20/11/2007 1a W_EPAESPECIAL_001 - A TARDE

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20/11/2007 1a W_EPAESPECIAL_001 - A TARDE
2 0
D E
N O V E M B R O
D E
2 0 0 7
SALVADOR | BAHIA
ESPECIAL
Minha certeza-flecha seta, reta
direção da liberdade nossa razão
concreta terra preta longe muito
da opressão nunca dissemos
“adeus” à África em nossas
mentes e de memória fresca
replantamos suas lições
no estreito e vasto chão do agora,
e do possível quilombo é o sol
que se avista um sonho acordado
um ponto de vista onde foram dar
as mãos após varrerem brenhas
se achando em qualquer caminho
se atando às guerras e seus
espinhos enraizando falanges em
pedaços de sonho e esperança
Landê Onawalê, poema do livro “O VENTO”, edição do autor, Salvador, 2003
D I A
D A
C O N S C I Ê N C I A
N E G R A
REJANE CARNEIRO | AG. A TARDE
MNU FESTEJA 30
ANOS DE LUTA
ANTI-RACISMO
EM 2008
PÁGINAS 3 E 4
COTAS SEGUEM
FIRMES APESAR
DAS GRANDES
POLÊMICAS
PÁGINA 12
NARRATIVAS DA
DETERMINAÇÃO
FEMININA PARA
A LUTA
PÁGINA10
3
Nasce o
Movimento
Negro
Unificado
4
Bahia se
destaca na
luta
anti-racismo
5
Zumbi: o
herói vive
eternidade
do mito
6
O sonho de
liberdade da
Revolta dos
Búzios
7
Histórias de
um Estado
negro
independente
8
Uma
rebelião em
versos de
cordel
9
Malês
uniram
política e
religião
ÍNDICE
10 11
A força
feminina na
caminhada
por direitos
Abdias
preserva a
força dos
guerreiros
12 13 14 15 16
As polêmicas
e conquistas
das cotas na
universidade
Combate à
desigualdade
vira política
de Estado
Quilombolas
vivem de
vencer
desafios
A beleza dos
blocos afro
revolucionou
a estética
| LUTAS DE ONTEM E SEMPRE |
2
Agenda de
atividades
até o final
deste mês
SALVADOR, TERÇA-FEIRA, 20/11/2007
ARQUIVO | AG. A TARDE
EDITORIAL
Histórias de
sonhos capazes de
mudar o mundo
Ainda não existia fotografia ou câmera de vídeo. Talvez por isto
o horror da travessia oceânica nos chamados navios negreiros
não se configure numa imagem que venha facilmente à memória dos brasileiros. Se a história oficial e os interesses políticos e econômicos preferiram pintar com as cores da “harmonia entre raças” a tragédia que se abateu sobre a África com
consequüências ainda hoje, vozes de quem descende dos passageiros das embarcações de seqüestro não se calaram.
Os 30 anos do Movimento Negro Unificado (MNU), que será celebrado em junho do próximo ano, é um importante capítulo de uma história que começou por rotas oceânicas. Caminhos que formam uma quebra-cabeças que pesquisadores
como Pierre Verger já tentaram resolver.
De onde vieram os povos escravizados no Brasil ? Para responder à pergunta, Verger, inspirado em Luiz Viana Filho, dividiu a história do tráfico de escravos em direção à Bahia em
quatro grandes ciclos: o da Guiné, com destaque para onde
hoje estão Senegal e Guiné Bissau, durante a segunda metade
do século XVI; o ciclo de Angola e do Congo, no século XVII; o
ciclo da Costa da Mina na primeira metade do século XVIII,
atualmente os países Gana e República do Benim e o ciclo da
Baía do Benim, entre 1770 e 1850.
Mas nem todas estas datas são certeiras, comprovadas,
afinal o tráfico entre as mais variadas regiões parava por um
tempo e depois voltava. Além disso, os traficantes não estavam preocupados em registrar identidades dos povos que
aprisionavam.
Assim, somados ao seqüestro, à travessia oceânica que para
uma grande parte era fatal, acumulava-se o drama da destruição de identidade. “Os nomes de nação utilizados pelos africanos no Brasil não são homogêneos e podem referir-se a portos de embarque, reinos, etnias, ilhas ou cidades. Eles foram
utilizados pelos traficantes e senhores de escravos, servindo
aos seus interesses de classificação administrativa e de controle”, destaca o doutor em antropologia, Luiz Nicolau Parés,
professor da Ufba, em seu livro A formação do candomblé.
Parés também destaca que as denominações que ficariam
conhecidas nem sempre correspondiam a como os povos africanos se autodenominavam. Diante de um quadro como este
não é de admirar que as revoltas escravas e a construção de
quilombos sempre foram uma constante.
Palmares, Búzios, Malês, e não parou por aí. Ainda hoje os
descendentes destas tantas etnias africanas, conhecidas aqui
como nagôs, jejes, angolas, hauçás, dentre outras denominações, lutam pelo reconhecimento como cidadãos, o que ainda
não saiu do papel. O recorte de cor em índices como analfabetismo, pobreza e outras desigualdades, mostra que o Brasil
deixa à margem as comunidades afrodescendentes.
Os gritos antes ampliados nas revoltas de escravos ganham
hoje as vozes de associações como o MNU, mas também se
espalham na luta dos quilombolas para provar que são donos
de suas terras ou na busca de solidificação das ações afirmativas das quais as cotas é o mais conhecido exemplo.
As batalhas por igualdade que já são contadas em séculos
chegaram há pouco ao coração do Estado: ministério e secretárias nos âmbitos municipais e estaduais começam a desenvolver políticas para tentar reparar o que não foi feito quando
da abolição do regime escravo em 1888.
Enfim, fica mais próximo ao Brasil tornar reais as palavras
de Martin Luther King em seu famoso discurso proferido em
Washington em 1963 que ficou conhecido como “Eu tenho um
sonho”, composto por trechos como este:
“Eu tenho um sonho que minhas quatro pequenas crianças
vão um dia viver em uma nação onde elas não serão julgadas
pela cor da pele, mas pelo conteúdo do seu caráter. Eu tenho
um sonho hoje“.
Como King, várias lideranças dos movimentos negros, militantes nas mais variadas frentes, têm um sonho de igualdade. Aqui em cada uma das páginas deste especial alguns
deles, desfiam a sua esperança em dias melhores onde racismo será uma palavra em desuso e as lutas de Zumbi não precisarão voltar a ser repetidas, mas apenas um belo capítulo
para se recordar.
| PERFIL |
| MARTIN LUTHER KING |
Nasceu em 1929, em Atlanta, Estados
Unidos. Foi um dos mais importantes
ativistas da luta pelo direito de
igualdade. Pertencente à Igreja Batista
deu voz à luta contra o racismo nos
Estados Unidos, liderando marchas.
Tornou-se o mais jovem agraciado com o
Prêmio Nobel da Paz. Tudo começou com
o protesto de Rosa Parks que se recusou
a dar o seu lugar no ônibus a uma
mulher branca e por isto acabou presa.
Vários protestos se seguiram contra as
leis de segregação racial. Durante a
campanha, King foi um dos líderes,
recebeu várias ameaças, mas a Suprema
Corte acabou cedendo, tornando a
segregação ilegal. A patir de então a
liderança de King se consolidou. Uma
das mais famosas marchas que conduziu
foi a realizada em Washington, em 1963,
quando proferiu seu famoso discurso.
Odiado por muitos que defendiam a
segregação foi assassinado em 1968.
Eu tenho um sonho...
...Eu digo a você hoje, meus amigos, que,
embora nós enfrentemos as dificuldades
de hoje e amanhã, eu ainda tenho um
sonho. É um sonho profundamente enraizado no sonho americano.
Eu tenho um sonho que um dia esta
nação se levantará e viverá o verdadeiro significado de sua crença – nós
celebraremos estas verdades e elas serão claras para todos, que os homens
são criados iguais.
Eu tenho um sonho que um dia, nas
colinas vermelhas da Geórgia, os filhos
dos descendentes de escravos e os
filhos dos descendentes dos donos de
escravos poderão se sentar junto à
mesa da fraternidade.
Eu tenho um sonho que um dia, até
mesmo no estado de Mississippi, um
estado que transpira com o calor da
injustiça, que transpira com o calor de
opressão, será transformado em um
oásis de liberdade e justiça.
Eu tenho um sonho que minhas quatro pequenas crianças vão um dia
viver em uma nação onde elas não
serão julgadas pela cor da pele, mas
pelo conteúdo de seu caráter. Eu tenho um sonho hoje!
Eu tenho um sonho que um dia, no
Alabama, com seus racistas malignos,
com seu governador que tem os lábios
gotejando palavras de intervenção e
negação; nesse justo dia, no Alabama,
meninos negros e meninas negras
poderão unir as mãos com meninos
brancos e meninas brancas como irmãs e irmãos.
Eu tenho um sonho hoje!
Eu tenho um sonho que um dia todo
vale será exaltado, e todas as colinas e
montanhas virão abaixo, os lugares
ásperos serão aplainados e os lugares
tortuosos serão endireitados e a glória
do Senhor será revelada e toda a carne
estará junta...
Trecho do discurso de Martin Luther King. Fonte | www.portalafro.com.br
EXPEDIENTE
Coordenação | Cleidiana Ramos. Edição | Cleidiana Ramos e Sylvia Verônica. Projeto Gráfico e Diagramação | Axel Augusto, Pierre Themotheo e Valentina Garcia. Ilustrações | Cau Gomez.
Fotos de Perfis “Eu tenho um sonho” | Rejane Carneiro. Edição de Fotografia | Carlos Casaes e Gildo Lima Revisão | Cristiane Sampaio, Sueli Afonseca e Sueli Lopes
REJANE CARNEIRO | AG. A TARDE
EU TENHO UM SONHO...
SALVADOR, TERÇA-FEIRA, 20/11/2007
❛
“que vem sendo forjado há cinco séculos por cada homem
negro e cada mulher negra que pisaram em solo brasileiro,
através dos quilombos, dos terreiros, da capoeira, das
insurreições coletivas e individuais, do rico legado
civilizatório de matriz africana, da combinação indissociável
entre bravura e generosidade, ensinada pelos orixás,
inquices, voduns e caboclos: é possível, e é preciso,
construir uma sociedade multicultural”
Samuel Vida, 40 anos | é
advogado e professor de
direito da Universidade
Federal da Bahia (Ufba) e
também da Universidade
Católica do Salvador (Ucsal).
Samuel tem uma
reconhecida atuação por
meio da sua atividade
profissional, e também
acadêmica, em defesa dos
direitos humanos e do
combate ao racismo em
suas mais variadas formas. É
o coordenador do Programa
Direito e Relações Raciais da
Ufba. Samuel Vida é
também o fundador do
Afro Gabinete de
Articulação Institucional e
Jurídica (Aganju), criado em
2001 e que tem sido um
importante instrumento de
defesa dos direitos das
comunidades negras.
| LUTAS DE ONTEM E SEMPRE |
3
ARESTIDES BAPTISTA | AG. A TARDE | 13.5.2005
ARTIGO ❚
A questão negra
na Constituição
Federal de 1988
JURANDIR ANTÔNIO SÁ BARRETO
JÚNIOR
Protestos públicos sempre foram a marca da associação que significou um divisor de águas na organização política em busca da igualdade de direitos para a comunidade negra
ENFRENTAMENTO ❚ Desafiando a ditadura militar, surgiu um movimento capaz de congregar a diversidade
de organizações que, ao longo do tempo, sustentaram o duro combate aos efeitos da discriminação no Brasil
MNU fez ressurgir força
de luta contra o racismo
CLEIDIANA RAMOS
[email protected]
Ainda eram os tempos de chumbo, o nome mais ameno para o período de horror das duas décadas
de ditadura militar no Brasil. Nas
escadarias do Teatro Municipal de
São Paulo, em 7 de julho de 1978,
um grupo dava um ousado passo.
Era o primeiro ato público do recém-criado Movimento Negro
Unificado contra a Discriminação
Racial (MNUCDR), mais tarde
MNU, que no dia 18 de junho de
2008 vai celebrar 30 anos. A associação impôs um marco divisório
na organização política por cidadania negra.
O MNUCDR surgiu trazendo
bandeiras de lutas forjadas nas
mais variadas visões sobre o melhor caminho para combater o racismo no Brasil. Um trecho da carta que foi lida nas escadarias do
Teatro Municipal não deixava dúvidas sobre a direção das lutas do
movimento:
“Hoje, estamos nas ruas numa
campanha de denúncia! Campanha contra a discriminação racial,
contra a opressão policial, contra
o desemprego, o subemprego e a
marginalização. Estamos nas ruas
para denunciar as péssimas condições de vida da Comunidade
Negra (...)”
O texto histórico está descrito
em Movimento Negro Unificado1978-1988, 10 anos de luta contra o
racismo, uma coletânea de textos
organizada pelo professor, escritor e diretor do Ilê Aiyê, Jônatas
Conceição. “Na época do ato público, eu estava em São Paulo. Foi a
primeira vez que vi Abdias do Nascimento e Lélia González”, conta
Conceição, citando personalidades históricas da luta de combate
à discriminação racial no Brasil.
Por meio de suas ações, como o
ato político em São Paulo, o MNU
começaria a centrar o seu discurso, principalmente na demolição
do mito de que o Brasil vivia uma
democracia racial. “O discurso
que o movimento estava trazendo
desestabilizava o imaginário de
que o País era o paraíso de uma
convivência harmoniosa entre os
diversos segmentos étnicos. Isso
provocou uma reação muito forte”, acrescenta Conceição.
CAMINHADA – Mas, para se chegar até o MNUCDR, a caminhada
foi árdua e longa. Os caminhos de
luta por igualdade começaram a
rigor junto com a escravidão. Os
registros de fugas e rebeliões, como a chamada Revolta dos Búzios
ou a dos escravos malês, são as
provas de que os escravos africanos e seus descendentes nunca
aceitaram passivamente a exploração do seu trabalho acompanhada de vários tipos de
maus-tratos e falta de liberdade.
No texto Pequeno histórico do
movimento negro contemporâneo, publicado no livro Negras
Imagens, João Batista de Jesus Félix conta que a resistência começou com os quilombos e evoluiu
para as revoltas escravas nos centros urbanos.
Com a chegada da abolição e já
no período da República, a população negra, embora livre, continuava à margem da cidadania. Em
1931, surgiu a Frente Negra Brasileira (FNB), que acabaria fechada
pelo presidente Getúlio Vargas
seis anos depois. Em Salvador,
houve uma versão da FNB.
“Diferente de São Paulo, onde
ela era formada por trabalhadores
que buscavam uma certa ascen-
*
nuam até hoje. A nova geração
chegou à universidade e se autoafirma. São jovens anônimos como muitos dos que militaram e
cujos nomes não ficaram, mas que
foram fundamentais para a sustentação destas lutas”, completa.
Bacelar acrescenta que é também
importante se avaliar a importância dos que não tiveram os nomes
registrados nas histórias dos movimentos. “É preciso resgatar a
história dos indivíduos e não apenas do grupo”, completa.
são, aqui ela foi articulada por
gente muito pobre. Eles chegaram
a fazer uma passeata pela cidade
que surpreendeu pela coragem e
força”, diz o doutor em antropologia e professor da Ufba Jeferson
Bacelar, autor dos livros Ser negro
em Salvador, Hierarquia das raças
e Mário Gusmão – Um Príncipe
Negro nas Terras dos Dragões da
Maldade. Mas, para Bacelar, ainda
é necessária uma maior produção
de análises históricas sobre os
movimentos negros.
