A Obra Prima de Amarildo – Ricardo Lima

Transcrição

A Obra Prima de Amarildo – Ricardo Lima
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A Obra-Prima de Amarildo
E Outros Contos Indecorosos
Por Ricardo Lima
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Ficha Catalográfica
Elaboração da ficha catalográfica Maria Inês de Melo Albuquerque-CRB-11/694
S586o
Silva, Ricardo Lima da
A Obra-Prima de Amarildo e Outros Contos Indecorosos /
Ricardo Lima da Silva. – Porto Alegre: Revolução Ebook,
2016.
71 p.
Bibliografia
ISBN- (9788582453124)
1.Contos.2.Literatura brasileira.3.Drama.4.Suspense 5.Terror.
I. Título.
CDU 82-34
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Sumário
A Obra-Prima de Amarildo
Victor Martinez
Memórias de um Bêbado Solitário
Um Cidadão
A Carta
O Presente
Voltando da Faina
Na Pensão
O Duque de Monteviedo
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Sobre o Autor
Ricardo Lima, 1984, é manauara e sociólogo de formação. Começou a
escrever ainda na adolescência, influenciado por nomes como J.R.R
Tolkien e Edgar Allan Poe. Atualmente mora em Campinas/SP e faz
doutorado em Ciências Sociais na UNESP/Araraquara. E-mail:
[email protected] Homepage: www.paginasperdidas.me
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Nota do Autor
Os contos que ai vão são uma coletânea de algumas histórias que andei
escrevendo entre os anos de 2005 e 2010. O livro demorou para ser
publicado, pois uma série de intercorrências surgiram na minha vida.
Estes são contos urbanos, por assim dizer, que retratam o mal-estar e o
desespero de se viver nas grandes cidades. Meus personagens são, em
sua maioria, desgarrados que, de alguma forma, ou não conseguem se
inserir ou são o produto mais nefasto do mundo moderno: assassinos,
pedófilos, viciados em drogas, alcoólatras e outras figuras pouco
estimadas… O leitor pode perguntar-me porque eu, um amazonense
típico, não procuro escrever sobre as belezas naturais no meu Estado,
sobre a vida do ribeirinho, do ciclo da borracha e todos estes temas que
abundam na literatura canônica sobre a Amazônia. Respondo que nasci
e passei boa parte da minha vida em Manaus, uma capital de quase
dois milhões de habitantes onde a barbárie e a desigualdade se
reproduzem como em qualquer outra cidade miserável do globo. Estas
são, portanto, a matéria-prima da maioria das minhas histórias: coisas
que vi, que ouvi e que vivi. Também não escrevo sobre as delicias
ingênuas da floresta porque muitos autores regionais já o fazem. Se eu
me propusesse a fazê-lo, com certeza não lograria o mesmo êxito.
No mais, só gostaria de dizer que estes contos possuem uma influência
de autores como Balzac, Zola, Poe, Tolkien, Lovecraft, Engrácio,
Machado de Assis e Graciliano Ramos.
Espero que o leitor tenha bons momentos de fruição lendo minhas
histórias. Se não gostar, farei como Machado de Assis — te darei um
piparote e direi adeus…
R. Lima; Dezembro de 2015.
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A Obra-Prima de Amarildo.
Nem mesmo os conceitos e rigores da
sociedade, nem todas as convenções
sociais, podem aplacar, de todo, a
fúria despertada da besta que dorme
no coração humano.
E.M.
I.
A gritaria e as risadas das meninas, que se divertiam na rua, já
enveredavam pelos compartimentos daquela casa decrépita até
alcançar-lhe os ouvidos. Levantou-se timidamente daquela cama velha
e nojenta, a qual permanecera por horas, foi até a varanda de barro
batido e sentou-se numa cadeira velha. Ficou observando atentamente
as cinco garotas entre dez e doze anos que brincavam naquela rua
enlameada. Apreciava principalmente uma delas, notando cada gesto,
cada fala e cada risada.
Todos os dias eram assim. Quando dava cinco da tarde, este individuo
dirigia-se para a varanda a fim de deleitar-se com a cena, se entretendo
com aquele espetáculo até que as famílias chamassem as pequenas
para casa.
Chamava-se Amarildo e tinha vinte e oito anos. Não era baixo e nem
alto, nem branco e nem negro, nem magro e nem gordo, nem feio e nem
bonito. Era apenas mais um daqueles rostos que não conseguimos
gravar na memória...
Desde pequeno apresentava uma predisposição para a confusão.
Adorava brigar. Um de seus passatempos preferidos era maltratar
pequenos animais, como cachorros e gatos. Cortava-os a garganta para
vê-los sangrar até morrer. Na sala de aula brigava constantemente com
os colegas. Em uma delas chegou a furar o olho de um rapaz, numa
ocasião tentou enforcar uma menina que lhe chamara de feio. Em certa
ocasião veio para a escola de vestido, como se tentasse chocar aqueles
seres que tanto parecia odiar. Várias mestras perceberam transbordar
algo sinistro em seu olhar, a incapacidade de respeitar os mais velhos...
No tange as suas notas, tantas vezes repetira as séries que deixou os
estudos no quinto ano do ensino fundamental.
Conforme Amarildo foi ficando adulto, seu impulso malfazejo arrefeceu
o bastante para que pudesse ser controlado. Conquistara um emprego
num estaleiro aos finais de semana. Embora nos seus primeiros meses
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fizesse seu trabalho com esmero, com o tempo passou a chegar
atrasado. Errava muito. Já estava ficando farto de ouvir as constantes
repreensões do patrão. Ainda não o agrediu porque sabia que se fosse
demitido seria difícil encontrar outro trampo. O rendimento era parco.
Mas pelo menos lhe possibilitava uma modesta independência
financeira.
Gostava de bolero. Nos dias de folga sempre era possível vê-lo dançando
com as piriguetes do bairro. Era um exímio dançarino, o que lhe valera
algumas conquistas amorosas. Foi assim que conhecera Paula, uma
morena de cabelos curtos. Chegaram a ficar noivos, mas ela acabou
fugindo para o nordeste com um cantor de forró. Nos primeiros meses
ele muito padeceu. Hoje, porém, ela não passa de uma pequena
mancha em suas lembranças.
Nos últimos meses, porém, Amarildo vinha perdendo o gosto por toda
realidade. Faltava muito ao trabalho e tinha desaparecido dos forrós.
Cada vez tornava-se mais introspectivo, imerso em sua própria cela de
pensamentos ignóbeis, tornando-se para ele uma realidade que existia
por si própria. Deixou de se importar com as responsabilidades da casa.
Apenas seu mundo de devaneios importava.
Morava com a mãe, uma lavadeira alcóolatra. Era bastardo do filho de
um desembargador quando sua mãe trabalhou como doméstica em sua
casa. Com a noticia da gravidez, o magistrado, o Sr. Almeida, expulsou
a moça, então com dezoito anos, da casa e mandou o filho para a
Europa... Desde então a mãe de Amarildo dedicou-se a “lavar roupa pra
fora” e criar o bastardo como uma mãe solteira.
II.
O bairro em que moravam era um dos mais sórdidos e afastados da
cidade; não passava de um amontoado de palafitas decrépitas expelindo
dejetos pestilentos nas ruas barrentas e estreitas. Os barracos erguiamse contra o céu, debilmente, como se estivessem quase caindo,
parecendo um vagabundo morto de fome desperdiçando suas ultimas
forças numa caminhada incessante e sem esperança.
Um igarapé estreito cruzava a comunidade através de vários meandros
barrentos e poluídos — um braço de água agonizante cujo leito a cada
ano ficava sempre mais raso. Pequenas pontes de pau podre o
atravessavam que se desfaziam entre uma enxurrada e outra.
Mas por vezes a natureza vinga-se de seus algozes. Era comum uma
tempestade ter como consequência a inundação de toda localidade; a
água invadia os barracos, as ruas, derrubava casas e ceifava vidas.
Durante estes dias o caos imperava no coração das pessoas e um
sentimento primitivo de sobrevivência, o mesmo que se apoderava do
animal em desespero ao fugir do predador tomava conta dos homens.
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Um dia, afirmam os moradores mais antigos, aparecera boiando
naquelas águas lodosas um corpo já bem podre. Vermes saiam das
têmporas e de outros orifícios, exalando um cheiro de enxofre e
podridão. Navegava tranquilo, banhando-se com o sol da manhã, para
horror dos moradores e agonia dos bombeiros. Muitos começaram
vomitar quando, ao pegar, hesitantemente, o corpo para manejo, este se
esfacelara nas mãos dos agentes, revelando uma quantidade
inumerável de organismos que fizeram naquele pedaço de carne sem
vida sua morada.
III.
Uma hora passou. O contínuo barulho e as risadas das crianças se
foram. O sol já se escondia entre as nuvens vermelhas e por entre os
montes. As sombras dos barracos, dos muros e dos bosques já eram
mais densas na paisagem, pairando sobre as águas purulentas do
igarapé. O cri-cri dos grilos ecoava por todos os lados, assim como os
cantos ritmados dos sapos e os voos sinistros e velozes dos morcegos;
os trabalhadores retornavam fadigados do fim do dia de labutas
forçadas.
Amarildo mais uma vez estava sozinho. Passava longas horas
devaneando sobre seus traços singelos e agradáveis da pequena Gisele;
os cabelos extremamente lisos e longos, os olhos claros, muito redondos
e lívidos, braços, pernas e busto ainda magros tomando forma. Sempre
imaginava em suas divagações, caído em um estado de torpor quase
absoluto, como deveria ser a forma de sua vagina, pequena, delicada,
corada... O pequeno busto, de pequeno porte, macio, suculento,
atraente... Masturbava-se três ou até quatro vezes por dia fantasiando
a posse daquela pequena garota, desfrutando de todo aquele pequeno
corpo, penetrando com toda a sua força na pequena vagina tão cálida,
ainda virgem, enquanto ela gritava de dor e por socorro para então ele a
matar...
Amarildo, mais uma vez, estava quase em estado de transe quando uma
mulher entrou na casa. Fechou o portão com tanta força que criou um
estrondo alto e desagradável. Ela cabelos grisalhos e assanhados, rugas
por toda parte do rosto, já um pouco encurvada, os olhos eram miúdos
e negros. A velha entrara carregando uma trouxa branca de roupa nas
costas. Caminhou desajeitada até a pequena escada de três degraus
onde na pequena varanda estava Amarildo. Ao vê-lo sentado olhando
para nada, a mulher resmungou:
“Seu filho da puta... Tu não foi procurar trabalho hoje?”
“Não... Eu já trabalho...”
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“Seu vagabundo safado, tu fica ai a semana toda feito um imprestável
sem fazer porra nenhuma... Eu deveria te expulsar de casa!”
“Não tinha trabalho, não...”
“Como é que tu sabe caralho!” A mulher estava ficando cada vez mais
furiosa, agora andava de um lado a outro da sacada, a trouxa jogada
num dos cantos.
“Eu adivinhei que não tinha trabalho...”
“Seu filho duma égua, eu deveria ter abortado quando o maldito do teu
pai me engravidou... O maldito vivia atrás de mim, tu é igualzinho
àquela raça de sem vergonha!” E deu um tapa tão forte em Amarildo
que o barulho soou surdo e alto, como um bumbo de bateria, sua face
direita avermelhou-se. Levantou-se, meio irritado, foi até seu quarto e
deitou, fingindo não se importar com o que aconteceu.
A mulher carregou a trouxa pesada até a área dos fundos, largou-a, e
disse.
“Vou pro bar...” A taverna que frequentava era mais um dessas que são
repletos de mulheres e velhas decadentes que os cômicos costumam
batizar de “xiri quer pau”...
IV.
Quando ela saiu da casa Amarildo sentiu-se aliviado. Poderia dedicarse aos seus preciosos devaneios. Há muito tempo Amarildo sentia este
estranho desejo de matar uma mulher enquanto a possuía. A única
coisa que o impedia de concretiza-lo era saber que se fizesse teria
algumas complicações. Já teve várias vítimas em potencial, as amigas
da mãe, alguma moça que passava pela frente do seu barraco, suas
antigas professoras... Enfim, qualquer mulher capaz de lhe inspirar
alguma beleza.
Quando viu pela primeira vez a garota, voltando da escola sozinha, todo
o seu ímpeto famélico e vil foi direcionado para ela que, na época, tinha
pouco mais de nove anos. A partir daí passou a observar a menina,
vendo-a crescer devagar, andando até a mercearia para comprar pão,
indo com os pais até a parada de ônibus, brincando com as colegas ou
voltando de suas obrigações escolares — conhecia tão bem sua rotina
quanto ela mesma.
Muitas vezes atordoava-se com o turbilhão de impulsos sombrios que
tomavam conta de seu espírito, baralhavam suas conjecturas e fazia-o
suar e tremer. Nestes momentos corria à cozinha pegar uma faca para
ir até a casa da garota e dar cabo de seu horrível e forte desejo. Mas
sempre se controlava. Sabia que tinha de esperar. Precisava de cuidado
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e paciência para planejar tudo. Também contava com a falta de
interesse da policia, percebera que tantos eram mortos por tão variadas
causas naquele lugar que talvez não se importariam se uma garota
surgisse sem vida. Mas e se o caso chocasse a cidade?
“Todo mundo cairia de pau aqui até me acharem...” Concluía.
Precisava agir o quanto antes. A menina crescia depressa e quanto mais
velha ficava mais difícil tornaria a tarefa.
Naquela noite dormira sem jantar, mergulhado que estava em suas
maquinações, bolando as mais variadas conjunturas e desfechos:
lugares para sumir com o corpo, armas a serem usadas, horários
propícios, as explicações de uma possível visita da policia...
Assim passou à noite em claro remexendo-se na cama velha, vadeando
pelos cômodos da casa. O ronco irritante da mãe, que voltara do bar
meio bêbada lá pelas dez horas, ecoava pela casa inteira misturando-se
aos ruídos vindos da rua...
V.
Cinco meses transcorreram e Junho chegou. Os moradores
reuniriam no festejo típico daquela época. As bandas de forró
estavam confirmadas e as cirandas já haviam chegado, preparavam
últimos detalhes para a apresentação que ocorreria no centro
convenções.
se
já
os
de
Os pais de Gisele, como bons vendedores de salgados montariam sua
barraca em um dos pontos próximos ao palco.
Em pouco tempo centenas de pessoas se amontoavam naquele espaço.
O clima esquentava e ficava mais abafado, cada vez mais pessoas
chegavam, estava já se tornando dificultoso o deslocamento na arena.
Alguns ali só vieram em virtude de que o vereador João Palacino em
companhia de um dos secretários da prefeitura, que viria distribuir
micro-ondas como gratidão aos eleitores.
Quando a noite já alcançava quase onze horas, a barraca da família de
Gisele ficou sem lenços. A mãe ordenou as duas garotas que fossem à
casa apanhar dois novos pacotes do produto. A irmã mais velha
resolveu aproveitar ocasião para se encontrar com seu esquema:
“Gisele, vai sozinha que eu vou ali falar com um amigo”. Qual problema
haveria? Pensou Isabela. Era só ir ali perto e voltar...
À medida que Gisele aproximava-se de sua casa as ruas iam ficando
mais escuras e desertas. Vários postes estavam com as luzes
queimadas. O alvoroço da festa ficava cada vez mais distante.
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O clima frio, a escuridão pesada e o ambiente deserto causaram em
Gisele leve pavor. Queria apanhar os pacotes e retornar o mais rápido
possível para sob as asas protetoras dos pais e da multidão. Começara
a andar mais rápido. A cada cinco passos olhava para trás e para os
lados. Os pelos da nuca arrepiaram-se. Quando estava a apenas uma
quadra de casa, colocou a mão no bolso do pequeno short azul e teve
uma enorme decepção. A chave não estava com ela, ficara em poder da
irmã. Resmungou:
“Ai, meu deus...” Teve raiva. “Se fosse pra pegar aqueles diabos de
pacotes de lenços que ela fosse sozinha!” Imaginou.
Refez o caminho de volta. Resolveu não olhar mais para os lados, com
isso achava que poderia espantar seu medo. Quando alcançou a
esquina da rua, a sombra de um homem surgiu subitamente de um
muro velho e agarrou-a por trás, tapando com a mão sua boca e
envolvendo como o outro braço todo o tronco da menina. Tomada pelo
mais completo terror, tentou gritar, lutar, espernear numa luta inglória
para escapar aos grilhões. As mãos e braços do raptor eram de tal força
apertavam dolorosamente a boca, que abafavam eficazmente seus gritos
de horror e tirava-lhe as forças.
“Há muito tempo eu tava de olho em ti, minha putinha gostosa.”
Enquanto a menina se debatia desesperada, como uma gazela presa
tentando desprender-se do leopardo; Amarildo arrastava-a para o
escuro campão.
Os olhos de Gisele, transparecendo angústia e terror, observavam a
claridade e o movimento da festa afastar-se, enquanto procurava
inutilmente algum passante... Percebeu que Amarildo levava-a para a
floresta em trevas. Lágrimas desciam dos seus olhos, não queria entrar
naquele lugar nefasto, não queria morrer, gritou com toda a força, mas
seus prantos de socorro eram censurados pela mão do seqüestrador.
Tentou mordê-la. Impossível. Era áspera e dura como concreto.
Contorcia-se numa luta de terrível agonia, forçava os braços tentando
se desencilhar dos de Amarildo. Mas era inútil.
A floresta era completamente escura, fria e exalava um odor misturado
de carne podre e de folhas tingidas pelo orvalho. O ar era pesado e sem
movimento. De tanto se debater feria-se nas pontas dos galhos podres,
nos espinhos e nas folhas urticantes. Amarildo, já furioso com a
resistência de Gisele, disse:
“Fica quieta sua piranha senão eu vou te matar...”
Deixou-se arrastar, resignada.
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VII.
Alcançaram uma pequena elevação, semelhante a uma colina, repleta
de árvores frondosas de mata espessa, logo adiante uma precipitação
levemente acentuada denunciava que o igarapé do bairro tinha ali sua
passagem, correndo ligeiro e fétido. Do outro lado da margem nada se
via, apenas um enorme manto escuro cobrindo as árvores que
balançavam pela força de uma brisa gelada. Amarildo, ainda segurando
os braços e a boca de Gisele, disse:
“Agora tu vai fazer o que eu disser... Se tu correr eu te mato, mato tu e
tua família inteira porque eu sei onde tu mora!”
A garota chorava bastante...
Amarildo soltou a mão da boca dela. A pequena teve a chance de
implorar:
“Por favor... Me deixa ir... Eu não fiz nada pro senhor...”
“Cala boca caralho... Tu não fez mas agora tu vai fazer!” Disse, ao ouvir
as suplicas de clemência da menina, deu-lhe um soco. Gisele caiu de
joelhos, soluçando.
Não fora exatamente isso que Amarildo desejou, vê-la implorar pela
vida, na iminência perdê-la? Uma criaturinha frágil, sem defesa, sem
vontade própria, a mercê de seu bel prazer, de sua libido, totalmente
subjugada pelo seu novo senhor?
Desatou o zíper da bermuda encardida, baixou-a, tirou a cueca velha,
colocou-a de lado, e ficou com o pênis ereto a mostra.
Adivinhando o que aconteceria, rebentara numa onda interminável de
soluços, contorcia-se e chutava-o com o que restava de suas forças.
“Não faz isso não, por favor, não faz isso não...” O raptor ficou de
joelhos cravou seus olhos nos da menina, apesar do escuro:
“Fica calada, se tu gritar eu te dou uma facada na tua goela” Gisele
calou-se, o medo de morrer novamente lhe invadiu.
Ele tirou a roupa da menina e tocou-lhe a vagina. Enfiou um dos dedos
nela. Gisele deu um pranto de dor. Ele rasgou rudemente a mini blusa
da vitima e apalpou os diminutos seios e beijou-os. Ordenou a ela para
masturbá-lo com as mãos cálidas, trêmulas e macilentas, ela obedeceu.
