O Homem Nu

Transcrição

O Homem Nu
O Homem Nu
Fernando Sabino
Ao acordar, disse para a mulher:
— Escuta, minha filha: hoje é dia de pagar a prestação da televisão, vem aí o
sujeito com a conta, na certa. Mas acontece que ontem eu não trouxe dinheiro da
cidade, estou sem nenhum.
— Explique isso ao homem — ponderou a mulher.
— Não gosto dessas coisas. Dá um ar de vigarice, gosto de cumprir rigorosamente
as minhas obrigações. Escuta: quando ele vier a gente fica quieto aqui dentro, não
faz barulho, para ele pensar que não tem ninguém.
Deixa ele bater até cansar —
amanhã eu pago.
Pouco depois, tendo despido o pijama, dirigiu-se ao banheiro para tomar um
banho, mas a mulher já se trancara lá dentro. Enquanto esperava, resolveu fazer
um café. Pôs a água a ferver e abriu a porta de serviço para apanhar o pão. Como
estivesse completamente nu, olhou com cautela para um lado e para outro antes de
arriscar-se a dar dois passos até o embrulhinho deixado pelo padeiro sobre o
mármore do parapeito. Ainda era muito cedo, não poderia aparecer ninguém. Mal
seus dedos, porém, tocavam o pão, a porta atrás de si fechou-se com estrondo,
impulsionada pelo vento.
Aterrorizado, precipitou-se até a campainha e, depois de tocá-la, ficou à espera,
olhando ansiosamente ao redor. Ouviu lá dentro o ruído da água do chuveiro
interromper-se de súbito, mas ninguém veio abrir. Na certa a mulher pensava que
já era o sujeito da televisão. Bateu com o nó dos dedos:
— Maria! Abre aí, Maria. Sou eu — chamou, em voz baixa.
Quanto mais batia, mais silêncio fazia lá dentro.
Enquanto isso, ouvia lá embaixo a porta do elevador fechar-se, viu o ponteiro subir
lentamente os andares... Desta vez, era o homem da televisão!
Não era. Refugiado no lanço da escada entre os andares, esperou que o elevador
passasse, e voltou para a porta de seu apartamento, sempre a segurar nas mãos
nervosas o embrulho de pão:
— Maria, por favor! Sou eu!
Desta vez não teve tempo de insistir: ouviu passos na escada, lentos, regulares,
vindos lá de baixo... Tomado de pânico, olhou ao redor, fazendo uma pirueta, e
assim despido, embrulho na mão, parecia executar um ballet grotesco e mal
ensaiado. Os passos na escada se aproximavam, e ele sem onde se esconder.
Correu para o elevador, apertou o botão. Foi o tempo de abrir a porta e entrar, e a
empregada passava, vagarosa, encetando a subida de mais um lanço de escada.
Ele respirou aliviado, enxugando o suor da testa com o embrulho do pão.
Mas eis que a porta interna do elevador se fecha e ele começa a descer.
— Ah, isso é que não! — fez o homem nu, sobressaltado.
E agora? Alguém lá embaixo abriria a porta do elevador e daria com ele ali, em
pêlo, podia mesmo ser algum vizinho conhecido... Percebeu, desorientado, que
estava sendo levado cada vez para mais longe de seu apartamento, começava a
viver um verdadeiro pesadelo de Kafka, instaurava-se naquele momento o mais
autêntico e desvairado Regime do Terror!
— Isso é que não — repetiu, furioso.
Agarrou-se à porta do elevador e abriu-a com força entre os andares, obrigando-o
a parar. Respirou fundo, fechando os olhos, para ter a momentânea ilusão de que
sonhava. Depois experimentou apertar o botão do seu andar. Lá embaixo
continuavam a chamar o elevador. Antes de mais nada: "Emergência: parar".
Muito bem. E agora? Iria subir ou descer? Com cautela desligou a parada de
emergência, largou a porta, enquanto insistia em fazer o elevador subir. O elevador
subiu.
— Maria! Abre esta porta! — gritava, desta vez esmurrando a porta, já sem
nenhuma cautela. Ouviu que outra porta se abria atrás de si.
