a primavera dos povos árabes volume i

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a primavera dos povos árabes volume i
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A
PRIMAVERA
DOS POVOS
ÁRABES
VOLUME I
Textos selecionados e organizados pelo Professor Altamir Fernandes do Centro Universitário de
Patos de Minas
Março de 2011
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Revoltas Árabes – Especial
28/01/2011 |
A Revolução dos Jasmins contra as autocracias
A Revolução dos Jasmins iniciou na Tunísia com a imolação de um jovem e logo se alastrou para
outros países. Agora, a revolta chega ao Egito e ao Iêmen. Em entrevista ao jornal Página/12, o
sociólogo e filósofo Sami Naïr, professor de Ciências Políticas na Universidade Paris VIII e presidente
do Instituto Magreb-Europa da mesma Universidade, analisa a originalidade e as causas destas
revoltas árabes. Autor de ensaios e análises sobre política internacional, Naïr aponta como primeiro
fator alimentador da revolta o fato central de que o medo mudou de campo. É o poder que enfrenta
agora um povo que perdeu o medo.
Eduardo Febbro - Página/12
A chamada Revolução dos Jasmins que iniciou na Tunísia há algumas semanas se estendeu como um
rastilho de pólvora para vários países árabes, e não os menores. O Iêmen e, sobretudo, o Egito, vivem
hoje revoltas que têm características revolucionárias. Trata-se de um fenômeno tanto mais único na
medida em que o discurso ocidental sempre tratou os países árabes como incapazes de assumir
coletivamente um destino democrático. Tunísia, Argélia, Mauritânia, Iêmen e Egito não só desmentem
esses argumentos como também abalam desde a raiz as ditaduras que governam esses países há décadas
com mão de ferro e privilégios exorbitantes.
Alguns analistas asseguram hoje que já não se trata de saber que regime cairá primeiro, mas sim qual se
salvará dessa onda de aspirações democráticas cujos protagonistas são as classes médias, os setores
menos favorecidos e os jovens, que se organizam por meio da internet e das redes sociais. O mais
moderno do mundo irrompe como instrumento de comunicação e protesto contra poderes dinossáuricos.
Os protestos revelam também a ruptura sem remédio entre autocracias longevas, respaldadas
historicamente pelo Ocidente, e a legitimidade popular.
O sociólogo e filósofo Sami Naïr, professor de Ciências Políticas na Universidade Paris VIII, presidente
do Instituto Magreb-Europa da mesma Universidade, analisa em entrevista ao jornal Página/12 a
originalidade e as causas desta revolução árabe. Autor de ensaios e análises sobre política internacional,
Naïr aponta como primeiro fator alimentador da revolta o fato central de que o medo mudou de campo.
É o poder que enfrenta agora um povo que perdeu o medo.
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A entrevista
A Revolução dos Jasmins iniciou na Tunísia com a imolação de um jovem e logo se alastrou para
outros países. Agora, a revolta chega ao Egito e ao Iêmen. Você dizia em uma análise que, assim como
ocorreu primeiro na América Latina e depois nos países do leste europeu, certa parte do mundo árabe
está despertando para a história.
- Sempre prensei que, ao menos no século XX, o laboratório dos povos foi a América Latina. A
Revolução Russa não pode ser entendida sem a Revolução Mexicana. Os latino-americanos inventaram
todas as formas de luta possíveis e imagináveis. Na América Latina, se experimentaram as guerrilhas, as
lutas políticas, os despotismos, as ditaduras. A partir dos anos 80 e 90, as ditaduras caíram em quase
todos os países da América Latina. Esse movimento contra as ditaduras se desenvolveu em outros
lugares do mundo, por exemplo, nos países do leste europeu a partir da queda do Muro de Berlim.
Agora, esse movimento de fundo que iniciou na América Latina está atingindo todos os países da orla
árabe do Mediterrâneo e mesmo além, na península arábica, como está acontecendo no Iêmen.
O problema reside em que, contrariamente ao que ocorreu na América Latina, o movimento que eclodiu
nestes países árabes não tem direção, nem organização, nem programa. É um movimento totalmente
espontâneo com duas características fundamentais: em primeiro lugar, trata-se de um movimento que
destrói definitivamente a ideia de que estas sociedades estão condenadas a viver com o perigo
extremista e fundamentalista, por um lado, e, por outro, com a ditadura, que seria uma suposta garantia
necessária contra esse perigo fundamentalista. Agora está se demonstrando que o problema é muito
mais complexo e que estes países não querem experimentar nem o islamismo nem o fundamentalista,
mas sim que, basicamente, desejam a democracia.
O segundo elemento importante, e que pode lembrar o que ocorreu na América Latina, reside no fato de
que há uma aliança circunstancial entre as camadas mais pobres e humildes, sem verdadeira inserção
social, e as camadas médias empobrecidas nestes últimos anos. Na última década, todos esses países
padeceram de um empobrecimento muito importante das classes médias e agora há uma fusão entre
esses setores e a base popular, as classes pobres totalmente excluídas do processo de integração dentro
da sociedade.
Se essas revoltas forem até o fim nestas autocracias árabes estaríamos vivendo uma autêntica
revolução mundial, um giro decisivo na história de nossa concepção dos sistemas políticos mundiais.
Sempre se acreditou que os países árabes eram incapazes de assumir uma forma de democracia
popular e participativa.
- Isso corresponde a um discurso muito depreciativo construído pelos países ocidentais, pelo capitalismo
internacional cuja sede é a Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômico (OCDE),
Estados Unidos e União Europeia. Esses atores querem que haja estabilidade nos países árabes e para
isso necessitam de regimes fortes e ditatoriais, porque o que importa a eles são duas coisas: em primeiro
lugar que essa gente não emigre e, em segundo, que as fontes de recursos petrolíferos sejam garantidas.
Por isso desenvolveram esse discurso em total sintonia com os ditadores que sempre repetiram: “nossos
povos carecem de maturidade política e cultural e, por conseguinte, não podem ter acesso à
democracia”.
Sabemos que tudo isso é falso, que as aspirações democráticas são muito fortes nesta região do mundo.
Creio que o que está acontecendo agora demonstra isso de maneira muito clara. Cada situação é
específica. Não se pode misturar o que ocorreu na Tunísia, um país que tem uma tradição laica e elites
ilustradas muito fortes, com camadas sociais muito coesas, com a situação do Iêmen, onde impera um
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sistema tribal baseado na dominação despótica de um clã. A única coisa similar é o grau de dominação e
a forma de controle, apoiada na polícia e no exército.
A explosão social no Egito tem matizes inéditos. No Egito o exército desempenha um papel central,
onde o presidente, Hosni Mubarak, pertence a ele e onde quem está chamado a substituí-lo, seu filho
Gamal Mubarak, é um liberal que não é bem visto pelas forças armadas.
O caso egípcio é muito particular, em primeiro lugar porque o país é um velho Estado de direito.
Provavelmente seja o Estado de direito mais antigo do mundo. O Estado de direito moderno foi
constituído por Mohamed Ali entre o final do século XVIII e início do XIX, ou seja, antes que nós na
Europa soubéssemos o que era isso. Mas esse Estado foi destroçado pelos ingleses no século XIX. Em
todo o caso, o filho de Mubarak, Gamal, não representa a democracia. Gamal Mubarak é o elemento
chave da nomenclatura que domina o país em sua vertente mais liberal. A questão do liberalismo não
pode ser concebida unicamente como liberalismo econômico, salvo se se trata de comparar o Egito com
a China. Na China temos um despotismo político neocomunista e um liberalismo selvagem que encarna
na verdade a dominação de uma elite burocrática. No Egito, é diferente. É impossível que se possa
organizar um sistema liberal sem democratização da sociedade. É indispensável evitar que o Egito se
transforme em uma república hereditária onde o pai ditador nomeia seu filho como futuro ditador
liberal. As pessoas estão buscando outra coisa.
Querem a democratização da sociedade para que a sociedade civil possa escolher por meio de um debate
democrático transparente. O filho de Mubarak é como seu pai. As pessoas não o querem porque já tem o
exemplo da Síria, onde o filho substituiu o pai e terminou instaurando um sistema mais ou menos
liberal, mas com a mesma ditadura.
Você assinala que o que começou a ocorrer na Tunísia e logo se espalhou para outros países é que o
medo mudou de lado. O medo acabou.
- Isso foi muito importante neste processo. Eu estava na Tunísia quando tudo isso começou e vi como o
medo mudava de campo. A revolta tunisiana estourou na localidade de Sidi Bouzid, com a imolação do
jovem Mohamed Bouazizi. A partir dali, tudo se transtornou. Até esse momento, o regime tunisiano
estava baseado no temor. Mas a morte de Mohamed Bouazizi mudou essa situação, sobretudo pela
atitude do então presidente Bem Alí, que foi visitar a família da vítima. As pessoas se deram conta que
quem tinha medo era o poder. O mesmo está ocorrendo no Egito. O mais importante nestas revoltas é a
vitória do imaginário que significa que transformaram a relação com o poder: agora são os ditadores que
devem temer os povos. Isso não significa que amanhã vamos ter uma revolução em todas as partes. Não.
O movimento pode avançar, pode recuar, não sabemos o que vai acontecer. Mas o que sabemos, e isso
já foi percebido pela população, é que os poderes podem mudar quando os povos querem mudar suas
condições de vida e ousam enfrentar o poder para escolher seu próprio destino.
Por isso penso que estamos diante de uma onda que terá desdobramentos. Estamos na mesma história
que os povos da América Latina abriram nos anos 80. Logo se seguiram os povos do Leste europeu nos
90 e agora estamos vendo isso acontecer com estes povos árabes. Não podemos esconder que o que está
ocorrendo é também uma consequência da globalização. A globalização é má socialmente, mas tem algo
bom, que é a globalização dos valores democráticos nas sociedades civis.
29/01/2011 |
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O Egito a caminho da revolução. O que fazer?
Aqueles que temem o crescimento do “islamismo radical” como fator de instabilidade nessa região,
deveriam estar mais atentos em relação às “ditaduras amistosas” que, na verdade, são as principais
responsáveis pela insegurança no mundo. Desemprego em massa, preços dos alimentos e repressão
política é uma combinação explosiva mais perigosa do que os homens bomba. No caso do Egito dois
terços da população são jovens abaixo de 30 anos, dos quais 90% estão desempregados. O artigo é de
Reginaldo Nasser.
Reginaldo Nasser (*)
As mobilizações populares na Tunísia, Egito, Iêmen e em outros lugares são um alerta para o chamado
mundo desenvolvido e seria uma grande avanço para a democracia se esta região que permanece imersa
na violência, em fraudes eleitorais e miséria crescente da população recebesse o devido apoio
internacional nesse momento.
O porta-voz da Casa Branca, Robert Gibbs, disse que os EUA poderão revisar a ajuda ao Egito. O
presidente Obama solicitou às autoridades egípcias que evitem o uso de qualquer tipo de violência
contra manifestantes pacíficos, alertando que " aqueles que protestam nas ruas têm uma
responsabilidade de expressar-se pacificamente. Já a chanceler alemã, Angela Merkel, afirmou que a
“estabilidade do país é muito importante, mas não a qualquer preço”. O secretário-geral da ONU, Ban
Ki-moon, pediu que "os líderes do Egito escutem as preocupações legítimas e os desejos de seus
cidadãos”. O primeiro ministro britânico David Cameron declarou: “Eu acho que precisamos de
reformas. Quero dizer que nós apoiamos o progresso e o reforço da democracia”.
Como avaliar a atitude desses líderes mundiais? Patética, cínica, hipócrita, irresponsável? Talvez
devêssemos recorrer a um grande pensador liberal do século XIX, Aléxis de Tocqueville, e ouví-lo a
respeito dos períodos revolucionários na França. Tocqueville alertava para o fato de líderes, que
adquiriram experiência em lidar com a política em ambiente de ausência de liberdade, quando se
encontraram diante de uma revolução que chegou “inesperadamente”, se assemelhavam aos remadores
de rio que, de repente, se vêem instados a navegar no meio do oceano. Os conhecimentos adquiridos em
suas viagens por águas calmas vão proporcionar mais problemas do que ajuda nessa aventura, e na
maioria das vezes exibem mais confusão e incerteza do que os próprios passageiros que supostamente
deveriam conduzir.
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Já havia sinais reveladores dessas turbulências, mas o Ocidente preferia se preocupar com burcas,
minaretes e terrorismo. Um relatório do Banco Mundial, publicado em 2009, informava que os países
árabes importavam cerca de 60% dos alimentos que consomem e já são os maiores importadores de
cereais no mundo, dependendo de outros países para a sua segurança alimentar. A elevação dos preços
nos mercados mundiais, desde 2008, já causou ondas de protestos em dezenas de países e milhões de
desempregados e pobres nos países árabes, como foram os casos da Argélia , em 1988, e da Jordânia em
1989. Um exemplo mais recente, além da região árabe, é o Quirguistão onde um aumento da
eletricidade e tarifas de celulares causaram manifestações com dezenas de mortos e milhares de feridos.
Aqueles que temem o crescimento do “islamismo radical” como fator de instabilidade nessa região,
deveriam estar mais atentos em relação às “ditaduras amistosas” que, na verdade, são as principais
responsáveis pela insegurança no mundo. Desemprego em massa, preços dos alimentos e repressão
política é uma combinação explosiva mais perigosa do que os homens bomba.
A demografia no mundo árabe é também um grande problema. A população cresceu cinco vezes durante
o século XX, e o crescimento continua a uma média anual de 2,3%. A população do Egito está em torno
de 80 milhões. Em 2050 (de acordo com projeções da ONU) deverá ter 121 milhões. A população da
Argélia irá crescer de 33 milhões em 2007 para 49 milhões em 2050; a do Iêmen de 22 a 58 milhões.
Isso significa que mais empregos precisam ser criados - e mais alimentos importados, ou aumentar a
capacidade para produzir mais. No caso do Egito dois terços da população são jovens abaixo de 30 anos,
dos quais 90% estão desempregados.
Baseada no turismo, na agricultura e na exportação de petróleo e algodão, a economia é incapaz de
sustentar a taxa de crescimento demográfico. 40% da população vive com menos de US$ 2 (R$ 3,30)
por dia, o país está na 101ª posição no IDH (Índice de Desenvolvimento Humano)
De certa forma a auto-imolação do jovem tunisiano, Mohamad Bouazizi, que deflagrou a onda de
protestos na Tunisia revela, no nível individual, aquilo que está acontecendo nas sociedades daquela
região como um todo. Ele não se rebelou, apenas porque não encontrou trabalho que refletisse suas
ambições profissionais, mas sim quando um oficial da polícia confiscou as frutas e legumes que estava
vendendo sem autorização. Quando foi fazer uma reclamação para buscar justiça, sua demanda foi
rejeitada.
Provavelmente foi este sentimento de injustiça que levou Mohamed Bouazizi e milhares de pessoas às
ruas, empenhados em quebrar o ciclo da miséria e opressão.
Talvez seja mais confortável para a chamada comunidade internacional lidar com um mundo árabe
dividido entre nacionalistas, relativamente seculares, de um lado e islamismo radical, de outro, do que
um mundo mais complexo, com problemas econômicos, sociais e políticos que conta com sua
cumplicidade.
(*) Professor de Relações Internacionais da PUC-SP
30/01/2011 |
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Euforia, banho de sangue e caos
Mais do que a tresloucada eleição do vice-presidente de Mubarak e do que a designação de um
convescote num governo sem poder, as ruas do Cairo demonstraram que os líderes dos EUA e da
União Europeia (UE) não entenderam nada. Acabou-se. Os débeis intentos de Mubarak, ao declarar
que se deve terminar com a violência, quando sua própria segurança policial foi responsável, nos
últimos cinco dias pelos atos mais cruéis, incendiaram ainda mais a fúria daqueles que passaram 30
anos sob uma ditadura sanguinária.
Robert Fisk - Página/12
Os tanques egípcios, os manifestantes sentados sobre eles, as bandeiras, as 40 mil pessoas que choravam
e alentavam os soldados na Praça da Liberdade, enquanto rezavam ao redor deles os irmãos da
Irmandade Muçulmana, sentados entre os passageiros dos tanques. Seria o caso de comparar isso com a
liberação de Bucareste? Sentado sobre um dos tanques de fabricação dos EUA, só podia recordar
aquelas cenas cinematográficas maravilhosas sobre a liberação de Paris. Uns dois metros dali, a polícia
de segurança de Hosni Mubarak, com seus uniformes pretos ainda disparava contra os manifestantes
que estavam próximos do Ministério do Interior. Era uma celebração de uma vitória selvagem e
histórica: os mesmos tanques de Mubarak estavam liberando a capital de sua própria ditadura.
Na pantomima do mundo de Mubarak – e de Barack Obama e de Hillary Clinton, em Washington -, o
homem que ainda se autoproclama presidente do Egito realizou a eleição mais absurda de um vicepresidente para acalmar a fúria dos manifestantes. O eleito foi Omar Suleiman, chefe dos negociadores
egípcios com Israel e um antigo agente da inteligência, um homem de 75 anos, com vários anos de
visitas a Tel Aviv e a Jerusalém, assim como com vários infartos que os provam. Como este funcionário
enfrentará a raiva e o desejo de libertação de 80 milhões de egípcios fica a cargo da imaginação.
Quando contei aos que estavam ao meu redor no tanque sobre a designação de Suleiman, começaram a
rir.
As tropas, em roupas esgarçadas, rindo e até aplaudindo, não manifestaram qualquer intenção de borrar
a grafitagem que a multidão tinha pintado nos tanques: “Fora Mubarak” e “Teu regime está acabado,
Mubarak”, aparecia em cada um dos tanques que percorriam as ruas do Cairo. Em um dos tanques que
davam a volta ao redor da Praça da Liberdade estava um dos Irmãos Muçulmanos, Mohamed Beltagi.
Mais cedo tinha passado perto um comboio de veículos blindados que estavam a postos próximo ao
subúrbio de Garden City, enquanto as pessoas abriam o caminho entre as máquinas e levavam laranjas
aos soldados, aplaudindo-os como patriotas egípcios.
Mais do que a tresloucada eleição do vice-presidente de Mubarak e do que a designação de um
convescote num governo sem poder, as ruas do Cairo demonstraram que os líderes dos EUA e da União
Europeia (UE) não entenderam nada. Acabou-se. Os débeis intentos de Mubarak, ao declarar que se
deve terminar com a violência, quando sua própria segurança policial foi responsável, nos últimos cinco
dias pelos atos mais cruéis, incendiou ainda mais a fúria daqueles que passaram 30 anos sob uma
ditadura sanguinária. Prova disso são as suspeitas de que muitos dos saques estão sendo levados a cabo
por policiais civis, assim como o assassinato de 11 homens numa área rural há 24 horas, para destruir a
integridade dos manifestantes que estão tentando tirar Mubarak do poder.
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A destruição de um número importante de centros de comunicações por parte dos homens com rostos
tapados, que devem ter sido coordenados de alguma maneira, também levantou o alerta e veio a ideia de
que os responsáveis seriam os agentes da civil que tinham golpeado os manifestantes. Mas os incêndios
de delegacias de polícia no Cairo, em Alexandria e Suez, assim como em outas cidades foram obra dos
policiais civis. Quase à meia noite de sexta para sábado, multidões de homens jovens atiçaram fogo ao
longo da auto estrada de Alexandria.
Infinitamente mais terrível foi o vandalismo no Museu Nacional do Egito. Depois de a polícia
abandonar o lugar, os saqueadores arrombaram a porta do edifício pintado de vermelho e destruíram
estátuas faraônicas de quatro mil anos, múmias egípcias e impressionantes botes de madeira
originariamente talhados para acompanhar os reis em suas tumbas. Mais uma vez, deve-se dizer,
circularam rumores de que a polícia tinha causado esses atos de vandalismo antes de ter abandonado o
museu na sexta à noite. Tudo parece recordar o que se passou no museu de Bagdá em 2003. O saque não
foi tão grave como o do Iraque, mas o desastre arqueológico é pior. Os manifestantes se reuniram à
noite, em círculo, na Praça da Liberdade, para rezar.
E também houve promessas de vingança. Uma equipe da cadeia de televisão Al Jazeera encontrou um
depósito com 23 cadáveres em Alexandria, aparentemente assassinados pela polícia. Muitos tinham seus
rostos horrorosamente mutilados. Outros onze mortos foram descobertos num depósito no Cairo. As
famílias, que se congregaram ao redor de seus restos ensanguentados, prometiam represálias contra os
policiais.
O Cairo agora oscila da euforia à mais sombria cólera em questão de minutos. Ontem pela manhã cruzei
a ponte do rio Nilo para ver as ruínas do quartel do partido de Mubarak. Em frente, seguia de pé um
pôster que promovia as bondades do oficialista Partido Nacional Democrata (PND), as promessas que
Mubarak, não pôde cumprir em 30 anos. “Tudo o que queremos é a saída de Mubarak, novas eleições e
nossa liberdade, e honra”, disse-me um psiquiatra de 30 anos.
A denúncia de Mubarak de que essas manifestações seriam parte de um “plano sinistro” é o núcleo de
seu pedido de reconhecimento internacional. De fato, a resposta de Obama foi uma cópia exata de todas
as mentiras que Mubarak está usando durante três décadas, para defender seu regime. O problema é o de
sempre: as linhas do poder e as da moralidade não se unem quando os presidentes estadunidenses tem
de tratar com o Oriente Médio. A liderança moral dos Estados Unidos desaparece quando se trata de
confrontar os mundos israelense e árabe. E o exército egípcio é parte dessa equação. Recebe 1,3 milhões
de dólares de ajuda estadunidense. O comandante dessas forças armadas e amigo pessoal de Mubarak, o
general Mohamed Tantawi estava em Washington, no momento em que a polícia tratava de reprimir
com violência os manifestantes. O final pode ser claro. A tragédia ainda não terminou.
30/01/2011 |
"Esta é uma revolução pelo Twitter e pelo Facebook"
Esta é uma revolução pelo Twitter e pelo Facebook e há muito que a tecnologia derrubou as normas
caducas da censura. Os homens de Mubarak parece terem perdido toda iniciativa. Os jornais de seu
partido estão cheios de autoengano: jogam as notas sobre as manifestações para os pés da primeira
página, como se com isso fossem tirar as multidões das ruas; como se, de fato, pelo apequenamento das
notas os protestos jamais tivessem ocorrido. O artigo é de Robert Fisk.
Robert Fisk - La Jornada
Cairo – Dia de oração ou de fúria? Todo o Egito esperava o sabbath muçulmano – para não mencionar
os terríveis aliados do Cairo – enquanto o presidente ancião do país se aferra ao poder, depois de noites
de violência que sacudiram a fé estadunidense na estabilidade do regime.
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Até agora morreram 5 homens durante os distúrbios e quase outros mil foram encarcerados. A polícia
golpeou mulheres e pela primeira vez um escritório do partido governante, o Partido Nacional
Democrático foi incendiado. Os rumores são aqui tão perigosos como gás lacrimogênio. Um jornal do
Cairo disse que um dos principais conselheiros de Hosni Mubarak voltou de Londres com 97 maletas
repletas de dinheiro, mas outros repórteres falam de um presidente furioso, que grita para o alto
comando das polícias, porque não trataram com mais severidade os manifestantes.
Mohamed el Baradei, prêmio Nobel e ex-funcionário da Organização das Nações Unidas (ONU) voltou
sexta-feira ao Egito, mas ninguém acredita – salvo talvez os estadunidenses – que possa concentrar em
torno de si os movimentos de protesto que surgiram em todo o país.
Já há sinais de que quem está farto do regime corrupto e antidemocrático de Mubarak estão
convencendo os policiais mal pagos que patrulham o Cairo a se unirem a eles. Irmãos! Quanto lhes
pagam? Uma multidão começou a gritar aos policiais da capital. Mas ninguém negocia: não há nada a
negociar, exceto a partida de Mubarak para o exílio; e o governo egípcio não diz nem faz nada, que é
mais ou menos o que vinha fazendo durante as três décadas passadas.
As pessoas falam de revolução, mas não há quem substitua os homens de Mubarak – que jamais tinha
designado um vice-presidente -, e um jornalista egípcio me disse na sexta passada que tinha encontrado
alguns amigos que lamentavam pelo presidente isolado e solitário. Mubarak tem 82 anos de idade e
ainda assim insinuou que postulará de novo a presidência, para indignação de milhões de egípcios.
A verdade nua e horrível, no entanto, é que, salvo por sua polícia brutal e seu exército execravelmente
dócil – o qual, por certo, não vê Gamal, o filho de Mubarak, com agrado -, o governo carece de poder.
Esta é uma revolução pelo Twitter e pelo Facebook e há muito que a tecnologia derrubou as normas
caducas da censura.
Os homens de Mubarak parece terem perdido toda iniciativa. Os jornais de seu partido estão cheios de
autoengano: jogam as notas sobre as manifestações para os pés da primeira página, como se com isso
fossem tirar as multidões das ruas; como se, de fato, pelo apequenamento das notas os protestos jamais
tivessem ocorrido.
Mas não se precisa ler os jornais para saber o que se tem falado. A sujeira e as cidades perdidas,
confusas, os esgotos a céu aberto e a corrupção de todo funcionário público, as prisões superlotadas, as
eleições risíveis, todo o vasto e esclerosado edifício do poder levou, por fim, os egípcios às ruas.
Amr Moussa, chefe da Liga Árabe, apontou algo importante na recente reunião de cúpula dos países
árabes, no centro turístico egípcio de Sharm el Sheikh: Túnis não está longe de nós: os homens árabes
estão destroçados.
Mas será verdade mesmo? Um velho amigo me contou uma história horrível de um egípcio pobre que
afirmou não ter interesse em afastar os chefes corruptos de suas comunidades do deserto. Ao menos
agora sabemos onde vivem, disse. Há mais de 80 milhões de pessoas no Egito, 30% delas são menores
de 20 anos e já não tem medo.
Uma espécie de nacionalismo egípcio – mais que islamismo – faz-se sentir nas manifestações. O dia 25
de janeiro é o Dia Nacional da Polícia – para honrar a força que deu a vida combatendo as tropas
britânicas em Ismailia -, e o governo reprimiu os manifestantes, dizendo que eles desonravam os
mártires. Não, gritaram as multidões: esses policiais que morreram em Ismailia eram homens valentes;
seus descendentes atuais, de uniforme, não nos representam.
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O governo, no entanto, não é tonto. Há certa astúcia na liberação gradual da imprensa e da televisão
nesta pseudodemocracia desengonçada. Deu aos egípcios apenas o ar suficiente para respirar, para
mantê-los calados, para desfrutar sua docilidade nesta vasta terra laranja. Agricultores e não
revolucionários, mas quando vários milhões invadiram as cidades, os bairros baixos e a casas em ruínas
e as universidades, as quais lhes deram os títulos mas não empregos, alto teria de ocorrer.
“Estamos orgulhosos dos tunisianos: eles mostraram aos egípcios o que é ter orgulho – disse um colega
egípcio, nesta sexta. Foram uma inspiração, mas aqui o regime foi mais rápido que o de Ben Ali, em
Túnis. Passou um verniz de que tolera uma oposição, ao não prender toda a Irmandade Muçulmana e a
dizer logo aos estadunidenses que o grande perigo é o islamismo, que Mubarak é o único que se
interpõe entre eles e o “terror”...mensagem que Washington tem se disposto a escutar ao longo dos 10
anos passados.
Existem várias pistas de que as autoridades no Cairo se preveniram acerca do que se avizinhava. Vários
egípcios me disseram que em 24 de fevereiro agentes de segurança descolariam imagens de Gamal
Mubarak nos bairros baixos, por temor de que provocassem as multidões. Mas o grande número de
detenções, os golpes da polícia – em homens e mulheres, igualmente – e o quase colapso do mercado
egípcio de valores tem mais a marca do pânico do que a da astúcia.
E um dos problemas foi criado pelo próprio regime: o sistema se desfez de toda pessoa dotada de
carisma; expulsou-as do país, e castrou politicamente qualquer oposição real, ao prender muitos
dissidentes. Os estadunidenses e a União Europeia pedem que o regime escute o povo, mas que povo e
quem são seus líderes? Não é um levante islâmico – embora possa chegar a sê-lo, mas, salvo a cantilena
da participação da Irmandade Muçulmana nas manifestações, é apenas uma massa de egípcios asfixiada
por décadas de fracasso e humilhação.
No entanto, tudo o que os estadunidenses parecem capazes de oferecer a Mubarak é uma sugestão de
reformas, coisa que os egípcios já escutaram muitas vezes. Não é a primeira vez que a violência chegou
às ruas do país. Em 1977 houve tumultos por comida – eu estava então no Cairo e havia muitas pessoas
famintas e excitadas; o governo de Anuar Sadat conseguiu controlar as pessoas baixando os preços dos
alimentos e aplicando prisões e tortura. Tem havido motins policiais que o próprio Mubarak tem
reprimido. Mas isso é algo novo.
É interessante que não parece haver animosidade contra os estrangeiros. Muitos jornalistas foram
protegidos pelas multidões e – apesar do deplorável apoio de Washington a ditadores do Oriente Médio
– nem uma só bandeira dos EUA foi queimada. Isso mostra o que é novo. Talvez um povo tenha
crescido... só para descobrir que seus governantes envelhecidos são todos crianças.
31/01/2011 |
Por quanto tempo Mubarak aguentará?
A senhora, idosa, de véu vermelho, estava parada a polegadas de um tanque M1 fabricado nos EUA, do
3º Exército Egípcio, bem à margem da Praça Tahrir. Os soldados eram paramilitares, alguns com
barretes vermelhos, outros com capacetes, barreiras de fuzis apontadas para a praça, metralhadoras
pesadas armadas nos tabiques. “Se atirarem contra o povo egípcio, Mubarak está acabado” – disse
ela. “E se não atirarem contra o povo egípcio, Mubarak está acabado”. O povo no Egito está tomado
dessa sabedoria.
Robert Fisk - The Independent
A senhora, idosa, de véu vermelho, estava parada a polegadas de um tanque M1 fabricado nos EUA, do
3º Exército Egípcio, bem à margem da Praça Tahrir. Os soldados eram paramilitares, alguns com
barretes vermelhos, outros com capacetes, barreiras de fuzis apontadas para a praça, metralhadoras
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pesadas armadas nos tabiques. “Se atirarem contra o povo egípcio, Mubarak está acabado” – disse ela.
“E se não atirarem contra o povo egípcio, Mubarak está acabado”. O povo no Egito está tomado dessa
sabedoria.
Pouco antes de amanhecer, quatro F-16 Falcons – outra vez, é claro, fabricados no país do presidente
Obama – apareceram ganindo sobre a praça, os ecos reverberando nas paredes cinzentas do gigantesco
prédio nasserista, seguidos por dezenas de milhares de olhos que se erguiam da praça para o céu. “Estão
conosco”, muitos gritaram. Acho que não, pensei. Nem os tanques, novos na praça, ao todo 14 que
apareceram sem slogans grafitados, os soldados, assustados, não saíram das cabines – e que os
manifestantes também acreditavam que ali estivessem para protegê-los.
Mas então, quando me aproximei de um oficial num dos tanques, vi que abria um sorriso. “Jamais
atiraremos contra nosso povo, ainda que venham ordens para atirar” – ele gritou, para fazer-se ouvir
acima do barulho do motor. Tampouco me convenceu completamente. O presidente Hosni Mubarak –
ou talvez se deva escrever ‘presidente’, entre aspas, estava no quartel-general, depois de nomear a nova
junta de ex-militares e agentes de inteligência. Os boatos zuniam pela praça: o velho lobo lutaria até o
fim. Para outros, não faria diferença. “Poderá matar 80 milhões de egípcios?”
Começaram a crescer sentimentos de antiamericanismo, depois de o presidente Obama ter mantido o
apoio de sempre, embora morno, ao governo de Mubarak. “Não Obama, Não Mubarak” – lia-se em
vários cartazes. Mubarak, com uma estrela de Davi pintada sobre o rosto. Muita gente apanhava do chá
caixas vazias de balas de festim usadas semana passada, todas com o selo “Made in the USA”. Vi que o
tanque que vinha à frente tinha letras semiapagadas na lateral, que começavam com “MFR” – mas foi
quando um soldado com rifle e baioneta receber ordem para me prender; corri para dentro da multidão e
ele desistiu –, mas será que “MFR” é a sigla correspondente a US Mobile Force Reserve [Força Móvel
de Reserva dos EUA], que mantém tanques em território egípcio? Essa coluna de tanques teria sido
emprestada pelos EUA? Fácil ver o uso que os egípcios deram aos tanques.
Assisti a cenas extraordinárias antes, durante o dia, misturado à multidão entre os manifestantes e os
soldados que conduziam outra unidade de tanques (naquele caso, máquinas velhas, Pattons M-60, do
tempo do Vietnã), que parecia estar ali para dar cobertura aos canhões de água mandados para dispersar
a multidão. Centenas de jovens cercaram um dos tanques e quando um tenente de óculos escuros atirou
para o ar, foi empurrado contra o próprio tanque e obrigado a escalá-lo para fugir dos rapazes. Mas a
multidão logo mudou de humor; os rapazes posaram para fotografias sobre o tanque e ofereceram frutas
e água aos soldados.
Quando uma longa coluna de soldados formou-se na largura da rua, um homem muito velho e corcunda,
pediu e obteve licença para aproximar-se. Segui-o e vi abraçar e beijar o tenente nos dois lados do rosto.
Ele disse: “Vocês são nossos filhos. Vocês são nosso povo”. Em seguida andou ao longo da coluna,
beijando e abraçando cada soldado, como se fosse seu filho. É preciso ter coração de pedra para não se
emocionar com essas cenas de que ontem o dia foi cheio.
Às tantas, um grupo de manifestantes trouxe um homem que disseram ter apanhado roubando – no
momento, o Cairo parece estar cheio de ladrões – e empurraram na direção dos soldados. “Vocês estão
aí para nos proteger” – cantavam. Um dos soldados bateu no homem, no rosto, e o oficial esbofeteou o
soldado. O soldado sentou na calçada, balançando a cabeça, desentendido. Durante todo o dia, um
helicóptero egípcio Mi-25 – esse, relíquia da era soviética – sobrevoou a multidão, armado com seis
foguetes, mas nada fez. Depois foi um Gazelle, de fabricação francesa, da Força Aérea do Egito, que
voou sobre a multidão, e as pessoas acenaram na direção de onde se via o piloto, que também acenava
em resposta.
14
Os egípcios, sem cessar, procuravam fazer contato com quem lhes parecesse estrangeiro – e um inglês
de cabelos grisalhos como eu pareci-lhes suficientemente estrangeiro –, insistindo em que, depois que
um povo perde o medo, não há como voltar a acovardar-se.
“Nunca mais teremos medo”, gritava uma jovem na minha direção, no momento em que os jatos
gritavam também. E um ex-policial, que se apresentava como atual homem de ligação entre os
manifestantes e o exército disse que “o exército estará conosco, porque eles sabem que Mubarak tem de
sair”. Outra vez, não estou muito convencido.
E os saques e incêndios continuam. O ex-policial – que disso parecia entender – disse-me que muitos
dos saqueadores são de um grupo que fez parte do Partido Democrático Nacional de Mubarak, cuja
função fora a de convencer os egípcios a comparecer às urnas e votar em seu amado líder. Nesse caso,
por que, todos nos perguntamos, esses homens estariam dedicados a assaltos e saques, exatamente os
mesmos crimes de que os acusam todos os que exigem que Mubarak deixe o país? Essa exigência, aliás,
inclui também Omar Suleiman, cuja expulsão a multidão deseja, o ex-espião chefe, que acaba de ser
nomeado para a vice-presidência.
Por todo o Egito, em praticamente todas as ruas do Cairo, há hoje vigilantes – cidadãos comuns, não
homens de Mubarak, cansados das gangues semioficiais que hoje assaltam o próprio povo na calada da
noite. Para voltar ao hotel ontem à noite, tive de passar por oito postos de controle controlados por civis,
jovens e velhos – um deles manteve-se perfilado, com uma bengala numa mão e um velho rifle britânico
Lee Enfield .303 na outra – que agora prendem os ladrões e saqueadores e os entregam ao exército. Não
é o “Exército de Papai”[1].
Nas primeiras horas da manhã de ontem, um grupo de homens armados invadiu o Children's Cancer
Hospital, próximo do velho aqueduto romano. Queriam levar equipamento médico, mas foram expulsos
por manifestantes que os ameaçaram com facas e os expulsaram. O Dr. Khaled el-Noury, cirurgião
chefe do hospital contou-me que os assaltantes armados pareciam desorganizados e pareciam
assustados.
Não à toa. O encarregado da recepção no hospital mostrou-me o facão de cozinha que guarda na gaveta
para proteger-se. E vi outros sinais do lado de fora do portão, onde havia homens armados com bastões
e porretes. Um menino – oito anos, talvez – apareceu portando um facão de açougueiro, de 50cm, quase
metade da altura do menino. Outro homem apareceu cumprimentar o jornalista estrangeiro, com um
facão do mesmo tamanho.
Não há terceira força. E eles creem no exército. Os soldados atacarão a praça? E que diferença, fará,
afinal, que ataquem ou não, para a partida de Mubarak?
[1] Orig. Dad's Army. É título de um seriado da televisão britânica sobre a Guarda Nacional, durante a
II Guerra Mundial, levado ao ar com grande sucesso entre 1968 e 1977. A Guarda Nacional foi
formada
de
voluntários
incapazes
para
o
serviço
militar
ativo
(mais,
em
http://en.wikipedia.org/wiki/Dad's_Army).
Original - The Independent
31/01/2011 |
Fúria, fúria, contra a contrarrevolução
O neofaraó egípcio Hosni Mubarak ordenou toque de recolher; ninguém arredou pé das ruas. A polícia
atacou; os cidadãos organizaram a própria segurança. Chegaram os tanques; a multidão continuou a
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cantar “de mãos dadas, o exército e o povo são aliados”. Nada de revolução colorida parida em thinktanks, nada de islâmicos em ordem unida; são egípcios médios, carregando a bandeira nacional,
“juntos, como indivíduos num grande esforço cooperativo para exigir de volta o país que nos pertence”
– nas palavras do romancista egípcio e Prêmio Nobel Ahdaf Soueif. O artigo é de Pepe Escobar.
Pepe Escobar, Asia Times Online
Fúria, fúria, contra a morte da luz. - Dylan Thomas
Islamófobos de todo o mundo calem o bico e ouçam o som do poder do povo. A dicotomia artificial que
inventaram para o Oriente Médio – ou a ditadura de vocês ou o jihadismo – jamais passou de truque
barato. Repressão política, desemprego em massa e comida cara são mais letais que um exército de
homens-bomba. Assim se escreve a história real; um país de 80 milhões – dois milhões dos quais
nascidos depois de o ditador de hoje ter chegado ao poder em 1981, e nada menos que o coração do
mundo árabe – põe afinal abaixo o Muro do Medo e passa para o lado do autorrespeito.
O neofaraó egípcio Hosni Mubarak ordenou toque de recolher; ninguém arredou pé das ruas. A polícia
atacou; os cidadãos organizaram a própria segurança. Chegaram os tanques; a multidão continuou a
cantar “de mãos dadas, o exército e o povo são aliados”. Nada de revolução colorida parida em thinktanks, nada de islâmicos em ordem unida; são egípcios médios, carregando a bandeira nacional, “juntos,
como indivíduos num grande esforço cooperativo para exigir de volta o país que nos pertence” – nas
palavras do romancista egípcio e Prêmio Nobel Ahdaf Soueif.
E então, inevitável como a morte, a contrarrevolução levantou a cabeçorra armada. Jatos bombardeiros
made in USA e helicópteros militares atacaram “bravamente” em voos rasantes as multidões na Praça
Tahrir [Praça Liberdade] (retrato do governo de Mubarak como exército de ocupação no Egito; e
imaginem o ultraje do ocidente, se o ataque acontecesse em Teerã). Comandantes militares falando sem
parar pela televisão estatal. Ameaça de que tanques de fabricação norte-americana tomariam as ruas –
conduzidos por soldados de batalhões de elite – para o ataque final (embora os próprios soldados
dissessem a jornalistas da rede al-Jazeera que em nenhum caso disparariam contra a multidão). Para
coroar, a “subversiva” rede al-Jazeera foi repentinamente cortada do ar.
Diga alô ao meu suave torturador...
A Intifada egípcia – dentre outros múltiplos significados – já reduziu a cacos a propaganda inventada no
ocidente, de que “árabes são terroristas”. Agora, as mentes afinal descolonizadas, os árabes inspiram o
mundo inteiro, ensinam ao ocidente como se faz mudança democrática. E adivinhem só! Ninguém
precisou de “choque e horror”, rendições, tortura e trilhões de dólares do Pentágono para que a coisa
funcionasse! Não surpreende que Washington, Telavive, Riad, Londres e Paris, todas, nem suspeitaram
do que estava a caminho.
Hoje somos todos egípcios. O vírus latino-americano – bye-bye ditaduras e neoliberalismo arrogante,
caolho, míope – contaminou o Oriente Médio. Primeiro a Tunísia. Agora o Egito. Depois o Iêmen e
possivelmente a Jordânia. Logo a Casa de Saud (não surpreende que culpem os egípcios pelos
“tumultos”). Mas o terremoto político do norte da África, na Tunísia, em 2011 também colheu a faísca
dos movimentos de massa na Europa em 2010 – Grécia, Itália, França, Reino Unido. Fúria, fúria contra
a repressão política, contras as ditaduras, contra a brutalidade da Polícia, contra os preços da comida,
contra a inflação, contra empregos miseráveis, contra o desemprego em massa.
Faraó 2011 parece remix de Xá do Irã 1979. Claro, não há aiatolá Ruhollah Khomeini para liderar as
massas egípcias, e o ex-chefe da Agência Internacional de Energia Atômica, o egípcio Mohamed
ElBaradei, está sendo acusado por alguns, nas ruas, de “assaltar nossa revolução”. Mas é difícil não
lembrar que o Xá do Irã está enterrado no Cairo, porque os iranianos não permitiram que fosse enterrado
na terra-mãe.
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O Faraó reagiu à Intifada nomeando para a vice-presidência seu czar “suave” da inteligência, Omar
Suleiman (o primeiro vice-presidente, desde que o Faraó assumiu o poder em 1981), e virtual sucessor.
Suleiman é sinistro suave especialista em rendição, no qual a CIA confia e que supervisionou número
incontável de sessões de tortura de ditos “terroristas” em território egípcio; senhor, que fala inglês, de
sua Guantánamo árabe. Em Washington, o establishment gostou muito.
Mas os imperialistas que anotem bem: a última vez que as ruas egípcias levantaram-se como
levantaram-se hoje, foi em 1919, durante a revolução contra os britânicos. Agora, para muçulmanos e
cristãos, operários, classe média, massas desempregadas, advogados, juízes, professores e doutores da
Universidade al-Azhar, alunos, camponeses, teólogos, jornalistas e blogueiros independentes, ativistas
da Irmandade Muçulmana, Associação Nacional para a Mudança, Movimento 16 de abril, para todos
esses, os dias de Mubarak de Revolução dos Bichos estão contados.
Cinco movimentos de oposição – inclusive a Fraternidade Muçulmana – autorizaram ElBaradei a
negociar a formação de um “governo de salvação nacional” de transição. Aposta-se que o Faraó nada ou
quase nada negociará. Para aumentar a complexidade o núcleo da geração de jovens ativistas crê muito
mais em “comitês populares” que em ElBaradei.
É verdade que, no que tenha a ver com as próximas eleições em setembro, Mubarak, 82, está morto. O
filho, Gamal, 47, idem. Relatos não confirmados dizem que, à moda típica dos filhos de ditadores, o
filho já fugiu para Londres, usando seu passaporte britânico, com montanhas de bagagem, e estaria
agora escondido na casa londrina da família, em Knightsbridge.
O futuro crucial imediato depende do lado para o qual penderá o exército egípcio. No pé em que estão
as coisas, ainda não está totalmente afastado uma alternativa Tiananmen – repressão linha duríssima.
Seja como for, o poder de ação do governo é claro; pode acontecer até de o Faraó meter-se naquele
avião – como cantam as ruas –, mas o regime, a ditadura militar, tem de ser mantida.
O general Hussein Tantawi, comandante em chefe do exército e ministro da Defesa, amigo que bebe o
vinho e come a comida do Pentágono, do qual recebe 1,3 bilhão de dólares anuais a título de “ajuda” –
voou de volta ao Cairo. Numa trilha paralela, o Faraó, jogando desesperadamente com os medos do
ocidente sobre “estabilidade”, tentou desqualificar a Intifada como grupo de desordeiros e arruaceiros
donos de terrenos nas favelas, que querem ver cada vez mais caos e destruição. Um grupo de blogueiros
egípcios não tem dúvidas – a estratégia do Faraó é assustar as pessoas e empurrá-las de volta para dentro
das casas, implorando por “segurança”.
Issander El Amrani, do blog The Arabist, destaca que “é difícil acreditar que Mubarak ainda esteja no
poder, mas o núcleo duro do regime está usando meios extremos para salvar sua posição”. Nas ruas,
todos suspeitam de um golpe orquestrado por Washington na cúpula do regime – EUA/Israel apostando
tudo na fórmula “Mubarak talvez caia/mas sem mudança de regime”, com sauditas, israelenses e a
mídia egípcia oficial mexendo todos os pauzinhos para desacreditar a revolução. Para analisar com
algum distanciamento: nos EUA houve dois governos de Ronald Reagan, um de George H W Bush,
dois de Bill Clinton, dois de George W Bush e um de Barack Obama. No Egito, sempre só houve
Mubarak.
A classe média egípcia, empobrecida mas letrada e orgulhosa, e a os trabalhadores, nada querem além
de um país regido por leis e com eleições transparentes. Como, então, acreditariam em Suleiman,
torturador ligado à CIA, para conduzir a transição? Para nem falar de um Parlamento completamente
controlado pelo inacreditavelmente corrupto Partido Nacional Democrático de Mubarak, cuja sede foi
incendiada pelos manifestantes.
O passo do dissidente egípcio
No início de 2003, passei dois meses no Cairo e em Alexandria, à espera da invasão de Bush ao Iraque –
convivendo quase exclusivamente com o oceano de rejeitados pelo sistema de Mubarak, de
universitários formados a imigrantes sudaneses, inclusive representantes rejeitados dos 40% da
população que vive com menos de 2 dólares por dia. Desnecessário dizer que todos viam Mubarak
17
como poodle repulsivo de Washington – e todos estavam em choque ante a tragédia do Iraque, que o
Egito reverencia historicamente como flanco leste da nação árabe. O regime, para eles, era do tipo que
“afoga mendigos no Nilo”.
Foi elucidativo – e terrivelmente doloroso – conhecer em campo as consequências do regime de
Mubarak, aplicado regime pupilo do neoliberalismo aplicado pelos EUA. Consequências inevitáveis, a
inflação alta e o enorme desemprego. A classe média urbana praticamente já desaparecera. A classe
trabalhadora, sufocada na mão de ferro dos sindicatos. E a classe média rural – que foi base do regime –
também em crise, com os jovem obrigados a imigrar para as cidades à procura de empregos (que não
encontram). Sobrevivente, só uma pequena classe de comerciantes, corruptos, associados ao Estado (a
maioria dos quais hoje já fugiu para Dubai em jatos privados).
Não surpreende pois que não se trate de uma revolução islâmica, como no Irã em 1979. É a economia,
estúpido. O Islã hoje no Egito está dividido em duas correntes: salafitas não politizados e a Fraternidade
Muçulmana – dizimada por décadas de repressão e tortura e, hoje, sem qualquer programa político
explícito, além de oferecer serviços de assistência à população negligenciada pelo Estado.
O fato de a Fraternidade Muçulmana ter-se mantido nas coxias do movimento das ruas explica-se por
dois fatores. Se se expusesse demais, Mubarak teria o pretexto perfeito para associar a revolução aos
“terroristas”. Além disso, a Fraternidade avalia que, hoje, é apenas um ator entre vários.
Trata-se de movimento popular espontâneo que segue as pegadas do Kefaya (“Basta!”) – movimento
popular “amarelo” (escolheu essa cor), de intelectuais e ativistas políticos, cujo slogan, já em 2004 era
La lil-tamdid, La lil-tawrith (“Não a outro mandato, não queremos uma república hereditária”) [mais,
sobre o movimento, em http://en.wikipedia.org/wiki/Kefaya].
O movimento Kefaya, apesar de ser movimento de elite, sem liderança, não-ideológico, foi a faísca que
despertou mais de mil movimentos, dentre os quais “Jornalistas pela Mudança”, “Operários pela
Mudança”, “Médicos para a Mudança” ou “Jovens para a Mudança” levaram à atual onda de
incontáveis fóruns online em que se reúnem cidadãos urbanos, de classe média e baixa, todos usuários
experientes da internet.
Outro desenvolvimento crucial foi a greve, em 2008, dos trabalhadores das indústrias têxteis da cidade
de Mahalla al-Kubra no delta do Nilo, onde três operários foram mortos pelos guardas de segurança de
Mubarak dia 16 de abril –, e que inspirou a criação do movimento online de mesmo nome (Facebook.
Sobre o movimento, ver http://www.wired.com/techbiz/startups/magazine/16-11/ff_facebookegypt ).
O Santo Graal demorou para mobilizar as massas. Semana passada, afinal, conseguiram. Os jovens
influenciados pelo movimento Kefaya preferem comitês populares para guiar os passos futuros de sua
revolução, em vez de políticos. O pulso das ruas parece indicar que a maioria dos egípcios não querem
que nenhuma ideologia política ou religiosa monopolize o que é movimento líquido, pluralista, múltiplo
para reformar radicalmente o país e criar ali um novo modelo para o mundo árabe. Talvez um pouco
sedutoramente romântico demais. Mas que tenha vivido 30 anos numa espécie de Revolução dos Bichos
precisa dolorosamente de alguma catarse.
Rebelo-me, logo, existo
Para Fawaz Gerges, professor de economia da London School of Economics, tudo isso “ultrapassa em
muito o problema Mubarak. A barreira do medo foi removida. É realmente o começo do fim do status
quo na Região.” Que é maior que Mubarak, é; é exemplo vigoroso do que seja ativismo político
orgânico, de base.
Ora, no discurso de elite do Dr. Zbigniew Brzezinski, guru de política exterior dos EUA, trata-se de seu
temido “despertar político global” em ação – a Geração Y em todo o mundo em desenvolvimento,
furiosa, irada, ultrajada, emocionalmente em frangalhos, quase toda desempregada, com a dignidade em
farrapos, deixando aflorar seu potencial revolucionário e virando o status quo de cabeça para baixo
(mesmo depois de o Faraó ter conseguido implantar o maior blecaute da história da Internet).
18
Assim como o movimento Kefaya foi a fagulha, essa foi também uma revolução do Facebook – que
hoje, nas ruas do Cairo, Alexandria e Suez já foi rebatizado e chama-se agora Sawrabook (“o livro da
revolução”). Uma rede RASD (“de monitoramento”, em árabe) foi lançada no primeiro dia dos
protestos, 4ª-feira passada, configurada como uma espécie de “observatório da revolução”.
É crucialmente importante observar que naquele momento – há menos de uma semana – a rede alJazeera ainda não chegara ao Egito e a televisão estatal egípcia exibia, como sempre, velhos filmes em
branco e preto. Em apenas três dias, a RASD reuniu em rede cerca de 400 mil usuários, no Egito e no
mundo. Quando o regime do Faraó acordou, já era tarde demais – e de nada lhe serviu derrubar a
internet.
É esse espírito de solidariedade em ação que invadiu as ruas sob a forma de jovens ativistas operando
telefones sem fio, fotografando e filmando ataques e feridos ou montando tendas para atendimento de
campanha. Ou moradores da cidade do Cairo, oferecendo as próprias casa para abrigar manifestantes e
organizando piquetes de vizinhos para proteger-se da ação de saqueadores e ladrões – muitos dos quais
mostrados por blogueiros, quando carregavam equipamentos de identificação dos postos armas retiradas
dos postos de polícia de Mubarak.
Por mais alarmadas que estejam as rarefeitas elites globais – basta seguir o labirinto de ambiguidades
que liga Washington e as capitais europeias –, Brzezinski, pelo menos, parece suficientemente ligado
para entender a deriva geral, quando “as principais potências mundiais, novas e velhas (...) enfrentam
uma nova realidade: embora a letalidade do poder bélico seja hoje maior do que nunca, a capacidade de
impor controle a massas que já despertaram para a vida política alcança hoje o ponto mais baixo de toda
a história.”
A velha ordem está morrendo, mas a nova ainda não nasceu. A Idade da Fúria no arco que vai da África
do Norte ao Oriente Médio parece ter começado – mais ainda não se sabe qual será a nova configuração
geopolítica. O povo se fará ouvir – ou acabará encurralado e controlado pelas potências que aí estão?
O Egito não se converterá em democracia que funciona porque falta a infraestrutura política. Mas pode
recomeçar do começo, com todas as oposições tão desprestigiadas quando o regime. A geração mais
jovem – potencializada pela emoção de estar lutando do lado certo da história – terá papel crucial.
Não aceitarão a ilusão de ótica de alguma falsa mudança de regime, só para preservar alguma
“estabilidade”. Não aceitarão ser sequestrados por EUA e Europa, apresentados como neofantoches.
Querem o choque do novo; governo verdadeiramente soberano, nada de neoliberalismo e uma nova
ordem política para o Oriente Médio.
A contrarrevolução será feroz. E atacará muito mais do que alguns bunkers no Cairo.
Original - Asia Times Online
01/02/2011 |
19
O fator Irmandade Muçulmana
A Irmandade Muçulmana gera medo pânico em todo o ocidente, porque o governo de Mubarak sempre
apresentou os “irmãos” como se fossem idênticos à al-Qaeda. Não há sandice maior. A organização
opõe-se completamente a qualquer tipo de violência contra civis – o que a põe em campo
absolutamente oposto à al-Qaeda. Uma Irmandade Muçulmana que refute a violência e seja ativa nas
políticas civis no Egito pode ser o melhor antídoto contra os fanáticos à moda al-Qaeda. Por outro
lado, não parece haver dúvidas de que – com a Irmandade Muçulmana participando do governo do
Egito – o tratado de paz com Israel será renegociado. O artigo é de Pepe Escobar.
Pepe Escobar - Asia Times Online
Um milhão em marcha pelas ruas do Cairo nessa 3ª-feira, outro milhão em marcha rumo ao palácio
presidencial em Heliópolis na próxima “6ª-feira da Partida”. O principal graffiti – escrito também nos
tanque Abrams cor caqui, fabricados nos EUA – ainda é “queremos derrubar o sistema”. O exército
parece ter escolhido lado, afirmando sempre que “não recorreremos ao uso da força contra nosso grande
povo egípcio”.
Com o preço do barril de óleo ultrapassando a barreira dos US$100 pela primeira vez desde setembro de
2008; o medo cada vez maior de que se interrompa o fluxo de petroleiros pelo Canal de Suez; bancos,
escolas e a Bolsa de Valores fechados; comitês populares encarregados da segurança da cidade; policiais
queimando os próprios uniformes e unindo-se aos manifestantes; e piquetes de ativistas, manifestantes e
blogueiros escrevendo furiosamente em bancadas e bancadas de laptops para distribuir notícias ao
mundo (antes de o governo do presidente Hosni Mubarak ter “valentemente” derrubado o último
provedor de serviços de internet que ainda funcionava), a revolução egípcia parece aproximar-se do
último tempo do jogo.
A estratégia do Faraó e de seu “sucessor” Omar (o “torturador suave”) Suleiman é usar o exército para
intimidar, e depois demonstrar que a rua só conseguirá tingir de sangue o Nilo. Não me parece provável.
Mas, sim, essa ditadura militar cruel fará qualquer coisa para manter-se agarrada ao poder.
Como a rua multiforme do Egito vê a questão, não se trata hoje, como o Wall Street Journal escreve
pitorescamente, de “é possível que a fase atual se revele momento feliz para Washington”. As massas da
Praça Tahrir (Praça Libertação) que protestam com seus corpos e a própria vida, não poderiam estar
menos preocupadas com os EUA – como tampouco estão preocupadas com o tráfego de
superpetroleiros para abastecer o ocidente ou com a segurança de Israel. Aqui se trata de Egito, não de
EUA.
20
No domingo, o presidente dos EUA Barack Obama falou frouxamente de uma “reforma no governo do
Egito” – contra a multidão que grita “abaixo o ditador”. Al-Jazeera teve de escrever editorial para
lembrar as pessoas de que, por definição, a palavra “reforma” que Obama usara não significa nem
jamais significará manter lá o mesmo regime corrupto e repressivo, passado só por rápido banho de loja.
A situação aqui é de revolução clássica; os poucos que permanecem no topo do governo já não
conseguem, como antes, impor sua vontade; os muitos que sempre viveram por baixo recusam-se a
continuar dominados como antes. Infinitamente intrigadas, confusas, Washington e capitais européias
podem, no máximo, como vocalistas minimalistas, fazer corinho para o som e a fúria que vêm das ruas.
As ruas querem vida política e institucional confiável e querem conseguir viver com decência em
ambiente menos corrompido. E isso já de provou impossível sob as velhas imutáveis regras do jogo – o
sistema do “nosso” ditador apoiado pelo ocidente industrializado.
Entre outras tolas teorias de conspiração, de que a revolução egípcia seria financiada pelo lobby judeu,
pela CIA-EUA, pelo financista George Soros ou por todos os supracitados, a rua egípcia prossegue
como se essas entidades sequer existissem, sem querer saber se o Faraó decidirá a favor ou contra
“conduzir uma transição ordeira”. A rua só sossegará com passagem só de ida para Mubarak, para talvez
abraçar seus amigos da Casa de Saud. Especialmente agora que a rua já viu que, com Suleiman,
Mubarak tenta fazer-se de Xá do Irã em 1978 – quando nomeou Shapour Bakhtiar primeiro-ministro (e
não funcionou).
Pergunte à Esfinge
O complexo caminho à frente aponta para uma aliança civil no Egito, de todos os setores que se opõem
ao regime (praticamente todos os habitantes do país) e o componente inevitável, o exército. Enquanto
isso, setores do establishment em Washington e a mídia-empresa nos EUA não param de repetir
freneticamente que não há condições objetivas para que os radicais islâmicos cheguem ao poder.
Bobagens e só bobagens.
Washington parece estar a um passo de dar luz verde para Mohamed ElBaradei – apoiado pela
Irmandade Muçulmana, esse, sim, fator crucial. Pois nem a Esfinge de Gizé é capaz de adivinhar se tudo
isso bastará para satisfazer a rua.
ElBaradei é elemento de fora, e confiável. Permaneceu fora do país durante os anos mais duros do
governo do Faraó. Não é arrivista e defendeu estoicamente suas posições a favor do Irã e contra o
governo de George W Bush, na presidência da Agência Internacional de Energia Atômica. ElBaradei,
que recebeu o Prêmio Nobel da Paz em 2005, pode, sim, emergir como uma “ponte”, até que se
organizem eleições livres e justas, nova Constituição e nova ordem no Egito.
Mas nada sugere que ElBaradei venha a implantar política econômica muito diferente da que pregam o
Fundo Monetário Internacional/Banco Mundial, a conversa fiada do “ajuste estrutural”, com
privatizações as mais ensandecidas, temperadas com o vago mantra de Davos, “a boa governança”. Se a
coisa tomar esse rumo, o mais provável é que a rua de enfureça de verdade – outra vez.
Por enquanto, não há qualquer sinal de que o Egito venha a seguir o caminho do Irã em 1979. No Irã, a
esquerda secular encarregou-se do governo pós-revolucionário; no Egito, a esquerda foi dizimada pela
repressão. O Irã só se tornou república islâmica meses depois da revolução, depois de um referendo
nacional (se houver referendo no Egito, as massas egípcias votarão por república secular). O cenário
mais provável e mais positivo é que, para 2012, o Egito aproxime-se mais, em termos políticos, da
Turquia.
21
Com o quê chegamos à questão mais quente e mais distante de qualquer resposta, que pode incinerar
todas as demais questões quentes: qual será o papel pós-revolucionário da Irmandade Muçulmana [ing.
Muslim Brotherhood (MB); em português, também Irmandade Muçulmana]?
Resgatar os irmãos[1]
A Irmandade Muçulmana gera medo pânico em todo o ocidente, porque o governo de Mubarak sempre
apresentou os “irmãos” como se fossem idênticos à al-Qaeda. Não há sandice maior.
A Irmandade Muçulmana foi fundada por Hasan al-Banna no porto de Ismailia em 1928 – depois se
transferiu para o Cairo. A preocupação inicial foi oferecer serviços sociais, construir mesquitas, escolas
e hospitais. Ao longo das últimas décadas, a Irmandade Muçulmana tornou-se a mais importante força
política fundamentalista do mundo sunita. É também o maior partido dissidente do Egito, ocupando 88
dos 454 assentos na Câmara baixa do Parlamento.
A Irmandade Muçulmana não prega nem apoia a violência – embora tenha-o feito no passado, até os
anos 1970s. A aura de violência está relacionada ao legendário Sayyid Qutb, que muitos consideram o
pai espiritual da al-Qaeda. Qutb, crítico de literatura que estudou nos EUA, ligou-se à organização em
1951 e separou-se dela anos depois.
As ideias de Qutb eram radicalmente diferentes das de al-Banna – sobretudo seu conceito de
“vanguarda”, mais próximo das ideias de Lênin que do Corão. Para ele, a democracia parlamentar seria
“um fracasso” no mundo islâmico (ao contrário do que pensa a maioria dos egípcios hoje, que lutam por
democracia; além disso, a Irmandade Muçulmana hoje é participante ativa da sociedade civil e política.)
Qutb não é sequer considerado pensador islâmico moderno influente; o Islã político hegemônico hoje,
personificado na autoridade do imã de al-Azhar no Cairo, refutou impiedosamente o pensamento de
Qutb.
Ao contrário do que diz a propaganda dos neoconservadores dos EUA, a Irmandade Muçulmana nada
tem a ver com os movimentos fascistas dos anos 1930s na Europa, nem com os partidos socialistas (são,
de fato, defensores da propriedade privada). Trata-se, sobretudo, de movimento nativista urbano, da
classe média baixa, como o define o professor Juan Cole da Universidade de Michigan. Mesmo antes da
revolução, a Irmandade Muçulmana já pregava a derrubada do governo Mubarak, mas por vias políticas
pacíficas.
A Irmandade Muçulmana no Iraque, fundada nos anos 1930s em Mosul, é hoje o Partido Iraquiano
Islâmico, ator político importante que sempre dialogou com Washington. E no Afeganistão, o Partido
Jamiat-I Islami nasceu por inspiração da organização egípcia.
A Irmandade Muçulmana, é claro, não rejeita nem a tecnologia nem a inovação tecnológica.
Pode ser vista praticamente por todos os cantos nas ruas da revolução egípcia, mas sempre em atitude
cuidadosa e discreta, para evitar o efeito de mostrar-se “na cara deles”. Segundo o porta-voz Gamel
Nasser, a Irmandade Muçulmana vê-se como um setor, dentre vários outros, da revolução egípcia. E a
revolução tem a ver com o futuro do Egito – não do Islã.
Há quem argumente mais uma vez que isso foi o que os mulás disseram em Teerã em 1978/1979. O xá
foi deposto, de fato, por virtualmente todos os setores da sociedade, inclusive o Partido Comunista.
Depois os teocratas assumiram o controle – com violência. Se se considera a tradição de três décadas,
nada autoriza a supor que a Irmandade Muçulmana possa tentar movimento semelhante àquele.
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É difícil para que viva longe daqui imaginar a brutalidade da máquina de repressão policial/de Estado do
governo de Mubarak. O sistema depende de 1,5 milhão de policiais – quatro vezes o número de
soldados do exército. Os salários desses policiais são pagos, em grande parte, com o 1,3 bilhão de
dólares da “ajuda” que Mubarak recebe dos EUA, e a máquina é usada com extrema brutalidade contra
operários e praticamente toda a qualquer organização progressista.
Esse estado de coisas já existia bem antes de Mubarak. A história terá de interrogar diretamente o
fantasma do ex-presidente Anwar Sadat. Sadat construiu uma trifeta, para fazer funcionar suas políticas
de intifah: o FMI ajudou-o a construir uma economia exportadora rudimentar; Sadat manipulou a
religião, para obter fundos da Arábia Saudita para atacar a Irmandade Muçulmana; e recebeu bilhões
dos EUA para negociar acordos com Israel. A principal consequência inevitável disso tudo foi um
estado policial tamanho mamute, dedicado, dentre outras ações repressivas, a destruir totalmente os
sindicatos e todas as organizações de trabalhadores.
Eis o antídoto contra al-Qaeda
Embora tenha sido violentamente combatida durante as décadas dos governos Sadat/Mubarak, a
Irmandade Muçulmana conseguiu, pelo menos, uma estrutura. Em eleições livres e justas, não há quem
duvide que receberia, no mínimo, 30% dos votos.
A mídia-empresa global só fez, até agora, visitar a sede da organização no Cairo, em El Malek El Saleh.
O novo presidente da Irmandade Muçulmana, Mohammed Badie, é homem que se preocupa menos com
a arena política e mais com a arena social. Quanto à possibilidade de o Egito vir a transformar-se em
Estado islâmico, Badie insiste que, se acontecer, será “pelo desejo do povo”.
Diferente de Badie, Sherif Abul Magd, engenheiro e professor da Universidade Helwan, e presidente da
Irmandade Muçulmana em Gizé, falou mais, mais eloquentemente, ao jornal italiano La Stampa. Tomou
o cuidado de repetir que os manifestantes não devem antagonizar os militares. E enfatizou: “Nosso povo
já controla as ruas.”
De importante, delineou a estratégia da organização para o estágio seguinte: além de um primeiroministro interino, deve haver cinco juízes nomeados para constituir uma comissão presidencial
encarregada de revisar a Constituição e, isso feito, convocar eleições para o Parlamento e a Presidência.
Magd foi claro: “Não há conflito entre Estado islâmico e democracia – mas a decisão é direito do povo”.
Washington sabe disso, mas muito a assusta a ideia de que, qualquer que seja a democracia ou o
governo, islâmico ou não, no Egito, a Irmandade Muçulmana não acredita no velho famoso cadáver
político conhecido como “processo de paz Israel-palestinos”. Para a Irmandade Muçulmana, “não há
paz possível sem acordo com o Hamás”.
E sobre a al-Qaeda: “A al-Qaeda, hoje, é invenção da CIA para justificar a guerra ao terror”. Em termos
estratégicos, a Irmandade Muçulmana percebeu que seria contraproducente expor-se agora. Mais
adiante, a história será outra.
A rua árabe sabe – e em larga medida aprova – que a organização muçulmana sempre se opôs aos
acordos de Camp David de 1978; e que não reconhece Israel.
Outro ponto crucial é que a Irmandade Muçulmana opõe-se absoluta e completamente a qualquer tipo
de violência contra civis – o que a põe em campo absolutamente oposto à al-Qaeda. Uma Irmandade
Muçulmana que refute a violência e seja ativa nas políticas civis no Egito de modo algum assustará o
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ocidente. E, partido político estabelecido do Islã político, a organização pode ser o melhor antídoto
contra os fanáticos à moda al-Qaeda.
Ao contrário do que cantam as sereias alarmistas da direita, não há nenhum tipo de “fervor islâmico”
crescendo no Oriente Médio. A verdade é exatamente o contrário – o que se vê no momento é muita
torpeza moral e, para piorar, do lado errado da história.
A posição de Israel é autoexplicativa – do Jerusalem Post descrevendo a revolução egípcia como “o pior
desastre desde a revolução iraniana”, a um colunista do Ha'aretz que protesta contra Obama, que teria
“traído um presidente egípcio moderado que sempre foi leal aos EUA e promoveu a estabilidade e a
moderação”.
Quanto ao presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas, telefonou a Mubarak para manifestar
sua solidariedade e dizer o quanto lamentava a confusão; em seguida mandou seus próprios policiais
atacarem palestinos que se reuniam em manifestação de apoio à democracia no Egito.
Não parece haver dúvidas de que – com a Irmandade Muçulmana participando do governo do Egito –
governo egípcio independente e soberano – o tratado de paz entre Egito e Israel será renegociado. A
Irmandade Muçulmana favorece a solução de decidir por referendo. Com o que, afinal, chegamos ao
coração da questão.
Depois da revolução egípcia, os interesses de EUA e Israel deixam de convergir – e não poderão ser
apresentados como convergentes nem com algum artifício de ilusão de ótica.
Mas a revolução egípcia não é revolução anti-EUA: é revolução contra um regime que os EUA apoiam.
Um novo governo no Egito, governo legítimo, soberano, pós-Mubarak, não poderá apresentar-se ao
mundo e aos egípcios como estado-fantoche, como governo-fantoche, de Washington – com todas as
implicações regionais que daí se inferem. Esse é problema maior do que as capacidades da Irmandade
Muçulmana. Aí se ouvem ecos do coração milenar do mundo árabe, à beira, parece, de uma dramática
modificação sísmica.
[1] Orig. Brothers to the Rescue (esp. Hermanos al Rescate) é organização de exilados cubanos antiCastro, com sede em Miami, fundada em 1991. Descreve-se como ONG de finalidades humanitárias,
que ajuda cubanos que queiram deixar a ilha (de http://en.wikipedia.org/wiki/Brothers_to_the_Rescue)
[NTs].
01/02/2011 |
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Um outro Oriente Médio é possível?
Os protestos populares na Tunísia, Egito, Iêmen e Jordânia apresentam uma agenda renovada para o
Fórum Social Mundial que inicia de 6 de fevereiro em Dakar, Senegal. A aplicação da consigna do
FSM aos problemas dessa região coloca a seguinte questão: “Outro Oriente Médio é possível?”. O que
está acontecendo no Egito mostra que o castelo das autocracias apoiadas e sustentadas pelos EUA é
menos sólido do que parecia. Milhões de jovens, homens e mulheres, estão nas ruas dizendo que é
possível, sim. E necessário.
Marco Aurélio Weissheimer
O Fórum Social Mundial 2011 começa dia 6 de fevereiro em Dakar, Senegal. O encontro ganhou uma
nova agenda com a onda de protestos populares que já atingiu a Tunísia, o Egito, o Iêmen e a Jordânia.
O mais significativo de todos, sem dúvida, é o Egito, em função do que o país representa em termos
geopolíticos no Oriente Médio. Egito e Arábia Saudita são dois pilares centrais da aliança EUA-Israel
na região. Uma mudança de regime político em um desses dois países pode significar um terremoto
político.
Washington, Tel Aviv e alguns outros governos árabes sabem disso, obviamente, e estão com as barbas
de molho. Na noite desta terça, o presidente dos EUA, Barack Obama, cobrava de seu até aqui aliado
egípcio, Hosni Mubarack, o “início imediato da transição” política no país. Vão-se os anéis para
assegurar a permanência dos dedos. A velha história. E os EUA temem o pior. Olham para o Egito, a
Árabia Saudita, a Jordânia e a Palestina com indisfarçável pânico.
Quem ouve a voz dos milhões de egípcios que perderam o medo da repressão e foram para as ruas sabe
que o pior é a manutenção do atual regime, financiado e armado pelos Estados Unidos há décadas.
Enérgico na denúncia e na cobrança por democracia quando se trata de países como o Irã – ou na
“implantação da democracia” a ferro e fogo, no caso do Iraque -, os EUA silenciam quando se trata das
suas ditaduras amigas no Oriente Médio, especialmente no caso do Egito e da Arábia Saudita. Ou
silenciavam, ao menos, já que agora foram obrigados a se manifestar.
Desta vez, os malabarismos linguísticos e semânticos não conseguem esconder a natureza do problema.
