UFAC - Observatório de Favelas

Transcrição

UFAC - Observatório de Favelas
UFAC Universidade Federal do
do Acre
Caminhadas de universitários de origem popular
UFAC
UFAC
Copyright © 2009 by Universidade Federal do Rio de Janeiro / Pró-Reitoria de Extensão.
O conteúdo dos textos desta publicação é de inteira responsabilidade de seus autores.
Coordenação da Coleção: Jailson de Souza e Silva
Jorge Luiz Barbosa
Ana Inês Sousa
Organização da Coleção:
Monique Batista Carvalho
Francisco Marcelo da Silva
Dalcio Marinho Gonçalves
Aline Pacheco Santana
Programação Visual:
Núcleo de Produção Editoria da Extensão – PR-5/UFRJ
Coordenação:
Claudio Bastos
Anna Paula Felix Iannini
Thiago Maioli Azevedo
C183
Caminhadas de universitários de origem popular : UFAC / organizado por Ana Inês Souza,
Jorge Luiz Barbosa, Jailson de Souza e Silva. — Rio de Janeiro : Universidade Federal
do Rio de Janeiro, Pró-Reitoria de Extensão, 2009.
156 p. ; il. ; 24 cm. — (Coleção caminhadas de universitários de origem popular)
Ao alto do título: Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização e Diversidade. Programa Conexões de Saberes : Diálogos entre a Universidade e
as Comunidades Populares.
Parceria: Observatório de Favelas do Rio de Janeiro.
ISBN: 978-85-89669-50-4
1. Estudantes universitários — Programas de desenvolvimento — Brasil. 2. Integração
universitária — Brasil. 3. Extensão universitária. 4. Comunidade e universidade — Brasil. I.
Souza, Ana Inês, org. II. Barbosa, Jorge Luiz, org. III. Silva, Jailson de Souza e, org. VI.
Programa Conexões de Saberes : Diálogos entre a Universidade e as Comunidades Populares.
V. Universidade Federal do Acre. VI. Universidade Federal do Rio de Janeiro. VII. Observatório
de Favelas do Rio de Janeiro.
CDD: 378.81
Ministério da Educação
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade
Programa Conexões de Saberes: diálogos entre a universidade e as comunidades populares
Organizadores
Jailson de Souza e Silva
Jorge Luiz Barbosa
Ana Inês Sousa
UFAC
Pró-Reitoria de Extensăo - UFRJ
Rio de Janeiro - 2009
Coleção
Presidente da República
Luiz Inácio Lula da Silva
Autores
Ângela Lima Alves
Anny Kelly Severino Salvino
Ministério da Educação
Fernando Haddad
Ministro
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e
Diversidade – SECAD
André Luiz de Figueiredo Lázaro
Secretário
Francisca Silva de Melo
Francineudo Souza da Costa
Francisco M. Magalhães Neto
Jeígela Portela
João Paulo Vale Campos
Diretoria de Educação para a Diversidade - DEDI
Armênio Bello Schmidt
Jorge Ferreira Pereira
Coordenação Geral de Diversidade – CGD
Leonor Franco de Araújo
Karine Monteiro de Oliveira
Jucelma da Conceição Batista de Almeida
Kátia de Souza Brito
Lisiane Filgueira de Souza
Machael Bezerra de Lima
Programa Conexões de Saberes:
diálogos entre a universidade e
as comunidades populares
Jorge Luiz Barbosa
Jailson de Souza e Silva
Maria de Fátima Oliveira Mota
Maria de Jesus Felipe
Maria de Nazaré Silva de Mendonça
Coordenação Geral
Nívia Almeida Sampaio
Verônica Maria Elias Kamel
Perla Maria Martins Campos
Coordenação Geral do Programa Conexões de Saberes/UFAC
Sheyla Oliveira da Silva
Simone Pereira da Silva
Suziane Maria Silva de Souza
Vanieda Oliveira da Costa
Jonas Pereira de Sousa Filho
Reitor
Olinda Batista Assamar
Vice-Reitora
João Silva Lima
Pró–Reitor de Extensão e Cultura
Vicente de Andrade Chagas Neto
Yara Gomes da Silva
Yasmin Lemkull Damasceno
Prefácio
A sociedade brasileira tem como seu maior desafio a construção de ações que permitam, sem abrir mão da democracia, o enfrentamento da secular desigualdade social e econômica que caracteriza o país. E, para isso, a educação é um elemento fundamental.
A possibilidade da educação contribuir de forma sistemática para esse processo implica uma educação de qualidade para todos, portanto, uma educação que necessita ser efetivamente democratizada, em todos os níveis de ensino, e orientada, de forma continua, pela
melhoria de sua qualidade. No atual governo, o Ministério da Educação persegue de forma
intensa e sistemática esses objetivos.
Conexões de Saberes é um dos programas do MEC que expressa de forma nítida a luta
contra a desigualdade, em particular no âmbito educacional. O Programa procura, por um
lado, estreitar os vínculos entre as instituições acadêmicas e as comunidades populares e,
por outro lado, melhorar as condições objetivas que contribuem para os estudantes universitários de origem popular permanecerem e concluírem com êxito a graduação e pós-graduação nas universidades públicas.
Criado pelo MEC em dezembro de 2004, o Programa é desenvolvido a partir da
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD-MEC) e representa a evolução e expansão, para o cenário nacional, de uma iniciativa elaborada, na cidade
do Rio de Janeiro no ano de 2002, pela Organização da Sociedade Civil de Interesse Público Observatório de Favelas do Rio de Janeiro. Na ocasião constitui-se uma Rede de Universitários de Espaços Populares com núcleos de formação e produção de conhecimento em
várias comunidades populares da cidade. O Programa Conexões de Saberes criou, inicialmente, uma rede de estudantes de graduação em cinco universidades federais, distribuídas
pelo país: UFF, UFMG, UFPA, UFPE e UFRJ. A partir de maio de 2005, ampliamos o
Programa para mais nove universidades federais: UFAM, UFBA, UFC, UFES, UFMS, UFPB,
UFPR, UFRGS e UnB. Em 2006, o Ministério da Educação assegurou, em todos os estados
do país, 33 universidades federais integrantes do Programa, sendo incluídas: UFAC, UFAL,
UFG, UFMA, UFMT, UFPI, UFRN, UFRR, UFRPE, UFRRJ, UFS, UFSC, UFSCar, UFT,
UNIFAP, UNIR, UNIRIO, UNIVASF e UFRB.
Através do Programa Conexões de Saberes, essas universidades passam a ter, cada uma,
ao menos 251 universitários que participam de um processo contínuo de qualificação como
pesquisadores; construindo diagnósticos em suas instituições sobre as condições pedagógicas dos estudantes de origem popular e desenvolvendo diagnósticos e ações sociais em
comunidades populares. Dessa forma, busca-se a formulação de proposições e realização de
1
A partir da liberação dos recursos 2007/2008 cada universidade federal passou a ter, cada uma, ao
menos 35 bolsistas.
práticas voltadas para a melhoria das condições de permanência dos estudantes de origem
popular na universidade pública e, também, aproximar os setores populares da instituição,
ampliando as possibilidades de encontro dos saberes destas duas instâncias sociais.
Nesse sentido, o livro que tem nas mãos, caro(a) leitor(a), é um marco dos objetivos do
Programa: a coleção “Caminhadas” chega a 33 livros publicados, com o lançamento das 19
publicações em 2009, reunindo as contribuições das universidades integrantes do Conexões de Saberes em 2006. Com essas publicações, busca-se conceder voz a esses estudantes
e ampliar sua visibilidade nas universidades públicas e em outros espaços sociais. Esses
livros trazem os relatos sobre as alegrias e lutas de centenas de jovens, rapazes e moças, que
contrariaram a forte estrutura desigual que ainda impede o pleno acesso dos estudantes das
camadas mais desfavorecidas às universidades de excelência do país ou só o permite para os
cursos com menor prestígio social.
Que este livro contribua para sensibilizar, fazer pensar e estimular a luta pela construção de uma universidade pública efetivamente democrática, um sociedade brasileira mais
justa e uma humanidade cada dia mais plena.
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade
Ministério da Educação
Observatório de Favelas do Rio de Janeiro
Sumário
Apresentação
Memorial: um mergulho no passado
Verônica Maria Elias Kamel
○
Vida, minha luta
Anny Kelly Severino Salvino
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
23
○
○
○
○
○
28
Um pouco da minha trajetória antes do ingresso à universidade
Ângela Lima Alves
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
Um desafio em busca de uma conquista
Francineudo Souza da Costa
○
○
○
○
○
○
Encontros e desencontros no caminho
Francisca Silva de Melo
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
História de vida escolar
Jeígela Portela
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
Trajetórias que nos levam a um único caminho
Francisco M. Magalhães Neto
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
A vida só é dura só pra quem é mole
Jorge Ferreira Pereira
○
○
○
○
○
○
○
○
○
Lutar é preciso !
Jucelma da Conceição Batista de Almeida
Minha vida: lutas e conquistas
Karine Monteiro de Oliveira
○
Trajetória de vida
Kátia de Souza Brito
○
○
História de minha vida
Lisiane Filgueira de Souza
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
36
○
○
○
○
○
40
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
46
49
54
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
63
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
67
○
○
○
○
○
○
○
○
18
○
○
○
13
○
○
As origens, histórias e caminhos percorridos por um estudante de
classe popular até a universidade e suas perspectivas para o futuro
João Paulo Vale Campos
○
09
○
○
○
○
○
○
71
Relatos de minha trajetória escolar
Maria de Fátima Oliveira Mota
○
Uma história de realizações
Maria de Jesus Felipe
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
Minha trajetória de vida
Maria de Nazaré Silva de Mendonça
Meus passos pela vida
Machael Bezerra de Lima
Os primeiros passos...
Nívia Almeida Sampaio
○
○
○
○
○
○
○
Persistência sempre
Perla Maria Martins Campos
Minha história de vida
Sheyla Oliveira da Silva
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
79
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
100
106
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
83
○
○
○
Memórias: busca do meu eu
Yasmin Lemkull Damasceno
○
○
○
○
○
○
Minha vida
Vicente de Andrade Chagas Neto
○
○
○
Minha vida quase perfeita
Suziane Maria Silva de Souza
Minha autobiografia
Yara Gomes da Silva
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
Minha história, minha vida
Simone Pereira da Silva
Marcas profundas
Vanieda Oliveira da Costa
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
90
92
95
113
117
125
133
142
145
Apresentação
Memorial: um mergulho no passado
Procuro-me no passado e “outrem me
vejo”; não encontro a que fui, encontro
alguém que a que sou vai reconstruindo,
com a marca do presente.
Magda Soares, 1991
Apresentar o livro Caminhadas de universitários de origem popular da Universidade
Federal do Acre (UFAC) é mergulhar num passado recente e reviver as emoções partilhadas
por diferentes sujeitos em situações similares e, ao mesmo tempo, díspares de ter orientado
e acompanhado o processo de escritura de vinte e cinco memoriais nos quais os autores,
bolsistas do programa Conexões de Saberes: diálogos entre a Universidade e as comunidades populares, reconstroém o caminho trilhado por eles até chegar à Universidade,
resgatando no presente fatos e acontecimentos significativos do passado, (re)vendo sua
própria trajetória de vida, a partir de lembranças que surgem das experiências vividas, que
ora se pretende mostrar a um público mais global.
Inicio o mergulho recordando a emoção que senti quando tomei conhecimento do
desenvolvimento do Programa Conexões de Saberes... na UFAC, lembro que fiquei encantada com o intuito desse Programa – ampliar a relação entre a Universidade e as comunidades
de espaços populares, de suas instituições e organizações, promovendo o encontro e a troca
de saberes e fazeres entre esses dois territórios socioculturais; contribuir para que jovens
estudantes de origem popular permaneçam na Universidade pública. Fez-me lembrar de
alguns alunos que desistiram de concluir seus cursos, por não terem encontrado “apoio” para
permanecer na Universidade, apesar de pública.
Embora esse Programa atenda apenas a uma parcela mínima dos estudantes advindos
das camadas populares, já é uma contribuição valiosa, pois estimula a permanência do
estudante na Universidade, conseqüentemente, a conclusão do curso, e, ainda, há considerável probabilidade de continuação de estudos desses estudantes em um programa de pósgraduação. Esse é um dos programas que pode ser comparado à história do homem que
jogava estrela do mar de volta ao mar, cujo autor desconheço. Mesmo assim, eis a história:
Um escritor caminhava pela manhã numa praia. De repente
avistou uma pessoa que corria na beira do mar e fazia uns gestos
que se assemelhava a uma dança. O escritor aproximou-se e viu
um homem que entre milhares de estrelas do mar, apanhava uma a
Universidade Federal do Acre
9
uma e as jogava de volta para o mar. Ele perguntou ao homem: - O
que você está fazendo? Estou jogando estrelas de volta para o
mar. Respondeu o homem. E o escritor continuou: - São milhares
de estrelas e você conseguirá salvar muito poucas, não vai fazer
diferença... neste momento o homem olhou para o escritor,
abaixou-se, pegou uma estrela e jogou-a de volta para o mar e
disse: - Para esta fez diferença. (...)
Assim, ações como essas do Programa Conexões de Saberes... fazem a diferença,
principalmente, num país como o nosso, marcado pela desigualdade social. Além disso,
trabalhos dessa natureza contribuem para (re)pensar o papel social da Universidade frente
aos menos favorecidos economicamente.
Comecei a participar, efetivamente, desse programa quando fui convidada para
ministrar a oficina de Produção Textual, visando o aprimoramento dos bolsistas para a
elaboração de textos (memoriais) que resultariam na organização do livro Caminhadas
de Universitários de origem popular. Direcionar esse trabalho foi muito gratificante
para mim, pois como nos diz Paulo Freire (1993): “(...) toda situação educativa implica
presença de sujeitos. O sujeito que, ensinando, aprende e o sujeito que, aprendendo,
ensina”. E não resta dúvida de que este trabalho foi um grande aprendizado, conviver
com sujeitos reconstruindo seu percurso de vida, que, na maioria das vezes, revela
mazelas sociais, me fez compreender com mais transparência a força do ser humano
diante de um mundo desigual.
Para subsidiar esse trabalho, adotamos a concepção de linguagem proposta por
Bakhtin (1992), para quem a linguagem é um processo de interação verbal entre sujeitos
socialmente organizados, portanto dialógica e inerente às práticas sociais dos indivíduos. Sob essa perspectiva, outras vozes se fazem presentes nas lembranças do aluno, que,
ao elaborar seu discurso, direciona sua palavra para um interlocutor determinado ou
potencialmente constituído. Seguindo, ainda, Mikhail Bakhtin, “Só me torno consciente
de mim mesmo, revelando-me para o outro, através do outro e com a ajuda do outro”
(BRANDÃO, 1994, p. 51 apud TODOROV, 1981, p. 148)
É importante ressaltar que, no momento de escrever o memorial, alguns alunos ficaram relutantes: uns porque não queriam expor sua história de vida; outros porque não
estavam dispostos a recordar fatos desagradáveis do passado. Foi um desafio para o grupo,
mesmo porque assumir autoria de sua própria história não é uma tarefa fácil. De sorte que,
durante nossos encontros, leituras e discussões, todos concordaram em escrever suas trajetórias de vida conscientes de que, revelando suas experiências, estabeleceriam um diálogo
com outros alunos advindos de camadas populares. Revelar o passado para apresentar um
presente diferente, “mostrar” que, apesar das dificuldades, vale a pena lutar.
Sabemos o quanto é difícil recordar episódios da vida que se quer esquecer, mas
tudo isso se justifica na medida em que possibilita esse diálogo. Cada história de vida
aqui apresentada representa o registro da memória de um sujeito que, inserido no contexto sócio-histórico e ideológico de sua época, torna-se exemplo de coragem, de luta, de
persistência e esperança por um mundo melhor. Contudo, essas histórias não são tão
particulares assim, porque inseridas em contextos sociais específicos, representam a nossa coletividade. Segundo Severino (2000, p. 175):
10
Caminhadas de universitários de origem popular
O autor deve fazer um esforço para situar esses fatos e
acontecimentos no contexto histórico-cultural mais amplo em que
se inscrevem, já que eles não ocorreram dessa ou daquela maneira
só em função de sua vontade ou de sua omissão, mas também em
função das determinações entrecruzadas de muitas outras
variáveis. A história particular de cada um de nós entretece numa
história mais envolvente da nossa coletividade.
Sendo assim, compreendemos que o que o sujeito diz, o que não diz, o modo como
enuncia, tudo isso aponta para o lugar social que esse sujeito ocupa. Portanto, as imagens
(sociais e culturais) de indivíduos de classe social menos privilegiada, podem ser “reconhecidas” na fala desses alunos. Logo, a reconstrução histórico-reflexiva da existência de cada
um – passado que se faz presente – revela a construção da formação do sujeito. Além disso, o
conjunto dessas histórias que se entrecruzam, se entrelaçam, representa parte da cultura local.
Através da leitura desses memoriais, percebemos como é incrível a capacidade de luta
das pessoas das classes menos privilegiadas, as quais, têm que lutar pela sua sobrevivência
num grau de desigualdade que chega, algumas vezes, a ser desumano.
Então, tornar-se autor da sua própria história, mostrando um pouco dessa luta de viver
e de escrever o memorial, é buscar uma interação com o outro: diálogo (interlocução) que se
dá entre autor e leitor, por meio do texto. A esse respeito, Geraldi (1996, p. 72) diz que
(...) para o aluno tornar-se leitor e autor de seus textos não há
regra única, porque depende das relações de interlocução que se
estabelecem nas diferentes leituras e nos diferentes momentos de
produção de textos que, enquanto tais, respondem a objetivos e
buscam seus leitores.
Finalizamos esta apresentação convidando o leitor para também mergulhar nessas
histórias de vida, já que buscar leitores é o destino de todo texto.
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 6. ed. São Paulo: Hucitec, 1992.
BRANDÃO, Helena H. Nagamine. Introdução à análise do discurso. 3ª ed. Campinas, SP: Editora da
UNICAMP, 1994.
FREIRE, Paulo. Política e Educação. São Paulo, Cortez, 1993.
GERALDI, João Wanderley. Linguagem e ensino: exercícios de militância e divulgação. Campinas:
Mercado Aberto, 1996.
SEVERINO, Antônio J. Metodologia do Trabalho Científico. 21ª. ed. rev. ampl. São Paulo: Cortez, 2000.
SOARES, Magda. Metamemória-memórias: travessia de uma educadora. São Paulo: Cortez, 1991.
Verônica Maria Elias Kamel*
*
Professora do Departamento de Letras da Universidade Federal do Acre. Coordenadora Geral do Programa
Conexões de Saberes: diálogos entre a Universidade e as comunidades populares – UFAC.
Universidade Federal do Acre
11
Vida, minha luta
Anny Kelly Severino Salvino*
Sei que meu trabalho é uma
gota no oceano, mas sem ele,
o oceano seria menor.
Madre Tereza de Calcutá
No dia nove de março de mil novecentos e oitenta e cinco, no hospital da cidade de
Senador Guiomard, que é um município do estado do Acre, nasce um bebê. Não é mais um
bebê, comum, e sim eu, primeira filha do casal Francisco Gonçalves Salvino e Maria
Madalena Severino Salvino. Após quatro anos, nasceu meu único irmão que recebeu o
nome de Jonh Kennedy.
Minha família mora em uma pequena fazenda situada a 7 km de ramal, no km 58 da
estrada de Boca do Acre, estrada esta que liga o Acre ao estado do Amazonas.
Minha mãe é professora, meu pai é agricultor e pecuarista, meu irmão no momento
somente estuda. Eu morei no interior com eles 19 anos da minha vida, ou seja, somente
durante o tempo em que era oferecido estudo para mim nas escolas de lá.
Minha infância
Quando nasci, meus pais moravam na colônia do meu avô. Depois, meu pai conseguiu
uma colônia do INCRA. Quando fomos morar nesta colônia, eu já tinha dois anos. Meus
pais construíram um barraco de lona para nós morarmos, e começaram a trabalhar para
construir esse nosso novo lar. Meus pais iam trabalhar no roçado e eu, com apenas dois anos
de idade, ia com eles, odiava os mosquitos e chorava muito, mas quando meu irmão nasceu
e cresceu um pouco mais, eu e ele brincávamos formando casinhas no tronco das árvores,
enquanto nossos pais trabalhavam.
A partir do momento que minha mãe passou a ser professora, começou a estudar
durante as férias, o problema é que ela tinha que se deslocar para Rio Branco (capital do
estado do Acre). Neste período, eu e o meu irmão ficávamos na casa dos meus avós e meu pai
ficava sozinho trabalhando na colônia, pois ou ele cuidava de nós ou trabalhava para
ajudar minha mãe no sustento da família.
Enquanto estávamos na casa dos meus avós, eu e o meu irmão nos divertíamos muito
com nossos primos que moravam perto da casa dos meus avós. Quando minha mãe retornava
para casa, começávamos a ir para a escola. Eu levava todos os dias minhas bonecas para
*
Graduanda de Educação Física Bacharelado/Licenciatura da UFAC.
Universidade Federal do Acre
13
brincar, nos intervalos, com minhas amigas. Nós promovíamos festinhas de aniversário das
bonecas, lembro-me que todo dia eu insistia com minha mãe para ela fazer uma roupinha
sempre diferente, para eu presentear a boneca das minhas amigas.
O lugar onde moramos foi evoluindo e graças a Deus hoje meus pais não possuem
mais só uma colônia e nossas vidas estão caminhando super bem.
Minha adolescência
Não fui e nem sou uma pessoa rebelde, sempre procurei a opinião dos meus pais e
procurei sempre obedecer-lhes, mas claro não sou santa e sempre gostei de me divertir,
uma das boas lembranças que tenho dessa fase é a minha inesquecível festa de 15 anos.
Nesse tempo, estava namorando meu primeiro namorado, claro que após ele, tive outros,
mas sempre procurei direcionar minha vida, prioritariamente para o lado profissional
deixando sempre o meu lado pessoal e sentimental oculto, mesmo gostando de sair para
me divertir eu sempre o deixei em segundo plano, pois preferia estudar. Após ter feito
várias reflexões, consegui equilibrar um pouco mais minha personalidade, confesso que
mudanças boas já me aconteceram e estão acontecendo, meus conhecimentos profissionais estão caminhando do modo que sempre imaginei, busco me divertir o máximo que
posso para desestressar do meu dia-a-dia e quanto aos meus sentimentos, amo muito a
pessoa que está a meu lado e acima de tudo sou grata e feliz com os pais que tenho, pois
eles proporcionaram a mim e ao meu irmão a orientação necessária na fase da adolescência e continuam agora na fase adulta.
Minha trajetória estudantil
Meu percurso estudantil começou quando eu tinha cinco anos de idade, pois minha
mãe era e é professora da escola Nossa Senhora de Fátima I, que fica a 2 km da nossa casa.
Comecei a ir com ela para a escola, mas eu não era matriculada, pois a Lei de Diretrizes e
Bases (LDB) instituía que somente era permitido matricular uma criança a partir dos sete
anos de idade. Além disso, nesta escola não tinha aula de pré-escolar.
Quando comecei a estudar matriculada na 1ª série, logo aprendi a ler e a escrever. Tive
a honra de ser alfabetizada e ter tido minha mãe como professora até a 4ª série. Obtive,
juntamente com outros amigos, uma base ótima e necessária para estudos futuro. Tudo isso
foi minha mãe quem proporcionou a mim e aos demais alunos dela.
Na primeira série, como aprendi logo a escrever e a ler, fui aprovada para a segunda,
terceira e quarta séries. Nas provas minhas notas eram sempre boas, menos em matemática,
pois eu não gostava da matéria, obtendo somente o necessário para a aprovação.
No ano em que passei para a 5ª série, foi muito difícil para mim e para minha
família. Eu era super pequena e a escola mais próxima que oferecia a continuação do
meu ensino fundamental ficava a 14 km da minha casa. Mas o que podia fazer? Tinha
que estudar...
Ao começar o ano letivo, meu pai resolveu me levar para aula primeiramente de
bicicleta, quando chovia ele me levava na garupa do cavalo, mas isso durou somente
algumas semanas. Meu pai observou que não ia dar certo, pois ele saía do roçado às 10 horas
e imediatamente saíamos para a escola, quando ele retornava já eram 13 horas, somente
agora ele ia almoçar e retornar ao roçado. Às 16 horas, tinha novamente que deixar o
trabalho para ir me buscar na escola.
14
Caminhadas de universitários de origem popular
Quando meu pai falou que não dava certo me levar para aula, eu comecei a me preocupar, porque não queria parar de estudar mesmo enfrentando tantas dificuldades, não só com
a distância, mas também com a escola e com as pessoas que eu não conhecia. As dificuldades eram tantas que iam desde as aulas seriadas até a falta de amigas. Até este momento só
tinha uma amiga, a Joyce, que estudava comigo desde a 1ª série, mas ela estava morando na
casa dos tios dela que ficava próxima à escola. Ela logo fez amizades com outras pessoas, eu
devido ao fato de ser super tímida não fazia muitas amizades e ficava sempre só.
Então, depois de muito meus pais pensarem, chegaram ao consenso de pedir para um
casal de tios meus, que moravam mais ou menos próximo à escola, permissão para que eu
morasse com eles durante a semana, pois nos finais de semana, retornaria à minha casa. Isso
pelo menos por um ano, até meus pais decidirem melhor o que fazer. Meus pais se propuseram a ajudar na alimentação. Meus tios me aceitaram, mas falaram para o pai e a mãe não se
preocupar quanto à alimentação, pois eles dariam um jeito.
Fui morar com meus tios e fiz amizade com uma menina que também estudava a 5ª
série e era vizinha deles. Eu e ela combinamos de irmos juntas para a aula, então passei a não
andar mais só. Eu tinha uma bicicletinha lilás, linda, que ganhei dos meus queridos pais
quando completei dez anos, era nela que eu ia para a aula neste primeiro ano. O ano passou
e o sofrimento apenas estava começando, mas a alegria de saber que, no próximo ano, iria
estudar a 6ª série era uma sensação ótima.
Passaram-se as férias e meu pai achou que já tinha abusado bastante pelo fato de eu ter
ficado um ano morando na casa dos meus tios. O mesmo ocorreu com a Joyce, nossas casas
ficavam a 2 km de distância uma da outra. Sendo assim, como meu pai tinha comprado um
carro e o pai dela também, eles combinaram de cada um ir nos deixar e buscar na aula. Cada
um em uma semana, ou seja, uma semana meu pai ia nos levar e buscar, outra semana era o
pai dela e assim sucessivamente. Tudo começou bem durante o verão, mas durante o inverno foi complicado, o ramal e a estrada eram horríveis, e quase todos os dias tínhamos que
desatolar o carro. Às vezes, nós conseguíamos desatolá-lo!
Mas como nada é perfeito, surgiu outro problema, o combustível. Ficou muito difícil
ter o carro sempre abastecido para nossas viagens de ida e volta. Além de não ter dinheiro
suficiente para o abastecimento dos carros, o posto de gasolina mais próximo ficava a 65
km de distância da minha casa, na área urbana da cidade de Rio Branco.
Mas graças a Deus um determinado governador do estado do Acre, chamado Orleir
Camelli, resolveu distribuir bicicletas para os alunos da rede de ensino da zona rural. Talvez
tenha sido um dos únicos projetos exercido por ele, mas me ajudou bastante. Foi aí que ganhei
minha segunda bicicleta, agora grande, apesar de eu não ter crescido muito, mas a força de
vontade de estudar era enorme, pois nunca fui uma pessoa inteligente, apenas esforçada.
Comecei então a ir para a aula da minha casa de bicicleta. Como minha mãe lecionava
de manhã, eu arrumava a casa, fazia o almoço, tomava banho, almoçava e às 11 horas saía de
minha casa para ir à aula. Todos os dias, tinha que levar outra roupa dentro da bolsa, junto
com os materiais escolares, para o caso de acontecer de me molhar na chuva durante a
viagem. Além disso, tinha que embrulhar a mochila em um saco plástico e amarrar na garupa
da bicicleta, isso para não sujar e nem molhar a mochila.
Eu me lembro que uma vez esqueci-me de levar outra roupa na bolsa e no caminho
tinha uma enorme poça de lama, onde a única alternativa era passar por dentro dela, foi aí
que o pneu dianteiro da bicicleta derrapou e eu caí dentro da lama, fui numa casa que havia
Universidade Federal do Acre
15
mais próxima e pedi para ir ao banheiro tomar banho, tentei lavar minha calça, mas o mau
cheiro da lama não saía da roupa. Lembro-me que gastei muito sabão da dona da casa, até
que consegui limpar minha roupa e a mochila, vesti a roupa molhada e, finalmente, cheguei
à escola. Passei à tarde com minha roupa molhada, mas não perdi nenhuma aula.
A partir da sétima série, nos períodos de inverno, ficava na casa de um casal que
morava perto da escola. Eles eram meus professores, Lúcio e Áriadrina, e eram amigos dos
meus pais. Passaram a ser meus segundos pais, pois uma boa parte do ano eu morava com eles.
Agradeço muita a ajuda que eles me proporcionaram. .
Enfim, terminei o ensino fundamental. Os meus pais junto com outros pais de alunos
da minha turma contribuíram para a realização da nossa festa de colação de grau. Foi uma
festa simples, mas super legal.
Na escola São Francisco de Assis II, onde havia estudado desde a 5ª série e da qual
pensava que eu ia me livrar, já que tinha terminado a 8ª série, implantaram também o ensino
médio. A escola que era apenas de ensino fundamental, a partir deste momento passou a ser
Escola Rural de Ensino Fundamental e Médio São Francisco de Assis II. Eu tinha mais
quatro anos, de outras novas aventuras, reclamações, choros e cansaços pela frente.
Digo quatro anos de ensino, porque o ensino era modular e tinha duração de quatro
anos para a conclusão da 1ª, 2ª e 3ª séries. Destacarei os motivos adiante.
Os professores vinham da cidade de Rio Branco, vinha um professor ensinava uma
determinada matéria, voltava para a cidade e aí vinha outro professor para ensinar outra
matéria. No intervalo entre a ida de um professor e a vinda de outro, muitas vezes ficávamos
dias, semanas e, às vezes, até dois meses, esperando professor para retornar às aulas.
A Diretora da escola nem sempre nos avisava do dia que iniciaria uma nova matéria e
quando avisava muitas vezes dávamos viagens perdidas para a escola, pois os professores
não apareciam. Os meus pais e os pais dos alunos da minha turma construíram uma casa no
terreno da escola para que os professores ficassem hospedados durante a semana. Quanto à
alimentação dos professores ficava por conta da Secretaria Estadual de Educação.
Nos últimos anos do ensino médio, minha turma de ir para a escola era bem maior, à
distância até parecia menor. Nesse tempo, meu irmão começou a estudar a quinta série e ir
comigo para a aula, juntamente com outros amigos nossos que eram nossos vizinhos e que
também tiveram força de vontade e não desistiram como outros amigos meus. Eu e minha
turma transformamos o cansaço em um pouco de alegria, começamos a andar de bicicleta
por um ramal que tornava o caminho mais curto. Esse ramal era bem pior que os outros
ramais. Levávamos cada queda nas ladeiras! Teve um dos meus amigos que quebrou uma
perna e um dos braços e ficou impossibilitado de estudar por algum tempo.
Ir por este caminho, apesar de tudo, compensava, pois nele passava um rio de águas
cristalinas. Todos os dias, ao retornarmos da aula, fazíamos uma farra nas águas desse rio,
que recebe o nome de Rio de Janeiro, tomávamos banho até escurecer, enquanto nossos
pais ficavam preocupados em nossas casas.
Terminei o ensino médio em novembro de 2003. Meus pais sabendo dos nossos
esforços, falavam para que continuássemos estudando, trouxeram-me para a cidade de Rio
Branco e me deixaram para morar com minha amável vovó. Eles me matricularam em um
cursinho pré-vestibular, eu estudei durante três meses e meio e, no mês de março de 2004,
prestei vestibular para Educação Física Bacharelado, na Universidade Federal do Acre –
UFAC. Como não tinha experiência em vestibulares, escolhi o curso porque uma das
16
Caminhadas de universitários de origem popular
minhas amigas chamada Jucelma que estuda comigo desde a 5ª série me falou: “Kelly acho
que Educação Física é legal”. Meio que no escuro resolvemos nos escrever para o curso
de Educação Física Bacharelado. Atualmente, participamos juntas do Programa Conexões
de Saberes.
Chegou o dia da prova, graças a Deus não fiquei nervosa, passei na primeira fase na
sexta colocação. Enquanto todos falavam que eu tinha condições de passar na segunda
fase, eu não estava nem um pouco confiante, mas, enfim, fiz a redação e fui para a casa dos
meus pais.
No dia em que saiu o resultado das provas, e este dia tornou-se o dia mais feliz para
mim, pois no momento em que o telefone da minha casa tocou, era minha amiga Juscélia
falando: “Mana1 pode preparar tua matrícula, você passou”. Eu comecei a chorar de felicidade e corri para contar para minha família
A universidade
Outra etapa da minha vida estava apenas começando, eu nem sabia direito onde ficava
a Universidade, somente a conheci quando fui me escrever para o vestibular. Ao começar o
1º período já me deparei com dificuldades, pois a universidade é “pública”, mas para continuarmos estudando exige muito do aluno, principalmente, dinheiro. Logo que comecei a
estudar, consegui uma bolsa para trabalhar no Hospital de Saúde mental do Acre-(HOSMAC)
ganhava a metade de um salário, mas já livrava os meus pais de comprar meus passes
escolares. Trabalhei durante um ano no hospital, estudava de manhã e trabalhava à tarde.
O curso de Educação Física não era nada do que imaginava, era melhor, sou completamente apaixonada pela minha profissão. Descobri que o curso é difícil, mas gostoso de
estudar, resolvi, então, prestar um segundo vestibular, no ano de 2006, só que, agora, para
Educação Física Licenciatura. Mesmo sem estudar cursinho pré-vestibular fiz as provas,
mas achava que seria em vão, pois acreditava que não conseguiria ser aprovada, mas como
nada é por acaso, passei novamente e pretendo concluir mais esta área.
Após ter acabado meu contrato no hospital, voltei somente a estudar e pesou ainda
mais economicamente para o pai e a mãe. Ao abrir a inscrição para o Programa Conexões de
Saberes, fui uma das primeiras pessoas a levar a documentação necessária para o Pró-Reitor
de Extensão. Fui selecionada entre os 25 bolsistas e sou muito grata por esta oportunidade,
pois o Programa é simplesmente maravilhoso. No início claro, não tinha muita noção do
que era o Conexões, mas após a minha participação no Seminário Nacional, observei a
grande importância que existe neste Programa, e me sinto honrada de ser um dos integrantes
a trabalhar politicamente para buscar a melhora da minha, da nossa classe popular que é tão
predominante no nosso querido Brasil.
1
Termo de tratamento carinhoso entre amigos. Expressão de carinho para tratar os amigos.
Universidade Federal do Acre
17
Um pouco da minha trajetória antes do
ingresso à universidade
Ângela Lima Alves *
Meu nome é Ângela Lima Alves, tenho 23 anos, nasci na cidade de Rio Branco, estado
do Acre, no dia 2 de outubro de 1982. Meus pais se chamam Pedro Alves e Maria Helena
Lima Alves. Minha família é composta por cinco irmãos, Alessandra com 22 anos, Paulo
Henrique com 19 anos, Aline com 10 anos e a caçula com quatro anos.
Nasci na colônia de meus avós paternos, quando estava com 11 meses de idade minha
mãe deu a luz a minha irmã Alessandra. Tudo era muito difícil, os meus pais não tinham
emprego, comíamos o que plantávamos, mas graças a Deus não passamos fome.
Foi quando meu pai decidiu ir para a cidade para tentar uma nova vida, pois queria dar
a nós a oportunidade de estudos, coisa que para ele era difícil, ou seja, ele não queria que nós
passássemos por dificuldades no futuro, ele queria que nosso futuro fosse diferente do dele.
Fomos morar no bairro Nova Estação, foi quando aos 6 anos de idade, minha mãe
matriculou minha irmã e eu em uma escolinha de alfabetização. Nesta escolinha, tinha uma
única mesa, ela era grande, com dois grandes bancos e um quadro de giz. Lembro, também,
que a professora era carrasca, pois chamava a nossa atenção e nos mostrava a sua palmatória.
Quando ela se retirava da sala, a criançada, inclusive eu, brincava e subia em cima da mesa,
tinha sempre algum colega que ficava vigiando a porta para avisar sua chegada.
Quando eu chegava em casa, minha mãe me ajudava a fazer as tarefas, aos 6 anos de
idade comecei a ler e a escrever. Meus pais se orgulhavam muito de mim, pois tão pequena e já sabia ler. Depois, fomos morar no Conjunto Habitacional Adalberto Sena, pois
graças a Deus meu pai tinha sido sorteado em uma casa pela COHAB. Era um lugar novo,
com poucos vizinhos, a casa era de madeira e tinha apenas dois quartos, na época, éramos
cinco pessoas. Logo após a mudança, minha mãe começou a procurar um colégio para nós
estudarmos e, que de preferência, fosse perto de nossa casa, para que não gastássemos
dinheiro com transporte. Minha mãe teria que nos levar até lá, ela também achava perigoso
nós pegarmos o ônibus, pelo fato de sermos muito pequenos. Enfim, ela achou uma escola
que ficava aos fundos de nossa casa, a única coisa que separava a escola de minha casa era
o muro e uma rua.
No meu primeiro dia de aula, fiquei encantada, impressionada porque a escola era
grande, tinha muitas crianças, antes de entrar na sala, tínhamos que fazer uma fila e cantar o
Hino Nacional. Estudei da 1ª a 4ª séries do ensino fundamental nesta escola. Naquele
tempo, ela possuía sua estrutura em madeira, já a partir da 5ª série, a escola passou pelo
*
Graduanda do curso de Engenharia Florestal da UFAC.
18
Caminhadas de universitários de origem popular
processo de demolição, porque iam construir outra em alvenaria e com quadra de esportes.
Passei o ensino fundamental inteiro nesta escola, não fiquei nenhum ano reprovada, porém
surgiram algumas dificuldades, na 7ª série, aos 13 anos: fiquei para recuperação na disciplina
de matemática, foi então que tive que estudar bastante, pois não poderia ficar reprovada.
Surgimento do primeiro desafio em minha vida
Cursava o primeiro ano do ensino médio, estava com 15 anos, foi quando tive que
começar a trabalhar para ajudar nas despesas de casa, meu pai é mecânico de automóveis e
minha mãe é funcionária pública. Eu trabalhava o dia inteiro, 8 horas por dia e estudava à
noite na escola Padre Carlos Casavecchia, que ficava em outro bairro, tinha que caminhar
um pouco.
Percebi que o ensino à noite não é muito estimulante, pois os professores são muito
passivos, creio que deve ser pelo fato de, no período noturno, ter pessoas mais velhas que
trabalhavam durante o dia. Com esta experiência, fui obrigada a ter responsabilidade mais
cedo, antes do que eu esperava. Trabalhava em uma empresa de cobrança, minha função era
ficar no caixa, preencher recibos e dar baixa em documentos de títulos. Saía do trabalho às
17:30, dirigia-me ao terminal urbano para pegar o ônibus, gastava cerca de 45 minutos até
chegar em casa. Ao chegar em casa, o tempo mal dava para tomar banho, me arrumar, jantar
e escovar os dentes. Este era o esforço que fazia, pois o que estava em jogo era o meu futuro.
Quando algum professor faltava, aproveitava para estudar, para fazer os trabalhos e
colocar as coisas em dia. Passei um ano e meio trabalhando nesta empresa, depois a empresa
foi à falência e então todos os funcionários tiveram que ser demitidos. Nesta época, estava
cursando o segundo ano do ensino médio no turno da noite.
Já no último ano para terminar o ensino médio, pedi transferência para o turno da
tarde, porque não queria mais estudar à noite, achava muito perigoso e cansativo e também
não tinha mais motivos para permanecer neste horário.
Algo novo em minha vida
Aos 17 anos, comecei a ficar mais em casa e ajudar nos serviços domésticos, conseqüentemente, passei a conviver mais com a família e com os vizinhos. Tínhamos uma
vizinha que se chamava Terezinha, ela é evangélica, uma pessoa muito prestativa e muito
querida de minha família. Ela sempre me convidava para assistir aos cultos, e eu me sentia
muito bem em freqüentar sua Igreja. Sempre íamos junto com seus filhos e seu marido.
Chegou um dia em que seria realizado um batismo, lembro como se fosse hoje, no dia 12 de
março de 2000, era um sábado, na Congregação Central.
Neste dia, fomos eu, minha irmã Alessandra e meu irmão Paulo Henrique. No decorrer
do culto, eu e minha irmã estávamos sentadas lado a lado, quando Deus nos visitava e se
manifestava em nosso coração, chorávamos de alegria, foi quando nós duas nos levantamos
e fomos ao banheiro para trocarmos de roupa para que pudéssemos ser batizadas. Após isso,
voltamos para o banco onde estávamos sentadas, quando, de repente, minha irmã vê o
nosso irmão também batizar-se. Foi uma alegria só! Ao chegarmos a casa, meus pais ficaram
muito surpresos com tal notícia, pois eles não gostavam muito de evangélicos. Um mês
depois, meus pais aceitaram batizarem-se, então a alegria ficou completa, éramos, então,
uma família evangélica. Ficamos mais unidos, Deus fez uma transformação em nossas vidas,
o modo como meu pai trata a minha mãe melhorou muito, pois ele era muito rude e machista.
Universidade Federal do Acre
19
Na minha mocidade, freqüentei bastante os cultos de jovens e reuniões para a mocidade,
eu e meus irmãos não faltávamos os sábados e os domingos de reunião, pois queríamos está
sempre no meio da mocidade e nos tornarmos mais forte para enfrentar as dificuldades.
Em uma viagem feita para Senador Guiomard, onde seria realizada uma reunião para
a mocidade, fui apresentada a um rapaz – Silmar, ele estava a dois anos nesta Igreja e
estava esperando que Deus colocasse em seu caminho alguém que o fizesse feliz e que ele
amasse muito.
Ele era, então, o meu futuro marido. Começamos a trocar números de telefone, para
que pudéssemos nos conhecer, marcamos encontros, na Igreja, para conversarmos mais,
quando saíssemos do culto, foi quando ele me pediu em namoro, e eu aceitei e disse a ele
que tinha que falar com meus pais e apresentá-lo a eles.
Passaram-se três meses de namoro e ficamos noivos, comecei a montar meu enxoval,
minha mãe me deu uma geladeira e um fogão, e ele vendeu a moto para comprar uma humilde
casa. Após três meses de noivado, nos casamos, no dia 22 de setembro de 2000, no fórum
Barão do Rio Branco. Fizemos uma recepção para os familiares e amigos no Buffet Maria
Brasileiro. Passei a manhã inteira ajudando minha mãe nos preparativos, à tarde fui para o
salão de beleza para vestir o vestido de noiva, arrumar os cabelos, enfim, ficar bem produzida.
O meu primeiro vestibular
Eu tinha 18 anos, quando prestei o primeiro vestibular, no início do ano de 2001,
havia concluido o ensino médio, mas não me sentia preparada para fazê-lo, pois meus
estudos e escolas tinham sido de níveis muito baixos, e tinha feito minha inscrição
para o curso Engenharia Civil, pois meu sonho era ser Engenheira. Infelizmente, não
consegui passar.
Após ter me recuperado deste acontecimento, no mesmo ano de 2001, tomei uma
decisão, resolvi fazer cursinho pré-vestibular, mas não disponibilizava de dinheiro para
fazer isso, foi então que resolvi procurar meus pais para pedir ajuda financeira. Meus pais
fizeram questão de me ajudar, pois se era para estudar, ajudavam com todo prazer. Meu
marido também me ajudou, foi assim que consegui este objetivo.
Fiz minha inscrição para o cursinho que ficava próximo a minha casa, pois morava
perto do centro da cidade, assim evitaria gastos com transporte. Ficava em casa pela manhã
para realizar os serviços domésticos, no período da tarde, ia para o cursinho que começava
às 15 h e terminava às 18:30, quando chegava em casa fazia os exercícios propostos para
fixar melhor o conteúdo. Passei oito meses no cursinho.
A recompensa do esforço
No dia em que fui fazer meu segundo vestibular, no ano de 2002, tinha acordado cedo
para tomar banho, tomar café, verificar se toda minha documentação estava na bolsa e
também para não chegar atrasada no local das provas, pois teria que pegar ônibus, desta vez
tinha feito minha inscrição para o curso de Engenharia Florestal. Quando vi a prova tive a
certeza de que iria passar, nem que fosse em último lugar, eu iria ter uma vaga na Universidade. E não poderia desistir se não passasse nesse vestibular, tentaria outro, pois não seria
fácil ter um emprego sem ter um curso superior.
Quando o dia do resultado chegou, tinha ido para a casa de meus pais, passar o dia na
companhia de minha família, passei o dia em frente à TV, para saber se sairia alguma
20
Caminhadas de universitários de origem popular
notícia sobre o resultado, mas chegou à noite e não tinha saído nada sobre isso. Foi quando
na hora de dormir, estávamos eu e minha irmã Alessandra, quando o telefone toca, era uma
amiga, Ana Paula, avisando que o resultado do vestibular estava sendo anunciado na TV
Gazeta. Rapidinho, ligamos a TV e ficamos bem atentas ao anúncio: de repente a jornalista
diz “Agora vamos ao anúncio dos aprovados no curso de Engenharia Florestal”, meu coração batia acelerado e eu aumentei o volume da TV para que pudesse ouvir bem, quando ela
falou o meu nome pulei de alegria, abracei-me com minha irmã, pulamos em cima da cama.
Meus pais já estavam dormindo, mas mesmo assim os acordei para lhes dar a notícia,
eles se assustaram, pois eu batia na porta do quarto, altas horas da noite, não pude esperar
até o amanhecer, minha vontade era de falar para todo mundo, fiquei muito contente, feliz
da vida, pois é inexplicável a sensação de conquista de um objetivo tão almejado. Porém,
minha felicidade não foi totalmente completa, pois minha irmã não tinha conseguido
passar, mas eu disse a ela que não desistisse, pois era apenas o seu primeiro vestibular.
Logo no amanhecer do dia seguinte, meu pai levantou cedo e foi comprar um jornal,
pois não acreditava que um de seus sonhos tinha tornado-se realidade, ao chegar em casa
com o jornal nas mãos, pediu que eu confirmasse o meu nome e meu RG na lista de aprovados
do vestibular, pois pensava que poderia ter outra pessoa com mesmo nome. Felizmente
era eu mesma.
Neste mesmo ano, estava trabalhando na Polícia Militar do Estado do Acre, tinha um
contrato de 2 anos de serviço que terminaria em 2004. Trabalhava no serviço de emergência, no registro de ocorrências. Fiquei pensando como seria minha rotina, pois o curso que
escolhi era período integral e tirava plantão a noite toda das 18 h às 6 h do dia seguinte, e
teria que estar na universidade às 7 h da manhã.
Dentro da universidade
No primeiro período do curso, fiquei em duas disciplinas pré-requisitos, pois não
conseguia estudar com tanto sono, dormia em sala de aula e não tinha tempo de estudar para
as provas. Foi assim que adiei por um ano minha formação acadêmica. Por outro lado, tinha
que trabalhar para que tivesse condições de ficar estudando, pois tínhamos que tirar cópias
de textos, almoçar, lanchar e comprar passes escolares.
No ano de 2004, meu contrato de trabalho acabou, fiquei um pouco triste, pois estava
desempregada e sem dinheiro. Dois meses depois, descobri que estava grávida, fiquei muito
triste, porque não tinha emprego e não sabia como iria fazer para estudar e cuidar de um bebê,
pois um filho precisa de amor, cuidados e carinho. Meu esposo ficou muito feliz porque iria
ser pai. As preocupações eram muitas, pois estávamos sem condições de tempo e dinheiro
para este filho, mas nossa família nos apoiou. Minha sogra se dispôs a cuidar dele, fiquei
muito aliviada porque confio nela, ela é como se fosse outra mãe para mim. Meus pais
ficaram muito felizes, pois era seu primeiro neto.
Durante minha gravidez, fiz o 3° período, que levou em torno de 5 meses e graças a
Deus passei em todas as matérias. Eu dei luz no dia 28 de abril de 2005, a um menino lindo,
forte e saudável, ele se chama Anthony Gabriel e é a coisa mais linda da minha vida.
Passei 8 meses em casa cuidando dele, porque fiquei de licença maternidade durante
5 meses e, logo em seguida, a Universidade entrou em greve, foram 3 meses em paralisação,
fiquei até um pouco desmotivada por ter passado tanto tempo longe da sala de aula. Mas
nesse momento, não poderia pensar em desistir, porque agora tinha um filho para sustentar.
Universidade Federal do Acre
21
Então, acabei adiando mais uma vez a conclusão do meu curso, mas com a certeza de
que vou conseguir me formar e ser Engenheira.
Em busca de um ideal
Em 2006, com muitos planos e desejos para conquistar, continuava desempregada –
já fazia 2 anos que estava desempregada – em uma situação muito difícil, pois somente meu
marido estava trabalhando. O dinheiro mal dava para pagar as contas. Como não quero isso
para mim, fui então em busca de algum estágio para ajudar nas despesas, passei dias seguidos procurando um emprego ou um estágio na minha área de atuação, para que pudesse pôr
em prática o que aprendi e também para adquirir conhecimentos e experiên-cias. Infelizmente, não consegui nada, estava até sem esperanças.
Mas graças a Deus, surgiu a oportunidade de fazer parte do Programa Conexões de
Saberes. Não foi fácil para mim. Vou contar como aconteceu: ao ver o folder no mural da
Coordenação do meu curso, procurei adquirir mais informações sobre o critério de seleção.
Fui até a Pró-Reitoria de Assuntos Comunitários, obtive todas as informações, providenciei
toda a documentação, fiz minha inscrição e fiquei aguardando o resultado. Quando o dia
previsto chegou, pedi para minha amiga Simone, que hoje também faz parte do Programa,
que me avisasse, pois, neste dia, eu não iria para a universidade. Ela me ligou à noite
dizendo que eu tinha sido classificada, ou seja, estava na lista de espera. No momento,
fiquei triste, mas ela me disse que era para eu ficar em paz que iria dar tudo certo.
Tinha considerado essa oportunidade como perdida, mas quando cheguei à casa de
minha sogra, ela me disse que a secretária do Programa Conexões de Saberes tinha ligado e
dito que me desse o seguinte recado: que eu fosse participar da reunião de abertura do
Programa na UFAC, pois caso alguém desistisse seria substituído pelos candidatos da lista
de espera. Ao terminar a reunião saí triste porque, naquela noite, não tinha faltado pessoas
suficientes para que eu pudesse ser chamada para fazer parte do Programa.
Após um mês de início do Programa na UFAC, recebi uma ligação da Coordenadoria
do Projeto solicitando minha presença, pois eu tinha sido contemplada com uma bolsa.
Fiquei muito contente com a convocação. Vou me esforçar ao máximo para contribuir com
o desenvolvimento e sucesso do Conexões de Saberes para que possamos atingir
nossos objetivos e metas.
22
Caminhadas de universitários de origem popular
Um desafio em busca de uma conquista
Francineudo Souza da Costa*
Breve relato
Meu nome é Francineudo Souza da Costa, nasci na cidade de Rio Branco, estado do
Acre, no dia primeiro de outubro de 1985, filho de Marina Bezerra de Souza e Francisco
Félix da Costa, tenho três irmãos e duas irmãs, sendo o segundo filho mais novo. Curso o
terceiro ano de Engenharia Florestal na UFAC. Sou o único filho a cursar o ensino superior.
Até onde podemos realizar uma conquista
Na noite do dia primeiro de outubro de 1985, nasce, na cidade de Rio Branco, uma
criança com pele morena. Uma cor que resultou no desprezo do pai, nesse momento se
colocando na posição de juiz, que escolhera minha mãe para ser ré de um crime que jamais
sonhou em cometer. Sua sentença seria pagar com sofrimento e abandono. Expulsa de seu
lar para viver “às portas do mundo”, se tornando uma guerreira a lutar por seu mais valioso
tesouro “seus cinco filhos”. Sem estudos e sem emprego fez de tudo para sustentar os filhos,
desde juntar latinhas para vender, até limpar quintais, e foi assim por um longo tempo.
Fomos morar numa invasão, na casa de minha avó. Esta casa só tinha um cômodo. Como eu
era recém-nascido, ficava em casa com minha irmã que já tinha nove anos e meus outros
dois irmãos, um de três (Antônio) e um de dois (Cleison). Já o mais velho de oito anos ia
trabalhar com minha mãe. Foi assim, durante alguns anos até minha mãe conseguir um
emprego num frigorífico.
Num certo dia, meu irmão Antônio ia tirando nossas vidas. Ele tocou fogo no
colchão em que eu dormia só que fui salvo a tempo, não sei por quem, mas me tiraram. E
assim continuávamos longe de nosso pai, devido minha diferença de cor de pele, ele não
quis me aceitar como filho e muito menos me registrar, foi assim até os dois anos de idade,
quando teve que ir ao fórum por pressão da justiça. Fui registrado aos dois anos, mas
continuei a morar com minha mãe.
No ano de 1990, minha mãe se casou com outro homem, e levou todos os filhos para
sua nova casa, localizada na zona rural, uns vinte quilômetros da cidade. No início tudo ia
muito bem, nós éramos tratados como seus filhos, pelo nosso padrasto, “filhos que ele
nunca teve”, mas durou pouco. Um ano depois, começou a nos explorar nos colocando por
longas horas trabalhando no roçado (agricultura de queima e roça) cultivo de milho, feijão,
arroz, além de cuidar do gado. Por ter pouco pasto, nos colocava para vigiar o rebanho na
beira da estrada, e assim acontecia, dia após dia, nós éramos submetidos a vida de escravos.
*
Estudante do curso de Engenharia Florestal da UFAC e bolsista do Projeto Conexões de Saberes.
Universidade Federal do Acre
23
Caso fizéssemos algo que não fosse do agrado desse cruel homem, apanhávamos como
criminosos da Idade Média. Chicão, como é conhecido, nos colocava no terreiro de joelhos
em cima de caroços de milhos. Não importava se o tempo estava chuvoso ou ensolarado,
tínhamos que cumprir um longo período de castigo.
Meu irmão João, mais velho dos filhos homens, já cursava a oitava série do ensino
fundamental, mas devido a tantas agressões que ele sofria, resolveu fugir. Um dia foi para
o colégio e nunca mais voltou para a colônia que morávamos. Minha irmã também já
tinha ido embora. Só ficaram os três filhos mais novos. Eu sendo o caçula ainda não
estudava, ficava em casa enquanto os meus irmãos iam para a aula, contando os segundos
a espera deles chegarem.
1993, aqui, começa minha vida escolar
O ano de 1993, foi inesquecível, foi a primeira vez que coloquei meus pés dentro de
uma escola, nunca tinha sentido tanta felicidade como senti naquele momento, muitas
crianças correndo, chorando por ser também a primeira vez a ficar numa escola. Tudo era
muito agitado, eu estava muito feliz, ficava pensando, se pudesse não sairia de dentro da
escola. Minha casa ficava a uns cinco quilômetros de distância da escola e nós íamos
andando. Para cortar caminho, passávamos por dentro de uma floresta. Foi assim dia após
dia, no entanto, me sentia muito feliz em dar aquela caminhada todos os dias, o que nós
queríamos mesmo era estar longe de casa. Pena que durava poucas horas. Ao chegar à casa
só dava tempo de almoçar, resolver os deveres de casa e já tinha obrigação para fazer: ir ao
roçado e trabalhar até as seis horas da tarde.
Nesse período, minha mãe saiu do emprego e ficou só trabalhando em casa, cuidava
dos serviços domésticos, foi o tempo que ela começou a observar a maneira como meu
padrasto nos tratava no dia-a-dia, viu que ele nos agredia sem motivo algum. Num certo dia,
meu padrasto bateu a cabeça do meu irmão numa árvore, até hoje tem uma cicatriz, foi então
que minha mãe decidiu nos mandar para a casa de nosso pai.
