A Obra Prima de Amarildo – Ricardo Lima
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A Obra Prima de Amarildo – Ricardo Lima
1 2 A Obra-Prima de Amarildo E Outros Contos Indecorosos Por Ricardo Lima 3 Ficha Catalográfica Elaboração da ficha catalográfica Maria Inês de Melo Albuquerque-CRB-11/694 S586o Silva, Ricardo Lima da A Obra-Prima de Amarildo e Outros Contos Indecorosos / Ricardo Lima da Silva. – Porto Alegre: Revolução Ebook, 2016. 71 p. Bibliografia ISBN- (9788582453124) 1.Contos.2.Literatura brasileira.3.Drama.4.Suspense 5.Terror. I. Título. CDU 82-34 4 Sumário A Obra-Prima de Amarildo Victor Martinez Memórias de um Bêbado Solitário Um Cidadão A Carta O Presente Voltando da Faina Na Pensão O Duque de Monteviedo 5 Sobre o Autor Ricardo Lima, 1984, é manauara e sociólogo de formação. Começou a escrever ainda na adolescência, influenciado por nomes como J.R.R Tolkien e Edgar Allan Poe. Atualmente mora em Campinas/SP e faz doutorado em Ciências Sociais na UNESP/Araraquara. E-mail: [email protected] Homepage: www.paginasperdidas.me 6 Nota do Autor Os contos que ai vão são uma coletânea de algumas histórias que andei escrevendo entre os anos de 2005 e 2010. O livro demorou para ser publicado, pois uma série de intercorrências surgiram na minha vida. Estes são contos urbanos, por assim dizer, que retratam o mal-estar e o desespero de se viver nas grandes cidades. Meus personagens são, em sua maioria, desgarrados que, de alguma forma, ou não conseguem se inserir ou são o produto mais nefasto do mundo moderno: assassinos, pedófilos, viciados em drogas, alcoólatras e outras figuras pouco estimadas… O leitor pode perguntar-me porque eu, um amazonense típico, não procuro escrever sobre as belezas naturais no meu Estado, sobre a vida do ribeirinho, do ciclo da borracha e todos estes temas que abundam na literatura canônica sobre a Amazônia. Respondo que nasci e passei boa parte da minha vida em Manaus, uma capital de quase dois milhões de habitantes onde a barbárie e a desigualdade se reproduzem como em qualquer outra cidade miserável do globo. Estas são, portanto, a matéria-prima da maioria das minhas histórias: coisas que vi, que ouvi e que vivi. Também não escrevo sobre as delicias ingênuas da floresta porque muitos autores regionais já o fazem. Se eu me propusesse a fazê-lo, com certeza não lograria o mesmo êxito. No mais, só gostaria de dizer que estes contos possuem uma influência de autores como Balzac, Zola, Poe, Tolkien, Lovecraft, Engrácio, Machado de Assis e Graciliano Ramos. Espero que o leitor tenha bons momentos de fruição lendo minhas histórias. Se não gostar, farei como Machado de Assis — te darei um piparote e direi adeus… R. Lima; Dezembro de 2015. 7 A Obra-Prima de Amarildo. Nem mesmo os conceitos e rigores da sociedade, nem todas as convenções sociais, podem aplacar, de todo, a fúria despertada da besta que dorme no coração humano. E.M. I. A gritaria e as risadas das meninas, que se divertiam na rua, já enveredavam pelos compartimentos daquela casa decrépita até alcançar-lhe os ouvidos. Levantou-se timidamente daquela cama velha e nojenta, a qual permanecera por horas, foi até a varanda de barro batido e sentou-se numa cadeira velha. Ficou observando atentamente as cinco garotas entre dez e doze anos que brincavam naquela rua enlameada. Apreciava principalmente uma delas, notando cada gesto, cada fala e cada risada. Todos os dias eram assim. Quando dava cinco da tarde, este individuo dirigia-se para a varanda a fim de deleitar-se com a cena, se entretendo com aquele espetáculo até que as famílias chamassem as pequenas para casa. Chamava-se Amarildo e tinha vinte e oito anos. Não era baixo e nem alto, nem branco e nem negro, nem magro e nem gordo, nem feio e nem bonito. Era apenas mais um daqueles rostos que não conseguimos gravar na memória... Desde pequeno apresentava uma predisposição para a confusão. Adorava brigar. Um de seus passatempos preferidos era maltratar pequenos animais, como cachorros e gatos. Cortava-os a garganta para vê-los sangrar até morrer. Na sala de aula brigava constantemente com os colegas. Em uma delas chegou a furar o olho de um rapaz, numa ocasião tentou enforcar uma menina que lhe chamara de feio. Em certa ocasião veio para a escola de vestido, como se tentasse chocar aqueles seres que tanto parecia odiar. Várias mestras perceberam transbordar algo sinistro em seu olhar, a incapacidade de respeitar os mais velhos... No tange as suas notas, tantas vezes repetira as séries que deixou os estudos no quinto ano do ensino fundamental. Conforme Amarildo foi ficando adulto, seu impulso malfazejo arrefeceu o bastante para que pudesse ser controlado. Conquistara um emprego num estaleiro aos finais de semana. Embora nos seus primeiros meses 8 fizesse seu trabalho com esmero, com o tempo passou a chegar atrasado. Errava muito. Já estava ficando farto de ouvir as constantes repreensões do patrão. Ainda não o agrediu porque sabia que se fosse demitido seria difícil encontrar outro trampo. O rendimento era parco. Mas pelo menos lhe possibilitava uma modesta independência financeira. Gostava de bolero. Nos dias de folga sempre era possível vê-lo dançando com as piriguetes do bairro. Era um exímio dançarino, o que lhe valera algumas conquistas amorosas. Foi assim que conhecera Paula, uma morena de cabelos curtos. Chegaram a ficar noivos, mas ela acabou fugindo para o nordeste com um cantor de forró. Nos primeiros meses ele muito padeceu. Hoje, porém, ela não passa de uma pequena mancha em suas lembranças. Nos últimos meses, porém, Amarildo vinha perdendo o gosto por toda realidade. Faltava muito ao trabalho e tinha desaparecido dos forrós. Cada vez tornava-se mais introspectivo, imerso em sua própria cela de pensamentos ignóbeis, tornando-se para ele uma realidade que existia por si própria. Deixou de se importar com as responsabilidades da casa. Apenas seu mundo de devaneios importava. Morava com a mãe, uma lavadeira alcóolatra. Era bastardo do filho de um desembargador quando sua mãe trabalhou como doméstica em sua casa. Com a noticia da gravidez, o magistrado, o Sr. Almeida, expulsou a moça, então com dezoito anos, da casa e mandou o filho para a Europa... Desde então a mãe de Amarildo dedicou-se a “lavar roupa pra fora” e criar o bastardo como uma mãe solteira. II. O bairro em que moravam era um dos mais sórdidos e afastados da cidade; não passava de um amontoado de palafitas decrépitas expelindo dejetos pestilentos nas ruas barrentas e estreitas. Os barracos erguiamse contra o céu, debilmente, como se estivessem quase caindo, parecendo um vagabundo morto de fome desperdiçando suas ultimas forças numa caminhada incessante e sem esperança. Um igarapé estreito cruzava a comunidade através de vários meandros barrentos e poluídos — um braço de água agonizante cujo leito a cada ano ficava sempre mais raso. Pequenas pontes de pau podre o atravessavam que se desfaziam entre uma enxurrada e outra. Mas por vezes a natureza vinga-se de seus algozes. Era comum uma tempestade ter como consequência a inundação de toda localidade; a água invadia os barracos, as ruas, derrubava casas e ceifava vidas. Durante estes dias o caos imperava no coração das pessoas e um sentimento primitivo de sobrevivência, o mesmo que se apoderava do animal em desespero ao fugir do predador tomava conta dos homens. 9 Um dia, afirmam os moradores mais antigos, aparecera boiando naquelas águas lodosas um corpo já bem podre. Vermes saiam das têmporas e de outros orifícios, exalando um cheiro de enxofre e podridão. Navegava tranquilo, banhando-se com o sol da manhã, para horror dos moradores e agonia dos bombeiros. Muitos começaram vomitar quando, ao pegar, hesitantemente, o corpo para manejo, este se esfacelara nas mãos dos agentes, revelando uma quantidade inumerável de organismos que fizeram naquele pedaço de carne sem vida sua morada. III. Uma hora passou. O contínuo barulho e as risadas das crianças se foram. O sol já se escondia entre as nuvens vermelhas e por entre os montes. As sombras dos barracos, dos muros e dos bosques já eram mais densas na paisagem, pairando sobre as águas purulentas do igarapé. O cri-cri dos grilos ecoava por todos os lados, assim como os cantos ritmados dos sapos e os voos sinistros e velozes dos morcegos; os trabalhadores retornavam fadigados do fim do dia de labutas forçadas. Amarildo mais uma vez estava sozinho. Passava longas horas devaneando sobre seus traços singelos e agradáveis da pequena Gisele; os cabelos extremamente lisos e longos, os olhos claros, muito redondos e lívidos, braços, pernas e busto ainda magros tomando forma. Sempre imaginava em suas divagações, caído em um estado de torpor quase absoluto, como deveria ser a forma de sua vagina, pequena, delicada, corada... O pequeno busto, de pequeno porte, macio, suculento, atraente... Masturbava-se três ou até quatro vezes por dia fantasiando a posse daquela pequena garota, desfrutando de todo aquele pequeno corpo, penetrando com toda a sua força na pequena vagina tão cálida, ainda virgem, enquanto ela gritava de dor e por socorro para então ele a matar... Amarildo, mais uma vez, estava quase em estado de transe quando uma mulher entrou na casa. Fechou o portão com tanta força que criou um estrondo alto e desagradável. Ela cabelos grisalhos e assanhados, rugas por toda parte do rosto, já um pouco encurvada, os olhos eram miúdos e negros. A velha entrara carregando uma trouxa branca de roupa nas costas. Caminhou desajeitada até a pequena escada de três degraus onde na pequena varanda estava Amarildo. Ao vê-lo sentado olhando para nada, a mulher resmungou: “Seu filho da puta... Tu não foi procurar trabalho hoje?” “Não... Eu já trabalho...” 10 “Seu vagabundo safado, tu fica ai a semana toda feito um imprestável sem fazer porra nenhuma... Eu deveria te expulsar de casa!” “Não tinha trabalho, não...” “Como é que tu sabe caralho!” A mulher estava ficando cada vez mais furiosa, agora andava de um lado a outro da sacada, a trouxa jogada num dos cantos. “Eu adivinhei que não tinha trabalho...” “Seu filho duma égua, eu deveria ter abortado quando o maldito do teu pai me engravidou... O maldito vivia atrás de mim, tu é igualzinho àquela raça de sem vergonha!” E deu um tapa tão forte em Amarildo que o barulho soou surdo e alto, como um bumbo de bateria, sua face direita avermelhou-se. Levantou-se, meio irritado, foi até seu quarto e deitou, fingindo não se importar com o que aconteceu. A mulher carregou a trouxa pesada até a área dos fundos, largou-a, e disse. “Vou pro bar...” A taverna que frequentava era mais um dessas que são repletos de mulheres e velhas decadentes que os cômicos costumam batizar de “xiri quer pau”... IV. Quando ela saiu da casa Amarildo sentiu-se aliviado. Poderia dedicarse aos seus preciosos devaneios. Há muito tempo Amarildo sentia este estranho desejo de matar uma mulher enquanto a possuía. A única coisa que o impedia de concretiza-lo era saber que se fizesse teria algumas complicações. Já teve várias vítimas em potencial, as amigas da mãe, alguma moça que passava pela frente do seu barraco, suas antigas professoras... Enfim, qualquer mulher capaz de lhe inspirar alguma beleza. Quando viu pela primeira vez a garota, voltando da escola sozinha, todo o seu ímpeto famélico e vil foi direcionado para ela que, na época, tinha pouco mais de nove anos. A partir daí passou a observar a menina, vendo-a crescer devagar, andando até a mercearia para comprar pão, indo com os pais até a parada de ônibus, brincando com as colegas ou voltando de suas obrigações escolares — conhecia tão bem sua rotina quanto ela mesma. Muitas vezes atordoava-se com o turbilhão de impulsos sombrios que tomavam conta de seu espírito, baralhavam suas conjecturas e fazia-o suar e tremer. Nestes momentos corria à cozinha pegar uma faca para ir até a casa da garota e dar cabo de seu horrível e forte desejo. Mas sempre se controlava. Sabia que tinha de esperar. Precisava de cuidado 11 e paciência para planejar tudo. Também contava com a falta de interesse da policia, percebera que tantos eram mortos por tão variadas causas naquele lugar que talvez não se importariam se uma garota surgisse sem vida. Mas e se o caso chocasse a cidade? “Todo mundo cairia de pau aqui até me acharem...” Concluía. Precisava agir o quanto antes. A menina crescia depressa e quanto mais velha ficava mais difícil tornaria a tarefa. Naquela noite dormira sem jantar, mergulhado que estava em suas maquinações, bolando as mais variadas conjunturas e desfechos: lugares para sumir com o corpo, armas a serem usadas, horários propícios, as explicações de uma possível visita da policia... Assim passou à noite em claro remexendo-se na cama velha, vadeando pelos cômodos da casa. O ronco irritante da mãe, que voltara do bar meio bêbada lá pelas dez horas, ecoava pela casa inteira misturando-se aos ruídos vindos da rua... V. Cinco meses transcorreram e Junho chegou. Os moradores reuniriam no festejo típico daquela época. As bandas de forró estavam confirmadas e as cirandas já haviam chegado, preparavam últimos detalhes para a apresentação que ocorreria no centro convenções. se já os de Os pais de Gisele, como bons vendedores de salgados montariam sua barraca em um dos pontos próximos ao palco. Em pouco tempo centenas de pessoas se amontoavam naquele espaço. O clima esquentava e ficava mais abafado, cada vez mais pessoas chegavam, estava já se tornando dificultoso o deslocamento na arena. Alguns ali só vieram em virtude de que o vereador João Palacino em companhia de um dos secretários da prefeitura, que viria distribuir micro-ondas como gratidão aos eleitores. Quando a noite já alcançava quase onze horas, a barraca da família de Gisele ficou sem lenços. A mãe ordenou as duas garotas que fossem à casa apanhar dois novos pacotes do produto. A irmã mais velha resolveu aproveitar ocasião para se encontrar com seu esquema: “Gisele, vai sozinha que eu vou ali falar com um amigo”. Qual problema haveria? Pensou Isabela. Era só ir ali perto e voltar... À medida que Gisele aproximava-se de sua casa as ruas iam ficando mais escuras e desertas. Vários postes estavam com as luzes queimadas. O alvoroço da festa ficava cada vez mais distante. 12 O clima frio, a escuridão pesada e o ambiente deserto causaram em Gisele leve pavor. Queria apanhar os pacotes e retornar o mais rápido possível para sob as asas protetoras dos pais e da multidão. Começara a andar mais rápido. A cada cinco passos olhava para trás e para os lados. Os pelos da nuca arrepiaram-se. Quando estava a apenas uma quadra de casa, colocou a mão no bolso do pequeno short azul e teve uma enorme decepção. A chave não estava com ela, ficara em poder da irmã. Resmungou: “Ai, meu deus...” Teve raiva. “Se fosse pra pegar aqueles diabos de pacotes de lenços que ela fosse sozinha!” Imaginou. Refez o caminho de volta. Resolveu não olhar mais para os lados, com isso achava que poderia espantar seu medo. Quando alcançou a esquina da rua, a sombra de um homem surgiu subitamente de um muro velho e agarrou-a por trás, tapando com a mão sua boca e envolvendo como o outro braço todo o tronco da menina. Tomada pelo mais completo terror, tentou gritar, lutar, espernear numa luta inglória para escapar aos grilhões. As mãos e braços do raptor eram de tal força apertavam dolorosamente a boca, que abafavam eficazmente seus gritos de horror e tirava-lhe as forças. “Há muito tempo eu tava de olho em ti, minha putinha gostosa.” Enquanto a menina se debatia desesperada, como uma gazela presa tentando desprender-se do leopardo; Amarildo arrastava-a para o escuro campão. Os olhos de Gisele, transparecendo angústia e terror, observavam a claridade e o movimento da festa afastar-se, enquanto procurava inutilmente algum passante... Percebeu que Amarildo levava-a para a floresta em trevas. Lágrimas desciam dos seus olhos, não queria entrar naquele lugar nefasto, não queria morrer, gritou com toda a força, mas seus prantos de socorro eram censurados pela mão do seqüestrador. Tentou mordê-la. Impossível. Era áspera e dura como concreto. Contorcia-se numa luta de terrível agonia, forçava os braços tentando se desencilhar dos de Amarildo. Mas era inútil. A floresta era completamente escura, fria e exalava um odor misturado de carne podre e de folhas tingidas pelo orvalho. O ar era pesado e sem movimento. De tanto se debater feria-se nas pontas dos galhos podres, nos espinhos e nas folhas urticantes. Amarildo, já furioso com a resistência de Gisele, disse: “Fica quieta sua piranha senão eu vou te matar...” Deixou-se arrastar, resignada. 