Décima Terceira edição - Composição
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Décima Terceira edição - Composição
1 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Coordenadoria de Biblioteca Central – UFMS, Campo Grande, MS, Brasil) Composição : revista de ciências sociais / Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. – a. 7, n. 13 (Julho – Dezembro de 2013) - Campo Grande, MS : A Universidade, 2013. . Semestral Revista eletrônica: http://www.revistacomposicao.ufms.br/index.php ISSN 1983-3784 1. Ciências Sociais - Periódicos. 2. Ciências Humanas – Periódicos. I. Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. CDD (22) 300.5 Conselho Editorial Antonio Elizalde – Universidade Bolivariana de Chile Brian Ferreiro – Universidade Nacional de Missiones Célia Aparecida Ferreira Tolentino – UNESP (Marília) Ethel Volfzon Kosminsky - UNESP (Marília) Felipe de Alba – Universidade do Quebec Francisco Ther Rios – Universidade de Los Lagos Gilton Mendes - Universidade Federal de Amazonas Helena de Carvalho Lorenzo – UNIARA José Zanardini – Universidade Católica de Assunção Laerte Fernandes – O Estado de São Paulo Norma Felicidade Lopes da Silva Valencio – UFSCar Normas e Critérios para publicação Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) Reitora: Célia Maria da Silva Oliveira Composição, Revista de Ciências Sociais da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul ISSN 1983-3784 Conselho de Redação Aparecido Francisco dos Reis Ana Maria Gomes Iracema Cunha Costa Manoel Rebelo Junior Coordenação Geral: Aparecido Francisco dos Reis Editoração eletrônica: Aparecido Francisco dos Reis Ismael Rodrigues Ibrahim Revisão: Os próprios autores Distribuição eletrônica Revista indexada em: Descrição dos procedimentos de seleção de trabalhos para publicação Critérios para publicação: Revista Composição Art. 1 – Composição, Revista de Ciências Sociais da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, destina-se à publicação de matérias que, pelo seu conteúdo, possam contribuir para a formação de pesquisadores e para o desenvolvimento científico, além de permitir a constante atualização desconhecimentos nas áreas de Antropologia, Ciência Política, Sociologia e afins. Art. 2 - A periodicidade da Revista será, inicialmente, semestral, podendo alterar-se de acordo com as necessidades e exigências do Curso de Ciências Sociais; o calendário de publicação da Revista, bem como a data de fechamento de cada edição, serão, igualmente, definidos por essas necessidades. Art. 3 - A publicação dos trabalhos deverá passar pela supervisão de um Conselho de Redação composto por quatro professores do curso de Ciências Sociais da UFMS, escolhidos pelos seus pares. Art. 4 - Ao Conselho Editorial caberá a avaliação de trabalhos para publicação. Parágrafo 1º - Os membros do Conselho Editorial serão indicados pelo corpo de professores do curso de Ciências Sociais, com exercício válido para o prazo de quatro anos, entre autoridades com reconhecida produção científica em âmbito nacional e internacional. Parágrafo 2º - A publicação de artigos é condicionada a parecer positivo, devidamente circunstanciado, exarado por membro do Conselho Editorial. Parágrafo 3º - O Conselho Editorial, se necessário, submeterá os artigos a consultores externos, para apreciação e parecer, em decorrência de especificidades do assunto tratado. Art. 4 - Composição publicará trabalhos da seguinte natureza: I - Artigos originais, de revisão ou de atualização, que envolvam, sob forma de estudos conclusivos, abordagens teóricas ou práticas referentes à pesquisa em Antropologia, Ciência Política, Sociologia e afins e que apresentem contribuição relevante à temática em questão. II - Traduções de textos fundamentais, isto, é daqueles textos clássicos não disponíveis em língua portuguesa que constituam fundamentos da área específica da revista e que, por essa razão, contribuam para dar sustentação e densidade à reflexão acadêmica, com a devida autorização do autor do texto original. III - Entrevistas com autoridades reconhecidas na área temática da revista, que vêm apresentando trabalhos inéditos, de relevância nacional e internacional, com o propósito de manter o caráter de atualidade do periódico. IV - Resenhas de obras inéditas e relevantes que possam manter a comunidade acadêmica informada sobre o avanço das reflexões na área temática da revista. Art. 6 - A entrega dos originais para Composição deverá obedecer aos seguintes critérios: I - Os artigos deverão conter obrigatoriamente: a) título em português e inglês; b) nome do(s) autor(es), identificando-se em rodapé dados relativos à produção do artigo, ao(s) seu(s) autor(es) e filiação institucional completa, bem como a auxílios institucionais, endereço institucional, telefone institucional e endereços eletrônicos; c) resumo em português (máximo de 6 linhas, ou 400 caracteres) e abstract fiel ao resumo, acompanhados, respectivamente, de palavras-chave e key words, ambos em número de 3, para efeito de indexação do periódico; d) texto com as devidas remissões bibliográficas no corpo do próprio texto; e) notas finais, eliminando-se os recursos das notas de rodapé; f) referências bibliográficas. II - Os trabalhos devem ser encaminhados dentro da seguinte formatação: a) uma cópia anexada ao endereço eletrônico no padrão Microsoft Word 6.0 ou superior; b) uma autorização para publicação devidamente assinada pelo autor também anexada ao endereço eletrônico; c) a extensão do texto deverá se situar entre 10 e 20 páginas redigidas em espaço duplo; d) caso o artigo traga gráficos, tabelas ou fotografias, o número de toques deverá ser reduzido em função do espaço ocupado por aqueles; e) a fonte utilizada deve ser a Times New Roman, tamanho 12; f) os caracteres itálicos serão reservados exclusivamente a títulos de publicações e a palavras em idioma distinto daquele usado no texto, eliminando-se, igualmente, o recurso a caracteres sublinhados, em negrito, ou em caixa alta; todavia, os subtítulos do artigo virão em negrito; III - Todos os trabalhos devem ser elaborados em português ou inglês, e encaminhados para o email com o texto rigorosamente corrigido e revisado. IV - Eventuais ilustrações e tabelas com respectivas legendas devem ser contrastadas e apresentadas separadamente, com indicação, no texto, do lugar onde serão inseridas. V - As referências bibliográficas e remissões deverão ser elaboradas de acordo com as normas de referência da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT 6023). VI - Os limites estabelecidos para os diversos trabalhos somente poderão ser excedidos em casos realmente excepcionais, por sugestão do Conselho Editorial e a critério do Conselho de Redação. Art. 7 - Não serão aceitos textos fora das normas estabelecidas, com exceção dos casos previstos no artigo anterior, e os textos recusados serão devolvidos para os autores acompanhados de justificativa, no prazo máximo de três meses. Art. 8 - Uma vez publicados os trabalhos, Composição reserva-se todos os direitos autorais, Inclusive os de tradução, permitindo, entretanto, a sua posterior reprodução como transcrição, e com a devida citação da fonte. Editorial É com muita alegria que apresentamos à comunidade acadêmica o número 13 de Composição, Revista de Ciências Sociais da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Neste número, estão publicadas as seguintes colaborações: Eleições municipais de Itajaí em 2012: uma análise das propostas dos candidatos a vereador; ―Biutiful‖: revisitando a Teoria Crítica a partir de um caso ficcional; O programa bolsa família (pbf) e o debate sobre as suas condicionalidades; Juventude, política e imaginário: A participação dos jovens no contexto da pós-modernidade; Notas sobre algumas considerações filosóficas e políticas de Cornelius Castoriadis sobre o pluralismo e as diferenças culturais; O trabalho do antropólogo: quando o olhar e o ouvir não são suficientes para perceber e compreender o Outro e Etnografia e trabalho de campo em situações de ilegalidade: apontamentos críticos. Destaca-se que a contribuição de pesquisadores ligados a diversos programas de pósgraduação de universidades brasileiras como: UNESP, UFC, UFSC, UFPB e UNIVALI, reforçando a proposta de ser um periódico que procurar intercambiar as diferentes produções da pesquisa em ciências humanas e sociais. Boa leitura. Prof. Dr. Aparecido Francisco dos Reis – Editor Sumário Eleições municipais de Itajaí em 2012: uma análise das propostas dos candidatos a vereador. Thiago Avi da Rosa e Carlos Golembiewski.............................................................................................8 O programa bolsa família (pbf) e o debate sobre as suas condicionalidades. Angela Maria Moura Costa Prates...........................................................................................................25 Etnografia e trabalho de campo em situações de ilegalidade: apontamentos críticos. Francisco Hélio Monteiro Júnior.............................................................................................................42 “Biutiful”: Revisitando a Teoria Crítica a partir de um caso ficcional. Fábio Gomes de França...........................................................................................................................58 Juventude, política e imaginário: A participação dos jovens no contexto da pósmodernidade. Carlos Henrique Teixeira.........................................................................................................................74 O trabalho do antropólogo: quando o olhar e o ouvir não são suficientes para perceber e compreender o Outro. Vladimir Bertapeli...................................................................................................................................87 Notas sobre algumas considerações filosóficas e políticas de Cornelius Castoriadis sobre o pluralismo e as diferenças culturais. Daniel Galvão Rosa Delmanto e David Victor-Emmanuel Tauro........................................................101 Eleições municipais de Itajaí em 2012: uma análise das propostas dos candidatos a vereador Itajai elections in 2012: an analysis of the proposals of the candidates for councilor Thiago Avi da Rosa1 Carlos Golembiewski2 Recebido em 28/01/2013; aceito em 02/12/2013. ______________________________________________________________________ Resumo: Este estudo tem como tema analisar as eleições municipais de Itajaí em 2012. O objetivo principal deste estudo é analisar as propostas dos candidatos a vereador, veiculadas nas emissoras locais da região no período eleitoral, para identificar quais são suas propostas. O referencial teórico é composto pelos seguintes conceitos: Comunicação proposto por Wolton (2008) e Campanha Eleitoral por Demartini (2004). Como metodologia utilizou-se Análise Conteúdo proposto por Herscovitz (2007) e Fonseca Júnior (2008). Conclui-se que, quase 50% dos candidatos a Vereador não apresentaram proposta concreta em seu programa eleitoral. E dentre as propostas que apresentaram ações concretas, as políticas públicas se destacaram por serem citadas várias vezes. Palavras-chave: Eleições 2012, Campanha Eleitoral, Vereadores, Políticas Públicas, Horário Político. Abstract: This study is to analyze the theme of Itajai elections in 2012. The main objective of this study is to analyze the proposals of the candidates for councilor, local broadcast stations in the region in the election period, to identify what are their proposals. The theoretical framework consists of the following concepts: Communication proposed by Wolton (2008) and Campaign for Electoral Demartini (2004). The methodology used was proposed by Herscovitz Content Analysis (2007) and Fonseca Jr. (2008). It is concluded that almost 50% of candidates showed no concrete proposal on its electoral program. And among the proposals presented concrete actions, public policies stood out for being cited several times. Key words: Election 2012, Election Campaign, City Council, Public Policy, Political Time. INTRODUÇÃO As eleições municipais de 2012ocorreram no Brasil em dois turnos. De acordo com o Tribunal Superior Eleitoral-TSE, nas eleições desse ano foram escolhidos os representantes do executivo e legislativo de cada cidade, em 5.568 municípios com mais de 481.727 candidatos. Só em Santa Catarina foram 17.649 candidatos e quase cinco milhões de eleitores. 1 Acadêmico do curso de Comunicação Social - Habilitação em Relações Públicas (UNIVALI) Email: [email protected] 2 Orientador do artigo: Doutor em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2007). Graduado em Comunicação Social com Habilitação em Jornalismo pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (1987), atualmente é professor do Mestrado em Gestão de Políticas Públicas e do Curso de Jornalismo da Universidade do Vale do Itajaí (Univali). Rua Uruguai, 458 – Bloco 12 – Itajaí/SC. Fone: 47-33417543. CEP 88306140 Email: [email protected] 8 Segundo dados do TSE, Itajaí é o 7° maior colégio eleitoral do Estado com um universo de 130.209 eleitores. De acordo com o Tribunal, o número de eleitores que votaram em Itajaí para prefeito e vereadores chegou a 110.511 mil pessoas, 84,87%. Já o índice de abstenção, pessoas que não votaram por algum motivo, atingiu a 15,13%, um total de 19.698.Um dado interessante nesta eleição de 2012 é o comportamento do eleitor no município de Itajaí.Ele votou mais nos vereadores do que nos candidatos a prefeito, a diferença chegou a 1017 votos. Em Itajaí o número de vagas na Câmara de Vereadores subiu de 12 para 21 cadeiras, que é permitido por lei de acordo com a Constituição Federal. Com o aumento das vagas também cresceu o número de candidatos, num comparativo com as eleições de 2008 até 2012, constatou-se que: o crescimento foi surpreendente, passando de 135 para 268 candidatos um aumento de quase 100%. Este trabalho de pesquisa tem por objetivo analisar as propostas dos candidatos a vereador, na cidade de Itajaí, veiculadas no horário político durante as eleições de 2012. Esse será o objeto de estudo desta pesquisa. A ideia de fazer esse artigo surgiu durante a Campanha Eleitoral, no qual o autor fez parte da equipe que produzia o material que era veiculado no horário político de uma das três coligações que disputava o pleito municipal das eleições de 2012. A pergunta de pesquisa é: Quais são as propostas dos candidatos a vereador no município de Itajaí, exibidas no Horário Político? Para alcançar nosso objetivo, utilizou-se o seguinte referencial teórico: Comunicação, proposto por Wollton (2006), Bordenave (2001) e Marcondes Filho (2008). Também se utilizou o conceito de Campanha Eleitoral com os autores: Demartini (2004), Teixeira (2006) e Figueiredo (2002). Também foi empregado o conceito sob a visão de Políticas públicas dos autores: Teixeira (2002) e Appio (2008). E as competências dos vereadores proposto por Silva (1997). Como metodologia foi utilizada a Análise de Conteúdo proposto por: Herscovitz (2007) e Fonseca Júnior(2008). COMUNICAÇÃO A Comunicação serve para aproximar os seres humanos. É uma das formas universais pelas quais os homens se relacionam e interagem por meios de signos entre si, um fenômeno de influência recíproca (Bordenave2001). Para o autor, a Comunicação não deve ser entendida 9 só como algo feito através do meio de informação, mas também como forma de relação humana: assim como a luta, os jogos, a cooperação, a relação sexual, o cuidado com os feridos que são outras formas de interação que podem ou não ser acompanhadas de comunicação. ―como qualquer outro elemento que interage a sociedade, a Comunicação somente tem sentido e significado em termos de relações sociais que a originou, nas quais ela se integra e sobre as quais influi‖. (Bordenave 2001, p. 12) Marcondes Filho (2008) afirma que, passamos por um momento de nossa história que é caracterizado como o paradoxo do nosso tempo, a ―incomunicabilidade‖. Em nenhuma outra época da história humana, as pessoas tiveram à sua disposição tantos Meios de Comunicação: telefones, mensagens eletrônicas, equipamentos para transmitir mensagens. Pode-se conversar com qualquer pessoa do mundo, em qualquer lugar, pois o mundo veio para dentro do nosso espaço. Entretanto, o autor fez um alerta (Marcondes 2008, p.13) ―A Comunicação, portanto, jamais pode ser vista como transmissão, deslocamento, transferência, como se fosse um objeto que eu pegasse de um lado e colocasse em outro, como faço com as fichas de jogos‖. Ele adverte, por mais que tenhamos o mundo na ponta de nossos dedos, ao mesmo tempo nos distanciamos de tudo e todos e, a Comunicação, que seria o meio de aproximação e de comunicabilidade não cumprindo seu papel. Já Dominique Wolton (2006) observa que, a Comunicação tem duas dimensões, uma normativa e a outra funcional. A dimensão normativa remete ao ideal da Comunicação: que seria o dialogo, a troca de informação entre as pessoas e, se entendida, informar uma devida pessoa. Já na dimensão funcional, como próprio nome sugere, acontecem as mensagens necessárias no funcionamento das relações humanas, num mundo em constante transformação. Wolton (2006 p.15) explica ainda, que o processo da Comunicação está entrelaçado nessas duas dimensões, ―não há, de um lado, a Comunicação humana que seria ―normativa‖ e, de outro a das técnicas que seria ―funcional‖, essa dupla hélice remete também à diferença entre informar e comunicar-se‖. Para ele, quanto mais ferramentas disponíveis do ponto de vista técnico, maior o desafio em transmitir a informação. ―Comunicar, portanto, não é apenas produzir informação e distribuí-la, é também estar atento às condições me que o receptor recebe, aceita, recusa, remodela, em função de seu horizonte cultural, político, filosófico e como responde a ela‖- assinala Wolton (2006, p.16). Ou seja, a recepção da mensagem e como ela é interpretada é tão importante quanto à própria mensagem, pois é um processo mais 10 complexo do que apenas informar, pois trata-se de um encontro com retorno, portanto, com risco de não alcançar seu objetivo. Por isso Wolton (2006 p.19) sentencia: ―Transmitir uma mensagem não é sinônimo de comunicar‖. CAMPANHA ELEITORAL A Campanha Eleitoral começa a partir da escolha do candidato feita pelo partido para a corrida eleitoral de uma determinada eleição, seja ela municipal, estadual ou federal. Essa corrida eleitoral, segundo Demartini (2004, p.13) é considerada a ―primeira batalha eleitoral‖ que o candidato tem que se submeter para concorrer a um pleito, onde todos os fins justificam os meios ―qualquer meio e a qualquer preço, sempre que rentável‖. Uma batalha dura, onde os interesses políticos não podem superar os ideológicos. Após as escolhas dos candidatos começa o jogo entre oposição e a situação, quadro que se verifica tanto na disputa pelos cargos do executivo quanto do legislativo. Demartini (2004 p.15) define uma Eleição como: ―Uma forma de procedimentos, reconhecida pelas regras de uma organização, pela qual todos, ou alguns membros da mesma, passam para desempenhar um cargo‖. A autora observa que seria inviável ou impossível fisicamente todas as pessoas concorrendo a um pleito eleitoral, por isso, o atual processo democrático de nosso país optou por representações no poder. Na sociedade democrática, existem vários postos de comando a serem preenchidos por pessoas que são submetidas à escolha popular, chamados de políticos. Embora a maioria dele esteja, atualmente, no mundo todo, em descréditos, ainda a sociedade moderna não inventou outra forma melhor para preencher estes cargos. No caso do Brasil, os políticos podem concorrer aos seguintes âmbitos: Nacional, Federal e Municipal. (DEMARTINI, NEUSA, 2004, p.14) Demartini (2004 p.14) esclarece ainda que, Campanha Eleitoral é um elemento indispensável para que a população tenha um maior conhecimento de seus candidatos, e, assim, possa decidir seu voto. Pois, na sociedade em vias de desenvolvimento, a eleição tem um alcance de consolidação democrática, favorecendo a integração social e política dos indivíduos e um meio de educação cívica. Para o realização de uma Campanha Eleitoral é necessário primeiro conhecer a fundo o código eleitoral que renova todo ano. Isso é fundamental porque, segundo Teixeira (2006 p.111), uma Campanha Eleitoral desenvolve-se: ―devido aos princípios e valores e pelo firmamento da identidade entre as pessoas e seu líder político, embora as ações sejam para 11 produzir resultados de curto espaço de tempo da campanha seus resultados são para longo prazo‖. Segundo Teixeira (2006), A Campanha Eleitoral é necessária para que o candidato fique em evidência para com seus públicos de interesse e para que seus adversários não ocupem os espaços que deixar com a sua ausência na mídia. Entretanto, afirma que é imprescindível cautela, pois publicidade em excesso também pode ter o efeito inverso, criando rejeição e aparentando uma ―Campanha‖ puramente demagógica. A autora ressalta ainda que, numa eleição, os concorrentes mais difíceis são aqueles que possuem os mesmos objetivos e plataforma de governo, pois impedem a vantagem da diferenciação e confundem a percepção dos eleitores. É por meio das Campanhas Eleitorais que os eleitores encontram razões que levam a escolha ou não dos respectivos candidatos (Figueiredo 2000). No Brasil não se tem uma ampla pesquisa e estudos difundidos das campanhas eleitorais. É um campo novo, em constante transformação. Contudo, ele ressalta que toda Campanha Eleitoral tem um foco definido: ―Esse diálogo das campanhas eleitorais tem um único objetivo, persuadir o eleitor a votar em um determinado candidato e a rejeitar seus adversários‖, observa FIGUEIREDO (2000, p.147). O comportamento eleitoral, segundo Figueiredo (2000), é sempre um mistério, mesmo tendo como referência os estudos clássicos da Ciência política e os da Comunicação e da Propaganda política, não se tem um método exato de ações e resultados. Entretanto, os estudos se complementam ao se entender a Campanha como um processo de comunicação política de duas vias – candidato x eleitor. Esse diálogo entre candidato e eleitor é estabelecido por um pacto fundamentado na troca de interesses. Os eleitores querem que seus desejos, demandas e interesses sejam alcançados e os políticos querem ser eleitos – destaca o autor. É também por meio da Campanha Eleitoral que o eleitor obtém informações sobre ações já desenvolvidas por seu candidato ou suas propostas de atuação, para então decidir, quem tem as melhores condições e é o representante mais competente. ―A Campanha Eleitoral deve ser no seu sentido estrito, o conjunto de atividades que facilita a informação, difundida às posições e suas respectivas qualidades dos candidatos.‖ DEMARTINI (2004,p.16). Portanto, para Demartini (2004), a Campanha Eleitoral tem como única função informar o eleitor sobre as ações que não estariam ao seu alcance se não fosse esse processo, 12 tornando-o mais próximo do seu entorno, numa visão mais detalhada. Mesmo parecendo um paradoxo, a Campanha Eleitoral se justificaria, inclusive, até sem se levar em conta a necessidade de eleição. No que diz respeito à Comunicação nas campanhas eleitorais, Neusa Demartini (2004, p.15) aponta uma saturação da informação a que o eleitor é submetido no processo eleitoral e faz uma reflexão: ―será que essa comunicação recebida pela população, realmente cumpre com seu papel informativo-persuasivo?‖ Este questionamento proposto pela autora é uma das questões centrais deste trabalho científico. POLÍTICAS PÚBLICAS As políticas públicas surgem como resposta a uma necessidade contemporânea decorrente da concentração das massas em aglomerados urbanos e do processo de industrialização. Appio (2005, p146) analise que: As políticas públicas consistem em instrumentos estatais de intervenção na economia na vida privada, consoante limitações e imposições previstas na própria constituição, visando assegurar as condições necessárias para a consecução de seu objetivo, o que requer uma combinação de vontade política e conhecimento técnico. Os limites gerais da intervenção do Estado na vida social estão caracterizados na forma de direitos e garantias individuais. Ou seja, ações que nem mesmo o Estado pode interferir, pois é de acuidade da própria constituição – um modelo criado para o bem estar social, por meio de declarações de inúmeros deveres estatais, assim como os direitos dos sujeitos públicos aos cidadãos. (APPIO 2005) Texeira (2002, p.7), entretanto, diz que: ―o município tem ampla autonomia para definir suas políticas e aplicar seus recursos, no caso das competências privativas ou exclusivas. Elas são definidas no art. 30 da Constituição Federal3‖. Ainda segundo o autor ele classifica algumas áreas de atuação das Políticas Públicas como: Saúde, Educação, Habitação e desenvolvimento urbano, Assistência social, Previdência social, Política agrícola, Reforma agrária, Geração de emprego e renda entre outras. 3 a) legislar sobre assuntos de interesse local, expressão bastante abrangente, detalhada na Lei Orgânica. b) instituir e arrecadar impostos sobre serviços, predial urbano, transmissão Intervivos de bens imóveis, varejo de combustíveis líquidos. 13 COMPETÊNCIAS DO PODER LEGISLATIVO Para candidatar-se a vereador é necessário ser cidadão Brasileiro – isto é, nascido ou naturalizado – alfabetizado, maior de 18 anos e filiado a um partido político. O vereador por sua natureza legal - de acordo com a Constituição Federal, art. 29, VI – é inviolável – é excluso de punição devido ao seu voto no período do mandato. (Silva1997) A autora destaca as funções prática do vereador como: Legislação – o ato de fazer leis ou legislar; Fiscalização – é a ação de fiscalizar as ações e gastos do executivo do município; Julgamento – de acordo com a constituição, artigo 29, VII e 55§ 2º o legislador também fiscaliza ações de outros legisladores e por sua vez também o julga-o. Segundo Silva (1997, p.11), o significado da palavra vereador vem do verbo verear. ―pessoas que vereia‖ Isto é, aquele que vigia o bem estar social e o sossego dos munícipes. METODOLOGIA Para realizar a pesquisa utilizou-se a Análise de Conteúdo (AC). O método foi aplicado nas propostas dos candidatos a vereador na campanha eleitoral de 2012, no município de Itajaí. De acordo com Herscovitz (2007, p.126) a AC é: Um método de pesquisa que recolhe e analisa textos, sons, símbolos e imagens impressas, gravadas ou veiculadas em forma eletrônica ou digital encontrados na mídia a partir de uma mostra aleatória ou não dos objetos de estudados com o objetivo de fazer inferência sobre seus conteúdos e formatos enquadrando-os em categorias previamente testadas, mutuamente exclusivas e passíveis de replicação. Por sua vez, Fonseca Júnior (2006) afirma que a Análise de Conteúdo tem uma grande capacidade de adaptação aos desafios no contexto de métodos de pesquisa em Comunicação. Ocupa-se basicamente a analisar uma mensagem, o mesmo ocorrendo com a Análise de Semiológica ou Análise de Discurso, porém, como uma pequena diferença entre essas modalidades. Apenas a Análise de Conteúdo cumpre com os requisitos necessários de sistematicidade e confiabilidade. Segundo Fonseca Junior (2006, p.290), a AC organiza-se em três fases: a) Pré-análise: consiste no planejamento do trabalho a ser elaborado, procurando sistematizar as ideias iniciais com o desenvolvimento de operações sucessivas, contempladas num plano de análise; b) Exploração do material: refere-se à análise propriamente dita, envolvendo operações de codificação em função de regras previamente formuladas. Se a pré-análise for 14 bem sucedida, esta fase não é nada mais do que a administração sistemática das decisões tomadas anteriormente; c) Tratamento dos resultados obtidos e interpretações: os resultados brutos são tratados de maneira a serem significativos e válidos. Operações estatísticas (quando for o caso) permitem estabelecer um quadro de resultados, diagramas, figuras e modelos. Fonseca Júnior (2008) ainda reforça a ideia da Análise de Conteúdo, dividindo-a em qualitativa e quantitativa. Herscovitz (2007, p127) faz uma observação nesse sentido: ―A identificação sistemática de tendências e representações obtém melhores resultados quando empregada ao mesmo tempo na análise quantitativa e qualitativa (quantidade e avaliação do conteúdo latente a partir do sentido geral dos textos)‖. Nessa pesquisa, fez-se uma Análise de Conteúdo das propostas dos candidatos a vereador do município de Itajaí nas eleições de 2012, com o objetivo de verificar quais são as propostas dos candidatos do legislativo. Pois, há uma alta rejeição por parte dos eleitores, no que se refere aos programas eleitorais. Por isso é importante analisar o que foi oferecido ao eleitor itajaiense em 2012. Em relaçãoàs propostas dos candidatos foi feito uma delimitação entre os que apresentam propostas com ações e os que não apresentam ações, em termos de propostas para melhorar a cidade. Neste artigo foram analisadas as propostas de 85 vereadores destacados de forma individual em uma tabela que segue logo abaixo. Cada coligação é representada por uma cor. Ao todo são três coligações e um partido não coligado. Esse tipo de amostra segundo Herscovitz (2007, p131) é caracterizado como: Amostragem Aleatória - pois foi escolhido um dia de forma aleatória, dentre os 36 dias que foram exibidos no horário eleitoral. Nesta amostragem sistemática, todos os programas teriam a mesma chance de entrar na amostra. Porém, também pode ser considerada uma Amostra não Aleatória - pois é empregado quando se tem acesso ao total da população estudada. Neste caso, todos os candidatos a vereador do dia 10 de setembro, veiculado pelos canais locais de TV do município de Itajaí, às 8h30 da noite conforme lei eleitoral. As propostas foram avaliadas de duas formas: propostas com ações (evidenciado na tabela com a cor verde) e a ausência de ações (evidenciado na tabela com a cor laranja). As propostas com ações foram subdivididas em um ranking de palavras-chave, com o objetivo de 15 identificar as propostas que continham ações relacionadas ao cargo de vereador. De acordo com Herscovitz (2007, p132) ―quase tudo que se mede na Análise de Conteúdo são conceitos [...], construções baseadas em observação direta e definições teóricas que variam conforme a perspectiva de cada um‖. Por isso, foram estabelecidos parâmetros para Análises de Conteúdo segundo a autora, indicadores (presença ou ausência de propostas) dimensões (características das ações) e atributos (caráter de certas características). Essa pesquisa tem por objetivo revelar quais as propostas dos candidatos a vereador, exibidas no horário político, nas eleições de 2012, no município de Itajaí. Como os candidatos só gravaram uma vez – as suas propostas – no tempo de 20 segundos em média – optou-se em acompanhar um dia de exibição do horário político – veiculada nas emissoras locais do município de Itajaí. Este recorte temporal representa 31,71% do total de candidatos que apareceram no horário político nas eleições de 2012. Portanto, o corpus - contemplou 1/3 dos candidatos que participaram do Horário Político nas eleições proporcionais de Itajaí em 2012. Em relação às propostas dos candidatos a vereador exibidas no Horário Político de Itajaí – foi feito uma classificação – atendendo critérios de presença e ausência de propostas. Para verificar a presença ou não de ações concretas nas propostas, utilizou-se os conceitos: a) Propostas que envolviam as Políticas Públicas; b) Propostas que se relacionam com a oferta de serviço de outra natureza. Ex. Balcão da cidadania, construção de prédios, entre outros; c) Propostas relacionadas à área de atuação de um vereador. Em relação aos candidatos que não apresentaram propostas objetivas durante o horário político examinado, será feita apenas uma classificação das palavras mais utilizadas pelos candidatos. Abaixo está o material contendo as propostas dos candidatos a vereador, onde aparecem o nome, o número e partido, as propostas e uma classificação feita pelo pesquisador. ANÁLISEDE CONTEÚDO Nesta pesquisa, a unidade a ser analisada, como já foi mencionada anteriormente, representa 1/3 do total de candidatos, dos 36 programas que apresentava os candidatos a vereador de todas as coligações. O material foi gravado no período da Campanha, no dia 10 de 16 setembro às oito e meia da noite e decupado posteriormente para a tabulação dos dados. Abaixo o exemplo de como foi feito a tabela. Tabela 1: Propostas dos candidatos a vereador de Itajaí: produzido pelo pesquisador. Candidato partido Propostas Pisseti 25107 DEM (Apresentação) Em meu mandato, você foi recebido na câmara de postas abertas. Criei o balcão da cidadania, TV câmara e agora construímos nossa sede própria. Para Itajaí continuar no rumo certo. (Apresentação) Pela igualdade dos direitos, pela educação em tempo integral, pelos direitos da mulher, geração de emprego e renda, por saúde de qualidade e mais segurança. Apresentação, vamos trabalhar unidos pela cidade de Itajaí. (Apresentação) Estou humildemente para pedir seu voto, não prometo nada, mas pode ter certeza que não ficarei de braços cruzados, trabalharei para fazer a diferença. (Apresentação) Estou aqui para pedir o seu voto de confiança, para juntos seguirmos com uma Itajaí melhor. (Apresentação) Se eleito for, irei trabalhar pela cultura, para o sucesso e futuro do teu filho. (Apresentação) Aqui cresci e trabalho. Formei uma família, quero trabalhar por Itajaí com humildade para que todos tenham sucesso. (Apresentação) Luto pelo direito da mulher e da criança. Preciso de sua ajuda pra construir a casa de amparo da mulher. Conto com seu voto para juntos darmos um basta na violência, maus tratos a nossas crianças. (Apresentação) Vou lutar por uma Itajaí melhor. SIM (Apresentação) Funcionário público e tenho orgulho de fazer parte de uma equipe que trabalha por Itajaí, gerando emprego e renda. Com o fim dos benefícios fiscais de SC, a câmara de vereadores terá papel fundamental. (Apresentação) O candidato que busca renovação na câmara dos vereadores de Itajaí.Estamos cansados de macacos velhos que se acomodaram no poder e nada fazem para melhorar a situação de nossa cidade. (Apresentação) Quero ajudar você a resolver os problemas da sua rua, do seu bairro, de sua comunidade, junto à prefeitura, defender o servidor público, agricultor, empresário e você trabalhador. (Apresentação) Venho pedir seu voto e de sua família, juntos por uma Itajaí melhor. (Apresentação) Há 19 anos trabalho na educação e agora quero ajudar a fiscalizar as verbas de nossa cidade e sugerir novos projetos. (Apresentação) 16 anos dedicados ao serviço público, sou formada em administração com pós-graduação em gestão NÃO Prof.