a desjudicialização da execução hipotecária como

Transcrição

a desjudicialização da execução hipotecária como
UNIVERSIDADE DE COIMBRA
FACULDADE DE DIREITO
A DESJUDICIALIZAÇÃO DA EXECUÇÃO HIPOTECÁRIA COMO
MEIO ALTERNATIVO DE RECUPERAÇÃO DE CRÉDITOS
SAMY GARSON
COIMBRA
2006
2
UNIVERSIDADE DE COIMBRA
FACULDADE DE DIREITO
A DESJUDICIALIZAÇÃO DA EXECUÇÃO HIPOTECÁRIA COMO
MEIO ALTERNATIVO DE RECUPERAÇÃO DE CRÉDITOS
SAMY GARSON
Dissertação de Mestrado apresentada na
disciplina Direito Processual Civil, sob a
orientação do Professor Doutor Joaquim José
Coelho de Sousa Ribeiro, como requisito para
a obtenção do título de mestre em ciências
jurídico-processuais.
COIMBRA
2006
3
AGRADECIMENTOS
Aos Professores Doutores Maria José Capelo e Milton Paulo de
Carvalho, grandes incentivadores na consecução deste estudo.
Aos amigos Marcelo Kramer, André Weinmann, Luís Fernando
Carvalho e Tiago Garcia Clemente, pelo incentivo e pela profícua
troca de impressões acerca das questões polêmicas que foram
surgindo no curso da investigação.
A Iva Garson, José, e Taisa, que me ensinaram a compreender que
além das palavras existe a necessidade de tornar real aquilo que
importa e aparentemente reside no campo da especulação.
4
SIGLAS E ABREVIATURAS
a.C.
antes de Cristo
ADIN
Ação Direta de Inconstitucionalidade
art.
artigo
CC
Código Civil
CCustas
Código de Custas
cfr.
conforme
Coord.
Coordenador
CPC
Código de Processo Civil
Dec.-Lei
Decreto-Lei
LEC
Ley de Enjuiciamiento Civil (Espanha)
LEUD
Livraria e Editora Universitária de Direito
LOFTJ
Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais
n.
número
Orgs.
Organizadores
RCDI
Revista Crítica de Derecho Inmobiliario (Espanha)
RE
Recurso Extraordinário
RESP
Recurso Especial
RRCOP
???ou RPCOP
Regime dos Procedimentos destinados a
exigir o Cumprimento de Obrigações Pecuniárias?
STF
Supremo Tribunal Federal (Brasil)
STS
???(Ver referência de ROBLEDO VILLLAR, Antonio)
UNIDROT
Entidade pela Unificação do Direito Privado
ZPO
Zivilprozebordnung
5
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 8
1 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA JURISDIÇÃO E DO PROCESSO DE
EXECUÇÃO – BREVE CONSPECTO ........................................................................... 15
1.1 Da autotutela à execução estatal – Jurisdição no direito romano .................................. 15
1.2 A execução no direito intermédio.................................................................................. 22
1.3 A evolução da ação de execução em Portugal............................................................... 25
1.3.1 O agente de execução ................................................................................................. 32
1.3.2 O juiz de execução...................................................................................................... 36
2 A EXECUÇÃO DA GARANTIA HIPOTECÁRIA ........................................................ 39
2.1 O atual regime português............................................................................................... 39
2.2 O projeto de execução extrajudicial hipotecária português ........................................... 40
2.3 Dos problemas identificados para a adoção da execução hipotecária em Portugal....... 44
2.4 O modelo espanhol de execução extrajudicial hipotecária............................................ 50
2.4.1 Das causas de suspensão da execução no regime executivo da hipoteca
em Espanha ................................................................................................................. 59
2.4.2 A reclamação pela via ordinária ................................................................................. 63
2.5 A evolução da execução no Brasil................................................................................. 64
2.5.1 A execução extrajudicial hipotecária brasileira .......................................................... 68
2.6 Os problemas decorrentes da execução extrajudicial hipotecária brasileira.................. 79
2.7 A interpretação jurisprudencial e doutrinária favorável à execução extrajudicial......... 84
3 FUNDAMENTOS PARA A DESJUDICIALIZAÇÃO DA
EXECUÇÃO HIPOTECÁRIA ......................................................................................... 89
3.1 A essência da execução hipotecária e a desnecessidade do ato de penhora .................. 89
3.2 Da realização adequada dos atos executivos ................................................................. 98
3.2.1 Da citação do executado ............................................................................................. 99
3.2.2 Da venda da garantia hipotecária e da dispensa da sua avaliação ............................ 102
3.3 A necessária superação do dogma da reserva de jurisdição e da
inafastabilidade do juiz ................................................................................................ 105
3.3.1 Da inafastabilidade do agente judicial no controle e nos atos sancionatórios .......... 121
6
3.4 Da compatibilidade da natureza jurisdicional dos atos processuais executivos com a
desjudicialização da execução ........................................................................................... 122
3.5 O necessário respeito aos princípios da igualdade de partes e do contraditório.......... 131
4 CONCLUSÕES .............................................................................................................. 136
BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................... 148
7
NOTA PRÉVIA
Em 6 de dezembro último, adveio no ordenamento jurídico brasileiro a Lei n.
11.382/2006, diploma que procedeu a alteração de dispositivos da Código de Processo
Civil (Lei n. 5.869, de 11.1.1973), introduzindo modificações significativas no regime do
processo de execução de títulos extrajudicias e, subsidiariamente, no cumprimento de
sentença previsto na Lei n. 11.232, de 22 de dezembro de 2005. Em virtude do exíguo
lapso temporal existente entre o advento do novo diploma e a data limite para a entrega da
presente dissertação, 31 de janeiro de 2007, embora, por óbvio, não exista bibliografia
comentando a inovação havida, ao se analisar o texto da lei, pode-se afirmar que não houve
qualquer modificação significativa no regime da execução da hipoteca que, à luz do artigo
580, inciso III do Código de Processo Civil, continua a ser considerada título executivo
extrajudicial. Sem prejuízo, no curso deste estudo, assinalaremos, no local próprio, as
inovações introduzidas que consideramos mais relevantes.
Ressaltamos, outrossim, que este trabalho foi elaborado empregando as regras
ortográficas e gramaticais reconhecidas pela República Federativa do Brasil.
INTRODUÇÃO
Considerando que os problemas decorrentes da morosidade e da falta de
efetividade do Poder Judiciário não serão resolvidos a partir da adoção de um ato isolado1,
capaz de por si só dotar da necessária credibilidade o sistema democrático de acesso ao
direito, e na busca de alternativas viáveis para a solução dos problemas que se apresentam,
entendemos ser de relevo fornecer aos operadores do direito reflexões acerca das
experiências de outros ordenamentos jurídicos, independentemente do seu êxito ou não,
como meio de proporcionar elementos para apurar o seu desempenho.
Nessa senda, no desenvolvimento deste estudo, pretendemos focar a atenção no
processo de execução extrajudicial, cuja origem remonta ao direito romano, e que
atualmente, no que diz respeito à execução de créditos hipotecários, é largamente utilizado
pelas instituições financeiras brasileiras e espanholas como forma de viabilizar os contratos
de financiamento imobiliário.
A partir do estudo da evolução histórica do processo de execução, notadamente no
que concerne à realização dos atos executivos tendentes à expropriação do patrimônio do
devedor, esboçaremos as linhas mestras para verificar as soluções processuais encontradas
no direito romano e no direito medieval, para, de um lado, alcançar a satisfação do crédito
exeqüendo, e, de outro lado, extirpar da sociedade o mal da autotutela.
Embora seja cediço que o processo declaratório tenha merecido maior atenção por
parte da comunidade jurídica ao longo da evolução do processo civil, inexoravelmente é no
processo de execução que se verifica a expropriação dos bens do devedor para a satisfação
do crédito invocado pelo credor e, portanto, em caso de resistência do executado para o
cumprimento espontâneo da sua obrigação, ensejará a intervenção estatal, para que
finalmente se efetive a justiça material2. Eis a razão para a função executiva operar no
1
2
Para uma maior compreensão acerca das linhas mestras a serem adotadas para que se promovam soluções
para os problemas atualmente vividos na Justiça, indicamos a leitura da intervenção de João Álvaro Dias
(COLÓQUIO INTERNACIONAL OS CUSTOS DA JUSTIÇA, Coimbra, 2002, Os custos da justiça: actas
do Colóquio Internacional, Coimbra, 25-27 de setembro de 2002, Coordenação de João Álvaro Dias,
Coimbra: Almedina, 2003, p. 557-567).
Segundo José Lebre de Freitas, a ação executiva “tradicionalmente considerada o parente pobre da família
das acções judiciais e, talvez por isso, durante muito tempo abandonada a um imobilismo contrastante com
o ritmo e as exigências da evolução sócio económica, foi ganhando, ao longo dos anos, uma cada vez maior
ineficácia. Constituindo, ela, no campo dos direitos patrimoniais, o momento processual mais apurado da
manifestação do jus imperii jurisdicional ao serviço da norma jurídica, essa ineficácia acaba por paralisar a
própria garantia do direito.” (Estudos sobre direito civil e processo civil, Coimbra: Coimbra Editora, 2002,
p. 708).
9
mundo dos fatos, notabilizando-se pela agressão à esfera jurídica do patrimônio do
executado, a ponto de merecer a célebre metáfora de Carnelutti3, segundo a qual o processo
de conhecimento transforma o fato em direito, e o processo de execução traduz o direito
em fatos.
Portanto, o processo de execução deve viabilizar a segurança dos negócios
jurídicos envolvendo o crédito que, numa sociedade de consumo de massa4, são realizados
de forma interdependente, sob pena, inclusive, de se colocar em xeque todo o sistema de
fluxo de valores destinados ao fomento empresarial e à pessoa singular.
Com efeito, a manutenção do fomento ao crédito, sobretudo na delicada área da
habitação, depende sobremaneira do retorno do capital financiado, para que posteriormente
o mesmo possa ser novamente investido no sistema, sob pena de a sociedade prescindir do
fundamental apoio da iniciativa privada para a complementação de uma função que outrora
competia precipuamente ao Estado.
3
4
Francesco Carnelutti, Diritto e processo, Napoli: Morano, 1958, p. 283-284.
“Quem faz uso mais intensivo dos tribunais, em matéria cível, não são os cidadãos mas as grandes
empresas, sobretudo na área de crédito ao consumo, portanto, em processos de cobrança de dívidas. Este
uso é tão avassalador que bloqueia os tribunais. Como é do conhecimento geral, esse problema agravou-se
nos últimos anos com a generalização do crédito ao consumo e uma nova geração de dívidas (telemóveis,
cartões de crédito, compras a prestação em sistema de leasing, etc.) e o consequente endividamento e
sobreendividamento das pessoas singulares e, também, das empresas. Por exemplo, em 2000 e 2001, o peso
das ações de dívida nas ações declarativas findas era de 61,8% e 64%, respectivamente. Em Lisboa, os
números sobem para 84,8% e 81,9%, respectivamente, sendo sendo que 37% das ações de dívida a nível
nacional, e cerca de 55% em Lisboa, dizem respeito a valores inferiores a 1.250 euros; sendo certo que os
tribunais estão a ser mobilizados por pessoas coletivas com capacidade económica para poder gerir, de
forma racional, a sua litigância. O problema é que a racionalidade do uso empresarial da justiça conduz à
total irracionalidade da justiça quando vista da perspectiva dos cidadãos e dos seus direitos democráticos de
acesso à justiça, pois, a despeito da pequena complexidade maioria dos casos, tem-se verificado o aumento
da duração processual. As estatísticas da justiça portuguesa mostram que, a partir de 1995, tem-se
registrado uma diminuição considerável das percentagens de ações resolvidas em 1ª instância em menos de
um ano (em 1995, 70,4% e em 2000, 51,3%). Nos últimos anos da década de 90, a duração das ações
declarativas cíveis com duração igual ou superior a dois anos aumentou significativamente, acompanhando
o aumento das pendências. As ações com duração superior a dois anos aumentaram significativamente,
acompanhando o aumento das pendências. As ações com duração superior a dois anos representavam, em
1997, cerca de 13% de todas as ações findas enquanto que, em 2000, representavam cerca de 28% dos
processos findos. À luz do diagnóstico, as soluções a adotar devem ter presente as ideias de que os tribunais
não são o único recurso de justiça, vez que não podem dar resposta a todos os litigios, como no caso dos
litigios de massa, como, por exemplo, as dívidas; sendo fundamental encontrar mecanismos que permitam
gerir, de forma racional e diferenciada, o volume da procura do sistema judicial. Esses caminhos podem
passar pela informatização e desjudicialização de certos litigios. Esta pode ser uma via, não só para
‘descarregar’ os tribunais da ‘litigação de massa’, e melhorar o seu desempenho, mas, também, para
desenvolver uma perspectiva de integração social, reduzindo tensões sociais, criando solidariedade através
da participação dos cidadãos e promovendo o acesso ao direito e à justiça. A informalização, a
desjudicialização e os julgados de paz, constituem alguns dos caminhos da reforma da administração da
justiça.” (Boaventura de Sousa Santos, A justiça em Portugal: diagnósticos e terapêuticas, Revista
Manifesto, Práticas, Direitos, Poderes, Lisboa, n. 7, p. 84-85, abr. 2005, Disponível em:
<http://manifesto.com.pt/>).
10
Contudo, face à fragilização do welfare state, o Estado não dispõe dos recursos
necessários para prover os investimentos para viabilizar a aquisição da casa própria por
parte da plenitude dos cidadãos. Sem prejuízo, é de se destacar que os cientistas políticos
do mundo todo advertem que está ocorrendo o fenômeno que eles reputam como a
expansão do direito, eis que o direito está, cada vez mais, disciplinando novas relações, que
eram até então por ele ignoradas, desde aspectos políticos, até os ligados à intimidade das
pessoas; e tudo que é disciplinado pelo direito, numa eventualidade de ameaça ou violação,
salvo nos casos de recurso aos imprescindíveis meios alternativos de resolução de litígios,
vai parar no Poder Judiciário, para a apreciação do Estado-juiz.
Segundo Kazuo Watanabe, a expansão do direito se liga também “ao problema da
falência do Estado-providência, que, para poder estabelecer o controle da sociedade,
administrando as contradições sociais, políticas e regionais, e os conflitos delas resultantes,
tem procurado ampliar os direitos sociais, mesmo sem ter a certeza da existência de
recursos financeiros necessários para tanto, consagrando-os inclusive nas cartas políticas”,
sendo que tais “direitos ou não são efetivamente implementados ou, embora
implementados, não são cumpridos a contento ou de modo completo pelo Estado, o que
gera conflitos sócio-jurídicos, que vão parar na Justiça”.5
Além disso, embora seja cediço que em muitas ocasiões a simples existência de
verba não resulta na produtividade e na qualidade da tutela do serviço jurisdicional, o
Estado, conforme amplamente divulgado pelos meios de comunicação6, sequer dispõe de
condições financeiras para investir na compra de computadores para implementar os
pedidos de execução eletrônica, recentemente instituída em Portugal, no âmbito da reforma
da execução.
Mário Tavares Mendes, Diretor do Centro de Estudos Judiciários de Portugal, ao
citar estudo realizado por Margarida Proença, Catedrática de Economia da Universidade do
Minho, salienta que “o ambiente legal (compreendendo a eficácia da justiça) contribui de
5
6
Kazuo Watanabe, Processo civil e interesse público: o processo como instrumento de defesa social, São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 19-20.
A título exemplificativo, reportagem consignou que a falta de equipamentos obrigou as secretarias a
recorrerem às execuções manuais, o que inviabiliza a necessária implantação da importante reforma
realizada e que deve ser otimizada, independentemente dos problemas que se afiguram (O ESTADO de
sítio das execuções, Jornal Público, Lisboa, 12 fev. 2005, Caderno Nacional, p. 18).
11
forma activa e significativa para a actividade económica agregada, ou seja, que é possível
aumentar o nível de bem-estar numa economia melhorando e aumentando o nível de
eficácia dos tribunais. Sistemas judiciários ineficientes permitem a distorção de decisões
individuais e empresariais, e nessa medida são uma chave para assimetrias de crescimento
e desenvolvimento económico”.7
Em que pesem os problemas de ordem financeira para investir no aparelhamento
tecnológico, o Estado não tem se mostrado alheio aos problemas de ineficácia do processo
de execução, ao contrário, a partir da década de 90, tanto no Brasil8 quanto em Portugal9,
observou-se um movimento conducente ao incremento de ações tendentes à redução das
injustificáveis formalidades que emolduram o quadro da burocracia que, ao cabo,
afiguram-se como um escudo para aqueles que se esquivam do cumprimento das suas
obrigações.
Nesse diapasão, no curso do nosso estudo, abordaremos a desjudicialização do
processo de execução hipotecária como uma alternativa viável para se garantir, por um
lado, a efetividade da execução e, por outro, a redução dos “custos da justiça” e dos
contratos de financiamento, eis que é notório que os riscos inerentes ao descumprimento
dos contratos compõem uma parte dos chamados spreads praticados pelas instituições
financeiras.
7
Margarida Proença, apud Mário Tavares Mendes, Custos da justiça, in COLÓQUIO INTERNACIONAL
OS CUSTOS DA JUSTIÇA, Coimbra, 2002, Os custos da justiça: actas do Colóquio Internacional,
Coimbra, 25-27 de setembro de 2002, coordenação de João Álvaro Dias, Coimbra: Almedina, 2003, p. 33.
8
Recentemente, com o advento das Leis 11.232, de 22 de Dezembro de 2005 e n. 11.382, de 6 de Dezembro
de 2006, veio de ser aprovado, parcialmente, a reforma do processo de execução, todavia, não houve
qualquer alteração no quadro da execução extrajudicial hipotecária brasileira, mantendo-se intangível o
Decreto-Lei n. 70/66, que adiante será motivo de análise detalhada.
9
“Em Portugal, as principais reformas foram no sentido da criação de instrumentos novos, como os centros
de arbitragem, a mediação, os julgados de paz e a atribuição de competências aos conservadores do registo
civil para a realização de divórcios por mútuo consentimento. Uma das reformas mais recentes foi, ainda
neste domínio, a criação de uma nova profissão jurídica, o solicitador de execução, no âmbito da reforma
da acção executiva, com o objecto de desjudicializar e tornar o processo executivo mais eficaz. Na área das
reformas processuais tivemos, no caso do processo civil, reformas significativas no que respeita à
simplificação da fase dos articulados e da fase do recurso e, sobretudo, à criação de novas formas especiais
de processo, com destaque para a injunção”. (Boaventura de Sousa Santos, A Justiça em Portugal:
diagnóstico e terapêuticas, cit., p. 80-81).
12
De antemão, podemos afirmar que a desjudicialização dos atos da execução nada
tem de novo10, pois, como adiante veremos, perdurou durante centenas de anos no direito
romano, somente vindo a sucumbir quando do fortalecimento do Estado. Contudo, temos
que verificar a sua viabilidade prática no atual momento socioeconômico da sociedade de
consumo em que estamos inseridos.
A par disso, e não menos importante, pretendemos abordar no nosso trabalho,
focando precipuamente a doutrina e a jurisprudência portuguesas, brasileiras e espanholas
(sobretudo a chamada ejecución directa sobre bienes inmuebles hipotecados prevista na
Ley de Enjuiciamiento Civil 1/2000 da Espanha)11, o problema decorrente da adoção do
procedimento extrajudicial de execução hipotecária.
Para alcançarmos uma conclusão acerca da viabilidade ou não do aludido
procedimento, pretendemos enfrentar os questionamentos costumeiramente suscitados pela
doutrina e que há pouco serviram de fundamento para ceifar a proposta de adoção da
execução hipotecária extrajudicial em Portugal.
Imprescindível se mostrará compatibilizar a desjudicialização dos atos tendentes à
expropriação do bem imóvel com os princípios da igualdade de tratamento das partes e do
contraditório, bem como se mostrará imperiosa a superação dos princípios do monopólio
de jurisdição e da reserva ou inafastabilidade da apreciação por parte do agente judicial.
10
“Contudo, a execução extrajudicial tem sido tema de diversos projetos visando a efetividade e a segurança
da recuperação do crédito ou das garantias prestadas em negócios envolvendo valores de vulto. É o caso,
por exemplo, dos dois projetos elaborados pelo Instituto pela Unificação do Direito Privado – UNIDROIT,
que visam o aditamento da Convenção sobre o Reconhecimento Internacional dos Direitos sobre Aeronaves
de 1948, visando assegurar a concessão de crédito internacional pela implantação do chamado direito de
“sequela” (asset-based financing and leasing), através da pronta disposição dos bens subjacentes ao
empréstimo como fator primordial à apreciação do risco financeiro. Note-se que a iniciativa é assaz
relevante para se viabilizar o necessário aparelhamento da aviação civil a nível mundial nos próximos vinte
anos, posto que o investimento custará 1,2 trilhões de dólares norte-americanos e as instituições financeiras
não se dispõem a arcar com os prejuízos que adviriam da necessidade de recorrer a um judiciário moroso e
mergulhado em ações envolvendo a cobrança de valores de pequena monta.” (José M. V. Rocha, Pelo
fornecimento de aeronaves!, Revista Brasileira de Direito Aeroespacial, Rio de Janeiro, n. 76, 1999,
disponível em: <www.sbda.org.br/revista/Anterior/1661.htm>, acesso em: 27 abr. 2005.
11
Para uma abordagem acerca da execução extrajudicial hipotecária espanhola, ver: Juan José Jurado Jurado,
Procedimiento de ejecución directa sobre bienes inmuebles hipotecados, Barcelona: Bosch, 2001.
13
São essas algumas interrogações que pretendemos responder, e que, ao cabo desta
dissertação, servirão de norte para uma reflexão madura e um diálogo profícuo acerca da
necessidade premente de se buscar soluções técnicas e pragmáticas para os problemas que
se apresentam.
Ao responder a tais indagações, decerto depararemos com mudanças de
paradigmas que aparentemente para nós permaneceriam imutáveis, mas que, face ao
quadro socioeconômico em que vivemos, inevitavelmente nos induzirão à superação de
antigas discussões doutrinárias acerca, por exemplo, da natureza administrativa dos atos de
execução, do caráter jurisdicional ou satisfativo dos atos executivos.12
Em virtude disso, faz todo o sentido ao moderno processo civil a premissa “novos
tempos, novas soluções”. Contudo, no decorrer do nosso estudo também constataremos
que muitas das ditas “novas” soluções propostas nos remetem a soluções encontradas no
direito romano e medieval que, respeitando as marchas e contramarchas da história,
intrigantemente voltam a fazer sentido nos tempos modernos.
Portanto, ao esboçarmos a evolução histórica do processo de execução,
pretendemos obter as bases necessárias para compreendermos o momento contemporâneo
e os desafios que se nos apresentam na busca de novas ou o resgate de antigas soluções
tendentes a proporcionar uma maior eficácia do processo de execução da hipoteca.
A sociedade plural, fruto da revolução tecnológica e dos meios de comunicação,
clama pela eficiência da justiça13, respeitando-se, por óbvio, o direito ao acesso a um
processo equitativo; pretendemos demonstrar que ele também poderá ser alcançado por
12
Com relação à mudança de paradigmas e de mentalidades, compartilhamos das palavras de António Santos
Abrantes Geraldes, no sentido de que “de pouco valerão as inovações que foram introduzidas (no processo
civil português) se continuarem a ser interpretadas tendo como pano de fundo a hipervalorização das
normas processuais relativamente aos direitos subjectivos; de nada valerá o esforço tendente a alcançar a
simplificação processual e acelerar o andamento dos processos se não for exercitada uma verdadeira
cooperação entre os vários sujeitos; constituirão simples elementos decorativos as normas bem
intencionadas integradas no novo Código de Processo Civil se não forem interpretadas por todos como um
verdadeiro instrumento de realização do direito ao serviço do cidadão (…) e, apesar de não ser fácil a
mudança de atitudes ou de comportamentos, é salutar que se ultrapasse a natural inércia resultante de
hábitos consolidados pela aplicação, durante décadas, de normas processuais distintas” (Temas da reforma
do processo civil, 2. ed., Coimbra: Almedina, 2003, v. 1, p. 46-47).
13
A Justiça portuguesa, à luz do diagnóstico do Observatório Permanente da Justiça, possui quatro grandes
problemas, quais sejam: investigação, ineficiência, morosidade, inacessibilidade e desperdício. (Boaventura
de Sousa Santos, A Justiça em Portugal: diagnóstico e terapêuticas, cit., p. 82).
14
meio de chamada execução hipotecária extrajudicial, muito embora, repita-se, a questão já
tenha sido debatida quando da reforma da ação executiva em Portugal e, naquela altura,
não tenha sido aprovada por vários motivos, dentre os quais a proibição do pacto
comissório, estampada no artigo 694º do Código Civil.
Sucede que, sem prejuízo de entendermos ser absolutamente viável a retomada do
diálogo acerca da desjudicialização da execução hipotecária no âmbito acadêmico, o
Decreto-Lei português n. 105/2004, de 8 de maio, relativizou o pacto comissório, ao
admitir que, nos contratos de alienação fiduciária e de penhor previstos no referido
diploma legal, as garantias financeiras poderão ser revertidas aos credores. Portanto, o
problema em tela, sob a nossa ótica, também não se afigura como intransponível em sede
legislativa.
Diante disso, afigura-se a presente dissertação como uma reflexão acerca da
viabilidade de se desjudicializar, na sua plenitude ou não, os atos tendentes à expropriação
do bem hipotecado, para que se reserve ao Judiciário as questões que efetivamente são de
relevo para a sociedade e que também, devido ao atoleiro de processos decorrentes dos
contratos de financiamento em massa, lamentavelmente se distancia a passos largos do seu
desiderato de promover a pacificação social e o bem comum.
A morosidade do Judiciário é a própria negação da justiça e, como adiante
veremos, a aplicação do princípio ibi commoda ubi incommoda àqueles que auferem os
maiores lucros no mercado, embora não seja a única solução para os problemas do
Judiciário, decerto é uma das medidas que melhor se adequarão às necessidades da
coletividade e da manutenção do Estado Democrático de Direito numa sociedade moderna.
1
EVOLUÇÃO
HISTÓRICA
DA
JURISDIÇÃO
E
DO
PROCESSO DE EXECUÇÃO – BREVE CONSPECTO
1.1 Da autotutela à execução estatal – Jurisdição no direito
romano
Ao abordar a desjudicialização do processo de execução num contexto histórico14,
irremediavelmente chegaremos à conclusão de que não estamos percorrendo o caminho do
inusitado, ou quiçá logrando alcançar uma grande descoberta jurídica. Tal conclusão
decorre do fato de que aproximadamente em 450 a.C., com a paulatina evolução das civitas
romanas e com a crescente condição ético-social do povo, alcançou-se a convicção de que
a autotutela15 era ineficiente para viabilizar a pacificação social.16
Se atualmente alguém não cumpre voluntariamente a sua obrigação de pagar, o
direito impõe que o lesado chame o Estado-juiz para fazer com que as coisas se disponham
na realidade prática, conforme a vontade do ordenamento jurídico para o caso concreto.
Entretanto, à falta de normas gerais e abstratas impostas pelo Estado aos particulares, bem
14
Considerando ser imperioso, preliminarmente à abordagem propriamente dita da evolução do conceito de
jurisdição e do processo executivo no direito romano, obter uma visão histórica e, no particular, do direito
romano, mesmo que não reconhecidos com unanimidade entre os historiadores, há um certo consenso entre
os estudiosos em aceitar a divisão da história do direito de Roma em três períodos distintos, quais sejam, o
arcaico, que vai da fundação de Roma, em aproximadamente 753 a.C., ao segundo século antes de Cristo;
segue-se o período clássico, que atravessa a República tardia, enfrenta o início do Principado e prossegue
até antes da chamada anarquia militar, que ocorreu entre os anos 235-285, já de nossa era; o último ciclo,
conhecido como período tardio ou pós-clássico, encerra-se com o fim do Império, após o saque de Roma
pelos vândalos e a deposição de Rômulo Augústulo, último imperador do Império Romano do Ocidente,
por Odoacro, chefe dos hérulos, o que ocorreu no ano de 476 e que, para muitos, marca o fim da Idade
Antiga e o início da Idade Média. No que diz respeito especificamente à história do processo civil romano,
que nos interessa mais de perto, podemos dividi-la da seguinte forma: ao referido período arcaico do direito
romano corresponde a prática do processo segundo as ações da lei (legis actiones); a fase clássica convive
com o processo formular (per formulas); e, finalmente, a cognitio extra ordinem, que predominou durante o
período pós-clássico. Entendemos ser de relevo para o desenvolvimento deste estudo também o
conhecimento dos períodos correspondentes aos regimes políticos que subsistiram em Roma, visto que,
conforme adiante se demonstrará, a estatização da execução tem relação direta com o desenvolvimento do
Estado e a concentração do poder na figura do imperador. Destarte, podemos afirmar, mesmo com a
ressalva de parte da doutrina, que o primeiro regime foi o da realeza ou monarquia, que tem início com a
fundação da cidade, em 753 a.C., e se extinguiu em 509 a.C., quando implantada a República. Com a
tomada do poder por parte da classe nobre, após uma série de reformas instituídas favoravelmente às
classes populares, implantou-se uma oligarquia republicana.
15
Note-se que o artigo 1º do Código de Processo Civil português rejeita o recurso à autodefesa.
16
Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover; Cândido Rangel Dinamarco; Teoria geral do
processo, 9. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992, p. 24.
16
como diante da inexistência de um terceiro independente e imparcial com credibilidade
suficiente para impor a decisão aos litigantes, torna-se perfeitamente compreensível a
prevalência de uma litigiosidade, que se afigura como o recurso à força por parte daquele
que, impossibilitado de obter por si mesmo, pretende alguma coisa que outrem o obsta de
conseguir.
Conforme lecionado por Antunes Varela, o sistema da autodefesa (ou autotutela)
“falha naturalmente sempre que a força, de facto, não se encontra do lado do ofendido, mas
de quem prevarica. Por outro lado, quando a vis não falta a quem é injustamente
prejudicado, a debilidade do sistema provém do perigo constante de excesso da reacção
decretada pelo mais forte. Por último, mesmo quando haja equilíbrio individual ou social
de forças entre os opositores, exsurge a fraqueza do regime da justiça unilateral de cada um
deles, como juiz em causa própria”.17
E, iniciando o processo de publicização do processo de execução em
contraposição à autodefesa, a Lei das XII Tábuas enunciava a condição da confessio in iure
(confissão em juízo) e a iudicatio (sentença) para que se promovesse a execução de
dívidas.
Consoante Sebastião Cruz18, “a confessio in iure das dívidas em dinheiro e a
iudicatio sobre qualquer débito não davam direito a uma execução imediata da dívida, a
efectuar pelas próprias mãos do credor. Eram apenas título para o credor agarrar o
responsável manus iniectio – manus iniectio de facto ou, sob certo aspecto directa –, e
levá-lo a um novo juízo, acção executiva”. Esse procedimento executivo se realizava
mediante a legis actio per manus iniectionem19, que mais tarde, sob nova roupagem, e
mesmo sem desaparecer por completo, foi sucedida pela actio iudicati.
Portanto, assiste razão à melhor doutrina quando ressalta que “no direito romano,
a jurisdição (jurisdictio, dicção do direito) não abrangia o poder do juiz in executivis; a
17
João de Matos Antunes Varela, O direito de acção e a sua natureza jurídica, Revista de Legislação e de
Jurisprudência, ano 125, n. 3.824, p. 326-327, 1992-1993.
18
Sebastião Cruz, Direito romano, 4. ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1984, v. 1, p. 188.
19
Na fase cognitiva, as actio legis eram essencialmente solenes e processavam-se primeiramente perante o
magistrado que, juntamente com as partes, escolhia um juiz popular (iudex privatus) para dirimir as
questões controvertidas, ficando a citação a cargo do autor, que deveria conduzir o devedor ao juízo (in
iure).
17
pouca participação que inicialmente tinha o juiz na execução forçada fundava-se em outro
poder (imperium) e não na jurisdição”.20
Em linhas gerais, preceituava a 1ª Lei da Tábua III o seguinte:
“Aquele que confessa dívida perante o magistrado ou é condenado, terá
30 dias para pagar. Esgotados os 30 dias e não tendo pago, que seja
agarrado e levado à presença do magistrado. Se não paga e ninguém se
apresenta como fiador, que o devedor seja levado pelo seu credor e
amarrado pelo pescoço e pés com cadeias com peso até ao máximo de 15
libras; ou menos, se assim o quiser o credor. O devedor preso viverá à sua
custa, se quiser; se não quiser, o credor que o mantém preso dar-lhe-á por
dia uma libra de pão ou mais, a seu critério. Se não há conciliação, que o
devedor fique preso por 60 dias, durante os quais será conduzido em três
dias de feira ao comitium, onde se proclamará em altas vozes o valor da
dívida. Se são muitos os credores, é permitido, depois do terceiro dia de
feira, dividir o corpo do devedor em tantos pedaços quantos sejam os
credores, não importando cortar mais ou menos; se os credores
preferirem21, poderão vender o devedor a um estrangeiro, além Tibre.”22
20
Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover; Cândido Rangel Dinamarco; Teoria geral do
processo, cit., p. 120.
21
Embora a execução civil romana tenha cumprido a sua função de forçar a vontade do litigante vencido a
acatar a sentença e não tanto de proporcionar ao vencedor a satisfação dos seus direitos, ressalva-se que não
se tem conhecimento histórico de que tenha ocorrido algum caso de morte do devedor em virtude da
previsão estampada na Tábua III. Segundo Cândido Rangel Dinamarco, esse sistema de ameaça de um mal
maior em virtude do inadimplemento, que não dá efetividade aos preceitos jurídicos, mas somente põe o
obrigado em verdadeiro dilema, traduzindo-se em medida de pressão psicológica sobre o devedor para que
cumpra a sua obrigação, corresponde ao que hoje se chama execução indireta. A execução indireta traduzse “nas sanções de direito material, multas inclusive, bem como da prisão admissível em certos casos e das
astreintes (multas cominatórias ou sanções pecuniárias), que não se integram no conceito técnicoprocessual de execução ou execução forçada” (Execução civil, 8. ed., São Paulo: Malheiros, 2002, p. 106).
José Lebre de Freitas afirma que, em relação às medidas que visam a coacção indireta do devedor ao
cumprimento de obrigações impostas, mas susceptíveis de execução específica (art. 829-A do CC), em
outros sistemas jurídicos a ameaça pode ser não apenas de uma sanção pecuniária, mas também de uma
sanção pessoal (detenção coercitiva): é o que acontece no direito anglo-saxônico com a contempt of Court,
consequentemente à violação de uma injuction judicial, e no direito alemão (§§ 888 e 890 da ZPO), em que
o juiz tem a escolha entre as duas sanções, que pode aplicar sucessivamente e repetir, independentemente
de prova da culpa do devedor (visto não se tratar de penas criminais, mas de meios coercitivos) e com o
limite, para a segunda, de seis meses de duração. (José Lebre de Freitas, A ação de execução: depois da
reforma, 4. ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 19). Salienta-se ainda que no direito romano, em razão
da falta de dignidade daquele que não cumpria o decisum, apenas admitia-se que um terceiro o substituísse
para defendê-lo (vindex), com o intuito de resgatar a dívida ou apresentar oposição, tornando-se, contudo,
obrigado pelo processo daí para frente, visto que “a recusa de atendimento à sentença era havido como ato
de má-fé e daí não se considerar o inadimplente digno de se defender por si próprio” (Humberto Theodoro
Júnior, Execução de sentença e a garantia do devido processo legal, Rio de Janeiro: Aide, 1987, p. 89).
Convém esclarecer, valendo-nos do escólio de Santos Justo, que na época das legis actiones, o objeto sobre
o qual recai primordialmente a execução da sentença é a pessoa do devedor, justamente porque à época
considerava-se infame aquele que descumprisse o veredicto, razão pela qual o magistrado o entrega ao
litigante vencedor através duma addictio. A execução pessoal subsiste na época clássica do direito romano,
porém, a partir do século II a.C., o pretor começou a admitir a execução sobre os bens do vencido,
oferecendo ao demandante vencedor a faculdade de optar entre a execução pessoal e a execução
patrimonial. E a partir duma Lex Iulia de bonis cedendis (do ano 17 a.C.), o litigante vencido podia evitar a
execução pessoal, cedendo todos os seus bens (cessio bonorum) ao vencedor, que devia proceder à sua
venda e ressarcir-se com a pecunia obtida.
22
Dinamarco, Cândido Rangel, Execução civil, cit., p. 35.
18
A propósito da evolução havida no direito a partir do advento da legis actio per
manus iniectionem, Sebastião Cruz assevera que “vê-se claramente que a vindicta privata
(isto é, a faculdade de poder o titular dum direito executá-lo pelas suas próprias mãos) não
era admitida na Lei das XII Tábuas, pelo menos como princípio geral. Isto representa um
grande avanço em relação aos estágios primitivos das antigas sociedades”.23
Foi com o advento da Lex Poethelia Papiria de nexis de 326 a.C. que “a
incidência da vis coactiva e executiva sobre a pessoa do devedor se começa a transferir
para os seus bens (bona debitoris non corpus obnoxium, nas palavras de Tito Lívio)”24. A
evolução do carácter estritamente pessoal da obligatio para o carácter patrimonial, iniciada
mas não completada com a Lex Poethelia25 – a execução pessoal continuou, na verdade,
até fins da República – avançou celeremente com o cristianismo, graças aos princípios da
caridade e da fraternidade.
Por conseguinte, podemos depreender que no direito romano, sobretudo
anteriormente ao período pós-clássico, o exercício da função jurisdicional por parte do
agente judicial não ia além dos poderes que detinha no processo de conhecimento, sendo
certo que, conforme adiante se demonstrará, no direito luso-brasileiro, até tempos recentes,
a reserva do juiz não se colocaria em causa.26
23
Sebastião Cruz, Direito romano, cit. ,v. 1, p. 188.
João Calvão Silva, Sanção e pena pecuniária compulsória, 4. ed., Coimbra: Almedina, 2002, p. 210.
25
Na Lex Poetelia, verificamos a concorrência de normas atenuadoras da execução, a saber: a) proibiu a
morte e o acorrentamento do devedor; b) institucionalizou o que antes era simples alternativa oferecida ao
credor, ou seja, a satisfação do crédito mediante a prestação de trabalhos forçados; c) permitiu que o
executado se livrasse da manus iniectio, repelindo a mão que o prendia mediante juramento de que tinha
bens suficientes para satisfazer o crédito; e, acima de tudo isso, extinguiu o nexum, passando então o
devedor a responder por suas obrigações com o património que tivesse, não mais com o próprio corpo
(Cândido Rangel Dinamarco, Execução civil, cit., p. 46).
26
A título ilustrativo, para demonstrar a mudança de paradigma em curso, Casalta Nabais, ao analisar o atual
procedimento de execução fiscal português, leciona que a execução tramita perante a administração
tributária (nos serviços de finanças do domicílio ou sede do devedor ou da situação dos bens e, em parte,
nos Tribunais tributários de 1ª instância): “Nos termos do artigo 151º do Código de Procedimento e de
Processo Tributário (Decreto-Lei n. 433/99, de 26 de outubro), cabe a estes decidir os embargos, a
oposição, incluindo quando incida sobre os pressupostos da responsabilidade subsidiária, a graduação e
verificação dos créditos e as reclamações dos actos materialmente administrativos praticados pelos órgãos
da administração tributária em sede de execução fiscal. Cabendo, por conseguinte, à administração
tributária a prática de todos os demais actos, designadamente a instauração da execução, a citação dos
executados, a reversão da execução contra terceiros, a penhora dos bens, a venda dos bens penhorados, a
anulação da venda, a anulação da dívida, a extinção da execução, etc.” (Direito fiscal, 2. ed., Coimbra:
Almedina, 2003, p. 246).
24
19
Segundo João Lace Kuhn27, a decisão do iudex, tal qual se verifica hoje no
processo ordinário, era uma exortação ao devedor/réu para cumprir o julgado no prazo de
trinta dias da decisão, somente após, tal qual hoje sucede com o trânsito em julgado,
poderia o autor promover a execução do seu título, para ver satisfeito o direito.
E a execução ocorria tão-somente no âmbito privado, responsabilizando-se o
credor pela realização dos atos tendentes à satisfação do seu direito, todavia, estando
sempre vinculado ao texto normativo, e sob a supervisão do iudex privatus.28
Portanto, sob a nossa ótica, o simples fato de ao credor haver sido conferido o
cumprimento dos atos executivos não se traduziu no exercício da autotutela por parte do
mesmo, uma vez que deveria sempre atuar nos estritos limites do permissivo legal, sendo a
lei a dosagem permitida da sua atuação.
Dessa forma, ao submeter o antigo regime da autotutela aos estritos limites da lei,
pode-se afirmar que a superação da vindicta privata encontrou supedâneo no avanço
político-social havido na correlação sociedade e direito, isto é, na credibilidade alcançada
por este, a ponto de assumir uma função ordenadora, na busca da pacificação social e do
bem comum.
De fato, inegavelmente o direito foi paulatinamente assumindo a função de
coordenar eficazmente os interesses que se manifestam na vida social, de modo a organizar
a cooperação entre as pessoas e a composição dos conflitos que se verificavam entre os
seus membros.
27
João Lace Kuhn, O princípio do contraditório no processo de execução, Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 1998, p. 36.
28
Ultrapassados os períodos arcaico e clássico, que reunidos formam a fase conhecida por ordo iudiciorum
privatorum, veio outro “que se caracterizou pela invasão da área que antes não pertencia ao pretor:
contrariando a ordem estabelecida, passou este a conhecer ele próprio do mérito dos litígios entre os
particulares, proferindo sentença inclusive, ao invés de nomear ou aceitar a nomeação de um árbitro que o
fizesse. Esta nova fase, iniciada no século III d.C., é, por isso mesmo, conhecida por período da cognitio
extra ordinem. Com ela completou-se o ciclo histórico da chamada justiça privada para a justiça pública: o
Estado, já suficientemente fortalecido, impõe-se sobre os particulares e, prescindindo da voluntária
submissão destes, impõe-lhes autoritariamente a sua solução para os conflitos de interesse” (Antônio Carlos
de Araújo Cintra; Ada Pellegrini Grinover; Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, cit., p.