Ano de 1994
Neste ano, nós passamos a morar com nosso pai, eu já com 8 anos de idade, Cleison
com 10, e Antonio com 11. Meu pai tinha uma esposa e com eles moravam dois filhos que
eram somente de sua mulher. No início, tudo estava uma maravilha, nós começamos a
estudar, meus dois irmãos estudavam num colégio um pouco distante de minha casa, eu
estudava em uma escola mais próxima. A escola se chamava Frei Thiago Maria Matiolli, era
uma escola pequena, antiga, de madeira, que já não duraria muito tempo se não sofresse
logo uma reforma.
Nessa escola, permaneci por dois longos anos, segunda e terceira séries. Tive que sair
porque a escola já não oferecia as séries subseqüentes.
Neste período, eu e meus irmãos brigávamos constantemente com os filhos de nossa
madrasta, por quaisquer motivos nós estávamos brigando. Foi a partir dessas confusões que
o relacionamento de meu pai com sua esposa entrou em crise, ela já não aceitava mais que
eu e meus irmãos ficássemos naquela casa dividindo o mesmo teto com ela. Meu pai, não
tendo escolha, resolveu pedir separação.
Depois que meu pai se separou, ficamos somente, meu pai, eu e meus dois irmãos
morando juntos. Nesse momento, surgem novas dificuldades. Meu pai não tinha condições
24
Caminhadas de universitários de origem popular
financeiras para manter três filhos. Tivemos que começar a trabalhar para podermos ajudar
em casa. Eu e meu mano, Cleison, passamos a vender picolé, pão doce, salgadinhos. Eu,
muitas vezes, fui ao centro da cidade para vigiar carros. Fomos levando a vida dessa maneira.
Já o meu irmão Antonio, passou a trabalhar numa padaria, saía de madrugada de casa para
produzir os pães e quando amanhecia o dia, ele ia para a rua vender, e assim levávamos a
vida, estudando e trabalhando.
Ano de 1996
Nesse ano, passei a estudar em outra escola que ficava ainda mais perto de minha casa,
uns 200m de distância aproximadamente. Eu já era aluno da 4ª série do primário da escola
Dr. Tancredo de Almeida Neves, para onde eu tinha sido transferido.
Até aquele momento, eu era um aluno muito dedicado aos estudos, sempre tirava boas
notas, e, muitas vezes, era tido como exemplo pelos professores.
No ano seguinte, já não era o mesmo aluno, me envolvi com um grupo de alunos que
vivia matando aulas, daí minhas notas caíram tanto que eu já tinha perdido o estímulo para
estudar, mas não quis me sentir um fracassado. No final do ano, corri atrás do prejuízo, fiz
prova final da maioria das disciplinas, mas graças a Deus, consegui passar de ano.
Foi a partir desse momento, que comecei a refletir sobre minha vida. Sobre o que eu
queria ser na vida, pois sabendo que tinha pais praticamente analfabetos que foram somente alfabetizados por um programa do Governo Federal chamado MOBRAL, pude
perceber que não chegaria a lugar nenhum se não me esforçasse. Daí, prometi que nunca
mais passaria por tal vexame. Novamente, senti prazer em estar estudando, sempre entre
os melhores de minha turma, mesmo sendo um garoto pobre, vivendo superando as dificuldades oferecidas pela a vida, eu estava completamente disposto a enfrentar qualquer
desafio que surgisse pela frente.
Ano de 1998 a 2000
Da 6ª a 8ª séries, últimos anos do ensino fundamental, foi o tempo em que comecei a
pensar o que realmente gostaria de ser na minha vida profissional. Os professores já perguntavam se os alunos já tinham escolhido qual profissão gostariam de exercer no futuro. Eu
não entendia muita coisa sobre profissão, mas pensava em ser advogado, meus professores
disseram que eu teria que estudar muito, portanto, passei a me dedicar mais ainda, assim, aos
poucos ia me destacando.
No ano 2000, eu já cursava a 8ª série, disposto a ser melhor, a cada dia, já me superava,
fiquei entre os três melhores de minha turma. Acabou o ano letivo, agora tinha que mudar de
colégio, dessa vez bem distante de minha casa, fiquei muito triste, pois gostava muito de
minha ex-escola, lugar onde vivi cinco anos de minha vida.
Ano de 2001
Em 2001, ingressei no ensino médio, encontrei pessoas completamente diferentes das
que eu convivia, vi que começaria uma nova fase de conhecimento e de convívio social,
pois tudo estava sendo diferente para mim.
O colégio no qual eu começaria mais um ano de estudo se chamava Heloisa Mourão
Marques, por sinal de grande estrutura física, e o ensino era o que eu buscava. Passei a me
sentir mal, pois as pessoas julgavam as outras simplesmente pela aparência, e como eu era um
Universidade Federal do Acre
25
dos mais pobres de minha classe, sentia-me excluído dos demais. Andava com roupas velhas,
e era bem despojado. No conceito dos demais alunos, eu seria o pior aluno da turma, mas
mostrei o contrário do que todos pensavam, tornei-me o melhor aluno de minha turma, ganhando até alguns prêmios oferecidos pelo colégio aos melhores alunos, um deles, foi uma
viagem de ônibus, para conhecer o seringal, onde Chico Mendes, um dos maiores ambientalistas
do Brasil, travou os maiores embates, para a preservação da natureza. Foi lá onde ouvi pela
primeira vez o nome Engenharia Florestal, curso no qual estou cursando hoje.
Todo esse privilégio me trouxe muitas inimizades na escola, vi que ali eu não poderia
mais estudar, portanto para que não houvesse maiores constrangimentos, resolvi mudar de
escola. Falei para meu pai da idéia de ir para um outro colégio no centro da cidade, ele logo
negou, pois disse que não teria dinheiro para pagar meu transporte.
Mesmo assim, resolvi arriscar, convidei um amigo que sempre estudou comigo para
irmos atrás de uma escola da rede pública mais conceituada, fomos a várias escolas, mas
todas já estavam com as vagas preenchidas, a única que restou foi o Colégio de Aplicação
da Universidade Federal do Acre. Vimos que lá ainda havia vaga e por incrível que pareça
“somente duas vagas”, o critério de seleção era sorteio, havia muitos inscritos. No dia do
sorteio, estávamos muito ansiosos; meu amigo ficou com a primeira vaga, já eu fiquei no
cadastro reserva, era o quarto suplente. Achei que jamais seria chamado, mas uma semana
depois me ligaram e disseram que eu seria o mais novo aluno do Colégio de Aplicação.
Fiquei muito feliz, pois sabia que ali teria um melhor desenvolvimento intelectual, ao
mesmo tempo vi que começaria um grande desafio, pois sabia que não teria dinheiro para
arcar com as despesas de transporte e de material que o Colégio pedisse.
Quando comecei a estudar, resolvi tornar pública a minha situação financeira para a
Coordenação do Colégio, logo recebi ajuda de alguns professores e de minha irmã que
sempre foi minha escudeira fiel. Mas não quis só depender dessas pessoas, também comecei
a trabalhar como servente e pedreiro para ganhar uma grana a mais.
E foi assim que se sucederam os dois últimos anos do ensino médio. Estudava numa
turma de 25 alunos, onde todos tinham um bom nível de conhecimento intelectual e cultural e que levavam um ritmo de estudo totalmente diferente do que eu já tivera em anos
anteriores, era um grupo muito unido, que se reunia sempre e com o intuito de estimular o
desejo uns dos outros de ingressarem na Universidade Federal. Já quase no fim do 3º ano,
tive minha primeira experiência com vestibular, me escrevi para concorrer a uma vaga no
curso de Direito da Universidade Federal de Rondônia – UNIR.
Dias antes da prova, fiquei muito doente, havia pegado uma alergia que me deixou de
cama, três dias antes da prova. Além de não ter dinheiro para comprar remédio para a minha
recuperação, também não tinha dinheiro para as minhas passagens. Meu pai, com seu salário de aposentado, não tinha condição alguma de me ajudar, a maior parte de sua aposentadoria era para comprar remédios, pois sofre de diabetes. A única solução foi vender uma
televisão pequena que eu tinha por R$ 100,00 que foi o preço da passagem de ida e volta.
No dia da prova, eu estava muito mal, não conseguia nem me alimentar, mesmo
assim estava determinado. Duas horas depois do início da prova, minha fraqueza física
era tanta que já não conseguia mais ler a prova, entrei em desespero, pois vi que eu não
podia fazer mais nada e assim fui obrigado a entregar a prova pela metade, me senti muito
angustiado, pois eu tinha estudado muito. Voltei a Rio Branco, fui direto para o hospital
para ser tratado. Já recuperado, continuei estudando o terceiro ano e me preparando para
26
Caminhadas de universitários de origem popular
o vestibular da UFAC, porém ainda estava muito inseguro, mas muito feliz em estar
cluindo o 3º ano.
Após concluir o ensino médio, tive mais três meses para me preparar para o Vestibular.
Passei a dedicar todo o meu tempo estudando na biblioteca. Entrava oito da manhã e só saia
às vinte e duas horas, estava sendo muito desgastante. Como eu não tinha dinheiro, ia para
o Centro e voltava para casa andando, mas de cabeça erguida, pois para Deus nada é impossível, pois ele é dono de todas as coisas.
Então, chegou o vestibular, me inscrevi para Engenharia Florestal, eu muito empolgado e feliz por ter superado cada dia de estudo, tinha certeza que aquele seria o meu momento.
Momento que ficaria marcado em minha história. Fui o 16º colocado, vi que tinha dado
mais um passo de vitória, por isso só esbanjava felicidade.
A entrada na universidade
Comecei a estudar no dia 29 de setembro de 2004, já de início vi que teria que pagar
um alto preço para permanecer estudando, o curso era dado em período integral, eu tinha
que ter uma grana razoável para poder me manter, mas “aos trancos e barrancos” eu continuava determinado a estudar.
A cada dia, via meus gastos aumentando: muitas xerox a serem tiradas, almoço
todos os dias, dinheiro para ônibus, mesmo assim continuei estudando. Com a ajuda de
um e de outro, lá estava eu. Minha maior tristeza com a Universidade era que não existia
nenhuma política de assistência para que os estudantes de origem popular pudessem
permanecer na faculdade.
Fui em busca de muitos estágios, mas nunca conseguia porque eu estudava em
período integral, contudo em maio de 2006, foi aberta seleção para o programa Conexões
de Saberes que selecionaria 25 estudantes/bolsistas de origem popular. Lá estava eu entre
os selecionados, e é onde estou trabalhando até hoje.
Aqui encerro meu memorial, dizendo a você estudante, filho, pai, professor e as
demais pessoas que irão ler estas poucas páginas, que para nos tornarmos vencedores
temos que sonhar, lutar, quebrar barreiras e transformar os desafios em simples obstáculos
a serem transpassados.
Universidade Federal do Acre
27
Encontros e desencontros no caminho
Francisca Silva de Melo*
Introdução
Desde cedo em minha vida aprendi que, por mais longa que fosse a caminhada, ela
deveria começar com o primeiro passo.
O conteúdo deste texto é o reflexo da vida de uma pessoa que, tentou, sofreu, caiu
inúmeras vezes, mas levantou novamente, por entender que “preferir a derrota prévia à
dúvida da vitória é desperdiçar a oportunidade de merecer” (QUASE – Crônica de Luiz
Fernando Veríssimo).
Aqui estou para falar dos caminhos pelos quais trilhei. E gostaria de considerar sobre isto.
O simples ato de viver leva o ser humano a profundas reflexões na busca do significado de sua existência: Quem eu sou? De onde eu vim? Por que estou aqui? Para onde eu
vou? São perguntas cujas respostas são essenciais para o indivíduo deixar de ser passageiro
do mundo imediato e se transformar em agente consciente e conseqüente do seu processo
de vida, passando, dessa forma, a planejá-la dentro do contexto dos seus sonhos.
Assim sendo, é muito importante, ao se falar em caminhos percorridos, conceituar
passado, presente, futuro e referencial de vida.
Acerca do passado, posso dizer que são as experiências acumuladas. O presente é o
que a pessoa é e o que ela faz. Ao agir, o homem faz transformações — “quem não age não
é” (Antonio Grimm). E o futuro é a expectativa do que a pessoa quer ser.
O presente da pessoa possui suas bases no somatório das suas experiências, sendo,
portanto, um resultado único e individual. A observação plena, racional e intensa do presente possui profundo significado para o homem. “Viver o presente, analisá-lo e pesquisálo é dar a dimensão do Universo à vida do homem” (Antonio Grimm).
É atribuída ao mestre Dalai Lama a autoria do pensamento a seguir, quando certa vez
foi interrogado sobre o que mais o surpreendia na humanidade:
Os homens... porque perderam a saúde para juntar dinheiro, depois
perderam dinheiro para recuperar a saúde. E por pensarem
ansiosamente no futuro, esquecem do presente, de tal forma que
acabam por não viver nem o presente nem o futuro. Vivem como se
nunca fossem morrer e morrem como se nunca tivessem vivido.
*
Estudante do curso de Pedagogia da UFAC e bolsista do projeto Conexões de Saberes.
28
Caminhadas de universitários de origem popular
Urge, portanto, promover o processo sustentável da vida por meio do encontro do
homem consigo mesmo; ou seja, aquele que vive somente os acontecimentos do passado, ou
apenas as expectativas do futuro, não vive o presente, portanto, não age e não transforma.
A análise do passado, do presente e do futuro é feita de acordo com determinado
referencial de vida, e isto nada mais é que um sistema de valores utilizado como parâmetro
de avaliação crítica das decisões, das ações e do comportamento humano.
A trajetória de vida de um indivíduo pode ser encarada como uma viagem a várias
culturas, lugares, momentos, situações, desafios, funções e oportunidades. A abordagem da
vida como trajetória e a utilização do referencial como ferramenta são muito úteis na
“otimização” do crescimento de cada pessoa. É, pois, extremamente importante reavaliar
continuamente o referencial, transformando-o e corrigindo-o.
O objetivo da vida, portanto, é o crescimento. Como crescer é um processo, a vida é
necessariamente aberta, não existindo, então, destino traçado para cada pessoa. O destino
não é um fato inevitável, mas uma questão de escolha. A trajetória de vida é construída pelo
ser humano ao desenvolver os seus potenciais e superar os seus limites.
Resumindo, trajetória de vida é um caminho construído livremente pela pessoa ao
interagir de forma consciente e conseqüentemente consigo mesma, com os outros, com a
natureza e com o Universo.
Ao discorrer sobre minha trajetória de vida, estarei discorrendo sobre meus sonhos.
Aprendi muito cedo que sem sonhos, a vida não tem brilho. Sem metas, os sonhos não têm
alicerces. Sem prioridades, os sonhos não se tornam reais.
Foi assim que aprendi a sonhar, traçar metas, estabelecer prioridades e correr riscos
para executar meus sonhos. Aprendi que melhor é errar por tentar do que errar por me omitir
Quando temos um grande sonho, nenhum obstáculo é grande demais para ser superado.
Primeiros passos
Era ainda muito pequena.
Pelo interesse de minha mãe em fazer com que os filhos estudassem, fomos morar com
uma de suas irmãs, pois até esse momento não tínhamos lugar fixo para morar, já que meu
pai era viajante e “fazia” a vida comercializando praticamente tudo o que as populações
ribeirinhas compravam – e nossa obrigação era acompanhá-lo. E por conta desse fato, eu, a
caçula, juntamente com meus outros três irmãos, tivemos que abandonar a escola algumas
vezes, sem concluir os anos letivos e atrasando nossa trajetória escolar que, em meu caso
especificamente, começou em 1984 numa escola pública localizada no Bairro Quinze, nas
proximidades de onde morávamos.
Entretanto, na escola onde efetivamente iniciei meus estudos, no Conjunto Tucumã I,
a sala era estruturada agrupando ou separando os alunos, ora pelo rendimento escolar e ora,
acredito que pela vontade da educadora. Percorri todos os diferentes espaços daquele local
e me sentia frustrada nessa instabilidade, uma vez que lutava para atingir o ideal de boa
aluna e, assim como meus colegas de classe, ser prestigiada. Situações como essas demonstram a forma hierárquica e de submissão propagada em nossa sociedade, pois desde a infância somos submetidos a uma verdadeira competição.
A competição vai muito além da esperteza e inteligência do aluno, porque transcendendo a tudo isso, somos medidos rigorosa e cruelmente pela posição que ocupamos na
sociedade. Agora entendo que do ponto de vista científico, ninguém é maior do que ninguém.
Universidade Federal do Acre
29
Intelectuais e iletrados, ricos e miseráveis são mais iguais na essência da inteligência do
que têm consciência. Afinal, quem somos? Somos fagulhas vivas que cintilam durante
poucos anos no teatro da vida e depois se apagam tão misteriosamente quando acenderam.
Nada é tão fantástico quanto à vida, mas nada é tão efêmero quanto ela. Se hoje estamos
aqui, amanhã seremos apenas uma página na história. Um dia todos nós tombaremos na
solidão de um túmulo e ali não haverá aplausos, dinheiro, bens materiais, posição social.
Estaremos sós.
Se a vida é tão rápida, não deveríamos nessa breve história do tempo procurar os mais
belos sonhos, as mais ricas aspirações, independente do que pensamos que somos ou do que
nos fazem crer que somos? Afinal de contas, pelo que vale a pena viver e quais são os
sonhos que nos impulsionam?
Vale a pena discriminar alguém pela sua cor, posição social ou qualquer outro parâmetro
meramente humano? Aprendi que toda discriminação é insana e inumana. Aprendi que
nunca devo me diminuir nem me considerar superior a alguém. Aprendi a estender as mãos
para as pessoas que pensam diferente de mim, pois eu também cometo erros e nem sempre é
fácil para os outros suportá-los. Aprendi que há sabedoria em reconhecer meus erros e a não
me esconder atrás da minha rigidez e dos meus julgamentos.
Nos dias de minha infância vividos em salas de aula, havia em mim muitas interrogações que nunca eram esclarecidas por ninguém. Assim, a escola, que deveria ser
para mim um espaço de interesse e aprendizado, tornou-se, de certa forma, um lugar
tumultuado e confuso. Como não sabia, ou melhor, tinha medo de exteriorizar com
clareza minhas indagações, terminava sendo moldada para não questionar, pois temia
ser contestada.
Agora eu entendo que o problema não estava naquela escola ou com aqueles professores. Hoje sei que o sistema educacional deforma os alunos, contrai a criatividade, sufoca
a arte da dúvida, destrói a ousadia e a simplicidade, furta o que eles têm de melhor. Os
jovens são treinados a usar a memória como depósitos de informações, mas não a pensar.
Têm diplomas, mas não têm sabedoria.
Se fui repelida, humilhada, rejeitada, sei que não sou a única na galeria da história a
passar por isto. Ao longo da história muitos seres humanos que se tornaram expoentes em
suas áreas de atuação conheceram a sinfonia da incompreensão e a melodia das rejeições.
Ninguém os entendia, ninguém os apoiava, ninguém acreditava neles. Aprisionados na
terra da solidão, só podiam contar com a força dos seus sonhos e da sua fé.
Pela minha própria experiência, não tenho como discordar de um dos professores que
tive na Universidade, pelo qual tenho muito apreço, ao dizer que a base educacional merece
os melhores profissionais, porque é lá que se fazem as formações e construções para a vida
toda. Lá é o lugar onde ficam marcados e gravados para sempre os ensinamentos, o aprendizado, o modo como se aprende, os erros e frustrações.
Permaneci naquela escola até terminar a terceira série, retornando depois para a escola
onde tudo começou: Senador Adalberto Sena. Lá eu cursei a quarta série e todo o resto do
ensino fundamental.
Sempre me esforcei para ser uma boa aluna, embora não alcançasse o rendimento
esperado em algumas disciplinas.
A matemática, por exemplo, era a grande vilã em meus estudos, acredito que devido à
professora que tive e que me acompanhou até a oitava série. Minha facilidade era bem
30
Caminhadas de universitários de origem popular
maior no estudo da língua portuguesa, e em decorrência disto minhas notas eram muito
boas nesta disciplina.
Naquele tempo, a relação professor x aluno era algo muito distante. Era como se
devêssemos entender que o professor era o detentor de todo o conhecimento e o aluno era
uma figura insignificante, por nada saber. A distância entre ambos era muito evidente! O
aluno não tinha a liberdade de ir à professora para perguntar ou tirar qualquer dúvida.
Os professores deixavam transparecer a idéia de que eram superiores, que estavam
num pedestal, enquanto os alunos, seres inferiores, deviam contentar-se com sua insignificância. Quem dera tivessem lido e praticado o ensinamento de um dos ícones da
literatura mundial, Gabriel García Márquez, quando disse que “um homem só tem direito
de olhar a um outro de cima para baixo, quando vai ajudá-lo a levantar-se” (Carta de
Despedida, 2005).
A caminhada continua...
Minha educação no ensino médio foi bem deficiente.
Estudei no Colégio Estadual de Rio Branco – CERB. Hoje percebo como isso influenciou toda a minha vida e contribuiu para minhas dificuldades, principalmente, nas disciplinas
de cálculo, que exigem um raciocínio lógico. Contudo, esforcei-me bastante para aprender
e consegui, senão o bastante, pelo menos o básico, o que embora não tenha sido suficiente
para a vida, possibilitou-me alcançar, ainda que minimamente, um dos meus objetivos de
vida – ingressar na Universidade.
Com base no que já relatei, nota-se que meu ingresso na Universidade seria um dos
maiores desafios da minha vida. Contudo, através do meu esforço e determinação, os
sonhos tantas vezes sonhados tornaram-se parte de mim a tal ponto que passei a acreditar na
possibilidade de realizá-los, a despeito de todas as minhas dificuldades.
Eu não queria que meus sonhos ficassem enterrados nos escombros dos meus problemas
e das minhas dificuldades, como muitos permitem.
São do ex-presidente norte-americano Franklin D. Roosevelt as palavras: “a única
coisa a temer é o medo do medo”. Eu aprendi que precisava vencer o medo evidente e
principalmente o medo sutil, o medo do medo, se quisesse alçar o vôo dos meus sonhos.
Os erros, os fracassos, as incompreensões, geraram lições únicas para mim como também para todos àqueles que lutaram por seus sonhos. Cumpre, porém, àqueles que ocupam
posições de liderança, incentivar quem fracassa a extrair sabedoria das suas experiências
dolorosas, em vez de cultivar a culpa.
Afinal, errar é uma etapa do inventar, falhar são degraus do criar. Por isso a cultura das
provas está errada nas escolas do mundo todo. Quem acerta tem notas altas, quem erra é
punido com notas baixas. Essa política desrespeita a riquíssima pedagogia do ensaio e erro
que promoveu as grandes conquistas da história.
Entre tantos exemplos, citarei apenas um: Fleming descobriu a penicilina graças a um
fungo que contaminou a lâmina de cultura que ele deixara sem proteção no laboratório.
Acertou errando. Um erro levou à produção da penicilina, que salvou milhões de pessoas da
morte e de dores insuportáveis.
Enfim, nos alicerces das grandes descobertas, existem grandes falhas, nos alicerces
das grandes falhas, existem grandes sonhos de superação. Realizar os sonhos implica em
riscos, riscos implicam em escolhas, escolhas implicam em erros.
Universidade Federal do Acre
31
Quem sonha não encontra estradas sem obstáculos, lucidez sem perturbações, alegrias
sem aflições. Mas quem sonha voa mais alto, caminha mais longe. Por isso é que aprendi
que toda pessoa, da infância ao último estágio da vida, precisa sonhar.
Entendi desde cedo que não existem pessoas de sucesso ou pessoas fracassadas. O que
há são pessoas que lutaram pelos seus sonhos e pessoas que desistiram deles. Felizmente, eu
não desisti dos meus.
Hoje, ao olhar para trás, sinto-me pequena diante do fato de ter conseguido transformar
meus sonhos em realidade.
Embora todos saibam que chegar à Universidade é um dos grandes desafios para a
maioria das pessoas, o que poucos sabem, por não querer ver ou por se alienarem dos
problemas sociais que nos cercam, é que existe uma dificuldade ainda maior em permanecer
na Universidade, seja por motivo econômico, social, emocional e até mesmo por falta de
identificação com o curso escolhido.
Mas eu sonhava com o meu lugar no mundo, no meio social em que vivia. O sonho da
Universidade era o resultado de um desejo enorme de construir em mim mesma um novo ser
humano, sem demagogia e, muito menos, submissão. Como cidadã, sabia que tinha este
direito e, por saber tê-lo, queria um lugar onde pudesse sentir-me útil e percebida.
Encontrei, contudo, enormes dificuldades para alcançar minha autenticidade, minha
“libertação” e minha realização pessoal.
Encontros e desencontros na caminhada
Apesar de dizer que a minha vida escolar foi marcada por grande deficiência e
dificuldade, num momento de ilusão, em 1998, fui morar em Minas Gerais, com o
intuito de estudar. Entretanto, se eu me julgava incapaz para ser aprovada no vestibular
da UFAC e sem desmerecer minha terra, como ousaria imaginar uma aprovação na
Federal de Minas Gerais?
Mesmo que em alguns momentos pensasse ser muita pretensão da minha parte, eu
deveria ter tentado, uma vez que quem não tenta já está 100% reprovado. Mas pelo fato de
precisar me manter lá onde me encontrava, acabei me envolvendo com trabalhos e deixando o sonho da Faculdade em segundo plano.
Entretanto, o verdadeiro sonho nunca deve morrer dentro de nós.
Quanto tempo alguém é capaz de esperar para que seus sonhos se concretizem?
Alguns os abandonam nas primeiras semanas. Seus sonhos não resistem ao calor dos
primeiros problemas. Outros, nos primeiros meses. Seus sonhos estão mais arraigados
dentro de si, mas quando atravessam o vale das frustrações, eles, com lágrimas, os
enterram. Mas felizmente, há aqueles que são capazes de esperar décadas para que seus
sonhos se concretizem.
Ainda bem que não precisei esperar tanto.
Mesmo sem conseguir me esquecer deles, precisei arrumar um serviço para acumular
dinheiro a fim de custear minhas “futuras” despesas na Universidade. Mas, embora tenha
conseguido o serviço, não consegui atingir meu objetivo, visto que precisava de “muito”
dinheiro, ou bem mais do que dispunha então.
Em minha busca incessante pela realização do meu sonho, tentei fazer outra coisa.
Através de um profissional de passarela, fui indicada para desfilar, tendo chegado a participar
de eventos e desfiles. Entretanto, para continuar teria que dispor de dinheiro para preparar
32
Caminhadas de universitários de origem popular
um book e viajar. E como não dispunha de meios financeiros nem para iniciar o curso
preparatório para o vestibular, igualmente não poderia continuar a desfilar.
E se tivesse condição financeira, sem sombra de dúvida teria optado pelos estudos,
pois este sempre foi meu verdadeiro sonho.
Minha trajetória de vida até chegar à Universidade foi marcada por desilusões,
indecisões, mas acima de tudo por muita garra e determinação, o que me deu força para
seguir avante.
Galgando degraus mais elevados
Então vislumbrei a possibilidade de voltar para minha terra.
Aqui chegando, iniciei um curso preparatório para o vestibular. Optei pelo curso de
Pedagogia, não só com o intuito de conhecer as “famosas teorias”, mas também, e principalmente, de ter uma visão crítica do mundo que me cerca, de poder entender um pouquinho o
sistema em que estamos inseridos e de poder dar minha parcela de contribuição no que se
refere às desigualdades, reprodução, mediocridade e ideologia, enfim, tudo a que estamos
submetidos desde o instante de nosso nascimento.
Entrar na Faculdade foi, portanto, muito mais que um sonho. Foi a concretização de
um ideal, a transposição de barreiras, a realização de algo que muitas vezes vislumbrei
como irrealizável devido às minhas condições. Foi alcançar o que muitas vezes pareceume inalcançável.
Lembro-me do grande poeta Carlos Drumonnd de Andrade, quando disse que:
... o confronto com as dimensões históricas de outras sociedades e
de outros tempos servirá para esclarecer e definir, ainda mais, a
minha inserção na trajetória de minha sociedade, em primeiro
lugar, e da humanidade como um todo, em última instância.
Se isto é mesmo assim, significa mergulhar decididamente em
minha história, em minha sociedade, em minha cultura e em minha
própria identidade, como pessoa e como cidadão. É uma busca
alucinada do sentido da vida e da sociedade, num diálogo
apaixonado com os que ousaram, antes de mim, a difícil travessia.
É a irreverência de desfazer as trilhas já trilhadas, de duvidar do
induvidável, de teimar no impossível, de queimar as asas no sonho
inalienável da liberdade.
Não bastaria isso para justificar a importância, cada dia maior,
de sugerir aos nossos alunos este Caminho de Santiago,
pedregoso e traiçoeiro, e que pode levá-los, por isso mesmo, à
dimensão maior da História que é a conquista da liberdade?”
“Procura da Poesia” in Poesia Completa & Prosa, 4ª ed. Rio de
Janeiro, Nova Aguillar, 1977
Embora deva confessar que não foi fácil, por conta de tudo que já mencionei em
relação aos meus primeiros anos escolares, paradoxalmente, devo dizer que foi extraordinariamente gratificante.
Universidade Federal do Acre
33
Estar numa universidade, local onde se formam professores, só que na condição de
aluna, deixou-me apreensiva. Ficava algumas vezes imaginando como seria recebida em
sala de aula, agora em “nível superior”. Como seriam meus professores? Como seriam meus
novos colegas? Como eu seria recebida por todos? Haveria receptividade ou rejeição?
Encontraria as condições necessárias para meu crescimento acadêmico? Eram os velhos
traumas que teimavam em mostrar a sua face. Será que eu “agüentaria” ficar ali por muito
tempo ou fugiria para não ter que encarar um desafio que parecia estar além de minhas
forças e possibilidades?
Tudo isso pode parecer estranho e anormal, mas foi exatamente como me senti ao
iniciar meu curso. E recordando-me dos tempos de aluna na primeira série, as sensações
foram muito parecidas. Contudo, a insegurança e a incerteza foram, paulatinamente, se
desfazendo, pois na medida em que as dificuldades foram surgindo, recebi do alto a força
para continuar minha luta no desejo ardente de realizar e alcançar meus sonhos.
Aprendi que só eu mesma poderia limitar meu crescimento e que somente eu poderia
revolucionar minha vida. Aprendi, então, a olhar a vida com otimismo, acreditando em meu
potencial, apesar de mim. Aprendi, que, enquanto os tristes acham que o vento geme, os
alegres acham que ele canta. Aprendi, que, se meus sonhos fossem pequenos, minha visão
também o seria e minhas metas seriam limitadas, meus alvos seriam diminutos, minha
estrada seria estreita e minha capacidade de suportar as tormentas seria frágil. Aprendi,
enfim, que enquanto os fracassados vêem os raios, os vitoriosos vêem a chuva e com ela a
oportunidade de plantar.
Foi assim que resolvi plantar novas sementes no solo de minha vida, apesar de saber
que seria difícil a colheita, acreditando no que um dia foi dito por Henfil:
“se não houve frutos, valeu a beleza das flores; se não houve flores,
valeu a sombra das folhas; se não houve folhas, valeu a força do
tronco e, se não houve tronco, valeu a intenção das sementes”
Cerca de quatro anos são passados. As sementes foram lançadas e, agora, vejo-me
na iminência de colher os frutos. E com que prazer, com que alegria, vislumbro o dia
da colheita!
Lembro-me de ter lido anos atrás a história verídica de um treinador, cujo trabalho
era desenvolver o potencial de jovens atletas que se preparavam na modalidade “salto em
distância”. Entre aqueles jovens, havia um, com certeza o menos promissor, que recebendo um carinho e cuidado todo especial do treinador, começou a “aparecer”, “despontar”,
entre os demais. Até o próprio treinador ficou surpreso com sua performance. Um dia, o
treinador lhe perguntou como estava conseguindo se desenvolver tanto. Sua resposta foi
simplesmente fantástica. Ele disse que tinha conhecimento de suas limitações. Mas que
também sabia que poderia crescer. E disse ao treinador que todas as vezes que ia dar um
salto, fixava seus olhos num ponto que ele sabia ser inatingível no momento. Mas ele
sempre saltava com os olhos fixos naquele ponto. E terminou dizendo: “Um dia, mais
cedo ou mais tarde, eu sei que cairei exatamente no local onde estiver olhando!”
Eu tive a ousadia de fixar meus olhos num ponto que parecia inatingível. Hoje, o
ponto inatingível deixou de existir, pois estou prestes a cair do meu salto, exatamente onde
sempre fixei os meus olhos.
34
Caminhadas de universitários de origem popular
Conclusão
Sei que foram muitos encontros e desencontros, acertos e erros.
Como acontece em toda profissão, também na que me proponho a realizar não haverá
somente momentos de prazer. É óbvio que encontrarei momentos de descontentamento, que
de forma alguma suplantarão os momentos prazerosos peculiares à minha futura profissão.
Essa é, afinal, a dinâmica tanto desta profissão, como também de todas as esferas da vida.
Não posso terminar sem deixar algumas palavras de agradecimento. Primeiramente,
àqueles professores que, ao longo da caminhada, ajudaram-me a irrigar a semente dos meus
sonhos e, de forma muito especial, aos Professores do Programa Conexões de Saberes:
Francisco Bento da Silva, Gerson Rodrigues de Albuquerque, João Silva Lima e Verônica
Maria Kamel de Oliveira.
Não posso me esquecer de agradecer também aos colegas de curso, com quem compartilhei momentos de incertezas e, agora, estou prestes a compartilhar momentos de glória.
Outrossim, sinto-me na responsabilidade de deixar algumas palavras que considero
relevantes, tanto a mim mesma, quanto aos meus colegas, hoje de estudo, futuramente de
profissão, e especialmente aos conexistas, colegas que atuarão em diferentes áreas de conhecimento.
Nós não precisaremos de sonhos para ter eloqüência, metodologia, conhecimento
lógico. Nem precisaremos de sonhos para gritar com os alunos, implorar silêncio em sala de
aula, dizer que não terão futuro se não estudarem.
Mas precisaremos de sonhos para transformar a sala de aula num ambiente prazeroso
e atraente que educará a emoção dos nossos alunos, que os retirará da condição de espectadores passivos para se tornarem atores do teatro da educação.
Precisaremos de sonhos para esculpir em nossos alunos a arte de pensar antes de
reagir, a cidadania, a solidariedade, para que aprendam a extrair segurança na terra do medo,
esperança na desolação, dignidade nas perdas.
Precisaremos de sonhos para sermos poetas da vida e acreditarmos na educação, apesar de as sociedades modernas a colocarem em um dos últimos lugares em suas prioridades.
Enfim, precisaremos de sonhos espetaculares para termos a convicção de que somos
artesãos da personalidade e sabermos que sem nós nossa espécie não terá esperança,
nossas primaveras não terão andorinhas, nosso ar não terá oxigênio e nossa inteligência
não terá saúde.
Universidade Federal do Acre
35
Trajetórias que nos levam a um único caminho
Francisco M. Magalhães Neto*
Poderia enumerar uma série de dificuldades que podemos passar durante a vida, entretanto, escrever uma autobiografia certamente está entre as dez maiores, mas na medida do
possível tentarei relatar acontecimentos e fatos de maior complexidade e relevância.
Nascimento
Dia 9 de novembro de 1983, no Hospital Santa Juliana de propriedade da Diocese
de Rio Branco, gerido pelas freiras da congregação Servas de Maria Reparadora e devido
a estas, que, por pouco, ao invés de nascimento, ia acontecendo uma fatalidade. É do
conhecimento de muitos que, em hospitais administrados por freiras, somente em último
caso são realizados partos cesarianos. Pela insistência em executar partos normais quase
venho a falecer antes mesmo de nascer. Minha mãe deu entrada na maternidade com
quatro centímetros de dilatação, onde permaneceu com fortes e intensas dores por três
dias esperando que a dilatação aumentasse, até que decidiram fazer uma nova tentativa
de parto normal. A base de muita força posta pelo médico é que pude nascer, estava roxo,
pois quase passou a hora do meu nascimento devido à espera.
Habitação
Durante toda a gravidez e alguns meses depois, meus pais e eu moramos na casa dos
meus avós paternos no conjunto Bela Vista, Bairro Floresta. Era uma casa consideravelmente confortável e aconchegante. Meu avô era funcionário público federal, hoje
aposentado, e nas horas vagas era taxista, minha avó é senhora do lar. Quando nasci,
minha mãe era jovem, mas já trabalhava desde os 16 anos, naquele momento estava
desempregada, pois havia vindo de Tarauacá, sua cidade natal, para Rio Branco há pouco
tempo, devido à gravidez repentina.
Já meu pai era funcionário do extinto Banco Nacional e morava em Rio Branco há
alguns anos, mas todo o ano ia a Tarauacá que também é sua cidade natal para passar
férias com familiares e minha mãe, até então sua namorada. Foi em uma destas viagens
de férias que fui gerado.
Posteriormente, fomos morar em uma casa de madeira, simples e pequena no Conjunto Esperança no Bairro Floresta, onde permanecemos por quatro anos. Até que, em
1987, nos mudamos definitivamente para o Bairro Doca Furtado. No início, era uma casa
*
Graduando do curso de História da UFAC.
36
Caminhadas de universitários de origem popular
simples de madeira, mas dois anos depois, meus pais mandaram fazer uma nova casa onde
moramos atualmente.
Escolas
Como meu pai é comerciário, dos três aos cinco anos, estudei no SESC, Jardim, PréEscolar Alfabetização. Depois, estudei em uma escola de ensino fundamental chamada
Francisco Salgado Filho, perto de minha casa. Esta escola tinha uma ótima infra-estrutura,
extremamente organizada e disciplinada devido à diretora que era muito rígida; todos os
dias, antes de entrar em sala, alunos e funcionários faziam fila para cantar os Hinos Nacional,
da Bandeira e Acreano. Nesta escola, fiz todo o primário. Quando passei para a 5ª série, meus
pais me transferiram para uma escola mais perto de casa onde uma tia materna lecionava.
Nesta, cursei todo o ginásio, era a escola Natalino da Silveira Brito, uma escola do subúrbio
com sérios problemas, como falta de professores, péssimas instalações. Quando chovia, por
exemplo, não havia aula, pois alagava tudo.
O ensino médio foi no Colégio Estadual Rio Branco – CERB, atualmente, Colégio
Estadual Barão do Rio Branco – CEBRB. Na época, a maior escola estadual da região Norte
do País. Este colégio era o único que oferecia os níveis de formação integral, contabilidade
e administração, a seleção das vagas oferecidas era por sorteio, pois havia um grande número de interessados. O colégio era consideravelmente estruturado, somente sua biblioteca era
escassa e defasada, mas o colégio adotava a política de compra de livros didáticos de
volume único, o que amenizava os gastos dos pais dos alunos.
Concluí o ensino médio, no ano de 2000, em formação integral. No ano seguinte, fiz
um ano de magistério no Instituto de Educação Lourenço Filho. No entanto, o curso não me
agradou e acabei desistindo.
Fatos pertinentes
Doença
No começo do mês de junho de 1997, fiquei doente, o sintoma era febre muito alta.
O que parecia ser passageiro e normal devido alguma infecção foi se prolongando e ao
passo que trocava de médico, o diagnóstico também mudava: febre tifóide, tiricia, malária
e inúmeras outras doenças. Fui internado em dois hospitais, mas meu quadro clínico
somente piorou, devido ao medicamento ministrado para a doença que os médicos acreditavam ser, o que acabou afetando meu organismo.
Com o passar do tempo, minha família se preocupava cada vez mais, pois é notório
que algo sério estava acontecendo, já que sempre fui uma criança extremamente saudável
que, no máximo, era importunado por alguma gripe ou resfriado.
Até que o último médico me deu alta com 39º de febre. Minha mãe ficou desesperada, foi
então que procuramos por um médico infectologista chamado Tião Viana, atualmente Senador
da República. Somente com exame clínico, ele já deu um diagnóstico primário que estava
correto: endocardite bacteriana. Aconselhou minha mãe a me internar para que ele pudesse
realizar exames detalhados, em que foi diagnosticada uma febre reumática asso-ciada à
endocardite. Disse, então, que eu teria que viajar para um centro de saúde fora do estado do Acre
para continuar o tratamento, pois a saúde aqui não tinha condições necessárias. Dias depois,
fui para Goiânia onde passei dois meses realizando exames específicos e sendo medicado.
Universidade Federal do Acre
37
Voltei para Rio Branco onde Tião Viana indicou que eu fosse continuar com o
tratamento e realizar uma cirurgia cardíaca, que era necessária devido a gravidade do
quadro provocado pelo diagnóstico e tratamento tardio. Sugeriu que eu fosse para outro
lugar, pois os médicos de Goiânia estavam inseguros e adiando a realização da cirurgia.
Minha mãe, então, conseguiu uma vaga no Instituto do Coração em São Paulo,
para onde fui no começo do mês de fevereiro de 1998, e no dia 26 do mesmo mês fui
operado. A cirurgia consiste na troca de artérias e válvulas cardíacas por próteses metálicas. Segundo os médicos ela tem uma vida útil de 15 anos em média e dependendo das
condições em que ela estiver quando demonstrar desgaste, eu posso realizar somente
mais uma cirurgia de troca, pois meus tecidos cardíacos não suportam mais ser cortados
e costurados. É neste dilema de morte eminente que levo minha vida, mas nem por isso
esmoreço diante das dificuldades.
Opção
Em 1998, meus pais participaram de um retiro da igreja Católica, promovido
pela pastoral familiar da paróquia São Peregrino (atualmente um santuário) chamado de
movimento ECC – Encontro de Casais com Cristo. Depois deste encontro, a religiosidade
que, até então, não era tão forte e atuante, em minha casa, começou a crescer. Logo depois,
por influência desse encontro, comecei a participar de grupos de jovens e a participar de
pastorais e outros movimentos e, com o passar do tempo, fui criando, vínculos e raízes.
No ano 2001, eu trabalhava no Instituto de Educação Lourenço Filho e estava profundamente ligado ao Convento São Sebastião, pertencente à Ordem dos Servos de Maria,
cujos frades eram os vigários que cuidavam da paróquia que eu participava. Esporadicamente, eles me convidavam para ir passar alguns dias no convento para conhecer e me
aprofundar na vida religiosa. Em fevereiro de 2002, eu decidi ser membro desta comunidade,
a revelia de familiares, amigos e demais. Deixei meu emprego, pertences e minha liberdade.
Passei a me dedicar de corpo e alma ao tripé da vida religiosa: pobreza, castidade e obediência.
Morei, neste convento, por um ano, passando por uma fase ou nível de hierarquia
chamado aspirantado. Passei por diversos problemas de adequação lá há um estilo de vida
até então contrário ao que tinha. Folga para visitar a família somente um domingo por mês
das 14:00 às 17: 30. Nenhuma liberdade de ir e vir, nenhum envolvimento com mulheres e
ainda seguir a risca, como uma educação militar, horários e ordens.
Em Janeiro de 2003, fui transferido para o Convento Nossa Senhora das Dores em
São Paulo, onde permaneci somente um mês e meio. Depois, fui mandado para o seminário
Servos de Santa Maria em Curitiba – Paraná.
Neste lugar, fixei residência, pois estava programado que eu fosse para uma casa
de formação e, nesta, permanecesse até o término do nível superior em Filosofia e
depois Teologia. Entretanto, em março de 2004, depois de alguns dias de férias em
minha cidade Rio Branco - Acre, após longos e complexos questionamentos sobre a
vida que tinha e a que desejava, analisei os prós e os contras daquele estilo de vida que
estava tendo e decidi abandoná-la.
Vitória
Este foi, é e sempre será o maior passo que já dei em minha vida, ingressar em uma
instituição de nível superior. Quando estava morando no convento em Curitiba, no ano de
38
Caminhadas de universitários de origem popular
2003, prestei vestibular e ingressei em uma faculdade privada chamada Instituto Vicentino
de Filosofia, não escolhíamos, pois tínhamos que cursar Filosofia. Além do mais, a faculdade
pertencia a uma congregação católica e só eram admitidos homens, algo que encaixa-se
perfeitamente com a vida em que tinha no convento.
Em 2001, assim que concluí o nível médio, prestei vestibular na Universidade Federal
do Acre para o curso de Ciências Biológicas, mas, felizmente, não passei, pois hoje sei que
não tenho a mínima vocação e interesse pelo curso.
Em 2004, assim que voltei de Curitiba, quando tomei a decisão de sair do convento,
me inscrevi no vestibular da UFAC, para o curso de História, e nada, absolutamente nada,
descreve a emoção que senti ao ter a notícia que tinha sido aprovado. Muito embora já
tenha, anteriormente, cursado nível superior, nada se compara à emoção e felicidade de ser
classificado em uma Universidade Federal.
Hoje, estou no 6° período do curso e almejando concorrer no próximo vestibular
para o curso de Ciências Sociais, e assim, dar continuidade aos meus estudos na área de
Ciências Humanas.
No mês de maio de 2006, tomei conhecimento do edital de abertura das inscrições do
Programa Conexões de Saberes, da Pró-Reitoria de Extensão e Cultura. Depois de alguns
poucos dias, estava com todos os documentos necessários para efetuar a inscrição e aguardar
pelo processo de seleção. No início do mês de junho, recebi a notícia que tinha sido classificado, uma grande alegria, já que participaria de um programa de grande abrangência e
magnitude. Logo tivemos uma reunião para tomarmos ciência dos objetivos e atividades
que seriam executadas e de nossas responsabilidades e deveres.
Atualmente, estamos em plena atividade e nos informando através de cursos de capacitação que auxiliam para o bom desenvolvimento de nossas ações. Além de estarmos
inte-ragindo com outras atividades ligadas à Universidade e à comunidade.
Universidade Federal do Acre
39
História de vida escolar
Jeígela Portela*
Chamo-me Jeígela, gostaria muito de saber a origem de meu nome, mas minha mãe
nunca soube explicar-me, talvez porque nem ela mesma saiba. O fato é que ela decidiu
colocar este nome e não se pode opinar quando ainda não se é dono do próprio nariz, foi
exatamente isso o que aconteceu. Para falar a verdade nunca gostei desse nome, pelo fato de
que quando ia à escola, geralmente nos primeiros dias de aula, os professores nunca sabiam
falar o meu nome corretamente nas apresentações ou quando iam fazer a chamada, isso fazia
com que todos os alunos ficassem rindo, pois achavam engraçado. Aquilo era constrangedor para mim. Achava o maior saco ir à escola na primeira semana. Mas fui crescendo, e, às
vezes, não mais ligava para aquilo, pois sabia que um dia tudo iria acabar.
Mudando de assunto. Nasci em Tarauacá, um pequeno município do Estado do Acre. Lá
permaneci até os 10 anos de idade com os meus pais, meu irmão e minha irmã. Meu pai se
chama Manoel, minha mãe Herotildes, meu irmão Nando e Jeigiane, minha irmã mais velha.
Quando meus irmãos e eu éramos pequenos, morávamos na colônia, ou mais precisamente, em seringal como as pessoas costumam falar por aqui. Eu achava o máximo: tomar
banho de cachoeira com meus irmãos, brincar de casinha que o pai mesmo construía para
nós, construir bonecas de pano ou de pedaços de madeira, participar das pescarias com
meus pais, ajudar na plantação de milho, mandioca, verduras e plantas, que a mãe tanto
gostava. Enfim, até chegar idade de ir para a escola, vivi com a família no interior, tenho
muito orgulho.
Quando tinha seis anos, meus pais decidiram ir morar na cidade para que meus irmãos
e eu pudéssemos estudar. Ainda quando morávamos na colônia, a mãe já nos ensinava a ler
e a escrever, para que ao chegarmos à escola não começássemos do zero. Então já iniciávamos
na primeira série.
Tudo começou em 1986, e como todas as crianças dessa idade, queria muito ir à
escola. Esta se chamava Rosaura Mourão da Rocha. Era uma escola grande de imensos
corredores e áreas com várias árvores. Pela manhã, ao entrar no portão da escola, os alunos
se posicionavam para cantar o Hino Nacional, que era tradicional, todos os dias, não falhava
um, eu já estava enjoada.
Como existia somente uma primeira série na escola, meu irmão e eu ficamos na mesma
sala de aula, apesar de ele ser um ano mais velho. Minha irmã ficou em sala separada, pois
já estava na segunda série, por ter passado um ano morando, na cidade, com minha avó.
*
Graduanda do curso de Educação Física da UFAC.
40
Caminhadas de universitários de origem popular
Após alguns meses estudando, meu pai resolveu que iria voltar a morar na colônia, e que
nós tínhamos de ir com ele. Foi difícil para nós deixarmos de estudar, mas a mãe não conseguiu
tirar aquela idéia da cabeça do meu pai. E fomos para a colônia, com exceção de minha irmã, que
ficou morando com a vovó. Como era a mais velha dos filhos, meus pais resolveram deixá-la
para garantir que pelo menos um dos filhos pudesse estudar e ter um futuro melhor. O que deu
para entender diante daquela decisão é que eles não sabiam se iriam voltar a morar na cidade.
Ainda era muito pequena e não entendia o porquê de tudo aquilo. Todos nós sentíamos falta de
minha irmã, pois éramos muito unidos, e de uma hora para outra tivemos que nos separar...
Algum tempo depois, voltamos para a cidade, e iniciamos novamente na escola. Meu
pai até tentou outra vez nos prejudicar, mas a mãe não mais permitiu, dizendo-lhe que se
fosse embora, iria sozinho, ou seja, nós não o acompanharíamos mais em suas loucuras que
não davam em nada.
O ano terminou (1990), nesse período, meus pais resolveram mudar-se para a capital
(Rio Branco), por insistência de meu tio, irmão de meu pai. A minha mãe não queria vir
embora, pois toda a sua família morava lá e não queria afastar-se dela. Mas como era muito
dependente de meu pai, não teve alternativa. Meu pai achava que aqui teríamos maiores
chances de emprego do que em Tarauacá.
Como o ano letivo ainda não tinha terminado, nossos pais resolveram partir sozinhos
nos deixando aos cuidados de nossa avó materna até que pudessem se organizar. Ao chegarem
aqui em Rio Branco, meus pais foram trabalhar com o meu tio (irmão do meu pai). Logo
conseguiram juntar uma graninha para o aluguel da nossa casa, e, às vezes, nos mandavam
algum dinheiro para ajudar nas despesas na casa da vovó. Afinal, éramos três. Quando
entramos de férias nossos pais logo mandaram nos buscar. Como o transporte até aqui era
muito caro, o pai conseguiu que viéssemos no avião do exército, como se fôssemos carga,
pois o mesmo transportava alimentos para cidade.
Em Rio Branco: vencendo desafios
Chegando aqui, moramos um tempo com o tio e sua família no centro da cidade. Nesse
período não foi moleza, pois tínhamos que trabalhar e estudar para ajudar os nossos pais.
Afinal, queríamos comprar a nossa casa. A minha mãe trabalhava em uma pensão, juntamente com minha tia, meu pai tinha um barzinho, a Nane (apelido de minha irmã) trabalhava
como doméstica no período da manhã, e estudava à tarde, eu e o Nando estudávamos pela
manhã e à tarde vendíamos doces em banquinhas próximo ao terminal urbano. O fato é que
todos ajudavam como podiam.
Passamos muito tempo nessa mesma rotina, até conseguirmos comprar nossa casa.
Após a compra da casa, tudo “melhorou”. Fomos morar bem longe do centro da cidade.
O bairro chama-se Sobral e moro nele até hoje com minha família. É um local muito
violento, no início tinha bastante medo de morar lá, mas com o tempo fui me acostumando
com as pessoas.
Na quinta série do ensino fundamental, fomos matriculados em uma escola localizada
no mesmo bairro, mas precisava fazer esse percurso de ônibus, e como éramos três filhos, as
despesas com transporte pesavam no bolso de nossos pais. Então, às vezes, íamos a pé e
voltávamos de ônibus, quando não fazíamos os dois percursos a pé. Nessa época, a Nane
continuava trabalhando em casa de família em um período e estudando no outro. O Nando
era engraxate, e eu ajudava a mãe nos afazeres de casa.
Universidade Federal do Acre
41
Esta escola chamava-se Serafim da Silva Salgado, estudei da quinta até a oitava
série, nesta fiz grandes amizades, inclusive com professores. Foi uma fase bem marcante
em minha vida... nessa época, a Nane já estava concluindo o ensino médio e preparandose para o vestibular. Passou de primeira, para o curso de ciências econômicas na UFAC.
Era muito inteligente, dedicada, determinada e com certeza o resultado não poderia ter
sido diferente. O Nando havia desistido de estudar na oitava série, era bastante inteligente, tirava boas notas, só que era muito rebelde, vivia brigando na escola, a mãe coitada,
morria de preocupação. No geral, todos ficaram super felizes por minha irmã ter passado
no vestibular. Até que enfim uma pessoa na família cursando o nível superior, falo dessa
forma porque meus pais não têm a quinta série completa por vários motivos, que não vêm
ao caso mencionar.
Embora o pai falasse que o estudo não nos adiantaria futuramente, a mãe sempre dizia
o contrário: que isso sim seria de grande valor em nossas vidas. Mesmo com todas as
dificuldades, fosse com transporte, com material escolar e uma série de outros fatores negativos, nunca desistimos em nenhum momento de estudar, com exceção, é claro, do Nando
que teve um momento de fraqueza e não conseguiu mais se reerguer nos estudos.
Já em outra escola (Heloisa Mourão Marques), comecei o ensino médio. Estudava no
período da tarde, pois não tinha este nível pela manhã e no momento estava desempregada.
Logo nos primeiros meses de aula, consegui um emprego em uma loja de confecção
no centro da cidade. Fiquei super feliz, porque já havia algum tempo que não trabalhava e,
além do mais já não me via mais dependendo totalmente de meus pais. Afinal, já tinha
quase 18 anos de idade.
Em virtude de meu novo emprego, tive que mudar o horário da aula para a noite, pois
a loja me roubava todas as horas do dia. Entrava no trabalho às sete da manhã e saía às
dezoito horas, com intervalos de duas horas para o almoço, estas eu usava para fazer cursinhos de informática, ou para fazer algum trabalho da escola.
Permaneci na escola Heloísa Mourão Marques até a conclusão do ensino médio. Em
partes a experiência de trabalhar e poder ajudar no orçamento familiar foi bastante
gratificante, mas por outro lado, quase não tinha tempo para estudar e fazer meus trabalhos
escolares. No final do ano, inscrevi-me para o vestibular, no curso de enfermagem que
sempre foi e é o meu grande sonho. O resultado foi decepcionante, não passei nem na
primeira fase. Achava que estava preparada, mas não foi o que pareceu. Minha pontuação
até que não foi tão mal, mas como o curso sempre foi bastante concorrido, não tive a
menor chance.
Lá em casa todos ficaram tristes por eu não ter sido aprovada no vestibular. No ano
seguinte, ainda trabalhando na loja, decidi ficar uns meses sem estudar para descansar um
pouco e novamente voltar a estudar. Às vezes, quando chegava do trabalho estudava um
pouco e, nos fins de semana, era quase raridade eu pegar em algum material para ler. A Nane
pegava no meu pé para eu estudar, senão nunca iria passar. Sempre dizia para eu não ler um
livro apenas alguns minutos, mas por muito tempo e tentando interpretá-lo.
Enfim, vários foram os conselhos que a Nane e a mãe me davam para eu estudar que um
dia com certeza passaria... e novamente, no final do ano prestei vestibular para enfermagem,
persisti porque era o que queria. Todos estavam ansiosos lá em casa. Quando chegou o dia
da prova estava nervosa, ansiosa e confiante, mesmo não tendo estudado o suficiente, fui
fazer a prova... passaram-se alguns dias e o resultado saiu no jornal. Foi decepcionante!
42
Caminhadas de universitários de origem popular
Não passei, fiquei tão triste, já não acreditava mais que um dia passaria. Depois de algum
tempo eu comecei a me conformar com o resultado, sabia que só tinha um jeito de reverter
essa situação: estudando mais e mais.
Foi então que resolvi sair da loja para poder estudar, e assim fiz. Após duas tentativas
para enfermagem, resolvi mudar a rota, a direção das coisas e, conseqüentemente, a área de
curso também. Desta vez, estava decidida a fazer Biologia, pois também era uma área que
me chamava atenção.
Nessa época, a Nane era quem sustentava a casa, pois o pai quase não tinha dinheiro,
e quando tinha, gastava tudo com a bebida e com as mulheres da vida; a mãe costurava para
fora, quando apareciam encomendas. Fazia o que podia para ajudar; o Nando já com sua
própria família morava em sua casa, nos fundos do nosso quintal, até conseguir se estabilizar
e poder comprar uma casa.
