Documentação - Agendas e atores de política externa
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Documentação - Agendas e atores de política externa
2 ANO I Rio de Janeiro Novembro 2010 ISSN 2177-7314 ARTIGOS 2| Brasil, Irã e a paz no Oriente Médio. Marcel Fortuna Bi ato 7| Instituições Políticas Domésticas e a Política Externa do Brasil e do México Octavi o Amori m Neto Jorge A. S chi avon 24 | “Causa Malvinas”, diplomacia y guerra. Una mirada de la historia a la luz de ` contribuciones recientes Vi cente Pal ermo 30 | A nova União Européia do Tratado de Lisboa Raquel Patrí ci o 36 | Esperando Godot? O Brasil e a China além da crise internacional Di ego S antos Vi ei ra de Jesus 43 | Global Governance - Brazilian Views from Cardoso to Lula Tati ana Coutto 50 | Mercosul Cultural: desafios e perspectivas de uma política cultural Môni ca Lei te Lessa RESENHAS 59 | Dabène, Olivier (2009) ´The politics of regional integration in Latin America: theoretical and comparative explorations. New York: Palgrave Macmillan, xxviii + 259 p. Mural Internacional é a revista eletrônica semestral do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Seu objetivo é debater temas relevantes das Relações Internacionais em como a política internacional, políticas externas, economia política internacional, processos de integração regional, instituições internacionais, processos migratórios internacionais, relações culturais internacionais, discussões teóricas e/ou metodológicas e temas da atualidade de terminados países ou regiões. As opiniões expressas nos artigos são de responsabilidade de seus respectivos autores. Seu download é gratuito, a partir do site www.ppgri.uerj.br. © Todos os direitos são reservados ao PPGRI/UERJ. Visite o site www.ppgri.uerj.br, em Publicações, aonde há mais informações sobre a revista e sobre suas normas para publicação. 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S amuel da S i l va Rezende APOIO: REALIZAÇÃO: 2 | Mural Internacional Ano I, nº 2 Novembro 2010 Brasil, Irã e a paz no Oriente Médio Marcel Fortuna Biato1 O Acordo de Teerã: uma proposta ingênua? A Explica-se assim a surpresa e frustração que se seguiu ao anúncio pelos EUA - nas horas seguintes à conclusão do Acordo - de que já obtivera apoio junto aos membros permanentes do Conselho de Segurança para a imposição de uma nova – a quarta – rodada de sanções contra o regime dos ayatolás. Na avaliação norte-americana, o êxito dessa estratégia requeria que a comunidade internacional se apresentasse com voz única e uníssona. A adoção no Conselho de Segurança por unanimidade das sanções deixaria claro para Teerã o elevado custo de sua insubordinação. Alguns comentaristas, animados pela fragilização política do governo Ahmadinejad após as contestadas eleições iranianas de 2009, chegaram a sugerir que essa pressão poderia mesmo acelerar uma “mudança de regime” em Teerã. Numa lógica remanescente da Guerra Fria, imaginam que se poderia assim ajudar a insuflar uma iminente revolta popular contra as crescentes dificuldades e privações impostas pelo bloqueio econômico e comercial determinado pelo Conselho de Segurança. visita do Presidente Lula a Teerã, em maio de 2010, foi um marco na história diplomática brasileira. Como resultado de audacioso esforço negociador, foi possível fazer o aparentemente impossível: levar o Irã a retornar à mesa de negociações com a comunidade internacional em torno de seu programa nuclear. Pelo Acordo de Teerã de 17 de maio, o governo do Presidente Ahmadinejad aceitou fazer concessões rechaçadas meses antes em conversações com os EUA, França e Rússia - o chamado Grupo de Viena. Esse gesto ajuda a afastar suspeitas de que as autoridades em Teerã pudessem estar burlando seus compromissos em matéria de não-proliferação ao desenvolver programa secreto de armas nucleares. O chamado Acordo de Teerã representou um primeiro passo para restaurar o diálogo, afastando a hipótese de um iminente agravamento das tensões na região. Afinal, não faltavam rumores – alimentados por Washington – de que Israel pudesse sentir-se tentado a lançar ataque preventivo contra as instalações nucleares ira- Afinal, perguntam-se muitos críticos de Teerã, havenianas, com conseqüências imprevisíveis para a paz ria motivos para confiar em regime que escondeu regional e a estabilidade internacional. seu programa de enriquecimento? Já no Irã, perguntam-se: como negociar com países que buscam por todos os artifícios impedir o Irã de enriquecer urânio e, portanto, desenvolver uma indústria nuclear autô1. Assessoria Especial de Política Externa da Presidência da República. noma? Na verdade, o prioritário é saber como evitar 3 | Mural Internacional Ano I, nº 2 Novembro 2010 uma escalada das ameaças recíprocas que a ninguém interessa. Como dar ao Irã – e à Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) - uma oportunidade de provar um ao outro que merecem confiança? O acordo que o Brasil, juntamente com a Turquia, patrocinaram não é a solução para o conflito no Oriente Médio, nem mesmo para as desavenças entre o Irã e a AIEA. O objetivo do Acordo de 17 de maio foi tão somente restabelecer as condições para a retomada das negociações. Isto é, moldar um clima de boa fé mínima capaz de evitar que a confrontação e a intimação sejam a única moeda de troca nessa negociação. As concessões mútuas propostas – o Irã aceitaria transferir para fora de seu território o enriquecimento do urânio e a AIEA concordaria em fazê-lo na Turquia (e não na França ou Rússia como originalmente pretendido) – criará a moldura para ambos os lados fiscalizarem-se mutuamente. Não é garantia de paz, mas assegura o diálogo em torno das verdadeiras questões que condicionam uma duradoura solução para o conflito no Oriente Médio. irreversível no tabuleiro estratégico do Oriente Médio. Brasília e Ancara estariam assim encorajando o Irã a burlar o regime de nãoproliferação e fortalecendo a mão dos setores linha-dura dentro da Guarda Revolucionária iraniana. Os setores mais conservadores nos EUA e na Europa não hesitaram em insinuar publicamente que a iniciativa de Brasil e Turquia, mesmo se motivada por boa fé, era ingênua. Serviria na prática aos propósitos iranianos de postergar indefinidamente um acerto de contas com a AIEA. Dar-se-ia assim tempo a Teerã para ultimar uma suposta bomba secreta e criar um fato consumado Sanções: a diplomacia da coerção Essas alegações não se sustentam. O Governo brasileiro tem sido enfático, inclusive durante a visita do Presidente iraniano a Brasília em 2009, em condenar o descumprimento pelo Irã de suas obrigações no âmbito do Tratado de Não-Proliferação (TNP). O Brasil tem consistentemente expressado sua preocupação com a falta de transparência de Teerã em suas tratativas com a AIEA e, mais recentemente, com o anúncio de que estaria agora enriquecendo urânio a 20% (necessário para produzir isótopos para uso médico, mas também mais próximo dos 90% necessários para produzir material físsil para emprego em armas nucleares). O Brasil continuará, no entanto, a defender o direito do Irã de desenvolver energia nuclear para fins pacíficos desde que esclareça as pendências que mantém com a AIEA. Na verdade, o pomo da discórdia reside alhures. O anúncio das sanções referendou a preferência dos EUA por uma política de força e coerção, lastrada no princípio, anunciado pela Secretária de Estado, Hillary Clinton, durante sua visita semanas antes a Brasília, de que o “Irã só negociaria em boa fé se estiver sob pres- são”. Em que pesem declarações antes e depois do Acordo de Teerã, de que apreciavam o esforço brasileiro-turco e que encorajavam os dois países a continuarem seus bons ofícios, ficava claro que Washington – secundado por outras capitais européias – apostava numa estratégia de constrangimento e isolamento. O Brasil, em contraste, sempre questionou a eficácia de sanções como meio de encorajar diálogo e de construir consenso. Experiências passadas – o exemplo do embargo a Cuba é eloqüente – sugerem que “empurrar o Irã contra a parede”, nas palavras do Presidente Lula, será contraproducente. Isto vale mesmo para as sanções “inteligentes”, ou seja, que supostamente incidem exclusivamente sobre a liderança do regime e seus interesses financeiros. Por questionar a eficácia dessa estratégia, o Brasil votou - pela primeira vez - contra uma resolução do Conselho de Segurança, não se limitando a abster-se como em outras ocasiões. Reforça a convicção de que a atual rodada de sanções será tão ineficaz quanto as anteriores o fato de que russos e chineses se empenharam – com êxito - em “aguar” as medidas aprovadas no Conselho, preservando assim seus interesses comerciais estratégicos no Irã. Certo é que - se alguém vier a sofrer como resultado das restrições - serão os setores mais carentes e vulneráveis da população iraniana. O verdadeiro risco das sanções é de transformarem-se em uma profecia autocumprida: a necessidade de mostrar resultados gera a tenta- 4 | Mural Internacional Ano I, nº 2 Novembro 2010 ção de continuar aumentando as apostas muito além de qualquer expectativa realista de êxito. A política de sanções adotada contra o regime de Saddam Hussein e seu papel decisivo em empurrar as partes rumo à guerra em 2002/2003 oferecem uma lição acautelatória. Vale recordar que em 2002, meses antes, portanto, da invasão norte-americana, relatório das Nações Unidas denunciava a morte anual de 500 mil crianças no Iraque em decorrência do caos criado pelo embargo: má nutrição e falta de medicamentos básicos. A Washington não restava senão opções adversas. Suspender as sanções seria uma derrota política. Intensificá-las implicaria aumentar o desastre humanitário. Não estranha que Washington não tenha resistido à tentação de resolver seu dilema invadindo Bagdá. A experiência brasileira Àqueles que argumentam que o Irã está simplesmente ganhando tempo para fazer avançar seu programa militar secreto, vale recordar as ambições nucleares do Brasil no passado. Um acordo bilateral assinado em 1983 sobre monitoramento recíproco de materiais nucleares foi decisivo para esvaziar a rivalidade nuclear com a vizinha Argentina. Não apenas permitiu a vigência do Tratado de Tlatelolco de 1968, que declarava a América Latina uma zona livre de armas nucleares, mas ainda abriu caminho para um projeto ambicioso de integração econômica abarcando toda a América do Sul. A experiência bra- sileira em matéria de transição política e de superação da tentação das armas nucleares recomenda, sobretudo, perseverança e prudência. Esta é uma estratégia indispensável quando tratando com uma nação vasta e complexa como o Irã. Imbuído de forte consciência de seu rico passado persa, Teerã cultiva suas legítimas aspirações a contribuir para moldar o destino de uma região onde se entrechocam as principais placas tectônicas do tabuleiro político planetário. Assim como o Brasil à época, o Irã vê-se hoje impelido por uma lógica perversa que combina desconfiança e suspeita típicas de uma vizinhança imersa em atmosfera de profunda insegurança. Explicam-se assim os excessos retóricos de Teerã, como quando ameaça aniquilar Israel, e a linguagem igualmente agressiva de Tel Aviv sobre um eventual revide nuclear. O Irã está rodeado de potências na maioria hostis e nuclearmente armadas. Isto ajuda a explicar – embora não justifique – a estratégia de guerra assimétrica que leva os ayatolás a manter vínculos com organizações acusadas de atividades terroristas. Também como o Brasil dos anos 70, o Irã é uma sociedade vibrante e dinâmica que tateia rumo à modernidade em meio às contradições da plenitude democrática. Sob este ponto de vista, o Irã não representa um problema nem uma ameaça. Constitui, sim, componente indispensável de qualquer solução duradoura para as desavenças no Oriente Médio. Na ver- dade, o Irã e o desafio da paz são inseparáveis. O impasse em que se encontram as negociações sobre a política nuclear de Teerã faz recordar as prolongadas tratativas entre israelenses e palestinos. De que servem esses esforços quando os elementos essenciais de um acordo são sobejamente conhecidos, mas não são postos em prática? Foi com o intuito de contribuir para reorientar processo que claramente perdera seu prumo que o Brasil engajou-se na Cúpula de Annapolis de 2008 sobre o futuro da Palestina. Atendendo a um pedido das autoridades em Ramalá, o Brasil entendeu – e continua a entender – que não se superará a dinâmica viciada desse diálogo sem a participação de atores que tragam à mesa não apenas novas idéias, mas, sobretudo renovada credibilidade. É com igual espírito que o Brasil aliou-se à Turquia para propor o Acordo de Teerã. O resultado é uma janela de oportunidade para fazer a racionalidade prevalecer. Foi convocada para as próximas semanas uma série de reuniões entre o Irã e o Grupo de Viena para buscar viabilizar os termos do acordo. O Brasil espera que sejam esclarecidas as pendências mútuas, pois não haverá paz no Oriente Médio – ou em qualquer outra parte – se isolarmos alguns países. Foi com essa convicção que, em 2009, o Brasil recebeu a visita de alguns dos principais atores no conflito do Oriente Médio: os Presidentes do Irã, de Israel e da Autoridade Palestina. Em contrapartida, viajou já este 5 | Mural Internacional Ano I, nº 2 Novembro 2010 ano a Israel, Jordânia e Palestina. Em todos esses encontros e a todos os interlocutores levou uma mesma mensagem. O engajamento do Brasil no Oriente Médio tem muito pouco a ver com a tradicional política das grandes potências. Afinal, o país é auto-suficiente em petróleo – principal atrativo da região – e não possui interesses ou vulnerabilidades estratégicas lá. Seu envolvimento se explica por força de um sentido de obrigação em ajudar a promover a paz e prosperidade no Oriente Médio. O faz, em parte, por conta do exemplo dos 15 milhões de brasileiros de ascendência judia e árabe. Se aqui vivem em paz, construindo junto o futuro deste país, porque não haveria esses povos irmãos de fazê-lo também em seu lar ancestral? Porque a paz no Oriente Médio parece tão distante? Que devemos dizer às famílias que esperam a gerações por condições de vida dignas e aos jovens que encaram um futuro sem esperanças ou perspectivas? Como pedirlhes mais paciência quando inúmeras resoluções das Nações Unidas sobre a região permanecem sem execução, ao mesmo tempo em que os contornos de um eventual acordo para a criação de um Estado palestino são amplamente conhecidos? quando os acontecimentos nessa conflagrada região sabidamente incidem fortemente sobre a estabilidade internacional. Como poderia o Brasil justificar sua candidatura a membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas se não se empenhasse pela paz em região sujeita a potencialmente desastrosa crise política com conseqüências bélicas imprevisíveis. crise de alimentos em países em desenvolvimento, por sua vez, deriva da elevação especulativa de cotações de commodities agrícolas por investidores internacionais desejosos de proteger-se da desvalorização do dólar norteamericano determinada pela política comercial de Washington. Já a crise financeira resultante da busca de maior rentabilidade por parte de acionistas em nações ricas tocou mais duramente países A persistência do conflito no pobres sem condições de blindarOriente Médio, após mais de meio se contra a recessão global. século de esforços negociadores, é simbólico de falência ainda mais Num momento em que somos profunda e ameaçadora. Não há cada vez mais interdependentes, motivo para complacência ou pareceria lógico que a comunidaindiferença. A verdade é que o de internacional desenvolvesse tempo não está a nosso favor. Mas formas de coordenação e tomada não apenas no Oriente Médio. A de decisões mais inclusivas. No crise financeira de 2008 e a resul- entanto, a despeito de compartitante recessão global, em particu- lharmos desafios globais comuns, lar, sublinharam algo que já era não temos sido capazes de forjar óbvio há muito: vivemos em meio um roteiro para ação conjunta. a novas e crescentes ameaças glo- Como distribuir equanimente bais. Elas variam desde o aqueci- esses custos e responsabilidades? mento climático e a competição por Essa é a questão de fundo por trás recursos energéticos e alimentícios do debate sobre a governança gloaté o crime transnacional e a vio- bal. A crescente interdependência lência intra-estatal. Ao mesmo em matéria econômica, ambiental tempo, velhos desafios, como a e de segurança deveria servir de pobreza de centenas de milhões ao poderoso estímulo para nações e redor do mundo, pandemias e a indivíduos trabalharem de forma ameaça de devastação termo- mais cooperativa. Isto multiplicanuclear, continuam a desfiar a ria os benefícios da globalização consciência internacional. e, ao mesmo tempo, minoraria Rumo à Governança Global suas conhecias desvantagens. No O pior é que – como no caso das entanto, não é o que se vê. As No entanto, estão em jogo não sanções contra o Irã - são os mais mesmas forças e correntes liberaapenas os direitos e aspirações ao pobres que pagam por esses desa- das pela globalização ajudam a bem-estar de milhões de cidadãos tinos. No que respeita à mudança exacerbar diferenças sociais e disno Oriente Médio. Ninguém pode climática, trata-se de fenômeno crepâncias econômicas pré-exisalegar que a persistência desse originado fundamentalmente nos tentes entre nações e no seu inteconflito não lhes diz respeito, países hoje industrializados. A rior. Como fazer para que diferen- 6 | Mural Internacional Ano I, nº 2 Novembro 2010 ças num mundo interconectado não sirvam de pretexto para os que se consideram mais fortes ou dotados de vantagens comparativas se sintam tentados a impor seus interesses unilateralmente? Seja no âmbito do G-20 financeiro, dos Bric ou mesmo durante a Cúpula de Copenhague sobre mudanças climáticas, o Brasil tem se empenhado na construção de coligações voltadas para moldar um marco institucional de governança global mais equilibrado, transparente e, portanto, eficaz. Foi com esse mesmo espírito que o Brasil se coordenou com a Turquia no dossiê iraniano. Esses dois países foram motivados não por uma contestação pueril, um ativismo primário voltado para obstruir as ambições das tradicionais potências na região. Pelo contrário, a Turquia é membro da Otan, aliado estratégico dos EUA e aspirante a membro da União Européia. Motivou-a – assim como ao Brasil – a percepção de que era chegada a hora de atuar mais incisiva e diretamente no encaminhamento da paz mundial. Àqueles que argumentam que o Brasil deveria concentrar esforços nos conflitos na sua própria vizinhança, ao invés de preocupar-se com o distante Oriente Médio, a resposta é simples: é o que já se está fazendo com a iniciativa da criação da Unasul e a mediação brasileira em vários diferendos sul-americanos. grama nuclear iraniano a qualquer preço. Afinal, o país tem o direito, consagrado no TNP, de desenvolver a energia nuclear para fins pacíficos. É legítima, por certo, a preocupação dos EUA e de outros em coibir a proliferação de artefatos nucleares. Isto não será alcançado, no entanto, tentando constranger o Irã a desmantelar seu programa atômico. A preocupante proliferação que se vê mundialmente – a começar por Índia, Paquistão e Coréia do Norte – não resulta da fragilidade do regime de não-proliferação. A saída não está fundamentalmente em intensificar os mecanismos de controle e inibição do emprego de uma tecnologia de uso dual. Está sim em criar as condições de segurança e confiança regional que afastem a tentação de adquirir instrumentos de dissuasão nucleares. Este claramente é o caso do Oriente Médio. Não parece realista esperar que o Irã abra mão do poder dissuasório enquanto Israel detiver uma capacidade nuclear. Essa realidade foi reconhecida pelos EUA ao tabularem, em edição anterior da Conferência de Revisão do TNP, proposta para desnuclearizar o Oriente Médio. Essa iniciativa continua sobre a mesa. Estariam os atores regionais dispostos a aderir incondicionalmente a um acordo de desnuclearização regional abrangente, sem que cada um busque assegurar para si uma posição de vantagem estraReceita da paz: um Oriente Médio tégica? O Brasil está convencido de que o Acordo de Teerã pode ser desnuclearizado passo decisivo nessa direção. O Brasil está convencido de que o Em 1996, ainda sob o impacto do principal desafio no Oriente brutal assassinato do PrimeiroMédio não é interromper o pro- Ministro Itzak Rabin, o hoje Presidente de Israel, Shimon Perez, recordou a necessidade de aceitar sacrifícios para alcançar uma paz duradoura. Disse na ocasião: “A guerra tem um alto custo. A paz também. Mas se quisermos legar à próxima geração um mundo sem guerras, nossa geração deve passar pelas agonias da paz e das decisões cruciais”. Este é o espírito que o Brasil espera prevalecerá nas tratativas previstas para as próximas semanas com respeito ao Acordo de Teerã. Embora não façam parte do Grupo de Viena, Brasil e Turquia continuarão dispostos a colaborar. Esperam assim contribuir para fazer avançar o diálogo abrangente em curso entre os P-5 mais a Alemanha e o Irã em torno de uma agenda ampla de paz. No âmbito dessas negociações, o Irã vem demonstrando disposição em flexibilizar suas posições, sobretudo a insistência em preservar o direito de enriquecer urânio a 20%. Alguns provavelmente interpretarão esse gesto como sinal de fraqueza; prova, portanto, de que as recém-aprovadas sanções começam a ter o efeito desejado. Na visão brasileira, ao contrário, o gesto de Teerã sinaliza que a busca do diálogo nunca deve ser abandonada. 7 | Mural Internacional Ano I, nº 2 Novembro 2010 Instituições Políticas Domésticas e a Política Externa do Brasil e do México Octavio Amorim Neto1 e Jorge A. Schiavon2 A política externa do Brasil se caracteriza mais pela continuidade do que pela ruptura, enquanto que a do México se encontra em um franco processo de transição, onde a mudança é a norma mais do que a continuidade. As políticas externas de ambos os países respondem tanto a fatores de índole internacional como interna. Este artigo descreve e explica comparativamente a forma em que a política interna destes países condiciona de maneira fundamental suas políticas externas. As Fontes Internas das Políticas Externas do Brasil e do México 1. Brasil Em 15 de janeiro de 1985, Tancredo Neves, governador de Minas Gerais entre 1983 e 1984, foi eleito Presidente da República por um Colégio Eleitoral integrado por todos os membros do Congresso e por seis representantes de cada legislatura estatal. Por uma fatalidade da história, Tancredo, mortalmente doente, não chegou a assumir o cargo para o qual O artigo está dividido em duas seções. A primeira e fora eleito. Assim, em 15 de março de 1985, seu principal se dedica a elucidar os mecanismos através Vice-Presidente, o Senador José Ribamar Sarney, dos quais as variáveis institucionais, políticas e eco- recebeu a faixa presidencial. Foi o primeiro civil a nômicas domésticas impactam e condicionam a polí- ocupar o cargo depois de 21 anos de ditadura militar. tica externa dos dois países; esta seção está, por sua vez, dividida em duas partes, uma sobre o Brasil e a A transição democrática no Brasil foi longa, tendo se outra sobre o México. Na segunda seção, apresen- iniciado em 1974, pouco depois do início do mandato tam-se as conseqüências políticas domésticas das do terceiro general-Presidente, Ernesto Geisel. diplomacias do México e do Brasil, depois das pos- Caracterizou-se pela realização de eleições regulares ses de Vicente Fox e Luiz Inácio Lula da Silva – em para o Congresso Nacional, legislaturas estatais e 2000 e 2003 respectivamente – discutindo-se os assembléias municipais entre 1966 e 1978. Em 1982, principais resultados deste artigo. a direção dos governos estatais foi igualmente disputada através de eleições livres. A existência, na década de 1970, de um calendário eleitoral fixo permitiu ao então Movimento Democrático Brasileiro (MDB), um 1. Fundação Getúlio Vargas (FGV), Rio de Janeiro, Brasil. dos dois partidos oficiais — o outro era a Aliança Renovadora Nacional (Arena) —, mobilizar o voto 2. Centro de Investigación y Docencia Económicas (Cide), México. 8 | Mural Internacional Ano I, nº 2 Novembro 2010 popular contra o regime autoritário, dando às eleições m caráter cada vez mais plebiscitário. Entre 1974 e 1982, a oposição foi aumentando o número de assentos no Congresso, bem como nos governos e assembléias estatais, debilitando concomitantemente as bases de sustentação política do regime militar. Nas palavras de Lamounier (1984), o Brasil tinha “uma abertura através das eleições”. Em 1984, ano de sucessão presidencial, formou-se um movimento dissidente dentro do partido no qual se sustentava o regime militar, o Partido Democrata Social (PDS) — que era o nome que a velha Arena começou a adotar a partir da reforma eleitoral de 1979. Tancredo Neves, candidato do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) – as novas siglas do velho MDB depois da reforma –, não tardou em atrair os dissidentes, negociando a concessão da vaga da vice-presidência para José Sarney. A aliança entre a oposição e os dissidentes do PDS se tornou irresistível. Tancredo obteve 480 votos no Colégio Eleitoral contra 180 que ganhou o candidato oficial, Paulo Maluf. Uma vez que José Sarney foi empossado como Presidente, tomaram-se algumas medidas que buscavam o aprofundamento da democracia. Estabeleceram-se eleições livres para todos os cargos executivos e legislativos, abriu-se a formação e o funcionamento dos partidos políticos e foi convocada uma Assembléia Nacional Constituinte (ANC) que incluiria todos os deputados que foram eleitos em novembro de 1986 e os senadores eleitos na mesma data (2/3 do total do Senado) e no processo de 1982 (1/3 do total desta câmara). A ANC foi instalada em fevereiro de 1987 e concluiu seus trabalhos em 5 de outubro de 1988, com a promulgação da nova Constituição de 1988. A partir desta data, o sistema político brasileiro está edificado sobre seis pilares fundamentais. Primeiro, um sistema de governo presidencial em que o chefe do Executivo possui importantes prerrogativas legislativas, como o poder de promulgar decretos com força de lei (as medidas provisórias), o poder de veto, a iniciativa exclusiva de projetos de leis em áreas tributárias, orçamentárias e administrativas e o direito de pedir um procedimento urgente para certos projetos de lei. Segundo, um sistema legislativo bicameral no qual a Câmara e o Senado possuem poderes simétricos. Terceiro, a adoção da representação proporcional para a Câmara de Deputados, legislaturas estatais e assembléias municipais e a adoção da representação por maioria simples no Senado. Quarto, um sistema partidário altamente fragmentado, como conseqüência, em boa medida, de regras eleitorais usadas para as eleições da Câmara de Deputados e assembléias legislativas. Quinto, uma federação robusta cujas unidades subnacionais dispõem de considerável autonomia legislativa e administrativa, destinandolhes também uma importante fatia do bolo tributário. Finalmente, sexto, uma Constituição detalhada e rígida, com regras de emenda que requerem maiorias qualificadas de 3/5 em ambas as câmaras. Em suma, o Brasil tem um modelo de democracia que, por um lado, tende a dispersar consideravelmente o poder institucional entre várias forças políticas devido aos últimos cinco atributos, enquanto que, por outro, conduz a uma grande concentração de poder nas mãos do chefe do Executivo e de seu partido, em função do primeiro atributo. Enquanto que a dispersão do poder institucional freqüentemente contribui a tornar lento e complicado o processo decisório, a concentração de poder nas mãos do Presidente atua no sentido contrário. Como veremos mais adiante, esta concentração, no que diz respeito à política externa, contribui para debilitar o papel do Congresso Nacional. As relações Executivo-Legislativo sob a Constituição de 1988 A parte mais importante para entender à dinâmica das relações entre Executivo e Legislativo em qualquer sistema democrático é o sistema partidário. O Brasil tem, desde o princípio da década de 1990, um dos sistemas partidários mais fragmentados do mundo (Amorim Neto et Al, 1997). Os Quadros 1 e 2 abaixo mostram a evolução do sistema de partidos brasileiro, tanto na Câmara dos Deputados como no Senado, desde a eleição de 1982 — o primeiro processo multipartidário realizado depois do golpe militar de 1964. 