas, vemos a morte brutal de Astiánax, filho do falecido Heitor,
que é jogado das muralhas de Troia, provocar esse sentimento66. Grande parte da tristeza que
este ato causa em Andrômaca e Hécuba, mãe e avó do menino, dá-se pelo fato de não lhe
poderem dar um funeral digno, restando-lhe apenas uma inumação no próprio escudo do pai:
HÉCUBA:
O que então
o poeta escreveria para ti no teu túmulo?
‘Esta criança um dia mataram os argivos,
temerosos?’ A inscrição é infame para a Hélade.
Assim, não obterás quinhão do pai, todavia,
serás sepulto no escudo de brônzeo dorso
(EURÍPIDES. Troianas, vv.1188-1193)
Analisando o uso deste termo na tragédia, que pode ser compreendido como uma saudação, Sourvinou- Inwood
destaca que ele era endereçado apenas aqueles que possuíam um status especial após a morte: “A visão de que até
certo ponto do século IV khaîre não era apropriado para os mortos comuns, mas apenas para os excepcionais, é
fortalecida pelo fato de que um dos principais usos de khaîre era endereçar divindades e outros seres sobrenaturais
em invocações, saudações e similares” (1995, p.197 e199).
66
Já em Homero, a referida morte do filho de Heitor é mencionada e motivo de tristeza para sua mãe (HOMERO.
Ilíada, XXIV, vv.732-7).
59
A situação da escravidão, temática tanto da peça supracitada quanto de Hécuba, desvelanos, assim, como, apesar das honras fúnebres serem necessárias, muitas vezes elas não podem
ser dadas da forma outrora desejada. À Troia, que não mais tem o seu esplendor real, resta
apenas o lamento dos que ficam, evidenciando as tristezas da guerra.
Dessuperficializando o discurso e voltando-nos para o contexto em que Eurípides se
encontrava, delineando a hipótese a respeito da ideologia funerária apresentada pelo poeta,
verificamos novamente como sua inserção em um período bélico, marcado por muitas mortes,
tem o poder de reverberar no conteúdo de suas tragédias. A História da Guerra do Peloponeso,
escrita por Tucídides, contemporâneo do tragediógrafo, vale-nos como profícuo comparativo
do que ocorria em sua pólis e o que era descrito nas peças euripidianas.
A ideologia funerária proferida pelo historiador, embebida nos discursos de expoentes
políticos do período, destaca-nos um novo horizonte para se olhar o guerreiro após sua morte.
Nicole Loraux nos aponta que da celebração heroica aristocrática, marcada pela epopeia
homérica, passa-se ao elogio coletivo, evidenciado nas orações fúnebres da época Clássica,
especialmente naquela proferida pelo estratego Péricles, responsável por guiar Atenas na guerra
em seus primeiros anos. Todos aqueles tombados em combate durante o mesmo ano deveriam
ser reunidos em um túmulo único, demarcando o igualitarismo da democracia ateniense
(LORAUX, 1994, p.43).
Do mesmo modo, a necessidade de um exército e pessoas que lutassem pelos ideais da
pólis era posta acima da dor da perda nesses epitáphioi, sendo o lamento passado a ser
condenado como uma expressão prejudicial. Como destacado por Loraux, “o cerimonial
ateniense autoriza as lamentações rituais, embora as limite ao mínimo; mas, por meio da oração
fúnebre, a pólis relembra que os combatentes mortos em guerra merecerem mais do que
lamentações” (1994, p.62).
Igualmente, desde o decreto das Leis Suntuárias de Sólon, citadas por Plutarco
(PLUTARCO. Sólon, 21), os ideais da comunidade política seriam postos acima daqueles
valorizados pelos núcleos aristocráticos, fiscalizando-se as exibições privadas de riqueza dos
funerais. A pressão sobre a lamentação feminina e quase total supressão de estelas funerárias
foram as novas regras ditadas em meio a sociedade grega, que vão se acirrar ainda mais no
período da guerra. Segundo Morris, todas as distinções, seja individual ou familiar, econômica
ou social, eram abolidas e “nada se constituía em tamanha evidência da presença da hýbris que
a demonstração deliberada de riqueza” (1992, p.131 e 125).
60
O contexto da guerra suscita, do mesmo modo, como “a disseminação da violência
provocou um colapso dos hábitos, instituições, crenças e limites, que são os fundamentos da
vida civilizada” (KAGAN, 2006, p.23). Novamente, através da obra de Tucídides, ao narrar
acerca da peste que assolou Atenas (II, 52), evidencia-se como os rituais de enterramento viamse marcados pela anomia e uma fragilidade da integração social durante a guerra. A morte,
tornando-se corriqueira e presente no interior das muralhas atenienses, deixa de se envolver
pelos rituais tão prezados nos relatos homéricos e “a peste inaugura um estado de
desconsideração pelas leis e pelos costumes nunca visto na cidade” (NEIVA, 2003, p.85) 67.
À vista disso, diante de um cenário perpassado tanto por regras de limitação ao luto
quanto pela quebra de normas vigentes na sociedade grega, Eurípides realiza através de suas
obras uma textualização do político (ORLANDI, 2012, p.86). Os ritos fúnebres, vistos a partir
de suas peças, funcionam, como ressalta Aurelie Damet, como um sistema de representação
significativo e codificado, capaz de revelar não apenas seu caráter religioso, mas igualmente a
legislação cívica (2006, p.93), em alguns momentos condenando-a e em outros corroborandoa.
Ainda que vejamos algumas críticas ao luto exacerbado ou a não existência de rituais
suntuosos em suas peças68, como o era em sua época, muitas de suas personagens vão de
encontro ao que ocorria em seu cotidiano: o não sepultamento era criticado, sendo descrito em
suas obras diversos cuidados pelos quais o corpo do morto deveria passar; o lamento, que
deveria ser evitado e não poderia se tornar espetáculo, tomava a cena em muitos momentos,
especialmente através das mulheres, evidenciando uma tensão entre os funerais públicos,
marcadamente pelos epitáphioi – no qual o choro feminino era repreendido – e os funerais
privados, demarcados pelo luto feminino (HOLST-WARHAFT, 2005, p.4).
Por conseguinte, a tragédia euripidiana distancia-se do discurso homérico ao colocar em
seus versos não uma resposta à fatalidade da morte ou uma ode à rememoração dos falecidos
através de suas suntuosas exéquias. A principal mensagem que sustentamos ser passada por
Eurípides é a de que a morte “é uma dívida que todos mortais devem pagar” (EURÍPIDES.
Como destaca Garland, “alguns jogaram seus mortos em uma pira que pertencia a outra pessoa, e então atearam
fogo neles; outros jogavam seus cadáveres em uma pira que já estava queimando e em seguida fugiam” (1985, p.
102).
68
Diferentemente de Alceste, a quem o elogio é posto em evidência, Ifigênia demanda que não lhe chorem nem
erigiam a ela um túmulo, pois o luto, para a princesa, a faria covarde (EURÍPIDES. Ifigênia em Áulis, v.1435).
Nos anos finais da guerra, na qual Atenas se vê frente a iminente perda do conflito, colocar o ato acima da dor da
perda se faz fundamental. O sacrifício de Ifigênia pela pátris, assim como dos hóplitai pela pólis, deveria
sobrepujar a tristeza da morte.
67
61
Alceste, vv.781-2), sendo motivo de uma tristeza incomensurável por parte dos vivos,
especialmente aqueles que se veem privados da possibilidade de ter os corpos de seus parentes
honrados.
Porém, ainda que os contextos funerários dos poetas sejam diferentes, assim como suas
intencionalidades aos apresentarem seus discursos acerca da morte, o discurso euripidiano
aproxima-se da epopeia ao levar ao seu público as prerrogativas dos vivos em relação aos seus
mortos – luto e um funeral digno –, validando o estatuto paidêutico de ambos os gêneros
literários.
À vista disso, ao analisarmos acerca das representações sociais da morte na literatura
grega à luz da Antropologia, voltaremos a partir de agora nosso foco de análise às maneiras de
se lidar com a morte expostas por esses poetas, evidenciando aquilo que era devido ao morto,
seu géras thanónton.
2.2| O géras thanónton: responsabilidade dos vivos e merecimento dos mortos
Entre os gregos antigos, o termo γέρας (géras) se define como uma marca de honra, um
privilégio, uma distinção recebida por outrem ou merecida por seus próprios méritos (BAILLY,
2000, p.398), seja em vida ou após a morte. Na épica homérica, vemos, por exemplo, que a ira
de Aquiles, o protagonista da Ilíada, dá-se pelo fato de Agamêmnon ter-lhe tomado seu géras
de guerra, a sua escrava Briseida, cometendo através de sua áte um ultraje ao negar o direito do
Pélida. Em Hécuba, passagem que debatemos no capítulo anterior, Aquiles aparece mais uma
vez como personagem que protagoniza a exigência de um géras, porém dessa vez é seu
φαντáσμα (fantasma) que demanda uma oferenda de sangue, o sacrifício de Polixena, como
honraria a seu túmulo69.
O géras thanónton, título desse subcapítulo, concebe-se assim como aquilo que é devido
ao morto – enterro próprio, luto e lamento – sendo implícito no significado do termo duas
questões essenciais: 1) as prerrogativas impostas àqueles que sobreviviam ao lidarem com seus
mortos, visto que os ritos fúnebres destacam-se como responsabilidade social dos vivos
(HOLST-WARHAFT, 2005, p.7); e 2) o merecimento por parte daqueles que se foram que, em
nossa documentação, devemos recordar, tratam-se, muitas vezes, de heróis/heroínas, falecidos
que segundo Burkert exigem uma veneração adequada (BURKERT, 1993, p.396).
69
Como vimos no Capítulo 1, ainda que a exigência de um sacrifício humano fosse uma transgressão do que era
esperado na sociedade, Eurípides coloca em seu agón a necessidade de prestar honras aos mortos.
62
Analisando primeiramente as epopeias homéricas, verificamos que, por terem como
foco o elogio aos mortos, são elas que mais nos trazem exemplos da necessidade de lhes prestar
honras. Não apenas bastava aos heróis realizarem feitos decorosos ou terem uma bela morte,
mas cobrava-se dos vivos um tratamento adequado especialmente para que o morto não fosse
esquecido, sendo diversas passagens elucidativas a respeito desse fato.
Na Ilíada, poema no qual os cuidados com o morto mais se destacam, vemos através da
morte do herói Sarpédon os rituais prestados aos guerreiros mortos em batalha. Após perder
sua vida e ter seu corpo como alvo de um desejoso aikía por parte dos aqueus, Zeus, pai do
herói, teme esse ultraje, dando a Apolo as seguintes ordens:
‘Do sangue escuro, Febo dileto, depura
Sarpédon, arrendando-o das flechas; levando-o
bem longe, lava-o na água de uma corrente; unge-o
de ambrosia e o reveste de imortais roupagens;
depois, a portadores velozes o entrega,
aos gêmeos Sono e Morte, que o conduzirão
ao opulento e vasto país dos Lícios, onde
os parentes e amigos lhe darão sepulcro,
e estela [τύμβω τε στήλη], privilégios e pompas da Morte [γαρ γέρας εστι
θανόντων]’
(HOMERO. Ilíada, XVI, vv.667-675).
As palavras do deus indicam, desse modo, alguns dos cuidados básicos que compunham
esse géras: a limpeza do corpo, livrando-o do sangue e da poeira; o uso de óleos para ungir o
cadáver, a escolha de vestimentas para orná-lo, assim como a ereção de um sepulcro e estela
pelos mais próximos (“parentes e amigos”).
Na Odisseia, temos mais um exemplo elucidativo do que era devido ao morto. Elpenor,
a primeira psykhé que Odisseu entra em contato no mundo dos mortos, como analisaremos no
capítulo seguinte, destaca claramente o papel dos vivos diante dos falecidos: o herói polimétis,
ao ver a alma de seu “sócio insepulto, ainda sobre a larga terra, /pois que o soma, seu corpo
morto, nós deixáramos/sem pranto e sem sepulcro no solar de Circe [...]” (HOMERO. Odisseia,
XI, vv.51-3), dela recebe um pedido, destacando a necessidade de obter um funeral digno e as
prerrogativas para tal:
Suplico em nome de quem sonhar ver,
de teu pai, que se desdobrou por ti na infância,
de tua mulher, do filho que deixastes só,
sei que daqui, onde Hades mora, aportarás,
em nave bem-lavrada, na ínsula Eeia,
onde te rogo, chefe, que me rememores!
Não me abandones insepulto e sem lamento,
63
Quanto te fores (numes não te punas por
mim!), mas com minhas armas todas me incendeia
E à beira do oceano cinza erige o túmulo
de um infeliz: vindouros saibam que eu vivi!
Faze isso por teu nauta e espeta sobre a tumba
O remo, que, vivendo, usei ladeando amigos’
(HOMERO. Odisseia, XI, vv.66-78)70.
Tal relevância – a de dar honras aos mortos – era explicitada, inclusive, pelo hiato que
paralisava a guerra para os ritos fúnebres fossem realizados. Príamo, diante dos inúmeros
guerreiros que tiveram suas vidas ceifadas, solicita aos inimigos que essa pausa seja realizada,
recomendando que cessem, “caso concordem, a guerra, clangor/ sinistro, até que os mortos
possamos queimar (HOMERO. Ilíada, VII, vv.371-377). Seu pedido não é negado e
Agamêmnon, chefe dos aqueus, diz que aos mortos não nega a pira fúnebre (HOMERO. Ilíada,
vv.406-410).
Negar o géras thanónton era visto como um ato de hýbris nos poemas homéricos; tanto
que Aquiles, o herói que, por excelência, é ligado à desmedida, só consegue se redimir das suas
kakà ergá (ações más), apenas no último Canto da Ilíada, quando concorda em devolver o corpo
de Heitor, que tentara a todo custo ultrajar, a seu pai Príamo.
No caso de Eurípides, ainda que vejamos em menor número a descrição das honrarias
necessárias aos mortos, testemunhamos essa exigência sendo exposta pelo poeta. Novamente
realizando conexões com o período bélico por ele vivido, foi possível verificar através de
Tucídides (II, 52), que diante da negação de funerais próprios quando a praga assola Atenas, o
poeta utiliza o espaço do teatro para reiterar as normas que deveriam ser seguidas diante do
falecido.
Morrer ataphói, sem honras fúnebres, configurava-se como prejudicial tanto para o
falecido quanto para aqueles que ficavam, fazendo-se uma obrigação de cunho ético dar
sepultura ao morto, assim como o luto, pois essas são prerrogativas “sine qua non de uma boa
morte” (SOURVINOU-INWOOD, 1995, p. 130)71.
70
Tradução de Trajano Vieira.
Em Troianas, Cassandra reclama sobre os mortos insepultos de ambos os lados da guerra, destacando a tristeza
do conflito bélico: “Quando às margens do Escamandro vieram, / Morriam, não privados das fronteiras do país/
Nem da pátria altimurada: os que Ares tomasse, / filhos não viram, nem as mãos das esposas/ os cobriram com
pelos, mas em terra estranha/ jazem. Em casa havia coisas semelhantes a essas: umas morriam viúvas, outros, sem
filhos em casa, / em vão crianças nutriram: nos funerais não/ há quem sangue à terra deles presenteará”
(EURÍPIDES. Troianas, vv.374-382).
71
64
Como visto, quando Aquiles solicita seu géras, Odisseu discursa a Hécuba a
necessidade de se dar honrarias ao herói, dizendo que igualmente desejaria que seu túmulo fosse
honrado, evidenciando o seu não cumprimento como um ato bárbaro:
se é errado nosso costume de honrar o nobre, seremos acusados de estupidez;
e que vós, bárbaros, não considereis os amigos, nem os que morreram
belamente admireis, para que a Hélade seja afortunada, e mantenhais o que se
assemelha às vossas resoluções
(EURÍPIDES. Hécuba, vv.326-331).
Negar géras ao morto, assim como nas obras homéricas, constituía-se igualmente em
um ato de hýbris e, já no Período Clássico, de barbárie, sendo a legislação funerária existente
punitiva, havendo possibilidade de processo caso os ritos fúnebres não fossem executados, pois
“isto ofendia os deuses e merecia punição” (GARLAND, 1985, p. 8).
Outro phantásma que vem solicitar seu géras é Polidoro, filho de Hécuba, abrindo a
peça homônima como seu pedido. Tendo seu corpo não honrado, mas jogado ao mar
(EURÍPIDES. Hécuba, v.797), falecimento temido justamente por haver a possibilidade de não
receber os ritos fúnebres72, ele vai até sua mãe e conta-lhe o ocorrido, pedindo que a ele lhe
fosse dado sepulcro:
POLIDORO
‘Mata-me, mui afligido, graças ao ouro,
o hóspede paterno e tendo-me morto, na onda
[do mar,
jogou-me, para que ele mesmo o ouro em casa
[guardasse.
Jazo um pouco na praia, depois na rebentação do mar,
carregado pelo incessante vaivém das vagas,
não chorado, não sepulto [ἄκλαυτος ἄταφος] [...]
Para obter, infeliz, um funeral [τάφου], aparecei
Diante dos pés de uma escrava na rebentação.
Com efeito, requeri aos que têm força embaixo
Que eu tivesse um funeral [τύμβου] e caísse nas mãos da mãe
(EURÍPIDES. Hécuba, vv.25-30/47-50).
Polixena, apesar de personificar-se como um géras, igualmente deve receber honras por
suas mortes, ainda que não sejam aquelas desejadas por Hécuba para aquela que um dia fora
72
Odisseu é um exemplo claro desse medo: por várias vezes durante a epopeia que protagoniza refere-se ao quão
melhor seria ter morrido em campo de batalha do que se ver perdido nas ondas do mar. Morrer dessa maneira,
assim como ter seu corpo ultrajado, constituía-se em um anti-funeral, pois não daria possibilidade dos vivos
honrarem seus mortos.
65
princesa de Troia (EURÍPIDES. Hécuba, vv.613-623). A jovem chega a ser reconhecida pelos
seus méritos até mesmo por parte dos aqueus que levaram a cabo seu sacrifício, sendo por eles
ressaltada a necessidade de lhe executar os ritos fúnebres:
TALTÍBIO
Quando exalou seu alento graças à imolação fatal,
nenhum dos argivos se ocupou com o mesmo trabalho,
mas alguns, com suas próprias mãos, a morte
com folhas atingiam, outros executaram uma pira,
trazendo achas de pinheiro, e quem não trazia
daquele que trazia ouvia estas censuras:
‘Estás parado, infame, para a jovem
nem peplo nem adorno tendo nas mãos?
não vais dar algo para ela, corajosa ao extremo
e de excelsa alma?’
(EURÍPIDES. Hécuba, vv. 571-580).
É o mesmo Taltíbio, servo de Agamêmnon, que dá a chance de Hécuba prestar honras
ao seu neto Astiánax, sendo sua atitude, segundo Werner, igualável a de Aquiles ao devolver o
corpo de Heitor a Príamo, demonstrando que diante da morte e da tristeza de outrem a piedade
ainda é possível em meio a destruição da guerra (2004, p.LV)
À vista disso, o tema do não-sepultamento e da falta de honras funerárias é apontado
como uma transgressão por ambos os poetas, sendo seus discursos canais de comunicação em
meio a sociedade que reiteravam aquilo que era devido ao morto, como é o caso do lamento e
das etapas necessárias para que ele fosse desagregado de um domínio e integrado a outro,
temática que agora nos debruçaremos.
2.2.1| O lamento e a comunicação da dor da perda
A morte, em diversas sociedades, tem a capacidade de provocar naqueles que ficam uma
reação quase que imediata diante de sua notícia: a dor da perda e o consequente lamento por
aqueles que se foram. O fim da vida, como nos recorda Rodrigues, é o fim “de um ser em
relação, de um ser que interage”. Desse modo, o primeiro vazio que a morte causa é um vazio
interacional (RODRIGUES, 2006, p.20), capaz de despertar as mais diversas reações por parte
daqueles que se veem na condição de enlutados.
Em nosso corpus documental, muitas são as personagens que se encontram nesse vazio:
privadas da presença de companheiros de guerra, esposos e filhos, elas demonstram sua dor não
em silêncio, mas através de um luto que é capaz de comunicar o sentimento da perda. Sejam
66
homens ou mulheres, parentes ou amigos, o morto deveria receber como parte de seu géras o
lamento.
É notável, todavia, a distinção entre o lamento feminino e o masculino, sendo apontado
por estudiosas como Gail Holst-Warhaft (2005), Mirto (2012) e Margaret Alexiou (2002) como
as manifestações do luto são exercidos a partir desses gêneros de maneiras específicas.
Segundo Mirto, além de os homens serem responsáveis pela parte oficial do funeral,
eles deveriam realizar as expressões coletivas do luto, “adotando um tom particular na educação
das gerações mais novas, defendendo o princípio de que a morte deve ocorrer em prol dos
valores comuns” (2012, p.6-7); Já às mulheres eram reservadas as questões práticas e mais
privadas, como a preparação do corpo, sua próthesis, como veremos mais à frente, assim como
as expressões verbais e físicas da dor da perda.
Contudo, apesar dos funerais e os lamentos serem apontados na historiografia como um
espaço de atuação predominantemente feminino, há casos em que isso não se faz possível, como
verificamos na épica homérica ao analisarmos os ritos fúnebres prestados pelo exército aqueu
a seus heróis. Por se encontrarem longe de seus lares, sem suas famílias, as únicas mulheres
presentes em campo de batalha eram as escravas. Sendo assim, era responsabilidade quase que
exclusiva dos homens a realização do lamento e do cuidado com o corpo do morto. A presença
feminina que se adiciona às cativas de guerra era somente a das deusas: no funeral de Aquiles,
visto na Odisseia, podemos verificar que não apenas seus companheiros de armas, mas sua mãe
Tétis e outras nereidas o lamentam (HOMERO. Odisseia, XXIV, 43-64). Como ressaltado por
Hoslt-Warhaft,
Qualquer coisa que possa ser aprendida sobre atitudes dos gregos pré-clássicos
ou dos europeus ocidentais no início da idade medieval sobre a morte e luto,
a partir das narrativas de batalha, está inevitavelmente influenciado pela
sociedade quase exclusivamente masculina na guerra. Os troianos, porém,
estão lutando em seu próprio território, e os seus parentes do sexo feminino
estão em casa enquanto eles lamentam seus mortos (HOLST-WARHAFT,
2005, p.91).