E a natureza do problema no Egito não reside no fundamentalismo islâmico ou nas aspirações sociais e
políticas da Irmandade Muçulmana. O problema reside em um regime autoritário e corrupto, apoiado e
sustentado pelos EUA, que governa para um pequeno grupo, deixando milhões de pessoas vivendo na
pobreza (cerca de 20% da população vive abaixo da linha da pobreza).
25
A aplicação da consigna do FSM aos problemas dessa região coloca a seguinte questão: “Outro Oriente
Médio é possível?”. O que está acontecendo no Egito mostra que o castelo das autocracias apoiadas e
sustentadas pelos EUA é menos sólido do que parecia. Milhões de jovens, homens e mulheres, estão nas
ruas dizendo que é possível, sim. E necessário. Basta que os líderes ocidentais supostamente defensores
da democracia deixem de financiar aqueles que não querem que os povos destes países escolham o seu
destino. Deixem a democracia entrar no Oriente Médio. Não é essa a promessa universal do Ocidente? E
seja o que Deus quiser. Ou o que Alá quiser!
O povo egípcio não está rua por questões religiosas. Está na rua porque, entre outras coisas, decidiu
cobrar as promessas civilizatórias do Ocidente: democracia, liberdade, prosperidade, justiça social. As
consequências desses protestos são incertas. Neste exato momento, a turma dos anéis está em campo
para tentar salvar os dedos do modelo atual. Mas uma coisa parece definitiva: o povo egípcio perdeu o
medo e decidiu mudar os rumos do país. Essa é uma força muito difícil de ser detida e costuma ter um
impacto profundo na vida das nações.
Texto original do Asia Times Online
02/02/2011 |
Por que temer o espírito revolucionário árabe?
A reação ocidental aos levantes no Egito e na Tunísia frequentemente demonstra hipocrisia e cinismo.
A hipocrisia dos liberais ocidentais é de tirar o fôlego: eles publicamente defendem a democracia e
agora, quando o povo se rebela contra os tiranos em nome de liberdade e justiça seculares, não em
nome da religião, eles estão todos profundamente preocupados. Por que aflição, por que não alegria
pelo fato de que se está dando uma chance à liberdade? Hoje, mais do que nunca, o antigo lema de
Mao Tsé-Tung é pertinente: "Existe um grande caos abaixo do céu - a situação é excelente". O artigo é
de Slavoj Zizek.
Slavoj Zizek
O que não pode deixar de saltar aos olhos nas revoltas Tunísia e Egito é a notável ausência do
fundamentalismo islâmico. Na melhor tradição democrática secular, as pessoas simplesmente se
revoltaram contra um regime opressivo, sua corrupção e pobreza, e demandaram liberdade e esperança
econômica. A sabedoria cínica dos liberais ocidentais - de acordo com os quais, nos países árabes, o
genuíno senso democrático é limitado a estreitas elites liberais enquanto que a vasta maioria só pode ser
mobilizada através do fundamentalismo religioso ou do nacionalismo - se provou errada.
Quando um novo governo provisório foi nomeado na Tunísia, ele excluiu os islâmicos e a esquerda
mais radical. A reação dos liberais presunçosos foi: bom, eles são basicamente a mesma coisa; dois
extremos totalitários - mas as coisas são simples assim? O verdadeiro antagonismo de longa data não é
precisamente entre islâmicos e a esquerda? Ainda que eles estejam momentaneamente unidos contra o
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regime, uma vez que se aproximam da vitória, a sua unidade se parte e eles se engajam numa luta
mortal, frequentemente mais cruel do que aquela travada contra o inimigo comum.
Nós não testemunhamos precisamente tal luta depois das eleições no Irã? As centenas de milhares de
apoiadores de Mousavi lutavam pelo sonho popular que sustentou a revolução de Khomeini: liberdade e
justiça. Ainda que esse sonho tenha sido utópico, ele levou a uma explosão de criatividade política e
social de tirar o fôlego, experiências de organização e debates entre estudantes e pessoas comuns. Essa
abertura genuína, que liberou forças de transformação social então desconhecidas, um momento no qual
tudo pareceu possível, foi então gradualmente sufocada pela dominação do controle político e do
establishment islâmico.
Mesmo no caso de movimentos claramente fundamentalistas, é preciso ser cuidadoso para não perder de
vista o componente social. O Talibã é usualmente apresentado como um grupo fundamentalista islâmico
que impõe suas leis pelo terror. No entanto, quando, na primavera de 2009, eles tomaram o Vale de
Swat no Paquistão, o The New York Times noticiou que eles arquitetaram "uma revolta de classe que
explora profundas fissuras entre um pequeno grupo de ricos donos de terra e seus inquilinos desprovidos
de um chão". Se, ao "se aproveitar" dos apuros dos agricultores, o Talibã estava criando, nas palavras do
New York Times, "um alerta sobre os riscos ao Paquistão, que permanece sendo largamente feudal", o
quê impediu os democratas liberais do Paquistão e dos Estados Unidos de, da mesma forma, "se
aproveitarem" desses apuros e de tentarem ajudar os agricultores sem terra? Ocorre de as forças feudais
no Paquistão serem aliados naturais da democracia liberal?
A conclusão inevitável a ser delineada é que a ascensão do islamismo radical sempre foi o outro lado do
desaparecimento da esquerda secular nos países muçulmanos. Quando o Afeganistão é retratado como
sendo o exemplo máximo de um país fundamentalista islâmico, quem ainda se lembra que, há quarenta
anos atrás, ele era um país com uma forte tradição secular, incluindo um poderoso partido comunista
que havia tomado o poder lá sem dependência da União Soviética? Para onde essa tradição secular foi?
É crucial analisar os eventos em andamento na Tunísia e no Egito (e no Iémen e ... talvez, com
esperança, até na Arábia Saudita) em contraste com esse pano de fundo. Se a situação for eventualmente
estabilizada de modo ao antigo regime sobreviver, apenas passando por alguma cirurgia cosmética
liberal, isso irá gerar um intransponível retrocesso fundamentalista. Para que o legado chave do
liberalismo sobreviva, os liberais precisam da ajuda fraternal da esquerda radical. De volta ao Egito, a
mais vergonhosa e perigosamente oportunista reação foi aquela de Tony Blair noticiada na CNN:
mudança se necessário, mas deverá ser uma mudança estável. Mudança estável no Egito, hoje, só pode
significar um compromisso com as forças de Mubarak na forma de ligeiramente alargar o círculo do
poder. Este é o motivo pelo qual é uma obscenidade falar em transição pacífica agora: pelo
esmagamento da oposição, o próprio Mubarak tornou isso impossível. Depois de Mubarak enviar o
exército contra os protestantes, a escolha se tornou clara: ou uma mudança cosmética na qual alguma
coisa muda para que tudo continue na mesma, ou uma verdadeira ruptura.
Aqui, portanto, é o momento da verdade: ninguém pode arguir, como no caso da Argélia uma década
atrás, que permitir eleições verdadeiramente livres equivale a entregar o poder para fundamentalistas
islâmicos. Outra preocupação liberal é de que não existe poder político organizado para tomar o poder
caso Mubarak parta. É claro que não existe; Mubarak se assegurou disso ao reduzir a oposição a
ornamentos marginais, de forma que o resultado acaba sendo como o título do famoso romance de
Agatha Christie, "E Então Não Havia Ninguém". O argumento de Mubarak - é ele ou o caos - é um
argumento contra ele.
A hipocrisia dos liberais ocidentais é de tirar o fôlego: eles publicamente defendem a democracia e
agora, quando o povo se rebela contra os tiranos em nome de liberdade e justiça seculares, não em nome
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da religião, eles estão todos profundamente preocupados. Por que aflição, por que não alegria pelo fato
de que se está dando uma chance à liberdade? Hoje, mais do que nunca, o antigo lema de Mao Tsé-Tung
é pertinente: "Existe um grande caos abaixo do céu - a situação é excelente".
Para onde, então, Mubarak deve ir? Aqui, a resposta também é clara: para Haia. Se existe um líder que
merece sentar lá, é ele.
(*) Nota do Tradutor: o título original do livro de Agatha Christie é "And Then There Were None",
conhecido aqui no Brasil como "O Caso dos Dez Negrinhos".
Referências feitas pelo autor:
http://www.guardian.co.uk/world/2010/feb/02/iran-mousavi-dictatorship-khameini-protests
http://www.nytimes.com/2009/04/17/world/asia/17pstan.html?_r=1
Fonte: http://www.guardian.co.uk
Traduzido por Henrique Abel para o Diário Liberdade.
02/02/2011 |
Quem vai cortar a cabeça da serpente?
O “mensageiro” de Obama na mais recente pantomima de Mubarak foi Frank Wisner, ex-diplomata e
ex-executivo da AIG, íntimo da oligarquia do governo Mubarak, e cujo irmão Graham representava
seus vastos interesses comerciais. Wisner tem operado ultimamente como lobbysta do regime de
Mubarak nos contatos com especialistas em Oriente Médio em Washington – diferente, por exemplo, do
Egypt Working Group bipartidário, liderado por Elliott Abrams, ex-membro do Conselho de Segurança
Nacional, e Michele Dunne, do Carnegie Endowment.
Pepe Escobar - Asia Times Online
Soa como pastiche de conto escrito pelo falecido, grande egípcio que recebeu o Prêmio Nobel de
Literatura em 1988, Naguib Mahfouz. O presidente dos EUA Barack Obama enviou um emissário
“secreto” para dizer ao presidente Hosni Mubarak que se abstenha de candidatar-se ao sexto mandato
nas próximas eleições – no mesmo dia em que quase dois milhões de pessoas gritam nas ruas, nada mais
nada menos, que "Mubarak, vá-se para sempre". O presidente do Egito então, obedientemente, vai à sua
televisão estatal e anuncia exatamente o que o presidente mandou-o anunciar.
Como era de esperar, a rua explodiu em fúria. A rede Al-Jazeera (sim, a revolução será televisionada...)
limitou-se a dividir a tela, sem comentários, deixando ao fundo o som da rua no Cairo e Alexandria,
para que o mundo ouvisse. “Vá-se!”. “Vá-se, mostre alguma dignidade”. “Caia fora!” Assim, agora é
oficial: trata-se de dignidade, orgulho e respeito – valores muito prezados na cultura árabe – de
Mubarak, contra a dignidade, o orgulho e o respeito de 80 milhões de egípcios.
Chame de golpe da Casa Branca a favor da palavra de ordem do momento – “transição ordeira”. Como
Obama aparecendo na TV global depois de Mubarak para repetir a mensagem que recebeu do
mensageiro “O que está claro, como eu indiquei hoje ao presidente Mubarak, é minha crença de que a
transição ordeira deve ser significativa, deve ser pacífica e deve começar agora.”
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Ora, ora, como Mubarak preferiu divulgar, o que está claro é “o caos” (manifestantes manipulados por
forças políticas”) contra “a estabilidade” (o próprio Mubarak e seu regime). Alguma coisa sumiu,
perdida na tradução. Quem explicará a Mubarak o significado da palavra “agora”?
O agente secreto
O “mensageiro” de Obama na mais recente pantomima de Mubarak foi Frank Wisner, ex-diplomata e
ex-executivo da AIG, íntimo da oligarquia do governo Mubarak, e cujo irmão Graham representava seus
vastos interesses comerciais. Wisner tem operado ultimamente como lobbysta do regime de Mubarak
nos contatos com especialistas em Oriente Médio em Washington – diferente, por exemplo, do Egypt
Working Group bipartidário, liderado por Elliott Abrams, ex-membro do Conselho de Segurança
Nacional, e Michele Dunne, do Carnegie Endowment. Sem nem traço de ironia, como se fosse coisa
séria, o Departamento de Estado anunciou que Wisner pressionaria o sistema de Mubarak para que
“abraçasse amplas mudanças econômicas e políticas” – exatamente as mesmas que ele jamais abraçou
nos últimos 30 anos.
Quer dizer que o ditador recusou-se a fugir como o Xá do Irã fugiu na revolução em 1979. Compare-se
a cena com uma Praça Tahrir no Cairo que faça um julgamento simulado de Mubarak e o condene à
morte por enforcamento. Ou a praça, cantando “Oh Mubarak, covarde. Oh, agente dos americanos” –
em árabe, rima.
Segundo Intrade, agência irlandesa de apostas especializada em riscos políticos, 73,5% dos analistas
acreditam que Mubarak estará fora do Egito até o final do mês. Pode ser uma eternidade para a rua
egípcia – que começa a farejar a presença por ali de vários ratos muito suspeitos.
Mohamed ElBaradei, Prêmio Nobel da Paz em 2005 e ex-presidente da Agência Internacional de
Energia está sendo apresentado por todas as redes de mídia-empresa como o próximo homem. Egípciosamericanos obscuros estão sendo escaneados como possíveis membros de um comitê de sábios que
governaria durante a transição pós-Mubarak.
Pode-se dizer que o aspecto mais entusiasmante da revolução egípcia é que não há grupo de poder
tentando derrubar algum grupo rival. A rua, no momento, não está apontando para ninguém. ElBaradei
talvez seja escolha popular, mas estritamente como líder de transição, para por nos trilhos o país que
está paralisado e criar sistema transparente para eleições livres e limpas.
Plano A, no qual a multidão opera – e ponto não negociável – é que Mubarak saia imediatamente – não
no final do ano, como ele prometeu – com toda a gangue que está no governo e, depois, um período de
transição comandado por ElBaradei.
Plano B – possibilidade ainda não totalmente descartada – é o exército livrar-se de Mubarak num golpe
de Estado autorizado pelo povo. O exército instala um governo militar de transição e marca data para
eleições parlamentares e presidencial. Seria uma espécie de gambito “turco” (foi o que o exército turco
já fez, há anos). Seria excelente para a imagem popular do exército.
E outra vez como o exército turco, o exército egípcio vê-se também como guardião da nação. Todos os
presidentes egípcios desde que a revolta dos coronéis em 1952 despachou o rei Faruk foram militares:
generais Mohammed Naguib, Anwar Sadat e Mubarak, e o coronel Gamal Abdel Nasser.
“Adoro uma farda”[1]
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O Egito é isso: tudo tem a ver com o exército, a instituição mais respeitada – pressuposta a menos
corrupta – do país, a que mais se aproxima, na imaginação dos cidadãos, de estado de direito, que em
parte reflete a dinâmica social e a diversidade geográfica do país. Mas o exército também produziu os
oficiais mais bárbaros do Mukhabarat – os serviços de inteligência.
No pé em que estão as coisas, pode haver razões para crer que esteja acontecendo uma divisão interna
no establishment militar. Basta analisar os quatro principais personagens do drama:
Tenente-general Omar Suleiman, chefe da inteligência militar, ‘suave torturador’ a serviço de Mubarak
e que foi nomeado vice-presidente. É homem de saúde precaríssima. Em nenhum caso a rua o engolirá
como reformador “democrático”.
Marechal do Ar Ahmed Shafiq, ministro da Aviação Civil, agora designado primeiro-ministro. Como
Mubarak, é homem da Força Aérea, autoproclamada elite relativa. Zero de carisma popular.
Tenente general Sami Annan, comandante do estado-maior do exército. Comanda 468 mil soldados,
misto de oficiais de carreira e oceanos de soldados alistados. É o ramo que mais se aproxima da rua
egípcia. Vêm daí as declarações de que o exército não atirará contra o povo nas ruas.
Marechal de campo Mohammed Hussein Tantawi, ministro da defesa. Comanda 60 mil Guardas
Republicanos. Querido do Pentágono. Na 3ª-feira, recebeu longo telefonema de Robert “O Supremo”
Gates do Pentágono e secretário da Defesa dos EUA.
É razoável supor que a prioridade, para Annan, até agora, tenha sido preservar a relativamente boa
imagem de seu grupo. Isso implicaria que, para ele, o destino da gangue de Mubarak seria questão
secundária. O que o interessa é preservar a instituição do exército.
Ainda que só no momento, Suleiman é o homem mais poderoso do que já é uma junta militar de facto.
Tem o apoio de uma elite militar, de toda a máquina de repressão, e de uma elite governante vacilante,
apavorada (os que ainda não fugiram para Dubai, nos Emirados Árabes Unidos). Embora remota, há
ainda a possibilidade de que esses quatro principais atores cheguem à conclusão de que o chefe tem de
partir, para que consigam salvar o regime.
O que ainda não se pode ver com clareza é o nó compacto que permite a uma ditadura controlar o poder:
o laço de aço que une o exército e a máquina da repressão, a submissão sem reservas ao ditador, e a
nenhuma dificuldade para atirar contra o próprio povo. Isso foi o que se viu em ação no Irã no verão de
2009; e a revolução verde foi esmagada.
Aqueles quatro comandantes podem também estar perdendo minutos de sono pensando no destino dos
generais iranianos depois da queda do xá; fizeram um acordo com o Grande Aiatolá Ruhollah
Khomeini, que depois foi esquecido; e os generais foram perseguidos, e Khomeini até criou seu próprio
exército, o Corpo de Guardas Revolucionários Islâmicos. É possível que estejam pensando também
sobre o exército turco – o qual, hoje, sob o governo de inspiração islâmica do primeiro-ministro Recep
Tayyip Erdogan, é impedido de influenciar os ventos políticos na Turquia e o lado para o qual devem
soprar.
A janela ainda está aberta para Annan, tanto quanto para Suleiman, Shafiq e Tantawi, se concluírem que
o melhor para o exército será manter uma posição moral e o relacionamento privilegiado com o
Pentágono, e derrubar o Faraó e, assim, manter o papel de atores-chaves para modelar um Egito pósrevolução.
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Assim abrimos uma outra caixa de vermes. Nas últimas três décadas, o exército promoveu um virtual
pogrom de islâmicos. Não se sabe, por hora, se os altos comandantes resignar-se-ão à função de
parceiros da Fraternidade Muçulmana, em parceria política.
A diferença crucial é que o exército defende e a Fraternidade Muçulmana é contra os acordos de paz de
Camp David com Israel – e o exército com certeza não quer outra guerra do Oriente Médio. Mas será
que respeitarão a decisão de um referendo popular que, praticamente com certeza, decidirá pela
revogação dos acordos?
Enquanto isso, a elite militar parece ser a única arma capaz de ensinar a Mubarak o significado da
palavra “agora”. Até Abu Omar, um ex imã em Milão, Itália, acusado de terrorismo pela CIA-EUA,
sequestrado, “retirado” do Egito e que depois voltou (vive hoje em Alexandria) acredita que “A única
solução realista para o país no momento, é os militares tomarem o poder”. Agora.
[1]
Orig. I love a man in uniform, título de filme (1993, mais em
http://en.wikipedia.org/wiki/I_Love_a_Man_in_Uniform_(film)). Em português “Adoro homens de
uniforme”.
Tradução Vila Vuduhttp://www.atimes.com/atimes/Middle_East/MB03Ak02.html
03/02/2011
Tunísia, Egito, Marrocos...Essas “ditaduras amigas”
Os nossos meios de comunicação e jornalistas não insistiram durante décadas que esses dois “países
amigos”, Tunísia e Egito, eram “Estados moderados”? A horrível palavra “ditadura” não estava
exclusivamente reservada no mundo árabe muçulmano (depois da destruição da “espantosa tirania” de
Saddam Hussein no Iraque) ao regime iraniano? Como? Havia então outras ditaduras na região? E
isso foi ocultado pelos meios de comunicação de nossa exemplar democracia? O artigo é Ignacio
Ramonet.
Ignacio Ramonet
Uma ditadura na Tunísia? No Egito, uma ditadura? Vendo os meios de comunicação se esbaldarem com
a palavra “ditadura” aplicada a Tunísia de Bem Alí e ao Egito de Moubarak, os franceses devem estar se
perguntando se entenderam ou leram bem. Esses mesmos meios de comunicação e esses mesmos
jornalistas não insistiram durante décadas que esses dois “países amigos” eram “Estados moderados”? A
horrível palavra “ditadura” não estava exclusivamente reservada no mundo árabe muçulmano (depois da
destruição da “espantosa tirania” de Saddam Hussein no Iraque) ao regime iraniano? Como? Havia
então outras ditaduras na região? E isso foi ocultado pelos meios de comunicação de nossa exemplar
democracia? Eis aqui, em todo caso, um primeiro abrir de olhos que devemos ao rebelde povo da
Tunísia. Sua prodigiosa vitória liberou os europeus da “retórica hipócrita de ocultamento” em vigor em
nossas chancelarias e em nossa mídia. Obrigados a tirar a máscara, simulam descobrir o que sabíamos
há algum tempo (1), a saber, que as “ditaduras amigas” não são mais do que isso: regimes de opressão.
Sobre esse assunto, os meios de comunicação não têm feito outra coisa do que seguir a “linha oficial”:
31
fechar os olhos ou olhar para o outro lado confirmando a ideia de que a imprensa só é livre em relação
aos fracos e aos povos isolados. Por acaso Nicolás Sarkozy não teve a altivez de assegurar que na
Tunísia “havia uma desesperança, um sofrimento, um sentimento de angústia que, precisamos
reconhecer, não havíamos apreciado em sua justa medida”, ao se referir ao sistema mafioso do clã Ben
Alí-Trabelsi?
“Não havíamos apreciado em sua justa medida...” Em 23 anos...Apesar de contar, neste país, com
serviços diplomáticos mais prolíficos que os de qualquer outro país...Apesar da colaboração em todos os
setores da segurança (polícia, inteligência...) (2). Apesar das estâncias regulares de altos responsáveis
políticos e midiáticos que estabeleciam ali descomplexadamente seus locais de veraneio...Apesar da
existência na França de dirigentes exilados da oposição tunisiana, mantidos marginalizados como
pesteados pelas autoridades francesas e com acesso proibido durante décadas aos grandes meios de
comunicação... Democracia ruinosa...
Na realidade, esses regimes autoritários foram (e seguem sendo) protegidos de modo complacente pelas
democracias europeias, que desprezaram seus próprios valores sob o pretexto de que constituíam
baluartes contra o islamismo radical (3). O mesmo argumento cínico usado pelo Ocidente durante a
Guerra Fria para apoiar ditaduras militares na Europa (Espanha, Portugal, Grécia e Turquia) e na
América Latina, pretendendo impedir a chegada do comunismo ao poder.
Que formidável lição das sociedades árabes revolucionárias aqueles que, na Europa, os descreviam em
termos maniqueístas, ou seja, como massas dóceis submetidas a tiranos orientais corruptos ou como
multidões histéricas possuídas pelo fanatismo religioso. E agora, de repente, elas surgem nas telas de
nossos computadores e televisores (conferir o admirável trabalho da Al-Jazeera), preocupadas com o
progresso social, não obcecadas pela questão religiosa, sedentas de liberdade, cansadas da corrupção,
detestando as desigualdades e reclamando democracia para todos, sem exclusões.
Longes das caricaturas binárias, esses povos não constituem de modo algum uma espécie de “exceção
árabe”, mas sim se assemelham em suas aspirações políticas ao resto das ilustradas sociedades urbanas
modernas. Um terço dos tunisianos e quase um quarto dos egípcios navegam regularmente pela internet.
Como afirma Moulay Hicham El Alaoui: “Os novos movimentos já não estão marcados pelos velhos
antagonismos como anti-imperialismo, anticolonialismo ou antisecularismo. As manifestações na
Tunísia e no Egito são, até aqui, desprovidas de todo simbolismo religioso. Constituem uma ruptura
geracional que refuta a tese do excepcionalismo árabe. Além disso, esses movimentos são animados
pelas novas metodologias de comunicação da internet. Eles propõem uma nova versão da sociedade
civil, onde o rechaço ao autoritarismo anda de mãos dadas com o rechaço à corrupção” (4).
Especialmente graças às redes sociais digitais, as sociedades da Tunísia e do Egito se mobilizaram com
grande rapidez e puderam desestabilizar o poder em tempo recorde. Ainda antes de os movimentos
terem a oportunidade de “amadurecer” e favorecer a emergência de novos dirigentes entre eles. É uma
das raras ocasiões onde, sem líderes, sem organizações dirigentes e sem programa, a simples dinâmica
da exasperação das massas bastou para conseguir o triunfo da revolução. Trata-se de um momento frágil
e, sem dúvida, as grandes potências já estão trabalhando, especialmente no Egito, para que “tudo mude
sem que nada mude”, segundo o velho adágio de O Leopardo. Esses povos que conquistaram sua
liberdade devem lembrar a advertência de Balzac: “Se matará a imprensa assim como se mata um povo,
outorgando-lhe a liberdade” (5). Nas “democracias vigiadas” é muito mais fácil domesticar
legitimamente um povo do que nas antigas ditaduras. Mas isso não justifica sua manutenção. Nem deve
ofuscar o ardor de derrubar uma tirania.
A derrocada da ditadura na Tunísia foi tão veloz que os demais povos magrebinos e árabes chegaram à
conclusão de que essas autocracias – as mais velhas do mundo – estavam na verdade profundamente
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corroídas e não eram, portanto, mais do que “tigres de papel”. Esta demonstração está ocorrendo
também no Egito.
Daí esse impressionante levante dos povos árabes, que leva a pensar inevitavelmente no grande
florescimento das revoluções europeias de 1848, na Jordânia, Iêmen, Argélia, Síria, Arábia Saudita,
Sudão e também no Marrocos.
Neste último país, uma monarquia absoluta, na qual o resultado das “eleições” (sempre viciado) é
decidido pelo soberano, que designa segundo sua vontade os chamados ministros “da soberania”,
algumas dezenas de famílias próximas ao trono continuam controlando a maioria das riquezas (6). Os
telegramas divulgados por Wikileaks revelaram que a corrupção chega a níveis de indecência
descomunal, maiores que os encontrados na Tunísia de Ben Alí, e que as redes mafiosas teriam todas
como origem o Palácio. Trata-se de um país onde a prática da tortura está generalizada e o
amordaçamento da imprensa é permanente.
No entanto, como na Tunísia de Ben Alí, esta “ditadura amiga” se beneficia da grande indulgência dos
meios de comunicação e da maior parte de nossos responsáveis políticos (7), os quais minimizam os
sinais do começo de um “contágio” da rebelião. Quatro pessoas se imolaram, incendiando suas próprias
vestes. Produziram-se manifestações de solidariedade com os rebeldes da Tunísia e do Egito em Tânger,
Fez e Rabat (8). Acossadas pelo medo, as autoridades decidiram subvencionar preventivamente os
artigos de primeira necessidade para evitar as “rebeliões do pão”. Importantes contingentes de tropas do
Saara Ocidental teriam sido deslocados aceleradamente para Rabat e Casablanca. O rei Mohamed VI e
alguns colaboradores teriam viajado a França no dia 29 de janeiro para consultar especialistas em ordem
pública do Ministério do Interior francês (9).
Ainda que as autoridades desmintam as duas últimas informações, está claro que a sociedade
marroquina está seguindo os acontecimentos da Tunísia e do Egito, com excitação. Preparados para
unir-se ao impulso de fervor revolucionário e quebrar de uma vez por todas as travas feudais. E para
cobrar todos aqueles que, na Europa, foram cúmplices durante décadas dessas “ditaduras amigas”.
NOTAS
(1) Ler, por exemplo, de Jacqueline Boucher "La société tunisienne privée de parole" e de Ignacio
Ramonet "Main de fer en Tunisie", Le Monde Diplomatique, de fevereiro de 1996 e de julho de 1996,
respectivamente.
(2) Quando Mohamed Bouazizi se imolou incendiando-se em 17 de dezembro de 2010, quando a
insurreição ganhava todo o país e dezenas de tunisianos rebeldes continuavam caindo sob as balas da
repressão, o prefeito de Paris, Bertrand Delanoé, e a ministra de Relações Exteriores, Michèle AlliotMarie
consideravam
absolutamente
normal
ir
festejar
alegremente
em
Tunis.
(3) Ao mesmo tempo, Washington e seus aliados europeus, sem aparentemente medir as contradições,
apoiam o regime teocrático e tirânico da Arábia Saudita, principal sede do islamismo mais
obscurantista e mais expansionista.
(4) http://www.medelu.org/spip.php?article711
(5) Honoré de Balzac, Monographie de la presse parisienne, Paris, 1843.
(6) Ler Ignacio Ramonet, "La poudrière Maroc", Mémoire des luttes, setembro 2008.
http://www.medelu.org/spip.php?article111
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(7) Desde Nicolas Sarkozy até Ségolène Royal, passando por Dominique Strauss-Kahn, que possui um
“ryad” em Marrakesh, os dirigentes políticos franceses não têm o menor escrúpulo em passar suas
férias de inverno entre estas “ditaduras amigas”.
(8) El País, 30 de janeiro de 2011- http://www.elpais.com/../Manifestaciones/Tanger/Rabat
(9) Ler El País, 30 de janeiro de 2011 http://www.elpais.com/..Mohamed/VI/va/vacaciones y Pierre
Haski, "Le discret voyage du roi du Maroc dans son château de l´Oise", Rue89, 29 de janeiro de 2011.
http://www.rue89.com/..le-roi-du-maroc-en-voyagediscret...188096http://www.elpais.com/../Manifestaciones/Tanger/Rabat
03/02/2011 |
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"Isso é obra de Mubarak"
A luta ao meu redor na praça Tahrir era tão terrível que podíamos sentir o cheiro do sangue. Os
homens e mulheres que estão exigindo o fim da ditadura de 30 anos de Mubarak – vi jovens mulheres
arrancando pedras do pavimento enquanto caíam rochas ao seu redor – lutavam com imensa coragem
que, mais tarde, se converteu em uma crueldade terrível. Ao final, o governo informou que houve 3
mortos e 637 feridos; segundo a cadeia Al Jazeera os feridos chegavam a 1500. “Isso é obra de
Mubarak”, disse-me um atirador de pedras ferido. “Ele conseguiu que os egípcios se voltassem uns
contra os outros por apenas nove meses mais de poder. Está louco. Vocês do Ocidente também estão
loucos?” O artigo é de Robert Fisk.
Robert Fisk - Página/12
A contra revolução do presidente Hosni Mubarak entrou em choque ontem com seus oponentes em
meio a uma chuva de pedras, paus e barras de ferro, em uma batalha que durou todo o dia no centro da
capital que ele afirma governar entre dezenas de milhares de jovens que – e aqui está a mais perigosa
das armas – brandiam a bandeira do Egito no rosto de seus adversários.
A luta ao meu redor na praça Tahrir era tão terrível que podíamos sentir o cheiro do sangue. Os homens
e mulheres que estão exigindo o fim da ditadura de 30 anos de Mubarak – vi jovens mulheres
arrancando pedras do pavimento enquanto caíam rochas ao seu redor – lutavam com imensa coragem
que, mais tarde, se converteu em uma crueldade terrível. Ao final, o governo informou que houve 3
mortos e 637 feridos; segundo a cadeia Al Jazeera os feridos chegavam a 1500.
Alguns arrastavam homens de segurança de Mubarak pela praça, golpeando-os até que o sangue saído
de suas cabeças tingisse sua roupa. O Terceiro Exército egípcio, famoso por cruzar o Canal de Suez em
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1973, não pode – ou não quis – sequer cruzar a praça Tahrir para ajudar os feridos. Milhares de egípcios
gritavam – e isso é o mais próximo de uma guerra civil –, lançavam-se uns contra os outros como
lutadores romanos, e simplesmente empurraram as unidades de paraquedistas que “vigiavam” a praça
para cima de seus tanques e veículos blindados que logo acabaram sendo usados como escudo de
proteção.
Um comandante de tanque Abrams – e eu estava somente a três metros dele – simplesmente se esquivou
das pedras que ricocheteavam no tanque, saltou para dentro do veículo e fechou a escotilha. Os
partidários de Mubarak subiram então no tanque para atirar mais pedras contra seus jovens e
enlouquecidos antagonistas.
Suponho que é o mesmo em todas as batalhas, ainda que (ainda) não tenham aparecido as armas; o
abuso de ambos os lados provocou uma chuva de pedras dos homens de Mubarak – sim, eles
começaram – e logo os manifestantes que tomaram a praça para pedir a saída do ancião começaram a
quebrar o pavimento e atirar as pedras de volta.
Quando cheguei à “linha de frente”, ambos os bandos estavam gritando e atacando-se entre si, o sangue
corria por seus rostos. Em um certo momento, antes que passasse o choque do ataque, os partidários de
Mubarak quase cruzaram toda a praça em frente ao monstruoso edifício Mugamma – uma relíquia do
esforço nasserista – antes de serem rechaçados.
Agora que os egípcios estão lutando contra os egípcios, como devemos chamar a esta gente
perigosamente furiosa? Os mubarakistas? Os “manifestantes” ou, de maneira mais inquietante, a
“resistência”? Por que é assim que se chamam a si mesmos os homens e mulheres que estão lutando
para derrotar Mubarak. “Isso é obra de Mubarak”, disse-me um atirador de pedras ferido. “Ele
conseguiu que os egípcios se voltassem uns contra os outros por apenas nove meses mais de poder. Está
louco. Vocês do Ocidente também estão loucos?”
Não recordo como respondi a pergunta. Mas como poderia me esquecer de ter visto, umas poucas horas
antes, o “especialista” em Oriente Médio, Mitt Romney, ex-governador de Massachusetts, responder a
pergunta “Mubarak é um ditador”, da seguinte forma: “Não, é uma figura de estilo monárquico”.
A imagem do rosto deste monarca era levada em cartazes gigantes, uma provocação impressa, para as
barricadas. Distribuídos pelos funcionários do Partido Nacional Democrático (PND), muitos eram
levados por homens que portavam distintivos e cassetetes da polícia. Não havia dúvida sobre isso
porque eu tinha dirigido desde o deserto até o Cairo, enquanto eles se organizavam em frente ao
Ministério do Exterior e do edifício da rádio estatal, na margem oeste do Nilo. Havia alto falantes
ligados com canções e chamados de vida eterna para Mubarak (uma presidência muito longa, por certo)
e muitos estavam sentados em novas motocicletas, como se estivessem inspirados nos capangas de
Mahmud Ahmadinejad depois das eleições iranianas de 2009.
Só quando passei o edifício da rádio é que vi milhares de jovens homens entrando desde os subúrbios do
Cairo. Havia mulheres também, a maioria vestia o tradicional traje negro; algumas poucas crianças entre
elas, caminhando por trás do Museu Egípcio. Disseram-me eu tinham tanto direito a estar na praça
Tahrir como os manifestantes e que tentavam expressar seu amor por seu presidente no lugar onde ele
havia sido tão profanado.
E tinham razão, suponho. Os democratas – ou a “resistência”, dependendo do ponto de vista – tinham
expulsado os homens das forças de segurança desta mesma praça na semana passada. O problema é que
os homens de Mubarak incluem alguns dos mesmos capangas que eu vi então, quando estavam
trabalhando com a polícia de segurança armada para atacar os manifestantes. Um deles, um jovem de
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camisa amarela, cabelo revolto e olhos brilhantes avermelhados, levava a mesma barra de ferro que
usava na semana passada. Uma vez mais, os defensores de Mubarak estavam de volta. Até cantavam o
mesmo velho refrão: “Com nosso sangue, com nossa alma, a vós nos dedicamos”.
Caminhei ao lado das fileiras de Mubarak e cheguei à frente quando eles começaram outro ataque à
praça Tahrir. O céu estava cheio de pedras. Estou falando de pedras de 15 centímetros de diâmetros, que
golpeavam o terreno como peças de morteiro. Deste lado da “linha” chegavam os opositores de
Mubarak. Eles se dividam e golpeavam as paredes ao nosso redor. Neste ponto, os homens do governo
voltaram e correram em estado de pânico enquanto os opositores do presidente os empurravam para
frente. Fiquei parado de costas para a janela de uma agência de viagens fechada – lembro um cartaz para
um fim de semana romântico em Luxor e no “Vale das Tumbas”. Mas as pedras caíam como chuva,
centenas delas ao mesmo tempo, e logo um novo grupo de homens estava ao meu lado, eram os
manifestantes egípcios da praça. Mas em sua fúria já não gritavam “Abaixo Mubarak” e “Mubarak
Negro”, mas sim “Alá Akbar” – Deus é grande –, grito que escutei seguidamente a medida que o dia
avançava.
Um lado gritava Mubarak, o outro Deus. Não tinha sido assim 24 horas antes. Dirige-me para um
terreno mais seguro, onde as pedras já não estouravam e fique entre os opositores de Mubarak.
Seria exagerado dizer que as pedras obscureceram o céu, mas por momentos havia centenas de pedras
voando pelo céu. Destroçaram totalmente um caminhão do exército, quebrando as janelas e suas
laterais. As pedras partiam das ruas paralelas à rua Campollion e de Talaat Harb. Os homens estavam
suando, com faixas ensaguentadas na cabeça, gritando seu ódio. Muitos traziam trapos brancos nos
ferimentos. Alguns eram levados derramando sangue por toda a rua.
E um incrível número usava o traje islamista, calças curtas, sacolas cinzas, largas barbas e gorros
brancos. Gritavam Alá Akbar mais forte e bradavam seu amor a Deus. Sim, Mubarak conseguiu a
proeza. Colocou os salafistas contra ele, junto a seus inimigos políticos. Volta e meia agarravam alguns
jovens, tinham os rostos inchados de socos e gritavam temendo por suas vidas. A documentação
encontrada em suas roupas provava que trabalhavam para o Ministério do Interior de Mubarak.
Muitos dos manifestantes – jovens seculares, abrindo caminho entre os atacantes – tratavam de defender
os prisioneiros. Outros – e eu vi um monte de “islamistas” entre eles -, davam socos nas cabeças destes
pobres homens, usando grandes anéis em seus dedos para cortar a pele e fazer o sangue escorrer por
seus rostos. Um jovem, com uma camiseta vermelha rasgada, e o rosto inchado de dor, foi resgatado por
dois homens fortes, um dos quais o colocou, quase sem roupa, sobre seu ombro, abrindo caminho entre
a multidão.
Assim se salvou a vida de Mohamed Abdul Azim Mabrouk Eid, policial de segurança número
2.101.074, do governo de Gizé – seu passe de segurança era azul com três pirâmides estampadas. Outro
homem foi resgatado da multidão enfurecida, agarrando-se o estômago. E por trás de um esquadrão de
mulheres, chovia pedras.
Houve momentos de farsa em meio a tudo isso. Na metade da tarde, quatro cavalos montados por
partidários de Mubarak entraram na praça, junto com um camelo – sim, um camelo verdadeiro que deve
ter sido trazido das pirâmides. Seus jóqueis, aparentemente drogados, estavam caindo. Três horas mais
tarde, encontrei os cavalos pastando ao lado de uma árvore. Perto da estátua de Talaat Harb, um menino
vendia Agwa – um delicioso pão egípcio -, enquanto do outro lado da rua estavam paradas duas figuras,
uma menina e um menino, segurando bandejas de papelão idênticas. A bandeja da menina estava cheia
de pacotes de cigarro. A do menino, estava cheia de pedras.
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Houve cenas que devem ter provocado dor pessoal e angústia para aqueles que as experimentaram.
Havia um homem alto, musculoso, ferido no rosto por uma pedra, cujas pernas se dobravam ao lado de
uma cabine de telefone. E o soldado do veículo blindado que deixou que as pedras voassem ao seu lado
até que saltou para a rua junto com os inimigos de Mubarak, abraçando-se a eles, enquanto as lágrimas
corriam por seu rosto.
Não sei realmente quem ganhou a batalha da praça Tahrir ontem. Ao entardecer, as pedras ainda
golpeavam as ruas e as pessoas. Depois de um tempo, comecei a me agachar quando vi passar dois
pássaros.
05/02/2011 |
Quando as empresas preferem os ditadores à democracia
O Egito foi o segundo grande receptor de ajuda externa dos Estados Unidos durante décadas, depois de
Israel (sem contar os fundos gastos nas guerras e ocupações do Iraque e Afeganistão). O regime de
Mubarak recebeu cerca de 2 bilhões de dólares ao ano desde que assumiu o poder, em sua imensa
maioria para as forças armadas. Onde foi parar esse dinheiro? Em geral, foi para empresas
estadunidenses. O dinheiro vai para o Egito e logo volta para pagar aviões F-16, tanques M-1, motores
de aviões, mísseis, pistolas e latas de gás lacrimogêneo. O artigo é de Amy Goodman.
Amy Goodman – Democracy Now!
“As pessoas levavam um cartaz que dizia ‘Para: Estados Unidos. De: Povo egípcio. Deixem de apoiar
Mubarak. Ele acabou!” – dizia o twitter de meu valente colega e produtor em chefe de Democracy Now!
Sharif Abdel Kouddous, desde as ruas do Cairo.
Mais de dois milhões de pessoas se manifestaram naquele dia em todo o Egito: a maioria delas
inundaram a praça Tahrir, no Cairo. Tahrir, que significa “libertação” em árabe, se converteu no
epicentro do que parece ser uma revolução em grande medida pacífica, espontânea e sem líderes no país
mais povoado do Oriente Médio. Este incrível levante que desafio o toque de recolher militar, foi
conduzido pelos jovens, que constituem a maior parte dos 80 milhões de habitantes do país. Twitter,
Facebook e as mensagens de texto de telefones celulares ajudaram esta nova geração a vincular-se e
organizar-se, apesar de viver há três décadas em uma ditadura apoiada pelos Estados Unidos.
Em resposta, o regime de Mubarak, com a ajuda de empresas estadunidenses e europeias, cortou o
acesso à Internet e restringiu o serviço de telefonia celular, deixando o Egito em uma situação de
obscuridade digital. C.W. Anderson comentou a respeito de se o que estava ocorrendo no Oriente Médio
era uma espécie de revolução do Twitter: “não é a tecnologia, mas sim as pessoas que fazem a
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revolução”.
As pessoas nas ruas exigem democracia e autodeterminação. Sharif viajou para o Egito à noite, em um
terreno incerto. As odiadas forças de segurança do Ministério do Interior e a polícia de camisas negras
leais ao presidente Hosni Mubarak estavam reprimindo e matando gente, prendendo jornalistas,
quebrando e confiscando câmeras. No sábado pela manhã, Sharif se dirigiu à praça Tahrir. Apesar do
bloqueio da internet e das mensagens de texto, Sharif, talentoso jornalista e gênio da tecnologia, achou
rapidamente uma maneira de publicar mensagens no twitter desde a praça Tahrir: “Que cena
assombrosa: estão passando três tanques carregados de gente que grita “Fora Hosni Mubarak!”.
O Egito foi o segundo grande receptor de ajuda externa dos Estados Unidos durante décadas, depois de
Israel (sem contar os fundos gastos nas guerras e ocupações do Iraque e Afeganistão). O regime de
Mubarak recebeu cerca de 2 bilhões de dólares ao ano desde que assumiu o poder, em sua imensa
maioria para as forças armadas. Onde foi parar esse dinheiro? Em geral, foi para empresas
estadunidenses. Pedi a William Hartung, da New America Foundation, que explicasse isso:
“É uma forma de bem estar empresarial para empresas como Lockheed Martin e General Dynamics,
porque o dinheiro vai para o Egito e logo volta para pagar aviões F-16, tanques M-1, motores de
aviões, todo tipo de mísseis, pistolas, latas de gás lacrimogêneo de uma empresa chamada Combined
Systems International, cujo nome figura nas latas achadas nas ruas do Egito”.
Hartung acaba de publicar um livro, “Os profetas da guerra: Lockheed Martin e a criação do complexo
militar industrial”. Continuou dizendo:
“Lockheed Martin encabeçou acordos de 3,8 bilhões de dólares nestes últimos dez anos; a General
Dynamics de 2,5 bilhões para tanques; a Boeing de 1,7 bilhões para mísseis e helicópteros e a
Raytheon para todo tipo de mísseis para as forças armadas. Então, basicamente este é um elemento
fundamental destinado a manter o regime, mas grande parte do dinheiro se recicla. Os contribuintes
poderiam simplesmente dar o dinheiro diretamente para a Lockheed Martin ou a General Dynamics”.
De maneira similar, a “chave geral” para bloquear a Internet e os telefones celulares no Egito foi ativada
com a colaboração de empresas. A empresa Vodafone (gigante mundial da telefonia celular, proprietária
de 45% das ações da Verizon Wireless nos Estados Unidos), com sede na Inglaterra, tentou justificar-se
em um comunicado de imprensa: “Estava claro que Vodafone não tinha opções legais nem práticas, mas
sim que devia satisfazer as exigências das autoridades”.
Narus, uma subsidiária da Boeing Corporation, vendeu equipamentos ao Egito para permitir uma
“inspeção profunda de pacote” (DPI, em sua sigla em inglês), segundo Tim Karr, do grupo de política
de mídia Free Press. Karr disse que a tecnologia da Narus “permite às empresas egípcias de
telecomunicações ver as mensagens de texto dos telefones celulares e identificar o tipo de vozes
dissidentes que existem. Também fornece ferramentas tecnológicas para localizar essas mensagens
geograficamente e rastreá-las”.
Mubarak prometeu não se apresentar como candidato à reeleição em setembro. Mas o povo do Egito
exige que ele saia agora. Como durou 30 anos? Talvez isso possa ser explicado melhor quando
consideramos uma advertência feita por um general do exército dos EUA há 50 anos, o presidente
Dwight D. Eisenhower, que disse: “Devemos tratar de evitar que o complexo militar-industrial adquira
influência injustificada, seja ela buscada ou não”. Esse complexo mortal não é um perigo apenas para a
democracia em nível nacional, mas também quando apoia déspotas no estrangeiro.
06/02/2011 |
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Nova onda de ativismo político cresce na Inglaterra
Uma nova onda de ativismo político cresce na Inglaterra como resposta aos planos de austeridade do
governo conservador de David Cameron. Organizadores da Marcha para a Alternativa esperam atrair
dezenas de milhares de ativistas de todo o país para o centro de Londres, no dia 26 de março, para
pedir mudança nos planos do governo de rápidos e profundos cortes nos gastos públicos, os maiores
desde a Segunda Guerra. Coalizão entre Conservadores e liberais democratas anunciou cortes de 80
bilhões de libras no orçamento dos próximos quatros anos. O artigo é de Wilson Sobrinho.
Wilson Sobrinho - De Londres, para a Carta Maior
LONDRES - David Cameron não terá completado um ano como primeiro-ministro britânico quando,
no primeiro sábado de primavera do hemisfério norte em 2011, milhares de ativistas e cidadãos
descontentes com as medidas de austeridade apresentadas pelos conservadores sairão às ruas para
protestar, tentar se fazer ouvir e mudar os planos do governo.
Os organizadores da Marcha para a Alternativa (que em inglês também pode ser lido como Março para
a Alternativa) esperam atrair “dezenas de milhares” de ativistas de todo o país para o centro de Londres,
em 26 de março próximo, para pedir mudança “nos planos do governo de rápidos e profundos cortes nos
gastos públicos”, os maiores desde a Segunda Guerra. O tamanho da manifestação e o resultado político
dela ainda são incertezas a serem respondidas nos dias subsequentes, porém o recrudescimento do
ativismo político já é um fato no país.
Em uma escalada que começou logo depois de a coalizão entre Conservadores e Liberais Democratas
anunciar cortes de 80 bilhões de libras no orçamento dos próximos quatro anos e deixar vazar a
expectativa de demissão de milhares de funcionários públicos, o ativismo inglês vem renascendo – das
tradicionais marchas de estudantes até protestos originados na interação de desconhecidos através de
redes sociais.
As ações mais barulhentas e de maior repercussão na mídia foram patrocinadas por grupos de
estudantes, que por várias vezes entre novembro e dezembro passados foram até o coração político
britânico – o Parlamento, às margens do rio Tâmisa, em Londres – pedir que os representantes votassem
contra o aumento das anuidades das universidades proposto pelo novo governo. O novo regime –
aprovado em dezembro de 2010 apesar dos protestos – permite a triplicação das matrículas, indo de
cerca dos 3,2 mil anuais para um limite de até 9 mil a partir de 2012.
A primeira das manifestações ocorreu em 10 de novembro, quando, estima-se, 50 mil estudantes de
todas as partes do país foram às ruas de Londres para um protesto, em sua maioria pacífico, mas que
acabou em pancadaria e quebra-quebra no prédio que abriga a sede do partido Conservador, na região
próxima de onde fica o Parlamento. Várias manifestações menores se seguiram naquelas semanas, com
prédios de universidades sendo ocupados ao redor do país.
Embora derrotadas em suas demandas imediatas – o não-aumento das anuidades nas universidades –
essas manifestações estudantis estabeleceram dois fatos. Primeiro, uma mudança de humor significativa
em Londres, uma cidade que não testemunhava manifestações nessa escala desde 2003, nas passeatas
contra a invasão do Iraque. Mas com uma diferença fundamental: esses estudantes levantavam uma
bandeira interna e não internacionalista, como seus pares da década passada.
Mas o segundo fato, e talvez o mais importante é que a vitória do governo veio com uma etiqueta que
estabelecia um preço bem claro, os primeiros abalos na coalizão entre Conservadores e Liberais
Democratas.
Em um país onde a palavra tem um valor muito grande, Nick Clegg, o vice-primeiro ministro e
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candidato do Partido Liberal Democrata que concorreu contra Cameron nas eleições de 2010, havia
comprometido-se a não aumentar as tarifas de educação. O que, obviamente, só aumentou a frustração
dos estudantes. No seu partido, na votação de dezembro, 28 parlamentares foram com o governo e 21
contra.
Os Liberais Democratas, de Clegg, donos de 23% das cadeiras parlamentares, residem em outro
espectro político que não o do estado mínimo dos Conservadores. Porém, com apenas 36% das cadeiras
sob seu controle depois da eleição de 2010 e afastados do poder há 13 anos, um retorno dos
Conservadores ao famoso número 10 da rua Downing passava pela construção de uma coalizão com o
partido de centro-esquerda de Clegg, e assim uma série de concessões nas plataformas de ambos os
partidos foram costuradas e acordadas.
Em outubro de 2010, cinco meses depois de tomar posse, a coalizão anunciou os planos detalhados de
cortes de orçamento – 80 bilhões em quatro anos. Naquela mesma semana, um membro do governo
foi fotografado carregando documentos que revelavam estimativas de extinção de até 500 mil vagas no
setor público no país, dando avanço àquilo que David Cameron chama de “A Grande Sociedade”. A
expressão foi cunhada pelo primeiro-ministro durante a campanha eleitoral para resumir um conjunto de
medidas que visa a redução das responsabilidades do poder central, o estimulo ao voluntarismo e ao
cooperativismo, a transferência de poder para os governos locais – em resumo, medidas de
enxugamento da máquina estatal.
Por todo o país, bibliotecas públicas e centros de lazer e esportes estão fechando; há cortes nos
orçamentos da polícia; diminuição de repasses aos municípios; criminosos são colocados em liberdade
condicional em função da redução de gastos com construção de novas vagas prisionais; impostos sobre
mercadorias e serviços aumentam, assim como tarifas de transporte público; as regras de benefícios
como seguro-desemprego, auxílio-moradia e maternidade sofrem revisão; há planos para o aumento da
idade de aposentadoria. Adicione-se a isso ainda uma taxa de desemprego na casa dos 8%, inflação em
alta e uma economia que luta para manter-se em crescimento por mais que dois trimestres seguidos: é
impossível encontrar um morador das ilhas britânicas intocado pela crise deflagrada em 2008 e pela
austeridade orçamentária anunciadas em outubro passado.
Mas para muitos, faltava apresentar a parte da conta referente aos fat cats, para fazer uso de uma
expressão local – bancos e grandes corporações e a fatia mais rica da sociedade. Logo depois do
ministro das finanças apresentar os planos à sociedade britânica, um grupo de amigos discutia o estado
das coisas em um pub, no centro de Londres, e se perguntava como havia se chegado a tal situação sem
que ninguém fizesse nada para evitar que a responsabilidade por resolver a crise criada pelos mercados
recaísse majoritariamente sobre as costas dos trabalhadores.
Tom Phillips, um enfermeiro de 23 anos que estava presente nessa noite, relata na mais recente edição
da revista progressista norte-americana The Nation: “Nós gastamos um monte de energia perguntando
por que não estava acontecendo. E então de repente percebemos que isso era o que todos estavam
dizendo também. Por que não fazer algo? Por que nós não começamos? Se fizermos, talvez as pessoas
parem de ser perguntar por que não está acontecendo e se juntem a nós”.
Exatamente uma semana depois do anúncio da revisão de gastos pelo governo conservador, o grupo
estava na rua. Organizando-se via Twitter e Facebook, marcaram hora e local para encontrar-se no
centro de Londres, numa quarta-feira, no começo da manhã.
Sessenta pessoas compareceram e ocuparam pacificamente a mais movimentada lojas de uma das
principais empresas de telefonia móvel da Europa. Queriam chamar atenção para o fato de que o novo
governo, por trás de todas as medidas de austeridade, teria deixado de cobrar 6 bilhões em impostos
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da empresa. A polícia foi chamada e na rua curiosos se perguntavam o que estava acontecendo.
“O que me chamou atenção foi que quando explicávamos nossos motivos, as pessoas que passavam se
mostravam incrivelmente favoráveis. Elas paravam e contavam como estavam apavoradas com a
perspectiva de perder suas casas e seus trabalhos – e quando elas ouviam que nada disso teria de
acontecer se essas grandes companhias gigantescas pagassem seus impostos, elas ficavam furiosas.
Muitas delas pararam o que estavam fazendo e se juntaram a nós”, relata um manifestante à reportagem
do The Nation. Sentados à porta da loja, impedindo a entrada de clientes; cantando frases rimadas que
pediam o pagamento dos impostos devidos, os manifestantes da UKUncut não sabiam o que estava por
vir.
No dia seguinte, o evento começou a se replicar, quando em Leeds ativistas sem relação com os de
Londres, fecharam três lojas da mesma empresa. Dois dias depois, com outras companhias como alvo,
num sábado, as manifestações haviam se espalhado para 17 outras cidades, alcançando Edinburgo e
Glasgow, na Escócia. No final de semana anterior ao de Natal, os protestos já haviam se espalhados para
mais de 50 cidades, chegando a Belfast, na Irlanda do Norte, e Cardiff, no País de Gales. Os
manifestantes apresentam-se como coletores de impostos fazendo trabalho voluntário em nome da
“Grande Sociedade” de Cameron.
Usando táticas inspiradas nos flash mobs – eventos combinados pela internet onde as pessoas eram
convidadas a se comportar coletivamente de uma maneira estranha, como atravessar rua num pé só, pelo
simples prazer da bizarrisse – a maior façanha da UKUncut até agora foi fechar por alguns minutos uma
das maiores lojas de departamento do centro de Londres. Manifestantes foram instruidos a entrar e
misturar-se aos clientes e, ao som de um apito, sentar-se ao chão da loja, cantando palavras de ordem e
exibindo seus cartazes.
Embalado por esse clima, a TUC, central sindical com aproximadamente 6,5 milhões de membros,
fundada em 1868, está organizando uma manifestação em Londres no dia 26 de março. “Os cortes de
gasto do governo irão atingir os serviços públicos e desempregar mais de um milhão de pessoas. Eles
irão atingir as comunidades vulneráveis e em dificuldades e colocar em risco muito do que mantém a
integridade da sociedade”, justifica o site MarchfortheAlternative.org.uk, mantido pela TUC. A sete
semanas do evento, os organizadores afirmam contar com mais de 500 ônibus levando pessoas a
Londres.
“Com a economia voltando a ostentar um crescimento negativo (…) mais e mais pessoas estão
procurando uma alternativa e meios de demonstrar sua oposição aos cortes rápidos e profundos do
governo”, ”diz Brendan Barber, secretário geral da TUC, em um manifesto publicado no site da central
sindical em inicio de fevereiro. “Fica claro”, ele prossegue, “que a marcha da TUC capturou o
sentimento do país e parece pronta para ser o maior evento de nossa história recente”.
06/02/2011 |
Declina a influência do Ocidente
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No mundo árabe, os Estados Unidos e seus aliados apoiaram com regularidade radicais islâmicos, às
vezes para prevenir a ameaça de um nacionalismo secular. Um exemplo conhecido é a Arábia Saudita,
centro ideológico do Islã radical (e do terrorismo islâmico). Outro em uma longa lista é Zia ul-Haq,
favorito do ex-presidente Ronald Reagan e o mais brutal dos ditadores paquistaneses, que implementou
um programa de islamização radical (com financiamento saudita). O artigo é de Noam Chomsky.
Noam Chomsky – La Jornada
O mundo árabe está em chamas, informou a Al Jazeera no dia 27 de janeiro, enquanto os aliados de
Washington perdem rapidamente influência em toda a região. A onda de choque foi posta em
movimento pelo dramático levante na Tunísia que derrubou um ditador apoiado pelo Ocidente, com
reverberações, sobretudo no Egito, onde os manifestantes enfrentaram a polícia de um ditador brutal.
Alguns observadores compararam os acontecimentos com a queda dos domínios russos em 1989, mas
há importantes diferenças.
Uma diferença crucial é que não existe um Mikhail Gorbachov entre as grandes potências que apoiam
os ditadores árabes. Ao invés disso, Washington e seus aliados mantem o princípio bem estabelecido de
que a democracia é aceitável só na medida em que se conforme a objetivos estratégicos e econômicos:
ela é magnífica em território inimigo (até certo ponto), mas em nosso quintal, a menos que possa ser
domesticada de forma apropriada.
Uma comparação com 1989 tem certa validade: Romênia, onde Washington manteve seu apoio a
Nicolae Ceausescu, o mais cruel dos ditadores europeus, até que a aliança se tornou insustentável.
Depois, Washington aplaudiu sua derrubada, quando se apagou o passado. É uma pauta típica:
Ferdinando Marcos, Jean-Claude Duvalier, Chun Doo Hwan, Suharto e muitos outros gangsteres úteis.
Pode estar em marcha no caso de Hosni Mubarak, junto com esforços de rotina para assegurar-se de que
o regime sucessor não se desviará muito da senda apropriada.
A esperança atual parece residir no general Omar Suleiman, leal a Mubarak e recém nomeado vicepresidente do Egito. Suleiman, que durante muito tempo encabeçou os serviços de inteligência, é
desprezado pelo povo rebelde quase tanto como o próprio ditador. Um refrão comum entre os
especialistas é que o temor de um Islã radical requer uma oposição à democracia em bases pragmáticas.
Mesmo que possa ter algum mérito, a formulação induz ao erro. A ameaça geral sempre foi a
independência. No mundo árabe, os Estados Unidos e seus aliados apoiaram com regularidade radicais
islâmicos, às vezes para prevenir a ameaça de um nacionalismo secular. Um exemplo conhecido é a
Arábia Saudita, centro ideológico do Islã radical (e do terrorismo islâmico). Outro em uma longa lista é
Zia ul-Haq, favorito do ex-presidente Ronald Reagan e o mais brutal dos ditadores paquistaneses, que
implementou um programa de islamização radical (com financiamento saudita).
O argumento tradicional que se esgrime dentro e fora do mundo árabe é que não está ocorrendo nada,
tudo está sob controle, como assinala Marwan Muasher, ex-funcionário jordaniano e atual diretor de
investigação sobre Oriente Médio da Fundação Carnegie. Com essa linha de pensamento, as forças
consolidadas sustentam que os opositores e estrangeiros que demandam reformas exageram as
condições no terreno.
Portanto, o povo sai sobrando. A doutrina remonta a muito atrás e se generaliza no mundo inteiro,
incluindo o território nacional estadunidense. Em caso de perturbação podem ser necessárias mudanças
de tática, mas sempre com vista a recuperar o controle.
O vibrante movimento democrático da Tunísia foi dirigido contra um Estado policial com pouca
liberdade de expressão ou associação e graves problemas de direitos humanos, encabeçado por um
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ditador cuja família era odiada por sua venalidade. Essa foi a avaliação do embaixador estadunidense
Robert Godec em um telegrama de julho de 2009, filtrado por Wikileaks.
Portanto, para alguns observadores os “documentos (de Wikileaks) devem criar um cômodo sentimento
entre o público estadunidense de que os funcionários não estão dormindo no posto”, ou seja, os
telegramas escoram de tal maneira as políticas estadunidenses que é quase como se o próprio Obama os
tivesse filtrando (como escreve Jacob Heilbrunn, em The National Interest).
Os EUA devem dar uma medalha a Assange, assinala um analista do Financial Times. O chefe de
analistas de política externa, Gideon Rachman, escreve que a política externa estadunidense se desenha
de forma ética, inteligente e pragmática e que a postura adotada publicamente pelos EUA sobre um
tema dado é, em geral, a mesma postura mantida privadamente. Segundo este ponto de vista, Wikileaks
enfraquece a posição dos teóricos da conspiração que questionam os nobres motivos que Washington
proclama com regularidade.
O telegrama de Godec apoia estes juízos, ao menos se não olhamos mais longe. Se fazemos isso, como
reporta o analista político Stephen Zunes em Foreign Policy in Focus, descobrimos que, com a
informação de Godec em mãos, Washington proporcionou 12 milhões de dólares em ajuda militar a
Tunísia. Na verdade, a Tunísia foi um dos cinco únicos beneficiários estrangeiros: Israel (de rotina),
Egito, Jordânia – ditaduras do Oriente Médio – e Colômbia, que há muito tempo tem a pior história de
direitos humanos e recebe a maior ajuda militar estadunidense no hemisfério.
A prova A de Heilbrunn é o apoio árabe às políticas estadunidenses dirigidas contra o Irã, conforme
mostram os telegramas divulgados. Rachman também se serve deste exemplo, como fizeram os meios
de comunicação em geral, para elogiar estas alentadoras revelações. As reações ilustram o quão
profundo é o desprezo pela democracia entre certas mentes cultivadas.
O que não se menciona é o que pensa a população...o que se descobre com facilidade. Segundo
pesquisas divulgadas em agosto de 2010 pela instituição Brookings, alguns árabes estão de acordo com
Washington e com os comentaristas ocidentais no sentido de que o Irã é uma ameaça: 10 por cento. Em
contraste, consideram que Estados Unidos e Israel são as maiores ameaças (77 e 88%, respectivamente).
A opinião árabe é tão hostil às políticas de Washington que uma maioria (57%) pensa que a segurança
regional melhoraria se o Irã tivesse armas nucleares. Ainda assim, não ocorre nada, tudo está sob
controle (como Marwan Muasher descreve a fantasia dominante). Os ditadores nos apoiam: podemos
esquecer-nos de seus súditos...a menos que rompam suas cadeias, o que exigiria ajustar a política.
Outras revelações também parecem apoiar os juízos entusiastas sobre a nobreza de Washington. Em
julho de 2009, Hugo Llores, embaixador dos EUA em Honduras, informou Washington sobre uma
investigação da embaixada relativa a “aspectos legais e constitucionais em torno da remoção forçada do
presidente Manuel Mel Zelaya, em 28 de junho”. A embaixada concluiu que não há dúvida de que os
militares, a Suprema Corte e o Congresso Nacional conspiraram em 28 de junho, no que representou um
golpe ilegal e anticonstitucional contra o poder Executivo.
Muito admirável, exceto pelo fato de que o presidente Obama rompeu com quase toda América Latina e
Europa ao apoiar o regime golpista e desculpar as atrocidades posteriores.
Talvez as revelações mais surpreendentes de Wikileaks tenham a ver com o Paquistão, investigadas pelo
analista em política externa Fred Branfman, em Truthdig. Os telegramas revelam que a embaixada
estadunidense está bem consciente de que a guerra de Washington no Afeganistão e no Paquistão não só
intensifica o sentimento anti-EUA, mas também cria o risco de desestabilizar o Estado paquistanês e
inclusive coloca a ameaça do pesadelo final: as armas nucleares poderiam cair em mãos de terroristas
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islâmicos.
Uma vez mais, as revelações devem criar um sentimento tranquilizador de que os funcionários não estão
dormindo no posto (nas palavras de Heilbrun), enquanto Washington marcha inexoravelmente para o
desastre.
07/02/2011 |
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Os militares e o futuro do Egito
As forças armadas têm sido a força dominante no Egito desde a queda da Monarquia em 1952: os
presidentes Nasser, Sadat e Mubarak são todos eles representantes do estamento militar. Considerados
uma das forças mais poderosas do mundo (10º lugar) contam com um contingente de 468.000 militares
e 3.4% do PIB do Egito. O setor militar do Egito recebeu nas últimas três décadas cerca de 30 bilhões
de dólares em ajuda dos EUA, além de enviar seus oficiais para estudar em colégios militares norteamericanos. Os militares egípcios são essencialmente uma criação dos EUA. O artigo é de Reginaldo
Nasser.
Reginaldo Nasser
Os principais jornais e analistas do ocidente têm falado cada vez mais na conveniência de em se adotar
um “modelo turco” no Egito, em que militares atuariam de forma a conter o radicalismo islâmico dentro
de um modelo constitucional. Tornou-se freqüente nos últimos dias ouvir a avaliação de que os militares
têm sido uma força fundamental para manter a calma e a estabilidade nessa crise e espera-se que
cumpram um papel crucial na transição que se anuncia.
As forças armadas têm sido a força dominante no Egito desde a queda da Monarquia em 1952: os
presidentes Nasser, Sadat e Mubarak são todos eles representantes do estamento militar. Considerados
uma das forças mais poderosas do mundo (10º lugar) contam com um contingente de 468.000 militares
e 3.4% do PIB do Egito. O setor militar do Egito recebeu nas últimas três décadas cerca de 30 bilhões de
dólares em ajuda dos EUA, além de enviar seus oficiais para estudar em colégios militares norteamericanos. A popularidade do exército tornou-se ainda mais crucial, quando o, ainda presidente
Mubarak, após dissolver seu governo – e lançar as bases para uma possível transição recorreu aos
militares, esperando com isso que a sua reputação pudesse encobrir a própria legitimidade perdida.
Os militares egípcios são essencialmente uma criação dos EUA não apenas devido aos bilhões de
dólares em armas e equipamentos de segurança, mas, sobretudo, devido à lógica que preside a relação
entre eles. Documentos do Departamento de Estado 2009, divulgados pela WikiLeaks , descrevem um
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encontro entre um general dos EUA e os seus colegas egípcios, tratando de suas relações diplomáticas:
“O presidente Mubarak e seus líderes militares vêm o nosso programa de assistência militar, como a
pedra angular da nossa relação e consideram os bilhões de dólares como compensação intocável para
fazer e manter a paz com Israel e em troca os militares dos EUA gozam de prioridade de acesso ao
Canal de Suez e do espaço aéreo egípcio”.
Sim, é verdade que os militares querem a estabilidade, mas a desejam, principalmente, porque não
querem perder os privilégios que desfrutam devido ao papel único que desempenham na economia
egípcia. De acordo com um dos maiores especialistas sobre Egito, Robert Springborg (US Naval
Postgraduate School), as atividades econômicas dos militares têm expandido consideravelmente ao
longo das décadas. O militar egípcio está presente em praticamente todos os setores econômicos do país,
numa lista que vai da montagem de automóveis, construção de rodovias e pontes até a distribuição de
gás, comércio de vestuários e utensílios domésticos, e acionistas em grandes empreendimentos
turísticos. Ninguém sabe ao certo, mas segundo algumas estimativas os militares chegam a controlar por
volta de 30% da economia do país. A carreira militar tornou-se também um meio de promoção social,
onde homens de famílias pobres podem ganhar prestígio e se juntar à classe média alta.
Uma dos poucas informações que temos sobre o papel dos militares egípcios na economia apareceu em
documentos de 2008 tornados públicos pelo WikiLeaks e pode ajudar-nos a compreender para onde vai
o Egito. O autor anônimo discute os vários negócios em que os militares estão envolvidos, e avalia
como reagiriam, caso o atual presidente, Hosni Mubarak, fosse deposto. Muito provavelmente, diz o
autor, os militares se reuniriam em torno do sucessor, desde que não houvesse interferências em seus
negócios, mas, adverte que é difícil prever as ações dos militares em um cenário mais confuso. O certo é
que os militares egípcios não têm interesse em qualquer tipo de projeção de poder, e seus objetivos
principais são, principalmente, garantir a sobrevivência do regime e proteger as fronteiras do país. Nos
últimos dois anos, a recessão global revelou um novo cenário para o consenso das elites egípcias
refletindo no equilíbrio existente dentro do partido do governo entre a “nova guarda” representada pela
elite empresarial neoliberal e a velha guarda, composta por setores da burocracia. Muito embora a
maioria dos militares compartilhe com a ideologia da velha guarda, sempre se mantiveram fora da luta
pelo poder zelando pela estabilidade; No entanto, esses momentos de crise poderiam despertar ambições
individuais dentro das Forças Armadas em relação à presidência da república.
Para além das particularidades que poderiam diferenciar os regimes políticos repressivos, e as causas
que definem os atuais conflitos nos países que compõem o mundo árabe; todos eles formam, na
essência, um conjunto de governos sujeitos à mesma lógica militar que se articula nos níveis regional e
internacional (democracias ocidentais). A velha ordem no Oriente Médio está se desintegrando, mas é
preciso estar muito atento ao rumo que deverá tomar o Egito. Assim como a revolução dos oficiais na
década de 1950 que derrubou a monarquia árabe apoiada pelas potências coloniais, a revolução de 2011
pode, da mesma forma, retirar tiranos do governo, mantendo intacta a estrutura de poder do Estado sob
as vestes de uma nova democracia. Não resta a menor dúvida que o personagem principal dessa tragédia
é um grande problema, mas obviamente não é maior do que o caráter do regime que se quer preservar.
(*) Professor de Relações Internacionais da PUC-SP
07/02/2011 |
Egito: novas dimensões dos protestos sociais
A retomada das mobilizações sociais no Egito tem o mérito de mostrar que hoje, no quadro da
mundialização, o caráter autoritário de um sistema político não é contraditório com transformações de
seu espaço público na direção de mais liberdade de ação e de expressão. Os diferentes discursos
performativos sobre a sociedade civil, os direitos do homem, a cidadania, as reformas políticas e a
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democratização reivindicada, anunciada e prometida, podem produzir efeitos significativos nos setores
aparentemente menos politizados. O artigo é de Sarah Ben Néfissa.
Sarah Ben Néfissa - Centre Tricontinental
CETRI - Centre Tricontinental
O aumento dos movimentos de protestos sociais ficou claramente confirmado no Egito durante o ano de
2009. Somente no mês de julho daquele ano, contabiliza-se cerca de 42 mobilizações coletivas
envolvendo categorias muito diferentes da população: jornalistas, mineiros, especialistas do Ministério
da Justiça, pescadores, motoristas de caminhão, advogados, professores, empregados dos Correios,
empregados de hotéis, etc. No mundo rural, são as tradicionais questões do acesso à agua potável e de
irrigação, das expropriações de terra e do aumento do aluguel de terras que são objeto de protestos
diante de instalações do governo, de estruturas administrativas locais e de postos de polícia.
Não é exagero dizer que, no Egito, a formação de protestos, que encontram eco regularmente na
imprensa, tornou-se um modo de ação rotineiro. Grupos variados têm motivos os mais variados para
esses protestos: integrantes de um clube de lazer ameaçado de fechamento, membros de uma confraria
não autorizados a celebrar uma festa religiosa, compradores de casas contra um corretor imobiliário
pilantra, pacientes de um hospital contra a degradação da qualidade do atendimento, proprietários de
pequenas empresas de transporte contra a aplicação de uma nova lei nas estradas e, enfim, membros do
PND, partido no poder, contra o deputado do PND de sua região, considerado incompetente.
A diversificação das categorias sociais e dos temas de reivindicação envolvidos nas manifestações
contestatórias se estendeu igualmente no plano geográfico. Somente em julho de 2009, elas ocorreram
em 17 regiões. Os modos de ação utilizados foram: a manifestação pública, a paralisação no local de
trabalho, a greve, atos diante de ministérios e sedes de governos locais, as petições e as ocupações de
áreas. No plano temporal, a ação pode se resumir a alguns minutos, o tempo de mostrar uma foto, até
mais de 40 dias de ocupação do pátio de um ministério, como ocorreu no caso dos funcionários do
Ministério da Justiça.
O ano de 2009 confirmou igualmente o caráter estritamente social e categorial das mobilizações, assim
como a ausência de coordenação entre elas. No plano político, os deputados de oposição no Parlamento
se encarregaram de questionar os ministros envolvidos em cada caso, uma vez que os jornais tornaram
público o conflito.