13 VII. Alcançaram uma pequena elevação, semelhante a uma colina, repleta de árvores frondosas de mata espessa, logo adiante uma precipitação levemente acentuada denunciava que o igarapé do bairro tinha ali sua passagem, correndo ligeiro e fétido. Do outro lado da margem nada se via, apenas um enorme manto escuro cobrindo as árvores que balançavam pela força de uma brisa gelada. Amarildo, ainda segurando os braços e a boca de Gisele, disse: “Agora tu vai fazer o que eu disser... Se tu correr eu te mato, mato tu e tua família inteira porque eu sei onde tu mora!” A garota chorava bastante... Amarildo soltou a mão da boca dela. A pequena teve a chance de implorar: “Por favor... Me deixa ir... Eu não fiz nada pro senhor...” “Cala boca caralho... Tu não fez mas agora tu vai fazer!” Disse, ao ouvir as suplicas de clemência da menina, deu-lhe um soco. Gisele caiu de joelhos, soluçando. Não fora exatamente isso que Amarildo desejou, vê-la implorar pela vida, na iminência perdê-la? Uma criaturinha frágil, sem defesa, sem vontade própria, a mercê de seu bel prazer, de sua libido, totalmente subjugada pelo seu novo senhor? Desatou o zíper da bermuda encardida, baixou-a, tirou a cueca velha, colocou-a de lado, e ficou com o pênis ereto a mostra. Adivinhando o que aconteceria, rebentara numa onda interminável de soluços, contorcia-se e chutava-o com o que restava de suas forças. “Não faz isso não, por favor, não faz isso não...” O raptor ficou de joelhos cravou seus olhos nos da menina, apesar do escuro: “Fica calada, se tu gritar eu te dou uma facada na tua goela” Gisele calou-se, o medo de morrer novamente lhe invadiu. Ele tirou a roupa da menina e tocou-lhe a vagina. Enfiou um dos dedos nela. Gisele deu um pranto de dor. Ele rasgou rudemente a mini blusa da vitima e apalpou os diminutos seios e beijou-os. Ordenou a ela para masturbá-lo com as mãos cálidas, trêmulas e macilentas, ela obedeceu. Melara-se com o esperma do agressor. “Tudo acabaria logo.” Imaginava. Colocou a menina agachada no chão, totalmente nua, na posição que comumente a plebe costuma chamar “de quatro”, e tateando seu pênis com uma mão e a vagina ainda virgem 14 com outra, tentou a penetração; a mocinha, sentindo a força da pressão contra seu órgão sexual, sentiu dor, gemeu. Gisele ainda suplicou trêmula: “Por favor, moço, não faz não...” Ele não respondeu. Deu uma cusparada da glande e tentou mais uma vez. Novamente fracassou. A vítima deu outro gemido. Enfurecido, forçou com mais força, o hímen dificultava a ação: “Essa putinhas cabaço são assim mesmo.” Refletiu. Impaciente, tentou a penetração com toda a força, o rompimento do hímen foi tão brutal e doloroso que Gisele soltou um grito de agonia. O Pênis fora penetrado por completo. Sangue escorria por entre os lábios vaginais. O algoz iniciou seu ato, sua obra-prima que permaneceria para posteridade, imaginava... Gisele pranteava; às vezes em tom de lamento, às vezes com desespero. Como o choramingo começara a incomodá-lo, tapara a boca da menina com as mãos. Amarildo bufava como um touro, falava coisas sórdidas e obscenas. Ria freneticamente. Já sentia a sensação de orgasmo subindo como uma força inexorável. Retirou a faca da bainha que tinha na cintura. Começou a ejacular internamente. Enquanto a sensação de gozo propagava-se de seu corpo com toda a força, deu o primeiro golpe na região central das costas da vítima, partindo em dois a coluna vertebral. Uma dor aguda fez Gisele contorcer-se. Os olhos esbulhavam-se. Gritou. Os braços e o quadril perderam a força. Caiu como de bruços, mas Amarildo segurou-a pela cintura. Estava tonta, o mundo em volta embaralhava. As pernas e os quadris adormeceram. O segundo golpe penetrou o pulmão. A hemorragia a fez cuspir sangue. Agora sentia dificuldade de respirar. Sua vista parecia escurecer-se. Amarildo desferiu mais duas estocadas, uma que atingiu a região do estomago e outra no coração. A dor sentida pela menina fora aos poucos sendo complementada pelo sono. Sentia-se mole. Desejava descansar. O sono extremo era irresistível. Queria dormir profundamente e acordar para descobrir que aqueles terríveis acontecimentos não foram senão parte de mais um pesadelo para aquela mente imatura. Teve a convicção de que quando adormecesse sentiria alivio. Não conseguia mais suportar aquela sonolência. Sua vista escureceu de repente. Morrera. 15 VIII. Extenuado pela relação, retirou o pênis do corpo sem vida e soltou-o ao solo. Uma enorme poça de sangue formou-se no local. Levantou-se, enxugou seu órgão sujo de esperma e sangue com a camisa, tateou no escuro, achou sua cueca velha e sua bermuda encardida, vestiu-a. Jogou a camisa no igarapé infecto. O suor escorregava de todo o corpo, arquejava. Sentou alguns minutos nas margens do riacho para recuperar as forças. A lua estava bela. Sentia frio, pensou em banhar-se no riacho mas, quando imaginou em todo o tipo de porcarias existentes ali, desistiu da ideia. A lembrança do tipo de poluição que infestava a torrente o fez recordar daquele dia quando acharam um corpo já podre boiando naquele córrego. “Tinha gente vomitando de tanto nojo.” Disse para si mesmo, rindo. “Essa daí vai ficar igualzinha aquele presunto.” Cismou. Teve a ideia de jogar o corpo no rio, seria mais difícil para a polícia achar o local do assassinato. Voltou até o cadáver, o arrastou pelos braços, sem muito esforço. Imaginou no rastro de sangue, mas logo pensou: “Uma chuva de verão que sempre cai nesta época limpa tudo.” Arrastou Gisele até uma parte do leito onde as águas corriam com mais força e profundidade, largou-o. Amarildo refletia enquanto voltava para a margem, impressionado com a mudança que ocorreu na garota. Antes tão valente na luta por sua vida, tão bela, agora era nada mais que um pedaço de carne... Um pedaço de carne para açougue... Imaginou o corpo pendurado de cabeça para baixo, pelos pés, num gancho de açougueiro sendo exibido na Feira do Produtor, com filetes de sangue escorregando das tripas e das têmporas, descendo pelos seios, pelo rosto, pelos cabelos, pingando sobre o azulejo do balcão onde milhares de moscas famintas disputavam um território suculento. Sentiu fome. Teve vontade de comer o cadáver, mas já era tarde demais. Riu estupidamente. Gisele seguiu navegando até perder-se de vista ao dobrar no meandro mais próximo. Teve nojo de ter entrado naquele igarapé. Voltou para casa sem pensar mais nela. Veio-lhe a mente a figura da irmã da menina, uma mulher na casa dos vinte anos, charmosa, uma das beldades das adjacências. Talvez poderia servir-se dela também, talvez fosse tão boa quanto a irmã, talvez a mãe também entrasse no bolo. Estupraria a mãe, a irmã e em seguida mataria o pai — Riu alto da própria ideia... 16 A temperatura era suave, um contentamento invadira-lhe o espírito. Chegou na rua tranquilo. Tudo estava deserto. A agitação da festa estava nas culminâncias. “Que horas será que é?” Indagou. Quando chegou em sua residência, abriu o portão de madeira antiga. A casa estava deserta e escura, a mãe deveria estar destruindo o que ainda lhe restava do fígado... Enquanto se dirigia até o vão e abria a porta. Parou. Olhou para a claridade de onde emanava a agitação. Imaginou se não seria boa ideia se juntar às pessoas, quem sabe conhecer alguém... Não, desvencilhou-se de tal empreitada, estava muito cansado, tinha de relaxar, talvez noutra ocasião. Viu a irmã da morta caminhando com o namorado. Entrou apressado e escondeu-se. Quando o casal desapareceu, foi para a cozinha, comer qualquer coisa, tomou banho e foi dormir, contente por ter realizado sua obra-prima... *** Victor Martinez. A violência do veneno torce meus membros, me deixa disforme, derruba. Estou morrendo de sede, sufoco, não posso gritar. É o inferno, eterna pena! Arthur Rimbaud. I. Era uma madrugada gelada e opressora; nuvens pairavam lúgubres entre árvores agitadas e uma tempestade atormentava toda Manaus com suas rajadas de vento enfurecidas, toneladas de água cortante, relâmpagos e trovões ensurdecedores. Victor Martinez dormia estirado sobre a cama desalinhada. Revirava-se inquieto sobre o leito. Suava a cântaros. Imerso em um tenebroso devaneio, fora tomado de súbito por um instinto de sobrevivência e abriu os olhos atormentados. As primeiras imagens que conseguiu, com dificuldade, divisar, foram a escuridão do claustro fechado e as manchas de formas desagradáveis que surgiam no forro de madeira. As cortinas que bailavam numa dança macabra de alguma forma o fazia relembrar os horríveis 17 pesadelos que tinha todas as noites. Os ouvidos também captavam o rugir furioso da tempestade precipitando lá fora. A janela aberta criava uma boa oportunidade para a chuva inundar todo o quarto. II. A aquela não era uma noite comum, Victor sentia-se angustiadamente diferente — o inevitável pesadelo fora mais horripilante que o das noites anteriores. Antes seus sonhos sempre o mostravam em meio a uma pedreira abandonada onde permanecia acorrentado à frente de um pelotão de fuzilamento, composto de dez soldados com trajes militares do séc. XVIII em farrapos, cujos corpos eram uma torpe massa de carne podre e horrível. Perante a execução, Martinez clamava por misericórdia, mas seus algozes não lhe davam ouvidos e disparavam seus mosquetes, entre gargalhadas de volúpia, contra o corpo do condenado. Seu delírio terminava no momento em que as balas penetravam-no e conseguia avistar o sol purpúreo da tarde descendo suavemente no longínquo horizonte... Nesta noite, estava como sempre em meio aquela enorme cratera desolada, preso pelas grossas correntes, a encarar seus carrascos. Mais uma vez era invadido por um terror incontrolável. Implorava mais uma vez pela vida. Entretanto, como sempre, nenhuma resposta. O fuzilamento começava. Seus olhos novamente alcançavam o céu onde cintilava o sol dourado da tarde. Ocorreu que, ao invés de despertar, a enorme pedreira soergueu-se com um tremor de terras e um ranger de rochas partindo-se e esmagando-se com um barulho indescritível. Os soldados eram logo engolidos por grandes fissuras abertas sob seus pés de onde escapavam grandes chamas crepitantes. Quando a enorme montanha cresceu até altitudes incríveis, Martinez, em total espanto, observara no horizonte uma nuvem escarlate envolvida por labaredas, navegando rapidamente em sua direção. Percebendo que aquela descarga de lumes avança impetuosa sobre seu corpo, ele tenta desesperado descer da formação rochosa e escapar da morte. Subitamente, as antigas algemas de aço transformam-se em milhares de serpentes e estrangulam tanto seu corpo, gerando uma expiação alucinante. Retidos por estes nefastos grilhões, Victor contorcia-se enquanto a grande e maldita nuvem aproximava-se como a morte vem inevitável nos momentos mais derradeiros da vida... Foi neste momento que seus olhos abriram-se; olhos de pânico, de uma mente confusa. Observou a escuridão do claustro. Crepitava o brilho de uma patologia inexplicável... Os sentidos estavam agora extremamente sensíveis; o menor resquício de luz vindo do clarão dos relâmpagos da tempestade o perturbavam; qualquer pequeno barulho ensurdecia seus ouvidos; uma pequenina mudança de temperatura ou qualquer suave brisa que tocasse sua tez o incomodava; o estranho aroma de seu suor era puro fedor de carne putrefata para suas narinas. 18 Por entre os meandros da mente surgiram varias visões do nefasto pesadelo, misturadas as tristes lembranças do mundo real que pareciam criar um segundo sonho de destruição ainda mais horrível que o das noites anteriores. Sentou-se sobre a cama. Fora acometido por uma febre intermitente, com intervalos cada vez mais irregulares entre a razão e a loucura. Permanecera naquela posição durante pouco mais de uma hora, imóvel como um velho senil esperando a enfermeira vir ministrar-lhe o medicamento em seu quarto insalubre no meio da noite... III. Da lufada de suas recordações surgiu, pálida, a imagem de Katherine, despertando uma ambiguidade infinita de conjecturas. Ao mesmo tempo tais reminiscências a respeito daquela mulher o confortavam com certa voluptuosidade mórbida... Também dilacerava-o, pois tudo que se relacionavam a Katherine e Victor Martinez emanava a fragrância amarga da dor — era um estado de espírito de difícil traço: poético, opressor, angustiante, e, talvez, nostálgico... É preciso mencionar a infância extremamente sofrida e solitária, passada entre os mais recônditos claustros carregados de sombras em meio a livros de filosofia, cálculos e línguas impostos pelos seus pais; nas horas vagas, cambaleava ébrio de tristeza e solidão por jardins escuros, cinzentos e abandonados, situados a quilômetros de sua casa, onde árvores cresciam tétricas e retorcidas pelo abandono. Os terríveis delírios que o acometeram durante a adolescência, quase o fizeram tentar o suicídio. Ainda não estava totalmente curado daquele mal, isto ele o sabia, pois ainda sentia um ímpeto de loucura latejar no âmago de seu inconsciente. A relação tão conflituosa que tivera com o pai... Mesmo em relação ao seu genitor não havia qualquer volta, ainda estando ele extremamente arrependido das tão lamentáveis desgraças de tempos antigos, seu pai agora jaz sob uma lápide cinzenta... Nas ultimas semanas ressuscitou do abismo do esquecimento certos fatos tenebrosos que ocorreram durante a infância no nosso infeliz personagem; começou assombrá-lo os mais negros acontecimentos possíveis de acontecer a uma criança. Retorceu-se de inquietude quando voltou à memória dois funestos dias em que fora covardemente violentado. Na primeira ocasião fora molestado por um tio, nos fundos de sua própria casa a segunda vez ocorreu em plena igreja, pertencente à vertente luterana. È impossível descrever com exatidão as duras consequências que estes atos tiveram sobre a consequência do pequeno Victor. Naturalmente, todos os detalhes sucederam-se nas reminiscências de Martinez, aqueles momentos infames repetiam-se com uma insuportável realidade empestada de suplicio. 19 Em alguns casos, as lembranças outrora enterradas, por serem traumáticas, costumam ser entrelaçadas com o decorrer dos anos a outras situações ou fundiram-se em impressões que, ao serem de alguma forma desenterradas, transportam de sua cripta outros sentimentos que apenas reforçam a condição de mal estar do homem. O mesmo acontecera com Victor Martinez. Suas conjecturas também trouxeram estas impressões aterradoras tão daninhas a um espírito sensível e arruinado; assim ele sentiu não só o “desconforto”, mas nojo de si mesmo, humilhação, vergonha e ficou cada vez mais convencido de que era o mais idiota e covarde dos homens. Caminhou débil até a sala de estar e sentou-se no sofá. Observou os inúmeros quadros pendurados na parede. Contudo, as visões de Salvador Dali, o desespero de Van Gogh ou a calma de Sandro Botticelle também pareciam inquietar-lhe. IV. Imaginou que talvez uns goles de vodka pudessem acalmar seus nervos. Foi até a cozinha e apoderou-se de uma garrafa de Abslolute jazendo sobre a mesa. Lembrava-se que tomara alguns copos antes de dirigir-se à cama... Imaginou rapidamente se esta perturbação não teriam ocorrido pelos vapores da vodka... Mas esta ideia fora imediatamente descartada, pois ingerira apenas dois copos, o que certamente não poderia embriagar nem mesmo os homens com a mais fraca resistência a bebidas alcoólicas. Sepultada a questão, encheu um copo até pela metade, tomou um, dois, três goles seguidos. Mantinha o olhar confuso pelos cantos sombrios do compartimento. Não demorou tantos minutos e a taça já estava vazia. Não titubeou, encheu o copo outra vez. Agora bebia mais rápido que antes. Em pouco mais de cinco minutos um terço da garrafa fora consumido. A visão turvou-se e as pernas ficaram frouxas. Lembrou-se de que estaria mais confortável se fosse sentar, puxou uma cadeira. Ao espaço de dois minutos uma enorme dor torturava seu ventre. O álcool cada vez mais lhe subia a cabeça. Cada vez que tentava formular um pensamento crível, parecia surgir uma bruma impenetrável impedindo-o de articular as ideias... Ajeitou-se de forma a ficar estirado sobre a frágil cadeira. Observou, por momentos, a garrafa reluzindo tranquila sobre a mesa com uma quantidade de bebida suficiente para apenas alguns goles. Teve a impressão que do rótulo surgira um pequeno rosto feminino que dizialhe amáveis palavras e aconselhava-o a terminar o que começara... Tomou avidamente o que restava. Não sentia mais o gosto ruim de uma bebida destilada, apenas o sabor doce e suave da insânia. Descansou a nuca no encosto da cadeira deixou os braços soltos a tremer livremente, 20 seus dedos soltaram a garrafa, fazendo um barulho agudo ao chocar-se contra o chão. V. A tempestade ainda alvejava com furor. Ele podia ver através da varanda o Rio Negro agitar-se como os rios por quais Dante passara. Os gritos de horror dos trovões; o sussurro angustiante do vento carregando tudo o que pudesse roubar e os clarões dos relâmpagos eram também mil vezes maiores, uma sinfonia monstruosa. Mas para a mente de um alucinado, a expressão mais hedionda da natureza não passa de um simples gracejar, enquanto os cenários mais fúteis tem o poder de criar o mais profundo desvario. Seu corpo estava quase dormente. Apenas o enorme barulho da chuvarada o mantinha acordado. Seus ouvidos captaram um ruído vindo da porta... Tentou levantar-se para ver o que era; com esforço, levantou-se, tomando a mesa para apoiar o braço; escorregou, a cadeira caíra para trás, ainda susteve-se em pé graças à mesa; as pernas tremiam; o corpo doía; parecia haver uma chama consumindo-o por dentro, nem parecia ter sido vodka o que ingeriu, mas ácido; logo que teve esta conjectura os braços escapuliram e as pernas vacilaram; caiu violentamente no chão frio e batera o joelho no piso; outra dor aguda o tomou de assalto; deu um grito de raiva e aflição; fraturou o joelho, tinha certeza... Acomodou-se de bruços para cima, observava o teto, impotente para fazer algo. Esperava. Mas o que? Não sabia. Talvez a maldita dor sumir, o álcool dissolver em seu sangue, a morte tocar-lhe o rosto... Sentiu-se como uma criança indefesa perdida numa enorme cidade. Mas esta cidade era sua casa, seu terror era si próprio e não havia ninguém para salvá-lo. Começou a chorar, sentia-se muito mais do que nunca um parvo. Os anos passaram e ele não era nada mais que um espírito infausto temente á si próprio e á todos; temia olhar para dentro de seu abismo, temia que seu abismo olhasse para dentro dele, temia a visão das trevas, temia que o véu soturno o dominasse de vez. Era ateu, mas temia o céu, temia o inferno, temia o Criador e temia Lúcifer; temia a gloria e o fracasso; temia a alegria e a tristeza. Era descrente e religioso, era herege e devoto, era beato e pagão, era seu deus e seu demônio. Não sabia o que era o júbilo. Quanto à temeridade, à amargura, à consternação, não mais se dava conta, tanto tempo vivera no porto da miséria, no caminho de vermes, na sofreguidão espiritual; perdera o ímpeto revolucionário, perdera a força da lucidez, o fulgor, a agressividade... Tinha tudo e não tinha nada, tinha o mundo e não tinha espírito. Austeridade, aspereza, tudo isso lhe fora disciplinado, era um dócil. Assim com Rimbaud, amores o crucificaram e colocaram sua dignidade à prova, apostaram sua posse, e ganharam... Fizeram confeites e anedotas, gracejaram e o ludibriaram, a desgraça foi seu deus... Jamais verá o natal sobre a terra, a claridade divina... As dores do estômago tornaram-se mais agudas, era como se uma faca invisível perfurasse sua barriga. A respiração tornou-se mais difícil; teve 21 vontade de gritar, pedir por ajuda, mas suas cordas vocais pareciam ter desaparecido; a dor no joelho tomou proporções intoleráveis; uma perturbação envolveu-o, algo queria sair de seu corpo, algo que lhe causava desprazer e era inevitável impedir a sua saída; seus olhos iam pular para fora; uma enorme massa de vômito foi expelida violentamente de seu estômago, deslizando medonha e repugnante pela face, pelo busto e empestando o chão da cozinha; suas entranhas ardiam, ele se contorcia; queria arrancar seus órgãos fora, seu joelho fraturado e seus olhos; almejava de qualquer maneira sair deste inferno, seu corpo tremia mais e mais; uma massa grande de vomito ficara emperrada na garganta; tentou tossir, vomitar ainda mais, não podia; onde estava o socorro? Pôs as mãos no peito e na garganta; o suplicio de ter de morrer por falta de ar é indescritível; um ruído proveniente do engasgo era mais perceptível agora; imaginou que ratos queriam sair de sua garganta. Esta foi o seu último pensamento, pois não suportara por muito tempo as terríveis dores e finalmente sucumbiu. Durante o desmaio não sonhara, apenas vira uma escuridão indefinível cobri-lhe os olhos... Durante a manhã, sua família descobriu o cadáver estirado ao chão, com o semblante de quem teria sofrido uma profunda angústia. Um corpo retorcido e imundo de vômito; uma cena abominável... VI. Os laudos médicos descobriram que o ilustre jornalista e escritor Victor Martinez falecera em virtude de uma considerável massa de vômito ter obstruído a passagem de ar, fazendo-o afogar-se naquela substância esverdeada, gosmenta e malcheirosa. Nos dias seguintes a noticia de sua morte foi largamente divulgada em cadeia nacional... *** A Mariposa Você fez isso porque a coisa se apodera de você... Inventou razões... E elas sempre parecem boas razões... Mas fez isso principalmente porque já esteve lá em cima... Aquele é o seu lugar, você pertencia a ele... Stephen King; O cemitério. I. Talvez tenha sido a angústia que fizera Inácio Brandão deixar o seu apartamento e dirigir-se ao centro da cidade durante aquela noite de Abril. 