Melara-se com o esperma do agressor.
“Tudo acabaria logo.” Imaginava. Colocou a menina agachada no chão,
totalmente nua, na posição que comumente a plebe costuma chamar
“de quatro”, e tateando seu pênis com uma mão e a vagina ainda virgem
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com outra, tentou a penetração; a mocinha, sentindo a força da pressão
contra seu órgão sexual, sentiu dor, gemeu. Gisele ainda suplicou
trêmula:
“Por favor, moço, não faz não...”
Ele não respondeu.
Deu uma cusparada da glande e tentou mais uma vez. Novamente
fracassou. A vítima deu outro gemido. Enfurecido, forçou com mais
força, o hímen dificultava a ação:
“Essa putinhas cabaço são assim mesmo.” Refletiu.
Impaciente, tentou a penetração com toda a força, o rompimento do
hímen foi tão brutal e doloroso que Gisele soltou um grito de agonia. O
Pênis fora penetrado por completo. Sangue escorria por entre os lábios
vaginais.
O algoz iniciou seu ato, sua obra-prima que permaneceria para
posteridade, imaginava... Gisele pranteava; às vezes em tom de lamento,
às vezes com desespero. Como o choramingo começara a incomodá-lo,
tapara a boca da menina com as mãos.
Amarildo bufava como um touro, falava coisas sórdidas e obscenas. Ria
freneticamente. Já sentia a sensação de orgasmo subindo como uma
força inexorável. Retirou a faca da bainha que tinha na cintura.
Começou a ejacular internamente.
Enquanto a sensação de gozo propagava-se de seu corpo com toda a
força, deu o primeiro golpe na região central das costas da vítima,
partindo em dois a coluna vertebral. Uma dor aguda fez Gisele
contorcer-se. Os olhos esbulhavam-se. Gritou. Os braços e o quadril
perderam a força. Caiu como de bruços, mas Amarildo segurou-a pela
cintura. Estava tonta, o mundo em volta embaralhava. As pernas e os
quadris adormeceram. O segundo golpe penetrou o pulmão. A
hemorragia a fez cuspir sangue. Agora sentia dificuldade de respirar.
Sua vista parecia escurecer-se. Amarildo desferiu mais duas estocadas,
uma que atingiu a região do estomago e outra no coração.
A dor sentida pela menina fora aos poucos sendo complementada pelo
sono. Sentia-se mole. Desejava descansar. O sono extremo era
irresistível. Queria dormir profundamente e acordar para descobrir que
aqueles terríveis acontecimentos não foram senão parte de mais um
pesadelo para aquela mente imatura. Teve a convicção de que quando
adormecesse sentiria alivio. Não conseguia mais suportar aquela
sonolência. Sua vista escureceu de repente. Morrera.
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VIII.
Extenuado pela relação, retirou o pênis do corpo sem vida e soltou-o ao
solo. Uma enorme poça de sangue formou-se no local. Levantou-se,
enxugou seu órgão sujo de esperma e sangue com a camisa, tateou no
escuro, achou sua cueca velha e sua bermuda encardida, vestiu-a.
Jogou a camisa no igarapé infecto. O suor escorregava de todo o corpo,
arquejava. Sentou alguns minutos nas margens do riacho para
recuperar as forças. A lua estava bela. Sentia frio, pensou em banhar-se
no riacho mas, quando imaginou em todo o tipo de porcarias existentes
ali, desistiu da ideia. A lembrança do tipo de poluição que infestava a
torrente o fez recordar daquele dia quando acharam um corpo já podre
boiando naquele córrego.
“Tinha gente vomitando de tanto nojo.” Disse para si mesmo, rindo.
“Essa daí vai ficar igualzinha aquele presunto.” Cismou.
Teve a ideia de jogar o corpo no rio, seria mais difícil para a polícia
achar o local do assassinato.
Voltou até o cadáver, o arrastou pelos braços, sem muito esforço.
Imaginou no rastro de sangue, mas logo pensou:
“Uma chuva de verão que sempre cai nesta época limpa tudo.” Arrastou
Gisele até uma parte do leito onde as águas corriam com mais força e
profundidade, largou-o.
Amarildo refletia enquanto voltava para a margem, impressionado com
a mudança que ocorreu na garota. Antes tão valente na luta por sua
vida, tão bela, agora era nada mais que um pedaço de carne... Um
pedaço de carne para açougue... Imaginou o corpo pendurado de cabeça
para baixo, pelos pés, num gancho de açougueiro sendo exibido na
Feira do Produtor, com filetes de sangue escorregando das tripas e das
têmporas, descendo pelos seios, pelo rosto, pelos cabelos, pingando
sobre o azulejo do balcão onde milhares de moscas famintas
disputavam um território suculento.
Sentiu fome. Teve vontade de comer o cadáver, mas já era tarde demais.
Riu estupidamente. Gisele seguiu navegando até perder-se de vista ao
dobrar no meandro mais próximo.
Teve nojo de ter entrado naquele igarapé.
Voltou para casa sem pensar mais nela. Veio-lhe a mente a figura da
irmã da menina, uma mulher na casa dos vinte anos, charmosa, uma
das beldades das adjacências. Talvez poderia servir-se dela também,
talvez fosse tão boa quanto a irmã, talvez a mãe também entrasse no
bolo. Estupraria a mãe, a irmã e em seguida mataria o pai — Riu alto
da própria ideia...
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A temperatura era suave, um contentamento invadira-lhe o espírito.
Chegou na rua tranquilo. Tudo estava deserto. A agitação da festa
estava nas culminâncias.
“Que horas será que é?” Indagou.
Quando chegou em sua residência, abriu o portão de madeira antiga. A
casa estava deserta e escura, a mãe deveria estar destruindo o que
ainda lhe restava do fígado... Enquanto se dirigia até o vão e abria a
porta. Parou. Olhou para a claridade de onde emanava a agitação.
Imaginou se não seria boa ideia se juntar às pessoas, quem sabe
conhecer alguém... Não, desvencilhou-se de tal empreitada, estava
muito cansado, tinha de relaxar, talvez noutra ocasião. Viu a irmã da
morta caminhando com o namorado. Entrou apressado e escondeu-se.
Quando o casal desapareceu, foi para a cozinha, comer qualquer coisa,
tomou banho e foi dormir, contente por ter realizado sua obra-prima...
***
Victor Martinez.
A violência do veneno torce meus
membros,
me
deixa
disforme,
derruba. Estou morrendo de sede,
sufoco, não posso gritar. É o inferno,
eterna pena!
Arthur Rimbaud.
I.
Era uma madrugada gelada e opressora; nuvens pairavam lúgubres
entre árvores agitadas e uma tempestade atormentava toda Manaus
com suas rajadas de vento enfurecidas, toneladas de água cortante,
relâmpagos e trovões ensurdecedores.
Victor Martinez dormia estirado sobre a cama desalinhada. Revirava-se
inquieto sobre o leito. Suava a cântaros. Imerso em um tenebroso
devaneio, fora tomado de súbito por um instinto de sobrevivência e
abriu os olhos atormentados.
As primeiras imagens que conseguiu, com dificuldade, divisar, foram a
escuridão do claustro fechado e as manchas de formas desagradáveis
que surgiam no forro de madeira. As cortinas que bailavam numa
dança macabra de alguma forma o fazia relembrar os horríveis
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pesadelos que tinha todas as noites. Os ouvidos também captavam o
rugir furioso da tempestade precipitando lá fora. A janela aberta criava
uma boa oportunidade para a chuva inundar todo o quarto.
II.
A aquela não era uma noite comum, Victor sentia-se angustiadamente
diferente — o inevitável pesadelo fora mais horripilante que o das noites
anteriores. Antes seus sonhos sempre o mostravam em meio a uma
pedreira abandonada onde permanecia acorrentado à frente de um
pelotão de fuzilamento, composto de dez soldados com trajes militares
do séc. XVIII em farrapos, cujos corpos eram uma torpe massa de carne
podre e horrível. Perante a execução, Martinez clamava por
misericórdia, mas seus algozes não lhe davam ouvidos e disparavam
seus mosquetes, entre gargalhadas de volúpia, contra o corpo do
condenado. Seu delírio terminava no momento em que as balas
penetravam-no e conseguia avistar o sol purpúreo da tarde descendo
suavemente no longínquo horizonte...
Nesta noite, estava como sempre em meio aquela enorme cratera
desolada, preso pelas grossas correntes, a encarar seus carrascos. Mais
uma vez era invadido por um terror incontrolável. Implorava mais uma
vez pela vida. Entretanto, como sempre, nenhuma resposta. O
fuzilamento começava. Seus olhos novamente alcançavam o céu onde
cintilava o sol dourado da tarde. Ocorreu que, ao invés de despertar, a
enorme pedreira soergueu-se com um tremor de terras e um ranger de
rochas partindo-se e esmagando-se com um barulho indescritível. Os
soldados eram logo engolidos por grandes fissuras abertas sob seus pés
de onde escapavam grandes chamas crepitantes. Quando a enorme
montanha cresceu até altitudes incríveis, Martinez, em total espanto,
observara no horizonte uma nuvem escarlate envolvida por labaredas,
navegando rapidamente em sua direção. Percebendo que aquela
descarga de lumes avança impetuosa sobre seu corpo, ele tenta
desesperado descer da formação rochosa e escapar da morte.
Subitamente, as antigas algemas de aço transformam-se em milhares
de serpentes e estrangulam tanto seu corpo, gerando uma expiação
alucinante. Retidos por estes nefastos grilhões, Victor contorcia-se
enquanto a grande e maldita nuvem aproximava-se como a morte vem
inevitável nos momentos mais derradeiros da vida...
Foi neste momento que seus olhos abriram-se; olhos de pânico, de uma
mente confusa. Observou a escuridão do claustro. Crepitava o brilho de
uma patologia inexplicável... Os sentidos estavam agora extremamente
sensíveis; o menor resquício de luz vindo do clarão dos relâmpagos da
tempestade o perturbavam; qualquer pequeno barulho ensurdecia seus
ouvidos; uma pequenina mudança de temperatura ou qualquer suave
brisa que tocasse sua tez o incomodava; o estranho aroma de seu suor
era puro fedor de carne putrefata para suas narinas.
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Por entre os meandros da mente surgiram varias visões do nefasto
pesadelo, misturadas as tristes lembranças do mundo real que
pareciam criar um segundo sonho de destruição ainda mais horrível
que o das noites anteriores.
Sentou-se sobre a cama. Fora acometido por uma febre intermitente,
com intervalos cada vez mais irregulares entre a razão e a loucura.
Permanecera naquela posição durante pouco mais de uma hora, imóvel
como um velho senil esperando a enfermeira vir ministrar-lhe o
medicamento em seu quarto insalubre no meio da noite...
III.
Da lufada de suas recordações surgiu, pálida, a imagem de Katherine,
despertando uma ambiguidade infinita de conjecturas. Ao mesmo
tempo tais reminiscências a respeito daquela mulher o confortavam
com certa voluptuosidade mórbida... Também dilacerava-o, pois tudo
que se relacionavam a Katherine e Victor Martinez emanava a
fragrância amarga da dor — era um estado de espírito de difícil traço:
poético, opressor, angustiante, e, talvez, nostálgico...
É preciso mencionar a infância extremamente sofrida e solitária,
passada entre os mais recônditos claustros carregados de sombras em
meio a livros de filosofia, cálculos e línguas impostos pelos seus pais;
nas horas vagas, cambaleava ébrio de tristeza e solidão por jardins
escuros, cinzentos e abandonados, situados a quilômetros de sua casa,
onde árvores cresciam tétricas e retorcidas pelo abandono. Os terríveis
delírios que o acometeram durante a adolescência, quase o fizeram
tentar o suicídio. Ainda não estava totalmente curado daquele mal, isto
ele o sabia, pois ainda sentia um ímpeto de loucura latejar no âmago de
seu inconsciente. A relação tão conflituosa que tivera com o pai...
Mesmo em relação ao seu genitor não havia qualquer volta, ainda
estando ele extremamente arrependido das tão lamentáveis desgraças
de tempos antigos, seu pai agora jaz sob uma lápide cinzenta... Nas
ultimas semanas ressuscitou do abismo do esquecimento certos fatos
tenebrosos que ocorreram durante a infância no nosso infeliz
personagem; começou assombrá-lo os mais negros acontecimentos
possíveis de acontecer a uma criança. Retorceu-se de inquietude
quando voltou à memória dois funestos dias em que fora covardemente
violentado. Na primeira ocasião fora molestado por um tio, nos fundos
de sua própria casa a segunda vez ocorreu em plena igreja, pertencente
à vertente luterana. È impossível descrever com exatidão as duras
consequências que estes atos tiveram sobre a consequência do pequeno
Victor. Naturalmente, todos os detalhes sucederam-se nas
reminiscências de Martinez, aqueles momentos infames repetiam-se
com uma insuportável realidade empestada de suplicio.
19
Em alguns casos, as lembranças outrora enterradas, por serem
traumáticas, costumam ser entrelaçadas com o decorrer dos anos a
outras situações ou fundiram-se em impressões que, ao serem de
alguma forma desenterradas, transportam de sua cripta outros
sentimentos que apenas reforçam a condição de mal estar do homem. O
mesmo acontecera com Victor Martinez. Suas conjecturas também
trouxeram estas impressões aterradoras tão daninhas a um espírito
sensível e arruinado; assim ele sentiu não só o “desconforto”, mas nojo
de si mesmo, humilhação, vergonha e ficou cada vez mais convencido
de que era o mais idiota e covarde dos homens.
Caminhou débil até a sala de estar e sentou-se no sofá. Observou os
inúmeros quadros pendurados na parede. Contudo, as visões de
Salvador Dali, o desespero de Van Gogh ou a calma de Sandro Botticelle
também pareciam inquietar-lhe.
IV.
Imaginou que talvez uns goles de vodka pudessem acalmar seus nervos.
Foi até a cozinha e apoderou-se de uma garrafa de Abslolute jazendo
sobre a mesa. Lembrava-se que tomara alguns copos antes de dirigir-se
à cama... Imaginou rapidamente se esta perturbação não teriam
ocorrido pelos vapores da vodka... Mas esta ideia fora imediatamente
descartada, pois ingerira apenas dois copos, o que certamente não
poderia embriagar nem mesmo os homens com a mais fraca resistência
a bebidas alcoólicas.
Sepultada a questão, encheu um copo até pela metade, tomou um, dois,
três goles seguidos. Mantinha o olhar confuso pelos cantos sombrios do
compartimento. Não demorou tantos minutos e a taça já estava vazia.
Não titubeou, encheu o copo outra vez. Agora bebia mais rápido que
antes. Em pouco mais de cinco minutos um terço da garrafa fora
consumido. A visão turvou-se e as pernas ficaram frouxas. Lembrou-se
de que estaria mais confortável se fosse sentar, puxou uma cadeira.
Ao espaço de dois minutos uma enorme dor torturava seu ventre.
O álcool cada vez mais lhe subia a cabeça. Cada vez que tentava
formular um pensamento crível, parecia surgir uma bruma
impenetrável impedindo-o de articular as ideias...
Ajeitou-se de forma a ficar estirado sobre a frágil cadeira. Observou, por
momentos, a garrafa reluzindo tranquila sobre a mesa com uma
quantidade de bebida suficiente para apenas alguns goles. Teve a
impressão que do rótulo surgira um pequeno rosto feminino que dizialhe amáveis palavras e aconselhava-o a terminar o que começara...
Tomou avidamente o que restava. Não sentia mais o gosto ruim de uma
bebida destilada, apenas o sabor doce e suave da insânia. Descansou a
nuca no encosto da cadeira deixou os braços soltos a tremer livremente,
20
seus dedos soltaram a garrafa, fazendo um barulho agudo ao chocar-se
contra o chão.
V.
A tempestade ainda alvejava com furor. Ele podia ver através da
varanda o Rio Negro agitar-se como os rios por quais Dante passara. Os
gritos de horror dos trovões; o sussurro angustiante do vento
carregando tudo o que pudesse roubar e os clarões dos relâmpagos
eram também mil vezes maiores, uma sinfonia monstruosa. Mas para a
mente de um alucinado, a expressão mais hedionda da natureza não
passa de um simples gracejar, enquanto os cenários mais fúteis tem o
poder de criar o mais profundo desvario.
Seu corpo estava quase dormente. Apenas o enorme barulho da
chuvarada o mantinha acordado. Seus ouvidos captaram um ruído
vindo da porta... Tentou levantar-se para ver o que era; com esforço,
levantou-se, tomando a mesa para apoiar o braço; escorregou, a cadeira
caíra para trás, ainda susteve-se em pé graças à mesa; as pernas
tremiam; o corpo doía; parecia haver uma chama consumindo-o por
dentro, nem parecia ter sido vodka o que ingeriu, mas ácido; logo que
teve esta conjectura os braços escapuliram e as pernas vacilaram; caiu
violentamente no chão frio e batera o joelho no piso; outra dor aguda o
tomou de assalto; deu um grito de raiva e aflição; fraturou o joelho,
tinha certeza... Acomodou-se de bruços para cima, observava o teto,
impotente para fazer algo. Esperava. Mas o que? Não sabia. Talvez a
maldita dor sumir, o álcool dissolver em seu sangue, a morte tocar-lhe o
rosto... Sentiu-se como uma criança indefesa perdida numa enorme
cidade. Mas esta cidade era sua casa, seu terror era si próprio e não
havia ninguém para salvá-lo. Começou a chorar, sentia-se muito mais
do que nunca um parvo. Os anos passaram e ele não era nada mais que
um espírito infausto temente á si próprio e á todos; temia olhar para
dentro de seu abismo, temia que seu abismo olhasse para dentro dele,
temia a visão das trevas, temia que o véu soturno o dominasse de vez.
Era ateu, mas temia o céu, temia o inferno, temia o Criador e temia
Lúcifer; temia a gloria e o fracasso; temia a alegria e a tristeza. Era
descrente e religioso, era herege e devoto, era beato e pagão, era seu
deus e seu demônio. Não sabia o que era o júbilo. Quanto à temeridade,
à amargura, à consternação, não mais se dava conta, tanto tempo
vivera no porto da miséria, no caminho de vermes, na sofreguidão
espiritual; perdera o ímpeto revolucionário, perdera a força da lucidez, o
fulgor, a agressividade... Tinha tudo e não tinha nada, tinha o mundo e
não tinha espírito. Austeridade, aspereza, tudo isso lhe fora
disciplinado, era um dócil. Assim com Rimbaud, amores o crucificaram
e colocaram sua dignidade à prova, apostaram sua posse, e ganharam...
Fizeram confeites e anedotas, gracejaram e o ludibriaram, a desgraça foi
seu deus... Jamais verá o natal sobre a terra, a claridade divina...
As dores do estômago tornaram-se mais agudas, era como se uma faca
invisível perfurasse sua barriga. A respiração tornou-se mais difícil; teve
21
vontade de gritar, pedir por ajuda, mas suas cordas vocais pareciam ter
desaparecido; a dor no joelho tomou proporções intoleráveis; uma
perturbação envolveu-o, algo queria sair de seu corpo, algo que lhe
causava desprazer e era inevitável impedir a sua saída; seus olhos iam
pular para fora; uma enorme massa de vômito foi expelida
violentamente de seu estômago, deslizando medonha e repugnante pela
face, pelo busto e empestando o chão da cozinha; suas entranhas
ardiam, ele se contorcia; queria arrancar seus órgãos fora, seu joelho
fraturado e seus olhos; almejava de qualquer maneira sair deste
inferno, seu corpo tremia mais e mais; uma massa grande de vomito
ficara emperrada na garganta; tentou tossir, vomitar ainda mais, não
podia; onde estava o socorro? Pôs as mãos no peito e na garganta; o
suplicio de ter de morrer por falta de ar é indescritível; um ruído
proveniente do engasgo era mais perceptível agora; imaginou que ratos
queriam sair de sua garganta.