Ambiente de trabalho propício às mobilizações
No interior do mundo do trabalho, as mobilizações envolveram fundamentalmente os trabalhadores do
setor público, que passaram a se mobilizar seja por questões ligadas às condições de trabalho e ao
salário, seja para se opor à privatização de seu setor, que significava a perda da garantia do emprego e
uma aposentadoria antecipada. No setor privado, hoje dominante, os movimentos sociais são raros em
função de diversos fatores: tamanho reduzido das unidades de produção, ampliações recentes em novas
cidades, resistência dos patrões às estruturas sindicais, etc. Mas a razão principal desse ativismo menor
reside na prática largamente utilizada da carta de demissão que o empregado assina juntamente com seu
contrato de emprego.
O ano de 2009 foi marcado igualmente por mobilizações de categorias importantes de profissionais
liberais. Em reação à decisão do Ministério das Finanças de impor um novo regime fiscal, cerca de 80%
dos farmacêuticos, aproximadamente 40 mil profissionais em todo o país, fecharam suas lojas no dia 17
de fevereiro. Os médicos do setor privado igualmente fecharam seus consultórios em 16 departamentos
do país no dia 8 de abril de 2009, em sinal de protesto contra os impostos e os equipamentos
suplementares que uma nova legislação impôs aos consultórios médicos privados.
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Mas a característica mais notável dos protestos sociais de 2009 foi a entrada no “mercado
reivindicativo” das categorias superiores de funcionários do Estado: professores do ensino secundário,
funcionários administrativos de escolas públicas, funcionários do instituto nacional de estatística, da
academia de pesquisa científica, de veterinários e médicos do setor público, dos professores
universitários e, mais recentemente, dos especialistas do Ministério da Justiça que estão em greve há
mais de um mês, acampados no pátio do ministério.
De modo geral, a sequência de mobilizações em 2009 deve ser ligada á nova atitude do regime, que
aceitou algum diálogo, recuou frequentemente e evitou o endurecimento das ações, respondendo de
maneira positiva e parcial às demandas. Desse ponto de vista, a atitude dos poderes públicos diante da
mobilização dos habitantes da cidade de Mahalla el Kobra, sede de indústrias têxteis, é significativa.
Com o objetivo de fazer esquecer os desgastes ocasionados pelos violentos conflitos sociais de abril de
2008, a cidade foi beneficiada com investimentos públicos importantes para qualificar serviços e
equipamentos públicos.
O êxito do movimento dos funcionários da Receita em 2008 teve, sem dúvida, um papel desencadeador
entre os quadros superiores da função pública. É verdade que esse movimento não parou em 2009 e
tomou novas e inéditas dimensões no país. Conduzidos por um ativista do Partido Progressista
Democrático unionista, Kamel Ebou Ita, os funcionários mobilizados criaram um sindicato autônomo
sem ligação com as estruturas sindicais burocratizadas, sendo reconhecidos pela Organização
Internacional do Trabalho. Elemento revelador do peso da mídia na mobilização dos movimentos de
contestação em um quadro autoritário: a assembleia geral que votou essa decisão foi realizada no
Sindicato dos Jornalistas.
A recusa em se filiar às estruturas sindicais existentes é uma tendência nova de mobilização no mundo
do trabalho. Os nomes de múltiplas estruturas de coordenação específicas a diferentes conflitos é
testemunha disso: “médicos sem direitos”, “engenheiros contra o sequestro de seu sindicato”,
“funcionários contra a carestia”, “trabalhadores pelas mudanças”. Esses agrupamentos são apoiados por
organizações da sociedade civil, que tendem a buscar maior autonomia (Ghaffar Chukr, 2009).
É neste contexto que, pela primeira vez na história egípcia um apelo à greve foi lançado pelo sindicato
oficial, em uma indústria têxtil privatizada em Tanta. Esse protesto era dirigido contra o novo
proprietário que não respeitava os direitos dos trabalhadores. Cabe assinalar ainda a atitude do ministro
do Trabalho e da mão de obra que viajou de diferentes lugares para visitar os grevistas.
Outra mobilização grande e original foi a criação “de fato” da União dos Aposentados egípcios. Eles se
reuniram sob a direção do líder carismático Badri El Farghali, também do RDPU, para defender seu
poder de compra e protestar contra o sistema de cálculo da aposentadoria e as condições de sua
distribuição. Num universo de 10 milhões de pensionistas, a maior parte do setor público, perto de 2
milhões já aderiram ao movimento.
Mobilizações sociais em um contexto autoritário
Dentro de um quadro não democrático como o do Egito, o processo de liberalização do campo midiático
é um elemento fundamental de apoio à mobilizações e protestos sociais. O papel determinante
desempenhado pelos meios de comunicação, antigos e novos, não pode, por outro lado, substituir a
força das lógicas sociais. Essa realidade foi perfeitamente ilustrada pelo fracasso do “remake” da
jornada de 6 de abril de 2009, convocada por “jovens do Facebook”. Seu apelo à greve por meio da
internet foi um fracasso completo pois, ao contrário de 2008, os trabalhadores de Mahalla el Kobra não
estavam em greve e uma parte dos grupos políticos se recusou a se associar a seu apelo.
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As novas dimensões dos protestos sociais egípcios contrastam com a perda de velocidade dos protestos
políticos, como atesta o fracasso dos juízes reformistas nas eleições de renovação da direção do Clube
de Juízes. A presença de atores políticos da esquerda egípcia no interior de certas mobilizações deve-se
mais à característica pessoal desses líderes do que a uma estratégia de suas organizações. Do mesmo
modo, o conjunto desses movimentos permitiu esclarecer a posição ao menos ambígua da Irmandade
Muçulmana sobre o tema dos protestos sociais.
O que é certo é que a retomada das mobilizações sociais no Egito tem o mérito de mostrar que hoje, no
quadro da mundialização, o caráter autoritário de um sistema político não é contraditório com
transformações de seu espaço público na direção de mais liberdade de ação e de expressão. Os
diferentes discursos performativos sobre a sociedade civil, os direitos do homem, a cidadania, as
reformas políticas e a democratização reivindicada, anunciada e prometida, podem assim produzir
efeitos significativos nos setores aparentemente menos politizados. Eles dão lugar a ajustes e
reapropriações sociais da parte de atores os mais diversos.
07/02/2011 |
Os militares e o futuro do Egito
As forças armadas têm sido a força dominante no Egito desde a queda da Monarquia em 1952: os
presidentes Nasser, Sadat e Mubarak são todos eles representantes do estamento militar. Considerados
uma das forças mais poderosas do mundo (10º lugar) contam com um contingente de 468.000 militares
e 3.4% do PIB do Egito. O setor militar do Egito recebeu nas últimas três décadas cerca de 30 bilhões
de dólares em ajuda dos EUA, além de enviar seus oficiais para estudar em colégios militares norteamericanos. Os militares egípcios são essencialmente uma criação dos EUA. O artigo é de Reginaldo
Nasser.
Reginaldo Nasser
Os principais jornais e analistas do ocidente têm falado cada vez mais na conveniência de em se adotar
um “modelo turco” no Egito, em que militares atuariam de forma a conter o radicalismo islâmico dentro
de um modelo constitucional. Tornou-se freqüente nos últimos dias ouvir a avaliação de que os militares
têm sido uma força fundamental para manter a calma e a estabilidade nessa crise e espera-se que
cumpram um papel crucial na transição que se anuncia.
As forças armadas têm sido a força dominante no Egito desde a queda da Monarquia em 1952: os
presidentes Nasser, Sadat e Mubarak são todos eles representantes do estamento militar. Considerados
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uma das forças mais poderosas do mundo (10º lugar) contam com um contingente de 468.000 militares
e 3.4% do PIB do Egito. O setor militar do Egito recebeu nas últimas três décadas cerca de 30 bilhões de
dólares em ajuda dos EUA, além de enviar seus oficiais para estudar em colégios militares norteamericanos. A popularidade do exército tornou-se ainda mais crucial, quando o, ainda presidente
Mubarak, após dissolver seu governo – e lançar as bases para uma possível transição recorreu aos
militares, esperando com isso que a sua reputação pudesse encobrir a própria legitimidade perdida.
Os militares egípcios são essencialmente uma criação dos EUA não apenas devido aos bilhões de
dólares em armas e equipamentos de segurança, mas, sobretudo, devido à lógica que preside a relação
entre eles. Documentos do Departamento de Estado 2009, divulgados pela WikiLeaks , descrevem um
encontro entre um general dos EUA e os seus colegas egípcios, tratando de suas relações diplomáticas:
“O presidente Mubarak e seus líderes militares vêm o nosso programa de assistência militar, como a
pedra angular da nossa relação e consideram os bilhões de dólares como compensação intocável para
fazer e manter a paz com Israel e em troca os militares dos EUA gozam de prioridade de acesso ao
Canal de Suez e do espaço aéreo egípcio”.
Sim, é verdade que os militares querem a estabilidade, mas a desejam, principalmente, porque não
querem perder os privilégios que desfrutam devido ao papel único que desempenham na economia
egípcia. De acordo com um dos maiores especialistas sobre Egito, Robert Springborg (US Naval
Postgraduate School), as atividades econômicas dos militares têm expandido consideravelmente ao
longo das décadas. O militar egípcio está presente em praticamente todos os setores econômicos do país,
numa lista que vai da montagem de automóveis, construção de rodovias e pontes até a distribuição de
gás, comércio de vestuários e utensílios domésticos, e acionistas em grandes empreendimentos
turísticos. Ninguém sabe ao certo, mas segundo algumas estimativas os militares chegam a controlar por
volta de 30% da economia do país. A carreira militar tornou-se também um meio de promoção social,
onde homens de famílias pobres podem ganhar prestígio e se juntar à classe média alta.
Uma dos poucas informações que temos sobre o papel dos militares egípcios na economia apareceu em
documentos de 2008 tornados públicos pelo WikiLeaks e pode ajudar-nos a compreender para onde vai
o Egito. O autor anônimo discute os vários negócios em que os militares estão envolvidos, e avalia
como reagiriam, caso o atual presidente, Hosni Mubarak, fosse deposto. Muito provavelmente, diz o
autor, os militares se reuniriam em torno do sucessor, desde que não houvesse interferências em seus
negócios, mas, adverte que é difícil prever as ações dos militares em um cenário mais confuso. O certo é
que os militares egípcios não têm interesse em qualquer tipo de projeção de poder, e seus objetivos
principais são, principalmente, garantir a sobrevivência do regime e proteger as fronteiras do país. Nos
últimos dois anos, a recessão global revelou um novo cenário para o consenso das elites egípcias
refletindo no equilíbrio existente dentro do partido do governo entre a “nova guarda” representada pela
elite empresarial neoliberal e a velha guarda, composta por setores da burocracia. Muito embora a
maioria dos militares compartilhe com a ideologia da velha guarda, sempre se mantiveram fora da luta
pelo poder zelando pela estabilidade; No entanto, esses momentos de crise poderiam despertar ambições
individuais dentro das Forças Armadas em relação à presidência da república.
Para além das particularidades que poderiam diferenciar os regimes políticos repressivos, e as causas
que definem os atuais conflitos nos países que compõem o mundo árabe; todos eles formam, na
essência, um conjunto de governos sujeitos à mesma lógica militar que se articula nos níveis regional e
internacional (democracias ocidentais). A velha ordem no Oriente Médio está se desintegrando, mas é
preciso estar muito atento ao rumo que deverá tomar o Egito. Assim como a revolução dos oficiais na
década de 1950 que derrubou a monarquia árabe apoiada pelas potências coloniais, a revolução de 2011
pode, da mesma forma, retirar tiranos do governo, mantendo intacta a estrutura de poder do Estado sob
as vestes de uma nova democracia. Não resta a menor dúvida que o personagem principal dessa tragédia
é um grande problema, mas obviamente não é maior do que o caráter do regime que se quer preservar.
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(*) Professor de Relações Internacionais da PUC-SP
07/02/2011 |
Egito: novas dimensões dos protestos sociais
A retomada das mobilizações sociais no Egito tem o mérito de mostrar que hoje, no quadro da
mundialização, o caráter autoritário de um sistema político não é contraditório com transformações de
seu espaço público na direção de mais liberdade de ação e de expressão. Os diferentes discursos
performativos sobre a sociedade civil, os direitos do homem, a cidadania, as reformas políticas e a
democratização reivindicada, anunciada e prometida, podem produzir efeitos significativos nos setores
aparentemente menos politizados. O artigo é de Sarah Ben Néfissa.
Sarah Ben Néfissa - Centre Tricontinental
CETRI - Centre Tricontinental
O aumento dos movimentos de protestos sociais ficou claramente confirmado no Egito durante o ano de
2009. Somente no mês de julho daquele ano, contabiliza-se cerca de 42 mobilizações coletivas
envolvendo categorias muito diferentes da população: jornalistas, mineiros, especialistas do Ministério
da Justiça, pescadores, motoristas de caminhão, advogados, professores, empregados dos Correios,
empregados de hotéis, etc. No mundo rural, são as tradicionais questões do acesso à agua potável e de
irrigação, das expropriações de terra e do aumento do aluguel de terras que são objeto de protestos
diante de instalações do governo, de estruturas administrativas locais e de postos de polícia.
Não é exagero dizer que, no Egito, a formação de protestos, que encontram eco regularmente na
imprensa, tornou-se um modo de ação rotineiro. Grupos variados têm motivos os mais variados para
esses protestos: integrantes de um clube de lazer ameaçado de fechamento, membros de uma confraria
não autorizados a celebrar uma festa religiosa, compradores de casas contra um corretor imobiliário
pilantra, pacientes de um hospital contra a degradação da qualidade do atendimento, proprietários de
pequenas empresas de transporte contra a aplicação de uma nova lei nas estradas e, enfim, membros do
PND, partido no poder, contra o deputado do PND de sua região, considerado incompetente.
A diversificação das categorias sociais e dos temas de reivindicação envolvidos nas manifestações
contestatórias se estendeu igualmente no plano geográfico. Somente em julho de 2009, elas ocorreram
em 17 regiões. Os modos de ação utilizados foram: a manifestação pública, a paralisação no local de
trabalho, a greve, atos diante de ministérios e sedes de governos locais, as petições e as ocupações de
áreas. No plano temporal, a ação pode se resumir a alguns minutos, o tempo de mostrar uma foto, até
mais de 40 dias de ocupação do pátio de um ministério, como ocorreu no caso dos funcionários do
Ministério da Justiça.
O ano de 2009 confirmou igualmente o caráter estritamente social e categorial das mobilizações, assim
como a ausência de coordenação entre elas. No plano político, os deputados de oposição no Parlamento
se encarregaram de questionar os ministros envolvidos em cada caso, uma vez que os jornais tornaram
público o conflito.
Ambiente de trabalho propício às mobilizações
No interior do mundo do trabalho, as mobilizações envolveram fundamentalmente os trabalhadores do
setor público, que passaram a se mobilizar seja por questões ligadas às condições de trabalho e ao
salário, seja para se opor à privatização de seu setor, que significava a perda da garantia do emprego e
uma aposentadoria antecipada. No setor privado, hoje dominante, os movimentos sociais são raros em
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função de diversos fatores: tamanho reduzido das unidades de produção, ampliações recentes em novas
cidades, resistência dos patrões às estruturas sindicais, etc. Mas a razão principal desse ativismo menor
reside na prática largamente utilizada da carta de demissão que o empregado assina juntamente com seu
contrato de emprego.
O ano de 2009 foi marcado igualmente por mobilizações de categorias importantes de profissionais
liberais. Em reação à decisão do Ministério das Finanças de impor um novo regime fiscal, cerca de 80%
dos farmacêuticos, aproximadamente 40 mil profissionais em todo o país, fecharam suas lojas no dia 17
de fevereiro. Os médicos do setor privado igualmente fecharam seus consultórios em 16 departamentos
do país no dia 8 de abril de 2009, em sinal de protesto contra os impostos e os equipamentos
suplementares que uma nova legislação impôs aos consultórios médicos privados.
Mas a característica mais notável dos protestos sociais de 2009 foi a entrada no “mercado
reivindicativo” das categorias superiores de funcionários do Estado: professores do ensino secundário,
funcionários administrativos de escolas públicas, funcionários do instituto nacional de estatística, da
academia de pesquisa científica, de veterinários e médicos do setor público, dos professores
universitários e, mais recentemente, dos especialistas do Ministério da Justiça que estão em greve há
mais de um mês, acampados no pátio do ministério.
De modo geral, a sequência de mobilizações em 2009 deve ser ligada á nova atitude do regime, que
aceitou algum diálogo, recuou frequentemente e evitou o endurecimento das ações, respondendo de
maneira positiva e parcial às demandas. Desse ponto de vista, a atitude dos poderes públicos diante da
mobilização dos habitantes da cidade de Mahalla el Kobra, sede de indústrias têxteis, é significativa.
Com o objetivo de fazer esquecer os desgastes ocasionados pelos violentos conflitos sociais de abril de
2008, a cidade foi beneficiada com investimentos públicos importantes para qualificar serviços e
equipamentos públicos.
O êxito do movimento dos funcionários da Receita em 2008 teve, sem dúvida, um papel desencadeador
entre os quadros superiores da função pública. É verdade que esse movimento não parou em 2009 e
tomou novas e inéditas dimensões no país. Conduzidos por um ativista do Partido Progressista
Democrático unionista, Kamel Ebou Ita, os funcionários mobilizados criaram um sindicato autônomo
sem ligação com as estruturas sindicais burocratizadas, sendo reconhecidos pela Organização
Internacional do Trabalho. Elemento revelador do peso da mídia na mobilização dos movimentos de
contestação em um quadro autoritário: a assembleia geral que votou essa decisão foi realizada no
Sindicato dos Jornalistas.
A recusa em se filiar às estruturas sindicais existentes é uma tendência nova de mobilização no mundo
do trabalho. Os nomes de múltiplas estruturas de coordenação específicas a diferentes conflitos é
testemunha disso: “médicos sem direitos”, “engenheiros contra o sequestro de seu sindicato”,
“funcionários contra a carestia”, “trabalhadores pelas mudanças”. Esses agrupamentos são apoiados por
organizações da sociedade civil, que tendem a buscar maior autonomia (Ghaffar Chukr, 2009).
É neste contexto que, pela primeira vez na história egípcia um apelo à greve foi lançado pelo sindicato
oficial, em uma indústria têxtil privatizada em Tanta. Esse protesto era dirigido contra o novo
proprietário que não respeitava os direitos dos trabalhadores. Cabe assinalar ainda a atitude do ministro
do Trabalho e da mão de obra que viajou de diferentes lugares para visitar os grevistas.
Outra mobilização grande e original foi a criação “de fato” da União dos Aposentados egípcios. Eles se
reuniram sob a direção do líder carismático Badri El Farghali, também do RDPU, para defender seu
poder de compra e protestar contra o sistema de cálculo da aposentadoria e as condições de sua
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distribuição. Num universo de 10 milhões de pensionistas, a maior parte do setor público, perto de 2
milhões já aderiram ao movimento.
Mobilizações sociais em um contexto autoritário
Dentro de um quadro não democrático como o do Egito, o processo de liberalização do campo midiático
é um elemento fundamental de apoio à mobilizações e protestos sociais. O papel determinante
desempenhado pelos meios de comunicação, antigos e novos, não pode, por outro lado, substituir a
força das lógicas sociais. Essa realidade foi perfeitamente ilustrada pelo fracasso do “remake” da
jornada de 6 de abril de 2009, convocada por “jovens do Facebook”. Seu apelo à greve por meio da
internet foi um fracasso completo pois, ao contrário de 2008, os trabalhadores de Mahalla el Kobra não
estavam em greve e uma parte dos grupos políticos se recusou a se associar a seu apelo.
As novas dimensões dos protestos sociais egípcios contrastam com a perda de velocidade dos protestos
políticos, como atesta o fracasso dos juízes reformistas nas eleições de renovação da direção do Clube
de Juízes. A presença de atores políticos da esquerda egípcia no interior de certas mobilizações deve-se
mais à característica pessoal desses líderes do que a uma estratégia de suas organizações. Do mesmo
modo, o conjunto desses movimentos permitiu esclarecer a posição ao menos ambígua da Irmandade
Muçulmana sobre o tema dos protestos sociais.
O que é certo é que a retomada das mobilizações sociais no Egito tem o mérito de mostrar que hoje, no
quadro da mundialização, o caráter autoritário de um sistema político não é contraditório com
transformações de seu espaço público na direção de mais liberdade de ação e de expressão. Os
diferentes discursos performativos sobre a sociedade civil, os direitos do homem, a cidadania, as
reformas políticas e a democratização reivindicada, anunciada e prometida, podem assim produzir
efeitos significativos nos setores aparentemente menos politizados. Eles dão lugar a ajustes e
reapropriações sociais da parte de atores os mais diversos.
07/02/2011 |
FSM 2011
Todo povo possui sua revolução, diz organizador do FSM 2011
O senegalês de origem tunisiana Taoufik Ben Abdallah afirma, em entrevista à Carta Maior, a
importância de se realizar o FSM pela segunda vez na África, destaca que todo povo é capaz de fazer
sua revolução – e que as contribuições com os valores universais não são monopólio dos países ricos.
Bia Barbosa
Em entrevista à Carta Maior, o senegalês de origem tunisiana Taoufik Ben Abdallah afirma que os
acontecimentos no Egito e na Tunísia colocam em xeque uma linha da diplomacia ocidental e mostram
que todo povo “tem sua revolução”.
Um dos organizadores e um dos principais responsáveis por levar o Fórum Social Mundial pela segunda
vez à África, Taoufik destaca também que todo povo pode contribuir para os valores universais. “Isso
não é monopólio dos Estados Unidos e da Europa, ou da Revolução Francesa”.
Membro do Conselho Internacional do Fórum, ele acrescenta que os debates em curso em Dacar
ajudarão a redefinir o lugar dos africanos no mundo.
Carta Maior – Durante a cerimônia de abertura, o senhor disse que a África deve tomar seu lugar neste
mundo em transformação. Gostaria de saber como isso pode acontecer e como o Fórum Social Mundial
pode ajudar.
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Taoufik Ben Abdallah – De muitas maneiras. O Fórum Social Mundial é um espaço dos cidadãos do
mundo. E o fato de o organizarmos aqui significa plenamente que os africanos tomam seu lugar num
espaço mundial.
Em segundo lugar, sendo o Fórum um espaço de resistência a um sistema global que todos nós
acreditamos ser opressor para todos, significa que a África participa dessa resistência. Ou seja, nós
participamos da criação e do fortalecimento da luta contra o sistema hegemônico no mundo. E essa é
uma forma de participar do que acontece no mundo.
Mas o Fórum também é um espaço de análise, de troca etc. Neste sentido, vamos analisar o estado em
que se encontra o mundo hoje, caracterizado principalmente pela transformação da correlação política e
econômica. E enquanto africanos queremos saber qual o nosso lugar neste mundo amanhã, neste mundo
novo.
Vamos simplesmente continuar a nos submeter à transformação do mundo, como aconteceu durante a
Guerra Fria, quando a África se tornou simplesmente fornecedora de matéria-prima e um terreno de
conflito entre o Leste e o Oeste? Ou vamos, por nós mesmos, poder contar neste mundo no equilíbrio
político, no Conselho de Segurança [da ONU], nas instâncias internacionais, de forma com que as regras
que definem as relações entre os países não sejam ditadas, mas com as quais possamos contribuir?
Então, vamos estudar todas essas questões. E eu acredito que o Fórum é uma ferramenta para a África
redefinir seu lugar no mundo.
Carta Maior – O senhor falou também da Tunísia e do Egito. Mas sabemos que os problemas
enfrentados por esses povos não são exclusivos deles, tampouco do Maghreb [região no Norte da
África]. As ditaduras e os governos que não escutam seus povos estão em todos os lugares.
Como o Fórum Social Mundial, realizado simultaneamente aos acontecimentos nesses países, pode
apoiar tais movimentos e enviar uma mensagem de apoio a eles? E como as delegações desses países
que vêm para cá podem encontrar um FSM que seja realmente um espaço de construção para, digamos,
uma contaminação positiva dos outros países da região?
Taoufik Ben Abdallah – É o que nos desejamos, claro. E esperamos. Vocês viram há pouco que, todas
as vezes em que falamos da Tunísia, do Egito etc., há uma grande manifestação de apoio do público
africano. Isso é porque os cidadãos estão tocados pelo que se passa lá. Em muitos países africanos há
transformações fundamentais necessárias. E se esses dois abrem o caminho, melhor.
Agora, acredito que ainda não mensuramos todo o impacto dessas duas revoluções, no Egito e na
Tunísia. O primeiro impacto é, definitivamente, que hoje sabemos que quando o povo quer uma coisa
ele pode conseguir. É simples assim. E que isso não vale apenas para a África, mas para a Europa, para
os Estados Unidos e também para a África.
A segunda coisa é que esses acontecimentos estão questionando um certo tipo de diplomacia ocidental
que é esquizofrênica. De um lado não há mais ditadores, de forma consciente, organizada, e de outro se
produz todo um discurso sobre os direitos humanos, a democracia, a boa governança etc. que é
instrumentalizado por interesses próprios, que utilizam instituições como o Banco Mundial ou o FMI,
cuja ação vai contra os interesses africanos, mas que devido ao seu peso econômico na região
conseguem impor seu discurso e sua política.
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Tudo isso está sendo questionado quando vemos a situação em que se encontra a diplomacia europeia
hoje, a diplomacia americana. Eles não sabem o que fazer diante da população que critica um regime
que eles apoiaram. Tentam ser coerentes, preservando seus interesses... Tudo isso toca e tem um
impacto significativo, o que é muito melhor.
Outro aspecto, não menos importante, é que isso mostra claramente que não há exclusividade ou
monopólio dos valores universais. E que todo povo, seja ele africano, latino-americano, pode, por sua
força, sua vontade, sua história, sua cultura, contribuir, com o que tem, para o que é universal. E que o
universal não é monopólio da Europa ou dos Estados Unidos. Não é a criação histórica da Revolução
Francesa. Cada um tem sua revolução e cada povo coloca o que produz à disposição do universal.
Carta Maior – Então o slogan do Fórum, "Outro mundo é possível e necessário", ainda é atual?
Taoufik Ben Abdallah – Este outro mundo está em curso, esperamos. Ele não é apenas necessário, mas
está em andamento.
09/02/2011 |
Os passos, contra-passos e impasses da diplomacia norte-americana
A política dos Estados Unidos na recente crise do mundo árabe é atravessada por pressões internas e
externas, expondo contradições, tensões, choques e rivalidades. Não dá para "ler" o governo
norteamericano, como ifenso a essas tensões e contradições.
Flávio Aguiar
Uma maneira algo ingênua, embora possa ser bem intencionada, de olhar para as atitudes dos Estados
Unidos na recente crise do mundo árabe – em especial a do Egito – é ver o governo norte-americano
como se ele fosse um tijolo. Ele seria uno, indivisível e teria em mãos uma espécie de guia eletrônico
que, como uma flecha, ditaria o que e quando fazer em cada avanço, recuo ou estagnação.
Um olhar mais perscrutador consegue perceber as frinchas e os cisalhamentos que submetem as atitudes
da e dentro da superpotência a pressões internas e externas, expondo contradições, tensões, choques e
rivalidades. Isso não torna a mão de Washington mais leve na política do mundo. Mas exige bastante
complexidade e sofisticação na leitura do que essa mão intenta e o que de fato faz, sendo uma coisa pior
do que a outra conforme a ocasião.
Um olhar sobre a contradança que está presidindo a política norte-americana em relação ao Egito pode
elucidar a complexidade da questão. Um bom ponto de partida, por sinal, é o artigo de Julian Borger em
seu Global Security Blog no The Guardian, de 06/02/11, “The Egyptian Crisis: another day, another
two US policies”.
Ele relata o que aconteceu no dia 05 de fevereiro, sábado, à tarde, na 47ª Conferência Mundial sobre
Segurança, em Munique, na Alemanha. No começo da tarde, a Secretária de Estado Hillary Clinton
deixou claro que os Estados Unidos preferiam uma “transição egípcia” liderada pelo vice-presidente
recém nomeado Omar Suleiman, chefe da política durante a ditadura de Hosni Mubarak, aparentemente
o novo homem forte no governo.
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Mais adiante, numa intervenção através de uma tele-conferência, o diplomata aposentado Frank Wisner,
que fora enviado especial de Washington ao Cairo para dar o “recado” ao presidente Mubarak de que a
mudança deveria começar imediatamente, fez uma intervenção bombástica.
Sem avisar Hillary Clinton, ele a contradisse, afirmando que a permanência de Mubarak na presidência
até setembro era fundamental para que a transição se desse de forma ordenada, isto é, de forma a não
romper a “pax romana” da região.
A saia justa foi de tal tamanho que seguiram-se declarações do Departamento de Estado dos EUA de
certa forma desautorizando a fala de Wisner. E Hillary ficou pendurada no pincel durante alguns
momentos, até recompor a perspectiva inicial como sendo a preferida pelo governo norte-americano.
Um olhar superficial poderá ver apenas um jogo de cena no incidente constrangedor para a Secretária de
Estado, um tanto divertido para quem vê a coisa de fora. Hillary deu no cravo, Wisner na ferradura: o
importante é o cavalo (no caso, o Egito) continuar ferrado. Em caso de dúvida, bata aqui, ali, lá e acolá:
aconteça o que acontecer, o rumo dos acontecimentos estará contido na fala imperial.
É uma leitura interessante. Mas uma outra leitura é possível.
No fim de contas, quem é Frank Wisner? Por que ele estava lá, no Cairo. A resposta tem uma dupla
face.
Frank Wisner II é um diplomata de carreira, que atuou de 1961 até sua aposentadoria em 1997, em
diferentes setores das relações internacionais de Washington. Serviu 8 presidentes, e foi, entre outras
funções, embaixador no Egito de 1986 a 1991. Seu pai, Frank Wisner Sênior, também teve
envolvimentos diplomáticos, tendo trabalhado para a derrubada do governo legítimo de Jacobo Arenz,
da Guatemala, em 1954, e de Mossadegh, na Pérsia, hoje Irã, em 1953, como um dos diretores de
estratégicos da CIA.
Frank Wisner, depois da aposentadoria, passou a trabalhar para a empresa Patton Boggs (informações de
Robert Fisk no Independent, 07/02/11) que é uma das conselheiras para o Exército Egípcio, para a
Agência para o Desenvolvimento Econômico do Egito, e que mantém vínculos estreitos com diversos
setores da elite econômica do país, inclusive com o Banco Nacional do Egito, o mais antigo e maior no
ramo.
O que fez Hillary Clinton despachar este diplomata para o Cairo? Talvez a pressa de se manter na crista
da onda em matéria de política para a região, talvez a busca da certeza de que o seu recado chegaria de
fato aos ouvidos de Mubarak, despachando alguém familiar com o alto milieu do Cairo.
O que aconteceu? Como bom diplomata, Wisner foi, falou e voltou. Na ida, deu o recado, sem dúvida.
Mas na volta, diplomata aposentado que é, sem compromisso com a atual política de governo, deu o seu
recado.
Afinal, Wisner passou a vida inteira, entre outras coisas, montando o atual dominó norte-americano de
ditaduras na região, que agora ameaça desabar – e ainda com um empurrãozinho a mais – desastrado, na
sua visão – de Washington, a pedir que um novo governo egípcio negocie com opositores reprimidos
por tanto tempo.
Quer dizer: além de lidar com revoltas imprevistas, o governo norte-americano, que tem suas
contradições internas (a cúpula democrata, partidária de Clinton, não engoliu Obama, nem mesmo sua
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vitória inicial na questão do plano de saúde), tem também que lidar com um “segundo escalão” arredio,
ufanista de sua visão anterior, arrogante e disposto a não abrir mão das prerrogativas de sua tradição
política.
A esse complicado imbróglio interno, se soma o externo. Para começo de conversa, o lobby própermanência de Mubarak é liderado por Israel, Arábia Saudita, Jordânia e Emirados Árabes Unidos.
Estão todos tementes de que a derrocada de Mubarak signifique a derrocada dos demais governos no
mundo árabe.
Enquanto isso, o cenário onde Hillary Clinton se move, apesar de seu peso como superpotência, é
complexo demais. Veja-se quem participou, naquele mesmo sábado do choque de declarações, da
superreunião sobre a crise egípcia, em Munique: além de Clinton, o Secretário-Geral da ONU, Ban kiMoon, o enviado especial para o Oriente Médio George Mitchell, a Representante da União Européia
para Relações Exteriores e Política de Segurança, Catherine Ashton e nada mais, nada menos que
Sergey Lavrov, Ministro de Relações Exteriores da Rússia. O governo de Obama está tentando montar –
e isso sim pode vir a ser uma novidade – uma frente com os russos (o que inclui, de outro modo, o
Brasil) contra o peso chinês no mundo e na economia mundial – o que implicaria uma reviravolta
enorme na estratégia política e militar da OTAN.
No mesmo encontro de segurança, o Vice-primeiro-ministro russo, Sergei Ivanov (não confundir com o
Sergey anterior) defendeu a inutilidade de novas sanções contra o Irã, numa posição, pasme a nossa
direita, com pontos de contato com a brasileira. A Rússia, como líder da antiga União Soviética, está
interessada na idéia dessa reviravolta norte-americana na Europa (que seria apoiada pela Alemanha, a
quem não só não interessa ter vizinhos como a Polônia, República Tcheca e outros mais distantes com
forte presença militar, como também interessa um relacionamento apaziguado com a Rússia). E
pretende se valer dela para voltar a “acaudilhar” sua antiga área de influência, o que agora está fazendo
pela via econômica, mas com a sombra militar, como no caso da crise da Geórgia e da Ossétia. É bom
lembrar que o Egito já foi área de influência da União Soviética, e que um escorregão norte-americano
nessa frente pode abrir uma brecha sem tamanho para a volta do dedo russo. Dedo este que, por sua vez,
já está fincado no Irã, inclusive na suas atividades nucleares.
Diante desse quadro, fica clara a existência de dois vetores (pelo menos, senão mais) na política norteamericana para a região e o problema: um que aposta na cooptação das forças emergentes nos
movimentos por maior democracia no Egito (peça-chave) e na região, inclusive a Irmandade
Muçulmana; outro que aposta, como sempre, na sua contenção e repressão, uns de forma mais mitigada
do que a atual, outros não. Veja-se a entrevista do Senador John McCain à revista Der Spiegel, em que
defende, como sempre, a idéia de que a Irmandade Muçulmana deve ser banida das negociações no
Cairo “They shoul be excluded from any transition government”, 06/02/2011,
www.derspiegel.de/international.
Quer dizer, não dá para “ler” o governo norte-americano, apesar das suas diretrizes estratégicas
permanentes, como infenso a tensões e contradições.
A situação é mais complexa do que jogo de truco num bolicho (*) domingueiro.
(*) Boteco, em geral de beira de estrada, no Rio Grande do Sul e, por extensão das vagas migratórias,
no Mato Grosso do Sul, Mato Grosso e Rondônia. Quanto ao jogo do truco e sua complexidade, bom, a
Wikipédia está aí para isso.
Flávio Aguiar é correspondente internacional da Carta Maior em Berlim.
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09/02/2011 |
FSM 2011
Direto do Cairo, ativistas cobram posição do FSM contra Mubarak
Em conexão direta pela internet, militantes que ocupam a Praça Tahrir, na capital do Egito, pediram
aos participantes do FSM a solidariedade e a vigilância internacional sobre a repressão contra o povo
egípcio. Delegação do país árabe que veio a Dacar espera do FSM crítica contundente ao governo de
Mubarak.
Bia Barbosa
Dacar, Senegal – De um lado, cem mil pessoas na Praça Tahir, no Cairo, coração da revolução que
acontece no Egito. De outro, militantes e ativistas apertados num cibercafé na Universidade Cheikh
Anta Diop, em Dacar, onde acontece o Fórum Social Mundial 2011.
Pela internet, alguns minutos de conexão permitiram àqueles que vieram ao Senegal enviar uma
mensagem de apoio e cumplicidade àqueles que lutam por liberdade e democracia no Egito. E
possibilitou àqueles pedir o apoio e a vigilância da comunidade internacional à situação verificada no
país.
“Falo neste momento da Praça Tahir, que agora foi batizada por nós de Praça da Revolução. Há mais de
cem mil pessoas aqui. No domingo, mais de dois milhões marcharam em todo o país. O número não
para de crescer. E as pessoas continuarão chegando até [Hosni] Mubarak sair”, disse Alaa Shukrallah,
do Centro de Apoio ao Desenvolvimento, referindo-se ao presidente do Egito.
“Em poucos dias construímos um movimento como nunca, numa grande união do povo egípcio,
inclusive entre cristãos e muçulmanos. Mas este é o resultado do acúmulo da luta pelo direito à
educação, à saúde. Agora lutamos pela liberação do país. Queremos uma vida melhor, dignidade,
democracia e justiça social”, acrescentou.
Para conquistá-la, será necessário manter o movimento vivo, mas contar também com o apoio da
comunidade internacional à soberania e respeito da vontade do povo egípcio.
Na avaliação da delegação do país que veio ao Fórum Social Mundial, não será fácil derrubar o
presidente. Ainda assim, caso o Ocidente permita que seu governo caia – em nome da “estabilização do
Egito” –, é grande o risco de que alguém similar seja colocado no lugar.
“Mubarak foi capaz de implantar o neoliberalismo em nosso país. As grandes empresas podem lavar o
dinheiro do povo e ninguém acha que isso é corrupção; todos os serviços públicos e bens comuns foram
privatizados; Israel continua sendo o único poder militar na região. Por conta disso, o Ocidente não vai
deixar o povo egípcio definir seu futuro”, acredita Hani Serag, coordenador do Movimento Popular de
Saúde, que coordenou a conexão do lado senegalês.
“Mubarak vai sair porque tem que sair, mas vão colocar alguém apresentado ao povo como nãocorrupto, alguém aceitável. Uma mudança completa só vai acontecer se o movimento continuar.”
Vigilância permanente
A expectativa é de que os movimentos presentes ao Fórum pressionem o atual governo do Egito a
deixar o poder, possivelmente por meio da divulgação de um forte documento. As entidades do egito
que participam do FSM contam com a solidariedade internacional neste sentido. Mas também chamam a
atenção para a necessária vigilância, permanente, do que ainda está em andamento no país.
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“Numa só noite mataram nove e deixaram 950 feridos. Eles querem que evacuemos a Praça. Nós
queremos os olhos internacionais na Praça Tahir o tempo todo. A solidariedade e a vigilância
internacional tornam isso possível”, acredita Wedad Ekkerdaoui, tradutora, que participa do Fórum com
este objetivo. “Só o movimento das ruas pode mudar o sistema.”
Da Praça Tahir, a jovem voluntária Sally Samy reforça o pedido: “É muito perigoso ficar aqui em
protesto permanente contra as forças do governo. Algumas organizações têm dado apoio médico àqueles
atacados pelo governo, estamos trazendo suprimentos para quem continua na rua, mas precisamos de
apoio. Todos precisam saber dos crimes cometidos por Mubarak contra aqueles que protestam. Eles
devem ser responsabilizados. Espero que um dia esse regime termine”.
Reflexão mais profunda
Além de inspirador, o sentimento no FSM em relação ao que acontece no Egito e à luta, de certa forma
já vitoriosa, na Tunísia, tem provocado reflexões mais profundas sobre as demandas históricas
altermundistas. Há muito não se vê um movimento de massas autodenominado revolucionário, como
agora presente nos países árabes do Norte da África.
“A última vez que isso aconteceu foi em 1989, na Alemanha, e o resultado foi a queda do Muro de
Berlim. A repercussão deste processo na Europa e na África será grande. Há um tipo de sentimento
revolucionário que está se desenvolvendo na mente das pessoas. Haverá um resultado no nível de
consciência das pessoas”, acredita o belga Eric Toussaint, do Comitê pela Anulação da Dívida do
Terceiro Mundo e presença constante nos Fóruns Sociais.
Se a ideia de enfrentar de fato governos em nome da justiça social contaminar positivamente a Europa,
um novo cenário pode se desenhar para os movimentos de trabalhadores que sofrem os resultados
concretos dos planos de ajuste estrutural e da nova onda de austeridade levada adiante por líderes
europeus.
“Na França, por exemplo, os movimentos se recusaram a questionar de forma mais dura o governo
Sarkozy. Tunísia e Egito agora mostram que isso é necessário, que a questão política deve estar no
centro do debate”, afirma Toussaint.
10/02/2011 |
A hipocrisia do Ocidente
Quando os árabes querem dignidade e respeito, quando gritam por seu próprio futuro que
Obama assinalou em seu famoso – agora suponho que infame – discurso no Cairo, nos lhes faltamos
com o respeito. Ao invés de dar as boas vindas às suas exigências democráticas, os tratamos como se
fossem um desastre. Queremos que sejam como nós, desde que fiquem de lado. E assim, quando provam
que querem ser como nós, mas não querem invadir a Europa, fazemos o que podemos para instalar
outro general treinado nos EUA para que os governe. O artigo é de Robert Fisk.
Robert Fisk - Página/12
Não há nada como uma revolução árabe para mostrar a hipocrisia de nossos amigos.
Especialmente se essa revolução é marcada pela civilidade e pelo humanismo e é impulsionada por uma
enérgica exigência para ter o tipo de democracia que desfrutamos na Europa e nos Estados Unidos. As
indecisas tolices sussurradas por Obama e Clinton durante estas últimas duas semanas são apenas uma
parte do problema. Da “estabilidade” à “tormenta perfeita” passamos ao presidencial “agora-significaontem” e “transição ordenada”, que se traduz assim: nada de violência enquanto o ex-general da força
aérea Mubarak é levado a pastar para que o ex-general de inteligência Suleiman possa assumir a chefia
do regime em nome dos EUA e de Israel.
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A Fox News já disse a seus telespectadores nos EUA que a Irmandade Muçulmana – um dos grupos
islâmicos mais “suaves” no Oriente Médio – está por trás dos valentes homens e mulheres que se
animaram a resistir à polícia de segurança do Estado, enquanto a massa de “intelectuais” franceses
silencia: as aspas são essenciais para nomes como Bernard-Henri Levy que se converteu, segundo o Le
Monde, na “inteligência do silêncio”.
E todos sabemos a razão. Alain Finkelstein fala de sua “admiração” pelos democratas, mas também da
necessidade de “vigilância” – e este é um ponto baixo em qualquer “filósofo” – “porque hoje todos
sabemos sobretudo que não sabemos qual será o resultado”. Esta citação quase rumsfeldiana é dourada
pelas próprias palavras ridículas de Lévy: “é essencial levar em conta a complexidade da situação”.
Curiosamente, isso é exatamente o que os israelenses dizem quando algum ocidental insensato sugere
que Israel deveria deixar de roubar terra árabe na Cisjordânia para suas colônias.
Na verdade, a própria reação de Tel Aviv aos importantes eventos no Egito – que este pode não ser o
momento adequado para a democracia no Egito (permitindo assim manter o título de “a única
democracia no Oriente Médio”) – tem sido tão inverossímil quanto contraproducente. Israel estará muito
mais seguro rodeado por verdadeiras democracias do que por ditadores e reis autocráticos. Para seu
enorme crédito, o historiador francês Daniel Lindenberg disse a verdade esta semana. “Devemos admitir
a realidade: muitos intelectuais acreditam, no fundo, que o povo árabe é congenitamente atrasado”.
Não há nada de novo nisto. Aplica-se a nossos sentimentos recônditos sobre todo o mundo muçulmano.
A chanceler Angela Merkel, da Alemanha, anuncia que o multiculturalismo não funciona, e um
pretendente à família real da Baviera me disse, não faz muito tempo, que há turcos demais na Alemanha
porque “não querem fazer parte da sociedade alemã”. No entanto, quando a Turquia – o mais perto da
mistura perfeita de islamismo e democracia que se pode encontrar hoje no Oriente Médio – pede para
ingressar na União Europeia e compartilhar nossa civilização ocidental, buscamos desesperadamente
qualquer remédio, não importa quão racista seja, para evitar que isso aconteça.
Em outras palavras, queremos que sejam como nós, desde que fiquem de lado, a uma distância segura. E
assim, quando provam que querem ser como nós, mas não querem invadir a Europa, fazemos o que
podemos para instalar outro general treinado nos EUA para que os governe. Assim como Paul
Wolfowitz reagiu à negativa do Parlamento turco em permitir que as tropas dos EUA invadissem o
Iraque desde o Sul da Turquia perguntando se “os generais não tem nada a dizer sobre isso”, agora
somos obrigados a ouvir o secretário de Defesa dos EUA, Robert Gates, destacar a “moderação” do
exército egípcio, aparentemente não se dando conta de que o povo do Egito, que está propondo a
democracia, é que deveria ser elogiado por sua moderação e não violência e não um monte de
brigadeiros.
De modo que, quando os árabes querem dignidade e respeito, quando gritam por seu próprio futuro que
Obama assinalou em seu famoso – agora suponho que infame – discurso no Cairo, nos lhes faltamos
com o respeito. Ao invés de dar as boas vindas às suas exigências democráticas, os tratamos como se
fossem um desastre.
(*) De The Independent da Inglaterra, especial para Páginal12. Tradução: Celita Doyhambéhère.
Tradução para a Carta Maior: Katarina Peixoto.
10/02/2011 |
FSM 2011
Boaventura defende ações coordenadas para implodir o sistema
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Na avaliação do sociólogo português, protestos como os que ocorrem no norte da África e no Oriente
Médio podem derrubar ditadores, mas para acabar com o capitalismo é preciso uma sinergia maior
entre ações no âmbito global. “O desafio do FSM agora é se renovar e encontrar uma forma de
dialogar com os cidadãos não organizados”, afirmou.
Bia Barbosa
Dacar, Senegal – Em 2003, as reações globais planejadas no Fórum Social Mundial contra a anunciada
invasão do Iraque ganharam visibilidade em todo o planeta. No entanto, não foram eficazes a ponto de
impedir o início da guerra mais brutal deste milênio.
Há poucos meses, o mundo despertou para novas formas de mobilização que, estas sim, têm se
mostrado conseqüentes, com a queda do ditador Ben-Ali da Tunísia, a situação cada vez mais delicada
do presidente do Egito, o também ditador Mubarak, além do crescimento dos protestos no Iêmen e
Jordânia.
A pergunta colocada nesta quarta-feira (9) pelo sociólogo português Boaventura de Sousa Santos aos
ativistas do FSM foi: como produzir muitos Cairos ao mesmo tempo a ponto de mudar o sistema?
“Nosso desafio é criar protestos sociais simultâneos e sincronizados em todo o mundo, com diferentes
agendas políticas, mas convergentes na crítica aos Estados não legítimos. O que é novo no Cairo é que,
ali, a partir da troca de informações, conseguiu-se uma sinergia na ação do ponto de vista nacional. Mas
ainda não conseguirmos promover ações globais para desestabilizar o capitalismo”, disse.
“O tipo de protesto que existe no Cairo é eficaz para derrubar ditadores, mas não podemos passar de
uma ditadura pró-Estados Unidos, pró-Israel, anti-Irã e anti-Islã para uma democracia pró-Estados
Unidos, pró-Israel, anti-Irã, anti-Palestina. Precisamos de transformações mais profundas. Não para
derrubar Ben-Alis e Mubaraks, mas para derrubar o sistema capitalista”, afirmou Boaventura.
Novos atores
Na busca deste objetivo, duas tarefas estariam colocadas para aqueles que batalham por um outro
mundo possível. A primeira, acredita o sociólogo, é rever a diferença e a separação existente hoje entre
sociedade civil organizada e cidadãos comuns, que podem cumprir um papel central nestes processos.
“Os protestos no Cairo passam à margem dos movimentos sociais. Sem dúvida não podemos entender o
que acontece lá sem olharmos para as greves em curso no país há três anos, mas o que houve no Egito
foram pessoas que não estavam necessariamente preparadas para a luta e, de repente, entraram em ação.
Precisamos saber encontrar este momento”, analisou.
Essa constatação coloca um novo desafio para o Fórum Social Mundial, que passou os últimos anos
discutindo, entre todos os seus temas, a relação que os movimentos teriam com os partidos políticos.
Agora se mostra necessário considerar e conseguir envolver sobretudo a juventude não organizada no
conjunto dos agentes de transformação social e política com os quais o FSM dialoga.
“O cara a cara no Fórum Social é fundamental. Mesmo com os problemas de organização que estamos
tendo, estamos felizes de entrar em contato com tudo isso. A parte do mundo real vai ser sempre
importante, porque não sei beber e dançar virtualmente, isso não me dá prazer”, ressaltou Boaventura.
Para ele, “precisamos de outra relação entre o mundo real e virtual. É preciso pensar em um outro
formato, dar outra dimensão mais organizada e ativa para não perdermos a eficácia. Estamos sempre
repensando o FSM, mas precisamos continuar a fazer isso para envolver outras pessoas”, acredita.
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Ideologia e novas tecnologias
E é aí que se coloca a segunda tarefa levantada por Boaventura aos altermundistas: como descobrir onde
os cidadãos e cidadãs não organizadas buscam ideologia? O caminho pode ter sido mostrado também
pelos manifestantes que conseguiram derrubar Ben-Ali e agora pedem a cabeça de Mubarak: as novas
tecnologias.
Para além de explorar o uso das redes sociais e da internet como um todo para a sensibilização dos
povos em geral, o sociólogo português acredita que o WikiLeaks, como uma metáfora da comunicação
insurgente, pode contribuir consideravelmente para a desestabilização do sistema capitalista.
“O WikiLeaks não é parte do movimento anti-capitalista. Mas vai contra os segredos das multinacionais
e dos Estados. Precisamos saber como nos beneficiar das informações que estão disponíveis. O Fórum
de Davos tem informações estratégicas às quais nós não temos acesso. O WikiLeaks poderia nos ajudar
a produzir um relatório do mundo que queremos”, avalia.
A estratégia seria, portanto, conseguir se beneficiar deste conteúdo de forma mais célere do que
imperialismo. Não deixar acontecer o mesmo que se passou com a Revolução Cubana, cuja viabilidade
ainda estava sendo debatida pelas forças de esquerda enquanto os Estados Unidos já haviam criado um
instrumento contra a revolução.
Para que tal cenário seja possível, o movimento altermundista precisa superar uma barreira criada pelo
próprio WikiLeaks como uma forma de proteger sua credibilidade e possibilitar sua sobrevivência: a
mediação dos grandes meios de comunicação do mundo.
A sugestão de Boaventura Souza Santos é que o Fórum Social Mundial solicite acesso aos dados do
WikiLeaks antes de eles serem tratados pelos grandes jornais. “Há documentos que não interessam a
eles e são muito ricos para nós. Muitas informações estratégicas para o movimento não foram
divulgadas”, afirmou.
No Brasil, a mobilização da mídia alternativa já conseguiu fazer com que o WikiLeaks revisse sua
forma de divulgação dos documentos no país. A partir da próxima semana, o público brasileiro vai
poder escolher quais os temas que devem ser pesquisados no arquivo de documentos e publicados no
site do WikiLeaks. Todos os pedidos serão publicados, e os temas mais pedidos terão prioridade.
Para a divulgação, o WikiLeaks construiu uma parceria com uma série de blogs e veículos
independentes. Até agora, como acontece em todo o mundo, O Globo, Folha e WikiLeaks estavam
usando seus critérios para julgar quais documentos seriam publicados. Dessa vez, o próprio público vai
decidir, invertendo a lógica da produção da informação.
11/02/2011 |
O gigante adormecido desperta no Egito
As ondas de choque produzidas por uma mudança política violenta e imprevisível no Egito poderão
afetar toda a região por longo tempo e alterar as correlações de força regionais. O Egito possui 83
milhões de habitantes, tem sido o coração do mundo árabe e ocupa uma posição geopolítica sensível,
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pois liga dois oceanos via canal de Suez, dois continentes (África e Ásia) e faz fronteira com Israel e a
faixa de Gaza. Além disso, representa uma peça chave na estratégia dos Estados Unidos e da União
Européia.
Paulo Visentini
AS FORÇAS QUE DISPUTAM O EGITO
As massivas manifestações de rua no Egito produzirão efeitos internos e externos muito mais sérios que
os da Tunísia. O Egito possui 83 milhões de habitantes, tem sido o coração do mundo árabe e ocupa
uma posição geopolítica sensível, pois liga dois oceanos via canal de Suez, dois continentes (África e
Ásia) e faz fronteira com Israel e a faixa de Gaza. Além disso, representa uma peça chave na estratégia
dos Estados Unidos e da União Européia. As ondas de choque produzidas por uma mudança política
violenta e imprevisível poderão afetar toda a região por longo tempo e alterar as correlações de força
regionais.
Que regime é este e que forças se lançam contra ele? As forças armadas têm sido o principal pilar do
poder desde que implantou a república em 1952, através de um golpe de Estado que levou Nasser ao
poder. Sadat, que o sucedeu após sua morte em 1970, e Mubarak, que assumiu quando este foi
assassinado em 1981, foram militares, assim como Nasser. Mas o Egito não pode ser caracterizado
como um regime militar, pois estes sempre evitaram exercer diretamente o poder, ainda que gozando de
privilégios. Houve sempre uma poderosa burocracia civil e, com os dois últimos, uma influente classe
empresarial.
Da mesma forma, Mubarak foi sempre um líder hábil que estabilizou o Egito depois dos tumultuados
anos de Nasser e Sadat. A transição que está acontecendo agora deveria ter ocorrido há vinte anos, e o
desaparecimento do regime provocará um caos preocupante. Mas uma das vantagens do atraso egípcio é
que a sociedade está relativamente madura para evitar um islamismo desestabilizador que era dominante
naquela época. Se houvesse eleições agora, muito provavelmente a Irmandade Muçulmana, um partido
criado nos anos 1920 e atualmente proscrito, venceria com vantagem. Mas ele está dividido entre uma
ala moderada e uma retrógrada.
Há uma força nova, que o acadêmico Tarek Osman denomina de capitalistas liberais, liderada por
Gamal Mubarak, o filho do presidente[1]. Ele domina a maior parte das atividades econômicas,
financeiras e de serviços, apoiando-se em favores do regime. Mas há igualmente uma classe média
ressentida pelas práticas do desgastado regime e uma maioria esmagadora de jovens, a maioria pobre e
desempregada, parte dela sensível ao discurso islâmico e outra ao modernizador. Detalhe importante, o
Egito já é uma sociedade bastante internacionalizada, daí a razão do governo haver cortado a internet e
as conexões telefônicas.
Há pressão internacional para que Mubarak encontre uma solução e a nomeação do chefe da
inteligência, General Omar Suleiman, à vice-presidência vaga desde 1981 foi reveladora. Mubarak
busca apoio do exército para a manutenção temporária do poder e a preparação de uma transição
pactuada envolvendo personalidades consideradas pelo povo como não corrompidas. A posição do
exército será, portanto, decisiva. O Faraó Ahmose, fundador do Novo Império egípcio definia seu
mandato faraônico como manter a ordem (maat) e evitar o caos (isfet). Esta é a visão tanto de Mubarak
como dos militares, mas a longa presidência apenas equilibrou forças tradicionais e novas sem um
projeto futuro, que o Egito hoje reclama. O tempo para uma transição é curto e o caos representa uma
possibilidade não desprezível.
MUNDO ÁRABE: REVOLUÇÃO (DEMOCRÁTICA) OU REVOLTA?
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A inédita onda de protestos que tem varrido o mundo árabe nas últimas semanas deixa no ar uma
questão crucial: ele ingressa numa nova era de superação de regimes autoritários, ou vive mais uma de
suas periódicas explosões de ira? Sem dúvida há uma crise geral, mas em cada país a realidade é
diferente. O Marrocos logrou fazer uma transição bem sucedida entre dois reis há uma década, a Tunísia
parece ter conseguido uma transição sem uma ruptura radical, a Síria mantém o statu quo, da mesma
forma que, precariamente, a Jordânia, e a Líbia, apesar de Kadafi estar há mais de quatro décadas no
poder.
Os Emirados Árabes vivem a crise de seu capitalismo Disney World, a Arábia Saudita está perdendo
sua longa estabilidade e o Iraque (na prática, dividido em três) dispensa comentários. Mas há três países
que definirão a futura tendência da região: Egito, Argélia e Iêmen. O primeiro é o centro do mundo
árabe, afeta diretamente a posição de Israel e o esquema estratégico Ocidental, tendo sido analisado
acima. Na Argélia nada foi resolvido desde que, há vinte anos, um golpe militar impediu os islâmicos de
assumirem o poder, mas a sociedade está exausta.
Já o Iêmen, localizado no sul da península arábica e defronte aos piratas somalis, controlando a saída do
Mar Vermelho, é um país gravemente fragilizado. O governo é herdeiro de uma república nasserista
(cuja sociedade clama por democracia e desenvolvimento), mas tem de enfrentar grupos terroristas
ligados à Al-Qaeda, tribalismo muçulmano e socialistas do antigo Iêmen do Sul (absorvidos em 1990
mas que já estão reivindicando novamente a independência). Trata-se de um país pobre, super-povoado,
a beira do colapso e que ocupa uma posição geopolítica vital.
Os árabes não são diferentes dos demais povos e desejam a mesma coisa: uma vida digna. Mas eles se
encontram divididos quanto ao caminho a percorrer para atingi-la. Como em outras oportunidades ao
longo da história, o desfecho dependerá também da atitude que os poderes do mundo tenham em relação
a eles. Mas a pergunta é: o Ocidente compreende realmente o problema?
[1] Para compreender a crise atual, ver Tarek Osman. Egipt on the brink. Yale University Press, 2010.
Coordenador do Curso de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais da FCE/UFRGS.
11/02/2011 |
FSM 2011
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Encontros do G-8 e G-20 na França serão alvos de protestos
Movimentos sociais e ONGs que participam do Fórum Social Mundial 2011 definiram que as reuniões
dos países do G-8 e G-20 terão importância central nas mobilizações deste ano. Protestos de rua,
cursos de formação e atividades de lobby estão entre as ações previstas para 2011, definidas nas
assembléias realizadas pelas organizações nessa quinta-feira (10), em Dacar.
Marcel Gomes
Dacar, Senegal – As reuniões do G-8, em junho deste ano, e do G-20, em novembro, ambas na França,
serão dois dos principais alvos das manifestações programadas para este ano pelas ONGs e movimentos
sociais que participam do Fórum Social Mundial.
Nas assembléias realizadas pelas organizações nessa quinta-feira (10), em Dacar, os ativistas
propuseram todo tipo de estratégias de ação, de protestos nas ruas à cursos de formação e atividades de
lobby. A articulação detalhada das ações será feitas ao longo dos próximos meses.
O G-20 deve receber mais atenção. Em primeiro lugar, explica Karen Lang, da rede Nosso Mundo Não
Está à Venda, porque o grupo de nações é uma novidade para muitos movimentos. "É diferente do G-8,
que é um tema com o qual trabalhamos há muito tempo", diz ela.
Em segundo lugar, o foco nesta reunião se deve também ao fato de o G-20 ter se tornado a principal
instância de debate entre os governos nacionais sobre a governança financeira global, após a crise dos
mercados em 2008.
Antes daquele ano, o grupo, criado em 1999 e que reúne ministros da Economia e presidentes de Bancos
Centrais de 19 Estados membros e da União Européia, tinha pouca relevância internacional. Mas a crise
elevou o status das nações emergentes na economia mundial. O último encontro do G-20 foi realizado
em novembro de 2010, na Coréia do Sul, e seu documento final defendeu com mais ênfase a
necessidade de regulação dos fluxos financeiros internacionais.
Apesar da proposta em tese progressista, o G-20 não conta com a confiança dos ativistas que participam
do Fórum. "Não é a reforma que queremos. Além disso, o grupo não possui mandato nem legitimidade
para tomar decisões globais em nome de países que não o compõem", critica Lang.
A avaliação é semelhante a de Paul Quintos, da Fundação Ibon (www.ibon.org), das Filipinas - país que
não participa do G-20. "Como o grupo pode tomar decisões em nome de quem não está lá?", questiona
ele.
O ativistas filipino critica propostas assinadas na Coréia do Sul, como o Plano de Ação Seul e o Plano
de Avaliação Mútua (MAP, sigla em inglês). Ambos apontam as medidas que seriam tomadas para
reduzir desequilíbrios entre os mercados, mas, para Quintos, servirão mais para incentivar os
investimentos das corporações transnacionais.
A preocupação de Nancy Alexander, da Heinrich Boell Foundation, ligada ao Partido Verde, da
Alemanha, é semelhante. Segundo ela, o G-20 promoveu o divórcio entra a agenda ambiental e a social
e financeira - e isso pode ser "catastrófico".
Incidência política
As ONGs e movimentos sociais que promoverão ações anti-G-20 e anti-G-8 querem aproveitar seus
canais de diálogo com os governos nacionais para levar críticas e propostas.
64
Para Adolfo Aguirre, secretário de Relações Internacionais da Central dos Trabalhadores Argentinos, o
sucesso do lobby sobre governos dependerá de parcerias mais fortes entre sindicatos e os demais
movimentos sociais.
Criada em 1991, a CTA fugiu do modelo sindical tradicional de só sindicalizar trabalhadores
formalizados e passou a mobilizar, segundo Aguirre, não só "os que trabalham, mas também os que
trabalharam e os que buscam trabalho".
No caso brasileiro, Gabriel Strautman, da Rede Brasil pela Integração dos Povos, acredita que a crítica
ao G-20 será dificultada pelo discurso do governo da presidente Dilma Rousseff, que "leva para as
pessoas a idéia de que o Brasil virou um país desenvolvido ao fazer parte do grupo".
Segundo ele, o grupo de nações pouco fez até agora para controlar as finanças globais. "Tudo o que eles
fizeram foi resgatar os bancos e aprofundar as contradições do sistema", afirmou Strautman.
A atual presidência rotativa do G-20 é ocupada pela França. E os temas do encontro ministerial de
novembro já estão sobre a mesa:
- Coordenando políticas econômicas e reduzindo desequilíbrios macroeconômicos
- Fortalecendo a regulação financeira
- Reformando o Sistema Financeiro Internacional
- Combatendo a volatilidade do preço das commodities
- Aperfeiçoando a governança global
- Trabalhando em prol do desenvolvimento
Os temas do encontro de junho do G-8, também sob comando da França e também já definidos, são:
- Afeganistão
- Parceria entre G-8, Oriente Médio e Norte da África
- Novos desafios da internet
- Não proliferação de armas de destruição em massa
- Apoio do G-8 à África
- Encontro Ministerial sobre Tráfico Transatlântico de Cocaína
- Contra-terrorismo
- Segurança na União Européia
11/02/2011 |
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Oriente Médio: nada será como antes
A queda das ditaduras na Tunisia e no Egito demonstra que os EUA já não poderão manter o
esquema de poder montado há mais de três décadas. Impotente para agir de forma direta no plano
militar, os EUA tentam articular transições que mudem a forma de dominação, mas mantenham sua
essência. O Exército preferiu a renúncia de Mubarak, porque se deu conta que sua presença unia a
oposição. Tem esperança que, sem ele, possa cooptar setores opositores para uma coalização
moderada – com El Baradei, a Irmandade Muçulmana, com o apoio dos EUA e da Europa. O artigo é
de Emir Sader.
Emir Sader
Por duas fortes razões o Oriente Médio tornou-se um pilar da politica externa do império
norteamericano: a necessidade estratégica do abastecimento de petróleo seguro e barato para os EUA, a
Europa e o Japão, e a proteção a Israel – aliado fundamental dos EUA na região, cercado por países
árabes.
Por isso o surgimento do nacionalismo árabe tornou-se um dos fantasmas mais assustadores para os
EUA no mundo. Por um lado, pela nacionalização do petróleo pelos governos nacionalistas, afetando
diretamente os interesses das gigantes do petróleo – norteamericanas ou europeias –, pela ideologia
nacionalista e antimperialista que propagam – de que o egípcio Gamal Abder Nasser foi o principal
expoente - e pela reivindicação da questão palestina.
A história contemporânea do Médio Oriente tem assim na guerra árabe-israelense de 1967 sua
referência mais importante. A união dos governos árabes permitiu a retomada da reivindicação do
direito ao Estado Palestino, que foi respondida por Israel com a invasão de novos territórios – inclusive
do Egito -, com o apoio militar direto dos EUA.
Novo conflito se deu em 1973, agora acompanhado da politica da OPEP de elevação dos preços do
petróleo. A partir daquele momento ou o Ocidente buscava superar sua dependência do petróleo ou
trataria de dividir o mundo árabe. Triunfou esta segunda possibilidade, com a guerra Iraque-Irã,
incentivada e armada pelos EUA, que golpeou dois países com governos nacionalistas, que se
neutralizaram mutuamente, em um enfrentamento sangrento. Como sub-produto da guerra, o Iraque se
sentiu autorizado a invadir o Kuwait – com anuência tácita dos EUA -, o que foi tomado como pretexto
para a invasão do Iraque e o assentamento definitivo de tropas norte-americanas no centro mesmo da
região mais rica em petróleo no mundo.
Os EUA conseguiram dividir o mundo árabe tendo, por um lado os regimes mais reacionários –
encabeçados pelas monarquias, a começar pela Arabia Saudita, detentora da maior reserva de petróleo
do mundo, e por outro governos moderados, como o Egito e a Jordânia. A maior conquista
norteamericana foi a cooptação de Anuar el Sadar, o sucessor de Nasser, que supreendentemente
normalizou relações com Israel – o primeiro regime da região a fazê-lo -, abrindo caminho para a
criação de um bloco moderado, pró-norteamericano na região, que se caracteriza pela retomada de
relações com Israel – portanto o reconhecimento do Estado de Israel – e praticamente o abandono da
questão palestina. Passaram a atuar também dento da OPEP, como força moderadora, favorável aos
interesses das potências ocidentais.
O Egito, como país de maior população da região, com grande produção de petróleo e país daquele que
havia sido o maior lider nacionalista de toda a região – Nasser – passou a ser o peão fundamental no
plano politico dos EUA na região. Não por acaso o Egito tornou-se o segundo país em auxilio militar
dos EUA no mundo, depois de Israel e à frente da Colômbia.
Essa neutralização do mundo árabe, pela cooptação de governos e pela presença militar dos EUA no
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coração da região – atualizada com a invasão do Iraque – constituiu-se em elemento essencial da
politica norteamericana no mundo e da garantia de abastecimento de petróleo para complementar a
declinante produção dos EUA e todo o petróleo para abastecer a Europa e o Japão.
É isso que está em jogo agora, depois da queda das ditaduras na Tunísia e no Egito. Impotente para agir
de forma direta no plano militar, os EUA tentam articular transições que mudem a forma de dominação,
mas mantenham sua essência. O Exército preferiu a renúncia de Mubarak, porque se deu conta que sua
presença unia a oposição. Tem esperança que, sem ele, possa cooptar setores opositores para uma
coalização moderada – com El Baradei, a Irmandade Muçulmana, com o apoio dos EUA e da Europa –
que possa fazer reformas constitucionais, mas controlar o processo sucessório nas eleições de setembro,
conseguindo desmobilizar o movimento popular antes que este consigar forjar novas lideranças.
Indepentemente de que possa se estender a outros países da região – de que a Argélia, a Jordânia, o
Marrocos, a Arabia Saudita, são candidatos fortes – a queda das ditaduras na Tunisia e no Egito
demonstra que os EUA já não poderão manter o esquema de poder montado há mais de três décadas. O
menos que se pode esperar é a instabilidade politica na região, até que outras coalizões de poder possam
se organizar, cujo caráter dará a tônica do novo período em que entra o Orienta Médio.
11/02/2011 |
O 1848 árabe: os déspotas cambaleiam e caem
Os levantes populares na Tunísia e no Egito são revoltas contra o universo da miséria permanente:
uma elite cega por sua própria riqueza, corrupção, desemprego massivo, tortura e subjugação ao
Ocidente. O resgate da solidariedade árabe contra as ditaduras repelentes e os que as sustentam é um
novo ponto de inflexão no Oriente Médio. Trata-se da renovação da memória histórica da nação árabe
que foi brutalmente destruída pouco depois da guerra de 1967. Os acontecimentos do último mês
assinalaram o primeiro renascer autêntico do mundo árabe desde a derrota de 1967.
Tariq Ali
Não pode durar muito mais porque os militares declararam que não dispararão contra seu próprio povo,
o que exclui a opção da praça de Tiananmen. Se os generais (que sustentam este regime há muito
tempo) faltarem com sua palavra podem dividir o exército e preparar o terreno para a guerra civil.
Ninguém quer isso, nem os israelenses, que gostariam que seus amigos estadunidenses mantivessem o
seu homem chave no Cairo tanto tempo que fosse possível. Mas isso também é impossível.
Washington quer uma “transição ordenada”, mas as mãos de Suleiman o Fantasma (ou o Senhor da
Tortura como algumas de suas vítimas o chamam), que empurraram goela abaixo de Mubarak, também
estão manchadas de sangue. Substituir um torturador por outro já não é aceitável. As massas egípcias
querem uma mudança total do regime, não uma operação ao estilo do Paquistão, onde um civil sem
vergonha substitui a um ditador uniformizado e nada muda verdadeiramente.
A infecção tunisiana se expandiu muito mais rapidamente do que se poderia imaginar. Após uma longa
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letargia induzida por derrotas (militares, políticas e morais) a nação árabe está despertando, A Tunísia
impactou imediatamente a vizinha Argélia e esse estado de ânimo cruzou então o Jordão e chegou ao
Cairo uma semana depois. Estamos sendo testemunhas de uma onda de levantamentos nacionaldemocráticos que lembram mais as agitações de 1848 - contra o Czar, o Imperador e seus colaboradores
– que varreram a Europa e foram presságios de posteriores turbulências. Este é o 1848 árabe. O CzarImperador de hoje é o presidente da Casa Branca. Isso é o que diferencia estas proto-revoluções dos
assuntos de 1989: isso e o fato de que, com poucas exceções, as massas não se mobilizaram elas
mesmas no mesmo grau. Os europeus do leste se submeteram aos ocidentais, vendo nisso um futuro
feliz e entoaram “Tomem-nos, tomem-nos, já somos vossos”.
As massas árabes querem romper com o horrível abraço. Os Estados Unidos e a União Europeia têm
dado seu apoio a ditadores dos quais (as massas árabes) querem se livrar. São revoltas contra o universo
da miséria permanente: uma elite cega por sua própria riqueza, corrupção, desemprego massivo, tortura
e subjugação ao Ocidente. O redescobrimento da solidariedade árabe contra as ditaduras repelentes e os
que as sustentam é um novo ponto de inflexão no Oriente Médio. Trata-se da renovação da memória
histórica da nação árabe que foi brutalmente destruída pouco depois da guerra de 1967. Neste aspecto, o
contraste não pode ser mais vivo. Gamal Abdel Nasser, apesar de seus erros e debilidades, viu a derrota
de 1967 como algo sobre o qual teve que assumir sua responsabilidade. Renunciou. Mais de um milhão
de egípcios se reuniram no coração do Cairo para pedir que ele ficasse no poder. E ele mudou de
opinião. Morreu no cargo poucos anos depois, com o coração dilacerado e sem dinheiro. Seus
sucessores entregaram o país a Washington e a Tel Aviv por um prato de lentilhas.
Os acontecimentos do último mês assinalaram o primeiro renascer autêntico do mundo árabe desde a
derrota de 1967. Todos os cataventos sempre alertam para não se ficar nunca no lado equivocado da
história e evitar sempre toda experiência de derrota, mas foram surpreendidos por estes levantes.
