o léxico em foco: algumas incursões sobre a variação lexical

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o léxico em foco: algumas incursões sobre a variação lexical
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Bacharelado e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande
Mestrado em Letras • UEMS / Campo Grande
ISSN: 2178-1486 • Volume 3 • Número 9 • março 2013
Edição Especial • Homenageada
PROFESSORA DOUTORA MARIA LUIZA BRAGA
O LÉXICO EM FOCO: ALGUMAS INCURSÕES SOBRE A
VARIAÇÃO LEXICAL PRESENTE EM AUTOS DE
DEFLORAMENTO DO INÍCIO DO SÉCULO XX
Daianna Quelle da Silva Santos da Silva (UEFS/ FAPESB)1
[email protected]
Josenilce Rodrigues de Oliveira Barreto (UEFS/ CAPES) 2
[email protected]
Rita de Cássia Ribeiro de Queiroz (UEFS/ Orientadora)3
[email protected]
Josane Moreira de Oliveira (UEFS/ Orientadora)4
[email protected]
RESUMO: O presente artigo é resultado da disciplina “Variação, mudança linguística e ensino” que foi
ministrada pela professora Dra. Josane Moreira de Oliveira. Neste trabalho falamos da variação lexical,
no campo dos qualificadores da mulher, mais especificamente das lexias referentes à virgindade feminina,
que estão presentes em autos de defloramento do início do século XX. O corpus deste trabalho é o livro
intitulado “Manuscritos baianos dos séculos XVIII ao XX: Autos de defloramento”, no prelo ainda,
organizado pela professora Dra. Rita de Cássia Ribeiro de Queiroz. Neste entremeio, escolhemos seis
autos de defloramento constantes no livro, são eles: o de “Ephigenia Augusta de Jesus (1907)”; o de
“Joana Francisca dos Santos (1900)”; o de “Saturnina Maria de Jesus (1902)”. A partir disso, resolvemos
analisar algumas lexias no campo da sexualidade e escolhemos apenas três delas, “Deflorada”,
“Disvirginada” e “Offendida”. Assim, sob o prisma histórico, mais especificamente, a partir de alguns
dicionários vimos as definições para as lexias mencionadas. Destaca-se que, como aporte teórico, usamos
Aulete (1964), Bueno (19068), Cunha (2007) Silva Neto (1977) entre outros, e, principalmente Labov
(2008), cujos trabalhos em sua grande maioria versam sobre variação e mudança linguística. Portanto,
esperamos, com o presente trabalho, inter-relacionar a Filologia e Lexicologia com a Variação e Mudança
Linguística.
PALAVRAS – CHAVE: Documentos Manuscritos. Filologia. Variação Lexical.
RESUMEN: Este artículo es el resultado de la disciplina " Variación, el cambio linguístico y educación",
que fue impartida por la profesora Dr. Josane Moreira de Oliveira. En este trabajo se habla de la variación
léxica en el campo de la competición preliminar de la mujer, específicamente las lexias sobre la
virginidad femenina, que están presentes en el caso de desflorar a principios del siglo XX. El corpus de
este trabajo incluyen el libro titulado "Los manuscritos de Bahía XVIII hasta el siglo XX: Coches
desfloración ", todavía en prensa, organizada por el Profesor Dr. Rita Ribeiro de Queiroz. En el medio,
hemos elegido seis actos de desfloración aparece en el libro, que son: el "Augusta Ephigenia de Jesús
1
Mestranda em Estudos Linguísticos pela Universidade Estadual de Feira de Santana.
Mestranda em Estudos Linguísticos pela Universidade Estadual de Feira de Santana.
3
Professora Plena da Universidade Estadual de Feira de Santana. Orientadora.
4
Professora Adjunta da Universidade Estadual de Feira de Santana. Orientadora
2
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(1907);" a "Juana Francisca dos Santos (1900)", a "Saturnina María de Jesús (1902)." Por lo tanto, hemos
decidido analizar algunas lexias respecto a la sexualidad, y eligieron sólo tres de ellos, "Desflorada",
"Disvirginada" y "Offendida". Así, la historia prisma, específicamente de algunos diccionarios valores
observados para lexias mencionado. Cabe señalar que, según el teórico, Aulete (1964), Bueno (19.068),
Cunha (2007) Silva Neto (1977) entre otros, y sobre todo Labov (2008), cuyas obras tratan
principalmente con el cambio y cambio lingüístico. Así que espero que, con este trabajo, se relacionan
entre sí con la Filología y lingüística Lexicología Variación y Cambio.