“Eles foram fundamentais para
que o problema do racismo no
Brasil viesse à tona, a partir da denúncia de que a democracia racial
era um mito”. Bacelar salienta que,
por meio de atividades de grupos
como o MNU, hoje estão em marcha ações afirmativas como as cotas, além de uma maior combatividade da juventude negra.
“Na verdade, as lutas conti-
DIVERSIDADE – O MNU nasceu
de forma ampla. Ele reunia grupos
culturais, sindicais, estudantis
que faziam o enfrentamento ao
racismo e viram no movimento a
ampliação da sua força política.
“O MNU nasceu bastante diverso,
mas o que nós tínhamos muito
claro era a proposta de construção
de um projeto político para o Brasil que não fosse excludente, como
o que nos excluía e ainda exclui”,
destaca Luiz Alberto Silva dos Santos, atual secretário estadual de
Políticas de Promoção da Igualdade (Sepromi).
O MNUCDR surgiu como reação a dois atos de violência. O primeiro foi a morte de um trabalhador, Robson Silveira da Luz, que
foi torturado pela polícia paulista.
O outro envolveu um caso de discriminação racial no esporte também em São Paulo: quatro garotos
negros foram impedidos de participar de um time de voleibol.
A indignação que esses dois casos causaram foi o estopim para libertar a vontade de ação de vários
grupos espalhados pelo Brasil. Assim, a reunião do dia 18 de junho –
com a instalação oficial do movimento – e o ato público de 7 de julho viraram parte da história de
Um dos mais
emocionantes
documentos que foram
lidos no ato público do
MNU em 1978 foi o
enviado por internos
do Presídio Carandiru,
no qual eles diziam
estar unidos à luta.
uma das mais longas lutas por cidadania integral no Brasil.
Além dos paulistas e cariocas,
vários Estados do País foram representados não só pela presença
de militantes, como também por
meio das moções. Bahia, Pernambuco, Pará, Rio Grande do Sul e outras localidades mostravam que
racismo e violência contra negros
era um problema nacional.
Um dos documentos mais
emocionantes que chegou ao ato
foi a carta endereçada aos seus
participantes pelos internos do
Presídio Carandiru, cujo trecho
também está reproduzido no livro
Movimento Negro Unificado –
1978-1988 – 10 anos de luta contra
o racismo.
“Se (direito humano) for algo
do qual dependemos da sociedade branca para nos conscientizar,
algo que se consiga com docilidade de servos, não apresente! Já estamos fartos de palavras, demagogias, por isto somos um grupo, por
isto gritamos sem cessar. Somos
negros, somos Netos de Zumbi. (E
vovô ficaria triste, se nos entregássemos sem lutar)”, diz a carta.
Também em sua definição de
princípios, o MNU denunciava as
várias discriminações que, historicamente, estavam sendo impostas à população negra brasileira:
desemprego, perseguição racial
no trabalho, exploração sexual,
econômica e social da mulher negra, mito da democracia racial,
dentre muitas outras.
E adiantava seu programa:
“Nós solidarizamos com toda e
qualquer luta reivindicativa dos
setores populares da sociedade
brasileira que vise à real conquista
de seus direitos políticos, econômicos e sociais; com a luta internacional contra o racismo”.
O ordenamento jurídico
republicano, ao adotar o
discurso da “democracia racial”,
não reconheceu o fato de a
população brasileira ser
composta de diferentes grupos
étnicos com suas
especificidades,
consubstanciando-se, através de
um discurso ideológico, num
instrumento poderoso de
marginalização das massas
negras.
A atual Constituição Federal
abandonou claramente o
discurso da “democracia racial”
reconhecendo a pluralidade
étnica, apresentando um avanço
em relação às anteriores.
Contudo, não houve incentivo
à garantia de expressão da
etnicidade como meio de
arrefecer a existência do
preconceito no Brasil. A elite
brasileira esposou a tese
segundo a qual vivemos numa
democracia racial, formalizando
discursivamente tal afirmação no
seu direito positivo. Contudo, a
realidade demonstra claramente
a falácia de tal discurso.
Ao desejar mostrar ao mundo
ter comprometimento com os
valores da igualdade e da
democracia, a elite brasileira
fingiu não conhecer a existência
de uma sociedade plurirracial e
multiétnica, onde os negros
foram e continuam sendo
discriminados sem possuir
instrumentos realmente capazes
de auxiliá-los na busca da
Justiça, muito menos inibir os
potenciais discriminadores.
A nova constituição, sem
dúvida, ampliou as garantias dos
cidadãos, inclusive no que diz
respeito ao reconhecimento
formal das especificidades
étnicas – culturais como, por
exemplo, ao instituir a liberdade
religiosa (Art. 52, VI), e a
proteção às manifestações
culturais afro-brasileiras (Art. 52
Parágrafo 12).
Contudo, esta Constituição
chamada cidadã não apresentou
medidas no sentido de
implementar políticas que
afirmem e valorizem a
manifestação cultural dos
afrodescendentes
reconhecendo-lhe sua
especificidade, como uma
mecanismo de erradicação do
preconceito, ainda que se
proponha a promover o bem de
todos sem preconceitos e
quaisquer forma de
discriminação (Art. 32 IV).
O fato de constar no texto
constitucional o verbo
“promover” significa um avanço
em relação às constituições
anteriores que apenas
continham simples declarações
de igualdade. Em que pesem
seus inequívocos avanços
democráticos, em respeito
especificamente ao negro, a
Constituição não projetou
medidas realmente eficazes para
a erradicação do preconceito
racial, revelando-se, como as
constituições republicanas
anteriores, num instrumento de
controle social eficaz, utilizado
para a manipulação da raça e
etnia negras.
Jurandir Antônio Sá Barreto Júnior| é mestre
em direito público, mestre em ensino, história
e filosofia da ciência e doutorando em
estudos étnicos e africanos pelo Ceao-Ufba
Mônica Kalile, 42 anos | é
produtora cultural e
militante no Grêmio
Comunitário Cultural e
Carnavalesco A Mulherada.
A associação surgiu, em
1992, sob a denominação
de Espaço Cultural Kalundu,
voltado para a produção de
eventos e atividades sociais.
Sensível à causa da mulher,
principalmente negra, e
com o intuito de dar mais
visibilidade a esta luta por
mais igualdade e respeito,
Mônica Kalile decidiu,
juntamente com a diretoria
da Banda
Kallundu/Kallundetes,
transformar esta entidade
no Grêmio Comunitário
que também promove
o desenvolvimento da
comunidade
afrodescendente.
4
❛
“de uma sociedade em que todos possam usufruir do
tudo, ou seja, o tudo para todos, onde mulheres e
homens sejam iguais independente da cor da pele, sem
preconceito ou distinção. Sonho com a realidade onde as
oportunidades serão reais e iguais e que nossas filhas e
filhos possam viver em harmonia e com dignidade em um
ambiente de justiça e solidariedade“
| LUTAS DE ONTEM E SEMPRE |
EU TENHO UM SONHO...
REJANE CARNEIRO | AG. A TARDE
REJANE CARNEIRO | AG. A TARDE
EU TENHO UM SONHO...
SALVADOR, TERÇA-FEIRA, 20/11/2007
SALVADOR, TERÇA-FEIRA, 20/11/2007
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“que toda a sociedade construa e respeite a igualdade
para todos. Meu sonho também é o de que exista
liberdade religiosa de fato no Brasil, que a intolerância
chegue realmente ao fim. Desejo muito também que todas
as religiões sejam respeitadas como elas merecem e têm
direito. Que todas elas sejam tratadas de uma forma
semelhante pelos governos e por todos os segmentos da
sociedade civil“
Tata Kommannanji, 47 anos |
é presidente da Associação
Cultural para a Preservação
do Patrimônio Bantu
(Acbantu). A associação tem
como objetivo contribuir
para o resgate das tradições
religiosas e culturais de
matrizes africanas.
Atualmente, a Acbantu
reúne cerca de 700
comunidades, como terreiros
de candomblé, quilombos,
associações comunitárias,
dentre outras. O seu projeto
Rede Kôdya, voltado para a
segurança alimentar, foi
criado há três anos e já
atende 30 mil famílias por
meio da distribuição de
alimentos, hortas
comunitárias dentre outras
iniciativas. A Rede Kôdya
já foi expandida para
outros Estados.
| LUTAS DE ONTEM E SEMPRE |
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EFERVESCÊNCIA ❚ Capital da Bahia sediou congresso que definiu o 20 de novembro como Dia Nacional da Consciência Negra
DEUS DA GUERRA ❚ Mitos e realidade misturam-se para contar a história do grande símbolo da resistência negra no Brasil Colônia
Salvador nas linhas de frente
Eterna liderança de Zumbi
REPRODUÇÃO | MNU-BA | JOA SOUZA | AG. A TARDE | 12.11.2007
desenvolvimento de projetos. “A
manutenção da entidade vem da
contribuição de seus próprios militantes”, destaca o coordenador financeiro do MNU em Salvador, Cal
Bulhosa.
Na sede, funciona um curso de
alfabetização. Um outro projeto
em andamento é a instalação de
equipamentos voltados para projetos de inclusão digital.
CLEIDIANA RAMOS
[email protected]
A Bahia sempre foi um dos principais pontos de articulação do
MNU. Mas antes da sua criação, a
cidade já vivia a efervescência de
grupos culturais como o Malê Cultura e Arte Negra, Grupo Palmares
Iñaron, Núcleo Cultural Afro Brasileiro, sem falar em outras pessoas
que militavam de forma independente em grupos de estudos, círculos de discussões, dentre outras
iniciativas.
Salvador acabou sediando a
primeira Assembléia Nacional do
MNU. O problema é que os participantes estavam sob uma forte vigilância do governo militar. “A gente olhava para a platéia do encontro e sabia quem eles eram. Eu
mesmo vi um que era militar da Aeronaútica”, conta Luiz Alberto Silva
dos Santos, atual secretário estadual de Políticas de Promoção da
Igualdade (Sepromi).
Perseguidos por agentes da Polícia Federal que diziam ter ordens
para impedir a manifestação, os
congressistas que vieram de várias
partes do País acabaram encontrando abrigo em território “alemão” na capital baiana, ou seja, no
Instituto Cultural Brasil-Alemanha (Icba).
ZUMBI – Foi neste congresso que o
dia de hoje, 20 de novembro, foi escolhido como o marco para se festejar a Consciência Negra em homenagem a Zumbi, o homem que
ousou construir uma estrutura de
Estado negro desafiando uma sociedade ancorada na escravidão.
“A partir daí o processo foi se
consolidando. O MNU aglutinava
várias concepções e várias experiências”, acrescenta Luiz Alberto.
Exatamente por ser diverso, o
MNU apresentava suas próprias
contradições. “Tinha os que defendiam uma linha mais política e
outros a linha mais culturalista.
Aqueles que entendiam que os
movimentos religiosos eram espaços de resistência política e que tinham também que ser incorporados, outros que valorizavam as lu-
O MNU surgiu associando diversas entidades que já experimentavam lutas contra o racismo. Em Salvador, a grande força era dos grupos culturais
tas dos blocos afro como um outro
caminho viável”, relata o secretário
Luiz Alberto.
A diversidade e o debate político intenso acabou por gerar as dissidências, com a saída de militantes históricos que criaram outros
movimentos ou seguiram em sua
luta de forma independente.
Este processo, segundo Luiz Alberto, foi mais acentuado na década de 1990, mas fica patente o papel preponderante que o MNU desempenhou para as lutas por
igualdade.
LUTAS-Mas não mudou o pensamento do MNU sobre a necessidade de priorizar a organização. “A
maioria dos militantes do movimento tem nitidez em manter a leitura de que ainda é necessária a entidade nacional de combate ao racismo para discutirmos as perspectivas de acesso da comunidade
negra aos seus direitos”, avalia
Marcus Alessandro Mawussí, coordenador nacional do MNU.
*
O MNU está organizado em 13
Estados. Além da Bahia, ele tem
representação no Rio, São Paulo,
Pernambuco, Maranhão, Rio Grande
do Sul, Goiás, Ceará, dentre outros.
A associação, hoje, está presente em 13 Estados, além da Bahia,
como Rio de Janeiro, São Paulo,
Pernambuco, Maranhão, Rio
Grande do Sul, Goiás, Sergipe, Ceará, dentre outros.
Militante do MNU, Hamilton
Borges Walé destaca trabalhos como o que vem sendo realizado no
Complexo Penitenciário de Salvador. “Com todas as dificuldades,
ainda somos uma organização de
combate e de luta, sem nenhuma
pretensão de negociação com o racismo. Com o racismo não se negocia”, completa.
Segundo ele, o trabalho que
vem sendo feito no Complexo Pe-
nitenciário denuncia o que considera a seqüela mais violenta do racismo. “Para além de qualquer
conjuntura de governo de direita
ou de esquerda, a situação dos negros na política criminal e de segurança pública é de violência extrema. O MNU está disposto a este tipo de enfrentamento”.
O projeto do MNU inclui exibição de filmes, levantamento das
possibilidades artísticas dos internos, incentivo à leitura, dentre outras. “Fazemos tudo isso com recursos próprios, sem nenhum
convênio porque isso garante autonomia de ação”, completa.
Um outro projeto destacado
por Hamilton Borges é a campanha “Reaja ou será morto, Reaja ou
será morta”, centrado nas denúncias de violência contra homens e
mulheres negros . Segundo o coordenador municipal do MNU, Nilo
Rosa, as ações da associação continuam direcionadas a construir
um projeto de inclusão nacional.
DIÁLOGO-“Mas ainda há a dificuldade de diálogo com a sociedade
brasileira, que considera o MNU
dono de uma proposta excludente.
Essa visão ainda é muito forte”.
Nilo Rosa destaca que há a
consciência dentro do próprio
MNU que os resultados são lentos.
“Nós estamos completando 30
anos e agora que estamos vendo
algumas coisas acontecerem como as cotas. Daqui a dez anos
quem sabe não estaremos vendo o
Estatuto da Igualdade Racial em
vigor?”, aposta.
A realidade da organização tem
sido a de driblar dificuldades, como a falta de financiamento para o
COMUNICAÇÃO – Não foi só em
política que o MNU inovou. A sua
forma de fazer comunicação também deixou marcos. Em 1981, o
MNU baiano lançou um boletim
que logo se transformou no jornal
nacional do movimento.
As publicações do MNU ofereciam informação e atualização sobre o que acontecia na frente das
lutas negras tanto no Brasil quanto
no mundo.
Folheando as páginas do jornal
é possível, por exemplo, conhecer
a luta para inclusão da disciplina
sobre História da África nos currículos das escolas, uma medida que
durou algum tempo, mas caiu em
1989. Era a gênese da agora Lei Nacional 10.639/03, que tornou obrigatória a inclusão nos currículos
escolares de História da África e
Cultura Afro-Brasileira.
As publicações do MNU vieram
se somar aos cadernos negros,
produzidos a partir de 1978 e ainda
em produção contínua. “Sem dúvida, tanto os boletins, jornais do
MNU e os cadernos negros foram
fundamentais para a construção
da identidade dos afrodescendentes”, salienta a doutora em Estudos
Literários Florentina Souza, autora do livro Afro Descendência em
Cadernos Negros e Jornais do
MNU.