26).
20
Ao pautar a sua atuação na harmonização das relações intersubjetivas, valendo-se
sempre dos valores do justo e do eqüitativo prevalentes em determinado momento e lugar,
naquilo que Ulpianus já apregoava como a “vontade constante e perpétua de atribuir a cada
um o que é seu”, a superação da autotutela, que teve lugar num primeiro momento, e a
superação da execução pessoal pela patrimonial, ocorrida num segundo momento, soa-nos
como o norte a ser perseguido pela humanidade, qual seja, o de viabilizar a máxima
realização dos valores humanos, com o mínimo de sacrifício e desgaste.
No entanto, somos impelidos a discordar da respeitável posição adotada por
Cândido Rangel Dinamarco que, ao referir que “os atos de sub-rogação exercidos no
processo executivo são, por sua própria natureza, substitutivos da atividade unilateral do
sujeito que se diz credor, a qual se resolveria em ilegítima autotutela e é punida por lei”,
relaciona a atividade executiva realizada pelo exeqüente como autotutela.
Em que pese todo o respeito ao posicionamento adotado pelo representante da
escola paulista de direito processual civil, consoante o que estudamos até o presente
momento, estamos convencidos de que a eventual realização de atos executivos por parte
do credor, desde que balizados nos limites da lei, em nada se concilia com a idéia de
autotutela, justamente em razão da exata dosagem previamente prevista no texto legal.
Portanto, para que pudéssemos vislumbrar qualquer relação da atividade do credor
contra o devedor com a autotutela, preliminarmente deveríamos verificar se a ação é
compatível com o ordenamento jurídico.
Assim, por exemplo, desde que autorizado a realizar a venda particular de
determinado bem, como no caso de um contrato de penhor, desde que o credor realize o
leilão nos estritos limites da lei, isso em nada se traduz em autotutela, justamente pela
vedação do livre-arbítrio na consecução do fim almejado pelo credor que, provavelmente,
prescindiria da realização de um leilão para, com o resultado, satisfazer o seu crédito
inadimplido.
Na sequência da publicização do processo executivo, no período pós-clássico
chega o direito romano à fase da cognitio extra ordinem, quando “já não era o credor, nem
um ou alguns credores, por autoridade própria ou autorizado pelo magistrado, quem
21
procedia à guarda ou à venda dos bens do executado. Disso eram incumbidos os órgãos
auxiliares do magistrado (chamados apparitores), correspondentes ao oficial de justiça dos
tempos modernos”.29
Note-se que tal sistema foi criado inicialmente para apreciar as causas
consideradas não civis, como as de natureza administrativa, que não se subordinavam à
regra do ordo iudiciorum privatorum.
O feito desenvolvia-se integralmente perante o magistrado, o que proporcionou o
incremento do caráter publicístico do processo, passando então o réu a ser chamado ao
processo através do magistrado, que detinha o poder da evocatio, que posteriormente
Constantino aprimorou na figura da litis denuntiatio, sempre por meio de órgão público.
Nessa fase, no procedimento conhecido por pignus in causa iudicati captum, os
apparitores apanhavam algum bem do devedor, suficiente para cobrir o débito, não mais
todo o patrimônio, e sobre esse bem se constituía um penhor em benefício do exeqüente –
pignus; se não ocorresse o pagamento até que decorridos dois meses da apreensão, o bem
seria vendido em hasta pública. Com o penhor nascia para o exeqüente um direito de
prelação sobre o objeto, de modo que, salvo resíduos, ele não poderia servir à satisfação de
outros credores (prior tempore postior iure).
É nesse período, quando já se conhecia a execução para a entrega de coisa certa,
de quantia certa contra devedor solvente e insolvente, que a execução toma a forma de um
verdadeiro processo jurisdicional. Surge mais tarde a chamada execução in natura,
destinada à entrega de coisa determinada, com a conversão em pecunia apenas em caso de
impossibilidade de execução direta.
Na fase derradeira do Império Romano do Ocidente, o Imperador Justiniano
incumbiu Tribuniano de sistematizar o direito, naquilo que posteriormente foi designado
por Godofredo, em 1583, como Corpus Iuris Civilis.
29
Cândido Rangel Dinamarco, Execução civil, cit., p. 49-50.
22
Uma vez elaborada a compilação, o Estado definitivamente assumia os atos
executivos “pela sua própria autoridade e pelos seus próprios meios”, graças à
consolidação do poder público e à gradativa mudança socioeconômica. A execução pessoal
persistiu apenas residualmente, mas com a característica de que o devedor era recolhido a
cárcere público, mas não mais privado, motivo pelo qual se pode aplicar à execução
justinianéia o conceito atual de execução forçada, qual seja, o de concreta “aplicazione
della sanzione a sequito dell’accertamento di una violazione dell’ordine giuridico”.30
1.2 A execução no direito intermédio
Com a queda do Império Romano do Ocidente, no século V d.C., muitas das
conquistas alcançadas no direito romano passaram ao esquecimento, tendo em vista que os
bárbaros invasores viviam predominantemente em estágio rude, predominando a força,
especialmente no meio jurídico, pois o Estado não tinha meios e muito menos autoridade
para interferir nas contendas envolvendo particulares.
Por isso, houve um regresso à prática da autotutela e à execução pessoal como
formas ordinárias de solução dos litígios, pois, a essa altura, o inadimplemento de uma
obrigação era tido como uma ofensa à pessoa do credor, e não mais uma infâmia contra o
julgado, como sucedia em Roma.
Contudo, adiante verificaremos que a índole prática e menos formalista trazida
pelos bárbaros, a partir da paulatina fusão com o conhecimento advindo do direito romano,
possibilitou o alcance de soluções úteis e de inegável alcance que, mutatis mutandis,
predominam até hoje nos países integrantes da família romano-germânica do direito.
Denotando o retrocesso havido após a invasão bárbara, na execução longobarda, o
“devedor respondia ainda com a sua pessoa pelas obrigações, podendo ser mantido em
cárcere privado pelo credor, à espera de pagamento; ficava ao critério do credor a escolha
da execução corporal ou patrimonial, sendo que, a assembléia dos homens livres (detentora
do poder de jurisdição) se limitava a apenas realizar um juízo incidental sobre a
30
Humberto Theodoro Júnior, Execução de sentença e a garantia do devido processo legal, cit., p. 113.
23
admissibilidade da execução em curso, sem que a penhora, que se fazia por autoridade
privada, tivesse por pressuposto qualquer condição ou autorização prévia do órgão
jurisdicional”.31
Ressalte-se que se em Roma a execução dependia de cognição prévia, entre os
bárbaros somente após a penhora podia o devedor pedir um pronunciamento por parte do
órgão jurisdicional32, que se limitava a verificar se o contrato (instrumenta) estava
formalmente constituído com cláusula executiva aceita pelo devedor e estabelecida perante
o magistrado competente (iudex chartularius).
Caso o credor não dispusesse do título, a assembléia dos homens livres poderia ser
invocada para ordenar que o devedor ofertasse uma declaração de vontade a esse respeito,
sob pena de perda da sua paz pública.
Os instrumenta guarentigiata afiguravam-se como confissões de dívida que
possibilitavam a execução forçada, sem a exigência de nova cognição e, indubitavelmente,
com a ulterior fusão do direito germânico com o direito romano, representaram um grande
avanço para a viabilização da transferência de riquezas.
Note-se que se caso lograsse comprovar a inexistência do crédito, o exeqüente
seria condenado a pagar ao executado a mesma quantia indevidamente cobrada, tal qual
atualmente sucede no direito brasileiro.
Por volta do ano 1000, com o aumento da fusão dos povos e o avanço do
comércio, estabeleceram-se populações urbanas, dando origem às chamadas “comunas”,
como unidades política, social e economicamente fortalecidas, o que viabilizou o
aperfeiçoamento das instituições jurídicas e o surgimento de legislações comunais, que
proporcionaram o crescimento da autoridade, a mitigação de sanções corporais contra o
31
32
Cândido Rangel Dinamarco, Execução civil, cit., p. 56.
Ao analisar a recente reforma havida no processo de execução português, Paula Costa e Silva, ao
reconhecer que houve um alargamento no leque de situações em que o executado só tem contato e,
consequentemente, conhecimento da execução após a concretização da penhora, lamenta que o legislador
não tenha levado até o fim esse princípio de reserva de execução, quando se verifique receio da perda da
garantia patrimonial, caso o executado seja citado antes de efetuada a penhora (A reforma da acção
executiva, 3. ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2003, p. 19).
24
devedor, com a substituição do cárcere privado pela prisão em cárceres públicos, às
expensas do credor.
A partir da evolução política das “comunas” e por uma exigência de caráter social,
foram proibidos os atos de violência privada, sendo que somente no século XIII alcançouse o procedimento segundo o qual é inerente ao próprio ofício do juiz a efetivação dos atos
de invasão patrimonial, em que consiste a execução forçada, até a final satisfação do
credor.
A execução deveria ser mero prosseguimento do processo após a condenação
(officium judicis), e o seu exercício independeria da propositura de uma nova ação pelo
vencedor.33
A citação do devedor teria tão-somente lugar após ultimada a constrição do bem
objeto da execução forçada. Se a execução fosse lastreada num título extrajudicial
(instrumenta), o devedor deveria ser citado logo no início do processo, e posteriormente
teria lugar uma cognição sumária, com possibilidade de defesa e de decisão ao fim: já se
está diante do chamado processus sumarius executivus.
A essa altura, os atos executivos eram realizados por intermédio de executores,
restaurando-se, por conseguinte, “aquele estágio de publicização atingido no processo
romano extra ordinem e instituído o sistema que, em linhas gerais, haveria de subsistir até
os tempos modernos, com a feitura de avaliação, publicação de editais e venda do bem pela
melhor oferta, restituindo-se ao executado a diferença que eventualmente lhe aproveitasse
entre o valor do débito e o alcançado na alienação judicial”.34
33
A chamada execução de ofício foi objeto do Projeto de Lei n. 4.497/2004, todavia, ao término dos
trabalhos legislativos, não integrou o quadro da chamada execução por título judicial, atualmente reputada
como “cumprimento da sentença” pela Lei n. 11.232, de 22 de dezembro de 2005, vez que no Brasil
compete ainda ao vencedor, por meio de requerimento endereçado ao juízo a quo, a iniciativa para que se
inicie tal execução ou cumprimento. Entretanto, convém destacar que, segundo Athos Gusmão Carneiro, o
idealizador da reforma havida no Brasil, para a superação do processo formalista, demorado e sofisticado,
realizado de forma autônoma, réplica da actio iudicati do direito romano, a reforma contempla um “parcial
retorno aos tempos medievais, mediante a restauração do bom princípio de que sententia habet paratam
executionem” e o parcial retorno à execução per officium iudicis, na medida em que não mais se cogita da
formação de um novo processo para o cumprimento da sentença (Novas reformas do Código de Processo
Civil. Do cumprimento da sentença, conforme a Lei n. 11.232/2005. Parcial retorno ao medievalismo? Por
que não?, Revista do Advogado, São Paulo, Associação dos Advogados de São Paulo, ano 26, n. 85, p. 13,
maio 2006).
34
Cândido Rangel Dinamarco, Execução civil, cit., p. 63-64.
25
Consoante o que sucede até hoje no direito português, relativamente à proibição
do pacto comissório – que, sob a nossa ótica, foi recentemente foi relativizado em relação a
contratos de garantia financeira, consoante as disposições do Decreto-Lei n. 105/2004, de 8
de maio35 –, não podia o próprio exeqüente, em princípio, participar da licitação, mas na
ausência de licitantes, o bem lhe seria adjudicado.
Em França, por influência do direito consuetudinário, no século XVI outorgou-se
legislativamente a plena eficácia executiva às lettres obligatio ius e, por conseguinte,
unificou-se o processo executivo36, sem cognição, sendo a execução feita pelo sergent, que
se afigurava como um órgão da Administração, e não da Justiça, destituído de jurisdição e
que por isso mesmo não podia julgar da procedência ou improcedência da pretensão do
portador do título.
1.3 A evolução da ação de execução em Portugal
As coordenadas históricas que envolveram a gênese e o processo evolutivo da
ação de execução no direito português inegavelmente deixaram e continuam a deixar a sua
marca histórica no direito brasileiro, a par das suas exuberantes particularidades, sobretudo
a partir do século XIII, quando Portugal incorporou o substrato comum dos direitos
pertencentes à família romano-germânica do direito, acrescido do elemento cristão.
O processo evolutivo do direito português, embora sem pressupor um critério
homogêneo, segundo Almeida Costa, pode ser reduzido, desde os alvares da nacionalidade,
pouco antes dos meados do século XII, até à época presente, a três ciclos básicos, bem
35
O referido decreto-lei transpôs para a ordem jurídica portuguesa a Diretiva n. 2002/47/CE do Parlamento
Europeu e do Conselho, de 6 de junho, relativa aos acordos de garantia financeira, inserindo-se no âmbito
de objetivos genéricos de limitação dos riscos sistêmicos inerentes ao funcionamento dos sistemas de
pagamento e de liquidação de valores mobiliários. De fato, uma das novidades mais significativas do
diploma em tela respeita ao contrato de penhor financeiro, e corresponde à aceitação do pacto comissório,
em desvio da regra consagrada no artigo 694º do Código Civil português, que expressamente dispõe que “é
nula, mesmo que seja anterior ou posterior à constituição da hipoteca, a convenção pela qual o credor fará
sua a coisa onerada no caso de o devedor não cumprir”.
36
Tal unificação de procedimentos foi mantida no Código Napoleônico e influenciou largamente os países
europeus. Inclusive, em Portugal não se diferencia a eficácia da sentença condenatória e dos títulos de
crédito, contrariamente ao que ainda sucede no direito brasileiro, onde, mesmo após a reforma, permanece
a dualidade de tratamentos.
26
distintos, com duração, perspectiva e significado muito diversos. São eles: a) período de
individualização do direito português; b) o período do direito português de inspiração
romano-canônica; c) o período de formação do direito português moderno.37
No que concerne especificamente ao objeto do nosso estudo, causa especial
interesse o período de inspiração romano-canônica que, iniciando-se em meados do século
XIII38, apenas se encerrou na segunda metade do século XVII, correspondendo-lhe a força
de penetração avassaladora do chamado ius commune.
Em meados do século XV, com o início da codificação oficial, as Ordenações
Afonsinas caracterizaram a independência, ao menos formal, do direito próprio do Reino
em face do direito comum, esse subalternizado ao posto de fonte subsidiária.
Contudo, o sistema jurídico português dos nossos dias tem seu começo em
meados do século XVII, coincidindo com o consulado do Marquês de Pombal, e se
consubstanciou a partir do advento da chamada Lei da Boa Razão, de 1769, e os Estatutos
da Universidade, de 1772.
Um marco histórico na linha evolutiva do direito português e, consequentemente
do processo de execução, foi que, desde Afonso III, a lei deixou de constituir uma fonte
esporádica e transformou-se no modo corrente de criação do direito, elaborada sem
necessidade do suporte político das Cortes, destacando-se a atenção dedicada à matéria de
processo, visto que, a essa altura, “a defesa da ordem jurídica tornou-se encargo exclusivo
do Estado, que aparece como titular único do ius puniendi”39, em oposição a todas as
manifestações de justiça privada ou autotutela do direito.
37
Mário Júlio de Almeida Costa, História do direito português, Coimbra: Almedina, 1989, p. 174.
Desde o início do século XIII, começaram a escassear as referências ao Código Visigótico nos documentos
portugueses, como reflexo de uma progressiva perda da sua autoridade e à medida que a legislação geral e a
eficácia do direito romano-canônico se foram incrementando. De fato, com a redescoberta do Corpus Iuris
Civilis e o impulso dado por Irnério ao seu estudo na Escola de Bolonha, o recém-criado Reino de Portugal,
feudatário da Santa Sé, encaminhou estudantes e procurou atrair mestres para disseminar o conhecimento e
a aplicação da obra justinianéia às matérias temporais. No entanto, a recepção do direito justinianeu em
Portugal ocorreu de forma progressiva e morosa ao longo do século XIII, quando houve uma paulatina
penetração das normas e da ciência do direito romano com o canônico, com progressiva substituição do
empirismo que predominava.
39
Mário Júlio de Almeida Costa, História do direito português, cit., p. 265-266.
38
27
Nas Ordenações Afonsinas, mantendo a tradição que, conforme estudado, remonta
ao Corpus Iuris Civilis, a execução era estatal40, realizada com base em sentença, tendo em
vista que o direito das Ordenações ignorou os títulos executivos extrajudiciais41, que
somente foram introduzidos no ordenamento jurídico do país quando da edição do Código
de Processo Civil de 1876, ou seja, após a independência do Brasil.
Nas Ordenações Manoelinas, a execução das sentenças era feita ex officio iudicis,
sendo que alguns negócios (aqueles que no direito medieval habent paratam executionem)
conduziam a uma ação cognitiva sumária designada assinação de dez dias, que vigorou
também no Brasil após as Ordenações, e que, pela doutrina geralmente é assimilada à actio
iudicati romana.42
O mesmo regime das execuções previsto nos diplomas jurídicos antecessores
também foi mantido nas Ordenações Filipinas, inclusive no tocante à “assinação de dez
dias para as dívidas contraídas mediante escritura pública, ou alvarás, ou dotes, ou mesmo
para as sentenças, quando o condenado houvesse mudado de domicílio, ou tivesse bens
penhoráveis fora do território do juiz que houvesse proferido a decisão”.43
A ação executiva, que era um processo autônomo face ao de conhecimento, era
realizada pelo órgão jurisdicional, sendo competente em geral o juiz que tivesse julgado a
causa em primeira instância, regra que ainda permanece vigente no Código de Processo
Civil brasileiro (art. 575 do CPC).44
40
Sob a influência do direito germânico, continuava-se a admitir a prisão do devedor, que era mantido em
cárcere público, caso não cumprisse a obrigação de natureza infungível; em regra, após a sentença, todavia,
aboliu-se a tradição visigótica de possibilitar a penhora do devedor, que se submetia à escravidão.
41
Em Espanha, o juicio sumario ejecutivo, lastreado em título executivo extrajudicial (instrumenta), remonta
ao ano 1360, quando passou a ser utilizado em Sevilha, que à época era um importante centro comercial e
necessitava de instrumentos seguros e credíveis pela sociedade e que possibilitassem a pronta recuperação
dos créditos, bem como a transferência de riquezas.
42
José Alberto dos Reis, Processo de execução, Coimbra: Coimbra Editora, 1957, p. 27.
43
Cândido Rangel Dinamarco, Execução civil, cit., p. 70.
44
José Alberto Reis, ao comentar o artigo 90º do Código de Processo Civil português de 1939, sublinha que a
competência para a execução do título judicial era do tribunal de 1ª instância em que a causa foi julgada
para a tramitação da execução (atração do foro executivo pelo foro declarativo), vez que seria mais
vantajoso que a execução se fizesse estando à vista o próprio título executivo (Código de Processo Civil
anotado, 3. ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1948, reimpr. de 2004, p. 230). Com a reforma introduzida pelo
Decreto-Lei n. 38/2003, de 8 de março, verificou-se a substituição, quanto à execução de título judicial, do
princípio da coincidência da competência declarativa com a competência executiva, em prol de uma
coincidência apenas territorial. “Se antes da reforma, o tribunal que proferia a sentença condenatória seria o
tribunal que faria a execução, o que se estabelece agora é que será sempre um tribunal do mesmo lugar em
que a causa tenha sido julgada, tribunal que poderá ser um juízo de execução ou, na sua inexistência, o
próprio tribunal que proferiu a sentença” (Rui Pinto, A acção executiva depois da reforma, Lisboa: Lex,
2004, p. 54).
28
A penhora era realizada por tabelião ou escrivão, se o importe da dívida passasse
de mil-réis, ou pelo porteiro, em caso contrário (Ordenações, L. 3, T. LXXXIX, pr.).
Não havia avaliação dos bens penhorados45, após a penhora tinham lugar os
pregões e finalmente a alienação pela maior oferta. Existia a possibilidade de adjudicação
do bem ao credor, desde que concorresse cobrindo os lances oferecidos, bem como
admitia-se a remição da dívida pelo devedor.
A execução específica iniciava-se também por citação, sendo que o executado
tinha o prazo de dez dias para entregar a coisa, e uma vez ultrapassado o prazo sem entrega
e sem embargos, a coisa era retirada imediatamente do poder da parte condenada, sem mais
para isso ser citada, entregando-se, em seguida, o bem ao credor.
Indubitavelmente, a partir da abordagem histórica do processo executivo,
constatamos que foi da tradição portuguesa – como latina em geral, à exceção da França –
o juiz guardar a direção formal do processo.
Por conta disso, compartilhamos do entendimento de José Lebre de Freitas,
quando afirma que “a jurisdicionalização deste processo é tida como uma aquisição
democrática: o juiz é nele o guardião dos direitos individuais, o garante – poderá dizer-se –
da própria garantia da norma jurídica, visto que é a garantia da norma jurídica, na
perspectiva subjectiva de quem ela tutela, que está fundamentalmente em causa no
processo executivo”.46
45
Na vigência das Ordenações Filipinas, seguindo a tendência evolutiva da execução em Portugal, a Lei de
20 de junho de 1774, a fim de limitar a agressão patrimonial aos limites estritos do necessário, instituiu a
avaliação dos bens penhorados e a impossibilidade, em sede da primeira hasta pública, de arrematação do
bem penhorado por valor abaixo do avaliado; sendo adjudicado ao exeqüente, em caso de ausência de
licitantes.
46
À guisa de contraposição ao regime exclusivamente jurisdicional de índole latina, Lebre de Freitas nos
informa que em outro extremo encontramos a Suécia, país que conta com um serviço administrativo (o
Serviço Público de Cobrança Forçada) que é encarregado da execução e só em caso de litígio é que se
recorre ao juiz. Os atos executivos praticam-se fora do tribunal, tendo o serviço administrativo que os
pratica acesso a grandes bases de dados que fornecem toda a informação útil sobre o devedor, tornando
mais fácil a penhora. Acrescenta o processualista que “outros países há que, não conhecendo um sistema
tão radical, tão pouco têm o sistema tradicional de direcção do processo pelo juiz. É o caso da França, da
Bélgica, do Luxemburgo, da Holanda, da Grécia ou da Escócia. Ao huissier, na designação francesa, cabe,
nomeadamente, efectuar a penhora de bens móveis e de créditos e vender os primeiros. Contratado pelo
exeqüente, é, porém, de nomeação oficial e considerado um funcionário público. Solicita informações ao
executado, recorre ao Ministério Público quando carece de informações que, por si, não consegue obter
(entre elas, as relativas às contas bancárias e à entidade empregadora do executado), desencadeia a hasta
pública quando o executado não vende, num prazo curto de que dispõe para o efeito, os bens móveis
29
Dando um salto na análise da evolução do processo de execução português,
verificamos que, diante da ineficácia do quadro processual emoldurado em 1939, e visando
assegurar a concreção do direito declarado no título judicial ou extrajudicial, no bojo da
reforma processual iniciada a partir da metade dos anos 90 do século passado, iniciou-se a
desjudicialização de diversos atos que anteriormente não discutia serem inerentes à reserva
de jurisdição e do juiz.47
Além do advento da ação de injunção, houve a inserção no ordenamento jurídico
do país da figura do “agente de execução”, frutos de uma audaciosa estratégia de
reorganização judiciária, que irremediavelmente abriram caminho, ainda que longo e
sujeito às marchas e contramarchas da história, para a flexibilização da tradição secular do
monopólio estatal no processo de execução.
O Decreto-Lei n. 38/2003 de 8 de março, que entrou em vigor em 15 de setembro
de 2003, representa, a nosso ver, um marco na mudança de paradigma do processo de
execução no direito luso-brasileiro, sobretudo porque viabilizou a desjudicialização dos
atos típicos do processo de execução.48
Conforme assevera Paula Costa e Silva49, “até à reforma, todos os actos de
execução deviam ser praticados ou pelas partes ou pelo tribunal”, todavia, no presente
penhorados e é responsável, não só perante o exeqüente, mas também perante o executado e terceiros. (José
Lebre Freitas, Aspectos duma apreciação geral do anteprojecto de reforma do processo executivo, in
PORTUGAL. Ministério da Justiça. Gabinete de Política Legislativa e Planeamento, Reforma da acção
executiva: trabalhos preparatórios: Conferência de Coimbra (29 de junho de 2001), Conferência realizada
em 29 de junho de 2001 na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Lisboa: Gabinete de Política
Legislativa e Planejamento, 2001, v. 3. p. 9-16).
47
Consoante Abrantes Geraldes, já antes do advento do Decreto-Lei n. 38/2003, que aperfeiçoou o sistema, o
Decreto-Lei n. 269/98, de 1º de setembro, foi assaz relevante, pois, “para além da modificação do regime
da injunção, introduziu uma nova forma de processo especialmente destinado a servir a cobrança de dívidas
contratuais de valor não superior à alçada do tribunal de 1ª instância. Esta nova forma processual, além de
permitir que, na ausência de oposição, o juiz se limite a atribuir força executiva à petição inicial, introduz
medidas inequivocamente simplificadoras de tramitação processual e potenciadoras de uma efectiva
aceleração (...).” (António Santos Abrantes Geraldes, Temas da reforma do processo civil, cit., v. 1, p. 45).
48
Segundo Teixeira de Sousa, “a Reforma da acção executiva foi iniciada pela Lei n. 2/2002, de 2/1, que
autorizou o Governo a legislar sobre o regime jurídico da acção executiva e o estatuto da Câmara dos
Solicitadores. Esta autorização legislativa caducou com a cessação de funções do XIV Governo
Constitucional (cfr. art. 165º, n. 4, CRP), mas foi substituída pela autorização concedida pela Lei n.
23/2002, de 21/8. Foi esta autorização que possibilitou a elaboração do principal diploma da Reforma da
acção executiva, que é o Decreto-lei n. 38/2003, de 8/3 (rectificado pela Declaração de Rectificação n.
5/2003, de 30/4), entretanto alterado pelo Decreto-Lei n. 199/2003, de 10/9 (rectificado pela Declaração de
Rectificação n. 16-B/2003, de 31/10)” (Miguel Teixeira de Sousa, A reforma da acção executiva, Lisboa:
Lex, 2004, p. 12).
49
Paula Costa e Silva, A reforma da acção executiva, cit., p. 13.
30
momento, é ao agente de execução (solicitador) que compete “a realização de todas as
diligências do processo de execução, nestas se incluindo citações, notificações,
publicações, actos de penhora, venda e pagamento (art. 808-1 e 6), devendo estas funções
ser exercidas sob o controlo do juiz de execução (art. 808-1), de tal forma que agora o
Tribunal só intervém quando é de todo impossível negar a natureza jurisdicional do acto a
praticar”.
No entanto, concordando com José Lebre de Freitas, convém esclarecer que antes
da reforma, embora muito limitadamente, a intervenção do tribunal era dispensada em
alguns atos do processo executivo, quais sejam, “a venda extrajudicial só carecia da
intervenção do tribunal para a determinação inicial da modalidade a seguir e do valor-base
dos bens a vender (anterior art. 886-A), bem como para os posteriores depósito do preço
(anteriores arts. 897, 905-4 e 906-2) e ordem de cancelamento dos registos respeitantes aos
direitos reais que caducam com a venda (anterior art. 888); quanto à administração dos
bens pelo depositário judicial (art. 843), tinham naturalmente lugar fora do tribunal”.50
Note-se que, conforme dispõe a atual redação do artigo 465º do Código de
Processo Civil português, o processo executivo comum segue forma única, suplantando o
regime anterior, quando vigoravam duas formas de execução, a ordinária e a sumária,
sendo que a primeira se fundava em título executivo extrajudicial e a segunda em sentenças
que condenassem em obrigações ilíquidas, cuja liquidação não dependesse de simples
cálculo aritmético. Portanto, o critério determinativo da forma do processo executivo
comum “não radicava no valor da causa, outrossim, na espécie do título que servia de base
à execução”.51
Convém ressaltar que no bojo da reforma da ação executiva em Portugal também
se enfrentou uma das grandes dificuldades sentidas pelos operadores do direito, e que por
vezes se revela motivo de angústia, aflição e de instabilidade àquele que se apresenta como
credor, qual seja a inexistência de um cadastro que previamente lhe permitisse conhecer da
viabilidade ou não da propositura da ação de execução.
50
51
José Lebre de Freitas, A ação de execução: depois da reforma, cit., p. 28.
António Montalvão Machado; Paulo Pimenta, O novo processo civil, 6. ed., Coimbra: Almedina, 2004, p.
57.
31
A desjudicialização de atos executivos, encampada na reforma havida veio
acompanhada de outras medidas tendentes a proporcionar maior eficácia à execução.
De fato, consoante sublinhado por Paula Costa e Silva52, a reforma também impôs
a criação de um registro informático de execuções, que é atualizado diariamente pela
secretaria e sem despacho que a autorize, do qual devem constar, dentre outras
informações, a identificação do executado, dos bens penhorados, o rol de execuções findas,
pendentes, e as suspensas por falta de bens penhoráveis.
Considerando que o registro conterá dados pessoais, “prevê-se que a respectiva
consulta seja apenas deferida irrestritamente ao titular dos dados e a magistrado judicial ou
do Ministério Público. Qualquer outro sujeito que pretenda consultar o registo tem de fazer
prova da existência de uma ligação especial com o titular dos dados (assim sucede com o
mandatário constituído nos autos, com pessoa que exiba título executivo contra o titular
dos dados e pretenda consultar o registo antes de propor a execução, com pessoa que
demonstre ter obtido o consentimento do titular dos dados), ou do exercício das funções na
execução (v.g., o agente da execução designado, para que esse acesso lhe seja deferido)”.
Portanto, na esteira das lições de Miguel Teixeira de Sousa, “os órgãos da execução são o
agente de execução (art. 808º) e o juiz de execução (art. 809º)”.53
Além disso, alargou-se o leque de oportunidades em que pode o exeqüente pedir a
chamada reserva de execução, ou seja, em que pode requerer a dispensa de citação prévia
com fundamento em receio de perda da garantia patrimonial (note-se o retorno à solução
processual praticada no direito intermédio), estabelecendo inexorável analogia entre o
conhecimento dessa pretensão e a providência cautelar de arresto.54
52
Paula Costa e Silva, A reforma da acção executiva, cit., p. 18.
Miguel Teixeira de Sousa, A reforma da acção executiva, cit., p. 47.
54
A opção legislativa de o executado ser citado antes da penhora somente nos casos previstos em lei foi
objeto de crítica por parte de Paula Costa e Silva que, ao analisar o artigo 812-B/2 do Código de Processo
Civil português, lamentou que o legislador não tenha levado até o fim o princípio de reserva de execução
“quando se verifique receio de perda da garantia da penhora” (A reforma da acção executiva, cit., p. 19). A
crítica suscitada ganha relevo quando nos deparamos com a evidência de que, no artigo 870º do anteprojeto
de reforma, estava previsto, em qualquer processo executivo, o diferimento do contraditório (a
possibilidade de eventual oposição por parte do executado) para um momento concomitante ou ulterior ao
da penhora, o que, sob a ótica de Carlos Lopes do Rego, à época, Procurador Geral Adjunto do Tribunal
Constitucional, seria “dificilmente compatibilizável com o princípio constitucional da proibição da indefesa
e com a garantia do processo eqüitativo que o Tribunal Constitucional vem reiteradamente afirmando”
(Conferência de Coimbra (29 de junho de 2001): intervenção, in PORTUGAL. Ministério da Justiça.
Gabinete de Política Legislativa e Planeamento, Reforma da acção executiva: trabalhos preparatórios:
Conferência de Coimbra (29 de junho de 2001), Conferência realizada em 29 de junho de 2001 na
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Lisboa: Gabinete de Política Legislativa e
Planejamento, 2001, v. 3, p. 33).
53
32
De acordo com a atual enunciação da cláusula geral de reserva de execução
portuguesa prevista no artigo 810-3-f do Código de Processo Civil, o exeqüente pode pedir
a dispensa de citação prévia nos termos do n. 2 do artigo 812-B do mesmo diploma
processual civil, que se limita a prever que, nas execuções em que haja despacho liminar,
bem como naquelas em que seja demandado o devedor subsidiário, pode o exeqüente
requerer a dispensa de citação prévia, desde que haja risco de perda da garantia
patrimonial. Portanto, quedaram excluídas as execuções que não admitem liminar e que
não são instauradas contra o devedor subsidiário.
1.3.1 O agente de execução
Considerando que o objeto do estudo alude à viabilidade ou não de se
desjudicializar os atos da execução hipotecária, ou seja, de se refletir acerca da
desnecessidade da atuação do agente judicial no âmbito da realização de tal garantia real,
entendemos ser de relevo abordar, mesmo que de forma perfunctória, a nova figura
encampada pelo ordenamento jurídico português, qual seja, a do agente de execução.
Indubitavelmente, ao reconhecer a figura do agente de execução em seu
ordenamento jurídico, Portugal, inserido num contexto maior, qual seja, o da União
Européia, realizou uma opção legislativa, em um contexto que possibilitava diferentes
soluções para a desjudicialização do processo de execução, mesmo que de forma parcial.
Dentro desse espectro das opções legislativas, foram analisados precipuamente o
modelo sueco que, através de um serviço administrativo especializado, prescinde do
tribunal e assegura o processo de execução, e genericamente é seguido nos países nórdicos,
e o sistema do huissier55 de justiça, que vigora, entre outros países, na França, Bélgica,
Holanda, Suíça, Grécia, Luxemburgo, Polônia, Eslováquia, Romênia, Hungria e que está
para ser implementado em países como a República Checa, Lituânia, Bulgária e Albânia.56
55
56
Cuja tradução para o português poderia ser “porteiro do tribunal”.
José Carlos Resende, Conferência de Coimbra (29 de junho de 2001): intervenção, in PORTUGAL.
Ministério da Justiça. Gabinete de Política Legislativa e Planeamento, Reforma da acção executiva:
trabalhos preparatórios: Conferência de Coimbra (29 de junho de 2001), Conferência realizada em 29 de
junho de 2001 na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Lisboa: Gabinete de Política
Legislativa e Planejamento, 2001, v. 3, p. 67-72.
33
No que diz respeito à atuação do huissier de justice em França, segundo
Christophe Lefort57, eles são efetivamente considerados auxiliares da justiça e devem
pautar os seus atos nos estritos limites do permissivo legal, tratando-se de uma atuação em
que, consoante as disposições do artigo 18 da Lei de 9 de julho de 1991, se atribui somente
aos huissiers de justice a realização da execução forçada e as apreensões de bens para a
conservação.
Em Portugal, reconheceu-se ao agente de execução (solicitador)58, mesmo que sob
controle judicial a posteriori, a competência para a realização de todas as diligências do
processo de execução, nelas se incluindo citações, notificações, publicações, atos de
penhora, venda e pagamento (art. 808-1 e 6).
Até a reforma processual de 2003, tal qual ainda sucede no direito brasileiro, era
de competência exclusiva do juiz a direção de todo o processo executivo português.
O comando do artigo 265-1 do Código de Processo Civil português preceituava
que cumpria ao juiz “providenciar pelo andamento regular e célere do processo,
promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao seu normal prosseguimento”.59
57
Christophe Lefort, Procédure civile, Paris: Dalloz, 2005, p. 123.
Consoante José Lebre de Freitas, o agente de execução é um solicitador recrutado em concurso, preparado
para o exercício da função de solicitador de execução e inscrito na comarca do círculo judicial (preferindo a
da execução e suas limítrofes), ou um oficial de justiça, mas este só na falta de solicitador de execução ou
quando se trate de execução por custas (art. 808, ns. 2 e 3)”, em qualquer caso sujeitando-se a um regime de
impedimentos, como os juízes, os peritos e os funcionários da secretaria (art. 121 do Estatuto da Câmara
dos Solicitadores), e a algumas incompatibilidades (art. 120 do mesmo estatuto). (A reforma da acção
executiva: agente de execução e poder jurisdicional, Themis, Lisboa, Faculdade de Direito da Universidade
Nova de Lisboa, ano 4, n. 7, p. 26-27, 2003).
59
A esse respeito, José Lebre de Freitas ressalta que a jurisdicionalização da ação executiva acarretava, no
modelo de competência e direção exclusivas do juiz (agente judicial), “igualmente vigente em Espanha e
Itália, o proferimento de numerosos despachos judiciais, que, na sua grande maioria, não constituíam actos
de exercício da função jurisdicional. Com a reforma o modelo foi abandonado e, seguiu-se o exemplo de
outros sistemas jurídicos europeus, optou-se pelo que o juiz exerce funções de tutela, intervindo em caso de
litígio surgido na pendência da execução (art. 809-1-b), e de controlo, proferindo nalguns casos despacho
liminar (controlo prévio aos actos executivos: arts. 809-1-a, 812 e 812-A) e intervindo para resolver
dúvidas (art. 809-1-d), garantir a proteção de direitos fundamentais ou matéria sigilosa (arts. 833-3, 840-2,
842-A, 847-1, 848-3, 850-1, 861-A-1) ou assegurar a realização dos fins da execução (arts. 856-5, 862-A,
ns. 3 e 4, 886-C-1, 901-A, ns. 1 e 2, 905-2), mas deixou de ter a seu cargo a promoção das diligências
executivas, não lhe cabendo, nomeadamente, em regra (ao invés do que até então acontecia, ordenar a
penhora, a venda ou o pagamento, ou extinguir a instância executiva. A prática desses actos,
eminentemente executivos, bem como, em geral, a realização das várias diligências do processo de
execução, quando a lei não determine diversamente, passaram a caber ao agente de execução (art. 808, ns. 1
e 6)” (José Lebre de Freitas, A ação de execução: depois da reforma, cit., p. 25-27).
58
34
No entanto, conforme referido, agora é ao agente de execução que incumbe a
tarefa de realizar os atos eminentemente executivos em nome do tribunal, sem prejuízo,
caso seja invocado, do subsequente poder geral de controle por parte do juiz.
Leciona José Lebre de Freitas que “tal como o huissier francês, o solicitador de
execução é um misto de profissional liberal e funcionário público, cujo estatuto de auxiliar
da justiça implica a detenção de poderes de autoridade no processo executivo. A sua
existência, sem retirar a natureza jurisdicional do processo executivo, implica a sua larga
desjudicialização (entendida como menor intervenção do juiz nos actos processuais) e
também a diminuição dos actos praticados pela secretaria. Não impede a responsabilidade
do Estado pelos actos ilícitos que o solicitador de execução pratique no exercício da
função, nos termos gerais da responsabilidade do Estado pelos actos dos seus funcionários
e agentes”.60
O regime jurídico do agente de execução está previsto na Portaria n. 946/2003, de
6 de setembro, que define que o agente é o escrivão de direito, titular da secção onde
tramita o processo de execução, no Decreto-Lei n. 88/2003, de 26 de abril, que aprovou o
Estatuto da Câmara dos Solicitadores, e na Portaria n. 708/2003, de 4 de agosto, que
estabelece a remuneração e o reembolso das despesas do solicitador de execução no
exercício da atividade de agente de execução.
Em continuidade, ao analisar o artigo 808º, n. 1 do Código de Processo Civil,
Miguel Teixeira de Sousa61 alude que “a competência para a prática das diligências
relativas ao processo de execução pertence, em regra, ao agente de execução, que, no
entanto, actua sempre sob o controlo do juiz de execução (cfr. também art. 809º, n. 1
proémio; art. 116º ECS)”, motivo pelo qual a competência do juiz de execução para a
prática de diligências no processo de execução deve ser considerada residual, perante a
competência do agente de execução e, independentemente do poder geral de controle do
processo que incumbe a esse juiz, aquela competência requer uma disposição legal
específica que a preveja.
60
61
José Lebre de Freitas, A ação de execução: depois da reforma, cit., p. 27-28.
Miguel Teixeira de Sousa, A reforma da acção executiva, cit., p. 47.
35
Questão crucial para o reconhecimento da viabilidade da competência funcional
do agente de execução é a que concerne à matéria de conhecimento oficioso, ou seja, que
poderá conhecer pela sua própria iniciativa.
A esse respeito, esclarece Miguel Teixeira de Sousa que por conhecimento
oficioso deve-se considerar as matérias que o agente poderá submeter à apreciação do juiz
de execução, que serão “todas as questões relacionadas com as diligências do processo de
execução (cfr. art. 808º., n. 1), mas não parece que possa suscitar a intervenção do juiz
quanto a outras questões além daquelas que o art. 811, n. 1, permite que sejam conhecidas
pela secretaria ou que o art. 812-A, n. 3, faculta que, não havendo despacho liminar, sejam
conhecidas pelo funcionário judicial”.62
Nesse sentido, além das diligências próprias do processo de execução (penhora,
venda e pagamento), também incumbe ao agente de execução a tomada de decisões que,
embora não se confundam com a resolução de um litígio, ou seja, que não envolvam a
função jurisdicional típica (dizer o direito e zelar pelo cumprimento do ordenamento
jurídico vigente), decerto resultarão numa necessária cognição, mesmo que superficial,
típica da natureza do próprio procedimento executivo.
Não é por outro motivo que compete ao agente de execução “avaliar a prova
documental que lhe é apresentada para demonstração de que a condição se verificou ou de
que o exequente efectuou ou ofereceu prestação (cfr. art. 804º, n. 1); deferir, se não houver
oposição do exequente, o requerimento do herdeiro para o levantamento da penhora sobre
bens próprios (cfr. art. 827º, n. 2); reduzir, segundo certos critérios, a penhora que foi
efectuada em várias contas bancárias de que o executado seja titular (cfr. art. 861º-A, ns. 3
e 4); deferir o requerimento de suspensão da instância apresentado pelo exequente e pelo
executado com base no acordo para o pagamento em prestações da dívida exequenda (cfr.
art. 882º, n. 1)”.63
Esclarece-se que, no que diz respeito à avaliação da prova documental, “sendo a
prova inteiramente documental, a verificação da condição ou da prestação é feita pelo
agente de execução; não sendo assim, a produção da prova tem lugar perante o juiz, que
62
63
Miguel Teixeira de Sousa, A reforma da acção executiva, cit., p. 47.