Voltou-se, acuado, apoiando o traseiro no batente e tentando inutilmente cobrir-se
com o embrulho de pão. Era a velha do apartamento vizinho:
— Bom dia, minha senhora — disse ele, confuso. — Imagine que eu...
A velha, estarrecida, atirou os braços para cima, soltou um grito:
— Valha-me Deus! O padeiro está nu!
E correu ao telefone para chamar a radiopatrulha:
— Tem um homem pelado aqui na porta!
Outros vizinhos, ouvindo a gritaria, vieram ver o que se passava:
— É um tarado!
— Olha, que horror!
— Não olha não! Já pra dentro, minha filha!
Maria, a esposa do infeliz, abriu finalmente a porta para ver o que era. Ele entrou
como um foguete e vestiu-se precipitadamente, sem nem se lembrar do banho.
Poucos minutos depois, restabelecida a calma lá fora, bateram na porta.
— Deve ser a polícia — disse ele, ainda ofegante, indo abrir.
Não era: era o cobrador da televisão.
Uma Galinha
Clarice Lispector
Era uma galinha de domingo. Ainda viva porque não passava de nove horas
da manhã.
Parecia calma. Desde sábado encolhera-se num canto da cozinha. Não
olhava para ninguém, ninguém olhava para ela. Mesmo quando a escolheram,
apalpando sua intimidade com indiferença, não souberam dizer se era gorda ou
magra. Nunca se adivinharia nela um anseio.
Foi pois uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto vôo, inchar o
peito e, em dois ou três lances, alcançar a murada do terraço. Um instante ainda
vacilou — o tempo da cozinheira dar um grito — e em breve estava no terraço do
vizinho, de onde, em outro vôo desajeitado, alcançou um telhado. Lá ficou em
adorno deslocado, hesitando ora num, ora noutro pé. A família foi chamada com
urgência e consternada viu o almoço junto de uma chaminé. O dono da casa,
lembrando-se da dupla necessidade de fazer esporadicamente algum esporte e de
almoçar, vestiu radiante um calção de banho e resolveu seguir o itinerário da
galinha: em pulos cautelosos alcançou o telhado onde esta, hesitante e trêmula,
escolhia com urgência outro rumo. A perseguição tornou-se mais intensa. De
telhado a telhado foi percorrido mais de um quarteirão da rua. Pouco afeita a uma
luta mais selvagem pela vida, a galinha tinha que decidir por si mesma os caminhos
a tomar, sem nenhum auxílio de sua raça. O rapaz, porém, era um caçador
adormecido. E por mais ínfima que fosse a presa o grito de conquista havia soado.
Sozinha no mundo, sem
pai
nem
mãe, ela corria, arfava, muda,
concentrada. Às vezes, na fuga, pairava ofegante num beiral de telhado e enquanto
o rapaz galgava outros com dificuldade tinha tempo de se refazer por um
momento. E então parecia tão livre.
Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa como seria um galo em fuga. Que é
que havia nas suas vísceras que fazia dela um ser? A galinha é um ser. É verdade
que não se poderia contar com ela para nada. Nem ela própria contava consigo,
como o galo crê na sua crista. Sua única vantagem é que havia tantas galinhas que
morrendo uma surgiria no mesmo instante outra tão igual como se fora a mesma.
Afinal, numa das vezes em que parou para gozar sua fuga, o rapaz
alcançou-a. Entre gritos e penas, ela foi presa. Em seguida carregada em triunfo
por uma asa através das telhas e pousada no chão da cozinha com certa violência.
Ainda tonta, sacudiu-se um pouco, em cacarejos roucos e indecisos. Foi então que
aconteceu. De pura afobação a galinha pôs um ovo. Surpreendida, exausta. Talvez
fosse prematuro. Mas logo depois, nascida que fora para a maternidade, parecia
uma velha mãe habituada. Sentou-se sobre o ovo e assim ficou, respirando,
abotoando e desabotoando os olhos. Seu coração, tão pequeno num prato,
solevava e abaixava as penas, enchendo de tepidez aquilo que nunca passaria de
um ovo. Só a menina estava perto e assistiu a tudo estarrecida. Mal porém
conseguiu desvencilhar-se do acontecimento, despregou-se do chão e saiu aos
gritos:
— Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! Ela quer o
nosso bem!
