20/11/2007 1a W_EPAESPECIAL_001 - A TARDE
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20/11/2007 1a W_EPAESPECIAL_001 - A TARDE
2 0 D E N O V E M B R O D E 2 0 0 7 SALVADOR | BAHIA ESPECIAL Minha certeza-flecha seta, reta direção da liberdade nossa razão concreta terra preta longe muito da opressão nunca dissemos “adeus” à África em nossas mentes e de memória fresca replantamos suas lições no estreito e vasto chão do agora, e do possível quilombo é o sol que se avista um sonho acordado um ponto de vista onde foram dar as mãos após varrerem brenhas se achando em qualquer caminho se atando às guerras e seus espinhos enraizando falanges em pedaços de sonho e esperança Landê Onawalê, poema do livro “O VENTO”, edição do autor, Salvador, 2003 D I A D A C O N S C I Ê N C I A N E G R A REJANE CARNEIRO | AG. A TARDE MNU FESTEJA 30 ANOS DE LUTA ANTI-RACISMO EM 2008 PÁGINAS 3 E 4 COTAS SEGUEM FIRMES APESAR DAS GRANDES POLÊMICAS PÁGINA 12 NARRATIVAS DA DETERMINAÇÃO FEMININA PARA A LUTA PÁGINA10 3 Nasce o Movimento Negro Unificado 4 Bahia se destaca na luta anti-racismo 5 Zumbi: o herói vive eternidade do mito 6 O sonho de liberdade da Revolta dos Búzios 7 Histórias de um Estado negro independente 8 Uma rebelião em versos de cordel 9 Malês uniram política e religião ÍNDICE 10 11 A força feminina na caminhada por direitos Abdias preserva a força dos guerreiros 12 13 14 15 16 As polêmicas e conquistas das cotas na universidade Combate à desigualdade vira política de Estado Quilombolas vivem de vencer desafios A beleza dos blocos afro revolucionou a estética | LUTAS DE ONTEM E SEMPRE | 2 Agenda de atividades até o final deste mês SALVADOR, TERÇA-FEIRA, 20/11/2007 ARQUIVO | AG. A TARDE EDITORIAL Histórias de sonhos capazes de mudar o mundo Ainda não existia fotografia ou câmera de vídeo. Talvez por isto o horror da travessia oceânica nos chamados navios negreiros não se configure numa imagem que venha facilmente à memória dos brasileiros. Se a história oficial e os interesses políticos e econômicos preferiram pintar com as cores da “harmonia entre raças” a tragédia que se abateu sobre a África com consequüências ainda hoje, vozes de quem descende dos passageiros das embarcações de seqüestro não se calaram. Os 30 anos do Movimento Negro Unificado (MNU), que será celebrado em junho do próximo ano, é um importante capítulo de uma história que começou por rotas oceânicas. Caminhos que formam uma quebra-cabeças que pesquisadores como Pierre Verger já tentaram resolver. De onde vieram os povos escravizados no Brasil ? Para responder à pergunta, Verger, inspirado em Luiz Viana Filho, dividiu a história do tráfico de escravos em direção à Bahia em quatro grandes ciclos: o da Guiné, com destaque para onde hoje estão Senegal e Guiné Bissau, durante a segunda metade do século XVI; o ciclo de Angola e do Congo, no século XVII; o ciclo da Costa da Mina na primeira metade do século XVIII, atualmente os países Gana e República do Benim e o ciclo da Baía do Benim, entre 1770 e 1850. Mas nem todas estas datas são certeiras, comprovadas, afinal o tráfico entre as mais variadas regiões parava por um tempo e depois voltava. Além disso, os traficantes não estavam preocupados em registrar identidades dos povos que aprisionavam. Assim, somados ao seqüestro, à travessia oceânica que para uma grande parte era fatal, acumulava-se o drama da destruição de identidade. “Os nomes de nação utilizados pelos africanos no Brasil não são homogêneos e podem referir-se a portos de embarque, reinos, etnias, ilhas ou cidades. Eles foram utilizados pelos traficantes e senhores de escravos, servindo aos seus interesses de classificação administrativa e de controle”, destaca o doutor em antropologia, Luiz Nicolau Parés, professor da Ufba, em seu livro A formação do candomblé. Parés também destaca que as denominações que ficariam conhecidas nem sempre correspondiam a como os povos africanos se autodenominavam. Diante de um quadro como este não é de admirar que as revoltas escravas e a construção de quilombos sempre foram uma constante. Palmares, Búzios, Malês, e não parou por aí. Ainda hoje os descendentes destas tantas etnias africanas, conhecidas aqui como nagôs, jejes, angolas, hauçás, dentre outras denominações, lutam pelo reconhecimento como cidadãos, o que ainda não saiu do papel. O recorte de cor em índices como analfabetismo, pobreza e outras desigualdades, mostra que o Brasil deixa à margem as comunidades afrodescendentes. Os gritos antes ampliados nas revoltas de escravos ganham hoje as vozes de associações como o MNU, mas também se espalham na luta dos quilombolas para provar que são donos de suas terras ou na busca de solidificação das ações afirmativas das quais as cotas é o mais conhecido exemplo. As batalhas por igualdade que já são contadas em séculos chegaram há pouco ao coração do Estado: ministério e secretárias nos âmbitos municipais e estaduais começam a desenvolver políticas para tentar reparar o que não foi feito quando da abolição do regime escravo em 1888. Enfim, fica mais próximo ao Brasil tornar reais as palavras de Martin Luther King em seu famoso discurso proferido em Washington em 1963 que ficou conhecido como “Eu tenho um sonho”, composto por trechos como este: “Eu tenho um sonho que minhas quatro pequenas crianças vão um dia viver em uma nação onde elas não serão julgadas pela cor da pele, mas pelo conteúdo do seu caráter. Eu tenho um sonho hoje“. Como King, várias lideranças dos movimentos negros, militantes nas mais variadas frentes, têm um sonho de igualdade. Aqui em cada uma das páginas deste especial alguns deles, desfiam a sua esperança em dias melhores onde racismo será uma palavra em desuso e as lutas de Zumbi não precisarão voltar a ser repetidas, mas apenas um belo capítulo para se recordar. | PERFIL | | MARTIN LUTHER KING | Nasceu em 1929, em Atlanta, Estados Unidos. Foi um dos mais importantes ativistas da luta pelo direito de igualdade. Pertencente à Igreja Batista deu voz à luta contra o racismo nos Estados Unidos, liderando marchas. Tornou-se o mais jovem agraciado com o Prêmio Nobel da Paz. Tudo começou com o protesto de Rosa Parks que se recusou a dar o seu lugar no ônibus a uma mulher branca e por isto acabou presa. Vários protestos se seguiram contra as leis de segregação racial. Durante a campanha, King foi um dos líderes, recebeu várias ameaças, mas a Suprema Corte acabou cedendo, tornando a segregação ilegal. A patir de então a liderança de King se consolidou. Uma das mais famosas marchas que conduziu foi a realizada em Washington, em 1963, quando proferiu seu famoso discurso. Odiado por muitos que defendiam a segregação foi assassinado em 1968. Eu tenho um sonho... ...Eu digo a você hoje, meus amigos, que, embora nós enfrentemos as dificuldades de hoje e amanhã, eu ainda tenho um sonho. É um sonho profundamente enraizado no sonho americano. Eu tenho um sonho que um dia esta nação se levantará e viverá o verdadeiro significado de sua crença – nós celebraremos estas verdades e elas serão claras para todos, que os homens são criados iguais. Eu tenho um sonho que um dia, nas colinas vermelhas da Geórgia, os filhos dos descendentes de escravos e os filhos dos descendentes dos donos de escravos poderão se sentar junto à mesa da fraternidade. Eu tenho um sonho que um dia, até mesmo no estado de Mississippi, um estado que transpira com o calor da injustiça, que transpira com o calor de opressão, será transformado em um oásis de liberdade e justiça. Eu tenho um sonho que minhas quatro pequenas crianças vão um dia viver em uma nação onde elas não serão julgadas pela cor da pele, mas pelo conteúdo de seu caráter. Eu tenho um sonho hoje! Eu tenho um sonho que um dia, no Alabama, com seus racistas malignos, com seu governador que tem os lábios gotejando palavras de intervenção e negação; nesse justo dia, no Alabama, meninos negros e meninas negras poderão unir as mãos com meninos brancos e meninas brancas como irmãs e irmãos. Eu tenho um sonho hoje! Eu tenho um sonho que um dia todo vale será exaltado, e todas as colinas e montanhas virão abaixo, os lugares ásperos serão aplainados e os lugares tortuosos serão endireitados e a glória do Senhor será revelada e toda a carne estará junta... Trecho do discurso de Martin Luther King. Fonte | www.portalafro.com.br EXPEDIENTE Coordenação | Cleidiana Ramos. Edição | Cleidiana Ramos e Sylvia Verônica. Projeto Gráfico e Diagramação | Axel Augusto, Pierre Themotheo e Valentina Garcia. Ilustrações | Cau Gomez. Fotos de Perfis “Eu tenho um sonho” | Rejane Carneiro. Edição de Fotografia | Carlos Casaes e Gildo Lima Revisão | Cristiane Sampaio, Sueli Afonseca e Sueli Lopes REJANE CARNEIRO | AG. A TARDE EU TENHO UM SONHO... SALVADOR, TERÇA-FEIRA, 20/11/2007 ❛ “que vem sendo forjado há cinco séculos por cada homem negro e cada mulher negra que pisaram em solo brasileiro, através dos quilombos, dos terreiros, da capoeira, das insurreições coletivas e individuais, do rico legado civilizatório de matriz africana, da combinação indissociável entre bravura e generosidade, ensinada pelos orixás, inquices, voduns e caboclos: é possível, e é preciso, construir uma sociedade multicultural” Samuel Vida, 40 anos | é advogado e professor de direito da Universidade Federal da Bahia (Ufba) e também da Universidade Católica do Salvador (Ucsal). Samuel tem uma reconhecida atuação por meio da sua atividade profissional, e também acadêmica, em defesa dos direitos humanos e do combate ao racismo em suas mais variadas formas. É o coordenador do Programa Direito e Relações Raciais da Ufba. Samuel Vida é também o fundador do Afro Gabinete de Articulação Institucional e Jurídica (Aganju), criado em 2001 e que tem sido um importante instrumento de defesa dos direitos das comunidades negras. | LUTAS DE ONTEM E SEMPRE | 3 ARESTIDES BAPTISTA | AG. A TARDE | 13.5.2005 ARTIGO ❚ A questão negra na Constituição Federal de 1988 JURANDIR ANTÔNIO SÁ BARRETO JÚNIOR Protestos públicos sempre foram a marca da associação que significou um divisor de águas na organização política em busca da igualdade de direitos para a comunidade negra ENFRENTAMENTO ❚ Desafiando a ditadura militar, surgiu um movimento capaz de congregar a diversidade de organizações que, ao longo do tempo, sustentaram o duro combate aos efeitos da discriminação no Brasil MNU fez ressurgir força de luta contra o racismo CLEIDIANA RAMOS [email protected] Ainda eram os tempos de chumbo, o nome mais ameno para o período de horror das duas décadas de ditadura militar no Brasil. Nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo, em 7 de julho de 1978, um grupo dava um ousado passo. Era o primeiro ato público do recém-criado Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial (MNUCDR), mais tarde MNU, que no dia 18 de junho de 2008 vai celebrar 30 anos. A associação impôs um marco divisório na organização política por cidadania negra. O MNUCDR surgiu trazendo bandeiras de lutas forjadas nas mais variadas visões sobre o melhor caminho para combater o racismo no Brasil. Um trecho da carta que foi lida nas escadarias do Teatro Municipal não deixava dúvidas sobre a direção das lutas do movimento: “Hoje, estamos nas ruas numa campanha de denúncia! Campanha contra a discriminação racial, contra a opressão policial, contra o desemprego, o subemprego e a marginalização. Estamos nas ruas para denunciar as péssimas condições de vida da Comunidade Negra (...)” O texto histórico está descrito em Movimento Negro Unificado1978-1988, 10 anos de luta contra o racismo, uma coletânea de textos organizada pelo professor, escritor e diretor do Ilê Aiyê, Jônatas Conceição. “Na época do ato público, eu estava em São Paulo. Foi a primeira vez que vi Abdias do Nascimento e Lélia González”, conta Conceição, citando personalidades históricas da luta de combate à discriminação racial no Brasil. Por meio de suas ações, como o ato político em São Paulo, o MNU começaria a centrar o seu discurso, principalmente na demolição do mito de que o Brasil vivia uma democracia racial. “O discurso que o movimento estava trazendo desestabilizava o imaginário de que o País era o paraíso de uma convivência harmoniosa entre os diversos segmentos étnicos. Isso provocou uma reação muito forte”, acrescenta Conceição. CAMINHADA – Mas, para se chegar até o MNUCDR, a caminhada foi árdua e longa. Os caminhos de luta por igualdade começaram a rigor junto com a escravidão. Os registros de fugas e rebeliões, como a chamada Revolta dos Búzios ou a dos escravos malês, são as provas de que os escravos africanos e seus descendentes nunca aceitaram passivamente a exploração do seu trabalho acompanhada de vários tipos de maus-tratos e falta de liberdade. No texto Pequeno histórico do movimento negro contemporâneo, publicado no livro Negras Imagens, João Batista de Jesus Félix conta que a resistência começou com os quilombos e evoluiu para as revoltas escravas nos centros urbanos. Com a chegada da abolição e já no período da República, a população negra, embora livre, continuava à margem da cidadania. Em 1931, surgiu a Frente Negra Brasileira (FNB), que acabaria fechada pelo presidente Getúlio Vargas seis anos depois. Em Salvador, houve uma versão da FNB. “Diferente de São Paulo, onde ela era formada por trabalhadores que buscavam uma certa ascen- * nuam até hoje. A nova geração chegou à universidade e se autoafirma. São jovens anônimos como muitos dos que militaram e cujos nomes não ficaram, mas que foram fundamentais para a sustentação destas lutas”, completa. Bacelar acrescenta que é também importante se avaliar a importância dos que não tiveram os nomes registrados nas histórias dos movimentos. “É preciso resgatar a história dos indivíduos e não apenas do grupo”, completa. são, aqui ela foi articulada por gente muito pobre. Eles chegaram a fazer uma passeata pela cidade que surpreendeu pela coragem e força”, diz o doutor em antropologia e professor da Ufba Jeferson Bacelar, autor dos livros Ser negro em Salvador, Hierarquia das raças e Mário Gusmão – Um Príncipe Negro nas Terras dos Dragões da Maldade. Mas, para Bacelar, ainda é necessária uma maior produção de análises históricas sobre os movimentos negros. “Eles foram fundamentais para que o problema do racismo no Brasil viesse à tona, a partir da denúncia de que a democracia racial era um mito”. Bacelar salienta que, por meio de atividades de grupos como o MNU, hoje estão em marcha ações afirmativas como as cotas, além de uma maior combatividade da juventude negra. “Na verdade, as lutas conti- DIVERSIDADE – O MNU nasceu de forma ampla. Ele reunia grupos