9 | Mural Internacional Ano I, nº 2 Novembro 2010 Quadro 1: Porcentagem de assentos na Câmara de no Senado para 11. Em termos do Número Efetivo Deputados, por partido, no Brasil. de Partidos (NEP), a Câmara tem 8,5 partidos, enquanto que o Senado possui 4,7. Quadro 2: Porcentagem de assentos no Senado, por partido, no Brasil. Fontes: O Globo, 10 de outubro de 2002, pág. 13; Folha de São Paulo, Caderno Especial “Eleições”, 10 de outubro de 1998, p. 2, e Scott Mainwaring (1999, 98). *PP uniu-se ao PPR para formar o PPB. Fontes: O Globo, 10 de outubro de 2002, pág. 13; e Dados Eleitorais do Brasil, http://www.iuperj.br/deb. É fácil observar que, entre 1983 e 2003, o conjunto de partidos representados no Congresso evoluiu de um formato de aproximação bipartidária a um claramente multipartidário e altamente fragmentado, principalmente na Câmara de Deputados. Depois das últimas eleições realizadas em outubro de 2003, o número de partidos na Câmara aumentou para 19 e 3. O número efetivo de partidos é uma medida que permite ponderar a importância de cada partido nas Câmaras pelo número de assentos que controla na legislatura; calcula-se usando a seguinte fórmula: NEP = 1/[S(p i 2 )], onde p i é a porcentagem de assentos que o partido i tem na câmara (Laakso e Taagepera, 1979). Uma das conseqüências óbvias da alta fragmentação do sistema de partidos é que o partido do Presidente raramente consegue ter maioria absoluta no Congresso. Isto só aconteceu uma vez desde 1985, depois das eleições de 1986. Porém, a maioria que o PMDB conquistou durou pouco tempo, já que o partido se cindiu durante a ANC. A dissidência surgida no PMDB criou, em 1988, o PSDB, partido do expresidente Fernando Henrique Cardoso. A combinação de um sistema de governo presidencial com um sistema de partidos em que o partido do Chefe do Executivo raramente tem a maioria do Legislativo gera uma dinâmica institucional batizada por Abranches (1988) de “presidencialismo de coalizão”. Sob tal fórmula política, o Presidente, como um primeiro-ministro em um regime parlamentar, 10 | Mural Internacional Ano I, nº 2 Novembro 2010 forma maiorias oferecendo aos partidos políticos cargos ministeriais em troca do apoio parlamentar. Para estabilizar este tipo de acordo político, o Presidente, coordenadamente com os líderes dos partidos, se vale de suas prerrogativas legislativas, o que lhe permite controlar o volume e o ritmo da agenda parlamentar, como bem mostram Figueiredo e Limongi (1999). Porém, nota-se que, a partir da promulgação da Constituição de 1988, o presidencialismo de coalizão funcionou plenamente, unicamente sob os mandatos de Fernando Henrique Cardoso, que contou com o sólido apoio da maioria e exerceu um forte controle sobre a agenda legislativa. Os Presidentes Sarney (principalmente ao final de seu mandato), Collor e Franco não conseguiram formar maiorias tão estáveis (Amorim Neto, 2002; Amorim Neto et Al, 2003). Ainda falta saber como se comportará a presidência de Lula em relação a isso. Uma das conseqüências mais relevantes do presidencialismo de coalizão é o predomínio do Executivo em relação à formação da agenda legislativa e à produção de leis do país: nada menos que 86% das leis promulgadas entre 1989 e 1998 foram de autoria do Poder Executivo (Figueiredo e Limongi, 1999). É claro que a prerrogativa que o Presidente tem de emitir decretos com força de lei 4. Esta seção se baseia substancialmente no excelente trabalho descritivo de S. César (2002). (as medidas provisórias) desempenha um papel fundamental neste resultado. Por definição, o predomínio do Executivo significa que o Congresso encontra dificuldades para se afirmar como o principal espaço decisório do sistema político. Mas isto não é somente conseqüência das medidas provisórias. A baixa produção de leis do Congresso está intimamente vinculada às curtas carreiras parlamentares no Brasil. Em média, os deputados brasileiros contam apenas com cinco anos na Câmara de Deputados e não é coincidência que somente 8% deles consigam aprovar um projeto de lei ao longo de uma legislatura (Amorim Neto e Santos, 2003). nos cargos ministeriais, o Congresso consegue, de algum modo, fazer com que o Executivo atenda às suas preferências (Amorim Neto e Tafner, 2002). Trata-se, porém, de uma maneira muito indireta e pouco visível que o Congresso tem de exercer sua influência e que, além disso, impede de responsabilizar o Legislativo diante do eleitorado, assim como de fortalecer sua imagem de debilidade institucional. O Congresso e a política externa4 Outro fato que dificultou a institucionalização do Congresso como autor de legislação é a debilidade do sistema de comissões. Estas vêem seu trabalho de avaliação de projetos de leis interrompido várias vezes, devido às freqüentes demandas de revisão de iniciativas em caráter de urgência, feitas pelo Executivo e por líderes dos partidos (Figueiredo, 2000). Tais demandas têm o efeito imediato de retirar um projeto de lei de uma comissão e introduzir o do Executivo imediatamente para consideração do plenário. A Constituição de 1988 determina que o Chefe do Executivo é o supremo responsável pelas relações diplomáticas do país, cabendo-lhe, de maneira exclusiva, “manter relações com Estados estrangeiros e acreditar seus representantes diplomáticos” (artigo 84). Cabe ao Executivo celebrar tratados, convenções e atos internacionais (sujeitos ao referendo do Congresso), celebrar a paz e declarar a guerra com a anuência do Congresso. Também é responsabilidade do Congresso deliberar definitivamente sobre tratados, acordos e atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional (artigo 49); o Senado deve aprovar a escolha dos embaixadores (artigo 52). A constatação da debilidade institucional do Congresso não significa, porém, que este haja abdicado de seus poderes em benefício do Executivo. Através dos mecanismos informais de controle sobre o Poder Executivo, como por exemplo, a participação dos partidos Como em qualquer outra área de política governamental, os deputados e senadores têm o poder de propor projetos de leis que envolvam assuntos internacionais. Entre 1985 e 2002, os deputados apresentaram apenas 192 projetos (em média, 10,7 por ano) sobre 11 | Mural Internacional Ano I, nº 2 Novembro 2010 tais assuntos, e os senadores 36 (em média, 2 por ano) (Cesar 2002, Cap.2). Estes valores parecem ser ínfimos e estão em perfeita consonância com a afirmação anterior, de que a participação do Congresso na produção legislativa nacional é consideravelmente pequena. Em relação à ratificação dos nomes indicados para o cargo de embaixador, área da política externa na qual o Congresso pode exercer um importante papel, ainda que reativo, os dados indicam que há, aparentemente, grande harmonia entre o Executivo e o Legislativo. Quase todos os embaixadores indicados pelo Executivo, entre 1985 e 2002, foram aprovados pelo Senado. Uma das possíveis razões para que a nomeação dos embaixadores não tenha um caráter conflituoso é que tal processo não está politizado. Dos 557 embaixadores indicados entre 1985 e 2002, somente 18 (3,2%) tiveram uma nomeação política (idem). O Ministério de Relações Exteriores e o Congresso O Ministério de Relações Exteriores (doravante, MRE ou Itamaraty) é uma instituição altamente profissionalizada, onde somente se entra através de concurso público e em que as promoções são outorgadas, em geral, de forma meritória. É a agência mais prestigiada da burocracia federal, contando com quadros altamente qualificados, que desfrutam de uma boa imagem aos olhos da elite e da opinião pública nacional (Cheibub, 1985). O titular do MRE é chamado de Chanceler da República ou Ministro de Relações Exteriores. Das 10 nomeações para a direção do Itamaraty feitas entre 1985 e 2003, três foram de políticos com filiação partidária: Olavo Setúbal (PFL, 15/03/1985 - 14/02/1986); Roberto de Abreu Sodré (PFL, 14/02/1986 - 15/03/1990) e Fernando Henrique Cardoso (PSDB, 05/10/1992 20/05/1993); dois eram juristas ou acadêmicos: Francisco Rezek (15/03/1990 - 13/04/1992) e Celso Lafer, que também era filiado ao PSDB, tendo sido chefe do MRE por duas vezes (13/04/199202/10/1992 e 29/01/200101/01/2003); e quatro foram diplomatas de carreira: duas vezes para Felipe Lampreia (01/01/9501/01/1999 e 01/01/199912/01/2001) e duas vezes para Celso Amorim (20/07/199301/01/95 e 01/01/2003 - presente). Os políticos ocuparam o MRE durante aproximadamente 30% do tempo transcorrido entre março de 1985 e julho de 2003. Esta é uma evidência que faz pensar na pouca importância que a política externa tem para os partidos. ção informal entre Executivo e Legislativo. Mesmo quando o MRE tem uma área especial de relações com o Congresso, César (idem) diz que parece que há poucos contatos informais entre diplomatas e parlamentares. O maior problema sobre esta inexistência de mecanismos de comunicação entre o MRE e os parlamentares se refere ao curso das negociações dos tratados internacionais. Quanto aos tratados internacionais, foram processados 654 na Câmara entre 1985 e 2001 (38 tratados, em média, por ano; 6 meses, em média, no tempo de sua tramitação). Nenhum tratado foi rejeitado em sua totalidade; somente 4 foram retirados. No Senado, foram avaliados 564 tratados durante o mesmo período, depois de terem sido retirados somente dois (César, 2002). Os dados apresentados parecem indicar uma grande passividade do Congresso na área da política externa. Não são poucos os autores que pensam que isto é o que acontece. Por exemplo, para Oliveira (2001), o Parlamento e os partidos brasileiros abdicaram de tratar de assuntos de política externa, sobretudo quanto ao processo de integração regional (Mercosul), uma das questões mais importantes na agenda diplomática brasileira. De acordo com o mesmo autor, a razão subjacente de tal abdicação está no escasso rendimento eleitoral dos temas internacionais (idem). Trata-se, porém, de um ponto polêmico. Com alguma freqüência, o chanceler é chamado a comparecer diante das Comissões de Relações Exteriores e de Defesa Nacional no Congresso, um mecanismo clássico de controle parlamentar. Porém, segundo César (2002), existem contatos informais entre os parlamentares e o chanceler que permitem que este tome conhecimento do que aqueles pensam, o que pode ser considerado um mecanismo de coordena- Utilizando os argumentos de 12 | Mural Internacional Ano I, nº 2 Novembro 2010 Martin (2000) e de Neves (2002) oferecem uma interpretação diferente para a reação do Congresso diante dos desafios da integração regional. Quando há convergência de interesses entre o Executivo e o Legislativo, este último delega plenos poderes ao primeiro, e este é o caso da conduta aparentemente passiva dos parlamentares em relação ao Mercosul. Além disso, quando há divergência entre tais interesses, o Legislativo busca influenciar direta ou indiretamente o Executivo, manifestando posturas firmes sobre os assuntos e exigindo uma participação direta nas negociações. Tal seria o caso do tratamento diplomático e comercial referente à Área de Livre Comércio das Américas (lca). No que diz respeito à política comercial, Lima e Santos (2001) afirmam que a linha seguida durante o governo de Sarney e o processo de abertura comercial realizado durante os governos de Collor, Franco e Cardoso representaram uma abdicação do Congresso, já que tais políticas foram executadas, em grande medida, através dos instrumentos legislativos do Executivo, herdados do regime militar. Pinheiro (2003) tece uma interpretação intermediária entre as perspectivas de abdicação e delegação. De acordo com a autora, o regime democrático instalado em 1985 causou um crescente – por assim dizer – “des-isolamento” do Itamaraty em relação a atores sociais e legislativos, gerando assim um maior grau de representatividade para a política externa bra- sileira. Porém, este “des-isolamento” não produziu uma plena responsabilização da Chancelaria diante dos atores mencionados, por ter esta não somente maior informação e treinamento técnico que o Congresso e a sociedade organizada, como também devido a sua autonomia decisória tradicional. Em outras palavras, para Pinheiro, a política externa brasileira é formalmente representativa, mas não é efetivamente responsável. A principal lição que se pode extrair das diversas interpretações anteriormente descritas sobre o grau da participação e do controle do Congresso brasileiro na política externa é que a relevância política e eleitoral dos temas internacionais é uma condição necessária mas não suficiente para que o poder legislativo se mobilize e atue em relação a ela. A condição suficiente é que os parlamentares possuam informação de boa qualidade para que possam saber se o Executivo favorece os interesses do país na área diplomática. Tudo o que foi anteriormente exposto indica que esta condição ainda não foi preenchida. Então, podese dizer que, sem dúvida, há um déficit democrático na formulação e execução da política externa brasileira. Política externa e representação de interesses: as atitudes e percepções das elites Recentemente, Souza (2002) realizou um trabalho seminal sobre as atitudes e percepções das elites brasileiras em relação à política externa. O trabalhou baseou-se em uma pesquisa respondida por 101 pessoas consideradas membros das elites política, acadêmica, empresarial, sindical e jornalística do país envolvidas, de alguma maneira, com a política externa do país – a chamada comunidade de política externa. A principal mensagem do estudo pode resumir-se na seguinte frase: a política externa nacional goza de um bom conceito entre as elites, porém, a percepção geral é de que o Itamaraty dá pouca atenção ao Congresso e às opiniões e propostas de amplos segmentos da sociedade e de outros ministérios (idem). Como se explica esta aparente contradição entre o bom conceito da política externa e a imagem de falta de atenção que o MRE tem? Uma possível resposta para esta pergunta pode ser que o Itamaraty é uma burocracia de alta qualidade. Porém, de acordo com o resultado da seção sobre o Congresso, os mecanismos de controle usados por este são informais e, conseqüentemente, de baixa visibilidade pública. Além disso, como se mencionou na seção anterior, é inegável a enorme assimetria de informação que existe entre o MRE, por um lado, e a sociedade e o Congresso, por outro. Outra explicação é que a política externa do MRE é boa para os problemas diplomáticos e estratégicos velhos e clássicos do país. Porém, o Itamaraty não parece estar preparado – burocrática e politicamente – para as novas questões e atores internacionais descritos na primeira seção do artigo, nem para alguns aspectos novos como o 13 | Mural Internacional Ano I, nº 2 Novembro 2010 Fórum Social de Porto Alegre e as negociações comerciais da Alça (Herz e Lima, 2002). Daí se origina a dissociação que existe entre a boa avaliação da política externa em geral e a percepção crítica sobre a relação do Itamaraty com o Congresso e a sociedade. Em resumo, os resultados da pesquisa com as elites, feita por Souza, corroboram a noção de que existe um “déficit” democrático na formulação da política externa brasileira. Assim, a política externa do Itamaraty é altamente profissional e favoravelmente percebida pela população, embora não necessariamente recorra a ela ou a seus representantes no Congresso para formular ou executar tal política. 2. México As relações ExecutivoLegislativo no México No que se refere à transição democrática, tratou-se de um processo muito lento – como no Brasil — e um tanto superficial; lento porque se iniciou com pequenas concessões do regime priista desde o governo de Luis Echeverría até o de Ernesto Zedillo, e superficial, porque mesmo quando o Partido Revolucionário Institucional 5. Na condução da política externa, o Presidente deve observar os princípios normativos de política externa estabelecidos no mesmo artigo: “a autodeterminação dos povos; a não intervenção; a solução pacífica de controvérsias; a proscrição da ameaça ou o uso da força nas relações internacionais; a igualdade jurídica dos Estados; a cooperação internacional para o desenvolvimento; e a luta pela paz e pela segurança internacionais” (artigo 89, parágrafo X). (PRI) perdeu a presidência da república nas eleições de 2000, a estrutura institucional do sistema se manteve praticamente intacta. De acordo com a Constituição Política dos Estados Unidos Mexicanos, promulgada em 1917 e reformada em inúmeras ocasiões, o México é um sistema democrático de tipo presidencial, bicameral forte (câmaras simétricas e incongruentes) e federal, isto é, em termos de divisão institucional do poder, um dos casos em que esta é maior. Porém, durante praticamente 70 anos de hegemonia priista, o México funcionou como um dos sistemas políticos mais centralizados em nível internacional. Isto se devia à fusão entre o Executivo federal e o partido oficial, o qual transformava o Presidente mexicano no ator principal do sistema, ao ostentar enormes poderes meta-constitucionais (presidencialismo) que se sustentavam no fato de ser ele o líder do partido que tinha a maioria em ambas as câmaras legislativas e a totalidade dos governos estatais (até 1989). Ora, devido a fatores estruturais (crise econômica), institucionais (reformas eleitorais), culturais (modernização) e internacionais (globalização) (Schiavon, 2005), a hegemonia do PRI foi-se desgastando paulatinamente durante as últimas décadas. Assim, o longo processo de democratização chegou a suas etapas finais quando o PRI perdeu a maioria na Câmara de Deputados em 1997 e culminou com a eleição de Vicente Fox do Partido de Ação Nacional (PAN) à Presidência da República, nas eleições de 2000. Em termos de política externa, no sistema político mexicano, o poder soberano encontra-se compartilhado pelos três poderes do governo. De acordo com a Constituição, uma das atribuições do Executivo é “dirigir a política externa e celebrar tratados internacionais, submetendo-os à aprovação do Senado” (artigo 89, parágrafo X).5 Uma vez que os tratados são concluídos, o Executivo deve apresentá-los ao Senado para sua aprovação, obtida com o voto a favor da maioria do plenário da Câmara Alta (artigo 76, parágrafo I). Além disso, são atribuições exclusivas do Senado “analisar a política externa desenvolvida pelo Executivo Federal, com base nos relatórios anuais que o Presidente da República e o Secretário do despacho correspondente prestam ao Congresso” (artigo 76, parágrafo I), “ratificar as nomeações que o mesmo funcionário [o Presidente] faça de [...] agentes diplomáticos, cônsules gerais [...]” (artigo 76, parágrafo II), enquanto que o Congresso da União deve conceder permissão ao Presidente da República para ausentar-se do território nacional (artigo 88). Em relação aos tratados, depois de obter a aprovação no âmbito interno, estes são ratificados internacionalmente pelo Executivo (artigo 89, parágrafo X). Uma vez ratificados, e se não contradizem ou violam a Constituição, os tratados se convertem em parte da Lei Suprema da Nação, no mesmo nível da Constituição. Assim, o Poder Judiciário tem a atribuição e a obrigação de aplicá-los, mesmo que passando por cima 14 | Mural Internacional Ano I, nº 2 Novembro 2010 das disposições em contrário que possam existir nas leis secundárias e nas constituições dos Estados (artigo 133). seu sucessor, controlar nomeaçõeschave dentro do partido e nomear os ministros da Corte Suprema, gerou uma supremacia do Executivo sobre o Congresso e o Porém, na realidade, particular- Poder Judiciário, bem como sobre mente antes de 1997, existia uma os governos estaduais.6 enorme assimetria de poder entre os três poderes do governo no Portanto, o Presidente possuía México. O grande poder do extensos poderes constitucionais, Executivo e seu controle sobre o particularmente em matéria de Legislativo e o Judiciário podem política externa, e grandes podeser entendidos analisando a rela- res informais, porque era o líder ção entre os atores centrais do sis- praticamente indiscutível de um tema: o Presidente e o partido com partido altamente disciplinado poder hegemônico, o PRI. Em um que manteve, ininterruptamente sistema presidencial, o poder do até 1997 (por mais de 60 anos), a Executivo depende de quatro fato- maioria absoluta em ambas as res: os poderes constitucionais do câmaras do Congresso e que conPresidente, a força do partido do trolava as nomeações dos minisPresidente dentro do Congresso, o tros da Corte Suprema e de numegrau de disciplina imposta pelos rosos funcionários estatais. líderes partidários aos membros do partido, e a concorrência que o Secretaria de Relações Presidente enfrenta de rivais den- Exteriores e política externa tro de seu próprio partido (Weldon, 1997). Desde a sua fun- Em termos de política externa, o dação, em 1929, até 1997, o PRI Presidente sempre gozou do direiobteve a maioria absoluta — algu- to de nomear seus secretários de mas vezes com mais de 90% dos estado, entre os quais seu assentos — em ambas as câmaras Secretário de Relações Exteriores do Congresso. Além disso, a partir ou Chanceler. Este sempre foi uma pessoa da inteira confiança da metade da década de 1930, o do Presidente e, mesmo quando Presidente se tornou o líder de fato no passado se procurava que fosse do partido. Isto, combinado ao fato um destacado diplomata de carreide que não existiu reeleição conse- ra, nos quatro últimos sexênios cutiva no Congresso e nenhum tipo (De la Madrid, Salinas, Zedillo e de reeleição na presidência, desde Fox), o Secretário de Relações essa época, e que o partido delegou Exteriores não foi um membro do ao Presidente o poder de designar Serviço Exterior Mexicano (SEM) – exceto nos últimos 11 meses da administração Salinas, 6. Este poder era exercido através da nomea- quando o Embaixador Tello subsção dos candidatos do partido aos governos tituiu Manuel Camacho. Isto estatais; em alguns casos, sua remoção do mudou na administração de Felipe poder se dava mediante mecanismos constitu- Calderón Hinojosa (2006-2012), cionais através do Senado, controlado pelo que nomeou Patricia Espinosa, PRI, ou mediante renúncias negociadas. embaixadora de carreira do SEM, como Chanceler. Em relação ao pessoal diplomático no México, até 2003, o SEM era o único serviço civil de carreira no país, onde o ingresso e as promoções se definiam de acordo com o mérito, através de exames periódicos. Porém, diante do gigantesco poderio do Presidente, a burocracia em matéria de política externa sempre esteve ao serviço do Executivo da vez. Um exemplo disso é que uma parte substancial dos embaixadores mexicanos no exterior não era diplomata de carreira, mas sim pessoas designadas pelo Presidente – aproximadamente 40%; isto não mudou significativamente na última administração priista nem no governo de Fox, onde 38 e 37% (em 1998 e 2001, respectivamente) dos embaixadores em postos no exterior não eram membros do SEM. O governo do Presidente Calderón estabeleceu como parâmetro uma distribuição de 65% de nomeações de embaixadores de carreira ante a 35% de nomeações políticas. Tudo o que foi anteriormente exposto permitiu ao Presidente impor suas preferências de política pública na maior parte do tempo, já que os outros dois poderes do governo estavam sob seu controle indireto e, portanto, apoiavam suas políticas, particularmente na área de política externa. Porém, no caso de que o Presidente perdesse a maioria nas câmaras, ou deixasse de ser o líder indiscutível dentro de seu partido, ou começasse a agir de maneira indisciplinada, perderia todos os seus poderes extraconstitucionais, mantendo apenas os estabelecidos 15 | Mural Internacional Ano I, nº 2 Novembro 2010 na Carta Magna. Como será discutido na próxima seção, isto aconteceu paulatinamente entre 1997 e 2000, consolidando-se com o triunfo de Vicente Fox nas eleições de julho de 2000 e mantendo-se nas eleições de 2006. 2000 e 2006. Como se pode observar neste quadro, as prerrogativas em matéria de condução da política externa no México têm sido uma constante; porém, devido à conjunção com as outras variáveis institucionais e partidárias, estas passam de uma situação de total controle por parte do Executivo (sem Presidência, Congresso e política externa nenhum questionamento por parte dos outros Poderes da União) a uma situação em que o A partir das variáveis institucionais e partidárias do Executivo verá questionadas suas ações em assuntos sistema político mexicano, elaborou-se o Quadro 3, de política externa. onde se compara a situação do México de 1982 a Quadro 3: Instituições e distribuição de poder no México, 1982-2000-2006 7 8 9 10 Fonte: Elaboração dos autores 16 | Mural Internacional Ano I, nº 2 Novembro 2010 7. As legislaturas simétricas são aquelas que são democraticamente eleitas e com poderes constitucionais iguais ou ligeiramente desiguais; inversamente, as assimétricas são aquelas cujos membros da câmara alta não foram eleitos democraticamente e cuja distribuição de poderes entre as câmaras é muito desigual. Por outro lado, as legislaturas incongruentes são aquelas cuja fórmula de eleição na câmara alta busca a sobre-representação de minorias nacionais (territoriais, étnicas, culturais ou tradicionais) tendo, portanto, composição entre as câmaras muito diferente; em oposição, as congruentes são aquelas com fórmulas de eleição similares que geram composições relativamente iguais. Lijphart (1999, 206-208). 8. Existe governo justaposto em nível estadual quando a filiação partidária da maioria dos governadores é diferente da do Executivo federal. Em 2005, no México, a filiação partidária dos executivos estaduais era a seguinte (no caso das coalizões, atribui-se o controle ao partido majoritário das mesmas): PRI, 58.13%; PAN, 28.12%; PRD, 18.75% (calculado pelos autores com dados do Instituto Federal Eleitoral). 9. A disciplina partidária pode ser medida com a utilização do índice de Rice, de acordo com a seguinte fórmula: Ii = %Favori - Em 1982, o partido do Presidente, o PRI, controlava 74,8% e 98,4% dos assentos das Câmaras de Deputados e Senadores respectivamente, o que gerava uma fragmentação partidária muito baixa no sistema (NEP em Deputados: 1.720; NEP em Senadores: 1.032), ao mesmo tempo em que o federalismo mexicano se via ofuscado pelo fato da totalidade dos governadores estaduais serem priistas, dando lugar ao grau máximo de governo unitário. Adicionalmente, a disciplina dos congressistas do PRI era praticamente absoluta, uma vez que o futuro de suas carreiras políticas dependia do líder do partido, ao mesmo Presidente da República. Não é de surpreender que a combinação das variáveis institucional e partidária anteriores fizesse do bicameralismo, da divisão de poderes, do federalismo e do controle sobre a gestão da política %Contrai . O índice representa a diferença de porcentagem de votos a favor menos a porcentagem de votos contra de uma fração parlamentar “i”; varia entre 0 a 1, onde 0 significa total indisciplina (os membros da fração parlamentar votam metade a favor e metade contra: 0.50-0.50=0) e 1 implica total disciplina (todos os membros de uma fração parlamentar votam no mesmo sentido: 10 = 1 ó 0-1 = 1). Na Câmara dos Deputados, o índice de Rice e o de Rice modificado (abstenções são tomadas como votos contrários) para a 57ª legislatura (1997-2000) foram: PRI, 0.997 e 0.993; PAN, 0.928 e 0.882; PRD, 0.925 e 0.883; para a 58ª legislatura (2000-2003), foram: PRI, 0.931 e 0.900; PAN, 0.976 e 0.959; PRD, 0.934 e 0.926. Não existem dados confiáveis para legislaturas anteriores, mas a maioria dos autores afirma que a disciplina tendia a 1.00. Weldon (2003, 206-217). 