Todos correram de novo à cozinha e rodearam mudos a jovem parturiente.
Esquentando seu filho, esta não era nem suave nem arisca, nem alegre, nem triste,
não era nada, era uma galinha. O que não sugeria nenhum sentimento especial. O
pai, a mãe e a filha olhavam já há algum tempo, sem propriamente um
pensamento qualquer. Nunca ninguém acariciou uma cabeça de galinha. O pai
afinal decidiu-se com certa brusquidão:
— Se você mandar matar esta galinha nunca mais comerei galinha na minha
vida!
— Eu também! jurou a menina com ardor. A mãe, cansada, deu de ombros.
Inconsciente da vida que lhe fora entregue, a galinha passou a morar com a
família. A menina, de volta do colégio, jogava a pasta longe sem interromper a
corrida para a cozinha. O pai de vez em quando ainda se lembrava: "E dizer que a
obriguei a correr naquele estado!" A galinha tornara-se a rainha da casa. Todos,
menos ela, o sabiam. Continuou entre a cozinha e o terraço dos fundos, usando
suas duas capacidades: a de apatia e a do sobressalto.
Mas quando todos estavam quietos na casa e pareciam tê-la esquecido,
enchia-se de uma pequena coragem, resquícios da grande fuga — e circulava pelo
ladrilho, o corpo avançando atrás da cabeça, pausado como num campo, embora a
pequena cabeça a traísse: mexendo-se rápida e vibrátil, com o velho susto de sua
espécie já mecanizado.
Uma vez ou outra, sempre mais raramente, lembrava de novo a galinha que
se recortara contra o ar à beira do telhado, prestes a anunciar. Nesses momentos
enchia os pulmões com o ar impuro da cozinha e, se fosse dado às fêmeas cantar,
ela não cantaria mas ficaria muito mais contente. Embora nem nesses instantes a
expressão de sua vazia cabeça se alterasse. Na fuga, no descanso, quando deu à
luz ou bicando milho — era uma cabeça de galinha, a mesma que fora desenhada
no começo dos séculos.
Até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se anos.
O homem cuja orelha cresceu
Ignácio de Loyola Brandão
Estava escrevendo, sentiu a orelha pesada. Pensou que fosse cansaço, eram
11 da noite, estava fazendo hora-extra. Escriturário de uma firma de tecidos,
solteiro, 35 anos, ganhava pouco, reforçava com extras. Mas o peso foi
aumentando e ele percebeu que as orelhas cresciam. Apavorado, passou a mão.
Deviam ter uns dez centímetros. Eram moles, como de cachorro. Correu ao
banheiro. As orelhas estavam na altura do ombro e continuavam crescendo. Ficou
só olhando. Elas cresciam, chegavam a cintura. Finas, compridas, como fitas de
carne, enrugadas. Procurou uma tesoura, ia cortar a orelha, não importava que
doesse. Mas não encontrou, as gavetas das moças estavam fechadas. O armário de
material também. O melhor era correr para a pensão, se fechar, antes que não
pudesse mais andar na rua. Se tivesse um amigo, ou namorada, iria mostrar o que
estava acontecendo. Mas o escriturário não conhecia ninguém a não ser os colegas
de escritório. Colegas, não amigos. Ele abriu a camisa, enfiou as orelhas para
dentro. Enrolou uma toalha na cabeça, como se estivesse machucado.
Quando chegou na pensão, a orelha saia pela perna da calça. O escriturário
tirou a roupa. Deitou-se, louco para dormir e esquecer. E se fosse ao médico? Um
otorrinolaringologista. A esta hora da noite? Olhava o forro branco. Incapaz de
pensar, dormiu de desespero.
Ao acordar, viu aos pés da cama o monte de uns trinta centímetros de
altura. A orelha crescera e se enrolara como cobra. Tentou se levantar. Difícil.