Refletindo acerca da questão de gênero, verificamos que usualmente o choro masculino
se dá pela tristeza da perda do outro e o feminino pela sua própria fortuna, pelo que poderá
ocorrer a partir do fim da vida de um ente querido, especialmente no caso das esposas.
Andrômaca e Hécuba, por exemplo, reclamam de seu futuro na Ilíada em diversos versos do
Canto XXIV, ao se verem sem Heitor. Também na Ilíada, as cativas aqueias ao chorarem por
Pátroclo, “as próprias penas também choram” (HOMERO. Ilíada, XIX, 301-2).
67
Isso é reforçado nas tragédias ao verificamos que, ao terem seus maridos mortos após
a guerra, a fortuna cabidas as mulheres era a escravidão, sendo seus lamentos entoados, como
no caso das Troianas, não apenas pelos mortos, mas pelo futuro de sua cidade, demonstrandonos que “quando o luto ocupa a cidade [...]sugere-se que a estabilidade da pólis não está
assegurada, o que é evidentemente potencializado pelo fim de Tróia” (WERNER, 2004, p.
LVI), como vemos quando Hécuba chora por Astiánax:
HÉCUBA:
Ó criança, ó filho de filho doloroso,
Somos despojadas de tua alma injustamente,
Eu e tua mãe. O que sofrerei? O que para ti,
Malfadado, devo fazer? [...] Ai de mim, pela cidade,
Ai de mim por ti. Pois o que não temos?
O que nos falta para, com todo o ímpeto,
Marchar no meio da total ruína?
(EURÍPIDES. Hécuba, vv.790-8).
Do mesmo modo, os lamentos femininos evidenciam tanto na tragédia quanto na
epopeia o desejo de uma morte além daquela em campo de batalha: contrasta-se a bela morte
com a boa morte, na qual o desejado é a volta para casa após a guerra e a morte na velhice,
como ocorre com Odisseu. Revela-se, assim, uma tensão entre o que era esperado pela família
e o que era desejado do comportamento heroico em batalha (MIRTO, 2012, p.77). Dessa
maneira, como denota Holst-Warhaft, “Ao masculino kléos se opõe o feminino (e talvez o
poético?) góos” (2005, p.92).
Voltando-nos ao luto que é capaz de comunicar a dor da perda, vemos que, em grego,
ele pode ser expressado através de dois termos: ákhos (dor moral, luto, aflição – BAILLY,
2000, p.336) e penthós (chorar, deplorar, estar em dor – BAILLY, 2000, p.1511)73, atingindo
dos grandes heróis aos deuses e sendo foco de atenção em diversos versos dos discursos
homérico e euripidiano.
Aquiles, considerado o melhor dos aqueus, é aquele que se destaca na Ilíada como um
dos que mais sofre diante da perda de um amigo querido: Pátroclo74. O termo ákhos é, inclusive,
destacado por Gregory Nagy, como um dos vocábulos formativos de seu nome. Akhi-l(l)eús,
seria derivado de Akhí-lauos, uma união do termo ákhos com laós (grupo de guerreiros), sendo
De acordo com Nagy, “Enquanto a palavra kléos é utilizada na dicção poética tradicional para designar prestígio
público, prestígio do épos ou da praise-poetry, a palavra pénthos pode indicar o ritual público do luto, formalmente
decretado com canções de lamento” (1999, p.95).
74
A dor de Aquiles é tão grande que Antíloco teme que ele “com ferro cortasse a garganta” (HOMERO. Ilíada,
XVIII, vv.32-4).
73
68
sua etimologia “dor de guerreiros”, demonstrando “comensuravelmente a chave para o ákhos,
a ‘tristeza’ coletiva que os aqueus sentem por Pátroclo na ocasião de seu funeral” (1999, p.177).
A mãe do Pélida, uma deusa, junto com as demais nereidas, demonstra da mesma forma
a dor que sente ao ver o amigo de seu filho morto (HOMERO. Ilíada, XVIII, vv.35-8), o que
faz certos estudiosos entenderem esse lamento exacerbado como um luto indireto para a futura
morte de Aquiles (SCHNAPP-GOURBEILLON, 1982; NAGY, 1999; WITHMAN, 1958).
Nagy destaca que Pátroclo funciona como therápon do Pélida, isto é, um substituto ritual,
prenunciando o que lhe ocorrerá fora da narrativa da Ilíada (1999, p.33).
O luto que a morte provoca é igualmente visto do lado troiano, sendo o perecimento de
Heitor aquele que causa mais tristeza. Hécuba, Andrômaca e Príamo, parentes do herói,
demonstram a dor da perda, choram o filho e esposo morto, desmaiam, dilaceram sua pele, atos
que, como veremos, fazem parte da comunicação dos enlutados. Na Odisseia, ainda que não
haja um campo de batalha, a tristeza por aqueles que morreram em Troia destaca-se nos versos
homéricos, assim como a incerteza sobre a morte do protagonista.
Do mesmo modo, nas tragédias, vemos o luto sendo exposto. São as mulheres que mais
demonstram essa dor, evidenciando o fato, como nos recorda Margaret Alexiou, de que no
Período Clássico o lamento era conectado sobretudo ao gênero feminino (2002, p.10).
Hécuba, tanto na obra a ela homônima quanto em Troianas, é uma das que mais sofre.
Além de já haver perdido seu marido e outros filhos após a guerra ter terminado, nas peças em
que ela atua mais dois de seus rebentos padecem de forma trágica75, assim como seu neto.
Andrômaca, diante da perda do filho, também não deixa de exprimir sua dor, chorando-lhe
especialmente por não poder dar-lhe sepulcro, visto que a escravidão em outra terra a
esperava76.
Admeto, ante o sofrimento que a perda de sua esposa Alceste lhe causa, se dá conta de
como teria sido melhor morrer do que sentir tamanha tristeza, fazendo-nos refletir acerca do
medo da morte e da falta dos entes amados. O luto ao qual o rei se impõe é de extrema tristeza.
Como suas palavras demonstram, ele lamentará o fim de Alceste não um ano apenas, mas
enquanto sua vida durar (EURÍPIDES. Alceste, vv.336-7).
Sendo assim, a morte não era sofrida pelas personagens em silêncio: o padecimento que
as afligia era comunicado e muitas vezes de maneira exacerbada. Lamentar o morto ia desde
derramar lágrimas copiosas ao corte dos cabelos até mesmo a autoflagelação.
75
Logo no início de Hécuba vemos as referências à morte de Polimestor (EURÍPIDES. Hécuba, vv.25-7) e também
do futuro de Polixena, que será sacrificada (EURÍPIDES. Hécuba, vv.37-41).
76
EURÍPIDES. Troianas, vv.740-779.
69
Analisando a épica homérica e a tragédia euripidiana de maneira comparada,
verificamos que as demonstrações dos enlutados se assemelhavam, sendo transmitidas através
da comunicação social por duas maneiras: verbalmente – pelo choro, gritos e cantos de clamor
– e não verbalmente, ou seja, através da linguagem corporal utilizada para expressar
sentimentos e emoções77.
Focando-nos primeiramente na comunicação verbal, verificamos que chorar o morto era
atitude comum. Na Odisseia, Antíloco afirma que aquele que é “tolhido pela ação de Tânatos”
não merece desdém caso chore (HOMERO. Odisseia, IV, vv. 195-6). A dor daqueles que no
palácio de Menelau recordavam-se das mortes durante a guerra de Troia é tão grande que o rei
deseja que o pranto seja suspenso, cabendo a Helena preparar um fármaco através do qual
“sofrimento, cólera, / os males memoráveis, tudo amortecia. / Quem sorvesse a mistura da
cratera funda, / susteria o lamento na extensão de um dia, /mesmo se mortos pai e mãe, mesmo
se mortos/ à sua frente, a fio de bronze, irmão ou filho” (HOMERO. Odisseia, IV, vv.218225)78.
Novamente Aquiles, em luto por seu companheiro Pátroclo, tem seu choro relatado por
Homero como tão ressonante que sua mãe Tétis chega a ouvi-lo do fundo do mar (HOMERO.
Ilíada, XVIII, vv.35-8). Os aqueus, do mesmo modo, debruçavam-se em pranto sobre Pátroclo,
chorando-o (HOMERO. Ilíada, XIX, vv.4-6), recordando-nos que “que, assim, honram-se os
mortos” (HOMERO. Ilíada, XXIII, v.10).
Os filhos de Príamo, diante da morte de Heitor, “em lágrimas banham as vestes”
(HOMERO. Ilíada, XIV, vv.161-2) e Tétis e as Nereidas, junto aos guerreiros aqueus, ao
tomarem conhecimento da morte de Aquiles, “por dezessete noites e outros tantos dias” o
choram (HOMERO. Odisseia, XXIV, vv. 62-65).
Igualmente, nas tragédias, o choro é marca das personagens. A dor dos vivos é o foco
das lágrimas quando Hécuba lamenta não apenas a morte de seu neto, mas de tantas outras que
se veem frente a morte: “Crianças, a mãe da cidade vazia é tirada de vós. / Tais ululos e tal luto,
/E lágrimas após lágrimas pingam” (EURÍPIDES. Troianas, vv.603-6). Em Alceste, não apenas
77
Na comunicação não verbal, fenômeno analisado pelo campo da cinésica social, uma disciplina de recorte
socioantropológico, o que é posto em destaque são os movimentos corporais, considerados sob o aspecto
sociocultural e não neurofisiológico ou, ainda, psicológico (RECTOR; TRINTA, 2003, p.55). O corpo, como nos
recorda Monica Rector e Aluizio Trinta, é uma forma de comunicação, assim como seus movimentos. E essa
comunicação, ainda segundo os autores, “é, então, a própria prática cotidiana das relações sociais” (RECTOR,
TRINTA, 2003, p.5-8).
78
Traduções de Trajano Vieira.
70
os filhos, esposo e servas choram a morte da protagonista, mas ela própria banha as roupas de
sua cama com suas lágrimas (EURÍPIDES. Alceste, vv. 183-4).
Ifigênia, por outro lado, como aqui já citado, desejando consagrar ao máximo seu
sacrifício pela pátris, assemelhando-se ao que era pedido nos funerais públicos descritos por
Tucídides, pede que o lamento a ela não seja realizado, dizendo a sua mãe: “eu proíbo-a de
chorar! [...] Pois estou partindo para dar aos gregos salvação e vitória” (EURÍPIDES. Ifigênia
em Áulis, vv.1468/1472-3).
Outra prática dos enlutados presente tanto nas obras de Homero quanto do “mais trágico
dos trágicos” é a entonação de cantos. Através deles, objetivava-se não apenas expressar a dor,
mas especialmente prestar honras aos falecidos. Podemos ver que havia dois tipos deles: góos
– um “lamento improvisado cantado por parentes ou amigos próximos do falecido” – e thrênos
– “um lamento formal cantado por profissionais chamados thrênôn exarchoi (líderes da marcha
fúnebre)” (GARLAND, 1985, p.30) –, mais intenso e pessoal e geralmente dedicado as camadas
mais abastadas da sociedade.
Na épica homérica, a diferenciação entre eles é clara. Vemos no funeral de Heitor, por
exemplo, descrito no Canto XXIV da Ilíada, tanto o góos sendo entoado pela esposa do herói,
Andrômaca, quando um aedo dirigindo thrênos ao falecido79:
O morto é trasladado ao preclaro solar
E posto sobre um leito encordoado. A seu lado,
cantores entoam trenos [ἀοιδοὺς θρήνων ἐζάρχους], em tom lastimoso,
e flébil, o responso das mulheres segue-os;
braços-brancos, Andrômeda ergue seu lamento [γόοιο]
(HOMERO. Ilíada, XXIV, vv. 720-22).
Porém, na tragédia, verificamos uma nova configuração para esses termos: nas obras
por nós analisadas, as únicas quatro vezes em que a palavra thrênos aparece – apenas em
Hécuba (v.212/298/434) e Troianas (v.609) –, ela se torna sinônimo de góos. Isto é: ele passa
igualmente a ser entoado por familiares ou amigos próximos, transformando-se até mesmo de
um canto a um simples lamento. O Coro, em Hécuba, por exemplo, ao ouvir a tristeza da
protagonista pela morte de sua filha Polixena, destaca que “não existe uma natureza humana
79
O termo thrênos aparece apenas por duas vezes nas obras homéricas: na supracitada passagem Ilíada e no Canto
XXIV, vv.58-62, quando as musas entoam um thrênos a Aquiles. A palavra góos, pelo contrário, pode ser
encontrada em inúmeras passagens de ambos os poemas épicos. Essa diferenciação entre o número de incidências
do primeiro para o segundo pode ser explicada devido ao fato do thrênos ser cantado especialmente pelos aedos,
nos funerais, o que quase não fora relatado por Homero, pois grande parte dos funerais por ele descrito se dão em
acampamento aqueu, no qual essa categoria não se faz presente.
71
tão dura/que, após ouvir os trenos [θρήνους] de teus gemidos [de Hécuba] / e de teus longos
lamentos [γόων], não verteria lágrimas” (EURÍPIDES. Hécuba, vv. 296-8).
Buscando compreender o porquê dessa mudança de acepções, que é ignorada por muitos
dos estudiosos da temática, Nicole Loraux, em seu Invenção de Atenas, descreve-nos o seguinte
fato: no Período Clássico o canto profissional, tão ligado as camadas aristocráticas, perde seu
prestígio ao ponto de se igualar ao góos, fato que evidencia o contexto vivido por Eurípides, no
qual o controle da ostentação das exéquias fúnebres e dos lamentos é visto. Segundo Loraux,
esta equivalência entre thrênos e góos esclarece, em muitos aspectos, o
significado da oração fúnebre e de sua proibição das lamentações [...] Ao
reduzir o thrênos ao pranto, os epitáphioi estão afirmando recusa ainda mais
fundamental: a dos cultos heroicos que, no passado aristocrático, enraízam o
elogio na lamentação ritual (LORAUX, 1994, p.62-3).
Desse modo, ainda que o lamento seja visto muito exacerbado pelas personagens
euripidianas, especialmente as do gênero feminino, não se deixa de ver como alguns requisitos
impostos e insurgentes na pólis ateniense estão presentes em suas peças.
Passando-se agora à análise da comunicação não verbal que, como citamos, faz
referência aos movimentos corporais, podemos verificar como ela se faz parte integrante das
ações realizadas pelas personagens épicas e trágicas, como é o caso do corte dos cabelos e da
autoflagelação.
No primeiro dos ritos, vemos que sua realização era uma maneira do vivo se aproximar
do falecido quanto de lhe prestar honra. Segundo Vernant, os cabelos raspados constituem, com
as outras manifestações do luto, um dos meios rituais que permitem, ultrajando e enfeando o
rosto dos vivos, aproximá-los, durante os funerais, desse mundo de fantasmas sem força e sem
brilho para onde emigrará o morto cujo desaparecimento é pranteado (1988, p. 57). Ademais,
para o caso dos guerreiros, especialmente aqueus, verifica-se que seus cabelos, geralmente
longos, eram símbolo de status e poder80, “comportando um aspecto ‘terrificante’ cujo efeito
no campo de batalha é, no sentido ativo do termo, ‘sinal’ de vitória (VERNANT, 1988, p. 57).
Por conseguinte, ao cortá-los em honra aos mortos, os cabelos poderiam ser compreendidos
como uma metáfora de vida, uma homenagem “aquele que perdeu a própria vitalidade”
(MORAES, 2013, p.89).
Como ressalta Alexandre Moraes, “de fato, um dos principais epítetos que evocam as características físicas dos
aqueus é ‘de longos cabelos’, κάρη κομόωντας Ἀχαιοὺς (HOMERO. Ilíada, II, 11 e 472; HOMERO. Odisseia, I,
90; HOMERO. Odisseia, II, 7). [...] Não sem motivo, a Ilíada descreve Tersites, o guerreiro mais feio que foi
combater em Tróia, dentre outras coisas, como ψεδνός, ‘calvo’, ‘de cabeleira escassa’ (HOMERO. Ilíada, II, 219)”
(MORAES, 2013, p.89).
80
72
Na Odisseia (IV, vv.197-8), vemos Antíloco dizer que “ao infeliz mortal é dado o
privilégio/de oferecer cabelos e prantear a cântaros”81. Já na Ilíada, Aquiles, assim que descobre
sobre a morte de Pátroclo, arranca seus próprios cabelos (HOMERO. Ilíada, XVIII, v.27), em
um ato de desespero; mas já no funeral de seu companheiro, os corta em honra a ele, a pedido
de Peleu, e põe “a cabelereira/entre as mãos do querido amigo” (HOMERO. Ilíada, XXIII,
vv.142-153). O mesmo o fazem seus companheiros, cobrindo “o cadáver/ de cabelos, cortandoos e jogando-os sobre/ o morto” (HOMERO. Ilíada, XXIII, vv.135-7).
Nas tragédias, vemos igualmente esse ato ser realizado: Hécuba, tendo diversos de seus
filhos mortos durante a guerra, diz ter cortado “os cabelos junto aos túmulos dos mortos” a fim
de lhes honrar (EURÍPIDES. Troianas. v.480). Em Alceste, o coro, ainda sem saber se a rainha
se encontra morta, procurava sinais de luto, dizendo que ainda não era possível se ver no pórtico
os cabelos cortados, “que é próprio sinal de luto pelos mortos” (EURÍPIDES. Alceste, vv.1013). E Admeto, solicitando o luto em seu palácio, demanda que até mesmo os cabelos dos cavalos
sejam cortados em honra a sua esposa (EURÍPIDES. Alceste, vv.425-9).
Nas peças trágicas, outro sinal de luto comunicado pelo corpo são as vestes negras.
Nenhum autor por nós analisado destaca o porquê da escolha desta cor, nem o motivo pelo qual
Homero omite esse dado, mas presumimos que, assim como em nossa tradição judaico-cristã,
o negro seria uma cor que denotava a tristeza e tenebrosidade, o oposto do sol, que se faz
símbolo de vida, visto que os mortos não mais veem a claridade.
Admeto, além de solicitar o corte dos cabelos, demanda que todos usem um vestuário
neste tom (EURÍPIDES. Alceste, vv.425-9) e o coro igualmente pergunta se já é necessário se
vestir assim (EURÍPIDES. Alceste, vv.215-7). Ifigênia, que como citamos, nega que se faça
luto a ela, demanda que suas irmãs não sejam vestidas de preto (EURÍPIDES. Ifigênia em
Áulis, v.1448).
Outra prática dos enlutados em que se buscava à aproximação da dor do morto era o ato
de se flagelar o corpo: havia casos, como o citado de Aquiles, em que não se apenas cortava os
cabelos, mas nos quais arrancavam-nos com as mãos. A dilaceração da pele também é
registrada, especialmente no caso feminino; já os homens batiam com a mão na cabeça e
deixavam seus corpos sujos, jogando-se a poeira e até mesmo ao esterco, como é feito por
Príamo ao perder seu filho Heitor (HOMERO. Ilíada, vv.164-5).
Aquiles, diante da morte de Pátroclo, “De ambas as mãos toma esfúmeas/ cinzas e as
lança sobre a cabeça, encardindo/ o rosto belo; a túnica nectárea, tinta/ de fuligem, sujou-se; jaz
81
Tradução de Trajano Vieira.
73
no pó, estendido (HOMERO. Ilíada, XVIII, vv.22-7), não permitindo que até o funeral sua
cabeça fosse lavada (HOMERO. Ilíada. XXIII, vv.44-45). Suas cativas gritavam, batendo as
mãos no peito (HOMERO. Ilíada, XVIII, vv.30-1) e Briseida lanha “o seio, o colo tenro e as
faces com as mãos” (HOMERO. Ilíada, vv.284-285). Andrômaca e Hécuba se autoflagelam
diante da morte de Heitor, arrancando os cabelos (HOMERO. Ilíada, XXIV, vv.711-2).
A tragédia igualmente nos ressalta esse rito. Indo de encontro às legislações que
proibiam essas demonstrações de luto, Eurípides leva as dores dos vencidos e suas
manifestações. Em Hécuba, a protagonista, mãe de filhos mortos, “contra a cabeça grisalha põe
a mão e rasga [...] a face, com dilacerações tornando as unhas ensanguentadas” (EURÍPIDES.
Hécuba, vv.654-656) e suja sua cabeça nas cinzas (EURÍPIDES. Hécuba, vv.459-6).
Novamente Hécuba, em Troianas, diante da morte de seu neto Astiánax, evoca que a ele “damos
estas/ batidas na cabeça e golpes no peito:/isso podemos” (EURÍPIDES. Troianas, vv. 793-5)
e o Coro, do mesmo modo, bate na cabeça, dando golpes de mão (EURÍPIDES. Troianas,
vv.1235-7)82, demonstrando como esses atos violentos são partes indispensáveis do ritual dos
enlutados na Antiguidade (ALEXIOU, 2002, p.6).
Diante das diferentes formas de se demonstrar a dor da perda, o lamento torna-se
artifício que não detona apenas tristeza ou como emocionalmente necessário. Como nos recorda
Mirto, a antropologia social ensinou-os a ler as expressões rituais das emoções como sinais de
interação e coesão social, “estabelecendo regras e mecanismo para lidarmos com a morte e sua
natureza arbitrária” (MIRTO, 2012, p.65), assim como a relação entre os vivos e os mortos,
como igualmente podemos verificar através dos cuidados prestados aos corpos dos falecidos,
inseridos nos ritos fúnebres.
2.2.2| A morte como um processo
Como citado, saber lidar com a morte delineia-se, em muitas sociedades, através da
institucionalização deste momento, ou seja, da definição de estratégias elaboradas pelos
sobreviventes para lidarem com a dor da perda, cumprindo “a função de facilitar essa passagem
para os vivos” (FLORENZANO, 1996, p. 64). Igualmente as práticas funerárias, as maneiras
de se lidar com o corpo do falecido, são parte de uma política que demarcam uma mudança de
territorialidade, isto é, o fim da vida na terra e o início de um novo estatuto nesta.
Em Alceste, o Coro ainda sem saber da morte da Rainha, pergunta se alguém ouve “o baque das mãos batendo
no peito dentro da casa” (EURÍPIDES. Alceste, vv.86-88).
82
74
Além de uma manipulação física do morto, há uma manipulação metafórica, sendo a
morte, assim como outros ritos de passagem da sociedade grega (casamento, nascimento), um
fenômeno de transformação, de incorporação de um indivíduo em uma nova categoria social.