Esta foi o seu último pensamento, pois não suportara por muito tempo
as terríveis dores e finalmente sucumbiu. Durante o desmaio não
sonhara, apenas vira uma escuridão indefinível cobri-lhe os olhos...
Durante a manhã, sua família descobriu o cadáver estirado ao chão,
com o semblante de quem teria sofrido uma profunda angústia. Um
corpo retorcido e imundo de vômito; uma cena abominável...
VI.
Os laudos médicos descobriram que o ilustre jornalista e escritor Victor
Martinez falecera em virtude de uma considerável massa de vômito ter
obstruído a passagem de ar, fazendo-o afogar-se naquela substância
esverdeada, gosmenta e malcheirosa. Nos dias seguintes a noticia de
sua morte foi largamente divulgada em cadeia nacional...
***
A Mariposa
Você fez isso porque a coisa se
apodera de você... Inventou razões... E
elas sempre parecem boas razões...
Mas fez isso principalmente porque já
esteve lá em cima... Aquele é o seu
lugar, você pertencia a ele...
Stephen King; O cemitério.
I.
Talvez tenha sido a angústia que fizera Inácio Brandão deixar o seu
apartamento e dirigir-se ao centro da cidade durante aquela noite de
Abril.
22
Ele guiava o seu carro calmamente, como se desejasse demorar o
máximo possível no transito. A velocidade não passava dos cinquenta.
Era pouco mais de vinte e uma horas. Morava a três minutos do centro
comercial de Manaus, naqueles edifícios da Avenida Boulevard. Ligara o
rádio, e como a canção que tocava não lhe apetecia os ouvidos, foi
mudando de uma emissora para outra — estranhamente, todas elas
pareciam tocar a mesma música... Pegou o primeiro CD que encontrou
no porta-luvas e encaixou-o meio desajeitado no som; então os acordes
de Charlotte the Harlot começaram; muito melhor, uma leve sensação de
bem estar o permeou...
Era já perto da estação das secas, e a atmosfera, outrora tão úmida e
afável para os amazonenses, com aquele sereno pesado, regido pelas
rajadas de vento gélido, já tomava, a partir daquela semana, seu tão
odiado tom seco, áspero e constante.
O tráfego não estava intenso e podia até deixar-se guiar com certa
distração, coisa impensável se estivesse ali em horários mais
congestionadas de uma cidade que tinha a fama de ter o pior transito
do país. Se as ruas são as veias de uma cidade, então Manaus já há
muito deveria ter morrido de parada cardíaca — certa vez ele refletiu,
puto da vida com a lentidão do trânsito na Djalma Batista... Mas agora
não havia engarrafamento e sabia para onde deveria dirigir-se, uma
vereda muito escura por detrás do Itamaracá, onde algumas mariposas
de pouco mais pouco menos de dezoito anos esperavam — pequenas e
frágeis borboletas noturnas que voavam para onde havia luz... Fazia
isso antes de casar-se e mantivera o velho hábito depois de consumado
o matrimônio. Buscava este expediente quando sentia-se cansado,
quando sentia-se triste — quando as velhas intrigas da vida de casado
ou as complicações do Fórum já o desesperavam. Inácio bem que tentou
parar com aquele vício. Impossível controlar-se. Por mais que tentasse
desviar os pensamentos para outras coisas, que procurasse passar bem
longe daquele malfazejo lugar, sempre corria para sentir o hálito
daquelas mulheres, seu perfume e sua bem ensaiada lamúria de prazer.
Talvez fosse a ideia que elas lhe passavam: a possibilidade de quebrar o
velho e previsível relógio da vida de bom cidadão, ou seja lá o que mais
fosse aceitável para ele. Provavelmente não era um respeitado juiz da
vara trabalhista como todos pensavam ser, talvez fosse apenas um
típico devasso dos contos de Marquês de Sade.
Há duas semanas sua mulher descobrira seu vicio secreto, divorciou-se
e levara seu filho de três anos embora para São Paulo, para junto do
seu ex-sogro, um empresário do ramo de transportes coletivos. Não
seria fácil trazê-la de volta com o pequeno Nelson. Por isso, naquela
noite, sozinho no apartamento, vendo aqueles velhos lugares e objetos
que lhe faziam relembrar a odiosa, porém desejada, vida de pai de
família, a solidão a lhe solapar com os seus açoites em pontas de metal,
23
o bem sucedido magistrado, de pouco mais de trinta anos, resolveu
enforcar seu verdugo naquele lugar solitário.
II.
Conforme se aproximava da rua, via cada vez mais bêbados caídos,
fracassados ou vagabundos perambulando como os zumbis de
Madrugada dos Mortos... O mercado municipal, parecendo uma ruína
grotesca de uma cidade europeia bombardeada durante a segunda
guerra mundial; a praça da igreja, gradeada como uma prisão; as
estações de ônibus, agora quase ermas, com aquelas carroças de metal
indo e vindo. Vez por outra surgia uma mariposa a beira da estrada
com suas roupas decotadas... Nesse momento Inácio procurava
diminuir a marcha, seu coração era tomado de um leve aperto de
entusiasmo. Examinava atentamente a peça que se oferecia, não só
para pesar a qualidade da carne, como para prevenir-se de cair na
mesma confusão em que se metera aquele jogador de futebol
gorducho...
Entrou na área mais escura por detrás do velho mercado. O ambiente
pareceu ficar ainda mais escuro, as construções ainda mais arruinadas,
as veredas muito mais fedorentas e os zumbis alcoólicos bem mais
ameaçadores regurgitados de botecos fedorentos.
Inácio Brandão entrou por uma pequena ruela, estreita e sem
iluminação. Desta vez dirigia mais devagar, ia mais atento, olhando
para as mariposas na sarjeta, devolvendo os olhares que o bom
magistrado lhes dirigia. Uma mulher chamou sua atenção, parou bem
diante dela.
“Oi... tudo bem?” Abordou-a, de forma amigável.
“Oi, meu amor...”
Era uma mulher alta para os padrões regionais; magra, rosto bem fino,
traços discretos; boca de lábios corados e estreitos; as sobrancelhas
cuidadosamente cultivadas; nariz adunco; estranhamente ela usava
óculos escuros de lentes arredondadas; cabelo liso e comprido; o busto
bem modelado, usava um vestido tubinho negro; as ancas eram
arrebitadas; segurava uma pequena bolsa escura.
“Porque você está usando óculos escuros em plena noite, meu amor...”
Disse ele esboçando um sorriso no rosto.
“É o meu estilo, meu bem...”
“Que tal nós darmos uma volta para conversar?”
“Depende para onde você quer me levar...”
24
“Vamos conversar num lugar mais reservado, perto daqui...”
A mulher deu dois passos em direção ao carro, abriu a porta e entrou
no automóvel. Inácio percebeu mais precisamente a beleza da mulher, o
que aumentou sua sensação de desejo. Excitou-se. Estranho ele nunca
ter notado uma mariposa como aquela por aqueles sítios... Indagou se
começara a trabalhar ali recentemente.
“Não... É porque eu costumo fazer meu programa em outros lugares
também...”
“Então eu tive sorte de te ver aqui esta noite... Hein... Minha linda...”
Pontuou a frase passando a mão pela coxa da quenga, o qual devolveu
com um sorriso. Inácio percebera que era bastante lisa, tremendamente
suculenta...
“Porque não tira os óculos, deixa eu admirar melhor a sua beleza...”
“Meu amor... Vou tirar os óculos na hora certa...” Passou a mão entre
as pernas do juiz.
“Há quanto tempo você faz programa?”
“Há uns dois anos...”
“Essa mulher linda tem nome?”
“Fernanda...”
III.
Os dois foram subindo pela Eduardo Ribeiro, dobrando naquela rua que
desemboca frontalmente no colégio militar. Estacionou o carro defronte
de uma das mais conhecidas pousadas de Manaus. Ficava
discretamente escondida por um oiti já velho e retorcido, com as
ramagens de um verde cinzento de poeira. Luzes de néon verde
brilhavam formando o nome Makuxi.
No balcão havia um homem magro e alto, provavelmente tinha
cinquenta anos e uns quebrados; tinha os braços grandes, finos e os
gestos meio desengonçados; trajava uma camisa branca de manga curta
com um colete cinza, uma calça azul de educação física, óculos
redondos e bigode protuberante. No momento em que os dois chegaram,
estava sentado contando um bolo de dinheiro em notas de vinte.
Quando vira Inácio Brandão, deu um pulo de alerta.
“Boa noite, doutor...” Disse, cheio de cerimônia, fazendo uma submissa
reverência.
25
“Boa noite... Tem quarto livre?” Os dois ficaram parados bem diante do
homem.
“Tem sim, doutor... Exatamente onde o senhor gosta... Com sofá... No
terceiro andar... Número 55... Pode ir lá... Doutor...”
Os dois subiram pela escada.
No terceiro andar, foram caminhando calmamente, quando passavam
por uma suíte ocupada, ouviam um suspiro, um gemido ou palmadas
estridentes. Inácio olhava com atenção os números dos quartos, 46, 49,
50...
A outra apenas o acompanhava, impassível.
O cinquenta e cinco estava aberto, sinalizando estar disponível para o
primeiro casal que surgisse...
IV.
Era uma suíte típica de motel, uma cama de casal, um banheiro,
televisão, um frigobar, três espelhos redondos do teto e um sofá
erótico...
Quando entraram Inácio trancou a fechadura, tirou do bolso um
pequeno envelope e cheirou o pó que nele estava guardado. Fernanda
deixou a bolsa sobre a cama e sentou-se. Passava as mãos pelo cabelo.
Inácio ligou o ar condicionado e desabotoou a camisa.
“Quer tomar um banho antes?” Perguntou o juiz.
“Não...”
Inácio aproximou-se e tomou-a; ela envolveu os braços pelos ombros
dele, enquanto o juiz apertava com mais força as mãos os quadris da
mariposa. As línguas um do outro estavam num gládio incessante
tentando subjugar uma à outra.
“Tira o óculos, meu amor...” Ele fez menção de tirar as lentes do rosto
de Fernanda.
“Não, meu gostosinho, só no momento certo...” Ela segurou-lhe os
braços, impedindo que ele efetua-se a expropriação.
“Você é do Pará?” Dissera ele, com as palavras sendo acentuadas por
suspiros e beijos, quando notou o sotaque da morena.
26
“Eu sou de Santarém... Mas eu posso ser de onde você quiser...”
Finalizou a frase com um sorriso faceiro, colocando uma das mãos
debaixo da cueca do juiz.
Inácio passou as mãos pelas coxas de Fernanda, deslizando por debaixo
do vestido, que ele tinha acabado de levantar, e começou a apalpar as
ancas e a vagina dela. A pele da moça tinha um odor nunca sentido por
ele até agora, delirava de tamanho desejo. Ele queria penetrá-la, queria
ir até o limite para sentir o máximo de êxtase que esta mulher poderia
proporcionar-lhe. Ela não parava de fazer aqueles prazerosos
movimentos com a mão debaixo da sua cueca, passava a língua nos
seus ouvidos. Brandão tinha a boca quase sufocada pelos grandes
cabelos de Fernanda, mas ele não se importava, que morresse sufocado,
pois agora ele chupava, com a maior força e tesão que conseguisse
aquele pescoço tão adoravelmente cheiroso, macio e liso...
Carregou até a cama, ficou sobre ela passando a língua pelo pescoço e
pelos seios, enquanto que as suas mãos iam retirando pouco a pouco o
vestido; logo ele a visualizaria e desfrutaria dela por inteiro. Fernanda,
já quase totalmente nua, tirou a mão do pênis e mudou de posição,
ficando por cima do juiz; este, por sua vez, tão embriagado estava de
prazer, deixou-se estar, submisso. Ela esticou os braços dele, segurou
suas mãos nas dele e continuou a beijar-lhe freneticamente...
“Tira logo estes óculos... Fernanda... Deixa eu ver os teus olhos...”
“Você quer mesmo ver os meus olhos?”
“Porque não? Eu já estou te vendo toda nua, caralho...”
Ela largou uma das mãos e tirou as lentes escuras, jogando-as para o
lado...
Inácio Brandão, respeitado magistrado da cidade, foi tomado pelo mais
extremo terror que jamais sentira em toda a sua vida, pois onde
deveriam existir dois glóbulos oculares, havia apenas dois orifícios
negros e vazios...
Um grito terrível e desesperado ecoou hediondo por todo o hotel...
V.
Não é possível descrever o efeito que este pranto insano causou em todo
o estabelecimento. Os funcionários estavam acostumados a ouvir todo
tipo de ruídos estranhos, coisas que as pessoas inventam para sentir
mais prazer no sexo; contudo, aquele não parecia ser mais um grito de
um pervertido sexual praticando uma de suas bizarrices com uma
prostituta qualquer... Uma auxiliar de serviços gerais que passava logo
ali com um carrinho de limpeza voltou cambaleando pelas escadas até o
27
primeiro andar; ela era morena, mas agora estava pálida... Muitos
colaboradores ficaram vagando de um lado para outro, atordoados,
interrogando de si para si e para os colegas o que era tudo aquilo e
recebendo como resposta apenas a ignorância coletiva. Alguns clientes
saíram de seus quartos, curiosos, de toalhas cobrindo-lhes a nudez;
outros mais medrosos, imaginando uma briga violenta ou um assalto ao
motel, se enterraram nas camas e efetuavam dezenas de ligações para a
recepção perguntando o que ocorrera...
O velho desengonçado do balcão foi correndo para o andar de cima.
“Mas que droga...” Disse o senhor proprietário, muito pálido, tremia;
liderava a comitiva de cinco ajudantes para averiguar a situação. A voz
denunciava um misto de preocupação, temor e raiva, ao saber que era o
importante juiz Inácio Brandão quem estava em dificuldades — que
sempre o protegera das fiscalizações do poder público em troca de
acobertar suas escapadas com prostitutas.
O velho bateu na porta, chamou por Inácio. Houve apenas silêncio...
Outros fizeram o mesmo, chamaram pelo juiz, bateram outra vez,
gritaram pelo nome de Brandão. Nenhuma resposta... Um rebuliço
entre funcionários e hospedes foi ganhando força. Teria sofrido um
acidente? Teria sido assassinado? Quem estava com ele? Apenas uma
mulher... Então ela agrediu o pobre juiz! Tinha como fugir? Impossível!
Os quartos tinham apenas uma pequenina janela...
“Vamos ficar quietos, porra!” Disse o velho, impaciente.
Mesmo que já tivessem chamado a policia, os funcionários homens,
incluindo o dono, mais alguns frequentadores que resolveram dar a sua
contribuição naquele espinhoso caso, decidiram arrombar a porta.
Afinal, era apenas uma mulher, ainda por cima uma mariposa, e já
haviam gritado para ela que a policia já estava a caminho — portanto,
estava cercada...
Com um pé de cabra forçaram a entrada no apartamento cinquenta e
cinco.
Quando a porta cedeu às investidas, os olhos míopes do velho magricela
captaram algo que o fez recuar; a faxineira de serviços gerais desmaiou;
uma mulher que saíra de um dos quartos e estava logo atrás do grupo
soltara um grito horrífico e caiu em prantos acocorada num canto do
corredor com as mãos no rosto; um outro sujeito começou a vomitar; e
um ajudante de manutenção saíra dali correndo como um demente.
Não se sabe como, mas Fernanda não estava mais lá. Nem seus
sapatos, nem seu vestido, nem seu óculos e nem sua bolsa. Ali estava
algo absolutamente detestável; uma carcaça do que fora um homem,
sobre a cama, com o tronco aberto e os órgãos puídos, com se tivessem
28
sido mastigados, transformando o colchão numa esponja que gotejava
sangue...
***
Memórias de um Bêbado Solitário
I.
Finalmente tinha chegado em minha casa. Estava bêbado como nunca
estivera antes. Quantos problemas eu tive de enfrentar naquele estado
em que me encontrava, caminhando com extrema dificuldade! As ruas,
as casas, as árvores, tudo parecia embaçado; aqueles rostos de pessoas
olhando-me assustadas e com desprezo; os carros e tudo o mais que
passei para alcançar meus aposentos moviam-se de uma maneira fora
do comum. Tinha total consciência da causa do meu desvario... Cada
aspecto distorcido de tudo capitado pelas minhas perturbadas pupilas
criara em mim um rebuliço de impressões cinzentas e delirantes. Sentia
remorso, dor e solidão. Nem mesmo entre aqueles boêmios com quem
compartilhei a orgia consegui sentir-me bem... O meu grande desejo era
alcançar minha morada e render-me aos desejos do corpo, dormir
profundamente por horas intermináveis ou quem sabe imigrar para
aquele undescovered country de onde nenhum viajante jamais voltou...
Empurrei de forma negligente o portão escuro que bateu com um
estrondo enorme e exasperado. Me arrastei pelos azulejos azuis da
varanda até alcançar a porta; feito um cego procurava nos meus bolsos
das minhas calças as pequenas mais tão valiosas chaves. Procurei na
algibeira esquerda, na direita. Nada encontrava. Comecei a me
desesperar. Como poderia ter perdido o maldito molho de chaves? Logo
senti objetos duros no fundo de um dos bolsos. Tirei o espólio com um
alivio indescritível. Depois que abri a porta, fui diretamente até meu
quarto — ia lento como uma tartaruga e exausto como um escravo no
final da jornada da vida. Os objetos da minha morada, todos tão
sombrios, tétricos, sujos e abandonados pela minha tão extrema
incapacidade de cuidar de um lugar tão simples como este. Tantos
anos eu vivia em Manaus e nenhum amigo, parentes, mulheres, nada!
Os objetos, acredito, tomaram tonalidades bem singulares, estavam
mais coloridos e pareciam incorporar movimentos estranhos. Como eu
era estúpido quando bebia! Logo comecei a rir de mim mesmo. Dei uma
gargalhada tão alta que talvez eu tivesse acordado algum vizinho: “Tá
louco, filho da puta?!” Talvez tivesse ouvido. “Sem duvida”. Imaginei.
“Preciso dormir...”
A cama permanecia ali, emaranhada e fétida, o pano branco de sua
cobertura tendia para o marrom; já fazia alguns dias que não trocava
sua roupa. Observei-a rapidamente, possuía aquele ar estranho dos
29
outros móveis, dançava diante de mim, colorida e alegre. Isso me deixou
mais disposto a apoderar-me dela.
II.
Talvez tivessem transcorrido alguns poucos segundos, ou minutos.
Quem sabe? Não me lembro bem quando adormeci. Em meu devaneio
havia um enorme campo coberto de lírios verdes balançando de lá para
cá ao sabor do vento; uma ou outra árvore crescia aqui e ali. O vale era
repleto de subidas e descidas; o céu não possuía uma única nuvem e o
sol estava a pino. Caminhei um pouco e avistei um homem sentado sob
a sombra de uma árvore; conforme me aproximava percebi que estava
fumando um cachimbo soltando baforadas de fumaça verde; moreno,
cabelos longos e negros, acomodado com as pernas cruzadas.
“Que lugar é este?” Perguntei. Ele nada disse. Pitava seu cachimbo.
Tentei inquiri-lo novamente quando ele apontou para o céu e disse
“Veja, a divindade branca surgiu...”
Olhei, para cima, nada vi. Mas de repente consegui divisar um estranho
corpo vindo em nossa direção, um hipopótamo branco dando
cambalhotas no ar e gritando algo que parecia ser:
“Sou o rei, sim, sou o rei das avestruzes!”
Não me contive e comecei a gargalhar com tão ridícula visão. Enfurecido
com minha suposta “falta de reverência”, sacou uma adaga de um dos
bolsos e penetrou-a violentamente em meu ventre. O homem olhava nos
meus olhos, pressionando mais a faca contra mim dizendo impiedoso:
“Morre herege, morre!”