culturais, sindicais, estudantis que faziam o enfrentamento ao racismo e viram no movimento a ampliação da sua força política. “O MNU nasceu bastante diverso, mas o que nós tínhamos muito claro era a proposta de construção de um projeto político para o Brasil que não fosse excludente, como o que nos excluía e ainda exclui”, destaca Luiz Alberto Silva dos Santos, atual secretário estadual de Políticas de Promoção da Igualdade (Sepromi). O MNUCDR surgiu como reação a dois atos de violência. O primeiro foi a morte de um trabalhador, Robson Silveira da Luz, que foi torturado pela polícia paulista. O outro envolveu um caso de discriminação racial no esporte também em São Paulo: quatro garotos negros foram impedidos de participar de um time de voleibol. A indignação que esses dois casos causaram foi o estopim para libertar a vontade de ação de vários grupos espalhados pelo Brasil. Assim, a reunião do dia 18 de junho – com a instalação oficial do movimento – e o ato público de 7 de julho viraram parte da história de Um dos mais emocionantes documentos que foram lidos no ato público do MNU em 1978 foi o enviado por internos do Presídio Carandiru, no qual eles diziam estar unidos à luta. uma das mais longas lutas por cidadania integral no Brasil. Além dos paulistas e cariocas, vários Estados do País foram representados não só pela presença de militantes, como também por meio das moções. Bahia, Pernambuco, Pará, Rio Grande do Sul e outras localidades mostravam que racismo e violência contra negros era um problema nacional. Um dos documentos mais emocionantes que chegou ao ato foi a carta endereçada aos seus participantes pelos internos do Presídio Carandiru, cujo trecho também está reproduzido no livro Movimento Negro Unificado – 1978-1988 – 10 anos de luta contra o racismo. “Se (direito humano) for algo do qual dependemos da sociedade branca para nos conscientizar, algo que se consiga com docilidade de servos, não apresente! Já estamos fartos de palavras, demagogias, por isto somos um grupo, por isto gritamos sem cessar. Somos negros, somos Netos de Zumbi. (E vovô ficaria triste, se nos entregássemos sem lutar)”, diz a carta. Também em sua definição de princípios, o MNU denunciava as várias discriminações que, historicamente, estavam sendo impostas à população negra brasileira: desemprego, perseguição racial no trabalho, exploração sexual, econômica e social da mulher negra, mito da democracia racial, dentre muitas outras. E adiantava seu programa: “Nós solidarizamos com toda e qualquer luta reivindicativa dos setores populares da sociedade brasileira que vise à real conquista de seus direitos políticos, econômicos e sociais; com a luta internacional contra o racismo”. O ordenamento jurídico republicano, ao adotar o discurso da “democracia racial”, não reconheceu o fato de a população brasileira ser composta de diferentes grupos étnicos com suas especificidades, consubstanciando-se, através de um discurso ideológico, num instrumento poderoso de marginalização das massas negras. A atual Constituição Federal abandonou claramente o discurso da “democracia racial” reconhecendo a pluralidade étnica, apresentando um avanço em relação às anteriores. Contudo, não houve incentivo à garantia de expressão da etnicidade como meio de arrefecer a existência do preconceito no Brasil. A elite brasileira esposou a tese segundo a qual vivemos numa democracia racial, formalizando discursivamente tal afirmação no seu direito positivo. Contudo, a realidade demonstra claramente a falácia de tal discurso. Ao desejar mostrar ao mundo ter comprometimento com os valores da igualdade e da democracia, a elite brasileira fingiu não conhecer a existência de uma sociedade plurirracial e multiétnica, onde os negros foram e continuam sendo discriminados sem possuir instrumentos realmente capazes de auxiliá-los na busca da Justiça, muito menos inibir os potenciais discriminadores. A nova constituição, sem dúvida, ampliou as garantias dos cidadãos, inclusive no que diz respeito ao reconhecimento formal das especificidades étnicas – culturais como, por exemplo, ao instituir a liberdade religiosa (Art. 52, VI), e a proteção às manifestações culturais afro-brasileiras (Art. 52 Parágrafo 12). Contudo, esta Constituição chamada cidadã não apresentou medidas no sentido de implementar políticas que afirmem e valorizem a manifestação cultural dos afrodescendentes reconhecendo-lhe sua especificidade, como uma mecanismo de erradicação do preconceito, ainda que se proponha a promover o bem de todos sem preconceitos e quaisquer forma de discriminação (Art. 32 IV). O fato de constar no texto constitucional o verbo “promover” significa um avanço em relação às constituições anteriores que apenas continham simples declarações de igualdade. Em que pesem seus inequívocos avanços democráticos, em respeito especificamente ao negro, a Constituição não projetou medidas realmente eficazes para a erradicação do preconceito racial, revelando-se, como as constituições republicanas anteriores, num instrumento de controle social eficaz, utilizado para a manipulação da raça e etnia negras. Jurandir Antônio Sá Barreto Júnior| é mestre em direito público, mestre em ensino, história e filosofia da ciência e doutorando em estudos étnicos e africanos pelo Ceao-Ufba Mônica Kalile, 42 anos | é produtora cultural e militante no Grêmio Comunitário Cultural e Carnavalesco A Mulherada. A associação surgiu, em 1992, sob a denominação de Espaço Cultural Kalundu, voltado para a produção de eventos e atividades sociais. Sensível à causa da mulher, principalmente negra, e com o intuito de dar mais visibilidade a esta luta por mais igualdade e respeito, Mônica Kalile decidiu, juntamente com a diretoria da Banda Kallundu/Kallundetes, transformar esta entidade no Grêmio Comunitário que também promove o desenvolvimento da comunidade afrodescendente. 4 ❛ “de uma sociedade em que todos possam usufruir do tudo, ou seja, o tudo para todos, onde mulheres e homens sejam iguais independente da cor da pele, sem preconceito ou distinção. Sonho com a realidade onde as oportunidades serão reais e iguais e que nossas filhas e filhos possam viver em harmonia e com dignidade em um ambiente de justiça e solidariedade“ | LUTAS DE ONTEM E SEMPRE | EU TENHO UM SONHO... REJANE CARNEIRO | AG. A TARDE REJANE CARNEIRO | AG. A TARDE EU TENHO UM SONHO... SALVADOR, TERÇA-FEIRA, 20/11/2007 SALVADOR, TERÇA-FEIRA, 20/11/2007 ❛ “que toda a sociedade construa e respeite a igualdade para todos. Meu sonho também é o de que exista liberdade religiosa de fato no Brasil, que a intolerância chegue realmente ao fim. Desejo muito também que todas as religiões sejam respeitadas como elas merecem e têm direito. Que todas elas sejam tratadas de uma forma semelhante pelos governos e por todos os segmentos da sociedade civil“ Tata Kommannanji, 47 anos | é presidente da Associação Cultural para a Preservação do Patrimônio Bantu (Acbantu). A associação tem como objetivo contribuir para o resgate das tradições religiosas e culturais de matrizes africanas. Atualmente, a Acbantu reúne cerca de 700 comunidades, como terreiros de candomblé, quilombos, associações comunitárias, dentre outras. O seu projeto Rede Kôdya, voltado para a segurança alimentar, foi criado há três anos e já atende 30 mil famílias por meio da distribuição de alimentos, hortas comunitárias dentre outras iniciativas. A Rede Kôdya já foi expandida para outros Estados. | LUTAS DE ONTEM E SEMPRE | 5 EFERVESCÊNCIA ❚ Capital da Bahia sediou congresso que definiu o 20 de novembro como Dia Nacional da Consciência Negra DEUS DA GUERRA ❚ Mitos e realidade misturam-se para contar a história do grande símbolo da resistência negra no Brasil Colônia Salvador nas linhas de frente Eterna liderança de Zumbi REPRODUÇÃO | MNU-BA | JOA SOUZA | AG. A TARDE | 12.11.2007 desenvolvimento de projetos. “A manutenção da entidade vem da contribuição de seus próprios militantes”, destaca o coordenador financeiro do MNU em Salvador, Cal Bulhosa. Na sede, funciona um curso de alfabetização. Um outro projeto em andamento é a instalação de equipamentos voltados para projetos de inclusão digital. CLEIDIANA RAMOS [email protected] A Bahia sempre foi um dos principais pontos de articulação do MNU. Mas antes da sua criação, a cidade já vivia a efervescência de grupos culturais como o Malê Cultura e Arte Negra, Grupo Palmares Iñaron, Núcleo Cultural Afro Brasileiro, sem falar em outras pessoas que militavam de forma independente em grupos de estudos, círculos de discussões, dentre outras iniciativas. Salvador acabou sediando a primeira Assembléia Nacional do MNU. O problema é que os participantes estavam sob uma forte vigilância do governo militar. “A gente olhava para a platéia do encontro e sabia quem eles eram. Eu mesmo vi um que era militar da Aeronaútica”, conta Luiz Alberto Silva dos Santos, atual secretário estadual de Políticas de Promoção da Igualdade (Sepromi). Perseguidos por agentes da Polícia Federal que diziam ter ordens para impedir a manifestação, os congressistas que vieram de várias partes do País acabaram encontrando abrigo em território “alemão” na capital baiana, ou seja, no Instituto Cultural Brasil-Alemanha (Icba). ZUMBI – Foi neste congresso que o dia de hoje, 20 de novembro, foi escolhido como o marco para se festejar a Consciência Negra em homenagem a Zumbi, o homem que ousou construir uma estrutura de Estado negro desafiando uma sociedade ancorada na escravidão. “A partir daí o processo foi se consolidando. O MNU aglutinava várias concepções e várias experiências”, acrescenta Luiz Alberto. Exatamente por ser diverso, o MNU apresentava suas próprias contradições. “Tinha os que defendiam uma linha mais política e outros a linha mais culturalista. Aqueles que entendiam que os movimentos religiosos eram espaços de resistência política e que tinham também que ser incorporados, outros que valorizavam as lu- O MNU surgiu associando diversas entidades que já experimentavam lutas contra o racismo. Em Salvador, a grande força era dos grupos culturais tas dos blocos afro como um outro caminho viável”, relata o secretário Luiz Alberto. A diversidade e o debate político intenso acabou por gerar as dissidências, com a saída de militantes históricos que criaram outros movimentos ou seguiram em sua luta de forma independente. Este processo, segundo Luiz Alberto, foi mais acentuado na década de 1990, mas fica patente o papel preponderante que o MNU desempenhou para as lutas por igualdade. LUTAS-Mas não mudou o pensamento do MNU sobre a necessidade de priorizar a organização. “A maioria dos militantes do movimento tem nitidez em manter a leitura de que ainda é necessária a entidade nacional de combate ao racismo para discutirmos as perspectivas de acesso da comunidade negra aos seus direitos”, avalia Marcus Alessandro Mawussí, coordenador nacional do MNU. * O MNU está organizado em 13 Estados. Além da Bahia, ele tem representação no Rio, São Paulo, Pernambuco, Maranhão, Rio Grande do Sul, Goiás, Ceará, dentre outros. A associação, hoje, está presente em 13 Estados, além da Bahia, como Rio de Janeiro, São Paulo, Pernambuco, Maranhão, Rio Grande do Sul, Goiás, Sergipe, Ceará, dentre outros. Militante do MNU, Hamilton Borges Walé destaca trabalhos como o que vem sendo realizado no Complexo Penitenciário de Salvador. “Com todas as dificuldades, ainda somos uma organização de combate e de luta, sem nenhuma pretensão de negociação com o racismo. Com o racismo não se negocia”, completa. Segundo ele, o trabalho que vem sendo feito no Complexo Pe- nitenciário denuncia o que considera a seqüela mais violenta do racismo. “Para além de qualquer conjuntura de governo de direita ou de esquerda, a situação dos negros na política criminal e de segurança pública é de violência extrema. O MNU está disposto a este tipo de enfrentamento”. O projeto do MNU inclui exibição de filmes, levantamento das possibilidades artísticas dos internos, incentivo à leitura, dentre outras. “Fazemos tudo isso com recursos próprios, sem nenhum convênio porque isso garante autonomia de ação”, completa. Um outro projeto destacado por Hamilton Borges é a campanha “Reaja ou será morto, Reaja ou será morta”, centrado nas denúncias de violência contra homens e mulheres negros . Segundo o coordenador municipal do MNU, Nilo Rosa, as ações da associação continuam direcionadas a construir um projeto de inclusão nacional. DIÁLOGO-“Mas ainda há a dificuldade de diálogo com a sociedade brasileira, que considera o MNU dono de uma proposta excludente. Essa visão ainda é muito forte”. Nilo Rosa destaca que há a consciência dentro do próprio MNU que os resultados são lentos. “Nós estamos completando 30 anos e agora que estamos vendo algumas coisas acontecerem como as cotas. Daqui a dez anos quem sabe não estaremos vendo o Estatuto da Igualdade Racial em vigor?”, aposta. A realidade da organização tem sido a de driblar dificuldades, como a falta de financiamento para o COMUNICAÇÃO – Não foi só em política que o MNU inovou. A sua forma de fazer comunicação também deixou marcos. Em 1981, o MNU baiano lançou um boletim que logo se transformou no jornal nacional do movimento. As publicações do MNU ofereciam informação e atualização sobre o que acontecia na frente das lutas negras tanto no Brasil quanto no mundo. Folheando as páginas do jornal é possível, por exemplo, conhecer a luta para inclusão da disciplina sobre História da África nos currículos das escolas, uma medida que durou algum tempo, mas caiu em 1989. Era a gênese da agora Lei Nacional 10.639/03, que tornou obrigatória a inclusão nos currículos escolares de História da África e Cultura Afro-Brasileira. As publicações do MNU vieram se somar aos cadernos negros, produzidos a partir de 1978 e ainda em produção contínua. “Sem dúvida, tanto os boletins, jornais do MNU e os cadernos negros foram fundamentais para a construção da identidade dos afrodescendentes”, salienta a doutora em Estudos Literários Florentina Souza, autora do livro Afro Descendência em Cadernos Negros e Jornais do MNU. Por meio das páginas dos boletins e do jornal do MNU, é possível reconstruir a trajetória dos debates que se travavam nas décadas de 80 e 90. No caso dos cadernos negros, toma-se contato com uma arte que, por sua própria história de resistência – financiada pelos próprios autores –, já é também um ato político por natureza, lembrando o início dos movimentos. FOTOS: JOA SOUZA | AG. A TARDE | 12.11.2007 depoimento MNU foi divisor de águas na organização política negra ❚ “Em retrospecto, o Movimento Negro Unificado (MNU) foi o