Em 2002, namorava uma pessoa maravilhosa: o Nilson. Essa pessoa é de grande importância em minha vida, sempre me incentivou, de uma forma direta ou indiretamente, a
lutar pelos meus ideais, a estudar mais e ingressar na faculdade. Sempre esteve ao meu lado,
inclusive até incentivou-me a fazer um pré-vestibular, e assim eu fiz. Durante o dia, trabalhava na loja Marisa e à noite ia para o cursinho. Permaneci durante cinco meses neste
cursinho, ou seja, os meses que antecediam o vestibular. O Nilson quase sempre ia me
buscar no colégio, que era um pouco distante de onde eu morava. Como ele tinha carro,
ficava bem mais fácil, e era uma oportunidade de ficarmos um pouco juntos.
No dia da prova, ele foi me deixar no local onde iria fazer, desejou-me boa sorte, assim
como todos lá de casa e meus amigos. Estava bastante nervosa naquele dia, pois muitas
pessoas estavam apostando em mim, e não poderia desapontar ninguém, inclusive o Nilson
que tanto acreditou em mim. Alguns dias depois, o resultado saiu nos jornais. Ainda não foi
dessa vez, fui reprovada mais uma vez. Já estava desistindo, pois era a terceira tentativa de
ingresso na faculdade e todas frustrantes. Em casa, todos ficaram arrasados, mas sabiam que
outros vestibulares viriam e com certeza passaria brevemente. O Nilson ficou um pouco
decepcionado comigo, mas a verdade é que estava ao meu lado me dando apoio e incentivando cada vez mais a minha entrada na faculdade.
No ano seguinte, resolvi pedir demissão da loja Marisa para poder estudar. Tinha certeza
que esse seria o último vestibular que faria, já estava saturada de tantas tentativas em vão.
Durante essa fase, quase não saía para me divertir. Também, nunca gostei de sair para
festas, sempre gostei do ambiente familiar, fazia tudo para ficar no quarto sozinha. Às vezes,
fazia passeios de barco com o Nilson nos fins de semana...
O vestibular estava chegando (2004), mais uma vez mudei de curso, dessa vez escolhi
Educação Física, olha só que ousadia: nunca gostei das aulas de educação física na escola,
fazia o possível para me livrar, conseguia até atestados médicos para não freqüentar as
aulas, e naquele momento decidi fazer a inscrição justamente para aquele curso.
Chegando o dia da prova, sabia de uma coisa, não era o curso pretendido, mas era mais
uma tentativa de ingresso na universidade, estava mais confiante que nunca, desta vez,
tinha estudado bastante em casa e nas bibliotecas. Não tinha feito nenhum cursinho, acho
até que em casa estudo mais tranqüilamente que em outros locais.
Passaram-se os dias e o resultado da primeira fase saiu. Fui aprovada. Vejam só, depois
de tantas tentativas, enfim, um resultado compensador. Todos ficaram felizes com o resultado,
mas não era o definitivo ainda faltava a fase mais difícil, a redação. Mesmo assim, não
Universidade Federal do Acre
43
deixei de acreditar que aquela seria a minha vez. O Nilson ficou super feliz e a mãe também.
Nossa! Quase não se conteve, afinal sempre torceu por mim...
Comecei a me preparar para a segunda fase, estudava dia e noite nas gramáticas,
afinal de contas quase não tinha estudado nada sobre redação. Consegui umas aulas de
redação com uma professora da UFAC, faltavam apenas quatro dias para a prova. O dia
chegou, estava aflita, acreditava que iria passar, mas estava com medo de não saber
comentar o tema da redação.
Quando o resultado saiu no jornal quase não acreditei, realmente tinha sido aprovada.
Foi uma imensa alegria para todos... o Nilson até raspou a cabeça para comemorar a
minha vitória...
O ingresso na universidade
A primeira semana do curso achei um pouco estranho pois acreditava que iria estudar
realmente e não foi o que aconteceu. A coordenação do curso resolveu fazer a Semana do
Calouro, durante esta semana eram desenvolvidas atividades recreativas, danças, jogos na
quadra de esportes etc. Essas atividades envolviam não só o curso de Educação Física, mas
os demais cursos também. Após toda essa semana, ainda houve o trote social, que todos
esperavam. Eu achei horrível, humilhante, mas não tive muita escolha.
Nos primeiros dias de aula não gostei do curso, mas já que estava ali, precisava
aproveitar o máximo possível de tudo. Tinha umas disciplinas estressantes, mas com
o tempo acabamos nos acostumando. Cada vez mais estava decepcionada com o curso,
mas sabia que enquanto não fosse aprovada em enfermagem, deveria ficar naquele
mesmo, e assim fiz... os períodos foram passando, jamais reprovei em disciplina, comecei a gostar mais do curso, algumas disciplinas me chamam muito a atenção e isso é
bastante confortante...
Já com relação á permanência na UFAC, não tenho do que me queixar, pois o Nilson
sempre me ajudou com os gastos com livros, xerox, transporte e alimentação. Mas sinto ao
ver a situação de algumas colegas com relação a esse fator.
As portas começam a ser abertas
Na universidade, as oportunidades de estágios são bem reduzidas, e quando há, a
concorrência é muito grande.
No terceiro período, comecei um estágio, voluntariamente, que fazia parte de um
projeto de extensão da Universidade (Programa Calafate), este foi desenvolvido nas proximidades de onde eu e um colega de classe morávamos, por isso resolvi aceitar mesmo sendo
voluntária. Seria uma experiência a mais para o meu currículo, sem contar que o trabalho
seria desenvolvido com pessoas da terceira idade. Acho um grupo social que merece o maior
respeito. Permaneci nesse projeto durante nove meses, para mim foi uma experiência maravilhosa, aprendi muito.
No quinto período, novamente as portas se abriram. Observei um edital em um dos
murais da Universidade que dispunha de 25 vagas para bolsistas – o Programa Conexões
de Saberes. Resolvi me inscrever já que não estava trabalhando. Minha irmã pegou o
formulário de inscrição na Internet e passou para mim. Respondi rapidamente e fui
entregar na Pró-Reitoria de Assuntos Comunitários. Tinha certeza de que seria selecionada,
e assim aconteceu.
44
Caminhadas de universitários de origem popular
Ofereço este memorial para todas as pessoas que neste momento estão se sentindo
incapazes, lembrem-se que amanhã esse quadro pode ser invertido. Por isso não desistam
nunca, somos seres inteligentes e, portanto, capazes.
Universidade Federal do Acre
45
As origens, histórias e caminhos percorridos
por um estudante de classe popular até a
Universidade e suas perspectivas para o futuro
João Paulo Vale Campos*
Meu nome é João Paulo Vale Campos. Nasci no município de Sena Madureira interior
do estado do Acre, em 21 de maio de 1980. Sou o terceiro filho do mestre de obras Francisco
Chagas do Rego Campos e o primeiro filho da dona Maria de Nazaré do Vale. Sou casado e
a minha esposa chama-se Maria de Mesquita Freire, com quem tenho uma linda filha recémnascida chamada Evelyn. Tenho três irmãos sendo dois por parte de pai e uma irmã por parte
de pai e mãe. José Carlos Campos e Maria Auxiliadora Campos são os irmãos mais velhos
concebidos no primeiro casamento do meu pai. Do segundo casamento do meu pai, nasceu,
em setembro de 1985, minha irmã caçula chamada Ana Paula do Vale Campos. Morei em
Sena Madureira com meus pais desde o meu nascimento até 1984, quando mudamos para a
cidade de Rio Branco, onde residimos atualmente.
Durante os primeiros quatro anos da minha infância, quando morávamos em Sena
Madureira, segundo conta minha mãe, nossa casa era de madeira e localizava-se na Rua
Siqueira Campos, uma das principais ruas do município. Nessa casa, criávamos animais de
estimação que eram dois gatos e um cachorro.
Nessa época, minha mãe teve muito trabalho comigo, pois eu era um garotinho que
aprontava muitas travessuras como a que vou contar agora para que fiquem sabendo como
eu não parava quieto.
Certa vez, enquanto minha mãe estava no terreiro lavando roupa, sabe o que eu fiz?
Com apenas dois anos de idade estando dentro de casa, sendo uma criança que estava na
fase da curiosidade querendo conhecer as coisas e os objetos, fui até a cozinha e subi no
fogão. Minha mãe sem saber o que se passava dentro de casa ouviu um grande barulho,
assustando-se e com medo do pior ter acontecido comigo correu até a cozinha e deparou-se
com a seguinte cena: eu tinha derrubado o fogão, que era muito pesado, em cima das minhas
pernas, ficando naquele momento totalmente imobilizado. Minha mãe ficou desesperada,
pois eu chorava muito e ela achava que o fogão por ser pesado tinha quebrado minhas
pernas, mas graças a Deus tudo não passou de um susto.
Em meados de 1983, minha mãe separou-se do meu pai, então eu e ela fomos morar na
cidade de Rio Branco capital do estado do Acre a 144 quilômetros de distância de Sena
Madureira. Quando chegamos a Rio Branco, fomos morar numa casa de aluguel na Avenida
Ceará. Na época, minha mãe conseguiu um emprego de auxiliar de enfermagem num posto
de saúde e toda vez me levava com ela para o trabalho, pois não tinha ninguém que ficasse
*
Graduando do curso Letras Vernáculas da UFAC.
46
Caminhadas de universitários de origem popular
cuidando de mim. Em outubro de 1984, minha mãe reconciliou-se com meu pai e voltamos
todos a morar juntos outra vez, mas o dinheiro que eles ganhavam trabalhando era pouco,
pois além de pagar aluguel caro, meu pai tinha contraído muitas dívidas.
Foi quando meus pais decidiram que seria necessário sair do aluguel devido aos
altos gastos. Então no começo de 1985, fomos para um local que estava sendo invadido
e lá meu pai construiu uma casa de madeira. Essa propriedade que foi invadida pertencia
ao senhor Lauro Julião, com 20 hectares de terra, que estava sendo disputada por mais de
1.200 famílias. Nesse período, segundo um jornal local, o déficit habitacional era 14 mil
famílias sem casa própria em Rio Branco no ano de 1985. A invasão ocorreu próximo ao
atual conjunto Manoel Julião, na Rua Belém, hoje, bairro Nova Estação onde resido com
minha família.
Em março de 1985, comecei minha vida escolar, fui matriculado na escola pública
São Francisco de Assis. Apesar de pouca lembrança, ainda guardo na memória minha primeira professora da alfabetização chamada Rutiada. Em setembro de 1985, nasceu minha
irmã caçula Ana Paula. Foi um momento de muita felicidade, para mim, o nascimento dela,
pois eu vivia sozinho dentro de casa sem a companhia de amiguinhos da minha idade para
brincar já que não conhecia meus irmãos mais velhos. No ano de 1986, cursei a primeira
série tendo como professora Maria José que gostava de me dar um puxão de orelha e me
colocar atrás da porta toda vez que eu aprontava uma danação.
A lembrança que ficou marcada do ano de 1987, quando fazia a segunda série, foi um
dia ao me levantar da cama não tive a menor vontade de ir para a escola. Então, minha mãe
me deu uma bronca e mandou que eu fosse para a escola. Tomei o café da manhã me arrumei
e calcei o tênis. Quando me dirigia à escola senti que algo de errado estava acontecendo
com o meu sapato direito, parecia haver uma espécie de geléia entre o solado do pé e a
palmilha do tênis. Como eu estava muito chateado porque não queria ir para a escola nem
liguei, pois achei que a substância gelatinosa era apenas suor no meu pé.
Na escola, horas depois, começou a ficar cada vez mais úmido dentro do sapato.
Então, comecei a ficar com medo, chamei os meus colegas e falei o que estava acontecendo.
Foi quando um deles disse para eu tirar o sapato para ver o que era aquilo. Com muito medo
eu disse que não iria tirar o sapato, achava que o meu pé estava doente e que iria cair
naquele momento. Meus colegas muito curiosos para ver o que era que tinha o meu pé
chamaram a professora Adelaide. E foi ela quem me convenceu a tirar o sapato. No momento
em que fui tirar o sapato todo mundo correu para cima e tiveram uma grande surpresa com
o meu achado, era um pequeno sapo que foi procurar abrigo justamente dentro do sapato.
Coitado, o sapo ficou todo esmagado e o meu pé ficou sujo com uma substância branca que
segundo a professora corresponde ao veneno que algumas espécies de sapos possuem. Isto
serviu para eu tomar um pouco mais de cuidado ao vestir roupas e olhar dentro dos sapatos
para que não tenha nenhum animal peçonhento que possa prejudicar minha saúde.
Na terceira série, a única recordação que tenho foi quando todos os alunos da escola
tiveram que tirar fotos escolares de recordação. Quando chegou a minha vez, no momento
em que o fotógrafo bateu a foto eu fechei os olhos. Quando a professora Margarene foi
entregar as fotos aos alunos, ao ver minha foto percebeu que eu estava de olhos fechados.
Todos começaram a rir de mim e eu na maior tranqüilidade fui para casa e mostrei a foto para
minha mãe e ela começou a rir e disse que eu tinha que tirar outra foto, mas eu disse não, pois
no outro dia eu achava que meus olhos se abririam na foto.
Universidade Federal do Acre
47
Por incrível que pareça não tenho nenhuma lembrança da quarta série. Tenho lembranças de1992 quando fui transferido para a escola Lindaura Leitão onde estudei a quinta
série e reprovei a sexta série por dois anos seguidos 1993 e 1994, fato que me custou uma
surra do meu pai. Mais uma vez, fui transferido de colégio e fui para a escola Luis de
Carvalho Fontenelle onde terminei o primeiro grau no período de 1995 a 1997. Foi neste
colégio que conheci muitos amigos e amigas que ficaram marcados em minha memória;
como o meu colega Cleitom que hoje mora em Cruzeiro do Sul, e minha colega Angelina
que hoje estuda comigo na Universidade Federal do Acre.
Em 1998, ingressei no colégio Neutel Maia para cursar o Ensino Médio o qual concluí
no ano de 2000. Neste colégio, conheci uma professora de história chamada Lourdes com
quem fiz uma grande amizade.
Vale salientar, que toda a trajetória de minha vida escolar até a conclusão do ensino
médio, foi em escolas públicas. Nos anos de 2000 e 2001 não fiz o vestibular, pois achava
que não estava preparado para fazer tal prova. Em 2002, fiz a primeira tentativa no vestibular
para o curso de Ciências Biológicas na UFAC, não obtendo êxito devido à falta de preparação.
Na segunda tentativa, em 2003, fui aprovado em décimo segundo lugar para o curso de
Letras Vernáculas, realizando meu sonho de estar cursando uma faculdade. Nunca freqüentei
um curso pré-vestibular devido a problemas financeiros. Hoje, estou aqui na UFAC com
muitas dificuldades, mas tenho uma nova meta a ser cumprida: dar minha contribuição para
o programa Conexões de Saberes, onde trabalho como bolsista para que mais pessoas de
comunidades pobres possam entrar nas universidades públicas e que assegurem sua
permanência até concluir seus cursos.
48
Caminhadas de universitários de origem popular
Jorge Ferreira Pereira*
A vida só é dura pra quem é mole
Na minha infância tudo se passou e eu não me lembro de coisas extraordinárias, pois
morei até os nove anos num seringal chamado São Luís do Remanso, hoje está localizado
na reserva Chico Mendes. Naquela época, nós éramos e ainda somos sete irmãos, três
mulheres e quatro homens, vivíamos literalmente na natureza, as brincadeiras de criança
aconteciam nos campos e muitas vezes dentro da floresta, não tínhamos brinquedos desses
comprados na cidade, as brincadeiras eram de montar em cavalos e bezerros.
Meu pai era seringueiro, minha mãe cuidava de casa e à tarde cuidava do roçado,
como éramos muitos irmãos, os mais velhos ajudavam naquilo que podiam, eu sou o
terceiro mais velho. Meu pai apesar de ser analfabeto, tinha um sonho que era colocar os
filhos para estudar, pois meu avô nunca o tinha dado a chance de estudar e ele não queria
que os filhos tivessem a mesma sorte. Minha mãe sabia ler e escrever, mas não sabia
ensinar, então meu pai prometeu para minha mãe que assim que pudesse levaria os filhos
para a cidade, e assim ele fez, trocou a colocação que nós morávamos por uma casa, em
Rio Branco-AC, na ladeira do Bola Preta, porém, quando aqui chegamos, meu pai se
deparou com uma realidade adversa daquela que ele imaginava, pois para encontrar trabalho
foi muito difícil por ser analfabeto. Contudo, a vontade de colocar os filhos para estudar
era maior e ele não desistiu, a saída no início foi assim: ele, com as economias que tinha,
comprou um barco e subia o Rio Acre comprando banana, quando o barco estava cheio,
ele retornava e revendia as bananas no mercado dos colonos.
No começo, tudo ia muito bem, meu irmão, o segundo mais velho, já estava estudando,
porém, quando meu pai saía de casa, minha mãe bebia muito. Lembro-me que quando eu
queria comer, tinha que fazer, pois minha mãe bebia e dormia. Somando-se a isso, depois de
quase um ano meu pai cometeu um erro, já havia algum tempo que um ex-tio meu que era
casado com uma irmã do meu pai vinha batendo nela. Eles moravam no Bairro Taquari,
certo dia, meu pai fez uma festinha em casa, era madrugada, nós estávamos dormindo,
quando eu ouvi meu pai falando, hoje é o dia, ouvi algumas coisas caindo, porém me
embrulhei pé e cabeça. Na manhã seguinte, acordamos e eu logo percebi algo errado, meu
pai estava na porta, minha mãe tinha sumido com a minha irmã mais nova e uma vizinha
estava sendo orientada pelo meu pai para que nos levássemos para a casa da nossa bisavó
materna que morava no bairro Palheiral e ela assim o fez.
Quando chegamos lá, nossa bisavó nos contou que nosso pai tinha cometido um
assassinato e a vítima era o agressor da irmã dele, na hora eu não dei muita atenção, porém
*
Graduando de História Diurno (Licenciatura).
Universidade Federal do Acre
49
depois de dois dias estávamos todos muito abatidos, com uma tristeza profunda por não ter
nossos pais junto de nós, eles não voltavam para nos buscar para irmos para casa e também
porque nossa bisavó não tinha condições de cuidar de nós.
Depois de uma semana estávamos todos doentes e eu pensava que iríamos morrer, mas
uma tia, a minha tia preferida, Maria das Neves, irmã da minha mãe, quando soube de nossa
situação, não pensou duas vezes e logo veio nos buscar, ela morava a uns cem quilômetros
de Rio Branco, tinha cinco filhos, mas teve coragem de adotar mais seis.
Quando chegamos a casa dela fomos bem recebidos por todos, ela nos tratou com
muito carinho, depois de uma semana estávamos todos alegres e bem alimentados, era só
alegria, porém, à noite eu chorava debaixo da coberta, pois não entendia porque não
tínhamos nossos pais e porque eles tinham nos abandonados.
O tempo passou, e numa tarde depois de uma chuva, o sol voltou a brilhar, eu estava
à beira de um ramal que ficava em frente a nossa casa, quando avistei um homem com uma
bolsa na mão, logo pensei, é meu pai e quando ele chegou perto eu o reconheci, era verdade,
corri para casa gritando e dizendo é nosso pai! É meu pai! Todos vieram ver e quando ele
chegou também já estava aos prantos, choramos juntos e eu fui dormir lá pela madrugada,
pois a alegria era demais, mesmo sem a minha mãe, que naquela hora perdeu a importância,
nós tínhamos nosso pai de volta.
Meu pai nos falou que tinha ido para a penal, mas depois de oito meses tinha ganhado
a liberdade, ele estava pronto para ficarmos juntos de novo, então voltamos ao seringal de
origem e minha avó paterna, que ainda era viva, deu uma colocação para meu irmão mais
velho, começamos outra vez.
Demorado alguns dias, minha mãe chegou onde nós estávamos, segundo ela, tinha
ido para Porto Velho-RO, ela não estava mais bebendo como antes, porém meu pai vivia
triste, seus filhos não estavam na escola e agora tudo estava mais difícil, pois tinha perdido
tudo e voltar para a cidade era impossível. Depois de um ano eu já cortava seringa para
ajudar, coisa que os irmãos mais velhos já faziam. Certo final de mês, meu pai juntou a
produção e foi vender ao regatão, eu como era e ainda sou muito apegado fui com ele e um
primo meu.
Em uma tarde, quando já estávamos no regatão nos preparando para irmos embora, de
repente apareceu um irmão da vítima, todos ficamos apreensivos, porém o irmão da vítima
se aproximou do meu pai e disse que era amigo do meu pai e que por isso queria que meu pai
tomasse uma cachaça com ele. Meu pai aceitou, depois de alguns minutos, meu pai disse
que já estava de saída, o irmão da vítima disse que iria junto também até certo lugar, pois
tinha que resolver um assunto com outro seringueiro.
Então, seguimos no varadouro, depois de meia hora de caminhada, chegamos a casa
desse seringueiro, o irmão da vítima subiu e meu pai ficou, sentou-se na escada de costas
para o irmão da vítima para tomar um café. Eu muito apreensivo prestava atenção em tudo,
logo em seguida o irmão da vítima disse ao dono da casa que queria comprar uma espingarda,
o dono da casa entregou-lhe uma espingarda, meu pai não se ateve para o assunto e quando
olhei, o irmão da vítima encostou o cano da espingarda nas costas do meu pai e disparou, a
fumaça cobriu tudo.
Quando olhei novamente, o irmão da vítima ia correndo e pulou para casa de baixo,
mas escorregou e meu pai que estava correndo atrás, caiu em cima dele com um facão que
carregava na cintura e o furou três vezes, depois retirou o pescoço da vítima, vi aquilo e
50
Caminhadas de universitários de origem popular
percebi que meu pai estava transtornado, então, meu primo e eu corremos na direção de
minha casa que ficava a uns cinco quilômetros.
Contamos o que havia acontecido, meu irmão mais velho e minha mãe, saíram correndo
ao encontro do meu pai, quando o encontraram, ele já estava a caminho de casa. Logo
avisamos nossos tios que moravam próximo e eles agilizaram um barco para que meu pai
fosse transportado para Rio Branco.
Ficamos novamente sozinhos, porém não paramos de trabalhar, cortávamos seringa
todos os dias para conseguir dinheiro para voltarmos novamente para a cidade, pois estávamos correndo perigo, a família das vítimas moravam próximo e poderiam se vingar em nós.
Depois que meu pai se recuperou, foi até uma delegacia e se entregou à justiça.
Imediatamente foi mandado para o presídio, julgado e condenado a doze anos de prisão,
inicialmente em regime fechado, mas por se manter comportado dentro do presídio
ganhou algumas regalias, uma delas foi uma casa próximo da penal, onde então nós
fomos morar. Ficamos novamente juntos, tomávamos café com pão que vinha da penal,
pois o Diretor da penal, na época, era amigo do meu pai e por isso ele doava o café da
manhã para nossa família. O que faltava meu pai e minha mãe compravam, pois os dois
trabalhavam de diaristas para nos sustentar.
Logo meu pai entrou na condicional e aí começamos a estudar, todos no mesmo
colégio, era bom demais, de manhã todos se arrumavam para ir para a escola. Meses depois,
meu pai vendeu a colocação que minha avó tinha dado ao meu irmão mais velho e comprou
um terreno no final do Conjunto Universitário. Lá, construímos uma casa e logo nos mudamos
para esta casa, meu pai começou a trabalhar de vaqueiro numa fazenda próxima, quando
nós concluímos a quarta série tivemos que mudar de colégio, pois lá não tinha a quinta
série, então nos matriculamos no colégio José Sales de Araújo, localizado no Conjunto
Universitário, eu estudava à tarde e trabalhava de manhã.
Quando estava na sétima série, fui convidado por um vizinho para trabalhar em sua
padaria, confesso que os primeiros dias foram muito difíceis, pois tinha que trabalhar à
noite e estudar à tarde, pensava seriamente em desistir do trabalho, mas era preciso ajudar
nas despesas de casa, além disso, minha mãe tinha voltado a beber e eu jamais queria me
separar dos meus irmãos novamente.
Não demorou muito. No dia do meu aniversário de quinze anos, minha mãe bebeu
novamente e segundo ela, meu pai lhe prometera uma surra se continuasse, então antes de
terminar a festinha, já era madrugada, minha mãe sumiu e só apareceu quatro anos depois.
Meu pai deixou de trabalhar para cuidar de nós, enquanto isso, os três irmãos mais
velhos se comprometeram em sustentar a casa. Acabei reprovando a sétima série. No ano
seguinte, eu me matriculei, no mesmo colégio à noite, o dono da padaria foi flexível,
trabalhava das dezesseis às dezoito horas, e estudava das dezenove até as vinte e duas e
trinta. Retornava ao trabalho às vinte e três horas e ia até as seis horas do dia seguinte.
Em 1996, fui servir o exército, depois de um ano, fiz tudo para ser dispensado, precisava
estar perto dos meus irmãos e do meu pai. Eu sempre lembrava que meu pai, quando acordava
de madrugada (e, nessa época, eu dormia com ele, quando eu estava de folga do quartel)
repetia que éramos pobres, mas um dia os filhos teriam uma vida melhor do que a dele. Essas
palavras me marcaram e quando eu estava no quartel essas lembranças me faziam chorar, eu
sabia que juntos nós seríamos mais felizes. Além disso, não adiantava eu seguir carreira sem
estudo, pois só tinha o ensino fundamental.
Universidade Federal do Acre
51
Saí do quartel em 1997 e voltei a trabalhar na mesma padaria. Novamente me matriculei
para estudar, agora no colégio Alcimar Nunes Leitão, porém, logo percebi que aquele
trabalho não me rendia o que eu precisava. Saí e logo arrumei outro trabalho de padeiro no
Supermercado Gonçalves, trabalhava durante o dia e estudava à noite. Através desse novo
trabalho, eu conseguí comprar algumas coisas que não tínhamos, além de comprar uma feira
melhor do que estávamos acostumados a comprar.
Concluí o ensino médio em 2000. Quase todos os meus irmãos já estavam estabilizados,
quando minha mãe apareceu em casa, porém meu pai pediu o divórcio, e ela só aparecia
para visitar. Confesso que minha mãe foi ausente no momento em que minhas irmãs mais
precisaram dela, os homens não sentiram tanta falta. Meu pai, percebendo que os filhos já
podiam se manter sozinhos, voltou para o seringal de origem, comprou a mesma colocação
que já tinha sido nossa e mora lá até hoje. Nós ficamos em casa, minhas irmãs não quiseram
colocar os estudos em primeiro lugar e logo arrumaram casamento. Eu também já tinha um
filho que nasceu em 1999, porém eu não morava com a mãe dele.
Meu irmão, mais novo do que eu, entrou na UFAC primeiro do que eu, meu irmão mais
velho do que eu um ano, conseguiu um contrato de professor do Programa Nacional de
Educação na Reforma Agrária (PRONERA) e nas horas vagas ajuda meu pai, o mais velho de
todos, não tendo o ensino fundamental completo, fez um curso de topógrafo e exerce a
função até hoje.
Eu saí do Supermercado Gonçalves e comecei a trabalhar de vigilante, pois pagavam melhor e eu tinha mais tempo para estudar, além disso, conheci minha atual esposa
e, em 2002, nasceu mais um filho, então era necessário repensar a vida, pois eu já tinha
tentado o vestibular em 2000, 2002 e 2003, não consegui passar e a família estava
aumentando, já tinha um filho, o Fálzi, e uma filha, a Sarah, além da esposa para sustentar.
Enquanto dava plantão durante a noite, tirava um tempinho para estudar e, em
2004, tentei o vestibular para História. Passei em vigésimo lugar num total de cinqüenta
vagas, confesso que a alegria que senti estava muito relacionada com o sonho do meu pai,
pois era o sonho dele ver os filhos fazendo uma faculdade, a partir de então me dedico o
máximo que posso para concluir o curso. Tenho algumas dificuldades, mas nada se compara ao que já passei para chegar até aqui, por isso eu digo que não há dificuldade quando
se tem objetivo, pois foi baseado nas dificuldades pelas quais passei ao lado dos meus
irmãos e lembrando o que meu pai me dizia nas madrugadas que superei as adversidades.
Hoje, estou no Projeto Conexões de Saberes para vencer mais um desafio, eu quero
ir além, quero conhecer mais e o Conexões é para mim a oportunidade de conhecer mais.
Eu, às vezes, me pergunto: o que eu sou? Qual o fruto que desejo plantar? Porém isso
me remete a outras perguntas: qual a contribuição que a universidade dá aos ingressantes e
às comunidades populares? Qual a posição do governo e da Universidade? Penso que a
população está sempre buscando seu bem-estar e que a universidade é a parte mais
preocupante, pois é sempre muito difícil chegar até lá.
As mudanças devem acontecer para que nós das camadas populares sejamos inseridos
e reconhecidos na sociedade, é preciso que as camadas populares se encontrem para que
uma grande parte da sociedade não seja deixada de lado.
Por isso, é preciso fazer pressão sobre os nossos governantes, e mostrar que somos
iguais ou melhores que qualquer um, aqui ou no mundo, basta que haja políticas de inclusão das camadas populares. Nós como jovens de origem popular devemos saber disto.
52
Caminhadas de universitários de origem popular
As dificuldades fazem parte da nossa vida, porém ter um objetivo é o ponto crucial
para vencer, e como relatei em linhas anteriores, deu para perceber que eu não tive infância ou adolescência, tudo foi um pouco confuso, porém isto não me fez melhor ou pior de
que quem teve, hoje tenho três filhos, o Fálzi, a Sarah e o Jorge Wagner e uma esposa
maravilhosa que me agüenta já há sete anos.
Estou no Programa Conexões de Saberes por ser um programa que acolhe jovem
como eu, e eu como retribuição que quero dar a este programa me intero de todos os
assuntos e tento fazer o melhor que posso. Recentemente, fomos ao segundo Seminário
Nacional do Programa Conexões de Saberes e lá vi com maior clareza a expansão e os
objetivos do programa. Através destas experiências, estamos fazendo um diagnóstico da
nossa Universidade-UFAC.
Universidade Federal do Acre
53
Lutar é preciso !
Jucelma da Conceição Batista de Almeida*
Meu nome é Jucelma da Conceição Batista de Almeida, nasci no dia 08 de dezembro,
no ano de 1985, em casa e não no hospital como deveria ser, mas graças a Deus com muita
saúde. Porém, de acordo com o meu registro, eu não nasci no ano de 1985, mas sim no ano
de 1986, acho que isso aconteceu por que quando minha mãe foi me registrar, registrou
também minha irmã que é um ano mais velha do que eu, então deve ter se atrapalhado com
as datas, registrando tanto eu quanto minha irmã um ano mais nova, ou seja, eu no ano de
1986 e minha irmã no de 1985. A escolha do nome Jucelma, eu não sei qual foi o motivo,
mas o meu sobrenome, Conceição, foi em razão de que dia 08 de dezembro é dia de Nossa
Senhora Imaculada da Conceição e como nasci nesta data, ganhei este sobrenome.
Tenho 20 anos, estou fazendo o curso de Educação Física-Bacharelado na Universidade Federal do Acre (UFAC), é um curso muito bom e que adoro muito, tendo a certeza de
que fiz a escolha certa, não o estou cursando apenas para ter um diploma de ensino superior.
Após esta breve identificação, irei tentar colocar, neste papel, um memorial da minha
vida, em especial da minha trajetória de vida até chegar à Universidade. E para tanto vou
começar falando dos meus pais que são Nilza Batista de Almeida e Pedro Alves de Almeida
Sobrinho, sou a terceira filha deste casal e última, a minha irmã mais velha, ou seja, a
primeira chama-se Joelma Batista de Almeida e a segunda Juscélia Aparecida Batista de
Almeida, que recebeu o sobrenome Aparecida por motivo de uma promessa que minha mãe
fez a Nossa Senhora de Aparecida, pois quando ela nasceu era muito doente.
O começo de uma grande trajetória
Quando nasci, morávamos numa colônia, na estrada de Boca do Acre BR 317 Km 51,
essa estrada liga o Município de Rio Branco (Acre) ao de Boca do Acre (Amazonas), depois
meus pais venderam esta colônia e passamos a morar em Rio Branco, no Conjunto Tangará,
em uma casa que foi doada aos meus pais pelo Bispo de Rio Branco Dom Moacyr Grechi.
Porém, pouco tempo depois, meus pais se separaram e minha mãe vendeu esta casa. Fomos
morar em um outro bairro chamado Conquista, lá também não morei muito tempo, pois
como meus pais estavam separados e minha mãe trabalhava o dia todo, a maior parte do dia,
ficávamos sozinhas e trancadas em casa. Quem cuidava de mim e da Juscélia era a Joelma.
Muitas vezes, quando queríamos sair, tínhamos que pular a cerca do quintal. Nesta época,
eu devia ter uns dois anos, então a Joelma passava primeiro a Célia, logo após, me entregava
*
Graduanda de Educação Física - Bacharelado.
54
Caminhadas de universitários de origem popular
para a Célia e, depois, ela pulava a cerca para sairmos. Então, devido a esta situação, o meu
pai foi até a nossa casa e tirou a gente de lá. Como ele não podia cuidar da gente, levou-nos
para a casa dos meus tios, Creuza Batista Ferreira que é irmã da minha mãe e João Evangelista
Ferreira. Com isso, voltei a morar de novo na estrada de Boca do Acre, porém, agora, no Km
57, junto com meus tios, que eu também considero meus pais, pois eles me criaram desde
os 3 anos de idade. Moro com eles até hoje, apesar de que, agora, só vou para lá nos finais
de semana, pois fico a semana em Rio Branco estudando.
Passei mais tempo da infância com meus tios, morei pouco tempo com meus pais. Têm
certas coisas que sei através de relatos que já me contaram. Certa vez, quando ainda morava
no bairro Conquista, minha irmã e a vizinha queriam jogar uma cobra em mim, a cobra
estava em um poço que existia atrás da minha casa e eu estava sentada na porta da cozinha,
acho que esse foi o fato mais marcante durante este período que morei com meus pais.
Quando estava morando com meus tios, a Joelma como era mais velha estudava e ajudava
minha tia e eu e a Célia brincávamos de boneca e, além disso, ela também ajudava a minha
tia a cuidar da gente, pois minha tia tinha também três filhos, dois mais velhos do que a
Joelma e o terceiro, dois anos mais velho que eu. Nesta época, eu e meu primo mais novo
brigávamos muito, acho que ele tinha um pouco de ciúme de nós, devia pensar que íamos
tomar o lugar dele, porém, meus tios sempre trataram todos nós iguais, como seus filhos.
Estas nossas brigas aconteciam, também, por causa do berço dele e um copo de plástico de
cor amarela que tinha um canudinho, posso dizer que, principalmente, por causa deste
copo, pois nós dois queríamos usar o copo ao mesmo tempo, ou então, quando eu o usava,
ele ficava com ciúme. Para resolver este problema, definitivamente, a minha tia comprou
outro copo. Agora, como cada um tinha o seu, não brigávamos mais.
Durante esta parte da minha infância, acho que não fui uma garota muito levada,
brincava, mas não me danava demais. Acho que apenas era muito chata e dengosa, pois
minha tia conta que eu fazia birra por tudo. Muitas vezes, quando ela ia à casa da sogra dela,
e me levava junto, ainda na metade do caminho eu começava a chorar, porque não queria
mais andar, queria ir no colo e enquanto ela não me pegava e levava, ficava no chão
chorando e fazendo dengo. Isso aconteceu várias vezes, não só quando ela ia à casa da sogra
dela, mas também em vários lugares.
Um passo a mais nesta trajetória (o ensino fundamental)
Aos seis anos de idade, comecei a estudar na Escola Santa Terezinha III que fica
localizada a um quilômetro de distância da minha casa, ia para a escola junto com a minha
irmã. Como era perto de casa, íamos a pé. Esta escola era pequena só existiam duas salas, era
feita de madeira e lá trabalhavam três funcionários, dois professores e uma merendeira.
Nesta escola, só tinham os ensinos da 1ª a 4ª séries e os professores se revezavam para
lecionarem, um dava aula para a 1ª e 3ª séries pela manhã e outro dava aula para 2ª e 4ª séries
à tarde. Comecei a estudar junto com minha irmã, nós duas fazíamos a 1ª série e apesar da
escola não ter uma estrutura boa os professores eram muito bons e davam aulas muito bem,
passavam os conteúdos de acordo com o que era proposto e se algum aluno tivesse algum
tipo de dificuldade, eles ajudavam da melhor forma possível. De modo geral, não fui e nem
sou uma aluna super inteligente, mas sempre me dediquei para tirar notas boas. Desta
maneira, nunca fiquei reprovada, com 9 anos terminei a 4ª série nesta mesma escola. Hoje,
Universidade Federal do Acre
55
esta escola ainda existe, porém tiveram que construir outra, pois a estrutura da antiga estava
em péssimas condições. Agora, ela é de alvenaria, com piso, e suas paredes são de madeira.
Atual-mente, somente um professor trabalha lá, devido ao pequeno número de crianças que
lá estudam.
Quando comecei a estudar na 5ª série, tive que ir para uma escola que ficava a 5 km
distante da minha casa. Nesta época, meus dois primos mais velhos já tinham terminado o
ensino fundamental e como lá não existia o ensino médio, eles passaram a morar em Rio
Branco, na casa de um irmão do meu tio que morava na Vila Dom Moacyr. Só depois de
certo tempo, foi que meu tio conseguiu comprar um terreno para eles e construir uma casa,
que inclusive foi do lado do terreno do seu irmão. O meu primo mais novo e minha irmã
mais velha já estudavam nesta escola, que se chama São Francisco de Assis II. Ficou mais
fácil para nós, porque já sabíamos um pouco sobre esta escola, íamos nós quatro para a
escola de bicicleta, porém, quando chovia, a estrada ficava péssima por ser de barro, então,
muitas vezes, não tinha condições de ir de bicicleta, tínhamos que ir a pé ou a cavalo.
Com o passar do tempo, meu primo e minha irmã tinham terminado o ensino fundamental e passaram a morar em Rio Branco. Agora só ficaria eu e minha irmã morando com
meus tios, os outros só iam para casa nos finais de semana. Logo no início, achava muito
ruim esta situação e sentia muita falta da minha irmã, mas com o tempo fui me acostumando
e não sentia mais tanta falta.
As séries seguintes do ensino fundamental, estudei nesta mesma escola. A 5ª série, não
foi difícil e consegui passar, a única coisa ruim era o fato de não conhecer quase ninguém,
já tinha visto alguns, mas não tinha entrosamento com nenhum, há não ser com minha irmã
e uma outra colega que estudava comigo na escola Santa Terezinha III. Depois disso, não
tive mais problemas.
A estrutura desta escola era melhor que a outra, era de alvenaria, tinha uma sala para
cada série e um professor para cada matéria. Meus tios sempre se preocuparam com nossos
estudos, apesar de não terem muitas condições financeiras, procuravam sempre nos oferecer
o melhor e nos incentivavam a estudar, a ter boas notas e sempre passar de ano, pois para
eles o estudo é muito importante para nossas vidas. Com tudo, também nos ensinavam a
trabalhar e ajudá-los em casa.
Eu e minha irmã sempre tivemos nossas bicicletas para ir à aula, mas às vezes, alguma
quebrava, então, íamos nós duas em uma mesma bicicleta. Como era longe para chegar até
a escola uma ia carregando a outra, quando uma estava cansada, trocávamos e quem ia
sendo carregada agora iria carregar. Pior era quando as duas bicicletas quebravam, então, a
gente ia a pé, a cavalo, ou pedia a bicicleta emprestada de alguém. Como última opção,
rezávamos para conseguir uma carona com alguém que tivesse passando para a escola ou
com vizinhos que também estudavam nesta escola, inclusive, tinha um que estudava na
minha sala.
Certa vez, quando ganhei uma bicicleta nova do meu tio, fiquei muito feliz e, justamente, no primeiro dia que fui para a escola com ela aconteceu um grave imprevisto:
Quando já estava quase na hora de voltar para casa, começou a cair uma forte chuva e como
a estrada era de barro, estava em péssimas condições, e para agravar o 7º BEC (7º Batalhão
de Engenharia e Construção) estava trabalhando nela e com a chuva ficou horrível para
podermos passar. Apesar destas dificuldades, já estava de volta para casa junto com minha
56
Caminhadas de universitários de origem popular
irmã e mais duas colegas que moravam em uma fazenda um pouco mais distante da minha
casa, quando passou o dono desta fazenda e parou para levá-las. Elas então nos chamaram
e como a estrada estava ruim, não pensamos duas vezes e aceitamos a carona. Foi assim que
aconteceu o que não era para acontecer: tudo ia muito bem até chegarmos ao caminho da
minha casa, o carro parou e descemos as bicicletas, a minha e a da Célia, foi aí que veio a
decepção, como o carro era pequeno e em cima da caminhonete tinham outras coisas, as
quatro bicicletas estavam muito apertadas e, além disso, não dava para a gente segurá-las,
ainda mais que a estrada estava cheia de buracos devido a chuva, então naquele “bate-bate”
que estava, a minha bicicleta arranhou e quando cheguei em casa, ainda tentei disfarçar,
porém foi em vão, meu tio viu e ficou muito bravo comigo por não ter cuidado com a
bicicleta. Logo de início, fiquei muito triste, mas depois passou e a partir de então pensei
muito bem antes de pegar uma carona de novo.
Esta foi só uma das inúmeras histórias que aconteceu comigo, já levei muitas quedas
de bicicleta, já cheguei à escola suja de lama ou molhada de chuva, enfim, já passei por
várias dificuldades e muitos outros fatos que marcaram o período do ensino fundamental.
No ano de 1999, estava na 8ª série, muito feliz por estar terminando mais uma etapa dos
meus estudos e por nunca ter sido reprovada. Neste ano, todos nós da turma, estávamos
ansiosos pelo final do ano letivo e se preparando para nossa festa de colação de grau. Porém,
até terminar o ano, alguns colegas desistiram, ficando menos da metade da turma, mas
mesmo assim, não desistimos e apesar de não ser do jeito que queríamos, nós fizemos nossa
festa de colação de grau e foi muito legal.
A trajetória continua (ensino médio e com ele muitas dificuldades)
Ao terminar o ensino fundamental, estava muito ansiosa para dar continuidade aos
meus estudos em Rio Branco, pois eu achava que ia ser muito bom para mim. Porém, não foi
assim que aconteceu, porque, justamente, no ano de 2000, foi implantado, na escola São
Francisco de Assis II, o Ensino Médio Modular, que era um sistema como o próprio nome diz
realizado através de módulos. Vinha um professor de cada vez, este passava mais ou menos um
mês dando aula de uma determinada matéria. Ao ficar sabendo desta notícia, fiquei muito
triste porque como já disse queria estudar em Rio Branco, mas por outro lado, a turma do
ensino médio era a mesma que terminou a 8ª série junto comigo, tinha apenas alguns que não
estudavam la, mas eu já os conhecia, então já tinha minhas amizades formadas, e também, foi
bom porque não precisamos sair de casa e ficamos perto de nossos tios.
Enfim, o ano letivo começou e como na escola não tinha uma sala específica para nós,
ficávamos mudando de sala constantemente, sendo que muitas vezes, tínhamos que estudar
no pátio da escola. A primeira disciplina que estudamos foi Geografia, não tive muita
dificuldade, o professor era muito legal, dava aula muito bem e então a disciplina terminou,
todos nós passamos. A partir de então, começaram os problemas, pois como vinha um
professor de cada vez, eles tinham que ir à Secretaria de Educação pegar as passagens para
poder chegar até a escola. Também tinham que arrumar outros documentos para serem
contratados. Com essas dificuldades, passávamos semanas sem ter aulas. A diretora da escola,
pelo que nos apresentava, não parecia estar nem um pouco preocupada com aquela situação
e quando íamos perguntar a ela o porquê do atraso, ela dizia que tinha ido à Secretaria de
Educação e eles haviam informado que já tinha professor para vir dar aulas, porém, este
professor demorava muito tempo para chegar.
Universidade Federal do Acre
57
Este problema acontecia não só por causa do atraso da Secretaria de Educação, mas
também porque alguns professores não pareciam ser comprometidos com o trabalho e muitas
vezes eram preconceituosos com os moradores da Zona Rural, achando talvez que não
devíamos ter oportunidade de estudar. Mas como tudo tem sua exceção, tinham outros que
eram super legais e procuravam nos ajudar da melhor maneira possível, pois sabiam das
nossas dificuldades para estarmos ali, reconheciam nossos esforços. Não era fácil ter de
ajudar meus pais em casa, terminar de almoçar e sair para a aula de bicicleta, a pé ou do jeito
que desse, independente de estar fazendo sol, chuva, poeira ou lama.
Certa vez, teve um professor que foi dar aulas de Matemática para a gente. Nesse
tempo, acho que ele era universitário, devia se sentir o máximo, não sei se era por que ele
não sabia explicar o assunto ou por pura discriminação, começou a passar assunto de 6ª
série, este fato nos revoltou muito, fomos então falar com a diretora, porém pouco adiantou
e esta conversa ainda resultou em uma briga com uma das minhas colegas. Com isso, ela
pediu que o pai dela a tirasse de lá e foi o que aconteceu, ela passou a estudar em Rio
Branco, e o belo do indivíduo, que se dizia professor, continuou a dar aulas sobre assuntos
da 6ª série. Isso foi muito ruim para a gente, pois o que deveríamos ter aprendido na disciplina
não foi ensinado, não tínhamos embasamento nenhum para a matemática do 2º e 3º ano.
Vieram as outras disciplinas, porém, sempre atrasava, pois os professores demoravam
muito tempo para vir dar aula. Muitas vezes, íamos para a escola à toa, pois avisavam que
o professor iria chegar e quando chegávamos à escola, vinha a decepção porque não tinha
professor nenhum, e então, como os professores vinham de ônibus, ficávamos o resto da
tarde na escola esperando até o último ônibus passar para ver se chegava professor,
ficávamos, então, mais uma vez decepcionadas, o último ônibus passava e nada de vir
professor algum. Isso aconteceu várias vezes, a única coisa boa era que enquanto estávamos
lá esperando, aproveitávamos para conversar e jogar vôlei ou futebol. Por causa deste e
de vários outros tipos de atraso ao invés de terminar o ensino médio em 3 anos, como
seria o normal, terminei em 4 anos, e como conseqüência deste atraso, só pude fazer o
vestibular em 2004.
O meu ensino médio, como já disse, foi muito sofrido, se eu fosse contar todas as
histórias e dificuldades pelas quais passei, durante este período, encheriam várias páginas
só com minha história. O momento de maior felicidade durante este período foi quando
estava estudando a última disciplina, pois sabia que quando ela terminasse, apesar de
tudo que passei, eu teria vencido e agora só era se preparar para a Universidade. No último
dia de aula, foi muito bom e comemoramos muito, quebramos ovos uns nos outros, jogamos
farinha de trigo e mesmo com toda esta sujeira, estávamos super alegres por ter conseguido
vencer as dificuldades que nos foram colocadas, tendo em vista que muitos dos que
estudavam conosco desistiram de lutar e assim pararam de estudar.
Quando ainda estava estudando, sempre pensava em que curso eu iria me inscrever
para fazer vestibular, sabia que não adiantaria fazer um curso muito disputado devido ao
tipo de ensino que tive no ensino médio, e que não adiantava fazer um curso só para
mostrar para os outros que eu sou capaz de passar e depois não me identificar com o
mesmo. Também por outros motivos, sempre pensava no curso de Educação FísicaBacharelado e foi nesse curso que fiz a inscrição no vestibular. Ainda consegui convencer
uma amiga minha, Kelly, a fazer este mesmo curso.
58
Caminhadas de universitários de origem popular
Da minha turma, uma minoria fez vestibular, apenas eu, a Célia, minha irmã, a Kelly,
minha amiga e o Júnior meu namorado. A Célia fez para História-Diurno e o Júnior para
Engenharia Agronômica. Ao término do ensino médio minha tia ficou em dúvida se ia
colocar-nos ou não para fazer pré-vestibular. Estávamos no ano de 2003, não tenho certeza
se era no mês de Março ou era de Abril quando terminei. Fato é que ainda fiquei uns 5 meses
parada sem saber se ia fazer pré-vestibular, porém já estava estudando em casa. Foi aí que
minha tia, apesar das dificuldades financeiras enfrentadas naquela época, decidiu nos colocar
para fazer pré-vestibular.
Fui morar com meu primo mais novo e minha irmã na casa que citei no início do texto,
relembrando era a casa que meu tio tinha comprado para os meus primos mais velhos,
porém, agora eles não estavam mais morando lá, já tinham terminado a universidade.
Um estava no município de Cruzeiro do Sul trabalhando e o outro estava em Lavras-MG
fazendo Mestrado, atualmente, já terminou o Doutorado. A Joelma também não morava
mais lá, estava casada e, hoje, tem uma filha, Gilmara.
Metade do caminho está percorrido
Comecei a estudar na parte da manhã, saía de casa deixando pelo menos metade do
almoço pronto, pois morava longe do local do cursinho e como a aula começava às 7h tinha
que acordar cedo, arrumar o almoço e sair de casa no mais tardar 6:15 da manhã para não
chegar atrasada.
Vivi esta rotina durante 4 meses, ao retornar do curso, terminava de arrumar o almoço,
almoçava, dava uma arrumada na casa e voltava a estudar novamente, a sorte era que tinha
também a minha irmã, então fazíamos os serviços rapidamente, para podermos estudar. Ao
se aproximar à data do vestibular, a tensão aumentava mais, como conseqüência, também
estudávamos mais, mesmo porque tinham alguns assuntos sobre os quais os professores
davam aulas no cursinho que jamais eu tinha visto no ensino médio, e isso só fazia com que
aumentasse mais o meu medo do vestibular. Lá no curso o que eu achei bom, era que, além
dos professores serem legais, na sala em que eu estudava tinha a minha turminha que era
composta por minha irmã, minhas amigas Kelly e Joyce, outro primo meu, que não era o que
eu morava e o cunhado da minha irmã. Desta maneira, ficava mais fácil para a gente estudar
e quando alguém tinha dificuldade sempre ajudávamos. Pena que o Júnior não estava
estudando com a gente, mas sempre que podia tentava lhe ajudar, pois seria muito legal se
todos nós passássemos no vestibular. Quando já estava perto da data do vestibular, ficava
no cursinho o dia todo, ia para casa já de noite e estudava também aos sábados até às 12 h,
depois ia para a casa dos meus tios na colônia.
No dia de fazer a minha inscrição, fiquei muito nervosa, fui até a universidade junto
com a minha irmã e a minha amiga, ao chegarmos à universidade, não sabíamos onde ficava
a Comissão Permanente do Vestibular - COPEVE, a nossa sorte foi que na parada de ônibus
em que descemos tinha um estudante. Perguntamos onde ficava a Copeve e ele nos informou, nos dirigimos até lá, pegamos a ficha de inscrição, preenchi fui ao banco pagar e voltei
para entregar a ficha de inscrição, porém, como optei pelo curso de Educação Física, tinha
que passar por um exame médico, antes existia também o teste físico, mas a partir do ano de
2004, que foi o ano que fiz vestibular, o teste físico foi cortado, ficando apenas o exame
Universidade Federal do Acre
59
médico. Atualmente, não existe mais nenhum dos dois. Só a Célia entregou a sua ficha, eu
e a Kelly tínhamos que voltar no outro dia para fazermos o exame médico.
Desta vez, já seria mais fácil chegar à universidade e também já sabia onde ficava a
Copeve, porém, não sabia onde ficava o Setor Médico, que era onde eu deveria ir para fazer
o exame. Eu e a Kelly combinamos de irmos juntas para a universidade, só que deu errado
e nos desencontramos e cada uma foi sozinha, mais uma vez, para variar tive de sair perguntando novamente onde ficava o Setor Médico. Quando cheguei lá, fiquei com muito medo
de não passar no exame. Comecei a pensar que curso eu faria se fosse reprovada, decidi que
se não passasse optaria pelo curso de Engenharia Florestal, mas Graças a Deus deu tudo
certo e saí da sala do Setor Médico com o receituário na mão, contendo a seguinte frase:
“apta para fazer o curso de Educação Física”, ao ler, fiquei muito feliz e fui até a Copeve
para entregar a minha ficha de inscrição junto com o exame, depois, fui para casa.
Chega o grande dia do vestibular
Pouco tempo depois, chegou o grande dia, eu não estava nervosa, só um pouco tensa.
Na véspera do vestibular, fui para a casa da minha irmã e dormi lá, até porque o local onde
eu iria fazer a prova ficava perto da casa dela. Comprei umas frutas e chocolates para comer
na hora da prova se fosse necessário, mais não foi preciso, comprei também caneta para
levar. Quando o fiscal entregou a prova fiquei um pouco nervosa, logo passou e mais ou
menos umas 11 h já tinha terminado a prova do 1º dia, saí, me encontrei com meu namorado
que também estava fazendo prova e fomos para a casa da minha mãe. Passei o restante do dia
lá, ao anoitecer, voltei novamente para a casa da minha irmã e no outro dia fui fazer a 2ª
prova, terminei no mesmo horário da outra e fui para casa. Não tinha achado a prova muito
difícil, porém, estava com medo de não passar, até que três dias depois saiu o gabarito
preliminar, corrigi minha prova e tinha feito 50 pontos, saiu então o gabarito oficial, corrigi
minha prova novamente e tinha acertado 51 questões, com esta pontuação era quase certo
que eu tinha passado, mas mesmo assim fiquei com medo.
A lista com os nomes dos aprovados ainda ia demorar duas semanas para sair. Então,
fui para a casa dos meus tios na colônia e esperei o resultado lá. Estava muito ansiosa e nada
do resultado sair, até que um certo dia, às 5 h da tarde o telefone tocou, minha irmã foi
atender e era o seu namorado falando que a lista dos aprovados do vestibular tinha saído,
ele falou que eu tinha passado e a Kelly também, quando me falou, fiquei muito feliz, porém
no mesmo momento fiquei triste, pois descobri que ela não tinha passado, ela também ficou
triste, começou a chorar e passou mais de uma semana com raiva de mim, porque eu tinha
passado e ela não, em razão disso, nem pude comemorar direito e, muitas vezes, quando
alguém vinha pessoalmente me dar parabéns ou então telefonava ficava meio sem graça de
comemorar e apenas dizia obrigada. Apesar destes momentos tristes, agradeci muito a Deus
por ter passado, principalmente pelo tipo de estudo que tive no ensino médio, mas mostrei
para todos que quando você quer alguma coisa, tem que lutar para conseguir e com esforço
e força de vontade você pode conseguir.
Esta tinha sido apenas a primeira etapa do vestibular, e no próximo final de semana já
seria a segunda, que era a redação, durante esta semana que teve de intervalo me matriculei
no mesmo cursinho onde tinha feito vestibular, comecei a estudar muito. Chegou o dia e fui
fazer a prova, estava com um pouco de medo dos temas da redação, mais ao vêlos, fiquei
60
Caminhadas de universitários de origem popular
tranqüila, pois não eram temas muito difíceis. Fiz minha redação, e fui para colônia.
Quando cheguei lá, me perguntaram como tinha sido a prova, falei que achava que tinha me
saído bem, mais para falar a verdade estava com um pouco de medo, me pediram a redação
para ler, mas não dei, só entreguei para meu primo ler, ele falou que estava boa, mesmo
assim, não estava confiante. Enfim, o resultado saiu e meu nome estava na lista dos
aprovados do curso de Educação Física, mais pelos motivos que já falei, não deu para ficar
comemorando muito, mesmo assim, era ótima a sensação de ter sido aprovada, ainda mais
sendo o primeiro vestibular.
Outro grande dia: matrícula na UFAC
Como já disse, eu estava na colônia e quando fui saber sobre os dias para a matrícula
estava em cima da hora, tive que arrumar os papéis que eles exigiam rapidamente e para
piorar a situação, eu não tinha o Diploma do ensino médio, tive que pegar a Ficha Modelo
nº 19 e ainda levar para carimbar. Este dia, que fui fazer minha matrícula, já era o penúltimo dia.
Apesar de toda essa correria, deu tempo de chegar a UFAC. Eu e Kelly, só conseguimos fazer
a matrícula institucional, pois já chegamos à universidade na parte da tarde e a coordenação
do meu curso só funciona pela parte da manhã, tivemos que voltar no outro dia para fazer a
matrícula na coordenação. Ainda neste dia, pegamos chuva e estávamos molhadas desde a
hora que fomos para a UFAC. Como achava que ia voltar no mesmo dia, não havia trazido
roupas, a sorte foi que fomos para a casa da avó da Kelly. Então, lavei a minha e coloquei-a
para secar, para poder vestir no outro dia.