ª Regina 25500 DEM Romão Amaral 25456 DEM Ronaldo Ferreira 25177 DEM Timba 25345 DEM TomJJ 25033 DEM Sadi 15444 PMDB Tia Lena 15015 PMDB Tita 15330 PMDB Afonso Arruda 15011 PMDB Ariel Silva 15115 PMDB Artur de Jesus 15650 PMDB Beto Prazeres 15650 PMDB Débora 15321 PMDB Denise Reis 15888 PMDB Avaliação Sim (presença) Não (ausência) SIM NÃO NÃO NÃO SIM NÃO SIM NÃO NÃO SIM NÃO SIM SIM 17 Elói 15648 PMDB Isabel Belizário 15007 PMDB Itamar 15025 PMDB de políticas públicas. Quero adotar uma efetiva política de gestão pautada pela transparência dos atos públicos, posição, comprometimento e honestidade. (Apresentação) Estou mais uma vez aqui pedindo o seu voto, na hora de votar, Elói, vote em quem já fez alguma coisa por você. (Apresentação) Funcionária estadual há 27 anos e diretora da escola Paulo Bauer há nove anos. Pretendo promover e fiscalizar ações relacionadas à educação, às pessoas com necessidades especiais e à comunidade negra. (Apresentação) No dia 07/10 conto com seu voto, quero ser um vereador que faça a diferença, governando para o povo. NÃO SIM NÃO Por falta de espaço não será apresentado toda a tabela contendo as 85 propostas dos vereadores, o restante do material encontra-se em mãos do pesquisador para futuras correções. Ao todo foram analisadas as propostas de 85 vereadores de um total de 268 vereadores, o que representa 31,71% do total de candidatos que apresentaram suas propostas no Horário Político, nas eleições municipais de Itajaí em 2012. Só foram representados em gráfico os vereadores que apresentaram ações em suas propostas, elas foram classificadas em três categorias: Atividades do Poder Legislativo, Serviço e as Políticas Públicas. As demais falas dos vereadores que não apresentam ações concretas foram analisadas através de exemplos e também colocadas em um Ranking. Abaixo segue a tabela que identifica as propostas que apresentaram ações (presença) e as que não apresentaram ações (ausência), divididas em duas cores. Gráfico 1: Apresentação das propostas dos candidatos. Produzido pelo pesquisador. Analisando os dados, observa-se que 38,63% dos candidatos escolherem abordar ações relacionadas às atividades do poder legislativo, 13,63% optaram em abordar propostas 18 voltadas à área de Serviços e grande maioria (81,81%) dos candidatos optaram propor melhoria na área de Políticas Públicas- o que significa uma sintonia com as demandas da população. Os percentuais revelam que muitos candidatos mais de uma proposta durante o horário político. RANKING DAS PROPOSTAS DOS VEREADORES COM AÇÕES Gráfico 2: funções do poder legislativo. Produzido pelo pesquisador. Gráfico 3: Serviços/Obras. Produzido pelo pesquisador. Gráfico 4: funções do poder legislativo. Produzido pelo pesquisador 19 20 RANKING DAS PROPOSTAS DOS VEREADORESSEM AÇÕES Gráfico 5: Propostas sem ações. Produzido pelo pesquisador. Propostas sem ações Número de citações Peço o seu voto/ vote em mim Trabalha pela cidade Trabalhar para faze a diferença Dar continuidade Não falaram nada Trabalho em algum lugar --Renovação na Câmara No dia 07/10 vote em mim Acredido numa Itajaí melhor Quem me conhece sabe das… Unidos para eleger o… 20 5 4 4 4 4 3 3 1 1 1 Como se pode nos gráficos acima, algumas categorias ganharam mais destaque do que as outras, nas propostas dos candidatos a vereador no município de Itajaí, entre elas estão às propostas que apresentam ações concretas e a que não apresenta ação. A categoria Políticas Públicas (PP) foi a que mais se destacou entre as demais, as áreas da Saúde e Educação ganharam destaque entre as demais propostas dos candidatos de PP, cada uma foi citada mais de 13 vezes. Coincidência ou não, são duas áreas que mais preocupam a sociedade. Posteriormente, aparecem as áreas da Cultura, Segurança e Direito das crianças com cinco menções cada uma.Em seguida surge com quatro citações o Direito dos Idosos. Depois, vem com três menções cada uma: os Direitos da Mulher e do Adolescente, dos Professores, Emprego e Renda, Transporte, Lazer, Creche, Igualdade de gêneros, Família e Qualidade de vida. Com duas propostas foram mencionadas pelos candidatos a vereador as seguintes áreas: Transporte Público, Defesa dos animais,Combate às cheias, Acessibilidade/Inclusão e Bem estar social. Por último, com apenas uma citação, o Transporte, Guarda-Armada, Programa contra as Drogas e Melhorias nos bairros. Já nas ações voltadas a Serviços/Obras os candidatos a vereador propuseram as seguintes ações: Balcão cidadania, TV câmara, Construção de sede própria, Casa de amparo à 21 mulher, Casas populares, Hospital para animais e Melhoria nos hospitais, cada uma com uma citação. Alguns candidatos também optaram por defender propostas que dizem respeito às funções de um Vereador e também ao comportamento do que um representante da população no legislativo deve ter. Com cinco citações cada uma, apareceu em 1º lugar à proposta Fiscalizar e Transparência. Em 2º lugar está Legislar e Ética – com três citações cada. Na 3° posição com duas citações, os candidatos prometeram Defender a Cidade junto à prefeitura. Em último lugar, com apenas uma menção cada uma, apareceram: Comportamento, Honestidade e a Função de representá-lo junto à Câmara de Vereadores. Entre as propostas que não apresentaram ações concretas, Peço o seu voto/Vote em mim ficaram em 1° lugar no ranking com 20 menções, o que demonstra um não aproveitamento do Horário Político, por não ter o que apresentar, ou por falta de conhecimento. Em 2° lugar aparece Trabalhar pela Cidade, com cinco menções. Em 3° lugar apareceram: Trabalho em algum lugar (Exemplos: Hospital, funcionários público, motorista), Trabalhar para fazer a diferença, Dar continuidade às atividades ou Não falaram absolutamente nada com quatro menções cada um. Em 4° lugar apareceram os termos Renovação na Câmara e No dia 07/10 vote em mim, cada uma com três citações. Em último lugar com apenas uma citação cada apareceram: Acredito por uma Itajaí melhor, Quem me conhece sabe das minhas ações e Unidos para eleger o 1° vereador da Praia Brava. CONSIDERAÇÕES FINAIS Respondendo à pergunta inicial da pesquisa, concluiu-se que 52% (44 candidatos) de total de 85 que apareceram na amostra da pesquisa, apresentaram alguma proposta concreta aos eleitores, na campanha eleitoral nas eleições municipais de Itajaí em 2012. Destes candidatos que expuseram suas ações, 36 candidatos - o que representa 81,81% do total de 44 optaram por propostas voltadas as áreas de PP. As áreas mais citadas foram: Saúde e Educação - coincidentemente ou não, são as áreas de maior carência em qualquer sociedade.As duas 22 foram mencionadas mais do que o dobro das outras ações que ficaram em segundo lugar. Em seguida, em proporções menores, constatou-se também a presença das áreas da Cultura, Segurança, Direitos dos Idosos, das Mulheres e Adolescentes, Emprego, Renda, Lazer entre outros. Por sua vez, alguns candidatos optaram em abordar apenas temas relacionados a Serviços/Obras - como a criação de hospitais e casas, por exemplo, o que representa 13,63%,seis candidatos de um total 44. Outros 17 candidatos (38,63%) optaram em mencionar as competências do poder legislativo, como legislar e fiscalizar. Além de abordar esses temas como PP, Serviços/Obras e as Competências dos vereadores, todos se apresentaram, falando seu nome e número, inclusive, os outros 41 candidatos (48%) de um total de 85 que não apresentaram nenhuma ação concreta em suas propostas. Então, observa-se que, todos os candidatos da amostra se apresentaram - o que vai ao encontro do que diz Teixeira (2006) sobre a Campanha Eleitoral: ―é necessária para que o candidato fique em evidência‖. Segue também as afirmações de Demartini (2004) que pergunta: ―será que essa comunicação recebida pela população, realmente cumpre com seu papel informativo-persuasivo‖. Pois, talvez, só apresentar-se não seja o suficiente para convencer o eleitor na hora do voto. Desses 48% de candidatos que não apresentaram ações em suas propostas, 20 candidatos (quase 50%) optaram em apenas pedir o voto da população sem estabelecer qualquer outro contato, ou qualquer descrição de suas ações, utilizando frases subjetivas como: Trabalhar para fazer a diferença, Vote em mim, Peço o seu voto e No dia 07/10 já sabe em quem votar. Em algumas falas, também se percebeu o posicionamento dos partidos, pois alguns candidatos optaram em apenas utilizar termos que remetiam ao slogan da Campanha Eleitoral dos candidatos para Prefeito, como por exemplo: Para continuar no rumo certo, ou Itajaí pede renovação. Outro dado relevante para a pesquisa é que, do total de 85 candidatos que retratados nesta pesquisa apenas nove conseguiram se eleger. Dentre eles, cinco apresentaram propostas concretas e quatro não apresentaram nenhuma ação. Esses quatros candidatos que não apresentaram ações concretas, acredita-se que já possuíam a confiança do seu eleitorado, por meio de atividades relacionadas à comunidade ou por terem feito algo relevante durante a última legislatura que iniciou em 2008. 23 Evidenciadas ou não, ações concretas nas propostas dos candidatos, fica claro que algumas características são indispensáveis para exercer as funções do poder legislativo. Transparência, Ética, Comprometimento e Honestidade são algumas delas. Além de Fiscalizar os atos públicos e Legislar em função da comunidade. Mas outras perguntas ficam no ar: Será que o tempo destinado aos vereadores na Campanha Eleitoral é utilizado de maneira correta? Será que 15, 20 ou 30 segundos são suficientes para convencer os eleitores? Será que não é a hora de rever a Legislação Eleitoral? Perguntas para uma próxima pesquisa. Referências WOLTON, Dominique. É preciso salvar a comunicação. São Paulo: Paulus, 2006. MARCONDES FILHO, Ciro. Para entender a comunicação: contatos antecipados com a nova teoria. São Paulo: Paulus, 2008. DIAZ BORDENAVE, Juan E. Além dos meios e mensagens: introdução à comunicação como processo, tecnologia, sistema e ciência. 10. ed. Petrópolis: Vozes, 2001 DEMARTINI, Neusa. Formas persuasivas de comunicação política: propaganda política e publicidade eleitoral. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. TEIXEIRA, Dilma. Marketing político e eleitoral: uma proposta cosmética e eficiência. Osasco, SP: Novo Século, 2006. FIGUEIREDO, Rubens. Marketing político e persuasão eleitoral. 2.ed. Rio de Janeiro: Fundação Konrad Adenauer, 2002. LAGO, Cláudia; BENETTI, Marcia. Metodologia de pesquisa em jornalismo.Petrópolis: Vozes, c2007. NOVELLI, Ana Lucia Romero; DUARTE, Jorge; BARROS, Antônio. Métodos e técnicas de pesquisa em comunicação. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2006. APPIO, Eduardo. Controle judicial das políticas públicas no Brasil. Curitiba: Juruá Ed., 2005, 2008. TEIXEIRA, Elenaldo Celso, O Papel das Políticas Públicas no Desenvolvimento Local e na Transformação da Realidade. Acesso em 10/11/2012. Artigo disponível em: http://http://www.fit.br/home/link/texto/politicas_publicas.pdf. SILVA, Jose Afonso da. Manual do vereador. 3.ed.rev. ampl.atual. São Paulo, SP: Malheiros, 1997. 24 O programa bolsa família (pbf) e o debate sobre as suas condicionalidades The program ‗bolsa família‘ and the debate about yours conditionality Angela Maria Moura Costa Prates1. Recebido em 30/03/2013; aceito em 15/09/2013. ___________________________________________________________________________ Resumo: Este artigo traz à tona o debate em torno das condicionalidades do Programa Bolsa Família, utilizandose do portal de periódicos da CAPES para a realização da pesquisa bibliográfica. No tocante às condicionalidades, elas podem contribuir para o acesso a uma rede ampla de proteção social e romper com a pobreza de futuras gerações, mas também enquanto o acesso a um benefício depender do cumprimento de condicionalidades não se pode dizer que ele possui o caráter de direito social. Palavras-chave: Pobreza; renda mínima; condicionalidades. Abstract: This article brings up the debate on conditionality of "Bolsa Família", based on articles available on the CAPES journals website. Regarding conditionality, they can contribute to access a broad network of social protection and break the poverty of future generations. However, while access to a benefit upon the completion of conditionality it can not be said that it has the character of social law. Key words: Poverty; minimum income; conditionality. 1. Introdução O Brasil é considerado o país das contradições desde a sua origem. Contradições de classe, políticas, ideológicas e principalmente, entre capital e trabalho, de onde provém o acirramento da pobreza que ganhou contornos expressivos no século XXI. O enfrentamento da pobreza é o debate corrente, por ser um fenômeno que traz à luz o incomodo para a classe detentora do poder, tanto econômico, quanto político no país. Por isso o Estado como organizador dos conflitos de classe sente-se na responsabilidade de enfrentar as desigualdades sociais expressas na pobreza extrema da maioria dos seus cidadãos. O presente artigo tem como objetivo trazer à tona o debate em torno das condicionalidades do Programa Bolsa Família (PBF), que é um programa de transferência de 1 Formada em Serviço Social pela Universidade Estadual do Centro Oeste (UNICENTRO), Especialista em Formação de Professores para a Docência no Ensino Superior pela mesma universidade, Mestre em Ciências Sociais Aplicadas pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) e Doutoranda em Serviço Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) – 2012/2015. Telefone (48) 3721-6689. E-mail: [email protected]. 25 renda, cujo objetivo é promover o alívio imediato da pobreza. No contexto brasileiro, a partir de 2001 se começou a implementar programas condicionados de transferência de renda, sendo um deles o PBF unificado em 2003. O conteúdo do presente artigo foi elaborado a partir de uma pesquisa bibliográfica realizada na base de dados de teses e dissertações do portal da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), acessado em agosto e setembro de 2012. Para a delimitação da pesquisa bibliográfica tomamos como base o ano de 2004 porque o PBF foi unificado em 2003 e, portanto, no seguinte ano já começaram a serem elaborados diversos trabalhos sobre ele. A chamada feita no portal foi condicionalidades do Programa Bolsa Família, mas se escolheu apenas aqueles que tratavam diretamente das condicionalidades, como se pode observar no quadro a seguir: QUADRO 1 – Delimitação de trabalhos para estudo D O U T O R A D O ANO 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 Nº TRABALHOS ------------------02 03 04 02 01 SELECIONADOS -------------------01 ------------01 -------- M E S T R A D O ANO 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 Nº TRABALHOS ------03 01 05 08 09 09 10 SELECIONADOS ------------------01 --------------05 ------- FONTE: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). ORGANIZAÇÃO: PRATES, Angela Maria Moura Costa. Como se pode perceber, apenas em 2005 começou a aparecer alguns trabalhos em nível de mestrado, sendo que em nível de doutorado apenas em 2007. Encontraram-se doze trabalhos de teses, dos quais apenas dois tratavam diretamente das condicionalidades. E em nível de mestrado encontrou-se quarenta e cinco trabalhos, dos quais apenas seis tratavam das condicionalidades. Assim, foram selecionados oito trabalhos para embasar a debate em torno das condicionalidades do PBF, sendo Filho (2007) e Pedrozo Junior (2010) – doutorado; e Andrade (2010), Freire (2010), Paiva (2007), Silva (2010), Erbas (2010) e Freitas (2010) mestrado. Porém, ao buscar o trabalho completo, dois não foram encontrados no portal, sendo Andrade (2010) e Pedrozo Junior (2010). Assim, se construiu o caminho do pensamento (MINAYO, 1994) discutindo as características do Programa Bolsa Família (PBF) para em seguida mostrar qual é o debate que se tem em torno das condicionalidades trazidos pelos autores acima mencionados. 2. O Programa Bolsa Família (PBF) como uma forma de proteção social 26 O Programa Bolsa Família (PBF) foi implementado em 2003 e é fruto da conjugação de outros programas anteriormente desenvolvidos, uns com condicionalidades outros não, chamados programas remanescentes. Estes programas foram chamados de Bolsa Escola, Bolsa Alimentação e Vale Gás. Para Silva, Yazbek e Giovanni (2004, p. 135) ―[...] é registrado o reconhecimento de que a unificação dos cadastros e a utilização de cartão único tornem possíveis e desejáveis a unificação do gerenciamento dos programas e a redução dos custos meios‖. A proposta de unificação dos Programas de Transferência de Renda foi feita dia 20 de outubro de 2003, e instituída pela Medida Provisória nº 132, da mesma data. É um programa Federal e caracteriza-se por ações de Transferência Condicionada de Renda com a finalidade de complementar a renda familiar para suas necessidades básicas, sobre condicionalidades, as quais são contrapartidas sociais que devem ser cumpridas pelo núcleo familiar2 para que possam receber o benefício, sem a necessidade de comprovação da utilização desse recurso. Sua execução se dá de forma descentralizada, considerando-se a intersetorialidade, a participação comunitária e o controle social. Repara-se sua justificativa na ampliação de recursos, elevação do valor monetário do benefício, e melhor atendimento. A proposta central era de manter um Programa de Transferência de Renda Único, fazendo a articulação entre os programas nacionais, estaduais e municipais em implementação, sob a perspectiva de instituir uma Política Nacional de Transferência de Renda. Na perspectiva governamental os programas de transferência de renda têm a finalidade de enfrentar a fome e a pobreza, e promover a emancipação3 das famílias em situação de risco e vulnerabilidade social. É importante ressaltar que existe utopia na perspectiva de governo, pois com a transferência monetária que se passa para as famílias é impossível enfrentar de fato a pobreza na sua forma estrutural decorrente de um processo de exploração do sistema 2 O núcleo familiar é compreendido pela Política Nacional de Assistência Social (PNAS) de 2004 como um grupo de pessoas vivendo sobre o mesmo teto, independente de laços consanguíneos. Esse núcleo é composto pelos mais variados arranjos, os quais envolvem relações de afeto e proteção. 3 Considera-se importante dizer que emancipar não é apenas transferir renda à família em situação de pobreza. A emancipação reporta-se ao sujeito capaz de escolher, de decidir e de produzir gestas. Produzir gestas é liberdade; não é fazer, mas agir. Portanto, sujeito livre é um sujeito ético e ativo, onde a liberdade lhe dá a capacidade de tomar decisões políticas. A liberdade não é apenas a capacidade de escolher, mas de transformar as paixões alegres em potencia do seu ser, dando-se como causa de si (DELEUZE, 2002). 27 capitalista, cada vez mais excludente. Mas, para isso o Programa Bolsa-Família possui cinco tipos de benefícios, sendo: [...] Benefício Básico (no valor de R$ 70, concedidos apenas a famílias extremamente pobres, com renda per capita igual ou inferior a R$ 70); Benefício Variável (no valor de R$ 32, concedidos pela existência na família de crianças de zero a 15 anos, gestantes e/ou nutrizes – limitado a cinco benefícios por família); Benefício Variável Vinculado ao Adolescente (BVJ) (no valor de R$ 38, concedidos pela existência na família de jovens entre 16 e 17 anos – limitado a dois jovens por família); Benefício Variável de Caráter Extraordinário (BVCE) (com valor calculado caso a caso, e concedido para famílias migradas de Programas Remanescentes ao PBF); e Benefício para Superação da Extrema Pobreza na Primeira Infância (BSP) (com valor correspondente ao necessário para que a todas as famílias beneficiárias do PBF – com crianças entre zero e seis anos – superem os R$ 70,00 de renda mensal por pessoa) (MDS, 2012)4. Ao fazer a crítica ao PBF não se retira o seu significado para as pessoas pobres. Quando se vive na extrema miséria, um pouco que se possa acessar significa muito para se manter minimamente. Por isso, defende-se que o valor monetário do repasse seja aumentado para que as pessoas possam satisfazer as suas necessidades a fim de retomarem seus sonhos e seus projetos de vida a um prazo maior. Quem está com fome não consegue pensar para além da necessidade de satisfação estomacal. A unidade beneficiária do Programa é a família, que para fins de recebimento do benefício é preferencialmente representada pela mãe5. A centralidade na família é a tendência mais recente das políticas sociais no Brasil (PEREIRA, 2009). Em contrapartida, o programa estabelece às famílias o cumprimento de uma agenda mínima na área da saúde e da educação, que são as chamadas condicionalidades, como podemos verificar no quadro a seguir: QUADRO 2 – As condicionalidades do PBF e as contrapartidas dos beneficiários Condicionalidades Política de Assistência Social Política de Contrapartida das famílias Retirar da situação de trabalho infantil crianças e adolescentes de até quinze anos e participação destes em atividades socieducativas com presença mínima de 85%. Frequência escolar mínima de 85% de crianças e adolescentes entre seis e quinze anos; 4 Disponível no site do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) http://www.mds.gov.br/bolsafamilia/ acesso dia 27 de junho de 2012. 5 Existe uma discussão sobre questão de gênero e a preferência dada às mulheres quanto à responsabilidade da gestão do benefício. Cf. em Freitas (2008). 28 Educação Política de Saúde Frequência escolar mínima de 75% de adolescentes de dezesseis e dezessete anos. Acompanhamento do calendário vacinal e do desenvolvimento de crianças de até sete anos; Acompanhamento do pré-natal de gestantes; Acompanhamento de nutrizes na faixa etária entre quatorze e quarenta e quatro anos. Organização: PRATES, Angela Maria Moura Costa. Adaptação: Silva (2010). A gestão de condicionalidades é composta por uma serie de atividades que são compreendidas como: 1. Integrar e consolidar as informações de frequência escolar e da agenda de saúde das famílias beneficiárias, a partir dos diferentes sistemas disponibilizados pelos Ministérios do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), da Educação (MEC) e da Saúde (MS); 2. Diagnosticar situações sociofamiliares de vulnerabilidade ou risco social associadas à pobreza a partir do registro dos motivos de descumprimentos de condicionalidades, bem como deficiências na oferta de serviços de educação e saúde, estimulando sua ampliação e/ou adequação e reforçando o princípio da integralidade na atenção às famílias beneficiárias; 3. Instrumentalizar o atendimento socioassistencial prioritário de famílias em situação de descumprimento no âmbito do Sistema Único de Assistência Social (SUAS); 4. Contribuir com o alcance dos objetivos das políticas setoriais associadas ao PBF: a garantia da frequência e o combate à evasão escolar de crianças e adolescentes, o enfrentamento da mortalidade neonatal e infantil, da desnutrição e da obesidade infantis e a atenção à saúde materno-infantil [...] (MDS, 2010, p. 04). Na perspectiva governamental, essas condicionalidades visam certificar o compromisso e a responsabilidade das famílias atendidas e representam o exercício de direitos que, a médio e em longo prazo, aumentam a autonomia das famílias, na perspectiva da inclusão social. Elas também ampliam as condições para o aumento das oportunidades de geração de renda das famílias. Nenhum beneficiário será penalizado, quando ficar comprovado que o município não dispõe de determinado serviço, seja ele de saúde ou educação, no entanto, isso deve ser provado. Segundo Silva, Yazbek e Giovanni (2004), o Governo Federal buscará, juntamente com aquele município, sanar as deficiências na oferta de serviços sociais básicos. Os ministérios do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), o Ministério da Saúde e o Ministério da Educação fazem o acompanhamento do cumprimento das condicionalidades com o auxílio das respectivas Secretarias locais (Educação, Saúde e Assistência Social) repassando essas informações trimestralmente à Secretaria Executiva do Programa Bolsa-Família. Toda a gestão e acompanhamento das condicionalidades é de responsabilidade dos municípios. De acordo com o MDS (2010), foi possível perceber o aumento da frequência 29 escolar de crianças e adolescentes de seis a quinze anos, de 15,2 milhões, em julho de 2009, para 15,9 milhões no terceiro período (jun/jul) de 2010. Com relação à saúde foi possível perceber que das 10 milhões de famílias que integraram o perfil para acompanhamento integral das condicionalidades de saúde 6,8 milhões tiveram acompanhamento integral. Isso mostra que os municípios que são os principais responsáveis pela gestão das condicionalidades estão melhorando a sua gestão. No Estado do Paraná, até o mês de setembro de 2012, obteve-se 439.923 famílias que foram atendidas pelo PBF. O montante de recurso transferido para elas foi de R$ 55.249,677, distribuídos conforme os critérios cabíveis a cada uma. Esses beneficiários foram acompanhados no cumprimento da condicionalidade da educação, sendo 540 crianças e adolescentes entre 06 e 17 anos. E na condicionalidade da saúde, foram acompanhados 277.085 beneficiários. Sobre o cumprimento das condicionalidades se pode apurar, através Relatório de Informações Sociais do Programa Bolsa Família6, que o total de repercussões por descumprimento, tanto da educação quanto da saúde, perpassaram o número de 18.484 beneficiários. Todos foram advertidos, sendo que 3.945 foram bloqueados, 1.083 foram suspensos e 543 foram cancelados por descumprimento das condicionalidades. 3. O debate em torno das condicionalidades do Programa Bolsa Família (PBF) a partir da pesquisa bibliográfica Existe um debate em torno das condicionalidades do PBF que mostra que em algumas realidades os beneficiários não se dão conta de que levar o filho na escola ou no posto de saúde para vacinar é uma condição para ele permaneça acessando o benefício. O que está em voga é se o programa é um direito de cidadania, como poderia possuir condicionalidades. Freitas (2010) elaborou sua dissertação com o objetivo de discutir as políticas recentes de garantia de uma renda social mínima e suas condicionalidades no município de Restinga – SP, onde a pesquisa se deu entre 2005-2009. O autor acredita que através das condicionalidades é possível a inserção social dos beneficiários na rede de proteção social. Isso depende de como o governo na esfera municipal faz a gestão dessas condicionalidades. Constatou-se na pesquisa que as famílias valorizam a educação de seus filhos, independente desta ser posta pelo governo como condição para a permanência no programa. Para Freitas 6 Dados disponíveis no site http://www.mds.gov.br/bolsafamilia. Acesso dia 23 de outubro de 2012. 30 (2010), monitorar a frequência escolar dos beneficiários do PBF exige tanto das famílias quanto do poder público, o que acarreta um incremento em suas responsabilidades em questões como educação, saúde e assistência social, além de aprimorar os serviços e os sistemas de acompanhamento das políticas sociais. Para o autor, ―[...] por intermédio do acompanhamento da frequência escolar dos estudantes das famílias beneficiárias, alcançar a efetivação de uma política de combate à pobreza, combate à evasão escolar e ao abandono [...] também reforça o valor da educação junto às famílias [...]