22 Ele guiava o seu carro calmamente, como se desejasse demorar o máximo possível no transito. A velocidade não passava dos cinquenta. Era pouco mais de vinte e uma horas. Morava a três minutos do centro comercial de Manaus, naqueles edifícios da Avenida Boulevard. Ligara o rádio, e como a canção que tocava não lhe apetecia os ouvidos, foi mudando de uma emissora para outra — estranhamente, todas elas pareciam tocar a mesma música... Pegou o primeiro CD que encontrou no porta-luvas e encaixou-o meio desajeitado no som; então os acordes de Charlotte the Harlot começaram; muito melhor, uma leve sensação de bem estar o permeou... Era já perto da estação das secas, e a atmosfera, outrora tão úmida e afável para os amazonenses, com aquele sereno pesado, regido pelas rajadas de vento gélido, já tomava, a partir daquela semana, seu tão odiado tom seco, áspero e constante. O tráfego não estava intenso e podia até deixar-se guiar com certa distração, coisa impensável se estivesse ali em horários mais congestionadas de uma cidade que tinha a fama de ter o pior transito do país. Se as ruas são as veias de uma cidade, então Manaus já há muito deveria ter morrido de parada cardíaca — certa vez ele refletiu, puto da vida com a lentidão do trânsito na Djalma Batista... Mas agora não havia engarrafamento e sabia para onde deveria dirigir-se, uma vereda muito escura por detrás do Itamaracá, onde algumas mariposas de pouco mais pouco menos de dezoito anos esperavam — pequenas e frágeis borboletas noturnas que voavam para onde havia luz... Fazia isso antes de casar-se e mantivera o velho hábito depois de consumado o matrimônio. Buscava este expediente quando sentia-se cansado, quando sentia-se triste — quando as velhas intrigas da vida de casado ou as complicações do Fórum já o desesperavam. Inácio bem que tentou parar com aquele vício. Impossível controlar-se. Por mais que tentasse desviar os pensamentos para outras coisas, que procurasse passar bem longe daquele malfazejo lugar, sempre corria para sentir o hálito daquelas mulheres, seu perfume e sua bem ensaiada lamúria de prazer. Talvez fosse a ideia que elas lhe passavam: a possibilidade de quebrar o velho e previsível relógio da vida de bom cidadão, ou seja lá o que mais fosse aceitável para ele. Provavelmente não era um respeitado juiz da vara trabalhista como todos pensavam ser, talvez fosse apenas um típico devasso dos contos de Marquês de Sade. Há duas semanas sua mulher descobrira seu vicio secreto, divorciou-se e levara seu filho de três anos embora para São Paulo, para junto do seu ex-sogro, um empresário do ramo de transportes coletivos. Não seria fácil trazê-la de volta com o pequeno Nelson. Por isso, naquela noite, sozinho no apartamento, vendo aqueles velhos lugares e objetos que lhe faziam relembrar a odiosa, porém desejada, vida de pai de família, a solidão a lhe solapar com os seus açoites em pontas de metal, 23 o bem sucedido magistrado, de pouco mais de trinta anos, resolveu enforcar seu verdugo naquele lugar solitário. II. Conforme se aproximava da rua, via cada vez mais bêbados caídos, fracassados ou vagabundos perambulando como os zumbis de Madrugada dos Mortos... O mercado municipal, parecendo uma ruína grotesca de uma cidade europeia bombardeada durante a segunda guerra mundial; a praça da igreja, gradeada como uma prisão; as estações de ônibus, agora quase ermas, com aquelas carroças de metal indo e vindo. Vez por outra surgia uma mariposa a beira da estrada com suas roupas decotadas... Nesse momento Inácio procurava diminuir a marcha, seu coração era tomado de um leve aperto de entusiasmo. Examinava atentamente a peça que se oferecia, não só para pesar a qualidade da carne, como para prevenir-se de cair na mesma confusão em que se metera aquele jogador de futebol gorducho... Entrou na área mais escura por detrás do velho mercado. O ambiente pareceu ficar ainda mais escuro, as construções ainda mais arruinadas, as veredas muito mais fedorentas e os zumbis alcoólicos bem mais ameaçadores regurgitados de botecos fedorentos. Inácio Brandão entrou por uma pequena ruela, estreita e sem iluminação. Desta vez dirigia mais devagar, ia mais atento, olhando para as mariposas na sarjeta, devolvendo os olhares que o bom magistrado lhes dirigia. Uma mulher chamou sua atenção, parou bem diante dela. “Oi... tudo bem?” Abordou-a, de forma amigável. “Oi, meu amor...” Era uma mulher alta para os padrões regionais; magra, rosto bem fino, traços discretos; boca de lábios corados e estreitos; as sobrancelhas cuidadosamente cultivadas; nariz adunco; estranhamente ela usava óculos escuros de lentes arredondadas; cabelo liso e comprido; o busto bem modelado, usava um vestido tubinho negro; as ancas eram arrebitadas; segurava uma pequena bolsa escura. “Porque você está usando óculos escuros em plena noite, meu amor...” Disse ele esboçando um sorriso no rosto. “É o meu estilo, meu bem...” “Que tal nós darmos uma volta para conversar?” “Depende para onde você quer me levar...” 24 “Vamos conversar num lugar mais reservado, perto daqui...” A mulher deu dois passos em direção ao carro, abriu a porta e entrou no automóvel. Inácio percebeu mais precisamente a beleza da mulher, o que aumentou sua sensação de desejo. Excitou-se. Estranho ele nunca ter notado uma mariposa como aquela por aqueles sítios... Indagou se começara a trabalhar ali recentemente. “Não... É porque eu costumo fazer meu programa em outros lugares também...” “Então eu tive sorte de te ver aqui esta noite... Hein... Minha linda...” Pontuou a frase passando a mão pela coxa da quenga, o qual devolveu com um sorriso. Inácio percebera que era bastante lisa, tremendamente suculenta... “Porque não tira os óculos, deixa eu admirar melhor a sua beleza...” “Meu amor... Vou tirar os óculos na hora certa...” Passou a mão entre as pernas do juiz. “Há quanto tempo você faz programa?” “Há uns dois anos...” “Essa mulher linda tem nome?” “Fernanda...” III. Os dois foram subindo pela Eduardo Ribeiro, dobrando naquela rua que desemboca frontalmente no colégio militar. Estacionou o carro defronte de uma das mais conhecidas pousadas de Manaus. Ficava discretamente escondida por um oiti já velho e retorcido, com as ramagens de um verde cinzento de poeira. Luzes de néon verde brilhavam formando o nome Makuxi. No balcão havia um homem magro e alto, provavelmente tinha cinquenta anos e uns quebrados; tinha os braços grandes, finos e os gestos meio desengonçados; trajava uma camisa branca de manga curta com um colete cinza, uma calça azul de educação física, óculos redondos e bigode protuberante. No momento em que os dois chegaram, estava sentado contando um bolo de dinheiro em notas de vinte. Quando vira Inácio Brandão, deu um pulo de alerta. “Boa noite, doutor...” Disse, cheio de cerimônia, fazendo uma submissa reverência. 25 “Boa noite... Tem quarto livre?” Os dois ficaram parados bem diante do homem. “Tem sim, doutor... Exatamente onde o senhor gosta... Com sofá... No terceiro andar... Número 55... Pode ir lá... Doutor...” Os dois subiram pela escada. No terceiro andar, foram caminhando calmamente, quando passavam por uma suíte ocupada, ouviam um suspiro, um gemido ou palmadas estridentes. Inácio olhava com atenção os números dos quartos, 46, 49, 50... A outra apenas o acompanhava, impassível. O cinquenta e cinco estava aberto, sinalizando estar disponível para o primeiro casal que surgisse... IV. Era uma suíte típica de motel, uma cama de casal, um banheiro, televisão, um frigobar, três espelhos redondos do teto e um sofá erótico... Quando entraram Inácio trancou a fechadura, tirou do bolso um pequeno envelope e cheirou o pó que nele estava guardado. Fernanda deixou a bolsa sobre a cama e sentou-se. Passava as mãos pelo cabelo. Inácio ligou o ar condicionado e desabotoou a camisa. “Quer tomar um banho antes?” Perguntou o juiz. “Não...” Inácio aproximou-se e tomou-a; ela envolveu os braços pelos ombros dele, enquanto o juiz apertava com mais força as mãos os quadris da mariposa. As línguas um do outro estavam num gládio incessante tentando subjugar uma à outra. “Tira o óculos, meu amor...” Ele fez menção de tirar as lentes do rosto de Fernanda. “Não, meu gostosinho, só no momento certo...” Ela segurou-lhe os braços, impedindo que ele efetua-se a expropriação. “Você é do Pará?” Dissera ele, com as palavras sendo acentuadas por suspiros e beijos, quando notou o sotaque da morena. 26 “Eu sou de Santarém... Mas eu posso ser de onde você quiser...” Finalizou a frase com um sorriso faceiro, colocando uma das mãos debaixo da cueca do juiz. Inácio passou as mãos pelas coxas de Fernanda, deslizando por debaixo do vestido, que ele tinha acabado de levantar, e começou a apalpar as ancas e a vagina dela. A pele da moça tinha um odor nunca sentido por ele até agora, delirava de tamanho desejo. Ele queria penetrá-la, queria ir até o limite para sentir o máximo de êxtase que esta mulher poderia proporcionar-lhe. Ela não parava de fazer aqueles prazerosos movimentos com a mão debaixo da sua cueca, passava a língua nos seus ouvidos. Brandão tinha a boca quase sufocada pelos grandes cabelos de Fernanda, mas ele não se importava, que morresse sufocado, pois agora ele chupava, com a maior força e tesão que conseguisse aquele pescoço tão adoravelmente cheiroso, macio e liso... Carregou até a cama, ficou sobre ela passando a língua pelo pescoço e pelos seios, enquanto que as suas mãos iam retirando pouco a pouco o vestido; logo ele a visualizaria e desfrutaria dela por inteiro. Fernanda, já quase totalmente nua, tirou a mão do pênis e mudou de posição, ficando por cima do juiz; este, por sua vez, tão embriagado estava de prazer, deixou-se estar, submisso. Ela esticou os braços dele, segurou suas mãos nas dele e continuou a beijar-lhe freneticamente... “Tira logo estes óculos... Fernanda... Deixa eu ver os teus olhos...” “Você quer mesmo ver os meus olhos?” “Porque não? Eu já estou te vendo toda nua, caralho...” Ela largou uma das mãos e tirou as lentes escuras, jogando-as para o lado... Inácio Brandão, respeitado magistrado da cidade, foi tomado pelo mais extremo terror que jamais sentira em toda a sua vida, pois onde deveriam existir dois glóbulos oculares, havia apenas dois orifícios negros e vazios... Um grito terrível e desesperado ecoou hediondo por todo o hotel... V. Não é possível descrever o efeito que este pranto insano causou em todo o estabelecimento. Os funcionários estavam acostumados a ouvir todo tipo de ruídos estranhos, coisas que as pessoas inventam para sentir mais prazer no sexo; contudo, aquele não parecia ser mais um grito de um pervertido sexual praticando uma de suas bizarrices com uma prostituta qualquer... Uma auxiliar de serviços gerais que passava logo ali com um carrinho de limpeza voltou cambaleando pelas escadas até o 27 primeiro andar; ela era morena, mas agora estava pálida... Muitos colaboradores ficaram vagando de um lado para outro, atordoados, interrogando de si para si e para os colegas o que era tudo aquilo e recebendo como resposta apenas a ignorância coletiva. Alguns clientes saíram de seus quartos, curiosos, de toalhas cobrindo-lhes a nudez; outros mais medrosos, imaginando uma briga violenta ou um assalto ao motel, se enterraram nas camas e efetuavam dezenas de ligações para a recepção perguntando o que ocorrera... O velho desengonçado do balcão foi correndo para o andar de cima. “Mas que droga...” Disse o senhor proprietário, muito pálido, tremia; liderava a comitiva de cinco ajudantes para averiguar a situação. A voz denunciava um misto de preocupação, temor e raiva, ao saber que era o importante juiz Inácio Brandão quem estava em dificuldades — que sempre o protegera das fiscalizações do poder público em troca de acobertar suas escapadas com prostitutas. O velho bateu na porta, chamou por Inácio. Houve apenas silêncio... Outros fizeram o mesmo, chamaram pelo juiz, bateram outra vez, gritaram pelo nome de Brandão. Nenhuma resposta... Um rebuliço entre funcionários e hospedes foi ganhando força. Teria sofrido um acidente? Teria sido assassinado? Quem estava com ele? Apenas uma mulher... Então ela agrediu o pobre juiz! Tinha como fugir? Impossível! Os quartos tinham apenas uma pequenina janela... “Vamos ficar quietos, porra!” Disse o velho, impaciente. Mesmo que já tivessem chamado a policia, os funcionários homens, incluindo o dono, mais alguns frequentadores que resolveram dar a sua contribuição naquele espinhoso caso, decidiram arrombar a porta. Afinal, era apenas uma mulher, ainda por cima uma mariposa, e já haviam gritado para ela que a policia já estava a caminho — portanto, estava cercada... Com um pé de cabra forçaram a entrada no apartamento cinquenta e cinco. Quando a porta cedeu às investidas, os olhos míopes do velho magricela captaram algo que o fez recuar; a faxineira de serviços gerais desmaiou; uma mulher que saíra de um dos quartos e estava logo atrás do grupo soltara um grito horrífico e caiu em prantos acocorada num canto do corredor com as mãos no rosto; um outro sujeito começou a vomitar; e um ajudante de manutenção saíra dali correndo como um demente. Não se sabe como, mas Fernanda não estava mais lá. Nem seus sapatos, nem seu vestido, nem seu óculos e nem sua bolsa. Ali estava algo absolutamente detestável; uma carcaça do que fora um homem, sobre a cama, com o tronco aberto e os órgãos puídos, com se tivessem 28 sido mastigados, transformando o colchão numa esponja que gotejava sangue... *** Memórias de um Bêbado Solitário I. Finalmente tinha chegado em minha casa. Estava bêbado como nunca estivera antes. Quantos problemas eu tive de enfrentar naquele estado em que me encontrava, caminhando com extrema dificuldade! As ruas, as casas, as árvores, tudo parecia embaçado; aqueles rostos de pessoas olhando-me assustadas e com desprezo; os carros e tudo o mais que passei para alcançar meus aposentos moviam-se de uma maneira fora do comum. Tinha total consciência da causa do meu desvario... Cada aspecto distorcido de tudo capitado pelas minhas perturbadas pupilas criara em mim um rebuliço de impressões cinzentas e delirantes. Sentia remorso, dor e solidão. Nem mesmo entre aqueles boêmios com quem compartilhei a orgia consegui sentir-me bem... O meu grande desejo era alcançar minha morada e render-me aos desejos do corpo, dormir profundamente por horas intermináveis ou quem sabe imigrar para aquele undescovered country de onde nenhum viajante jamais voltou... Empurrei de forma negligente o portão escuro que bateu com um estrondo enorme e exasperado. Me arrastei pelos azulejos azuis da varanda até alcançar a porta; feito um cego procurava nos meus bolsos das minhas calças as pequenas mais tão valiosas chaves. Procurei na algibeira esquerda, na direita. Nada encontrava. Comecei a me desesperar. Como poderia ter perdido o maldito molho de chaves? Logo senti objetos duros no fundo de um dos bolsos. Tirei o espólio com um alivio indescritível. Depois que abri a porta, fui diretamente até meu quarto — ia lento como uma tartaruga e exausto como um escravo no final da jornada da vida. Os objetos da minha morada, todos tão sombrios, tétricos, sujos e abandonados pela minha tão extrema incapacidade de cuidar de um lugar tão simples como este. Tantos anos eu vivia em Manaus e nenhum amigo, parentes, mulheres, nada! Os objetos, acredito, tomaram tonalidades bem singulares, estavam mais coloridos e pareciam incorporar movimentos estranhos. Como eu era estúpido quando bebia! Logo comecei a rir de mim mesmo. Dei uma gargalhada tão alta que talvez eu tivesse acordado algum vizinho: “Tá louco, filho da puta?!” Talvez tivesse ouvido. “Sem duvida”. Imaginei. “Preciso dormir...” A cama permanecia ali, emaranhada e fétida, o pano branco de sua cobertura tendia para o marrom; já fazia alguns dias que não trocava sua roupa. Observei-a rapidamente, possuía aquele ar estranho dos 29 outros móveis, dançava diante de mim, colorida e alegre. Isso me deixou mais disposto a apoderar-me dela. II. Talvez tivessem transcorrido alguns poucos segundos, ou minutos. Quem sabe? Não me lembro bem quando adormeci. Em meu devaneio havia um enorme campo coberto de lírios verdes balançando de lá para cá ao sabor do vento; uma ou outra árvore crescia aqui e ali. O vale era repleto de subidas e descidas; o céu não possuía uma única nuvem e o sol estava a pino. Caminhei um pouco e avistei um homem sentado sob a sombra de uma árvore; conforme me aproximava percebi que estava fumando um cachimbo soltando baforadas de fumaça verde; moreno, cabelos longos e negros, acomodado com as pernas cruzadas. “Que lugar é este?” Perguntei. Ele nada disse. Pitava seu cachimbo. Tentei inquiri-lo novamente quando ele apontou para o céu e disse “Veja, a divindade branca surgiu...” Olhei, para cima, nada vi. Mas de repente consegui divisar um estranho corpo vindo em nossa direção, um hipopótamo branco dando cambalhotas no ar e gritando algo que parecia ser: “Sou o rei, sim, sou o rei das avestruzes!” Não me contive e comecei a gargalhar com tão ridícula visão. Enfurecido com minha suposta “falta de reverência”, sacou uma adaga de um dos bolsos e penetrou-a violentamente em meu ventre. O homem olhava nos meus olhos, pressionando mais a faca contra mim dizendo impiedoso: “Morre herege, morre!” Tentei fazer algo. Mas só consegui apertar-lhe o ombro e, tentando gritar de dor, fechei os olhos achando que logo morreria.... Por um momento tive a impressão de ter parado de existir. As dores da lamina no meu ventre sumiram; sequer sentia meu corpo. Tive