Precisava segurar as orelhas enroladas. Pesavam. Ficou na cama. E sentia a orelha
crescendo, com uma cosquinha. O sangue correndo para lá, os nervos, músculos, a
pele se formando, rápido. Às quatro da tarde, toda a cama tinha sido tomada pela
orelha. O escriturário sentia fome, sede. Às dez da noite, sua barriga roncava. A
orelha tinha caído para fora da cama. Dormiu.
Acordou no meio da noite com o barulhinho da orelha crescendo. Dormiu de
novo e quando acordou na manhã seguinte, o quarto se enchera com a orelha. Ela
estava em cima do guarda-roupa, embaixo da cama, na pia. E forçava a porta. Ao
meio-dia, a orelha derrubou a porta, saiu pelo corredor. Duas horas mais tarde,
encheu o corredor. Inundou a casa. Os hospedes fugiram para a rua. Chamaram a
polícia, o corpo de bombeiros. A orelha saiu para o quintal. Para a rua.
Vieram os açougueiros com facas, machados, serrotes. Os açougueiros
trabalharam o dia inteiro cortando e amontoando. O prefeito mandou dar a carne
aos pobres. Vieram os favelados, as organizações de assistência social, irmandades
religiosas, donos de restaurantes, vendedores de churrasquinho na porta do
estádio, donas-de-casa. Vinham com cestas, carrinhos, carroças, camionetas. Toda
a população apanhou carne de orelha. Apareceu um administrador, trouxe sacos de
plástico, higiênicos, organizou filas, fez uma distribuição racional.
E quando todos tinham levado carne para aquele dia e para os outros,
começaram a estocar. Encheram silos, frigoríficos, geladeiras. Quando não havia
mais onde estocar a carne de orelha, chamaram outras cidades. Vieram novos
açougueiros. E a orelha crescia, era cortada e crescia, e os açougueiros
trabalhavam. E vinham outros açougueiros. E os outros se cansavam. E a cidade
não suportava mais carne de orelha. O povo pediu uma providência ao prefeito. E o
prefeito ao governador. E o governador ao presidente.
E quando não havia solução, um menino, diante da rua cheia de carne de
orelha, disse a um policial: "Por que o senhor não mata o dono da orelha?"
O texto acima foi extraído do livro "Os melhores contos de Ignácio de Loyola
Brandão", seleção de Deonísio da Silva, Global Editora — São Paulo, 1993, pág.
135.
A epidemia ao contrário (Ricardo Azevedo)
O homem morava sozinho numa casinha azul. Sua mulher já tinha morrido fazia tempo e os dois filhos,
casados, moravam longe. Aquele dia, o homem estava revoltado. Voltando de ônibus do centro da cidade,
tinha visto um grupo de crianças pedindo esmola, na praça perto da igreja.
- É inaceitável – dizia ele depois, sentado numa banheira cheia de água morna.
- E o pior é que amanhã é o último dia do ano!
O sujeito tinha contado 17 crianças.
- Não vou conseguir passar a última noite do ano sossegado sabendo que, enquanto isso, essa
criançada vai estar lá, dormindo no cimento duro, sentindo fome e frio, correndo todo tipo de risco, inclusive
o pior de todos: a falta de esperança.
De repente, dois olhos brilharam atrás dos óculos de lente grossa. Saindo depressa do banho, o velho
foi para a sala, pegou um caderninho, um lápis e começou a fazer uma lista.
Antes de mais nada, compraria uma banheira de plástico das grandes, 8 sabonetes, 3 frascos de
xampu, 1 caixa de cotonetes, 2 águas-de-colônia, 17 toalhas de banho e uma mangueira de esguicho. A
água para o esguicho ele pretendia tirar da torneira do posto de gasolina ao lado da praça.
Precisaria também comprar 17 camisetas, 9 calças compridas, 8 saias, 9 cuecas, 8 calcinhas, 17
pares de meias e 17 pares de tênis e uma sacola grande para colocar tudo isso.
E espelho, pente e fixador para pentear direito o cabelo da molecada.
E 2 perus dos grandes, destes que já vêm prontos e temperados, 2 dúzias de ovos e farinha de
mandioca para fazer a farofa e 2 quilos de arroz.
E 17 pratinhos de papelão, 17 copos de plástico, 10 garrafas de refrigerante de 2 litros, 17 garfos e 17
facas.