Esqueceram que as revoltas e as revoluções, formadas por circunstâncias reais, ocorrem quando as
massas, as multidões, a cidadania – não importa como as chamamos – decidem que a vida tornou-se tão
insuportável que não será mais suportada. Para esta gente, uma infância pobre e a injustiça resultam tão
naturais quanto um pontapé na cabeça recebido na rua ou um interrogatório brutal na cadeia. Já
experimentaram tudo isso, mas quando as mesmas condições ainda estão presentes e agora já são
adultos, então o medo da morte retrocede. Quando se atinge essa etapa, uma só faísca pode acender um
fogo na savana. Neste caso, literalmente, como demonstra a tragédia do jovem que se imolou na
Tunísia.
Estamos no princípio da mudança. As massas árabes não foram sufocadas pela força desta vez e não
sucumbiram. O que oferecerão ao seu povo os que substituirão os déspotas na Tunísia e no Egito? A
democracia, por si só, não pode alimentá-los ou dar-lhes emprego...
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11/02/2011 |
“Todos somos Khaled Said”: juventude lidera revolução
O setor da população egípcia composto por uma pujante juventude é o que está liderando a revolução.
O Movimento Juvenil 6 de abril formou-se no ano passado em apoio aos trabalhadores têxteis em greve
na cidade egípcia de Mahalla. Uma das fundadoras do movimento, Asmaa Mahfouz, que acaba de
completar 26 anos, publicou um vídeo no Facebook no dia 18 de janeiro, dias depois de a revolução
tunisiana ter derrubado o ditador do país. Asmaa disse: “Estou fazendo este vídeo para lhes dar uma
simples mensagem. Queremos ir à Praça Tahrir dia 25 de janeiro. Iremos ali para exigir nossos
direitos humanos fundamentais. O artigo é de Amy Goodman.
Amy Goodman - Democracy Now
“Em homenagem a Christoph Probst, Hans Scholl e Sophie Scholl”, diz um cartaz na parte superior do
muito visitado blog do dissidente egípcio Kareem Amer. E continua: “Decapitados no dia 22 de
fevereiro de 1943 por terem se atrevido a dizer não a Hitler e sim à liberdade e à justiça para todos”. O
cartaz do jovem blogueiro recorda o valente grupo de ativistas antinazista que se autodenominaram
Rosa Branca. Este grupo redigiu e distribuiu secretamente seis panfletos denunciando as atrocidades
nazistas. Em um deles declararam: “Não nos calaremos”. Sophie e seu irmão Hans Scholl foram
capturados pelos nazistas, julgados, condenados e decapitados.
Kareem Amer, que esteve quatro anos preso no Egito por escrever em seu blog, desapareceu das ruas do
Cairo após abandonar a Praça Tahrir com um amigo, segundo o site cyberdissidentes.org. O grupo
supõe que Amer encontre-se agora entre as centenas de jornalistas e ativistas de direitos humanos
detidos pelo regime do ditador egípcio Hosni Mubarak, e acaba de lançar uma campanha para exigir sua
liberação.
Kareem Amer desapareceu um pouco antes de Wael Ghonim ter sido libertado. Ghonim é um executivo
do Google de 30 anos de idade que ajudou a administrar a página do Facebook que teve um papel
decisivo na organização dos protestos de 25 de janeiro no Egito. A página se chama “Todos somos
Khaled Said” em homenagem a um jovem assassinado pela polícia em Alexandria em junho de 2010.
Uma foto do cadáver de Khaled Said apareceu na Internet. Tinha sinais de golpes brutais na face.
Ghonim viajou ao Egito para participar dos protestos, foi preso de forma secreta pelo governo egípcio
durante 12 dias. O canal de televisão Dream 2 entrevistou-o após sua libertação. Na entrevista, Ghonim
desmoronou e rompeu em pranto quando viu as fotos de muitos dos que foram assassinados nos
69
protestos. “Estamos lutando por nossos direitos e por nosso país. Não sou um herói. Estava somente
utilizando o teclado e a internet. Nunca coloquei minha vida em perigo. Os verdadeiros heróis são os
que estão aí fora”.
A libertação de Ghonim fez com que a multidão que exige o fim do regime de 30 anos de Mubarak na
Praça Tahrir aumentasse. Tahrir, que significa “libertação” em árabe, é o corpo e a alma do movimento
democrático no Egito, mas não é o único lugar onde se reúne gente corajosa contrária ao regime.
Enquanto escrevo esta coluna, está se instalando um novo acampamento em frente ao Parlamento
egípcio e seis mil trabalhadores estão em greve no Canal de Suez. Enquanto a consolidada ditadura
afirmava estar fazendo concessões, suas tropas de choque desatavam uma onda de violência,
intimidação, prisões e assassinatos.
O setor da população egípcia composto por uma pujante juventude é o que está liderando a revolução. O
Movimento Juvenil 6 de abril formou-se no ano passado em apoio aos trabalhadores têxteis em greve na
cidade egípcia de Mahalla. Uma das fundadoras do movimento, Asmaa Mahfouz, que acaba de
completar 26 anos, publicou um vídeo no Facebook no dia 18 de janeiro, dias depois de a revolução
tunisiana ter derrubado o ditador do país.
Asmaa disse: “Estou fazendo este vídeo para lhes dar uma simples mensagem. Queremos ir à Praça
Tahrir dia 25 de janeiro. Iremos ali para exigir nossos direitos humanos fundamentais. Simplesmente
queremos nossos direitos humanos e nada mais. Eu irei à praça no dia 25 de janeiro e distribuirei
panfletos nas ruas. Não vou me autoimolar. Se as forças de segurança quiserem me tocar fogo, que
venham e o façam. Se te considera um homem, vem comigo no dia 25 de janeiro”.
Sua convocação para a ação foi outra chispa. Desde a internet, as pessoas começaram a se organizar nos
bairros, superando a barreira digital com panfletos impressos e boca a boca. Em 25 de janeiro, primeiro
dia épico do protesto, Asmaa Mahfouz publicou outra mensagem em vídeo: “O que aprendemos ontem
é que somos nós que temos o poder, não os capangas armados. O poder está na unidade e não na
divisão. Ontem vivemos os melhores momentos de nossas vidas”.
Na primeira semana de protestos se quebrou o que muitos denominam “a barreira do medo”. Desde o
dia 28 de janeiro, quando começou a violenta ofensiva do governo, segundo a Human Rights Watch,
pelo menos 302 pessoas foram assassinadas no Cairo, Alexandria e Suez.
O presidente Obama continua insistindo em que os EUA não podem escolher o líder do Egito e que cabe
ao povo egípcio fazê-lo. É verdade. Mas o governo de Obama continua garantindo ajuda econômica e
militar ao regime de Mubarak. O selo “Made in USA” estampado nas latas de gases lacrimogêneos
utilizadas contra os manifestantes na Praça Tahrir enfureceu o povo que lá estava. Nos últimos trinta
anos, os EUA gastarão bilhões de dólares para apoiar o regime de Mubarak. É preciso deter agora
mesmo o fluxo de dinheiro e de armas.
11/02/2011
Celso Amorim: “É preciso respeitar a decisão do povo de cada país”
Em entrevista exclusiva à Carta Maior, o embaixador Celso Amorim, ex-ministro das Relações
Exteriores do Brasil, analisa os recentes acontecimentos no Oriente Médio e norte da África e suas
possíveis repercussões. O ex-chanceler chama a atenção para o fato de que as revoltas populares
ocorrem em países considerados “amigos do Ocidente” que não eram alvo de nenhum tipo de crítica
ou sanção. “Há algumas lições a serem tiradas destes episódios. A primeira delas é que é preciso
respeitar os movimentos internos e não querer impor mudanças a partir de fora”, diz Amorim,
defendendo a postura adotada pela diplomacia brasileira nos últimos anos.
Marco Aurélio Weissheimer
70
- “Há algumas semanas, se fosse realizada uma consulta entre especialistas em política internacional
pedindo que apontassem dez países que poderiam viver proximamente uma situação de conflito
político-social, duvido que algum deles apontasse a Tunísia”.
O embaixador Celso Amorim, ministro de Relações Exteriores do Brasil por mais de oito anos (dois
mandatos do governo Lula e mais um período no governo Itamar Franco), iniciou a conversa telefônica,
direto da embaixada do Brasil em Paris, chamando a atenção para a complexidade e o dinamismo do
cenário internacional e para o baixo nível de conhecimento que se tem sobre a situação de muitos países.
Em entrevista exclusiva à Carta Maior, concedida no início da tarde desta sexta-feira, Celso Amorim
analisa os recentes acontecimentos no Oriente Médio e no norte da África e suas possíveis repercussões.
Como que para ilustrar o dinamismo mencionado por Amorim, quando a entrevista chegou ao fim,
Hosni Mubarak não era mais o presidente do Egito.
Na entrevista, o ex-chanceler brasileiro chama a atenção para o fato de que as revoltas populares que o
mundo assiste agora, especialmente na Tunísia e no Egito, acontecem em países considerados “amigos
do Ocidente” que não eram alvo de nenhum tipo de sanção por parte da comunidade internacional. “Isso
mostra que a posição daqueles que defendem sanções contra o Irã é equivocada”, avalia. Amorim
acredita que uma mudança política no Egito terá impacto em toda a região, cuja extensão ainda é difícil
de prever. E defende a política adotada pelo Brasil nos últimos anos apostando na capacidade de diálogo
do país, reconhecida e requisitada internacionalmente.
CARTA MAIOR: Qual sua avaliação sobre a rebelião popular no Egito e seus possíveis
desdobramentos políticos e geopolíticos na região?
CELSO AMORIM: Uma primeira característica que considero importante destacar é que os protestos
que estamos vendo agora são movimentos endógenos. É claro que eles se valem de novas tecnologias e
de alguns valores modernos, mas são motivados pela situação interna destes países. O Egito e a Tunísia,
cabe assinalar também, não estavam sob sanções por parte do Ocidente. Isso mostra que a posição
daqueles que defendem sanções contra o Irã é equivocada. Sanções só reforçam internamente um
regime. Uma das expectativas das sanções contra o Irã era atingir a Guarda Revolucionária. Na verdade,
só atingem o povo. O Iraque foi submetido a sanções durante anos e Saddam só ficava mais forte. Não
havia, repito, sanções contra a Tunísia e o Egito, países considerados amigos do Ocidente e aliados
inclusive na guerra contra o terrorismo, implementada pelos Estados Unidos.
Acredito que uma mudança política no Egito terá certamente um impacto em toda região, podendo
inclusive provocar uma mudança de relacionamento com países como Israel e Síria. Mas isso dependerá
da evolução dos acontecimentos.
CARTA MAIOR: A sucessão de acontecimentos semelhantes em países do Oriente Médio e do Norte da
África já pode ser considerada como uma onda capaz de expandir para outros países também?
CELSO AMORIM: Potencialmente, sim. Mas é difícil prever. Depende dos desdobramentos do Egito.
Não há dúvida que Mubarak sairá [enquanto concedia a entrevista, a renúncia do ditador egípcio foi
confirmada]. A questão é saber como ele sairá. Certamente haverá uma mudança no regime político do
Egípcio. Não sabemos ainda em que intensidade. Mas é importante ter em mente que as duas forças
organizadas no país são as forças armadas e a Irmandade Islâmica. A Irmandade Islâmica não é nenhum
bicho papão. Cabe lembrar que muita gente tem citado a Turquia (que tem um partido islâmico no
poder) como um modelo de caminho possível para o Egito.
A influência dos acontecimentos no Egito deve se manifestar em ritmos e intensidades diferentes,
dependendo da realidade de cada país. Como a Tunísia nos mostrou, é preciso esperar o inesperado.
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CARTA MAIOR: A diplomacia ocidental foi pega de surpresa por esses episódios?
CELSO AMORIM: Certamente que sim. O próprio presidente Obama admitiu isso ao falar dos
relatórios dos serviços de inteligência dos Estados Unidos. Ninguém estava esperando o que aconteceu
na Tunísia que acabou servindo de estopim para outros países como Yemen e Egito. Nos mais de oito
anos que trabalhei como chanceler nunca ouvi uma palavra de crítica sobre a Tunísia. E alguns
conceitos fracassaram. Entre eles o de que se o país é pró-ocidental é necessariamente bom. Os Estados
Unidos seguem poderosos no cenário internacional, mas frequentemente superestimam essa influência.
Há algumas lições a serem tiradas destes episódios. A primeira delas é que é preciso respeitar os
movimentos internos e não querer impor mudanças a partir de fora. As revoltas que vemos agora (na
Tunísia e no Egito) iniciaram dentro destes países contra governos pró-ocidentais e não nasceram com
características antiocidentais ou anti-imperialistas.
CARTA MAIOR: O Oriente Médio é hoje uma das regiões mais conflituosas do planeta. Os levantes
populares que estamos vendo podem ajudar a melhorar esse quadro?
CELSO AMORIM: Creio que teremos agora um quadro mais próximo da realidade. Há uma certa
leitura simplificada do Oriente Médio que não leva em conta o que o povo desta região pensa. Não é
possível ignorar a existência de organizações como a Irmandade Islâmica ou o Hamas. Se ignoramos
fica muito difícil traçar uma estratégia que leve a uma paz estável.
CARTA MAIOR: O jornalista israelense Gideon Levy escreveu ontem no Haaretz dizendo que o Oriente
Médio não precisa de estabilidade, referindo-se de modo à crítica à suposta estabilidade atual, que
seria, na verdade, sinônimo de pobreza, desigualdade e injustiça. Qual sua opinião sobre essa
avaliação?
CELSO AMORIM: De fato, a desigualdade social é uma das causas muito fortes dos problemas que
temos nesta região. É um fermento muito grande para revoltas. A verdadeira estabilidade não se resume
a ter um determinado governante no poder. Não basta ter eleição. É preciso aceitar o resultado da
eleição. Estamos falando de uma região muito complexa, com sentimentos anticoloniais muito fortes.
Esse quadro exige uma flexibilidade muito grande e capacidade de diálogo com diferentes
interlocutores.
CARTA MAIOR: Qual sua análise sobre a evolução dos acontecimentos no Oriente Médio à luz da
política externa praticada durante sua gestão no Itamaraty?
CELSO AMORIM: Como referi antes, nós procuramos manter uma relação ampla com diferentes
interlocutores. As críticas que sofremos vieram mais da mídia brasileira do que de outros países. Nossa
política em relação ao Irã, por exemplo, não foi para mudar esse país. O objetivo era contribuir para a
paz, tentando encontrar uma solução para a questão nuclear. Quem mudou de ideia no meio do caminho
foram os Estados Unidos. O próprio El Baradei (ex-diretor geral da Agência de Energia Atômica), que
agora voltou a cena no Egito, chegou a dizer, comentando a Declaração de Teerã, que quem estava
contra ela é porque, no fundo, não aceitava o sim como resposta.
Acredito que nós precisamos de países com capacidade de ver o mundo com uma visão menos
maniqueísta. Agora, todo mundo está chamando Mubarak e Ben Ali de ditadores. Até bem pouco tempo
não assim. A maioria da imprensa internacional não os chamava de ditadores. O importante é saber
respeitar a vontade e a decisão do povo de cada país. O Brasil tem essa capacidade reconhecida
mundialmente. Várias vezes fomos requisitados para ajudar na interlocução entre países. O primeiro72
ministro israelense, Benjamin Netanyahu, por exemplo, nos pediu para ajudar a retomar o diálogo com a
Síria. O Brasil tem essa capacidade de diálogo que não demoniza o outro. Essa é a pior coisa que pode
acontecer na relação entre os países: demonizar o outro. Não se pode, repito, ignorar a presença da
Irmandade Islâmica ou do Hamas. Podemos não gostar destas organizações. Isso é outra coisa. Mas
estamos que estar prontos para conversar.
Espero que o Brasil faça jus às expectativas que existem sobre ele, sobre sua capacidade de diálogo e
interlocução. Não se trata de mania de grandeza. Nós temos essa capacidade de diálogo e ela é
requisitada. Seguramente o Brasil tem a possibilidade, e eu diria mesmo a necessidade, de ter essa
participação e ajudar a construir a paz. Até porque esses fatos nos afetam diretamente. Basta ver o preço
do petróleo que está aí aumentando em função dos conflitos.
12/02/2011 |
A estranheza da democracia
A crise no Egito evidenciou a dificuldade de adaptação aos novos tempos da diplomacia das grandes
potências, especialmente dos EUA, a novas situações e grupos políticos emergentes que demandam a
transição da democracia do discurso para a prática. Presa a paradigmas de “bem e mal” da Guerra
Fria, esta diplomacia é capaz de oferecer “discursos históricos” ao lado da mais conhecida repressão
e boicotes, acomodando-se a situações que lhe parecem de baixo custo. Mubarak, neste sentido,
representava, segundo estes cálculos, um baixo custo, diante de um Oriente Médio conturbado e
desorganizado pela estagnação política. O artigo é de Cristina Soreanu Pecequilo.
Cristina Soreanu Pecequilo
Um dos termos mais utilizados na retórica da política internacional, ao lado de paz e guerra, é
democracia. Traduzida e manipulada pelos mais diferentes interesses e grupos políticos, a palavra pode
ser levada a extremos como ao justificar a invasão norte-americana ao Iraque em 2003 ou a Guerra
Contra o Terror de 2001 do Afeganistão em 2001. Para os Estados Unidos (EUA), trata-se de motivação
de uso corrente para legitimar intervenções externas para o seu público interno e que ultrapassa
fronteiras. Mesmo com o patente unilateralismo de George W. Bush, alguns veículos e analistas
chegaram a definir este momento como o início de uma “Primavera dos Povos” para o Oriente Médio,
similar a 1989 na Europa Oriental.
Esvaziada pela realidade, que levou ao fracasso desta manipulação, esta “Primavera” de 2003,
reapareceu novamente no Oriente Médio sob o signo da retórica norte-americana. No Cairo, em 2009,
Barack Obama pronunciou um de seus muitos discursos classificado como “histórico”. A reconstrução
73
estratégica da região, o renascimento do processo de paz, o diálogo entre civilizaçõe e a recuperação dos
laços dos EUA com seus parceiros locais e novos parceiros a serem conquistados foram anunciados
como prioridades da política externa. Este e outros pronunciamentos de teor similar na África e na Ásia
foram considerados motivos para a concessão do Prêmio Nobel da Paz a Obama naquele mesmo ano.
Poucos foram os que apontaram os paradoxos que envolviam tal discurso: sua realização no Egito,
governado a mais de três décadas por Hosni Mubarak de forma autoritária, e a recuperação do “diálogo
entre civilizações” lançada originalmente por Mohammad Khatami, Presidente do Irã de 1997 a 2005.
Eleito pelo voto popular, o reformista Khatami fez esforços significativos para reaproximação do Irã
com o Ocidente, mas que foi rechaçado pelos conservadores norte-americanos, mesmo com a política de
descongelamento parcial do Presidente Bill Clinton e da Secretária de Estado Madeleine Albright.
Apesar de definido como o “Gorbachev do Oriente” em alusão a glasnost e a perestroika soviética de
liberalização econômica , a iniciativa foi ofuscada pelo choque das civilizações do Ocidente contra o
resto de Samuel P. Huntington.
Mais uma vez, a democracia para o mundo árabe surgia de forma intercambiável, i.e, condicionada a
interesses de segurança e preocupações geopolíticas dos EUA, e de seus aliados mais próximos como
Israel. A visão ignorada de Khatami era revitalizada pela retórica da hegemonia, mas limitada pela
realidade de poder que definia o que era democracia e qual o seu alcance: ou seja, a democracia que
impede o acesso ao processo de grupos definidos como fundamentalistas pelos que estão no governo ou
por ingerência externa. Em alguns, prática aceita como no Egito, Argélia e outros aliados, e em outros,
criticada e deslegitimada (Irã, Autoridade Palestina, Líbano).
Obama nada mais fazia do que reafirmar a clássica política norte-americana de “tolerar o mal para
alcançar o bem”, conforme definida pelo historiador John Lewis Gaddis (1998) quando, na Guerra Fria,
os EUA optaram por apoiar ditadores e golpes contra governantes democraticamente eleitos em nome
do combate ao comunismo. O mal continua sendo entendido como regimes autoritários, nos quais a
democracia é permeável a interesses de preservação do status quo. O bem, a democracia, é o objetivo
final, mas como um modelo fechado de soluções e regras que serão definidas pelo contexto e as
necessidades de determinados grupos no poder. A Primavera, no caso, não era, e não seria, mais uma
vez para todos.
Todavia, o tensionamento interno nestas sociedades impediu a continuidade destas transições
controladas e políticas de acomodação, repetindo um fenômeno que já se fez presente na América
Latina no século XXI: o da ampliação da participação popular e de pressões sobre os governos
estabelecidos, visando a sua correção de rumos para maior inclusão social ou o término de regimes
autoritários. Apesar de definida como polarizada e anti-democrática pelos críticos e opositores, a
transformação latino-americana está ocorrendo via sistema político depois de muitos anos de quebra
institucional. Ao trazer ao poder segmentos antes excluídos com a eleição de Luis Inácio Lula da Silva
no Brasil, Hugo Chavéz na Venezuela, Evo Morales na Bolívia e Rafael Correa no Equador, somente
para citar alguns, os regimes adaptam-se, não sem crises, mas demonstram sua vitalidade. Na África
tendências similares são observadas, assim como a preocupação em alcançar soluções autóctones para
problemas do continente, sem ingerências externas.
A eclosão da revolta no mundo árabe representa mais um capítulo nesta busca de voz e autonomia.
Como se pode ver pelo movimento no Egito, e mesmo nos protestos que se seguiram à reeleição de
Ahmadinejad no Irã, existe uma razoável dificuldade em que este ciclo de reivindicações seja absorvido
pelo sistema político. A somatória de resistências internas à demanda geopolítica externa, que
intensifica situações de ingerência e temores de perda de soberania, gera situações limite.
74
Pensando no Egito, o apoio norte-americano a Mubarak somente diminuiu com o agravamento da
situação interna. A partir do momento em que se solidificou a percepção de que sua permanência no
poder tornou-se insustentável, os EUA, via Departamento de Estado e Casa Branca, sinalizaram à
Mubarak a necessidade de sua saída, recompondo alianças com as Forças Armadas. A intensificação dos
protestos subestimados pelos EUA, somente demonstrou o equívoco em dar sustentabilidade ao regime
de Mubarak, em particular nos últimos anos, apesar da piora da situação econômica e dos impasses
políticos.
A presença cada vez mais ostensiva dos EUA no Oriente Médio, com as Guerras do Afeganistão e
Iraque, a pressão sobre o Irã, o fracasso do processo de paz com os palestinos, a condescendência com
Israel, também é um componente que perpassa este movimento. Estes fatores somente serviram para
agravar o sentimento anti-ocidental na região, revitalizando o desejo de nacionalismo, identidade e
independência que tinham sido o motor do processo de descolonização nos anos 1950/1960 e que se
encontravam latentes nestas sociedades.
A crise no Egito evidenciou a dificuldade de adaptação aos novos tempos da diplomacia das grandes
potências, especialmente dos EUA, a novas situações e grupos políticos emergentes que demandam a
transição da democracia do discurso para a prática. Presa a paradigmas de “bem e mal” da Guerra Fria,
esta diplomacia é capaz de oferecer “discursos históricos” ao lado da mais conhecida repressão e
boicotes, acomodando-se a situações que lhe parecem de baixo custo. Mubarak, neste sentido,
representava, segundo estes cálculos, um baixo custo, diante de um Oriente Médio conturbado e
desorganizado pela estagnação política e intervenções.
Desde a assinatura dos Tratados de Paz entre Israel e Egito em Camp David, 1979, o país deixara de ser
uma fonte de crise estratégica para tornar-se aliado e uma preocupação geopolítica “a menos” tanto para
Israel quanto para os EUA. Não só os EUA, mas Israel, Mubarak e outros países do mundo árabe
acomodaram-se em situações conhecidas, fossem elas democráticas ou autoritárias. Ao invés de
preparar uma transição gradual que garantisse e avançasse estes processos, dando-lhes sustentabilidade,
a opção foi a da continuidade.
Na prática, isto significou a paralisia da democracia nestas sociedades e mesmo o retrocesso das
negociações de paz na região, que colocou em xeque a manutenção do poder. A regra do Egito aplicouse a outras nações aliadas como Jordânia e na península arábica, ignorando-se sinais de insatisfação.
Frente ao efeito demonstrativo das manifestações egípcias e seu desfecho com a saída de Mubarak, a
tática para estas nações também se alterou: as orientações passaram a ser não mais de resistência, mas
de reacomodação e atualização.
Enquanto isso, no Egito, algumas palavras, além da democracia, tornaram-se chave: transição, paz e
estabilidade, pregando a tolerância pouco exercida pelo regime anterior. Nas entrelinhas, uma
democracia “comportada” e que não quebre os compromissos prévios principalmente no campo do
processo de paz e que deixa em aberto a pergunta: o que fará a diplomacia norte-americana caso os
resultados de futuras eleições no Egito tragam ao poder grupos considerados como pouco confiáveis? O
apoio permanecerá às Forças Armadas, responsáveis pela transferência de poder pós-Mubarak caso
estas não consigam sustentar sua influência política? Ou haverá apoio ao novo governo, independente
de qual for, reiterando a idéia do “diálogo”?
Estas são perguntas sem resposta. O que é definido por alguns como turbulência é, na realidade, o
renascimento dos povos. Um renascimento que deixa bastante claro que o núcleo dinâmico da política
está nas periferias do mundo em desenvolvimento. O clamor é pela democracia ocidental, que, nos
Estados que mais a utilizam como discurso, encontra-se estagnada como procedimento em meio às
polarizações, perda de valores, radicalismos e xenofobia. Do mundo árabe ao americano, passando pelo
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africano, o principal desafio destes novos grupos quando no poder será o de não reproduzir estes erros e
os de seus antecessores, dando continuidade à reforma. Este não é um processo fácil, e, por vezes, até
por uma razão de sobrevivência, alguns regimes poderão recorrer a práticas que hoje criticam, devendo
ser igualmente questionados.
Neste caminho, devemos nos perguntar por que algo que aparece com tanta freqüência no senso comum
e nos discursos, como “a democracia”, causa tanto desconforto quando associada às demandas por
maior participação política de correntes definidas como “diferentes” e “preocupantes”, da Irmandade
Muçulmana egípcia, ao socialismo de Chavéz ou mesmo as políticas de inclusão social aqui no Brasil.
Afinal, é nesta suposta estranheza da democracia que reside seu valor, princípio e promessa.
(*) Professora de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)
13/02/2011 |
Oriente Médio: O fantasma da revolução
No início da revolução iraniana em 1979, havia intenso apoio das potências capitalistas aos
movimentos radicais islâmicos em todo o grande Oriente Médio e Ásia Central com o intuito de
provocar aquilo que se convencionou chamar "arco de crise". O objetivo maior, claro, era atingir as
regiões muçulmanas da União Soviética. De maneira análoga, pode-se dizer que, 32 anos depois, as
revoltas populares na Tunísia, no Egito, Argélia e Iêmen podem ser os sinais iniciais de um novo “arco
de crise”, mas agora de autênticas revoluções que poderão varrer o Grande Oriente Médio. O artigo é
de Reginaldo Nasser.
Reginaldo Nasser
Há um medo crescente alimentado, em grande parte, pelas elites conservadoras do Ocidente e do
Oriente de que futuros acontecimentos no Egito poderão trilhar os mesmos caminhos da revolução que
aconteceu no Irã em 1979 tais como: elegeu Israel como o grande inimigo, se envolveu em ações
antiamericanas no mundo inteiro, privou as mulheres e as minorias dos seus direitos (como se tivessem
direitos sob a ditadura de Mubarak). Numa região repleta de exemplo de ações armadas que atemorizam
Israel, EUA e aliados ajudou a criar a imagem de que a melhor forma de combater ativistas islâmicos (
falsos ou verdadeiros) é uma ditadura secular.
No entanto é importante lembrar que, logo no início da revolução iraniana em 1979, havia intenso apoio
das potências capitalistas aos movimentos radicais islâmicos em todo o grande Oriente Médio e Ásia
Central com o intuito de provocar aquilo que se convencionou chamar "arco de crise". O objetivo maior,
claro, era atingir as regiões muçulmanas da União Soviética, um regime materialista e ateu, de “vital
importância para os EUA cujo centro de gravidade é o Irã” como afirmou à época Zbigniew Brzezinski
(assessor segurança nacional do presidente Carter). O caos político resultante poderia facilitar a
incorporação do american way of life nos inimigos de seus inimigos.
76
De maneira análoga, pode-se dizer que, 32 anos depois, as revoltas populares na Tunísia, no Egito,
Argélia e Iêmen podem ser os sinais iniciais de um novo “arco de crise”, mas agora de autênticas
revoluções que poderão varrer o Grande Oriente Médio. Diante de tais fatos, tal como todos outros
governos norte-americanos anteriores, Obama, inicialmente preferiu ficar ao lado de seu “aliado leal”
contra um movimento que levou a fundo a retórica dos direitos humanos presente em seu discurso no
Cairo em 2009. Diga-se, é verdade, que esses momentos revelam a essência da decisão na política
externa dos EUA que vai muito além da órbita do presidente da república. Apesar da celebração ritual
da sociedade civil, autoridades dos EUA (militares, agências de inteligência e lobbies no congresso)
sempre mantiveram fortes ligações com regimes repressivos e nunca mantiveram qualquer tipo de
contato com os principais grupos oposicionistas.
Não há como negar que a religião é um fundamento essencial de identidade dos povos e um componente
crucial da dinâmica de desenvolvimento das sociedades, em geral, e do mundo islâmico de forma
particular. Contudo, tal como observou o professor Mark Levin, as fotos estampadas na grande mídia
dos EUA podem ajudar-nos a entender melhor as diferenças entre os dois momentos revolucionários.
No início de 1979 as imagens dos jovens eram de exuberância revolucionária, aliadas a um sentimento
raiva, supostamente alimentada por um fervor religioso, isso soou tão estranho para um cidadão norteamericano que parecia vir de um outro planeta. Já as fotos da praça Tahrir mostram mulheres e jovens,
seculares e religiosos, curvando-se em orações diante dos blindados militares. Uma espécie jihad
pacífica que sempre existiu, mas que não tinha os holofotes da mídia para mostrá-la.
Com criatividade e ousadia e mesmo diante das inúmeras provocações e assassinatos mantiveram-se
determinados a não usar a violência. Suas táticas foram amplas mobilizações, aproximação com as
forças armadas, paralisações de trabalhadores e uso das redes sociais que permitiu que o mundo inteiro
fosse capaz de seguir suas batalhas em tempo real. Já a determinação em reprimir e, sobretudo, o
desprezo pela forma pacífica e democrática de expressar opiniões, era evidente no início da Revolução
Iraniana de 1979 onde vários grupos que defendiam a liberdade de imprensa e os direitos das minorias
foram coagidos por verdadeiras gangues armadas.
No Egito, não há nenhuma figura carismática de estatura do aiatolá Khomeini. Ao contrário do clero
xiita no Irã, a Irmandade Muçulmana não tem uma base em uma organização clerical. Apesar de contar
com setores conservadores, não estão envolvidos em debates sobre o uso do véu ou de outros
comportamentos religiosos, mas sim em questões envolvendo corrupção, desemprego, liberdade política
e violações dos direitos humanos. Nesse sentido, diferentemente do Irã a possibilidade de mobilizar a
maioria dos egípcios em torno de uma agenda de reformas é maior.
Observar o que vai acontecer no Egito nas próximas semanas é como assistir um teatro das sombras em
que apenas alguns dos atores estão sob um foco de luz e outros vão saindo aos poucos. Entretanto,
podemos antecipar e destacar que islâmico ou secular, o novo governo poderá – espero que sim - recusar
a adotar incondicionalmente os métodos adotados pelos EUA e a Europa na guerra contra o terror sem
que isso signifique ser partidário de Bin Laden. Por sua vez, não afrontar Israel não significa, por outro
lado, necessariamente qualquer tipo de concordância com a política de ocupação dos territórios
palestinos. E, finalmente, um novo governo poderá também questionar se para manter a tão aclamada
estabilidade política na região é necessário gastar bilhões de dólares em equipamentos militares.
De toda forma restar ver como os militares e as elites dirigentes que agora comandam a transição vão
descobrir uma maneira de conviver com este novo cenário. Nesses momentos cruciais sempre é bom
lembrar alguém que entendia de revoluções ( Marx) que certa feita fez a seguinte advertência: “As
criadas políticas da França estão varrendo a lava ardente da revolução com vassouras velhas, e discutem
entre si enquanto executam sua tarefa”.
77
(*) Professor de Relações Internacionais da PUC-SP
13/02/2011
Mubarak se foi e todos festejaram sua derrubada
Os árabes, difamados, amaldiçoados, abusados racialmente no Ocidente, tratados como atrasados e
sem educação por muitos dos israelenses que queriam manter o governo às vezes selvagem de
Mubarak, decidiram se rebelar, abandonaram seu temor e derrubaram o homem que o Ocidente
considerava um líder “moderado” que fazia o que quisessem a um preço de 1,5 bilhões de dólares por
ano. Não são apenas os europeus do leste que podem tolerar a brutalidade. O artigo é de Robert Fisk.
Robert Fisk - Página/12
De repente todos começaram a cantar. E a rir, chorar, gritar e rezar, ajoelhando-se na rua e beijando o
pavimento sujo na minha frente, dançando a agradecendo a Deus por livrá-los de Hosni Mubarak – um
gesto generoso, pois foi sua coragem mais do que a intervenção divina o que livrou o Egito de seu
ditador. Era como se cada homem e mulher fossem recém-casados, como se a alegria pudesse apagar
todas as décadas de ditadura, dor, repressão, humilhação e sangue. Para sempre se conhecerá a
Revolução Egípcia de 25 de janeiro – o dia que começou a revolta – e para sempre será a história do
povo quer ressuscitou.
O velho tinha se ido finalmente, entregando o poder não ao vice-presidente, mas sim – curiosamente,
ainda que os milhões de revolucionários não violentos não estivessem em condições de apreciar isso à
noite – ao conselho do exército do Egito, a uma marechal de campo e um monte de generais,
garantidores por ora de tudo pelo qual os manifestantes pró democracia tinham lutado e, em alguns
casos, morrido. E até os soldados estavam feridos. No momento mesmo em que a renúnica de Mubarak
se expandia como fogo entre os manifestantes no lado de fora da estação de televisão estatal no Nilo, o
rosto de um jovem oficial explodiu de alegria. Todos os dias, os manifestantes disseram aos soldados
que eram irmãos. Bem, veremos se isso é verdade.
Falar de um dia histórico de alguma maneira não expressa a verdade sobre o que vitória da noite de
sexta realmente quer dizer para os egípcios. Com o mero poder da vontade, com coragem frente à
odiosa polícia de segurança de Mubarak, com a compreensão de que às vezes é preciso lutar para
derrubar um ditador com algo mais do que palavras e facebooks, com o ato de lutar com punhos e
pedras contra policiais com armas, gás lacrimogêneo e balas de chumbo, conseguiram o impossível: o
fim – e devem pedir ao seu Deus que seja permanente – de quase 60 anos de autocracia e repressão, 30
deles com Mubarak. Os árabes, difamados, amaldiçoados, abusados racialmente no Ocidente, tratados
como atrasados e sem educação por muitos dos israelenses que queriam manter o governo às vezes
selvagem de Mubarak, decidiram se rebelar, abandonaram seu temor e derrubaram o homem que o
Ocidente considerava um líder “moderado” que fazia o que quisessem a um preço de 1,5 bilhões de
dólares por ano. Não são apenas os europeus do leste que podem tolerar a brutalidade.
78
O fato de que este homem – menos de 24 horas antes – tivesse anunciado em um momento de loucura
que queria proteger seus “filhos” do “terrorismo” e que permaneceria em algumas funções do governo,
fez com que a vitória fosse muito mais valiosa. Na quinta-feira à noite, os homens e mulheres que
exigiam democracia no Egito brandiam seus sapatos no ar para mostrar sua falta de respeito pelo
decrépito líder que os tratava como crianças, incapazes de dignidade política e moral. Logo, no dia
seguinte, ele simplesmente fugiu para Sharm el Sheik, um lugar de descanso de estilo ocidental às
margens do Mar Vermelho, um lugar que tem tanto em comum com o Egito quanto Marbella ou Bali.
Assim, a Revolução Egípcia estava à noite nas mãos do exército do país, enquanto uma série de
declarações confusas e contraditórias do exército indicavam que os marechais de campo, os generais e
os brigadeiros do Egito competiam entre si pelo poder nas ruínas do regime de Mubarak. Israel, de
acordo com várias famílias importantes do Cairo, tratava de persuadir Washington para que promovesse
seu egípcio favorito – o ex “capo” dos serviços de inteligência e vice-presidente Omar Suleimán – para
a presidência, enquanto que o marechal de campo Tantawi, ministro da Defesa, queria que seu chefe de
Estado Maior, o general Sami Anan, governasse o país.
Quando Mubarak e sua família foram enviados para Sharm el Sheik, na tarde de sexta-feira, só se
confirmou que sua presença era mais irrelevante do que provocativa. As centenas de milhares de
manifestantes na praça Tahrir sentiam po cheiro da mesma decadência de poder e até Mohamed el
Baradei, o ex-inspetor de armas da ONU e ambicioso Prêmio Nobel, anunciou que o “Egito ia explodir”
e que “o exército devia salvar o país”.
Os analistas falam de uma “rede” de generais dentro do regime, ainda que ela seja mais uma teia de
aranha, com uma série de altos oficiais competitivos cuja própria fortuna pessoal e privilégios
zelosamente guardados foram ganhos por servir ao regime, cujo líder de 83 anos agora aparece tão
demente como senil. A saúde do presidente e as atividades dos milhões de manifestantes pró democracia
no Egito são, portanto, menos importantes que as selvagens lutas internas do exército.
Mas, embora tenham se desligado do presidente, o alto comando do exército está formado por homens
da velha ordem. A maioria dos oficiais de patente mais alta do exército foi absorvida pelo núcleo do
poder do regime. Durante o último governo de Mubarak, o vice-presidente era um general, o primeiro
ministro era , o vice-primeiro ministro era um general, o ministro da Defesa era um general e o ministro
do Interior era um general. O próprio Mubarak era comandante da força aérea. O exército levou Nasser
ao poder e apoiou o general Anwar Sadat. Apoiou o general Mubarak. O exército introduziu a ditadura
em 1952 e, agora, os manifestantes acreditam que se converterá na agência da democracia. Haja
esperança!
Portanto – tristemente – o Egito é o exército e o exército é o Egito. Ou, pelo menos, é essa imagem que
se procura transmitir. Por isso deseja controlar, ou “proteger”, como reiteram constantemente os
comunicados do exército – os manifestantes pedindo que Mubarak se vá. Mas as centenas de milhares
de revolucionários democráticos do Egito – furiosos pela negativa de Hosni Mubarak de abandonar a
presidência na quinta à noite – começaram seu próprio golpe militar no Cairo no dia seguinte,
ultrapassando os limites da praça Tahrir, não só na direção do edifício do Parlamento, mas também para
as margens do Nilo, onde está a televisão estatal e as centrais de rádio, e por onde passa a estrada que
leva à luxuosa residência de Mubarak no caro bairro de Heliopolis. Milhares de manifestantes em
Alexandria chegaram às portas de um dos palácios de Mubarak, onde a guarda presidencial entregava
água e comida em dócil gesto de “amizade” para com o povo. Os manifestantes também tomaram a
praça Talaat Haab no centro comercial do Cairo, enquanto centenas de professores das três principais
universidades da cidade marchavam para Tahrir pela manhã.
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Após a fúria expressa durante a noite pelo paternalista e profundamente insultante discursos de Mubarak
– quando falou enormemente sobre si mesmo e seu serviço na guerra de 1973 e se referiu só vagamente
aos deveres que supostamente deveria passar para seu vice-presidente, Omar Suleimán -, as
manifestações da sexta começaram em meio a um clima de humor e de uma extraordinária civilidade.
Se os partidários de Mubarak esperavam que sua quase suicida decisão de quinta-feira provocaria a
violência dos milhões de manifestantes pela democracia em todo o Egito, estavam equivocados: ao
redor do Cairo, os jovens homens e mulheres que eram a base da Revolução Egípcia se comportava com
a moderação que o presidente Obama havia pedido no dia anterior. Em muitos países, teriam queimado
edifícios do governo após o desmedido discurso presidencial de Mubarak; na praça Tahrir, leram poesia.
E logo escutaram que seu desgraçado antagonista tinha ido embora.
Mas o verso árabe não ganha revoluções e cada egípcio sabia, na sexta-feira, que a iniciativa não estava
mais com os manifestantes do que com a remota e ligeiramente demente figura do ex-ditador. Pois o
futuro corpo político do Egito está composto por até cem oficiais, cuja antiga fidelidade a Mubarak
agora foi abandonada totalmente. Um comunicado militar divulgado sexta pela manhã – e lido,
curiosamente, por um apresentador civil na tv estatal – pedia “eleições livres e justas”, acrescentando
que as forças armadas egípcias estavam “comprometidas com as demandas do povo”, que deveria
“reassumir sua forma normal de vida”. Traduzindo para a linguagem civil, isso significa que os
revolucionários deviam parar enquanto um círculo de generais divide entre si os ministérios do novo
governo. Em alguns países, isso se chama “golpe de Estado”.
14/02/2011 |
Egito - Três questões da transição
Enquanto os comandantes militares egípcios tentam que tudo volte à “normalidade” – à estagnação, no
entender de muitos –, os egípcios estão na luta para alcançar o extraordinário. a insistência dos
militares, que mantêm o governo de Ahmad Shafiq, construído por Mubarak para fazer a transição
levanta várias preocupações. A suspensão da Constituição é faca de dois gumes. É preciso perguntar
também por que os militares não se limitaram a cancelar as leis de exceção ou por que ainda não
libertaram sequer os presos durante as últimas três semanas. O artigo é de Marwan Bishara, editor de
Política da Al Jazeera.
Marwan Bishara - Al-Jazeera
No momento em que ares de mudança varrem o Egito e alguma mudança parece iminente na vida
política no mundo árabe, Marwan Bishara, principal editor de política da rede Al Jazeera, avalia a
velocidade e a eficácia da transição para a democracia.
Qual o risco de a transição não se completar no Egito?
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Decisões recentes do Conselho Supremo das Forças Militares, de dissolver o Parlamento que nada
representa e é resultado de eleições fraudadas, parece apontar para o desmantelamento do velho regime
e sinaliza a construção de novo regime.
Mas a insistência dos militares, que mantêm o governo de Ahmad Shafiq, construído por Mubarak para
fazer a transição levanta várias preocupações. A suspensão da Constituição também é faca de dois
gumes.
Se, por um lado, permite a formatação de uma nova constituição, também deixa os militares livres para
agirem como melhor lhes pareça, na defesa de seus específicos interesses, mais do que no interesse da
revolução.
É preciso perguntar também por que os militares não se limitaram a cancelar as leis de exceção ou por
que ainda não libertaram sequer os presos durante as últimas três semanas, antes até de que se cogite de
libertar todos os demais prisioneiros políticos.
Tudo isso chama a atenção para a importância de se manter a pressão sobre os militares, até que o
regime esteja completamente desmontado e convoque um novo governo para acompanhar a transição
até que que se façam eleições democráticas.
Hoje, é crucial que a pressão continue, para que se possa continuar a esperar por mudanças. Se é
indispensável trabalhar com os militares para promover mudança pacífica, também há o risco de
qualquer progresso ficar preso, refém dos interesses exclusivos dos próprios militares.
Os que tenham poder sobre os militares egípcios – o governo Obama, por exemplo, têm de forçar os
generais a agir como autênticos guardiões da revolução e da transição para uma democracia republicana.
Sem isso, há risco real de a revolta escapar completamente a qualquer controle, se os militares voltarem
às práticas – e aos negócios – de antes, enquanto esvaem-se o espírito da revolução e o potencial que
tem de alastrar-se para toda a região. Muitos têm muito a perder, se se consumarem as mudanças
históricas em andamento no Egito.
Quem mais perde com o sucesso da revolução egípcia?
No curto prazo, perdem todos os autocratas na Região, que certamente verão crescer a pressão contra
eles, na medida que se dissemine no mundo árabe e até no mundo muçulmano o espírito do poder das
massas. Também perdem os grupos como al-Qaeda, que aposta mais na violência que no poder do povo.
No longo prazo, perdem as três teocracias, ou governos baseados em fundamento religioso que há na
região – Israel, a Arábia Saudita e o Irã –, que podem ver sua legitimidade contestada, a favor da
legitimidade civil e democrática, na medida em que mais e mais pessoas se ergam em levante popular e
exijam o direito de serem governados como cidadãos e povos, sem qualquer imperativo superior de
religiões e seitas.
Um Egito unido, democrático e forte pode voltar a ter a influência que teve durante tanto tempo, de
liderança no mundo árabe. Facilmente eclipsará a Arábia Saudita, chamará a atenção de todos os árabes
para a ocupação israelense em terras árabes e ofuscará a ambição dos aiatolás iranianos, que aspiram a
liderar a região.
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Nenhum desses três regimes tem qualquer interesse em que a revolução egípcia seja bem sucedida,
digam o que disserem nas declarações públicas. Se tiverem meios para conter ou para abortar a
revolução egípcia, qualquer deles os usará, sem hesitar. Afortunadamente porém, as agendas
conflitantes, a animosidade e as diferenças que os separam impedirão que esses três regimes teocráticos
e autocráticos unam-se para conspirar contra a jovem revolução egípcia.
Como a revolução egípcia alcançará seus objetivos?
Para que o poder popular e a democracia alcancem o sucesso, é preciso que se mantenham firmes e
continuem a pressionar a favor das mudanças.
A aliança com os militares deve ser condicionada ao desempenho dos militares.
A revolução já fez muito, mas é preciso promover ainda muitas mudanças. Não é uma festa, a luta para
reverter décadas de estagnação, corrupção e nepotismo.
É indispensável fazer ver aos militares que o povo na rua não aceitará reformas cosméticas que induzem
à rendição e à passividade e diluirá o espírito revolucionário que empurra para mudanças, nem se
aceitará simples troca de nomes e cargos. Os militares têm de convencer-se de que terão de varrer da
mesa todas as soluções e meios antigos.
Só o espírito e a ânsia por mudança radical serão garantia confiável para as conquistas de agora e
impedirão que sejam perdidas ou desperdiçadas em cessões e concessões futuras. Nas palavras de um
republicano norte-americano: “o extremismo, na luta pela liberdade não é vício. A moderação na luta
pela justiça, não é virtude.”[1]
Os revolucionários egípcios afinal alteraram o antigo motto árabe “In-shallah”, se deus quiser, que
pressupõe inação e incapacidade para decidir. Hoje se ouvem mais gritos de “Ma-shallah” – “essa é a
vontade de deus” e é dever do povo fazê-la acontecer e respeitar.
Enquanto os comandantes militares egípcios tentam que tudo volte à “normalidade” – à estagnação, no
entender de muitos –, os egípcios estão na luta para alcançar o extraordinário.
[1] É frase de Barry Morris Goldwater, 1909-1998, senador pelo Arizona, candidato do Partido
Republicano às eleições presidenciais de 1964, em The Conscience of a Conservative (1960), p. 15
[NTs, com informações de http://en.wikiquote.org/wiki/Barry_Goldwater].
Texto original:
http://english.aljazeera.net/indepth/opinion/2011/02/2011214151133451212.html
15/02/2011 |
O Faraó, camelos e o Facebook
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Os cientistas e acadêmicos ocidentais, seguidos apressadamente pela mídia, sempre declararam a
inexistência de uma “opinião pública” no Mundo Árabe. Mesmo no Egito, onde uma poderosa elite e
uma importante classe média bem educada, falante de inglês, possuem raízes profundas, era negada
qualquer possibilidade de existência de uma “sociedade civil”.
Francisco Carlos Teixeira
Berlim. Os últimos acontecimentos no Egito, em especial os últimos 18 dias entre 25 de janeiro e 11 de
fevereiro colocam por terra algumas teses tradicionais das ciências políticas e da percepção política e
social do Mundo Árabe pela opinião pública ocidental. A tese, velha da Guerra Fria, sobre a pretensa
“excepcionalidade árabe”, da sua incapacidade para a democracia e, portanto, a aceitação alegre, pelo
Ocidente, de todo tipo de ditadura pós-colonial (claro, sendo pró–ocidental). Da mesma forma, a crença
na inexistência de uma opinião pública no mundo árabe, explicaria a ausência de democracia. Ambas as
teses devem, agora, ser severamente revistas.
O Egito de Hosni Mubarak
O Egito é um país central para o mundo árabe, para os muçulmanos em geral e para o equilíbrio no
Oriente Médio e no Mediterrâneo. Os últimos dados confiáveis – já que o censo demográfico, e
conseqüentemente o acesso à condição de eleitor, é um dado secreto, só sabido pelas forças de
segurança – dão ao país pouco mais de 80 milhões de habitantes, extremamente concentrados no Cairo e
na longa e estreita faixa fértil ao longo do Nilo. Isso faz do Egito o país árabe mais populoso do mundo
(o país muçulmano mais populoso é a Indonésia, logo seguida do Paquistão, países não-árabes). Ao
mesmo tempo a população egípcia é extremamente jovem. Cerca de 33% de todos os egípcios possuem
menos 15 anos de idade e a média nacional de idade é de 24 anos.
Temos aqui um primeiro dado que ilumina profundamente a revolta, e a conseqüente revolução, no país:
a extrema juventude da população, a maioria nascida quando Mubarak já era o raís – o líder e chefe – do
Egito. Estes jovens não são contemporâneos da Guerra dos Seis Dias, em 1967, e da Guerra do Yom
Kippur, de 1973, nas quais Hosni Mubarak conquistou suma fama de defensor da pátria. É em verdade
uma juventude marcada pela presença da globalização, dos meios eletrônicos e da busca de uma boa
carreira profissional e um padrão de vida melhor (a média salarial egípcia está em torno de 100 euros
mensais).
Contudo as vantagens param por aí: apenas 71% desta imensa população é alfabetizada, sendo que entre
as mulheres apenas 59% delas podem ler e escrever. Tal restrição não decorre, como rapidamente
poder-se-ia dizer no Ocidente, do Islã. Muitas mulheres egípcias ocupam postos importantes na
universidade, nos hospitais e nas escolas. Trata-se, em verdade, de deficiência do regime.
As reformas falhadas
A economia egípcia depende de uma agricultura tradicional, centrada na produção de algodão, arroz,
trigo aos quais se soma a indústria têxtil e a exploração do petróleo, apenas relevante. Contudo o
turismo e os direitos decorrentes do trânsito do Canal de Suez geram grande parte da riqueza do país e o
fato de serem atividades diretamente controladas pelo Estado são, também, fontes da ampla corrupção e
do enriquecimento ilícito da elite mantida pelo regime de Mubarak.
Mubarak buscou, desde a crise de 2008, “abrir” o país aos investimentos e aos capitais estrangeiros,
nomeando um ministério de tecnocratas altamente influenciados por um impiedoso neoliberalismo
tardio. Os resultados foram catastróficos. O deficit público atingiu 8% do PIB e o desemprego espraiouse por toda a população, atingido quase 10% da população ativa do país, enquanto a inflação saltava
para 12% ao ano. Assim, somava-se à ausência de democracia e a imposição do espetáculo da corrupção
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das elites, a pobreza crescente das populações. Não é de estranhar que o primeiro egípcio a se imolar
contra o regime Mubarak fosse um desempregado.
O Egito é, ainda, um dos mais importantes parceiros na “ajuda” militar dos Estados Unidos, logo abaixo
de Israel e pouco antes da Colômbia. A grande parceria entre Estados Unidos e Egito emergiu quando
Anwar Al-Sadat (o sucessor de Gamal Abdel Nasser e que governou entre 1970 e 1981) rompeu as
tradicionais relações com a então URSS, em 1972, expulsou milhares técnicos e militares russos, e
voltou-se para o Ocidente. Em troca de uma política externa “aceitável” para o Ocidente – ou seja,
garantia de segurança para Israel, manutenção da liberdade de navegação no Canal de Suez e
fechamento do acesso aos palestinos na região de Gaza – os EUA mantêm as FFAA do país em alto
nível de desempenho e com o equipamento necessário para dar aos militares egípcios o sentimento de
superioridade e segurança no Mundo Árabe.
A elite militar
O país, contudo, gasta 3.4% do seu PIB de U$ 500 bilhões com os militares, que formaram ao longo dos
trinta anos de regime Mubarak (1981-2011), uma elite muito acima dos níveis sociais do conjunto da
nação. O próprio marechal Mohamed Hussein Tantawi, de 75 anos, que acumulava o ministério da
defesa e a chefia das FFAA e agora é o chefe do Conselho Supremo que governa o Egito pós-Mubarak,
é parte desta elite gerada sob o regime e que se comportou ao longo dos últimos trinta anos como
garantidor do regime.
Mas, a burocracia estatal, em grande parte oriunda do Partido Nacional Democrático (de Mubarak),
mereceu bem mais críticas do que as FFAA. O alistamento militar massivo, como uma alternativa para
jovens rapazes mal preparados e sem esperanças no mundo profissional, além das histórias de heroísmo
na Guerra do Yom Kippur, garantiram grande popularidade aos militares.
A decisão de não reprimir a população revoltada na Praça da Libertação – na verdade uma tarefa
transferida para a polícia e os paramilitares - nos dias mais duros da revolta consolidou a popularidades
das FFAA. Contudo, o regime inaugurado dia 11 de fevereiro é, em verdade, uma brutal ditadura
militar, onde o Conselho Supremo Militar governa por decretos inapeláveis.
A esperança de uma transição pacífica para a democracia é, contudo, real e concreta. A proclamação do
Conselho Supremo Militar promete “eleições livres, novo marco constitucional e políticas de ajuda e
assistência social para a população”.
O marechal Tantawi (ao lado do chefe dos serviços secretos Omar Suleiman, o vice-presidente nomeado
por Mubarak no auge da crise), de 75 anos, o homem forte do novo regime, possui um longo histórico
de negociações com os americanos e os israelenses, servindo de garante para o status quo pós-1973 (ano
da Guerra do Yom Kippur). Não sem motivos, Tantawi fez contato, logo após assumir o poder no Cairo,
com Ehud Barak, ministro da defesa de Israel, para garantir – ao contrário do sentimento popular,
claramente pro-palestinos, que nada mudaria na política externa e de defesa do Egito.
A cólera das ruas
Os cientistas e acadêmicos ocidentais, seguidos apressadamente pela mídia, sempre declararam a
inexistência de uma “opinião pública” no Mundo Árabe. Mesmo no Egito, onde uma poderosa elite e
uma importante classe média bem educada, falante de inglês, possuem raízes profundas, era negada
qualquer possibilidade de existência de uma “sociedade civil”.
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Claro, que o olhar dirigido pelo Ocidente ao Mundo Árabe era (e ainda é) baseado na sua própria
história, nas experiências vividas nas margens do Atlântico Norte, tais como a Revolução Americana
(1776) e a Revolução Francesa (1789). Em face do fato de que a história do Egito (bem como da Índia
ou da China) não possuírem experiências similares, concluía-se pela impossibilidade da democracia
implantar-se nos antigos países “coloniais”.
Assim, o Egito (e os demais países não-europeus) estaria condenado a viver regimes autoritários, a
única forma de garantir a ordem e o progresso em face de massas atrasadas e, normalmente, fanatizadas
pelo Islã ou outra religião não cristã.
Assim, o próprio conceito de “opinião pública” foi, para os analistas ocidentais, substituído pela idéia de
“rua árabe”. Apenas a rua, as praças e o bazar seriam locais de reunião e de troca de opinião, em
substituição precária e esporádica da noção ocidental de “opinião pública”. A “rua árabe” funcionava
ora como espaço amedrontado do murmúrio, ora como o local de explosões violentas e sem direção. As
redes tradicionais de sociabilidade árabes – como as mesquitas, os cafés e a ampla rede de instituições
de ensino e, no caso egípcio, a Universidade de Al-Azhar, além da sociabilidade profunda nos locais de
trabalho – nunca mereceram a necessária apreciação. Assim, criava-se a noção de uma
“excepcionalidade árabe”, uma espécie de beco sem saída político, onde a escolha seria entre regimes
autoritários capazes de controlar a multidão feroz ou o caos fanatizado das massas.
Camelos e Facebooks
O processo em curso no Egito – depois da experiência na Tunísia – mostra outra realidade, mais
complexa e nuançada, onde a ciência política ocidental, e a percepção leiga, não foram capazes de
entender os elementos constitutivos mais importantes.
Não só a população urbana dos grandes centros mostrou-se capaz de ampla mobilização – foi assim em
Túnis, no Cairo ou Alexandria e aponta para ser em Argel e em Sanaa – como ainda foi capaz de fazê-lo
sem apelo à violência endêmica e a xenofobia ou, o que se dizia acontecer, cair em mãos do islamismo
radical. A surpresa adveio, assim, do conhecimento superficial do Mundo Árabe e, ao mesmo tempo,
dos preconceitos ocidentais.
De forma muito apressada, a mídia ocidental – saturada de sua própria tecnologia e idolatrando
produções como “Rede Social” – denominou o movimento de rebeldia como uma “Facebook
Revolution”, dada a relevância, concreta, dos meios eletrônicos na dispersão das ideias de revolta.
Ainda aqui, mais uma vez, as redes tradicionais de sociabilidade árabes, as formas de comunicação
diárias nas escolas, mesquitas, nos cafés e no trabalho, são ignoradas em favor de uma percepção
tecnologizante e ocidentalizada.
A piada do “Le Monde” mostrando um Mubarak atento à explicação do que é Facebook pelo seu
camelo no caminho do exílio para Sharm el-Sheik é boa, mas é só uma piada.
As revoluções sempre ocorreram na história onde a repressão política e o mal-estar econômico e social
perduraram sobre as populações. A revolução Russa (1917) ou a longa Revolução Chinesa (até 1949),
bem como a Luta pelas Diretas Já, na redemocratização do Brasil, por exemplo, não foram produtos – e
nem o poderiam ser – da Internet (ou mesmo do rádio ou da televisão). Havia, ontem como hoje, redes
de sociabilização do protesto e da resistência, e a Internet pode ser um ótimo meio para a divulgação de
novas (e velhas) ideias. Mas, a Internet não pode ser considerada a causa das revoluções.
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Estaríamos, neste caso, em face de um novo preconceito, agora explicando a história das revoluções
através de tecnologias recentíssimas. Seria apenas mais uma forma de etnocentrismo.
Uma revolução moderna
Um outro preconceito aceito sem debates no Ocidente é a certeza que os movimentos sociais no Mundo
Árabe, quando movimentos de massa, são sempre islâmicos radicais. O que vemos hoje – apesar do
claro processo de re-islamização das sociedades árabes pós-coloniais – é uma explosão de ideais e
projetos de futuro em busca de uma vida melhor, adequando islamismo e bem-estar social. A “onda
islamizante” já passou. Os jovens que protestam no Cairo são irmãos daqueles que protestam em terão
contra a ditadura dos aiatolás.
A geração islamistas radical não está no Cairo e sim em Kandahar.
É bem verdade que tais preconceitos são sempre favoráveis aos interesses ocidentais. A crença arraigada
na impossibilidade de uma democracia árabe, ou muçulmana, servia à perfeição para justificar o apoio
ocidental aos regimes repressivos mais cruéis e abusivos existentes no mundo em face de um hipotético
risco de ascensão do caos e fanatismo. Assim, a Europa comunitária (CE), pretensa pátria da
democracia, manteve até bem tarde calada em face das revoluções em Túnis e no Cairo. Em Munique,
na reunião anual sobre segurança e defesa, o chefe da OTAN – a aliança militar ocidental – apontou
para as mudanças políticas no Mediterrâneo como a causa imperiosa para o aumento dos gastos
militares.
Por sua vez, Israel – “a única democracia do Oriente Médio” – não só lamentou a revolta egípcia, como
ainda desenvolveu sérias gestões junto a Washington visando demover o Presidente Obama em seu
apoio aos militantes da Praça da Libertação no Cairo. Para o premier Netaniahu a segurança de Israel
não se adéqua com a democracia no Oriente Médio.
Os espetaculares acontecimentos em Túnis e no Cairo abrem caminho para o debate série e não mais
eivado de etnocentrismo sobre os diversos caminhos, autônomos, em direção a uma democracia sólida e
humanitária. A preeminência ocidental, a modelagem única baseada na história desta pequena e hoje
cada vez mais pobre península da Eurásia, não seria mais modelo obrigatório para todos.
A conciliação entre Islã e democracia, lançando por terra prateleiras inteiras de “saber ocidental”,
encontra-se hoje, no Cairo, com seu próprio destino. Conforme a proclamação do Conselho Supremo do
Egito busca-se a construção de um sistema “em que a liberdade do ser humano, o império da lei, a fé no
valor da igualdade, a democracia plural, a justiça social e a erradicação da corrupção constituam as
bases da legitimidade de qualquer sistema de governo que dirija o país”.
Palavras. Mas, são palavras que vieram de 18 dias de revolta e luta e custaram até o momento 300
mortos.
(*) Professor Visitante da Universidade Técnica de Berlim
(*) Professor Convidado da Universidade Técnica de Berlim
15/02/2011 |
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Revolta árabe: Oriente Médio não terá paz sem democracia
Em entrevista à Carta Maior, Mohamed Habib, professor da Unicamp e vice-presidente do Instituto da
Cultura Árabe (ICArabe), defende que protestos no Egito e em outros árabes trazem um recado muito
importante para os líderes dos EUA, Israel e Europa: só haverá paz e prosperidade no Oriente Médio
com democracia e qualidade de vida. “Se Israel for inteligente, se for governada por pessoas
inteligentes, tem que perceber que acordos firmados com ditadores não se sustentam", afirma.
Marco Aurélio Weissheimer
“Se Israel for inteligente, se for governada por pessoas inteligentes, tem que perceber que acordos
firmados com ditadores não se sustentam. É melhor para Israel viver cercado por países democráticos do
que por ditaduras supostamente amigas. É muito mais justo e muito mais duradouro também”. A
opinião é do vice-presidente do Instituto da Cultura Árabe (ICArabe) e professor da Unicamp,
Mohamed Habib, que, em entrevista à Carta Maior, analisa as causas e possíveis consequências dos
levantes populares no Egito e em outros países árabes. Para ele, o principal combustível dos protestos no
Egito foram as péssimas condições de vida da maioria da população – mais de 40% vivendo abaixo da
linha da pobreza.
O que está acontecendo agora, defende ainda, traz um recado muito importante para os líderes dos EUA,
Israel e Europa: só haverá paz e prosperidade no Oriente Médio com democracia e qualidade de vida.
Carta Maior: Qual sua avaliação sobre os recentes acontecimentos no Egito e seus possíveis
desdobramentos?
Mohamed Habib: O que aconteceu nas últimas semanas no Egito acabou escrevendo uma nova página
na história do Oriente Médio. A queda do presidente Mubarak abre caminho para a democratização da
região. As ondas de protestos que estamos vendo agora podem se propagar para outros países de modo
mais ou menos pacífico e em ritmos diferenciados. Isso vai depender, em grande parte, da qualidade de
vida da população de cada país. Quanto pior for essa qualidade de vida, mais rápida pode ser essa
propagação.
O que ocorreu no Egito mostra que as demandas sociais falam muito mais alto do que as questões
políticas e ideológicas. O que fez com milhões de pessoas fossem para às ruas não foi o fato de o país
ter um ditador há 30 anos no poder, mas sim as condições de vida da maioria da população. A paciência
acabou, principalmente entre os estudantes e jovens universitários que não encontram uma perspectiva
de futuro.
Carta Maior: Quais são hoje as condições de vida da maioria do povo egípcio?
Mohamed Habib: O Egito tem hoje mais de 40% de sua população vivendo abaixo da linha da
pobreza. Ou seja, pessoas vivendo com menos de dois dólares por dia. Esse problema agravou-se muito
nos últimos anos. Há quatro ou cinco décadas, uma libra egípcia valia cerca de 4 dólares. Hoje, um dólar
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compra seis, sete libras. Houve uma desvalorização assustadora da moeda egípcia. Em tempos passados,
o Egito não tinha muitos ricos, mas também não havia miseráveis. Hoje, além dos mais de 40% vivendo
abaixo da linha da pobreza, temos alguns grandes bilionários, cuja riqueza foi adquirida de modo ilícito
por meio da apropriação do poder por um grupo privado bastante pequeno. Esse grupo reúne, entre
outros, a família de Mubarak, alguns generais e empresários que fundaram o Partido Nacional como
uma fachada. Eles se apropriaram da riqueza do país.
O modelo econômico vigente nestes últimos anos é o neoliberal, com suas práticas de economia aberta.
É um capitalismo mais selvagem do que o praticando na América Latina, com muita corrupção. O
empobrecimento que atingiu o país é resultado direto da aplicação desse modelo. Um modelo
acompanhado de uma ditadura com bem mais do que 30 anos de vida. Com Sadat, é bom lembrar,
foram outros 11 anos e Mubarak era vice dele.
Carta Maior: Como, na sua avaliação, o Egito pode superar esse quadro de pobreza e desigualdade?
Mohamed Habib: Estamos falando de um país que tem um grande peso econômico e muitos recursos
para sustentar o seu povo. O Egito tem o Canal de Suez, que liga o Ocidente ao Oriente, que é uma
grande fonte de recursos. Tem ainda muito petróleo e gás natural. A atividade turística é fantástica, a
maior do Oriente Médio. O país apresenta ainda uma agricultura de qualidade e algumas empresas que
sobreviveram a toda essa deterioração. Ou seja, é um país que tem recursos e riquezas. Não é uma tribo
africana perdida no meio da selva, como o preconceito de alguns quer fazer acreditar. Nas últimas
décadas, milhares de egípcios qualificados deixaram o país. Se regressarem ao Egito, poderão ajudar a
reerguer o país.
Carta Maior: O senhor enxerga, portanto, uma boa perspectiva de futuro para o país?
Mohamed Habib: Quando olhamos para os 19 dias de levante popular, iniciado em 25 de janeiro,
podemos constatar que foi uma revolta pacífica. O povo saiu pacificamente às ruas, não houve homens
bomba ou ataques às instituições. Pelo contrário, quem saiu às ruas sofreu com os ataques das forças
paramilitares de Mubarak.
O futuro desse movimento dependerá muito das negociações com o Conselho Superior das Forças
Armadas. As demandas apresentadas a este conselho mostram um levante popular muito consciente:
banir o atual corpo de ministros; formação de uma nova Constituição a partir de um grupo de
intelectuais independentes que assumiria o compromisso de não disputar as eleições de setembro;
formação do Conselho Superior de governo com quatro civis e um militar que conduziria o país até as
eleições de setembro; dissolução do parlamento atual que perdeu sua legitimidade com a renúncia de
Mubarak; banir o Estado de Emergência que vigora desde 1971; libertação de todos os presos políticos;
liberdade de criação de partidos políticos; liberdade para os meios de comunicação e acesso à
informação; movimento sindical livre; fechamento dos tribunais militares e revogação das sentenças.
Essa é a agenda. Essas propostas, repito, mostram a consciência do movimento que foi para as ruas. O
povo egípcio vive há cerca de 40 anos sob Estado de Emergência, que concentra enormes poderes nas
mãos do presidente da República, com um Parlamento fantoche e corrupto. O que deve ser discutido
agora é a cronologia para a implementação dessas medidas.
Carta Maior: Na sua opinião, a Irmandade Muçulmana é favorita para vencer as eleições de setembro?
Mohamed Habib: Não. A Irmandade Muçulmana não teria hoje nem 5% do Parlamento em um
processo de eleições livres e abertas. Essa organização surgiu nos anos de 1920, cabe lembrar, com a
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intenção de libertar o país do domínio inglês. Esse processo foi concluído em 1954. Mesmo naquela
época, quando era fortíssima, não reivindicou o poder. O Egito não é um país religioso e a Irmandade
não é um grupo terrorista. Isso foi um fantasma criado por Mubarak e pelos EUA. Aliás o nome correto
da organização é Fraternidade Muçulmana. O mundo está vendo agora um lado do Oriente Médio que a
grande mídia não exibia. O padrão até aqui foi mostrar o árabe como terrorista.
A história dos EUA ajuda a entender isso. Primeiro foram os índios norteamericanos que foram
mostrados como uma subespécie. O projeto de expansão territorial para o Oeste foi acompanhado de
uma campanha política de lavagem cerebral. Fomos criados vendo faroestes e batendo palmas para os
“mocinhos” que eram os brancos. Depois, o projeto expansionista virou-se para o Sul e os vilões da vez
passaram a ser os mexicanos. Depois foram os comunistas. E agora são os árabes.
Carta Maior: A relação do Egito com Israel pode sofrer alguma mudança, na sua avaliação, a partir
da queda de Mubarak?
Mohamed Habib: Se Israel for inteligente, se for governada por pessoas inteligentes, tem que perceber
que acordos firmados com ditadores não se sustentam. É melhor para Israel viver cercado por países
democráticos do que por ditaduras supostamente amigas. É muito mais justo e muito mais duradouro
também. Os dirigentes de Israel, dos Estados Unidos e da Europa precisam estar atentos a estes detalhes.
Um ditador amigo e corrupto não é sinônimo de paz e prosperidade. Há chances muito melhores para
paz se países democráticos estiverem sentados à mesa de negociações.
Minha esperança é que essa nova página que está sendo escrita no Oriente Médio coloque o Estado de
Israel e o mundo árabe em melhores condições para negociar e buscar a paz e a prosperidade na região,
para construir um Oriente Médio estável e desenvolvido. Na situação atual, com países árabes
governados por ditadores, não temos um solo fértil para cultivar a paz.
Carta Maior: Os atuais governos de Israel não parecem muito animados com essa ideia...
Mohamed Habib: Chega uma hora em que a incoerência começa a ter efeitos negativos. Os EUA são
um país democrático. Mas, na sua política externa, não aplicam os mesmos conceitos que pregam em
sua democracia interna. Essa incoerência acaba desmoralizando o seu discurso frente aos demais países.
No caso da revolta no Egito, demoraram muito para abrir a boca e quando abriram foi para apoiar a
indicação como vice do chefe de serviço de inteligência de Mubarak durante 18 anos, amigo da CIA e
do Mossad. Acharam que os egípcios eram tão burros e ignorantes que aceitariam isso. Mas acabaram se
surpreendendo com a reação do povo egípcio. Resultado: os Estados Unidos acabaram se queimando
politicamente. Quando o mundo ficou sabendo de tudo isso, os EUA se desmoralizaram. Esse episódio
mostra que, para o mundo viver em paz, deve-se buscar a coerência em primeiro lugar: democracia para
todos e não apenas no nosso país. Aí poderemos ter um mundo mais justo, com ética e prosperidade.
16/02/2011 |
Programas sociais brasileiros podem ajudar Oriente Médio
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Em entrevista à Carta Maior, o embaixador do Brasil no Egito, Cesário Melantonio Neto, fala sobre a
situação política no Oriente Médio e destaca a oportunidade que se abre para o Brasil na região.
“Considerando os problemas sociais e econômicos que estão na base dos protestos, imagino que os
novos governos de países como o Egito e a Tunísia terão interesse nos programas sociais brasileiros.
Há uma grande demanda social para isso e o Brasil pode ser um parceiro importante uma vez que já
tem uma valiosa experiência nesta área,” diz o embaixador.
Marco Aurélio Weissheimer
O embaixador brasileiro no Egito, Cesário Melantonio Neto, está há mais de nove anos atuando no
Oriente Médio, com passagens pelo Irã, Turquia e, agora, no país que surpreendeu o mundo neste início
de ano com uma revolta popular que derrubou o ditador Hosni Mubarak. Em entrevista à Carta Maior, o
embaixador fala sobre a situação no Egito e na região, defende uma transição política que respeite as
liberdades civis da população e realize eleições para escolher um governo capaz de enfrentar os graves
problemas sociais do país. Além disso, destaca a oportunidade que se abre para o Brasil na região.
“Considerando os problemas sociais e econômicos que estão na base dos protestos, imagino que os
novos governos de países como o Egito e a Tunísia terão interesse nos programas sociais brasileiros.