medo. Onde estaria? Poderia abrir os olhos? Poderia contemplar o negror indescritível da morte? Poderia conformar-me com a sensação deste eterno sonho sem sonhos? Decidi reunir coragem. Uma rajada de vento quente tocou-me os ombros. O que era? Deveria observar a coisa que estava às minhas costas? Em um súbito de coragem olhei para trás e não poderei descrever a surpresa que se apoderou de meu espírito naquele momento. Tive vontade de gritar, não sei de espanto ou de hesitação. Estava agora em meio a uma enorme boate, repleta de padres, pastores, monges, demônios, anjos, mulheres e toda sorte de criaturas das mais variadas formas. A rajada de vento que sentira anteriormente provinha de um grande Gárgula às minhas costas que 30 fumava um enorme baseado de maconha. Ele olhava-me meio intrigado, perguntou: “Meu filho, vai ficar ai parado atrapalhando o trânsito ou vai me dar licença para passar?... Valeu, franzino..” O monstro foi andando em frente e sentou-se numa mesa onde estavam outros quatro de seus companheiros. Percebi que eu estava numa grande boate fervilhando de movimento. Tinha anjos que fumavam charutos e jogavam cartas, uma cena muito familiar para mim; quando perdiam uma partida soltavam as mais horripilantes blasfêmias; ali no fundo vários homens de terno e bíblias deliciavam-se com várias mulheres. Havia uma mesa em que padres, e outras figuras que não posso descrever disputavam no jogo do bicho para ver quem poderia possuir uma bela ninfeta de pele morena e traços orientais. No centro do recinto tinha um palco com uma banda que executava uma canção bastante familiar, falando sobre o dia em que a civilização seria destruída por uma guerra nuclear, não lembro muito bem, talvez algo relacionado com um funeral elétrico... III. Os convivas desta verdadeira orgia infernal nem sequer importavam-me comigo. Abruptamente a banda parou de tocar e após vários aplausos o vocalista, cabeludo e de óculos redondos e escuros disse: “Agora, depois de tanta música e tanto divertimento, daremos a palavra para o vosso anfitrião...” Recomeçaram os aplausos e assovios. Subiu uma figura morena, cabelos negros, olhos escuros, traços finos e uma expressão serena no rosto. Com os braços estendidos e as mãos abertas ordenava silêncio: “Senhores, todos aqui sabem porque estamos reunidos... Por muito tempo... Nós, os verdadeiros amigos do conhecimento e do homem, fomos tratados como escória, como subversivos, como criminosos... Em fim, como seres ameaçadores contra a humanidade e contra o equilíbrio do universo... Lançaram mão de um livro maldito para sua propaganda ideológica; manipularam as opiniões dos homens, criaram falso testemunho contra nós, falsificaram toda a história humana e do universo para nos destruir; perseguiram os que, como nós, posicionaram-se a favor do livre pensamento... Eles eram poderosos, é verdade... Tinham muito mais meios para vencerem, éramos uma simples milícia rebelde contra o totalitarismo de uma divindade louca... Covardes, enviaram um impostor para a terra se passar pelo filho do sanguinário imperador para morrer como um cão e destruir uma das mais belas civilizações que o planeta nunca teve, destruíram a vontade de poder e o novo mundo... “Nós resistimos... Mas, não era o bastante para eles... Mandaram seus carrascos em caravelas para matar as pobres tribos de morenos na 31 terra que eles tiveram a petulância de chamá-la de “Novo Mundo”. Como isso foi um ultraje para nós e para nossos amigos... “Pobre do bicho homem ao se submeter ao Criador Louco e totalitário... Não os culpo, pois foram simplesmente marionetes nas mãos sujas de um caudilho... Mas a sandice daquele sanguinário logo perturbaria os seus próprios seguidores... Muitos começaram a questionar os métodos insanos do criador e logo foram expulsos ou mortos, os que sobreviveram vieram a nós, e os recebemos de braços abertos... As pobres almas que alcançavam a utopia do paraíso e lá descobriam que seriam nada menos que escravos sem liberdade de pensar agir ou falar... Se juntaram a nós... Nossa milícia cresce! Nossas posições avançam... Ganhamos mais batalhas e mais adeptos a nossa causa, pois ter liberdade nunca será uma utopia! Não tínhamos meios, mas tínhamos paixão em vencer!” “Como vês, estamos num estágio avançado da guerra... E mais crítico também... Nunca pensamos que todos vocês estariam aqui... Exatamente aqui... Se confraternizando nos prazeres da carne numa mesma festa! Um sinal de que o ano da libertação esta próximo e de que eu, por tanto tempo fui chamado de vil, sórdido e imundo tentador, conhecia realmente os homens! Eu sabia dos seus desejos... Dos seus medos... O mundo é nosso, meus senhores, os fortes! E o paraíso que fique com os tolos!” “Exultai e comei em meu festim! Dançai, bebei este vinho doce! A estação negra está próxima e o combate final acontecerá, quando nossas hostes avançarão como uma praga fulminante contra os castelos de nossos opressores... Mas sedes sábios amigos... Sede astutos como uma serpente, devemos esperar o dia da vitória de forma tranqüila e atenta... Esmagaremos nosso inimigo... Sujaremos nossas espadas com seu sangue podre e exibiremos sua cabeça horrível como um troféu de nossa vitória! Após tal discurso, o líder foi aplaudido durante vários minutos. Fazendo sinal de silencio, disse: “Senhores, sei de vossa alegria, e é muita, não ignoro isso... Sejamos fortes, O Inferno, A Liberdade e A Sabedoria vencerão! É impossível relatar como a turba de libertinos reagiu ao final do discurso; urravam, gritavam, assobiavam, davam piruetas, aplaudiam, o louvavam e outras coisas mais. A música recomeçou e os convidados daquele festim infernal voltaram a beber, darem baforadas de maconha, e cachimbos e a servir-se das belas ninfas demoníacas que por ali passavam. IV. 32 O turbilhão de pessoas, as milhares de vozes, os vapores estranhos subindo pela atmosfera tétrica, as fragrâncias do fumo, da cerveja e de outras substancias alucinógenas começaram a me despertar um sentimento de desespero. Talvez a única coisa que pode ser comparada com minha atual disposição que toma conta de mim é aquele sentimento experimentado por doentes aprisionados pelos grilhões de demência... Comecei a correr de olhos fechados, feito louco; esbarrava nos libertinos, nas prostitutas, derrubava cadeiras, mesas e ouvia uma coleção de impropérios. Mas não me importava. Só desejava que a angustia passasse. Entrementes, tudo parou num estante. Não mais havia milhares de vozes nem os vapores venenosos. O silêncio e a escuridão tomaram conta de tudo... V. O que havia acontecido? Abri meus olhos e de modo gradual a visão tomou uma forma nítida: a parede imunda, repleta de teias de aranha. Alguns raios de sol invadiam, ainda fracos e tímidos, o infeccionado aposento pela janela. Minha cabeça doía, todos os meus órgãos internos gemiam numa aflição incessante, e a fadiga dos meus músculos só poderia ser de alguém que tivesse sido obrigado a cumprir uma longa noite de trabalhos forçados. Em volta havia o mesmo quarto velho, emporcalhado; roupas sujas jogadas por todos os lados, cadernos e papeis rasgados e já apresentando traços de decomposição — torpes tentativas de um aspirante a escritor fracassadas acumulavam-se em um canto escuro onde eu julgara a pouco ter visto um rato... O mesmo sentimento de solidão e tristeza dominava meu semblante — a diferença era que agora parecia estar potencializado com o desespero da lucidez. Tudo em volta era silencio, cinzas e fedor — uma poça meio seca de vômito agora jazia na parte direita da cama... Este era meu desastre pessoal: uma bebedeira para dissipar uma doença de espírito seguida de um sonho horrível e ao despertar uma sensação abismal de um ímpeto de suicídio... Só havia uma coisa capaz de aniquilar minha vontade ignóbil de morte e dar-me mais um pouco de fôlego; algo capaz de subjugar o contorcer das minhas entranhas, domar o descontrole do meu espírito, diminuir minha falência moral: o álcool, meu amigo, destruidor e consolador, o vírus exterminador do raciocínio humano, o algoz da razão, um dos mais eficazes libertadores das paixões dos fracassados e covardes. Sobre a escrivaninha deteriorada pego, rude, um maço de notas bastante amassadas e vou direto ao bar, com os olhos remelentos, a roupa imunda, o hálito que mais lembrava enxofre; a mente, o corpo e o 33 espírito tomados pela maldição de um circulo vicioso que só acabaria com o fim da minha existência... *** Um Cidadão Todo homem descente de nossa época é e deve ser um escravo. F. Dostoiévski I. Domingo abafado e quente; daqueles dias em que a temperatura torna mais interessante entregar-se ao enlevo de leitura calma e monótona ou a uma preguiçosa cesta. Certamente era o que quase todos os moradores daquele bairro de classe média decadente estavam fazendo — um conjunto de apartamentos tão medíocre que nem merece ter o nome mencionado na historia. Por todo o sitio reinava um silêncio quase imperioso, somente cortado por alguns risos de criança ou cantos de um ou outro pássaro. Digo quase imperioso, pois era possível, durante intervalos mais ou menos regulares, ouvir gritos bizarros, desses que misturam um tom infantil com o êxtase irracional e fanático dos Pentecostes acompanhado de uma narração de futebol. Ao passante que tivesse o desprazer de transitar por aqueles territórios durante àquelas horas presenciaria uma cena por demais pitoresca. Um homem, com cerca de quarenta anos, sentado numa cadeira e gritando numa entonação de voz que lembravam muito o famoso personagem de Matt Greoning. Tinha uma estrutura fisiológica fartamente nutrida de tecido adiposo, acumulado graças aos longos anos de inapetência tanto mental quanto corporal. A concentração gordurosa era tamanha que era impossível para o nosso personagem enxergar o minguado pênis durante uma relação sexual ou durante o ato de urinar. Segurando numa das mãos uma latinha de cerveja, acompanhava totalmente compenetrado o jogo de futebol. Seus movimentos, suas falas, seus gritos e suas reações psicológicas eram respostas instantâneas e automáticas ao teatro televisivo, um exemplo clarividente de behaviorismo. II. Além de fanático pelo esporte de Charles Miller, era espectador assíduo dos jornais noturnos; devia a ela toda a sua cosmovisão. Para ele o suprassumo da realidade. No dia seguinte repassava os fatos a conhecidos expondo as opiniões do jornal como se fossem suas, e com 34 isso se pretendia culto, embora plagiasse descaradamente as análises conjunturais dos comentaristas, que no fundo eram tão eruditos quanto ele — assim não fazia mais que aconchegar a própria opinião á media da canalha. Quando via na televisão as invasões da policia nas favelas, os corpos de vários supostos traficantes sendo transportados, como carne para alimentar o apetite voraz da imprensa, satisfazia-se: “Isso aí, tem que pegar esses vagabundos filhos da puta mesmo...” Mobilizações em prol dos direitos humanos o exasperavam, dizia que isso era “pura frescura”. Se fosse inquirido sobre a solução para a questão das favelas, diria categoricamente: “O negocio é jogar uma bomba lá que matasse todo mundo, resolvia o problema...” Não se sabe o que acarretou tamanha atrofia da inteligência, se foi a falta de leitura, o adestramento do cérebro ao futebol ou as mensagens transpassadas pelo arco íris de interesses secretos do telejornal... III. Tinha dois filhos, ambos com a personalidade distorcida por toda sorte de cuidados. Batiam na empregada, chamavam-na de puta, galinha, pretinha suja e outras carinhosas denominações. Também davam-na toda sorte de piparotes. O cidadão não se manifestava, só dizia: “Esses meninos são assim mesmo... Puxaram o pai...” Mas e a sua esposa? A relação conjugal pode ser exposta a partir de um fato ocorrido numa manhã de sábado, quando o abastecimento de água foi cortado no conjunto. Os moradores, incluindo o nosso bom homem e acompanhado de sua honesta mulher, se dirigiram para uma casa nas proximidades que tinha poço artesiano. Tudo aconteceu muito rápido — as testemunhas disseram que uma mera repreensão da bem aventurada esposa pelo uso de diminuto balde para apanhar água foi o suficiente para ela levar poderosas bordoadas... IV. Homem de poucas posses, gabava-se do mediano patrimônio que acumulara como micro empresário. Tinha como amizades milhares de parasitas ociosos, que aprovavam todas as suas extravagâncias em troca da pueril mordomia dos sábados e domingos. Sempre que seu time ganhava, passava toda a tarde gritando impropérios para os quatro ventos até que as cordas vocais se exaurissem. Ligava o som do carro no mais alto volume, punha a porta 35 mala aberto com sua caixa de som direcionada para a vizinhança. Assim ficava por várias horas, como se quisesse mostrar a todos o seu estado de humor. Não importava se houvesse alguém doente por perto, crianças pequenas querendo dormir, idosos ansiando por sossego, estudantes se preparando para o vestibular ou outra coisa parecida. Nas poucas vezes em que fora indagado sobre isso replicava tacitamente: “Eu pago imposto, então tenho direito a tudo...” “Tá certo fulano, tá certo.” Seus amigos concordavam sem hesitar. V. Todavia, naquela tarde de domingo ele estava muito mais descontrolado que o costume. Era final de campeonato. Gritava como um insano ao menor erro de um dos jogadores do seu time e angustiava-se, como se estivesse sendo submetido á tortura, quando o time adversário simplesmente recuperava a posse de bola. Embora os seus amigos se mostrassem um pouco incomodados com as atitudes tietes do colega, que atrapalhavam muitas vezes a atenção no jogo, não ousaram reclamar. Perder as mordomias de finais de semana? Impossível! “Pega essa bola filho da puta... Chuta seu preto safado... Porra caralho joga direito... Pega porra! Pega caralho! É campeão seu vagabundo! È campeão...” O jogo finalmente terminara, correu por toda a área de recreação gritando como um esquizofrênico, a extravasar sua raiva contra o time adversário ou contra qualquer outra coisa que na sua cabeça estivesse ligada ao adversário. “É campeão seu vagabundo! É campeão!...” Ainda não satisfeito, pegou a bandeira de seu time e começou a correr pelas ruas, esbravejando a sua satisfação. Apesar do olhar de ridículo que os moradores lhe dirigiram, não parecia se importar, corria, gritava, balançava a bandeira, imerso na solitária e incomum festividade. “É campeão seu vagabundo! É campeão seu filho da puta!” Após apenas três minutos da bizarra maratona da vitória, as banhas cobraram seu preço e a fadiga lhe dominou. Voltou para casa, ainda dando o brado da vitória, onde seus amigos esperavam. Embora não torcessem pelo mesmo clube, elogiavam a performance do time, dos jogadores, dos anunciantes, do juiz, da grama, da trave... Como de hábito, ligou o volume do aparelho de som ao máximo, posicionou a caixa para a vizinhança e pôs-se a beber. O isopor ainda 36 tinha muita cerveja, daria para o minguado resto da tarde e para boa parte da noite. Ao longe ouviu o barulho de fogos e, como se tentasse comunicar-se com estes longínquos torcedores, voltou a gritar: “É campeão seu vagabundo!...” Horas passaram, os companheiros foram embora e a noite por fim entrou por completo. O cidadão ficou bebendo sozinho na sua casa apenas na companhia do som estridente do seu automóvel. A esposa tinha viajado com os filhos três dias antes. As latinhas de cerveja, secas e amassadas, amontoava-se pelo chão, um purulento ar de bebida quente espalhava-se pela varanda. Seu entusiasmo não diminuía, quando o êxtase da vitória principiava por minguar, imaginava outra vez as cenas transmitidas pela TV e de novo retornava ao transe futebolístico. VI. Quando o relógio já alcança a meia noite de domingo para segunda, viuse refletidas nas paredes e nos muros das casas umas luzes vermelhas e azuis que se aproximavam. Era uma viatura da policia. Os policias revistaram a casa, mas não achando nada de problemático a não ser a poluição sonora. Aplicaram-lhe uma notificação e foram-se. Os modos do cidadão para com os homens da lei foram dos melhores, muito submisso e respeitoso, não fez uma única objeção. Contudo, assim que as luzes da viatura sumiram na esquina da alameda, pôs para fora toda a sua revolta reprimida. Imaginou que fora brutalmente desrespeitado em seus direitos de homem honesto. Policia não era para ele, um cidadão de bem que pagava impostos, era para dar porrada naqueles favelados que atrapalham os que fazem este país funcionar. Como criança que tem o seu brinquedo novo quebrado ou quando os pais lhe negam a chance de ir ao parquinho, gritou aos quatro cantos: “Seu filho da puta! Safado! Vagabundo! Vai te Fuder! Quem foi esse filho da puta? Quem foi? Quem foi que chamou a policia?” O nervosismo dele alcançava os patamares da pura irracionalidade. Queria momento agredir até perder as forças aquele que transgredira o seu direito de se divertir. “Eu pago imposto então eu tenho direito a tudo!” Repetiu novamente o seu velho bordão. Andava de um lugar para o outro, batendo com as mãos nas grades. Apesar das atitudes desbaratadas do cidadão perturbarem todos os comunitários, ninguém se pronunciou ou tentou acalmar o homem de sua ira, parecia que o mundo externo esforçava-se por ignorá-lo — não se sabe o porquê deste estranho fenômeno para um lugar onde a vida 37 privada sempre era motivo para interesse alheio, mas isso não conta na história... “Eu pago imposto... Então eu tenho direito a tudo!” Não parava de repetir a sentença, tentando atingir o vizinho que chamara as autoridades. Gritou mais alto, perdia a voz, chorava, era uma raiva embaralhada com a embriagues. “Vem aqui filho da puta! Vem pra porrada! Te prepara que meu advogado tá vindo aí!” Mas o grito se misturava com as tremuras do choro e da exaustão, estava há horas nesta vigília, já muito cansado de tanto gritar durante tanto tempo, começava a ficar rouco, a voz falhava. Batia com mais força na grade da casa, fazendo escoriações nas mãos gordas e pálidas. Dava chutes nas latinhas de cerveja jogadas pelo chão da varanda. Suado, transpirando muito, esbravejava ao máximo, sem se importar com a fadiga dos músculos, as dores da garganta e no pulmão, urgentes reclamações do corpo adiposo para o descanso. “Vem aqui filho da puta! Vem pra porr...” Mas não pode completar a tão repetida frase. Uma dor aguda no peito paralisou seu corpo e sua fala. Teve apenas um ou dois segundos de sofrimento, pois tombara no chão fulminado por um colapso cardíaco... *** A Carta I. Mariana Duarte fez um grande esforço para terminar de ler a missiva que tinha em mãos; hesitou por vários