À vista disso, dedicar-se ao estudo da morte na sociedade grega antiga vai muito além
de investigar um evento per se. Os helenistas que se debruçaram sobre a pesquisa dos ritos
funerários pelos quais o corpo do morto deveria ser submetido destacam como o fim da vida é
demarcado culturalmente entre os gregos antigos como um processo, ou seja, por estágios que
o compõe e o significam, que vão desde o momento do óbito até a inclusão do morto no reino
do Hades (VELASCO, 1989, p.20). Esses estágios, definidos pelos antropólogos como de
passagem, conectam-se sobretudo as mudanças físico-biológicas que ocorrem nos seres
humanos, rodeados de rituais e cerimonias próprias (FLORENZANO, 1996, p. 7)83.
De acordo com d’Agostino e Schnapp, toda prática funerária constituía-se de três etapas:
“aquela do tratamento do cadáver, de sua deposição, e das oferendas que o acompanham”
(1982, p.18). Redfield analisa mais a fundo esses estágios, salientando-nos que
o funeral envolve, assim, a retirada do corpo, a criação de um monumento e
certos atos significativos pelos enlutados. O primeiro, vou sugerir, lida com o
homem morto como um ser orgânico, o segundo trata-o como um ser social;
o terceiro propõe uma relação entre os mortos e os vivos (REDFIELD, 1994,
p.171).
Em nosso corpus documental, ainda que não haja uma delimitação clara dessas etapas,
verificamos em suas passagens diversos cuidados com os mortos sendo expostos, constatandose, assim como nos lamentos, muitas semelhanças entre as práticas funerárias descritas por
Homero e Eurípides, ainda que nas tragédias poucas sejam as cenas que demonstrem funerais
completos84.
A primeira das etapas que vemos sendo apresentada em nossa documentação e também
pela historiografia sobre o tema era denominado próthesis. Nela, o cuidado com o corpo, a
purificação do cadáver, deveria ser realizada, sendo esse um dever conectado sobretudo ao
83
Os ritos de passagem, como nos remete Nicole Belmont, são aqueles que acompanham as mudanças de lugar,
estado, ocupação, posição social e idade (1997, p.16). Arnold Van Gennep, em 1909, foi um dos pioneiros a se
referir sobre a temática, destacando as cerimônias fúnebres como ritos de separação, organizados a partir das
estruturas de parentesco e das tradições religiosas de cada sociedade. O estudioso, no oitavo capítulo de sua obra,
remete-nos que os funerais, uma vez submetidos à correta análise sociológica, poderiam revelar a razão de ser e
os mecanismos de funcionamento da vida social (2011).
84
Nas tragédias, são os ritos fúnebres prestados a Alceste, Polixena e Astiánax que mais evidenciam os cuidados
com o corpo do morto.
75
gênero feminino, excluindo-se os casos nos quais, em campo de batalha, não havia mulheres
para exercer essa função, como é o caso dos aqueus na Ilíada85.
O fechamento dos olhos e boca do cadáver86 é apontado como atitude inicial por parte
dos vivos diante dos falecidos. Após este ato, o corpo deveria ser limpo e lavado 87, passandose óleo em sua pele e finalmente vestindo-o com uma roupa para a ocasião. De acordo com
Vermeule, essa limpeza era necessária para remover sangue e impureza, prevenindo a corrupção
e o contágio com os vivos (1979, p.13), não devendo ocorrer somente com o corpo do morto,
mas também dos sobreviventes. Em Alceste, vemos como as casas deveriam ser adornadas
durantes o funeral com uma bacia de água pura em sua porta (EURÍPIDES. Alceste, vv.98-100),
pois através desta, como nos recorda Mirto, os enlutados poderiam a aspergir para sua
purificação (2012, p.68). Após a limpeza, o corpo deveria ser decorado com flores e joias, sendo
finalmente deitado sobre uma superfície (klinê) e coberto com um manto que deveria velá-lo
durante o caminho para a tumba.
Na Ilíada, os funerais de Pátroclo e Heitor demonstram-nos esses cuidados. Aquiles
ordena que os companheiros
Pusessem
na pira megatrípode e lavassem, presto,
o sangue a fluir do corpo de Pátroclo morto.
Posta na pira a trípode depuradora,
nela verteram água e com lenha escaldaram
em fogo ardente a trípode bojuda. Quando
limparam o cruor cadaveroso e as chagas untam
de unguento de nove anos. No leito funéreo
o recobrem, com linho fino, da cabeça
aos pés. Lançam por cima um manto todo branco.
Noite adentro o deploram os Mirmidões, juntos,
Pranteando-o [γοωντες] com o heroico Aquiles, pés-velozes
(HOMERO. Ilíada, XVIII, vv.342-354).
E, do mesmo modo, solicita que o mesmo seja feita ao corpo de seu inimigo:
Da carreta, belas-rodas, tomam
85
São os guerreiros aqueus que banham o corpo do morto de Pátroclo (HOMERO. Ilíada, vv. 342-350 e o
“recobrem, com linho fino, da cabeça/ aos pés” (HOMERO. Ilíada, XVIII, vv.351-2).
86
No Canto XI da Odisseia, o protagonista, ao fazer sua katábasis para o Hades, encontra com a alma de
Agamêmnon, que reclama seu destino, pois sua mulher o matara e não prestara-lhe ritos fúnebres: “Eu quis/ erguer
a mão, tombava à terra: a cara-de-/cadela apunhalou-me. A desalmada nem/ fechou-me os olhos, nem a boca
enquanto Hades/ abaixo eu adentrava!” (HOMERO. Odisseia, XI, vv.423-7).
87
Para a lavagem do corpo, como podemos ver através da peça Hécuba, a água corrente de um mar ou rio, era
preferencial para tal ato: “E tu, serva antiga, tendo tomado o vaso, depois de imergir traze para cá da água marinha,
para que, com a última água lustral, minha filha, noiva sem noivado, virgem sem virgindade, eu banhe e ponha à
vista” (EURÍPIDES. Hécuba, vv.609-613).
76
os dons para o resgate da cabeça hectórea,
numerosos, deixando dois mantos e túnicas,
bela-urdidura, para transportar, cobrindo-o,
o cadáver. Aquiles chamou suas ancilas,
mandando que o lavassem e ungissem, após
removê-lo de modo que o ancião nada visse,
evitando que, doído, não freasse a ira e Aquiles,
ferido, desse fim a Príamo, transgredindo
o comando de Zeus. Lavado e ungido, as flâmulas
vestiram-no de manto e túnica. O Aquileu,
soerguendo-o, ao carro bem-brunido içou-o, por seus
parceiros ajudado
(HOMERO. Ilíada, XXIV, vv.579-591).
Na Odisseia, é Agamêmnon, já como psykhé no Hades, que conta sobre os funerais de
Aquiles, dizendo que seu corpo foi envolvido em vestes divinas, tendo sido untado de óleo e
mel (HOMERO. Odisseia, XXIV, vv.66-8).
No funeral de Polixena, é Hécuba quem deseja realizar o cuidado de seu corpo
(EURÍPIDES. Hécuba, vv.605-612). A rainha troiana, agora cativa, diz não poder dar a sua
filha as honrarias necessárias, como o seria caso ainda tivesse sua grandeza de família real, mas
faz o possível para que ela não fique sem seu géras, recolhendo adorno de parte das prisioneiras
de guerra (EURÍPIDES. Hécuba, vv.613-623). Em Troianas, vemos que Andrômaca havia
coberto Polixena com péplos e carpido seu cadáver, dons devidos aos mortos (EURÍPIDES.
Troianas, vv.626-7).
Para Astiánax os cuidados são igualmente limitados, sendo levado “ao miserável morto
um adorno/do que sobrou” (EURÍPIDES. Troianas, vv.1200-1). O ato brutal ao qual a criança
é condenada não deveria nem ao mesmo ser reclamado por Andrômaca, pois além da morte seu
rebento poderia ficar insepulto, sem carpido (EURÍPIDES. Troianas, vv.735-6). Todavia, como
aqui já citado, de Taltíbio o corpo do menino recebe banho e tem seus ferimentos lavados, a
fim de que um túmulo para ele fosse cavado (EURÍPIDES. Troianas, vv.1150-5). Hécuba,
igualmente, “como uma médica”, cuida dos ferimentos do neto (EURÍPIDES. Troianas,
vv.1232-3).
À Alceste, todavia, são dedicadas diligências ao seu corpo dignas de uma rainha. É ela
própria quem inicia os ritos fúnebres, sendo narrado por sua serva que “quando ela tomou
conhecimento que seu dia fatal tinha chegado, ela banhou sua pele em água limpa e tomando
suas vestes de seus armários de cedro vestiu-se apropriadamente” (EURÍPIDES. Alceste, vv.
158-161).
77
A próthesis, usualmente, ocorria após o dia da morte e deveria durar apenas vinte e
quatro horas, assim como o corpo deveria ficar exposto o tempo necessário para que a morte
fosse comprovada (GARLAND, 1985, p.26). Porém, podemos verificar através da
documentação, especialmente no que compete as obras homéricas, que o tempo poderia exceder
muito mais do que isso. No funeral de Heitor, por exemplo, o seu corpo fica exposto por nove
dias (HOMERO. Ilíada, XXIV, v.664) e o de Aquiles por dezessete (HOMERO. Odisseia,
XXIV, vv. 62-65).
Segundo Garland, “a duração dessa etapa era determinada, aparentemente, ou pela
posição social do falecido ou pela dor sentida pelos sobreviventes” (GARLAND, 1985, p.26).
Igualmente, como destacado por Humphreys, “uma família nobre desejando fazer a exposição
máxima em honra ao um membro morto iria, em primeiro lugar, prolongar a próthesis por tanto
tempo quanto possível, antes da decomposição do corpo” (1980, p.99), ressaltando como os
funerais homéricos ecoavam as prerrogativas da sociedade aristocrática para qual o aedo
cantava, evidenciando o status do morto e de sua família através dos cuidados com seu corpo.
A segunda etapa dos ritos fúnebres, denominada ekphorá, refere-se ao trânsito do corpo
de sua casa, no qual já teria de haver recebido todo o tratamento necessário, até o local de
cremação ou sepultamento, como visto na passagem acima, descrevendo os cuidados com o
corpo de Heitor.
Esse trânsito ocorria em carros fúnebres, no qual o cadáver era exposto sob uma cama,
com lençóis, mantas e travesseiros, realizado uma associação entre sono e morte, que até os
dias de hoje se faz natural para nós (VERMEULE, 1979, p.13). A cabeça do morto deveria ser
apoiada nas mãos dos parentes e amigos, como Aquiles faz com Pátroclo (HOMERO. Ilíada,
XXIII, vv.137-8), e Andrômaca com Heitor (HOMERO. Ilíada, XXIV, vv.723-5)88.
Após a ekphorá, os ritos finais deveriam ocorrer, isto é, a cremação ou inumação do
corpo. A primeira delas é destacada em nossa documentação como tratamento final mais usual
dado ao morto, sendo o fogo considerado um meio catártico de tornar o cadáver sagrado
(MIRTO, 2012, p.89). Em Homero, por exemplo, todas as referências aos funerais são marcadas
pela pira funerária, como já visto em algumas passagens aqui citadas. Heitor, temeroso pelo
ultraje que Aquiles deseja cometer ao seu corpo, suplica-lhe que se corpo seja restituído aos
seus pais a fim de ser cremado (HOMERO. Ilíada, XXII, vv.339-343); A psykhé de Pátroclo
88
Apenas Alceste faz referência a essa etapa fúnebre, demonstrando que as servas carregaram seu corpo nos
ombros para seu sepulcro (EURÍPIDES. Alceste, vv.607-8).
78
vai a Aquiles em sonho e, do mesmo modo, solicita que a ele seja dado seu quinhão de fogo
(HOMERO. Ilíada, XXIII, vv. 69-77).
Todavia, apesar de a cremação ser o principal ritual fúnebre descrito pelo aedo, o
Período Micênico que, como vimos, a Guerra de Troia estaria inserida, não conheceu essa
prática. Os túmulos encontrados dessa época são, inclusive, uns dos artefatos arqueológicos
mais utilizados para sabermos acerca dela (MIRTO, 2012, p.84), demonstrando como Homero
expõe em suas obras ritos existentes no período histórico que se insere.
Apesar de a incineração ser predominante no Período Arcaico, no Clássico ela não é
destacada pela arqueologia como uma atitude preferencial, sendo um tratamento mais caro e
executado, sobretudo, pelos que tinham maiores condições. Entretanto, na literatura trágica aqui
analisada, tal qual as obras de Eurípides, vemos a prevalência novamente da cremação 89,
excetuando-se o caso de Astiánax, que é enterrado no escudo do pai.
No momento da cremação/inumação oferendas ao morto eram usualmente realizadas.
Nas tragédias, vemos que à Polixena, concebida já como oferta para Aquiles, os aqueus
oferecem um gesto simples: jogam folhas de árvore sobre seus corpos (EURÍPIDES. Hécuba,
v.574). Em Homero, o funeral de Pátrocolo torna-se um caso peculiar dentro de nossa
documentação no tocante às oferendas prestadas aos falecidos, não possuindo nenhum paralelo
em quantidade ou variedade com o período histórico e até dentro dos próprios poemas (MIRTO,
2012, p.86).
Aquiles, em mais um ato de hýbris ao longo da Ilíada, oferta a Pátroclo doze prisioneiros
troianos, dois cachorros, quatro cavalos, uma vaca e uma ovelha (XXIII, vv.173-179)90. Como
recorda-nos Loraux, o rito fúnebre ao seu companheiro de guerra se faz também rito sacrificial,
um sacrifício aberrante devido aos estatutos das vítimas91 (LORAUX, 1982, p.29-30), sendo
Aquiles apontado pelo próprio poeta como agrios anêr, o homem selvagem (HOMERO. Ilíada,
XXI, v.314/XXIII, v.176), demonstrando suas kakà erga (ações más)92.
89
A Alceste é dedicada a pira [πυράν] (EURÍPIDES. Alceste, v.608) e a Polixena e Polidoro uma única chama
(EURÍPIDES. Hécuba, vv.894-7).
90
Outro ato de hýbris conectado a Aquiles diante da morte de Pátroclo é o uso da saudação khaîre ao herói
(HOMERO. Ilíada, XXIII, v.19 e vv.179-80). Como visto, o uso deste termo no século VIII a.C. não era habitual
para pessoas mortas e sim apenas para deuses o que reforça o comportamento anormal do herói durante toda a
Ilíada, demarcando seu excesso e também seu papel de therápon de Pátroclo, visto que “ele é o espelho em que
Aquiles projeta suas próprias motivações, necessidades e desejos” (SOURVINOU-INWOOD, 1995, p.185).
91
Sacrificar cavalos e cachorros seria, segundo Annie Schnapp-Gourbeillon, tão monstruoso quanto sacrificar
homens devido a caráter de companheirismo desses animais (1982, p.82-3).
92
Até mesmo o rio escamandro revolta-se contra Aquiles quando ele joga os jovens troianos mortos em seu leito,
ameaçando-lhe com uma sepultura de lama, isto é, um antifuneral: “Nem força, nem beleza, nem armas
esplendidas/lhe vão valer, pois logo jazerá no fundo/palustre, encasulado em lodo; a recobri-lo/eu mesmo deporei
seixos e pedregulhos/sem conta; os Aqueus não poderão sequer seus/ossos resgatar, tanta lama o engolirá./Aqui
79
Após a incineração, as obras homéricas desvelam-nos que os ossos eram recolhidos e
enrolados em um tecido a fim de serem postos em uma urna que seria enterrada 93. Pátroclo e
Aquiles têm seus ossos guardados na mesma ânfora de ouro (HOMERO. Ilíada, XXIII, vv.835/ HOMERO. Odisseia, XXIV, vv.76-7). Aos ossos de Heitor é igualmente dado uma urna de
ouro, envolta em um manto púrpura (HOMERO. Ilíada, XXIV, vv.785-797). De acordo com
Nagy, a ênfase nos ossos dos heróis representa um comprometimento formal com a promessa
de imortalização (1999, p.208-9), ato que não vemos ser exercido nas obras trágicas.
Igualmente, em um ambiente aristocrático, tal qual o descrito pelo aedo, após a os ritos
finais de tratamento do morto, vemos que um banquete em honra ao falecido era conduzido,
como é feito para Pátroclo, no Canto XXIII da Ilíada, e para Heitor, no XXIV, demonstrandose sinais de riqueza dessa camada social.
Do mesmo modo, vemos a presença nas obras homéricas de um costume típico do
Período Arcaico que procederia o funeral: os jogos fúnebres. Observamos novamente este fato
no caso de Pátroclo (HOMERO. Ilíada, XXIII, vv.257-897) e também no de Aquiles
(HOMERO. Odisseia, XXIV, vv.84-5), sendo competições postas em andamento a fim de que
prêmios fossem concedidos aos que ganhassem as provas.
Segundo Schein e Bremmer, em ambientes aristocráticos, o costume do luto terminar
em jogos, além de fazer parte de um ritual devido ao herói morto, servem para demonstrar o
destreza e habilidade em um período de inatividade (BREMMER, 1993, p.121/ SCHEIN, 1984,
p. 156). Ademais, como recorda Finley, o modelo heroico, que incluía a tríade “honra-lutatroféu” manifestava-se, inclusive, nos funerais, já que essas competições também serviam para
demonstrar a bravura dos heróis (1982, p. 113).
O último ato a ser empreendido a fim de se realizar a separação final entre o morto e o
mundo dos vivos era a ereção de uma estela (στήλην), de um séma (σῆμα)94 sobre o túmulo
(τυμβός) do falecido, termo que segundo Sourvinou-Inwood detona duas funções essenciais em
um contexto fúnebre: a primeira delas, denominada pela autora como referência indexical, é
informar que alguém foi enterrado ou seus restos inumados naquele local, assim como algumas
características do morto, como sua posição social; já a segunda remete-se à referência simbólica
terá um sepulcro, por mim mesmo erguido;/Assim, ao funeral não vai faltar-lhe tumba...’” (HOMERO. Ilíada,
XXI, vv.317-324).
93
Como ressaltado por Rodrigues, “Compreende-se por que tantas são as culturas que atribuem especial valor
simbólico aos ossos - exatamente àquilo que, da morte, fica” (2006, p. 66).
94
O termo séma possui diferentes significados dependendo do contexto, como identificar, marcar ou recordar
(SOURVINOU-INWOOD, 1995, p.136). No caso dos funerais ele seria a identificação e rememoração do morto,
sua mnéma.
80
do séma, sendo os corpos ou ossos dos mortos vistos como um símbolo metonímico do falecido,
marcado pela memória (SOURVINOU-INWOOD, 1995, p.115-120).
As obras homéricas são as que mais nos trazem informações a respeito da necessidade
de erigir tumba e estela aos mortos95, o que podemos conectar a sua função social de demarcar
a memória do morto em meio a sociedade96. Unindo-se ao canto do poeta, esses monumentos
funerários tinham como finalidade não apenas expor e tornar a morte pública, mas destacavamse, igualmente, como uma resistência ao esquecimento, lembrando aos homens o nome, o
renome e as façanhas dos mortos (VERNANT, 1989, p.26), sendo uma ameaça não dedicar
uma tumba a eles, como é visto através da fala de Agamêmnon aos troianos: “todos hão de
perecer/Longe de Ílion, imêmores, sem tumba!” (HOMERO. Ilíada, VI, vv. 59-60). Como
destaca Bouvier:
Para os vivos, é fundamental poder edificar uma tumba em honra ao morto. A
tumba prova a honorabilidade do morto; ela permite ao γένος reclamar um
ancestral digno de ser comemorado e perpetuado [...] Devotada a dimensão
memorável do morto, a tumba permite a toda sua descendência fazer uso de
uma origem exemplar (BOUVIER, 1999, p. 67).
Igualmente, através de suas tumbas e estelas, os aristoí demonstravam a suntuosidade
que seus funerais comportavam: a tumba de Aquiles é destacada na Odisseia como imponente
(HOMERO. Odisseia, XXIV, v.80); a urna com ossos de Heitor é posta em uma cova, com
enormes lajes, sendo-lhe erguido uma séma (HOMERO. Ilíada, XXIV, vv.796-9); e a Pátroclo
ergue-se enorme sepulcro (HOMERO. Ilíada, XXII, v.126).
Nas tragédias, as referências aos monumentos erigidos aos mortos são infimamente
reduzidas. Em Alceste, a única informação que temos sobre seu túmulo é que se encontra fora
das muralhas do palácio (EURÍPIDES. Alceste, vv.835-6). Em Ifigênia, vemos que a princesa
solicita que a ela não seja erigido um túmulo, pois o altar de Ártemis será seu memorial (μνῆμα)
(EURÍPIDES. Ifigênia em Áulis, vv.1442 e 1444). Polidoro, como citado, com um túmulo não
foi honrado, mas sim jogado ao mar (EURÍPIDES. Hécuba, vv.796-7). Em Hécuba, vemos que
Polimestor ameaça a protagonista acerca da memória que os outros terão após a sua morte ao
verem sua tumba, dizendo-lhe que “morta: um nome será dado para tua sepultura (τύμβῳ) [...]
‘Túmulo da infeliz cadela’, um sinal (σῆμα) para os nautas” (EURÍPIDES. Hécuba, vv.1271/3).
95
No período em que Homero narra, os ossos dos mortos não precisavam necessariamente ser enterrados em sua
terra de origem, como o é na Atenas Clássica. Sendo assim, excetuando-se o caso de Sarpédon, que, como vimos,
tem seu corpo transportados por seres divinos, os restos mortais dos heróis falecidos em campo de batalha do lado
aqueu são enterrados longe de seus lares.
96
Vemos um séma sendo erigido a Pátroclo, Heitor e Elpenor, por exemplo.
81
Porém, ainda que poucas referências a essa última etapa do processo funerário sejam
feitas nas tragédias, uma passagem de Troianas se destaca entre as peças de Eurípides, fazendonos refletir acerca das hipóteses sobre o porquê dessa diminuição do poder da rememoração
através do túmulo. Hécuba, vendo-se frente a impossibilidade de prestar honras dignas ao seu
neto Astiánax, como muitas outras avós e mães durante a Guerra do Peloponeso, ordena que
seu funeral seja logo concluído:
HÉCUBA:
Andai, sepultai no aflitivo túmulo o cadáver:
Tem as coroas necessárias para os defuntos.