PALABRAS - LLAVE:Documentos Manuscritos. Filología. Variación Léxica.
1. PRIMEIRAS PALAVRAS
Há algum tempo, as discussões que propiciam ver a língua como dinâmica,
diversificada e interacionista são realizadas. A sociolinguística é uma das subáreas da
Linguística que se propõe ao estudo da língua em uso e abarca a investigação que
correlaciona os aspectos linguísticos aos sociais. A ciência, ora apresentada, iniciou-se
com os estudos de William Labov, um linguista norte-americano, na década de 60.
Labov ([1972] 2008) por sua vez, deu início à "Teoria da Variação".
A Sociolinguística Variacionista surge, portanto, com base nas discussões que
priorizam a heterogeneidade das línguas e a variabilidade linguística presente em todas
aquelas. Nesse âmbito, os estudos que utilizam a teoria da variação permitem uma nova
abordagem para a língua, pois analisam o seu uso dentro da comunidade de fala,
quantificam essa análise baseada na fala espontânea, ou seja, no momento em que o
indivíduo monitora minimamente a lingua(gem) (LABOV, 2008), além de estarem
aliados ao objetivo de descrever a variação e a mudança linguística atrelada ao contexto
social de produção.
Sabe-se, entretanto, que para compreender os processos de mudança linguística,
em uma perspectiva diacrônica, é necessário recorrer a textos escritos pretéritos, visto
que não há amostras de fala de épocas passadas. Assim, “entram em cena” a filologia e
os documentos escritos, pois estes últimos constituem corpora indispensáveis para a
observação, análise e compreensão dos processos envolvidos na implementação da
mudança linguística ao longo do tempo. Dessa forma, ao se desvendarem os
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mecanismos correlacionados à variação e à mudança linguística, têm-se em mãos
argumentos sólidos para explicar como e por que as línguas mudam.
Os textos escritos em épocas pretéritas, consequentemente, retomam a ciência
que traz à tona esses textos bem como os métodos envolvidos na busca da genuinidade
de documentos referentes a períodos remotos. Assim, faz-se necessário destacar que,
através do aparato técnico-científico disponibilizado pela filologia - ciência que se
ocupa da língua, da cultura de um povo ou de um grupo de povos-, pode-se creditar a
fidedignidade de textos vários, os quais podem ser utilizados para diversos estudos de
inúmeras áreas do conhecimento, tais como a Antropologia, o Direito, a Sociologia, a
História, a Linguística, a Sociolinguística, enfim.
Partindo desse pressuposto, pode-se constatar que, por meio do estudo de
documentos notariais de décadas passadas, mais especificamente a partir do léxico
constante nestes, é possível perceber alguns aspectos referentes à variação lexical. Pelo
fato de não haver amostras de falas gravadas nessa época, faz-se necessário recorrer a
textos escritos, neste caso do início do século XX, para o desenvolvimento deste
trabalho, que envolve a variação, na perspectiva de estudo da sociolinguística.
2. NAS LINHAS DO TEMPO: OS LAÇOS ENTRE A FILOLOGIA E A
SOCIOLINGUÍSTICA
Sabe-se que a língua é um dos bens culturais mais preciosos que a humanidade
possui e que as características sócio-histórico-político-culturais pertencentes a um
determinado povo são desvendadas a partir da língua. Assim, de acordo com Pires
(2006, p.61), a língua
é um sistema de signos que é visto como um valor cultural em si mesma. Os
falantes identificam-se com os demais membros do grupo social através da
língua e eles consideram a sua língua um símbolo da sua identidade social.
Por conseguinte, pode dizer-se que a língua é uma realidade cultural.
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Dessa forma, a língua de um determinado povo está atrelada à cultura deste, pois
é impossível estudar o sistema linguístico de uma comunidade sem levar em
consideração a sociedade e a cultura em que se inserem esses falantes. Ao se pensar em
língua, consequentemente, tem-se que considerar o aspecto social, pois a linguagem
“[...] é, iminentemente, um fato social. Tem-se, frequentemente, repetido que as línguas
não existem fora dos sujeitos que as falam, e, em consequência disto, não há razões para
lhes atribuir uma existência autônoma, um ser particular” (MEILLET apud ALKIMIN,
2001, p. 24).