Tentei fazer algo. Mas só consegui apertar-lhe o ombro e, tentando
gritar de dor, fechei os olhos achando que logo morreria....
Por um momento tive a impressão de ter parado de existir. As dores da
lamina no meu ventre sumiram; sequer sentia meu corpo. Tive medo.
Onde estaria? Poderia abrir os olhos? Poderia contemplar o negror
indescritível da morte? Poderia conformar-me com a sensação deste
eterno sonho sem sonhos? Decidi reunir coragem. Uma rajada de vento
quente tocou-me os ombros. O que era? Deveria observar a coisa que
estava às minhas costas? Em um súbito de coragem olhei para trás e
não poderei descrever a surpresa que se apoderou de meu espírito
naquele momento. Tive vontade de gritar, não sei de espanto ou de
hesitação. Estava agora em meio a uma enorme boate, repleta de
padres, pastores, monges, demônios, anjos, mulheres e toda sorte de
criaturas das mais variadas formas. A rajada de vento que sentira
anteriormente provinha de um grande Gárgula às minhas costas que
30
fumava um enorme baseado de maconha. Ele olhava-me meio intrigado,
perguntou:
“Meu filho, vai ficar ai parado atrapalhando o trânsito ou vai me dar
licença para passar?... Valeu, franzino..” O monstro foi andando em
frente e sentou-se numa mesa onde estavam outros quatro de seus
companheiros.
Percebi que eu estava numa grande boate fervilhando de movimento.
Tinha anjos que fumavam charutos e jogavam cartas, uma cena muito
familiar para mim; quando perdiam uma partida soltavam as mais
horripilantes blasfêmias; ali no fundo vários homens de terno e bíblias
deliciavam-se com várias mulheres. Havia uma mesa em que padres, e
outras figuras que não posso descrever disputavam no jogo do bicho
para ver quem poderia possuir uma bela ninfeta de pele morena e
traços orientais. No centro do recinto tinha um palco com uma banda
que executava uma canção bastante familiar, falando sobre o dia em
que a civilização seria destruída por uma guerra nuclear, não lembro
muito bem, talvez algo relacionado com um funeral elétrico...
III.
Os convivas desta verdadeira orgia infernal nem sequer importavam-me
comigo. Abruptamente a banda parou de tocar e após vários aplausos o
vocalista, cabeludo e de óculos redondos e escuros disse:
“Agora, depois de tanta música e tanto divertimento, daremos a palavra
para o vosso anfitrião...” Recomeçaram os aplausos e assovios.
Subiu uma figura morena, cabelos negros, olhos escuros, traços finos e
uma expressão serena no rosto. Com os braços estendidos e as mãos
abertas ordenava silêncio:
“Senhores, todos aqui sabem porque estamos reunidos... Por muito
tempo... Nós, os verdadeiros amigos do conhecimento e do homem,
fomos tratados como escória, como subversivos, como criminosos... Em
fim, como seres ameaçadores contra a humanidade e contra o equilíbrio
do universo... Lançaram mão de um livro maldito para sua propaganda
ideológica; manipularam as opiniões dos homens, criaram falso
testemunho contra nós, falsificaram toda a história humana e do
universo para nos destruir; perseguiram os que, como nós,
posicionaram-se a favor do livre pensamento... Eles eram poderosos, é
verdade... Tinham muito mais meios para vencerem, éramos uma
simples milícia rebelde contra o totalitarismo de uma divindade louca...
Covardes, enviaram um impostor para a terra se passar pelo filho do
sanguinário imperador para morrer como um cão e destruir uma das
mais belas civilizações que o planeta nunca teve, destruíram a vontade
de poder e o novo mundo...
“Nós resistimos... Mas, não era o bastante para eles... Mandaram seus
carrascos em caravelas para matar as pobres tribos de morenos na
31
terra que eles tiveram a petulância de chamá-la de “Novo Mundo”.
Como isso foi um ultraje para nós e para nossos amigos...
“Pobre do bicho homem ao se submeter ao Criador Louco e totalitário...
Não os culpo, pois foram simplesmente marionetes nas mãos sujas de
um caudilho... Mas a sandice daquele sanguinário logo perturbaria os
seus próprios seguidores... Muitos começaram a questionar os métodos
insanos do criador e logo foram expulsos ou mortos, os que
sobreviveram vieram a nós, e os recebemos de braços abertos... As
pobres almas que alcançavam a utopia do paraíso e lá descobriam que
seriam nada menos que escravos sem liberdade de pensar agir ou
falar... Se juntaram a nós... Nossa milícia cresce! Nossas posições
avançam... Ganhamos mais batalhas e mais adeptos a nossa causa,
pois ter liberdade nunca será uma utopia! Não tínhamos meios, mas
tínhamos paixão em vencer!”
“Como vês, estamos num estágio avançado da guerra... E mais crítico
também... Nunca pensamos que todos vocês estariam aqui...
Exatamente aqui... Se confraternizando nos prazeres da carne numa
mesma festa! Um sinal de que o ano da libertação esta próximo e de que
eu, por tanto tempo fui chamado de vil, sórdido e imundo tentador,
conhecia realmente os homens! Eu sabia dos seus desejos... Dos seus
medos... O mundo é nosso, meus senhores, os fortes! E o paraíso que
fique com os tolos!”
“Exultai e comei em meu festim! Dançai, bebei este vinho doce! A
estação negra está próxima e o combate final acontecerá, quando
nossas hostes avançarão como uma praga fulminante contra os castelos
de nossos opressores... Mas sedes sábios amigos... Sede astutos como
uma serpente, devemos esperar o dia da vitória de forma tranqüila e
atenta... Esmagaremos nosso inimigo... Sujaremos nossas espadas com
seu sangue podre e exibiremos sua cabeça horrível como um troféu de
nossa vitória!
Após tal discurso, o líder foi aplaudido durante vários minutos. Fazendo
sinal de silencio, disse:
“Senhores, sei de vossa alegria, e é muita, não ignoro isso... Sejamos
fortes, O Inferno, A Liberdade e A Sabedoria vencerão!
É impossível relatar como a turba de libertinos reagiu ao final do
discurso; urravam, gritavam, assobiavam, davam piruetas, aplaudiam,
o louvavam e outras coisas mais. A música recomeçou e os convidados
daquele festim infernal voltaram a beber, darem baforadas de maconha,
e cachimbos e a servir-se das belas ninfas demoníacas que por ali
passavam.
IV.
32
O turbilhão de pessoas, as milhares de vozes, os vapores estranhos
subindo pela atmosfera tétrica, as fragrâncias do fumo, da cerveja e de
outras substancias alucinógenas começaram a me despertar um
sentimento de desespero. Talvez a única coisa que pode ser comparada
com minha atual disposição que toma conta de mim é aquele
sentimento experimentado por doentes aprisionados pelos grilhões de
demência...
Comecei a correr de olhos fechados, feito louco; esbarrava nos
libertinos, nas prostitutas, derrubava cadeiras, mesas e ouvia uma
coleção de impropérios. Mas não me importava. Só desejava que a
angustia passasse.
Entrementes, tudo parou num estante. Não mais havia milhares de
vozes nem os vapores venenosos. O silêncio e a escuridão tomaram
conta de tudo...
V.
O que havia acontecido? Abri meus olhos e de modo gradual a visão
tomou uma forma nítida: a parede imunda, repleta de teias de aranha.
Alguns raios de sol invadiam, ainda fracos e tímidos, o infeccionado
aposento pela janela. Minha cabeça doía, todos os meus órgãos internos
gemiam numa aflição incessante, e a fadiga dos meus músculos só
poderia ser de alguém que tivesse sido obrigado a cumprir uma longa
noite de trabalhos forçados. Em volta havia o mesmo quarto velho,
emporcalhado; roupas sujas jogadas por todos os lados, cadernos e
papeis rasgados e já apresentando traços de decomposição — torpes
tentativas de um aspirante a escritor fracassadas acumulavam-se em
um canto escuro onde eu julgara a pouco ter visto um rato...
O mesmo sentimento de solidão e tristeza dominava meu semblante —
a diferença era que agora parecia estar potencializado com o desespero
da lucidez. Tudo em volta era silencio, cinzas e fedor — uma poça meio
seca de vômito agora jazia na parte direita da cama...
Este era meu desastre pessoal: uma bebedeira para dissipar uma
doença de espírito seguida de um sonho horrível e ao despertar uma
sensação abismal de um ímpeto de suicídio... Só havia uma coisa capaz
de aniquilar minha vontade ignóbil de morte e dar-me mais um pouco
de fôlego; algo capaz de subjugar o contorcer das minhas entranhas,
domar o descontrole do meu espírito, diminuir minha falência moral: o
álcool, meu amigo, destruidor e consolador, o vírus exterminador do
raciocínio humano, o algoz da razão, um dos mais eficazes libertadores
das paixões dos fracassados e covardes.
Sobre a escrivaninha deteriorada pego, rude, um maço de notas
bastante amassadas e vou direto ao bar, com os olhos remelentos, a
roupa imunda, o hálito que mais lembrava enxofre; a mente, o corpo e o
33
espírito tomados pela maldição de um circulo vicioso que só acabaria
com o fim da minha existência...
***
Um Cidadão
Todo homem descente de nossa
época é e deve ser um escravo.
F. Dostoiévski
I.
Domingo abafado e quente; daqueles dias em que a temperatura torna
mais interessante entregar-se ao enlevo de leitura calma e monótona ou
a uma preguiçosa cesta.
Certamente era o que quase todos os moradores daquele bairro de
classe média decadente estavam fazendo — um conjunto de
apartamentos tão medíocre que nem merece ter o nome mencionado na
historia. Por todo o sitio reinava um silêncio quase imperioso, somente
cortado por alguns risos de criança ou cantos de um ou outro pássaro.
Digo quase imperioso, pois era possível, durante intervalos mais ou
menos regulares, ouvir gritos bizarros, desses que misturam um tom
infantil com o êxtase irracional e fanático dos Pentecostes
acompanhado de uma narração de futebol.
Ao passante que tivesse o desprazer de transitar por aqueles territórios
durante àquelas horas presenciaria uma cena por demais pitoresca. Um
homem, com cerca de quarenta anos, sentado numa cadeira e gritando
numa entonação de voz que lembravam muito o famoso personagem de
Matt Greoning. Tinha uma estrutura fisiológica fartamente nutrida de
tecido adiposo, acumulado graças aos longos anos de inapetência tanto
mental quanto corporal. A concentração gordurosa era tamanha que era
impossível para o nosso personagem enxergar o minguado pênis
durante uma relação sexual ou durante o ato de urinar.
Segurando numa das mãos uma latinha de cerveja, acompanhava
totalmente compenetrado o jogo de futebol. Seus movimentos, suas
falas, seus gritos e suas reações psicológicas eram respostas
instantâneas e automáticas ao teatro televisivo, um exemplo
clarividente de behaviorismo.
II.
Além de fanático pelo esporte de Charles Miller, era espectador assíduo
dos jornais noturnos; devia a ela toda a sua cosmovisão. Para ele o
suprassumo da realidade. No dia seguinte repassava os fatos a
conhecidos expondo as opiniões do jornal como se fossem suas, e com
34
isso se pretendia culto, embora plagiasse descaradamente as análises
conjunturais dos comentaristas, que no fundo eram tão eruditos quanto
ele — assim não fazia mais que aconchegar a própria opinião á media
da canalha.
Quando via na televisão as invasões da policia nas favelas, os corpos de
vários supostos traficantes sendo transportados, como carne para
alimentar o apetite voraz da imprensa, satisfazia-se:
“Isso aí, tem que pegar esses vagabundos filhos da puta mesmo...”
Mobilizações em prol dos direitos humanos o exasperavam, dizia que
isso era “pura frescura”. Se fosse inquirido sobre a solução para a
questão das favelas, diria categoricamente:
“O negocio é jogar uma bomba lá que matasse todo mundo, resolvia o
problema...”
Não se sabe o que acarretou tamanha atrofia da inteligência, se foi a
falta de leitura, o adestramento do cérebro ao futebol ou as mensagens
transpassadas pelo arco íris de interesses secretos do telejornal...
III.
Tinha dois filhos, ambos com a personalidade distorcida por toda sorte
de cuidados. Batiam na empregada, chamavam-na de puta, galinha,
pretinha suja e outras carinhosas denominações. Também davam-na
toda sorte de piparotes. O cidadão não se manifestava, só dizia:
“Esses meninos são assim mesmo... Puxaram o pai...”
Mas e a sua esposa? A relação conjugal pode ser exposta a partir de um
fato ocorrido numa manhã de sábado, quando o abastecimento de água
foi cortado no conjunto. Os moradores, incluindo o nosso bom homem e
acompanhado de sua honesta mulher, se dirigiram para uma casa nas
proximidades que tinha poço artesiano. Tudo aconteceu muito rápido —
as testemunhas disseram que uma mera repreensão da bem
aventurada esposa pelo uso de diminuto balde para apanhar água foi o
suficiente para ela levar poderosas bordoadas...
IV.
Homem de poucas posses, gabava-se do mediano patrimônio que
acumulara como micro empresário. Tinha como amizades milhares de
parasitas ociosos, que aprovavam todas as suas extravagâncias em
troca da pueril mordomia dos sábados e domingos.
Sempre que seu time ganhava, passava toda a tarde gritando
impropérios para os quatro ventos até que as cordas vocais se
exaurissem. Ligava o som do carro no mais alto volume, punha a porta
35
mala aberto com sua caixa de som direcionada para a vizinhança.
Assim ficava por várias horas, como se quisesse mostrar a todos o seu
estado de humor. Não importava se houvesse alguém doente por perto,
crianças pequenas querendo dormir, idosos ansiando por sossego,
estudantes se preparando para o vestibular ou outra coisa parecida.
Nas poucas vezes em que fora indagado sobre isso replicava
tacitamente:
“Eu pago imposto, então tenho direito a tudo...”
“Tá certo fulano, tá certo.” Seus amigos concordavam sem hesitar.
V.
Todavia, naquela tarde de domingo ele estava muito mais descontrolado
que o costume. Era final de campeonato. Gritava como um insano ao
menor erro de um dos jogadores do seu time e angustiava-se, como se
estivesse sendo submetido á tortura, quando o time adversário
simplesmente recuperava a posse de bola. Embora os seus amigos se
mostrassem um pouco incomodados com as atitudes tietes do colega,
que atrapalhavam muitas vezes a atenção no jogo, não ousaram
reclamar. Perder as mordomias de finais de semana? Impossível!
“Pega essa bola filho da puta... Chuta seu preto safado... Porra caralho
joga direito... Pega porra! Pega caralho! É campeão seu vagabundo! È
campeão...”
O jogo finalmente terminara, correu por toda a área de recreação
gritando como um esquizofrênico, a extravasar sua raiva contra o time
adversário ou contra qualquer outra coisa que na sua cabeça estivesse
ligada ao adversário.
“É campeão seu vagabundo! É campeão!...”
Ainda não satisfeito, pegou a bandeira de seu time e começou a correr
pelas ruas, esbravejando a sua satisfação. Apesar do olhar de ridículo
que os moradores lhe dirigiram, não parecia se importar, corria, gritava,
balançava a bandeira, imerso na solitária e incomum festividade.
“É campeão seu vagabundo! É campeão seu filho da puta!”
Após apenas três minutos da bizarra maratona da vitória, as banhas
cobraram seu preço e a fadiga lhe dominou. Voltou para casa, ainda
dando o brado da vitória, onde seus amigos esperavam. Embora não
torcessem pelo mesmo clube, elogiavam a performance do time, dos
jogadores, dos anunciantes, do juiz, da grama, da trave...
Como de hábito, ligou o volume do aparelho de som ao máximo,
posicionou a caixa para a vizinhança e pôs-se a beber. O isopor ainda
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tinha muita cerveja, daria para o minguado resto da tarde e para boa
parte da noite. Ao longe ouviu o barulho de fogos e, como se tentasse
comunicar-se com estes longínquos torcedores, voltou a gritar:
“É campeão seu vagabundo!...”
Horas passaram, os companheiros foram embora e a noite por fim
entrou por completo. O cidadão ficou bebendo sozinho na sua casa
apenas na companhia do som estridente do seu automóvel. A esposa
tinha viajado com os filhos três dias antes. As latinhas de cerveja, secas
e amassadas, amontoava-se pelo chão, um purulento ar de bebida
quente espalhava-se pela varanda. Seu entusiasmo não diminuía,
quando o êxtase da vitória principiava por minguar, imaginava outra
vez as cenas transmitidas pela TV e de novo retornava ao transe
futebolístico.
VI.
Quando o relógio já alcança a meia noite de domingo para segunda, viuse refletidas nas paredes e nos muros das casas umas luzes vermelhas
e azuis que se aproximavam. Era uma viatura da policia.
Os policias revistaram a casa, mas não achando nada de problemático a
não ser a poluição sonora. Aplicaram-lhe uma notificação e foram-se.
Os modos do cidadão para com os homens da lei foram dos melhores,
muito submisso e respeitoso, não fez uma única objeção. Contudo,
assim que as luzes da viatura sumiram na esquina da alameda, pôs
para fora toda a sua revolta reprimida. Imaginou que fora brutalmente
desrespeitado em seus direitos de homem honesto. Policia não era para
ele, um cidadão de bem que pagava impostos, era para dar porrada
naqueles favelados que atrapalham os que fazem este país funcionar.
Como criança que tem o seu brinquedo novo quebrado ou quando os
pais lhe negam a chance de ir ao parquinho, gritou aos quatro cantos:
“Seu filho da puta! Safado! Vagabundo! Vai te Fuder! Quem foi esse
filho da puta? Quem foi? Quem foi que chamou a policia?”
O nervosismo dele alcançava os patamares da pura irracionalidade.
Queria momento agredir até perder as forças aquele que transgredira o
seu direito de se divertir.
“Eu pago imposto então eu tenho direito a tudo!” Repetiu novamente o
seu velho bordão.
Andava de um lugar para o outro, batendo com as mãos nas grades.
Apesar das atitudes desbaratadas do cidadão perturbarem todos os
comunitários, ninguém se pronunciou ou tentou acalmar o homem de
sua ira, parecia que o mundo externo esforçava-se por ignorá-lo — não
se sabe o porquê deste estranho fenômeno para um lugar onde a vida
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privada sempre era motivo para interesse alheio, mas isso não conta na
história...
“Eu pago imposto... Então eu tenho direito a tudo!”
Não parava de repetir a sentença, tentando atingir o vizinho que
chamara as autoridades. Gritou mais alto, perdia a voz, chorava, era
uma raiva embaralhada com a embriagues.
“Vem aqui filho da puta! Vem pra porrada! Te prepara que meu
advogado tá vindo aí!”
Mas o grito se misturava com as tremuras do choro e da exaustão,
estava há horas nesta vigília, já muito cansado de tanto gritar durante
tanto tempo, começava a ficar rouco, a voz falhava. Batia com mais
força na grade da casa, fazendo escoriações nas mãos gordas e pálidas.
Dava chutes nas latinhas de cerveja jogadas pelo chão da varanda.
Suado, transpirando muito, esbravejava ao máximo, sem se importar
com a fadiga dos músculos, as dores da garganta e no pulmão, urgentes
reclamações do corpo adiposo para o descanso.
“Vem aqui filho da puta! Vem pra porr...”
Mas não pode completar a tão repetida frase. Uma dor aguda no peito
paralisou seu corpo e sua fala. Teve apenas um ou dois segundos de
sofrimento, pois tombara no chão fulminado por um colapso cardíaco...
***
A Carta
I.