Há uma grande demanda social para isso e o Brasil pode ser um parceiro importante uma vez que já
tem uma valiosa experiência nesta área”, diz Cesário Melantonio Neto.
Carta Maior: Qual a sua avaliação sobre os protestos das últimas semanas no Egito e sobre sua
consequência principal que foi a queda do presidente Hosni Mubarak?
Cesário Melantonio Neto: Como praticamente todos os embaixadores que estão no Egito, acompanhei
esses acontecimentos com enorme interesse, sobretudo porque estou já há um longo período no Oriente
Médio. Foram três anos como embaixador no Irã, três anos e meio na Turquia e, agora, mais de três
anos no Egito. Posso garantir que sentimento geral dos embaixadores é de muita esperança com essa
transição política. Esperança de que ela seja de fato uma transição de seis meses, que respeite as
liberdades civis da população. Essa é, inclusive, a posição do Brasil.
Além do respeito às liberdades civis da população, outra prioridade importante agora é a restauração da
ordem econômica do país. É preciso ter em mente que a economia do Egito foi muito atingida pelos
protestos das últimas semanas. Os prejuízos estimados variam entre 9 e 10 bilhões de dólares, em um
país cujo Produto Nacional Bruto é de aproximadamente 200 bilhões de dólares. Essa revolução
aconteceu exatamente no período de maior afluxo de turistas, quando a temperatura não é tão quente.
Calcula-se que mais de um milhão de turistas foram embora, o que representa uma perda de
aproximadamente 11% da riqueza nacional. Além disso, muitas empresas cancelaram ou adiaram
investimentos que estavam planejados.
Um dos grandes motores dos protestos foi a grande presença de jovens na rua, jovens na sua maioria
sem emprego. Cerca de 90% deles está nesta situação. A distribuição de renda também é muito ruim no
Egito. Cerca de 40% da população vive com um ou dois dólares por dia. Nos últimos anos não houve
nenhuma reforma social. Uma grande massa da população foi extremamente impactada pelo aumento da
inflação (15% em 2010), particularmente grave no caso dos produtos alimentícios. A classe média,
embora pequena, também foi se pauperizando, o que explica porque também saiu às ruas, solidarizandose com os jovens e os setores mais pobres da população. Foi a conjunção destes fatores que levou
milhões às ruas.
Carta Maior: Como está a situação no país após a queda de Mubarak? Já é possível perceber algum
tipo de mudança significativa?
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Cesário Melantonio Neto: Há duas prioridades que estão sendo enfrentadas agora. Há um movimento
institucional que é a convocação de uma comissão especial que vai emendar os artigos mais importantes
da Constituição em vigor (de 1977), que é muito autoritária. Esse novo texto constitucional será
submetido a um referendo popular em um prazo de sessenta dias. Se aprovado, teremos mais sessenta
dias até a realização das eleições parlamentares. Ou seja, o novo parlamento deve ser eleito no final de
junho. E, no início de setembro, será realizada a eleição presidencial.
A outra prioridade é restaurar a ordem econômica, o comércio, os bancos. Mubarak bloqueou a internet
durante uma semana. Imagine o impacto que isso tem na economia de um país hoje em dia. A Bolsa de
Valores está suspensa há duas semanas. Além disso, há várias categorias profissionais em greve. Temos
dois movimentos na oposição que conduziu os protestos. Um deles é de caráter político mais amplo e
preocupado com o futuro governo do país. O outro é composto pelas reivindicações de diferentes setores
que estavam completamente represadas. O salário médio dos servidores públicos varia entre 50 e 100
dólares mensais. E o país tem cerca de 8 milhões de funcionários públicos, entre civis e militares. Eles
estão saindo às ruas para pedir aumento salarial. Abriu a caixa de Pandora.
Há também um aspecto externo que ainda será definido. Como será a nova política externa em um novo
governo? Será que manterá a mesma atitude em relação a Israel e à Palestina, por exemplo, ou será mais
independente?
Carta Maior: O debate sobre a eleição presidencial já está nas ruas? Há nomes sendo apontados como
possíveis candidatos? Há algum favorito despontando?
Cesário Melantonio Neto: Sim, já há vários nomes surgindo: o ex-diretor da Agência Internacional de
Energia Atômica, Mohamed El Baradei, o secretário geral da Liga Árabe, Amr Moussa, e o líder do
partido El Ghad (Partido do Futuro, liberal, centrista), Aymar Nour, que chegou a ser preso político no
governo Mubarak. Haverá outros partidos disputando a eleição. Os jovens que participaram ativamente
dos protestos querem criar um partido político. A Irmandade Muçulmana também vai criar um partido,
mas já anunciou que pretende participar apenas das eleições parlamentares.
Carta Maior: Na sua opinião, o que deve acontecer agora no curto prazo? O exemplo do Egito pode se
propagar para outros países da região?
Cesário Melantonio Neto: Há uma série de demandas políticas, econômicas e salariais que ainda não
foram atendidas. Os sindicatos estão muito ativos e, como eu disse, a caixa de Pandora foi aberta. No
que diz respeito a uma possível propagação, não sou muito adepto da teoria do dominó. Os países do
Oriente Médio são muito diferentes. Costumo comparar com a percepção que se tem em relação à
América Latina. Muita gente, que olha de longe, acha que os países e os povos são muito parecidos.
Sabemos que não são. Aqui é a mesma coisa. É normal, mas errado pensar isso do Oriente Médio. Os
iranianos são persas, os turcos são otomanos, uns são sunitas, outros são xiitas. Os 22 países da Liga
Árabe têm uma diversidade muito grande. O Egito e a Turquia, por exemplo, são repúblicas. Vários
outros países são monarquias. Isso significa que é preciso analisar caso a caso antes de fazer previsões.
Carta Maior: Do ponto de vista da política externa brasileira, quais são as possíveis consequências
dessa turbulência no Oriente Médio?
Cesário Melantonio Neto: Creio que o que está acontecendo abre um espaço maior para a política
externa brasileira na região. Considerando os problemas sociais e econômicos que estão na base dos
protestos, imagino que os novos governos de países como o Egito e a Tunísia terão interesse nos
programas sociais brasileiros. Há uma grande demanda social para isso e o Brasil pode ser um parceiro
importante uma vez que já tem uma valiosa experiência nesta área.
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O sentimento é, sobretudo, de esperança. As classes sociais que saíram para as ruas no Egito têm uma
expectativa muito grande de que a vida vai melhorar. É um país com mais de 80 milhões de habitantes,
com muitos jovens e que vem ganhando cerca de 2,5 milhões de habitantes a cada ano. Esses números
indicam a grande responsabilidade que recai sobre o governo de transição e, depois, sobre o futuro
governo.
17/02/2011 |
Greves pedem aumento salarial e liberdade sindical no Egito
Os dirigentes sindicais afirmam que a maioria das greves e dos protestos dos trabalhadores tem três
objetivos: pôr fim à corrupção nas altas esferas de algumas empresas, aumentar o salário mínimo para
pelo menos 255 dólares e realizar eleições sindicais livres. Se essas três reclamações não forem
atendidas logo, os trabalhadores prometem seguir mobilizados até que a revolução signifique uma
mudança real para eles.
Emad Mekay - IPS
Cairo – Hosni Mubarak cometeu, nos últimos cinco anos, um dos maiores erros dos seus 30 anos como
presidente do Egito, o de não aprender as lições das centenas de pequenas greves registadas nesse
período. Isso custou-lhe o poder. Estes fatos foram os verdadeiros precursores do levantamento que
começou em 25 de Janeiro e no dia 11 pôs fim a um governo de três décadas (1981-2011).
“Tivemos sorte pelo fato de, na sua arrogância e atitude distante, o regime não ter aprendido nenhuma
lição com as muitas greves e os muitos protestos que aconteceram nos últimos cinco anos”, disse
Mohammad Fathy, sindicalista de 46 anos radicado na cidade de El-Mahala, cuja candidatura para a
União Geral de Trabalhadores – patrocinada pelo governo – foi dificultada pela sua opinião contrária ao
regime.
“Fomos, inclusive, mais sortudos por eles, os governantes, não compreenderem que havia genuínos
problemas econômicos, profissionais e de trabalho, especialmente aqui, em El-Mahala, no dia 6 de Abril
de 2008”, disse Mohammad. Nessa data, o Egito experimentou o primeiro exemplo em décadas de uma
ação sindical que se converteu num levante popular, uma mini-revolta nas ruas desta cidade industrial
que atraiu homens, mulheres e crianças.
Foi aqui que os ativistas pelos direitos do trabalho organizaram dois dias de protestos maciços, nos
quais os moradores do lugar deixaram as suas casas e retiraram imagens e cartazes de Mubarak, pela
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primeira vez desde a sua chegada ao poder. Estes fatos assinalaram o nascimento do grupo de ativistas
anti-Mubarak na Internet, o Movimento 6 de Abril, que tomou o seu nome desse dia histórico. Quase
três anos mais tarde, esse grupo ajudou a organizar os acontecimentos do dia 25 de Janeiro. Desta vez,
não só retirou as imagens de Mubarak, como também o próprio presidente.
Se Mubarak tivesse prestado atenção nos protestos sindicais, poderia ter aprendido algumas maneiras de
prevenir ou frustrar a revolução de 25 de Janeiro, afirmam vários dirigentes sindicais. “A reação dos
partidários de Mubarak foi a de que nós éramos apenas um punhado de jovens que podiam ser
facilmente abatidos pela polícia. A sua única resposta foi cada vez mais segurança, nada político e nada
econômico. Eles não se deram conta de quanto alterada estava a força de trabalho do país”, disse Fathy.
De fato, essa força continua alterada mesmo após o derrubada de Mubarak.
Anos de assédio policial, políticas desfavoráveis aos trabalhadores e más condições econômicas
deixaram profundas cicatrizes nos operários egípcios, que até agora sentem que ficaram fora do lugar
que lhes corresponde. Assim, não surpreende que as manifestações sindicais tenham continuado,
exortando o Conselho Supremo das Forças Armadas, que governa o país, a emitir o seu quinto
comunicado, chamando especificamente os dirigentes deste setor a atenuarem seus protestos.
O governo interino de Ahmed Shafiq queixou-se ao Conselho Supremo de que as contínuas greves não
ajudam esta nação de 85 milhões de habitantes a voltar à normalidade. Quase todos os setores da
economia são afetados. O Banco Central teve de conceder um feriado bancário improvisado no dia 14,
que se somou ao feriado religioso de 15, numa aposta para frustrar as crescentes greves no setor, cujos
trabalhadores pedem a investigação dos altos salários dos principais executivos. Inclusive, a polícia
culpa os seus baixos salários para explicar a corrupção dentro dessa força, e pede mais benefícios no
trabalho.
Esta onda de greves posteriores à queda de Mubarak coloca em relevo a divisão existente entre os
líderes sindicais, os que querem benefícios imediatos para os trabalhadores e aqueles que querem dar
tempo ao novo governo provisório para atender as suas reivindicações. Isto não quer dizer que o setor
operário deixa de lutar por seus direitos, disse o ferroviário Mohammad Mourad, sindicalista de ElMahala.
O ferroviário disse que a queda de Mubarak é uma boa notícia para a força de trabalho do país, já que
significa o fim de algumas das políticas desfavoráveis aos trabalhadores. Entre elas, mencionou
especificamente as privatizações de empresas estatais – o que sabotou as eleições sindicais – e a
interferência policial como obstáculos que desaparecerão junto com a queda de Mubarak. Embora seja
possível que isto aconteça, de todo modo não oferece um alívio imediato para os trabalhadores
impacientes.
Em El-Mahala, o salário mínimo médio dos 25 mil trabalhadores têxteis da Egyptian Spinning &
Weaving Company, a maior fábrica têxtil do Médio Oriente, é de apenas 102 dólares. A maioria dos
funcionários acaba por procurar outros empregos para completar o rendimento. Para que essa situação
mude, sugerem que o novo governo confisque milhares de milhões de dólares dos membros corruptos
do regime anterior e os invista em benefícios para os trabalhadores. Mubarak gastou muito dinheiro em
segurança, e esses fundos também poderiam ir para os trabalhadores pobres, segundo o sindicalista
Hamdi Hussein.
Os dirigentes sindicais afirmam que a maioria das greves e dos protestos dos trabalhadores tem três
objetivos: pôr fim à corrupção nas altas esferas de algumas empresas, aumentar o salário mínimo para
pelo menos 255 dólares e realizar eleições sindicais livres. “Se essas três reclamações não forem
atendidas logo, os trabalhadores continuarão a agir até que a revolução signifique uma mudança real
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para eles”, disse Hamdi, que trabalha para o Comitê Coordenador para as Liberdades e os Direitos do
Trabalho. (Envolverde/IPS)
17/02/2011 |
Revolução no Egito é ruim para Israel
Independentemente do modo como tudo isso vá acabar, (a revolta na Tunísia e no Egito) expõe as
falácias e o simulacro de Israel como nunca antes. o que está em jogo é a falácia de que Israel é um
país estável, ilha civilizada ocidental no mar agitado da barbárie e do fanatismo islâmico árabe. O
"perigo" para Israel é que a cartografia seja a mesma, mas que a geografia mude. O país ainda seria
uma ilha, mas de barbárie e fanatismo em um mar de Estados democráticos e igualitários recémformados. O artigo é de Ilan Pappe.
Ilan Pappe (*)
As revoluções da Tunísia e do Egito, se realmente obtiverem sucesso, serão ruins, muito ruins para
Israel. Árabes educados – nem todos vestidos como "islâmicos", a maioria sem falar um inglês perfeito,
cujo desejo de democracia não recorre à retórica "antiocidental" – são ruins para Israel.
Exércitos árabes que não atirem nos manifestantes são tão ruins para Israel como o são muitas outras
imagens que movimentam e entusiasmam tantas pessoas ao redor do mundo, inclusive no Ocidente.
Essa reação mundial também é ruim, muito ruim para Israel. Faz a ocupação israelense na Cisjordânia e
na Faixa de Gaza, e as políticas sionistas de apartheid dentro de Israel, parecerem atos de um típico
regime "árabe".
Por algum tempo não soubemos o que os oficiais de Israel pensavam [sobre a intifada egípcia]. Na
primeira mensagem a seus pares, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu pediu a seus ministros,
generais e políticos que não comentassem em público os acontecimentos no Egito. Por um breve
momento qualquer um de nós pensaria que Israel havia passado de bandido do bairro para o que ele
sempre foi: um visitante ou um residente permanente [na Palestina].
Parece que Netanyahu ficou particularmente envergonhado com os comentários infelizes sobre a
situação proferidos publicamente pelo general Aviv Kochavi, o chefe da inteligência militar israelense.
Especialista em assuntos árabes, Kochavi declarou confiante, no Knesset [o Parlamento de Israel], duas
semanas antes da queda de Mubarak, que o regime do ditador estava mais sólido e resistente do que
nunca. Mas Netanyahu não pôde ficar de boca fechada por tanto tempo. E, quando falou, todos os outros
o seguiram. E, quando todos falaram, suas opiniões fizeram os comentaristas da Fox News [de direita,
conhecidos pela virulência] parecerem um bando de hippies pacifistas e amantes da liberdade da década
de 1960.
A essência da narrativa israelense é simples: essa é uma revolução semelhante à iraniana, auxiliada pela
Al Jazeera e estupidamente permitida pelo presidente dos EUA, Barack Obama, que é um novo Jimmy
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Carter, e por um mundo estupefato. No comando da interpretação israelense estão os ex-embaixadores
de Israel no Egito. Todas as suas frustrações por terem sido trancados em um apartamento de um
arranha-céu no Cairo agora explodem como um vulcão em erupção. Suas invectivas podem ser
resumidas nas palavras de um deles, Zvi Mazael, que declarou ao canal de televisão israelense One, em
28 de janeiro, que "isso [a intifada egípcia] é ruim para os judeus, muito ruim".
Em Israel, claro, quando você diz "ruim para os judeus," você quer dizer “para os israelenses” – mas
também significa que tudo que é ruim para Israel é ruim para os judeus de todo o mundo (apesar das
evidências em contrário desde a fundação do Estado).
Mas o que é realmente ruim para Israel é a comparação.
Independentemente do modo como tudo isso vá acabar, [a revolta na Tunísia e no Egito] expõe as
falácias e o simulacro de Israel como nunca antes. O Egito está passando por uma intifada pacífica – a
violência letal vem do lado do regime. O exército não atirou contra os manifestantes, e até mesmo antes
da partida de Mubarak, com os protestos alcançando a marca de sete dias, o ministro do interior, que
liderou seu capangas num choque violento contra os manifestantes, foi demitido e, provavelmente, será
levado à justiça.
Sim, isso foi feito para o governo ganhar tempo e tentar convencer os manifestantes a ir para casa. Mas
mesmo esta cena, agora esquecida, nunca poderia acontecer em Israel. Israel é um lugar onde todos os
generais que ordenaram o massacre de manifestantes palestinos e judeus contra a ocupação agora
concorrem ao mais alto cargo, o de chefe do estado-maior das forças armadas.
Um deles é Yair Naveh, que deu ordens, em 2008, para matar palestinos suspeitos até mesmo quando
eles podiam ser presos de maneira pacífica. Ele não vai para a cadeia, mas a jovem Anat Kamm, que
tornou públicas essas ordens, enfrenta agora nove anos de prisão por revelá-las ao diário israelense
Haaretz. Nenhum general ou político israelense passará um único dia na prisão por requisitar tropas para
disparar contra manifestantes desarmados, civis inocentes, mulheres, velhos e crianças. A luz que irradia
do Egito e da Tunísia é tão intensa que também ilumina os espaços mais escuros da "única democracia
do Oriente Médio" [como Israel se autodenomina].
Não violentos, democráticos (religiosos ou não), os árabes são ruins para Israel. Mas talvez esses árabes
estivessem ali o tempo todo, não só no Egito como também na Palestina. Os comentadores israelenses
insistem que a questão mais importante em jogo – o tratado de paz israelense com o Egito – é um
desvio, com pouca relevância para o impulso poderoso que agita o mundo árabe como um todo.
Os tratados de paz com Israel são os sintomas da corrupção moral, não a doença em si – e é por isso que
o presidente sírio, Bashar Asad, sem dúvida um líder antiisraelense, não está imune a essa onda de
mudança. Não, o que está em jogo é a falácia de que Israel é um país estável, ilha civilizada ocidental no
mar agitado da barbárie e do fanatismo islâmico árabe. O "perigo" para Israel é que a cartografia seja a
mesma, mas que a geografia mude. O país ainda seria uma ilha, mas de barbárie e fanatismo em um mar
de Estados democráticos e igualitários recém-formados.
Aos olhos de grande parte da sociedade civil ocidental, a imagem democrática de Israel desapareceu há
muito tempo, mas agora pode ter sido ofuscada e embaciada aos olhos de outros, os políticos e os que
estão no poder. Quão importante é a velha e positiva imagem de Israel para a manutenção de sua relação
especial com os Estados Unidos? Só o tempo dirá.
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De um jeito ou de outro, o grito da Praça Tahrir é um aviso de que as falsas mitologias da "única
democracia do Oriente Médio", do fundamentalismo cristão hardcore (muito mais sinistro e corrupto do
que a Fraternidade Muçulmana), do lucro da cínica corporação das indústrias militares, do neoconservadorismo e do lobby brutal não vão garantir a sustentabilidade da relação especial entre Israel e
Estados Unidos para sempre.
E, mesmo que essa relação especial se mantenha por algum tempo, será baseada em fundamentos ainda
mais precários. Os estudos de caso diametralmente opostos dos até agora resistentes poderes regionais
antiamericanos do Irã e da Síria, e, em certa medida, da Turquia, por um lado, e a queda derradeira dos
tiranos pró-EUA, por outro lado, são indicativos: mesmo que se prolongue, o apoio estadunidense pode
não ser suficiente, no futuro, para manter um "Estado judeu" étnico e racista no coração de um mundo
árabe em mutação.
Essa poderia ser uma boa notícia para os judeus, mesmo para aqueles que vivem em Israel, a longo
prazo. Não será fácil viver cercado por povos que prezam a liberdade, a justiça social e espiritualidade, e
que navegam às vezes com segurança, às vezes de maneira precária, entre a tradição e a modernidade, o
nacionalismo e o mundano, a globalização capitalista agressiva e a sobrevivência diária.
No entanto, há um horizonte que carrega a esperança de desencadear mudanças similares na Palestina.
Pode chegar ao fim o mais de um século de desapropriação e de colonização sionista, substituído por
uma reconciliação mais equitativa entre os palestinos – vítimas dessas políticas criminosas onde quer
que estejam –, e a comunidade judaica. Essa reconciliação seria construída sobre a base do direito de
retorno palestino e sobre todos os outros direitos pelos quais o povo do Egito tão bravamente lutou nos
últimos 20 dias.
Mas os israelenses não perdem uma oportunidade de perder a paz. Eles uivariam como lobos. Exigiriam,
e receberiam, mais recursos do contribuinte estadunidense, em função dos novos "acontecimentos".
Interfeririam de modo clandestino e destrutivo para minar qualquer transição para a democracia
(lembram-se da força e da agressividade que caracterizaram a reação israelense à democratização da
sociedade palestina?) e elevariam a campanha islamofóbica a patamares novos e sem precedentes.
Talvez, porém, o contribuinte estadunidense não se movesse dessa vez. E talvez os políticos europeus
seguissem o sentimento geral de seu público e permitissem não apenas que o Egito fosse
dramaticamente transformado, mas também dessem as boas vindas a uma mudança semelhante em
Israel e na Palestina. Em um cenário assim, os judeus de Israel teriam a chance de se tornar parte do
Oriente Médio real e não membros estrangeiros e agressivos de um Oriente Médio inventado pela
imaginação alucinatória sionista.
(*) Ilan Pappe é professor de história e diretor do Centro Europeu para o Estudo da Palestina da
Universidade de Exeter, Grã-Bretanha. Seu livro mais recente é Out of the Frame: The Struggle for
Academic Freedom in Israel [Fora do esquema: a luta pela liberdade acadêmica em Israel] (Pluto
Press, 2010).
18/02/2011 |
A longa Revolução Árabe: dois tipos de revoltas
Por mais inspiradoras que essas revoltas atuais sejam, elas são parte de um longo processo no mundo
Árabe que remonta ao século XIX. Quando os árabes comandarão a si mesmos, e não serão
comandados por ditaduras de partidos únicos e monarcas sustentados por mercados de ações e capital
externo? Não há muito tempo a França de Sarkozy e os EUA de Clinton rendiam homenagens aos seus
amigos “democráticos” Ben Ali e Mubarak. Para superar a obscenidade só Obama se reunindo com os
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sauditas para debater a transição democrática no Egito, o que é como perguntar a um vegetariano
como se faz uma costela assada. O artigo é de Vijay Prashad.
Vijay Prashad (*)
A revolta árabe de 2011 é incessante. Os protestos continuam em lugares tão improváveis como
Bahrein. No Valentine’s Day [Dia dos Namorados no hemisfério norte ocidental], uma marcha de
protesto em Manama não tinha amor para dar à família real al-Khalifah. Queria enviá-los sua
mensagem: “Nossa exigência é uma constituição escrita pelo povo”, cantavam os manifestantes. O líder
da oposição, Abdul Wahab Hussain disse à imprensa: “O número de policiais do batalhão de choque é
imenso, mas nós mostramos que o uso da violência contra nós só nos torna mais fortes”. A polícia usou
balas de borracha até em pequenos grupos. “Isso é só o começo”, disse Hussain, depois de ter sido
atingido nas ruas.
Essas manifestações só parecem improváveis porque a onda de protestos que irrompeu no fim dos anos
50 e chegou aos 70 foi interrompida no início dos anos 80. Encorajada pela derrubada do monarca no
Egito com o golpe liderado por Gamal Abdel Nasser, as pessoas comuns ao redor do mundo árabe
queriam suas próprias revoltas. O Iraque e o Líbano seguiram a mesma linha. Na península, o povo
queria o que Fred Halliday chamou de “Arábia sem sultões”. Os militantes da Frente de Libertação do
Golfo Árabe Ocupado emergiram da batalha de Dhofar (Oman). Queriam levar adiante sua campanha à
toda a península. Em Bahrein, o braço mais tímido da batalha foi a Frente Popular. Não durou muito.
Com o declínio do Nasserismo nos anos 70, chegou um novo momento para esse republicanismo árabe
a partir da Revolução Iraniana de 1979. A Frente Islâmica de Libertação do Bahrein tentou dar um golpe
em 1981. Eles tinham a mesma inspiração, mas não a organização. Esse arquipélago árabe não pôde
traçar o caminho do Iêmen, onde uma revolução levada a cabo por uma organização marxista tomou o
poder em 1967.
Os esforços dessas forças revitalizadas nos anos 90 encontraram forte resistência do regime al-Khalifah.
Mas o seu novo dirigente, Hamad (graduado na Universidade Cambridge), foi esperto. Ele conhecia
uma coisa ou outra de hegemonia, mas não o suficiente para chocar as lideranças islâmicas.
Rapidamente convocou um parlamento eleito, permitiu que as mulheres votassem e libertou alguns
prisioneiros políticos. Não foi o bastante para satisfazer Washington e as companhias de petróleo. Nada
de estabilidade que pareça democracia.
O vírus egípcio de 2011, no entanto, supera a democracia de fachada de Hamad. Os protestos estão de
volta.
O contágio não é apenas político. É também, talvez decisivamente, econômico. A riqueza de Bahrein
depende de seu petróleo. O dinheiro do petróleo induz à especulação imobiliária (o modelo Dubai). Os
beneficiários desse processo tem sido a família real e seus comparsas. O povo, de maioria xiita, está
furioso porque quase toda sua riqueza não tem destinação social. Com medo da população xiita, o
monarca importou 50 mil trabalhadores para reconfigurar a paisagem demográfica. Essa política
bahranizista serviu como cortina de fumaça para pôr os trabalhadores locais contra os estrangeiros. Não
deu certo. Para piorar, um dos resultados da crise de crédito desde 2007 tem sido a proposta do governo
de Bahrein de cortar subsídios de alimentos e combustíveis. Por causa da ira do povo essa proposta já
foi retirada. A juventude, na Tunísia, no Egito e no Iêmen é muito parecida com a juventude da Grã
Bretanha, da Irlanda, da França, Itália – todos estão nas ruas contra a austeridade. A população jovem
está no front das revoltas porque são quem mais tem a perder com os cortes e com as políticas que
hipotecam seus futuros. Essas são também, portanto, convulsões contra os excessivamente remunerados
agentes (banqueiros) das superpotências (a elite de Davos e suas instituições).
97
Enquanto isso, a quinta frota dos EUA tem uma base em Bahrein. O vice-almirante Mark Fox deve
delegar poder aos vagabundos da EA-6B para ações de emergência.
As informações sobre a Revolta Árabe confundem. Há aqueles que se refugiam no aspecto transhistórico, vendo nela um exemplo da luta pela dignidade humana. Os árabes estavam com raiva. Não
podiam mais aguentar. Isso tudo é muito bom, mas é generalidade demais. Por que os protestos
acontecem agora, por que desta maneira, por que essas exigências?
Há outros que vão noutra direção, longe do aspecto trans-histórico, para uma circunstância específica.
Eles pensam que explicações amplas são reducionistas, de modo que se refugiam no contingente: este
evento (a imolação) leva a que este evento (protesto), que leva a um outro evento (a ocupação da Praça
Tahrir), e então ao grande evento (Mubarak fugir para a beira do mar vermelho). A história se torna uma
série de eventos que mede as mudanças sem ir além da superfície.
Essas tentativas de entender a Revolta Árabe levam a duas direções: elas confundem essas revoltas com
revolução e tendem a vê-las como a revolução de 2011 contra a de 1952, liderada por Nasser. Por mais
inspiradoras que essas revoltas atuais sejam, elas são parte de um longo processo no mundo Árabe que
remonta ao século XIX. Esse longo processo é a Revolução Árabe, cuja luta é por uma transformação
total das estruturas de dominação que constrangem o futuro árabe. Um episódio desta longa Revolução
Árabe é a revolta de Nasser em 1952. Ela foi derrotada no fim dos anos 60, e retornou no Egito (e no
mundo árabe) contra sua subordinação histórica. Outro episódio é a onda atual. A longa Revolução
Árabe põe duas questões que permanecem sem resposta. Elas podem lançar as bases para entender o que
está em curso nas terras árabes. A primeira questão é a sua política; a segunda, sua economia.
Política
Quando os árabes comandarão a si mesmos, e não serão comandados por ditaduras de partidos únicos e
monarcas sustentados por mercados de ações e capital externo? Não há muito tempo a França de
Sarkozy e os EUA de Clinton rendiam homenagens aos seus amigos “democráticos” Ben Ali e
Mubarak. Para superar a obscenidade só Obama se reunindo com os sauditas para debater a transição
democrática no Egito, o que é como perguntar a um vegetariano como se faz uma costela minga.
Em 1953, o velho rei Farouk içou as velas em seu iate al-Mahrusa protegido pela marinha egípcia, e
acenou para quem considerava seus inferiores: Nasser, filho de um carteiro, e Sadat, filho de um
pequeno fazendeiro. O golpe que eles tentaram visava a romper de uma vez com a monarquia e com a
dominação imperial. A nacionalização da infraestrutura econômica veio junto à reforma agrária. Mas
foram mal concebidas e eles não conseguiram domar o poder da burguesia egípcia (cujo vício pelo
dinheiro fácil continuou, com três quartos de novos investimentos inflacionando uma bolha imobiliária).
A economia sofreu uma sangria para suportar a ampliação do aparato militar, majoritariamente voltado
para combater os armamentos estadunidenses dos israelenses. A derrota do Egito na guerra de 1967
levou Nasser a renunciar em 10 de junho. Milhares de pessoas tomaram as ruas do Cairo, desta vez para
pedir a Nasser que voltasse ao gabinete, coisa que ele fez, embora muito enfraquecido.
A abertura democrática de 1952, no entanto, não conseguiu emergir. Oficiais militares, embora
progressistas, relutaram em tomar as rédeas do poder. O aparato de segurança da Fraternidade
Muçulmana certamente não, mas é ferozmente contra os comunistas. Nasser não construiu uma cultura
política independente forte. Seu ‘socialismo’, como Stavrianos anotou, “foi um socialismo por decreto
presidencial, implementado pelo exército e pela polícia. Não houve iniciativa ou participação enraizada
da sociedade civil”. Por essa razão, quando Sadat moveu o país para a direita, nos anos 70, quase não
havia oposição a ele. O nasserismo depois de Nasser era um vazio como o peronismo depois de Perón.
A revolta atual é contra o regime levado a cabo por Sadat e desenvolvido por Mubarak. É um estado de
98
segurança nacional sem pretensões democráticas. Em 1977 Sadat identificou o nasserismo com “campos
de detenção, custódia e sequestro e um sistema de única opinião e um só partido”. Sadat permitiu que
três tipos de forças emergissem, então rapidamente os enfraqueceu (caso do de esquerda Partido do
Grupo Progressista Nacional), cooptou (o Partido Socialista Árabe e o Partido Liberal Socialista) ou
tolerou a existência (Irmandade Muçulmana). Astutamente, Sadat pôs em ação o que acusava Nasser de
fazer. Foi sob Sadat e Mubarak (com Omar Suleiman a reboque) que os campos de detenção e as
câmaras de tortura floresceram.
Na Praça Tahrir, Ahmed Abdel Moneim, de 22 anos, disse: “Levou muito tempo, depois da Revolução
Francesa, para o povo vir a ter seus direitos efetivados”. Esta luta em 2010 consiste em repelir o estado
de segurança nacional. Essa é a exigência básica para retomar o slogan da Revolução Francesa. A
dinâmica de que Ahmed quer tomar parte é a do nasserismo, mas desta vez sem os militares. Esta é uma
lição da história.
A outra lição vem de Nadine Naber, que nos lembra que a mulher forma parte crucial desta onda de
revolta, como o fez nas anteriores e, mesmo assim, quando as revoltas são bem sucedidas as mulheres
são postas de lado, como agentes políticas secundárias. “Quais são as possibilidades de uma
democratização de direitos no Egito”, pergunta Naber, “em que a participação das mulheres, os direitos
das mulheres, o direito de família e os direitos de organização, de protesto e de liberdade de expressão
sejam centrais?” Naber repete uma questão levantada em 1957 por Karima El-Said, a vice-ministra de
educação da República Árabe Unida: “Em países afro-asiáticos onde o povo ainda sofre o jugo do
colonialismo, as mulheres participam ativamente na luta por uma independência nacional completa. Elas
estão convencidas de que este é o primeiro passo para sua emancipação e as qualificará para ocupar um
verdadeiro lugar na sociedade”. Esta é a segunda lição da história, que a democracia que emerja capacite
as pessoas.
Economia
A segunda questão sem resposta da longa Revolução Árabe tem a ver com o pão e com a dignidade do
trabalho. Quando as economias da região árabe serão capazes de sustentar suas populações, antes de
engordarem instituições financeiras no mundo Atlântico, e de ofereceram fundos maciços e seguros para
ditadores e monarcas? Amaldiçoado pelo petróleo, o mundo árabe tem visto pouca diversificação
econômica e quase não consegue usar a riqueza do petróleo para fomentar e equilibrar o
desenvolvimento social para o povo. Em vez disso, o dinheiro do petróleo migra para o Norte, para
providenciar crédito a consumidores superaquecidos nos EUA e alimentarem os bancos de vastos
fundos que de outra forma não acumulariam, com uma população que parou de poupar (há muito que os
estadunidenses economizam 1% de seus contracheques, um quadro compreensível, dada a estagnação de
salários desde 1973). O dinheiro do petróleo também foi para o boom imobiliário no Golfo, e para as
mesas de cristais baccarat e seguranças, de Mônaco (a Las Vegas da Europa, que tem outro monarca
decrépito, Albert II, como representante).
Como parte da des-nasserização do Egito, Sadat abriu a economia (infatah) para o capital externo. A
nacionalização e os subsídios acabaram, e as zonas de livre comércio foram criadas em fevereiro de
1974. Sadat queria uma “transfusão de sangue” para a economia egípcia, e então os bancos do Atlântico
começaram a tirar litros de sangue da sofrida classe trabalhadora egípcia. Devolveram-nos com lojas de
bebidas e boates (o centro dos ataques de janeiro de 1977 no Cairo). A desigualdade floresceu no Egito
e as políticas neoliberais produziram uma alta burguesia com mais investimento em Londres do que na
Alexandria. Em 2008, algo como 40% da população vivia com menos de 2 dólares por dia. Em outubro
de 2010, o judiciário ordenou ao governo que aumentasse o salário mínimo de 70 dólares por mês para
207. Dado que Sadat e Mubarak inviabilizaram a tentativa de criar uma economia diversa, o Egito agora
depende de renda externa para sua sobrevivência (remessas de trabalhadores emigrados, pedágios do
Canal de Suez, exportação de gás e petróleo, divisas oriundas do turismo e pagamento pela privatização,
99
entre outros). Parte substancial desses recursos foi desviada por Mubarak aos seus comparsas, nos
bancos suíços. Não há democracia para sua economia. O tirano aqui não é somente Mubarak, mas o
FMI, o Banco Mundial, os bancos, os mercados de ações, as corporações multinacionais.
Greves de trabalhadores em todo o Egito, protestos diante do palácio presidencial, protestos nos
mercados de alimentos – esta é a face da revolta em curso. Os egípcios parecem ter clareza de que a
derrubada de Mubarak também significa o fim da libertação do neoliberalismo que tomou conta do país
nos anos 70. Eles querem expandir a mobilização social para dirigirem melhor a entrada de recursos que
leve o país a ampliar sua atividade econômica.
***
Ao longo dos últimos vinte anos, vimos dois tipos de revoltas. As primeiras, de tipo das do leste
europeu, por exemplo, foram revoltas contra a opressão do estado da era soviética. Indiferente à
destruição das promessas desse socialismo, o povo refugiou-se no glamour da economia de mercado.
Foram revoltas pelo mercado. Duas décadas depois, o europeu do leste imagina que se tornou um
pesadelo horrendo. O segundo tipo são essas revoltas no mundo árabe hoje, mas também a revolta do
povo das Filipinas contra Marcos e do povo da Indonésia contra Suharto, foram revoltas contra o
mercado. Revoltas massivas que quiseram aumento salarial. Começaram como revoltas contra
autocracias longevas (Ben Ali, Mubarak, Marcos, Suharto) e desembocaram numa luta por uma ordem
social e econômica diferente.
Para a região árabe, esses eventos de 2011 não são a inauguração de uma nova história, mas a
continuação de uma luta sem fim, que tem 100 anos. Algumas pessoas já caíram em desânimo,
menosprezando as quedas de Ben Ali e Mubarak. Esses acontecimentos fortalecem a confiança do povo
e põem as lutas em movimento. A velha ordem pode permanecer, ainda, mas se sabe que seu tempo está
acabando. No filme Gladiador (Ridley Scott, 2000), os bárbaros germânicos arrancam a cabeça de um
soldado romano e a jogam na frente das linhas de batalha romanas. Um dos generais romanos diz: “As
pessoas deveriam saber quando são conquistadas”. Ele quis dizer os bárbaros. Os ditadores do mundo
árabe, nossos bárbaros, podem arremessar algumas cabeças, ainda, diante do avanço do povo. Mas já
devem saber que estão derrotados. É simplesmente uma questão de tempo: 100 anos ou 10.
(*) Vijay Prashad é o titular da cadeira George e Martha Kellner de História da Ásia do Sul e diretor
de estudos internacionais no Trinity Colleg, Hartford, TC. Seu livro mais recente, The Darker Nations:
A People's History of the Third World, [As nações mais escuras: uma história do povo do Terceiro
Mundo] ganhou o prêmio Muzaffar Ahmad de melhor livro de 2009. As edições sueca e francesas estão
disponíveis. Ele pode ser contatado em: [email protected]
18/02/2011 |
Os EUA, arrimo de Israel no Oriente Médio
100
Há uma espécie de ‘ponto cego’ no panorama mental de muita gente sempre que se trata de Israel –
fenômeno frequente também entre os pensadores progressistas. Ninguém fala contra Israel, porque
quem fale sempre poderá ser dito antissemita, acusado de “selecionar” Israel como alvo preferencial
de críticas. A imprensa não discute Israel nem noticia o que Israel faz no Oriente Médi, mais
diretamente aos palestinos que vivem sob ocupação militar. O tema sempre dispara cartas de leitores
indignados e cancelamento de assinaturas de jornais e revistas. Assim, silencia-se sobre o fato de que
Israel é o fator determinante de praticamente todas as políticas e ações dos EUA no Oriente Médio. O
artigo é de Kathleen Christison.
Kathleen Christison (*) - Counterpunch
Há cerca de dez dias, participei de discussão especialmente interessante sobre Israel e seu
relacionamento com a política dos EUA para o Oriente Médio, considerados os atuais acontecimentos
no Egito e em outros países do mundo árabe. Meu interlocutor foi um dos mais brilhantes comentaristas
de política norte-americana da mídia alternativa, mas disse que, para ele, Israel não teria qualquer
importância considerável no que os EUA fazem na região.
Devo dizer que pode ser caso de uma espécie de ‘ponto cego’ no panorama mental sempre que se trata
de Israel – fenômeno frequente também entre os pensadores progressistas. E espero que o torvelinho
pelo qual passa a região acabará abrindo os olhos também dos que ainda tendem a minimizar o papel
central que Israel desempenha na política dos EUA.
Os recentes eventos no Egito e os “Documentos da Palestina” publicados por WikiLeaks e divulgados
pela rede al-Jazeera, com conversações entre palestinos e israelenses, aí estão, como prova escrita, mais
contundentes que qualquer outra divulgação, de que os EUA fazem o que fazem no Oriente Médio em
vasta medida por causa de Israel – para proteger e salvaguardar Israel contra os vizinhos árabes que se
revoltam contra o tratamento que Israel dá aos palestinos; contra muçulmanos, também revoltados pelos
mesmos motivos; contra todos os críticos que reclamam das agressões militares dos israelenses contra
Estados próximos; contra a ira de outros Estados eternamente ameaçados por Israel; contra governos na
região que não aceitam que Israel seja o único Estado nuclear e insistem em desenvolver programas
nucleares próprios, que lhes deem meios para conter Israel e defender-se das agressões dos israelenses.
É instrutivo lembrar que o Egito é importante para os EUA quase exclusivamente porque assinou um
tratado de paz com Israel em 1979 e ajuda a garantir a segurança de Israel, defendendo a fronteira
ocidental; ajudando em ataques militares contra outros países árabes; fechando os túneis que chegam a
Gaza, pelos quais o Hamás contrabandeia algumas armas, e a população de Gaza obtém comida e outros
artigos essenciais; e, claro, também porque o Egito ajuda a minar o poder do Hamás em Gaza. Os EUA
também consideram o Egito como roldana importante em sua máquina de “guerra ao terror” e na guerra
contra o radicalismo islâmico – função também intimamente ligada aos interesses de segurança de
Israel.
Obviamente, o Egito é importante, de pleno direito, na Região. O tamanho do país e sua localização
estratégica garantem que sempre terá influência considerável na política do Oriente Médio, e há séculos
é o coração da cultura árabe, para o que não precisa de ajuda dos EUA.
As três últimas semanas de luta do povo egípcio por democracia aumentou a importância do Egito,
capturando a imaginação dos povos do mundo inteiro (exceto de muitos, talvez a maioria, em Israel e da
direita linha-dura nos EUA, com destaque para a ala daquela direita que apóia Israel).
Mas a parte fundamental que interessa destacar é que os EUA não teriam o relacionamento militar,
político e econômico tão íntimo que têm com o Egito há mais de 30 anos, não fosse o Egito aliado de
Israel e o fato de que, nas palavras de Rashid Khalidi, especialista em Oriente Médio, o Egito sempre
101
aceitou “a hegemonia regional de Israel”. O 1,5 bilhão anual de dólares em ajuda militar, e os 28 bilhões
em assistência econômica e para o desenvolvimento ao longo dos últimos 35 anos não seriam entregues
ao Egito, se o antecessor de Mubarak, Anwar Sadat, não tivesse suplicado por eles e, afinal, não tivesse
concordado em assinar um tratado de paz com Israel, que removeu o Egito – o mais poderoso exército
do mundo árabe – da lista das ameaças ‘existenciais’ contra Israel, abandonando os palestinos e outros
partidos árabes aos seus próprios (poucos) recursos.
Com o Egito fora do jogo e já, de fato, jogando a favor, Israel ficou livre para lançar vários ataques
militares contra países vizinhos, duas vezes contra o Líbano e incontáveis vezes contra Gaza e a
Cisjordânia, e livre para expandir as colônias exclusivas para judeus em territórios ocupados, roubar
terra dos palestinos e massacrar rotineiramente os palestinos, sem medo de retaliação nem, sequer, de
qualquer manifestação mais significativa vinda de qualquer exército árabe.
O comentarista israelense Aluf Benn já destacou além disso que, com Mubarak no poder, Israel sempre
poderia sentir-se seguro em relação ao flanco ocidental no caso de atacar o Irã.
Hoje, Israel já não pode atrever-se a atacar o Irã, e assim continuará até que volte (se voltar) a poder
confiar que receberá do Egito “apoio tácito a todos os seus atos”. Mas quem quer que substitua
Mubarak, seguindo esse raciocínio, também terá de preocupar-se com não despertar a fúria das massas,
no caso de mostrar muita disposição para apoiar Israel. “Sem Mubarak, desaparece qualquer
possibilidade de Israel atacar o Irã.”
Para Israel e, portanto, também para os EUA, o investimento de bilhões que os EUA fizeram no Egito
sempre valeu cada vintém. O fim da “estabilidade” que o Egito assegurava – ou seja, com Israel já sem
poder confiar que se manterá em segurança, como potência regional dominante – é o fator de mudou
muito dramaticamente todos os cálculos estratégicos dos EUA e de Israel.
Antes do tratado de paz Egito-Israel, os EUA jamais consideraram que o Egito fosse o item de alta
importância estratégica que passou a ser depois de render-se e por toda a sua capacidade militar a
serviço dos interesses de Israel. Pode-se dizer o mesmo sobre as relações dos EUA com inúmeros outros
estados árabes. O envolvimento dos EUA no Líbano – inclusive os esforços para tirar o exército sírio do
Líbano – também se explica quase completamente pela defesa dos interesses de Israel também ali.
O fracasso da invasão de Israel ao Líbano em 1982 ainda reverbera: em resposta àquela invasão, os
EUA mandaram um contingente de Marines, que se envolveu em luta direta com facções libanesas, o
que levou a um ataque a bomba devastador contra o quartel-general dos Marines que matou 241
militares e agentes dos EUA em 1983. O crescimento do Hezbollah, representando a população xiita
sitiada no sul do Líbano, é resultado direto da invasão israelense; o aumento no número de pessoal
norte-americano seqüestrado pelo Hezbollah ao longo dos anos 1980s é resultado da hostilidade que
cresceu contra os EUA, por causa do apoio a Israel. Israel retirou-se em 2000 do sul do Líbano, depois
de vinte anos de ocupação, deixando atrás de si um Hezbollah mais poderoso do que jamais fora. O
continuado conflito ao longo da fronteira levou ao brutal ataque de Israel contra o Líbano no verão de
2006. Mas Israel não derrotou a organização islâmica nem fez diminuir sua popularidade. Como
resultado disso, os EUA já há anos estão obrigados a trabalhar para minar o poder do Hezbollah e,
essencialmente, para manter o Líbano como sinecura israelense.
A Jordânia foi aliada menor dos EUA durante décadas, até que concluiu um tratado de paz com Israel
em 1994 e ganhou status aos olhos dos EUA. Então, o pequeno Estado na fronteira leste de Israel passou
a receber gorda ajuda militar e econômica dos EUA. O perfil oficial da Jordânia nos arquivos do
Departamento de Estado dos EUA expõe os argumentos que explicam o bom relacionamento com a
Jordânia, todos ligados, mais ou menos diretamente, a Israel, mas sem jamais mencionar Israel: “A
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política dos EUA busca reforçar o comprometimento da Jordânia com a paz, a estabilidade e a
moderação. O processo de paz e a oposição da Jordânia ao terrorismo seguem e indiretamente reforçam
interesses mais amplos dos EUA. Assim também, mediante assistência militar e econômica e por vias de
cooperação política, os EUA têm ajudado a Jordânia a manter-se estável e próspera.”
As referências a “reforçar” o comprometimento da Jordânia “com a paz, a estabilidade e a moderação” e
à manutenção da estabilidade e da prosperidade da Jordânia dizem, de fato, sobre a Jordânia ajudar a
manter a área – e sobretudo a fronteira com Israel – calma. Assim também, a expressão “indiretamente
reforçam interessem mais amplos dos EUA” refere-se ao compromisso de cuidar da segurança de Israel.
“Moderação”, no jargão do Departamento de Estado, é palavra-código para defesa dos interesses de
Israel; “estabilidade” significa sempre ambiente seguro que atenda, primeiro, aos interesses de Israel.
Pode-se afirmar com segurança que nem o Líbano nem a Jordânia jamais teriam a importância que têm
para os EUA, se os EUA não considerassem importante manter calmas as áreas de fronteira desses dois
países com Israel, sempre considerada, só, a segurança de Israel. O mesmo não se pode dizer da Arábia
Saudita, onde os EUA têm interesses vitais no petróleo, além da preocupação com a segurança de Israel.
Mas, ao mesmo tempo, os EUA controlaram todos os impulsos dos sauditas na direção de defender os
palestinos ou quaisquer outros árabes sob sítio dos israelenses, e puseram os sauditas bem alinhados,
pelo menos implicitamente, ao lado de Israel, em várias questões – seja quando Israel atacou o Líbano
em 2006 seja em 2008-2009, quando Israel massacrou Gaza seja, ainda, no que tenha a ver com a
suposta “ameaça iraniana”. Vai muito longe o tempo em que os sauditas enfureceram-se por conta do
apoio dos EUA a Israel, a ponto de imporem um embargo ao petróleo, como aconteceu em 1973.
Os documentos recentemente divulgados por WikiLeaks de telegramas do Departamento de Estado e,
sobretudo, a divulgação pela rede al-Jazeera de minutas de reuniões das negociações entre Israel e
palestinos ao longo da última década também mostram com ofuscante clareza o quanto os EUA jogam
duro, e que o jogo duro sempre funcionou, para ajudar Israel no processo de negociação com palestinos.
O apoio dos EUA a Israel jamais foi segredo, e cada vez é menos secreto ao longo dos últimos anos,
mas os telegramas vazados fazem ver um quadro muito mais dramático do total desdém dos EUA pelos
interesses dos palestinos nas negociações e o quanto os palestinos foram deixados sem qualquer poder
de barganha ante a recusa de Israel a qualquer concessão.
Chama a atenção, naqueles documentos, que os EUA fazem o papel de “advogado de Israel” – descrição
cunhada por Aaron David Miller, depois de trabalhar nas negociações durante a era Clinton. E é o
mesmo papel sempre, seja nos governos Bill Clinton ou George W. Bush ou Barack Obama: sempre
prevalecem os interesses e demandas de Israel.
Fora do mundo árabe, também a política dos EUA para o Irã é ditada praticamente toda, por Israel. A
pressão para atacar o Irã – seja ataque direto dos EUA, ou apoio dos EUA a ataque de Israel – que está
em pauta há quase oito anos, desde o início da guerra no Iraque, sempre veio toda de Israel e de seus
apoiadores nos EUA. É pressão declarada, e é impossível negar o quanto Israel pressionou para que os
EUA atacassem o Iraque.
Se algum dia os EUA se envolverem em ataque militar contra o Irã, diretamente, ou como força de
apoio dos israelenses, acontecerá porque Israel decidiu que acontecesse. Se não houver ataque algum
contra o Irã, como Aluf Benn prevê que não haverá, foi porque Israel tremeu, agora, depois de iniciada a
Revolução Egípcia.
103
Israel e o desejo de defender a própria hegemonia regional foram fatores substancialmente importantes
também para arrastar os EUA à guerra no Iraque – embora haja quem discorde, entre progressistas e
conservadores, que entendem que aí haveria em jogo outras forças além das relações EUA-Israel-árabes.
Meu interlocutor progressista, por exemplo – que fez valente oposição ao envolvimento dos EUA na
aventura do Iraque e também se opõe fortemente a qualquer ataque ao Irã, e está sem dúvida
profundamente perturbado por os EUA não terem pressionado para a imediata partida de Mubarak – não
concorda completamente com minha ideia de que Israel e seus apoiadores nos EUA são fator a
considerar no envolvimento dos EUA na guerra do Iraque. No início da discussão, ele falou longamente
sobre os neoconservadores, seu antigo think tank “Project for a New American Century (PNAC)” e o
manifesto interesse do PNAC dos neoconservadores em fazer avançar a hegemonia global dos EUA; e
defendeu a ideia de que, quando George W. Bush chegou ao poder, todo um completo think tank
instalou-se na administração. Mas, embora reconheça os objetivos dos neoconservadores e o sucesso
que alcançaram na implantação daqueles objetivos, nem assim concorda com que o PNAC e os
neoconservadores também estivessem tão interessados em promover a hegemonia regional de Israel
quanto em promover o imperialismo norte-americano.
Quando, contudo, observei que Bush não instalou só um think tank dentro do governo, mas também,
simultaneamente, instalou efetivamente o lobby israelense, ou a ala mais ativa daquele lobby, nos mais
altos escalões do governo, nos conselhos políticos, meu amigo logo concordou: oh, claro, ele concordou
com vigor, eles (os neoconservadores) “são todos Likudniks.” Há aqui alguma espécie de desconexão,
que meu interlocutor parece não perceber: além de reconhecer a íntima ligação entre os
neoconservadores e Israel, ele também reconhece que os neoconservadores trabalharam, de algum
modo, por Israel. Como se tudo se justificasse, porque escreveram suas simpatias pró-Israel nas portas
da Casa Branca e do Pentágono, ao assumir os cargos. Como se tudo se justificasse por declararem que
abdicavam de todas as suas longas histórias de serviços prestados a Israel e de orientação dada há anos a
políticos israelenses – orientação que incluiu conselho muito real, por escrito, em 1996, para que Israel
atacasse o Iraque.
Sempre foi muito claro para muitos analistas, durante anos, até décadas, que os EUA favorecem Israel,
mas a realidade jamais foi revelada tão explicitamente, até que eventos recentes puseram a nu o
relacionamento, e trouxeram à luz o fato de que no centro de praticamente todos os movimentos dos
EUA na região sempre está Israel.
Sempre foi tabu falar dessas realidades, tabu que amordaçou gente como o meu interlocutor. Ninguém
fala contra Israel, porque quem fale sempre poderá ser dito antissemita, acusado de “selecionar” Israel
como alvo preferencial de críticas. A imprensa não discute Israel nem noticia o que Israel faz no Oriente
Médio e, nunca, o que Israel faz mais diretamente aos palestinos que vivem sob ocupação militar,
porque o tema sempre dispara cartas de leitores indignados e cancelamento de assinaturas de jornais e
revistas, dos apoiadores de Israel que militam nos EUA. Candidatos a deputado e senador poriam em
risco as gordas doações de campanha, se dissessem a verdade sobre Israel. E assim aconteceu que Israel
sumiu do radar da opinião pública. Muitos progressistas até mencionam Israel “de passagem”, como
meu amigo, mas nada além disso. E a crítica não avança.
Ultimamente, porque já não se fala sobre Israel, já ninguém nem pensa sobre Israel. Assim, já ninguém
nem vê que Israel é o fator determinante de praticamente todas as políticas e ações dos EUA no Oriente
Médio.
É tempo de começar a falar de Israel. Todos, no Oriente Médio, já começam a ver o que há para ver,
como a Revolução Egípcia deixou tão claro. É provável que muitos outros, em todo o mundo, também
104
estejam vendo. Temos de começar a ouvir a voz do povo – não dos políticos e líderes, que vivem de
dizer o que supõem que nos interesse ouvir.
(*) Kathleen Christison é ex-analista política da CIA. É co-autora de Palestine in Pieces, com Bill
Christison, seu marido.Recebe e-mails em [email protected]
19/02/2011 |
A primavera árabe se espalha
De onde o continente africano encontra o oceano Atlântico, no Marrocos, cruzando a extensão dos
mares Mediterrâneo e Vermelho, englobando a península arábica para atravessar o golfo Pérsico até
os limites da Ásia, no Irã, mais de 300 milhões de pessoas vivem em uma região sob ameaça de
convulsão social decorrente de eventos que podem representar a maior redistribuição de forças no
tabuleiro geopolítico global desde o fim do comunismo no Leste Europeu. A expressão barril de
pólvora nunca fez tanto sentido. O artigo é de Wilson Sobrinho.
Wilson Sobrinho (*)
A Primavera Árabe, como parte da imprensa tem se referido aos acontecimentos iniciados em dezembro
na Tunísia e que na metade de fevereiro derrubaram o governo do Egito, transformou-se em uma
rebelião tão grande que agora já transborda os limites daquele que é um dos verdadeiros parâmetros de
grandeza do planeta Terra, o deserto do Saara.
De onde o continente africano encontra o oceano Atlântico, no Marrocos, cruzando a extensão dos
mares Mediterrâneo e Vermelho, englobando a península arábica para atravessar o golfo Pérsico até os
limites da Ásia, no Irã, mais de 300 milhões de pessoas vivem em uma região sob ameaça de convulsão
social decorrente de eventos que podem representar a maior redistribuição de forças no tabuleiro
geopolítico global desde o fim do comunismo no Leste Europeu. A expressão barril de pólvora nunca
fez tanto sentido.
Argélia – Os argelinos primeiro foram as ruas para protestar contra a alta no preço dos alimentos em
janeiro último. Os confrontos deixaram um saldo de 5 mortos e 800 feridos. No sábado (12/02) depois
da queda do governo egípcio, mais protestos foram convocados pela oposição. Duas mil pessoas
compareceram às ruas da capital Argel. 30 mil soldados os esperavam. Relatos dão conta de que 350
pessoas foram presas na ocasião. Mais protestos estão programados para este final de semana, apesar do
estado de emergência, em vigor desde 1992, que proíbe manifestações públicas no país. Na segunda
cidade da Argélia, Orã, por exemplo, as autoridades deram permissão para manifestações, contanto que
aconteçam em locais fechado.
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A dissolução da lei de emergência e a saída do presidente Abdelaziz Bouteflika são algumas das
bandeiras dos manifestantes. Bouteflika, que está no poder desde 1999 e recentemente alterou a regra
que limitava o número de vezes que pode concorrer à reeleição, anunciou que deverá revogar a lei de
emergência em semanas. Nos anos 1990, uma guerra civil ceifou entre 150 e 200 mil vidas no país.
Arábia Saudita – Parcos foram os eventos até agora no país que guarda em seu subsolo um quinto das
reservas de petróleo do mundo e que é o alicerce maior dos EUA no Oriente Médio. E poucos acreditam
que o pavio saudita possa ser acesso, mas diante de tanta instabilidade ninguém ficará surpreso caso isso
aconteça.
Neste sábado (19/02), membros da minoria xiitas do país teriam organizado uma manifestação pacífica
e silenciosa em apoio aos seus pares de Bahrein, relata a agência Reuters.
Bahrein – As manifestações começaram no dia 14 de fevereiro, três dias depois da queda de Cairo.
Quatro pessoas morreram quando as forças do governo tentavam retirar manifestantes da praça Pérola,
na quinta-feira (17/02), em Manama, a capital dessa ilha do golfo Pérsico que abriga a Quinta Frota da
marinha dos EUA. No enterro dos mortos, mais violência resultou em pelo menos 50 feridos. O
governo, que primeiro pediu que os manifestantes abandonassem as ruas, passou chamar o diálogo,
rejeitado pelas forças de oposição sob o argumento de que não há conversa possível com o exército nas
ruas.
Com 1,2 milhões de habitantes apenas, essa ilha do golfo Pérsico espremida entre o Catar e a Arábia
Saudita está longe de ser a mais desimportante das repúblicas em convulsão. Analistas alertam que
Bahrein pode representar a porta de entrada da Arábia Saudita na crise. Já que as demandas da maioria
xiita do país são semelhantes a dos xiitas árabes, minoria concentrada na região leste do país.
Egito – Uma semana depois da queda de Hosni Mubarak – o mais espetacular dos eventos alcançados
pelos manifestantes nessa onda de revolta árabe até o momento – milhares de pessoas voltaram à praça
Tahrir para celebrar o feito. Mas a manifestação pode ser compreendida também como um sinal de
alerta às forças armadas que tomaram o poder depois da saída de Mubarak. Depois de derrubar um
regime de 30 anos, em 18 dias de protestos, os egípcios sabem que sua revolução ainda não terminou até
que o poder provisório dê lugar a um com regras bem claras e estabelecidas.
Iêmen – no sul da península arábica, esse país tem, segundo a revista britânica The Economist, o maior
potencial para ruptura social entre todos os envolvidos na revolta até agora. Há 32 anos no poder, Ali
Abdullah Saleh anunciou em início de fevereiro que não irá buscar um novo mandato em 2013, nem irá
apontar seu filho como herdeiro político. O comprometimento veio depois de uma manifestação que
levou 16 mil pessoas às ruas da capital, Sana, pedindo a queda do governo.
No dia seguinte ao anúncio, 20 mil pessoas voltaram às ruas da capital e de outras cidades para reforçar
o pedido de fim do regime. Depois da queda de Mubarak, no Egito, manifestações diárias vem
acontecendo no Iêmen. A maior delas, na sexta-feira, 18, quando milhares de manifestantes antigoverno
foram às ruas da capital. Reprimidos pelo exército e por ativistas pró-governo, que chegaram a atirar
uma granada em um grupo de pessoas, a contagem de mortos entre os manifestantes já chega a 12.
Irã – Embora aplauda o levante popular em outras partes do mundo islâmico, Teerã – que divide com a
Líbia o posto de maior inimigo dos EUA na região – não quer que o mesmo aconteça em seu território.
Por outro lado, a oposição pretende aproveitar a onda de rebeldia para recobrar forças e voltar a desafiar
o governo de Mahmoud Ahmadinejad.
106
Dois manifestantes foram mortos na segunda-feira, dia 14, na capital, em confrontos envolvendo grupos
de oposição e forças do governo. Como resposta, a oposição está chamando para domingo, dia 20, uma
manifestação contra o governo, que por sua vez colocou os líderes oposicionistas em prisão domiciliar.
Jordânia – Outro país onde as manifestações começaram em janeiro, fomentadas por altas nos preços
de comida e energia. Em 28 de janeiro, 3,5 mil ativistas tomaram as ruas da capital, Amã, exigindo a
saída do primeiro-ministro e uma ação mais forte do governo em relação ao desemprego e a alta do
custo de vida. O rei Abdullah II foi rápido ao intervir e a dissolução do governo foi anunciada em
começo de fevereiro. As manifestações seguiram, agora com a oposição pedindo reformas políticas e
democracia.
O único confronto registrado até agora na Jordânia aconteceu na sexta-feira, 18 de fevereiro, quando um
grupo de manifestantes favoráveis ao governo atacou os oposicionistas com paus e pedras, até a polícia
intervir.
Líbia – Excluindo-se o rei da Tailândia e a rainha da Inglaterra, ninguém está no poder há tanto tempo
quanto Muammar al-Gaddafi. O homem que comanda a Líbia desde o fim dos anos 1960 viu a revolta
oposicionista ser incensada pelos eventos do Egito e da Tunísia. Desde o dia 15 de fevereiro, terça-feira,
as manifestações contra Gaddafi são diárias no país principalmente na cidade de Bengasi, a segunda
maior do país. Segundo agências internacionais, mas de 80 pessoas já teriam morrido em confrontos
entre manifestantes e forças do governo.
Em Trípoli, porém, não há relatos de grandes protestos até o momento e e o único evento relacionado à
crise foi uma resposta de seguidores do governo ao protestos convocados pela oposição. Há relatos de
que o governo teria bloqueado o acesso à internet no país, ou pelo menos a sites como Facebook e
Twitter, armas reconhecidas dos oposicionistas em outros países.
Marrocos – Os protestos em massa no país ainda não ganharam as ruas, mas estão prestes a fazê-lo. A
oposição está convocando uma manifestação neste domingo (20/02). Organizados via Internet os
manifestantes afirmam não ser um movimento antimonarquia e que apenas querem “um governo que
represente as pessoas e não a elite”, como descreveu para a Associated Press nessa semana um dos
membros do grupo chamado 20 de Fevereiro.
Tunísia – Quando Mohamed Bouazizi colocou fogo em si mesmo, no dia 17 de dezembro de 2010,
como um ato de desespero depois de ter suas mercadorias confiscadas pelas autoridades policiais da
Tunísia, ele não teria como imaginar o que se seguiria. O ato do jovem vendedor de rua serviu de
gatilho para a Primavera Árabe. Menos de um mês depois, o presidente de mais de 24 anos no comando
do país africano havia sido colocado para correr e os portões do inferno haviam sido abertos para todos
os déspotas da região.
Mais de 200 pessoas morreram no processo, que ainda não acabou. Apesar da mudança de governo, os
manifestantes tunisianos seguem mobilizados para garantir que antigos membros do governo não voltem
à cena e que a transição para a democracia ocorra de fato.
(*) Correspondente da Carta Maior em Londres.
19/02/2011 |
107
Imagens de um massacre no reino do Bahrein
A violenta repressão militar aos protestos no reino do Golfo Pérsico deixou dezenas de mortos na
capital. A insatisfação chegou aos reinos petroleiros e absolutistas, mas a resposta foi contundente. O
exército de Bahrein tomou as ruas e abriu fogo com armas de guerra contra os manifestantes pacíficos.
Os sheiks da região fizeram acordo para endurecer suas políticas contra os protestos. Há muita coisa
em jogo aqui. Esta é a primeira insurreição séria nos ricos estados do Golfo, mais perigosa para os
sauditas que os islamistas que tomaram o centro de Meca há mais de 30 anos. O artigo é de Robert
Fisk.
Robert Fisk
“Massacre, é um massacre”, gritavam os médicos. Três mortos. Quatro mortos. Um homem passou pela
minha frente em uma maca na sala de emergências, com o sangue escorrendo no piso, resultado de um
ferimento de bala na perna. A poucos metros dali, seis enfermeiros lutavam pela vida de um homem
pálido, barbudo, com sangue saindo do peito. “Tenho que leva-lo para a sala de cirurgia agora”, gritava
um médico. “Não há tempo, ele está morrendo!”
Outros estavam ainda mais perto da morte. Um pobre jovem – 18, 19 anos, talvez – tinha um terrível
ferimento na cabeça, um buraco de bala na perna e sangue no peito. O médico ao seu lado voltou-se
para mim, com as lágrimas caindo sobre o avental manchado de sangue. “Tem fragmentos de bala no
cérebro e não consegui tirar os pedaços, os ossos do lado esquerdo do crânio estão totalmente
destroçados. Suas artérias estão todas rompidas. Não posso ajudar”. O sangue caía como uma cascata no
solo. Era doloroso, vergonhoso e indignante. As vítimas não estavam armadas, mas acompanhavam o
cortejo voltando de um funeral. Muçulmanos xiitas mortos por seu próprio exército bahreini na tarde de
sexta-feira.
Um maqueiro estava regressando junto com milhares de homens e mulheres do funeral em Daih de um
dos manifestantes mortos na Praça Pearl nas primeiras horas do dia anterior. “Decidimos caminhar até o
hospital porque sabíamos que havia uma manifestação. Alguns de nós levávamos ramos como presentes
de paz que queríamos dar aos soldados perto da praça, e estávamos gritando ‘paz, paz’. Não foi uma
provocação – nada contra o governo. Mas os soldados começaram a disparar. Um deles disparou uma
metralhadora de cima de um veículo blindado. Havia policiais, mas eles se foram quando os soldados
começaram a disparar. Mas, sabe, o povo em Bahrein mudou. Não queriam sair correndo. Decidiram
enfrentar as balas com seus corpos”.
A manifestação no hospital havia atraído milhares de manifestantes xiitas – incluindo centenas de
médicos e enfermeiras de toda Manama, ainda com seus aventais brancos, que exigiam a renúncia do
ministro da Saúde de Bahrein, Faisal Mohamed al Homor, por não permitir que as ambulâncias
buscassem os mortos e feridos do ataque da polícia contra os manifestantes da Praça Pearl.
Mas sua fúria se tornou quase histeria ontem, quando trouxeram os primeiros feridos. Até cem médicos
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se aglomeraram nas salas de emergência, gritando e maldizendo o rei e o governo enquanto os
paramédicos lutavam para empurrar as macas carregadas com as últimas vítimas através da multidão
que gritava. Um homem tinha um grande curativo no peito, mas o sangue já estava manchando seu
torso, pingando da maca. “Ele tem balas em seu peito e agora há ar e sangue em seus pulmões”, me
disse a enfermeira ao seu lado. “Creio que o perdemos”. Assim chegou ao centro médico de Sulmaniya
a ira do exército de Bahrein e, imagino, a ira da família Al Khalifa, incluindo rei.
O pessoal sentia que eles também eram vítimas. E tinham razão. Cinco ambulâncias enviadas para a rua
– as vítimas de sexta-feira receberam os disparos em frente a uma estação de bombeiros, perto da Praça
Pearl -, mas foram detidas pelo exército. Momentos mais tarde, o hospital descobriu que todos seus
celulares estavam fora do ar. Dentro do hospital havia um médico, Sadeq al Aberi, ferido pela polícia
quando foi ajudar os feridos na manhã de quinta.
Os rumores corriam como um rastilho de pólvora em Bahrein e o pessoal médico insistia em que até 60
cadáveres tinha sido retirados da Praça Pearl na quinta pela manhã e que a multidão viu a polícia
carregar corpos em três caminhões refrigerados. Um homem me mostrou uma foto em seu celular na
qual podia-se ver claramente os três caminhões estacionados atrás de vários veículos blindados do
exército. Segundo outros manifestantes, os veículos, que tinham placas da Arábia Saudita, foram vistos
mais tarde na estrada para aquele país. É fácil descartar essas histórias macabras, mas encontrei um
homem – outro enfermeiro no hospital que trabalha para as Nações Unidas – que me disse que um
colega estadunidense chamado “Jarrod” tinha filmado os corpos quando estavam sendo carregados nos
caminhões, mas foi preso pela polícia e não foi mais visto.
Por que a família real do Bahrein permitiu que seus soldados abrissem fogo contra manifestantes
pacíficos? Atacar civis com armas de fogo a menos de 24 horas das mortes anteriores parece um ato de
loucura. Mas a pesada mão da Arábia Saudita pode não estar muito longe. Os sauditas temem que as
manifestações em Manama e nas cidades do Bahrein acendam focos igualmente provocadores no leste
de seu reino, onde uma significativa minoria xiita vive ao redor de Dhahran e outras cidades perto da
fronteira com o Kuwait. Seu desejo de ver os xiitas de Bahrein sufocados tão rápido seja possível ficou
claro quinta-feira, na cúpula do Golfo, com todos os sheiks e príncipes concordando que não deveria
haver uma revolução ao estilo egípcio em um reino com uma maioria xiita de cerca de 70% e uma
pequena minoria sunita que inclui a família real.
No entanto, a revolução do Egito está na boca de todos em Bahrein. Fora do hospital, estavam gritando:
“O povo quer derrubar o ministro”, uma ligeira variação dos cantos dos egípcios que se libertaram de
Mubarak, “O povo quer derrubar o governo”. E muitos na multidão disseram – como disseram os
egípcios – que tinham perdido o medo das autoridades, da polícia e do exército.
A polícia e os soldados em relação aos quais agora expressam tamanho desgosto eram bastante visíveis
ontem nas ruas de Manama, olhando com ressentimento desde seus veículos blindados azuis e tanques
fabricados nos Estados Unidos. Parecia não haver armas britânicas à vista – ainda que estes sejam os
primeiros dias de protesto e tenham aparecido blindados feitos na Rússia ao lado dos tanques M-60. No
passado, as pequenas revoltas xiitas eram cruelmente reprimidas no Bahrein com a ajuda de um
torturador jordaniano e um alto funcionário da inteligência, um ex-oficial da Divisão Especial Britânica.
Há muita coisa em jogo aqui. Esta é a primeira insurreição séria nos ricos estados do Golfo, mais
perigosa para os sauditas que os islamistas que tomaram o centro de Meca há mais de 30 anos. A família
de Al Khalifa sabe que os próximos dias serão muito perigosos para ela. Uma fonte confiável me disse
que na quarta-feira à noite um membro da família Al Khalifa – que seria o príncipe herdeiro – manteve
uma série de conversações telefônicas com um proeminente clérigo xiita, o líder do partido Wifaq, Ali
Salman, que estava acampando na Praça Pearl. O príncipe aparentemente ofereceu uma série de
reformas e mudanças no governo que ele pensou que o clérigo tinha aprovado. Mas os manifestantes
permaneceram na praça. Exigiam a dissolução do Parlamento. E logo veio a polícia.
Nas primeiras horas da tarde, cerca de 3 mil pessoas se concentraram em apoio à família real e muitas
bandeiras nacionais apareceram nas janelas de automóveis. Esta pode ser a capa da imprensa bahreini
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neste sábado, mas não terminará com o levante xiita. E o caos da noite no maior hospital de Manama – o
sangue escorrendo dos feridos, os gritos pedindo ajuda nas macas, os médicos que nunca tinham visto
tantos feridos à bala; um deles simplesmente sacudiu a cabeça incrédulo quando uma mulher teve um
ataque ao lado de um homem empapado em sangue – somente irritou ainda mais os xiitas desta nação.
Um médico que disse se chamar Hussein me deteve quando saía da sala de emergência porque queria
me explicar sua revolta. “Os israelenses fazem esse tipo de coisa com os palestinos, mas aqui são árabes
disparando contra árabes”, bradou em meio à gritaria. “Este é o governo bahreiní fazendo isso com seu
próprio povo. Estive no Egito há duas semanas, trabalhando no hospital Qasr el Aini, mas as coisas aqui
estão muito pior”.
