Documentação - Agendas e atores de política externa

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Documentação - Agendas e atores de política externa
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ANO I
Rio de Janeiro
Novembro 2010
ISSN 2177-7314
ARTIGOS
2|
Brasil, Irã e a paz no Oriente Médio.
Marcel Fortuna Bi ato
7|
Instituições Políticas Domésticas e a
Política Externa do Brasil e do México
Octavi o Amori m Neto
Jorge A. S chi avon
24 |
“Causa Malvinas”, diplomacia y guerra. Una mirada de la historia a la luz
de
` contribuciones recientes
Vi cente Pal ermo
30 |
A nova União Européia do Tratado de
Lisboa
Raquel Patrí ci o
36 |
Esperando Godot? O Brasil e a China
além da crise internacional
Di ego S antos Vi ei ra de Jesus
43 |
Global Governance - Brazilian Views
from Cardoso to Lula
Tati ana Coutto
50 |
Mercosul Cultural: desafios e perspectivas de uma política cultural
Môni ca Lei te Lessa
RESENHAS
59 |
Dabène, Olivier (2009) ´The politics of
regional integration in Latin America:
theoretical and comparative explorations. New York: Palgrave
Macmillan, xxviii + 259 p.
Mural Internacional é a revista eletrônica semestral do Programa de
Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. Seu objetivo é debater temas relevantes das
Relações Internacionais em como a política internacional, políticas
externas, economia política internacional, processos de integração
regional, instituições internacionais, processos migratórios internacionais, relações culturais internacionais, discussões teóricas e/ou
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61 |
Cienfuegos, Manuel; Sanahuja, José
Antonio (ed.) (2010) Una región en
construcción: UNASUR y la intergración en América del Sur. Barcelona:
Fundació CIDOB, 422 p.
S amuel da S i l va Rezende
APOIO:
REALIZAÇÃO:
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Novembro 2010
Brasil, Irã e a paz no Oriente Médio
Marcel Fortuna Biato1
O Acordo de Teerã: uma proposta ingênua?
A
Explica-se assim a surpresa e frustração que se
seguiu ao anúncio pelos EUA - nas horas seguintes à
conclusão do Acordo - de que já obtivera apoio junto
aos membros permanentes do Conselho de
Segurança para a imposição de uma nova – a quarta
– rodada de sanções contra o regime dos ayatolás.
Na avaliação norte-americana, o êxito dessa estratégia requeria que a comunidade internacional se apresentasse com voz única e uníssona. A adoção no
Conselho de Segurança por unanimidade das sanções deixaria claro para Teerã o elevado custo de sua
insubordinação. Alguns comentaristas, animados
pela fragilização política do governo Ahmadinejad
após as contestadas eleições iranianas de 2009, chegaram a sugerir que essa pressão poderia mesmo
acelerar uma “mudança de regime” em Teerã. Numa
lógica remanescente da Guerra Fria, imaginam que
se poderia assim ajudar a insuflar uma iminente
revolta popular contra as crescentes dificuldades e
privações impostas pelo bloqueio econômico e
comercial determinado pelo Conselho de Segurança.
visita do Presidente Lula a Teerã, em maio
de 2010, foi um marco na história diplomática brasileira. Como resultado de audacioso
esforço negociador, foi possível fazer o aparentemente impossível: levar o Irã a retornar à mesa de
negociações com a comunidade internacional em
torno de seu programa nuclear. Pelo Acordo de Teerã
de 17 de maio, o governo do Presidente
Ahmadinejad aceitou fazer concessões rechaçadas
meses antes em conversações com os EUA, França e
Rússia - o chamado Grupo de Viena. Esse gesto
ajuda a afastar suspeitas de que as autoridades em
Teerã pudessem estar burlando seus compromissos
em matéria de não-proliferação ao desenvolver programa secreto de armas nucleares. O chamado
Acordo de Teerã representou um primeiro passo para
restaurar o diálogo, afastando a hipótese de um iminente agravamento das tensões na região. Afinal,
não faltavam rumores – alimentados por Washington
– de que Israel pudesse sentir-se tentado a lançar ataque preventivo contra as instalações nucleares ira- Afinal, perguntam-se muitos críticos de Teerã, havenianas, com conseqüências imprevisíveis para a paz ria motivos para confiar em regime que escondeu
regional e a estabilidade internacional.
seu programa de enriquecimento? Já no Irã, perguntam-se: como negociar com países que buscam por
todos os artifícios impedir o Irã de enriquecer urânio
e, portanto, desenvolver uma indústria nuclear autô1. Assessoria Especial de Política Externa da Presidência da República. noma? Na verdade, o prioritário é saber como evitar
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uma escalada das ameaças recíprocas que a ninguém interessa.
Como dar ao Irã – e à Agência
Internacional de Energia Atômica
(AIEA) - uma oportunidade de
provar um ao outro que merecem
confiança? O acordo que o Brasil,
juntamente com a Turquia, patrocinaram não é a solução para o
conflito no Oriente Médio, nem
mesmo para as desavenças entre o
Irã e a AIEA. O objetivo do
Acordo de 17 de maio foi tão
somente restabelecer as condições
para a retomada das negociações.
Isto é, moldar um clima de boa fé
mínima capaz de evitar que a confrontação e a intimação sejam a
única moeda de troca nessa negociação. As concessões mútuas
propostas – o Irã aceitaria transferir para fora de seu território o
enriquecimento do urânio e a
AIEA concordaria em fazê-lo na
Turquia (e não na França ou
Rússia como originalmente pretendido) – criará a moldura para ambos
os lados fiscalizarem-se mutuamente. Não é garantia de paz, mas assegura o diálogo em torno das verdadeiras questões que condicionam
uma duradoura solução para o conflito no Oriente Médio.
irreversível no tabuleiro estratégico do Oriente Médio. Brasília e
Ancara estariam assim encorajando o Irã a burlar o regime de nãoproliferação e fortalecendo a mão
dos setores linha-dura dentro da
Guarda Revolucionária iraniana.
Os setores mais conservadores
nos EUA e na Europa não hesitaram em insinuar publicamente
que a iniciativa de Brasil e
Turquia, mesmo se motivada por
boa fé, era ingênua. Serviria na
prática aos propósitos iranianos
de postergar indefinidamente um
acerto de contas com a AIEA.
Dar-se-ia assim tempo a Teerã
para ultimar uma suposta bomba
secreta e criar um fato consumado
Sanções: a diplomacia da coerção
Essas alegações não se sustentam.
O Governo brasileiro tem sido
enfático, inclusive durante a visita
do Presidente iraniano a Brasília
em 2009, em condenar o descumprimento pelo Irã de suas obrigações no âmbito do Tratado de
Não-Proliferação (TNP). O Brasil
tem consistentemente expressado
sua preocupação com a falta de
transparência de Teerã em suas
tratativas com a AIEA e, mais
recentemente, com o anúncio de
que estaria agora enriquecendo
urânio a 20% (necessário para
produzir isótopos para uso médico, mas também mais próximo
dos 90% necessários para produzir material físsil para emprego
em armas nucleares). O Brasil
continuará, no entanto, a defender
o direito do Irã de desenvolver
energia nuclear para fins pacíficos
desde que esclareça as pendências
que mantém com a AIEA.
Na verdade, o pomo da discórdia
reside alhures. O anúncio das sanções referendou a preferência dos
EUA por uma política de força e
coerção, lastrada no princípio,
anunciado pela Secretária de
Estado, Hillary Clinton, durante
sua visita semanas antes a
Brasília, de que o “Irã só negociaria em boa fé se estiver sob pres-
são”. Em que pesem declarações
antes e depois do Acordo de
Teerã, de que apreciavam o esforço brasileiro-turco e que encorajavam os dois países a continuarem
seus bons ofícios, ficava claro que
Washington – secundado por
outras capitais européias – apostava numa estratégia de constrangimento e isolamento. O Brasil, em
contraste, sempre questionou a
eficácia de sanções como meio de
encorajar diálogo e de construir
consenso. Experiências passadas
– o exemplo do embargo a Cuba é
eloqüente – sugerem que “empurrar o Irã contra a parede”, nas
palavras do Presidente Lula, será
contraproducente. Isto vale
mesmo para as sanções “inteligentes”, ou seja, que supostamente incidem exclusivamente sobre a
liderança do regime e seus interesses financeiros. Por questionar a
eficácia dessa estratégia, o Brasil
votou - pela primeira vez - contra
uma resolução do Conselho de
Segurança, não se limitando a abster-se como em outras ocasiões.
Reforça a convicção de que a atual
rodada de sanções será tão ineficaz
quanto as anteriores o fato de que
russos e chineses se empenharam –
com êxito - em “aguar” as medidas
aprovadas no Conselho, preservando assim seus interesses comerciais
estratégicos no Irã. Certo é que - se
alguém vier a sofrer como resultado das restrições - serão os setores
mais carentes e vulneráveis da
população iraniana.
O verdadeiro risco das sanções é
de transformarem-se em uma profecia autocumprida: a necessidade
de mostrar resultados gera a tenta-
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ção de continuar aumentando as
apostas muito além de qualquer
expectativa realista de êxito. A
política de sanções adotada contra
o regime de Saddam Hussein e
seu papel decisivo em empurrar as
partes rumo à guerra em
2002/2003 oferecem uma lição
acautelatória. Vale recordar que
em 2002, meses antes, portanto,
da invasão norte-americana, relatório das Nações Unidas denunciava a morte anual de 500 mil
crianças no Iraque em decorrência
do caos criado pelo embargo: má
nutrição e falta de medicamentos
básicos. A Washington não restava senão opções adversas.
Suspender as sanções seria uma
derrota política. Intensificá-las
implicaria aumentar o desastre
humanitário. Não estranha que
Washington não tenha resistido à
tentação de resolver seu dilema
invadindo Bagdá.
A experiência brasileira
Àqueles que argumentam que o Irã
está simplesmente ganhando tempo
para fazer avançar seu programa
militar secreto, vale recordar as
ambições nucleares do Brasil no
passado. Um acordo bilateral assinado em 1983 sobre monitoramento recíproco de materiais nucleares
foi decisivo para esvaziar a rivalidade nuclear com a vizinha
Argentina. Não apenas permitiu a
vigência do Tratado de Tlatelolco
de 1968, que declarava a América
Latina uma zona livre de armas
nucleares, mas ainda abriu caminho
para um projeto ambicioso de integração econômica abarcando toda a
América do Sul. A experiência bra-
sileira em matéria de transição política e de superação da tentação das
armas nucleares recomenda, sobretudo, perseverança e prudência.
Esta é uma estratégia indispensável quando tratando com uma
nação vasta e complexa como o
Irã. Imbuído de forte consciência
de seu rico passado persa, Teerã
cultiva suas legítimas aspirações a
contribuir para moldar o destino
de uma região onde se entrechocam as principais placas tectônicas do tabuleiro político planetário. Assim como o Brasil à época,
o Irã vê-se hoje impelido por uma
lógica perversa que combina desconfiança e suspeita típicas de
uma vizinhança imersa em atmosfera de profunda insegurança.
Explicam-se assim os excessos
retóricos de Teerã, como quando
ameaça aniquilar Israel, e a linguagem igualmente agressiva de
Tel Aviv sobre um eventual revide
nuclear. O Irã está rodeado de
potências na maioria hostis e
nuclearmente armadas. Isto ajuda
a explicar – embora não justifique
– a estratégia de guerra assimétrica que leva os ayatolás a manter
vínculos com organizações acusadas de atividades terroristas.
Também como o Brasil dos anos
70, o Irã é uma sociedade vibrante e dinâmica que tateia rumo à
modernidade em meio às contradições da plenitude democrática.
Sob este ponto de vista, o Irã não
representa um problema nem uma
ameaça. Constitui, sim, componente indispensável de qualquer
solução duradoura para as desavenças no Oriente Médio. Na ver-
dade, o Irã e o desafio da paz são
inseparáveis. O impasse em que
se encontram as negociações
sobre a política nuclear de Teerã
faz recordar as prolongadas tratativas entre israelenses e palestinos. De que servem esses esforços
quando os elementos essenciais
de um acordo são sobejamente
conhecidos, mas não são postos
em prática? Foi com o intuito de
contribuir para reorientar processo que claramente perdera seu
prumo que o Brasil engajou-se na
Cúpula de Annapolis de 2008 sobre
o futuro da Palestina. Atendendo a
um pedido das autoridades em
Ramalá, o Brasil entendeu – e continua a entender – que não se superará a dinâmica viciada desse diálogo sem a participação de atores que
tragam à mesa não apenas novas
idéias, mas, sobretudo renovada
credibilidade.
É com igual espírito que o Brasil
aliou-se à Turquia para propor o
Acordo de Teerã. O resultado é
uma janela de oportunidade para
fazer a racionalidade prevalecer.
Foi convocada para as próximas
semanas uma série de reuniões
entre o Irã e o Grupo de Viena
para buscar viabilizar os termos
do acordo. O Brasil espera que
sejam esclarecidas as pendências
mútuas, pois não haverá paz no
Oriente Médio – ou em qualquer
outra parte – se isolarmos alguns
países. Foi com essa convicção
que, em 2009, o Brasil recebeu a
visita de alguns dos principais
atores no conflito do Oriente
Médio: os Presidentes do Irã, de
Israel e da Autoridade Palestina.
Em contrapartida, viajou já este
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ano a Israel, Jordânia e Palestina.
Em todos esses encontros e a
todos os interlocutores levou uma
mesma mensagem. O engajamento do Brasil no Oriente Médio tem
muito pouco a ver com a tradicional política das grandes potências.
Afinal, o país é auto-suficiente em
petróleo – principal atrativo da
região – e não possui interesses ou
vulnerabilidades estratégicas lá.
Seu envolvimento se explica por
força de um sentido de obrigação
em ajudar a promover a paz e
prosperidade no Oriente Médio. O
faz, em parte, por conta do exemplo dos 15 milhões de brasileiros
de ascendência judia e árabe. Se
aqui vivem em paz, construindo
junto o futuro deste país, porque
não haveria esses povos irmãos de
fazê-lo também em seu lar ancestral? Porque a paz no Oriente
Médio parece tão distante? Que
devemos dizer às famílias que
esperam a gerações por condições
de vida dignas e aos jovens que
encaram um futuro sem esperanças ou perspectivas? Como pedirlhes mais paciência quando inúmeras resoluções das Nações
Unidas sobre a região permanecem sem execução, ao mesmo
tempo em que os contornos de um
eventual acordo para a criação de
um Estado palestino são amplamente conhecidos?
quando os acontecimentos nessa
conflagrada região sabidamente
incidem fortemente sobre a estabilidade internacional. Como
poderia o Brasil justificar sua candidatura a membro permanente do
Conselho de Segurança das
Nações Unidas se não se empenhasse pela paz em região sujeita
a potencialmente desastrosa crise
política com conseqüências bélicas imprevisíveis.
crise de alimentos em países em
desenvolvimento, por sua vez,
deriva da elevação especulativa
de cotações de commodities agrícolas por investidores internacionais desejosos de proteger-se da
desvalorização do dólar norteamericano determinada pela política comercial de Washington. Já
a crise financeira resultante da
busca de maior rentabilidade por
parte de acionistas em nações
ricas tocou mais duramente países
A persistência do conflito no pobres sem condições de blindarOriente Médio, após mais de meio se contra a recessão global.
século de esforços negociadores,
é simbólico de falência ainda mais Num momento em que somos
profunda e ameaçadora. Não há cada vez mais interdependentes,
motivo para complacência ou pareceria lógico que a comunidaindiferença. A verdade é que o de internacional desenvolvesse
tempo não está a nosso favor. Mas formas de coordenação e tomada
não apenas no Oriente Médio. A de decisões mais inclusivas. No
crise financeira de 2008 e a resul- entanto, a despeito de compartitante recessão global, em particu- lharmos desafios globais comuns,
lar, sublinharam algo que já era não temos sido capazes de forjar
óbvio há muito: vivemos em meio um roteiro para ação conjunta.
a novas e crescentes ameaças glo- Como distribuir equanimente
bais. Elas variam desde o aqueci- esses custos e responsabilidades?
mento climático e a competição por Essa é a questão de fundo por trás
recursos energéticos e alimentícios do debate sobre a governança gloaté o crime transnacional e a vio- bal. A crescente interdependência
lência intra-estatal. Ao mesmo em matéria econômica, ambiental
tempo, velhos desafios, como a e de segurança deveria servir de
pobreza de centenas de milhões ao poderoso estímulo para nações e
redor do mundo, pandemias e a indivíduos trabalharem de forma
ameaça de devastação termo- mais cooperativa. Isto multiplicanuclear, continuam a desfiar a ria os benefícios da globalização
consciência internacional.
e, ao mesmo tempo, minoraria
Rumo à Governança Global
suas conhecias desvantagens. No
O pior é que – como no caso das entanto, não é o que se vê. As
No entanto, estão em jogo não sanções contra o Irã - são os mais mesmas forças e correntes liberaapenas os direitos e aspirações ao pobres que pagam por esses desa- das pela globalização ajudam a
bem-estar de milhões de cidadãos tinos. No que respeita à mudança exacerbar diferenças sociais e disno Oriente Médio. Ninguém pode climática, trata-se de fenômeno crepâncias econômicas pré-exisalegar que a persistência desse originado fundamentalmente nos tentes entre nações e no seu inteconflito não lhes diz respeito, países hoje industrializados. A rior. Como fazer para que diferen-
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ças num mundo interconectado
não sirvam de pretexto para os
que se consideram mais fortes ou
dotados de vantagens comparativas se sintam tentados a impor
seus interesses unilateralmente?
Seja no âmbito do G-20 financeiro,
dos Bric ou mesmo durante a
Cúpula de Copenhague sobre
mudanças climáticas, o Brasil tem
se empenhado na construção de
coligações voltadas para moldar
um marco institucional de governança global mais equilibrado,
transparente e, portanto, eficaz. Foi
com esse mesmo espírito que o
Brasil se coordenou com a Turquia
no dossiê iraniano. Esses dois países foram motivados não por uma
contestação pueril, um ativismo
primário voltado para obstruir as
ambições das tradicionais potências na região. Pelo contrário, a
Turquia é membro da Otan, aliado
estratégico dos EUA e aspirante a
membro da União Européia.
Motivou-a – assim como ao Brasil
– a percepção de que era chegada a
hora de atuar mais incisiva e diretamente no encaminhamento da paz
mundial. Àqueles que argumentam
que o Brasil deveria concentrar
esforços nos conflitos na sua própria vizinhança, ao invés de preocupar-se com o distante Oriente
Médio, a resposta é simples: é o
que já se está fazendo com a iniciativa da criação da Unasul e a
mediação brasileira em vários diferendos sul-americanos.
grama nuclear iraniano a qualquer
preço. Afinal, o país tem o direito,
consagrado no TNP, de desenvolver a energia nuclear para fins
pacíficos. É legítima, por certo, a
preocupação dos EUA e de outros
em coibir a proliferação de artefatos nucleares. Isto não será alcançado, no entanto, tentando constranger o Irã a desmantelar seu
programa atômico. A preocupante
proliferação que se vê mundialmente – a começar por Índia,
Paquistão e Coréia do Norte – não
resulta da fragilidade do regime
de não-proliferação. A saída não
está fundamentalmente em intensificar os mecanismos de controle
e inibição do emprego de uma tecnologia de uso dual. Está sim em
criar as condições de segurança e
confiança regional que afastem a
tentação de adquirir instrumentos
de dissuasão nucleares.
Este claramente é o caso do
Oriente Médio. Não parece realista
esperar que o Irã abra mão do
poder dissuasório enquanto Israel
detiver uma capacidade nuclear.
Essa realidade foi reconhecida
pelos EUA ao tabularem, em edição anterior da Conferência de
Revisão do TNP, proposta para
desnuclearizar o Oriente Médio.
Essa iniciativa continua sobre a
mesa. Estariam os atores regionais
dispostos a aderir incondicionalmente a um acordo de desnuclearização regional abrangente, sem
que cada um busque assegurar para
si uma posição de vantagem estraReceita da paz: um Oriente Médio tégica? O Brasil está convencido
de que o Acordo de Teerã pode ser
desnuclearizado
passo decisivo nessa direção.
O Brasil está convencido de que o Em 1996, ainda sob o impacto do
principal desafio no Oriente brutal assassinato do PrimeiroMédio não é interromper o pro- Ministro Itzak Rabin, o hoje
Presidente de Israel, Shimon
Perez, recordou a necessidade de
aceitar sacrifícios para alcançar
uma paz duradoura. Disse na ocasião: “A guerra tem um alto custo.
A paz também. Mas se quisermos
legar à próxima geração um
mundo sem guerras, nossa geração deve passar pelas agonias da
paz e das decisões cruciais”. Este
é o espírito que o Brasil espera
prevalecerá nas tratativas previstas para as próximas semanas com
respeito ao Acordo de Teerã.
Embora não façam parte do
Grupo de Viena, Brasil e Turquia
continuarão dispostos a colaborar.
Esperam assim contribuir para
fazer avançar o diálogo abrangente em curso entre os P-5 mais a
Alemanha e o Irã em torno de uma
agenda ampla de paz.
No âmbito dessas negociações, o
Irã vem demonstrando disposição
em flexibilizar suas posições,
sobretudo a insistência em preservar o direito de enriquecer urânio
a 20%. Alguns provavelmente
interpretarão esse gesto como
sinal de fraqueza; prova, portanto,
de que as recém-aprovadas sanções começam a ter o efeito desejado. Na visão brasileira, ao contrário, o gesto de Teerã sinaliza
que a busca do diálogo nunca
deve ser abandonada.
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Instituições Políticas Domésticas e a Política
Externa do Brasil e do México
Octavio Amorim Neto1 e Jorge A. Schiavon2
A
política externa do Brasil se caracteriza mais
pela continuidade do que pela ruptura,
enquanto que a do México se encontra em
um franco processo de transição, onde a mudança é
a norma mais do que a continuidade. As políticas
externas de ambos os países respondem tanto a fatores de índole internacional como interna. Este artigo
descreve e explica comparativamente a forma em
que a política interna destes países condiciona de
maneira fundamental suas políticas externas.
As Fontes Internas das Políticas Externas do
Brasil e do México
1. Brasil
Em 15 de janeiro de 1985, Tancredo Neves, governador de Minas Gerais entre 1983 e 1984, foi eleito
Presidente da República por um Colégio Eleitoral
integrado por todos os membros do Congresso e por
seis representantes de cada legislatura estatal. Por
uma fatalidade da história, Tancredo, mortalmente
doente, não chegou a assumir o cargo para o qual
O artigo está dividido em duas seções. A primeira e fora eleito. Assim, em 15 de março de 1985, seu
principal se dedica a elucidar os mecanismos através Vice-Presidente, o Senador José Ribamar Sarney,
dos quais as variáveis institucionais, políticas e eco- recebeu a faixa presidencial. Foi o primeiro civil a
nômicas domésticas impactam e condicionam a polí- ocupar o cargo depois de 21 anos de ditadura militar.
tica externa dos dois países; esta seção está, por sua
vez, dividida em duas partes, uma sobre o Brasil e a A transição democrática no Brasil foi longa, tendo se
outra sobre o México. Na segunda seção, apresen- iniciado em 1974, pouco depois do início do mandato
tam-se as conseqüências políticas domésticas das do terceiro general-Presidente, Ernesto Geisel.
diplomacias do México e do Brasil, depois das pos- Caracterizou-se pela realização de eleições regulares
ses de Vicente Fox e Luiz Inácio Lula da Silva – em para o Congresso Nacional, legislaturas estatais e
2000 e 2003 respectivamente – discutindo-se os assembléias municipais entre 1966 e 1978. Em 1982,
principais resultados deste artigo.
a direção dos governos estatais foi igualmente disputada através de eleições livres. A existência, na década
de 1970, de um calendário eleitoral fixo permitiu ao
então Movimento Democrático Brasileiro (MDB), um
1. Fundação Getúlio Vargas (FGV), Rio de Janeiro, Brasil.
dos dois partidos oficiais — o outro era a Aliança
Renovadora Nacional (Arena) —, mobilizar o voto
2. Centro de Investigación y Docencia Económicas (Cide), México.
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popular contra o regime autoritário,
dando às eleições m caráter cada
vez mais plebiscitário. Entre 1974 e
1982, a oposição foi aumentando o
número de assentos no Congresso,
bem como nos governos e assembléias estatais, debilitando concomitantemente as bases de sustentação política do regime militar. Nas
palavras de Lamounier (1984), o
Brasil tinha “uma abertura através
das eleições”.
Em 1984, ano de sucessão presidencial, formou-se um movimento
dissidente dentro do partido no qual
se sustentava o regime militar, o
Partido Democrata Social (PDS) —
que era o nome que a velha Arena
começou a adotar a partir da reforma eleitoral de 1979. Tancredo
Neves, candidato do Partido do
Movimento
Democrático
Brasileiro (PMDB) – as novas
siglas do velho MDB depois da
reforma –, não tardou em atrair os
dissidentes, negociando a concessão da vaga da vice-presidência
para José Sarney. A aliança entre a
oposição e os dissidentes do PDS
se tornou irresistível. Tancredo
obteve 480 votos no Colégio
Eleitoral contra 180 que ganhou o
candidato oficial, Paulo Maluf.
Uma vez que José Sarney foi
empossado como Presidente,
tomaram-se algumas medidas que
buscavam o aprofundamento da
democracia. Estabeleceram-se
eleições livres para todos os cargos executivos e legislativos,
abriu-se a formação e o funcionamento dos partidos políticos e foi
convocada uma Assembléia
Nacional Constituinte (ANC) que
incluiria todos os deputados que
foram eleitos em novembro de
1986 e os senadores eleitos na
mesma data (2/3 do total do
Senado) e no processo de 1982
(1/3 do total desta câmara).
A ANC foi instalada em fevereiro
de 1987 e concluiu seus trabalhos
em 5 de outubro de 1988, com a
promulgação da nova Constituição
de 1988. A partir desta data, o sistema político brasileiro está edificado sobre seis pilares fundamentais. Primeiro, um sistema de
governo presidencial em que o
chefe do Executivo possui importantes prerrogativas legislativas,
como o poder de promulgar
decretos com força de lei (as
medidas provisórias), o poder de
veto, a iniciativa exclusiva de projetos de leis em áreas tributárias,
orçamentárias e administrativas e
o direito de pedir um procedimento urgente para certos projetos de
lei. Segundo, um sistema legislativo bicameral no qual a Câmara e
o Senado possuem poderes simétricos. Terceiro, a adoção da
representação proporcional para a
Câmara de Deputados, legislaturas estatais e assembléias municipais e a adoção da representação
por maioria simples no Senado.
Quarto, um sistema partidário
altamente fragmentado, como
conseqüência, em boa medida, de
regras eleitorais usadas para as
eleições da Câmara de Deputados
e assembléias legislativas. Quinto,
uma federação robusta cujas unidades subnacionais dispõem de
considerável autonomia legislativa e administrativa, destinandolhes também uma importante fatia
do bolo tributário. Finalmente,
sexto, uma Constituição detalhada
e rígida, com regras de emenda
que requerem maiorias qualificadas de 3/5 em ambas as câmaras.