Depois de fazer a matrícula no curso, fui para a colônia, e só vim de lá quando minha
aula estava perto de começar. Na primeira semana de aula, não estudei, a coordenação do
curso estava fazendo a Semana do Calouro, foi muito legal, teve gincana, nos levaram para
conhecer a UFAC, teve jogo de vôlei e de futebol, dança etc. A única coisa que não gostei
foi que no dia da gincana, que tinha tudo para ser legal, tudo terminou em confusão, pois
jogaram a gente dentro da piscina e quem não quis tirar a roupa e ficar de maiô ou de
sunga, foi jogado com roupa e tudo dentro da piscina, molhando assim carteiras e celulares,
além de outros objetos, para completar neste dia estava muito frio e tive que voltar para
casa toda molhada.
Neste período, eu estava morando com minha irmã mais velha, pois a casa que meu
primo morava tinha sido vendida para comprar uma mais próxima da UFAC e do trabalho
dele, passei uma semana morando com minha irmã, na semana seguinte, meu primo já tinha
conseguido alugar uma casa e nos mudamos para lá.
A junção de tudo e a certeza de que a luta ainda continua: Conexões de Saberes
Hoje, estou cursando o 5º período de Educação Física-Bacharelado, quase passando
para o 6º período, estou muito feliz com o curso que escolhi, sei que ainda falta muito para
melhorar, não só a estrutura do meu curso, mas também da universidade. Espero que isso
ainda venha a acontecer para que assim esta universidade pública possa realmente honrar
este nome que carrega, dando mais estrutura e condições para que todos possam usufruir
deste bem tão precioso que é o ensino superior. Sou bolsista do programa Conexões de
Saberes, um programa que visa aproximar as comunidades de origem popular da universidade. Este programa passou a vigorar, na UFAC, a partir do ano de 2006, posso dizer que é
Universidade Federal do Acre
61
muito bom estar neste programa, ainda mais por ter vindo de uma origem popular e estar
ajudando outros desta mesma origem.
Agradeço muito aos meus pais, tios, primos, irmãs, meu namorado, a vários amigos e
a este maravilhoso programa que permitiu, através deste memorial, que eu pudesse lembrar
todos, ou quase todos os momentos difíceis da minha vida, mas que, apesar de tudo,
consegui vencer e hoje luto por uma vida melhor.
62
Caminhadas de universitários de origem popular
Minha vida: lutas e conquistas
Karine Monteiro de Oliveira*
Quem sou
Meu nome é Karine Monteiro de Oliveira, tenho 25 anos de idade, nasci em Rio
Branco, capital do estado do Acre. Sou casada e dessa relação tenho um filho, ele se chama
Matheus de Oliveira Bichara e tem 5 (cinco) anos de idade.
É importante citar que atualmente estou cursando o terceiro período do curso de
Letras Francês/Português pela Universidade Federal do Acre.
Sou filha de Alberto Carlos Rodrigues de Oliveira e Francisca Texeira Monteiro,
ambos nasceram em Rio Branco-AC.
Mas deixemos o presente e vamos fazer uma breve viagem ao passado, ou seja, escreverei sobre a minha trajetória desde que nasci...
O amor me fez vencer dificuldades
Conta minha mãe que na época em que nasci era tempo de vacas gordas em nossa casa.
Que bom! Pois se não fosse acho que não estaria aqui para contar esta história. Minha
querida mãe relata que meu pai trabalhava no DERACRE (Departamento de Estradas de
Rodagem do Acre), e ela, como precisava cuidar da casa e dos meus irmãos já nascidos,
apenas estudava, mas como estava grávida o cansaço já tomava conta de seu corpo.
Os meses passaram, não os nove como é de costume em qualquer gravidez, porque eu
vim ao mundo quando a minha mãe estava com sete meses, ela conta que nasci uma menina
raquítica, frágil, pequenininha, só para vocês terem uma idéia, pesei apenas 900 gramas e
cabia dentro de uma caixa de sapatos. Minha mãe brinca que eram sapatos número 29, mas
ao invés disso me causar revolta, causa-me é felicidade, felicidade de saber que mesmo com
todas as dificuldades encontradas, estou viva.
E os fatos não param por aí, minha mãe e meu pai relatam, ainda, que por eu ser um ser
tão frágil e pequenino, dava trabalho dobrado, tanto que minha mãe teve que abandonar os
estudos para se dedicar exclusivamente a cuidar de mim: ela diz que para aquecer o meu
corpinho tinha que esquentar água, colocar em litros e deixá-los ao meu redor, e mais, para
que eu me alimentasse, precisava tirar leite de seus minúsculos seios. Vocês pensam que o
leite era colocado dentro de uma mamadeira? Pois se enganam, o leite era posto dentro de
um conta-gotas, dos menores que tinham, quando não, minha mãe pegava algodão, umedecia no leite e molhava os meus lábios para que eu pudesse me criar...
*
Graduanda de Letras/Francês da UFAC.
Universidade Federal do Acre
63
Com todo esse amor e toda essa dedicação, recuperei-me e rapidamente fui crescendo saudável. Um fator que contribuiu muito para esse sucesso é que, na época, os meus
pais viviam financeiramente bem, por isso, podiam levar-me a médicos que receitavam
remédios, entre outros, para raquitismo. Com esse amor de meus pais, familiares e amigos
e com o acompanhamento de profissionais, cheguei aos oito meses de idade uma menina
forte e saudável.
Deus: meu salvador
Tudo estava correndo bem, até que, por ser humana, minha mãe teve um descuido
comigo, é que certo dia, eu estava deitada em uma rede e ela, sem a menor das intenções,
deixou um ventilador ligado batendo direto nos meus pulmões. Mesmo estando forte e
saudável, nasci frágil, talvez por esse motivo esse fato afetou e muito a minha saúde. A
partir desse acontecimento passei a ter problemas respiratórios, adquiri, desse triste episódio uma bronquiolite aguda, não entrarei em pormenores que envolvem essa situação,
por ser tão pequena e inocente não me lembro o quanto sofri, mas sei que sofri muito, assim
relatam minha mãe e todas as pessoas que me acompanharam. Com a graça de Deus, amor e
cuidado dos que me rodeavam e as prescrições feitas por profissionais da saúde, essa foi
mais uma fase que “consegui” superar em minha vida.
Mesmo tendo comentado acima que não me prenderia a detalhar este fato ocorrido
comigo, houve um acontecimento que jamais poderia deixar de relatar.
Nessa enfermidade, minha querida mãe ficava dia e noite comigo, mas, como eu já
havia comentado anteriormente, ela tem outros filhos, e eles, assim como eu, também
eram pequenos, por isso é que ela teve que ir para casa, pois além de cansada precisava
ver como estavam meus outros irmãos. Ao entrar em casa, chegou Helena, uma grande
amiga de minha mãe, que percebendo o semblante cansado de minha mãe e sem deixar
que ela fizesse algum comentário sobre o meu estado de saúde, foi logo dizendo: - Amiga, tua
filha vai ficar boa, pois tive um sonho, e no sonho duas mãos tomavam tua filha nos
braços e a levantavam para o céu, e de cima caíam de uma cachoeira águas que reluziam
como ouro. Escutando este sonho tão maravilhoso, minha mãe chorava de contentamento e de felicidade, aquelas palavras deram à minha mãe força e vigor para continuar
a caminhada.
Mas para surpresa de minha mãe, Deus quis provar a sua fé, ao chegar ao hospital o
meu estado havia se agravado e o meu quadro estava piorando cada vez mais, tanto que
minha querida mãe chegou a desacreditar das palavras de Helena. E quando todos pensavam que havia chegado a minha hora, por volta das 21:30 h tive uma melhora surpreendente e graças a Deus não fiquei com nenhuma seqüela deste episódio tão infeliz.
Livre dos perigos: minha vida como estudante
Tudo foi superado e os anos foram passando, eu, agora, uma criança saudável e normal.
Havia completado 5 (cinco) anos e foi justamente com esta idade que tive o meu primeiro
dia de aula, é que minha mãe me matriculou para estudar em uma escola próxima à minha
casa. Confesso a vocês que nunca vou esquecer a Escola Maria Cândida Dantas (SESI),
fatos marcantes aconteceram comigo nesta instituição educacional. O que eu mais recordo
foi o meu primeiro dia de aula, chorava, mas chorava tanto que chegava a soluçar de
saudades da minha casa e preguiça de fazer as atividades. Com o passar dos dias, meses e
64
Caminhadas de universitários de origem popular
anos tudo isso passou a ser normal em minha vida, tanto que quando a minha mãe não me
levava para à aula eu chorava, só que agora porque não havia ido à aula.
Agora, farei uma retrospectiva dos anos que estive do Pré até a 4ª série do ensino
fundamental, estes, com toda a certeza, para mim foram os melhores anos, porque tive
professores que marcaram positivamente minha vida, sem contar os amigos, as aventuras
nas colônias de férias que íamos todos os anos. Íamos a lugares legais como o Horto Florestal,
os museus, banhos maravilhosos, mas enfim, como tudo em nossa vida é passageiro, restamnos apenas as lembranças desses anos tão marcantes e inesquecíveis para mim.
Assim como as coisas passam, nós também precisamos acompanhar essas mudanças, é
que eu havia concluído a 4ª série, uma nova etapa da minha vida escolar havia chegado,
iniciaria agora a 5ª série do ensino fundamental, tudo novo, diferente, vários professores...
enfim, uma nova etapa em minha vida e mais uma vez a vida resolveu me pregar uma peça,
não comigo, mas dessa vez com aquela que tanto fez para que eu pudesse estar aqui para
relatar essa história. Nova fase, fase difícil e muito dolorosa.
Outras dificuldades: desistências e reprovações
Como eu havia citado, iniciei a 5ª série, agora em outra escola, Dr. Carlos Vasconcelos,
próxima à minha casa também, tudo ia muito bem, até que minha mãe começou a sentir
fortíssimas e insuportáveis dores de cabeça, as quais a levaram a ter, com freqüência,
convulsões. Este fato desestruturou todo o meu lar, e eu, muito nova me deixei abalar
emocional e fisicamente, tanto que eu não conseguia me concentrar nos estudos, tinha
que cuidar da casa, comecei a tirar notas baixas e, ainda por cima, vinha o pensamento na
minha cabeça “por que que eu não podia fazer nada para ajudar a minha mãe? Ela que
tanto fez por mim”.
Esse drama foi se agravando, e minha mãe precisou viajar para Goiânia, pois as dores
a levaram a operar a cabeça, minha mãe havia contraído um coagulo entre o crânio e o
cérebro. Isso me fez sentir um medo tão grande de perder a minha mãe, me fazendo levar
tudo que eu sonhava em construir a partir dos estudos, por água abaixo, tanto que nessa
época e mesmo depois dessa época passei por várias desistência e reprovações, a minha
vida escolar ficou mais ou menos assim: um ano reprovava, o outro desistia, passei por
essa constrangedora situação de ver todos os meus colegas e irmãos avançarem por quatro
longos e prejudiciais anos, mas o que eu poderia fazer, se o que eu sentia era mais forte do
que a vontade de vencer.
Como eu já comentei anteriormente, tudo passa e minha mãe, mesmo carregando
seqüelas dessa doença até os dias de hoje, conseguiu superar mais essa dificuldade, e assim
como ela, eu também, consegui, graças a Deus e ao meu esposo, que sempre me deu força e
incentivo para continuar os meus estudos. Foi então que resolvi correr atrás do prejuízo,
matriculei-me na Escola Profª. Maria Angélica de Castro, também próxima à minha casa,
para fazer o telecurso do 1º grau e, mesmo não tendo aprendido o que seria necessário,
concluí o ensino fundamental em exatamente um ano e oito meses.
Logo em seguida, na mesma escola e na mesma modalidade de ensino fiz o ensino
médio, este eu concluí em apenas um ano e meio, mesmo sendo corrido, cresci muito nesse
período e tive a oportunidade de conhecer amigos e professores maravilhosos.
A batalha estava quase encerrada, o ensino médio eu já havia concluído, agora me
restava enfrentar o vestibular, o tão temido vestibular, o medo tomou conta de mim, pois na
Universidade Federal do Acre
65
minha cabeça eu pensava como poderia passar se estava concorrendo com pessoas que, em
sua maioria, haviam feito um estudo mais detalhado, e assim melhores preparados do que
eu, mesmo assim, criei coragem e prestei vestibular por três anos consecutivos, todos os
anos para o mesmo curso e em duas dessas três vezes passei na primeira fase, mas não
conseguia passar na redação. Bem, resta-me dizer que durante esses três anos sofri bastante,
mas não desisti de alcançar o meu sonho, o sonho de estudar em uma Universidade Federal,
uma vez que eu já fazia o curso de Filosofia na Universidade Sinal.
Um sonho concretizado: o meu passaporte para a universidade
Para finalizar essa trajetória, reportarei ao ano de 2005, ano em que a sorte, finalmente,
bateu a minha porta, fiz inscrição no vestibular da UFAC, e ao fazê-lo, novamente a esperança tomou conta de mim, pois havia naquela simples inscrição a esperança de um sonho
a ser realizado, comecei a ler, e ao mesmo tempo em que estudava, também pedia para Deus
abrir a minha mente e me ajudar a realizar esse sonho.
Finalmente, havia chegado o grande e tenebroso dia, fiz as provas da 1ª fase, veio o
resultado, e para surpresa e felicidade minha o meu nome estava na lista dos aprovados.
Estudei feito “gente grande” para fazer a redação, e o meu esforço foi recompensado com a
classificação em décimo sétimo lugar para cursar Letras pela UFAC.
Ao entrar na universidade, apesar de ter me realizado como pessoa, pois agora sim, seria
reconhecida, já na sociedade em que vivemos, devido aos grandes avanços tecnológicos, só
tem um pouco de valor quem faz um curso superior, e nas universidades federais, então, nem
se fala, mesmo assim, continuava sentindo um vazio dentro de mim, aqui e acolá pensava:
“estou estudando, mas preciso conseguir um emprego”.
Conexões de Saberes
Já estava perdendo as esperanças, via todos os meus amigos de curso trabalhando, só
eu não conseguia, nisso o ano de 2005 já findava e 2006 chegava com toda força e com
todas as coisas boas para as nossas vidas. Estava eu em sala de aula, quando a Lienda me
disse que estavam selecionando bolsistas para trabalhar em um projeto, automaticamente
veio em minha cabeça o seguinte pensamento: “Deus me ajude! Essa é a minha chance”.
Levei os documentos necessários e para minha surpresa e felicidade consegui ser selecionada para trabalhar neste Projeto.
É importante frisar que o Programa “Conexões de Saberes”, do qual faço parte, tem
como objetivo principal trabalhar com comunidades de origem popular, visando a inclusão
desses jovens nas universidades, independentes de cor, raça e religião, lutando para que
estes, ao assumirem a sua cidadania, consigam o seu espaço na sociedade em que vivem.
Por tudo isso, é que posso afirmar que este programa só tem me proporcionado coisas
boas, e, além de me realizar profissionalmente, também estou crescendo como pessoa, como
ser humano.
Enfim, posso dizer que apesar de todas as dificuldades sou uma pessoa quase realizada, pois estou fazendo uma faculdade, está me proporcionou esta bolsa para trabalhar, sem
contar que fazer um nível superior me proporcionou abrir horizontes, ter uma nova visão do
mundo e me fazer exercer os meus direitos de cidadania.
66
Caminhadas de universitários de origem popular
Trajetória de vida
Kátia de Souza Brito*
Há esperança
Para o ferido
Como árvore cortada
Marcado pela dor
Ainda que na terra
Envelheça a raíz
E no chão abandonado
O seu tronco morrer
Há esperança pra você.
Ana Paula Valadão
Para mim, o relato de minha trajetória de vida é algo muito difícil, pois não é todo dia
que passamos de leitor para escritor, muito menos quando o tema é a nossa vida. É importante ressaltar que não sou muito boa com as palavras, portanto, peço desculpa por qualquer
falha cometida. Não me recordo bem de toda a minha vida, já que isso se tornaria um
trabalho de exaustão, mas vou fazer o possível para destacar aquilo que acho importante
comentar, pois minha vida foi marcada por sucessivas mudanças de bairros e colégios. Mas
como tenho que fazer este memorial, tentarei fazer o melhor, vamos lá.
Meu nome é Kátia de Souza Brito, nasci em 1 de fevereiro de 1984, em Boca do Iaco,
no município de Serra Madureira, Acre, um seringal do qual não me recordo bem, pois vim
com minha família para Rio Branco aos dois anos de idade. Meu pai se chama Sebastião
Nobre Brito, minha mãe Constância Pereira de Souza e meu irmão Sidnei de Souza Brito.
Quando chegamos a Rio Branco, fomos morar no bairro João Eduardo II. Como a história da
maioria das famílias, que vem do interior para capital, vivíamos em condições precárias,
mas como bons brasileiros sempre dávamos um jeitinho.
Meu pai quase não participou da nossa infância, ao contrário de minha mãe que foi
uma figura presente. Isto porque ele trabalhava quase todo o decorrer do dia. Chegava
cansado e com vontade de dormir. Mamãe também trabalhava, mas seu trabalho não a
impedia de estar presente em nosso cotidiano.
Nossa vida mudou quando meu pai começou a trabalhar como comerciante, logo se
tornou um comerciante bem-sucedido e nossa condição financeira melhorou, construímos
uma casa grande em relação à primeira. Acho que foi a melhor fase de nossa vida.
*
Graduanda de História da UFAC.
Universidade Federal do Acre
67
Porém, quando eu tinha uns sete anos de idade fiquei doente e descobrimos que eu
estava com paralisia infantil, foi muito difícil para mim, acho que nunca mais vou esquecer aqueles meses de dor e angústia, pois não podia mais brincar com meu irmão e com
meus amigos. Todos, inclusive minha família, exigiam muito de mim e eu era só uma
criança e agora não podia mais andar. Às vezes tentava chegar perto da porta ou da janela
e via as outras crianças correndo e eu não podia fazer o mesmo, não sabia o que sentia,
tinha dor dentro do meu peito, pois não podia fazer o que mais gostava – correr. Essa foi
a pior fase de minha vida.
Foi muito difícil para todos. Minha mãe foi essencial nesse momento, era ela quem me
levava ao hospital. Isso influenciou bastante nos meus estudos, se não me engano estava na
1ª série e estudava na escola João Paulo I, que fica localizada no bairro João Eduardo I,
quase fiquei reprovada por faltas, mas como era uma aluna dedicada minha professora e
meus coleguinhas iam me visitar e levavam a matéria e os exercícios.
Pouco tempo depois, com o acompanhamento de um médico e um tratamento seguido ao pé da letra, do qual não gostava, pois era obrigada a receber três injeções por dia,
que deixava muita dor nos meus braços, aos poucos consegui caminhar, é claro, com
passos pequenos e cuidadosos como uma criança que começa a aprender a andar. Graças
a Deus, fiquei curada e esta doença não deixou nenhuma marca física. Em suma, passei
para o ano seguinte.
Passado algum tempo, nos mudamos para o bairro Palheral, lá começamos tudo de
novo, meu pai construiu outro comércio e minha mãe começou a trabalhar como empregada doméstica. Trabalhava muito para nos ajudar e, junto com meu pai, não deixar nada
faltar. Meu irmão e eu sentíamos muita falta da nossa mãe, foi muito ruim ficar longe dela,
pois nos víamos só à tardinha e nos finais de semana. Agora, as coisas se reverteram, já
que era meu pai quem ficava mais tempo com meu irmão e comigo. Minha mãe é uma
guerreira, meu exemplo de mulher, honrada e respeitada. Ela é tudo para mim, uma das
razões pelas quais eu luto por um futuro melhor, quero retribuir a ela e ao meu pai tudo
que fizeram por mim, eu os amo.
Minhas responsabilidades aumentaram, a partir do momento que minha mãe começou a trabalhar, como coloquei anteriormente, pois passei a cuidar em tempo integral do
meu irmão, além disso, tinha várias dificuldades, por não ter ninguém que pudesse me
ajudar com a lição de casa. Sendo assim, tinha que me virar sozinha, tanto em relação aos
meus estudos como em relação a tudo que precisava fazer. O Sidnei teve mais sorte, já que
eu o ajudava nos estudos. Para mim, ele continua sendo meu filho-irmão. Ele é muito
inteligente e curioso, nossa relação é boa, somos muito unidos.
Novamente nos mudamos. Fomos morar no bairro Parque das Palmeiras, devido a
problemas financeiros, morávamos no terreno dos meus avós. Comecei a estudar no colégio
Darcy Vargas, onde estudei até a 4ª série. Como qualquer menina, gostava de conversar com
minhas coleguinhas, recebi algumas reclamações, mas passei de ano, sem me preocupar.
Depois nos mudamos para umas terras que meu avô deu para meu pai, hoje ela é
conhecida como Baixada, e mudei de colégio de novo, passei a estudar no Dr. João Aguiar.
Por um bom tempo ficamos morando lá, minha mãe continuava trabalhando e meu pai não
conseguia trabalho. Passamos por momentos de angústias, graças a Deus nos recuperamos.
Nesse período, eu estava muito madura, quer dizer, sempre fui muito madura para minha
idade, acho que isso se deve ao fato de ter tido que assumir responsabilidades muito cedo,
68
Caminhadas de universitários de origem popular
deixando de ser uma criança para me tornar uma adulta. Mas o que me assustava é que
agora estava mudando fisicamente, não era mais uma menina. Essa fase contribuiu de
maneira negativa nos meus estudos, tornei-me ainda mais tímida, tinha horror de falar em
público. Conclusão, quando a nota dependia de apresentação de trabalho, tirava uma
nota regular ou baixa, isso foi muito difícil de superar. E para complicar ainda mais minha
vida, trocamos de bairro de novo, fomos para o bairro da Paz, mas pelo menos continuei na
escola Dr. João Aguiar. Confesso para vocês que odiava todas essas mudanças que fizemos,
pois sentia que de cada lugar que saíamos ficava um pedaço de mim, uma lembrança de
minha história.
Dois acontecimentos marcantes aconteceram nesse período. Primeiro, aos 16 anos
de idade, freqüentei a Igreja Batista Regular da Paz, após algumas visitas aceitei a Jesus
Cristo como meu Salvador e Senhor. Contudo, minha mãe não entendia minha posição,
não aceitava o fato de eu ser evangélica do movimento tradicionalista. Foi uma situação
de dor para mim, minha família não me deixava viver aquilo que eu acreditava e continuo
acreditando. Segundo, foi quando estava próximo de fazer 17 anos de idade, perdi o
medo de falar em público. Tinha um trabalho para apresentar e lembro que estudei muito,
tanto que quando chegou a minha vez de falar, deixei o papel de lado e comecei a relatar,
nem eu acreditava que estava falando calma e sem medo. Aquele momento foi uma vitória
para mim, cresci na minha vida pessoal e também foi um passo maior para minha vida
profissional. Daí em diante meu desempenho foi o melhor possível e passei com louvor
no Ensino Médio.
Terminado o Ensino Médio me deparei com uma realidade da qual não imaginava.
O que fazer agora? Não sabia que rumo seguir, só tinha certeza que não queria fazer o
vestibular, pois ouvir dizer que, apesar de a Universidade Federal do Acre -UFAC ser
pública, manter um curso de nível superior era muito caro, havia vários gastos com xerox,
transporte e alimentação. Sendo assim, achei melhor pensar em trabalhar primeiro, para
depois prestar o vestibular.
No entanto, minhas amigas, que se formaram comigo, foram me procurar e insistiram
para que eu fizesse o vestibular, dizendo: “Vamos, Kátia não vai custar nada, se você passar
na isenção, assim pelos menos se não passar no vestibular ganha experiência”. Então arrisquei, já que tinha passando pela isenção. Não sabia onde ficava a UFAC, nem sabia que
qualquer pessoa podia ir lá. Também não tinha certeza para que curso iria prestar o vestibular,
mas em cima da hora optei por História Diurno. Minha família foi muito maravilhosa e
companheira, pois não me pressionaram, me diziam que estavam do meu lado e o que eu
decidisse, eles me apoiavam.
Comecei a estudar, mas como não tinha nenhuma “cobrança” para passar no vestibular,
não me importei, estudava sim, só não me matava de estudar. Saía com minha prima Thalita
Nobre Ribeiro e não me importava com as provas ou com a redação, pelos menos não a
ponto de ficar louca de estudar. A prova do vestibular foi em janeiro de 2003, só faltava um
dia para eu completar 19 anos de idade, cheguei cedo e comecei a fazer a prova, com calma
e sem nervosismo, assim que terminei fui para casa, li um pouco para a outra prova do dia
seguinte e fui dormir. Fiz todas as provas com calma e tudo correu bem. Assim, também fiz
a última fase do vestibular – a redação. Depois foi só esperar para saber o resultado.
Quando descobri que tinha passado no vestibular fiquei sem ação, só me veio à memória
o fato de que eu mal tinha terminado o Ensino Médio, prestado o vestibular e passado de
Universidade Federal do Acre
69
primeira, saí do banco da escola para sentar no banco da UFAC. Surpreendi-me com minha
reação, pois para mim foi natural passar no vestibular.
Quando o curso começou, no dia 14 de abril de 2003, as coisas ficaram muito difíceis
para mim, o choque de conhecimento me fez pensar se realmente era isso que eu queria para
minha vida. Logo percebi que sim, era isso que queria, as coisas melhoraram a partir do 2º
período, tudo correu bem e consegui me adequar.
Nesse período, também aconteceu algo de bom. Meu irmão Sidnei aceitou Jesus Cristo
e agora, com o consentimento de nossa mãe, congregamos na Igreja que aceitei Jesus Cristo
aos 16 anos e voltei a freqüentar aos 19. Foi muito bom para mim estar novamente na Igreja
Batista Regular da Paz e agora com meu irmão. Estava muito feliz.
Contudo morávamos em um bairro chamado Bairro da Paz, que alagava devido a um
igarapé que transbordava quando chovia e alagava as casas, inclusive a nossa, por isso,
vendemos a casa e novamente nos mudamos para o Portal da Amazônia III, onde moramos
atualmente, é um lugar muito bom de morar. A mudança de residência nos obrigou a mudar
também de igreja, fomos para a Igreja Batista Regular do Calvário, localizada na estrada do
Calafate, mas continuamos no mesmo movimento: o movimento tradicionalista.
Morar nesse bairro é muito maravilhoso para mim, finalmente parece que vamos parar
num bairro. Nossa vida melhorou: meu irmão, assim com eu, passou de primeira no vestibular
da UFAC para Educação Física e eu passei a lecionar aulas bíblicas para as crianças da Igreja
e isso me deixa muito alegre, mas Deus continuou sendo misericordioso comigo, dando-me
um presente ao qual não esperava, conheci um homem maravilhoso – Jerliton da Silva
Craveiro, começamos a sair como colegas, mas logo após um passeio dos jovens passamos
a nos conhecer melhor e naquele momento nasceu o amor entre nos dois. Depois de alguns
encontros, começamos a namorar, logo ficamos noivos e hoje estamos preparando tudo para
nos casarmos. Pretendemos com ajuda de Deus nos casar em 2007. Eu o amo muito, ele é um
grande companheiro, me ajuda muito, entende meu curto tempo e me ajuda nos estudos. Ele
se tornou alguém essencial na minha vida, já que agora ele e minha família são tudo para mim.
Atualmente, estou no 7º período do curso de História e sou bolsista do Programa
Conexões de Saberes, onde juntamente com os demais colegas, estamos escrevendo um
relato de nossa história de vida que irá compor o livro “Caminhadas...” espero contribuir
para o Programa Conexões de Saberes e adquirir não apenas conhecimento intelectual, mas
também experiência de vida. Agradeço a Deus pela minha família, pela oportunidade
oferecida pelo Programa Conexões de Saberes, e que ele possa continuar ajudando os
universitários a interagirem com as comunidades populares.
70
Caminhadas de universitários de origem popular
História de minha vida
Lisiane Filgueira de Souza*
Árvore genealógica
Medeiros (avô), Dorinha (avó), Ismael (tio), Francisco (pai). Vitalina (avó), Antonio
(avô), Francisca (tia), Maria (tia), Francisco (tio), José (tio), Antonieta (tia), Antonia (tia),
Lídia (mãe). Lisiane (eu), Lucélia (irmã), Franthesco (irmão), Josenildo (primo), Ivanildo
(primo), Ismael (primo), Ivan (primo).
Para começo de conversa, só posso iniciar falando de mim, depois vou falar um pouco
sobre as pessoas mais importantes da minha vida, que são meus pais, meus avôs, meus tios
(as), ou seja, da minha família.
Meu pai e minha mãe vieram de famílias muito humildes. A mãe de minha mãe teve
sete filhos. O meu avô eu não conheci, pois ele faleceu no dia 25 de dezembro de 1980
quando minha mãe estava grávida de mim.
Já a mãe de meu pai teve onze filhos, mas sobreviveram só dois: meu pai e meu tio,
meu tio diz que é porque só ele e meu pai têm “estômago de porco”. Mesmo assim, meu
pai quase não escapa, era muito doente. Então, minha avó, com medo de que ele morresse,
resolveu fazer uma promessa, se meu pai ficasse bom ela lhe daria o nome de Francisco
das Chagas.
Tanto meu pai como minha mãe começaram a trabalhar muito cedo, pois, em Mossoró/
RN, a vida era muito difícil. Meu pai começou aos onze anos trabalhando em uma padaria
e mamãe em casa de família.
O pai de meu pai era caminhoneiro, ele trazia sal das salinas para Mossoró. Por causa
da sua profissão, conheceu quase todo o Brasil, e por incrível que pareça, meu avô era
analfabeto, foi meu pai quem o ensinou a “desenhar” o seu próprio nome. Em compensação,
meu avô era ótimo motorista, nunca sofreu nem causou nenhum acidente. Lembro-me muito
bem quando meu pai comentou, que gostaria de poder comprar um caminhão e dirigir com
meu avô ao seu lado. Vovô sempre foi uma pessoa muito honesta, trabalhadora e de bons
sentimentos, meu pai parece muito com meu avô.
Papai sempre gostou muito de trabalhar e meu tio de estudar, minha avó dizia a meu
pai: – “meu filho trabalhe que quando seu irmão se formar ele vai lhe dar uma padaria”.
Meu tio conheceu Irene e começou a namorá-la, Irene já tinha meu primo Nildo,
depois de um tempo de namoro, eles resolveram casar-se, e tiveram mais três filhos: Ivanildo,
Ismael e Ivan. Ismael (tio) acabava de formar-se na Escola Superior de Agricultura de Mossoró
(ESAM). Com muitas dificuldades e sacrifícios, conseguiu obter êxito.
*
Graduanda de Geografia Licenciatura da UFAC.
Universidade Federal do Acre
71
Certo dia, Francisco (pai) conhece Lídia (mãe) e começam a namorar, depois de algum
tempo de namoro, eles decidem casar, só que com um detalhe, escondido sem avisar a
ninguém. Foram até o cartório e conseguiram casar-se, mas cada um continuou a morar na
casa dos próprios pais. Até que minha tia Francisca começou a desconfiar que havia algo de
errado, resolveu ir até o cartório. Chegando lá, Francisca confirmou que, de fato, Francisco
e Lídia haviam casado, ficou com tanta raiva que começou a brigar com o rapaz do cartório
dizendo que ele não podia fazer isso porque Lídia era menor de idade e não tinha autorização
para casar-se. À noite, minha tia Francisca procurou meu pai para conversar e disse que ele não
devia ter feito isso e Francisco disse que gostava muito de Lídia, por isso resolveram casar.
Francisco e Lídia foram morar em um quarteirão. Trabalhavam dia e noite para comprar uma casa. Depois de muito esforço conseguem comprar um terreno e constróem a casa
tão almejada. A casa tinha dois quartos, uma sala, cozinha e banheiro.
Lídia ficou grávida e com nove meses de gravidez começou a sentir dores, no dia
cinco de setembro de 1981 nasce uma menina. O nome foi escolhido por Francisca (tia)
que disse: – “se for uma menina se chamará Lisiane”. Meses depois, Lisiane começa a ter
crises de garganta cada uma mais forte que a outra e febre altíssima. Algumas noites meu
pai me colocava na bicicleta para tentar fazer eu dormi e parar de chorar, ficava horas até
conseguir. Só que isso muitas vezes não era suficiente e tinham que me levar ao médico.
A médica me aplicava medicação, mas bastava passar o efeito para eu piorar, até que certo
dia já não havia mais lugar para me furar, a médica decidiu que ia tentar aplicar a injeção
na minha cabeça, mas meu pai não deixou e falou à médica que se eu tivesse que morrer
que fosse em casa. Meu pai não queria que nada de ruim acontecesse e decidiu me levar ao
ginecologista que atendia minha mãe, levou-me mesmo sabendo que o médico não era
pediatra. Pai explicou a situação ao ginecologista que resolveu me examinar, passou um
remédio que me curou e nunca mais tive crise de garganta.
Em dezembro de 1981, Lídia fica grávida mais uma vez. Em 20 de agosto de 1982,
nasce Lucélia minha irmã. Como minha mãe tinha que trabalhar fora e meu pai também,
nós ficávamos com a tia Francisca que cuidava de nós duas. Já estávamos com nossa
família quase constituída.
Mudança
Algum tempo depois, vovó chega a nossa casa muito triste, conta que o pai dela
faleceu e que tinha uma herança para receber. Disse também que meu tio (Ismael) ficou
sabendo que havia uma vaga para engenheiro agronômico, no INCRA, na cidade de Rio
Branco-Acre. Meu tio Ismael decidiu ir para o Acre.
Veio para o Acre sozinho, a família continuou em Mossoró. Depois de um ano voltou a
Mossoró para buscar a esposa, Irene, os filhos e Francisco meu pai. Com quatro meses que Francisco estava em Rio Branco, vovô Medeiro, vovó Dorinha, Lídia e suas duas filhas chegam ao Acre.
Meu tio Ismael e sua família moravam em uma casa no Tropical. Já Francisco e sua
família moravam no Aviário, em uma casa alugada que ficava nos fundos da casa da
proprietária chamada Odete. Dona Odete gostava muito de mim e de minha irmã, a casa
ficava embaixo de um “pé de manga”.
Quando chegamos aqui, sofremos muito por causa do frio, meu pai tomava doses de
cachaça para passar o frio, falava que quando chegava lá na casa do meu tio, em dias frios,
não sentia vontade de sair de lá, a casa do tio era bem quentinha, pois era de alvenaria.
72
Caminhadas de universitários de origem popular
Lídia reclamava com Francisco que não teríamos mais uma casa como a que tínhamos
construído lá em Mossoró. Meu pai dizia para ela: – “eu lhe mostro que vou construir uma
melhor do que a que tínhamos lá”. Nessa época, papai trabalhava na fábrica da Miragina.
Certo tempo depois, foi trabalhar na Teckar – manutenção de ar condicionado – como
ajudante de serviços gerais. Logo depois, veio uma oportunidade melhor de emprego, só
que dessa vez era como motorista em uma construtora – a Potiguar.
A sorte estava ao lado dele, logo, aparecem outra oportunidade de emprego e surgiram
inscrições para casas em conjuntos habitacionais. Meu pai passou a trabalhar no aeroporto
internacional de Rio Branco como motorista e abastecedor de avião. O salário, naquela
época, era ótimo, ele recebia dez salários-mínimos.
Conseguimos ser contemplados com uma casa no conjunto Tucumã, bem pequena,
mas o que importava era que passamos a ter nossa própria casa, ou seja, não teríamos que
pagar mais aluguel. Passa a ser a nossa casa.
Escola
Já com cinco anos de idade e minha irmã com quatro, minha mãe resolveu matricular
nós duas em uma escola perto de casa. Fomos para o primeiro dia de aula na escola professor
Raimundo Gomes de Oliveira, minha irmã começou a chorar, pois não queria ficar lá,
depois minha irmã acostumou e não chorava mais.
Como meu pai e minha mãe trabalhavam fora, passávamos o dia todo na casa de meus
avós. Todos os dias de manhã cedo meu avô saía de sua casa para nos pegar na nossa casa e
nos deixar na escola. Ao término da aula, ele ia nos buscar e levava-nos para sua casa onde
ficávamos a tarde toda, ao cair da tarde minha mãe já tinha chegado do trabalho e esperava
em casa por nós, pois trabalhava só até às 17 horas, quase nunca tínhamos tempo juntas com
papai e mamãe, era raro esse momento, devido ao papai chegar tarde da noite do trabalho e
trabalhar aos fins de semana, só ficávamos todos juntos em suas folgas.
Aconteceu um episódio que marcou muita a vida de minha irmã ainda quando fazia o
pré-escolar, ela pediu à professora para ir ao banheiro e a professora não permitiu que ela
fosse. Minha irmã fez as necessidades na calcinha. À noite, quando minha mãe e meu pai
ficaram sabendo tiveram muita raiva, ao amanhecer mamãe foi até a escola e disse à professora que se ela tornasse a fazer o que fez, ela ia “quebrar a cara” dela. Na escola, sempre
havia brigas com Lucélia, como ela era menor que eu, sempre tomava as dores por ela, e saía
na “porrada” com as outras meninas.
Quando eu na terceira série e Lucélia na segunda, ganhamos uma bicicleta do Papai
Noel. Era uma bicicleta velha que estava jogada lá no aeroporto. E como papai não tinha
dinheiro para comprar uma nova decidiu reformar a bicicleta, e a deixou nova. E quando
chegou o Natal, ganhamos a bicicleta com rodinhas, até que decidimos tirar as rodinhas,
e meu primo Ivan disse que ia nos ensinar a andar de bicicleta. Combinamos de ele ir à
tarde lá para a casa de meu avô, chegando lá, fomos para a rua e ele começou segurando
na cela da bicicleta, eu me desequilibrei e caí no mato, comecei a chorar, mas depois
consegui andar de bicicleta. É claro, depois de vários tombos. Éramos as crianças mais
felizes que existia porque tínhamos a nossa bicicletinha para passear.
Quando passei para a 4ª série havia uma menina que adorava implicar comigo. Um dia
estava jogando pedrinhas em uma porta e ela ficou parada na frente da porta para eu acertar
uma pedra nela, e eu acertei, ela ficou com raiva e me deu umas pancadas. Como ela era
Universidade Federal do Acre
73
maior que eu, Ismael disse que era para a Lucélia e eu pegarmos a menina e dar umas
“porradas” que ele ia ficar por perto, se precisasse ele também ia bater nela. Mas não
precisou que Ismael entrasse na briga, a Lucélia e eu conseguimos dar umas “boas pancadas” nela. Quebramos seu cordão, rasgamos sua roupa, ela ficou toda arranhada.
Na sala em que eu estudava a 4ª série, meus dois primos: Ismael e Ivan, também
estudavam, ou seja, ficávamos nós três na mesma sala. Certo dia, Lucélia chegou chorando
dizendo que um menino tinha batido com a porta no rosto dela, Ismael e Ivan foram lá onde
estava o garoto e deram várias “porradas” no menino.
Em 1991, no mês de março, minha mãe descobre que está grávida. No dia sete de
dezembro de 1991, na maternidade Bárbara Heliodora, nasce Franthesco, meu irmão.
Poucos dias antes de minha mãe ganhar o bebê, minha tia Francisca tinha vindo de
Mossoró para o Acre para poder ajudar minha mãe durante o resguardo dela. Foi o ano mais
feliz da minha vida, pois tia Francisca é muito especial e eu a amo muito. Como todos os
parentes de minha mãe tinham ficado em Mossoró, papai achou melhor pedir para ela vir
passar um tempo aqui. Meu pai levou minha irmã e eu à maternidade para ver o nosso irmão,
só que não nos deixaram entrar. Minha tia foi lá onde estávamos e disse que ia conversar
com o homem e era para nós corrermos até a quarta porta do lado direito e entrar. Foi assim
que conseguimos ver nosso irmão.
Um mês depois que o Franthesco já estava em casa, mamãe o colocou para dormir e
virou o ventilador para a parede. Lucélia entrou no quarto e achou que ele estava com calor
e virou o ventilador para cima dele, minha mãe brigou com ela e disse que ela não devia ter
feito aquilo, porque não podia botar o ventilador em cima dele.
Chegou o final do ano e passei para a 5ª série, tive que mudar de escola, pois na escola
Professor Raimundo Gomes não tinha ginásio. Uma amiga de minha mãe – Terezinha –
disse que conseguiria uma vaga no Neutel Maia, assim, consegui me matricular.
No início, achava tudo estranho demais, meu avô nos primeiros três meses ia me
buscar e me deixar na escola, pegava o ônibus comigo, me deixava na escola e voltava para
casa. No fim da aula, ele ia me buscar.
No meio do ano de 1996, ele descobriu que tinha que fazer uma cirurgia, aos 72 anos
de idade não tinha nem um ponto no corpo, nunca tinha quebrado nada, até hoje eu não
entendo porque ele fez aquela cirurgia, sei que rapidinho os pontos cicatrizaram, só que
meu vô não parava quieto, ficava a dar pulos na cama atrás de matar pernilongos, com isso
abriu dois pontos da cirurgia e infeccionou. Dias depois, ele já estava bem melhor, só que
vô teve a idéia de pedir para vó que lhe trouxesse feijão, e ela trouxe escondido. Mais uma
vez, ele ficou pior, teve uma diarréia terrível, e ao invés de passar uma semana, passou quase
um mês internado na Fundação Hospitalar. Depois de alguns dias de recuperação, o médico
deu alta para meu avô, ele voltou para casa, e retornou as atividades normais dele.
No dia do meu aniversário de 15 anos, meu pai e minha mãe decidiram fazer uma festa.
Foi tão bom! Aquele bolo lindo, um vestido rosa, tudo preparado com tanto carinho, um dia
de princesa, tantos amigos. Foi maravilhoso!
Logo depois, era aniversário do Franthesco. O pai e a mãe organizaram uma festinha
para os amiguinhos dele, foi um barato, com todas essas coisas que criança gosta. Nesse dia,
meu avô tinha ido até a minha casa para dar um jeito no quintal e capinar na frente da casa.
Chegado o Natal, os vizinhos e alguns amigos próximos, resolveram se juntar para fazer
uma festa, foi aquela preparação para tudo dar certo e deu. Foi uma ótima festa. Já por volta de
74
Caminhadas de universitários de origem popular
umas nove horas, o pai pediu para que Lucélia e eu fôssemos até a casa do vô levar uma
buchada de bode que ele adorava. Ao chegar lá, vô reclamou que na noite anterior quase não
dormiu e disse que estava sentindo uma dor. Voltamos para casa e, ao chegar lá, falamos para
o papai o que estava acontecendo. Papai disse para Lucélia ir dormir lá na casa do vô, se
acontecesse qualquer coisa era para ela ir até em casa chamá-lo. No dia 25 de dezembro, por
volta das 14 horas, Lucélia chega batendo no portão. Chorando diz que o vô tá ruim, pai
foi até lá com a gente. Chegando lá, ele pôde perceber que realmente era verdade, vô não
estava bem, como o fusca de pai estava sem o banco, pai pediu que Lucélia fosse chamar
nosso tio, pois precisava levar o vô para o hospital. Poucos minutos depois, nosso tio
chega. Vô tenta se levantar da rede, mas já estava muito fraco, por isso pai leva o vô no
colo para o carro. Só que nosso avô não resiste e chega ao hospital sem vida, os médicos
tentaram reanimá-lo, mas nada adiantou, meu avô foi descansar em paz. Foi muito difícil
acreditar no que estava acontecendo, pois sabia que nunca mais ia poder vê-lo, que só ia
ter as boas lembranças. Ficava a me perguntar por que DEUS tinha feito isso, acho que as
pessoas boas não deveriam morrer, até hoje, tenho o vô em meus pensamentos.
A hora mais difícil é quando o corpo chega dentro do caixão, hora de desespero total,
meu primo Ivanildo quebrou o vidro do caixão e pediu para que o vô falasse com ele.
Chegou a hora do enterro, última vez que vimos nosso avô. Pai colocou um lenço sobre os
olhos dele, pois o vô dizia que não era para deixar jogar terra nos olhos dele. Pai lembrouse disso e meu avô foi enterrado no dia 26 de dezembro de 1996.
Na 6ª série, fiquei reprovada em matemática, repeti o ano e, no ano seguinte, consegui
passar. Fiz a 7ª série e fui aprovada. Passei para a 8ª série e mais uma vez fui aprovada.
Conheci um menino chamado Vilsomar e comecei a namorá-lo às escondidas, tinha medo
de meu pai não gostar, mas foi só um namorinho de adolescente.
Passei para o primeiro ano do ensino médio, onde fiquei reprovada na disciplina de
física. Então, descobri que para não perder o ano letivo poderia pagar a matéria e cursar o
ano seguinte, fui atrás de uma escola onde eu pudesse pagar a disciplina de física. Através
de uma amiga, Patrícia, descobri que havia uma escola no Conjunto Universitário, em que
era possível cursar uma série, devendo disciplina da série anterior. Fui à escola Alcimar
Nunes Leitão e consegui uma vaga, passei o ano todo estudando o segundo à tarde e à noite
“pagava” física no primeiro ano. Com muito esforço, consegui ser aprovada nos dois.
Terceiro ano do ensino médio. No primeiro dia de aula, meu amigo Rodrigo vem me
perguntar, como é mesmo o nome do professor que te reprovou? Ah! É Randoufo, pois ele
está na Secretaria e acho que vai dar aulas para os alunos do terceiro ano. Com muita
dedicação, dessa vez, consegui ser aprovada.
O vestibular
Surge um grande problema, a indecisão do vestibular. O que devo fazer? Eu e
minha irmã fizemos, para Agronomia. Sem nenhum preparo e experiência, nos deparamos com conteúdos jamais vistos antes, foi uma decepção total, nós não passamos nem
na primeira etapa.
No ano seguinte, fizemos um curso pré-vestibular, minha irmã muito confiante tentou
Agronomia mais uma vez. Eu tentei para Geografia Bacharelado. Eu e minha irmã passamos
na primeira etapa, já na segunda etapa, só minha irmã passou, mas eu não fiquei triste, disse
para mim mesma “no próximo ano eu consigo”. Este tinha sido um ano muito difícil, mais
Universidade Federal do Acre
75
foi bom pois meu primo Nildo tinha vindo de Natal passar férias aqui, pois ele gostava
muito de Rio Branco. Nildo me ajudou muito nos meus horários e nas horas vagas ele me
dava aulas de química, física e matemática. Meu primo naquele momento de minha vida foi
uma pessoa muito especial, foi o meu irmão mais velho, pois me aconselhava e não deixava
eu desanimar, estava sempre me dando apoio para que eu não desistisse de meus ideais, eu
o admiro muito, pois sei que para ele passar no vestibular foi bem complicado, mas ele
conseguiu, está formado em Matemática.
Início de 2004, resolvi me matricular em um pré-vestibular pela manhã. Passei o ano
todo ralando, chegada à hora do vestibular e mais uma vez a indecisão, pensei e decidi fazer
Geografia Licenciatura.
Resultado da primeira etapa, 24º lugar, Lisiane Filgueira de Souza, uma semana
depois da prova de redação, cinco dias depois sai o resultado, 15º lugar, Lisiane Filgueira
de Souza.
Começa uma nova etapa na minha vida, pois agora sou uma acadêmica. Foi bem
difícil o início, muitas pessoas diferentes, com idades diferentes. Mas foi bom, sentia
orgulho de mim, por ter conseguido chegar ali, sabia que este era o sonho de meu pai que
se realizava através dos filhos, a felicidade que sentia por meu pai era maior do que a que
sentia por mim. No primeiro dia de aula me sentia um peixe fora d`água, não sabia onde
ficava nada dentro da universidade e não conhecia normas, direitos e nem deveres do
acadêmico. Logo comecei a fazer novas amizades, Nira, Neide, Sara e, entre elas, Aldeneide
uma amiga do primário e que mora no mesmo bairro que eu, uma pessoa maravilhosa e
muito especial, entre outras pessoas do mesmo ano que o meu, Essa turma é ótima temos
de tudo um pouco.
Procurei um estágio dentro da universidade, mas não consegui, todos diziam que estágio
só a partir do quinto período, que seria quase impossível conseguir estágio no início, só se eu
conhecesse alguém que trabalhasse dentro da universidade com um cargo bom para que me
desse uma ajuda, senão seria muito complicado, e aos poucos fui desanimando.
Fique desestimulada com tudo isso, pois queria eu mesma poder me “bancar” dentro
da faculdade. Comecei a perder o interesse, achava que não tinha sentido. Meu primo Nildo
me ligou um dia e perguntou se eu não queria ir para Natal, resolvi ir. Em dezembro de 2004,
abandonei a faculdade e fui morar na casa do meu tio Ismael. Com vinte dias que eu estava
lá consegui um trabalho em um supermercado, como operadora de caixa. Essa foi a melhor
época de minha vida, pois, conheci muitos lugares, praias, boates, bares, restaurantes,
shopping, fiz muitas amizades. Cada dia uma experiência nova, há muito lazer em Natal,
muitas festas. Eu trabalhava o dia inteiro e aos finais de semana, durante o mês tinha dois
domingos de folga, não reclamava porque com o trabalho conseguia deixar minha cabeça
ocupada e depois ocupava o restante do tempo com lazer.
Só que dentro de mim faltava algo, eu não era completamente feliz, sentia falta de
minha casa, de meus pais, de meus irmãos, e não conseguia parar de pensar que eu tinha
feito tanto sacrifício, tanto esforço, para abandonar tudo. Então, decidi voltar, peguei as
contas no meu trabalho e comprei a minha passagem de volta para o Acre.
Retorno
Voltei para o Acre no dia 14 de outubro de 2005 e quando cheguei, aqui, a Universidade estava em greve, foi até bom, pois aproveitei para me divertir muito com minha irmã.
76
Caminhadas de universitários de origem popular
Em janeiro de 2006, reiniciam as aulas. Tive que me adaptar mais uma vez com uma nova
turma de amigos.
Em março do mesmo ano, vi um edital no mural que dizia que iam precisar de vinte
e cinco bolsistas, entreguei toda a documentação exigida e fiquei ansiosa a espera do
resultado.
O programa
O programa Conexões de Saberes me proporcionou vários aprendizados, mas um
dos principais foi que não podemos deixar as coisas como elas estão e que precisamos sim
ajudar cada vez mais pessoas de baixa renda a entrarem na universidade. No que depender
do Conexões do Acre vamos continuar a ajudar essas pessoas a entrarem na universidade
e lutar para que elas não abandonem seu curso.
Deixo aqui meus agradecimentos em primeiro lugar a Deus, a minha família que é o
meu alicerce sem eles eu não conseguiria chegar a lugar algum, meu pai que sempre me
ensinou que eu poderia perder tudo menos minha dignidade, sempre me orientou e nunca
deixou que nada de mal me acontecesse, eu sempre soube que longe ou perto ele estará
sempre a segurar minha mão, o meu avô que onde estiver está torcendo por mim, agradeço
ao meu tio, à sua esposa e aos meus primos, pois em um momento difícil de minha vida me
acolheram em sua casa. Minha tia Irene me tratava como sua filha, cuidava de mim muito
bem se preocupava com quem eu saía, a que horas eu chegava, se eu estava bem, se eu tinha
feito as refeições, cuidava das minhas roupas, a Irene sou muito grata.
Aos meus professores que me ofereceram seus conhecimentos, que são de grande
importância, meus amigos que estudaram e estudam comigo e também contribuem e contribuíram com o meu aprendizado.
Minha mãe e meu pai, que sempre lutaram, trabalharam e trabalham até hoje para dar
o melhor para os filhos, me orgulho muito deles, pois chegaram aqui com “uma mão na
frente e outra atrás”, e que graças a Deus conseguiram vencer e realizar alguns de seus
sonhos, por isso acho que somos vitoriosos. Minha tia Francisca, que mesmo estando longe
nunca deixou de me apoiar, sempre esteve ao meu lado, adoro demais a minha tia.
Universidade Federal do Acre
77
Relatos de minha trajetória escolar
Maria de Fátima Oliveira Mota*
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
Fernando Pessoa
Vou tentar contar um pouco da minha caminhada até a universidade, aconteceram
muitas coisas até eu chegar aqui, não me lembro de tudo que aconteceu e nem dá para
colocar, mas posso dizer que tudo foi bom, porque foi um aprendizado.
Sou a mais nova da família de seis irmãos, sendo três homens e três mulheres. Fui
criada pelas minhas duas irmães, pois minha mãe começou a trabalhar fora quando eu
tinha três meses de nascida. Lembro que minha mãe acordava todos os dias às 2 horas da
manhã para ir trabalhar, o carro passava para pegá-la às 3 horas. Ela trabalhava na Polícia
Militar, na cozinha, então o motorista vinha pegá-la cedo para fazer o café para os policiais. Todo dia era a mesma rotina, todos nós acabamos nos acostumando a acordar cedo e,
até hoje é assim.
Meu pai arranjou um trabalho na universidade, naquele tempo, antes da Constituição de 1988, não precisava de concurso público para entrar, mas durou pouco.
Minha família já era evangélica bem antes de eu nascer, meus pais eram muito rigorosos com os filhos, principalmente com meus irmãos mais velhos. Minha mãe sempre dizia
que meu irmão e eu, como somos os mais novos, fomos criados com “muita liberdade”.
Voltando a falar de meu pai, ele teve um problema de saúde muito sério quando eu
era criança. Ficou muito tempo internado no hospital e lá ele conheceu uns “irmãos”,
de uma determinada religião, que todo dia iam fazer visita para ele no hospital. Esses
“irmãos” ensinaram-lhe um remédio caseiro e disseram que ele ficaria curado e foi o que
aconteceu. Com isso ele saiu da Igreja que freqüentávamos e foi para essa outra dos
“irmãos”. Tivemos um problema, pois nessa Igreja não podia trabalhar das 18 horas de
sexta-feira até às 18 horas de sábado. Foi uma dificuldade, já que meu pai trabalhava
aos sábados na Universidade. Ele resolveu então falar com o seu superior se podia liberálo aos sábados, mas não foi possível. Meu pai, a partir desse momento, resolveu pedir
demissão do trabalho. Minha mãe teve um choque em casa, como íamos sobreviver só
*
Graduanda de Letras Vernáculas da UFAC.
78
Caminhadas de universitários de origem popular
com o salário que ela ganhava? Ele fez um acordo no trabalho e com o dinheiro da
rescisão comprou uma pequena colônia e começou tudo de novo. Foi muito difícil para
nós no início, era tudo muito longe, na mata mesmo, ele passava o mês todo lá sem dar
notícias. Pela dificuldade de acesso não podia ir e vir todo final de semana. Posso dizer que
a minha mãe era o chefe da família. Isso já faz vinte e cinco anos.
Primeira etapa
No que diz respeito à minha vida escolar, tive uma infância tranqüila. Entrei na escola
com 5 anos, fui para o jardim, mas já conhecia as letras, pois minhas irmãs me ensinavam em
casa. Entretanto, naquela época, tínhamos que fazer todas as etapas, já que tinha idade certa
para entrar na alfabetização, fiz as etapas mesmo já estando alfabetizada.
Gostava de ir à escola, meus pais sempre incentivaram a isso, diziam para nós que o
estudo era importante para nosso futuro.
Durante o meu ensino fundamental, sempre tirei boas notas, fui boa aluna na escola,
mas me sentia deslocada com relação aos colegas. Nunca tive muitos, eu era muito magrinha e alta e todos me chamavam de Olívia Palito, ficava triste, chorava muito na escola.
Estudei do jardim até a 7ª série na escola Flaviano Flávio Batista, no bairro que eu moro até
hoje, fica bem pertinho da minha casa.
A vida foi passando, meus irmãos conseguiram trabalho no Governo do Estado, um foi
embora para Manaus e, então ficamos em casa eu e meu irmão mais novo. Minhas irmãs
passavam o dia trabalhando.
Fiz a oitava série na Escola Prof. José Rodrigues Leite, no centro da cidade, para mim
começava um novo mundo. Em casa, sempre fui muito “presa”, meus pais não deixavam
brincar na rua, nem na casa de ninguém, diziam que se meus amigos queriam brincar comigo, tinham que vir para minha casa, pois não queria filho na casa alheia.
