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Do humor excepcional - Uma melancolia para o herói ou
os limites da proporção
Rafael Marcelo Viegas
Um homem cujas preocupações não incluíam as estações do ano.
John Berger, “Giacometti” in On Looking
I.
Para alguns autores antigos, heroísmo e melancolia – categorias naturalmente antitéticas para
nós – têm uma estreita correlação. A fórmula que a define vem de uma obscura petição de princípio, descrita nos primeiros parágrafos do Problema XXX, I1:
[953 a 10] Διὰ τί πάντες ὅσοι περιττοὶ γεγόνασιν ἄνδρες ἢ κατὰ φιλοσοφίαν ἢ
πολιτικὴν ἢ ποίησιν ἢ τέχνας φαίνονται μελαγχολικοὶ ὄντες, καὶ οἱ μὲν οὕτως
ὥστε καὶ λαμβάνεσθαι τοῖς ἀπὸ μελαίνης χολῆς ἀρρωστήμασιν, οἷον λέγεται
τῶν τε ἡρωϊκῶν τὰ περὶ τὸν Ἡρακλέα. καὶ γὰρ ἐκεῖνος ἔοικε [953 a 15] γενέσθαι
ταύτης τῆς φύσεως, διὸ καὶ τὰ ἀρρωστήματα τῶν ἐπιληπτικῶν ἀπ' ἐκείνου
προσηγόρευον οἱ ἀρχαῖοι ἱερὰν νόσον. καὶ ἡ περὶ τοὺς παῖδας ἔκστασις καὶ ἡ
πρὸ τῆς ἀφανίσεως ἐν Οἴτῃ τῶν ἑλκῶν ἔκφυσις γενομένη τοῦτο δηλοῖ· καὶ γὰρ
τοῦτο γίνεται πολλοῖς ἀπὸ μελαίνης χολῆς. συνέβη δὲ καὶ [953 a 20] Λυσάνδρῳ
τῷ Λάκωνι πρὸ τῆς τελευτῆς γενέσθαι τὰ ἕλκη ταῦτα. ἔτι δὲ τὰ περὶ Αἴαντα καὶ
Βελλεροφόντην, ὧν ὁ μὲν ἐκστατικὸς ἐγένετο παντελῶς, ὁ δὲ τὰς ἐρημίας ἐδίωκεν,
διὸ οὕτως ἐποίησεν Ὅμηρος “αὐτὰρ ἐπεὶ καὶ κεῖνος ἀπήχθετο πᾶσι θεοῖσιν, ἤτοι ὁ
καππεδίον τὸ Ἀλήϊον οἶος ἀλᾶτο, ὃν
[953 a 25] θυμὸν κατέδων, πάτον ἀνθρώπων ἀλεείνων.” καὶ ἄλλοι δὲ
πολλοὶ τῶν ἡρώων ὁμοιοπαθεῖς φαίνονται τούτοις. τῶν δὲ ὕστερον Ἐμπεδοκλῆς
καὶ Πλάτων καὶ Σωκράτης καὶ ἕτεροι συχνοὶ τῶν γνωρίμων. ἔτι δὲ τῶν περὶ τὴν
ποίησιν οἱ πλεῖστοι. πολλοῖς μὲν γὰρ τῶν τοιούτων γίνεται νοσήματα ἀπὸ [953
a 30] τῆς τοιαύτης κράσεως τῷ σώματι, τοῖς δὲ ἡ φύσις δήλη ῥέπουσα πρὸς τὰ
πάθη. πάντες δ' οὖν ὡς εἰπεῖν ἁπλῶς εἰσί, καθάπερ ἐλέχθη, τοιοῦτοι τὴν φύσιν.
[953 a 10] Por que razão todos os que foram homens de exceção [περιττοὶ ἄνδρες],
no que concerne à Filosofia, à Ciência do Estado, à Poesia ou às Artes são manifestamente melancólicos [φαίνονται μελαγχολικοὶ ὄντες], e alguns a ponto de
1 Usei o texto preparado por Jackie Pigeaud, traduzido para o português por Alexei Bueno: [Pseudo-] Aristóte-
O Homem de Gênio e a Melancolia. O Problema XXX, I (original francês L’Homme de génie et la mélancolie,
1998). Rio de Janeiro, Lacerda Editores, 1998. Modifiquei levemente a tradução. Os Problemata, coletâneas de
perguntas e respostas durante muito tempo atribuídas a Aristóteles, são ainda hoje situados dentro do Corpus
Aristotelicum – mas Pigeaud, com boas razões, os atribui a Teofrasto, sucessor de Aristóteles no Liceu (p. 51). A
seção referente à natureza do “homem de exceção”, tema do Problema XXX, I, encontra-se entre as colunas 953
a 10 – 955 b 10 do Corpus. O texto grego reproduzido a partir de Aristotelis opera, Vol. 2, Ed. Bekker, I. Berlin,
Reimer, 1831, Repr. 1960, transcrito da versão eletrônica do TLG.
les,
DO HUMOR EXCEPCIONAL
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serem tomados por males [ἀρρωστήματα] dos quais a bile negra [μελαίνης χολῆς]
é a origem, como contam, entre os relatos relativos aos heróis [τῶν τε ἡρωϊκῶν],
os que são consagrados a Hérakles (Hércules)? Com efeito, [953 a 15] esse último
parece verdadeiramente se originar dessa natureza; o que explica também que os
males dos epiléticos [ἀρρωστήματα τῶν ἐπιληπτικῶν], os Antigos os chamaram,
por sua causa, doença sagrada [ἱερὰν νόσον]. O acesso de loucura [ἔκστασις] dirigido contra seus filhos, como, antes de sua desaparição sobre o Eta, a erupção das
úlceras [ἑλκῶν], deixa isso manifesto. Porque são acidentes que atingem muitas
pessoas, por causa da bile negra. Aconteceu também a [953 a 20] Lisandro, o Espartano, em quem, antes de sua morte, esse tipo de úlceras [ἕλκη] se manifestou.
Acrescentemos o que concerne a Ajax e Belerofonte; um tornou-se absolutamente
louco [ἐκστατικὸς], e o outro procurava lugares secretos [ἐρημίας ἐδίωκεν]; é por
isso que Homero diz a seu respeito nesses versos: “Mas quando foi tomado pelo
ódio de todos os deuses, então, através da planície Aleiena ele errava só, [953 a
25] comendo seu coração [i.e., seu interior, o θύμος], evitando o passo dos humanos”2. E muitos heróis, com toda a evidência, sofreram das mesmas afecções que
eles. Entre os personagens mais recentes, Empédocles, Platão e Sócrates, e muitos
outros entre as pessoas ilustres [γνωρίμων]. É preciso acrescentar a maioria dos
que se consagraram à poesia [ποίησιν]. Pois em muitas pessoas desse tipo nascem
males [νοσήματα] que têm sua origem [953 a 30] em uma tal mistura [κράσεως] no
corpo; para os outros sua natureza manifestamente é inclinada às doenças. Todos,
portanto, para resumir, como foi dito, são de uma natureza desse tipo.
Entre o “homem de exceção [περισσός]” e o “melancólico” – dispensando-se aqui qualquer outra justificativa senão a de obedecer à intuição instituída (como clara e evidente) pelo próprio
texto –, nada mais natural que a imediata continuidade. Nestas linhas, bem como nas páginas
seguintes, porém, não há argumento ou prova que torne essa correlação fruto de uma dedução
necessária. Temos justaposições cumulativas a partir de noções, em si mesmas, ambíguas: a
loucura [ἔκστασις] de Hércules matando seus filhos corresponde à erupção da úlcera [ἕλκος];
à epilepsia [ἱερὰν νόσον]; à predileção pelos lugares ermos [ἐρημίας ἐδίωκεν]; ao fazer poético.
E todos esses fenômenos díspares se deixam explicar “pelos males [ἀρρωστήματα] dos quais a
bile negra [μελαίνης χολῆς] é a origem”.
Destas parataxes extraímos duas considerações. Por um lado, o trecho inaugura uma função
maior da etiologia melancólica, e que fará sua glória no Renascimento europeu: a de dar um
sentido elevado ao ato criador, seja ele intelectual ou artístico3 – neste caso específico, energi2 Ilíada, VI, 201-202.