10. Na 60ª legislatura (2006-2009), durante o primeiro período de sessões (segundo semestre de 2006), o índice de Rice modificado foi: PRI, 0.96, PAN, 0.98 e PRD, 0.92. Ver: http://www.monitorlegislativo.org/ indicadores.php?tab=1#disc_partido externa variáveis sem transcendência. Em tal situação, a política externa refletia as preferências do Executivo federal, diante de seu domínio sobre o sistema, particularmente sobre o Legislativo. Porém, mesmo mantendo-se a configuração institucional intacta, o número de jogadores com veto e sua natureza mudaram dramaticamente ao longo dos últimos anos. Para o ano de 2000, a fragmentação partidária aumentou consideravelmente, particularmente na Câmara alta (NEP Deputados 2.769 (2000) e 3.520 (2006); NEP Senadores: 2.786 (2000) e 3.596 (2006), ao mesmo tempo em que se observa um governo dividido, uma vez que o PAN ganha a presidência em 2000 e nenhum partido controla a maioria absoluta (50% + 1 dos assentos) em nenhuma das câmaras, embora o PRI tenha conservado uma maioria simples de assentos em ambas as instâncias em 2000 (42,2% e 46,1% nas Câmaras de Deputados e Senadores, respectivamente) e o PAN tenha fortalecido sua presença em 2006 sem alcançar a maioria absoluta (41,4% e 40,6% nas Câmaras de Deputados e Senadores, respectivamente). Além disso, observa-se um governo superposto, onde o PAN controla uma quarta parte dos governos estaduais em 2000 e 2006 (25,0%), enquanto que a disciplina partidária encontra-se em franco declive nos três principais partidos políticos (PRI, PAN e PRD), por causa das lutas internas de poder entre facções no interior de todos eles. Assim, dada esta combinação de variáveis institucionais e partidárias, o bicameralismo, o federalismo e a divisão de poderes no México adquiriam uma renovada e substancial importância, ao mesmo tempo em que têm forte impacto 17 | Mural Internacional Ano I, nº 2 Novembro 2010 sobre as liberdades do Executivo de No futuro se observarão constantes questionamentos na forma em que este conduz as relações exteriores do país, feitos pelo Poder Legislativo, preponderantemente pelo Senado da República. Legislativo – particularmente com o Senado –, observaram-se enfrentamentos entre o Presidente e a Câmara Alta, chegando ao máximo quando a referida Câmara negou ao Executivo pela primeira vez na história moderna do país, em abril de 2002, uma Tradicionalmente, o Senado permissão para viajar aos Estados mexicano havia sido completa- Unidos e ao Canadá.11 mente submisso diante do Executivo em matéria de política Ao tomar conhecimento da negaexterna. Por exemplo, durante tiva do Senado em autorizar a viatodos os anos de hegemonia priis- gem, o Presidente se reuniu com ta, o Senado aprovou ligeiramente seus Secretários de Governo e todos os tratados internacionais Relações Exteriores, Santiago submetidos pelo Executivo, além Creel e Jorge Castañeda, para de que nunca modificou partes definir a resposta ao Senado; a destes, já que, mesmo sem estar estratégia que se decidiu adotar estabelecida na Constituição, foi que o Presidente se apresentavigorava a regra de que o Senado ria nos meios de comunicação não contava com veto parcial, para que a opinião pública decipelo que só podia aprovar ou não disse sobre este conflito entre os tratados, sem ter a oportunida- poderes. Fox apareceu nessa de de modificá-los. Porém, com o mesma noite nos meios eletrônitriunfo da oposição em 2000, na cos de comunicação para censurelação entre Executivo e rar, em uma transmissão em cadeia nacional, a atitude do Senado, e responsabilizar a oposi11. O propósito desta visita era de fortalecer os esquemas de proteção aos mexicanos no ção no Congresso por criar obstáestrangeiro, indiferentemente de sua situa- culos para a mudança pela qual o ção migratória, e ampliar, atrair e desenca- povo do México votara nas eleidear novas oportunidades de investimentos e negócios para o México. O Senado argu- ções de julho de 2000. Em sua mentou que não possuía informação sufi- mensagem, Fox acusou o PRI de ciente sobre os motivos da viagem. Nos 16 ser o responsável pelo cancelameses em que Fox estava como Presidente, mento da viagem presidencial e, o Senado autorizou 16 viagens ao exterior, mas esta, a viagem 17, não foi autorizada. conseqüentemente, de frustrar As comissões de Governo e Relações todos os objetivos da excursão Exteriores do Senado, ambas presididas (Marin, 2002). Esta foi a última pelo PRI, votaram a favor de autorizar a viavez em que houve um enfrentagem. Porém, quando o tema passou ao plenário da Câmara, o voto unido e majoritário mento direto entre Executivo e da oposição (PRI, PRD e Partido Verde Legislativo, em matéria de polítiEcologista) negou ao Presidente a permis- ca externa, já que, a partir deste são para ausentar-se do país; somente os 41 membros do PAN votaram a favor. Isso episódio, o Presidente buscou reflete a submissão das comissões no incluir em sua política externa as Senado diante das diretrizes das dirigências prioridades da oposição, como partidárias. ocorreu particularmente ao não apoiar os Estados Unidos no Conselho de Segurança para realizar uma ação armada contra o Iraque em fevereiro e março de 2003 (Schiavon, 2004). Assim, mesmo que o Executivo siga controlando a condução da política externa, a transição democrática tem tido como conseqüência a multiplicação dos atores que buscam participar da mesma, em diferentes instâncias: entre as dependências do Executivo federal (já não só a Chancelaria), entre os Poderes da União (particularmente o Senado), entre as ordens de governo (especialmente Estados e municípios) (Schiavon, 2006) e também com atores não estatais como ONGs, grupos de poder (empresariais, sindicais, partidários) e empresas transnacionais. Em uma democracia, a política externa, como qualquer outra política pública, deve refletir os interesses da população. Por isso, o Executivo federal, através da Chancelaria, é responsável por consolidar uma política externa democrática que integre as posições e interesses de todos estes atores, para evitar ter uma política externa fragmentada; assim, é necessário que a Chancelaria conduza uma política externa que seja única e democrática, isto é, integral e representativa dos interesses da maioria dos mexicanos. As Conseqüências Políticas das Diplomacias de Fox e Lula 1. Brasil O Partido dos Trabalhadores (PT) é, tradicionalmente, o partido com as maiores preocupações em 18 | Mural Internacional Ano I, nº 2 Novembro 2010 matéria de política externa em seu programa de governo (Oliveira, 2001). Conseqüentemente, com a chegada de Lula ao poder, era de se esperar uma maior partidarização e ideologização da condução do MRE. Dois bons exemplos foram o esforço feito por Lula, no início de seu mandato, de aproximação com o debilitado Presidente Hugo Chávez, com quem Fernando Henrique Cardoso havia mantido uma relação distante, e a visita de Lula a Cuba, em setembro de 2003. A aproximação de Chávez foi vista pela oposição venezuelana como uma interferência do Brasil em assuntos internos do país, obrigando Lula a afastar-se de Chávez. A reação negativa da oposição venezuelana e de setores da opinião pública brasileira forçou a diplomacia de Lula a ser mais pragmática, como o demonstra sua moderada oposição à Segunda Guerra do Golfo e a aceitação de concluir as negociações da Alca em 2005, mesma postura mantida pelo governo de Fernando Henrique Cardoso. Porém, Lula terá sempre um incentivo para utilizar a diplomacia como um mecanismo para mostrar aos radicais de seu partido e a seu eleitorado tradicional que seu governo ainda é de esquerda, apesar de seguir uma política econômica conservadora. Foi esta a motivação de sua visita a Cuba em setembro de 2003, muito criticada por vários setores políticos. oposição, principalmente o PSDB e o PFL, não têm posturas firmes em seus programas em relação a um dos principais assuntos internacionais dos próximos anos, a saber, a integração regional (Oliveira, 2001). A menos que este assunto se torne mais relevante do ponto de vista eleitoral, ou que o PFL e o PSDB mobilizem os temas de política externa como uma forma de marcar sua oposição ao governo, é provável que a relação do Congresso com o MRE não mude muito nos próximos anos. Porém, visto que os principais desafios internacionais que o Brasil enfrentará nos próximos anos (Alca, Mercosul e as negociações na Organização Mundial de Comércio / OMC) terão importantes impactos distributivos (Lima, 2003), pode-se dizer que as possibilidades de que os temas da política externa fiquem mais politizados não são muitas, o que criará incentivos para que o Congresso e os atores da sociedade civil organizada se envolvam mais na formulação da política externa brasileira. 2. México Como afirmado anteriormente, a mudança é a característica central da política externa do México, o que reflete as mudanças econômicas e políticas do sistema interno. É um mito que as grandes mudanças na política externa mexicana se iniciam no ano 2000 com a derrota do A entrada do PT no governo tam- PRI nas eleições de 2 de julho e o bém pode significar uma partici- triunfo de Vicente Fox na eleição pação ainda menos ativa do presidencial. A realidade é que a Congresso nas questões de políti- política externa do México tem ca externa, já que os partidos de mudado paulatinamente há pelo menos três sexênios: primeiro, lentamente, no sexênio de Miguel de la Madrid, com o início da reforma econômica ou estrutural; depois, durante a administração de Salinas de Gortari aprofunda-se esta mudança na política econômica externa, com a negociação e assinatura do Tratado de Livre Comércio da América do Norte (Nafta) e, finalmente, consolida-se no governo de Zedillo Ponce de León, com a assinatura do Acordo de Associação Econômica, Concertação Política e Cooperação entre o México e a União Européia, também conhecido como Tratado de Livre Comércio com a União Européia (TLCUE), com a perda da maioria priista na Câmara de Deputados e, por último, com o triunfo da oposição nas eleições de 2000. Ora, esta mudança na política externa do país tem sido lenta e tem-se caracterizado por ficar para trás diante de outras viradas internas, na área econômica (reforma econômica e estrutural) e política (transição democrática), além de ser desigual em seus diferentes componentes, observandose mudanças substanciais em questões de política econômica internacional e modificações menores em assuntos de segurança internacional. Porém, não se trata da área mais atrasada dentro das políticas públicas nacionais, sendo ainda menores as mudanças em outras matérias, como a política tributária e de impostos, a segurança nacional e segurança pública, no sistema judiciário e de distribuição de justiça. Além disso, mesmo que os princípios 19 | Mural Internacional Ano I, nº 2 Novembro 2010 doutrinários tradicionais da política externa do México estejam intactos e impressos na Constituição, a prática diplomática tem se dinamizado, aprofundando a já existente separação entre doutrina e ações. Finalmente, cabe destacar que existe uma tendência clara em – pelo menos – três aspectos centrais da política externa do país durante os governos de Fox e Calderón. Primeiro, ela passou de ser de caráter reativo a pró-ativo; segundo, está transformando sua natureza legalista em uma mais pragmática; e, terceiro, passou de uma posição de isolamento relativo a uma de abertura ao mundo. Estas tendências já se observavam na área de política externa comercial desde o sexênio de Salinas, mas nas administrações de Fox e Calderón, se generalizaram a todas as áreas de política externa. Diante do complexo e mutante sistema internacional e das importantes transformações econômicas e políticas internas no México, o governo do Presidente Fox tem continuado a modificar as prioridades da política externa do país. Os pontos relevantes da política externa de Fox, tanto com o Chanceler Castañeda como com Derbez, referem-se a alcançar um equilíbrio entre dois pilares fundamentais: em primeiro lugar, consolidar uma relação estratégica com os Estados Unidos (dada à posição geo-estratégica do México) e, em segundo lugar, a 12. México, Leyes, Ley Orgánica de la Administración Pública Federal, México, Porrúa, 2004, artigo 28, inciso I. dar andamento a uma política de multilateralismo estratégico com as demais regiões importantes para o México (América Latina e Caribe, Europa e Bacia do Pacífico, particularmente) e no interior dos diferentes organismos internacionais dos quais o México é membro (Castañeda, 2001). Esta estratégia não foi modificada substancialmente durante o governo de Calderón. particularmente com os partidos políticos representados no Legislativo, especialmente no Senado, que desejam participar mais ativamente da matéria; quarto, com as outras ordens de governo (em conjunção com a Secretaria de Governo), especialmente as entidades da Federação, que estão crescentemente estabelecendo relações com outros Estados, províncias e ordens locais de governo no âmbito interPorém, a execução da nova políti- nacional; finalmente, quinto, ante ca externa viu-se complicada pela grupos de interesse como partidos redução de poderes reais do políticos, grupos empresariais, Presidente diante do governo divi- sindicatos e organizações nãodido no país e da maior participa- governamentais, entre outros. ção do Poder Legislativo, particularmente do Senado, em questões De acordo com a Lei Orgânica da de política externa. Para realmen- Administração Pública Federal, a te poder tornar operativa a nova SRE é encarregada de promover, política externa, o governo de Fox propiciar e assegurar a coordenadeve fazer uma reorganização ção de ações no exterior das entidaburocrática em termos de política des e departamentos da externa no México. Para isso, a Administração Pública Federal e Secretaria de Relações Exteriores sem afetar as atribuições que a cada deve ser o ator no país que agre- uma delas corresponda, conduzir a gue os interesses nacionais em política externa12. Assim sendo, a relação ao exterior, para o que SRE é, dentro do aparato governadeve resolver conflitos fundamen- mental, a instância encarregada da tais em cinco instâncias: primeiro, condução da política externa. Para em seu interior, com o Serviço fazê-lo efetivamente, deve cumprir Exterior Mexicano que se sentiu duas funções essenciais: coordenar relegado a um segundo plano e representar os interesses dos durante a administração Fox, diversos atores presentes em quesdevido à distância de seus dois tões externas. Chanceleres dos interesses tradicionais do SEM; segundo, com os Os novos atores podem ter intedemais órgãos e secretarias da resses muito diversos em matéria administração pública federal que de política internacional, requeestão conduzindo suas relações rendo representação efetiva e efiexternas em suas áreas de respon- ciente ao redor do mundo. Ante sabilidade, muitas vezes, sem tal realidade, é necessário gerar informar à Chancelaria; terceiro, mais que uma política exterior de com os outros Poderes da União, Estado, uma política externa coor- 20 | Mural Internacional Ano I, nº 2 Novembro 2010 denada e representativa. A SRE deve conciliar o crescente número de interesses – alguns provavelmente divergentes – e integrá-los de maneira coerente e harmônica. Requer-se uma política externa cujo resultado seja uma voz única no exterior, composta pela agregação dos diferentes interesses representados nos poderes da União, nas ordens de governo, nas instâncias administrativas e nos grupos de interesse. somente em termos de países, áreas geográficas, organismos internacionais, temas da agenda ou projetos específicos, como também através da reestruturação dos mecanismos de coordenação burocrática e administrativa para executá-las. No que se refere à primeira e terceira recomendações, a criação de um gabinete de política exterior pode ajudar a estabelecer prioridades presidenciais em matéria internacional e a fortalecer a coordenação entre a SRE e as demais instâncias burocráticas com interesses em assuntos externos. Este gabinete pode resolver os problemas de coordenação burocrática, ao monitorar a execução das instruções presidenciais e reportar diretamente ao Presidente da República sobre estas. Assim, funciona como um mecanismo de designação de responsabilidades específicas aos Secretários de Estado, de tal maneira que estes sejam pessoalmente responsáveis, ante o Presidente, pelas tarefas que lhes são atribuídas. Isto contribuiria para uma condução da política externa com maior efetividade, eficiência e representatividade.13 Para melhorar e aperfeiçoar a coordenação e a representação internacional por parte da SRE, deve-se fortalecer os laços institucionais de informação e tomada de decisões entre os diversos atores envolvidos. Algumas opções neste sentido seriam: 1) em relação às instituições, criar comissões intersecretariais, um gabinete de política exterior e um órgão de coordenação com entidades federativas e locais; 2) em matéria de capital humano, aprofundar a profissionalização do Serviço Exterior Mexicano (SEM) e aperfeiçoar sua estrutura de incentivos e de desenvolvimento profissional com base no mérito e no desempenho das funções; 3) em termos de vontade política do executivo federal, gerar diretrizes e priorida- Com relação à coordenação com des claras em matéria externa, não estados e municípios, deve promover-se uma diplomacia federativa. Isso implicaria na aplicação da breve, porém contundente frase 13. Para uma análise sobre o sistema de gabinetes na administração do Presidente do estadista suíço Alfred Escher: Carlos Salinas (1988-2004), ver Schiavon “unidade no exterior, diversidade e Ortiz Mena (2001, p. 731-760). no interior” (Ehrenzeller et Al, 14. México, Leyes, Ley Sobre la 2003). Para alcançar tal objetivo, Celebración de Tratados, México, Diario Oficial de la Federación, jueves 2 de enero a SRE deve coordenar e representar, o mais fielmente possível, os de 1992, artículo 2, fracción II. diversos interesses dos governos subnacionais no âmbito externo. De acordo com o direito internacional vigente, particularmente o artigo 7 da Convenção de Viena sobre Direitos dos Tratados, o executivo central possui o direito de representar o Estado em seu conjunto, e por tal razão, de conduzir sua política externa. Não obstante, na Lei sobre Celebração de Tratados de 1992 se incluiu a figura dos acordos interinstitucionais, que são os convênios celebrados entre qualquer departamento ou órgão do governo descentralizado da administração pública federal, estadual ou municipal e órgãos governamentais estrangeiros ou organizações internacionais.14 Esta nova figura assinala uma base legal que permite aos atores subnacionais subscrever convênios com parceiros externos para avançar seus interesses particulares. Para assegurar que não haja contradição entre os acordos interinstitucionais e a política exterior do país, a lei estabelece que os primeiros devem ater-se exclusivamente às matérias sob a supervisão dos órgãos de governo específicos e que ademais, as instâncias que os subscreverem deverão manter a SRE informada sobre os mesmos. A SRE possui a atribuição de qualificar a procedência dos acordos e se for o caso, apresentar parecer favorável e validálos ao inscrevê-los em seu registro interno. Isto é particularmente importante uma vez que, segundo o direito internacional, se uma 21 | Mural Internacional Ano I, nº 2 Novembro 2010 agência ou órgão do governo firma um acordo interinstitucional — dentro das matérias que lhes são atribuídas — cabe ao Estado mexicano a responsabilidade pelo mesmo no âmbito externo (Palácios, 2002). Infelizmente, na prática, a grande maioria dos acordos firmados por entes da administração pública federal, estadual e municipal não conta com o acompanhamento da SRE, e, portanto, não existe um registro preciso destes instrumentos jurídicos. Se não há coordenação e controle por parte da SRE, a diversidade no interior pode converter-se em falta de unidade no exterior, podendo resultar em contraposição dos interesses municipais e estaduais com a política externa conduzida pelo executivo federal. real (Schiavon, 2006). No que diz respeito à segunda recomendação, para que se tenha uma política externa profissional é necessário fortalecer a diplomacia mexicana, através do capital humano cuja responsabilidade e profissão é a política externa: o SEM. Até o estabelecimento do Serviço Profissional de Carreira em 2003, o SEM era o único serviço civil, não-militar, de carreira no México, com uma tradição histórica que remonta a 1829, quando o Presidente Vicente Guerrero expediu a primeira lei para um serviço exterior mexicano. O grande prestígio e qualidade de seu capital humano são resultado de que o ingresso, promoção e demissão do pessoal de carreira se baseiam, em princípio, em seu desempenho (preparação, competência, capacidade e superação constante). A SRE deve estabelecer incentivos positivos como apoio técnico, diplomático e jurídico aos governos subnacionais na busca e assinatura de acordos interinstitucionais, para assim controlar sua pertinência e legalidade, assim como seus ditames e registro; também devem haver incentivos negativos, como sanções administrativas por não-cumprimento do procedimento de origem e inscrição na SRE, para que os entes dos diferentes níveis de governo insiram suas iniciativas de participação internacional dentro das diretrizes de política externa definidas pela SRE. Apenas assim poderia haver uma política externa única e unificada no México, sustentada por uma diplomacia federativa Contudo, o SEM não está isento de aspectos que possam ser melhorados substancialmente. Os concursos de ingresso e de ascensão funcionam relativamente bem. Entretanto, sua principal limitação diz respeito à demissão. É muito custoso e administrativamente complicado prescindir de um mau elemento, quando sua trajetória profissional e desempenho nos exames de ascensão e de carreira são insatisfatórios. Outro aspecto que pode ser alvo de melhora, em termos de recursos humanos, é a capacitação constante dos diplomatas de carreira, através de cursos de atualização e especialização. Sem se descuidar de um conhecimento geral da política externa do México, deve-se privi- legiar a formação de especialistas por funções (multilaterais, bilaterais e consulares), temas e regiões geográficas, evitando sempre que possível às mudanças injustificadas de áreas, as quais comprometem suas carreiras profissionais. Uma vez aperfeiçoado o esquema de desenvolvimento profissional do SEM, seria conveniente promover a ascensão de diplomatas de carreira à cargos de direção de assuntos internacionais ou equivalentes de outras secretarias de Estado e das entidades federativas. Ademais, seria desejável que as presidências ou secretarias das Comissões de Relações Exteriores das Câmaras de Deputados e do Senado recaíssem nas mãos de profissionais da diplomacia. Por fim, seria conveniente que toda delegação mexicana no exterior fosse encabeçada por um membro da SRE, mesmo quando a composição ou as funções do resto da delegação sejam muito técnicas ou especializadas e formadas por membros de outros setores do governo. Em suma, ante o crescente surgimento de atores nacionais com interesses internacionais, é fundamental ter uma política externa única e harmônica que represente e coordene a diversidade de interesses e posições dos diferentes atores políticos, econômicos e sociais do México democrático. Para isso, é necessário que se fortaleçam os mecanismos de coordenação com o poder Legislativo, as entidades federativas, governos locais e atores da sociedade civil; que se aperfeiçoe o esquema de 22 | Mural Internacional Ano I, nº 2 Novembro 2010 desenvolvimento profissional do SEM e que se reestruture os mecanismos de coordenação burocrática e administrativa para execução da política externa, com a finalidade de garantir a representação de seus interesses em nível internacional e de dar coerência e unidade à política externa mexicana. ca externa, mas com questionamentos feitos pelo Congresso. Mesmo se o Legislativo mexicano ainda não influi decisivamente em matéria de política externa, sua participação na matéria aumentou substancialmente a partir de 2000. Nossa conclusão é que, por mais surpreendente que pareça, hoje o Legislativo e os governos subnacionais no México Conclusão: Brasil e México comparados são mais ativos que os brasileiros em relação à política externa, apesar de ser a democracia mexicana Brasil e México são hoje duas democracias vibran- mais jovem que a brasileira. tes. Porém, as trajetórias políticas e os modelos de governança de ambos os países são distintos, com Referências impactos diferentes sobre a formulação da política externa de cada país. Desde o início da década de Abranches, Sérgio H. Hudson de (1988) 1980, o Brasil evoluiu de um regime militar a uma ´Presidencialismo de Coalizão: O Dilema democracia cuja dinâmica institucional se caracteri- Institucional Brasileiro` , Dados, 31, p.5-38. za pelo assim chamado presidencialismo de coali- Amorim Neto, Octavio; Cox, Gary (1997) ‘Electoral zão, enquanto que o México transitou do presiden- Institutions, Cleavage Structures, and the Number of cialismo autoritário com poder hegemônico a um Parties`, American Journal of Political Science, 41. presidencialismo democrático de governo dividido, Amorim Neto, O. (2002) ´Presidential Cabinets, no regime foxista. O presidencialismo de coalizão Electoral Cycles, and Coalition Discipline in Brazil`, do Brasil é conseqüência da alta fragmentação de in S. Morgenstern & B. Nacif, (Eds.), Legislative seu sistema de partidos. Os governos divididos do Politics in Latin America, Nueva York, Cambridge México, de sua parte, são típicos de regimes presi- University Press. denciais com baixa fragmentação partidária, como Amorim Neto, O.; Cox, G. W.; McCubbins, os Estados Unidos e a Argentina. Matthew D. (2003) ‘Agenda Power in Brazil’s Camara dos Deputados, 1989-98`, World Politics, A configuração institucional doméstica no Brasil e 55, p. 50-578. no México faz com que o Presidente e o Congresso Amorim Neto, O.; Tafner, Paulo (2002). ´Governos interajam com suas respectivas burocracias para pro- de Coalizão e Mecanismos de Alarme de Incêndio duzir um determinado estilo decisório de política no Controle Legislativo das Medidas Provisórias`, externa. Assim, no Brasil, a combinação do presi- Dados, 45, p.5-38. dencialismo de coalizão com o alto grau de profis- Amorim Neto, O; Santos, Fabiano (2003) ‘The sionalismo e baixo nível de politização do Itamaraty Inefficient Secret Revisited: The Legislative Input contribuem para a ampla autonomia de que desfruta and Output of Brazilian Deputies`, Legislative o Executivo na formulação da política externa, com Studies Quarterly, 28, p.449-479. poucos questionamentos e intromissões do Castro Neves, João Augusto de (2002) A Legislativo. Isto explica, em parte, porque a política Participação do Poder Legislativo na Política externa do Brasil mudou muito pouco, desde a tran- Externa Brasileira: O Caso do Mercosul, sição democrática no começo da década de 1980. No Dissertação de Mestrado, Instituto Universitário de México, com a passagem de um sistema autoritário Pesquisas do Rio de Janeiro. – onde o Presidente podia impor sua preferência de Castañeda, Jorge G. (2001) ´Los ejes de la política política externa com a anuência do Legislativo e do exterior de México`, Nexos, 23, nº 288, p.66-75. serviço exterior – a um sistema onde a mistura de Cesar, Susan Elisabeth M. (2002) O Congresso governo dividido com um Congresso mais ativo e Nacional e a Política Externa Brasileira, politizado gera um estilo decisório que se caracteri- Dissertação de Mestrado, Universidade de Brasília. za pelo controle formal do Executivo sobre a políti- Cheibub, Zairo Borges (1985) ´Diplomacia e 23 | Mural Internacional Ano I, nº 2 Novembro 2010 Construção Institucional: O Itamaraty em uma Perspectiva Histórica`. Dados, 28, p.113-131. Ehrenzeller, Bernhard; Hrbek, Rudolf; Malinverni, Giorgio; Thürer, Daniel (2003) ´Federalism and Foreign Relations`, in R.Blindenbacher e A.Koller (Eds.), Federalism in a Changing World: Learning from Each Other, Montreal/Kingston, McGill e Queen’s University Press. 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Pero debo recordar que al menos en forma pública, fueron los propios ingleses quienes abrieron este camino, con declaraciones de protagonistas de aquel conflicto que, muy sueltos de cuerpo, prefieren, comprensiblemente, las sentencias más impactantes. Es el caso, por ejemplo, del excelente periodista Simon Jenkins, que nos dice que la guerra “más que un paso atrás fue un verdadero desastre. Si la invasión no se hubiera producido, hoy seguramente la Argentina tendría, por lo menos, la Comienzo por lo más reciente: actualmente se está soberanía compartida de las islas.