RDE Nº 14-A - Mestrado e Doutorado
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RDE Nº 14-A - Mestrado e Doutorado
Ano VIII • Nº 14 • Semestral • Julho de 2006 • Salvador, BA Departamento de Ciências Sociais Aplicadas Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional e Urbano INDEXAÇÃO: A Revista de Desenvolvimento Econômico – RDE é indexada por: – GeoDados: Indexador de Geografia e Ciências Sociais < http//www.geodados.uem.br > – Universidad Nacional Autónoma de México CLASE Citas Latinoamericanas en Ciencias Sociales y Humanidades: < http://www.dgbiblio.unam.mx > A RDE foi classificada pelo QUALIS da CAPES como Nacional A pelas áreas de Planejamento Urbano e Regional/Demografia (área do Programa responsável pela sua edição) e Arquitetura e Urbanismo. Depósito legal junto à Biblioteca Nacional, conforme decreto nº 1.825, de 20 de dezembro de 1907. Ficha Catalográfica – Sistema de Bibliotecas da Unifacs RDE – Revista de Desenvolvimento Econômico. – Ano 1, n. 1, (nov. 1998). – Salvador: Departamento de Ciências Sociais Aplicadas 2 / Universidade Salvador, 1998. v.: 30 cm. Semestral ISSN 1516-1684 Ano I, n. 1 (nov. 1998); Ano I, n. 2 (jun. 1999); Ano 2, n. 3 (jan. 2000); Ano 3 n. 4 (jul. 2001); Ano 3, n. 5 (dez. 2001); Ano 4, n. 6 (jul. 2002); Ano 4, n. 7 (dez. 2002); Ano 5, n. 8 (jul. 2003); Ano 6, n. 9 (jan. 2004); Ano 6, n. 10 (jul. 2004); Ano 7, n. 11 (jan. 2005); Ano 7, n. 12 (jul. 2005); Ano 8, n. 13 (jan. 2006); Ano 8, n. 14 (jul. 2006). 1. Economia – Periódicos. II. UNIFACS – Universidade Salvador. UNIFACS. CDD 330 Pede-se permuta On demande l´échange We ask for exchange Pede-se canje Si rischiede lo scambo Mann bitted um austausch 2 Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO EDITORIAL Nonononnn nnn.... Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA EXPEDIENTE: Revista de Desenvolvimento Econômico A Revista de Desenvolvimento Econômico é uma publicação semestral do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional e Urbano da Universidade Salvador – UNIFACS. UNIVERSIDADE SALVADOR – UNIFACS REITOR: Prof. Manoel Joaquim F. de Barros Sobrinho VICE-REITORES: Prof. Guilherme Marback Neto Profa. Maria das Graças Fraga Maia PRÓ-REITOR DE GRADUAÇÃO: Profª Maria das Graças Fraga Maia PRÓ-REITOR DE PÓS-GRADUAÇÃO: Prof. Manoel Joaquim F. de Barros PRÓ-REITOR FINANCEIRO: Prof. Sérgio Augusto Gomes V. Viana PRÓ-REITOR ADMINISTRATIVO: Profª Verônica de Menezes Fahel DEP. DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS: Prof. Prof. José Mascarenhas Bisneto PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DESENVOLVIMENTO REGIONAL E URBANO–PPDRU: Prof. Alcides dos Santos Caldas CONSELHO EDITORIAL Prof. Dr. Alcides Caldas Profª Dra. Bárbara-Christine Nentwig Silva Prof. Dr. José Manoel G. Gândara Prof. Dr. Luiz Gonzaga G. Trigo Prof. Dr. Fernando C. Pedrão Prof. Dr. Noelio D. Spinola Prof. Dr. Pedro Vasconcelos Profª Dra. Regina Celeste de Almeida Souza Profª Dra. Rosélia Piquet Prof. Dr. Rossine Cruz Prof. Dr. Sylvio Bandeira de Mello e Silva Profª Vera Lúcia Nascimento Brito Prof. Victor Gradin EDITOR Prof. Dr. Noelio D. Spinola SECRETÁRIO Prof. Moisés Conde Silva de Oliveira CAPA E EDITORAÇÃO GRÁFICA Joseh Caldas FOTOLITOS E IMPRESSÃO S VICTOR GRÁFICA LTDA TIRAGEM: 1.000 exemplares Os artigos assinados são de responsabilidade exclusiva dos autores. Os direitos, inclusive de tradução, são reservados. É permitido citar parte dos artigos sem autorização prévia desde que seja identificada a fonte. É vedada a reprodução integral de artigos sem a formal autorização da redação. ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA: Alameda das Espatódias, 915 - Caminho das Árvores, Salvador, Bahia, CEP 41820-460 - Tel.: 71-3273-8557 E-MAIL: [email protected] – [email protected] Departamento de Ciências Sociais Aplicadas Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional e Urbano – PPDRU Noelio Dantaslé Spinola EDITOR RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA 3 SUMÁRIO 5 12 RAÍZES HISTÓRICAS DA QUESTÃO FUNDIÁRIA NO BRASIL OLÍMPIO J. DE ARROXELAS GALVÃO NOVOS PALCOS PARA UM NOVO DESENVOLVIMENTO. O PAPEL DAS BACIAS HIDROGRÁFICAS E DO ZONEAMENTO ECOLÓGICO-ECONÔMICO ANA FLÁVIA MARQUES, VIRGÍNIA ELISABETA ETGES E HELENIZA ÁVILA CAMPOS 23 34 MERCADO DE CAPACIDADE: UMA ALTERNATIVA PARA O SETOR ELÉTRICO BRASILEIRO ANDRÉ LUÍS DA SILVA LEITE E EDVALDO ALVES DE SANTANA LAÇOS COMO ATIVOS TERRITORIAIS: UMA NOVA ABORDAGEM PARA O DESENVOLVIMENTO REGIONAL GLÁUCIA M. VASCONCELLOS VALE 43 CIÊNCIA E TECNOLOGIA PARA O DESENVOLVIMENTO LOCAL: UMA PROPOSTA TRANSFORMADORA RENATO DAGNINO 53 60 O SUBDESENVOLVIMENTO BRASILEIRO NOS TEMPOS DO ORNITORRINCO 70 O MÉXICO E OS EFEITOS PERVERSOS DA INTEGRAÇÃO: IMIGRAÇÃO, FRAGMENTAÇÃO DO ESPAÇO CARLOS ALBERTO BELLO UM LIBERTADOR DAS IDÉIAS: O PENSAMENTO DESENVOLVIMENTISTA DE RAÚL PREBISCH JOAQUIM MIGUEL COUTO E ANA CRISTINA LIMA COUTO E CONCENTRAÇÃO DE RENDA MARCOS COSTA LIMA 78 90 UMA LEITURA DA ECONOMIA BAIANA PELA ÓTICA DO PIB – 1975/2005 GUSTAVO CASSEB PESSOTI DESENVOLVIMENTO LOCAL E DESENVOLVIMENTO ENDÓGENO: QUESTÕES CONCEITUAIS AREZA BATISTA GOMES BARROS , NORMA LÚCIA OLIVEIRA DA SILVA E NOELIO DANTASLÉ SPINOLA RESENHAS 99 101 4 ISABELLE STENGERS, A INVENÇÃO DAS CIÊNCIAS MODERNAS FERNANDO PEDRÃO ARANTES, OTÍLIA. UMA ESTRATÉGIA FATAL: A CULTURA NAS NOVAS GESTÕES URBANAS LIDIA SANTANA Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO RAÍZES HISTÓRICAS DA QUESTÃO FUNDIÁRIA NO BRASIL Olímpio J. de Arroxelas Galvão1 Resumo O artigo objetiva analisar as origens mais remotas da questão fundiária no Brasil. O argumento central do estudo é o de que fatores domésticos – expressos, por exemplo, na forma como a terra foi originalmente apropriada e no papel das elites locais – constituem a base para a explicação dos principais determinantes do atraso histórico da economia brasileira. O estudo ressalta que o caso do Brasil oferece um amplo conjunto de evidências que mostram como o comportamento das elites locais, no que diz respeito às políticas de distribuição e apropriação de terras, influenciou decisivamente o curso e os resultados da colonização portuguesa no Brasil, a despeito do caráter em princípio democrático da legislação das sesmarias especificamente destinadas ao país. O trabalho ainda procura mostrar que a ação das elites agrárias brasileiras, no período colonial, está nas origens do processo que levou à exclusão social de uma vasta e majoritária parcela da população do país, que ingressou