Ibidem, p. 49-50.
36
decidirá; se, porém, o juiz entender que deve ser ouvido o devedor, este é logo citado,
podendo contestar em aposição à execução”.64
Portanto, nos casos de execução sem despacho liminar, basta que, não se opondo
o executado à execução nem à penhora, não havendo embargos de terceiro nem reclamação
de créditos (art. 809-1-b), não sendo ao longo do processo suscitada a intervenção do juiz
(art. 809-1-c/d), nem ocorra nenhuma das situações em que ele deve por lei intervir,
inexoravelmente o procedimento terminará sem a intervenção do agente judicial.65
1.3.2 O juiz de execução
Conforme sublinhado, no direito português anterior ao Decreto-Lei n. 38/2003,
“cabia ao juiz a direcção de todo o processo executivo, em paralelismo com o que acontece
na acção declarativa, aplicando-se o artigo 265-1 sem especiais restrições: cumpria-lhe
providenciar pelo andamento regular e célere do processo, promovendo oficiosamente as
diligências necessárias ao seu normal prosseguimento”.66 Contudo, como vimos, na atual
moldura do processo executivo português, o juiz exerce “funções de tutela, intervindo em
caso de litígio surgido na pendência da execução, e de controlo, proferindo nalguns casos
despacho liminar (controlo prévio aos actos executivos) e intervindo para resolver dúvidas,
garantir a protecção de direitos fundamentais ou assegurar a realização dos fins da
execução, mas deixou de ter a seu cargo a promoção das diligências executivas”.67
Não é por outro motivo que, consoante dispõe o artigo 809º do Código de
Processo Civil, compete ao juiz de execução o poder geral de controle da execução, sendo
absolutamente pertinente a reflexão de Miguel Teixeira de Sousa, no sentido de que
“enquanto o agente de execução executa mas não decide, o juiz de execução decide mas
não executa”, atuando, por conseguinte, de forma separada, mas com funções
complementares.
64
José Lebre de Freitas; Armindo Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil anotado, Coimbra: Coimbra
Editora, 2003, v. 3, p. 248.
65
Ibidem, v. 3, p. 277.
66
Ibidem, v. 3, p. 273.
67
Ibidem, mesma página.
37
A respeito da necessária articulação entre o labor desempenhado pelo agente de
execução – note-se que ao referirmos a figura do agente, também poderíamos alargar a
idéia para a figura do notário, ou de qualquer outro ente que porventura desempenhe uma
função análoga – e pelo juiz de execução, entendemos ser perfeitamente adequado atribuir
ao juiz o exercício de um poder geral de controle ex post sobre o processo executivo (art.
809º, n. 1, proêmio), bem como sobre o agente de execução.68
Outro aspecto que reputamos importante na atuação do juiz de execução é o que
concerne à sua função sancionatória, tendo em vista que é a ele que compete a aplicação de
multa àquele que, de forma temerária e injustificada, a qualquer momento reclame de atos
realizados pelo agente de execução ou insurja-se contra a execução.
Inexoravelmente, quando o artigo 809º, n. 2 do Código de Processo Civil dispõe
que pode o juiz aplicar multa quando o requerimento da parte seja manifestamente
injustificado, estamos diante do ato caracterizador da má-fé processual, “por negligência
grave (ou, eventualmente, dolo), subsumível, conforme os casos, na alínea a) ou na alínea
d) do artigo 456-1. A multa a aplicar contém-se entre 2 e 100 unidades de conta (art. 102
CCustas)”.69
Portanto, insistimos em afirmar que de nada adiantarão reformas processuais,
investimentos em equipamentos e formação de entes paralegais se o agente judicial não se
comprometer com os objetivos perseguidos pela sociedade, quais sejam, a realização de
justiça com efetividade e eficácia.
Um juiz descompromissado com o resultado do processo decerto permitirá o uso
de chicanas processuais por parte do devedor, e isso lamentavelmente colocará em causa a
própria viabilidade da reforma.70
68
Adverte Miguel Teixeira de Sousa que o “controlo do juiz de execução sobre os actos do agente de
execução pode ser exercido a requerimento de qualquer interessado, mediante a apresentação da respectiva
reclamação perante aquele juiz (cfr. art. 809º, n. 1, al. c)”, sendo certo que “isto não obsta à iniciativa
oficiosa do juiz de execução no exercício desse controlo, tanto mais que, como se estabelece no artigo 116º
ECS, o solicitador de execução exerce as suas competências na dependência funcional do juiz de execução”
(A reforma da acção executiva, cit., p. 61).
69
José Lebre de Freitas; Armindo Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil anotado, cit., v. 3, p. 275.
70
Para uma maior reflexão acerca da necessária atuação do agente judicial, ver: António Castanheira Neves,
O direito hoje e com que sentido?, Lisboa, Instituto Piaget, 2002.
38
Diante disso, no desempenho das suas funções de controle e de sanção, impende
ao juiz, para evitar a vulgarização da defesa do ofendido, o dever de utilizar os
instrumentos legais que lhes foram conferidos pelo legislador para coibir todos os desvios
que porventura sejam cometidos pelas partes e pelo agente de execução.
Aliás, a reflexão que ora se apresenta, por óbvio, como adiante veremos, também
terá lugar no controle da execução extrajudicial hipotecária.
2 A EXECUÇÃO DA GARANTIA HIPOTECÁRIA
2.1 O atual regime português
Tomando-se como referência o sempre oportuno entendimento de Antunes
Varela71, a hipoteca, face ao elevado grau de segurança que confere ao credor, bem como
por proporcionar um crédito pouco oneroso e facilidades de pagamento ao devedor, pode
ser considerada “a rainha das garantias das obrigações”. E a sua aplicação, inclusive no
direito português, mormente está relacionada com o crédito imobiliário72, viabilizando a
consecução de infindáveis contratos de massa.
Sob o ponto de vista do sistema adotado após a reforma do processo executivo
português em 2003, mais precisamente no que diz respeito à execução da garantia real da
hipoteca, mesmo que ainda submetida ao monopólio estatal73, tendo em vista o alto grau de
certeza e liquidez do título, atualmente já se admite inclusive a citação do devedor sem
despacho liminar (art. 812-7-c do CPC), ou seja, sem a prévia participação do agente
judicial.
Embora desde o advento do Código de Processo Civil de 1939 não exista em
Portugal um processo especial e autônomo para a execução hipotecária, o titular da
garantia satisfaz o seu direito por meio do processo comum, com as adaptações devidas,
quando está em causa a realização de uma garantia real.
Em Portugal, a penhora de bens imóveis, consoante dispõe o artigo 838º do
Código de Processo Civil, “sem prejuízo de também poder ser feita nos termos gerais do
71
João de Matos Antunes Varela, Constituição de hipotecas a favor de bancos prediais – Parecer, Colectânea
de Jurisprudência, t. 3, p. 46 e ss., 1991.
72
Maria Isabel Helbling Menéres Campos, Da hipoteca: caracterização, constituição e efeitos, Coimbra:
Almedina, 2003, p. 11.
73
Independentemente de a coisa, à luz do artigo 886º, ns. 1 e 3 do Código de Processo Civil, ser vendida
extrajudicialmente no âmbito de um processo judicial. A justificativa para a venda ocorrer sob o controle
judicial, consoante o escólio de Manuel Henrique Mesquita, decorre da necessidade de “resguardar o
devedor contra os abusos a que poderia dar origem a alienação do objecto da garantia, se ao credor fosse
permitido realizá-la directamente. Com o mesmo objectivo (proteger o devedor) se proíbe, como é sabido, a
convenção que atribua ao credor o direito de fazer sua a coisa onerada no caso de o devedor não cumprir”
(Obrigações reais e ónus reais, Coimbra: Almedina, 1997, p. 77).
40
registo predial, a penhora de coisas imóveis realiza-se por comunicação electrónica à
conservatória do registo predial competente, a qual vale como apresentação para o efeito
da inscrição no registo”, sendo que, uma vez inscrita a penhora, “a conservatória do registo
predial envia ao agente de execução o certificado do registo e a certidão dos ónus que
incidam sobre os bens penhorados”.
Em que pese, como adiante veremos, sermos favoráveis à desnecessidade de
realização de penhora de bens imóveis hipotecados, reconhecemos que a solução adotada
após a reforma de 2003 em Portugal está adequada à sociedade contemporânea da
informação, vez que o processo deve, a passos largos, se socorrer dos instrumentos céleres
de comunicação entre os diversos entes para viabilizar a consecução do direito.
Ao revés disso, mesmo após a recente reforma na execução de títulos
extrajudiciais introduzida pela Lei n. 11.382, de 6 de dezembro de 2006, no Brasil ainda se
impõe ao exeqüente o dever de providenciar, para a presunção absoluta de conhecimento
por terceiros, a averbação de certidão de inteiro teor do ato de penhora no ofício
imobiliário (art. 659, § 4º do CPC). Isso, a nosso ver, se contrapõe à busca da celeridade e
da segurança que todos pretendem obter no processo executivo.
2.2
O
projeto
de
execução
extrajudicial
hipotecária
português
Embora tenhamos verificado que no atual regime da execução hipotecária
portuguesa, em que pese ser judicial o procedimento, certos atos já foram delegados a
terceiros, e independentemente da inovação havida com a introdução da execução
conduzida precipuamente pelo agente de execução, impõe-se uma reflexão acerca dos
motivos que inviabilizaram a adoção de uma solução desjudicializante da execução
hipotecária em Portugal.
Conquanto rejeitada em virtude de motivos que adiante serão melhor esmiuçados,
o projeto de execução extrajudicial hipotecária portuguesa merece ser revisto em sede
41
acadêmica, pois é inevitável que carece de uma melhor abordagem, perante o necessário
diálogo com as soluções havidas há tempos em Espanha e no Brasil.
O Projeto de Lei autorizado de janeiro de 2001 regulava, em seus artigos 946º a
955º, a desjudicialização da execução hipotecária em Portugal74. Tal inovação, largamente
discutida em conjunto com outras que colidiam frontalmente com conceitos, como
retratado, enraizados há séculos no direito luso, foi muito questionada em diversos
colóquios relacionados com a reforma do processo de execução que ultimou-se em 2003, e
que não a encampou.
Com efeito, no que concerne especificamente à execução hipotecária, embora
proposta pelo XIV Governo Constitucional, não foi levada a cabo pelo XV Governo, que
entendeu por afastá-la, devido aos seus supostos aspectos de constitucionalidade duvidosa.
O então indigitado processo especial de execução hipotecária teria como âmbito
de aplicação a execução de obrigação, líquida ou liquidável por simples cálculo aritmético
e garantida por hipoteca sobre bem imóvel, baseada em sentença judicial ou documento
autêntico ou particular legalmente equiparado.
O procedimento correria perante a conservatória do registro predial da situação do
bem hipotecado, a partir do recebimento de um requerimento executivo que, além de ser
instruído com o próprio título executivo, conteria os seguintes elementos indispensáveis:
qualificação completa das partes, domicílio profissional do mandatário judicial, indicação
da forma de processo, do título e do fim da execução, exposição sucinta dos fatos que
fundamentam o pedido e a planilha de atualização e composição do débito.
A apreciação da admissibilidade do requerimento executivo e do documento que
instruiria o procedimento caberia ao conservador, designadamente no que toca à certeza e à
exigibilidade da obrigação. A esse propósito, Maria José Capelo75 afirma que a opção do
74
Em termos de sistematização do processo executivo, segundo José Lebre de Freitas, a execução hipotecária
estaria disposta de forma equivocada no anteprojeto, pois, ao invés de aparecer no capítulo da execução,
deveria ter o seu lugar nos processos especiais, onde se continuou a tratar da execução de alimentos e de
formas processuais mistas de declaração e de execução, havendo, à época, de ser inserida no âmbito da
expurgação de hipotecas. (Aspectos duma apreciação geral do anteprojecto de reforma do processo
executivo, cit., p. 15-16).
75
Maria José Capelo, Conferência de Coimbra (29 de junho de 2001): intervenção, in PORTUGAL.
Ministério da Justiça. Gabinete de Política Legislativa e Planeamento, Reforma da acção executiva:
42
legislador em desvalorizar o papel do juiz na ação executiva não foi surpresa, posto que
durante “as jornadas sobre a execução de decisões judiciais, promovidas pela Association
Henri Capitant, na década de 80” já se criticava o excès de judiciaire que caracteriza a
execução das decisões judiciais, enaltecendo, por isso, as vantagens de uma
desjudicialização.
O requerimento inicial seria indeferido pelo conservador nas seguintes hipóteses:
i) quando não contivesse os referidos elementos fundamentais para a apresentação do
pedido, como por exemplo a falta de qualificação do executado ou do exeqüente; ii) a
hipoteca executada não esteja inscrita na conservatória; iii) quando o requerimento não
estivesse assinado, ou não estivesse redigido em língua portuguesa, ou não fosse
apresentado o título executivo ou fosse manifesta a insuficiência do título apresentado.
Além disso, a fim de evitar indesejáveis desvios de interpretação dos
requerimentos executivos, todos constariam de impresso de modelo aprovado por decretolei, que também deveria ser integralmente respeitado, sob pena de indeferimento do
requerimento.
Note-se que do despacho que indeferisse liminarmente o requerimento executivo,
haveria recurso para o juiz de execução, cuja decisão seria irrecorrível.
Após o recebimento do requerimento executivo, o conservador verificaria se o
bem já se encontrava penhorado num processo de execução comum; sendo que, uma vez
verificada a anterior penhora do bem, o conservador remeteria o requerimento executivo
para o processo em que a penhora fosse anterior, valendo o requerimento como reclamação
do crédito.
Caso o bem não se encontrasse penhorado, o conservador procederia à inscrição
do processo no registro informático de execuções, justamente para evitar alegações de
desconhecimento e dilações desnecessárias em outras eventuais execuções envolvendo o
mesmo executado.
trabalhos preparatórios: Conferência de Coimbra (29 de junho de 2001), Conferência realizada em 29 de
junho de 2001 na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Lisboa: Gabinete de Política
Legislativa e Planejamento, 2001, v. 3, p. 18.
43
Por conseguinte, não havendo fundamentos legais que inviabilizassem o pedido
estampado no requerimento, o conservador procederia ao registro da penhora e promoveria
a afixação do auto de penhora na porta ou noutro local visível do imóvel penhorado, e faria
publicar um anúncio, cujo modelo seria normatizado através de portaria do Ministro da
Justiça. Além disso, o conservador efetuaria a citação do executado para proceder ao
pagamento do débito em 20 dias, com a expressa indicação de que, caso não o fizesse, se
executaria a hipoteca.
Também seriam citados os titulares de direitos reais de garantia inscritos sobre o
imóvel e as entidades referidas nas leis fiscais, com vista à defesa dos possíveis direitos da
Fazenda Nacional, sem prejuízo da eventual reclamação espontânea dos eventuais titulares
de direitos reais de garantia que não tivessem sido citados, que poderiam reclamar os seus
créditos até a transmissão dos bens penhorados.
Ressalta-se que no texto do projeto de lei alude-se à citação do executado por
meio de carta registrada com aviso de recepção, o que, no nosso entendimento, se aplicaria
aos demais interessados, que, conforme visto, a teor do mesmo projeto também seriam
citados.
Na esteira da desjudicialização dos atos tipicamente executivos – penhora, venda
e pagamento –, em caso de requerimento por parte do exeqüente ou do executado, caberia
ao conservador nomear depositário a si próprio ou pessoa por ele designada, salvo na
hipótese de o imóvel penhorado ser a casa de habitação do executado, caso em que ele
seria o depositário, ou quando o bem estivesse arrendado, hipótese em que o depositário
seria o próprio arrendatário76, ou no caso de o bem ser objeto de direito de retenção, caso
em que o depositário seria o retentor.
Segundo o texto do projeto em apreço, a desjudicialização dos atos executivos
cessaria nos casos de o executado deduzir oposição à execução ou à penhora, se fossem
deduzidos embargos de terceiro ou se fosse impugnado algum crédito reclamado. Nessas
76
Nesse caso, as rendas em dinheiro seriam depositadas em instituição de crédito, à ordem do conservador, à
medida que se venceriam ou se cobrariam. Caso o imóvel estivesse arrendado a mais de uma pessoa, de
entre elas se escolheria o depositário, que cobraria a renda dos demais arrendatários.
44
hipóteses, o processo seria remetido ao tribunal competente, ficando na conservatória o
respectivo traslado, de modo a permitir o prosseguimento da execução.
A venda do imóvel teria lugar na própria conservatória, por propostas em carta
fechada, procedendo-se à sua publicação nos termos da venda feita em processo comum; o
valor base seria decidido por acordo das partes, ou, na falta dele, pelo conservador, sendo
que, na ausência de proponentes ou de aceitação das propostas, teria lugar a oitiva dos
interessados presentes, para posterior decisão de como deveria se realizar a venda do bem.
Uma vez adjudicado ao exeqüente ou ao credor reclamante que o tenha requerido,
ou ao comprador que efetivamente depositou o preço, do que seria elaborada ata, o
conservador emitiria título de transmissão do bem, do qual constariam as diligências
essenciais efetuadas no processo, bem com a eventual dispensa de depósito do preço e
isenção de obrigações fiscais. Emitido o título por parte do conservador, ele procederia
oficiosamente ao cancelamento das inscrições dos direitos que tenham caducado com a
venda.
Quando o produto da venda fosse insuficiente para o pagamento da dívida
exeqüenda, o conservador emitiria título em que constasse o valor da dívida remanescente,
que poderia ser objeto de processo comum de execução, na qual o executado, caso
houvesse sido citado na execução hipotecária, não seria novamente citado, mas apenas
admitido a opor-se à penhora.
No que diz respeito à entrega efetiva do bem, tanto o depositário quanto o
adquirente, caso tivessem dificuldade em tomar posse efetiva do imóvel, requereriam ao
conservador a remessa do processo ao tribunal de execução, a fim de nele ser judicialmente
ordenada a apreensão.
2.3
Dos
problemas
identificados
execução hipotecária em Portugal
para
a
adoção
da
45
Conforme alhures relatado, entendeu o XV Governo Constitucional português,
quando da reforma da ação executiva, afastar aspectos de praticabilidade e
constitucionalidade duvidosas que haviam sido invocados quando da apresentação do
anteprojeto de reforma por parte do XIV Governo, de onde se destacou a tramitação das
execuções hipotecárias nas conservatórias de registro predial e a base de dados de pessoas
com patrimônio desconhecido.
De fato, deixando de lado os aspectos de índole política, que em termos de
reforma processual tendem a beneficiar as soluções próximas ao consenso, mister se faz
identificar aqui as razões ou os principais motivos que levaram parte considerável da
doutrina portuguesa a divergir acerca da viabilidade ou não da adoção da execução
hipotecária nos moldes preconizados no projeto de reforma.
E é justamente nesse diapasão que passaremos a abordar, sem ainda tecer
comentários profundos, as considerações de ilustres processualistas portugueses durante a
chamada Conferência de Coimbra, que teve lugar em 29 de junho de 2001, cujos
contributos dos eméritos especialistas que analisaram o projeto realizado pelo XIV
Governo, mas que, como visto, não foi encampado pelo que lhe sucedeu, foi publicado
pelo Gabinete de Política Legislativa e Planejamento do Ministério da Justiça de Portugal.
Durante a intervenção de Maria José Capelo, restou consignado que o projeto
português havia se inspirado provavelmente no regime espanhol, visto que, antes da
entrada em vigor da Ley 1/2000 de Enjuiciamento Civil, de 7 de janeiro, que pretendeu
regular unitariamente a execução forçosa, comum ou de garantia hipotecária, a lei
hipotecária previa tanto um procedimento sumário judicial como a possibilidade de uma
execução extrajudicial, esta a cargo do notário, sendo ambos os meios destinados a
executar bens hipotecados. Todavia, na aludida intervenção também se frisou que em
Espanha, “em torno da constitucionalidade da execução extrajudicial, suscitou-se um
grande debate, havendo muitas vozes que propugnavam que a actividade exercida pelo
notário consubstanciava uma agressão ao princípio da reserva de jurisdição”.77
77
Maria José Capelo, Conferência de Coimbra (29 de junho de 2001): intervenção, cit., v. 3, p. 28-31.
46
Por conseguinte, dever-se-ia problematizar se a desjurisdicionalização não
contenderia com o princípio da reserva de juiz, mesmo na hipótese de se respeitar uma
reserva mínima de jurisdição, ou seja, restringindo-se a intervenção judicial àqueles casos
em que há oposição. Outro aspecto mencionado foi o de que no regime espanhol, dentro do
contexto de proibição do pacto comissório, sancionado no artigo 1.859º do Código Civil
espanhol, admite-se a venda extrajudicial do bem perante o notário, o que não encontrava
correspondente respaldo em Portugal.
Hoje, contudo, a venda, após a introdução da reforma da ação executiva, ainda
que continue por propostas em carta fechada dirigidas ao tribunal, carece de ordem judicial
e por vezes é presidida pelo agente de execução, com ausência do juiz (arts. 876-3 e 901A-2). Diante da inovação havida, o fato de haver sido atribuída ao agente de execução a
capacidade de presidir a venda de bens para a satisfação do crédito exeqüendo, entendemos
que não se mostra insuperável a transmissão ao conservador ou a terceiros da tarefa de
alienar a garantia.78
Àquela altura, outro problema suscitado pela eminente processualista de Coimbra
dizia respeito ao controle da regularidade da instância quanto aos pressupostos processuais,
visto que a ocorrência de exceções dilatórias insupríveis ou sanáveis ficaria fora do alcance
do juiz, até o momento em que o executado suscitasse a sua apreciação. Portanto, estaria
derrogado o poder-dever do juiz providenciar, mesmo que oficiosamente, o suprimento da
falta de pressupostos processuais (arts. 265º, n. 2 e artigo 495º, ambos do CPC português).
78
Até a reforma, conforme Paula Costa e Silva, “o artigo 886-A/1 dispunha que a competência para a decisão
sobre a venda fosse tomada pelo juiz, que deveria proferir despacho ordenatório de venda, com a reforma
passa a prever-se, no mesmo preceito legal, que seja o agente de execução, mediante decisão que é
reclamável para o juiz da execução, a decidir sobre a venda”, sendo que “a modalidade de venda em que a
respectiva realização depende de autorização judicial é a venda antecipada.” (A reforma da acção
executiva, cit., p. 124). Segundo o escólio de José Lebre de Freitas, “a indicação da modalidade de venda
cabe ao agente de execução, que se limita, porém, em regra, a verificar os requisitos de que a lei faz
depender e em dois casos, previstos no artigo 886-A-2-a, tem possibilidade de escolha (entre a venda por
negociação particular e a venda em estabelecimento de leilão, quando se frustre a venda de coisa móvel em
depósito público; entre a venda por propostas em carta fechada e a venda por negociação particular, quando
seja anulado o leilão, não haja outro estabelecimento de leilão na comarca e se trate de bem imóvel”.
Adverte porém o processualista que “a venda por propostas em carta fechada constitui a forma normal da
venda executiva de bens imóveis e de estabelecimentos comerciais de valor consideravelmente elevado
(arts. 848-1 e 907-A-1), e a venda em depósito público a forma normal da venda executiva de bens móveis
(arts. 848-1 e 907-A-1), constituindo as restantes formas excepcionais” (A ação de execução: depois da
reforma, cit., p. 328).
47
Em continuidade, Maria José Capelo criticava a solução indicada no anteprojeto
em termos da legitimidade passiva, quando fossem penhorados bens alheios (onerados com
uma garantia real) aos do devedor.
Ao revés da faculdade prevista no anteprojeto, que viabilizaria ao credor optar
pelo chamamento ou do devedor ou do responsável pelo pagamento, ou de ambos,
sustentava a professora, em respeito ao princípio do contraditório, que deveria ter sido
imposta a citação conjunta do dono dos bens onerados e do devedor, tendo em vista que
isso proporcionaria a possibilidade de pagamento voluntário ou de oposição por parte
daquele contra quem é dirigida a obrigação de pagar, como também, em que pese de menor
amplitude, por parte daquele que é o titular dos bens onerados.
Por seu turno, Lopes do Rego, à época Procurador Geral Adjunto do Tribunal
Constitucional, reconheceu virtualidades na proposta de desjudicialização da execução
hipotecária, particularmente no que concerne à fase de venda dos bens, visto que o agente
poderia “eventualmente tomar decisões sobre a modalidade de venda, inclusivamente
sobre o valor dos bens, com a garantia de que, havendo reclamações ou litígios suscitados
pelas partes, haveria naturalmente uma reclamação ou um recurso para o juiz dessas
decisões”.79
Além de levantar dúvidas quanto à praticabilidade de se transferir às
conservatórias do registro predial uma tarefa para a qual não estariam vocacionadas e
preparadas, podendo inclusive o maciço incremento de trabalho prejudicar a eficiência do
objeto da prestação dos serviços notariais80, entendia Lopes do Rego que afigurar-se-ia
79
80
Carlos Lopes do Rego, Conferência de Coimbra (29 de junho de 2001): intervenção, cit., v. 3, p. 36-37.
A propósito da praticabilidade de se transferir às conservatórias a tramitação e a condução das execuções
hipotecárias, o notário Mouteira Guerreiro corroborou o entendimento de Carlos Lopes do Rego, ao
salientar que “nas actuais circunstâncias, que conhecemos, as conservatórias não têm os recursos humanos
necessários para assegurar a aplicação desta ideia do legislador. Não porque o conservador não esteja
habilitado a qualificar a validade formal e substancial do título (e diga-se, o conservador exerce uma função
jurisdicional com independência semelhante à que é própria do juiz), mas sim porque não tem meios de
facto, designadamente uma secretaria de apoio, nem tempo, para poder dar cumprimento ao normativo em
causa. E a implementação deste sistema, sem prévia dotação de meios às conservatórias, poderia dar lugar a
graves atrasos não só no serviço normal dos registos como também nos destas execuções hipotecárias”
(Mouteira Guerreiro, Reflexões no âmbito registral, in PORTUGAL. Ministério da Justiça. Gabinete de
Política Legislativa e Planeamento, Reforma da acção executiva: trabalhos preparatórios: Conferência de
Coimbra (29 de junho de 2001), Conferência realizada em 29 de junho de 2001 na Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra, Lisboa: Gabinete de Política Legislativa e Planejamento, 2001, v. 3, p. 88-89).
48
problemática a articulação entre a tramitação do processo no tribunal e na conservatória,
tendo em vista que começaria num, para, em caso de oposição, ser transferido para o outro.
Nessa senda, a principal crítica formulada por Lopes do Rego se cingiu àquilo que
reputou a evidência de que nunca poderia ser transferida ao conservador uma tarefa
materialmente jurisdicional, seja no tocante à prolação do despacho liminar, ou no que diz
respeito à graduação de créditos reclamados, visto que não poderia ser devolvida a uma
entidade administrativa “a formulação de um juízo global sobre a hierarquização dos vários
créditos que estão reclamados em determinada execução, mesmo no caso desses créditos
individualmente não terem sido objecto de impugnação”.81
Portanto, embora tenha admitido uma desjudicialização do processo executivo
na fase da venda, o à época Procurador Geral Adjunto do Tribunal Constitucional
rechaçou a total desjudicialização do processo executivo nas fases liminar e da penhora82,
tendo em vista a imediata agressão patrimonial, que deveria passar “por um crivo do juiz
que elimine e deite fora aquelas execuções que não estão devidamente estruturadas, ou
que vá sanar de imediato deficiências, irregularidades ou excepções que inquinam a
acção executiva”.83
Assumindo posição diametralmente oposta, o advogado Armindo Ribeiro Mendes
sustentou, em relação ao problema da reserva de juiz em matéria de execução, que, àquela
altura, o ordenamento jurídico português já contemplava a tramitação das execuções fiscais
sem a presença de um juiz togado, conduzida pelo Chefe da Repartição de Finanças,
81
Carlos Lopes do Rego, Conferência de Coimbra (29 de junho de 2001): intervenção, cit., v. 3, p. 38.
Note-se que, em termos da participação do juiz no ato de penhora de um bem gravado por hipoteca, o
conservador Mouteira Guerreiro sustentou que se ultrapassasse a fase de penhora em casos que tais, pois “o
credor hipotecário tem já, no momento em que intenta a execução, uma garantia real sobre o imóvel. Deste
modo, é praticamente supérfluo que decorra, no processo executivo, a fase precisamente destinada a
conseguir que, relativamente ao prédio hipotecado e antes poder ser efectuada a venda coactiva, tenha que
ser constituída sobre o mesmo um novo direito – o da penhora – como se não existisse já uma anterior
garantia, igualmente de natureza real, a sujeitá-lo ao pagamento do crédito”. Tudo isto se nos afigura
desnecessário. De facto, “o poder sobre a coisa, a sequela própria do direito real, ficou a existir com o
registo da hipoteca. Mais: a debatida característica de o credor poder ser pago preferencialmente pelo valor
da coisa também se verifica com a hipoteca. No caso de cobrança coerciva do crédito, o grau prioritário do
direito acha-se definido pela hipoteca. A ulterior penhora não lhe vai acrescentar nem retirar nada. E
também não há uma maior ou menor garantia para o credor ou para terceiros”. Portanto, “existindo hipoteca
e posterior penhora sobre um prédio, para garantia do cumprimento da mesma obrigação, a graduação do
crédito é dada pela ordem prioritária da hipoteca e não pela penhora”, razão pela qual, a penhora pode ser
considerada consequência da hipoteca, sendo que seqüela é fruto da hipoteca, e não da penhora (Mouteira
Guerreiro, Reflexões no âmbito registral, cit., v. 3, p. 90).
83
Carlos Lopes do Rego, Conferência de Coimbra (29 de junho de 2001): intervenção, cit., v. 3, p. 38.
82
49
todavia sendo assegurado o recurso ao juiz, quando da existência de questões jurídicas
controvertidas.
Nessa linha de pensamento, o que de fato deveria ser assegurado “é a
possibilidade do juiz ter a última palavra quando estejam em causa direitos fundamentais,
quando estejam em causa litígios”, razão pela qual a reserva do juiz não vai a um ponto tal
“que impeça actos materiais de execução feitos pelos conservadores ou oficiais de
execução. Agora, quando há controvérsia, obviamente, aliás, como na execução fiscal, tem
de manter-se intransigentemente a reserva do juiz”84, o que não estava repudiado no
anteprojeto.
Importante intervenção decorreu de Ferreira Girão, à época Presidente da
Associação Sindical dos Juízes Portugueses, que asseverou a satisfação da Associação em
razão de o anteprojeto, na sua essência, refletir os anseios da instituição que representava,
posto que defendiam que a manutenção da ação executiva nos tribunais, “com o juiz a
deter a direcção da totalidade do processo, seria persistir numa das principais causas do
congestionamento processual e no desperdício da formação dos juízes em tarefas
meramente burocráticas, com o concomitante prejuízo da actividade jurisdicional”, vez
que “os juízes não podem continuar absorvidos por 75% dos processos que são
execuções”.85
Sob a sua ótica, tal qual defendido por Armindo Ribeiro Mendes, a intervenção
jurisdicional somente teria lugar nas situações em que fosse deduzida oposição por parte
dos executados.
Outro aspecto de suma importância, que diz respeito ao acréscimo de poderes ao
terceiro não juiz togado – contrariamente a muitos dos entendimentos até o momento
84
Armindo Ribeiro Mendes, Conferência de Coimbra (29 de junho de 2001): intervenção, in PORTUGAL.
Ministério da Justiça. Gabinete de Política Legislativa e Planeamento, Reforma da acção executiva:
trabalhos preparatórios: Conferência de Coimbra (29 de junho de 2001), Conferência realizada em 29 de
junho de 2001 na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Lisboa: Gabinete de Política
Legislativa e Planejamento, 2001, v. 3. p. 44.
85
Ferreira Girão, Conferência de Coimbra (29 de junho de 2001): intervenção, in PORTUGAL. Ministério da
Justiça. Gabinete de Política Legislativa e Planeamento, Reforma da acção executiva: trabalhos
preparatórios: Conferência de Coimbra (29 de junho de 2001), Conferência realizada em 29 de junho de
2001 na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Lisboa: Gabinete de Política Legislativa e
Planejamento, 2001, v. 3. p. 53.
50
analisados – é a defesa de Ferreira Girão à inclusão das competências oficiosas do juiz ao
agente de execução e ao conservador, para que, até a fase de pagamento, pudessem
conhecer várias questões, tais como a falta ou insuficiência do título executivo, a
ocorrência de exceções dilatórias não supríveis, e outras.
2.4
O
modelo
espanhol
de
execução
extrajudicial
hipotecária
Considerando a repercussão do regime espanhol de execução extrajudicial no
âmbito do primeiro anteprojeto de reforma da ação executiva elaborado em Portugal no
ano de 2001, mister se faz analisar, sobretudo à luz dos princípios da reserva do juiz e do
acesso ao judiciário, o modelo vigente em Espanha.
Nesse diapasão, considerando que os atos executivos previstos no anteprojeto de
execução extrajudicial hipotecária português efetivamente tiveram por inspiração a solução
havida em Espanha, entendemos que é absolutamente desnecessária a descrição do modo
como se desenrolam os atos executivos no âmbito da execução extrajudicial hipotecária
espanhola.
Seria, mutatis mutandis, repetir o conteúdo do já analisado anteprojeto português
e isso pouco – ou nada – acrescentaria ao nosso objetivo, que é o de descortinar a
viabilidade ou não da adoção de uma execução extrajudicial, no caso hipotecária, face aos
problemas identificados em Portugal, quando da discussão da reforma da ação executiva.
Por outro lado, dados os indigitados problemas suscitados em Portugal acerca da
viabilidade ou não da adoção do procedimento extrajudicial de execução hipotecária
conduzido pelo notário, entendemos ser fundamental uma abordagem mais aprofundada
acerca do debate doutrinário e o entendimento jurisprudencial havido em Espanha, acerca
da constitucionalidade do procedimento extrajudicial, o que, indubitavelmente, poderá
nortear uma nova reflexão acerca dos institutos que regem a matéria.
51
Outro aspecto que consideramos de relevo abordar é o relativo à articulação que
deve existir no momento em que surge uma oposição capaz de originar a necessária
intervenção do agente judicial no exercício da jurisdição.
Entretanto, preliminarmente, convém esclarecer que a execução extrajudicial
hipotecária espanhola que, conforme mencionado, efetivamente serviu de paradigma para o
anteprojeto de reforma não encampado pelo XV Governo português, coincidentemente
com o que sucede no ordenamento jurídico brasileiro, afigura-se como um procedimento
alternativo à via judicial de execução hipotecária em Espanha86, diferenciando-se, tãosomente no seu alcance.
É que a execução extrajudicial hipotecária espanhola, dissonantemente do que
sucede no Brasil, não se aplica somente aos contratos de financiamento imobiliário,
podendo, desde que preenchidos os seus requisitos legais, ser aplicada a qualquer espécie
de contrato garantido por hipoteca.87
Note-se que o procedimento espanhol conduzido pelo notário se notabilizou a
partir de contratos celebrados entre particulares durante o século XIX, cujo costume foi
objeto de regulação posterior, especificamente no Reglamento Hipotecario de 1915, sendo
mantido nas reformas havidas em 1947 e 1992.
Diante disso, ao revés das conservatórias portuguesas, que irremediavelmente, à
altura da discussão do anteprojeto no país, não estavam aparelhadas em termos materiais e
de pessoal qualificado para a condução da execução extrajudicial hipotecária, torna-se
perfeitamente crível conceber a especialização dos registradores espanhóis para a condução
do procedimento, sobretudo a partir da tradição existente no país.
86
Jaime Guasp, antes da recente reforma da Ley de Enjuiciamiento Civil, ao reconhecer a superioridade da
execução especial hipotecária sobre a comum, defendeu a elevação dos preceitos daquela a pressupostos de
caráter geral, a fim de ordenar um tipo único de execução sobre bens imóveis (La ejecución procesal en la
Ley Hipotecaria, Barcelona: Bosch, 1951, p. 64).
87
A respeito da amplitude da execução extrajudicial no processo civil espanhol, o artigo 682.1. da Ley de
Enjuiciamiento Civil preceitua que “las normas del presente capítulo sólo serán aplicables cuando la
ejecución se dirija exclusivamente contra bienes pignorados o hipotecados en garantía de la deuda por la
que se proceda”. Entretanto, ressalva que na hipótese de uma vez realizada a garantia hipotecária por meio
do procedimento extrajudicial e o crédito não tenha sido completamente satisfeito, poderá o credor
continuar a executar o patrimônio do devedor, todavia por meio da via comum executiva (art. 579 da LEC).
52
Além disso, o simples fato de a execução extrajudicial espanhola persistir ao
longo do tempo, levando inclusive o legislador da Ley de Enjuiciamiento a adotar todas as
cautelas para não perturbar a segurança do mercado imobiliário, quando da edição do novo
diploma processual civil espanhol que a encampou, nos leva à convicção de que a
execução
hipotecária
extrajudicial
possui
inequívoca
credibilidade
no
âmbito
socioeconômico espanhol.
A Ley 1/2000, de Enjuiciamiento Civil, de 7 de janeiro, pretendendo regular
unitariamente tudo o que se relacionasse com a execução forçosa88, em virtude das suas
especificidades, dedicou à execução hipotecária um capítulo especial, que abarca os seus
artigos 68189 a 698 (Título IV, da Ejecución dineraria do Livro III, com as especificações
previstas no Capítulo V, que se intitula De las particularidades de la ejecución sobre
bienes hipotecados o pignorados), mantendo substancialmente o regime anterior que
vigorava na legislação hipotecária especial (arts. 129 a 135 da Ley Hipotecaria).90
88
Ressalta Victorio Magarinos Blanco que mais do que uma execução forçosa sobre o patrimônio do devedor
por inadimplemento, se trata a execução hipotecária do exercício do direito que consiste a garantia
hipotecária, de vender a propriedade e satisfazer o credor com o seu produto, ainda que tal exercício se
afigure na forma de um procedimento de execução, eis que o ius vendendi, ou seja, o direito do credor
proceder à venda do bem sobre o qual recai a garantia, se atua pelo credor por ato próprio,
independentemente do meio que se adote para levá-lo a efeito (El procedimiento extrajudicial de
realización de la hipoteca.: su viabilidad, Revista Critica de Derecho Inmobiliario (RCDI), n. 641, jul./ago.
1997, p. 1.264).
89
Dispõe o artigo 681 da Ley de Enjuiciamiento Civil que “la acción para exigir el pago de las deudas
garantizadas por prenda o hipoteca podrá ejercitarse directamente contra los bienes hipotecados o
pignorados, sujetando su ejercicio a lo dispuesto en este título, con las especialidades que se establecen en
el presente capítulo”, sendo que a atual redação do artigo 129 da Ley Hipotecaria, após a reforma
processual, quedou com a seguinte redação: “La acción hipotecaria podrá ejercitarse directamente contra
los bienes hipotecados sujetando su ejercicio a lo dispuesto en el Título IV del Libro III de la Ley de
Enjuiciamiento Civil, con las especialidades que establecen en su capítulo V.”
90
Nesse sentido, o apartado XVII da Exposição de Motivos da Ley de Enjuiciamiento esclarece o seguinte:
“En cuanto a la ejecución propiamente dicha, esta Ley, a diferencia de la de 1881, presenta una regulación
unitária, clara y completa. Se disena un proceso de ejecución idóneo para cuanto puede considerarse
genuino título ejecutivo, sea judicial o contractual o se trate de una ejecución forzosa común o de garantía
hipotecaria, a la que se dedica una especial atención. Pero esta sustancial unidad de la ejecución forzosa
no debe impedir las particularidades que, en no pocos puntos, son enteramente lógicas (...). La Ley dedica
un capítulo especial a las particularidades de la ejecución sobre bienes hipotecados o pignorados. En este
punto, se mantiene en lo sustancial, el régimen precedente de la ejecución hipotecaria, caracterizado por
la drástica limitación de las causas de oposición del deudor a la ejecución y de los supuestos de suspensión
de ésta. El Tribunal Constitucional ha declarado reiteradamente que este régimen no vulnera la
Constitución e introducir cambios sustanciales en el mismo podría alterar gravemente el mercado del
crédito hipotecario, lo que no parece en absoluto aconsejable. La nueva regulación de la ejecución sobre
bienes hipotecados o pignorados supone un avance respecto de la situación precedente ya que, en primer
lugar, se trae a la Ley de Enjuiciamiento Civil la regulación de los procesos de ejecución de créditos
garantizados con hipoteca, lo que refuerza el carácter propiamente jurisdiccional de estas ejecuciones, que
ha sido discutido en ocasiones; en segundo término, se regulan de manera unitaria las ejecuciones de
créditos con garantía real, eliminando la multiplicidad de regulaciones existente en la actualidad; y,
finalmente, se ordenan de manera más adequada las actuales causas de suspensión de la ejecución,
distinguiendo las que contituyen verdaderos supuestos de oposición a la ejecución (extinción de la garantía
53
Embora atualmente inserida em capítulo especial da Ley de Enjuiciamiento Civil,
conforme afirmado, o procedimento da execução hipotecária espanhola manteve, no
essencial, as características que delimitavam os contornos do anterior procedimento
sumário de execução hipotecária, não sendo por outro motivo que Juan José Jurado Jurado,
ao sustentar a viabilidade do recurso aos entendimentos doutrinários e jurisprudenciais que
preexistiam anteriormente ao advento da Ley de Enjuiciamiento Civil, assevera que o
regime continua sendo:
“1) Una vía de apremio o proceso de ejecución especial que conlleva la
realización de valor de la finca hipoteca.
2) De base estrictamente registral.
3) En el que se ejercita la acción real hipotecaria.