‖ (FREITAS, 2010, p.64). A evasão escolar de jovens está relacionada a condições de pobreza em que as famílias vivem, pois ha necessidade de trabalhar para aumentar a renda familiar. É neste sentido que o PBF contribui para que os jovens permaneçam na escola, justamente por aumentar a renda familiar. Os pais acreditam que se os filhos permanecerem na escola terão possibilidades futuras de melhorar sua condição de vida, uma vez que a escolaridade possibilita ampliação do mercado de trabalho, embora isso não seja suficiente para garantir que estes acessarão o mercado formal. ―Estudos mostram uma triste realidade: quanto mais precoce for a inserção do jovem no mercado de trabalho, maior será o risco do subemprego, fato este que dificultará ainda mais uma posterior ascensão profissional. Então [...] abandonar a escola não é um bom negócio para os jovens, e inserir-se no mercado de trabalho sem concluir ao menos o ensino médio, também não‖ (FREITAS, 2010, p. 65). O autor conclui que a condicionalidade educacional é um importante avanço nas políticas sociais de combate à evasão escolar, ―Entretanto, quando analisamos o fluxo de entrada e de saída das famílias do Programa, concluímos também que as políticas sociais que propiciam a criação de ‗portas de saída‘ do Programa necessitam de maior atenção por parte dos gestores em nível federal do Programa Bolsa Família‖ (FREITAS, 2010, p. 110). Silva (2010, p. 06) realizou sua pesquisa para a dissertação de mestrado com o objetivo de ―[...] explicar a ideologia, a ação social e a conduta dos indivíduos diante de regras explicitas impostas pelo Estado que interferem diretamente em suas vidas e em suas famílias‖. Para isso fez entrevistas com titulares legais (vinte e seis mulheres) do programa residentes no município de Porto Alegre com a finalidade de identificar por que não cumprem as condicionalidades. Os referenciais teóricos da autora foram: a perspectiva coletiva marxista de Antonio Gramsci, a individual de Max Weber e a Escolha Racional de Jon Elster. A perspectiva de Gramsci ―[...] tem a ideologia como objeto de análise, enquanto Weber estuda a 31 ação social, e a escolha Racional, a conduta individual‖ (SILVA, 2010, p. 121). Quando descumprem as condicionalidades, as famílias estão sujeitas a sanções gradativas. De acordo com Silva (2010), no primeiro passo da sanção é uma advertência, depois o beneficio é bloqueado por trinta dias. Caso a família não volte, o benefício é suspenso por sessenta dias. Mas, o objetivo das condicionalidades não é a punição da família, mas a garantia de que as crianças estejam na escola, minimizando os efeitos do trabalho infantil. Esse compromisso que a família é ‗obrigada‘ a assumir tem o objetivo de fazer com que ela possa acessar mais direitos através da rede de serviços. Silva (2010) mostra que as mães cumprem as condicionalidades com boa vontade, e quando acontece o descumprimento, o fato está relacionado a fatores externos a vontade delas, como por exemplo: à questões relacionadas aos relacionamentos que acontecem no núcleo familiar; dificuldade de relacionamento com filhos adolescentes e também à fatores de dentro da escola, como a violência; a questões adversas à situação de pobreza que os expõe ao frio, próprio da cidade de Porto Alegre; a questões de afeto e proteção por parte das mães e também à falta de informações sobre as questões burocráticas que o programa possui. Silva (2010) não identificou nos depoimentos nenhuma análise que atribuísse o não cumprimento das condicionalidades à falta de estrutura que deve ser oferecida pelo Estado. A condicionalidade de manter os filhos na escola contribui para que as crianças sejam afastadas das ruas. Quando a família é sancionada por um filho que faltou à escola, uma mãe acredita não ser injusto o fato de os outros filhos sofrerem a penalidade por conta de um apenas. Mediante a perspectiva gramsciana, Silva (2010) mostra que a sanção materializa a coerção do estado sobre os beneficiários e observou-se que existe consenso sobre as condicionalidades, assim como das penalidades que a família possa sofrer quando do seu descumprimento, o que lhes causa ―[...] a manifestação de sentimentos de medo, culpa e vergonha‖ (SILVA, 2010, p. 122). A maioria dos descumprimentos dizem respeito ao direito à educação, por parte dos filhos adolescentes, sendo 98,7% na média nacional (SILVA, 2010). É consensual para as titulares que a educação é fundamental, já que elas tiveram pouco ou quase nada de acesso a esse direito básico de cidadania. Assim como, o acesso aos serviços de saúde também constituem consenso entre as entrevistadas de Silva (2010). Pensando a partir da perspectiva weberiana, Silva (2010) mostra que as famílias a partir do momento em que perceberem que a renda advinda do programa melhorou as suas 32 condições, admitem ser bom. Percebe-se que a avaliação possui uma condição individual. Neste sentido, a sanção serve para que a família, pelo medo de perder o benefício, passasse a exigir de seus membros o cumprimento das condicionalidades exigidas pelo governo. Numa perspectiva racional, ―O sentido foi de cumprir as regras do programa, ter os filhos estudando e são cuidados de saúde e de garantir o recebimento mensal do recurso monetário. Com a identificação desse encadeamento de elos e desse sentido, afirma-se que as ações dos indivíduos entrevistados foram racionais para fins‖ (SILVA, 2010, p. 124). A pesquisadora pergunta-se: porque não cumpriram as condicionalidades? E afirma: ―[...] porque elementos não pertinentes a tal ação – ação dos filhos adolescentes, tragédias familiares, erros de decisão – influenciaram o sentido imaginado para suas ações‖ (SILVA, 2010, p. 124). Assim, ―A partir dos pontos de vista coletivista gramsciano, da ação individual weberiana e da Escolha Racional, o não cumprimento tem origens em situações que não estão contidas na ideologia, nos desejos, crenças e conditas individuais das entrevistadas‖ (SILVA, 2010, p. 126). A autora conclui que o principal motivo do não cumprimento das condicionalidades ―[...] foi a falta de controle dos filhos adolescentes‖ (SILVA, 2010, p. 126). Paiva (2007) elaborou sua pesquisa com o objetivo de avaliar as condicionalidades da saúde de famílias beneficiárias do PBF de Ceilândia/DF, que tenham em sua composição crianças menores de sete anos. Os resultados mostraram que existe um impacto positivo da transferência de renda na vida das famílias, no entanto, elas desconhecem as condicionalidades, uma vez que o programa no referido município não promove o seu cumprimento. Foram entrevistados membros da família em 338 domicílios. Destes, 62% dos responsáveis legais dizem desconhecer as condicionalidades da saúde referente a crianças menores de sete anos. Essas condicionalidades dizem respeito à vacinar as crianças, acompanhar a saúde delas e participar de palestras sobre saúde no Posto de Saúde mais próximo. Paiva (2007) preocupou-se em mostrar a distancia de deslocamento das famílias ao posto de saúde. 97% dessas famílias frequentam o posto, sendo que o tempo médio gasto é de dezoito minutos. Quando a pesquisadora indagou sobre o atendimento no Posto de Saúde, 71% responderam que não houve mudanças e 34,9% disseram que o atendimento é ruim ou péssimo. A autora fez uma análise das condicionalidades sobre três aspectos: cognitivo, valorativo e comportamental. Mediante o aspecto comportamental, percebeu-se o que teria 33 mudado com relação ao comportamento de levar as crianças para vacinar. Paiva (2007) mostrou que não houveram mudanças desde a entrada das famílias no PBF. Quem costumava levar as crianças para vacinar continuou levando, normalmente e quem já não levava, também continuou a não levá-las. Isso acontece, de acordo com a autora, que o município não fez qualquer movimento no sentido de informar as famílias de seus direitos, consequentemente no cumprimento das condicionalidades. O município desenvolve nos postos de saúde palestras educativas, mas 87% dos beneficiários revelaram jamais terem sido convidados à participar. Num total de 62% dos responsáveis legais valorizam o fato de levar as crianças ao posto, dando enfoque as vacinas. Mas eles não sabem que isso se constitui como condicionalidade para permanência no PBF. A importância atribuída não está relacionada ao fato de cumprir condicionalidades, mas a saúde de seus filhos como um todo. Paiva (2007) percebeu que não houveram alterações de comportamento das famílias no que se refere a levar as crianças ao posto de saúde. ―As famílias estudadas cumprem com as condicionalidades da saúde não porque são beneficiárias, do PBF, e sim porque este comportamento já estava instituído‖ (PAIVA, 2007, p. 66). A autora chama isso de efeito placebo, que é quando ―[...] o beneficiário recebe a transferência de renda, mas não é estimulado a entrar em uma rede de proteção social, sob o foco da saúde‖ (PAIVA, 2007, p. 66). Erbas (2010) para elaborar sua dissertação de mestrado teve com objetivo analisar a experiência de articulação intersetorial entre o PBF e o Programa Médico de Família (PMF) de Niterói, no cumprimento das condicionalidades da saúde. Os sujeitos de sua pesquisa foram gestores e técnicos de governo (profissionais de saúde e assistência), os quais estavam vinculados aos programas acima referidos. Também foi realizado grupos focais com famílias beneficiarias do PMF de Cantagalo I e II. O PBF tem a proposta da intersetorialidade como forma de articular a gestão das condicionalidades e ―[...] pressupõe a articulação de sujeitos sociais de diversos setores para enfrentar os problemas complexos, e constitui-se numa nova forma de trabalhar, de governar e de construir políticas públicas [...]‖ (ERBAS, 2010, p. 96), na perspectiva de superar a fragmentação, tanto dos conhecimentos, como das estruturas sociais. Já o Programa Médico da Família (PMF) não possui explicitamente nenhuma proposta de intersetorialidade, por não promover nenhum espaço específico de articulação entre setores. No entanto, devido as suas ações serem pautadas na promoção da saúde, elas são pensadas de 34 forma integrada com outros setores. O Comitê Intergestor do PBF funciona como o único meio de interagir, forma de viver a intersetorialidade, de acordo com o resultado de sua pesquisa. Para a autora, a compreensão do que seria intersetorialidade que os atores possuem influenciam a sua forma de atuar na gestão de condicionalidades. Erbas (2010) detectou que existe dificuldades com relação a realização de ações complementares que o PBF contempla, como por exemplo, o micro-crédito e a inclusão produtiva. Para realizar ações dessa maneira é preciso um diálogo mais efetivo com outras políticas nos municípios. Isso é dificultado pela fragilidade de ações intersetoriais. Assim, a articulação intersetorial acontece de forma personalizada e apenas correlata à gestão das condicionalidades. Logo, quando se trata de articulação para as ações complementares do PBF, ela é inexistente. A intersetorialidade é articulada dependendo do interesse pessoal de cada ator. É uma ação individual, porém, ―[...] essas iniciativas tem se revelado como importante aliada na construção da intersetorialidade local e no acompanhamento das condicionalidades‖ (ERBAS, 2010, p. 98). Mas, a autora ressalta que é preciso uma articulação planejada como parte da dinâmica institucional, pois apenas experiências pessoais não se sustentam por muito tempo. É necessário sair de uma relação pessoal, passando para uma relação institucional. Para isso, ―[...] deve possibilitar e estimular a criação de espaços formais de comunicação entre os profissionais e instituições locais para o planejamento, execução e avaliação das ações, apontando para a formação de redes sociais‖ (ERBAS, 2010, p. 100). Assim, o processo não sofre alterações na ausência de um ou outro profissional. A dificuldade de articulação intersetorial se dá pela falta de capacitação de atores, e também não existe parceria com a população usuária, a qual ―Deve assumir um papel ativo colaborando na identificação dos problemas e na sua solução e articulando saberes e experiências para planejar,, executar e avaliar as ações‖ (ERBAS, 2010, p. 100). Freire (2010) mostrou em seu estudo, a partir de uma avaliação qualitativa de oitenta e quatro artigos sobre o Programa Bolsa Família, a questão da contrapartida dos usuários inseridos no PBF, denominada de condicionalidades e a importância da intersetorialidade em seu manejo, enfocando a relação dos operadores do programa. A pesquisa bibliográfica foi desenvolvida nos artigos da Biblioteca Virtual do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). De acordo com as discussões encontradas, o cumprimento de 35 contrapartidas podem ter dois aspectos relacionados: um diz respeito ao controle que o Estado pode ter sobre os usuários e outro, a inclusão social numa rede de proteção social. Neste ínterim, ―As condicionalidades, enquanto procedimento claro de focalização, constitui um processo secundário de seletividade e distinção dos usuários e, de alguma forma, pode segregá-los da inserção social pretendida pelo PBF, já que a garantia de direitos ao acesso a serviços de caráter universais não acontece de forma unívoca e pela intencionalidade das agências, descoladas do contexto local‖ (FREIRE, 2010, p 60). Para a autora, o caráter punitivo das contrapartidas, referido a advertências, desligamento e cancelamento da família do programa, pode sinalizar uma inversão da lógica dos direitos sociais. À medida que para o acesso a um benefício se impõe condições, ofusca-se a lógica de direitos. Para Paiva (2007), a obrigatoriedade das condicionalidades podem indicar a necessidade de ampliação dos serviços públicos. Quando a família descumpre qualquer condicionalidade por falta do serviço, o gestor do programa não pode aplicar as sanções, mas acionar o controle social através dos conselhos para que o município tome as providencias. ―O impacto positivo do Programa no aumento do número de matrículas, aprovações e diminuição das evasões escolares no ensino fundamental são particularmente o principal ponto de apoio dos argumentos que aprovam as condicionalidades como propulsoras da formação de capital social [...]‖ (PAIVA, 2007, p. 64). A pesquisa mostrou que as estruturas municipais não dão conta de atender eficientemente aos beneficiários do programa, de maneira especial, no que se refere ao acesso a rede de proteção social. Deixam a desejar mesmo nas políticas de educação e saúde, e mais ainda, quando se trata de ampliação das ações em prol do enfrentamento da pobreza em diálogo com as políticas setoriais. ―A ambiguidade entre direito e dever corresponde à ambivalência estatal, quando utiliza de conceitos como cidadania e pobreza‖ (PAIVA, 2007, p. 66). A autora conclui que as maiores dificuldades refere-se a organização e operacionalização das condicionalidades, o que vem impossibilitando que elas exerçam um impacto positivo na vida dos beneficiários. Filho (2007) em sua tese buscou identificar os resultados qualitativos obtidos na melhoria da vida de beneficiários por meio de um estudo de caso da implementação cooperada do Programa Bolsa Família e do Programa Vida Nova – o programa municipal de transferência de renda com condicionalidades criado pelo Município de Nova Lima, Estado de Minas Gerais. Ele queria saber se o programa seria uma estratégia imediata para aliviar a 36 condição de pobreza e se possibilitaria a inserção dessas famílias num processo de justiça social e autonomia. De acordo com ele, as famílias utilizam o benefício para melhorar sua alimentação, moradia, cuidados com a saúde e outras necessidades, na maior parte das vezes relacionadas ao bem-estar dos filhos. Elas incentivam os filhos a permanecerem na escola, e isso gerou novas matrículas na rede escolar. ―A exigência de cumprimento das condicionalidades, por sua vez, não parece ter influenciado o comportamento das famílias, que se mantêm convictas do valor que dedicam à educação e à saúde‖ (FILHO, 2007, p. 160). Os pais sabem que a escolaridade é fundamental para que os filhos possam ampliar suas perspectivas de melhores condições de vida. Alguns adultos também voltaram a escola, pois um ―[...] esforço pela ampliação da própria escolaridade é uma estratégia para concorrer a postos de trabalho para os quais, muitas vezes, já reúnem capacidade e habilidade adequadas mas, dadas as exigências de qualificação formal (credencialismo), estão impedidos de ocupar‖ (FILHO, 2007, p. 173). O PBF desse município desenvolve atividades socioeducativas com os beneficiários, as quais tem o papel de melhorar a autoestima e a socialização das famílias. E também, as famílias podem participar de outros programas como intermediação de mão de obra e acesso a moradia, por meio da construção e financiamento de casas populares. Assim, ―[...] os programas de transferência de renda com condicionalidades têm um importante papel a desempenhar na melhoria da vida das famílias beneficiadas, papel este que pode ser potencializado onde haja uma efetiva cooperação federativa para sua implementação‖ (FILHO, 2007, p.12). Constatou-se também em sua pesquisa que devido a elevação (mesmo que mínima) da renda familiar, os beneficiários começam a trabalhar com outras dimensões da vida, para além da alimentação, como por exemplo: passam a alimentar o sonho de adquirir móveis e eletrodomésticos, assim como a realizar atividades de lazer. Umas das entrevistadas pretende ―[...] empregar uma parte dos próximos pagamentos em melhoras para sua moradia, apesar da insegurança que sente por habitar um terreno irregular‖ (FILHO, 2007, p. 152). Outro aspecto revelado na pesquisa é que a renda transferida pelo programa significa, muitas vezes, a única segurança de renda que a família possui, pois os membros adultos trabalham no mercado informal com total insegurança e precarização. Neste sentido, ―A dependência de caridade e a sensação de frustração e impotência sentida pelos pais ao verem seus filhos com fome, 37 pedindo algo para comer, e não tendo condições de atendê-los, foram mitigadas pelo recebimento dos benefícios‖ (FILHO, 2007, p. 51). O benefício contribui para o cumprimento da condicionalidade referente à educação quando a escola cobra taxas de matrícula. ―Tais gastos, apesar de parecerem irrisórios, são significativos para as famílias mais pobres e, em muitos casos, representam uma barreira de acesso à escola‖ (FILHO, 2007, p. 152). Tal é o debate latente sobre as condicionalidades do Programa Bolsa Família. 4. Considerações finais No tocante ao debate sobre as condicionalidades do PBF, os autores acima mencionados mostraram que em algumas situações os beneficiários não se dão conta de que levar o filho na escola ou no posto de saúde para vacinar é uma condição para ele permaneça acessando o benefício, pois essa tarefa já fazia parte do seu cotidiano. Percebeu-se que as famílias querem aquilo que é bom para os seus filhos e por isso acreditam que manter a saúde e incentivar os estudos da aos filhos a possibilidade de um futuro diferente do seu. Observouse também que existe consenso sobre as condicionalidades, devido à valoração que as famílias atribuem ao direito à saúde e à educação, já que as titulares tiveram pouco ou quase nada de acesso a esse direito básico de cidadania. Também, através das condicionalidades é possível a inserção social dos beneficiários na rede de proteção social, diga-se, de parte dela, porque uma rede de proteção é muito mais que apenas a política de saúde e de educação. Isso depende de como o governo na esfera municipal faz a gestão dessas condicionalidades, pois para que a família possa cumpri-las é necessário que os governos cumpram a sua parte que é oferecer os serviços de educação e saúde nos municípios. A intersetorialidade ainda funciona como uma ação personalista, e não como uma estratégia de gestão das condicionalidades. Dependendo das relações que os gestores do programa desenvolvem uns com os outros, a intersetorialidade acontece ou não. As penalidades aplicadas quando acontece o descumprimento das condicionalidades podem ser vistas como sanção e ela materializa a coerção do estado sobre os beneficiários, na perspectiva gramsciana. Quando a família descumpre qualquer condicionalidade por falta do serviço, o gestor do programa não pode aplicar as sanções, mas acionar o controle social através dos conselhos para que o município tome as providencias. É importante considerar que 38 nenhuma família apontou a fragilidade da prestação de serviços, como as vagas nas escolas ou os serviços de saúde. Não ficou claro nas pesquisas se as realidades estudadas não possuem dificuldades dessa natureza, ou as famílias não conseguiram enxerga-las. Nas pesquisas realizadas pelos autores acima citados, contatou-se que o descumprimento das condicionalidades estavam ligados a fatores externos a vontade das famílias. Mais especificamente, relacionavam-se à questões referentes aos relacionamentos que acontecem no núcleo familiar; às dificuldade de relacionamento com filhos adolescentes e também à fatores de dentro da escola, como a violência e ainda à questões adversas à situação de pobreza que os expõe ao frio, próprio da cidade de Porto Alegre; à questões de afeto e proteção por parte das mães e também à falta de informações sobre as questões burocráticas que o programa possui. A maioria dos descumprimentos dizem respeito ao direito à educação, por parte dos filhos adolescentes, sendo 98,7% na média nacional. Percebeu-se que os fatores de descumprimentos são atribuídos a questões individuais, voltadas apenas para as famílias. Assim, compreende-se que o caráter punitivo das contrapartidas, referido à advertências, desligamento e cancelamento do benefício da família, pode sinalizar uma inversão da lógica dos direitos sociais, uma vez que a lógica que o PBF propõe é a de possibilitar à família o acesso a uma rede de proteção social através dos serviços de educação e saúde. Neste sentido, percebe-se que também não há consenso entre os autores sobre a viabilidade ou não das condicionalidades. Alguns apontam que elas podem contribuir para o acesso à uma rede ampla de proteção social e romper com a pobreza de futuras gerações. Já outros apontam que enquanto o acesso a um serviço ou benefício depender do cumprimento de condicionalidades não se pode dizer que ele possui o caráter de direito social. Conclui-se, portanto que o debate está travado e que é necessário mais estudos e pesquisas para se perceber as prerrogativas que entornam as condicionalidades do PBF. Referências ANDRADE, Rosemary Felippe de. A saúde como direito: A percepção da “condicionalidade” da saúde pelos beneficiários do Programa Bolsa Família usuários do Programa Saúde da Família. Dissertação defendida no Programa de Mestrado em Saúde Coletiva da Universidade Católica de Santos (UNISANTOS). Santos, 2010; 39 DELEUZE, Gilles. Espinosa: filosofia prática. (Tradução de Daniel Lins e Fabien Pascal Lins). São Paulo: Escuta, 2002; ERBAS, Denise da Silva. Uma análise intersetorialidade no cumprimento das condicionalidades da saúde do Programa Bolsa Família a partir das interfaces com o Programa Médico de Família de Niterói. Dissertação defendida no Programa de Estudos Pós Graduados em Política Social da Universidade Federal Fluminense (UFF). Niterói, 2010; FILHO, Antonio Claret Campos. Transferência de renda com condicionalidades e desenvolvimento de capacidades: Uma análise a partir da integração dos programas Bolsa Família e Vida Nova no Município de Nova Lima. 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Programa Bolsa Família: uma avaliação do perfil socioeconômico e das condicionalidades da saúde com famílias da Ceilândia/DF. Dissertação defendida no Programa de Pós-Graduação em Nutrição Humana do Departamento de Nutrição da Universidade de Brasília (UnB). Brasília, DF, 2007; 40 PEDROZO JUNIOR, Euclides. Efeitos de elegibilidade e condicionalidade do programa bolsa família sobre a alocação de tempo dos membros do domicílio. Tese defendida na Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas. São Paulo, 2010; PEREIRA, Potyara A. P. Mudanças estruturais, política social e papel da família: crítica ao pluralismo de bem-estar. In.: SALES, Mione Apolinário, MATOS, Maurílio Castro de e LEAL, Maria Cristina. Política social, família e juventude: uma questão de direitos. 4ª Ed – São Paulo: Cortez, 2009; SILVA, M. O. S., YAZBEK, M. C., GIOVANNI di G. A Política Social Brasileira no Século XXI – A prevalência dos Programas de Transferência de Renda. São Paulo: Cortez, 2004; SILVA, Carla Etiene Mendonça da. Os beneficiários do Programa Bolsa Família diante das condicionalidades – Casos de Porto Alegre. Dissertação defendida no Programa de Ciências Sociais Aplicadas do Centro de Pesquisa e Pós-Graduação sobre as Américas da Universidade de Brasília. Brasília, DF, 2010. 41 Etnografia e trabalho de campo em situações de ilegalidade: apontamentos críticos1 Ethnography and fieldwork in situations of illegality: critical notes Francisco Hélio Monteiro Júnior2 Recebido em 29/03/2013; aceito em 15/09/2013. ___________________________________________________________________________ Resumo: Este artigo discute as estratégias metodológicas utilizadas pelo cientista social em situações de ilegalidade, abordando a relação entre pesquisador e colaborador, metodologias e construções textuais. Realizar um artigo de crítica etnográfica que tem como ―campo‖ textos etnográficos, requer um ―comparatismo de base experimental‖ que permita a aproximação de fontes diversas que nesse caso são teses e dissertações. Palavras-chave: etnografia; trabalho de campo; ilegalidades. Abstract: This article discusses methodologies used by social scientist in situations of illegality, addressing the relationship between researcher and collaborator, methodologies and textual constructions. Make an article whose critical ethnographic "field" ethnographic texts, requires a "comparatism basic experimental" approach that allows a variety of sources in this case are theses and dissertations. Key words: ethnography; fieldwork; illegalities. Introdução Como realizar uma etnografia em situação de ilegalidade? Quais os elementos implicados em sua elaboração? Existem modelos acabados? Como articular o trabalho de campo com as estruturas teóricas tão diversas que compõem a teoria antropológica? Essas entre outras questões orientaram os debates que ocorreram no curso de Tópicos Especiais de Sociologia III no PPGS -UFC – Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará, no primeiro semestre do ano de 2012. Diferentemente do caminho para o qual um dado convencionalismo teria nos levado ao encontro dos textos clássicos, a professora Jânia Perla3 optou por trabalhar com dissertações e 1 Este artigo é uma versão modificada do trabalho apresentado ao final do curso de Tópicos Especiais de Sociologia III do PPGS-UFC – Programa de Pós-Graduação em Sociologia, no primeiro semestre do ano de 2012, ministrado pela Professora Dra. Jania Perla. 2 Doutorando em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia – PPGS da Universidade Federal do Ceará – UFC. Bolsista FUNCAP – Fundação Cearense de Amparo à Pesquisa. Membro do grupo de Estudo e Pesquisa sobre Cidades da Região Norte do Estado do Ceará (GEPECCE-UVA). Professor de Direito e Desenvolvimento Social da Faculdade Luciano Feijão (FLF). E-mail: [email protected] 3 Professora de antropologia do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará. 42 teses que reiteram a importância da etnografia na pesquisa em ciências sociais. Foram selecionados, a priori, quinze trabalhos que a sua maneira procuram traçar estratégias metodológicas para a elaboração de textos acadêmicos na área de sociologia e antropologia.6 Como não é minha intenção discutir exaustivamente todos eles em poucas laudas, para efeito desse artigo foram selecionados três trabalhos. Uma dissertação de mestrado e duas teses de doutorado das áreas de sociologia e antropologia que, segundo uma avaliação objetiva e subjetiva do autor que vos escreve, levantam questões relevantes sobre a pesquisa etnográfica. Importante ressaltar que a escolha também considerou, entre outros aspectos, a questão da ilegalidade e sua transversalidade com a violência, a referência ao método etnográfico, por fim, o cuidado com a linguagem escrita. O primeiro trabalho intitula-se Fazendo o doze na pista: um estudo de caso do mercado ilegal de drogas na classe média, de Carolina Christoph Grillo, é uma dissertação de mestrado em Sociologia, apresentada ao Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em 2008; o segundo se chama Fronteiras de tensão: um estudo sobre política e violência nas periferias de São Paulo, de Gabriel de Santis Feltran, tese de doutorado em Ciências Sociais, apresentada ao Programa de Doutorado em Ciências Sociais do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas- UNICAMP, no ano de 6 Em ordem alfabética são: BENITEZ, Maria Elvira Diaz. Nas teias do sexo: bastidores e cenários do pornô brasileiro. Tese defendida 2009. Orientador: Gilberto Velho. BEZERRA, Analúcia Sulina. A confraria de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Quixeramobim (Ceará-Brasil). Tese defendida em 2009. Orientadores: François Laplantine e Ismael Pordeus Jr. CASTRO, Elisa Guraná de. Entre ficar e sair: uma etnografia da construção social da categoria jovem rural. Tese defendida em 2005. Orientador Moacir Palmeira. CHAGAS RODRIGUES, Tiago Nogueira Hyra. Contando as violências: estudo de narrativas e discursos sobre eventos violentos em Florianópolis (SC). Dissertação defendida em 2006. Orientador: Theóphilos Rifiotis. FELTRAN, Gabriel. Fronteiras de tensão: um estudo sobre política e violência nas periferias de São Paulo. Tese defendida em 2006. Orientadora: Evelina Dagnino. GRILLO, Carolina Christoph. Fazendo doze na pista: um estudo de caso do mercado ilegal de drogas na classe média. Dissertação defendida em 2008. Orientador: Michel Misse. HIRATA, Daniel. Sobreviver na Adversidade: entre o mercado e a vida. Tese defendida em 2010. Orientadora: Vera Telles. MARRAS, Stélio Alessandro. Recintos e evolução: capítulos de antropologia da ciência e da modernidade. Tese Defendida em 2009. Orientadora: Lilia Schwarcz. MATOS JÚNIOR, Clodomir Cordeiro de. Violência, cidadania e medo: vivências urbanas em Fortaleza. Dissertação defendida em 2008. Orientador: Cesar Barreira. PAIVA, Luiz Fábio Silva. Os significados da morte: os discursos dos meios de comunicação sobre os crimes que ―abalaram‖ o Brasil. Tese defendida em 2012. Orientador: Cesar Barreira. RABOSSI, Fernando. Nas ruas de Ciudad del Este: vidas e vendas num mercado de fronteira. Tese defendida em 2006. Orientador: Federico Neiburg. SAUTCHUK, João Miguel Manzolillo. A Poética do Improviso: Prática e habilidade no repente nordestino. Tese Defendida em 2009. Orientador: Wilson Trajano Filho. STUTZMAN Renato. O profeta e o principal: a ação política ameríndia e seus personagens. Tese Defendida em 2006. Orientadora: Dominique Gallois. 43 2008; e, finalmente, o último trabalho que tem como título Sobreviver na adversidade: entre o mercado e a vida, de Daniel Veloso Hirata, tese de doutorado em Sociologia apresentada ao Programa de Pós-graduação em Sociologia do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo-USP, em 2010. Não pretendo trabalhar isoladamente cada tese ou a dissertação. Construí três problemas que me guiaram nesse trabalho de interpretação e que podem orientar o leitor menos iniciado nos textos clássicos da antropologia: 1) O trabalho de campo e os colaboradores7: como entrar em campo? Quais estratégias são agenciadas em campo? Como dialogar com os colaboradores da pesquisa? Como iniciar uma conversa? Como lidar com as entrevistas no momento de escrever o texto? 2) O trabalho de campo e o pesquisador: existe alguma relação entre vida privada, formação acadêmica e construções metodológicas do pesquisador? Qual? Quais estratégias textuais podem ser utilizadas para equacionar essa questão? 3) O trabalho de campo e a escrita etnográfica: como escrever uma etnografia? Qual o papel da escrita em sua feitura? Antes, como chamar o exercício de crítica que aqui se fará aos trabalhos etnográficos feitos em diferentes momentos e que apresentam em comum o esforço de compreender a diversidade de fenômenos sociais a partir do trabalho de campo? Esse exercício é possível transformando a crítica literária em algo que chamarei de crítica metodológica. Esta tem como objetivo levantar questões de ordem metodológica ressaltando aspectos que envolvem especificamente o trabalho de campo. Não pretendo fazer uma análise de conteúdo que demandaria uma iniciação do crítico em temas com os quais tem pouca afinidade. Portanto, aqueles três conjuntos de questões que irei problematizar são, além da abrangência teórico-metodológica, cruciais ao fazer etnográfico. Ademais, os textos que serão abordados tecem um rico diálogo com os autores clássicos da antropologia sem, no entanto, ficarem restritos a eles. O trabalho de campo guarda suas surpresas assim como o pesquisador deve estar preparado para puxar coelhos que não estão presentes na cartola dos ―outros‖. Finalmente, para realizar um artigo com cunho de crítica etnográfica que tem como ―campo‖ outros textos etnográficos, lanço mão de um ―comparatismo de base experimental‖ 7 Para Clifford (2002) aqueles que constituíam os informantes das pesquisas etnográficas não podem mais assim ser tratados. De uma postura passiva passam a ter uma posição ativa na constituição dos textos etnográficos na medida em que ele se constitui a partir das intersubjetividades que são dialógicas, conflitantes e consensuais. Contudo, no decorrer no artigo o leitor encontrará palavra informante como sinônimo de colaborador. Somente com essa observação é que posso assim fazê-lo. 44 (Sztutman, 2005, p. 26) que me permite aproximar fontes diversas que nesses casos são teses e dissertações. A posição social que ocupa pesquisador e colaborador Eis que chegou o momento de iniciar a pesquisa etnográfica. Após o tema escolhido e o objeto previamente delimitado o pesquisador não consegue esconder sua ansiedade em ir a campo. Concomitantemente sente-se angustiado com a ideia de não conhecer nada e ninguém.8 Sabe por meio dos velhos manuais que a figura do ―informante‖, a saber, um indivíduo-chave, bem relacionado, comunicativo (nos tempos coloniais ele dominava além da língua nativa a língua do pesquisador) e detentor dos códigos sociais, com o qual o pesquisador conta para se inserir com mais ―intimidade‖ em um dado grupo, é imprescindível para o desenvolvimento de sua pesquisa. As questões se impõem: se não conheço alguém como fazer para abordar os pesquisados em seu território, em sua morada, em seu bairro, com colegas, exercendo suas atividades diárias? Se, ao contrário, conheço, como manter-me enquanto pesquisador com uma postura crítica e distante diante do que é apresentado pelo colaborador? Não parece ser fácil esse trabalho de campo. Usar-se de estratégias de empatia até alcançar alguma familiaridade leva algum tempo. Ainda mais quando seu colaborador encontra-se envolvido em uma rede de negócios ilícitos. Nesse caso, conhecê-lo antecipadamente ou pertencer um ciclo de amizades que favoreça a entrada do pesquisador nesse mundo pode trazer ―vantagens‖ e ―desvantagens‖. A dissertação de Carolina Grillo (2008) brinda-nos com essa problemática. Trata o caráter ilegal dos negócios empreendidos por jovens entre vinte e trinta e cinco anos de idade da classe média carioca. Especificamente o comércio ilegal de drogas ―na pista‖. Esse comércio abastece tanto os indivíduos em sua vida privada, em apartamentos de classe média quanto em festas que reinventam o espaço público. As raves são o lugar preferido por esses 8 Difícil não lembrar-se de Malinowski (1976, p.23) e sua exposição desse momento crítico para o pesquisador: ―Imagine-se o leitor sozinho, rodeado apenas de seu equipamento, numa praia tropical próxima a uma aldeia nativa, vendo a lancha e o barco que o trouxe afastar-se no mar até desaparecer de vista. Tendo encontrado um lugar para morar no alojamento de algum homem branco – negociante ou missionário – você nada tem para fazer a não ser iniciar imediatamente seu trabalho etnográfico. Suponhamos, além disso, que você seja apenas um principiante, sem nenhuma experiência, sem roteiro e sem ninguém que o possa auxiliar – pois o homem está temporariamente ausente ou, então, não se dispõe a perder tempo com você. Isso descreve exatamente minha iniciação na pesquisa de campo, no litoral sul da Nova Guiné‖. 