Creio que, para os mortos, quase não difere
Se alguém ricas exéquias alcançará.
Vazio é esse objeto de ostentação dos vivos
(EURÍPIDES. Troianas, vv.1246-1250)
Desse modo, defendemos que a mensagem passada por Eurípides através de sua
personagem é aquela que se faz presente em seu contexto histórico: uma crítica aos
monumentos fúnebres com “ricas exéquias”, pois esses demonstram, na verdade, uma
ostentação apenas para os vivos, sendo indiferente ao morto o que receberá. Para o
tragediógrafo, como detona Snell, “a riqueza não possui valor algum” e o “o quotidiano
medíocre é mais real do que a pomposidade solene” (1992, p.156)
A morte na tragédia euripidiana, especialmente daqueles desafortunados, é vista, desse
modo, mais com tristeza que com elogio e aqueles que se destacaram em vida são mantidos na
memória especialmente por seus atos heroicos, recebendo através da admiração de outras
personagens aquilo que Marta Mega de Andrade denomina de mnéma vocal, como o era nas
orações fúnebres existentes no cotidiano do tragediógrafo (2003, p.142).
Em vista disso, realizar esse processo de transição para o morto, traduz-se tanto como
um esforço para que o falecido se mantenha em meio a sociedade através da rememoração,
como vemos em Homero, quanto para que os vivos possam se ver restaurados após um período
de luto, como é demonstrado especialmente nas tragédias.
O aedo, finalizando sua Ilíada com os funerais para Pátroclo e Heitor, destacaria, como
ressaltado por Schein, uma conclusão satisfatória para tantas mortes durante a epopeia,
ajudando tanto a nós, quanto aos aqueus e troianos a suportar a dor e perda, incutidas no fato
de sermos mortais (SCHEIN, 1984, p. 67-8). Eurípides, expondo a dor de tantas personagens
diante da morte, demonstra que apesar de sua pólis pregar um comedimento do luto, a dor da
guerra era muito grande para que esse não fosse demonstrado.
82
Diante do fim da vida, para os sobreviventes resta, assim, operar através de gestos e
palavras a perda que sentem, buscando dar respostas emocionais e sociais a ela, garantindo não
apenas a recuperação do grupo, sua estrutura de poder, mas deixando claro que o luto continua
sendo inevitável (KAHN, 1982, p.133-4).
Sob um panorama mais amplo, podemos concluir que
Os ritos da morte comunicam, assimilam e expulsam o impacto que provoca
o fantasma do aniquilamento. Os funerais são ao mesmo tempo, em todas as
sociedades [...] uma crise, um drama e sua solução: em geral, uma transição
do desespero e da angústia ao consolo e à esperança (RODRIGUES, 2006,
p.20-1).
A análise dos ritos fúnebres, assim como do lamento, não evidencia, dessa forma, apenas
as obrigações dos vivos para com os mortos, mas igualmente a mediação existente entre a vida
e a morte, os vivos e os mortos e os vivos e os deuses, funcionando tanto como um instrumento
de coesão social quanto como um pretexto de exacerbação de tensões em meio a sociedade
(DAMET, 2006, p.98). Eles significavam uma honra necessária a ser prestada ao morto, mas
também “uma necessidade para o vivo” (MIRTO, 2012, p.4).
E, como veremos no próximo capítulo, não apenas no nível das práticas a sociedade
grega antiga desenvolveu respostas à morte, mas igualmente em seu mundo de crenças,
desenvolvendo diferentes representações sociais a respeito do que ocorreria após a vida ter seu
fim.
83
Capítulo 3
As representações sociais do post mortem
Não saber o que ocorrerá após a vida ter seu fim é uma dúvida que perpassa as diferentes
sociedades ao longo da história, sendo inúmeras crenças desenvolvidas a fim de darem respostas
à inexorabilidade da morte. Como destaca Vernant,
não existe contexto social que não possua uma dimensão ‘humana’, ou
seja, mental, não existe instituição que não implique, enquanto está
viva, crenças, valores, emoções e paixões, todo um conjunto de
representações e de sentimentos (VERNANT, 2009, p. 54).
Todavia, representar o desconhecido é talvez tarefa tão árdua quanto analisar os
discursos construídos acerca dele. Ao contrário das práticas, que são mais concretas e
determinadas, crenças são fluidas e variáveis, especialmente no caso da Grécia Antiga, que não
possuía um dogma cristalizado (SOUVIRNOU-INWOOD, 1995, p.11). Como nos remete
Zaidman, as crenças dessa sociedade eram compostas de tradições essencialmente orais97,
presentes sobretudo nas obras literárias, chegando até nós apenas os vestígios dessas
representações religiosas, que são “pouco a pouco reconstituídas e em perpétuo movimento”,
sendo possível retirar dos textos apenas “pobres restos de um vasto naufrágio” (2010, p.17-18).
À vista disso, esse mundo imaginário deve ser analisado como um processo de
bricolagem, no qual mitos ou ritos que pertencem a essas tradições são muitas vezes deslocados,
reformulados e reinterpretados (SOUVIRNOU-INWOOD, 1995, p.24), não podendo ser
fixados de maneira rigorosa e possuindo “liberdade suficiente para que as divergências nas
tradições, nas inovações trazidas por certos autores não se constituam escândalo nem problemas
do ponto de vista da consciência religiosa” (VERNANT, 2010, p. 190).
As percepções da vida após a morte, foco deste capítulo, não se tratam, dessa forma,
apenas de representações espaciotemporais, mas igualmente de uma visão sociológica e
antropológica, que se modifica de acordo com às circunstâncias sociais e culturais. Ainda assim,
no âmbito das crenças religiosas, a criatividade dos poetas opera dentro dos parâmetros de
97
Devemos ressaltar que a fala em uma sociedade na qual a escrita não é muito difundida é um grande dispositivo
cultural, sendo a oralidade muito importante para a transmissão da cultura da época.
84
crenças estabelecidas (SOURVINOU-INWOOD, 1995, p.11) e muito raramente, como denota
Dodds, um novo padrão de crenças apaga completamente o anterior (2002, p.181).
Destarte, possuímos como proposta evidenciar as maneiras pelas quais Homero e
Eurípides construíram essas representações sociais em suas obras, dando destaque às crenças
no além-vida, como na possível existência de uma alma e de um local para qual após a morte
os falecidos se destinariam. A orientação teórica de Denise Jodelet nos auxilia a pensar de que
forma determinadas crenças percorrem a sociedade, circulando nos discursos poéticos e
desvelando processos cognitivos desse mundo grego.
Como aqui já citado, é inegável que as obras homéricas podem ser concebidas na
sociedade grega como um arquitexto não apenas para Eurípides, mas para inúmeros expoentes
da Literatura, História e Filosofia posteriores a ele. Ainda que não tenhamos conhecimento de
nenhuma literatura prévia a Homero, é igualmente inegável que tudo aquilo pertencente ao
universo dos mýthoi em suas obras não foi pura invenção de sua criatividade poética, mas que
estavam presentes no seio de sua sociedade e até mesmo em crenças anteriores ao seu contexto
de produção, sendo suas epopeias, assim com as tragédias euripidianas, parte de um processo
discursivo.
Desse modo, ainda que de maneiras peculiares, cada um desses poetas transmitia através
de seus discursos questões conectadas às suas crenças, demonstrando-se como “epopeias,
tragédias, poemas transmitem e transformam as crenças, alimentam assim a vida dos mitos e
dos deuses que a concernem. Falam-nos das crenças que alimentam essa civilização e sua visão
do mundo” (ZAIDMAN, 2010, p.18).
Porém, é inconteste que a presença dos mitos é bem mais evidente em Homero que em
Eurípides. Analisando os discursos por eles proferidos em sua materialidade linguística,
verificamos que Homero está em um contexto no qual a palavra mágico religiosa se faz seu
guia. No Período Arcaico, como salienta Snell, o conhecimento toma forma de instituição
mítica e as obras homéricas possuíam como conteúdo fundamental essa instituição (1992, p.12),
tomando-a como realidade. Como destacado por Alexandre Moraes:
Homero e Hesíodo parecem ter sido os grandes responsáveis pelo
estabelecimento de um verdadeiro manancial mítico que, reconhecido como
fundante de uma mitologia helênica, fez com que os poetas se dedicassem a
aprofundar os conhecimentos acerca deste passado (MORAES, 2010, p.39).
Através das epopeias, nas quais as Musas possuíam o papel de falar as verdades sobre
esse universo mítico, marcado na memória dos indivíduos, “o homem torna-se capaz de ver
85
além de sua experiência humana”, atingindo pelo canto do aedo um mundo que está fora de seu
alcance, um espelho do próprio cosmos e, consequentemente, de todo mundo que está além do
visível, preservando um sistema específico de crenças (KRAUSZ, 2007, p.18 e 20). O contato
com o divino, com o desconhecido, faz-se marco de suas obras, especialmente na Odisseia.
Já no caso das tragédias e do período no qual elas se desenvolvem, verifica-se que é o
lógos que se faz mais presente. A palavra mágico-religiosa passa a ser sobrepujada em
importância pelo pensamento racional, que começa a ser esboçado no seio da sociedade
democrática ateniense (DODDS, 2002).
Segundo Vernant, é a tragédia que gera uma primeira sensibilização de transformar o
homem em um ser político, um ser de ação, colocando questões sobre sua natureza, sua
problemática, sua relação com seus atos (2002, p.374). Ela se dirigia ao homem dando aos
elementos mitológicos uma nova leitura que promovia a racionalidade e a sensibilização com
os questionamentos que vão surgindo em sua época.
Jaeger nos aponta que há um andar em direção a assuntos como ordem social e privada,
na qual a exaltação dos mitos, dos deuses, heróis, é deixada de lado (2010, p.288). Questionase a tradição mitológica, confronta-se as representações religiosas antigas com os novos modos
de pensamento, não havendo uma categoria única do religioso na tragédia (VERNANT, 2002,
p.18). Porém, “o mito conserva sua importância como fonte inesgotável de criação poética”
(JAEGER, 2010, p.288), ainda que tenha lugar no passado, sendo relatado de forma histórica.
Mesmo sendo a alma da tragédia, como denota Aristóteles, os dados da tradição são utilizados
artisticamente pelos poetas trágicos, neles inserindo seus debates e ensinamentos
(ARISTÓTELES. Poética. XIV,1453 b, 21).
À vista disso, em Eurípides, verifica-se uma diminuição da atenção dada às questões
místicas e o foco é o homem e suas emoções, podendo ser visto o enfraquecimento da influência
ou da determinação divina nos atos praticados pelos mortais e o consequente fortalecimento da
responsabilização de cada um por seus atos e escolhas, limitando-se a meras menções a esse
mundo de crenças, sendo até mesmo os deuses postos sob dúvida em suas obras, mesmo que
no agón de seus versos seja visto a eles o respeito98.
Segundo Codeço, “a ação humana não tem em si força bastante para deixar de lado o poder dos deuses, nem
autonomia bastante para conceber-se plenamente fora deles. Sem a presença e apoio deles, ela nada é; aborta ou
produz frutos que não são aqueles a que visava” (2010, p.79). Ainda assim, Snell nos evidencia que é a partir da
Guerra do Peloponeso que começam a existir processos jurídicos que se voltavam àqueles que professavam uma
descrença nos deuses, como irá ocorrer mais tarde com Sócrates, condenado por ir de encontro ao pregado pela
pólis em suas concepções religiosas (1992, p.49).
98
86
O mundo dos mortos que se faz presente em Homero em diversos versos, tem nas obras
trágicas sua descrição reduzida, ainda que traga novos elementos a respeito desse mito. As
questões relacionadas à alma nas peças euripidianas ganham igualmente novo vigor, o que pode
ser relacionado novamente ao foco dado ao homem como centro das vontades.
Portanto, cabe a nós, ao comparar essas obras e, consequentemente, seus períodos de
composição, analisar as maneiras pelas quais as crenças se modificam ou se mantém.
3.1| Alma homérica e alma trágica: a psykhé em comparação
Ainda hoje, caso nos indaguemos sobre o que compreendemos sobre alma, múltiplas
respostas poderiam surgir. Alguns falariam que isso é um conceito inexistente, que foge a lógica
do real, outros que é a totalidade de nossas faculdades psíquicas ou que é o único elemento que
se salva após a morte99.
Mesmo com tantos estudos, seja por parte das ciências biológicas, físicas ou
psicológicas, é inegável que estamos muito longe de saber se nosso corpo é composto por algo
que transcende o visível ou que vai além do racional. Grande parte das respostas dadas a essa
pergunta surgem dos dogmas desenvolvidos pelas religiões antigas ou modernas, presentes no
nosso dia-a-dia ou nos mitos do passado, que buscavam dar respostas especialmente ao que
ocorreria após a vida ter fim, ao que sobraria de nosso corpo e atingiria outro plano, pois como
refere-nos Rodrigues “a recusa da morte pela crença na sobrevivência do duplo em um outro
lugar é talvez tão velha quanto o homem [...]” (2006, p. 34).
Entre os gregos antigos essa crença também se via presente. Já no final do século XIX,
Erwin Rohde torna-se um dos pioneiros no estudo sobre aquilo que muitos chamam de alma na
Antiguidade: a psykhé, conceito que de Homero a Platão sofreu mudanças de acepção,
dependendo do contexto sociológico em que estava presente (VELASCO, 2006, p.21), e que se
revela como um eixo em torno do qual giram muitas das atuais ciências do homem (REALE,
2002, p. 13).
À vista disso, desde Rohde, uma miríade de investigações voltou-se para a compreensão
deste termo no contexto da Antiguidade grega, seja no campo da Filologia, da Literatura, da
Segundo Nicole Belmont, “a vida como característica dos seres vivos é representada nas culturas históricas e
tradicionais como uma entidade chamada ‘alma’, sem esquecer a extrema diversidade das representações desta
última (movimento, respiração, sangue, duplo, sombra, nome, etc.); trata-se de uma entidade paradoxal no sentido
em que desempenha a sua mais importante função, a função vital, só quando unida ao corpo, mas isso só é
adequadamente constatado quando cessa esta função, no momento da morte, e ela abandona o corpo” (1997, p.44)
99
87
Antropologia ou da História. Realizava-se ou análises pontuais, buscando-se compreender o
que a psykhé significa em Homero, por exemplo, ou análises diacrônicas, na qual investigavase uma evolução do conceito ao longo dos períodos da sociedade grega, ainda que algumas
obras, como as tragédias, fossem praticamente esquecidas nesses estudos.
Bruno Snell, em seu A descoberta do espírito (Die Entdeckung des Geistes - 1948), é,
como citado, um dos estudiosos que se dedicou a investigar a maneira pela qual os gregos
desenvolveram em sua cultura o que chamamos de pensamento humano, buscando-se o
entendimento de suas faculdades psíquicas e supra-corpóreas – como é o caso da alma – e
descrevendo como homem tornou-se um ser investigador e inquiridor. Para Snell, haveria um
longo processo pelo qual essa sociedade antiga sofreu seu desenvolvimento do espírito, sendo
diversas etapas perpassadas a fim de se apreender a natureza do homem e sua essência (1992,
p.12).
Segundo o estudioso, a dualidade corpo/alma seria inexistente nas poesias épicas e
trágicas (SNELL, 1992, p.28), sendo apenas consolidada com os estudos filosóficos de Platão.
Ademais, conforme elucidado por Nicole Belmont, “até época bastante tardia, os Gregos não
desenvolveram a ideia de uma alma imortal; a psique é o que dá vida ao corpo, é a vida, e
desaparece quase completamente após a morte” (1997, p.44).
Contudo, são flagrantes as mudanças que encontramos nas acepções dadas ao termo ao
compará-lo entre o gênero épico e trágico. Desse modo, assim como Snell, interessados em
compreender a imagem que os helenos tinham de si mesmos, especialmente após a morte,
realizar-se-á, no presente subcapítulo, uma análise em nosso corpus documental na qual buscase relacionar a utilização de palavras conectadas a esses elementos intangíveis, como é o caso
de psykhé, ao seu co-texto e contexto, buscando-se a inteligibilidade dos discursos, sua
interpretação e compreensão (ORLANDI, 2012, p.26). Isso porque, como nos remete Orlandi,
as palavras só possuem sentido a partir das formações discursivas em que se inscrevem,
“palavras iguais podem significar diferentemente porque se inscrevem em formações
discursivas diferentes” (ORLANDI, 2012, p.43-44).
No que compete às obras homéricas, é inegável que são elas as que mais no trazem
informações a respeito do que se entendia como psykhé no período de sua composição: 94 vezes
mencionada na Ilíada e 131 vezes na Odisseia, a análise da utilização deste termo no gênero
épico foi foco de atenção de inúmeros estudiosos ao longo do tempo, sendo as informações que
obtemos sobre a concepção a ele dada muito mais vastas do que as encontradas em relação a
Eurípides.
88
Nessas 225 menções ao termo, o primeiro fato que nos chama atenção é a multiplicidade
de traduções a ele dado. Alma, sopro, sombra, vida, fumaça e espectro são algumas das palavras
que tomam o lugar de psykhé nos textos em língua portuguesa100, que ao buscarem realizar uma
transcriação das obras101, afastam-se, muitas vezes, do sentido que elas assumem em seu
contexto de aplicabilidade textual.
Todavia, uma verificação mais profunda nos usos do vocábulo psykhé nos versos
homéricos remete-nos a apenas duas significações, que aqui serão explicitadas: 1) a própria
vida do homem, que se faz presente em seu corpo, mas que sobre ele não exerce nenhuma
função e 2) a alma dos mortos, isto é, o único elemento que sobreviveria ao fim das faculdades
vitais e se dirigia ao domínio do Hades.
Na primeira das acepções, podemos verificar que a vida a qual a psykhé se refere é
aquela que está perto de seu fim (REALE, 2002, p. 77), a que os heróis arriscam em batalha ou
lutam para retirá-la de outrem. Heitor, por exemplo, possui uma psykhé, uma vida que é
batalhada (HOMERO. Ilíada, XXII, vv. 163-164) e por fim é extraída com afiado bronze pelas
mãos de Aquiles (HOMERO. Ilíada, XXIV, v,754-5); Odisseu arrisca sua existência em seu
nóstos, “empenhado em/ salvar a vida [ψυχὴν] e garantir o regresso dos companheiros”
(HOMERO. Odisseia, I, vv. 3-5) e Diomedes priva seus inimigos da vida [ψυχῆς] que lhes
pertence (HOMERO. Ilíada, XI, 334-335).
Do mesmo modo, além de arriscarem sua psykhé em combate, as personagens descritas
por Homero a possuem como parte integrante de seus corpos. Aquiles, por exemplo, ainda que
filho de uma deusa, é apontado como mortal, como detentor de uma alma por Agênor: “Mais
forte que os outros homens/ todos é o Aquileu. Não se eu o enfrentasse ante/ a cidade? Sua pele,
ao bronze pontiagudo/ é vulnerável. Dentro, há uma só psiquê. Dizem/ que é mortal. Mas
concede-lhe a glória o Croníade!’” (HOMERO. Ilíada, XXI, vv. 565-569 - grifos nossos).
Outro caso em que podemos verificar a presença da psykhé em vida é em sua saída em
momentos de desmaio. Andrômaca, ao descobrir acerca da morte de seu esposo Heitor, espantase e desfalece, tendo seus olhos eclipsados e caindo para traz, exalando a psykhé [ψυχὴν]
100
Analisando o dicionário grego/francês Anatole Bailly e o dicionário etimológico de Pierre Chantraine, podemos
verificar que nesses o termo psykhé é traduzido por “força vital, vida, alma” (CHANTRAINE, 1968, p. 1294),
“alma, sopro” (BAILLY, 2002, p. 2176). Ademais, sua etimologia seria derivada do verbo psykhein, soprar, o que
se conectaria, como veremos, a sua saída do corpo após a morte.
101
A tradução de palavras tão antigas para nossas línguas modernas muitas vezes, como ressalta Reale, obriga “o
tradutor não só a traduzir o mesmo termo diferentemente, mas também, ao contrário, a traduzir da mesma maneira
termos que no original são diferentes” (2002, p. 43), isto é, suscetível a mudanças pelos tradutores. O autor também
nos alerta que nenhuma língua pode ser traduzida perfeitamente, já que seria necessário participar diretamente do
mundo em que aquela linguagem é inserida (REALE, 2002, p. 46).
89
(HOMERO. Ilíada, XXII, vv. 464-465). Do mesmo modo, quando os heróis são feridos em
combate, suas psykhaí deixam por um momento seus corpos: “A vida [ψuχή] se lhe escapa do
íntimo/ e seus olhos se ofuscam. Mas, soprando, Bóreas/ o espírito, a evolar-se quase, reanima/
e ele recobra alento [θυμóν]” (HOMERO. Ilíada, V, vv. 695-698).
Não obstante, durante o curso normal da vida do homem homérico, a psykhé detinha
como seu único papel o de princípio vital, abandonando-o e sobrevivendo à morte (DODDS,
2002, p.14). Não há nenhuma menção nas obras do aedo em que a psykhé seja descrita
exercendo alguma função dentro do homem ainda vivo, não possuindo nenhuma conexão física
ou psicológica com ele (BREMMER, 1993, p. 16) e não tendo nada que ver com a alma que
pensa e sente, significado que, como veremos, assumirá no século V a.C.
As atividades conscientes eram conectadas a outras almas – as quais Bremmer (1993)
denomina de “alma do ego” e Rohde de “espírito” (ROHDE, 1983, p. 10) – que deixariam de
existir no momento da morte. O eu interior nas epopeias homéricas estaria relacionado a um eu
orgânico, sendo os lugares do corpo102, como apontado pela estudiosa Giulia Sissa, como o
coração, diafragma e peito, entendidos como a causa e a sede dos movimentos afetivos, estando
o comportamento social do homem grego pautado em uma “biologia das paixões” (SISSA;
DETIENNE, 1990, p. 56).
Os sentimentos, o pensamento, a personalidade e a força do homem homérico vinham
de diferentes partes do corpo e não da psykhé. Ao sentir nos versos épicos conectavam outros
elementos essenciais, como thymós (θῡμός), nóos (νόος) e phrén (φρήν), levando-nos a
depreender que “o homem homérico não conhece a alma do homem em sentido unitário, ‘mas
multiplicidade de almas vitais ou almas funcionais, que correspondem às diferentes formas de
manifestações da vida’” (REALE, 2002, p. 56)103.