Em suma, o Brasil tem um modelo de democracia que, por um
lado, tende a dispersar consideravelmente o poder institucional
entre várias forças políticas devido aos últimos cinco atributos,
enquanto que, por outro, conduz a
uma grande concentração de
poder nas mãos do chefe do
Executivo e de seu partido, em
função do primeiro atributo.
Enquanto que a dispersão do
poder institucional freqüentemente contribui a tornar lento e complicado o processo decisório, a
concentração de poder nas mãos
do Presidente atua no sentido contrário. Como veremos mais adiante, esta concentração, no que diz
respeito à política externa, contribui para debilitar o papel do
Congresso Nacional.
As relações Executivo-Legislativo
sob a Constituição de 1988
A parte mais importante para
entender à dinâmica das relações
entre Executivo e Legislativo em
qualquer sistema democrático é o
sistema partidário. O Brasil tem,
desde o princípio da década de
1990, um dos sistemas partidários
mais fragmentados do mundo
(Amorim Neto et Al, 1997). Os
Quadros 1 e 2 abaixo mostram a
evolução do sistema de partidos
brasileiro, tanto na Câmara dos
Deputados como no Senado,
desde a eleição de 1982 — o primeiro processo multipartidário
realizado depois do golpe militar
de 1964.
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Quadro 1: Porcentagem de assentos na Câmara de no Senado para 11. Em termos do Número Efetivo
Deputados, por partido, no Brasil.
de Partidos (NEP), a Câmara tem 8,5 partidos,
enquanto que o Senado possui 4,7.
Quadro 2: Porcentagem de assentos no Senado, por
partido, no Brasil.
Fontes: O Globo, 10 de outubro de 2002, pág. 13; Folha de São
Paulo, Caderno Especial “Eleições”, 10 de outubro de 1998, p.
2, e Scott Mainwaring (1999, 98).
*PP uniu-se ao PPR para formar o PPB.
Fontes: O Globo, 10 de outubro de 2002, pág. 13; e Dados
Eleitorais do Brasil, http://www.iuperj.br/deb.
É fácil observar que, entre 1983 e 2003, o conjunto
de partidos representados no Congresso evoluiu de
um formato de aproximação bipartidária a um claramente multipartidário e altamente fragmentado,
principalmente na Câmara de Deputados. Depois das
últimas eleições realizadas em outubro de 2003, o
número de partidos na Câmara aumentou para 19 e
3. O número efetivo de partidos é uma medida que permite ponderar
a importância de cada partido nas Câmaras pelo número de assentos
que controla na legislatura; calcula-se usando a seguinte fórmula:
NEP = 1/[S(p i 2 )], onde p i é a porcentagem de assentos que o partido i tem na câmara (Laakso e Taagepera, 1979).
Uma das conseqüências óbvias da alta fragmentação
do sistema de partidos é que o partido do Presidente
raramente consegue ter maioria absoluta no
Congresso. Isto só aconteceu uma vez desde 1985,
depois das eleições de 1986. Porém, a maioria que o
PMDB conquistou durou pouco tempo, já que o partido se cindiu durante a ANC. A dissidência surgida
no PMDB criou, em 1988, o PSDB, partido do expresidente Fernando Henrique Cardoso.
A combinação de um sistema de governo presidencial com um sistema de partidos em que o partido do
Chefe do Executivo raramente tem a maioria do
Legislativo gera uma dinâmica institucional batizada
por Abranches (1988) de “presidencialismo de coalizão”. Sob tal fórmula política, o Presidente, como
um primeiro-ministro em um regime parlamentar,
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Novembro 2010
forma maiorias oferecendo aos
partidos políticos cargos ministeriais em troca do apoio parlamentar. Para estabilizar este tipo de
acordo político, o Presidente,
coordenadamente com os líderes
dos partidos, se vale de suas prerrogativas legislativas, o que lhe
permite controlar o volume e o
ritmo da agenda parlamentar,
como bem mostram Figueiredo e
Limongi (1999).
Porém, nota-se que, a partir da
promulgação da Constituição de
1988, o presidencialismo de coalizão funcionou plenamente, unicamente sob os mandatos de
Fernando Henrique Cardoso, que
contou com o sólido apoio da
maioria e exerceu um forte controle sobre a agenda legislativa.
Os Presidentes Sarney (principalmente ao final de seu mandato),
Collor e Franco não conseguiram
formar maiorias tão estáveis
(Amorim Neto, 2002; Amorim
Neto et Al, 2003). Ainda falta
saber como se comportará a presidência de Lula em relação a isso.
Uma das conseqüências mais relevantes do presidencialismo de
coalizão é o predomínio do
Executivo em relação à formação
da agenda legislativa e à produção
de leis do país: nada menos que
86% das leis promulgadas entre
1989 e 1998 foram de autoria do
Poder Executivo (Figueiredo e
Limongi, 1999). É claro que a
prerrogativa que o Presidente tem
de emitir decretos com força de lei
4. Esta seção se baseia substancialmente no
excelente trabalho descritivo de S. César
(2002).
(as medidas provisórias) desempenha um papel fundamental
neste resultado. Por definição, o
predomínio do Executivo significa que o Congresso encontra dificuldades para se afirmar como o
principal espaço decisório do sistema político. Mas isto não é
somente conseqüência das medidas provisórias. A baixa produção
de leis do Congresso está intimamente vinculada às curtas carreiras parlamentares no Brasil. Em
média, os deputados brasileiros
contam apenas com cinco anos na
Câmara de Deputados e não é
coincidência que somente 8%
deles consigam aprovar um projeto de lei ao longo de uma legislatura (Amorim Neto e Santos,
2003).
nos cargos ministeriais, o
Congresso consegue, de algum
modo, fazer com que o Executivo
atenda às suas preferências
(Amorim Neto e Tafner, 2002).
Trata-se, porém, de uma maneira
muito indireta e pouco visível que
o Congresso tem de exercer sua
influência e que, além disso,
impede de responsabilizar o
Legislativo diante do eleitorado,
assim como de fortalecer sua imagem de debilidade institucional.
O Congresso e a política externa4
Outro fato que dificultou a institucionalização do Congresso como
autor de legislação é a debilidade
do sistema de comissões. Estas
vêem seu trabalho de avaliação de
projetos de leis interrompido
várias vezes, devido às freqüentes
demandas de revisão de iniciativas em caráter de urgência, feitas
pelo Executivo e por líderes dos
partidos (Figueiredo, 2000). Tais
demandas têm o efeito imediato
de retirar um projeto de lei de uma
comissão e introduzir o do
Executivo imediatamente para
consideração do plenário.
A Constituição de 1988 determina
que o Chefe do Executivo é o
supremo responsável pelas relações diplomáticas do país, cabendo-lhe, de maneira exclusiva,
“manter relações com Estados
estrangeiros e acreditar seus
representantes
diplomáticos”
(artigo 84). Cabe ao Executivo
celebrar tratados, convenções e
atos internacionais (sujeitos ao
referendo do Congresso), celebrar
a paz e declarar a guerra com a
anuência do Congresso. Também
é responsabilidade do Congresso
deliberar definitivamente sobre
tratados, acordos e atos internacionais que acarretem encargos ou
compromissos gravosos ao patrimônio nacional (artigo 49); o
Senado deve aprovar a escolha
dos embaixadores (artigo 52).
A constatação da debilidade institucional do Congresso não significa, porém, que este haja abdicado
de seus poderes em benefício do
Executivo. Através dos mecanismos informais de controle sobre o
Poder Executivo, como por exemplo, a participação dos partidos
Como em qualquer outra área de
política governamental, os deputados e senadores têm o poder de
propor projetos de leis que envolvam assuntos internacionais.
Entre 1985 e 2002, os deputados
apresentaram apenas 192 projetos
(em média, 10,7 por ano) sobre
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tais assuntos, e os senadores 36 (em
média, 2 por ano) (Cesar 2002,
Cap.2). Estes valores parecem ser
ínfimos e estão em perfeita consonância com a afirmação anterior, de
que a participação do Congresso na
produção legislativa nacional é
consideravelmente pequena.
Em relação à ratificação dos
nomes indicados para o cargo de
embaixador, área da política
externa na qual o Congresso pode
exercer um importante papel,
ainda que reativo, os dados indicam que há, aparentemente, grande harmonia entre o Executivo e o
Legislativo. Quase todos os
embaixadores indicados pelo
Executivo, entre 1985 e 2002,
foram aprovados pelo Senado.
Uma das possíveis razões para
que a nomeação dos embaixadores não tenha um caráter conflituoso é que tal processo não está
politizado. Dos 557 embaixadores
indicados entre 1985 e 2002,
somente 18 (3,2%) tiveram uma
nomeação política (idem).
O Ministério de Relações
Exteriores e o Congresso
O Ministério de Relações
Exteriores (doravante, MRE ou
Itamaraty) é uma instituição altamente profissionalizada, onde
somente se entra através de concurso público e em que as promoções são outorgadas, em geral, de
forma meritória. É a agência mais
prestigiada da burocracia federal,
contando com quadros altamente
qualificados, que desfrutam de
uma boa imagem aos olhos da
elite e da opinião pública nacional
(Cheibub, 1985).
O titular do MRE é chamado de
Chanceler da República ou
Ministro de Relações Exteriores.
Das 10 nomeações para a direção
do Itamaraty feitas entre 1985 e
2003, três foram de políticos com
filiação partidária: Olavo Setúbal
(PFL, 15/03/1985 - 14/02/1986);
Roberto de Abreu Sodré (PFL,
14/02/1986 - 15/03/1990) e
Fernando Henrique Cardoso
(PSDB,
05/10/1992
20/05/1993); dois eram juristas ou
acadêmicos: Francisco Rezek
(15/03/1990 - 13/04/1992) e
Celso Lafer, que também era filiado ao PSDB, tendo sido chefe do
MRE por duas vezes (13/04/199202/10/1992
e
29/01/200101/01/2003); e quatro foram
diplomatas de carreira: duas vezes
para Felipe Lampreia (01/01/9501/01/1999
e
01/01/199912/01/2001) e duas vezes para
Celso Amorim (20/07/199301/01/95 e 01/01/2003 - presente).
Os políticos ocuparam o MRE
durante aproximadamente 30% do
tempo transcorrido entre março de
1985 e julho de 2003. Esta é uma
evidência que faz pensar na pouca
importância que a política externa
tem para os partidos.
ção informal entre Executivo e
Legislativo. Mesmo quando o
MRE tem uma área especial de
relações com o Congresso, César
(idem) diz que parece que há poucos contatos informais entre diplomatas e parlamentares. O maior
problema sobre esta inexistência de
mecanismos de comunicação entre
o MRE e os parlamentares se refere ao curso das negociações dos tratados internacionais.
Quanto aos tratados internacionais, foram processados 654 na
Câmara entre 1985 e 2001 (38 tratados, em média, por ano; 6
meses, em média, no tempo de sua
tramitação). Nenhum tratado foi
rejeitado em sua totalidade;
somente 4 foram retirados. No
Senado, foram avaliados 564 tratados durante o mesmo período,
depois de terem sido retirados
somente dois (César, 2002).
Os dados apresentados parecem
indicar uma grande passividade
do Congresso na área da política
externa. Não são poucos os autores que pensam que isto é o que
acontece. Por exemplo, para
Oliveira (2001), o Parlamento e os
partidos brasileiros abdicaram de
tratar de assuntos de política
externa, sobretudo quanto ao processo de integração regional
(Mercosul), uma das questões
mais importantes na agenda diplomática brasileira. De acordo com
o mesmo autor, a razão subjacente
de tal abdicação está no escasso
rendimento eleitoral dos temas
internacionais (idem). Trata-se,
porém, de um ponto polêmico.
Com alguma freqüência, o chanceler é chamado a comparecer
diante das Comissões de Relações
Exteriores e de Defesa Nacional
no Congresso, um mecanismo
clássico de controle parlamentar.
Porém, segundo César (2002),
existem contatos informais entre
os parlamentares e o chanceler
que permitem que este tome
conhecimento do que aqueles
pensam, o que pode ser considerado um mecanismo de coordena- Utilizando os argumentos de
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Martin (2000) e de Neves (2002)
oferecem uma interpretação diferente para a reação do Congresso
diante dos desafios da integração
regional. Quando há convergência
de interesses entre o Executivo e o
Legislativo, este último delega plenos poderes ao primeiro, e este é o
caso da conduta aparentemente
passiva dos parlamentares em relação ao Mercosul. Além disso,
quando há divergência entre tais
interesses, o Legislativo busca
influenciar direta ou indiretamente
o Executivo, manifestando posturas firmes sobre os assuntos e exigindo uma participação direta nas
negociações. Tal seria o caso do
tratamento diplomático e comercial
referente à Área de Livre Comércio
das Américas (lca).
No que diz respeito à política
comercial, Lima e Santos (2001)
afirmam que a linha seguida
durante o governo de Sarney e o
processo de abertura comercial
realizado durante os governos de
Collor, Franco e Cardoso representaram uma abdicação do
Congresso, já que tais políticas
foram executadas, em grande
medida, através dos instrumentos
legislativos do Executivo, herdados do regime militar.
Pinheiro (2003) tece uma interpretação intermediária entre as perspectivas de abdicação e delegação.
De acordo com a autora, o regime
democrático instalado em 1985
causou um crescente – por assim
dizer – “des-isolamento” do
Itamaraty em relação a atores
sociais e legislativos, gerando
assim um maior grau de representatividade para a política externa bra-
sileira. Porém, este “des-isolamento” não produziu uma plena responsabilização da Chancelaria
diante dos atores mencionados, por
ter esta não somente maior informação e treinamento técnico que o
Congresso e a sociedade organizada, como também devido a sua
autonomia decisória tradicional.
Em outras palavras, para Pinheiro,
a política externa brasileira é formalmente representativa, mas não é
efetivamente responsável.
A principal lição que se pode
extrair das diversas interpretações
anteriormente descritas sobre o
grau da participação e do controle
do Congresso brasileiro na política externa é que a relevância política e eleitoral dos temas internacionais é uma condição necessária
mas não suficiente para que o
poder legislativo se mobilize e
atue em relação a ela. A condição
suficiente é que os parlamentares
possuam informação de boa qualidade para que possam saber se o
Executivo favorece os interesses
do país na área diplomática. Tudo
o que foi anteriormente exposto
indica que esta condição ainda
não foi preenchida. Então, podese dizer que, sem dúvida, há um
déficit democrático na formulação
e execução da política externa
brasileira.
Política externa e representação
de interesses: as atitudes e percepções das elites
Recentemente, Souza (2002) realizou um trabalho seminal sobre
as atitudes e percepções das elites
brasileiras em relação à política
externa. O trabalhou baseou-se
em uma pesquisa respondida por
101 pessoas consideradas membros das elites política, acadêmica, empresarial, sindical e jornalística do país envolvidas, de
alguma maneira, com a política
externa do país – a chamada
comunidade de política externa.
A principal mensagem do estudo
pode resumir-se na seguinte
frase: a política externa nacional
goza de um bom conceito entre
as elites, porém, a percepção
geral é de que o Itamaraty dá
pouca atenção ao Congresso e às
opiniões e propostas de amplos
segmentos da sociedade e de
outros ministérios (idem). Como
se explica esta aparente contradição entre o bom conceito da política externa e a imagem de falta
de atenção que o MRE tem?
Uma possível resposta para esta
pergunta pode ser que o Itamaraty
é uma burocracia de alta qualidade. Porém, de acordo com o resultado da seção sobre o Congresso,
os mecanismos de controle usados
por este são informais e, conseqüentemente, de baixa visibilidade pública. Além disso, como se
mencionou na seção anterior, é
inegável a enorme assimetria de
informação que existe entre o
MRE, por um lado, e a sociedade
e o Congresso, por outro. Outra
explicação é que a política externa
do MRE é boa para os problemas
diplomáticos e estratégicos velhos
e clássicos do país. Porém, o
Itamaraty não parece estar preparado – burocrática e politicamente
– para as novas questões e atores
internacionais descritos na primeira seção do artigo, nem para
alguns aspectos novos como o
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Fórum Social de Porto Alegre e as
negociações comerciais da Alça
(Herz e Lima, 2002). Daí se origina a dissociação que existe entre a
boa avaliação da política externa
em geral e a percepção crítica
sobre a relação do Itamaraty com
o Congresso e a sociedade. Em
resumo, os resultados da pesquisa
com as elites, feita por Souza, corroboram a noção de que existe um
“déficit” democrático na formulação da política externa brasileira.
Assim, a política externa do
Itamaraty é altamente profissional
e favoravelmente percebida pela
população, embora não necessariamente recorra a ela ou a seus
representantes no Congresso para
formular ou executar tal política.
2. México
As relações ExecutivoLegislativo no México
No que se refere à transição
democrática, tratou-se de um processo muito lento – como no
Brasil — e um tanto superficial;
lento porque se iniciou com
pequenas concessões do regime
priista desde o governo de Luis
Echeverría até o de Ernesto
Zedillo, e superficial, porque
mesmo quando o Partido
Revolucionário
Institucional
5. Na condução da política externa, o
Presidente deve observar os princípios normativos de política externa estabelecidos
no mesmo artigo: “a autodeterminação dos
povos; a não intervenção; a solução pacífica de controvérsias; a proscrição da ameaça
ou o uso da força nas relações internacionais; a igualdade jurídica dos Estados; a
cooperação internacional para o desenvolvimento; e a luta pela paz e pela segurança
internacionais” (artigo 89, parágrafo X).
(PRI) perdeu a presidência da
república nas eleições de 2000, a
estrutura institucional do sistema
se manteve praticamente intacta.
De acordo com a Constituição
Política dos Estados Unidos
Mexicanos, promulgada em 1917
e reformada em inúmeras ocasiões, o México é um sistema
democrático de tipo presidencial,
bicameral forte (câmaras simétricas e incongruentes) e federal, isto
é, em termos de divisão institucional do poder, um dos casos em
que esta é maior. Porém, durante
praticamente 70 anos de hegemonia priista, o México funcionou
como um dos sistemas políticos
mais centralizados em nível internacional. Isto se devia à fusão
entre o Executivo federal e o partido oficial, o qual transformava o
Presidente mexicano no ator principal do sistema, ao ostentar enormes poderes meta-constitucionais
(presidencialismo) que se sustentavam no fato de ser ele o líder do
partido que tinha a maioria em
ambas as câmaras legislativas e a
totalidade dos governos estatais
(até 1989). Ora, devido a fatores
estruturais (crise econômica), institucionais (reformas eleitorais), culturais (modernização) e internacionais (globalização) (Schiavon,
2005), a hegemonia do PRI foi-se
desgastando
paulatinamente
durante as últimas décadas.
Assim, o longo processo de democratização chegou a suas etapas
finais quando o PRI perdeu a
maioria na Câmara de Deputados
em 1997 e culminou com a eleição de Vicente Fox do Partido de
Ação
Nacional
(PAN)
à
Presidência da República, nas
eleições de 2000.
Em termos de política externa, no
sistema político mexicano, o
poder soberano encontra-se compartilhado pelos três poderes do
governo. De acordo com a
Constituição, uma das atribuições
do Executivo é “dirigir a política
externa e celebrar tratados internacionais, submetendo-os à aprovação do Senado” (artigo 89,
parágrafo X).5 Uma vez que os
tratados são concluídos, o
Executivo deve apresentá-los ao
Senado para sua aprovação, obtida com o voto a favor da maioria
do plenário da Câmara Alta (artigo 76, parágrafo I). Além disso,
são atribuições exclusivas do
Senado “analisar a política externa desenvolvida pelo Executivo
Federal, com base nos relatórios
anuais que o Presidente da
República e o Secretário do despacho correspondente prestam ao
Congresso” (artigo 76, parágrafo
I), “ratificar as nomeações que o
mesmo funcionário [o Presidente]
faça de [...] agentes diplomáticos,
cônsules gerais [...]” (artigo 76,
parágrafo II), enquanto que o
Congresso da União deve conceder permissão ao Presidente da
República para ausentar-se do território nacional (artigo 88). Em
relação aos tratados, depois de
obter a aprovação no âmbito interno, estes são ratificados internacionalmente pelo Executivo (artigo 89, parágrafo X). Uma vez ratificados, e se não contradizem ou
violam a Constituição, os tratados
se convertem em parte da Lei
Suprema da Nação, no mesmo
nível da Constituição. Assim, o
Poder Judiciário tem a atribuição
e a obrigação de aplicá-los,
mesmo que passando por cima
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das disposições em contrário que
possam existir nas leis secundárias e nas constituições dos
Estados (artigo 133).
seu sucessor, controlar nomeaçõeschave dentro do partido e nomear
os ministros da Corte Suprema,
gerou uma supremacia do
Executivo sobre o Congresso e o
Porém, na realidade, particular- Poder Judiciário, bem como sobre
mente antes de 1997, existia uma os governos estaduais.6
enorme assimetria de poder entre
os três poderes do governo no Portanto, o Presidente possuía
México. O grande poder do extensos poderes constitucionais,
Executivo e seu controle sobre o particularmente em matéria de
Legislativo e o Judiciário podem política externa, e grandes podeser entendidos analisando a rela- res informais, porque era o líder
ção entre os atores centrais do sis- praticamente indiscutível de um
tema: o Presidente e o partido com partido altamente disciplinado
poder hegemônico, o PRI. Em um que manteve, ininterruptamente
sistema presidencial, o poder do até 1997 (por mais de 60 anos), a
Executivo depende de quatro fato- maioria absoluta em ambas as
res: os poderes constitucionais do câmaras do Congresso e que conPresidente, a força do partido do trolava as nomeações dos minisPresidente dentro do Congresso, o tros da Corte Suprema e de numegrau de disciplina imposta pelos rosos funcionários estatais.
líderes partidários aos membros
do partido, e a concorrência que o Secretaria de Relações
Presidente enfrenta de rivais den- Exteriores e política externa
tro de seu próprio partido
(Weldon, 1997). Desde a sua fun- Em termos de política externa, o
dação, em 1929, até 1997, o PRI Presidente sempre gozou do direiobteve a maioria absoluta — algu- to de nomear seus secretários de
mas vezes com mais de 90% dos estado, entre os quais seu
assentos — em ambas as câmaras Secretário de Relações Exteriores
do Congresso. Além disso, a partir ou Chanceler. Este sempre foi
uma pessoa da inteira confiança
da metade da década de 1930, o
do Presidente e, mesmo quando
Presidente se tornou o líder de fato
no passado se procurava que fosse
do partido. Isto, combinado ao fato um destacado diplomata de carreide que não existiu reeleição conse- ra, nos quatro últimos sexênios
cutiva no Congresso e nenhum tipo (De la Madrid, Salinas, Zedillo e
de reeleição na presidência, desde Fox), o Secretário de Relações
essa época, e que o partido delegou Exteriores não foi um membro do
ao Presidente o poder de designar Serviço Exterior Mexicano
(SEM) – exceto nos últimos 11
meses da administração Salinas,
6. Este poder era exercido através da nomea- quando o Embaixador Tello subsção dos candidatos do partido aos governos tituiu Manuel Camacho. Isto
estatais; em alguns casos, sua remoção do mudou na administração de Felipe
poder se dava mediante mecanismos constitu- Calderón Hinojosa (2006-2012),
cionais através do Senado, controlado pelo
que nomeou Patricia Espinosa,
PRI, ou mediante renúncias negociadas.
embaixadora de carreira do SEM,
como Chanceler.
Em relação ao pessoal diplomático
no México, até 2003, o SEM era o
único serviço civil de carreira no
país, onde o ingresso e as promoções se definiam de acordo com o
mérito, através de exames periódicos. Porém, diante do gigantesco
poderio do Presidente, a burocracia
em matéria de política externa sempre esteve ao serviço do Executivo
da vez. Um exemplo disso é que
uma parte substancial dos embaixadores mexicanos no exterior não
era diplomata de carreira, mas sim
pessoas designadas pelo Presidente
– aproximadamente 40%; isto não
mudou significativamente na última administração priista nem no
governo de Fox, onde 38 e 37%
(em 1998 e 2001, respectivamente)
dos embaixadores em postos no
exterior não eram membros do
SEM. O governo do Presidente
Calderón estabeleceu como parâmetro uma distribuição de 65% de
nomeações de embaixadores de
carreira ante a 35% de nomeações
políticas.
Tudo o que foi anteriormente
exposto permitiu ao Presidente
impor suas preferências de política pública na maior parte do
tempo, já que os outros dois poderes do governo estavam sob seu
controle indireto e, portanto,
apoiavam suas políticas, particularmente na área de política externa. Porém, no caso de que o
Presidente perdesse a maioria nas
câmaras, ou deixasse de ser o líder
indiscutível dentro de seu partido,
ou começasse a agir de maneira
indisciplinada, perderia todos os
seus poderes extraconstitucionais,
mantendo apenas os estabelecidos
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na Carta Magna. Como será discutido na próxima
seção, isto aconteceu paulatinamente entre 1997 e
2000, consolidando-se com o triunfo de Vicente Fox
nas eleições de julho de 2000 e mantendo-se nas
eleições de 2006.
2000 e 2006. Como se pode observar neste quadro,
as prerrogativas em matéria de condução da política
externa no México têm sido uma constante; porém,
devido à conjunção com as outras variáveis institucionais e partidárias, estas passam de uma situação
de total controle por parte do Executivo (sem
Presidência, Congresso e política externa
nenhum questionamento por parte dos outros
Poderes da União) a uma situação em que o
A partir das variáveis institucionais e partidárias do Executivo verá questionadas suas ações em assuntos
sistema político mexicano, elaborou-se o Quadro 3, de política externa.
onde se compara a situação do México de 1982 a
Quadro 3: Instituições e distribuição de poder no México, 1982-2000-2006
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Fonte: Elaboração dos autores
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7. As legislaturas simétricas são aquelas que são democraticamente
eleitas e com poderes constitucionais iguais ou ligeiramente desiguais; inversamente, as assimétricas são aquelas cujos membros da
câmara alta não foram eleitos democraticamente e cuja distribuição de
poderes entre as câmaras é muito desigual. Por outro lado, as legislaturas incongruentes são aquelas cuja fórmula de eleição na câmara alta
busca a sobre-representação de minorias nacionais (territoriais, étnicas, culturais ou tradicionais) tendo, portanto, composição entre as
câmaras muito diferente; em oposição, as congruentes são aquelas
com fórmulas de eleição similares que geram composições relativamente iguais. Lijphart (1999, 206-208).
8. Existe governo justaposto em nível estadual quando a filiação
partidária da maioria dos governadores é diferente da do Executivo
federal. Em 2005, no México, a filiação partidária dos executivos
estaduais era a seguinte (no caso das coalizões, atribui-se o controle ao partido majoritário das mesmas): PRI, 58.13%; PAN, 28.12%;
PRD, 18.75% (calculado pelos autores com dados do Instituto
Federal Eleitoral).
9. A disciplina partidária pode ser medida com a utilização do índice de Rice, de acordo com a seguinte fórmula: Ii = %Favori -
Em 1982, o partido do Presidente,
o PRI, controlava 74,8% e 98,4%
dos assentos das Câmaras de
Deputados e Senadores respectivamente, o que gerava uma fragmentação partidária muito baixa
no sistema (NEP em Deputados:
1.720; NEP em Senadores:
1.032), ao mesmo tempo em que o
federalismo mexicano se via ofuscado pelo fato da totalidade dos
governadores estaduais serem
priistas, dando lugar ao grau
máximo de governo unitário.