acontecimento mais importante, a meu ver, para o povo negro no século XX. Só a partir da criação do MNU foi possível toda a movimentação negra que existia no Brasil naquele período, os anos 70. Com o movimento foi possível adquirir uma linguagem. A partir dele começou a se formular um discurso para o enfrentamento da questão do racismo no Brasil. As formulações que o MNU fazia, as suas análises sobre como o racismo no Brasil operava e quais os principais mecanismos de prática do racismo foram de fundamental importância. Elas permitiram a grupos que se consideravam ”grupos culturais“, por exemplo, entender melhor qual era o seu papel naquela Cau Bulhosa destaca a dificuldade atual para manter os projetos conjuntura. De uma certa forma desde a criação do MNU nada de tão novo aconteceu, porque tem a ver com o papel que cada organização tem em diferentes momentos históricos. Cada uma delas opta por dar forma a uma determinada luta, para dar forma às reivindicações de um povo. Eu ingressei no MNU um ano depois da sua fundação, em 1979. Hoje eu já saí do MNU. Já tem uns 13 anos que não participo mais das suas atividades. É um tempo quase igual ao que eu permaneci lá dentro que foram 14 anos, mas destaco a sua grande importância ❚ Luiza Bairros, mestre em sociologia, é ativista do movimento negro e de mulheres, ex-militante do MNU e consultora de organizações internacionais em projetos de cooperação de interesse da população afro-brasileira. Doutora em estudos literários, Florentina Souza estudou informativos DAVI BOAVENTURA [email protected] Imortal. Espírito que volta da terra dos mortos. Deus da guerra. Um guerreiro com quase 200 anos de idade. Não são poucos os mitos, lendas e histórias sobre o homem que liderou a resistência da República de Palmares contra as tropas repressoras dos brancos por mais de 15 anos. Nascido, provavelmente, em Palmares, no ano de 1655, Zumbi foi capturado ainda recém-nascido por uma investida das forças coloniais. Levado para Porto Calvo, uma das mais importantes vilas da Capitania de Pernambuco, foi batizado como Francisco. O jovem cresceu e passou a trabalhar para o padre Antônio de Mello, com quem aprendeu o latim e o português, além dos sacramentos da liturgia católica. No entanto, Zumbi nunca conseguiu se adaptar à vida escrava no cenário urbano. Em 1670, fugiu para as serras da região e para os mocambos de Palmares. Alguns anos depois, tornou-se importante comandante militar do quilombo. Em 1678, um acordo de paz entre Ganga-Zumba, possivelmente seu tio, e a colônia muda seu destino. Os termos do tratado eram claramente desfavoráveis aos moradores do quilombo. A insatisfa- ção dos palmarinos era grande, e uma conspiração tomou corpo. No final do ano Ganga-Zumba morreu envenenado. Com a morte do rei, Zumbi se transformou no novo líder e comandou a resistência contra os exércitos coloniais. Com sua liderança, novos mocambos se formaram, e outros, como os de Macaco, Osenga e Dambraganga, se fortaleceram. A organização militar do quilombo e o sistema de defesa do território foram aperfeiçoados. A guerra contra os brancos teve papel fundamental na história da vida de Zumbi. As investidas das tropas reescravizadoras eram constantes, mas os palmarinos de- fendiam seus domínios com ferocidade, e os cativos não sofreram derrotas. Entre 1680 e 1691, todas as expedições contra Palmares foram completamente destruídas. A colônia se enfureceu, e a repressão contra o quilombo aumentou. O número de soldados e armas era cada vez maior. A intensificação das batalhas foi minando as forças quilombolas e a queda de Palmares se aproximava. Para tentar eliminar por completo o refúgio negro nas serras pernambucanas, o governo contratou bandeirantes paulistas, liderados pelo experiente Domingos Jorge Velho. Conhecido por sua crueldade na perseguição de índios e destruição de aldeias, Jorge Velho montou uma gigantesca operação de guerra com centenas de soldados e milhares de armas. Os combates com os bandeirantes foram violentos e duraram quase dois anos. Em 1694, o fim. Zumbi caiu em um desfiladeiro, mas conseguiu fugir. Um ano depois, o líder dos escravos reapareceu lutando na guerrilha da floresta. A “imortalidade” de Zumbi assustou os soldados da colônia e encantou a população da região. Entretanto, a cobiça de alguns falou mais alto. Zumbi foi traído por um companheiro, que levou as tropas de André Furtado de Men- donça ao seu esconderijo. Depois de um forte cerco, o comandante é encontrado em 20 de novembro de 1695. Morto, teve sua cabeça decapitada e exposta em praça pública do Recife. Quase 300 anos depois, a data de seu assassinato se tornou o Dia da Consciência Negra. FONTES: GOMES, Flávio. Palmares: escravidão e liberdade no Atlântico Sul. São Paulo: Contexto, 2005. 180 p. MOURA, Clóvis. Quilombos: resistência ao escravismo. 2ª ed. São Paulo: Editora Ática, 1989. 94 p. BUENO, Eduardo. Brasil: uma história. São Paulo: Editora Ática, 2003. 447 p. Antônio Carlos dos Santos Vovô, 55 anos | é presidente do Ilê Aiyê. A movimentação dos negros baianos em épocas mais recentes e com características e reivindicações novas e atualizadas tem como seu ponto de partida a criação, em 1974, do Ilê Aiyê, primeiro bloco afro do Brasil no Curuzu, no mais populoso bairro de Salvador: a Liberdade. Apesar do medo dos primeiros militantes como manifestações da falta de garantia individual/social, é possível perceber que os negros que se reuniram para brincar/fazer o carnaval no Ilê Aiyê tinham consciência de que também estavam fazendo política. REJANE CARNEIRO | AG. A TARDE EU TENHO UM SONHO... ❛ “de construir uma Bahia livre da escravidão mental, um lugar onde a população negra não tenha que lutar pelos seus direitos garantidos na Constituição brasileira, um lugar onde os negros não fiquem invisibilizados na sociedade pela mídia. Um lugar onde os negros votassem em negros para fortalecer a luta, colocando os sonhos em prática, como nos lugares onde ele é a maioria, e isso se reflete nas esferas do poder político e econômico” | LUTAS DE ONTEM E SEMPRE | 6 BÚZIOS ❚ Levantaram-se, nas classes populares, ideais modernos de igualdade racial, salários justos e o fim da escravidão s o d a t l o v o e g R tra ju o n ã co press o da MEIRE OLIVEIRA SALVADOR, TERÇA-FEIRA, 20/11/2007 1798 2u3in/ta-f8eira | Integrantes do 12om/in8go | Nos locais mais D os da cidade, movimentad oletins ixados os “b aparecem af postes, lojas, em sediciosos” úncios gues. Os an u o aç s, ja re ig ança a d u m à nvite o eram um co tr lução con a partir da revo l controlado por nia sistema colo da a instalação d e al g Portu am 11 os República. Er alhados na p es s to ri m manusc foi rápida, co ão aç re A e. cidad o igida pel a devassa ex Capitania da Baía da r o ad govern rnando Santos, D. Fe s o s o d To de ro ei m ri p ugal. O José de Port gos da in m o D : so pre suspeito foi evente, mulato, escr Silva Lisboa, r letrado Portugal. Se itantes nascido em h entre os ab ra ra a is co a er como textos tidos da cidade, e m edores fora compromet sidência ❚ re a su em s encontrado 2u2ar/ta8-feira | Na Igreja do ns. [email protected] Uma República Democrática, o fim da escravidão e das desigualdades entre brancos e negros. Dentre outros profissionais, eram artesãos, soldados, comerciantes, alfaiates, escravos, alforriados, brancos, negros e mulatos, religiosos. Salários iguais entre negros livres e brancos, o fim da escravidão, a luta contra os altos impostos e uma sociedade igualitária e sem preconceitos eram as reivindicações. A Revolta dos Búzios ou Conjuração Baiana, Conspiração dos Búzios, Conjuração dos Alfaiates, Primeira Revolução Social Brasileira, Movimento Democrático Baiano, Inconfidência Baiana, ocorrida em agosto de 1798, embora abortada no nascedouro, marcou a luta pela independência, pois enfocava o rompimento com Portugal, e tornou pública a insatisfação em todos os níveis da sociedade. Tudo começou no período entre 1794 e 1797, quando as idéias começaram a ser disseminadas através da leitura de textos franceses que fomentavam a libertação. A situação fez surgir a Academia dos Renascidos (associação literária que discutia os ideais de libertação e os problemas sociais) criada pela Loja Maçônica Cavaleiros da Luz. A população estava em torno de 50 a 60 mil habitantes, sendo mais de 50% de negros. Na frente de batalha, negros com ideais que iam de encontro ao poder vigente, inspirados pela trilogia Liberdade, Igualdade, Fraternidade da Revolução Francesa. A composição diferencia o movimento da Inconfidência Mineira, que não levantava a bandeira contra a escravidão. Líderes: João de Deus do Nascimento (alfaiate), Manoel Futisno dos Santos (18 anos), Luiz Gonzaga das Virgens (soldado), Lucas Dantas (soldado) e as mulheres negras alforriadas Ana Romana e Maria do Nascimento. FONTES: Revolta dos Búzios ou Conjuração Baiana de 1798: uma chamada para a liberdade, autora: Marli Geralda Teixeira / Caderno de Educação do Ilê Aiyê Volume VII Revolta dos Búzios - 200 anos / Série Olodum Griô Volume I Revolta dos Búzios: Uma história de Igualdade no Brasil. Q oleti em novos b Carmo, surg o de ad ld so o : to Outro suspei zaga das Virgens, Gon milícia Luiz Pago, Regimento o d n do Segu crito igido por es que havia ex lários iguais aos e sa tratamento Foi preso e s. co n ra dos b ❚ interrogado Q ela , movidos p movimento se , to fa mo apreensão co de o it tu in o reúnem com sgate do planejar o re a das Luiz Gonzag companheiro izar a revolução an Virgens e org ita. O encontro d te en propriam , no ara o dia 25 p o d ca ar m foi rro ❚ te es D ique do Campo do D 25bad/o8| Reunião no Campo do Sá terro. No Dique do Des a estratégia de de encontro on ontada, três dos m a ri resgate se o, o ara a reuniã p s o ad convid de sé Joaquim Jo ,o cabeleireiro a) ci ilí m a itão d ga ei Santana (cap V uim José de e ferreiro Joaq d im u José Joaq e o soldado filtraram no in se Siqueira ar os para inform movimento ao a lt s da revo preparativo os am ar eg tr En governador. rnador dando ove líderes ao g es de assa, invasõ ev d início à ❚ es sõ casas e às pri 22bad/o1|2Chegam Ordens Sá inando oroa determ Régias da C ados ❚ lp cu s ao vera a punição se 1799 5/11 Terça-feira | O Tri bunal da Relaç ão decide pela co 8/11 ndenação dos culp ados ❚ Sexta-feira | Quat ro deles são cond enados à morte po executados na Praç r enforcamento e a da Piedade: 2 So ldados – Lucas Da Torres e Luís Gonz ntas de Amorim aga das Virgens; 2 Alfaiates – Manue Lira (aprendiz) e Jo l Faustino Santos ão de Deus do Na scimento (mestre). esquartejados e ex Os corpos foram postos em lugare s públicos. A cabe ficou espetada no ça de Lucas Dantas campo do Dique do Desterro; a de Man Cruzeiro de São Fr uel Faustino, no ancisco; a de João de Deus, na Rua Di (atual Rua Chile); reita do Palácio e a cabeça e as m ãos de Luís Gonzag na forca levantada a ficaram pregadas na Praça da Pieda de por cinco dias. correspondia à co A condenação ndição socioeconôm ica e à origem racia Os mais privilegiad l dos condenados os, por possuir pe . le mais clara e faze econômica, foram r parte da elite absolvidos. Os po br es e negros foram prisão perpétua ou condenados à ao exílio na África ❚ ARTIGO ❚ Juventude negra e a espera pelo dia seguinte MAÍRA AZEVEDO * Sinônimo de inconseqüência e futilidade, foi assim que a mídia definiu a juventude brasileira nos últimos anos. Basta ligar o aparelho de TV ou adquirir qualquer publicação destinada ao público jovem que se pode constatar a visão que, insistentemente, é passada sobre cerca de 20% da população. As preocupações, as ações e os sonhos são todos pautados pelo consumo exacerbado, como se a única inquietação juvenil fosse ter a roupa da moda, o tênis da vez ou ainda freqüentar os lugares badalados. Mas, dentro deste universo, existe um outro percentual que representa, aproximadamente, 7% de brasileiros e brasileiras e possui um outro sonho, que a primeira vista pode parecer simples e banal, entretanto, vem se tornando cada vez mais difícil: o dia seguinte. Essa é a realidade dos jovens negros, com idades entre 15 e 24 anos, que representam cerca de 15 milhões de pessoas e que todos os dias, quando conseguem chegar em casa, têm motivos para comemorar. Conseguiram a façanha de vencer as estatísticas. São sobreviventes do sistema perverso que, silenciosamente, aniquila a juventude negra brasileira. Alvos prediletos dos grupos de extermínio e das ações violentas de alguns policiais, a juventude negra está no topo dos índices que revelam as desigualdades sociais e raciais do nosso País. Somos nós, jovens negros que vivemos sob o jugo das famílias consideradas pobres e miseráveis, que recebemos os salários mais baixos do mercado, e também os primeiros a serem escolhidos na hora da demissão, e ainda, no caso das jovens negras, as que morrem nas clínicas de abortos clandestinos. Entre as medidas atuais de extermínio da juventude negra, temos a campanha a favor da redução da maioridade penal. A consciência dos privilégios da elite branca brasileira é tamanha, que existe todo um setor conservador conspirando e usando as instâncias de poder para legitimar mais um crime coletivo. Querem sentenciar ao cárcere de seres humanos, aqueles que são, muitas vezes, mais vítimas do que algozes. Destinar a juventude negra às “penitenciárias juvenis”, conhecidas como casas de recuperação, que são verdadeiros depósitos de crianças, e como não poderia deixar de ser, na sua maioria, negra e pobre. Porque dentro de um largo contingente de jovens negros, que cometem algum tipo de delito, e são rapidamente cunhados de criminosos, facilmente se encontra meninos e meninas que não tiveram oportunidades. Pois, como bem definiu o pai de um dos criminosos que atacaram a empregada, “eles só queriam se divertir”. A juventude negra brasileira tem pressa, mas uma pressa diferente de tudo. Não é a espera de uma festa, de mais um programa ou de uma nova roupa. Tem pressa de viver. De ter a certeza que terá direito ao seu dia seguinte. De que o silêncio dos bons que impera sobre seu genocídio, lento, gradual e programado será quebrado. Porque não falar sobre isso é compactuar com o modelo perverso que prevalece e nos mata aos poucos. Queremos ter o poder de decidir o nosso destino. E estamos nos organizando para isso, formando frente de batalhas, contra o sistema. Maíra Azevedo é jornalista militante da Unegro e Omorixá de Oxum do terreiro Ilê Axé Oxumarê. REJANE CARNEIRO | AG. A TARDE EU TENHO UM SONHO... SALVADOR, TERÇA-FEIRA, 20/11/2007 ❛ “de ver a minha religião, o candomblé, ser respeitada como ela merece ser. Eu