O fato de pegar o ônibus para ir para a escola era para mim uma alegria só. Foi a partir
daí que minha vida começou a mudar. Consegui meu primeiro emprego.
A filha de uma vizinha aqui de casa trabalhava na Fumbesa (Fundação do Bem-Estar
Social) e avisou para os seus dois irmãos que ia ter um concurso para funcionário menor de
idade no Banco do Brasil e ia inscrevê-los, tinham que estudar. Ela disse para minha mãe me
inscrever também que se eu passasse, ficaria até completar os dezoito anos. Minha mãe me
inscreveu, fui fazer a prova e passei na 1ª etapa, infelizmente, meus vizinhos não passaram,
fiz todos os tipos de exames e fui selecionada, fiquei muito feliz e meus pais também, ia ter
meu próprio dinheiro, começava já a fazer planos na minha cabecinha.
Tinha 14 anos quando entrei no Banco do Brasil, trabalhava de manhã e estudava à
tarde. Nessa época, foi muito bom, comecei a conhecer pessoas diferentes, era muito tímida,
e comecei a ser mais extrovertida.
Segunda etapa
Terminei o ensino fundamental. O que eu ia fazer no ensino médio? A formação geral
ou o Técnico? Minha mãe queria que eu fizesse Magistério, o sonho dela era que eu fosse dar
aula em uma escola lá na colônia perto do meu pai, onde ele tinha cedido um pedaço de terra
para o Estado fazer uma escola, mas, eu não queria, ela também não me obrigou, então resolvi
fazer um curso técnico, tinha na mesma escola que eu estudava só que era à noite. Foi um
problema convencer meus pais a aceitarem que eu estudasse à noite, mas no final aceitaram.
Universidade Federal do Acre
79
Foi um ensino médio difícil, trabalhava durante o dia e estudava à noite. Resolvi fazer
Técnico em Contabilidade. Quando terminei me senti aliviada, tinha conseguido superar
mais uma etapa da minha vida. Foi também o período em que o meu contrato com o Banco
do Brasil terminou.
Terceira etapa
Tentei o vestibular muitas vezes, a primeira vez que tentei foi em 1996. Foi um
fracasso total, como tinha feito um curso técnico, só tinha visto as disciplinas de física,
química e biologia no 1° ano e bem superficialmente, então levei bomba, lógico, mas
confesso que não estudei para o vestibular. Tinha conseguido um trabalho, queria mesmo
era ganhar meu dinheirinho, comprar minhas coisas, não pensava muito no vestibular, fazia
por fazer, acho que não tinha “caído a ficha” ainda.
Resolvi fazer o que a minha mãe sempre quis: o curso de Magistério. Fazia somente
as disciplinas pedagógicas, mas não cheguei a terminar. Adivinhem por quê? Fiquei
GRÁVIDA! Foi um desespero total na minha vida, não queria ter filhos naquele momento,
não agora, sem marido, sem uma casa própria e acima de tudo sem uma faculdade. Foi
um período difícil da minha vida, não escondi em nenhum momento da família,
peguei o resultado do exame, reuni minha mãe e minha irmã e falei. Imaginem o que
aconteceu, né? Muito sermão, muita bronca, mas também um apoio incondicional da
parte deles, menos do meu pai, ficou quase os nove meses sem falar comigo. Tive uma
gravidez difícil, complicada, fiquei depressiva, chorava dia e noite, ia ao psicólogo,
não via a hora de ganhar o bebê, engordei muito, me sentia mal, cansada, mas quando o
meu príncipe nasceu (em 1999), parece que eu nasci de novo, foi só alegria, de todos.
Meu pai teve o primeiro neto homem, ficou muito contente, era um chamego só,
minhas duas irmãs não podem ter filhos, aí a alegria foi em dobro. Meu filho foi e é a
minha força.
Continuei minha vida com mais ânimo, comecei outro trabalho quando meu filho
tinha 4 meses, não fiz o vestibular por um tempo, achei que devia estudar para tentar de
novo. Sempre fazia o vestibular para um curso noturno, pois tinha que trabalhar durante o
dia, mas resolvi que ia fazer agora para um curso diurno, sempre gostei de ler (confesso que
escrever nem tanto), então resolvi prestar o vestibular para Letras. Não fiz cursinho, apenas
organizei meus horários e tirei um tempo para estudar, principalmente as disciplinas de
peso (humanas) já que nas exatas eu não era muito boa.
Eu me inscrevi para o vestibular de 2003, e qual foi minha surpresa? Fui classificada
para a segunda fase, fiquei tão contente, agora era só estudar para a prova de redação, não
era muito boa na escrita, mas estava confiante.
Fiz a prova e aqui estou, foi uma alegria imensa, tanto da minha como dos meus pais
e amigos. Mais uma etapa superada.
A alegria durou até iniciar as aulas. Achei horrível o primeiro dia de aula. Nós que
estamos do lado de fora da Universidade imaginamos que aqui é tudo diferente do ensino
médio, mas me decepcionei. Achei que ia ser tudo tão difícil, até que foi no início, fiquei
desanimada nos dois primeiros semestres, pensei até em trancar o curso. Dentre alguns
motivos, faltava dinheiro para tudo, mas depois comecei a me animar. Agradeço aqui em
especial a Eliane, uma amiga de sala, que soube me ouvir e me incentivar nos momentos em
que eu estava muito para baixo.
80
Caminhadas de universitários de origem popular
Com o decorrer do tempo, fui começando a gostar, mas ainda acho que faltam muitas
coisas para melhorar no meu curso. Consegui estágio, dei aulas no Telecurso 2000, consegui uma bolsa de extensão, muitas coisas boas aconteceram, como dizemos, a Universidade
abre as portas.
Hoje, já consegui muitas coisas boas em minha vida depois que entrei na UFAC, o
mais importante foi o conhecimento que obtive e algumas amizades que conquistei. Quanto
à minha casa ainda estou construindo, mas chego lá.
Posso falar que estou bem, penso até no mestrado, quero continuar.
Para terminar, quero agradecer a todos que acreditaram em mim, principalmente a
minha família que me ajuda até hoje a cuidar do meu filho para eu estudar, em especial a
minha irmã Gracinha – segunda mãe do meu filho, à minha mãe e ao meu pai que apesar das
nossas “divergências de pensamento”, sempre estiveram ao meu lado e vão sempre estar ao
lado do meu filho Thársos, é por ele que estou aqui nessa batalha e com certeza com vitórias.
Em especial, agradecer também ao Programa Conexões de Saberes, que foi e está sendo uma
experiência e um aprendizado para mim e vai me ajudar a terminar a minha caminhada na
Universidade. E como vai ser mais uma etapa....
Obrigada!!!
Universidade Federal do Acre
81
Uma história de realizações
Maria de Jesus Felipe *
Entrar para uma universidade pública sempre me pareceu um sonho praticamente impossível de se realizar. Primeiro, por não ter freqüentado o ensino fundamental no sistema
regular. Segundo, pelo processo seletivo do vestibular, acrescente-se a esses fatos os inúmeros
comentários que ouvia sobre as dificuldades relacionadas aos conteúdos que teria que
enfrentar. Tudo isso me fazia ver de longe a possibilidade de ingressar numa Universidade
Federal e fazer parte do seleto grupo da população brasileira com ensino superior.
Logo que chegamos da zona rural, onde morávamos, meu pai adoeceu e após alguns
meses internado num hospital, faleceu, em 1973, deixando minha mãe com sete filhos
órfãos. Para nos sustentar ela passou a ser lavadeira e, nos dias livres, a fazer serviços
domésticos em algumas casas. Era assim que algumas mulheres conseguiam sustentar sua
família. A esse respeito, Almeida Neto (2004, p. 148-9) diz que:
“A mão-de-obra feminina, exercendo atividade na cidade, foi
também fator preponderante para o sustento das famílias de exseringueiros, em que a função de domésticas [...] “de lavar e
engomar pra fora”, se destacou como principal, envolvendo não
só a figura das ex-seringueiras, mas também das filhas destas”.
Minha mãe, dona Francisca e meu pai, nesta época, também já eram órfãos de pai e
mãe, daí que nenhum dos sete irmãos conheceu os avós. Sabemos apenas que eram nordestinos. O pai de minha mãe veio, por volta de 1910, do Rio Grande do Norte; e o pai de meu pai
veio de Pernambuco, ambos vieram como “soldados da borracha”, para trabalhar nos seringais, produzindo borracha e cultivando alguns produtos agrícolas para a subsistência familiar.
Minha mãe, apesar de ser analfabeta, sempre nos incentivou a estudar para que
pudéssemos melhorar as condições sócio-econômicas a que estávamos submetidos à época.
Paralelo a isso, nos ensinou os preceitos morais da nossa sociedade na qual havia sido
criada com muita rigidez.
No ano seguinte ao falecimento do meu pai, tivemos que vender nossa casa, localizada
na Rua Isaura Parente e fomos morar no bairro Cidade Nova, na Rua Baixa Verde, bem
próxima à margem do rio Acre. Era um bairro novo, pouco povoado, havia apenas algumas
poucas casas do tipo tapiris ou papiris1, a maioria coberta de palhas, bem característico do
lugar de origem daquelas pessoas – os seringais.
*
1
Graduanda de Geografia da UFAC.
Barracas – Habitação precária e rústica.
82
Caminhadas de universitários de origem popular
Ora, isso estava ocorrendo justamente no período em que estava havendo um grande
fluxo migratório do centro-sul para a Amazônia e, mais especificamente, para o Acre. Esses
sulistas, como eram conhecidos pelos que aqui viviam, compravam os seringais, compraram inclusive o que nos pertencia, para nestas terras estabelecer um novo sistema de
produção – a agropecuária.
[...] Assim, as terras acreanas foram utilizadas ou para fins
especulativos ou para o desenvolvimento de atividades outras,
em que a pecuária se configurou como a principal. Desta feita a
quase totalidade dos já decadentes seringais [...] foram usados
como reserva de valor ou para a transformação em pastagem para
a criação de gado.
Ameida Neto (2005, p. 36)
Com a chegada da frente pioneira agropecuária ao Acre, a floresta, que no sistema
extrativo da borracha estava praticamente toda em “pé”, perdeu o seu valor, tendo, portanto,
que ser retirada.
Paradoxalmente, os ex-seringueiros, que haviam vendido seus seringais, e que agora
moravam no bairro Cidade Nova, eram contratados para “derrubadas”. Nesse trabalho, muitos deles morreram e as famílias ficaram desamparadas sem nenhuma assistência.
Em meios a esses acontecimentos, fiz minhas primeiras amizades com as crianças do
bairro, brincávamos todas as tardes, de esconde-esconde, manja, amarelinha, pula-corda,
roda, fogueira, anel, versos, adivinhações e, no período de estiagem, banhos de rio. Mas a
brincadeira que eu mais gostava, era fazer a minha irmã Antônia correr bastante com medo
de lagarta, que eu fazia com massinha de modelar e colocava em uma folha. Ela nem sabia
que eu na verdade, também, morria de medo de lagartas. Era muito divertido. Entre essas
brincadeiras havia outras tantas que não me recordo no momento.
Outro acontecimento que teve grande destaque e que marcou também a década de
1970, foi o lançamento da famosa calça jeans, na época denominada “de calça americana”.
De início era mais cobiçada pelos homens, para usar, principalmente, nos trabalhos de
“derrubadas” da floresta. Vale salientar que este tipo de calça foi trazido pelos sulistas, já
que apresentavam maior durabilidade em tais atividades. Mas em pouco tempo, a calça
jeans tornou-se popular. Até eu e meus irmãos usávamos jeans.
No final desta década, minha mãe conseguiu com muito sacrifício matricular eu e mais
três irmãos: Graça, Antônia e Nonato, no grupo escolar municipal Luiza Carneiro Dantas,
que fica em frente à Rodoviária. Meu primeiro dia de aula foi emocionante e me causou
certo estranhamento, pois achei aquele prédio muito grande. Agora entendo, eu é que era
muito pequena. Sua estrutura física se constituía em forma de quadrado e no centro um
pequeno pátio, onde podíamos lanchar aquele mingau de aveia, tapioca, ou aquela farofa
de charque e ou jabá (como costumamos chamar aqui no Acre). Eram os lanches que mais
gostávamos. O chamávamos de recreio. O momento que fazíamos diversas brincadeiras,
Esta escola, como as outras da época, tinha as paredes brancas, com portas e janelas
verdes claras. Estas últimas eram altas, para se ter uma visão de fora da sala era preciso ficar
nas pontas dos pés. Isso sempre nos levava a ficar várias vezes nas pontas dos pés, principalmente, quando havia algum aluno sofrendo “castigo” por desobediência à professora.
Universidade Federal do Acre
83
O aluno era obrigado a dar voltas ao redor da escola, quando perante a turma não dava jeito.
Nesse tipo de castigo, existia um garoto campeão – o Ubiratam, o mais rebelde de toda escola,
causador da maioria das brigas entre os alunos e, em alguns casos, entre os pais destes.
Nesse período, me dei conta da existência de outros bairros. Pois tinha gente que não
era do meu conhecimento no bairro que eu morava. Claro, elas moravam em bairros adjacentes como Seis de Agosto e Quinze. Até aquele momento, para mim, o mundo era muito
pequeno, se resumia apenas nos lugares que havia morado anteriormente.
Nesta escola, minha primeira professora chamava-se Amélia. Era uma mulher jovem
bonita e muito atenciosa com a turma, por conta disso, todos os alunos queriam estudar com
ela na alfabetização. No ano seguinte, já na primeira série “fraca”, como era denominada,
comecei a estudar novamente com a professora Amélia, porém, quando estávamos próximos das férias do meio do ano, uma fatalidade aconteceu.
Certo dia a professora não chegou à escola. Ficamos esperando na sala com uma
inspetora de ensino, como sempre. Até que nos chegou à notícia de que a professora Amélia,
que estava grávida do seu primeiro filho, havia falecido naquela madrugada. Esse fato nos
deixou muito tristes, pois sabíamos que não iríamos mais vê-la. Diante disso, a diretora da
escola, Francisca Machado, estabeleceu três dias de luto.
De volta às aulas, veio outra professora que se chamava Suely, moradora do bairro
Quinze. Esta, também não era diferente. Muito dedicada, buscava sempre com muita
paciência ensinar os alunos da melhor maneira possível. Então, tornou-se muito querida
por todos da escola.
Nas séries seguintes do ensino fundamental, vieram, respectivamente, as professoras
Adélia, Evandir, Juliana, e Amélia, esta última, hoje é minha vizinha de bairro – mora no
bairro Adalberto Aragão, nos fundos do Morada do Sol.
Foi com a professora da quarta série, que, no meio do ano, minhas notas não atingiram
a média necessária. Com medo de ficar reprovada e, conseqüentemente, repetir o ano seguinte, desisti, pois tinha vergonha dos comentários e da zorra que os outros alunos iriam
fazer comigo. Como por exemplo, me chamar de “atolada”, como faziam com os alunos em
caso de reprovação. Minha mãe, sem entender nada do que estava acontecendo comigo,
insistiu muito, para que eu voltasse a estudar, mas não adiantou. Eu queria mudar de escola,
até porque, nesta época, não morávamos mais no bairro Cidade Nova, havíamos mudado
para o bairro Triângulo Novo, tornando-se distante da escola, uma vez que teria que ir e vir
a pé, eu e meus irmãos, porque, mamãe não podia pagar nosso transporte.
Vale lembrar que o bairro Triângulo Novo passou a ser “ocupado” já por volta de
1978. E, em 1980, foi a nossa chegada neste, quando estavam ocorrendo grandes confusões,
entre os ocupantes, que nesse ano, ainda eram poucos, e os que se diziam proprietários
legais da área. Esse fato pode ser retratado a partir da citação que diz:
[...] Há mais de três anos uma área de terra sem nenhuma
feitoria à direita da Rodovia AC-1, em frente ao Aeroporto
Presidente Médice, começou a ser ocupada desordenadamente
por famílias desabrigadas, quase todas expulsas pela força do
latifúndio sulista.[...]
(TRIÂGULO... 1981,v.4, n20, p.9, grifo nosso, Apud, Almeida Neto,
2005, p.92-3)
84
Caminhadas de universitários de origem popular
Mas apesar de todos esses conflitos que estavam ocorrendo, uma coisa boa me aconteceu. Eu conheci o Samuel, meu esposo. Ele morava com seus tios no bairro “6 de Agosto”
e, naquele ano, foram morar no bairro Triângulo Novo, sendo nossos vizinhos. Após um ano
de namoro, resolvemos morar juntos. Daí para frente foi só felicidades, até eu manifestar
minha vontade de estudar. O Samuel, não aceitou, alegando que eu não precisava me
preocupar com estudos e muito menos trabalhar fora. Sempre que eu comentava sobre os
estudos, entrávamos em conflito.
Certa vez, fui ao local de trabalho do Samuel, na Churrascaria Triângulo, que ficava
no mesmo bairro, na área do Posto de Combustível Triângulo. Nesse dia, conversando com
a Maria, esposa do senhor Hamilton, ela me convidou para irmos estudar, pois estavam
abertas as matrículas para o Movimento Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL), na escola
municipal Anita Garibaldi localizada no bairro vizinho, o Triângulo, bem próximo de casa.
Como o Samuel, não quis dizer não à patroa, aceitou a sugestão. Para mim, foi um sonho, já
que em um ano eu sairia do primário. E foi de fato o que aconteceu. Agora eu poderia
concluir o ginásio da 5ª a 8ª séries no ensino regular. Contrariamente, a Maria desistiu no
meio do ano, e fez isso nos cinco ou seis anos seguintes.
Por volta, de 1986, retornei aos estudos, agora fazendo o Supletivo de 1º grau, diferente
do que havia planejado, mas na mesma escola. E o mais importante, eu estava estudando,
em apenas um ano e meio, sairia do ensino fundamental.
Terminado os seis meses iniciais, o Samuel me proibiu totalmente de continuar os
estudos. Foi quando, em 1988, nos mudamos para o bairro Morada do Sol. Como não
consegui convencê-lo, fiquei sem estudar até 1990, quando resolvi às escondidas me escrever para os provões do DSU (Departamento de Ensino Supletivo), pelo qual, estudava-se em
casa, e ia numa escola preestabelecida somente fazer as provas. Com muita determinação,
consegui terminar em 1993. Até aí, imaginava ser possível entrar para o mercado de trabalho,
apenas com essa escolaridade. Enganei-me.
Mais alguns anos sem estudar e as coisas não mudaram. Com os filhos Jairo, Hiyem e
Ohana já um pouco crescidos, me lancei novamente ao desafio de enfrentar/contrariar o
Samuel e voltar aos estudos em 1997. Tive a idéia de estudar para ser professora, uma vez
que sempre simpatizei com a profissão. Ora, desde criança, ficava encantada em ver como
era possível saber tantas coisas, para ensinar todos os dias a tantos alunos. Então comentei
com minha mãe e com meus irmãos que havia decidido retornar aos estudos. Ia fazer o
ensino médio profissionalizante (o Magistério), no Instituto de Educação Lourenço Filho.
Todos concordaram e me apoiaram em tal atitude, embora já tivesse com trinta anos, ainda
persistia no mesmo objetivo de estudar para garantir um trabalho e, conseqüentemente, a
independência financeira.
Iniciaram as aulas, logo fiz amizades com novos colegas, professores e demais funcionários da escola. Era um ano novo, no qual tinha muitas esperanças e perspectivas para
o futuro. Porém, logo começaram as dificuldades em determinadas disciplinas, pois estava
vendo conteúdos que nunca imaginei que existissem. Também pudera! Um curso com 14
disciplinas destacando-se nesse “pacote” de enigmas, a química, a física e a matemática,
que sempre me soaram com um sentimento de repulsa. Não as aprendi apesar de todo o
esforço realizado, apenas consegui deixá-las para trás.
Um dia, chegando à sala, me sentindo um pouco desanimada, com as notas do primeiro
bimestre, vejo um cartaz, numa coluna bem em frente à porta da sala de aula, com a seguinte
Universidade Federal do Acre
85
mensagem: “Tente não desista, pois nem todos que tentaram conseguiram, mas todos que
conseguiram tentaram”. Essa mensagem me deu forças para continuar. E em cada dificuldade
que surgia me vinha na memória àquelas palavras tão verdadeiras e densas em seu conteúdo.
A partir daí, meus interesses tornaram-se superiores às dificuldades encontradas.
Certa vez, quando os alunos estavam expondo seus problemas e suas dificuldades
para concluir aquele curso, seja pelos conteúdos, seja pela situação financeira ou também
porque trabalhavam o dia inteiro e à noite não tinham ânimos para estudar, a professora
Fátima, que ministrava a disciplina de Didática Geral, fez um pequeno relato de sua vida,
até chegar ao que havia se tornado, falando que era necessário sacrifício e boa vontade para
alcançar nossos objetivos.
Contou que era filha de lavadeira e que para se manter na escola e cursar a faculdade
de Pedagogia, também havia se tornado uma lavadeira. Esse fato me deu uma “injeção” de
ânimo, reforçando minhas expectativas, pois, eu era filha de lavadeira e também me tornei
uma, por conta das dificuldades financeiras, uma vez que, meu esposo Samuel, sempre
recebeu/recebe um salário irrisório, insuficiente para custear as despesas de transporte e
matérias de estudos. Foi quando comecei a lavar a roupa do meu irmão, que só aceitou
porque era uma maneira de me ajudar financeiramente e também me incentivar nos estudos.
Entretanto, nem só de dificuldades foi o magistério, além dos nervosismos das apresentações de seminário, que inclusive tenho até hoje e das disciplinas já mencionadas,
houve momentos inesquecíveis que me recordo com muitas saudades. Entre estes momentos muitos foram especiais como, por exemplo, as feiras de ciências as aulas de Recreação e
Jogos, os arraiais que realizávamos, e que levava grande número de pessoas a visitar a
escola. Tudo isso contribuía para que o “peso” das disciplinas se tornasse mais leve, o que
aumentava cada dia a minha vontade de estudar, pelo menos terminar o ensino médio.
E assim foram os quatro anos de magistério, com muito esforço e dedicação na tentativa de recuperar os conteúdos que havia perdido no ensino fundamental e também superar
as dificuldades que eram impostas a cada dia de aula naquele colégio. Em conseqüência
disso, parei de pensar em cursar uma faculdade, pois achava impossível conseguir e superar
conteúdos ainda mais complexos do que aqueles que estava estudando, devido a minha
vida escolar ter sido tão fragmentada e tão insuficiente em aprendizagem e conhecimentos
básicos, necessários ao acesso à faculdade.
Depois de dois anos sem estudar, em 2001, resolvi criar coragem e enfrentar o “bicho
papão” do vestibular da UFAC. Feliz da vida, comentei com meus familiares a brilhante
idéia. Minha família me parabenizou por tal decisão e novamente me apoiaram a dar continuidade aos meus estudos. Como já tinha um irmão – o Nonato, cursando direito, me sentia
mais motivada para tal objetivo. Então, convidei a minha irmã – a Socorro para fazer
também o vestibular. A outra irmã – a Mirtys já tinha esse objetivo. Ia fazer o curso de Letras
Francês. Eu e a Socorro optamos por Pedagogia, pois ela já trabalhava com Educação
Infantil, como auxiliar de professora na escola do SESI – Marília Santana. Ela aceitou a
sugestão, mas um pouco desacreditada da possibilidade de vir a ser aprovada nos exames,
porque já havia sido reprovada por umas duas ou três vezes. Mas aceitou o desafio.
A partir de então meu irmão Nonato passou a nos incentivar mais de perto, nos ajudando
com materiais para estudos. Ora, ele sabia o que deveria ser estudado, pois já havia feito
outros vestibulares quando passou em Matemática, depois em Economia e por último em
Direito, todos na UFAC. Enfim, ele se prontificou a nos ajudar em tudo que estivesse ao seu
86
Caminhadas de universitários de origem popular
alcance nos cedendo apostilas, livros, locando fitas de vídeo, pagando taxa de inscrição,
além de elaborar um roteiro de estudo, que deveria ser seguido passo a passo. Começamos
a estudar. Na semana, estudávamos cada uma em sua casa. Nos finais de semana, nos reuníamos em minha casa.
Veio o vestibular 2002, fiquei na primeira fase. A Socorro conseguiu passar para a
segunda fase, mas não foi desta vez. Entretanto, não desistimos, logo recomeçamos os
estudos para o ano de 2003. De certa formar, não ficamos tristes de tudo, porque a Mirtys,
havia conseguido ser aprovada e estava muito feliz. Já era alguma coisa. Esses estudos
como os anteriores foram muito difíceis, tínhamos que aprender coisas que não havíamos
estudado no magistério.
Essa missão nos levou a passar todo o ano de 2002 estudando o máximo de tempo
disponível, pois o medo de ficar desmotivada era grande e eu não queria ficar para o
próximo ano, mais uma vez. Por outro lado, também significava estar com mais idade e,
conseqüentemente, talvez ter menos chance de acompanhar o longo caminho do nível
superior. Como meta, prometi para mim mesma que aos 40 anos estaria formada. Porém, só
não comentava em que área, pois nem eu sabia.
Em agosto do mesmo ano o governo do estado criou um cursinho pré-vestibular
oferecido pelo “Adjunto da Solidariedade”. Fui fazer a inscrição, mas as vagas haviam se
esgotado. Pedi a coordenadora do curso para ficar numa lista de espera, para o caso de
alguém desistir, aí eu seria chamada. Um mês depois fui convidada. Fiquei muito feliz
pela oportunidade, pois não podia pagar um curso preparatório particular. Paralelo ao
curso, estudava o dia inteiro e assistia a um programa chamado vestibulando digital nas
Universidades da Madrugada, exibido no canal 2 às 23 h. Esse programa me esclareceu
muitas questões, sobre variados temas tratados nos vestibulares de outras universidades
bem conceituadas do Brasil.
Chegado o dia da inscrição ainda não sabia qual o curso eu me identificava mais. Uma
coisa era certa, não queria me deparar com a química, física, e matemática. Escrevi-me para
Geografia Licenciatura. Era interessante, pois oferecia oportunidade de amplos conhecimentos sobre a humanidade e a produção e reprodução do espaço geográfico. Ou seja, era
uma maneira de conhecer um pouco mais sobre o mundo.
No dia marcado, fizemos as provas e ficamos aguardando ansiosos pelo resultado. A
Socorro persistiu em Pedagogia. Quando saiu o resultado, quase morri de tanta felicidade,
eu e a Socorro havíamos sido aprovadas e com boas classificações. Nossos familiares ficaram tão felizes quanto nós. Ora, para a família foi uma dupla vitória. Agora, seríamos quatro
irmãos na Universidade.
Contudo, até esse momento, acreditava que seria mais fácil conseguir uma vaga no
mercado de trabalho, já que estava fazendo faculdade. Enganei-me novamente, pois, lá na
UFAC, havia centenas de pessoas na mesma situação que eu. Desempregadas ou em alguma
atividade alternativa diversa para sobreviver com dignidade. Mas todos com o mesmo
objetivo de se formar e passar em um concurso público.
Quando começaram as aulas, me encantei e me dediquei totalmente, buscando aprender ao máximo os conteúdos do curso.
E, às vezes que se tornava mais difícil, gravava as aulas para ouvi-las em casa. Faço
isso até hoje, só que com menos freqüência. Entretanto, as dificuldades se estendem por
todo o curso, que exige muita força de vontade para concluí-lo.
A relação com os colegas e com os professores não foi muito diferente do ensino
médio, porque de certa forma nos tornamos uma família, pois passamos a conhecer um
pouco de cada um, os sucessos e insucessos da vida particular, como também, dificuldades
e facilidades em determinadas disciplinas e/ou conteúdos, provas, trabalhos e seminários;
conhecer ainda os defeitos e as qualidades singulares a cada um da turma.Tudo isso me fez
ver e acreditar ainda mais nas teorias estudadas no Magistério, onde o grande destaque
enfatizado pelos professores se referia às individualidades das pessoas. O fato de fazer parte
desta Instituição de Ensino Superior só veio acrescentar mais sobre a convivência com as
pessoas e os processos que movem o mundo.
Hoje, estou terminando o 7º período, em vias de concluir o curso, e vejo como
grande empecilho a falta de conhecimentos em informática, pois sempre que o professor
pede um trabalho digitado, tenho que pagar alguém para fazer isso. Mas isso agora se
tornou de menos, pois tive a felicidade de me escrever e ser aprovada para ser bolsista da
UFAC, num programa denominado Conexões de Saberes, para realizar pesquisas junto às
comunidades populares.
Tenho certeza que esse trabalho que estou desenvolvendo, só vai me enriquecer ainda
mais para concretizar, finalmente, os meus tão sonhados objetivos. Outro fato que também
me envaideceu muito foi que, a partir da minha entrada na faculdade, minhas irmãs voltaram a estudar.
A Graça recomeçou os estudos desde o primário, e já está concluindo a 8ª série. A
Antônia voltou às aulas e terminou o ensino médio. E a Zethe, que havia concluído o
ensino médio, há uns quatro anos atrás, já fez duas tentativas de ingressar na Universidade.
O certo é que elas almejam uma vaga na UFAC. E vão conseguir, é só se esforçar, sem medo
de ser feliz. E eu torço por todas, pois elas merecem.
Ao final da produção dessa biografia recebi uma notícia maravilhosa. É que, em 2002,
fui aprovada no concurso do Tribunal de Justiça do Estado. E só agora fui chamada para
trabalhar, na função de Auxiliar Judiciário. Estou muito feliz com o meu trabalho, me sinto
realizada, pois consegui o que tanto almejei: me formar e exercer uma profissão que me
realiza. A minha família está em festa com essa minha conquista.
88
Caminhadas de universitários de origem popular
Minha trajetória de vida
Maria de Nazaré Silva de Mendonça*
Sou a filha mais nova dentre os quatro filhos do casal Adriano e Maria Laís. Nasci no dia
18 de abril de 1983, no hospital João Câncio Fernandes, no município de Sena Madureira,
estado do Acre, onde também, nasceram meus pais. Grande parcela da minha família, atualmente, reside na minha terra natal. Este lugar não representa apenas um retrato na parede, mas
sim um local do qual guardo lembranças de uma vida feliz ao lado dos meus familiares e amigos.
Meus pais, apesar da pouca escolaridade, sempre nos incentivaram a estudar, nunca
mediram esforços para que isso fosse possível. Sempre atribuíram ao estudo a chance de um
futuro diferente. Mas tenho plena consciência que não estou aqui por simples merecimento.
Sei do esforço de meus pais e de toda a minha família para que eu tivesse acesso a uma
Universidade Pública.
Quando criança, recordo-me que as brincadeiras de que mais gostava era brincar da
manja, de bonecas, de casinha, dentre outras, realizávamos comícios com o nome dos candidatos da época, com direito a som e palco improvisados. Tudo isso acontecia em uma
casinha no fundo do quintal construída por meus pais.
Por fim, fui despertada por meus pais de que precisava estudar. Foi então que pude
descobrir que na vida nem tudo é brincadeira. Já estava para completar sete anos, quando,
acho que por sorte, fui matriculada na Escola Instituto Santa Juliana, considerada uma das
melhores. Sua estrutura física já expunha seu porte: possuía três andares, pátio grande,
quadra de esportes, salas amplas, auditório, banheiros para homens e mulheres. Era administrado com ensinamentos religiosos, por professores do Estado, os quais mantinham disciplina rígida; primeiro uniforme padronizado, além disso, exigiam postura ética e moral,
éramos diariamente monitorados.
Mesmo com as exigências, pude me adaptar facilmente. Logo consegui me socializar
tanto com o meio físico, quanto com o social. Minhas amizades cresciam dia após dia. Tive
influências bastante proveitosas nesse colégio. Estive nesse convívio durante cinco anos e,
saindo deste, matriculei-me no Colégio Eliziário Távora na 6ª série, onde permaneci até
concluir o ensino fundamental.
Antes mesmo de completar quinze anos, me matriculei no único colégio de Ensino
Médio da cidade “Dom Júlio Mattioli”, para cursar o primeiro ano.
Minha trajetória, neste colégio, fora marcada positivamente pela professora Francisca
Aguiar, que ministrava aulas de Língua Portuguesa, por sua habilidade e competência com
*
Graduanda de Engenharia Florestal da UFAC.
Universidade Federal do Acre
89
a turma. Essa professora exerceu grande influência na escolha profissional que fiz. Iniciavase então minha inserção no mercado de trabalho. Fui escolhida para ministrar aulas na Zona
Rural, para adolescentes e adultos do Telecurso do Primeiro Grau. Os alunos desse curso
mesmo em meio às dificuldades, demonstravam bastante interesse pelos estudos, além de
serem esforçados e participativos nas aulas.
Com isso pude perceber que as possibilidades que a vida nos oferece é algo encantador,
mas temos que trabalhar para vivenciar essas possibilidades e foi isso que sempre busquei
fazer em minha vida. Pude ter plena convicção: – somente poderia alcançar meus objetivos,
com muito trabalho, dedicação e a certeza de que perseverando é que se consegue o que se
quer.
Quero citar também que foi a partir das experiências vivenciadas com essas pessoas de
origem simples que aprendi a valorizar com amor meus semelhantes, independente de cor,
raça ou credo religioso. Como também posso dizer que este contato físico e ambiental, me
impulsionou na opção de curso que fiz: Engenharia Florestal.
Mesmo não tendo freqüentado nenhum curso de pré-vestibular, fui aprovada no primeiro vestibular que prestei na Universidade Federal do Acre – UFAC. A partir de então, as
dificuldades me foram batendo à porta. Em primeiro lugar, porque ainda residia em minha
cidade de origem, e haveria necessidade de morar na capital. Em contrapartida, foi cedida
por minha tia uma casa para eu morar, facilitando assim minha trajetória universitária.
A princípio surgiram dificuldades de adaptação tanto no meio acadêmico, como no
social. Todavia, com o passar dos dias, fui vencendo as barreiras e acabei me adaptando.
Não poderia deixar de mencionar as questões que tive de enfrentar no lado econômico, uma
vez que meu curso se daria em horário integral, quando eu já não tinha nenhum rendimento
mensal e dependia apenas dos meus pais para me manter.
Somente quando fui selecionada como bolsista do Programa Conexões de Saberes , é
que me foi retirada parte das preocupações financeiras que me afligiam, pois a partir de
então não dependia unicamente dos meus pais.
Vale enfatizar que este Programa tem colaborado na integração e permanência dos
acadêmicos oriundos de classe popular nas Universidades Públicas.
90
Caminhadas de universitários de origem popular
Meus passos pela vida
Machael Bezerra de Lima*
Nasci no município de Manoel Urbano no estado do Acre, mais precisamente em um
seringal1, onde ainda hoje residem meus pais. Minha infância nesse lugar foi curta, pois
logo fui mandado para casa de minha avó na capital (Rio Branco) com o objetivo de estudar
e ter uma formação para tentar dar uma condição melhor para meus familiares.
Fiquei até os cinco anos morando com meus pais. Morávamos todos em uma casa
simples às margens do rio Purus. Tenho dois irmãos e sou o mais velho da turma. Meu pai
trabalhava com extração de madeira2, e logo montou uma serraria. Foi esta serraria que
financiou tudo o que temos hoje. Infelizmente, o negócio faliu. Meu pai passou a trabalhar
somente com a criação de gado bovino, transformando o seringal em uma pequena fazenda,
onde permanece até hoje nesta atividade, de madeireiro “virou” produtor rural.
Quando cheguei a Rio Branco, minha tia, que era professora, logo me matriculou
numa escola de ensino fundamental. Esta tia sempre me ajudou, assim como minha avó e
outros tios meus. Mas ela em especial foi quem me alfabetizou e sempre incentivou meus
estudos, dando-me tanto apoio financeiro quanto moral.
O período na escola foi tranqüilo. Por ser sobrinho da professora, pois estudava na
mesma escola onde minha tia dava aula, acabava sendo meio privilegiado. Era muito
querido pelos outros professores. Mas também vinha junto à obrigação de ser o melhor
aluno, sempre o mais comportado e o que alcançava as notas mais altas da turma. Essa era
minha responsabilidade, tinha que ser exemplo, afinal era considerado praticamente o
“filho” da professora.
Passei por quatro escolas em minha vida. Cheguei a estudar até mesmo no município onde nasci. Foi uma experiência interessante para mim. Aos 15 anos experimentei
morar sozinho, pois na fazenda onde moram meus pais não tinha a 8ª série do ensino
fundamental. Logo tive que assumir esta responsabilidade, confesso que não gostei, não
pelo fato de ter que cuidar da casa e de mim, mas porque ficava muito sozinho. Tive
poucos amigos, a maioria dos garotos não gostava muito de pessoas que vinham da
capital. Creio que tinham um pouco de inveja e ciúmes.
Todo ano, nas minhas férias de fim de ano, viajava para fazenda. Nessas viagens,
sempre fui de avião ou de barco, desde cedo tive que me acostumar com as aventuras dessas
viagens. Voar pela Amazônia é um pouco complicado por causa da instabilidade do tempo
*
1
2
Graduando de Economia da UFAC.
Localidade rural, onde se explora a atividade de extração do látex.
Atividade que consiste na retirada de madeira de Lei da floresta nativa.
Universidade Federal do Acre
91
(chove muito no inverno amazônico), além disso, a pista de pouso não era pavimentada o
que dificultava os pousos e a decolagem. Repetidas vezes, nos perdemos pela imensidão
verde, o que preocupava muito pela questão do combustível.
Quando a viagem era feita por barcos, também era uma aventura. Tinhamos que passar
três dias subindo o rio até chegar ao município. O que era sofrível, pois não tinha nenhum
conforto, pelo contrário, passamos por vários perigos de alagamento do barco.
Sempre que ia passar as férias com meus pais, vinha na minha mente o objetivo de
estudar e conseguir um “lugar ao Sol”. Meu pai queria que eu me formasse e passasse a
administrar o patrimônio que ele com muito trabalho construiu.
Com isso eu me sentia sempre motivado para concluir meus estudos. Admiro muito
como meu pai, que sabe ler e escrever somente o necessário, conseguiu ascensão social e de
certa maneira deixar seus filhos com alguma coisa na vida.
Depois de ter estudado um ano em Manoel Urbano (nosso município de origem)
voltei à capital e dei seqüência a meus estudos. Começava agora a me preocupar com minha
carreira. Pensava no vestibular, no emprego e até em tocar a fazenda da nossa família, o que
acabou ocorrendo por certo período que mais adiante relatarei. Tinha muitas dúvidas quanto a que curso fazer, meu pai não ligava qual fosse a graduação, só queria que eu entrasse na
faculdade e me tornasse “doutor” em alguma coisa.
Com este objetivo em mente, comecei a me empenhar mais nos estudos, só que nunca
tive muita disciplina no sentido de sentar todos os dias e estudar pelo menos uma hora. O
que evidentemente eu não conseguia, mas o pouco que estudava procurava entender bem a
matéria, pelo menos não perdia o pouco de tempo que passava estudando.
Logo no primeiro vestibular, no ano de 2002, tentei passar para o curso de Engenharia
Florestal, pois tinha tudo a ver com a minha realidade. Fiquei muito ansioso pelo resultado,
pois achava que conseguiria, mas não passei. Neste momento, tive que ir para a fazenda
ajudar meu pai, até chegar o próximo vestibular.
No início, fiquei empolgado, mas logo depois comecei a ver as dificuldades de tentar
administrar um negócio sem muito capital. Faltava uma mudança na forma de ver àquela fazenda, em passar a usá-la como uma empresa que precisava gerar lucros. O grande problema foi ser
barrado pelo meu pai, ele não acreditou muito que podíamos inovar e crescer, só reclamava
que faltava dinheiro, mas nada fazia para solucionar isso, tipo incrementar uma nova atividade, além da criação de gado. Neste momento, vi que minha vontade não seria realizada.
O ano passou e lá vamos para outro vestibular, este no ano de 2003. Desta vez não
tinha ânimo algum, tanto que escolhi um curso aleatório, ou seja, cheguei para inscrição e
marquei a opção de curso que veio na minha cabeça na hora. No caso Jornalismo/Comunicação Social, algo que não tinha nada a ver comigo. Ainda bem que nem sequer passei, para
não ter a decepção de estar em um curso que não me agradaria.
Em todas estas tentativas, sempre coincidiu de eu estar no meu município, o que me
obrigava a ter que viajar de barco. Sempre aproveitava a viagem, que era de 24 horas, para
estudar, admirando a paisagem que o rio e seus meandros proporcionam.
Na última vez que tentei o vestibular, decidi que se não conseguisse passar daquela
vez, não iria prestar o vestibular enquanto não conseguisse trabalhar e ganhar um dinheiro
para poder pagar um curso preparatório do melhor que tivesse na cidade.
Só que isso não aconteceu, pois no ano de 2005, ao tentar novamente, e desta vez me
escrevi no curso de Geografia-Licenciatura da Universidade Federal do Acre, consegui
92
Caminhadas de universitários de origem popular
passar na vigésima quarta colocação. Fiz a prova “no talento” sem ter estudado muito, até
hoje digo que foi Deus quem me passou, pois não sei como fiz aquela prova.
O esforço de ter que ficar em um lugar, no caso na fazenda, onde não tem acesso aos
benefícios da cidade e ter que viajar horas até chegar à capital para fazer a prova, foi
recompensado com minha aprovação.
Agradeço a todos da minha família que de certa maneira foram responsáveis por esta
vitória, pois sem eles não teria conseguido sequer concluir o ensino básico. Fiquei muito
feliz, era o que precisava, naquele momento, para reerguer meu ânimo pelos estudos. Sem
contar que o curso de Geografia me agradava muito e que pretendia ser um dos melhores
nesta área.
Entrei na faculdade sem saber muito como funcionavam as coisas, acho que assim
como a maioria dos calouros3. No começo, achei difícil, pois o ritmo dos estudos me assustou um pouco. Não estava acostumado com tantas coisas novas ao mesmo tempo.
Logo pensei em como me manter, não imaginava que se gasta tanto numa faculdade.
Tentei conseguir uma bolsa, mas descobri que para conseguir bolsa precisava estar em
algum grupo de estudo (pesquisa, iniciação científica, PIBIC etc..), não tive sorte. Vi que
só conseguiam estas bolsas quem “puxava o saco” dos professores que tinham influência
para conseguir.
Foi quando surgiu o programa Conexões de Saberes, no qual me escrevi e consegui a
bolsa. Este programa veio ao encontro da realidade dos estudantes de origem popular, além
do recebimento de auxílios, temos a oportunidade de participar de projetos de pesquisa e de
extensão que servirá para promover ações afirmativas de acesso e permanência a estudantes
de origem popular.
Só que Geografia ainda não era o curso que eu gostaria de fazer, sempre tive vontade
de algo como: Administração, Contabilidade ou Economia. Foi quando, neste ano, surgiu
uma vaga remanescente no curso de Economia, requisitei minha transferência. No momento
em que estava escrevendo esta autobiografia, recebi o resultado: foi deferido meu pedido,
fiquei muito contente. Só não gostei porque vou ter que me afastar um pouco mais dos
amigos que fiz no curso de Geografia.
Pretendo me formar e conseguir logo minha independência financeira, pois como
sempre “morei de favor”, isto é fundamental para mim no momento. Uma coisa eu sei, nunca
devemos desistir de nossos sonhos, eu não me imaginava fazendo um curso na faculdade,
ainda mais Economia, que é um curso difícil de passar no vestibular. Contudo, creio que aos
poucos estou conquistando a minha permanência da faculdade. Com certeza esse é o caminho para alcançar o meu objetivo: um futuro melhor para minha família.
3
Estudantes que entram pela primeira vez na universidade ou alunos do primeiro período/ano.
Universidade Federal do Acre
93
Os primeiros passos...
Nívia Almeida Sampaio *
Lembrar da minha infância na escola é lembrar às dezesseis horas da tarde, eu e meus
colegas deitados no chão limpo e frio com cheiro de pinho em uma creche que freqüentávamos. É, sobretudo, resgatar em minha lembrança as regras da qual desde os quatro anos
tenho que obedecer para integrar-me às instituições de ensino.
Minha trajetória escolar começou aos quatro anos, quando tive que ir para uma creche,
próxima a minha casa, para minha mãe poder ir trabalhar. Inicialmente, foi um momento
difícil, pois tive que me acostumar a ficar o dia inteiro longe da minha mãe e da minha avó,
principalmente, porque tive que aprender a conviver com os diferentes tipos de pessoas.
A creche na qual tive que me adaptar foi o local em que as minhas primeiras interrogações a respeito do mundo e da vida foram sendo feitas. Perguntava-me, constantemente,
porque tínhamos que logo ao chegar, de manhã, entrar naquela sala que parecia um auditório e ouvir aquela voz citando trechos da Bíblia, para logo em seguida, começar as orações.
Era assim que iniciava mais um dia de creche, através de orações e meditações. Depois, éramos levados para as salas onde podíamos brincar um pouco, mas na verdade, o que
fazíamos era estudar as primeiras palavrinhas iniciais, essenciais para quem quer ir para a
alfabetização e não perder tempo. Era o dia inteiro. As manhãs eram dedicadas ao ensino e,
à tarde, ouvíamos a professora contar historinhas e caíamos no sono, já que, cada um possuía um lugar para dormir. Até hoje não sei o porquê de ficarmos deitados no chão, às vezes,
acho que era uma tática da professora para ficarmos tranqüilos antes de irmos para casa.
Aos cinco anos e meio, tive que sair da creche devido à idade limite, minha mãe me
matriculou logo em seguida em uma escola de ensino fundamental, na qual passei um bom
tempo da minha vida. Lá, mais do que nunca, tive que me “rebolar” para continuar, pois a
escola é o primeiro lugar em que a nossa vida social começa à pleno vapor. Por eu não ter
completado os seis anos obrigatório para ingressar na alfabetização, tive que freqüentar,
por algum tempo, o pré-escolar, o que para mim era muito chato, pois já sabia ler e escrever
algumas palavras e no pré-escolar eram feitas brincadeiras e pinturas e eu achava aquilo
chato. Entretanto, a “tortura” do pré-escolar passou e, no ano seguinte, ao completar os seis
anos de idade eu pude ir para a alfabetização e tirar algumas dúvidas que iam surgindo.
De repente, quando me lembrei desse momento, percebi que ainda existem coisas que
permanecem até hoje. Fico angustiada por perceber que o tempo passou e essa situação não
mudou. Falo em relação aos preconceitos que enfrentamos na escola por simplesmente não
*
Graduanda de História da UFAC e bolsista no projeto Conexões de Saberes.
94
Caminhadas de universitários de origem popular
pertencermos a um determinado grupo, ou mesmo por pensar diferente. É na escola que nos
deparamos com essa divisão de grupos de forma concreta e percebemos que no mundo
diversas pessoas existem e aprendemos o que devemos amar ou odiar.
As lembranças claras que eu tenho é a partir da primeira série do ensino fundamental.
Por incrível que pareça eu gostava de estudar, brincava pouco, e, geralmente, nos momentos de folga, aproveitava para dormir, o que gosto de fazer até hoje. Estudava de manhã,
e à tarde ficava com a minha segunda mãe (minha avó paterna) que soube ser exatamente
o que o meu pai não soube ser naquele momento. Nessa época, morávamos no Bairro do
Bosque em uma casa de aluguel. O sonho da casa própria só veio ser realizado em 1990,
quando a minha mãe foi sorteada em um conjunto habitacional. Era como dar continuação a minha história só que em outro lugar, fiz novas amizades e logo me acostumei com
o novo habitat. Ah! Sabem o que eu adorei nesse momento? O fato de ter que pegar ônibus
para ir à escola, o que para mim significou certa independência, pois ainda nem tinha
nove anos e já pensava em autonomia.
Minha mãe ficava muito satisfeita com o meu desempenho escolar, aliás, não só ela
como também toda a minha família paterna. Todos me perguntavam as notas obtidas na
escola e geralmente era 10, se tirasse, por exemplo, 8,5, isso era motivo suficiente para eu
ficar, por alguns dias, muito triste. Pensando bem, só lembro-me dessa nota da quinta série
em diante, mudei de turno, passei a estudar à tarde, pois de manhã funcionava do préescolar até a quarta série.
Estudar à tarde era uma transformação que acontecia com muitas meninas, era o
momento das primeiras paqueras, fase complicada confesso, pois foi na adolescência que
todos os meus questionamentos a respeito do mundo e da vida ganharam outros sentidos,
e por incrível que pareça a adolescência mais tarde seria o tema de redação escolhido para
passar no vestibular. Minha mãe estava grávida da minha irmã Wanessa e qualquer coisa
era motivo de choro, desculpa para um abraço ou um consolo. Espinhas estourando em
todo o rosto, primeira menstruação, aulas de História, professor de matemática maluco
pois qualquer coisa era motivo para ir à diretoria.
Mas o que mais gostava naquele momento era o fato de não ter que ficar de manhã
cedo em filas para cantar o Hino Nacional, pois, minha escola, em meados da década de
80, ainda mantinha resquícios da Ditadura Militar com um general (diretor da escola) que
averiguava de fila em fila como estava a “ordem e o progresso”.
Aos doze anos, estava na sexta série, sentia um sono terrível, pois estava com problemas na glândula da tireóide e isso me deixava sonolenta. Entretanto, quando estava
disposta, geralmente no final da aula, ia para a pracinha do momento que tinha o nome em
homenagem a um guerrilheiro chamado José Plácido de Castro, esta praça fica no centro
da cidade. A vontade de ir para a praça era tanta que mesmo quando não tínhamos dinheiro para pagar o ônibus, eu e as minhas duas melhores amigas íamos a pé. Foi nesse
momento que a escola tornou-se um empecilho para mim, perguntava-me constantemente
se todo o meu valor estava relacionado com a escola e se, de repente, eu não estivesse em
condição de freqüentá-la todos os dias, seria motivo suficiente para ficar reprovada?
Foi exatamente o que aconteceu, fiquei reprovada na sexta série por motivos de
faltas, o que deixou minha mãe inconformada (para ela era um fato impossível). Como
forma de punição me transferiu para outro colégio, o que só provou a minha impotência
e dependência total em relação a ela, a autonomia só existia na minha imaginação.
Universidade Federal do Acre
95
Fui obrigada a estudar no colégio escolhido por ela como se fosse ela que tivesse
que dividir as tardes com pessoas de hábitos bem diferentes ao que eu estava acostumada.
Se eu contar o tempo que levei para me acostumar com o novo colégio, posso dizer que
foi um ano, e só fui gostar mesmo quando a minha melhor amiga transferiu-se para lá. Na
época, não entendi muito bem, mas hoje eu sei o que minha mãe esperava da mudança
brusca de colégio, ele tinha a fama do tradicionalismo, com o uso obrigatório da farda,
que no lugar da calça comprida era saia, e todo o cuidado era pouco. O colégio era do tipo
“Vigiar e Punir” do Michael Foucault, um estudioso do século XIX. As punições eram
geralmente as fofocas que circulavam pela escola, não havia segredo e tudo era motivo de
blá-blá-blá entre os colegas.
Por expressar o meu ponto de vista, fui tachada como a “maluca” da escola. Quando
não concordava com algumas coisas impostas, falava, mesmo sabendo que sofreria diversos
tipos de repressões. E sofria mesmo, o suficiente para ser motivo de apontamentos no
outro dia. A escola é um dos lugares na qual enfrentamos os mais diversos conflitos
sociais, problemas raciais e divisões de classes mesmo pertencendo ao mesmo grupo
escolar. Acredito ser o que acontece freqüentemente, e é, um dos motivos pelo qual ocorrem as evasões escolares, porque pensando bem, não é fácil se impor, e o risco de ser
vigiado e punido é constante. Porém, não foi o suficiente para que eu desanimasse e não
seguisse em frente.
A saudade que eu sentia do outro colégio ainda era forte, sempre sonhava que estava
voltando para concluir o meu ensino e quando acordava sentia mais vontade de voltar para
viver a minha trajetória escolar lá. Passei três anos lá na escola Lindaura Martins Leitão, que
hoje não existe mais devido a diversos acontecimentos. Na 8ª série, fiquei reprovada novamente, o distúrbio na tiróide me dava muito sono e, às vezes, dormia em sala de aula.
Estudar para mim tornou um sacrifício insuportável. Eu tinha um professor que não entendeu
esse momento difícil, e por esquecer um simples sinal de matemática em uma prova final,
errei toda a questão e por meio ponto fiquei reprovada. Na época, não achei muito ruim,
pois minha mãe novamente me transferiu para outra escola e adivinha para onde ela me
transferiu? Para a escola que sonhava em voltar, sem contar que o turno agora era de noite,
fazer amizades foi muito fácil, alguns colegas ainda estavam lá, e o meu companheiro
constante era o meu primo mais velho o Glauco, que para mim é considerado um irmão, era
ele que ouvia as minhas confidências amorosas, logo me senti em casa. Por algum tempo, eu
tive o maior prazer em freqüentar as aulas. Apesar de ser um colégio público, um dos
melhores professores de Língua Portuguesa da cidade estava lá, suas aulas eram tão bem
aproveitadas que contribuiu bastante para eu passar no vestibular.
Durante os quatro anos em que estive na escola Neutel Maia, ou seja, da oitava série
até o terceiro ano do ensino médio, foram os melhores momentos, após toda aquela trajetória
na escola. Consegui terminar aos dezenove anos de idade, mas não tinha a menor condição
de enfrentar o vestibular, estava saindo de um casamento “relâmpago” e a minha cabeça
estava muito confusa em relação a isso, motivo pelo qual adiei pelo menos uma tentativa.
E, nesse intervalo, levei três anos sem tentar fazer vestibular, além do mais, o curso que me
interessava era no período da tarde (curso de Letras) e não me via estudando novamente
nesse horário, pois como vocês já sabem era a hora improdutiva do meu dia, com sonos
horríveis, em função da disfunção hormonal. O interessante é que os indianos acreditam ser
o melhor horário para estudar, pois o cérebro absorve melhor os conhecimentos. Esse
96
Caminhadas de universitários de origem popular
problema só pôde ser solucionado através de uma cirurgia com direito a cicatriz e afastamento por quinze dias da vida acadêmica.
Vestibular 2004
Entre os diversos acontecimentos da minha vida, sem dúvida, o que guardo lembranças fortes foram os que ocorreram no final do ano de 2003 seguindo para 2004, e não só as
lembranças, mas, sobretudo as mudanças que ocorreram em tão pouco tempo e que foram
capazes de mudar a minha vida. Diversas coisas mudaram, meu círculo de amizades, os
lugares freqüentados, minha forma de ver o mundo mudou e me tornei mais crítica, o que
mais tarde resultou na escolha do meu curso.
Conheci um sujeito de pensamento radical, mais velho que eu vinte e quatro anos,
com ele aprendi muito. Bruno (era assim que se chamava o tal sujeito) trazia em sua bagagem a cultura de uma cidade grande (Rio de Janeiro). Ele conseguiu, sem perceber, fazer
renascer em mim a vontade de aprender. Conversávamos muito e apesar de ser um intelectual, nascido em um bairro de classe média do Rio, e oriundo de uma família rica, eu
conseguia acompanhar o ritmo de sua conversa. Ele me dava incentivo para continuar a
estudar, sempre falava que seria muito bom se, de repente, eu tentasse o vestibular, o que
acabou acontecendo. Em um dos nossos rompimentos, por motivo de orgulho ferido
decidi estudar novamente. Na cidade grande o ritmo de conhecimento é intenso, se eu
não me engano o Bruno possuía três faculdades e eu com meu simples antigo segundo
grau não era o suficiente para compor o círculo de amizade dele, na qual percebi que se
davam muito valor ao grau de estudos do indivíduo, o que na minha opinião é só mais
uma das bobagens humanas...
Entretanto, faltavam dois meses para as provas, e eu ainda nem sabia que curso escolher.
Comecei a pensar o que eu gostaria de fazer e acabei descobrindo que gostaria de estudar
História, o passado da humanidade refletia algumas coisas que ainda acontecem até hoje e,
isso foi um dos motivos que fez com que eu descobrisse a minha vocação para ser historiadora. Hoje, apesar das dificuldades que enfrento, acredito ser a melhor decisão já tomada em
minha vida. A cada dia que passa, tenho certeza de que nasci para ser historiadora e se não
tiver outra forma de trabalho, vou dar aulas de História, principalmente se for na zona rural,
pois somente agora que estou perto de terminar o curso, estou me acostumando com a idéia
de ser professora.