3 A ideia de criação artística não existe para os teóricos gregos. Platão associara o “ato criador” à inspiração di-
vina (Ion, 534 c) ou à mania (quer dizer, a possessão divina, Fedro, 244 a e ss.) – noções complementares no contexto da sua teoria estética. Mas tais passagens se referem ao fazer poético, não às artes manuais. Na República
ele é taxativo, dizendo que o pintor, por exemplo, não cria nada, simplesmente imita. No mesmo sentido, para
os teóricos antigos, nenhum “artista” cria da maneira como entendemos esse termo: ele reproduz e reproduz
por imitação (pela mimese) de um modelo através das regras de um mestre ou de uma escola, imitação somente
possível com o domínio de uma techné (o conjunto de saberes e tarefas de uma dada atividade). É, pois, fundamentalmente um artesão e não um artista. Logo, tomando-se Platão como referência geral (o que nem sempre é
uma boa estratégia no que tange aos seus contemporâneos), a relação dos gregos com suas próprias inovações
(aos nossos olhos, os gregos são os criadores da Filosofia, da Teoria Estética etc.) se torna um problema funcional
dos mais importantes. No Problema XXX, I, o “ato criador” é, em si, excepcional, e, cobrindo uma ampla gama
de fenômenos, não é necessariamente artístico. Encontra-se ligado a uma performance psico-fisiológica do homem inundado pelo excesso da bile negra (embora, a rigor, o “ato criador” não dependa desta numa relação de
causa e efeito, tratando-se antes de uma constatação a posteriori): em outras palavras, o poder de criar é uma
característica dos indivíduos, ainda que dos indivíduos humoralmente marcados ou dotados para essa tarefa.
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zando os “homens de exceção (...) da Poesia e das Artes” com uma associação direta aos heróis
mitológicos (metonímia supra-humana do vigor e da força). O tema da melancolia, sempre
fenomenologicamente impreciso, mas até então de viés essencialmente “médico”, por assim
dizer, ganha, a partir daqui, uma dimensão nova – muito embora essa dimensão tenha flutuado sensivelmente nos séculos posteriores, sobretudo nos teóricos monásticos do período
medieval4, até atingir autores renascentistas como Ficino5. Por outro lado, ao exemplificar mais
detalhadamente seus “excepcionais”, o texto mostra o político e o herói – tipos de temperamento ordinariamente colérico como convém aos homens de ação – surpreendentemente (ao
menos para nós) considerados como tipos melancólicos: e a sequência do Problema XXX, I,
efetivamente, alinhará heróis, semideuses e homens de ação, como Ajax, Belerofonte e o general espartano Lisandro (953 a 20), a φιλόσοφοι como Empédocles, Platão e Sócrates (953 a 25)
e a escritores como Maracus de Siracusa, “melhor poeta quando em seus acessos de loucura”
(954 a 35)6.
A justaposição entre περιττοὶ e μελαγχολικοὶ oferecida pelo Problema XXX, I pressupõe, como
se vê, o diálogo entre noções igualmente justapostas e/ou interdependentes, como as de temperamento e de humores – categorias onipresentes no Corpus Hippocraticum enquanto me-
Para a inexistência da noção de criatividade estética entre os antigos, ver Wladyslaw Tatarkiewicz, A History of
Six Ideas: an Essay in Aesthetics (1980). Para uma abordagem sociologicamente mais complexa do problema,
ver Armand D’Angour, The Greeks and the New. Novelty in ancient Greek imagination and experience, CUP, 2011.
4 Em linhas gerais, a Igreja medieval tendeu a considerar os sintomas classicamente atribuídos ao excesso de
bile negra como um mero vício – neste caso, um vício próximo da “preguiça” monástica, a acídia (acedia): “une
lourdeur, une torpeur, une absence d’initiative, un désespoir total à l’égard du salut” (Jean Starobinski, L’encre de
la mélancolie, Seuil, 2012, p. 51). Logo, as instituições eclesiásticas até poderiam pensar o “ato criador” a partir
de uma noção próxima à da inspiração divina platônica (relida, claro, no contexto da iluminação ou da santificação cristãs), mas certamente ela estaria fora dos critérios da antropologia excepcional atrabiliária [pseudo-]
aristotélica.
5 Foi, de fato, o Renascimento que fez a revalorização do tema, divinizando a antropologia excepcional dentro do
seu conceito de gênio: “Il faut attendre la fin du XVe siècle pour voir la position d’Aristote pleinement reprise et
approuvé. Dans son De vita triplici, Marsile Ficin montre que la mélancolie, ce tempérament ambivalent propre
à ceux qui sont nés sous le signe de la planète également ambivalente Saturne, était un don divin; et Ficin, ce
platonicien plein de zèle, boucla la boucle en réconciliant les points de vue d’Aristote et de Platon” (Rudolf &
Margot Wittkower, Les Enfants de Saturne. Psychologie et comportement des artistes de l’Antiquité à la Révolution
française, Macula, 1985, p. 128). A rigor, porém, no De Vita triplici, o próprio Ficino oscila entre perspectivas contraditórias: “In Book 1, De vita sana, Ficino starts by defending the melancholic humor black bile as the physical
basis for that madness which is genius. In the more pharmaceutical part of Book 1 (chaps. 7-26), however, and
subsequently in Book 2, he treats black bile in the conventional way as a ‘monstrum’ and a ‘pestilentia’ with no
mitigating benefits, and groups it with the occupational hazards of scholars such as insomnia, headaches, and
dimness of vision” (Carol Kaske & John Clark, eds., Marsilio Ficino, Three Books on Life Medieval & Renaissance
Texts and Studies, v. 57, 1989, p. 4). Sobre os aspectos negativos da melancolia em Ficino ver James Hankins,
“Monstrous Melancholy: Ficino and the Psychological Causes of Atheism” in Stephen Clucas, Peter Forshaw &
Valery Rees (eds.), Laus Platonici Philosophi. Marsilio Ficino and his influence, Brill, 2005, pp. 25-43. Para o contexto
renascentista do entrelaçamento dos conceitos de gênio e de melancolia, ver Wittkower, Op. cit., cap. 5, “Génie,
folie et mélancolie”; Patricia Emison, Creating the “divine” artist: from Dante to Michelangelo, Brill, 2004; e, sobretudo, Noel L. Brann, The Debate over the Origin of Genius during the Italian Renaissance, Brill, 2002. Para uma
pequena história da acídia, ver Anne Larue, L’Autre mélancolie: Acedia ou Les chambres de l’esprit, Paris, Hermann
2001
6 O caso de Lisandro é certamente particular, uma vez que, segundo Plutarco (Vida de Lisandro, XVIII, 2), além
do primeiro notável a ser objeto de uma canção de triunfo [παιάν], ele teria sido também o primeiro grego de
carne e osso a ser cultuado como um deus: ao menos em Delfos, realizavam-se sacrifícios e oferendas regulares
diante de uma estátua sua, em tamanho natural. Pausânias (Descrição da Grécia III, 17, 4; VI, 3, 14; e X, 9, 7) diz
que Olímpia, Samos e Éfeso também possuíam imagens de Lisandro em alguns de seus templos, o que indica a
possibilidade de terem abrigado cultos similares. Cf. Aristóteles, O Homem de Gênio e a Melancolia, N.d.E. 7, pp.
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canismos de explicação racional do comportamento fisiológico humano7. Temperamentos (o
sanguíneo, o fleumático, o bilioso ou colérico e o melancólico) existem por conta da ação dos
humores a eles associados (sangue, fleuma, bile amarela e bile negra), o excesso de qualquer
um destes causando perturbações que implicam no desequilíbrio corporal (caracterizando-se
aí a doença ou as diversas perturbações da saúde)8.
Os humores, por sua vez, podem interagir com fatores externos, como as estações9 – o que
deixa claro seu caráter sinergético. Pois, na prática, eles não funcionam sozinhos e isolados,
situam-se dinamicamente numa complexa rede de dependências com outras teorias – quatro
estações (primavera, verão, outono, inverno), quatro elementos (água, fogo, terra, ar), quatro
qualidades (frio, úmido, quente, seco)10 –, cada quadratura implicando em grupos finitos de valores e características delimitadas, imiscíveis e inconfundíveis de seus respectivos componentes (quando tomados em seu aspecto mais próprio e fundamental). Embora os componentes
de cada quadratura tenham sua correspondência direta nas outras, não se tratam exatamente
de homólogos puramente biunívocos (o elemento fogo, por exemplo, não corresponde apenas
ao quente, pois partilha também as propriedades relativas ao seco) – o que permite um sistema
com certa dose de ambiguidade, logo, de mobilidade e interpolação11.
7 O Corpus Hippocraticum é a reunião de cerca de 60 tratados atribuídos a Hipócrates de Cós e a seus discípulos
e continuadores (a maior parte dos textos parece datar dos séculos V-IV a.C.). São os tratados médicos mais
antigos em língua grega e da tradição ocidental – muito embora não sejam os mais antigos ou os únicos textos
médicos gregos de que se tem notícia. Para a história da teoria dos quatro humores e dos temperamentos ver
Erwin Panofksy, Fritz Saxl & Raymond Klibansky, Saturne et la mélancolie (or. inglês, 1964), Gallimard, 1989, cap. I;
e Noga Arikha, Passions and Tempers: A History of the Humors, Ecco Press, 2007. Para o contexto especificamente
hipocrático, ver Pedro Lain Entralgo, La medicina hipocrática, Alianza Editorial, 1970, esp. os caps. II e III. Para a
medicina antiga e suas evoluções, ver Mirko Grmek & Bernardino Fantini, Histoire de la pensée médicale en Occident. Tome 1, Antiquité et Moyen âge, Seuil, 1995; James Longrigg, Greek Rational Medicine: Philosophy and Medicine from Alcmaeon to the Alexandrians, Routledge, 1993; Vivian Nutton, “Medicine in the Greek World, 800–50
bc” in Lawrence Conrad, Michael Neve, Vivian Nutton, Roy Porter & Andrew Wear, The Western Medical Tradition,
800 bc to ad 1800, CUP, 1995, pp. 11-38; Vivian Nutton, Ancient Medicine, Routledge, 2005.