“ (La Nación, 30imponiendo, diría que a pasos agigantados, una 03-2003). interpretación sobre las consecuencias de la guerra que, concisamente, sostiene: “si los militares no Aunque considero la guerra de Malvinas no sólo un hubiesen ocupado las islas, entonces éstas ya habrí- desastre sino también un crimen, no comparto este an sido recuperadas”. Ejemplo claro de esta postura punto de vista. No lo comparto porque inspira, a mi es la opinión de quien fuera uno de los grandes nego- entender, conclusiones erradas sobre el período políciadores diplomáticos en la cuestión Malvinas, el tico-diplomático de la disputa por Malvinas entre embajador Carlos Ortiz de Rosas: “...estoy seguro de 1965 y 1982. Para comenzar, es curioso el modo en que habría un acuerdo en virtud del cual, pasados que esta nueva visión de la guerra - destinada, creo unos años, se reconocería la soberanía plena argenti- yo, a imponerse como relato por su fuerza persuasina ...como máximo para 2030 las Malvinas hubieran va, por mucho esfuerzo que podamos hacer aquí choca frontalmente contra lugares comunes establecidos sobre el período previo a la misma, lugares comunes que se plasmaron durante esos años y que, 1. Conicet e Instituto Gino Germani/Universidad de Buenos Aires. n el derrumbe político y económico de la peor dictadura de nuestra historia, tuvo lugar uno de los acontecimientos que la distinguieron de todas las otras dictaduras argentinas, la guerra, el conflicto bélico sostenido con Gran Bretaña en 1982. Me interesa aquí discutir algunas interpretaciones sobre las consecuencias del conflicto bélico, en particular aquellas que permiten, a su vez, analizar la evolución de la disputa territorial por las islas Malvinas en el largo período que se extiende entre 1965 (fecha de la declaración 2065 de la Asamblea General de la ONU que insta a las partes de negociar) y las vísperas de la ocupación de abril de 1982. 25 | Mural Internacional Ano I, nº 2 Novembro 2010 no obstante, permanecieron incólumes tras la guerra hasta ahora. Destaco tres de ellos. El primero sostiene que durante esos años Argentina desenvolvió un esfuerzo impecablemente pacífico y diplomático, una política - tomando las palabras de un canciller seguramente muy convencido de lo que afirmaba - “basada en la buena fe y en el acatamiento de los principios de la Carta y de las resoluciones de las Naciones Unidas” (Vignes, 22-09-1974). El segundo no contradice al primero, más bien lo confirma, pero críticamente, argumentando que aquella política fue estéril, que no se había avanzado absolutamente nada y que estábamos cada vez más lejos del objetivo de recuperar el archipiélago. Los malvineros más duros agregan: tuvimos demasiada paciencia, demasiado apego al derecho internacional, la decisión de ocupar las islas se tendría que haber tomado antes (pero se trata de un grupo menor de opinantes; no todos los que consideran infructífera aquella política, concluyen que habría que haberla alterado del modo en que se lo hizo, pero antes). El tercer lugar común es aún más espinoso; se refiere a los supuestos motivos ingleses para retener las islas una vez que el gobierno británico diera, entre 1965 y 1968, señales tan claras de su disposición a transferirlas. Sostiene que esas señales eran engañosas, y que las islas fueron retenidas en virtud de intereses económicos y estratégicos, en un cuadro neocolonial y/o imperialista. la interpretación que actualmente cobra vigencia, de que si no ocupábamos las islas en 1982, éstas caían en nuestras manos como una fruta madura. Si se cree en este contrafáctico, no puede sostenerse al mismo tiempo que el esfuerzo diplomático de guante blanco entre 1965 y 1982 era inconducente, que nada se había avanzado, y que los ingleses tenían poderosos intereses materiales y/o estratégicos para negarse a transferir la soberanía. A mi entender, para resolver el intríngulis es indispensable que cuestionemos todo. En breve: no es cierto que si los militares de la dictadura no hubiesen ocupado la islas en abril de 1982 la política seguida hasta ese entonces por sucesivos gobiernos y equipos diplomáticos habría llevado a la recuperación de las islas. No es cierto que esa política entre 1965 y 1982 haya sido pura y simplemente de buena fe y acatamiento de los principios del derecho internacional. No es cierto, tampoco, que hasta 1982 no se hubieran producido algunos avances significativos en la resolución de la “disputa de fondo” (la soberanía por las islas). Y no es cierto, por fin, que los motivos británicos para resistirse a la transferencia de soberanía hayan sido de orden neocolonial o imperialista. Para empezar, el curso políticodiplomático dominante hasta 1982 estuvo lejos de ser el que el primer lugar común nos cuenta. Por el contrario, puede calificarse de política de “amenaza verosíResultará patente al lector el cho- mil”. Amenaza: “si la actitud que entre estos lugares comunes y negativa del Reino Unido condu- ce a un callejón sin salida, el gobierno argentino se verá obligado a revisar en profundidad la política seguida hasta el presente...” - es un ejemplo entre miles, tanto de diplomáticos como de políticos, una declaración real, pero cuyos antecedentes son muy lejanos. La noción de que la Argentina es un país que aguanta las injusticias con abnegación por su incuestionable compromiso con el derecho pero que, tarde o temprano, ante la indiferencia de los injustos y egoístas, se verá “obligada” a decir basta y hacer justicia por mano propia, es uno de los pilares básicos de la causa Malvinas cuya configuración se remonta a los tiempos del senador socialista Alfredo Palacios y el canciller conservador Saavedra Lamas, en la década del 30. Y “verosímil”: existe, en especial a partir de la publicación del libro de Lawrence Freedman (2005), muchísima evidencia acerca de que tanto británicos como malvinenses estaban efectivamente preocupados por la hipótesis, a la que asignaban posibilidades de concreción, de que los argentinos finalmente nos resolviéramos por una acción militar. Nunca jamás, salvo hasta dos o tres días antes de la ocupación en abril del 82, creyó el gobierno inglés en la “inminencia” de una decisión de tal índole. Pero sí en que finalmente, y tras un período de gradual incremento de la tensión política y diplomática, una decisión así pudiera ser tomada. Otra vez un ejemplo entre miles: cuando lord Chalfont, enviado por el Foreign Office, visita Buenos Aires en 1968, informa a su canciller: “a menos que la soberanía sea seriamente negociada y transferida en el largo 26 | Mural Internacional Ano I, nº 2 Novembro 2010 plazo, es probable que terminemos en un conflicto armado con la Argentina...”. El siguiente abunda y ayuda a entender en parte la actitud inglesa: “En julio de 1977, David Owen presentó un informe a la Comisión de Defensa, donde argumentaba que era necesario realizar negociaciones serias y de fondo ya que las islas eran militarmente indefendibles salvo que se hiciera una enorme e inaceptable inversión de recursos corrientes” (Informe Franks, 1983). ca ‘tercermundista’ no puede dar más de lo que dió... Queda la fuerza. Queda - agrega Grondona, y prepárese el lector para una cita que lo va a impresionar por original y aguda, tan original y aguda como que a la sazón la sabía de memoria hasta el menos leído de los militantes de cualquier partido popular de cualquier barrio - la continuación de la política por otros medios... ¿Está dispuesta Argentina a usarla? ¿Está dispuesta al menos a esgrimirla como un factor de presión?”. Y sí, Argentina estuvo muy disSi nos ponemos en cínicos, podrípuesta; de hecho, la opinión públiamos decir: no cabe duda de que ca activa cocinó y recocinó estos esta preocupación fue un acicate componentes de la causa para que, tanto laboristas como Malvinas en calderos de derecha o conservadores, imaginaran soluizquierda, nacionalistas o liberaciones de la “cuestión de fondo”. les, democráticos o autoritarios. Sólo que, este curso de acción de amenaza verosímil, por muy Pero no fueron estos los únicos “útil” que pareciera en el corto instrumentos de la pauta de “ameplazo (sobre todo para los obsenaza verosímil” que gobernó la sionados con la “causa política y la diplomacia en la disMalvinas”), era a su vez autodesputa por las Malvinas en esos lustructivo e inviable en el mediano tros; hubo al menos otros dos. plazo. Llevaba - no temo en agrePrimero, una pocas medidas de gar, indefectiblemente - a un acción directa, entre las que se callejón sin salida. destaca el Operativo Cóndor de 1966 y la ocupación militar - disLa amenaza, cabe la digresión, no frazada de actividad científica - en se limitaba a declaraciones. Se 1977 de una isla del archipiélago extendía a la labor incesante de Thule del Sur. Y segundo, la tesiintelectuales públicos - ¿qué tal tura recurrente de querer “forzar una del célebre periodista la mano” tanto en las negociacioMariano Grondona? En el progrenes como a través de las medidas sista diario La Opinión (“La de cooperación e integración entre paciencia de las naciones”, 03-01las islas y el continente (inteligen1975), afirmaba que “Las perstes en sí mismas y llevadas a cabo, pectivas petrolíferas son, en por cierto, por personal diplomátimanos inglesas, una nueva arma co y militar que en muchos casos de presión... Nos obligan a contraactuaba con la mejor buena fe y atacar con presiones propias... con el propósito sincero de ganar ¿Cómo hacerlo? La vía diplomátila confianza y la amistad de los isleños). Un ejemplo de la tesitura de forzar la mano en las negociaciones lo proporciona Perón, pero es doblemente significativo porque a un diplomático competente y experimentado como Ortiz de Rosas le parece muy bien, tanto que es él quien lo cuenta: “en junio de 1974, la embajada británica propuso un condominio en las Malvinas. La propuesta era extraordinaria... Perón, “inteligentísimo”, le dio instrucciones a Vignes, su canciller, quien me dio una fotocopia de ese acuerdo. Le dijo: ‘Vignes, esto hay que aceptarlo de inmediato. Una vez que pongamos pie en las Malvinas no nos saca nadie y poco después vamos a tener la soberanía plena’.”. El ejemplo de irrefrenable impulso a forzar la mano en las propuestas de cooperación lo proporcionan los militares (pero hay para todos los gustos); por caso, en las conversaciones de abril de 1980, las propuestas británicas en materia energética, pesca o desarrollo económico, fueron aceptadas... pero anteponiendo el reconocimiento de soberanía como conditio sine qua non. Como dije, esta política conducía a un callejón sin salida. Y esto tiene que ver, primero, con las motivaciones inglesas para retener las islas. Las Malvinas habían perdido ya todo valor estratégico y hay evidencia de que los ingleses aunaban constantemente cualquier perspectiva de desarrollo económico y/o explotación de los recursos de todo tipo que pudiera tener el área, no a un juego de suma cero con los argentinos sino a un juego de suma positiva. No 27 | Mural Internacional Ano I, nº 2 Novembro 2010 veían - y así argumentaron una y mil veces ante los isleños - posibilidad alguna de aprovechamiento económico mientras se mantuviera el conflicto abierto y la incertidumbre consecuente. Como explica por ejemplo Mangold (2001), sobre todo a partir del impacto del fracaso en Suez, Gran Bretaña se asumía como habiendo perdido irremisiblemente su status de Great Power pero se esforzaba, al mismo tiempo, por retener “tanto su autorespeto como un buen desempeño en lo que se refiere a su reputación internacional”. Traducido a los términos del conflicto Malvinas, los ingleses no podían pura y simplemente arrasar con los isleños, dejar de lado toda consideración por su voluntad y entregarlos de pies y manos - admitámoslo, por mucho que duela – a la turbulencia sangrienta de la política argentina de esos años. tando casi la defensa de las islas más bien advirtiéndoles que la reducirían-, viajando constantemente a las islas para ejercer una presión moral y explicándoles que si no se entendían con los argentinos no tendrían futuro, etc.). ¿Porqué, entonces, la política argentina de “amenaza verosímil” conducía a un callejón sin salida? Simplemente porque, combinada por no decir potenciada en sus efectos por lo poco presentable que era nuestra política doméstica (recuerdo al lector: Onganía, Isabel, Videla...), generaba más y más desconfianza y rechazo no solamente entre los isleños, sino también entre sectores de la opinión pública británica que importan: los Comunes, la prensa. En verdad, el trabajo de apriete que los ingleses hicieron sobre los isleños había creado, hacia 1982, una profunda brecha entre las ¿Porqué, con todo, cuestiono que autoridades gubernamentales y el no haya habido avances a lo largo Foreign Office, por un lado, y los de aquel período? Porque los malvineses, por otro. ingleses, a pesar de su determinación de respetar los deseos de los Como observa Freedman (2005), malvinenses, hicieron muchísimo un representante isleño, Adrian por “darle forma a los deseos y Monk, explicó a un diplomáticopreferencias de estos”, a través de militar argentino que los isleños un juego múltiple en el que cuen- “apreciaban todo lo que los argentan las iniciativas de negociación tinos habían hecho en materia de propuestas a los argentinos (con- comunicaciones, energía y salud, dominio, integración física con pero mantenían sus preocupaciopostergación de la solución de la nes sobre los propósitos argentidisputa territorial, inserción del nos. La vasta mayoría de los malconflicto en un amplio programa vinenses estaría de acuerdo con de cooperación científica y econó- que había oportunidades de coomica en toda la región austral, peración, siempre y cuando no retroarrendamiento, etc., etc.), y la hubiera segundas intenciones“. persuasión así como la presión sobre los propios isleños (soltan- Es el equivalente perfecto a “te do poquísimo dinero, no aumen- quiero pero como amigo” (just friends). En 1980 habían tenido lugar elecciones de los consejos isleños, triunfando sectores muy duros (es dudoso que los hubiera “blandos”) en lo que se refiere a cualquier entendimiento con Argentina en materia de soberanía. Pero es algo muy deplorable la amorosa obsesión argentina: a la tierra, no a sus habitantes; de estos se esperaba que fueran ellos quienes nos amaran. La información que proporciona Freedman es clarísima en lo que se refiere al impacto del comportamiento argentino sobre los malvinenses. Cuando la embajada inglesa en Buenos Aires renovó sus sugestiones para que mantuvieran con los argentinos conversaciones directas sobre cooperación la respuesta fue que aquellos no deseaban contactos que se prestaran a malentendidos. Para ellos la propuesta consistía en nexos demasiado formales e inquietantes. No querían vínculos institucionalizados, temían “estar siendo arrastrados hacia lo que consideraban una trampa para enredarlos en vínculos aún más estrechos con Argentina”. Así las cosas, se puede entender que cuando Nicholas Ridley llevara, después de un muy arduo trabajo de preparación del terreno en Buenos Aires y en las Malvinas (donde fue recibido con gran frialdad), a los Comunes la propuesta de retroarrendamiento, laboristas y conservadores lo chiflaran. “¿Está conciente el ministro de que no existe ningún apoyo, ni en las islas ni en esta cámara, para los vergonzosos esquemas para sacarnos de encima a estas islas, que han estado pululando por años en el Foreign Office?”, inter- 28 | Mural Internacional Ano I, nº 2 Novembro 2010 pela el diputado Russell Johnston. Y que el editorial del Times del 28 de noviembre sostuviera (Cisneros y Escudé, 1999, Tomo XII): “Ni siquiera puede pensarse en la posibilidad de entregar a los isleños a la Argentina en contra de su voluntad. Esto es así no importa la clase de gobierno que tenga el poder en la Argentina, y es particularmente cierto en vista del sangriento historial del presente régimen militar”. Como lo describe Peter Beck (1982), no se trataba solamente del principio de autodeterminación; además, “los Comunes sentían simpatía por un pequeño pueblo amenazado por un vecino más grande, sobre todo si la forma de gobierno de la Argentina y su sociedad no sólo no estaban libres de críticas, sino que también amenazaban la forma de vida británica que hasta el momento se disfrutaba en las islas Falkland”. nes que se le abrían, continuar haciendo tiempo, romper las negociaciones o promover (nuevamente) un retroarrendamiento, eligió la primera. El lector se preguntará porqué, entonces, la Argentina sostuvo infatigablemente esta política de “amenaza verosímil”. Mi respuesta es que era la única compatible, no con una solución de un simple conflicto territorial entre naciones, o con nuestro mejor interés de inserción en el mundo, sino con la “causa Malvinas” como configuración político cultural. Y no sólo por eso: a partir de 1965, los sucesivos gobiernos (incluyendo el de la UCR hasta el golpe de junio del 66), creen que la recuperación de las islas está al alcance de la mano, y depositan muchísimas esperanzas de resolver sus problemas de legitimación política en un éxito propio en el conflicto. Proceden, por tanto, Que la amenaza verosímil era exactamente del modo contrario self-defeating, o un tiro en el pro- al que se precisaba: presionan, pio pié, precisamente se patentiza procuran forzar la mano, buscan en el tramo final de este período, apurar los tiempos, amenazan. con Viola en la presidencia y el hábil Oscar Camilión en la canci- Más y más, la política y la diplollería. Seis meses antes de la inva- macia argentinas se pusieron en sión (Charlton, 1989), los diplo- sintonía con las orientaciones que máticos británicos, impulsados se desprendían de la causa: habíapor un Camilión genuina o ficti- mos sido despojados, la Argentina ciamente alarmado por el rumor estaba incompleta si no recuperade sables que decía escuchar entre ba esa sagrada tierra, los isleños los militares, presionaron para no eran sino unos intrusos y los que el canciller Carrington (un ingleses no eran sino unos piratas, importante líder del partido con- la razón estaba de nuestro lado y servador) consiguiera que el tema la paciencia tenía un límite. Malvinas fuese de prioridad en el Escapar del callejón sin salida de gabinete y una firme decisión a esta política exigía una reformulafavor del leaseback. Carrington ción que ningún gobierno podía dijo que era imposible, aunque era encarar - fuera porque le resultara su preferencia. De las tres opcio- odiosa, fuera porque carecía de capital político para intentarlo – a menos que tuviera una dosis poco común de valentía y capacidad de liderazgo. Cuando se llegó al fondo del callejón, Galtieri y Anaya (uno porque no tenía tiempo para sus ambiciones y otro porque llevaba la “causa Malvinas” en la mente y en el corazón) no persistieron en él, sino que escaparon con un cambio de política hacia una todavía peor. De paso y para concluir: es inevitable que toda guerra haga proliferar los contrafácticos. La memoria y los relatos sobre esta guerra, potenciados por la plena vigencia actual de la “causa Malvinas”, fabrica unos contrafácticos - a mi entender - particularmente tóxicos. Traigo aquí otros dos: “de haber aguantado una semana más en junio del 82 ganábamos la guerra” (v.g. Miguel Bonasso, 2002, 12) o “si hubiéramos negociado mejor en abril y mayo una vez que ocupamos Puerto Stanley nos quedábamos con las islas” (v.g. Rodolfo Terragno, 2002). El de que “si no ocupábamos las islas ya serían nuestras” es uno más, al que le auguro larga vida. Todo lo cual pone de manifiesto cuán difíciles de interpretar son los legados crueles que nos dejó aquel episodio de 1982. Y hace patente, asimismo, la facilidad con que podemos borrar nuestro pasado en vez de asumirlo como tal y ponernos manos a la obra “desde el lugar a donde llegamos, por incómodo que sea, y no desde el lugar donde nos gustaría estar de no haber ocurrido tales o cuales cosas que efectivamente ocurrieron”. 29 | Mural Internacional Ano I, nº 2 Novembro 2010 Referencias Beck, Peter (1982) ´Cooperative Confrontation in the Falkland Islands Dispute`, Journal of InterAmerican Studies and World Affairs, 24 (1), febrero. Cisneros, Andrés; Escudé, Carlos (Eds.) (1999) Historia General de las relaciones exteriores de la República Argentina, Tomo XII: La diplomacia de Malvinas (1945-1989), Buenos Aires, Grupo Editor Latinoamericano. Freedman, Lawrence (2005) The Official History of the Falklands Campaign, London, Routledge. Informe Franks (1983) ´Report of a Comittee of Privy Counsellors`, Falkland Islands Review, enero. Mangold, Peter (2001) Success and Failure in British Foreign Policy. Evaluating the Record, 19002000, Oxford, Palgrave. Palermo, Vicente (2007) Sal en las heridas. Las Malvinas en la cultura argentina contemporánea, Buenos Aires, Sudamericana. Terragno, Rodolfo (2002) Falklands/Malvinas, Buenos Aires. 30 | Mural Internacional Ano I, nº 2 Novembro 2010 A nova União Européia do Tratado de Lisboa Raquel Patrício1 S uspensa nas contradições impostas pela indissolubilidade dos processos do alargamento e do aprofundamento político, a União Europeia (UE) vê, com a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, a 1 de Dezembro de 2009, abrir-se uma etapa nova à já longa caminhada que tem permitido a construção do edifício europeu. Uma caminhada concreta de cinquenta e nove anos, mas de raízes seculares, que trouxe para a prática política o desejo de unidade do continente europeu. Um desejo sempre proclamado, mas apenas alcançado pela violência da imposição. 1. Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas/Universidade Técnica de Lisboa (ISCSP/UTL) 2. De acordo com o artigo 6º do Tratado de Lisboa, este teria de ser ratificado pelos Estados-membros da União, segundo as respectivas normas constitucionais, para poder entrar em vigor no dia 1 de Janeiro de 2009, se então tivessem sido depositados todos os instrumentos de ratificação, ou, na falta destes, no primeiro dia do mês seguinte ao do depósito do último instrumento de ratificação. Estes instrumentos de ratificação, segundo o artigo 54º da Versão Consolidada do Tratado da União Europeia, seriam depositados junto do governo da República Italiana. 3. Conclusões resultantes da análise das Versões Consolidadas do Tratado da União Europeia e do Tratado Sobre o Funcionamento da União Europeia, Jornal Oficial da União Europeia, C 115/1 (2008/C 115/1). 4. Cfr. Conclusões da Presidência – Lisboa, Conselho Europeu de Bruxelas de 14 de Dezembro de 2007, 16616/07 CONCL 3, Bruxelas, 14 de Dezembro de 2007, p 2. Um desejo que apenas os “pais fundadores” da Europa Unida souberam tornar realidade sem imposição, a partir da legitimidade de populações saturadas de guerras e conflitos. Um desejo alcançado com avanços e recuos a que hoje se depara o desafio de uma nova e, até, quem sabe, promissora era. Assinado em Lisboa, no dia 13 de Dezembro de 2007, pelos chefes de Estado e de Governo dos já vinte e sete Estados-membros da União Europeia, o Tratado Reformador de Lisboa procura, num mundo em rápida mutação, ser capaz de permitir à União dar respostas efectivas aos actuais desafios. Prevendo a respectiva entrada em vigor no dia 1 de Janeiro de 2009,2 o Tratado de Lisboa visa tornar a União Europeia mais eficiente (dotando-a de Instituições adaptadas a uma União alargada), mais próxima dos cidadãos, mais eficaz e coerente no seu relacionamento com a sociedade internacional e mais apta a responder aos desafios globais que se lhe deparam neste início de século.3 De acordo com a Presidência Portuguesa do Conselho da União, “o Tratado de Lisboa proporcionará à União um quadro institucional estável e duradouro. Não se prevêem alterações num futuro próximo, de modo que a União poderá consagrar-se inteiramente aos desafios políticos concretos que se avizinham, designadamente as alterações climáticas e a globalização”.4 31 | Mural Internacional Ano I, nº 2 Novembro 2010 Após a assinatura do Tratado, o Parlamento Europeu veio a aprová-lo. Naturalmente, a aprovação deste pelo hemiciclo de Estrasburgo não era juridicamente necessária para que o documento entrasse em vigor; todavia, a sua aprovação pelo Parlamento Europeu é de grande relevância política, indo ao encontro dos objectivos democráticos da nova União. O Parlamento Europeu foi, assim, a primeira entidade a pronunciar-se sobre o novo Tratado Comunitário, fazendo-o no momento em que tinham início os processos de ratificação nos Estados-membros de acordo com as respectivas normas constitucionais. Em fase de pleno entusiasmo com o novo Tratado, nada fazia supor que algum percalço viesse a suceder. Até porque, para evitar desaires, à semelhança do ocorrido na França e na Holanda com o Tratado Constitucional, a Comissão Europeia proibira, desde logo, a realização de referendos. Apenas na Irlanda, por imperativos constitucionais, tal via seria adoptada, com resultados imprevisíveis e desastrosos para o Projecto Europeu. em vigor sem que diversas excepções tivessem de ser feitas a alguns Estados-membros. Assim, foi necessário limitar os poderes do Tribunal de Justiça para a GrãBretanha e para a Irlanda (a propósito da preocupação dos Irlandeses com o Exército Nacional e a oposição ao aborto como formas de perder soberania) e desvincular a Polônia, a República Checa e a GrãBretanha da Carta dos Direitos Fundamentais, para além de existirem já, em protocolos anexos ao Tratado assinados aquando da assinatura deste, cláusulas de excepção e opting out para a Irlanda e a Grã-Bretanha em matéria de aplicação de decisões no âmbito da cooperação judicial e policial. Foi ainda necessário conceder à Eslováquia a garantia de que a União Europeia não tomará medidas que contradigam os Decretos de Benes, segundo declaração política expressamente presente nas Conclusões do Conselho Europeu de 30 de Outubro de 2009. “símbolo de uma Europa reunificada”, pelo presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso (2009), a União Europeia do Tratado de Lisboa torna-se mais livre e democrática, assim como mais capaz de enfrentar a crise financeiro-econômica e suas repercussões, embora seja importante ressaltar que a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, por si só, não chega, sendo necessárias, acima de tudo, a determinação e a vontade política dos Estados-membros. Com estas excepções, o Tratado de Lisboa pôde entrar em vigor a 1 de Dezembro de 2009, exactamente um mês antes da nova data posteriormente prevista (1 de Janeiro de 2010). A cerimônia, realizada na Torre de Belém, em Lisboa, sob Presidência Sueca do Conselho da União, marcou assim uma nova etapa na construção do edifício europeu, aplaudida pelos Vinte e Sete. Neste sentido, e perante o complexo processo de ratificação do Tratado, que demorou dois anos, alguns pontos foram alterados relativamente ao Tratado de Lisboa inicialmente assinado a 13 de Dezembro de 2007 o qual, por sua vez, já constituía uma espécie de “reforma” ao Tratado Constitucional, em relação ao qual introduziu alguns “travões de emergência”, embora tenha mantido, na essência, o espírito desse Tratado Constitucional. Não alterando o quotidiano dos cidadãos europeus, o Tratado de Lisboa vem agilizar o funcionamento das Instituições Comunitárias, bem como os procedimentos comunitários. Como diria o presidente do Parlamento Europeu, o polaco Jerzy Busek (2009), no discurso do dia 1 de Dezembro, “o Tratado de Lisboa é sobre a forma como a União Europeia se deve organizar e não sobre a forma como as pessoas se devem comportar ou sobre o que devem fazer”. A verdade, de facto, é que problemas com a ratificação do Tratado surgiram em França, na Alemanha, na Polónia, na República Checa e, especialmente, na Irlanda, onde o referendo popular de 12 de Junho de 2008 seria vencido pelo “não” com 53,4% dos votos, contra os 46,6% favoráveis ao “sim”, até que um novo referendo levasse os Irlandeses a aprovar o Tratado Apelidada como um novo começo que, em função de todos os pro- pelo primeiro-ministro português, Assim, a referência ao método blemas levantados, não entraria José Sócrates (2009), e como um “convenção” para a revisão subse- 32 | Mural Internacional Ano I, nº 2 Novembro 2010 quente dos Tratados Comunitários é retirada ao Tratado Constitucional, não apresentando, o Tratado de Lisboa, qualquer referência nessa matéria, embora fique implícito que esse será o método adoptado para preparar as futuras conferências intergovernamentais. Do mesmo modo, o Tratado de Lisboa é omisso quanto à referência aos símbolos da União – presente no Tratado Constitucional5 – e quanto à “cláusula passerelle” introduzida pelo Tratado Constitucional,6 que iria permitir ao Conselho Europeu, por unanimidade, após aprovação do Parlamento Europeu e informação aos parlamentos nacionais, reduzir o número de matérias votadas por unanimidade (excepto as que tivessem implicações nos domínios militar e da defesa) e aplicar o processo legislativo ordinário nos casos em que estivessem previstos processos legislativos a priori. O Tratado de Lisboa altera também, face ao Tratado Constitucional, a matéria relativa aos actos jurídicos da União Europeia, desaparecendo as figuras da lei europeia, da lei-quadro europeia e do regulamento europeu.7 Finalmente gostaria de ressaltar que o Tratado de Lisboa não faz referência ao objectivo político da 5. Referência constante do artigo I-8º do Tratado Constitucional. 