O meu curso é de Licenciatura e Bacharelado, mas às vezes, acho que vou ter que fazer
Biologia para fazer o Mestrado em Ecologia, quero trabalhar as ações humanas no meio
ambiente, juntando História e Biologia. Quero ver o que vai dar!
Agora eu tenho consciência de que para passar no curso de Biologia vou ter que
fazer um pré-vestibular intensivo, o que eu não pude fazer para História. Estava sem
dinheiro para pagar um cursinho e como já foi dito, havia três anos que não freqüentava
nenhum tipo de ensino escolar. Enfrentei o vestibular na sorte, e o que me ajudou a ser
aprovada foi a facilidade que eu possuía em Língua Portuguesa mediante aquele professor, o pouco tempo que tive (menos de dois meses) foram dedicados para estudar a disciplina História e as outras disciplinas acertei no “chute”, o que não recomendo a ninguém.
Isso me faz acreditar em predestinação. Brincadeira! Na primeira etapa, fiquei na classificação o que significou uma maior tensão, agora a expectativa era maior, era tudo ou nada,
momento difícil aquele.
Universidade Federal do Acre
97
Há muito não sinto aquela maravilhosa sensação que senti no dia em que saiu o
resultado. Foi uma sensação tão gostosa que gostaria muito que outras pessoas passassem
por essa experiência, principalmente, pessoas de origem popular. Aliás, o que eu mais gosto
do Programa Conexões de Saberes é exatamente o objetivo de trazer as pessoas desprovidas
e sem muito, ou nenhum poder aquisitivo, para a Universidade, uma vez que, são pessoas
que também fazem parte da sociedade capitalista e o ensino é um direito de todos.
Uma das dificuldades enfrentadas nos primeiros períodos foi a falta de emprego. Trabalho desde os dezesseis anos, mas, por meu curso ser no turno da manhã, ficava difícil
trabalhar, e mais uma vez a minha mãe segurou a “barra”. Recebi ajuda nesse momento de
uma pessoa, na qual, amo muito, a minha tia Níures que me deu e vem dando a maior força
para eu continuar. Confesso que por algum tempo, quase desisti da Universidade, se não
fossem as boas ações de pessoas maravilhosas como essas citadas eu não estava aqui
relembrando a minha trajetória na escola. No terceiro período, as coisas foram melhorando,
consegui uma bolsa com um professor, o qual sou muito grata e isso me incentivou a
continuar a faculdade.
Conexões de Saberes...
Sou suspeita para falar do programa, pois estou muito satisfeita por fazer parte do
grupo de bolsistas, e como já foi dito a política de trazer alunos de origem popular foi uma
das melhores idéias encontradas para que isso venha ocorrer de fato. É preciso antes de
levantar qualquer hipótese descobrir as verdadeiras causas do afastamento dos alunos, e o
motivo pelo qual não estão cursando a universidade, pois, em geral, são essas pessoas que
mais contribuem na reprodução do sistema, embora de forma leiga, acho até que isso é um
dos fatores que contribuem para a continuação, ou seja, a pouca informação da forma como
está organizada a sociedade na qual vivemos.
Hoje, estou no sexto período me perguntando que tipo de evolução a humanidade
atingiu, construindo armas para guerras e derrubando florestas inteiras, devorando tudo o
que encontra como um predador insaciável. Chego à conclusão de que antigo e moderno é
só mais um conceito inventado pelo ser social, pois em plena era Feudal, o servo tinha pelo
menos uma terra para plantar, o que hoje não acontece.
Vejo o ensino como uma reprodução de Platão, que soube como ninguém dividir a
sociedade em “letrados” e “não letrados” mudando para sempre o pensamento ocidental
por meio do seu racionalismo. A verdadeira educação, eu tive em casa com uma professora
nota dez, chamada Luzia (minha mãe), essa sim, soube me transmitir os verdadeiros valores
que necessitamos para a vida em sociedade. Estudar História, é perceber o regresso constante que o homem se submete em função das suas criações, é antes de qualquer coisa, querer
entender o real motivo da vinda de outros povos de continentes distantes, em nome do
comércio, é não aceitar de forma passiva o que está imposto desde os primórdios e acreditar
que um dia isso vai mudar apesar do pessimismo que a história em mim provoca.
Apesar das dificuldades que enfrento, quero seguir em frente, é uma pena não ter mais
tempo para estudar, pois, em geral, até hoje, as provas que eu faço são feitas da mesma forma
que eu fiz o vestibular, acabo tirando 8,5 por me aventurar a fazer as provas sem estudar.
Prometi para mim mesma, no período que vem estudar mais e me disciplinar. Ainda gosto de
deitar no chão e “viajar” em meus pensamentos... e o cheiro de pinho me faz sentir a
sensação de aconchego.
98
Caminhadas de universitários de origem popular
Persistência sempre
Perla Maria Martins Campos*
Descer é fácil. Não precisa esforço e nem
depende de energia. É simplesmente soltarse, deixar-se levar. Subir custa. É difícil. É
preciso persistência e coragem.
autor desconhecido
O início
Começo minha história de vida falando de duas pessoas muito especiais, minha mãe
e meu pai. Meu pai é alto, moreno e um pouco calvo. Homem de muita responsabilidade,
com seus onze anos de idade já cortava seringa para ajudar seu pai no sustento da casa,
sempre batalhando muito, mas nunca conseguiu nada. Segundo ele, no seringal em que
morava não havia muitas oportunidades para estudar, e ele queria mesmo era trabalhar,
ganhar dinheiro. Meu avô era nordestino, daqueles que vieram para o Acre na ilusão de
enriquecer facilmente. Mas quando chegou ao Acre a realidade foi outra. Trabalhava muito
e ainda ficava devendo para o patrão.
Com o passar dos anos, os filhos foram crescendo. As moças casando, os rapazes
também, mas meu pai sempre quis está ao lado dos meus avós. Porém um dia, surgiu à
oportunidade de meu pai ingressar no exército, era tudo que ele queria, mas na hora “H”
desistiu, preferiu ficar com seus pais, continuar cortando seringa. Meu pai sofreu muito,
passou muitos apuros cortando seringa no meio da floresta sozinho, saía para a mata de
madrugada e chegava à noite.
Até que um dia conheceu minha mãe, que é sua prima em 2º grau. Ela morava próximo
ao seringal que meu pai morava. Eles começaram a namorar e logo se casaram. Aí, sim, meu
pai foi viver sua própria vida. Meu pai de família humilde, minha mãe também, o jeito que
tiveram foi começar do zero, tendo como uma única alternativa cortar seringa para o dono
do seringal e com isso garantir comida e comprar algumas roupas. Mas aí começaram a
chegar os filhos. Minha mãe que é uma mulher guerreira teve seis filhos. Quatro homens e
duas mulheres, mas uma morreu. Segundo meus pais, até quando eu tinha três anos de idade
morávamos no seringal.
Eu nasci no seringal Agrião Norte, engraçado, mas lembro vagamente que perto da
casa havia um riacho, com muitas árvores ao redor, lembro que meu irmão mais velho me
colocava dentro de uma bacia e eu saía descendo rio abaixo.
*
Graduanda de Educação Física Licenciatura da UFAC.
Universidade Federal do Acre
99
Um novo mundo
Quando eu tinha três anos de idade fomos morar na cidade de Feijó, meu pai cansou de
trabalhar praticamente para ganhar a comida. Chegando a Feijó, meu tio, irmão da minha
mãe, tinha uma serraria e ofereceu trabalho para o meu pai. Minha mãe, conseguiu umas
lavagens de roupa. Que situação! Morávamos numa casa alugada. Lembro-me muito bem
como era a casa, mas não gosto de lembrar, pois lá passei muito medo. Perto dessa casa,
morava um senhor chamado Catarino. Ele morava sozinho. Sua casa era muito estranha e
ele andava tremendo. Tenho um irmão que é mais velho do que eu, e adora implicar comigo.
Como meu irmão sabia que eu morria de medo do Catarino ele anunciava de longe: “Lá
vem o Catarino”, eu começava a tremer, corria para um lado, corria para o outro e mais,
segurava meu irmãozinho que era um bebê e me escondia debaixo da cama. Minha mãe
brigava com meu irmão para ele não fazer aquilo, pois me fazia mal.
Com o passar do tempo meu tio faliu e meu pai ficou desempregado. A situação ficou
muito difícil. Minha tia, irmã do meu pai nos deu uma grande ajuda e incentivou meu pai a
vir morar em Rio Branco, capital do Estado, onde teríamos mais oportunidades de melhorar
de vida. Então, meu pai e minha mãe decidiram vir morar em Rio Branco. Meu pai ficou
vendendo o pouco que tínhamos, como porco, galinha etc... e minha mãe, eu e todos os
meus irmãos, partimos para a capital. Não compramos passagens, foi um amigo da família
que conseguiu passagens para todos nós, quer dizer meu irmão veio como carga, eu no colo
da afilhada da minha mãe e o meu irmão no colo da minha mãe. Pois é, ainda trouxemos
mais a afilhada da minha mãe que queria morar em Rio Branco.
Essa mudança aconteceu em 1985, eu tinha cinco anos de idade, lembro até que no
avião tocava uma música: “Seu delegado pega o Tadeu, ele pegou minha irmã e craw”. Graças
a Deus correu tudo bem na viagem. Enfim, chegamos a Rio Branco, pegamos um táxi e fomos
direto para a casa da comadre da minha mãe, dona Preta, uma mulher maravilhosa. Pena que já
morreu! Ela nos acolheu muito bem, o único problema eram seus filhos, que gostavam
muito de arengar e para variar minha mãe nunca nos dava razão. Moramos um mês na casa
da dona Preta, depois alugamos uma casinha, casinha mesmo. Havia muitas brechas nas
paredes e para completar o quintal parecia um mar. Minha mãe dizia que pelas brechas
passava um boi na carreira. E mais, em frente a nossa casa, acontecia um forró todos os
sábados. Quando tinha briga, como o terreno não era cercado, só faltavam derrubar a casa,
eu ficava com muito medo de bala perdida. Minha mãe sempre corajosa nos tranqüilizava.
Meu pai chegou de Feijó e fomos morar numa casa melhor. Ele conseguiu trabalho
numa serraria e minha mãe conseguiu trabalho numa lanchonete na galeria Meta. Coitada
da minha mãe! Trabalhava muito, pois a dona da lanchonete era muito exigente. Mas por
outro lado, minha mãe trazia cada coisa deliciosa que sobrava. Com o passar do tempo,
minha mãe não agüentou as chatices da dona da lanchonete e pediu as contas.
Novamente trocamos de casa, esta ficava na rua principal do Conjunto Habitacional
João Eduardo II. Minha mãe conseguiu um trabalho de doméstica na casa da nossa vizinha,
eram pessoas muito boas, tinham um comércio e lá pegávamos de tudo.
Tenho uma tia que se chama Margarida, irmã da minha mãe, ela junto com uma
senhora que veio da Alemanha administravam uma creche, Creche Moriá. Minha mãe colocou eu e todos os meus irmãos na creche, não gostava de estar lá, pois as tias eram muito
rígidas além de ter que comer toda a verdura que vinha no prato, tinha horário certo para
dormir. O que eu gostava na creche era tomar banho de piscina, mas isso era difícil.
100
Caminhadas de universitários de origem popular
Até que um dia conversei com meu pai e pedi para sair da creche. Meu pai me tirou
e tirou também meus irmãos, os três mais velhos foram ser mirins, era como se fosse um
militar mirim, eles tinham conseguido o seu primeiro emprego. Meu irmão mais velho
não gosta muito de estudar, então ele foi ajudar meu pai e, às vezes, trabalhava em obras.
Os outros dois, quando deixaram de ser mirins, foram ser engraxates. Eu e meu irmão
pequeno ficávamos em casa, pois como minha mãe trabalhava na casa da vizinha, sempre
que tinha um tempinho ia nos ver.
A escola
Enfim, chegou à hora de ir para a escola. Com sete anos de idade, comecei a 1ª série
na escola Marilda Gouveia Viana, escola simples, mas que eu adorei estudar lá. Fica bem
perto de casa. Com relação aos estudos sempre fui muito esforçada, gosto muito de estudar. Principalmente, porque vejo nos estudos uma maneira de conseguir um bom trabalho
para ajudar meus pais que tanto fizeram e fazem por mim, que vieram de tão longe para a
capital tentar dar um futuro melhor para os filhos. Apesar de minha mãe sempre trabalhar
fora e não ter tempo de acompanhar nossos estudos.
No meu primeiro dia de aula, meu irmão mais velho foi me deixar na escola, me
deixou apenas no portão e eu entrei cheia de insegurança, pelos cantos, fui ao pátio
onde as crianças se reuniam para fazer a fila e cantar o Hino Nacional para depois sair
para suas salas.
No final da aula, já tinha feito um monte de amizades e me sentia mais tranqüila.
Minha professora se chamava Selma, ela era bem baixinha, mas era muito legal, nos dava
muito carinho, mas também reclamava se alguém tivesse sujo ou com a unha grande.
Estudei nessa escola da 1ª a 4ª séries. A 3ª série foi a que eu mais gostei, principalmente,
porque a professora era muito legal, sempre reservava um tempo da aula para recreação,
seu nome era Ana Helena, era muito bonita, gostava muito da maneira como ela se expressava. Na hora do recreio gostava de pular elástico e conversar, lembro até que uma vez
machuquei o meu pé e fiquei dias com o pé inchado.
Com relação aos estudos sempre procurei fazer o melhor. Como meus irmãos não
deram muito valor aos estudos, chamei a responsabilidade para mim. Fico pensando no
esforço que meu pai fez para nos trazer para Rio Branco, a fim de nos dar um futuro
melhor, sou muito grata por isso. Uma coisa que me arrependo de ter feito é ter exigido
mais do que eles podiam me dar, eu não queria qualquer caderno, estojo ou caneta.
Muitas vezes sofri por não me conformar com minha situação financeira.
Na verdade, era uma menina muito mimada. Meu pai fazia tudo o que eu queria e na
hora que eu lhe pedia, dificilmente me negava alguma coisa. Uma situação que marcou
bastante foi quando eu estudava a 4ª série: um fotógrafo foi à escola para tirar fotos dos
alunos, só que era pago, o fotógrafo trazia um figurino muito legal, como uma beca e um
chapéu de formatura, ficava lindo, era uma lembrança escolar das primeiras séries. Eu fui
para casa e perguntei para minha mãe se eu podia tirar a foto, falei quanto custava e minha
mãe me explicou que, no momento, eu não podia fazer a foto porque ela não tinha dinheiro. Foi então que comecei a chorar, chorar... e dizer: “eu quero, todos os meus colegas vão
tirar a foto, eu não posso ficar de fora”. Enfim, fiz aquele drama, só sei que minha mãe
conseguiu o dinheiro e tirei a tão sonhada foto, que, aliás, guardo com muito carinho,
pois é a prova da minha persistência.
Universidade Federal do Acre
101
Depois tive que mudar de colégio, pois a escola só atendia as quatro primeiras séries
do ensino fundamental e eu já estava indo para a 5ª série. Lá estava eu indo mais uma vez
para uma escola que não conhecia ninguém, onde tudo era novo. A escola se chama Heloisa
Mourão Marques, tinha como diretor Cláudio Augusto, que mais parecia um General, na
escola não entrava sem uniforme e por pouquíssimas coisas os alunos iam para a diretoria.
Por exemplo, se a turma, quando o professor saía da sala, ficasse de gritaria, bagunça, a
próxima aula era cancelada e todos iam para o pátio rezar o “Pai Nosso”. Eu ficava com
muita raiva, por causa de alguns alunos bagunceiros e toda a turma era castigada. Se fôssemos questionar alguma coisa, a punição podia ser mais séria, por isso, os alunos, aparentemente, eram comportados.
Na 5ª série, os trabalhos de grupos eram mais freqüentes e isso nos dava a oportunidade de saber mais da vida dos colegas, das dificuldades e de seus objetivos. Nos trabalhos em
grupo eu era muito egoísta, autoritária, gostava sempre de liderar. Conheci uma menina
chamada Thaís, nos identificamos muito bem. Uma coisa engraçada, eu sempre fazia amizade com a menina mais chata da turma. Por que será?
Na 6ª série, já adolescente, eu era rebelde, mas não era sempre, na verdade falo o que
penso, só que quando era adolescente, confundia sinceridade com grosseria, magoei muitas
pessoas, porque achava que devia falar e pronto, agora não, mudei, pelo menos tento me
controlar e ouvir mais. O que percebo é que sempre me colocam para falar em nome de todos
e quem se “ferra” sou eu. Achava que aonde eu fosse tinha que ser o que eu queria e por isso
“apanhei” muito da vida. Percebi com amargas experiências que nem sempre tinha razão e
faltava humildade para conviver com as diferenças.
Na 7ª série, tinha um professor muito legal, que dava aula de matemática. A turma o
chamava de Pitágoras, pois falava muito sobre o teorema de Pitágoras. Ele explicava muito
bem, mas nem assim consegui gostar da matéria.
Estando na 8ª série, a minha expectativa era terminar logo o ensino fundamental
para fazer o ensino médio, pois geralmente os alunos dessas séries é que representavam a
escola em grêmios e outras coisas desse tipo. Foi um ano de muita expectativa, sempre
tive muita pressa, queria logo terminar os estudos para fazer o vestibular, começar a
trabalhar, enfim, retribuir aos meus pais tudo o que eles fizeram e fazem por mim. Mas a
realidade foi outra, pois a sociedade em que vivemos é autoritária demais nas decisões e
acaba excluindo aqueles que se encontram nos degraus debaixo, privilegiam alguns e
excluem a maioria.
Naquele momento, o que eu mais escutava era que a qualificação do aluno faria a
diferença no mercado de trabalho. A informática chegava com força e quem não tivesse o
curso, tudo ficava ainda mais difícil. Isso era a sensação do momento, mas era também mais
um problema já que eu não tinha condições para fazer cursos.
Primeiro ano do ensino médio. Agora, tudo o que se falava era de vestibular. Era a
preparação final, para a realização do meu sonho, já sabia o que ia fazer: enfermagem.
Planejava passar no vestibular da primeira vez que fizesse, porém pude perceber que a
seleção começa bem antes do vestibular. Até para nascer, o brasileiro passa por uma seleção
(basta olhar os altos índices de mortalidade infantil, provocada pela miséria).
Dessa forma, não será difícil compreender que o vestibular que seleciona os candidatos à universidade é apenas a ponta de um novelo que esconde uma sociedade erguida sobre
os alicerces da discriminação e dos privilégios.
102
Caminhadas de universitários de origem popular
Finalmente, no 3º ano, fui estudar no Colégio Acreano. Estava toda entusiasmada,
mas quando comecei a estudar foi um desastre! Eu achava o colégio esquisito, não conseguia fazer amizade com ninguém e as minhas notas eram péssimas. Mesmo assim, estudei lá
durante seis meses. À medida que eu percebi que ficaria reprovada, voltei rapidamente para
a escola que eu estudava antes, e tudo ficou melhor, pois, lá estavam minhas colegas e não
tinha dificuldade para fazer trabalho em grupo. Enfim, terminei o ensino médio e mais do
que nunca estava perto de alcançar meu grande objetivo: passar no vestibular na 1ª tentativa.
No mês de Dezembro, o grande acontecimento do ano para os estudantes do terceiro
ano do ensino médio continua sendo o vestibular. Essa rotina no calendário do jovem
brasileiro permite ver com mais clareza o problema educacional de nosso país.
Os dias foram contados, até que chegou o grande dia! Que alegria! Fui fazer a prova
com as melhores expectativas, pensava que iria passar. Mas o pior aconteceu: não passei
nem na primeira etapa. Fiquei totalmente decepcionada, com isso, a chance de ajudar minha
família ficava cada vez mais longe, pois sempre acreditei que a faculdade é uma forma de
melhorar de vida futuramente.
A tão sonhada Universidade
Mas com o passar dos meses a decepção deu lugar a uma vontade de estudar novamente.
Estudei e chegou o dia do meu segundo vestibular, dessa vez troquei o curso para Ciências
Biológicas e mais uma vez não passei. Prestei ainda o terceiro e o quarto vestibular para esse
curso e não consegui passar. Até que na quinta tentativa, mudei radicalmente de curso,
Educação Física Licenciatura, passei em 13º lugar. Eu já estava desesperada. Foram quatro
anos que eu perdi, não me conformo, já podia estar formada há muito tempo e cursando o
que eu queria.
Percebi que o vestibular é mais que um exame. Enquanto o aluno está no colégio, ele
pode ir mal numa prova já que o que conta é sua média final. Com o vestibular não. Quem
for mal sabe que só terá outra oportunidade um ano depois. E como se não bastasse, o teste
resume os conhecimentos adquiridos durante todos esses anos em apenas dois dias. Isto é,
os oito anos do ensino fundamental e mais três anos do ensino médio são aferidos num
domingo e numa segunda-feira. E qualquer indisposição do aluno, como uma dor de cabeça
pode afetar o desempenho do vestibulando, considero essa avaliação perversa, pois a agilidade muitas vezes pode contar mais que o conhecimento.
Falo tudo isso, porque sou uma aluna esforçada, estudiosa. Creio que o nível de
aprendizado de uma escola pública está aquém da particular, pois um estudante de escola
pública concorre com jovens que estudaram em escolas particulares. E os jovens de família
pobre, geralmente, têm que trabalhar o dia inteiro e estudar somente à noite, claro que assim
o aprendizado fica comprometido. Por isso, eu reafirmo que a seleção começa bem antes, sei
que todos nós somos capazes, mas sei também que as dificuldades são maiores para os
jovens de classe mais baixa.
Agora, com relação ao curso que faço de Educação Física, que não gostava no início,
já entreguei meu coração, aprendi muitas coisas novas.
Sou casada, tenho 25 anos, não tenho filhos e sou evangélica. Em outubro de 2005,
fiquei muito doente, no começo era broncopneumonia, mas depois virou tuberculose,
fiquei muito triste não queria “bater as botas”. Nesse momento, tive que parar de estudar. No
momento da doença, eu não entendi nada, mas depois do alívio eu compreendi que nada é
Universidade Federal do Acre
103
por acaso. Agora reclamo menos e valorizo cada minuto da minha vida. Mesmo doente não
deixei nada para trás, quando tinha uma melhora fazia todos os trabalhos pendentes. Gostaria de registrar a ajuda e o carinho de toda a turma, principalmente, da Jeígela, da Graciela
e Ana Paula. Tudo tem seu lado bom. Não desisto. Vou continuar lutando. Não vou desistir
mesmo sendo pequenas as possibilidades, vou lançar mão do que está ao meu alcance e não
vou perder a esperança de vencer, mesmo que em condições adversas vou enfrentar minhas
próprias limitações e ir à luta “creio que tudo posso naquele que me fortalece” ( Filipenses 4:13).
104
Caminhadas de universitários de origem popular
Minha história de vida
Sheyla Oliveira da Silva*
É preciso saber viver
Roberto Carlos e Erasmo Carlos
Nunca imaginei que falar da minha vida fosse tão difícil. Isso porque não está sendo
fácil ter que ficar recordando os acontecimentos que me marcaram. Existem algumas
coisas que gostaria de esquecer para sempre, que fossem apagadas da minha memória, já
outras, ao lembrar, causam uma enorme saudade. Tudo isso mexeu muito com o meu
emocional, com os meus sentimentos, e, neste momento, estou escrevendo este memorial
com um verdadeiro nó na garganta. Mas como ele precisa ser escrito, então, vamos lá!
Minha vida até hoje, pode-se dizer que é normal, tive uma infância e uma adolescência tranqüilas. Nunca tive que me preocupar com grandes problemas, com exceção de
uma única situação que comentarei posteriormente. Meus pais sempre procuraram fazer o
possível para que eu, minhas irmãs e meu irmão não nos envolvêssemos com o que eles
chamam de questões de adultos. Eles sempre buscaram resolver tudo para que nós nos
preocupássemos apenas com os estudos.
Por isso, não esperem encontrar aqui nada de tão fantástico, tão extraordinário, ou
então algo que vai causar muita impressão. Como já falei, tenho uma vida normal, comum. Passei por alegrias, tristezas, desilusões, tive momentos de indecisões e incertezas,
mas também, tive outros de plena certeza e convicção daquilo que fazia.
Perfil
Meu nome é Sheyla, tenho 21 anos, nasci e moro em Rio Branco, capital do estado
do Acre. Moro com meus pais, minhas duas irmãs, com 16 e 17 anos e meu irmão com
13. Como deu para perceber sou a filha mais velha. Minha mãe é professora primária,
mas atualmente está atuando como diretora de uma escola. Meu pai é motorista de
carreta. Estou cursando o 7º período do curso de História na UFAC (Universidade Federal
do Acre) e fui recentemente selecionada como bolsista do Programa Conexões de Saberes,
por isso é que estou escrevendo este memorial, que juntamente com o de outros bolsistas
do Conexões de Saberes da UFAC farão parte do livro Caminhadas, que será lançado
pelo Programa.
*
Graduanda de História da UFAC.
Universidade Federal do Acre
105
Genealogia
Meus avós maternos moraram durante muito tempo no seringal1, trabalhavam, no
interior da floresta, em extração do látex2 e em agricultura. Tiveram seis filhos – três
homens e três mulheres. Em meados da década de 70, decidiram tentar a vida um pouco
mais perto da cidade, pois os filhos já estavam em idade de estudar e as coisas no seringal
já não iam muito bem. Compraram umas terras um pouco afastadas da cidade, nós, aqui no
Acre, costumamos chamar de colônia3. Apesar de certa distância em relação à cidade, a
região dispunha de uma escola para as crianças estudarem.
As condições da escola eram precárias, não possuía nem mesmo nome, mas mesmo
assim as aulas eram ministradas. Minha avó me falou que eles não optaram por morar dentro
da cidade, porque ela e meu avô não sabiam fazer outra coisa a não ser trabalhar na floresta
e na agricultura, sendo assim, a vida na cidade tornava-se inviável para eles.
Dando um duro danado para criar os filhos, meus avós tentaram disponibilizar-lhes
tudo aquilo, que na medida do possível lhes era permitido. Minha mãe, meus tios e minhas
tias trabalhavam pela manhã na agricultura ou nos serviços domésticos e durante à tarde
iam para a escola.
As terras que meus avós maternos compraram estavam localizadas numa região
chamada Vila do Barro Vermelho. Foi lá onde comecei a estudar e permaneci por toda a
minha infância.
Meu pai
Em relação à família do meu pai, não tenho o que falar, pois ela mora praticamente
toda no Rio de Janeiro e nós nunca tivemos um relacionamento muito próximo, com
exceção da minha avó, pela qual tenho enorme afeto e carinho. Apesar de ela morar no
Rio, sempre nos falamos por telefone e algumas vezes ela vem nos visitar aqui no Acre.
Quero destacar, neste momento, que todas às vezes que mencionei e vou mencionar a
palavra pai, neste memorial, não estou me referindo a meu pai biológico – que nunca
conheci e nem quero conhecer. Mas sim, ao meu padrasto, que de fato nunca o considerei
como padrasto, pelo contrário, sempre o vi como um verdadeiro pai, pois foi ele quem
participou de parte da minha infância, da minha adolescência e agora está me vendo ficar
adulta. Foi ele quem, juntamente com minha mãe, superou todas as dificuldades para que eu
me tornasse o que sou hoje.
Meu pai é carioca, veio para o Acre em 1986, o pai dele comprou umas terras que
ficavam próximas das terras do pai da minha mãe. Foi aí que eles se conheceram, começaram a namorar e foram morar juntos. Nessa época, eu já tinha 3 anos de idade, meu pai não
se importou nem um pouco com o fato da minha mãe já ter uma filha, ele me deu todo amor
e carinho que um pai dá a um filho, e eu nunca senti diferença na forma de tratamento que
ele dá a mim e a meus outros irmãos, que são seus filhos biológicos.
1
2
3
Plantação de seringueiras, está localizado no interior da floresta e às margens de rios.
Líquido branco e leitoso que brota da seringueira (Hevea brasiliensis) quando nesta são feitos pequenos cortes.
Pequena propriedade rural, mas que está localizada relativamente próxima à cidade.
106
Caminhadas de universitários de origem popular
Minha infância
A respeito da minha infância, minhas próprias recordações são poucas. Através dos
relatos de meus pais e familiares mais próximos, vou tentar construir em meu imaginário
uma idéia de como eram as coisas durante os meus primeiros anos de vida. Pelo que eles
relataram deu para perceber que em minha infância tive tudo o que uma criança necessita
para crescer feliz, principalmente, muito amor e carinho.
Como foi possível perceber pelo que eu citei no tópico anterior, até os meus três anos de
idade não tive presente em minha vida uma figura paterna, mas minha mãe (que para mim
sempre foi meu maior exemplo de vida), juntamente com meus avós, meus tios e tias nunca
deixaram que eu sentisse a ausência de um pai. Por isso, desde criança sou muito apegada à
família de minha mãe. Hoje, meus tios e tias, têm suas casas, constituíram famílias, mas sempre
que posso e tenho tempo lá estou eu perturbando cada um deles. Ah...! Esse lance de perturbar
é só brincadeirinha, tenho absoluta certeza que nunca perturbei nenhum deles. Adoro estar na
presença de cada um e sei que eles também me adoram e me amam muito, muito, muito. Isso
vale para meus avós também, que são minha eterna paixão. Eles estão morando em Brasiléia4,
sempre que tenho oportunidade vou lá visitá-los.
Umas das coisas que lembro muito bem e que foi muito presente em minha infância foi
o forte contato que tive com a natureza durante essa fase, isso porque como tinha morado
três anos na casa dos meus avós e era muito apegada a eles, os visitava constantemente. O
lugar onde eles moravam era muito próximo da floresta, tinha a casa, o campo e o resto só
era mato, quando alguém da família ia pescar, buscar ou fazer qualquer outra coisa na
floresta, eu já queria ir também, pois gostava muito de estar em contato com a natureza.
Este meu contato com a natureza parecia ser um pouco contraditório. Pois eu adorava tomar banhos em igarapés, mesmo sem nunca ter aprendido a nadar, adorava andar na
mata, mas quando estava sozinha não botava os pés perto do caminho da floresta (não
boto até hoje), morria de medo de qualquer ruído estranho no mato, além de não suportar
aquelas horríveis picadas de mosquitos, por isso, quando ia para a mata me encapava da
cabeça aos pés.
Atualmente, continuo gostando muito de estar em contato com a floresta, me sinto
bem ao respirar o ar puro, mas não tem quem me faça entrar nela sozinha, pois ainda
continuo medrosa.
Eu desde pequena ajudei minha mãe a cuidar dos meus irmãos. Ainda cuido deles
até hoje, sempre que é necessário, dou-lhes um puxão de orelha que é para não fazerem
coisas erradas. Quando minha primeira irmã nasceu, no início do ano de 1989, eu tinha 4
anos de idade, em agosto do ano seguinte, nasceu minha outra irmã e, em 1992, quando
eu tinha 8 anos, nasceu meu irmão. A convivência com eles, desde a infância, foi sempre
muito boa, exceto essas briguinhas bestas que praticamente todos os irmãos têm.
Onde morei
Morei desde que nasci até os 11 anos de idade na Vila do Barro Vermelho – o lugar
onde meus avós foram morar quando saíram do seringal –, foi aí onde passei toda minha
infância e onde iniciei meus estudos. Quando minha mãe foi morar com meu pai, nós saímos
4
Cidade localizada no interior do estado do Acre, distante da capital cerca de 200 km
Universidade Federal do Acre
107
da casa dos meus avós e fomos morar em outra, mas que ficava bem próxima da casa deles.
Esta casa que fomos morar tinha sido emprestada para meus pais até que eles conseguissem
comprar uma própria.
Nessa época, final a década de 80, minha mãe já trabalhava como professora na mesma
escola que ela estudara pela primeira vez, há praticamente dez anos atrás. Meu pai trabalhava como peão de fazenda e estava começando a aprender a dirigir um caminhão velho, que
eu nem sei de quem era.
Meus pais deram um duro danado até que conseguiram comprar um terreno e construir
uma casa, ainda na Vila Barro Vermelho. A Vila Barro Vermelho mudara muito desde quando
meus avós chegaram para ali morar. Com o passar do tempo, a quantidade de moradores foi
aumentando, a movimentação, naquela área, passou há ser um pouco maior, e a escola, que
antes funcionava em condições precárias, ganhou melhorias. Contudo, algumas coisas permaneceram iguais, aquela área continuava sendo uma área rural, alguns moradores continuam
morando nos mesmos locais.
Até quando a minha família e eu morávamos lá, aquela região era um local bom de
morar, tranqüilo, calmo, onde todos eram amigos. Hoje, 10 anos depois, as coisas já não
são mais tão calmas por lá, pois é comum constantemente haver roubos, bebedeiras,
brigas e até mesmo assassinato, além de existir um intenso uso de drogas entre boa parte
da população jovem.
Marcou minha vida
Como já havia falado, permaneci morando no Barro Vermelho até os 11 anos, nós
tivemos que mudar de lá por um motivo que não gostaria de aqui explicitar. Esta foi à
situação que citei no início deste memorial como sendo o único problema que realmente
tive que me preocupar na vida. Esse fato aconteceu em junho de 1996. A partir daí mais
ninguém da minha família continuou morando no Barro Vermelho. Meus tios, meus avós,
meus pais, todos nós fomos morar em outros lugares. Esse acontecimento ficará presente,
não só na minha memória, mas na memória de toda a minha família. Não foi algo que
aconteceu diretamente comigo, mas marcou minha vida pelo sofrimento causado a todos
nós e pelo fato de me fazer deixar de ver o mundo com uma visão de criança e passar a
enxergar a realidade com a visão de adulto. E sobre esse assunto chega!
Onde moro atualmente
Quando saímos do Barro Vermelho, meus pais, meus irmãos e eu fomos morar no Universitário, um bairro que é próximo à Universidade Federal do Acre, por isso, o nome Conjunto
Universitário. Permanecemos morando, neste bairro, até hoje, e foi nas escolas localizadas
nele que estudei durante todo o Ensino Fundamental e Médio. É um local que particularmente considero muito bom de morar, tem ruas pavimentadas, abastecimento de água, rede de
esgoto, e apresenta baixo nível de violência, é apenas um pouco distante do centro da cidade.
Vida estudantil
Quando iniciei minha vida escolar não apresentei muitos problemas quanto ao fato de
adaptação. Isso porque, como minha mãe era professora eu muitas vezes ia para a escola
com ela, apesar de não ter idade suficiente para estudar. Quando comecei a estudar de fato
não estranhei o ambiente escolar.
108
Caminhadas de universitários de origem popular
Comecei a estudar com 5 anos de idade na escola Jorge Kalume, onde minha mãe
trabalhava, localizada na Vila Barro Vermelho. Estudei, nesta escola, até os 10 anos de
idade. Quando terminei a 4ª série tive que mudar de escola porque o ensino a partir da 5ª
série não era mais oferecido na escola Jorge Kalume. Com 5 e 6 anos de idade fui alfabetizada, e, detalhe, a professora durante esses dois anos foi minha mãe.
Os quatro primeiros anos do Ensino Fundamental (1ª, 2ª, 3ª e 4ª séries) foram maravilhosos, não apresentei nenhum tipo de dificuldade em relação à aprendizagem. Além do conhecimento que adquiri, constituí, principalmente, amizades verdadeiras e que mantenho até hoje.
Quando comecei a 5ª série, troquei de escola, fui estudar no José Sales de Araújo. No
início, foi um choque para mim. Pois apesar das minhas amigas estudarem na mesma escola,
tínhamos ficado em turmas diferentes. Isso foi um problema porque eu era muito tímida e
tinha uma enorme dificuldade para me relacionar com outras pessoas. Estava numa escola
estranha, numa turma com crianças estranhas, me senti um peixe fora d’água, sem saber o
que fazer. Somente depois de alguns meses foi que comecei a me adaptar, a fazer amizades,
na nova escola. Com as minhas amigas da 4ª série, só voltei a estudar na mesma turma que
elas a partir da 7ª série, depois ficamos estudando juntas até concluirmos o Ensino Médio.
Permaneci estudando, nesta escola, até concluir todo o Ensino Fundamental. Durante esse período, também não apresentei dificuldades para assimilar os conteúdos e
sempre tirei boas notas.
No ano de 2000, comecei a estudar na Escola Alcimar Nunes Leitão, estudei, nesta
escola, durante todo meu Ensino Médio. Esse foi sem dúvida o ano que mais me deixou
boas lembranças e muitas saudades. Eu estava cursando o 1º ano e tinha uma turma de
colegas que ao todo dava umas 15 pessoas, nós aprontamos, no bom sentido da palavra,
muitas coisas boas. Este foi também o ano que eu menos estudei, mas, apesar disso, continuei sendo uma boa aluna e tirando notas boas.
A minha turma era muito conhecida na escola, por onde nós passávamos fazíamos a
maior bagunça, mesmo assim, éramos queridos pela grande maioria dos professores e
funcionários da escola.
Praticamente todos os finais de semana, nós íamos para a casa de alguém da turma, às
vezes, muito raramente estudávamos, era mais comum ficarmos jogando conversa fora,
ouvindo música, rolava também muita paquera. O pessoal também saía muito à noite, mas
eu ia poucas vezes, pois meus pais não eram tão liberais.
Esta foi uma fase muito boa da minha vida, principalmente, porque foi a partir da
convivência com este grupo de amigos que eu passei a perder mais a timidez e a me relacionar melhor com as pessoas. Foi uma pena esta fase ter durado tão pouco tempo, pois
quando fomos fazer o 2º ano, a turma foi desfeita, alguns trocaram de escola e outros de
turno, permanecemos juntas apenas eu e algumas amigas, nós ainda víamos o resto do
pessoal algumas vezes, mas não era com a freqüência de antes. A partir do 3º ano, perdemos
o contato de vez com eles.
Vestibular? O que é isso?
Março de 2002, enfim tinha chegado ao 3º ano do Ensino Médio, para mim estava se
aproximando o fim de uma luta de anos de estudo. Triste ilusão, mal sabia eu o que me
esperava nos próximos meses. Ainda não tinha me dado conta do que era fazer vestibular
e do quanto era difícil passar nessa prova, principalmente, se tratando da UFAC.
Universidade Federal do Acre
109
O vestibular da UFAC iria acontecer em fevereiro de 2003, eu tinha praticamente um
ano para me preparar para a prova. Contudo, não sabia que passar no vestibular era algo
tão importante na vida de uma pessoa. Por isso, durante os seis primeiros meses que
antecederam o vestibular, levei os estudos na brincadeira, não dando a devida atenção
aos conteúdos que os professores passavam na sala de aula, mas mesmo assim ainda
conseguia tirar boas notas.
Somente depois que uma professora de sociologia levou a turma para fazer uma visita
às dependências da UFAC e explicou minuciosamente o que era o vestibular, qual a importância de passar nessa prova e como era difícil para entrar numa universidade pública, foi
que eu caí na real. Foi como se alguém de uma hora para outra tivesse jogado um balde de
água fria na minha cabeça.
Comecei a pensar no tanto de tempo que já havia perdido, foi aí então que pedi para
minha mãe pagar um cursinho de pré-vestibular, pois eu não tinha condições de fazer
faculdade em uma universidade particular, a minha única opção era passar na Federal. A
mãe pagou o curso de pré-vestibular entre os meses de agosto de 2002 a fevereiro de
2003. Durante esse período, passei a estudar bastante, não para me matar, não sou do tipo
de ficar estudando madrugada afora, apenas abri mão de algumas coisas que não eram tão
importantes naquele momento.
Escolha do curso... que indecisão !!!
Desde criança, dizia que queria ser advogada ou juíza. Quando iniciei o curso de prévestibular estava decidida que iria fazer vestibular para o curso de Direito. Contudo, após
estudar alguns meses, percebi que não estava preparada para passar em um curso como esse,
já que a concorrência era muito alta. Passei a pensar em vários outros cursos para fazer, mas
tirando Direito, só conseguia me interessar e me identificar com um curso, que era História.
De todas as disciplinas que estudava a única que me despertou maior interesse e atenção foi
ela. Além disso, tinha uma enorme vontade de aprofundar o meu conhecimento em e também
curiosidade em saber por que as pessoas diziam que quem faz História fica doido.
Mesmo me sentindo despreparada, ainda tinha vontade de fazer vestibular para o
curso de Direito, mas queria também fazer para História, fiquei naquela indecisão. Depois
de pensar muito e pedir auxílio para algumas pessoas, como meus familiares e professores, decidi que era melhor fazer para História, já que era algo que eu gostava e não estava
100% preparada para o curso de Direito.
A escolha certa no momento certo
Chegou o dia do vestibular. Eu estava um pouco nervosa, contudo me sentia preparada
para passar no curso de História. Fiz as provas do 1º dia tranqüila e a do 2º dia também.
O resultado final dos aprovados no vestibular saiu algumas semanas depois da realização das provas. Como eu previa lá estava meu nome. Só não esperava que fosse tão bem
classificada - 10º lugar. Mas apesar da boa pontuação, se tivesse feito para o curso de Direito
não teria passado. Percebi que ter escolhido fazer o curso de História, foi à escolha mais
certa que fiz naquele momento.
Estava muito feliz, pois todo o esforço que fiz não foi em vão. Além disso, meus pais,
irmãos, tios, tias e avós, também estavam muito felizes, pois eu fui a 1ª da família a ter
iniciado um curso superior.
110
Caminhadas de universitários de origem popular
Enfim... universidade
Nos meus primeiros dias de aula na UFAC, me senti exatamente como tinha me sentido
quando iniciei a 5ª série, estão lembrados? O primeiro sentimento que tive foi de medo. Pois
me senti perdida, sem saber o que fazer ou falar, não tinha nenhum conhecido por perto, era
tudo estranho, tudo diferente. Pensei: - Meu Deus... e agora, o que vai ser de mim aqui nessa
UFAC? Tive medo também de não conseguir acompanhar os conteúdos.
O meu medo durou alguns dias, logo comecei a me adaptar àquele novo mundo que
era a universidade. Fiz novos amigos e passei a me inteirar mais a respeito de como as coisas
funcionavam dentro da universidade. Em relação aos conteúdos, com o decorrer do tempo,
fui me acostumando.
Hoje, estou no 7º período do curso de História, graças a Deus quase terminando.
História é um curso ótimo, diferentemente do que muitos pensam, quem cursa História não
fica doido, pelo contrário, passa a entender melhor muitas coisas acerca do que acontece no
mundo, torna-se mais crítico e passa a questionar determinadas situações que para alguns
não têm importância. Amo meu curso e sou apaixonada por História. Mas ainda tenho um
forte desejo de também cursar Direito.
No ano de 2004, fiz vestibular para o curso de Direito, mas não passei, pois fazia
tempo que não estudava conteúdos que não fossem os relacionados ao curso de História.
Pensei melhor e decidi tentar fazer vestibular para o curso de Direito somente quando
tivesse terminando a graduação, afinal, dá conta de um curso já é difícil, imagine de dois,
caso eu tivesse passado em Direito. Como já estou terminando, penso que agora é o momento
certo para tentar Direito. Por isso, voltei a fazer pré-vestibular e estou me preparando para
desta vez passar.
Desde que entrei na UFAC, já passei por alguns trabalhos como estagiária, e agora sou
bolsista do Conexões de Saberes. Espero contribuir com esse programa para que ele possa
possibilitar a permanência qualificada de jovens, oriundos de camadas populares, na
universidade. Espero também adquirir conhecimento e experiência de vida.
Esta foi a minha caminhada de vida até o presente momento.
Universidade Federal do Acre
111
Minha história, minha vida
Simone Pereira da Silva*
Meu nascimento
Meu nome é Simone Pereira da Silva, nasci no ano de 1973, na cidade de Terra Roxa,
estado do Paraná. Sou a décima primeira filha de uma família de 12 irmãos, sendo que o
décimo segundo é neto de meus pais, o qual eles criaram desde um ano e meio de idade, o
Hermano. Com ele, somos cinco homens e sete mulheres.
Quando minha mãe soube que estava grávida de mim ela tinha 43 anos de idade, foi
uma gravidez inesperada e poucos dias após ter completado 44 anos, ela deu a luz a um
bebê, que sou eu. Foi difícil, pois, nesta época, ela teve uma anemia muito forte. Mas graças
a Deus eu vim ao mundo.
Um fato muito interessante, é que eu tenho uma irmã, a Odete, que ficou grávida ao
mesmo tempo em que minha mãe ficou. Após seis dias do meu nascimento, minha irmã deu a
luz a uma menina também. Pouco tempo depois, separou-se do marido e veio morar conosco,
assim fomos criadas juntas, éramos muito unidas, digo éramos, porque hoje somos casadas e quase não temos tempo de estarmos juntas, mas ela sempre foi como uma irmã e minha
melhor amiga.
Minha origem
Meus pais são Marinho Pereira da Silva, (infelizmente já falecido há cinco anos) e
Jandira Benedita da Silva, uma pessoa muito saudável, uma ótima mãe, avó e sogra, graças
a Deus. Hoje, ela se encontra com 77 anos de idade.
Meus pais foram casados durante 52 anos, alcançaram as bodas de ouro. Nessa época,
estavam todos os filhos reunidos para comemorar esta data especial. Foi lindo e muito
emocionante, pois fizemos uma recapitulação de suas vidas até aquele momento.
Ainda hoje, minha mãe sofre com a ausência de meu pai, pois eles sempre foram muito
unidos em todas as horas, foi um exemplo de casal. Não só minha mãe, como todos nós,
filhos e netos sentimos sua falta.
Mudanças
No ano 1976, fomos morar na cidade de Boca do Acre, no estado do Amazonas. Meu
pai que era lavrador de terra ouviu dizer que era um lugar que tinha terras boas, pois até
então ele trabalhava em terrenos alheios e assim, foi em busca de realizar seu sonho. Viemos
*
Graduanda de Engenharia Florestal da UFAC e bolsista do projeto Conexões de Saberes
112
Caminhadas de universitários de origem popular
do Paraná de caminhão e, naquela época, a estrada não era pavimentada. Passamos dez dias
viajando e, finalmente, chegamos a Boca do Acre-AM, uma cidade bem pequena em precárias
condições. Ao chegarmos, já nos decepcionamos. Nessa época, estava tendo muita malária,
e acabamos nos infectando.
Foi uma época muito difícil, passamos por muitas dificuldades financeiras. Mas finalmente, meu pai conseguiu comprar um sítio e começou a trabalhar. Derrubou a mata e
organizou as terras, minha mãe ficava mais na cidade trabalhando de doméstica, para ajudar
nas despesas de casa. Enfim, após quatro anos, meu pai vendeu as terras e fomos embora
para uma cidade próxima, Rio Branco, no estado do Acre, na qual permanecemos morando
até hoje.
Isso aconteceu em 1980, eu já estava com sete anos de idade. Compramos uma
casa e minha mãe, juntamente com meu irmão Joel, começaram a fazer pão e bolo para
vender. E Deus foi abençoando o negócio a cada dia, até hoje, minha família trabalha
com panificação.
Início de minha formação escolar
Comecei a estudar com quase oito anos de idade. No primeiro dia de aula, eu
chorei, pois estava com medo e não queria ficar na sala, mas do terceiro dia em diante
tudo correu normalmente. Sempre fui muito tímida e tinha muita vergonha de quase
tudo. Estudei do primeiro até o quinto ano do ensino fundamental na escola Natalino
da Silveira Brito, depois fui para outra escola no centro da cidade. No último ano estava
meio desinteressada e acabei ficando reprovada em uma matéria tendo que repetir o ano
todo. Mas lá concluí o ensino fundamental e novamente mudei de escola para concluir
o ensino médio no Colégio Estadual de Rio Branco e novamente reprovei no último
ano. E assim fiquei muito atrasada, terminei o Ensino Médio com vinte anos de idade.
Após isso, resolvi passar um ano sem estudar e, no ano seguinte, retomaria os estudos
para o vestibular, mas não ocorreu como planejei, fiquei muito desanimada para continuar a vida escolar.
Novas mudanças
Nesse mesmo ano de conclusão do Ensino Médio, comecei a freqüentar uma igreja
evangélica e acabei me batizando. Foi uma mudança significativa no meu modo de
vida, parei de freqüentar festas, clubes, fiz novas amizades, mas todas as mudanças
aconteceram naturalmente, sem que eu percebesse.
O tempo foi passando e depois de quatro anos, eu resolvi prestar vestibular para o
curso de Sistemas de Informação, o qual na época era chamado de Análise de Sistemas,
mas como eu não tinha me preparado não fui aprovada, e os anos foram passando.
Comecei a trabalhar num supermercado, esta época foi muito marcante em minha
vida, pois neste supermercado, conheci meu esposo, o Gleik, ele também era funcionário. De início eu não gostei dele, mas com a convivência, acabei me apaixonando.
Trabalhei, neste estabelecimento, durante onze meses, após isso saí, ele ficou. Nós já
estávamos namorando e foi ficando cada vez mais sério. Após dois anos de namoro,
resolvemos nos casar e no dia 23 de março de 1998, nos casamos. Hoje já faz oito anos
que estamos casados, ainda não temos filho, pois eu não posso engravidar, mas espero
que Deus com sua mão forte um dia me conceda essa dádiva.
Universidade Federal do Acre
113
Universidade: um sonho que virou realidade
Meu esposo sempre me incentivou a estudar, mas faltava interesse de minha parte. Até
que um dia, finalmente, eu abri meus olhos e vi que se eu não estudasse não passaria
daquela situação, foi então que comecei a estudar para valer, isso já foi no ano de 2002.
Trabalhava como operadora de caixa numa panificadora, não só exercia função de
caixa como fazia tudo que tinha para fazer. Para chegar ao trabalho, levantava 4:30 h da
manhã e ficava até as 13:00 h, até que, certo dia, comecei a refletir sobre minha vida, e sobre
os conselhos dados por meu esposo. Neste dia, lhe falei que gostaria de estudar para o
vestibular. Sua felicidade foi muito grande, pois era tudo que ele queria. Falou-me que
poderia sair do trabalho e me dedicar para os estudos, foi o que aconteceu, saí da panificadora em 2002. Ficou somente ele trabalhando, o que ele ganhava era pouco, mas era o
suficiente para nos sustentar.
Comecei a estudar em casa, sem auxílio de ninguém, tive muitas dificuldades, pois
fazia onze anos que tinha terminado o ensino médio. No início de 2002, teve um vestibular
e resolvi me inscrever para o curso de Engenharia Florestal, pois achei muito interessante
esta área. Já era o segundo vestibular que eu prestava, e novamente não passei, contudo, não
fiquei triste, resolvi fazer um curso pré-vestibular, me inscrevi em um dos mais baratos,
junto com meu esposo. Durante o dia, estudava em casa sozinha, pois ele estava trabalhando, à noite íamos juntos para o curso, foi assim até o mês de julho, uma vez que meu esposo
teve que sair do curso, porque ficou sem condições de pagar a mensalidade para os dois. Foi
então que ele saiu e eu continuei.
No mês de março de 2004, aconteceu o vestibular e lá estava eu concorrendo novamente, para o curso de Engenharia Florestal, mas desta vez com uma surpresa boa, finalmente passei no vestibular da Universidade Federal do Acre (UFAC). Foi muito emocionante,
pois achava muito difícil ser aprovada. Todos os parentes ficaram muito felizes e me ligavam para dar os parabéns, pois fui à primeira da família que ingressou numa universidade
pública. Parte do sonho já estava realizado.
Comecei a estudar no fim do mês de setembro e, como todo calouro, não sabia o que
me esperava, mas as expectativas eram muitas.
Na minha turma, eu sou a mais velha, os demais têm idades entre 18 a 26 anos. Tive
dificuldades devido o tempo que fiquei sem estudar. Achei o primeiro período difícil, pois
estava me acostumando com a vida acadêmica e, graças a Deus, eu não fiquei devendo
nenhuma disciplina.
No segundo período, já achei mais difícil em termos de matérias, pois existem algumas bem complicadas. Mas foi menos cansativo para mim, pois tinha tirado carteira de
habilitação e meu esposo comprou uma moto para nós, era usada, mas estava bem conservada. Nesse mesmo ano de 2005, ele havia prestado vestibular de novo e passou para Ciências
Sociais. Durante o dia, eu ficava com a moto e à noite ele ia para aula com ela, pois moramos
a mais de vinte quilômetros da universidade, se fôssemos de ônibus teríamos que pegar
duas conduções.
Procuro sempre me esforçar para alcançar boas notas, mas acabei devendo uma matéria
do segundo período que é pré-requisito, mas não me atrasou, porque fiz o período especial
dessa matéria e graças a Deus, eu passei.
O terceiro período foi tranqüilo não tive dificuldades, eliminei todas as matérias. Mas
neste mesmo período, por problemas financeiros tivemos que vender a moto, e novamente
114
Caminhadas de universitários de origem popular
voltei a pegar duas conduções para ir à aula e ficou mais cansativo. No 4º período, novamente achei as matérias mais difíceis, mas consegui passar em todas. Hoje, já estou terminando o 5º período. Como o curso é período integral, tenho aula o dia todo, isso é muito
cansativo, pois ao chegar em casa tenho que fazer minhas tarefas domésticas e ainda estudar
para as provas e fazer trabalhos. Fico imaginando como seria se tivesse filho, teria que
dividir bem o meu tempo, pois um filho precisa de atenção, cuidados e carinho.
Voltando um pouco, quando estava no 3º período, buscava um estágio remunerado,
para poder ajudar nas despesas, porque agora nós dois estávamos estudando e como só ele
estava trabalhando as coisas ficaram mais difíceis, pois as despesas aumentaram. Foi quando surgiu a oportunidade de voluntariar no herbário da UFAC, o qual também me auxiliaria
no desenvolvimento da disciplina que estou cursando em período especial, tinha esperança
de conseguir um estágio remunerado, mas isso não ocorreu.
No início do 4ª período, estava eu saindo da biblioteca quando um cartaz me chamou a atenção, era então uma seleção que oferecia 25 bolsas a estudantes universitários,
logo me informei sobre o programa Conexões de Saberes, além de interessante era remunerado. Fiz minha inscrição e coloquei uma grande expectativa, pois preenchia todos os
pré-requisitos.
Quando soube, que tinha sido aprovada, pulei de alegria e logo contei para minha
mãe e meu esposo, pois eles sempre me deram muita força. Passei por todo o processo de
seleção, enfim, comecei a participar do programa e estou gostando muito do que estou
aprendendo, das novas amizades e de todos que participam do Conexões.
À luz de todos os escritos e relatos acima, percebo o quanto foi difícil chegar até
aqui, o quanto me envolvi nesse projeto de concluir um curso superior numa Universidade
pública, e parece que esse projeto não é só meu, mas de todas as pessoas que estiveram e
estão ao meu lado a todo o momento. No entanto, sei que ainda falta um bom caminho a
percorrer e espero chegar ao final escrevendo o quanto foi gratificante todo o sacrifício e
as dificuldades pelas quais passei.
Universidade Federal do Acre
115
Minha vida quase perfeita
Suziane Maria Silva de Souza*
Para começar, quero lhes dizer que foi muito difícil escrever sobre minha vida, por me
fazer lembrar de coisas que sinceramente queria esquecer. Relutei, tentei até buscar um
meio para não “ter que escrever sobre minha história de vida”.
A princípio tive medo que os leitores tivessem pena de mim ou não se interessassem
por minha história, e que minha história fosse cansativa. Quer saber, tomei coragem. Começo a contar-lhes um pouco sobre mim e sobre minha história de vida, prometo não ser
superficial e ser sincera acima de tudo. Aqui, falarei sobre minhas alegrias e tristezas, sonhos, conquistas, paixões, amores e etc.
Apresentação
Meu nome é Suziane Maria Silva de Souza, nascida no dia 10/09/1983, filha de José
Lima de Souza e Maria das Graças Silva de Souza. Nasci no estado vizinho do Acre, o estado
de Rondônia, na cidade de Porto Velho. Vim para o Acre com dois meses de vida, com meus
pais e minha irmã Márcia, mais velha que eu um ano e alguns meses. Mesmo tendo nascido
em outro estado, me considero Acreana e tenho paixão por este estado tão pacato de pessoas tranqüilas e trabalhadoras, na sua maioria humilde e com uma cultura linda de se ver,
sem fazer apologias ou utopias ou até mesmo me desfazer de minha cidade natal, pois só
falo de um sentimento verdadeiro.
Amo acordar de manhã e sentir o vento tocar em meu rosto, ver a paisagem, o verde
que me cerca sem o qual não saberia viver. Saber que as estrelas velam meu sono todas as
noites, isso não trocaria por nada deste mundo.