na era moderna do desenvolvimento nacional na condição de moradores e agregados à grande propriedade. Palavras-chave: Raízes da questão fundiária. Poder local. Poder das elites agrárias. Políticas fundiárias no Brasil colônia. A Lei das Sesmarias. Origens remotas do atraso brasileiro. Abstract The work aims at analyzing the most remote origins of the land issue in Brazil. The central argument of the study is that domestic factors – expressed in terms, for example, in the way land was originally distributed and in the role played by the local elites – constitute the basis to RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO explain the major determinants of the historical backwardness of the Brazilian economy. The study stresses that the case of Brazil offers an ample set of evidence that show how the behavior or the local elites, with respect to land distribution and appropriation, exerted a strong and decisive influence in the course and the results of Portuguese colonization in Brazil, in spite of the democratic nature of the Sesmarias Laws specifically aimed at the country. The work still attempts to show that the social and economic exclusion of a vast and majority part of the Brazilian population in the modern stage of the country’s development is deeply rooted in the political action from the local agrarian elites since the colonial period. Key-words: Roots of the agrarian question; Local Power; Influence of the agrarian elite; Agrarian Policies in Brazil Colônia; The Sesmaria Law; Remote origins of the Brfazilian Delay. 1. Introdução Este artigo procura mostrar que o crescimento econômico dos países de colonização recente foi conseqüência da conjugação de uma série de condições internas favoráveis e que nas origens de seu desenvolvimento tais condições internas podem ter sido muito mais importantes do que os entraves decorrentes das políticas mercantilistas de suas “matrizes” coloniais. O argumento central deste ensaio é o de que fatores domésticos – expressos, por exemplo, na forma como a terra foi originalmente apropriada e no papel das elites locais – constituem as raízes mais 1 remotas da explicação tanto do sucesso quanto do insucesso das economias das nações colonizadas pelos europeus após os grandes des- cobrimentos. Mais especificamente, este estudo pretende demonstrar que as raízes do atraso brasileiro podem ser encontradas no enorme poder de suas elites agrárias, durante o regime colonial, e que a vasta legislação portuguesa relativa ao regime de distribuição de terras era intrinsecamente democrática e contrária ao latifúndio improdutivo. Como, já no período colonial, a fonte do poder no Brasil era essencialmente local, os interesses provinciais constantemente se chocavam contra os do governo português, o qual nunca teve força suficiente para bloquear as iniciativas das elites agrárias brasileiras. O caso do Brasil, como será visto no decorrer deste trabalho, oferece um amplo conjunto de evidências que mostram como o comportamento das elites locais influenciou significativamente o curso e os resultados da colonização portuguesa no país. 2.O caráter democrático das leis das sesmarias e a inefetividade do poder imperial português As origens do sistema de distribuição da terra no Brasil são encontradas no regime de sesmarias da era colonial. É largamente aceito na literatura que a generosidade com que as concessões de terra realizadas por Portugal nos mais de três séculos de dominação lusa, juntamente com a constante preocupação da Coroa portuguesa de ligar o Brasil às correntes do comércio interna- Ph.D em Economia pela Universidade de Londres, Mestre em Economia pela Universidade de Yale. Professor aposentado da UFPE, professor titular em tempo integral do Curso de Mestrado em Gestão Empresarial da Faculdade Boa Viagem, no Recife, e Pesquisador bolsista nível I do CNPq. E-mail: [email protected] e [email protected]. Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA 5 “ ... a Lei das Sesmarias era, sem qualquer ambigüidade, especificamente voltada para evitar que a terra permanecesse inculta pelo seu proprietário... ” cional, foi responsável pela emergência do processo de apropriação privada de imensos tratos de solo agrícola em terras brasileiras e, consequentemente, pela exclusão social de uma vasta e majoritária parcela da população brasileira que ingressou na era moderna do desenvolvimento nacional na condição de posseiros, sitiantes, moradores ou agre- gados à grande propriedade. Entretanto, a questão da origem do sistema fundiário dos tempos coloniais é muito mais complexa e rica do que aparenta. Nas obras dos muitos autores que estudaram as origens do problema fundiário no Brasil, encontramse evidências bastante sólidas de que a exclusão do pequeno agricultor e a implantação das imensas propriedades que vieram a dominar o cenário rural do país, não eram objetivo da política de colonização, nem logo após o seu início e muito menos no curso dos séculos seguintes. Esses autores fornecem evidência suficiente para se concluir que o contrário, de fato, era a verdadeira intenção da vasta legislação portuguesa sobre matéria fundiária. Rodrigues (1951), Guimarães (1968), Cirne Lima (1954), Porto (s.d.), Faoro (1975), Bandecchi (1963), Lobo (1969), entre tantos autores brasileiros que estudaram com profundidade as origens e a evolução do sistema de concessões de terra no Brasil, concordam unanimemente que a instituição jurídica das sesmarias, que se originou em Portugal antes de ser transplantada em sua 6 integridade para a colônia americana, era, em sua real essência, contrária à grande e improdutiva propriedade. Concebida ao final do Século 14 e inserida nos vários códigos promulgados nos séculos seguintes (as Ordenações Reais Portuguesas: Afonsinas, de 1446, Manuelinas, de 1511 e Filipinas, de 1603), a Lei das Sesmarias era, sem qualquer ambigüidade, especificamente voltada para evitar que a terra permanecesse inculta pelo seu proprietário – a não obediência a essa lei (ou seja, a não utilização produtiva da terra) implicando a perda da propriedade e a sua transferência para alguém que necessitasse do solo agrícola e desejasse o seu cultivo. De acordo com Porto (op. cit), na época em que as primeiras concessões de terra foram feitas no Brasil, “a norma romana de repulsa ao solo inculto” fornecia as bases de toda a legislação portuguesa sobre o uso da terra, de sorte que o solo sem cultura era considerado “um crime contra a coletividade, contra o