tenho o sonho de ver que todas as pessoas são capazes de respeitar quem professa uma fé diferente da sua, afinal as religiões costumam buscar a paz. Eu tenho o sonho de ver o fim da intolerância religiosa contra as religiões de matrizes africanas, que, infelizmente, ainda é muito forte. Eu tenho o sonho de que todas as formas de fé convivam em paz “ Eurico Alcântara, 48 anos | é tata de inquice, título da hierarquia do candomblé de tradição angola. É também prior da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos e coordenador-geral do Núcleo Afro da Polícia Militar (Nafro-PM). Criada em 2005, a instituição tem como principal objetivo a defesa da liberdade de culto entre os policiais e servidores da Polícia Militar. O combate à intolerância religiosa faz parte também das suas principais ações. O Nafro tem realizado projetos educativos por meio de seminários, cursos, além de participar de manifestações públicas, tipo as caminhadas em defesa da liberdade de fé. | LUTAS DE ONTEM E SEMPRE | 7 PALMARES ❚ Mais conhecida organização da resistência era uma sociedade baseada em agricultura e comércio e desafiava a Coroa Projeto de república negra DAVI BOAVENTURA [email protected] Formado por cerca de 40 cativos fugidos de um engenho da Vila Porto Calvo ainda no final do século XVI, Palmares não era apenas uma aldeia distante e de difícil acesso por causa das densas florestas. Cercado por uma proteção natural de vegetação e montanhas, o quilombo agrupava diversos mocambos em uma das regiões mais férteis da Capitania de Pernambu- Fortificados contra domínio dos invasores A principal preocupação em Palmares era a sua defesa. As constantes empreitadas organizadas pelos brancos forçaram os quilombolas a construírem uma forte estrutura militar. O exército palmarino, alocado no mocambo de Subupira e espalhado em pequenos acampamentos na região, cresceu consideravelmente. Fortificações, fossos e falsas entradas eram construídos para impedir o avanço das tropas repressoras. As táticas de guerrilha foram aperfeiçoadas, e armadilhas, escondidas pelas florestas. O excedente da produção agrícola era utilizado como moeda de troca por munições e armas. Os mocambos de Palmares ocupavam uma grande área de terra, formando uma espécie de confederação. O largo território e a densa vegetação da região eram essenciais para manter a segurança do local. Quando um mocambo era atacado, os moradores fugiam para outro ou formavam um novo. Cada povoado exercia uma função determinada complementar e se submetia ao poder da capital, Macaco. Centro político e administrativo, Macaco era a área mais povoada e onde residia o principal líder palmarino, Ganga Zumba – o Senhor Grande. Eleito por um conselho, o rei possuía poderes ilimitados e vitalícios. No entanto, o chefe de cada mocambo tinha liberdade para regular em seu território. As leis eram rígidas. Ao chegar, o escravo era interrogado por um conselho. A intenção era descobrir se o cativo estava a mando dos senhores de engenho. O roubo, o adultério e homicídios eram punidos com a morte. (D.B.) FONTES: GOMES, Flávio. Palmares: escravidão e liberdade no Atlântico Sul. São Paulo: Contexto, 2005. 180 p. MOURA, Clóvis. Quilombos: resistência ao escravismo. 2ª ed. São Paulo: Editora Ática, 1989. 94 p. BUENO, Eduardo. Brasil: uma história. São Paulo: Editora Ática, 2003. 447 p. co, atualmente uma área pertencente ao Estado de Alagoas. Esta proteção, aliada à fertilidade das terras, facilidade de água, além da abundância de madeira e da caça, favoreceu a construção de uma sociedade organizada e o crescimento da população. Ao contrário da maioria dos quilombos, que exploravam a terra até o seu esgotamento e procuravam por novos terrenos em seguida, Palmares criou raízes. As condições do lugar também incentiva- ram a produção agrícola, utilizando técnicas de plantio, regadio e colheita trazidas da África. O trabalho era baseado na policultura e gerava excedentes, utilizados como moeda de troca com os comerciantes da região. Após o primeiro impulso demográfico, um outro fato influenciou o aumento populacional: a invasão holandesa. A Holanda era um parceiro comercial forte da coroa portuguesa: todo ou quase todo açúcar produ- zido no Brasil era refinado em suas terras e depois seguia para o resto da Europa. Em 1580, Portugal e suas colônias se tornaram domínio espanhol, país em guerra com os holandeses desde o final da década de 60 do século XVI. A economia açucareira foi logo afetada com a proibição espanhola do comércio entre Brasil e Holanda. Proibição apenas interrompida por uma trégua de 12 anos entre batavos e ibéricos. Com o retorno das hostilidades em 1621, a Holanda, representada pela Companhia das Índias Ocidentais, se recusou a abandonar lucros da cana-de-açúcar brasileira. A Bahia foi a primeira capitania invadida, em maio de 1624, mas os invasores foram expulsos em 1º de maio do ano seguinte. Em 1630, 77 navios com sete mil homens tomaram Pernambuco. Com a ocupação holandesa, as estruturas da dominação da metrópole foram desarticuladas. Os escravos, aproveitando a fragilida- de do momento, promoviam fugas em massa dos engenhos. A instabilidade da época também facilitou os assaltos quilombolas às vilas e cidades, queimando plantações e roubando as casas-grandes, além de raptar escravos, que se tornavam livres ao seqüestrar outros cativos. As mulheres também eram alvos constantes de seqüestro, incluindo aí mulheres brancas. Palmares cresceu e passou a incomodar o poder colonial. A repressão dos brancos foi enorme. Walmir França | é coordenador do Fórum de Entidades Negras da Bahia, tata do terreiro Bate Folha e diretor-executivo do bloco afro Os Negões. O bloco foi fundado em 1982 e desenvolve, além das atividades culturais, um intenso trabalho social voltado para a comunidade da Avenida Vasco da Gama, onde fica sua sede, e adjacências. Os programas são na área de educação, como o curso pré-vestibular e o de alfabetização de adultos. Os Negões também promove oficinas de dança, penteados afros e de percussão. Além disso, periodicamente, realiza mesas-redondas para discutir a temática afrodescendente. REJANE CARNEIRO | AG. A TARDE EU TENHO UM SONHO... ❛ “de uma ruptura com o insano silêncio estabelecido diante dos múltiplos aspectos da desigualdade racial. Faz-se necessário redefinir os horizontes de igualdade de oportunidades e de resultados, dispondo de políticas explícitas de inclusão racial. A redução da desigualdade entre afro-brasileiros e brasileiros brancos apresenta-se como prioridade para construção de um país democrático, livre, economicamente eficiente e socialmente justo” | LUTAS DE ONTEM E SEMPRE | 8 SALVADOR, TERÇA-FEIRA, 20/11/2007 A peleja dos Malês contra a escravidão na província da Bahia ZEZÃO CASTRO CAPÍTULO I Antecedentes anti-cordiais Às vezes fechar os olhos Basta pra viajar nos tempos Lembrar os feitos de outrora Recordar os adventos Evocar longínquos mitos Detalhar bem os seus ritos Respeitando a verdade Que integram as nações Passando por gerações Dentro da mesma cidade ”Povo cordial, pacífico“ Ouve-se do brasileiro Que nunca se revoltou E viveu no paradeiro Sem responder desagravo Chicote no lombo escravo. A história do vencedor É versão majoritária Em cadeia hereditária Mascarando a nossa dor Por isso nessa hora séria A emoção já comove Pois a história nos leva Para o século XIX. Vou narrar os porquês Da Revolta dos Malês Em pleno solo baiano: Escravos islamizados Fizeram levante armados 35 foi o ano Desde o século XI A África viu seu povo Sob uma nova crença Alá era este Deus novo Mohammed ou Maomé Era o profeta da fé Lia suratas do Alcorão Orações, quatro por dia Jejum também se fazia Da Nigéria até o Sudão Os portugueses de outrora Não viram a diferença Negro aí não era gente Que dirá a sua crença! Foram então capturados E a ferro agrilhoados Sem comida, água ou sal Colher cana e plantar fumo Bahia, o novo rumo Projeto colonial Junto com as cicatrizes Marcou-lhes a resistência Eram alfabetizados Com domínio de ciência Viram muitos definhar No tronco a se mijar Debaixo de humilhação Eram pros brancos peteca Mas oravam sempre a Meca: Por digna libertação Alguns historiadores Debruçaram-se no tema Foram pro Arquivo Público Analisar o sistema Vou aqui citar só três: Um é o João José Reis Homem douto, de valor Veio Pierre Verger Na Bahia só pra ver E Cid Teixeira endossou CAPÍTULO II Um epílogo malê A insurreição falhou Foram mortos, enforcados Livres: banidos pra África Os cativos: açoitados. Queriam matar os brancos Fosse velho, inteiro ou manco Numa festa no Bonfim Mas o plano naufragou Pois alguém caguetou Tudo tim tim por tim tim Muitos destes renegaram Suas origens briosas Disfarçaram-se em cristãos Das ordens religiosas Como fugidias aves Trancaram-se a sete chaves Abafaram sua crença Mas na terra que é de Deus Oxalá, Alá e Zeus Quem nos vale é a diferença Cerca de 500 foram Punidos só desta vez A estimativa é Do professor João Reis Setenta foram os mortos De tiros e todos tortos Com enterro de indigentes Haussás, nagôs, iorubanos Das fazendas ou urbanos Triste fim os destas gentes... Era pra ser num domingo No início da manhã O dia estava marcado: O último do Ramadan Não era dia comum Marcava o fim do jejum/ 25 de janeiro Chegar nos engenhos era O principal objetivo Para daí, em bom número Vingar-se por bom motivo. O nagô liberto Aprígio Sumiu sem deixar vestígio Era um homem de tino Carregador de cadeiras Rezava nas sextas-feiras Na mesquita de Firmino O governo deportou Duas centenas de pessoas Enviadas pra Nigéria Sem ouvir txau e nem loas Lá chamados de “Tabom” Sabiam fazer o som Aprendido em cativeiro Não praticaram estragos E hoje tem um bairro em Lagos Criado por brasileiros As delações vieram Vou adiantar o fato. A ex-escrava Guilhermina Esposa de Fortunato Ao vil papel se propunha Disse ao ex-senhor, o Cunha Que viu turvo o horizonte “A convocação seria Às 5, nascendo o dia Na hora de ir à Fonte” Sabina da Cruz, a outra, Demonstrou fraqueza à raça Entregou até o marido “Tão na Ladeira da Praça” O Juiz de Paz da Sé Logo assim que tomou pé Disse ao governador Francisco Souza Martins Que convocou seus afins E o cerco preparou O negro liberto Aprígio Conhecido em toda parte Dava reuniões em casa Com Pai Manuel Calafate Um liberto iorubano Que no credo muçulmano Fez da fé a sua horta Já tinham juntado facas Trabucos, espadas, tacas Quando alguém bate na porta Arruna, o outro líder Um nagô de Santo Amaro Conseguiu fugir pra África Este sim, um fato raro Ninguém sabe ninguém viu Como foi que este navio Abrigou a liderança Será que se amasiou Ou então ele se casou Com uma galega da França? Mesmo após o levante Mahim escapou do barril Foi encarcerada, sim Depois foi morar no Rio Toda feminista a ama Ainda pariu Luiz Gama Grande abolicionista Que é vendido pelo pai Mas quem é forte não cai Nem por rancor foi racista Ao final deste levante No rescaldo da tramóia Qualquer coisa era motivo Pra cair na paranóia Adereços de malê Viraram, pra você ver Um artefato maldito Digno de ir pro lixo. Muçulmano virou bicho, Ser humano esquisito A água desta Baía Um dia ficou vermelha Mas o exemplo tá vivo E nele há quem se espelha Neste mundo que dá volta Todo amarrado se solta Só é atado quem quer E a liberdade por um triz Não morreu de infeliz Afogada na maré REJANE CARNEIRO | AG. A TARDE EU TENHO UM SONHO... SALVADOR, TERÇA-FEIRA, 20/11/2007 ❛ “que um dia a sociedade brasileira vivencie um conceito de nação baseado também nas contribuições das civilizações africanas e indígenas. Este será o início do nosso processo revolucionário. É também necessário que o Estado brasileiro encerre o que tem sido um hábito banal de matar negras e negros. Eu tenho o sonho de que de fato tenhamos direito à vida” Marcus Alessandro Mawusí, 36 anos | é coordenador nacional do Movimento Negro Unificado (MNU). Fundado há 29 anos, o MNU tem como objetivo combater o racismo e as suas seqüelas. A associação se considera herdeira da tradição de luta negra vinda das rebeliões e quilombos brasileiros e também das experiências de autodeterminação dos povos do continente africano e de tantos outros movimentos revolucionários, como os Panteras Negras, dos EUA, e os revolucionários da independência do Haiti. A atenção às lutas internacionais dos povos africanos e da sua diáspora faz parte da sua agenda. | LUTAS DE ONTEM E SEMPRE | ISLÃ ❚ Além de política, rebelião tinha cunho religioso, mas não se sabe ao certo o tipo de islamismo que pregava Plano era dirigir a Bahia MARY WEINSTEIN [email protected] A Revolta dos Malês foi um movimento urbano, em uma capital das mais importantes do Brasil imperial. Salvador, em 1835, já era grande, mas tinha muitos vazios. Seus moradores se espalhavam mais densamente entre o Santo Antônio e o Campo Grande e Corredor da Vitória, onde se concentravam os ingleses. A Rebelião dos Malês foi surpreendente porque mobilizou muitos escravos e libertos africanos – cerca de 600. Pode parecer pouco mas, para a época, não era, não. Representaria, na demografia atual, o equivalente a cerca de 30 mil, quantidade de gente que fica difícil mobilizar para qualquer coisa ainda hoje. Agora imagine a Salvador daquela época. Como ligação entre a Cidade Baixa e a Alta, havia longas e sinuosas ladeiras que eram vencidas a pé ou em cadeirinhas de arruar. Os prédios não passavam dos seis andares. Na cadeia, no subsolo da edificação Casa de Câmara e Cadeia, os libertários foram buscar um dos líderes da revolta, Pacífico Licutan, que estava preso como objeto empenhado, porque seu dono devia muito dinheiro. Outros integrantes renomados eram Hauna, Manoel Calafati e Luis Sanim. A Revolta aconteceu no mo- 9 * O livro intitulado “Rebelião Escrava no Brasil”, do baiano João José Reis, é o mais conhecido estudo sobre a maior revolta escrava ocorrida em Salvador. A rebelião mobilizou cerca de 600 escravos e libertos africanos. O número é significativo para a população da Salvador da época, daí as rigorosas punições que foram impostas aos participantes. mento de conflito entre vários setores, no período regencial. Teve uma repercussão muito grande no País. Foi noticiada em jornais da Inglaterra e dos Estados Unidos. Os muçulmanos organizaram o movimento que parece ter sido gestado durante alguns meses, diz o professor da Universidade Federal da Bahia e historiador João José Reis, que escreveu um livro de 666 páginas sobre o episódio que durou não mais que quatro horas: “Deu tempo suficiente para 70 deles morrerem. E eles só conseguiram matar umas 10 pessoas. Eles só tinham armas brancas e enfrentaram fuzis