No entanto, como é possível estudar a língua utilizada por sociedades pretéritas?
Ou melhor, como compreender os processos de mudança linguística sem estudar a
língua em uma perspectiva diacrônica? Ou ainda, como perceber, analisar e comprovar
uma possível variação e/ou mudança linguística referente a períodos em que não se tem
à disposição amostras de fala de comunidades linguísticas de outras épocas históricas?
Não há amostras de fala gravadas antes da década de 1960, período em que a
sociolinguística se estabeleceu enquanto ciência; assim a única maneira que se tem de
estudar a língua antes dessa data é recorrendo aos textos escritos que representem o
período linguístico que se deseja analisar.
Dessa forma, através de documentos pretéritos é possível estabelecer hipóteses
sobre como funciona(va) o sistema linguístico em determinado período da história.
Entretanto, para se ter textos capazes de servir a tais estudos, é fundamental que se
tenha em mãos meios eficazes de trazer à superfície documentos autênticos. Daí a
importância da Filologia, porque, como ciência surgida no século XIX, dispõe de
critérios e métodos específicos para a edição e a preservação de documentos de outrora
e presentes.
Segundo Silva Neto (1977, p. 20), a Filologia é entendida como:
[...] o estudo científico, histórico e comparado da língua nacional em toda a
sua amplitude, não só quanto à gramática (fonética, morfologia, sintaxe) e
quanto à etimologia, semasiologia, etc., mas também como órgão da
literatura e como manifestação do espírito nacional.
.
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Assim, para a realização dos estudos filológicos, há um aparato técnicocientífico a fim de trazer à baila textos escritos, os quais constituem excelentes corpora
para o estudo da língua ao longo da história.
Por outro lado, nos estudos sociolinguísticos, há um olhar voltado para
ocorrência de variações dentro do sistema linguístico que podem ou não implicar uma
mudança. Assim, “[...] as evidências da variação sincrônica passam a constituir um
excelente laboratório para a compreensão de mudanças já completadas, ocorridas no
passado [...]” (WEINREICH, LABOV e HERZOG, 2006, p.139-140). Daí, a empreitada
que se intenta realizar neste artigo: analisar a variação lexical constante em documentos
notariais do início do século XX, editados a partir de critérios filológicos, associando o
trabalho propiciado pela filologia com a análise de dados referentes à variação do
léxico, objeto de estudo da sociolinguística.
3. O CORPUS
Este trabalho possui como corpus o livro intitulado “Manuscritos baianos dos
séculos XVIII ao XX: Autos de defloramento”, no prelo, organizado pela Dra. Rita de
Cássia Ribeiro de Queiroz, professora plena da Universidade Estadual de Feira de
Santana. Este livro consta de seis autos de defloramento editados por 1) Analídia dos
Santos Brandão, 2) Bárbara Bezerra de Santana, 3) Fernanda Assunção Dias Cerqueira,
4) Ivanete Martins de Jesus, 5) Jacilene Marques Salomão e 6) a organizadora.
Para a edição desses textos, foram adotados alguns critérios, a saber: para a
descrição, observou-se número de colunas, número de linhas da mancha escrita,
existência de ornamentos, maiúsculas mais interessantes, existência de sinais especiais,
número de abreviaturas, tipo de escrita, tipo de papel e data do manuscrito. Já para a
transcrição, adotou-se respeitar fielmente o texto: grafia (letras e algarismos), linha,
fólio, etc; indicar o número do fólio, à margem direita; numerar o texto linha por linha,
indicando a numeração de cinco em cinco, desde a primeira linha do fólio; separar as
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palavras unidas e unir as separadas; desdobrar as abreviaturas, apresentando-as em
itálico e negrito; utilizar colchetes para as interpolações; e indicar as rasuras ilegíveis
com o auxílio de colchetes e reticências (QUEIROZ, 2007, p. 34).
As ações representadas nesses autos de defloramento são práticas delituosas dos
acusados de defloramento, que, através da sedução e promessa de casamento,
conseguiam desvirginar as suas “amadas” e deixá-las, aos olhos da sociedade da época,
“deshonradas” e, portanto, defloradas e maculadas.