Adicionalmente, a disciplina dos
congressistas do PRI era praticamente absoluta, uma vez que o
futuro de suas carreiras políticas
dependia do líder do partido, ao
mesmo Presidente da República.
Não é de surpreender que a combinação das variáveis institucional
e partidária anteriores fizesse do
bicameralismo, da divisão de
poderes, do federalismo e do controle sobre a gestão da política
%Contrai . O índice representa a diferença de porcentagem de
votos a favor menos a porcentagem de votos contra de uma fração
parlamentar “i”; varia entre 0 a 1, onde 0 significa total indisciplina (os membros da fração parlamentar votam metade a favor e metade contra: 0.50-0.50=0) e 1 implica total disciplina (todos os
membros de uma fração parlamentar votam no mesmo sentido: 10 = 1 ó 0-1 = 1). Na Câmara dos Deputados, o índice de Rice e
o de Rice modificado (abstenções são tomadas como votos contrários) para a 57ª legislatura (1997-2000) foram: PRI, 0.997 e 0.993;
PAN, 0.928 e 0.882; PRD, 0.925 e 0.883; para a 58ª legislatura
(2000-2003), foram: PRI, 0.931 e 0.900; PAN, 0.976 e 0.959;
PRD, 0.934 e 0.926. Não existem dados confiáveis para legislaturas anteriores, mas a maioria dos autores afirma que a disciplina tendia a 1.00. Weldon (2003, 206-217).
10. Na 60ª legislatura (2006-2009), durante o primeiro período de
sessões (segundo semestre de 2006), o índice de Rice modificado
foi: PRI, 0.96, PAN, 0.98 e PRD, 0.92.
Ver: http://www.monitorlegislativo.org/
indicadores.php?tab=1#disc_partido
externa variáveis sem transcendência. Em tal situação, a política
externa refletia as preferências do
Executivo federal, diante de seu
domínio sobre o sistema, particularmente sobre o Legislativo.
Porém, mesmo mantendo-se a
configuração institucional intacta,
o número de jogadores com veto e
sua natureza mudaram dramaticamente ao longo dos últimos anos.
Para o ano de 2000, a fragmentação partidária aumentou consideravelmente, particularmente na
Câmara alta (NEP Deputados
2.769 (2000) e 3.520 (2006); NEP
Senadores: 2.786 (2000) e 3.596
(2006), ao mesmo tempo em que
se observa um governo dividido,
uma vez que o PAN ganha a presidência em 2000 e nenhum partido
controla a maioria absoluta (50%
+ 1 dos assentos) em nenhuma das
câmaras, embora o PRI tenha conservado uma maioria simples de
assentos em ambas as instâncias
em 2000 (42,2% e 46,1% nas
Câmaras de Deputados e
Senadores, respectivamente) e o
PAN tenha fortalecido sua presença em 2006 sem alcançar a maioria absoluta (41,4% e 40,6% nas
Câmaras de Deputados e
Senadores, respectivamente).
Além disso, observa-se um governo superposto, onde o PAN controla uma quarta parte dos governos
estaduais em 2000 e 2006 (25,0%),
enquanto que a disciplina partidária
encontra-se em franco declive nos
três principais partidos políticos
(PRI, PAN e PRD), por causa das
lutas internas de poder entre facções no interior de todos eles.
Assim, dada esta combinação de
variáveis institucionais e partidárias, o bicameralismo, o federalismo e a divisão de poderes no
México adquiriam uma renovada e
substancial importância, ao mesmo
tempo em que têm forte impacto
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sobre as liberdades do Executivo de
No futuro se observarão constantes
questionamentos na forma em que
este conduz as relações exteriores
do país, feitos pelo Poder
Legislativo, preponderantemente
pelo Senado da República.
Legislativo – particularmente com
o Senado –, observaram-se
enfrentamentos entre o Presidente
e a Câmara Alta, chegando ao
máximo quando a referida
Câmara negou ao Executivo pela
primeira vez na história moderna
do país, em abril de 2002, uma
Tradicionalmente, o Senado permissão para viajar aos Estados
mexicano havia sido completa- Unidos e ao Canadá.11
mente submisso diante do
Executivo em matéria de política Ao tomar conhecimento da negaexterna. Por exemplo, durante tiva do Senado em autorizar a viatodos os anos de hegemonia priis- gem, o Presidente se reuniu com
ta, o Senado aprovou ligeiramente seus Secretários de Governo e
todos os tratados internacionais Relações Exteriores, Santiago
submetidos pelo Executivo, além Creel e Jorge Castañeda, para
de que nunca modificou partes definir a resposta ao Senado; a
destes, já que, mesmo sem estar estratégia que se decidiu adotar
estabelecida na Constituição, foi que o Presidente se apresentavigorava a regra de que o Senado ria nos meios de comunicação
não contava com veto parcial, para que a opinião pública decipelo que só podia aprovar ou não disse sobre este conflito entre
os tratados, sem ter a oportunida- poderes. Fox apareceu nessa
de de modificá-los. Porém, com o mesma noite nos meios eletrônitriunfo da oposição em 2000, na cos de comunicação para censurelação entre Executivo e rar, em uma transmissão em
cadeia nacional, a atitude do
Senado, e responsabilizar a oposi11. O propósito desta visita era de fortalecer
os esquemas de proteção aos mexicanos no ção no Congresso por criar obstáestrangeiro, indiferentemente de sua situa- culos para a mudança pela qual o
ção migratória, e ampliar, atrair e desenca- povo do México votara nas eleidear novas oportunidades de investimentos
e negócios para o México. O Senado argu- ções de julho de 2000. Em sua
mentou que não possuía informação sufi- mensagem, Fox acusou o PRI de
ciente sobre os motivos da viagem. Nos 16 ser o responsável pelo cancelameses em que Fox estava como Presidente,
mento da viagem presidencial e,
o Senado autorizou 16 viagens ao exterior,
mas esta, a viagem 17, não foi autorizada. conseqüentemente, de frustrar
As comissões de Governo e Relações todos os objetivos da excursão
Exteriores do Senado, ambas presididas (Marin, 2002). Esta foi a última
pelo PRI, votaram a favor de autorizar a viavez em que houve um enfrentagem. Porém, quando o tema passou ao plenário da Câmara, o voto unido e majoritário mento direto entre Executivo e
da oposição (PRI, PRD e Partido Verde Legislativo, em matéria de polítiEcologista) negou ao Presidente a permis- ca externa, já que, a partir deste
são para ausentar-se do país; somente os 41
membros do PAN votaram a favor. Isso episódio, o Presidente buscou
reflete a submissão das comissões no incluir em sua política externa as
Senado diante das diretrizes das dirigências prioridades da oposição, como
partidárias.
ocorreu particularmente ao não
apoiar os Estados Unidos no
Conselho de Segurança para realizar uma ação armada contra o
Iraque em fevereiro e março de
2003 (Schiavon, 2004).
Assim, mesmo que o Executivo
siga controlando a condução da
política externa, a transição democrática tem tido como conseqüência a multiplicação dos atores que
buscam participar da mesma, em
diferentes instâncias: entre as
dependências do Executivo federal (já não só a Chancelaria), entre
os Poderes da União (particularmente o Senado), entre as ordens
de
governo
(especialmente
Estados e municípios) (Schiavon,
2006) e também com atores não
estatais como ONGs, grupos de
poder (empresariais, sindicais,
partidários) e empresas transnacionais. Em uma democracia, a
política externa, como qualquer
outra política pública, deve refletir os interesses da população. Por
isso, o Executivo federal, através
da Chancelaria, é responsável por
consolidar uma política externa
democrática que integre as posições e interesses de todos estes
atores, para evitar ter uma política
externa fragmentada; assim, é
necessário que a Chancelaria conduza uma política externa que seja
única e democrática, isto é, integral e representativa dos interesses da maioria dos mexicanos.
As Conseqüências Políticas das
Diplomacias de Fox e Lula
1. Brasil
O Partido dos Trabalhadores (PT)
é, tradicionalmente, o partido com
as maiores preocupações em
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matéria de política externa em seu
programa de governo (Oliveira,
2001). Conseqüentemente, com a
chegada de Lula ao poder, era de
se esperar uma maior partidarização e ideologização da condução
do MRE. Dois bons exemplos
foram o esforço feito por Lula, no
início de seu mandato, de aproximação
com
o
debilitado
Presidente Hugo Chávez, com
quem
Fernando
Henrique
Cardoso havia mantido uma relação distante, e a visita de Lula a
Cuba, em setembro de 2003. A
aproximação de Chávez foi vista
pela oposição venezuelana como
uma interferência do Brasil em
assuntos internos do país, obrigando Lula a afastar-se de
Chávez. A reação negativa da
oposição venezuelana e de setores
da opinião pública brasileira forçou a diplomacia de Lula a ser
mais pragmática, como o demonstra sua moderada oposição à
Segunda Guerra do Golfo e a aceitação de concluir as negociações
da Alca em 2005, mesma postura
mantida pelo governo de
Fernando Henrique Cardoso.
Porém, Lula terá sempre um incentivo para utilizar a diplomacia
como um mecanismo para mostrar
aos radicais de seu partido e a seu
eleitorado tradicional que seu
governo ainda é de esquerda, apesar de seguir uma política econômica conservadora. Foi esta a motivação de sua visita a Cuba em setembro de 2003, muito criticada por
vários setores políticos.
oposição, principalmente o PSDB
e o PFL, não têm posturas firmes
em seus programas em relação a
um dos principais assuntos internacionais dos próximos anos, a
saber, a integração regional
(Oliveira, 2001). A menos que
este assunto se torne mais relevante do ponto de vista eleitoral,
ou que o PFL e o PSDB mobilizem os temas de política externa
como uma forma de marcar sua
oposição ao governo, é provável
que a relação do Congresso com o
MRE não mude muito nos próximos anos. Porém, visto que os
principais desafios internacionais
que o Brasil enfrentará nos próximos anos (Alca, Mercosul e as
negociações na Organização
Mundial de Comércio / OMC)
terão importantes impactos distributivos (Lima, 2003), pode-se
dizer que as possibilidades de que
os temas da política externa
fiquem mais politizados não são
muitas, o que criará incentivos
para que o Congresso e os atores
da sociedade civil organizada se
envolvam mais na formulação da
política externa brasileira.
2. México
Como afirmado anteriormente, a
mudança é a característica central
da política externa do México, o
que reflete as mudanças econômicas e políticas do sistema interno. É
um mito que as grandes mudanças
na política externa mexicana se iniciam no ano 2000 com a derrota do
A entrada do PT no governo tam- PRI nas eleições de 2 de julho e o
bém pode significar uma partici- triunfo de Vicente Fox na eleição
pação ainda menos ativa do presidencial. A realidade é que a
Congresso nas questões de políti- política externa do México tem
ca externa, já que os partidos de mudado paulatinamente há pelo
menos três sexênios: primeiro, lentamente, no sexênio de Miguel de
la Madrid, com o início da reforma
econômica ou estrutural; depois,
durante a administração de Salinas
de Gortari aprofunda-se esta
mudança na política econômica
externa, com a negociação e assinatura do Tratado de Livre Comércio
da América do Norte (Nafta) e,
finalmente, consolida-se no governo de Zedillo Ponce de León, com
a assinatura do Acordo de
Associação
Econômica,
Concertação Política e Cooperação
entre o México e a União Européia,
também conhecido como Tratado
de Livre Comércio com a União
Européia (TLCUE), com a perda
da maioria priista na Câmara de
Deputados e, por último, com o
triunfo da oposição nas eleições de
2000.
Ora, esta mudança na política
externa do país tem sido lenta e
tem-se caracterizado por ficar
para trás diante de outras viradas
internas, na área econômica
(reforma econômica e estrutural)
e política (transição democrática),
além de ser desigual em seus diferentes componentes, observandose mudanças substanciais em
questões de política econômica
internacional e modificações
menores em assuntos de segurança internacional. Porém, não se
trata da área mais atrasada dentro
das políticas públicas nacionais,
sendo ainda menores as mudanças
em outras matérias, como a política tributária e de impostos, a
segurança nacional e segurança
pública, no sistema judiciário e de
distribuição de justiça. Além
disso, mesmo que os princípios
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doutrinários tradicionais da política externa do México estejam
intactos
e
impressos
na
Constituição, a prática diplomática tem se dinamizado, aprofundando a já existente separação
entre
doutrina
e
ações.
Finalmente, cabe destacar que
existe uma tendência clara em –
pelo menos – três aspectos centrais da política externa do país
durante os governos de Fox e
Calderón. Primeiro, ela passou de
ser de caráter reativo a pró-ativo;
segundo, está transformando sua
natureza legalista em uma mais
pragmática; e, terceiro, passou de
uma posição de isolamento relativo a uma de abertura ao mundo.
Estas tendências já se observavam
na área de política externa comercial desde o sexênio de Salinas,
mas nas administrações de Fox e
Calderón, se generalizaram a
todas as áreas de política externa.
Diante do complexo e mutante
sistema internacional e das importantes transformações econômicas
e políticas internas no México, o
governo do Presidente Fox tem
continuado a modificar as prioridades da política externa do país.
Os pontos relevantes da política
externa de Fox, tanto com o
Chanceler Castañeda como com
Derbez, referem-se a alcançar um
equilíbrio entre dois pilares fundamentais: em primeiro lugar,
consolidar uma relação estratégica com os Estados Unidos (dada à
posição
geo-estratégica
do
México) e, em segundo lugar, a
12. México, Leyes, Ley Orgánica de la
Administración Pública Federal, México,
Porrúa, 2004, artigo 28, inciso I.
dar andamento a uma política de
multilateralismo estratégico com
as demais regiões importantes
para o México (América Latina e
Caribe, Europa e Bacia do
Pacífico, particularmente) e no
interior dos diferentes organismos
internacionais dos quais o México
é membro (Castañeda, 2001). Esta
estratégia não foi modificada
substancialmente durante o governo de Calderón.
particularmente com os partidos
políticos
representados
no
Legislativo, especialmente no
Senado, que desejam participar
mais ativamente da matéria; quarto, com as outras ordens de governo (em conjunção com a
Secretaria de Governo), especialmente as entidades da Federação,
que estão crescentemente estabelecendo relações com outros
Estados, províncias e ordens
locais de governo no âmbito interPorém, a execução da nova políti- nacional; finalmente, quinto, ante
ca externa viu-se complicada pela grupos de interesse como partidos
redução de poderes reais do políticos, grupos empresariais,
Presidente diante do governo divi- sindicatos e organizações nãodido no país e da maior participa- governamentais, entre outros.
ção do Poder Legislativo, particularmente do Senado, em questões De acordo com a Lei Orgânica da
de política externa. Para realmen- Administração Pública Federal, a
te poder tornar operativa a nova SRE é encarregada de promover,
política externa, o governo de Fox propiciar e assegurar a coordenadeve fazer uma reorganização ção de ações no exterior das entidaburocrática em termos de política des
e
departamentos
da
externa no México. Para isso, a Administração Pública Federal e
Secretaria de Relações Exteriores sem afetar as atribuições que a cada
deve ser o ator no país que agre- uma delas corresponda, conduzir a
gue os interesses nacionais em política externa12. Assim sendo, a
relação ao exterior, para o que SRE é, dentro do aparato governadeve resolver conflitos fundamen- mental, a instância encarregada da
tais em cinco instâncias: primeiro, condução da política externa. Para
em seu interior, com o Serviço fazê-lo efetivamente, deve cumprir
Exterior Mexicano que se sentiu duas funções essenciais: coordenar
relegado a um segundo plano e representar os interesses dos
durante a administração Fox, diversos atores presentes em quesdevido à distância de seus dois tões externas.
Chanceleres dos interesses tradicionais do SEM; segundo, com os Os novos atores podem ter intedemais órgãos e secretarias da resses muito diversos em matéria
administração pública federal que de política internacional, requeestão conduzindo suas relações rendo representação efetiva e efiexternas em suas áreas de respon- ciente ao redor do mundo. Ante
sabilidade, muitas vezes, sem tal realidade, é necessário gerar
informar à Chancelaria; terceiro, mais que uma política exterior de
com os outros Poderes da União, Estado, uma política externa coor-
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denada e representativa. A SRE
deve conciliar o crescente número
de interesses – alguns provavelmente divergentes – e integrá-los
de maneira coerente e harmônica.
Requer-se uma política externa
cujo resultado seja uma voz única
no exterior, composta pela agregação dos diferentes interesses
representados nos poderes da
União, nas ordens de governo, nas
instâncias administrativas e nos
grupos de interesse.
somente em termos de países,
áreas geográficas, organismos
internacionais, temas da agenda
ou projetos específicos, como
também através da reestruturação
dos mecanismos de coordenação
burocrática e administrativa para
executá-las.
No que se refere à primeira e terceira recomendações, a criação de um
gabinete de política exterior pode
ajudar a estabelecer prioridades
presidenciais em matéria internacional e a fortalecer a coordenação
entre a SRE e as demais instâncias
burocráticas com interesses em
assuntos externos. Este gabinete
pode resolver os problemas de
coordenação burocrática, ao monitorar a execução das instruções presidenciais e reportar diretamente ao
Presidente da República sobre
estas. Assim, funciona como um
mecanismo de designação de responsabilidades específicas aos
Secretários de Estado, de tal maneira que estes sejam pessoalmente
responsáveis, ante o Presidente,
pelas tarefas que lhes são atribuídas. Isto contribuiria para uma condução da política externa com
maior efetividade, eficiência e
representatividade.13
Para melhorar e aperfeiçoar a
coordenação e a representação
internacional por parte da SRE,
deve-se fortalecer os laços institucionais de informação e tomada
de decisões entre os diversos atores envolvidos. Algumas opções
neste sentido seriam: 1) em relação às instituições, criar comissões intersecretariais, um gabinete
de política exterior e um órgão de
coordenação com entidades federativas e locais; 2) em matéria de
capital humano, aprofundar a profissionalização
do
Serviço
Exterior Mexicano (SEM) e aperfeiçoar sua estrutura de incentivos
e de desenvolvimento profissional
com base no mérito e no desempenho das funções; 3) em termos de
vontade política do executivo
federal, gerar diretrizes e priorida- Com relação à coordenação com
des claras em matéria externa, não estados e municípios, deve promover-se uma diplomacia federativa. Isso implicaria na aplicação
da breve, porém contundente frase
13. Para uma análise sobre o sistema de
gabinetes na administração do Presidente do estadista suíço Alfred Escher:
Carlos Salinas (1988-2004), ver Schiavon “unidade no exterior, diversidade
e Ortiz Mena (2001, p. 731-760).
no interior” (Ehrenzeller et Al,
14. México, Leyes, Ley Sobre la 2003). Para alcançar tal objetivo,
Celebración de Tratados, México, Diario
Oficial de la Federación, jueves 2 de enero a SRE deve coordenar e representar, o mais fielmente possível, os
de 1992, artículo 2, fracción II.
diversos interesses dos governos
subnacionais no âmbito externo.
De acordo com o direito internacional vigente, particularmente o
artigo 7 da Convenção de Viena
sobre Direitos dos Tratados, o
executivo central possui o direito
de representar o Estado em seu
conjunto, e por tal razão, de conduzir sua política externa. Não
obstante, na Lei sobre Celebração
de Tratados de 1992 se incluiu a
figura dos acordos interinstitucionais, que são os convênios celebrados entre qualquer departamento ou órgão do governo descentralizado da administração
pública federal, estadual ou municipal e órgãos governamentais
estrangeiros ou organizações
internacionais.14 Esta nova figura
assinala uma base legal que permite aos atores subnacionais subscrever convênios com parceiros
externos para avançar seus interesses particulares.
Para assegurar que não haja contradição entre os acordos interinstitucionais e a política exterior do
país, a lei estabelece que os primeiros devem ater-se exclusivamente às matérias sob a supervisão dos órgãos de governo específicos e que ademais, as instâncias
que os subscreverem deverão
manter a SRE informada sobre os
mesmos. A SRE possui a atribuição de qualificar a procedência
dos acordos e se for o caso, apresentar parecer favorável e validálos ao inscrevê-los em seu registro
interno. Isto é particularmente
importante uma vez que, segundo
o direito internacional, se uma
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agência ou órgão do governo
firma um acordo interinstitucional
— dentro das matérias que lhes
são atribuídas — cabe ao Estado
mexicano a responsabilidade pelo
mesmo no âmbito externo
(Palácios, 2002).
Infelizmente, na prática, a grande
maioria dos acordos firmados por
entes da administração pública
federal, estadual e municipal não
conta com o acompanhamento da
SRE, e, portanto, não existe um
registro preciso destes instrumentos jurídicos. Se não há coordenação e controle por parte da
SRE, a diversidade no interior
pode converter-se em falta de
unidade no exterior, podendo
resultar em contraposição dos
interesses municipais e estaduais
com a política externa conduzida
pelo executivo federal.
real (Schiavon, 2006).
No que diz respeito à segunda
recomendação, para que se tenha
uma política externa profissional
é necessário fortalecer a diplomacia mexicana, através do capital
humano cuja responsabilidade e
profissão é a política externa: o
SEM. Até o estabelecimento do
Serviço Profissional de Carreira
em 2003, o SEM era o único serviço civil, não-militar, de carreira
no México, com uma tradição histórica que remonta a 1829, quando o Presidente Vicente Guerrero
expediu a primeira lei para um
serviço exterior mexicano. O
grande prestígio e qualidade de
seu capital humano são resultado
de que o ingresso, promoção e
demissão do pessoal de carreira se
baseiam, em princípio, em seu
desempenho (preparação, competência, capacidade e superação
constante).
A SRE deve estabelecer incentivos positivos como apoio técnico,
diplomático e jurídico aos governos subnacionais na busca e assinatura de acordos interinstitucionais, para assim controlar sua pertinência e legalidade, assim como
seus ditames e registro; também
devem haver incentivos negativos, como sanções administrativas por não-cumprimento do procedimento de origem e inscrição
na SRE, para que os entes dos
diferentes níveis de governo insiram suas iniciativas de participação internacional dentro das diretrizes de política externa definidas
pela SRE. Apenas assim poderia
haver uma política externa única e
unificada no México, sustentada
por uma diplomacia federativa
Contudo, o SEM não está isento
de aspectos que possam ser
melhorados substancialmente. Os
concursos de ingresso e de ascensão funcionam relativamente bem.
Entretanto, sua principal limitação
diz respeito à demissão. É muito
custoso e administrativamente
complicado prescindir de um mau
elemento, quando sua trajetória
profissional e desempenho nos
exames de ascensão e de carreira
são insatisfatórios. Outro aspecto
que pode ser alvo de melhora, em
termos de recursos humanos, é a
capacitação constante dos diplomatas de carreira, através de cursos de atualização e especialização. Sem se descuidar de um
conhecimento geral da política
externa do México, deve-se privi-
legiar a formação de especialistas
por funções (multilaterais, bilaterais e consulares), temas e regiões
geográficas, evitando sempre que
possível às mudanças injustificadas de áreas, as quais comprometem suas carreiras profissionais.
Uma vez aperfeiçoado o esquema
de desenvolvimento profissional
do SEM, seria conveniente promover a ascensão de diplomatas
de carreira à cargos de direção de
assuntos internacionais ou equivalentes de outras secretarias de
Estado e das entidades federativas. Ademais, seria desejável que
as presidências ou secretarias das
Comissões de Relações Exteriores
das Câmaras de Deputados e do
Senado recaíssem nas mãos de
profissionais da diplomacia. Por
fim, seria conveniente que toda
delegação mexicana no exterior
fosse encabeçada por um membro
da SRE, mesmo quando a composição ou as funções do resto da
delegação sejam muito técnicas
ou especializadas e formadas por
membros de outros setores do
governo.
Em suma, ante o crescente surgimento de atores nacionais com
interesses internacionais, é fundamental ter uma política externa
única e harmônica que represente
e coordene a diversidade de interesses e posições dos diferentes
atores políticos, econômicos e
sociais do México democrático.
Para isso, é necessário que se fortaleçam os mecanismos de coordenação com o poder Legislativo,
as entidades federativas, governos
locais e atores da sociedade civil;
que se aperfeiçoe o esquema de
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desenvolvimento profissional do SEM e que se reestruture os mecanismos de coordenação burocrática e
administrativa para execução da política externa,
com a finalidade de garantir a representação de seus
interesses em nível internacional e de dar coerência
e unidade à política externa mexicana.
ca externa, mas com questionamentos feitos pelo
Congresso. Mesmo se o Legislativo mexicano ainda
não influi decisivamente em matéria de política
externa, sua participação na matéria aumentou substancialmente a partir de 2000. Nossa conclusão é
que, por mais surpreendente que pareça, hoje o
Legislativo e os governos subnacionais no México
Conclusão: Brasil e México comparados
são mais ativos que os brasileiros em relação à política externa, apesar de ser a democracia mexicana
Brasil e México são hoje duas democracias vibran- mais jovem que a brasileira.
tes. Porém, as trajetórias políticas e os modelos de
governança de ambos os países são distintos, com Referências
impactos diferentes sobre a formulação da política
externa de cada país. Desde o início da década de Abranches, Sérgio H. Hudson de (1988)
1980, o Brasil evoluiu de um regime militar a uma ´Presidencialismo de Coalizão: O Dilema
democracia cuja dinâmica institucional se caracteri- Institucional Brasileiro` , Dados, 31, p.5-38.
za pelo assim chamado presidencialismo de coali- Amorim Neto, Octavio; Cox, Gary (1997) ‘Electoral
zão, enquanto que o México transitou do presiden- Institutions, Cleavage Structures, and the Number of
cialismo autoritário com poder hegemônico a um Parties`, American Journal of Political Science, 41.
presidencialismo democrático de governo dividido, Amorim Neto, O. (2002) ´Presidential Cabinets,
no regime foxista. O presidencialismo de coalizão Electoral Cycles, and Coalition Discipline in Brazil`,
do Brasil é conseqüência da alta fragmentação de in S. Morgenstern & B. Nacif, (Eds.), Legislative
seu sistema de partidos. Os governos divididos do Politics in Latin America, Nueva York, Cambridge
México, de sua parte, são típicos de regimes presi- University Press.
denciais com baixa fragmentação partidária, como Amorim Neto, O.; Cox, G. W.; McCubbins,
os Estados Unidos e a Argentina.