45 jovens para comercializar os produtos ilícitos: cocaína, LSD (ácido lisérgico), ecstasy, entre outros produtos. Realizadas frequentemente em sítios e grandes espaços públicos, as raves aglutinam grande quantidade de jovens que passam horas ―curtindo‖ músicas eletrônicas de variados estilos durante horas a fio. Nessas festas também está presente o comércio internacional que atravessa as relações entre os jovens da classe média carioca e por eles é mantido. Segundo a autora, observam-se muitas diferenças entre o tráfico realizado nos morros cariocas daquele realizado nos asfaltos. Dentre elas, a cultura da não violência, posto que ―o uso da força é evitado e condenado em questões relativas ao tráfico‖ (Grillo, 2008, p. 5). É recorrente o destaque que Grillo dá as estratégias que os jovens utilizam como meio de evitar a violência física, acenando para valores que são ―próprios‖ do grupo em questão. Por outro lado, fornece poucas informações sobre os grupos e quem são os traficantes da classe média. A pesquisadora afirma que não discorreu com mais detalhes a maneira através da qual se inseriu na ―rede social‖ para preservar o anonimato dos ―informantes‖. Ocorre que essa estratégia, por sua vez, compromete seu objetivo de selecionar os dados a partir dos ―valores compartilhados entre os pesquisados‖, uma vez que o leitor não tem acesso aos conflitos de valores entre o pesquisador e seus colaboradores. Esclarecer esses ―valores‖ depende da inserção e da alteridade vivenciada pelo etnógrafo em campo. Distanciando-se da teoria positivista, que conta com a ―boa vontade‖ do pesquisador para livrar-se dos valores que o constituem como ser social como condição fundamental na aquisição de um conhecimento objetivo e racional, Weber sustenta que os valores existem e não podem ser negados. São precisamente os valores do pesquisador que direcionam o seu olhar para determinados aspectos da realidade, na medida em que os seus interesses o orientam estudar determinados assuntos. Esse interesse ainda direciona o ―recorte‖ empírico do ―objeto‖ que condiciona os limites das possíveis relações causais estabelecidas e ordenadas pelo investigador, garantindo, dessa forma, a riqueza dos conceitos. Com efeito, quando o ―desarranjo das expectativas pessoais e culturais‖ (Clifford, 2002, p. 200) não é tratado, suscita a questão se os conflitos de fato existiram e perguntas se impõem: seria a estratégia utilizada por Grillo apenas para preservar o anonimato dos colaboradores, ou ainda, tratando-se da especificidade de seu tema, também preservar a relação que a pesquisadora mantém ou mantinha com tais colaboradores? Aonde nos levaria tal problematização? 46 A posição que o pesquisador ocupa na rede na qual se insere apresenta uma íntima relação com os caminhos trilhados com a ajuda do colaborador. Pensar que ele possa ter sido escolhido previamente complica ainda mais essa relação de poder. Ela não é menos legítima. Contudo, parece-me claro que sua contribuição ao trabalho etnográfico merece um capítulo importante na história da antropologia e em nos nossos trabalhos etnográficos. O texto de Grillo, ao suscitar essas questões de maneira explícita ou implícita, ganha novos contornos e lança uma questão desafiadora aos textos clássicos da antropologia que pouca referência fazem a figura do colaborador. Malinowski, que representa um divisor de águas na história da antropologia, faz referência ao ―seu guia branco‖ na introdução dos Argonautas do Pacífico Ocidental. Em suas palavras afirma que o ―guia branco possui uma rotina própria para tratar os nativos; ele [o guia branco] não compreende e nem se preocupa muito com a maneira como você, o etnógrafo terá que aproximar-se deles‖ (Malinowski, 1976, p. 23). Depois dessa experiência crê que as coisas serão mais fáceis. Bem, era isso o que ele pensava. Um dos princípios metodológicos apontado por Malinowski se refere exatamente em assegurar boas condições de trabalho que significa viver entre os pesquisados sem depender de outros ―homens brancos‖ (Malinowski, 1976, p.24). Quem seriam os homens brancos? Algumas pistas encontradas no diário de Malinowski publicado postumamente e na introdução dos Nuer, de E. E. Evans – Pritchard, que foi aluno de Malinowski, indicam que são representantes do governo colonial, como o governador-geral da localidade a ser estudada, administradores, magistrados, funcionários do governo, entre outros. Todos eles envolvidos de alguma forma no suporte necessário para a realização da pesquisa etnográfica. A questão que envolve a participação direta ou indireta do empreendimento colonial nos textos etnográficos clássicos da década de 1930 e 1940 é bastante polêmica. Entretanto, é possível afirmar com Eriksen e Nielsen (2007, p. 72) que nos primórdios da formação da antropologia como disciplina científica ―os antropólogos britânicos tendiam a interessar-se por pesquisas que direta ou indiretamente legitimavam o projeto colonial‖. Com efeito, o interesse em compreender a organização política das comunidades africanas que não se organizavam socialmente em um Estado centralizado, parece um aliado perfeito para os administradores de um governo indireto (ERICKSEN e NIELSEN, 2007). 47 Aparte qualquer polêmica, eram os ―homens brancos‖ os informantes dos etnógrafos recém-chegados ao campo. Certamente que não constituíam os únicos. É sabida a tentativa dos antropólogos vitorianos em ministrar cursos sobre o trabalho de campo aos agentes da administração colonial e o envio de questionários elaborados pelos antropólogos.9 Aliás, o próprio Malinowski chama atenção para o fato dos informantes apresentarem preconceitos e opiniões já sedimentadas que são prejudiciais ao pesquisador empenhado em sua análise objetiva dos fatos (MALINOWSKI, 1976, p. 24). Clifford (2002) chamou atenção para a pouca atenção dada aos informantes nos textos clássicos de antropologia, mantendo obscura sua contribuição na construção das etnografias. Se antes da institucionalização da disciplina o antropólogo de gabinete tinha acesso ao material etnográfico somente por meio das descrições realizadas por missionários, administradores, comerciantes e viajantes, serão eles aqueles responsáveis por mediarem a inserção do antropólogo-etnógrafo em campo. Agora acompanhado do informante, o pesquisador entrará em contato com outros indivíduos procurando vivenciar de fato a vida do ―nativo‖. Felizmente uma dada crença na ―objetividade‖ propiciou que os antropólogos discutissem o papel do informante na pesquisa de campo. Diga-se: alguns menos outros mais. Hoje quando se discute o lugar da polifonia nas pesquisas etnográficas, é interessante notar as implicações que o colaborador ainda apresenta na produção dos nossos textos. Nesse caso, destaco e problematizo o esforço metodológico de Carolina Grillo de pensar uma pesquisa realizada no contexto de ilegalidade. Suas escolhas metodológicas são importantes e, exatamente por isso, devem ser discutidas no que se refere à produção de um texto científico que tece suas estratégias de inserção em campo e de escrita. Com efeito, as vantagens e as desvantagens que falava páginas atrás se referem exatamente a esse ponto: como expor disputas de poder inerentes ao fazer etnográfico quando se utiliza de uma estratégia em que é preferível não revelar as nuances que envolveram a 9 Nas palavras de Kuper (1978, p. 127): ―Os governos coloniais não se opunham a que seus funcionários tivessem algumas noções da matéria. [...] O seu treino era breve e a ênfase recaía sobre o Direito e técnicas práticas como contabilidade, levantamentos topográficos etc. As línguas eram incentivadas mas poucos as dominavam, e a Antropologia era apenas uma das opções que competiam para atrair as atenções dos formandos. [...] Alguns administradores tiraram certo proveito de seu treinamento, mas um levantamento das pesquisas antropológicas realizadas por administradores coloniais perde em folga em uma comparação com as dos missionários. [...] Elas revelam como os administradores mais estudiosos eram atraídos para o estudo da flora e fauna de seus territórios, uma fuga, sem dúvida, de seus cansativos contatos com os habitantes humanos.‖ 48 inserção do pesquisador com o tema em questão? A autora apenas esclarece que sua inserção em campo ocorreu antes do interesse em pesquisá-lo. Como frequentadora de forrós entre os anos de 1999 e 2002 conheceu alguns dos seus futuros informantes (GRILLO, 2008, p. 7). Embora não saibamos ao certo o ―valor‖ que é dado naquele momento a palavra ―conhecer‖, o certo é que uma nuvem espessa impede de enxergarmos o desenrolar das afecções que posteriormente a fizeram voltar seu olhar para o grupo de traficantes. São curiosidades de cunho exclusivamente privado? Creio que não. Sabe-se que as orientações subjetivas determinam o recorte, o grau de envolvimento e desdobramento do trabalho de pesquisa. Tanto mais quando a pesquisadora já possui um contato prévio com seus informantes. Situação diferente daquela que foi vivenciada por Malinowski que ao chegar as Ilhas Trobriand não conhecia de antemão seus colaboradores. A cidade na qual ela vive e pesquisa abre-se como um campo desconhecido, múltiplo e cheio de regras, que começam a se descortinar quando a autora narra as relações de amizade e de comercialidade envolvendo os jovens da classe média carioca. Grillo (2008, p.9) que ao final de sua introdução escreve que construiu um texto até certo ponto polifônico, utiliza-se da estratégia de narrar as histórias contadas sem, no entanto, transcrever as entrevistas que não puderam ser gravadas. O principal colaborador da pesquisadora, João, é apresentado de modo fragmentado, a partir de uma narrativa forjada pela autora para familiarizar o leitor com os seus interlocutores. Assim João e seu irmão Pedro são apresentados pouco a pouco, entrecortados por outros colaboradores que aparecem, desaparecem e voltam a aparecer. Se as lacunas deixadas pela falta de problematização de sua inserção em campo são insuperáveis, o papel que os colaboradores assumem em uma pesquisa etnográfica na tessitura do texto fica bem grafado no trabalho de Grillo. A heteroglossia10 que invade os textos polifônicos talvez reclame das vozes que faltaram em seu texto, mas não da forma como outras foram ouvidas e divididas conosco. Construções metodológicas no trabalho de campo 10 A heteroglossia bakhtiniana é apropriada por Clifford (2002) para ressaltar a diversidade de vozes que nem sempre estão presentes nos textos etnográficos e quando estão podem aparecer de forma bastante domesticada pelo conjunto analítico. 49 Um contraponto interessante é o trabalho de Daniel Hirata (2010, p. 10) que ―antes da frequente reflexão da relação entre o pesquisador e o pesquisado‖, optou por ―compreender as relações entre o pesquisador, o saber por ele produzido e seus efeitos de poder.‖ Como trata sobre a gestão da ilegalidade como efeito de poder e controle do espaço urbano, o autor se antecipa a qualquer armadilha de poder que alinhe seu estudo a uma tentativa de avaliar a gestão do espaço urbano, as políticas públicas de combate à violência, ao tráfico de drogas e ao mercado ilegal de bens manufaturados. Sua precaução soa como um prelúdio para a elaboração de trabalhos antropológicos e sociológicos que tratam os ilegalismos, mas não somente. Se no trabalho de Grillo percebe-se um calculo racional mediando as inserções e transações dos indivíduos no mercado ilegal de drogas, Hirata foge a essa interpretação ou àquela que veria nessa ações uma postura hedonista diante da vida, para afirmar que as escolhas dos indivíduos são de caráter moral, sobretudo quando se trata de ―viver na adversidade‖. Nesse sentido, o que está em jogo é como os colaboradores significam suas ações diante das regras formais que procuram normatizar as ações dos indivíduos e como os pesquisadores, envolvidos nessa teia, forjam estratégias de pesquisa para escapar dos efeitos de poder inerentes ao fazer etnográfico. Chego aqui ao ponto fulcral deste impasse: a convergência entre saber e poder presente no fazer etnográfico. Quem são meus colaboradores? Quem é o pesquisador diante dos ―outros‖ a serem pesquisados? O que eles sabem? O que quero saber como pesquisador? Qual meu grau de influencia/poder sobre eles? E dele sobre mim? Quais trocas são agenciadas na interrelação entre pesquisador-pesquisado? Hirata narra a primeira vez que chegou à Favela da Colina, nome fictício de um bairro na cidade de São Paulo. Foi em 2001, como bolsista de iniciação científica de uma pesquisa liderada pela professora Vera da Silva Teles. A partir da narrativa cruzada dos moradores, a equipe que compõe o GENI – Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos - USP – observou primeiramente uma série de ocorrências que denunciavam um lugar específico do bairro como mais violento. Uma segunda circunstancia que despertou a curiosidade dos pesquisadores foi a notícia de que um ex-presidiário, chamado Paulo, estava interessado em contar sua história. Através de seu contato a equipe foi apresentada a outros parceiros que formavam uma extensa rede de uma economia informal, ilegal, e ilícita. Ainda que o objetivo inicial do grupo fosse estudar as relações entre cidade e trabalho, problematizando a exclusão 50 no mercado de trabalho e segregação espacial, deparou-se com o tema da violência a partir das estratégias que os indivíduos utilizam no seu dia a dia para contornar o desemprego, a baixa escolaridade, a falta de infraestrutura urbana, a falta de acesso à mobilidade urbana, entre outras faltas. Foi, portanto, a partir da experiência no GENI que Hirata teve acesso aos seus principais colaboradores: piolho, Hernandes e Paulo. Piolho é dono de uma birosca que vende todo tipo de produto contrabandeado e conta com a participação dos fiscais da prefeitura para manter seu negócio funcionando. Hernandes é um ―perueiro‖ nascido em Alagoas que depois de várias experiências profissionais, opta por trabalhar com os transportes clandestinos e ganha destaque em sua comunidade por lutar pela regularização de seu trabalho junto à prefeitura de São Paulo. Paulo é dono de uma biqueira bem localizada no bairro e bastante frequentada. Certamente que a tese em questão traz muita riqueza de detalhes sobre a vida de cada um deles que deixo para o leitor curioso perscrutar. Contudo, para efeito deste artigo, quero destacar a diferença de trajetória e de construção metodológica de Hirata e Grillo. Enquanto o primeiro acessa o campo por meio de um grupo de estudo, Grillo acessa-o por meio de uma experiência individual não condicionada ao mundo acadêmico. A experiência de Hirata o leva a problematizar o lugar de seu trabalho na dinâmica de poder que o constitui e o extrapola, dedicando metodologicamente uma parte de sua tese para esclarecer a questão intricada que envolve saber acadêmico, gestão pública e controle urbano. No segundo caso, a experiência com o mundo ilegal extra-acadêmico que antecede suas escolhas científicas leva a pesquisadora a reavaliar os princípios metodológicos que reconfiguram os textos etnográficos contemporâneos e seus critérios imperiosos de esclarecer a teia de poder que envolve o pesquisador. Se por um lado o poder é sorrateiro por outro o trabalho de campo o surpreende de todas as formas. O último caso que quero destacar está presente na etnografia de Gabriel Feltran (2008) realizada no distrito de Sapopemba, na zona leste da cidade de São Paulo, empreendida entre os anos de 2005 e 2007, que trata da relação entre política e violência. Centrada nos casos de violência que envolvem os adolescente daquela periferia, a tese também discorre sobre a rotina dos seus familiares e ação política dos militantes do CEDECA – Centro de Defesa da Criança e do Adolescente. Segundo o autor, a pesquisa teve início a partir de um telefonema para Valdênia em 2005, mulher extremamente atuante na comunidade e militante 51 dos direitos humanos, sua principal colaboradora e promotora de sua inserção em campo. Com a sua mediação foi possível realizar uma reunião na sede do CEDECA e entrar em contato com a história de alguns jovens e adolescentes da região. Suas observações foram centradas em caminhadas pelo bairro e visitas domiciliares a princípio mediadas pelos funcionários do CEDECA. Vivenciou reuniões e eventos públicos no bairro como passeatas e manifestações e desenvolveu atividades junto à referida instituição. Dormiu algumas noites no bairro com o intuito de acompanhar a rotina noturna, quando se deparou com ruas ocupadas estrategicamente por jovens ―traficantes‖. Realizou entrevistas formais. Foram 1.500 páginas de transcrição de 32 entrevistas gravadas em áudio de um total de 70 entrevistas realizadas. Quanto fôlego! Mas é possível pensarmos que sua pesquisa começou a se desenhar de fato nas releituras do caderno de campo. Foi lá que ele reencontrou o descompasso entre as palavras que são pronunciadas e que trafegam em rotas de sentimentos até chegarem ao pesquisador envolvido pelas densas linhas que perpassam sua experiência de campo. Ao relê-lo o pesquisador experimenta e radicaliza a condição do etnógrafo: o estranhamento diante de si mesmo: Três anos depois de ter me deparado com essas histórias, tendo encontrado várias outras vezes estas personagens, a intensidade emocional de nossas conversas arrefeceu, e cedeu lugar as inquietações mais propriamente analíticas. Três anos depois, lendo meus primeiros diários de campo acerca desses primeiros encontros, sinto algo estranho, quase vergonha. É como se eu não fosse mais o mesmo que escreveu aquilo. Este percurso, do impacto pessoal e político à assunção de um olhar mais analítico tem sido recorrente nas etnografias que fiz, nos últimos anos. (FELTRAN, 2008, p.52) Quantas surpresas nos reserva a tarefa de ―etnografar‖. Diante do ―outro/colaborador‖ ou diante dos cadernos de campo, entrevistas e anotações, somos levados a lidar com os deslocamentos e as fronteiras que se constituem na tarefa de falar/escrever sobre o ―outro‖. Os recursos metodológicos são diversos e auxiliam em sua compreensão. Mas uma incompletude ronda nossa tarefa. Na verdade, um duplo: em todo outro ―existe o próximo – esse que não sou eu, esse que é diferente de mim, mas que posso compreender, ver e assimilar – e também o outro radical, (in)assimilável, incompreensível e inclusive impensável‖ (SKLIAR, 2003, p. 26). 52 Estratégias textuais diante do “outro” O processo de sentar-se diante do computador e iniciar a elaboração do texto etnográfico envolve outra série de decisões que devem ser tomadas pelo pesquisador. Tomado por anotações, entrevistas e livros decide o quê e como serão fixados no tempo os elementos de uma cultura que é dinâmica e mutável. Concomitantemente vai delineando-se a estrutura da narrativa eleita pelo pesquisador-escritor. Pode ser que opte por uma linguagem mais clássica pautada na autoridade interpretativa em que o texto se apresenta como discurso autônomo. Nesse caso a invenção de um ―autor‖ generalizado é recorrente. Para falar em nome do ―outro‖ cria-se, por exemplo, ―os trobriandeses‖, ―os nuer‖, ―os dogon‖, ―os balineses‖, ―os brasileiros‖ ―os cariocas‖ e ―os traficantes‖. Pode-se, contrariamente, adotar uma perspectiva mais dialógica e procurar inserir no texto etnográfico as falas dos colaboradores. Mas não apenas para corroborar a análise do autor. Trazem consigo as contradições, as marcas dos diferenciais de poder, os conflitos e posições divergentes entre os indivíduos que se interrelacionaram subjetivamente e que no momento de narrar o interpela a escrever um texto polifônico. (CLIFFORD, 2002). Os trabalhos de Grillo, Feltran e Hirata apresentam capítulos exclusivamente dedicados a uma discussão teórica em torno das categorias utilizadas ao longo do texto. Feltran, especificamente, trabalha as categorias de ―política‖ e ―violência‖ sublinhando os rumos que tomaram os movimentos sociais urbanos no Brasil nas últimas três décadas para os quais convergiria a experiência da política e da violência que conforma o espaço público. Ressalta como sua trajetória de campo o levou ao encontro das teorias que discutem a formação do espaço público, sobretudo como espaço político que se constitui por meio da violência. Hirata, por sua vez, faz uma explanação relacional bastante densa entre o Foucault que discute os ilegalismos que são efeitos de poder de uma gestão diferencial das práticas ilegais dos indivíduos e a escola de Chicago, discutindo seu método de análise conhecido como ―ecologia urbana‖. Seu intuito, exposto páginas atrás, é acionar a incestuosa relação entre o saber que constitui a gestão urbana e seus efeitos de poder que envolve aqueles que sobrevivem na informalidade e ilegalidade. Por fim, o texto de Grillo apresenta a introdução na qual se pode acompanhar o seu percurso metodológico, já bastante detalhado nas páginas 53 anteriores, suas escolhas conceituais e teóricas. Sua opção por dividir os capítulos (1. O tráfico na pista; 2. As relações comerciais; 3. O morro e a pista; 4. Sucesso e fracasso) dá uma vívida sensação de acompanharmos as trajetórias dos seus colaboradores in loco. Embora fique a sensação de que a pesquisadora pareça se guiar demasiadamente pelo olhar e interpretações de seu principal colaborador, seu texto é leve e tão envolvente em detalhes quanto as narrativas de João, Bernardo e Pedro. Dos três textos, o de Hirata parece apresentar uma divisão mais radical entre trabalho empírico e etnográfico. Sua escolha em construir uma primeira parte dedicada a uma discussão de caráter teórico se justifica pela ilegalidade que cerca as histórias narradas no segundo momento. Contudo, a análise que empreende dos seus interlocutores inseridos em uma trama urbana não prescinde da qualidade do texto que envolve o leitor com as reviravoltas positivas e negativas que ocorrem nas vidas de piolho, Hernandes e Paulo. As citações das entrevistas nem sempre acrescentam afecções que estão presentes em suas descrições minuciosas da vida do ―outro‖. Quantas incursões requer a tarefa de trazê-lo em carne-viva e oferecê-lo ao leitor. Feltran estrategicamente concede um lugar protagonista ao seu diário de campo. Um trecho dele é a epígrafe escolhida para revelar ao leitor como o pesquisador chegou a campo. Nada mais polifônico do que revelar vozes que não são mais do pesquisador, com as quais ele mantém uma relação de estranhamento. Daí em diante são muitas as vozes que transitam no texto. Vozes de Pedro, Neto, Ivete, Maria, Cláudia e Clarisse. Texto absurdamente povoado. Nota-se que cada um a seu modo traça estratégias de observação, aproximação, vivência, tradução e escrita para nos revelar o ―outro‖ em sua complexidade. Trata-se de uma tradução cultural, dos códigos sociais, dos significados e valores compartilhados entre os sujeitos da pesquisa com o pesquisador. Porquanto essa tradução não seja completa, aproximando-se, segundo Paz (1991, p. 18), de uma caricatura da realidade, é um processo que em que o pesquisador ativamente trabalha decodificando os significados a partir de um olhar ―domesticado‖ cientificamente pautado no relativismo cultural, princípio metodológico de compreensão da diversidade da cultura humana que pode ser definido segundo a fórmula: ―pede-nos que mudemos sem mudar que sejamos outros sem deixarmos de ser nós mesmos‖ (PAZ, 1991, p. 29). 54 Superados os obstáculos anteriores não necessariamente nessa ordem, a escrita etnográfica continua a ser o momento para o qual todas essas questões convergem. Os autores apresentam discussões teóricas, debates metodológicos, citações e recursos narrativos para aproximar nós, leitores, pesquisadores e curiosos, da sua experiência. Recorrem a diversas modalidades de autoridade etnográfica, mesclando-as e forjando novos caminhos da análise. O antropólogo polonês Paul Radin, por exemplo, escreveu na década de 1940, etnografias bastante inovadoras para seu tempo, pois os informantes tinham espaço nos textos etnográficos para expressar suas opiniões antecipando assim em meio século o movimento pós-moderno na antropologia, ao qual pertence Paul Rabinow, Vicent Crapanzano, James Clifford, entre outros. (ERICKSEN e NIELSEN, 2007, p. 74). Atualmente os desafios são outros. No contexto do pós-colonialismo, a ―etnografia brasileira‖ feita no Brasil tem muito a ensinar. A começar pelos caminhos trilhados por Grillo, Feltran e Hirata. Considerações finais Ao final do curso estávamos longe de procurar definir o que é etnografia. Mas fica a sensação de que também é uma arte assim como Deleuze (1992, p.13) defende que a ciência, a própria arte e a filosofia o são. Toda a sua criação se faz em diálogo constante com a exterioridade. São movimentos de elétrons, teias e coletivos que forjam a trama do cotidiano. Tramas diversas, heterogêneas, singulares. De fato, se toda criação é um ato singular (Deleuze, 1992, p. 15) é somente a partir dela que podemos nos aproximar dos traços singulares que compõem e confere sentido a existência. Os autores problematizaram o quão desafiador é escrever ―com‖. Aliás, Deleuze afirma a potencialidade dessa estratégia. No caso do fazer etnográfico, sabe-se o quanto é fundamental que o pesquisador deixe-se afetar pela exterioridade na qual envereda, procurando signos, sinais, pistas, sentidos, que ele ajuda a compor. Na favela ou na pista, com traficantes ou perueiros, na legalidade ou ilegalidade, os pesquisadores se depararam com o desafio de construir caminhos metodológicos que nos faz pensar de forma concreta sobre os impasses implicados nas etnografias feitas no Brasil. É claro, e não menos importante destacar, que os autores não dispensam a companhia dos textos clássicos. São companheiros de todas as horas. Levam-se para o campo os conselhos e as dificuldades por eles assinaladas 55 com o claro objetivo de não ser pego de surpresa. Contudo, elas teimam em aparecer e assim intima o pesquisador a criar novas estratégias de pesquisa. Curioso observar que nesse exercício já não se distingue o que são velhos problemas com novas roupagens ou novos problemas com roupas gastas e surradas. Talvez por que não se trata de classificá-los nem como ―velhos‖ e muito menos como ―novos‖. Os trabalhos em questão expuseram a dinamicidade com que a etnografia se desenvolve sem que abandonemos problemas que alguns dizem insuperáveis enquanto outros deixam de lado. Diante dos colaboradores, dos cadernos de campo e do papel em branco a questão sempre recai no exercício da alteridade e nos agenciamentos teóricos, analíticos e maquínicos que ela traça. Referências CLIFFORD, James. A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. Tradução de Patrícia Farias. 2 ed. 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São Paulo: Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo-USP, 2005. WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. 3 ed. Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília, 1994. ____________. Max Weber. (organizado por Gabriel Conh) 6 ed. São Paulo: Ática, 1997. 57 “Biutiful”: revisitando a Teoria Crítica a partir de um caso ficcional1 “Biutiful‖: revisiting the Critical Theory from a fictional case Fábio Gomes de França2 Recebido em 30/03/2013; aceito em 02/12/2013. ___________________________________________________________________________ Resumo: Este paper consiste em mostrar, a partir da análise de algumas cenas do filme ―Biutiful‖, a dinâmica atual das relações sociais mediada pelo alcance das consequências desencadeadas pela razão humana, a qual faz parte do projeto da modernidade. Para tanto, revisitamos os dois principais fundadores da Teoria Crítica, Adorno e Horkheimer, de modo a destacar o quanto suas contribuições teóricas permanecem válidas para compreendermos o significado da modernidade dialética. Palavras-chave: Razão; modernidade; teoria crítica. Abstract: This paper consists of the showing through the analysis of some scenes of the film ―Biutiful‖, the current dynamics of social relationships mediated by the range of consequences by human reason, which is part of the project of modernity. To this end, we revisit the two main founders of Critical Theory, Adorno and Horkheimer, in order to highlight how their theoretical contributions remain valid for understanding the meaning of dialectical modernity. Keywords: Reason; modernity; critical theory. Introdução A modernidade surgiu vinculada a ideais emancipatórios que delegaram ao homem, por intermédio de sua capacidade racional de entender e transformar o mundo e a si mesmo, a missão de concretizar a sua liberdade como ente autônomo e capaz de autorrealização. Para tanto, o homem desenvolveu, de acordo com sua crença na força do progresso, as ferramentas capazes de realizar esse intento como a técnica, a ciência, a política, a filosofia, o cálculo capitalista, o industrialismo. No entanto, inicialmente ver-se-á que essa relação entre razão humana e modernidade esteve vinculada a premissas que desenvolveram um progresso caracterizado por avanços e consequências. Tivemos, portanto, o estabelecimento de uma razão promotora do paradoxo 1 Uma versão preliminar deste artigo foi apresentada no VI Colóquio Internacional de Ciências Sociais, 08 a 10 de outubro de 2012, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em Natal. 2 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Campus João Pessoa. E-mail: [email protected]. 58 que colocou o homem como vítima de si mesmo frente a sua capacidade de dominar a natureza e de compreender existencialmente as suas próprias faculdades. Diversas explicações foram teorizadas no campo das ciências humanas e da filosofia3 sobre esse paradoxo moderno, mas interessou-nos destacar a Teoria Crítica como um projeto que usou da razão para criticar a legitimação dessa mesma razão, que passou a conceitualizar a realidade e o ―mundo da vida‖ por meio de um positivismo pragmatista e de uma metafísica especulativa. Adorno e Horkheimer foram as figuras destacadas desse sentimento crítico marcado pelo pessimismo num mundo dominado pelos princípios técnico-racionais que alcançaram todas as esferas da existência humana, segundo eles. Por fim, para demarcar o entendimento presente do modo crítico de analisar o governo da razão sobre o homem na realidade por meio da Teoria Crítica4, destacar-se-á as imagens do filme ―Biutiful‖, numa interrelação com a obra a Dialética do Esclarecimento, destacadamente o grande ícone do pensamento conjunto daqueles autores. 1 – A razão como sentido da modernidade Em sua obra ―Tudo que é sólido desmancha no ar‖, Marshall Berman nos diz que ―ser moderno é viver uma vida de contradição. É sentir-se fortalecido pelas imensas organizações burocráticas que detêm o poder de controlar e frequentemente destruir comunidades, valores, vidas; e ainda sentir-se compelido a enfrentar essas forças‖ (1986, p. 13). Ainda segundo esse autor, que buscou em sua obra mostrar o significado do que é viver, compreender e sentir esse mundo dito ―moderno‖, a modernidade configura-se como uma ―experiência de tempo e espaço, de si mesmo e dos outros, das possibilidades e perigos da vida – que é compartilhada por homens e mulheres em todo o mundo‖ (Ibidem, p. 15). Na busca do entendimento desse sentido paradoxal que concretiza o processo de modernidade, ainda remetemo-nos à visão bermaniana sobre sua interpretação da estória de Báucis e Filêmon, que se encontra no capítulo sobre o ―Fausto de Goethe‖, e que, portanto, diz respeito a um mito grego5 inserido na peça goethiana. 