4) Con fundamento en el título hipotecario, que está revestido de una
excepcional fuerza ejecutiva y;
5) No cabe pacto para alterar sus trámites, dado el carácter de ordem
público de las normas reguladoras del mismo.”91
Entendemos ser perfeitamente justificável a execução hipotecária extrajudicial ser
englobada no âmbito da Ley de Enjuiciamiento Civil, pois, em termos da sua natureza
jurídica, é um verdadeiro procedimento de execução que, embora inserido no contexto da
execução forçada, possui caráter especial, que se aplica aos casos específicos de créditos
hipotecários, devidamente constantes na imprescindível escritura de hipoteca, desde que no
título estejam presentes, entre outros requisitos, a taxa de juros e a forma de cobrança
especial, domicílio para notificações e requerimentos fixados pela parte devedora.
A propósito, Guasp92, ao reconhecer a escritura de hipoteca com cláusula de
execução extrajudicial um verdadeiro título executivo extrajudicial, afirma que o
procedimento de execução hipotecária especial não deixa de ser um processo, pois se pede
algo que se pediria do juiz perante uma outra pessoa (devedor, proprietário não devedor).
hipotecaria o del crédito y disconformidad con el saldo reclamado por el acreedor), de los supuestos de
tercería de dominio y prejudicialidad penal, aunque manteniendo, en todos los casos, el carácter
restrictivo de la suspensión del procedimiento (...).”
91
Juan José Jurado Jurado, Procedimiento de ejecución directa sobre bienes inmuebles hipotecados, cit., p.
11.
92
Jaime Guasp, La ejecución procesal en la Ley Hipotecaria, cit., p. 43 e ss.
54
A constitucionalidade do procedimento extrajudicial de execução hipotecária
espanhol, anteriormente previsto no artigo 12993 e seguintes da Ley Hipotecaria, como não
poderia deixar de ser, suscitou exaustivo debate doutrinário e jurisprudencial, sendo que,
embora ainda sujeita a críticas e a ponderações em contrário, o fato de a execução especial
haver sido encampada no seio da Ley de Enjuiciamiento, a nosso ver, sinaliza que o
procedimento criado no século XIX, além de mantido, foi absolutamente legitimado como
meio processual de realização do direito material espanhol.
Reitera-se que a execução hipotecária extrajudicial, tal qual advertido por Maria
José Capelo, não está imune a críticas em Espanha.
São diversos os respeitados doutrinadores, que a exemplo de Juan Montero
Aroca94 e Antonio Robledo Villar95, sustentam que o procedimento extrajudicial
hipotecário poderia ser inconstitucional, por se tratar de uma execução forçada, realizada
por alguém não dotado de poder jurisdicional, ainda que tal procedimento tivesse o seu
fundamento no direito do credor e na expropriação da coisa executada, tendo em vista que,
em tese, tal direito não poderia ser obtido excluindo-se a jurisdição.
De fato, são dois os aspectos mais polêmicos do procedimento extrajudicial, desde
a perspectiva de sua constitucionalidade, que são aqueles relativos, respectivamente, ao da
unidade jurisdicional e ao da tutela judicial efetiva por parte do agente judicial.
De acordo com Fernando de la Puente Alfaro e Juan María Díaz Fraile96, com
relação à unidade jurisdicional, o artigo 117.3 da Constituição espanhola estabelece que o
exercício do poder jurisdicional em qualquer tipo de processo, julgando e fazendo executar
93
O artigo 129 da Ley Hipotecaria, demonstrando ser o procedimento apenas uma forma de controle da
realização da essência privada da hipoteca, previa que na escritura de constituição da hipoteca poderiam as
partes validamente pactuar um procedimento executivo extrajudicial para fazer efetiva a ação hipotecária,
em respeito aos trâmites fixados no Regulamento Hipotecário, desde que, em respeito ao princípio da
informação, tendo em vista a restrição ao direito do mutuário, a estipulação da execução extrajudicial fosse
formalizada separadamente das demais estipulações.
94
Juan Montero Aroca, Las ejecuciones hipotecarias y la tutela judicial privilegiada. La constitucionalidad de
algunas tutelas judiciales efectivas, Revista Crítica de Derecho Inmobiliario (RCDI), año 72, n. 633, p. 254
e ss., mar./abr. 1996.
95
Antonio Robledo Villlar, La inconstitucionalidad del procedimiento extrajudicial de ejecución hipotecaria
(a propósito de la STS, Sala 1ª de 4 de mayo de 1998 y sus repercusiones en la realización forzosa de
bienes, Revista General de Derecho, Valencia, v. 55, n. 655, p. 3.593 e ss., 1999.
55
o julgado, corresponde aos juízes e aos tribunais previstos em lei, tratando-se, por
conseguinte, de reserva de jurisdição em sentido positivo, e o artigo 117.4, por sua parte,
dispõe que os juízes não exercerão mais funções do que as expressamente previstas em lei
(exclusividade em sentido negativo).
Tomando-se como fundamental saber em que consiste o jurisdicional e se o
procedimento extrajudicial é ou não uma variante daquele conceito, compartilhamos do
entendimento de Fernando de la Puente Alfaro e Juan María Díaz Fraile, no sentido de que
“a realização hipotecária não é mais do que a realização de um direito privado que
constitui a essência da hipoteca”, sendo que “esta realização está submetida a um controle
de legalidade que tradicionalmente é realizado pela autoridade judicial, mas que
igualmente pode realizar-se por outras autoridades ou funcionários legalmente habilitados
para ela”.
Portanto, a execução extrajudicial hipotecária não se trata de uma execução
forçada em seu sentido estrito, qual seja, o de impor ao executado, por meio do ius imperii,
o cumprimento de uma obrigação ou a excussão de tantos bens quantos bastem para a
efetiva satisfação do crédito exeqüendo. Nesse caso, inevitavelmente a expropriação teria
que se realizar perante outros órgãos que não as conservatórias de registros prediais.
Por outro lado, o fundamento da hipoteca radica justamente na idéia de evitar a
execução forçada sobre o patrimônio do devedor, mediante a atribuição ao credor da
faculdade de alienar a coisa hipotecada não através de um ato coativo de imperium, mas
por meio de um ato próprio, submetido ao controle de legalidade por parte do Estado (ato
registral realizado pelo notário). Isso se dá em virtude de um pacto de sujeição ao
procedimento judicial ou extrajudicial incorporado à escritura de constituição da hipoteca,
o que está perfeitamente compatível com a natureza e a essência do direito real de
hipoteca.
Portanto, a hipoteca assenta numa base contratual que, pelo seu reconhecido
elevado grau de certeza, inclusive dispensa a cognição prévia por parte do agente judicial.
96
Fernando de la Puente Alfaro; Juan María Díaz Fraile, El procedimiento extrajudicial de ejecución
hipotecaria, Revista Crítica de Derecho Inmobiliario (RCDI), año 72, n. 635, p. 1.348, jul./ago. 1996.
56
De acordo com Juan José Jurado Jurado97 e José Manuel García García98, o
procedimento de execução extrajudicial hipotecária espanhol, devido à natureza
constitutiva do registro da hipoteca, com todos os contornos que estabelecem o direito real
de garantia, aliada a uma série de garantias, como por exemplo as notificações endereçadas
ao devedor, ao garante não devedor, a terceiros possuidores e aos titulares de direitos reais
posteriores, são fundamentos suficientes para que a execução se inicie, eis que, não se está
diante de um procedimento caracterizado pela “ausencia se la fase de audiencia o de
contradicción procesal”.99
Outrossim, no que diz respeito ao princípio da inafastabilidade de apreciação por
parte do Judiciário, os contrários à execução extrajudicial afirmam que a possibilidade de
por pacto privado expresso prescindir-se da atividade jurisdicional na execução – que se
reveste de coação e imposição – vulnera a Constituição espanhola, eis que desviaria a
intervenção do juiz, dando à escritura o valor de sentença transitada em julgado e, portanto,
executável.
Diante disso, reputamos de relevo o escólio de Fernando de la Puente Alfaro e
Juan María Díaz Fraile que, ao tratar da matéria, se alicerçou no entendimento do Tribunal
Constitucional exposado desde 17 de janeiro de 1991, segundo o qual, face à alegação de
ofensa ao conceito do princípio da tutela judicial efetiva, “o direito judicial consagrado no
artigo 24 equivale ao direito que têm todas as pessoas ao acesso aos órgãos jurisdicionais
no exercício dos seus direitos e interesses legítimos, formulando quaisquer pretensões, e a
obter dos mesmos uma resolução fundada em direito, após um processo em que se garanta
o direito de defesa e se respeite o contraditório e o direito de igualdade de armas
processuais. No entanto, segundo sublinhado pelo Tribunal Constitucional, o referido
acesso tem lugar em todo caso, inclusive na execução extrajudicial hipotecária,
respeitando-se as normas de competência e procedimentos legalmente estabelecidos”.100
Compartilhando do entendimento do referido autor, não haverá – como aliás a lei
garante – ofensa ao direito de acesso ao Judiciário se ao devedor ou ao terceiro prejudicado
97
Juan José Jurado Jurado, Procedimiento de ejecución directa sobre bienes inmuebles hipotecados, cit., p.
28.
98
José Manuel García García, El procedimiento judicial sumario de ejecución de hipoteca, Madrid: Civitas,
1994, p. 47.
99
José Manuel García García, El procedimiento judicial sumario de ejecución de hipoteca, Madrid: Civitas,
1994, p. 47. (Ibidem.Qual? Jurado ou García? ambos). Conferir?Repeti o último por causa da citação “ ”.
57
for assegurado o direito de discutir fora do procedimento extrajudicial, por exemplo, a
falsidade do título hipotecário e o cancelamento da hipoteca.
Tal discussão, como adiante será melhor esmiuçado, terá lugar numa ação
declaratória de cunho ordinário que, dependendo da matéria e da pessoa do opositor,
acarretará na suspensão imediata do procedimento extrajudicial, até que a questão seja
decidida pelo tribunal de primeira instância.
Nessa senda, Victorio Magarinos Blanco, Fernando de la Puente Alfaro, José
Manuel Garcia Garcia e Poveda Diaz, cada qual a seu modo, mas de forma uníssona,
defendem a constitucionalidade do procedimento extrajudicial de execução hipotecária,
pois, em linhas gerais, através do aludido procedimento, o notário exerce uma função de
garantia de direitos prevista no artigo 117.4 da Constituição espanhola, mas não uma
função jurisdicional (art. 117.3), pois tal atuação, a princípio, carece de competência
específica para desvirtuar o conteúdo dos assentos registrais, nos quais efetivamente se
baseiam os procedimentos de realização dos débitos em comento.
Em função disso, não haveria função jurisdicional onde o juiz não pode conhecer
de alegações e nem pode declarar com firmeza de coisa julgada um direito, eis que o
procedimento está sujeito a anotação registral de assentos que estão submetidos à
presunção de legalidade.
Ademais, como visto, o controle jurisdicional de legalidade não ocorre no seio do
procedimento extrajudicial, mas somente por meio de uma ação de cunho declaratório, na
qual teria lugar toda classe de alegações sobre a existência ou nulidade da hipoteca, ou
sobre a nulidade da tramitação do próprio procedimento, seja em função do valor cobrado
ou de equívocos registrais.
Não é por outro motivo que Manuel Peña y Bernaldo de Quirós, 101 defende que a
execução extrajudicial hipotecária é compatível com a Constituição espanhola porque a
realização do direito de hipoteca pode, em rigor, desenvolver-se sem enfrentamentos entre
100
Fernando de la Puente Alfaro; Juan María Díaz Fraile, El procedimiento extrajudicial de ejecución
hipotecaria, cit., p. 65.
58
as partes e, portanto, sem verdadeiro processo, tendo em vista que o direito de hipoteca
confere ao credor não só a atuação processual, mas o próprio direito sobre a coisa
hipotecada.
A intervenção do notário em substituição à do juiz é uma cautela legal que
tradicionalmente se impõe ao exercício do direito real de garantia, com o fim de evitar
fraudes e a proibição do pacto comissório.
E continua o jurista, afirmando que a função do notário não possui caráter
jurisdicional, porque não se está diante de um enfrentamento das partes, nem de
julgamento por parte do juiz, e muito menos de execução de sentença.
Durante a mesa redonda realizada em 27 de maio de 1998 no Colegio de los
Registradores de la Propiedad y Mercantiles de España sobre a constitucionalidade do
procedimento extrajudicial de execução hipotecária, da qual foram partícipes,
representando os registradores Fernando de la Puente Alfaro e Angulo Rodríguez e, de
outro lado, a magistratura, na figura do juiz do Tribunal Constitucional Gimeno Sendra,
chegou-se à conclusão da validez e constitucionalidade do procedimento, estabelecendo-se,
inclusive, na ocasião, as seguintes conclusões:
“A) No hay en nuestra Constitución un inflexible principio de
exclusividad jurisdiccional de las ejecuciones (téngase en cuenta, por
ejemplo, la ejecución por la Administración de sentencias de la Sala de
lo contencioso-administrativo del Tribunal Supremo). El artículo 1.872
del Código Civil rompe igualmente esa pretendida unidad.
B) Estamos en presencia de un supuesto de disponibilidad y ejercicio de
un derecho privado y, por tanto, en el campo de la autonomía de la
voluntad, dentro del cual cabe que las partes acudan a equivalentes
jurisdiccionales en materia de ejecución.
C) La tutela judicial efectiva no se extiende a la ejecución: la ejecución
civil es materia en la que puede tener su manifestación la autonomía de
la voluntad.
D) El procedimiento de ejecución extrajudicial no es supuesto de
autodefensa, prohibida por la Constitución, ni puede equiparse al pacto
comisorio.
E) Por tanto, ya se niegue carácter procesal a la ejecución extrajudicial
y se considere que se trata de un supuesto de ejercicio de un derecho de
realización con la garantía de la intervención de un funcionario público
101
Manuel Peña y Bernaldo de Quirós, Derechos reales. Derecho hipotecario, 3. ed., Madrid: Centro de
Estudios Registrales del Colegio de Registradores de la Propriedad y Mercantiles de Espana, 1999, v. 2
(Derechos reales de garantía. Registro de la Propriedad), p. 164.
59
independiente, ya se considere que la ejecución extrajudicial es un
verdadero proceso pero que no existe en nuestra Constitución una
reserva judicial de la ejecución civil, debe concluirse que la ejecución
extrajudicial no incurre en inconstitucionalidad (así lo ha entendido el
Tribunal Supremo en sentencias de la sala de lo contencisoadministrativo de 16 y 23 de octubre de 1995).
F) En cuanto al alcance de la sentencia de 4 de mayo de 1998, se llegó a
la conclusión de que por tratarse la sentencia en cuestión de doctrina
‘contra legem’, no vincula a ningún otro Juzgado o Tribunal, sino que se
trata de un fallo dado para un caso concreto y sobre materia en la que la
Sala de lo Civil del Tribunal Supremo carece de competencia para crear
doctrina legal.”102
2.4.1 Das causas de suspensão da execução no regime
executivo da hipoteca em Espanha
Depreende-se da exposição de motivos da Ley de Enjuiciamiento Civil,
notadamente em seu inciso XVII que a nova regulação da execução hipotecária buscou
uma ordenação mais adequada das causas de suspensão da execução, distinguindo as que
constituem verdadeiras oposições da execução (extinção da garantia hipotecária ou do
crédito e a desconformidade com o saldo devedor), das alegações de transferência de
domínio, ainda que mantendo em todas as situações o caráter restritivo da suspensão do
procedimento.
O artigo 695 da Ley de Enjuiciamiento Civil, intitulado “Oposição à execução”,
não contempla como causa de suspensão da execução tanto a morte quanto a eventual
insolvência do devedor; tal previsão guarda correlação, respectivamente, com os artigos
540 e 568 da Ley de Enjuiciamiento Civil, que prelecionam que em tais hipóteses a
execução prosseguirá com as especificações que a própria lei regula.
Contudo, em termos de prosseguimento do nosso estudo, que visa, no presente
momento, verificar as causas de suspensão do procedimento e, por conseguinte, constatar o
caráter restritivo das mesmas, basta-nos a constatação de que a morte e a insolvência do
devedor, até mesmo em virtude da essência da garantia hipotecária, não são suficientes
para a suspensão da cobrança.
102
Juan José Jurado Jurado, Procedimiento de ejecución directa sobre bienes inmuebles hipotecados, cit., p.
36-37.
60
Por outro lado, o artigo 695 dispõe que será admitida a oposição do executado
quando ela se pautar na extinção da garantia ou da obrigação, desde que se prove, por meio
de certidão do notário, o cancelamento da hipoteca, ou, através de escritura pública, o
pagamento ou o cancelamento da garantia.
Outra hipótese de oposição é a que diz respeito ao excesso de execução, ou seja,
quando o valor cobrado está acima daquilo que efetivamente é devido.
Nessa hipótese, caberá ao executado fazer acompanhar as suas alegações da
planilha de débito que demonstre com precisão as eventuais discrepâncias praticadas pelo
credor na elaboração dos seus cálculos e, por conseguinte o valor efetivamente devido.
Não haverá tal obrigatoriedade na hipótese de a dívida decorrer de contratos
mercantis outorgados por entidades de crédito, sendo certo que nesse caso, ao menos,
deverá o devedor apontar os pontos discrepantes utilizados para a composição do débito,
como por exemplo uma taxa de juros em desconformidade com a pactuada
contratualmente.
A terceira e última hipótese de oposição à execução no regime espanhol é a que
diz respeito à nulidade da hipoteca, em virtude de anteriormente à sua instituição já existir
uma outra hipoteca ou algum outro compromisso que porventura já comprometesse a
garantia.
Formulada a oposição embasada na extinção da obrigação ou na nulidade do
gravame instituído, liminarmente se suspenderá a execução, sendo que o tribunal, mediante
determinação encaminhada ao notário, convocará as partes a comparecer a uma audiência,
quando as ouvirá e receberá os documentos cabíveis para, no prazo de dois dias, decidir
acerca da pretensão deduzida pelo devedor.
Caso se apure documentalmente a extinção da obrigação, considerando a base
essencialmente registral da hipoteca, imediatamente o procedimento será interrompido,
cabendo tão-somente nesse caso recurso de apelação ao credor.
61
Na ocorrência de oposição por erro de cálculo na cobrança, ela terá lugar através
de um juízo declarativo ordinário, de cuja decisão não caberá apelação. Portanto, havendo
divergência entre o valor cobrado e o efetivamente devido, o procedimento será retomado
pelo valor apurado em sede ordinária, não havendo qualquer possibilidade de recurso
contra tal decisão.
É de relevo sublinhar que no regime espanhol, como medida para proporcionar
maior celeridade e efetividade ao procedimento, optou-se por somente conferir ao credor a
possibilidade de recorrer da decisão que inviabilizar a cobrança, razão pela qual ao devedor
somente foi garantido o direito de discutir, em instância única, a eventual nulidade do
procedimento.
O artigo 696 da Ley de Enjuiciamiento Civil versa sobre as restritas hipóteses em
que se admite a interferência do terceiro que se apresenta como titular do direito real de
propriedade do bem hipotecado.
De fato, na legislação espanhola, dada a índole eminentemente registral da
hipoteca e do sistema de circulação de bens imóveis no país, para que o terceiro demonstre
a viabilidade do seu direito, mister se faz comprovar que anteriormente à constituição da
hipoteca era o verdadeiro titular dos direitos de propriedade do bem, não se admitindo
como meio de prova o documento particular não registrado.103
E isso somente será admitido se juntar o registro prévio do título e a comprovação
de ausência da sua anulação ou extinção no assento de domínio correspondente, provando,
por conseguinte, que o seu título é anterior à constituição da hipoteca.
103
Em relação à inadmissibilidade de documento privado não registrado, como meio de prova para a
oposição do terceiro, convém transcrever parte da decisão exarada pelo Tribunal Supremo em 26 de
setembro de 1991, ou seja, antes mesmo do advento da atual Ley de Enjuiciamiento Civil – portanto,
tratando da interpretação da lei derrogada –, na qual restou consignado o seguinte: “Por último, el motivo
cuarto acusa la infracción de los artículos 1537 y 1535 de la Ley de Enjuiciamiento Civil, por entender que
tales preceptos legales no exigen para el éxito de la tercería de domínio que el título del tercerista se halle
inscrito en el Registro, bastando con que se presente el título en que se funda. El motivo no puede
prosperar, al basarse en unos hechos en que en la sentencia recurrida no se consignan como probados, así
el hecho de que D. Albino R. no quiso o no pudo otorgar escritura pública de venta a favor de los
terceristas, y basarse en una conducta dolosa de la que no hay prueba, ni esta Sala puede ahora investigar
(...). Por último, es de toda evidencia que la Ley Hipotecaria (...) exige no suspender el procedimiento
ejecutivo por reclamaciones de un tercero si no estuviesen fundadas en un título anteriormente inscrito,
condición que no reúnen los recurrientes, norma que ratifica de manera expresa el artículo 132, n. 2, de la
62
Na prática, a alegação terá lugar quando se verificar algum erro praticado pelo
cartório de registro de imóveis, como no caso de ofensa ao princípio da prioridade ou
anterioridade do registro notarial, quando indevidamente se inscreve em primeiro lugar a
constituição da hipoteca e, somente após, a anterior venda efetuada.
A título exemplificativo, podemos mencionar como hipótese de oposição do
terceiro o caso em que porventura existe uma duplicidade de matrículas do mesmo imóvel
e o terceiro prove que o seu título é anterior ao da constituição da hipoteca.
A tramitação da oposição de terceiro prosseguirá consoante o procedimento
ordinário e, caso a mesma seja julgada procedente, o juiz decretará o cancelamento do
gravame hipotecário.
O artigo 697 da Ley de Enjuiciamiento Civil, ao remeter para o artigo 569 do
mesmo diploma, contempla a hipótese de suspensão da execução, quando se verificar a
ocorrência de ilícito penal ou qualquer outra causa de aparência delitiva que determine a
falsidade do título, a invalidez ou ilicitude do ato praticado pelo notário que deu
continuidade à execução.
O artigo 569 explicita que a simples apresentação de alegação de conduta delitiva
por parte do devedor ou do notário não será suficiente para a decretação da suspensão da
execução hipotecária.
É necessária a apuração caso a caso, de acordo com as regras de experiência do
juiz, e somente após ouvidas as partes e o Ministerio Fiscal, para que finalmente se afira a
viabilidade ou não da suspensão do procedimento.
Por oportuno, deve-se ressaltar que se porventura aquele que causar o incidente
não lograr demonstrar a viabilidade das suas alegações, estará sujeito a pagar a competente
reparação por perdas e danos. Tal medida é perfeitamente compatível com a necessidade
misma Ley”. (Boletim Aranzadi de Jurisprudência, compreendendo o período de 1992 a 1999, “Tribunales
Superiores de Justicia y Audiencias Provinciales”, Navarra, 2000). completar
63
de se provocar no devedor e no terceiro um dilema, caso apresente evasivas para
indevidamente provocar a procrastinação da cobrança por meio de ardis processuais.
Independentemente disso, em qualquer hipótese de oposição, o exeqüente poderá
prosseguir na execução se, a teor do artigo 529 da Ley de Enjuiciamiento Civil, prestar
caução suficiente para prevenir os eventuais prejuízos que eventualmente sejam
ocasionados ao executado ou ao terceiro, em virtude da continuidade da execução caso, ao
término do incidente, seja vencido.
2.4.2 A reclamação pela via ordinária
O artigo 698 da Ley de Enjuiciamiento Civil contempla as reclamações não
previstas nos artigos 695 a 697 do mesmo diploma processual.
Dessa forma, estabelece o referido artigo 698 que qualquer reclamação que o
devedor, o terceiro possuidor e qualquer outro interessado possam formular e que não
estejam compreendidas nos artigos 695 a 697, inclusive as que versem sobre a nulidade do
título ou sobre o vencimento, certeza, extinção ou quantia devida, tramitarão perante o
juízo competente (que será apurado de acordo com as regras ordinárias de fixação da
competência), sem ocasionar a suspensão do procedimento.
Eis aí o motivo para que tanto a doutrina quanto a jurisprudência espanhola
inclinem-se pela constitucionalidade do procedimento executivo em apreço.
Com efeito, sob a nossa ótica, embora defendamos que a verificação da
regularidade dos cálculos apresentados pelo credor poderia ser perfeitamente realizada pelo
notário, o procedimento espanhol assegura plenamente o controle jurisdicional da
execução hipotecária.
O fato de o legislador haver restringido, a partir de uma experiência centenária, os
casos de suspensão do procedimento e haver deslocado o controle jurisdicional para as
hipóteses em que efetivamente há uma provocação, formulada através de uma oposição,
64
isso em nada resulta na nulidade ou inconstitucionalidade do procedimento, eis que
somente houve uma modificação da cognição do agente judicial para o momento em que
há a necessidade da resolução de uma controvérsia instaurada pelo devedor, pelo possuidor
ou pelo terceiro interessado.
Inexoravelmente, no procedimento espanhol está aberta a oportunidade para que o
devedor, o hipotecante não devedor, o terceiro possuidor, os demais credores ou qualquer
outro interessado formule qualquer pretensão não compreendida nas causas previstas nos
artigos 695 a 697; todavia, as eventuais oposições não previstas, como sublinhado,
necessariamente não terão o condão de suspender o curso regular da execução.
A fim de viabilizar a efetividade do provimento jurisdicional, ao tempo da
formulação da reclamação não compreendida no artigo 695 da Ley de Enjuiciamiento Civil
ou durante a sua tramitação, poderá o interessado requerer a retenção do todo ou de uma
parte do pagamento que porventura receberia o credor.
Por outro lado, também se assegura ao credor a possibilidade de oferecer caução
idônea ao juízo ordinário, quando se terá como satisfeita a retenção requerida.
2.5 A evolução da execução no Brasil
No âmbito do direito processual civil brasileiro, o Livro III das Ordenações
Filipinas foi gradativamente sendo derrogado, visto que, conforme é cediço, as Ordenações
vigoraram no país até 1916, ou seja, até o advento do Código Civil.
Cândido Rangel Dinamarco salienta que o direito processual positivo brasileiro
somente foi constituído quando, em 1850, o Regulamento n. 737 traçou a nova disciplina
do processo comercial, e quando o Decreto n. 763, de 1890, estendeu ao processo civil em
geral as disposições daquele diploma.104
104
Cândido Rangel Dinamarco, Execução civil, cit., p. 74.
65
Seguindo a influência portuguesa, no Brasil a execução continuou sendo uma
atividade estatal, sendo competente para os atos expropriatórios o juiz que tivesse
conduzido originariamente o processo de conhecimento, já admitindo-se a expedição de
carta precatória nos moldes hodiernamente praticados. Em continuidade ao entendimento
acerca da autonomia do processo de execução, fazia-se necessária a citação do executado
ao início do processo executivo, sob pena de nulidade absoluta. No entanto, não se
cogitava em medidas corporais destinadas a convencer o executado a cumprir as
obrigações.
No Regulamento n. 737 também já se admitia a execução fundada em títulos
extrajudiciais, nos moldes da referida assinação de dez dias, desde que consubstanciados
em atos de comércio. Posteriormente, foi estendido o procedimento sumário da assinação
de dez dias à cobrança judicial dos créditos hipotecários (Lei n. 1.237, de 1864), dispondo
que aí teria cabimento o seqüestro inicial (arresto em Portugal), realizado através do
aparelho estatal, tendo como requisito apenas a falta de pagamento.
Perfilando a tradição ibérica no direito processual civil brasileiro, “nunca
ocorreram fenômenos que tiraram a função executiva da órbita do Poder Judiciário”.
No Brasil, tal qual sucedeu em Portugal e em Espanha, não foi criada a figura do
oficial de justiça ligado ao Poder Executivo, como em outros ordenamentos.
O processo de execução no Brasil sempre foi dotado de uma índole estritamente
judiciária, sendo uma ação autônoma; conceitos esses que paulatinamente vêm perdendo
terreno, diante das necessidades de se oferecer maior efetividade e celeridade ao processo
expropriatório na sociedade contemporânea.
Exemplo disso foi aquilo que Araken de Assis105 reputou como o reconhecimento
muito recente das eficácias mandamental e executiva dos provimentos jurisdicionais “e a
aparente simplicidade do seu cumprimento (execução ‘forçada’), que induziram o
legislador, nas reformas parciais do processo civil brasileiro, a eliminar a necessidade de
um novo processo – o processo de execução previsto no Livro II do Código de Processo
105
Araken de Assis, Cumprimento de sentença, Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 11.
66
Civil – para o efeito de executá-las”. No concernente à eficácia mandamental, salienta o
professor gaúcho que os meios executivos disponíveis para realizar as ordens do juiz se
cingem a expedientes de pressão psicológica, ameaçando com a imposição de prisão ou de
multa.
De fato, a partir do advento da Lei n. 11.232, de 22 de dezembro de 2005 (Da
sentença e da coisa julgada; Da liquidação de sentença; Do cumprimento da sentença; Dos
embargos à execução contra a Fazenda Pública), vigente desde 23 de junho de 2006, a
nova redação do artigo 475-B, caput do Código de Processo Civil dispõe que obrigado o
condenado a prestar em dinheiro, “o credor requererá o cumprimento da sentença, na
forma do artigo 475-J desta Lei”.
O artigo 475-J, caput preleciona que, uma vez intimado o devedor na pessoa de
seu advogado e não solvendo o condenado a dívida em quinze dias, sofrerá multa no
percentual de 10% e, a requerimento do credor, expedir-se-á mandado de penhora e
avaliação.
Note-se que embora a iniciativa do exeqüente tenha sido designada
“requerimento” em lugar de “petição inicial”, sem mudança substancial no regime – exceto
no que concerne à intimação do devedor na pessoa do seu advogado, desnecessitando a
citação para pagamento – compartilhamos do entendimento de Araken de Assis no sentido
de que “a fonte provável em que se abeberou o legislador reformista, para impressionar os
incautos com o elevado grau de informações colhidas no direito estrangeiro, é o artigo 810
do Código de Processo Civil português, que desde a reforma de 1995/1996 alude a
‘requerimento executivo’. Antes disto, chamava-se ‘requerimento inicial’, correspondendo
à petição inicial do processo de conhecimento, e ao qual os seus requisitos se aplicam
subsidiariamente”.106
Portanto, a recente reforma havida no processo executivo brasileiro não derrogou
o artigo 583 do Código de Processo Civil, que proclama que toda execução tem por base
um título judicial ou extrajudicial, tendo em vista que ela contemplou especificamente as
106
Araken de Assis, Cumprimento de sentença, cit., p. 243.
67
espécies de título judicial, cujo elemento comum é a condenação a prestar uma quantia em
dinheiro (artigo 475-N e P).
Entretanto, para o desenvolvimento do nosso estudo, importa ressaltar que tanto a
execução de título extrajudicial quanto a de título judicial no Brasil continuam dependentes
de iniciativa da parte, prevalecendo o princípio da demanda, no sentido de se reservar ao
exeqüente a faculdade de avaliar as probabilidades de êxito na sua empreitada, quedando,
por conseguinte, inviabilizada a execução ex officio.
Ademais, a execução de título extrajudicial continua a ser regulada pelo Livro II
do Código de Processo Civil107, enquanto que a execução de título judicial, atualmente
denominada de cumprimento da sentença, após a reforma introduzida pela Lei n. 11.232,
passou a possuir regramento próprio, aplicando-lhe, subsidiariamente, o regime anterior. E,
ao invés de seguir a tendência de unificação das espécies de execução, no Brasil, após o
advento da recente Lei n. 11.382, de dezembro de 2006, realçou-se a opção legislativa pela
dicotomia entre a execução de título judicial e extrajudicial.
Independentemente disso, importa ressaltar que no Brasil subsiste o entendimento
de que “à jurisdição como relevante serviço público prestado pelo Estado se reconhecem
três funções. A tutela jurídica do Estado visa, sobretudo, à efetiva realização dos direitos
consagrados no ordenamento jurídico”, e para tal “os litigantes pretendem do Estado as
seguintes providências: (a) a formulação de uma regra jurídica concreta, decidindo qual
deles tem razão; (b) a atuação prática desse comando vinculativo, sempre que necessário e
na hipótese de o vencido não cumpri-lo espontaneamente; e (c) perante situações de
urgência, a rápida e eficaz asseguração ou satisfação desses objetivos”.108
E é justamente em virtude da função executiva, de proporcionar a realização
prática dos direitos outorgados em provimentos jurisdicionais ou em outros títulos
executivos, que entende-se haver sido superado o adágio jurisditio in sola notio consist.
107
Inclusive, é de se ressaltar que mesmo após o advento da Lei n. 11.382, de 6 de dezembro de 2006,
compete exclusivamente ao juiz a condução do processo executivo.
108
Araken de Assis, Cumprimento de sentença, cit., p. 13.
68
Nada obstante ser considerada uma atividade jurisdicional que, sob a nossa ótica,
indevidamente ainda é considerada de exclusividade do Estado-juiz, os meios técnicos
disponíveis para executar ainda não evoluíram suficientemente para se adaptar a uma
sociedade de consumo de massas, com enorme volatilidade no tráfego de bens, visto que
somente recentemente, e após muito debate jurisprudencial, surgiu a chamada penhora on
line, ou seja, a constrição dos ativos financeiros pertencentes ao devedor e que estejam
depositados em contas bancárias de sua titularidade, a partir de uma ordem expedida pelo
próprio juiz da execução ao Banco Central do Brasil que, por sua vez, a retransmite às
instituições financeiras cadastradas. Esclarece-se que não estamos diante da penhora e/ou
bloqueio da conta bancária, mas tão-somente dos ativos financeiros suficientes à satisfação
do crédito exeqüendo.
Independentemente disso, mister se faz reconhecer que sequer existe no Brasil um
banco de dados que conte com informações rápidas e precisas acerca dos resultados
práticos provenientes das ações propostas contra o devedor e de seus eventuais bens
passíveis de constrição.
Embora concordemos que no Brasil vive-se hoje “o terceiro momento
metodológico do direito processual, cuja marca característica é a mais pura consciência de
sua instrumentalidade em relação ao direito material: o processo, diz-se, vale não tanto
pelo que ele é, mas fundamentalmente pelos resultados que produz”109, o fato é que,
comparativamente, a execução brasileira está no mínimo uma década atrasada em relação
àquilo que já foi discutido e implementado em Portugal.
Nessa senda, concordamos com Araken de Assis que, ao reconhecer a grave crise
presente na execução, assinalou que “reformas cosméticas, limitadas a aperfeiçoamentos
da verba legislativa, nada resolverão neste contexto”.110
2.5.1 A execução extrajudicial hipotecária brasileira
109
Débora Inês Kram Baumohl, A nova execução civil: a desestruturação do processo de execução, São
Paulo: Atlas, 2006, p. 1.
110
Araken de Assis, Cumprimento de sentença, cit., p. 16.
69
No Brasil, a partir da libertação dos escravos (1888), que anteriormente a isso
viviam precipuamente em abrigos coletivos (senzalas), sem disporem de dignas condições
de habitabilidade, houve um incremento populacional nas cidades, pois os desvalidos, em
geral passaram a viver em habitações individuais, que sequer eram dotadas de saneamento
básico, o que, aliás, lamentavelmente ainda se verifica num país que detém uma das
maiores economias mundiais, mas que atualmente ostenta a lamentável quarta posição
mundial entre aqueles com pior distribuição de renda.
Inexoravelmente,
considerando
que
os
orçamentos
governamentais
–
normalmente pessimamente geridos – no mais das vezes foram revertidos em favor
daqueles que menos necessitavam do auxílio público para prover as suas necessidades, não
houve espaço para se investir na aquisição da casa própria por parte dos menos afortunados
(que não são poucos!).
Nessa senda, em 1964, com o escopo de captar recursos para viabilizar a criação
de um amplo projeto para tornar possível aquisição da casa própria, visto que à altura não
havia mais espaço para mais delongas por parte do governo, pois, diante da falta de
saneamento básico em milhares de moradias, já era latente o problema de saúde pública
que permeava a sociedade brasileira, surgiu o chamado Sistema Financeiro da Habitação
brasileiro que, entre outras coisas, dependia para a sua implantação da captação de recursos
para o financiamento habitacional.
Para viabilizar a participação da iniciativa privada e a segurança quanto ao retorno
dos valores mutuados em caso de inadimplência, foi conferido aos entes financeiros um
instrumento que seria célere e desjurisdicionalizado, pois a execução seria realizada por
um agente privado e sem o risco de permanecer por tempo indeterminado aguardando a
satisfação do crédito perante o Judiciário.
Consoante preconizado por Araken de Assis, “o advento da Lei n. 4.380, de
21.8.1964, implicou extraordinário desenvolvimento do mercado imobiliário por cerca de
três lustros. Foi, no período, a pedra de toque de todo sistema de concessão de
financiamento para aquisição da casa própria atrelado a uma cláusula móvel, tanto o capital
70
mutuado quanto o valor das prestações destinadas a amortizá-lo, sob garantia de hipoteca
do próprio imóvel”.111
Além disso, considerando a necessidade de reduzir os trâmites da pretensão a
executar os créditos, haja vista se cuidar de negócios de massa, e a fim de resguardar os
interesses dos investidores, na ocasião também foi criada a chamada a execução
extrajudicial hipotecária112, prevista no Decreto-Lei n. 70/66, de 21.11.1966, que instituiu a
figura do agente fiduciário – trustee113 –, visando a realização extrajudicial do crédito (arts.
29 e 38).114
111
Araken de Assis, Manual da execução, 9. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 928.
“A Lei n. 11.382, de 6 de dezembro de 2006, encampou o Projeto de Lei n. 4.497/2004, que propunha
alterações no processo de execuções extrajudiciais. O projeto foi uma das medidas elaboradas pela
Secretaria de Reforma do Judiciário como parte da reforma infraconstitucional (processual) do Judiciário.
Outros treze projetos foram enviados em 15 de dezembro de 2004 ao Congresso Nacional, sendo sete com
alterações ao Código de Processo Civil e seis com alterações no processo trabalhista. Uma das principais
mudanças sugeridas pelo projeto, no que concerne à execução extrajudicial, mas que ainda não foi objeto
de votação pelo Legislativo, atende a uma das críticas que outrora formulamos à sistemática jurisprudencial
quando o mutuário pretendia a revisão da dívida, é que, de acordo com a proposta, o devedor não precisará
mais fazer o pagamento em juízo para recorrer de uma ação de execução hipotecária extrajudicial. Contudo,
visando evitar a morosidade na recuperação do imóvel por parte da instituição financeira, visto que no
Estado de São Paulo, atualmente, um recurso de apelação demora aproximadamente cinco anos para ser
distribuído a um relator, os recursos não terão mais efeito suspensivo, ou seja, não impedirão que o credor
inicie ou retome a execução para reaver os seus direitos. Tal medida, a nosso ver, atende às nossas
exigências de não se criar óbices artificiais para que o consumidor aceda ao Judiciário, visto que os bancos
preliminarmente apontavam o valor da dívida que lhes aprouvesse e a parte contrária era impingida a
depositar integralmente o valor cobrado para que pudesse discutir o débito, o que, por vezes, inviabilizava a
propositura da ação, resultando em grave injustiça. De outro lado, evitou-se que aqueles que porventura
queiram se valer da extrema morosidade do Judiciário para protelar a execução da dívida ingressem com
ações absolutamente temerárias, fazendo com que a instituição financeira aguarde, em muitos casos, cerca
de dez anos para reaver o seu investimento. Outro aspecto importante da proposta de aperfeiçoamento da
execução extrajudicial hipotecária também contempla as críticas por nós formuladas em outra ocasião,
relativa ao risco latente de se proceder à temerária alienação da garantia hipotecária por preço vil. Nesse
aspecto, entendemos que a reforma contempla, de forma adequada, o interesse das partes. É que a hasta
púbica (leilão), deixará de ser a principal maneira de transformar os bens penhorados em dinheiro para o
pagamento da dívida que deu origem ao processo. Com isso, abre-se a possibilidade de o credor adquirir
diretamente o bem do devedor, desde que com a sua anuência e por preço não inferior ao de avaliação.
Caso o devedor se oponha à adjudicação do bem pelo credor, deverá, sob a fiscalização do agente judicial,
efetuar a venda particular do bem, passando o leilão a ser a última opção para a alienação de um bem.”
(EXECUTIVO propõe mudanças no processo de execução extrajudicial, disponível em: www.aasp.org.br,
acesso em: 20 dez. 2004).
113
Como é de conhecimento, no sistema da common law, é recorrente o recurso ao trustee, pessoa singular ou
coletiva, que contratualmente se obriga, por meio do dever fiduciário, a salvaguardar uma garantia (trust),
em benefício de um ou mais indivíduos ou organizações (beneficiary), que detêm o título da garantia
(beneficial ou equitable title). O trust é gerido de acordo com os termos do contrato que se submete à lei do
local onde for estabelecido, posto que é um desdobramento da lei de equity (de séc. XII), ou seja, da idéia
de que em determinados casos, a mera aplicação da lei poderia ocasionar a própria iniqüidade.
114
A partir de 1988, com advento da Constituição da República Federativa do Brasil, surgiram diversos
questionamentos relacionados com a constitucionalidade do Decreto-Lei n. 70/66, que mais adiante
passaremos a esmiuçar. Todavia, parte considerável da doutrina entende que, tendo em vista a anterioridade
112
71
Na doutrina brasileira, Cândido Rangel Dinamarco defende peremptoriamente a
indispensabilidade do controle jurisdicional das execuções e, de forma enfática, critica as
execuções extrajudiciais, como a prevista no Decreto-Lei n. 70, de 21.11.1966.
Nas palavras do processualista brasileiro, não obstante a tendência de
humanização da execução e a busca de equilíbrio, a execução extrajudicial hipotecária foi
“instituída em favor do Banco Nacional da Habitação e das entidades ligadas ao Sistema
Financeiro da Habitação” e traz abertura para a injustiça.
Os problemas identificados por Cândido Rangel Dinamarco resultam do fato de a
execução ser conduzida por um agente fiduciário estranho ao Poder Judiciário e caminha
sem possibilidade de embargos pelo executado, sem avaliação do bem e sem necessidade
da correspondência entre o valor da alienação e o valor real deste.