momentos em continuar sua leitura e não foram raras as vezes em que chegou a desobrigar-se de ir ao seu termo. Mas a curiosidade impeliu-a a continuar deslizando os olhos por sobre aquelas fatídicas linhas. Quando finalmente atingiu o ponto final da correspondência, o semblante contraiu-se e as pupilas se umedeceram. Sentou-se bruscamente sobre o canapé do escritório, amassou a carta e, lentamente, com as mãos pálidas e trêmulas, jogouo no pequeno cesto. “A senhora quer que eu traga uma xícara de chá?” Perguntou-lhe Joselina, que durante todo aquele silencioso suplicio permanecia parada diante da patroa; a criada era uma típica taquia num vestido ordinário que cobria-lhe os ombros e chegava até os calcanhares. “Não, pode ir...” 38 Era verdade, o marido tinha uma amante. Embora tenha ouvido de amigas e de outras pessoas próximas que havia uma outra, tomava tais notificações como fruto da inveja de personalidades mesquinhas que sonhavam em ver um casamento feliz que já furava quase dez anos sucumbir. Agora tinha a malfazeja prova do crime, a correspondência enviada da concubina para seu marido, o comendador Teobaldo Fonseca, e interceptada por uma criada, onde estavam escritas todas as declarações de amor, subserviência e total lealdade. Uma miscelânea de sentimentos apertava-lhe o coração, comprimia as entranhas e arrepiava a raiz dos cabelos. Queria assassinar Fonseca e esfaquear a amante para ter da vendeta do orgulho ferido. Paradoxalmente, também sentia um ímpeto de cair aos pés do homem e, em prantos, implorar para saber o que aconteceu. Era algum problema nela? Não estava sendo carinhosa suficiente? Era porque não podia ter filhos? Aquilo era consequência do arroubo de ciúmes pelo fato de o esposo ficar tanto tempo fora, ocupado com suas obrigações de político e seringalista? Ela se cuidaria. Seria mais vaidosa, atenciosa, entenderia as viagens, as ausências, as longas semanas passadas no Rio de Janeiro... II. O sol daquela tarde de 1923 entrava pelo escritório peneirado pelas ramagens de uma castanheira e derramava pelo aposento uma luz embaciada. Vinham da Rua Joaquim Nabuco passos ritmados dos cavalos puxando tilburis, murmúrios de vendedores de bugigangas, o bondinho ao longe sobre trilhos e o barulho da água caindo sobre os paralelepípedos do caminhão lavador. Era filha do Marechal Duarte, deputado outrora aliado de Eduardo Ribeiro nos anos agonizantes do império. Morena, semblante aprazível ao olhar; cabelos negros que usava sempre presos por um bastonete folhado a prata; o corpo tinha aquelas raras conformações que dispensavam o espartilho. Foi educada no colégio de freiras das Irmãs da Ordem da Santa Mônica. Quando completou os estudos que as mulheres de escol da província tinham acesso, seu pai custeou tutores para lhe ensinarem piano, francês e as habilidades da costura. Como crescera lendo folhetins e outros dramalhões baratos, por isso julgavase a mais pudica e letrada das mulheres de Manaós, contudo, se estivesse em São Paulo ou no Rio de Janeiro seria apenas mais uma entre milhares de jovens casadas que, após ter lido meia dezena de livros fáceis, julgam-se donas de uma grande erudição. Deleitavam-se com os espetáculos que proviam da França e de outros lugares da Europa, achando que aquilo era o que havia de mais avançado em cultura, embora não passassem de peças de terceira categoria no velho mundo. Tinha o comportamento afetado, as maneira pareciam forçar uma delicadeza supérflua, a entonação de voz tinha uma presunção como havia em poucas damas da elite manauara e, apesar de seus olhos serem grandes e escuros, de uma beleza decididamente setentrional, reduzia-se drasticamente seus belos efeitos ao teimar em 39 manter o semblante ligeiramente cerrado, dando a entender que esta mulher estivesse sofrendo vinte e quatro horas por dia de um tédio mortal. Naquele dia, porém, ela esquecera toda sorte de simulações que estas mulheres fazem para sentirem notadas e importantes. Retirou a carta do cesto e pôs-se a relê-la, como se tivesse a esperança de que tivesse lido apenas ilusões. Quando finalizou a leitura lá pela quarta ou quinta vez, ficou a observar sua aliança de brilhantes. Lembrou do dia em que conheceu Teobaldo numa visita deste a sua residência. Na época sentira uma verdadeira fascinação por aquele homem maduro, que apesar dos já visíveis cabelos grisalhos, exalava uma virilidade e energia típica dos homens de vinte anos; de porte altivo, maneiras incisivas, fala potente, olhar penetrante. Pode-se dizer que as investidas do velho leão seringalista foi incentivada pelo pai de Marina, que estava muitíssimo interessado em alargar suas alianças comerciais. No fim de três meses selavam matrimônio. III. Depois de ter examinado por alguns momentos aquele pequeno anel, tirou-o do dedo e ficou passando-o por entre os dedos finos. Pensou em como deveria reagir quando o marido chegasse. Imaginava jogar a carta na cara dele e expressar todo o ódio e a sensação de violação que sentia, mas essa disposição guerreira era logo sedada por aquele acondicionamento no qual as mulheres são majoritariamente treinadas a fazer — aceitar resignada os fatos. Lembrou da amiga, Honorina Amélia, ao descobrir que o marido cultivava uma amante, muito padeceu no inicio. Contudo, imaginando a repercussão que um desquite faria na alta sociedade, criando inclusive uma grande chance de atrapalhar seus estudos na faculdade de odontologia, conformou-se. Era provável que seu esposo já teria chegado do Rio de Janeiro e se dirigia para lá — ainda não sabia qual papel encenaria. A única coisa que fizera até aquele momento foi encenar sua performance de mulher revoltada, dizendo frases pomposas sobre moralidade, respeito e religião. Também fabulava a reação desconcertante do marido, o velho leão tentando esboçar uma desculpa consistente, implorando pela piedade da esposa para que o poupasse da humilhação de um escândalo, jurava seu amor eterno e assegurava, de joelhos perante ela e sob as bênçãos de São Nicolau, que deixaria a amante. Enxergava-se indo a casa da amante, uma pobre rapariga que habitava aqueles casebres carcomidos da Rua Fileto Pires. Marina veria a situação de extrema penúria na qual vivia a garota, que teria dois irmãos e uma mãe doente. Mentalizou os pobres diabos tendo de alimentar-se simplesmente a base de peixe e farinha de mandioca. A amante pediria perdão à esposa ultrajada e afirmaria, entre lágrimas no rosto, que só fazia isso para poder sustentar a família e a genitora doente. Inflada da mais pura piedade cristã diante da miséria da concubina, a mulher do comendador perdoaria tudo e tornar-se-ia a protetora daquela pobre 40 família de indigentes, mandaria seu irmão, que era médico, cuidar da pobre anciã, adotaria os irmãos pequenos, resolvendo sua incapacidade de ter filhos, enviá-los-ia para os melhores colégios do Rio de Janeiro e a amante seria enviada para um convento para purgar os seus pecados diante de Deus e da Virgem. Com essa magnânima atitude, a esposa de Teobaldo seria reconhecida na sociedade, nasceriam artigos e poemas n’A Província de Manaus e n’O Diário de Noticias, onde seria chamada de A Santa. O bispo com certeza a convidaria para janta com ele, junto com toda a elite eclesiástica provincial, louvaria o exemplo cristão da jovem esposa — amando incondicionalmente o marido, respeitando-o como seu chefe, advertindo-o com total prudência e perdoando-lhes as faltas. Ele também diria que em nossa sociedade, tomada pela imoralidade e luxuria, ainda havia moças que ofereciam a esperança de que para a moral e a religião nada estava perdido... IV. Quando finalizava estes pensamentos foi de repente jogada na realidade pelo bater da incessante da porta. “Entre...” Disse, contrariada. “Minha senhora...” Era Joselina. “O senhor seu marido chegou.” “Diga que eu estou aqui...” Foi até a janela, percebera que a carruagem do marido estava parada logo ali em frente. Como não tinha percebido isso antes? Correu para a mesa, abriu a gaveta, tirou um pequeno espelho e ficou a examinar-se, reparando as manchas da maquiagem criadas pelas lágrimas e outras falhas imaginárias. Procurava acalmar-se, parecer segura. Notou que as mãos tremiam, balançou-as como se o nervosismo fosse apenas uma sujeira que pode ser expelida com um gesto. Uma algazarra dos criados se movimentando e a voz grave do esposo podia ser ouvida do escritório. “Deixa que eu levo sua mala, Doutor...” Dizia Petrônio, um dos jardineiros. Mariana ouvia atentamente. “O senhor está cansado, não quer descansar? A viagem de volta do Rio de Janeiro deve ter sido cansativa...” Perguntou Josefina. “Onde está minha esposa?” “Dona Marina está esperando pelo senhor no escritório...” 41 Podia ouvir os passos fortes do marido subindo as escadas de mármore. De pé, ao lado da escrivaninha, ela tentava controla-se. Pretendia tomar o marido de assalto com a historia da carta. Ensaiava naturalidade. Mas concluiu que seria mais convincente se fingisse estar fazendo algo, passou os olhos apáticos em volta, viu a estante, pegou um livro... Os passou se aproximavam. Num segundo a acústica da casa denunciou que Teobaldo acabara de galgar a ultimo degrau da escada e se dirigia para o escritório. Mariana sentiu uma pontada no coração, por um momento imaginou que fugiria pela boca. Olhou fixamente para a porta, a maçaneta começou a girar. “É agora, pensou...” Um pequeno baque no chão postergou a abertura da porta. “Que maçada!” Ouviu a voz do marido. Viu pela fresta do chão da porta que ele se abaixara para pegar algo. A porta se abriu. V. Apesar de apenas ter ficado um mês fora da província, Teobaldo parecia envelhecido dez anos. Os cabelos estavam quase totalmente brancos e desgrenhados; o bigode, outrora sempre cuidadosamente cultivado, pontudo e vergado para cima, estava desarrumado; usava um terno cinza; tinha uma calça de brim escura; as mãos seguravam um chapéu branco; sob os olhos brilhavam duas profundas olheiras enegrecidas, as maçãs do rosto pareciam mais enrugadas e os lábios mais secos. “Como vai, minha esposa?” Disse, enquanto colocava o relógio de ouro no bolso do colete e jogava o chapéu no criado mudo. “Òtima... Foi boa a viagem, meu marido?” Levantou-se, jogou o livro no sofá vermelho e foi até o marido dar-lhe um abraço. “Foi péssima...” Disse ele, em tom de desabafo, depois de terem se abraçado friamente. “Aqueles malditos ingleses estão fazendo um estrago nas nossas cotações e a proposta de fortalecimento da nossa borracha não conseguiu nem dez por cento de apoio no Rio...” Deu um longo suspiro, jogou-se sobre o sofá e olhou fixamente para Mariana. “Eles alegaram que o látex não é tão importante para o país quanto o café...” Ela apenas observava-o, sem dizer uma palavra. “Maldita elite paulista! Se ainda tivéssemos um imperador...” Levantouse, foi até a gaveta da escrivaninha e tirou um charuto. 42 “Tudo vai se acertar, Teobaldo, não se preocupe, tenho rezado por nós todos os dias...” Apesar de ter dito aquilo, não estava nem um pouco interessada nas intrigas políticas ou nas dificuldades econômicas que envolviam com suas asas agourentas aquela Sibéria Tropical. Controlava-se, tentava manter as frases dentro de si, domando-as como alguém que tenta segurar a vomição dentro do estômago. Teobaldo pegou uma garrafa de uísque e um copo da prateleira, encheu-o até a metade. “Sentiu a minha falta?” “Eu sempre sinto a sua falta...” Ele não respondeu, virou para a janela e ficou observando o rarefeito movimento da rua. “O que ficou fazendo durante a minha ausência?” “O de sempre, cozendo, tocando piano nos saraus, lendo meus romances, dando alguns passeios com meus irmãos, com Honorina...” Ela sentou-se numa das cadeiras, remoendo com as mãos a carta. “O Rio de Janeiro é uma cidade de cobras... Sabia disso? Não se pode ir pra lá sem ser mordido...” Ela apenas observava o outro soltar grandes bolas de fumaça pela boca e pegar o copo para dar pequenos goles. “E o teu irmão, já curou-se daquele miasma dos pulmões?” “Sim, fiquei aliviada...” Respondeu maquinalmente. Olhava fixamente para a mesa, as pupilas estavam úmidas e a face dilacerada. Teobaldo virou-se entediado, sentou-se na poltrona da escrivaninha e ficou a remexer alguns papeis enquanto matinha a charuto na mão esquerda. Como colocara o copo bem do lado de seu cotovelo direito, acabou por esbarrar nele, fazendo a bebida derramar sobre seus papéis. “Eu sou mesmo um desastrado...” Tomou um lenço, tentou enxugar a meladeira. “Pode me fazer o favor de chamar a Josefina para vir enxugar isso?” Quando ela se levantou o marido interpelou-a: “O que é isso na sua mão?” Enquanto olhava diretamente para ela. 43 “Nada, apenas uma carta de uma prima” Respondeu, completamente sem jeito. “Qual das suas primas?” “Aurora...” “E o que ela diz?” “Nada demais, vou rasgá-la...” “Não seria melhor guardar?” “É um assunto tão sem importância, só vai criar volume entre nossas correspondências...” Mariana tentava esboçar um sorriso desgrenhado. “Aconteceu alguma coisa?” “Estou apenas cansada...” Fonseca colocou os óculos no rosto e voltou-se para suas anotações. Marina se manteve por alguns momentos perto da porta, de pé, com os olhos perdidos, respirando devagar. Olhou para a missiva, manuseou aquela lauda já machucada e manchada pelo suor das mãos, rasgou-a em vários pedaços e jogou-os no cesto. “Vou chamar a Dolores para limpar esta sujeira...” O outro não esboçou resposta; quando saiu, a porta fechou-se com um baque surdo. “Talvez seja muito direito...” Era o que ela pensava enquanto descia as escadas. *** O Presente I. Naquela lúgubre madrugada de novembro de 1998 tomei aquela derradeira resolução que há muito protelava. Dei os últimos goles numa Sapupara para reunir coragem e peguei uma capa de chuva. Sabia que em breve cairia uma poderosa tempestade — ventava muito, os buritizeiros que circundavam os igarapés pareciam prestes a serem arrancados da terra e os telhados das casas zumbiam. Sai de minha casa, que ficava num sobrado pestilento do Beco do Maneco, e ganhei as ruas desertas e silenciosas. Caminhava muito 44 apressadamente, a cabeça baixa e os braços encolhidos por causa do frio. Pelo aspecto do céu, calculei que aquela capa de chuva não teria grande serventia contra a tempestade. Vários ruídos e aromas familiares chegavam-me, os latidos de cães, as gritarias de bêbados em bares próximos, o ruido escandaloso da sirene de uma viatura, algumas vozes familiares, outras desconhecidas, a doce fragrância de Jhá... II. Quando cheguei na Rua 35, acabei por encontrar um dos meus velhos conhecidos que vinha cambaleando de um dos bares das redondezas. Chamava-se Cláudio e como eu passava sérias dificuldades financeiras em virtude da intemperança do álcool. Vinha olhando para o chão, com passos vacilantes. Me desviei dele para não ser reconhecido... O bêbado solitário passou por mim sem notar-me a presença, tão lastimável estava sua embriagues. Virei para trás e pude vê-lo dando uma grotesca gargalhada... Era um pobre coitado, bebia quase todos os dias e sempre sucumbia em tão triste estado. Alguns chegaram a dizer que, no desespero de sentir a doce lerdeza da embriagues, bebera gasolina. Estaria eu indo para o mesmo caminho? Ele seria apenas eu num futuro próximo? Quando me fazia estas e outras conjecturas, ouvi um grito: “Tá louco, filho da puta?!” Era o cearense, um sujeito gordo e mal humorado que tinha acordado com o barulho... III. Desci por uma travessa escura até uma pequena vereda asfaltada. Finalmente avistei uma casa bastante simples de tijolos deteriorados e um singelo jardim onde algumas feias orquídeas cresciam. A residência parecia hibernar profundamente... Dei três batidas na porta. O aço podre gemeu num barulho grave e medonho. Ouvi o latido do cão que perambulava pelo quintal do casebre. Dois minutos se passaram, mas ninguém respondeu. O cão parara de latir. Bati novamente, uma cinco ou seis vezes. O cachorro latiu com mais força e seu colega da casa vizinha resolveu fazer-lhe coro. 45 Como anteriormente, ninguém veio ao meu encontro. Apesar do clima frio, vários filetes de suor já desciam desagradavelmente pela minha fronte. Minhas mãos transpiravam. Dei dezenas de poderosos socos na porta, fazendo tanto barulho que todos os vira-latas da rua latiram desesperados. As nuvens já davam trovoadas violentas, sua coloração já começava a tornar-se mais lúgubre e os pingos já adensavam. Ficar debaixo da chuva, levando aqueles pingos grossos no cangote a esperar alguém no meio da madrugada, não era a situação mais confortável que alguém poderia estar... Percebi que uma luz de um dos quartos dos fundos acendera-se e passos vacilantes vieram lentamente até a porta, duas sombras de pés ficaram estancadas por detrás dela. A voz de Márcia, trêmula e preguiçosa, inquiriu-me: “Quem é?” “Sou eu... Temos que conversar” Minha voz saiu entrecortada, meio confusa. Após ouvir um demorado suspiro de tédio, a fechadura começou a emitir um rugido desagradável. Eu tremia e suava. A porta abriu apenas o bastante para que eu pudesse ver, por entre a penumbra e a tênue luz interior, os cabelos revoltos sobre uma face pálida e a silhueta de um corpo franzino de mulher que trajava uma camiseta branca e uma calcinha. “Você sabe que horas já é?” “Eu sei... Posso entrar?” Enxuguei a suor da testa com um braço e dei um passo adiante. “Olha... Osvaldo... É de madrugada...” Ela meneou a cabeça com má vontade. “Nós realmente temos que conversar...” Lembro-me que minha assertiva vinha eivada de pequenas mostras de desespero... “Você não está em condições de conversar... Está fedendo a cachaça... Nem eu quero conversar sobre aquilo... Já morreu... Vai, eu quero dormir...” Ela fez menção de que voltaria a trancar a porta. “Não, Márcia! Eu estou bem... Eu estou bem...” Coloquei o braço na porta como para impedir que ela o fizesse. 