(*) Publicado originalmente no The Independent (Inglaterra), Especial para Página/12 (Argentina).
19/02/2011 |
Revolta no Egito é reação a uma overdose de opressão
A revolução não caiu do céu. Os protestos e as campanhas políticas se construíram ao longo da última
década. Muitos citam as manifestações dos egípcios contra a invasão anglo-americana do Iraque em
2003 como um acontecimento divisor de águas. Em 2006, houve demonstrações massivas de
solidariedade ao Líbano durante o ataque de Israel. E dois anos mais tarde, em solidariedade com
Gaza. Essas manifestações criticavam diretamente a política externa de Mubarak. Agora, egípcios
tiveram a coragem de enfrentar e derrubar uma força policial violenta. O artigo é de Amira Hass.
Amira Hass - Haaretz
CAIRO - "Eu sabia que tinha de documentar cada momento da revolução, mas eu quis vivê-lo, não
observá-lo. Agora é difícil para mim lembrar o que aconteceu, é como tivesse se passado há dez anos,
não há duas ou três semanas”, disse M., um ativista e professor experiente de ciências sociais numa
universidade egípcia. Todo mundo tem um momento em que ele ou ela entende que não há volta. Esses
momentos vieram de novo à tona nas conversas que seguem.
O momento de M., por exemplo, veio quando sua filha de 5 anos entoou uma canção que dizia: “O povo
quer o fim do regime” – e ficou a repetindo. Nos primeiros dois ou três dias de manifestações, M. pediu
a sua filha para não cantar esse slogan fora de casa. Os membros do aparato de segurança estatal,
ativistas do partido político da situação – não se sabia quem poderia escutar e machucá-la.
“Nas últimas décadas houve vários protestos populares de várias formas”, observa M., “mas com a
demonstração de 25 de janeiro eu senti que havia uma mudança quantitativa clara”.
Ora, nas palavras do Professor Khaled Fahmy, chefe do departamento de história da Universidade
Americana do Cairo: “De repente, não são 500 manifestantes cercados por 5 000 policiais; de repente
estamos em maior número que eles e sabemos que isso está acontecendo em outros lugares, ao mesmo
tempo”.
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Ainda assim, M. preferiu que sua filha confinasse sua subversão verbal ao ambiente seguro de casa. Mas
em 28 de janeiro, a primeira sexta-feira de manifestações, diz M., “Eu me dei conta de que a mudança
era qualitativa, não só quantitativa”. Não havia mais necessidade de censurar a pequena.
“Há momentos inequívocos: o pânico da polícia, a coragem dos manifestantes”, explica Fahmy. “Nessa
sexta a polícia bateu em retirada – na verdade, só por meia hora, e então retornaram com reforço – mas
foi um sentimento maravilhoso. Nós os empurramos de volta à Ponte Galaa. Esta é uma das muitas
ironias: "galaa" significa evacuação, e neste caso se refere à expulsão dos britânicos em 1954. E agora
somos nós que estamos empurrando a polícia egípcia. Eu estava debaixo da ponte; um amigo jornalista
viu a partir de um alto edifício o que não pude ver: coluna após coluna de policiais em retirada,
enquanto nós, os cidadãos, pressionávamo-los adiante. ‘Eu tinha lágrimas nos meus olhos, comecei a
chorar’, ele me disse”.
A revolução não caiu do céu. Os protestos e as campanhas políticas se construíram ao longo da última
década. Muitos citam as manifestações dos egípcios contra a invasão anglo-americana do Iraque em
2003 como um acontecimento divisor de águas. “Éramos 20 000 e parecia que havia um número imenso
dos nossos”, S., 31, um militante dos direitos humanos lembra, com um sorriso. “Aquela também foi a
primeira vez que o povo denunciou Hosni Mubarak."
O movimento pró-democracia Kefaya (Chega) impulsionou essas demonstrações, relata S. Mesmo que
sua força tenha diminuído desde a sua fundação, ao longo do tempo surgiram outros grupos de jovens.
As eleições presidenciais de 2005 e as eleições parlamentares de 2010, ambas antidemocráticas e
eivadas de fraude e de práticas desonestas levaram os ativistas para as ruas. As eleições do ano passado
deixaram S. se sentindo frustrado e desesperançado. No entanto, a juventude trouxe encorajamento,
porque o sistema tinha sido exposto em toda a sua feiura.
Em 2006, houve demonstrações massivas de solidariedade ao Líbano durante o ataque de Israel. E dois
anos mais tarde, em solidariedade com Gaza. Essas manifestações criticavam diretamente a política
externa de Mubarak.
D., uma artista de 49 anos, diz que é uma das pessoas “que sempre se manifestou ao longo dos últimos
30 anos, mas sentia uma frustração constante”. As manifestações “eram conduzidas como um ritual: a
praça escolhida, a polícia em volta, um punhado de manifestantes marchando em direção à polícia e
sendo presas. Não havia tentativa de mudar o estilo, nenhuma imaginação”.
A primeira vez que ela notou uma mudança foi em 2003, quando os manifestantes conseguiram
confundir a polícia. Eles anunciaram que estariam se encontrando na mesquista de Al-Azhar, mas
estavam simultaneamente em várias mesquitas. A criatividade que começou a se desenvolver na última
década amadureceu e virou as manifestações na Praça Tahrir.
Valentia crescente
O evento determinante mais recente ocorreu em 6 de junho de 2010. Um jovem chamado Khaled Said
estava sentado num cybercafé e dois policiais entraram e lhe pediram dinheiro. Ele disse que não tinha.
Eles o espancaram até a morte.
“Assassinatos similares aconteceram antes”, explica D. “Não está claro porque esse caso particular
mobilizou tanta raiva. Não foi o espancamento em si, mas o fato de que a polícia poderia aparecer e
assalta-lo, dizendo que você era culpado de algo e não serem punidos por isso. Um grupo no Facebook
foi criado com o nome ‘Somos todos Khaled Said’. Agora há 800 000 membros neste grupo. Mais tarde,
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as pessoas tomaram coragem de irem para as margens do Nilo e para a beira-mar, em sua memória. A
instrução era vestir preto e permanecer em silêncio. Não era para ser uma demonstração e portanto não
seria dispersa. Não era para ficarmos num único lugar, mas para nos espalharmos e ganharmos
visibilidade”.
As pessoas compareceram, entre elas D. e suas amigas. Não havia muitas delas, mas causaram impacto.
Mais tarde, protestos similares ocorreram.
Diz-se que a Revolução da Praça Tahrir foi fomentada pela classe média e pelos trabalhadores em
situação privilegiada. Mas muitos dos ativistas atribuem sua experiência e coragem em parte às greves
dos trabalhadores, que se espalharam em 1998.
“O projeto de reestruturação econômica neoliberal [no Egito] está sendo levado a cabo desde 1991. O
crescimento da economia tem sido impressionante... A classe média alta e as elites prosperaram. Mas
houve muito pouca distribuição de renda”, escreveu Joel Beinin, historiador da Universidade de
Stanford, em 31, no Foreign Policy . “De acordo com o Banco Mundial, mais de 40% dos egípcios
vivem próximos à linha de pobreza. O preço dos alimentos disparou. Consequentemente, os salários da
maior parte dos trabalhadores é insuficiente para sustentar suas famílias”.
Os cortes no orçamento dos serviços públicos destruíram a rede de proteção social criada pelo regime
populista-autoritário de Nasser. “O que restou foi uma cleptocracia autoritária”, escreveu Beinin.
'Conjecturas reacionárias’
A onda de greves que atingiram o pico em 2004, se seguiram à instalação do “governo do homem de
negócios”, naquele julho. “Mais de 2 milhões de trabalhadores participaram e mais de 3 000 ações
coletivas nesse período”, de acordo com Beinin.
O governo atendeu a uma parte substancial das exigências, esperando assim evitar que questões
econômicas se tornassem luta política.
Um resultado desses acontecimentos foi a formação de duas centrais sindicais independentes, dos
trabalhadores da construção civil, em 2008 e dos técnicos em saúde, em dezembro de 2010. O governo
também foi forçado a quadruplicar o salário mínimo mensal para 400 libras egípcias.
Em 30 de janeiro, em plena revolução na Praça Tahrir, as duas centrais independentes e representativas
de algo como quase uma dúzia de cidades industriais declarou sua intenção de estabelecer uma
federação geral do trabalho, separada da atual federação do governo. De acordo com a lei egípcia, o
estabelecimento de uma central sindical independente, baseada num movimento popular (e não numa
diretiva governamental) é ilegal, observou Beinin.
“Os intelectuais egípcios são propensos a conjeturas reacionárias”, afirma o prof. Fahmy. “Eles
confirmam o comentário do geógrafo Gamal Hamdan a respeito da suposição de que os egípcios são
dóceis. Mesmo os esquerdistas questionam por que os egípcios não se revoltam. Eu respondo dizendo
que houve muitos levantes nos últimos 200 anos, mas os livros de história não os mencionam,
ostensivamente porque fracassaram, mas na verdade porque voltavam-se contra tiranos locais, não
opressores externos”.
De fato, em 1821 houve uma revolta de grande escala no Alto Egito, contra o alistamento obrigatório,
introduzido pelo dirigente político da época, Muhammad Ali, e contra a taxação e o governo locais.
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Aproximadamente 20 000 pessoas tomaram parte na revolta, num período em que a população do Egito
era de 2,5 milhões. Quatro mil pessoas foram mortas na supressão dessa revolta.
Fahmy cita uma longa lista de levantes similares ao longo do século XIX. Ele pesquisou o exército
egípcio nessa época e atualmente está estudando a história da tortura no seu país. Essa é a sua maneira
de mostrar que o estado não apenas controla os cidadãos, mas também invade seus corpos. Nos arquivos
da polícia ele encontrou uma série valiosa de testemunhos assombrosos das famílias que pediam que a
morte dos seus entes fossem investigadas e os torturadores, punidos.
“Famílias da zona rural, iletrados e pobres insistiam para que as autópsias fossem feitas, a fim de que se
provasse que a morte não tinha sido por causas naturais, mesmo sendo a autópsia contrária aos seus
costumes religiosos e tradicionais”, disse.
Em 1857, um proprietário de terras próximo à família que comandava o país sentenciou um escravo
negro a 1500 chibatadas por ter ido ao Cairo sem permissão. Os companheiros desse escravo
protocolaram uma reclamação contra esse proprietário, que foi expulso do país como punição. Em 2006,
150 anos depois, um menino de 8 anos de uma pequena vila no Delta furtou uma caixa de fósforos de
um mercadinho. Preso por roubo, ele foi espancado numa delegacia de polícia e depois caiu numa rua
do Cairo. Por muita sorte, um motorista da vila encontrou o menino e o levou para a sua mãe. Os
médicos no hospital disseram que não poderiam salvá-lo, mas filmar suas últimas horas. A mãe da
criança, uma campesina analfabeta, pediu que o corpo de seu filho fosse exumado para uma autópsia.
Ela enviou petições repetidas vezes a várias autoridades - a última ao próprio presidente Mubarak.
Ninguém prestou atenção.
“No século XIX esse tipo de pedido era atendido; havia um sistema judicial receptivo”, diz Fahmy, com
raiva. “Esse é o legado de Mubarak: o que ele conseguiu fazer foi minar as instituições do estado –
inclusive o sistema judicial – e a moralidade”.
Fahmy diz que é por isso que o caso de Khaled Said é tão importante para entender o levante. O estado
diz que Said foi morto por causa de drogas. A família pediu uma autópsia. “Não é só o fato de que ele
foi espancado até a morte, é uma questão de a quem pertence o corpo”, diz Fahmy. “O estado diz ter
propriedade, mas o povo diz ‘é o nosso corpo’”. Centenas de milhares de jovens egípcios identificam-se
com esse caso, porque eles sentiram na pele essa realidade.
Os dois policiais suspeitos de assassinarem Said foram presos, mas escaparam da cela durante as
manifestações. Anos de violência policial engendraram um poderoso ódio pelas forças de segurança.
Por isso que a contenção demonstrada pelos manifestantes frente à polícia nas últimas semanas é
duplamente interessante. Fahmy testemunhou dois exemplos nos quais policiais que atravessavam uma
manifestação foram quase linchados. Em ambos os casos foi suficiente alguém dizer “silmiye” (quer
dizer, não pela violência, por meios pacíficos) para todo mundo recuar à “posição padrão”, que é como
Fahmy chama.
“É como se houvesse uma decisão coletiva na praça, sem ordens vindas de cima, para nos
comportarmos da maneira oposta à que o regime tinha sido conosco”, diz D.
(*) Amira Hass é jornalista israelense, colunista do Haaretz.
19/02/2011 |
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Egito: revolução ou golpe?
Apesar da euforia na mídia, desde a saída de Mubarak existe um elevado ceticismo entre especialistas
no Egito sobre as intenções dos militares. Jon Alterman, do Centro para Estratégias e Estudos
Internacionais, por exemplo, alerta que “a ascensão do Comando Militar” pode resultar em um
“gigantesco passo atrás” , enquanto Reuel Marc Gerecht, um ex-funcionário da CIA que agora está
com o neoconservadora Fundação para a Defesa das Democracias, prevê que o exército irá “testar o
quanto de autocracia (e riqueza) poderá manter em mãos”.
Jim Lobe - IPS
WASHINGTON – Dias depois da impactante saída de Hosni Mubarak do palácio presidencial em
Cairo, analistas ainda estão tentando descobrir se sua deposição representa a revolução que precede o
nascimento de um governo democrático ou um golpe de estado conduzido pelas forças militares que já
vinham dominando o país.
Apesar da euforia na mídia, desde a saída de Mubarak existe um elevado ceticismo entre especialistas
no Egito sobre as intenções dos militares.
Jon Alterman, do Centro para Estratégias e Estudos Internacionais, por exemplo, alerta que “a ascensão
do Comando Militar” pode resultar em um “gigantesco passo atrás” , enquanto Reuel Marc Gerecht, um
ex-funcionário da CIA que agora está com o neoconservadora Fundação para a Defesa das
Democracias, prevê que o exército irá “testar o quanto de autocracia (e riqueza) poderá manter em
mãos”.
Durante uma conferência de imprensa na Casa Branca, na terça-feira, porém, o presidente dos EUA,
Barak Obama, indicou sentir-se encorajado pelos passos tomados até agora pelo Comando Militar, a
quem Mubarak cedeu seus poderes.
“Obviamente existe muito trabalho a fazer no Egito, mas o que vimos até agora é positivo”, ele disse,
notando que os representantes da oposição que encontraram com dois oficiais na segunda-feira
perceberam que o Comando Militar “é sério [no comprometimento] rumo a eleições livres e justas”
“Até agora pelo menos, temos visto os sinais corretos vindo do Egito”, ele agregou.
Mas analistas mais independentes não estão tão certos sobre qual direção os cinco comandantes que
compõem o Conselho Militar pretendem levar o país.
“Eu concordo que os militares estão enviando os sinais corretos, mas a certeza só virá com o resultado” ,
diz James Zogby, um especialista em Oriente Médio que lidera o Instituto Árabe Americano (AAI, pela
sigla inglês). “Esse foi um levante que derrubou o presidente; não derrubou o estado, e os militares
ainda são o estado.”
114
Muitos analistas acreditam que os militares estão preparados para fazer concessões, mas irão tentar
manter o máximo de poder que puderem.
“Mesmo os mais antigos membros da autoritária guarda ligada a Mubarak sabem que não há retorno e
que nada que se pareça com uma democracia de fachada será tolerado”, afirma Wayne White, do
Instituto Oriente Médio (MEI, em inglês) e ex-analista do Departamento de Estado dos EUA para o
Oriente Médio.
“Porém, ao mesmo tempo, é difícil acreditar que esses militares que estão no comando agora não
tenham debatido internamente, nos últimos dias, quanto poder eles estão dispostos a conceder – e talvez
manter – em um esforço para conciliar uma completa, funcional e transparente democracia e sua visão
de um Egito mais 'ordeiro' e 'estável'”, ele complementou em uma troca de e-mails com a IPS.
Até agora o Conselho – cujo titular é o marechal de campo Mohammed Hussein Tantawi, de longa data
leal a Mubarak – lançou uma série de comunicados dissolvendo o parlamento, suspendendo a
constituição e se comprometendo a promover eleições dentro de seis meses.
Na terça-feira, reuniu-se um comitê de juristas encarregados de revisar a constituição em 10 dias. As
alterações serão submetidas a um referendo popular em dois meses, segundo o Conselho.
Enquanto esses são passos aplaudidos por Obama, o Conselho ainda não cumpriu com uma série de
outras demandas das forças de oposição, agora reunidas em uma ampla coalizão chamada Ativistas para
a Democracia.
Entre essas demandas estão a abolição imediata da lei marcial em vigor por 30 anos, a libertação de
milhares de presos políticos, e a investigação e julgamento de policiais e oficiais de segurança suspeitos
das mortes de mais de 300 pessoas durante os 18 dias de manifestações que culminaram com a
deposição de Mubarak.
As demandas da coalizão para a inclusão de tecnocratas civis e representantes dos movimentos
democráticos no governo de transição também foram ignoradas pelo Conselho.
“Parece que os militares estão interessados no fim da ditadura, mas não estão interessados em ceder o
controle sobre o processo”, diz Joel Rubin, vice-diretor da Rede Nacional de Segurança (NSN, em
inglês).
“Esse é um ponto fundamental, pois, se eles esperarem demais (para trazer os civis para o processo), é
possível que se comece a questionar se ele apenas querem manter o controle do país”, afirmou,
sugerindo ainda que a velocidade com a qual se pretende revisar a constituição também é um problema
dado a complexidade dos desafios.
Todos concordam que Washington tem um papel importante no processo de transição dada a relação
construída entre os militares dos dois países desde a assinatura dos acordos de Camp David, em 1979.
Ainda, os mais experientes militares egípcios, incluindo o general Sami Hafez Anan, que muitos
acreditam ser o mais poderoso membro do Conselho, estiveram visitando Washington para consultas
anuais com seus pares norte-americanos quando a crise começou em Cairo, em 25 de janeiro.
Nos últimos 30 anos, Washington deu mais de 40 bilhões de dólares em ajuda militar e treinamento,
resultando que as forças armadas do Egito se tornaram quase que inteiramente dependente de
115
equipamento norte-americano, em particular nos seus sistemas mais avançados como o caça F-16, os
helicópteros Apache e os mísseis antinavio Harpoon.
“Essas relações criam uma proximidade com as forças armadas do Egito que nenhum outro país tem”,
de acordo com Charles Dunne, um especialista no Oriente Médio também da MEI, que trabalhou no
escritório da embaixada norte-americana em Cairo, há uma década.
Ameaças de influentes congressistas de cortar a ajuda militar anual ao Egito de 1,3 bilhões de dólares,
acredita-se, foram apoios importantes aos apelos públicos de Washington – e privados do Pentágono –
para que os militares não recorressem à violência ao lidar com as manifestações.
“Esse é o pagamento, no momento exato, de 30 anos de ajuda militar norte-americana ao Egito: os
militares egípcios irão relutar colocar em risco essa ajuda vital ao se opor à transição à democracia ou
continuar no agarrados ao poder indefinitivamente”, Dunne escreveu na segunda-feira, sugerindo que
Washington usará a ajuda para influenciar as decisões dos militares no Egito.
Por outro lado, não está claro que o governo dos EUA esteja descontente com a continuidade do
controle militar no processo de transição, particularmente quando tenta acalmar Israel e outros aliados
na região – que claramente preferem que os militares sigam tomando as decisões, pelo menos no que diz
respeito a políticas de defesa e relações exteriores.
“Eles estão muito satisfeitos que os militares disseram que irão manter o tratado de paz (com Israel).
Existem políticas, como em relação a Gaza ou a acordos de cooperação sobre suspeitos de terrorismo,
que os militares irão continuar a apoiar e que um governo civil, mais democrático, talvez não apoie”, diz
Zogby.
20/02/2011 |
Casa Branca mantém negociações diretas com talibãs
Conversações secretas e diretas com altos dirigentes dos talibãs estariam sendo conduzidas por um
pequeno número de funcionários da administração Obama, afirma jornalista em artigo publicado na
revista New Yorker. Segundo o texto, “um dos propósitos das conversações iniciadas pela Casa Branca
é poder avaliar que figura da liderança dos talibãs poderia estar disposta a iniciar negociações formais
de paz no Afeganistão e sob que condições”.
Notimex
A Casa Branca entrou em conversações diretas e secretas com altos dirigentes dos Talibãs, revelou hoje
a revista semanal estadunidense de ensaios, reportagem e crítica The New Yorker. “As conversações
continuam, são de caráter exploratório e ainda não equivalem a uma negociação de paz”, disse a
publicação em um artigo do jornalista e prêmio Pulitzer, Steve Coll.
As discussões com o Talibã são conduzidas por um pequeno número de funcionários da administração
Barack Obama. No início elas contaram com a presença do agora falecido Richard Hoolbrooke, que foi
representante da Casa Branca para Afeganistão e Paquistão. Um porta voz presidencial disse a Coll que
a posição do governo Obama em relação ao Talibã foi formatada na véspera pela secretária de Estado,
Hillary Clinton, em um discurso diante de analistas e conselheiros da Asia Society, em Nova York.
Clinton disse que os talibãs têm que escolher entre o compromisso político ou o ostracismo de seguir
sendo “um inimigo da comunidade internacional”. “Eu sei que a conciliação com um adversário que
pode ser tão brutal como os talibãs soa desagradável e mesmo inimaginável”, acrescentou a secretária.
116
“A diplomacia seria fácil se só tivéssemos que conversar com nossos amigos, mas não é assim que se
faz a paz”, filosofou.
Coll afirma em seu artigo que o emir Mullah Omar, principal dirigente talibã e que, supostamente, está
escondido no Paquistão, não participa nas conversações preliminares com a Casa Branca. Quando
Mullah Omar fala, o faz indiretamente, por meio das fitas gravadas em cassete, explicou.
Segundo o texto da New Yorker, “um dos propósitos das conversações iniciadas pela Casa Branca é
poder avaliar que figura da liderança dos talibãs poderia estar disposta a iniciar negociações formais de
paz no Afeganistão e sob que condições”. Os assessores de Obama para assuntos de guerra já deixaram
claro que o presidente afegão, Hamid Karzai, deve conduzir o processo de paz ou reconciliação e
participação dos líderes talibãs, e que desde 2008 ele já realizou algumas conversações esporádicas com
os talibãs, garantiu o jornalista.
20/02/2011 |
Kadafi reprime protestos com sangue e fogo na Líbia
Os protestos populares que sacodem o Oriente Médio chegaram a Líbia, onde milhares de pessoas
saíram às ruas em várias cidades, apesar da violenta repressão, para pedir o fim de 41 anos do regime
autocrático de Muammar Kadafi. Segundo denúncia da Anistia Internacional, pelo menos 46 pessoas
morreram nas últimas 72 horas, vítimas da repressão governamental. A maioria das queixas dos líbios
é similar às que levaram tunisianos e egípcios a se rebelar. Muitos pediram o fim da ditadura, a
instauração de uma democracia e um melhor uso para os lucros petroleiros.
Emad Mekay - IPS
Página no Facebook com imagens dos protestos na Líbia.
A organização de direitos humanos Anistia Internacional assinala que nas últimas 72 horas morreram
pelo menos 46 pessoas, resultado da violência empregada pelo regime em resposta ao primeiro grande
desafio de sua história. Como ocorreu com as revoluções que derrubaram os governos da Tunísia e do
Egito, as redes sociais na internet se tornaram uma importante fonte de informação sobre o levante na
Líbia. O mal estar iniciou quando ativistas da rede das redes se opuseram ao mandato ditatorial de
Kadafi, convocando um “Dia da ira” para 17 de fevereiro, reclamando sua renúncia. Eles criaram uma
página na internet para publicar informações a respeito (http://www.libyafeb17.com).
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Vídeos feitos com telefones celulares mostram manifestantes na cidade de Benghazi atacando
escritórios dos “comitês populares” de Kadafi, que, na verdade, são escritórios do governo. Jovens
manifestantes também destruíram monumentos oficiais que representam o Livro Verde, escrito por
Kadafi e usado como Constituição de fato do país, onde o governante expõe sua ideologia. “O povo
quer uma mudança de regime”, disseram os manifestantes em vídeos publicados na internet, adotando
slogans da revolução egípcia que derrubou Hosni Mubarak (1981-2011). “Abaixo, abaixo o ditador”,
gritaram.
A maioria das queixas dos líbios é similar às que levaram tunisianos e egípcios a se rebelar. Muitos
pediram o fim da ditadura, a instauração de uma democracia e um melhor uso para os lucros petroleiros.
Os protestos na Líbia suscitaram uma resposta sangrenta e imediata. Na rede social Twitter, alguns
sustentaram que as forças de segurança pessoal dos filhos de Kadafi dispararam contra os manifestantes.
Organizações internacionais de direitos humanos confirmam que o regime usou balas de chumbo contra
os opositores. Segundo fontes locais, o regime utilizou mercenários de países africanos para dispersar os
manifestantes. Kadafi, célebre por sua excentricidade, se autodenominou nos últimos anos “rei dos reis
da África”.
Cidadãos líbios publicaram na internet que a cidade de Derna “agora é livre”, o que significa que, nas
últimas horas de sexta, não havia efetivos pró Kadafi na região. Outros disseram que os habitantes de
Derna se dirigiam a Benghazi para ajudar a população a defender-se dos mercenários. A Anistia
Internacional pediu às autoridades líbias para “deixar de usar a força excessiva para eliminar os
protestos contra o governo”.
Os protestos ocorrem agora apesar das medidas tomadas pelo regime líbio para prevenir revoltas como
as da Tunísia e do Egito. Dezenas de ativistas foram presos e advertiu-se aos cidadãos para que não se
unissem aos protestos. As forças de segurança incrementaram sua presença nas ruas. O governo proibiu
toda a cobertura de imprensa sobre esses fatos e prendeu vários jornalistas em Benghazi, cidade que está
registrando alguns dos enfrentamentos mais violentos. O governo de Kadafi proibiu, sexta-feira, todo
acesso ao site da Al Jazeera. “As autoridades líbias tentaram silenciar este protesto mesmo antes dele
iniciar, mas isso, claramente, não funcionou”, disse um comunicado do diretor da Anistia Internacional
para o Oriente Médio e norte da África, Malcolm Smart. “Agora estão recorrendo a meios brutais para
castigar e dissuadir os manifestantes”, acrescentou.
A organização pediu ainda que as autoridades líbias ordenassem uma investigação imediata sobre os
mortais ataques contra o povo que saiu às ruas. Informes locais sugerem que os manifestantes tomaram
o controle da praça Al-Sehaba, em Derna, imitando os egípcios que fizeram o mesmo na praça Tahrir,
no Cairo. Logo dominaram a cidade, acrescentam.
O governo respondeu com manifestações favoráveis a Kadafi. A agência oficial de notícias Jamahiriya
informou que milhares de líbios marcharam sexta-feira em apoio a Kadafi. A mesma agência publicou
mais de 40 informes sugerindo que Kadafi conta com respaldo da população em todo o país. Kadafi, que
derrubou a monarquia mediante um golpe militar em 1969, quando tinha apenas 27 anos, é o líder que
se mantém no poder há mais tempo na região, governando com mão de ferro esta nação de 6,5 milhões
de habitantes. Kadafi obriga os alunos do país a estudar seu Livro Verde e mudou os nomes dos meses
no calendário por títulos inventados por ele.
Desértica em sua maior parte, a Líbia é rica em petróleo. As vendas de combustível e gás representaram
mais de 95% dos lucros derivados das exportações e cerca de 80% das receitas tributárias em 2008,
segundo o Fundo Monetário Internacional. A insatisfação popular que agora se expressa nas ruas pode
afetar as exportações para países europeus e pressionar a alta de preços do petróleo. A Líbia vende este
118
recurso para Itália, Alemanha, França e Espanha. Após levantar as sanções contra a Líbia em 2004, os
EUA também aumentaram suas importações do petróleo líbio.
20/02/2011 |
As cordas que movem o conflito no Oriente Médio
Há uma mudança no mundo político, social e cultural do Oriente Médio. Criará muitas tragédias,
levantará muitas esperanças e derramará demasiado sangue. Talvez seja melhor ignorar os analistas e
seus think tanks, cujos “especialistas” idiotas dominam os canais de televisão globais. Se os tchecos
puderam ter sua liberdade, por que não os egípcios? Se os ditadores podem ser derrubados na Europa
– primeiro, os fascistas, depois, os comunistas – por que não ocorreria o mesmo no grande mundo
árabe muçulmano? E – só por um momento – deixem a religião fora disso. O artigo é de Robert Fisk.
Robert Fisk
Hosni Mubarak denunciou que os islamistas estavam por trás da revolução egípcia. Bem Alí disse a
mesma coisa na Tunísia, O rei Abdulá, da Jordânia, vê uma mão obscura e sinistra, a mão da Al Qaeda,
da Irmandade Muçulmana, uma mão islamista por trás da insurreição que percorre o mundo árabe. No
sábado, as autoridades do Bahrein descobriram que a mão ensanguentada do Hezbolah estava por trás
dos levantes xiitas.
Como é possível que homens educados, mas singularmente antidemocráticos possam entender tudo tão
errado? Confrontados com uma série de explosões seculares – Bahrein não está incluído nesta categoria
– acusam os radicais islâmicos. O Xá cometeu um erro idêntico, no sentido inverso. Confrontado por
um levante obviamente islâmico, ele acusou os comunistas.
Barack Obama e Hillary Clinton se esmeraram para dar uma pirueta mais rara. Havendo apoiado
originalmente as “estáveis” ditaduras do Oriente Médio – quando deveriam estar ao lado das forças
democráticas -, decidiram avalizar as reivindicações da democracia civil no mundo árabe justamente
quando os árabes estão tão desencantados com a hipocrisia ocidental que não querem os Estados Unidos
do seu lado. “Os norteamericanos interferiram em nosso país por 30 anos durante a era Mubarak,
apoiando este regime e armando seus soldados”, me disse a semana passada um estudante egípcio na
praça Tahrir. “Agora ficaríamos agradecidos se deixassem de interferir do nosso lado”, acrescentou. Ao
final da semana, escutei as mesmas vozes em Bahrein. “Estavam nos baleando com armas
estadunidenses e montados em tanques estadunidenses”, afirmou um médico na quinta-feira. “E agora
Obama quer ficar do nosso lado?”, perguntou.
Os fatos dos últimos dois meses e o espírito anti-regime da inssurreição árabe – por dignidade e justiça,
mas que por um emirado islâmico – ficaram em nossos livros de história por anos. E o fracasso dos mais
próximos apoiadores do Islã será discutido por décadas. No sábado houve um especial interesse pelo
último vídeo da Al Qaeda, gravado antes da queda de Mubarak, que enfatizava a necessidade de que o
Islã triunfasse no Egito. No entanto, uma semana antes, as forças seculares, nacionalistas e honoráveis
do Egito, homens e mulheres muçulmanos e cristãos, tinham se libertado do velho Mubarak sem
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nenhuma ajuda de Osama Bin Laden. Mais rara foi a reação do Irã, cujo líder supremo se auto
convenceu de que a vitória popular egípcia era um triunfo do Islã. Dá para pensar que só Irã, Al Qaeda e
seus mais ferrenhos inimigos, os ditadores árabes antiislâmicos, acreditam que a religião esteve por trás
das rebeliões massivas dos manifestantes pró democracia.
A mais sangrenta ironia de todas – que acabou envolvendo Obama – foi que a República Islâmica do Irã
estava louvando os democratas do Egito enquanto ameaçava executar seus próprios líderes democráticos
opositores. Quase todos os milhões de manifestantes árabes que querem se ver livres da capa da
autocracia – com nossa ajuda ocidental – viveram com medo e humilhação, e são muçulmanos. E os
muçulmanos, diferentemente do Ocidente cristão, não perderam sua fé. Abaixo de pedras e dos
cassetetes da polícia assassina de Mubarak, eles contra-atacaram gritando “Alá akbar” no que, para eles,
não era uma “Jihad”, uma guerra religiosa, mas sim uma batalha pela justiça. “Deus é grande” e a
demanda por justiça são afirmações concordantes. A luta contra a injustiça: esse é o espírito do Corão.
No Bahrein temos um caso especial. Aqui uma maioria xiita é dirigida por uma monarquia sunita. A
Síria, de fato, sofreria de “bahreinitis” pela mesma razão: uma maioria sunita é governada por uma
minoria xiita. Bom, ao menos o Ocidente em sua defesa do rei Hamad, do Bahrein, pode aferrar-se ao
fato de que o Bahrein, como o Kuwait, tem um parlamento. É uma velha e triste besta, que existiu entre
1973 e 1975 até que foi dissolvido inconstitucionalmente e depois reinventado em 2001 dentro de um
pacote de “reformas”. Mas o novo parlamento terminou sendo menos representativo que o primeiro. Os
políticos da oposição foram acossados pela segurança do Estado e foram manipuladas as margens
parlamentares para garantir que a minoria sunita seguisse com o controle do Parlamento.
Em 2006 e em 2010, por exemplo, o mais importante partido xiita do Bahrein ganhou só 18 das 40
cadeiras. Muitos me disseram que temem por suas vidas, que temem que as turbas xiitas os queimem em
suas casas e os matem.
Tudo isso parece mudar. O controle do poder estatal tem que ser legitimado para ser efetivo e as balas
para reprimir protestos pacíficos estavam destinadas a terminar em uma série de domingos sangrentos
no Bahrein. Uma vez que os árabes aprenderam a perder seu medo, podem exigir os direitos civis que os
católicos demandaram no passado na Irlanda do Norte. Ao final, os britânicos tiveram que destruir a
liderança dos unionistas e trazer o IRA para compartilhar o poder com os protestantes. Os paralelos não
são exatos e os xiitas não têm (ainda) uma milícia, apesar de o governo bahreiní ter mostrado fotografias
de pistolas e espadas para apoiar sua opinião de que entre seus opositores há “terroristas”.
No Bahrein há, não é necessário dizer, uma batalha sectária e secular, algo que o príncipe reconheceu
inconscientemente quando disse que as forças de segurança deviam reprimir os protestos para impedir a
violência sectária. É uma visão mantida selvagemente pela Arábia Saudita, que tem um forte interesse
na eliminação do dissenso em Bahrein. Os ânimos dos xiitas da Arábia Saudita podem se exaltar se seus
correligionários do Bahrein arrasarem o Estado. Então, escutaríamos os líderes alardear a ameaça da
República Islâmica do Irã. Mas essas insurreições interconectadas não deveriam ser vistas no simples
marco de fermentação no Oriente Médio. O levante no Iêmen contra o presidente Saleh (que está há 32
anos no poder) é democrático, mas também é tribal. E não falta muito para que a oposição empunhe
armas. O Iêmen é uma sociedade armada, há tribos com armas e nacionalismo endêmico. E ainda há o
caso da Líbia.
Kadafi é tão estranho, tão próspero, seu domínio tão cruel (ele está no governo há 42 anos), que é um
Ozymandias esperando para cair. Sua proximidade com Berlusconi – e, pior ainda, seu amor meloso
com Tony Blair – não irão salvá-lo. Enfeitado com mais medalhas que o general Eisenhower,
desesperado por uma operação que levante sua papada, este desgraçado está ameaçando sua própria
gente com castigos “terríveis” por desafiar seu regime. Há duas coisas a lembrar sobre a Líbia: como o
120
Iêmen, é uma terra tribal e quando se levantou contra seus fascistas colonos italianos, começou uma
selvagem guerra de libertação, cujos valentes líderes enfrentaram a forca com uma coragem incrível. Só
porque Kadafi é um louco, não quer dizer que seu povo seja idiota.
Então, há uma mudança no mundo político, social e cultural do Oriente Médio. Criará muitas tragédias,
levantará muitas esperanças e derramará demasiado sangue. Talvez seja melhor ignorar os analistas e
seus think tanks, cujos “especialistas” idiotas dominam os canais de televisão globais.
Se os tchecos puderam ter sua liberdade, por que não os egípcios? Se os ditadores podem ser derrubados
na Europa – primeiro, os fascistas, depois, os comunistas – por que não ocorreria o mesmo no grande
mundo árabe muçulmano? E – só por um momento – deixem a religião fora disso.
21/02/2011 |
Chegou a vez do Coronel Kadafi?
A Líbia foi reabilitada de seu status de Estado pária, em 2003, concordando em abandonar seu
programa nuclear e promover a abertura aos investimentos ocidentais, principalmente para as grandes
empresas petrolíferas que assinaram contratos bilionários. Em 2006, o coronel Kadafi aderiu a um
programa para instaurar o livre mercado e reconheceu o papel central da iniciativa privada na Líbia,
preparando o caminho para implementar as chamadas reformas econômicas sob a supervisão do FMI e
do Banco Mundial. O artigo é de Reginaldo Nasser.
Reginaldo Nasser (*)
A marcha das revoluções continua com vigor no mundo árabe. Agora é a vez da Líbia. Os protestos
tiveram início com a prisão do advogado líbio e ativista dos direitos humanos Fathi Terbil dias antes do
"Dia de Fúria" (17 de fevereiro). Terbil representa um grupo de famílias cujos filhos foram massacrados
(por volta de 1200 prisioneiros opositores do regime) pelas autoridades da Líbia, em 1996, em Trípoli
(prisão de Abu Salim). No dia 17 de fevereiro, o líbio-americano Najla Abdurrahman escrevia,
indignado, um artigo na revista Foreign Policy com o seguinte título: líbios estão entregando suas vidas
para derrubar Muammar al-Gaddafi. Será que ninguém está prestando atenção?
Com razão. Até o momento não há nenhum sinal de qualquer ação mais contundente da celebrada
“comunidade internacional”. Mesmo após centenas de mortos, no 5º dia de repressão, a repercussão
ainda é pequena. O que seria de se estranhar, num primeiro momento, pois o regime de coronel Kadafi
está no poder mais tempo do que qualquer outra ditadura no mundo árabe (42 anos) além de ser
responsável por várias ações terroristas na década de 80.
Mas, não deixa de ser tão surpreendente assim se lembrarmos que, em 2008, a então secretária de
Estado dos EUA, Condoleezza Rice, realizou um tour no norte da África passando por Tunísia, Argélia,
Marrocos e Líbia ( coincidência?) declarando, ao final, que as relações entre os EUA e a Líbia entravam
numa nova era de cooperação. Quando questionada sobre o problema dos direitos humanos naquele
121
pais, Rice disse que havia discutido com o Sr Kadafi “de maneira respeitosa”. O ministro líbio de
Relações Exteriores, por sua vez, disse que a presença de Rice foi a prova de que a Líbia, os EUA e o
mundo tinham mudado. Sem dúvida nenhuma que o mundo mudou! A Líbia foi reabilitada de seu status
de Estado pária, em 2003, concordando em abandonar seu programa nuclear e promover a abertura aos
investimentos ocidentais, principalmente para as grandes empresas petrolíferas que assinaram contratos
bilionários. A Líbia, conformando-se às resoluções da ONU, livrou-se do embargo econômico, e passou
a restabelecer seus laços políticos e diplomáticos com os países europeus e os EUA, reintegrando-se na
comunidade internacional. Em 2006, o coronel Kadafi aderiu a um programa para instaurar o livre
mercado e reconheceu o papel central da iniciativa privada na Líbia, preparando o caminho para
implementar as chamadas reformas econômicas sob a supervisão do FMI e do Banco Mundial. O
ministro Tony Blair teve atuação destacada nesse entendimento aprovando ainda a venda de gás
lacrimogêneo, armas de “controle de multidões”, fuzis e metralhadoras para Bahrein e Líbia.
O embaixador norte-americano na Líbia, Cretz, em depoimento no Carnegie Endowment for Peace, em
2008, informou que houve grandes progressos durante esses dois anos de “normalização” nas relações
EUA-Líbia e que estava iniciando uma cooperação significativa entre os dois países. Cretz elogiou
ainda os esforços de privatização, enfatizando que as missões de comércio dos EUA tiveram excelente
receptividade. No que se refere aos Direitos Humanos, o embaixador afirmou existir um diálogo aberto
e franco entre os dois paises, reconhecendo, entretanto, que a promoção da democracia é uma questão
delicada e deve ser abordada com cuidado.
Mas o embaixador esqueceu de mencionar que a economia da Líbia continua extremamente dependente
das flutuações dos preços internacionais do petróleo e do gás. Os bilhões de dólares acumulados ao
longo dos anos não foram utilizados para diversificar a economia. Há uma enorme discrepância entre as
várias classes sociais e seus respectivos setores produtivos. O setor agrícola, por exemplo, emprega 20%
da força de trabalho, embora contribua apenas com 2% do PIB. O setor industrial, incluindo petróleo,
gás e petroquímica, é responsável por mais de 60% do PIB, e emprega menos de 25% da força de
trabalho. As taxas de desemprego variam entre 20 a 30 %.
É importante notar que a Líbia é um Estado-nação sui generis onde as ligações tribais são fundamentais.
Kadafi tem governado por meio da mediação de um "comitê de liderança social", composto por cerca de
15 representantes de várias tribos que tem presença até mesmo dentro das fileiras das forças armadas,
cada qual representando um grupo tribal. Assim, ao contrário dos militares da Tunísia ou Egito, a
inexistência de coesão e profissionalismo não permite a intervenção para resolver o conflito com os
manifestantes. Ainda não se sabe quais as unidades militares foram envolvidas na tentativa de conter os
distúrbios e se há cisão entre elas. Também não sabemos se são verídicas as informações de que há
mercenários e criminosos contratados pelo governo. Entretanto algumas declarações que começam a
circular na mídia podem indicar o desfecho da crise. Uma das lideranças mais destacadas da poderosa
tribo Al-Zuwayya disse à rede Al Jazeera que já intimou o coronel Kadafi deixar o país, ameaçando
cortar as exportações de petróleo.
Infelizmente, ao que tudo indica, o alerta do filho de Kadafi, de que há risco iminente de uma verdadeira
guerra civil, parece ser procedente, pois como bem observou um jornalista perspicaz o comportamento
dos manifestantes e das forças de segurança dão razão para acreditamos que qualquer recuo de um dos
lados significará a morte ou a prisão definitiva. Será que ninguém está disposto a ajudar os líbios?
(*) Professor de Relações Internacionais da PUC-SP
21/02/2011 |
122
Ditaduras na África e no Oriente Médio? Que surpresa!
Graças às revoltas árabes, o Ocidente acaba de descobrir com grande assombro que o Bahrein não é
só esse exótico lugar onde voam os bólidos da Fórmula 1 e onde amarram os porta-aviões da Quinta
Frota. Qual será a próxima tirania que descobriremos no Oriente Médio ou África? A da Guiné? A de
Marrocos, que possui uma "relação privilegiada" com a União Europeia? Que grande contrarieddade
para o cinismo da realpolitik! O artigo é de Ignacio Escolar.
Ignacio Escolar - Público
O país que os Estados Unidos apresentava como exemplo para a região acaba por ser retratado também
como uma brutal ditadura, capaz de colocar o Exército na rua com ordem de disparar contra o povo.
Que terrível e inesperada notícia! Que grande contrariedade para o cinismo da realpolitik! Qual será a
próxima tirania que descobriremos no Oriente Médio ou África? A da Guiné? A de Marrocos?
Comecemos por Guiné. “Mais coisas nos unem do que nos separam”, ressaltou o presidente do
Congresso espanhol, José Bono, em recente visita oficial – junto a representantes do PP, PSOE e CiU –
Convergência e União. É óbvio o que “nos une”: o petróleo e os interesses comerciais. E o que nos
separa? Minúcias: as execuções de opositores políticos, as torturas, a corrupção do regime de Obiang,
que não só conta com a cumplicidade tácita do Estado espanhol, como também com seu respaldo
público a título de vacina, já que a liberdade é uma enfermidade contagiosa.
Prossigamos com o Marrocos, essa monarquia absoluta com um cenário democrático que pode presumir
“uma relação privilegiada” com a União Europeia, nas palavras do comissário de Ampliação e
Vizinhança, Stefan Füle. “Seu país pode estar orgulhoso do que conseguiu até hoje”, felicitou Fule não
faz muito tempo ao ministro de Relações Exteriores do Marrocos, elogiando as “reformas políticas” que
requerem microscópio para serem apreciadas em sua justa dimensão.
E a que vem tanto elogio? Fácil: neste domingo venceu o acordo de pesca com a Europa que terá que ser
renegociado. Em cima da mesa, o incômodo assunto do Saara ou os direitos humanos são só outra
moeda de troca.
(*) Ignacio Escolar é blogueiro e jornalista espanhol, colunista do jornal “Público”, de Madri
(21/02/2011)
21/02/2011 |
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Milhares de marroquinos exigem reforma constitucional
No Marrocos, milhares de manifestantes exigem que o rei renuncie a parte dos seus poderes e que
demita o governo e dissolva o parlamento. Em Rabat, os manifestantes agitavam bandeiras da Tunísia e
do Egito e gritavam: "Abaixo a autocracia!". Além da reforma constitucional, os protestos pedem um
sistema judicial mais independente, capaz de acabar com a corrupção no país.
Esquerda.Net
Publicado originalmente no Esquerda.Net
Em Marrocos, milhares de manifestantes espalhados por cidades como Marrakesh, Alhoceima,
Imzouren, Agadir, Oujda, Rabat, Casablanca e Tanger exigiram neste domingo (20) que o rei
Mohammed renuncie a parte dos poderes que lhe são atribuídos e que demita o governo e dissolva o
parlamento. Os manifestantes reivindicam uma reforma constitucional e um sistema judicial mais
independente, capaz de acabar com a corrupção instalada.
Na capital Rabat, os manifestantes agitavam bandeiras da Tunísia e do Egito e gritavam: "Abaixo a
autocracia!".
Há relatos de violência grave. Os protestos em Marrakesh foram "dispersados pela polícia com
cassetetes” e dois italianos teriam sido detidos em Casablanca. Os organizadores da manifestação estão
sofrendo perseguição policial.
A TV estatal marroquina está cobrindo as manifestações, mas a Al-Jazeera continua proibida de operar
em Marrocos. Na noite de sábado, a televisão estatal anunciou que a mobilização teria sido
desconvocada, mas os organizadores denunciaram uma operação de propaganda, alegando que as
páginas do Facebook estariam sendo invadidas pelas forças de segurança.
Os protestos foram organizados, segundo noticia a Reuters, por um grupo denominado Movimento pela
Mudança de 20 de Fevereiro, que atraiu 20.000 seguidores no Facebook e que inclui simpatizantes da
Frente Polissário, que reclama a independência do Saara Ocidental.
Aos protestos juntaram-se jovens do grupo da oposição islâmico Justiça e Caridade, membros dos
partidos da oposição e militantes berberes.
23/02/2011 |
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Revolta árabe: o presidente líbio, rumo ao precipício?
Há alguns dias, enquanto o coronel Kadafi enfrentava a ira do seu povo, ele se reuniu com um velho
conhecido árabe e passou 20 minutos de quatro horas perguntando-lhe se conhecia um bom cirurgião
plástico para levantar as bochechas. É – tenho que dizê-lo tratando-se deste homem ? – uma história
verdadeira. O ancião não tinha um bom aspecto, com o rosto inchado. Parecia a face de um louco, um
ator de comédia que entrou na tragédia em seus últimos dias, desesperado pela última maquiagem, a
chamada final para a porta do teatro. O artigo é de Robert Fisk.
Robert Fisk - Página/12
Então também o velho, paranoico e lunático zorro da Líbia – o pálido, infantil ditador nascido em Sirte,
dono de sua própria guarda pretoriana feminina e autor do ridículo Livro Verde, que uma vez anunciou
que chegaria com seu cavalo branco a uma cúpula dos não alinhados em Belgrado – vai cair por terra.
Ou já caiu. Na noite de segunda, o homem que vi pela primeira vez há mais de três décadas, saudando
com solenidade uma falange de homens rãs uniformizados de preto que marchavam derretendo as
nadadeiras no pavimento ardente da praça Verde em uma noite tórrida de Trípoli, durante um desfile
militar de sete horas, parecia estar a caminho do fim, perseguido – como os ditadores da Tunísia e do
Egito – por seu próprio povo enfurecido.
As imagens no Youtube e no Facebook relatam a história com um realismo granulado e opaco, a
fantasia trocada por incêndios e quartéis de polícia em chamas em Bengasi e Trípoli, por cadáveres e
homens armados, por uma mulher que se inclina com a pistola na mão desde a porta de seu automóvel,
por uma multidão de estudantes – seriam leitores da literatura do tirano? – fazendo em pedaços uma
réplica de seu espantoso livro. Tiros, chamas e gritos pelo celular: o epitáfio de um regime o qual todos
apoiamos de quando em quando.
E aqui, só para focar nossa mente no cérebro de um desejo excêntrico, vai uma história verdadeira. Há
alguns dias, enquanto o coronel Kadafi enfrentava a ira do seu povo, ele se reuniu com um velho
conhecido árabe e passou 20 minutos de quatro horas perguntando-lhe se conhecia um bom cirurgião
plástico para levantar as bochechas. É – tenho que dizê-lo tratando-se deste homem ? – uma história
verdadeira. O ancião tinha um mau aspecto, com o rosto inchado, simplesmente a face de um louco, um
ator de comédia que entrou na tragédia em seus últimos dias, desesperado pela última maquiagem, a
chamada final para a porta do teatro.
Nesta hora, Saif al-Islam Al-Kadafi, fiel recriador de seu pai, teve que entrar em cena enquanto Bengasi
e Trípoli ardiam e ameaçar com caos e guerra civil se os líbios não voltassem para a casa. Esqueçam-se
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do petróleo, do gás, anunciou este bobalhão abastado. Haverá guerra civil. Acima da cabeça do amado
filho na televisão estatal, um Mediterrâneo verde parecia emanar de seu cérebro. É um bom obituário, se
pensamos bem, para quase 42 anos de governo de Kadafi.
Não é exatamente como o rei Lear, quando ameaçava fazer tais coisas - sejam quais forem, não sei -, e
que serão o terror da terra, mas sim como outro ditador em um bunker diferente, convocando exércitos
diferentes que o salvaram em sua capital e colocando a culpa de sua própria calamidade nos ombros de
seu povo. Mas esqueçam-se de Hitler: Kadafi seguiu uma carreira solo: Mickey Mouse e profeta,
Batman e Clark Gable, Anthony Quinn no papel de Omar Mukhtar, em “O Leão do Deserto”, Nero e
Mussolini (versão 1920) e, ao fim, inevitavelmente, o maior ator de todos: Muammar Kadafi.
Escreveu um livro intitulado “Fuga do inferno e outros contos”, muito apropriado para as infelizes
circunstâncias atuais, e exigiu uma solução de um só Estado para o conflito palestino-israelense, que
seria chamado de Israeltina.
Pouco depois expulsou a metade dos palestinos residentes na Líbia e disse a eles para marchar na
direção de sua terra perdida. Abandonou ruidosamente a Liga Árabe por considerá-la irrelevante – um
breve momento de sensatez, é preciso admiti-lo – e chegou a uma cúpula no Cairo confundindo
deliberadamente a porta de um banheiro com a do salão de conferências até que o califa Mubarak o
conduziu com um sorriso que denunciava sofrimento.
Se o que testemunhamos é uma verdadeira revolução na Líbia, logo poderemos – se os empregados das
embaixadas ocidentais não chegarem antes e cometerem um pouco de pilhagem séria e desesperada –
procurar nos arquivos de Trípoli e ler a versão líbia sobre o atentado contra o vôo 722 da UTA, em
Lockerbie, sobre as bombas na discoteca de Berlim, em razão dos quais muitos civis árabes e a própria
filha adotiva de Kadafi morreram nos ataques vingativos dos Estados Unidos, em 1986; sobre o
fornecimento de armas para o IRA e os assassinatos de opositores dentro e fora do país; sobre o
assassinato de um policial britânico; sobre a invasão ao Chade e as negociações com magnatas
petroleiros britânicos (recaia a desgraça sobre nós neste ponto); a verdade acerca da grotesca deportação
de Al Megrahi, o suposto autor do atentado em Lockerbie, demasiado doente para morrer, que talvez
pudesse hoje revelar alguns segredos que o zorro da Líbia – junto com Gordon Brown e o procurador
geral da Escócia , porque todos são iguais no cenário mundial de Kadafi – prefeririam que não
soubéssemos.
26/02/2011 |
Levantes populares: do Oriente Médio ao Meio Oeste
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Há apenas algumas semanas, a solidariedade entre jovens egípcios e policiais do Wisconsin, ou entre
trabalhadores líbios e funcionários públicos de Ohio, seria algo inacreditável. O levante popular na
Tunísia foi provocado pelo suicídio de um jovem chamado Mohamed Bouazizi, universitário de 26 anos
de idade, que não encontrava trabalho em sua profissão.Nos conflitos que vemos hoje em Wisconsin e
Ohio há um pano de fundo semelhante. A “Grande Recessão” de 2008, segundo o economista Dean
Baker, ingressou em seu trigésimo mês sem sinais de melhora. O artigo é de Amy Goodman.
Amy Goodman - Democracy Now
Cerca de 80 mil pessoas marcharam no sábado passado ao Capitólio do estado de Wisconsin, em
Madison, como parte de uma crescente onda de protesto contra a tentativa do flamante governador
republicano Scott Walker, não só de acossar os sindicatos dos servidores públicos, mas de desarticulálos. O levante popular de Madison ocorre imediatamente em seguida aos que vêm ocorrendo no Oriente
Médio. Um estudante universitário veterano da guerra do Iraque, levava um cartaz que dizia “Fui ao
Iraque e voltei a minha casa no Egito?”. Outro dizia: “Walker, o Mubarak do Meio Oeste”.
Do mesmo modo, em Madison, circulou uma foto de um jovem em uma manifestação no Cairo com um
cartaz que dizia: “Egito apoia os trabalhadores de Wisconsin: o mesmo mundo, a mesma dor”. Enquanto
isso, em uma tentativa de derrubar o eterno ditador Muammar Kadafi, os líbios seguem desafiando a
violenta ofensiva do governo, ao mesmo tempo que mais de 10 mil pessoas marcharam terça-feira em
Columbus, Ohio, para se opor à tentativa do governador republicano John Kasich de dar um golpe de
estado legislativo contra os sindicatos.
Há apenas algumas semanas, a solidariedade entre jovens egípcios e policiais do Wisconsin, ou entre
trabalhadores líbios e funcionários públicos de Ohio, seria algo inacreditável.
O levante popular na Tunísia foi provocado pelo suicídio de um jovem chamado Mohamed Bouazizi,
universitário de 26 anos de idade, que não encontrava trabalho em sua profissão. Enquanto vendida
frutas e verduras no mercado, em repetidas oportunidades foi vítima de maus tratos por parte das
autoridades tunisianas que acabaram confiscando sua balança. Completamente frustrado, ele ateou-se
fogo, o que acabou incendiando os protestos que se converteram em uma onda revolucionária no
Oriente Médio e Norte da África. Durante décadas, o povo da região viveu sob ditaduras – muitas das
quais recebem ajuda militar dos EUA -, sofreu violações dos direitos humanos, além de ter baixa renda,
enfrentar altas taxas de desemprego e não ter praticamente nenhuma liberdade de expressão. Tudo isso
enquanto as elites acumulavam fortunas.
Nos conflitos que vemos hoje em Wisconsin e Ohio há um pano de fundo semelhante. A “Grande
Recessão” de 2008, segundo o economista Dean Baker, ingressou em seu trigésimo mês sem sinais de
melhora. Em um documento recente, Baker diz que devido à crise financeira “muitos políticos
argumentam que é necessário reduzir de forma drástica as generosas aposentadorias do setor público e,
se possível, não cumprir com as obrigações de pensões já assumidas. Grande parte do déficit no sistema
de aposentadorias se deve à queda da bolsa de valores nos anos 2007-2009”.
Em outras palavras, os mascates de Wall Street que vendiam as complexas ações respaldadas por
hipotecas que provocaram o colapso financeiro foram os responsáveis pelo déficit nas pensões. O
jornalista vencedor do prêmio Pulitzer, David Cay Johnston disse recentemente: “O funcionário público
médio de Wisconsin ganha 24.500 dólares por ano. Não se trata de uma grande aposentadoria; 15% do
dinheiro destinado a esta aposentadoria anualmente é o que se paga a Wall Street para administrá-lo. É
realmente uma porcentagem muito alta para pagar Wall Street por administrar o dinheiro”.
Então, enquanto a banca financeira fica com uma enorme porcentagem dos fundos de aposentadoria, os
trabalhadores são demonizadas e pede-se a eles que façam sacrifícios. Os que provocaram o problema,
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em troca, logo obtiveram resgates generosos, agora recebem altíssimos salários e bonificações e não
estão sendo responsabilizados. Se rastreamos a origem do dinheiro, vemos que a campanha de Walker
foi financiada pelos tristemente célebres irmãos Koch, grandes patrocinadores das organizações que
formam o movimento conservador tea party. Além disso, doaram um milhão de dólares para a
Associação de Governadores Republicanos, que concedeu um apoio significativo à campanha de
Walker. Então, por acaso resulta surpreendente que Walker apoie às empresas ao outorgar-lhes isenções
se impostos e que tenha lançado uma grande campanha contra os servidores do setor público
sindicalizado?
Um dos sindicatos que Walter e Kasich têm na mira, em Ohio, é a Federação Estadunidense de
Empregados Estatais de Condados e Municípios (AFSCME, na sigla em inglês). O sindicato foi
fundado em 1932, em meio à Grande Depressão, em Madison. Tem 1,6 milhões de filiados, entre os
quais há enfermeiros, servidores penitenciários, seguranças, técnicos de emergências médicas e
trabalhadores da saúde. Vale a pena lembrar, neste mês da História Negra, que a luta dos trabalhadores
da saúde do prédio n° 1733 de AFSCME fez com que o Dr. Martin Luther King Jr. Fosse a Memphis,
Tennessee, em abril de 1968. Como me disse o reverendo Jesse Jackson quando marchava com os
estudantes e seus professores sindicalizados, em Madison, na semana passada: “O último ato do Dr.
King na terra, sua viagem a Memphis, Tennessee, foi pelo direito dos trabalhadores negociarem
convênios coletivos de trabalho e o direito ao desconto da quota sindical de seu salário. Não é possível
beneficiar os ricos enquanto se deixa os pobres sem nada”.
Os trabalhadores do Egito, formando uma coalizão extraordinária com os jovens, tiveram um papel
decisivo na derrubada do regime deste país. Nas ruas de Madison, sob a cúpula do Capitólio, está se
produzindo outra mostra de solidariedade. Os trabalhadores de Wisconsin fizeram concessões em seus
salários e aposentadorias, mas não renunciaram ao direito a negociar convênios coletivos de trabalho.
Neste momento seria inteligente que Walker negociasse. Não é uma boa época para os tiranos.
27/02/2011 |
“A rua árabe é hoje a vanguarda de todo o mundo”
A grande revolta árabe de 2011, com razões específicas em cada país, definitivamente não tem a ver
com religião (como afirmaram Mubarak, Kadafi e Hamad), mas essencialmente com a inquietude da
classe trabalhadora provocada pela crise global do capitalismo. O choque de civilizações, o fim da
história, a islamofobia e outros conceitos estão mortos e enterrados. As pessoas querem seus direitos
sociais e navegar pelas águas da democracia política e da democracia social. Neste sentido, a rua
árabe é hoje a vanguarda de todo o mundo. Se os al-Khalifa da vida não compreenderem isso, vão cair.
O artigo é de Pepe Escobar.
Pepe Escobar - Ásia Times Online
Um fantasma percorre o Golfo Pérsico: a democracia.
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Na última terça-feira, pelo menos 20% da população de Bahrein se reuniu na rótula Lulu, em Manama,
na maior manifestação contra a monarquia feudal intimamente relacionada com a grande revolta árabe
de 2011. Toda uma mostra representativa da sociedade bareiní – professores, advogados, engenheiros,
suas esposas e filhos – saiu às ruas em uma ampla e contínua coluna de vermelho e branco, as cores da
bandeira nacional.
Na quarta-feira, houve motivos para crer que a revolta chegava finalmente ao Santo Gral, ou seja, a
Casa de Saud, quando 100 jovens apareceram nas ruas de Hafar al-Batin, no noroeste da Arábia Saudita,
pedindo o fim da monarquia feudal empapada em petróleo. O extraordinário é que tenha ocorrido
enquanto o “guardião das mesquitas sagradas”, o rei saudita Abdullah, de 85 anos, voltava para casa três
meses depois de sua operação nos EUA e de sua convalescência no Marrocos – em meio à massiva
propaganda do regime, completada com toques orientalistas enquanto homens com túnicas brancas
realizavam tradicionais danças beduínas da espada sobre tapetes especiais.
Para a Casa de Saud, a revolta é o pesadelo máximo: como todo o mundo já sabe, o ínfimo Bahrein de
maioria xiita faz fronteira com as regiões produtoras de petróleo da Arábia Saudita, de grande maioria
xiita. Portanto, não surpreende que o rei Abdullah, mal colocou os pés sobre os tapetes e já realizou uma
ação preventiva para sufocar toda possível atividade ansiosa de democracia mediante um programa de
35 bilhões de dólares que inclui um ano de seguro desemprego para jovens desempregados, e um fundo
de desenvolvimento nacional para ajudar as pessoas a comprarem casas, estabelecerem negócios e
casarem-se.
Em tese, a Arábia Saudita prometeu pelo menos 400 bilhões de dólares até o fim de 2014 para melhorar
a educação, a saúde e a infraestrutura. O economista chefe do Banco Sadi Fransi, John Sfakianakis,
descreveu a iniciativa com um eufemismo: “o rei trata de criar um melhor efeito de filtração da riqueza
na forma de prestações sociais”.
Invariavelmente os eufemismos terminam quando se trata da política. Não há nenhum sinal de que o rei
vá investir nas aspirações políticas de seus súditos – como liberdade para partidos políticos e sindicatos
– e os protestos ainda são totalmente proibidos. Não há evidência, tampouco, de que se mostre inclinado
a encarar os imensos problemas sociais – desde a repressão governamental á intolerância religiosa – que
o obrigaram a anunciar estra multimilionária estratégia do “filtrado”.
E quem esteve presente para saudar o rei Abdullah e discutir o código da “crise” para a Grande Revolta
Árabe de 2011? Correto – seu vizinho, o monarca feudal sunita, rei Hamad al-Khalifa, de Bahrein.
Matando-os suavemente com nossa canção
A narrativa urdida na Disneylândia ocidental de que o rei Hamad “favorece a reforma”, que se interessa
pelo “progresso da democracia” e pela “preservação da estabilidade”, foi totalmente desbaratada quando
seu exército mercenário disparou munição de guerra por meio de canhões antiaéreos instalados em
transportes blindados contra manifestantes que levavam flores, ou utilizou helicópteros Bell
estadunidenses que perseguiam a população e disparavam contra ela.
Uma mensagem no twitter da jornalista bareiní Amira al-Hussein resumiu tudo: “Amo Bahrein. Sou
bareiní. Meu sangue é bareiní e hoje vi como meu país morria nos olhos de seus filhos”.
A rebelião xiita contra a dinastia al-Khalifa de mais de 200 anos, invasores procedentes do continente,
por certo vem se desenvolvendo durante décadas e inclui centenas de prisioneiros políticos torturados
em quatro prisões dentro e ao redor de Manama por “conselheiros” jordanianos e um regime cujo
exército é composto em sua maioria por soldados punjabis e balúchis paquistaneses.
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Demorou bastante, mas por fim um telefonema estratégico desde Washington garantiu que os al-Khalifa
ao menos fizessem com que a matança fosse realizada com um pouco mais de sentido comum.
A história de como a política externa dos EUA se adaptou agilmente à grande revolta árabe de 2011
deixa algumas lições. O presidente deposto do Egito, Hosni Mubarak, e o rei Hamad, do Bahrein, são
“moderados” e certamente não “malévolos”; além de qualquer coisa foram e são, respectivamente,
pilares da “estabilidade” no Oriente Médio e Norte da África (MENA).
Por outro lado, Muamar Kadafi, da Líbia, e Bashar al-Assad, da Síria, são verdadeiramente maus,
porque não se submetem aos ditames de Washington. A escala moral que condiciona a reação dos EUA
está diretamente determinada pelo grau no qual o ditador/monarca feudal em questão é um sátrapa
estadunidense.
Isso explica a imediata reação estadunidense (do Departamento de Estado, e ainda na quarta-feira do
próprio presidente Barack Obama) ante o bombardeio ordenado por Kadafi contra seu próprio povo,
enquanto os meios de comunicação corporativos e números analistas dos think tanks se apressaram para
ver quem encontraria os adjetivos mais estudados para crucificar este último. Não há nada melhor do
que denunciar um ditador que não se ajusta ao modelo de lacaio de Washington.
Enquanto isso, do outro lado de MENA, houve apenas um olhar quando o aparato repressivo de Hamad
– importado em parte da Arábia Saudita – matou seus próprios cidadãos na rótula Perla. Bom, o
terrorista reabilitado Kadafi sempre foi um lunático, enquanto a Bahrein outro mantra se aplica: Bahrein
é um “estreito aliado” dos EUA, “uma nação pequena, mas valiosa do ponto de vista estratégico”, base
da Quinta Frota, essencial para assegurar o fluxo de petróleo pelo Estreito de Ormuz, um bastião contra
o Irã, etc.
Em todo caso, mesmo depois do massacre, Jeque Ali Salman, líder do maior partido opositor xiita, al
Wefaq, assim como Ebrahim Sharif, líder do partido secular Wa’ad, e Mohammed Mahfood, da
Sociedade de Ação Islâmica, concordaram em se reunir com o príncipe herdeiro Salman bin Hamad alKhalifa para um diálogo proposto pela monarquia.
Husain Abdullah, diretor do grupo Estadunidenses pela Democracia e os Direitos Humanos no Bahrein,
não está convencido: “Não estou seguro de que a própria família governante seja séria com respeito a
algum diálogo sério porque, quando se olha a televisão de Bahrein, não se vê outra coisa que ataques
sectários contra os que permanecem na praça Lulu”. Segundo Abdullah, o que ocorre na verdade é que
“cada vez mais gente pede abertamente a derrubada do regime, mediante meios pacíficos, e que o
Bahrein seja governado pelo povo. Além disso, há um chamado sério à desobediência civil total (não
parcial, como é atualmente) no país para obrigar a família governante a abandonar o país tal como
ocorreu na Tunísia e no Egito”. Não é surpreendente, portanto, que a Casa Saudita esteja assustada.
O levante dos 70% xiitas no Bahrein, além de muitos sunitas – o mantra do protesto é “nem xiitas, nem
sunitas, só bareinís” – começou como um movimento por direitos civis. É melhor que o príncipe
herdeiro cumpra as reivindicações rapidamente, ou esse movimento se converterá em uma revolução
concreta. No momento, há muita retórica sobre “estabilidade”, “segurança”, “coesão nacional” e nada
sobre uma reforma eleitoral e constitucional séria.
Há motivos para acreditar que Salman – seguindo os conselhos sauditas – possa estar agindo como
Mubarak, fazendo promessas vagas para um futuro distante. Todos sabemos como terminou na Praça
Tahrir.
Os manifestantes começaram a pedir um primeiro ministro eleito, uma monarquia constitucional e um
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fim à discriminação contra os xiitas. Agora, Matar Ibrahim, um dos 18 membros xiitas no Parlamento,
disse que a brecha entre os manifestantes na praça Perla e a oposição política oficial que fala com o
príncipe herdeiro se converteu em um abismo. O grito máximo unificador na rua é: “Abaixo, abaixo
Khalifa!”.
Milhares de trabalhadores na imensa fábrica de alumínio Alba já garantiram um movimento industrial e
sindical muito poderoso em apoio aos manifestantes de maioria xiita. O líder do sindicato da Alba, Ali
Bin Ali – sunita – já advertiu que os trabalhadores podem entrar em greve há qualquer momento.
"Queremos nossos direitos sociais'
Caso ocorra uma mudança pacífica e democrática de regime no Bahrein, os mega-perdedores serão a
Arábia Saudita e os Estados Unidos. O Bahrein é um caso clássico do império de bases dos EUA, em
aliança com uma repugnante monarquia/ditadura feudal. Naturalmente, o Estado Maior conjunto dos
EUA preferem a “ordem e estabilidade” estabelecidos por uma ditadura, assim como a antiga potência
colonial Grã Bretanha: os massacres de civis no Bahrein e na Líbia foram perpetrados pela academia
militar Sandhurst e sistemas da British Aerospace.
O rei Hamad graduou-se na Escola de Comando e Pessoal Geral do Exército dos EUA, em Fort
Leavenworth, Kansas, e “tem um papel dirigente na direção da política de segurança do Bahrein”,
segundo um telegrama vazado por Wikileaks. Ele foi ministro da Defesa de 1971 a 1988 e é um grande
entusiasta do armamento pesado estadunidense.
Por sua parte, o príncipe herdeiro, “muito ocidental em sua atitude”, é graduado em uma escola do
Departamento de Defesa do Bahrein e na Universidade de Washington (EUA). Tradução: dois vassalos
com mentalidade do Pentágono estão encarregados de fazer as reformas democráticas no Bahrein.
O centro bancário internacional de Bahrein – com um Produto Interno Bruto per capita um pouco
inferior a 20 mil dólares – também está muito acima, juntamente com a Arábia Saudita e os Emirados
Árabes Unidos, na escala de oligarquias enriquecidas na base do trabalho escravo, o proverbial grande
“pool” de trabalhadores migrantes que fornece mão de obra barata. Foi gasta uma fortuna promovendose o “Bahrein, amigo dos negócios”. Na semana passada, soou mais como “Bahrein, amigo das balas”.
A grande revolta árabe de 2011, com razões específicas em cada país, definitivamente não tem a ver
com religião (como afirmaram Mubarak, Kadafi e Hamad), mas essencialmente com a inquietude da
classe trabalhadora provocada pela crise global do capitalismo. O choque de civilizações, o fim da
história, a islamofobia e outros conceitos estão mortos e enterrados. As pessoas querem seus direitos
sociais e navegar pelas águas da democracia política e da democracia social. Neste sentido, a rua árabe é
hoje a vanguarda de todo o mundo. Se os al-Khalifa da vida não compreenderem isso, vão cair.
Pepe Escobar é autor de “Globalistan: How the Globalized World is Dissolving into Liquid War”
(Nimble Books, 2007) e “Red Zone Blues: a snapshot of Baghdad during the surge”. Seu último libro é
“Obama does Globalistan” (Nimble Books, 2009). [email protected].
27/02/2011 |
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Parece que Bin Laden está vencendo a grande guerra contra o terror
Qual o resultado desssa guerra, dez anos depois do 11 de setembro? Vijav Prashad resumiu bem o
quadro: A guerra dos EUA no Iraque levou o país a um regime pró-Irã. Em janeiro, o candidato
apoiado pelo Hezbollah (Najib Mikati) se tornou primeiro ministro do Líbano e o Hamas se fortaleceu,
enquanto os restos de legitimidade da Autoridade Palestina esfacelaram-se, quando a Al-Jazeera
publicou os Palestine Papers. Os exílios de Ben Ali e Mubarak retiraram a Tunísia e o Egito do rol de
apoiadores dos EUA na região. Enquanto isso, Kadafi na Líbia e Saleh no Iêmen têm sido aliados leais
na "guerra contra o terror”. O artigo é de Alexander Cockburn.
Alexander Cockburn - Counterpunch
De Washington DC escutamos uma brava conversa a respeito de Tio Sam liderando a batalha pela
democracia pelo mundo árabe, e assim restaurando a autoestima aos olhos árabes como outra coisa que
não o patrocínio da tirania e da tortura pelo neoliberalismo, os eletrodos e o “waterboarding” [método
medieval de tortura que consiste em simular fisicamente na vítima o seu afogamento, mediante o uso da
força, num tanque de água]
As únicas pessoas da multidão de Washington enganadas por esse tipo de conversa são eles mesmos.