3 Destacamos aqui toda a tradição do pensamento ocidental com ênfase para autores como Max Weber, Karl Marx, Friedrich Nietzsche, Sigmund Freud e Michel Foucault. 4 Falamos aqui da Teoria Crítica desenvolvida especificamente pela 1ª geração da escola de Frankfurt, destacadamente àquela desenvolvida no pensamento de Adorno e Horkheimer. 5 Para um melhor conhecimento do mito de Báucis e Filêmon ver Bulfinch (2006). 59 Ao revisitar o mito, segundo Berman (1986), Goethe nos faz observar que um casal de velhos chamados de Báucia e Filemo – nomes tomados de empréstimo do mito - vive numa pequena colina, local que sempre foi a morada do casal que dava acolhida a marinheiros náufragos e sonhadores. Só que os velhos encontram-se no caminho das transformações empreendidas por Fausto, pois na sua visão de querer construir grandes obras que o traduzam como ―o Fomentador‖, Fausto pretende destruir a morada do casal de velhos, que são ―pessoas que estão no caminho – no caminho da história, do progresso, do desenvolvimento; pessoas que são classificadas, e descartadas como obsoletas‖ (Ibidem, p. 66). Por não aceitar as propostas insidiosas de Fausto para deixarem o local, o outro lado do progresso mostra-se por intermédio de Mefistófeles, que a pedido de Fausto queima a morada do casal com seus corpos e toda uma história que não importa aos princípios transformadores do discurso progressista da modernidade. Desse modo, Fausto é o símbolo do que Berman (1986) interpreta como a ―Tragédia do Desenvolvimento‖, pois ele carrega em si um potencial criativo-destruidor disseminado pelo ideal progressista da modernidade. É nesse contexto que Marx e Engels também nos ajudam a entender essa dialética moderna que encontra na fusão com o desenvolvimento do capitalismo e da burguesia (elementos caros à modernidade) a fundamentação de sua existência: A grande indústria criou o mercado mundial, para o qual a descoberta da América preparou o terreno. O mercado mundial deu um imenso desenvolvimento ao comércio, à navegação, às comunicações por terra. Subjugação das forças da natureza, maquinaria, aplicação da química na indústria e na agricultura, navegação a vapor, ferrovias, telégrafo elétrico, exploração de continentes inteiros [...]. A burguesia moderna não deixou subsistir de homem para homem outro vínculo que não o interesse nu e cru, o insensível ―pagamento em dinheiro‖ (MARX ; ENGELS, 2009, p. 47-50). Heller e Fehér (1995) esclarecem ainda mais esse sentido dialético da condição moderna de existência ao afirmarem que a ―dialética é a dinâmica da modernidade‖ (p. 53). Ao analisarem o que chamam de ―pêndulo da modernidade‖, esses autores constatam que é próprio a essa época de mudanças, que deixou para trás um ordenamento pré-moderno preso à tradição feudal, uma dinâmica que, ao se colocar de forma anterior ao processo de ordenação social moderna alcança todos os recônditos do planeta. Essa dinâmica da modernidade consolida-se por meio de conflitos internos que, através da presença de uma constante 60 negação, sempre enseja novos ciclos e superações, nesse sentido tornando inevitável a contradição moderna em todos os níveis da vida social humana. Dessa forma, Heller e Fehér (1995) ainda destacam que a modernidade quando faz oscilar o seu pêndulo em variados extremos (individualismo x comunitarismo, Estado provedor x mercado autoregulado, secularização x preservação do sagrado), centra-se em três lógicas principais, ou seja, a divisão funcional do trabalho, a arte de governar e a tecnologia. A percepção teórica sobre o pêndulo da modernidade torna-se interessante para enxergarmos que o processo de construção do mundo moderno não se desenvolve num caminho unilateral. É nesse sentido que Bauman (1998) demonstra, ao explicar o significado sociológico do Holocausto cometido pelos nazistas que esse fenômeno ―não foi uma antítese da civilização moderna e de tudo o que ela representa. O Holocausto pode ter meramente revelado um reverso da mesma sociedade moderna cujo verso, mais familiar, admiramos‖ (p. 26). O que está presente nessa certificação é que ―em nenhum momento de sua longa e tortuosa execução o Holocausto entrou em conflito com os princípios da racionalidade. Ao contrário, resultou de uma preocupação racional gerada pela burocracia fiel a sua forma e propósito” (Ibidem, p. 37, grifos do autor). Acrescentamos assim que o modo racional de apreensão do mundo a partir da relação sujeito x objeto propalado pelo modelo científico centrado no método matemático-experimental e na filosofia do sujeito estabelecida pelo cartesianismo-kantismo não pode deixar de ser observado quando se fala de modernidade, pois eis que aí reside seu cerne. Na sua ―Ideia‖ de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita‖, Kant (1986) destaca as bases de entendimento do principal propulsor de uma concepção moderna de apreensão e construção do mundo. Para ele, a razão deve ser o elemento condutor da espécie humana no desenvolvimento do devir histórico, pois ―a razão é a faculdade de ampliar as regras e os propósitos do uso de todas as suas forças muito além do instinto natural, e não conhece nenhum limite para seus projetos‖ (Ibidem, p. 11). Por meio desse pensamento positivo em relação à razão, Kant acredita que essa última diz respeito a um ―propósito da natureza‖ no que concerne à vida humana e, nesse sentido, a razão é uma condição imanente ao homem porque ―a natureza quis que o homem tirasse inteiramente de si tudo que ultrapassa a ordenação mecânica de sua existência animal e que não participasse de nenhuma felicidade senão daquela que ele proporciona a si mesmo, por meio da própria razão‖ (Ibidem, p. 12). 61 Para Kant, é a razão que capacita o homem a encontrar os fundamentos morais e políticos que permitem determinar uma história de equilíbrio entre os indivíduos e Estados, dado o potencial humano de competição e egoísmo que surge nas relações que os indivíduos estabelecem entre si. A razão localiza-se, portanto, para além dos instintos e como forma de mediação para conhecer a realidade, sendo imanente ao próprio ser humano através da natureza. Se assim o é, ―podemos, por meio de nossa disposição racional, acelerar o advento de uma era feliz para os nossos descendentes‖ (Ibidem, p. 20). Nesse caminho, ao destacarmos a célebre resposta de Kant à indagação ―Que é o iluminismo?, sintetizamos com suas próprias palavras que o iluminismo – atributo da própria razão – ―é a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio é culpado‖ (KANT, 1784, p. 11) e, entenda-se menoridade nesse caso como ―a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem‖ (Ibidem, p. 11). Assim, de acordo com o exposto até aqui sobre o pensamento kantiano e sobre sua crença de que é a razão que conduz cada homem ao ato de pensar por si mesmo na busca de sua realização, mesmo que o próprio Kant reconheça à sua época que vive um tempo de iluminismo, mas não uma época esclarecida, temos que reconhecer que foi a partir desse pensamento racional que se desenvolveu ideais como o progresso, a felicidade, a liberdade e o desenvolvimento humanos, todos esses elementos amadurecidos dentro do processo de modernidade. Nessa proposição histórico-filosófico-racional que encontrou no pensamento kantiano um expoente teórico para se desenvolver6, descortinou-se um processo que aproximou esferas econômicas, sociais, políticas, ideológicas, filosóficas e culturais (a saber, a Revolução Francesa, a emergência do capitalismo e a derrocada feudal, a Revolução Industrial, a reforma protestante, a consolidação do Estado-nação, o próprio kantismo). Guiamo-nos, pois, para a compreensão atual, em termos sociológicos, de como o próprio homem, em meio a essa macroestruturação de base racional encontrou na modernidade não só o significado de sua pretensa liberdade e emancipação autônoma proporcionada pela razão, mas outros parâmetros 6 Reconhecemos que esse processo de emancipação da razão iniciou-se bem antes da modernidade na história humana. A eclosão do modo racional de pensar na Grécia antiga inaugurando a filosofia ocidental, bem como, o período renascentista, serve-nos de referência para validar essa observação. No entanto, a razão iluminista do século XVIII, que encontra no pensamento kantiano sua grande expressão, tem suas características peculiares por ter encontrado outros motes legitimadores de sua expansão (que não só o pensamento filosófico ou a arte) como a técnica, a ciência, o industrialismo e o capitalismo em todas as suas nuances. Além disso, ver-se-á adiante, de acordo com a exposição aqui desenvolvida, que o processo de domínio da natureza por parte do homem através da razão já se encontrava desenvolvido na própria experiência mítica. 62 opostos que tiveram também a razão como seu regime fundador. Falamos, pois, de uma relação entre razão e modernidade que se baseia em conquistas e consequências, visto que esses dois vieses são condições intrínsecas do mesmo processo, e um não pode existir sem o outro, já que a modernidade, como vimos, é intrinsecamente dialética. Para que possamos construir uma crítica a essa modernidade dialética, ressaltando os males advindos de sua outra face, temos que ―lutar contra a modernidade repressiva senão usando os instrumentos de emancipação que nos foram oferecidos pela própria modernidade: uma razão autônoma, capaz de desmascarar as pseudolegitimações do mundo sistêmico‖ (ROUANET, 1987, p. 25). Essa crítica à modernidade através da própria razão que a sustenta será adiante revisitada a partir de um movimento intelectual que surgiu na Alemanha na década de 30 do século passado, e que teve como expoentes nomes como Adorno, Horkheimer e Marcuse. Acreditamos que mesmo em meio às críticas sofridas por esse movimento7 e aos deslocamentos empreendidos pelos diversos pensadores ligados de forma intrínseca ou extrínseca a essa conjuntura teórica, torna-se válido mostrar que suas explicações ainda permanecem importantes para melhor entendermos a atualidade. Além disso, assumimos a postura habermasiana em crer na modernidade como ―um projeto inacabado‖ (HABERMAS, 2000). 2 – O surgimento da Teoria Crítica No ano de 1923 foi fundado na cidade de Frankfurt, por iniciativa de Félix Weil, com donativos de seu pai, o Instituto para Pesquisas Sociais, que tinha o objetivo de buscar a fundamentação de um autêntico marxismo. Inicialmente, assumiu a direção desse Instituto Kurt Gerlach, mas com sua morte em 1923, Carl Grünberg tornou-se diretor, o que perdurou até Max Horkheimer assumir a chefia do Instituto no ano de 1931. E foi exatamente esse último, no ano de 1937, em artigo publicado na revista oficial do Instituto (a Zeitschrift fuer Sozialforschung), intitulado Tradizionelle und kritische Theorie (Teoria tradicional e Teoria crítica), que foram lançadas as bases da Teoria Crítica. Os desdobramentos históricos acabaram por tornar conhecidos todos os que tiveram contato com o Instituto para Pesquisas Sociais como teóricos da Escola de Frankfurt, visto o 7 Ver Honneth (1999) e Habermas (2000). 63 local de fundação do Instituto, apesar de não ter existido um único universo de pesquisas pelos diversos autores. Na verdade, tal denominação torna-se referência depois que os principais pesquisadores do Instituto retornaram para Frankfurt após o exílio nos Estados Unidos – especialmente Adorno e Horkheimer - no ano de 1950, com o término da 2ª Grande Guerra. Em síntese, a Escola de Frankfurt ―é assim a etiqueta que serve para marcar um acontecimento (a criação do Instituto), um projeto científico (intitulado ―filosofia social‖), uma atitude (batizada de ―Teoria Crítica‖), enfim uma corrente teórica constituída por individualidades pensantes‖ (ASSOUN, 1991, p. 19, grifos do autor). Por se tratar de um ―projeto científico‖ que habilita suas formulações por meio de uma ―filosofia social‖, a Teoria Crítica surge, portanto, como tentativa de estabelecer parâmetros que pudessem realizar um programa teórico interdisciplinar que abarcasse a crítica filosófica com as diversas ciências empíricas, de forma a basear-se no materialismo marxista. Essa busca expressou-se numa clara crítica à filosofia da história hegeliana que, segundo Horkheimer teria sido a última concepção teórica a promover a junção num único sistema de pensamento da análise da realidade empiricamente estabelecida com uma condição histórico-filosófica com base na razão. Só que, no hegelianismo existia um distanciamento entre a pesquisa empírica e a filosofia que deveria ser superado. Esse distanciamento fundamentava-se na crença hegeliana da identidade de um sujeito diante do mundo através de sua razão por meio de explicações idealistas. Essa emancipação do sujeito numa lógica de contradição posiciona a Teoria Crítica como aquela que vai rejeitar a teoria da identidade em Hegel. ―A Teoria Crítica instalar-se-á então obstinadamente sobre as ruínas do templo da Identidade para enfrentar o irracional da história‖ (Ibidem, p. 25). Desse modo, o que se torna relevante para Horkheimer é mostrar que ―as estruturas que se encontram nas coisas não provêm do sujeito que pensa e que observa, mas são objetivamente fundamentadas‖ (Ibidem, p. 29). Essa forma objetiva em que a razão se consolida encontra expressão no positivismo e no pragmatismo científico, o que estabelece a ruptura com uma metafísica que busca a verdade. Em seu artigo Teoria Tradicional e Teoria Crítica, Horkheimer (1975) nos mostra que a ciência, com seu modo tradicional de produzir conhecimento, destaca como relevante apenas a observação dos fatos empíricos de forma a transformá-los em conteúdos conceituais e teóricos. Esse positivismo científico articula-se com base no cálculo racional matemático que, sendo par excellence pragmatista, torna a relação sujeito x objeto como o cânon do 64 desenvolvimento científico. O cientista, crente da sua isenção na participação da conjuntura social, visa apenas à aplicação prática de seus conhecimentos, o que se estende inclusive para as ciências humanas e sociais, que passam a copiar o modelo das ciências naturais. O que importa é a aplicação do cálculo racional para dominar a natureza e tornar aplicável o conhecimento técnico para a transformação e produção das coisas do mundo. Para romper com esse dogmatismo da ciência que acabou por colocar a filosofia num plano especulativo, Horkheimer define que ―a ciência natural matemática, que aparece como logos eterno, não é a que constitui o autoconhecimento do homem, mas a teoria crítica da sociedade atual, teoria esta impregnada do interesse por um estado racional‖ (1975, p. 132). A razão agora surge como a arma que deve ser colocada na luta contra seus próprios fundamentos que encontraram na ciência positivista um modo de expandir-se pelos diversos campos da sociedade. Em contraponto a essa expansão o pensamento crítico visualiza que ―a realização do estado racional tem suas raízes na miséria do presente. Contudo, o modo de ser dessa miséria não oferece a imagem de sua superação. A teoria que projeta essa imagem não trabalha a serviço da realidade existente; ela exprime apenas o seu segredo‖ (Ibidem, p. 145). Foi, portanto, para denunciar o segredo interposto na contradição das relações sociais que em muito nos lembra o ―Ovo da Serpente‖ da obra bergmaniana8 que, num primeiro momento, destacadamente a década de 30, Horkheimer, Adorno e Marcuse, juntamente com outros nomes como Erich Fromm e Friedrich Pollock, na crença do modelo materialista histórico de Marx, desenvolveram pesquisas no âmbito da economia política, da sociopsicologia explicativa da submissão dos indivíduos a um sistema de dominação social que também incluía os sistemas culturais como componente da engrenagem dessa dominação (HONNETH, 1999). Após as primeiras pesquisas interdisciplinares desenha-se um quadro em que a sociedade passa a ser entendida num sistema fechado em que todos os caminhos de emancipação humana tornam-se inviáveis, e essa visão pessimista se agudiza, pelo que se pode perceber, com a ascensão do fascismo na Alemanha e do stalinismo na União Soviética, além da consolidação do modus vivendi da sociedade norte-americana. Desse modo, desenvolve-se ―a impressão de que a última centelha da razão desaparecera, deixando para trás as ruínas de uma civilização em decomposição. A história empalidecera, transformada no calvário de uma esperança que se tornara irreconhecível‖ (HABERMAS, 2000, p. 167). 8 Ver o filme o ―Ovo da Serpente‖ do diretor sueco Ingmar Bergman. 65 3 - “Biutiful”: a Dialética do Esclarecimento sob o olhar de um caso ficcional É na década de 40 do século passado que a fase pessimista na vida intelectual da geração fundadora da Teoria Crítica vai se consolidar. Passados mais de sessenta anos, após a mudança paradigmática em relação ao que foi exposto no artigo de Horkheimer que opôs o modo tradicional de pensar através da ciência positivista à atitude crítica do pensamento; após uma década de 30 marcada pela crença no marxismo libertador e, posteriormente, em meio a recorrentes críticas em face da falta de qualquer chance do homem reencontrar sua emancipação e liberdade, retraçamos as premissas dessa fase da Teoria Crítica dos anos 40 com base em sua mais destacada obra: ―A Dialética do Esclarecimento‖. Essa obra foi escrita por Adorno e Horkheimer quando do exílio nos Estados Unidos e foi lançada em 1947. Surgida envolta do pessimismo schopenhaueriano que seduz Horkheimer pela ―consciência aguda da decepção‖ (ASSOUN, 1991, p. 63), a obra marca A passagem de um conceito positivo do trabalho societário para um conceito negativo que introduziu uma nova fase na história da teoria crítica. A condição totalitária na qual o mundo havia caído com a ascensão do fascismo já não podia ser explicada pelo conflito entre forças produtivas e relações de produção, mas pela dinâmica interna da formação da consciência humana. O ―trabalho societário‖ já não designa uma forma de prática emancipatória, mas, antes, o gérmen do pensamento objetivante. Para essa forma de pensamento reificado emerge o conceito de ―racionalidade instrumental‖; a função central atribuída a esse conceito é a de explicar a origem e a dinâmica do processo de desintegração (HONNETH, 1999, p. 520-521). A partir dessa concepção teórica exposta na Dialética do Esclarecimento, inclusive através de uma forma muito particular que Della Volpe criticou como sendo herança do ―romantismo tardio‖ (HONNETH, 1999), a Teoria Crítica impulsiona a busca do entendimento dos ―efeitos devastadores que as realizações cognitivas pressupostas na prática do trabalho humano acarretam‖ (Ibidem, p. 519), ou, ainda mais, a capacidade encontrada numa razão humana que se instrumentalizou, pois o pensamento passou a reproduzir a lógica da sociedade científico-industrial-capitalista alienando-se de si mesmo e de sua capacidade de projetar qualquer mudança, visto que reproduz apenas o sistema de dominação que passou a 66 gerar misérias e injustiça com seu alcance. Por esse viés, buscamos aqui retomar a visão dos autores da Dialética do Esclarecimento numa obra ficcional intitulada ―Biutiful‖. A estória desse filme se passa na cidade de Barcelona, na Espanha, no momento atual. Mas, o que fica notório é um lado da cidade marcado pela fragmentação das relações cotidianas, através de personagens que mais parecem párias sociais. Os ambientes em que circulam os personagens e, em especial o protagonista, Uxbal, caracterizam-se como lugares lúgubres e escuros. O próprio apartamento de Uxbal, onde mora com os dois filhos pequenos após a separação de seu casamento é um retrato desse mundo deteriorado que surge como sintoma de uma desestruturada existência. Os ambientes mais parecem entulhos de móveis velhos e dilacerados pelo tempo. O conjunto psicológico dos personagens também se confunde nessa fragmentação cotidiana. Uxbal é desempregado e vive de várias transações ilícitas com diversos agentes. Ele intermedia relações com policiais que recebem dinheiro para não perseguir africanos refugiados que sobrevivem nas ruas vendendo mercadorias chinesas de baixa qualidade e ao mesmo tempo entorpecentes sem o conhecimento dos policiais; transaciona a contratação irregular de imigrantes chineses subempregados na construção civil, que trabalham dezesseis horas por dia e que vivem alojados sob condições precárias num abrigo coletivo de forma ilegal; recebe dinheiro dos familiares de pessoas falecidas para que exerça o dom da mediunidade que possui para conversar com os mortos durante os funerais. Nessas condições, Uxbal sobrevive na tentativa de ganhar dinheiro por meio de toda sorte de situações. Além disso, durante a narrativa, descobre que sofre de um câncer terminal que o coloca na condição de viver por apenas dois meses, e vive uma relação de conflitos constantes com a ex-esposa que representa a imagem do vazio existencial do homem moderno saturado pela sua própria liberdade em não encontrar sentido para a vida. Toda essa trama encadeia-se como exemplos da atualidade em que podemos traçar paralelos ao que podemos ver em diversas fontes midiáticas e em nossa própria experiência prática: o dilaceramento das relações pessoais e afetivas devido à realidade totalmente comprometida por princípios capitalistas; corrupção dos agentes administrativos que trabalham nos órgãos públicos para servir à sociedade; uma política severa de perseguição aos imigrantes ―invasores‖ oriundos dos países pobres do Sul; fragmentação do trabalho e aumento do desemprego até mesmo numa Europa que foi regrada pela estabilidade econômica 67 e que agora sofre em meio a crises do capitalismo neoliberal; fragmentação moral que transforma valores como a solidariedade em mero jogo de interesse baseado no ganho financeiro. Assim, o próprio nome da película ―Biutiful‖ e não ―Beautiful‖, do inglês bonito, bonita, belo, talvez traga em seu erro de grafia a feiúra de um lado da sociedade moderna surgida como resultado das consequências do progresso humano e não de suas conquistas. Essa fragmentação das relações cotidianas é descrita por Adorno (1993) em suas ―Minima moralia”. Na obra, a exposição em forma de aforismos traduz o próprio pensamento do autor em expor algo que, como a realidade, apresenta-se de forma fragmentária. Dessa forma, Adorno utiliza-se do texto para nos conduzir ao mundo privado reificado e instrumentalizado por uma razão que capta a consciência crítica dos indivíduos, fazendo-os agir nas esferas pormenorizadas do senso comum para legitimar a reprodução do próprio sistema racionalizante, de forma a criar um contexto aparente de realidade que reduz a vida à mera objetificação. Segundo Adorno (1993), em contraposição ao princípio de totalidade presente em Hegel, ―é na persecução dos interesses particulares de cada indivíduo que se pode estudar com maior exatidão a essência do coletivo na sociedade falsa. Neste sentido, é válida a afirmação de que o mais individual é o mais universal‖ (p. 38). Nessa obra, Adorno deixa explícita sua gratidão a Horkheimer, pois, as Minima moralia, escrita entre 1944 e 1947, é contemporânea à feitura por ambos da Dialética do Esclarecimento, pois, para ele, Adorno: ―gostaria de reparar uma parte da injustiça implícita no fato de que somente um prossiga trabalhando no que só ambos podem levar a cabo e de que não desistimos‖ (Ibidem, p. 11). Assim, é no empreendimento da Dialética do Esclarecimento que toda essa dinâmica de consequências da razão instrumental foi teorizada por Adorno e Horkheimer. Ciência, arte e moral são os elementos associativos a uma razão que reificou e instrumentalizou essas esferas do mundo humano, de forma que na modernidade a razão tornara-se autônoma e a principal responsável por um processo totalitário de dominação que não deixou saída para o homem, pois Com a difusão da economia mercantil burguesa, o horizonte sombrio do mito é aclarado pelo sol da razão calculadora, sob cujos raios gelados amadurece a sementeira da nova barbárie. Forçado pela dominação, o trabalho humano tendeu sempre a se afastar do mito, voltando a cair sob o seu influxo, levado pela mesma dominação (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 38). 68 Nessa lógica, os autores concluem na obra que a razão tornou-se repressiva desde a época em que o homem criou artifícios para dominar uma natureza que se expressava através dos mitos, pois, ―o programa do esclarecimento era o desencantamento do mundo‖ (Ibidem, p. 17). Nesse sentido, o mito já era esclarecimento e esse mitologizou-se. A epopeia de Ulisses na Odisseia de Homero é esmiuçada na Dialética do Esclarecimento para mostrar como o homem tornou-se esclarecido no entrelaçamento entre trabalho, mito e dominação. A passagem do barco de Ulisses e seus homens pelas águas dominadas pelas Sereias mostra que o canto mágico delas atrai o perigo da destruição. Esse princípio destrutivo encarnado no canto das musas das águas está associado ao ideal de felicidade. O homem é ameaçado pela morte e pelo prazer. Mas para evitá-los, Ulisses pede para que seus homens o amarrem no mastro e remem com tapões de cera nos ouvidos, retirando apenas os tapões de Ulisses, para que ele possa ouvir a melodia e por estar amarrado não se lance às águas. Nessa consecução, a arte e o trabalho comandado encontram-se no mesmo patamar da dominação e, o ato clássico de Ulisses demonstra em si um homem astuto que usa de sua razão para dominar a natureza e os outros homens, além de si mesmo. Executa-se um controle interno e uma coação externa que simboliza a essência do esclarecimento que é dialético exatamente por emancipar um homem que domina a natureza e que ao mesmo tempo abre mão de sua autonomia para controlar suas vontades e determinar que a razão indique aquele que domina e os que devem ser dominados, mas onde todos estão enredados pelo mecanismo total de dominação. Nesse sentido, na película Biutiful, destacam-se cenas interessantes que envolvem imigrantes chineses que vivem ilegalmente em Barcelona. Só que em meio a eles dois homens, um casal homossexual, montaram uma fábrica clandestina num galpão e explora os demais imigrantes com tratamento desumano ao mantê-los numa condição de trabalho precária. Todos são mantidos dormindo também num galpão insalubre: homens, mulheres e crianças. Os dois chineses, mesmo vivendo em condições ilegais como os demais mantêm a neutralidade da polícia em não persegui-los pagando-a por intermédio de Uxbal. Esse último fica incumbido pelo casal de comprar aquecedores para o galpão onde ficam os imigrantes. Por Uxbal ter comprado aquecedores mais baratos para ficar com parte do dinheiro, os imigrantes morrem de frio e, como solução, o casal resolve jogar os 25 corpos no litoral de Barcelona, que aparecem à deriva, à beira-mar, como manchete dos noticiários. Para Adorno e Horkheimer (1985), ―o poder de todos os membros da sociedade, que enquanto tais não têm outra saída, 69 acaba sempre, pela divisão do trabalho a eles imposta, por se agregar no sentido da realização do todo, cuja racionalidade é assim mais uma vez multiplicada‖ (p. 30-31). Ainda nesse entendimento, ―é essa unidade de coletividade e dominação e não a universalidade social imediata, a solidariedade, que se sedimenta nas formas do pensamento‖ (Ibidem, p. 31). No filme, como exemplo do que referimos acima, os chineses eram todos imigrantes ilegais, mas dois deles resolveram sobreviver explorando impiedosamente ―sua gente‖, e ainda mais sendo vítimas em potencial de uma sociedade que oprime minorias como os homossexuais, condição essa desses dois personagens. O que aqui ressaltamos é o momento de fragmentação em que se encontra atualmente o ―mundo da vida‖, que nos coloca a difícil possibilidade de pensarmos numa interação intersubjetiva, como defende Habermas em sua teoria da ação comunicativa, que abra espaços para horizontes que enalteçam ao mesmo tempo o ser individual e a existência coletiva.9 Como reconhece o próprio Habermas (2000), ―à medida que o mundo da vida se racionaliza, aumenta o dispêndio de entendimento que é posto a cargo dos que agem comunicativamente‖ (p. 484-485). Sobre o estágio de deterioração atual da sociedade, que torna a Dialética do Esclarecimento uma visão pertinente para constatarmos o que significa hoje o mundo moderno, o conceito de individualismo serve de referência para tal intento: A adaptação do homem à sociedade gerou o individualismo e não a individualidade: no primeiro, adaptação é uma estratégia cínica da auto-preservação, já que se está na comunidade, mas priorizam-se os interesses imediatos. A emergência do indivíduo burguês desenvolveu a crença de que só fazemos parte da sociedade na medida em que participamos de uma competição desenfreada (MANIERI, 2008, p. 39). Numa última cena que podemos destacar Uxbal e seu irmão decidem vender o túmulo do pai para que no local possa ser construído um Shopping Center. Se, segundo Adorno e Horkheimer (1985), o programa do esclarecimento era o desencantamento do mundo, de forma que o homem perdesse o medo da natureza e passasse a dominá-la por meio do saber que ele possui subsidiado pela razão, percebe-se que nem ao menos o respeito familiar que se 9 No processo de continuidade da Teoria Crítica, além da construção teórica habermasiana, novas emergências conceituais despontam para explicar a situação atual de luta dos indivíduos frente às condições de subjugação social e desigualdade nas diversas esferas da realidade. Nesse sentido, torna-se relevante os estudos sobre reconhecimento de Honneth (2007) e seus desdobramentos, que desloca principalmente os novos contextos para entender o desenvolvimento teórico que acompanha as mudanças conceituais concomitante às mudanças de cunho normativo. Independente de qualquer posicionamento teórico, o que ainda constitui fato são as consequências terrificantes do ―mundo social administrado‖, o que trouxe à baila também novos discursos com destaque para as questões de degradação do meio ambiente. 70 tem àqueles que se encontram no além-vida (para as consciências que queiram acreditar) escapam da lógica da dominação do cálculo racional capitalista. Se também faz parte da natureza o mundo misterioso da vida espiritual que o homem não consegue explicar, temos que ―o entendimento que vence a superstição deve imperar sobre a natureza desencantada. O saber que é poder não conhece barreira alguma. Não dever haver nenhum mistério. Cada resistência espiritual que ele encontra serve apenas para aumentar sua força‖ (Ibidem, p. 1819). Em meio à crença de Uxbal de estar ajudando a todos solidariamente nas relações ilícitas que promove, fica a sua escolha em sobreviver por si e por sua família, pois no indecente jogo promovido pelo cálculo racional capitalista, a única opção ainda parece ser evitar o acordo intersubjetivo e solidário em prol da sobrevivência, pois, neste sistema de dominação totalitária ―é suficiente que os indivíduos se preocupem apenas consigo mesmos‖ (HORKHEIMER, 1975, p. 142) e, além disso, ―no momento em que todo poder dominante força o abandono de todos os valores culturais e impele à barbárie obscura, o círculo da solidariedade verdadeira mostra-se sem dúvida bastante reduzido‖ (Ibidem, p. 161). Considerações finais Como forma de revisitarmos sociologicamente a Teoria Crítica fundada por Horkheimer nos anos 30 do século passado, especialmente o desdobramento de suas acepções condizentes com uma fase marcada pelo pessimismo de influência schopenhaueriana e em consonância com as reflexões de Adorno, foi possível vermos a força do entendimento desse modo crítico de pensar a sociedade moderna. Mesmo em se tratando de um recorte exemplificador baseado numa ficção cinematográfica, mas traçando analogias de acordo com nossa visão sociológica e da percepção de um mundo moderno que nos circunda em todos os extremos, a película analisada se compõe de fortes imagens explicitamente conectadas a um mundo fragmentado devido às consequências, pelo menos aqui entendido, do processo reificante que a tudo transforma em mercadoria dominada através da razão instrumental denunciada por Adorno e Horkheimer. Nesse intuito, vimos que a obra a Dialética do Esclarecimento, passados sessenta e cinco anos de sua primeira publicação, ainda muito nos revela de um projeto de modernidade inacabado, segundo Habermas. Esse último, como um dos principais críticos do conceito 71 totalizador de dominação presente no pensamento de Adorno e Horkheimer, fala-nos de possibilidades de emancipação por meio de uma razão comunicativa intersubjetivante, mas nos deixa na busca de saber onde está o interesse humano individualizado para mudar as engrenagens sociais que desagregam o ―mundo da vida‖. Portanto, destacamos que este paper visualiza uma configuração ao mesmo tempo geral e sintética do entrelaçamento entre modernidade e razão, e como essa última passou a governar os homens que vivem naquela a partir da autonomia do pensamento construído por eles mesmos, mas que já não mais os pertence. Referências ADORNO, Theodor W. Minima moralia. São Paulo: Editora Ática, 1993. ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. 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ROUANET, Sérgio Paulo. As razões do iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. 73 Juventude, política e imaginário: A participação dos jovens no contexto da pós-modernidade Youth, politics and imaginary: The participation of young people in the context of postmodernity Carlos Henrique Teixeira1 Recebido em 15/03/2013; aceito em 1/06/2013. ________________________________________________________________________ Resumo: O objetivo deste artigo é tratar da participação da juventude no imaginário sociopolítico brasileiro. Leva-se em conta a negação direta de suas forças latentes juvenilizantes e de sua repressão, o que ajudou no surgimento de um complexo temerário da participação dos jovens no seio da sociedade organizada. Partindo da sociologia do imaginário em Jean-Pierre Sironneau, considera-se a confluência dos mitos que conduziram a história da participação dos jovens na política brasileira. Palavras-chave: Participação; pós-modernidade; política. Abstract: The purpose of this article is to address the participation of youth in the Brazilian sociopolitical imaginary. It takes into account the direct denial of his latent powers youthing and its repression, which helped in the emergence of a complex reckless youth participation in society organizations. From the sociology of imagery in Jean-Pierre Sironneau, it is the confluence of the myths that led the story of youth participation in Brazilian politics. Key words: Participation; postmodernism; politics. Diversos autores procuraram ilustrar a passagem de um mundo que se permite conhecer, ser desvendado e dominado por uma lógica fundada na experimentação, dotada de uma áurea luminosa, promotora de consensos e beatitudes, para um mundo obscuro e fragmentado, onde as certezas são diluídas, onde o que é sólido se desmancha e onde os indícios de seu desmoronamento só reforçam a intensificação de seu progresso. Alguns centraram suas análises a partir do que se convencionou chamar de pós-modernidade, outros preferiram diagnosticar apenas uma crise na noção de modernidade. Consideram-se os anos 60 como o início da pós-modernidade, entendida como a lógica político-cultural do capitalismo tardio. Mas apenas a partir da década de 70 o debate em torno do tema torna-se mais inflamado. As raízes da discussão encontram-se na crise que se faz sentir, principalmente, a partir do pós-guerra. O desencantamento que se instala na cultura é 1 Graduado em Ciências Sociais, mestre e doutorando em Educação Escolar pela UNESP - Universidade Estadual Paulista – Faculdade de Ciências e Letras – Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar. Rod. AraraquaraJaú Km 1 Bairro: Machados, CEP 14800-901, Araraquara, SP. PABX: (16)[email protected] 74 acompanhado da crise de conceitos caros ao pensamento moderno, tais como ―razão‖, ―universalidade‖, ―sujeito‖, ―progresso‖, entre outros. Esta racionalidade das ―luzes‖ exerce um imenso fascínio, justamente porque nos promete um mundo caracterizado pela ordem, a unidade e a clareza, que torna a matemática a linguagem mestra e o teorema a expressão máxima da salvação do homem e da sociedade. Assim, a modernidade se constitui de um desdobramento do mito da clareza; uma forma de se pensar o mundo que extrapola o plano temporal, e proporciona um gozo intelectual e às vezes estético. O conjunto das perspectivas que caracterizam a modernidade parece constituir um audacioso projeto da razão como libertadora. A aplicação desta racionalidade na organização social prometia a segurança de uma sociedade estável, democrática e igualitária. A possibilidade de domínio científico representava o aceno de uma crescente segurança, que nos afastaria dos infortúnios ligados a imprevisibilidade do mundo natural: a natureza deveria submeter-se ao poder da Razão humana. Podemos pensar, de acordo com Giddens (1991) que o movimento histórico, sendo ambíguo, é dotado de uma complexidade impar que não se permite conhecer plenamente através de um simples olhar pautado numa análise linear. A história das ideias e das ações, comportando períodos de completo êxtase de uma racionalidade luminosa, de uma lógica absoluta que almeja explicar o universo desvendando suas leis, ao esvaziamento das certezas, da impossibilidade da clareza e do obscurantismo, não permite hoje ao homem de ciência contemplar com total clareza seus movimentos. Assim, [...] a condição da pós-modernidade é caracterizada por uma evaporação da grand narrative — o "enredo" dominante por meio do qual somos inseridos na história como seres tendo um passado definitivo e um futuro predizível. A perspectiva pósmoderna vê uma pluralidade de reivindicações heterogêneas de conhecimento, na qual a ciência não tem um lugar privilegiado. (GIDDENS, 1991, p. 8-9) O poder das ideias recai sobre a história à medida que vai difundindo suas teses mais inquietantes e formando modelos de pensamento que permitem ao homem atuar em sua realidade. Não se trata de descobrir como as ideias constituem epistemes datados de um século transcritos em livros tradicionais de história, mas de desvelar como elas se projetam de uma 75 forma dinâmica através das narrações, do discurso do cotidiano, do confronto das variadas posições e da linguagem humanizada. A imaginação, antes rejeitada pelas ciências empíricas, é agora valorizada pois ultrapassa um fatalismo mecanicista e representa o pensamento a partir de sua fonte, de onde jorra a matéria prima das ideias obscuras, a essência da criatividade, projetando toda uma lógica não-estática, que considera as ambiguidades e litígios nas relações. Desta forma, descartando-se a possibilidade de conclusões absolutas e certezas fabricadas, esta nova postura do pensar conduz a muitas dificuldades, pois o alvo não estará definido previamente por um modelo mecanicista, sendo que o próprio ato de imaginar e representar apaga a própria representação. Para Bauman, a problematização do conhecimento na perspectiva pós-moderna desafia o direito de a ciência traçar a linha divisória entre saber e ignorância. A condição pós-moderna nos faz encarar a incoerência das certezas. Contudo, o enfrentamento da incerteza pode ser vivido como desqualificação total da ciência igualada a outras formas de saber como a religião. Esta consciência da incerteza exige uma nova relação com a questão da legitimação do conhecimento. Assim, a ansiedade gerada pela pós-modernindade que celebra a plenificação da liberdade, reflete também a descrença cultural em um ―caminho seguro‖ para a felicidade através das conquistas científicas, econômicas e sociais. Por outro lado, ao mesmo tempo em que se intensifica o sentimento de ser livre, cresce a incapacidade de decidir no exercício da liberdade. A permissividade total mostra-se culturalmente tão assustadora quanto uma cruel limitação. O que fica claro é uma passagem de um estado entusiástico para o de indiferença que culmina na recusa. Assim, tudo aquilo que a princípio serve para a libertação do homem, acaba por aprisioná-lo. ―Justamente a libertação das ameaças faz tornar-se ameaçador aquilo que a liberta‖ (ROSSI, 2000, p.14). Esta negatividade acaba operando na ordem das ideias tornando violento e opressivo até aquilo que serviu antes para a sua pacificação. A pósmodernidade, portanto, se reveste de um movimento ambíguo transitando das esperanças de novidades extraordinárias a angústias de catástrofes iminentes. Marco Aurélio Nogueira verá, neste movimento, princípios de inovação social em meio a um caos generalizado. 76 [...] As práticas sociais, as condutas individuais e a dinâmica dos relacionamentos ficam ainda mais ―desreguladas‖ e ―fora de controle‖, dificultando a plena configuração de um regime democrático substantivo e bloqueando as ações da sociedade civil, que ganham em ativação sem conseguir se completar e sem dar origem a um novo tipo de Estado. Dessa forma, todos os custos (os materiais, os financeiros, os humanos, os políticos) elevam-se significativamente. Abre-se uma fase de ―desordem‖ e fragmentação, mas também de experimentalismo, confrontação e ruído emancipador. O social torna-se um laboratório a céu aberto. (NOGUEIRA, 2007, p. 47) A condição pós-moderna, portanto, nos traz a consciência da incerteza e da ambivalência. Compreende um mal-estar diante de um mundo caótico. A ciência já não proporciona uma explicação adequada do mundo que nos permita construir ou ordenar nossas vidas. A reação à dúvida extrema pode levar, assim, a busca angustiante por respostas, que muitas vezes são revestidas de fundamentalismos diversos. A esse respeito, Giddens aponta que ―não há nada de misterioso no surgimento do fundamentalismo no mundo moderno tardio‖ (1997, p. 123). Adotar uma única resposta é evitar a experiência angustiante da dúvida radical. O fundamentalismo é um exemplo de ausência crítica, ou irracionalismo pós-moderno, uma forma de usar a liberdade para tentar fugir dela. Atingindo em cheio o mundo das ideias e dos comportamentos, o curso da pósmodernidade afetará também o mundo do trabalho, inserido no novo capitalismo, e sua identificação com as individualidades. Assim, as estruturas da sociedade capitalista, baseadas em uma crescente flexibilidade, vão modificando o valor do trabalho que se torna cada vez mais opaco e carente de definição. Neste novo capitalismo, o fluxo das demandas de trabalho, os significados mutantes de capacitação, a elitização da mão de obra especializada, as novas modalidades de inutilização das forças produtivas, o avanço das máquinas no processo de automação, a ilegibilidade da natureza do trabalho, a eliminação da dificuldade na produção e a diminuição do sentido de cooperação comunal vão alterando dramaticamente a estrutura social e reforçando a ideia de que o capitalismo impõe a diluição do trabalho pela fluidez de seus meios de obter lucros. Essa nova configuração da produção caracteriza a ―sociedade das capacitações‖ em que tudo é pautado na velocidade. Apenas vence neste mundo aquele capaz de se adequar ao padrão das empresas globalizadas, cuja lógica é permeada pela flexibilização do tempo. O talento e a dedicação, antes sinônimos de uma ética comunal do trabalho, agora têm que se 77 manter em permanente processo de reciclagem, visto que as organizações empresariais já não propiciam um contexto de longo prazo. Para o trabalhador flexibilizado, as relações de trabalho, os laços de afinidade com os outros não se processam em longo prazo, em decorrência de uma dinâmica de incertezas e de mudanças constantes. A liberdade fluida, ou para usar um termo de Bauman (2000), modernidade líquida, é o lema do novo capitalismo. As organizações desta forma estão particularmente interessadas em eliminar as dificuldades no processo produtivo, pois para elas a simplificação é a regra fundamental. Qualquer envolvimento maior com a resolução de problemas é contraproducente. Inserido neste opaco mundo do trabalho, onde a inutilidade é um de seus maiores produtos, o talento vai sendo joguete das condições modernas da produção, que aparece muitas vezes internacionalizada, automatizada e pedindo capacitações de natureza muito diferentes. Ser capaz passa a não ser mais ter domínio sobre uma determinada habilidade ou profissão, mas sim ter a capacidade de lidar e estar apto a produzir num contexto profissional cada vez mais flexível. Como resultado da busca frenética pela aptidão, a educação superior, largamente ampliada nos dias de hoje, não garante que os educandos dotados de talento sejam aproveitados pela ―sociedade das capacitações‖ e, quando aproveitados, têm que lidar com a permanente mudança dos conhecimentos que são portadores para poderem continuar sobrevivendo no processo produtivo. Além disso, sofrem riscos de serem jogados à inutilidade por conta da migração da mão de obra, da crescente automação e do envelhecimento. Correndo estes riscos, deixando de lado as experiências passadas partilhadas, as realizações e talentos pessoais, é viver no limite e estar sujeito a vulnerabilidade, onde o caráter entra em processo de degradação. Assim, à medida que as coisas mudam constantemente, os trabalhadores estão sempre começando do zero e instala-se uma situação de vale-tudo. Este mundo traz uma grande ansiedade em relação ao tempo pelo que pode acontecer a qualquer momento, e as experiências passadas não servem de proteção para as novas situações. Toda a tentativa de desenvolver uma sociedade racional parece perder força neste momento histórico, e os resquícios desta na atualidade corresponde a uma análise critica, ―um desencantamento‖. Apesar desta visão pessimista, Alain Tourraine (1995) nos alerta sobre o 78 perigo de encarar as conquistas da modernidade como ultrapassadas e valorizar uma perspectiva socio-político-cultural relativista. Para este autor, ―[...] é preciso voltar incessantemente ao clarão da Renascença e aos primórdios da modernidade (...), para se proteger contra todas as formas de repressão exercidas em nome do Estado, do dinheiro ou da própria razão. A crítica da ideologia modernista não deve conduzir ao que ela destruiu‖. (TORRAINE, 1994, p. 40) Veremos o que representou esta passagem de uma modernidade racional e iluminista para uma (pós-)modernidade relativista dos valores no estudo da participação política da juventude na história brasileira. Partindo do referencial teórico calcado na sociologia do imaginário, utilizamos as noções de milenarismo e messianismo, adotadas pelo sociólogo francês Jean-Pierre Sironneau, que parte deste referencial para explicar as modulações que ocorreram na história com relação à participação dos jovens nas instituições políticas. Por outro lado, buscamos no psicólogo junguiano James Hillman a chave para entender esta participação no arcabouço de uma psicanálise das organizações. Se podemos pensar, segundo Sironneau (1985), em um imaginário sócio-políticoorganizacional a respeito da persistência do mito de uma época, ou em uma bacia semântica, como quer Durand (1996), a respeito das convergências de todas as atividades humanas significativas e que revelam o arcabouço imaginário de uma configuração societal inserida no tempo e no espaço, então cabe-nos levantar pistas para buscar compreender a inserção da temática da participação dos jovens na sociedade brasileira, considerando seus aspectos históricos, políticos e culturais. Este caminho teórico-metodológico nos é importante se quisermos perceber como o adolescente reage consciente e inconscientemente às demandas advindas da ordem social e como o social reage à presença ativa do adolescente e sua imagem e ação. Para Sironneau (1985), a realidade política de uma época se impregna de mitos, nos quais as utopias e as ideologias podem se revestir de messianismos e milenarismos através de mitos como, por exemplo, do retorno da pureza racial, da terra prometida, do pai todopoderoso, do nobre herói, da fraternidade e justiça, entre outros. Assim, ao examinarmos a história política brasileira veremos a predominância do mito milenarista do desenvolvimento circunscrito no jargão positivista ordem e progresso e na eterna busca da terra prometida, personificada na sucessão de governos que exploraram à exaustão a ideia de desenvolvimento 79 econômico através de políticas geradas a partir de um modelo capitalista tardio. Segundo Servier, os milenarismos expressam ―a vontade de os homens realizarem, na terra, a nova ordem que Deus tardava a instaurar. Suas ondas de violência sucederam-se para apressar, pelo derramamento de sangue dos réprobos, o advento do reino‖ (SERVIER apud SIRONNEAU, 1985, p. 260). Vemos aqui, claramente a emergência deste mito nas relações políticas da sociedade brasileira, desde seus primórdios marcadas pela repressão e contenção violenta das insurgências desencadeadas pelos grupos populares. O projeto progressista brasileiro também nos remete ao mito da maturidade, no qual os pretensos investimentos econômicos se voltam sempre para uma sociedade em eterno crescimento, e que para crescer precisa conter os elementos perniciosos ao seu funcionamento. Desde cedo, no Brasil, os setores sociais que detiveram o poder decisório se mostraram pouco interessados em conceder direitos aos indivíduos. A dificuldade de se pensar em democracia está ligada ao fato de que a ideia de dádiva ou favor sobrepuja a de direitos sociais. Sendo assim, o contrato social se instala a partir de um modelo paternalista, no qual a imagem do pai, personificada em coronéis, militares, entre outros, retoma o mito do todopoderoso, do senhor dos exércitos, capaz de punir todos que forem contra seu ideário e, ao mesmo tempo, proteger seus bons filhos. Este mito vai conduzir a formação de uma cultura política com pouca aptidão para o diálogo democrático e de um projeto milenarista focado na ideia de eterno crescimento rumo a uma sociedade desenvolvida e no pleno controle deste processo, mesmo através do uso permanente da força coercitiva. Neste projeto, a escola se torna o principal instrumento da correção das distorções sociais, pois busca legitimar a ordem assumida pela representação coletiva que lhe dá o papel decisivo na conformação da sociedade, para evitar sua desagregação e garantir a construção da igualdade nos moldes do imaginário burguês. O mito do reino da justiça e da igualdade, revivido no ideário iluminista e na Revolução Francesa, retorna no projeto escolanovista no qual se buscou superar a situação de opressão do Antigo Regime e vencer a barreira da ignorância. Desta forma, a escola, em seus primórdios, é erigida com o intuito de transformar súditos em cidadãos, de colocar em movimento um projeto de construção de uma sociedade fundada no imaginário burguês que idealizara a polis perfeita. E assim, toda a história da escola se funde ao desejo de construção e da busca de um mundus perfectus desencadeada em 80 torno de uma bacia semântica milenarista voltada para o futuro em busca da terra que emana leite e mel. Em torno deste projeto desenvolvimentista emerge, em suas margens, outros elementos míticos relacionados ao messianismo, à crítica da ordem social e da busca da salvação através da ruptura revolucionária. A respeito da diferença entre os dois elementos míticos milenaristas utópicos e messiânicos, Sironneau dirá que [...] os autores de utopias são bastante diferentes dos messias: são de origem burguesa, alheios às aspirações populares, legistas decepcionados ou conselheiros do príncipe, enquanto os messias são apaixonados detratores da ordem social (sacerdotes ou monges egressos ou excomungados, artesãos, pastores, camponeses, nobres de modesto estamento), capazes de cristalizar as frustrações e as aspirações das massas. (SIRONNEAU, 1985, p. 260) No sistema sócio-político brasileiro percebemos uma tendência dos setores sociais que manipulam os aparelhos ideológicos formativos em resistir violentamente aos processos de reorganização das instituições em torno das novas aspirações populares. Por outro lado, podemos identificar nos inúmeros messias que surgiram na história brasileira, atores comprometidos com a subversão da ordem burguesa, muitos deles ligados a movimentos de jovens estudantes, que sonhavam com o grande dia da fuga do Egito, com a queda dos regimes caducos e repressivos. A respeito das instituições brasileiras, percebemos, ao longo da história, uma clara tendência a antropoemia2 (LÉVI-STRAUSS, 2008), na qual os indivíduos detentores de forças temíveis têm que ser expulsos ou trancafiados para longe da humanidade. Assim, vemos uma forte resistência por parte da cultura sócio-política patente, personificada nas instituições repressivas que possuem o monopólio da força, contra as culturas sócio-políticas latentes, receptáculos de todo anseio de mudança. Através de um exame histórico acerca da ação dos jovens no contexto antropolítico brasileiro, perceberemos, com facilidade, que eles sempre foram identificados com os traços de seres crísicos, seres da álea e da degeneração, que sempre inspiraram medo às estruturas patentes de organização e perigo à coesão social. A história da juventude no Brasil foi 2 Lévi-Strauss distingue dois tipos de sociedade, as que praticam a antropofagia (que veem na absorção de certos indivíduos detentores de forças temíveis o único meio de neutralizá-las aproveitando-lhes a energia) e as que praticam a antropoemia (que, diante do mesmo problema escolheram a solução de expulsar fora do corpo social estes indivíduos). 81 marcada pela negação direta de suas forças latentes juvenilizantes e de sua repressão, o que ajudou no surgimento de um complexo temerário de sua participação no seio da sociedade organizada. Apesar de a juventude estudantil ter marcado presença nos processos de combate às estruturas conservadoras, durante o período de modernização do país que compreende os anos 30 aos 70, houve sempre desconfiança e temor em relação as suas ações: para os setores conservadores, a suspeita de baderna e de radicalismo transgressor; para alguns setores da esquerda, a suspeita de alienação ou de radicalidade pequeno-burguesa inconsequente. Nos anos 80, o enfraquecimento dos atores estudantis levou a um ―desaparecimento‖ da juventude da cena política e um diagnóstico por parte daqueles que participaram do período anterior de que a juventude perdera a capacidade de ―sonhar‖ e de ―lutar por um mundo melhor‖. Neste momento, temos a saturação do mito condutor do imaginário dos jovens calcado em constelações simbólicas relacionadas à ruptura, a terra da justiça e igualdade, ao messias contestador a conduzir o processo de salvação e a instauração de outras correntes míticas. Isso fica ainda mais claro quando analisamos a leitura feita pelos adultos acerca da participação dos jovens nas movimentações de rua pelo impeachment de Collor, em 1992, quando foram largamente desqualificadas por serem espontaneistas, com mais dimensão de festa do que de efetiva politização. Assim, a história da participação dos jovens na sociedade brasileira mostra como um imaginário que combinou os sonhos escatológicos do milenarismo e os sonhos do iluminismo3, representado pela revolução dos comportamentos, deu lugar a um imaginário de inversão, no qual se busca o retorno ao lugar de origem, o retorno aos guetos e às tribos, para se viver o calor da vida comunitária. Notamos hoje a grande dificuldade da sociedade brasileira em considerar os jovens e adolescentes como seres de direito, e como eles são sempre relacionados aos ―problemas sociais‖ quando abordados pela mídia, como por exemplo as drogas, as doenças sexualmente transmissíveis, a violência, entre outros. Ao mesmo tempo, vemos surgir, através dos meios de comunicação de massa, uma avalanche de produtos direcionados a eles. Programas de TV, 3 Sironneau (1985) vê nos anseios do socialismo e do comunismo uma mistura do princípio milenarista e dos sonhos das luzes, onde a revolução será personificada na figura de Prometeu. Assim, nos moldes marxistas, a juventude revolucionária dos anos 60 e 70 sonhou com a construção de um novo mundo e uma nova Terra Prometida. 82 música, moda e revistas, tudo parece direcionado aos adolescentes, que se tornaram os mais importantes alvos das industriais do entretenimento. A fetichização de seus corpos, a exploração de seus desejos e, ao mesmo tempo, o medo de sua participação nas instituições, o que pode representar um perigo à ordem social, nos mostra um ideário de fascínio e de repulsa, um imaginário da sedução e do pavor em relação ao canto irresistível da sereia. Para ilustrar esta ideia, utilizaremos o fabuloso romance de Thomas Mann, Morte em Veneza, de onde retiramos a ideia de complexo AschenbachTadzio para explicar como a fascinação e a repulsão do elemento juvenilizante ocorre em nossa sociedade. A obra narra a história de um velho escritor e esteta, Gustav von Aschenbach, que resolve viajar à Veneza em busca de inspiração. No hotel em que está hospedado existe um adolescente polonês de 14 anos, Tadzio, que personifica seu ideal de beleza e aos poucos vai se apaixonando. Aschenbach era um homem franzino, deprimido por sua fraqueza física e decrepitude, que descobre em Tadzio a figura do verdadeiro Apolo, modelo máximo de beleza estética. O livro se desenrola através dos conflitos deste homem vivido, burguês, conservador, que rejeitava atitudes que mostram a degradação do homem. Aschenbach reprova veementemente o comportamento de um velho homem que encontra no navio em que viaja. Este homem procura parecer mais jovem do que é. "Sentindo-se arrepiado, Aschenbach analisou-o em sua comunidade com os amigos. Não sabiam, não percebiam que era velho, que injustamente passava por um deles?" (MANN, 1976, p. 39). A descrição revela um velho de cabelos tingidos de aparência rejuvenescida a compartilhar da presença de outros jovens. ―Aschenbach o observou com uma espécie de horror que o jovem era falso‖ (MANN, 1976, p.40, grifo nosso). O que Aschenbach venera é a disciplina, a moralidade e a ordem na natureza, sendo o envelhecimento um processo natural da vida. Ao conhecer Tadzio e sua beleza, porém, o velho se transforma como que imbuído de impulsos juvenilizantes. Mann narra sua queda, a perda de sua própria individualidade. Tornase o mesmo velho que lhe causara repulsa no navio ao procurar parecer mais jovem. Aschenbach passa a resistir de todas as formas a sua paixão pela beleza personificada no jovem, mas não consegue. Não há nenhum contato direto com o adolescente na narrativa. Em torno das tentativas de resistência de Aschenbach, o contato fica sabotado, impedido de se 83 realizar; a velhice não encontra a juventude plenamente, tenta negá-la, mas não consegue ceder a sua sedução. Em um interessante artigo sobre a obra, José Miguel Rasia (2001), mostra como a figura do falso jovem perseguirá Aschenbach em toda a narrativa. O falso jovem seria, daí para a frente, o companheiro de viagem que não abandonaria Aschenbach. Portanto, viveria esse companheiro o tempo que Aschenbach permaneceu em Veneza. O encontro de Tadzio, embora fosse o encontro com a beleza, com o belo em seu sentido de categoria estética, num primeiro momento, deu-se sob o fantasma do falso jovem. O novo olhar, que Aschenbach, ao delirar julga capaz de reordenar o que fica disforme, não desarticula esse fantasma, não consegue destituí-lo. (RASIA, 2001, p. 62) Nesta metáfora percebemos um pouco do que se tornou a relação da juventude com as instituições políticas brasileiras, inclusive a escola como seu aparato. Por um lado, a negação de seus direitos e a dificuldade de estabelecer relações de diálogo com os jovens pelo temor inconsciente de instaurar a crise nas organizações. Por outro, a veneração de seus corpos através da mídia e a exploração de sua vocação natural à mudança para fazer valer novos modelos de consumo que exigem a busca frenética de atualizações. Tal relação nos remete ao problema do arquétipo puer e suas modulações com o senex. Para o psicólogo James Hillman (1998), o puer aeternus (eterna criança) está emparelhado principalmente com a figura do senex (velho). Ele diz que o senex é a imagem da história em si, enquanto o puer a transcende e está fora do tempo. Tais arquétipos estariam envolvidos com o aspecto de processo de qualquer complexo, seja individual ou social, e ligados ao desenvolvimento. Hillman (1998) diz que a relação senex-et-puer seria fundamental e responsável por propiciar ao ego a força criadora ou "significação de espírito", sendo que, se essa dualidade é cindida, tem-se a prevalência do aspecto negativo do arquétipo. Isto é, sem a criança, resta apenas o conhecimento depressivo, e sem o senex, projeta-se a loucura e imaturidade nos outros. Podemos visualizar tal relação no complexo Aschenbach-Tadzio, como metáfora da inserção dos temas juvenis na sociedade brasileira. Assim, tanto no livro de Mann como na estrutura sociopolítica brasileira, podemos identificar, em algum momento, esta prevalência do sentido negativo do arquétipo senex-et-puer, no qual a juventude e a maturidade se relacionam de forma patológica. 84 É típico do puer permanecer com o ciclo da juventude aberto. Ser jovem, portanto, é um estado de espírito e não uma condição física. O puer pretende permanecer na puerilidade sempre. No fundo teme a velhice e a morte. Seu mito pessoal é alcançar a condição de Narciso: belo, mas apenas isso. O puer tem a tendência regressiva inconsciente de permanecer sempre infantil, dependente, apegado a padrões fantasiosos e negando o enfrentamento dos desafios que o levam à maturidade. A individuação passa pelo sacrifício consciente da tendência regressiva do puer e a integração positiva do seu par senex. Desta forma, a mudança tanto almejada pode se desenrolar no processo de equilibração entre as estruturas juvenilizantes e o desenvolvimento organizado das instituições. Considerações finais Vimos, neste artigo, como o ideário racionalista da modernidade, exemplificado na história da luta dos jovens pela participação política, vai dando lugar à fragmentação das intenções revolucionárias, fazendo surgir uma juventude que foca sua atuação não mais em macroprojetos de sociedade, mas que parte em busca da vivência em comunidade e da consolidação de utopias microgrupais. Tal é o sentido de uma pós-modernidade que representa não só a crise das instituições e suas fragmentações crescentes, mas também a reorganização da cultura e das experiências humanas. Assim, o complexo Aschenbach-Tadzio nada mais é do que a metáfora do encontro das instituições alicerçadas nos valores modernistas, que resistem a enquadrar-se neste novo mundo, e das aspirações e demandas advindas de uma juventude cada vez mais ávida de novas experiências. Em torno da existência social, os grupos formam-se e entrecruzam-se, ocasionando a aparição de novas configurações societais. Isto se dá, segundo outro estudioso da pósmodernidade, Michel Maffesoli, graças a uma potência afirmativa na qual se ―repete o jogo (sempre) recomeçado do solidarismo ou da reciprocidade‖ (MAFFESOLI, 2006, p. 126). A relação táctil, como aponta Maffesoli (2006) citando W. Benjamin, dá-se no âmago das massas, onde se processam os cruzamentos, as aproximações, as interações e toda sorte de cristalizações; onde a virtude não tem mais vez e as paixões engrenam-se para produzir uma nova ordem de associações indefinidas e indiferenciadas. 85 A esse respeito, Nietzsche já intuíra a superação das formas sociais carcomidas pelas estruturas absolutas de pensamento ao dizer que ―a virtude não encontra hoje mais crédito; sua força de atração desapareceu; a menos que alguém não se resolva pô-la a venda, como uma forma inusitada da aventura e da libertinagem‖ (NIETZSCHE, 1945, p. 397). Temos de considerar, portanto, e a respeito do filósofo alemão, a transmutação de todos os valores absolutos em busca de uma nova definição de homem que se aproxime talvez com a do profeta Zaratustra, para o qual ―o homem é uma corda, atada entre o animal e o além-do-homem – uma corda sobre um abismo‖ (NIETZSCHE, 1999, p. 211). Referências BAUMAN, Z. Modernidade líquida. 