Por outro lado, entendemos que Cândido Rangel Dinamarco acena com a
possibilidade da execução ser realizada por entidades privadas, quando afirma que “a
efetividade do controle jurisdicional poderá tornar perdoável a outorga de poderes de
expropriação a entidades privadas”.115
Desse modo, seguindo a sinalização ofertada pelo processualista, podemos
afirmar que desde que haja a possibilidade de o devedor se socorrer do agente judicial, não
haveria motivo para se eivar de nulidade um procedimento realizado perante o ente
privado.
O problema aparentemente estaria na articulação entre a oposição que seria
realizada perante o ente privado e a remessa da mesma ao agente judicial.
Considerando a solução espanhola, estamos inclinados a dizer que não se
demonstra uma tarefa das mais complicadas viabilizar o controle jurisdicional na execução
extrajudicial hipotecária, motivo pelo qual o problema identificado na legislação brasileira
da norma inquinada de ilegalidade, não se estaria diante de uma discussão relativa à inconstitucionalidade,
mas tão-somente à ilegalidade.
115
Cândido Rangel Dinamarco, Execução civil, cit., p. 324-325.
72
não se revela intransponível, o ponto de eivar de nulidade o eventual projeto de
desjudicialização da execução.
Sem embargo, Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart propugnam que
a execução extrajudicial hipotecária brasileira atenta contra o princípio da igualdade, vez
que permite aquilo que reputam “execução privada”, na medida que autoriza o credor a
providenciar privadamente, em caso de inadimplemento do devedor, o leilão público do
bem dado em garantia, sem a prévia autorização do Poder Judiciário, pois visa que o
direito do credor (instituições financeiras) seja realizado de forma bastante célere.
Além disso, os aludidos juristas asseveram que “a Constituição da República só
permite que alguém seja privado dos seus bens após o devido processo legal, enquanto que
o referido procedimento permite o leilão do bem que foi dado em garantia pelo devedor
sem sequer a instauração do processo”.116
Em que pese todo o respeito ao sempre oportuno escólio dos eméritos
processualistas brasileiros, entendemos ser imperioso estabelecer um diálogo, mesmo que
ainda incipiente, acerca das suas ponderações.
É que, a nosso ver, a eventual desjudicialização dos atos executivos, tal qual
sucede na execução conduzida pelo agente fiduciário, ou até mesmo a realizada pelo
agente de execução em Portugal, ou pelo notário em Espanha, nada tem de ilegal, pois se
assim o fosse, as execuções fiscais também deveriam ser consideradas inconstitucionais,
bem como a liquidação extrajudicial das instituições financeiras, isso sem falar nos casos
em que a função jurisdicional sequer se encontra no Poder Judiciário, como no caso de
processo de impedimento do Presidente da República.
O problema não está no fato de se atribuir ao agente privado poderes que
tradicionalmente seriam considerados exclusivos do Estado, ou no fato de desjudicializar
os atos que anteriormente estavam sob a condução do agente judicial. A questão fulcral
está em como se viabilizar a garantia do controle jurisdicional nos procedimentos
116
Luiz Guilherme Marinoni; Sérgio Cruz Arenhart, Manual do processo de conhecimento, 4. ed., São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2005, p. 72.
73
realizados administrativamente, pois, no nosso entendimento, o Estado, por si só, não
possui condições para gerir as demandas sociais da sociedade moderna.
Artigo de periódico recentemente publicado, ao analisar a visão de David Osborne
acerca do reinventing the government, consignou que o que mais importa na sociedade
moderna é “reposicionar o Estado como pivot central da organização, monitorização e
funcionamento adequado das nações e aproveitar as dimensões qualificadoras do
conhecimento inovação e competitividade como atributos capazes de fazer reganhar a
confiança estratégica do cidadão naqueles que o representem e têm uma responsabilidade
superior na garantia de patamares adequados de qualidade de vida e desenvolvimento
social”.117
E para revigorar a sua posição de operador de modernidade, compete ao Estado
proporcionar uma verdadeira parceria estratégica democrática, em que Estado e sociedade
civil protagonizam uma batalha conjunta pela modernidade como garante do futuro. Para
tanto, sob a nossa ótica, compete aos processualistas modernos a árdua tarefa de enfrentar
dogmas, que pela sua própria natureza não são imutáveis.
Exemplo clássico disso está na própria realização dos atos executivos que, como
pudemos constatar, durante séculos foram realizados pelo próprio credor, sob o controle do
iudex e, acima de tudo, com atuação pautada na legislação.
Ora, nem sempre os agentes judiciais conduziram os processos de execução!
A propósito, consideramos um equívoco considerar a execução extrajudicial
hipotecária conduzida pelo agente fiduciário uma forma de autotutela da pretensão
executiva por parte do credor.118
De fato, conforme amiúde pudemos constatar a partir do estudo da evolução da
execução no direito romano, desde o advento da Lei das XII Tábuas, o direito passou a
117
A CONSTRUÇÃO do novo estado não se pode fazer sem a sociedade civil, Jornal Público, Lisboa, de 4
fev. 2006, Caderno Economia, p. 38.
118
A título de ilustração, a referência à execução extrajudicial hipotecária como forma de autotutela pode ser
encontrada numa peça de autoria de Airton Abreu Rocha e Pedro Augusto Vivas A. dos Santos,
corroborada pela decisão oriunda do Supremo Tribunal Federal, cuja relatoria foi do Ministro Paulo
Brossard (ADIN n. 337, j. 11.3.1992, disponível em: www.jusnavigandi.com.br, acesso em: 13.11.2006).
74
limitar a atuação do credor no desempenho dos seus atos de cobrança, razão pela qual a
legislação passou a controlar os atos executivos.
Como o Decreto-Lei n. 70 impõe ao credor a submissão da cobrança a um
terceiro, sem permitir que realize por si só a expropriação do bem, não vemos qualquer
sentido em relacionar a autotutela com a desjudicialização dos atos executivos. Aliás,
contrariamente ao que já é aceito no ordenamento jurídico brasileiro, a partir do advento da
Lei n. 11.382, de 6 de dezembro de 2006, que reformulou o processo de execução, o
Decreto-Lei n. 70 sequer autoriza ao credor a possibilidade de realizar a venda particular
do bem hipotecado.
Sem prejuízo, mesmo que hipoteticamente fosse permitido ao credor realizar os
atos executivos, inclusive a venda do bem, desde que seguindo-se a um rito
preestabelecido na legislação própria, nem por isso se cogitaria da existência de autotutela
em tal situação, pois ao credor somente lhe seria autorizado se impor ao devedor nos
estritos limites da lei, o que de fato não se perquire na autotutela.
Em virtude das notórias resistências ao regime da execução extrajudicial
hipotecária, cujo controle judiciário, conforme retratado, se efetiva a posteriori e a
instância do executado, consoante lecionado por Araken de Assis, “sobreveio, à guisa de
tentame conciliatório, a Lei n. 5.741, de 1.12.1971, pela qual, a par daquele regime
extrajudicial, surgiu um procedimento especial para cobrança de crédito hipotecário
vinculado ao Sistema Financeiro da Habitação (art. 1º da Lei n. 5.741/71)”.119
Uma inovação trazida pela Lei n. 5.741 foi a possibilidade da adjudicação, pelo
valor integral da dívida, do bem hipotecado à instituição financeira, caso o imóvel não
fosse arrematado durante a praça que seria realizada por um leiloeiro particular, mas
devidamente habilitado para tal.
Então, embora seja usual constar dos contratos de financiamento imobiliário a
previsão da adoção da execução extrajudicial hipotecária com fundamento no Decreto-Lei
70/66, no presente momento, no direito brasileiro o credor dispõe de três caminhos para
realizar o seu crédito: a) execução extrajudicial fundada no Decreto-Lei n. 70/66; b)
119
Araken de Assis, Manual da execução, cit., p. 928-929.
75
execução consoante o rito especial previsto na Lei n. 5.741/71 que, embora submetida ao
crivo do Judiciário, diverge do rito comum previsto no Código de Processo Civil, no
tocante aos requisitos específicos, tópicos da inicial e a alguns aspectos do
procedimento120; c) execução segundo o rito comum do Código de Processo Civil, tendo
em vista que, à luz do artigo 585, inciso III, a hipoteca constitui título executivo
extrajudicial.121
Sublinha-se, portanto, que, em se tratando de hipoteca decorrente de contrato de
financiamento imobiliário, o credor terá o concursos eletivus, podendo optar livremente
por qualquer dos procedimentos, desde que também possua a anuência do consumidor. Nos
demais casos, a execução hipotecária seguirá o rito comum previsto no Código de Processo
Civil.
Conforme pudemos verificar, em Espanha, após o advento da Ley de
Enjuiciamiento Civil de 2001, como medida de simplificação e a fim de privilegiar a
unidade do sistema, houve a unificação de todos os procedimentos que previam a execução
hipotecária no país. Tal opção, em nosso entendimento, é perfeitamente compatível com a
busca de um processo claro, eficiente e consonante com as aspirações de segurança jurídica
e de maior eficiência do ordenamento jurídico.
120
A execução prevista na Lei n. 5.741/71 tem lugar tão-somente quando o mutuário não liquidar três ou
mais parcelas do financiamento imobiliário (conforme previsto no art. 21 da Lei n. 8.004/90), sendo que
nesse caso ocorrerá o vencimento antecipado da dívida (conforme o art. 29, parágrafo único do Dec.-Lei n.
70/66). A petição inicial deverá ser instruída com pelo menos dois avisos de cobrança, dos quais,
independentemente da forma utilizada pelo credor, deverá advir a certeza de que foram recebidos pelo
devedor ou por todos os devedores. Embora deflua do artigo 95 do Código de Processo Civil que as ações
reais devem correr no foro da situação do imóvel, ressalva feita aos direitos de garantia, o que poderia
proporcionar às partes a eleição de foro diverso, o artigo 3º, parágrafo 2º da Lei n. 5.741/71 remete para a
subordinação das partes ao foro da situação do bem hipotecado, sobretudo quando a eleição de foro
provocar prejuízo à defesa do consumidor. Ponto de relevo na tramitação da execução hipotecária especial
perante o Judiciário é o que trata da adjudicação do bem hipotecado, tendo em vista que, frustrada a
segunda licitação, independentemente da vontade do credor e diferentemente do que preconiza o artigo 714
do Código de Processo Civil (que, em seu § 1º, faculta ao credor hipotecário a adjudicação do bem pelo
valor da avaliação realizada), o juiz adjudicará o imóvel ao credor hipotecário, dentro de quarenta e oito
horas, “ficando exonerado o executado da obrigação de pagar o restante da dívida” (art. 7º da Lei n.
5.741/71). Nessa mesma linha, o legislador inovou no novo Código Civil brasileiro ao, no artigo 1.484,
autorizar a adjudicação do imóvel pelo credor hipotecário quando se dá a falência ou insolvência do
devedor, facultando-lhe adjudicá-lo, quando avaliado em quantia inferior ao crédito, desde que dê plena
quitação pela sua totalidade.
121
A nova redação conferida pela Lei n. 11.382, de 6 de dezembro de 2006, ao inciso III do artigo 585 do
Código de Processo Civil, manteve como títulos executivos extrajudiciais “os contratos garantidos por
hipoteca, penhor, anticrese e caução, bem como os de seguro de vida”.
76
Sem prejuízo da crítica ora declinada, convém ressaltar que a opção brasileira pela
execução extrajudicial hipotecária, diferentemente daquilo que vem sucedendo em
Portugal, não decorreu de uma estratégia de reorganização do aparelho judiciário e do
processo executivo que visasse proporcionar maior eficácia e efetividade à execução. Ao
revés, afigurou-se como uma tentativa de incentivar a captação de recursos para o sistema
habitacional, à altura, criado por uma opção de cunho político-econômico.
Em virtude disso, podemos afirmar que no Brasil tudo decorreu de uma
necessidade de cariz econômico, decorrente da inexistência de meios para o governo
custear isoladamente o programa habitacional do país.
De modo que, se em Portugal a proposta pela desjudicialização da execução
hipotecária decorreu, ao menos aparentemente, de uma opção de cunho organizacional,
visando a maior eficácia e celeridade da execução e o conseqüente desafogamento do
Judiciário, no Brasil, a execução extrajudicial hipotecária decorreu de uma exigência de
garantia de retorno do capital investido, por parte da iniciativa privada, o que, de certa
forma, também se coaduna com o espírito contratualista da execução hipotecária
espanhola.
Nesse diapasão, também é correto afirmar que a execução extrajudicial
hipotecária brasileira possui índole mais liberal que a espanhola, eis que no Brasil sequer
se prevê expressamente a hipótese de o devedor poder se insurgir contra a execução
durante a tramitação do procedimento ou, ao menos, recorrer ao controle jurisdicional.
O aludido Decreto-Lei n. 70/66 dispõe em seu artigo 29 que, nos contratos de
empréstimo habitacional com garantia hipotecária, as hipotecas, quando não pagas no
vencimento, poderão, à escolha do credor, ser objeto de execução na forma preconizada no
processo de execução previsto no Código de Processo Civil (execução judicial) ou nos
artigos 31 a 38 do próprio indigitado decreto.
O artigo 31 do decreto-lei prevê que vencidas e não pagas três parcelas da dívida
hipotecária, o credor que houver preferido executá-la formalizará ao agente fiduciário122 a
122
O agente fiduciário é uma pessoa coletiva autorizada a funcionar pelo Banco Central do Brasil, portanto
relacionado com o Poder Executivo, que não possui formação jurídica e não está subordinada ao controle
77
solicitação de execução da dívida, instruindo o pedido com o título da dívida devidamente
registrado, a indicação discriminada do valor das prestações e encargos não pagos123, o
demonstrativo do saldo devedor discriminando as parcelas relativas ao principal, juros,
multa e outros encargos contratuais e legais, e a cópia de dois avisos extrajudiciais
reclamando a dívida.
A partir disso, o agente fiduciário, nos dez dias subseqüentes ao recebimento do
pedido de execução da dívida, promoverá a notificação do devedor, por intermédio do
notário, para que purgue a mora no prazo de vinte dias.
Quando o devedor encontrar-se em local incerto e não sabido, o oficial certificará
o fato, cabendo então ao agente fiduciário promover a notificação por edital124, publicado
por três dias pelo menos, em um dos jornais de maior circulação local, ou noutro de
comarca de fácil acesso, se no local não houver imprensa diária.
Não acudindo o devedor à purgação do débito, independentemente de pedido
expresso do credor, o agente fiduciário estará de pleno direito autorizado a publicar editais
e a efetuar, no decurso dos quinze dias imediatos, o primeiro público leilão do imóvel
hipotecado.
Se no primeiro leilão o maior lance obtido for inferior ao saldo devedor no
momento, acrescido das despesas de intermediação por parte do agente fiduciário e do
leiloeiro, mais as do anúncio e da contratação da praça, será realizado o segundo público
leilão, nos quinze dias seguintes, no qual será aceito o maior lance apurado, ainda que
inferior à soma das aludidas quantias.
direto do Poder Judiciário, recebendo diretamente do agente financeiro a sua remuneração; sendo certo que
a sua atuação durante o procedimento de execução extrajudicial deve estar previsto no contrato de
financiamento.
123
Note-se que a instituição financeira, para que possa ofertar ao consumidor a oportunidade para bem
conhecer a extensão da cobrança a que poderá ser submetido, deverá fazer constar, de forma discriminada,
na sua planilha de composição do débito, o principal, os juros, as multas, o saldo devedor e os demais
encargos contratuais que porventura estejam compondo o valor cobrado.
124
Ressalva-se que, embora a norma permita a citação extrajudicial por meio de editais, o Superior Tribunal
de Justiça do Brasil tem firmado o entendimento de que a citação editalícia depende de uma análise
criteriosa acerca dos fatos que levam à convicção do desconhecimento do paradeiro do devedor e da
impossibilidade de o mesmo ser encontrado de outra forma, o que somente poderá ser alcançado através do
78
Se o maior lance do segundo público leilão for inferior àquela soma, serão pagas
inicialmente as despesas componentes da mesma soma, e a diferença entregue ao credor,
que poderá cobrar do devedor, por via executiva judicial, o valor remanescente de seu
crédito, sem nenhum direito de retenção ou indenização sobre o imóvel alienado.
Caso o lance de alienação do imóvel, em qualquer dos dois públicos leilões, seja
superior ao total das importâncias cobradas, o que de fato não se tem conhecimento de que
em algum momento tenha ocorrido, a diferença afinal será entregue ao devedor.
O artigo 33 do decreto-lei em exame dispõe que é lícito ao devedor, a qualquer
momento, até a assinatura do auto de arrematação, purgar o débito, acrescido de todas as
despesas decorrentes do procedimento administrativo de cobrança realizado.
Sublinha-se que todos os valores porventura decorrentes do procedimento serão
recebidos diretamente pelo agente fiduciário, que por sua vez incumbir-se-á de remeter aos
entes de direito os valores que eventualmente lhes sejam devidos.
Entretanto, caso o credor-fiduciário leve a efeito o leilão em duas oportunidades e
não consiga a venda, ficará ele com o imóvel, extinguindo-se a dívida, mesmo que não
alcançada a quantia equivalente ao total da dívida.125
Uma vez tendo sido o imóvel arrematado durante a realização do leilão
extrajudicial, será imediatamente expedida a respectiva carta de arrematação, assinada pelo
leiloeiro, pelo credor, pelo agente fiduciário e por cinco pessoas singulares idôneas,
absolutamente capazes, como testemunhas, o documento servindo como título para
transcrição no Registro Geral de Imóveis.
Transcrita no Registro Geral de Imóveis a carta de arrematação, poderá o
adquirente, caso o imóvel ainda esteja sendo ocupado, requerer ao Poder Judiciário a
competente imissão de posse no imóvel, que lhe será concedida liminarmente, após
agente judicial (juiz), razão pela qual a forma de citação ficta vem sendo denegada pelo Judiciário. A título
de exemplo ver o RESP n. 652.782 (Disponível em: <www.stj.gov.br>. Acesso em: 27 abr. 2005).
125
Arnaldo Rizzardo, Contratos de crédito bancário, 4. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 211.
79
decorridas 48 horas da citação do devedor que não comprovou judicialmente que resgatou
o valor do seu débito, até a assinatura do auto de arrematação.
Após o deferimento liminar da imissão de posse, o feito prosseguirá em rito
ordinário, para o debate das alegações que o devedor porventura aduza em contestação,
sendo que, no período que mediar entre a transcrição da carta de arrematação no Registro
Geral de Imóveis e a efetiva imissão do arrematante na posse do imóvel alienado em
público leilão, o juiz arbitrará uma taxa mensal de ocupação compatível com o rendimento
que deveria proporcionar o investimento realizado na aquisição, cobrável por meio de ação
executiva.
2.6 Os problemas decorrentes da execução extrajudicial
hipotecária brasileira
Diversos problemas podem ser enfocados por conta da instituição da execução
extrajudicial hipotecária, dentre os quais os de maior relevo cingem-se à atuação do
chamado agente fiduciário, à falta de controle das contas apresentadas pela instituição
financeira, à forma precária de contestação dos cálculos elaborados, às dificuldades para o
consumidor acessar o Judiciário, e, por fim, àquilo que diz respeito à retomada física do
bem por parte do credor hipotecário.
Iniciando a análise pormenorizada da problemática existente no Brasil,
intrigantemente não se verifica na doutrina brasileira um autor, inclusive entre os maiores
críticos da execução hipotecária extrajudicial126, que faça uma análise crítica acerca da
atuação do chamado agente fiduciário.
A nosso ver, por ser autorizado a exercer as suas funções a partir de autorização
do Banco Central do Brasil que, conforme é de conhecimento, não é autônomo, estando
126
Em sua célebre obra Execução civil, Cândido Rangel Dinamarco, apesar de criticar o procedimento de
cobrança extrajudicial, em momento algum tece comentários acerca da figura do agente fiduciário,
restringindo-se, conforme já referido, a sinalizar a aceitação da execução extrajudicial, caso se garanta a
efetividade do controle jurisdicional, todavia, sem indicar como isso sucederia, se a priori ou a posteriori.
(Execução Civil, cit.).
80
submetido ao Poder Executivo, a figura do agente fiduciário, mutatis mutandis, remete-nos
aos auxiliares da justiça que em outros ordenamentos jurídicos estão vinculados ao Poder
Executivo, o que, como vimos, não se alinha à tradição processual luso-brasileira.
Independentemente disso, podemos afirmar que a atuação do agente fiduciário
está vinculada aos atos procedimentais previstos em lei, portanto não possui
discricionariedade alguma sequer para revisar os cálculos elaborados unilateralmente pela
instituição financeira, cabendo-lhe tão-somente, uma vez instado a cobrar o débito do
mutuário, a adotar as medidas tendentes a viabilizar o pagamento do crédito invocado.
A partir de uma visão crítica acerca daquilo que efetivamente sucede no quadro da
cobrança extrajudicial hipotecária brasileira, salta-nos aos olhos a evidente necessidade de
que o agente fiduciário tenha a capacidade técnica para apurar a regularidade dos valores
cobrados do consumidor, sabidamente parte mais vulnerável da relação decorrente do
financiamento imobiliário.
Note-se que a nossa preocupação, embora decorrente de uma relação patrimonial
de cunho particular, também se reveste de interesse público, pois é notório que os contratos
de financiamento imobiliário são realizados em massa, por meio de contratos de adesão, e
iniludivelmente tendem a sufocar o Judiciário, em decorrência de demandas revisionais de
saldos devedores e pedidos de liminares para a sustação da execução hipotecária
extrajudicial, em virtude da abusividade dos valores cobrados.
Embora inexistam estatísticas a respeito, não são raras as vezes em que deparamos
com ações tramitando no Judiciário em que se contestam a regularidade dos créditos
invocados pelas instituições financeiras nas execuções hipotecárias extrajudiciais.
Nesse diapasão, a atuação do agente fiduciário poderia ser mais especializada e
crítica, a ponto de sinalizar a regularidade dos cálculos apresentados, inclusive a fim de
evitar a realização de onerosas perícias e discussões absolutamente desnecessárias perante
o Judiciário.
81
É evidente que os meios eletrônicos estão disponíveis para, através de programas
específicos, viabilizarem a pronta resposta acerca da regularidade ou não das planilhas de
atualização de débito fornecidas pelas instituições financeiras.
Bastaria aos agentes fiduciários, valendo-se dos sistemas existentes, preencher as
informações necessárias (variáveis), tais como taxa de juros, índice de correção monetária,
multa, prazo (data de valor presente e futuro), além de outros encargos contratuais
comumente verificados nos contratos de adesão, para que o próprio sistema operacional
instalado realizasse a imediata apuração do desenvolvimento da dívida.
Sob a nossa ótica, considerando que estamos diante de um procedimento
extrajudicial, que visa justamente a pronta satisfação da execução, a manutenção do
sistema interdependente de fomento ao crédito habitacional e o desafogamento do
Judiciário, a simples verificação da regularidade dos valores cobrados, diretamente por
aquele que possui formação técnica para tal, em nada prejudicaria a celeridade do
procedimento.
Ao contrário, desde que aliada a uma multa para o eventual desvio de conduta na
elaboração da conta por parte da instituição financeira, seria um importante fator
dissuasório daqueles que, à falta de argumentos sérios e jurídicos para obstar a satisfação
do crédito, de forma genérica e aviltante, por vezes se dirigem ao Judiciário contestando os
cálculos apresentados pelas instituições financeiras, para, em decorrência da reconhecida
morosidade do Judiciário, se perpetuarem na posse do bem por anos, sem nada pagar.
Sem embargo, a realização da verificação da regularidade da cobrança pelo agente
de execução coaduna perfeitamente com a necessária proteção do consumidor.
Indubitavelmente, dada a complexidade dos cálculos a serem realizados, por vezes
de dificílima compreensão por parte do consumidor, é imperioso reconhecer nele a
vulnerabilidade que lhe põe em situação absolutamente desfavorável para se opor a uma
eventual incorreção existente nos cálculos apresentados.
82
Sob a nossa ótica, seria mais condizente com o espírito dos princípios
constitucionais processuais e das normas de defesa do consumidor permitir ao consumidor
a realização de uma nova conta de atualização de débito, diretamente perante o agente de
execução (que poderá ser o notário ou o agente fiduciário, independentemente da
nomenclatura a ser utilizada), para a simples verificação da regularidade do cálculo
apresentado.
Ora, se o procedimento extrajudicial coaduna perfeitamente com os interesses das
instituições financeiras, no que diz respeito à celeridade e a eficácia da cobrança, a análise
prévia da planilha, ou preferencialmente a posteriori, mediante provocação por parte do
devedor, decerto seria amplamente compatível com o interesse do credor em minimizar
qualquer possibilidade de discutir e/ou rediscutir a cobrança perante o Judiciário.
Por outro lado, a simples revisão dos cálculo por parte do agente de execução
também evitaria levar ao Judiciário uma série de demandas revisionais de saldo devedor,
que no mais das vezes revelam um censurável ato de procrastinação da realização do
direito.
Entendemos que, após a realização dos cálculos por parte do agente de execução,
caso os mesmos voltem a ser questionados, seja pelo credor ou pelo devedor, tal
questionamento se dará perante o juiz de execução, sendo que, na hipótese da provocação
demonstrar-se totalmente impertinente, deverá ser aplicada à parte que atuou de forma
temerária a imposição da necessária multa processual, justamente para dissuadi-la a não
mais incidir em condutas deletérias que tais.
Destarte, desde que se garanta ao devedor o direito de se contrapor aos cálculos
realizados unilateralmente pelo credor, entendemos ser perfeitamente concorde com os
princípios constitucionais e infraconstitucionais de garantia de justiça que a conferência de
regularidade da cobrança se dê extrajudicialmente.127
127
Compartilhamos do entendimento de Luiz Guilherme Marinoni e de Sérgio Cruz Arenhart, no sentido de
que a doutrina processual civil e os operadores do direito devem extrair do ordenamento jurídico e
sobretudo das normas processuais “um resultado que confira ao processo o máximo de efetividade, desde, é
claro, que não seja pago o preço do direito de defesa” (Manual do processo de conhecimento, cit., p. 33).
83
Um outro problema que se verifica diz respeito à credibilidade daquele que
verificará a regularidade dos cálculos apresentados pelas instituições financeiras.
É sabido que, ao exigir do agente fiduciário a verificação dos cálculos
apresentados pelas instituições financeiras, por mais que a apuração da elevação do débito
seja realizada por meio eletrônico, será imperioso que o profissional tenha alguma
intimidade com os critérios contábeis a serem utilizados, bem como tenha a capacidade de
reconhecer no contrato os elementos imprescindíveis para a verificação que terá lugar.
Ora, o juiz também não dispõe de tal conhecimento técnico e, independentemente
dos altos custos que disso decorre, costumeiramente recorre ao perito judicial para aclarar a
situação!
Portanto, o mais importante é que se garanta a independência, a imparcialidade e
o reconhecimento conhecimento técnico para a realização do trabalho de conferência de
cálculos aritméticos.
A solução adotada em Portugal, relativa ao agente de execução, que deve possuir
formação específica de três anos para o seu labor, sob a nossa ótica, pode se revelar um
meio deveras profícuo para viabilizar a qualidade dos serviços que serão realizados.
Por outro lado, não se distanciando da realidade brasileira, é cediço que no país
existe um excesso de faculdades de direito, e que o mercado é absolutamente diminuto,
face à latente oferta de serviços jurídicos.
Em virtude disso, a formação de agentes fiduciários – independentemente da
nomenclatura que recebam – poderia se revelar um meio alternativo na carreira jurídica,
inclusive em termos de desafogo de mercado de trabalho.
Outra questão a ser divisada diz respeito à viabilidade ou não dos serviços dos
agentes de execução – ou fiduciários – serem ou não realizados no âmbito dos cartórios de
registro de imóveis.
84
Tal questão, a nosso ver, está submetida tão-somente a uma decisão estratégica de
cunho organizacional e operacional, eis que tudo dependerá da formação adequada para a
realização dos serviços de forma profícua.
Indubitavelmente, para que a execução hipotecária seja eficaz, mister se faz
amparar o sistema de profissionais qualificados e dotados do aparato material adequado
para o melhor desempenho das suas funções.
No entanto, conforme adiante veremos, entendemos ser descabida a prevalência
do monopólio ou da reserva de juiz na realização dos atos executivos tendentes à satisfação
do direito do credor hipotecário.
2.7 A interpretação jurisprudencial e doutrinária favorável à
execução extrajudicial
Quando nos referimos a um procedimento extrajudicial de execução de hipoteca,
desde logo podem se suscitar questões relacionadas com a sua constitucionalidade, face
aos princípios constitucionais processuais, tais como o do acesso ao Judiciário, do
contraditório, da igualdade e do monopólio de jurisdição, entre outros.
A princípio, consoante ao estudado quando da evolução histórica dos atos
executivos, uma vez delineados em lei os contornos atinentes aos procedimentos a serem
adotados pelo credor para o exercício do seu legítimo direito de cobrança, e uma vez
mantendo-se nos estritos termos do permissivo legal, sob a nossa ótica, não haverá lugar
para a costumeira alegação de que a execução extrajudicial constitui um meio de
autodefesa ou autotulela da pretensão da instituição financeira.
A propósito, a execução extrajudicial hipotecária preconizada pelo Decreto n.
70/66 foi julgada constitucional pelo Supremo Tribunal Federal, que pronunciou-se no
sentido de que, à luz da norma estatuída, a intervenção judicial só se dá para o fim de obter
o arrematante a imissão de posse do imóvel, que lhe será liminarmente concedida pelo juiz,
sendo que a defesa do devedor, salvo se consistir em prova de pagamento ou consignação
85
anterior ao leilão, será debatida após a imissão de posse, por conseguinte não havendo que
se falar em supressão do controle judicial, vez que se estabeleceu apenas uma deslocação
do momento em que o Poder Judiciário é chamado a intervir.
No julgamento de recurso extraordinário128 mais de trinta anos após o advento do
decreto-lei em exame, o Ministro Ilmar Galvão, ao mencionar o entendimento
anteriormente exarado pelo Ministro Décio Miranda129, ressaltou que “no sistema
tradicional, ao Poder Judiciário se cometia em sua inteireza o processo de execução,
porque dentro dele se exauria a defesa do devedor”.
No novo procedimento, a defesa do devedor sucede ao último ato da execução, a
entrega do bem excutido ao arrematante.
No procedimento judicial, o receio de lesão ao direito do devedor tinha
prevalência sobre o temor de lesão ao direito do credor. Adiava-se a satisfação do crédito,
presumivelmente líquido e certo, em atenção aos motivos de defesa do executado,
quaisquer que fossem.
No novo procedimento, inverteu-se a ordem, deu-se prevalência à satisfação do
crédito, conferindo-se à defesa do executado não mais condição impediente da execução,
mas força rescidente, pois, se prosperarem as alegações do executado no processo judicial
de imissão de posse, desconstituirá a sentença não só a arrematação, como também a
execução que a antecedeu.
Antes, a precedência no tempo processual dos motivos do devedor; hoje, a dos
motivos do credor, em atenção ao interesse social da liquidez do Sistema Financeiro da
Habitação.
Sob a ótica do Supremo Tribunal, essa mudança, em termos de política legislativa,
pôde ser feita, na espécie, sem inflexão de dano irreparável às garantias de defesa do
devedor. Teria ele aberto a via da reparação não em face de um credor qualquer, mas em
128
STF – RE n. 223.075-1, rel. min. Ilmar Galvão, j. 23.6.1998 (Disponível em: <www.stf.gov.br>).
Estava o Ministro do Excelso Pretório referindo-se aos acórdãos provenientes dos Recursos
Extraordinários ns. 148.872 e 240.361, ambos disponíveis em: <www.stf.gov.br>.
129
86
relação a credores credenciados pela integração num sistema financeiro a que a legislação
confere específica segurança.
Se, no novo procedimento, viesse a sofrer detrimento o direito individual
concernente à propriedade, a reparação poderia ser preventivamente procurada no Poder
Judiciário (o que tem sido largamente efetuado na prática forense, através de medidas
cautelares em que se requer a sustação do leilão), seja pelo efeito rescidente da sentença na
ação de imissão de posse, seja por ação direta contra o credor ou o agente fiduciário.
Assim, segundo a orientação jurisprudencial, a eventual lesão ao direito individual
não ficaria excluída de apreciação judicial.
Igualmente desamparadas de razões dignas de apreço, segundo o entendimento do
Supremo, as alegações de ofensa ao direito de igualdade perante a lei e ao direito de
propriedade, visto que, na execução extrajudicial, todos que obtiverem empréstimo do
sistema estão a ele sujeito, e a excussão não se faz sem causa, pois reside na necessidade
de satisfazer-se o crédito, em que também se investe direito de propriedade do ente
financeiro, assegurado constitucionalmente.
Por outro lado, segundo o entendimento jurisprudencial, também não prospera
qualquer alegação de que a execução extrajudicial vulnera o princípio da autonomia e
independência dos poderes, visto que o procedimento não transfere do Poder Judiciário
para o agente fiduciário parcela alguma do poder jurisdicional, eis que o agente fiduciário
executa somente uma função administrativa, não necessariamente judicial.
A possibilidade dessa atuação administrativa resulta de uma nova especificação
legal instituída no contrato hipotecário, que assumiu, nesse particular, feição anteriormente
aceita no contrato de penhor, a previsão contratual de excussão por meio de venda
amigável por parte do agente econômico.
O mesmo passou a suceder em relação à hipoteca contratada com o agente do
Sistema Financeiro da Habitação, e, portanto, quem adere ao sistema aceita a hipoteca com
essa virtualidade, razão pela qual o litígio eventualmente surgido entre o credor e o
87
devedor fica, num como noutro caso, separado do procedimento meramente administrativo
da excussão.
O Ministro Ilmar Galvão, ao firmar convencimento acerca da constitucionalidade
da execução extrajudicial hipotecária, asseverou que a venda efetuada pelo agente
fiduciário (leilão), na forma prevista em lei e no contrato, como meio imprescindível à
manutenção do indispensável fluxo circulatório dos recursos destinados à execução do
programa da casa própria, é um ato que não refoge ao controle judicial.
Está, por isso, longe de configurar uma ruptura no monopólio do Poder Judiciário,
não sendo por outro motivo que “prestigiosa corrente doutrinária, com vistas ao desafogo
do Poder Judiciário, preconiza que a execução forçada relativa à dívida do Estado seja
processada na esfera administrativa, posto reunir ela, na verdade, na maior parte, uma série
de atos de natureza simplesmente administrativa. Reservar-se-ia ao Poder Judiciário tãosomente a apreciação e julgamento de impugnações, deduzidas em forma de embargos,
com o que estaria preservando o princípio do monopólio do Poder Judiciário”.
A visão exarada pela mais alta corte de justiça brasileira, em termos de
constitucionalidade da execução extrajudicial hipotecária, vai ao encontro daquilo que
defendeu o então Ministro do Supremo Tribunal Federal Carlos Velloso, por ocasião da
abertura das III Jornadas Brasileiras de Direito Processual Civil, ocorrida na cidade de
Salvador, em junho de 1999, quando salientou a importância da criação de um aparato
extrajudicial para operacionalizar a execução forçada, na tentativa de solucionar a grave
crise por que passa o processo de execução.130
A doutrina brasileira, apesar de escassa em relação ao tema, e merecendo uma
melhor apreciação da matéria à luz dos princípios constitucionais da reserva do juiz e da
jurisdição, bem como em relação ao contraditório e da igualdade jurídica, tem em Arnold
Wald131 a maior expressão na defesa da execução extrajudicial hipotecária.
130
Débora Inês Kram Baumohl, A nova execução civil: a desestruturação do processo de execução, cit., p. 25.
Arnold Wald, Execução hipotecária extrajudicial, Revista de Ciência Jurídica, São Paulo, n. 70, p. 309324, 1996.
131
88
Em seu entendimento, existe uma simetria incontestável entre a alienação por
agente fiduciário e a própria alienação fiduciária, no ponto em que, em ambos os casos,
atribui-se a alguém o direito de vender um determinado bem como se fosse o seu
proprietário, para que, com o produto da venda, se possa extinguir o débito relativo ao
financiamento que possibilitou a aquisição do dito bem.
A diferença resume-se ao fato de que, no primeiro caso, a fidúcia, para a venda do
bem móvel, contempla o próprio credor, enquanto que, no segundo, é estabelecida para a
venda do imóvel em favor de um agente do Sistema Financeiro da Habitação, destinandose o produto da venda, em ambos os casos, à extinção da obrigação do devedor em mora.
Para o jurista, pode-se afirmar que a alienação extrajudicial por agente fiduciário é
uma forma especial de alienação fiduciária em garantia, destinada à pronta recuperação dos
créditos por garantia imobiliária, havendo sido instituída como um instrumento
indispensável para o funcionamento razoável do Sistema nacional de habitação, do mesmo
modo que a alienação fiduciária permitiu a explosão construtiva do crédito ao consumidor.
3
FUNDAMENTOS
PARA
A
DESJUDICIALIZAÇÃO
DA
EXECUÇÃO HIPOTECÁRIA
3.1
A
essência
da
execução
hipotecária
e
a
desnecessidade do ato de penhora
Uma vez verificado que a superação da autotutela por meio de normas que
restringiram a atuação do credor nos atos de cobrança não tem necessariamente relação
direta com a atribuição ao Estado do poder de se impor entre as partes litigantes para
dirimir o litígio, passamos agora a buscar a essência da hipoteca, vez que, consoante o
escólio de Victorio Magarinos Blanco, “para entender o significado ou transcendência do
chamado procedimento extrajudicial de execução hipotecária, convém deixar claro qual é a
essência da hipoteca”.132
Como constatado a partir da evolução histórica da execução no direito romano,
houve uma evolução no sentido de separar a vinculação pessoal do devedor da
responsabilidade pelo descumprimento da obrigação, que paulatinamente foi recaindo
sobre o patrimônio do devedor e centrando na coatividade ou efetividade da obrigação.
Dessa forma, passou-se a compatibilizar a liberdade individual com a segurança
das transações econômicas.
Sublinha Ramón Maria Roca Sastre133 que no direito romano, ainda que imperasse
a proibição do pacto commissorium, se facultava ao credor a proceder por si próprio a
venda da coisa pignorada, no caso de não pagamento do crédito garantido, o que, aliás,
mutatis mutandis, intrigantemente veio de ser reeditado no direito português, a partir do
advento do Decreto-Lei n. 105/2004, de 8 de maio, que, em desvio da regra consagrada no
artigo 694º do Código Civil, aceita o pacto comissório nos contratos de garantia financeira
previstos na Diretiva n. 2002/47/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de junho.
132
Victorio Magarinos Blanco, El procedimiento extrajudicial de realización de la hipoteca: su viabilidad,
Revista Critica de Derecho Inmobiliario, cit., p. 1.257.
133
Ramón Maria Roca Sastre, Derecho hipotecario, Barcelona: Bosch, 1968, t. 4, v. 2, p. 1.000.
90
No direito romano, inclusive permitiu-se que o próprio credor ficasse com a
garantia pelo seu valor estimado à altura do vencimento do débito e descontando aquilo
que porventura houvesse sido pago.
Com a evolução do instituto, foram concedidos ao credor meios de auto-satisfação
do crédito por meio de duas vias: o pacto comissório e o pacto de vendendo.
O primeiro tinha o perigo de provocar o enriquecimento injusto, e por isso o
Imperador Constantino proibiu a utilização da lex commisoria com esse fim.
Permaneceu, entretanto, o ius vendendi como meio de fortalecimento do credor, e
o pacto que lhe estabelecia se mostrou tão corriqueiro que a jurisprudência de fins do
século II d.C. o considerou como elemento natural do negócio.
Por conseguinte, permanecia incólume o regime que imperava na cedência, ao
credor, da detenção de uma res, que se obrigava a conservar e a restituir após a satisfação
do seu crédito, sob pena de alienação direta pelo credor, com a eventual devolução do
superfluum do preço obtido ao devedor.134
Na evolução da hipoteca, o último passo representa a substituição da posse
necessária pela venda por publicidade registral, já em uma fase avançada, em que se
permitia, tal qual hodiernamente se admite, a alienação do bem sem a prévia entrega da
posse, graças aos mecanismos registrais de publicidade e a proteção dos interesses em
jogo, mediante o controle estatal daquela alienação.
Segundo Victorio Magarinos Blanco, “atualmente a hipoteca aparece conformada
sobre a base do ius vendendi, e a sua essência radica nesse direito de proceder à venda do
bem em que recai a garantia. Se trata de um senhorio sobre a coisa que a si está sujeitada
frente a todos e consiste na realização do seu valor, por meio da sua alienação. O direito de
alienar a coisa hipotecada é o centro de energia da hipoteca, seu núcleo, sua essência. E,
em tal possibilidade reside também sua utilidade: face ao descumprimento da obrigação, o
134
Note-se que, no preâmbulo do Decreto-Lei português n. 105/2004, de 8 de maio, quedou consignado que
permite-se excepcionalmente “que o beneficiário execute a garantia por apropriação do objecto desta,
ficando obrigado a restituir o montante correspondente à diferença entre o valor do objecto da garantia e o
montante da dívida. Este ‘direito de apropriação’ visa dar resposta à necessidade de existência de
mecanismos de execução das garantias sobre activos financeiros que, não pressupondo necessariamente a
venda destes, permitam ver reduzidos os riscos decorrentes da potencial desvalorização do bem”.
91
credor não necessitar recorrer à execução forçada sobre o patrimônio do devedor, com os
problemas judiciais que sabidamente advêm. Basta ao credor realizar a garantia, vendendo
a coisa, em virtude de um direito específico e pactuado, que é a hipoteca, e sem
necessidade de invocar a responsabilidade patrimonial universal do devedor. O credor
realiza, dessa forma, uma execução pactuada e não forçada”.135
Nesse sentido, sob a nossa ótica, é indiscutível que quando o credor hipotecário é
impelido a realizar a sua garantia, ela não pode ser reputada como qualquer garantia, mas
sim uma garantia real, registrada na conservatória e dotada dos mecanismos de publicidade
registral, fruto de um labor independente e imparcial realizado pelo notário que,
efetivamente nesses casos, também exerce uma função jurisdicional, realizada no interesse
do Estado na pacificação social, proporcionada pela segurança dos negócios jurídicos
relativos à transmissão de bens imóveis.