Por meio das páginas dos boletins e do jornal do MNU, é possível
reconstruir a trajetória dos debates que se travavam nas décadas de
80 e 90. No caso dos cadernos negros, toma-se contato com uma arte que, por sua própria história de
resistência – financiada pelos próprios autores –, já é também um
ato político por natureza, lembrando o início dos movimentos.
FOTOS: JOA SOUZA | AG. A TARDE | 12.11.2007
depoimento
MNU foi divisor de águas na organização política negra ❚
“Em retrospecto, o
Movimento Negro Unificado
(MNU) foi o acontecimento
mais importante, a meu ver,
para o povo negro no século
XX.
Só a partir da criação do MNU
foi possível toda a
movimentação negra que
existia no Brasil naquele
período, os anos 70.
Com o movimento foi possível
adquirir uma linguagem. A
partir dele começou a se
formular um discurso para o
enfrentamento da questão do
racismo no Brasil.
As formulações que o MNU
fazia, as suas análises sobre
como o racismo no Brasil
operava e quais os principais
mecanismos de prática do
racismo foram de
fundamental importância.
Elas permitiram a grupos que
se consideravam ”grupos
culturais“, por exemplo,
entender melhor qual era o
seu papel naquela
Cau Bulhosa destaca a dificuldade atual para manter os projetos
conjuntura.
De uma certa forma desde a
criação do MNU nada de tão
novo aconteceu, porque tem
a ver com o papel que cada
organização tem em
diferentes momentos
históricos.
Cada uma delas opta por dar
forma a uma determinada
luta, para dar forma às
reivindicações de um povo.
Eu ingressei no MNU um ano
depois da sua fundação, em
1979.
Hoje eu já saí do MNU. Já tem
uns 13 anos que não participo
mais das suas atividades. É um
tempo quase igual ao que eu
permaneci lá dentro que
foram 14 anos, mas destaco a
sua grande importância ❚
Luiza Bairros, mestre em sociologia, é
ativista do movimento negro e de
mulheres, ex-militante do MNU e
consultora de organizações
internacionais em projetos de
cooperação de interesse da população
afro-brasileira.
Doutora em estudos literários, Florentina Souza estudou informativos
DAVI BOAVENTURA
[email protected]
Imortal. Espírito que volta da terra
dos mortos. Deus da guerra. Um
guerreiro com quase 200 anos de
idade. Não são poucos os mitos,
lendas e histórias sobre o homem
que liderou a resistência da República de Palmares contra as tropas
repressoras dos brancos por mais
de 15 anos.
Nascido, provavelmente, em
Palmares, no ano de 1655, Zumbi
foi capturado ainda recém-nascido por uma investida das forças
coloniais. Levado para Porto Calvo, uma das mais importantes vilas
da Capitania de Pernambuco, foi
batizado como Francisco. O jovem
cresceu e passou a trabalhar para o
padre Antônio de Mello, com
quem aprendeu o latim e o português, além dos sacramentos da liturgia católica.
No entanto, Zumbi nunca conseguiu se adaptar à vida escrava no
cenário urbano. Em 1670, fugiu para as serras da região e para os mocambos de Palmares. Alguns anos
depois, tornou-se importante comandante militar do quilombo.
Em 1678, um acordo de paz entre Ganga-Zumba, possivelmente
seu tio, e a colônia muda seu destino. Os termos do tratado eram
claramente desfavoráveis aos moradores do quilombo. A insatisfa-
ção dos palmarinos era grande, e
uma conspiração tomou corpo. No
final do ano Ganga-Zumba morreu envenenado.
Com a morte do rei, Zumbi se
transformou no novo líder e comandou a resistência contra os
exércitos coloniais. Com sua liderança, novos mocambos se formaram, e outros, como os de Macaco,
Osenga e Dambraganga, se fortaleceram. A organização militar do
quilombo e o sistema de defesa do
território foram aperfeiçoados.
A guerra contra os brancos teve
papel fundamental na história da
vida de Zumbi. As investidas das
tropas reescravizadoras eram
constantes, mas os palmarinos de-
fendiam seus domínios com ferocidade, e os cativos não sofreram
derrotas. Entre 1680 e 1691, todas
as expedições contra Palmares foram completamente destruídas.
A colônia se enfureceu, e a repressão contra o quilombo aumentou. O número de soldados e
armas era cada vez maior. A intensificação das batalhas foi minando
as forças quilombolas e a queda de
Palmares se aproximava.
Para tentar eliminar por completo o refúgio negro nas serras
pernambucanas, o governo contratou bandeirantes paulistas, liderados pelo experiente Domingos Jorge Velho.
Conhecido por sua crueldade
na perseguição de índios e destruição de aldeias, Jorge Velho montou
uma gigantesca operação de guerra com centenas de soldados e milhares de armas. Os combates com
os bandeirantes foram violentos e
duraram quase dois anos.
Em 1694, o fim. Zumbi caiu em
um desfiladeiro, mas conseguiu
fugir. Um ano depois, o líder dos
escravos reapareceu lutando na
guerrilha da floresta. A “imortalidade” de Zumbi assustou os soldados da colônia e encantou a população da região.
Entretanto, a cobiça de alguns
falou mais alto. Zumbi foi traído
por um companheiro, que levou as
tropas de André Furtado de Men-
donça ao seu esconderijo. Depois
de um forte cerco, o comandante é
encontrado em 20 de novembro de
1695. Morto, teve sua cabeça decapitada e exposta em praça pública
do Recife. Quase 300 anos depois, a
data de seu assassinato se tornou o
Dia da Consciência Negra.
FONTES:
GOMES, Flávio. Palmares: escravidão e
liberdade no Atlântico Sul. São Paulo:
Contexto, 2005. 180 p.
MOURA, Clóvis. Quilombos: resistência
ao escravismo. 2ª ed. São Paulo: Editora
Ática, 1989. 94 p.
BUENO, Eduardo. Brasil: uma história.
São Paulo: Editora Ática, 2003. 447 p.
Antônio Carlos dos Santos
Vovô, 55 anos | é presidente
do Ilê Aiyê. A
movimentação dos negros
baianos em épocas mais
recentes e com
características e
reivindicações novas e
atualizadas tem como seu
ponto de partida a criação,
em 1974, do Ilê Aiyê,
primeiro bloco afro do
Brasil no Curuzu, no mais
populoso bairro de
Salvador: a Liberdade.
Apesar do medo dos
primeiros militantes como
manifestações da falta de
garantia individual/social,
é possível perceber que os
negros que se reuniram
para brincar/fazer o
carnaval no Ilê Aiyê tinham
consciência de que também
estavam fazendo política.
REJANE CARNEIRO | AG. A TARDE
EU TENHO UM SONHO...
❛
“de construir uma Bahia livre da escravidão mental, um
lugar onde a população negra não tenha que lutar pelos
seus direitos garantidos na Constituição brasileira, um lugar
onde os negros não fiquem invisibilizados na sociedade
pela mídia. Um lugar onde os negros votassem em negros
para fortalecer a luta, colocando os sonhos em prática,
como nos lugares onde ele é a maioria, e isso se reflete nas
esferas do poder político e econômico”
| LUTAS DE ONTEM E SEMPRE |
6
BÚZIOS ❚ Levantaram-se, nas classes
populares, ideais modernos de
igualdade racial, salários
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Uma República Democrática, o fim da escravidão e das desigualdades
entre brancos e negros. Dentre outros profissionais, eram artesãos,
soldados, comerciantes, alfaiates, escravos, alforriados, brancos, negros e mulatos, religiosos. Salários iguais entre negros livres e brancos, o fim da escravidão, a luta contra os altos impostos e uma sociedade igualitária e sem preconceitos eram as reivindicações. A Revolta dos Búzios ou Conjuração Baiana, Conspiração dos Búzios,
Conjuração dos Alfaiates, Primeira Revolução Social Brasileira, Movimento Democrático Baiano, Inconfidência Baiana, ocorrida em
agosto de 1798, embora abortada no nascedouro, marcou a luta pela
independência, pois enfocava o rompimento com Portugal, e tornou
pública a insatisfação em todos os níveis da sociedade. Tudo começou
no período entre 1794 e 1797, quando as idéias começaram a ser
disseminadas através da leitura de textos franceses que fomentavam
a libertação. A situação fez surgir a Academia dos Renascidos (associação literária que discutia os ideais de libertação e os problemas
sociais) criada pela Loja Maçônica Cavaleiros da Luz. A população
estava em torno de 50 a 60 mil habitantes, sendo mais de 50% de
negros. Na frente de batalha, negros com ideais que iam de encontro
ao poder vigente, inspirados pela trilogia Liberdade, Igualdade, Fraternidade da Revolução Francesa. A composição diferencia o movimento da Inconfidência Mineira, que não levantava a bandeira contra a escravidão. Líderes: João de Deus do Nascimento (alfaiate), Manoel Futisno dos Santos (18 anos), Luiz Gonzaga das Virgens (soldado), Lucas Dantas (soldado) e as mulheres negras alforriadas Ana
Romana e Maria do Nascimento.
FONTES: Revolta dos Búzios ou Conjuração Baiana de 1798: uma chamada para a
liberdade, autora: Marli Geralda Teixeira / Caderno de Educação do Ilê Aiyê Volume
VII Revolta dos Búzios - 200 anos / Série Olodum Griô Volume I Revolta dos Búzios:
Uma história de Igualdade no Brasil.
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ARTIGO ❚
Juventude negra e a espera pelo dia seguinte
MAÍRA AZEVEDO *
Sinônimo de inconseqüência e
futilidade, foi assim que a mídia
definiu a juventude brasileira
nos últimos anos. Basta ligar o
aparelho de TV ou adquirir
qualquer publicação destinada
ao público jovem que se pode
constatar a visão que,
insistentemente, é passada sobre
cerca de 20% da população. As
preocupações, as ações e os
sonhos são todos pautados pelo
consumo exacerbado, como se a
única inquietação juvenil fosse
ter a roupa da moda, o tênis da
vez ou ainda freqüentar os
lugares badalados.
Mas, dentro deste universo,
existe um outro percentual que
representa, aproximadamente,
7% de brasileiros e brasileiras e
possui um outro sonho, que a
primeira vista pode parecer
simples e banal, entretanto, vem
se tornando cada vez mais difícil:
o dia seguinte.
Essa é a realidade dos jovens
negros, com idades entre 15 e 24
anos, que representam cerca de
15 milhões de pessoas e que
todos os dias, quando
conseguem chegar em casa, têm
motivos para comemorar.
Conseguiram a façanha de
vencer as estatísticas. São
sobreviventes do sistema
perverso que, silenciosamente,
aniquila a juventude negra
brasileira.
Alvos prediletos dos grupos
de extermínio e das ações
violentas de alguns policiais, a
juventude negra está no topo
dos índices que revelam as
desigualdades sociais e raciais do
nosso País. Somos nós, jovens
negros que vivemos sob o jugo
das famílias consideradas pobres
e miseráveis, que recebemos os
salários mais baixos do mercado,
e também os primeiros a serem
escolhidos na hora da demissão,
e ainda, no caso das jovens
negras, as que morrem nas
clínicas de abortos clandestinos.
Entre as medidas atuais de
extermínio da juventude negra,
temos a campanha a favor da
redução da maioridade penal. A
consciência dos privilégios da
elite branca brasileira é tamanha,
que existe todo um setor
conservador conspirando e
usando as instâncias de poder
para legitimar mais um crime
coletivo. Querem sentenciar ao
cárcere de seres humanos,
aqueles que são, muitas vezes,
mais vítimas do que algozes.
Destinar a juventude negra às
“penitenciárias juvenis”,
conhecidas como casas de
recuperação, que são verdadeiros
depósitos de crianças, e como
não poderia deixar de ser, na sua
maioria, negra e pobre.
Porque dentro de um largo
contingente de jovens negros,
que cometem algum tipo de
delito, e são rapidamente
cunhados de criminosos,
facilmente se encontra meninos
e meninas que não tiveram
oportunidades. Pois, como bem
definiu o pai de um dos
criminosos que atacaram a
empregada, “eles só queriam se
divertir”.
A juventude negra brasileira
tem pressa, mas uma pressa
diferente de tudo. Não é a espera
de uma festa, de mais um
programa ou de uma nova
roupa. Tem pressa de viver. De
ter a certeza que terá direito ao
seu dia seguinte. De que o
silêncio dos bons que impera
sobre seu genocídio, lento,
gradual e programado será
quebrado. Porque não falar sobre
isso é compactuar com o modelo
perverso que prevalece e nos
mata aos poucos.
Queremos ter o poder de
decidir o nosso destino. E
estamos nos organizando para
isso, formando frente de
batalhas, contra o sistema.
Maíra Azevedo é jornalista militante da
Unegro e Omorixá de Oxum do terreiro Ilê
Axé Oxumarê.
REJANE CARNEIRO | AG. A TARDE
EU TENHO UM SONHO...
SALVADOR, TERÇA-FEIRA, 20/11/2007
❛
“de ver a minha religião, o candomblé, ser respeitada
como ela merece ser. Eu tenho o sonho de ver que todas
as pessoas são capazes de respeitar quem professa uma fé
diferente da sua, afinal as religiões costumam buscar a
paz. Eu tenho o sonho de ver o fim da intolerância
religiosa contra as religiões de matrizes africanas, que,
infelizmente, ainda é muito forte. Eu tenho o sonho de
que todas as formas de fé convivam em paz “
Eurico Alcântara, 48 anos |
é tata de inquice, título da
hierarquia do candomblé de
tradição angola. É também
prior da Irmandade de
Nossa Senhora do Rosário
dos Homens Pretos e
coordenador-geral do
Núcleo Afro da Polícia
Militar (Nafro-PM). Criada
em 2005, a instituição tem
como principal objetivo a
defesa da liberdade de
culto entre os policiais e
servidores da Polícia Militar.
O combate à intolerância
religiosa faz parte também
das suas principais ações. O
Nafro tem realizado
projetos educativos por
meio de seminários, cursos,
além de participar de
manifestações públicas, tipo
as caminhadas em defesa da
liberdade de fé.
| LUTAS DE ONTEM E SEMPRE |
7
PALMARES ❚ Mais conhecida organização da resistência era uma sociedade baseada em agricultura e comércio e desafiava a Coroa
Projeto de república negra
DAVI BOAVENTURA
[email protected]
Formado por cerca de 40 cativos
fugidos de um engenho da Vila
Porto Calvo ainda no final do século XVI, Palmares não era apenas
uma aldeia distante e de difícil
acesso por causa das densas florestas. Cercado por uma proteção natural de vegetação e montanhas, o
quilombo agrupava diversos mocambos em uma das regiões mais
férteis da Capitania de Pernambu-
Fortificados
contra domínio
dos invasores
A principal preocupação em
Palmares era a sua defesa. As
constantes empreitadas
organizadas pelos brancos
forçaram os quilombolas a
construírem uma forte
estrutura militar. O exército
palmarino, alocado no
mocambo de Subupira e
espalhado em pequenos
acampamentos na região,
cresceu consideravelmente.
Fortificações, fossos e falsas
entradas eram construídos
para impedir o avanço das
tropas repressoras.
As táticas de guerrilha
foram aperfeiçoadas, e
armadilhas, escondidas pelas
florestas. O excedente da
produção agrícola era
utilizado como moeda de
troca por munições e armas.
Os mocambos de Palmares
ocupavam uma grande área
de terra, formando uma
espécie de confederação. O
largo território e a densa
vegetação da região eram
essenciais para manter a
segurança do local. Quando
um mocambo era atacado, os
moradores fugiam para outro
ou formavam um novo.