bem comum, contra o interesse geral” (pág. 26). Nesta mesma linha, Rodrigues (1951, pág. 82) assinala que “a lei das sesmarias era uma instituição jurídica e econômica contrária ao latifúndio” e Bandecchi (1963, pág. 24) afirma que as leis fundiárias portuguesas, fortemente inspiradas no Direito Romano, estabeleciam enfaticamente o princípio de que “a terra pertencia a quem a cultivava”. No que diz respeito ao efetivo cumprimento das leis portuguesas, os autores citados e outros, afirmam não ser matéria de disputa entre os historiadores, a real eficácia das leis das sesmarias em Portugal. Lobo (1969, pág. 268), por exemplo, comparando a experiência do Brasil com a de Portugal, assinala que “o Latifúndio não foi uma característica da metrópole, em virtude de a Lei das Sesmarias, de 26 de maio de 1375, requerer o efetivo cultivo do solo pelos seus proprietários”. Na mesma linha de argumento, Diegues Jr. (1967, pág. 52) afirma que “com raras exceções, a atividade agrícola na metrópole estava baseada na pequena propriedade” e que “a divisão da terra havia criado um re- Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA gime de exploração do solo sem o domínio dos grandes proprietários” (ver também a esse respeito, Faoro (1975), vol.1, pág. 123 e segs). Da consulta à vasta literatura documentada sobre a questão fundiária em Portugal, pode ser extraída a conclusão de que a legislação portuguesa com respeito ao uso da terra era, em geral, democrática tanto em seu conteúdo, quanto na prática, que seu objetivo era, claramente, o de impedir a formação do latifúndio e de propriedades ociosas, e que tinha a intenção deliberada de estimular o desenvolvimento da agricultura, através da promoção de uma vasta classe de pequenos agricultores. A rica legislação portuguesa que tinha, como foi visto, plena aplicação na metrópole e que deveria servir de base para a colonização das terras brasileiras, desde muito cedo demonstrou o seu completo fracasso na colônia, como é largamente reconhecido. Todavia é essencial aqui assinalar, que as autoridades portuguesas tentaram aplicar essas mesmas leis no Brasil, desde o início da colonização, e que esse objetivo permaneceu bem vivo durante todo o período colonial, como atesta uma série de iniciativas da metrópole – a seguir discutidas – na forma de legislações suplementares especialmente promulgadas para serem obedecidas pelos prepostos portugueses na colônia. Com efeito, as primeiras peças legislativas elaboradas pelo Governo de Portugal para disciplinar o processo de distribuição das terras no Brasil – os Decretos Reais a serem aplicados pelos primeiros donatários – estabeleciam muito claramente a intenção da Coroa portuguesa. Esses decretos, que envolviam a concessão de imensos tratos de terra a particulares, conferiam enormes poderes políticos aos donatários, mas não o direito à propriedade de todo o solo agrícola concedido (Porto, op.cit., pág. 21; Bandecchi, op.cit, págs. 28-29). De acordo com as cartas de concessão, as sesmarias concedidas eram divididas em duas partes: uma, que pertencia ao donatário (aproximadamente 1/5 do total), sobre a qual o seu titular exerceRDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO ria o total domínio; e a outra – os 4/ 5 restantes – com a clara especificação de serem distribuídas entre os demais colonos (PORTO, pág. 22)2. As condições para a efetiva aplicação das leis portuguesas no Brasil, contudo, eram inteiramente diferentes das que prevaleciam em Portugal. O enorme tamanho do país e a urgência do povoamento da colônia – necessária para evitar a sua perda para outras potências estrangeiras – aliados à escassez da população da metrópole e à relativa pobreza do Estado Português, impeliram a Coroa a tomar consciência de que somente oferecendo vantagens especiais poderia a colonização ser agilizada e ter-se garantida a ocupação do Brasil. Não é de surpreender, portanto, que os primeiros governadores gerais da colônia tenham recebido a incumbência específica de arregimentar “homens de cabedal para estabelecerem engenhos de açúcar e qualquer outra indústria” na colônia 3. O resultado dessa preocupação portuguesa de ocupar a colônia foi a de tornar o governo luso muito generoso com respeito à concessão de terras, pela óbvia razão de que apenas mediante o oferecimento de substanciais vantagens poderiam ricos empreendedores portugueses se sentir motivados a se deslocarem para o Brasil e embarcarem, quase às suas próprias expensas, em caras e arriscadas operações. Data, também desta época, a autorização da Coroa para a introdução da escravidão na colônia, seja através do aprisionamento do ameríndio, seja pela importação do negro africano. Mas, deve ser bem enfatizado que, embora estivesse sendo aberta uma larga avenida para a introdução do latifúndio no Brasil, o critério oficial de distribuição de terras, sob o novo regime dos Governadores Gerais, não sofreu nenhuma mudança nos seus princípios básicos. A terra deveria continuar sendo concedida apenas em quantidades que poderiam ser exploradas produtivamente pelo beneficiário, e continuava ainda prevalecendo o princípio do efetivo cultivo como condição essencial para a confirmação do direito à propriedade. Além do mais, foi estiRDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO pulado que o efetivo cultivo deveria se materializar dentro de um certo período de tempo, que variou, segundo a época, de dois a oito anos. E, finalmente, a terra deveria ainda ser concedida a todos os que a desejassem para cultivo, “independentemente da qualidade e condição” do demandante. O precoce sucesso da economia de plantation na costa brasileira ainda na primeira metade do século XVI – seguido, não muito depois, pela emergência da atividade criatória nos sertões – desde muito cedo gerou uma profunda divisão social na colônia, criando uma classe de poucos mas poderosos latifundiários e um vasto número de anônimos colonos, dedicados à produção de alimentos e ao pequeno criatório, seja para subsistência ou para fins comerciais. Nos primeiros anos da colonização, as poucas evidências parecem sugerir a não ocorrência de graves problemas fundiários em decorrência do padrão de apropriação da terra que ia tomando curso no Brasil. Embora a documentação para este período histórico seja bastante escassa, há autores que assinalam “que havia abundância de alimentos e que não se verificava qualquer espécie de escassez [na oferta de alimentos] nos primeiros anos da colonização no