6. Referência constante do artigo III-422º do Tratado Constitucional. 7. Estas figuras foram previstas pelo Tratado Constitucional no seu artigo I-33º. União Europeia que o Tratado Constitucional enunciava como “a EU exerce em moldes comunitários as competências que os Estados-membros lhe atribuem”, a qual já vinha em substituição da anterior expressão, “uma União cada vez mais estreita entre os povos europeus”. valores sobre os quais assenta a construção da nova sociedade, embora consensuais, não suscitam o acordo quanto à forma de os organizar na nossa Europa integrada e aberta, reestruturada em Lisboa. Várias hipóteses se confrontam, umas mais federalistas, outras mais confederalistas, ou unionistas, ou comunitaristas. Mas a verdade é que não se pode reduzir o problema à discussão, eventualmente estéril, entre os “ismos” culturalmente hegemónicos, nem à confrontação entre federalismo e nacionalismo. A construção da Europa tende, cada vez mais, a ser feita de baixo para cima, graças ao peso crescente que se deseja atribuir à opinião pública. Facto é que a entrada em vigor do Tratado de Lisboa não representa a solução de todos os problemas da EU. Muito pelo contrário, este acontecimento marca o início de uma nova era para o Projecto Europeu, mais exigente e complexa, que exigirá dos líderes europeus a capacidade de seguirem mantendo a evolução do tríptico comunitário enunciado por Valéry Giscard d`Estaign e Helmut Schmidt nos anos 1970: o apro- Daqui ressalta a pertinência em fundamento, o alargamento e o reflectir sobre os modelos teóricos acabamento. existentes para a construção europeia, os quais se reconduzem, por Neste sentido: “Quo Vadis um lado, aos modelos clássicos e, Europa?” (Fischer, 2000). Mais por outro, aos mais recentes. Os de cinquenta anos após o início da primeiros podem ser de carácter construção europeia, é esta a intergovernamental ou apresentar questão que surge hoje, como sur- uma tendência supranacional, giu já tantas vezes ao longo da havendo, neste último caso, que História europeia. A discussão distinguir entre os modelos comusobre o futuro da União Europeia nitários ou funcionalistas e os é uma questão, embora de longo modelos federalistas, que engloprazo, central e essencial na vida bam, desde logo, a federação cláscomunitária. Designadamente sica, a confederação, a quase num momento pautado por inú- federação, o federalismo cooperameras dúvidas e incertezas resul- tivo, a federação dos Estadostantes da necessidade de conciliar nação, a federação das regiões e a o alargamento a Leste com o apro- federação dos Estados e das fundamento da integração no regiões. A busca de novos conceidomínio político, processos indis- tos para interpretar as novas realisociáveis a conduzir em paralelo. dades existentes tem determinado, porém, o surgimento de modelos Fácil se torna observar que os não clássicos que se servem da 33 | Mural Internacional Ano I, nº 2 Novembro 2010 utilização de conceitos não convencionais, como a “governação, a democracia cosmopolita, a democracia supranacional e pósfederal, o Estado-rede”.8 A União Europeia que hoje temos não se reconduz a estes conceitos, embora muitos constituam verdadeiras propostas de organização para o futuro, enquanto outros surgem como caminhos que a União tem vindo a abrir como formas de responder às alterações velozes da “sociedade internacional global”; caminhos cujos trilhos vão ainda no início, mas que têm já originado teorizações que procuram denominar as novas realidades desta sociedade tão cheia de mutações. Para já, porém, a União Europeia surge como uma entidade híbrida, de características sui generis que, se quisermos, podemos denominar de “organização internacional de integração de carácter supranacional”, de acordo com a sugestão de António José Fernandes (1994). Na União Europeia, nem os Tratados Constitutivos, nem o Direito Comunitário derivado, interferiram nas prerrogativas soberanas internas e externas dos 8. Observatório de Relações Internacionais, Modelos Teóricos para a Construção Europeia, Janus 2001, Anuário de Relações Exteriores, p.106-107. 9. Dissertação proferida no Seminário A Europa e o Poder Aéreo, realizado no Estado-Maior da Força Aérea Portuguesa, em Maio de 1996.Dissertação proferida no Seminário A Europa e o Poder Aéreo, realizado no Estado-Maior da Força Aérea Portuguesa, em Maio de 1996. Estados-membros, na medida em que cada Estado mantém o direito de fazer a guerra, de estabelecer relações diplomáticas e consulares e o direito de reclamação internacional de forma independente relativamente à União, deixando apenas de ter o direito de cunhar moeda. Apenas interferiram no direito de os Estados celebrarem tratados, acordos e convenções internacionais, mas exclusivamente em relação às questões e sectores reservados à competência das Instituições Comunitárias, o que equivale, praticamente, a dizer em relação às relações económicas e comerciais. Nos restantes domínios, o envolvimento dos Estados-membros no processo de integração europeia não se saldou por uma perda considerável dos seus poderes soberanos. Apenas a extensão das políticas comunitárias tem-se traduzido numa limitação gradual dessas prerrogativas, porque, na medida em que aceitam harmonizar as legislações e uniformizar procedimentos em vários sectores económicos e sociais, os Estados-membros estão a aceitar diluir parcelas das respectivas soberanias no contexto comunitário. Porém, fazem-no de livre vontade, reservando-se o direito de vetar projectos de decisão nas matérias decididas pelo procedimento da unanimidade. Por outro lado, a incapacidade do conceito clássico de soberania responder e gerir o mundialismo, a globalização e o internacionalismo, colocou em jogo a adequação dos conceitos antigos às novas realidades, o que levou o Professor Doutor Adriano Moreira a substituir o conceito de Estado soberano pelo de “soberania de serviço”.9 Por isso, também, a decisão de aderir aos grandes espaços que organizam a resposta que supera as insuficiências das soberanias clássicas, ou assumem interesses novos que nunca estiveram a cargo daquelas. A soberania do Estado é então posta, voluntariamente, ao serviço de iniciativas internacionais, em que participam diversos Estados e organizações internacionais, na defesa de interesses comuns e humanos, de problemas que extravasam o âmbito interno e que, por isso, necessitam de soluções globais. O Estado deixa, assim, de ser soberano à maneira tradicional, para passar a ser uma “soberania de serviço”, ao serviço de valores e interesses globais, mundiais e internacionais. Por isso, uma vez mais, a soberania de serviço extrapola o âmbito territorial limitado do Estado soberano para abarcar áreas mais vastas de interesses e de acção. Todos estes factores e circunstâncias, resultantes de Lisboa e de muito antes, originam limitações à afirmação das prerrogativas soberanas dos Estados. Porém, do ponto de vista formal, a grande maioria dos Estados mantém quase intactas essas prerrogativas, já que fazem depender o seu envolvimento em compromissos internacionais da vontade expressa dos seus órgãos de soberania, o que significa que as limitações ao exercício do poder soberano podem decorrer de actos jurídicos livremente assinados pelos 34 | Mural Internacional Ano I, nº 2 Novembro 2010 Estados. Foi o que sucedeu com o envolvimento dos Estados nas Comunidades Europeias, através da assinatura dos Tratados de Paris e de Roma e sucede hoje, na Europa do Tratado de Lisboa. Na verdade, considerada a diferenciação da Europa como continente, em povos, culturas, línguas, sociedades, as propostas apresentadas em diversos quadrantes da sociedade europeia, não pode supor-se o desaparecimento dos Estados nacionais, entidades, aliás, indispensáveis para a estruturação de qualquer que venha a ser o formato futuro da União Europeia. Um formato que, reconhecido por Lisboa, não poderá senão assentar nos Estados nacionais, que não se substitua a estes nem se assuma como novo poder soberano, antes conduza a integração europeia pelos caminhos da divisão clara de poderes entre a Europa e os Estados-nação que a compõem, exprimindo inteiramente o conceito de subsidiariedade formalizado em Maastricht e resultando da diferenciação de velocidades da integração europeia considerada como tal. Muito se tem falado, em todo este debate sobre o futuro político da União Europeia alargada, na constituição de um “núcleo duro” de Estados-membros – que poderá, eventualmente, ser composto pelos Estados da zona do Euro, aqueles que demonstram maior desejo em avançar mais rapidamente com a construção do edifício europeu – que passarão a levar adiante a integração europeia, assente nas cooperações reforçadas. Na verdade, numa União alargada, e, portanto, necessariamente mais heterogénea, o sistema de geometria variável surge como a opção certamente mais realista, concretizando a integração diferenciada assente em estruturas múltiplas detentoras de diferentes tipos de competências e poderes, resultante da realização de cooperações reforçadas em diversos domínios. Solução que, embora apresente riscos, designadamente de descaracterização da União num cenário de “Europa à la carte” a várias velocidades e de consequente perda da coerência interna da União, podendo desencadear profundas crises endógenas, não deixa de surgir como aquela que, provavelmente, melhor poderá servir o objectivo de garantir algum grau de coesão às políticas comunitárias. O momento actual da vida comunitária, após a ratificação do Tratado de Lisboa, aponta para o eventual esgotamento do modelo original de integração europeia, o modelo dos passos lentos e ponderados de Jean Monnet, exigindo uma nova etapa em direção a uma maior integração política. E avanços sólidos e concretos no domínio da União Política só poderão ser alcançados a partir da flexibilização dos ritmos de integração que têm que respeitar a vontade dos cidadãos de cada Estadomembro. Parafraseando Denis de Rougemont (1996), “a nação oculta a Europa como a árvore oculta a floresta, pelo que um europeu que ficou nacionalista pelo coração parece-se com uma árvore que continua a duvidar da existência da floresta”. Mas isto não significa, como bem lembra o Professor Doutor José Adelino Maltez (1996), que se caia no lado oposto, “daqueles que, clamando pela floresta, esquecem que esta é feita de árvores (...). Só posso pensar a Europa, pensando em português, porque só posso atingir o universal europeu através da minha diferença, enraizada na história. A não ser que se tente um revisionismo de repúdio da história portuguesa, negando a memória e o projecto do abraço armilar que, aliás, constitui o cerne do nosso símbolo nacional”. O projeto de unidade europeia congrega diversas dimensões, econômica, social, estratégica, ética, cultural, nas quais se revêem as diversas comunidades nacionais que nele participam. Funciona como instrumento de desenvolvimento, proporcionando a melhoria das condições de vida de cada uma dessas comunidades e, nas partilhas de soberania que implica, não afecta os valores da identidade nacional que cada uma das comunidades considera seus. O projeto de unidade europeia só tem interesse enquanto corresponder à conciliação entre o interesse comum e os anseios de cada uma das comunidades nacionais que nele se unem. A necessidade de conciliar o modelo de enquadramento dos alargamentos com esta perspectiva solidária constitui um dos grandes desafios que hoje se colocam ante a União Europeia. 35 | Mural Internacional Ano I, nº 2 Novembro 2010 Esperemos, após todo este processo, que a União Europeia não siga o mesmo caminho dos grandes impérios, demonstrando que a grandeza territorial e a riqueza de recursos, por si sós, podem não evitar o colapso, quando o sistema se torna inoperacional. Podem, pelo contrário, precipitá-lo, como sucedeu sempre aos impérios do passado. Todos nasceram, cresceram e, quando atingiram um tamanho demasiadamente grande, morreram, seguindo a teoria do perecimento dos impérios de Jean-Baptiste Duroselle (2000). Uma teoria de acordo com a qual os homens, em grupo, “criam um consenso para serem mais fortes, depois o destroem, porque a eficácia vai de encontro à felicidade e esta é preferível à eficácia quando os períodos de alta tensão terminam. Quando esse fenómeno se produz, assistimos à formação e à destruição dos impérios”(idem). Em meio a todas estas reflexões, vislumbra-se um futuro de dificuldades para a concretização, necessária, da integração política no seio da União Europeia alargada a Leste. Posicionada entre o aprofundamento político e o alargamento, a União principia já a solucionar os problemas resultantes desta constante indissociável da história comunitária, mantendo-se, todavia, hesitante ante as contradições colocadas por todo este processo. Um processo que apenas com o tempo poderá julgarse, na certeza de que qualquer perspectiva de êxito exigirá, sempre, não apenas o envolvimento dos cidadãos europeus, como ainda o entendimento de que o desenvolvimento de uma verdadeira União Política exige uma comunhão de interesses e objectivos que apenas o tempo poderá tornar real e efectiva. Referências Barroso, Durão (2009) ‘Discurso proferido na cerimônia da entrada em vigor do Tratado de Lisboa`. Speech/10/560 in Europa – Communiqués de Presse Rapid, Disponível em http://europa.eu Acessibilidade: 02/dez./2009. Busek, Jerzy (2009) Discurso proferido na cerimônia da entrada em vigor do Tratado de Lisboa. Disponível em http://europarl.europa.eu/parliament/public/staticDisplay.do?la nguage_PT&refreshCache=yes&pageRank=18&id=66 . Acessibilidade: 02/dez/.2009. Duroselle, Jean-Baptiste (2000) Todo Império Perecerá - Teoria das Relações Internacionais, Brasília, Editora UnB. Fernandes, António José (Ed.) 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O Brasil e a China além da crise internacional Diego Santos Vieira de Jesus1 Estragon: Espere! Eu me pergunto se não teria sido melhor que a gente tivesse ficado sozinho, cada um por si. Nós não fomos feitos para a mesma estrada. Vladimir: Isso nunca se sabe. Estragon: Não, nunca se sabe nada. Vladimir: Nós ainda podemos nos separar; se você achar melhor. Estragon: Agora é tarde demais. Vladimir: É, agora é tarde demais. Estragon: Então, vamos? Vladimir: Vamos. (S amuel Beckett, “Esperando Godot”, 1952) A pós a crise internacional de 2007-2009, os norte-americanos vêm perdendo a posição de motor da economia mundial, enquanto os consumidores dos Bric – Brasil, Rússia, Índia e China – lideram a sua recuperação. A estimativa da corretora Goldman Sachs é de um crescimento de 11,4% para a China, de 8,2% para a Índia e de 4,5% para a Rússia em 2010. Houve uma segunda mudança de projeção em relação à previsão de crescimento do PIB do Brasil: ela foi alterada de 5,8% para 6,4% para este ano. Além de ter uma excelente performan- 1. Instituto de Relações Internacionais/Pontifícia Universidade Católica do Riode Janeiro. ce no seu ciclo econômico e em especial na atividade manufatureira – na qual os Bric mostraram forte recuperação –, a China vem ultrapassando os EUA como o principal mercado mundial. Quanto às tendências recentes nas vendas de varejo, por exemplo, seu crescimento no território chinês desde 2007 é maior do que a queda de consumo ocorrida nos EUA. Embora o crescimento chinês seja visto como “fenomenal”, existem questionamentos quanto à capacidade de sustentação desse ritmo, pois não se sabe se tal PIB pode se manter sem a elevação da inflação. Dentre os Bric, o Brasil é considerado por Jim O’Neill, autor do acróstico, e por uma série de outros economistas como aquele que apresenta as melhores condições de garantir um crescimento sustentável no longo prazo e pode tornar-se uma das maiores potências globais até 2050. Esse desempenho pode ser creditado ao bom resultado que o país vem obtendo em diversas áreas relacionadas ao crescimento sustentável. Em relação aos demais membros do grupo, o Brasil tem o melhor resultado no índice Growth Environment Score, que considera 13 variáveis que apontam para o crescimento sustentável, a competitividade e a produtividade. O país tem uma pontuação de 5,3 numa escala de 0 a 10, em que pontuações mais elevadas são consideradas positivas para o crescimento. O Brasil é seguido por China (5,2), Rússia (5,1) e Índia (4,0) e, nos itens específicos 37 | Mural Internacional Ano I, nº 2 Novembro 2010 dessa planilha, obteve uma boa pontuação em áreas como inflação (8,6), dívida externa (8,5) e educação (7,4). nado pelo crédito, o qual chegou ao final quando se verificou que certas características não eram sustentáveis: os cidadãos dos EUA tinham-se endividado demais, e os preços dos imóveis tinham subido de forma exorbitante, além de que os balanços das instituições financeiras no mundo inteiro exibiam um grau de alavancagem extraordinário. Com seu prenúncio em agosto de 2007, a crise colocou em marcha um movimento de desmonte dessa alavancagem e foi amortecida porque governos puderam absorver o inchaço de crédito. Isso, todavia, não eliminou o problema: ele foi transferido dos balanços das empresas e das famílias para o desses governos, de forma que não houve uma saída definitiva (Fraga, 2010). Este artigo investiga o desempenho dos dois Bric mais bem-sucedidos na superação da crise internacional de 2007-2009 – Brasil e China – e os elementos econômicos e políticos que viabilizaram seu crescimento. Na dimensão econômica, a maior solidez do regime macroeconômico e a menor alavancagem2 no sistema financeiro capitalizado permitiram uma abordagem mais equilibrada de regulação do mercado financeiro. Na área da política externa, tais Estados procuraram desenvolver regras, normas e procedimentos que satisfizessem seus interesses de desenvolvimento e de ampliação de sua autonomia e participação. Como grande parte dos países em desenvolvimento, o Brasil entrou A economia na crise com balanços em bom estado, e o Banco Central vinha A crise internacional, segundo implementando a tarefa de admiFraga (2010), representou uma nistração do ciclo econômico. A “ressaca” após um período de recessão foi bastante profunda, crescimento acelerado e impulsio- mas muito curta, na medida em que não havia sinais de superendividamento. Mesmo não tendo uma gestão tão conservadora 2. No jargão econômico, o termo “alavanquanto à da China, o Brasil consecagem” refere-se à situação na qual um guiu deixar a recessão em dois triinvestidor ou uma empresa investem mais do que permitem seus recursos. Eles utilimestres e demonstrou capacidade zam instrumentos financeiros ou recursos de administrar a crise (Fraga, de outros atores a fim de ampliar o retorno 2010). Segundo Affonso Celso de suas operações, mas também potenciaPastore, consultor e ex-presidente lizando seu risco. do Banco Central, a maior solidez 3. O balanço de pagamentos sistematiza as transações econômicas do país com o do regime macroeconômico – resto do mundo. O saldo das transações câmbio flutuante, nível considerácorrentes configura-se como a principal vel de reservas, dívida pública conta do balanço de pagamentos e é composto pela soma dos resultados da balança desdolarizada, inflação controlada comercial, da balança de serviços e das e superávit primário – e a menor transferências unilaterais. alavancagem no sistema financeiro capitalizado – proibido pelos mecanismos de regulação de operar com ativos perigosos, como os títulos no mercado norte-americano de hipotecas subprime, empréstimos hipotecários de alto risco concedidos a clientes sem comprovação de renda e com histórico ruim de crédito – permitiram uma abordagem mais equilibrada de regulação do mercado financeiro (Dante, 2009) e, como ressalta O’Neill (2010), contiveram uma crise bancária. Dentre os fatores econômicos que justificam o desempenho brasileiro na superação da crise e no crescimento posterior, cumpre destacar as taxas de juros mais baixas – embora ainda sejam elevadas em termos mundiais –, uma economia mais estável e previsível e melhorias legais e regulatórias nos mercados de crédito. O déficit na conta corrente do balanço de pagamentos3 aponta para o fato de que o mundo financia o país para que consuma muito – e assim poupe pouco, o que pode gerar preocupação – e também tenha condições de investir, sendo tal déficit motivado não pelo endividamento como no passado, mas pela entrada de investimentos (Fraga, 2010). Além disso, o padrão de consumo permitiu ao país atuar como um dos principais responsáveis pela recuperação da economia mundial. Desde o Plano Real, observa-se uma melhoria no padrão de distribuição da renda e a redução da pobreza; entretanto, o Brasil ainda tem juros altos e um endividamento considerável. Logo, isso exige maior cautela do governo e da população caso as 38 | Mural Internacional Ano I, nº 2 Novembro 2010 taxas de juros baixem ainda mais: se com as taxas altas o nível de endividamento é alto, com taxas reduzidas pode ser ainda maior. Ainda assim, o ambiente econômico oferece ao empreendedor mais espaço para trabalhar, além de permitir ao país alavancar o mercado de capitais, que tem sido uma fonte de investimento, em especial para o aumento de capacidade produtiva e a geração de empregos (Fraga, 2010). Já a China tem um sistema de produção e organização muito centralizado e uma taxa de poupança elevadíssima. Tal país adotou, quando partiu para o caminho da liberalização, um modelo social que seria impensável numa democracia, com uma rede de proteção social mínima, quase inexistente, ao contrário da brasileira, mais extensiva em termos de cobertura. Porém, o modelo chinês criou as bases para mais exportações, com uma taxa de poupança muito movida pela atitude de precaução, que tem a ver não só com fatores culturais, mas com as lacunas de proteção social. Ademais, o país consolidou-se como grande centro manufatureiro do mundo, de forma que industriais de todo o planeta temem a concorrência chinesa. Hoje, o país demonstra melhores condições de administrar a situação de transição interrompida em função da crise para um modelo de mais consumo, mais eficiência e menos dependência das exportações. Pensando-se no crescimento sendo determinado pelo tamanho da força de trabalho e na produtividade, a China tem grande vantagem em face de sua população enorme (O’Neill, 2010). Embora o país tenha tido um excelente desempenho nos últimos 30 anos, tal crescimento enfatiza a pressão sobre os outros países. Uma força de trabalho barata, disciplinada e praticamente ilimitada permite a produção de bens intensivos em trabalho para o resto do mundo, mais barata que para os competidores. No longo prazo, isso pode levar a um colapso da produção industrial em muitos países – em particular na Rússia – e intensificar a pressão sobre a política de câmbio chinesa (Aleksashenko, 2010). A política externa A inserção internacional do Brasil parece caracterizada pelo que Pinheiro (2000, 326) classifica como um “institucionalismo pragmático”. Nesse contexto, o país busca atingir objetivos de maior desenvolvimento e de ampliação de sua autonomia por meio de arranjos de cooperação internacionais de diferentes níveis de institucionalização: com níveis mais altos, o país procura ampliar sua oportunidade de voz no nível multilateral – como na Organização Mundial do Comércio (OMC), por exemplo – e evitar a dominação indiscriminada de grandes potências; com níveis mais baixos, procura garantir sua posição de liderança em contextos subregionais e preservar sua posição de potência média. A flexibilidade para responder aos desafios tanto domésticos como internacionais passa a ser cada vez mais internalizada na posição brasileira, afetando as decisões de política externa a partir da consolidação de um pragmatismo ainda mais aprimorado às suas ações no nível internacional: ao mesmo tempo em que diversifica parceiros comerciais e busca uma participação ativa no gerenciamento de questões regionais e mundiais em organizações como a OMC, o Brasil coopera com os EUA em múltiplas esferas, internalizando posições defendidas por tal superpotência. Esgotam-se, assim, os paradigmas americanista e globalista em nome de uma política externa ainda mais pragmática e assertiva, particularmente intensificada nas duas últimas décadas. Esses traços da política externa brasileira justificam-se pelo fato de que, ao mesmo tempo em que o Brasil como “país emergente” viabiliza o diálogo entre as grandes potências e os países subdesenvolvidos e funciona como elemento garantidor da estabilidade e da segurança regionais, ele também opera como catalisador das demandas de inúmeros países menos desenvolvidos em fóruns onde buscam ampliar suas oportunidades de voz; particularmente em fóruns econômicos multilaterais. Com base nesse papel, o Brasil aproveita janelas de oportunidade buscando desenvolver regras, normas e procedimentos que satisfaçam seus interesses de desenvolvimento e de ampliação de sua autonomia e de participação nas principais decisões internacionais. Como lembra Marques (2005, 62), a imagem internacional do Brasil sustenta-se também no soft power exercido em função de seu poder de persuasão e da realização de seu papel de mediação. Para que possa exercer tal mediação, a credibilidade é neces- 39 | Mural Internacional Ano I, nº 2 Novembro 2010 sária, e, no pós-Guerra Fria, essa fonte de credibilidade assentavase em valores como a preservação dos Direitos Humanos, a consolidação da democracia, o fortalecimento da economia de mercado, a não-proliferação de armas de destruição em massa e a defesa do meio ambiente, de forma que o nível de internalização deles na perspectiva de inserção internacional do Estado passa a definir o grau da participação que ele pode ter nos principais fóruns de concertação político-econômica regionais e multilaterais. Após a redemocratização, as posições internacionais defendidas pelo país passavam a se sustentar também na legitimidade conferida pela abertura de um diálogo mais intenso – embora ainda hoje limitado – com setores da sociedade civil acerca de temas internacionais. O esgotamento do modelo econômico fechado diante da crise fiscal e do avanço do liberalismo no fim da Guerra Fria sinalizava que, diante da necessidade do país de preservar sua estabilidade socioeconômica, a dependência de um único parceiro comercial poderia ser prejudicial em face de crises sistêmicas, ao passo que a superpotência permitia a criação de espaços em que países em desenvolvimento poderiam articular a concertação política acerca de temas de seu interesse, desde que em respeito às instituições internacionais criadas sob a égide de valores e princípios tidos como “universais”. Além disso, apesar da crise do terceiro-mundismo, resquícios da crítica às relações de poder assimétricas e a busca da cooperação em nível mundial para a ampliação da projeção de países menos desenvolvidos permaneciam compondo a multiplicidade do processo de inserção internacional brasileira, preservados inclusive por vários setores da elite nacional e do próprio corpo diplomático. Em face de um contexto onde poderia preservar espaços de autonomia e dos traços universalistas que compõem a inserção internacional do país, o Brasil vê que nem a lógica de alinhamento incondicional aos EUA nem uma concepção estritamente globalista de política externa seriam não só estrategicamente interessantes para um país que precisa se adaptar a novos constrangimentos sistêmicos, mas que consolidava seu papel de potência emergente no nível internacional. Embora elementos como a opção pelo institucionalismo tenham sido