Matthew D. (2003) ‘Agenda Power in Brazil’s
Camara dos Deputados, 1989-98`, World Politics,
A configuração institucional doméstica no Brasil e 55, p. 50-578.
no México faz com que o Presidente e o Congresso Amorim Neto, O.; Tafner, Paulo (2002). ´Governos
interajam com suas respectivas burocracias para pro- de Coalizão e Mecanismos de Alarme de Incêndio
duzir um determinado estilo decisório de política no Controle Legislativo das Medidas Provisórias`,
externa. Assim, no Brasil, a combinação do presi- Dados, 45, p.5-38.
dencialismo de coalizão com o alto grau de profis- Amorim Neto, O; Santos, Fabiano (2003) ‘The
sionalismo e baixo nível de politização do Itamaraty Inefficient Secret Revisited: The Legislative Input
contribuem para a ampla autonomia de que desfruta and Output of Brazilian Deputies`, Legislative
o Executivo na formulação da política externa, com Studies Quarterly, 28, p.449-479.
poucos questionamentos e intromissões do Castro Neves, João Augusto de (2002) A
Legislativo. Isto explica, em parte, porque a política Participação do Poder Legislativo na Política
externa do Brasil mudou muito pouco, desde a tran- Externa Brasileira: O Caso do Mercosul,
sição democrática no começo da década de 1980. No Dissertação de Mestrado, Instituto Universitário de
México, com a passagem de um sistema autoritário Pesquisas do Rio de Janeiro.
– onde o Presidente podia impor sua preferência de Castañeda, Jorge G. (2001) ´Los ejes de la política
política externa com a anuência do Legislativo e do exterior de México`, Nexos, 23, nº 288, p.66-75.
serviço exterior – a um sistema onde a mistura de Cesar, Susan Elisabeth M. (2002) O Congresso
governo dividido com um Congresso mais ativo e Nacional e a Política Externa Brasileira,
politizado gera um estilo decisório que se caracteri- Dissertação de Mestrado, Universidade de Brasília.
za pelo controle formal do Executivo sobre a políti- Cheibub, Zairo Borges (1985) ´Diplomacia e
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Mural Internacional
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Novembro 2010
Construção Institucional: O Itamaraty em uma
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Novembro 2010
“Causa Malvinas”, diplomacia y guerra.
Una mirada de la historia a la luz de
contribuciones recientes
Vicente Palermo1
E
sido argentinas sin necesidad de disparar un tiro y
sin necesidad de que hubieran muerto más de 600
buenos argentinos, más todo lo que vino después”
(“Sin guerra, ya serían nuestras las Malvinas”, La
Nación, 01-04-2006). Pero debo recordar que al
menos en forma pública, fueron los propios ingleses
quienes abrieron este camino, con declaraciones de
protagonistas de aquel conflicto que, muy sueltos de
cuerpo, prefieren, comprensiblemente, las sentencias
más impactantes. Es el caso, por ejemplo, del excelente periodista Simon Jenkins, que nos dice que la
guerra “más que un paso atrás fue un verdadero
desastre. Si la invasión no se hubiera producido, hoy
seguramente la Argentina tendría, por lo menos, la
Comienzo por lo más reciente: actualmente se está soberanía compartida de las islas.“ (La Nación, 30imponiendo, diría que a pasos agigantados, una 03-2003).
interpretación sobre las consecuencias de la guerra
que, concisamente, sostiene: “si los militares no Aunque considero la guerra de Malvinas no sólo un
hubiesen ocupado las islas, entonces éstas ya habrí- desastre sino también un crimen, no comparto este
an sido recuperadas”. Ejemplo claro de esta postura punto de vista. No lo comparto porque inspira, a mi
es la opinión de quien fuera uno de los grandes nego- entender, conclusiones erradas sobre el período políciadores diplomáticos en la cuestión Malvinas, el tico-diplomático de la disputa por Malvinas entre
embajador Carlos Ortiz de Rosas: “...estoy seguro de 1965 y 1982. Para comenzar, es curioso el modo en
que habría un acuerdo en virtud del cual, pasados que esta nueva visión de la guerra - destinada, creo
unos años, se reconocería la soberanía plena argenti- yo, a imponerse como relato por su fuerza persuasina ...como máximo para 2030 las Malvinas hubieran va, por mucho esfuerzo que podamos hacer aquí choca frontalmente contra lugares comunes establecidos sobre el período previo a la misma, lugares
comunes que se plasmaron durante esos años y que,
1. Conicet e Instituto Gino Germani/Universidad de Buenos Aires.
n el derrumbe político y económico de la peor
dictadura de nuestra historia, tuvo lugar uno
de los acontecimientos que la distinguieron de
todas las otras dictaduras argentinas, la guerra, el
conflicto bélico sostenido con Gran Bretaña en
1982. Me interesa aquí discutir algunas interpretaciones sobre las consecuencias del conflicto bélico,
en particular aquellas que permiten, a su vez, analizar la evolución de la disputa territorial por las islas
Malvinas en el largo período que se extiende entre
1965 (fecha de la declaración 2065 de la Asamblea
General de la ONU que insta a las partes de negociar) y las vísperas de la ocupación de abril de 1982.
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no obstante, permanecieron incólumes tras la guerra hasta ahora.
Destaco tres de ellos. El primero
sostiene que durante esos años
Argentina desenvolvió un esfuerzo impecablemente pacífico y
diplomático, una política - tomando las palabras de un canciller
seguramente muy convencido de
lo que afirmaba - “basada en la
buena fe y en el acatamiento de
los principios de la Carta y de las
resoluciones de las Naciones
Unidas” (Vignes, 22-09-1974). El
segundo no contradice al primero,
más bien lo confirma, pero críticamente, argumentando que aquella
política fue estéril, que no se
había avanzado absolutamente
nada y que estábamos cada vez
más lejos del objetivo de recuperar el archipiélago. Los malvineros más duros agregan: tuvimos
demasiada paciencia, demasiado
apego al derecho internacional, la
decisión de ocupar las islas se tendría que haber tomado antes (pero
se trata de un grupo menor de opinantes; no todos los que consideran infructífera aquella política,
concluyen que habría que haberla
alterado del modo en que se lo
hizo, pero antes). El tercer lugar
común es aún más espinoso; se
refiere a los supuestos motivos
ingleses para retener las islas una
vez que el gobierno británico
diera, entre 1965 y 1968, señales
tan claras de su disposición a
transferirlas. Sostiene que esas
señales eran engañosas, y que las
islas fueron retenidas en virtud de
intereses económicos y estratégicos, en un cuadro neocolonial y/o
imperialista.
la interpretación que actualmente
cobra vigencia, de que si no ocupábamos las islas en 1982, éstas
caían en nuestras manos como
una fruta madura. Si se cree en
este contrafáctico, no puede sostenerse al mismo tiempo que el
esfuerzo diplomático de guante
blanco entre 1965 y 1982 era
inconducente, que nada se había
avanzado, y que los ingleses tenían poderosos intereses materiales
y/o estratégicos para negarse a
transferir la soberanía.
A mi entender, para resolver el
intríngulis es indispensable que
cuestionemos todo. En breve: no
es cierto que si los militares de la
dictadura no hubiesen ocupado la
islas en abril de 1982 la política
seguida hasta ese entonces por
sucesivos gobiernos y equipos
diplomáticos habría llevado a la
recuperación de las islas. No es
cierto que esa política entre 1965
y 1982 haya sido pura y simplemente de buena fe y acatamiento
de los principios del derecho
internacional. No es cierto, tampoco, que hasta 1982 no se hubieran producido algunos avances
significativos en la resolución de
la “disputa de fondo” (la soberanía por las islas). Y no es cierto,
por fin, que los motivos británicos
para resistirse a la transferencia de
soberanía hayan sido de orden
neocolonial o imperialista.
Para empezar, el curso políticodiplomático dominante hasta
1982 estuvo lejos de ser el que el
primer lugar común nos cuenta.
Por el contrario, puede calificarse
de política de “amenaza verosíResultará patente al lector el cho- mil”. Amenaza: “si la actitud
que entre estos lugares comunes y negativa del Reino Unido condu-
ce a un callejón sin salida, el
gobierno argentino se verá obligado a revisar en profundidad la
política seguida hasta el presente...” - es un ejemplo entre miles,
tanto de diplomáticos como de
políticos, una declaración real,
pero cuyos antecedentes son muy
lejanos. La noción de que la
Argentina es un país que aguanta
las injusticias con abnegación por
su incuestionable compromiso
con el derecho pero que, tarde o
temprano, ante la indiferencia de
los injustos y egoístas, se verá
“obligada” a decir basta y hacer
justicia por mano propia, es uno
de los pilares básicos de la causa
Malvinas cuya configuración se
remonta a los tiempos del senador
socialista Alfredo Palacios y el
canciller conservador Saavedra
Lamas, en la década del 30. Y
“verosímil”: existe, en especial a
partir de la publicación del libro
de Lawrence Freedman (2005),
muchísima evidencia acerca de
que tanto británicos como malvinenses estaban efectivamente preocupados por la hipótesis, a la que
asignaban posibilidades de concreción, de que los argentinos
finalmente nos resolviéramos por
una acción militar. Nunca jamás,
salvo hasta dos o tres días antes de
la ocupación en abril del 82, creyó
el gobierno inglés en la “inminencia” de una decisión de tal índole.
Pero sí en que finalmente, y tras
un período de gradual incremento
de la tensión política y diplomática, una decisión así pudiera ser
tomada. Otra vez un ejemplo entre
miles: cuando lord Chalfont,
enviado por el Foreign Office,
visita Buenos Aires en 1968,
informa a su canciller: “a menos
que la soberanía sea seriamente
negociada y transferida en el largo
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plazo, es probable que terminemos en un conflicto armado con
la Argentina...”. El siguiente
abunda y ayuda a entender en
parte la actitud inglesa: “En julio
de 1977, David Owen presentó un
informe a la Comisión de
Defensa, donde argumentaba que
era necesario realizar negociaciones serias y de fondo ya que las
islas eran militarmente indefendibles salvo que se hiciera una enorme e inaceptable inversión de
recursos corrientes” (Informe
Franks, 1983).
ca ‘tercermundista’ no puede dar
más de lo que dió... Queda la fuerza. Queda - agrega Grondona, y
prepárese el lector para una cita
que lo va a impresionar por original y aguda, tan original y aguda
como que a la sazón la sabía de
memoria hasta el menos leído de
los militantes de cualquier partido
popular de cualquier barrio - la
continuación de la política por
otros medios... ¿Está dispuesta
Argentina a usarla? ¿Está dispuesta al menos a esgrimirla como un
factor de presión?”.
Y sí, Argentina estuvo muy disSi nos ponemos en cínicos, podrípuesta; de hecho, la opinión públiamos decir: no cabe duda de que
ca activa cocinó y recocinó estos
esta preocupación fue un acicate
componentes de la causa
para que, tanto laboristas como
Malvinas en calderos de derecha o
conservadores, imaginaran soluizquierda, nacionalistas o liberaciones de la “cuestión de fondo”.
les, democráticos o autoritarios.
Sólo que, este curso de acción de
amenaza verosímil, por muy
Pero no fueron estos los únicos
“útil” que pareciera en el corto
instrumentos de la pauta de “ameplazo (sobre todo para los obsenaza verosímil” que gobernó la
sionados
con
la
“causa
política y la diplomacia en la disMalvinas”), era a su vez autodesputa por las Malvinas en esos lustructivo e inviable en el mediano
tros; hubo al menos otros dos.
plazo. Llevaba - no temo en agrePrimero, una pocas medidas de
gar, indefectiblemente - a un
acción directa, entre las que se
callejón sin salida.
destaca el Operativo Cóndor de
1966 y la ocupación militar - disLa amenaza, cabe la digresión, no
frazada de actividad científica - en
se limitaba a declaraciones. Se
1977 de una isla del archipiélago
extendía a la labor incesante de
Thule del Sur. Y segundo, la tesiintelectuales públicos - ¿qué tal
tura recurrente de querer “forzar
una del célebre periodista
la mano” tanto en las negociacioMariano Grondona? En el progrenes como a través de las medidas
sista diario La Opinión (“La
de cooperación e integración entre
paciencia de las naciones”, 03-01las islas y el continente (inteligen1975), afirmaba que “Las perstes en sí mismas y llevadas a cabo,
pectivas petrolíferas son, en
por cierto, por personal diplomátimanos inglesas, una nueva arma
co y militar que en muchos casos
de presión... Nos obligan a contraactuaba con la mejor buena fe y
atacar con presiones propias...
con el propósito sincero de ganar
¿Cómo hacerlo? La vía diplomátila confianza y la amistad de los
isleños). Un ejemplo de la tesitura
de forzar la mano en las negociaciones lo proporciona Perón, pero
es doblemente significativo porque a un diplomático competente
y experimentado como Ortiz de
Rosas le parece muy bien, tanto
que es él quien lo cuenta: “en
junio de 1974, la embajada británica propuso un condominio en
las Malvinas. La propuesta era
extraordinaria... Perón, “inteligentísimo”, le dio instrucciones a
Vignes, su canciller, quien me dio
una fotocopia de ese acuerdo. Le
dijo: ‘Vignes, esto hay que aceptarlo de inmediato. Una vez que
pongamos pie en las Malvinas no
nos saca nadie y poco después
vamos a tener la soberanía
plena’.”. El ejemplo de irrefrenable impulso a forzar la mano en
las propuestas de cooperación lo
proporcionan los militares (pero
hay para todos los gustos); por
caso, en las conversaciones de
abril de 1980, las propuestas británicas en materia energética, pesca
o desarrollo económico, fueron
aceptadas... pero anteponiendo el
reconocimiento de soberanía
como conditio sine qua non.
Como dije, esta política conducía
a un callejón sin salida. Y esto
tiene que ver, primero, con las
motivaciones inglesas para retener las islas. Las Malvinas habían
perdido ya todo valor estratégico
y hay evidencia de que los ingleses aunaban constantemente cualquier perspectiva de desarrollo
económico y/o explotación de los
recursos de todo tipo que pudiera
tener el área, no a un juego de
suma cero con los argentinos sino
a un juego de suma positiva. No
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veían - y así argumentaron una y
mil veces ante los isleños - posibilidad alguna de aprovechamiento
económico mientras se mantuviera el conflicto abierto y la incertidumbre consecuente. Como explica por ejemplo Mangold (2001),
sobre todo a partir del impacto del
fracaso en Suez, Gran Bretaña se
asumía como habiendo perdido
irremisiblemente su status de Great
Power pero se esforzaba, al mismo
tiempo, por retener “tanto su autorespeto como un buen desempeño
en lo que se refiere a su reputación
internacional”. Traducido a los términos del conflicto Malvinas, los
ingleses no podían pura y simplemente arrasar con los isleños, dejar
de lado toda consideración por su
voluntad y entregarlos de pies y
manos - admitámoslo, por mucho
que duela – a la turbulencia sangrienta de la política argentina de
esos años.
tando casi la defensa de las islas más bien advirtiéndoles que la
reducirían-, viajando constantemente a las islas para ejercer una
presión moral y explicándoles que
si no se entendían con los argentinos no tendrían futuro, etc.).
¿Porqué, entonces, la política
argentina de “amenaza verosímil”
conducía a un callejón sin salida?
Simplemente porque, combinada
por no decir potenciada en sus
efectos por lo poco presentable
que era nuestra política doméstica
(recuerdo al lector: Onganía,
Isabel, Videla...), generaba más y
más desconfianza y rechazo no
solamente entre los isleños, sino
también entre sectores de la opinión pública británica que importan: los Comunes, la prensa. En
verdad, el trabajo de apriete que
los ingleses hicieron sobre los
isleños había creado, hacia 1982,
una profunda brecha entre las
¿Porqué, con todo, cuestiono que autoridades gubernamentales y el
no haya habido avances a lo largo Foreign Office, por un lado, y los
de aquel período? Porque los malvineses, por otro.
ingleses, a pesar de su determinación de respetar los deseos de los Como observa Freedman (2005),
malvinenses, hicieron muchísimo un representante isleño, Adrian
por “darle forma a los deseos y Monk, explicó a un diplomáticopreferencias de estos”, a través de militar argentino que los isleños
un juego múltiple en el que cuen- “apreciaban todo lo que los argentan las iniciativas de negociación tinos habían hecho en materia de
propuestas a los argentinos (con- comunicaciones, energía y salud,
dominio, integración física con pero mantenían sus preocupaciopostergación de la solución de la nes sobre los propósitos argentidisputa territorial, inserción del nos. La vasta mayoría de los malconflicto en un amplio programa vinenses estaría de acuerdo con
de cooperación científica y econó- que había oportunidades de coomica en toda la región austral, peración, siempre y cuando no
retroarrendamiento, etc., etc.), y la hubiera segundas intenciones“.
persuasión así como la presión
sobre los propios isleños (soltan- Es el equivalente perfecto a “te
do poquísimo dinero, no aumen- quiero pero como amigo” (just
friends). En 1980 habían tenido
lugar elecciones de los consejos
isleños, triunfando sectores muy
duros (es dudoso que los hubiera
“blandos”) en lo que se refiere a
cualquier entendimiento con
Argentina en materia de soberanía. Pero es algo muy deplorable
la amorosa obsesión argentina: a
la tierra, no a sus habitantes; de
estos se esperaba que fueran ellos
quienes nos amaran. La información que proporciona Freedman
es clarísima en lo que se refiere al
impacto del comportamiento
argentino sobre los malvinenses.
Cuando la embajada inglesa en
Buenos Aires renovó sus sugestiones para que mantuvieran con los
argentinos conversaciones directas sobre cooperación la respuesta
fue que aquellos no deseaban contactos que se prestaran a malentendidos. Para ellos la propuesta
consistía en nexos demasiado formales e inquietantes. No querían
vínculos
institucionalizados,
temían “estar siendo arrastrados
hacia lo que consideraban una
trampa para enredarlos en vínculos aún más estrechos con
Argentina”. Así las cosas, se
puede entender que cuando
Nicholas Ridley llevara, después
de un muy arduo trabajo de preparación del terreno en Buenos
Aires y en las Malvinas (donde
fue recibido con gran frialdad), a
los Comunes la propuesta de
retroarrendamiento, laboristas y
conservadores lo chiflaran. “¿Está
conciente el ministro de que no
existe ningún apoyo, ni en las
islas ni en esta cámara, para los
vergonzosos esquemas para
sacarnos de encima a estas islas,
que han estado pululando por
años en el Foreign Office?”, inter-
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pela el diputado Russell Johnston.
Y que el editorial del Times del 28
de
noviembre
sostuviera
(Cisneros y Escudé, 1999, Tomo
XII): “Ni siquiera puede pensarse
en la posibilidad de entregar a los
isleños a la Argentina en contra de
su voluntad. Esto es así no importa la clase de gobierno que tenga
el poder en la Argentina, y es particularmente cierto en vista del
sangriento historial del presente
régimen militar”. Como lo describe Peter Beck (1982), no se trataba solamente del principio de
autodeterminación; además, “los
Comunes sentían simpatía por un
pequeño pueblo amenazado por
un vecino más grande, sobre todo
si la forma de gobierno de la
Argentina y su sociedad no sólo
no estaban libres de críticas, sino
que también amenazaban la forma
de vida británica que hasta el
momento se disfrutaba en las islas
Falkland”.
nes que se le abrían, continuar
haciendo tiempo, romper las
negociaciones o promover (nuevamente) un retroarrendamiento,
eligió la primera.
El lector se preguntará porqué,
entonces, la Argentina sostuvo
infatigablemente esta política de
“amenaza verosímil”. Mi respuesta es que era la única compatible,
no con una solución de un simple
conflicto territorial entre naciones, o con nuestro mejor interés
de inserción en el mundo, sino
con la “causa Malvinas” como
configuración político cultural. Y
no sólo por eso: a partir de 1965,
los sucesivos gobiernos (incluyendo el de la UCR hasta el golpe
de junio del 66), creen que la
recuperación de las islas está al
alcance de la mano, y depositan
muchísimas esperanzas de resolver sus problemas de legitimación
política en un éxito propio en el
conflicto. Proceden, por tanto,
Que la amenaza verosímil era exactamente del modo contrario
self-defeating, o un tiro en el pro- al que se precisaba: presionan,
pio pié, precisamente se patentiza procuran forzar la mano, buscan
en el tramo final de este período, apurar los tiempos, amenazan.
con Viola en la presidencia y el
hábil Oscar Camilión en la canci- Más y más, la política y la diplollería. Seis meses antes de la inva- macia argentinas se pusieron en
sión (Charlton, 1989), los diplo- sintonía con las orientaciones que
máticos británicos, impulsados se desprendían de la causa: habíapor un Camilión genuina o ficti- mos sido despojados, la Argentina
ciamente alarmado por el rumor estaba incompleta si no recuperade sables que decía escuchar entre ba esa sagrada tierra, los isleños
los militares, presionaron para no eran sino unos intrusos y los
que el canciller Carrington (un ingleses no eran sino unos piratas,
importante líder del partido con- la razón estaba de nuestro lado y
servador) consiguiera que el tema la paciencia tenía un límite.
Malvinas fuese de prioridad en el Escapar del callejón sin salida de
gabinete y una firme decisión a esta política exigía una reformulafavor del leaseback. Carrington ción que ningún gobierno podía
dijo que era imposible, aunque era encarar - fuera porque le resultara
su preferencia. De las tres opcio- odiosa, fuera porque carecía de
capital político para intentarlo – a
menos que tuviera una dosis poco
común de valentía y capacidad de
liderazgo. Cuando se llegó al
fondo del callejón, Galtieri y
Anaya (uno porque no tenía tiempo para sus ambiciones y otro porque llevaba la “causa Malvinas”
en la mente y en el corazón) no
persistieron en él, sino que escaparon con un cambio de política
hacia una todavía peor.
De paso y para concluir: es inevitable que toda guerra haga proliferar los contrafácticos. La memoria
y los relatos sobre esta guerra,
potenciados por la plena vigencia
actual de la “causa Malvinas”,
fabrica unos contrafácticos - a mi
entender - particularmente tóxicos. Traigo aquí otros dos: “de
haber aguantado una semana más
en junio del 82 ganábamos la guerra” (v.g. Miguel Bonasso, 2002,
12) o “si hubiéramos negociado
mejor en abril y mayo una vez que
ocupamos Puerto Stanley nos
quedábamos con las islas” (v.g.
Rodolfo Terragno, 2002). El de
que “si no ocupábamos las islas
ya serían nuestras” es uno más, al
que le auguro larga vida. Todo lo
cual pone de manifiesto cuán difíciles de interpretar son los legados
crueles que nos dejó aquel episodio de 1982. Y hace patente, asimismo, la facilidad con que podemos borrar nuestro pasado en vez
de asumirlo como tal y ponernos
manos a la obra “desde el lugar a
donde llegamos, por incómodo
que sea, y no desde el lugar donde
nos gustaría estar de no haber
ocurrido tales o cuales cosas que
efectivamente ocurrieron”.
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A nova União Européia do Tratado de Lisboa
Raquel Patrício1
S
uspensa nas contradições impostas pela indissolubilidade dos processos do alargamento e do
aprofundamento político, a União Europeia
(UE) vê, com a entrada em vigor do Tratado de
Lisboa, a 1 de Dezembro de 2009, abrir-se uma etapa
nova à já longa caminhada que tem permitido a construção do edifício europeu. Uma caminhada concreta
de cinquenta e nove anos, mas de raízes seculares, que
trouxe para a prática política o desejo de unidade do
continente europeu. Um desejo sempre proclamado,
mas apenas alcançado pela violência da imposição.
1. Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas/Universidade
Técnica de Lisboa (ISCSP/UTL)
2. De acordo com o artigo 6º do Tratado de Lisboa, este teria de ser
ratificado pelos Estados-membros da União, segundo as respectivas normas constitucionais, para poder entrar em vigor no dia 1 de
Janeiro de 2009, se então tivessem sido depositados todos os instrumentos de ratificação, ou, na falta destes, no primeiro dia do mês
seguinte ao do depósito do último instrumento de ratificação. Estes
instrumentos de ratificação, segundo o artigo 54º da Versão
Consolidada do Tratado da União Europeia, seriam depositados
junto do governo da República Italiana.
3. Conclusões resultantes da análise das Versões Consolidadas do
Tratado da União Europeia e do Tratado Sobre o Funcionamento da
União Europeia, Jornal Oficial da União Europeia, C 115/1
(2008/C 115/1).
4. Cfr. Conclusões da Presidência – Lisboa, Conselho Europeu de
Bruxelas de 14 de Dezembro de 2007, 16616/07 CONCL 3,
Bruxelas, 14 de Dezembro de 2007, p 2.
Um desejo que apenas os “pais fundadores” da
Europa Unida souberam tornar realidade sem imposição, a partir da legitimidade de populações saturadas
de guerras e conflitos. Um desejo alcançado com
avanços e recuos a que hoje se depara o desafio de
uma nova e, até, quem sabe, promissora era.
Assinado em Lisboa, no dia 13 de Dezembro de
2007, pelos chefes de Estado e de Governo dos já
vinte e sete Estados-membros da União Europeia, o
Tratado Reformador de Lisboa procura, num mundo
em rápida mutação, ser capaz de permitir à União
dar respostas efectivas aos actuais desafios.
Prevendo a respectiva entrada em vigor no dia 1 de
Janeiro de 2009,2 o Tratado de Lisboa visa tornar a
União Europeia mais eficiente (dotando-a de
Instituições adaptadas a uma União alargada), mais
próxima dos cidadãos, mais eficaz e coerente no seu
relacionamento com a sociedade internacional e
mais apta a responder aos desafios globais que se lhe
deparam neste início de século.3 De acordo com a
Presidência Portuguesa do Conselho da União, “o
Tratado de Lisboa proporcionará à União um quadro
institucional estável e duradouro. Não se prevêem
alterações num futuro próximo, de modo que a
União poderá consagrar-se inteiramente aos desafios
políticos concretos que se avizinham, designadamente as alterações climáticas e a globalização”.4
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Após a assinatura do Tratado, o
Parlamento Europeu veio a aprová-lo. Naturalmente, a aprovação
deste
pelo
hemiciclo
de
Estrasburgo não era juridicamente
necessária para que o documento
entrasse em vigor; todavia, a sua
aprovação pelo Parlamento
Europeu é de grande relevância
política, indo ao encontro dos
objectivos democráticos da nova
União. O Parlamento Europeu foi,
assim, a primeira entidade a pronunciar-se sobre o novo Tratado
Comunitário, fazendo-o no
momento em que tinham início os
processos de ratificação nos
Estados-membros de acordo com
as respectivas normas constitucionais. Em fase de pleno entusiasmo
com o novo Tratado, nada fazia
supor que algum percalço viesse a
suceder. Até porque, para evitar
desaires, à semelhança do ocorrido
na França e na Holanda com o
Tratado Constitucional, a Comissão
Europeia proibira, desde logo, a realização de referendos. Apenas na
Irlanda, por imperativos constitucionais, tal via seria adoptada, com
resultados imprevisíveis e desastrosos para o Projecto Europeu.
em vigor sem que diversas excepções tivessem de ser feitas a
alguns Estados-membros. Assim,
foi necessário limitar os poderes
do Tribunal de Justiça para a GrãBretanha e para a Irlanda (a propósito da preocupação dos
Irlandeses com o Exército
Nacional e a oposição ao aborto
como formas de perder soberania)
e desvincular a Polônia, a
República Checa e a GrãBretanha da Carta dos Direitos
Fundamentais, para além de existirem já, em protocolos anexos ao
Tratado assinados aquando da
assinatura deste, cláusulas de
excepção e opting out para a
Irlanda e a Grã-Bretanha em
matéria de aplicação de decisões
no âmbito da cooperação judicial
e policial. Foi ainda necessário
conceder à Eslováquia a garantia
de que a União Europeia não
tomará medidas que contradigam
os Decretos de Benes, segundo
declaração política expressamente
presente nas Conclusões do
Conselho Europeu de 30 de
Outubro de 2009.