e cavalaria”. O movimento foi abortado algumas horas antes do planejado. “Um dos núcleos rebeldes estava reunido na Ladeira da Praça e a polícia chegou lá e bateu na porta”, começa o professor. “Então, eles se levantaram. Saíram correndo pelas ruas da cidade convocando todos. As pessoas aderiram. Esse grupo inicial era de apenas 60 pessoas”, conta Reis. O historiador avança: “Veja bem: outros grupos apalavrados também se levantaram. Mas tudo aconteceu antes da hora e isso prejudicou porque se perdeu o elemento surpresa. Houve uma denúncia de que uma revolta aconteceria”. Outro núcleo importante ficava no Corredor da Vitória, onde os ingleses já moravam e eram supercoesos. Por isso, os escravos também tinham maior facilidade de comunicação entre si. Os ingleses mantinham escravos mesmo que, em 1833, nas colônias caribenhas, já tivessem abolido a escravidão. João Reis diz que tanto faz cha- mar de revolta como de rebelião. “Não me interesso muito pela terminologia, não”. E explica que, sem dúvida, o movimento aconteceu para ser contra a escravidão dos africanos. “Fica difícil garantir (o motivo do movimento) porque não deixaram nenhuma informação para a gente. Foram interrogadas mais de 300 pessoas, e resultou em informações muito superficiais sobre o modelo de sociedade que eles queriam estabelecer”. INTENÇÕES RELIGIOSAS – “É provável que o núcleo islamizado teria também um plano religioso. Mas não sabemos que tipo de islã seria estabelecido, se conviveria com outros grupos religiosos, se seria mais ortodoxo. Sei que os integrantes do núcleo dirigente se pensavam como futuros governantes da Bahia, o que seria uma revolução. Aí a gente já mudaria de nome. Mas eles não conseguiram adesão maciça aqui e só pouca do campo”. Vieram alguns escravos de Santo Amaro e havia o plano de tomada do Recôncavo. “A estratégia era explodir um núcleo, com esperança de mais adesões”, explicou João Reis. E os escravos aderiram. A revolta foi marcada para a alvorada do dia 25 de janeiro, porque cairia em um domingo, com festa para Nossa Senhora da Guia, no Bonfim. A polícia, como agora, estaria por lá, dando segurança. Os escravos domésticos e de ganho estariam nas ruas, veriam o movimento. A data também fechava o mês sagrado do Ramadã, na Festa da Noite do Destino. Na madrugada do dia 24 para 25 foi feita a abordagem. Como punição, quatro revoltosos foram fuzilados no Campo da Pólvora (onde ficava a Casa da Pólvora, mais tarde transferida para o Matatu), e por isso existe a proposta de aludir o nome da estação de metrô que está sendo construída hoje aos malês. “Tem um detalhe interessante: eles deveriam ser enforcados, mas ninguém se prontificou a ser o algoz com medo de retaliação. Aí, eles tiveram que ser fuzilados, um tipo de execução reservada aos homens livres”, observa João Reis. “Os malês eram nagôs, ou seja, de língua iorubá, os mesmos donos da cultura dos orixás. Vieram de parte da Nigéria, e um pouco da República do Benim. Esses que fizeram a revolta eram da Nigéria”, informa o autor de Rebelião escrava no Brasil: a história do Levante dos Malês (1835), agora reeditado pela Companhia das Letras. Depois disso, muitos libertos foram deportados. Outros, devido à perseguição policial, decidiram sair da Bahia “espontaneamente”. A repressão foi indiscriminada. ”Houve uma suspeição generalizada sobre a população africana, em especial sobre os libertos, que eram vistos como população perigosa”, conclui João Reis. EU TENHO UM SONHO... ❛ 10 “que o amanhecer será sem racismo, sem sexismo e sem homofobia. Eu tenho o sonho de que iremos viver numa sociedade em que todos serão respeitados, e o povo negro terá direito a professar a sua religiosidade de forma totalmente livre, de viver nos territórios que lhe pertencem. Enfim, eu tenho um sonho de viver em uma sociedade em que não se desrespeite o outro por sua cor, opção sexual ou religiosa“ | LUTAS DE ONTEM E SEMPRE | Vilma Reis, 38 anos | é socióloga, mestre em sociologia de relações raciais pela Ufba. É coordenadora-executiva do Ceafro, ativista do movimento de mulheres negras. O principal objetivo do Ceafro, fundado há 12 anos, é o enfrentamento de todas as formas de racismo e sexismo, buscando promover igualdade de oportunidades entre negros e não-negros e entre mulheres e homens. O Ceafro é um programa do Centro de Estudos AfroOrientais da Ufba (Ceao), que busca a aproximação entre a universidade e as comunidades negras. Suas ações são, essencialmente, voltadas para a educação e profissionalização. SALVADOR, TERÇA-FEIRA, 20/11/2007 MULHERES ❚ Com papel destacado nas rebeliões do período colonial, negras também tiveram atuação decisiva na economia Fiéis aos ideais de igualdade LÍLIA DE SOUZA [email protected] Zeferina desce acorrentada até a Praça da Sé. Sete de março de 1826. O motivo do infortúnio da negra: liderar o levante do Quilombo do Urubu, área que hoje corresponde às imediações do Parque São Bartolomeu até o Cabula. Apesar das sevícias, continuava altiva. – Quem é essa mulher que passa com cabeça erguida e todos a reverenciam? - indagava o intendente. – Sou Zeferina, nasci livre e estou aqui para libertar meu povo – retrucou a mulher. A socióloga Vilma Reis, coordenadora do Ceafro/Ufba, tem disposição para falar, por horas a fio, sobre as lutas das mulheres negras. A narrativa da saga de Zeferina, contada por Vilma, está no livro Rebelião escrava no Brasil – A história do Levante dos Malês em 1835, do historiador baiano João José Reis. Como tantos severinos na vida, zeferinas houve e existem aos montes, por mais que a história tradicional se esforce para tornar invisível o papel da mulher negra na formação do povo brasileiro. Quando lembradas por figurões do pensamento brasileiro, como Gilberto Freire, a elas são atribuídos qualificativos que reforçam a construção de uma identidade negativa. Não por acaso, o que Freire enxergou nas mulheres negras foi uma suposta lascívia, altamente provocante para os brancos no período colonial. Ou seja, pela ótica, as mais diversas formas de violências cometidas pelos senhores contra elas eram apenas conseqüências de tais traços, melhor dizendo, das ancas. Ora, ora... IDENTIDADE – Na contramão do preconceito e do estigma de objeto sexual, caminham inúmeras intelectuais negras que estudam sua própria história, no intuito de colocar a mulher negra no local que lhe é de direito. “Conseguimos construir uma identidade e uma auto-estima, apesar de toda a negatividade que deturpa a história de luta da mulher negra, esta mulher que inclusive constituiu a base para que as mulheres de classe média pudessem sair para trabalhar”, ressalta a educadora Ana Célia da Silva. “Num contexto totalmente adver- * As mulheres negras foram ativas nas lutas. Na contramão do preconceito, inúmeras intelectuais negras estudam sua história, para colocar a mulher negra no local que lhe é de direito. so, elas souberam desenvolver formas de sobrevivência e resistência e conseguiram conquistar determinados espaços”, relata a historiadora Cecília Moreira Soares, autora do livro Mulheres negras na Bahia do século XIX. A pesquisadora destaca que as mulheres negras desenvolviam o chamado “trabalho de ganho” e a comercialização de produtos essenciais às cidades, chegando a constituir até o monopólio da venda de peixe em Salvador. Circulando entre as cidades Alta e Baixa, elas também se dedicavam à venda dos mais diversos produtos e iguarias, comidas da culinária africana, utensílios, linhas, agulhas. Além disso, atuavam como lavadeiras, mães-de-leite, dentre outras atividades. Mesmo no jugo escravocrata, faziam resistência. A escrava no trabalho de ganho tinha que conseguir o dinheiro necessário para pagar ao seu proprietário o valor do acordo que permitia a ela atuar como ganhadeira, além do suficiente para se manter nas cidades, juntando também uma quantia para a compra de sua alforria e a de seus parentes. Quando libertas, informa a historiadora Cecília Moreira, elas precisavam buscar um núcleo para se manter nas cidades, ajudar na alforria de familiares e comprar bens, até mesmo outros escravos, preferindo adquirir escravas mulheres. “Durante todo o período escravista, as mulheres negras, com o seu trabalho, protagonizaram a compra de alforrias e a organização das famílias, sendo fundamentais para a estruturação da economia”, enfatiza Vilma Reis. Mulheres guerreiras de várias gerações nas artes e nas letras “É muito difícil citar um ícone, porque, quando você cita um, imediatamente lembra que tem milhares e milhares de mulheres nessa mesma luta”. A frase, da educadora Ana Célia da Silva, uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado na Bahia (MNU), sintetiza a tarefa inglória da repórter, que, em pouco espaço, precisa falar da luta de gerações de guerreiras. Mulheres, do passado e do presente, como Negra Tereza, liderança por mais de 20 anos do Quilombo de Quaritetê (MT); Laudelina de Campos Melo, fundadora da primeira Associação das Empregadas Domésticas (1936), em Santos; Clementina de Jesus, sambista; Ruth de Souza e Léa Garcia, atrizes do emblemático Teatro Experimental do Negro; dentre muitas outras, inspiram gerações de negras. Arany, primeira secretária da Reparação: “Luta insistente, teimosa” ACADEMIA – Mas se tem um pecado que a repórter, depois de todas as entrevistas feitas, jamais poderia cometer nestas linhas seria deixar de falar de uma personalidade ímpar da luta das mulheres negras no Brasil: Lélia Gonzalez (1935-1994). Mineira de Belo Horizonte, Lélia Gonzalez foi uma mulher que ascendeu de babá a professora universitária. Dona de trajetória ímpar, já no Rio de Janeiro, Lélia se engaja na luta contra o racismo, transformando-se em uma das principais referências do feminismo nas américas. No País e em inúmeras viagens ao exterior, Lélia denunciou o mito da democracia racial no Brasil. Ao longo da militância, foi fundadora do Movimento Negro Unificado (MNU); do Instituto de Pesquisas das Culturas Negras do Rio de Em diversos movimentos de resistência dos negros – dos quilombos às grandes revoltas, como a dos Malês (1835), em Salvador, ou a luta pela independência do País, consolidada na Bahia em 1823 –, há registros da participação destacada de mulheres negras, por mais que a história oficial as coloque sempre em papéis secundários. HEROÍNAS – Em Palmares, Dandara exerceu forte liderança. “Quando Domingos Jorge Velho invade Palmares, grande parte da resistência é constituída por mulheres”, frisa Vilma Reis. Vital para a independência, outra heroína negra foi Maria Felipa, de Itaparica. Contra o domínio português, comandou negros, índios, homens e mulheres na destruição de dezenas de embarcações aportadas na Praia do Convento para atacar Salvador. Quando se fala em resistência da mulher negra, outro nome que logo vem à baila é o de Luíza Mahin, da Revolta dos Malês. Mãe do poeta e abolicionista Luiz Gama, transformou sua casa em quartel-general. Se tem um espaço onde as mulheres negras no Brasil consegui- ram ocupar lugar proeminente foi nas religiões de matriz africana, como o candomblé, e também nas irmandades católicas. Estas últimas, fundamentais para o término da escravidão. CANDOMBLÉ – Em viagem a Salvador, percorrendo os candomblés na companhia do escritor Edison Carneiro, a etnóloga americana Ruth Landes percebeu um traço marcante nos candomblés: o papel dirigente das mulheres. As andanças originaram o clássico Cidade das mulheres. Referências marcantes na sociedade brasileira como Mãe Menininha do Gantois, mãe Aninha, mãe Ilda, mãe Estela e tantas outras ialorixás são mostras do papel especial que a mulher negra ocupa no culto aos orixás. Elas, no campo do sagrado, reeditaram no Brasil o poder que as mulheres tinham nas sociedades matriarcais africanas. “Nossa sobrevivência só foi possível graças à nossa capacidade de ter resistido na religiosidade”, considera Vilma Reis. “Nos candomblés, ser mulher religiosa significa ascender na comunidade e para além dela”, avalia Cecília. FOTOS LÚCIO TÁVORA | AG. A TARDE Janeiro (IPCN-RJ); do Nzinga Coletivo de Mulheres Negras; e do bloco afro Olodum, em Salvador. “Convivi com Lélia, que vinha dar cursos de formação política para muitos dos quadros do Movimento Negro na Bahia”, salienta a educadora Ana Célia da Silva. TEIMOSIA – “A luta das mulheres negras é uma luta insistente, teimosa, do dia-a-dia”, considera a primeira secretária da Reparação do País – pasta criada pela Prefeitura Municipal de Salvador em 2003 –, Arany Santana. “Infelizmente, se analisarmos os saldos, ainda não são tão grandes, principalmente em Salvador, a segunda maior cidade negra do mundo”, avalia Arany. Pesquisas do IBGE demonstram que as mulheres ganham menos que os homens, por mais especializadas que sejam. E a mulher negra é a maior vítima do desemprego ou subemprego. “Existem os últimos bastiões de reserva para determinados grupos que precisamos romper”, salienta a historiadora Cecília Moreira. Tais bastiões estão colocados, sobretudo, nos postos de poder. De Antonieta de Barros, primeira deputada estadual negra eleita por Santa Catarina, em 1934, a Benedita da Silva, primeira senadora negra (1994), pouco se alterou no quadro político brasileiro quanto à participação efetiva delas nos poderes da República. Na opinião de Arany Santana, ainda há muito a ser percorrido pelas mulheres em geral, mas sobretudo pelas negras. Os textos e poemas de Lélia Gonzalez precisarão estar cada vez mais vivos. Cecília é autora do livro “Mulheres negras na Bahia do século XIX” REJANE CARNEIRO | AG. A TARDE EU TENHO UM SONHO... SALVADOR, TERÇA-FEIRA, 20/11/2007 ❛ “de que nossos jovens possam se libertar de todos os vícios. Sonho que eles possam estar livres de todos os vícios que acabam aprisionando as suas mentes. Isso porque são estes obstáculos que os tornam menos negros. São estas barreiras que fazem também com que sejam menos orgulhosos de si próprios e fazem com que eles esqueçam as suas preciosas raízes e as belas histórias de luta pela liberdade do seu povo” | LUTAS DE ONTEM E SEMPRE | SOTEROPOLITANO ❚ Câmara fez cidadão de Salvador o mais versátil ativista negro O general Abdias CLEIDIANA RAMOS [email protected] Quando Palmares caiu, a maior preocupação dos seus algozes era provar que Zumbi estava morto, derrotado. Para tanto, exibiram partes do seu corpo em praça pública. Não deu certo, pois Zumbi já era mito e será espelho de resistência até o último dia em que o racismo persistir no Brasil. E é como soldado de Zumbi que o mais novo cidadão de Salvador, Abdias do Nascimento, 93 anos, se define: “Não poderia deixar de vir, mesmo