preservados na ação internacional brasileira, o pragmatismo fortalecido supõe que, em face de recursos limitados de poder, pode ser interessante para o país aderir às normas internacionais densamente institucionalizadas pelas grandes potências ocidentais a fim de ampliar suas oportunidades de voz e, simultaneamente, garantir o exercício de seu poder de forma mais legítima e discreta por meio de organizações de nível mais baixo de institucionalização em nível regional, preservando sua autonomia. zada pela sua “ascensão pacífica”, na qual tal país mostra-se mais favorável a fortalecer as suas relações com o exterior. Como apontam Medeiros & Fravel (2003, 2226), a China utiliza instituições, regras e normas internacionais como um mecanismo de promoção de seus interesses nacionais. Isso se traduz numa perspectiva mais construtiva e sofisticada e menos conflituosa de sua política externa quanto às principais questões mundiais e regionais, de forma que a flexibilidade e a sofisticação tornam-se características fundamentais de sua posição quanto às relações bilaterais, às questões de segurança internacional e às organizações multilaterais. Tal imagem busca não somente proteger e promover os interesses econômicos chineses, mas ampliar a sua segurança, conter a influência de outras grandes potências como os EUA nas instituições internacionais e viabilizar o exercício do poder de forma mais legítima (Grieco 1997, 163-201). O interesse fundamental de segurança e de consolidação do Estado está ligado não somente à sobrevivência do regime comunista e à consolidação da posse de territórios contestados sob firme controle chinês, mas ao impedimento de conflitos que a China não pode vencer ou que limitariam suas campanhas na busca de modernização econômica e maior influênJá a China tem manifestado reite- cia política. Tow (2001, 18-21) radamente que a sua inserção aponta que, na construção de um internacional no mundo contem- poder nacional completo para a porâneo deve ser entendida como defesa do seu interesse fundamenuma nova fase histórica caracteri- tal, a China pretende assimilar alta 40 | Mural Internacional Ano I, nº 2 Novembro 2010 tecnologia do exterior e desenvolver suas capacidades econômicas domesticamente a fim de se afirmar como uma grande potência autêntica no século XXI. Nesse processo, a percepção de que os EUA reafirmam-se como poder hegemônico global afeta a agenda estratégica de Pequim; na dimensão econômica, preocupam as lideranças chinesas as redes de alianças estratégicas norte-americanas que possam minar a sua influência em mercados-chave. Nesse contexto, a ampliação do número e da profundidade dos relacionamentos bilaterais e regionais pós-1990 permitiram o fortalecimento da coordenação econômica da China com seus parceiros e a sua maior influência ao lidar com as alianças regionais já construídas por grandes poderes como os EUA. Embora ainda reconheçam hoje a preponderância dos EUA em uma série de áreas temáticas, as lideranças chinesas buscam conter o comportamento hegemônico e, assim, maximizar sua influência e racionalizar o exercício de seu poder sobre seus parceiros. Isso ficou visível no maior engajamento na cooperação com a Asean (Associação de Nações do Sudeste Asiático) por meio do Asean +3 e Asean +1 e na Apec (Asia-Pacific Economic Cooperation na sigla em inglês, Cooperação Econômica da ÁsiaPacífico em português); na criação do primeiro grupo multilateral da Ásia Central, a Organização para Cooperação de Shanghai, para ampliar a cooperação na área de segurança e o comércio regio- nal; e na resolução de disputas territoriais com vizinhos. Tal postura também pôde ser percebida no abandono da aversão anterior às organizações multilaterais, particularmente com o maior engajamento no Conselho de Segurança das Nações Unidas e a participação na OMC. As transformações no conteúdo, no caráter e na execução da política externa da China nessa década representam uma superação de um destaque na humilhação sofrida no passado, claro na caracterização da China por Mao Tse Tung como uma “nação em desenvolvimento vitimizada” e por Deng Xiaoping como uma potência pouco disposta a aceitar grande parte das obrigações e responsabilidades de sua posição. Tal perspectiva reativa é substituída pela adoção da mentalidade mais participativa em face da maior confiança nas décadas de crescimento econômico, agora assumindo responsabilidades cada vez mais variadas (Medeiros & Fravel 2003, 23-28). Como sinaliza Tow (2001, 41-43), a China pode empregar sua adesão em instituições internacionais, seu envolvimento com grandes potências e seu status como parceiro de blocos regionais para ampliar sua alavanca de negociação em face de Washington e Tóquio a fim de garantir arranjos comerciais e de investimento mais favoráveis. Embora ainda não deseje trazer questões problemáticas para discussão em fóruns multilaterais como o status de Taiwan, a China parece estar se tornando mais confortável com arranjos multilaterais, racionalizando sua influência pelos canais institucionais e exer- cendo seu poder de forma menos custosa e mais previsível. Esperando Godot... Até quando? A busca de uma agenda comum Grande parte dos especialistas recomenda que os Bric – em particular o Brasil – enfatizem a realização de ajustes macroeconômicos de longo prazo e de mais investimentos em setores como infraestrutura e educação. O’Neill (2010), por exemplo, destaca a necessidade do país de aumentar a pontuação no Growth Environment Scores em áreas importantes nas quais ainda existe muito trabalho a ser feito. Dentre aquelas em que o Brasil não teve bom desempenho, cabe destacar utilização dos computadores (pontuação de 2,1), abertura da economia (2,2), taxa de investimento (3,8), domínio da lei (4,4), acesso à internet (4,7), estabilidade política (4,8) e corrupção (4,9). Na área de educação, embora o país tenha uma boa posição no item na planilha de Growth Environment Scores (7,4), é notório que ainda falte mão-de-obra qualificada, inclusive técnicos em todos os níveis. Ademais, o Brasil investe menos de 20% do PIB, e essa taxa não é suficiente para um crescimento sustentável nos próximos anos. Embora essa taxa já esteja subindo, seria necessário que subisse mais – para cerca de 23% a 25% do PIB em cerca de cinco anos –, o que exigiria poupança, financiamento e capital de risco. A infraestrutura no Brasil ainda é carente, e, se o país continuar a crescer 5% ao ano, é necessário investir mais para que possa manter o padrão de crescimento, 41 | Mural Internacional Ano I, nº 2 Novembro 2010 em particular em estradas, ferrovias, aeroportos, portos, saneamento e energia. Além disso, o custo do capital no Brasil ainda é alto, mesmo que o país tenha avançado muito no campo macroeconômico e em aspectos microeconômicos importantes, como os determinantes do custo dos empréstimos bancários (Fraga, 2010). Quanto ao desenvolvimento de uma agenda comum para os Bric, faz-se necessária a operacionalização da simetria entre os membros do processo de cooperação e do equilíbrio entre eles. Com esses pontos em vista, a agenda poderia cobrir uma participação mais ativa na redefinição e na transformação do FMI com relação à presença no gerenciamento e na execução de pressão institucional sobre as economias maiores, tornando a instituição mais representativa (Aleksashenko, 2010; O’Neill, 2010). Ademais, outras possibilidades seriam o desenvolvimento de um plano para transformar o SDR (S pecial Drawing Right na sigla em inglês, Direito Especial de Saque em português) – uma espécie de “moeda internacional” desenvolvida pelo FMI com o objetivo de tornar o fluxo de valores entre os bancos centrais mais fácil – numa moeda global, vide o exemplo do euro, e a criação de um sistema de pagamentos internacional, que funcionaria inicialmente para os bancos centrais e fundos soberanos e, posteriormente, para os bancos comerciais (Aleksashenko, 2010). Na visão do embaixador Marcos de Azambuja (2010), os Bric são quatro países em busca de uma agenda e de como a operacionalizar, num momento em que essa não é uma aliança natural nem uma associação que flua com “a naturalidade da história e da geografia”. Parece mais “uma idéia que encontrou ressonância”, tendo em vista que tais países não compõem uma aliança militar ofensiva ou defensiva, nem trazem os protótipos de uma zona de livre comércio, de uma união aduaneira e de um mercado comum ou de uma associação fundada em afinidades étnicas, culturais e religiosas. Eles não têm nem mesmo uma única visão do mundo, de forma que a diferença de perspectivas e de matrizes pode inclusive contribuir para enriquecer ainda mais o grupo, mas pode dificultar a elaboração de uma agenda comum mais ambiciosa no curto prazo. Longe de representarem um bloco coeso, tais países hoje buscam uma maior concertação políticoeconômica desde seu primeiro encontro em junho de 2009, em Ecaterimburgo, na Rússia, visando especialmente à reforma das instituições financeiras internacionais. O caminho não é fácil nem simples, o que sugere, ao menos inicialmente, maiores cautela e modéstia de objetivos (Azambuja, 2010). Tendo em vista que o processo de cooperação não se dá em torno de um poder hegemônico ou condutor que determine o rumo da cooperação, o “caminho do possível” sinaliza para um trabalho conjunto na condução de passos ainda modestos de revisão de aspectos específicos da ordem internacio- nal em face da reivindicação comum de prestígio e de mais espaço. A afinidade entre eles reside, assim, na busca de maior visibilidade no sistema internacional: os quatro países sentem-se tratados de maneira que não reflete inteiramente a influência e a credibilidade que julgam merecer. Juntos, eles representam 28% da área total do mundo e representam cerca de 40% da população mundial. Essa cooperação legitima-se pela massa critica de cada um e pelo que isso representa em termos de porcentagem do poder, do espaço e da demografia mundiais (Azambuja, 2010). Referências Aleksashenko, S. (2010). ´Uma agenda para os Bric / Engaging in a Bric agenda.` Apresentação no Painel 1: Relevância internacional e os desafios no cenário econômico Rio de Janeiro, Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro/Puc-Rio, 22/fev. Azambuja, Marcos (2010) ´Uma agenda para os Bric / Engaging in a Bric agenda.` Apresentação no Painel 1: Relevância internacional e os desafios no cenário econômico. Rio de Janeiro, Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro/PUC-Rio, 22 fev. Dante, F. (2009) ´Um ano depois, Brasil passa no teste e sai da crise maior do que entrou.` O Estado de S. Paulo, 30 ago. Deng, Y.; Moore, T.G. 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Cambridge: Cambridge University Pres, p.12-43. 43 | Mural Internacional Ano I, nº 2 Novembro 2010 Global Governance Brazilian Views from Cardoso to Lula Tatiana Coutto1 Introduction P olitical leaders worldwide are confronted with a paradox: on the one hand, they are expected to solve major problems that affect the societies they represent. In fact, governments are usually regarded as the main – if not the only – responsible for creating conditions that lead to economic growth, ensuring financial and market stability, providing public services such as health and education, improving social indicators and environmental conservation, and so on. On the other hand, the population increasingly distrusts politics and political institutions, or simply do not formally engage in political participation. The coexistence of policy demand and political distrust in numerous societies poses challenges for public administration entities throughout the world, and has become a major concern in a number of states as well as among non-governmental actors. In April 2010, during the meeting of heads of government of Brazil, India, Russia and China (Brics) in Brasília, Brazilian president Lula da Silva called for ‘creative and pragmatic diplomatic articulation’ capable of 1. Centro de Documentação de História Contemporânea, Fundação Getulio Vargas (CPDOC/FGV) tackling global problems. Lula da Silva’s message was straightforward: something must change in the way states participate in the international system. In the European Union, the Commission identified the reform of European governance as a strategic objective in early 2000. Since then, several programs that aim at narrowing the gap between EU citizens and Community institutions have been launched in order to increase public participation in political decisions and reduce the chronic problem of democratic deficit of which the EU has suffered since its early stages. In the now famous Prague speech of 2009, President Barack Obama has heralded a “new era of engagement” for the United States and his strategy to accommodate established and rising powers (Patrick, 2010). The common denominator of these declarations is the perception that existing decision and policymaking rules are becoming obsolete, and that it is necessary to devise new rules that allow political actors worldwide to approach common challenges despite their various interests. This context provides room for the discussion of alternatives to handle transnational problems collectively according to the dynamics of this new scenario. The alternative ways of devising standards of rules that allow for coordination and cooperation among players from coun- 44 | Mural Internacional Ano I, nº 2 Novembro 2010 tries or regions, and across different political levels is generally named “governance”. However, the fact that several leaders agree that rules need to be changed does not guarantee that they will converge spontaneously to common positions. Whilst political actors can certainly align to deal with common agendas, their interests strongly differ on a number of issues, and the design of the new rules of the game has a number of points of tension and disagreement. these questions, the paper is organized as follows: first, the definition of the term ‘governance’ is discussed, and a brief historical overview on the emergence of governance debate is presented. The next section compares the views of Lula and Cardoso on this matter, and to what extent they have favored certain foreign policy strategies. Particular attention is given to the choice of critical partners that would allow Brazil to improve its global standing, and the relationship with the US and the EU. The The modes of governance that final section lays down concluactors consider more appropriate sions and suggests possibilities are based on their interests, but also for further studies. take into account the preferences of other players, and the political- Definition institutional context where decisions are made. Put shortly, the Governance can be broadly preference for a certain mode of defined as a dynamic system of governance in, above all, a strate- interaction among political playgic option of each player, or group ers with varying interests that of players (Diermeier and. seek to devise rules that help them Krebhiel, 2003). Thus, such meet their preferences. The sysoption is influenced by particular tem concerns “every mode of conceptions of the world system, political steering involving public and the role the actor expects and private actors, including tradiitself to play in this scenario. tional modes of government and Governance changes over time. different types of political steering from hierarchical imposition to The aim of this article is to analyze sheer information measures” how Brazilian views on gover- (Héritier, 2002). The numerous nance have evolved since president existing modes of governance Fernando Henrique Cardoso’s result from the traditions and administration. To what extent do institutions by which authority is Cardoso and Lula’s administra- exercised over time, and express, tions actually differ on this point? for example, the process by which By which means have these views governments are selected and on governance translated into monitored, and their capacity to political institutions and how are formulate and implement public they expected to influence policies, the level of corruption, Brazilian foreign policy in the and so on (Worldbank, 2009). coming years? In order to answer The concept of institution humanly devised constraints that shape human interaction (North, 1990) - is central to understand the debate around forms of governance. Political actors (national administrations, non-governmental organizations, firms) are permanently engaging in formal and informal arrangements that allow them to overcome collective action problems and achieve predefined goals by informing and communicating with other actors (Milner, 1997). The interrelationship among institutions across political levels over time leads to the formation of developing systems of codes and practices (formal or not) that orient decisionmaking and the behavior of individuals and social groups. In a nutshell: the interaction of several institutional entities and the delocalization of decision-making and policy–making loci leads to the formation of a more complex system where players may have more possibilities to exert influence and authority over the others. The attention driven by governance studies is the expression of something that scholars from Europe and elsewhere have noticed: although states remain the main actors in our predominantly Westphalian system, traditional notions of government fail to capture the complexity of today’s political decision-making processes. As a consequence, governance has been associated to changes in the role of the state and the international system, namely due to the need to engage emergent actors in cooperative arrangements, and to 45 | Mural Internacional Ano I, nº 2 Novembro 2010 respond to changing contexts. Such changes stem from conceptions of the international system, and from the way actors evaluate threats and opportunities for the coming years. The way security is perceived by each player plays a crucial role in the definition of global governance structures. A broader conceptualization of threat and security stresses the need of aggiornamento of the UN Chart to include, for example: the adaptation of articles VI and VII of the Chart, which refer to the redefinition of what constitutes a threat to peace and stability of the international system, responsibilities of UN member states regarding peace keeping and the conditions that legitimate the use of force. Changes in the United Nations system – and, in particular, of the Security Council (SC) – are desirable by countries as varied as Brazil, Turkey, Germany, Japan, the UK and France. In fact, the reform is regarded as inevitable by the majority of government representatives and members of national delegations to the UN.2 Set up in the late 1940s, the organization no longer accurately 2. Lord Hanny, former UK representative to the UN. Declaration made upon the conference: “Why is the UN reform paralyzed?” which took place at Pontifical Catholic University of Rio de Janeiro (PUC-Rio), on 18/03/2010. 3. The concept of actorness is drawn from literature on the external dimension of the European Union. See, for example, Jupille & Caporaso (1998) and Bretherton & Volgler (1999). 4. See, for example, public audience of the Commission on 29/04/2009. reflects the distribution of power across the international system. Over the last 50 years, the EU has become a pivotal, albeit sui generis, player; the URSS collapsed, and some of the so-called newly industrialized countries (NICs) no longer accept to merely follow rules, but rather seek to define them (Soares de Lima, 1990). As a consequence, they have articulated various fora (G-20, Brics, Ibsa, Basic) in order to formulate a common agenda and, whenever possible, common positions vis-àvis established powers. These countries have managed to block disadvantageous negotiations, as in the Doha Round, for example. By contrast, they have so far fallen short of proposing an alternative agenda. So far, emerging powers, OECD countries and developing nations have not come to terms with the reform of the present world order. ment with multilateralism and the improvement of Brazil`s standing in the world scenario. Thus, both reflect the willingness to enhance Brazil’s actorness vis-à-vis developed countries and international organizations.3 The main difference between the two governments regards the strategy to strengthen Brazil’s insertion in the international system. Cardoso favored the commitment with OECD countries and regional integration (Vigevani, 2003); under his administration, the relationship with the US was defined as essential, cooperative and based on principles of international law and good political relations. Nonetheless, there has been sharp disagreement in what concerns trade (cotton, steel) and property rights regimes, which hampered the establishment of the FTAA as a hemispheric project. To Lula, such relationship remains strateBrazilian views on the inter- gic, but it is no longer regarded as the national system and global only alternative to achieve Brazil’s governance: Cardoso and Lula economic and diplomatic goals. administrations Lula and the Minister of Foreign The position Brazil has adopted Relations Celso Amorim have since the early 1990s in the inter- also emphasized the importance national arena reflects relative of partnerships with African and continuity guided by principles of Latin American/Caribbean counliberal democracy and multilateralism. tries, which has been translated in The country’s different adminis- an increase of the number of contrations have, over the past 20 sulates and embassies throughout years, underlined the importance the world, namely in Africa and in of new forms of governance and the Caribbean. This initiative has institutional development as a not been immune to criticism, means of addressing old issues especially from the Senate’s differently, and dealing with “new Permanent Commission on Foreign Relations.4 According to global agendas”. the minister, such diplomatic repreBoth Cardoso and Lula’s govern- sentations respond to a demand for ments express a strong commit- political support from private and 46 | Mural Internacional Ano I, nº 2 Novembro 2010 state-owned companies, especially in business areas involving civil engineering, oil, mining and agriculture. Mercosur has gained a new momentum, in which Argentinean president Cristina Kirchner has been of fundamental importance, including in the commercial negotiations between Mercosur and the EU, which is Brazil most important investor and trade partner. All in all, initiatives to foster commercial integration and cooperation in South America through instruments such as Unasur meetings, agreements with Andean countries, and Mercosur enlargement with the entry of Venezuela5 represent the country’s willingness to seek deeper and more intensive relations with its regional partners and neighbors. This movement results in large part from a more active participation of specific sectors that has been successful in coordinating industrial and foreign policies. The rapprochement with African and Caribbean states – has been driven by the potential payoffs of this cooperation, as well as on shared values (colonial past) and on the existence of common problems (inequality, violence, environmental degradation). ‘Solidarity’ is also a highly frequent term in Lula’s discourse, which draws a line between his and Cardoso’s views. By calling for solidarity, Lula approaches the 5. Venezuela’s membership still depends on ratification by the Paraguayan congress. 6. Interview with Brazilian ambassador Marcos Azambuja, January 2010. developing world, but at the same time underlines Brazil’s capability to help poorer countries in their pursuit for development. The quest for a more prominent role in the international system, on the other hand, has been a factor that has shaped the various overlapping arrangements advanced by emergent powers such as Brics, Ibsa, Basic and the G20 (Cooper & Antkiewicz, 2008). such as Mexico, Argentina, Italy and Spain, to name a few examples. Hence, a permanent seat requires the adoption of clear positions about highly sensitive political issues such as disarmament, non proliferation and the use of dual technologies by non democratic states. Historically, Brazil has avoided diplomatic options that lock out potential partners; instead, Brazilian diplomacy has spread the idea of Brazil Another important difference as a mediator, an actor capable to between Cardoso and Lula’s pri- engage in (in)formal talks with a orities in terms of foreign policy wide number of states (Iran, and Brazil’s insertion in the inter- Cuba, Venezuela, G7) without national system refers to a recon- putting the stability of the interfiguration of the UN Security national system at stake. A permaCouncil. Lula’s second adminis- nent seat would therefore repretration (2006-2010) has been par- sent a rupture with the country’s ticularly keen on an expansion of diplomatic tradition.6 the SC, where Brazil, together with other world powers The reform of the Security (Germany, Japan), would occupy Council depends on how security a permanent seat. On one hand, a is conceptualized. An alternative permanent seat would be the con- that is currently under discussion firmation that Brazil has become a in Brazil concerns the establishcritical player in the international ment of various ‘security counrealm, mainly due to the adoption cils’ that would work on different of new conceptions of security (albeit coordinated) security since the 1990s. Of particular strategies. In that sense, the instiimportance is the concept of tutional reform of UN system environmental and food security, where Brazil stands out as a key would stem from a broader conplayer in the definition of regimes ception of threat and security. to reduce the over exploitation of Such process does not lead to natural resources, to ensure the abrupt changes in today’s goverprovision of agricultural (food) nance framework, but to a contiproducts and to mitigate the nuous and gradual process of effects of ongoing changes in the institutional evolution and change. environment and natural disasters. Thus, a gradual reform in the UN At the same time Brazil becomes system allows for the development increasingly aware of the costs of of more specific arrangements becoming a permanent member. (which would certainly include the The costs comprise for, instance, institutionalization of the Brics) that the opposition of middle powers can be carried out in separate fora. 47 | Mural Internacional Ano I, nº 2 Novembro 2010 Relationship with the EU and the US Brazil regards the EU as an important economic partner and promoter of development; besides, the Union has provided institutional guidelines and inspiration to regional cooperation and integration initiatives proposed by Brazil to other South American countries. Already under Cardoso administration, Brazilian diplomacy (presidency, Ministry of Foreign Relations, executive branches and certain private actors) had identified the “advantages” of investing on a strategic partnership with the EU. Statements and informal declarations of Brazilian diplomacy welcome an strategic partnership with the EU because it somehow balances US influence and reduces the risk of depending on one power. Following the same rationale, Brazil-US relationship appears as critical to open spaces in EU overprotected policy areas, especially in what concerns agricultural products. On the other hand, testimonials of Brazilian diplomats and Community officials strongly suggest that a Brazil-EU relationship is more likely to promote institutional changes at the international level than Brazil-US partnerships. The unique character of the EU and its overlapping levels of governance is perceived as a ‘space of opportunity’ to the development of more intense commercial relations between Brazil and the EU, along with cooperation in other realms such as science & technology, energy and food security, for example. Brazilian strategy has been to approach not only EU institutions such as the Commission and the European Parliament. Thus, the mixed participation of Community institutions (namely the Commission) and Member States has allowed Brazil to establish various channels through