Mariana Duarte fez um grande esforço para terminar de ler a missiva
que tinha em mãos; hesitou por vários momentos em continuar sua
leitura e não foram raras as vezes em que chegou a desobrigar-se de ir
ao seu termo. Mas a curiosidade impeliu-a a continuar deslizando os
olhos por sobre aquelas fatídicas linhas. Quando finalmente atingiu o
ponto final da correspondência, o semblante contraiu-se e as pupilas se
umedeceram. Sentou-se bruscamente sobre o canapé do escritório,
amassou a carta e, lentamente, com as mãos pálidas e trêmulas, jogouo no pequeno cesto.
“A senhora quer que eu traga uma xícara de chá?” Perguntou-lhe
Joselina, que durante todo aquele silencioso suplicio permanecia
parada diante da patroa; a criada era uma típica taquia num vestido
ordinário que cobria-lhe os ombros e chegava até os calcanhares.
“Não, pode ir...”
38
Era verdade, o marido tinha uma amante. Embora tenha ouvido de
amigas e de outras pessoas próximas que havia uma outra, tomava tais
notificações como fruto da inveja de personalidades mesquinhas que
sonhavam em ver um casamento feliz que já furava quase dez anos
sucumbir. Agora tinha a malfazeja prova do crime, a correspondência
enviada da concubina para seu marido, o comendador Teobaldo
Fonseca, e interceptada por uma criada, onde estavam escritas todas as
declarações de amor, subserviência e total lealdade. Uma miscelânea de
sentimentos apertava-lhe o coração, comprimia as entranhas e
arrepiava a raiz dos cabelos. Queria assassinar Fonseca e esfaquear a
amante para ter da vendeta do orgulho ferido. Paradoxalmente, também
sentia um ímpeto de cair aos pés do homem e, em prantos, implorar
para saber o que aconteceu. Era algum problema nela? Não estava
sendo carinhosa suficiente? Era porque não podia ter filhos? Aquilo era
consequência do arroubo de ciúmes pelo fato de o esposo ficar tanto
tempo fora, ocupado com suas obrigações de político e seringalista? Ela
se cuidaria. Seria mais vaidosa, atenciosa, entenderia as viagens, as
ausências, as longas semanas passadas no Rio de Janeiro...
II.
O sol daquela tarde de 1923 entrava pelo escritório peneirado pelas
ramagens de uma castanheira e derramava pelo aposento uma luz
embaciada. Vinham da Rua Joaquim Nabuco passos ritmados dos
cavalos puxando tilburis, murmúrios de vendedores de bugigangas, o
bondinho ao longe sobre trilhos e o barulho da água caindo sobre os
paralelepípedos do caminhão lavador.
Era filha do Marechal Duarte, deputado outrora aliado de Eduardo
Ribeiro nos anos agonizantes do império. Morena, semblante aprazível
ao olhar; cabelos negros que usava sempre presos por um bastonete
folhado a prata; o corpo tinha aquelas raras conformações que
dispensavam o espartilho. Foi educada no colégio de freiras das Irmãs
da Ordem da Santa Mônica. Quando completou os estudos que as
mulheres de escol da província tinham acesso, seu pai custeou tutores
para lhe ensinarem piano, francês e as habilidades da costura. Como
crescera lendo folhetins e outros dramalhões baratos, por isso julgavase a mais pudica e letrada das mulheres de Manaós, contudo, se
estivesse em São Paulo ou no Rio de Janeiro seria apenas mais uma
entre milhares de jovens casadas que, após ter lido meia dezena de
livros fáceis, julgam-se donas de uma grande erudição. Deleitavam-se
com os espetáculos que proviam da França e de outros lugares da
Europa, achando que aquilo era o que havia de mais avançado em
cultura, embora não passassem de peças de terceira categoria no velho
mundo. Tinha o comportamento afetado, as maneira pareciam forçar
uma delicadeza supérflua, a entonação de voz tinha uma presunção
como havia em poucas damas da elite manauara e, apesar de seus
olhos serem grandes e escuros, de uma beleza decididamente
setentrional, reduzia-se drasticamente seus belos efeitos ao teimar em
39
manter o semblante ligeiramente cerrado, dando a entender que esta
mulher estivesse sofrendo vinte e quatro horas por dia de um tédio
mortal.
Naquele dia, porém, ela esquecera toda sorte de simulações que estas
mulheres fazem para sentirem notadas e importantes. Retirou a carta
do cesto e pôs-se a relê-la, como se tivesse a esperança de que tivesse
lido apenas ilusões. Quando finalizou a leitura lá pela quarta ou quinta
vez, ficou a observar sua aliança de brilhantes. Lembrou do dia em que
conheceu Teobaldo numa visita deste a sua residência. Na época
sentira uma verdadeira fascinação por aquele homem maduro, que
apesar dos já visíveis cabelos grisalhos, exalava uma virilidade e energia
típica dos homens de vinte anos; de porte altivo, maneiras incisivas, fala
potente, olhar penetrante. Pode-se dizer que as investidas do velho leão
seringalista foi incentivada pelo pai de Marina, que estava muitíssimo
interessado em alargar suas alianças comerciais. No fim de três meses
selavam matrimônio.
III.
Depois de ter examinado por alguns momentos aquele pequeno anel,
tirou-o do dedo e ficou passando-o por entre os dedos finos. Pensou em
como deveria reagir quando o marido chegasse. Imaginava jogar a carta
na cara dele e expressar todo o ódio e a sensação de violação que
sentia, mas essa disposição guerreira era logo sedada por aquele
acondicionamento no qual as mulheres são majoritariamente treinadas
a fazer — aceitar resignada os fatos. Lembrou da amiga, Honorina
Amélia, ao descobrir que o marido cultivava uma amante, muito
padeceu no inicio. Contudo, imaginando a repercussão que um desquite
faria na alta sociedade, criando inclusive uma grande chance de
atrapalhar seus estudos na faculdade de odontologia, conformou-se.
Era provável que seu esposo já teria chegado do Rio de Janeiro e se
dirigia para lá — ainda não sabia qual papel encenaria. A única coisa
que fizera até aquele momento foi encenar sua performance de mulher
revoltada, dizendo frases pomposas sobre moralidade, respeito e
religião. Também fabulava a reação desconcertante do marido, o velho
leão tentando esboçar uma desculpa consistente, implorando pela
piedade da esposa para que o poupasse da humilhação de um
escândalo, jurava seu amor eterno e assegurava, de joelhos perante ela
e sob as bênçãos de São Nicolau, que deixaria a amante. Enxergava-se
indo a casa da amante, uma pobre rapariga que habitava aqueles
casebres carcomidos da Rua Fileto Pires. Marina veria a situação de
extrema penúria na qual vivia a garota, que teria dois irmãos e uma
mãe doente. Mentalizou os pobres diabos tendo de alimentar-se
simplesmente a base de peixe e farinha de mandioca. A amante pediria
perdão à esposa ultrajada e afirmaria, entre lágrimas no rosto, que só
fazia isso para poder sustentar a família e a genitora doente. Inflada da
mais pura piedade cristã diante da miséria da concubina, a mulher do
comendador perdoaria tudo e tornar-se-ia a protetora daquela pobre
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família de indigentes, mandaria seu irmão, que era médico, cuidar da
pobre anciã, adotaria os irmãos pequenos, resolvendo sua incapacidade
de ter filhos, enviá-los-ia para os melhores colégios do Rio de Janeiro e
a amante seria enviada para um convento para purgar os seus pecados
diante de Deus e da Virgem. Com essa magnânima atitude, a esposa de
Teobaldo seria reconhecida na sociedade, nasceriam artigos e poemas
n’A Província de Manaus e n’O Diário de Noticias, onde seria chamada
de A Santa. O bispo com certeza a convidaria para janta com ele, junto
com toda a elite eclesiástica provincial, louvaria o exemplo cristão da
jovem esposa — amando incondicionalmente o marido, respeitando-o
como seu chefe, advertindo-o com total prudência e perdoando-lhes as
faltas. Ele também diria que em nossa sociedade, tomada pela
imoralidade e luxuria, ainda havia moças que ofereciam a esperança de
que para a moral e a religião nada estava perdido...
IV.
Quando finalizava estes pensamentos foi de repente jogada na realidade
pelo bater da incessante da porta.
“Entre...” Disse, contrariada.
“Minha senhora...” Era Joselina. “O senhor seu marido chegou.”
“Diga que eu estou aqui...”
Foi até a janela, percebera que a carruagem do marido estava parada
logo ali em frente. Como não tinha percebido isso antes? Correu para a
mesa, abriu a gaveta, tirou um pequeno espelho e ficou a examinar-se,
reparando as manchas da maquiagem criadas pelas lágrimas e outras
falhas imaginárias. Procurava acalmar-se, parecer segura. Notou que as
mãos tremiam, balançou-as como se o nervosismo fosse apenas uma
sujeira que pode ser expelida com um gesto.
Uma algazarra dos criados se movimentando e a voz grave do esposo
podia ser ouvida do escritório.
“Deixa que eu levo sua mala, Doutor...” Dizia Petrônio, um dos
jardineiros.
Mariana ouvia atentamente.
“O senhor está cansado, não quer descansar? A viagem de volta do Rio
de Janeiro deve ter sido cansativa...” Perguntou Josefina.
“Onde está minha esposa?”
“Dona Marina está esperando pelo senhor no escritório...”
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Podia ouvir os passos fortes do marido subindo as escadas de mármore.
De pé, ao lado da escrivaninha, ela tentava controla-se. Pretendia tomar
o marido de assalto com a historia da carta. Ensaiava naturalidade.
Mas concluiu que seria mais convincente se fingisse estar fazendo algo,
passou os olhos apáticos em volta, viu a estante, pegou um livro...
Os passou se aproximavam.
Num segundo a acústica da casa denunciou que Teobaldo acabara de
galgar a ultimo degrau da escada e se dirigia para o escritório. Mariana
sentiu uma pontada no coração, por um momento imaginou que fugiria
pela boca. Olhou fixamente para a porta, a maçaneta começou a girar.
“É agora, pensou...”
Um pequeno baque no chão postergou a abertura da porta.
“Que maçada!” Ouviu a voz do marido. Viu pela fresta do chão da porta
que ele se abaixara para pegar algo.
A porta se abriu.
V.
Apesar de apenas ter ficado um mês fora da província, Teobaldo parecia
envelhecido dez anos. Os cabelos estavam quase totalmente brancos e
desgrenhados; o bigode, outrora sempre cuidadosamente cultivado,
pontudo e vergado para cima, estava desarrumado; usava um terno
cinza; tinha uma calça de brim escura; as mãos seguravam um chapéu
branco; sob os olhos brilhavam duas profundas olheiras enegrecidas, as
maçãs do rosto pareciam mais enrugadas e os lábios mais secos.
“Como vai, minha esposa?” Disse, enquanto colocava o relógio de ouro
no bolso do colete e jogava o chapéu no criado mudo.
“Òtima... Foi boa a viagem, meu marido?” Levantou-se, jogou o livro no
sofá vermelho e foi até o marido dar-lhe um abraço.
“Foi péssima...” Disse ele, em tom de desabafo, depois de terem se
abraçado friamente. “Aqueles malditos ingleses estão fazendo um
estrago nas nossas cotações e a proposta de fortalecimento da nossa
borracha não conseguiu nem dez por cento de apoio no Rio...” Deu um
longo suspiro, jogou-se sobre o sofá e olhou fixamente para Mariana.
“Eles alegaram que o látex não é tão importante para o país quanto o
café...”
Ela apenas observava-o, sem dizer uma palavra.
“Maldita elite paulista! Se ainda tivéssemos um imperador...” Levantouse, foi até a gaveta da escrivaninha e tirou um charuto.
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“Tudo vai se acertar, Teobaldo, não se preocupe, tenho rezado por nós
todos os dias...” Apesar de ter dito aquilo, não estava nem um pouco
interessada nas intrigas políticas ou nas dificuldades econômicas que
envolviam com suas asas agourentas aquela Sibéria Tropical.
Controlava-se, tentava manter as frases dentro de si, domando-as como
alguém que tenta segurar a vomição dentro do estômago.
Teobaldo pegou uma garrafa de uísque e um copo da prateleira,
encheu-o até a metade.
“Sentiu a minha falta?”
“Eu sempre sinto a sua falta...”
Ele não respondeu, virou para a janela e ficou observando o rarefeito
movimento da rua.
“O que ficou fazendo durante a minha ausência?”
“O de sempre, cozendo, tocando piano nos saraus, lendo meus
romances, dando alguns passeios com meus irmãos, com Honorina...”
Ela sentou-se numa das cadeiras, remoendo com as mãos a carta.
“O Rio de Janeiro é uma cidade de cobras... Sabia disso? Não se pode ir
pra lá sem ser mordido...”
Ela apenas observava o outro soltar grandes bolas de fumaça pela boca
e pegar o copo para dar pequenos goles.
“E o teu irmão, já curou-se daquele miasma dos pulmões?”
“Sim, fiquei aliviada...” Respondeu maquinalmente. Olhava fixamente
para a mesa, as pupilas estavam úmidas e a face dilacerada.
Teobaldo virou-se entediado, sentou-se na poltrona da escrivaninha e
ficou a remexer alguns papeis enquanto matinha a charuto na mão
esquerda. Como colocara o copo bem do lado de seu cotovelo direito,
acabou por esbarrar nele, fazendo a bebida derramar sobre seus papéis.
“Eu sou mesmo um desastrado...” Tomou um lenço, tentou enxugar a
meladeira. “Pode me fazer o favor de chamar a Josefina para vir enxugar
isso?”
Quando ela se levantou o marido interpelou-a:
“O que é isso na sua mão?” Enquanto olhava diretamente para ela.
43
“Nada, apenas uma carta de uma prima” Respondeu, completamente
sem jeito.
“Qual das suas primas?”
“Aurora...”
“E o que ela diz?”
“Nada demais, vou rasgá-la...”
“Não seria melhor guardar?”
“É um assunto tão sem importância, só vai criar volume entre nossas
correspondências...” Mariana tentava esboçar um sorriso desgrenhado.
“Aconteceu alguma coisa?”
“Estou apenas cansada...”
Fonseca colocou os óculos no rosto e voltou-se para suas anotações.
Marina se manteve por alguns momentos perto da porta, de pé, com os
olhos perdidos, respirando devagar. Olhou para a missiva, manuseou
aquela lauda já machucada e manchada pelo suor das mãos, rasgou-a
em vários pedaços e jogou-os no cesto.
“Vou chamar a Dolores para limpar esta sujeira...”
O outro não esboçou resposta; quando saiu, a porta fechou-se com um
baque surdo.
“Talvez seja muito direito...” Era o que ela pensava enquanto descia as
escadas.
***
O Presente
I.
Naquela lúgubre madrugada de novembro de 1998 tomei aquela
derradeira resolução que há muito protelava.
Dei os últimos goles numa Sapupara para reunir coragem e peguei uma
capa de chuva. Sabia que em breve cairia uma poderosa tempestade —
ventava muito, os buritizeiros que circundavam os igarapés pareciam
prestes a serem arrancados da terra e os telhados das casas zumbiam.
Sai de minha casa, que ficava num sobrado pestilento do Beco do
Maneco, e ganhei as ruas desertas e silenciosas. Caminhava muito
44
apressadamente, a cabeça baixa e os braços encolhidos por causa do
frio. Pelo aspecto do céu, calculei que aquela capa de chuva não teria
grande serventia contra a tempestade.
Vários ruídos e aromas familiares chegavam-me, os latidos de cães, as
gritarias de bêbados em bares próximos, o ruido escandaloso da sirene
de uma viatura, algumas vozes familiares, outras desconhecidas, a doce
fragrância de Jhá...
II.
Quando cheguei na Rua 35, acabei por encontrar um dos meus velhos
conhecidos que vinha cambaleando de um dos bares das redondezas.
Chamava-se Cláudio e como eu passava sérias dificuldades financeiras
em virtude da intemperança do álcool. Vinha olhando para o chão, com
passos vacilantes. Me desviei dele para não ser reconhecido... O bêbado
solitário passou por mim sem notar-me a presença, tão lastimável
estava sua embriagues. Virei para trás e pude vê-lo dando uma grotesca
gargalhada...
Era um pobre coitado, bebia quase todos os dias e sempre sucumbia
em tão triste estado. Alguns chegaram a dizer que, no desespero de
sentir a doce lerdeza da embriagues, bebera gasolina. Estaria eu indo
para o mesmo caminho? Ele seria apenas eu num futuro próximo?
Quando me fazia estas e outras conjecturas, ouvi um grito:
“Tá louco, filho da puta?!”
Era o cearense, um sujeito gordo e mal humorado que tinha acordado
com o barulho...
III.
Desci por uma travessa escura até uma pequena vereda asfaltada.
Finalmente avistei uma casa bastante simples de tijolos deteriorados e
um singelo jardim onde algumas feias orquídeas cresciam. A residência
parecia hibernar profundamente...
Dei três batidas na porta. O aço podre gemeu num barulho grave e
medonho. Ouvi o latido do cão que perambulava pelo quintal do
casebre.
Dois minutos se passaram, mas ninguém respondeu.
O cão parara de latir.
Bati novamente, uma cinco ou seis vezes. O cachorro latiu com mais
força e seu colega da casa vizinha resolveu fazer-lhe coro.
45
Como anteriormente, ninguém veio ao meu encontro. Apesar do clima
frio, vários filetes de suor já desciam desagradavelmente pela minha
fronte. Minhas mãos transpiravam. Dei dezenas de poderosos socos na
porta, fazendo tanto barulho que todos os vira-latas da rua latiram
desesperados.
As nuvens já davam trovoadas violentas, sua coloração já começava a
tornar-se mais lúgubre e os pingos já adensavam. Ficar debaixo da
chuva, levando aqueles pingos grossos no cangote a esperar alguém no
meio da madrugada, não era a situação mais confortável que alguém
poderia estar...
Percebi que uma luz de um dos quartos dos fundos acendera-se e
passos vacilantes vieram lentamente até a porta, duas sombras de pés
ficaram estancadas por detrás dela. A voz de Márcia, trêmula e
preguiçosa, inquiriu-me:
“Quem é?”
“Sou eu... Temos que conversar” Minha voz saiu entrecortada, meio
confusa.
Após ouvir um demorado suspiro de tédio, a fechadura começou a
emitir um rugido desagradável.
Eu tremia e suava.
A porta abriu apenas o bastante para que eu pudesse ver, por entre a
penumbra e a tênue luz interior, os cabelos revoltos sobre uma face
pálida e a silhueta de um corpo franzino de mulher que trajava uma
camiseta branca e uma calcinha.
“Você sabe que horas já é?”
“Eu sei... Posso entrar?” Enxuguei a suor da testa com um braço e dei
um passo adiante.
“Olha... Osvaldo... É de madrugada...” Ela meneou a cabeça com má
vontade.
“Nós realmente temos que conversar...” Lembro-me que minha assertiva
vinha eivada de pequenas mostras de desespero...
“Você não está em condições de conversar... Está fedendo a cachaça...
Nem eu quero conversar sobre aquilo... Já morreu... Vai, eu quero
dormir...” Ela fez menção de que voltaria a trancar a porta.
“Não, Márcia! Eu estou bem... Eu estou bem...” Coloquei o braço na
porta como para impedir que ela o fizesse.
46
Ela ficou em silencio, as órbitas castanhas estudavam-me por alguns
minutos. Deu um suspiro e disse:
“Entra...” Ela retorcia de raiva os lábios grossos sem qualquer
preocupação em ser discreta. Foi para os fundos, desligou a luz do
quarto e em seguida voltou para ligar a da cozinha.
IV.
A casa era pobremente mobiliada. A cozinha e a sala dividiam
praticamente o mesmo cômodo, onde havia um sofá rasgado, uma
televisão LCD sobre um suporte de madeira escura; acima uma imagem
de Nossa Senhora pendurada na parede; o fogão tinha duas panelas
velhas; a torneira da cozinha pingava num ritmo monótono; a mesa de
mogno tinha dois copos e uma fruteira.