Ouço muitas piadinhas de pessoas de outros estados sobre o Acre, pessoas que nem
nos conhecem, não sabem de nossa cultura. Fico muito triste. Acima de tudo, gostaria que
nos respeitassem, afinal, nosso povo lutou para pertencer ao Brasil, somos um povo trabalhador, honesto e muito acolhedor independente de qualquer classe social.
Bem, falarei mais um pouco sobre mim, sou solteira, atualmente tenho 23 anos, moro
com os meus pais e com os meus três irmãos: a Márcia de 24 anos e os meus dois irmãos
gêmeos Alisson e Elisson de 19 anos.
Adoro ler a bíblia, ouvir músicas românticas, MPB. Gosto de ler romances, livros de
auto-ajuda e revistas. Gosto de dançar e cantar e adoro crianças. Meu prato preferido é arroz
e feijão, também gosto de pizza. Sou alguém que se pudesse estaria em dois lugares ao
mesmo tempo e se pudesse faria muita gente feliz.
*
Graduanda de Engenharia Agronômica da UFAC.
116
Caminhadas de universitários de origem popular
A Márcia é evangélica e está noiva com o Francimar Ely. Ela está tentando entrar na
faculdade, infelizmente, agora não pode fazer pré-vestibular, pois está desempregada, mas
seu sonho é fazer Psicologia. Minha irmã é muito bonita e eu a amo muito. Espero, sinceramente, que ela seja muito feliz em sua vida e que Deus a abençoe sempre.
Meus irmãos Alisson e Elisson, chamados por nós de casa, carinhosamente por Neném,
ainda estão terminando o ensino médio, estão atrasados, pois já deveriam ter terminado.
Eles pretendem fazer vestibular para Educação Física, o bacana dos dois é que tudo que um
faz o outro faz, eles adoram jogar futebol e jogam muito bem, pena que aqui no Acre não
possam seguir carreira por falta de apoio.
Meu pai, José, tem 53 anos, atualmente está desempregado. Antes, trabalhava de
pedreiro, mas desde que caiu de um prédio e fraturou a cintura pélvica, não pode mais
exercer essa profissão. Além disso, meu pai tem alergia ao cimento e já foi proibido pelo
médico de trabalhar nessa área. Mesmo assim, quando aparece um bico, meu pai vai trabalhar ainda que com dor, e isso me corta o coração, pois ele já sofreu tanto e faz de tudo para
que não nos falte nada. Meu pai já pegou cinco laudos para se aposentar por invalidez. Mas
apesar de já ter até dormido no INSS, nunca consegue ser atendido, nem os papéis para dar
entrada ao processo de aposentadoria ele não consegue, pois os atendentes não dão. Eles
alegam que meu pai não tem tempo suficiente de trabalho e não dão nem a chance para que
os médicos do INSS o avaliem. Sei que meu pai sofre muito com isso, pois ele tem medo de
nos deixar sem nenhuma segurança para sobreviver.
Meu pai é filho de cearense que veio para o Acre enganado pelo surto da borracha, que
vitimou milhares de nordestinos que vieram para o Acre com esperança de melhoras, mas
acabaram abandonados à própria sorte, expostos a doenças, fome e frio. Meu avô trouxe a
família após a segunda crise da borracha. Depois disso, teve que continuar aqui no Acre
trabalhando na seringa, pois não tinha recursos financeiros para voltar a sua terra de origem.
Dentre as atividades que desenvolvia, trabalhou na plantação de mandioca junto com meu
pai, seu filho mais velho. Meu pai começou a trabalhar aos 8 anos de idade, sendo privado
de ser criança, de ter uma infância com amiguinhos, brinquedos, escola e outras coisas mais.
Seu brinquedo foi um facão para cortar seringa, uma lata para colocar o látex e o seu café da
manhã era um café preto puro. Ele e o meu avô madrugavam para irem trabalhar e passavam
horas e horas embrenhados nas matas coletando látex para trocar por uns míseros quilos de
farinha, feijão e arroz, isso quando a coleta do látex era boa.
Meu avô abandonou minha avó com 10 filhos. Nessa época, meu pai tinha 11 anos de
idade. Sendo o mais velho, teve que assumir a responsabilidade e trabalhar por conta própria.
Começou a ir para a floresta coletar látex ou fazer outros trabalhos como, por exemplo,
capinar. Acabou tendo que ir para roças dos vizinhos trabalhar por um prato de comida, lá
ele sofreu as maiores monstruosidades do mundo, que eu não quero comentar, pois para uma
criança essas coisas ficam marcadas para o resto da vida. Agora, conto-lhes tudo isso muito
emocionada, pois meu pai não teve infância e até hoje sofre. O meu maior medo é que pai
nunca seja feliz e que eu não consiga dar uma vida melhor para ele e para a minha mãe.
Meu pai conheceu minha mãe e casou-se com ela. Depois de 2 anos de casados
tiveram minha irmã. Não sei se pelos traumas que meu pai teve, ele bebia muito e acabou se
transformando em alcoólatra por muitos anos. Ele e minha mãe se separavam constantemente e brigavam muito e isso me deixava muito triste, pois eu não entendia o porquê das
brigas, achava que meu pai bebia por que queria, minha mãe sofreu muito com meu pai, ela
Universidade Federal do Acre
117
o amava e tinha pena dele, mas ele não fazia nenhum esforço para mudar. Eu e a Márcia
crescemos vendo tudo aquilo e ficamos traumatizadas. Qual é o filho que vê os seus pais a
ponto de se separarem e fica feliz ou vê seu pai se destruindo e não poder fazer nada? Foi daí
que comecei a gerar complexos de inferioridade, de impotência, que, infelizmente, me
acompanham até hoje.
Meu pai e minha mãe ainda estão casados. Meu pai está sem beber há quatro anos e
garanto que está sendo os melhores anos de minha vida e de minha família. Lutamos muito
com meu pai, eu me lembro que ele bebia até cair. Eu e a Márcia íamos buscá-lo nos bares,
com vergonha, mas íamos, e eu já não sabia o que fazer ao vê-lo naquele estado deplorável,
e ao chegar em casa dávamos banho nele. Eu orava muito para que ele acordasse bem no
outro dia, pois eu tinha muito medo que meu pai morresse ao dormir. Eu não desejo isto para
ninguém. Somente o que dava força era saber que Deus é maior que tudo e que um dia ele
ajudaria meu pai, e esse dia chegou. Agradeço todos os dias ao Senhor Jesus Cristo pela
minha vida e pela vida de minha família. Meu pai foi sempre responsável, mesmo bebendo
muito, nunca deixou faltar nada para nós, trabalhava nos dias de sol e de chuva. Tenho
orgulho e admiração pelo meu pai, talvez nunca tenha dito isto a ele e também o quanto o
amo, farei de tudo para nunca decepcioná-lo. Gostaria muito que ele parasse de fumar, isso
me deixaria muito feliz, seria meu melhor presente. Apesar de não termos dinheiro, e passarmos algumas privações, sou muito feliz por ter minha família ao meu lado.
Minha mãe (Maria das Graças), também lutou desde cedo, pois perdeu seu pai quando
era criança, meu avô se matou e deixou minha avó com 8 filhos morando em um seringal.
Minha mãe teve que trabalhar na casa dos outros para não passar fome e não pôde estudar,
veio para a cidade e continuo trabalhando, juntou dinheiro e mandou buscar sua mãe e
seus irmãos. Para isso acontecer, minha mãe sofreu muito, mas nunca se vendeu para
conseguir dinheiro. Minha mãe sempre trabalhou muito, mas nunca com carteira assinada.
Conheceu meu pai e casou-se com ele aos 22 anos, atualmente, minha mãe tem 49 anos e
está doente, sofre de hipertensão, tem gastrite e problemas de coração, mas em nome de
Jesus, ela vai ser curada. Como já disse, meu pai e minha mãe continuam casados e este
casamento já dura 26 anos e espero que dure para sempre, pois sei que o seu amor é eterno.
Agora falarei, especificamente, de mim. Não estou namorando, estou dando um
tempo, porém, estou apaixonada por alguém que não vale a pena, é impossível para
mim, digamos que é um amor platônico que guardo só para mim. No fundo me considero
uma menina boba que tem um diário como confidente, tenho também um amor muito
grande por minha gatinha Echily, meu baby. Tenho, também, duas cachorras vira-latas.
Sou acadêmica do curso de Engenharia Agronômica, estou no 7º período e sempre estudei
em escola pública. Moro em um bairro periférico da região da baixada, o bairro Bahia,
há 18 anos e sou muito feliz no meu bairro, foi nele que brinquei da manja, aprendi a
andar de bicicleta, é onde está a escola que fiz meu ensino fundamental, onde fiz muitas
amizades que jamais vou esquecer. A escola que fiz o ensino fundamental chama-se
Dr. Tancredo de Almeida Neves, foi lá que dei o meu 1º beijo e que conheci o meu
primeiro amor. Na época, me apaixonei por um garoto muito especial o Dalcicleide, mas,
infelizmente, não deu certo, eu tinha 13 anos, não tinha permissão para namorar e os meus
pais poderiam descobrir, eu tinha muito medo.
Fora isso, tinha uma vizinha que era apaixonada por ele e isso me fazia me sentir com
a consciência pesada, me sentia um monstro e resolvi terminar o namoro com ele por carta,
118
Caminhadas de universitários de origem popular
sem dar um motivo específico. Nosso romance durou apenas duas semanas, após tudo
passar descobri que gostava dele mais do que eu imaginava, porém, era tarde, não poderia
voltar atrás e, até hoje, ele não sabe o porquê de minhas atitudes.
Em meio às dificuldades, meus pais sempre deram prioridade para nossos estudos e
sempre nos incentivaram a estudar, até hoje. Agradeço muito a eles, principalmente, a
minha mãe, que fez o impossível para manter meu estudo, mesmo sem trabalho fixo, ela
sempre dava um jeitinho. Para eu terminar o meu ensino médio, por exemplo, na época eu
estudava no centro da cidade em um colégio público tradicional, tinha que pagar passagem
de ônibus para poder chegar até lá.
Estudava no colégio Acreano. Como era no centro da cidade a farda era especial,
muito cara para meus pais comprarem, mesmo assim, eles deram um jeitinho e comecei a
estudar, não me considerava CDF, mas uma aluna esforçada, como até hoje assim me
considero. Foi lá que conheci meus amigos: Taiãna, Marcilene e o Daniel, Gesiberto,
Patrícia, Arleisson, Celso, Juzeima, até hoje eu os amo muito. A maioria dessas minhas
amigas já são mamães.
Ao terminar o ensino médio, em 2001, não sabia para que prestar o vestibular, não
sabia o que era o vestibular na verdade. Acabei me inscrevendo sem um tipo de orientação,
eu escolhi um curso que para mim seria 2ª opção – Agronomia, pois sempre quis fazer
Direito, mas sabia que não havia me preparado e não teria a menor chance. Fiz essa primeira
vez e não passei, tentei novamente no ano seguinte, dessa vez achei que se mudasse de
curso passaria e prestei para Geografia licenciatura, estudei um pouco em casa, mas não foi
suficiente e mais uma vez não passei, foi aí que comecei a me preocupar e me sentir impotente, e não podia exigir de pai ou mãe que me pagassem pré-vestibular, pois era muito caro.
Foi então que comecei a estudar cada vez mais em casa, virava as madrugadas, incansavelmente, até a data do vestibular. Neste intervalo, surgiu um pré-vestibular da comunidade,
onde me inscrevi e não fui escolhida, mesmo assim passei semanas insistindo, até que me
aceitaram. Infelizmente, este cursinho começou tarde, bem perto do vestibular, mesmo
assim me dediquei o máximo. Chegado o dia de me inscrever no vestibular, mais uma vez
fui covarde e não me inscrevi para Direito, fiquei com medo, então me inscrevi novamente
para Agronomia, por questão de afinidade e admiração.
Após algumas semanas, fiz a 1ª etapa do vestibular, essa fase fiz tranqüila e ciente da
minha capacidade de aprendizado e porque não dizer que eu estava autoconfiante. Após
alguns dias, saiu o resultado. Neste dia, eu lembro que estava no juizado de pequenas
causas esperando uma audiência, pois na época eu vendia cosmético e tinha levado um
caso para justiça, pois o meu cliente não havia me pagado. Então, por volta das 15:00h,
entrei na sala da conciliadora e ela estava na internet, ela comentava com outra pessoa que
estava também na sala, que havia que um amigo dela que tinha passado em Direito e eu
aproveitei e pedi a ela para que olhasse meu nome. Eu pedi, mas sem muita esperança de ouvir
meu nome, pois já estava triste e desanimada, ela perguntou meu nome e respondi e ela disse:
- Passou em 26º lugar.
Eu claro, quase desmaio, minha irmã que me acompanhava teve que me confirmar,
pois não conseguia acreditar, passou alguns minutos, tomei coragem e me aproximei do
computador e vi meu nome lá. Nossa! Não contive a emoção, mesmo sem fazer a 2ª fase que
era a redação, me sentia a pessoa mais feliz do mundo, fui para casa contei para meu pai e
para minha mãe e eles ficaram felizes por mim.
Universidade Federal do Acre
119
No outro dia, fui atrás de um cursinho para eu aprender a fazer a redação, pois terminei
o ensino médio e não aprendi a fazer redação, e lhes pergunto de quem é a culpa?
Fora a isso, eu nunca havia passado para a 2ª fase do vestibular, não tinha noção de
como era. Só depois pude perceber o quanto foi defasado meu ensino básico, não aprendi
50% do que eu iria precisar na minha vida, por falta de bons professores, por falta de
livros para eu estudar, que me fizeram muita falta. Infelizmente, eu não sou exceção,
existem milhares de pessoas como eu, que não têm nem o que comer, quanto mais dinheiro
para comprar livros caros.
O cursinho durou uma semana, achei muito pouco, não me sentia ainda preparada,
mesmo assim, no domingo tinha que ir fazer a prova. Ao chegar à sala da prova de redação,
fiquei muito nervosa, me passava um monte de filminho na minha cabeça e o medo de não
passar me apavorava. Eu não conseguia me concentrar, teve um momento que quase saio da
sala e desisto, mas pedi a Deus força naquela hora.
Acabada a prova, fui para casa chorar, eu só sabia chorar, pois tinha certeza que não
iria conseguir, meus amigos e meus pais me deram muita força. Minha agonia só passou
após duas semanas, quando saiu o resultado e adivinhem, lá estava meu nome, Suziane, 35ª
colocada do curso de Engenharia Agronômica. Eu definiria este dia em uma frase “Milagre
de Deus” e o agradeço até hoje, sem ele não teria conseguido.
Um mês depois, comecei a estudar. No primeiro dia de aula, senti um mix de medo e
felicidade, porém, uma palavra me definiria naquele dia: orgulho. Eu estava orgulhosa de
mim e de tudo que tinha passado. As noites em claro não tinham sido em vão. Ali, começava
uma nova batalha.
Logo de início foi difícil me adaptar com as matérias, com os professores e com os
colegas de classe. Além disso, também me preocupava bastante com minhas despesas:
passes de ônibus, xerox, almoço, pois o meu curso é integral, devo-lhes confessar que foi
muito difícil, pensei muitas vezes em desistir e procurar trabalho e ajudar meu pai com as
despesas da casa. Fiquei desanimada e comecei a faltar às aulas por falta de dinheiro. Para
completar minha situação meu pai estava sem trabalhar há um bom tempo. Mas graças a
Deus foi só uma má fase que passou, contei com ajuda de meus pais, de um amigo muito
especial que se chama José Granjeiro, que está presente em minha vida todas as horas,
nele pude conhecer uma amizade sincera sem falsidades, fez coisas por mim que jamais
poderei pagar.
Seu Granjeiro como eu o chamo é uma pessoa muito simples, de um coração enorme,
um amor de pessoa, em minha opinião um anjo enviado de Deus. Espero que ele viva
muitos anos e que seja muito feliz, pois ele merece, espero que continue sendo essa pessoa
maravilhosa e meu amigo.
Continuei a estudar, mesmo não concordando com o sistema de ensino e avaliação na
universidade. Aqui na UFAC, a média é muito alta, se pelo menos as aulas fossem de
qualidade, mas ainda estamos na era do quadro negro e do giz de cera. Temos que conviver
com o descaso de alguns professores que fazem de conta que dão aulas. Eu sou mais hipócrita ainda que aceito calada. Estou vendo meus sonhos irem pelo “ralo” literalmente.
Atualmente, participo do Programa Conexões de Saberes, estou muito feliz por fazer
parte de um projeto tão bonito e que se importa com nossa permanência na universidade.
Pena que só uma pequena parte dos acadêmicos são escolhidos para participar deste projeto, pois centenas de acadêmicos desistem logo no início do curso por não terem condições
120
Caminhadas de universitários de origem popular
para se manter na faculdade, uns ainda tentam, mas é muito difícil, pois quem continua tem
que conciliar trabalho com faculdade e acabam não se dedicando nem a um e nem ao outro.
Acho que é preciso urgentemente rever o sistema de educação nas universidades
públicas e programar novas mudanças, desde o corpo técnico à didática aplicada em sala de
aula, aumentar bolsas para auxílio dos universitários e, claro, beneficiar a quem realmente
precisa e não aos filhos dos professores ou a amigos particulares. Eu agradeço por esta
oportunidade e espero que possa contribuir para o desenvolvimento do projeto, tentarei
retribuir as inúmeras coisas boas que este projeto está me proporcionando. No Conexões,
conheci pessoas boas, amigas e com um contexto de vida parecido com o meu.
Falando um pouco da viagem que fiz para o Seminário Nacional do Conexões de
Saberes, que aconteceu no Rio de Janeiro, foi muito bom, tive a oportunidade de conhecer
pessoas legais. Trouxe de lá uma bagagem boa, aprendi muitas coisas que ficarão comigo
para sempre. Aprendi a valorizar mais ainda a minha família, a minha casa e minha cidade.
Também tive a oportunidade de conhecer o mar, que era um de meus sonhos, nunca tinha
saído do Acre, achei tudo muito interessante, mas descobri também que aqui é meu lugar.
O Rio de Janeiro para mim era como um sonho, pois o imaginava do jeito das
novelas de Manoel Carlos, tudo muito lindo. Porém, me decepcionei bastante, pois vi um
Rio de Janeiro acabado, poluído, destruído, violento. O que predomina lá é o monopólio
do capitalismo, as classes sociais são bem divididas entre miseráveis e milionários. O
pouco que fiquei lá, pude observar que o medo é companhia diária das pessoas e que elas
vivem um dilema de viverem presas ou morrerem livres. Parece que estou sendo radical,
peço desculpas a todos os cariocas que se sentirem ofendidos por algo que eu tenha
falado, sei que a culpa é dos nossos governantes e das leis precárias que temos e das
desigualdades sociais, onde sempre viveremos assim “ricos ficando milionários e os pobres ficando cada vez mais miseráveis”.
Confesso que pensava que não iria conseguir falar sobre minha vida, mas tudo deu
certo. Apesar de parecer que estou me despedindo da vida, sempre achei que quando
estivesse morrendo falaria coisas parecidas como estas. Essa história de fazer memorial
nada mais é do que mais uma junção de recordações.
E para finalizar, queria dedicar este memorial a minha avó Beatriz Pereira da Silva,
que faleceu em 2003, teve parada cardíaca. Vó Biata como eu a chamava era uma pessoa
incrível, muito importante para mim, era uma guerreira, vivia apenas com sua aposentadoria, passando por todos os tipos de privações, devido ao seu dinheiro mal dava para
comprar seus remédios e de sua filha, que tem problemas mentais. Não teve condições
melhores para sobreviver. Eu posso dizer que mesmo estando morta, eu continuo a amá-la.
Também quero dedicar este memorial a meu vô Francisco Viera, que faleceu em
dezembro de 2006. Voinho tinha 86 anos, estava muito velhinho, quase não comia e não
falava mais direito, tinha cabeça branquinha, e já não conhecia bem as pessoas, era como se
fosse um bebezinho, lembro dele com muita ternura, de seu sorriso. Ele morava na casa de
minha tia, e antes de morrer passou um tempo em minha casa, ele ficava acordado até tarde,
um dia ele até me ajudou a pintar uns trabalhos de aula que tinha que entregar. Apesar de sua
doença era muito alegre. Quando minha tia veio buscá-lo de volta, confesso que fiquei
muito triste, foi como se tivesse arrancado um pedaço de mim, chorei tanto, pedi tanto a
Deus que ela mudasse de idéia, pois aqui em minha casa ele era bem cuidado e nós o
tratávamos muito bem, pois nós sim o amávamos de verdade, mas não teve jeito, ela o levou.
Universidade Federal do Acre
121
Logo depois de uns meses ele morreu, ainda estou muito abalada, ele era meu único vô,
agora estou órfão de vô e vó, as pessoas que eu amava tanto se foram para nunca mais voltar.
Às vezes me pergunto para que viemos ao mundo, se foi para somente sofrer. Sinto-me
impotente, pois não posso ajudar as pessoas que amo, e fico me perguntando por que será
que só as pessoas boas morrem e sofrem tanto, não quero saber mais que Deus, nem questionar seu governo, só queria que todo mundo fosse feliz.
Quero pedir perdão a todas as pessoas que um dia eu magoei ou disse qualquer palavra
ruim. Este pedido vai também para minha mãe, porque sempre estamos nos desentendendo,
isso é ruim, pois não se deve brigar com quem se ama e eu a amo muito e espero que um dia
possamos nos entender, eu com meu gênio difícil e ela com o dela. E admito que tudo que
sou devo a ela e a meu pai que são as pessoas mais importantes na minha vida.
Temos poucas oportunidades de sermos ricos financeiramente, mas já nascemos com
uma riqueza muito valiosa que dinheiro nenhum pode comprar a “vida”. E nela conhecemos o verdadeiro significado de viver, que não basta somente existir. Precisamos viver
intensamente cada segundo, como se fosse o último e primeiro.
Agradeço aos meus amigos, Granjeiro, Macláudia, Dona Francisca, Edimeire, Áureo,
Dona Criselia, Dona Lurdes, Raimundo Nonato, Luciana, Poliana, Simone, Camila, Cris e
as minhas tias por parte de mãe que tenho um carinho muito grande, Alzenir, Auxiliadora,
Lúcia, aos meus primos, aos meus parentes em geral e a minha professora Waldirene. Ele
sempre me dão apoio moral e me deixam com o astral lá em cima, Espero não ter esquecido
de ninguém e deixo aqui registrado os meus agradecimentos a estas pessoas e a Deus por ter
me dado a vida e a oportunidade de estar hoje escrevendo este memorial e sei que ele tem
muito mais para fazer por mim e por todos nós. Um grande beijo para todos e felicidades,
espero que leiam e reflitam que temos barreiras que parecem não terem fim, mas Deus
resolve tudo no tempo certo. Você pode ter uma gotinha de esperança, mas Deus tem um
oceano inteiro de esperanças para dar a você.
Sonhos para o futuro
• Terminar agronomia e depois iniciar uma nova graduação Direito, fazer mestrado
e doutorado e prestar concurso para juíza e futuramente desembargadora;
• Melhorar as condições de vida de minha família;
• Fazer muitas viagens, quero conhecer o mundo e quero que o mundo me conheça;
• Casar quem sabe, e ter filhos;
• Escrever um livro;
• Descobrir algo novo para a humanidade;
• Habitar no tabernáculo do Senhor Jesus Cristo.
Se de início uma idéia não for absurda,
Então não há esperança para ela.
Albert Einstein
Ao anoitecer, pode vir o choro,
mais alegria vem pela manhã.
salmos, cap.30, ves:5.
122
Caminhadas de universitários de origem popular
Se essas pessoas não existissem em minha vida, eu não seria feliz e seria muito
difícil existir, continuar vivendo neste mundo injusto e cheio de coisas ruins. Por isso,
quero dizer que eu as amo muito.
Senhor Jesus obrigada por tudo, glórias a ti pai,
Amém.
Universidade Federal do Acre
123
Marcas profundas
Vanieda Oliveira da Costa*
Sou o intervalo entre o que desejo ser e os
outros me fizeram,
Ou metade desse intervalo, porque também
há vida...
Sou isso, enfim...
Álvaro de Campos1
As horas vão passando lentamente, são sete, oito, nove! Aí! A dor aumenta, será nesse
momento? Não sei. Percorro os corredores descalça, sentindo uma sensação de frieza nos
pés, talvez um relaxamento ou a satisfação de estar prestes a viver uma nova aventura.
E esse relógio, será que parou? Não, não, não pode ser! Dia vinte e um de agosto de
dois mil e quatro, nove e cinqüenta e cinco o maldito relógio desperta. Será ele que despertou, ou fui eu?
Mudando de assunto, irei fazer um breve relato de minha vida escolar. Breve para
aqueles que são apaixonados pela leitura e extenso para aqueles que a detestam.
Há um provérbio chinês que diz: “Antes da hora, ainda não é hora. Depois da hora já
não é hora. Só é hora na hora!” Eis o motivo de meu nome. No ano de 1981, minha mãe
estava grávida e já havia escolhido o nome para o bebê, na realidade ela mesma o inventara.
Tendo em mente que seria uma menina, lhe chamaria “Vaniêida”.
Mas, como antes da hora, ainda não é hora o que era para ser um bebê, tornou-se duas
meninas lindas, a Cosma e a Damiana que faleceram com poucos dias de vida.
No ano de1982 eu nasci, dessa forma “herdei”, no modo de falar, o nome de minhas
irmãs anteriores “Vanieda”, sem o i e sem o acento circunflexo por um erro de cartório.
Reafirmando, meu nome é Vanieda Oliveira da Costa, nasci no dia 27 de abril de1982,
vindo de uma família humilde. Meu pai Francisco Maia da Costa e minha mãe Maria Araújo
de Oliveira trabalhavam no seringal2, com a extração do látex3 e na plantação de arroz,
milho, feijão etc.
No ano de1987 meu irmão mais velho veio a falecer (acometido de pneumonia). Além
disso, eu e meus três irmãos estávamos bastante doentes e minha mãe estava grávida.
*
1
2
3
Graduanda de Letras/Espanhol da UFAC.
Um dos heterônimos de Fernando Pessoa.
Local onde encontramos uma quantidade mais ou menos considerável de seringueiras.
Leite da seringueira.
124
Caminhadas de universitários de origem popular
Desta maneira, surgiu a idéia de nos mudarmos para a cidade. Em fevereiro de1987,
chegamos ao bairro Bahia, onde fomos morar em uma casa que meu pai comprara no
ano anterior.
Nessa época, minha mãe passou a trabalhar como empregada doméstica e meu pai
montou uma pequena barraquinha para vender doces em geral. Durante os anos de 1987 a
1988 tive várias diversões, participava do catecismo na Igreja Católica e estudava no “G”,
local destinado à recreação e jogos.
Embora tivesse pouca idade, já trabalhava vendendo latas velhas e jambu (folha
destinada à preparação de tacacá). Uma lembrança agradável que guardo na memória é o dia
do Natal, pois, geralmente minha mãe, mesmo nas condições precárias em que vivíamos,
costumava colocar uma boneca em minha cama à noite, quando acordava lá estava aquele
lindo presente.
Ensino primário: o tempo das novas descobertas
Quanta gente que ri, talvez, consigo
Guarda um atroz, recôndito inimigo
Como invisível chaga cancerosa!
Raimundo Correia
No ano de 1989, com sete anos de idade, comecei a estudar na escola Frei Thiago
Maria Mattioli. Em meio às dificuldades fiquei reprovada. Até hoje me restam lembranças
tristes da professora que tive, a qual costumava me castigar, colocando-me atrás da porta,
fato este que fazia com que meus colegas zombassem de mim. Tudo isto ocorria pelo fato de
não saber ler e, na maioria das vezes, porque minha prima dava sumiço em meu caderno
fazendo com que eu não fizesse as atividades.
Hoje, eu pergunto: por que será que a professora foi tão dura comigo? Por que às vezes
as pessoas acham que estão certas, quando estão erradas? Por que reprimir e não corrigir?
Por que será que depois de vários anos não esquecemos os males que nos magoaram?
Voltando ao assunto, no ano seguinte, em 1990, fui estudar na 1ª série no mesmo
colégio e com a mesma professora, por sorte não reprovei novamente. Pois, no segundo
semestre letivo, por motivo de doença, ela teve que se ausentar da escola deixando o cargo
para outra professora.
No ano de 1991, passei a estudar na 2ª série, com uma ótima professora (Sebastiana),
que tinha o interesse voltado para a aprendizagem dos alunos. Recordo-me que na 2ª série
cheguei a fazer duas provas finais, uma de Estudos Sociais e outra de Matemática, obtive
bons resultados e, no ano seguinte, estava cursando a 3ª série. Fui aprovada e, em 1993,
fui estudar a 4ª série em outro colégio, já que o ensino oferecido pelo Frei Thiago encerrava na 3ª série.
Então, no ano de 1993, cursei a 4ª série numa escola novíssima, construída em alvenaria,
a escola Dr. Francisco de Paula Leite Oiticica Filho. Em todas as salas de aula sempre há um
brincalhão, e adivinha só quem era a vítima da sala, é lógico que era eu, pois o meu colega
Arnaldo resolveu fazer de mim o palhaço da turma, o bode expiatório, através de gozações,
brincadeiras de mau gosto e piadinhas. Porém, a professora Olivonete sempre dizia a ele que
devemos respeitar nossos colegas, que todos possuem suas diferenças, suas opiniões, suas
Universidade Federal do Acre
125
maneiras de viver e que não podemos ser preconceituosos. Talvez seja por isso que procurei
me espelhar nessa pessoa maravilhosa, não só porque me defendia, mas porque sempre foi
uma excelente professora e um pouquinho mãe de cada aluno.
Para ajudar no sustento de casa, nessa época, durante alguns meses vendi pão doce, o
que era divertido, pois geralmente eu comia o coco ralado que era colocado em cima dos
pães e quando ia vendê-los as pessoas falavam:
– Eu quero o meu com bastante coco.
Eu as olhava e quando já estavam distante eu começava a rir, meditando, pois sabia
que não havia nenhum pão com coco.
Durante o período que estudava na 4ª série pelo fato da minha mãe trabalhar no turno
da manhã, eu tinha que limpar a casa e fazer o almoço que, na maioria das vezes, ficava ruim,
por isso, meu pai jogava fora nos deixando sem comida.
Ao final do ano, passei para a 5ª série, numa situação conflituosa por parte de meu pai
que nos batia muito e nos negava a alimentação. Para ele, eu e meus irmãos éramos preguiçosos e vagabundos que só queriam comer às custas dele sem querer saber de trabalhar.
Minha mãe, sentindo-se humilhada e maltratada pelo o que meu pai fazia conosco,
resolveu entrar numa invasão de terras, hoje, conhecida como o bairro Santa Inês. Após
conseguir o lote, ela construiu um pequeno cômodo e no mesmo ano vendeu, com o dinheiro da venda comprou a chácara que nós moramos atualmente.
Em janeiro de 1994, chegamos à chácara localizada na AC 40 km 11, Ramal Santa
Maria Km 01. Enfrentamos várias dificuldades, morávamos em um casebre feito de tábuas e
coberto de lona. Com o decorrer dos meses, a lona se rasgou e, quando chovia, molhava o
casebre inteiro.
Ensino fundamental: a ânsia de crescer e vencer obstáculos
Nesse período, eu e os meus irmãos Vanildo e Vandir tivemos alguns empecilhos para
estudar. A escola mais próxima da nossa casa ficava a 5 km, e minha mãe não possuía
condições suficientes para arcar com as despesas de transporte. Dessa forma, nos anos de
1994 e 1995, íamos para a escola a pé, várias vezes chegamos encharcados na sala de aula
e a diretora da escola nos emprestava a camisa do time de futebol.
No ano de 1994, quando cursava a 5ª série, infelizmente não consegui realizar o sonho
de dançar quadrilha, pois ninguém queria fazer par comigo por me acharem muito gorda e
feia. Hoje é tarde para realizar um sonho do passado.
No ano de 1997, estava cursando a 8ª série. O governador Orleir Cameli fez a doação
de bicicletas aos alunos que estudavam nas escolas rurais. Ganhei uma, mas não sabia
andar, fui treinando, levei vários tombos até aprender. Andava numa mesma velocidade,
meus colegas costumavam brincar dizendo que eu estava disputando corrida.
Ensino médio: um sonho que almejei na infância
Exalça o Remendão seu trabalho de esteta...
Mestre alfaiate gaba o seu corte ao freguês...
Por que motivo só não pode o Poeta
Elogiar o que fez?
Mário Quintana
126
Caminhadas de universitários de origem popular
No ano de 1998, cursei o 1º ano do ensino médio no Instituto de Educação Lourenço
Filho. Por falta de dinheiro para pagar quatro passagens, tinha que descer próximo ao
Pronto Socorro e caminhar meia hora em direção ao colégio.
Enfrentei várias dificuldades no Instituto, os treze professores exigiam que os alunos
tirassem xerox do material a ser trabalhado. Houve uma professora que exigiu a compra de
um livro, sem ter dinheiro para comprá-lo ou para tirar xerox, desesperei-me. Todavia, meu
colega Marcos, que havia tirado a xerox e logo depois comprado o livro, resolveu doar a
cópia do livro para mim.
No ano de 1999, estudava no 2º ano. Nesse ano, descobri a linda disciplina que amo de
paixão, Literatura, através da professora Iracema Álvares. Professora essa, que nos incentivava a ler, pensar e criar poesias, poemas e contos. Vale lembrar que, com a construção do
Terminal Urbano ainda em 1998, os passageiros que se deslocavam de seus bairros, chegando ao Terminal não necessitavam pagar uma segunda passagem. Assim, no 2º ano, não
havia mais necessidade de ir caminhando do Pronto Socorro até a escola.
Em 2000, fase de conclusão do Magistério, encarei um problema. Fizemos o estágio
e a professora que nos supervisionava exigiu o relatório digitado. Sem saber lidar com
o computador, o único meio viável para resolver o problema foi mandar alguém digitar,
o que custou caro. Entretanto, a vida não é composta somente de problemas, às vezes,
possuímos certos talentos que desconhecemos. Conforme cita Clarice Lispector, “eu nasci
para escrever. A palavra é o meu domínio sobre o mundo. Eu tive desde a infância várias
vocações que me chamavam ardentemente. Uma das vocações era escrever...” no 3º ano,
por intermédio da literatura, a professora Iracema propôs que cada aluno deveria escrever
um conto, que valeria três pontos. Estes contos seriam selecionados, dentre as quatro
turmas (3º A, B, C e D). Os alunos concorreriam ao primeiro, segundo e terceiro lugar,
com direito a uma simples premiação. Os contos foram selecionados e, para minha
surpresa, em um dia do qual o auditório estava lotado, a professora chamou à frente os
ganhadores, eu fiquei classificada em terceiro lugar com o conto A meretriz, recebi
vários elogios não só da professora, mas das demais pessoas que estavam no local, além
disso, ganhei uma caixa de chocolate. Para mim o que valeu a pena não foi o chocolate,
e sim descobrir que eu era capaz de escrever uma história interessante com capacidade de
despertar o interesse de alguém pela leitura, pois depois da premiação algumas pessoas
pediram para lê-lo. Todavia, hoje fico triste porque não tenho este conto comigo, guardo
uma vaga lembrança do que escrevi, uma cópia ficou com a professora. Entrei em
contato com ela, a resposta que obtive foi a de que ela havia feito a doação para a
escola, fui à escola, a secretária me informou que devido à reforma realizada na escola
muitos papéis foram jogados fora. A cópia que ficou comigo eu emprestei para uma
colega que simplesmente depois de haver lido, esqueceu de devolver-me e sem querer
sua irmã jogou no lixo.
Entre lutas e vitórias, terminei o ensino médio, no mesmo ano prestei vestibular para
Letras Vernáculas e obtive um péssimo resultado.
Tempo parado
Em 2001, fui em busca de emprego, recorri a diversos lugares. Tentei montar uma sala
do MOVA (Movimento de Alfabetização), as pessoas não se dispuseram a estudar, sem
alunos, optei pela desistência.
Universidade Federal do Acre
127
Em julho de 2001, soube da notícia de que estava havendo um pré-vestibular no
Colégio de Aplicação com um preço bem acessível, minha mãe pagou, estudei durante
quatro meses. O ano findou, a UFAC estava em greve, por isso não houve a preparação de
provas para o vestibular.
Em fevereiro de 2002, viajei para Porto Velho e morei seis meses e meio com uma tia,
trabalhei cinco meses como diarista na casa de uma artesã. Inscrevi-me no vestibular da
UNIR recorrendo à taxa de isenção, fui isenta parcialmente, prestei o vestibular em Letras
Vernáculas, zerei na prova de redação.
No mês de agosto de 2002, retornei para a casa da minha mãe, procurei um trabalho, o
ano acabou e eu continuava desempregada. Prestei o vestibular no início do ano de 2003,
na UFAC, para Letras Português/Espanhol. Infelizmente, obtive um péssimo resultado.
Ainda nesse ano conheci meu ex-marido, um tremendo Dom Juan, “conquistador
barato”, engravidei no mês de novembro, já não pensava em fazer vestibular novamente.
Certa vez, minha tia Maria de Lourdes perguntou-me:
– Você irá fazer o vestibular?
De imediato respondi:
– Das outras vezes em que estudei bastante não passei, como não estou estudando, é
melhor nem arriscar. Estava naquela fase da música cantada por Zeca Pagodinho:
Deixa a vida me levar, vida leva eu, deixa a vida me levar, vida
leva eu, deixa a vida me levar, vida leva eu, sou feliz e agradeço
por tudo que Deus me deu.
Uma grande vitória, ou melhor, dizendo, um salto para o futuro
No ano de 2004, quando o edital do vestibular foi apresentado, fiz o requerimento
pedindo a isenção, sendo isenta, efetuei a inscrição no curso de Letras Português/Espanhol,
passei na 1ª etapa sendo classificada em décimo sexto lugar.
Na 2ª etapa, estava demasiadamente nervosa, grávida de seis meses e muito chateada
com meu ex-marido que me deixou em casa só, sem gás, sem comida e sem dinheiro para
pagar a passagem. Por sorte, meu irmão Vandir, neste dia, doou-me cinco reais, dinheiro
com o qual paguei o transporte e dirigi-me ao Colégio Estadual de Rio Branco (CERB).
Saí do recinto em que realizei a prova, cabisbaixa, com o pensamento negativo de que
não iria passar. Ao ser divulgado no jornal a lista contendo o nome dos aprovados fiquei
nervosa mas recebi com alegria a notícia da aprovação em vigésimo terceiro lugar.
Com relação ao relógio mencionado no início desse relato, na realidade a vida despertara. Não fora para mim, nem para o insignificante relógio. Pois, nasceu nesse dia o maior
talento e o melhor presente da minha vida, minha querida filha Raquel, eu pude nesse
momento dizer em meu pensamento: sou mãe.
Esse foi um acontecimento que marcou a minha vida, pois ao retornar para casa,
percebi que meu ex-marido havia ido embora.
Eu com minha filha nos braços, sem alimentação e sem gás afligi-me. “Não fique
assim, isso não é o fim. Você tem tanta vida pra viver” (Lília Paz). Às vezes, paro para pensar:
Por que a vida foi tão cruel comigo? Por que tantas dores, tantos sofrimentos? Por que será
que apostei tanto num casamento? Por que será que idealizei uma família feliz, composta
128
Caminhadas de universitários de origem popular
por pai, mãe e filha? Por que será que hoje quero quebrar um tabu e não consigo? Por que
tento viver o que a sociedade impõe e não o que quero?
Uma parte de mim é multidão; outra parte estranheza e solidão
Ferreira Gullar
Nesse momento de aflição a solução veio imediatamente, minha mãe amparou-me.
Após cinco dias, pensando que eu nunca o deixaria, meu ex-marido procurou reatar nosso
casamento. Nas horas em que mais precisamos das pessoas elas nos abandonam, percebi
assim que não havia formas de emendar o que fora quebrado. Para mim, a estátua era de
barro e havia se quebrado, embora fosse colada a rachadura permaneceria.
Meu saco de ilusões, bem cheio tive.
Com ele ia subindo a ladeira da vida.
E, no entretanto , após cada ilusão perdida...
Que extraordinária sensação de alívio!
Mário Quintana
Após esses episódios, pairou em minha mente a seguinte questão: agora como irei
estudar? Quem cuidará da minha filha enquanto estiver na aula?
Mas é preciso ter força, é preciso ter raça é preciso ter
gana sempre
Milton Nascimento
Vida acadêmica
Uma parte de mim é permanente;
outra parte se sabe de repente.
Ferreira Gullar
No dia 27 de setembro de 2004, o 2° semestre letivo começou na UFAC e, para mim,
começava uma nova fase. Minha mãe se dispôs a ficar com minha filha que tinha apenas um
mês de idade e eu comecei a estudar no 1º período de Letras Português/Espanhol.
Chegando a UFAC, notei a deficiência do ensino médio que eu tinha feito. Minhas
condições financeiras eram precárias, sem trabalho e com uma filha para criar, pensei várias
vezes em desistir. Meu maior desespero se deu quando minha filha, eu ainda no 1º período,
pegou coqueluche. Foram muitas noites sem dormir. Muitas vezes, cheguei em casa meia
noite e minha mãe estava com ela nos braços. Muitas vezes, procurei conciliar o sono e não
consegui. Muitas vezes, me senti sozinha trilhando um caminho que pensava não ter fim.
Quantos trabalhos de aula para fazer e eu ali na indecisão do estudo e de uma filha para cuidar.
Após dois meses minha filha ficou curada. Os pedidos de xerox e mais xerox assustavam-me, certa vez procurei a professora Sâmia El-Hassani que ajudou-me bastante no
Universidade Federal do Acre
129
tocante a tiragem de xerox. Várias vezes chorei pensando em desistir, muitas vezes me senti
inútil. Vale ressaltar que, na vida nos deparamos com pessoas que possuem maiores dificuldades que as nossas. Isso foi o que ocorreu comigo, pois encontrei no 1º período o Joaquim
que estava no 7º período, ele incentivou-me a prosseguir na caminhada. Lendo seu memorial,
percebi que a sua história de vida era mais sofrível que a minha.
No 1º período, fiz somente uma NF, sendo aprovada. No 2º período, procurei me
engajar em uma bolsa de pesquisa, mas não consegui. Desta forma, passei a trabalhar como
diarista na casa de minha avó, assim, consegui driblar a falta de dinheiro para tirar xerox.
No dia oito de junho de 2005, no 2º período, quando ia para casa ao sair da aula sofri
uma tentativa de assalto no ramal onde moro (quando desci do ônibus fui abordada por um
rapaz que tentou arrastar minha bolsa, ele puxava para um lado e eu para o outro, de repente
comecei a gritar por socorro, foi então que ele resolveu desistir com medo de que os moradores próximos do local fossem me acudir, caminhei em direção a minha casa muito apavorada). Pensei novamente em desistir do curso, meditei e achei uma resposta. Pedi a uma
senhora amiga, que considero como minha segunda mãe, para ir dormir na casa dela. Com o
seu consentimento, no dia seguinte já estava dormindo lá.
Acredite é hora de vencer, essa força vem de dentro de você...
Acredite que nenhum de nós, já nasceu com jeito pra super-herói,
nossos sonhos a gente é quem constrói, é vencendo os limites,
escalando as fortalezas...
Jamile
Conclui o 2º período, no 3º período tentei conseguir uma bolsa de pesquisa, me
decepcionei, percebi que não tinha capacidade para arcar com tamanha responsabilidade.
Senti-me inferior, com um conhecimento abaixo do nível exigido.
No final do 3º período, minha colega de aula Denízia entregou-me um edital no qual
estava selecionando alunos para o Programa Conexões de Saberes, preenchi, entreguei-o
somente para que ela não ficasse chateada. Pois não possuía a perspectiva de ser selecionada.
Iniciara o 4º período e no primeiro dia de aula recebi a notícia de que o meu nome
estava na lista dos aprovados, mas o sobrenome não era condizente com o meu. Averigüei
e certifiquei-me de que se tratava do meu nome mesmo.
Hoje, estou cursando o 5°período e dependo basicamente da bolsa do Programa
Conexões de Saberes para me manter na UFAC. Já adquiri novos conhecimentos importantes para a carreira profissional, viajei para a cidade maravilhosa, conheci novas pessoas, aprendi que o Programa serve para nos auxiliar dentro da UFAC, cresci bastante através dos cursos de leitura e produção textual e metodologia da pesquisa. Agradeço ao
Programa por todas as oportunidades que me foram concebidas para estar escrevendo
este memorial.
Quero que a estrofe cristalina,
Dobrada ao jeito
Do ourives, saia da oficina
Sem um defeito:
(...)
130
Caminhadas de universitários de origem popular
Porque o escrever — tanta perícia,
Tanta requer,
Que ofício tal... nem há notícia
De outro qualquer.
Olavo Bilac
Nesse instante, estou escrevendo esse memorial por intermédio do Programa Conexões de Saberes, posso afirmar que já plantei uma árvore que morreu, já tive uma filha e
estou escrevendo um texto que fará parte de um livro. Dessa forma, concluo que já realizei
quase tudo na minha vida. Espero futuramente terminar meu curso, fazer uma pós-graduação: mestrado, pois, não custa nada sonhar.
Se as coisas são inatingíveis ora!
Não é motivo para não querê-las...
Que tristes os caminhos, se não fora.
A presença distante das estrelas!
Mário Quintana
Dedicatória
Portanto, dedico este memorial a Deus meu protetor, à pessoa que mais contribuiu
com a minha educação, essa guerreira que vem lutando incansavelmente para educar seus
filhos, minha mãe, dedico também à minha filha Raquel, aos meus irmãos Antonio, Vandir,
Vanicélio, Vanildo e principalmente, a minha irmã Nazaré, à minha orientadora Verônica
Kamel, à minha segunda mãe Maria das Graças, as amigas Valcicléia, Francisca, Irlandia e
Jucileide, as professoras Sebastiana, Olivonete, Elizete, Iracema e Simone Lima, que muito
contribuíram para o meu crescimento profissional e que de certa forma marcaram minha
vida e ao meu pai.
Assim, concluo essa minha breve história de vida, afirmando que nunca devemos
desistir de nossos sonhos, pois não há vitórias sem lutas e a vida tem mais sonhos do que
pensamos.
Quem espera que a vida seja feita de ilusão pode até ficar maluco
ou morrer na solidão. Se o bem e o mal existem você pode escolher
é preciso saber viver, é preciso saber viver, é preciso saber viver,
saber viver.
Roberto Carlos
Universidade Federal do Acre
131
Minha vida
Vicente de Andrade Chagas Neto*
Alfabetização (5 anos)
Comecei a estudar quando tinha cinco anos de idade, na Escola Pequeno Príncipe.
Ainda me lembro de algumas pessoas que estudaram comigo nesse tempo. Hoje, algumas
também estão estudando na UFAC. Lembro-me da professora que deu aulas para mim, a
Tia Marta, uma ótima professora, tinha uma enorme paciência com todos na sala. Também
me lembro de um fato engraçado. Vou contar para vocês.
Recordo-me que certa manhã, na escola, estava assistindo aulas e, logo após o
recreio, quando entramos para a sala, nos dividimos para sentar ao redor de duas mesas
retangulares bem grandes, uma menina se sentou ao meu lado, ela era gordinha, morena
e tinha mais ou menos a minha idade. Enquanto a professora estava dando aula, a garota
começou a conversar comigo e a me alisar, passando a mão em minhas pernas. A princípio nem liguei, mas a menina, querendo chamar minha atenção e ainda conversando
comigo, colocou sua perna esquerda em cima da minha perna direita, permanecendo
assim durante certo tempo. Não me importando com este fato, pedi à professora para ir
ao banheiro, ela me liberou. Logo em seguida, a garotinha que estava tentando me
seduzir também pediu à professora para ir ao banheiro e ela deixou. Quando estava
prestes a fechar a porta do banheiro masculino, a menina entrou no mesmo banheiro que
eu e trancou a porta, também não dei a mínima e comecei a “mijar” não me importando
com sua presença, Então ela disse:
– Vou fazer xixi também.
Abaixando sua roupa ela também “mijou” não se incomodando com a minha presença
no banheiro. Depois disto, começou a falar comigo, não me lembro exatamente suas palavras, recordo apenas que ela novamente começou a me alisar e desta vez passando suas
mãos em meus peitos. De repente, escutamos batidas na porta do banheiro. Era a professora
Marta batendo na porta, Abri e a Tia perguntou:
– O que vocês estavam fazendo hein?!
– Nada Tia, não fizemos nada, falei para a professora.
– Então, voltem já para a sala!
– Sim senhora, respondi e todos nós voltamos para a sala.
Acho muita graça de toda essa história.
*
Graduando de Sistemas de Informação da UFAC.
132
Caminhadas de universitários de origem popular
No final do ano, organizaram uma festa para comemorar a entrega dos diplomas da
alfabetização, não me lembro o local, me recordo somente que era um salão coberto, bem
grande. Tive que comprar roupas novas, pois a festa era “de trajes” a caráter, meus pais
compraram uma calça preta, uma blusa social de mangas compridas e um sapato preto que
ficou apertado no meu pé, que me incomodou muito antes, durante e depois da festa, Fiquei
com vários calos no pé. No local, tinha bastante comida, pessoas conversando e, claro,
crianças correndo para cima e para baixo o tempo todo. Na hora de entregar os diplomas,
todos os meninos e meninas subiram ao palco, um a um os diplomas foram sendo entregues
aos ex-alunos da alfabetização.
Foi a única formatura que tive em toda minha vida escolar até hoje. Por enquanto,
pois daqui a alguns... 5 ou 6 anos (cálculo feito com as greves que irão acontecer nas
Universidades e, claro, com as disciplinas que irei reprovar...) terei meu(s) diploma(s) de
Ensino Superior, pois pretendo ter 2 diplomas de Ensino Superior.
Primeira série (6 anos)
Estudei a 1ª série na Escola Batista Fernanda Trimble, localizada no centro da cidade. Era
uma escola particular bem famosa e com bastante renome pela cidade, pois a maioria dos alunos,
que estudavam lá, tinha um poder financeiro considerado de bom a ótimo, na minha percepção.
Durante esse tempo estudando lá, aprendi o conteúdo normal da série, pois o ensino
era bom e também não era muito de fazer bagunça (pelo menos, acho que não), pelo contrário, era muito quieto, sempre procurava manter a minha atenção durante as explicações da
professora Aurenice, ela era morena baixa e tinha cabelos curtos, gostava muito dela.
Nessa escola, tínhamos aula de religião. Durante essas aulas, ficávamos cantando
músicas que falavam sobre Deus e as figuras bíblicas. Conheci alguns colegas e de vez em
quando vejo alguns por aí. Uma das coisas que me marcou e me marca até hoje é o fato de
não ter dinheiro para poder lanchar na hora do intervalo. Meus pais davam um duro danado
para pagar a escola em dia, no final acabavam atrasando algumas mensalidades, e raramente
sobrava algum “troco” para o lanche, era chato ver as pessoas comendo e você ali, não
tendo dinheiro para comer e morrendo de fome vendo aquilo tudo... fazer o que, o pior já
passou. Para “me enganar” e fazer a fome passar, brincava com meus colegas de qualquer
coisa, fazíamos bolas de sacos vazios de refrigerante, íamos perturbar a paciência das meninas para fazê-las correr atrás de nós, ou até mesmo perturbava as garotas sozinhas e ia
bagunçar com elas, ou brincávamos da manja, do pega (conhecido como “pega-pega”). No
final de tudo dava certo, o tempo passava, não sentia fome (não naquele momento). Em
compensação, quando voltava para casa, era uma destruição total. Eu e meu irmão, Júnior,
que na época tinha 4 anos, comíamos tudo, também estávamos famintos após a aula e
comíamos muito.
Segunda série (7 anos)
Nesta série, também estudei na Escola Batista Fernanda Trimble, durante o período
da manhã. Antes, estudávamos num lugar perto de uma Igreja Batista (localizada no
Centro da cidade de Rio Branco) depois fomos transferidos para a sede original (onde
hoje funciona o colégio Pingo de Ouro), um lugar mais amplo que o antigo e reunia todas
as séries que a escola oferecia, da 2ª série à 8ª série do ensino fundamental e do 1º ano até
o 3º ano do ensino médio.
Universidade Federal do Acre
133
Tive aula com a professora Geane, morena alta e cabelos longos meio cacheados, a
sala de aula localizava-se no térreo, de um total de 3 andares, próximo à entrada/saída da
escola, neste ano, não tive nenhum fato engraçado, foi um ano normal. Ainda sofria com o
problema de não poder lanchar como as outras crianças, não estava acostumado ainda; com
isso, usava a mesma tática do ano anterior, ou ia perturbar a paciência das meninas ou ia
brincar com meus amigos na parte interna da escola, um pátio destinado para os intervalos.
Terceira série (8 anos)
Continuava estudando na Escola Batista Fernanda Trimble, no período matutino e no
mesmo prédio, conheci a professora Eneida Paiva, pele clara, baixinha e cabelos curtos. Sua
sala ficava no térreo da escola e seguindo a tendência natural da minha vida, nesta série,
também, não teve nenhum acontecimento que marcou a minha vida escolar. Mas tive um
fato particular que marcou minha vida, foi a separação dos meus pais. Uma noite, eles
ficaram conversando durante muito tempo no quarto deles. Eu sabia que ia acontecer alguma coisa de ruim, por isso eu e meu irmão escrevemos um bilhete para eles e colocamos em
seu quarto por debaixo da porta, eles leram e ficaram felizes, mas já sabia que vinha uma
notícia ruim.
Quando eles disseram que não iam ficar juntos, não perguntei nada aos dois, só pensei
na seguinte situação: “E agora? Vou ficar com quem e meu irmão vai ficar com quem?”.
Depois de uma conversa entre o Pai e a Mãe, ficou combinado que eu e meu irmão iríamos
continuar morando na casa junto com a Mãe e o meu Pai iria procurar um lugar para morar.
Depois do 1 mês, meu Pai alugou uma casa no Conjunto Universitário, longe do
centro da cidade, cerca de 30 minutos de ônibus, uma casa com uma varanda grande e o
quarto bem grande também. Durante a semana, ficávamos na casa da Mãe, ela ia nos deixar
na escola e ia trabalhar, depois, vinha nos pegar na porta da escola, de vez em quando
almoçávamos em um restaurante no centro da cidade, perto da escola. Logo em seguida, a
Mãe ia até a parada de ônibus para eu e meu irmão irmos para casa e ela voltar a trabalhar.
Ela trabalhava no mesmo lugar que meu pai, ele tinha um escritório de contabilidade
no centro da cidade que levava meu nome, Escritório Contábil Chagas Neto e minha Mãe
trabalhava como secretária neste local. Após certo tempo, minha Mãe recebeu uma proposta
bem interessante, trabalhar com exportação de palmito de açaí, só que ela tinha que escolher entre ficar com os filhos ou tentar construir sua própria vida. Acabou optando pela
segunda opção e fomos morar com meu Pai.
Nesse meio tempo da separação do meu Pai e da minha Mãe, o Pai teve algumas namoradas e acabou “ficando sério” com uma mulher chamada Andréia. Ela tinha um filho, o
Wellington, um moleque bem chato e insuportável. Tinha um mau pressentimento sobre essa
tal de Andréia, mas fazer o que... meu Pai disse que gostava dela e tínhamos que respeitá-la.
Bom, já que o Pai disse, tivemos que obedecer à risca suas ordens. Com o decorrer do tempo,
fui me acostumando com ela, mas não com o Wellington, que era UM SACO!!!
Quarta série (9 anos)
Cursei a 4ª série no período da manhã, na escola pública Dr. Mário de Oliveira, localizada no centro da cidade de Rio Branco. Senti algumas diferenças na transição de uma
escola particular para uma escola pública, começando pelo material didático, que considerava uma chatice, pois para responder os exercícios tinha que escrever tudo no caderno e
134
Caminhadas de universitários de origem popular
não estava acostumado a fazer isso, mas a principal mudança foi que não passava mais fome
na hora do intervalo, a escola oferecia merenda escolar. Para mim, foi uma felicidade imensa, porque sempre fui gordinho e gostava (ainda gosto) de comer muito, só que tinha dias
que a merenda era muito ruim, não comia nada e voltava à estaca zero. Minha professora
chamava-se Estelita, era morena, estatura mediana e cabelos daquele tipo “bombril” curtos.