46 Ela ficou em silencio, as órbitas castanhas estudavam-me por alguns minutos. Deu um suspiro e disse: “Entra...” Ela retorcia de raiva os lábios grossos sem qualquer preocupação em ser discreta. Foi para os fundos, desligou a luz do quarto e em seguida voltou para ligar a da cozinha. IV. A casa era pobremente mobiliada. A cozinha e a sala dividiam praticamente o mesmo cômodo, onde havia um sofá rasgado, uma televisão LCD sobre um suporte de madeira escura; acima uma imagem de Nossa Senhora pendurada na parede; o fogão tinha duas panelas velhas; a torneira da cozinha pingava num ritmo monótono; a mesa de mogno tinha dois copos e uma fruteira. “Tá com sede?” Pergunto, enquanto servia água de costas para mim. “Não...” “Não vai tirar essa capa de chuva?” “Não” “Quer sentar?” “Estou bem assim” Eu apenas olhava seus movimentos, meio admirado com o seu desleixo em receber uma visita, mesmo que esta visita fosse justamente eu... “Então o que você quer?” Virou-se na minha direção, a encarar-me, com o copo de água. Naquele momento um relâmpago caiu mais ou menos perto dali, criando uma claridade enorme que meio segundo depois foi seguido de terrível estrondo. “Puta que paril...” Disse Márcia. “Espero que não vá queimar nada...” Deixou o copo sobre a mesa e desligou a geladeira na tomada. Meu descontrole anterior já arrefecera. Procurava juntar forças para formar uma frase. “Nós temos que voltar...” Resolvi dizer. “O quê?” Olhou-me muito séria, com a testa muito enrugada, como se acabasse de ser demitida arbitrariamente do emprego de cozinheira. 47 “Meu amor... Eu te amo... Eu não estou conseguindo mais trabalhar... Nem fazer absolutamente nada...” Tentei dar o máximo de mim para ser o mais convincente possível. Uma febre tomava-me conta. “Não consegue fazer nada? Sei... Imagino... Só faz mesmo o que você mais gosta, beber, beber, beber, beber...” Disse ela com um sarcasmo mortal. “Mas eu preciso de ti Márcia!” A pressão nervosa era tanta que eu começara a tremer. Arfava, como se meus pulmões falhassem, parecia que eu estava prestes a ter um ataque de asma. “Pra quê tu precisa de mim? Pra beber ainda mais... Pra me bater com mais força pra eu abortar outro filho teu?” “Márcia, por favor, vamos ser aquele casal que éramos antes...” Lágrimas misturadas ao suor umedeceram a minha fronte. Tentei tocá-la, mas ela desviou-se da minha mão. “Cadê aquela piriguete com quem tu tava saindo? Pensa que eu esqueci disso também?” “Eu gosto é de ti... Tu não tá percebendo isso, estou vindo aqui me humilhando pra você...” “Deixe de ser ridículo, Osvaldo... O máximo que tu tá sendo é infantil vindo aqui nessa hora da noite... Me incomodando com essas besteiras... Eu ainda tenho um entrevista de emprego pra fazer amanha cedo...” “Por favor...” Ela nada disse, apenas pegou o copo que estava na mesa e levou-o para a pia. Lá fora, a tempestade parecia estar no seu auge. Tomado da mais completa comoção e desespero, tentei beijá-la. Mas ela não se deixou dominar. “Sai, sai! Me larga...” “Márcia...” “Sai daqui seu cachaceiro filho da puta!” Gritou. “Eu não te quero e nunca mais vou te querer! Eu nunca mais quero ver esta tua cara escrota na minha frente... Se tu não sair daqui agora vou dar queixa de tudo o que tu me fez pra polícia!” 48 Recompus-me, fiquei alguns momentos respirando fundo, tentando acumular vigor, enquanto a outra me dizia coisas pouco lisonjeiras. “Então é isso, Márcia?” Procurei impor a maior calma possível em meu tom de voz. “É isso sim, tudo graças a você, vai...” E fez um gesto de desprezo como se espantasse um cachorro que tivesse invadido a sua casa. “Você está com outro, não é?” “Isso não é da sua conta...” V. Sentia-me humilhado. Todo aquele sarcasmo me deixava sem outra alternativa a tomar. “Então não posso mais fazer nada, Márcia...” “Não pode mesmo, agora sai...” “Mas Márcia, eu trouxe um presente pra ti...” “Como é que é?” Ela não me entendera, mas eu a faria compreender, compreenderia tudo naquele momento... Tirei o objeto que havia guardado no bolso, escondido pela capa de chuva. “Pra que esse martelo, Osvaldo?” Ela ainda teve tempo tentar proteger-se com os braços e soltar um grito de desespero quando desferi um pesado golpe que atingiu a parte esquerda do seu crânio; caíra de joelhos, gemendo muito, colocou as mãos no lugar do ferimento. Grandes quantidades de sangue derramavam no chão frio. O vira-latas, como se sentisse o aroma de sangue, começou a latir descontroladamente, dando pulos frenéticos contra o portão do quintal; ouvi também outros cachorros latirem loucamente, atendendo aos gritos do companheiro... Dominado por um estado de euforia, atingi Márcia com mais um segundo e mais pesado golpe. Ela despencou de vez no chão, meio de lado; agonizando, retorcia-se sobre o próprio sangue. Martelei seu crânio mais uma vez, e outra vez, e mais outra vez, martelei dezenas de vezes enquanto dizia: 49 “Está gostando do meu presente... Está gostando do meu presente?” E a cada martelada que eu desferia, repetia, entre uma gargalhada estridente e insana: “Está gostando do meu presente...” Só finalizei quando a exaustão me dominara. Sua cabeça não passava de um todo disforme e repugnante... VI. A tormenta ainda continuava a cair. Calculei que o enorme barulho da tempestade tinha abafado quase que completamente aquela agitação toda. Contemplei por um momento o corpo daquela mulher de vinte e um anos que, se não pudesse mais ser minha, seria apenas dos vermes. Fui até a pia e lavei cuidadosamente o martelo. Pedaços de massa encefálica boiavam grotescamente na água da pia... Quando voltei a sala, o jogo de luz vindo da cozinha criou um estranho efeito óptico na imagem de Nossa Senhora, parecia que os olhos da virgem contemplavam-me com uma expressão nefasta no semblante. Embora eu não fosse religioso, não pude deixar de ceder é essa impressão que toda uma situação como aquela é capaz de incutir. Logo afastei com asco aquela bobagem — Nossa Senhora era a única testemunha do meu ato, mas ela não iria à delegacia me dedurar... Voltei a colocar o martelo na algibeira e ganhei o exterior, totalmente engolido pela tormenta que açoitava aquela madrugada de Novembro. VII. Apesar das precauções que havia tomado, eu sabia que quando o corpo fosse descoberto no dia seguinte eu seria um dos principais suspeitos. O Ceará tinha me visto... O mesmo não poderia dizer de Cláudio... Logo que cheguei em casa, arrumei uma pequena mochila com roupas, peguei minhas economias que guardava numa pequena caixa, entrei em meu carro e parti tendo por companhia as sombras da noite tempestuosa. Desde então eu vivo uma vida errante e medíocre. Tenho trabalhado e comido como um pobre diabo, como toda gente... As pequenas cidades que borbulham no interior do Amazonas eu já conheço quase todas. As principais capitais do país? Em todas já deixei minha marca: um amor, uma briga, um assassinato... Agora, que estou num aéreo-porto de Lisboa, a espera que meu passaporte falso engane o crivo dos agentes da policia espanhola, escrevo estas pequenas memórias do meu primeiro homicídio. Por vezes tenho sonhos em que vejo a face desfigurada da morta. Ela me diz que em breve voltará para me fazer companhia e dar-me um belíssimo presente — no inicio dessas aparições eu muito me impressionava, mas hoje nada mais sinto... 50 Voltando da Faina I. O relógio da maioria das pessoas já alcançava às cinco da tarde. O calor daquele dia tinha sido quase insuportável. Parecia que o sol tentava derreter a cidade e fritar os ossos dos manauenses que, a cada ano que passava, tinham de conviver com as rajadas cada vez mais furiosas daquele impiedoso verdugo. Entretanto, algumas nuvens juntaram-se para uma precipitação rápida e irritante. Mas o pequeno resvalar de algumas migalhas de gotas d’ agua só serviu para aumentar a sensação de desesperado calor. Os ônibus salpicavam de carne humana. Aqueles que o esperavam naquela parada de ônibus eram em sua maioria operários da obra de um condomínio fechado. Viam em grupos, falando alto, gesticulando sem qualquer preocupação com regras que os mais cultos chamam de etiqueta e contando piadas obscenas que os colegas replicavam com estridentes gargalhadas. II. Um desses operários é Márcio Silva, que neste exato momento entra no ônibus lotado, uma dessas lagartixas de duas partes. Quem o visse não o distinguiria dos outros companheiros, tão medianamente vestido; um boné preto e desbotado cobria a grande e larga cabeça; a sandália, meio puída, parecia prestes a se soltar nos pés grossos e rachados; a bermuda que há muito tempo deixara de ser azul para ter uma coloração de um branco de defunto; também usava uma camisa verde. Com os lábios grossos não dava, naqueles momentos, as habituais gargalhadas, nem vociferava, como os outros companheiros, os mais frívolos assuntos que, na boca naqueles animais de carga, ganhavam uma dramaticidade peculiar... Vez por outra dava pequenas apalpadelas com a mão parda no bolso detrás da bermuda, como para prevenir sua carteira de ser surrupiada... Tinha vinte e oito anos e casara-se há dez meses com Ana Mara, uma mulher baixa, magra e bem morena. Os dois mudaram-se recentemente para uma casa de apenas dois cômodos no bairro do São José. Ele trabalhara como garçom numa das lanchonetes das redondezas, mas teve o emprego perdido com a falência do estabelecimento. Para sua sorte, em menos de um mês estava empregado como ajudante de obras daquela grande empreiteira. Tinha um ordenado modesto. Nas ultimas semanas ela passou a complementar os rendimentos com um magro salario de diarista. Márcio não dava atenção à tagarelice distraída de seus similares, sentia o calor insuportável queimando-lhe a fronte e gotas de suor descendo pela testa para empaparem toda a camisa, causando no jovem trabalhador uma sensação muito desagradável... 51 O ônibus transformara-se numa sauna dentro de outra sauna maior, pois era exatamente o que a cidade havia se tornado. Todos enxugavam a testa, incomodados. Mudavam de posição nas cadeiras ou soltavam longos e profundos suspiros. Uma mocinha, com seus dezessete anos, chegou a comentar com seu companheiro de viagem: “Ninguém merece...” O outro concordava, acenando com a cabeça. Todos estavam ali amontoados, com as mãos daquelas barras de ferro que, promíscuas como o corpo de uma prostituta, já foram apalpadas por milhares de mãos, mãos sujas, limpas, suadas, firmes, trêmulas ou feridas — incontáveis mãos que ali contaminaram e foram contaminadas. Elas esfregavam-se umas nas outras, fazendo um intercambio de cotículas de suor. Os cabelos assanhados, eram pontes por onde pulgas e piolhos pulavam de crânio para crânio. Todos tinham o semblante triste, olhando melancolicamente a monótona paisagem que as janelas envidraçadas apresentavam. Vez por outra, dois daqueles transportadores de carne humana ficavam lado a lado, parados no sinal, e a carga de ambos os veículos entreolhavam-se, meio melancólicos, meio indiferentes, talvez até mesmo solidários com os vizinhos — provavelmente porque ambos compartilhavam a mesma sorte de carne para o abate... III. Em meio a tão escrota situação, tudo o que Márcio queria era tomar um banho, jantar e dormir... “Falô, Marquito...” Disse-lhe um dos companheiros ao se despedirem quando desceram da estação geral. Após ter pegado um novo ônibus, saltara numa esquina na qual desembocava numa alameda de íngreme subida. Andava lentamente. Em menos de cinco minutos chegara a sua casa, rodeada por uma pequena cerca viva, cujo pátio era ornado com um possante pé de acerola e uma pequena mangueira. Abrira lentamente a portinhola de madeira, enquanto transpassava o pátio de terra molhada. Naquele momento estranhara o fato de a porta estar entreaberta. O bairro estava ficando cada vez mais perigoso e um vacilo desses pareceu-lhe quase imperdoável — lembrou de Danny, que tivera a casa invadida e a televisão e o DVD surrupiados. Voltaria a encontrar-se com ela? Entrando na casa sem pressa. Estranhara o fato de a esposa não vir ter com ele e escutar estranhos sons que proviam dos fundos da casa — 52 uma espécie de murmúrio, quase um suspiro, quase uma súplica, um farfalhar de silenciosa algazarra. Caminhou curioso até o quarto. O que era? Abriu a porta... Não é possível descrever com palavras o choque que teve ao ver aquelas duas formas femininas, totalmente nuas, delirando com as mais prazerosas caricias de amor... O que lhe piorava aquela perversa surpresa era ver que Danny era a companheira de prazeres da mulher... As duas deram um salto da cama. Tinham os corpos suados e o cabelo em desalinho. Não sabiam se iam ter com Marcio ou se procuravam as vestimentas para cobrir as vaginas úmidas de sêmen. “Márcio...” disse Mara. Ele, imóvel, parecia incapaz de conceber aquele absurdo que a mulher o traia. E ainda por cima com a própria amante! O que pensariam os vizinhos, a família, os amigos? Como suportaria tamanha humilhação? Ser apontado na rua como o maior corno do bairro... “Olha... A mulher dele traia ele com a mulher que ele comia, hahahaha...” Fechou a porta do quarto. “Espera, espera...” Gritou Mara. Mas ele foi andando rápido pela casa e ganhou a rua. Corria com uma expressão azeda, corria por entre as ultimas luzes do entardecer, corria deixando as duas amantes entregues ao desespero... IV. Era já noite quando Márcio voltou á casa. Por onde tinha estado e qual resolução tomara? Seu corpo exalava o odor acre de cachaça. Mara já tinha se vestido — Danny já tinha se retirado. As duas, talvez, tivessem contratado não se verem por uns tempos. Mas de que importa isso? Ela ligara para os parentes do conjugue, na tentativa de encontrá-lo, mas também fazer algumas articulações que pudessem atenuar os estragos daquele mal entendido... Quando ela ouviu o barulho da porta ficou trêmula, os olhos umedeceram e quase não conseguia andar. Os dois se encararam no meio da sala escura e silenciosa. O marido apenas olhava-a. A esposa, sentindo constrangimento, estava a ponto de gritar. Tentou dizer algo. “Temos que esclarecer algumas coisas...” Disse ela. tamanho 53 Ele não respondeu. Virou o rosto para o lado. Depois, voltando para ela os olhos fundos e remexidos pelo álcool, perguntou: “Ela já foi?” A voz soou rude, e a cachaça no sangue fazia a silabas atropelarem-se. “Marcio, eu...” “Ela já foi, hein, sua sapatona puta?” Gritou. “Eu vou te deixar...” Disse Mara. Os cabelos caindo sobre o rosto desfigurado. De súbito, foi consumida pelo mais profundo terror, pois percebera que ele tinha numa das mãos um revólver... *** Na Pensão A mulher é o ser que projeta a mais negra sombra ou a mais clara luz em nossos sonhos. C. Baudelaire I. Eu havia acabado de acordar, meio lerdo, o raciocínio frouxo, com algum resquício de modorra. Me levantei e abri as janelas. Uma poderosa rajada de luz invadiu todo meu quarto. Que manhã ensolarada e esplêndida! Da janela do pequeno quarto onde morava, podia avistar as inúmeras casinhas espalhando-se por toda a planície; os passantes, totalmente afobados e parecendo cordeirinhos atarefados, se apressavam em resolver seus compromissos e mais além podia enxergar o imponente Rio Negro... Naqueles anos eu morava numa casa de pensão, um simples prédio mal cuidado no centro da cidade construído nos anos de 1920 com suas enormes janelas retangulares e feias muito pareciam com as órbitas cinzentas de um defunto. Meu quarto era uma alcova simples. Constava de uma cama de cedro; uma bem conservada estante antiga onde mantinha meus preciosos livros, alguns periódicos e dezenas revistas especializadas em história, filosofia, literatura... Uma pequena mesa de mogno, sempre abarrotada de papéis preenchidos, cadernos e volumes abertos; um modesto guarda roupa; uma velha TV que eu mal ligava e um apertado banheiro aos fundos; ao lado da estante eu mantinha uma 54 pequena geladeira. Entretanto, meus antigos aposentos não eram tão sem graça quanto se poderia imaginar, os extensos umbrais da janela eram ornados com um cândido espécime de orquídeas, e na parede defronte da escrivaninha pendiam duas molduras, as imagens de Aluízio Azevedo e Karl Marx, e logo acima do leito de lençóis verdes as inquiridoras pupilas de Machado de Assis olhavam, curiosos e negros, para o nada; uma réplica daquele famoso retrato em óleo de Henrique Bernadelle. O vigor aos poucos tomava conta de mim. Vi que eram oito horas e quarenta e cinco da manhã. Depois de lavar-me fui a porta apanhar a ultima edição do jornal. Deitei-me no divã e comecei a ler despreocupadamente, saboreando as noticias enquanto esperava a criada vir com o desjejum. II. Naquela época eu estava prestes a completar vinte e três anos, minha vida transcorria previsível e calma. Tinha poucas amizades e raramente recebia visitas. Cursava a faculdade de letras na Universidade Federal; consegui lançar meu primeiro livro; e pela relativa receptividade de público e boa aceitação da critica, fui convidado a escrever num portal eletrônico. Com a renda desse trabalho, de bolsas de pesquisa, das aulas de reforço e da fiel ajuda financeira da família resolvi há quatro meses morar naquela humilde casa de pensão e desfrutar da solidão e da quietude que é tão benéfica aos homens de letras... Após o desjejum pretendia terminar um artigo e enviá-lo, ainda nesta manhã ao editor do jornal; à tarde daria um giro pelos sebos e ao anoitecer finalizaria mais uma narrativa do meu segundo livro de contos. Lá pelas nove horas da manhã, Márcia, este era o nome da serviçal e filha da dona da pensão, entra no quarto com o café da manhã. Sua pele era de um moreno um pouco clareado, os cabelos pendiam castanhos, soltos e ondulados até os seios excessivamente grandes; os olhos, bem negros, transpareciam certa ingenuidade; a boca tinha lábios finos e avermelhados; o nariz bastante adunco. De físico forte, veloz e ágil, entrou veloz na alcova e, com grande animação, foi logo dizendo em tom de pilhéria: “Bom dia...” “Oi...” “Sabia que chegou hoje de manhã uma inquilina nova?” Disse após colocar a bandeja sobre a escrivaninha. “Não, não soube...” Falei sem desviar os olhos do jornal. 