“símbolo de uma Europa reunificada”, pelo presidente da Comissão
Europeia, Durão Barroso (2009), a
União Europeia do Tratado de
Lisboa torna-se mais livre e democrática, assim como mais capaz de
enfrentar a crise financeiro-econômica e suas repercussões, embora
seja importante ressaltar que a
entrada em vigor do Tratado de
Lisboa, por si só, não chega, sendo
necessárias, acima de tudo, a determinação e a vontade política dos
Estados-membros.
Com estas excepções, o Tratado
de Lisboa pôde entrar em vigor a
1 de Dezembro de 2009, exactamente um mês antes da nova data
posteriormente prevista (1 de
Janeiro de 2010). A cerimônia,
realizada na Torre de Belém, em
Lisboa, sob Presidência Sueca do
Conselho da União, marcou assim
uma nova etapa na construção do
edifício europeu, aplaudida pelos
Vinte e Sete.
Neste sentido, e perante o complexo processo de ratificação do
Tratado, que demorou dois anos,
alguns pontos foram alterados
relativamente ao Tratado de
Lisboa inicialmente assinado a 13
de Dezembro de 2007 o qual, por
sua vez, já constituía uma espécie
de “reforma” ao Tratado
Constitucional, em relação ao
qual introduziu alguns “travões de
emergência”, embora tenha mantido, na essência, o espírito desse
Tratado Constitucional.
Não alterando o quotidiano dos
cidadãos europeus, o Tratado de
Lisboa vem agilizar o funcionamento
das
Instituições
Comunitárias, bem como os procedimentos comunitários. Como
diria o presidente do Parlamento
Europeu, o polaco Jerzy Busek
(2009), no discurso do dia 1 de
Dezembro, “o Tratado de Lisboa é
sobre a forma como a União
Europeia se deve organizar e não
sobre a forma como as pessoas se
devem comportar ou sobre o que
devem fazer”.
A verdade, de facto, é que problemas com a ratificação do Tratado
surgiram
em
França,
na
Alemanha, na Polónia, na
República Checa e, especialmente, na Irlanda, onde o referendo
popular de 12 de Junho de 2008
seria vencido pelo “não” com
53,4% dos votos, contra os 46,6%
favoráveis ao “sim”, até que um
novo referendo levasse os
Irlandeses a aprovar o Tratado Apelidada como um novo começo
que, em função de todos os pro- pelo primeiro-ministro português, Assim, a referência ao método
blemas levantados, não entraria José Sócrates (2009), e como um “convenção” para a revisão subse-
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Novembro 2010
quente dos Tratados Comunitários é
retirada ao Tratado Constitucional,
não apresentando, o Tratado de
Lisboa, qualquer referência nessa
matéria, embora fique implícito que
esse será o método adoptado para
preparar as futuras conferências
intergovernamentais.
Do mesmo modo, o Tratado de
Lisboa é omisso quanto à referência aos símbolos da União – presente no Tratado Constitucional5 –
e quanto à “cláusula passerelle”
introduzida
pelo
Tratado
Constitucional,6 que iria permitir
ao Conselho Europeu, por unanimidade, após aprovação do
Parlamento Europeu e informação
aos parlamentos nacionais, reduzir
o número de matérias votadas por
unanimidade (excepto as que tivessem implicações nos domínios
militar e da defesa) e aplicar o processo legislativo ordinário nos
casos em que estivessem previstos
processos legislativos a priori.
O Tratado de Lisboa altera também,
face
ao
Tratado
Constitucional, a matéria relativa
aos actos jurídicos da União
Europeia, desaparecendo as figuras
da lei europeia, da lei-quadro europeia e do regulamento europeu.7
Finalmente gostaria de ressaltar
que o Tratado de Lisboa não faz
referência ao objectivo político da
5. Referência constante do artigo I-8º do
Tratado Constitucional.
6. Referência constante do artigo III-422º
do Tratado Constitucional.
7. Estas figuras foram previstas pelo
Tratado Constitucional no seu artigo I-33º.
União Europeia que o Tratado
Constitucional enunciava como “a
EU exerce em moldes comunitários as competências que os
Estados-membros lhe atribuem”,
a qual já vinha em substituição da
anterior expressão, “uma União
cada vez mais estreita entre os
povos europeus”.
valores sobre os quais assenta a
construção da nova sociedade,
embora consensuais, não suscitam
o acordo quanto à forma de os
organizar na nossa Europa integrada e aberta, reestruturada em
Lisboa. Várias hipóteses se confrontam, umas mais federalistas,
outras mais confederalistas, ou
unionistas, ou comunitaristas.
Mas a verdade é que não se pode
reduzir o problema à discussão,
eventualmente estéril, entre os
“ismos” culturalmente hegemónicos, nem à confrontação entre
federalismo e nacionalismo. A
construção da Europa tende, cada
vez mais, a ser feita de baixo para
cima, graças ao peso crescente
que se deseja atribuir à opinião
pública.
Facto é que a entrada em vigor do
Tratado de Lisboa não representa
a solução de todos os problemas
da EU. Muito pelo contrário, este
acontecimento marca o início de
uma nova era para o Projecto
Europeu, mais exigente e complexa, que exigirá dos líderes europeus a capacidade de seguirem
mantendo a evolução do tríptico
comunitário enunciado por Valéry
Giscard d`Estaign e Helmut
Schmidt nos anos 1970: o apro- Daqui ressalta a pertinência em
fundamento, o alargamento e o reflectir sobre os modelos teóricos
acabamento.
existentes para a construção europeia, os quais se reconduzem, por
Neste sentido: “Quo Vadis um lado, aos modelos clássicos e,
Europa?” (Fischer, 2000). Mais por outro, aos mais recentes. Os
de cinquenta anos após o início da primeiros podem ser de carácter
construção europeia, é esta a intergovernamental ou apresentar
questão que surge hoje, como sur- uma tendência supranacional,
giu já tantas vezes ao longo da havendo, neste último caso, que
História europeia. A discussão distinguir entre os modelos comusobre o futuro da União Europeia nitários ou funcionalistas e os
é uma questão, embora de longo modelos federalistas, que engloprazo, central e essencial na vida bam, desde logo, a federação cláscomunitária. Designadamente sica, a confederação, a quase
num momento pautado por inú- federação, o federalismo cooperameras dúvidas e incertezas resul- tivo, a federação dos Estadostantes da necessidade de conciliar nação, a federação das regiões e a
o alargamento a Leste com o apro- federação dos Estados e das
fundamento da integração no regiões. A busca de novos conceidomínio político, processos indis- tos para interpretar as novas realisociáveis a conduzir em paralelo. dades existentes tem determinado,
porém, o surgimento de modelos
Fácil se torna observar que os não clássicos que se servem da
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utilização de conceitos não convencionais, como a “governação,
a democracia cosmopolita, a
democracia supranacional e pósfederal, o Estado-rede”.8
A União Europeia que hoje temos
não se reconduz a estes conceitos,
embora muitos constituam verdadeiras propostas de organização
para o futuro, enquanto outros
surgem como caminhos que a
União tem vindo a abrir como formas de responder às alterações
velozes da “sociedade internacional global”; caminhos cujos trilhos vão ainda no início, mas que
têm já originado teorizações que
procuram denominar as novas
realidades desta sociedade tão
cheia de mutações. Para já,
porém, a União Europeia surge
como uma entidade híbrida, de
características sui generis que, se
quisermos, podemos denominar
de “organização internacional de
integração de carácter supranacional”, de acordo com a sugestão de
António José Fernandes (1994).
Na União Europeia, nem os
Tratados Constitutivos, nem o
Direito Comunitário derivado,
interferiram nas prerrogativas
soberanas internas e externas dos
8. Observatório de Relações Internacionais, Modelos Teóricos para a Construção
Europeia, Janus 2001, Anuário de Relações
Exteriores, p.106-107.
9. Dissertação proferida no Seminário A
Europa e o Poder Aéreo, realizado no
Estado-Maior da Força Aérea Portuguesa,
em Maio de 1996.Dissertação proferida no
Seminário A Europa e o Poder Aéreo, realizado no Estado-Maior da Força Aérea
Portuguesa, em Maio de 1996.
Estados-membros, na medida em
que cada Estado mantém o direito
de fazer a guerra, de estabelecer
relações diplomáticas e consulares e o direito de reclamação internacional de forma independente
relativamente à União, deixando
apenas de ter o direito de cunhar
moeda. Apenas interferiram no
direito de os Estados celebrarem
tratados, acordos e convenções
internacionais, mas exclusivamente em relação às questões e
sectores reservados à competência
das Instituições Comunitárias, o
que equivale, praticamente, a
dizer em relação às relações económicas e comerciais. Nos restantes domínios, o envolvimento dos
Estados-membros no processo de
integração europeia não se saldou
por uma perda considerável dos
seus poderes soberanos. Apenas a
extensão das políticas comunitárias tem-se traduzido numa limitação gradual dessas prerrogativas,
porque, na medida em que aceitam harmonizar as legislações e
uniformizar procedimentos em
vários sectores económicos e
sociais, os Estados-membros
estão a aceitar diluir parcelas das
respectivas soberanias no contexto comunitário. Porém, fazem-no
de livre vontade, reservando-se o
direito de vetar projectos de decisão nas matérias decididas pelo
procedimento da unanimidade.
Por outro lado, a incapacidade do
conceito clássico de soberania
responder e gerir o mundialismo,
a globalização e o internacionalismo, colocou em jogo a adequação
dos conceitos antigos às novas
realidades, o que levou o
Professor
Doutor
Adriano
Moreira a substituir o conceito de
Estado soberano pelo de “soberania de serviço”.9 Por isso, também,
a decisão de aderir aos grandes
espaços que organizam a resposta
que supera as insuficiências das
soberanias clássicas, ou assumem
interesses novos que nunca estiveram a cargo daquelas. A soberania
do Estado é então posta, voluntariamente, ao serviço de iniciativas
internacionais, em que participam
diversos Estados e organizações
internacionais, na defesa de interesses comuns e humanos, de problemas que extravasam o âmbito interno e que, por isso, necessitam de
soluções globais. O Estado deixa,
assim, de ser soberano à maneira
tradicional, para passar a ser uma
“soberania de serviço”, ao serviço
de valores e interesses globais,
mundiais e internacionais. Por isso,
uma vez mais, a soberania de serviço extrapola o âmbito territorial
limitado do Estado soberano para
abarcar áreas mais vastas de interesses e de acção.
Todos estes factores e circunstâncias, resultantes de Lisboa e de
muito antes, originam limitações à
afirmação das prerrogativas soberanas dos Estados. Porém, do
ponto de vista formal, a grande
maioria dos Estados mantém
quase intactas essas prerrogativas,
já que fazem depender o seu
envolvimento em compromissos
internacionais da vontade expressa dos seus órgãos de soberania, o
que significa que as limitações ao
exercício do poder soberano
podem decorrer de actos jurídicos
livremente
assinados
pelos
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Estados. Foi o que sucedeu com o
envolvimento dos Estados nas
Comunidades Europeias, através
da assinatura dos Tratados de
Paris e de Roma e sucede hoje, na
Europa do Tratado de Lisboa.
Na verdade, considerada a diferenciação da Europa como continente, em povos, culturas, línguas, sociedades, as propostas
apresentadas em diversos quadrantes da sociedade europeia,
não pode supor-se o desaparecimento dos Estados nacionais,
entidades, aliás, indispensáveis
para a estruturação de qualquer
que venha a ser o formato futuro
da União Europeia. Um formato
que, reconhecido por Lisboa, não
poderá senão assentar nos Estados
nacionais, que não se substitua a
estes nem se assuma como novo
poder soberano, antes conduza a
integração europeia pelos caminhos da divisão clara de poderes
entre a Europa e os Estados-nação
que a compõem, exprimindo inteiramente o conceito de subsidiariedade formalizado em Maastricht e
resultando da diferenciação de
velocidades da integração europeia considerada como tal.
Muito se tem falado, em todo este
debate sobre o futuro político da
União Europeia alargada, na constituição de um “núcleo duro” de
Estados-membros – que poderá,
eventualmente, ser composto
pelos Estados da zona do Euro,
aqueles que demonstram maior
desejo em avançar mais rapidamente com a construção do edifício europeu – que passarão a levar
adiante a integração europeia,
assente nas cooperações reforçadas. Na verdade, numa União
alargada, e, portanto, necessariamente mais heterogénea, o sistema de geometria variável surge
como a opção certamente mais
realista, concretizando a integração diferenciada assente em estruturas múltiplas detentoras de diferentes tipos de competências e
poderes, resultante da realização
de cooperações reforçadas em
diversos domínios. Solução que,
embora apresente riscos, designadamente de descaracterização da
União num cenário de “Europa à
la carte” a várias velocidades e de
consequente perda da coerência
interna da União, podendo desencadear profundas crises endógenas, não deixa de surgir como
aquela que, provavelmente,
melhor poderá servir o objectivo
de garantir algum grau de coesão
às políticas comunitárias.
O momento actual da vida comunitária, após a ratificação do
Tratado de Lisboa, aponta para o
eventual esgotamento do modelo
original de integração europeia, o
modelo dos passos lentos e ponderados de Jean Monnet, exigindo
uma nova etapa em direção a uma
maior integração política. E avanços sólidos e concretos no domínio da União Política só poderão
ser alcançados a partir da flexibilização dos ritmos de integração
que têm que respeitar a vontade
dos cidadãos de cada Estadomembro. Parafraseando Denis de
Rougemont (1996), “a nação
oculta a Europa como a árvore
oculta a floresta, pelo que um
europeu que ficou nacionalista
pelo coração parece-se com uma
árvore que continua a duvidar da
existência da floresta”. Mas isto
não significa, como bem lembra o
Professor Doutor José Adelino
Maltez (1996), que se caia no lado
oposto, “daqueles que, clamando
pela floresta, esquecem que esta é
feita de árvores (...). Só posso
pensar a Europa, pensando em
português, porque só posso atingir
o universal europeu através da
minha diferença, enraizada na história. A não ser que se tente um
revisionismo de repúdio da história portuguesa, negando a memória e o projecto do abraço armilar
que, aliás, constitui o cerne do
nosso símbolo nacional”.
O projeto de unidade europeia
congrega diversas dimensões,
econômica, social, estratégica,
ética, cultural, nas quais se
revêem as diversas comunidades
nacionais que nele participam.
Funciona como instrumento de
desenvolvimento, proporcionando
a melhoria das condições de vida
de cada uma dessas comunidades
e, nas partilhas de soberania que
implica, não afecta os valores da
identidade nacional que cada uma
das comunidades considera seus.
O projeto de unidade europeia só
tem interesse enquanto corresponder à conciliação entre o interesse
comum e os anseios de cada uma
das comunidades nacionais que
nele se unem. A necessidade de
conciliar o modelo de enquadramento dos alargamentos com esta
perspectiva solidária constitui um
dos grandes desafios que hoje se
colocam ante a União Europeia.
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Esperemos, após todo este processo, que a União
Europeia não siga o mesmo caminho dos grandes
impérios, demonstrando que a grandeza territorial e
a riqueza de recursos, por si sós, podem não evitar o
colapso, quando o sistema se torna inoperacional.
Podem, pelo contrário, precipitá-lo, como sucedeu
sempre aos impérios do passado. Todos nasceram,
cresceram e, quando atingiram um tamanho demasiadamente grande, morreram, seguindo a teoria do
perecimento dos impérios de Jean-Baptiste
Duroselle (2000). Uma teoria de acordo com a qual
os homens, em grupo, “criam um consenso para
serem mais fortes, depois o destroem, porque a eficácia vai de encontro à felicidade e esta é preferível
à eficácia quando os períodos de alta tensão terminam. Quando esse fenómeno se produz, assistimos à
formação e à destruição dos impérios”(idem). Em
meio a todas estas reflexões, vislumbra-se um futuro
de dificuldades para a concretização, necessária, da
integração política no seio da União Europeia alargada
a Leste. Posicionada entre o aprofundamento político
e o alargamento, a União principia já a solucionar os
problemas resultantes desta constante indissociável da
história comunitária, mantendo-se, todavia, hesitante
ante as contradições colocadas por todo este processo.
Um processo que apenas com o tempo poderá julgarse, na certeza de que qualquer perspectiva de êxito exigirá, sempre, não apenas o envolvimento dos cidadãos
europeus, como ainda o entendimento de que o desenvolvimento de uma verdadeira União Política exige
uma comunhão de interesses e objectivos que apenas
o tempo poderá tornar real e efectiva.
Referências
Barroso, Durão (2009) ‘Discurso proferido na cerimônia da entrada em vigor do Tratado de Lisboa`.
Speech/10/560 in Europa – Communiqués de Presse
Rapid,
Disponível
em
http://europa.eu
Acessibilidade: 02/dez./2009.
Busek, Jerzy (2009) Discurso proferido na cerimônia da entrada em vigor do Tratado de Lisboa.
Disponível
em
http://europarl.europa.eu/parliament/public/staticDisplay.do?la
nguage_PT&refreshCache=yes&pageRank=18&id=66
.
Acessibilidade: 02/dez/.2009.
Duroselle, Jean-Baptiste (2000) Todo Império
Perecerá - Teoria das Relações Internacionais,
Brasília, Editora UnB.
Fernandes, António José (Ed.) (1994) A União
Europeia de Maastricht - Federação, Confederação
ou Comunidade de Estados?, Lisboa.
Maltez, José Adelino (1996) Tudo Pela Europa,
Nada Contra a Nação, Lisboa, ISCSP (Separata da
Conjuntura Internacional).
Patrício, Raquel (Ed). (2009) Uma Visão do Projecto
Europeu – História, Processos e Dinâmicas,
Coimbra, Editora Almedina.
´Relatório Corbett/Mendez de Vigo`, aprovado na
sessão plenária do Parlamento Europeu no dia 20 de
Fevereiro de 2008.
Sócrates, José (2009) ‘Discurso proferido na cerimônia da entrada em vigor do Tratado de Lisboa`.
Jornal Público, versão on line de 01/dez./2009.
Disponível em http://www.publico.pt/Mundo/tratado-de-lisboa-e-um-novo-comeco-no-processo-deintegracao-europeia_1412185
Acessibilidade:
01/dez./2009.
Soromenho-Marques, Viriato (Ed.) (2005) Cidadania
e Construção Européia, Ideais e Rumos
Editora/Museu da Presidência da República, Lisboa.
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Esperando Godot?
O Brasil e a China além da crise internacional
Diego Santos Vieira de Jesus1
Estragon: Espere! Eu me pergunto se não teria sido melhor
que a gente tivesse ficado sozinho, cada um por si.
Nós não fomos feitos para a mesma estrada.
Vladimir: Isso nunca se sabe.
Estragon: Não, nunca se sabe nada.
Vladimir: Nós ainda podemos nos separar; se você achar
melhor.
Estragon: Agora é tarde demais.
Vladimir: É, agora é tarde demais.
Estragon: Então, vamos?
Vladimir: Vamos.
(S amuel Beckett, “Esperando Godot”, 1952)
A
pós a crise internacional de 2007-2009, os
norte-americanos vêm perdendo a posição
de motor da economia mundial, enquanto os
consumidores dos Bric – Brasil, Rússia, Índia e
China – lideram a sua recuperação. A estimativa da
corretora Goldman Sachs é de um crescimento de
11,4% para a China, de 8,2% para a Índia e de 4,5%
para a Rússia em 2010. Houve uma segunda mudança de projeção em relação à previsão de crescimento
do PIB do Brasil: ela foi alterada de 5,8% para 6,4%
para este ano. Além de ter uma excelente performan-
1. Instituto de Relações Internacionais/Pontifícia Universidade
Católica do Riode Janeiro.
ce no seu ciclo econômico e em especial na atividade
manufatureira – na qual os Bric mostraram forte recuperação –, a China vem ultrapassando os EUA como o
principal mercado mundial. Quanto às tendências
recentes nas vendas de varejo, por exemplo, seu crescimento no território chinês desde 2007 é maior do que
a queda de consumo ocorrida nos EUA. Embora o
crescimento chinês seja visto como “fenomenal”, existem questionamentos quanto à capacidade de sustentação desse ritmo, pois não se sabe se tal PIB pode se
manter sem a elevação da inflação.
Dentre os Bric, o Brasil é considerado por Jim
O’Neill, autor do acróstico, e por uma série de outros
economistas como aquele que apresenta as melhores
condições de garantir um crescimento sustentável no
longo prazo e pode tornar-se uma das maiores potências globais até 2050. Esse desempenho pode ser
creditado ao bom resultado que o país vem obtendo
em diversas áreas relacionadas ao crescimento sustentável. Em relação aos demais membros do grupo,
o Brasil tem o melhor resultado no índice Growth
Environment Score, que considera 13 variáveis que
apontam para o crescimento sustentável, a competitividade e a produtividade. O país tem uma pontuação de 5,3 numa escala de 0 a 10, em que pontuações
mais elevadas são consideradas positivas para o
crescimento. O Brasil é seguido por China (5,2),
Rússia (5,1) e Índia (4,0) e, nos itens específicos
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dessa planilha, obteve uma boa
pontuação em áreas como inflação (8,6), dívida externa (8,5) e
educação (7,4).
nado pelo crédito, o qual chegou
ao final quando se verificou que
certas características não eram
sustentáveis: os cidadãos dos
EUA tinham-se endividado
demais, e os preços dos imóveis
tinham subido de forma exorbitante, além de que os balanços das
instituições financeiras no mundo
inteiro exibiam um grau de alavancagem extraordinário. Com
seu prenúncio em agosto de 2007,
a crise colocou em marcha um
movimento de desmonte dessa
alavancagem e foi amortecida
porque governos puderam absorver o inchaço de crédito. Isso,
todavia, não eliminou o problema:
ele foi transferido dos balanços
das empresas e das famílias para o
desses governos, de forma que
não houve uma saída definitiva
(Fraga, 2010).
Este artigo investiga o desempenho dos dois Bric mais bem-sucedidos na superação da crise internacional de 2007-2009 – Brasil e
China – e os elementos econômicos e políticos que viabilizaram
seu crescimento. Na dimensão
econômica, a maior solidez do
regime macroeconômico e a
menor alavancagem2 no sistema
financeiro capitalizado permitiram uma abordagem mais equilibrada de regulação do mercado
financeiro. Na área da política
externa, tais Estados procuraram
desenvolver regras, normas e procedimentos que satisfizessem seus
interesses de desenvolvimento e
de ampliação de sua autonomia e
participação.
Como grande parte dos países em
desenvolvimento, o Brasil entrou
A economia
na crise com balanços em bom
estado, e o Banco Central vinha
A crise internacional, segundo implementando a tarefa de admiFraga (2010), representou uma nistração do ciclo econômico. A
“ressaca” após um período de recessão foi bastante profunda,
crescimento acelerado e impulsio- mas muito curta, na medida em
que não havia sinais de superendividamento. Mesmo não tendo
uma gestão tão conservadora
2. No jargão econômico, o termo “alavanquanto à da China, o Brasil consecagem” refere-se à situação na qual um
guiu deixar a recessão em dois triinvestidor ou uma empresa investem mais
do que permitem seus recursos. Eles utilimestres e demonstrou capacidade
zam instrumentos financeiros ou recursos
de administrar a crise (Fraga,
de outros atores a fim de ampliar o retorno
2010). Segundo Affonso Celso
de suas operações, mas também potenciaPastore, consultor e ex-presidente
lizando seu risco.
do Banco Central, a maior solidez
3. O balanço de pagamentos sistematiza as
transações econômicas do país com o
do regime macroeconômico –
resto do mundo. O saldo das transações
câmbio flutuante, nível considerácorrentes configura-se como a principal
vel de reservas, dívida pública
conta do balanço de pagamentos e é composto pela soma dos resultados da balança
desdolarizada, inflação controlada
comercial, da balança de serviços e das
e superávit primário – e a menor
transferências unilaterais.
alavancagem no sistema financeiro capitalizado – proibido pelos
mecanismos de regulação de operar com ativos perigosos, como os
títulos no mercado norte-americano de hipotecas subprime,
empréstimos hipotecários de alto
risco concedidos a clientes sem
comprovação de renda e com histórico ruim de crédito – permitiram uma abordagem mais equilibrada de regulação do mercado
financeiro (Dante, 2009) e, como
ressalta O’Neill (2010), contiveram uma crise bancária.
Dentre os fatores econômicos que
justificam o desempenho brasileiro na superação da crise e no crescimento posterior, cumpre destacar as taxas de juros mais baixas –
embora ainda sejam elevadas em
termos mundiais –, uma economia
mais estável e previsível e melhorias legais e regulatórias nos mercados de crédito. O déficit na
conta corrente do balanço de
pagamentos3 aponta para o fato
de que o mundo financia o país
para que consuma muito – e assim
poupe pouco, o que pode gerar
preocupação – e também tenha
condições de investir, sendo tal
déficit motivado não pelo endividamento como no passado, mas
pela entrada de investimentos
(Fraga, 2010). Além disso, o
padrão de consumo permitiu ao
país atuar como um dos principais
responsáveis pela recuperação da
economia mundial. Desde o Plano
Real, observa-se uma melhoria no
padrão de distribuição da renda e
a redução da pobreza; entretanto,
o Brasil ainda tem juros altos e
um endividamento considerável.
Logo, isso exige maior cautela do
governo e da população caso as
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taxas de juros baixem ainda mais:
se com as taxas altas o nível de
endividamento é alto, com taxas
reduzidas pode ser ainda maior.
Ainda assim, o ambiente econômico oferece ao empreendedor
mais espaço para trabalhar, além
de permitir ao país alavancar o
mercado de capitais, que tem sido
uma fonte de investimento, em
especial para o aumento de capacidade produtiva e a geração de
empregos (Fraga, 2010).
Já a China tem um sistema de produção e organização muito centralizado e uma taxa de poupança
elevadíssima. Tal país adotou,
quando partiu para o caminho da
liberalização, um modelo social
que seria impensável numa democracia, com uma rede de proteção
social mínima, quase inexistente,
ao contrário da brasileira, mais
extensiva em termos de cobertura.
Porém, o modelo chinês criou as
bases para mais exportações, com
uma taxa de poupança muito
movida pela atitude de precaução,
que tem a ver não só com fatores
culturais, mas com as lacunas de
proteção social. Ademais, o país
consolidou-se como grande centro
manufatureiro do mundo, de
forma que industriais de todo o
planeta temem a concorrência chinesa. Hoje, o país demonstra
melhores condições de administrar a situação de transição interrompida em função da crise para
um modelo de mais consumo,
mais eficiência e menos dependência
das
exportações.
Pensando-se no crescimento
sendo determinado pelo tamanho
da força de trabalho e na produtividade, a China tem grande vantagem em face de sua população
enorme (O’Neill, 2010). Embora
o país tenha tido um excelente
desempenho nos últimos 30 anos,
tal crescimento enfatiza a pressão
sobre os outros países. Uma força
de trabalho barata, disciplinada e
praticamente ilimitada permite a
produção de bens intensivos em
trabalho para o resto do mundo,
mais barata que para os competidores. No longo prazo, isso pode levar
a um colapso da produção industrial em muitos países – em particular na Rússia – e intensificar a pressão sobre a política de câmbio chinesa (Aleksashenko, 2010).