Cada povoado exercia uma
função determinada
complementar e se submetia
ao poder da capital, Macaco.
Centro político e
administrativo, Macaco era a
área mais povoada e onde
residia o principal líder
palmarino, Ganga Zumba – o
Senhor Grande.
Eleito por um conselho, o
rei possuía poderes ilimitados
e vitalícios. No entanto, o
chefe de cada mocambo
tinha liberdade para regular
em seu território. As leis
eram rígidas. Ao chegar, o
escravo era interrogado
por um conselho. A intenção
era descobrir se o cativo
estava a mando dos
senhores de engenho. O
roubo, o adultério e
homicídios eram punidos com
a morte. (D.B.)
FONTES:
GOMES, Flávio. Palmares: escravidão
e liberdade no Atlântico Sul. São
Paulo: Contexto, 2005. 180 p.
MOURA, Clóvis. Quilombos:
resistência ao escravismo. 2ª ed. São
Paulo: Editora Ática, 1989. 94 p.
BUENO, Eduardo. Brasil: uma
história. São Paulo: Editora Ática,
2003. 447 p.
co, atualmente uma área pertencente ao Estado de Alagoas.
Esta proteção, aliada à fertilidade das terras, facilidade de água,
além da abundância de madeira e
da caça, favoreceu a construção de
uma sociedade organizada e o
crescimento da população. Ao
contrário da maioria dos quilombos, que exploravam a terra até o
seu esgotamento e procuravam
por novos terrenos em seguida,
Palmares criou raízes. As condições do lugar também incentiva-
ram a produção agrícola, utilizando técnicas de plantio, regadio e
colheita trazidas da África.
O trabalho era baseado na policultura e gerava excedentes, utilizados como moeda de troca com
os comerciantes da região.
Após o primeiro impulso demográfico, um outro fato influenciou
o aumento populacional: a invasão holandesa.
A Holanda era um parceiro comercial forte da coroa portuguesa:
todo ou quase todo açúcar produ-
zido no Brasil era refinado em suas
terras e depois seguia para o resto
da Europa. Em 1580, Portugal e
suas colônias se tornaram domínio espanhol, país em guerra com
os holandeses desde o final da década de 60 do século XVI.
A economia açucareira foi
logo afetada com a proibição
espanhola do comércio entre Brasil e Holanda. Proibição apenas
interrompida por uma trégua de
12 anos entre batavos e ibéricos.
Com o retorno das hostilidades em
1621, a Holanda, representada
pela Companhia das Índias Ocidentais, se recusou a abandonar
lucros da cana-de-açúcar brasileira. A Bahia foi a primeira capitania
invadida, em maio de 1624, mas os
invasores foram expulsos em 1º de
maio do ano seguinte. Em 1630, 77
navios com sete mil homens tomaram Pernambuco.
Com a ocupação holandesa, as
estruturas da dominação da metrópole foram desarticuladas. Os
escravos, aproveitando a fragilida-
de do momento, promoviam fugas
em massa dos engenhos. A instabilidade da época também facilitou os assaltos quilombolas às vilas e cidades, queimando plantações e roubando as casas-grandes,
além de raptar escravos, que se tornavam livres ao seqüestrar outros
cativos. As mulheres também
eram alvos constantes de seqüestro, incluindo aí mulheres brancas.
Palmares cresceu e passou a incomodar o poder colonial. A repressão dos brancos foi enorme.
Walmir França | é
coordenador do Fórum de
Entidades Negras da Bahia,
tata do terreiro Bate Folha
e diretor-executivo do bloco
afro Os Negões. O bloco foi
fundado em 1982 e
desenvolve, além das
atividades culturais, um
intenso trabalho social
voltado para a comunidade
da Avenida Vasco da Gama,
onde fica sua sede, e
adjacências. Os programas
são na área de educação,
como o curso pré-vestibular
e o de alfabetização de
adultos. Os Negões também
promove oficinas de dança,
penteados afros e de
percussão. Além disso,
periodicamente, realiza
mesas-redondas para
discutir a temática
afrodescendente.
REJANE CARNEIRO | AG. A TARDE
EU TENHO UM SONHO...
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“de uma ruptura com o insano silêncio estabelecido diante
dos múltiplos aspectos da desigualdade racial. Faz-se
necessário redefinir os horizontes de igualdade de
oportunidades e de resultados, dispondo de políticas
explícitas de inclusão racial. A redução da desigualdade
entre afro-brasileiros e brasileiros brancos apresenta-se
como prioridade para construção de um país democrático,
livre, economicamente eficiente e socialmente justo”
| LUTAS DE ONTEM E SEMPRE |
8
SALVADOR, TERÇA-FEIRA, 20/11/2007
A peleja dos Malês
contra a escravidão
na província da Bahia
ZEZÃO CASTRO
CAPÍTULO I
Antecedentes
anti-cordiais
Às vezes fechar os olhos
Basta pra viajar nos tempos
Lembrar os feitos de outrora
Recordar os adventos
Evocar longínquos mitos
Detalhar bem os seus ritos
Respeitando a verdade
Que integram as nações
Passando por gerações
Dentro da mesma cidade
”Povo cordial, pacífico“
Ouve-se do brasileiro
Que nunca se revoltou
E viveu no paradeiro
Sem responder desagravo
Chicote no lombo escravo.
A história do vencedor
É versão majoritária
Em cadeia hereditária
Mascarando a
nossa dor
Por isso nessa hora séria
A emoção já comove
Pois a história nos leva
Para o século XIX.
Vou narrar os porquês
Da Revolta dos Malês
Em pleno solo baiano:
Escravos islamizados
Fizeram levante armados
35 foi o ano
Desde o século XI
A África viu seu povo
Sob uma nova crença
Alá era este Deus novo
Mohammed ou Maomé
Era o profeta da fé
Lia suratas do Alcorão
Orações, quatro por dia
Jejum também se fazia
Da Nigéria até o Sudão
Os portugueses de outrora
Não viram a diferença
Negro aí não era gente
Que dirá a sua crença!
Foram então capturados
E a ferro agrilhoados
Sem comida, água ou sal
Colher cana e plantar fumo
Bahia, o novo rumo
Projeto colonial
Junto com as cicatrizes
Marcou-lhes a resistência
Eram alfabetizados
Com domínio de ciência
Viram muitos definhar
No tronco a se mijar
Debaixo de humilhação
Eram pros brancos peteca
Mas oravam sempre a Meca:
Por digna libertação
Alguns historiadores
Debruçaram-se no tema
Foram pro Arquivo Público
Analisar o sistema
Vou aqui citar só três:
Um é o João José Reis
Homem douto, de valor
Veio Pierre Verger
Na Bahia só pra ver
E Cid Teixeira endossou
CAPÍTULO II
Um epílogo malê
A insurreição falhou
Foram mortos, enforcados
Livres: banidos pra África
Os cativos: açoitados.
Queriam matar os brancos
Fosse velho, inteiro ou manco
Numa festa no Bonfim
Mas o plano naufragou
Pois alguém caguetou
Tudo tim tim por tim tim
Muitos destes renegaram
Suas origens briosas
Disfarçaram-se em cristãos
Das ordens religiosas
Como fugidias aves
Trancaram-se a sete chaves
Abafaram sua crença
Mas na terra que é de Deus
Oxalá, Alá e Zeus
Quem nos vale é a diferença
Cerca de 500 foram
Punidos só desta vez
A estimativa é
Do professor João Reis
Setenta foram os mortos
De tiros e todos tortos
Com enterro de indigentes
Haussás, nagôs, iorubanos
Das fazendas ou urbanos
Triste fim os destas gentes...
Era pra ser num domingo
No início da manhã
O dia estava marcado:
O último do Ramadan
Não era dia comum
Marcava o fim do jejum/ 25 de
janeiro
Chegar nos engenhos era
O principal objetivo
Para daí, em bom número
Vingar-se por bom motivo.
O nagô liberto Aprígio
Sumiu sem deixar vestígio
Era um homem de tino
Carregador de cadeiras
Rezava nas sextas-feiras
Na mesquita de Firmino
O governo deportou
Duas centenas de pessoas
Enviadas pra Nigéria
Sem ouvir txau e nem loas
Lá chamados de “Tabom”
Sabiam fazer o som
Aprendido em cativeiro
Não praticaram estragos
E hoje tem um
bairro em Lagos
Criado por
brasileiros
As delações vieram
Vou adiantar o fato.
A ex-escrava Guilhermina
Esposa de Fortunato
Ao vil papel se propunha
Disse ao ex-senhor, o Cunha
Que viu turvo o horizonte
“A convocação seria
Às 5, nascendo o dia
Na hora de ir à Fonte”
Sabina da Cruz, a outra,
Demonstrou fraqueza à
raça
Entregou até o marido
“Tão na Ladeira da Praça”
O Juiz de Paz da Sé
Logo assim que tomou pé
Disse ao governador
Francisco Souza Martins
Que convocou seus afins
E o cerco preparou
O negro liberto Aprígio
Conhecido em toda
parte
Dava reuniões em casa
Com Pai Manuel Calafate
Um liberto iorubano
Que no credo muçulmano
Fez da fé a sua horta
Já tinham juntado facas
Trabucos, espadas, tacas
Quando alguém bate na
porta
Arruna, o outro líder
Um nagô de Santo Amaro
Conseguiu fugir pra África
Este sim, um fato raro
Ninguém sabe ninguém viu
Como foi que este navio
Abrigou a liderança
Será que se amasiou
Ou então ele se casou
Com uma galega da França?
Mesmo após o levante
Mahim escapou do barril
Foi encarcerada, sim
Depois foi morar no Rio
Toda feminista a ama
Ainda pariu Luiz Gama
Grande abolicionista
Que é vendido pelo pai
Mas quem é forte não cai
Nem por rancor foi racista
Ao final deste levante
No rescaldo da tramóia
Qualquer coisa era motivo
Pra cair na paranóia
Adereços de malê
Viraram, pra você ver
Um artefato maldito
Digno de ir pro lixo.
Muçulmano virou bicho,
Ser humano esquisito
A água desta Baía
Um dia ficou vermelha
Mas o exemplo tá vivo
E nele há quem se espelha
Neste mundo que dá volta
Todo amarrado se solta
Só é atado quem quer
E a liberdade por um triz
Não morreu de infeliz
Afogada na maré
REJANE CARNEIRO | AG. A TARDE
EU TENHO UM SONHO...
SALVADOR, TERÇA-FEIRA, 20/11/2007
❛
“que um dia a sociedade brasileira vivencie um conceito de
nação baseado também nas contribuições das civilizações
africanas e indígenas. Este será o início do nosso processo
revolucionário. É também necessário que o Estado
brasileiro encerre o que tem sido um hábito banal de matar
negras e negros. Eu tenho o sonho de que de fato
tenhamos direito à vida”
Marcus Alessandro Mawusí,
36 anos | é coordenador
nacional do Movimento
Negro Unificado (MNU).
Fundado há 29 anos, o MNU
tem como objetivo
combater o racismo e as
suas seqüelas. A associação
se considera herdeira da
tradição de luta negra vinda
das rebeliões e quilombos
brasileiros e também das
experiências de
autodeterminação dos
povos do continente
africano e de tantos outros
movimentos
revolucionários, como os
Panteras Negras, dos EUA, e
os revolucionários da
independência do Haiti. A
atenção às lutas
internacionais dos povos
africanos e da sua diáspora
faz parte da sua agenda.
| LUTAS DE ONTEM E SEMPRE |
ISLÃ ❚ Além de política, rebelião tinha
cunho religioso, mas não se sabe ao
certo o tipo de islamismo que pregava
Plano era
dirigir a
Bahia
MARY WEINSTEIN
[email protected]
A Revolta dos Malês foi um movimento urbano, em uma capital das
mais importantes do Brasil imperial. Salvador, em 1835, já era grande, mas tinha muitos vazios. Seus
moradores se espalhavam mais
densamente entre o Santo Antônio e o Campo Grande e Corredor
da Vitória, onde se concentravam os ingleses.
A Rebelião dos Malês foi surpreendente porque mobilizou
muitos escravos e libertos africanos – cerca de 600. Pode parecer
pouco mas, para a época, não era,
não. Representaria, na demografia
atual, o equivalente a cerca de 30
mil, quantidade de gente que fica
difícil mobilizar para qualquer coisa ainda hoje.
Agora imagine a Salvador daquela época. Como ligação entre a
Cidade Baixa e a Alta, havia longas
e sinuosas ladeiras que eram vencidas a pé ou em cadeirinhas de arruar. Os prédios não passavam dos
seis andares.
Na cadeia, no subsolo da edificação Casa de Câmara e Cadeia, os
libertários foram buscar um dos líderes da revolta, Pacífico Licutan,
que estava preso como objeto empenhado, porque seu dono devia
muito dinheiro. Outros integrantes renomados eram Hauna, Manoel Calafati e Luis Sanim.
A Revolta aconteceu no mo-
9
*
O livro intitulado
“Rebelião Escrava no
Brasil”, do baiano João
José Reis, é o mais
conhecido estudo sobre
a maior revolta escrava
ocorrida em Salvador. A
rebelião mobilizou
cerca de 600 escravos e
libertos africanos. O
número é significativo
para a população da
Salvador da época, daí
as rigorosas punições
que foram impostas aos
participantes.
mento de conflito entre vários setores, no período regencial. Teve
uma repercussão muito grande no
País. Foi noticiada em jornais da
Inglaterra e dos Estados Unidos.
Os muçulmanos organizaram o
movimento que parece ter sido
gestado durante alguns meses, diz
o professor da Universidade Federal da Bahia e historiador João José
Reis, que escreveu um livro de 666
páginas sobre o episódio que durou não mais que quatro horas:
“Deu tempo suficiente para 70 deles morrerem. E eles só conseguiram matar umas 10 pessoas. Eles
só tinham armas brancas e enfrentaram fuzis e cavalaria”.
O movimento foi abortado algumas horas antes do planejado.
“Um dos núcleos rebeldes estava
reunido na Ladeira da Praça e a polícia chegou lá e bateu na porta”,
começa o professor. “Então, eles se
levantaram. Saíram correndo pelas ruas da cidade convocando todos. As pessoas aderiram. Esse
grupo inicial era de apenas 60 pessoas”, conta Reis.
O historiador avança: “Veja
bem: outros grupos apalavrados
também se levantaram. Mas tudo
aconteceu antes da hora e isso prejudicou porque se perdeu o elemento surpresa. Houve uma denúncia de que uma revolta aconteceria”.
Outro núcleo importante ficava
no Corredor da Vitória, onde os ingleses já moravam e eram supercoesos. Por isso, os escravos também tinham maior facilidade de
comunicação entre si. Os ingleses
mantinham escravos mesmo que,
em 1833, nas colônias caribenhas,
já tivessem abolido a escravidão.
João Reis diz que tanto faz cha-
mar de revolta como de rebelião.
“Não me interesso muito pela terminologia, não”. E explica que,
sem dúvida, o movimento aconteceu para ser contra a escravidão
dos africanos. “Fica difícil garantir
(o motivo do movimento) porque
não deixaram nenhuma informação para a gente. Foram interrogadas mais de 300 pessoas, e resultou
em informações muito superficiais sobre o modelo de sociedade
que eles queriam estabelecer”.
INTENÇÕES RELIGIOSAS – “É
provável que o núcleo islamizado
teria também um plano religioso.