E 51 brigadeiros, 51 quindins e 51 bombons de chocolate.
E um bolo.
E uma garrafa de champanhe (um golinho de champanhe para brindar o ano-novo é fundamental!).
E 17 escovas, e duas pastas de dente com flúor.
E um fogareirinho de carvão para esquentar a comida.
Compraria também 17 colchõezinhos, 17 travesseiros, 17 lençóis, 17 fronhas e 17 cobertores.
- Quero ver essa criançada entrando no ano-novo com o pé direito!
Uma nuvem cinza-chumbo fez atesta do homem ficar mais enrugada.
E se chovesse?
Por via das dúvidas, achou melhor colocar na lista 17 guarda-chuvas, dos pequenos.
E 3 cartelas de aspirina, para o caso de alguém se resfriar.
E 1 vidro de mercurocromo para quem estivesse machucado.
E 3 mesinhas baixas, dessas de montar, para colocar a comida.
E 3 toalhas de pano branco.
E 3 castiçais com 3 velas vermelhas, um para cada mesa.
O homem espreguiçou-se gostosamente na poltrona da sala.
Seria muito simpático dar um presentinho.
Compraria 2 bolas, 1 de futebol e 1 de vôlei para a turma brincar durante a tarde. Além disso, 17 livros
diferentes, um para cada criança. Assim, quando a escuridão chegasse, depois do banho e do jantar, a
criançada poderia sentar debaixo de um poste iluminado e passar a noite inteirinha lendo. Quando um
acabasse o seu livro, trocaria com o do colega e assim por diante.
E no caso dos que não sabiam ler?
Sacudiu os ombros irritado.
- Já estamos no século XXI! É inacreditável imaginar que em nossa cidade ainda existam crianças que
não saibam ler nem escrever. Isso é crime. Uma vergonha para todos os que sabem ler!
O velho fez uma careta:
- Por que nós sim e eles não?
O sujeito era aposentado, sabia ler e escrever e, além disso, tinha bastante tempo livre. Ele mesmo
ensinaria aquela criançada a ler!
E acrescentou à lista 1 lousa pequena, 1 caixa de giz, 17 cadernos, 17 lápis, 17 apontadores e 17
borrachas.
- Só com um mínimo de educação – disse ele para si mesmo -, essas crianças vão ter chance de um
dia melhorar um pouco de vida.
Lendo, imaginava ele, as crianças, além de conhecer mil histórias, vão aprender a pensar, porque isso
é uma das coisas mais importantes da leitura. Um texto é sempre um pensamento colocado em palavras
escritas, um pensamento com começo, meio e fim, organizado por um autor. Quando a gente lê, a gente
entra nesse pensamento e assim, sem perceber, acaba aprendendo a pensar também.
O homem sorriu com seus pensamentos.
Fora isso, lembrava ele, essa criançada vai saber que existem países e costumes diferentes, vai saber
que têm direitos como cidadãos, vai conhecer outros pontos de vista a respeito da vida e do mundo, vai
descobrir que todos os homens, tanto faz de que país, são muito parecidos: ficam apaixonados, gostam de
carinho, revoltam-se, têm medo de morrer, detestam a fome e a dor, podem sentir vergonha, erram,
acertam, gostam de conforto, gostam de sentir prazer, querem ser amados e têm mania de querer conhecer
a si mesmos.
O sujeito tinha certeza:
- Quando esses 17 moleques souberem ler e escrever, vão poder ensinar os outros que moram nas
outras praças. Se cada um tiver 17 alunos, 17 vezes 17, são 289 crianças. 289 vezes 17, são 4913, 4913
vezes 17, são... 83521 pessoas!
O velho deu um murro no braço da poltrona:
- Vai ser uma epidemia ao contrário. A epidemia da generosidade, do conhecimento e da vontade de
mudar a vida e o mundo!
E lembrou-se de que precisaria de mais 3 sacolas das grandes, para colocar as comidas, as roupas de
cama e os livros e que talvez fosse conveniente alugar uma kombi para levar tudo até a praça.