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Procuro destacar que, em determinados contextos oferecidos pelo campo, a visão e a audição não são suficientes para compreender o Outro. Para isso, sigo os pressupostos teóricos tecidos por autores que têm a noção de corpo e suas áreas correlatas como campo de pesquisa. Palavras-chave: Percepção; corporalidade; etnografia. Abstract: My purpose in this paper is to present some questions regarding O trabalho do antropólogo: olhar, escutar, escrever, whose authorship is Roberto Cardoso de Oliveira. Seeking to highlight that, in certain contexts offered by the field, sight and hearing are not enough to understand the Other. To do this, follow the theoretical tissue by authors who have the body notion and its related areas as a research field. Key words: Perception; corporeality; ethnography. Meu pai tomava uma laranja e me perguntava: O que você acha, o sabor da laranja está na laranja? Eu dizia que sim, que acreditava que sim. E me perguntava: O que você acha, esta laranja está tomando este gosto da laranja o dia todo? Eu dizia que não. Bom, ele me dizia, tudo bem. E uma ou duas noites depois me dizia: Você acha que a cor da laranja está na laranja? Eu dizia que sim. E ele: Bom, mas se usarmos óculos escuros ou apago a luz, onde está a cor da laranja? Ou se você fecha os olhos? Eu tinha que admitir então que a cor da laranja não está na laranja. E logo chegamos ao peso da laranja. Me fazia pegar uma laranja na mão e que a pesara, e dizia: E o peso está na laranja? A laranja mesma sente que é pesada? Sente esse peso determinado? Eu respondia: não. Meu pai dizia: muito bom, você está melhor. E depois passava ao sabor da laranja e no final me convencia que a laranja não é outra coisa que uma série de adjetivos, de fatos que dependiam de meus olhos, das minhas mãos, de meu gosto, do meu nariz, da minha boca, de meu ouvido também [...] Jorge Luís Borges (1982) 1 Mestrando pelo Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Ciências e Letras – Universidade Estadual Paulista, ―Júlio de Mesquita Filho‖. Rodovia Araraquara-Jaú, Km 01, CEP 14800-901 – Araraquara, São Paulo. Telefone: (16) 3301-6200. www.fclar.unesp.br. Membro do Centro de Estudos Indígenas ―Miguel A. Menéndez‖ (CEIMAM-UNESP) e do Centro de Pesquisa e Estudos Agrários (CPEA-UNESP). Bolsista CAPES. Correio eletrônico do autor: [email protected] 87 Introdução Na vida cotidiana, sejam estas localizadas nas mais distintas temporalidades e localidades, encontramos inúmeros casos que permitem ilustrar aqui as formas pelas quais as pessoas fazem referências aos sentidos corpóreos. É comum, por exemplo, os diálogos serem constituídos por expressões como ―ouça isto‖, ―o sabor daquilo‖, ―a visão de mundo daquele autor‖, entre outras. No mundo das artes, como não poderia deixar de ser diferente, existe outras tantas alusões aos cinco sentidos corporais. Convém, portanto, citar aqui os versos escritos pelo poeta Pedro Kilkerry (1970): ―Olho, examino a epiderme, olho e não vejo a tua luz!‖. Ou então lembrar que os chamados pintores impressionistas – sobretudo aqueles da primeira geração como, por exemplo, Claude Monet, Sisley e Renoir –, segundo Argan (2010), buscavam representar em suas telas a sensação visual em sua absoluta imediaticidade. Os textos religiosos, por sua vez, também trazem consigo significativas referências aos órgãos sensoriais. No Mahabharata há uma passagem pela qual o herói Arjuna, com a intenção de socorrer seus irmãos que estão envolvidos numa guerra, busca tornar-se o melhor entre os guerreiros. Para isso, ele recorre ao Deus Shiva através da meditação, do controle de sua mente e dos sentidos de seu corpo. Sendo assim, as pessoas sempre fazem menções aos seus sentidos. Não obstante, os métodos desenvolvidos e empregados pelo antropólogo em suas pesquisas de campo – sobretudo o que se convencionou chamar de ―observação participante‖ e o ―ponto de vista dos nativos‖ 2 – trazem uma série de alusões à forma como o Outro é percebido e compreendido. Afinal, como bem aponta James Clifford (2008, p.25), a imagem construída por Malinowski sobre o antropólogo em campo – ―[...] olhando, ouvindo e perguntando; registrando e 2 Ao mencionar a observação participante e o ponto de vista do nativo, sou logo impelido a fazer antes algumas colocações pertinentes a tais métodos de pesquisa. Certamente, cabe aqui trazer à baila a figura de Malinowski. Sabemos dos seus consideráveis esforços para a consagração da observação participante como método de pesquisa antropológico, embora Rivers houvesse antecipado muitos dos pressupostos malinowskiano. Todavia, não podemos esquecer que o mérito do antropólogo polonês foi a legitimidade que deu a proposta e como tornou o ponto de vista do nativo ―[...] o lema e objetivo fundante da disciplina‖ (PEIRANO, 1992, p.5). Afinal, Malinowski (1976) ensina o quanto é importante para o antropólogo participar da vida cotidiana dos nativos. Quanto ao ―ponto de vista do nativo‖, Geertz (1989) afirma que esta não implica em entrarmos ―na cabeça das pessoas‖ para que possamos compreendê-las, mas significa que a cultura é uma construção feita pelos atores sociais tentam dar sentido ao mundo no qual eles estão inseridos. Consequentemente, se quisermos dar sentido a uma cultura, devemos nos situar na posição a partir da qual foi construída. 88 interpretando a vida trobriandesa.‖ – é um exemplo de como a visão e a audição são consideradas cruciais à pesquisa antropológica. Neste trabalho, procuro problematizar a forma como os sentidos corporais influenciam a imersão do antropólogo em sua atividade etnográfica. Em outras palavras, lanço algumas indagações quanto à eficácia ao ato de apenas olhar e ouvir em determinados contextos oferecidos pelo campo. Busco ainda demonstrar que, em muitas situações, esses órgãos sensoriais não são suficientes para compreender o Outro. Dessa forma, procuro dialogar com Roberto Cardoso de Oliveira (2000), sobretudo o que ele aponta em seu artigo cujo título é O trabalho de antropólogo: olhar, escutar, escrever. Isto porque encontramos nessa obra a maneira como o antropólogo se insere na vida do Outro, seja através do trabalho etnográfico e suas subsequentes ferramentas científicas – leia-se aqui a observação participante e o ponto de vista dos nativos – que, como irei demonstrar, estão calcadas na visão e na audição. Portanto, a discussão que segue está voltada apenas a estes dois aspectos. Sendo assim, não abordarei o ato de escrever que, segundo o autor, é neste que o nosso pensamento se exercitará da forma mais cabal. Mas antes de entrar nessa referida questão, articularei nos próximos parágrafos algumas palavras concernentes ao modo como os membros de nossa sociedade e de outras utilizam os seus corpos e suas percepções. Passemos então para o primeiro componente. O corpo humano, uma construção sociocultural O corpo, de uma forma direta ou indireta, sempre provocou questionamentos às diferentes sociedades. Tendo em vista a grandeza numérica de grupos sociais existentes pelo mundo afora, podemos então assegurar que cada um possui a sua própria noção de corporalidade. Afinal, como bem lembra Lévi-Strauss (2003, p.5), o corpo humano é ―[...] um patrimônio comum e imediatamente acessível a toda a humanidade [...]‖. No horóscopo chinês, a efeito ilustrativo, ao compreender que o universo é constituído por cinco elementos (metal, terra, fogo, água e a madeira), afirma-se que estes governam os órgãos mais importantes do corpo humano. De acordo com Lau (1979), o metal está ligado aos pulmões, o fogo controla o coração, a água está associada aos rins, a terra pertence ao baço e ao pâncreas, e a madeira ao fígado. 89 Já na Grécia Antiga, segundo Martins (1997), Hipócrates declara que o organismo humano é composto por determinados líquidos – sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra – e, para que haja uma boa saúde, estes devem estar em seus devidos lugares e ter a quantidade correta. Por outro lado, Platão (1979) dizia que Sócrates via o corpo como um peso a ser carregado, ao qual ele compara a uma ostra à sua concha. Assim, o corpo é considerado uma espécie de túmulo da alma. Não obstante, a dualidade entre corpo e alma também é um pressuposto sustentado pelo pensamento cristão. No livro do Gênesis (1989), por exemplo, há uma passagem pela qual diz que Deus criou o primeiro homem a partir do barro e, logo depois, este ganhou vida após receber o sopro divino. As sociedades ameríndias encontradas nas terras baixas da América do Sul, por sua vez, possuem também suas próprias noções e fabricações3 corporais. Os Araweté entendem que a ―[...] carne, sangue, ossos e a alma-princípio vital (ĩ), tudo está na semente masculina [...]‖. Desse modo, para esta sociedade a mãe é um receptáculo do sêmem, onde se processa sua transformação em criança (VIVEIROS DE CASTRO, 1986, p.438). Mas, segundo Caiuby Novaes (1978), os Bororo creem que tanto o homem como a mulher desempenham papeis ativos na procriação. Além disso, a mulher nesta sociedade não é considerada um mero receptáculo do feto. Como declaram DaMatta, Seeger e Viveiros de Castro (1987), a noção de corpo e de pessoa são as principais contribuições que as populações ameríndias têm dado ao pensamento antropológico. Assim, diante dos exemplos citados, podemos então verificar que cada cultura possui sua própria concepção de corporalidade. Desse modo, o corpo humano não pode ser entendido apenas como uma mera criação biológica. Afinal, ele é também uma construção sociocultural. Como endossa Csordas (2001), o corpo é ainda uma constituição religiosa, linguística, histórica, cognitiva e emocional. Aliás, Paula Sibilia (2002) afirma que os adornos, as próteses – óculos, dentaduras, bengalas, etc. –, as tatuagens e as pinturas são exemplos, dos mais evidentes, que demonstram o modo como as pessoas de distintos grupos sociais e culturais moldam seus corpos. Pois, como ensina Marcel Mauss (2003), as técnicas corporais não 3 Conforme demonstram os autores, a ideia de fabricação é um mecanismo social de controle sobre os corpos dos indivíduos de uma determinada sociedade. 90 produzem apenas corpos, mas também produzem e influenciam a consciência que as pessoas têm e terão de seus corpos e do mundo. A percepção Uma vez demonstrado nestes exemplos as variadas formas culturais de entender o corpo humano, é chegado o momento de determos nossa atenção para o segundo componente, ou seja, a percepção. Para isso, começo com os apontamentos feitos por Maurice Merleau-Ponty. De acordo com Merleau-Ponty (1999), a consciência perceptiva que as pessoas possuem entre elas e o mundo se efetiva através da mediação de seus corpos. Contudo, nem sempre se pensou dessa maneira. René Descartes (1973) que, no século XVII, ao separar corpo e mente, acredita que o primeiro era uma barreira para o entendimento do que está a nossa volta. O autor afirma que não poderia admitir a própria existência sem a possibilidade de pensar. Seguindo o pensamento de Merleau-Ponty, podemos então dizer que é por meio do corpo que os seres humanos se relacionam com o mundo. Assim, para que o indivíduo possa conhecer o Outro e o que está a sua volta é preciso, em primeiro lugar, percebê-lo. E isso só advém por meio das percepções que decorrem da ação dos sentidos corporais. Através desta relação que percepções, técnicas corporais, rituais de interação, etc. são construídas. Pela corporalidade, como lembra Le Breton (2007), os atores sociais fazem do mundo a extensão de suas experiências. De acordo com Classen (1990; 1993), a percepção, além de ser um ato físico, é também cultural. Os sentidos não são apenas meios de captação dos fenômenos físicos, mas são também vias de transmissão de valores culturais. Assim, os modelos sensoriais são expressos por meio da linguagem, dos costumes e da cultura. Os Suyá, por exemplo, possuem outro modo de perceber o mundo. Segundo Seeger (1980), este povo classifica homens, animais e plantas através do odor. Já entre os Guarani, Bartolomeu Melià (1989) afirma que estes possuem uma percepção visual e auditiva da terra. No primeiro volume das Mitológicas, Lévi-Strauss (2010), ao analisar os mitos de muitas das populações ameríndias, observa que o ato de ouvir ocupa uma singular importância para o enredo de suas histórias. Em um mito Bororo, por exemplo, deparamos com história do herói que é enviado por seu pai ao mundo aquático das almas com a missão de roubar três objetos: o grande maracá, o pequeno maracá e o cordão de chocalhos. Nessa história, o pai 91 espera que o filho não possa pegá-los sem movê-los, e que, assim avisadas, as almas se encarregariam de puni-lo. Aliás, Stolze Lima (1996) lembra que são inúmeras as populações indígenas das Terras baixas da América do Sul que elegem o ato de ouvir como a principal maneira de compreensão do mundo. Nesse processo perceptivo, portanto, as pessoas passam a conhecer o que está ao seu redor, sejam indivíduos e ambientes4, e ainda compartilham socialmente às experiências de cada uma. Desse modo, o desenvolvimento dos sentidos não é apenas de natureza fisiológica, mas também é um processo sociocultural. Com efeito, a visão é considerada em nossa sociedade como a principal para a tomada de conhecimento do mundo e do Outro. Certamente, esta afirmação não carrega nenhuma novidade. Afinal, creio que não seja segredo para ninguém quando se afirma que os olhos exercem um papel preponderante em nossas vidas. Pois é com eles que enxergamos as cores do semáforo; que podemos verificar se um carro está próximo; que assistimos a um filme e também podemos identificar o que está perto ou distante. Assim, o nosso universo é constituído, sobretudo, por elementos simbólicos que estão estritamente ligados ao campo visual. Por outro lado, a audição é outro órgão sensorial muito empregado por nós em nossos afazeres do dia-a-dia. Vivemos numa orbe não apenas visual, mas também repleta de sonoridade. No início do cinema, como não havia tecnologia suficiente para a capitação do som produzido em cena, as falas dos personagens eram transcritas e projetadas na tela. O que se podia ouvir, enquanto seguia a projeção do filme, era apenas a música tocada ao vivo por uma orquestra. Aliás, ainda hoje não nos contentamos em apenas escutar o instrumentista ou cantor executar sua arte. Desejamos também vê-lo no palco ou assisti-lo numa tela de TV. Logo, o ouvir está associado ao mundo imagético. Sobre isso, Heidegger (2003) diz que ouvimos o que ele denominava ser o ―som bruto‖. Ou seja, o ―som puro‖ somente é escutado quando desviamos nossos olhos dos objetos, ou quando ouvimos uma música com os olhos fechados. Assim, o filósofo alemão ressalta que o ser humano não ouve sons, mas as próprias coisas: a batida de uma porta, a tempestade, etc. 4 Deleuze (2001) lembra que o Outro deve ser considerado como uma estrutura do campo perceptivo ao invés de um objeto particular. 92 Criamos, além disso, lugares sonoros e identificamos o Outro por meio do som. No primeiro caso, os concertos musicais, os estádios de futebol e até mesmo as feiras livres são exemplos dos mais comuns de lugares sonoros. Carpenter (1973) declara que, diferentemente da paisagem visual, a paisagem acústica é dinâmica e está sempre em fluxo. Destaco ainda que a identidade do grupo social se manifesta e se reafirma no que denomino ser lugares sonoros. Aliás, a constituição de tais lugares já ocorre no ventre materno, pois o feto cresce ouvindo a voz da mãe e o som ambiente. Sobre isso, Marisa Fonterrada (1979) afirma que o nosso primeiro contato com o mundo se dá por meio da audição. O pesquisador Alfred Tomatis (1996), por sua vez, demonstrou que os recémnascidos reagem à aproximação das mães por meio da audição. De acordo com esse autor, isso se deve pelo fato de que o órgão auditivo é o primeiro a ficar pronto, pouco depois dos quatro meses de gestação. Já no segundo caso, podemos, em muitas ocasiões, distinguir uma pessoa apenas ao escutarmos a sua voz. E isto sem que a tenhamos visto de antemão. Além do mais, comunicamos uns com outros através do som que sai de nossas cordas vocais e dos inúmeros instrumentos que criamos para tal finalidade. Desse modo, é compreensível o motivo pelo qual Friedrich Schiller (2002), em seu trabalho sobre estética, declarar a visão e a audição como sendo sentidos superiores ao tato e a gustação. Aliás, também não causa surpresa em saber que Cardoso de Oliveira (2000) tenha elegido a visão e a audição como os principais órgãos sensoriais utilizados pelos antropólogos durante uma pesquisa de campo. Para ele, olhar e ouvir são operações de apreensão dos fenômenos sociais presentes no exercício da pesquisa e na produção do conhecimento. Problematizando o “Olhar e Ouvir” Para Cardoso de Oliveira (2000), a visão e a audição dão subsídios à percepção de uma realidade que, por sua vez, é focalizada no trabalho etnográfico. Estas operações apresentamse como faculdades presentes no processo de construção do saber em qualquer campo disciplinar das ciências em geral, sobretudo às ciências humanas. O antropólogo em campo, segundo Cardoso de Oliveira (2000), dirige seus olhos para determinados atores e acontecimentos. Ele ainda alega que há uma domesticação teórica no modo como o antropólogo olha o Outro em seu universo. Quanto ao ato de ouvir, o 93 pesquisador deve aprender a ouvir os sons significantes oferecidos pelo campo. Assim, ele poderá eliminar os ruídos que parecem insignificantes. Tais afirmações, portanto, corroboram com a afirmativa pela qual a cultura é um entre os fatores mais influentes na percepção das pessoas. Sendo a percepção influenciada pela cultura, e esta, de acordo com Geertz (1989), faz com que os povos desenvolvam estruturas simbólicas pelas quais os indivíduos são percebidos exatamente como representantes de tipos específicos de pessoas. Mas serão suficientes a visão e a audição para perceber e compreender o Outro? Será que o antropólogo, ao valer-se apenas destes dois órgãos sensoriais, não corre o risco de ser levado ao engano ou a uma constatação superficial de uma determinada realidade, sobretudo aquelas em que a visão ou a audição não são predominantes para a tomada de conhecimento do mundo? Para responder, ou pelo menos ensaiar uma resposta para tais indagações, apresentarei a seguir algumas situações vividas por quatro antropólogos. Vamos então a elas. Conta-nos Magnani (2009) que, ao participar de uma festa junina de surdos na cidade de São Paulo, passara por uma situação desconcertante e ao mesmo tempo reveladora. De acordo com o seu relato: [...] À medida que as pessoas chegavam, cumprimentavam-se efusivamente e logo entabulavam conversa na sua língua de sinais – e eu lá, sentado numa cadeira, esperando alguma coisa acontecer… (mas torcendo para que antes chegasse um intérprete ou algum conhecido, pois não estava entendendo nada e não podia circular porque o ambiente era pequeno). Cada vez chegavam mais surdos e, eles sim, se conheciam, formando grupinhos animados; divertiam-se muito, riam, comunicavamse e eu absolutamente alheio, sem a menor a chance não só de entender o que diziam, mas de provocar algum contato: sentia-me fora de seu foco visual, era percebido num relance e imediatamente classificado como de fora daquele pedaço, impossibilitado de ser integrado por não dominar o código de reconhecimento e comunicação. A situação de desconforto foi num crescendo até que chegou um momento, depois de quase três horas de isolamento, de silêncio, de não entender nada e de não poder participar, em que resolvi ir embora, absolutamente frustrado com essa experiência, tão diferente das duas anteriores (MAGNANI, 2009, p.146). Como podemos observar, ele era o único que podia ouvir e falar naquele ambiente. Porém, estes não foram suficientes para estabelecer algum contato. Afinal, ele não dominava a Língua Brasileira dos Sinais (LIBRAS). Diante de tal situação, o antropólogo deixou a festa frustrado. Posteriormente, já em sua casa, percebeu então que os seus sentidos não o ajudariam muito para ingressar naquele grupo. 94 Mas, chegando a casa e, pondo em prática uma das regras que costumo indicar aos alunos após a volta do trabalho de campo, que é rever e passar a limpo as anotações do caderno, dei-me conta – e anotei, como dado relevante – que tinha acontecido comigo a mesma coisa que ocorre com eles quando, minoritários, estão em ambiente dominado pelos ouvintes: são ignorados em sua diferença. Assim, por um caminho inesperado, uma impressão nova e contrastiva fez parte do legado que apenas começava a ser acumulado na pesquisa sobre o tema (MAGNANI, 2009, p.146). A antropóloga Fernanda Eugênio (2003), durante um estudo que empreendeu juntamente com crianças cegas, sendo o campo a escola de alfabetização do Instituto Benjamin Constant, localizada no estado do Rio de Janeiro, constata que o exercício antropológico pautado na observação participante e no ponto de vista do nativo lhe renderia certas dificuldades. No contexto em que se encontrava, a autora notou que a predominância visual de tais métodos era insuficiente para alcançar o seu objetivo: compreender o ponto de vista do Outro. Diz a autora: [...] ao tornar manifesto o caráter proeminentemente visual do exercício antropológico, pautado na observação participante e na geertziana tentativa de adotar o ponto de vista do nativo. (EUGÊNIO, 2003, p.209). Naquela situação, Eugênio (2003) revela o quanto era impossível a tarefa de experimentar um mundo desprovido de imagens, ao qual não teria acesso mesmo que utilizando o ingênuo artifício de fechar os olhos. Todavia, o uso da visão como ferramenta de trabalho, em um contexto no qual a maioria das pessoas não enxerga, adquire outros contornos – ora desconfortáveis, ora facilitadores da própria pesquisa. No que concerne a observação participante, a autora destaca que, em muitas ocasiões, a situação exigia que visse, enxergasse, reparasse, que usasse e abusasse do sentido mais ausente entre aqueles que pesquisava. A expressão ―olhar com o meu olho‖ é significativa e faz pensar que talvez ali se considerem existir outras formas de olhar – além de ―com o olho‖. Com efeito, não demorei a notar o farto e deliberado uso que professoras e alunos cegos faziam dos verbos ―ver‖ e ―olhar‖ para designar o que chamaríamos de ―tocar‖. Frases como ―deixa eu ver‖ eram de imediato seguidas por braços estendidos à procura do objeto que se desejava examinar. De modo semelhante, as tias cegas recorriam com imensa frequência ao vasto repertório de metáforas visuais característico de nossa cultura, não raro ameaçando uma criança ―malcriada‖, por exemplo, com um severo ―estou de olho em você!‖. Quando a intenção era expressamente a de se referir à faculdade da visão, o verbo escolhido era ―enxergar‖. Assim, ao perceberem a agilidade e a rapidez com que eu trocava o papel das regletes ou encontrava algo que havia caído 95 no chão, as crianças me perguntavam: ―Tia, a senhora enxerga?‖. (Nota: 6) (EUGÊNIO, 2003, p.211). Já Stoller (1989, apud INGOLD, 2000), ao notar que caçadores Songhay caminhavam com os olhos voltados para o chão e os ouvidos atentos para o menor sinal de algum animal se aproximando, entendeu que seus olhos pouco ajudariam naquela ocasião e que, para compreender a forma como eles caçavam, deveria fazer o mesmo que seus interlocutores. Vale destacar que o mesmo aconteceu com o antropólogo Gil Vicente Lourenção. Ao fazer uma etnografia sobre um grupo de lutadores de Kendo, Lourenção (2009) percebeu que o olhar, a qual este afirma existir um vetor e um ponto, pois é impossível tomar tudo e todos ao mesmo tempo, não lhe daria acesso às informações que necessitava. Com isso, para compreender o à experiência dos treinos do Kendo, o autor foi impelido a adaptar o seu método de pesquisa. Desse modo, os exemplos supracitados demonstram que, em determinados contextos sociais, apenas olhar e ouvir não são suficientes para perceber e compreender o Outro. Afinal, como entender a dinâmica de grupos sociais que não privilegiam a visão ou a audição para constituição de seus mundos? Será que não há um etnocentrismo quando se coloca a visão e a audição como os principais recursos sensoriais para o entendimento do Outro? Como já foi outrora apontado, a cultura exerce um importante papel no modo como indivíduo utiliza os seus órgãos sensoriais. Nesse caso, o trabalho antropológico não está isento de tais influências. Afinal, termos como observação participante e o ponto de vista do nativo demonstram a predominância da visão na pesquisa antropológica. Afinal, se prestarmos atenção para os termos linguísticos que compõem tais expressões, constataremos que vinculamos automaticamente ao vocábulo ―observação‖ à visão e o mesmo pode-se atribuir à expressão o ponto de vista do nativo. Neste caso, como podemos achar que compreenderemos uma sociedade usando termos que, em muitos casos, não fazem parte do repertório cultural de seus membros? Afinal, como já foi apontado, nem todos os grupos sociais atribuem a visão como o centro de suas percepções. Declarei noutro momento que os sentidos, quando nos amparamos apenas em um ou outro, podem levar às conclusões enganosas e a uma compreensão insuficiente de uma dada realidade. Aliás, existem casos em que pesquisadores e outros profissionais – escritores, policiais, seguranças, vendedores, etc. –, valendo-se de observações descuidadas, identificam 96 o Outro de maneira errônea, o que pode levar ao preconceito e também a consequências desastrosas. Por esta razão, chamo atenção à importância de afetarmo-nos pelas sensações que os demais órgãos sensoriais podem nos oferecer durante o campo. Pois, não basta apenas olharmos ou escutarmos. Por exemplo, durante uma pesquisa que realizei junto aos pescadores artesanais da Praia dos Pescadores de Itanhaém-SP5, eu não saberia qual o significado dos ventos oriundos sul para um pescador artesanal se apenas tomasse em terra firme o seu depoimento. Afinal, seguindo as orientações de Tim Ingold (2000), os olhos desenvolvem um mundo em sua imagem sensorial, os ouvidos revelam uma paisagem sonora, a pele uma paisagem tátil e o nariz uma paisagem olfativa, etc. Além do mais, essas múltiplas paisagens – que, ao meu entender, deveria ser estendido para a forma como percebemos o Outro – não se referem ao mundo prático e habitado, pois recebemos um conjunto de sensações bem diferentes quando apenas vemos ou escutamos. Na verdade, todas elas são intercambiáveis. Ao antropólogo, portanto, cabe identificar quais os sentidos mais empregados pelos nativos na percepção e compreensão do seu mundo. Os casos citados são exemplos disso, afinal, ilustram os esforços dos citados pesquisadores. Considerações finais Para concluir, volto à epígrafe que abre o presente texto. As colocações feitas pelo escritor argentino Jorge Luís Borges, ao meu entender, suscitam novas reflexões e discussões ao que concerne o trabalho antropológico. Isto porque os ensinamentos contidos nesse fragmento textual são paradigmáticos, uma vez que denotam a necessidade de uma ação coordenada de todos os sentidos para a tomada de conhecimento do Outro. Dentro dessa perspectiva, acredito que o antropólogo, em campo, deve fazer o mesmo movimento que faz as personagens da presente história. Diante do que acabo de expor, entendo que o antropólogo deveria também inspirar-se naquela passagem pela qual Claude Lévi-Strauss (2008) narra o assombro de um biólogo 5 Refiro-me a pesquisa de iniciação científica ―A percepção dos pescadores artesanais quanto ao impacto das mudanças climáticas sobre o ambiente marinho de Itanhaém-SP‖, que teve apoio financeiro da FAPESP (Processo 2009/05798-5) e esteve sob a orientação da Profa. Dra. Mirian Cláudia Lourenção Simonetti. 97 diante do conhecimento de um nativo filipino sobre o reino vegetal e animal. Conforme a história, ao se deparar com uma planta que lhe parecia desconhecida, o nativo fez uma série de experimentos antes de fazer qualquer consideração. Primeiro, ele olha, cheira, prova e, logo em seguida, dá a sua classificação da planta. Nesse sentido, além de fazer o que Geertz (1989) denomina ser uma ―descrição densa‖, o pesquisador deve ir além de saber qual a diferença entre um tique nervoso, uma ―piscadela‖ e uma ―falsa piscadela‖. O que quero dizer, portanto, é que o antropólogo deve ter em mente que cada cultura possui uma particular noção de corpo e distintas formas de organizar suas percepções. Assim, para compreender uma sociedade, o pesquisador deve preocupar-se em saber quais são os órgãos sensoriais utilizados pelos nativos na constituição de seu mundo. Caso contrário, corre o risco de ter suas impressões do campo comprometidas se caso não tomar o devido cuidado. Dessa maneira, a história contada pelo escritor argentino, além de suscitar as discussões aqui abordadas, traz consigo novos elementos que nos fazem pensar a relação entre pesquisador e aqueles que este almeja conhecer. Através dessa pequena história, o autor demonstra que os adjetivos que usamos para identificar o Outro não estão neste, mas sim na forma como o percebemos. Referências ARGAN, G. C. A arte moderna: do Iluminismo aos movimentos contemporâneos. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. BORGES, J. L. Introdução de Jorge Luís Borges. In: KAFKA, F. La metamorfosis. Buenos Aires: Orión, 1982. CAIUBY NOVAES, S. Mulheres, homens e heróis: dinâmica e permanência através do cotidiano da vida Bororo. 1979. Dissertação (Mestrado), Universidade de São Paulo. São Paulo, 1979. CARDOSO DE OLIVEIRA, R. O trabalho do antropólogo: olhar, ouvir e escrever. In. O trabalho do antropólogo. São Paulo: UNESP, 2000. CARPENTER, E. Eskimo Realities. New York: Holt, Rinehart y Winston, 1973. 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Com isso surge a necessidade de nos debruçarmos sobre essa problemática, e nada melhor do que utilizar a perspectiva de Cornelius Castoriadis para nortear essa reflexão. É apenas a conscientização dos cidadãos quanto a seus papeis na comunidade e a afirmação da sociabilidade, e da historicidade, que podem permitir a plena realização de nossas tarefas cotidianas, no contexto de nossas funções profissionais e políticas. Palavras-chave: Cornelius Castoriadis; Pluralismo; Crise. Abstract. This text aims only to propose some reflections on themes related to the pluralism and the cultural differences - as the struggles of many social groups, like the women, the ―cultural‖, ethnic and local minorities, in the search for the resolution of their conflicts -, in the social-historical context of the crisis of the social imaginary significations. Thus the necessity arises of examining this problematic and nothing would be better than utilizing Cornelius Castoriadis‘ perspective to orient this reflection. It is concluded that only the citizens‘ conscientization on their holes in the community and the affirmation of the sociability, and of the historicity, that can permit the whole realization of our daily tasks, in the context of our professional and political activities. Keywords: Cornelius Castoriadis; Pluralism; Crisis. 1. INTRODUÇÃO Quando as manifestações das chamadas ―jornadas de junho‖ pronunciaram nas ruas palavras de ordem como ―saúde‖, ―educação‖, ―habitação‖, ―emprego‖, ―segurança‖, ―lazer‖, ―cultura‖, ―transporte‖, ―aborto‖, ―não à corrupção‖, ―não ao sexismo‖, entre outras, reacenderam-se no país as discussões sobre as possibilidades da existência de uma verdadeira democracia, capaz de permitir a participação de todos na tomada de decisões. Dentre as 1 Daniel G. R. Delmanto é graduado em Ciências Sociais e Mestre em Educação, ambos pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande. [email protected]. 2 David Victor-Emmanuel Tauro é Pós-doutor em História e Filosofia da Educação, pela Universidade Estadual de Campinas, e Professor Associado da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande. [email protected]. Tel.: 55 67 33857585. Cidade Universitária s/n. 79070900 – Campo Grande – MS. 101 questões que se colocam está a do pluralismo e a das diferenças culturais, incluindo-se a questão dos limites que os envolvem. O filósofo e militante da autonomia, grego e naturalizado francês, Cornelius Castoriadis (1922-1997), sendo um dos principais defensores da democracia direta, desde a década de 1950 – com sua crítica dos acontecimentos pós-revolução russa de 1917 -, e também um dos intelectuais que mais procuraram encontrar saídas para a crise que atravessa a nossa sociedade impedindo que uma verdadeira ação cívica aconteça, nos oferece, ao longo de sua vasta obra, elementos importantes para o debate da defesa dos indivíduos e das minorias, e dos seus limites3. É a este debate que o presente texto pretende contribuir. 