Thymós é o elemento corporal mais citado nas epopeias, podendo ser compreendido
como o órgão do coração, mas especialmente como o sopro vital, a alma que anima os
102
Um fator interessante referente à palavra corpo em Homero é que não há um termo que o designe em suas obras
e sim apenas o cadáver ou os membros do vivo. O vocábulo σῶμα (soma) nunca fora utilizado nas epopeias como
corpo do homem vivo, como será posteriormente no século V a.C., mas sim como seu cadáver (SNELL, 1992,
p.24). Segundo Reale, o aedo exprimia o que nós chamamos de corpo com uma multiplicidade de termos e
representações” (2002, p. 20), como melea ou gylia, que significam membros articulados pela força; demas, que
se aproxima da tradução da imagem do homem, de sua estatura, forma, de sua figura exterior e chros, que pode
ser traduzido como pele (REALE, 2002, p. 21,30 e 32/SNELL, 1992, p.24).
103
Ainda que haja diferentes elementos presentes no homem homérico que se responsabilizam por determinadas
funções em seu corpo, as diferentes capacidades psíquicas não se encontram claramente divididas entre estes
órgãos e princípios vitais, destacando uma certa confusão nos limites que separam essas categorias (SNELL, 1992,
p.25). Como destaca Bremmer, “os poemas homéricos são a culminância de uma tradição de composição oral
unida a elementos de períodos diferentes. Sua coexistência implica que nós devemos estar preparados para
encontrar diferentes estágios na evolução das palavras e conceitos sem sempre sermos capazes de distinguir com
certeza entre elementos novos ou antigos” (1993, p.22).
90
guerreiros, mas os deixa após a morte, fugindo-lhe aos membros104. Igualmente, ele pode ser
visto como a sede dos sentimentos, dos impulsos voluntários, das decisões e da inteligência105.
Odisseu, por exemplo, no mar, tem seu coração [θυμόν], ferido por inúmeras dores (HOMERO.
Odisseia, I, vv. 3-4) e sente na alma “grande incontida revolta” (HOMERO. Ilíada, V, v.669675); Do mesmo modo, Menelau sente seu coração [θυμῶ] “dolorido” (HOMERO. Ilíada, VI,
vv. 994-95) e Sarpédon recebe de Tlepólemo uma reprimenda por ser uma “alma covarde
[κακὸς μὲν θυμός]” (HOMERO. Ilíada, V, v.644)106.
O thymós homérico seria igualmente responsável por aconselhar o homem e suas ações,
como comer, beber ou assassinar, sendo apontado por Dodds como uma espécie de voz interna
e independente (2002, p. 24) e por Werner Jaeger como uma alma-consciência – vinculada aos
órgãos e processos corporais – ao contrário de psykhé, que poderia ser compreendida como uma
alma-vida, que deixa o corpo após a morte, mas não pensa, nem sente (1992, p. 87)107.
Já no que compete ao phrén, que pode se referir ao órgão físico diafragma108, as obras
homéricas o descrevem igualmente como sede de diversos sentimentos, como alegria e temor.
Mente é outro significado dado à palavra (REALE, 2002, p. 65), demonstrando-se como a cerne
do intelecto. Porém, a capacidade de pensar, de discernir, o intelecto em si, teria outro elemento,
de caráter imaterial, como responsável: o nóos, “o órgão mais elevado do homem, e também
dos deuses” (REALE, 2002, p. 67), sendo raramente conectado a sentimentos.
Para mais, esses órgãos poderiam ser influenciados de maneira direta por forças divinas,
isso porque os homens homéricos ainda não detinham a consciência de possuir na sua própria
alma a origem de suas forças, mas as receberiam como dons dos deuses (SNELL, 1992, p.46),
que “não se manifestam apenas nos fenômenos da natureza e nos acontecimentos fatais;
manifestam-se também no que move o homem interiormente, determinando sua atitude e suas
ações” (OTTO, 2006, p. 69).
104
HOMERO. Ilíada, XVI, v. 607/ IV, v.467-468/ V, v. 317/VI, vv.16-18; HOMERO. Odisseia, XXI, 153-154.
Chegamos a essas conclusões tanto através da leitura de nossa documentação quanto do estudo dos dicionários
de Pierre Chantraine e Anatole Bailly, nos quais foi possível verificar essas traduções (CHANTRAINE, 1968,
p.446/BAILLY, 2000, p.948).
106
Tradução de Carlos Alberto Nunes.
107
Não são somente os mortais que estão ligados ao thymós. Os deuses olímpicos também dependem do coração
(SISSA; DETIENNE, 1990, p. 57), como é o caso de Zeus: “‘Ouvi-me,/ deuses e deusas, vou dizer-lhes o que
manda/ meu coração [θυμὸς]” (HOMERO. Ilíada, VIII, vv. 5-7). Também podemos ver que há animais dotados
de thymós: “como/ em gleba inculta dois bois cor-de-vinho puxam/ o firme arado com igual fôlego [θυμὸν], e o
suor/ corre copioso em torno a seus chifres [...]” (HOMERO. Ilíada, XIII, vv. 702-705); “Sárpedon erra/ o alvo;
alanceia, porém, na pá direita, Pédaso;/ este, nitrindo, cai no pó; exala o fôlego/ vital [θυμὸν] e arqueja, enquanto
o sopro-vida [θυμός] evola-se” (HOMERO. Ilíada, XVI, vv. 466-469).
108
“Acadêmicos costumavam supor que o phrénes significava o diafragma, mas fortes argumentos podem ser
criados de que Homero deve também ter significado os pulmões” (BREMMER, 1993, p. 62).
105
91
O homem é, assim, visualizado na sua relação com as potências divinas, sendo distante
dele a noção de uma consciência individual, humana (KRAUZ, 2007, p.15): em Homero, suas
personagens não são autoras de suas próprias decisões, fato que só ocorre pela primeira vez na
tragédia (SNELL, 1992, p.54), como veremos. Sendo assim, quando há uma situação descrita
na epopeia na qual uma personagem parece ser ou fazer algo a mais ou a menos do que seria
esperado dele, é um deus se manifestando (SCHEIN, 1984, p. 57).
À medida que uma potência divina desejava interferir na capacidade de luta dos heróis,
por exemplo, os vemos neles incutir, em seus membros e órgãos, energia, força, bravura, um
ménos (μένος), um impulso momentâneo, seja na parte física como na psíquica109, que
igualmente deixava o homem após a morte110. Segundo Dodds, “quando um homem
experimenta ménos em seu peito, ou sente ‘inflar pungentemente as narinas, ele está cônscio de
um misterioso acesso de energia; a vida dele se torna forte, e ele pleno de confiança e
impetuosidade” (2002, p. 17)111. Apolo, “excita-exércitos”, por exemplo, imbui em Enéias
forças, μένος (HOMERO. Ilíada, XX, vv.79-80), e Poseidon infunde nos aqueus “fúria
indômita” [μένεος κρατεροῖο] (HOMERO. Ilíada. XIII, vv. 59-61)112.
Ainda assim, como aqui já citado, todos esses elementos deixariam o homem no
momento de sua morte, sendo apenas a psykhé capaz de sobreviver, podendo a ela ser atribuído,
conforme mencionamos, um segundo sentido além de o de vida: o de alma dos falecidos, que
sairia de seus corpos – seja pela boca (HOMERO. Ilíada, IX, vv. 406-409) ou pelas feridas
recebidas em batalha (HOMERO. Ilíada, XIV, vv. 516-520) – e se dirigiria ao Hades, destino
que, como analisaremos, é inexorável para a maior parte dos mortais.
Também podemos encontrar animais dotados de ménos nas epopeias de Homero: “E nos corcéis insuflou um
fogoso/ vigor [μένος]” (HOMERO. Ilíada, XVII, vv. 457-458); “A machadinha talhou os tendões do pescoço [da
novilha]/, tirando-lhe o vigor [μένος]” (HOMERO. Odisseia, III, vv. 449-450).
110
“Desabando da biga, reboam-lhe/ em torno as armas, polifúlgidas, polí-/cromas; os corcéis fogem/; vão-se-lhe
alma e ânimo [ψυχή τε μένος]” (HOMERO. Ilíada, V, 295-297)/“O Tideide alvejou-o,/ mas, falhando, atravessa o
mamilo do auriga-/ escudeiro Eniopeu, filho de Tebeu, hiper-/ animoso, que as bridas sustinha. Rodou/ carro
abaixo; de susto, refugaram, patas-/ velozes, os corcéis. Perdem ali, vigor e vida” [ψυχή τε μένος] (HOMERO.
Ilíada, VIII,123-124)
111
Além do ménos, outra intervenção psíquica que pode agir no thymós é a áte, vista, geralmente, como perdição
e cegueira, como uma ação realizada pelo homem, mas sem consciência, que teria sido mandada por deuses, por
daimons, ou seja, por elementos sobrenaturais. Segundo Dodds, “trata-se, de fato, de uma situação de insanidade,
ela é atribuída não a causas fisiológicas ou psicológicas, mas a uma intervenção externa e ‘demoníaca’” (2002,
p.13). Podemos ver um caso de áte conectado a Agamêmnon, quando este é acusado de ter roubado Briseida de
Aquiles.
112
Os deuses também são capazes interferir no phrén e no thymós dos homens: “Saltam ambos dos carros; dão-se
um aperto de mãos, / pacto de fé. Aqui, Zeus empanou o senso [φρενές]/ de Glauco, que a Diomedes cedeu armas
de ouro/ em troca de arnês brônzeo [...]” (HOMERO. Ilíada¸ VI, vv. 232-6) / “A deusa, assim falando, na alma
[θυμω] lhe incutiu/ um dulçor de rever parentes, pátria, esposo” (HOMERO. Ilíada, III, v. 139).
109
92
Logo no início da Ilíada, vemos Aquiles, tomado por sua ira, arrojar “incontáveis almas
[ψuχᾶς]” no Hades (HOMERO. Ilíada, I, v.4), fórmula que se repete por diversas vezes na
epopeia, como quando Odisseu ameaça seu inimigo dizendo-lhe que sua morte lhe trará glória
e dará a Hades a “tua vital psiquê” (HOMERO. Ilíada, XI, vv.441-446); quando Heitor e
Pátroclo padecem, descrevendo-se nos versos do poeta que deles a psykhé voou-lhe dos
membros para o Hades, chorando o fado que lhes tirou vigor e juventude (HOMERO. Ilíada,
XVI, vv.856-858/ XXII, v.361-363); e quando Elpenor, o companheiro insepulto de Odisseu,
cai do terraço e quebra o pescoço, tendo sua psykhé ido parar “nos tenebrosos domínios de
Hades” (HOMERO. Odisseia, X, 558-560).
Todavia, essa transição para o submundo, tão mencionada por Homero, não era
realizada no instante da morte e sim apenas após as devidas honras fúnebres terem sido
executadas. Como visto no capítulo anterior, uma série de ritos deveriam ser seguidos pelos
vivos em relação aos seus mortos e a última das etapas do cuidado com o corpo, a cremação,
conectava-se, na crença homérica, à possibilidade de se conseguir transpassar as fronteiras do
Hades.
Segundo Nicole Belmont, entre os gregos antigos era vaticinado que o corpo fosse
destruído o mais breve possível, “de modo a deixar completamente livre a alma” (1997, p.42),
sendo a cremação capaz de permitir essa necessidade, não havendo retorno do mundo dos
mortos após esta ter sido realizada. Ainda mais, como nos salienta Vernant:
No final dos ritos funerários, com sua entrada definitiva no campo da morte,
o corpo humano adota, aos olhos dos vivos, a forma de uma realidade com
duas faces, uma remetendo à outra e implicando-a: uma face visível,
localizada na terra, dura e permanente como a pedra erguida sobre o túmulo;
uma face do além, ubíqua, intangível e fugida como a psykhé, exilada no
domínio do além (VERNANT, 2009, p. 430).
A emblemática passagem, já citada em nossa dissertação, na qual vemos o diálogo entre
Aquiles e a psykhé de seu amigo falecido, Pátroclo, remete-nos à necessidade da realização de
tal ato. Indo até o Pélida em sonho, ele solicita sua cremação, visto que as outras almas o
impedem de adentrar no domínio dos mortos113:
‘Dormes, Aquiles, e te esqueces de mim. Quando
vivo não descuidavas deste amigo morto.
Sepulta-me, de pronto, para que eu penetre,
113
Como visto no capítulo anterior, Elpenor, na Odisseia, igualmente solicita ao protagonista que suas devidas
honras fúnebres fossem realizadas.
93
enfim, as portas do Hades. A ânima-psiquê
e a sombra dos defuntos exaustos repelem-me,
impedem-me que, além-rio, com elas misture-me;
rondo errante os portais amplos. Dá-me a mão, peço-te,
chorando. Não mais do Hades virei, quando me honres
com meu quinhão de fogo.
(HOMERO. Ilíada, XXIII, vv. 69-77 – grifos nossos).
O diálogo entre os heróis continua se destacando ao nos revelar acerca das
características dessa alma livre, denominação que, como citado, Bremmer relaciona às psykhaí
destinadas ao Hades. Antes de lhe pronunciar seu pedido, Pátroclo chega perto do Pélida e o
aedo demonstra que mesmo após ter se desvinculado de sua carne, a aparência da psykhé com
o homem em vida não deixa de existir, sendo por ele reconhecido “no talhe, na voz e nos olhos,
nas vestes” (HOMERO. Ilíada, XXIII, vv. 62-68).
Por manter essa semelhança, a psykhé é igualmente denominada de eídolon (εἴδολων)
nas obras homéricas, termo que pode ser traduzido por simulacro do morto, sua imagem do que
fora um dia (BAILLY, 2000, p.585); e também de skiá (σκιά), a sombra dos mortos,
representando o “ter sido” do homem, seu duplo, como denomina Vernant (VERNANT, 2002,
p. 428-9).
Não possuindo mais suas faculdades vitais e físicas, seu thymós, nóos ou phrén, as
psykhaí são igualmente representadas em Homero como voláteis, sendo impossível com elas
entrar em contato, como nos é revelado, ainda no diálogo supracitado, por um Aquiles desejoso
de um abraço de seu companheiro:
Põe-te a meu lado,
ainda que por minutos: ambos, abraçados,
chorando, afogaremos o amargor’.
Disse e estendeu as mãos: nada, a psiquê [ψυχὴ] se esvaiu,
sibilo de fumaça, sob a terra. Aquiles
atônito, batendo-se as palmas diz, triste:
'Céus! No Hades há psiquês [ψυχὴ] e ícones mas inânimes,
sem vida[φρένες]!
(HOMERO. Ilíada, XXIII, vv. 97-104 - grifos nossos).
Para mais, ainda que a Ilíada seja uma referência para compreendermos acerca dos usos
do termo psykhé, é a Odisseia que nos traz maiores informações sobre as características
conectadas a esse elemento etéreo. Sendo um poema no qual o nóstos de Odisseu se transforma
em um contato com a alteridade, demonstrar um mundo praticamente inatingível aos mortais
denota a busca pelo desconhecido pregada pelo poema. Desse modo, deparar-se com a
ἔθνεα νεκρῶν (HOMERO. Odisseia, XI, v.34), a comunidade dos mortos, é mais um modo de
94
demonstrar a errância por excelência do herói, uma aventura que faz parte da tradição mítica
(COUSIN, 2002, p.29), assim como sua valentia e capacidade de ir além das fronteiras.
Após receber de Circe as direções para o Hades, como veremos no próximo subcapítulo,
o protagonista, em sua katábasis, revelada no Canto XI da epopeia114, realiza a denominada
primeira nékyia (νέκυια), a invocação dos mortos e o consequente contato com eles. Desejando
encontrar a alma de Tirésias, a única a manter suas faculdades de adivinho e seu phrén no Hades
– dom dado por Perséfone – descobre pelas palavras da feiticeira que as demais psykhaí lá
vagam como sombras (HOMERO. Odisseia, X, vv. 488-496)115, tendo suas capacidades
enfraquecidas com a morte – como a de fala116 e de ação –, mas ainda assim não totalmente
extintas (VERMEULE, 1979, p.23), visto que através das libações necessárias, entrando em
contato com o sangue derramado dos animais sacrificados por Odisseu, elas recuperariam suas
capacidades mentais117, como nos é apontado por Tirésias ao ser indagado por pelo herói118:
‘Tirésias, interpretas, por certo, o que os deuses
me teceram. Rogo-te ainda outro esclarecimento:
vejo a sombra [ψυχὴν] de minha mãe falecida. Ela se
mantém silenciosa junto ao sangue sem levantar
os olhos ao filho nem ousar falar-me. Dize-me,
senhor, o que devo fazer para que ela me reconheça.’
Ele reagiu a meu pedido com esta recomendação:
‘Fácil de cumprir será o que deixo em tua mente.
Todos os mortos que, com teu consentimento, se
aproximarem do sangue te responderão sem erro,
mas os recusados te voltarão as costas’
(HOMERO. Odisseia, XI, vv. 139-149).
114
Para alguns autores, como é o caso de Erwin Rohde (1983), o Canto XI teria sido um acréscimo posterior a essa
epopeia, ou seja, não teria sido feito em conjunto com o resto dos Cantos e nem pelo mesmo criador. SourvinouInwood, ao contrário de Rohde, não crê nessa hipótese e sim que o Canto XI possui total coerência com o resto do
poema seguindo sua sequência e demonstrando um encontro com o lado humano, mesmo que com mortos, na
viagem de Odisseu (SOURVINOU-INWOOD, 1995, p.70-1).
115
Odisseu só encontra nobres no Hades, fazendo o mundo dos mortos homéricos aristocrata por excelência.
Porém, a omissão não diz respeito a inexistência de outras camadas sociais no submundo: o polimétis está cercado
em vida por essa elite, não se fazendo menos estranho que ele encontre no mundo dos mortos pessoas dela
pertencentes.
116
As almas são descritas por Homero como capazes apenas de emitir de alaridos, chiando como morcegos
(HOMERO. Odisseia, XXIV, vv. 05-08) ou tendo sons esvoaçantes de suas bocas (HOMERO. Odisseia, XI, vv.
152-154), capazes de deixar Odisseu “pálido de medo” (HOMERO. Odisseia, XI, vv. 36-44).
117
Não é somente o sangue que faz retornar por alguns momentos a consciência dos mortos. Ações de deuses,
como Hermes no canto XXIV da Odisseia, também fazem com que a psykhé acorde de seu estado de inconsciência,
fazendo “despertar os que dormem” através de um bastão de ouro (HOMERO. Odisseia, XXIV, vv. 01-05). Ainda
assim, como veremos, esse Canto é, por muitos autores, considerado uma interpolação tardia.
118
Segundo Francisco Díez de Velasco, Odisseu não desce stricto sensu ao mundo dos mortos, mas o que se produz
é uma ascensão das almas dos mortos ao serem “chamadas” pelo sangue sacrificial (2004, p.124).
95
O contato desejado pelo protagonista com sua mãe, Anticleia, demonstra-nos que após
ela ter sorvido o líquido sacrificial torna-se capaz de recobrar sua memória – contando a
Odisseu sobre os acontecimentos que se deram em seu palácio em sua ausência –, mas ainda
assim tendo sua parte física debilitada, o que é corroborado ao visualizarmos mais uma tentativa
de contato com os mortos realizada por uma personagem homérica119:
Falou-me assim e, coração inquieto, quis
abraçar a psique de minha mãe sem vida.
Três vezes me lancei (instava o coração),
três vezes, feito sombra [σκιῆ] ou sonho [ὀνείρω], se evolou
de minhas mãos. A dor recrudescia dentro
em mim, e pronunciei alígeras palavras:
‘Mãe, minha mãe, por que rejeitas minhas mãos
que avançam, se desejo saciar de pranto
glacial a nós, aos dois, no enlace pelos ínferos?
Pérsefone sublime acaso envia um ícone [εἴδολων],
para aumentar-me a do que verto em pranto?’ E ouvi
de minha venerada mãe: ‘Ah, filho, meu
querido, vítima de moira tão amara,
filha de Zeus, Perséfone não te iludiu,
mas essa é a lei dos homens, quando os toma Tânatos:
nervos [μένος] não mais retém a ossatura e a carne,
mas a voracidade flâmea os aniquila,
brilhando, assim que a vida [θυμός] deixa os ossos brancos,
e, feito sonho, a ânima [ψυχὴ], volátil, voa.
(HOMERO. Odisseia, XI, vv.204-222 – grifos nossos)120.
Assim sendo, essas cabeças privadas de nóos e ménos (VERNANT, 1989, p. 24), da
“memória das coisas” (HOMERO. Ilíada, XXII, v.387-390) e da inteligência (HOMERO.
Odisseia, XI, vv. 475-6), ainda que sombras, imagens etéreas, não são completamente nulas,
“têm seu próprio ser e até (como mostra a Nekuya da Odisseia de uma forma muito comovente)
podem despertar por um instante – só, porém, para a fala e a consciência, de modo algum para
ação. Pois seu ser é o ser do que foi” (OTTO, 2006, p.83).
Contudo, além dos casos em que as psykhaí recobram sua memória ao entrarem em
contato com o sangue, igualmente verificamos nas obras homéricas casos em que diferenças
hierárquicas entre essas almas podem ser demonstradas. Minos, por exemplo, exerce uma
posição de poder dentro do submundo, julgando sentenças aos mortos (HOMERO. Odisseia,
119
Também no Canto XI da Odisseia vemos que a psykhé de Agamêmnon deseja entrar em contato com o herói,
mas não o consegue: “Queria tocar-me. Faltava-lhe tutano nos ossos. / Tinha perdido a força. E era forte quando
vivo. Os/ braços lhe obedeciam destros. Vê-lo causava pena” (HOMERO. Odisseia, XI, vv. 392-394).
120
Tradução de Trajano Vieira.
96
XI, vv. 568-571), fato que pode ser relacionado a sua posição em vida, já que era o rei de Creta,
considerado o “de projetos tenebrosos” (HOMERO. Odisseia, XI, v.322).
Ainda assim, a passagem mais emblemática a respeito disso refere-se ao diálogo que
Odisseu realiza no Hades com seu antigo companheiro em armas, Aquiles. O herói multimétis
ao indagar ao Pélida se ele não estaria satisfeito por ser um rei entre os mortos (HOMERO.
Odisseia, XI, vv. 482-490), leva-nos a esta contradição: como uma alma sem consciência, sem
ação, poderia exercer um papel de comando dentro de um universo no qual as psykhaí são
descritas como meras sombras?