me sentindo indisposto, pois sou soldado de Zumbi”, disse ao chegar para a cerimônia na Câma- ra, na última quarta-feira, quando também recebeu a Medalha Zumbi dos Palmares. Uma nomenclatura guerreira é mesmo a melhor definição para Abdias. Mas, para tanto que já fez, talvez a melhor patente seja a de general-em-chefe. Economista, artista plástico, escritor, poeta e dramaturgo utilizou de todas estas facetas para denunciar a persistência da desigualdade racial no Brasil. E, isto em tempos em que a “democracia das raças” era considerada o maior trunfo de construção da identidade dos brasileiros. Mas, Abdias, incansavelmente, levou à frente o grito de que a escravidão e seus malefícios conti- nuavam a negar cidadania a quem nasceu negro. Economista, tinha as armas acadêmicas para desmentir a democracia racial. Inquieto, militou na Frente Negra Brasileira (FNB), na década de 30, um período quente na política nacional. Artista plástico, escritor, poeta e dramaturgo fundou em 1944 o Teatro Experimental do Negro (TEN), num ato de ousadia. Como não poderia ser diferente se viu obrigado a deixar o país durante a ditadura militar. Ainda assim não parou. Sua voz ganhou então projeção internacional. De retorno ao Brasil foi um dos protagonistas do ato público de inauguração do Movimento Negro Unifica- do (MNU) em 1978, nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo. Incansável, foi combater também nas trincheiras do poder oficial: tornou-se deputado federal (1983-1986), titular da Secretaria Extraordinária de Defesa e Promoção das Populações Afro-Brasileiras (Seafro), do governo do Rio de Janeiro (1991-1994); senador da República (1991-1999) e voltou a atuar no governo do Rio de Janeiro como secretário de Direitos Humanos (1999-2000). Hoje, o corpo já dá os sinais de cansaço, mas nada pára a determinação de Abdias, característica própria dos herdeiros de Zumbi. Colaborou Vítor Rocha Estelita Alves Silva, 56 anos| é ialorixá e professora aposentada. É a coordenadora do Afoxé Ilê Oyá, criado há 29 anos. A associação desenvolve projetos para a juventude negra em diversas áreas, especialmente cultura e educação. São realizadas oficinas de aperfeiçoamento profissional com jovens, além de capoeira, dança, percussão e composição musical. O Afoxé Ilê Oyá também oferece cursos de profissionalização para adultos com formação em política e direitos humanos. Atualmente, a associação tem sido a principal gestora da festa de Santa Bárbara, em 4 de dezembro, no Mercado de Santa Bárbara. 11 ❛ ABMAEL SILVA | AG. A TARDE | 14.11.2007 “Agora sou um de vocês (cidadão de Salvador). Aqui é o quartel-general de toda esta luta” Homenagem incluiu também outorga da Medalha Zumbi dos Palmares ❛ “que cada cidadão se conscientize de que somos sujeitos e construtores da nossa história. Todos devem assumir a responsabilidade de mudança da nossa nação, dando um basta nas desigualdades sociais que tanto atormentam e só fazem aumentar. A transformação que esperamos para uma sociedade mais igualitária e justa, livre das amarras do preconceito e da discriminação racial depende de toda a população” | LUTAS DE ONTEM E SEMPRE | EDUCAÇÃO ❚ Sistema de cotas colocou o negro de escola pública na universidade; na Ufba, a avaliação sobre eles é igual ou superior à dos não-cotistas em 56% dos cursos Cotistas mostram bom desempenho ELÓI CORRÊA | AG. A TARDE | 12.8.2003 JURACY DOS ANJOS [email protected] Cinco anos se passaram desde a implantação do sistema de cotas na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) – pioneira no Brasil a adotar, por medida de lei estadual, a reserva de vagas para estudantes negros e oriundos de escola pública. A medida, apesar do tempo e de diversas discussões calorosas, ainda continua a gerar muita polêmica em todo o País. Prova disso é o embate entre os que acreditam que as cotas são a melhor maneira de incluir socialmente os negros na universidade e aqueles que vêem essa ação como paliativa e racista, porque divide a população entre brancos e negros e não significa a melhoria da educação pública. Qual das duas partes tem razão neste debate? Os a favor ou os contra as cotas? A resposta a esta pergunta talvez esteja longe de um consenso. Mas a legalização das cotas, não. Dois projetos de lei (Lei das Cotas e Estatuto da Igualdade Racial), em tramitação atualmente no Congresso Nacional, tentam a sanção das cotas em todas as universidades públicas. Mas os contrários a essa medida, como a antropóloga e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Yvonne Maggie, são radicais ao afirmar que a reserva de vagas para negros compromete o princípio de igualdade SALVADOR, TERÇA-FEIRA, 20/11/2007 Estudantes ocupam Reitoria da Ufba após reunião com reitor para pedir cotas para negros na universidade previsto na Constituição brasileira. “O Brasil optou por um caminho de separar legalmente a população entre brancos e negros, com a discussão destes dois projetos de lei. Estes projetos, se votados e aprovados, vão mudar o estatuto jurídico brasileiro. E isso é grave”, assegura Yvonne. Frei David dos Santos, diretor-executivo da ONG Educafro, refuta a opinião da professora. “O projeto de cotas e o Estatuto da Igualdade irão combater a separação que já está implantada no Brasil e que gera a exclusão. Esta separação oficial começou com a definição jurídica de que negros eram escravos dos brancos e não tinham direito à cidadania”. Segundo o ativista, a mais recente análise dos dados da Uerj, agrupando as informações desses cinco anos de cotas, revela que os alunos não-cotistas obtiveram média global de 6,37 pontos, enquanto os cotistas tiveram média de 6,51 pontos. Estudos feitos em 2006, pela Universidade Federal da Bahia (Ufba), para avaliar o desempenho dos estudantes cotistas, em diversos cursos, também revelam que os cotistas tiveram desempenho igual ou superior ao dos não-cotistas em 56% dos cursos. Nas graduações de alta concorrência, como as de Comunicação Social, por exemplo, 100% dos estudantes cotistas obtiveram coefi- ciente de rendimento entre 5,1 e 10 em todo ano de 2005, contra 88,9% dos não-cotistas. No curso de medicina, o mais concorrido, 93,3% dos cotistas apresentaram coeficiente de rendimento entre 5,1 e 10, contra 84,6% dos não-cotistas. Antes da implantação do sistema de cotas, a média geral de participação de estudantes de escola pública na Ufba era de 39,8%. Atualmente, aumentou para 48%, com variação a depender do curso. “Isso significa que os cotistas estão fazendo um grande esforço para ter um bom desempenho na universidade, e eles estão conseguindo”, destaca o pró-reitor de ensino de graduação da Ufba, Maerbal Marinho. “A medida não surgiu do nada” Luta anti-racista é política de governo CLEIDIANA RAMOS [email protected] Luiz Alberto é titular da recém-criada Sepromi, órgão do governo da Bahia. Já Matilde Ribeiro está à frente da Seppir, que tem status de ministério Segundo o coordenador do Projeto de Acompanhamento, Manutenção e Avaliação de Ações Afirmativas (AMA) da Uneb, Manoelito Damasceno, nestes cinco anos, foi possível verificar que a avaliação de desempenho dos cotistas é positiva, não há diferença entre o desempenho acadêmico de cotistas e não-cotistas. Quando questionado se com os bons resultados do sistema não seria a hora de acabar com a reserva de vagas, o coordenador é enfático: “Não. Isso depende do processo e de seus resultados. Se o efeito está sendo positivo, não tem por que mudar. A medida deve atender à realidade. Quando tivermos condições sociais igualitárias, as cotas irão, naturalmente, acabar”, comenta Damasceno. QUEM É NEGRO – Uma das principais polêmicas que envolvem o sistema de cotas, nas universidades que adotam a reserva de vagas para estudantes negros, é como determinar quem é ou não negro. Esta situação se agravou depois do caso dos irmãos gêmeos idênticos (univitelinos) Alex e Alan Teixeira da Cunha, 18 anos, que se inscreveram pelo sistema de cotas da Universidade de Brasília (UnB), em 2007. Um dos irmãos foi aceito no sistema, o outro, não. Tempos depois, após uma grande repercussão nacional, a universidade recuou na decisão e decidiu aceitá-los pelas cotas. Esse caso fez com que a UnB mudasse a seleção dos cotistas. Agora, os candidatos que se declararem negros ou pardos deverão ser submetidos a uma entrevista presencial. perfil MATHEUS MAGENTA | DIVULGAÇÃO Neumar Rosário, 20, estudante cotista com o melhor escore da Facom/Ufba ❚ O pai, Osmar, trabalha como gari e a mãe, Neusa, vende frutas e doces num pequeno comércio no Pernambués, bairro onde vivem. “Eu moro com meus pais, mas à noite fico na casa de minha avó. Eu não gosto da idéia dela dormir sozinha”. Além da companhia, Neumar ajuda nas contas da casa. Das duas casas. Testemunha de Jeová, o aspirante a jornalista começou a trabalhar como menor aprendiz no Centro de Recursos Ambientais (CRA), quando estava na 8ª série do ensino fundamental, e lá está até hoje. Foi a isenção da taxa do vestibular da Ufba que o motivou a fazer as provas. “Sem isso eu nem teria me inscrito”. Ele escolheu o curso de jornalismo por causa da afinidade com as matérias de humanas. Quando perguntado sobre o sistema de cotas, pelo qual ingressou na universidade, Neumar hesita. Ele balança seu tênis All Star bege, ajeita a manga da camisa de algodão com listras azuis, procura as palavras com um olhar distante. “Acho que as cotas não são a melhor solução para o problema do acesso à universidade, mas talvez funcionem como um início de um processo que tente equacionar melhor a educação”, diz. Neumar tem as melhores notas de sua turma ❚ Colaborou o repórter Matheus Magenta XANDO PEREIRA | AG. A TARDE | 9.11.2007 A TARDE | Como se deu a implantação das cotas na Bahia? IVETE SACRAMENTO | Em 2001, a Câmara dos Vereadores, por meio de uma indicação do vereador Valdenor Cardoso, hoje presidente da Câmara, enviou uma proposta, aprovada em plenário, à Secretaria Estadual da Educação, para que a Universidade Estadual da Bahia implantasse cotas para negros. IS | É um equívoco dizer que os candidatos cotistas seriam avaliados por meio de uma prova diferenciada. A prova é a mesma. É o mesmo sistema de avaliação. O que difere o cotista do não-cotista é que ele faz uma opção. E ao fazer a opção para ser cotista, ele tem que estar enquadrado em determinados critérios: ser estudante da rede pública e se declarar negro. AT | Quais foram as primeiras medidas para adotar as cotas? IS | Apoiar pré-vestibulares, na época só tinha o Steve Biko, que tivessem recorte racial. De que forma nós apoiamos essas iniciativas? Com a isenção da taxa do vestibular. A segunda medida foi estudar o vestibular em si para ver se na elaboração das provas nós estávamos beneficiando um ou outro segmento. Então verificamos, e isso não está restrito somente ao vestibular da Uneb, que o vestibular era elaborado pensando em quem tivesse cursado pré-vestibular. Em tese, era elaborado e privilegiava uma determinada classe social. Então, precisamos ter um nível democrático na elaboração do vestibular, e isso significava basear sua elaboração nas diretrizes de educação média do Estado. E foi o que fizemos a partir de então. AT | Mas a noção de ação afirmativa estava clara? IS | Naquele momento a noção de ação afirmativa e afrodescendência não estava em questão ainda no Brasil. Para se ter uma idéia, da abolição da escravatura à adoção das cotas, nenhuma ação afirmativa concreta tinha sido realizada para melhorar a qualidade de vida do povo negro do Brasil. Então, primeira contribuição que a adoção das cotas na Bahia favoreceu foi a discussão de quem é negro no Brasil. AT | Isso significava uma prova diferenciada para os estudantes cotistas? AT | Muitas pessoas desconhecem a história por trás das ações afirmativas. Como a senhora avalia isso? IS | O grande equívoco é pensar que esta medida surgiu do nada. Não. Esta medida é fruto do trabalho, especialmente do Movimento Negro Unificado, que vem discutindo, desde 1976, formas de se ampliar a participação do negro na economia e no desenvolvimento deste País. 13 defesa da igualdade, como resultado das grandes reivindicações dos movimentos negros rimeira mulher negra a assumir o cargo de reitora em uma universidade pública no Brasil, Ivete Sacramento foi decisiva para a adoção das cotas na Bahia. Longe da cadeira de reitora, mas não da universidade, continua a lutar pelo direito de acesso. Em entrevista a A TARDE, ela revelou o processo para implantação do sistema de cotas na Uneb. Além disso, enfatizou que o processo adotado para avaliar os estudantes cotistas, ao contrário do que muitos pensam, não se diferencia do adotado para os não-cotistas. Ela afirma que existe uma única prova para avaliar ambos e que o vestibular da Uneb toma como base a educação média dos candidatos. * | LUTAS DE ONTEM E SEMPRE | VITÓRIAS ❚ Ministério, secretarias estaduais e municipais estão adotando medidas em Ivete Sacramento | Ex-reitora da Universidade Estadual da Bahia (Uneb) QUEM É | Mestre em educação pela Université Du Quebec À Montréal (Canadá, 1990), Ivete Sacramento foi reitora da Uneb por três anos (2002-2005). Na função, foi uma das principais vozes a favor da criação das cotas na universidade pública. Neste ano, a professora teve seu trabalho em prol da educação inclusiva reconhecido pela Revista Cláudia, que a premiou na categoria políticas públicas. Ela foi a única baiana a concorrer ao prêmio. ❛ “de que as religiões de matrizes africanas sejam tratadas como as demais. Tenho o sonho de que possamos vivenciar, de fato, uma história de igualdade de direitos e de oportunidade, visto que este é um resgate necessário e que há muito nos devem. Tenho o sonho de ousar um dia dizer para cada criança negra deste País e deste mundo: todos vencemos. Somos, de fato, iguais. Nem mais, nem menos. Simétricos, assim como o Oxé de Xangô” Marcos Fábio Rezende Correia, 33 anos | é coordenador-geral do Coletivo de Entidades Negras (CEN), ogã confirmado para Ewá do terreiro Ilê Axé Oxumarê e historiador. O CEN foi criado há dois anos. É formado por diversas organizações, como blocos de Carnaval, terreiros de candomblé, associações de bairro, dentre outras. Juntamente com outras entidades do movimento negro, o CEN participa da Coordenação Executiva do Congresso Nacional de Negros e Negras do Brasil. O principal objetivo deste organismo é a busca conjunta de medidas para a construção de um projeto político mais inclusivo para o Brasil. FERNANDO AMORIM | AG. A TARDE | 18.12.2006 P Uneb tem 6,5 mil alunos nas cotas Neste ano, o sistema de cotas na Uneb (Universidade do Estado da