Em decorrência disso, a nosso ver, razão assiste a Mouteira Guerreiro quando,
durante o 10º Congresso Internacional de Direito Registral, realizado em Paris, no ano de
1994, ao apresentar um estudo sobre a hipoteca e a penhora, defendeu que “é praticamente
supérfluo que decorra, no processo executivo, a fase precisamente destinada a conseguir
que, relativamente a prédio hipotecado e antes de poder ser efectuada a venda coactiva,
tenha que ser constituída sobre o mesmo um novo direito – o da penhora – como se não
existisse já uma anterior garantia, igualmente de natureza real, a sujeitá-lo ao pagamento
do crédito. Tudo isso se nos afigura desnecessário. De facto, o poder sobre a coisa, a
sequela própria do direito real, ficou a existir com o registo da hipoteca. Mais: a debatida
característica de o credor poder ser pago preferencialmente pelo valor da coisa também se
verifica com a hipoteca. No caso de cobrança coercitiva do crédito, o grau prioritário do
direito acha-se definido pela hipoteca. A ulterior penhora não lhe vai acrescentar nem
retirar nada136. E também não há uma maior ou menor garantia para o credor ou para
terceiros. Na verdade existe, não só em termos do direito substantivo, como não menos
135
Victorio Magarinos Blanco, El procedimiento extrajudicial de realización de la hipoteca: su viabilidad,
cit., p. 1.261.
136
Na esteira dos ensinamentos de Humberto Theodoro Júnior também se deflui a impropriedade de se
realizar a penhora no caso de uma execução hipotecária, pois se a penhora importa na criação, para o
credor, de uma preferência, “um direito real sobre os bens penhorados, conferindo-lhe uma garantia
pignoratícia equivalente ao penhor convencional ou legal, como terceira espécie do direito de penhor (de
direito material), de cuja natureza participa, e cujos princípios informativos podem ser-lhe aplicados por
analogia”, entendemos que seria desnecessária a realização de um ato para se atingir efeitos que já defluem
da própria garantia exeqüenda, independentemente da realização da afetação judicial (Processo de
execução, 23. ed., São Paulo: LEUD, 2005, p. 326).
92
claramente nos do direito registral, um princípio que tem sido designado como o da
‘eficácia real’, segundo o qual, existindo hipoteca e posterior penhora sobre um prédio,
para garantia do cumprimento da mesma obrigação, a graduação do crédito é dada pela
ordem prioritária da hipoteca e não pela da penhora”.137
Consequentemente, se pudermos identificar na penhora as funções de
individualizar e apreender bens destinados à execução, a prevenção de desvio do bem
penhorado e a criação da preferência para o exeqüente, entendemos que não se justificam
tais cuidados diante da eficácia e da preferência erga omnes decorrentes da hipoteca
anteriormente estabelecida.138
Inclusive, a possibilidade de o credor hipotecário fazer valer o seu direito,
gozando da faculdade de realizar a garantia prioritariamente em relação aos demais
credores, revela o caráter de seqüela139 que à própria hipoteca já é inerente,
desnecessitando, por conseguinte, de ratificação da prelação decorrente da penhora.
Diante das suas funções, sob a nossa ótica, carece de justificativa teleológica a
realização da penhora no caso da execução hipotecária. Considerando as peculiaridades da
garantia real hipotecária e contrapondo-as com o sentido estrito da penhora, qual seja, o de
apreender a coisa, no caso da execução hipotecária, somos amplamente favoráveis à
desnecessidade da realização da penhora por termo, independentemente de a coisa
encontrar-se em poder de um terceiro.140
137
E a título de exemplo, Mouteira Guerreiro relembra que “no caso de o devedor da coisa hipoteca a vender
a um terceiro, que registe, se a execução do crédito hipotecário prosseguir e a mesma vier a ser penhorada,
nenhum obstáculo tabular surgirá pelo facto de, nesse entretanto, ela ter sido registada a favor desse
terceiro. É que a penhora era conseqüência da hipoteca e a seqüela é dada pode esta e não pela penhora.
Donde que, mesmo em termos puramente tabulares, se pode concluir que a penhora nada veio acrescentar à
penhora. Quase se diria que, pelo contrário, até confunde uma vez que não é o grau prioritário da penhora
que vai relevar, tanto para o registo como para o processo executivo, ele é, evidentemente, o da hipoteca”
(Mouteira Guerreiro, Reflexões no âmbito registral, cit., v 3, p. 89-90).
138
Acerca dos efeitos da penhora, vide: Humberto Theodoro Júnior, Processo de execução, cit., p. 326.
Segundo José Lebre de Freitas, “dada a função que lhe é própria, a penhora envolve a constituição dum
direito real de garantia a favor do exequente”, sendo que, como tal, “tem direito o atributo da preferência
(ou prevalência): o exequente fica com o direito de ser pago com preferência a qualquer outro credor que
não tenha garantia real anterior (art. 822-1 CC)” (” (A ação de execução: depois da reforma, cit., p. 269270).
139
Para um maior aprofundamento do caráter de sequela da hipoteca, vide: Maria Isabel Helbling Menéres
Campos, Da hipoteca: caracterização, constituição e efeitos, cit.
140
Para um maior aprofundamento do sentido estrito da penhora e das repercussões que poderão suceder a
partir apreensão de bens que se encontram em poder de terceiros, ver: Miguel Mesquita, Apreensão de bens
em processo executivo e oposição de terceiro, 2. ed., Coimbra: Almedina, 2001.
93
A propósito, a penhora porventura realizada em sede judicial, entre outros
atributos, tem o condão de deixar a coisa penhorada à disposição do tribunal para que, por
meio do exercício do ius imperii estatal, realize-se o desapossamento e, por conseguinte, a
sua expropriação a favor do credor, o que em nada nos induz ao convencimento da sua
indispensabilidade.
É que, como adiante veremos, a sujeição do adjudicante (de recorrer ao Estado) e
do devedor (de ser privado do bem de forma forçosa) à força estatal para o desapossamento
do bem em nada repercute na manifesta prescindibilidade do ato de penhora do bem
hipotecado.141
Para tanto, conforme visto, além de considerarmos despicienda a penhora por
nada acrescer à eficácia real que decorre da própria garantia hipotecária, entendemos ser
uma construção por demasiado formalista e contrária ao instrumentalismo que deve
decorrer do processo; assim, não se relaciona a penhora com a possível e não certa
necessidade do credor ser impelido a recorrer ao poder coercitivo do juiz para desapossar o
devedor ou o terceiro que porventura se negue a desocupar o imóvel executado.
Entendemos que na quadra histórica em que nos encontramos, preliminarmente ao
recurso da força pública, que deve ser relegado a um último momento – somente para
aqueles casos em que não mais houvesse alternativa –, devemos nos socorrer de
instrumentos jurídicos de pressão psicológica para dissuadir a parte inadimplente a cumprir
as suas obrigações.
De fato, na falta de desocupação espontânea do bem executado num prazo
determinado em lei, poder-se-ia impor ao infrator a multa ou a cominação pecuniária diária
que porventura fosse fixada pela legislação própria, sendo certo que somente ultrapassada
tal situação é que o adjudicante teria interesse em invocar a tutela jurisdicional para, sem
maiores delongas ou dilação processual, requerer liminarmente a imediata imissão na posse
do imóvel.
141
Nesse aspecto, merecedora de crítica a recentíssima reforma havida no processo executivo brasileiro (Lei
n. 11.382, de 6 de dezembro de 2006), que manteve, no parágrafo 1º do artigo 655 do Código de Processo
Civil, a previsão de que a penhora recairá preferencialmente sobre a coisa dada em garantia na execução
por crédito com garantia hipotecária.
94
Além disso, poder-se-ia proporcionar ao executado um incentivo ao cumprimento
espontâneo do dever de desocupar o bem, como por exemplo a redução do pagamento de
custas pela metade, ou até mesmo a própria isenção de custas, ficando a cargo do credor,
com a imposição do princípio ubi commoda ibi incommoda, o ônus de suportá-las.142
Note-se que em caso de arrematação ou de adjudicação do imóvel, seja perante o
notário ou por qualquer outro entre privado ou não, desde que legitimado pelo Estado para
o ato, tal qual sucede no Brasil, o mesmo poderia constar de uma certidão que, por sua vez,
poderia ser registrada na conservatória do local da situação do imóvel.
Aliás, não podemos olvidar que o simples averbamento perante o notário também
ocorre quando do arresto de um bem imóvel que, conforme é cediço, prescinde da penhora
do bem como prévia manobra processual para o desiderato.
Por conseguinte, em termos de hipoteca, podemos concluir que o eventual recurso
ao poder coercitivo do Estado para a desocupação do imóvel arrematado ou adjudicado não
decorre da penhora propriamente dita, mas tão-somente do cumprimento do comando legal
proveniente do ato de satisfação do direito do terceiro arrematante ou do credor
adjudicante, todavia decorrente da venda do bem, e não do ato de penhora.
Sem prejuízo, no caso da execução hipotecária, a nosso ver, não se aplicaria ao
caso o conhecido princípio de proporcionalidade da penhora, que nas precisas lições de
Miguel Teixeira de Sousa, significaria que “não devem ser penhorados mais bens do que
os necessários para a satisfação da pretensão exequenda”.143
Na execução hipotecária, a garantia é que será objeto de expropriação, e tomandose como assente que o fruto da sua alienação para o pagamento ao credor hipotecário por
vezes poderá gerar um excedente favorável a ser revertido ao devedor, dependendo da
142
Recentemente, por ocasião do advento da Lei n. 11.382, de 6 de dezembro de 2006, no ordenamento
jurídico brasileiro, introduziu-se no Código de Processo Civil o artigo 652-A, que dispõe no sentido de que
ao despachar a inicial, o juiz fixará, de plano, os honorários de advogado a serem pagos pelo executado,
estes nunca superiores a 20% do valor da causa, sendo que, no caso de integral pagamento no prazo de três
dias, a verba honorária será reduzida pela metade.
143
Miguel Teixeira de Sousa acrescenta que “a agressão ao patrimônio do executado só é permitida numa
medida que seja adequada e necessária para a satisfação da pretensão do exeqüente, o que conduz a uma
indispensável ponderação dos interesses do exeqüente na realização da prestação e do executado na
salvaguarda do seu patrimônio” (Estudos sobre o novo processo civil, 2. ed., Lisboa: Lex, 1997, p. 641).
95
amortização havida no financiamento, entendemos que o equilíbrio a ser perseguido estará
na forma de venda do bem, para que não seja ocasionada injustiça àquele que porventura
tenha pago parte considerável da dívida e que, através de uma arrematação por preço vil,
perca parte considerável daquilo que pagou.
Em virtude disso, consideramos plenamente descartável a fase de penhora na
execução hipotecária, o que, indubitavelmente, ocasiona maior celeridade ao procedimento
e a superação de discussões que não se alinham com a sua sobejada eficácia real.
Sem embargo, analisando a superação do pacto comissório e a persistência do ius
vendendi, podemos constatar que desde o direito romano subsiste a preocupação de não se
ocasionar prejuízos ao devedor, o que, face as vulnerabilidades socioeconômicas
existentes, merece ser adequadamente regulamentada pelo Estado, inclusive em termos de
execução hipotecária.
Entretanto, em que pese ser imperiosa a regulamentação da forma de venda do
bem hipotecado, somos absolutamente favoráveis ao entendimento de Victorio Magarinos
Blanco, no sentido de que o controle do ius vendendi “não tem motivo para ser
necessariamente judicial, basta com que se forneça as garantias necessárias para evitar
abusos e excessos que o seu exercício possa ocasionar”.144
O artigo 1.858 do Código Civil espanhol inclusive permite ao credor o direito de
realizar o valor do imóvel hipotecado, mediante a sua venda pelo próprio credor, enquanto
que o artigo 1.872 do mesmo diploma reconhece a viabilidade de a venda se dar perante o
notário, não sendo por outro motivo que o artigo 129 da Ley Hipotecaria estabelecia que
competia ao controle notarial a realização do ius vendendi.
144
Victorio Magarinos Blanco, El procedimiento extrajudicial de realización de la hipoteca: su viabilidad,
cit., p. 1.261.
96
Não é por outro motivo que Magarinos Blanco145 defende que a execução
hipotecária espanhola não se confunde com a chamada execução forçada146, pois não é
adequado afirmar-se que seja forçoso recorrer à via judicial para a realização da pretensão.
Ademais, considerando a superação da fase de penhora no procedimento, sob a
nossa ótica não se mostra razoável fazer com que o Estado notifique o devedor a cumprir a
sua obrigação no prazo legal, sob pena de penhora.
Ora, a simples realização da garantia por parte do credor hipotecário perante o
notário (inclusive perante terceiro que porventura seja legitimado para o ato) não se alinha
ao imprescindível recurso à força pública para a satisfação do crédito exeqüendo.
Não estamos aqui discorrendo sobre o caráter publicístico ou privatístico da
execução, ou do retorno à vindicta privata. Pelo contrário, estamos simplesmente tecendo
comentários acerca de um fato: a realização da garantia hipotecária pode perfeitamente
prescindir da força estatal, pois a transferência da propriedade, desde que realizada nos
estritos limites da lei, pode se dar por simples ato notarial, quedando, em caso de
necessidade, o recurso à força policial para o desapossamento do bem restrito a
determinação judicial.
Não obstante, a execução hipotecária consiste no exercício do direito decorrente
da garantia, qual seja, de vender o bem e satisfazer o crédito com o produto resultante (ius
vendendi), ainda que o referido exercício se dê por meio do procedimento executivo.
Portanto, considerando a verdadeira essência da hipoteca, em linhas gerais, podese dizer que se o devedor não cumpre com o pagamento das parcelas do financiamento, o
credor fica investido da faculdade de satisfazer o seu direito de crédito com um ato de sua
iniciativa, invocando a venda da garantia individualizada, através do registro da hipoteca
145
O autor afirma que quando o crédito garantido por hipoteca está vencido “no hay ejecución sino,
sencillamente, realización de la garantía mediante apropición por acto unilateral” (Victorio Magarinos
Blanco, El procedimiento extrajudicial de realización de la hipoteca: su viabilidad, cit., p. 1262)
146
De acordo com Cândido Rangel Dinamarco, poder-se-ia afirmar que a execução forçada é a que se faz por
meio do processo e do exercício da jurisdição estatal, no caso de inadimplemento. (Execução civil, cit., p.
104-105).
97
perante a conservatória competente, não se confundindo tal alienação com a excussão da
universalidade dos bens do devedor, ou seja, o seu patrimônio.
Se no processo executivo lato sensu existe a responsabilidade genérica da
submissão dos bens do devedor à satisfação do crédito exeqüendo, em sede de execução
hipotecária, conforme retratado, isso não se mostra pertinente, sendo esse mais um motivo
para que se prescinda da necessidade de penhora para a afetação e individualização de
bens.
O estabelecimento da garantia hipotecária que, consoante o sempre preciso
escólio de Antunes Varela, é a “rainha” das garantias, visa justamente tutelar eficazmente o
interesse do credor, que poderia frustrar-se a partir da dilapidação do patrimônio do
devedor por ato próprio ou pelas contingências decorrentes dos riscos vividos em
sociedade.
É cediço que a instituição de garantias para o cumprimento das obrigações surgem
como um modo específico de reforçar a posição jurídica do credor, ampliando o seu poder
e afigurando-se como um novo direito subjetivo ou uma nova faculdade que se justapõe ao
direito de crédito, pois interessa ao direito, acima do cumprimento forçoso com a
intervenção dos órgãos jurisdicionais, a satisfação voluntária do crédito, a partir do
pagamento por parte do devedor.
E por atualmente haver um certo desapreço pelo crédito pessoal, devido,
conforme asseverado por Almeida Costa147, ao ritmo de circulação de bens e à fácil
deslocação de pessoas, a garantia real, embora menos ampla que a garantia pessoal, pois
cria uma relação de preferência sobre uma coisa determinada, diante da segurança que
proporciona, é amplamente realizável.
Consoante a essência da garantia hipotecária e a sua importância para o mundo
dos negócios, hoje sabidamente realizados em massa, o processualista civil não pode e não
deve ficar alheio à necessidade de aperfeiçoar o sistema, com soluções hábeis a bem tutelar
o crédito, sob pena de injustificadamente torná-lo oneroso e de difícil acesso, o que, de
147
Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das obrigações, 7. ed., Coimbra: Almedina, 1998, p. 811.
98
certa forma, trata-se de mais uma forma de exclusão, aqui traduzida em exclusão de
acessibilidade ao crédito.
Conforme sublinhado por Vaz Serra, a hipoteca é um dos meios, acaso o mais
valioso, de incrementar a economia “facilitando ao proprietário com base nos seus bens
imobiliários, a aquisição de crédito, que lhe permita, com o mínimo de encargos e pelo
prazo conveniente, dispor dos capitais de que carece para desenvolver o aproveitamento do
solo”.148
E é justamente visando a superação de determinados dogmas de cunho
eminentemente processual, a partir de uma análise mais acurada da própria garantia real
em apreço, que podemos perfeitamente concluir que a execução hipotecária prescinde da
fase de penhora.
A propósito, por se tratar a execução hipotecária da própria realização da garantia
real por parte do credor diretamente perante o notário (ou outro ente legitimado), dela se
pode dissociar a idéia de cumprimento coercitivo da obrigação, ou seja, de execução
forçada.
Uma vez instado a purgar a mora no prazo legal, e ultrapassado tal lapso temporal
sem o devido pagamento por parte do devedor, automaticamente poderá o credor realizar a
garantia ofertada, motivo pelo qual não há que se falar na excussão de bens indeterminados
(patrimônio) do devedor em sede hipoteca, pois a realização do direito do credor se dará
sobre um bem certo e determinado, graças a realização de um negócio solene, no qual
foram obedecidas as prescrições legais para a sua formação.
3.2 Da realização adequada dos atos executivos
A partir da essência da garantia real de hipoteca, sob a nossa ótica, mostrou-se
absolutamente aceitável a sua realização perante o notário ou terceiro adequadamente
legitimado e preparado para tal mister.
148
Adriano Paes da Silva Vaz Serra, Hipoteca, Separata do Boletim do Ministério da Justiça, Lisboa, n.
62/63, p. 5 e ss., 1957.
99
Portanto, independentemente da necessária superação dos problemas relacionados
com os princípios constitucionais-processuais, que adiante merecerão o devido enfoque, as
únicas preocupações de cunho processual que a nosso ver poderiam exsurgir da execução
extrajudicial hipotecária, remetem-nos a algumas das que subsistiam antes do advento das
execuções realizadas perante o agente de execução português.
Os problemas poderiam decorrer da forma de notificação do devedor
(considerando a instituição de uma hipoteca impeditiva de transmissão do bem a terceiros
sem a anuência do credor hipotecário, o que, aliás, costumeiramente se infere dos contratos
com cláusulas de adesão), da venda por preço vil do bem hipotecado e do eventual saldo
credor remanescente, e, por fim, da necessária articulação entre o notário (ou particular) e
o agente judicial, que será o responsável pelo deslinde das oposições que terão lugar.
A partir da experiência havida com as inovações introduzidas no ordenamento
jurídico português após a reforma de 2003, as aludidas preocupações não se revelam
intransponíveis.
Ao revés, são perfeitamente superáveis, a partir da adoção de soluções análogas às
já adotadas em Portugal para a viabilização do exercício do trabalho do agente de
execução.
3.2.1 Da citação do executado
De acordo com as disposições do artigo 864 do Código de Processo Civil,
independentemente das formalidades previstas nos artigos 233 e seguintes, todos do
Código de Processo Civil português, a citação do executado é feita nos termos gerais,
podendo se dar na forma de edital.
Diante do fato de que, em nosso entendimento, não se justifica a realização de
penhora na execução hipotecária, defendemos que o momento adequado para a citação do
devedor para pagamento será aquele imediatamente posterior ao ingresso do credor com o
seu requerimento executivo.
100
A ponderação em apreço está absolutamente condizente com os ditames do artigo
812-B-1, que faz uma restrição à regra da coincidência entre dispensa de liminar e de
citação prévia, o que significa que, apesar de não ser proferido despacho liminar e de não
se cogitar da realização da penhora do bem hipotecado, mesmo assim a execução
hipotecária cuidará para que o executado tome conhecimento da cobrança e que tenha a
possibilidade de purgar a mora com prazo razoável, anteriormente à sua alienação.
Nesse diapasão, entendemos que a sistemática utilizada no regime da execução
extrajudicial brasileira pode ser, no que couber, adequada à legislação portuguesa,
inclusive porque esta admite a citação por edital, quando o devedor estiver em local incerto
e não sabido.
Independentemente de a execução tramitar perante o notário ou diante de um
terceiro particular, deverão ser envidados esforços para localizar o devedor no local em que
o mesmo declinar como sendo o seu domicílio ou a sua residência na escritura de hipoteca,
sobretudo quando se tratar de contratos de financiamento imobiliário para a aquisição da
casa própria garantidos por hipoteca.149
Se o devedor adquiriu o imóvel hipotecado para a sua moradia e com cláusula de
não alienar a terceiros sem a anuência da instituição financeira, é perfeitamente exigível
que as diligências tendentes à sua localização fiquem restritas ao endereço do próprio
imóvel.
Entretanto, ressaltamos que o marco para a determinação do endereço para a
localização do devedor ou daquele não devedor, mas garante da dívida, deverá ser o
fornecido quando da outorga da escritura de hipoteca, sendo que, em caso de sua alteração,
será ônus da parte interessada fazer a comunicação devida ao notário, bem como, por
medida de lealdade e boa-fé, também ao credor hipotecário.
149
O fato de se imporem determinadas obrigações ao credor e ao devedor, notadamente no que diz respeito à
informação do endereço para localização, mesmo que de forma tímida, veio de ser acolhido no direito
brasileiro a partir do advento da Lei n. 11.382, de 6 de dezembro de 2006, pois, segundo a atual redação do
artigo 238 do Código de Processo Civil, presumem-se válidas as comunicações e intimações dirigidas ao
endereço residencial ou profissional declinado na inicial, contestação ou embargos, cumprindo às partes
atualizar o respectivo endereço, sempre que houver modificação temporária ou definitiva.
101
Portanto, recebido o requerimento de execução da dívida, o notário ou o terceiro
encarregado da cobrança, nos dez dias subseqüentes, promoverá a notificação do devedor
ou do terceiro garante, que deverá ser necessariamente, e com o escopo de se evitar
fraudes, sempre realizada por alguém que disponha de fé pública, concedendo-lhe o prazo
de vinte dias para a purgação da mora.
Quando o devedor ou o terceiro garante se encontrar em lugar incerto e não
sabido, ou de alguma maneira se ocultando de receber a notificação, uma solução possível
seria o oficial (ou qualquer agente, independentemente da nomenclatura que se dê)
certificar o fato, cabendo então ao agente promover a notificação por edital, que deverá ser
publicado por três dias pelo menos, em um dos jornais de maior circulação local, ou noutro
de comarca de fácil acesso, se no local não houver imprensa diária.
Ultrapassado o lapso temporal previsto no edital de notificação sem que o devedor
acuda à purgação do débito, diferentemente daquilo que sucede no Brasil, onde, quando o
devedor não é localizado para receber a notificação para purgação do débito, o agente está
autorizado a publicar editais e a efetuar no decurso dos quinze dias imediatos o primeiro
público leilão do imóvel hipotecado, entendemos que no segundo caso, uma vez aprazadas
as datas para a praça e leilão, por medida de equilíbrio, persiste a necessidade de que,
independentemente da publicação dos editais, novamente se tente localizar o devedor no
endereço da sua residência.
No entanto, tendemos a defender que o caráter obrigacional que resulta da própria
essência da garantia hipotecária e o dever de lealdade exigem que o devedor assuma os
ônus decorrentes da sua incúria, caso não atualize o seu endereço residencial no cartório de
registro.
Em virtude disso, caso o devedor não seja localizado no endereço declinado na
escritura de hipoteca, deverá ser presumidamente considerado citado para pagamento. Para
tanto, bastaria ao agente responsável pela cobrança dirigir-se ao endereço fornecido em
três oportunidades distintas e, em caso de não localização do devedor, realizar a sua citação
por “hora certa”.
102
Outra questão que se coloca é a do litisconsórcio facultativo na execução
hipotecária. Ao analisar o n. 2 do artigo 821º do Código de Processo Civil português,
Maria José Capelo salienta que quando forem penhorados bens alheios aos do devedor,
mas onerados com uma garantia real, “é necessário assegurar a presença, na execução, dos
seus legítimos proprietários ou possuidores. O terceiro não é titular da obrigação
exequenda, mas é responsável pelo facto de ter um bem onerado em favor de dívida alheia.
Nos termos do n. 2 do artigo 56º, se o credor quiser fazer actuar a garantia real, promove a
execução contra o terceiro garante, concedendo-se ao exequente a faculdade de optar por
demandar só aquele, ou os dois (simultaneamente)”.150
Entretanto, no caso sob exame, considerando as peculiaridades da garantia real
hipotecária e, sobretudo, a sua índole manifestamente contratual, entendemos que a
cobrança necessariamente deverá ser realizada exclusivamente contra o terceiro garante
que, por sua vez, poderá, se assim entender, suscitar o benefício de ordem de pagamento,
para que o devedor também seja instado ao pagamento, no mesmo procedimento de
cobrança.
De fato, considerando que o objetivo do credor se traduz na realização da garantia
hipotecária, inclinamo-nos no sentido de que, face ao inexorável liame de confiança
existente entre o terceiro garante e o devedor, caberá ao próprio garante o ônus de decidir
pelo chamamento ou não do devedor, sendo que, nesse caso, a participação do devedor se
cingirá apenas e tão-somente à possibilidade de pagar a dívida ou apresentar alguma
questão prejudicial quanto ao excesso de cobrança.
3.2.2 Da venda da garantia hipotecária e da dispensa da
sua avaliação
No que diz respeito à venda do bem hipotecado, tal qual hoje sucede no sistema
português, a mesma teria lugar quando terminado o prazo para as reclamações de crédito,
sem prejuízo de eventualmente correr em paralelo o apenso de verificação e graduação (art.
873-1).
150
Maria José Capelo, A reforma da acção executiva: pressupostos processuais gerais na acção executiva.
Themis: Revista da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, ano 4, n. 7, p. 101,
2003.
103
Nesse passo, proceder-se-ia à venda da garantia hipotecária (note-se que não nos
referimos a bem penhorado, tendo em vista que defendemos a exclusão da penhora no
procedimento) para, com o produto nela apurado, se efetuar o pagamento da obrigação e,
de acordo com o eventual excedente, liquidar as obrigações constantes no apenso de
verificação e graduação.
Quanto à sua forma, a venda poderia ser realizada, por aplicação da medida
menos onerosa para o devedor, prioritariamente por propostas em carta fechada151 ou, uma
vez frustrada tal modalidade de venda, por intermédio do profissional leiloeiro, mas
sempre com ausência de determinação (art. 886-1) e participação do juiz, tal qual previsto
nos artigos 876-3 e 901-A-2.
Portanto, não estamos de acordo com a forma de venda do imóvel hipotecado
utilizada no regime da execução extrajudicial hipotecária brasileira, tendo em vista que o
custo da contratação do profissional leiloeiro – 5% do valor da venda ou adjudicação –
ocasiona grave oneração às partes.
Nessa senda, independentemente de discordarmos da necessidade de avaliação do
bem, somos impelidos a concordar com a crítica formulada por Cândido Rangel
Dinamarco, quando aponta a injustiça praticada na execução extrajudicial brasileira, que
não prevê a avaliação do bem e a desnecessidade de correspondência entre o valor da
alienação e o valor real dele.152
Entendemos que, uma vez frustrada a tentativa de venda a terceiros em duas
oportunidades, deve-se abrir prazo para o credor adjudicar o bem hipotecado pelo valor
declarado na escritura de constituição hipoteca, restituindo-se ao devedor o eventual saldo
remanescente entre o valor da dívida e o valor de aquisição do imóvel.
Sabe-se perfeitamente que o valor médio dos imóveis não sofre demasiadamente
com as intempéries decorrentes do chamado “mau humor” do mercado, o que, de certa
151
Conforme o escólio de José Lebre de Freitas, “a venda por propostas em carta fechada constitui a forma
normal da venda executiva de bens imóveis e de estabelecimentos comerciais de valor consideravelmente
elevado (arts. 889-1 e 901-A-1)” (A ação de execução: depois da reforma, cit., p. 328).
152
Cândido Rangel Dinamarco, Instituições de direito processual civil, São Paulo: Malheiros, 2004, v. 4, p.
59-60.
104
forma, já seria motivo de precaução contra o desgaste do valor declarado do bem quando
da feitura da escritura.
Contudo, no próprio instrumento de hipoteca também já se poderia fazer constar
uma cláusula prevendo a utilização de algum índice atrelado à variação de valor dos bens
imóveis, para que se realizasse o reajuste da garantia e, concomitantemente, se evitasse a
realização de avaliação, o que, inexoravelmente também resulta, muitas vezes, em enorme
dilação probatória e elevados custos.
Reportando-nos especificamente aos contratos de hipoteca, privilegiando os
princípios da economia e da celeridade, bem como os interesses do credor e do devedor,
somos favoráveis à possibilidade de se outorgar ao credor hipotecário, mesmo quando
terceiros licitem na praça ou leilão, a preferência para adjudicar preço-a-preço o bem.
Tal medida se justificaria em relação ao credor, em virtude de o mesmo não poder
se ver preterido num certame, a partir de propostas de valores que considera
desproporcionais ao valor que acredita possuir o bem, ou até mesmo pelo seu real interesse
em se tornar proprietário do imóvel, somente em razão da fase de arrematação dever
preceder a da adjudicação.
Em contrapartida, com o escopo de evitar fraudes, se garantiria a execução da
forma menos gravosa ao devedor, vez que, independentemente do valor de adjudicação, o
credor lhe outorgaria a plena quitação do seu débito, bem como lhe restituiria a eventual
diferença verificada entre o valor declarado do bem e o valor da dívida, mas nunca pelo
valor da adjudicação preço-a-preço, pois ali o credor somente exerceu a sua preferência.
Estamos diante da preocupação com o ius vendendi que, conforme estudado, é da
própria essência da hipoteca, dadas as suas peculiaridades.
A nosso ver, mesmo que subsistissem alegações restritivas à idéia ora defendida,
face à restrição do pacto comissório, do que respeitosamente discordamos, tendo em vista
que o credor hipotecário, em nosso sistema, em hipótese alguma executaria a garantia por
apropriação do objeto dela, não podemos olvidar que a regra consagrada no artigo 694º do
Código Civil português já foi desviada quando do advento do Decreto-Lei n. 105/2004, de
105
8 de maio, que transpôs para a ordem jurídica portuguesa a Diretiva n. 2002/47/CE do
Parlamento Europeu e do Conselho, relativa aos acordos de garantia financeira.
Portanto, ao que transparece, a vedação ao pacto comissório no seio do
ordenamento jurídico português já admite restrições por parte do legislador.
Caso o valor da adjudicação ou da arrematação fosse superior ao da dívida, não
haveria óbices para que o devedor fosse restituído das diferenças apuradas.
No caso de o bem haver sido arrematado por terceiros por valor inferior daquele
que o credor tinha a receber, a solução que efetivamente se impõe é a de que o responsável
pela execução confira ao credor hipotecário uma certidão com valor de título executivo
extrajudicial, para que continue a buscar a satisfação do seu crédito perante o órgão
competente.
A referida certidão teria lugar caso a execução extrajudicial estivesse tramitando
perante o notário ou perante terceiro particular que não se confundisse com o agente de
execução, pois se por este estivesse a cargo, por medida de economia e celeridade, o curso
da execução seria imediatamente retomado na busca de bens passíveis de penhora, todavia,
dessa feita, regulando-se a execução segundo os ditames do novo processo executivo
português.
3.3 A necessária superação do dogma da reserva de
jurisdição e da inafastabilidade do juiz
Hodiernamente, diante dos inúmeros problemas jurídicos, sociais e políticos que a
sociedade globalizada se depara, é indispensável que o direito processual se caracterize
como instrumento em relação ao direito material, pois “a preocupação do processo como
instrumento na busca de resultados põe em destaque as necessidades e objetivos
preconizados pelo direito substancial. Significa dizer que a eficácia do sistema processual
106
tem como exata medida a utilidade que dele seja possível extrair para o ordenamento
jurídico material e, em última análise, para a pacificação social”.153
Consoante Debora Inês Kram Baumohl, “são três os escopos da jurisdição. O
escopo social, que visa à eliminação de conflitos e à pacificação social. O escopo político,
que consiste no poder jurisdicional do Estado de decidir imperativamente os conflitos que
lhe são submetidos. E, por fim, o escopo jurídico, que equivale à atuação da vontade
concreta da lei, revelando a íntima e profunda interdependência entre o direito material e o
processo”.154
A partir de uma concepção instrumentalista, aqui encartada na figura de Cândido
Rangel Dinamarco155, que reputa como muito pobre a fixação de um escopo
exclusivamente jurídico ao processo, pois o que há de mais importante é a destinação
social e política do exercício da jurisdição, o processualista contemporâneo tem a
responsabilidade de conscientizar esses três planos, recusando-se a permanecer num só,
sob pena de esterilidade nas suas construções, timidez ou endereçamento destoante das
diretrizes do próprio Estado Social.
E é justamente a partir do destaque ofertado ao escopo social da jurisdição que
Cândido Rangel Dinamarco informa que o exercício da jurisdição tem conduzido à
valorização de certos meios alternativos de solução de conflitos, entre eles a conciliação e
a arbitragem.
O princípio de inafastabilidade do controle jurisdicional, que por vezes também é
rotulado de acesso ao Poder Judiciário ou acesso à ordem jurídica justa, é amplamente
amparado nos diversos ordenamentos jurídicos dos chamados Estados Democráticos de
Direito, razão pela qual, cada um da sua maneira assegura à sociedade que “a lei não
excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.156
153
Débora Inês Kram Baumohl, A nova execução civil: a desestruturação do processo de execução, cit., p. 1.
Ibidem, p. 2.
155
Cândido Rangel Dinamarco, A instrumentalidade do processo, 7. ed., São Paulo: :Malheiros, 1999, p. 153
e 317.
156
Artigo 5º, inciso XXXV da Constituição da República do Brasil.
154
107
Com efeito, a garantia do direito de ação ou de petição, que permite ao
jurisdicionado provocar a tutela jurisdicional estatal através de uma ação, para que, por
meio da substituição das partes, seja aplicada a lei ao caso concreto, obrigando, por
conseguinte, o vencido ao cumprimento da ordem proferida, em nada se revela como dever
de ação, mas tão-somente como direito de ação.
Ao analisar a figura da mediação na administração judicial, Renato Siqueira De
157
Pretto
reitera que não se pode confundir garantia do direito de ação e garantia de dever
de ação.
E o aludido autor alicerça a sua conclusão no fato de que o Supremo Tribunal
Federal do Brasil, ao apurar a constitucionalidade dos artigos 6º, parágrafo único, 7º e 41
da Lei de Arbitragem (Lei n. 9.307/96), assentou que o artigo 5º, inciso XXXV da Lei
Maior assegura o direito de ação, e não o dever de ação.158
Assim, em matérias patrimoniais, a lei de arbitragem revela-se constitucional, ao
impor que as partes tenham que cumprir a convenção de arbitragem, estando, por
conseguinte, inviabilizada a provocação da tutela jurisdicional estatal, visto que a
competência para a apreciação do litígio é exclusiva do árbitro, munido de jurisdição e do
poder de prolatar sentença caracterizada como título executivo judicial.
Não é por outro motivo que, ao analisar a constitucionalidade dos meios
alternativos de resolução de litígios, Cândido Rangel Dinamarco assevera que “é tão
grande a convergência teleológica entre estes e a jurisdição estatal, que já se chegou a
sustentar, sem qualquer heresia sistemática, a natureza jurisdicional dos processos
arbitrais159. Na medida de sua legitimidade social e política, que certos órgãos alternativos
cumprem também a missão que em sede jurisdicional o Estado por longo tempo
monopolizou”.160
157
Renato Siqueira De Pretto; José Pio Tamassia Santos, Mediação na administração judicial, Revista do
Advogado, São Paulo, Associação dos Advogados de São Paulo, ano 26, n. 87, p. 146, set. 2006.
158
STF –RE n. 5.206, Pleno, rel. Min. Sepúlveda Pertence, m.v., j. 12.12.2001, DJU, de 30.4.2004.
159
E, a partir do advento da Lei n. 11.441, de 4 de janeiro de 2007, tal entendimento poderá também ser
aplicado à atividade do notário que realizar o inventário, a partilha, a separação consensual e o divórcio
consensual, eis que recentemente admitida no ordenamento jurídico brasileiro a utilização da via
administrativa para a resolução das referidas questões, desde que não envolvendo interesse de menores.
160
Cândido Rangel Dinamarco, Execução civil, cit., p. 191.
108
Entretanto, especificamente no que diz respeito à efetividade da execução, que
iniludivelmente também tem como pressuposto o acesso aos direitos num prazo razoável,
compatível e proporcional à tutela jurisdicional invocada, dada a morosidade que grassa
em
nossos
tribunais,
parafraseando
Giuseppe
Chiovenda161,
entendemos
que,
especificamente no processo executivo, no Brasil o processo não proporciona a quem tem
um direito tudo aquilo e precisamente aquilo que ele tem o direito de obter.
É de conhecimento que o “direito a ter direitos”, como assevera Hannah
Arendt162, somente tem lugar a partir do acesso pleno à ordem jurídica que só a cidadania
oferece. E como “acesso integral” não podemos nos contentar com uma sentença com
resolução de mérito em tempo razoável, mas também com a realização no mundo fático
dos direitos conferidos no título judicial ou espelhados no título extrajudicial.
Por outro lado, ao defendermos uma solução mais ágil e compatível, sobretudo
com a realidade da contratação em massa dos contratos imobiliários, mister se faz ponderar
acerca do postulado do equilíbrio, sobretudo porque é perfeitamente crível que aquele que
contratará com a instituição financeira mormente é uma pessoa desprovida de
conhecimentos técnicos relacionados com os empréstimos bancários.
Além disso, é plenamente considerável a hipótese de o consumidor contratar
através de contratos de adesão, sem que lhe seja proporcionada a informação adequada
acerca do meio de cobrança a que se sujeitará em caso de inadimplemento.
Contudo, não podemos olvidar que no processo executivo, que visa a satisfação
duma das partes contra a outra, como adiante veremos, “os princípios da igualdade das
armas e do contraditório não tem o mesmo alcance que no processo declarativo”.163
Dessa forma, qualquer meio alternativo de recuperação de créditos que porventura
seja ventilado, inexoravelmente deverá compatibilizar a devida segurança jurídica e, no
161
Segundo Giuseppe Chiovenda, “o processo deve proporcionar a quem tenha um direito, na medida do
possível, tudo aquilo e exatamente aquilo a que tem direito”. (Instituições de direito processual civil, 2. ed.,
Campinas: Bookseller, 2000, v. 1, p. 67).
162
Hannah Arendt, apud Renato Siqueira De Pretto; José Pio Tamassia Santos, Mediação na administração
judicial, cit., p. 146-147.
163
José Lebre de Freitas, A ação de execução: depois da reforma, cit., p. 21.
109
que couber, a igualdade de armas daqueles que ocuparão a posição de devedores com os
credores.
Esclarece-se que não estamos pura e simplesmente nos referindo ao declínio do
conhecido princípio do favor debitoris, que adiante será devidamente enfocado.
Estamos sim nos referindo a uma série de garantias constitucionais processuais
que na sociedade contemporânea se impõem como condição de até mesmo viabilizar um
dos escopos da jurisdição, qual seja, o respeito à ordem jurídica instituída.
Por outro lado, tendo-se em mente que um outro escopo da jurisdição é o
fornecimento, num prazo razoável, de um provimento a fim de dirimir a controvérsia,
devemos refletir sobre a viabilidade ou não da máxima de Francesco Carnelutti que, ao
defender a dilação do processo, asseverou que “se a justiça é segura não é rápida e se é
rápida não é segura”.
Considerando que a sociedade da informação exige soluções práticas e rápidas
para os múltiplos, interdependentes e cada vez mais complexos problemas que se
apresentam, na esteira do instrumentalismo processual, entendemos ser inevitável que o
processualista moderno alinhe a sua atuação na busca da efetividade do provimento
jurisdicional e a segurança que se impõe numa sociedade de juízos probabilísticos, sem que
isso repercuta em morosidade na obtenção da ordem jurídica justa.
O momento vivido pela sociedade contemporânea exige, tal qual se verifica nas
artes em geral, um sistema claro e funcional, endereçado a bem atender as necessidades do
nosso tempo.
Não mais se justifica a edificação de um complexo sistema alicerçado por um
conjunto de institutos e princípios emoldurados por regras de difícil compreensão, que
somente repercutem negativamente aos vulgarmente chamados consumidores da justiça,
que a nosso turno preferimos reputar simplesmente como cidadãos.
Em sentido oposto ao da execução estritamente estatal que, conforme estudado, é
fruto de uma longa tradição jurídica, que remonta à fase da cognitio extra ordinem,
110
concretizada na sua plenitude na legislação justinianéia e posteriormente encampada no
direito medieval, após a redescoberta e a disseminação do Corpus Iuris Civilis no século
XII, no atual momento vivido pela sociedade “de risco”, notabilizada muito mais por
juízos probabilísticos do que pela lei de causa e efeito, o direito luso-brasileiro depara-se
com o problema da necessária desjudicialização164 dos atos tendentes à expropriação da
garantia hipotecária, para dotar de eficácia o direito substantivo do credor, tendo em vista
que é visível a revisitação do conceito do favor debitoris.