Barack Obama pode ter zizagueado na direção de uma conversa dura sobre a tirania, mas não titubeou
quanto ao único veto, em 18 de fevereiro, no Conselho de Segurança da ONU à resolução condenando
os assentamentos israelenses. Vocês pensam que a Al-Jazeera não transmitiu isso para o mundo todo?
(Washington invoca as ferramentas made-in-America, Twitter e Facebook, na luta pela democracia no
Oriente Médio. Comparadas em significância à Al-Jazeera elas são como lascas de bife de búfalo de
água.)
Nos idos do outono de 2001, Osama bin Laden habitualmente citava, dentre os motivos da AlQaeda
para o ataque de 11 de setembro, o seguinte: “A opressão da América sobre os mundo muçulmano, mais
especificamente no período das sanções contra o Iraque (a afirmação de [Madeleine] Albright de que
“achamos que o preço vale à pena” foi o singelo chamado de recrutamento na história do Terror) e
bombardeio; a condição da Arábia Saudita como lacaio do Império americano; e a opressão israelense
sobre os palestinos.
Abra-se o mapa do Oriente Médio e da África do Norte dez anos depois.
Como disse Vijav Prashad em Counterpunch:
“A guerra dos EUA no Iraque levou o país a um regime pró-Irã. No último janeiro, o candidato
apoiado pelo Hezbollah (Najib Mikati) se tornou primeiro ministro do Líbano e o Hamas se fortaleceu,
enquanto os restos de legitimidade da Autoridade Palestina esfacelaram-se, quando a Al-Jazeera
publicou os Palestine Papers. Os exílios de Ben Ali e Mubarak retiraram a Tunísia e o Egito do rol de
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apoiadores do status quo [i.e., dos lacaios do Império]. Kadafi na Líbia e Saleh no Iêmen têm sido
aliados leais na Guerra contra o Terror”.
E eis o Rei Saudtia, assistindo a Al-Jazeera e vendo o círculo se fechar: Iraque, Síria, Líbano, o Iêmen
instável, Bahrein muito problemático, com todos esses xiitas do lado de lá.
Mas estão as massas árabes marchando em direção a um novo Califato, como advertiu temerariamente
Glen Beck? Não, é claro que não. Como escreve Prashad:
“Enquanto o status quo definha, seus cães leais tentam entoar a velha cantilena da ameaça do
fundamentalismo islâmico. O coro de Mubarak sobre a Irmandade Muçulmana foi silenciado. Quando
o sheik Yusuf al Qaradawi retornou de seu exílio no Qatar, ele não desempenhou o papel de Khomeini.
O sheik começou o seu sermão na praça Tahrir com boas vindas tanto à Irmandade Muçulmana como
aos cristãos. O espernear de Kadafi sobre um potencial posto da Al Qaeda no Mahgreb sendo formado
no nordeste da Líbia repetiam as ilusões paranóicas dos planejadores da Africom [O Estado Maior do
Comando Militar Estadunidense para a África]”.
Eu imagino que Osama está feliz com o tumulto atual, e podemos acrescentar à lista de Prashad o desejo
crescente estadunidense de remendar algum tipo de desculpa para se retirar do Afeganistão, com planos
dissecados pelo nosso elegante e muito bem informado ex-brigadeiro Shaukat Qadir, também em nossa
página. Petraeus é uma força em declínio. Gostaria de ver um general com mais cérebro e menos
medalhas de ouro?
Esses signos de solidariedade e apoio mútuo na Praça Tahrir e ao redor do prédio do Capitólio em
Madison, Wisconsin, tiveram um forte suporte econômico. Tiveram apoio moral nas expressões de
confiança, respeito e autoestima, e o Império do Capital estabelecido desde o colapso da União
Soviética em 1991 está irremediavelmente desmoronando, enquanto o neoliberalismo cria seus milhares
de bilionários e seus bilhões de pobres ao redor do mundo.
Como escreveu Andrew Levine em nossa página, a propósito da importância de Madison:
“O que está em jogo é o fim do jogo da assim chamada Revolução Reagan. Um ataque vitorioso e
organizado contra o mundo do trabalho iria resolver o assunto de uma vez por todas. Scott Walker e
sua laia sabem o que está em jogo. Graças às suas predações, trabalhadores e aliados agora sabem
também...a financeirização do capitalismo contemporâneo, a globalização da indústria e do comércio
e, mais genericamente, a tomada ao redor do mundo dos ganhos econômicos teve um grande custo
sobre o último século e meio. O problema, em resumo, é que, para o capitalismo sobreviver, deve se
expandir – e, com tão poucas áreas restantes para expansão, a esfera pública se tornou um alvo muito
tentador para se resistir. O que está sob ataque é a esfera pública ela mesma. Os sindicatos dos
servidores públicos são sua primeira (e última?) trincheira de defesa”.
O que teria sido bom de ver ao redor do prédio do Capitólio em Madison seria sinais – talvez eu sinta
saudade deles – do apoio dos estudantes da Universidade de Porto Rico que enfrentaram ocupação
militar, prisões e pancadas por suas greves contra os preços das mensalidades e a privatização crescente.
Durante o levante no Egito, estudantes e faculdade entraram em greve pela segunda vez no ano e
forçaram o governador, que estava assistindo à republicana Conferência Anual da Ação Política
Conservadora [CPAC em sua sigla em inglês] em Washington a retornar e ordenar a retirada dos
militares do campus.
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Eu sempre achei que a receita Piven-Cloward para derrotar o capitalismo, nos anos 60 de levar o bem
estar a todos era uma coisa reformista. O capital poderia descobrir isso. Acabem com o bem estar!
Ponham Bill Clinton para acabar com o AFDC [programa do governo federal estadunidense chamado
Ajuda a Famílias com Crianças Dependentes, ou Aid to Families with Dependent Children, que vigorou
de 1935 a 1997] e então ter esse dócil negro Obama para garantir o Medicare e talvez o Social Security.
Osama teve uma ideia melhor. Deixar a guerra sangrar até o Império secar. Pensem nos confetes do lado
esquerdo do peito de Petraeus como o aumento do orçamento militar desde as modestas condecorações
de Eisenhower.
Da próxima vez que Petraeus se mover por uma promoção terá de ter uma ajuda do idiota do Taylor
[Taylor Marsh] por trás dele para acomodar todas as medalhas simbolizando como o orçamento militar
dos EUA vai aparecer daqui a uma década ou mais, no futuro.
Alexander Cockburn ([email protected])
28/02/2011 |
Oposição denuncia acordo de lobistas dos EUA com Kadafi
Logo depois que George W. Bush suspendeu as sanções contra a Líbia em 2004, quando Kadafi
anunciou que pretendia abrir mão das armas de destruição em massa e expressou seu entusiasmo em se
juntar à guerra contra o terror, os produtores de petróleo dos EUA e da Grã Bretanha aproveitaram a
oportunidade para se expandir no país. Empresas como BP, Exxon, Halliburton, Chevron, Conoco e
Marathon Oil juntaram-se a gigantes da indústria armamentista, como Raytheon e Northrop Grumman,
a multinacionais como Dow Chemical e Fluor e à poderosa firma de advocacia White & Case para
formar a US-Libia Business Association, em 2005.
Marcus Baram - Huffington Post
Nova York – Uma vasta coalizão de interesses de todas as companhias de petróleo, da indústria
armamentista e de firmas de lobbies a acadêmicos neoconservadores e professores da Escola de
Negócios de Harvard têm trabalhado nos últimos anos para tentarem uma aproximação com o líder líbio
Muammar Kadafi e tirarem vantagem das oportunidades de negócios no país, mesmo diante de uma das
repressões mais duradouras, brutais e párias sobre o próprio povo e sua beligerância lendária.
Os líderes da oposição na Líbia dizem que esses esforços têm prejudicado os interesses do país da
África do Norte ao ajudar à família de Kadafi e seus aliados mais próximos a enriquecerem às expensas
da maioria dos líbios, servindo unicamente para prolongar o regime brutal de Kadafi. Eles também
culpam a política dos EUA de priorizar os interesses de segurança nacional sobre as questões da reforma
e dos direitos humanos, cuja falta ajuda a alimentar a violência do levante atual.
134
Logo depois que o ex-Presidente George W. Bush suspendeu as sanções contra a Líbia em 2004, quando
Kadafi anunciou que pretendia abrir mão das armas de destruição em massa e expressou seu entusiasmo
em se juntar à guerra contra o terror, os produtores de petróleo dos EUA e da Grã Bretanha e os
interesses econômicos aproveitaram a oportunidade para se expandir no país, que vinha sendo
comandado com mão de ferro pelo instável líder ao longo de 40 anos.
Alguns dos maiores produtores de petróleo e derivados, como BP, ExxonMobil, Halliburton, Chevron,
Conoco e Marathon Oil juntaram-se a gigantes da indústria armamentista, como Raytheon e Northrop
Grumman, a multinacionais como Dow Chemical e Fluor e a toda poderosa firma de advocacia White &
Case para formar a US-Libia Business Association, em 2005. Cada membro do seu conselho executivo
paga 20 mil dólares por ano ao grupo, que é dirigido pelo Conselho Nacional de Comércio Exterior
[www.nftc.org], uma coalizão que visa a facilitar as oportunidades internacionais para as companhias
estadunidenses.
A maioria dos membros do grupo fez lobby para o governo dos EUA desde 2004, a fim de proteger seus
investimentos na Líbia ou para facilitar a resolução de problemas dos interesses dos negócios com o
regime. O comércio bilateral com a Líbia totalizou 2,7 bilhões de dólares em 2010, praticamente nada se
comparado a 2003, quando as sanções ainda estavam em vigor.
O papel da USLBA, que auto-denominou-se como a única associação comercial dos EUA focada
unicamente na relação EUA-Líbia, combina lobby pelo estado fora da lei anterior, com o progresso das
metas comerciais dos membros associados ao grupo. Seu departamento de responsabilidade social
bancou políticas, conferências, briefings e coletivas e eventos destacando as lideranças dos EUA e os
oficiais líbios – dois meses atrás, o presidente honorário do grupo, David Mack, um ex-embaixador dos
EUA e o diretor executivo Charles Dittrich viajaram para Líbia para se encontrarem com oficiais do
governo líbio, com líderes de negócios privados e representantes de companhias estadunidenses
trabalhando no país.
No seu website, que agora está off-line, o grupo diz que visa a promover a Líbia, educando a Casa
Branca e o Congresso a respeito da “crescente importância do país na manutenção da estabilidade na
África do Norte, bem como do potencial da Líbia como mercado comercial em expansão para os
negócios americanos”. O website também “vende” a proximidade da USLBA a Kadafi, dizendo que
“somos o único grupo de negócios que se encontrou privadamente” com o líder Kadafi durante a sua
“primeira visita histórica” às Nações Unidas em 2009. Para dar uma medida da influência do grupo, o
presidente fundador David Goldwyn indicou o coordenador para assuntos energéticos internacionais do
Departamento de Estado para a Secretária de Estado Hillary Clinton. Numa visita a Líbia em dezembro
de 2008, Goldwyn teceu loas à “recepção fantasticamente calorosa” que ele e oito executivos
estadunidenses receberam dos oficiais maiores da Líbia.
02/03/2011 |
O “Lobo” Al Qaeda
135
A manipulação da Al Qaeda, porém, deixou, em 2011, de ser exclusiva aos países ocidentais. A prática
estendeu-se a diversas partes do mundo árabe que hoje enfrentam revoltas, revoluções e, no limite,
guerras civis, para defender a mudança de regime e a democracia. Somente para citar dois exemplos,
no Egito de Mubarak e na Líbia de Kadafi, a Al Qaeda assumiu papel central nas crises, ignorando as
inúmeras raízes de insatisfação popular que facilitaram a eclosão do processo. É curioso que um dos
poucos pontos que una o Ocidente e o Oriente neste período recente, de Obama a Mubarak, passando
por Kadafi, seja a Al Qaeda. O artigo é de Cristina Soreanu Pecequilo.
Cristina Soreanu Pecequilo (*)
Em uma das mais conhecidas fábulas da literatura atribuída a Esopo (620-560 a.c) um pequeno pastor
diverte-se a enganar seus vizinhos gritando com freqüência a palavra “Lobo” em alusão a um ataque do
animal a rebanhos de ovelhas. Diante da ameaça, inúmeros colegas corriam a ajudá-lo e descobriam que
nenhum risco existia. Sem remorso, o pastor reagia com arrogância diante daqueles que tinham se
prontificado a socorrê-lo, voltando a repetir a brincadeira até que um dia a mesma deixou de ser ficção
para tornar-se realidade. Atacado pelo lobo, o pastor foi abandonado à própria sorte, levando à moral da
história: ninguém acredita em um mentiroso mesmo quando ele estiver falando a verdade.
Mais do que uma simples “moral da história” que pode parecer deslocada em uma discussão sobre
política internacional no século XXI (ou sobre a revolta árabe e a política externa de muitos países), a
trajetória do pastor e do lobo é recorrente na política, vide a instrumentalização da mentira como
verdade e da ameaça como medo e exagero. Atrelada a discursos e ações políticas independente do país
e da circunstância, grandes tragédias humanitárias, guerras e opressões tendem a ser justificadas a partir
do outro, da metáfora do lobo. Neste contexto, a metáfora concretizada na figura de um determinado
grupo de pessoas por sua origem, religião ou etnia, em um partido político por sua ideologia, permite a
aceitação silenciosa de fenômenos como genocídios, invasões e repressões militares, restrição de
direitos humanos.
Muitas são as faces dos inimigos, internos e externos, dependendo da nação e do momento, mas é
possível detectar um interessante padrão atualmente, cujas origens localizam-se em 11/09/2001. Desde
os atentados terroristas ao território continental norte-americano, pelos quais teria sido responsável, a Al
Qaeda tornou-se a origem de diversos atos de violência e insurgência. Para os Estados Unidos (EUA) e
aliados europeus ocidentais, Bin Laden e a Al Qaeda, configuraram-se no principal inimigo de suas
democracias. Definida como ameaça maior à ordem mundial, o grupo deu origem às interpretações
sobre o avanço do terrorismo transnacional, de células dispersas e comandos descentralizados, um polvo
que com seus tentáculos perpassava, sem limites ou fronteiras, todos os países e sociedades. Inclusive,
esta “teia”, segundo as avaliações dos EUA, estendia-se até a América do Sul, na porosa região da
Tríplice Fronteira Brasil, Argentina e Paraguai, e no financiamento das guerrilhas e do tráfico na
Colômbia, que foram renomeadas como “narcoterroristas”.
Dois conflitos foram iniciados no bojo da Guerra Global Contra o Terror de Bush, no Afeganistão
(2001) e no Iraque (2003) sendo que, no Iraque, a fábula foi reconstruída. A “moral da história” foi
repensada, para recair em um ditado popular: o de que mentiras, caso repetidas várias vezes e bem
construídas, passam a ser verdadeiras, mesmo para os que as elaboraram.
Antes da invasão ao Iraque em 2002, cerca de 90% dos norte-americanos acreditava, que Saddam
Hussein era um agente da Al Qaeda e, em parceira com Bin Laden, fora o responsável por 11/09. Os
estudos da Comissão de 11/09, o livro “Contra Todos os Inimigos” de Richard Clarke (2004) que
contestava as alegações de W. Bush sobre os atentados, a ausência de uma conclusão sobre os episódios
envolvendo Antraz que se seguiram à 11/09, buscavam sobrepujar estas certezas e reavaliar, afinal,
quem seriam, ou eram os inimigos da América, mas não obtiveram repercussão.
136
Na oportunidade, o acadêmico britânico Fred Halliday (1) (1946-2010) da London School of Economics,
alertou para os riscos deste pânico auto-induzido, que mistificava a Al Qaeda. Para Halliday, as
alegações dificultavam a compreensão de um fenômeno político concreto, atribuindo a Bin Laden
apenas a violência pela violência. Apesar de Bin Laden ser lembrado como “treinado pela CIA”, as
retóricas pós-11/09 jogavam uma cortina de fumaça sobre as origens deste movimento nos anos
1970/1980, a partir das triangulações da diplomacia norte-americana com os insurgentes afegãos e as
pressões sobre a União Soviética (URSS), que resultaram na Guerra do Afeganistão (1979/1989).
Fatores como a Revolução Iraniana (1979) e a Guerra Irã-Iraque (1980/1988) igualmente faziam parte
de uma grande estratégia norte-americana para o Oriente Médio que, se em algumas nações visava
barrar o que definia como “onda verde” (a revolução fundamentalista islâmica do Irã), em outros,
aliava-se aos “lutadores da liberdade”, independente de suas orientações radicais (como no
Afeganistão).
Ainda que muitos alegassem que esta era somente mais uma tentativa dos EUA de substituir o inimigo
soviético por outra contraparte, a caracterização da Al Qaeda e Bin Laden como a “ameaça número 1”,
ultrapassava as demandas norte-americanas, para se consistir em uma justificativa quase geral do
Ocidente para medidas sociais e políticas coercitivas.
Apresentadas como excepcionais, cada vez mais, estas regulamentações parecem ser a regra, vide a
mais recente extensão do Ato Patriota criado nos EUA em 2001 para o combate ao terrorismo.
Em 25 de Fevereiro de 2011, às vésperas de sua expiração, o Ato Patriota foi renovado, mais uma vez,
de forma provisória, por três meses pelo governo Barack Obama devido à pressão dos republicanos e da
comunidade de segurança e inteligência nacionais. Como provisões da renovação, que após três meses,
poderá ser prorrogada por mais um ano, permanecem o monitoramento de cidadãos e acesso a
informações pessoais de suspeitos. Enquanto o mundo estava absorvido pelos movimentos democráticos
no Oriente Médio, que se prolongam, e com muitos deles agora defendidos pelos EUA, o modelo norteamericano contrariava suas melhores recomendações. Mais do que o risco do crescente terrorismo
interno e polarizações domésticas, a sombra da Al Qaeda foi a justificativa de mais esta reedição.
A manipulação da Al Qaeda, porém, deixou, em 2011, de ser exclusiva aos países ocidentais. A prática
estendeu-se a diversas partes do mundo árabe que hoje enfrentam revoltas, revoluções e, no limite,
guerras civis, para defender a mudança de regime e a democracia. Para preservar suas nações da
desagregação, da violência provocadas pela Al Qaeda, dirigentes advogam perante o Ocidente e suas
populações sua permanência no cargo. Somente para citar dois exemplos, no Egito de Mubarak e na
Líbia de Kadafi, a Al Qaeda assumiu papel central nas crises, ignorando as inúmeras raízes de
insatisfação popular que facilitaram a eclosão do processo.
Pode ter havido ingerência e/ou motivação externa em muitas destas revoltas, inclusive as que se
encontram em andamento? Certamente, mas não só da Al Qaeda ou dos EUA, mas de interesses
políticos, econômicos e estratégicos múltiplos e dispersos em uma região chave para o dilema
energético mundial. A não compreensão deste intrincado jogo de poder, ou a tentativa de deslegitimá-lo
ao atribuí-lo exclusivamente a um ator sempre comentado, mas pouco conhecido, implica não só
prolongar a instabilidade, mas colocar em xeque o futuro da reestruturação político-social destes
regimes. Afinal, não se pode deixar de achar “curioso” que um dos poucos pontos que una o Ocidente e
o Oriente neste período recente, de Obama a Mubarak, passando por Kadafi, seja o lobo Al Qaeda.
(*) Professora de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)
NOTA
(1) HALLIDAY, Fred. Two hours that shook the world. Saqi Books, London, 2002
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01/03/2011 |
As elites e os Estados árabes, um modelo em crise
Para EUA e aliados, a Arábia Saudita é a última fortaleza a ser preservada da “contaminação
revolucionária”. Porém, se levarmos em consideração as recentes atitudes do monarca saudita, as
fissuras já aparecem. Após passar meses hospitalizado, o monarca foi tomado por um verdadeiro surto
humanitário e prometeu despejar US$ 37 bilhões em medidas de seguridade social, habitação e
emprego. Como lembrou Robert Fisk, a revolta árabe, que deu início à derrota do império otomano
começou nos desertos da Arábia. Resta ver se a história se repete, mas não como farsa. O artigo é de
Reginaldo Nasser.
Reginaldo Nasser (*)
O que aconteceu na Tunísia, Egito, Iemen e Líbia pode ainda acontecer em todo o mundo árabe
revelando o colapso de uma ordem pós colonial que há muito tempo perdeu a sua legitimidade.
Provavelmente, se não tivesse ocorrido a invasão militar, o Iraque também estaria nessa lista. Inspirados
pelas rebeliões que ocorrem em todo o mundo árabe milhares de iraquianos, de várias regiões saíram às
ruas nessa semana para protestar de forma pacífica contra a corrupção e a falta de serviços básicos. Oito
anos após a invasão liderada pelos EUA que derrubou o ditador Saddam Hussein há falta de comida,
água, eletricidade e empregos.
As rebeliões aparecem, cada vez mais, como um reflexo da falência não apenas do desempenho de seus
líderes, da forma de governo adotada (repúblicas ou monarquias) ou do projeto nacionalista iniciado na
década de 50, mas sim da essência desses Estados. O Islamismo e o nacionalismo árabe sempre
competiram em torno de qual deveria ser o verdadeiro fator de substituição do imperialismo e de
unificação das diversidades étnicas, tribais e religiosas nas sociedades árabes. As facções militares,
portadoras de um nacionalismo secular, substituíram a velha oligarquia como uma panacéia para todos
os males árabes, incluindo o subdesenvolvimento.
Tanto o islamismo como o nacionalismo secular procuraram construir sua legitimidade quase que,
exclusivamente, numa postura antiimperialista que se articulou à rejeição do Estado de Israel, mas era
desprovida de programas de reformas econômicas, mecanismos de participação política e de integração
que permitissem integrar suas respectivas sociedades ou de solidificar o sentimento de uma comunidade
árabe de caráter transnacional.
Sem qualquer sinal de rejeição da presença islâmica, mas com uma ênfase na reivindicação de liberdade
de expressão, direitos humanos e melhorias socioeconômicas os novos movimentos são, provavelmente,
o melhor antídoto às identificações sectárias. Apesar de desvinculado do antigo projeto nacionalista, o
imaginário de uma identidade árabe continua com vigor e pode ser o unificador potencial contra
possíveis tendências de desintegração e de intervenção estrangeira na região. Essas perspectivas
138
promissoras de democratização na sociedade civil com sua atenção voltada para o bem-estar das massas
são fortes, apesar da permanência das elites no processo de transição.
O desafio maior é mudar o perfil desses “Estados rentistas” cujo funcionamento do sistema político e
parte substancial das suas receitas provêm de rendas derivadas dos recursos naturais, especialmente
petróleo. Além disso, ultimamente, esses Estados também têm se sustentado fortemente em pagamentos
multilaterais de ajuda externa, ajuda ao desenvolvimento ou de assistência militar, agora denominadas
“rendas estratégicas”. O nível elevado da renda nacional e a ausência de distribuição de renda nesses
“Estados rentistas” têm como base um contrato social implícito entre as elites ( locais e internacionais)
que só pode ser sustentável, desde que haja recursos suficientes para ser distribuído em uma ampla
coalizão de interesses constituída por empresas petrolíferas, indústrias de defesa e empresas de lobby.
(ver excelente matéria no HUFFPOST Marcus Baram Libyan Opposition Leaders Slam U.S. Business
Lobby's Deals With Gaddafi, traduzida e publicada aqui na Carta Maior).
Existe uma forte correlação positiva entre a renda real e a força do sistema do Estado. A noção de
"comprar" o consentimento popular que, por sua vez, concede legitimidade ao regime é pedra angular
desse sistema. O Estado dirige a sociedade e cria um sistema de inclusão/exclusão construindo uma
relação clientelista entre a classe rentista (não produtivos, considerados como cidadãos) e todo o resto
da sociedade que não se beneficia da renda (parte da população que não desfruta de uma plena
cidadania).
A tão alardeada paz e estabilidade nos Estados do Golfo (Qatar, Kuwait, Bahrein, Arábia Saudita e
Emirados Árabes ) está alicerçada numa distinção muito clara entre os membros da sociedade. Lealdade
para com a elite dominante local é aceita na medida em que os indivíduos encontram seus interesses
econômicos adquiridos diretamente no Estado. Assim “sair” da comunidade local ou nacional se traduz
em enormes custos econômicos. Além disso, a distribuição das receitas petrolíferas também é usada
como uma ferramenta para policiamento por meio da deportação ou privação de cidadania contra
aqueles que se opõem à elite dominante.
Para os EUA e aliados, a Arábia Saudita é a última fortaleza a ser preservada da “contaminação
revolucionária”. Entretanto se levarmos em consideração as recentes atitudes do monarca saudita, as
fissuras já começaram aparecer. Após passar meses hospitalizado, o monarca, em seu retorno, foi
tomado por um verdadeiro surto humanitário e prometeu despejar 37 bilhões de dólares em medidas de
seguridade social, habitação e emprego. Como lembrou apropriadamente Robert Fisk a revolta árabe,
que deu início à derrota do império otomano começou nos desertos da Arábia. Resta ver se a história se
repete, mas não como farsa.
(*) Professor de Relações Internacionais da PUC/SP)
02/03/2011 |
139
Os limites da democracia
O Egito deve entender que, embora a democracia seja essencial, nenhuma constituição ou sistema de
governo resolverá seus problemas econômicos. Logo após as eleições, as novas autoridades devem
passar do discurso liberal da democracia à discussão de questões fundamentais da estrutura econômica
do país. Neste processo, se verão obrigadas a descobrir que é muito mais difícil arrancar um sistema
econômico corrupto pela raiz do que derrubar um ditador. O artigo é de Lev Grinberg.
Lev Grinberg - IPS/Al Jazeera
O povo egípcio tem muitas razões para estar orgulhoso. Deu ao mundo uma brilhante lição sobre como
derrubar um ditador em três semanas e quase sem violência. Sua mensagem de liberdade, unidade e
solidariedade permanecerá por muito tempo na memória coletiva do Oriente Médio e do mundo. O
caminho para a democracia é, agora, muito mais longo. Mas a sabedoria política que os manifestantes
egípcios têm demonstrado até agora é uma boa razão para crer que superarão os duros obstáculos que os
esperam. No entanto, é necessário advertir aos democratas do Egito e, sobretudo, aqueles que os sigam
no Oriente Médio, que a democracia não é a solução para todos os problemas.
A democracia não resolve necessariamente os problemas da pobreza e da desigualdade econômica, nem
os conflitos culturais vinculados à identidade comum dos cidadãos de uma nação.
Uma fórmula ocidental
O motivo essencial pelo qual a democracia carece de resposta para tais assuntos é que seus princípios
foram formulados em sociedades capitalistas industriais, caracterizadas por uma considerável
homogeneidade cultural e por brechas econômicas relativamente pequenas. A democracia é um
conjunto de princípios formais desenvolvidos na Europa ocidental com o objetivo de facilitar a
representação e a articulação das classes média e trabalhadora e concebida para conter de forma pacífica
os conflitos entre estas e a classe alta. Quando não há um equilíbrio de poder entre as classes, nem uma
identidade nacional única e consensuada, a instalação automática dos princípios democráticos formais
poderia inclusive piorar as coisas.
Para impedir que isso ocorra, é preciso entender as condições sociais e econômicas peculiares de cada
país e colocar em jogo não só os princípios democráticos, mas também outros fatores constitucionais,
institucionais e políticos. Se existe um vínculo sistemático entre a identidade cultural e o status
econômico, a democracia se converte mais em um problema do que em uma solução, pois exacerba os
conflitos culturais até o ponto da violência ao criar uma oportunidade formal para que a maioria force a
vontade da minoria.
O sociólogo político Michael Mann demonstrou que, nestes casos, a democracia só serve para
intensificar as tensões entre grupos raciais e étnicos, ao que eu agregaria – no contexto do Oriente
Médio – o conflito entre grupos confessionais e entre setores religiosos e laicos. O exemplo mais
recente foi a democratização da ex-federação da Iugoslávia, que conduziu a dez anos de guerras e à
divisão em sete estados, acompanhadas de genocídio e limpeza étnica. O caso mais antigo foi o dos
Estados Unidos. A constituição democrática que anunciava “um governo do povo” começou com um
massacre dos povos indígenas americanos porque eles não estavam incluídos no “nós, o povo” dos
Estados Unidos.
Esta advertência pode resultar irrelevante para o Egito, que goza de um patrimônio nacional
excepcional, homogeneidade cultural e uma tradição de tolerância com minorias religiosas, como os
cristãos coptas e os judeus, assim como de muito respeito entre crentes devotos e não praticantes.
140
Mas a adoção do caminho egípcio em outros países da região, como Irã, Bahrein e Líbia, já indica
outras possibilidades e o mesmo pode-se esperar de processos similares que iniciaram na Jordânia –
com conflitos entre suas populações beduína e palestina – e na Síria – entre os muçulmanos sunitas e os
alawis – e que constituem o contexto de tensões sociais em países como democracias formais como
Iraque e Líbano.
Em Israel, a violenta repressão à Intifada (levante palestino) de Al-Aqsa, em 2000, demonstrou que o
grupo étnico que exerce o poder não cede controle político e econômico nem mediante a
democratização nem outorgando a independência, a menos que os poderes das duas partes se
equilibrem, como no caso na secessão entre o sul e o norte do Sudão.
Em busca do consenso político
Quem busca a democracia nessas condições deve encontrar primeiro fórmulas originais e consensuadas,
sob as quais cada grupo cultural seja livre para seguir sua própria cultura sem tentar impor sua
identidade e costumes ao resto da cidadania. Em outras palavras, protestar e se manifestar pela
democracia não basta. Os países do Oriente Médio precisam é de um consenso político sobre o
reconhecimento recíproco de direitos e a coexistência, garantidos mediante uma constituição e
institucionalizados por processos eleitorais e instituições representativas.
O Egito, sim, deve se preocupar, em troca, com a desigualdade econômica e a pobreza que afeta a
maioria de sua população. Sem solucionar esses problemas, até o regime mais democrático pode ser
sacudido por novos protestos populares e dar lugar a novas formas de autoritarismo.
Um bom exemplo desses fracassos da democracia se materializou em dezembro de 2001 na Argentina,
quando a população tomou conta das ruas exigindo que “se vayan todos” os políticos e derrubando
cinco presidentes em poucos dias. Isso ocorreu apenas dois anos após a realização de eleições
democráticas que levaram ao poder uma ampla coalizão de partidos de centroesquerda, que prometia
superar uma profunda crise econômica, mas não o fez. O governo eleito se inclinou, em troca, por seguir
as políticas ditadas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), que protegia os interesses dos
investidores estrangeiros contra os das classes assalariadas e médias. A crise fez com que todos que
tinham depósitos bancários perdessem 70% de seus ativos com a benção do FMI.
Por isso, o Egito deve entender que, embora a democracia seja essencial, nenhuma constituição ou
sistema de governo resolverá seus problemas econômicos. Logo após as eleições, as novas autoridades
devem passar do discurso liberal da democracia à discussão de questões fundamentais da estrutura
econômica do país. Neste processo, se verão obrigadas a descobrir que é muito mais difícil arrancar um
sistema econômico corrupto pela raiz do que derrubar um ditador.
(*) Lev Grinberg é professor de Economia Política e Sociologia na Universidade Ben Gurion, de
Negev, Israel, e autor de “Politics and Violence in Israel/Palestine: Democracy vs. Military Rule”.
02/03/2011 |
É só sangue!
Nenhuma mediação pode servir de subterfúgio para um novo Iraque ou Afeganistão. As rédeas da
negociação – já que o cavalo, ao que tudo indica, parece estar sendo encilhado pelos EUA - devem ser
tomadas, urgentemente, pelas Nações Unidas, a fim de se pedir o cessar-fogo imediato na Líbia.
Marcelo da Silva Duarte
141
“(...) Logo adiante dos portões do sul do acampamento, havia antes várias casas de concreto de um só
piso. Quando atravessamos a lamacenta entrada de Chatila, descobrimos que essas construções
haviam sido todas dinamitadas até o chão. Havia caixas de balas por toda a rua principal, e nuvens de
moscas enxameavam o lixo. Numa alameda à direita, a não mais de 50 metros da entrada, jazia uma
pilha de cadáveres.
Dezenas deles, jovens cujos braços e pernas se enredavam na agonia da morte. Todos haviam sido
fuzilados à queima-roupa na face esquerda, a bala rasgando uma linha de carne até a orelha e
entrando no crânio. Alguns tinham vívidas feridas roxas que desciam pelo lado esquerdo da garganta.
Um fora castrado. Todos tinham os olhos arregalados, e as moscas já tinham começado a se juntar. Os
mais novos tinham talvez apenas 12 ou 13 anos (...)”
“Foram os Cristãos”: Massacre no acampamento de refugiados de Chatila.Robert Fisk, The Times,
20 de setembro de 1982. (O grande livro do jornalismo. Editado por Jon E. Lewis. Tradução de
Marcos Santarrita. Rio de janeiro, José Oympio, 2008)
Aumenta entre analistas e dirigentes políticos a expectativa de uma intervenção internacional na Líbia
de Muamar Khadafi.
As recentes e acertadas resoluções do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas
(ONU), aprovando sanções à Líbia – proibição da venda de armas ao país africano, congelamento dos
bens de Khadafi e aliados no exterior e abertura de investigação, no Tribunal Penal Internacional, sobre
as denúncias da oposição contra o líder líbio por crimes contra a humanidade -, parecem ter acendido o
sinal de alerta para lideranças latinas.
Para o presidente venezuelano Hugo Chávez, que teme uma intervenção armada estadunidense à Líbia,
há falta de disposição do ocidente para o diálogo com o país africano. Os EUA, segundo Chávez,
estariam de olho no petróleo líbio e, ratificando as recentes declarações públicas do ditador africano,
distorcendo e exagerando, propositadamente, o que verdadeiramente se passa no país. O presidente
latino-americano defende a solução negociada para o conflito e informou que pretende conversar sobre
essa proposta com países da Europa e com os membros da Aliança Bolivariana para os Povos da
América (ALBA), integrada pela Venezuela, Cuba, Bolívia, Nicarágua, República Dominica, Equador,
Antigua e Barbuda e São Vicente e Granadinas.
No dia 28 de fevereiro, em Genebra, na Suiça, durante reunião extraordinária no Conselho de Direitos
Humanos da ONU, o representante cubano, Rodolfo Reyes, afirmou que o governo de seu país defende
a necessidade de se respeitar a soberania líbia. Segundo Reys, os EUA estariam incitando a violência, a
agressão militar e a interferência estrangeira na Líbia; “Esperamos que o povo líbio conquiste um
Estado precoce pacífico e soberano criado, sem qualquer ingerência estrangeira ou de intervenção, para
assegurar a integridade da nação da Líbia”, teria comentado o conselheiro ao Granma, jornal oficial
cubano, segundo informações da Rede Brasil Atual. Cuba, ainda segundo Reys - que afirmou ter sido
informado de planos para uma intervenção militar humanitária no país africano -, rejeita
categoricamente qualquer proposta de intervenção internacional na Líbia.
Já a representante brasileira na reunião do Conselho, ministra da Secretaria dos Direitos Humanos,
Maria do Rosário, criticou a seletividade com a qual, historicamente, a ONU trata questões de direitos
humanos e a predominância de interesses políticos nas diligências sobre as violações dos direitos
fundamentais conduzidas pela Organização, mas observou, em claro recado à diplomacia líbia, que
“nenhum governo se sustentará pela força e pela violência” e que “nenhum povo suportará, em silêncio,
a violação de seus direitos fundamentais”. Ainda segundo a ministra, dessa feita em claro recado à
comunidade internacional e a excessos que porventura possam ser cometidos em seu nome, “o Brasil
142
entende que posições econômicas e sociais não devem servir de pretexto para a violação dos direitos
humanos. Todavia, a violação desses direitos tampouco pode ser um pretexto para ações unilaterais, sem
o respaldo da comunidade internacional”.
Como se não bastassem os rumores diplomáticos, lideranças líbias contrárias a Muamar Khadafi se
disseram, terça-feira (1°), tentadas a pedir ataques aéreos contra as forças governistas. Tais lideranças
também teriam afirmado à imprensa estadunidense que estão perdendo as esperanças de que um levante
popular seja capaz de derrubar o ditador líbio, donde a necessidade de se atacar, sob a bandeira da ONU,
“alvos estratégicos”. Para Abdel-Hafidh Ghoga, porta-voz da coalização civil que dirige Benghazi,
segunda maior cidade líbia, se tal ação ocorresse sob a bandeira das Nações Unidas, não estaríamos
diante de “uma intervenção estrangeira”.
Noves fora a não poucas vezes justificada obsessão chavista por ardis estadunidenses – não obstante
parecer não ter limites o empenho da Casa Branca a fim de corroborar tais teorias conspiratórias, como
bem demonstrou a família Bush, o levante líbio parece ter pouco a ver, pelo menos por enquanto, já que
estamos falando da administração de uma região estratégica do ponto de vista geopolítico, com
artimanhas diplomáticas estadunidenses na região – e a falta de memória do representante cubano no
Conselho de Direitos Humanos da ONU - que parece ter esquecido a interferência cubana e soviética, na
última década de 60, na autodeterminação de países latino-americanos -, parece inevitável, para o bem
ou para o mal, a mediação internacional no conflito que opõe rebeldes e o governo líbio de Muamar
Khadafi, seja para negociar seu afastamento, caso se trate da vontade popular, seja para se evitar o
provável banho de sangue que advirá, pela via da repressão oficial – para quem não sabe, a Líbia não
tem Constituição, sendo governada por ideias esparsas anotadas por Khadafi numa espécie de diário
político; uma dessas ideias prevê a execução sumária em caso de “traição” à pátria, eufemismo para
“L'État c'est moi” -, após uma possível rendição dos rebeldes.
A história é pródiga em exemplos de levantes populares e oposicionistas, étnicos ou políticos, sufocados
e, posteriormente, duramente perseguidos e reprimidos. Que o digam os refugiados palestinos no campo
de Chatila, no Líbano, e os xiitas iraquianos de Dujail.
Nenhuma mediação, porém - ou mesmo uma medida extrema como a intervenção -, pode servir de
subterfúgio para um novo Iraque ou Afeganistão. As rédeas da negociação – já que o cavalo, ao que
tudo indica, parece estar sendo encilhado pelos EUA - devem ser tomadas, urgentemente, pelas Nações
Unidas, a fim de se pedir o cessar-fogo imediato na Líbia e a abertura do diálogo entre rebeldes e
governistas. Do contrário, mais uma vez restará desmoralizada a comunidade internacional.
Pois todo sangue, depois de derramado, não tem religião, raça ou preferência política, e muito menos é
capaz de dialogar. É só sangue.
* Mestrando em filosofia. Mantém o blog www.laviejabruja.blogspot.com
02/03/2011 |
143
O “Lobo” Al Qaeda
A manipulação da Al Qaeda, porém, deixou, em 2011, de ser exclusiva aos países ocidentais. A prática
estendeu-se a diversas partes do mundo árabe que hoje enfrentam revoltas, revoluções e, no limite,
guerras civis, para defender a mudança de regime e a democracia. Somente para citar dois exemplos,
no Egito de Mubarak e na Líbia de Kadafi, a Al Qaeda assumiu papel central nas crises, ignorando as
inúmeras raízes de insatisfação popular que facilitaram a eclosão do processo. É curioso que um dos
poucos pontos que una o Ocidente e o Oriente neste período recente, de Obama a Mubarak, passando
por Kadafi, seja a Al Qaeda. O artigo é de Cristina Soreanu Pecequilo.
Cristina Soreanu Pecequilo (*)
Em uma das mais conhecidas fábulas da literatura atribuída a Esopo (620-560 a.c) um pequeno pastor
diverte-se a enganar seus vizinhos gritando com freqüência a palavra “Lobo” em alusão a um ataque do
animal a rebanhos de ovelhas. Diante da ameaça, inúmeros colegas corriam a ajudá-lo e descobriam que
nenhum risco existia. Sem remorso, o pastor reagia com arrogância diante daqueles que tinham se
prontificado a socorrê-lo, voltando a repetir a brincadeira até que um dia a mesma deixou de ser ficção
para tornar-se realidade. Atacado pelo lobo, o pastor foi abandonado à própria sorte, levando à moral da
história: ninguém acredita em um mentiroso mesmo quando ele estiver falando a verdade.
Mais do que uma simples “moral da história” que pode parecer deslocada em uma discussão sobre
política internacional no século XXI (ou sobre a revolta árabe e a política externa de muitos países), a
trajetória do pastor e do lobo é recorrente na política, vide a instrumentalização da mentira como
verdade e da ameaça como medo e exagero. Atrelada a discursos e ações políticas independente do país
e da circunstância, grandes tragédias humanitárias, guerras e opressões tendem a ser justificadas a partir
do outro, da metáfora do lobo. Neste contexto, a metáfora concretizada na figura de um determinado
grupo de pessoas por sua origem, religião ou etnia, em um partido político por sua ideologia, permite a
aceitação silenciosa de fenômenos como genocídios, invasões e repressões militares, restrição de
direitos humanos.
Muitas são as faces dos inimigos, internos e externos, dependendo da nação e do momento, mas é
possível detectar um interessante padrão atualmente, cujas origens localizam-se em 11/09/2001. Desde
os atentados terroristas ao território continental norte-americano, pelos quais teria sido responsável, a Al
Qaeda tornou-se a origem de diversos atos de violência e insurgência. Para os Estados Unidos (EUA) e
aliados europeus ocidentais, Bin Laden e a Al Qaeda, configuraram-se no principal inimigo de suas
democracias. Definida como ameaça maior à ordem mundial, o grupo deu origem às interpretações
sobre o avanço do terrorismo transnacional, de células dispersas e comandos descentralizados, um polvo
que com seus tentáculos perpassava, sem limites ou fronteiras, todos os países e sociedades. Inclusive,
esta “teia”, segundo as avaliações dos EUA, estendia-se até a América do Sul, na porosa região da
Tríplice Fronteira Brasil, Argentina e Paraguai, e no financiamento das guerrilhas e do tráfico na
Colômbia, que foram renomeadas como “narcoterroristas”.
Dois conflitos foram iniciados no bojo da Guerra Global Contra o Terror de Bush, no Afeganistão
(2001) e no Iraque (2003) sendo que, no Iraque, a fábula foi reconstruída. A “moral da história” foi
repensada, para recair em um ditado popular: o de que mentiras, caso repetidas várias vezes e bem
construídas, passam a ser verdadeiras, mesmo para os que as elaboraram.
Antes da invasão ao Iraque em 2002, cerca de 90% dos norte-americanos acreditava, que Saddam
Hussein era um agente da Al Qaeda e, em parceira com Bin Laden, fora o responsável por 11/09. Os
estudos da Comissão de 11/09, o livro “Contra Todos os Inimigos” de Richard Clarke (2004) que
contestava as alegações de W. Bush sobre os atentados, a ausência de uma conclusão sobre os episódios
envolvendo Antraz que se seguiram à 11/09, buscavam sobrepujar estas certezas e reavaliar, afinal,
quem seriam, ou eram os inimigos da América, mas não obtiveram repercussão.
144
Na oportunidade, o acadêmico britânico Fred Halliday (1) (1946-2010) da London School of Economics,
alertou para os riscos deste pânico auto-induzido, que mistificava a Al Qaeda. Para Halliday, as
alegações dificultavam a compreensão de um fenômeno político concreto, atribuindo a Bin Laden
apenas a violência pela violência. Apesar de Bin Laden ser lembrado como “treinado pela CIA”, as
retóricas pós-11/09 jogavam uma cortina de fumaça sobre as origens deste movimento nos anos
1970/1980, a partir das triangulações da diplomacia norte-americana com os insurgentes afegãos e as
pressões sobre a União Soviética (URSS), que resultaram na Guerra do Afeganistão (1979/1989).
Fatores como a Revolução Iraniana (1979) e a Guerra Irã-Iraque (1980/1988) igualmente faziam parte
de uma grande estratégia norte-americana para o Oriente Médio que, se em algumas nações visava
barrar o que definia como “onda verde” (a revolução fundamentalista islâmica do Irã), em outros,
aliava-se aos “lutadores da liberdade”, independente de suas orientações radicais (como no
Afeganistão).
Ainda que muitos alegassem que esta era somente mais uma tentativa dos EUA de substituir o inimigo
soviético por outra contraparte, a caracterização da Al Qaeda e Bin Laden como a “ameaça número 1”,
ultrapassava as demandas norte-americanas, para se consistir em uma justificativa quase geral do
Ocidente para medidas sociais e políticas coercitivas.
Apresentadas como excepcionais, cada vez mais, estas regulamentações parecem ser a regra, vide a
mais recente extensão do Ato Patriota criado nos EUA em 2001 para o combate ao terrorismo.
Em 25 de Fevereiro de 2011, às vésperas de sua expiração, o Ato Patriota foi renovado, mais uma vez,
de forma provisória, por três meses pelo governo Barack Obama devido à pressão dos republicanos e da
comunidade de segurança e inteligência nacionais. Como provisões da renovação, que após três meses,
poderá ser prorrogada por mais um ano, permanecem o monitoramento de cidadãos e acesso a
informações pessoais de suspeitos. Enquanto o mundo estava absorvido pelos movimentos democráticos
no Oriente Médio, que se prolongam, e com muitos deles agora defendidos pelos EUA, o modelo norteamericano contrariava suas melhores recomendações. Mais do que o risco do crescente terrorismo
interno e polarizações domésticas, a sombra da Al Qaeda foi a justificativa de mais esta reedição.
A manipulação da Al Qaeda, porém, deixou, em 2011, de ser exclusiva aos países ocidentais. A prática
estendeu-se a diversas partes do mundo árabe que hoje enfrentam revoltas, revoluções e, no limite,
guerras civis, para defender a mudança de regime e a democracia. Para preservar suas nações da
desagregação, da violência provocadas pela Al Qaeda, dirigentes advogam perante o Ocidente e suas
populações sua permanência no cargo. Somente para citar dois exemplos, no Egito de Mubarak e na
Líbia de Kadafi, a Al Qaeda assumiu papel central nas crises, ignorando as inúmeras raízes de
insatisfação popular que facilitaram a eclosão do processo.
Pode ter havido ingerência e/ou motivação externa em muitas destas revoltas, inclusive as que se
encontram em andamento? Certamente, mas não só da Al Qaeda ou dos EUA, mas de interesses
políticos, econômicos e estratégicos múltiplos e dispersos em uma região chave para o dilema
energético mundial. A não compreensão deste intrincado jogo de poder, ou a tentativa de deslegitimá-lo
ao atribuí-lo exclusivamente a um ator sempre comentado, mas pouco conhecido, implica não só
prolongar a instabilidade, mas colocar em xeque o futuro da reestruturação político-social destes
regimes. Afinal, não se pode deixar de achar “curioso” que um dos poucos pontos que una o Ocidente e
o Oriente neste período recente, de Obama a Mubarak, passando por Kadafi, seja o lobo Al Qaeda.
(*) Professora de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)
NOTA
(1) HALLIDAY, Fred. Two hours that shook the world. Saqi Books, London, 2002
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03/03/2011 |
Líbia: oposição não quer intervenção externa
Porta-voz do Conselho Nacional Transitório da Líbia diz em conferência de imprensa que a oposição
a Kadafi não quer uma intervenção dos EUA nos assuntos internos líbios. “Somos contra qualquer
intervenção estrangeira ou intervenção militar nos nossos assuntos internos”, afirmou Abdel-Hafidh
Ghoga. “Esta revolução será concluída pelo nosso povo, com a libertação do resto do território líbio
controlado pelas forças de Kadafi.” General Ahmed El-Gatrani, que se juntou às forças da oposição,
também diz que apoio militar externo é desnecessário: “Seguimos o nosso próprio caminho, sem
receber ordens de ninguém no exterior”.
Esquerda.Net
Abdel-Hafidh Ghoga, advogado de direitos humanos e porta-voz do Conselho Nacional Transitório da
Líbia, disse em conferência de imprensa que a oposição a Kadafi não quer uma intervenção dos EUA
nos assuntos internos líbios.
“Somos contra qualquer intervenção estrangeira ou intervenção militar nos nossos assuntos internos”,
disse. “Esta revolução será concluída pelo nosso povo, com a libertação do resto do território líbio
controlado pelas forças de Kadafi.”
O general Ahmed El-Gatrani, que se juntou às forças da oposição, disse que o apoio militar externo é
desnecessário: “Não precisamos de apoio externo, seguimos o nosso próprio caminho, sem receber
ordens de ninguém no exterior”, disse.
O Conselho Nacional Transitório da Líbia inclui representantes de todas as cidades que se rebelaram
contra Tripoli principalmente na Cirenaica, a metade Leste do país, e tem sede em Bengazi.
Combates em Brega
Na quarta-feira, as forças de oposição repeliram uma tentativa de tropas leais a Kadafi de retomar a
cidade produtora de petróleo de Brega, no leste do país. Foi a primeira vez que forças de Kadafi
tentaram recuperar uma cidade do leste líbio. Durante os combates, as tropas pró-Kadafi, com um
poder bélico maior, pareciam estar em vantagem, mas acabaram derrotadas pelos rebeldes. Fontes
médicas afirmam que 14 pessoas morreram.
Um comandante rebelde disse ao correspondente da BBC que as forças pró-Kadafi podem ter ficado
sem munições e por isso viram-se obrigadas a recuar. Na manhã desta quinta, a força aérea de Kadafi
voltou a bombardear as forças da oposição na cidade.
Tribunal Penal Internacional abre investigação de crimes contra a humanidade na Líbia
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O procurador-geral do Tribunal Penal Internacional, Luis Moreno-Ocampo, anunciou em Haia a
abertura de um “processo formal de investigação” aos crimes "que estão a ser cometidos na Líbia
desde 15 de Fevereiro, em que manifestantes pacíficos foram atacados pelas forças líbias”, visando o
líder Muammar Kadafi e outros altos responsáveis do regime.
A investigação vai incidir sobre aqueles que o magistrado descreveu como sendo “os maiores
responsáveis”, tendo sido identificados os “indivíduos com autoridade de facto” no regime para serem
“responsáveis e responsabilizados” por aqueles crimes: Kadafi e o seu círculo próximo, incluindo
alguns dos seus filhos.
“Há também aqueles que, podendo exercer autoridade para parar os ataques, não o terão feito”,
sublinhou Moreno-Ocampo, nomeando o ministro líbio dos Negócios Estrangeiros, o chefe da agência
de serviços secretos, o chefe das forças de segurança e o chefe da segurança pessoal de Kadafi –
“todos podem ser criminalmente responsabilizados” e todos ficam “avisados” da possibilidade de
serem indiciados por crimes contra a humanidade se o TPI concluir que “as forças sob o seu comando
cometeram abusos” na Líbia.
Kadafi aceita mediação de Chávez
Entretanto, Kadafi aceitou uma oferta feita pelo presidente da Venezuela, Hugo Chávez, para mediar
eventuais negociações para pôr termo à crise. Recorde-se que ainda há um dia, o filho de Khadafi, Seif
Al-Islam, negava a existência de qualquer crise e afirmava que todo o país funcionava normalmente.
A proposta de mediação venezuelana foi discutida entre o ministro dos Negócios Estrangeiros
venezuelano, Nicolas Maduro, e o secretário-geral da Liga Árabe, Amr Moussa, segundo a Al Jazeera.
Na semana passada, o presidente venezuelano, numa mensagem do Twitter, deixou claro que apoia o
regime líbio: “Viva a Líbia e a sua independência! Kadafi enfrenta uma guerra civil!”
Mas o Conselho Nacional Líbio, formado em Bengazi, não está disposto a aceitar a mediação:
“Rejeitamos”, afirmou à Al Jazeera, Mustafa Mohamed Abud al-Jeleil, ex-ministro da Justiça, que
informou que o conselho não foi ainda sequer contactado sobre a proposta da Venezuela.
03/03/2011 |
Líbia: teria faltado protagonismo ao Itamaraty?
A política externa brasileira não pode estar associada a qualquer idéia que facilite a concretização de
uma intervenção militar na Líbia comandada pelos Estados Unidos. Isso seria sim um distanciamento
ou falta de continuidade daquilo que foi construído pelo Itamaraty nos oito anos de Lula.
Beto Almeida
A impressionante euforia de uma quase unânime campanha midiática atuando como os tambores de
guerra, tendo como alvo a Líbia, já provocou seus estragos iniciais: uma diplomacia facciosa,
agressiva e guerreira arrancou à força uma condenação do país africano, sem sequer uma investigação
concreta. Para tal foram suficientes os relatos de uma mídia controlada pela indústria bélica. Agora,
prepara-se o terreno para novos passos da máquina de guerra imperialista. O desejo de uma
intervenção militar na Líbia é sonho antigo do Pentágono, nunca concretizado. Mas, agora, se de fato
for lançada, pode ter como objetivo reprimir todos os povos árabes em rebelião com o intuito de
assegurar a hegemonia dos interesses dos EUA na região, atualmente sob questionamento, seja pelas
rebeliões populares, seja pela nova relação de forças em países como Irã, Turquia e Líbano.
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Por tudo isto, é justo perguntar se não teria havido falta de protagonismo do Itamaraty na votação do
caso Líbia na ONU? Será que todo o esforço do governo Lula em consolidar uma aliança Países
Árabes e América do Sul não estaria sendo deixado um tanto de lado quando a representante do Brasil
na ONU aparece posicionada ao lado de resoluções que podem facilitar a balcanização da Líbia, e,
como conseqüência, trazer um grave retrocesso nas relações do Brasil com aquela região, como já se
pode perceber na retirada parcial das empresas brasileiras do território líbio? Saem Queiroz Galvão,
Odebrecht e Camargo Correia, e entra a Haliiburton? Seria este um dos resultados da intervenção prémilitar? Sem contar uma montanha de cadáveres...
Não foi simples para o Presidente Lula construir sua política externa. Os adversários se posicionaram
prontamente, fora e dentro do território nacional. Aqui dentro toda a mídia que, naturalmente, sempre
foi historicamente vassala editorial de idéias emanadas pelas grandes potências. Não há uma única
mídia de grande alcance hoje no Brasil que sustente uma linha editorial contrária à manutenção do
status de vulnerabilidade ideológica, política, tecnológica, econômica e até militar em que se encontra
o Brasil desde o nefasto período dos privateiros. Nem mesmo a TV Brasil conseguiu fazer uma linha
editorial diferenciada, com um mínimo de sintonia, sequer exploratória, com o que foi a política
externa lulista.
Retórica itamarateca?
Entre os argumentos manipuladamente utilizados contra Lula repetia-se - sem diversidade informativa
alguma, como se pede na Constituição - que tudo era apenas uma retórica itamarateca. Não é preciso
muitas linhas para contestar este pseudo-argumento: basta que se verifiquem os volumes do comércio,
dos acordos, e das relações entre o Brasil e os países do Oriente Médio antes e depois de Lula.
Lembremo-nos: neste período foi realizada, sob oposição dos EUA, a primeira Cúpula América do
Sul-Países Árabes na história.
Há uma forte simbologia quando grandes empresas brasileiras retiram seus funcionários em função do
evidente agravamento da crise na Líbia e a ameaça não apenas de uma guerra civil, mas de uma
intervenção bélica da Otan para, quem sabe, levar novamente ao poder remanescentes da monarquia
Idris, desde que concordem, obviamente, em privatizar novamente o petróleo líbio hoje estatizado,
entregando-o a empresas norte-americanas, como no Iraque e na Arábia Saudita hoje.
Paralisação produtiva
A Revolução Líbia colocou a receita do petróleo para a elevação do padrão de vida de seu povo, tanto
é que pertence a este país o mais elevado IDH da África, um salário mínimo dos mais elevados de todo
o terceiro mundo, superior ao brasileiro, uma renda per capta parecida à nossa, sem contar a oferta de
serviços públicos e gratuitos de saúde e educação em razoável qualidade. A receita petroleira tem sido
também utilizada para a contratação de empresas e tecnologia do exterior para a realização de obras de
infra-estrutura de grande porte, entre elas gigantescos canais de irrigação para alavancar a produção
agrícola num território que, em 90 por cento, é desértico. A ingerência já produziu uma paralisação
produtiva no País.
A construção de uma política externa brasileira enfatizando a integração latino-americana, não apenas
em discursos mas, concretamente, com obras unificadoras de infra-estrutura que já não podem mais
ser negadas pelo dilúvio de mentiras midiáticas, tem seu desdobramento na formatação de uma relação
mais cooperativa com o mundo árabe e também com o Irã. Além disso, a busca de uma diversificação
de exportações e importações - o que nunca agradou aos EUA - desdobra-se coerentemente numa
relação mais protagonista a partir da relação com os países do Brics, bem como no G-20. Imagine o
148
tamanho da crise que o Brasil enfrentaria se tivesse permanecido submetido a uma relação prioritária
com os EUA...
Esta nova maneira de estar presente no mundo levou o Brasil a pelo menos duas operações de alto
esforço e coragem, qual sejam, a busca de uma saída negociada e pacífica para a crise a partir do
prepotente veto imperial ao programa nuclear do Irã, e também, na questão de Honduras, quando o
governo Lula assumiu com arrojo a defesa da democracia diante do golpe de estado contra Zelaya,
sinalizando que ela, a democracia, não é um atributo que estaria fora da agenda da cooperação e
integração latino-americana, bem como do princípio da autodeterminação dos povos, violentada nestas
duas oportunidades pelos EUA.
Comissão Internacional para uma solução pacífica
Lamentavelmente, a proposta de formação de uma Comissão Internacional para solução pacífica da
crise da Líbia não partiu do Brasil, como era justo esperar, mas da Venezuela. Aliás, quando da
tentativa de golpe contra a Venezuela, teria partido exatamente do Brasil, sob o governo Lula, a idéia
de criar o Grupo de Amigos da Venezuela, buscando assegurar uma mesa de negociações e
desencorajar qualquer aventura intervencionista. Certamente, embora justa, a proposta agora
capitaneada pela Venezuela, teria muitíssimo mais abrangência e força política se oriunda do Brasil,
tal como o Brasil se empenhou no caso do Irã para convencer a ONU a não dobrar-se aos tambores de
guerra. Estes, vale recordar, estão sempre prontos a repicar, especialmente diante da uma crise
econômica que não foi vencida ainda pelos EUA, e que pode levar sua economia marcadamente
dominada pela indústria bélica, a aproveitar a crise da Líbia para dinamizar a recuperação de sua crise
interna, às custas de vidas e mais vidas, como se vê hoje no Iraque e no Afeganistão, sem qualquer
vislumbre de solução no horizonte. Mas, para a indústria guerreira, a expansão das encomendas é a
própria solução. Sobretudo, se a intervenção militar traz nova possibilidade de privatizar petróleo
público, assegurando, sob a cobertura da ONU, uma rapina que não pode ser feita sem demolir as
estruturas da Revolução Líbia e transformá-la num novo Kossovo, ou seja, em mais uma base militar
dos EUA, como as mais de mil espalhadas pelo mundo hoje.
A política externa brasileira não pode estar associada a qualquer idéia que facilite a concretização
deste plano sinistro! Seria sim um distanciamento ou falta de continuidade daquilo que foi construído
pelo Itamaraty nos oito anos de Lula. E, para um país que pretende ter assento permanente no
Conselho de Segurança da ONU, não é recomendável deixar de zelar pelo prestígio internacional
alcançado pelo Brasil exatamente por sua política externa soberana, independente, criativa e
vocacionada para promoção da solução pacífica dos conflitos.
Razões propagandísticas
O passivo endosso brasileiro na ONU a esta escalada de agressividade diplomática dos EUA baseada,
por sua vez, num dilúvio de informações manipuladas e jamais comprovadas, nos faz lembrar a
tragédia de uma guerra lançada contra o Iraque e seu povo com base na suposta “existência de armas
químicas de destruição em massa naquele país”. A semelhança com as “razões propagandísticas”
utilizadas por Hitler para expandir o seu exército pela Europa é robusta. Assim como o atentado ao
World Trade Center, cuja versão oficial encontra crescente contestação pelos mais eminentes cientistas
norte-americanos, atuou como “razão propagandística” a la Hitler para que Bush impusesse sua guerra
ao terror, inclusive contra países que mal possuem sistema de água encanada, como o Afeganistão,
acusado, paradoxalmente, de ter perpetrado tão sofisticada operação.
Com coragem, o Brasil se opôs oficialmente à ação militar no Iraque no início do governo Lula.. Seria
de se esperar a continuidade desta acertada política externa quando agora, contra a Líbia, também se
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constroem versões - razões propagandísticas – para que aquele território seja ocupado pelos marines.
Se manipulação grosseira das teses dos direitos humanos é o que baliza a autorização diplomática para
tal monstruosidade militar, é de se esperar condenação a todos que estão hoje encharcando de sangue
muçulmano o solo do oriente. A começar pelos EUA que já mataram mais de um milhão de civis no
Iraque e , somente nesta semana, despejou bombardeios que causaram a morte de 65 civis no
Afeganistão. Por que o Itamaraty não condena tal carnificina?
Paradoxalmente, a arma virtual dos "direitos humanos" é sempre invocada antes do lançamento das
armas reais, mortais e arrasadoras. A "emergência humanitária" é a chave de acesso do militarismo
mais descarado, frente à ela não há debate, não há informação, não há dialética, negociação,
verificação. Só resta a demonização absoluta daqueles se se opõem de algum modo às políticas
imperiais.
Há muito que a elite brasileira e a sua mídia pró-império têm pressionado Dilma Roussef, desde a
campanha eleitoral, para uma reviravolta pró-americana na política exterior, sob o paravento da defesa
dos "direitos humanos" quanto ao caso Sakineh no Irã, e ao caso da oposição contra-revolucionária em
Cuba. Fazem de tudo para enviar uma cunha entre Dilma e Lula. Assumir que a política externa vai
defender os direitos humanos abstratamente, em qualquer lugar em que se encontrem ameaçados, é
mais que um tiro no pé, abre o flanco da nação brasileira a uma intervenção militar para defender
supostos ou reais direitos humanos violados, quem sabe na Amazônia, quem sabe no Nordeste. Como
sempre sustentou o Itamaraty na era Lula, contribui mais para a defesa dos direitos humanos a paz no
mundo, a relação harmoniosa entre todas as nações, o desenvolvimento econômico, a integração entre
os países e a distribuição equilibrada das riquezas do mundo entre todos os povos.
Caso a intervenção militar da OTAN venha de fato a concretizar-se, nossa política externa deveria ter
exigentes motivos para preocupar-se, jamais para, de algum modo, ter colaborado direta ou
indiretamente com mais uma guerra. Nem na Guerra das Malvinas o Brasil deixou de reivindicar uma
solução negociada e pacífica, o que não impediu de oferecer algum tipo de apoio logístico aos
argentinos, seja por meio de aviões, de informações etc. conforme comprovam documentos em posse
do estado brasileiro.
Lições para o futuro
Possuidor do maior tesouro de biodiversidade (Amazônia), de riquezas minerais monumentais como
urânio, titânio, silício etc e também das reservas petroleiras pré-sal, além de território farto em água, o
Brasil tem razões para buscar construir uma política estratégica cuidadosa, sobretudo se e quando as
potências imperiais dão passos mais largos e ameaçadores no tabuleiro do xadrez mundial. Qual será o
próximo? Diante deste quadro fica evidente porque os EUA impõe vetos ao Programa Nuclear
Brasileiro, como ao do Irã, e também ao nosso Programa Espacial, como revelaram os telegramas
divulgados pelo Wikiliekes sobre a conduta do Embaixador norte-americano em Brasília a pressionar a
Ucrânia para que não transfira tecnologia espacial ao Brasil. Os EUA, anos atrás, já havia pressionado
Kadafi a abrir mão do Programa Nuclear líbio. Sem nada em troca, além de sanções, agressões,
desestabilizações e bombardeios.
O que é difícil é entender por que o Brasil não faz agora um esforço prioritário para barrar mais uma
guerra, associando-se a países que também podem formatar uma resistência internacional a mais esta
aventura de uma economia imperial viciada em guerra e petróleo? Será delírio imaginar que no futuro
não muito longe seja o Brasil o alvo de sanções simplesmente por dar continuidade ao seu programa
nuclear? Vale lembrar que a energia nuclear só é considerada insegura e perigosa quando nas mãos de
países como Irã ou Brasil, nunca sob o controle dos EUA, Inglaterra ou França.
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Antes mesmo de qualquer investigação ou comprovação, a Líbia já foi penalizada com o
congelamento de seus recursos financeiros depositados em bancos internacionais, o que, por outro
lado, recomenda acelerar a concretização do lentíssimo projeto de construção do Banco do Sul, onde
os recursos dos povos do sul poderiam estar depositados com segurança, não na insegurança dos
bancos norte-americanos ou ingleses ou franceses, com um histórico de instabilidade e de fraudes
recentes impressionantes.
Descontinuidade com o passado recente
A política externa formatada e aplicada por Lula, que a ela se empenhou pessoalmente em inúmeras
viagens, alterou sobremaneira e positivamente a presença qualitativa do Brasil no mundo. Tal política
requer consolidação, continuidade e aprofundamento, seja no plano da integração latino-americana, ou
com a África, ou com os países árabes e do Oriente Médio, por onde encontram-se instaladas muitas
empresas, equipamentos e pessoal brasileiros; como requer também não recuar da linha de
diversificação sem se deixar prender por um ou outro grande país. No caso da Líbia, será
constrangedor contabilizar o imenso prejuízo para a economia brasileira acarretado pela retirada de
empresas e trabalhadores brasileiros. Especialmente se elas vierem a ser substituídas por empresas
diretamente vinculadas à indústria bélica, como a Haliburton, já que guerra e petróleo, para os EUA,
são atributos de uma mesma política. Mais constrangedor será reconhecer que a política externa
brasileira não teria atuado com o protagonismo que poderia exercer e que projetou durante os 8 anos
do governo Lula, deixando margem para uma constatação amarga: a de que o endosso passivo e sem
questionamento a sanções arrancadas à base de dilúvios midiáticos manipulativos na ONU, teve
também alguma participação do Itamaraty. Uma descontinuidade com o passado recente.
Jornalista, Membro da Junta Diretiva da Telesur.
08/03/2011 |
Licença para matar
Não há chance. Kadafi cairá. O que ele pode fazer o adiar o desfecho e continuar afogando seu país
em sangue. Age impunemente e sabidamente frente a inúmeras potências europeias. Há muita retórica
e pouca ação para impedir o massacre.
Luís Carlos Lopes
É intrigante a resistência de Kadafi. Ele vem conseguindo se manter no poder e não seguiu o
protocolo, tal como Mubarak e Ben Ali. Para isto, afogou o país em sangue. Ninguém mais sabe
quantos já morreram e quantos irão morrer ainda. Mais uma tragédia do rosário das últimas décadas.
Os coronéis são famosos na história recente, quando encarnam papéis de horror: conspiradores,
torturadores, assassinos etc...Os generais e os demais poderosos do Estado e do dinheiro se escondem
atrás deles. Deixam-lhes o trabalho sujo.
Alguns, tal como o ditador líbio,transformaram-se em personagens principais. Ele chegou ao poder por
meio de um golpe de Estado. Está ali há quatro décadas, garantido pela força das Armas e da mítica
que construiu em torno de si mesmo. Convenceu, tornando-se cada vez mais poderoso.
A Líbia sozinha fornecia o ouro negro de toda a Europa. Trata-se de um país e população pequenas.
Por isso, eles deveriam viver muito bem com os recursos que dispõem. Portanto, não é isso que ocorre.
A riqueza petroleira é gasta em armas, luxo e riqueza do ditador. A maior parte do que sobra vai para
as empresas que exploram o combustível. No fim das contas, os recursos locais são espoliados há
muito tempo.
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As revoltas que vêm ocorrendo é por causa disto. Um dia, houve um sopro –crise econômica
internacional - indicando sua necessidade.
Não há chance. Kadafi cairá. O que ele pode fazer o adiar o desfecho e continuar afogando seu país em
sangue. Age impunemente e sabidamente frente a inúmeras potências européias. Há muita retórica e
pouca ação para impedir o massacre.
Várias razões explicam sua permanência provisória: seu despudor de matar, sem medo de ser julgado e
o fato inegável de dispor de muito dinheiro na Líbia e espalhado pelo mundo.
Suas aparições revelam um personagem enlouquecido, sem qualquer amor pelos outros, facilmente
manipulável. Acha-se um deus e, na verdade, apenas serve aos seus patrões ocidentais. Vivendo acima
do real, ele acha que pode tudo e que é invencível.
Quem deseja que se prolongue a carnificina? A hipótese mais provável é que os países que não caíram
por efeito de revoltas acreditam que estas mortes sejam uma ameaça gravíssima a quem quiser
derrubar o seu governo opressor. Dentre eles, o mais rico é a Arábia Saudita, que deve estar torcendo
por Kadafi. Isso é feito silenciosamente e não se sabe que tipo de ajuda presta ao velho ditador.
De fora da região, as potências ocidentais não intervêm diretamente. Não lhes interessa aumentar seus
problemas no atual contexto de rara complexidade. Por outro lado, elas ajudaram a sustentar esses
regimes de olho no petróleo e no controle estratégico da região. Também querem dar um basta nas
revoltas, ao mesmo tempo em que não querem se indispor com os revoltosos.
O medo que Kadafi dissemina ajuda mais do que a retórica de suas ações. A história irá derrotar esta
tentativa de por um freio na rebelião popular. Pelo menos, espera-se que assim ocorra. Uma nova
ordem está sendo estabelecida na região e, quiçá, no mundo.
Ainda não é possível saber o efeito global destas mudanças. Mas elas são visíveis por toda parte. Os
pobres e os miseráveis estão sendo um pouco melhor tratados e os atuais regimes estão preocupados.
Sabem que não será mais tão fácil manter uma ordem repressiva, corrupta e manipuladora.
Luís Carlos Lopes é professor e escritor.
09/03/2011 |
152
Sem as mulheres, não há revolução
Agora, com as revoluções árabes, volta à tona a participação das mulheres nas revoluções. Nós
também queremos igualdade, liberdade e não temos medo. Durante uma revolta social nossa
participação é fundamental para que os avanços não fiquem só no plano formal e para que haja um
questionamento profundo dos papeis atribuídos às mulheres e uma ruptura dos mesmos. Contamos
com vários exemplos históricos nos quais temos visto que, quando as mulheres participam nas
revoluções, a luta lado a lado com nossos companheiros de classe faz crescer a consciência. O artigo
é de Angie Gago.
Angie Gago – Em Luta (Espanha)
Este mês volta a celebrar-se um novo 8 de março, Dia Internacional da Mulher Trabalhadora. Durante
esta jornada de protesto, milhões de mulheres em todo o mundo sairão às ruas para reivindicar seus
direitos. Nestes momentos de crise econômica, nós mulheres estamos sofrendo os efeitos dos cortes
sociais mais profundos em muitos anos. A reforma trabalhista, a reforma da Previdência e os cortes
nos orçamentos dos serviços sociais (saúde, educação, etc.) afetam duplamente a mulher, que já está
em uma posição de precariedade em relação a do homem. Encarregadas dos cuidados das crianças e
anciãos e obrigadas a trabalhar por menos salário, as mulheres sofrem uma dupla cadeia dentro do
sistema capitalista: a exploração e a opressão.
Mas nós também temos aparecido, ao longo da história, a frente das lutas sociais e democráticas. O dia
8 de março é um dia de visibilidade da luta pela libertação das mulheres. Mas cada dia, de maneira
“invisível”, nós lutamos para conseguir nossa emancipação. Seja dentro dos sindicatos ou grupos
políticos, seja dentro dos coletivos feministas ou com a luta diária de trabalhar e chegar ao fim do mês,
temos um papel ativo essencial na transformação social.