Brasil” (LINHARES, 1979, pág. 33). Outro autor, em seu prefácio a um livro originalmente publicado no início dos 1600s, sugere que a produção de alimentos era uma atividade bastante lucrativa no início da época colonial (CAPISTRANO DE ABREU, 1968, pág. 27), quer fosse praticada por in- divíduos que operavam propriedades médias e grandes (utilizando o braço escravo), quer por pequenos proprietários, posseiros ou sitiantes (usando mão-de-obra familiar). Mas, nos famosos “Diálogos da Grandeza do Brasil”, de 1618, Brandão já inquiria porque “havia tanta carestia” em meio “à grande fertilidade e abundância [de terras]” (Brandão, pág. 52 e pág. 328)4 – uma clara indicação, ao que parece, de que um processo de concentração da terra estava se desenvolvendo com toda a força, já antes de terminado o primeiro século da colonização. Com efeito, é possível encontrarse evidência suficiente de que a monopolização da terra via expropriação de pequenos colonos – posseiros, sitiantes, etc. – começou em datas muito remotas no Brasil, e que a colônia – que tinha ao final do seu segundo século de existência não mais que uns poucos milhares de habitantes de origem européia5 – estava experimentando o problema da escassez de terra e alguma espécie de pressão demográfica já desde os primeiros anos de sua vida econômica. Documentação encontrada em fontes contemporâneas fornece evidências, datadas ainda do século XVII, da existência de reclamações às autoridades coloniais no Brasil e em Portugal, com respeito ao fato de que muitos colonos estavam sendo deixados sem qualquer pedaço de terra para cultivarem ou para implantarem pequenas criações de animais, porque alguns indivíduos haviam recebido, ou apropriado à força, terras em quantidades muito 2 A famosa Carta de Concessão a Duarte Coelho, por exemplo, datada de 1530 e referente à Capitania de Pernambuco (todas as demais tinham o mesmo conteúdo), estabelecia explicitamente que as terras deviam ser dadas e concedidas “a quaisquer pessoas de qualquer qualidade e condição que sejam, conquanto que sejam cristãos, livremente, sem foro nem direito algum, somente o dízimo que serão obrigados a pagarem” à Igreja [e este apenas sobre o produto da terra] (...) e que “as sesmarias” [deveriam ser doadas] na forma e maneira que se contém em minhas Ordenações”, ou seja, aquelas que vigiam em Portugal. Cf. Cartas de Concessão a D. Coelho e a M.A. de Sousa reproduzidas em Porto (op.cit., pág .149) e Bandecchi (op.cit, págs. 29-30), respectivamente. 3 Cf. Regimento de Tomé de Sousa, primeiro Governador Geral do Brasil, de 1549, reproduzido em diversos trabalhos de historiadores brasileiros. 4 A resposta de Brandão, todavia, foi a de que a escassez e a carestia na colônia se deviam à “negligência comum e pouca indústria dos seus povoadores” (pág.328). 5 A população branca no Brasil, ao final do século XVII, é estimada em aproximadamente 100 mil, de um total de 300 mil habitantes, incluindo nesta cifra os escravos indígenas e africanos, e os mestiços livres. Cf. Furtado (1963, pág. 81). Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA 7 maiores do que a sua efetiva capacidade de cultivo6. Ocorre que, no curso dos primeiros dois séculos de colonização, aqueles que haviam recebido doação de grandes sesmarias começaram a adicionar mais terras às suas propriedades – tanto por meios legais, quanto ilegais, especialmente por esta última forma. Este fato veio a dar origem, num curto espaço de tempo, à formação de uma “aristocracia” de invasores de terra, constituída de plantadores de produtos de exportação e de pecuaristas – que passaram, pouco a pouco, a exercer influência decisiva nos negócios internos da colônia. Porto, dentre vários outros autores, assinala que são encontrados registros de sérias disputas fundiárias entre sesmeiros e posseiros no Brasil, ainda no transcorrer do Século XVII (pág. 71). Tais disputas, explica Porto, resultavam do sistema de distribuição de terras que veio a prevalecer na colônia, através do qual não apenas a Coroa portuguesa tinha o poder de conceder sesmarias, mas também diversas autoridades coloniais que residiam no Brasil, desde os Governadores Gerais até mesmo meros funcionários provinciais. Desta forma, como as autoridades coloniais no Brasil eram fortemente sujeitas à influência das elites locais, excessos na distribuição de terra tornaram-se muito cedo prática comum na colônia. É interessante assinalar que as inúmeras queixas e reclamações acerca dos abusos cometidos, sejam por antigos beneficiários de sesmarias, sejam pelos agentes reais na colônia, provocaram uma pronta reação do governo português, através de uma série de medidas voltadas para coibir as arbitrariedades da política de concessão de terras e para impedir os excessos de poder dos grandes latifundiários brasileiros. A literatura histórica disponível oferece bastantes evidências a respeito dessa questão. Um vasto número de editos, decretos, instruções, provisões, regulamentos e outros instrumentos legais da época, originários de Portugal e que estão disponíveis nos arquivos 8 históricos no Brasil, documentam as constantes e reiteradas tentativas do governo português, para remediar a questão fundiária na colônia. Uns poucos exemplos dessas tentativas são descritos a seguir. Em 1682, um Edito Real foi promulgado, conferindo poderes ao Governador da Bahia para tomar de volta as propriedades de sesmeiros que haviam descumprido a obrigação de cultivar as terras recebidas, e ordenava que este as concedesse a quem desejasse cultivá-las, dandose preferência aos colonos que já residiam na Capitania (GUIMARÃES, 1968, pág. 54). Um decreto Real de 1695, objetivando restringir o tamanho das novas sesmarias a serem concedidas, estipulava 5 léguas como a máxima dimensão que uma sesmaria poderia alcançar. Dois anos depois, outro decreto restringia esta área para apenas 3 léguas, um outro, logo a seguir, a reduzia para 2 léguas e, mais adiante, outros decretos ordenavam reduções ainda maiores, para uma légua e para meia légua, em alguns casos (PORTO, op. cit. pág. 74). Em 1699, um novo decreto “ameaçava os latifundiários de expropriação das terras que eles não podiam ou não queriam cultivar, em favor de outras pessoas que poderiam ou queriam cultivá-las” e, nas suas justificativas assinalava que uma das razões principais pelas quais os sertões do Brasil não eram adequadamente povoados e cultivados, decorria da “voracidade dos grandes senhores de terra” (BOXER, 1962, pág. 228). Um outro