Em seguida, lembrou que, antes de mais nada, talvez fosse importante calcular os gastos.
Pela banheira, sabonetes, xampu, cotonetes, água-de-colônia, toalhas, mangueira com esguicho ia
gastar mais ou menos 130 reais.
Pelas roupas e pela sacola, uns 648.
Pelo espelho, pente e fixador, 10.
Pelas comidas e bebidas, 169.
E ainda faltavam as escovas e pastas de dentes, colchõezinhos, cobertores e roupas de cama,
guarda-chuvas, toalhas, pratos, copos, talheres, fogareiro, aspirinas, mercurocromo, mesinhas, castiçais,
velas vermelhas, toalhinhas de linho, bolas, livros, lousa, caixa de giz e material escolar.
Pelas suas contas, daria, no total, mais ou menos, 1859 reais, sem contar o aluguel da kombi!
Acontece que o velho era pobre, ganhava uma ninharia de aposentadoria e, para falar a verdade,
nunca teria dinheiro para nada daquilo.
O homem então foi até a cozinha, pegou 1 pedaço de queijo mussarela, 1 vidrinho de requeijão pela
metade, 1 pacote aberto de pão de forma, 1 garrafa de vinho tinto, 1 faquinha, 1 saca-rolha e 1 cartela de
aspirina. Juntou com 1 guarda-chuva dobrável, 1 fita adesiva, o caderninho, o lápis e 1 livro com contos
populares recolhidos pelo Câmara Cascudo. Enfiando tudo numa mochila, trancou a casa e, com passos
firmes, partiu em direção à praça perto da igreja.
O aposentado nunca mais voltou. Era meu vizinho, e tudo isso ocorreu há quase cinco anos.
Até hoje, quando chega o fim do ano, às vezes, durante a noite, me pego pensando nele e nas coisas
que ele me contou que sonhava fazer um dia se tivesse coragem.
A obra de arte
Anton Tchekhov
Carregando
sob
o
braço
um
objeto
embrulhado
no
número
223
doMensageiro da Bolsa, Sacha Smirnoff, filhinho de mamãe, assumiu uma
expressão de tristeza e entrou no consultório do doutor Kochelkoff.
— Ah! meu grande jovem! — exclamou o médico. — Como vamos? O que há
de novo?
Fechando as pálpebras, Sacha pôs a mão no coração e, comovido, falou:
— Mamãe lhe manda seus cumprimentos, Ivan Nicolaìevitch, e me
encarregou de lhe agradecer... Mamãe só tem a mim no mundo, e o senhor me
salvou a vida... curando-me de grave enfermidade e... não sabemos como lhe
agradecer.
— Ora! O que é isso, meu jovem! — atalhou o médico, realizado. — Não fiz
mais do que qualquer um no meu lugar teria feito...
Depois de observar o presente, o médico coçou lentamente a orelha, bufou e
suspirou, confuso.
— Sim — murmurou —, é algo realmente magnífico... como diria?... um
tanto ou quanto ousado... Não é apenas decotada; é... sei lá, que diabos!
— Mas... por que diz isso?
— Nem a serpente em pessoa poderia inventar alguma coisa de mais
indecente. Se eu colocasse esta fantasiazinha na mesa, iria contaminar a casa toda.
— Que modo mais excêntrico tem o senhor de interpretar a arte! — disse
Sacha, ofendido. — É um objeto artístico!... Olhe! Que beleza! Que elegância! É de
se ficar com a alma inundada de piedade, e com lágrimas a subir aos olhos!
Contemplando-se tamanha beleza, nos esquecemos de tudo o que seja da Terra...
Veja bem... Que movimentos! Que harmonia! Que expressão!...
— Compreendo muito bem tudo isso, meu caro — interrompeu o médico —,
mas acontece que eu sou pai de família. Meus filhos costumam vir aqui. Recebo
senhoras...
— É evidente — disse Sacha — que se a gente adotar o ponto de vista do
povo, este objeto, altamente artístico, causará uma impressão diferente... Sou o
filho único de mamãe... somos pobres, e por isso não podemos lhe recompensar os
seus cuidados; e não sabemos o que fazer; embora, apesar de tudo, mamãe e eu...
seu filho único... lhe suplicamos de todo o coração que aceite, como penhor de
gratidão... esta ninharia que... É um bronze antigo... uma obra rara... de arte.