“Tá com sede?” Pergunto, enquanto servia água de costas para mim.
“Não...”
“Não vai tirar essa capa de chuva?”
“Não”
“Quer sentar?”
“Estou bem assim” Eu apenas olhava seus movimentos, meio admirado
com o seu desleixo em receber uma visita, mesmo que esta visita fosse
justamente eu...
“Então o que você quer?” Virou-se na minha direção, a encarar-me, com
o copo de água.
Naquele momento um relâmpago caiu mais ou menos perto dali,
criando uma claridade enorme que meio segundo depois foi seguido de
terrível estrondo.
“Puta que paril...” Disse Márcia. “Espero que não vá queimar nada...”
Deixou o copo sobre a mesa e desligou a geladeira na tomada.
Meu descontrole anterior já arrefecera. Procurava juntar forças para
formar uma frase.
“Nós temos que voltar...” Resolvi dizer.
“O quê?” Olhou-me muito séria, com a testa muito enrugada, como se
acabasse de ser demitida arbitrariamente do emprego de cozinheira.
47
“Meu amor... Eu te amo... Eu não estou conseguindo mais trabalhar...
Nem fazer absolutamente nada...” Tentei dar o máximo de mim para ser
o mais convincente possível. Uma febre tomava-me conta.
“Não consegue fazer nada? Sei... Imagino... Só faz mesmo o que você
mais gosta, beber, beber, beber, beber...” Disse ela com um sarcasmo
mortal.
“Mas eu preciso de ti Márcia!” A pressão nervosa era tanta que eu
começara a tremer. Arfava, como se meus pulmões falhassem, parecia
que eu estava prestes a ter um ataque de asma.
“Pra quê tu precisa de mim? Pra beber ainda mais... Pra me bater com
mais força pra eu abortar outro filho teu?”
“Márcia, por favor, vamos ser aquele casal que éramos antes...”
Lágrimas misturadas ao suor umedeceram a minha fronte.
Tentei tocá-la, mas ela desviou-se da minha mão.
“Cadê aquela piriguete com quem tu tava saindo? Pensa que eu esqueci
disso também?”
“Eu gosto é de ti... Tu não tá percebendo isso, estou vindo aqui me
humilhando pra você...”
“Deixe de ser ridículo, Osvaldo... O máximo que tu tá sendo é infantil
vindo aqui nessa hora da noite... Me incomodando com essas
besteiras... Eu ainda tenho um entrevista de emprego pra fazer amanha
cedo...”
“Por favor...”
Ela nada disse, apenas pegou o copo que estava na mesa e levou-o para
a pia.
Lá fora, a tempestade parecia estar no seu auge.
Tomado da mais completa comoção e desespero, tentei beijá-la. Mas ela
não se deixou dominar.
“Sai, sai! Me larga...”
“Márcia...”
“Sai daqui seu cachaceiro filho da puta!” Gritou. “Eu não te quero e
nunca mais vou te querer! Eu nunca mais quero ver esta tua cara
escrota na minha frente... Se tu não sair daqui agora vou dar queixa de
tudo o que tu me fez pra polícia!”
48
Recompus-me, fiquei alguns momentos respirando fundo, tentando
acumular vigor, enquanto a outra me dizia coisas pouco lisonjeiras.
“Então é isso, Márcia?” Procurei impor a maior calma possível em meu
tom de voz.
“É isso sim, tudo graças a você, vai...” E fez um gesto de desprezo como
se espantasse um cachorro que tivesse invadido a sua casa.
“Você está com outro, não é?”
“Isso não é da sua conta...”
V.
Sentia-me humilhado. Todo aquele sarcasmo me deixava sem outra
alternativa a tomar.
“Então não posso mais fazer nada, Márcia...”
“Não pode mesmo, agora sai...”
“Mas Márcia, eu trouxe um presente pra ti...”
“Como é que é?” Ela não me entendera, mas eu a faria compreender,
compreenderia tudo naquele momento...
Tirei o objeto que havia guardado no bolso, escondido pela capa de
chuva.
“Pra que esse martelo, Osvaldo?”
Ela ainda teve tempo tentar proteger-se com os braços e soltar um grito
de desespero quando desferi um pesado golpe que atingiu a parte
esquerda do seu crânio; caíra de joelhos, gemendo muito, colocou as
mãos no lugar do ferimento. Grandes quantidades de sangue
derramavam no chão frio.
O vira-latas, como se sentisse o aroma de sangue, começou a latir
descontroladamente, dando pulos frenéticos contra o portão do quintal;
ouvi também outros cachorros latirem loucamente, atendendo aos
gritos do companheiro...
Dominado por um estado de euforia, atingi Márcia com mais um
segundo e mais pesado golpe. Ela despencou de vez no chão, meio de
lado; agonizando, retorcia-se sobre o próprio sangue. Martelei seu
crânio mais uma vez, e outra vez, e mais outra vez, martelei dezenas de
vezes enquanto dizia:
49
“Está gostando do meu presente... Está gostando do meu presente?” E a
cada martelada que eu desferia, repetia, entre uma gargalhada
estridente e insana: “Está gostando do meu presente...”
Só finalizei quando a exaustão me dominara. Sua cabeça não passava
de um todo disforme e repugnante...
VI.
A tormenta ainda continuava a cair. Calculei que o enorme barulho da
tempestade tinha abafado quase que completamente aquela agitação
toda. Contemplei por um momento o corpo daquela mulher de vinte e
um anos que, se não pudesse mais ser minha, seria apenas dos vermes.
Fui até a pia e lavei cuidadosamente o martelo. Pedaços de massa
encefálica boiavam grotescamente na água da pia...
Quando voltei a sala, o jogo de luz vindo da cozinha criou um estranho
efeito óptico na imagem de Nossa Senhora, parecia que os olhos da
virgem contemplavam-me com uma expressão nefasta no semblante.
Embora eu não fosse religioso, não pude deixar de ceder é essa
impressão que toda uma situação como aquela é capaz de incutir. Logo
afastei com asco aquela bobagem — Nossa Senhora era a única
testemunha do meu ato, mas ela não iria à delegacia me dedurar...
Voltei a colocar o martelo na algibeira e ganhei o exterior, totalmente
engolido pela tormenta que açoitava aquela madrugada de Novembro.
VII.
Apesar das precauções que havia tomado, eu sabia que quando o corpo
fosse descoberto no dia seguinte eu seria um dos principais suspeitos.
O Ceará tinha me visto... O mesmo não poderia dizer de Cláudio... Logo
que cheguei em casa, arrumei uma pequena mochila com roupas,
peguei minhas economias que guardava numa pequena caixa, entrei em
meu carro e parti tendo por companhia as sombras da noite
tempestuosa.
Desde então eu vivo uma vida errante e medíocre. Tenho trabalhado e
comido como um pobre diabo, como toda gente... As pequenas cidades
que borbulham no interior do Amazonas eu já conheço quase todas. As
principais capitais do país? Em todas já deixei minha marca: um amor,
uma briga, um assassinato... Agora, que estou num aéreo-porto de
Lisboa, a espera que meu passaporte falso engane o crivo dos agentes
da policia espanhola, escrevo estas pequenas memórias do meu
primeiro homicídio.
Por vezes tenho sonhos em que vejo a face desfigurada da morta. Ela
me diz que em breve voltará para me fazer companhia e dar-me um
belíssimo presente — no inicio dessas aparições eu muito me
impressionava, mas hoje nada mais sinto...
50
Voltando da Faina
I.
O relógio da maioria das pessoas já alcançava às cinco da tarde. O calor
daquele dia tinha sido quase insuportável. Parecia que o sol tentava
derreter a cidade e fritar os ossos dos manauenses que, a cada ano que
passava, tinham de conviver com as rajadas cada vez mais furiosas
daquele impiedoso verdugo. Entretanto, algumas nuvens juntaram-se
para uma precipitação rápida e irritante. Mas o pequeno resvalar de
algumas migalhas de gotas d’ agua só serviu para aumentar a sensação
de desesperado calor.
Os ônibus salpicavam de carne humana. Aqueles que o esperavam
naquela parada de ônibus eram em sua maioria operários da obra de
um condomínio fechado. Viam em grupos, falando alto, gesticulando
sem qualquer preocupação com regras que os mais cultos chamam de
etiqueta e contando piadas obscenas que os colegas replicavam com
estridentes gargalhadas.
II.
Um desses operários é Márcio Silva, que neste exato momento entra no
ônibus lotado, uma dessas lagartixas de duas partes. Quem o visse não
o distinguiria dos outros companheiros, tão medianamente vestido; um
boné preto e desbotado cobria a grande e larga cabeça; a sandália, meio
puída, parecia prestes a se soltar nos pés grossos e rachados; a
bermuda que há muito tempo deixara de ser azul para ter uma
coloração de um branco de defunto; também usava uma camisa verde.
Com os lábios grossos não dava, naqueles momentos, as habituais
gargalhadas, nem vociferava, como os outros companheiros, os mais
frívolos assuntos que, na boca naqueles animais de carga, ganhavam
uma dramaticidade peculiar... Vez por outra dava pequenas
apalpadelas com a mão parda no bolso detrás da bermuda, como para
prevenir sua carteira de ser surrupiada...
Tinha vinte e oito anos e casara-se há dez meses com Ana Mara, uma
mulher baixa, magra e bem morena. Os dois mudaram-se recentemente
para uma casa de apenas dois cômodos no bairro do São José. Ele
trabalhara como garçom numa das lanchonetes das redondezas, mas
teve o emprego perdido com a falência do estabelecimento. Para sua
sorte, em menos de um mês estava empregado como ajudante de obras
daquela grande empreiteira. Tinha um ordenado modesto. Nas ultimas
semanas ela passou a complementar os rendimentos com um magro
salario de diarista.
Márcio não dava atenção à tagarelice distraída de seus similares, sentia
o calor insuportável queimando-lhe a fronte e gotas de suor descendo
pela testa para empaparem toda a camisa, causando no jovem
trabalhador uma sensação muito desagradável...
51
O ônibus transformara-se numa sauna dentro de outra sauna maior,
pois era exatamente o que a cidade havia se tornado. Todos enxugavam
a testa, incomodados. Mudavam de posição nas cadeiras ou soltavam
longos e profundos suspiros. Uma mocinha, com seus dezessete anos,
chegou a comentar com seu companheiro de viagem:
“Ninguém merece...”
O outro concordava, acenando com a cabeça.
Todos estavam ali amontoados, com as mãos daquelas barras de ferro
que, promíscuas como o corpo de uma prostituta, já foram apalpadas
por milhares de mãos, mãos sujas, limpas, suadas, firmes, trêmulas ou
feridas — incontáveis mãos que ali contaminaram e foram
contaminadas. Elas esfregavam-se umas nas outras, fazendo um
intercambio de cotículas de suor. Os cabelos assanhados, eram pontes
por onde pulgas e piolhos pulavam de crânio para crânio. Todos tinham
o semblante triste, olhando melancolicamente a monótona paisagem
que as janelas envidraçadas apresentavam.
Vez por outra, dois daqueles transportadores de carne humana ficavam
lado a lado, parados no sinal, e a carga de ambos os veículos
entreolhavam-se, meio melancólicos, meio indiferentes, talvez até
mesmo solidários com os vizinhos — provavelmente porque ambos
compartilhavam a mesma sorte de carne para o abate...
III.
Em meio a tão escrota situação, tudo o que Márcio queria era tomar um
banho, jantar e dormir...
“Falô, Marquito...” Disse-lhe um dos companheiros ao se despedirem
quando desceram da estação geral.
Após ter pegado um novo ônibus, saltara numa esquina na qual
desembocava numa alameda de íngreme subida. Andava lentamente.
Em menos de cinco minutos chegara a sua casa, rodeada por uma
pequena cerca viva, cujo pátio era ornado com um possante pé de
acerola e uma pequena mangueira.
Abrira lentamente a portinhola de madeira, enquanto transpassava o
pátio de terra molhada. Naquele momento estranhara o fato de a porta
estar entreaberta. O bairro estava ficando cada vez mais perigoso e um
vacilo desses pareceu-lhe quase imperdoável — lembrou de Danny, que
tivera a casa invadida e a televisão e o DVD surrupiados. Voltaria a
encontrar-se com ela?
Entrando na casa sem pressa. Estranhara o fato de a esposa não vir ter
com ele e escutar estranhos sons que proviam dos fundos da casa —
52
uma espécie de murmúrio, quase um suspiro, quase uma súplica, um
farfalhar de silenciosa algazarra. Caminhou curioso até o quarto. O que
era? Abriu a porta... Não é possível descrever com palavras o choque
que teve ao ver aquelas duas formas femininas, totalmente nuas,
delirando com as mais prazerosas caricias de amor... O que lhe piorava
aquela perversa surpresa era ver que Danny era a companheira de
prazeres da mulher...
As duas deram um salto da cama. Tinham os corpos suados e o cabelo
em desalinho. Não sabiam se iam ter com Marcio ou se procuravam as
vestimentas para cobrir as vaginas úmidas de sêmen.
“Márcio...” disse Mara.
Ele, imóvel, parecia incapaz de conceber aquele absurdo que a mulher o
traia. E ainda por cima com a própria amante! O que pensariam os
vizinhos, a família, os amigos? Como suportaria tamanha humilhação?
Ser apontado na rua como o maior corno do bairro...
“Olha... A mulher dele traia ele com a mulher que ele comia,
hahahaha...”
Fechou a porta do quarto.
“Espera, espera...” Gritou Mara. Mas ele foi andando rápido pela casa e
ganhou a rua. Corria com uma expressão azeda, corria por entre as
ultimas luzes do entardecer, corria deixando as duas amantes
entregues ao desespero...
IV.
Era já noite quando Márcio voltou á casa. Por onde tinha estado e qual
resolução tomara? Seu corpo exalava o odor acre de cachaça. Mara já
tinha se vestido — Danny já tinha se retirado. As duas, talvez, tivessem
contratado não se verem por uns tempos. Mas de que importa isso? Ela
ligara para os parentes do conjugue, na tentativa de encontrá-lo, mas
também fazer algumas articulações que pudessem atenuar os estragos
daquele mal entendido...
Quando ela ouviu o barulho da porta ficou trêmula, os olhos
umedeceram e quase não conseguia andar.
Os dois se encararam no meio da sala escura e silenciosa.
O marido apenas olhava-a. A esposa, sentindo
constrangimento, estava a ponto de gritar. Tentou dizer algo.
“Temos que esclarecer algumas coisas...” Disse ela.
tamanho
53
Ele não respondeu. Virou o rosto para o lado. Depois, voltando para ela
os olhos fundos e remexidos pelo álcool, perguntou:
“Ela já foi?” A voz soou rude, e a cachaça no sangue fazia a silabas
atropelarem-se.
“Marcio, eu...”
“Ela já foi, hein, sua sapatona puta?” Gritou.
“Eu vou te deixar...” Disse Mara. Os cabelos caindo sobre o rosto
desfigurado.
De súbito, foi consumida pelo mais profundo terror, pois percebera que
ele tinha numa das mãos um revólver...
***
Na Pensão
A mulher é o ser que
projeta a mais negra
sombra ou a mais clara
luz em nossos sonhos.
C. Baudelaire
I.
Eu havia acabado de acordar, meio lerdo, o raciocínio frouxo, com
algum resquício de modorra. Me levantei e abri as janelas. Uma
poderosa rajada de luz invadiu todo meu quarto.
Que manhã ensolarada e esplêndida! Da janela do pequeno quarto onde
morava, podia avistar as inúmeras casinhas espalhando-se por toda a
planície; os passantes, totalmente afobados e parecendo cordeirinhos
atarefados, se apressavam em resolver seus compromissos e mais além
podia enxergar o imponente Rio Negro...
Naqueles anos eu morava numa casa de pensão, um simples prédio mal
cuidado no centro da cidade construído nos anos de 1920 com suas
enormes janelas retangulares e feias muito pareciam com as órbitas
cinzentas de um defunto. Meu quarto era uma alcova simples. Constava
de uma cama de cedro; uma bem conservada estante antiga onde
mantinha meus preciosos livros, alguns periódicos e dezenas revistas
especializadas em história, filosofia, literatura... Uma pequena mesa de
mogno, sempre abarrotada de papéis preenchidos, cadernos e volumes
abertos; um modesto guarda roupa; uma velha TV que eu mal ligava e
um apertado banheiro aos fundos; ao lado da estante eu mantinha uma
54
pequena geladeira. Entretanto, meus antigos aposentos não eram tão
sem graça quanto se poderia imaginar, os extensos umbrais da janela
eram ornados com um cândido espécime de orquídeas, e na parede
defronte da escrivaninha pendiam duas molduras, as imagens de
Aluízio Azevedo e Karl Marx, e logo acima do leito de lençóis verdes as
inquiridoras pupilas de Machado de Assis olhavam, curiosos e negros,
para o nada; uma réplica daquele famoso retrato em óleo de Henrique
Bernadelle.
O vigor aos poucos tomava conta de mim. Vi que eram oito horas e
quarenta e cinco da manhã. Depois de lavar-me fui a porta apanhar a
ultima edição do jornal. Deitei-me no divã e comecei a ler
despreocupadamente, saboreando as noticias enquanto esperava a
criada vir com o desjejum.
II.
Naquela época eu estava prestes a completar vinte e três anos, minha
vida transcorria previsível e calma. Tinha poucas amizades e raramente
recebia visitas. Cursava a faculdade de letras na Universidade Federal;
consegui lançar meu primeiro livro; e pela relativa receptividade de
público e boa aceitação da critica, fui convidado a escrever num portal
eletrônico. Com a renda desse trabalho, de bolsas de pesquisa, das
aulas de reforço e da fiel ajuda financeira da família resolvi há quatro
meses morar naquela humilde casa de pensão e desfrutar da solidão e
da quietude que é tão benéfica aos homens de letras...
Após o desjejum pretendia terminar um artigo e enviá-lo, ainda nesta
manhã ao editor do jornal; à tarde daria um giro pelos sebos e ao
anoitecer finalizaria mais uma narrativa do meu segundo livro de
contos.
Lá pelas nove horas da manhã, Márcia, este era o nome da serviçal e
filha da dona da pensão, entra no quarto com o café da manhã. Sua
pele era de um moreno um pouco clareado, os cabelos pendiam
castanhos, soltos e ondulados até os seios excessivamente grandes; os
olhos, bem negros, transpareciam certa ingenuidade; a boca tinha
lábios finos e avermelhados; o nariz bastante adunco. De físico forte,
veloz e ágil, entrou veloz na alcova e, com grande animação, foi logo
dizendo em tom de pilhéria:
“Bom dia...”
“Oi...”
“Sabia que chegou hoje de manhã uma inquilina nova?” Disse após
colocar a bandeja sobre a escrivaninha.
“Não, não soube...” Falei sem desviar os olhos do jornal.
55
“Também! Fica ai entretido nesses lendo essas coisas... Nesses montes
de livros e escrevendo essas coisas malucas que nem se dá conta do
que acontece envolta.”
“Pois é...”
“O nome dela é Ivana, vê se sai dessa tua caverna e vai no trinta e sete
da uma palavrinha de boas vindas...” E saiu, tão rápido quanto entrara,
sumindo completamente por de trás do acesso que se fechava.