Mas não sabemos que tipo de islã
seria estabelecido, se conviveria
com outros grupos religiosos, se
seria mais ortodoxo. Sei que os integrantes do núcleo dirigente se
pensavam como futuros governantes da Bahia, o que seria uma
revolução. Aí a gente já mudaria de
nome. Mas eles não conseguiram
adesão maciça aqui e só pouca do
campo”. Vieram alguns escravos
de Santo Amaro e havia o plano de
tomada do Recôncavo.
“A estratégia era explodir um
núcleo, com esperança de mais
adesões”, explicou João Reis. E os
escravos aderiram. A revolta foi
marcada para a alvorada do dia 25
de janeiro, porque cairia em um
domingo, com festa para Nossa Senhora da Guia, no Bonfim. A polícia, como agora, estaria por lá,
dando segurança. Os escravos domésticos e de ganho estariam nas
ruas, veriam o movimento. A data
também fechava o mês sagrado do
Ramadã, na Festa da Noite do Destino. Na madrugada do dia 24 para
25 foi feita a abordagem.
Como punição, quatro revoltosos foram fuzilados no Campo da
Pólvora (onde ficava a Casa da Pólvora, mais tarde transferida para o
Matatu), e por isso existe a proposta de aludir o nome da estação de
metrô que está sendo construída
hoje aos malês.
“Tem um detalhe interessante:
eles deveriam ser enforcados, mas
ninguém se prontificou a ser o algoz com medo de retaliação. Aí,
eles tiveram que ser fuzilados, um
tipo de execução reservada aos homens livres”, observa João Reis.
“Os malês eram nagôs, ou seja,
de língua iorubá, os mesmos donos da cultura dos orixás. Vieram
de parte da Nigéria, e um pouco da
República do Benim. Esses que fizeram a revolta eram da Nigéria”,
informa o autor de Rebelião escrava no Brasil: a história do Levante
dos Malês (1835), agora reeditado
pela Companhia das Letras.
Depois disso, muitos libertos
foram deportados. Outros, devido
à perseguição policial, decidiram
sair da Bahia “espontaneamente”.
A repressão foi indiscriminada.
”Houve uma suspeição generalizada sobre a população africana,
em especial sobre os libertos, que
eram vistos como população perigosa”, conclui João Reis.
EU TENHO UM SONHO...
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10
“que o amanhecer será sem racismo, sem sexismo e sem
homofobia. Eu tenho o sonho de que iremos viver numa
sociedade em que todos serão respeitados, e o povo negro
terá direito a professar a sua religiosidade de forma
totalmente livre, de viver nos territórios que lhe pertencem.
Enfim, eu tenho um sonho de viver em uma sociedade em
que não se desrespeite o outro por sua cor, opção sexual
ou religiosa“
| LUTAS DE ONTEM E SEMPRE |
Vilma Reis, 38 anos | é
socióloga, mestre em
sociologia de relações
raciais pela Ufba. É
coordenadora-executiva do
Ceafro, ativista do
movimento de mulheres
negras. O principal objetivo
do Ceafro, fundado há 12
anos, é o enfrentamento de
todas as formas de racismo
e sexismo, buscando
promover igualdade de
oportunidades entre negros
e não-negros e entre
mulheres e homens. O
Ceafro é um programa do
Centro de Estudos AfroOrientais da Ufba (Ceao),
que busca a aproximação
entre a universidade e as
comunidades negras. Suas
ações são, essencialmente,
voltadas para a educação e
profissionalização.
SALVADOR, TERÇA-FEIRA, 20/11/2007
MULHERES ❚ Com papel destacado nas rebeliões do período colonial, negras também tiveram atuação decisiva na economia
Fiéis aos ideais de igualdade
LÍLIA DE SOUZA
[email protected]
Zeferina desce acorrentada até a
Praça da Sé. Sete de março de 1826.
O motivo do infortúnio da negra:
liderar o levante do Quilombo do
Urubu, área que hoje corresponde
às imediações do Parque São Bartolomeu até o Cabula. Apesar das
sevícias, continuava altiva.
– Quem é essa mulher que passa
com cabeça erguida e todos a reverenciam? - indagava o intendente.
– Sou Zeferina, nasci livre e estou aqui para libertar meu povo –
retrucou a mulher.
A socióloga Vilma Reis, coordenadora do Ceafro/Ufba, tem disposição para falar, por horas a fio,
sobre as lutas das mulheres negras.
A narrativa da saga de Zeferina,
contada por Vilma, está no livro
Rebelião escrava no Brasil – A história do Levante dos Malês em
1835, do historiador baiano João
José Reis.
Como tantos severinos na vida,
zeferinas houve e existem aos
montes, por mais que a história
tradicional se esforce para tornar
invisível o papel da mulher negra
na formação do povo brasileiro.
Quando lembradas por figurões
do pensamento brasileiro, como
Gilberto Freire, a elas são atribuídos qualificativos que reforçam a
construção de uma identidade negativa. Não por acaso, o que Freire
enxergou nas mulheres negras foi
uma suposta lascívia, altamente
provocante para os brancos no período colonial. Ou seja, pela ótica,
as mais diversas formas de violências cometidas pelos senhores
contra elas eram apenas conseqüências de tais traços, melhor dizendo, das ancas. Ora, ora...
IDENTIDADE – Na contramão do
preconceito e do estigma de objeto
sexual, caminham inúmeras intelectuais negras que estudam sua
própria história, no intuito de colocar a mulher negra no local que
lhe é de direito.
“Conseguimos construir uma
identidade e uma auto-estima,
apesar de toda a negatividade que
deturpa a história de luta da mulher negra, esta mulher que inclusive constituiu a base para que as
mulheres de classe média pudessem sair para trabalhar”, ressalta a
educadora Ana Célia da Silva.
“Num contexto totalmente adver-
*
As mulheres negras foram ativas nas
lutas. Na contramão do preconceito,
inúmeras intelectuais negras estudam
sua história, para colocar a mulher
negra no local que lhe é de direito.
so, elas souberam desenvolver formas de sobrevivência e resistência
e conseguiram conquistar determinados espaços”, relata a historiadora Cecília Moreira Soares, autora do livro Mulheres negras na
Bahia do século XIX.
A pesquisadora destaca que as
mulheres negras desenvolviam o
chamado “trabalho de ganho” e a
comercialização de produtos essenciais às cidades, chegando a
constituir até o monopólio da venda de peixe em Salvador. Circulando entre as cidades Alta e Baixa,
elas também se dedicavam à venda dos mais diversos produtos e
iguarias, comidas da culinária africana, utensílios, linhas, agulhas.
Além disso, atuavam como lavadeiras, mães-de-leite, dentre outras atividades. Mesmo no jugo escravocrata, faziam resistência.
A escrava no trabalho de ganho
tinha que conseguir o dinheiro necessário para pagar ao seu proprietário o valor do acordo que permitia a ela atuar como ganhadeira,
além do suficiente para se manter
nas cidades, juntando também
uma quantia para a compra de sua
alforria e a de seus parentes. Quando libertas, informa a historiadora
Cecília Moreira, elas precisavam
buscar um núcleo para se manter
nas cidades, ajudar na alforria de
familiares e comprar bens, até
mesmo outros escravos, preferindo adquirir escravas mulheres.
“Durante todo o período escravista, as mulheres negras, com o
seu trabalho, protagonizaram a
compra de alforrias e a organização das famílias, sendo fundamentais para a estruturação da
economia”, enfatiza Vilma Reis.
Mulheres guerreiras de várias
gerações nas artes e nas letras
“É muito difícil citar um ícone,
porque, quando você cita um,
imediatamente lembra que tem
milhares e milhares de mulheres
nessa mesma luta”. A frase, da
educadora Ana Célia da Silva,
uma das fundadoras do
Movimento Negro Unificado na
Bahia (MNU), sintetiza a tarefa
inglória da repórter, que, em
pouco espaço, precisa falar da
luta de gerações de guerreiras.
Mulheres, do passado e do
presente, como Negra Tereza,
liderança por mais de 20 anos do
Quilombo de Quaritetê (MT);
Laudelina de Campos Melo,
fundadora da primeira
Associação das Empregadas
Domésticas (1936), em Santos;
Clementina de Jesus, sambista;
Ruth de Souza e Léa Garcia,
atrizes do emblemático Teatro
Experimental do Negro; dentre
muitas outras, inspiram gerações
de negras.
Arany, primeira secretária da Reparação: “Luta insistente, teimosa”
ACADEMIA – Mas se tem um
pecado que a repórter, depois de
todas as entrevistas feitas, jamais
poderia cometer nestas linhas
seria deixar de falar de uma
personalidade ímpar da luta das
mulheres negras no Brasil: Lélia
Gonzalez (1935-1994).
Mineira de Belo Horizonte,
Lélia Gonzalez foi uma mulher
que ascendeu de babá a
professora universitária. Dona de
trajetória ímpar, já no Rio de
Janeiro, Lélia se engaja na luta
contra o racismo,
transformando-se em uma das
principais referências do
feminismo nas américas.
No País e em inúmeras
viagens ao exterior, Lélia
denunciou o mito da democracia
racial no Brasil. Ao longo da
militância, foi fundadora do
Movimento Negro Unificado
(MNU); do Instituto de Pesquisas
das Culturas Negras do Rio de
Em diversos movimentos de resistência dos negros – dos quilombos às grandes revoltas, como a
dos Malês (1835), em Salvador, ou a
luta pela independência do País,
consolidada na Bahia em 1823 –,
há registros da participação destacada de mulheres negras, por mais
que a história oficial as coloque
sempre em papéis secundários.
HEROÍNAS – Em Palmares, Dandara exerceu forte liderança.
“Quando Domingos Jorge Velho
invade Palmares, grande parte da
resistência é constituída por mulheres”, frisa Vilma Reis.
Vital para a independência, outra heroína negra foi Maria Felipa,
de Itaparica. Contra o domínio
português, comandou negros, índios, homens e mulheres na destruição de dezenas de embarcações aportadas na Praia do Convento para atacar Salvador. Quando se fala em resistência da mulher
negra, outro nome que logo vem à
baila é o de Luíza Mahin, da Revolta dos Malês. Mãe do poeta e abolicionista Luiz Gama, transformou
sua casa em quartel-general.
Se tem um espaço onde as mulheres negras no Brasil consegui-
ram ocupar lugar proeminente foi
nas religiões de matriz africana,
como o candomblé, e também nas
irmandades católicas. Estas últimas, fundamentais para o término
da escravidão.
CANDOMBLÉ – Em viagem a Salvador, percorrendo os candomblés na companhia do escritor Edison Carneiro, a etnóloga americana Ruth Landes percebeu um traço
marcante nos candomblés: o papel dirigente das mulheres. As andanças originaram o clássico Cidade das mulheres. Referências
marcantes na sociedade brasileira
como Mãe Menininha do Gantois,
mãe Aninha, mãe Ilda, mãe Estela
e tantas outras ialorixás são mostras do papel especial que a mulher
negra ocupa no culto aos orixás.
Elas, no campo do sagrado, reeditaram no Brasil o poder que as mulheres tinham nas sociedades matriarcais africanas.
“Nossa sobrevivência só foi
possível graças à nossa capacidade
de ter resistido na religiosidade”,
considera Vilma Reis. “Nos candomblés, ser mulher religiosa significa ascender na comunidade e
para além dela”, avalia Cecília.
FOTOS LÚCIO TÁVORA | AG. A TARDE
Janeiro (IPCN-RJ); do Nzinga
Coletivo de Mulheres Negras; e
do bloco afro Olodum, em
Salvador.
“Convivi com Lélia, que vinha
dar cursos de formação política
para muitos dos quadros do
Movimento Negro na Bahia”,
salienta a educadora Ana Célia
da Silva.
TEIMOSIA – “A luta das
mulheres negras é uma luta
insistente, teimosa, do dia-a-dia”,
considera a primeira secretária
da Reparação do País – pasta
criada pela Prefeitura Municipal
de Salvador em 2003 –, Arany
Santana. “Infelizmente, se
analisarmos os saldos, ainda não
são tão grandes, principalmente
em Salvador, a segunda maior
cidade negra do mundo”, avalia
Arany.
Pesquisas do IBGE
demonstram que as mulheres
ganham menos que os homens,
por mais especializadas que
sejam. E a mulher negra é a
maior vítima do desemprego ou
subemprego.
“Existem os últimos bastiões
de reserva para determinados
grupos que precisamos romper”,
salienta a historiadora Cecília
Moreira. Tais bastiões estão
colocados, sobretudo, nos postos
de poder. De Antonieta de
Barros, primeira deputada
estadual negra eleita por Santa
Catarina, em 1934, a Benedita da
Silva, primeira senadora negra
(1994), pouco se alterou no
quadro político brasileiro quanto
à participação efetiva delas nos
poderes da República. Na
opinião de Arany Santana, ainda
há muito a ser percorrido pelas
mulheres em geral, mas
sobretudo pelas negras.
Os textos e poemas de Lélia
Gonzalez precisarão estar cada
vez mais vivos.
Cecília é autora do livro “Mulheres negras na Bahia do século XIX”
REJANE CARNEIRO | AG. A TARDE
EU TENHO UM SONHO...
SALVADOR, TERÇA-FEIRA, 20/11/2007
❛
“de que nossos jovens possam se libertar de todos os
vícios. Sonho que eles possam estar livres de todos os vícios
que acabam aprisionando as suas mentes. Isso porque são
estes obstáculos que os tornam menos negros. São estas
barreiras que fazem também com que sejam menos
orgulhosos de si próprios e fazem com que eles esqueçam
as suas preciosas raízes e as belas histórias de luta pela
liberdade do seu povo”
| LUTAS DE ONTEM E SEMPRE |
SOTEROPOLITANO ❚ Câmara fez cidadão de Salvador o mais versátil ativista negro
O general Abdias
CLEIDIANA RAMOS
[email protected]
Quando Palmares caiu, a maior
preocupação dos seus algozes era
provar que Zumbi estava morto,
derrotado. Para tanto, exibiram
partes do seu corpo em praça pública. Não deu certo, pois Zumbi já
era mito e será espelho de resistência até o último dia em que o racismo persistir no Brasil. E é como
soldado de Zumbi que o mais novo
cidadão de Salvador, Abdias do
Nascimento, 93 anos, se define:
“Não poderia deixar de vir, mesmo me sentindo indisposto, pois
sou soldado de Zumbi”, disse ao
chegar para a cerimônia na Câma-
ra, na última quarta-feira, quando
também recebeu a Medalha Zumbi dos Palmares. Uma nomenclatura guerreira é mesmo a melhor
definição para Abdias.
Mas, para tanto que já fez, talvez
a melhor patente seja a de general-em-chefe. Economista, artista
plástico, escritor, poeta e dramaturgo utilizou de todas estas facetas para denunciar a persistência
da desigualdade racial no Brasil. E,
isto em tempos em que a “democracia das raças” era considerada o
maior trunfo de construção da
identidade dos brasileiros.
Mas, Abdias, incansavelmente,
levou à frente o grito de que a escravidão e seus malefícios conti-
nuavam a negar cidadania a quem
nasceu negro. Economista, tinha
as armas acadêmicas para desmentir a democracia racial.
Inquieto, militou na Frente Negra Brasileira (FNB), na década de
30, um período quente na política
nacional. Artista plástico, escritor,
poeta e dramaturgo fundou em
1944 o Teatro Experimental do Negro (TEN), num ato de ousadia.
Como não poderia ser diferente
se viu obrigado a deixar o país durante a ditadura militar. Ainda assim não parou. Sua voz ganhou então projeção internacional. De retorno ao Brasil foi um dos protagonistas do ato público de inauguração do Movimento Negro Unifica-
do (MNU) em 1978, nas escadarias
do Teatro Municipal de São Paulo.