Não é por outro motivo que a doutrina moderna, ao relacionar a menor
onerosidade possível com a efetividade da execução, defende que a moderação nos meios
processuais a empregar, como limite político à execução, não deve mascarar um descaso
em relação ao dever de oferecer tutela jurisdicional a quem tiver um direito insatisfeito,
sob pena de afrouxamento do sistema executivo.
Assim, Cândido Rangel Dinamarco assevera que “quando não houver meios mais
amenos para o executado, capazes de conduzir à satisfação do credor, que se apliquem os
meios mais severos”, pois o favor debitoris “não pode ser manipulado como um escudo a
serviço dos maus pagadores nem como um modo de renunciar o Estado-juiz a cumprir seu
dever de oferecer tutela jurisdicional a quem tem razão”.165
Em virtude disso, o favor debitoris deverá ser interpretado à luz da garantia de
acesso à justiça, sob pena de colocar em risco a efetividade do processo executivo e, por
conseguinte, do próprio crédito como um todo, vez que é cediço que os negócios no mundo
moderno são realizados de forma interdependente, e a frustração de pagamento de um
negócio necessariamente ocasionará na elevação do risco do negócio, podendo inclusive,
dependendo do grau de inadimplência, provocar o colapso do próprio fomento.
Valendo-nos das valorosas e atualíssimas lições de José Lebre de Freitas,
“diferentemente da acção declarativa, a acção executiva tem por finalidade a reparação
164
Seguindo o entendimento formulado por Maria José Capelo, mencionamos a expressão
“desjudicialização” para “designar os casos em que determinados atos são retirados da esfera de actuação
do juiz no contexto de um processo judicial, e de ‘desjuridicionalização’ para referir os casos em que a
tutela de determinadas pretensões é retirada dos tribunais” (Maria José Capelo, Conferência de Coimbra
(29 de junho de 2001): intervenção, cit., v. 3, p. 19).
165
Cândido Rangel Dinamarco, Instituições de direito processual civil, cit., v. 4, p. 58.
111
efectiva dum direito violado. Não se trata já de declarar direitos, pré-existentes ou a
constituir. Trata-se, sim, de providenciar pela reparação material coactiva do direito do
exequente”.166
De fato, não é uma tarefa fácil reconsiderar conceitos enraizados por séculos no
inconsciente dos juristas e dos operadores do direito. Entretanto, a história demonstra que
quando tratamos de assuntos que envolvem a evolução social, econômica, política e
cultural de um povo – muitas vezes entrelaçado naquilo que comumente se chama “aldeia
global” –, não estaremos diante de proposições imutáveis. Pelo contrário, na incansável
busca de soluções para viabilizar o seu projeto político e econômico, a sociedade avança
ou recua, de acordo com as marchas e contramarchas da história, todavia permanece
sempre disposta a aprimorar os mecanismos destinados a proporcionar, de um lado, maior
segurança jurídica e, de outro, a realização da justiça e a pacificação social.
Conforme explanado nas notas introdutórias do presente estudo, a sociedade
contemporânea clama pelo aprimoramento do processo de execução, nem que para isso se
discuta a desjudicialização da cobrança dos créditos decorrentes dos negócios de “massa”.
Em que pese em Portugal, a partir da metade da década de 90, haver se iniciado
um importante movimento de reforma da ação executiva, que culminou com a
desjudicialização, em 2003, dos atos executivos, a partir da adoção da figura do agente de
execução no ordenamento jurídico do país, compete-nos no presente momento verificar se
há espaço para a relativização da reserva de jurisdição167 nas execuções envolvendo
créditos hipotecários.
166
José Lebre de Freitas, A ação de execução: depois da reforma, cit., p. 9.
“A jurisdição designa o poder (de julgar) genericamente atribuído, dentro da organização do Estado, ao
conjunto dos tribunais (art. 205º da Constituição da República) (...) no domínio restrito dos conflitos de
intervenção entre as diversas autoridades do Estado, o termo jurisdição assume um alcance mais amplo.
Inclui-se na esfera da jurisdição, não só o poder globalmente reconhecido aos tribunais em confronto com
os demais órgãos do Estado, de modo especial com os que integram a administração pública ou o Poder
Executivo, mas também o poder genericamente atribuído a certa categoria de tribunais ou em face das
restantes categorias” (João de Matos Antunes Varela; J. Miguel Bezerra; Sampaio e Nora, Manual de
processo civil, 2. ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 195-196). De acordo com Jorge Miranda, “na
função jurisdicional define-se o direito (juris dictio) em concreto, perante situações da vida (litígios entre
particulares, entidades públicas e entre particulares e entidades públicas, e aplicação de sanções), e em
abstracto, na apreciação da constitucionalidade e da legalidade de actos jurídicos (maxime, de actos
normativos)” (Manual de direito constitucional, 2. ed. reimp., Coimbra: Coimbra Editora, 2000, v. 4, p.
29).
167
112
Preliminarmente, defende Maria José Capelo o caráter jurisdicional da execução,
tendo em vista que “é neste tipo de processo que o exercício do poder mais contende com
os direitos e liberdades dos cidadãos: os tribunais recorrem ao uso da força com o
objectivo de realizar os direitos violados. O exercício dos ius imperium é apanágio dos
tribunais enquanto órgãos de soberania”.
No entanto, ao apreciar as mudanças de paradigmas na realização dos atos
tendentes à expropriação dos bens do devedor e à satisfação do crédito exeqüendo pelo
agente de execução ou pelo conservador, observa a processualista de Coimbra que “as
condições actuais de justiça arrastam-nos inelutavelmente para a problematização do
princípio da reserva de juiz. A adoção de uma política de justiça, que pressuponha o
recurso a autoridades não jurisdicionais, exigirá, sobretudo dos constitucionalistas, uma
reflexão”.168
Ao refletir acerca da exclusividade da atividade jurisdicional por parte do Poder
Judiciário, Nelson Nery Junior leciona que atualmente no direito brasileiro não subsistem
dúvidas acerca do caráter jurisdicional da atividade do árbitro (regulada pela Lei n.
9.307/96, Lei de Arbitragem), isto é, de aplicar o direito ao caso concreto.
Embora reconheça que “a atividade jurisdicional é típica, mas não exclusiva do
Poder Judiciário”, o processualista da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
assume que o “conceito de jurisdição não tem sido desenvolvido pela doutrina brasileira,
no sentido de acompanhar a evolução que o instituto vem sofrendo nos ordenamentos mais
modernos, visto que a visão brasileira ainda está centrada na influência estática da noção
chiovendiana de jurisdição, de atuação da lei no caso concreto e função substitutiva da
vontade das partes”.169
Cândido Rangel Dinamarco reconhece que a jurisdição é um conceito em crise,
pois a doutrina moderna ressente-se de “insuficiência do exame puramente jurídico de
168
Maria José Capelo, Conferência de Coimbra (29 de junho de 2001): intervenção, cit., v. 3, p. 18.
Nelson Nery Junior, Princípios do processo civil na Constituição Federal, 8. ed., São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2004, p. 109. Inclusive, podemos afirmar que a partir da introdução da via administrativa para a
realização de inventário, partilha, separação consensual e divórcio consensual no direito brasileiro (Lei n.
11.441, de 4 de janeiro de 2007), desde que não envolvendo interesses de menores, urge a necessidade de
se superar a idéia de que somente os atos meramente administrativos poderiam ser realizados por terceiros,
que não o Estado-juiz.
169
113
institutos jurídicos, dada a incapacidade desse método para explicar os fenômenos do
direito em face da significação social e política de cada um”.170
Com efeito, se a atividade jurisdicional é típica mas não exclusivamente estatal, a
nosso ver, torna-se absolutamente despicienda qualquer discussão acerca da natureza
administrativa, satisfativa ou jurisdicional, dos atos essencialmente executivos (penhora,
venda e pagamento). Não é o simples critério funcional, ou seja, o órgão incumbido de
exercer uma atividade jurisdicional que vai determinar se a natureza dos atos a serem
realizados no processo de execução é administrativa, satisfativa ou jurisdicional.
Se a arbitragem é reconhecidamente uma atividade jurisdicional, na qual ao
árbitro é conferido poder de dirimir controvérsias que seriam objeto de uma ação de
conhecimento, por que ao agente de execução também não pode ser reconhecido que
desempenha uma função jurisdicional?
Nesse ponto, discordamos de Debora Inês Kram Baumohl, quanto à correlação do
caráter jurisdicional da execução forçada com a atividade substitutiva, exclusivamente
desempenhada pelo Estado, tendo em vista que, sob a sua ótica, a atividade deste “não se
limita a dirimir o conflito de interesses individuais, mas está voltada para garantir a
observância da lei”, que terá lugar tão-somente em caso de inobservância do preceito
legal.171
Sustentamos ao longo deste estudo, e mais precisamente no presente momento,
que independentemente de a tutela executiva, grosso modo, ser de cunho satisfativo ou
jurisdicional, ou até mesmo de índole administrativa ou estatal, o fato é que, dada a
instrumentalidade de que se reveste o processo civil, a realização dos atos tipicamente
executivos (penhora, venda e pagamento), sem prejuízo de outros (v.g. verificação dos
pressupostos da execução, citação, entre outros) na atual quadra histórica em que vivemos,
pode ser perfeitamente realizada por um ente (seja particular ou funcionário público, ou até
uma figura híbrida) que não o juiz estatal.
170
Cândido Rangel Dinamarco, Execução civil, cit., p. 190.
Débora Inês Kram Baumohl, A nova execução civil: a desestruturação do processo de execução, cit., p.
25-26.
171
114
Embora “rarefeita”, é indiscutível que na ação de execução existe cognição acerca
da verificação do preenchimento dos pressupostos para a cobrança, todavia não devemos
olvidar que a hipoteca assenta numa base contratual que, pelo seu reconhecido grau de
certeza, dispensa a cognição prévia por parte do agente judicial.172
Nessa senda, voltamos ao direito romano para sustentar que a participação do juiz
na execução hipotecária deve se fundar no poder de imperium e não na jurisdição, visto
que ao direito compete, tal qual sucedeu após a superação da autotutela, a função de
coordenar eficazmente os interesses que se manifestam na vida social, de modo a organizar
a cooperação entre as pessoas e a composição dos conflitos que se verificarem entre os
seus membros.
E, para viabilizar a cooperação e a composição dos conflitos, basta que a atividade
do agente “paralegal” legitimado pelo Estado seja submetida ao controle sancionatório do
Estado, que poderá ser exercido a posteriori, tal qual já sucede no regime da execução
conduzida pelo agente de execução português, ou pelo notário, no caso da execução
hipotecária espanhola.
Valendo-nos do precioso escólio de Miguel Teixeira de Sousa, a atribuição da
função executiva a um órgão não estatal, que permanece sujeito à supervisão e ao controle
do tribunal de execução, pressupõe que a ação de execução possui caráter jurisdicional e,
por isso, não é equiparável a um procedimento administrativo, todavia “os actos de
apreensão e de venda de bens – deixam de ser praticados pelo juiz de execução e passam a
ser entregues a uma entidade não jurisdicional”.173
É nesse sentido que se posiciona José Lebre de Freitas, ao esclarecer que, em
Portugal, tal qual em França e na Alemanha, houve a opção pela desjurisdicionalização
relativa do processo executivo, vez que “nas diligências do processo de execução cabem os
actos executivos fundamentais (a penhora, a venda e o pagamento) e outros que,
172
Kazuo Watanabe acrescenta que enquanto a cognição no processo de execução é rarefeita, os embargos à
execução, devido à amplitude da controvérsia que ali haverá, podem ser considerados como ação de
cognição. (Da cognição no processo civil, 3. ed., São Paulo: Perfil, 2005, p. 139.
173
Miguel Teixeira de Sousa, A reforma da acção executiva, cit., p. 14.
115
relativamente a esses, exercem função meramente instrumental”, incluídas a citação, a
notificação e as publicações.174
A esse propósito, considerando a importância do método comparativo no estudo
do direito, na medida que na sociedade globalizada os povos se intercomunicam com maior
frequência e rapidez, e considerando ser o modelo processual civil português, como vimos,
um ascendente do direito brasileiro vigente175, a reforma na ação de execução havida em
Portugal em 2003 tornou-se mais um fator de grande utilidade para a construção e prática
da inevitável futura reforma na ação executiva que terá lugar no Brasil.
Portanto, para um maior incremento do conhecimento e do necessário diálogo
entre as diversas soluções jurídicas encontradas para problemas comuns, urge a
necessidade de se revisarem os manuais brasileiros176 que versem sobre a execução, para
que se evitem equívocos do tipo afirmar-se que em todos os países ibéricos ainda prevalece
o monopólio de jurisdição estatal e da reserva do juiz.
A incensurável crítica formulada por Nelson Nery Junior é assaz relevante para
que se viabilizem na doutrina brasileira as bases necessárias para que se justifique um
maduro e profícuo diálogo com os direitos português e espanhol.
A partir daí, torna-se necessário superar questões que já foram amplamente
discutidas em diversos colóquios e conferências em Portugal, inclusive com a participação
de eméritos processualistas provenientes de diversos países que compõem a União
Européia, a fim de avançarmos nas conquistas havidas, com a superação da restrita idéia de
reserva de juiz e, por que não dizer, do monopólio estatal em sede de execução.
174
José Lebre de Freitas, A reforma da acção executiva: agente de execução e poder jurisdicional, cit., p. 2425, 2003.
175
É evidente que a partir da independência política do Brasil, o direito brasileiro foi ganhando personalidade
própria, de modo que hoje, embora filiado à família romano-germânica do direito e especialmente ao seu
ramo ibérico, afigura-se com particularidades próprias, como por exemplo um maior diálogo com o direito
anglo-saxão de índole norte-americana.
176
Urge a necessidade de revisar a idéia de que a exclusividade da competência da realização dos atos
executivos, tal qual ainda regulada no Brasil, é puramente estatal (incluindo-se aí a reserva do juiz),
tratando-se tal solução de um fenômeno tipicamente ibérico, ligado à idéia medieval do officium judicis,
como se tal modelo fosse estático e sem nuances de relevo, para que se alcance uma maior reflexão em
termos de busca de novas soluções.
116
Como visto, a declaração de constitucionalidade da execução extrajudicial
hipotecária brasileira – independentemente das suas deficiências ou não e de se alicerçar
em bases amplamente liberais – é mais um fator que torna indispensável uma reavaliação
do conceito de jurisdição como atividade exclusivamente estatal, tendo em vista a
constatada insuficiência do conceito.
Não basta pura e simplesmente afirmar que a execução extrajudical brasileira – ou
qualquer outro modelo de execução que porventura desjudicialize os atos executivos – é
inconstitucional por, em tese, afrontar os conceitos de monopólio estatal e de reserva de
jurisdição.
Na presente quadra histórica em que vivemos, exige-se uma nova abordagem
daquilo que parecia ser imutável, mas que efetivamente não é. E torna-se ainda mais
instigante a análise comparativa das soluções havidas em Espanha e no Brasil para a
desjudicialização da execução hipotecária, face ao fato de que em Portugal, mesmo após o
advento da figura do agente de execução, haver sido mantida a solução judicial para a
execução da hipoteca, justamente a partir do receio de que, em caso de aprovação do
anteprojeto analisado, houvesse afronta a preceitos constitucionais.
Diante disso, torna-se absolutamente necessário recorrer à indispensável reflexão
acerca da superação do conceito clássico de jurisdição, incensuravelmente tracejada por
José Joaquim Gomes Canotilho, que sublinha que “a forma tradicional de solução de
litígios através dos tribunais e mediante decisão de um juiz imparcial é considerada, hoje,
como incapaz de assegurar, só por si, a paz jurídica e de garantir em tempo razoável alguns
direitos e interesses das pessoas”.
Outrossim, o constitucionalista leciona que a “formação constitucional da
jurisdição assenta, em grande medida, no modelo clássico de juízes, tribunais e
jurisprudência. Não há, porém, obstáculos incontornáveis à institucionalização de formas
alternativas (ou complementares) de justa composição dos conflitos por acordo das partes
e/ou com auxílio de um mediador (cfr. Lei n. 78/2001, de 13.7, que criou os julgados de
paz). Tratar-se-ia de uma forma de prestação de justiça própria de um estado cooperativo”.
117
E, especificamente no que diz respeito à viabilidade de desjudicializar os atos
decorrentes do processo expropriatório, o jurista informa que “é possível distinguir no
processo dimensões processuais materialmente jurisdicionais e dimensões processuais que
não exigem intervenção do juiz, podendo ser dinamizadas por outros agentes ou
operadores jurídicos (cf. por ex., o Decreto-Lei n. 38/2003, de 8.3, que confia ao agente de
execução importantes funções no âmbito da ação executiva)”.177
A esse propósito, Jorge Miranda178 defende que no direito constitucional
português não se aplica o princípio do “monopólio estadual da função jurisdicional” ou
exclusividade da “justiça pública”, tendo em vista a possibilidade de surgirem normas que
institucionalizem instrumentos e formas de composição não jurisdicional de conflitos (art.
205º, n. 4, após 1989), sem se diminuir o postulado da tutela jurisdicional dos direitos.
Inclusive já se decidiu em Portugal que é possível um órgão administrativo
declarar a nulidade de um ato administrativo realizado por um órgão distinto da própria
Administração, visto que ambos os atos são de natureza administrativa e passíveis de
recurso para os tribunais estatais, por parte do particular eventualmente prejudicado, não se
configurando, em virtude disso, vício de usurpação de poderes.179
Ao criar a chamada reserva de jurisdição, o Estado visou garantir que as normas
de direito substantivo contidas no ordenamento jurídico efetivamente fossem respeitadas e,
consequentemente, conduzissem aos efeitos enunciados, fazendo o agente judicial aplicar
em cada caso concreto os objetivos sociais firmados na norma.
Por conseguinte, prosseguindo numa visão que nos remete ao momento pósRevolução Francesa e que ensejou o positivismo, seria preservado o ordenamento jurídico
177
José Joaquim Gomes Canotilho, Direito constitucional e teoria da Constituição, 7. ed., Coimbra:
Almedina, 2003, 664. Acrescentamos à ponderação do constitucionalista o próprio interesse estatal no
recurso aos meios alternativos de resolução de litígios, em termos de tornar efetivo o processo de execução.
Isso pode ser aferido a partir da desjudicialização parcial da execução fiscal no direito português (DecretoLei n. 433/99, de 26 de outubro) e a tendência para alargar o espaço de reserva de juiz arbitral à resolução
de litígios jurídico-administrativos no Código de Processo dos Tribunais Administrativos de 2002.
178
Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, cit., p. 29.
179
A propósito, no Acórdão n. 319/03, de 2 de julho de 2003, a 1ª Secção do Tribunal Constitucional não
considerou inconstitucional o ato administrativo de uma Câmara que revogou um alvará concedido por
outra Câmara Municipal. Por conseguinte, considerou constitucional o n. 2 do artigo 134º do Código de
Procedimento Administrativo, que dispõe no sentido de que “a nulidade é invocável a todo o tempo, por
qualquer órgão administrativo ou por qualquer tribunal”.
118
em sua autoridade e promover-se-ia a paz social e a ordem na sociedade através da atuação
estatal.
Contudo, partilhamos do entendimento de que o extraordinário fortalecimento do
Estado, ao qual se aliou a consciência da sua essencial função pacificadora, lastreada no ius
imperii, conduziu, a partir da cognitio extra ordinem romana e ao longo dos séculos, à falsa
convicção da quase absoluta exclusividade estatal do exercício dela.
Nos últimos vinte anos tal concepção vem sendo colocada em xeque no ambiente
da ciência processual, posto que a passos largos ganha volume a conscientização de que
para se obter a efetividade processo, é imperioso que se garanta o devido processo legal, o
contraditório e a ampla defesa, mas que tais garantias podem ser preservadas por meio de
soluções alternativas, que não aquela que conduz exclusivamente ao monopólio da
jurisdição ou da reserva do juiz.
O simples monopólio de jurisdição e da reserva do juiz não são por si só
suficientes para superar aquilo que Cândido Rangel Dinamarco afirmou serem as “mazelas
da execução forçada no dito direito moderno brasileiro”, visto que, “são demasiadas as
oportunidades de defesas e retardamentos que a lei oferece ao executado, beneficiando
inúmeras vezes o mau pagador, sendo indulgente com chicanas em detrimento da plena
satisfação do credor e do correto exercício da jurisdição. Sem dizer do mau funcionamento
da Justiça, cartórios desaparelhados, juízes pouco participativos”.180
Se a reserva de jurisdição afigura-se como uma limitação de atos legislativos e
administrativos, eivando de inconstitucionalidade aqueles que a afrontam, a mesma sugere
a reserva de juiz imparcial e independente para determinados assuntos, como se verifica no
brocardo nulla poena sine judicio, quando ao juiz caberá “não apenas a última palavra mas
também a primeira”.
No entanto, compartilhamos do entendimento de Gomes Canotilho, no sentido de
que situações há em que afigura-se legítima e, conforme alhures salientamos, necessária “a
intervenção de outros poderes (designadamente administrativos) desde que seja
180
Cândido Rangel Dinamarco, Execução civil, cit., p. 104.
119
assegurado, mesmo que a posteriori e em situações restritas para se evitar as indesejáveis
chicanas processuais, o direito de acesso aos tribunais”.181
Iniludivelmente, numa sociedade com instituições fortes e dotada de cidadãos
democraticamente responsáveis, cientes de que o Estado por si só não é capaz de resolver a
multiplicidade dos litígios envolvendo questões sem a menor complexidade jurídica, temse por assente que o acesso à ordem jurídica justa também poderá ser garantido por meio
de agentes imparciais e independentes, que não estritamente os juízes estatais.
Certo é que as garantias constitucionais processuais também poderão ser
mantidas, desde que aquele que receba a incumbência para a execução dos bens
hipotecados tenha a credibilidade, a independência e a imparcialidade necessárias para bem
desempenhar as suas funções, nos estritos termos daquilo que é preceituado pelo
ordenamento jurídico.
Ao analisarem a mudança de paradigma que anteriormente nos induzia ao
monopólio da função jurisdicional, Antônio Carlos de Araújo e Cintra, Ada Pellegrini
Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, já no início da década de 90 do século passado,
haviam identificado que àquela altura ia “ganhando corpo a consciência de que, se o que
importa é pacificar, torna-se irrelevante que a pacificação venha por obra do Estado ou por
outros meios, desde que eficientes. Por outro lado, cresce também a percepção de que o
Estado tem falhado muito na sua missão pacificadora, que inexoravelmente ele tenta
realizar mediante o exercício da jurisdição”.182
A propósito da atual restrição à idéia da reserva de jurisdição e do monopólio
estatal da função jurisdicional em Portugal, Paulo Castro Rangel alude que “não sobejam
dúvidas, em face da letra do texto constitucional saído da Revisão de 1982, de que a nossa
Constituição prevê a arbitragem como um modo legítimo de composição dos conflitos. Se
181
Ademais, ao distinguir a reserva de juiz da reserva de tribunal, Canotilho refere que a primeira terá lugar
quando houver a participação do tribunal do início ao fim do processo, enquanto na segunda, o apelo à
atuação do agente judicial, no mais das vezes, somente terá lugar em grau de recurso. Mutatis mutandis,
podemos dizer que, na execução hipotecária extrajudicial, terá lugar a reserva de tribunal, relativizando-se a
reserva de juiz para os atos que assim o justifiquem, como por exemplo, no caso de apreciação da citação
editalícia e no uso da força pública para a desocupação do imóvel (José Joaquim Gomes Canotilho, Direito
constitucional e teoria da Constituição, cit., p. 664-665).
182
Antônio Carlos de Araújo Cintra; Ada Pellegrini Grinover; Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do
processo, cit., p. 29.
120
dúvidas haviam, elas aí se dissiparam, consoante resulta, de resto, do actual artigo 209º, n.
2, da CRP 76. Esta admissão consubstancia, aliás, um indício forte de um fenômeno de
alcance bem mais largo e que aponta para uma progressiva desintegração do carácter
estadual dos tribunais”.183
Aliás, não poderia ser diferente a relativização ao princípio da reserva de
jurisdição perante a arbitragem, diante do fato de que o recurso à mesma já na Grécia
antiga foi defendido, inclusive por Aristóteles184, como uma forma de se fazer justiça de
forma mais eficaz e independente no ambiente de corrupção endêmica que à época corroía
os tribunais gregos.
Ora, se a justificativa para a defesa da arbitragem como meio alternativo de
resolução de litígios na atual quadra em que vivemos também se justifica na necessidade
de se desafogar o Judiciário, independentemente do motivo, é inelutável que não é de hoje
que se defende a sua utilização.
Independentemente disso, naquilo que conhecemos como um Estado cooperativo,
e considerando ser uma realidade a superação do dogma da inafastabilidade do controle
jurisdicional por parte do agente judicial, mister se faz o Estado assumir uma atitude de
mobilização ativa e empreendedora da revolução do tecido social.
Nesse diapasão, compete ao Estado ser o protagonista na coordenação de meios
alternativos, não apenas de resolução de litígios, na seara daquilo que conhecemos como
processo de conhecimento, mas também no que concerne à realização do direito
corporificado num título judicial ou extrajudicial.
183
Paulo Castro Rangel também sublinha que os tribunais arbitrais decorrem de uma “idéia-vectora” de
autonomia privada no âmbito dos direitos disponíveis, que já se incrustavam na tradição jurídica, razão pela
qual, pelo fato de as decisões arbitrais não fundarem a sua auctoritas no Estado, não poderem ser
qualificados como órgãos de soberania; isso não significa que não sejam verdadeiros tribunais, vez que
“percebe-se bem que o princípio de reserva de jurisdição se satisfaça com a possibilidade de as partes
pleitearem perante um tribunal arbitral voluntário. Aliás, o Tribunal Constitucional reconheceu, no Acórdão
n. 506/96, que ‘para a Constituição, não há apenas tribunais estatais’”. (O direito ao poder, in Repensar o
poder judicial: fundamentos e fragmentos, Porto: Universidade Católica, 2001, p. 291-292 e 294).
184
Aristóteles, Ética a Nicómaco, tradução de António C. Caeiro, Lisboa: Quetzal, 2004, p. 48.
121
Para tanto, somos amplamente favoráveis à participação dos diferentes atores
sociais, desde que fiáveis e maduros para tal, na condução de atos executivos
descentralizados do Estado.
Caso típico disso seria a descentralização das execuções de contratos de leasing
de aeronaves, que poderiam ser facilmente conduzidos pelos diversos departamentos de
aviação civil espalhados pelos diversos países. Por que não a adoção de uma legislação
única para a realização do direito previsto em contratos internacionais de tal índole?
Ultrapassada tal provocação, interessa-nos agora ressaltar que, no Estado
Democrático de Direito, prevalece o princípio da soberania popular, que impõe a
participação efetiva e operante do povo na coisa pública, participação que não se exaure na
simples formação das instituições representativas, que constituem um estágio da evolução
do Estado Democrático, mas não o seu completo desenvolvimento. Conforme José Afonso
da Silva185, visa assim a realizar o princípio democrático como garantia geral dos direitos
fundamentais da pessoa humana.
3.3.1 Da inafastabilidade do agente judicial no controle e
nos atos sancionatórios
Embora estejamos plenamente convencidos de que a realização dos atos
executivos não é função reservada aos agentes judiciais, o mesmo não podemos dizer do
controle e dos atos sancionatórios da execução.
Sucede que, ao analisarmos o artigo 809º, n. II do Código de Processo Civil
português, verificamos ser imprescindível que o juiz de execução possua a legitimidade
para controlar, mediante provocação do interessado, e mesmo que a posteriori, a
regularidade dos atos realizados no curso do processo executivo, tendo em vista que, como
vimos, um dos escopos da jurisdição é a preservação da própria ordem jurídica.
185
José Afonso da Silva, Curso de direito constitucional positivo, 10. ed., São Paulo: Malheiros, 1994, p.
118.
122
Se por um lado defendemos que o Estado assuma um papel de arquiteto e
promotor da participação social no cumprimento do ordenamento jurídico, por outro lado,
também defendemos que o próprio Estado também se encarregue do controle do
funcionamento do órgão que exerça uma função jurisdicional.
Nesse passo, ao agente judicial, juiz, compete a palavra final para dirimir dúvidas
ou litígios que decorram da realização dos atos executivos.
Além disso, deve ser entregue ao magistrado o poder de aplicar multas àqueles
que criam chicanas processuais com o manifesto propósito protelatório, bem como aos que
ingressam com execuções infundadas.
Sem prejuízo, a atuação do chamado ente paralegal, independentemente da
atuação dos eventuais órgãos de classe, deve estar subordinada ao juiz de execução,
enquanto representante do Estado, que por uma decisão estratégia abriu mão da aparente
sua função jurisdicional exclusiva em prol de interesses maiores, relacionados com o
acesso aos direitos na distribuição da justiça.
Portanto, ao exercer a sua função de “gerenciador” da estratégia estatal, caberá ao
juiz da execução um papel fulcral para a viabilização do procedimento, eis que deverá estar
comprometido com a efetividade e a celeridade que tanto se almeja. Caso contrário, mais
uma vez estaremos diante da necessidade de se criar um órgão de controle da atuação
judicial na execução, que por sua vez deveria controlar a realização da própria execução.
3.4 Da compatibilidade da natureza jurisdicional dos atos
processuais
executivos
com
a
desjudicialização
da
execução
Entendemos que para dissipar eventuais dúvidas que porventura ainda subsistam
acerca da inviabilidade da desjudicialização da execução hipotecária, quando estiverem
presentes atos estrita ou essencialmente jurisdicionais, mister se faz realizar a
123
compatibilização da natureza jurisdicional da execução com a realização extrajudicial da
garantia hipotecária.186
Consoante o escólio de Afonso Rodrigues Queiró, a especificidade do ato
jurisdicional decorre do fato de que ele não pressupõe, “mas é necessariamente praticado
para resolver uma questão de direito. Se, ao tomar-se uma decisão, a partir de uma situação
de facto traduzida numa questão de direito (na violação de direito objectivo ou na ofensa
de um direito subjectivo), se actua, por força da lei, para conseguir um resultado prático
diferente da paz jurídica decorrente da resolução dessa questão de direito, então não
estaremos perante um acto jurisdicional; estaremos perante um acto administrativo”.187
De acordo com Paulo Castro Rangel188, o Tribunal Constitucional português
enumera da seguinte forma as características para a existência de um ato materialmente
jurisdicional: a) a resolução de um interesse num caso concreto; b) de acordo com os
cânones ou critérios normativos jurídicos (e, portanto, de acordo com um direito
pressuposto); c) que não tenha outro fim senão esse mesmo de dar solução jurídica ao
conflito, sendo jurisdicionais, por conseguinte, não “apenas os atos que se traduzem na
directa resolução de questões jurídicas de acordo com o direito material ou substantivo.
São-no também os actos preparatórios dessa resolução, os quais, no seu conjunto,
constituem o processo de declaração ou cognição – ligados como encontram àquele final
objectivo que é a resolução de uma questão de direito. O processo, pois, na sua fase
declaratória, é um conjunto de actos jurisdicionais”, incluindo-se aí as decisões atinentes à
aplicação das chamadas multas processuais, que dependem de uma indagação relativa à
postura adotada pela parte durante a realização dos atos processuais.
186
Valendo-nos das lições de Artur Anselmo de Castro, consideramos que para alcançar o sentido dos atos
decorrentes da função jurisdicional, temos que ter em mente que eles tendem a viabilizar a atuação prática
das normas abstratas que integram o direito objetivo, quando inobservadas pelos seus destinatários,
“cabendo à função jurisdicional dirimir dúvidas e eliminar incertezas mediante a aplicação do direito
vigente. Ademais, mesmo considerando a necessidade do preenchimento de determinados pressupostos
processuais no processo de execução, eles não coincidem em toda a linha com os do processo declaratório;
mesmo porque, em razão do seu objeto, é uma ação autónoma da ação declarativa, prescindindo de uma
cognição judicial para além do simples exame do título exequível” (Lições de processo civil, Coimbra:
Almedina, 1964, p. 225-226).
187
Afonso Rodrigues Queiró, A função administrativa, Revista de Direito e Estudos Sociais, ano 24, n. 1/2/3,
p. 31.
188
Paulo Castro Rangel, O direito ao poder, cit., p. 274-275.
124
Ao constatarmos que a satisfação do credor na ação executiva é alcançada
mediante a substituição do tribunal ou do agente de execução ao devedor, essa atuação
“visa a efetivação do direito e corresponde assim à realização duma função jurisdicional,
sendo de rejeitar as concepções que, como a de Allorio, tendem a enquadrar a execução
forçada fora do âmbito da jurisdição e, porque fundamentalmente realizada através de
actos materiais que não conduzem ao caso julgado, a qualificá-la como exercício duma
função administrativa, no âmbito da chamada jurisdição voluntária”.189
Em continuidade, as lições de Afonso Rodrigues Quiró e Paulo Castro Rangel são
assaz relevantes para alcançar aquilo que chamamos de função jurisdicional típica, voltada
para a resolução de litígios e a preservação da ordem jurídica vigente, realizada através de
atos jurisdicionais específicos tendentes à declaração ou não de um direito, ou o controle
sobre determinado ato, ou a sanção decorrente da afronta ao ordenamento.
Mas não é somente em virtude de os atos executivos não se confundirem com os
atos jurisdicionais típicos a razão pela qual entendemos ser absolutamente despicienda
qualquer discussão acerca da eventual natureza administrativa, ou satisfativa ou
jurisdicional dos atos executivos.
O labor realizado pelo árbitro, exemplificadamente, não se discute na doutrina
moderna também decorrer de um poder jurisdicional que lhe é conferido para resolver
controvérsias envolvendo questões de cunho patrimonial. Por conseguinte, podemos
afirmar que a natureza do ato a ser realizado não é motivo suficiente para impedir a sua
desjudicialização, pois se assim fosse, a atuação do árbitro estaria inviabilizada desde a
Grécia antiga.
Embora nos filiemos à corrente que defende serem jurisdicionais os atos
executivos, qualquer que seja o ponto de vista adotado, uma vez identificado que tais atos
não se destinam à realização de uma função jurisdicional típica do Estado, agora, por
exclusão, entendida como a destinada à resolução de questões de interesse público, isso em
189
José Lebre de Freitas, A ação de execução: depois da reforma, cit., p. 17.
125
nada terá o condão de pôr em causa a adoção de soluções desjudicializantes em termos de
processo executivo.190
E, para não quedar no vazio a nossa idéia daquilo que estaria compreendido no
processo de interesse público, ou seja, o que efetivamente seria de competência exclusiva
do Estado-juiz, no âmbito específico do nosso estudo, poderíamos afirmar que o Estado
não pode e não deve abrir mão do seu poder coercitivo.
Indubitavelmente, no caso de resistência na desocupação do bem hipotecado, o
recurso à força pública, aqui reconhecido como uma das expressões máximas do ius
imperii, não pode ser delegado a particulares, sob pena de colocar em risco a ordem
pública. O problema resulta, por um lado, dos abusos que porventura poderiam ser
realizados pelo exeqüente para a desapropriação do bem, e que dificilmente seriam
controlados a tempo pelo Estado-juiz.
Por outro lado, a própria resistência do devedor para sair do bem poderia se dar
através de meios que iniludivelmente poderiam suscitar o recurso a meios extremados para
viabilizar a sua retirada, como, por exemplo, a utilização de armas de fogo.
E é justamente no risco de se recrudescer a vindicta privata, que defendemos o
monopólio do Estado no recurso à força pública para a desocupação do bem.
Portanto, a despeito de respeitabilíssimas opiniões em contrário191, identificamos
na ação hipotecária extrajudicial, seja a realizada pelo agente fiduciário brasileiro ou a
190
A propósito do estudo das premissas teóricas necessárias à melhor compreensão do papel, das funções e
das implicações sociais dos mecanismos judiciais de resolução de controvérsias, que resvala
necessariamente no estudo das funções jurisdicionais do Estado e suas múltiplas repercussões, seja no
campo da análise constitucional, seja ligada a uma abordagem relacionada à sociologia ou à teoria geral do
direito, centrado nas premissas pelas quais se pode compreender o fenômeno processual contemporâneo,
ver: Owen Fiss, Um novo processo civil: estudos norte-americanos sobre jurisdição, constituição e
sociedade, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
191
Cândido Rangel Dinamarco entende que é de sujeição o vínculo que se estabelece entre o Estado e os
sujeitos litigantes no processo de execução, como em qualquer outro. No seu entendimento, a relação é
sempre de direito público, razão pela qual sustenta ser “ser constitucionalmente ilegítima a execução
extrajudicial dos créditos hipotecários do Sistema Financeiro da Habitação, Lei n. 5741, de 1.12.1971;
Decreto-Lei n. 70, de 21.11.1966, arts. 31-32”. Sustenta ainda o processualista que nessa execução
realizada por um agente fiduciário, evidentemente não está presente a jurisdicionalidade, no entanto, o
imóvel é levado a leilão e expropriado ao mutuário, por “autoridade” privada, fora do numerus clausus dos
órgãos que a Constituição prevê para o exercício da jurisdição. No entanto, aparentemente o professor da
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo admite a existência de uma execução extrajudicial, ao
126
conduzida pelo notário espanhol, além da realização de uma atividade de cunho
jurisdicional, a integral desnecessidade de se recorrer ao agente judicial para a realização
dos atos eminentemente executivos, ainda mais quando verificamos que a essência da
hipoteca (ius vendendi) por si só já exclui a necessidade de realização de penhora e de
avaliação, restando tão-somente a realização da venda e do pagamento como atos a serem
formalmente realizados.
Embora Miguel Teixeira de Sousa192 defenda que “a atividade de execução, no
sentido de actividade de penhora, apreensão e venda de bens, não é uma actividade
jurisdicional e, por isso, ela pode ser realizada por órgãos não jurisdicionais (como é o caso
do agente de execução)”193, defendemos que esses atos efetivamente são jurisdicionais, no
entanto, por uma estratégia de descentralização de poder na figura do Estado, não estão
inseridos naqueles que consideramos exclusivos da função jurisdicional estatal, realizada
pelo seu agente típico, o juiz.
De fato, os atos executivos estão inseridos no contexto de um processo que é
jurisdicional, mas que pelas suas particularidades, por justamente não corresponderem a
atos jurisdicionais típicos, no sentido de não se destinarem à resolução de uma controvérsia
que
o
próprio
Estado
reconhece
como
de
interesse
público,
podem
ser
desjurisdicionalizados.
afirmar que “a efetividade do controle jurisdicional poderá tornar perdoável a outorga de poderes de
expropriação a entidades privadas” (Execução civil, cit., p. 203-204, e na parte final transcrita, p. 325).
Miguel Teixeira de Sousa, antes da reforma havida em 2003, defendia que, embora na ação declarativa
aceite-se a convenção de arbitragem, o mesmo não sucede na ação de execução, “para a qual o Estado goza
de um monopólio absoluto”, vez que somente este dispõe dos meios coativos para a realização das
prestações não cumpridas, sendo certo que, sob a sua ótica, atos como a penhora e a venda executiva dos
bens penhorados são manifestações do ius imperii do ente estatal, sob pena de ofensa ao direito de
propriedade assegurado no artigo 62., n. 1 da Constituição da República Portuguesa (Acção executiva
singular, Lisboa: Lex, 1998, p. 24). Ao manifestar-se acerca da reforma do processo de execução em
Portugal, Maria José Capelo, apesar de considerar viável a desjudicialização de determinadas diligências,
nomeadamente as destinadas a proceder a citação ou notificação, a identificar e a localizar os bens, ou a
determinar a modalidade da venda, manifesta, entre outras questões, a sua preocupação com o controle da
regularidade da instância quanto aos pressupostos processuais, que ficam fora do poder-dever do juiz
providenciar, mesmo oficiosamente, pelo suprimento da falta de pressupostos processuais (Maria José
Capelo, Conferência de Coimbra (29 de junho de 2001): intervenção, cit., v. 3, p. 20 e 28).
192
Miguel Teixeira de Sousa, A reforma da acção executiva, cit., p. 16.
193
Retomamos aqui a idéia de que os atos realizados pelo árbitro efetivamente são de cunho jurisdicional, no
entanto, podem ser realizados por outro que não o agente judicial por uma estratégia estatal, pois a
jurisdição decorre do poder, e esse poder é exclusivo do Estado que, conforme prelecionam as diversas
cartas políticas, “emana do povo e em seu nome será exercido”.
127
É o que aliás indiretamente corrobora José Lebre de Freitas, ao mencionar que em
Portugal houve uma desjurisdicionalização relativa do processo de execução, ou seja,
determinados atos que se encontravam no bojo de um processo jurisdicional passaram a ser
realizados por outro ente que não o agente judicial, dotado de jurisdição específica para
dirimir controvérsias e zelar pela manutenção da ordem jurídica.
Mas que não se olvide que ao agente judicial também foi conferida pelo Estado
parcela de poder que outrora competia exclusivamente ao juiz, razão pela qual se pode
afirmar que a sua atuação foi adequadamente legitimada pelo Estado, que lhe outorgou, de
forma condicional e com reservas, uma parcela de jurisdição. Portanto, se o agente de
execução realiza uma função jurisdicional, decerto que os atos que compõem tal atividade
também o serão em seu conjunto.
Contudo, no mundo contemporâneo continua a ter lugar a atuação exclusiva do
agente judicial (juiz), nos casos de oposições formalizadas pelo mutuário, pelo garante não
devedor e pelo terceiro prejudicado.
Sem prejuízo, pelas razões já expostas, reiteramos a defesa da aludida
exclusividade na hipótese de se indagar da necessidade de remoção do ocupante em caso
de resistência194. Nos demais atos, consideramos ser integralmente dispensável a atividade
do agente judicial na execução da hipoteca.195
Decerto não se vislumbra na execução hipotecária, uma vez estando o título
devidamente registrado e acompanhado da planilha detalhada do débito, a necessidade de
apreciação liminar por parte do magistrado, bem como da declaração de existência ou não
194
Compartilhamos do posicionamento de Christophe Lefort, no sentido de que a remoção do ocupante do
imóvel somente ocorrerá com o concurso da força pública, sob pena de causar indesejáveis distúrbios à
ordem e à tranquilidade pública (Procédure civile, cit., p. 31).