— Mas não havia necessidade — disse o médico, franzindo as sobrancelhas.
— Por que razão?
— Não, eu imploro ao senhor, não recuse! — continuou a murmurar Sacha,
desembrulhando de todo o pacote. — Seria uma ofensa, a mamãe e a mim... Tratase um objeto belíssimo... em bronze antigo. Foi herança de papai, guardada como
uma querida lembrança.. Papai comprava bronzes antigos e revendia-os aos
colecionadores... Já mamãe e eu não nos ocupamos disso...
Sacha acabou de desembrulhar o objeto e colocou-o solenemente em cima
mesa. Era um pequeno candelabro de bronze antigo, de fina feitura. Representava
duas figuras femininas em trajes de Eva e em atitudes que não ousaria — nem
tenho temperamento para isso — descrever.
As figuras sorriam ostensivamente, dando a impressão de que, não fossem
retidas pela obrigação de suster o castiçal, teriam imediatamente fugido do
pedestal dançado tal cancã que, amigo leitor, nem é bom imaginar.
— O doutor, claro, está acima destas coisas todas e portanto sua recusa nos
daria, a mamãe e a mim, uma enorme frustração. Sou o filho único de mamãe; o
senhor me salvou a vida... Damos-lhe de presente o que de mais precioso
possuímos, e... só tenho a tristeza de não nos pertencer o par do candelabro!
— Muito agradecido, meu jovem amigo. Fico-lhe muito grato... Minhas
recomendações à sua mãe, mas rogo-lhe, o senhor mesmo considere a questão!
Meus garotos costumam vir aqui... Aparecem muitas senhoras... Mas deixo-o aqui,
já que me parece impossível convencê-lo!
— Ora, não há de que me convencer! — disse Sacha com habilidade. –
Coloque o candelabro do lado desta jarra. Que infelicidade não possuir o par!...
Bem, vou indo, adeus, doutor.
Depois da saída de Sacha, o doutor observou bastante o candelabro, coço
orelha e concluiu: “Não se pode negar que é magnífico. É uma pena abrir mão dele.
Ao mesmo tempo é impossível deixá-lo aqui... Hum... Está criado o problema...
Poderia dá-lo de presente a quem?” ·
Depois desta reflexão, lembrou-se do advogado Ukhoff, seu amigo íntimo,
que gostaria de ter o objeto.
"Às mil maravilhas!", decidiu. "Ukof Ukhoff não aceita receber dinheiro de
mim , mas ficará contente com esta lembrança... E assim me livrarei deste
incômodo. Além do mais, ele é solteiro e maroto...” ·
Rápido, o médico se vestiu, pegou o candelabro e foi até a casa do
advogado.
— Bom dia, amigo — disse, ao encontrar Ukhoff em sua morada... — Venho
lhe trazer uma recompensa pela amolação... Já que não quer aceitar dinheiro meu,
aceitará um pequeno presente... Ei-lo, meu amigo! É um objeto magnífico!
Ao ver o candelabro, o advogado viu-se tomado de inefável encantamento.
— Isso sim é que é obra de arte — disse, rindo às gargalhadas. — Que o
diabo carregue os meliantes capazes de sequer imaginar alguma coisa de
parecido... É maravilhoso! Onde foi que você encontrou tal preciosidade?
Assim que o entusiasmo se esgotou, o advogado lançou temerosos olhares
para o lado da porta e disse:
— No entanto, meu velho amigo, é melhor levar de volta o seu presente.
Não posso aceitá-lo...
— Por quê? — quis saber, espantado, o médico.
— Porque... Mamãe vem aqui, meus clientes... e além do mais é
constrangedor em relação aos criados...
— Ora, essa é boa!... Você não terá a ousadia de recusá-lo. (E o médico
agitou as mãos.) Eu ficaria ofendido!... Trata-se de um objeto de arte... Que
movimentos! Que expressão!... Não quero ouvir seus argumentos! Você me
deixaria melindrado!