A política externa
A inserção internacional do Brasil
parece caracterizada pelo que
Pinheiro (2000, 326) classifica
como um “institucionalismo pragmático”. Nesse contexto, o país
busca atingir objetivos de maior
desenvolvimento e de ampliação
de sua autonomia por meio de
arranjos de cooperação internacionais de diferentes níveis de institucionalização: com níveis mais
altos, o país procura ampliar sua
oportunidade de voz no nível multilateral – como na Organização
Mundial do Comércio (OMC),
por exemplo – e evitar a dominação indiscriminada de grandes
potências; com níveis mais baixos, procura garantir sua posição
de liderança em contextos subregionais e preservar sua posição
de potência média. A flexibilidade
para responder aos desafios tanto
domésticos como internacionais
passa a ser cada vez mais internalizada na posição brasileira, afetando as decisões de política
externa a partir da consolidação
de um pragmatismo ainda mais
aprimorado às suas ações no nível
internacional: ao mesmo tempo
em que diversifica parceiros
comerciais e busca uma participação ativa no gerenciamento de
questões regionais e mundiais em
organizações como a OMC, o
Brasil coopera com os EUA em
múltiplas esferas, internalizando
posições defendidas por tal superpotência. Esgotam-se, assim, os
paradigmas americanista e globalista em nome de uma política
externa ainda mais pragmática e
assertiva, particularmente intensificada nas duas últimas décadas.
Esses traços da política externa
brasileira justificam-se pelo fato
de que, ao mesmo tempo em que o
Brasil como “país emergente” viabiliza o diálogo entre as grandes
potências e os países subdesenvolvidos e funciona como elemento garantidor da estabilidade e
da segurança regionais, ele também opera como catalisador das
demandas de inúmeros países
menos desenvolvidos em fóruns
onde buscam ampliar suas oportunidades de voz; particularmente
em fóruns econômicos multilaterais. Com base nesse papel, o
Brasil aproveita janelas de oportunidade buscando desenvolver
regras, normas e procedimentos
que satisfaçam seus interesses de
desenvolvimento e de ampliação
de sua autonomia e de participação nas principais decisões internacionais. Como lembra Marques
(2005, 62), a imagem internacional do Brasil sustenta-se também
no soft power exercido em função
de seu poder de persuasão e da
realização de seu papel de mediação. Para que possa exercer tal
mediação, a credibilidade é neces-
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sária, e, no pós-Guerra Fria, essa
fonte de credibilidade assentavase em valores como a preservação
dos Direitos Humanos, a consolidação da democracia, o fortalecimento da economia de mercado, a
não-proliferação de armas de destruição em massa e a defesa do
meio ambiente, de forma que o
nível de internalização deles na
perspectiva de inserção internacional do Estado passa a definir o
grau da participação que ele pode
ter nos principais fóruns de concertação
político-econômica
regionais e multilaterais. Após a
redemocratização, as posições
internacionais defendidas pelo país
passavam a se sustentar também na
legitimidade conferida pela abertura de um diálogo mais intenso –
embora ainda hoje limitado – com
setores da sociedade civil acerca de
temas internacionais.
O esgotamento do modelo econômico fechado diante da crise fiscal e do avanço do liberalismo no
fim da Guerra Fria sinalizava que,
diante da necessidade do país de
preservar sua estabilidade socioeconômica, a dependência de um
único parceiro comercial poderia
ser prejudicial em face de crises
sistêmicas, ao passo que a superpotência permitia a criação de
espaços em que países em desenvolvimento poderiam articular a
concertação política acerca de
temas de seu interesse, desde que
em respeito às instituições internacionais criadas sob a égide de
valores e princípios tidos como
“universais”. Além disso, apesar
da crise do terceiro-mundismo,
resquícios da crítica às relações de
poder assimétricas e a busca da
cooperação em nível mundial para
a ampliação da projeção de países
menos desenvolvidos permaneciam compondo a multiplicidade
do processo de inserção internacional brasileira, preservados
inclusive por vários setores da
elite nacional e do próprio corpo
diplomático. Em face de um contexto onde poderia preservar espaços de autonomia e dos traços universalistas que compõem a inserção internacional do país, o Brasil
vê que nem a lógica de alinhamento incondicional aos EUA
nem uma concepção estritamente
globalista de política externa
seriam não só estrategicamente
interessantes para um país que
precisa se adaptar a novos constrangimentos sistêmicos, mas que
consolidava seu papel de potência
emergente no nível internacional.
Embora elementos como a opção
pelo institucionalismo tenham
sido preservados na ação internacional brasileira, o pragmatismo
fortalecido supõe que, em face de
recursos limitados de poder, pode
ser interessante para o país aderir
às normas internacionais densamente institucionalizadas pelas
grandes potências ocidentais a fim
de ampliar suas oportunidades de
voz e, simultaneamente, garantir o
exercício de seu poder de forma
mais legítima e discreta por meio
de organizações de nível mais
baixo de institucionalização em
nível regional, preservando sua
autonomia.
zada pela sua “ascensão pacífica”,
na qual tal país mostra-se mais
favorável a fortalecer as suas relações com o exterior. Como apontam Medeiros & Fravel (2003, 2226), a China utiliza instituições,
regras e normas internacionais
como um mecanismo de promoção de seus interesses nacionais.
Isso se traduz numa perspectiva
mais construtiva e sofisticada e
menos conflituosa de sua política
externa quanto às principais questões mundiais e regionais, de
forma que a flexibilidade e a
sofisticação tornam-se características fundamentais de sua posição
quanto às relações bilaterais, às
questões de segurança internacional e às organizações multilaterais.
Tal imagem busca não somente
proteger e promover os interesses
econômicos chineses, mas ampliar
a sua segurança, conter a influência
de outras grandes potências como
os EUA nas instituições internacionais e viabilizar o exercício do
poder de forma mais legítima
(Grieco 1997, 163-201).
O interesse fundamental de segurança e de consolidação do Estado
está ligado não somente à sobrevivência do regime comunista e à
consolidação da posse de territórios contestados sob firme controle chinês, mas ao impedimento de
conflitos que a China não pode
vencer ou que limitariam suas
campanhas na busca de modernização econômica e maior influênJá a China tem manifestado reite- cia política. Tow (2001, 18-21)
radamente que a sua inserção aponta que, na construção de um
internacional no mundo contem- poder nacional completo para a
porâneo deve ser entendida como defesa do seu interesse fundamenuma nova fase histórica caracteri- tal, a China pretende assimilar alta
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tecnologia do exterior e desenvolver suas capacidades econômicas
domesticamente a fim de se afirmar como uma grande potência
autêntica no século XXI. Nesse
processo, a percepção de que os
EUA reafirmam-se como poder
hegemônico global afeta a agenda
estratégica de Pequim; na dimensão econômica, preocupam as
lideranças chinesas as redes de
alianças estratégicas norte-americanas que possam minar a sua
influência em mercados-chave.
Nesse contexto, a ampliação do
número e da profundidade dos
relacionamentos bilaterais e
regionais pós-1990 permitiram o
fortalecimento da coordenação
econômica da China com seus
parceiros e a sua maior influência
ao lidar com as alianças regionais
já construídas por grandes poderes como os EUA. Embora ainda
reconheçam hoje a preponderância dos EUA em uma série de
áreas temáticas, as lideranças chinesas buscam conter o comportamento hegemônico e, assim,
maximizar sua influência e racionalizar o exercício de seu poder
sobre seus parceiros. Isso ficou
visível no maior engajamento na
cooperação com a Asean
(Associação de Nações do
Sudeste Asiático) por meio do
Asean +3 e Asean +1 e na Apec
(Asia-Pacific
Economic
Cooperation na sigla em inglês,
Cooperação Econômica da ÁsiaPacífico em português); na criação do primeiro grupo multilateral
da Ásia Central, a Organização
para Cooperação de Shanghai,
para ampliar a cooperação na área
de segurança e o comércio regio-
nal; e na resolução de disputas territoriais com vizinhos. Tal postura
também pôde ser percebida no
abandono da aversão anterior às
organizações multilaterais, particularmente com o maior engajamento no Conselho de Segurança
das Nações Unidas e a participação na OMC. As transformações
no conteúdo, no caráter e na execução da política externa da China
nessa década representam uma
superação de um destaque na
humilhação sofrida no passado,
claro na caracterização da China
por Mao Tse Tung como uma
“nação em desenvolvimento vitimizada” e por Deng Xiaoping
como uma potência pouco disposta a aceitar grande parte das obrigações e responsabilidades de sua
posição. Tal perspectiva reativa é
substituída pela adoção da mentalidade mais participativa em face
da maior confiança nas décadas
de crescimento econômico, agora
assumindo responsabilidades cada
vez mais variadas (Medeiros &
Fravel 2003, 23-28). Como sinaliza Tow (2001, 41-43), a China
pode empregar sua adesão em instituições internacionais, seu
envolvimento com grandes potências e seu status como parceiro de
blocos regionais para ampliar sua
alavanca de negociação em face
de Washington e Tóquio a fim de
garantir arranjos comerciais e de
investimento mais favoráveis.
Embora ainda não deseje trazer
questões problemáticas para discussão em fóruns multilaterais
como o status de Taiwan, a China
parece estar se tornando mais confortável com arranjos multilaterais, racionalizando sua influência
pelos canais institucionais e exer-
cendo seu poder de forma menos
custosa e mais previsível.
Esperando Godot...
Até quando? A busca de uma
agenda comum
Grande parte dos especialistas
recomenda que os Bric – em particular o Brasil – enfatizem a realização de ajustes macroeconômicos de longo prazo e de mais investimentos em setores como infraestrutura e educação. O’Neill (2010),
por exemplo, destaca a necessidade
do país de aumentar a pontuação no
Growth Environment Scores em
áreas importantes nas quais ainda
existe muito trabalho a ser feito.
Dentre aquelas em que o Brasil
não teve bom desempenho, cabe
destacar utilização dos computadores (pontuação de 2,1), abertura
da economia (2,2), taxa de investimento (3,8), domínio da lei
(4,4), acesso à internet (4,7), estabilidade política (4,8) e corrupção
(4,9). Na área de educação, embora o país tenha uma boa posição
no item na planilha de Growth
Environment Scores (7,4), é notório que ainda falte mão-de-obra
qualificada, inclusive técnicos em
todos os níveis. Ademais, o Brasil
investe menos de 20% do PIB, e
essa taxa não é suficiente para um
crescimento sustentável nos próximos anos. Embora essa taxa já
esteja subindo, seria necessário
que subisse mais – para cerca de
23% a 25% do PIB em cerca de
cinco anos –, o que exigiria poupança, financiamento e capital de
risco. A infraestrutura no Brasil
ainda é carente, e, se o país continuar a crescer 5% ao ano, é necessário investir mais para que possa
manter o padrão de crescimento,
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em particular em estradas, ferrovias, aeroportos, portos, saneamento e energia. Além disso, o
custo do capital no Brasil ainda é
alto, mesmo que o país tenha
avançado muito no campo
macroeconômico e em aspectos
microeconômicos importantes,
como os determinantes do custo
dos empréstimos bancários
(Fraga, 2010).
Quanto ao desenvolvimento de
uma agenda comum para os Bric,
faz-se necessária a operacionalização da simetria entre os membros do processo de cooperação e
do equilíbrio entre eles. Com
esses pontos em vista, a agenda
poderia cobrir uma participação
mais ativa na redefinição e na
transformação do FMI com relação à presença no gerenciamento
e na execução de pressão institucional sobre as economias maiores, tornando a instituição mais
representativa (Aleksashenko,
2010; O’Neill, 2010). Ademais,
outras possibilidades seriam o
desenvolvimento de um plano
para transformar o SDR (S pecial
Drawing Right na sigla em inglês,
Direito Especial de Saque em português) – uma espécie de “moeda
internacional” desenvolvida pelo
FMI com o objetivo de tornar o
fluxo de valores entre os bancos
centrais mais fácil – numa moeda
global, vide o exemplo do euro, e
a criação de um sistema de pagamentos internacional, que funcionaria inicialmente para os bancos
centrais e fundos soberanos e,
posteriormente, para os bancos
comerciais (Aleksashenko, 2010).
Na visão do embaixador Marcos
de Azambuja (2010), os Bric são
quatro países em busca de uma
agenda e de como a operacionalizar, num momento em que essa
não é uma aliança natural nem
uma associação que flua com “a
naturalidade da história e da geografia”. Parece mais “uma idéia
que encontrou ressonância”, tendo
em vista que tais países não compõem uma aliança militar ofensiva ou defensiva, nem trazem os
protótipos de uma zona de livre
comércio, de uma união aduaneira
e de um mercado comum ou de
uma associação fundada em afinidades étnicas, culturais e religiosas. Eles não têm nem mesmo uma
única visão do mundo, de forma
que a diferença de perspectivas e de
matrizes pode inclusive contribuir
para enriquecer ainda mais o grupo,
mas pode dificultar a elaboração de
uma agenda comum mais ambiciosa no curto prazo.
Longe de representarem um bloco
coeso, tais países hoje buscam
uma maior concertação políticoeconômica desde seu primeiro
encontro em junho de 2009, em
Ecaterimburgo, na Rússia, visando especialmente à reforma das
instituições financeiras internacionais. O caminho não é fácil
nem simples, o que sugere, ao
menos inicialmente, maiores cautela e modéstia de objetivos
(Azambuja, 2010). Tendo em
vista que o processo de cooperação não se dá em torno de um
poder hegemônico ou condutor
que determine o rumo da cooperação, o “caminho do possível”
sinaliza para um trabalho conjunto na condução de passos ainda
modestos de revisão de aspectos
específicos da ordem internacio-
nal em face da reivindicação
comum de prestígio e de mais
espaço. A afinidade entre eles
reside, assim, na busca de maior
visibilidade no sistema internacional: os quatro países sentem-se
tratados de maneira que não reflete inteiramente a influência e a
credibilidade que julgam merecer.
Juntos, eles representam 28% da
área total do mundo e representam
cerca de 40% da população mundial. Essa cooperação legitima-se
pela massa critica de cada um e
pelo que isso representa em termos de porcentagem do poder, do
espaço e da demografia mundiais
(Azambuja, 2010).
Referências
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agenda para os Bric / Engaging
in a Bric agenda.` Apresentação
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Prefeitura da Cidade do Rio de
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Azambuja, Marcos (2010) ´Uma
agenda para os Bric / Engaging
in a Bric agenda.` Apresentação
no Painel 1: Relevância internacional e os desafios no cenário
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Prefeitura da Cidade do Rio de
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Novembro 2010
Fraga, A. (2010). ‘Uma agenda para os Bric /
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Painel 1: Relevância internacional e os desafios
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da Cidade do Rio de Janeiro/PUC-Rio, 22/fev.
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O’Neill, J. (2010). ´Uma agenda para os Bric /
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1: Relevância internacional e os desafios no cenário
econômico. Prefeitura da Cidade do Rio de
Janeiro/PUC-Rio, 22/fev.
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ensaio sobre a teoria e a prática da política externa
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v.22, n.2, p.305-335.
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in ___. Asia-Pacific strategic relations: seeking convergent security. Cambridge: Cambridge University
Pres, p.12-43.
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Global Governance
Brazilian Views from Cardoso to Lula
Tatiana Coutto1
Introduction
P
olitical leaders worldwide are confronted with a
paradox: on the one hand, they are expected to
solve major problems that affect the societies
they represent. In fact, governments are usually
regarded as the main – if not the only – responsible
for creating conditions that lead to economic growth,
ensuring financial and market stability, providing
public services such as health and education,
improving social indicators and environmental conservation, and so on. On the other hand, the population increasingly distrusts politics and political institutions, or simply do not formally engage in political
participation.
The coexistence of policy demand and political distrust in numerous societies poses challenges for public
administration entities throughout the world, and has
become a major concern in a number of states as
well as among non-governmental actors. In April
2010, during the meeting of heads of government of
Brazil, India, Russia and China (Brics) in Brasília,
Brazilian president Lula da Silva called for ‘creative
and pragmatic diplomatic articulation’ capable of
1. Centro de Documentação de História Contemporânea, Fundação
Getulio Vargas (CPDOC/FGV)
tackling global problems. Lula da Silva’s message
was straightforward: something must change in the
way states participate in the international system. In
the European Union, the Commission identified the
reform of European governance as a strategic objective in early 2000. Since then, several programs that
aim at narrowing the gap between EU citizens and
Community institutions have been launched in order
to increase public participation in political decisions
and reduce the chronic problem of democratic deficit
of which the EU has suffered since its early stages.
In the now famous Prague speech of 2009, President
Barack Obama has heralded a “new era of engagement” for the United States and his strategy to
accommodate established and rising powers
(Patrick, 2010).
The common denominator of these declarations is
the perception that existing decision and policymaking rules are becoming obsolete, and that it is
necessary to devise new rules that allow political
actors worldwide to approach common challenges
despite their various interests. This context provides
room for the discussion of alternatives to handle
transnational problems collectively according to the
dynamics of this new scenario. The alternative ways
of devising standards of rules that allow for coordination and cooperation among players from coun-
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Novembro 2010
tries or regions, and across different
political levels is generally named
“governance”. However, the fact
that several leaders agree that
rules need to be changed does not
guarantee that they will converge
spontaneously to common positions. Whilst political actors can
certainly align to deal with common agendas, their interests
strongly differ on a number of
issues, and the design of the new
rules of the game has a number of
points of tension and disagreement.
these questions, the paper is
organized as follows: first, the
definition of the term ‘governance’ is discussed, and a brief
historical overview on the emergence of governance debate is
presented. The next section compares the views of Lula and
Cardoso on this matter, and to
what extent they have favored
certain foreign policy strategies.
Particular attention is given to the
choice of critical partners that
would allow Brazil to improve its
global standing, and the relationship with the US and the EU. The
The modes of governance that final section lays down concluactors consider more appropriate sions and suggests possibilities
are based on their interests, but also for further studies.
take into account the preferences of
other players, and the political- Definition
institutional context where decisions are made. Put shortly, the Governance can be broadly
preference for a certain mode of defined as a dynamic system of
governance in, above all, a strate- interaction among political playgic option of each player, or group ers with varying interests that
of players (Diermeier and. seek to devise rules that help them
Krebhiel, 2003). Thus, such meet their preferences. The sysoption is influenced by particular tem concerns “every mode of
conceptions of the world system, political steering involving public
and the role the actor expects and private actors, including tradiitself to play in this scenario. tional modes of government and
Governance changes over time. different types of political steering
from hierarchical imposition to
The aim of this article is to analyze sheer information measures”
how Brazilian views on gover- (Héritier, 2002). The numerous
nance have evolved since president existing modes of governance
Fernando Henrique Cardoso’s result from the traditions and
administration. To what extent do institutions by which authority is
Cardoso and Lula’s administra- exercised over time, and express,
tions actually differ on this point? for example, the process by which
By which means have these views governments are selected and
on governance translated into monitored, and their capacity to
political institutions and how are formulate and implement public
they expected to influence policies, the level of corruption,
Brazilian foreign policy in the and so on (Worldbank, 2009).
coming years? In order to answer
The concept of institution humanly devised constraints that
shape human interaction (North,
1990) - is central to understand
the debate around forms of governance. Political actors (national
administrations, non-governmental organizations, firms) are permanently engaging in formal and
informal arrangements that allow
them to overcome collective
action problems and achieve predefined goals by informing and
communicating with other actors
(Milner, 1997). The interrelationship among institutions across
political levels over time leads to
the formation of developing systems of codes and practices (formal or not) that orient decisionmaking and the behavior of individuals and social groups. In a
nutshell: the interaction of several
institutional entities and the delocalization of decision-making
and policy–making loci leads to
the formation of a more complex
system where players may have
more possibilities to exert influence and authority over the others.
The attention driven by governance studies is the expression of
something that scholars from
Europe and elsewhere have
noticed: although states remain the
main actors in our predominantly
Westphalian system, traditional
notions of government fail to capture the complexity of today’s
political decision-making processes.
As a consequence, governance has
been associated to changes in the
role of the state and the international system, namely due to the
need to engage emergent actors in
cooperative arrangements, and to
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Novembro 2010
respond to changing contexts.
Such changes stem from conceptions of the international system,
and from the way actors evaluate
threats and opportunities for the
coming years.
The way security is perceived by
each player plays a crucial role in
the definition of global governance structures. A broader conceptualization of threat and security stresses the need of aggiornamento of the UN Chart to include,
for example: the adaptation of
articles VI and VII of the Chart,
which refer to the redefinition of
what constitutes a threat to peace
and stability of the international
system, responsibilities of UN
member states regarding peace
keeping and the conditions that
legitimate the use of force.
Changes in the United Nations
system – and, in particular, of the
Security Council (SC) – are desirable by countries as varied as
Brazil, Turkey, Germany, Japan,
the UK and France. In fact, the
reform is regarded as inevitable
by the majority of government
representatives and members of
national delegations to the UN.2
Set up in the late 1940s, the
organization no longer accurately
2. Lord Hanny, former UK representative
to the UN. Declaration made upon the conference: “Why is the UN reform paralyzed?” which took place at Pontifical
Catholic University of Rio de Janeiro
(PUC-Rio), on 18/03/2010.
3. The concept of actorness is drawn from
literature on the external dimension of the
European Union. See, for example, Jupille
& Caporaso (1998) and Bretherton &
Volgler (1999).
4. See, for example, public audience of the
Commission on 29/04/2009.
reflects the distribution of power
across the international system.
Over the last 50 years, the EU has
become a pivotal, albeit sui generis,
player; the URSS collapsed, and
some of the so-called newly
industrialized countries (NICs) no
longer accept to merely follow
rules, but rather seek to define
them (Soares de Lima, 1990). As a
consequence, they have articulated
various fora (G-20, Brics, Ibsa,
Basic) in order to formulate a
common agenda and, whenever
possible, common positions vis-àvis established powers. These
countries have managed to block
disadvantageous negotiations, as
in the Doha Round, for example.
By contrast, they have so far fallen
short of proposing an alternative
agenda. So far, emerging powers,
OECD countries and developing
nations have not come to terms
with the reform of the present
world order.
ment with multilateralism and the
improvement of Brazil`s standing
in the world scenario. Thus, both
reflect the willingness to enhance
Brazil’s actorness vis-à-vis
developed countries and international organizations.3 The main
difference between the two
governments regards the strategy
to strengthen Brazil’s insertion in
the international system. Cardoso
favored the commitment with
OECD countries and regional
integration (Vigevani, 2003);
under his administration, the
relationship with the US was
defined as essential, cooperative
and based on principles of international law and good political
relations. Nonetheless, there has
been sharp disagreement in what
concerns trade (cotton, steel) and
property rights regimes, which
hampered the establishment of the
FTAA as a hemispheric project. To
Lula, such relationship remains strateBrazilian views on the inter- gic, but it is no longer regarded as the
national system and global only alternative to achieve Brazil’s
governance: Cardoso and Lula economic and diplomatic goals.
administrations
Lula and the Minister of Foreign
The position Brazil has adopted Relations Celso Amorim have
since the early 1990s in the inter- also emphasized the importance
national arena reflects relative of partnerships with African and
continuity guided by principles of Latin American/Caribbean counliberal democracy and multilateralism. tries, which has been translated in
The country’s different adminis- an increase of the number of contrations have, over the past 20 sulates and embassies throughout
years, underlined the importance the world, namely in Africa and in
of new forms of governance and the Caribbean. This initiative has
institutional development as a not been immune to criticism,
means of addressing old issues especially from the Senate’s
differently, and dealing with “new Permanent Commission on
Foreign Relations.4 According to
global agendas”.
the minister, such diplomatic repreBoth Cardoso and Lula’s govern- sentations respond to a demand for
ments express a strong commit- political support from private and
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Novembro 2010
state-owned companies, especially in business areas involving
civil engineering, oil, mining and
agriculture. Mercosur has gained
a new momentum, in which
Argentinean president Cristina
Kirchner has been of fundamental
importance, including in the commercial negotiations between
Mercosur and the EU, which is
Brazil most important investor
and trade partner. All in all, initiatives to foster commercial integration and cooperation in South
America through instruments
such as Unasur meetings, agreements with Andean countries, and
Mercosur enlargement with the
entry of Venezuela5 represent the
country’s willingness to seek
deeper and more intensive relations with its regional partners
and neighbors. This movement
results in large part from a more
active participation of specific
sectors that has been successful in
coordinating industrial and
foreign policies.
The rapprochement with African
and Caribbean states – has been
driven by the potential payoffs of
this cooperation, as well as on
shared values (colonial past) and
on the existence of common problems (inequality, violence, environmental
degradation).
‘Solidarity’ is also a highly frequent term in Lula’s discourse,
which draws a line between his
and Cardoso’s views. By calling
for solidarity, Lula approaches the
5. Venezuela’s membership still depends
on ratification by the Paraguayan congress.
6. Interview with Brazilian ambassador
Marcos Azambuja, January 2010.
developing world, but at the same
time underlines Brazil’s capability
to help poorer countries in their
pursuit for development. The
quest for a more prominent role in
the international system, on the
other hand, has been a factor that
has shaped the various overlapping
arrangements advanced by emergent powers such as Brics, Ibsa,
Basic and the G20 (Cooper &
Antkiewicz, 2008).
such as Mexico, Argentina, Italy
and Spain, to name a few examples. Hence, a permanent seat
requires the adoption of clear
positions about highly sensitive
political issues such as disarmament, non proliferation and the
use of dual technologies by non
democratic states. Historically,
Brazil has avoided diplomatic
options that lock out potential
partners; instead, Brazilian diplomacy has spread the idea of Brazil
Another important difference as a mediator, an actor capable to
between Cardoso and Lula’s pri- engage in (in)formal talks with a
orities in terms of foreign policy wide number of states (Iran,
and Brazil’s insertion in the inter- Cuba, Venezuela, G7) without
national system refers to a recon- putting the stability of the interfiguration of the UN Security national system at stake. A permaCouncil. Lula’s second adminis- nent seat would therefore repretration (2006-2010) has been par- sent a rupture with the country’s
ticularly keen on an expansion of diplomatic tradition.6
the SC, where Brazil, together
with other world powers The reform of the Security
(Germany, Japan), would occupy Council depends on how security
a permanent seat. On one hand, a is conceptualized. An alternative
permanent seat would be the con- that is currently under discussion
firmation that Brazil has become a in Brazil concerns the establishcritical player in the international ment of various ‘security counrealm, mainly due to the adoption cils’ that would work on different
of new conceptions of security (albeit coordinated) security
since the 1990s. Of particular
strategies. In that sense, the instiimportance is the concept of
tutional reform of UN system
environmental and food security,
where Brazil stands out as a key would stem from a broader conplayer in the definition of regimes ception of threat and security.
to reduce the over exploitation of Such process does not lead to
natural resources, to ensure the abrupt changes in today’s goverprovision of agricultural (food) nance framework, but to a contiproducts and to mitigate the nuous and gradual process of
effects of ongoing changes in the institutional evolution and change.
environment and natural disasters. Thus, a gradual reform in the UN
At the same time Brazil becomes system allows for the development
increasingly aware of the costs of of more specific arrangements
becoming a permanent member. (which would certainly include the
The costs comprise for, instance, institutionalization of the Brics) that
the opposition of middle powers can be carried out in separate fora.