No entanto podemos nos questionar: o que vem a ser defloramento? De acordo
com Sartori (2010, p.4),
O crime por defloramento, segundo consta na prática corriqueira dos
Inquéritos Policiais analisados, era o desvirginamento consentido de
mulheres menores de 21 anos. A virgindade da pretensa vitima era uma
premissa básica para o desenvolvimento dos autos. O delito criminoso incidia
sobre a não oficialização do casamento após o ato sexual. A partir deste
incidente que a trama de vida de homens e mulheres começa ser tecida
lentamente por diferentes discursos, permeado por diversos conflitos, em
caminhos sinuosos, que acionam uma rede de sociabilidade ampla, composta
por diferentes sujeitos.
Assim, através desses documentos são reveladas as atitudes sociais, o
comportamento das vítimas e de seus “ofensores” bem como da Justiça e as marcas
ideológicas da sociedade de então representadas através da língua expressa na mancha
escrita. Desta forma, por meio da identificação e análise de lexias como deflorar e seus
respectivos derivados (defloramento defloração, deflorador e deflorada) poderemos
verificar o quanto “deflorar” pôde assumir significados múltiplos ao longo dos anos,
bem como as suas ocorrências e de seus derivados no corpus. Contudo traremos,
inicialmente, as definições constantes em dicionários de língua portuguesa do século
XX, a saberem: Aulete (1964), Bueno (1968), Fernandes (1983), Luft (2000), Houaiss
(2001), Cunha (2007), Barsa (2008) e Ferreira (2010), com o intuito de compreender
seus significados ao longo dos documentos e inferir qual foi a motivação de seu
desaparecimento e a sua respectiva substituição pelo sinônimo “desvirginar” na
atualidade.
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4 OS SENTIDOS DO “DEFLORAR” : VARIAÇÃO LÉXICO-SEMÂNTICA
O léxico surgiu a partir da necessidade que o ser humano teve de nomear as
coisas, os seres de modo geral e o mundo que o cerca. É através do léxico que são
notadas, mais nitidamente, as alterações de significado que uma ou outra palavra podem
assumir, a depender do contexto, pois a “[...] palavra nasce neutra (em estado de
dicionário), ao se contextualizar, ela passa a expressar valores e ideias, transitando
ideologias, cumprindo um amplo espectro de funções persuasivas [...]” (CITELLI,
1995, p. 23-36). Dessa forma, o nível lexical é a parte da língua que está mais suscetível
à mudança, pois engloba, por exemplo, várias palavras novas que vão surgindo, os
neologismos e os empréstimos; ressignifica palavras existentes dentro do sistema
linguístico, as gírias; e abarca outras que caíram ou cairão em desuso, os arcaísmos.
A “[...] geração do léxico se processou e se processa através de atos sucessivos
de cognição da realidade e de categorização da experiência, cristalizada em signos
linguísticos: as palavras [...]” (BIDERMAN, 1998, p. 11), pois é no nível do léxico que
são percebidas as arbitrariedades do signo linguístico, porque não há uma relação lógica
entre significante e significado, ou seja, a denominação de um objeto ou coisa não
corresponde à sua funcionalidade. Para exemplificar o que foi dito anteriormente,
reflita-se sobre a palavra “caneta” (não será abordada aqui a etimologia da palavra, mas
sim a relação ilógica entre o nome e o seu significado): o objeto “caneta” tem como
funcionalidade escrever, rabiscar, então por que o seu nome não é “escrevedor” ou
“rabiscador”? O que tem a ver o objeto com o seu significante? Nada! Apenas a
nomeação, como se disse anteriormente, se dá de forma ilógica, daí dizer-se que o signo
linguístico é arbitrário, porém “convencionalizado” e aceito pelos falantes da língua, ou
seja, estamos falando do signo linguístico como entidade de duas faces, que “[...] une
não uma coisa e uma palavra, mas um conceito e uma imagem acústica” (SAUSSURE,
1970, p. 80), ou melhor, o signo linguístico é constituído de duas formas: uma que é o
significado, representado pelo seu equivalente no mundo exterior, e uma significação,
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que é a ideia ou noção que elaboramos em nossa mente do objeto representado, signos
estes contidos nos referidos documentos.
Além do mais, ao se perscrutar o léxico de uma língua natural, deve-se ter em
mente que “[...] estudar o léxico de uma língua é enveredar pela história, costumes,
hábitos e estrutura de um povo, partindo-se de suas lexias [...]” (ABBADE, 2006, p.