8 O papel fundamental da terapêutica hipocrática seria ajudar a physis a seguir os seus mecanismos normais,
ajudando a expulsar o humor em excesso ou contrariando as suas qualidades.
9 É o ensinamento de um importante tratado hipocrático: “No inverno, a quantidade de pituíta aumenta no
homem, pois este é o humor corporal mais próximo à natureza do inverno” (…) “No verão é a bile que predomina no corpo, tal como no outono” (…) “Por outro lado, a bile negra alcança sua maior quantidade e força no
outono, mas diminui sua quantidade ao chegar o inverno por causa do frio, e então a pituíta volta aumentar
devido à quantidade de chuvas e ao aumento do tempo de escuridão noturna” (Sobre a Natureza do Homem, 7
in Tratados Hipocráticos, Tomo VIII, J. C. Cuenca, trad., Editorial Gredos, 2003). Logo, a dinâmica prevê, no mesmo
paciente, temperamentos diversos segundo à época : sanguíneo na primavera, fleumático no invernos e assim
por diante.
10 Para o contexto médico dessas quadraturas, ver John Scarborough, Medical and biological terminologies: clas-
sical origins, University of Oklahoma Press, 1998.
11 Essa doutrina geral dos humores é bastante esquemática, claro, e deve muito ao modo como Galeno a
atribuiu (teleologicamente) aos “autores antigos” em seu tratado Das Faculdades Naturais, fonte da teoria dos
humores para a Idade Média. A análise do Antiga Medicina, um dos tratados fundamentais do Corpus Hippocraticum, porém, mostra os humores de modo ainda mais complexo: eles também podem ser doces, salgados,
amargos, adstringentes ou ácidos – cada estado significando uma nova relação de efeitos no corpo (cito esta
passagem mais abaixo). Neste caso, o Antiga Medicina joga com a polissemia do termo χυμός, que tanto pode
significar humor (secreção) quanto gosto (sabor) ou sumo (suco, tal como usualmente o termo é utilizado na
culinária). O resumo aqui visa, pois, não exatamente ao entendimento correto do termo no Corpus Hippocraticum, mas o modo como ele foi apropriado e aceito pela tradição humoral posterior. Para o uso do termo χυμός
entre diferentes disciplinas, ver Paul Demont, “About Philosophy and Humoral Medicine” in Philip van der Eijk (ed.)
Hippocrates in Context, Brill, 2005, pp. 271-286. Esta polissemia de χυμός também é utilizada pelo Pseudo-Aristóteles: as doenças ventosas (se referindo provavelmente às de fundo estomacal) e as doenças hipocondríacas
(quer dizer, as que afetam os hipocôndrios) são atribuídas, pelos médicos, à bile negra; logo, “o vinho e a mistura
[da bile negra] são de natureza semelhante”, uma vez que o “suco da vinha” [χυμός] e a “mistura [κρᾶσις] da bile
negra” contêm vento, o vinho sendo “ventoso por sua ação”, o que é evidente por conta da sua espuma [ἀφρός],
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Além disso, as relações entre as diferentes quadraturas se dão no tempo de vida do cosmo e dos
indivíduos – quer dizer, os componentes das quadraturas, tomados em si mesmos, são imutáveis, mas sua inter-relação é submetida à história. E, muitas vezes, seu sincronismo não ocorre
de maneira harmônica, causando desequilíbrios de acordo com as interações eventualmente
discrepantes que promovem umas com as outras: o cosmo e a fisiologia humana são a mesma
physis, mas não do mesmo modo ao mesmo tempo12. O tempo é, pois, um fator etiológico considerável no contexto da teoria humoral, e o médico antigo deve estar sempre vigilante tanto
para o momento da doença quanto para o momento do paciente: o “καιρός [ocasião] é fugaz”,
reza um trecho do mais famoso aforismo hipocrático13. E o melancólico – tipologia complexa,
oscilando entre diversos gêneros de comportamento (dos tristes aos furiosos, dos patéticos aos
loucos, pluralidade comparável aos diferentes graus de ebriedade promovidos pelo vinho14) –,
é, por excelência, “o homem do καιρός, da circunstância”15.
No que diz respeito aos médicos antigos, o corpo ideal e saudável é, pois, aquele que está humoralmente equilibrado a partir dessas interações – o desequilíbrio bastando para explicar boa
parte das manifestações da doença (excetuando-se, em princípio, as de ordem traumatológica
evidente, como cortes e ferimentos em geral). Em outras palavras, para esses autores (diante
da impossibilidade de averiguar fenômenos invisíveis a olho nu, agentes microbianos, bactérias, vírus), o corpo biológico, sozinho, não dá conta da natureza do homem nem seu efetivo
estado de saúde: as relações de equilíbrio entre entidades tão díspares quanto fluidos corporais
e estações do ano sendo, em parte, responsáveis pelo relativo desinteresse empírico pelo corpo
enquanto tal16. Neste contexto, o homem não é uma máquina (tal como entendido pela medicina vesaliana e pós-vesaliana) mas um complexo sinergético cujo equilíbrio ideal depende
de instâncias e categorias (cósmicas e humorais) que estão fora de sua imediata identidade
corpórea17.
“o vinho negro ainda mais [ventoso] que o vinho branco, porque contém mais calor e mais corpo” (953 b 23 e
ss). A espuma [ἀφρός] é um signo importante na loucura de Hérakles (cf., por exemplo, a adaptação da cena do
assassinato de seus filhos feita por Eurípides).
12 No tratado hipocrático Ares, águas e lugares, o autor inventaria um sem-número de elementos, complemen-
tares às quadraturas clássicas, igualmente capazes de informar etiologias humorais, complexificando ainda mais
a montagem esquemática galenista e criando condições para uma verdadeira psico-geo-fisiologia médico-isonômica: “Winds elevation, and geographic orientation determined the quality and location of water; water in
turn determined vegetation, as well as the general health of the population. Seasonal changes and astrological
conditions were crucial factors in determining a population’s physiological and psychological tendencies” (Noga
Arikha, Passions and Tempers, p. 13).
13 “Ὁ βίος βραχὺς, ἡ δὲ τέχνη μακρὴ, ὁ δὲ καιρὸς ὀξὺς, ἡ δὲ πεῖρα σφαλερὴ, ἡ δὲ κρίσις χαλεπή [A vida é curta,
a arte (a τεχνή, quer dizer, o conjunto de elementos que definem um saber ou uma prática) é longa, a ocasião
(καιρός, o momento em que só aquele que domina uma techné sabe ser o correto para intervir naquilo que lhe
diz respeito) é fugaz, a experiência (πεῖρα) é enganosa, o julgamento (κρίσις) é difícil]” (Aphorismes, trad. Ch. V.
Daremberg, éd. Fortin, Masson et Cie, 1844, 1, p. 1).
14 “O vinho, tomado em abundância, parece deixar as pessoas totalmente da maneira como descrevemos os
melancólicos e sua absorção produzir um muito grande número de caráteres” (953 a 33).
15 Jackie Pigeaud, “Introdução” in Aristóteles, O Homem de Gênio e a Melancolia, p. 23.
16 A disseminação da teoria humoral é um dos motivos da pouca atenção dada pelos representantes da medici-
na antiga, de uma maneira geral, à dissecação e à anatomia – práticas que, por sua vez, definirão a modernidade
da medicina empírica do século XVI: “The Hippocratic writings (...) by no means generally consider knowledge
of the body to be the prerequisite for treating internal diseases. In general, they explain disease by the humors
in the body and by the way these are combined. Such a theory makes it unnecessary to take the internal organs
of their form and character into account. For a man’s nature is not identical with his bodily organism, but with
his humoral mixture, in fact, with the individual reaction of his individual humoral mixture to what he consumes”
(Ludwig Edelstein, “The History of Anatomy in Antiquity” in Ancient Medicine, Owsei Temkin and C. Lilian Temkin,
eds., John Hopkins Press, 1967, p. 266).
17 O resumo que faço aqui é breve e um pouco grosseiro, mas ele não deve fazer esquecer, claro, a disparidade
temporal, as particularidades conceituais e a heterogeneidade dos tratados que compõem o Corpus HippocratiDO HUMOR EXCEPCIONAL
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Logo percebemos que neste jogo de categorias médicas entram também noções mais amplas
e generalizadas, necessárias às sinergias da teoria humoral, tais como equilíbrio, simetria e
proporção – ideias que, tomadas em conjunto, resumem lugares-comuns conceituais que imputamos aos gregos e romanos de outrora. Em certo grau, todas essas noções são facilmente
intercambiáveis e esse intercâmbio favorece, por exemplo, na cultura clássica, as conhecidas
ambiguidades e interpenetrações entre medicina e cultura, entre ética e estética. No campo
médico antigo, como vimos, a resultante dessas justaposições de conceitos permite a noção de
saúde18. No campo artístico, a resultante é a noção de harmonia – conceito que, para muitos
teóricos antigos, praticamente define o estatuto ontológico da beleza19.