— Se pelo menos tivesse alguma sutileza, ou se estivesse coberta...
O médico, porém, ainda a agitar as mãos e contente por conseguir se
desfazer do presente, voltou para o seu consultório.
Sozinho em casa, o advogado pôs-se a examinar o candelabro, apalpou-lhe
todas as partes e, da mesma forma que o médico, viu-se tentado a refletir sobre o
que deveria fazer com ele.
“É um objeto belíssimo", pensou. "Seria uma pena se desfazer dele; ao
mesmo tempo, é inconveniente tê-lo em casa... Melhor seria oferecê-lo a alguém...
Já sei, vou levá-lo hoje à noite ao cômico Chachkine. O sacana adora as coisas
desse gênero, e hoje é justamente o dia de sua estréia..."
Foi o que fez, tão rápido quanto pensou. À noite o candelabro, lindamente
embrulhado, era oferecido ao cômico Chachkine.
A noite toda o camarim do artista foi invadido pelos homens que queriam
admirar o presente; a noite toda foi de murmúrios de aprovação e de risadas que
mais pareciam relinchos... Quando uma artista se aproximava do camarim e
perguntava: "Pode-se entrar?", logo a voz rouca do cômico retumbava:
— Não, não, cara amiga! Estou sem roupa!
Terminado o espetáculo, Chachkine dizia, dando de ombros e abrindo os
braços:
— Onde vou colocar tamanha indecência? Moro em casa de família e recebo
muitos artistas! E isso não é como fotografia, que a gente pode esconder dentro da
gaveta...
— Ora, por que não o vende, senhor? — aconselhou o cabeleireiro, que o
ajudava a trocar de roupa. — Tem uma velha aqui no bairro que compra bronze
antigo. Vá lá e pergunte pela senhora Smirnoff... Todo mundo a conhece.
O cômico resolveu seguir o conselho...
Dois dias depois, o doutor Kochelkoff meditava sobre os ácidos biliosos, de
dedo na testa. Subitamente a porta se abriu e Sacha Smirnoff jogou-se a seu
encontro. Sorria exultante, e todo o seu ser transpirava felicidade... Trazia alguma
coisa embrulhada em jornal.
— Doutor — disse, ofegante —, imagine só nossa alegria!... Para nossa
felicidade, encontramos o par do seu candelabro!... Mamãe está se sentindo tão
feliz!... E o senhor me salvou a vida...
E então, tremendo de gratidão, Sacha colocou o candelabro diante dos olhos
de Ivan Nicolaievitch. 0 médico quis dizer alguma coisa mas não conseguiu.
Perdera o uso da palavra.
Felicidade Clandestina (Clarice Lispector)
Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio
arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas.
Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas.
Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai
dono de livraria.
Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo
menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai.
Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes
mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como “data
natalícia” e “saudade”.
Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando
balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos
imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu
com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as
humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros
que ela não lia.
Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma
tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As reinações de
Narizinho, de Monteiro Lobato.
Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele,
comendo-o, dormindo-o. E, completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu
passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria. Até o dia seguinte eu
me transformei na própria esperança de alegria: eu não vivia, nadava devagar num
mar suave, as ondas me levavam e me traziam.
No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num
sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus
olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia
seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo
me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo
estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do
livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o
amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí
nenhuma vez.
Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono da livraria
era tranquilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um
sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em
seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer
da vida, o drama do “dia seguinte” com ela ia se repetir com meu coração batendo.
E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido,
enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar
que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às
vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que
eu sofra.
Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às
vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã,
de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as
olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.
Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e
silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição
muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas.
Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A
senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa
mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este
livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler! E o pior para essa mulher não era a
descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela
nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a
menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que,
finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro
agora mesmo.
E para mim: “E você fica com o livro por quanto tempo quiser.” Entendem?
Valia mais do que me dar o livro: “pelo tempo que eu quisesse” é tudo o que uma
pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.
Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na
mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre.
Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos,
comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também
pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.
Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois
ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de
novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que
não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais
falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade
sempre ia ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu
vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.
Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem
tocá-lo, em êxtase puríssimo.
Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.