Bahia) completou cinco anos, com as primeiras turmas de formados. Segunda universidade no Brasil a adotar o sistema de cotas, a Uneb, em 2002, determinou que 40% das vagas do vestibular fossem reservadas para negros de escolas públicas. Apesar das duras críticas que recebeu no início, sendo acusada de criar um processo racista de seleção, a Uneb tem números grandiosos de inclusão: dos 16 mil estudantes da universidade, 6.500 são cotistas. SALVADOR, TERÇA-FEIRA, 20/11/2007 ELÓI CORRÊA | AG. A TARDE | 24.11.2006 12 EU TENHO UM SONHO... REJANE CARNEIRO | AG. A TARDE REJANE CARNEIRO | AG. A TARDE EU TENHO UM SONHO... Sirlene Vanessa de Souza Assis, 24 anos| é educadora popular e membro da União de Negros pela Igualdade (Unegro). Há sete anos, trabalha com formação política e humana de 30 jovens carentes do bairro de Paripe, com idades entre 12 e 16 anos, na Escola Comunitária Nossa Senhora Medianeira, em Paripe. A formação teve início ainda no bairro de origem, Uruguai, onde fazia parte do Movimento de Adolescentes em Busca de Liberdade de Expressão. Acreditando na educação como mecanismo de transformação, após concluir o curso de magistério, passou a atuar em sua comunidade a partir da identidade cultural. Em 2003, o governo federal ganhou o seu primeiro organismo voltado especificamente para tratar do enfrentamento da desigualdade racial: a Secretaria Especial de Políticas para a Promoção da Igualdade Racial (Seppir), que tem status de ministério. No mesmo ano, foi criada em Salvador a Secretaria Municipal da Reparação (Semur). Há sete meses, o governo estadual baiano ganhou um órgão parecido, que é a Secretaria de Promoção da Igualdade (Sepromi). A criação destes organismos dentro do aparelho do Estado é considerada um grande avanço. “A nossa batalha é para que a Sepromi alcance o seu principal objetivo que é o de traçar as políticas anti-racistas fazendo a articulação entre as secretarias do governo”, destaca o secretário estadual de Políticas da Igualdade, Luiz Alberto Silva dos Santos. Conhecido por sua atuação parlamentar, Luiz Alberto agora está assumindo o desafio de uma função executiva. Ele relata que os primeiros meses foram para arrumar a casa, mas sem perder a direção de encaminhar diversas ações. “Nós passamos a ser a referência de demandas das comunidades negras. Mas o nosso desafio é também o de fazer com que as outras secretarias encaminhem as políticas das suas áreas para estas comunidades”, completa. A Sepromi também tem a função de cuidar das políticas direcionadas a indígenas e mulheres. A ministra Matilde Ribeiro, titular da Seppir, destaca as estratégias do órgão para reforçar suas ações. “A Seppir estabeleceu como prioridades as políticas de quilombos, educação, trabalho e emprego, cultura, saúde, relações internacionais, capacitação de gestores para operar políticas de igualdade racial e segurança pública”. De acordo com ela, o mito da democracia racial ainda é um dos mais sérios obstáculos a ser vencido. “A ação do mito da democracia racial é um fator que impede a total compreensão da situação de privilégio que beneficiou o grupo hegemônico não-negro cujos resquícios percebemos até hoje”, ressalta Matilde Ribeiro. Por outro lado, aparecem as primeiras mudanças em relação ao enfrentamento do racismo. “O Brasil de hoje discute o racismo e a discriminação racial e, até pouco tempo atrás, esse era um assunto que não estava na agenda nacional. Escolas, instituições públicas e privadas, imprensa e estudiosos incorporaram o Dia Nacional da Consciência Negra”, avalia a ministra. CONQUISTAS – Ela destaca que o papel do Estado brasileiro, inclusive previsto na Constituição, é assegurar igualdade para todos os brasileiros. “Como existe uma situação de disparidade entre os grupos étnico-raciais, é nosso dever promover políticas públicas que propiciem a inclusão. Nesse sentido, as políticas de ações afirmativas se configuram como instrumentos para promover a participação da população negra, maioria expressiva no país”, diz a ministra. Ela afirma que a criação da Seppir é uma demonstração da maior visibilidade da ação dos movimentos negros organizados. De certa forma, esta é mais uma conquista das suas reivindicações. “A criação da Seppir é uma resposta do governo federal a uma reivindicação histórica, que é a exclusão da população negra. A partir de ações como a do governo federal, muitos governos estaduais e municipais tem implementado políticas de promoção da igualdade racial e isto não é apenas resultado da Seppir, mas de anos de lutas de muitas pessoas que, em suas cidades, em seus sindicatos, escolas e outros espaços reivindicatórios estampam as necessidades da população negra local”, acrescenta. AÇÕES –Dentre os principais projetos da instituição, a ministra destaca as ações da Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial. O órgão tem priorizado saúde, qualidade de vida e segurança alimentar e nutricional; educação; cultura e diversidade; desenvolvimento, trabalho e renda; acesso à terra, habitação de qualidade e infra-estrutura; democracia, cidadania e participação social; segurança pública, direitos humanos e mediação de conflitos; informação, pesquisas e diagnósticos; e relações internacionais. SALVADOR – A Secretaria Municipal da Reparação (Semur), órgão da Prefeitura de Salvador, foi instalada em 18 de dezembro de 2003. A sua primeira titular foi Arany Santana, sucedida por Gilmar Santiago. A atual ocupante do cargo é Antônia dos Santos Garcia. Para o sub-secretário da Semur, Antonio Cosme Lima da Silva, a criação da secretaria foi uma grande vitória da comunidade negra. “Embora existam críticas sobre as questões relacionadas à estrutura e orçamento, há unanimidade sobre o reconhecimento da sua importância”, completa. Ele destaca como principais ações da Semur, o Programa de Combate ao Racismo Institucional (PCRI), que envolve outros órgãos da administração municipal, o Grupo de Trabalho de Saúde da População Negra, o Observatório Racial do Carnaval e o Mapeamento dos Terreiros de Candomblé. Almiro Sena Soares Filho, 40 anos | é promotor de justiça e titular da Promotoria de Justiça de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa do Ministério Público da Bahia (MP). A promotoria, que é pioneira no Brasil, foi criada em 1997. O órgão surgiu por meio da reivindicação dos movimentos negros organizados, diante do alto número de casos envolvendo racismo e intolerância religiosa que vinham ocorrendo em Salvador. O primeiro titular da promotoria, que se tornou um referencial na defesa dos direitos da comunidade negra, foi o atual procurador-chefe do MP, Lidivaldo Reaiche Raimundo Britto. REJANE CARNEIRO | AG. A TARDE EU TENHO UM SONHO... 14 ❛ “de que um dia a Associação Comercial da Bahia, as grandes empresas da construção civil, os partidos políticos, as academias de letras e as mesas diretores dos ‘clubes fechados’ da alta burguesia baiana congregarão entre seus integrantes os negros e negras em conformidade proporcional com a população multiétnica da Bahia. Eles deixarão de obedecer a essa proporção apenas quando se trata da violação de direitos“ | LUTAS DE ONTEM E SEMPRE | SALVADOR, TERÇA-FEIRA, 20/11/2007 TERRA ❚ Comunidades remanescentes quilombolas lutam para ver reconhecido seu direito à propriedade. Decreto gerou polêmica Brasil possui novos Palmares LUIZ TITO | AG. A TARDE As novas gerações convivem com problemas antigos, como falta de água potável e de boas estradas para escoamento da produção. Cerca de 500 famílias vivem na comunidade situada na região de Bom Jesus da Lapa CLEIDIANA RAMOS [email protected] Em 20 de novembro de 2003, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou o Decreto nº 4.887. O documento veio para regulamentar os procedimentos para a titulação das terras remanescentes de quilombos. Segundo dados da Secretaria Especial de Políticas para a Promoção da Igualdade Racial (Seppir), até agora, existem pouco mais de 3.500 áreas deste tipo identificadas, mas apenas 600 processos de regularização. Na Bahia, também de acordo com a Seppir, apenas quatro áreas de quilombo estão tituladas pelo Incra, ou seja, completaram todo o processo. Uma das inovações que o decreto trouxe foi o auto-reconhecimento. Ele considera remanescentes de comunidades quilombolas os grupos étnico-raciais que se autodefinam como tais. Mas para isto é necessário ter trajetória histórica, relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra e história de resistência. O partido Democratas (DEM) há três anos, quando ainda se chamava Partido da Frente Liberal (PFL) entrou com uma ação direta de inconstitucionalidade (Adin) contra a medida. “O decreto não pode regulamentar um dispositivo constitucional”, diz o advogado Ademar Gonzaga, contratado pelo DEM para ingressar com a ação. Já a subsecretária de Políticas para as Comunidades Tradicionais da Seppir, Givânia Maria da Silva, afirma que o decreto só veio cumprir o que manda a Constituição. “A questão da concentração de terras no Brasil sempre provocou polêmica por parte dos setores que concentram a posse”, destaca. O secretário estadual de Políticas de Promoção da Igualade Racial, Luiz Alberto Silva, faz avaliação semelhante. “O Brasil vive um momento em que há uma grande valorização da terra com a questão do investimento em biocombustível, por exemplo, o que abre espaço para a tensão”. Como deputado federal, Luiz Alberto foi relator do projeto de lei que tentou regulamentar o Art. 68 das Disposições Transitórias da Constituição Federal. Aprovado por deputados e senadores, o projeto foi vetado pelo presidente Fernando Henrique em 2002. Parte do que estava no projeto acabou se tornando o Decreto 4.887/03. Para Valdélio Santos Silva, doutorando em Estudos Étnicos e Africanos, com uma pesquisa sobre quilombos da região do médio São Francisco no oeste da Bahia, falta maior conhecimento dos brasileiros sobre os quilombos. “Existem idéias correntes incompatíveis com a própria história do Brasil”. Ele cita, por exemplo, a versão de que todos os quilombos foram identificados e destruídos pelo poder oficial brasileiro. “Existia uma multiplicidade de estratégias para se buscar viver em liberdade. Uns optavam pela organização em locais próximos às vilas e cidades. Outros se organizavam na vida rural. Não daria jamais para que o poder oficial derrotasse todas elas“, acrescenta. Após a abolição, o Estado brasileiro não deu respostas a estas comunidades, que continuaram tocando as suas vidas. “Elas continuaram no meio rural sem que o Estado as reconhecessem”, diz. * Segundo o inciso 1º do Art. 2º do Decreto nº 4887/2003, a caracterização da comunidade quilombola é atestada pela autodefinição da própria comunidade. Já o Inciso 2º do artigo de mesmo número diz que são terras quilombolas as usadas pelas comunidades com estas características para fins sociais, econômicos e culturais. Rio das Rãs foi primeira área de quilombo oficializada na Bahia MIRIAM HERMES | SUCURSAL BARREIRAS [email protected] A 60 km da cidade de Bom Jesus da Lapa, na margem direita do Rio São Francisco, o território remanescente de quilombo Rio das Rãs – no município conhecido pela gruta do Bom Jesus e que recebe milhares de romeiros todos os anos, a 840 km de Salvador –, foi o primeiro a receber a imissão de posse na Bahia, em 1999. Mesmo sendo considerado uma referência na luta pela terra dos descendentes de escravos no Brasil, o território de 37 mil hectares e composto de oito comunidades, ainda enfrenta problemas, como falta de água. Membro da Coordenação Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), Simplício Arcanjo, 46 anos, diz que na região do médio São Francisco há 13 comunidades na luta pela regularização. “A única forma dos processos de reconhecimento avançarem é através da união e perseverança das pessoas que estão envolvidas nos projetos”, completa. As 500 famílias da comunidade quilombola moram em casas de alvenaria construídas pelo Incra e têm energia elétrica do Programa Luz para Todos. Grande parte das casas tem aparelhos de rádio e televisão (via satélite). Os povoados têm orelhões e sinal de duas operadoras de celular. Apesar de a estrada até a sede do município estar em péssimo estado de trafegabilidade, há uma linha regular de ônibus, que trafega de segunda a sábado. ARTIGO ❚ Os organismos de promoção da igualdade racial ANTONIO COSME LIMA DA SILVA * A resistência negra sempre existiu em nosso país, o povo negro brasileiro sempre lutou contra a violência e a lógica da “epidermização” das nossas relações sociais. O movimento negro contemporâneo, desde a Frente Negra Brasileira e, sobretudo, nos últimos 30 anos, após o surgimento do Ilê Aiyê e do Movimento Negro Unificado – MNU, conseguiu questionar e desmontar o mito da democracia racial que apresentava o Brasil como um modelo de democracia racial a ser seguido. As conquistas do movimento negro na contemporaneidade não se restringem apenas ao desmonte da ideologia da democracia racial. No plano institucional, levaram o Estado a reconhecer o racismo e o machismo, como ideologias estruturantes das desigualdades raciais e de gênero. Depois da III Conferência Internacional contra o Racismo em Durban, 2001, após decisiva participação do movimento negro brasileiro naquele evento, o tema das Políticas de Ações Afirmativas entrou definitivamente na pauta dos grandes temas a serem debatidos no Brasil. Em nível nacional, foi criada, no início do ano de 2003, a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial – Seppir, e em 18 de dezembro daquele mesmo ano, a Secretaria Municipal da Reparação – Semur, em Salvador. Agora em 2007, no âmbito estadual, surgiu a Secretaria de Promoção da Igualdade – Sepromi. A Semur é resultado de uma conquista da população da mais importante cidade de cultura negra da diáspora. Embora existam criticas por parte do movimento negro quanto à sua estrutura e limitação orçamentária, há quase uma unanimidade no reconhecimento da sua importância. Nos últimos anos, importantes ações e projetos foram implantados pela Semur, dentre os quais o Programa de Combate ao Racismo Institucional – PCRI que, definitivamente, ampliou o debate sobre o racismo presente nas organizações e, em especial, nas administrações públicas nas suas três esferas. O Grupo de Trabalho de Saúde da População Negra, o Observatório Racial do carnaval, a implementação da Lei 10.639/03, que torna obrigatória a inclusão das africanidades nos currículos e o Mapeamento do Terreiros de Candomblés de Salvador são algumas das ações que destaco nesses três últimos anos, em articulação com outras