which policy specific negotiations can be carried out. Examples of his strategy have contributed, for example, to the support of Scandinavian countries (most notably Sweden) to the use of Brazilian sugar cane-based biofuels, to French support to a Brazilian seat in the Security Council, and to the permanent dialogue between Brazil and Portugal on a number of issues. The Commission remains as the most important interlocutor when it comes to global issues such as climate change, natural resources’ management and biodiversity regimes. These are salient issue areas to Brazil and will become more important as scarcity of natural resources increase. Thus, increasing mobilization of domestic actors tends to pressure for the adoption of more strict environmental legislation, despite heavy lobbies exercised by construction and energy sector; there is demand from the international community for stronger regulation, and other players recognize Brazil as a key player. In a nutshell, there is a constellation of aspects that favor Brazil strong agency in this realm. So far, development concerns and the unwillingness of certain sectors to afford the costs of migrating to environmentally friendly technologies and industrial processes, coupled with the relatively little importance Lula administration confers to environmental conservation have stopped Brazil from playing a decisive role Final remarks The existence of multiple levels of governance provides states with more flexibility to make and to apply rules in different realms of the international system. Thus, they provide room for the G20 to become a more institutionalized group, capable of introducing reforms in several organizations like the IMF, the World Bank, and the WTO instead of “simply” opposing to existing proposals. These multiple forms of participation drive attention to the fact that there is no “one size fits all” solution to problems with international impact. International challenges are increasingly transdisciplinary; for this reason it is important to develop states and non state actors with flexibility to tackle different problems in more adequate for a. in other words, to choose the strategy and the institutional tools more capable of helping players meeting their preferences. The financial crisis the world has gone through shows that the market alone has proved to be a bad regulator of collective action. In the absence of mechanisms capable of correcting predatory behavior, market will lead not to equilibrium, but to distortions that concentrate resources. Institutions 48 | Mural Internacional Ano I, nº 2 Novembro 2010 can mitigate inequality by punishing bad behavior and redistributing resources. The present institutions and legal structures are still generating inequalities, instead of correcting market failures. As a consequence, crises tend to replicate in other policy domains, such as environment, energy, migration and common resources. participation of a larger number of states and non state actors. The recognition of the group’s importance to overcome international crises drives attention to the need to develop arenas and mechanisms that allow for more cooperation. Both minilateralism and multilateralism are necessary to modify the rules that regulate and influence the behavior of states and global ruling elites The current international scenario (Rothkopf, 2008). creates conditions for these “new powers” to improve their global Brazil can benefit enormously standing. The position expressed from the strategic dimension by Brazilian diplomacy today acquired by issues such as highlights the need to update environment, energy supply and existing institutions and to create food provision without compronew ones specifically designed to mising its diplomatic tradition of tackle novel issues of inter- not locking out potential national relations. A combination partnerships worldwide. As put by of minilateralism - where smaller Brazilian diplomats Gelson groups seek to define a common Fonseca and Marcel Biato, the agenda as well as positions they time of the great utopias has will sustain vis-à-vis other groups passed. Today, the only possibility of states or organizations - and is the existence of “negotiated multilateralism - a larger number utopias”, which provide a certain of players and a wider variety of conception of peace, harmony and interests - has been advocated by stability to be achieved through the Brazilian diplomatic service. multilateral cooperation and the continuous development of Despite G20’s increasing impor- (several and partially overlapping) tance, it should be underscored governance structures. that this is still a very heterogeneous group, with various points References of tension between emerging and established powers, as well as Cooper, A.; A. Antkiewitz (eds) within each group. In 1989, the (2008) Emerging Powers in fall of the Berlin wall announced Global Governance: Lessons from the emergence of a world free of Heiligendamm Process, Waterloo, political and economic barriers, ON, The Centre for International but the idea proved unrealistic in Governance Innovation and the subsequent years. By the same Wilfrid Laurier University Press. token, the so far increasing insti- Diermeier, D.; K. Krebhiel (2003) as a tutionalization of the G20 seems ‘Institutionalism Methodology’, Journal of to herald a new era marked by the Theoretical Politics vol.15 n.2 p. 123-144. Héritier, A. (2002) New Modes of Governance in Europe: PolicyMaking Without Legislating? Political Science Series, Institute for Advanced Studies, Vienna, http://www.ihs.ac.at/publications/pol/pw_81.pdf Access on 30/06/2010. Lima, M.R. Soares (1990) ‘A Economia Política da Política Externa Brasileira: uma Proposta de Análise’. Contexto Internacional, 12, Rio de Janeiro, jul/dez, p 7-28. Milner, Helen. 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Worldbank (2009) Governance Matters VIII: Governance Indicators for 1996–2008’, http://info.worldbank.org/governance/wgi/index.asp Access on 18/08/2010. 50 | Mural Internacional Ano I, nº 2 Novembro 2010 Mercosul Cultural: desafios e 1 perspectivas de uma política cultural Mônica Leite Lessa2 Introdução P assada mais de uma década do primeiro Encontro de Secretários de Cultura e Autoridades Culturais do Mercosul (1992) e da publicação do Protocolo de Integração Cultural do Mercosul (1996), tem-se à disposição uma razoável literatura acerca dos avanços e das dificuldades da integração cultural do Bloco. Em verdade, desde o Seminário Identidades, políticas culturais e integração regional, realizado em Montevidéu, em 1993, muitos especialistas tem se debruçado sobre os diversos aspectos da questão para, em sua ampla maioria, defenderem a importância da cultura no processo de integração. A percepção mais corrente, entretanto, é a de que o Mercosul Cultural ainda não recebe a atenção devida por parte dos Estados mercosulenhos. Em 2006, o próprio Ministério da Cultura do Brasil (MinC) reconheceu, em documento intitulado “Diagnóstico sobre o Desempenho do Mercosul Cultural”, apresentado durante a XXIII Reunião do Comitê Regional do Mercosul Cultural, que “dois desafios estruturais” persistiam desde a 1. Artigo originalmente apresentado no VII Internacional do Fórum Universitário do Mercosul. Encontro 2. Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais Universidade do Estado do Rio de Janeiro. instituição do Mercosul Cultural: a descontinuidade das políticas acordadas e as assimetrias sistêmicas inerentes ao Bloco. Marcado por mudanças globais e decisivas em suas últimas décadas, como o desenvolvimento vertiginoso das ciências e das tecnologias, a queda do Muro de Berlim, o fim da Guerra Fria, o triunfo do neoliberalismo e o “real ou ilusório” (Held, 2001) fenômeno da globalização, ao completar seu ciclo o Século XX ainda inaugurou, em várias partes do globo, uma nova configuração geopolítica: a formação dos chamados blocos regionais. Apresentados como possíveis respostas às supostas ameaças que o novo cenário internacional representaria para os Estados nacionais, indiscriminadamente, a constituição da União Europeia, do Mercosul e do Nafta teria sido motivada por ideais solidários contra os efeitos colaterais da nova ordem internacional. A lista é longa, mas para os fins deste artigo basta lembrar que co-existem com os fenômenos desse final de Século a ideia de fim das utopias, a ideia de fim das divisões ideológicas, a crença em uma tendência para emergência de conflitos culturais e os embates políticos em torno do status da cultura em organizações internacionais como a OMC e a Unesco. Nesse sentido, a idéia de que na “globalização”, ou na “pós-modernidade”, como prefere Jameson (2000), a cultura não é mais uma “expressão relativamente 51 | Mural Internacional Ano I, nº 2 Novembro 2010 autônoma da organização social” mas a “própria lógica” do capitalismo tardio aponta para a necessidade de se repensar o lugar da cultura a partir 1945, articulado com as expectativas, perspectivas e as disputas travadas em seu nome.3 Por sua vez, contemple-se no mesmo período a situação na América Latina. Ao longo dos anos 1980 e início dos anos 1990, as tentativas de integração regional ganharam impulso acompanhadas de esforços para melhor adequação à reestruturação da nova ordem mundial e às medidas preconizadas pelo Consenso de Washington, especialmente formulado para as economias latinoamericanas. O paradigma neoliberal se impôs como pensamento único e passou a contestar sem cerimônia a tradicional estatização das economias locais, que passaram a sofrer toda sorte de pressões em nome da globalização. No campo político, a nova ordem em processo assumiu um caráter homogêneo no qual o “pluralismo democrático como forma legítima de organização” político-social tornou-se condição sine qua non para um mais amplo acesso e trânsito na vida internacional. Nesse contexto, a integração da América do Sul despontou como a saída para o aquecimento das economias locais, para a projeção regional no sistema internacional, para a proteção dessas economias contra os efeitos colaterais da globalização. Ao contrário de experiências 3. Para uma síntese dos conceitos e discussões teóricas sobre cultura e relações internacionais ver Lessa e Suppo (2007). anteriores, contudo, notadamente Alalc e Aladi, observa Miriam Saraiva (2007, 130), o modelo de integração em curso na década de 1990 orienta-se para o exterior do bloco regional, não se baseia na substituição de importações mas aposta em projetos de desenvolvimento alicerçados sobre a abertura econômica estimulada pelo ambiente internacional. Por outro lado, a despeito das dificuldades inerentes a qualquer processo de integração, e das críticas formuladas em relação a vários dos aspectos constitutivos da formação do bloco, como a ausência, ou insuficiência, de políticas de promoção social, o Mercosul tem avançado agregando à sua proposta original outras dimensões, além da política e da econômica, que ampliaram as expectativas e os horizonte fixados pelo Tratado de Assunção. Se em seu documento fundador, o Tratado de Assunção (1991), não houve sequer menção ao lugar da cultura na construção dessa integração, em 1992 a cultura passou a ser incorporada nas formulações políticas do bloco, conforme demonstrou a organização do primeiro Encontro de Secretários de Cultura e Autoridades Culturais do Mercosul. Nesse sentido, novamente diferentemente do ocorrido em tentativas precedentes de integração regional do subcontinente, destaca-se o fato da cultura, finalmente, ocupar um lugar no processo de integração do Cone Sul. Na raiz dessa inedita iniciativa, acreditamos, encontram-se as repercussões das transformações externas e regionais rapidamente acima aludidas. A influência dos debates internacionais em torno da cultura sem dúvida contou para fortalecer a posição daqueles que assinalavam a defasagem de uma proposta que nascia “amputada” por não contemplar a dimensão cultural na estrutura do recém criado Mercosul. A despeito, contudo, dos avanços alcançados nessa área, as atribuições e realizações do Mercosul Cultural ainda são consideradas insuficientes. Nesse artigo examinamos rapidamente os avanços e os “desafios” do Mercosul Cultural, à luz da reflexão dos entusiastas e dos críticos do modelo de integração cultural do bloco. Buscamos introduzir uma análise, a partir de uma perspectiva multidisciplinar, que contemple a relação entre as principais ações do Mercosul Cultural, seu impacto para a economia da cultura do bloco e sua contribuição para a ampliação da integração do Cone Sul. Por fim, cabe o registro, sendo resultado preliminar de uma pesquisa ainda em curso, este trabalho não esgota todas as possibilidades analíticas que seu tema propõe, mas apenas avança, parcialmente, os primeiros dados coletados na investigação sobre o tema em tela. Cultura e Integração A passagem abaixo, reproduzida por Hugo Achugar em texto sobre a política cultural do Mercosul, reflete o debate acerca da equação integração-soberania-cultura, e ilustra as diferentes expectati- 52 | Mural Internacional Ano I, nº 2 Novembro 2010 vas em relação ao papel da cultura no Mercosul: [...] o deputado Machiñena, relator geral da Comissão, que estudou o Acordo Marco e apoiava a ratificação, referiu-se a aspectos culturais apenas para indicar a posição privilegiada do Uruguai, em que, o “nível cultural de nosso povo” e sua “preparação torna o pais mais atraente para os investimentos”. [...] o relator da minoria, deputado Hélios S arthou, que se opunha, afirmou : “Temos muito receio da articulação do Tratado de Assunção com o chamado Tratado Quatro Mais Um, além dos compromissos temporais, pela profundidade das medidas que podem nos relegar às margens da zona integrada, no papel de provedor de serviços em uma divisão de trabalho conveniente para as multinacionais... com nossa identidade nacional comprometida. [...] As carências sobre temática social se reiteram também no que diz respeito aos aspectos culturais, de grande transcendência na hipótese de integração” (Achugar, 1994). é também responsável pelo comportamento dos Estados (Freymond, 1980). Por sua vez, no processo de integração, chama a atenção J.F. Sombra Saraiva (2003), a importância da cultura para o sucesso da empreitada é tanto “romântica” quanto “pragmática”, e a “materialidade econômica da cultura permite a viabilidade dos desejos de aproximação dos povos”. A cultura encerra, portanto, múltiplos desafios e perspectivas, assim como múltiplas “funções”, como apontou Gaudibert (1972), ou “conveniências”, para empregarmos a expressão de Yúdice (2004). Além disso, “longe de ser periférica ao desenvolvimento econômico”, assinala David Throsby (2007, 6), a cultura é “inextricável e central a ele, oferecendo tanto o contexto no qual o progresso econômico ocorre, quanto o próprio objeto de desenvolvimento, quando vista sob a perspectiva das necessidades individuais.”4 Dessa forma, argumenta ainda José Flávio Saraiva (2003), “cultura, integração e indústria podem vir a ser dimensões que, se articuladas de maneira adequada, permitirão abrir uma triangulação nova e original no Mercosul”. As duas posições acima são emblemáticas dos debates em torno do status da cultura no Mercosul. Et pour cause. Sistema de valores simbólicos, de representações e referência estruturante Em agosto de 1992, foi realizada da identidade dos povos, a cultura a primeira Reunião de Secretários de Cultura e Autoridades Culturais do Mercosul, em 4. Throsby, David. Economics and culture, Brasília, na qual foram determip. 164, citado por Reis (2007). nadas as principais ações com o 5. I Reunião de Secretários de Cultura e Autoridades Culturais, Brasília, fito de se “examinar os modos e 25/08/1992. Disponível em: meios de iniciar processo de conhttp://www2.mre.gov.br/unir/webunir/bil sultas periódicas a fim de coordea/esp/MERCOSUL/9seccul.htm. nar e integrar as políticas cultu6. Vide site do Mercosul Cultural: rais respectivas, estimulando o http://www.cultura.gov.br/mercosur/ . conhecimento mútuo dos valores e atuações culturais de cada Estado Parte, bem como empreendimentos conjuntos e atividades regionais no campo da cultura.”5 Em seguida, foram instituídas Reuniões Especializadas de Cultura (a partir de 1995), e de Ministros de Cultura do Mercosul (a partir de 1996), enquanto que paralelamente ocorreram Reuniões da Comissão Técnica de Capacitação Cultural (desde 1995).6 Ganhava assim impulso uma política cultural da integração que, no entanto, continuava sendo mal avaliada: O que foi estabelecido no Tratado e realizado pelas autoridades com relação à cultura, durante esse período chamado de transição, reduziu-se a três aspectos : declarações sem efeito jurídico sobre a cultura, sendo esta entendida em sentido tradicional; uma ou duas reuniões referentes a aspectos educacionais e a possibilidade de compatibilizar currículos e estabelecer sistemas de revalidações – embora valha a pena destacar que as universidades foram as que mais avançaram nesse aspecto, como demonstra a presente reunião de Porto Alegre; e problemas vinculados à propriedade intelectual. Justamente o terceiro aspecto é o que tem implicações econômicas evidentes, e tem sido impulsionado por alguns setores da indústria cultural; concretamente, a indústria discográfica, que se mostrou preocupada com a pirataria realizada por alguns setores da indústria paraguaia. Com relação a esse aspecto, formou-se uma subcomissão da equipe econômica, que trabalha no período de transição do A cordo 53 | Mural Internacional Ano I, nº 2 Novembro 2010 Marco e é composta de representantes dos setores industriais e assessores técnicos do Ministério da Economia. Essa espécie de subtexto econômico ou de trama básica do Mercosul relegou os temas culturais e acadêmicos para o espaço da retórica, e não conseguiu avançar em suas projeções. Em outras palavras, os Estados participantes do Acordo Marco de Assunção limitaram-se ao que o Tratado estabelece: um mercado comum em níveis industrial e comercial tradicional, sem incorporar a indústria cultural ou sem pensar que o peso econômico dessa indústria seja relevante. Ignorando, ou melhor, depreciando desse modo a possibilidade de permitir um espaço de integração cultural (Achugar, 1994). Todavia, a despeito dos problemas apontados por Achugar, o projeto de uma política cultural do bloco avançou visando deitar as bases de uma estrutura compatível com as possibilidades e demandas dos países envolvidos. Em 1995, à ocasião da primeira Reunião Especializada de Cultura do Mercosul, ocorrida em Buenos Aires, e na qual participaram Ministros e Secretários de Cultura dos Países Partes, foi produzido um primeiro documento com vistas ao entendimento para a institucionalização do aparato técnico-burocrático referente às políticas culturais voltadas para a promoção das relações culturais entre os países. Em 1996, o chamado Encontro de Fortaleza, organizado por Roberto da Matta e Felix Peña entre 13 e 14 de dezembro, congregou pesquisadores, intelec- tuais, diplomatas e políticos a pensarem a questão cultural no processo de regionalização. No Termo de Referência do Encontro, os organizadores alinharam-se na crítica ao Tratado de Assunção ao afirmarem, no primeiro dos três pontos que constituem esse documento, que, acima de tudo, o objetivo do encontro era: Pensar a integração regional do ponto de vista social e cultural, buscando incrementar a troca de experiências políticas e intelectuais, tendo como propósito o exame da possibilidade de criar-se uma rede institucional que contribua para a ampliação do nosso intercambio, não só como produtores de bens e serviços, mas também como sócios culturais que compartilham um conjunto de valores comuns. [...] Nossa reunião, portanto, deseja pensar a região e o Mercosul, para além de seu conteúdo econômico Funag 1997, 15). Em seguida, em dezembro de 1996, a Decisão Nº 2/95 do Conselho do Mercado Comum, e a Ata Nº 2/96 da Reunião de Ministros da Cultura, realizada em Fortaleza (Brasil), aprovou o Protocolo de Integração Cultural do Mercosul. Composto de vinte artigos, esse será o documento estruturante da política cultural do Bloco. Desde 1996 buscou-se ainda superar a inexperiência burocrática criando-se reuniões técnicas que deram origem a uma burocracia especializada, instituiu-se a dinâmica de reuniões regulares de Ministros de Cultura e envidou-se esforços para cum- prir-se o previsto no Protocolo de Integração Cultural do Mercosul. A participação de especialistas da área da cultura e da área da integração regional também se tornou corrente para se repensar os rumos da integração cultural. Inúmeros projetos e ações foram estabelecidos nesse âmbito, em grande parte sugeridos pelos cientistas sociais envolvidos. O Selo Mercosul Cultural, por exemplo, que normatiza a circulação de bens culturais, é fruto dessa política e tem por objetivo promover o intercâmbio artísticocultural por meio de isenção de tributos e garantias alfandegárias. No entanto, passada mais de uma década após a assinatura do Protocolo de Integração Cultural do Mercosul, os avanços no âmbito dos assuntos culturais parecem erráticos e insuficientes, se aferidos do ponto de vista da economia da cultura ou da agenda da política externa dos países. Alguns autores estimam que o Mercosul não tem uma política cultural e isso porque a cultura não tem centralidade na construção do bloco regional (Soares, 2008). Concordamos, em parte, com essa visão, que, por sua vez, reflete uma realidade dos países mercosulenhos (Lessa, 2008a). Se, porém, considerarmos que antes do Mercosul Cultural pouco ou quase nada existia em termos de relações culturais institucionais entre o Brasil e os demais países da América do Sul, podemos ser mais otimistas em relação à empreitada iniciada em 1992 (Lessa, 2008b). A evolução da institucionalização dessa polí- 54 | Mural Internacional Ano I, nº 2 Novembro 2010 tica regional não apenas progrediu para a execução de ações culturais conjuntas mas ainda suscitou e promoveu uma série de reflexões que, talvez em um momento raro, reuniu uma plêiade de intelectuais interessados em trabalhar em prol de uma “cultura da integração”. Nesse sentido, Gregório Recondo (1997) escreve em uma de suas obras mais completas sobre o tema da integração regional: “Vaticina-mos entonces que la integración de nuestros pueblos fracasará en el largo plazo si no incorporamos la dimensión cultural al proceso integrativo.” E mais adiante: “Tenemos en claro que llegar a la integración por la via de la cultura es propender a una nueva cultura de la integración.” Recondo esclarece que em sua visão integração cultural não é assimilação, fusão, homogeinização, hierarquização ou cooperação mas “congruência signficativa de normas, papeles y valores”. É um fenômeno sobretudo espontâneo, “más producto de la realidad que consecuencia de deliberaciones grupales”. Ou seja, a integração cultural expressa uma “congruencia significativa de pautas y valores entre las partes diferenciadas que pueden ser los Estados nacionales que participan de un proceso integrador.” Isto é, a integração cultural deve ser a convivência de unidades separadas que formão um todo coerente e isso ocorre quando os “fenômenos interactuantes, causualmente relacionados, se presentan entre si en consecuencia lógica”. Essa visão, profundamente deter- minada em relação à importância políticas culturais em curso. Na da cultura para a integração regio- visão de Maria Susana Soares nal, não apenas nos marcos do (2008): Mercosul mas em relação à America Latina, se fundamenta na Questões de grande relevância para a história da formação da civilizaescolha do melhor caminho para ção latinoamericana : “produto do avançar na integração regional – a carrefour de diferentes culturas”, política, a cultura, a educação e as da síntese entre o “universal” e o relações sócio-laborais – têm recebi“nacional”, que a frase de Alfredo do pouca ou nenhuma atenção das Palácios tão bem traduz: “Dentro diplomacias governamentais. [… ] de nuestras fronteras (iberoameriOs Estados-membros ao não poscanas) acampa la humanidad” suírem uma diplomacia cultural, (idem). complementar à atividade diplomáPerspectivas e desafios Dentre as dificuldades reiteradas vezes denunciadas pelos pesquisadores do tema em foco, destaca-se a ausência e/ou dispersão dos dados estatísticos. No Brasil, eles estão dispersos entre o MinC, Itamaraty, IBGE, Ipea, FGV, BNDES e vários outros organismos. Muitos autores já apontaram essa dificuldade e a esperança é que o Sistema de Informação Cultural da América Latina e do Caribe (SICLaC) e o SIC-SUR (Sistema de Informação Cultural do Mercosul) venham colmatar essas lacunas e contribuir para a integração regional de forma mais efetiva. Essa dispersão dos dados estatísticos apenas reflete a descentralização das ações de políticas culturais. Essa realidade, muitas vezes, prejudica a percepção dos avanços e das perspectivas da situação das relações culturais mercosulenhas. Essa é a razão, acreditamos, para que no plano das formulações e das análises sobre a integração cultural no bloco, se observe grandes reservas e ceticismo acerca das tica tradicional, revelam a prevalência no Mercosul de estratégias inspiradas pelo hard power e a subvalorização do soft power. Poucos são os que percebem que, com o avanço dos processos de globalização econômica e tecnológica, as relações internacionais passaram a depender, cada vez mais intensamente, da cultura, do soft power, do que do poder econômico ou da força das armas. A liderança política dos países transformou-se numa concorrência para atingir a atração, a legitimidade e a credibilidade internacional (Rabadán e Onofrio, citados por Soares 2008, p.54). No entanto, o desafio assumido pelo Brasil para a criação da Universidade Federal de Integração Latinoamericana (Unila) é um claro exemplo do compromisso do país com o projeto de integração regional. E o ineditismo da iniciativa brasileira, inclusive em promover o vínculo entre educação e cultura, constitui uma resposta relevante para a fundação de uma identidade regional “solidária” e “integradora”. O desafio posto ao Brasil é duplo: cabe ao país, exclusiva- 55 | Mural Internacional Ano I, nº 2 Novembro 2010 mente, assegurar a construção e o funcionamento da futura universidade e, ao mesmo tempo, desenvolver um projeto pedagógico que privilegie a multidisciplinariedade, promova a integração do conhecimento e represente um “pólo de idéias” e de discussões sobre a realidade latinoamericana. Projetada para atingir, na próxima década, um contingente de dez mil estudantes (entre brasileiros e latinoamericanos) e quinhentos docentes, brasileiros e latinoamericanos, alocados em cursos de graduação, mestrado e doutorado, a Unila será a primeira universidade bilíngüe (português/espanhol) do continente e abrigará cursos planejados para atender a temas candentes para a América Latina: Energia, MeioAmbiente, Migração e Trabalho, Saúde Pública, Novas Tecnologias etc., entre outros que abarcam desde as Ciências Exatas às Ciências Humanas. A Unila cumprirá assim uma das principais propostas do Mercosul Cultural que é promover a formação dos estudos universitários na região, ação considerada prioritária para incentivar e consolidar o intercâmbio entre jovens, bem como a construção de uma cultura da cooperação. Fruto de uma política cultural que, evidentemente, não é destituída do interesse do Brasil em projetar sua influência na região, ela tem, no entanto, o mérito do compromisso com as iniciativas integradoras (Ferré, 2002). Outro desafio a ser enfrentado foi apontado por Néstor Canclini (1999) no âmbito estrito das políticas culturais, ainda nos idos dos anos 1990. Para Canclini, cinco grandes questões deveriam orientar a reformulação das políticas culturais na América do Sul: a maioria das mensagens e bens culturais recebidos pelas nações não é mais produzida em território nacional; a maioria dos investimentos dos Estados no setor ainda se concentra na tradicional tríade: artes cultas, preservação de patrimônios monumentais e preservação do folclore, com poucos investimentos nas indústrias culturais de massa; as grandes empresas privadas transnacionais são as principais detentoras dos grandes meios de comunicação de massa, influindo assim na alienação cultural e política do público; as ações culturais