Edito Real, também datado de 1699 e citado por Boxer (op. cit., pág. 229), fazia menção “a poderosos indivíduos nos sertões oprimindo os pobres e os humildes, que se sentiam temerosos até de ousarem recla- Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA mar”, e nele, segundo Boxer, “o Rei ordenava que o Governador Geral investigasse cuidadosamente o assunto e tomasse medidas enérgicas contra magnatas da terra que fossem considerados culpados de tais práticas, forçando-os a restituírem toda e qualquer terra ilegalmente adquirida” (pág. 229). Assim, evidências tanto da determinação da Coroa portuguesa em impor a sua vontade em questões relativas ao uso e distribuição da terra, quanto da ineficácia de suas ações, podem ser extraídas da vasta e ao mesmo tempo vã, legislação sobre o sistema sesmarial no Brasil, que se estende desde praticamente o início da colonização até as primeiras décadas do século XIX.7 Vários autores fazem detalhado relato de inúmeras outras tentativas do governo português, ao longo aos século XVIII e XIX, de interferir na questão fundiária da Colônia. Rodrigues (1951, pág. 79), dá ênfase a um decreto Real de 1711, e às Provisões de 1727 e 1743, assinalando que “o espírito dos editos era o mesmo: a idéia de colocar em cultivo o solo não cultivado, re-dividir a grande propriedade e favorecer a agricultura”. Na mesma linha, Porto (op.cit. pág.98), cita um edito Real de 1753, que determinava que “se desse preferência aos que tiverem roteado e cultivado os sítios, mesmo em se tratando de rendeiros, pelo princípio de que as sesmarias foram dadas para exploração e não para se darem de renda”. Uma menção final deve ser feita ao Edito Real de 1795, que é considerado, dentre a vasta legislação portuguesa especificamente dirigida ao Brasil, como talvez a mais completa e minuciosa Lei de Sesmarias do período colonial. Este edito estabelecia que “os governadores não deverão conceder, principalmente em 6 Cf. Livro das Terras, 1860, de Vasconcelos, J.M.P., que reproduz documentos históricos dos arquivos do Governo da Bahia e dos arquivos da Fazenda Portuguesa. Apud Guimarães (1968, págs. 53-54; e Leite (1963, págs. 33-35). 7 É interessante ressaltar que, logo após a Independência, o Imperador Pedro I suspendeu o regime de concessão de sesmarias, sob a alegação de que, com o seu ato, o Brasil poderia praticar uma nova política de distribuição de terras capaz de estimular a imigração e facilitar o processo de conversão do país de uma economia baseada na escravidão para outra centrada na mão-de-obra livre. Alguns anos depois, o Imperador Pedro II fazia candentes apelos ao Parlamento para que fosse aprovada uma lei justa e democrática de distribuição de terras. Todavia, depois de muitas discussões, a nova Lei da Terra finalmente aprovada pelo Congresso brasileiro, no ano de 1850,teve um caráter extremamente conservador, legitimando todas as terras ocupadas, legal ou ilegalmente pelos grandes fazendeiros e eliminando, na prática, qualquer possibilidade de legalização, titularização e aquisição de lotes ocupados por pequenos posseiros ou moradores (BROWNE, 1972, pág.222 e segs.) RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO áreas próximas às capitais ou das margens de estradas e de rios navegáveis, mais do que meia légua de terra, para que a igualdade possa prevalecer entre todos os moradores” (apud Rodrigues, op. cit., pág. 80). Esta mesma lei proibia, ademais, a concessão de mais de uma sesmaria para cada pessoa, justificando-se tal proibição sob o argumento de que “ninguém deveria receber mais terra do que poderia ser capaz de cultivar por si mesmo ou com ajuda de escravos”, e reiterava, mais uma vez, o princípio da devolução, no caso de verificada a impossibilidade de cultivo (idem, pág. 80). O conteúdo “revolucionário” deste edito Real era tão forte que, mesmo diante da tradição de não obediência às leis portuguesas no Brasil, desta vez as elites locais formalmente se opuseram à Coroa portuguesa, obrigando o Rei a revogar o edito cerca de um ano após a sua promulgação (ibidem, pág. 80). É desnecessário multiplicar, aqui, as evidências referentes às disputas entre colonos pobres e ricos proprietários, às inumeráveis demandas de residentes contra a expropriação de suas terras, e à abundante legislação portuguesa voltada para frear o processo de monopolização da terra na era colonial. As evidências já assinaladas são suficientes para se concluir que o padrão de uso e distribuição da terra, que o Brasil herdou sob o domínio português, foi certamente derivado do sistema de sesmarias, mas não da vontade e das legislações portuguesas – desde as primeiras cartas de concessão, até as sucessivas e reiteradas peças legislativas promulgadas para o Brasil durante mais de três séculos de jugo colonial. Ao contrário, todas as evidências sugerem que o regime fundiário que efetivamente veio a prevalecer na colônia foi, de forma essencial, o resultado do poder e da influência das elites rurais brasileiras. É importante assinalar que as tentativas de Portugal de corrigir e redirecionar seja a sua política de concessão de terras, seja, principalmente, a de seus agentes na colônia, não resultou de qualquer magnanimidade do governo português, mas de sólidas razões de ordem econôRDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO mica e política. Uma melhor distribuição das terras servia aos interesses da Coroa portuguesa de várias e simultâneas maneiras. Primeiro, porque facilitaria a ocupação e o povoamento de um vasto território que era objeto de disputa por outras nações européias, as quais, insistentemente, invocavam o princípio da efetiva ocupação (a lei internacional do Uti Possidetis, vigente na Europa logo após os grandes descobrimentos) como a única forma de um país poder reclamar o direito à posse das novas terras descobertas. Segundo, porque ajudaria a resolver o importante problema da oferta de alimentos na colônia – um problema que Portugal não poderia resolver sozinho, dadas às limitações de sua própria economia. Vale a este respeito assinalar que, como as grandes plantations e as fazendas pecuárias, quando muito cuidavam de suas próprias necessidades, a escassez de gêneros alimentícios alcançava, com muita freqüência, um estado de calamidade pública nas vilas e cidades brasileiras, criando sérios embaraços para a administração portuguesa. Além do mais, como a escassez de alimentos constituía, em si mesma, um obstáculo à política de povoamento e de penetração