Uma ligação de dependência imediata entre esses campos e termos soa, portanto, confortável
diante dos textos canônicos que nos restaram desse passado: tratamos aqui dos dispositivos
sine qua non da tradição clássica (ainda que essa tradição só exista por conta da reificação dessas mesmas ideias nos textos que sobraram do mundo antigo)20. Seja como for, uma miríade
de teóricos converge ao coincidir boa proporção com as formas da verdade. E, se entendermos
os termos desta discussão também de modo político e social, no mesmo caminho devemos
acrescentar aí o domínio ético: e não poucos comentadores gregos consideraram a pólis clássica, no exercício pleno que dela fizeram seus cidadãos, o lugar por excelência da saúde física e
moral. O conceito de kalokagathia não está longe21. A saúde depende do bom funcionamencum – apresentados aqui, grosso modo, como um bloco coeso. A teoria humoral dos antigos é, evidentemente,
um composto do que é possível visualizar a partir dos textos que chegaram até nós (o que já é um indicio teleológico importante quando refazemos seu percurso de trás pra frente), mas não quer dizer que não existam, no
mundo antigo, fórmulas de saúde e doença conflitantes entre si.
18 O conceito grego de saúde (ὑγίεια e seus correlatos) é bem atestado na literatura, e de modo abrangente:
pode ser aplicado tanto a um discurso – um “discurso saudável”, como em Homero (Ilíada VIII, v. 524) – quanto a uma caracterização geral do bem-estar (como neste poema atribuído a Sólon: χὤστις μὲν νούσοισιν ὑπ'
ἀργαλέηισι πιεσθῆι, / ὡς ὑγιὴς ἔσται, τοῦτο κατεφράσατο· [E qualquer um, por terríveis doenças esmagado,
/ pensa apenas nisto: como ficar são] (Solon Nomographus, Fragmento XIII, 38 in M. L. West, ed., Iambi et elegi
Graeci, vol. II, Clarendon Press, 1972.). Por sua vez, a noção de ἰσονομία [isonomia], quer dizer, do equilíbrio de
forças – que, enquanto conceito técnico, parece remontar ao pré-socrático Alcmeon de Crotona, discípulo de
Pitágoras –, exercerá um papel importante na evolução dos pressupostos filosóficos da teoria humoral (simetria
e equilíbrio). É a noção que está em funcionamento, embora não nomeada, nesta passagem de Platão: [ὑγίεια]
τί οὖν ὄνομά ἐστιν ἐν τῷ σώματι τῷ ἐκ τῆς τάξεώς τε καὶ τοῦ κόσμου γιγνομένῳ; “[saúde] é o nome que se dá
ao estabelecimento da regularidade [τάξεώς] e da ordem [κόσμου] no corpo” (Górgias, 504 b 5). Discutirei esses
aspectos mais adiante. Para a arqueologia de ὑγίεια ver Wilson A. Ribeiro Jr., “A ausência de doença e o conceito
de saúde entre os gregos antigos” in IV Seminário Internacional Archai (“Saúde do homem e da cidade na Antiguidade Greco-Romana”), Santuário do Caraça, MG, de 28 de maio a 1 de junho de 2007. Para um panorama
geral, Helen King (ed.), Health in Antiquity, Routledge, 2005 (esp. caps. 1 e 3).
19 Para uma história artística da noção de simetria, ver Erwin Panofsky, “A história da teoria das proporções hu-
manas como reflexo da história dos estilos” in Significado nas Artes Visuais (original inglês Meaning in the Visual
Arts, 1955), Perspectiva, 1976, pp. 89-148;
Neste contexto, reunir de modo indissociável o Belo e o Bem nos faz entrar no terreno por excelência
da Metafísica, mas também no da Política, da Ética, da Estética, da Cultura e do que mais quiserem – as
maiúsculas corroborando os respectivos status ideais dessas disciplinas, a dinâmica dando o tom de como
o legado clássico é usualmente entendido ainda hoje. De todo modo, encontraremos esta simbiose entre
o Belo e o Bem mesmo em terrenos mais “práticos”, como na Ginástica e na Escultura, como veremos
abaixo, mas, em seu princípio filosófico geral, é Platão, claro, um dos seus maiores representantes: quando Sócrates pergunta a Menon, num exemplo entre tantos, se se poderiam, jovem ou velho, serem bons
[ἀγαθοὶ] sendo também desregrados [ἀκόλαστοι] e injustos [ἄδικοι], a resposta não poderia deixar de
ser um enfático “Οὐ δῆτα” [Certamente não!] (Cf. Platão, Menon, 73 b 5).
20
21 Estéticas
e éticas da simetria, no contexto que analisamos aqui, reúnem-se na representação social que
reflete a famosa kalokagathia – quer dizer, o “ideal cavalheiresco” que, juntamente com a ἀρετή [i.e., a
excelência de uma dada função] do guerreiro, define a cultura nobre – dos antigos gregos: “A educação
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to do corpo – conseguido tanto pela dietética e pelo equilíbrio humoral (a cargo dos saberes
médicos), quanto pelo fortalecimento do corpo através do exercício (a cargo da ginátisca)22 – e
é este corpo forte e saudável que interessa, eticamente, aos teóricos gregos da pólis (ao menos da pólis clássica). A performance plenamente aristocrática exigirá, pois, tanto um perfeito
domínio ético quanto uma refinada excelência corporal – de tal maneira que, ao menos num
determinado momento da teoria política grega, uma coisa seja fundida à outra: a kalokagathia
reunindo de modo indissociável o corpo e o espírito, a ginástica será parte da educação política
do cidadão tanto quanto as ditas “artes liberais”23. É uma ideia poderosa, embora estranha a
ouvidos cristianizados, e ecos dessa ética corporal da kalokagathia encontram-se mesmo em
circunstâncias sociais da época helenística – quer dizer, num momento em que o conceito e as
necessidades estruturais da pólis clássica já haviam desaparecido24.
e a prudência na vida do povo [descritas n’Os Trabalhos e os Dias, de Hesíodo] não conhecem nada de
semelhante à formação da personalidade total do Homem, à harmonia do corpo e do espírito, à destreza igual no uso das armas e das palavras, nas canções e nos atos, tal como exigia o ideal cavalheiresco”
(Werner Jaeger, Paideia, A Formação do Homem Grego [or. alemão, 1936], Martins Fontes, 1985, p. 82).
Jaeger pretendeu dar à kalokagathia uma função arquetípica na “alma” da Grécia antiga, presente desde
os primórdios homéricos, mas esta pretensão foi posta abaixo por Félix Bourriot, Kalos Kagathos–Kalokagathia. D’un terme de propagande de sophistes à une notion sociale et philosophique, Olms, 1995, para
quem a kalokagathia é um constructo histórico muito posterior a Homero. A noção aparece primeiramente em Heródoto (História, I, 30), depois em diversos textos a partir do século V a.C., sendo teorizada,
numa extensa justificativa de ordem ética e corporal, por Aristóteles (Ética a Eudemo, VIII, 3 seção 1248 b
10), e também por Xenofonte (cf. Fabio Roscalla, “Kalokagathia e Kaloi Kagathoi in Senofonte” in Christopher Tuplin & Vincent Azoulay, eds., Xenophon and His World, Routledge, 1999, pp. 115-124). Para o
ideal grego de educação e formação cultural, ver, Jaeger, Paideia; para a educação propriamente dita, ver
Henri-Etienne Marrou, História da Educação na Antiguidade, EPU-MEC, 1975 (onde também se discute
a kalokagathia clássica); para a kalokagathia, além de Bourriot, Op. cit., ver também Walter Donlan, “The
Aristocratic Ideal in the Classical Period” in The Aristocratic Ideal and Selected Papers, Coronado Press,
1980, pp. 1-224.
22 De fato, para os teóricos, a Ginástica (parte fundamental da educação dos jovens cidadãos, logo, dotada
de uma inerente circunscrição política) não existe senão dentro do quadro de simetrias que informam as
noções-chave da pólis clássica (paidéia e kalokagathia). Logo, serão discutidas política e/ou utopicamente: seja no Político, de Aristóteles (V, 3, 6, que trata da utilidade da ginástica na paidéia); seja em Platão,
no Político; na República, onde é anunciada como uma das peças-chave da educação (II, 376 e) mas
tratada de maneira muito sucinta em III, 403 c-412 b, VII, 521 d – 522 a (onde se diz que música e ginástica
constituem a base da educação do filósofo) e em IX, 591 c (quando o texto faz alusão à cultura do corpo);
e, finalmente, nas Leis, sobretudo no Livro VII (a partir de 788 d) onde todo um programa de educação
ideal para a criança e o jovem funde música e exercícios físicos (cf. Robert Muller, “Gymnastique et civilisation: l’exemple des Lois de Platon” in Denis Moreau & Pascal Taranto (eds.), Activité physique et exercices
spirituels: essais de philosophie du sport, Vrin, 2009).