A xícara de café transpirava uma pequena língua de fumaça e seu
aroma, misturado ao da manteiga derretida sobre o pão, dominaram
todo o quartinho. Uma leve, porém incomoda, dor no estômago me fez
lembrar que tinha fome. Tomei café sem pressa. Um velho exemplar de
“O Cortiço” descansava sobre a mesa; relia-o pela segunda vez, pois me
transmitia certas espécies de cheiros, palpitações e sons realistas da
qual necessitava para concluir uma das minhas histórias. Volvi os olhos
para o quadro de Azevedo, com aquele rosto fino, aqueles traços
delicados e aqueles grotescos bigodes tão comuns à época; imaginei se
eu poderia alcançar, algum dia, o nível de maturidade intelectual de
mestres como ele. Apesar da razoável aceitação da minha primeira obra,
ainda não estava de todo contente com o que havia produzido. O caos
psicológico de Dostoiéviski, a realidade crua e perversa de Zola, a
amplitude literária de Tolkien ou a precisão de Graciliano Ramos eram
obstáculos muitos além do meu modesto cabedal. O que alentava meu
espírito eram duas sábias e célebres afirmações que Machado de Assis
fizera, por escrito, a seu amigo Quitino Boacaiúva: “as qualidades
necessárias ao autor dramático desenvolvem-se com o tempo e o
trabalho (...) cuido que é melhor tatear do que achar; é o que procurei e
procuro fazer.” Era um conselho que sempre lia e relia como um
verdadeiro mantra.
Pousei a xícara vazia sobre a bandeja de plástico. Sentia a incrível
sensação de saciedade. Já eram nove horas e trinta minutos, teria
bastante tempo para os últimos retoques em minha crônica. Fiquei a
observar meu artigo durante algum tempo, totalmente imóvel, com a
mente vazia, incapaz de escrever uma única palavra. Imediatamente
volto a lembrar de Márcia e seus modos rudes e sinceros:
“O nome dela é Ivana, vê se sai da tua caverna e vai lá no trinta e sete
dar uma palavrinha de boas vindas...”
Agora o nome da nova inquilina estava destacado e sonoro,
reverberando por todo meu cérebro e permanecendo intransponível
entre eu e o texto. A sonoridade daquela palavra, forte como um
relâmpago de uma tempestade noturna, causou-me certa impressão,
certo fascínio. Uma tal mulher chamada assim deveria ser como o
próprio nome: bela, forte, exótica, inteligente... “Vai lá na trinta e sete
56
dar uma palavrinha de boas vindas...” De essa presepada tomou conta
de mim tão rapidamente que quando voltei a si já estava no batente da
porta me preparando para consumar a visita. Dei dois passos para trás.
Comecei achar tudo isso ridículo. Observei por alguns momentos a
fechadura arredondada, estava tenso, suando, o coração palpitava meio
descontrolado. Por que?
Que coisas eu poderia falar com esta Ivana, se nem mesmo eu a
conhecia? Que Ivana e Márcia fossem para o diabo!
III.
Três batidas surdas e rápidas na porta me fizeram voltar a si.
“Homem das cavernas, já tomou café?”
“Entra...”
A empregada entra na alcova, passa por mim e, sem dizer palavra, sai
rapidamente do quarto com a bandeja em mãos.
Olhei no relógio, batiam dez horas. Concentrei-me na crônica, pois
precisava entregá-la até à uma da tarde. Li e reli várias vezes,
observando as pontuações, cancelando algumas virgulas, adicionando
outras, substituindo palavras, ligando períodos, escrevendo notas na
qual especificava algumas dicas ao editor.... Pronto, a artigo da semana
estava finalizado. Coloquei meus tênis velhos e desci levando o papel
protegido numa pasta verde.
Tranquei a porta na chave, passei pelo corredor deserto; um ou outro
quartinho tinha as portas abertas, de onde vinham choros de bebês,
sons de televisão, conversas de dona de casa, discussões de casal e um
leve cheiro de mato queimado enveredando pelos arredores...
Quando cheguei à calçada, o sol estava no seu pico de força. As
calçadas, os prédios, as árvores, os postes e os passantes enfim, todos
ardiam naquele delírio angustiante da luz matinal; tudo parecia exalar
calor e cansaço, arfando numa transpiração desesperada e pestilenta,
agonizando na alta e abafada temperatura de estio.
O prédio onde ficava a equipe do portal situava-se numa pequena rua
comercial desembocava numa das mais movimentadas avenidas do
centro.
Andava procurando aproveitar as sombras. Detestava sair aquele
horário. Aquele enorme burburinho do transito e dos pedestres me
deixava confuso, tonto...
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Quando cheguei no prédio, o editor estava no fundo da sala, com um
cigarro na mão lendo algo num grande rolo de papel. Assim que
percebera minha presença veio falar comigo.
“Legal, chegou em boa hora”. Disse, enquanto me examinava por detrás
daqueles grandes e profundos óculos. Passou os olhos rapidamente pela
crônica e disse outra vez, enquanto eu permanecia defronte. “Olha,
rapaz, porque você não escreve num computador? Fica melhor pra
gente...”
“Tu sabe que eu onde moro não posso me dar o luxo de comprar um
computador.”
“Verdade, essas casas de pensão... Bem, o dinheiro chega na tua conta
daqui há cinco dias.”
“Então está tudo certo.”
IV.
Eu já estava bem próximo da porta da minha casa quando vi sair de lá,
descendo as escadas, uma mulher de cerca de seus vinte anos; morena,
daquele tom de pele bronzeada; os cabelos eram lisos desciam até o colo
eram tingidos por algumas luzes douradas; os olhos eram castanhos
escuros e pequenos, dotados de uma malicia típica das mulheres do
norte, denunciavam a condição de mulher atenciosa, quente e sensual,
cuido que naquele momento também transmitiam certa inquietude. O
rosto era meio fino, com o nariz pequeno, os lábios não eram meio
carnudos, em compensação eram lívidos, corados, reluzindo o batom
levemente vermelho; os seios eram pequenos e firmes, como toda a
extensão do corpo, de uma magreza considerada atraentes ao olhar
masculino. Trajava uma calça negra, envolvendo as pernas bem
contornadas, e uma blusa de linho escuro na qual, na altura do seio
esquerdo, havia o símbolo de uma rede de lojas bastante popular na
cidade.
Ela descia as escadas com pressa, olhava fixamente para baixo.
Lembro-me do agradável aroma do seu perfume, uma delicada
fragrância de damasco; ainda hoje, quando aquele cheiro invade-me as
narinas, sempre lembro daquele rosto inquieto, de traços bons para se
olhar, das maneiras bem calculadas...
Depois de ter subido a rua desapareceu na esquina.
Voltei pro meu quarto com a imagem daquela morena palpitando na
mente; sentei no sofá, suspirando de fadiga, olhando para os móveis,
sem enxergá-los na verdade...
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Decidi ler “O Cortiço”, não consegui. Que me importavam as disputas
entre João Romão e Miranda naquele momento? Joguei o volume na
cama, olhei no relógio, dentro em pouco Márcia viria com o cardápio de
hoje. Parti para a escrivaninha, tomei meus escritos; o conto ainda
estava incompleto. Fiquei encarando o papel rasurado, relendo suas
linhas, examinando as letras, tentando imaginar-lhe algum desfecho,
forçando a mente na criação de qualquer fato que fosse... Não
adiantava, minha atenção era sempre desviada para a imagem plácida e
carnal da morena.
As mesmas e previsíveis batidas de Márcia ecoaram da porta, tomandome outra vez de assalto:
“Almoço...”
“Tudo bem, entra, Márcia.”
A garota entrou, meio desajeitada, e colocou a bandeja sobre a mesa.
Senti um impulso de indagar-lhe sobre aquela mulher que vira na saída
da estalagem. Eu já estava meio arrependido de ter aberto a boca
quando ela respondeu:
“Era sim a Ivana, ela trabalha na loja B... Olha, homem das cavernas,
eu tô muito ocupada para conversar agora, tchau...”
O dia passou quase que totalmente improdutivo, não fosse o artigo que
entregara no final da manhã. A noite veio e adormeci com os
pensamentos mergulhados naquela mulher.
V.
Dois dias passaram e, quando, numa tarde, saia para dar um giro
numa livraria, dei com Ivana entrando na casa. Dessa vez os grandes
cabelos tingidos estavam amparados por uma piranha, deixando as
madeixas cômodas sobre as costas. Os pequenos e singelos dentes
muito alvos surgiram em um sorriso muito jovial. Como os retribui com
idêntica amabilidade, uma breve conversação travou-se.
“Boa tarde.” Disse-me, num tom muito calmo.
“Boa tarde.” Gaguejava um pouco. “Se mudou recentemente pra cá?”
“Isso, não faz nem uma semana, qual o seu nome?”
“Rubens...”
“Ivana, muito prazer.” Estendeu uma das mãos, eram macias e suadas.
Por um momento ficamos em silêncio, ela olhou para baixo; eu fiquei
meio em pânico pelo súbito silêncio, observava aqueles olhos brilhantes.
59
“Em que quarto você está?” Apenas perguntei para prolongar a
conversa.
“No trinta e sete, e você”
“No trinta e um, meio pouco perto da escada”
“Certo...” Um novo e torturante silêncio ressurgiu, e desta vez eu estava
muito mais angustiado, pois não conseguia criar qualquer outro
assunto que adiasse o fim da conversação. Ela ficou olhando para os
lados, em outros momentos me observava e sorria, ajeitando a calça ou
tirando um pó fantasioso da camisa; eu, por minha vez, examinava
cada detalhe do seu corpo, meio que devaneando, tentando arrebatar
algum assunto; quando finalmente eu ia falar qualquer coisa, ela olhou
ao relógio, meio despreocupada e encerrou a conversação, para o meu
desespero:
“Bem, eu vou pro meu quarto, quem sabe nos poderíamos conversar
mais.
“Tá certo...” Foi só o que consegui pronunciar com resignação e
desapontamento enquanto ela entrava na quitinete.
Ainda fiquei meio parado no corredor, com o baque da porta me
parecendo ser o fechar de um caixão onde eu era lançado para ser
encarcerado vivo.
Relembrando de cada detalhe da conversa, imaginando, totalmente
aterrado, conclui que tudo foi um completo vexame. Não tive mais
ânimo de ir a livraria e voltei ao meu quarto entorpecido de vergonha.
Só mesmo uma besta fera poderia ter tamanha incompetência em travar
um dialogo tão insosso como uma simples mulher. Sentei no sofá,
olhando para os móveis, para os livros, tive raiva deles, tanto eu lia e
ainda nem aprendi como lidar de forma satisfatória com uma fêmea...
Para tentar dissipar a irritação, fui à janela tomar um pouco de ar, o
céu estava muito límpido, as ruas lá embaixo suspiravam na tarde
fogosa e o rio estava lotado de balsas...
VI.
Os dias transcorreram sem surpresas. Sempre topava com Ivana no
corredor e tínhamos alguns minutos de conversa sobre coisas
totalmente ordinárias do dia. Aos poucos fui penetrando no âmago
daquela mulher. Segundo ela, era natural de Porto Velho, mudou-se
para cá com a família quando tinha sete anos. Tinha outra irmã dois
anos mais nova. Conseguiram uma casa no Morro da Liberdade. Após o
pai ser despedido de uma indústria de montagem, resolvera comprar,
60
com as economias de dez anos, um pequeno comércio nas imediações
da Praça 14. Quando completara dezoito apaixonou-se por um taxista
seis anos mais velho. Logo que terminara os estudos casaram-se e
alugaram uma casa na Cidade Nova. Contudo, o extremo ciúme do
homem e as constantes brigas acabaram por dissolver a relação. Como
procurava uma pensão próxima do seu trabalho, onde já estava há um
ano e meio, acabou por achar esta...
“Ele não me deixava trabalhar... Até quando a gente ia sair era
complicado... Reclamava da roupa, dizia que a saia era muito curta, a
camisa muito decotada...” Dizia exalando um alivio de quem trabalhara
horas ininterruptas de trabalho pesado. “Via ciúme em tudo, nos
colegas, nos amigos, até nos meus parentes!...” Suspirava. “Eram brigas
horríveis... Ás vezes ele me batia... Quantas vezes eu fui pra cama
chorando... Ele ainda me tratava como empregada, eu limpava tudo em
casa, e ele desarrumava, fazia a comida dele com tanto carinho para
quando ele chegasse do trabalho ficasse bem e ele sempre reclamava...
Reclamava de tudo... Não existia quem aguentasse...”
Eu sempre a ouvia com atenção, observando os seus olhos castanhos,
notando cada nuance de sua voz aveludada que expressava uma
sensualidade involuntária, terrivelmente convidativa, incrivelmente
feminil.
Ela gostava de falar do futuro. Queria comprar uma casa, fazer uma
faculdade... Tinha os gestos muito discretos. Portava-se ereta na
poltrona, com os braços bem torneados postos cuidadosamente sobre
as coxas. Se eu fosse capaz de descrever aqueles ombros cor de bronze,
aquela nuca candidamente ornada com alguns fios de cabelo que
escapavam do coque... Quando se empolgava com algum assunto,
inclinava-se levemente para frente, falando alto. Gostava daquelas
músicas antiquadas dos anos oitenta como Don´t break my heart ou
Still loving you. Confesso que essas coisas numa me atraíram muito,
mas para agradá-la dizia que tínhamos o mesmo gosto musical — com o
tempo passei admirar realmente as músicas, me faziam lembrar dela...
A simplicidade daquela morena, no auge da sua beleza de seus vinte e
dois anos, era como uma sinfônica que me entorpecia os sentidos, com
seus adágios singelos e perfeitos; ou como o Presto final de Verão do
grande Vivaldi; ou como o grande deslumbre que tive quando li pela
primeira vez Tabacaria, de Fernando Pessoa; Ivana tornou-se uma
respiração para o espírito, toda a minha rotina passou a girar em torno
dos breves momentos que desfrutava com sua terna presença. Fazia
afobado meus artigos para os jornais, lia apressadamente as apostilas
da faculdade, interrompi a composição do meu livro, não dava muita
atenção aos meus alunos; todos os dias contava as horas ansioso para
vê-la, no final de tarde, quando voltava do emprego. Fiz dezenas de
poemas tendo ela por inspiração, tantos que já tinha matéria para
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lançar um bom volume versos; eram sonetos (livres e rimados), elegias,
odes, epitalâmicos, sextilhas e toda sorte de modalidades poéticas...
Eu pouco falava de mim. Preferia deixar que ela se abrisse por
completo. As raras coisas que revelei foram o lugar onde estudava, o
curso que fazia e como eu ganhava a vida. Ela demonstrava uma grande
admiração pelas minhas atividades, credito eu, tinha-me como um
homem dotado de uma grande erudição. Elogiava-me deveras. Não vou
dizer que detestava seus louvores. Mas admito que na Universidade eu
era apenas mais um Zeca Tatu entre os seus outros vinte mil alunos...
Esta agonia durara cerca de cinco meses, entre os encontros, as
obrigações com o jornal e com a faculdade; sim, apesar de tudo eu
ainda tinha ânimo para dedicar-me às letras, menos para morrer de
fome que para mostrar-lhe meus supostos dotes intelectuais e enfatizar
para ela meu caráter de homem responsável...
VII.
Numa noite úmida e fria, como só os trópicos sabem criar, eu estava
imerso na leitura do livro que continha a correspondência entre
Fernando Pessoa e Aleyster Crowley, entre os vapores de um incenso
que eu acabara de ascender, quando ouço alguém bater a porta. Era
Ivana. Diante da surpresa, que naturalmente me agradou muito,
convidei-a para entrar.
“Está tudo bem?” Perguntei.
“Sim, tudo ótimo, só queria conversar um pouco.” Cerrei a porta.
“Não quer sentar?” Mostrei o divã. Seus olhos estavam extremamente
brilhantes, arfavam por entre a luz etérea da alcova; os lábios estavam
muito úmidos e corados, expondo aquela lascívia que me fascinara;
vestia uma camisa de mangas longas cor de creme e uma calça de
algodão longa, frouxa e azulada.
Neste momento ela abraçou-me com grande ímpeto. Eu fiz o mesmo.
Ficamos um bom tempo assim, em silêncio. Lembro-me de sua
respiração tocando-me o pescoço, lenta e profunda.
Uma espécie de calor sensual tomou conta de nós e ela, ao tirar a face
do meu colo e olhar-me fixamente nas pupilas, tocou seus beiços nos
meus, num pequeno encostar suave e demorado — aquilo excitou-nos.
Depois disso nos beijamos. Um beijo que no inicio era muito plácido,
como o beijo de dois amantes que há muito estreitaram a relação.
Embalado pelos vapores do contato entre nossos corpos começamos a
nos beijar com a ânsia do deleite libertino. Levei-a a cama e caímos,
durante aquela noite fria a abafada, na volúpia máxima do prazer...
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VIII.
O dia amanheceu, acordei meio fraco, olhei em volta, estava sozinho,
consultei o relógio, batiam onze horas da manhã; fui ao toalete e laveime, coloquei uma roupa qualquer e sai apressadamente até o quarto de
Ivana. No corredor encontro Márcia, que vinha transportando três
pratos sujos:
“Se você vai se despedir da menina, chegou tarde, ela já se mudou...”
“Como?”
“Ela foi embora essa manhã, cedinho ainda...”
O sentimento que me apoderou quando recebi a noticia não posso
descrever, tamanha fora a decepção. Mas num lapso de esperança
brilhou na minha consciência, achei que a criada estivesse com mais
um das suas pilhérias, xinguei-a com alguns nomes feios e corri até o
trinta e sete. Bati uma, duas, três vezes, ninguém me atendeu, bati
novamente e, conforme investia meu punho contra a porta, falando alto
o nome dela, compreendi, aos poucos, a verdade... Por alguns segundos
fiquei defronte do aposento, sem atitude.
“Eu te falei, ela foi embora, pensei que tinha te avisado...” Disse por fim
Márcia, chegando-me perto.
“Ela não te deixou nenhum número ou endereço?” Continuou.
“Não...”
“Nem te falou nada... Nada... Nada mesmo que ia embora?”
“Não! Por que ela foi embora?” Meus olhos estavam úmidos.
“Eu não sei... Tadinho, agora tô vendo a sacanagem que ela te fez, ir
embora sem te avisar, mas esquece, mulher de malandro é assim
mesmo...”
Enquanto ela me dava esses conselhos pueris eu explodia nas mais
convulsas lágrimas de homem magoado. Não foi-me possível encontrála na loja, tinha se demitido. Quanto aos colegas de trabalho, ninguém
sabia dizer-me onde encontrá-la. Sumira, sem número, sem endereço,
absolutamente nenhum vestígio.
É desnecessário mencionar a profunda depressão em que resvalei. Só
farei menção aos dias sem apetite, sem sono, perdendo peso, os olhos
ficando cada vez mais fundos, a necessidade de procurar o álcool como
grande consolador... Uma completa inercia. Minhas notas na faculdade
despencaram e por muito pouco não perdi o emprego. Resolvi voltar a
morar com minha família.
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IX.
Há duas semanas, numa das minhas andanças pelo centro da cidade,
desviando-me sem muito cuidado da multidão acabei cruzando com
Ivana. Olhava para baixo, meio melancólica, os olhos ainda exalavam a
mesma malicia, a mesma inquietude, a mesma carência de proteção...
Ainda tive uma vontade irresistível de ir ter com ela, saber como estava,
onde morava, se não enfrentava dificuldades... Mas contive-me, talvez
por covardia. Lembrei de tudo o que ocorreu entre nós. O que eu
ganharia indo ressuscitar complicações passadas? Conclui que não
valeria a pena cutucar um cadáver. Especulo se ela tivesse me visto e,
cuidando em disfarçar, volveu os olhos para baixo. Não importa. Deixeia seguir seu caminho indo misturar-se anônima na multidão
apressada. Eu fiz o mesmo...
Bem leitor, após estas dezenas de páginas interrompo neste capítulo
minha narrativa sobre aqueles tempos que para mim foi cheio de
utopias e desilusões. Confesso que não consegui escrever estes
parágrafos sem sentir algumas pontadas de constrangimento.
Analisando melhor os fatos, concluo ter sido incrível que eu tivesse me
deixado apaixonar por uma mulher que não era tão bonita e nem
mesmo tão inteligente.