Incansável, foi combater também
nas trincheiras do poder oficial: tornou-se
deputado
federal
(1983-1986), titular da Secretaria Extraordinária de Defesa e Promoção
das Populações Afro-Brasileiras (Seafro), do governo do Rio de Janeiro
(1991-1994); senador da República
(1991-1999) e voltou a atuar no governo do Rio de Janeiro como secretário
de Direitos Humanos (1999-2000).
Hoje, o corpo já dá os sinais de cansaço, mas nada pára a determinação
de Abdias, característica própria dos
herdeiros de Zumbi.
Colaborou Vítor Rocha
Estelita Alves Silva, 56 anos|
é ialorixá e professora
aposentada. É a
coordenadora do Afoxé Ilê
Oyá, criado há 29 anos. A
associação desenvolve
projetos para a juventude
negra em diversas áreas,
especialmente cultura e
educação. São realizadas
oficinas de
aperfeiçoamento
profissional com jovens,
além de capoeira, dança,
percussão e composição
musical. O Afoxé Ilê Oyá
também oferece cursos de
profissionalização para
adultos com formação em
política e direitos humanos.
Atualmente, a associação
tem sido a principal gestora
da festa de Santa Bárbara,
em 4 de dezembro, no
Mercado de Santa Bárbara.
11
❛
ABMAEL SILVA | AG. A TARDE | 14.11.2007
“Agora sou um de vocês
(cidadão de Salvador). Aqui é
o quartel-general de toda
esta luta”
Homenagem incluiu também outorga da Medalha Zumbi dos Palmares
❛
“que cada cidadão se conscientize de que somos sujeitos e
construtores da nossa história. Todos devem assumir a
responsabilidade de mudança da nossa nação, dando um
basta nas desigualdades sociais que tanto atormentam e só
fazem aumentar. A transformação que esperamos para uma
sociedade mais igualitária e justa, livre das amarras do
preconceito e da discriminação racial depende de toda a
população”
| LUTAS DE ONTEM E SEMPRE |
EDUCAÇÃO ❚ Sistema de cotas colocou o negro de escola pública na universidade; na
Ufba, a avaliação sobre eles é igual ou superior à dos não-cotistas em 56% dos cursos
Cotistas mostram
bom desempenho
ELÓI CORRÊA | AG. A TARDE | 12.8.2003
JURACY DOS ANJOS
[email protected]
Cinco anos se passaram desde a
implantação do sistema de cotas
na Universidade Estadual do Rio
de Janeiro (Uerj) – pioneira no Brasil a adotar, por medida de lei estadual, a reserva de vagas para estudantes negros e oriundos de escola pública. A medida, apesar do
tempo e de diversas discussões calorosas, ainda continua a gerar
muita polêmica em todo o País.
Prova disso é o embate entre os
que acreditam que as cotas são a
melhor maneira de incluir socialmente os negros na universidade e
aqueles que vêem essa ação como
paliativa e racista, porque divide a
população entre brancos e negros
e não significa a melhoria da educação pública.
Qual das duas partes tem razão
neste debate? Os a favor ou os contra as cotas? A resposta a esta pergunta talvez esteja longe de um
consenso. Mas a legalização das
cotas, não. Dois projetos de lei (Lei
das Cotas e Estatuto da Igualdade
Racial), em tramitação atualmente
no Congresso Nacional, tentam a
sanção das cotas em todas as universidades públicas.
Mas os contrários a essa medida, como a antropóloga e professora da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ) Yvonne Maggie, são radicais ao afirmar que a
reserva de vagas para negros compromete o princípio de igualdade
SALVADOR, TERÇA-FEIRA, 20/11/2007
Estudantes ocupam Reitoria da Ufba após reunião com reitor para pedir cotas para negros na universidade
previsto na Constituição brasileira. “O Brasil optou por um caminho de separar legalmente a população entre brancos e negros, com
a discussão destes dois projetos de
lei. Estes projetos, se votados e
aprovados, vão mudar o estatuto
jurídico brasileiro. E isso é grave”,
assegura Yvonne.
Frei David dos Santos, diretor-executivo da ONG Educafro,
refuta a opinião da professora. “O
projeto de cotas e o Estatuto da
Igualdade irão combater a separação que já está implantada no Brasil e que gera a exclusão. Esta separação oficial começou com a definição jurídica de que negros eram
escravos dos brancos e não tinham
direito à cidadania”.
Segundo o ativista, a mais recente análise dos dados da Uerj,
agrupando as informações desses
cinco anos de cotas, revela que os
alunos não-cotistas obtiveram
média global de 6,37 pontos, enquanto os cotistas tiveram média
de 6,51 pontos.
Estudos feitos em 2006, pela
Universidade Federal da Bahia
(Ufba), para avaliar o desempenho
dos estudantes cotistas, em diversos cursos, também revelam que
os cotistas tiveram desempenho
igual ou superior ao dos não-cotistas em 56% dos cursos.
Nas graduações de alta concorrência, como as de Comunicação
Social, por exemplo, 100% dos estudantes cotistas obtiveram coefi-
ciente de rendimento entre 5,1 e 10
em todo ano de 2005, contra 88,9%
dos não-cotistas. No curso de medicina, o mais concorrido, 93,3%
dos cotistas apresentaram coeficiente de rendimento entre 5,1 e
10, contra 84,6% dos não-cotistas.
Antes da implantação do sistema de cotas, a média geral de participação de estudantes de escola
pública na Ufba era de 39,8%.
Atualmente, aumentou para 48%,
com variação a depender do curso.
“Isso significa que os cotistas estão
fazendo um grande esforço para
ter um bom desempenho na universidade, e eles estão conseguindo”, destaca o pró-reitor de ensino
de graduação da Ufba, Maerbal
Marinho.
“A medida
não surgiu
do nada”
Luta anti-racista é
política de governo
CLEIDIANA RAMOS
[email protected]
Luiz Alberto é titular da
recém-criada Sepromi, órgão do
governo da Bahia. Já Matilde
Ribeiro está à frente da Seppir,
que tem status de ministério
Segundo o coordenador do
Projeto de Acompanhamento,
Manutenção e Avaliação de
Ações Afirmativas (AMA) da
Uneb, Manoelito Damasceno,
nestes cinco anos, foi possível
verificar que a avaliação de
desempenho dos cotistas é
positiva, não há diferença entre
o desempenho acadêmico de
cotistas e não-cotistas.
Quando questionado se com
os bons resultados do sistema
não seria a hora de acabar com a
reserva de vagas, o coordenador
é enfático: “Não. Isso depende
do processo e de seus resultados.
Se o efeito está sendo positivo,
não tem por que mudar. A
medida deve atender à realidade.
Quando tivermos condições
sociais igualitárias, as cotas irão,
naturalmente, acabar”, comenta
Damasceno.
QUEM É NEGRO – Uma das
principais polêmicas que
envolvem o sistema de cotas, nas
universidades que adotam a
reserva de vagas para estudantes
negros, é como determinar
quem é ou não negro. Esta
situação se agravou depois do
caso dos irmãos gêmeos
idênticos (univitelinos) Alex e
Alan Teixeira da Cunha, 18 anos,
que se inscreveram pelo sistema
de cotas da Universidade de
Brasília (UnB), em 2007.
Um dos irmãos foi aceito no
sistema, o outro, não. Tempos
depois, após uma grande
repercussão nacional, a
universidade recuou na decisão e
decidiu aceitá-los pelas cotas.
Esse caso fez com que a UnB
mudasse a seleção dos cotistas.
Agora, os candidatos que se
declararem negros ou pardos
deverão ser submetidos a uma
entrevista presencial.
perfil
MATHEUS MAGENTA | DIVULGAÇÃO
Neumar Rosário, 20,
estudante cotista com
o melhor escore da
Facom/Ufba ❚
O pai, Osmar, trabalha como gari
e a mãe, Neusa, vende frutas e
doces num pequeno comércio no
Pernambués, bairro onde vivem.
“Eu moro com meus pais, mas à
noite fico na casa de minha avó.
Eu não gosto da idéia dela dormir
sozinha”. Além da companhia,
Neumar ajuda nas contas da casa.
Das duas casas. Testemunha de
Jeová, o aspirante a jornalista
começou a trabalhar como menor
aprendiz no Centro de Recursos
Ambientais (CRA), quando estava
na 8ª série do ensino
fundamental, e lá está até hoje.
Foi a isenção da taxa do vestibular
da Ufba que o motivou a fazer as
provas. “Sem isso eu nem teria me
inscrito”. Ele escolheu o curso de
jornalismo por causa da afinidade
com as matérias de humanas.
Quando perguntado sobre o
sistema de cotas, pelo qual
ingressou na universidade,
Neumar hesita. Ele balança seu
tênis All Star bege, ajeita a manga
da camisa de algodão com listras
azuis, procura as palavras com um
olhar distante. “Acho que as cotas
não são a melhor solução para o
problema do acesso à
universidade, mas talvez
funcionem como um início de
um processo que tente equacionar
melhor a educação”, diz. Neumar
tem as melhores notas de
sua turma ❚
Colaborou o repórter Matheus Magenta
XANDO PEREIRA | AG. A TARDE | 9.11.2007
A TARDE | Como se deu a implantação das cotas na Bahia?
IVETE SACRAMENTO | Em 2001,
a Câmara dos Vereadores, por
meio de uma indicação do vereador Valdenor Cardoso, hoje presidente da Câmara, enviou uma
proposta, aprovada em plenário,
à Secretaria Estadual da Educação, para que a Universidade Estadual da Bahia implantasse cotas para negros.
IS | É um equívoco dizer que os
candidatos cotistas seriam avaliados por meio de uma prova diferenciada. A prova é a mesma. É
o mesmo sistema de avaliação. O
que difere o cotista do não-cotista é que ele faz uma opção. E ao
fazer a opção para ser cotista, ele
tem que estar enquadrado em
determinados critérios: ser estudante da rede pública e se declarar negro.
AT | Quais foram as primeiras
medidas para adotar as cotas?
IS | Apoiar pré-vestibulares, na
época só tinha o Steve Biko, que
tivessem recorte racial. De que
forma nós apoiamos essas iniciativas? Com a isenção da taxa do
vestibular. A segunda medida foi
estudar o vestibular em si para
ver se na elaboração das provas
nós estávamos beneficiando um
ou outro segmento. Então verificamos, e isso não está restrito somente ao vestibular da Uneb, que
o vestibular era elaborado pensando em quem tivesse cursado
pré-vestibular. Em tese, era elaborado e privilegiava uma determinada classe social. Então, precisamos ter um nível democrático na elaboração do vestibular, e
isso significava basear sua elaboração nas diretrizes de educação
média do Estado. E foi o que fizemos a partir de então.
AT | Mas a noção de ação afirmativa estava clara?
IS | Naquele momento a noção
de ação afirmativa e afrodescendência não estava em questão
ainda no Brasil. Para se ter uma
idéia, da abolição da escravatura
à adoção das cotas, nenhuma
ação afirmativa concreta tinha sido realizada para melhorar a qualidade de vida do povo negro do
Brasil. Então, primeira contribuição que a adoção das cotas na Bahia favoreceu foi a discussão de
quem é negro no Brasil.
AT | Isso significava uma prova
diferenciada para os estudantes
cotistas?
AT | Muitas pessoas desconhecem a história por trás das ações
afirmativas. Como a senhora
avalia isso?
IS | O grande equívoco é pensar
que esta medida surgiu do nada.
Não. Esta medida é fruto do trabalho, especialmente do Movimento Negro Unificado, que vem
discutindo, desde 1976, formas
de se ampliar a participação do
negro na economia e no desenvolvimento deste País.
13
defesa da igualdade, como resultado das grandes reivindicações dos movimentos negros
rimeira mulher negra a assumir o cargo de reitora em
uma universidade pública no Brasil, Ivete Sacramento
foi decisiva para a adoção das cotas na Bahia. Longe
da cadeira de reitora, mas não da universidade, continua a lutar pelo direito de acesso. Em entrevista a
A TARDE, ela revelou o processo para implantação do sistema de
cotas na Uneb. Além disso, enfatizou que o processo adotado para
avaliar os estudantes cotistas, ao contrário do que muitos pensam,
não se diferencia do adotado para os não-cotistas. Ela afirma que
existe uma única prova para avaliar ambos e que o vestibular da
Uneb toma como base a educação média dos candidatos.
*
| LUTAS DE ONTEM E SEMPRE |
VITÓRIAS ❚ Ministério, secretarias estaduais e municipais estão adotando medidas em
Ivete Sacramento |
Ex-reitora da
Universidade Estadual
da Bahia (Uneb)
QUEM É | Mestre em educação pela Université Du Quebec À
Montréal (Canadá, 1990), Ivete Sacramento foi reitora da Uneb
por três anos (2002-2005). Na função, foi uma das principais vozes
a favor da criação das cotas na universidade pública. Neste ano, a
professora teve seu trabalho em prol da educação inclusiva
reconhecido pela Revista Cláudia, que a premiou na categoria
políticas públicas. Ela foi a única baiana a concorrer ao prêmio.
❛
“de que as religiões de matrizes africanas sejam tratadas
como as demais. Tenho o sonho de que possamos vivenciar,
de fato, uma história de igualdade de direitos e de
oportunidade, visto que este é um resgate necessário e que
há muito nos devem. Tenho o sonho de ousar um dia dizer
para cada criança negra deste País e deste mundo: todos
vencemos. Somos, de fato, iguais. Nem mais, nem menos.
Simétricos, assim como o Oxé de Xangô”
Marcos Fábio Rezende
Correia, 33 anos | é
coordenador-geral do
Coletivo de Entidades
Negras (CEN), ogã
confirmado para Ewá do
terreiro Ilê Axé Oxumarê e
historiador. O CEN foi criado
há dois anos. É formado por
diversas organizações, como
blocos de Carnaval, terreiros
de candomblé, associações
de bairro, dentre outras.
Juntamente com outras
entidades do movimento
negro, o CEN participa da
Coordenação Executiva do
Congresso Nacional de
Negros e Negras do Brasil.
O principal objetivo deste
organismo é a busca
conjunta de medidas para a
construção de um projeto
político mais inclusivo para
o Brasil.
FERNANDO AMORIM | AG. A TARDE | 18.12.2006
P
Uneb tem 6,5 mil alunos nas cotas
Neste ano, o sistema de cotas na
Uneb (Universidade do Estado
da Bahia) completou cinco anos,
com as primeiras turmas de
formados. Segunda universidade
no Brasil a adotar o sistema de
cotas, a Uneb, em 2002,
determinou que 40% das vagas
do vestibular fossem reservadas
para negros de escolas públicas.
Apesar das duras críticas que
recebeu no início, sendo acusada
de criar um processo racista de
seleção, a Uneb tem números
grandiosos de inclusão: dos 16
mil estudantes da universidade,
6.500 são cotistas.
SALVADOR, TERÇA-FEIRA, 20/11/2007
ELÓI CORRÊA | AG. A TARDE | 24.11.2006
12
EU TENHO UM SONHO...
REJANE CARNEIRO | AG. A TARDE
REJANE CARNEIRO | AG. A TARDE
EU TENHO UM SONHO...