O acento corporal da kalokagathia, como elemento desta excelência aristocrática na Cidade-Estado
grega, nos explica onde está o humor neste passo de Aristófanes, que acusava Sócrates de ignorar os dispositivos definidores do zoon politikon de sua época: “Se fizeres o que eu digo”, diz o personagem Justo
para Fidípedes, “terás sempre peito robusto, cores brilhantes, ombros largos, língua curta, quadris grandes
e pênis pequeno [sinal de sensatez, para os Antigos]. Mas se praticares os hábitos de hoje [quer dizer, colocando o bricabraque filosófico na frente de qualquer outra atividade da pólis, como faz Sócrates], logo
terás pele pálida, ombros estreitos, peito acanhado, língua grande, quadris pequenos, pênis comprido e
longos discursos [pré-fabricados de oratória]” (As Nuvens, 1002-1024).
23
Por exemplo, o diálogo Anacharsis ou o Ginásio, de Luciano de Samósata, faz eco a essa dimensão
sócio-corporal da pólis, Sólon discorrendo com o sábio Anacharsis sobre o ideal educativo do jovem ateniense de sua época – ideal que envolve de modo inseparável a coragem, a saúde e a beleza. Para a relação entre a noção de simetria e a Ginástica, ver Jacques Ulmann, De la gymnastique aux sports modernes:
histoire des doctrines de l’éducation, Vrin, 1965, p. 29 e ss; Daniel Dombrowski, Contemporary athletics
and ancient Greek ideals, University of Chicago Press, 2009; Thomas Scanlon, Eros & Greek Athletics, OUP,
2002; Maria Wyke, “Herculean Muscle!: The Classicizing Rhetoric of Bodybuilding” in James Porter (ed.),
Constructions of the Classical Body, The University of Michigan Press, 1999, pp. 355-379.
24
DO HUMOR EXCEPCIONAL
95
Simetria é, pois, um dos aspectos mais fundamentais dessa visão idealizada que temos do
mundo antigo. Neste sentido, “estéticas da proporção”25, quer dizer, estéticas da “simetria” e da
“harmonia”, parecem corresponder diretamente às “medicinas do equilíbrio”. No entanto, esta
relação não é tão imediata quanto parece e precisa ser contextualizada para se demonstrar sua
artificialidade e sua construção epistemológica.
II.
Nas Belas Artes, o locus por excelência e de síntese dessa discussão acerca da simetria é o famoso Canon atribuído ao escultor grego Policleto (V – IV a.C.)26. Apenas um único fragmento
citado diretamente desse texto sobreviveu à Antiguidade, mas ele parece refletir, em princípio,
uma “filosofia do número” de cunho pitagórico:
Philo Mechanicus, Belopoeica [Da Artilharia], ed. Thevenot 50, 7-8
τὸ γὰρ εὖ παρὰ μικρὸν διὰ πολλῶν ἀριθμῶν ἔφη γίνεσθαι.
O belo surge, pouco a pouco, de muitos números.
É relativamente fácil perceber de onde viria essa modelização quando confrontamos esta frase do Canon com as doxografias (quer dizer, as atestações indiretas) do
pitagorismo antigo que chegaram até nós:
(Aristóteles, Metafísica A 5, 985 b 31 – DK 58 B 4 e 5)27
[985 b 31] ἔτι δὲ τῶν ἁρμονιῶν ἐν ἀριθμοῖς ὁρῶντες τὰ πάθη καὶ τοὺς λόγους, –
ἐπεὶ δὴ τὰ μὲν ἄλλα τοῖς ἀριθμοῖς ἐφαίνοντο τὴν φύσιν ἀφωμοιῶσθαι πᾶσαν, οἱ
[986 a 1] δ' ἀριθμοὶ πάσης τῆς φύσεως πρῶτοι, τὰ τῶν ἀριθμῶν στοιχεῖα τῶν
ὄντων στοιχεῖα πάντων ὑπέλαβον εἶναι, καὶ τὸν ὅλον οὐρανὸν ἁρμονίαν εἶναι καὶ
ἀριθμόν·
[985 b 31] Observando também as relações e leis dos números com as harmonias
musicais, parecendo-lhes que toda a natureza era moldada segundo os números,
[986 a 1] sendo estes [os números] os princípios da natureza, [os pitagóricos] supuseram que os elementos dos números são os elementos de todas as coisas e que
todo o céu é harmonia e número.
25 Umberto Eco, Arte e Beleza na Estética Medieval, cap. 4.
26 Sabe-se que “Canon” é tanto o tratado teórico quanto a escultura que serviu de exemplo concreto aos ditames
estéticos do tratado. Muitos acreditam ser essa escultura o famoso Doryphoros [lit., “O Porta-Lança”] atribuído
a Policleto, hoje no Museo archeologico nazionale de Nápoles: o original em bronze foi perdido, e o que está
exposto no Museu é uma cópia em mármore datada entre os séculos I a.C. e I d.C., proveniente de Pompéia. Ver
Richard Tobin, “The Canon of Polykleitos” in American Journal of Archaeology, Vol. 79 n° 4, Oct. 1975, pp. 307-321;
e Jerome Jordan Pollitt, “The Canon of Polykleitos and Other Canons” in Warren G. Moon (ed.) Polykleitos, the
Doryphoros, and Tradition, pp. 19-24. Para uma compilação de textos a respeito de Policleto, ver J. J. Pollitt (ed.),
The Art of Ancient Greece: Sources and Documents, CUP, 1990. Para a discussão geral sobre o Canon e a Medicina,
ver Jackie Pigeaud, “Homo Quadratus: variações sobre a beleza e a saúde na medicina antiga” (or. francês, 1985) in
Metáfora e Melancolia: ensaios médico-filosóficos, Ivan Frias (ed.), Contraponto, 2009, pp. 81-102.
27 G. S. Kirk, J. E. Raven & M. Schofield, Os Filósofos Pré-Socráticos, Lisboa, Calouste Gulbenkian, 2005³, pp. 346-
347. Modifiquei levemente a tradução.
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Por sua vez, a doxografia especificamente relativa à Policleto permite complementar de modo
mais preciso essa relação conceitual entre o belo e o número no texto do Canon e nos procedimentos técnicos a ele referentes:
(Galeno, De Placitis Hippocratis et Platonis V, 3, 15, 5 ss – Kühn, Galeni opera
omnia, Vol. V, p. 449).
[V, 3, 15] τὸ δὲ κάλλος οὐκ ἐν τῇ τῶν μορίων συμμετρίᾳ συνίστασθαι νομίζει,
δακτύλου πρὸς δάκτυλον δηλονότι καὶ συμπάντων αὐτῶν πρός τε μετακάρπιον
καὶ καρπὸν καὶ τούτων πρὸς πῆχυν καὶ πήχεως πρὸς βραχίονα καὶ πάντων πρὸς
πάντα, καθάπερ ἐν τῷ Πολυκλείτου κανόνι γέγραπται. πάσας γὰρ ἐκδιδάξας ἡμᾶς
ἐν ἐκείνῳ τῷ συγγράμματι τὰς συμμετρίας τοῦ σώματος ὁ Πολύκλειτος ἔργῳ τὸν
λόγον ἐβεβαίωσε δημιουργήσας ἀνδριάντα κατὰ τὰ τοῦ λόγου προστάγματα καὶ
καλέσας δὴ καὶ αὐτὸν τὸν ἀνδριάντα, καθάπερ καὶ τὸ σύγγραμμα, κανόνα.
[V, 3, 15] A beleza, [acredita Crisipo], não nasce das partes [individuais que compõem um corpo], mas da simetria entre as partes [do corpo], tais como um dedo
em relação a outro, de todos os dedos em relação à palma da mão e o punho, e destes em relação ao antebraço, e o antebraço em relação ao braço, e, na verdade, de
tudo em relação a tudo mais, tal como está escrito no Canon de Policleto. Depois
de ter descrito nesse texto todas as simetrias do corpo, Policleto o exemplificou
com uma obra de arte: fez uma estátua de acordo com os preceitos do seu tratado
e chamou essa estátua [igualmente] de Canon.
Os pressupostos artísticos de Policleto tiveram profunda repercussão entre os teóricos imediatamente posteriores, ganhando desde muito cedo o estatuto de dogma (servindo bem aos
teóricos que valorizaram a isonomia nos campos ético, político e epistemológico). Seja como
for, derivadas (direta ou indiretamente) do Canon ou não, vemos fórmulas que unem indissociavelmente a beleza à simetria circularem ad nauseam no mundo antigo. Alguns exemplos
entre dezenas de outros:
(Platão, Timaeus, 87 c)
[87 c] πᾶν δὴ τὸ ἀγαθὸν καλόν, τὸ δὲ καλὸν οὐκ ἄμετρον· καὶ ζῷον οὖν τὸ τοιοῦτον
ἐσόμενον σύμμετρον θετέον.