Mesmo que esse debate seja motivo de múltiplas interpretações, Sourvinou-Inwood
considera que uma possível resposta a isso seria o fato de que a presença de certas pessoas com
faculdades mentais no Hades não fosse incomum para a audiência de Homero e por isso, esse
fato não seria visto como algo contraditório: “[...] os épicos homéricos são articulados e
articulam dois tipos muito diferentes de crenças em relação à natureza das almas no Hades, que
pertenciam a diferentes sistemas escatológicos” (SOURVINOU-INDWOOD, 1985, p. 92).
Ademais, ainda neste diálogo, somos levados a refletir acerca da redefinição de kléos
que a Odisseia busca enfatizar, isto é, o alcance da glória que não na morte em batalha (DOVA,
2012, edição Kindle, posição 51). Aquiles, ao ser interpelado por Odisseu por ser um homem
“sortudo”, visto que, como citado, encontra-se “como rei” no submundo, recebe dele a seguinte
resposta:
‘Não tentes embelezar a morte na minha presença, meu
atilado Odisseu. Preferiria como cabra de eito trabalhar
para outro, um pobretão, a ser rei desse povo de mortos
(HOMERO. Odisseia, XI, vv. 482-490).
Preferindo trocar sua kléos pelo nóstos de Odisseu, alguns autores, como Pierre VidalNaquet e Teodoro Rennó Assunção121, sustentam a partir desses versos que o poema do retorno
à Ítaca pode ser visto como uma “imitação irônica” da Ilíada, já que Aquiles põe o ideal de bela
morte em dúvida, sendo a Odisseia capaz de ensinar “magnificamente, a arte da sobrevivência”
(VIDAL-NAQUET, 2002, p. 117).
Ainda assim, em nossa interpretação, Aquiles não estaria afirmando que preferia ter
feito a escolha de permanecer vivo ao ter sua morte gloriosa ou que a morrer belamente em
121
Assunção se dedica em um de seus trabalhos a discutir sobre esse diálogo, questionando a visão de Vernant
sobre bela morte. O autor se utiliza da fala de Aquiles para ir de encontro com esse ideal proposto por Vernant
(ASSUNÇÃO, 2003).
97
campo de batalha seria uma atitude desvalorizada, e sim está exclamando seu amor à vida. A
viagem de Odisseu, que assinala a morte e demarca a tensão entre Memória e Esquecimento, é
capaz de nos revelar que nenhum herói acredita que é bom morrer e sim que esse é seu fado e
isso, por vezes, faz-se necessário para permanecer na memória coletiva. Desse modo, já morto,
não é mais isso que o importa, visto que, como nos recorda Griffin, “O herói homérico está
ansioso pela glória, e enfrenta os horrores completos da morte. Mas como não há recompensa
póstuma para o homem corajoso no outro mundo, então a consolação da glória é indiferente
para ele” (1980, p.102).
O kléos, tão almejado pelos heróis, não se encontraria, assim, no mundo dos mortos,
mas sim em vida, na boca e na memória daqueles que permaneceram122. Desse modo, como já
discutido em nossa dissertação, “falar dos mortos, os recordar, os cantar, os evocar nos
discursos e celebrações, é uma ação dos vivos. No limiar, do outro lado, uma face de terror: o
indizível” (VERNANT, 1982, p. 115).
Assim sendo, a alma ou as almas homéricas, representavam tanto uma mitologia
relacionada às crenças em uma vida após a morte quanto uma tentativa de se compreender o
homem nas relações com seu interior, questão que Eurípides, apontado muitas vezes como
racionalista, trará com mais constância em suas obras. Como nos remete Snell, “quanto mais
distanciarmos em Homero os significados das palavras dos da época clássica, tanto mais se
tornará perceptível a diferença entre as diversas épocas e melhor entenderemos o
desenvolvimento espiritual dos gregos e as suas realizações” (1992, p.19).
Desse modo, diferentemente do Período Arcaico, no qual o conhecimento é sobretudo
visto sob a configuração de uma instituição mítica ou poética, como citado, na Atenas do
Período Clássico é a primeira vez que “começamos a encontrar a ideia de que o cidadão pode
determinar seu caminho de ação próprio e independente” (BREMMER, 1993, p.68), sendo
Eurípides aquele que mais se esforça por apreender o que constituía a essência dos indivíduos
e de suas ações: “o espiritual, a ideia, o motivo da ação” (SNELL, 1992, p.156).
Destarte, em diversos momentos, ao longo das obras euripidianas, as personagens tecem
comentários acerca da natureza humana. O tragediógrafo, contemporâneo dos primeiros
122
Agamêmnon, já morto, também ressalta a glória de Aquiles por ter morrido jovem em batalha, morte da qual
ele não pode desfrutar, pois sua mulher lhe tramara uma armadilha quando chegara a casa: “Contigo não morreu
teu nome, Aquiles. Tua glória/ nunca deixará de brilhar entre os homens. Mas a/ mim, vitorioso na guerra, que
alegria me resta? / Estava nos planos de Zeus dar-me morte inglória. / Ao regressar, me mataram Egisto e minha
mulher” (HOMERO. Odisseia, XXIV, vv. 93-97).
98
sofistas a atuarem em Atenas123, refletiu em suas peças muito das novas ideias, dos novos
problemas existentes em sua pólis (ROMILLY, 1995, p. 174-5)124, representando um teatro
mais flexível, e aberto aos debates, às análises psicológicas e ao autoconhecimento.
Influenciado por uma nova arte poética e retórica, o imaginário mítico que aparece em
suas peças começa a moldar-se sobre um novo padrão, voltado para o lógos, para o despontar
da razão na sociedade grega. Segundo Dodds, “a julgar apenas pelas peças conservadas, a
preocupação central de Eurípides, em sua fase final, não era tanto a impotência da razão quanto
uma dúvida ainda maior sobre se poderíamos enfim vislumbrar algum propósito racional na
ordenação da vida humana e no governo do mundo” (2002, p.189).
Ainda assim, as considerações intelectuais nas obras de Eurípides são, como ressalta
Romilly, em certos momentos, demasiadamente mal conectadas à situação dramática (1995,
p.174). Analisando o contexto de produção de suas tragédias, verificamos que “o vocabulário
psicológico do homem comum se encontrava no século V a.C. em situação de grande confusão”
(DODDS, 2002, p.142) e as mudanças de acepção que o termo psykhé sofre são sinais dessas
transformações que ocorriam no Período Clássico e davam voz a uma nova maneira de ver o
universo e aqueles que nele estavam, ainda que não muito bem estabelecida.
Comparando ao sentido que vimos sendo dado nas obras homéricas à palavra, podemos
verificar que no século de Eurípides psykhé passa a se conectar a uma acepção diferente: ela é
raramente relacionada ao fantasma do morto, privado de vida, de sensibilidade e de inteligência
(REALE, 2002, p. 14), tornando-se, sobretudo, um agente psicológico, capaz de sentir.
Das obras do tragediógrafo presentes em nosso corpus documental, é apenas Alceste –
peça que, assim como a Odisseia, denota em seus versos o contato com a alteridade dos seres
ligados à morte – que demonstra para nós casos do termo psykhé sendo utilizado como a alma
que se dirige ao Hades125. Todavia, nos poucos casos em que isso ocorre, o termo é geralmente
123
No pensamento ético dos Sofistas, certa relatividade (no que diz respeito ao homem individual e suas
circunstâncias individuais) tenderam a substituir os valores ancestrais absolutos (CONACHER, 2003, p. 9).
124
Para Dodds, é certo que Eurípides igualmente entrou em contato com os estudos filosóficos de Xenófanes e
Heráclito, expoentes da Antiguidade que deram novos olhares a cosmologia e cosmogonia do mundo grego e
também sobre a alma, apresentando-a como um agente mental (2002, p.185).
125
Ainda assim, as menções sobre a ida para o Hades após a morte são recorrentes nas tragédias, mesmo que para
isso o termo psykhé não seja utilizado. Vemos que Polixena, por exemplo, junto de Hades põe seu corpo
[Ἅιδῃ προστιθεῖσ᾽ ἐμὸν δέμας] (EURÍPIDES. Hécuba, vv.367-8), sendo para lá degolada, “onde, entre mortos,
miserável” jazerá (EURÍPIDES. Hécuba, vv.205-210). Porém, diferentemente de Homero, para o qual seria
necessário o cumprimento das honras fúnebres e, especialmente, da cremação do corpo para que o morto adentrasse
nos domínios do Hades, em Eurípides este ato não aparece como pré-requisito (MIRTO, 2012, p.24), ainda que
fosse presumível que os falecidos só se sentissem completamente honrados e integrados a comunidade dos mortos
após os ritos finais, a sua parte de fogo. Polidoro, como aqui já analisado, ainda que vá pedir a sua mãe um funeral
digno, diz ter vindo do “antro dos mortos” e ter deixado suas “portas da escuridão” (EURÍPIDES. Hécuba, vv.1-
99
utilizado de forma composta e também conectando-se àqueles que se tornaram responsáveis
por guiar as almas para o submundo.
No vigésimo verso da tragédia, por exemplo, vemos que a alma da protagonista já está
a ponto de deixar seu corpo (ψυχορραγοῦσαν). Já mais à frente, quando Admeto lamenta a dor
e o luto por sua amada, reclamando por não ter junto a ela se jogado no túmulo, exclama que
com esse ato “Hades teria tido duas almas [ψυχὰς] mais fiéis em vez de uma, atravessando o
submundo juntas” (EURÍPIDES. Alceste, vv. 895-902).
O guia das almas, o ψυχοπομπὸς Caronte, personagem que analisaremos no subcapítulo
seguinte, também é mencionado na tragédia (EURÍPIDES. Alceste, vv. 357-362); unindo-se a
Héracles, que ao resgatar a protagonista do Hades, nos versos de anagnórise da tragédia, isto
é, na revelação e no reconhecimento de uma personagem, diz a Admeto – que ainda não havia
identificado sua esposa – que “seu hóspede [Héracles] não possui a função de trazer as almas
dos mortos [ψυχαγωγὸν]” (EURÍPIDES. Alceste, v.1128).
Ante as poucas referências ao termo psykhé como o elemento que sobreviveria a morte,
vemos que as palavras que Eurípides mais se utiliza em suas tragédias para representar o homem
após a vida ter seu fim, ainda que diminutamente, são εἴδωλον, aqui já explicada, e φάντασμα,
termo que significa aparição, visão ou espectro (BAILLY, 2000, p.2053) e que possui nítida
correlação, em termos etimológicos, ao vocábulo φαντασία, ainda que ofereça um par antitético
a ele, já que o φαντασμα parece ser algo passivo, aquilo que se vê, enquanto φαντασία
desempenha uma situação ativa, designando uma ação, o ato de se mostrar, de fazer-se visível.
Como já notabilizado nesta dissertação, é o eídolon de Polidoro, filho de Hécuba, que a
visita, dizendo que “para obter, infeliz, um funeral”, aparecerá “diante dos pés de uma escrava
na rebentação” (EURÍPIDES. Hécuba, vv.47-8). Anunciando em sua própria fala que sua mãe
teme seu phantásma [φάντασμα δειμαίνουσ᾽ ἐμόν] (EURÍPIDES. Hécuba, v.54), vê em resposta
ao seu aparecimento uma indagação de certo modo receosa feita por Hécuba, que pergunta por
que de noite é “erguida assim por temores, aparições [φάσμασιν]?” (EURÍPIDES. Hécuba, vv.
69-70).
Do mesmo modo, ainda na peça supracitada, e como aqui já mencionado, vemos “sobre
os altos cumes do túmulo o fantasma de Aquiles (φάντασμ᾽ Ἀχιλέως), pedir como honraria “uma
3); e Alceste já tem visões do mundo dos mortos antes de receber seus ritos fúnebres (EURÍPIDES. Alceste, vv.
252-7).
100
das troianas mui sofredoras” (EURÍPIDES. Hécuba, vv.94-8)126, resultando no debatido
sacrifício de Polixena.
Todavia, ainda que seja apenas em Hécuba visualizada a existência do contato com esses
fantasmas, está presente nos versos euripidianos uma novidade que não podemos encontrar em
Homero: as repetidas passagens em que as personagens dizem que se encontram após a vida
com seus entes queridos já falecidos, levando-nos a considerar uma possibilidade de ação após
a morte e mudanças na escatologia visualizada em Homero127, dando certos traços de esperança
em um mundo no qual a inconsciência fazia-se seu marco.
Em Troianas, por exemplo, as palavras de Cassandra nos demonstram que seus “irmãos
debaixo da terra” e seu pai logo a receberiam, juntando-se “aos extintos, exitosa” (EURÍPIDES.
Troianas, vv.459-460); Na mesma peça, Hécuba, ao cuidar das feridas de seu neto falecido, diz
que dos outros ferimentos, “entre os mortos, cuidará teu pai [Heitor]” (vv.1231-3) e na peça
com seu nome intitulada é questionada por Políxena sobre o que dirá a seu filho Heitor e a seu
esposo quando chegasse ao Hades após seu sacrifício (EURÍPIDES. Hécuba, v.422); Em
Alceste, do mesmo modo, Admeto solicita à amada que ela, quando lá chegasse, o esperasse,
preparando um lar onde eles pudessem morar (EURÍPIDES. Alceste, vv.362-4)128.
Voltando-nos as outras acepções dadas ao termo psykhé nas obras trágicas, observamos
que o sentido ao qual ele é mormente relacionado é o de vida, mas não apenas aquela que está
perto de seu fim129, como o era em Homero, mas a que é prezada, φιλοψυχήσομεν (EURÍPIDES.
Hécuba, vv.315-6 e 346-8), sentida com amor, φιλοψυχειν (EURÍPIDES. Ifigênia em Áulis,
v.1385)
126
Tanto na épica homérica como nos textos trágicos, quando a psykhé ou o phantásma de um morto se manifesta
para um vivo, seu objetivo, quase sempre, é o de reivindicar seu géras.
127
Garland ressalta a respeito dessa temática, evidenciando-nos que a crença em uma reunião familiar no Hades
após o fim da vida era muito popular entre os gregos (1985, p.66).
128
Do mesmo modo, vemos em suas tragédias personagens se dirigindo aos locais de sepultamento de seus entes
queridos a fim de fazerem pedidos em relação às suas vidas, como se os mortos fossem capazes de agir no universo
terreno, exercendo uma justiça que exprimiria um poder antes somente ligado aos deuses, verificando-se que “a
díke [justiça] dos mortos opõe-se a díke celeste” (NAQUET; VERNANT, 2008, p.18). Quando Políxena é
sacrificada ao phantásma de Aquiles, por exemplo, vemos que seu filho pede seu auxílio: “‘Ó filho de Peleu, nosso
pai, /recebe de mim estas libações propiciadoras, /invocadoras dos mortos: vem, para beberes o negro/Sangue puro
da jovem, com a qual te presenteamos, /o exército e eu; sê benévolo para conosco, /solta as opas e as amarras de
ancoragem/dos navios e concede-nos que de Ílion benévolo/retorno todos alcancemos, voltara para a pátria’”
(EURÍPIDES. Hécuba, vv.534-541). Em Troianas, igualmente vemos essa invocação: o Coro “Com ululo chamas
os mortos” e a semelhança de Hécuba, que se põe no chão e ressoa “a terra com duplas mãos” o joelho põe em
terra, “chamando das profundas os meus afligidos maridos” (EURÍPIDES. Troianas, vv.1304-9).
129
O termo psykhé não deixar de se relacionar à privação de vida: Polixena morre junto ao túmulo de Aquiles,
dom ao morto sem vida [ἀψύχω] (EURÍPIDES. Troianas, vv.622-3); Heitor igualmente tem sua vida [ψυχὴν]
perdida junto ao fim de Troia (EURÍPIDES. Hécuba, vv.21-2); E Andrômaca e Hécuba veem-se privadas
injustamente da alma [ψυχὴν]de Astiánax (EURÍPIDES. Troianas, vv.790-2).
101
Vemos em Alceste, por exemplo, a protagonista exclamar que “nada é tão precioso
quanto a vida [ψυχῆς]” (EURÍPIDES. Alceste, v.301), ainda que tenha morrido para salvar a de
seu marido (EURÍPIDES. Alceste, v.620). Em Troianas, Helena, preocupada com o que
ocorrerá com seu futuro, questiona quais serão as atitudes tomadas pelos helenos e Menelau
acerca de sua vida [ψυχῆς πέρι]? (EURÍPIDES. Troianas, vv.897-900). Na tragédia Hécuba, a
rainha exclama pela vida (ψυχᾶς) de Políxena (EURÍPIDES. Hécuba, v.182) e em Ifigênia, a
princesa indaga se sua vida [ψυχὴ] deveria ficar à frente das necessidades da Hélade
(EURÍPIDES. Ifigênia em Áulis, v.1390).
Outrossim, como citado, no século de Eurípides (V a.C.), a psykhé ganha uma nova
característica: transforma-se no núcleo dos sentimentos, sendo portadora de qualidades e
defeitos, ainda que não possua nenhum sentido de puritanismo, nem sequer um status
metafísico, visto que a alma não era uma prisioneira do corpo, mas aquilo que lhe dava vigor
(DODDS, 2002, p.143). A psykhé pode, assim, ser vista como um eu vivo, assumindo funções
do thymós homérico, que sente, mas não do nóos, que pensa130:
“o ‘eu’ designado pela palavra psyché é normalmente mais emocional do que
racional. Fala-se dela como da sede da coragem, da paixão, da piedade, da
ansiedade, do apetite animal. Mas antes de Platão, raramente, ou quase nunca,
ela é citada como sede da razão – sua extensão sendo tão ampla quanto a do
thumos homérico (DODDS, 2002, p.142)
Dentre os exemplos encontrados nas obras euripidianas vemos que Políxena é adjetivada
por seu sacrifício como “corajosa ao extremo e de excelsa alma [ψυχήν τ΄ἀριστη]”
(EURÍPIDES. Hécuba, vv.579-580); assim como Ifigênia é admirada “diante de sua grandeza
imensa de alma [εὐψυχίαν] e altivez” (EURÍPIDES. Ifigênia em Áulis, vv. 1560-2). Hécuba,
em Troianas, igualmente diz que “n’alma [ψυχάν]” “veio abalada pelo horror” (EURÍPIDES.
Troianas, vv.182-3) e Admeto, após a morte de sua esposa deseja aliviar o peso de sua alma
[βάρος ψυχῆς ἀπαντλοίην] (EURÍPIDES. Alceste, vv.353-4).
130
Analisando os demais termos que relacionamos a alma do ego em Homero, como thymós, nóos e phrén, vemos
que eles não deixam de existir no universo trágico, unindo-se à psykhé como agentes vivificadores e sede dos
sentimentos: Hécuba “entende e, na fúria do teu espírito (φρενός), não consideres inimigo quem fala bem”
(EURÍPIDES. Hécuba, vv.299-300); “O coração (θυμῷ) do trácio ferve, incombatível” (EURÍPIDES. Hécuba,
vv.1054-5); Páris, “mais notável em beleza”, olha Cípris [Afrodite] com seu espírito [νοῦς]” (EURÍPIDES.
Troianas, vv.987-8); Admeto diz a Alceste que ela lhe “tocou” o coração [φρενῶν], lhe “tocou” a alma [ψυχῆς]”
(EURÍPIDES. Alceste, v.108) e Aquiles tem seu coração [θυμὸς] orgulhoso agitado (EURÍPIDES. Ifigênia em
Áulis, v.919).
102
Dessa forma, segundo Thomas Robinson, “agora o termo psyché parece ter adquirido
nova vida, como uma espécie de agente racional e emocional, ao mesmo tempo que ainda
mantém seu sentido básico de força vital ou vivificadora” (2010, p.20), evidenciando como
dentre Homero e Eurípides – ainda que vejamos certas aproximações ao nível do psíquico e das
crenças em uma vida após a morte – os sentidos atribuídos às palavras podem se modificar de
acordo com o contexto social e cultural. Ainda assim, se o termo psykhé sofreu mudanças em
sua acepção ao longo dos anos, podemos observar o mesmo para as representações do mundo
dos mortos comparando-se a literatura épica e trágica?
3.2| O mundo dos mortos entre o épico e o trágico
Estudar a vida após a morte é analisar aquilo que não pode ser visto, que está presente
apenas no imaginário das sociedades e nas representações sociais por elas desenvolvidas. Entre
os gregos antigos não havia, como ressalta Zaidman, “um modo canônico de representação do
além, mesmo que haja coerência e constância” (2010, p.140), fato que resulta em múltiplas
abordagens e interpretações acerca de como seria pensado na sociedade helênica o mundo para
qual seus mortos, suas psykhaí, destinar-se-iam.
Não obstante, analisando nosso corpus documental, propomos aqui evidenciar,
especialmente com o uso da História Comparada, que mesmo aquelas obras que distanciam-se
em três séculos – a despeito das peculiaridades e diferenças que tragam entre si no que compete
a esse destino post mortem – possuem muitas similaridades, expressando que fazem parte de
um processo discursivo calcado naquilo que sua comunidade acreditava, nos mitos por ela
desenvolvidos.
Verificamos, assim, certa constância no que diz respeito ao local por excelência para a
ida dos mortos. Ao Hades, como aqui já citado, grande parte dos mortais estaria destinado,
independente das ações que cometessem em vida, independente se fossem heróis ou
semideuses131.
Distante das crenças conectadas ao mundo cristão, no qual verifica-se uma dinâmica de
punição ou recompensa após a morte, na sociedade grega antiga o bem ou mal portar-se em
vida seriam apenas motivo de reprovação ou elogio aos olhos dos outros e de si mesmo, o que
fazia com o que os heróis descritos nas epopeias e tragédias buscassem realizar ações dignas de
Em seu Trabalhos e dias - obra na qual Hesíodo descreve as raças da humanidade – o poeta destaca que a raça
de bronze – a qual os mortais pertenciam – foi a primeira a adentrar ao espaço do Hades (vv.152-5)
131
103
serem rememoradas. Após a morte, não haveria recompensas por mérito pessoal ou qualidades
éticas, nem punição por ter agido de forma imprudente com outros mortais. Os únicos que
sofreriam castigos seriam aqueles que ofenderam aos deuses132.