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Relationship with the EU and
the US
Brazil regards the EU as an
important economic partner and
promoter
of
development;
besides, the Union has provided
institutional guidelines and inspiration to regional cooperation
and integration initiatives proposed by Brazil to other South
American countries. Already
under Cardoso administration,
Brazilian diplomacy (presidency,
Ministry of Foreign Relations,
executive branches and certain
private actors) had identified the
“advantages” of investing on a
strategic partnership with the EU.
Statements and informal declarations of Brazilian diplomacy welcome an strategic partnership with
the EU because it somehow balances US influence and reduces
the risk of depending on one
power. Following the same
rationale, Brazil-US relationship
appears as critical to open spaces
in EU overprotected policy areas,
especially in what concerns agricultural products. On the other
hand, testimonials of Brazilian
diplomats and Community officials strongly suggest that a
Brazil-EU relationship is more
likely to promote institutional
changes at the international level
than Brazil-US partnerships.
The unique character of the EU
and its overlapping levels of
governance is perceived as a
‘space of opportunity’ to the
development of more intense
commercial relations between
Brazil and the EU, along with
cooperation in other realms such
as science & technology, energy
and food security, for example.
Brazilian strategy has been to
approach not only EU institutions
such as the Commission and the
European Parliament. Thus, the
mixed
participation
of
Community institutions (namely
the Commission) and Member
States has allowed Brazil to
establish
various
channels
through which policy specific
negotiations can be carried out.
Examples of his strategy have
contributed, for example, to the
support of Scandinavian countries
(most notably Sweden) to the use
of Brazilian sugar cane-based biofuels, to French support to a
Brazilian seat in the Security
Council, and to the permanent
dialogue between Brazil and
Portugal on a number of issues.
The Commission remains as the
most important interlocutor when
it comes to global issues such as
climate change, natural resources’
management and biodiversity
regimes. These are salient issue
areas to Brazil and will become
more important as scarcity of
natural resources increase. Thus,
increasing mobilization of domestic actors tends to pressure for the
adoption
of
more
strict
environmental legislation, despite
heavy lobbies exercised by
construction and energy sector;
there is demand from the international community for stronger
regulation, and other players
recognize Brazil as a key player.
In a nutshell, there is a
constellation of aspects that favor
Brazil strong agency in this realm.
So far, development concerns and
the unwillingness of certain
sectors to afford the costs of
migrating to environmentally
friendly
technologies
and
industrial processes, coupled with
the relatively little importance
Lula administration confers to
environmental conservation have
stopped Brazil from playing a
decisive role
Final remarks
The existence of multiple levels
of governance provides states
with more flexibility to make and
to apply rules in different realms
of the international system. Thus,
they provide room for the G20 to
become a more institutionalized
group, capable of introducing
reforms in several organizations
like the IMF, the World Bank, and
the WTO instead of “simply”
opposing to existing proposals.
These multiple forms of participation drive attention to the fact that
there is no “one size fits all” solution to problems with international impact. International
challenges are increasingly transdisciplinary; for this reason it is
important to develop states and
non state actors with flexibility to
tackle different problems in more
adequate for a. in other words, to
choose the strategy and the institutional tools more capable of
helping players meeting their
preferences.
The financial crisis the world has
gone through shows that the market alone has proved to be a bad
regulator of collective action. In
the absence of mechanisms capable of correcting predatory
behavior, market will lead not to
equilibrium, but to distortions that
concentrate resources. Institutions
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can mitigate inequality by
punishing bad behavior and
redistributing resources. The present institutions and legal structures are still generating inequalities, instead of correcting market
failures. As a consequence, crises
tend to replicate in other policy
domains, such as environment,
energy, migration and common
resources.
participation of a larger number of
states and non state actors. The
recognition of the group’s importance to overcome international
crises drives attention to the need
to develop arenas and mechanisms that allow for more
cooperation. Both minilateralism
and multilateralism are necessary
to modify the rules that regulate
and influence the behavior of
states and global ruling elites
The current international scenario (Rothkopf, 2008).
creates conditions for these “new
powers” to improve their global Brazil can benefit enormously
standing. The position expressed from the strategic dimension
by Brazilian diplomacy today acquired by issues such as
highlights the need to update environment, energy supply and
existing institutions and to create food provision without compronew ones specifically designed to mising its diplomatic tradition of
tackle novel issues of inter- not locking out potential
national relations. A combination partnerships worldwide. As put by
of minilateralism - where smaller Brazilian diplomats Gelson
groups seek to define a common Fonseca and Marcel Biato, the
agenda as well as positions they time of the great utopias has
will sustain vis-à-vis other groups passed. Today, the only possibility
of states or organizations - and is the existence of “negotiated
multilateralism - a larger number utopias”, which provide a certain
of players and a wider variety of conception of peace, harmony and
interests - has been advocated by stability to be achieved through
the Brazilian diplomatic service.
multilateral cooperation and the
continuous development of
Despite G20’s increasing impor- (several and partially overlapping)
tance, it should be underscored governance structures.
that this is still a very heterogeneous group, with various points References
of tension between emerging and
established powers, as well as Cooper, A.; A. Antkiewitz (eds)
within each group. In 1989, the (2008) Emerging Powers in
fall of the Berlin wall announced Global Governance: Lessons from
the emergence of a world free of Heiligendamm Process, Waterloo,
political and economic barriers, ON, The Centre for International
but the idea proved unrealistic in Governance Innovation and
the subsequent years. By the same Wilfrid Laurier University Press.
token, the so far increasing insti- Diermeier, D.; K. Krebhiel (2003)
as
a
tutionalization of the G20 seems ‘Institutionalism
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50
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Mural Internacional
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Novembro 2010
Mercosul Cultural: desafios e 1
perspectivas de uma política cultural
Mônica Leite Lessa2
Introdução
P
assada mais de uma década do primeiro
Encontro de Secretários de Cultura e
Autoridades Culturais do Mercosul (1992) e
da publicação do Protocolo de Integração Cultural
do Mercosul (1996), tem-se à disposição uma razoável literatura acerca dos avanços e das dificuldades
da integração cultural do Bloco. Em verdade, desde
o Seminário Identidades, políticas culturais e integração regional, realizado em Montevidéu, em
1993, muitos especialistas tem se debruçado sobre
os diversos aspectos da questão para, em sua ampla
maioria, defenderem a importância da cultura no
processo de integração. A percepção mais corrente,
entretanto, é a de que o Mercosul Cultural ainda não
recebe a atenção devida por parte dos Estados mercosulenhos. Em 2006, o próprio Ministério da
Cultura do Brasil (MinC) reconheceu, em documento intitulado “Diagnóstico sobre o Desempenho do
Mercosul Cultural”, apresentado durante a XXIII
Reunião do Comitê Regional do Mercosul Cultural,
que “dois desafios estruturais” persistiam desde a
1. Artigo originalmente apresentado no VII
Internacional do Fórum Universitário do Mercosul.
Encontro
2. Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais
Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
instituição do Mercosul Cultural: a descontinuidade
das políticas acordadas e as assimetrias sistêmicas
inerentes ao Bloco.
Marcado por mudanças globais e decisivas em suas
últimas décadas, como o desenvolvimento vertiginoso das ciências e das tecnologias, a queda do
Muro de Berlim, o fim da Guerra Fria, o triunfo do
neoliberalismo e o “real ou ilusório” (Held, 2001)
fenômeno da globalização, ao completar seu ciclo o
Século XX ainda inaugurou, em várias partes do
globo, uma nova configuração geopolítica: a formação dos chamados blocos regionais. Apresentados
como possíveis respostas às supostas ameaças que o
novo cenário internacional representaria para os
Estados nacionais, indiscriminadamente, a constituição da União Europeia, do Mercosul e do Nafta
teria sido motivada por ideais solidários contra os
efeitos colaterais da nova ordem internacional. A
lista é longa, mas para os fins deste artigo basta lembrar que co-existem com os fenômenos desse final
de Século a ideia de fim das utopias, a ideia de fim
das divisões ideológicas, a crença em uma tendência
para emergência de conflitos culturais e os embates
políticos em torno do status da cultura em organizações internacionais como a OMC e a Unesco. Nesse
sentido, a idéia de que na “globalização”, ou na
“pós-modernidade”, como prefere Jameson (2000),
a cultura não é mais uma “expressão relativamente
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autônoma da organização social”
mas a “própria lógica” do capitalismo tardio aponta para a necessidade de se repensar o lugar da cultura a partir 1945, articulado com as
expectativas, perspectivas e as disputas travadas em seu nome.3
Por sua vez, contemple-se no
mesmo período a situação na
América Latina. Ao longo dos
anos 1980 e início dos anos 1990,
as tentativas de integração regional ganharam impulso acompanhadas de esforços para melhor
adequação à reestruturação da
nova ordem mundial e às medidas
preconizadas pelo Consenso de
Washington, especialmente formulado para as economias latinoamericanas. O paradigma neoliberal se impôs como pensamento único e passou a contestar sem
cerimônia a tradicional estatização das economias locais, que
passaram a sofrer toda sorte de
pressões em nome da globalização. No campo político, a nova
ordem em processo assumiu um
caráter homogêneo no qual o
“pluralismo democrático como
forma legítima de organização”
político-social tornou-se condição sine qua non para um mais
amplo acesso e trânsito na vida
internacional. Nesse contexto, a
integração da América do Sul
despontou como a saída para o
aquecimento das economias
locais, para a projeção regional
no sistema internacional, para a
proteção dessas economias contra
os efeitos colaterais da globalização. Ao contrário de experiências
3. Para uma síntese dos conceitos e discussões teóricas sobre cultura e relações internacionais ver Lessa e Suppo (2007).
anteriores, contudo, notadamente
Alalc e Aladi, observa Miriam
Saraiva (2007, 130), o modelo de
integração em curso na década de
1990 orienta-se para o exterior do
bloco regional, não se baseia na
substituição de importações mas
aposta em projetos de desenvolvimento alicerçados sobre a abertura econômica estimulada pelo
ambiente internacional.
Por outro lado, a despeito das
dificuldades inerentes a qualquer
processo de integração, e das críticas formuladas em relação a
vários dos aspectos constitutivos
da formação do bloco, como a
ausência, ou insuficiência, de
políticas de promoção social, o
Mercosul tem avançado agregando à sua proposta original outras
dimensões, além da política e da
econômica, que ampliaram as
expectativas e os horizonte fixados pelo Tratado de Assunção. Se
em seu documento fundador, o
Tratado de Assunção (1991), não
houve sequer menção ao lugar da
cultura na construção dessa integração, em 1992 a cultura passou
a ser incorporada nas formulações políticas do bloco, conforme
demonstrou a organização do primeiro Encontro de Secretários de
Cultura e Autoridades Culturais
do Mercosul. Nesse sentido,
novamente diferentemente do
ocorrido em tentativas precedentes de integração regional do subcontinente, destaca-se o fato da
cultura, finalmente, ocupar um
lugar no processo de integração
do Cone Sul.
Na raiz dessa inedita iniciativa,
acreditamos, encontram-se as
repercussões das transformações
externas e regionais rapidamente
acima aludidas. A influência dos
debates internacionais em torno
da cultura sem dúvida contou
para fortalecer a posição daqueles
que assinalavam a defasagem de
uma proposta que nascia “amputada” por não contemplar a
dimensão cultural na estrutura do
recém criado Mercosul.
A despeito, contudo, dos avanços
alcançados nessa área, as atribuições e realizações do Mercosul
Cultural ainda são consideradas
insuficientes. Nesse artigo examinamos rapidamente os avanços e
os “desafios” do Mercosul
Cultural, à luz da reflexão dos
entusiastas e dos críticos do
modelo de integração cultural do
bloco. Buscamos introduzir uma
análise, a partir de uma perspectiva multidisciplinar, que contemple a relação entre as principais
ações do Mercosul Cultural, seu
impacto para a economia da cultura do bloco e sua contribuição
para a ampliação da integração do
Cone Sul. Por fim, cabe o registro, sendo resultado preliminar de
uma pesquisa ainda em curso,
este trabalho não esgota todas as
possibilidades analíticas que seu
tema propõe, mas apenas avança,
parcialmente, os primeiros dados
coletados na investigação sobre o
tema em tela.
Cultura e Integração
A passagem abaixo, reproduzida
por Hugo Achugar em texto sobre
a política cultural do Mercosul,
reflete o debate acerca da equação integração-soberania-cultura,
e ilustra as diferentes expectati-
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Novembro 2010
vas em relação ao papel da cultura no Mercosul:
[...] o deputado Machiñena, relator
geral da Comissão, que estudou o
Acordo Marco e apoiava a ratificação, referiu-se a aspectos culturais
apenas para indicar a posição privilegiada do Uruguai, em que, o
“nível cultural de nosso povo” e sua
“preparação torna o pais mais
atraente para os investimentos”.
[...] o relator da minoria, deputado
Hélios S arthou, que se opunha, afirmou : “Temos muito receio da articulação do Tratado de Assunção
com o chamado Tratado Quatro
Mais Um, além dos compromissos
temporais, pela profundidade das
medidas que podem nos relegar às
margens da zona integrada, no papel
de provedor de serviços em uma
divisão de trabalho conveniente para
as multinacionais... com nossa
identidade nacional comprometida.
[...] As carências sobre temática
social se reiteram também no que
diz respeito aos aspectos culturais,
de grande transcendência na hipótese
de integração” (Achugar, 1994).
é também responsável pelo comportamento
dos
Estados
(Freymond, 1980). Por sua vez,
no processo de integração, chama
a atenção J.F. Sombra Saraiva
(2003), a importância da cultura
para o sucesso da empreitada é
tanto “romântica” quanto “pragmática”, e a “materialidade econômica da cultura permite a viabilidade dos desejos de aproximação dos povos”. A cultura encerra,
portanto, múltiplos desafios e
perspectivas, assim como múltiplas “funções”, como apontou
Gaudibert (1972), ou “conveniências”, para empregarmos a expressão de Yúdice (2004). Além disso,
“longe de ser periférica ao desenvolvimento econômico”, assinala
David Throsby (2007, 6), a cultura é “inextricável e central a ele,
oferecendo tanto o contexto no
qual o progresso econômico ocorre, quanto o próprio objeto de
desenvolvimento, quando vista
sob a perspectiva das necessidades individuais.”4 Dessa forma,
argumenta ainda José Flávio
Saraiva (2003), “cultura, integração e indústria podem vir a ser
dimensões que, se articuladas de
maneira adequada, permitirão
abrir uma triangulação nova e original no Mercosul”.
As duas posições acima são
emblemáticas dos debates em
torno do status da cultura no
Mercosul. Et pour cause. Sistema
de valores simbólicos, de representações e referência estruturante Em agosto de 1992, foi realizada
da identidade dos povos, a cultura a primeira Reunião de Secretários
de Cultura e Autoridades
Culturais do Mercosul, em
4. Throsby, David. Economics and culture,
Brasília, na qual foram determip. 164, citado por Reis (2007).
nadas as principais ações com o
5. I Reunião de Secretários de Cultura e
Autoridades
Culturais,
Brasília,
fito de se “examinar os modos e
25/08/1992.
Disponível
em:
meios de iniciar processo de conhttp://www2.mre.gov.br/unir/webunir/bil
sultas periódicas a fim de coordea/esp/MERCOSUL/9seccul.htm.
nar e integrar as políticas cultu6. Vide site do Mercosul Cultural:
rais respectivas, estimulando o
http://www.cultura.gov.br/mercosur/ .
conhecimento mútuo dos valores
e atuações culturais de cada
Estado Parte, bem como
empreendimentos conjuntos e atividades regionais no campo da
cultura.”5 Em seguida, foram instituídas Reuniões Especializadas
de Cultura (a partir de 1995), e de
Ministros de Cultura do Mercosul
(a partir de 1996), enquanto que
paralelamente ocorreram Reuniões
da Comissão Técnica de
Capacitação Cultural (desde
1995).6 Ganhava assim impulso
uma política cultural da integração que, no entanto, continuava
sendo mal avaliada:
O que foi estabelecido no Tratado e
realizado pelas autoridades com relação à cultura, durante esse período
chamado de transição, reduziu-se a
três aspectos : declarações sem efeito jurídico sobre a cultura, sendo
esta entendida em sentido tradicional; uma ou duas reuniões referentes
a aspectos educacionais e a possibilidade de compatibilizar currículos e
estabelecer sistemas de revalidações
– embora valha a pena destacar que
as universidades foram as que mais
avançaram nesse aspecto, como
demonstra a presente reunião de
Porto Alegre; e problemas vinculados à propriedade intelectual.
Justamente o terceiro aspecto é o
que tem implicações econômicas
evidentes, e tem sido impulsionado
por alguns setores da indústria cultural; concretamente, a indústria discográfica, que se mostrou preocupada com a pirataria realizada por
alguns setores da indústria paraguaia. Com relação a esse aspecto,
formou-se uma subcomissão da
equipe econômica, que trabalha no
período de transição do A cordo
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Mural Internacional
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Novembro 2010
Marco e é composta de representantes dos setores industriais e assessores técnicos do Ministério da
Economia. Essa espécie de subtexto
econômico ou de trama básica do
Mercosul relegou os temas culturais
e acadêmicos para o espaço da retórica, e não conseguiu avançar em
suas projeções. Em outras palavras,
os Estados participantes do Acordo
Marco de Assunção limitaram-se ao
que o Tratado estabelece: um mercado comum em níveis industrial e
comercial tradicional, sem incorporar a indústria cultural ou sem pensar que o peso econômico dessa
indústria seja relevante. Ignorando,
ou melhor, depreciando desse modo
a possibilidade de permitir um
espaço de integração cultural
(Achugar, 1994).
Todavia, a despeito dos problemas apontados por Achugar, o
projeto de uma política cultural
do bloco avançou visando deitar
as bases de uma estrutura compatível com as possibilidades e
demandas dos países envolvidos.
Em 1995, à ocasião da primeira
Reunião
Especializada
de
Cultura do Mercosul, ocorrida
em Buenos Aires, e na qual participaram Ministros e Secretários
de Cultura dos Países Partes, foi
produzido um primeiro documento com vistas ao entendimento para a institucionalização do
aparato técnico-burocrático referente às políticas culturais voltadas para a promoção das relações
culturais entre os países. Em
1996, o chamado Encontro de
Fortaleza,
organizado
por
Roberto da Matta e Felix Peña
entre 13 e 14 de dezembro, congregou pesquisadores, intelec-
tuais, diplomatas e políticos a
pensarem a questão cultural no
processo de regionalização. No
Termo de Referência do
Encontro, os organizadores alinharam-se na crítica ao Tratado
de Assunção ao afirmarem, no
primeiro dos três pontos que
constituem esse documento, que,
acima de tudo, o objetivo do
encontro era:
Pensar a integração regional do
ponto de vista social e cultural,
buscando incrementar a troca de
experiências políticas e intelectuais,
tendo como propósito o exame da
possibilidade de criar-se uma rede
institucional que contribua para a
ampliação do nosso intercambio,
não só como produtores de bens e
serviços, mas também como sócios
culturais que compartilham um
conjunto de valores comuns. [...]
Nossa reunião, portanto, deseja pensar a região e o Mercosul, para além
de seu conteúdo econômico Funag
1997, 15).
Em seguida, em dezembro de
1996, a Decisão Nº 2/95 do
Conselho do Mercado Comum, e
a Ata Nº 2/96 da Reunião de
Ministros da Cultura, realizada
em Fortaleza (Brasil), aprovou o
Protocolo de Integração Cultural
do Mercosul. Composto de vinte
artigos, esse será o documento
estruturante da política cultural
do Bloco. Desde 1996 buscou-se
ainda superar a inexperiência
burocrática criando-se reuniões
técnicas que deram origem a uma
burocracia especializada, instituiu-se a dinâmica de reuniões
regulares de Ministros de Cultura
e envidou-se esforços para cum-
prir-se o previsto no Protocolo de
Integração Cultural do Mercosul.
A participação de especialistas da
área da cultura e da área da integração regional também se tornou
corrente para se repensar os
rumos da integração cultural.
Inúmeros projetos e ações foram
estabelecidos nesse âmbito, em
grande parte sugeridos pelos
cientistas sociais envolvidos. O
Selo Mercosul Cultural, por
exemplo, que normatiza a circulação de bens culturais, é fruto
dessa política e tem por objetivo
promover o intercâmbio artísticocultural por meio de isenção de
tributos e garantias alfandegárias.
No entanto, passada mais de uma
década após a assinatura do
Protocolo de Integração Cultural
do Mercosul, os avanços no
âmbito dos assuntos culturais
parecem erráticos e insuficientes,
se aferidos do ponto de vista da
economia da cultura ou da agenda
da política externa dos países.
Alguns autores estimam que o
Mercosul não tem uma política
cultural e isso porque a cultura
não tem centralidade na construção do bloco regional (Soares,
2008). Concordamos, em parte,
com essa visão, que, por sua vez,
reflete uma realidade dos países
mercosulenhos (Lessa, 2008a).
Se, porém, considerarmos que
antes do Mercosul Cultural pouco
ou quase nada existia em termos
de relações culturais institucionais entre o Brasil e os demais
países da América do Sul, podemos ser mais otimistas em relação à empreitada iniciada em
1992 (Lessa, 2008b). A evolução
da institucionalização dessa polí-
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Mural Internacional
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Novembro 2010
tica regional não apenas progrediu para a execução de ações culturais conjuntas mas ainda suscitou e promoveu uma série de
reflexões que, talvez em um
momento raro, reuniu uma plêiade de intelectuais interessados em
trabalhar em prol de uma “cultura
da integração”.
Nesse sentido, Gregório Recondo
(1997) escreve em uma de suas
obras mais completas sobre o
tema da integração regional:
“Vaticina-mos entonces que la
integración de nuestros pueblos
fracasará en el largo plazo si no
incorporamos la dimensión cultural al proceso integrativo.” E mais
adiante: “Tenemos en claro que
llegar a la integración por la via
de la cultura es propender a una
nueva cultura de la integración.”
Recondo esclarece que em sua
visão integração cultural não é
assimilação, fusão, homogeinização, hierarquização ou cooperação mas “congruência signficativa de normas, papeles y valores”.
É um fenômeno sobretudo espontâneo, “más producto de la realidad que consecuencia de deliberaciones grupales”. Ou seja, a
integração cultural expressa uma
“congruencia significativa de
pautas y valores entre las partes
diferenciadas que pueden ser los
Estados nacionales que participan
de un proceso integrador.” Isto é, a
integração cultural deve ser a convivência de unidades separadas que
formão um todo coerente e isso
ocorre quando os “fenômenos interactuantes, causualmente relacionados, se presentan entre si en consecuencia lógica”.
Essa visão, profundamente deter-
minada em relação à importância políticas culturais em curso. Na
da cultura para a integração regio- visão de Maria Susana Soares
nal, não apenas nos marcos do (2008):
Mercosul mas em relação à
America Latina, se fundamenta na
Questões de grande relevância para a
história da formação da civilizaescolha do melhor caminho para
ção latinoamericana : “produto do
avançar na integração regional – a
carrefour de diferentes culturas”,
política, a cultura, a educação e as
da síntese entre o “universal” e o
relações sócio-laborais – têm recebi“nacional”, que a frase de Alfredo
do pouca ou nenhuma atenção das
Palácios tão bem traduz: “Dentro
diplomacias governamentais. [… ]
de nuestras fronteras (iberoameriOs Estados-membros ao não poscanas) acampa la humanidad”
suírem uma diplomacia cultural,
(idem).
complementar à atividade diplomáPerspectivas e desafios
Dentre as dificuldades reiteradas
vezes denunciadas pelos pesquisadores do tema em foco, destaca-se a ausência e/ou dispersão
dos dados estatísticos. No Brasil,
eles estão dispersos entre o MinC,
Itamaraty, IBGE, Ipea, FGV,
BNDES e vários outros organismos. Muitos autores já apontaram
essa dificuldade e a esperança é
que o Sistema de Informação
Cultural da América Latina e do
Caribe (SICLaC) e o SIC-SUR
(Sistema de Informação Cultural
do Mercosul) venham colmatar
essas lacunas e contribuir para a
integração regional de forma
mais efetiva. Essa dispersão dos
dados estatísticos apenas reflete a
descentralização das ações de
políticas culturais. Essa realidade,
muitas vezes, prejudica a percepção dos avanços e das perspectivas da situação das relações culturais mercosulenhas. Essa é a
razão, acreditamos, para que no
plano das formulações e das análises sobre a integração cultural
no bloco, se observe grandes
reservas e ceticismo acerca das
tica tradicional, revelam a prevalência no Mercosul de estratégias inspiradas pelo hard power e a subvalorização do soft power. Poucos
são os que percebem que, com o
avanço dos processos de globalização econômica e tecnológica, as
relações internacionais passaram a
depender, cada vez mais intensamente, da cultura, do soft power, do que
do poder econômico ou da força das
armas. A liderança política dos países transformou-se numa concorrência para atingir a atração, a legitimidade e a credibilidade internacional
(Rabadán e Onofrio, citados por
Soares 2008, p.54).
No entanto, o desafio assumido
pelo Brasil para a criação da
Universidade
Federal
de
Integração
Latinoamericana
(Unila) é um claro exemplo do
compromisso do país com o projeto de integração regional. E o
ineditismo da iniciativa brasileira, inclusive em promover o vínculo entre educação e cultura,
constitui uma resposta relevante
para a fundação de uma identidade regional “solidária” e “integradora”. O desafio posto ao Brasil é
duplo: cabe ao país, exclusiva-
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mente, assegurar a construção e o
funcionamento da futura universidade e, ao mesmo tempo,
desenvolver um projeto pedagógico que privilegie a multidisciplinariedade, promova a integração do conhecimento e represente
um “pólo de idéias” e de discussões sobre a realidade latinoamericana. Projetada para atingir, na
próxima década, um contingente
de dez mil estudantes (entre brasileiros e latinoamericanos) e quinhentos docentes, brasileiros e
latinoamericanos, alocados em
cursos de graduação, mestrado e
doutorado, a Unila será a primeira universidade bilíngüe (português/espanhol) do continente e
abrigará cursos planejados para
atender a temas candentes para a
América Latina: Energia, MeioAmbiente, Migração e Trabalho,
Saúde
Pública,
Novas
Tecnologias etc., entre outros que
abarcam desde as Ciências Exatas
às Ciências Humanas.
A Unila cumprirá assim uma das
principais propostas do Mercosul
Cultural que é promover a formação dos estudos universitários na
região, ação considerada prioritária para incentivar e consolidar o
intercâmbio entre jovens, bem
como a construção de uma cultura da cooperação. Fruto de uma
política cultural que, evidentemente, não é destituída do interesse do Brasil em projetar sua
influência na região, ela tem, no
entanto, o mérito do compromisso com as iniciativas integradoras
(Ferré, 2002).