[87 c] Tudo o que é bom [ἀγαθὸν] é belo [καλόν] e o belo nunca é sem proporção
[ἄμετρον]. Assim, para que um ser vivo [ζῷον] tenha essas qualidades [i.e, seja
belo e bom], deve ser [igualmente] bem proporcionado [σύμμετρον].
(Aristóteles, Metafísica XIII, 3, 1078 a 36-b 1 – Metafísica, Giovanni Reale, ed.,
Vol. II, Loyola, 2002, p. 603 e ss)
[1078 a 36] τοῦ δὲ καλοῦ μέγιστα εἴδη [1078 b 1] τάξις καὶ συμμετρία καὶ τὸ
ὡρισμένον, ἃ μάλιστα δεικνύουσιν αἱ μαθηματικαὶ ἐπιστῆμαι.
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[1078 a 36] As supremas formas do belo são: [1078 b 1] a ordem [τάξις], a simetria
[συμμετρία] e o definido [τὸ ὡρισμένον]; e as matemáticas os dão a conhecer mais
do que todas as outras ciências28.
(Cicero, Tusculanae Disputationes, IV, 13)
[IV, 13] et ut corporis est quaedam apta figura membrorum cum coloris quadam
suavitate eaque dicitur pulchritudo, sic in animo opinionum iudiciorumque aequabilitas et constantia cum firmitate quadam et stabilitate virtutem subsequens
aut virtutis vim ipsam continens pulchritudo vocatur.
[IV, 13] E como uma boa conformação [apta figura]29 dos membros, juntamente
com um belo colorido, é o que faz a beleza do corpo, do mesmo modo o que faz a
beleza da alma é a justeza [aequabilitas] dos julgamentos, mas uma justeza esclarecida, que se sustenta sobre princípios inquebrantáveis, que marcha sempre nos
passos da virtude, caso não seja a essência da virtude ela mesma.
(Agostinho, De Civitate Dei, XXII, 19, 6 ss – A Cidade de Deus, Vol. III, Lisboa,
Calouste Gulbenkian, 2000², p. 2317)
[XXII, 4] Ac per hoc non est macris pinguibusque metuendum, ne ibi etiam tales
sint, quales si possent nec hic esse voluissent. Omnis enim corporis pulchritudo
est partium congruentia cum quadam coloris suavitate. Ubi autem non est partium congruentia, aut ideo quid offendit quia pravum est, aut ideo quia parum,
aut ideo quia nimium. Proinde nulla erit deformitas, quam facit incongruentia
partium, ubi et quae prava sunt corrigentur, et quod minus est quam decet, unde
Creator novit, inde supplebitur, et quod plus est quam decet, materiae servata integritate detrahetur.
[XXII, 4] Por isso, nem os magros nem os gordos devem temer que lá [na Cidade de
Deus] [eles] venham a se encontrar tal qual como aqui não gostariam [de ser vistos], se pudessem. Toda a beleza do corpo está, com efeito, na harmonia das partes
[partium congruentia] com uma certa suavidade da cor. Onde não há harmonia
das partes, há algo que ofende porque é mal feito [pravum], quer por ser de menos,
quer por ser de mais. Por conseguinte, nenhuma disformidade [deformitas] haverá
devida à desarmonia [incongruentia] das partes; lá [na Cidade de Deus] o que é
mal feito será corrigido, o que é menos do que convém será completado [tal] como
o Criador sabe [completar], e o que é mais do que convém será suprimido, mantendo-se, porém, a integridade da matéria [materiae integritate].
Porém, a mais famosa referência à doutrina da simetria no terreno da teoria artística é o primeiro capítulo do Livro III do De Architectura, do engenheiro e arquiteto romano Marcus Vi28 Para as consequências morais da associação entre o belo e a simetria em Aristóteles, ver Gabriel Lear, “Aris-
totle on Moral Virtue and the Fine” in Richard Kraut (ed.), The Blackwell guide to Aristotle’s Nicomachean ethics,
Blackwell, 2006, pp. 116-136.
29 Desde muito cedo, a palavra latina figura traduz a ideia de “forma plástica”. Seu uso mais antigo está em
Terêncio (Eunuchus, 317): “nova figura oris [formato incomum de rosto]”. Uma análise do termo em Eric Auerbach,
Figura, São Paulo, Ática, 1997 (para o uso em Cícero ver pp. 15 e ss). Usei a expressão “boa conformação” em
português para manter a noção de plasticidade do original (valorizando o termo “forma”) e possibilitando enxergar a noção de simetria e proporção dada pelo adjetivo latino apta.
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truvius (I a.C.) – referência a partir da qual o Canon de Policleto foi difundido através da Idade
Média:
Vitruvius, De Architectura III, 1 in Celse, Vitruve, Censorin, Oeuvres Complètes & Frotin, Des aqueducs de Rome (Désiré Nisard, ed.), Paris, Firmin Didot,
1866, p. 50 e ss – Vitrúvio, Tratado de Arquitetura, Martins Fontes, 2007, p. 168.
[III, 1] Aedium compositio constat ex symmetria, cuius rationem diligentissime
architecti tenere debent. Ea autem paritur a proportione, quae graece ἀναλογία dicitur. Proportio est ratae partis membrorum in omni opere totiusque commodulatio, ex qua ratio efficitur symmetriam. Namque non potest aedis ulla sine symmetria atque proportione rationem habere compositionis, nisi uti ad homines bene
figurati membrorum habuerit exactam rationem.
[III, 2] Corpus enim hominis ita natura composuit, uti os capitis a mento ad frontem summam et radices imas capilli esset decimae partis, item manus palma ab
articulo ad extremum medium digitum tantundem, caput a mento ad summum
verticem octavae, (...)
[III, 1] A composição dos templos assenta na comensurabilidade [symmetria], a
cujo princípio os arquitetos deverão submeter-se com muita diligência. A comensurabilidade nasce da proporção [proportione], que em grego se diz analogia. A
proporção [proportio] consiste na relação modular [commodulatio] de uma determinada parte dos membros tomados em cada seção ou na totalidade da obra,
a partir da qual se define o sistema das comensurabilidades [ratio symmetriam].
Pois nenhum templo poderá ter esse sistema sem conveniente equilíbrio e proporção e se não tiver uma rigorosa disposição como os membros de um homem bem
configurado.
[III, 2] Com efeito, a natureza de tal modo compôs o corpo humano que o rosto,
desde o queixo atá o alto da testa e a raiz dos cabelos, corresponde à sua décima
parte, e a mão distendida, desde o pulso até a extremidade do dedo médio, outro
tanto; a cabeça, desde o queixo ao cocuruto, à oitava; (...)30
Commodulatio, commoderatio, symmetria, proportio – ao que se deve reunir o termo congruentia da citação de Agostinho – são as versões latinas (transliterações e/ou neologismos),
em contexto estético, das expressões gregas que vimos anteriormente31. Como se vê aqui, a noção de analogia é também fundamental, uma vez que permite a comparação e o intercâmbio
entre a fisiologia humana, a matemática e a arquitetura.
Número, proporção, simetria e harmonia são, pois, argamassas da perfeição e da beleza em
toda uma linhagem de teóricos clássicos. São conceitos vitais também para a Música, a teoria
musical antiga sendo profundamente influenciada pelo pitagorismo e a noção de “harmonia”
30 A commodulatio ficou gravada no imaginário coletivo ocidental graças ao Homem Vitruviano, de Leonardo
da Vinci – que se utilizou da seção III, 3 do De Architectura, quando Vitrúvio estabelece a relação entre o templo
grego (ideal) e o corpo humano (ideal). Para a relação entre Vitrúvio e o Canon de Policleto, ver Indra McEwen,
Vitruvius: writing the body of architecture, MIT Press, 2003, pp. 196 e ss. Para uma história das analogias entre corpo humano e Arquitetura, ver Marco Frascari, Monsters of Architecture: anthropomorfism in architectural
theory, Rowan & Littlefield, 1991; e George Dodds e Robert Tavernor, Body and Building, Essays on the Changing
Relations of Body and Architecture, MIT Press, 2002. Ver também Guy P.R. Métraux, Sculptors and Physicians in
Fifth-Century Greece, Montréal, McGill-Queen’s University Press, 1995.
31 Para a transposição latina dos termos gregos em Vitrúvio, ver Pavlos Lefas, “On the Fundamental Terms
of Vitruvius’ Architectural Theory” (artigo não publicado) [http://www.academia.edu/1425749/On_the_fundamental_terms_of_Vitruvius_architectural_theory] e Pierre Gros, “Les fondements philosophiques de l’harmonie
architecturale selon Vitruve (De Architectura III-IV)” in Journal of the Faculty of Letters. The University of Tokyo.
Aesthetics, 14, 1989, p. 13-22 [http://books.openedition.org/efr/2508].