Ainda assim, entre Homero e Eurípides, mesmo que encontremos mais similaridades
que distanciamentos, salta aos olhos a evidente predominância de características dadas a esse
mundo dos mortos nas epopeias, visto que, como aqui já citado, é o aedo que mais traz em suas
obras o universo dos mýthoi, sendo “capaz de descrever um mundo remoto e imaginário, que
contém a memória de tudo o que foi, não menos real e verdadeiro, portanto, do que a realidade
concreta” (KRAUSZ, 2007, p.23).
Nas tragédias, ainda que esse mundo seja frequentemente evocado, ele é raramente
descrito. Acreditamos que ao “mais trágico dos trágicos”, interessado sobretudo nas questões
políticas que sua peça poderia suscitar, era pouco relevante uma descrição sobre o além-vida,
ainda que sua peça Alceste, como citado, apresente-nos novos componentes da mitologia que
cerceava sua época.
Hades é reconhecido na experiência religiosa grega tanto como um deus quanto um
local, sendo que para ambos poucas informações nos foram deixadas acerca de suas
características. Como potência divina, nos é relatado através da Ilíada seu papel de rei dos
mortos, tendo adquirido este governo após seu pai, Cronos, ter sido destronado, cabendo aos
seus três filhos, Hades, Zeus e Poseidon, uma esfera de poder no universo (HOMERO. Ilíada,
XV, vv.187-193).
Separado de todos os deuses (EURÍPIDES. Hécuba, vv.1-2), o deus do submundo teria
apenas como companhia a sua “tenebrosa” (epaine) esposa Perséfone (HOMERO. Ilíada, IX,
v. 457/HOMERO. Odisseia, X, vv.491,534,564), sendo junto a ela responsável por reinar sobre
as almas dos falecidos, recebendo até mesmo o título de Zeus ctônico (HOMERO. Ilíada, IX,
457), ainda que não ostentasse uma posição de juiz ou guia para os mortos.
Sua etimologia, apesar de ser discutida e não ter uma definição clara, é apontada por
alguns autores (MIRTO, 2012/BREMMER/1993) como derivada do termo Ἀῐδηλος, que pode
significar odioso, destrutivo, obscuro e invisível (CHANTRAINE, 1968, p.31). Sua
personalidade, ao contrário dos outros deuses presentes nas obras épicas e trágicas, é
132
Odisseu, em sua katábasis, vê no Hades Tício, Tântalo e Sísifo, três mortais castigados de acordo com seus
crimes em vida, que insultaram de alguma forma os deuses, sendo as punições que recebem uma maneira de
demonstrar que há limites nas ações entre os homens e as potências divinas (HOMERO. Odisseia. XI, vv. 576600).
104
minimamente descrita133. Grande parte dos adjetivos conectados tanto à potência divina quanto
ao local são de caráter negativo e encontra-se sobretudo nas epopeias homéricas. “Monstruoso”
(HOMERO. Ilíada, V, v. 398), “implacável e duro” (HOMERO. Ilíada, IX, vv. 158), “rei dos
vastos domínios subtérreos”, “o deus mais odiado por todos os homens terrenos” (HOMERO.
Ilíada, IX, v.159) são as características dadas a Hades nos versos de Homero134.
Dentre as tragédias por nós analisadas, somente Alceste nos traz informações a respeito
do deus, que novamente carrega junto ao seu nome conotações negativas135. Na peça, que possui
como trama a morte da protagonista e sua ida ao mundo dos mortos, a esposa de Admeto, perto
de encontrar seu fim, tem visões do “mortal Hades” (EURÍPIDES. Alceste, v.25), que ganha o
adjetivo “alado” (EURÍPIDES. Alceste, v.261) e mantém seu caráter “furioso debaixo de suas
sobrancelhas escuras” (EURÍPIDES. Alceste, v.261-2), causando medo na rainha
(EURÍPIDES. Alceste, vv.268-9).
Assim como o rei dos mortos, ao domínio pelo qual era responsável conectava-se
características negativas, seja nos versos épicos ou trágicos136. A Ilíada o descreve como um
espaço úmido, fosco, lúgubre e “odioso mesmo aos numes” (HOMERO. Ilíada, XX, vv. 64-5).
A Odisseia o demonstra como um “lugar desaprazível” (HOMERO. Odisseia, XI, v.94),
“execrável” (HOMERO. Odisseia, XIV, v.156). Hécuba revela-o como “funesto”
(EURÍPIDES. Hécuba, v.1032) e Alceste como “sombrio” (EURÍPIDES. Alceste, v.125). Desse
modo, o local não era visto com bons olhos pelas personagens, especialmente na epopeia.
Contudo, os adjetivos que mais se relacionam ao domínio do Hades são relativos a sua
localização subterrânea e a sua escuridão. Como nos é esclarecido por Catherine Cousin, as
preposições υπό e κατά, empregadas em relação ao Hades, implicam um movimento para baixo
133
Entre as divindades, Hades nunca recebeu um espaço sagrado, sendo um deus sem culto (GARLAND, 1985,
p.53/VERNANT, 2006, p.53).
134
Outras duas menções feitas acerca de Hades são o de “célebres cavalos” (HOMERO. Ilíada, XI, vv.441-446),
“corcéis célebres” (HOMERO. Ilíada, XVI, v.623-626).
135
No Período Clássico, Hades assume um nome alternativo: Pluto, conectado com ploutos, riqueza. Segundo
Mirto, a nova denominação que o deus assume é “reflexo de seus papéis mais benevolentes como guardião das
riquezas escondidas no seio da Terra e como soberano de crescimento e prosperidade” (2012, p.22).
136
No livro III de sua República, Platão faz uma crítica veemente, destinada a Homero, à negatividade conferida
ao mundo dos mortos em suas epopeias. Como apontado por Stamatia Dova, “tendo o treinamento moral dos
futuros guerreiros da pólis em mente, Sócrates e Adeimantus leram passagens da Ilíada e da Odisseia de uma
maneira estritamente didática e, inevitavelmente, perceberam-nas como inadequadas. Suas maiores preocupações
referem-se a que os futuros cidadãos da Cidade-Estado possam temer a morte mais do que a perda da liberdade
por causa das descrições intimidadoras do submundo encontradas na poesia épica (DOVA, 2012, edição Kindle,
posição 3746). Os mitos de Hades, de acordo com Sócrates, não trariam nada de benéfico à pólis e aos seus heróis,
visto que estes não poderiam ter coragem sendo atormentados pelo medo da morte (PLATÃO. República, III,
386b). Ainda assim, em Homero, acreditamos que o fato do Hades ser representado como um espaço detestável
faz o herói ver em seus atos em vida, ou até mesmo em uma bela morte, a única maneira de sobreviver: na memória
de seu povo.
105
ou a posição “sob” (COUSIN, 2002, p.25-6), sendo por diversas vezes denotado nas epopeias
e tragédia acerca daqueles que descem à mansão do Hades137.
Ademais, o contraste entre luz e trevas, que caracteriza tanto essa posição inferior
quanto a citada escuridão, exemplifica a antítese entre morte e vida (DOVA, 2012, edição
Kindle, localização 1284), sendo recorrente em nosso corpus documental passagens em que as
personagens ao encontrarem seu fim destacam que não mais verão a luz do sol e que têm suas
vistas eclipsadas.
Em um episódio da Odisseia, por exemplo, na qual os companheiros do protagonista
matam as vacas sagradas de Hélio, é possível ver a revolta do deus, que diz a Zeus que “se eles
não forem punidos com sentença exemplar”, mergulhará no Hades, passando a iluminar os
mortos’” (HOMERO. Odisseia, XII, vv. 382-383). Do mesmo modo, vemos Penélope
perguntar a deusa Athená se Odisseu ainda vive se “o sol ainda lhe/ ilumina ou a fatalidade o
levou para o reino/ de Hades? (HOMERO. Odisseia, IV, vv. 833-835) e Políxena dizer a que
“agora, pela última vez, /os raios e o círculo do sol vislumbrarei” (Eurípides. Hécuba vv.4114), assim como a serva de Alceste, que lamenta por sua rainha ter desejado mais uma vez olhar
para a luz do sol (EURÍPIDES. Alceste, vv.205-8).
No que compete à sua localização e topografia, é apenas Homero que nos traz
informações acerca dela, todavia unicamente na Odisseia138, quando recebe de Circe, após anos
presos em sua ilha, a notícia de que terá de adentrar o domínio dos mortos antes de conseguir
atingir sua distante Ítaca, como aqui já citado.
As dificuldades de acesso pelas quais o protagonista passa ao chegar ao Hades139 - local
atingido apenas por indivíduos excepcionais – evidencia, em primeiro lugar, como “sua
habilidade como navegador é inigualável e sua itinerância não possui limites, já que consegue
extrapolar os limites impostos pela própria condição humana. Em segundo lugar, demonstra
que o herói da Odisseia consegue sobreviver à própria morte” (MORAES, 2012, p. 95). Desse
modo, ainda que assustado, chorando, já desejoso por sua morte, Odisseu pergunta quem será
137
Em Homero: Ilíada, III, vv.320-4/ VI, v.284/ XI, vv.55-56/ XI, vv.264-265/XIV, vv.456-457/ XX, v.294/ XXII,
v.425; Odisseia, XI, vv. 277-280/ XXIII, vv. 251-253 e vv. 321-326/XIV, vv. 203-204). Em Eurípides: Hécuba,
vv.205-210 e vv.411-4/ Troianas, v.952/ Alceste, v.73 e 379.
138
Como ressaltado por Garland, após Homero, a primeira vez em que vemos uma descrição acerca da topografia
do Hades é em As rãs, de Aristófanes, (GARLAND, 1985, p. 49).
139
Sua viagem ao submundo, que o garante o título de δισθανέες, “bimortal”, (HOMERO. Odisseia, XII, v.22) é
façanha de tamanha coragem que até sua própria mãe, na já citada nekyia, espanta-se com a bravura de seu filho:
“Como vieste, filho, a este lugar tenebroso sem que/ a vida te tenha deixado? Aos vivos não é fácil ver/ o que vês.
Há rios caudalosos e correntes perigosas/ a transpor. A começar pelo Oceano. Quem ousaria/ atravessá-lo a pé?
Só com nau poderosa (HOMERO. Odisseia, XI, vv. 155-159).
106
seu guia, já que “jamais/alguém desceu ao Hades num baixel escuro’” (HOMERO. Odisseia,
X, vv.500-2), ao que obtém como resposta da deusa:
‘Divino
Odisseu, filho de Laerte, multiastuto,
não te preocupes que te falte um guia às naus;
depois de içar o mastro e de enfunar as velas
brancas, senta, pois Bóreas sopra e leva a nave.
Mas quando a bordo dela cruzes o mar cinza [Oceano],
Verás a encosta baixa e o bosque de Perséfone;
desfrutecidos, os salgueiros, e altos choupos:
aproa a nave ali, no oceano vorticoso,
e te dirige à casa embolorada de Hades!
Deságuam no Aqueronte o Piriglegetonte
e o Cocito, que sai do Estige; há um penedo
onde, ecoando, os rios confluem.
(HOMERO. Odisseia, X, vv. 503-515).
Apesar de diversas passagens demonstrem a localização subterrânea do Hades, os versos
acima evidenciam que ele igualmente poderia ser atingido por mar, indo-se para o Oeste e
cruzando o Oceano, que marca o limite entre o mundo real e o mítico, imaginário (COUSIN,
2002, p.29). Lá encontrar-se-ia, além dos bosques de Perséfone, diversos rios, que segundo
Souvirnou-Inwood possuíam características variadas (1995, p.61). Aqueronte, por exemplo,
seria filho de Gaia e teria sido castigado a permanecer no submundo por um erro durante a
Gigantomaquia, ao ajudar os gigantes, estando seu nome relacionado à dor (GRIMAL, 2008,
p. 70); Piriflegetonte teria suas águas conectadas às chamas; Cocito seria o rio dos lamentos140;
Lethé relacionava-se à falta de memória que caracterizava as almas que se encontravam no
Hades (VELASCO, 2004, p.122) e Estige seria filho de Nix, a noite, caracteriza-se na Ilíada
como o “rio da jura terrível” (HOMERO. Ilíada, II, v. 755), pois os deuses deveriam jurar pelas
suas águas ao fazer um voto e, caso o quebrassem, sofreriam uma espécie de morte temporária,
semelhante a dos homens, como nos explica Vernant:
Esta água primordial (húdor ogúgion) leva às divindades culpadas de perjúrio
algo que corresponde à morte, para os Imortais livres dela: um kôma
temporário que as envolve durante um longo ano, privadas de respiração e de
voz, exatamente como a morte mergulha para sempre na noite a cabeça dos
homens (VERNANT, 1988, p. 67).
140
Este rio é mencionado em Alceste quando Admeto diz desejar ser ele mesmo o guia da alma de sua esposa,
atravessando suas águas (EURÍPIDES. Alceste, vv. 457-8)
107
A presença de portões que cercavam este local é igualmente descrita nas obras
homéricas como outra característica dada ao Hades (HOMERO. Ilíada, V, 646/ VIII, 367/ XIII,
415 / XXIII, 71; HOMERO. Odisseia, XI, 277 e 571/ XIV, 156), sendo símbolo de um lugar
de acesso controlado. Na epopeia, são as próprias almas que lá já se encontram que servem
como uma espécie de guardiães desses portões, como vimos ocorrer com Pátroclo ao tentar
entrar no submundo sem as honras fúnebres. Nas tragédias, ainda que apenas em Alceste,
Caronte e Cérbero aparecem com essa função141, como veremos.
Ainda assim, Homero, na Odisseia, descreve-nos um segundo caminho para se chegar
ao Hades, que não o realizado por uma pessoa em vida, assim como diferenças nessa topografia.
O Canto XXIV, que nos descreve acerca dessa transição, congrega em seus versos a ida dos
pretendentes de Penélope, já mortos, ao submundo, assim como diálogos entre as almas que lá
se encontram, sendo considerado como a segunda nékyia.
Todavia, devemos ressaltar, é quase unânime entre os homeristas que esse Canto seja
uma interpolação tardia à obra – rondando o final do século VII a.C. e a primeira metade do VI
a.C –, posição corroborada por uma série de características linguísticas, estilísticas e de
composição que se diferem do restante da epopeia142.
Essa dessemelhança pode ser vista, inclusive, ao compararmos a jornada e paisagem do
mundo dos mortos do Canto XI com XXIV: neste o caminho feito pelas almas era por terra,
encontrando-se não apenas com a corrente do Oceano, mas também com elementos não antes
mencionado como a “Rocha de Leucas”, “as portas de Hélio” e a “cidade dos sonhos”
(HOMERO. Odisseia, vv.01-12). Ainda mais, no Canto XXIV, os pretendentes de Penélope
entram no Hades sem terem sido cremados, o que realça mais ainda o fato de sua posterior
adição, visto que, como nos foi demonstrado pela psykhé de Pátroclo, em Homero o homem só
conseguiria passar pelos portões do mundo dos mortos após ter sua “parte de fogo”, suas
devidas honras funerárias (VERNANT, 1978, p. 58-59).
141
O cão de Hades, Cérbero, é somente referido em Homero na missão que foi dada a Héracles de capturá-lo
(HOMERO. Odisseia, XI, 621-5), não sendo sobre ele mencionado sua função de permitir a entrada de mortos e
impedir a saída de vivos, como já podemos encontrar em Hesíodo (Teogonia, vv.767-773) e em Alceste (v.360).
142
Como apontado por Sourvinou-Inwood, o fato deste Canto ser narrado pelo compositor da obra, por exemplo,
é um elemento de estranhamento, visto que em outros Cantos da Odisseia nos quais o Hades é citado, quem o faz
é uma personagem. Outro fator também mencionado pela autora é o tratamento dos heróis em segunda pessoa, que
igualmente destoa do resto da obra. Sourvinou-Inwood cita, além disso, a hipótese da autora S. West, que relaciona
essa possível adição aos outros cantos da Odisseia à festa das Panatheneias, na qual objetivar-se-ia ajustar o poema
ao gosto dos ouvintes, que desejariam tê-lo com um enredo mais longo (1995, p. 102-3). Assim sendo, conforme
referido por Mirto, “na ausência de coerência na poesia arcaica, estabelecer uma cronologia precisa das evoluções
das crenças escatológicas é um desafio” (2012, p.24).
108
Outrossim, o fator que mais nos chama atenção para esse Canto e sua possível adição a
posteriori diz respeito a presença de Hermes como psykhopómpos, isto é, guia dos mortos na
jornada para o Hades143. Isso porque, o desenvolvimento da crença no deus assumindo esta
função apenas pode ser visto - afora essa passagem homérica de duvidosa conexão ao resto do
poema144 - a partir do final do século VII a.C. e da primeira metade do VI a.C. (SOURVINOUINWOOD, 1985. p.104-5), denotando sua conexão à mobilidade espacial (MORAES, 2012, p.
90), mas também aos limites, sejam estes sociais ou cósmicos (VELASCO, 2006, p.17).
Ainda assim, nessa nova crença que se estabelece ao longo do Período Arcaico, não
seria Hermes quem transportaria as almas diretamente para o Hades145: como denota SourvinouInwood, ele as levaria do mundo superior para o inferior e as entregaria ao barqueiro Caronte
(SOURVINOU-INWOOD, 1995, p.306)146, personagem mítica igualmente caracterizada como
guia das almas e que só vem aparecer pela primeira vez no século V a.C. 147, em um poema
épico chamado Miníada – do qual hoje só obtemos seu fragmento – e em um vaso ático de
figuras vermelhas (SOURVINOU-INWOOD, 1985, p.303/ FLORENZANO, 1996, p. 74/
VELASCO, 1989, p. 299)148.
Descrito tanto na iconografia encontrada quanto nos poucos fragmentos literários que
sobre ele se dedicam, vemos sua aparência idosa e sua indumentária semelhante à dos
trabalhadores manuais atenienses, o que faz alguns autores relacionarem Caronte aos thétes da
pólis Clássica, como nos é ressaltado por Velasco:
143
Nas obras homéricas, a única outra menção referente a um Hermes que se conecte ao submundo se dá quando
o deus guia Héracles em sua missão de capturar o cão Cérbero, um de seus doze trabalhos (HOMERO. Odisseia,
XI, 625-6).
144
Nesta passagem, Hermes “faz despertar os que dormem” através de seu bastão de ouro (HOMERO. Odisseia,
XXIV, vv. 01-05), como citado, assumindo o papel da libação de sangue do Canto XI, visto que os mortos passam
a se comunicar no Hades.
145
Ainda mais, a figura de Thánatos igualmente aparece na peça Alceste – a maior descrição literária encontrada
sobre essa entidade – servindo como um agente violento na morte, que levaria a rainha para a casa de Hades, ainda
que não a atravessasse pelo Aqueronte (EURÍPIDES. Alceste, vv.24-6). O papel tenebroso que Thánatos assume
na tragédia contrapõe-se ao visto na epopeia, na qual é demonstrado, junto a seu irmão Hýpnos levando o corpo
de Sarpédon (HOMERO. Ilíada, XVI, vv.667-675). De acordo com Velasco, a violência da morte que a figura a
personificação da morte expressa em Alceste reflete o absurdo das circunstâncias da morte da protagonista
(VELASCO, 2006, p.32).
146
Segundo Velasco, a própria limitação de sua tarefa, que pode ser vista no momento do trânsito para o Hades ao
lá não adentrar, é característica da preeminência de Hermes não sobre os espaços estabelecidos, mas sim sobre os
espaços de transição (2006, p.17).
147
Como nos é ressaltado pela autora, existem diversas imagens iconográficas, especialmente nos lékythos de
fundo branco, pertencentes ao universo fúnebre, no qual vemos essa parceria entre Hermes e Caronte
(SOURVINOU-INWOOD, 1995, p.306).
148
Segundo Mirto, a segunda nekyia, vista no Canto XXIV da Odisseia, parece, assim, “ilustrar um estágio
intermediário entre o retrato que Homero faz sobre uma migração sem um ‘guia para as almas’ e aquele existente
no quinto século, quando a Hermes se une o barqueiro do submundo” (2012, p.24).
109
Não é difícil defender que nos encontramos diante de um mito popular, que
são os thetes atenienses os que dotam esse psicopompo de traços geralmente
benévolos e de aspecto parecido com um thes para tornar mais suportável o
transito da morte e configurar o acesso ao reino do Hades que nos poemas
homéricos não era contemplado. O gênio da morte barqueiro pertence, pois, a
um momento específico no qual os ‘populares atenienses vivem do mar e por
meio do mar conseguem fortalecer sua posição política e expressar formas de
cultura que previamente não tinham base iconográfica ou literária
(VELASCO, 1989, p.322).
Desse modo, ainda segundo Velasco, por se aproximar de uma das camadas populares
de Atenas, Caronte estaria dando um caráter democrático à morte, tal qual Atenas almejava:
Caronte surge no alvorecer do classicismo e cumpre uma nova função que dele
exigem os grupos sociais cuja cultura (popular) havia sido marginalizada dos
mecanismos de transmissão ideológica até neste momento encontrados nas
mãos dos grupos aristocráticos e que com a democracia e de modo breve
alcançaram a capacidade de expressão que os permite uma nova posição
econômica (que a fazem consumidores de vasos, ainda que de baixo preço) e
um novo papel na sociedade (que se expressa, por exemplo, no fato de serem
juízes em eventos teatrais). Os autores em busca de notoriedade têm de se
expressar, mesmo que apenas para conseguir arrancar alguma risada, algumas
características do imaginário popular; o ‘democrático’ Eurípides e o bufão
Aristófanes citam Caronte, algo que os trágicos anteriores, devedores ainda de
uma ideologia aristocrática, não haviam tido a necessidade de fazer
(VELASCO, 2006, p.31).
Sendo assim, destaca-se o papel de Caronte não apenas como um simples servidor de
traslado, mas como simbolicamente desejado, tal como Hermes, visto que tratariam um
conforto no momento da morte, um caráter benévolo, fazendo mais fácil a viagem para o Hades
(SOURVINOU-INWOOD, 1995, p.316/ VELASCO, 1989, p.46 e 49).
Em Alceste, a única peça por nós analisada em que Hermes e o barqueiro se fazem
presentes, não vemos a função de psykhopómpos sendo atribuída ao deus, mas apenas uma
evocação a ele feita pelo líder do Coro, pedindo que a recebesse amavelmente no mundo dos
mortos, solicitação igualmente realizada a Hades (EURÍPIDES. Alceste, vv.742-4).