do interior, a monopolização da terra veio a ser vista, aos olhos de Portugal, como claramente danosa aos interesses imperiais. Uma outra importante razão que levou o governo português a desejar uma melhor distribuição das terras foi a própria necessidade que Portugal sentiu de promover a diversificação da base econômica da colônia. O declínio da atividade açucareira, já na primeira metade dos 1600s e, no século seguinte, o da mineração, representaram duros golpes para o Tesouro português, de modo que a busca de outras alternativas produtivas na colônia se tornava uma questão de vital importância para uma metrópole que se via num processo inexorável de empobrecimento. A consecução dos objetivos da Coroa – que passavam necessaria8 “ ... a terra se tornou a fonte por excelência de renda, de riqueza, de prestígio e, acima de tudo, de poder... ” mente pela expansão da oferta de gêneros alimentícios e pela diversificação da economia – demandava, por razões óbvias, uma melhor distribuição das sesmarias, e aqui é possível localizar uma primeira fonte de explicação das tentativas portuguesas de frear a contínua expansão do latifúndio. Essas tentativas, contudo, desde muito cedo geraram um grave conflito de interesses entre o governo português e as elites proprietárias da colônia, porque estas últimas passaram a ver, na aplicação das leis de sesmarias, uma limitação ao seu direito de propriedade e uma séria ameaça ao monopólio da terra. Como muito cedo no Brasil, a terra se tornou a fonte por excelência de renda, de riqueza, de prestígio e, acima de tudo, de poder, a reação dos grandes proprietários de terra foi a de desenvolver uma crescente autonomia vis-à-vis a metrópole, como forma de resistência ao cumprimento de uma legislação fundiária que, se favorecia aos interesses imperiais, claramente não atendia aos das elites agrárias da colônia. Não é de estranhar, portanto, que desde também muito cedo o governo português tenha se dado conta de que o excessivo poder das elites rurais brasileiras constituía formidável obstáculo à consecução de vários objetivos da metrópole8. E aqui é encontrado outro motivo que estava por trás das tentativas portuguesas de promover uma melhor distribuição das terras no Brasil, através do apelo ao cumprimento da lei das sesmarias: como esta lei continha, como principal provisão, a devolução à Coroa de todas as terras con- Faoro assinala que o indígena, o estrangeiro e o senhor de terras eram os três grandes inimigos do reino português e afirma que o último era, de todos, o maior inimigo das autoridades coloniais (FAORO, 1975, vol. 1, pág.123 e págs.143-8). Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA 9 “ ... a autonomia dos senhores de terra sobreviveu a todas as tentativas portuguesas de centralização... ” cedidas mas não cultivadas, a sua aplicação claramente exerceria o efeito de enfraquecer o poder dos senhores de terra e, consequentemente, a sua autonomia perante as autoridades coloniais9. Mas a autonomia dos senhores de terra sobreviveu a todas as tentativas portuguesas de centralização. Na verdade, aumentaram, com o tempo, o poder político e a autonomia das elites proprietárias brasileiras, em larga medida por conta do fato de que enquanto a base econômica do Brasil se expandia, a de Portugal declinava, no que resultava o enfraquecimento do poder metropolitano sobre a sua vasta e relativamente próspera colônia. Além do mais, deve ser assinalado que as políticas portuguesas no Brasil eram, não raro, ambíguas e contraditórias. Se Portugal tomava, de um lado, medidas às vezes drásticas para frear o poder dos latifundiários, de outro, não poderia ir muito longe na sua oposição aos interesses das elites rurais, já que o governo luso dependia dessa mesma classe para a realização da relação colonial – ou seja, para que fosse implementado o mecanismo de transferência de recursos da colônia para a metrópole. E, por fim, vale ressaltar que as autoridades portuguesas no Brasil geralmente se aliavam às poderosas elites locais, ambas, muito frequentemente, até mesmo se contrapondo à causa real – especialmente em assuntos relativos ao uso e distribuição da terra10. condicionantes locais deixaram marca profunda nos rumos do desenvolvimento do país, de tal sorte que é possível concluir que forças domésticas, talvez mais que externas, operaram como fatores determinantes do atraso do Brasil colonial, influenciando, redirecionando e alterando o curso e os resultados da colonização. Comparado ao Brasil, Portugal era uma pequena e decadente potência imperialista. Em nível mundial, esse país se apresentava como um império em franco e inexorável declínio. A colônia, ao contrário, devido às suas dimensões e potencialidades, tornou-se, desde cedo, uma das principais fontes externas de sustentação econômica de uma metrópole empobrecida. Todavia, por ter desenvolvido uma economia quase exclusivamente de base latifundiária, os negócios internos da colônia passaram a ser crescentemente controlados por uma aristocracia de grandes proprietários, que monopolizaram muito precocemente vastas extensões de terras produtivas, impediram a diversificação da agricultura e bloquearam a emergência de uma classe de pequenos e médios agricultores, os quais, em outros países de colonização recente, contribuíram decisivamente para dar origem, em fase posterior, a um desenvolvimento capitalista mais democrático e avançado, tanto política quanto economicamente. Em virtude do fato de a principal fonte de poder, ao longo de todo o período colonial, ter tido origem local ou no máximo provincial, e ba9 O cumprimento da lei das sesmarias foi apenas uma das várias maneiras pelas quais o governo português tentou resistir ao poder das elites agrárias brasileiras. Um conjunto de outras iniciativas podem ser citadas, tanto compreendendo medidas diretamente destinadas a aumentar o controle da administração portuguesa sobre os negócios internos da colônia, quanto através de medidas indiretas, voltadas para o estímulo à formação de novos grupos sociais, de modo a tornar mais difusas as fontes de poder na sociedade colonial. O alargamento da burocracia do Estado, a fundação de vilas e cidades (criando-se, assim, uma base urbana na colônia para servir de contrapeso ao poder das elites rurais), a instalação de câmaras municipais, as constantes substituições dos quadros dirigentes na colônia por novos funcionários mais leais à Coroa, o ostensivo apoio à classe dos comerciantes e mercadores, e as inúmeras tentativas de promover a imigração de colonos açorianos para o Brasil - são ilustrações de algumas das iniciativas do governo português dirigidas ao aumento dos poderes centralizadores da metrópole (para uma discussão das tentativas portuguesas de aumentar o seu poder político na colônia vis-à-vis as elites locais, ver, por exemplo, Boxer (1962), Faoro (1975), Queiroz (1976), Guimarães (1968) e Roett (1984). No que se refere às iniciativas do governo português de fomentar a imigração de pequenos colonos durante o período colonial, ver particularmente Browne (1972). 