55 “Também! Fica ai entretido nesses lendo essas coisas... Nesses montes de livros e escrevendo essas coisas malucas que nem se dá conta do que acontece envolta.” “Pois é...” “O nome dela é Ivana, vê se sai dessa tua caverna e vai no trinta e sete da uma palavrinha de boas vindas...” E saiu, tão rápido quanto entrara, sumindo completamente por de trás do acesso que se fechava. A xícara de café transpirava uma pequena língua de fumaça e seu aroma, misturado ao da manteiga derretida sobre o pão, dominaram todo o quartinho. Uma leve, porém incomoda, dor no estômago me fez lembrar que tinha fome. Tomei café sem pressa. Um velho exemplar de “O Cortiço” descansava sobre a mesa; relia-o pela segunda vez, pois me transmitia certas espécies de cheiros, palpitações e sons realistas da qual necessitava para concluir uma das minhas histórias. Volvi os olhos para o quadro de Azevedo, com aquele rosto fino, aqueles traços delicados e aqueles grotescos bigodes tão comuns à época; imaginei se eu poderia alcançar, algum dia, o nível de maturidade intelectual de mestres como ele. Apesar da razoável aceitação da minha primeira obra, ainda não estava de todo contente com o que havia produzido. O caos psicológico de Dostoiéviski, a realidade crua e perversa de Zola, a amplitude literária de Tolkien ou a precisão de Graciliano Ramos eram obstáculos muitos além do meu modesto cabedal. O que alentava meu espírito eram duas sábias e célebres afirmações que Machado de Assis fizera, por escrito, a seu amigo Quitino Boacaiúva: “as qualidades necessárias ao autor dramático desenvolvem-se com o tempo e o trabalho (...) cuido que é melhor tatear do que achar; é o que procurei e procuro fazer.” Era um conselho que sempre lia e relia como um verdadeiro mantra. Pousei a xícara vazia sobre a bandeja de plástico. Sentia a incrível sensação de saciedade. Já eram nove horas e trinta minutos, teria bastante tempo para os últimos retoques em minha crônica. Fiquei a observar meu artigo durante algum tempo, totalmente imóvel, com a mente vazia, incapaz de escrever uma única palavra. Imediatamente volto a lembrar de Márcia e seus modos rudes e sinceros: “O nome dela é Ivana, vê se sai da tua caverna e vai lá no trinta e sete dar uma palavrinha de boas vindas...” Agora o nome da nova inquilina estava destacado e sonoro, reverberando por todo meu cérebro e permanecendo intransponível entre eu e o texto. A sonoridade daquela palavra, forte como um relâmpago de uma tempestade noturna, causou-me certa impressão, certo fascínio. Uma tal mulher chamada assim deveria ser como o próprio nome: bela, forte, exótica, inteligente... “Vai lá na trinta e sete 56 dar uma palavrinha de boas vindas...” De essa presepada tomou conta de mim tão rapidamente que quando voltei a si já estava no batente da porta me preparando para consumar a visita. Dei dois passos para trás. Comecei achar tudo isso ridículo. Observei por alguns momentos a fechadura arredondada, estava tenso, suando, o coração palpitava meio descontrolado. Por que? Que coisas eu poderia falar com esta Ivana, se nem mesmo eu a conhecia? Que Ivana e Márcia fossem para o diabo! III. Três batidas surdas e rápidas na porta me fizeram voltar a si. “Homem das cavernas, já tomou café?” “Entra...” A empregada entra na alcova, passa por mim e, sem dizer palavra, sai rapidamente do quarto com a bandeja em mãos. Olhei no relógio, batiam dez horas. Concentrei-me na crônica, pois precisava entregá-la até à uma da tarde. Li e reli várias vezes, observando as pontuações, cancelando algumas virgulas, adicionando outras, substituindo palavras, ligando períodos, escrevendo notas na qual especificava algumas dicas ao editor.... Pronto, a artigo da semana estava finalizado. Coloquei meus tênis velhos e desci levando o papel protegido numa pasta verde. Tranquei a porta na chave, passei pelo corredor deserto; um ou outro quartinho tinha as portas abertas, de onde vinham choros de bebês, sons de televisão, conversas de dona de casa, discussões de casal e um leve cheiro de mato queimado enveredando pelos arredores... Quando cheguei à calçada, o sol estava no seu pico de força. As calçadas, os prédios, as árvores, os postes e os passantes enfim, todos ardiam naquele delírio angustiante da luz matinal; tudo parecia exalar calor e cansaço, arfando numa transpiração desesperada e pestilenta, agonizando na alta e abafada temperatura de estio. O prédio onde ficava a equipe do portal situava-se numa pequena rua comercial desembocava numa das mais movimentadas avenidas do centro. Andava procurando aproveitar as sombras. Detestava sair aquele horário. Aquele enorme burburinho do transito e dos pedestres me deixava confuso, tonto... 57 Quando cheguei no prédio, o editor estava no fundo da sala, com um cigarro na mão lendo algo num grande rolo de papel. Assim que percebera minha presença veio falar comigo. “Legal, chegou em boa hora”. Disse, enquanto me examinava por detrás daqueles grandes e profundos óculos. Passou os olhos rapidamente pela crônica e disse outra vez, enquanto eu permanecia defronte. “Olha, rapaz, porque você não escreve num computador? Fica melhor pra gente...” “Tu sabe que eu onde moro não posso me dar o luxo de comprar um computador.” “Verdade, essas casas de pensão... Bem, o dinheiro chega na tua conta daqui há cinco dias.” “Então está tudo certo.” IV. Eu já estava bem próximo da porta da minha casa quando vi sair de lá, descendo as escadas, uma mulher de cerca de seus vinte anos; morena, daquele tom de pele bronzeada; os cabelos eram lisos desciam até o colo eram tingidos por algumas luzes douradas; os olhos eram castanhos escuros e pequenos, dotados de uma malicia típica das mulheres do norte, denunciavam a condição de mulher atenciosa, quente e sensual, cuido que naquele momento também transmitiam certa inquietude. O rosto era meio fino, com o nariz pequeno, os lábios não eram meio carnudos, em compensação eram lívidos, corados, reluzindo o batom levemente vermelho; os seios eram pequenos e firmes, como toda a extensão do corpo, de uma magreza considerada atraentes ao olhar masculino. Trajava uma calça negra, envolvendo as pernas bem contornadas, e uma blusa de linho escuro na qual, na altura do seio esquerdo, havia o símbolo de uma rede de lojas bastante popular na cidade. Ela descia as escadas com pressa, olhava fixamente para baixo. Lembro-me do agradável aroma do seu perfume, uma delicada fragrância de damasco; ainda hoje, quando aquele cheiro invade-me as narinas, sempre lembro daquele rosto inquieto, de traços bons para se olhar, das maneiras bem calculadas... Depois de ter subido a rua desapareceu na esquina. Voltei pro meu quarto com a imagem daquela morena palpitando na mente; sentei no sofá, suspirando de fadiga, olhando para os móveis, sem enxergá-los na verdade... 58 Decidi ler “O Cortiço”, não consegui. Que me importavam as disputas entre João Romão e Miranda naquele momento? Joguei o volume na cama, olhei no relógio, dentro em pouco Márcia viria com o cardápio de hoje. Parti para a escrivaninha, tomei meus escritos; o conto ainda estava incompleto. Fiquei encarando o papel rasurado, relendo suas linhas, examinando as letras, tentando imaginar-lhe algum desfecho, forçando a mente na criação de qualquer fato que fosse... Não adiantava, minha atenção era sempre desviada para a imagem plácida e carnal da morena. As mesmas e previsíveis batidas de Márcia ecoaram da porta, tomandome outra vez de assalto: “Almoço...” “Tudo bem, entra, Márcia.” A garota entrou, meio desajeitada, e colocou a bandeja sobre a mesa. Senti um impulso de indagar-lhe sobre aquela mulher que vira na saída da estalagem. Eu já estava meio arrependido de ter aberto a boca quando ela respondeu: “Era sim a Ivana, ela trabalha na loja B... Olha, homem das cavernas, eu tô muito ocupada para conversar agora, tchau...” O dia passou quase que totalmente improdutivo, não fosse o artigo que entregara no final da manhã. A noite veio e adormeci com os pensamentos mergulhados naquela mulher. V. Dois dias passaram e, quando, numa tarde, saia para dar um giro numa livraria, dei com Ivana entrando na casa. Dessa vez os grandes cabelos tingidos estavam amparados por uma piranha, deixando as madeixas cômodas sobre as costas. Os pequenos e singelos dentes muito alvos surgiram em um sorriso muito jovial. Como os retribui com idêntica amabilidade, uma breve conversação travou-se. “Boa tarde.” Disse-me, num tom muito calmo. “Boa tarde.” Gaguejava um pouco. “Se mudou recentemente pra cá?” “Isso, não faz nem uma semana, qual o seu nome?” “Rubens...” “Ivana, muito prazer.” Estendeu uma das mãos, eram macias e suadas. Por um momento ficamos em silêncio, ela olhou para baixo; eu fiquei meio em pânico pelo súbito silêncio, observava aqueles olhos brilhantes. 59 “Em que quarto você está?” Apenas perguntei para prolongar a conversa. “No trinta e sete, e você” “No trinta e um, meio pouco perto da escada” “Certo...” Um novo e torturante silêncio ressurgiu, e desta vez eu estava muito mais angustiado, pois não conseguia criar qualquer outro assunto que adiasse o fim da conversação. Ela ficou olhando para os lados, em outros momentos me observava e sorria, ajeitando a calça ou tirando um pó fantasioso da camisa; eu, por minha vez, examinava cada detalhe do seu corpo, meio que devaneando, tentando arrebatar algum assunto; quando finalmente eu ia falar qualquer coisa, ela olhou ao relógio, meio despreocupada e encerrou a conversação, para o meu desespero: “Bem, eu vou pro meu quarto, quem sabe nos poderíamos conversar mais. “Tá certo...” Foi só o que consegui pronunciar com resignação e desapontamento enquanto ela entrava na quitinete. Ainda fiquei meio parado no corredor, com o baque da porta me parecendo ser o fechar de um caixão onde eu era lançado para ser encarcerado vivo. Relembrando de cada detalhe da conversa, imaginando, totalmente aterrado, conclui que tudo foi um completo vexame. Não tive mais ânimo de ir a livraria e voltei ao meu quarto entorpecido de vergonha. Só mesmo uma besta fera poderia ter tamanha incompetência em travar um dialogo tão insosso como uma simples mulher. Sentei no sofá, olhando para os móveis, para os livros, tive raiva deles, tanto eu lia e ainda nem aprendi como lidar de forma satisfatória com uma fêmea... Para tentar dissipar a irritação, fui à janela tomar um pouco de ar, o céu estava muito límpido, as ruas lá embaixo suspiravam na tarde fogosa e o rio estava lotado de balsas... VI. Os dias transcorreram sem surpresas. Sempre topava com Ivana no corredor e tínhamos alguns minutos de conversa sobre coisas totalmente ordinárias do dia. Aos poucos fui penetrando no âmago daquela mulher. Segundo ela, era natural de Porto Velho, mudou-se para cá com a família quando tinha sete anos. Tinha outra irmã dois anos mais nova. Conseguiram uma casa no Morro da Liberdade. Após o pai ser despedido de uma indústria de montagem, resolvera comprar, 60 com as economias de dez anos, um pequeno comércio nas imediações da Praça 14. Quando completara dezoito apaixonou-se por um taxista seis anos mais velho. Logo que terminara os estudos casaram-se e alugaram uma casa na Cidade Nova. Contudo, o extremo ciúme do homem e as constantes brigas acabaram por dissolver a relação. Como procurava uma pensão próxima do seu trabalho, onde já estava há um ano e meio, acabou por achar esta... “Ele não me deixava trabalhar... Até quando a gente ia sair era complicado... Reclamava da roupa, dizia que a saia era muito curta, a camisa muito decotada...” Dizia exalando um alivio de quem trabalhara horas ininterruptas de trabalho pesado. “Via ciúme em tudo, nos colegas, nos amigos, até nos meus parentes!...” Suspirava. “Eram brigas horríveis... Ás vezes ele me batia... Quantas vezes eu fui pra cama chorando... Ele ainda me tratava como empregada, eu limpava tudo em casa, e ele desarrumava, fazia a comida dele com tanto carinho para quando ele chegasse do trabalho ficasse bem e ele sempre reclamava... Reclamava de tudo... Não existia quem aguentasse...” Eu sempre a ouvia com atenção, observando os seus olhos castanhos, notando cada nuance de sua voz aveludada que expressava uma sensualidade involuntária, terrivelmente convidativa, incrivelmente feminil. Ela gostava de falar do futuro. Queria comprar uma casa, fazer uma faculdade... Tinha os gestos muito discretos. Portava-se ereta na poltrona, com os braços bem torneados postos cuidadosamente sobre as coxas. Se eu fosse capaz de descrever aqueles ombros cor de bronze, aquela nuca candidamente ornada com alguns fios de cabelo que escapavam do coque... Quando se empolgava com algum assunto, inclinava-se levemente para frente, falando alto. Gostava daquelas músicas antiquadas dos anos oitenta como Don´t break my heart ou Still loving you. Confesso que essas coisas numa me atraíram muito, mas para agradá-la dizia que tínhamos o mesmo gosto musical — com o tempo passei admirar realmente as músicas, me faziam lembrar dela... A simplicidade daquela morena, no auge da sua beleza de seus vinte e dois anos, era como uma sinfônica que me entorpecia os sentidos, com seus adágios singelos e perfeitos; ou como o Presto final de Verão do grande Vivaldi; ou como o grande deslumbre que tive quando li pela primeira vez Tabacaria, de Fernando Pessoa; Ivana tornou-se uma respiração para o espírito, toda a minha rotina passou a girar em torno dos breves momentos que desfrutava com sua terna presença. Fazia afobado meus artigos para os jornais, lia apressadamente as apostilas da faculdade, interrompi a composição do meu livro, não dava muita atenção aos meus alunos; todos os dias contava as horas ansioso para vê-la, no final de tarde, quando voltava do emprego. Fiz dezenas de poemas tendo ela por inspiração, tantos que já tinha matéria para 61 lançar um bom volume versos; eram sonetos (livres e rimados), elegias, odes, epitalâmicos, sextilhas e toda sorte de modalidades poéticas... Eu pouco falava de mim. Preferia deixar que ela se abrisse por completo. As raras coisas que revelei foram o lugar onde estudava, o curso que fazia e como eu ganhava a vida. Ela demonstrava uma grande admiração pelas minhas atividades, credito eu, tinha-me como um homem dotado de uma grande erudição. Elogiava-me deveras. Não vou dizer que detestava seus louvores. Mas admito que na Universidade eu era apenas mais um Zeca Tatu entre os seus outros vinte mil alunos... Esta agonia durara cerca de cinco meses, entre os encontros, as obrigações com o jornal e com a faculdade; sim, apesar de tudo eu ainda tinha ânimo para dedicar-me às letras, menos para morrer de fome que para mostrar-lhe meus supostos dotes intelectuais e enfatizar para ela meu caráter de homem responsável... VII. Numa noite úmida e fria, como só os trópicos sabem criar, eu estava imerso na leitura do livro que continha a correspondência entre Fernando Pessoa e Aleyster Crowley, entre os vapores de um incenso que eu acabara de ascender, quando ouço alguém bater a porta. Era Ivana. Diante da surpresa, que naturalmente me agradou muito, convidei-a para entrar. “Está tudo bem?” Perguntei. “Sim, tudo ótimo, só queria conversar um pouco.” Cerrei a porta. “Não quer sentar?” Mostrei o divã. Seus olhos estavam extremamente brilhantes, arfavam por entre a luz etérea da alcova; os lábios estavam muito úmidos e corados, expondo aquela lascívia que me fascinara; vestia uma camisa de mangas longas cor de creme e uma calça de algodão longa, frouxa e azulada. Neste momento ela abraçou-me com grande ímpeto. Eu fiz o mesmo. Ficamos um bom tempo assim, em silêncio. Lembro-me de sua respiração tocando-me o pescoço, lenta e profunda. Uma espécie de calor sensual tomou conta de nós e ela, ao tirar a face do meu colo e olhar-me fixamente nas pupilas, tocou seus beiços nos meus, num pequeno encostar suave e demorado — aquilo excitou-nos. Depois disso nos beijamos. Um beijo que no inicio era muito plácido, como o beijo de dois amantes que há muito estreitaram a relação. Embalado pelos vapores do contato entre nossos corpos começamos a nos beijar com a ânsia do deleite libertino. Levei-a a cama e caímos, durante aquela noite fria a abafada, na volúpia máxima do prazer... 62 VIII. O dia amanheceu, acordei meio fraco, olhei em volta, estava sozinho, consultei o relógio, batiam onze horas da manhã; fui ao toalete e laveime, coloquei uma roupa qualquer e sai apressadamente até o quarto de Ivana. No corredor encontro Márcia, que vinha transportando três pratos sujos: “Se você vai se despedir da menina, chegou tarde, ela já se mudou...” “Como?” “Ela foi embora essa manhã, cedinho ainda...” O sentimento que me apoderou quando recebi a noticia não posso descrever, tamanha fora a decepção. Mas num lapso de esperança brilhou na minha consciência, achei que a criada estivesse com mais um das suas pilhérias, xinguei-a com alguns nomes feios e corri até o trinta e sete. Bati uma, duas, três vezes, ninguém me atendeu, bati novamente e, conforme investia meu punho contra a porta, falando alto o nome dela, compreendi, aos poucos, a verdade... Por alguns segundos fiquei defronte do aposento, sem atitude. “Eu te falei, ela foi embora, pensei que tinha te avisado...” Disse por fim Márcia, chegando-me perto. “Ela não te deixou nenhum número ou endereço?” Continuou. “Não...” “Nem te falou nada... Nada... Nada mesmo que ia embora?” “Não! Por que ela foi embora?” Meus olhos estavam úmidos. “Eu não sei... Tadinho, agora tô vendo a sacanagem que ela te fez, ir embora sem te avisar, mas esquece, mulher de malandro é assim mesmo...” Enquanto ela me dava esses conselhos pueris eu explodia nas mais convulsas lágrimas de homem magoado. Não foi-me possível encontrála na loja, tinha se demitido. Quanto aos colegas de trabalho, ninguém sabia dizer-me onde encontrá-la. Sumira, sem número, sem endereço, absolutamente nenhum vestígio. É desnecessário mencionar a profunda depressão em que resvalei. Só farei menção aos dias sem apetite, sem sono, perdendo peso, os olhos ficando cada vez mais fundos, a necessidade de procurar o álcool como grande consolador... Uma completa inercia. Minhas notas na faculdade despencaram e por muito pouco não perdi o emprego. Resolvi voltar a morar com minha família. 63 IX. Há duas semanas, numa das minhas andanças pelo centro da cidade, desviando-me sem muito cuidado da multidão acabei cruzando com Ivana. Olhava para baixo, meio melancólica, os olhos ainda exalavam a mesma malicia, a mesma inquietude, a mesma carência de proteção... Ainda tive uma vontade irresistível de ir ter com ela, saber como estava, onde morava, se não enfrentava dificuldades... Mas contive-me, talvez por covardia. Lembrei de tudo o que ocorreu entre nós. O que eu ganharia indo ressuscitar complicações passadas? Conclui que não valeria a pena cutucar um cadáver. Especulo se ela tivesse me visto e, cuidando em disfarçar, volveu os olhos para baixo. Não importa. Deixeia seguir seu caminho indo misturar-se anônima na multidão apressada. Eu fiz o mesmo... Bem leitor, após estas dezenas de páginas interrompo neste capítulo minha narrativa sobre aqueles tempos que para mim foi cheio de utopias e desilusões. Confesso que não consegui escrever estes parágrafos sem sentir algumas pontadas de constrangimento. Analisando melhor os fatos, concluo ter sido incrível que eu tivesse me deixado apaixonar por uma mulher que não era tão bonita e nem mesmo tão inteligente. Como podes notar, finalmente escrevi a história que faltava para completar meu livro; também resolvi nunca mais ir morar em pensões de migrantes... *** 64 O Duque de Monteviedo Não está morto o que pode Jazer, e, em estranhas Eras, até a Morte pode morrer... Lovecraft; Necronomicon Let me tell you a story to till the bones, about a thing that I saw… Iron Maiden I. A Decadência Das Espanhas O Reino dos Góticos sucumbira à espada impiedosa do Islã; o destemido general Tarik, liderando um exército de milhares de soldados, derrotou nosso Rei Roderico naquele ano negro e horrendo de 711. O pendão dos infiéis avançou, triunfante e poderoso, estendendo seus tentáculos sobre todas a terra das Espanhas. Eu era um dos sobreviventes da sangrenta batalha do Chrysus; ainda lembro dos brados ferozes das hostes mulçumanas caindo terríveis sobre as tropas cristãs. Jamais esquecerei os gritos de dor, de morte e dos milhares de corpos de meus irmãos jazendo na terra maculada de terror. As freiras dos conventos foram entregues como prostitutas aos emires, nossos castelos invadidos e as igrejas tombavam sob o poder das chamas. O horror, a morte e a desolação eram as únicas palavras que encontrávamos para descrever o que víamos em nossa pátria. A Ibéria agonizava em ruínas... II. Minha Estirpe Sou o Duque de Monteviedo... Minha Família descende de uma ilustre Casa de patrícios romanos e aparenta-se com a Estirpe a qual descende o grande Ricaredo. Fomos uma das mais importantes na época de esplendor do Reino das Espanhas em que, sob os comandos de Teodorico, derrotamos os cruéis hunos. Após a invasão mulçumana fui um dos principais colaboradores para o estabelecimento do Reino das Astúrias, sob a liderança de Teodemiro, ao norte da Península Ibérica. 