Não obstante, Caronte aparece na obra como guia dos mortos, sendo, assim como Hades,
visto por Alceste quando esta se encontra perto de seu fim. A rainha, diz vê-lo chegar em um
barco de dois remos, chamando-a, impacientemente, para que ela fosse com ele, perguntandoa por que tardava e acusando-a de estar dificultando sua jornada (EURÍPIDES. Alceste, v.2527). Do mesmo modo, seu marido Admeto refere-se ao barqueiro, dizendo que caso tivesse o
poder de Orfeu – que assim como Odisseu, conseguira atingir os domínios do Hades ainda em
110
vida – desceria aos domínios do Hades e nem mesmo seu cão (Cérbero) ou Caronte, impediriam
de resgatar sua amada (EURÍPIDES. Alceste, vv. 357-62). Ainda entre os versos 436 a 444 da
tragédia, podemos verificar igualmente um pedido de benevolência ao barqueiro, assim como
fora feito a Hermes e Hades, sendo clamado pelo coro que esses seres não tenham dúvida de
que Alceste fora a melhor das mulheres levada pelo barco através do Aqueronte.
Desse modo, podemos observar que a visão dada a Caronte por Eurípides é um pouco
diferente das concepções a ele conectadas no Período Clássico. Demonstrado na tragédia assim
como o cão Cérbero, isto é, responsável por prevenir que as almas escapassem do submundo,
ele denota, como ressalta Sourvinou-Inwood, que as “fronteiras entre os dois mundos e sua
separação estão agora simbolicamente mais avançadas e seguras” (1995, p.309). Ademais,
conforme Mirto, “os meios de viagem [para o submundo] que Alceste imagina em seu delírio,
reflete o entendimento escatológico do Período Clássico, como visto na tragédia e superstição
popular. Caronte foi percebido como ambivalente: benevolente em ajudar as almas, mas
impiedoso em que guarda a fronteira do submundo” (MIRTO, 2012, p.27), característica que
pode igualmente ser visualizada em algumas iconografias da época.
Enquanto que em Homero a transição entre a vida e a morte não é descrita149, no século
V a.C. elabora-se, assim, uma jornada envolvendo mais de um estágio, no qual vemos a ajuda
de Caronte e Hermes às almas destinadas ao domínio do Hades, demonstrando as novas
escatologias que o período no qual Eurípides estava inserido denotava.
Ainda assim, sejam sozinhas ou acompanhadas, teriam realmente todas as psykhaí dos
mortos o mesmo destino, isto é, a inexorabilidade do Hades? Para Sourvinou-Inwood, com a
qual anuímos, haveria indicações, já no Período Arcaico, de alternativas a esse inquebrantável
destino, evidenciando modelos de esperança no imaginário tanático dos antigos gregos (1995,
p.18).
Nas epopeias, por exemplo, os Campos Elísios150, que apesar de serem mencionados
por apenas uma vez na Odisseia, era demarcado como um território no qual algumas pessoas,
conectadas de alguma forma aos deuses, ganhariam uma espécie de imortalidade, escapando de
se tornar uma sombra inconsciente no mundo dos mortos. Menelau, genro de Zeus, recebe da
149
Aqui estamos desconsiderando o Canto XXIV devido à grande probabilidade de ser uma adição posterior, como
citado.
150
Sourvinou-Inwood igualmente conecta o aparecimento da crença nos Campos Elísios à emergência do Culto
dos Heróis no século VIII a.C. (1995, p.52).
111
voz de Proteu esse prêmio, conseguindo atingir esse local no qual o tempo era ideal e a vida era
boa151:
Falemos de ti,
Menelau, não é vontade dos céus que morras
na hípica Argos. Outro é teu destino. Os imortais
te enviarão às Campinas Elísias [Ἠλύσιον πεδίον], situadas nos
extremos da terra. Farás companhia a Radamântis,
louro como tu. Os homens de lá levam existência
paradisíaca: sem nevascas, sem inverno, sem
chuvaradas. Lá Zéfiro sopra ao Oceano brisas
deliciosas do Oeste o ano todo. Receberás
esse prêmio por seres genro de Zeus’
(HOMERO. Odisseia, IV, vv.563—571)152.
Do mesmo modo, Garland nos infere que “os deuses homéricos não são apenas capazes
de transferir humanos para o Elísio mas também para levá-los para longe de seus próprios
domínios, onde eles desfrutam a imortalidade” (1985, p.156). Isso diz respeito, por exemplo,
ao fato de Circe oferecer uma vida imortal a Odisseu em troca de sua permanência na ilha junto
a ela (HOMERO. Odisseia, V, vv.135-137) ou de Herácles possuir apenas sua imagem, seu
eídolon no Hades, enquanto seu autós (ele mesmo), garante uma eterna vida no Olimpo
(HOMERO. Odisseia, XI, 601-26)153.
Outros exemplos de locais diferentes do Hades e destino de alguns mortos na épica
homérica relacionam-se a Aquiles e Orion, visto que sobre eles é descrito uma estada, ainda
que no Hades, conectada a um local específico: ao Campo dos Asfódelos. Apesar de existirem
especulações a respeito dessa região, não sabemos efetivamente do que ela se trata: além dos
versos em que verificamos Aquiles (HOMERO. Odisseia, XI, vv. 537-539)154 e Orion
(HOMERO. Odisseia, XI, vv. 572-575) nele encontrando-se, é apenas no Canto XXIV, de
adição provavelmente póstuma, como citado, em que vemos a Campina dos Asfódelos ser
caracterizada como a “morada das sombras, dos espectros que dormem” (HOMERO. Odisseia,
XXIV, vv. 13-14).
151
Hesíodo também se refere aos Campos Elísios em sua obra Os Trabalhos e os Dias. Nesta, o autor diz serem
esses Campos o destino da raça dos heróis. Segundo ele, são estes que “habitam de coração tranquilo/ a Ilha dos
Bem-Aventurados, junto ao oceano profundo, / heróis afortunados, a quem doce fruto/ traz três vezes ao ano a
terra nutriz” (HESIODO. Os trabalhos e os dias, vv. 165-171).
152
Nesses versos, o nome de Radamântis também é citado como pertencente ao universo dos Campos Elísios. Ele
era filho de Zeus, assim como Minos, outro personagem que possui benefício no mundo dos mortos, como já
citado.
153
Segundou Sourvinou-Inwood, muitos autores consideram essa passagem de Héracles uma interpolação do
século VI a.C. (1995, p. 86).
154
Como citado, desconfiamos do fato de Aquiles poder exercer poder no mundo dos mortos, como se fosse um
rei. O fato dele pertencer a esse local específico, talvez explique isso.
112
Mais uma passagem, em que encontramos evidências sobre esses escapes à
inexorabilidade da morte, refere-se aos irmãos Castor e Pólux, filhos de Zeus, que igualmente
recebem uma dádiva, não permanecendo sempre na total inconsciência do Hades:
Leda se aproximou, a cônjugue de Tíndaro,
que procriou a dupla anícopotente,
Castor, doma-corcéis, e Pólux, bom-de-pugna.
Geia-Terra nutriz encobre a ambos, vivos,
e Zeus aos dois premia, pois, embora no ínfero,
vivem num dia e morrem no outro. Prêmio símile
que aos deuses imortais foi dado amealhar
(HOMERO. Odisseia, IV, vv. 298-304)155.
Do mesmo modo, na Electra de Eurípides, que não faz parte de nosso corpus
documental, os irmãos, denominados Dióscuros, igualmente aparecem tendo recebido uma
dádiva, contudo, diferente daquela vista em Homero. Pólux e Castor, nessa tragédia, seriam
“moradores do éter fulgurante, entremeados às estrelas [φλογερὰν αἰθέρ᾽ ἐν ἄστροις]”, tendo
deles a “ prerrogativa de ajudar mortais” (EURÍPIDES. Electra, vv.988-992 e vv.1349-1353).
Essa possibilidade de se dirigir ao éter após a morte – que, segundo Garland, teria
surgido provavelmente na primeira metade do V século (GARLAND, 1985, p.75) – é
novamente trazida por Eurípides em seus versos, conectando-se não a uma potência divina, mas
a uma personagem de caráter negativo na peça Hécuba: Polimestor, que após ter sido punido
pela rainha pelo assassinato de seu filho Polidoro, lamenta e indaga acerca de seu futuro:
Polimestor:
Aiai pelo meu ultraje.
Aonde devo me dirigir, me encaminhar?
Voarei para o alto, para a casa celeste
onde Órion ou Sírio lançam raios de fogo
Brilhantes dos olhos, ou me lançarei,
Infeliz, através do negro rio do Hades?”
(EURÍPIDES. Hécuba, vv.1100-5)156
Eurípides, inserido em um período no qual cultos relacionados à morte, como o Orfismo
e os Mistérios Eleusinos tentam “domesticar” o fim da vida157, tornando-a mais aceitável e
155
Tradução de Trajano Vieira.
Podemos ver que Órion, conhecido até hoje como uma constelação, já faz parte do éter em Eurípides,
diferenciando-se de Homero.
157
Em Héracles, por exemplo, o herói protagonista teria sido iniciado nos Mistérios Eleusinos, ganhando de
Perséfone a possibilidade de voltar do mundo dos mortos (EURÍPIDES. Héracles, vv.610-3)
156
113
demonstrando modelos de esperança, como citado, evidencia em suas obras uma nova
alternativa ao Hades, ainda que a crença da ida ao éter não fosse proeminente ou um rival em
potencial para as tradições mais comuns (GARLAND, 1985, p.75).
Para mais, como já debatemos em nossa dissertação, igualmente Alceste e Ifigênia em
Áulis destacam-se como sinais que vão de encontro ao rigoroso caminho sem volta para o
mundo dos mortos. Na primeira peça, como vimos, ainda que a rainha se dirigisse ao Hades –
local ao o qual Admeto indaga se os bons não teriam vantagem, como sentar ao lado de
Perséfone (EURÍPIDES. Alceste, vv.744-6) – ela é salva ao final por Héracles; Em Ifigênia, a
princesa nem ao menos chega ao submundo, sendo diretamente levada por dom de Ártemis à
morada dos deuses, passando a com eles junto viver (EURÍPIDES. Ifigênia em Áulis, vv.16071614)
À vista disso, como nos ressalta Garland, “evidências para a descrença no Hades
ocorrem primeiramente nas peças de Eurípides” (1985, p.74), demonstrando-nos, como citado,
modelos de esperança em um momento no qual a morte fazia-se tão presente em seu cotidiano.
Assim sendo, ainda que, como novamente salienta Garland, os antigos gregos
estivessem “mais no escuro sobre o Hades do que nos deixaram” (1985, p. 51), não tendo
havendo muitas referências a respeito de sua topografia ou do que se encontraria nesse local158,
foi possível verificar como as crenças se mantém ou se modificam ao longo do tempo,
destacando os benefícios da História Comparada ao auxiliar-nos a identificar e clarificar casos
singulares, iluminar questões antes não vistas e revelar falsas semelhanças.
Descrições em vasos funerários, por exemplo, eram muito raras, “talvez escrúpulos religiosos ou preferências
artísticas militassem contra isso” (GARLAND, 1985, p. 122).
158
114
Conclusão
A morte é inexorável para todos. Ela simboliza uma perda não apenas para aquele que
não mais possuirá sua vida, mas especialmente para os que ficam e se veem frente a ausência
de um ente ou amigo querido que ocupava um lugar específico em seu seio familiar ou social.
A não permanência, o passageiro e a efemeridade são marcas do universo dos homens,
independente do período histórico em que se encontrem ou da fé que professem. Ainda que
hoje os avanços na medicina busquem cada vez mais uma morte natural, na velhice e, se
possível, sem sofrimento, a imortalidade é, até então, privilégio somente dos deuses.
Todavia, as diversas sociedades ao longo do tempo buscaram organizar-se a fim de lidar
com este momento, procurando compreendê-lo e criaram diversos ritos e crenças a respeito
dele, demonstrando-nos que “a abundância das crenças e dos rituais relativos à morte mostra
manifestamente que não se trata, para nenhuma sociedade humana, de um evento puramente
físico, mas de algo que destrói efetivamente o ser social enxertado na individualidade física”
(BELMONT, 1997, p.29), devendo ser integrado nas categorias sociais e transformado de um
evento biológico em um evento cultural.
A sociedade grega não foge a esse caso, tendo deixado para nós, especialmente através
de seu material literário, uma série de representações sociais capaz de desvelar as maneiras
pelas quais os indivíduos e grupos construíram e interpretaram a morte. Através da presente
dissertação, foi possível verificar como as epopeias atribuídas a Homero e as tragédias
desenvolvidas por Eurípides são documentações profícuas para compreendermos os elementos
cognitivos, ideológicos, normativos, as crenças, os valores e as atitudes diante o fim da vida.
Seja através do campo de batalha, como é o caso da Ilíada, ou no sacrifício de jovens
virgens, visto em mais de uma tragédia do “mais trágico dos trágicos”, verificamos como nossa
categoria de análise está presente em nosso corpus documental. Através do método proposto
por Marcel Detienne para a História Comparada, perscrutando as mudanças sociais e culturais
que estão presentes nos textos literários, notabilizamos como o comparável por nós escolhido
apresenta particularidades, similitudes e diferenças entre a epopeia e a tragédia. A Análise de
Discurso revelou-se igualmente importante ao evidenciarmos as diferentes maneiras de se
reportar ao fim da vida, dando destaque ao fato de cada um dos poetas estar inscrito em
estratégias de interlocução, em posições sociais ou em conjunturas históricas diferentes
(CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2012, p. 11-12).
115
No que compete as obras de Homero, o papel educativo de suas obras é inegável até
mesmo para expoentes da Antiguidade, sendo estas apontadas por Reale como a origem da
cultura europeia (2002, p. 19). Seu público, composto por aristocratas, desejava ouvir aquilo
que pertencia a sua genealogia guerreira, sendo a sociedade criada por Homero arauta de todo
um código de conduta que foi capaz de perpassar o Período Arcaico e ulteriores, e as temáticas
presentes em seus versos constituídas com base na própria comunidade na qual eles viviam e
conheciam através de sua história. Tendo ao seu lado potências divinas para ratificarem o que
dizia, as palavras do aedo eram tidas como verdade em meio a comunidade que o ouvia, sendo
seu discurso um canal capaz de exercer um poder diante dela, organizando e ditando os valores
e regras a serem seguidos.
Ante a morte, foi possível constatar como as personagens homéricas demonstravam dor
e tristeza em relação à perda de seus companheiros e familiares. Realizavam longos funerais
para seus grandes heróis, demarcando o status da aristocracia para qual os poemas se dirigiam,
mas sobretudo fazendo com que a memória daqueles que se foram permanecesse em meio a
sociedade. Privar o homem de seu túmulo era privá-lo de sua rememoração e a imortalidade,
pertencente apenas aos deuses, poderia ser encontrada na vida dos mortais na boca daqueles
que ficaram, pois “a única e suficiente recompensa para o heroísmo é a fama” (DODDS, 2002,
p. 36).
Mas para isso não era necessário somente a ação dos vivos: o herói deveria seguir uma
série de práticas, seu estatuto guerreiro, realizando atos honrosos, mostrando todos os seus
valores e até mesmo realizando uma bela morte, provando a coragem ao enfrentá-la. A moira
estaria sempre o espreitando, ele não poderia enganá-la e um dia acabaria por encontrar seu
destino, seja em campo de batalha ou no conforto de casa, longe do mar, como Odisseu.
A palavra do poeta também era essencial para o herói atingir sua glória imorredoura.
Ser motivo de canto de um aedo era um dos maiores fatores de rememoração social. Através
de suas palavras, a morte poderia ser enganada e a comunidade conheceria os grandes feitos
dos homens de suas epopeias. Como nos recorda Mirto, “o heroísmo é um meio de desafiar o
tempo limite dado aos humanos, superando antes de seu tempo, e ganhando um tipo de
imortalidade, pelo menos na memória coletiva” (2012, p.127).
Demonstrar esse êthos guerreiro diante da morte tornava-se essencial em um período
que, como vimos, a aristocracia esteva perdendo seu prestígio. Evidenciar os ideais seguidos
neste momento tanto no que compete àqueles que perderão suas vidas quanto os que ficavam
fazia-se, assim, uma escolha não desintencionada por parte do poeta.
116
No mundo das crenças, vimos que a influência da palavra mágico-religiosa nas obras de
Homero faz-se fundamental para a compreensão da atenção dada por ele dada às temáticas
conectadas ao mundo dos mýthoi. Vemos que, em suas epopeias, após a morte, o homem se
tornariauma espécie de sombra do que fora um dia, praticamente sem poder de ação e
pensamento, ainda que após certos ritos suas capacidades de fala e memória fossem recobradas
e que alguns indivíduos detivessem funções mesmo no além-vida.
A psykhé era vista presente nos homens enquanto vivos, porém sem nenhuma ação.
Tanto o lado psíquico humano quanto o físico eram atribuídos aos órgãos e elementos corporais,
como é o caso do thymós, responsável pelos sentimentos e pela força vital. Quando a psykhé se
desprendia dos ossos e da carne do morto e, após ter seu funeral completo, ela se dirigiria ao
Hades, local de escuridão, reinado pelo deus de nome homônimo e por sua esposa Perséfone,
região de destino para a maioria dos mortais, independentemente de suas ações em vida.
Em referência às tragédias euripidianas, foi possível notabilizar, como ressalta Loraux,
que “o cutelo do sacrifício” é seu instrumento privilegiado (1988, p.26). A maneira pela qual
as personagens femininas representadas por Eurípides enfrentam sua morte, com a coragem de
um herói, contrapõe-se ao que usualmente era esperado desse gênero na sociedade grega,
buscando através da fragilidade do gênero alcançar a kathársis necessária.
Através da simbolização e interpretação dos objetos, as representações sociais da morte
apresentadas por Eurípides, assim como sua ideologia frente à guerra, evidenciando tanto seus
males quanto a necessidade de travá-la, demonstra-se através de seu discurso. Defendemos, ao
longo de nossa dissertação, que apesar do poeta pôr em destaque a necessidade da coragem
frente à morte, ele se opõe a violência e critica a hamartía humana.
Por meio de seu discurso ambíguo, os debates vistos nas peças são postos sob o olhar
do público para por ele serem assim pensadas, mas não logicamente aceitas e sim argumentadas,
contestadas. Eurípides, como ressalta Romilly, é ao mesmo tempo militante e inconstante,
“patriótico” e pacifista, mas sempre dando-nos conta de como a guerra, que fazia parte de seu
cotidiano, estava inserida em suas temáticas.
Igualmente, constatamos que o discurso é um processo em curso, mas não é um processo
imutável. As temáticas relacionadas à morte que se tornaram objetos de nossa pesquisa se fazem
presentes em suas obras tanto quanto nas de Homero, ainda que vejamos particularidades e
distanciamentos entre os gêneros.
As cenas de luto demonstravam a tristeza exacerbada de mães perdendo seus filhos,
dilacerando suas peles e entoando cantos de lamento. As mortes presentes nos versos
117
euripidianos tornavam-se metáfora para o desalento que o conflito entre atenienses e
peloponésios causavam na pólis do tragediógrafo, que através de suas leis proibia a exacerbação
de emoções em meio a comunidade. O teatro, como espaço de transgressão autorizada, levava
através do choro de suas personagens aquilo que não poderia ser atingido na realidade.
Vimos, do mesmo modo, que os funerais eram eventos significativos em meio a
sociedade do Período Clássico ateniense, ainda que a suntuosidade existente entre as camadas
aristocráticas fosse motivo de críticas e até mesmo de proibições nas leis políades. Através dos
ritos fúnebres, seja na epopeia ou na tragédia, verificamos como os grupos sociais confirmam
publicamente seus papeis diante dos mortos, solidarizando-se, reconfirmando suas crenças e
costumes (FLORENZANO, 1996, p.8). Os ritos detinham o papel não apenas de amenizar o
momento da morte, mas igualmente de confirmar as regras de comportamento social dos
indivíduos. Todavia, o maior aviso que constatamos ser dado por Eurípides através da
necessidade de prestar esse géras thanónton é a tristeza daqueles que não poderiam realiza-lo
apropriadamente, como é o caso de Andrômaca com seu filho Astiánax.
Assim como os ritos, constatamos que os mitos não eram imutáveis. Sendo criações
humanas, eles muitas vezes se adaptavam as realidades vividas no momento, dependendo do
contexto histórico em que os poetas estavam inseridos e da relação que mantinham com o
mundo das crenças. Eurípides, que compunha em um momento no qual o lógos, o discurso
racional, começa a se afirmar em meio a sociedade grega, deixa muitas vezes de lado questões
abordadas por Homero, como é o caso do Hades e do contato com as psykhaí que lá se
encontravam. Todavia, ainda que as características dadas a essa alma se modifiquem e que uma
nova escatologia que domesticaria a morte começasse a surgir, similitudes puderam ser
encontradas no que compete a esse mundo das crenças.
À vista disso, apesar de pontos de diferenciação, questões como a necessidade de luto e
funerais aos mortos são postas em destaque pelos autores das documentações analisadas, assim
como as crenças no que o ocorreria após a vida ter seu fim. Defendemos ao longo desta
dissertação que o canto do aedo e as encenações trágicas são investidos de poder ao
evidenciarem um sistema de regras a ser seguido por seus ouvintes e espectadores, destacando
sua importância social e corroborando a ideia de uma função paidêutica das obras homéricas e
euripidianas. Através dos versos de um poema podemos verificar diversas práticas, crenças e
normas da sociedade grega, analisando seus papeis sociais, buscando compreender tanto a
intenção do criador da obra quanto como aquele público poderia ser influenciado por ela através
do sistema de regras que proferem. A literatura destaca-se, assim, como lócus privilegiado de
118
cultura, sendo instrumentos políticos e didáticos de flagrante importância em meio a sociedade
grega. É, assim, com propriedade que o filósofo Jean-Pierre Vernant faz uma afirmação que
nos é válida para a totalidade de nossa documentação e que encerra este trabalho:
Para que a honra heróica permaneça viva no seio de uma civilização, para que
todo o sistema de valores permaneça marcado pelo seu selo, é preciso que a
função poética, mais do que objeto de divertimento, tenha conservado um
papel de educação e formação, que por ela e nela se transmita, se ensine, se
atualize na alma de cada um este conjunto de saberes, crenças, atitudes,
valores de que é feita uma cultura (VERNANT, 1989, p. 42).
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