Eu, meu irmão Júnior e o mala do Wellington estudávamos na mesma escola. Nessa época,
meu Pai tinha mudado (e nós também) para uma casa perto de onde minha avó paterna
morava no Bairro São Francisco, próximo do centro uns 20 minutos andando a pé, apesar de
a escola ficar perto de onde nós morávamos, meu Pai ia nos deixar e buscar de carro.
A casa onde morávamos ficava bem ao lado de um campo de futebol, conhecido como
Campo do Barata (Barata, assim era conhecido meu avô paterno, Vicente de Andrade Chagas e meu Pai que gostava muito de meu avô fez uma homenagem a ele me batizando de
Vicente de Andrade Chagas Neto), e a casa da minha avó paterna, Dona Beatriz, ficava ao
lado da casa de meu Pai, só que um pouco longe uma da outra (cerca de uns 75m). Lá, tem
um campo de futebol grande, uma quadra de futsal e um campo de futebol pequeno onde
jogávamos a tarde toda.
O ano de 1997 marcou bastante minha vida não somente pela separação dos meus
pais, mas também por uma coisa que mudou completamente o rumo da minha vida. Certa
vez, meus amigos me chamaram para um lugar, fiquei com dúvidas, mas depois de pensar
um pouco resolvi ir com eles, não era muito longe de casa a locadora de videogames. Nunca
imaginei que eles poderiam me levar para aquele lugar, eles pagaram desta primeira vez,
afinal eu não tinha dinheiro, e jogamos aproximadamente por 1 hora, foi o suficiente para
que virasse um vício. Toda tarde, após terminar de fazer os exercícios da escola, pegava
dinheiro com meu Pai e ia para a Central Games usar a “droga”, o tempo foi passando e fui
ficando cada vez mais viciado, até que pedi para o meu Pai que ele comprasse um videogame
para mim, um Super Nintendo.
Ele me deu isso de presente de aniversário. Nossa! Fiquei tão feliz! Não ia ter que
gastar dinheiro para poder jogar. Com o videogame em casa, não fazia os deveres da escola
e, conseqüentemente, fui tirando notas baixas na escola, o Pai sabendo disso colocou-me de
castigo, proibindo de jogar o Super Nintendo durante 1 mês, além de ter me dado um sermão
imenso por ter tirado notas baixas na escola e, principalmente, por não deixar o Juninho
(meu irmão) e o Wellington jogarem o videogame. Sabendo do meu erro, passei o mês todo
sem chegar perto do “vício”, mas doido para jogar.
Voltando à minha vida escolar, meu Pai colocou-me nesta escola, porque havia a possibilidade de no próximo ano estudar no colégio Acreano, um colégio tradicional de Rio
Branco e que era referência de ensino na cidade. Era muito difícil entrar naquele colégio.
Lembro que meu Pai contou para mim e meu irmão a seguinte frase: “Eu tenho diabetes, do tipo menos grave, ela não tem cura, vou tomar muitos remédios e não vou poder fazer
coisas que fazia antes. Mas quero que saibam de uma coisa: (e ele sempre dizia isso para
nós) Eu amo vocês dois. Amo muito vocês”.
Quinta série (10 anos)
Era para terem me matriculado no Colégio Acreano, mas depois fiquei sabendo que
esqueceram meu nome na lista dos alunos que iriam estudar naquele colégio. Bom, minha
tia paterna disse que tinha uma escola muito boa e que o ensino era muito bom, já a minha
Universidade Federal do Acre
135
mãe queria que voltássemos para o Colégio Batista Fernanda Trimble. No final de tudo,
meu Pai nos matriculou, eu, o Juninho e o mala do Wellington, na escola Associação
Modelar de Ensino – A.M.E. Era o início do antigo Ginásio, iria começar a estudar matérias
com professores específicos e a minha madrasta, Andréia, dizia que era uma série bem difícil
e realmente foi. Tive muita dificuldade em Matemática e Português, nas disciplinas de
Ciências, Geografia e Educação Artística (Artes) não tive muitas dificuldades, e nas outras
disciplinas, Inglês e Educação Física, obtive um maior aproveitamento.
Na disciplina de Educação Física, fiz parte do time de futsal da escola. Fico me perguntando até hoje como consegui entrar nesse time, pois era gordo. O time participou até de
um torneio de futebol de campo, o resultado pode-se adivinhar... perdemos os 2 jogos
iniciais e não nos classificamos para a fase seguinte do torneio. Estava difícil de continuar
estudando naquela escola, na maioria das vezes, não tinha material para fazer os trabalhos
de educação artística e sabia que meu Pai atrasava a mensalidade. No final de tudo, consegui concluir a 5ª série.
Sexta série (11 anos)
Através de um contato do meu Pai, consegui uma vaga no Colégio Acreano. O colégio
referência da cidade! Desta vez, estudei no período da tarde e, a partir dessa série, comecei
a andar de ônibus sozinho.
No começo foi difícil me acostumar com a idéia de não poder brincar com meus
colegas durante a tarde como fazia antes, mas sabia que estava fazendo um investimento
precioso na minha vida escolar. Tudo corria normalmente, até que contraí pneumonia e
fiquei afastado da escola por, aproximadamente, 1 mês, estava mal no hospital, mas consegui me recuperar. Quase fico reprovado, porém consegui superar esses problemas e passei
de ano sem reprovar nenhuma matéria.
Sétima série (12 anos)
Consegui me transferir de turno e voltei a estudar no período da manhã e voltar à vida
normal que levava. Acordava de manhã cedo, estudava de manhã, chegava a minha casa
entre 11 horas e meio dia para almoçar e, à tarde, fazia os deveres de casa para depois ir jogar
bola no campo ao lado de casa, quando estava com meu Pai. Tudo estava indo bem, mas
como diz um vídeo na internet, “a vida é uma caixinha de surpresas”*..., percebi que a
doença que meu Pai tinha estava piorando, ele tomava muitos remédios, mais do que,
normalmente, costumava consumir.
Antes, meu Pai raramente ia ao hospital e quando ia era para fazer exames de rotina,
mas estava piorando de tal forma que de vez em quando dormia no hospital. Estava achando
estranho, meu Pai tinha uma vida saudável até então, praticava esportes todos os sábados
no campo do Barata e trabalhava normalmente, era sempre alegre, brincalhão com todos ao
seu redor e de repente o vejo ter que andar de máscara cirúrgica dentro da sua própria casa
e tendo que ir dormir no hospital.
*
Procurar no site www.youtube.com por “Joseph Climber”
Minha Mãe, sabendo da situação de meu Pai, disse para eu e meu irmão arrumarmos
nossas coisas e voltarmos para a sua casa. Meu Pai concordou imediatamente e nos disse
para irmos para a casa dela. Logo em seguida, meu Pai viajou para Goiânia para se tratar
melhor. Passou um mês que meu pai estava fora de Rio Branco, meus parentes que foram
136
Caminhadas de universitários de origem popular
com ele, não me lembro quem foi exatamente, não nos davam notícias sobre a sua saúde,
passaram-se dois meses e, raramente, chegava informação da saúde dele. No fundo, já sabia
que a situação dele não era nada boa.
Até que certo dia, minha Mãe fez um suco muito forte de maracujá para eu e o Juninho
tomarmos. Então, ela disse: – “Neto e Júnior, venham aqui tomar um suco de maracujá que
mamãe fez para vocês”. Imediatamente, pensei em meu Pai, já imaginava que ela ia dá
alguma notícia ruim, mas fui mesmo assim para tomar o suco que ela fez.
Chegando à cozinha de casa, olhei para a mesa e para os dois copos de suco. Meu
irmão tomou normalmente, eu não queria tomar o suco, pois já imaginava o que ela iria
dizer, já estava preparado para a notícia ruim que viria, ela insistiu para que eu tomasse o
suco e eu tomei. Ela disse que a situação do meu Pai não era nada boa, disse para nos
prepararmos para o pior. No dia 22 de fevereiro de 2000, às 9 horas da noite, vitimado de
falência múltipla de órgãos, hepatite B, insuficiência renal aguda e S.I.D.A. (Síndrome da
Imuno Deficiência Adquirida – AIDS), aos 36 anos de idade morre o contador Aderbal
Haidano de Almeida Chagas, filho de Vicente de Andrade Chagas e de Maria Beatriz de
Almeida Chagas. Meu Pai é enterrado no cemitério São João Batista no dia 24 de fevereiro.
Em épocas diferentes, o dia 24 de fevereiro marcou a vida de minha mãe, pois nesse dia
aconteceram 3 coisas:
• O meu Pai pede a separação no casamento;
• O meu Pai é enterrado no cemitério São João Batista;
• E é o dia do aniversário da minha Mãe.
Lembro que nesse dia chorei muito, lembro até hoje do rosto pálido de meu Pai no
caixão com seus olhos semifechados e sua boca semi-aberta, lembro das palavras da minha
tia paterna, Herles, ela havia dito o que meu Pai disse para ela: – “Mana, eu tentei criar meus
filhos da melhor forma possível, eu tentei Mana, eu tentei...”, quando essas palavras saíram
de sua boca, chorei o que nunca tinha chorado em meus 13 anos de existência.
Lembro porque meu Pai dizia constantemente que me amava e amava meu irmão,
entendo porque ele mentiu para nós, dizendo que tinha diabetes, quando na verdade ele
havia contraído AIDS, lembro, principalmente, do show que a Andréia fez no velório,
dizendo aos gritos que o amava, fazendo o maior barraco. Mas porque ela estava de mãos
dadas com outro homem e fazendo esse escândalo todo?
Bom, depois de uns meses da morte do meu Pai, a Andréia deu luz a um bebê, é de se
perguntar: Como ela teve essa criança, se meu Pai tinha AIDS e, teoricamente, ele não podia
ter filho do jeito mais comum (sexo sem camisinha) e não tinha dinheiro para fazer uma
fertilização artificial? Não vou esquecer o que ela fez com o que eu e meu irmão “tínhamos” de direito. Tomou praticamente tudo o que meu Pai tinha, que era o escritório de
contabilidade. Não se conformando com o que tinha feito, simplesmente, fechou o escritório, não tirando proveito e não deixando ninguém tirar proveito do escritório.
As únicas coisas que “sobraram” para mim e meu irmão foram: uma blusa que meu Pai
usava para jogar futebol, uma blusa de botão de mangas curtas azul, que ele me deu uma vez
para dormir, um relógio, que minha Mãe tinha dado para ele, e um celular, que a Andréia
não roubou, porque estava no nome do meu irmão. Mas o que aquela “puta” não vai roubar
de mim e ninguém vai tomar é o que ele me ensinou, a criação que tive com ele, as lembranças que tenho dele.
Universidade Federal do Acre
137
Após a morte de meu Pai, os parentes paternos nunca vieram nos prestar algum tipo de
solidariedade e nos esqueceram. Somente um amigo do meu Pai veio nos visitar, ao invés
deles. Os seis meses seguintes foram bastante difíceis, pois ele nos ajudava bastante quando
faltava alguma coisa ou para mim ou para o Juninho, ele dava um jeito de comprar. Para
piorar, minha Mãe ficou desempregada. Como toda Mãe, ela deu um jeito e comprou aquele
kit que vende na televisão. O Disk-Biju e conseguiu segurar as pontas em casa, até eu
concluir a 7ª série.
Oitava série (13 anos)
Estudei no Colégio Acreano no período da manhã, não aconteceu muita coisa neste
período, apenas me lembro que na prova de matemática ninguém tirava a nota máxima.
Todos diziam que não era possível tirar a nota máxima na prova. Foi então que fui desafiado
a alcançar este objetivo e surgiu uma idéia de uma aposta, quem perdesse ia fazer o que o
vencedor desejasse, na mesma hora aceitei a aposta. Não tinha nem estudado para a prova,
confiante que iria conseguir um “10 fácil”, “mas a vida é uma caixinha de surpresas” e
quando saiu o resultado da prova, nem eu e nem meu colega, tínhamos tirado a mesma nota,
como ele era mais esperto que eu, ele disse que perdi e tinha que pagar a aposta e o trouxa
(eu) concordou, ele me deu duas opções: ou escrevia de batom vermelho na testa “eu sou
gay” ou passava batom vermelho nos lábios. Todas as opções eram extremamente ridículas,
poderia simplesmente não pagar a aposta, mas como era um homem de palavra, optei por
passar o batom vermelho nos lábios, tive que descer na hora do intervalo para o pátio do
colégio. Foi bastante humilhante, todos que me viram de batom vermelho nos lábios riram
de mim, fazer o que...
Primeiro ano (14 anos)
Estudei no Colégio Estadual de Rio Branco – C.E.R.B. que depois mudaria de nome
para Colégio Estadual Barão do Rio Branco – C.E.B.R.B. no período da manhã. No começo,
foi um pouco difícil me acostumar com as coisas novas que estava aprendendo, mas logo
me adaptei a esta realidade. Neste ano, disputei as Olimpíadas Escolares jogando pela
equipe de vôlei do Colégio. Ganhamos os jogos iniciais, conseguimos nos classificar para
as semifinais, mas perdemos para a escola José Rodrigues Leite. Saímos daquele torneio
com a medalha de bronze ganhando da escola João Aguiar. O restante do ano foi tranqüilo
e consegui completar o 1º ano sem dificuldades.
Segundo ano (15 anos)
Continuei estudando no período da manhã. Não continuei no time de vôlei do
colégio porque havia conseguido um emprego com contrato de 11 meses, estudava de
manhã, trabalhava à tarde e chegava à noite em casa. Nesse tempo, já sabia mais ou menos
o que gostaria de fazer para o vestibular, estava em dúvida entre Educação Física ou
Sistemas de Informação.
Terceiro ano (16 anos)
Continuei estudando no C.E.B.R.B. durante a manhã, já tinha escolhido tentar o
vestibular para o curso de Sistemas de Informação, pois era fascinado por tecnologia e,
claro, com a idéia de trabalhar na área de desenvolvimento de jogos eletrônicos, seja para a
138
Caminhadas de universitários de origem popular
internet ou para uso doméstico. Foi a parte mais fácil de toda a minha vida escolar até agora,
era tão fácil que chegava a matar aula para jogar videogame, anteriormente nunca pensava
nessa possibilidade. Justamente por ser fácil a vida no C.E.B.R.B. que pedi a minha mãe
para pagar um pré-vestibular particular, como ela não tinha condições de pagar sozinha, pedi
para a minha avó paterna para dividir os custos do pré-vestibular. Minha avó concordou
e pagou o pré-vestibular, juntamente com minha mãe, até o dia das provas do vestibular.
O dia D
Não me lembro com exatidão o dia das provas do vestibular, me lembro que as avaliações ocorreram em um domingo e em uma segunda-feira. No dia anterior às provas, que
iriam decidir o rumo de minha vida, estava bem tranqüilo, apesar de não me sentir pronto
para fazer as provas, mas o tempo não pode parar. E, no domingo, fui fazer o primeiro dia de
provas do vestibular e me lembro que não fiquei nervoso em nenhum momento da prova,
entreguei a prova faltando uma hora antes de acabar o tempo.
Procurava não pensar no dia seguinte e nem que iria fazer as provas do vestibular,
procurava pensar que ia fazer uma prova normal do C.E.B.R.B. No dia seguinte, fui fazer o
último dia de provas, também não senti nenhum tipo de nervosismo e entreguei a prova
faltando uma hora antes do horário limite. Lembro de ter passado umas questões erradas
para o gabarito oficial, mas nem esquentei com isso. As pessoas me perguntavam como
“tinha me saído” nas provas do vestibular eu respondia que não sabia, não tinha certeza se
tinha me dado bem ou não.
O resultado preliminar da Comissão Permanente de Vestibular – COPEVE foi divulgado e apontava que eu tinha ficado, após as provas, na 15ª colocação entre 900 e poucas
pessoas. Fiquei muito feliz e meus amigos e parentes também ficaram, mas não podia deixar
a empolgação subir a minha cabeça, sabia que tinha vencido uma batalha, mas não a guerra,
sabia que ia enfrentar a fase mais difícil do vestibular em minha opinião: – a redação.
Logo após a divulgação do resultado da primeira fase, procurei o mesmo curso prévestibular e me inscrevi no curso de redação. Quando começou o curso de redação, foi
oferecido dois professores para dar aulas: uma professora e um professor. A professora tinha
uma aula pouco interessante, mas o professor não, para ter uma noção, nas suas aulas a sala
ficava lotada, literalmente não cabia mais ninguém. Não faltei a nenhuma aula de redação.
O tempo foi passando e o dia da redação foi chegando. Neste dia, fiquei muito nervoso, a ponto de esquecer os documentos necessários para fazer a prova, achava que não ia
fazer a prova e fiquei me tremendo de medo, já estava pensando na “esculhambação” que
iria levar da mãe por isso, mas, no final de tudo, consegui fazer.
Estava ansioso pelo resultado, com medo de não passar, pelo fato de ter esquecido
os documentos e pelo fato de ser o 15º colocado na 1ª fase, bastava não zerar na redação
para garantir meu lugar na UFAC. Lembro que tinha saído para uma pizzaria, pois a minha
mãe estava lá e disse para eu ir imediatamente até ela. Chegando lá, encontro um amigo
dizendo que o resultado já tinha saído na internet. Não pensei duas vezes e fui para casa
ver o resultado. Em casa, vendo a lista de aprovados, que estava por ordem do código dos
cursos e o curso de Sistemas era um dos últimos da lista, procurava meu nome. Já estava
triste por ter chegado quase ao fim da lista, quando olho novamente e vejo o último nome
da lista do curso de Sistemas de Informação o meu nome – Vicente de Andrade Chagas
Neto - 15º lugar.
Universidade Federal do Acre
139
Comecei a pensar em meu pai, imaginando ele me dando os parabéns, dizendo: “Valeu
campeão!!! Você conseguiu!!! Parabéns!!!”, pensando na felicidade dele estando ao meu lado
nesse momento da minha vida. Foi inevitável, as lágrimas começaram a cair de meus olhos,
finalmente havia vencido a guerra. Sentia-me vitorioso, afinal tinha feito um acordo com
minha mãe, que se fosse aprovado entre os 20 primeiros lugares ganharia meu Playstation 2,
pois enquanto estudava o 3º ano matava algumas aulas para jogar nas locadoras.
Atualmente...
Estudo o 4º período do Curso de Sistemas de Informação na Universidade Federal do
Acre, em momento algum me arrependo de escolher esse curso, que apesar das dificuldades
tanto quanto à falta de estrutura do curso e o nível de dificuldade exigido do mesmo, estou
extremamente feliz pela a escolha certa. Sou bolsista do Conexões de Saberes, desde
junho/2006 e fico honrado por participar de um projeto que tenha esse objetivo geral de
elaborar políticas públicas para estudantes de origem popular e fico feliz por um motivo
principal, por conhecer uma pessoa muito especial que mudou minha vida, a esta pessoa
gostaria de dizer uma coisa:
“As pessoas entram e saem de nossas vidas por acaso, mas não permanecem, por
acaso.”
Muito obrigado por aparecer em minha vida Sheyla.
140
Caminhadas de universitários de origem popular
Yara Gomes da Silva*
Minha autobiografia
Minha origem
Vim de uma família simples, mas apesar de não ter sido criada por meus pais, nunca me
faltou amor e carinho por parte dos mesmos. A separação de meus pais fez com que eu fosse
morar com minha tia, já aos dois anos de idade, mas sempre mantive contato com eles.
Início da minha caminhada estudantil
Comecei a estudar aos cinco anos de idade, na escola Chapeuzinho Vermelho, em
Sena Madureira, onde tive uma professora muito meiga e carinhosa, que até hoje trabalha
naquela instituição. Aos seis anos de idade, comecei a cursar o ensino fundamental na
Escola Estadual de Ensino Fundamental Siqueira de Menezes, onde fiz da 1ª a 8ª séries.
Nessa mesma escola, minha tia trabalhava e trabalha até hoje como secretária. Quando
estava na 6ª série, minha prima foi minha Professora de História (hoje, graduada na área).
Sempre tirava boas notas na disciplina dela e meus colegas reclamavam, alegando que isso
acontecia pelos nossos laços familiares. Também fui coroinha dos meus 8 aos 12 anos.
Em 1997, fui conhecer minha família paterna, no Rio Grande do Norte, foi uma viagem
inesquecível, além de conhecer meus avós, tios, primos, conheci o mar e me diverti muito...
A fase mais difícil da minha vida
Quando eu estava na 6ª série, em 1998, aconteceu um fato muito triste: minha mãe havia
desaparecido. No começo, não acreditei, pois ela já chegou há passar dois dias sem dar notícias, devido ao fato dela ser alcoólatra e dormir em casa de amigos. Ainda tinha esperanças
quando me disseram que, provavelmente, ela havia se afogado nas águas do rio Acre
Isso aconteceu pelo fato dela ter depressão. Quando veio para Rio Branco para se
tratar, aproveitou-se de um descuido da família e saiu de casa dizendo que ia para a casa de
uma amiga e nunca mais voltou. Durante 3 dias, a equipe do corpo de bombeiros fez várias
buscas pelo rio, mas sem sucesso, pois na época o rio estava cheio.
Acreditamos que ela já vinha planejando isso, pois, em momentos de crise, ela confessou para uma sobrinha que tinha vontade de pôr fim na própria vida.
Foram momentos de muita dor, sofrimento e angústia. Tinha pena do meu irmão,
pois, nesta época, ele tinha apenas 4 anos de idade e não entendia o que estava acontecendo. Todos nós (familiares) sofríamos e sofremos até hoje, pois a dor se torna maior
*
Estudante do curso de Engenharia Florestal da UFAC e bolsista do projeto Conexões de Saberes.
Universidade Federal do Acre
141
pelo fato de não termos certeza do que realmente aconteceu, e se aconteceu, que é o que
realmente pensamos, continua a dor, porque não tivemos nem o corpo dela para aliviar
o sofrimento.
As amizades e professores
Em 2000, comecei a estudar no 2º grau na Escola Estadual de Ensino Médio. Dom
Júlio Mattioli, fiz muitas amizades, nunca fui de fazer bagunça, motivo que faz minha tia ter
orgulho de mim, já que ela nunca foi chamada na escola para receber reclamações minhas.
O meu 2º grau, atual ensino médio, foi tranqüilo, sei que foi a época em que fiz muitas amizades,
mas nunca esqueci os antigos amigos do ensino fundamental, mantenho contato com alguns
até hoje, como também não esqueci os do ensino médio, todos moram no meu coração,
nunca vou esquecê-los.
Em relação aos professores, tive os bons e os regulares, gostei muito da minha professora de português da 6ª série, explicava muito bem, dava gosto assistir as aulas dela, sempre
tirava boas notas. Lembro-me que em uma prova, tirei 6,5 (não sei o porquê) ela escreveu
embaixo da prova: “O que aconteceu, Yara?” Fiquei muito triste, mas não desanimei.
Minha tia sempre priorizou a educação para nós, pois ela como educadora sabia que
isso era de fundamental importância para nossas vidas. Ela deixou de prosseguir seus
estudos para nos dar a oportunidade de estudarmos sem ter que trabalhar. Nessa época, já
éramos seis, pois a minha prima, que estava concluindo o 3º grau, já estava com três
filhos.
A escolha do curso e a preparação para o vestibular
Terminando o ensino médio, chegou à hora de pensar em um curso para o vestibular,
fiquei indecisa entre Biologia e Engenharia Florestal, mas Letras também me fascinava...
mas no fim, optei por Engenharia Florestal. Estudei sozinha em casa, pois foram poucas as
minhas amigas que prestaram o vestibular naquele ano.
Além dos meus esforços, pedia muita sabedoria e discernimento a Deus, pois sempre
confiei nele. Toda a minha família orava muito por mim, e se hoje estou na universidade é
graças a Deus.
Estava em casa, quando minha tia ligou dizendo que eu havia passado na primeira
fase do vestibular no curso em que eu havia optado que foi Engenharia Florestal, pensei que
fosse brincadeira, mas era a pura realidade, fiquei muito feliz e confiante para a segunda
fase, pois sempre gostei de desenvolver textos.
Estudei, aprendi novas técnicas de redação e, ansiosa, fui fazer a prova de redação da
segunda fase. Quando saiu o resultado mal pude acreditar, tinha passado e subido mais seis
posições, foi uma festa só! Todo mundo lá em casa pulava de alegria, principalmente minha
tia, parecia até que era ela quem tinha passado.
Com a alegria, surgiu a primeira dificuldade: para estudar teria que vir para a capital e a
preocupação da minha tia seria a de ter um lugar para que eu pudesse morar, pois ela não tinha
condições nem de alugar uma casa. Foi então que uma tia (a mesma que me deu a notícia de
que eu havia passado) ofereceu sua casa da capital. Só que eu teria que morar sozinha.
Como somos muito católicos, fizemos um momento de oração, lá em casa, em forma
de agradecimento a Deus pela graça alcançada, foi muito bom, mas ao mesmo tempo, já
parecia uma despedida.
142
Caminhadas de universitários de origem popular
A entrada na Universidade
No primeiro dia de aula, não estranhei muito, pois todos estavam na expectativa,
como eu, tudo era novo....mas com o passar do tempo, a saudade de casa foi aumentando. A
adaptação à nova rotina durou todo o primeiro período, foi muito difícil, pois sou muito
apegada á família, e como sou um pouco tímida, o entrosamento com a turma só veio a partir
do segundo período.
A descoberta do Conexões
Quando já estava no terceiro período do curso, um Professor avisou à turma sobre o
programa Conexões de Saberes, explicou o que era e como iria funcionar o projeto. Eu e
mais dois colegas nos interessamos e fomos pegar o formulário e preenchê-lo. Depois de
mais ou menos um mês, meu nome estava na lista dos classificados. Na mesma semana, me
ligaram da Pró-Reitoria, avisando sobre uma reunião com os aprovados e os classificados,
nessa mesma reunião, assinei o meu contrato.
Tenho os meus colegas do Conexões como minha família, gosto de todos, sem distinção, espero que sempre seja assim. A cada dia que passa aprendo sempre coisas novas.
Universidade Federal do Acre
143
Yasmin Lemkull Damasceno*
Memórias: busca do meu eu
A minha vida, eu preciso mudar todo dia
Pra escapar da rotina dos meus desejos por
seus beijos
Dos meus sonhos eu procuro acordar e
perseguir meus sonhos
Mas a realidade que vem depois não é
aquela que planejei
Eu quero sempre mais1
Falar da minha vida é sempre um exercício de memória bem difícil, mas ao mesmo
tempo, bastante prazeroso, que envolve as pessoas que comigo conviveram e convivem. A
memória seletiva nos traz, com facilidade, os momentos que mais marcaram nossas vidas e
que nem sempre são bons, mas com um pequeno esforço me recordo das travessuras de criança, dos apuros e alegrias que tão docemente trazem saudades dos bons tempos de infância.
Família, o início de tudo
Chamo-me Yasmin Lemkull Damasceno, sou acreana e nasci no dia 28 de abril de
1988. Sempre vivi na cidade de Rio Branco, capital do estado do Acre. Um lugar que amo
morar, apesar de, quando criança, querer morar em cidades bem grandes, hoje, vejo que aqui
é muito bom para se viver. Não convivo e não cresci num ambiente de uma família grande,
pois apenas uma pequena parte de meus parentes mora nesta cidade. Mas sinto falta desse
tipo de criação, de contato maior com meus familiares.
Minha mãe, Marly Lemkull Damasceno, é paranaense e passou a maior parte de sua
vida na zona rural, até que veio morar aqui no Acre, há mais ou menos vinte e dois anos.
Nessa mesma época, meu pai, Antonio Damasceno Alves, também veio para o Acre. Papai é
cearense, da cidade de Caucáia e sempre teve uma vida muito sofrida na cidade. Uma
infância difícil, assim como minha mãe, mas apesar dessa semelhança, os dois viveram de
maneira muito diferente, mesmo porque as situações eram semelhantes.
O mais interessante foi que cada um saiu de um “extremo” do país no mesmo ano, em
1984, e com o mesmo objetivo: melhorar as condições de vida. Seus destinos se cruzaram
nesta terra distante daquelas de suas origens, e tão pouco desenvolvida.
*
1
Estudante do curso de História da UFAC e bolsista do Projeto Conexões de Saberes.
A minha vida, Ira.
144
Caminhadas de universitários de origem popular
Conheceram-se uns dois anos depois de terem chegado a este Estado e, algum tempo
após eu nasci, mais precisamente, em 28 de abril de 1988. Éramos bem humildes, apesar de
papai possuir emprego. Na verdade, ele ainda não sabia administrar a renda de uma família,
o que é absolutamente compreensível no início de um casamento. Morávamos em casa
alugada, até que minha mãe ganhou um terreno da prefeitura, num bairro novo na cidade,
Tancredo Neves, onde residimos até hoje. Meu tio e padrinho Audízio nos ajudou na
construção da nossa primeira casa, comprando toda a madeira necessária, e nos dando
assistência no que podia.
Meu pai, nesta época, trabalhava, durante a noite, como técnico na única repartição
do Estado que possuía computadores, era uma espécie de CPD2 do Estado. Os vizinhos
nunca o viam sair, por isso, pensavam que ele não trabalhava, chegaram a imaginar que ele
vendia drogas ou coisa parecida, porque estava sempre em casa e sempre tinha dinheiro
para nos manter e colocar comida na mesa. Ganhou até um apelido na rua onde morávamos,
Dídio, um personagem de uma novela da época, que representava um homem preguiçoso.
Na verdade, ele não dizia que trabalhava à noite porque deixava minha mãe e eu sozinhas
e o bairro era violento, ele tinha medo que nos fizessem algum mal.
Quando meus pais conseguiram comprar um terreno melhor, no lugar onde moramos
hoje, eu já havia feito dois anos de idade. Minha casa ainda é a mesma, com algumas
melhorias apenas. Contudo, o bairro não é mais o mesmo, antes era “desértico” e muito
violento, sem falar na quantidade de área verde, mas a cidade cresceu e o bairro está
tentando acompanhar o ritmo.
Nunca tive uma convivência forte com meus avós, apenas com minha avó materna, que
mora ao lado de minha casa. Meu avô materno morreu de câncer quando eu ainda era muito
pequena, nem cheguei a conhecê-lo. Meus avós paternos, por morarem muito longe, não têm
contato conosco, apenas por telefone. Eu os visitei uma vez, mas não me recordo deles, pois eu
só tinha três anos de idade. Foi uma viagem longa e muito cansativa para o Piauí, onde ainda
moram. Tenho muita vontade de voltar lá para conhecê-los de verdade, mas temo não poder
fazê-lo, eles já são muito idosos e, por enquanto, não posso fazer tal viagem. A família de meu
pai está quase toda com eles. Sinto muita falta da presença deles, assim como da família de
minha mãe, que está espalhada pelo Brasil, parte morando no Sul e parte no Amazonas.
Quando era muito nova ainda, uns três anos de idade, sonhava em ter um irmão para
brincar e dividir muitos momentos da vida. O desejo era tão grande, que minha mente de
criança fantasiava. Minha mãe conta que eu dizia aos meus coleginhas que tinha um irmão,
que era forte, grande, inventava inúmeras histórias sobre este meu irmão fictício. Meus pais
passaram a desejar ter outro filho a partir desse meu desejo, e, em 1994, nasceu o Kalhel,
meu irmão caçula, aliás, meu único irmão. Nós brigamos muito, mas, na verdade, nos amamos muito também.
Neste ano, de 1994, eu estava fazendo a primeira série. Foi o ano em que se deu a
execução do Plano Real, cujo objetivo principal era controlar a hiperinflação. A moeda
mudou da noite para o dia, eu me lembro que passavam propagandas na televisão para as
pessoas irem ao banco trocar o cruzado novo que tinham em casa pelo real, e estipularam
um prazo para isso. Como não entendia essa transação econômica, eu pensei que o dinheiro
2
Central de Processamento de Dados
Universidade Federal do Acre
145
antigo que tínhamos em casa não valia mais nada, por isso eu queria gastar tudo no lanche
da escola, na loja de brinquedos, e em tudo o que eu via pela frente. Fiquei frustrada porque
meus pais não quiseram fazer isso.
A estréia na vida escolar
Uma das recordações mais nítidas que tenho da minha infância é dos meus três ou
quatro anos, não me lembro ao certo, quando eu pedia para minha mãe me ensinar a desenhar uma árvore, foi a primeira coisa que me lembro ter feito. Depois deste dia, era só o que
eu queria: desenhar. Até que um dia os desenhos não eram mais suficientes, havia a necessidade de aprender mais coisas, então pedi aos meus pais para ir à escola. Era um sonho!
Comecei a estudar muito cedo, tanto que quando atingi a idade de entrar numa
escolar regular já havia sido alfabetizada numa escolinha que funcionava na casa de uma
professora, uma senhora muito simpática. Tenho vagas lembranças dessa época, mas as
que tenho são bem marcantes: a varanda da casa - onde brincávamos -, a rua calma e quase
sem tráfego, as brincadeiras de criança. Bom, retomando, quanto entrei na chamada préescola, já sabia algumas coisas, o suficiente para não mais precisar daquela turma, que
estava ainda iniciando o processo de alfabetização. Lembro-me, ainda, do meu primeiro
dia de aula na primeira escola, a Padre Carlos Casavecchia, nome que só consegui aprender a escrever muito tempo depois.
As crianças choravam quando viam seus pais se afastarem, após tê-las deixado na
porta da sala, eu via tudo sem entender o porquê de tanto desespero, afinal eu não estava
com medo da escola, pois já tinha uma noção do que era. Apesar disso, me sentia meio
deslocada, num lugar diferente, com pessoas desconhecidas, era assustador para uma criança. Sem falar que era difícil decorar as salas, afinal, eram todas iguais. Houve um dia que eu
entrei na sala errada, me sentei e só percebi depois, quando vi que as mesas estavam postas
de maneira diferente e que as pessoas não eram as mesmas. Nossa, foi bem vergonhoso!
Como eu já estava familiarizada com o conteúdo oferecido, a professora sugeriu aos
meus pais que me pusesse em outra escola, uma municipal, que aceitasse na alfabetização
alunos tão jovens, pois a escola onde eu estava matriculada era estadual e trabalhava com
um sistema de três etapas de pré-escolar, cada uma correspondia a uma faixa etária, então eu
iria ter que passar por todas as três para poder iniciar a primeira série.
Eu me lembro, também, que ia para a escola acompanhada por uma amiga da minha
mãe, a Dona Maria Emília, que trabalhava de merendeira nesse colégio. Como o colégio era
longe, eu ia e voltava com ela, mas chegava muito cedo e saía bem tarde, afinal era o horário
de trabalho dela. Minha mãe, como todas as mães, preocupava-se comigo, e para tentar
aliviar o meu calor, não poupou de me fazer passar vergonha e incomodo; me “equipava”
com mochila, lancheira, garrafa térmica e sombrinha. Nossa! Eu me sentia um robô com
tanto equipamento. Sem falar que sempre acabava esquecendo alguma coisa na sala de
aula... mal, este que me acompanha até hoje. Já perdi as contas de quantas vezes esqueci
algo nos lugares.
Cursei do pré-escolar à terceira série na escola Ismael Gomes de Carvalho, que fica no
bairro onde moro. Lá, estudei com uma professora muito gentil, de quem eu gostava muito,
chama-se Zely e, tinha uma atenção enorme com seus alunos. Tanto que, tratou de “agilizar”
o meu trajeto na escola, me passando da sua turma de primeira série para a turma da terceira,
acho que não cheguei a estudar nem um mês na segunda série. Este fato me trouxe vanta-
146
Caminhadas de universitários de origem popular
gens, mas, às vezes, penso que tenho certas dificuldades escolares herdadas da ausência de
conteúdo que eu iria ver na série que avancei. No mais, não reclamo, pois ela me ajudou
muito nestes dois anos em que me acompanhou e foi uma pessoa muito importante que
passou em minha vida.
Outro fato que marcou minha vida foi a minha participação em um grupo artístico
infantil da escola. Este grupo fazia pequenas apresentações nas escolas em datas comemorativas. Dançávamos, encenávamos e pulávamos quadrilhas. Nesta época, já estava na quinta
série e tinha 9 anos de idade. Sentia-me meio envergonhada pelo fato de meus amigos
fazerem gozação por eu fazer parte deste grupo, já que para eles era coisa de criança, mas eu
realmente era criança, enquanto eles, mais velhos, já estavam na fase da adolescência. E,
neste período, todos sabem que os interesses mudam e tudo o que se faça que não se enquadre nesse padrão, é considerado um “mico”, como depois eu mesma costumava dizer.
Apesar disso, a participação neste grupo me fez vencer a timidez. Lembro-me de uma
apresentação que fizemos durante a páscoa no colégio para crianças excepcionais, Dom
Bosco, aqui de Rio Branco. Estávamos eu e mais dois amiguinhos, uma menina, a Carla, e
um menino, o Júnior. Foi muito engraçado! Estava me sentindo ridícula naquela roupa de
coelho, que tinha rabinho de pompom e tudo, mas quando vi a alegria das crianças ao nos
verem, foi ótimo e perdi a vergonha que estava sentindo. Cheguei até a gostar da fantasia.
Houve, inclusive, uma criança que queria nos agarrar e brincar com a gente. Saí de lá muito
feliz e realizada, pois ao contrário de outros lugares aonde íamos, lá nós não fomos motivos
de risadas (os adultos achavam bonitinho e as outras crianças achavam um “mico”), mas sim
de sorrisos e de admiração. Foi o primeiro contato intenso que tive com crianças com
Síndrome de Down. Acho que é muito importante esta interação, para que o preconceito
que ainda existe seja superado de maneira natural, afinal, são pessoas capazes das mesmas
coisas, apenas com algumas limitações.
Outra apresentação marcante foi no Teatro Plácido de Castro, o maior da cidade, onde
se realizou uma amostra de dança de diversas escolas, e lá estávamos nós de novo. Neste dia
sim, eu fiquei tão nervosa que nem conseguia dançar direito! Hoje, quando me lembro
disto, nem consigo me imaginar repetindo a cena!
Se não me engano, passei pouco mais de um ano neste grupo artístico, onde também
fazíamos teatrinho, mas depois disso, com a adolescência, passei a ver, também, tudo aquilo
como infantil. Contudo, hoje sinto orgulho e até saudades dessa experiência.
Um obstáculo vencido
E se por acaso a dor chegar ao teu lado,
vão estar para te acolher e te amparar,
pois não há nada como o lar 3
Aos onze anos contraí uma doença de pele que mudou muita coisa na minha vida. Foi
um dos piores períodos que vivi. Estava entrando na adolescência, fase onde a aparência
física tem uma grande importância, e eu tive que me desfazer de algo que eu achava muito
3
Banda Anjos de Resgate
Universidade Federal do Acre
147
importante, meus cabelos, pois a doença atingiu de forma violenta o meu couro cabeludo.
Depois disso, minha auto-estima era quase inexistente, eu sequer saí de casa, durante meses,
até que meu cabelo cresceu novamente, mas este nunca mais voltou a ser o que era antes.
Ainda não havia terminado o ano e eu não podia mais ir para a escola, então o diretor
veio até a minha casa e disse que, como eu era boa aluna e tinha notas boas, eu não iria ser
reprovada, faltava apenas o último bimestre para concluir o ano. Isto me deixou mais tranqüila, pois o processo de recuperação foi bem lento e não gostaria de repetir o ano. Mas
senti muita saudade da escola e dos amiguinhos de lá.
Hoje, ainda tenho marcas dessa doença, mas antes essas marcas eram mais evidentes e
faziam com que minha estima caísse a cada vez que um colega de classe fazia alguma
brincadeira a respeito. Eu era muito mais apegada à aparência, pois havia sofrido certa
rejeição por conta desse episódio de minha vida. Mas apesar de quase não falar sobre esse
assunto, já superei isso. E me serviu de lição para muitas coisas, pois, nesse período, vi o
mundo com outros olhos.
Já recuperada, voltei à escola e retomei minha vida, concluí o ensino fundamental em
2001. O último ano, aliás, a 8ª série, foi muito marcante, pois vivemos coisas muito interessantes na escola. Conheci muitas pessoas, realizamos passeios, enfim, foi um ano muito
bom, talvez por ter sido o último que estive com minhas amigas de infância Thaís e Carol,
talvez por ter sido mesmo um ano muito agitado pela expectativa de iniciar o ensino médio
em outra escola. Sinto saudades desse tempo.
Um passo a mais
Cursei todo o meu ensino médio na Escola Estadual José Rodrigues Leite, no centro
da cidade. Foi no ano de 2002, a primeira vez em que me deparei com um novo universo
escolar: nova escola, novos alunos, novos conhecimentos, novos desafios, novas conquistas. Foi onde me preparei para o vestibular, onde meu interesse pelos estudos se ampliou,
onde conheci muitas pessoas legais, e muitas pessoas chatas também, afinal, ninguém é
perfeito. Dizem que aquele prédio já foi uma delegacia, talvez isso explique sua arquitetura
tão monótona, grades e falta de espaço. No mais, é um lugar bacana. Aprendi muitas coisas
lá e fiz grandes amigos.
Nesta fase de minha vida, descobri que gostava de muitas coisas e que havia coisas
das quais eu nunca iria gostar ou me identificar. Descobri também que, muitas pessoas se
aproximam das outras por interesses; que os alunos são a maioria apenas um número; que
suas opiniões nem sempre contam, mas unidos, podem conseguir muitas coisas; que a
adolescência é feita de fases inconstantes; que estamos sempre mudando de opiniões e, as
pessoas precisam entender e respeitar isso; que matemática não é tão ruim e que, às vezes,
inglês é muito chato; que não aprendi nada nas aulas de física do terceiro ano; que eu adoro
fazer pesquisa de campo, porque aprendo muito mais rápido; que não sei jogar vôlei; que
morro de preguiça de me exercitar e de acordar cedo; que coca-cola vicia mesmo; que o
Brasil precisa investir mais na educação; que ouvir música me faz muito bem, me acalma em
certas situações e me alegra em outras; que sempre vou gostar de Legião Urbana; que o
preconceito é um atraso de vida; que eu consigo aprender mais estudando em casa sozinha;
que o tempo soluciona muitas coisas, mas nem sempre devemos deixar que o tempo faça
tudo sozinho, devemos dar um empurrãozinho de vez em quando. E muitas outras “coisinhas” que hoje fazem parte da minha personalidade.
148
Caminhadas de universitários de origem popular
Amigos, a continuação de tudo
Posso dizer que, durante minha vida, conquistei muitas amizades, algumas delas jamais se apagarão do meu coração. Sou uma pessoa que se apega facilmente e posso dizer,
hoje, que sou uma pessoa comunicativa. Alguns amigos não estão mais tão próximos de
mim como já estiveram no tempo da escola, mas a distância não é barreira para uma verdadeira amizade, não falo apenas das distâncias geográficas, mas também de outras distâncias
que os dias corridos e a rotina de trabalho impõem.
Dividi grandes experiências na infância com duas amigas que foram e ainda são
especiais para mim, Thais e Carol. Nossa! Quando me lembro das coisas que fazíamos e
vivemos quase tenho ataques de riso. Foi um tempo muito bom, que não volta, infelizmente, mas posso dizer que foi o mais feliz. Tínhamos menos preocupações e pouquíssimas
responsabilidades. Nós éramos inseparáveis, mas apesar das bagunças estudávamos de verdade, não fingíamos. Às vezes, éramos um pouco cruéis. Aqui no Acre, no meu tempo de
criança, tínhamos o costume de dar ovadas em quem fazia aniversário, principalmente nos
mais amigos. Sei que é um costume estranho e nojento, mas era divertido, e uma forma de
dizer à pessoa que nos lembramos do seu aniversário e que nos importamos com ela. Então,
no dia do aniversário da Thaís, lembro-me muito bem disso, meus amigos e eu fizemos o tal
ritual, mas alguém se excedeu e as ovadas terminaram em lama, farinha e com o cabelo e a
roupa dela completamente imundos. Sem falar que isso se repetiu por três dias seguidos.
Muita crueldade, eu sei, hoje não vejo graça nenhuma nesse tipo de coisa e quase não se faz
mais, mas na época era muito divertido! Fiquei horas ajudando-a a lavar os cabelos.
Brincadeiras a parte, sempre valorizei minhas amizades, pois sei muito bem a importância que elas têm na vida de uma pessoa, mas isso já me trouxe alguns transtornos com
pessoas que não entendiam essa importância. Alguns amigos são como irmãos que temos o
privilégio de escolher. Eles estão conosco nas horas difíceis e, quando preciso, nos abrem
os olhos para coisas que muitas vezes não percebemos. Amigo é a continuação do processo
iniciado na família, é mais um gume importante da laranja Vida. Através deles, aprendemos
a nos relacionar com o mundo à nossa volta e a descobrir coisas novas. Com eles, me sinto
muito bem, pois comungamos dos mesmos pontos de vista, na maioria das vezes, dos
mesmos assuntos e de diversos interesses. Espero, ainda, viver muitas coisas em companhia
dessas pessoas maravilhosas. A vocês, meus amigos, um grande abraço.
Lançados ao vento estamos
Como folhas de outono
O quanto dure cada
Vivemos momentos
Que não nos mostram
Quando irão acabar e outro começar 4
Sempre tive certa dificuldade para decidir que rumo tomar na minha vida profissional,
por isso já quis ser de tudo! Quando criança sonhava ser médica, pois achava uma profissão
bonita, mas percebi que isto não era para mim, não me identificava com o ambiente, na
4
Samir Pereira Assaf
Universidade Federal do Acre
149
verdade, o que me atraía era a nobreza que via neste trabalho. Em seguida, queria estudar as
estrelas, ser veterinária, engenheira florestal, dentista, empresária, paleontóloga, bióloga,
jornalista... enfim, me interessei por coisas bem diferentes e diversas, mas não optei por
nenhuma dessas áreas.
Na verdade, minha vontade realmente era, e ainda é hoje, fazer algo relacionado à
natureza, sempre gostei muito disto e, como toda criança, sonhava fazer algo para salvar a
natureza da destruição do homem, principalmente, por morar na Amazônia e saber da sua
importância. Quase optei por biologia, que era o que eu havia escolhido desde o primeiro
ano do ensino médio, o que me fez desistir foi a dificuldade que senti com as matérias de
peso e a idéia de que a faculdade só oferecia o curso de licenciatura... mas já tinha planos de
que se não conseguisse ser aprovada, estudaria muito para entrar em um curso mais concorrido. Como tinha certa facilidade com disciplinas de humanas, escolhi História, uma das
matérias que mais gostava, porém algo me atormentava: a idéia de ser professora. Nunca me
atraí por esta profissão. Mas hoje, gosto do curso e já estou me acostumando com essa
idéia. Além disso, gosto muito de trabalhar na área de humanas.
O grande passo
Nos dias 19 e 20 de dezembro, fizemos a primeira etapa do vestibular, minha prova foi
no colégio Serafim Salgado Filho. Como não sabia direito onde era, resolvi sair bem cedo
de casa para não correr o risco de chegar atrasada, o que eu sempre acabo fazendo. Encontrei
vários conhecidos, enquanto esperava a abertura dos portões e, diga-se de passagem, um
tempo que me pareceu interminável, a ansiedade já estava me dominando, apesar de não
está nervosa. Não me sentia tão pressionada, meus pais sempre me deixaram muito à vontade quanto ao fato de eu não conseguir passar de primeira, porém, era grande o desejo de que
isso ocorresse, eles não conseguiam esconder isso. Contudo, na hora da prova, quando
disseram que não podíamos mais sair da sala, bateu-me certo desespero, acho que a ficha
caiu e comecei a refletir que aquele dia decidiria o meu futuro, tudo ia depender de como ia
me sair. Neste momento, eu vi que, independente de eu gostar muito ou pouco do curso que
havia acabado de escolher, eu queria muito entrar na universidade, conhecer novos horizontes, ampliar os conhecimentos e abrir portas no meu caminho.
O tempo de espera pelo resultado foi longo, o resultado demorou mais do que o
previsto para sair, o que me deixou mais ansiosa ainda. A expectativa era grande, mas tentei
fingir que não estava preocupada, que não estava nervosa. Mas a cada 10 minutos eu ia
olhar se o resultado havia saído, até que eu desisti de ficar nessa aflição e fui me ocupar para
esquecer. Alguns minutos depois, uma amiga me liga e diz que o resultado saiu e me
parabenizou, eu fiquei feliz, mas queria ter tido a emoção de ter visto meu nome naquela
lista antes de saber o resultado. A prova de redação seria em janeiro, eu tinha uma semana
para me preparar. Tinha certa facilidade para escrever, mas as técnicas não eram o meu forte,
por isso procurei um cursinho de redação. O curioso é que hoje conheço várias pessoas que
estiveram na mesma turma de redação em que fiquei, porém não me lembro delas lá.
No dia da prova dissertativa estava muito ansiosa. Depois do teste fui a um churrasco
de um amigo da família e conseguir esquecer um pouco de toda aquela agonia. Não sei porque, mas fiquei mais apreensiva do que na primeira etapa. Talvez seja porque me sentiria
muito mal em ter chegado tão longe e não conseguir entrar justo na última etapa. Quando o
resultado saiu, quase não acreditei que ainda havia conseguido subir duas posições. Fiquei
150
Caminhadas de universitários de origem popular
muito feliz, minha família também, afinal sou a primeira pessoa da minha família, pelo
menos da parte que conheço, a ingressar numa instituição de nível superior. Não apenas
por isso, mas porque sei que para os pais sempre é muito emocionante que o filho conquiste
algo como uma faculdade, ainda mais num país onde o percentual de jovens que conquistam uma vaga numa Universidade Federal é tão baixo.
Hoje, estou cursando o segundo ano de História na Universidade Federal do Acre,
pretendo concluir o curso e extrair dele o máximo que puder.
Estou sentindo uma clareza tão grande
que me anula como pessoa atual e comum:
é uma lucidez vazia, como explicar?
Assim, como um cálculo matemático perfeito
do qual, no entanto, não se precise 5
Em casa, me pegava imaginando o quanto iria aprender nos livros, as épocas, os
lugares, os pensamentos... descobri que gosto mesmo é de aprender, apesar de, às vezes, não
me esforçar para que isso aconteça, talvez me falte estímulo algumas vezes. É muito comum
a pessoa se desencantar com a universidade depois de certo tempo. Isso, geralmente, acontece quando começa a ficar diferente do que imaginávamos. No mais, é muito boa a sensação de conhecer a cultura de um povo, um lugar, uma época... se fosse possível, gostaria de
aprender de tudo um pouco, da medicina às letras. Mas me contento com o que faço e
pretendo não parar por aqui.
Percebi, também, que na faculdade a realidade não é tão florida. Existem barreiras e
dificuldades, coisas que desestimulam o aluno a estudar, como falta de recursos, de compromisso. Apesar de tudo, me apaixonei pelo “universo acadêmico” que, infelizmente, parece
mesmo ser um mundo à parte da comunidade. Conheço muitas pessoas que entram na
universidade pensando no dia em que vai sair, muitas vezes por questões financeiras. Eu
entrei e não gosto de imaginar como será minha vida fora dela, apesar de todas as dificuldades me sinto muito bem fazendo parte dessa instituição, entendendo seu funcionamento.
Como já falei, a universidade abre diversas portas, por isso me sinto privilegiada por
ter a oportunidade de estar onde estou, afinal, tantas pessoas tentam diversas vezes e não
conseguem, e muitas vezes desistem. O mundo em que vivemos exige cada vez mais das
pessoas, e o mercado é como um funil, muitos tentam e poucos conseguem. Infelizmente,
essa é a realidade.
Durante as férias de fim de período, do ano de 2006, recebi uma ligação de uma
amiga, Pollyana, dizendo-me que estavam abertas as inscrições para um Programa de Iniciação Científica que a Pró-Reitoria de Extensão e Cultura estava realizando, era o
“Conexões de Saberes”. A princípio não quis ir, pois estava ocupada e o prazo ia até às 5
horas da tarde, mas ela insistiu muito e disse que seria uma ótima oportunidade. Eu me
encaixava no perfil exigido e estava louca para fazer parte de um projeto na universidade,
então fui. Quase não conseguia, cheguei lá depois das 5 horas, alguns minutos apenas, o
edital já havia sido retirado da porta e, para minha sorte, ainda havia pessoas se inscrevendo
5
Clarice Linspector
Universidade Federal do Acre
151
dentro da sala. Respondi aquele “pequeno” questionário às pressas e aguardei ser chamada.
Não tinha muitas esperanças, mas quando a lista saiu, estava lá o meu nome, fiquei muito
feliz, apesar de não saber direito o que era o projeto. Depois que soube suas propostas,
gostei muito. Essa foi uma grande porta que se abriu para mim após ter entrado na universidade. Acredito que outras tão boas também possam se abrir futuramente.
Conexões de Saberes
Não posso negar que meu ingresso no programa me deu uma injeção de ânimo dentro
do meu curso e dentro da instituição em geral. Mudei muitas visões que tinha, passei a
valorizar mais o que conquistei, posso falar que consigo olhar as coisas de um novo ângulo
e, me arrisco a dizer que este é o melhor a se utilizar. Vim da camada popular, enfrento
dificuldades como tal e tenho consciência disso. Por isso defendo ideais populares agora
mais do que antes. O projeto ajudou a expandir minha visão dentro da universidade, que
estava muito centrada no meu próprio curso e suas temáticas.
Sinto muita vontade de seguir em frente com o projeto, pelo qual me fascinei ao
conhecer os planos de ação. Ajudar pessoas a realizar o mesmo sonho que eu tinha; entrar na
universidade é muito gratificante. Ingressar e permanecer na instituição é um desafio para
muitos jovens, mas a maioria deles desiste antes mesmo de tentar.
Neste ano, o “Conexões de Saberes” do Acre participou pela primeira vez do Seminário Nacional Conexões de Saberes, realizado pela segunda vez, no Rio de Janeiro. Foi uma
das melhores experiências da minha vida, senão a melhor, a mais marcante! Primeiramente,
porque tive a oportunidade de conhecer outras realidades de vida, outras culturas, outras
pessoas, outros problemas e outros lugares. Foi a primeira vez que viajei para fora do
Estado, ainda mais sozinha. Conheci o mar, o que era um sonho meu. Conheci a cidade
maravilhosa, e seus contrastes. Sem falar nas cidades que vimos durante o caminho. Foram
62 horas de viagem para chegar ao Rio de Janeiro, mas valeu a pena, foi uma experiência
que contribuiu muito para o meu crescimento, aprendi diversas coisas e tive a oportunidade
de compreender melhor o projeto. Percebi, lá no seminário, que os problemas que nós
enfrentamos aqui no Acre, existem também nos outros estados, isso me deixou de certa
forma aliviada, pois percebi que estamos no caminho certo e não há nada de errado conosco.
Algumas coisas me deixaram triste nessa viajem, porque percebi que nós não estamos
agindo tão intensivamente, nossa participação no próprio Seminário foi pequena. Ainda
existem pessoas que não compreendem a importância do projeto e que não dão a devida
importância. Não estou tentando dar lição de moral em ninguém, até porque não sou nenhum exemplo. O fato é que saí do Seminário estimulada e entusiasmada com o projeto,
cheia de idéias e de vontade de permanecer, de lutar pela continuidade dele, fico revoltada
em pensar que há pessoas que não concordam com sua existência, tentam desviar seu foco
principal ou simplesmente o negligenciam.
Espero que o “Conexões de Saberes” consiga atingir suas metas, eu quero lutar por
isto. Que consiga diminuir a desigualdade existente nesta nossa sociedade; realizar sonhos
de muitos que já haviam desistido de sonhar por falta de recursos; de promover a interação
da Universidade com a comunidade, quebrando o estereótipo de um “mundinho universitário” que despreza os conhecimentos populares, como se apenas os conhecimentos “científicos” fossem válidos. A universidade é um espaço para o conhecer, o viver, o ensinar, o
modificar, o renovar e o integrar.
152
Caminhadas de universitários de origem popular
Considero-me uma pessoa feliz, não possuo tudo o que almejo, mas busco alcançar
tudo o que sonho. Este memorial não contém tantas aventuras, tantos feitos, mas um dia
poderei reescrevê-lo e terei muito mais a dizer, e com certeza muito a agradecer.
Sonho que se sonha só,
é um sonho que se sonha só.
Mas sonho que se sonha junto é realidade.6
6
Raul Seixas
Universidade Federal do Acre
153

Documentos relacionados