10 Há uma vasta literatura disponível que enfatiza e documenta a autonomia que as elites rurais brasileiras gozavam durante a época colonial. Ver particularmente os trabalhos de Guimarães (1968), Queiroz (1976), Linhares (1979), Faoro (1975), Boxer (1962), Roett (1984) e Prado Jr. (1979). 11 Novais (1979) descreve, com detalhes, o vasto número de iniciativas do governo português neste sentido. 3. Conclusões Os fatos e argumentos aqui apresentados enfatizaram a enorme importância de fatores internos na formação social do Brasil colônia. No curso dos três séculos e duas décadas do domínio colonial português, 10 Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA seado na propriedade da terra, a Coroa portuguesa e suas altas autoridades na colônia puderam ser constantemente e eficazmente desafiadas pelas elites políticas locais (que incluíam as cooptadas autoridades portuguesas de escalões inferiores), alcançando-se uma situação em que as políticas portuguesas para a colônia tinham remotíssimas chances de sucesso se não contassem com o decidido apoio das elites rurais brasileiras ou se conflitassem com os interesses dessas mesmas elites. A experiência brasileira apresenta inúmeras evidências de que tendia sempre ao fracasso a implementação de qualquer iniciativa da Coroa que fosse vista como danosa aos interesses das elites locais. Este foi o caso, por exemplo, de uma série de medidas na área econômica que, embora ditadas por interesses imperiais, mesmo assim teriam produzido implicações positivas para o desenvolvimento da colônia, tais como a obrigatoriedade da construção de estradas contida nas cláusulas de doação de terras, os apelos à produção de alimentos, os incentivos à diversificação de culturas, as tentativas de melhorar a distribuição das terras e a promoção da imigração de pequenos colonos, além de várias outras iniciativas que poderiam ter resultado em melhorias tecnológicas tanto na agricultura, quanto nas atividades da mineração – as quais, eventualmente, poderiam ter propiciado o desenvolvimento de uma embrionária produção manufatureira ainda na época colonial11. RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO Na mesma linha de raciocínio, também foi o caso de um amplo espectro de medidas proibitórias – dentre as quais se destacam, especialmente, o famoso Edito Real de 1785 proibindo a produção de tecidos, e os esforços para a eliminação do contrabando na colônia, que tantos prejuízos causavam ao erário imperial – que as autoridades portuguesas não tiveram poder suficiente para efetivá-las12. De todo o exposto, é possível concluir, então, que a efetiva capacidade que Portugal teve de bloquear o desenvolvimento da colônia foi muito menor do que se costuma acreditar, e que, de fato, o verdadeiro poder de obstrução do desenvolvimento do Brasil colonial resultou do comportamento das elites rurais brasileiras – estas sim, na realidade, os grandes e poderosos agentes políticos na colônia. O regime de monopolização da terra e outras características perversas do sistema de uso do solo que a colônia herdou na época da independência – e que ainda se preservaram no Brasil moderno – explicam, sem dúvida, mais do que qualquer outro fator externo, o lento desenvolvimento do mercado interno, o retardamento da industrialização e a ausência de uma rede inter-regional eficiente de transportes (ferrovias, principalmente) – todos esses fatores constituindo, na verdade, os grandes obstáculos para que o Brasil emergisse, no século XXI, como uma nação desenvolvida e com padrões de distribuição de renda socialmente aceitáveis. Referências bibliográficas BANDECCHI, B. Origem do Latifúndio no Brasil. Ed. Fulgor, São Paulo, 1963. BROWNE, G.P. Government Immigration Policy in Imperial Brazil. 1822-1870. Dissertação Doutoral, The Catholic University of America, 1972. LINHARES, M.Y.Leite. História do Abastecimento – Uma Problemática em Questão (1530-1918). 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O PAPEL DAS BACIAS HIDROGRÁFICAS E DO ZONEAMENTO ECOLÓGICO-ECONÔMICO1 Ana Flávia Marques2 Virgínia Elisabeta Etges3 Heleniza Ávila Campos4 Resumo Pensar a região, segundo a racionalidade ambiental, como escala de desenvolvimento no mundo globalizado contemporâneo, implica em assumir um projeto de desenvolvimento que parta da periferia e não do centro; que considere as particularidades, como potencialidades; que reconheça e tenha em conta as diferentes territorialidades exercidas pelos grupos sociais presentes; que esteja voltado para a sustentabilidade sócio-ambiental, o exercício da cidadania e a justiça ambiental. Na busca por palcos para este desejado novo modelo de desenvolvimento, a pesquisa aqui apresentada, através do método de abordagem dialético, mas sem a pretensão de chegar a uma síntese totalizante, analisou dois instrumentos que podem ser tidos como parâmetros para uma regionalização dos territórios feita sobre novas bases: a gestão de bacias hidrográficas, usada no estado do Rio Grande do Sul e o Zoneamento Ecológico-Econômico, aplicado nos estados da Amazônia Legal. As análises feitas proporcionaram, entre outras as seguintes conclusões: (1) as bacias hidrográficas oferecem a possibilidade de se efetuar uma regionalização que considere os conflitos sócio-ambientais, não necessariamente relacionados às divisões político-administrativas propostas pelo IBGE, nem sequer com as fronteiras que separam os países, podendo suplantar as divisões regionais 12 nacionais e setoriais, possibilitando uma visão mais ampla e sistêmica das realidades regionais; (2) no que se refere ao ZEE, apesar de todas as críticas feitas a sua operacionalização, não se pode desconsiderar as possíveis contribuições deste instrumento no processo de ordenamento territorial, especialmente se for reorientado, focando sua metodologia numa visão legitimamente sistêmica do território. Palavras-Chave: Regionalização; Bacias