195
Em sentido oposto ao defendido por Cândido Rangel Dinamarco, Celso Neves, Professor Direito
Processual Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, defendia que só existe jurisdição
onde houver iuris dictio, ou seja, a atividade consistente em mostrar o direito. Na sentença constitutiva só
haveria jurisdição enquanto o juiz declara o direito à modificação jurídica; na segunda parte, quando o juiz
opera essa modificação, ter-se-ia atividade jurisatisfativa e, portanto, não jurisdicional (consequentemente,
sem o apoio da autoridade da coisa julgada material). O saudoso professor paulista defendia, pelos mesmos
fundamentos, a ausência de jurisdicionalidade na atividade estatal executiva – jurisatisfativa e não
jurisdicional (Apostila do Departamento de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo, mas que ainda carece da necessária publicação). podemos excluir?
128
de um direito, visto que o mesmo já está inquestionavelmente corporificado no título que
aparelha a execução.
É notório que a própria hipoteca registrada transmite ao agente executor um grau
de certeza que por si só se impõe, tonando-se tão-somente necessário verificar se os
documentos apresentados preenchem os requisitos formais de constituição do intrumenta,
para que se dê início ao procedimento de cobrança.
Note-se que mais uma vez não estamos defendendo nada de novo, apenas nos
cindimos a uma solução que já era pratica pelos notários no direito medieval, quando do
surgimento dos chamados instrumenta guarentigiata, e que face à credibilidade alcançada
ao longo da história, perdura até os tempos modernos.
Além disso, a evolução histórica apresentada demonstrou que os atos
expropriatórios realizados extrajudicialmente – como vimos, a experiência não se aplica à
tradição luso-brasileira, visto que os atos do processo de execução até bem recentemente
eram realizados exclusivamente sob o comando do juiz – quais sejam, a citação para
pagamento, a penhora, a avaliação, os editais e os demais atos atinentes à alienação do
bem, desde que expressamente regulados no ordenamento jurídico, e operados por
instituições respeitáveis, em nada fragilizarão as garantias atualmente destinadas a evitar o
excesso de execução e a dignidade do executado.196
Por óbvio, surgirão aqueles que sublinharão que a execução extrajudicial
hipotecária é um meio de outorgar no mais das vezes à instituição financeira a primazia na
designação do quantum debeatur do mutuário. Diante disso, pergunta-se: o juiz, quando do
196
José Casalta Nabais leciona que muito embora a Lei Geral Tributária portuguesa, no seu artigo 103º,
disponha que o processo de execução fiscal tem natureza judicial, o certo é que estamos diante um processo
que somente será judicial em certos casos e, mesmo nesses, apenas em parte, já que um tal processo só será
judicial se e na medida em que tenha de ser praticado algum ato de natureza judicial, quais sejam: os
embargos, a oposição, incluindo quando incida sobre os pressupostos da responsabilidade subsidiária, a
graduação e verificação de créditos e as reclamações dos atos materialmente administrativos praticados
pelos órgãos da administração tributária. “Por isso, não admira que muitos processos de execução fiscal se
iniciem e se concluam nos órgãos da execução fiscal sem qualquer intervenção dos tribunais tributários”
(Direito fiscal, cit., p. 321-322). A propósito, em termos de execução fiscal, conforme verificamos quando
da substituição da ordo iudiciorum privatorum pela cognitio extra ordinem, foi justamente o Estado que
impôs aos particulares a adoção do processo executivo eminentemente estatal, todavia, no presente
momento histórico-social, é o próprio Estado que recorre à desjudicialização da execução para viabilizar a
pronta recuperação da obrigação fiscal.
129
recebimento da planilha contendo a composição do débito realiza ou manda realizar
alguma espécie de controle em relação aquilo que está sendo cobrado? Há verificação
judicial prévia da regularidade da conta de débito apresentada pela instituição financeira?
A experiência na prática forense em questões que tais nos inclina à convicção de
respondermos negativamente, visto que a verificação contábil somente sucederá na
hipótese de o mutuário embargar a execução, mas disso, como adiante veremos, com
fundamento no direito constitucionalmente assegurado de acesso ao Judiciário, jamais
estará tolhido o devedor no sistema que defendemos, pois o controle de regularidade do
procedimento, em caso de desvio, poderá ser realizado a posteriori ou até mesmo em sede
cautelar.
Cingindo-nos exclusivamente ao que nos interessa neste momento, podemos
concluir que não sobejam dúvidas de que a atividade realizada no seio do processo de
execução hipotecária, embora de cunho jurisdicional, se traduz essencialmente em atos
sem a complexidade jurídica que porventura justificasse a intervenção do juiz.
A própria realização da garantia hipotecária já possui o condão de oferecer
maiores garantias de existência do direito invocado, pois, como estudado, a hipoteca
registrada pelo notário possui fé pública e proporciona o direito de sequela ao credor.
Resulta disso que a preferência conferida pela instituição da garantia real da
hipoteca já reduz sobremaneira os riscos de causação de prejuízo, com o objetivo de se
respeitar a correta aplicação da ordem jurídica justa, a pacificação social e, por
conseguinte, o bem comum.
Some-se a isso o pronunciamento de José Lebre de Freitas que, ao comentar a
recente reforma havia no processo de execução português, salientou que antes cabia
exclusivamente ao juiz a “direcção de todo o processo executivo, em paralelismo com o
que acontece na acção declarativa, aplicando-se o artigo 265-1 sem especiais restrições:
cumpria-lhe providenciar pelo andamento regular e célere do processo, promovendo
oficiosamente
as
diligências
necessárias
ao
seu
normal
prosseguimento.
A
jurisdicionalização da acção executiva acarretava, neste modelo do processo executivo,
igualmente vigente (ainda hoje) em Espanha e Itália, o proferimento de numerosos
130
despachos judiciais que, na sua grande maioria, não constituíam actos de exercício da
função jurisdicional. No modelo atualmente adotado, o juiz exerce funções de tutela,
intervindo em caso de litígio surgido na pendência da execução (art. 809-1-b), e de
controlo, proferindo nalguns casos despacho liminar (controlo prévio aos actos executivos:
arts. 809-1, 812 e 812-A)197 e intervindo para resolver dúvidas (art. 809-1-d)”.198
Assim, atribuímos um caráter subsidiário ou até mesmo secundário à intervenção
estatal na execução hipotecária, tendo em vista que, conforme sublinhado, a atuação do
juiz somente teria lugar quando o executado ou um terceiro opusessem alguma questão que
porventura suscitasse a cognição e a apreciação de uma questão inequivocamente de
direito199; ou na hipótese de, uma vez alienado o bem hipotecado em sede de leilão
extrajudicial, o mutuário ou o ocupante ainda resistisse à desocupação do imóvel. Nesse
caso, competiria ao interessado (aquele que adjudicou o bem) requerer a imissão na posse
perante a Justiça comum estatal.
Corroborando o entendimento ora exarado, a jurisprudência dos tribunais
superiores, no Brasil (em relação à execução extrajudicial hipotecária), em Portugal (em
relação ao processo de injunção e do novo regime da execução) e em Espanha
(relativamente à execução sumária hipotecária) têm admitido e asseverado a importância
197
Especificamente no âmbito das execuções extrajudiciais hipotecárias, face às garantias de regularidade do
título registrado em cartório, discordamos das lições de António Santos Abrantes Geraldes, quando o jurista
defende que no processo executivo se justifica o despacho liminar “como medida destinada a evitar o
avanço de execuções injustas, designadamente, quando estas se fundam em títulos executivos extrajudiciais
consubstanciadores de uma mera presunção legal quanto à existência do direito de crédito e consequente
obrigação do executado, justificação que se compreende ainda pelo facto de a tramitação geral do processo
de execução não comportar, como ocorre no processo declarativo, uma fase de saneamento” (Temas da
reforma do processo civil, cit., v. 1, p. 246-247). Contudo, em que pese ser salutar a preocupação exarada
pelo doutrinador, entendemos que a execução hipotecária, face às suas peculiaridades, já largamente
apresentadas no excurso deste estudo, prescinde da apreciação liminar por parte do agente judicial, visto
que as formalidades a serem verificadas quando do requerimento de cobrança apenas dirão respeito ao
registro do título e à planilha de evolução do débito, o que, sob a nossa ótica, não pressupõe a atividade
jurisdicional, que ao menos neste momento não se cingirá a uma abordagem atinente à viabilidade do valor
cobrado.
198
José Lebre de Freitas, A ação de execução: depois da reforma, cit., p. 26.
199
Convém ressaltar que na ação executiva não subjaz um conflito a ser dirimido pelo Poder Judiciário, mas
tão-somente “uma obrigação a perseguir efectiva e coercitivamente, isto é, uma obrigação a executar”
(António Montalvão Machado; Paulo Pimenta, O novo processo civil, cit., p. 42). Entretanto, Cândido
Rangel Dinamarco, defendendo o carácter jurisdicional do processo de execução, assinala que “embora não
voltando ao conhecimento como objetivo específico, nem comporte julgamento da pretensão deduzida
(mérito), o processo executivo também não se desenvolve sem qualquer atividade decisória. Exercício do
poder, a jurisdição inclui sempre decisão, ainda quando se trate de decisão realizada somente com a
finalidade de orientar atos materiais. As atividades executivas seriam cegas e possivelmente injustas, se
nada competisse ao juiz decidir no processo de execução” (A instrumentalidade do processo, cit., p. 311).
131
da realização de atos executivos extrajudiciais, a fim de desafogar o sistema, mergulhado
num sem-número de ações de execução para a cobrança de dívidas, sem a menor
complexidade, e que somente inviabilizam o verdadeiro exercício da jurisdição nas ações
de cunho declarativo, tendo em vista a morosidade indevidamente acarretada.
3.5 O necessário respeito aos princípios da igualdade de
partes e do contraditório
De acordo com as lições de Manuel de Andrade, o princípio da igualdade das
partes “consiste em as partes serem postas no processo em perfeita paridade de condições,
desfrutando, portanto, idênticas possibilidades de obter a justiça que lhes seja devida; e
isso não deve se cingir apenas ao plano formal da igualdade jurídica, é necessário também
realizar entre eles, no processo, a igualdade prática (substancial, factual, real); impedir,
quanto possível, que a igualdade jurídica seja frustrada em consequência duma grave
desigualdade de facto”200, a fim de suprir a inferioridade da parte mais débil da relação.
A partir daí torna-se palpável o entendimento acerca do artigo 10 da Declaração
Universal dos Direitos do Homem, que preleciona que “todos têm direito, em plena
igualdade, a que a sua causa seja equitativa e publicamente julgada por um tribunal
independente e imparcial, que decida sobre os seus direitos e obrigações”.
A esse propósito, José Lebre de Freitas201 assinala que o artigo 20º da
Constituição, ao estabelecer que a todos é assegurado o direito de acesso aos tribunais para
defesa dos seus direitos, deve ser integrado, de forma a assegurar também o direito, que lhe
é complementar, ao tratamento equitativo das partes no processo civil, nas suas duas
vertentes: o direito à discussão contraditória e o direito à igualdade de armas (ou seja,
equilíbrio entre as partes na apresentação das respectivas teses, na perspectiva dos meios
processuais de que para o efeito dispõem).
200
Manuel Augusto Domingues de Andrade, Noções elementares de processo civil, nova ed. rev. e ampl.
com a colaboração do professor João de Matos Antunes Varela, Coimbra: Coimbra Editora, 1976, p. 378.
201
José Lebre de Freitas, Estudos sobre direito civil e processo civil, cit., p. 27-28.
132
Contudo, quando pensamos em termos de adequação do princípio da igualdade
das partes no âmbito do processo executivo, não podemos olvidar que embora o título
executivo, sobretudo o extrajudicial, não garanta em absoluto a existência dos créditos,
face ao seu alto grau de fiabilidade jurídica, por aplicação do princípio da abstração, a
posse do título é requisito suficiente ao exercício da ação executiva, motivo esse que
justifica a sua autonomia para o início do processo de expropriação, sendo, por
conseguinte, um direito autônomo e independente do direito substancial.202
Disso decorre a convicção de que em sendo o processo executivo um meio
processual destinado à satisfação do direito conferido a uma das partes através do título
judicial ou extrajudicial, é evidente que os princípios da igualdade das partes e do
contraditório não terão o mesmo alcance esperado no processo declarativo que, conforme
estudado, requer a devida cognição por parte do agente judicial, para que se viabilize a
resolução do objeto da demanda.
Portanto, o processo executivo prescinde do princípio da igualdade de tratamento
das partes, na medida que no mesmo não se exige um tratamento equitativo na
apresentação de teses contrapostas, decorrentes da dialética processual, somente fazendo
sentido invocá-lo em termos das compensações que devem proporcionar o equilíbrio
global do processo.
É em respeito ao princípio da igualdade de tratamento das partes que decorre o
dever de se proporcionar ao credor a recuperação da garantia oferecida, contudo da forma
menos onerosa para o devedor, e é justamente nesse guião que o agente privado,
responsável pela tramitação do procedimento expropriatório, deverá se esmerar no
desempenho das suas funções.
A título exemplificativo, o respeito à igualdade das partes foi mantido no processo
de injunção203 português que, diversamente do que sucede em Itália, França, Espanha e no
202
Fernando Amâncio Ferreira, Curso de processo de execução, 6. ed., Coimbra: Almedina, 2004, p. 18.
A injunção surgiu em Portugal a partir do advento do Decreto-Lei n. 404/93, de 10 de dezembro, sendo
posteriormente revogado pelo Decreto-Lei n. 269/98, de 1º de setembro, sendo que se considera injunção a
providência que tem por fim conferir força executiva a requerimento destinado a exigir o cumprimento de
obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior à alçada do tribunal de 1ª instância
(art. 7º), ou seja, de valor não superior a 3.740,98 euros, por ser esse valor presentemente a alçada desse
tribunal (art. 24º, n. 1 da LOFTJ, na redação do Decreto-Lei n. 323/2001, de 17 de dezembro).
Independentemente do valor da dívida, também se considera injunção a providência visando conferir força
executiva a requerimento destinado a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de
transações comerciais abrangidas pelo Decreto-Lei n. 32/2003, de 17 de fevereiro.
203
133
Brasil, não enseja qualquer ordem e a intervenção do juiz para se determinar o início da
execução, caso não ocorra a oposição por parte do requerido, no prazo legal.
Tal qual sucede na Alemanha, em Portugal, a ordem de pagamento emana do
administrador do tribunal, que a emite sem exame da pretensão formulada, devendo apenas
verificar o preenchimento dos pressupostos processuais, se se preenchem os requisitos do
processo monitório, se o pedido tem conteúdo necessário e, quando prescrito, se o
impresso próprio para o ato foi utilizado, sob pena de “na falta de um elemento, o pedido
ser rejeitado por despacho, com fulcro em qualquer das hipóteses previstas no n. 1 do
artigo 11º do RRCOP”.204 ou RPCOP?
A garantia ao processo equitativo, a nosso ver, também decorre da possibilidade
de o requerido, ou até mesmo de um terceiro (nas hipóteses legalmente admitidas), uma
vez notificado, poder invocar, por meio da oposição ou dos embargos, a tutela
jurisdicional, para ulteriormente exercer de forma livre o contraditório e a ampla defesa,
pois, nessa hipótese, os autos serão remetidos ao tribunal competente para conhecer da
matéria e julgar a controvérsia, aplicando-se ao processo forma de rito ordinário.
Entretanto, para a viabilização da efetividade processual e a eficácia da execução
extrajudicial hipotecária, diante da própria essência da garantia a ser cumprida, é imperioso
que se restrinjam as hipóteses de oposição. Inclusive, em termos de respeito aos princípios
da igualdade das partes e do contraditório, os tribunais superiores do Brasil e de Portugal,
talvez acautelando-se de desnecessárias e prematuras definições em relação a um tema
contemporâneo, não demonstram uma excessiva preocupação com a precisão e a pureza
científica na construção argumentativa.
Em virtude disso, em que pese os tribunais superiores versarem os problemas sob
uma perspectiva multidimensional, em linhas gerais, limitam-se a exarar o entendimento
de que a simples deslocação do contraditório para uma fase posterior à extrajudicial em
nada prejudica o princípio do acesso ao direito (art. 20º da CRP/76), a reserva de jurisdição
(art. 202º da CRP/76), bem como os princípios constitucionais processuais, como o da
igualdade de tratamento das partes.205
204
205
Fernando Amâncio Ferreira, Curso de processo de execução, cit., p. 42.
Acórdão n. 375/95, de 27 de junho de 1995, do Tribunal Constitucional de Portugal.
134
O exercício do contraditório, conforme bem esclarecido por José Lebre de Freitas,
“não se confunde com o direito de defesa (art. 3º-1), não só implica que o mesmo jogo de
ataque e resposta em que consistem a acção e a defesa deve ser observado ao longo de todo
o processo, de tal modo que qualquer posição tomada por uma parte deve ser comunicada à
contraparte para que essa possa responder, mas também que às partes deve ser fornecida,
ao longo do processo, a possibilidade de influírem em todos os elementos que se
encontrem em efectiva ligação com o objecto da causa e em qualquer fase do processo se
pressinta serem potencialmente relevantes para a decisão”.206
Portanto, em sede de execução extrajudicial hipotecária, como exteriorização do
princípio do contraditório, mister se faz garantir ao mutuário que tome conhecimento
inequívoco da cobrança extrajudicial a que está sendo submetido, sob pena de nulidade do
procedimento.
Outrossim, caso o devedor em oportunidades distintas não seja localizado no
endereço do imóvel financiado para a sua habitação própria, desde que previsto contratual
e previamente, não haverá óbice para que seja notificado por edital para pagar o débito
invocado pelo credor.
De outro lado, caso a hipoteca ofertada não se resuma à aquisição da casa própria,
daí caberá a notificação do devedor no endereço que porventura tenha sido consignado
pelo mutuário na escritura registrada para o recebimento de notificações, ou no novo
endereço que eventualmente o próprio mutuário tenha aditado ao registro anteriormente
realizado. Caso por qualquer motivo se fruste a localização do devedor no endereço pelo
mesmo fornecido, daí terá lugar a sua citação editalícia.
Portanto, a superação dos problemas decorrentes da eventual ocultação ou não
localização do devedor decorrerá da sua responsabilização pelo fornecimento do endereço
correto para a sua localização.
206
José Lebre de Freitas, A ação de execução: depois da reforma, cit., p. 21-22.
135
Com fulcro no princípio da boa-fé, que deve reger os contratos e os atos
processuais em geral, torna-se perfeitamente adequada ao procedimento a exigência para
que o devedor se responsabilize pela sua regularidade cadastral, sobretudo quando
encontra-se em mora perante o credor.
Destarte, quando da adoção de um procedimento extrajudicial de execução
hipotecária, preliminarmente se deve atentar para uma necessária articulação entre o ente
privado e o judicial, a fim de se evitar danos irreparáveis às partes, seja em relação à
deficitária notificação, seja em função da celeridade que deverá ter lugar quando da
distribuição do pedido.
4 CONCLUSÕES
No desenvolvimento do estudo pudemos constatar que a maior parte das ações em
curso perante o Judiciário versam sobre a cobrança de dívidas decorrentes de contratos “de
massa”, celebrados entre instituições financeiras e consumidores.
Tal fenômeno ocasiona graves prejuízos à função jurisdicional típica do Estado,
que praticamente se vê impossibilitado de atender às demandas sociais em complexas
questões que emanam das ações declarativas, essas sim carecedoras de uma adequada
cognição por parte do agente judicial.
De fato, a passos largos os tribunais vêm sendo “privatizados” por aqueles poucos
responsáveis (sobretudo as prestadoras de serviços públicos, as seguradoras e os agentes
financeiros) pelo acúmulo desenfreado das ações de cobrança, muitas vezes relacionadas
com valores ínfimos e que sequer justificam os elevados custos que ocasionam ao Estado e
que, por fim, são suportados pela sociedade.
Nesse sentido, tem-se notado o surgimento de elogiáveis iniciativas visando o
desafogo do Poder Judiciário, cuja imagem inexoravelmente é relacionada com adjetivos
como “inoperante”, “ineficaz”, “moroso”, entre outros.
Irremediavelmente, a morosidade do Judiciário é um insulto ao Estado de Direito,
pois priva o cidadão do salutar acesso aos direitos consagrados na Constituição e em outros
textos normativos, sendo esse um problema contra o qual a sociedade democraticamente
responsável deve lutar com todas as suas forças.
Sob a nossa ótica, àqueles poucos que “estrangulam” a prestação da tutela
jurisdicional dever-se-ia aplicar o célebre brocardo ubi commoda, ibi incommoda, ou seja,
os poucos que obtêm o salutar benefício econômico no exercício das suas respectivas
atividades empresariais também devem arcar com os encargos decorrentes dessa atuação,
inclusive em termos de custeio da recuperação de créditos ou garantias.
137
Por outro lado, a falta de efetividade na cobrança das dívidas por parte dos
agentes financeiros faz com que, por exemplo, o capital empregado na construção civil
para a edificação de moradias seja dificilmente recuperado.
Isso produz dois efeitos perversos, a saber: o primeiro diz respeito à escassez de
empregos num dos setores da economia que mais fornece postos de trabalho, visto que as
instituições financeiras se demonstram avessas ao risco de investir num mercado que não
oferece as garantias necessárias para o retorno do capital investido; o segundo efeito se
cinge ao aumento do custo para se concretizar o sonho da casa própria, pois é notório que a
falta de capital disponível para o financiamento e o próprio risco que subjaz à operação são
fatores para o incremento do spread bancário. Ou seja, os juros cobrados nos contratos de
financiamento tendem a ser maiores no caso de a realização da garantia hipotecária, em
caso de inadimplemento, ser de difícil execução.
Por conseguinte, é a própria sociedade consumidora do crédito bancário que arca
com as consequências nefastas dos riscos ocasionados em virtude da inexistência de
instrumentos jurídicos hábeis a viabilizar a eficaz recuperação da hipoteca garantidora do
negócio.
Frise-se que a falta de investimento privado na construção civil poderá ocasionar
o colapso desse tão importante setor da economia, eis que o Estado, após a tão decantada
decadência do welfare state, há anos está imerso no comprometimento das suas receitas
com o custeio da segurança social, não dispondo sequer de meios suficientes para prover
os investimentos necessários em outros setores da economia.
Diante disso, entendemos que a desjudicialização do processo de execução deve
ser analisada sob o enfoque jurídico, econômico e social, pois a sociedade não pode
aguardar em “berço esplêndido” que o Poder Judiciário ou o Executivo resolvam de per si
os problemas que dizem respeito ao tecido social como um todo.
Vivemos um momento em que precisamos reforçar as nossas instituições civis e
democráticas, pois não é nada utópico que no curto prazo ocorram ou continuem a ocorrer
flagelos como fome, genocídios, perseguições políticas, discriminação de credo e de raça,
138
entre outras. Aliás, assiste razão aos que defendem que também vivemos um momento de
discriminação econômica, sobretudo no tocante à concessão de crédito.
E, para viabilizar o Estado de Direito, sob a nossa ótica, é imperioso que o Poder
Judiciário esteja pronto para dar, com a urgência necessária, a resposta aos cada vez mais
complexos problemas vividos numa sociedade de risco, eminentemente urbana e plural.
Entretanto, é forçoso reconhecer que o Judiciário, com seus órgãos imersos em
ações de cobrança de dívidas, não dispõe de meios para fazer frente às demandas que
diuturnamente lhe colocam em causa.
Dada a complexidade dos problemas que afligem o Judiciário, certo é que não
haverá uma única solução “mágica”, capaz de, por si própria, promover a celeridade e a
eficiência do processo.
Tal qual verificado a partir de meados dos anos 90 do século passado, também em
virtude do tráfego de bens e capitais se deslocar à velocidade da luz entre os diversos
países inseridos num mundo globalizado, o legislador iniciou um movimento de reforma
do processo executivo.
Em que pese em Portugal embora ainda não tenha sido incorporada no
ordenamento jurídico a execução extrajudicial hipotecária, entendemos que o movimento
de reforma do processo executivo como um todo já está em patamares bastante evoluídos.
A conclusão disso decorre da introdução da figura do agente de execução, da
criação do banco de dados, da dispensa de citação prévia em diversas hipóteses, enfim, de
um arcabouço de inovações, fruto do intenso e profícuo diálogo e duma valorosa troca de
experiências na evolução do ius commune europeu.
A
desjurisdicionalização
relativa
do
processo
executivo
português
é
iniludivelmente assaz relevante para o início de uma reflexão no ambiente dos estudiosos
do direito processual no Brasil, vez que é cediço que o país, desde as Ordenações, recebeu
forte influência da dogmática eminentemente estatal da realização dos atos executivos.
139
Contudo, como vimos, quando da aprovação do anteprojeto de reforma da ação
executiva, não foi adotado em Portugal uma execução hipotecária extrajudicial, justamente
em virtude do receio das eventuais argüições de inconstitucionalidade que adviriam.
Eis aí um dos motivos a justificar o necessário diálogo entre os direitos luso e
brasileiro.
Mas não é só! No desenvolvimento do nosso tema, foi fulcral a abordagem da
atual Ley de Enjuiciamiento Civil de Espanha, pois a experiência desse país com a
execução hipotecária conduzida pelo notário há aproximadamente um século demonstrouse relevantíssima para que melhor pudéssemos apurar a viabilidade da desjudicialização do
procedimento.
Além disso, o estudo do direito espanhol, no tocante à própria essência da garantia
hipotecária, viabiliza o convencimento de que a execução dessa garantia real dispensa as
fases de penhora e de avaliação do bem, que sabidamente são causadores de inúmeras
discussões no curso do processo executivo.
E, justamente por estarmos convencidos de que a cobrança de dívidas decorrentes
de contratos de “massa” constitui um dos grandes entraves ao acesso a uma decisão de
mérito num prazo razoável, decidimos por nos concentrar no estudo de soluções que
consideramos viáveis para o caso específico das execuções hipotecárias.
Assim, verificamos que para a superação do regime da autodefesa, a solução
adotada na Tábua III da Lei das XII Tábuas (450 a.C.) passou pela execução extrajudicial,
que sucedia uma cognição sumária acerca da existência do direito do credor.
Note-se que embora os atos executivos fossem realizados pelo próprio credor, os
mesmos se desenvolviam nos limites preceituados no texto na norma, que efetivamente
serviu para delinear os contornos dos direitos do credor face ao devedor.
Dada a sua inquestionável eficácia, o procedimento foi paulatinamente sendo
aprimorado no desenvolvimento do direito romano, inclusive no momento em que se
trasladou o foco da execução da pessoa do devedor para o seu patrimônio.
140
Ora, é evidente que se o procedimento extrajudicial não fosse eficaz, não teria
permanecido no sistema jurídico romano por mais de oito séculos, somente sendo
relativizado na fase da cognito extra ordinem, ou seja, quando o Estado, na figura do
imperador, codificou o entendimento pretoriano e chamou para si a competência para a
realização da justiça.
Com efeito, conforme os poderes estatais foram se concentrando na pessoa do
imperador, a auctoritas para dizer o direito foi paulatinamente sendo retirada do pretor em
prol da codificação (norma), que assumiu o seu ápice durante o império de Justiniano,
quando da realização do Digesto ou Pandecta (séc. VI).
Constatamos que foi justamente no momento em que o direito foi se estatizando
que a execução forçada perdeu terreno e assumiu um caráter eminentemente estatal, que,
de forma intrigante, anteriormente só era destinado aos processos envolvendo a
administração pública.
Contudo, a estatização da execução perdeu terreno durante a invasão bárbara,
quando, numa cristalina contramarcha da história, retomou força a autotutela.
Consoante a paulatina fusão dos povos e o crescimento das cidades (comunas), o
recurso à execução estatal praticada nos fins do Império, que ainda permanecia na memória
dos latinos, foi se proclamando.
Inexoravelmente, a execução estatual foi restabelecida na Europa continental,
quando da redescoberta e da divulgação do Corpus Iuris Civilis pela Escola de Bolonha, a
partir do século XII, trazendo a lume o direito comum.
Em Portugal, sobretudo a partir do século XIII, os atos executivos já estavam
submetidos ao monopólio do Judiciário, sendo que o seu status permaneceu incorporado à
tradição jurídica até muito recentemente.
Conforme retratado, a partir da reforma processual iniciada, sobretudo a partir de
meados da década de 90 do século passado, diversos atos do processo executivo foram
sendo desjudicializados na pessoa do solicitador de execução.
141
Apesar das dificuldades logísticas (sobretudo no tocante aos meios tecnológicos
de acesso) até o momento verificadas para a adequada implantação do sistema
computadorizado nas secretarias de execução em Portugal, constatamos que os operadores
do direito, em sua maioria, reconhecem que a reforma, independentemente dos naturais
reparos que a prática demonstra serem necessários, foi um avanço que precisa ser
implementado e levado adiante.
O Brasil, herdeiro da tradição jurídica portuguesa, também vem se debatendo com
a necessidade de alterar o estado calamitoso dos tribunais, motivo pelo qual, no bojo da
reforma do processo civil, não são poucas as propostas tendentes a aprimorá-lo. Inclusive,
durante a abordagem histórica que fizemos, no tocante ao processo de execução, não foram
as correlações realizadas entre as soluções recentemente sugeridas e/ou adotadas e os
momentos históricos em que as mesmas foram experimentadas na evolução do instituto.
E, com o escopo de proporcionar um diálogo profícuo com o direito português, no
que diz respeito à execução hipotecária, trouxemos à baila a execução extrajudicial
hipotecária brasileira, experiência legislativa que remonta aos anos 60 do século passado, e
que aparentemente foi negligenciada durante as discussões anteriores ao advento da
reforma do processo de execução em Portugal, tendo em vista que os eminentes
processualistas portugueses, àquela altura, concentraram as suas atenções na análise do
procedimento de execução hipotecária extrajudicial espanhol.
Entendemos que a experiência espanhola, aliada à brasileira, é assaz relevante
para o avanço da discussão acerca da viabilidade da desjudicialização da execução
hipotecária, pois apesar de ainda subsistirem correntes de entendimento acerca de questões
pontuais relacionadas com os institutos que regem a execução extrajudicial hipotecária, o
fato é que a doutrina espanhola já está bastante avançada na matéria, sobretudo no que diz
respeito à essência da garantia real de hipoteca.
De fato, para que possamos alcançar a força da garantia hipotecária, reconhecida
como a “rainha das garantias”, mister se faz compreender que ao credor compete tãosomente exercer o seu ius vendendi, que permaneceu após a superação do pacto comissório
no direito romano.
142
No entanto, também pudemos verificar que em Portugal, o Decreto-Lei n.
105/2004, de 8 de maio, aceitou o pacto comissório, em desvio da regra consagrada no
artigo 694º do Código Civil, desde que as partes o convencionem e acordem a forma de
avaliação dos instrumentos financeiros dados em garantia.
Além disso, também constatamos que, ao incorporar a Ley de Enjuiciamiento
Civil a execução extrajudicial hipotecária conduzida pelo notário, o legislador espanhol
realçou o caráter jurisdicional do procedimento, que inclusive foi unificado. Por
conseguinte, é inequívoca a credibilidade alcançada pela execução extrajudicial hipotecária
em Espanha.
Por outro lado, sob a nossa ótica, embora o Supremo Tribunal Federal do Brasil já
tenha reiteradas vezes julgado constitucional o texto do Decreto-Lei n. 70/66, que preceitua
a execução extrajudicial hipotecária, entendemos que a legislação merece reparo.
Talvez inspirando-se no regime espanhol, poder-se-ia alcançar no Brasil o
aprofundamento do recurso à execução extrajudicial hipotecária e a superação de
discussões, que, a nosso ver, possuem fundamento, como por exemplo as hipóteses em que
se garantiria ao consumidor um controle jurisdicional efetivo por parte do agente estatal –
juiz.
Outrossim, consideramos inaceitável existirem três procedimentos para a
execução da garantia hipotecária no Brasil. Tal qual sucedeu em Portugal, quando da
recente reforma, bem como ocorreu em Espanha, há que se unificar todos os
procedimentos em um só, para que inclusive não haja ofensa ao princípio da isonomia, já
que somente às instituições financeiras é assegurada a execução extrajudicial hipotecária.
Consequentemente, o acesso ao meio mais eficaz de execução da garantia
hipotecária deveria ser assegurado a todos, desde que preenchidos os pressupostos legais.
Por outro lado, a legislação brasileira de execução extrajudicial hipotecária, de
índole mais liberal que a espanhola, indiscutivelmente transfere para o suposto devedor o
ônus de ingressar no Judiciário com uma ação declarativa, ou seja, não houve qualquer
preocupação do legislador com a matéria que porventura poderia ser invocada em sede de
143
oposição, o que, de certa forma, proporcionou a morosidade da execução, quando o
Judiciário é instado a se pronunciar. Portanto, indiretamente o legislador proporcionou a
realização de infindáveis oposições e recursos em sede judicial.
E o pior, sequer houve qualquer preocupação relativa aos casos em que o
Judiciário é indevidamente provocado pelo devedor, com manifesto propósito
procrastinatório. E o mesmo se pode dizer nos casos em que a cobrança se revela
absolutamente abusiva.
Entendemos que em tais casos mister se faz proporcionar ao juiz a possibilidade
de aplicar multas à parte considerada culpada, para dissuadi-la a não mais incidir em
condutas deletérias que, ao cabo, afrontam os interesses da própria sociedade em obter uma
prestação jurisdicional num prazo razoável.
No entanto, sublinhamos que deve ser resguardado ao devedor e ao terceiro
interessado a possibilidade de oferecer oposição, cujas hipóteses devem estar previstas no
ordenamento jurídico para a hipótese de suspensão do procedimento de execução, sendo
certo que as demais reclamações, tal qual sucede em Espanha, seguirão a via ordinária,
sem o condão de suspender o curso da expropriação.
Sem prejuízo, tal qual sucede em Portugal em termos do labor desempenhado pelo
agente de execução, para que se proporcione a celeridade do procedimento, ele deve estar
de tal forma articulado entre o agente fiduciário (ou notário) e o juiz de execução, para que
se proporcione a celeridade do procedimento, em caso de dúvidas e oposições.
Além disso, desde que se proporcione profícuo controle jurisdicional a posteriori,
o procedimento extrajudicial poderá ser realizado por qualquer ente, desde que tenha a sua
atividade devidamente regulamentada e sobretudo tenha a sua atividade submetida ao
poder de controle e de sanção do Estado, representado na figura do agente judicial.
Em termos de atuação do agente judicial, ela se justificaria no poder de imperium
e não na jurisdição, motivo pelo qual não haveria delegabilidade do poder coercitivo para a
retomada do bem imóvel, em caso de resistência.
144
Embora tenhamos inclinação a conceber como mais atraente a solução espanhola,
que reconhece no notário a capacidade para a condução do procedimento, não haveria o
menor problema em que, por exemplo, um agente privado (agente fiduciário, por exemplo)
realizasse a execução, bem como o ulterior controle dos cálculos apresentados pelo credor
hipotecário, no caso de haver reclamação por parte do devedor ou do terceiro garante.
O fato é que, independentemente de aprimoramentos do procedimento, é de pleno
aceitável a realização da garantia hipotecária por intermédio de terceiros que não se
confundem com o agente judicial, desde que a execução seja conduzida com
independência, imparcialidade e nos estritos termos do permissivo legal.
A propósito da independência e da imparcialidade, estamos convictos de que,
desde que os atos executivos estejam adequadamente delineados na legislação própria,
vinculando o agente a cumpri-los todos na forma prevista em lei, não subsistiriam
problemas para que a execução extrajudicial fosse custeada pelo próprio credor, sobretudo
quando pensamos, por exemplo, na hipótese de o devedor desocupar voluntariamente o
bem hipotecado.
No que diz respeito aos atos a serem realizados no bojo da execução extrajudicial,
entendemos que diante da natureza eminentemente contratual da execução hipotecária, não
resulta grande complexidade para a aferição dos pressupostos processuais por parte do
agente de execução.
A título exemplificativo, a citação do devedor ou do terceiro garante deverá
ocorrer no endereço declinado na escritura registrada de hipoteca, sendo que, no caso de
alteração de endereço, deverá o interessado comunicar o fato ao cartório competente, sob
pena de arcar com os prejuízos decorrentes da sua incúria.
A esse propósito, em linhas gerais, firmamos o convencimento de que a execução
hipotecária prescinde da intervenção do agente judicial a priori, visto que o título
registrado confere ao credor um alto grau de certeza em relação ao seu direito, assim como
a planilha detalhada de composição do débito permitirá ao mutuário, devidamente
notificado, se assim entender, solicitar a realização de uma revisão dos cálculos ao próprio
agente de execução.
145
Aliás, no que pertine à apreciação liminar de regularidade do título, devido ao seu
aspecto meramente formal, mesmo no direito português, de acordo com o artigo 812º, n. 7,
“c” do Código de Processo Civil, a execução com garantia real espelhada numa hipoteca
prossegue com a citação do executado sem despacho liminar.
Sem embargo, ao aprofundarmos o estudo da essência da hipoteca e a sua índole
contratual, concluímos que, além da penhora, também não se justifica a realização de
avaliação da garantia, visto que ela poderá estar prevista no próprio contrato, tal qual já
sucede em Espanha.
No que diz respeito à verificação de regularidade da execução, entendemos que o
regime espanhol da execução hipotecária, ao invés de determinar que compete ao juiz
apreciar a contestação dos cálculos formulada pelo devedor, poderia perfeitamente
transmitir ao próprio notário os poderes para realizar a revisão dos cálculos, eis que tal
operação, no mais das vezes, sequer é realizada pelo magistrado.
De fato, na prática, em virtude de não possuir uma formação adequada para tal,
costumeiramente o magistrado confere ao perito contábil a tarefa de apreciar a regularidade
dos cálculos formulados.
Em virtude disso, entendemos que o agente de execução, valendo-se inclusive dos
meios eletrônicos disponíveis, e aplicando as premissas avençadas contratualmente entre as
partes, poderia de forma simples realizar a aferição da regularidade do saldo devedor.
Em que pese a divisão doutrinária acerca da reserva de jurisdição no processo de
execução, entendemos que os novos tempos, notabilizados especialmente pela sociedade
de consumo e pela revolução dos meios de comunicação, ensejam novas soluções (ou o
restabelecimento de antigas soluções) no sistema de organização judiciária, que não pode
ficar circunscrito aos quadrantes da estatização burocrática do processo, que diuturnamente
se revela ineficaz.
O exercício da jurisdição (no sentido de iuris dictio e de defesa da ordem jurídica
estabelecida) nas inúmeras e complexas questões que envolvem uma sociedade pluralista
não pode e não deve prescindir dos meios alternativos de resolução de litígios hoje
146
conhecidos e de outros que porventura se afigurem adequados aos princípios
constitucionais e infraconstitucionais processuais. E o recurso aos referidos meios
alternativos não se prende ao processo de conhecimento, podendo se expandir ao processo
de execução, nas variadas vertentes que envolvem as particularidades de cada título
executivo, no contexto do direito material.
Ademais, considerando que a importância conferida pelos processualistas ao
processo de execução até bem recentemente foi pouca, face ao processo declarativo,
entendemos que ainda podemos ser mais audaciosos na busca de soluções criativas
envolvendo a cobrança de créditos nos chamados contratos de massa, como por exemplo
os de financiamento imobiliário garantidos com hipoteca registrada em conservatória.
Além disso, numa sociedade democraticamente responsável, a busca de novas
soluções para o processo de execução, sob a nossa ótica, também deverá passar pela
atribuição de responsabilidades às instituições de natureza civil, pois a realização do
Estado cooperativo decerto requer a indispensável atuação da sociedade organizada para a
sua estratégia de funcionamento.
Exemplo típico disso é a proposta formulada pela UNIDROIT, no sentido de
atribuir às instituições responsáveis pela administração aeroportuária nos diversos países a
competência para a realização dos atos de execução dos contratos de arrendamento de
aeronaves, vez que poderiam, com maior eficácia do que o Judiciário, realizar tais atos a
custo muito menor e com maior celeridade.
Destarte, considerando assaz relevante o debate relativo ao tema apresentado,
inclusive no tocante à desjudicialização dos atos executivos por agentes e instituições
fiáveis, imparciais e independentes, entendemos que futuramente será de relevo um maior
diálogo com o direito proveniente da common law, para que possamos aventar a
possibilidade de se introduzir nos demais sistemas jurídicos a figura do trustee, de índole
contratual e fruto de uma experiência que remonta ao desenvolvimento dos tribunais de
equity no século XII.
147
Independentemente disso, em qualquer circunstância, o Estado deverá ser o
indutor da necessária parceria a ser realizada com a participação da sociedade organizada,
o que, como salientado, é um dos pressupostos para a viabilização de um Estado
Democrático de Direito num ambiente cooperativo.
Obviamente, não existe uma solução única para o desafogo do Poder Judiciário,
todavia tem-se como assente que é preciso prosseguir na busca de soluções, para que ao
juiz sejam proporcionados instrumentos para que possa se debruçar sobre as inúmeras
questões, inclusive de política governamental, que a passos largos lhe são confiadas para
dirimir.
Não se pode, pura e simplesmente, atribuir aos juízes do sistema escrito a
responsabilidade pela ineficácia do processo executivo, por conta do recebimento da
herança das funções outrora destinadas ao iudex privatus romano, que lhes ofertou a
condição de “buche de la loi”. A ação descompromissada e desvinculada dos objetivos da
sociedade decorre precipuamente de fatores históricos que, por opção legislativa,
relacionada com fatores de índole política e social, induziram os juízes a tal acomodação.
O Estado deve proporcionar, como gestor do poder que lhe foi conferido pelo
povo, outorgar tal função àqueles que mereçam e demonstrem-se hábeis a serem
legitimados dentro de uma estratégia organizacional voltada para resultados efetivos, sem
perder o norte da preservação dos direitos fundamentais, para realizar as tarefas balizadas
na norma procedimental.
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