Sirlene Vanessa de Souza
Assis, 24 anos| é educadora
popular e membro da União
de Negros pela Igualdade
(Unegro). Há sete anos,
trabalha com formação
política e humana de 30
jovens carentes do bairro de
Paripe, com idades entre 12
e 16 anos, na Escola
Comunitária Nossa Senhora
Medianeira, em Paripe. A
formação teve início ainda
no bairro de origem,
Uruguai, onde fazia parte
do Movimento de
Adolescentes em Busca de
Liberdade de Expressão.
Acreditando na educação
como mecanismo de
transformação, após
concluir o curso de
magistério, passou a atuar
em sua comunidade a partir
da identidade cultural.
Em 2003, o governo federal ganhou o seu primeiro organismo voltado especificamente para tratar do enfrentamento da desigualdade
racial: a Secretaria Especial de Políticas para a
Promoção da Igualdade Racial (Seppir), que
tem status de ministério.
No mesmo ano, foi criada em Salvador a Secretaria Municipal da Reparação (Semur). Há
sete meses, o governo estadual baiano ganhou
um órgão parecido, que é a Secretaria de Promoção da Igualdade (Sepromi).
A criação destes organismos dentro do aparelho do Estado é considerada um grande
avanço. “A nossa batalha é para que a Sepromi alcance o seu principal objetivo que é o
de traçar as políticas anti-racistas fazendo a articulação entre as secretarias do
governo”, destaca o secretário estadual de Políticas da Igualdade, Luiz
Alberto Silva dos Santos.
Conhecido por sua atuação parlamentar, Luiz Alberto agora está assumindo o desafio de uma função
executiva. Ele relata que os primeiros meses foram para arrumar a casa, mas sem perder a direção de encaminhar diversas ações.
“Nós passamos a ser a referência
de demandas das comunidades negras. Mas o nosso desafio é também
o de fazer com que as outras secretarias encaminhem as políticas das
suas áreas para estas comunidades”, completa. A Sepromi também tem a função de cuidar
das políticas direcionadas a
indígenas e mulheres.
A ministra Matilde
Ribeiro, titular da
Seppir, destaca as
estratégias do órgão para reforçar suas ações.
“A Seppir estabeleceu como prioridades as políticas de quilombos, educação, trabalho e emprego, cultura, saúde, relações internacionais,
capacitação de gestores para operar políticas
de igualdade racial e segurança pública”. De
acordo com ela, o mito da democracia racial
ainda é um dos mais sérios obstáculos a ser
vencido.
“A ação do mito da democracia racial é um
fator que impede a total compreensão da situação de privilégio que beneficiou o grupo
hegemônico não-negro cujos resquícios percebemos até hoje”, ressalta Matilde Ribeiro.
Por outro lado, aparecem as primeiras mudanças em relação ao enfrentamento do racismo. “O Brasil de hoje discute o racismo e a discriminação racial e, até pouco tempo atrás, esse era um assunto que não estava na agenda
nacional. Escolas, instituições públicas e privadas, imprensa e estudiosos incorporaram o
Dia Nacional da Consciência Negra”, avalia a
ministra.
CONQUISTAS – Ela destaca que o papel do Estado brasileiro, inclusive previsto na Constituição, é assegurar igualdade para todos os
brasileiros. “Como existe uma situação de disparidade entre os grupos étnico-raciais, é nosso dever promover políticas públicas que propiciem a inclusão. Nesse sentido, as políticas
de ações afirmativas se configuram como instrumentos para promover a participação da
população negra, maioria expressiva no país”,
diz a ministra.
Ela afirma que a criação da Seppir é uma demonstração da maior visibilidade da ação dos
movimentos negros organizados. De certa forma, esta é mais uma conquista das suas reivindicações.
“A criação da Seppir é uma resposta do governo federal a uma reivindicação histórica,
que é a exclusão da população negra. A partir
de ações como a do governo federal, muitos
governos estaduais e municipais tem implementado políticas de promoção da igualdade
racial e isto não é apenas resultado da Seppir,
mas de anos de lutas de muitas pessoas que,
em suas cidades, em seus sindicatos, escolas e
outros espaços reivindicatórios estampam as
necessidades da população negra local”,
acrescenta.
AÇÕES –Dentre os principais projetos da instituição, a ministra destaca as ações da Política
Nacional de Promoção da Igualdade Racial. O
órgão tem priorizado saúde, qualidade de vida
e segurança alimentar e nutricional; educação; cultura e diversidade; desenvolvimento,
trabalho e renda; acesso à terra, habitação de
qualidade e infra-estrutura; democracia, cidadania e participação social; segurança pública,
direitos humanos e mediação de conflitos; informação, pesquisas e diagnósticos; e relações
internacionais.
SALVADOR – A Secretaria Municipal da Reparação (Semur), órgão da Prefeitura de Salvador,
foi instalada em 18 de dezembro de 2003. A sua
primeira titular foi Arany Santana, sucedida
por Gilmar Santiago. A atual ocupante do cargo é Antônia dos Santos Garcia.
Para o sub-secretário da Semur, Antonio
Cosme Lima da Silva, a criação da secretaria foi
uma grande vitória da comunidade negra.
“Embora existam críticas sobre as questões relacionadas à estrutura e orçamento, há unanimidade sobre o reconhecimento da sua importância”, completa.
Ele destaca como principais ações da Semur, o Programa de Combate ao Racismo Institucional (PCRI), que envolve outros órgãos
da administração municipal, o Grupo de Trabalho de Saúde da População Negra, o Observatório Racial do Carnaval e o Mapeamento
dos Terreiros de Candomblé.
Almiro Sena Soares Filho,
40 anos | é promotor de
justiça e titular da
Promotoria de Justiça de
Combate ao Racismo e à
Intolerância Religiosa do
Ministério Público da Bahia
(MP). A promotoria, que é
pioneira no Brasil, foi criada
em 1997. O órgão surgiu
por meio da reivindicação
dos movimentos negros
organizados, diante do alto
número de casos
envolvendo racismo e
intolerância religiosa que
vinham ocorrendo em
Salvador. O primeiro titular
da promotoria, que se
tornou um referencial na
defesa dos direitos da
comunidade negra, foi o
atual procurador-chefe do
MP, Lidivaldo Reaiche
Raimundo Britto.
REJANE CARNEIRO | AG. A TARDE
EU TENHO UM SONHO...
14
❛
“de que um dia a Associação Comercial da Bahia, as
grandes empresas da construção civil, os partidos políticos,
as academias de letras e as mesas diretores dos ‘clubes
fechados’ da alta burguesia baiana congregarão entre seus
integrantes os negros e negras em conformidade
proporcional com a população multiétnica da Bahia. Eles
deixarão de obedecer a essa proporção apenas quando se
trata da violação de direitos“
| LUTAS DE ONTEM E SEMPRE |
SALVADOR, TERÇA-FEIRA, 20/11/2007
TERRA ❚ Comunidades remanescentes quilombolas lutam para ver reconhecido seu direito à propriedade. Decreto gerou polêmica
Brasil possui novos Palmares
LUIZ TITO | AG. A TARDE
As novas gerações convivem com problemas antigos, como falta de água potável e de boas estradas para escoamento da produção. Cerca de 500 famílias vivem na comunidade situada na região de Bom Jesus da Lapa
CLEIDIANA RAMOS
[email protected]
Em 20 de novembro de 2003, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou o Decreto nº 4.887. O documento veio para regulamentar os
procedimentos para a titulação
das terras remanescentes de quilombos. Segundo dados da Secretaria Especial de Políticas para a
Promoção da Igualdade Racial
(Seppir), até agora, existem pouco
mais de 3.500 áreas deste tipo
identificadas, mas apenas 600 processos de regularização.
Na Bahia, também de acordo
com a Seppir, apenas quatro áreas
de quilombo estão tituladas pelo
Incra, ou seja, completaram todo o
processo. Uma das inovações que
o decreto trouxe foi o auto-reconhecimento. Ele considera remanescentes de comunidades quilombolas os grupos étnico-raciais
que se autodefinam como tais.
Mas para isto é necessário ter trajetória histórica, relações territoriais específicas, com presunção
de ancestralidade negra e história
de resistência.
O partido Democratas (DEM)
há três anos, quando ainda se chamava Partido da Frente Liberal
(PFL) entrou com uma ação direta
de inconstitucionalidade (Adin)
contra a medida. “O decreto não
pode regulamentar um dispositivo
constitucional”, diz o advogado
Ademar Gonzaga, contratado pelo
DEM para ingressar com a ação.
Já a subsecretária de Políticas
para as Comunidades Tradicionais
da Seppir, Givânia Maria da Silva,
afirma que o decreto só veio cumprir o que manda a Constituição.
“A questão da concentração de
terras no Brasil sempre provocou
polêmica por parte dos setores que
concentram a posse”, destaca.
O secretário estadual de Políticas de Promoção da Igualade Racial, Luiz Alberto Silva, faz avaliação semelhante. “O Brasil vive um
momento em que há uma grande
valorização da terra com a questão
do investimento em biocombustível, por exemplo, o que abre espaço para a tensão”.
Como deputado federal, Luiz
Alberto foi relator do projeto de lei
que tentou regulamentar o Art. 68
das Disposições Transitórias da
Constituição Federal. Aprovado
por deputados e senadores, o projeto foi vetado pelo presidente Fernando Henrique em 2002. Parte do
que estava no projeto acabou se
tornando o Decreto 4.887/03.
Para Valdélio Santos Silva, doutorando em Estudos Étnicos e Africanos, com uma pesquisa sobre
quilombos da região do médio São
Francisco no oeste da Bahia, falta
maior conhecimento dos brasileiros sobre os quilombos.
“Existem idéias correntes incompatíveis com a própria história do Brasil”. Ele cita, por exemplo,
a versão de que todos os quilombos foram identificados e destruídos pelo poder oficial brasileiro.
“Existia uma multiplicidade de estratégias para se buscar viver em liberdade. Uns optavam pela organização em locais próximos às vilas e cidades. Outros se organizavam na vida rural. Não daria jamais
para que o poder oficial derrotasse
todas elas“, acrescenta.
Após a abolição, o Estado brasileiro não deu respostas a estas comunidades, que continuaram tocando as suas vidas. “Elas continuaram no meio rural sem que o
Estado as reconhecessem”, diz.
*
Segundo o inciso 1º
do Art. 2º do Decreto
nº 4887/2003, a
caracterização da
comunidade
quilombola é atestada
pela autodefinição da
própria comunidade. Já
o Inciso 2º do artigo de
mesmo número diz que
são terras quilombolas
as usadas pelas
comunidades com estas
características para fins
sociais, econômicos e
culturais.
Rio das Rãs foi primeira área de
quilombo oficializada na Bahia
MIRIAM HERMES | SUCURSAL
BARREIRAS
[email protected]
A 60 km da cidade de Bom Jesus
da Lapa, na margem direita do
Rio São Francisco, o território
remanescente de quilombo Rio
das Rãs – no município
conhecido pela gruta do Bom
Jesus e que recebe milhares de
romeiros todos os anos, a 840
km de Salvador –, foi o primeiro
a receber a imissão de posse na
Bahia, em 1999.
Mesmo sendo considerado
uma referência na luta pela terra
dos descendentes de escravos no
Brasil, o território de 37 mil
hectares e composto de oito
comunidades, ainda enfrenta
problemas, como falta de água.
Membro da Coordenação
Nacional das Comunidades
Negras Rurais Quilombolas
(Conaq), Simplício Arcanjo, 46
anos, diz que na região do médio
São Francisco há 13
comunidades na luta pela
regularização. “A única forma
dos processos de
reconhecimento avançarem é
através da união e perseverança
das pessoas que estão envolvidas
nos projetos”, completa.
As 500 famílias da
comunidade quilombola moram
em casas de alvenaria
construídas pelo Incra e têm
energia elétrica do Programa Luz
para Todos. Grande parte das
casas tem aparelhos de rádio e
televisão (via satélite). Os
povoados têm orelhões e sinal de
duas operadoras de celular.
Apesar de a estrada até a sede do
município estar em péssimo
estado de trafegabilidade, há
uma linha regular de ônibus, que
trafega de segunda a sábado.
ARTIGO ❚
Os organismos de promoção da igualdade racial
ANTONIO COSME LIMA DA SILVA *
A resistência negra sempre
existiu em nosso país, o povo
negro brasileiro sempre lutou
contra a violência e a lógica da
“epidermização” das nossas
relações sociais. O movimento
negro contemporâneo, desde a
Frente Negra Brasileira e,
sobretudo, nos últimos 30 anos,
após o surgimento do Ilê Aiyê e
do Movimento Negro Unificado –
MNU, conseguiu questionar e
desmontar o mito da democracia
racial que apresentava o Brasil
como um modelo de democracia
racial a ser seguido.
As conquistas do movimento
negro na contemporaneidade
não se restringem apenas ao
desmonte da ideologia da
democracia racial. No plano
institucional, levaram o Estado a
reconhecer o racismo e o
machismo, como ideologias
estruturantes das desigualdades
raciais e de gênero.
Depois da III Conferência
Internacional contra o Racismo
em Durban, 2001, após decisiva
participação do movimento
negro brasileiro naquele evento,
o tema das Políticas de Ações
Afirmativas entrou
definitivamente na pauta dos
grandes temas a serem debatidos
no Brasil.
Em nível nacional, foi criada,
no início do ano de 2003, a
Secretaria Especial de Políticas
de Promoção da Igualdade Racial
– Seppir, e em 18 de dezembro
daquele mesmo ano, a Secretaria
Municipal da Reparação –
Semur, em Salvador. Agora em
2007, no âmbito estadual, surgiu
a Secretaria de Promoção da
Igualdade – Sepromi.
A Semur é resultado de uma
conquista da população da mais
importante cidade de cultura
negra da diáspora. Embora
existam criticas por parte do
movimento negro quanto à sua
estrutura e limitação
orçamentária, há quase uma
unanimidade no
reconhecimento da sua
importância.
Nos últimos anos,
importantes ações e projetos
foram implantados pela Semur,
dentre os quais o Programa de
Combate ao Racismo
Institucional – PCRI que,
definitivamente, ampliou o
debate sobre o racismo presente
nas organizações e, em especial,
nas administrações públicas nas
suas três esferas. O Grupo de
Trabalho de Saúde da População
Negra, o Observatório Racial do
carnaval, a implementação da
Lei 10.639/03, que torna
obrigatória a inclusão das
africanidades nos currículos e o
Mapeamento do Terreiros de
Candomblés de Salvador são
algumas das ações que destaco
nesses três últimos anos, em
articulação com outras
secretarias, embora, nesse
período, tenhamos enfrentado
muitos obstáculos para
viabilização de várias
importantes ações.
No que diz respeito à
tentativa de reparar o descaso e
abandono com as religiões de
matrizes africanas, está em curso
um projeto que tem como
objetivo efetuar pequenas
intervenções de melhorias físicas
em 55 comunidades de terreiros
em diversos bairros da cidade,
sendo a questão fundiária o
grande entrave para a
concretização deste projeto. Para
resolver o impasse, nesse
“novembro negro”, o prefeito
João Henrique, à luz da Lei
Municipal 7.216/2007, baixou o
decreto 17.709/2007
reconhecendo as comunidades
como Patrimônio Histórico e
Cultural de Origem
Afro-brasileira de Salvador, ao
tempo que criou o Cadastro
Geral das Comunidades
Religiosas de Referência da
Cultura Afro-brasileira da Cidade
de Salvador.
Diversas outras importantes
ações foram desenvolvidas pela
Semur, no entanto, elas ainda
estão longe de resolver os sérios
problemas enfrentados pelos
negros e negras de nossa cidade.