Nas últimas semanas temos visto em repetidas ocasiões imagens de mulheres durante as revoluções
árabes: Tunísia, Egito, Argélia, etc. Na primeira frente de batalha, na Praça Tahir ou na Praça Primeiro
de Maio, as mulheres compareceram em massa aos protestos para derrubar os regimes autoritários que
têm dominado seus países nas últimas décadas. Elas são destes países que o mundo ocidental quer
invadir para libertá-las. Mas não se cansam de dizer que só serão libertadas por elas mesmas.
Ainda que haja infinitos exemplos nos quais as mulheres lutaram nas revoluções democráticas e
sociais, sua imagem é sempre silenciada e sua história eliminada, a serviço do pensamento sexista e de
um sistema econômico que necessita deixar as mulheres em um segundo plano. Ainda assim, ao longo
da história, as mulheres se levantaram uma e outra vez para gritar que elas não são o segundo sexo.
153
Isso aconteceu na Revolução Russa de 1917, quando milhares de mulheres participaram na luta pela
liberdade e o socialismo. Os avanços nos direitos foram rápidos e os mais avançados da época: direito
ao divórcio, anticonceptivos, salário igual, socialização dos cuidados, etc. Ainda que a experiência
tenha sido curta devido ao isolamento da revolução e à contrarrevolução levada a cabo pela burocracia
stalinista, a experiência criou um precedente.
O tema já clássico “sem as mulheres não haverá revolução” foi se repetindo em diferentes ocasiões nas
quais a luta pelos direitos sociais da classe trabalhadora andou de mãos dadas com a luta pela
libertação da mulher. Durante a II República, as mulheres também conseguiram uma série de direitos
que situavam a democracia do Estado espanhol como uma das mais inclusivas da época. E, durante a
Revolução Espanhola, as mulheres tiveram um papel chave na conquista dos direitos sociais.
Nos momentos nos quais os povos se levantaram contra a tirania e o capitalismo, nós temos sido
protagonistas dos movimentos de emancipação. No entanto, em nossa sociedade segue dominando a
imagem da mulher passiva. Quantas revoluções mais faltam para eliminar este estereótipo?
Agora, com as revoluções árabes, volta à tona a participação das mulheres nas revoluções. Nós
também queremos igualdade, liberdade e não temos medo. Durante uma revolta social nossa
participação é fundamental para que os avanços não fiquem só no plano formal e para que haja um
questionamento profundo dos papeis atribuídos às mulheres e uma ruptura dos mesmos. Contamos
com vários exemplos históricos nos quais temos visto que, quando as mulheres participam nas
revoluções, a luta lado a lado com nossos companheiros de classe faz crescer a consciência. Mas esse
não é um processo automático. Por esta razão, nossa participação nas revoltas é fundamental para
conseguir nossa libertação.
Recentemente, temos visto também como milhões de mulheres saíram às ruas na Itália para protestar
contra a cultura machista promovida por Berlusconi. “Se não é agora, quando será?”, gritavam as
companheiras italianas. Aqui, no Estado espanhol, também temos milhares de razões para sair às ruas.
Cada ataque do governo aos direitos conquistados pela classe trabalhadora é um ataque a nossos
direitos como mulheres. E se a isso somamos o genocídio contra as mulheres pela violência machista,
a pergunta das companheiras italianas é nossa também. Neste 8 de março, sairemos todas à rua para
lutar, mas no dia seguinte não voltaremos para casa.
(*) Angie Gago é militante de Em Luta (Espanha)
09/03/2011
Revolta árabe: o colapso da velha ordem do petróleo
Considere o recente aumento nos preços do petróleo apenas um tímido anúncio do petro-terremoto
que está por vir. A velha ordem que sustenta o petróleo está morrendo, e com o seu fim veremos
também o fim do petróleo barato e de fácil acesso – para sempre. Mesmo que a revolta não alcance a
Arábia Saudita, a velha ordem do Oriente Médio não pode ser reconstruída. O resultado será um
declínio de longo prazo na disponibilidade futura de petróleo para exportação. Um exemplo: três
quartos dos 1,7 milhões de barris produzidos diariamente pela Líbia foram rapidamente tirados do
mercado conforme a agitação tomou conta do país. O artigo é de Michael T. Klare.
Michael T. Klare - Tomdispatch.com
Qualquer que seja o resultado dos protestos, levantes e rebeliões que agora varrem o Oriente Médio,
uma coisa é certa: o mundo do petróleo será permanentemente transformado. Considere tudo que está
acontecendo agora como apenas a primeira vibração de um petro-terremoto que irá sacudir nosso
mundo em suas bases.
154
Por um século, voltando até a descoberta de petróleo no sudoeste da Pérsia, antes da Primeira Guerra,
forças ocidentais têm repetidamente promovido intervenções no Oriente Médio para garantir a
sobrevivência de governos autoritários dedicados à produção de petróleo. Sem tais intervenções, a
expansão das economias ocidentais após a Segunda Guerra e a atual abundância das sociedades
industriais seria inconcebível.
Aqui, porém, está a notícia que deveria estar na capa dos jornais em todos os lugares: a velha ordem
que sustenta esse petróleo está morrendo, e com o seu fim veremos também o fim do petróleo barato e
de fácil acesso – para sempre.
O fim da era do petróleo
Vamos tentar medir o que exatamente está em risco nos tumultos atuais. Para começar, não há
praticamente chance alguma de fazer justiça completa ao papel fundamental que o petróleo do Oriente
Médio representa na equação de energia do planeta. Embora o carvão barato tenha originalmente
movido a Revolução Industrial, sendo o combustível das estradas de ferro, navios a vapor e fábricas, o
óleo barato fez possível o automóvel, a indústria da aviação, os subúrbios, a agricultura mecanizada, e
uma explosão de economia globalizada. E enquanto umas poucas principais região de produção deram
início à era do petróleo– EUA, México, Venezuela, Romênia, a área próxima a Baku (então parte do
Império Russo) e as índias Orientais Holandesas – é o Oriente Médio que tem satisfeito a sede de
petróleo do planeta desde a Segunda Guerra.
Em 2009, o ano mais recente para o qual existe dados, a BP relatou que os fornecedores no Oriente
Médio e norte da África conjuntamente produziram 29 milhões de barris por dia, ou 36% do produzido
no planeta – e nem mesmo isso começa a sugerir a importância da região para a economia baseada em
petróleo. Mais que qualquer outra local, o Oriente Médio tem canalizado sua produção para a
exportação, de modo a satisfazer as necessidades de energia de poderosos importadores de petróleo
como os EUA, China, Japão e União Europeia. Estamos falando de 20 milhões de barris destinados
aos mercados internacionais a cada dia. Compare isso com a Rússia, o maior produtor individual, com
sete milhões de barris destinados a exportação, com o continente africano e seus seis milhões, ou a
América do Sul com apenas um milhão.
Os produtores do Oriente Médio serão ainda mais importantes nos anos vindouros pois estima-se que
possuam dois terços das reservas não exploradas de petróleo. Segundo projeções recentes do
Departamento de Energia dos EUA, o Oriente Médio e o Norte da África irão responder juntos por
aproximadamente 43% do suprimento de petróleo do mundo em 2035 (em 2007 era 37%) e irão
produzir uma parte maior ainda do que é destinado a exportação.
Falando diretamente: a economia mundial requer um suprimento cada vez maior de petróleo a um
preço razoável. O Oriente Médio pode prover isso. É por isso que governos Ocidentais tem apoiado
por tanto tempo regimes autoritários “estáveis” pela região, providenciando com regularidade
suprimentos e treinamentos para as forças de segurança. Agora essa ordem, ferida e petrificada, cujo
maior sucesso foi prover petróleo para a economia mundial, está se desintegrando. Não conte com
qualquer nova ordem (ou desordem) para fornecer suficiente petróleo barato para preservar a Era do
Petróleo.
Para compreender as razões disso, uma breve aula de História é necessária.
O golpe iraniano
155
Depois que a Companhia de Petróleo Anglo-Persa (APOC, pela sigla em inglês) descobriu petróleo no
Irã (então Pérsia), em 1908, o governo britânico procurou exercer controle imperial sobre o estado
persa. O arquiteto-chefe dessa manobra foi Winston Churchill, então primeiro Lorde Comissário do
Almirantado da Marinha Real britânica. Tendo ordenado a conversão dos navios de guerra do carvão
para o óleo antes da Primeira Guerra e determinado a colocar uma significativa fonte de petróleo sob
controle de Londres, Churchill orquestrou a nacionalização da APOC em 1914. Na véspera da
Segunda Guerra, o então primeiro-ministro Churchill supervisionou a remoção do pró-germânico
mandatário persa Shah Reza Pahlavi e a ascendência de seu filho de 21 anos, Mohammed Reza
Pahlavi.
Embora inclinado a explorar (míticos) laços com o passado império Persa, Mohammed Reza Pahavi
foi uma ferramenta dos britânicos. Seus comandados, porém, estavam cada vez menos dispostos a
tolerar a subserviência a Londres. Em 1951, o democraticamente eleito primeiro-ministro Mohammed
Mossadeq ganhou apoio parlamentar para a nacionalização da APOC, renomeando-a Anglo-Iraniana
Companhia de Petróleo (AIOC). O movimento foi amplamente popular no Irã, mas causou pânico em
Londres. Em 1953, a fim de salvar o seu grande troféu, os líderes britânicos engendraram conjuntamente com o a administração do presidente Eisenhower em Washington e com a CIA – um
golpe de estado que depôs Mossadeq e trouxe Shah Pahlavi de volta do exílio em Roma, uma história
recentemente contada por Stephen Kinzer no livro “Todos os Homens do Xá” (editora Bertrand
Brasil).
Até sua deposição em 1979, o xá exerceu um controle cruel e ditatorial sobre a sociedade iraniana,
graças em parte ao generoso apoio militar e policial dos EUA. Primeiro ele esmagou a esquerda
secular, os aliados de Mossadeq, e então a oposição religiosa, liderada do exílio pelo aiatolá Ruhollah
Khomeini. Devido à brutal exposição à polícia e ao material de cárcere fornecido pelos EUA, os
oponentes do xá vieram a odiar a monarquia e Washington na mesma medida. Em 1979, o povo
iraniano tomou as ruas, o xá foi deposto e Khomeini chegou ao poder.
Muito se pode aprender desses eventos que levaram ao atual impasse nas relações entre EUA e Irã. O
ponto chave para se ater aqui porém é que a produção de petróleo iraniana nunca se recuperou da
revolução de 1979-1980.
Entre 1973 e 1979 o Irã havia alcançado um fluxo de quase seis milhões de barris de petróleo por dia,
um dos maiores do mundo. Depois da revolução, AICO (rebatizada British Petroleum ou
simplesmente BP) foi nacionalizada pela segunda vez e gestores iranianos assumiram as operações da
companhia. Para punir os novos líderes iranianos, Washington impôs duras sanções de comércio,
dificultando os esforços da companhia estatal de petróleo para obter tecnologia e ajuda estrangeira. O
fluxo iraniano caiu para dois milhões de barris por dia, e mesmo passadas três décadas, retornou para
apenas algo perto de quatro milhões de barris por dia, ainda que o país possua a segunda maior reserva
do mundo, depois da Arábia Saudita.
Sonhos do invasor
O Iraque seguiu uma trajetória assustadoramente similar. Sob Saddam Hussein, a Iraque Companhia
de Petróleo (IPC) produziu até 2,8 milhões de barris por dia até 1991, quando a primeira Guerra do
Golfo com os EUA e as sanções derrubaram a produção para meio milhão de barris por dia. Embora
em 2001 a produção tenha subido para quase 2,5 milhões de barris por dia, nunca mais encontrou os
níveis máximos. Conforme o Pentágono se preparava para a invasão do Iraque em final de 2002,
porém, as pessoas de dentro da administração Bush e expatriados iraquianos bem relacionados
sonhavam com o surgimento de uma era de ouro na qual empresas estrangeiras de petróleo seriam
156
convidadas a retornar ao país, a companhia nacional de petróleo seria privatizada e a produção
chegaria a níveis nunca antes vistos.
Quem esquece os esforços da administração Bush e de seus oficiais em Bagdá para que o sonho
virasse realidade? Afinal de contas, os primeiros soldados norte-americanos a chegar a capital
iraquiana protegeram o prédio do Ministério do Petróleo, mesmo que isso deixasse os saqueadores
livres para agir no resto da cidade. Paul Bremer III, o cônsul mais tarde escolhido pelo presidente
Bush para supervisionar a formação do novo Iraque, trouxe uma equipe de executivos do petróleo dos
EUA para supervisionar a privatização da indústria de petróleo do país, enquanto que o departamento
de Energia previa, confiante, em maio de 2003 que a produção iraquiana poderia subir para 3,4
milhões de barris por dia em 2005 e para 5,6 milhões em 2020.
Obviamente que nada disso virou verdade. Para muitos iraquianos a decisão dos EUA de se dirigir
imediatamente para o prédio do Ministério do Petróleo foi um ato decisivo para que um possível apoio
na derrubada de um tirano se transformasse em raiva e hostilidade. A condução de Bremer da
privatização da estatal de petróleo produziu forte retaliação nacionalista de engenheiros, que
essencialmente sabotaram o plano. Não demorou para a explosão de uma insurgência sunita em larga
escala. A produção de petróleo rapidamente caiu, registrando em média 2 milhões de barris por dia
entre 2003 e 2009. Em 2010, finalmente voltou à marca dos 2,5 milhões -- ainda um deserto de
distância daqueles sonhados 4,1 milhões. Não é difícil chegar a uma conclusão: esforços de forasteiros
para controlar a ordem política do Oriente Médio visando um maior fluxo de petróleo irão
inevitavelmente gerar pressões opostas que resultarão em menor produção.
Os EUA e outros poderes que observam os levantes, as rebeliões e os protestos que varrem o Oriente
Médio devem estar precavidos certamente: seja quais forem seus desejos políticos e religiosos, as
populações locais sempre acabam por abraçar uma feroz e apaixonada hostilidade à dominação
estrangeira e irão escolher independência e a possibilidade de liberdade ao aumento de produção. As
experiências do Irã e do Iraque não podem ser comparadas com as da Argélia, Bahrein, Egito,
Jordânia, Líbia, Omã, Marrocos, Arábia Saudita, Sudão, Tunísia e Iêmen.
Todas eles, porém (e outros países próximos de serem arrastados para a crise), exibem alguns
elementos de molde politico-autoritário e estão conectados com a velha ordem do petróleo. Argélia,
Egito, Iraque, Omã e Sudão são produtores de petróleo; Egito e Jordânia mantêm oleodutos vitais e, no
caso do Egito, uma passagem crucial (Canal de Suez) para o transporte do óleo; Bahrein, Iêmen e Omã
ocupam pontos estratégicos ao longo de importantes rotas marítimas.
Todos recebiam substancial ajuda militar dos EUA e/ou abrigam importantes bases militares dos
norte-americanos. E em todos esses países o coro é o mesmo: "O povo quer que o regime seja
derrubado". Dois deles já foram, três estão balançando e há outros em risco. O impacto nos preços
internacionais do petróleo têm sido rápido e impiedoso: em 24 de fevereiro, os preços do Brent do Mar
do Norte, uma referência da indústria, quase alcançou 115 dólares por barril, o mais alto desde o
colapso financeiro de outubro de 2008. O West Texas Intermediate, igualmente padrão, rápida e
ameaçadoramente passou a barreira dos 100 dólares.
Por que os Sauditas são fundamentais
Até agora, o mais importante produtor do Oriente Médio, a Arábia Saudita, ainda não exibiu sinais
claros de vulnerabilidade, do contrário os preços teriam disparado ainda mais. Porém, o vizinho
Bahrein enfrenta profundos problemas; dezenas de milhares de manifestantes -- mais de 20% da sua
população de meio milhão de habitantes - tem repetidamente ido às ruas apesar das ameaças de
repressão a bala, em um movimento pela abolição do governo autocrático do rei Hamad ibn Isa al157
Khalifa, e sua substituição por um comando genuinamente democrático. Esses acontecimentos são
especialmente preocupantes para a liderança saudita, já que a pressão por mudanças em Bahrein está
sendo conduzida pela maioria xiita, há muito tempo alvo de abusos da minoria sunita encastelada no
poder.
A Arábia Saudita também tem grande população xiita (embora não em maioria como em Bahrein) que
da mesma forma sofre com a discriminação dos mandatários sunitas. Há nervosismo em Riyadh, medo
que a explosão em Bahrein possa se espalhar para a adjacente e rica em petróleo província do oeste – a
área do reino onde os xiitas formam a maioria – criando um desafio para o regime.
Parcialmente para obstruir qualquer rebelião juvenil, o rei Abdullah, aos 87 anos, acabou de prometer
crédito de 10 bilhões de dólares, parte de um pacote de 36 bilhões em mudanças econômicas, para
ajudar jovens sauditas que pretendem se casar e comprar casas e apartamentos.
Mesmo que a revolta não alcance a Arábia Saudita, a velha ordem do Oriente Médio não pode ser
reconstruída. O resultado, sem dúvidas, será um declínio de longo prazo na disponibilidade futura de
petróleo para exportação. Três quartos dos 1,7 milhões de barris produzidos diariamente pela Líbia
foram rapidamente tirados do mercado conforme a agitação tomou conta do país. Muito disso segue
desconectado e fora do mercado por um período indefinido. Pode-se esperar que Egito e Tunísia
retomem a produção – modesta em ambos os casos – a níveis pré-revolução, mas é improvável que
abracem os tipos de parcerias com empresas estrangeiras que possam alavancar a produção às
expensas do controle local. Iraque, cuja principal refinaria de petróleo foi severamente danificada por
insurgentes na semana passada, e Irã não mostram sinais de serem capazes de aumentar a produção
substancialmente nos próximos anos.
O papel fundamental caberá à Arábia Saudita, que acaba de aumentar a produção para compensar as
perdas do mercado com a Líbia. Mas não espere que esse padrão se mantenha para sempre.
Assumindo que a família real sobreviva ao atual momento de rebeliões, com toda certeza terá que
direcionar mais de seu fluxo diário para satisfazer os níveis de consumo doméstico e incentivar a
indústria petroquímica local, que poderá oferecer trabalhos mais bem remunerados à sua crescente e
inquieta população.
Entre 2005 e 2009, os sauditas usaram cerca de 2,3 milhões de barris diários, deixando
aproximadamente 8,3 milhões para a exportação. Apenas se a Arábia continuar a fornecer pelo menos
essa quantia para os mercados internacionais o mundo poderá manter seu padrão de consumo de
petróleo. Isso não deve acontecer. A família real saudita tem se mostrado relutante em aumentar a
extração de petróleo para além de 10 milhões de barris por dia, temendo comprometer os seus campos
remanescentes e causar um declínio dos lucros futuros. Ao mesmo tempo, o aumento da demanda
doméstica deverá consumir uma parte cada vez maior da produção da Arábia Saudita. Em abril de
2010, o executivo-chefe da saudita Aramco, Khalid al-Falih, previa que o consumo doméstico poderia
alcançar surpreendentes 8,3 milhões de barris por dia por volta de 2028, deixando apenas uns poucos
milhões de barris para a exportação e garantindo que, se o planeta não conseguir mudar para outras
fontes de energia, enfrentará problemas de fornecimento de petróleo.
Em outras palavras, para quem quiser traçar uma trajetória razoável para os atuais acontecimentos no
Oriente Médio já há um esboço na parede. Como nenhuma outra região é capaz de substituir o Oriente
Médio como principal exportador de energia do planeta, a economia do petróleo irá encolher - e com
ela a economia do planeta como um todo..
Considere o recente aumento nos preços do petróleo apenas um tímido anúncio do petro-terremoto que
está por vir. O petróleo não desaparecerá dos mercados internacionais, mas nas próximas décadas não
158
irá mais alcançar os volumes necessários para satisfazer a estimada demanda global, o que significa
que escassez será a condição dominante do mercado – mais cedo do que tarde. Apenas o veloz
desenvolvimento de fontes alternativas de energia e a dramática redução do consumo de derivados de
petróleo pode salvar o mundo das mais severas repercussões econômicas.
11/03/2011 |
Vanguarda de jovens derrubou ditadura egípcia, diz Samir Amim
A queda de Mubarak não deve ser vista com surpresa de acordo com Samir Amin. Anos de
crescimento econômico elogiados pelo Banco Mundial só serviram a um grupo minúsculo de egípcios,
além do que a repressão policial era crescente e brutal. “Tinha que explodir. E Explodiu”, afirma em
entrevista exclusiva à Carta Maior. O economista e intelectual egípcio conta ainda como foi dos
jovens politizados “fora da esquerda tradicional” a vanguarda da revolução que derrubou a ditadura
egípcia. E reafirma leitura crítica aos rumos do Fórum Social Mundial.
Wilson Sobrinho, correspondente da Carta Maior em Londres
Aos 79 anos, Samir Amin é um dos grandes pensadores vivos da esquerda atualmente. E para entender
o sentido que a palavra "pensador" ganha quando empregada ao lado do nome desse economista
nascido no Cairo, é preciso dizer que ele tem obras traduzidas em mais de uma dezena de diferentes
línguas que vão do grego ao chinês.
Nome presente e profundamente respeitado no círculo íntimo do Fórum Social Mundial, Amin esteve
em Londres recentemente para um evento chamado 6 Billion Ways, cujo slogan não escondia a
inspiração: “Fazendo um Outro Mundo Possível”. Do evento participaram aproximadamente 2,5 mil
pessoas, a maioria jovens na faixa dos 20 a 30 anos, em diversos painéis, discussões e exibições de
filmes.
Logo após Amin encerrar sua participação em uma mesa de debate sobre o sistema financeiro
mundial, ele concedeu uma entrevista à Carta Maior. Sorridente e aparentemente satisfeito por ver
tantos jovens presentes a um evento comprometido com a mudança social - "o que mostra que também
no Reino Unido os jovens não são necessariamente despolitizados" - Amin reafirmou a leitura crítica
ao Fórum Social Mundial que fez em um artigo recente. "Em muitos casos os principais movimentos e
lutas não estão [presentes no FSM]" , apontou.
Amin falou também de sua terra natal, o Egito, e de como se deu o processo que culminou com a
derrubara do regime de Hosni Mubarak do poder. Segundo ele, foi o protagonismo dos jovens
"politizados à esquerda, mas fora dos partidos de esquerda tradicionais" que trouxe a reboque os
outros movimentos sociais, adicionando a tensão necessária para que a ruptura ocorresse. "O chamado
desses jovens teve enorme e imediato efeito em todos os níveis populares".
CARTA MAIOR - Uma edição do Fórum Social Mundial (FSM) acaba de acontecer em Senegal. Qual
o papel do movimento perante a esses eventos que estão acontecendo no norte da África e no Oriente
Médio no momento?
SAMIR AMIN - Eu estive presente na mais recente edição do FSM em Dacar - e não apenas presente,
como fui um dos organizadores de algumas das principais atividades. Eu acredito que os fóruns sociais
são por si só eventos positivos, mas precisamos ser modestos e críticos. Os principais movimentos e
lutas que mudam o mundo não estão necessariamente presentes no FSM. Existem desequilíbrios nos
fóruns sociais mundiais que funcionam a favor daqueles que tem dinheiro. Em muitos casos os
principais movimentos e lutas não estão lá. E nós vimos em Dacar, com o desenvolvimento das quase159
revoluções do Egito e da Tunísia, nenhum dos movimentos - eu estive em contato com esses
movimentos do Egito que começaram a revolução popular, democrática e anti-imperialista - nenhum
deles ouviu falar sobre o FSM. Portanto precisamos ser modestos. Os fóruns sociais em geral, não
apenas o mundial, mas os nacionais e os regionais, estão atrás dos eventos. Eles não são a vanguarda
que guia o povo.
CARTA MAIOR - Esses regimes que estão caindo agora estão presentes por muito tempo. Por que
essas rebeliões estão acontecendo apenas agora? Existe algo que una todas as revoluções?
SAMIR AMIN - Olha, cada caso é diferente. Tunísia não é a Líbia, que não é o Egito. E precisamos
evitar generalizações. Como na América Latina não podemos dizer que Brasil e Argentina são
idênticos. Ou Bolívia e Venezuela. Cada caso tem que ser olhado com cuidado. Eu vou falar do Egito.
Era esperado. Era pra acontecer. Porque o regime, por 15, 20 anos, fez crescer gigantescas
desigualdades. O Banco Mundial vinha elogiando altas taxas de crescimento no Egito, de 5%. Mas
esse crescimento foi parar nas mãos de menos de 1% da população do país. E a pauperização estava
aumentando junto com essas altas taxas de crescimento. E isso não podia se manter sem um regime
cada vez mais ditatorial. Como vocês tinham no Brasil, no tempo da ditadura. Uma ditadura muito
brutal do Exército, com torturas e tudo mais. E tudo isso apoiado pelo Ocidente, pelos EUA, pelos
europeus. Completamente e sem restrições. Mas isso tinha que explodir. E Explodiu.
No movimento existem alguns componentes. Um são os jovens que são altamente politizados. Jovens
educados, semi-educados, altamente politizados e com acesso aos meios de comunicação - internet e
afins. Politizados à esquerda, mas fora dos partidos de esquerda tradicionais - no caso do Egito, de
tradição comunista. E eles começaram o movimento. E não são uma pequena organização, eles são um
milhão. Quando eles chamaram a manifestação, foram para as ruas, um milhão. E poucas horas - não
no dia seguinte - três, quatro horas depois, em todo Egito, em todas as cidades, Cairo, Alexandria, 15
milhões de pessoas estavam na rua. O que significa que o chamado desses jovens teve enorme e
imediato efeito em todos os níveis populares. Eles foram acompanhados imediatamente - eu diria um
quarto de hora - pela esquerda radical. os comunistas. E existe uma simpatia mútua e forte, pois esses
jovens tem o coração na esquerda.
Eles não são necessariamente críticos radicais do capitalismo, mas eles não aceitam esse capitalismo e
a pauperização. E nos cartazes se podia ler "Banco Mundial e FMI vão para o Inferno", "EUA e
aliados vão para o inferno, nós não os queremos". "Somos um país independente e queremos tomar as
nossas decisões. Se vocês gostam ou não o problema é de vocês e não nosso." Muito claramente.
Então receberam o apoio, no dia seguinte, de segmentos da, vamos chamar, classe média democrata.
Honesta em seu protesto contra o regime policial, mas não fundamentalmente crítica nem do
capitalismo, nem dos aliados norte-americanos e da tolerância do sionismo de Israel. Mas com
elementos democráticos.
A Irmandade Muçulmana boicotou o movimento nos três primeiros dias, pois eles estavam com o
regime, contra as manifestações. Mas então eles viram que as manifestações estavam crescendo e que
eles iriam ficar isolados com o regime, e eles mudaram de posição. Agora, a estratégia dos EUA -Obama não é melhor que Bush, esqueça disso. Obama é o a continuação de Bush... A estratégia dos
EUA é manter o sistema, com os militares por trás, fazer algumas concessões talvez de ordem
democrática, e reforçar a aliança com a Irmandade Muçulmana, para com isso isolar a esquerda, que é
preponderante no movimento. Essa é a estratégia dos EUA.
CARTA MAIOR - Existem alguns relatos de que o aumento nos preços dos alimentos podem ter sido
preponderantes no início dessa escalada. O senhor concorda com essa avaliação?
160
SAMIR AMIN - Foi um elemento é preciso dizer, sim. Como resultado das políticas neoliberais dos
últimos 20 anos, do empobrecimento. Apesar de todos os falso indicadores do Banco Mundial, o
empobrecimento estava crescendo, o desemprego crescendo. Agora, sim é verdade que nos últimos
dois anos, em cima disso tudo, houve um aumento de preços dos alimentos básicos, como resultado da
especulação global sobre a comida. Da bolha da especulação dos alimentos. Mas isso foi apenas um
elemento. Em outros momentos tivemos movimentos em Marrocos, no Egito e em outros países -revoltas resultante dos preços dos alimentos. Mas eram apenas rebeliões, e dessa vez não é uma
revolta por comida, é uma revolução. Tem uma dimensão democrática e anti-imperialista. No nosso
jargão chamamos de revolução popular, democrática e anti-imperialista.
CARTA MAIOR - O senhor acredita então que o anti-imperialismo é o elemento que une todos esses
movimentos?
SAMIR AMIN – Não todos. Mas com certeza no Egito é a principal direção.
14/03/2011
O silêncio internacional diante das ditaduras
Por que o insuportável silêncio internacional diante das legítimas rebeliões de populações que exigem
liberdade, dignidade econômica e pessoal e democracia? Por que se tem tolerado durante décadas os
abusos aos direitos humanos das ditaduras aliadas do Ocidente que têm gerado a atual revolução que
percorre o mundo árabe, desde Marrocos até a Arábia Saudita? O que explicava as visitas de Estado
a regimes ditatoriais e cleptocracias, os abraços e beijos com os autocratas árabes, as bênçãos a
sistemas de governo em desacordo com a legalidade? O artigo é de Mônica G. Prieto.
Mónica G. Prieto - Periodismo Humano
“É a economia, estúpido!”. A famosa frase de James Carville, assessor de Bill Clinton durante a
campanha eleitoral que o levou à Casa Branca em 1992, serve para responder as perguntas que muitos
fazem. Por que o insuportável silêncio internacional diante das legítimas rebeliões de populações que
exigem liberdade, dignidade econômica e pessoal e democracia? Por que se tem tolerado durante
décadas os abusos aos direitos humanos das ditaduras aliadas do Ocidente que têm gerado a atual
revolução que percorre o mundo árabe, desde Marrocos até a Arábia Saudita? O que explicava as
visitas de Estado a regimes ditatoriais e cleptocracias, os abraços e beijos com os autocratas árabes, as
bênçãos a sistemas de governo em desacordo com a legalidade? A resposta são bilhões de dólares e
uma estabilidade regional que tem beneficiado a Europa e os Estados Unidos e seu principal aliado
regional, Israel, em troca da insegurança das populações árabes.
O mérito dos manifestantes árabes que estão colocando em sérios apertos, quando não derrubando,
seus regimes é enorme. Não só enfrentam um aparato de segurança repressor - o que os condena, em
caso de fracasso, a serem perseguidos e provavelmente massacrados - mas também ao mundo inteiro
desde o momento em que os ditadores contra quem se levantam estão ligados com o resto dos países
mediante vínculos difíceis de se quebrar: contratos comerciais que não entendem de ideologia nem de
161
moral.
Essa é a razão pela qual os documentos das ONG denunciando torturas, repressão, ausência de
liberdades e eleições arranjadas nunca produziram a mais mínima sombra sobre os regimes amigos:
Arábia Saudita, Argélia, Bahrein, Egito, Emirados Árabes, o atual Iraque, Jordânia, Kuwait, Líbia,
Mauritânia, Omã, Qatar, Tunísia, Iêmen, Sudão, Marrocos… De fato, consultando os informes
redigidos pelos escritórios comerciais espanhóis nos citados países ninguém desconfiaria da
legitimidade dos regimes e, sobretudo, ninguém duvidaria dos proveitosos negócios que trazem aos
Estados Unidos ou à Europa. À custa, isso sim, dos excessos que se cometem contra suas populações.
Este é um resumo do que queriam ver nossos governos no Oriente Médio e no norte da África e do que
viam seus cidadãos, pelo qual estão se levantando em massa contra seus ditadores.
Arábia Saudita: Com uma economia dependente da exportação de petróleo, a Arábia Saudita
depende das exportações exteriores dada sua escassa produtividade em qualquer outro setor. Uma
circunstância bem aproveitada por seus sócios internacionais. Entre seus principais provedores
figuram Estados Unidos (com negócios avaliados em mais de 13,6 bilhões de dólares em 2009), ou
China (10,8 bilhões no mesmo ano) e de forma mais modesta França (3,8 bilhões), Itália (3,5 bilhões)
e Grã Bretanha (3,4 bilhões). Espanha figura entre os 10 principais países clientes com negócios no
valor de quase 3,4 bilhões de dólares em 2009.
Assim mesmo, em novembro passado negociava a venda de 200 carros de combate que deveria lhe
render 3 bilhões de euros, o maior contrato da indústria armamentista espanhola. Para que serviriam
esses carros? As últimas atuações conhecidas do Exército da Arábia Saudita, um regime wahabi (a
versão mais radical do Islamismo sunita, que implica a segregação absoluta de sexos e relega as
mulheres a uma condição de segunda classe) cuja fonte de jurisprudência é a Sharia (código de leis do
islamismo), tem tido como cenário Bahrein e Iêmen No primeiro, ativistas do reino denunciaram a
entrada de militares sauditas para apoiar a monarquia na repressão das manifestações; no segundo
aconteceu há alguns meses, quando o Exército saudita atacou posições dos huthis, rebeldes xiitas
armados situados na fronteira entre Iêmen e Arábia Saudita, em um ataque sectário.
No país da dinastia dos Saud, não só a pena de morte está vigente (que se realiza por decapitação e
está aumentando, segundo as autoridades locais porque o crime tem crescido) mas também aplicam-se
castigos corporais: as amputações de mãos e pés por roubo ou a flagelação por delitos menores como
“desvio sexual” - em referência à homossexualidade e a sodomia - e a embriaguez. A discriminação
das mulheres, que carecem dos mínimos direitos - sua situação é muito mais grave que no Afeganistão
- chega inclusive às suas próprias casas. Não têm direito de votar nem de dirigir, nem sequer podem
caminhar sozinhas sem um homem que lhes acompanhe. Não há liberdade de culto, tampouco
liberdades sexuais nem liberdade de reunião, imprensa ou de expressão. Os sindicatos estão proibidos,
assim como os partidos políticos. Tal como seus sócios europeus, a Espanha parece importar-se pouco
com semelhantes minúcias. Entre 1993 e 2008, segundo dados do Ministério da Indústria, Turismo e
Comércio, a Arábia Saudita investiu na Espanha mais de 70 milhões de euros. Os habitantes da Arábia
Saudita estão convocados a protestos nos dias 11 e 20 de março.
Argélia - Como no caso de Marrocos e Mauritânia, na Argélia - grande produtor de gás - a Espanha
tem amplos acordos de cooperação que incidem positivamente em seus negócios. O governo de Madri
é o quarto país provedor, depois da França (6,1 bilhões de dólares), China (4,7) e Itália (3,7), com
importações no valor de quase 3 bilhões de dólares anuais. Em troca, Espanha importa gás argelino no
valor de 3,9 bilhões de euros ao ano, sendo o terceiro país cliente do regime argelino. Entre suas
exportações figuram aeronaves no valor de meio milhão de euros.
162
Enquanto os governantes trocam apertos de mão, o estado de emergência que impera no país durante
19 anos tem justificado detenções irregulares, processos judiciais duvidosos, desaparições forçadas,
torturas, abusos policiais e restrições à liberdade de expressão, de impressa e civis. Desde 1993,
estima-se entre 30 e 40 mil o número de desaparecidos. Os argelinos protestam contra seu governo
desde dezembro de 2010 e exigem medidas contra o desemprego, a falta de moradia, a inflação, a
corrupção, a falta de liberdades. Sua primeira vitória: a anulação do estado de emergência que
justificava as detenções irregulares de milhares de pessoas há décadas.
Bahrein - Este pequeno reino petrolífero povoado por quase 70% de xiitas e governado por uma
dinastia sunita há dois séculos é um sócio comercial privilegiado da Arábia Saudita - daí seu enorme
apoio à monarquia bareinita, baseado em interesse econômico e estratégico porque à Riad, capital
saudita, não interessa uma revolta popular que produza ideias dentro do reino wahabita - mas também
do Japão, Estados Unidos e Alemanha, nesta ordem. Em troca, Bahrein exporta petróleo. Sua
população xiita, enquanto isso, suporta uma discriminação dos sunitas que alcança todas as esferas:
não podem aceder a postos públicos nem ingressar no Exército, denunciam que só podem morar nas
piores moradias e cada vez tem sido público que são reprimidos. As torturas são habituais nas prisões
como em outros países do Golfo Pérsico, assim como a prisão arbitrária de dissidentes políticos.
Segundo os ativistas, há cerca de 400 presos políticos nas prisões do país. O país não chega a um
milhão de habitantes. As manifestações, reprimidas a sangue e fogo, têm conseguido até o momento a
libertação de presos políticos e promessas de reformas democráticas.
Egito - Durante os 18 dias que durou a revolução popular que culminou na saída de Hosni Mubarak,
apenas escutaram-se críticas europeias e as escassas proferidas pelos Estados Unidos soaram tímidas.
Examinemos por quê: o primeiro sócio comercial do Egito é a União Europeia, que exportou bens no
valor de quase 18 bilhões de euros em 2009. Dos países europeus, Itália, Alemanha, França e Reino
Unido ocupavam os primeiros postos. Espanha é o sexto exportador do país dos faraós. Estados
Unidos, contudo, é a terceira potência exportadora com negócios no valor de 5,3 bilhões de dólares no
em 2009. Os informes das ONG não poderiam competir com semelhante volume de negócios, muitas
vezes falaram de torturas recorrentes, detenções arbitrárias, violações em prisão para obter confissões
e uma total impunidade policial. No entanto, milhões de egípcios venceram seu medo e saíram às ruas
derrubando a ditadura e fazendo história. Um dos ativistas que fizeram os protestos, Wael Ghonim,
alçava uma mensagem incontestável ao Ocidente depois de seu êxito: “Vocês não se meteram em 30
anos. Por favor, não se metam agora”.
Emirados Árabes Unidos (EAU) - O presidente José Luis Rodríguez Zapareto regressou de seu giro
pelo Golfo eufórico pelos acordos econômicos firmados com os xeiques dos Emirados, mas sem
mencionar as violações de direitos humanos. Em EAU - rico em gás e petróleo - a Espanha firmou
negócios no valor de 1,9 bilhão de dólares somando-se assim a países como China, Estados Unidos,
Alemanha e Índia, seus principais sócios comerciais. A ninguém incomoda que nos sete emirados a
maioria da população (estima-se que 80%) seja de trabalhadores asiáticos que carecem de direitos,
muitos dos quais são explorados e vivem em condições sub-humanas. As organizações defensoras de
direitos humanos denunciam a falta de proteção e a discriminação que padecem. Além disso, nos
emirados as instituições não são eleitas de forma democrática, e a liberdade de expressão e de
imprensa passam por numerosas dificuldades.
Iêmen - Os protestos duram já dois meses e são diários: dezenas de milhares de iemenitas desafiam a
cada dia o emprego da segurança e também os fiéis ao ditador Abdula Ali Saleh, há 32 anos no poder,
para exigir o fim da ditadura. As primeiras concessões não tardaram a aparecer ante a pressão popular:
Saleh renunciou à reforma constitucional que preparava para permanecer no posto de forma vitalícia,
logo após renunciou a que seu filho o sucedesse, depois anunciou que não renovaria seu mandato após
2013, quando este expirará oficialmente, e agora oferece um governo de unidade nacional que a
163
oposição e ativistas rechaçam. O ditador está cada dia mais só: sua tribo, assim como outros clãs
determinantes do país mais pobre do Oriente Médio, retirou o apoio que dava a ele. O principal
religioso iemenita, Abdul Majid al Zindani, uniu-se aos manifestantes, que exigem sua saída imediata
e a instauração de uma democracia. Sua riqueza também reside nos hidrocarbonetos e seus principais
parceiros comerciais são China, Índia, Emirados e Estados Unidos, com quem mantinha estreitas
relações militares que permitiram bombardeios secretos norteamericanos contra supostos objetivos da
Al Qaeda que se atribuem ao próprio Saleh, segundo desvendado mediante informes do Wikileaks. Em
matéria de direitos humanos, as torturas, a repressão, a falta de liberdades, a detenção arbitrária de
dissidentes e a colaboração com o programa de detenções extraordinárias norteamericano - o sequestro
de cidadãos que são interrogados em países terceiros para permitir o uso de torturas na obtenção de
confissões - é algo habitual. Estima-se que cerca de 30 pessoas morreram nas manifestações.
Kuwait - Enquanto o primeiro-ministro espanhol, José Luis Zapatero, passeava pelos Emirados e
Qatar, o rei Juan Carlos apertava a mão do Sheik Sabah al Ahmad al Jaber, o emir do Kuwait, uma
monarquia supostamente constitucionalista onde o primeiro ministro é o sobrinho de Al Jaber e onde
este elege a composição do governo. Seus familiares ocupam os principais postos do poder. Não
existem partidos políticos ainda que se tolerem organizações ideológicas no Parlamento eleito, que
pode ser dissolvido - como já ocorreu em cinco ocasiões - por desejo do emir. Estados Unidos, Japão,
Alemanha e China são seus principais sócios comerciais; os hidrocarbonetos seu grande ativo. Com
Washington tem uma relação principal que explica a existência de bases norteamericanas em território
kuwaitiano. Suficiente para que ninguém levante a voz por causa das violações de direitos humanos
como as citadas pela Anistia Internacional em seu informe de 2009. “Os trabalhadores e trabalhadoras
migrantes continuam sofrendo exploração e abusos e exigiam proteção de seus direitos. Em alguns
casos houve expulsão por ter participado de manifestações massivas. O governo prometeu melhorar
suas condições. Processaram jornalistas. Denunciou-se um caso de tortura. Havia ao menos 12 pessoas
condenadas à morte, mas não se teve notícia de nenhuma execução”. Os protestos no Kuwait, muito
menores, têm gerado dezenas de feridos. O último protesto foi realizado na terça-feira (8), centenas de
kuwaitianos exigiram a queda do primeiro-ministro e maior liberdade política.
Líbia - Petróleo e gás. Desde que Muammar al Kadafi foi desclassificado como líder terrorista em
2002 e acrescentado à categoria de sócio ocidental, os negócios com a ditadura líbia - 40 anos de
tirania - dispararam, ignorando a repressão interna e a ausência total de democracia. Kadafi acabava
sendo demasiadamente generoso para ser questionado quando investia 2 bilhões de dólares no Canadá
ou 30 bilhões nos Estados Unidos. Agora, o uso de aviação militar contra manifestantes que exigem o
final da tirania obriga os dirigentes internacionais a opor-se. Itália e Alemanha são seus grandes sócios
comerciais, Espanha é o terceiro país cliente: importa principalmente petróleo e gás. Entre 1993 e
março de 2008, investiu 189,36 milhões de euros na Líbia. As exportações espanholas em material de
defesa aumentaram 7.700% em 2008.
Marrocos - As violações de direitos humanos, principalmente relacionadas com o Sahara Ocidental,
nunca vêm à tona - nem sequer nos episódios mais violentos - com o sócio marroquino, muito amigo
da Espanha e aliado da União Europeia e Estados Unidos. Entre seus principais parceiros comerciais
figuram França, Estados Unidos, Suécia, Alemanha e Espanha. Assim como com a Argélia e
Mauritânia, Madri mantém amplos acordos de cooperação com Rabat, capital do Marrocos, que
incluem a venda de armas e material defensivo. Estima-se que a Espanha é o principal país provedor
do reino alauí - dinastia que governa o país - depois da França e seu mercado representa a principal
fonte de exportações espanholas de toda a África. Em 2009, Marrocos recebeu 30 milhões de euros em
veículos militares espanhóis. O regime de Rabat foi inicialmente compreensivo com os manifestantes,
que no dia 20 de fevereiro saíram às ruas para exigir reformas democráticas e econômicas, para depois
atuar com contundência diante de qualquer indício de protesto.
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Omã - Nesta monarquia absoluta, sem partidos políticos, e cujo sultão, Qabus al Said, derrubou seu
pai em um golpe de Estado em 1970, os hidrocarbonetos são a chave de suas excelentes relações
internacionais. Emirados, Índia, Estados Unidos e China são seus principais sócios comerciais, e em
menor medida a Espanha, que entre 1993 e 2008 investiu 38 milhões de euros na economia do
sultanato, Segundo a ONG Frontline, os ativistas de direitos humanos em Omã “sofrem perseguição,
detenção arbitrária e torturas ao serem interrogados. Centenas de acadêmicos, jornalistas e
comentaristas foram detidos em prisões massivas e deixados incomunicáveis sem nenhum tipo de
assistência legal. Omã é signatário de três dos sete tratados fundamentais das Nações Unidas sobre os
direitos humanos. As organizações independentes de direitos humanos não podem operar dentro do
país”. Os protestos em Omã resultaram na morte de duas pessoas e exigem respeito aos direitos
humanos, reformas políticas e econômicas que lutem contra a inflação e aumentem os salários e
liberdade de informação.
Qatar - Outro dos destinos do primeiro-ministro espanhol, José Luis Zapatero, que deu importantes
frutos econômicos, com contratos acertados em 3 bilhões de euros - mais de 2,7 bilhões correspondem
a investimentos em uma empresa energética e outra de telecomunicações e 300 milhões a uma caixa
de poupança - e um dos poucos países a salvo, até o momento, dos protestos. Antecipando-se a
qualquer contestação interna, o regime do Qatar - uma monarquia tradicional onde todas as decisões
recaem na dinastia reinante - acaba de adiantar as eleições municipais, um passo a mais no lento
processo de reformas iniciado pelo xeique Hamad ben Jalifa al Thani. Mantém excelentes relações
com todos os grupos, com o Ocidente, com o mundo árabe e com o Irã, o que o tem feito mediador por
excelência na região. Japão, Estados Unidos, Alemanha e Itália são seus principais países provedores,
e a Espanha, seu sétimo país cliente. Em matéria de direitos humanos, as restrições à liberdade de
expressão - apesar de haver criado a Al Jazeera - são frequentes, os ativistas são habitualmente
perseguidos, a Internet é vigiada e há acusações contra o regime de Al Thai por não garantir os direitos
mínimos dos trabalhadores estrangeiros. Não existem partidos políticos. Os qatari estão sendo
convocados para uma manifestação ainda no mês de março.
Tunísia - Os 20 anos no poder de Ben Ali lhe deram o domínio sobre a economia tunisiana e criaram
vínculos com a França, Itália, Alemanha e Estados Unidos, entre outros países ocidentais, na forma de
contratos. A cleptocracia foi derrubada pelo movimento popular revolucionário que explodiu depois da
morte de um jovem provinciano estendendo-se por todo o norte da África e o Oriente Médio. Os
motivos econômicos - o grande desemprego, a alta dos preços, a escassez de moradia - combinaram-se
com uma população educada e cansada da corrupção do regime, mas, como no resto dos protestos, as
violações de direitos humanos, desde a repressão policial até a discriminação ou a falta de liberdades,
também desempenharam um papel.
Tradução: Michelle Amaral (Brasil de Fato)
14/03/2011 |
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Bahrein e o “contágio da liberdade”
Se a Arábia Saudita foi abalada pela queda do antigo presidente egípcio Hosni Mubarak, certamente
entrará em convulsões se a monarquia do Bahrein cair. Tudo indica que os outros cinco países
membros do Conselho de Cooperação do Golfo (Gulf Cooperation Council - GCC)) (Kuwait, Oman,
Qatar, Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos) farão todo o possível para evitar que tal
aconteça. O artigo é de Rannie Amiri.
Rannie Amiri - Counterpunch
“A Arábia Saudita não construiu uma ponte para o Bahrein apenas para que os Sauditas pudessem
festejar nos fins-de-semana. Ela foi projetada para momentos como este, para manter o Bahrein sob
controle”.
Dr. Toby Jones, especialista sobre a Arábia Saudita na Universidade de Rutgers
Se a Arábia Saudita foi abalada pela queda do antigo presidente egípcio Hosni Mubarak, certamente
entrará em convulsões se a monarquia do Bahrein cair. Tudo indica que os outros cinco países
membros do Conselho de Cooperação do Golfo (Gulf Cooperation Council - GCC)) (Kuwait, Oman,
Qatar, Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos) farã todo o possível para evitar que tal aconteça.
A “liberdade contagiante” do mundo árabe está espalhando-se rapidamente. A revolta do Bahrein está
é liderada pela pobre maioria xiita muçulmana do país. Embora Mubarak tenha sido deposto por uma
nação com uma população de 80 milhões, a agitação no reino da pequena ilha de apenas 530 mil
cidadãos representa uma maior ameaça ostensiva ao GCC, particularmente à Arábia Saudita e à sua
própria considerável minoria xiita impaciente.
Embora muitos se ligassem à rede de televisão Al Jazira com base no Qatar para cobertura das
revoluções na Tunísia, Egito – e agora na Líbia – escassa importância foi dada ao Bahrein, mesmo
quando pacíficos manifestantes desarmados eram mortos nas ruas da capital apenas um dia depois de
os manifestantes que dormiam na praça da Pérola terem sido selvaticamente atacados pelas forças de
segurança do regime.
Caso outros xiitas, como os da Província de Leste da Arábia Saudita, rica em petróleo (onde são
maioria) se tornem “infectados” com a ideia de levar para as ruas exigências pacíficas de reformas e
representação políticas, direitos civis, e liberdade de religião e reunião, os outros cidadãos devem
poder fazer o mesmo.
166
Isto explica por que o Rei Abdullah, da Arábia Saudita, que regressou de Marrocos na quarta-feira,
após uma prolongada convalescença de três meses a uma cirurgia à coluna, anunciou que irá conceder
37 bilhões de dólares em benefícios aos sauditas sob a forma de aumento de salários, subsídios de
desemprego, perdão de dívidas e subsídios à habitação.
Entre aqueles que primeiro saudaram Abdullah após a sua chegada estava aquele que conta com o
amadurecimento do monarca saudita para a sobrevivência do seu regime – o rei do Bahrein, Sheikh
Hamad Bin Isa al-Khalifa. Numa tentativa de aplacar os xiitas do Bahrein, o Sheikh Hamad libertou
100 presos políticos das prisões de Manama antes de partir para Riad, incluindo os 25 ativistas
acusados de, no ano passado, terem conspirado contra o estado.
A Arábia Saudita tem mantido o Bahrein, pobre em recursos, com um fluxo de renda estável durante
anos, e não tardou em fazer uma declaração dizendo que estaria pela monarquia “com todas as
capacidades”. Sempre justificou fazê-lo ao enquadrar o Bahrein como um alegado baluarte contra a
perceptível influência invasora iraniana, mas hoje é para ajudar a evitar que a Arábia Saudita passe por
situações semelhantes ao longo e para além das suas fronteiras orientais. O emir do Kuwait
acrescentou que “a segurança do Bahrein é a segurança da região”. Na semana passada, enquanto os
tanques percorriam a praça da Pérola, os ministros estrangeiros do GCC reuniam-se em Manama para
reafirmar a sua solidariedade com a regra de al-Khalifa.
Precisamente uma semana depois, o Bahrein testemunhou o maior protesto anti-regime realizado
desde que a revolta começou: uma força de 100,000 pessoas – um quinto de toda a população –
envolveu-se em massivas manifestações pacíficas por toda a auto-estrada que leva à praça da Pérola.
Um dos participantes nesta manifestação disse: “Esta é a primeira vez na história do Bahrein que a
maioria do seu povo se junta com uma mensagem: este regime tem de cair”.
Com a escalada da brutalidade do regime de al-Khalifa, aumentam as exigências dos manifestantes.
Inicialmente pediam que o Khalifa Bin Salman al-Khalifa, tio do monarca e primeiro-ministro há
quatro décadas, se demitisse. Depois vieram os pedidos para que o Bahrein se transformasse numa
monarquia constitucionalmente legítima. Agora, muitos dizem que a própria monarquia deve ser
abolida.
Por isso, quão influente tem sido a revolta do Bahrein?
Pequenos protestos têm ocorrido na Província do Leste da Arábia Saudita. As tropas sauditas já
começaram deslocar-se nessa direção.
(*) Rannie Amiri é um analista independente do Oriente Médio.
http://www.counterpunch.org/amiri02252011.html
Tradução de Noemia Oliveira para o Esquerda.net
13/03/2011 |
O poder da internet: fatos x versões
Embora seja mais fácil e simpático estabelecer, sem mais, uma relação de causalidade direta entre as
novas TICs e a derrubada, por exemplo, do velho ditador egípcio, talvez seja prudente não precipitar
conclusões.
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Venício Lima
Os últimos acontecimentos políticos no norte da África constituem ocasião singular para observação
do papel da mídia no mundo contemporâneo. Da nova e da velha mídia.
Embora seja mais fácil e simpático estabelecer, sem mais, uma relação de causalidade direta entre as
novas TICs e a derrubada, por exemplo, do velho ditador egípcio, talvez seja prudente não precipitar
conclusões.
A palavra do especialista
Quando esteve no Brasil, a convite do Centro Ruth Cardoso, aquele que muitos consideram a maior
autoridade mundial da chamada “sociedade-rede”, Manuel Castells, em entrevista à Folha de São
Paulo conduzida dentro do controvertido enquadramento de “decepção com o papel da internet no
processo eleitoral brasileiro”, declarou às vésperas do primeiro turno das eleições de 2010:
“O Brasil segue uma dinâmica assistencialista em que da política se esperam subsídios e favores,
mais do que políticas. A situação econômica do país melhorou consideravelmente. (...) A renovação
do sistema político exige que as pessoas queiram uma mudança, e isso normalmente ocorre quando
existem crises. A internet serve para amplificar e articular os movimentos autônomos da sociedade.
Ora, se essa sociedade não quer mudar, a internet servirá para que não mude” [grifo meu; cf.
http://www1.folha.uol.com.br/poder/801906-se-um-pais-nao-quer-mudar-nao-e-a-internet-que-iramuda-lo-diz-sociologo-espanhol.shtml].
Recentemente, diante das manifestações populares na Tunísia e no Egypto, perguntado se estava
surpreso pela mobilização social, Castells respondeu:
“Na verdade não. No meu livro ‘Comunicação e Poder’, dediquei muitas paginas para explicar, a
partir de uma base empírica, como a transformação das tecnologias de comunicação cria novas
possibilidades para a auto-organização e a auto-mobilização da sociedade, superando as barreiras
da censura e repressão impostas pelo Estado. Claro que não depende apenas da tecnologia. A
internet é uma condição necessária, mas não suficiente. As raízes da rebelião estão na exploração,
opressão e humilhação. Entretanto, a possibilidade de rebelar-se sem ser esmagado de imediato
dependeu da densidade e rapidez da mobilização e isto relaciona se com a capacidade criada pelas
tecnologias do que chamei de “auto-comunicação de massas” [grifo meu; cf.
http://www.outraspalavras.net/2011/03/01/castells-sobre-internet-e-insurreicao-e-so-o-comeco/
].
Embora se referindo a situações radicalmente distintas, Castells indica que as TICs – redes sociais,
celulares e outros – não causam os movimentos sociais mas funcionam como “condição necessária”
para a ampliação e articulação deles. E, por óbvio, é necessário que as TICs estejam suficientemente
(?) difundidas na sociedade em questão, seja ela o Brasil ou a Tunísia.
A velha mídia
Por outro lado, comentando depoimento da Secretaria de Estado Hillary Clinton no Comitê de Política
Externa do Senado dos Estados Unidos, no dia 2 de março, no qual ela afirmou que os EUA estavam
perdendo a “guerra da informação” (sic) para a rede Al Jazeera, o jornalista político escocêsestadunidense Alexander Cockburn, um dos editores do jornal CounterPunch, lembrou:
“(...) há uma florescente pequena indústria da internet que afirma que a derrubada de Mubarak
ocorreu por cortesia do comando Twitter-Facebook dos EUA. O New York Times publicou numerosos
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artigos sobre o papel do Twitter e do Facebook enquanto ignora ou vilipendia ao mesmo tempo Julian
Assange e Wikileaks. Por certo, em qualquer discussão sobre o papel da internet na convocação dos
levantes no Oriente Médio, deveria se dar o maior crédito ao Wikileaks. Mas Wikileaks, junto com
Twitter e Facebook, tornam-se quase insignificantes em comparação com o papel exercido pela Al
Jazeera. Milhões de árabes não podem tuitar e não estão familiarizados com o Facebook. Mas a
maioria vê televisão, o que significa que todos assistem à Al Jazeera, a qual detonou o “artefato
explosivo improvisado” que estourou sob a Autoridade Palestina, a saber, o conjunto de documentos
conhecidos como Palestine Papers” [cf.
http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=17511
].
Para Hillary e para Cockburn a “guerra da informação” continua sendo travada e disputada, de fato, no
território da velha televisão.
Ainda Gramsci
Todas essas considerações são apenas para repetir a cautela que tenho reiterado em relação às
interpretações que atribuem, sem mais, poderes mágicos e revolucionários às novas TICs.
Nos “Cadernos de Cárcere” quando Antonio Gramsci (1891-1937) comenta sobre a "crise de
autoridade" (Selections of the Prison Notebooks; International Publishers, New York, 1971; págs.
275-276), embora, por óbvio, as circunstâncias fossem outras e seja necessária uma pequena adaptação
no texto, penso que se aplica ao nosso momento histórico a idéia de que "o velho está morrendo e o
novo apenas acaba de nascer. Nesse interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparece"
(a frase original correta é: "A crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o
novo ainda não pode nascer. Nesse interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparece").
Um pouco de cautela talvez não nos leve a conclusões precipitadas sobre o real poder das novas TICs.
E, mais importante, evite erros graves na avaliação e na formulação de políticas públicas para as
comunicações.
Venício A. de Lima é professor titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e
autor, dentre outros, de Liberdade de Expressão vs. Liberdade de Imprensa – Direito à Comunicação e
Democracia, Publisher, 2010.
14/03/2011 |
O destino das revoltas árabes está no reino do petróleo
Os sauditas acolheram Osama Bin Laden e a Al Qaeda e os Talibã. Já para não dizer que
"contribuíram" com a maioria dos comandos suicidas do 11 de Setembro. E agora os sauditas julgamse os últimos muçulmanos ainda capazes de combater um mundo que se ilumina. Temo que o destino
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deste movimento festivo na história do Oriente Médio a que temos assistido venha a ser decidido no
reino do petróleo, do rei Abdulah (foto), dos lugares sagrados e da corrupção. Estejam alerta. O
artigo é de Robert Fisk.
Robert Fisk
O terremoto das últimas cinco semanas no Médio Oriente foi a experiência mais tumultuosa,
estilhaçadora e atordoante da história daquela região desde a queda do Império Otomano. Desta vez,
"choque e constrangimento" são expressões adequadas à realidade. Os dóceis, exagerada e
impenitentemente servis árabes descritos pelo orientalismo, transformaram-se nos lutadores pela
liberdade e pela dignidade que nós, os ocidentais, sempre presumimos ser nosso e único papel no
mundo. Um após outro, os sátrapas caem, e a gente a quem pagávamos para controlarem está a fazer a
sua própria história; o direito a metermo-nos nas suas vidas (que obviamente continuamos a querer
exercer) está definitivamente limitado.
As placas tectônicas continuam a deslocar-se, com resultados trágicos, corajosos, ou até mesmo
marcados por um certo humor negro. São inúmeras as potências árabes que alegam sempre ter querido
a democracia no Médio Oriente. O rei Bashar da Síria vai melhorar os salários dos funcionários
públicos. O rei Bouteflika da Argélia apressou-se a declarar o fim do estado de emergência no país. O
rei Harmad do Barhrein abriu as portas das suas prisões. O rei Bashir do Sudão, afinal já não se vai
recandidatar ao lugar de presidente. O rei Abdullah da Jordânia estuda a hipótese de uma monarquia
constitucional. E a Al Qaeda tem-se mantido bastante mais silenciosa.
Quem acreditaria que o velho haveria de sair da caverna, caminhando pelo seu próprio pé para a saída,
encandeado e cego pela luz do sol da liberdade, deixando para trás a escuridão maniqueísta a que os
seus olhos já se tinham acostumado. Houve muitos mártires no mundo muçulmano, mas não há nem
uma só bandeira islâmica à vista. Os jovens homens e mulheres que querem pôr um fim ao tormento
das ditaduras podem até ser na sua maioria muçulmanos, mas o espírito humano é maior do que o
desejo de morrer. São fiéis, sim, mas primeiro vieram aqui derrubar Mubarak, enquanto os seguidores
de Bin Laden ainda continuam a clamar pela sua derrubada, em vídeos completamente fora de moda.
Mas agora uma advertência. Isto ainda não terminou. Estamos experimentando hoje aquela sensação
cálida e ligeiramente úmida, que se sente antes de surgirem os trovões e os relâmpagos. O último filme
de terror de Kadafi ainda está para acabar, embora provavelmente com essa mistura terrível de farsa e
de sangue que estamos acostumados a ver no Médio Oriente. E a sua queda iminente põe ainda mais
em evidência a vil bajulação das nossas próprias potências.
Berlusconi, que em muitos aspectos é já uma farsa fantasmagórica do próprio Kadafi, Sarkozy e Lorde
Blair de Isfahan, estão a sofrer uma degradação ainda maior do que pensávamos. Os seus olhares
fundados apenas na fé abençoaram Kadafi, o assassino. Escrevi há tempos que Blair e Straw tinham
descurado o fator "surpresa", a realidade de que esta estranha "luminária" líbia está absolutamente
louca e que sem dúvida poderia cometer mais alguma atrocidade para vergonha dos nossos chefes.
Toda a gente diz agora ao Egito para seguir o "modelo turco" que parece conter um agradável cocktail
de democracia e Islã, cuidadosamente controlado. Mas se isso for assim, a verdade é que o exército
egípcio irá manter um indesejado não democrático controle sobre o povo, nas próximas décadas. Na
sua qualidade de advogado, Ali Fzzatyar assinalou: "Os líderes militares do Egipto falaram de
ameaças 'à forma de vida egípcia'… uma referência pouco sutil, às ameaças dos Irmãos Muçulmanos.
E isso pode ser visto como cópia de uma página retirada de um manual de estratégia turco". O exército
turco foi, por quatro vezes na história turca recente, um fazedor de reis. Ora, e quem senão o exército
egípcio, criador de Nasser, construtor de Sadat, se livrou do ex-general do exército Mubarak quando o
jogo chegou ao fim?
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E a democracia - a real sem restrições, imperfeita mas em versão rosa que nós no Ocidente temos
cultivado tão terna e correctamente - não vai poder crescer feliz no mundo árabe devido ao pernicioso
comportamento de Israel para com os palestinianos e ao roubo das terras na Cisjordânia. Ao
aperceber-se que deixara de ser "a única democracia no Médio Oriente", Israel alega
desesperadamente - na companhia da Arábia Saudita, graças aos céus - que é necessário manter a
tirania de Mubarak. Voltou a bater na tecla dos Irmãos Muçulmanos e, em Washington, serviu-se do
habitual, do quotidiano medo do lobby judeu, para tentar fazer descarrilar Obama e a seguir a senhora
Clinton. Confrontados com manifestantes pró-democracia em terras de opressão, voltaram a apoiar os
opressores antes que se fizesse demasiado tarde.
Já, no Bahrein, tive uma experiência deprimente. O rei Hamad e o príncipe Salman andaram a curvarse diante da sua população, setenta por cento xiita (80%?), abrindo as portas das prisões, prometendo
reformas constitucionais. De tal forma, que perguntei a um funcionário do governo em Manama, se
isso seria realmente possível. Porque não ter um primeiro-ministro eleito em vez de um membro da
família real, os Khalifa? Respondeu com um estalo de língua . "Impossível", disse. "o CCG nunca
poderia permitir isso". Onde ele referiu CCG - Conselho de Cooperação do Golfo - leia-se Arábia
Saudita. E aqui, temo, a nossa história começa a escurecer.
Prestamos muito pouca atenção a esse bando autocrático de príncipes ladrões; pensamos que são
arcaicos, iletrados em política moderna, ricos (sim, "muito além dos sonhos de Creso" (1), etc.) e
rimos quando o rei Abdullah se ofereceu para compensar o Egito da perda do apoio financeiro de
Washigton ao regime de Mubarak; rimos agora quando o velho rei prometeu aos seus cidadãos 36
bilhões para se manterem de boca calada. Mas este não é assunto para rir. A revolta árabe que permitiu
finalmente livrar o mundo árabe dos Otomanos começou nos desertos da Arábia, com os líderes tribais
a confiarem em Lawrence McMahon e no resto da nossa pandilha. E da Arábia veio o Wahabismo, a
poção forte e inebriante - espuma branca sobre substância negra - cujo horrível simplismo atrai cada
possível islâmico e homem bomba suicida do mundo muçulmano sunita.
Os sauditas acolheram Osama Bin Laden e a Al Qaeda e os Talibã. Já para não dizer que
"contribuíram" com a maioria dos comandos suicidas do 11 de Setembro. E agora os sauditas julgamse os últimos muçulmanos ainda capazes de combater um mundo que se ilumina. Temo que o destino
deste movimento festivo na história do Oriente Médio a que temos assistido venha a ser decidido no
reino do petróleo, dos lugares sagrados e da corrupção. Estejam alerta.
Mas uma nota mais alegre. Tenho andado a recolher citações memoráveis da revolução árabe. Já
tivemos "Volte, Senhor Presidente, estávamos só brincando" de um manifestante anti-Mubarak. E
temos tido, Saif el-Islam e o discurso, à la Goebbels, de Khadafi: "Esqueçam o petróleo, esqueçam o
gás - vai haver guerra civil". Mas a minha citação preferida, egoísta e pessoal, surgiu quando o meu
velho amigo Tom Friedman do The New York Yimes se juntou a mim, com um sorriso desarmante, à
mesa de um pequeno almoço no Cairo: "Fisk", disse ele, “um egípcio veio ter comigo, ontem, na Praça
Tahir e perguntou-me se eu era Robert Fisk!" É o que considero agora uma revolução.
Publicado no The Independent. Especial para o Página 12.
Tradução de Natércia Coimbra para o Esquerda.net
(1) Creso, último rei da Lídia, organizou um expedição para impôr o império Lídio aos persas mas foi
vencido pelas forças do rei Ciro da Pérsia na batalha do rio Hális, Timbra, em 547 a.c. Ciro, no
entanto, foi condescendente, concedendo-lhe honras e a oportunidade de viver na corte persa. Creso
fora famoso pela sua riqueza, a qual foi atribuída à exploração das areias auríferas do Pactolo, rio
afluente do Hermo onde, segundo a lenda, se banhara o Rei Midas.
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14/03/2011 |
Tunísia: porque Ghannouchi se demitiu?
A questão social, essencialmente, é que precipitou a queda de Ghannouchi. Mais de meio milhão de
desempregados (desemprego segundo padrões internacionais e números oficiais), dos quais cerca de
200 mil são diplomados em universidades e, finalmente, ¾ dos desempregados são jovens com menos
de 34 anos! Além disso, a pobreza atingiu proporções importantes sob o reinado do liberalismo
econômico. Ben Ali admitiu que apenas 100 mil famílias estavam vivendo abaixo da linha da pobreza;
há poucos dias, o porta-voz do governo tinha reconhecido 180 mil, depois Ghannouchi falou de 200
mil famílias.
Fathi Chamkhi
Mohammed Ghannouchi, primeiro-ministro de Ben Ali, anunciou a sua demissão. Esta foi mais uma
vitória para a revolução tunisina. O homem que foi o artífice do capitalismo neoliberal na Tunísia foi
expulso do poder, sob a pressão popular. Assim, em pouco mais de dois meses, as massas populares
deram um grande passo para a libertação do poder ditatorial da Tunísia; o ditador, o seu governo e o
seu partido estão já fora de combate.
Esta demissão abre, no plano político, todas as recomposições possíveis e imagináveis. Primeiro, todas
as alianças e todos os grupos políticos estão sob alta pressão; é muito provável que muitos vão
rebentar, se isso não aconteceu ainda.
Ghannouchi anunciou o tom. Disse preferir como perspectiva política um processo que conduza
diretamente a uma Assembleia Constituinte e a uma nova Constituição. As coisas estão claras. Tratase agora, até meados de julho, de preparar, nomeadamente, uma nova lei eleitoral que será o quadro
das próximas eleições legislativas.
A questão do novo governo põe-se, portanto. Primeiro, quem vai ficar e que vai deixar o governo
atual? Na minha opinião, o trio Chebbi, Brahim (ex-oposição) e Baccouche (independente) vai se
manter no próximo governo. Quem vai entrar para este novo governo? Esta questão é mais importante
do que o nome do futuro primeiro-ministro.
Penso que a quase totalidade dos partidos, dentro e fora do ex-governo Ghannouchi, estarão de acordo
em participar no futuro governo, se não estão já lá dentro, porque não há nenhuma dúvida de que,
antes de anunciar a sua demissão, Ghannouchi assegurou a sucessão. Esta questão vai, portanto, pôr
em causa todo o espectro político pós-14 de Janeiro.
Porque se demitiu Ghannouchi?
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Primeiro porque já não tinha escolha. Desde a semana passada, em especial, a mobilização popular
recorde não enfraqueceu, enquanto que o sit-in diante da sede do governo continua há 10 dias. Além
disso, o governo Ghannouchi ficou sem dentes com a questão social.
Acho na verdade que a questão social, essencialmente, é que precipitou a queda de Ghannouchi. Mais
de meio milhão de desempregados (desemprego segundo padrões internacionais e números oficiais),
dos quais cerca de 200 mil são diplomados em universidades e, finalmente, ¾ dos desempregados são
jovens com menos de 34 anos! Além disso, a pobreza atingiu proporções importantes sob o reinado do
liberalismo econômico. Ben Ali admitiu que apenas 100 mil famílias estavam vivendo abaixo da linha
da pobreza; há poucos dias, o porta-voz do governo tinha reconhecido 180 mil, depois Ghannouchi
falou de 200 mil famílias!
A queda do ditador libertou um discurso há muito confiscado pela ditadura, mas libertou também as
reivindicações sociais, nomeadamente as mais insuportáveis de entre elas. Depois do 14 de janeiro
nenhum pobre, já nenhum desempregado está mais disposto a ter paciência, a esperar por um amanhã
melhor, e é perfeitamente legítimo.
Ghannouchi entendeu isso, ele que pensava que ao aceitar quase todas as reivindicações relativas a
liberdades individuais e coletivas podia salvar o essencial, ou seja, o sistema econômico e social,
rendeu-se à evidência. A Tunísia ficou socialmente estagnada durante o reinado de 23 anos de
capitalismo neoliberal. A austeridade social, a quebra do emprego, a mercantilização dos serviços
públicos básicos, além de uma política fiscal e predatória e das práticas mafiosas dos clãs de Ben Ali,
sangraram a Tunísia até à lividez.
Tempo de recuperar a dignidade confiscada
Os pobres e os desempregados, especialmente, compreenderam, com razão, que a revolução fez soar
para eles o momento da libertação da miséria, o tempo de recuperar a dignidade confiscada. O governo
de Ghannouchi, mantendo-se na lógica econômica e social de antes do 14 de janeiro, não poderia de
forma alguma dar-lhes satisfação. Assim, não é de excluir que a saída de Ghannouchi caia dentro da
perspectiva da salvaguarda do regime! Permanecer no poder por mais tempo alimentaria o
descontentamento e nutriria o processo revolucionário, e fazer isso cai numa dinâmica de ruptura com
a ordem estabelecida. Deixar o governo e envolver ao mesmo tempo representantes da oposição que
beneficiaram politicamente com esta posição, pode ter um duplo objectivo. Por um lado, dividir o
campo adverso, e por outro, envolver esses partidos na gestão quotidiana da crise social, o que irá
certamente enfraquecê-los por sua vez, excepto, bem entendido, se eles se comprometerem numa
perspectiva de ruptura com a ordem estabelecida, por exemplo anunciando a suspensão do pagamento
da dívida pública externa e redireccionando o dinheiro assim libertado para aliviar o fardo da pobreza
e para o subsídio de desemprego.
Por agora, uma questão preocupa, e com razão, muitos tunisinos e tunisinas.
O que facilita ainda mais este processo é a revolução árabe que avança com determinação e que
conquistou várias vitórias na expectativa de realizar mais ainda.
Fathi Chamkhi, Tunes, 27 de Fevereiro de 2011 (17h30).
http://www.cadtm.org/Tunisie-Pourquoi-Ghannouchi-a-t-il
Tradução de Paula Sequeiros para o Esquerda.net
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