DO HUMOR EXCEPCIONAL
99
constituindo um preceito musicológico dos mais genéricos e fundamentais – muito embora tenhamos sempre a tentação de reificar somente a teoria, ignorando que a prática musical efetiva
nunca corresponde a ditames arbitrariamente impostos por outros domínios32.
E quanto à Medicina hipocrática? Em princípio, ela não somente se utiliza dessas noções de
equilíbrio como se baseia, efetivamente, sobre elas. O conceito pré-socrático de isonomia, que
precede, do ponto de vista da genealogia médica, a teoria humoral dos hipocráticos, é aqui
fundamental. Curiosamente, assim como a ideia de simetria de Policleto, a isonomia também
parece se originar do pitagorismo, pois o médico Alcmeon de Crotona, a primeira referência
conhecida desta noção, é tradicionalmente considerado um dos principais discípulos de Pitágoras.
Aécio, Placita philosophorum V 30, 1 (D. 442) (DK 24 B 4)
[V 30, 1] <Ἀλκμαίων> ἔφη τῆς μὲν ὑγιείας εἶναι συνεκτικὴν τὴν ἰσονομίαν τῶν
δυνάμεων, ὑγροῦ, ξηροῦ, ψυχροῦ, θερμοῦ, πικροῦ, γλυκέος καὶ τῶν λοιπῶν, τὴν
δ' ἐν αὐτοῖς μοναρχίαν νόσου ποιητικήν· φθοροποιὸν γὰρ ἑκατέρου μοναρχίαν.
καὶ νόσον συπίπτειν ὡς μὲν ὑφ' οὗ ὑπερβολῆι θερμότητος ἢ ψυχρότητος, ὡς δὲ
ἐξ οὗ διὰ πλῆθος τροφῆς ἢ ἔνδειαν, ὡς δ' ἐν οἷς ἢ * αἷμα ἢ μυελὸν ἢ ἐγκέφαλον.
ἐγγίνεσθαι δὲ τούτοις ποτὲ κἀκ τῶν ἔξωθεν αἰτιῶν, ὑδάτων ποιῶν (?) ἢ χώρας ἢ
κόπων ἢ ἀνάγκης ἢ τῶν τούτοις παραπλησίων. τὴν δὲ ὑγείαν τὴν σύμμετρον τῶν
ποιῶν κρᾶσιν.
[V 30, 1] <Alcmeon> disse ser a constituição da saúde o equilíbrio [ἰσονομίαν] das
propriedades: do úmido, do seco, do frio, do quente, do amargo, do doce e dos restantes; e a monarquia [isto é, a supremacia de um] entre eles produz doença, pois
a monarquia [μοναρχίαν] de cada uma é o que causa destruição. Assim, a doença
sobrevém por um lado quando há um excesso [ὑπερβολῆι] de calor ou de frio, ou
de outras, quando devida à abundância ou à carência de um alimento, o que ocorre
em partes como o sangue, a medula ou o cérebro. Essas partes podem ser também
afetadas por causas externas, como certas qualidades de águas, certas regiões, pela
fadiga ou por experimentar-se uma necessidade ou devido ao que lhes estiver perto. Mas ainda quanto à saúde [ὑγείαν], ela é a justa medida [σύμμετρον] da mistura
[κρᾶσιν] das qualidades33.
De fato, a teoria da saúde como justa medida tornou-se influente no Corpus Hippocraticum
Corpus Hippocraticum, Prisca Medicina 14, 23 (I 602,9-14L CMG 1,1 pp. 45-46
Heib)
[14, 23] ῎Ενι γὰρ ἀνθρώπῳ καὶ πικρὸν καὶ ἁλμυρὸν, καὶ γλυκὺ καὶ ὀξὺ, καὶ στρυφνὸν
καὶ πλαδαρὸν, καὶ ἄλλα μυρία, παντοίας δυνάμιας ἔχοντα, πλῆθός τε καὶ ἰσχύν.
Ταῦτα μὲν μεμιγμένα καὶ κεκρημένα ἀλλήλοισιν οὔτε φανερά ἐστιν, οὔτε λυπέει
τὸν ἄνθρωπον· ὅταν δέ τι τουτέων ἀποκριθῇ, καὶ αὐτὸ ἐφ' ἑωυτοῦ γένηται, τότε
καὶ φανερόν ἐστι καὶ λυπέει τὸν ἄνθρωπον.
[14, 23] No organismo humano encontram-se o salgado, o amargo, o doce, o ácido,
o adstringente, o insípido e diversos outros elementos, dotados de princípios ati32 Ver, por exemplo, o importante resumo feito por Andrew Barker (ed.), Greek Musical Writings. Volume II, Har-
monic and Acoustic Theory, Cambridge University Press, 1989, pp. 7 e ss.
33 Henrique Cairus e Julieta Alsina, “Traços do pensamento pitagórico na medicina hipocrática”, comunicação
no III Seminário de Filosofia Antiga, UERJ, 2009, p. 2 (artigo não publicado). [http://www.academia.edu/286578/
Tracos_Do_Pensamento_Pitagorico_Na_Medicina_Hipocratica]
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vos distintos em quantidade e força. Mesclados e combinados uns com os outros,
passam despercebidos e não prejudicam o homem. Mas no momento em que algum se torna desagrega e se individualiza, aí se deixa sentir e causa sofrimento ao
homem.
Vê-se, pois, pelos textos citados, que a solidariedade entre o corpo humano e os dispositivos
teórico-ético-cosmológicos (“cosmológicos” no sentido da φύσις) é irresistivelmente factível.
É possível dizer, para a época de composição do Problema XXX, I, que a dependência e a continuidade entre saúde e congruentia, na Medicina, parecem, de fato, muito similares às que
definem, nos domínios da Metafísica, a relação entre o Belo e o Bom34. Metafisicamente, a falta
de simetria produz o feio e o imperfeito; na Medicina, a falta de isonomia produzirá a doença – e
provavelmente também a feiura, ainda que não necessariamente a monstruosidade35.
A relação imediata entre arte e medicina é, entretanto, equivocada. Ela se construiu tardiamente: para os hipocráticos, estética e medicina são campos totalmente distintos36. E são distintos
porque não se concebe, na Escultura, por exemplo, que a forma do corpo, em linhas gerais,
dependa de sua fisiologia interior. A forma do corpo artístico é externa, sempre externa, e se dá
pelo (se me permitem dizer) equilíbrio policletiano de si mesma, sem depender em nada de seu
interior: dois pés, duas mãos, dois olhos, duas orelhas, duas metades, duas partes, portanto,
em simetria umas com as outras. O escultor pára na pele, mas o médico hipocrático considera
a pele apenas um invólucro sem muita importância, pois o que é decisivo são eventos acontecidos fora do corpo (no cosmos) e/ou em seu interior (nos humores)37. Para os hipocráticos, o
corpo é essencialmente constituído de fluxos e fluidos (fluidos não necessariamente visíveis,
como a bile negra), e não de formas38. Logo, diferentemente do que se passou com as relações
34 “No tratado Sobre a melhor constituição do corpo (kataskeuê), Galeno escreve que a boa constituição do corpo
equivale à perfeita saúde. A boa constituição, quanto a ela, se encontra no corpo bem construído. A melhor
constituição do corpo depende de dois fatores: o bom temperamento (eukrasia) – ou, para falar mais prosaicamente, a boa mistura – e a boa proporção (symmetria) das partes orgânicas. Ainda no mesmo tratado, Galeno
afirma que ‘a mistura equilibrada de quente, de frio, de seco e de úmido equivale à saúde das partes homeômeras de nosso corpo’ (Kühn, IV 737). A mistura das qualidades é, pois, incontestavelmente um aspecto importante
da saúde” (Anne-France Morand, “Mistura das qualidades e determinação da saúde em Galeno” in Miriam C. D.
Peixoto (org.), A Saúde dos Antigos, Reflexões gregas e romanas, Loyola, 2009, pp. 203-216).
35 Esta distinção é importante, pois, ao menos em Aristóteles (cf. Geração dos Animais, IV, 767 a 35 e ss), todas
as questões em torno da monstruosidade giram em função da reprodução e determinação genética entre indivíduos de um mesmo gênero – quer dizer, do ponto de vista da espécie considerada como um todo ou ao
menos na geração de pai para filho –, e não exatamente da simetria das partes de um mesmo indivíduo. Neste
sentido, o monstro aristotélico não é necessariamente feio, apenas difere dos outros indivíduos que, tomados
em conjunto, constituem o curso normal da sua espécie.
36 “A beleza não é uma preocupação hipocrática. O conceito de kalós, beleza, não intervém jamais. Esse corpo
dos médicos é então constituído, sobretudo, de profundezas de que se supõe a existência. A medicina hipocrática, e compreendo bem que se encontrarão exceções, não se interessa muito pela forma, nem pelas formas”
(Pigeaud, Homo quadratus, p. 94).