Acredito que só com
determinação, orçamento e
vontade política das
administrações, aliadas a uma
ação conjunta entre a Seppir,
Sepromi e a Semur poderemos, a
médio e longo prazo, articular
políticas estaduais e municipais
que de fato promovam a tão
sonhada igualdade racial em
nosso País.
Antonio Cosme Lima da Silva é subsecretário
municipal da Reparação.
REJANE CARNEIRO | AG. A TARDE
EU TENHO UM SONHO...
| LUTAS DE ONTEM E SEMPRE |
SALVADOR, TERÇA-FEIRA, 20/11/2007
MARGARIDA NEIDE | AG. A TARDE | 10.2.2007
❛
“que a cor da pele não será mais vista como passaporte
para privilégios ou como fator de segregação. Sonho com o
dia em que a polícia tratará de maneira cordial todo
cidadão negro, especialmente os jovens rastas e os que
exibem o cabelo black power, dando-lhes segurança da
mesma maneira que é dada a um cidadão branco de
qualquer lugar deste País. Nesse dia, todos vivenciarão o
princípio da igualdade e celebrarão a diversidade“
Olívia Santana, 42 anos | é
vereadora (PCdoB) e
membro da coordenação
nacional da União de
Negros pela Igualdade
(Unegro). Ainda na
universidade, em 1987,
ajudou a fundar a
Juventude Negra, na Ufba,
para discutir o racismo. Em
1988, contribuiu para a
criação da Unegro e, em
1992, formou-se em
pedagogia. Foi secretária
municipal de Educação e
Cultura, em 2005, e é
ativista na luta contra o
racismo e as desigualdades
sociais e de gênero. Como
vereadora, criou o Dia
Municipal de Combate à
intolerância Religiosa e a
Medalha Zumbi dos
Palmares, agora honrarias
da Câmara Municipal.
XANDO P. | AG. A TARDE | 17.2.2007
HAROLDO ABRANTES | AG. A TARDE | 22.9.2007
15
IRACEMA CHEQUER | AG. A TARDE | 21.7.2007
MARCO AURÉLIO MARTINS | AG. A TARDE | 17.2.2007
MUDANÇA ❚ Com o slogan “negro é lindo”, blocos afros fizeram sua revolução
JOA SOUZA | AG. A TARDE| 19.2.2007
MARCO AURÉLIO MARTINS | AG. A TARDE | 17.2.2007
[email protected]
Quando se acredita em algo, convencer é bem mais fácil. A pele e
olhos pretos, o cabelo duro, os lábios grossos e o nariz achatado são
também belos. Por que não? A afirmação da identidade negra através
de um novo conceito de estética
veio provar que a linguagem subjetiva, sem discursos inflamados,
também tem forte impacto.
Em Salvador, o marco de uma
nova atitude começou pelo viés
cultural com o primeiro bloco afro
do Brasil: o Ilê Aiyê, em 1974. A
partir daí outros surgiram com a
proposta de reforçar a identidade:
Olodum e Malê Debalê, em 1979,
Muzenza em 1981, dentre outros.
A idéia vanguardista partiu de
um grupo de amigos que se encontrava em festas no Engenho
Velho da Federação e no Garcia. O
clima era de tensão com a ditadura militar. Os movimentos que
fossem de encontro aos padrões
impostos eram reprimidos.
No primeiro ano, em 1975, o Ilê
Aiyê saiu com 100 integrantes. “O
Brasil esperava um grito de liberdade partindo da Bahia. Mas muitas famílias proibiram os jovens
de saírem”, lembra o presidente
do Ilê Aiyê, Antônio Carlos Vovô.
No segundo ano já eram 700 associados e hoje são cerca de três mil.
No primeiro desfile não havia padronização e os tecidos foram
comprados no comércio próximo, aos poucos.
Parte dos instrumentos era
emprestada. Só o timbau é que era
de Vovô. A falta de estrutura fez a
preparação durar o dia inteiro. Já
na avenida, o carro de som improvisado deixou os integrantes na
mão e o jeito foi bater palmas e
cantar mais alto. A ousadia na imponência dos cabelos, roupas e
postura dos negros e negras alertava para a mudança.
“Não era fantasia de carnaval.
Era uma cultura se tornando visível, afirmando sua existência e ,
por isso, alcançando respeito”, explica Rita Maia, autora da dissertação Cor, Cosmética e Estilo: os
discursos da beleza negra na Bahia
contemporânea.
Na época, boa parte da população negra de Salvador evitava o
que pudesse ressaltar sua expressão, não revelava sua religião e suprimia sua identidade. “Os negros
não usavam cores fortes em roupas, maquiagem e as meninas, a
partir dos 14 anos, alisavam os cabelos. Depois do primeiro concurso da Beleza Negra no Clube
Comercial em 1980, o novo padrão se consolidou”, acredita Vovô. Para o diretor cultural do Olodum, Nelson Mendes, a leitura
pode ser política. “O espaço social
é entendido como afirmação que
era negado. O negro não se via representado e tinha a idéia de inferiorização”.
Acabar com o mito do padrão
de beleza européia exigiu coragem. Invadir o circuito com panos
coloridos amarrados ao corpo e
na cabeça, aliados ao toque ijexá,
mudou o ritmo da festa. A partir
daí, homens e mulheres negros
passaram a mostrar no cotidiano
uma beleza oriunda daquilo que
realmente são.
MARGARIDA NEIDE | AG. A TARDE| 10.2.2007
A ousadia de dançar no passo
marcado pelo gingado dos ombros e pé no chão pelas ruas da cidade, proibido na época como
prática do candomblé, fez a população tirar o véu do rosto . “Toda
essa reação faz parte de um movimento diaspórico. É a reverberação de outras mobilizações pelo
mundo. No contexto, a cultura está sempre presente na conquista
dos espaços sociais, se impõe e
não tem fronteiras”, explica o antropólogo Antônio Godi.
Segundo o professor e escritor,
Jônatas Conceição, o histórico de
repressão aos grupos que pegaram
em armas fez o movimento negro
optar por outro tipo de enfrentamento. “A conscientização pela
identidade cultural foi a forma
mais inteligente. Ainda não é o
ideal, mas é alentador ver, após algumas décadas, as pessoas se interessarem mais pela sua história e
alguns negros na política. O poder
nessa área é essencial para implantação de políticas públicas em prol
da causa”. Enquanto o desejo não
se concretiza, a beleza é fato.
MARCO AURÉLIO MARTINS | AG. A TARDE| 17.2.2007
MEIRE OLIVEIRA
HAROLDO ABRANTES | AG. A TARDE| 22.9.2007
Afirmação da cor
através da estética
MARCO AURÉLIO MARTINS | AG. A TARDE | 17.2.2007
As vestes, a maquiagem e demais acessórios utilizados durante os dias de festa no Carnaval foram adaptados à rotina da população negra, tornando mais forte a afirmação da herança africana na capital da Bahia
ARTIGO ❚
Zumbi é senhor dos caminhos
JÔNATAS CONCEIÇÃO*
Na história dos movimentos
negros contemporâneos, os anos
70 sacudiram a inércia imposta
pela ditadura militar à questão
racial brasileira. Com Zumbi na
frente, atrás e em todos os lados,
negros e negras retomaram a sua
história de luta por liberdade,
contra o racismo e por poder.
Esta retomada na Bahia tem
como marco principal a
fundação do Ilê Aiyê, em 1974.
Mas, é bom que nos lembremos,
antes, em 1972, o poeta gaúcho
Oliveira Silveira começa a
pesquisar e a escrever o seu
antológico texto de feição épica
Poema sobre Palmares.
Recuando mais um pouco,
vamos chegar a 1960. Foi nesse
ano, que o samba enredo
Quilombo dos Palmares, dos
compositores Noel Rosa de
Oliveira e Anescar Rodrigues, foi
o grande vencedor do
Grêmio Recreativo Escola
de Samba Acadêmicos do
Salgueiro.
Este mesmo samba enredo
também foi decisivo para o
primeiro campeonato do
Salgueiro, fundado em 1953. A se
pensar na descaracterização,
como fato cultural de negro, que
o carnaval das escolas de samba
do Rio de Janeiro sofreu, sem
nostalgia, deve ter sido
fascinante se cantar/ouvir, pela
primeira vez, na avenida, esta
história: “Esses revoltosos /
Ansiosos pela liberdade / Nos
arraiais dos Palmares /
Buscavam tranqüilidade. /
Surgiu nessa história um
protetor. / Zumbi, o divino
imperador / Resistiu com seus
guerreiros em sua tróia, / Muitos
anos, ao furor dos opressores,
/Ao qual os negros refugiados /
Rendiam respeito e louvor”.
Devemos reconhecer a
potencialidade e produtividade
da música popular brasileira.
Isso porque, em 1976, ainda nas
trevas da ditadura militar,
quando a história das
populações afro-brasileiras era
proibida de ser contada, ou era
narrada apenas nos moldes que
interessavam ao projeto
hegemônico branco de manter
os afrodescendentes em posições
subalternas, Jorge Ben Jor e o Ilê
Aiyê reescrevem a saga
palmarina.
A música “Zumbi”, do LP
África-Brasil, de Jorge, chegou
num momento em que
recomeçavam os debates, a
partir da reorganização do
movimento negro, sobre a
questão identitária negra no
país. Ben Jor, salgueirense da
gema, com outras informações
históricas, nos apresenta uma
visão mais próxima dos fatos
reais ocorridos no quilombo. Ele
resgata, também, uma história e
um exemplo de luta guerreira
que serviram como modelo para
organizações negras brasileiras
desde o período pós-abolição.
Foi com um balanço pop-rock
incomparável que o compositor
falou: “Eu quero ver / Quando
Zumbi chegar / O que vai
acontecer / Zumbi é senhor das
guerras / Senhor das demandas /
Quando Zumbi chega / É Zumbi
quem manda”.
Ainda no século passado, em
1976, dois anos após a fundação
do Ilê Aiyê, os compositores Ary
e Evilásio compõem para o bloco
“Sonho dos Palmares”, registrada
no LP de 1984, pelo cantor e
compositor César Maravilha.
Nesta singular crônica da guerra
palmarina, os compositores
dizem: “Saudando o sonho dos
Palmares / Ilê Aiyê se revelou”.
Ora, revelar-se para o mundo
opressivo e racista baiano,
saudando Palmares, associa o
bloco a um símbolo de
resistência de maior significado
para a população
afro-descendente.
Mas, será que valeu a pena,
em quase quarenta anos de luta
negra contemporânea por um
Brasil democrático e inclusivo,
cantar e falar de Ganga Zumba,
Acotirene, Dandara, Zumbi e
tantos outros guerreiros e
guerreiras de Palmares? Valeu.
Mesmo que o cantor e
compositor Guiguio, que compôs
com Caj Carlão versos como “Se
a minha diferença lhe prejudicar
/ Vá reclamar com aquele que
fez você”, tenha sido,
covardemente, agredido por
agentes públicos da Polícia
Militar racista do Estado. E que a
cantora Daniela Mercury tenha
desrespeitado as mulheres
negras, e a toda nossa
população, ao sair no carnaval
deste ano de “nega maluca”. Os
dois fatos são sinais inequívocos
de que não devemos baixar a
guarda.
* Jônatas Conceição é professor, escritor e
diretor do Ilê Aiyê. Autor de Vozes
Quilombolas – Uma Poética Brasileira, 2005.
Deise Queiroz, 26 anos |
é estudante de ciências
sociais na Universidade
Federal da Bahia (Ufba),
diretora nacional de
políticas para a juventude
do Coletivo de Entidades
Negras (CEN) e
coordenadora de projetos
do Diáspora. O Diáspora é
formado por estudantes
negros da Ufba, onde
começou. Hoje também está
atuando na Universidade
Católica do Salvador (Ucsal)
e Universidade do Estado da
Bahia (Uneb). Mas o
Diáspora já integra também
em suas atividades
estudantes secundaristas.
Uma das principais
bandeiras do grupo é criar
um link entre o saber
acadêmico e o saber negro
popular.
REJANE CARNEIRO | AG. A TARDE
EU TENHO UM SONHO...
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“que quando eu ligue a televisão pela manhã, não serei
bombardeada pela exclusiva presença de mulheres louras
apresentando programas infantis. Que quando chegue na
escola aprenda sobre a história dos nossos antepassados
negros e indígenas durante todo o ano e que as igrejas
evangélicas em suas reuniões falem sobre o amor e o
respeito e deixem nossos elementos sagrados para serem
tratados por nós mesmos”
| LUTAS DE ONTEM E SEMPRE |
SALVADOR, TERÇA-FEIRA, 20/11/2007
CELEBRAÇÃO ❚ Vasta programação cultural e religiosa, além de caminhadas, marcam a passagem do novembro negro em Salvador
Festa segue até o fim do mês
HAROLDO ABRANTES | AG. A TARDE | 19.11.2006
DA REDAÇÃO
Hoje, a partir das 15 horas, acontece a 28ª Marcha Zumbi das Palmares. A saída é do Campo Grande
e o roteiro se encerra no Terreiro de
Jesus. A caminhada é organizada
pela Coordenação Nacional de Entidades Negras (Conen).
“Nosso lema este ano é Extermínio Não. Vida, Terra, Moradia e
Emprego Sim”, informa o coordenador da Conen, Gilberto Leal. Do
Curuzu em direção ao Pelourinho,
parte, às 16 horas, outra caminhada, organizada pelo Fórum de Entidades Negras.
Denominada 7ª Caminhada da
Liberdade, tem como tema “O Po-
vo Negro no Poder. Reparação Já!”
e vai congregar blocos afro, entidades sociais, grupos culturais, dentre outras associações.
Dando prosseguimento à comemoração, no próximo dia 25,
acontece a “III Caminhada do Povo-de Santo”, realizada pelo Coletivo de Entidades Negras (CEN). O
principal objetivo de mobilização
é o protesto contra a intolerância
religiosa. O ponto de partida, às 9
horas, é o final de linha do Engenho Velho da Federação, onde fica
o busto de Mãe Runhó. De lá a marcha segue para o Dique do Tororó.
Um show encerrará a caminhada
com a presença de artistas.
As secretarias estaduais de Pro-
moção da Igualdade e da Cultura e
a municipal da Reparação realizam uma série de atividades. O foco principal é o fortalecimento da
batalha travada pelas comunidades quilombolas para garantir as
terras que foram herdadas de seus
antepassados.
Povo-de-santo vai abraçar Dique do Tororó pedindo paz e respeito
MAIS ATIVIDADES-Amanhã, às
15 horas, na Biblioteca Pública,
Barris, Arany Santana apresenta a
palestra Quem foi Zumbi dos Palmares. Arany é educadora e diretora do bloco afro Ilê Aiyê, e foi a primeira a assumir a Secretaria da Reparação de Salvador.
Na próxima sexta-feira, acontece o “Colóquio Milton Santos -
Educação, Comunicação e Globalitarismo”. As atividades serão a
partir das 8 horas, sediadas entre o
Instituto Anísio Teixeira (IAT) e a
Faculdade de Comunicação da Ufba. Semur e Sebrae assinam termo
de cooperação para o mapeamento dos empresários e empreendedores afrodescendentes no dia 27,
às 14 horas, no auditório do Sebrae, nas Mercês.
O site do mapeamento dos terreiros de candomblé, com os resultados da pesquisa realizada em
parceria entre a Semur e o Centro
de Estudos Afro-Orientais da Ufba
(Ceao-Ufba), acontece no próximo dia 28. O lançamento será na
Praça Municipal, às 18h30.

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