213), pois não se pode analisar o conjunto aberto e infinito de palavras, doravante o
léxico, sem levar em consideração as características históricas, culturais, sociais, só para
citar algumas, do povo que as produziu. Analogicamente, ao se estudar documentos
manuscritos de épocas pretéritas, identificam-se alguns aspectos como pertencentes
àquelas comunidades linguísticas.
4.1 A ANÁLISE DOS DADOS
De acordo com alguns dicionários consultados, o termo “deflorar” sofre algumas
variações de significado, variações estas que partem desde a sua etimologia. Assim,
antes de qualquer coisa, observemos as definições da lexia em destaque e de seus
significados trazidos nos dicionários de língua portuguesa analisados para
compreendermos as variações presentes nos documentos manuscritos.
Percebemos, a partir das definições dadas pelos dicionários, que o termo
“deflorar” assume acepções diversas, tais como “tirar a flor”, “violar a virgindade”,
“fazer perder a candura, a inocência”, “desonrar”, “estuprar”, “desvirginar” etc. Assim
como nos dicionários analisados, os documentos estudados também apresentam
variação no que tange à sinonímia ao termo “deflorar”. Para corroborar isto, vejamos a
seguir algumas lexias e suas respectivas ocorrências para se referir ao ato de desvirginar
alguém.
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Anos
Palavra – Significados e Sinônimos
1964
Deflorar v.tr. tirar a flor a: O granizo deflorou tôdas as árvores frutíferas. (Fig.) violar a
virgindade de; fazer perder a candura, a inocência, a ingenuidade de. Extinguir a beleza, o viço,
o frescor de uma coisa. Desflorar. (AULETE, 1964, grifo nosso);
Deflorar v.t. desonrar. Lat. Deflorare, tirar a flor. Derivs. Defloração, lat. Deflorationem;
defloramento, s.m.; deflorador, lat. Defloratorem. (BUENO, 1968, grifo nosso);
Deflorar tr. Tirar a flor a; [Aulete] violar a virgindade de; desflorar: “Deflorar mulher de menor
idade. (FERNANDES, 1983, grifo nosso);
Deflorar v.t. 1. Tirar as flores a; desflorar. 2. (fig.) desvirginar – defloração s.f. ou defloramento
s.m.; deflordor dj e s.m. (LUFT, 2000)
Deflorar v. 1 t.d. desflorar/ retirar ou perder as flores. 2. T.d. fazer perder ou perder a virgindade;
desflorar-se, desvirginar(-se). 3 t.d. tirar a pureza, a naturalidade de; alterar, deturpar, profanar,
desflorar. 4 . t.d. fazer diminuir ou perder o viço, a beleza a (alguém ou algo). Etim. Latim
defloro, -as, -avi, -atum, -are colher a flor, p. ex. deflorar, manchar. (HOUAISS, 2001)
Deflorar [do lat. Deflorare] v.t.d. 1. Desflorar; 2. V. estuprar
Defloração [do lat. Defloratione] s.f. v. defloração
Deflorado [part. de deflorar] Adj. Que se deflorou
Deflorador [do lat. Defloratore] Adj. S.m. v. desflorador
Defloramento [de deflorar + - mento] s.m. v. desfloração (FERREIRA, 2010, grifo nosso);
Deflorador adj. S.m. (século XVI) desflorador. 1. Que ou aquele que faz diminuir o viço, a
beleza a (alguém ou algo). Etim. Latim deflorator, -oris o que desonra, mancha (HOUAISS,
2001, grifo nosso);
Defloraração, - ador, - amento, - ar → flor (CUNHA, 2007);
1968
1983
2000
2001
2001
2001
2007
2008
Deflorar vtd. 1. Tirar as flores a. 2. Tirar a virgindade de.