37 “(…) na época de Fídias ou de Policleto, a pele que o escultor reproduz não tem, em si, legitimidade, nada
a ver com a derme do médico. Penso que a forma do escultor não supõe nenhuma necessidade interna, que a
linha não tem nenhuma razão vinda das profundezas. Sua razão e seu direito são totalmente exteriores e mensuráveis. Para o médico [hipocrático] dessa época, a derme não é outra coisa que um tipo de saco; a linha de
superfície não é o que lhe interessa” (Pigeaud, Homo quadratus, p. 95).
38 Cf. Pigeaud, Homo quadratus, p. 98. A noção de “fluido corporal invisível” sobreviveu em muito, claro, ao de-
saparecimento da medicina hipocrática – por exemplo, no debate entre as similitudes do “fluido galvânico” e
dos “fluidos nervosos”, no começo do século XIX: “Cuvier, en 1817, estime encore que les nerfs agissent ‘par
un fluide impondérable’, mais que celui-ci, comme tous les ‘fluides animaux’, est ‘tiré du sang par sécrétion’”
(Jean Starobinski, “Sur l’histoire des fluides imaginaires” in La Relation critique (L’Oeil vivant, 2), Gallimard, 1971,
p. 201). Nossos contemporâneos também exploram os fluidos invisíveis – um bom exemplo de como eles são
DO HUMOR EXCEPCIONAL
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entre a Anatomia Renascentista e as Belas-Artes da época (basta ver os esboços anatômicos de
Da Vinci e as pranchas do Fabrica de Vesalius), a Medicina antiga tem pouco a ensinar à Escultura sua contemporânea, e vice-versa.
De fato, será preciso esperar por Aristóteles para se afirmar, em duas passagens importantes da
Física, que a natureza e a arte são dispositivos intercambiáveis:
(Aristóteles, Física, 194 a 21)
[194 a 21] εἰ δὲ ἡ τέχνη μιμεῖται τὴν φύσιν
A arte imita a natureza
[199 a 15] ὅλως δὲ ἡ τέχνη τὰ [199 a 16] μὲν ἐπιτελεῖ ἃ ἡ φύσις ἀδυνατεῖ
ἀπεργάσασθαι, τὰ δὲ μιμεῖται.
A arte imita a natureza na medida em que a natureza se assemelha à arte
A partir de Galeno, porém, temos não apenas esse intercâmbio em funcionamento como vemos arte e fisiologia entrarem em um acordo real – relação mediada por uma arquitetura lógica
e uma linguagem funcional que depende claramente da filosofia clássica39. Efetivamente, na
sequência da doxografia a respeito de Policleto, citada mais acima, Galeno dava sua exposição
da teoria do Canon transpondo, sem solução de continuidade, a reflexão artística à reflexão
médica e filosófica:
(Galeno, De Placitis Hippocratis et Platonis V, 3, 15, 5 ss – Kühn, Galeni opera
omnia, Vol. V, p. 449). V, 3, 18, 1
[V, 3, 15] τὸ μὲν δὴ κάλλος τοῦ σώματος ἐν τῇ τῶν μορίων συμμετρίᾳ κατὰ πάντας
ἰατροὺς καὶ φιλοσόφους ἐστίν, ἡ δ' ὑγίεια τῶν στοιχείων αὖ πάλιν, ἅττα ποτ' ἂν
ᾖ, πρὸς ἄλληλά ἐστι συμμετρία. εἴτε γὰρ ἐξ ὄγκων καὶ πόρων ὡς Ασκληπιάδης
ὑπέθετο τὰ τῶν ζῴων σύγκειται σώματα, συμμετρία τούτων ἐστὶν ἡ ὑγίεια· εἴτ'
ἐξ ἀτόμων ὡς ᾿Επίκουρος εἴτ' ἐξ ὁμοιομερῶν ὡς ᾿Αναξαγόρας εἴτ' ἐκ θερμοῦ
καὶ ψυχροῦ καὶ ξηροῦ καὶ ὑγροῦ καθάπερ ὅ τε Χρύσιππος δοξάζει καὶ πάντες οἱ
Στωϊκοὶ καὶ πρὸ αὐτῶν Ἀριστοτέλης καὶ Θεόφραστος καὶ πρὸ τούτων ἔτι Πλάτων
καὶ Ἱπποκράτης, ἡ τῶν στοιχείων κατὰ πάντας συμμετρία τὴν ὑγίειαν ἐργάζεται.
[V, 3, 15] A beleza do corpo, de acordo com todos os médicos e filósofos, consiste
na simetria [συμμετρίᾳ] das partes; a saúde [ὑγίεια], por sua vez, está na simetria
dos elementos [στοιχείων], quaisquer que sejam eles, uns em relação aos outros.
Caso, por exemplo, os corpos dos seres vivos sejam compostos por massas opacas
[ὄγκων] e por poros e canais [πόρων], como sustentou Asclepíades, a saúde será
a simetria entre eles. Ou, então, seja pelos átomos, como Epicuro sustentava, ou
pelas homeomerías como Anaxágoras, ou ainda pelo quente e pelo frio, pelo seco e
pelo úmido, de acordo com o que julgava Crisipo e também todos os estoicos, e an-
apropriados pela publicidade em Robyn Longhurst, Bodies. Exploring fluid boundaries, Routledge, 2001 (cap. 2,
“Corporeography”).
39 “Para nós, é evidente que o estabelecimento da relação entre a arte e a fisiologia somente foi possível pela
mediação filosófica. A idéia de uma regulação estética da natureza não tem, com efeito, nada de evidente nem
de espontâneo. Essa regulação é essencialmente aristotélica e estóica” (Pigeaud, Homo quadratus, p. 96).
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tes deles, Aristóteles e Teofrasto, e ainda antes Platão e os Hipocráticos, de acordo
com todos eles a simetria dos elementos produz a saúde40.
Uma vez esse mecanismo de dependência médico-artístico-filosófico estruturado e funcionando, a melancolia (por definição uma desarmonia, uma dissimetria, um desequilíbrio – o
excesso da bile negra), nada mais natural que colocá-la, metafisicamente, no rol das coisas
imperfeitas: e, ato contínuo, enquadrá-la etiologicamente no campo da doença. Mas, bizarramente, o autor do Problema XXX, I faz o contrário. Para ele, a melancolia é, certamente, um
mal, pois o texto fala daqueles indivíduos “tomados por males [λαμβάνεσθαι] dos quais a bile
negra é a origem”. Mas é, evidentemente, um mal positivado e ressignificado para conter uma
semântica de valor superior.
Por outro lado, envolvendo sempre dispositivos de simetria e equilíbrio como sua contraparte
necessária (os teóricos antigos que conhecemos estão de acordo com essa nomenclatura no que
tange à teoria humoral, como vimos), a discussão clássica (hipocrática) sobre a melancolia não
precisaria estar textualmente formulada no corpo do Problema XXX, I para o texto fazer sentido
dentro dessa tradição melancólica geral: as tensões equilíbrio-desequilíbrio, excesso-deficiência, harmonia-desarmonia, estariam sempre subentendidas por qualquer um dos seus leitores
contemporâneos. Deste modo, formulações acerca da noção de isonomia (e de congruentia)
irrigam indiretamente o problema central do texto: e ao revalorizar socialmente um desequilíbrio psicofisiológico, o Pseudo-Aristóteles torna possível à melancolia, em alguma medida,
ser algo concretamente compatível – em sinergia indireta, mas porosa – com a kalokagathia (a
excelência isonômica entre perfeição física e alto domínio moral, que resume o perfil ideal do
cidadão na pólis clássica). E, ato contínuo, mesmo sob o perigo de transformar a kalokagathia
(performance social em declínio com a decadência da polis, época provável da composição do
texto) em uma virtude interiormente minada pela medianidade (pois, sem potência ou força,
a kalokagathia ficará congelada no comum, no insosso, no sem-graça, quer dizer, fossilizada
na mediocridade), o Problema XXX, I faz toda a energia concedida ao περισσός (seu vigor físico, sua inteligência, sua superior capacidade poética, política e intelectual) apontar não mais,
como seria de se esperar, para o καλός καγαθός (o aristocrata) mas para o... tipo melancólico.
É neste caminho que podemos reconstruir uma fórmula do heroísmo pensada no contexto
antitético da congruentia e da melancolia. Em termos de hoje, guardadas as proporções, uma
reflexão que possa repensar o heroísmo como algo depressivo ou deprimente, opaco e tutelado
por indivíduos em náusea.
40 Tradução de Marcus Reis Pinheiro.
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Resumo
Esclarecer a bizarra associação do herói com
o melancólico é uma estratégia interessante
de posicionar a problemática dos humores
no mundo antigo. Neste artigo, exponho as
relações possíveis entre Medicina, Arte e o
trecho fundamental do Problema XXX, I, do
Pseudo-Aristóteles, de modo a mapear essa
problemática, repensando o modo como termos tais como simetria, analogia, equilíbrio
e proporção são interligados nos diversos
campos convergentes da discussão geral.
Sobre o autor
Rafael Marcelo Viegas é doutor em Letras Neolatinas pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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