Outro desafio a ser enfrentado foi
apontado por Néstor Canclini
(1999) no âmbito estrito das políticas culturais, ainda nos idos dos
anos 1990. Para Canclini, cinco
grandes questões deveriam orientar a reformulação das políticas
culturais na América do Sul: a
maioria das mensagens e bens
culturais recebidos pelas nações
não é mais produzida em território nacional; a maioria dos investimentos dos Estados no setor
ainda se concentra na tradicional
tríade: artes cultas, preservação
de patrimônios monumentais e
preservação do folclore, com
poucos investimentos nas indústrias culturais de massa; as grandes empresas privadas transnacionais são as principais detentoras dos grandes meios de comunicação de massa, influindo assim
na alienação cultural e política do
público; as ações culturais dos
organismos internacionais e
aquelas originadas das reuniões
dos ministros da cultura reproduzem a visão da tradicional tríade
cultural a ser priorizada. Canclini
(p.235-237) assinalou ainda que o
consumo cultural, nas grandes
cidades sul-americanas, da alta
cultura escrita, das artes plásticas
e de música erudita atingia apenas 10% da população.
Por sua vez, segundo dados da
Unesco, desde a década de 1980,
bens e serviços culturais atendem
a uma demanda crescente de consumo a ponto do setor representar,
em 2005, 7% do PIB mundial. Em
escala mundial o comércio de
bens culturais passou de U$ 39,3
bilhões em 1994 para U$ 59,2
bilhões em 2002. Em 2002 a
União Européia controlava 51,8%
das exportações, seguida da Ásia
com 20,6%; dos Estados Unidos,
que caiu de 25%, em 1994, para
16,9% em 2002; da América do
Sul e das Caraíbas, que subiram
de 0,8% em 1994 para 3% em
2002; da África e Oceania, com
apenas 1%. As mesmas análises
destacam ainda que do ponto de
vista das importações, os países
com altos índices de desenvolvimento são responsáveis por 90%
do mercado consumidor. Na
America Latina, o México seria o
único país da região a figurar
entre os primeiros vinte importadores/exportadores mundiais de
bens culturais em 2003. O Brasil
foi considerado um eterno grande
importador de bens culturais: em
1994 essas importações foram
calculadas em U$ 165,9 milhões,
enquanto as exportações não passaram de U$ 56,9 milhões. Em
2003, a balança comercial permanecia negativa mas com uma
redução, devido sobretudo à perda
de 1/3 do valor das importações,
que totalizaram U$ 105,7
milhões, enquanto o valor das
exportações permanecia nos mesmos patamares de 1994. Duas
explicações são avançadas para
essa mudança: a diminuição do
preço dos jogos eletrônicos (video
– games, sobretudo) em 50% do
valor, entre 1994-2002, e a criação da zona livre de Manaus, nos
anos 1990, que aumentou a capacidade produtiva do país e reduziu
as importações. Em 2003, 45,1%
das importações brasileiras estavam concentradas nas mãos de
dois países: Estados Unidos
(28,8%) e Inglaterra (16,3%), os
países da ex-futura ALCA foram
responsáveis por apenas 14%.
Porém, a posição dos EUA, que
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detinha 41,3% das importações
brasileiras em 1994, caiu para
28,8% em 2003. No mesmo período, o Japão caiu de 10,9% para
3,6%. Enquanto países como
Argentina,
Chile,
China,
Inglaterra e Espanha tiveram
maior participação.7
Por meio de um Diagnóstico
sobre o Desempenho do Mercosul
Cultural, apresentado durante a
XXIII Reunião do Comitê
Regional do Mercosul Cultural
(XXIII CCR), o MinC alertou: “O
maior desafio do Mercosul
Cultural, segundo a visão do
Ministério da Cultura do Brasil
(MinC), será estabelecer uma base
sólida e politicamente consistente
para conferir continuidade às diretrizes do bloco; e, ao mesmo
tempo, conceber ferramentas flexíveis e isonômicas que permitam
a elaboração de ações conjuntas
de interesse comum.”8 As propostas e os objetivos ambiciosos do
Mercosul Cultural esbarraram
portanto nas dificuldades de cada
país em diminuir suas próprias
desigualdades sócio-culturais.
Enquanto isso, a construção do
Mercosul Cultural avança a despeito da descontinuidade das políticas acordadas e das assimetrias
sistêmicas inerentes ao bloco:
7. Cf. Échanges internationaux d’une sélection des biens e services culturels, 19942003. Institut de statisque de l’UNESCO,
2005.
http://www.uis.unesco.org/template/pdf/cscl/IntlFlows_Fr.pdf
8. http:www.cultura.gov.br/site/22/11/2006
9. Notícias sobre a XXVI Reunião de
Ministros da Cultura do Mercosul, realizada
em Buenos Aires, em 12/6/2008, à ocasião
da sucessão da Argentina pelo Brasil, na presidência pro-tempore do Mercosul cultural.
http://www.cultura.gov.br/site/2008.
Ao assumir as funções, o Ministério
da Cultura brasileiro é convocado a
refletir sobre essa parceria continental e agregar mais alguns tijolos a
nossa construção coletiva [… ] Vejo
que os acordos e pactuações feitos
aqui pelos nossos governos são aos
poucos absorvidos pela dinâmica
interna de nossos países e orientam
expectativas comuns de desenvolvimento regional, fazendo com que
medidas multilaterais impactem o
cotidiano de nossas populações. [… ]
Vejo a produção de conteúdos do
Mercosul como questão decisiva
para que afirmemos a autonomia de
nossos territórios. O espaço virtual
desses veículos de comunicação é o
dispositivo que materializa o
ambiente sul-americano, mas isso
só ocorrerá se nos associarmos cooperativamente para reinventar diariamente nossa cultura comum. Creio
que o que foi feito até aqui, através
do DOC TV, nos aponta caminhos
para seguirmos nessa direção. [… ]
foram destaques a assinatura da
Declaração de Integração Cultural do
Mercosul; a criação do Comitê das
Artes do Mercosul (ArteS ul); a aprovação da proposta do S ite do
Mercosul Cultural; e a previsão de
realização do encontro S ulamericano
de Culturas Populares, em Caracas,
a ser coordenado pela Venezuela e
Brasil; e o encontro dos Povos
Guaranis. [nesse encontro, o diretor
de R elações Internacionais do
MinC, Marcelo Coutinho, afirmou
que a reunião dos Ministros da
Cultura marcou um novo momento
no Mercosul Cultural]. Passamos
para uma etapa de institucionalização, com a proposta brasileira de
criação de uma S ecretaria Técnica
Permanente, além da implantação de
projetos de integração cultural, tais
como o S elo Cultural e os
Itinerários Culturais. 9
Conclusão
Céticos e integracionistas discordam sobre os avanços do
Mercosul mas concordam em que
a integração regional deverá, até
para garantir sua sobrevivência,
promover a dimensão cultural do
bloco. Esta, por sua vez, é vista
pela indústria cultural regional
como a oportunidade de expansão
de um mercado dominado por
grandes conglomerados estrangeiros que pela superioridade de condições impedem qualquer possibilidade de crescimento sustentável
do setor:
A escala internacional, las industrias
culturales y de la comunicación son
a su vez, desde hace dos o tres décadas las que generan más empleo que
cualquier otro sector industrial.
Consideradas en su conjunto, constituyen hoy un negocio cercano a los
1,6 billones de dólares, con ventas
anuales que equivalen al 12% del
valor de la producción industrial en
todo el mundo. [… ] “La consolidación del Mercosur y la incorporación
de las industrias culturales en la
dinámica del mismo, permitiría que
las empresas productoras puedan
contar con un mercado mayor para
cubrir sus costos de producción e
insertarse en forma ventajosa en terceros mercados. La regionalización
permite la articulación flexible entre
diferentes empresas para responder a
las demandas de noticias u otros productos culturales y la posibilidad de
recuperar los costos de producción en
un mercado mayor permite mayores
inversiones, creación de puestos de
trabajo y aumento del comercio de
los productos de las industrias culturales. Estas estrategias tendrán efecto centrípeto, realineando las identi-
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dades a partir de la interacción”
(Getino, 2001).
No caso do Brasil, e talvez dos
demais países do Mercosul, a
complexidade da relação nacional
com sua cultura é o primeiro e
principal desafio a ser enfrentado
pela sociedade e pelos responsáveis pela política cultural para que
o setor garanta, efetivamente, um
desenvolvimento sustentável e à
altura de suas possibilidades.
Porque em tempos de globalização, a cultura não apenas permanece como estruturante da identidade dos povos mas como um dos
setores que mais crescem:
A pergunta que nos movimenta hoje
é saber como a cultura pode colaborar no crescimento econômico e
num novo padrão de desenvolvimento. No fim do ano passado, o IBGE
apresentou ao Brasil como as atividades culturais movimentam hoje
uma receita líquida de R $156
bilhões de reais o que indica uma
participação do setor cultural de
7,9% na receita líquida total do país.
O IBGE revela com esse estudo que
a cultura corresponde ao quarto item
de consumo das famílias brasileiras,
superando os gastos com educação e
abaixo apenas da habitação, alimentação e transporte. Existem cerca de
290 mil empresas culturais no
Brasil responsáveis por uma massa
salarial de R$17,8 bilhões de reais.
[… ] O Brasil é o 10º maior mercado
consumidor de música do mundo,
tendo movimentado a cifra de US $
265 milhões no ano de 2005. É
importante frisar que 76% desse
valor foi despertado por conteúdos
10. Discurso do Ministro Gilberto Gil em
02/10/2007. httpp//:www. cultura.gov.br
brasileiros e por músicas nacionais.
O disco, como mercadoria, chega a
55% dos mais de 5.550 municípios
brasileiros que possuem lojas de discos e vendem CDs e DVDs. A força
deste mercado interno repercute na
inserção da música brasileira em
outros países. No ano de 2005,
exportamos R$ 28 milhões em vendas de discos e R$ 5 bilhões em aparelhos de áudio, fonográficos e de
vídeo. Essas cifras tornariam-se
mais expressivas e detalhadas caso
contabilizássemos a renda auferida
em shows e espetáculos dos músicos brasileiros em outros países. No
caso do Brasil, esse poder é parte realidade, e outra parte dele é ainda
potência, é devir. 10
A percepção do MinC, veiculada
no “Diagnóstico sobre o
Desempenho
do
Mercosul
Cultural”, é que até 1999 houve
uma concentração de esforços
para harmonização dos interesses
e procedimentos culturais visando
a coesão do bloco – contudo sem
maiores avanços para edificação
das atividades projetadas, em
parte devido às assimetrias entre
os países, em parte devido às oscilações da economia mundial; no
entanto, consolidou-se a visão
sobre a necessidade de formação
de comissões e reuniões técnicas
para se alcançar progressos mais
significativos. Em 2000, observase mudanças “sutis” da filosofia
de ação: prioridade à concepção
de projetos pontuais em detrimento de projetos vinculativos, como
o Selo Mercosul Cultural,
Diversidade Cultural, Patrimônio
imaterial ou o Protagonismo em
foros internacionais, por exemplo.
Em 2001, “a cultura ganhou uma
definição mais ampla como fenô-
meno catalisador da integração
regional” e do desenvolvimento
(em sintonia com a agenda da
Unesco), mas os resultados do
Mercosul Cultural ainda permaneciam aquém de suas possibilidades. Em 2003-2004, essa tendência foi revertida pois os Ministros
responsáveis passaram a exigir
mais dos entes nacionais responsáveis pela formulação e execução das ações fixadas pelo
Mercosul Cultural. Quatro aspectos foram então considerados
absolutamente prioritários pelo
Bloco: capacitação de pessoal;
institucionalização do Selo
Mercosul Cultural; consolidação
dos Corredores Culturais (ações
em faixas de fronteiras) e da
Economia da Cultura (estreitamente dependente dos ajustes
alfandegários no Bloco, como o
Selo do Mercosul Cultural).
Emerge, portanto, da análise dos
dados disponíveis, que os problemas do Mercosul Cultural, não
derivam de falta de recursos ou de
política cultural mas de deficiências estruturais dos países membros, que não necessariamente
estão ligadas à posição do país A ou
B no ambiente internacional, assimetrias que poderão ser superadas
se houver vontade política e conjuntura favorável. Contudo, arriscamos em afirmar que nunca a aproximação entre os países do Mercosul,
o intercâmbio cultural e a cooperação técnico-científica foi tão significativa e plena de promessas.
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8, n. 20, p. 215-229. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/ea/v8n20/v8n2
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RESENHA
Dabène, Olivier (2009)
The politics of regional integration in Latin
America: theoretical and comparative explorations.
New York: Palgrave Macmillan, xxviii + 259 p.
de Clarissa Dri1
G
rande parte dos trabalhos científicos no
âmbito da integração regional latino-americana a consideram como fator explicativo
para outros processos, domésticos ou internacionais,
ou tratam-na como um meio para a obtenção de
determinados fins em termos de política externa ou
políticas públicas estatais. Em The politics of regional integration in Latin America, Oliver Dabène
argumenta que essas perspectivas são insuficientes
para se apreender a complexidade das iniciativas de
integração nessa região. Ele propõe-se, então, a lidar
com a integração regional como variável dependente, configurando o principal fenômeno a ser explicado. Curiosamente, esse campo apontava uma lacuna
nos estudos latino-americanos: é raro encontrar um
livro que trate da integração regional no continente
como elemento central, apesar de sua longa história
e nutrida trajetória. Diferentemente dos processos de
integração na Europa ou na África, que foram explorados e teorizados em inúmeros trabalhos, a integração regional na América Latina carecia de uma análise crítica abrangente que superasse a divisão tradicional dos estudos em sub-regiões e vinculasse as
idas e vindas da integração com o percurso histórico
compartilhado pelas nações latino-americanas.
Outro traço distintivo da análise de Dabène é o foco
1. Doutoranda do Instituto de Estudos Políticos/Université de
Bordeaux
na dimensão política da integração. Diferenciandose de trabalhos dedicados a aspectos econômicos ou
normativos, esse livro concentra-se no estudo dos
efeitos do poder e das interações sociais sobre o
caminho da integração. Calcada em anos de reflexão
e de trabalho empírico e pautada por rigorosidade
histórica e precisão argumentativa marcantes, a obra
explicita as motivações dos líderes, os processos de
construção institucional e os principais temas em
debate nas arenas regionais. Impressiona também o
grau de autonomia analítica do estudo, que discute a
América Latina por ela mesma dispensando comparações recorrentes com outros modelos de integração
regional. É certo que a relativa inspiração européia
dos projetos regionais latino-americanos requer
menções a esse caso, mas o autor não faz da União
Européia sua âncora de análise. Ao contrário, explora as origens históricas das instituições políticas latino-americanas e confronta as tentativas de integração com períodos de crise e democratização no continente, comparando internamente os processos e
construindo uma teia explicativa própria.
A obra está dividida em cinco partes que refletem as
principais realizações e dificuldades do regionalismo latino-americano. O autor inicia com apontamentos históricos e teóricos, reportando-se ao contexto pós-Segunda Guerra Mundial e revisando os
principais autores na área. Ao definir indeterminação
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e incerteza como os nomes do
jogo, Dabène desafia postulados
racionalistas segundo os quais os
sistemas políticos estão em situação de equilíbrio: na América
Latina, a regra é a instabilidade da
integração. Esses momentos de
paralisia e relance refletem-se, por
exemplo, na instrumentalização
da integração a fim de combater
crises e conflitos na América
Central ou consolidar os novos
regimes democráticos no Cone
Sul. Em seguida, abordando a institucionalização da integração, o
autor valida a idéia do mimetismo
europeu, mas verifica também
uma convergência interna das
estruturas dos diferentes blocos
regionais e um isomorfismo com
relação aos sistemas nacionais, o
que prolonga a influência dos presidentes ao âmbito regional. Essa
lógica não impediu, contudo, o
surgimento de mecanismos visando à inclusão de parlamentos,
organizações da sociedade civil e
governos locais nas decisões regionais. O autor mostra-se cético
quanto ao real potencial democratizante dessas esferas e aposta prioritariamente na democracia redistributiva, a exemplo dos fundos
estruturais criados no Mercosul.
Por fim, a obra traz uma análise
retrospectiva das Cúpulas das
Américas e da influência norteamericana na região.
Na conclusão, o autor questiona o
curso atual da integração latinoamericana e insiste na crítica ao
regionalismo decorativo, que não
é capaz de relacionar de modo
coerente as expectativas dos atores com as ambições institucionais. É certo que os limites do
regionalismo para lidar com certas questões econômicas ou políti-
cas têm ficado cada vez mais evidentes, como demonstram as iniciativas superpostas na América
Latina
–
Unasul,
Alba,
Comunidade dos Estados Latinoamericanos e Caribenhos, para
citar as mais recentes. Também
reforça essa tendência a nova
categoria de “potências emergentes”, que poderia acentuar as assimetrias entre nações vizinhas –
considere-se, por exemplo, a parceria estratégia União EuropéiaBrasil. Por outro lado, a obra
esforça-se por demonstrar, e o faz
com sucesso, que a integração na
América Latina é um longo processo permeado por avanços e
retrocessos, contradições internas
e efeitos positivos à sua maneira.
Esse processo está longe do fim e
é provável que a configuração
atual dos blocos regionais e de
suas instituições constitua apenas
mais uma fase nessa complexa
trajetória. Em outras palavras, a
obra permite considerar, com realismo, a América Latina integrada
como uma finalidade política
dessa época.
Assim como nos primórdios da
integração européia as principais
análises chegavam da América do
Norte, ainda hoje muitos estudos
sobre integração latino-americana
são gestados em universidades
européias. Razões à parte, o certo
é que perspectivas à distância
podem contribuir para uma visão
mais global e perspicaz (embora
nunca neutra) do fenômeno, o que
é o caso do livro de Dabène.
Trata-se de uma obra-prima da
integração latino-americana cuja
tradução ao português e/ou espanhol é altamente desejável. Ao
mesmo tempo introdutório e profundo, didático e analítico, o traba-
lho se presta tanto à compreensão
inicial do fenômeno por estudantes
dos anos iniciais da graduação
quanto à reflexão de pesquisadores
mais experientes, que encontrarão
nele respostas a antigas dúvidas e
possibilidades de desenvolvimento
das hipóteses apresentadas.
Contrariamente ao que o autor
afirma no prefácio, penso que a
obra oferece uma visão compreensiva da integração latinoamericana, ao mesmo tempo em
que convida o leitor a desenvolver
seus próprios caminhos de especulação. Mas Dabène está certo ao
assinalar que o livro não encerra
os debates com uma proposta
definitiva de interpretação desse
processo político. Por um lado,
essa é uma qualidade dos pesquisadores comprometidos com a
explicação de fenômenos históricos concretos e preocupados em
trabalhar mais com vistas à realidade e às necessidades sociais do
que para a teoria. Por outro, o
tema continua carecendo de uma
interpretação teórica mais sistemática, densa e ousada, ou, em
outros termos, paradigmática.
Comprovada a falta de habilidade
das teorias da integração européia
para explicar a integração latinoamericana, é preciso elaborar um
quadro teórico próprio e adequado
à análise dessa região e inseri-lo
no rol das teorias da integração no
plano mundial, como mais uma
ferramenta (vinda da América
Latina dessa vez) à disposição da
comunidade científica. The politics of regional integration in
Latin America mostra que essa
idéia está mais perto do que se
imagina. Está lançado o desafio.
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RESENHA
Cienfuegos, Manuel; Sanahuja, José Antonio (ed.)
(2010) Una región en construcción: UNASUR y la
intergración en América del Sur. Barcelona:
Fundació CIDOB, 422 p.
Samuel da Silva Resende1
N
o seminário internacional “A integração
regional na América do Sul”, ocorrido em
fevereiro de 2008, em Barcelona, vários estudiosos debateram a atualidade e as perspectivas para
a integração sul-americana, a agenda de desenvolvimento, a governança democrática, a coesão social e a
maior inserção internacional da região. A proposta do
livro foi a de reunir algumas das apresentações do
seminário na forma de artigos, agregando, ao trabalho final, as discussões ocorridas na reunião. O objetivo do livro foi, sobretudo, o de demonstrar que os
acontecimentos políticos da região são, além de dinâmicos, bastante complexos.
na região, e por meio do aprofundamento de instituições e de regras mais previsíveis, e, tende a ser benéfico a todos.
Considerando que a convergência dos países da
América do Sul baseia-se principalmente no comércio internacional, a transformação produtiva e competitividade internacional são o que Silvia Simonit
aborda, no capítulo dois, quanto à integração. A autora examina, no que se refere à estrutura produtiva, os
graus de heterogeneidade e de diversificação, bem
como a distribuição setorial dos investimentos diretos externos. Quanto à competitividade internacional,
ela avalia três grupos de parâmetros internos à economia dos países: suprimento das necessidades básicas,
fatores que possivelmente aumentam a eficiência
produtiva, e os que potencializam o grau de inovação.
Conclui que dinamizadores de produtividade e de
competitividade devem fazer parte de um esforço
conjunto de setores governamentais e privados, objetivando o desenvolvimento sustentável da região.
No primeiro capítulo, Félix Peña discorre sobre a
relação entre integração regional e a estabilidade sistêmica da região sul-americana, um tema bastante
relevante quando se considera a economia política
do subcontinente. A despeito da convergência dos
vários acordos de comércio preferencial, na Aladi,
grande parte dos investimentos diretos externos e do
financiamento, importantes variáveis macroeconômicas, estão regionalmente dissociados. Nesse sentido, a José Antonio Sanahuja, no capítulo três, disserta
maior interdependência econômica, diante do aprofun- sobre o regionalismo pós-liberal, que, na América do
damento da integração energética e de infraestrutura Sul, é evidenciado tanto pela Unasul quanto pela
Alba. Com a incompatibilidade dos acordos NorteSul, com relação aos Sul-Sul assinados, torna-se
1. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Relações
necessário novo enfoque para a integração: importânInternacionais/Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
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cia mais política do que econômica, cooperação para o desenvolvimento social, energético, para
redução de assimetrias, e projetos
em infraestrutura, em segurança e
em defesa. Essa qualidade de integração contribui para uma discussão menos limitada apenas às
agendas comerciais e, segundo o
autor, permite uma integração
regional mais forte e mais consciente das próprias demandas.
quanto de conflito entre os governos sul-americanos é a questão
levantada no capítulo cinco. Klaus
Bodemer realiza estudos de caso
considerando as políticas da
Argentina e da Bolívia, os projetos
do “anel energético” e do gasoduto sul-americano, e sobre a oportunidade de o etanol ser um dinamizador da integração. A governabilidade regional pode ser profundamente afetada, de acordo com a
forma definida da integração enerAs grandes disparidades entre os gética, e o modo de maximizar o
países da América do Sul são bem-estar da região seria abandoobjeto de estudo de Anna Ayuso. nar a perspectiva das decisões
Nesse quarto capítulo, as assime- estritamente nacionais, algo, todatrias são classificadas segundo: o via, muito difícil, a curto prazo.
tipo de divergência; o motivo; as
condições de vida, as políticas ou Wilson Nerys Fernández trata, no
as estruturas internas; sua evolu- capítulo seis, da integração física
ção; o território em que a diver- e a viabilidade da IIRSA, a prigência ocorre. Realiza-se, ade- meira carteira de projetos de
mais, um extenso levantamento infraestrutura que envolveu todos
dos modos para amenizar essas os países do subcontinente.
disparidades, evidenciando a pos- Descreve, com grande detalhe, os
sibilidade da aplicação desses eixos de integração e os vínculos
mecanismos para os casos da que cada Estado tem com o projeCAN e do Mercosul, nos contex- to. A conclusão é que, muito
tos do aproveitamento da liberali- embora o projeto seja verdadeirazação comercial, da melhoria dos mente regional, os benefícios
níveis de desenvolvimento econô- serão maiores aos países que mais
mico e territorial, da convergência exportem bens primários, fato que
social e interregional, e dos meca- pode ser percebido como prejudinismos jurídico-institucionais. A cial aos esforços de redução das
autora afirma que, para a América atividades extrativas e, por consedo Sul, além da falta de diagnósti- quência, ao meio ambiente.
cos adequados, alguns problemas
comuns aos acordos da região, No sétimo capítulo, Jordi Bacaria
como o não cumprimento dos Colom discute os fins da integraobjetivos acordados e a não com- ção e as possibilidades financeiras
plementaridade das políticas do Banco do Sul. A proposta ininacionais, servem de obstáculo à cial do banco era o de financiar
maior equidade da região.
projetos de infraestrutura e
empresas públicas e privadas,
A integração energética como muito embora alguns governos
sendo motivo tanto de integração objetivem, por meio dele, a cria-
ção de uma moeda única para a
maior integração econômica da
América do Sul. O autor compara
com os mecanismos de financiamento atualmente existentes com
os do Banco do Sul e conclui que,
por um lado, utilizar as reservas
do banco como base para uma
moeda regional é arriscado e que,
por outro, sua existência não significa prescindir da ajuda de
outros mecanismos de financiamento internacionais.
A associação econômica da União
Europeia com os países sul-americanos, os problemas e as perspectivas da associação com Mercosul
e com a CAN são os temas do
capítulo oito, escrito por Manuel
Cienfuegos. Ao longo do texto,
discutem-se as atuais relações
econômicas com a região, os
aspectos do acordo de associação
vigente entre UE e Chile, os acordos em negociação, e como o
futuro da Rodada Doha influi na
conclusão destes acordos. Ainda
que um dos principais conflitos
seja a agricultura, percebe-se que
a cooperação e o diálogo permanecem sendo os meios mais efetivos para a conclusão dos acordos.
Tanto as novas associações de
integração na América Latina
quanto as mudanças políticas na
UE tem efeitos sobre o espaço
político que se forma entre as duas
regiões. Noemí B. Mellano, no
capítulo nove, trata do histórico,
da dimensão estratégica, da situação política e dos consensos e dissensos que constituem essa relação birregional em fase de mutação. Para a autora, o espaço político deve considerar a disparidade
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Mural Internacional
Ano I, nº 2
Novembro 2010
econômica, a diferente participação democrática e a
discrepância institucional entre as regiões, a fim de
permitir um melhor aproveitamento das capacidades
e das potencialidades de ambas as regiões.
cem fortalecendo a identidade política e os interesses
internacionais compartilhados, e continuam a contribuir para o fortalecimento de associações promissoras como a entre a UE e o Mercosul.
Susanne Gratius, no capítulo dez, discute as agendas
governamentais das Cúpulas UE-América Latina e
Caribe, questionando os motivos para não se terem
construído uma verdadeira parceria estratégica interregional, mas apenas associações bilaterais, de fato,
relevantes. O tratamento diferenciado, às vezes
benéfico, às vezes prejudicial, aos países latinos,
sustenta a recente tendência europeia ao bilateralismo, que contraria a sua preferência histórica pelo
interregionalismo. Não obstante, as cúpulas fortale-
No último capítulo do livro, Lourdes Castro García
defende que a participação da sociedade civil, nas
cúpulas e as negociações dos acordos de associação
com os países da CAN e da América Central. A sociedade civil tem escasso acesso às negociações, no sentido de poder contribuir com inquietudes ou com recomendações, ainda que, dependendo do que é acordado,
ela seja a mais prejudicada. A maior participação
social certamente revitalizaria as relações birregionais,
muito desgastadas com o passar do tempo.
DEF

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