2. A CULTURA E A POLÍTICA EM CONTEXTO DE CRISE DAS SOCIEDADES OCIDENTAIS. Em um texto publicado em 1979, intitulado ―Transformação Social e Criação Cultural‖, Castoriadis procurava elucidar as potencialidades por um novo mundo ou o próprio fazer político em si, por trás da antiga e recorrente metáfora botânica da ―decadência do Ocidente‖, que sempre tentou ocultá-los. Além disso, pretendia elucidar a importância da cultura para a questão da transformação social em uma sociedade autônoma, tendo em vista o contexto de crise em que se encontra a sociedade capitalista. Nas palavras do autor, A questão da ―cultura‖ é considerada aqui como dimensão do problema político, e podemos dizer, principalmente, que o problema político é um componente da questão da cultura no sentido mais amplo. (Por política, eu não entendo, evidentemente, nem a profissão de Nixon, nem às eleições municipais. O problema político é o problema da instituição global da sociedade)4. Com isso, Castoriadis tornava preciso o entrelaçamento da cultura e da política para a questão das transformações radicais nas sociedades. 3 Cf., entre outros textos de Castoriadis, ―Terceiro mundo, terceiro mundismo, democracia‖, in As Encruzilhadas do Labirinto II - Os domínios do homem; ―A Época do Conformismo Generalizado‖, in As Encruzilhadas do Labirinto III – O Mundo Fragmentado; ―A Crise das sociedades ocidentais‖ e ―A Ascensão da Insignificância‖, in As Encruzilhadas do Labirinto IV– A Ascensão da Insignificância; e ―Transformação social e criação cultural‖, in Janela sobre o Caos. Vide bibliografia in fine. 4 CASTORIADIS, C., 2009, p. 9-10. 102 Um dos eixos de compreensão do texto citado é a tensão entre dois fenômenos característicos da sociedade ocidental. Segundo Castoriadis, se a cultura da sociedade capitalista está a ponto de morrer - ―como conjunto de normas e de valores, como formas de socialização e de vida cultural, como tipo social-histórico dos indivíduos, como significação da relação da coletividade consigo mesma, com os que a compõem, com o tempo e com suas próprias obras‖ -, por outro lado, ―o que está nascendo, penosa, fragmentária e contraditoriamente, já faz dois séculos ou mais, é o projeto de uma nova sociedade, o projeto de autonomia social e individual5.‖ Projeto que é criação política em seu sentido mais profundo, ou seja, de criação de regimes que permitam a participação de todos e em que a questão de seu porvir e de sua ―finalização‖ – a questão da transformação social em um sentido radical – permanece aberta. Ao longo de suas tentativas de realização, desviadas ou abortadas, ―revoluções democráticas, lutas trabalhadoras, movimentos das mulheres, das minoridades ‗culturais‘, étnicas, regionais, testemunham, todos, a emergência da vida continuada deste projeto de autonomia6.‖ É importante aprofundarmos um pouco mais o significado do termo cultura, em Castoriadis, para, em seguida, tentarmos compreender suas consequências, em um contexto de crise, e principalmente seus pressupostos para a transformação radical da sociedade. Pedimos desculpas por citarmos um grande trecho desta passagem: Tomo, aqui, o termo cultura em uma acepção intermediária entre seu sentido usual em francês (as ―obras do espírito” e o acesso do indivíduo a elas) e seu sentido na antropologia americana (que cobre a totalidade da instituição da sociedade, tudo o que diferencia e opõe sociedade por um lado, animalidade e natureza, do outro). Entendo por cultura tudo o que, na instituição de uma sociedade, ultrapassa a dimensão conjuntista-identitária (funcional-instrumental) e que os indivíduos desta sociedade tomam posse positivamente como ―valor‖ no sentido mais geral do termo: em suma, a paideia dos gregos. Como o próprio nome indica, a paideia abrange também indissociavelmente os processos instituídos mediante os quais o ser humano, no decorrer de sua fabricação social como indivíduo, é conduzido a reconhecer e a tomar posse positivamente dos valores da sociedade. Esses valores não são dados por uma instância externa, nem descobertos pela sociedade em camadas naturais ou em um céu da Razão. Eles são, em todas as ocasiões, criados pela sociedade consideradada como núcleo de sua instituição, baliza última e irredutível da significação, pólos de orientação do fazer e do representar social. É impossível falar de transformação social sem afrontar a questão da cultura neste sentido (...) 7. 5 CASTORIADIS, C., 2009, p. 10. Idem, ibidem. Entretanto, é necessário um exame aprofundado quanto aos limites nos sucessos desses movimentos, como veremos adiante. 7 Idem, p. 11. 6 103 Ainda segundo Castoriadis, é possível explicitar de maneira mais específica a relação íntima entre a criação cultural e a problemática social e política de nossos tempos, através de algumas interrogações e o que estas pressupõem, implicam ou conduzem – como constatação de fato, sejam elas discutíveis ou como articulação de sentido: 1) ―Pode uma sociedade ‗querer‘ ser autônoma para ser autônoma? [no sentido kantiano de afirmar como valor somente a própria autonomia] Ou ainda: autogovernar-se - sim; mas para fazer o quê?‖. E diante de uma resposta tradicional a essas primeiras interrogações, a saber, de que a sociedade busca sua autonomia para satisfazer suas necessidades, Castoriadis continua: ―Quais necessidades? No momento em que não se corre mais o risco de morrer de fome, o que é viver?‖; 2) Supondo que a sociedade busque sua autonomia para realizar melhor os valores, ou realizar outros valores (melhores), podemos nos perguntar: ―Na sociedade contemporânea ainda existem valores?‖; 3) Com esses questionamentos, Castoriadis não pretende afirmar a ausência total de valores em nossa sociedade – o que seria inconcebível, segundo ele, pois sempre existem, pelo menos, valores trans-historicamente neutros e abstratos8 -, mas apontar para a incompatibilidade entre o projeto de autonomia e os ―valores‖ da sociedade instituída contemporânea9. Muito importantes também para esse debate é a série de livros, de Castoriadis, chamada As Encruzilhadas do Labirinto, das décadas de 80 e 90, em que o autor discute sistematicamente a crise das sociedades ocidentais. Os subtítulos de dois desses livros, O Mundo Fragmentado e A Ascensão da Insignificância são muito sugestivos nesse sentido. Um dos aspectos discutidos por Castoriadis é o desaparecimento gradual do conflito social e político pela contaminação mútua e pelo entrelaçamento do projeto de autonomia individual e social10 e a expansão ilimitada do ―domínio racional‖, ambas significações imaginárias sociais distintas e incompatíveis entre si. Assim, os grandes movimentos sociais, 8 No mesmo sentido em que, por exemplo, em nossa sociedade, a desonestidade tornou-se um valor, sob a justificativa de que ela é ―parte da engrenagem‖, ―necessária para o funcionamento da sociedade‖ ou de que ―sem desonestidade você está fora do jogo‖. Preocupante sinal dos tempos marcados pela desorientação e decomposição da sociedade, como veremos ao longo deste texto. 9 CASTORIADIS, C., 2009, p. 12. 10 Castoriadis argumentou de modo convincente que um é impossível sem o outro, cf. o Cap. II, da Instituição Imaginária da Sociedade, para uma primeira versão. Vide bibliografia in fine. 104 característicos dos países ocidentais, há séculos, por proporem modificações essenciais de instituições e orientações definidas das atividades sociais, estão em vias de desaparecimento11. Marcante, nesse sentido, foi a nova época de expansão capitalista do pós-guerra, na Europa e nos Estados Unidos, época conhecida como ―30 Anos Gloriosos‖, em que, graças ao Plano Marshall e outros instrumentos de intervenção estatal, assistiu-se a uma enorme expansão do consumo de bens – de eletrodomésticos a veículos, casas no campo, viagens e novas formas de lazer, como clubes, cinemas e casas noturnas de shows -, por todas as camadas sociais, visto que, com o tempo, os ganhos obtidos pelos trabalhadores nos combates nas fábricas resultaram em ganhos reais, aplicados também no consumo. É interessante que até hoje as novelas americanas são chamadas ―soap operas‖, óperas de sabão [em pó ou detergente], precisamente porque surgiram como forma de entretenimento popular e barato; primeiro, via radio e, depois, via TV, para as donas de casa, enquanto realizavam suas tarefas domésticas e distraiam-se com os artefatos do entretenimento e copos de Martini-dry, salpicados com publicidade de marcas de sabão. Assim, o empobrecimento progressivo do trabalhador não [sic!] estava acontecendo, nem nos Estados Unidos, nem na Europa, que abria suas fronteiras para receber, tanto das colônias quanto das ex-colônias, trabalhadores para as atividades de reconstrução. Criavam-se, assim, novas divisões de trabalho, tingidas por fatores referentes às crenças e etnias; o que criou uma série de outros problemas nas décadas seguintes. Os movimentos sociais de jovens, mulheres e grupos étnicos começaram a se proliferar, durante os anos de 1960, culminando na rebelião de maio 1968 em vários países do mundo. Por outro lado, este período, é também caracterizado, por Castoriadis como o período da retração no conformismo, em que, justamente devido à fase de expansão capitalista e, consequentemente, do consumo, uma população apática e desiludida não crê que sua adesão aos movimentos sociais possa conduzir a sociedade a alguma mudança efetiva. Os próprios movimentos contestários, numa prova da atomização da sociedade, preocupam-se apenas com problemas setoriais e não com situações ligadas à esfera mundial, de modo que, segundo Castoriadis, ―nenhum deles conseguiu propor nova visão da sociedade12.‖ Em outro eixo temático utilizado por Castoriadis, que engloba educação, cultura e valores, o autor se interroga sobre a capacidade das sociedades ocidentais de ainda fabricarem 11 12 CASTORIADIS, C., 2002b, p. 15. Cf. CASTORIADIS, C., 1987-1992, p. 22. 105 o tipo de indivíduo necessário a seu funcionamento continuado, visto que cada sociedade produz indivíduos capazes de compartilharem de suas significações imaginárias sociais e de reproduzi-las. Segundo Castoriadis, ―o que está em causa é a degradação e a desintegração dos papéis tradicionais – homem, mulher, pais filhos – e sua consequência: a desorientação informe das novas gerações‖, atingindo o primeiro e principal ateliê de fabricação de indivíduos adequados, que é a família13. Ou seja, ninguém mais sabe em que consiste ser um cidadão, homem, mulher, filho, pois os papeis tradicionais - que antes eram sabidos por todos, nos mais diferentes níveis da sociedade, de categoria, de grupo - se dissolveram. Por exemplo, o famoso princípio: ‗O lugar da mulher é no lar‘ (que precede o nazismo em muitos milênios), definia um papel para a mulher: criticável, alienante desumano, tudo o que quisermos – mas, de qualquer forma, uma mulher sabia o que devia fazer: ficar em casa, cuidar dela. Da mesma forma, o homem sabia que tinha que manter a família, exercer a autoridade, etc14. É evidente que Castoriadis está se colocando em um ponto de vista descritivo e analítico, que não leva em conta as críticas justificadas ao patriarcalismo do sistema familiar, mas o faz para demonstrar o caráter ambíguo dessa oposição às tendências e correntes tradicionais através da luta pela diminuição do papel da família no sistema social, podendo levar também à desorientação e à anomia15. Exemplo claro disso é o aumento de grupos sociais balizados em novas formas identitárias, originadas do aprendizado histórico dos diversos movimentos sociais, como os assexuados, hermafroditas e LGBTQs16 etc., além de idosos, viúvos e mães chefes de família, fenômeno que, segundo o senso demográfico de 2010, no Brasil, compreende 34,5% nas famílias principais e 53,5% nas famílias secundárias (que convivem com as principais); todos mais ou menos reivindicando o seu direito para adotar filhos: perguntamos se daqui a alguns 13 CASTORIADIS, C., 2002b, p. 17. CASTORIADIS, C., 2002b, p. 107. 15 Não podemos nos aprofundar, neste artigo, em todos os aspectos, desenvolvidos por Castoriadis, envolvendo a crise da escola nas sociedades ocidentais, cf. ―Psicanálise e sociedade II‖, in As Encruzilhadas... II; e ―A crise das sociedades ocidentais‖, in As Encruzilhadas... IV - vide bibliografia in fine -, mas devemos ressaltar a expectativa que ainda hoje é depositada na escola devido ao seu potencial de rivalizar com a familia patriarcal no papel de elo concreto entre a instituição social e a formação da psique individual, como em outras épocas. 16 Segundo a Wikipédia, a sigla LGBTQ agrupa lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e queers. O termo queers designa travestis, drag-queens, transexuais, cross-dressers e outras pessoas consideradas estranhas, e por isso, não aceitas socialmente, que ao se denominarem queer ganham espaço social e individualidade, se distanciando cada vez mais de conceitos tais como ―desviantes‖ ou ―aberrações‖. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Queer. Acesso em: 02/11/2013. 14 106 anos alguém saberá o que é ser criado e educado por pai e mãe (!), como comprovação do que Castoriadis afirmou a respeito da desarticulação da família em nossos dias. Além disso, temos no Brasil os frequentes conflitos agrários envolvendo indígenas e produtores rurais, no qual se vê a dificuldade imensa da sociedade ―branca‖, em respeitar o direito fundamental aos territórios indígenas, criando para estes uma situação insustentável. Devido à perda de suas terras ancestrais, necessárias à manutenção de suas relações políticoreligiosas, e por não encontrarem na sociedade envolvente senão o vazio de seu consumismo, os indígenas sofrem a mais cruel epidemia de suicídios já vista17. A solução destes impasses talvez esteja na criação de um ―Estado indígena‖, como sugere o sociólogo Francisco de Oliveira, portanto, de uma nova criação cultural - incapaz de ser pronunciada pela maioria dos fazendeiros ricos no Brasil -, em substituição à significação imaginária social da ―integração‖, que norteia, sem nenhum resultado efetivo, as relações entre os indígenas e a sociedade envolvente há muitos séculos18. Mas, como lembra Castoriadis, enquanto durar a decomposição das significações imaginárias sociais, continuaremos a ser cidadãos sem bússola. Posto isso, percebemos que a crise das sociedades ocidentais se refere, grosso modo, àquilo que, na definição do conceito de cultura, referimos como sendo o conjunto dos valores que os indivíduos, no curso de sua fabricação social, são conduzidos a reconhecer e a tomar posse positivamente, e que, para a sociedade, representa o núcleo de sua instituição, baliza última e irredutível da significação, pólos de orientação do fazer e do representar social. A crise é também, portanto, uma crise da autorrepresentação – movimento imprescindível para a existência tanto dos indivíduos quanto das sociedades. Consequentemente, precisamos do ressurgimento do projeto de autonomia individual e social, capaz de colocar em funcionamento novas atitudes humanas e novos objetivos políticos, enquanto aspiração de todos os indivíduos, enquanto um projeto global. E mais: 17 Segundo informações divulgadas pela ONG Survival em seu sítio, no estado do Mato Grosso do Sul, no ano de 2012, 56 índios Guarani suicidaram-se devido à perda de suas terras ancestrais e constantes ataques de pistoleiros- é provável que o número real seja maior devido aos casos não reportados. Ainda segundo esses dados, a taxa de suicídio entre os Guarani é de ao menos 34 vezes a média nacional, a maioria das vítimas tendo entre 15 e 29 anos, sendo que a vítima mais nova tinha apenas 9 anos de idade. Para piorar, os políticos brasileiros estão discutindo uma Emenda Constitucional que daria ao Congresso Nacional - influenciado pelo lobby ruralista e anti-indígena - o poder de demarcação de terras indígenas, representando um enorme retrocesso para os Guarani e sua campanha pelo direito à terra. 18 Cf. MENDONÇA, R. ―Assustaram os donos do poder, e isso foi ótimo‖, diz o sociólogo Chico de Oliveira, in Folha de São Paulo. Vide bibliografia in fine. 107 precisamos, segundo Castoriadis, de ―uma criação cultural nova, concomitante a uma transformação imensa das estruturas psíquicas e mentais dos indivíduos socializados19‖. A instauração de uma sociedade autônoma exigiria, além disso, a destruição dos ―valores‖ que orientam atualmente o fazer individual e social: consumo, poder, status, prestígio, expansão ilimitada da superioridade ―racional‖, a crença estúpida do ―mais é melhor20‖. Aqui, fundemse as acepções da cultura e da política, como possibilidades de criação de uma sociedade autônoma. 3. A AFIRMAÇÃO DA SOCIABILIDADE E DA HISTORICIDADE SUBSTANTIVA COMO VALORES DE UMA SOCIEDADE AUTÔNOMA Após termos analisado a necessidade, para o projeto de autonomia, de destruição dos ―valores‖ que orientam atualmente os fazeres individual e social, os próximos passos serão elucidar a tese castoriadiana de que, por mais chocante e inadmissível que isto possa parecer, a destruição da cultura, no sentido específico e estrito, já está largamente em curso na sociedade contemporânea21. Veremos também até que ponto uma nova criação cultural está a ponto de emergir e quais as suas características. Iniciaremos pela afirmação a respeito, numa primeira observação, da nulidade da cultura contemporânea, que, segundo Castoriadis, Pretende-se fazer revoluções copiando ou pastichando mal – mediante também a ignorância de um público hipercivilizado e neoanalfabeto – os últimos grandes momentos criadores da cultura ocidental, isto é, o que se fez a mais de meio século (entre 1900 e 1925 ou 1930)22. Essas questões não se colocam somente em relação à ―arte‖; concernindo principalmente à criação intelectual no sentido estrito; e isso pelos mesmos motivos: seja na área da ciência ou 19 CASTORIADIS, C., 2009, p. 13. Lembramos que os principais slogans políticos, atualmente, no Mato Grosso do Sul, têm sido lemas como ―Rumo ao desenvolvimento‖ ou ―Em pleno desenvolvimento‖. Lemas estéreis que levam em conta apenas o progresso material – aliás, o único possível -, e não o desenvolvimento das pessoas. Sobre como, na visão de Castoriadis, a ideologia do historicismo-progressismo dominante traduz-se em ilusões como ―desenvolvimento‖, ―crescimento‖ e ―acumulação aquisitiva‖, cf. ―Reflexões sobre o ‗desenvolvimento‘ e a ‗racionalidade‘‖, in As Encruzilhadas...II. Vide bibliografia in fine. 21 Segundo Castoriadis (2009, p. 14), ―a destruição da cultura existente (incluindo o passado) está a ponto de realizar-se na mesma medida em que a criação cultural da sociedade instituída está a ponto de ruir-se.‖ 22 CASTORIADIS, C., 2009, p. 14. 20 108 da técnica, não há nada de realmente novo, mas apenas a aplicação e a elaboração das consequências das grandes ideias já adquiridas. Em seguida, Castoriadis analisa as características da morte da cultura na atualidade. A primeira delas é a morte dos ―húmus dos valores em que a obra da cultura pode crescer e que ela se alimenta e, em contrapartida, engrossa23‖. Em outras palavras, todas as grandes obras que conhecemos foram criadas em uma relação ―positiva‖ com valores ―positivos‖. Para Castoriadis, a obra de arte deve conservar uma relação paradoxal com os valores da sociedade, afirmando-os, ao mesmo tempo que os põe em dúvida e os contesta, sem que a obra necessite ter alguma função moralizadora ou edificante; ao contrário: a intensidade e a grandeza de uma obra são indissociáveis de um abalo e de uma oscilação do sentido estabelecido; e isso só ocorre se, por um lado, a arte é voltada a revelar o Caos do qual surgiram a sociedade e cada um de nós24, e, por outro lado, se a vida é ao mesmo tempo fortemente atacada e valorizada por e nesta sociedade. Outra que morre, é a relação essencial da obra e de seu autor com um público. A maneira de viver, de instituir-se, de fazer e fazer-se coletividades social-históricas, por exemplo, do gregos, com Ésquilo e de Sófocles, ou do público isabelino, com Shakespeare, permitia uma relação essencial entre o indivíduo e a obra, e a vida coletiva. Obviamente, Castoriadis não queria dizer com isso que as sociedades anteriores eram ―culturalmente indiferenciadas‖, que em todos os casos o público coincidia com a totalidade da sociedade; mas que havia um co-pertencimento do autor e de um público que formavam uma coletividade ―concreta‖. Contudo, com o triunfo da burguesia capitalista, depois do século XIX, e o progressivo esvaziamento dos valores burgueses - postos a nu naquilo que doravante se tornou sua simples banalidade -, diz Castoriadis: Ao mesmo tempo em que é formalmente proclamada (e logo veiculada por instituições especificamente designadas, em particular a educação geral) a ―indiferenciação cultural‖ da sociedade, estabelece-se uma separação completa, uma cisão, entre um ―público culto‖, ao qual se dirige uma arte ―erudita‖, e um ―povo‖ que, nas cidades, está reduzido a se alimentar com algumas migalhas caídas da mesa cultural burguesa, e da qual, por todo lado, na cidade como no campo, as formas de expressão e de criação tradicionais são rapidamente desintegradas e destruídas 25. 23 Idem, p. 17. Sobre esta relação entre a arte e o Caos, em Castoriadis, cf. ―Uma interrogação sem fim‖, in As Encruzilhadas...II. Vide bibliografia in fine. 25 CASTORIADIS, C., 2009, p. 19. 24 109 Em seguida, esta cisão pulveriza e atinge a relação entre o criador individual e um meio social/cultural determinado, pois não havia mais entre eles ―uma comunidade de pontos de referência, de marcas, de horizontes de sentidos26‖. Castoriadis afirma que a destruição nessas duas esferas discutidas, a do húmus dos valores e a da relação essencial da obra e de seu autor com um público, tem consequências sobre a sobrevivência da forma mesma e das categorias (gêneros) de criação herdadas, pois essas manifestações artísticas – romance, quadro, peça de teatro etc. – ―implicam totalmente a sociedade na qual surgem27‖. Castoriadis explica que os objetos que aprendemos a chamar de ―obra de cultura‖, atualmente, por estarem desprovidos das características básicas que compõem a significação imaginária social com este nome, não são totalidades singulares – elas não duram, não têm relação essencial com um autor definido, não são singulares ou singularizáveis, mas exemplares indefinidamente reproduzíveis do mesmo tipo. Contudo, esse modo de existência do autor, de sua obra, de sua forma e de seu público, que nasce nas sociedades ―históricas‖, no sentido estrito – desde o ―despotismo oriental‖, seguramente desde a Grécia (―Homero‖ e seguidores) – e culmina no mundo greco-ocidental, não é o único, nem tampouco o mais válido. A criação popular não está limitada à ―préhistória‖ e continuou por longo período, paralelamente à criação ―erudita‖, debaixo dela e alimentando-a a maior parte do tempo, e, segundo Castoriadis, ―sua durabilidade é incorporada em seu modo de ser, em seu modo de transmissão, no modo de transmissão das ‗capacidades subjetivas‘ que a sustenta, no modo de ser da própria coletividade28.‖ Ainda segundo o autor, o caráter ―pré-histórico‖ da cultura da África negra, antes da colonização, salta à vista quando desembarcamos naquele continente. Apesar dela não ter sido explicitamente feita para durar, ela permanece, enquanto o faz e consegue resistir às invasões ocidentais29. ―Ela dura aí onde ela o faz por meio de um investimento continuado dos valores e 26 Idem, ibidem. Idem, p. 22. 28 CASTORIADIS, C., 2009, p. 24. 29 Neste trecho de sua obra, Castoriadis fornece especificamente o exemplo da colonização imperialista do continente africano, mas, segundo Tauro & Silva, essa invasão ocorre, atualmente, pela atração que o ―modelo‖ de vida ocidental exerce sobre os países em desenvolvimento. Cf. ―Olhando a sociedade contemporânea sob a ótica de Cornelius Castoriadis (1922-1997)‖, in Revista Composição. Vide bibliografia in fine. 27 110 das significações imaginárias sociais próprias às diferentes etnias que continuam a orientar seu fazer e seu representar social30.‖ Por outro lado, parece que se reuniram, em nossa sociedade, a partir da extraordinária ampliação das possibilidades e do saber-fazer, algumas condições para uma nova criação cultural, e que uma cultura de tipo ―popular‖ está a ponto de emergir. São exemplos os grupos musicais de jóvens, as fotografias feitas por qualquer pessoa com um mínimo de gosto e que tenha contemplado pinturas e fotografias, construções de casas com materiais recicláveis e que podem ser alteradas todas as semanas, pastiches de obras musicais feitas com computadores caseiros baratos etc. Além disso, essas obras parecem ser dotadas de fogo, que Castoriadis define como sendo o ato da ―dedicação a outra coisa que nossa existência individual‖ - como o fazer algo, com valor absoluto, para alguém ou outros, presentes ou futuros, por mais indefinidos e enigmáticos que sejam esses outros –, a única maneira de ―nos tornarmos verdadeiramente indíviduos31‖. Mas, Castoriadis prossegue com cuidado: seria trapaça pretender contrabalançar o vazio da cultura erudita atual com aquilo que tenta nascer como cultura popular e difusa. A falta de um suporte nos valores, que antes possibilitava a continuação/variação de uma tradição vivente pela obra de arte, e o desmonte dos valores substantivos herdados afetam também a cultura neopopular moderna. Como uma categoria social de análise sobre o modo de ser dos homens e da sociedade, a categoria da autonomia castoriadiana visa uma postura de responsabilidade na proposição, discussão, votação e execução de suas atividades coletivas e públicas. Logo, para o autor, as respostas a nossos problemas devem vir sempre do povo como um todo, contudo, podemos tentar esclarecer os seus dados. Nesse sentido, Castoriadis afirma que podemos começar nos perguntando se a sociedade ainda se quer como sociedade e como qual sociedade; em segundo lugar devemos nos interrogar sobre o modo de socialização atual, pela televisão, por esta televisão e sua técnica, que aí estão, como vetores inseparáveis e mais extremos da dinâmica privatizadora da sociedade em que se encontram. Não há outra definição para o modo de (des)socialização representado pela televisão, já que, através dela, famílias isoladas se aglomeram passivamente em torno de alguns polos emissores, sem nenhuma comunicação e nenhuma troca entre eles. 30 31 CASTORIADIS, C., op. cit., p. 24. Idem, p. 26. 111 Uma mudança desse paradigma envolveria, segundo Castoriadis, a recuperação de nossa ―própria sociabilidade positiva como valor substantivo32‖. Em seguida, Castoriadis afirma que carece também à sociedade uma tomada e uma recriação de nossa historicidade, de nosso modo de historização; que não seja nem uma pretensa repetição do passado, como foi o caso das sociedades arcaicas ou da maioria das sociedades ―tradicionais‖, nem a pretensa ―tábua rasa‖ do passado, nascida sob nossos olhos; ambos modos de heteronomia das sociedades e dos indivíduos33. É importante ressaltar que, na sociedade capitalista contemporânea, sob a ideologia do ―historicismo-progressismo‖, levada ao absurdo – sob a forma liberal (ou ―neoliberal‖, na designação ilusória de hoje) ou sob a forma marxista -, as transformações sociais adquiriam caminhos próprios, independentes, fora do controle de seus criadores. A nova consciência histórica proposta por Castoriadis ―implica ao mesmo tempo uma restauração do valor da tradição e uma outra atitude em face desta tradição, uma outra articulação entre esta e as tarefas do presente futuro34‖. Por isso, segundo Castoriadis, quebrar os circuitos de fabricação e de difusão dos tranquilizantes implica, necessariamente, a afirmação da sociabilidade e da historicidade substantiva como valores de uma sociedade autônoma. Vale a pena citar este trecho por extenso. Do mesmo modo, temos de reconhecer nos indivíduos, nos grupos, nas etnias, sua verdadeira alteridade (o que não implica que tenhamos de nos conformar, porque seria ainda uma maneira de desconhecê-la ou aboli-la) e organizar a partir deste reconhecimento uma coexistência verdadeira; do mesmo modo, o passado de nossa sociedade e das outras nos convida a nos reconhecermos, na medida (incerta e inesgotável) em que nós podemos conhecê-lo, outra coisa que um modelo ou um instrumento. Esta escolha é indissociável daquela que nos faz querer uma sociedade autônoma e justa, onde os indivíduos autônomos, livres e iguais, vivem no reconhecimento recíproco. Reconhecimento que não é simples operação mental – mas também, e sobretudo, afeto35. É importante ressaltar que a noção de igualdade ventilada por Castoriadis não é a de que todos devem fazer as mesmas coisas e pensar igualmente, como durante as barbáries do Khmer Vermelho, liderado por Pol Pot, nos anos de 1975 a 1979, no Camboja. Mas sim a 32 CASTORIADIS, C., 2009, p. 26. Idem, p. 29. 34 CASTORIADIS, C., 2009, p. 29. 35 Idem, ibidem. 33 112 igualdade que é a condição sine qua non para a ocorrência da philia aristotélica e que, ―na sociedade política, implica a liberdade, ou melhor, aquilo que chamamos de autonomia36‖. Enquanto isso, no Brasil, preso na ignorância e em dogmas cristãos, o deputado federal Jair Bolsonaro (PP-RJ) e pastores deputados disparam o seus preconceitos contra mulheres, afrodescendentes e LGBTs, ora por entrevistas, ora por projetos que tentam aprovar na Câmara, para acabar com os direitos desses grupos e anular séculos de história e sociabilidade conquistadas à custa de muita luta e sangue derramado. Uma das marcas destoantes das manifestações recentes tem sido a aparição de um novo grupo, os ―black-blocs‖: grupos de jovens, cujas caras são cobertas, vestidos de preto e que se infiltram nas últimas fileiras de manifestantes com o intuito de bagunçar as manifestações até então pacíficas. Armados de todo tipo de artefatos, provocam e atacam a polícia e não hesitam em ocupar e destruir propriedades públicas e privadas como uma forma de protesto niilista. De revolucionário, não representam nada: o quebra-quebra dos elementos lumpen tem uma longa e conhecida tradição. Além de deturpar a atenção das reivindicações genuinamente populares, agem como se eles tomassem o lugar da população e seus atos representassem a ―verdadeira‖ mudança desejada. Castoriadis tomou muito cuidado em insistir sobre a necessidade da participação das massas nas ações políticas contra todo tipo de vanguardismo, especialmente do tipo das Brigadas Vermelhas, RAF, e outros grupúsculos terroristas dos anos 1970 e 1980. Ações de vandalismo por parte dos ―black blocs‖ podem chocar a população; são inócuas para o capitalismo, já que a propriedade privada é assegurada e a propriedade pública será substituída com nossos impostos. Visto que companhias de seguro não são sociedades filantrópicas, todos nós vamos ―pagar o pato‖, incluindo estes infelizes vândalos. Talvez devêssemos refletir um pouco sobre quem está por trás deles. Vale a interrogação latina: ―Cui bono37?‖ 4. EM LUGAR DE UMA CONCLUSÃO Quando refletimos sobre o pluralismo e as diferenças culturais, uma série de interrogações perpassa qualquer tentativa de se reconciliar com a vida cotidiana: para 36 37 Idem, p. 30. Quem lucra? 113 começar, o que significam ―cultura‖ e ―política‖ para nós hoje e o que deveriam significar? Em seguida, que novos valores e atitudes, criados em e por toda a sociedade, permitirão a seus integrantes maior participação social, econômica e política? Como é que as políticas públicas poderiam ser usadas para efetivamente fazer reinar a justiça social no país? Enquanto não nos endereçarmos essas ou outras interrogações, e lutarmos juntos para efetivar políticas que possam responder à altura aos problemas que nos assolam, continuaremos a viver na Era da Exclusão. Referências CASTORIADIS, Cornelius. A Instituição Imaginária da Sociedade. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1982. _____________. As Encruzilhadas do Labirinto II - Os domínios do homem. Tradução: José Oscar de Almeida Marques. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 2002a. _____________. As Encruzilhadas do Labirinto III – O Mundo Fragmentado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987-1992. _____________. As Encruzilhadas do Labirinto IV – A Ascensão da Insignificância. São Paulo: Paz e Terra, 2002b _____________. CASTORIADIS, C. Janela sobre o Caos. Aparecida, SP: Idéias e Letras, 2009. MENDONÇA, R. ―Assustaram os donos do poder, e isso foi ótimo‖, diz o sociólogo Chico de Oliveira. Folha de São Paulo, São Paulo, 09 nov. 2013. Caderno Poder. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2013/11/1368697-assustarem-os-donos-do-poder-e-issofoi-otimo-diz-o-sociologo-chico-de-oliveira.shtml. Acesso em: 15/11/2013. TAURO, D. V-E. & SILVA, V. V. Olhando a sociedade contemporânea sob a ótica de Cornelius Castoriadis (1922-1997). Revista Composição. Universidade Federal de Matogrosso do Sul. N. 1, dez/2007. 114