dos organismos internacionais e aquelas originadas das reuniões dos ministros da cultura reproduzem a visão da tradicional tríade cultural a ser priorizada. Canclini (p.235-237) assinalou ainda que o consumo cultural, nas grandes cidades sul-americanas, da alta cultura escrita, das artes plásticas e de música erudita atingia apenas 10% da população. Por sua vez, segundo dados da Unesco, desde a década de 1980, bens e serviços culturais atendem a uma demanda crescente de consumo a ponto do setor representar, em 2005, 7% do PIB mundial. Em escala mundial o comércio de bens culturais passou de U$ 39,3 bilhões em 1994 para U$ 59,2 bilhões em 2002. Em 2002 a União Européia controlava 51,8% das exportações, seguida da Ásia com 20,6%; dos Estados Unidos, que caiu de 25%, em 1994, para 16,9% em 2002; da América do Sul e das Caraíbas, que subiram de 0,8% em 1994 para 3% em 2002; da África e Oceania, com apenas 1%. As mesmas análises destacam ainda que do ponto de vista das importações, os países com altos índices de desenvolvimento são responsáveis por 90% do mercado consumidor. Na America Latina, o México seria o único país da região a figurar entre os primeiros vinte importadores/exportadores mundiais de bens culturais em 2003. O Brasil foi considerado um eterno grande importador de bens culturais: em 1994 essas importações foram calculadas em U$ 165,9 milhões, enquanto as exportações não passaram de U$ 56,9 milhões. Em 2003, a balança comercial permanecia negativa mas com uma redução, devido sobretudo à perda de 1/3 do valor das importações, que totalizaram U$ 105,7 milhões, enquanto o valor das exportações permanecia nos mesmos patamares de 1994. Duas explicações são avançadas para essa mudança: a diminuição do preço dos jogos eletrônicos (video – games, sobretudo) em 50% do valor, entre 1994-2002, e a criação da zona livre de Manaus, nos anos 1990, que aumentou a capacidade produtiva do país e reduziu as importações. Em 2003, 45,1% das importações brasileiras estavam concentradas nas mãos de dois países: Estados Unidos (28,8%) e Inglaterra (16,3%), os países da ex-futura ALCA foram responsáveis por apenas 14%. Porém, a posição dos EUA, que 56 | Mural Internacional Ano I, nº 2 Novembro 2010 detinha 41,3% das importações brasileiras em 1994, caiu para 28,8% em 2003. No mesmo período, o Japão caiu de 10,9% para 3,6%. Enquanto países como Argentina, Chile, China, Inglaterra e Espanha tiveram maior participação.7 Por meio de um Diagnóstico sobre o Desempenho do Mercosul Cultural, apresentado durante a XXIII Reunião do Comitê Regional do Mercosul Cultural (XXIII CCR), o MinC alertou: “O maior desafio do Mercosul Cultural, segundo a visão do Ministério da Cultura do Brasil (MinC), será estabelecer uma base sólida e politicamente consistente para conferir continuidade às diretrizes do bloco; e, ao mesmo tempo, conceber ferramentas flexíveis e isonômicas que permitam a elaboração de ações conjuntas de interesse comum.”8 As propostas e os objetivos ambiciosos do Mercosul Cultural esbarraram portanto nas dificuldades de cada país em diminuir suas próprias desigualdades sócio-culturais. Enquanto isso, a construção do Mercosul Cultural avança a despeito da descontinuidade das políticas acordadas e das assimetrias sistêmicas inerentes ao bloco: 7. Cf. Échanges internationaux d’une sélection des biens e services culturels, 19942003. Institut de statisque de l’UNESCO, 2005. http://www.uis.unesco.org/template/pdf/cscl/IntlFlows_Fr.pdf 8. http:www.cultura.gov.br/site/22/11/2006 9. Notícias sobre a XXVI Reunião de Ministros da Cultura do Mercosul, realizada em Buenos Aires, em 12/6/2008, à ocasião da sucessão da Argentina pelo Brasil, na presidência pro-tempore do Mercosul cultural. http://www.cultura.gov.br/site/2008. Ao assumir as funções, o Ministério da Cultura brasileiro é convocado a refletir sobre essa parceria continental e agregar mais alguns tijolos a nossa construção coletiva [… ] Vejo que os acordos e pactuações feitos aqui pelos nossos governos são aos poucos absorvidos pela dinâmica interna de nossos países e orientam expectativas comuns de desenvolvimento regional, fazendo com que medidas multilaterais impactem o cotidiano de nossas populações. [… ] Vejo a produção de conteúdos do Mercosul como questão decisiva para que afirmemos a autonomia de nossos territórios. O espaço virtual desses veículos de comunicação é o dispositivo que materializa o ambiente sul-americano, mas isso só ocorrerá se nos associarmos cooperativamente para reinventar diariamente nossa cultura comum. Creio que o que foi feito até aqui, através do DOC TV, nos aponta caminhos para seguirmos nessa direção. [… ] foram destaques a assinatura da Declaração de Integração Cultural do Mercosul; a criação do Comitê das Artes do Mercosul (ArteS ul); a aprovação da proposta do S ite do Mercosul Cultural; e a previsão de realização do encontro S ulamericano de Culturas Populares, em Caracas, a ser coordenado pela Venezuela e Brasil; e o encontro dos Povos Guaranis. [nesse encontro, o diretor de R elações Internacionais do MinC, Marcelo Coutinho, afirmou que a reunião dos Ministros da Cultura marcou um novo momento no Mercosul Cultural]. Passamos para uma etapa de institucionalização, com a proposta brasileira de criação de uma S ecretaria Técnica Permanente, além da implantação de projetos de integração cultural, tais como o S elo Cultural e os Itinerários Culturais. 9 Conclusão Céticos e integracionistas discordam sobre os avanços do Mercosul mas concordam em que a integração regional deverá, até para garantir sua sobrevivência, promover a dimensão cultural do bloco. Esta, por sua vez, é vista pela indústria cultural regional como a oportunidade de expansão de um mercado dominado por grandes conglomerados estrangeiros que pela superioridade de condições impedem qualquer possibilidade de crescimento sustentável do setor: A escala internacional, las industrias culturales y de la comunicación son a su vez, desde hace dos o tres décadas las que generan más empleo que cualquier otro sector industrial. Consideradas en su conjunto, constituyen hoy un negocio cercano a los 1,6 billones de dólares, con ventas anuales que equivalen al 12% del valor de la producción industrial en todo el mundo. [… ] “La consolidación del Mercosur y la incorporación de las industrias culturales en la dinámica del mismo, permitiría que las empresas productoras puedan contar con un mercado mayor para cubrir sus costos de producción e insertarse en forma ventajosa en terceros mercados. La regionalización permite la articulación flexible entre diferentes empresas para responder a las demandas de noticias u otros productos culturales y la posibilidad de recuperar los costos de producción en un mercado mayor permite mayores inversiones, creación de puestos de trabajo y aumento del comercio de los productos de las industrias culturales. Estas estrategias tendrán efecto centrípeto, realineando las identi- 57 | Mural Internacional Ano I, nº 2 Novembro 2010 dades a partir de la interacción” (Getino, 2001). No caso do Brasil, e talvez dos demais países do Mercosul, a complexidade da relação nacional com sua cultura é o primeiro e principal desafio a ser enfrentado pela sociedade e pelos responsáveis pela política cultural para que o setor garanta, efetivamente, um desenvolvimento sustentável e à altura de suas possibilidades. Porque em tempos de globalização, a cultura não apenas permanece como estruturante da identidade dos povos mas como um dos setores que mais crescem: A pergunta que nos movimenta hoje é saber como a cultura pode colaborar no crescimento econômico e num novo padrão de desenvolvimento. No fim do ano passado, o IBGE apresentou ao Brasil como as atividades culturais movimentam hoje uma receita líquida de R $156 bilhões de reais o que indica uma participação do setor cultural de 7,9% na receita líquida total do país. O IBGE revela com esse estudo que a cultura corresponde ao quarto item de consumo das famílias brasileiras, superando os gastos com educação e abaixo apenas da habitação, alimentação e transporte. Existem cerca de 290 mil empresas culturais no Brasil responsáveis por uma massa salarial de R$17,8 bilhões de reais. [… ] O Brasil é o 10º maior mercado consumidor de música do mundo, tendo movimentado a cifra de US $ 265 milhões no ano de 2005. É importante frisar que 76% desse valor foi despertado por conteúdos 10. Discurso do Ministro Gilberto Gil em 02/10/2007. httpp//:www. cultura.gov.br brasileiros e por músicas nacionais. O disco, como mercadoria, chega a 55% dos mais de 5.550 municípios brasileiros que possuem lojas de discos e vendem CDs e DVDs. A força deste mercado interno repercute na inserção da música brasileira em outros países. No ano de 2005, exportamos R$ 28 milhões em vendas de discos e R$ 5 bilhões em aparelhos de áudio, fonográficos e de vídeo. Essas cifras tornariam-se mais expressivas e detalhadas caso contabilizássemos a renda auferida em shows e espetáculos dos músicos brasileiros em outros países. No caso do Brasil, esse poder é parte realidade, e outra parte dele é ainda potência, é devir. 10 A percepção do MinC, veiculada no “Diagnóstico sobre o Desempenho do Mercosul Cultural”, é que até 1999 houve uma concentração de esforços para harmonização dos interesses e procedimentos culturais visando a coesão do bloco – contudo sem maiores avanços para edificação das atividades projetadas, em parte devido às assimetrias entre os países, em parte devido às oscilações da economia mundial; no entanto, consolidou-se a visão sobre a necessidade de formação de comissões e reuniões técnicas para se alcançar progressos mais significativos. Em 2000, observase mudanças “sutis” da filosofia de ação: prioridade à concepção de projetos pontuais em detrimento de projetos vinculativos, como o Selo Mercosul Cultural, Diversidade Cultural, Patrimônio imaterial ou o Protagonismo em foros internacionais, por exemplo. Em 2001, “a cultura ganhou uma definição mais ampla como fenô- meno catalisador da integração regional” e do desenvolvimento (em sintonia com a agenda da Unesco), mas os resultados do Mercosul Cultural ainda permaneciam aquém de suas possibilidades. Em 2003-2004, essa tendência foi revertida pois os Ministros responsáveis passaram a exigir mais dos entes nacionais responsáveis pela formulação e execução das ações fixadas pelo Mercosul Cultural. Quatro aspectos foram então considerados absolutamente prioritários pelo Bloco: capacitação de pessoal; institucionalização do Selo Mercosul Cultural; consolidação dos Corredores Culturais (ações em faixas de fronteiras) e da Economia da Cultura (estreitamente dependente dos ajustes alfandegários no Bloco, como o Selo do Mercosul Cultural). Emerge, portanto, da análise dos dados disponíveis, que os problemas do Mercosul Cultural, não derivam de falta de recursos ou de política cultural mas de deficiências estruturais dos países membros, que não necessariamente estão ligadas à posição do país A ou B no ambiente internacional, assimetrias que poderão ser superadas se houver vontade política e conjuntura favorável. Contudo, arriscamos em afirmar que nunca a aproximação entre os países do Mercosul, o intercâmbio cultural e a cooperação técnico-científica foi tão significativa e plena de promessas. Referências Achugar, Hugo (1994) A política cultural no acordo Mercosul. Estud. av. vol. 8, n. 20, p. 215-229. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ea/v8n20/v8n2 58 | Mural Internacional Ano I, nº 2 Novembro 2010 0a21.pdf. Canclini, Néstor García (1999) Consumidores e cidadãos. Conflitos multiculturais da globalização, Rio de Janeiro Editora UFRJ. Ferré, Alberto Methol (2002) ‘Juventud universitária y Mercosur`, in C.H.CARDIM e C. Huguenay Filho (eds.), Grupo de reflexão prospectiva do Mercosul, Brasília, IPRI/Funag, p.147-154. Freymond, Jean-Jacques (1980) Rencontres de cultures et relations internationales. Relations Internationales n° 24, hiver, p. 405. FUNAG (ed.) (1997) O MERCOS UL e a Integração SulAmericana: Mais do que a Economia, Brasília, FUNAG. Gaudibert, Pierre (1972) Action culturelle: integration et/ou subversion, Paris, Casterman/Poche. Getino, Octavio (2001) Las industrias culturales del Mercosur. Observatorio de Industrias Culturales de La Ciudad de Buenos Aires. 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New York: Palgrave Macmillan, xxviii + 259 p. de Clarissa Dri1 G rande parte dos trabalhos científicos no âmbito da integração regional latino-americana a consideram como fator explicativo para outros processos, domésticos ou internacionais, ou tratam-na como um meio para a obtenção de determinados fins em termos de política externa ou políticas públicas estatais. Em The politics of regional integration in Latin America, Oliver Dabène argumenta que essas perspectivas são insuficientes para se apreender a complexidade das iniciativas de integração nessa região. Ele propõe-se, então, a lidar com a integração regional como variável dependente, configurando o principal fenômeno a ser explicado. Curiosamente, esse campo apontava uma lacuna nos estudos latino-americanos: é raro encontrar um livro que trate da integração regional no continente como elemento central, apesar de sua longa história e nutrida trajetória. Diferentemente dos processos de integração na Europa ou na África, que foram explorados e teorizados em inúmeros trabalhos, a integração regional na América Latina carecia de uma análise crítica abrangente que superasse a divisão tradicional dos estudos em sub-regiões e vinculasse as idas e vindas da integração com o percurso histórico compartilhado pelas nações latino-americanas. Outro traço distintivo da análise de Dabène é o foco 1. Doutoranda do Instituto de Estudos Políticos/Université de Bordeaux na dimensão política da integração. Diferenciandose de trabalhos dedicados a aspectos econômicos ou normativos, esse livro concentra-se no estudo dos efeitos do poder e das interações sociais sobre o caminho da integração. Calcada em anos de reflexão e de trabalho empírico e pautada por rigorosidade histórica e precisão argumentativa marcantes, a obra explicita as motivações dos líderes, os processos de construção institucional e os principais temas em debate nas arenas regionais. Impressiona também o grau de autonomia analítica do estudo, que discute a América Latina por ela mesma dispensando comparações recorrentes com outros modelos de integração regional. É certo que a relativa inspiração européia dos projetos regionais latino-americanos requer menções a esse caso, mas o autor não faz da União Européia sua âncora de análise. Ao contrário, explora as origens históricas das instituições políticas latino-americanas e confronta as tentativas de integração com períodos de crise e democratização no continente, comparando internamente os processos e construindo uma teia explicativa própria. A obra está dividida em cinco partes que refletem as principais realizações e dificuldades do regionalismo latino-americano. O autor inicia com apontamentos históricos e teóricos, reportando-se ao contexto pós-Segunda Guerra Mundial e revisando os principais autores na área. Ao definir indeterminação 60 | Mural Internacional Ano I, nº 2 Novembro 2010 e incerteza como os nomes do jogo, Dabène desafia postulados racionalistas segundo os quais os sistemas políticos estão em situação de equilíbrio: na América Latina, a regra é a instabilidade da integração. Esses momentos de paralisia e relance refletem-se, por exemplo, na instrumentalização da integração a fim de combater crises e conflitos na América Central ou consolidar os novos regimes democráticos no Cone Sul. Em seguida, abordando a institucionalização da integração, o autor valida a idéia do mimetismo europeu, mas verifica também uma convergência interna das estruturas dos diferentes blocos regionais e um isomorfismo com relação aos sistemas nacionais, o que prolonga a influência dos presidentes ao âmbito regional. Essa lógica não impediu, contudo, o surgimento de mecanismos visando à inclusão de parlamentos, organizações da sociedade civil e governos locais nas decisões regionais. O autor mostra-se cético quanto ao real potencial democratizante dessas esferas e aposta prioritariamente na democracia redistributiva, a exemplo dos fundos estruturais criados no Mercosul. Por fim, a obra traz uma análise retrospectiva das Cúpulas das Américas e da influência norteamericana na região. Na conclusão, o autor questiona o curso atual da integração latinoamericana e insiste na crítica ao regionalismo decorativo, que não é capaz de relacionar de modo coerente as expectativas dos atores com as ambições institucionais. É certo que os limites do regionalismo para lidar com certas questões econômicas ou políti- cas têm ficado cada vez mais evidentes, como demonstram as iniciativas superpostas na América Latina – Unasul, Alba, Comunidade dos Estados Latinoamericanos e Caribenhos, para citar as mais recentes. Também reforça essa tendência a nova categoria de “potências emergentes”, que poderia acentuar as assimetrias entre nações vizinhas – considere-se, por exemplo, a parceria estratégia União EuropéiaBrasil. Por outro lado, a obra esforça-se por demonstrar, e o faz com sucesso, que a integração na América Latina é um longo processo permeado por avanços e retrocessos, contradições internas e efeitos positivos à sua maneira. Esse processo está longe do fim e é provável que a configuração atual dos blocos regionais e de suas instituições constitua apenas mais uma fase nessa complexa trajetória. Em outras palavras, a obra permite considerar, com realismo, a América Latina integrada como uma finalidade política dessa época. Assim como nos primórdios da integração européia as principais análises chegavam da América do Norte, ainda hoje muitos estudos sobre integração latino-americana são gestados em universidades européias. Razões à parte, o certo é que perspectivas à distância podem contribuir para uma visão mais global e perspicaz (embora nunca neutra) do fenômeno, o que é o caso do livro de Dabène. Trata-se de uma obra-prima da integração latino-americana cuja tradução ao português e/ou espanhol é altamente desejável. Ao mesmo tempo introdutório e profundo, didático e analítico, o traba- lho se presta tanto à compreensão inicial do fenômeno por estudantes dos anos iniciais da graduação quanto à reflexão de pesquisadores mais experientes, que encontrarão nele respostas a antigas dúvidas e possibilidades de desenvolvimento das hipóteses apresentadas. Contrariamente ao que o autor afirma no prefácio, penso que a obra oferece uma visão compreensiva da integração latinoamericana, ao mesmo tempo em que convida o leitor a desenvolver seus próprios caminhos de especulação. Mas Dabène está certo ao assinalar que o livro não encerra os debates com uma proposta definitiva de interpretação desse processo político. Por um lado, essa é uma qualidade dos pesquisadores comprometidos com a explicação de fenômenos históricos concretos e preocupados em trabalhar mais com vistas à realidade e às necessidades sociais do que para a teoria. Por outro, o tema continua carecendo de uma interpretação teórica mais sistemática, densa e ousada, ou, em outros termos, paradigmática. Comprovada a falta de habilidade das teorias da integração européia para explicar a integração latinoamericana, é preciso elaborar um quadro teórico próprio e adequado à análise dessa região e inseri-lo no rol das teorias da integração no plano mundial, como mais uma ferramenta (vinda da América Latina dessa vez) à disposição da comunidade científica. The politics of regional integration in Latin America mostra que essa idéia está mais perto do que se imagina. Está lançado o desafio. 61 | Mural Internacional Ano I, nº 2 Novembro 2010 RESENHA Cienfuegos, Manuel; Sanahuja, José Antonio (ed.) (2010) Una región en construcción: UNASUR y la intergración en América del Sur. Barcelona: Fundació CIDOB, 422 p. Samuel da Silva Resende1 N o seminário internacional “A integração regional na América do Sul”, ocorrido em fevereiro de 2008, em Barcelona, vários estudiosos debateram a atualidade e as perspectivas para a integração sul-americana, a agenda de desenvolvimento, a governança democrática, a coesão social e a maior inserção internacional da região. A proposta do livro foi a de reunir algumas das apresentações do seminário na forma de artigos, agregando, ao trabalho final, as discussões ocorridas na reunião. O objetivo do livro foi, sobretudo, o de demonstrar que os acontecimentos políticos da região são, além de dinâmicos, bastante complexos. na região, e por meio do aprofundamento de instituições e de regras mais previsíveis, e, tende a ser benéfico a todos. Considerando que a convergência dos países da América do Sul baseia-se principalmente no comércio internacional, a transformação produtiva e competitividade internacional são o que Silvia Simonit aborda, no capítulo dois, quanto à integração. A autora examina, no que se refere à estrutura produtiva, os graus de heterogeneidade e de diversificação, bem como a distribuição setorial dos investimentos diretos externos. Quanto à competitividade internacional, ela avalia três grupos de parâmetros internos à economia dos países: suprimento das necessidades básicas, fatores que possivelmente aumentam a eficiência produtiva, e os que potencializam o grau de inovação. Conclui que dinamizadores de produtividade e de competitividade devem fazer parte de um esforço conjunto de setores governamentais e privados, objetivando o desenvolvimento sustentável da região. No primeiro capítulo, Félix Peña discorre sobre a relação entre integração regional e a estabilidade sistêmica da região sul-americana, um tema bastante relevante quando se considera a economia política do subcontinente. A despeito da convergência dos vários acordos de comércio preferencial, na Aladi, grande parte dos investimentos diretos externos e do financiamento, importantes variáveis macroeconômicas, estão regionalmente dissociados. Nesse sentido, a José Antonio Sanahuja, no capítulo três, disserta maior interdependência econômica, diante do aprofun- sobre o regionalismo pós-liberal, que, na América do damento da integração energética e de infraestrutura Sul, é evidenciado tanto pela Unasul quanto pela Alba. Com a incompatibilidade dos acordos NorteSul, com relação aos Sul-Sul assinados, torna-se 1. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Relações necessário novo enfoque para a integração: importânInternacionais/Universidade do Estado do Rio de Janeiro. 62 | Mural Internacional Ano I, nº 2 Novembro 2010 cia mais política do que econômica, cooperação para o desenvolvimento social, energético, para redução de assimetrias, e projetos em infraestrutura, em segurança e em defesa. Essa qualidade de integração contribui para uma discussão menos limitada apenas às agendas comerciais e, segundo o autor, permite uma integração regional mais forte e mais consciente das próprias demandas. quanto de conflito entre os governos sul-americanos é a questão levantada no capítulo cinco. Klaus Bodemer realiza estudos de caso considerando as políticas da Argentina e da Bolívia, os projetos do “anel energético” e do gasoduto sul-americano, e sobre a oportunidade de o etanol ser um dinamizador da integração. A governabilidade regional pode ser profundamente afetada, de acordo com a forma definida da integração enerAs grandes disparidades entre os gética, e o modo de maximizar o países da América do Sul são bem-estar da região seria abandoobjeto de estudo de Anna Ayuso. nar a perspectiva das decisões Nesse quarto capítulo, as assime- estritamente nacionais, algo, todatrias são classificadas segundo: o via, muito difícil, a curto prazo. tipo de divergência; o motivo; as condições de vida, as políticas ou Wilson Nerys Fernández trata, no as estruturas internas; sua evolu- capítulo seis, da integração física ção; o território em que a diver- e a viabilidade da IIRSA, a prigência ocorre. Realiza-se, ade- meira carteira de projetos de mais, um extenso levantamento infraestrutura que envolveu todos dos modos para amenizar essas os países do subcontinente. disparidades, evidenciando a pos- Descreve, com grande detalhe, os sibilidade da aplicação desses eixos de integração e os vínculos mecanismos para os casos da que cada Estado tem com o projeCAN e do Mercosul, nos contex- to. A conclusão é que, muito tos do aproveitamento da liberali- embora o projeto seja verdadeirazação comercial, da melhoria dos mente regional, os benefícios níveis de desenvolvimento econô- serão maiores aos países que mais mico e territorial, da convergência exportem bens primários, fato que social e interregional, e dos meca- pode ser percebido como prejudinismos jurídico-institucionais. A cial aos esforços de redução das autora afirma que, para a América atividades extrativas e, por consedo Sul, além da falta de diagnósti- quência, ao meio ambiente. cos adequados, alguns problemas comuns aos acordos da região, No sétimo capítulo, Jordi Bacaria como o não cumprimento dos Colom discute os fins da integraobjetivos acordados e a não com- ção e as possibilidades financeiras plementaridade das políticas do Banco do Sul. A proposta ininacionais, servem de obstáculo à cial do banco era o de financiar maior equidade da região. projetos de infraestrutura e empresas públicas e privadas, A integração energética como muito embora alguns governos sendo motivo tanto de integração objetivem, por meio dele, a cria- ção de uma moeda única para a maior integração econômica da América do Sul. O autor compara com os mecanismos de financiamento atualmente existentes com os do Banco do Sul e conclui que, por um lado, utilizar as reservas do banco como base para uma moeda regional é arriscado e que, por outro, sua existência não significa prescindir da ajuda de outros mecanismos de financiamento internacionais. A associação econômica da União Europeia com os países sul-americanos, os problemas e as perspectivas da associação com Mercosul e com a CAN são os temas do capítulo oito, escrito por Manuel Cienfuegos. Ao longo do texto, discutem-se as atuais relações econômicas com a região, os aspectos do acordo de associação vigente entre UE e Chile, os acordos em negociação, e como o futuro da Rodada Doha influi na conclusão destes acordos. Ainda que um dos principais conflitos seja a agricultura, percebe-se que a cooperação e o diálogo permanecem sendo os meios mais efetivos para a conclusão dos acordos. Tanto as novas associações de integração na América Latina quanto as mudanças políticas na UE tem efeitos sobre o espaço político que se forma entre as duas regiões. Noemí B. Mellano, no capítulo nove, trata do histórico, da dimensão estratégica, da situação política e dos consensos e dissensos que constituem essa relação birregional em fase de mutação. Para a autora, o espaço político deve considerar a disparidade 63 | Mural Internacional Ano I, nº 2 Novembro 2010 econômica, a diferente participação democrática e a discrepância institucional entre as regiões, a fim de permitir um melhor aproveitamento das capacidades e das potencialidades de ambas as regiões. cem fortalecendo a identidade política e os interesses internacionais compartilhados, e continuam a contribuir para o fortalecimento de associações promissoras como a entre a UE e o Mercosul. Susanne Gratius, no capítulo dez, discute as agendas governamentais das Cúpulas UE-América Latina e Caribe, questionando os motivos para não se terem construído uma verdadeira parceria estratégica interregional, mas apenas associações bilaterais, de fato, relevantes. O tratamento diferenciado, às vezes benéfico, às vezes prejudicial, aos países latinos, sustenta a recente tendência europeia ao bilateralismo, que contraria a sua preferência histórica pelo interregionalismo. Não obstante, as cúpulas fortale- No último capítulo do livro, Lourdes Castro García defende que a participação da sociedade civil, nas cúpulas e as negociações dos acordos de associação com os países da CAN e da América Central. A sociedade civil tem escasso acesso às negociações, no sentido de poder contribuir com inquietudes ou com recomendações, ainda que, dependendo do que é acordado, ela seja a mais prejudicada. A maior participação social certamente revitalizaria as relações birregionais, muito desgastadas com o passar do tempo. DEF