Como podes notar, finalmente escrevi a história que faltava para
completar meu livro; também resolvi nunca mais ir morar em pensões
de migrantes...
***
64
O Duque de Monteviedo
Não está morto o que pode
Jazer, e, em estranhas
Eras, até a Morte pode
morrer...
Lovecraft; Necronomicon
Let me tell you a story to
till the bones, about a
thing that I saw…
Iron Maiden
I.
A Decadência Das Espanhas
O Reino dos Góticos sucumbira à espada impiedosa do Islã; o
destemido general Tarik, liderando um exército de milhares de
soldados, derrotou nosso Rei Roderico naquele ano negro e horrendo de
711. O pendão dos infiéis avançou, triunfante e poderoso, estendendo
seus tentáculos sobre todas a terra das Espanhas.
Eu era um dos sobreviventes da sangrenta batalha do Chrysus; ainda
lembro dos brados ferozes das hostes mulçumanas caindo terríveis
sobre as tropas cristãs. Jamais esquecerei os gritos de dor, de morte e
dos milhares de corpos de meus irmãos jazendo na terra maculada de
terror.
As freiras dos conventos foram entregues como prostitutas aos emires,
nossos castelos invadidos e as igrejas tombavam sob o poder das
chamas. O horror, a morte e a desolação eram as únicas palavras que
encontrávamos para descrever o que víamos em nossa pátria.
A Ibéria agonizava em ruínas...
II.
Minha Estirpe
Sou o Duque de Monteviedo... Minha Família descende de uma ilustre
Casa de patrícios romanos e aparenta-se com a Estirpe a qual descende
o grande Ricaredo. Fomos uma das mais importantes na época de
esplendor do Reino das Espanhas em que, sob os comandos de
Teodorico, derrotamos os cruéis hunos. Após a invasão mulçumana fui
um dos principais colaboradores para o estabelecimento do Reino das
Astúrias, sob a liderança de Teodemiro, ao norte da Península Ibérica.
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Meu feudo situa-se na província de Oviedo, a algumas milhas de Avilés,
á nordeste da recém-conquistada Galicia. Sou um homem que herdara
dos meus antepassados a sensibilidade extrema, o gosto pelo devaneio,
o talento para a criação. Porém, preciso dizer que as pinturas e formas
esculpidas pelos da minha estirpe sempre teve algo de terrível,
fantástico e extravagante. Sempre fomos acometidos por uma estranha
moléstia, rara e dolorosa, algo próximo da loucura. Terríveis pesadelos
sempre infestaram os sonhos de minha família, visões de tamanho
horror e desolação que chegam a serem indescritíveis; também é de
nossa característica a crueldade extrema tanto com os inimigos quanto
com servos desobedientes. Os crimes de minha família são celerados e
detestáveis demais para ter lugar nestes volumes de pergaminhos.
Ademais, a velhice e o cansaço corroem todas as minhas forças. Apenas
escrevo estas memórias porque sei que minha vida chegará ao termo
esta noite e preciso registrar todas as terríveis visões que tive...
III.
Pela Floresta Negra
Tudo aconteceu naquele cinzento dia de outono. A neblina tomava
conta de todos os campos, encostas, colinas e montanhas na região das
Astúrias. Eu estava fechado em minha biblioteca, nos fundos do
castelo. Sempre passava a maior parte do dia dedicando-me a estudos
de velhos pergaminhos e escritos dos mais variados povos, estudando
suas tradições, artes ocultas e segredos indecifráveis. Estes escritos já
estavam em poder de meus antepassados a pelo menos três séculos.
Sentia-me naquele dia atordoado, tomado por uma estranha sensação
de torpor, ou uma espécie de febre intermitente que tombara sobre meu
corpo. Minhas ideias embaralhavam-se; sentia uma convulsão de
impulsos impossível de controlar, uma inquietude nervosa que talvez,
como imaginei naquele momento, poderia ser causada pelo excessivo
tempo de clausura. Imaginei que meu espírito tinha sede de espaços
livres e amplos
Dirigi-me para uma floresta que se estendia ao sul das minhas terras;
era de certa forma quase inexplorada, uma região medonha e escura.
Aqueles que trabalhavam na minha propriedade sempre a evitavam.
Diziam que o demônio habitava ali. Decidi ir a pé. Era uma infindável e
escura floresta. As árvores pareciam como inumeráveis monumentos de
tempos imemoriais que se erguiam solenemente contra o céu em cinzas.
Apenas um e outro facho de luminosidade penetrava por entre os
ramos. Em poucas horas perdi toda noção de tempo e espaço. Apenas
lembrava-me iniciado meu passeio no meio da tarde, entretanto como
agora eu caminhava por uma extensa treva, não sabia se já anoitecido.
O silêncio era completo e despótico, sem qualquer evidência de animal
ou monstro que habitasse aquelas bandas; a vegetação dificultavam-me
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a passagem como uma grande muralha impenetrável, talvez mais
espessa e resistente que os muros de Constantinopla. O ar era
extremamente úmido e pesado, quase sufocante, como o ar tétrico das
masmorras dos infiéis.
Conforme eu caminhava, minha disfunção espiritual parecia ser
gradativamente modificada por um impulso caracterizado pelo fascínio
mórbido por toda aquela região erma.
Entretanto, conforme eu adentrava cada vez mais naquela região das
sombras, as árvores tomavam formas destorcidas e assustadoras,
lembrando monstros demoníacos e os temíveis deuses pagãos do norte
da Bretanha. Os troncos exalavam um odor fétido de cadáver. Uma
neblina gelada agora pendia baixa e vagarosa, acentuando o aspecto
desolado. De vez em quando cheguei a ter a impressão de que algum
vulto passava rapidamente por entre um tronco e outro, como se me
espionasse.
IV.
Na Colina Do Silêncio
Alcancei um riacho raso e pedregoso. Logo adiante a terra erguia-se
numa elevação mais ou menos íngreme, repleta de grandes pinheiros
mortos com os troncos apodrecidos. Por meio de uma trilha,
demonstrando claros sinais de abandono, subi a colina que era de uma
terra cinzenta e fofa. Conforme eu ganhava a elevação o ar se tornava
mais quente e movimentado. Quando alcancei uma parte elevada do
morro tive a fantástica visão de toda a paisagem e mais além. Um
enorme vale coberto por árvores retorcidas e doentias cresciam por todo
aquele lugar hediondo estendendo-se até muito depois do poente. Tudo
me parecia cada vez mais terrível e ignóbil. O riacho que cruzava a
paisagem se assemelhava a uma enorme artéria transportando sangue
humano, pois suas águas tomaram uma tonalidade escarlate. Uma
névoa cinza, que lembrava a face obscura da morte, deitava-se por
todos os lugares e cantos que meus olhos conseguiam ver — mas uma
vez tive a impressão de ver pequenas figuras negras deslocando-se pelo
vale e desaparecendo subitamente.
O céu era nada mais que um enorme borrado escuro, que impedia a
entrada dos raios do sol. Na verdade, eu nem desejava que o Grande
Astro iluminasse aquele lugar, pois seus raios podiam revelar “alguma
coisa” não muito agradável a minha vista.
Quando galguei o topo da elevação, encontrei escondida por entre
numerosas árvores mortas que, entrelaçadas, formavam uma vigorosa
cerca natural, um local descampado, de rocha escura e terra vermelha,
onde em seu centro erguiam-se enormes monumentos de pedra com
bases largas e extremidades finas organizados em forma de círculo. Ao
centro jaziam alguns ossos que me pareciam ser de homens; outros, de
67
tão exóticos e horríveis, eu nem saberia descrevê-los, apenas posso
inferir, com toda certeza, de animal desconhecido na terra... Todos os
pilares de pedra apresentavam indecifráveis nomes e símbolos.
Contudo, entre os caracteres cravados na pedra, posso lembrar-me da
seguinte sequência: Ph’nglui mgl’ nafh Cthulhu R’yleh wgah’nagl fhtagn.
A inquietação nervosa que me assolava causara um caos extremo em
meus pensamentos, fazendo-me imaginar se eu não estava sendo vitima
de mais uma das hereditárias e torturantes crises de pesadelo. O que
passei a sentir não pode ser descrito por palavra alguma em nenhum
idioma neste mundo, e mesmo que pudesse traduzir em palavras uma
parte do que senti, isto resultaria na mais fantástica expressão de
ignorância jamais sentida pela cristandade. Meu corpo fora tomado por
uma estranha energia que hora se apresentava subjetiva, sentida
apenas em minha mente, hora tomava-me mais de forma mais
concreta, como algo que entrava por cada poro da minha epiderme.
Esta convulsão intensa fazia meus pensamentos chocarem-se num caos
mais angustiante que nunca, como se houvesse uma guerra sem
chance de vitória em meu corpo... O Poder daquela hedionda região
descortinou-se em meus pensamentos. Passei a ver o universo com
olhos diferentes, além do bem e do mal. Estava tendo a percepção total
do mundo, da humanidade e de sua insignificância, do universo e da
sua fragilidade, do inicio e do fim, dos seres inomináveis que criaram a
vida em nosso planeta e em breve, quando o mundo estivesse pronto,
voltariam para tomar o que era deles, a terra cairia num êxtase infernal
de matanças e orgias.
Estas estranhas visões eram de tal intensidade que minhas energias
começaram a esvair-se e, minha percepção caiu num estado intolerável
de desordem, parecendo não suportar o estado máximo de excitação o
qual eram submetidos.
Então uma poderosa luz branca, surgida subitamente, privou-me de
toda minha visão, e todos os sentidos. Lembro-me de ter cambaleado
como um bêbado pelo terreno, tomado pelo mais extremo terror. Tentei
gritar por socorro, mas o máximo que pude fazer era soltar alguns leves
sussurros que logo se perdiam na penumbra infinita. Estava imóvel,
resvalado num estado de semiconsciência, com todos os membros
dormentes e sem poder sair da posição em que me encontrava,
prostrado...
V.
As Planícies Infernais
Ao recuperar os sentidos, estava em um lugar totalmente diferente
daquela misteriosa colina. Encontrava-me em meio a uma planície
completamente devastada, sem qualquer planta ou animal que eu
pudesse avistar. Tudo se resumia a toneladas e toneladas de escombros
e rochas pontudas amontoando-se por todos os lados, como se várias
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montanhas tivessem sido derrubadas por algum tornado. Havia
crateras que vomitavam uma fumaça de odor tão fétido quanto o de
milhares de corpos em decomposição. Pelo terreno jaziam ossos e
crânios humanos e de outras criaturas semelhantes como os que vi no
topo da colina...
Na parte oeste da planície descia uma grande depressão no qual um rio
de lava incandescente seguia seu curso maldito e pestilento por aquela
terra infernal. Do outro lado do curso de lava inumeráveis lápides
cinzentas em ruínas, que se estendiam a extremo oeste com suas
cruzes quebradas e seus túmulos profanados, e nessas catacumbas
crepitavam algumas línguas de fogo de tonalidade negra.
Descendo o rio de magma, uma mulher navegava em um pequeno barco
guiado por ela mesma, de pé na retaguarda, com um enorme remo
negro feito uma lança de guerra. Branca, pálida, de olhos cinzentos,
vestia largas túnicas escuras e seu cabelo, excessivamente longo e
negro. A embarcação era ocupada também por crianças que
permaneciam sentadas logo atrás da mulher, cantavam uma canção
estranha, melancólica e louca numa língua desconhecida,
acompanhada de uma harmonia doentia. As estranhas figuras seguiam
seu curso sombrio... Entretanto, a pálida mulher virou seu rosto em
minha direção e sorriu, mostrando seus dentes alvos, brilhantes e
extremamente perfeitos.
As criaturas desceram o enorme rio de magma até desaparecer da
minha vista. Após este acontecimento, pus-me a caminhar.
Andava sempre subindo o curso do rio de fogo em meio a toda aquela
paisagem devastada. O céu era escarlate como sangue, o sol pendia lá
em cima, mas não brilhava — um astro negro, uma estrela morta.
Criaturas aladas e negras, parecendo ter corpos de homens, voavam
freneticamente no alto daquele céu rubro e sinistro; testemunhas
surreais da minha existência, voavam em círculos e em todas as
direções, soltando poderosos gritos de ódio. Eram como abutres
procurando do alto do céu uma pobre presa que, se rendendo a morte
sobre a ceio da terra, possa lhes aliviar a fome eterna.
O ar estava extremamente quente como o de uma fornalha, pingos de
suor desciam de todos os poros do meu corpo. Logo eu desidrataria. A
hostilidade do ambiente me atormentava a níveis intoleráveis. Mesmo
assim sentia-me lúcido e vigoroso para enfrentar as planícies infernais e
chegar onde quer que fosse, o que importava era escapar além do fogo,
da morte e do norte...
VI.
A Cordilheira Incandescente
Após muito tempo de passos vagarosos, porém firmes, avistei uma
imponente montanha que se erguia contra o céu, pedregosa e grotesca;
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vomitava de seu pontudo cume uma fumaça extremamente negra,
quase sólida, espalhando-se e uma grande quantidade de lava que
descia sinuosa pelo seu corpo negro. Logo percebi que aquela montanha
não estava solitária, crescia ao seu redor uma enorme cadeia de
grandes rochedos que se espalhavam de leste a oeste como um infinito
arco. Quase todas regurgitavam grande quantidade de lava que
alimentava um vasto e profundo lago de enxofre de onde o rio de
magma iniciava seu percurso. Tudo era acompanhado de estrondos
altíssimos, tremores terríveis e roncos de furiosos trovões e relâmpagos
retumbando luminosos que, lançados das espessas nuvens circulando
os cumes, atingia o solo com ferocidade como uma horripilante sinfonia
infernal, regida pelos lentos movimentos do magma e composta pelos
temidos Prestos e Adágios da Morte. A cordilheira incandescente
permanecia ali, erguida e inquiridora como grandes muralhas
intransponíveis impondo-se ante minha completa insignificância.
Mas houve um terrível estrondo que reverberou pelos confins da terra, e
um tremor muito mais forte tomou conta da paisagem; o lago de magma
agitou-se em enormes e confusas ondas que se chocavam entre si com
enorme violência. Uma grande quantidade de lava assomou da boca da
cordilheira. O conjunto de calvários, desmoronando aos poucos,
sucumbiu com enorme ímpeto num incomensurável oceano de rocha
derretida e, diante da destruição completa, surgiu um enorme precipício
negro onde, a partir da sua borda, só havia o aniquilamento completo: o
mar de trevas e magma espesso que dava grandes suspiros no vapor
sepulcral. No centro do pélago uma cachoeira arredondada tragava toda
a rocha liquefeita. Erguia-se no centro da catarata vulcânica uma
enorme estatua escura de um ser nunca antes vista pela face da terra.
Seu aspecto consistia de uma cabeça tentacular...
VII.
Epílogo
Estas memórias, atribuídas ao Duque de Monteviedo, terminam
abruptamente neste capitulo. O seu desaparecimento misterioso é
cercado de contradições. Ao retirar-se para um passeio aparentemente
sem importância pelos arredores de seu castelo, como realmente foi
constatado em crônicas da época, e de autenticidade comprovada,
nunca mais retornou. Então se indaga: Se o nobre, ao desaparecer da
face de todos os homens para sempre, e seu corpo jamais fora
encontrado, como estes fatos puderam ser escritos pelo próprio? A
validade da suposta visão do fidalgo é totalmente desacreditada
cientificamente, embora alguns místicos a usem como objeto de estudo,
como Anton Szandor Lavey, para quem, numa entrevista por telefone,
nos disse que o Duque foi um dos poucos a percorrer a “Diatribe
Infernal”. Chegou-se a imaginar que a veracidade sobre a existência do
nobre de Monteviedo, que empalava e estripava seus inimigos vivos
(segundo algumas velhas lendas das regiões rurais do norte da Espanha
70
ele tinha pacto com o diabo), fosse mais uma lenda entre as muitas que
povoaram o imaginário popular da alta idade média.
Os recentes documentos encontrados, como crônicas medievais do
tempo de Alfonso I (datadas de 750) e do Conde de Pelayo (futuro Rei
Teodemiro; originada nos anos de 730), Alfonso VIII de Castela (escrita
de 1193), de autor anônimo, e alguns fragmentos do inicio do século
VIII mencionam o nobre, uma de autoria de Eugênio de Toledo e outra
creditada ao Monge de Cister; a descoberta do relato acima, tido como o
original, e os estudos recentes da Faculdade de Toledo realizados por
Sr. Henrique Cortez, doutorado em história medieval pela Universidade
de Lisboa e o Sr. Paulo Rivera, Pós-doutorado em arqueologia na
Universidade de Oxford, ambos docentes da universidade hispânica,
confirmam a real existência do nobre e a validade de sua crônica, pois
os recentes testes de Carbono 14 e estudos caligráficos comprovaram
que o suposto registro de sua “viagem onírica até estranhas terras e
dimensões,” parafraseando as palavras do Professor Cortez, é de fato
atribuída ao celerado fidalgo.
Algumas cópias do manuscrito, embora sem qualquer descrédito
histórico até o citado estudo, circulavam por regiões da Europa nos
recônditos confins das terras mulçumanas. Alguns pesquisadores
sustentam a tese que se o próprio Roderick Shore, Grão Mestre da
Ordem de Lammoth, tenha tido o contato com estas crônicas e copilou,
em latim e inglês arcaico, juntos com seus discípulos, muitos
exemplares da “obra”; é muito provável que este tenha até mesmo se
inspirado na experiência fantástica de Dom Monteviedo, assim como em
outros escritos deixados na sua biblioteca, para criar sua temível seita e
desenvolver sua arte. Já é bem acolhida entre os acadêmicos de que a
“história” do nobre espanhol ter sido difundida no mundo árabe, cerca
de oitocentos anos antes de Shore, por Abdul Alhazared, que fez uma
viagem a região das Astúrias, como alguns sustentam, nos anos de 748,
quando o sábio mulçumano percorreu várias terras colhendo
informações sobre lendas e cultos secretos. Dois anos depois Alhazared
o usaria, assim como outros escritos deixados pela linhagem de
Monteviedo (conjuntamente com os anais achados nos subterrâneos da
fabulosa Cidade de Irem), como uma das ferramentas para compor o
seu lendário Azif (Necronomicon). Cerca de setecentos anos mais tarde,
imagina-se que o próprio Sultão Maomé II, o conquistador do Império
Bizantino, tenha sido um dos admiradores e preservadores destes
anais.
Quanto aos monumentos de pedra encontradas num bosque. Buscas
ocorridas nos anos de 1930 e 1931 pelo professor da Universidade da
Catalunha, José Roberto Dias, encontraram a referida “Colina
Silenciosa.” Mas os ossos as quais D. Monteviedo refere-se não foram
achados apesar da grande procura. Entretanto as edificações de pedra
estavam num estado incomum de composição química, parecia que
todas estavam consumidas pelo fogo, e seus corpos, com a mesa
71
fragilidade de uma pedra esponja, esfacelavam-se ao mais leve esforço
das mãos que a tocassem. Quanto aos termos encontrados nas rochas,
nenhum símbolo referido nas crônicas constava de fato, contudo os
caracteres mencionados na crônica foram traduzidos e estranhamente
pertenciam a um antigo dialeto etíope há séculos desaparecido. Sua
tradução fica aproximadamente assim: Em sua morada em R’yleh o
morto Cthulhu espera sonhando.
VIII.
Esta versão da narrativa teve corrigido algumas imperfeições, tendo por
base o original, em latim, cotejadas com traduções de monges gregos da
região da Tessalônica do século XIII, outra de autoria em inglês
comprovada de Roderick Shore, uma versão em árabe creditada a Abdul
Alhazared e outra em galego português de José Maria Pacheco, do inicio
do século XII, que fora um dos cronistas na época da dinastia de
Borgonha. A linguagem está adaptada à do nosso tempo, entretanto, foi
preservada, de alguma forma, o rigor do original.
***

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