Defloração s.f. Ação de deflorar. (BARSA, 2008);
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Nos documentos em análise aparecem várias lexias para se referir ao
(des)virginamento da moça antes do casamento. Vejamos:
AUTOS
DE
DEFLORAMENTO
Ephigenia
Joana
Saturnina
Josepha
Senhorinha
Maria
Augusta
Francisca
Maria de
Esmina
Soares de
José de
de
dos
Jesus
Ribeiro
Lima
Oliveira
Santos
(1902)
(1907)
(1903)
(1903)
Jesus
(1907)
TOTAL
(1900)
LEXIAS
OCORRÊNCIAS
Deflorada
-
6
1
3
2
2
14
Disvirginad
1
-
-
-
-
-
1
1
9
5
1
16
a
Offendida
9
19
83
4
TOTAL
98
Assim como nos dicionários analisados, os autos de defloramento também
apresentam lexias diferentes (sinônimos), como por exemplo, “desvirginada”,
“deflorada” e “ofendida” para se referir ao ato de desvirginar/violar a virgindade de
alguém.
É interessante notarmos que, nos autos de defloramento, as lexias mais
constantes referentes à virgindade feminina são “deflorada” e “offendida”, sendo esta
última a que mais apresenta ocorrências ao longo dos documentos, a qual marca,
ideologicamente, a sociedade de então, pois dizer que uma mulher foi “offendida”
significava, naquela época, que o seu desvirginamento ofendia não apenas a sua
“honra”/castidade, mas também e principalmente a sua família, visto que esta recorria à
Justiça para que o nome da família não fosse jogado “na lama”, pois a castidade
feminina era vista como símbolo de honestidade e dignidade de toda a família.
Por sua vez, as lexias “desvirginada” e “offendida em sua honra” aparecem
apenas uma vez, cada uma, no auto de defloramento de Ephigenia Augusta de Jesus
(1907), fato este que mostra o quanto as escolhas lexicais feitas pelos indivíduos
possuem marcas ideológicas fortes, pois as principais lexias escolhidas para se referir ao
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defloramento de uma mulher são “offendida” e “deflorada”, visto que estas carregam
consigo cargas semânticas ideologicamente mais fortes do que as anteriores, porque do
ponto de vista da sociedade de então para o desvirginamento feminino antes do
matrimônio era como se “a flor tivesse sido colhida” e o “mel tivesse sido derramado”,
portanto havia uma grande ofensa tanto para a vítima quanto para a família daquela. Daí
dizer-se que é impossível pensar em língua sem levarmos em consideração a sociedade
e a cultura, pois são as características sócio-culturais que impelem as escolhas
linguísticas de cada povo, ou melhor, são aquelas características que definem quais as
escolhas lexicais que devem ser feitas ao se referir ao desvirginamento da mulher, que
neste caso foram as lexias “offendida” e “deflorada”.
5 PALAVRAS FINAIS, MAS NÃO AS ÚLTIMAS...
Percebemos que a palavra “deflorar” era usada principalmente no meio jurídico
para indicar que uma moça tinha perdido a virgindade, o que figurativamente
significava o “desabrochar da flor”, e, por conseguinte a “pureza” feminina. Hoje,
estudos mostram que a palavra “deflorar” está cada vez mais sendo menos utilizada,
sendo substituídas, com mudanças semânticas, por palavras como “estupro” e
“desvirginamento” porque, de certa forma, a palavra “deflorar”, quando utilizada, trazia
eu seu bojo a carga semântica que liga a mulher a um “objeto de prazer”, a um “ser
impuro” e “desonrado”.
Sendo assim, neste artigo, tentou-se fazer um esboço da variação lexical
existente em documentos jurídicos, mais especificadamente em autos de defloramento,
como uma maneira de explanar algumas palavras usadas para (des)qualificar a
virgindade feminina.
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REFERÊNCIAS
AUERBACH, Erich. Introdução aos estudos literários. Tradução de José Paulo Paes.
São Paulo: Cultrix, 1972.
LABOV, W. Padrões sociolinguísticos. Trad. de Marcos Bagno, Maria Marta Scherre
e Caroline Cardoso. São Paulo: Parábola, 2008.
PIRES, Eliane Cristine Raab. Língua e Cultura. Portugal: Instituto Politécnico de
Bragança, 2006.
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral. 2. ed. São Paulo: Cultrix, 1970.
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Web-Revista SOCIODIALETO • www.sociodialeto.com.br
Bacharelado e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande
Mestrado em Letras • UEMS / Campo Grande
ISSN: 2178-1486 • Volume 3 • Número 9 • março 2013
Edição Especial • Homenageada
PROFESSORA DOUTORA MARIA LUIZA BRAGA
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Recebido Para Publicação em 05 de fevereiro de 2013.
Aprovado Para Publicação em 11 de março de 2013.
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