secretarias, embora, nesse período, tenhamos enfrentado muitos obstáculos para viabilização de várias importantes ações. No que diz respeito à tentativa de reparar o descaso e abandono com as religiões de matrizes africanas, está em curso um projeto que tem como objetivo efetuar pequenas intervenções de melhorias físicas em 55 comunidades de terreiros em diversos bairros da cidade, sendo a questão fundiária o grande entrave para a concretização deste projeto. Para resolver o impasse, nesse “novembro negro”, o prefeito João Henrique, à luz da Lei Municipal 7.216/2007, baixou o decreto 17.709/2007 reconhecendo as comunidades como Patrimônio Histórico e Cultural de Origem Afro-brasileira de Salvador, ao tempo que criou o Cadastro Geral das Comunidades Religiosas de Referência da Cultura Afro-brasileira da Cidade de Salvador. Diversas outras importantes ações foram desenvolvidas pela Semur, no entanto, elas ainda estão longe de resolver os sérios problemas enfrentados pelos negros e negras de nossa cidade. Acredito que só com determinação, orçamento e vontade política das administrações, aliadas a uma ação conjunta entre a Seppir, Sepromi e a Semur poderemos, a médio e longo prazo, articular políticas estaduais e municipais que de fato promovam a tão sonhada igualdade racial em nosso País. Antonio Cosme Lima da Silva é subsecretário municipal da Reparação. REJANE CARNEIRO | AG. A TARDE EU TENHO UM SONHO... | LUTAS DE ONTEM E SEMPRE | SALVADOR, TERÇA-FEIRA, 20/11/2007 MARGARIDA NEIDE | AG. A TARDE | 10.2.2007 ❛ “que a cor da pele não será mais vista como passaporte para privilégios ou como fator de segregação. Sonho com o dia em que a polícia tratará de maneira cordial todo cidadão negro, especialmente os jovens rastas e os que exibem o cabelo black power, dando-lhes segurança da mesma maneira que é dada a um cidadão branco de qualquer lugar deste País. Nesse dia, todos vivenciarão o princípio da igualdade e celebrarão a diversidade“ Olívia Santana, 42 anos | é vereadora (PCdoB) e membro da coordenação nacional da União de Negros pela Igualdade (Unegro). Ainda na universidade, em 1987, ajudou a fundar a Juventude Negra, na Ufba, para discutir o racismo. Em 1988, contribuiu para a criação da Unegro e, em 1992, formou-se em pedagogia. Foi secretária municipal de Educação e Cultura, em 2005, e é ativista na luta contra o racismo e as desigualdades sociais e de gênero. Como vereadora, criou o Dia Municipal de Combate à intolerância Religiosa e a Medalha Zumbi dos Palmares, agora honrarias da Câmara Municipal. XANDO P. | AG. A TARDE | 17.2.2007 HAROLDO ABRANTES | AG. A TARDE | 22.9.2007 15 IRACEMA CHEQUER | AG. A TARDE | 21.7.2007 MARCO AURÉLIO MARTINS | AG. A TARDE | 17.2.2007 MUDANÇA ❚ Com o slogan “negro é lindo”, blocos afros fizeram sua revolução JOA SOUZA | AG. A TARDE| 19.2.2007 MARCO AURÉLIO MARTINS | AG. A TARDE | 17.2.2007 [email protected] Quando se acredita em algo, convencer é bem mais fácil. A pele e olhos pretos, o cabelo duro, os lábios grossos e o nariz achatado são também belos. Por que não? A afirmação da identidade negra através de um novo conceito de estética veio provar que a linguagem subjetiva, sem discursos inflamados, também tem forte impacto. Em Salvador, o marco de uma nova atitude começou pelo viés cultural com o primeiro bloco afro do Brasil: o Ilê Aiyê, em 1974. A partir daí outros surgiram com a proposta de reforçar a identidade: Olodum e Malê Debalê, em 1979, Muzenza em 1981, dentre outros. A idéia vanguardista partiu de um grupo de amigos que se encontrava em festas no Engenho Velho da Federação e no Garcia. O clima era de tensão com a ditadura militar. Os movimentos que fossem de encontro aos padrões impostos eram reprimidos. No primeiro ano, em 1975, o Ilê Aiyê saiu com 100 integrantes. “O Brasil esperava um grito de liberdade partindo da Bahia. Mas muitas famílias proibiram os jovens de saírem”, lembra o presidente do Ilê Aiyê, Antônio Carlos Vovô. No segundo ano já eram 700 associados e hoje são cerca de três mil. No primeiro desfile não havia padronização e os tecidos foram comprados no comércio próximo, aos poucos. Parte dos instrumentos era emprestada. Só o timbau é que era de Vovô. A falta de estrutura fez a preparação durar o dia inteiro. Já na avenida, o carro de som improvisado deixou os integrantes na mão e o jeito foi bater palmas e cantar mais alto. A ousadia na imponência dos cabelos, roupas e postura dos negros e negras alertava para a mudança. “Não era fantasia de carnaval. Era uma cultura se tornando visível, afirmando sua existência e , por isso, alcançando respeito”, explica Rita Maia, autora da dissertação Cor, Cosmética e Estilo: os discursos da beleza negra na Bahia contemporânea. Na época, boa parte da população negra de Salvador evitava o que pudesse ressaltar sua expressão, não revelava sua religião e suprimia sua identidade. “Os negros não usavam cores fortes em roupas, maquiagem e as meninas, a partir dos 14 anos, alisavam os cabelos. Depois do primeiro concurso da Beleza Negra no Clube Comercial em 1980, o novo padrão se consolidou”, acredita Vovô. Para o diretor cultural do Olodum, Nelson Mendes, a leitura pode ser política. “O espaço social é entendido como afirmação que era negado. O negro não se via representado e tinha a idéia de inferiorização”. Acabar com o mito do padrão de beleza européia exigiu coragem. Invadir o circuito com panos coloridos amarrados ao corpo e na cabeça, aliados ao toque ijexá, mudou o ritmo da festa. A partir daí, homens e mulheres negros passaram a mostrar no cotidiano uma beleza oriunda daquilo que realmente são. MARGARIDA NEIDE | AG. A TARDE| 10.2.2007 A ousadia de dançar no passo marcado pelo gingado dos ombros e pé no chão pelas ruas da cidade, proibido na época como prática do candomblé, fez a população tirar o véu do rosto . “Toda essa reação faz parte de um movimento diaspórico. É a reverberação de outras mobilizações pelo mundo. No contexto, a cultura está sempre presente na conquista dos espaços sociais, se impõe e não tem fronteiras”, explica o antropólogo Antônio Godi. Segundo o professor e escritor, Jônatas Conceição, o histórico de repressão aos grupos que pegaram em armas fez o movimento negro optar por outro tipo de enfrentamento. “A conscientização pela identidade cultural foi a forma mais inteligente. Ainda não é o ideal, mas é alentador ver, após algumas décadas, as pessoas se interessarem mais pela sua história e alguns negros na política. O poder nessa área é essencial para implantação de políticas públicas em prol da causa”. Enquanto o desejo não se concretiza, a beleza é fato. MARCO AURÉLIO MARTINS | AG. A TARDE| 17.2.2007 MEIRE OLIVEIRA HAROLDO ABRANTES | AG. A TARDE| 22.9.2007 Afirmação da cor através da estética MARCO AURÉLIO MARTINS | AG. A TARDE | 17.2.2007 As vestes, a maquiagem e demais acessórios utilizados durante os dias de festa no Carnaval foram adaptados à rotina da população negra, tornando mais forte a afirmação da herança africana na capital da Bahia ARTIGO ❚ Zumbi é senhor dos caminhos JÔNATAS CONCEIÇÃO* Na história dos movimentos negros contemporâneos, os anos 70 sacudiram a inércia imposta pela ditadura militar à questão racial brasileira. Com Zumbi na frente, atrás e em todos os lados, negros e negras retomaram a sua história de luta por liberdade, contra o racismo e por poder. Esta retomada na Bahia tem como marco principal a fundação do Ilê Aiyê, em 1974. Mas, é bom que nos lembremos, antes, em 1972, o poeta gaúcho Oliveira Silveira começa a pesquisar e a escrever o seu antológico texto de feição épica Poema sobre Palmares. Recuando mais um pouco, vamos chegar a 1960. Foi nesse ano, que o samba enredo Quilombo dos Palmares, dos compositores Noel Rosa de Oliveira e Anescar Rodrigues, foi o grande vencedor do Grêmio Recreativo Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro. Este mesmo samba enredo também foi decisivo para o primeiro campeonato do Salgueiro, fundado em 1953. A se pensar na descaracterização, como fato cultural de negro, que o carnaval das escolas de samba do Rio de Janeiro sofreu, sem nostalgia, deve ter sido fascinante se cantar/ouvir, pela primeira vez, na avenida, esta história: “Esses revoltosos / Ansiosos pela liberdade / Nos arraiais dos Palmares / Buscavam tranqüilidade. / Surgiu nessa história um protetor. / Zumbi, o divino imperador / Resistiu com seus guerreiros em sua tróia, / Muitos anos, ao furor dos opressores, /Ao qual os negros refugiados / Rendiam respeito e louvor”. Devemos reconhecer a potencialidade e produtividade da música popular brasileira. Isso porque, em 1976, ainda nas trevas da ditadura militar, quando a história das populações afro-brasileiras era proibida de ser contada, ou era narrada apenas nos moldes que interessavam ao projeto hegemônico branco de manter os afrodescendentes em posições subalternas, Jorge Ben Jor e o Ilê Aiyê reescrevem a saga palmarina. A música “Zumbi”, do LP África-Brasil, de Jorge, chegou num momento em que recomeçavam os debates, a partir da reorganização do movimento negro, sobre a questão identitária negra no país. Ben Jor, salgueirense da gema, com outras informações históricas, nos apresenta uma visão mais próxima dos fatos reais ocorridos no quilombo. Ele resgata, também, uma história e um exemplo de luta guerreira que serviram como modelo para organizações negras brasileiras desde o período pós-abolição. Foi com um balanço pop-rock incomparável que o compositor falou: “Eu quero ver / Quando Zumbi chegar / O que vai acontecer / Zumbi é senhor das guerras / Senhor das demandas / Quando Zumbi chega / É Zumbi quem manda”. Ainda no século passado, em 1976, dois anos após a fundação do Ilê Aiyê, os compositores Ary e Evilásio compõem para o bloco “Sonho dos Palmares”, registrada no LP de 1984, pelo cantor e compositor César Maravilha. Nesta singular crônica da guerra palmarina, os compositores dizem: “Saudando o sonho dos Palmares / Ilê Aiyê se revelou”. Ora, revelar-se para o mundo opressivo e racista baiano, saudando Palmares, associa o bloco a um símbolo de resistência de maior significado para a população afro-descendente. Mas, será que valeu a pena, em quase quarenta anos de luta negra contemporânea por um Brasil democrático e inclusivo, cantar e falar de Ganga Zumba, Acotirene, Dandara, Zumbi e tantos outros guerreiros e guerreiras de Palmares? Valeu. Mesmo que o cantor e compositor Guiguio, que compôs com Caj Carlão versos como “Se a minha diferença lhe prejudicar / Vá reclamar com aquele que fez você”, tenha sido, covardemente, agredido por agentes públicos da Polícia Militar racista do Estado. E que a cantora Daniela Mercury tenha desrespeitado as mulheres negras, e a toda nossa população, ao sair no carnaval deste ano de “nega maluca”. Os dois fatos são sinais inequívocos de que não devemos baixar a guarda. * Jônatas Conceição é professor, escritor e diretor do Ilê Aiyê. Autor de Vozes Quilombolas – Uma Poética Brasileira, 2005. Deise Queiroz, 26 anos | é estudante de ciências sociais na Universidade Federal da Bahia (Ufba), diretora nacional de políticas para a juventude do Coletivo de Entidades Negras (CEN) e coordenadora de projetos do Diáspora. O Diáspora é formado por estudantes negros da Ufba, onde começou. Hoje também está atuando na Universidade Católica do Salvador (Ucsal) e Universidade do Estado da Bahia (Uneb). Mas o Diáspora já integra também em suas atividades estudantes secundaristas. Uma das principais bandeiras do grupo é criar um link entre o saber acadêmico e o saber negro popular. REJANE CARNEIRO | AG. A TARDE EU TENHO UM SONHO... 16 ❛ “que quando eu ligue a televisão pela manhã, não serei bombardeada pela exclusiva presença de mulheres louras apresentando programas infantis. Que quando chegue na escola aprenda sobre a história dos nossos antepassados negros e indígenas durante todo o ano e que as igrejas evangélicas em suas reuniões falem sobre o amor e o respeito e deixem nossos elementos sagrados para serem tratados por nós mesmos” | LUTAS DE ONTEM E SEMPRE | SALVADOR, TERÇA-FEIRA, 20/11/2007 CELEBRAÇÃO ❚ Vasta programação cultural e religiosa, além de caminhadas, marcam a passagem do novembro negro em Salvador Festa segue até o fim do mês HAROLDO ABRANTES | AG. A TARDE | 19.11.2006 DA REDAÇÃO Hoje, a partir das 15 horas, acontece a 28ª Marcha Zumbi das Palmares. A saída é do Campo Grande e o roteiro se encerra no Terreiro de Jesus. A caminhada é organizada pela Coordenação Nacional de Entidades Negras (Conen). “Nosso lema este ano é Extermínio Não. Vida, Terra, Moradia e Emprego Sim”, informa o coordenador da Conen, Gilberto Leal. Do Curuzu em direção ao Pelourinho, parte, às 16 horas, outra caminhada, organizada pelo Fórum de Entidades Negras. Denominada 7ª Caminhada da Liberdade, tem como tema “O Po- vo Negro no Poder. Reparação Já!” e vai congregar blocos afro, entidades sociais, grupos culturais, dentre outras associações. Dando prosseguimento à comemoração, no próximo dia 25, acontece a “III Caminhada do Povo-de Santo”, realizada pelo Coletivo de Entidades Negras (CEN). O principal objetivo de mobilização é o protesto contra a intolerância religiosa. O ponto de partida, às 9 horas, é o final de linha do Engenho Velho da Federação, onde fica o busto de Mãe Runhó. De lá a marcha segue para o Dique do Tororó. Um show encerrará a caminhada com a presença de artistas. As secretarias estaduais de Pro- moção da Igualdade e da Cultura e a municipal da Reparação realizam uma série de atividades. O foco principal é o fortalecimento da batalha travada pelas comunidades quilombolas para garantir as terras que foram herdadas de seus antepassados. Povo-de-santo vai abraçar Dique do Tororó pedindo paz e respeito MAIS ATIVIDADES-Amanhã, às 15 horas, na Biblioteca Pública, Barris, Arany Santana apresenta a palestra Quem foi Zumbi dos Palmares. Arany é educadora e diretora do bloco afro Ilê Aiyê, e foi a primeira a assumir a Secretaria da Reparação de Salvador. Na próxima sexta-feira, acontece o “Colóquio Milton Santos - Educação, Comunicação e Globalitarismo”. As atividades serão a partir das 8 horas, sediadas entre o Instituto Anísio Teixeira (IAT) e a Faculdade de Comunicação da Ufba. Semur e Sebrae assinam termo de cooperação para o mapeamento dos empresários e empreendedores afrodescendentes no dia 27, às 14 horas, no auditório do Sebrae, nas Mercês. O site do mapeamento dos terreiros de candomblé, com os resultados da pesquisa realizada em parceria entre a Semur e o Centro de Estudos Afro-Orientais da Ufba (Ceao-Ufba), acontece no próximo dia 28. O lançamento será na Praça Municipal, às 18h30.