65 Meu feudo situa-se na província de Oviedo, a algumas milhas de Avilés, á nordeste da recém-conquistada Galicia. Sou um homem que herdara dos meus antepassados a sensibilidade extrema, o gosto pelo devaneio, o talento para a criação. Porém, preciso dizer que as pinturas e formas esculpidas pelos da minha estirpe sempre teve algo de terrível, fantástico e extravagante. Sempre fomos acometidos por uma estranha moléstia, rara e dolorosa, algo próximo da loucura. Terríveis pesadelos sempre infestaram os sonhos de minha família, visões de tamanho horror e desolação que chegam a serem indescritíveis; também é de nossa característica a crueldade extrema tanto com os inimigos quanto com servos desobedientes. Os crimes de minha família são celerados e detestáveis demais para ter lugar nestes volumes de pergaminhos. Ademais, a velhice e o cansaço corroem todas as minhas forças. Apenas escrevo estas memórias porque sei que minha vida chegará ao termo esta noite e preciso registrar todas as terríveis visões que tive... III. Pela Floresta Negra Tudo aconteceu naquele cinzento dia de outono. A neblina tomava conta de todos os campos, encostas, colinas e montanhas na região das Astúrias. Eu estava fechado em minha biblioteca, nos fundos do castelo. Sempre passava a maior parte do dia dedicando-me a estudos de velhos pergaminhos e escritos dos mais variados povos, estudando suas tradições, artes ocultas e segredos indecifráveis. Estes escritos já estavam em poder de meus antepassados a pelo menos três séculos. Sentia-me naquele dia atordoado, tomado por uma estranha sensação de torpor, ou uma espécie de febre intermitente que tombara sobre meu corpo. Minhas ideias embaralhavam-se; sentia uma convulsão de impulsos impossível de controlar, uma inquietude nervosa que talvez, como imaginei naquele momento, poderia ser causada pelo excessivo tempo de clausura. Imaginei que meu espírito tinha sede de espaços livres e amplos Dirigi-me para uma floresta que se estendia ao sul das minhas terras; era de certa forma quase inexplorada, uma região medonha e escura. Aqueles que trabalhavam na minha propriedade sempre a evitavam. Diziam que o demônio habitava ali. Decidi ir a pé. Era uma infindável e escura floresta. As árvores pareciam como inumeráveis monumentos de tempos imemoriais que se erguiam solenemente contra o céu em cinzas. Apenas um e outro facho de luminosidade penetrava por entre os ramos. Em poucas horas perdi toda noção de tempo e espaço. Apenas lembrava-me iniciado meu passeio no meio da tarde, entretanto como agora eu caminhava por uma extensa treva, não sabia se já anoitecido. O silêncio era completo e despótico, sem qualquer evidência de animal ou monstro que habitasse aquelas bandas; a vegetação dificultavam-me 66 a passagem como uma grande muralha impenetrável, talvez mais espessa e resistente que os muros de Constantinopla. O ar era extremamente úmido e pesado, quase sufocante, como o ar tétrico das masmorras dos infiéis. Conforme eu caminhava, minha disfunção espiritual parecia ser gradativamente modificada por um impulso caracterizado pelo fascínio mórbido por toda aquela região erma. Entretanto, conforme eu adentrava cada vez mais naquela região das sombras, as árvores tomavam formas destorcidas e assustadoras, lembrando monstros demoníacos e os temíveis deuses pagãos do norte da Bretanha. Os troncos exalavam um odor fétido de cadáver. Uma neblina gelada agora pendia baixa e vagarosa, acentuando o aspecto desolado. De vez em quando cheguei a ter a impressão de que algum vulto passava rapidamente por entre um tronco e outro, como se me espionasse. IV. Na Colina Do Silêncio Alcancei um riacho raso e pedregoso. Logo adiante a terra erguia-se numa elevação mais ou menos íngreme, repleta de grandes pinheiros mortos com os troncos apodrecidos. Por meio de uma trilha, demonstrando claros sinais de abandono, subi a colina que era de uma terra cinzenta e fofa. Conforme eu ganhava a elevação o ar se tornava mais quente e movimentado. Quando alcancei uma parte elevada do morro tive a fantástica visão de toda a paisagem e mais além. Um enorme vale coberto por árvores retorcidas e doentias cresciam por todo aquele lugar hediondo estendendo-se até muito depois do poente. Tudo me parecia cada vez mais terrível e ignóbil. O riacho que cruzava a paisagem se assemelhava a uma enorme artéria transportando sangue humano, pois suas águas tomaram uma tonalidade escarlate. Uma névoa cinza, que lembrava a face obscura da morte, deitava-se por todos os lugares e cantos que meus olhos conseguiam ver — mas uma vez tive a impressão de ver pequenas figuras negras deslocando-se pelo vale e desaparecendo subitamente. O céu era nada mais que um enorme borrado escuro, que impedia a entrada dos raios do sol. Na verdade, eu nem desejava que o Grande Astro iluminasse aquele lugar, pois seus raios podiam revelar “alguma coisa” não muito agradável a minha vista. Quando galguei o topo da elevação, encontrei escondida por entre numerosas árvores mortas que, entrelaçadas, formavam uma vigorosa cerca natural, um local descampado, de rocha escura e terra vermelha, onde em seu centro erguiam-se enormes monumentos de pedra com bases largas e extremidades finas organizados em forma de círculo. Ao centro jaziam alguns ossos que me pareciam ser de homens; outros, de 67 tão exóticos e horríveis, eu nem saberia descrevê-los, apenas posso inferir, com toda certeza, de animal desconhecido na terra... Todos os pilares de pedra apresentavam indecifráveis nomes e símbolos. Contudo, entre os caracteres cravados na pedra, posso lembrar-me da seguinte sequência: Ph’nglui mgl’ nafh Cthulhu R’yleh wgah’nagl fhtagn. A inquietação nervosa que me assolava causara um caos extremo em meus pensamentos, fazendo-me imaginar se eu não estava sendo vitima de mais uma das hereditárias e torturantes crises de pesadelo. O que passei a sentir não pode ser descrito por palavra alguma em nenhum idioma neste mundo, e mesmo que pudesse traduzir em palavras uma parte do que senti, isto resultaria na mais fantástica expressão de ignorância jamais sentida pela cristandade. Meu corpo fora tomado por uma estranha energia que hora se apresentava subjetiva, sentida apenas em minha mente, hora tomava-me mais de forma mais concreta, como algo que entrava por cada poro da minha epiderme. Esta convulsão intensa fazia meus pensamentos chocarem-se num caos mais angustiante que nunca, como se houvesse uma guerra sem chance de vitória em meu corpo... O Poder daquela hedionda região descortinou-se em meus pensamentos. Passei a ver o universo com olhos diferentes, além do bem e do mal. Estava tendo a percepção total do mundo, da humanidade e de sua insignificância, do universo e da sua fragilidade, do inicio e do fim, dos seres inomináveis que criaram a vida em nosso planeta e em breve, quando o mundo estivesse pronto, voltariam para tomar o que era deles, a terra cairia num êxtase infernal de matanças e orgias. Estas estranhas visões eram de tal intensidade que minhas energias começaram a esvair-se e, minha percepção caiu num estado intolerável de desordem, parecendo não suportar o estado máximo de excitação o qual eram submetidos. Então uma poderosa luz branca, surgida subitamente, privou-me de toda minha visão, e todos os sentidos. Lembro-me de ter cambaleado como um bêbado pelo terreno, tomado pelo mais extremo terror. Tentei gritar por socorro, mas o máximo que pude fazer era soltar alguns leves sussurros que logo se perdiam na penumbra infinita. Estava imóvel, resvalado num estado de semiconsciência, com todos os membros dormentes e sem poder sair da posição em que me encontrava, prostrado... V. As Planícies Infernais Ao recuperar os sentidos, estava em um lugar totalmente diferente daquela misteriosa colina. Encontrava-me em meio a uma planície completamente devastada, sem qualquer planta ou animal que eu pudesse avistar. Tudo se resumia a toneladas e toneladas de escombros e rochas pontudas amontoando-se por todos os lados, como se várias 68 montanhas tivessem sido derrubadas por algum tornado. Havia crateras que vomitavam uma fumaça de odor tão fétido quanto o de milhares de corpos em decomposição. Pelo terreno jaziam ossos e crânios humanos e de outras criaturas semelhantes como os que vi no topo da colina... Na parte oeste da planície descia uma grande depressão no qual um rio de lava incandescente seguia seu curso maldito e pestilento por aquela terra infernal. Do outro lado do curso de lava inumeráveis lápides cinzentas em ruínas, que se estendiam a extremo oeste com suas cruzes quebradas e seus túmulos profanados, e nessas catacumbas crepitavam algumas línguas de fogo de tonalidade negra. Descendo o rio de magma, uma mulher navegava em um pequeno barco guiado por ela mesma, de pé na retaguarda, com um enorme remo negro feito uma lança de guerra. Branca, pálida, de olhos cinzentos, vestia largas túnicas escuras e seu cabelo, excessivamente longo e negro. A embarcação era ocupada também por crianças que permaneciam sentadas logo atrás da mulher, cantavam uma canção estranha, melancólica e louca numa língua desconhecida, acompanhada de uma harmonia doentia. As estranhas figuras seguiam seu curso sombrio... Entretanto, a pálida mulher virou seu rosto em minha direção e sorriu, mostrando seus dentes alvos, brilhantes e extremamente perfeitos. As criaturas desceram o enorme rio de magma até desaparecer da minha vista. Após este acontecimento, pus-me a caminhar. Andava sempre subindo o curso do rio de fogo em meio a toda aquela paisagem devastada. O céu era escarlate como sangue, o sol pendia lá em cima, mas não brilhava — um astro negro, uma estrela morta. Criaturas aladas e negras, parecendo ter corpos de homens, voavam freneticamente no alto daquele céu rubro e sinistro; testemunhas surreais da minha existência, voavam em círculos e em todas as direções, soltando poderosos gritos de ódio. Eram como abutres procurando do alto do céu uma pobre presa que, se rendendo a morte sobre a ceio da terra, possa lhes aliviar a fome eterna. O ar estava extremamente quente como o de uma fornalha, pingos de suor desciam de todos os poros do meu corpo. Logo eu desidrataria. A hostilidade do ambiente me atormentava a níveis intoleráveis. Mesmo assim sentia-me lúcido e vigoroso para enfrentar as planícies infernais e chegar onde quer que fosse, o que importava era escapar além do fogo, da morte e do norte... VI. A Cordilheira Incandescente Após muito tempo de passos vagarosos, porém firmes, avistei uma imponente montanha que se erguia contra o céu, pedregosa e grotesca; 69 vomitava de seu pontudo cume uma fumaça extremamente negra, quase sólida, espalhando-se e uma grande quantidade de lava que descia sinuosa pelo seu corpo negro. Logo percebi que aquela montanha não estava solitária, crescia ao seu redor uma enorme cadeia de grandes rochedos que se espalhavam de leste a oeste como um infinito arco. Quase todas regurgitavam grande quantidade de lava que alimentava um vasto e profundo lago de enxofre de onde o rio de magma iniciava seu percurso. Tudo era acompanhado de estrondos altíssimos, tremores terríveis e roncos de furiosos trovões e relâmpagos retumbando luminosos que, lançados das espessas nuvens circulando os cumes, atingia o solo com ferocidade como uma horripilante sinfonia infernal, regida pelos lentos movimentos do magma e composta pelos temidos Prestos e Adágios da Morte. A cordilheira incandescente permanecia ali, erguida e inquiridora como grandes muralhas intransponíveis impondo-se ante minha completa insignificância. Mas houve um terrível estrondo que reverberou pelos confins da terra, e um tremor muito mais forte tomou conta da paisagem; o lago de magma agitou-se em enormes e confusas ondas que se chocavam entre si com enorme violência. Uma grande quantidade de lava assomou da boca da cordilheira. O conjunto de calvários, desmoronando aos poucos, sucumbiu com enorme ímpeto num incomensurável oceano de rocha derretida e, diante da destruição completa, surgiu um enorme precipício negro onde, a partir da sua borda, só havia o aniquilamento completo: o mar de trevas e magma espesso que dava grandes suspiros no vapor sepulcral. No centro do pélago uma cachoeira arredondada tragava toda a rocha liquefeita. Erguia-se no centro da catarata vulcânica uma enorme estatua escura de um ser nunca antes vista pela face da terra. Seu aspecto consistia de uma cabeça tentacular... VII. Epílogo Estas memórias, atribuídas ao Duque de Monteviedo, terminam abruptamente neste capitulo. O seu desaparecimento misterioso é cercado de contradições. Ao retirar-se para um passeio aparentemente sem importância pelos arredores de seu castelo, como realmente foi constatado em crônicas da época, e de autenticidade comprovada, nunca mais retornou. Então se indaga: Se o nobre, ao desaparecer da face de todos os homens para sempre, e seu corpo jamais fora encontrado, como estes fatos puderam ser escritos pelo próprio? A validade da suposta visão do fidalgo é totalmente desacreditada cientificamente, embora alguns místicos a usem como objeto de estudo, como Anton Szandor Lavey, para quem, numa entrevista por telefone, nos disse que o Duque foi um dos poucos a percorrer a “Diatribe Infernal”. Chegou-se a imaginar que a veracidade sobre a existência do nobre de Monteviedo, que empalava e estripava seus inimigos vivos (segundo algumas velhas lendas das regiões rurais do norte da Espanha 70 ele tinha pacto com o diabo), fosse mais uma lenda entre as muitas que povoaram o imaginário popular da alta idade média. Os recentes documentos encontrados, como crônicas medievais do tempo de Alfonso I (datadas de 750) e do Conde de Pelayo (futuro Rei Teodemiro; originada nos anos de 730), Alfonso VIII de Castela (escrita de 1193), de autor anônimo, e alguns fragmentos do inicio do século VIII mencionam o nobre, uma de autoria de Eugênio de Toledo e outra creditada ao Monge de Cister; a descoberta do relato acima, tido como o original, e os estudos recentes da Faculdade de Toledo realizados por Sr. Henrique Cortez, doutorado em história medieval pela Universidade de Lisboa e o Sr. Paulo Rivera, Pós-doutorado em arqueologia na Universidade de Oxford, ambos docentes da universidade hispânica, confirmam a real existência do nobre e a validade de sua crônica, pois os recentes testes de Carbono 14 e estudos caligráficos comprovaram que o suposto registro de sua “viagem onírica até estranhas terras e dimensões,” parafraseando as palavras do Professor Cortez, é de fato atribuída ao celerado fidalgo. Algumas cópias do manuscrito, embora sem qualquer descrédito histórico até o citado estudo, circulavam por regiões da Europa nos recônditos confins das terras mulçumanas. Alguns pesquisadores sustentam a tese que se o próprio Roderick Shore, Grão Mestre da Ordem de Lammoth, tenha tido o contato com estas crônicas e copilou, em latim e inglês arcaico, juntos com seus discípulos, muitos exemplares da “obra”; é muito provável que este tenha até mesmo se inspirado na experiência fantástica de Dom Monteviedo, assim como em outros escritos deixados na sua biblioteca, para criar sua temível seita e desenvolver sua arte. Já é bem acolhida entre os acadêmicos de que a “história” do nobre espanhol ter sido difundida no mundo árabe, cerca de oitocentos anos antes de Shore, por Abdul Alhazared, que fez uma viagem a região das Astúrias, como alguns sustentam, nos anos de 748, quando o sábio mulçumano percorreu várias terras colhendo informações sobre lendas e cultos secretos. Dois anos depois Alhazared o usaria, assim como outros escritos deixados pela linhagem de Monteviedo (conjuntamente com os anais achados nos subterrâneos da fabulosa Cidade de Irem), como uma das ferramentas para compor o seu lendário Azif (Necronomicon). Cerca de setecentos anos mais tarde, imagina-se que o próprio Sultão Maomé II, o conquistador do Império Bizantino, tenha sido um dos admiradores e preservadores destes anais. Quanto aos monumentos de pedra encontradas num bosque. Buscas ocorridas nos anos de 1930 e 1931 pelo professor da Universidade da Catalunha, José Roberto Dias, encontraram a referida “Colina Silenciosa.” Mas os ossos as quais D. Monteviedo refere-se não foram achados apesar da grande procura. Entretanto as edificações de pedra estavam num estado incomum de composição química, parecia que todas estavam consumidas pelo fogo, e seus corpos, com a mesa 71 fragilidade de uma pedra esponja, esfacelavam-se ao mais leve esforço das mãos que a tocassem. Quanto aos termos encontrados nas rochas, nenhum símbolo referido nas crônicas constava de fato, contudo os caracteres mencionados na crônica foram traduzidos e estranhamente pertenciam a um antigo dialeto etíope há séculos desaparecido. Sua tradução fica aproximadamente assim: Em sua morada em R’yleh o morto Cthulhu espera sonhando. VIII. Esta versão da narrativa teve corrigido algumas imperfeições, tendo por base o original, em latim, cotejadas com traduções de monges gregos da região da Tessalônica do século XIII, outra de autoria em inglês comprovada de Roderick Shore, uma versão em árabe creditada a Abdul Alhazared e outra em galego português de José Maria Pacheco, do inicio do século XII, que fora um dos cronistas na época da dinastia de Borgonha. A linguagem está adaptada à do nosso tempo, entretanto, foi preservada, de alguma forma, o rigor do original. ***