Hidrográficas; Zoneamento Ecológico-Econômico. Abstract In this research, the conception of region, according to environmental rationality and understood as a field to development in the contemporary world, implies in assuming a development project that starts from ecosystem periphery, and no more the cent, considering their particularities as resources. This point of view recognizes the importance of different territorialities built by social groups toward social and Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA environmental sustainability, citizenship practices and environmental justice. This research analyses two regional planning tools that can be used as parameters for a regionalization of territories, used in two different Brazilian spatial realities: the Hydrographic Basins, used in Rio Grande do Sul and the EcologicalEconomic Zoning (EEZ), applied in the Legal Amazon. This investigation searches new proposals to a development model, using Dialectic as method of approach, but without the pretension to arrive at a global synthesis. The analyses provided, the following conclusions, among others: (1) in one hand, the Hydrographic Basins offer new possibilities to implement a regionalization that considers the social and environmental conflicts, not necessarily related as political divisions, as proposed by IBGE, nor even as frontiers between countries, making possible a broad and systemic view of regional realities; (2) in other hand, we cannot leave behind the EEZ contributions as tool used in terri- 1 O presente artigo apresenta resultados parciais da pesquisa desenvolvida para a dissertação de mestrado de Ana Flávia Marques. 2 Ana Flávia Marques é Mestre em Desenvolvimento. Regional, UNISC/RS. Bióloga, Especialista em Ciências Ambientais, URI/Erechim/RS. E-mail: [email protected]. Endereço: José de Alencar, 346. Verena. Santa Cruz do Sul. RS. CEP: 96820240. Fones: (51) 3717.4106 e (51) 81667688. 3 Virgínia Elisabeta Etges é Doutora em Geografia Humana, USP/SP. PhD em Planejamento Urbano e Regional, Technische Universität Berlin, Alemanha. Profª do Programa de Pós Graduação em Desenvolvimento Regional e do Departamento de História e Geografia da UNISC/RS. E-mail: [email protected]. 4 Heleniza Ávila Campos é Doutora em Ciências Geográficas, UFRJ/RJ e University of Durham/ Inglaterra. Profª do Programa de Pós Graduação em Desenvolvimento Regional e do Departamento de Arquitetura da UNISC/RS. E-mail: [email protected]. RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO torial organization, although all critics that had been made about its implementation, specially if we consider the possibility of its re-orientation, focusing its methodology in a systemic view of the territory. Key Words: Regionalization; Hydrographic Basins; Ecological-Economic Zoning. 1. Introdução Entendendo a regionalização enquanto método de ordenamento territorial e – em uníssono com Lassere (1976 apud LEITE, 1994) – em última análise, não mais que um elemento da estratégia de desenvolvimento, fazse necessário, para se analisar o processo de regionalização e suas antinomias, considerar as próprias antinomias da sociedade pós-moderna no que se refere às estratégias de desenvolvimento, especialmente porque é na Pós-Modernidade que estas passam a ser questionadas, principalmente em resposta à descoberta das ‘mentiras da Modernidade’5. (HARRIS, 2004). O ordenamento territorial enquanto expressão máxima da ação humana sobre o espaço reflete diretamente as transformações sociais pelas quais o mundo passa. Prova disso é o ano-marco 1989, quando da queda do Muro de Berlim – e, com ele do Socialismo Real – e quando surgem evidências incontestáveis das ‘falhas’, de um capitalismo que se julgava totipotente expostas nas grandes conferências internacionais sobre o ‘estado do mundo’. As reflexões que emergem destes fatos situam-se no campo da crise do modelo de desenvolvimento dominante: o capitalismo, nos moldes correntes, mostrase insustentável, exatamente no momento em que o socialismo perde suas bases. Em torno desta época, surgem os discursos acerca do Desenvolvimento Sustentável ou Ecodesenvolvimento6. Neste contexto, os territórios passam por uma transformação que, para muitos, ameaça a sua própria existência – segundo a teoria da desterritorialização ou fim dos territórios7 -, isso no bojo de um mundo que RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO se globaliza na busca por novos mercados consumidores e novos espaços produtivos. O cenário que se desenha rapidamente marca a emergência de fenômenos e atividades deslocalizados, o que é garantido principalmente pelos avanços nas telecomunicações e nos transportes, transformando os sentidos de tempo e espaço. Surgem, entre outros fenômenos: – o chamado espaço virtual ou ciberespaço, cuja existência é atestada pela Física na forma de um hiperespaço com onze dimensões (WERTHEIM, 2001); – o fenômeno de fronteiras: no mundo globalizado, ao mesmo tempo em que se dissolvem para o capital, as fronteiras fecham-se cada vez mais para a força de trabalho, numa nova expressão de xenofobia8; – a influência dos lugares – mesmo os mais distantes – uns sobre os outros através da universalização das ciências e das técnicas. Segundo Eric Hobsbawn (1996), a história de cada porção da superfície terrestre não é mais autônoma, mas dependente, em maior ou menor grau, de processos universais; – divisão territorial do trabalho, caracterizada por especializações produtivas (CORRÊA, 1997); – a ligação dos territórios em rede, formando os arranjos espaciais descritos por Milton Santos (2004, p. 284), que não se dão apenas através de figuras formadas por pontos contínuos e contíguos: “Hoje, ao lado dessas manchas, ou por sobre essas manchas, há, também, constelações de pontos descontínuos, mas interligados, que definem um espaço de fluxos reguladores”, conformando forças horizontais (pontos contínuos no espaço – regiões, em sua definição tradicional) e verticais (pontos descontínuos, que asseguram o funcionamento global da sociedade e da economia – circulação, distribuição, consumo: “fluxos materiais e imateriais que percorrem a superfície terrestre, integrando pontos e áreas diversos”). (SANTOS, 2004, 189)9. Todos os fenômenos acima discutidos, e outros tantos não abordados, atestam, em maior ou menor grau, a predominância da racionalidade do capital10 na organização territorial, estabelecendo uma clara hierarquia: os territórios existem e ordenam-se em função de arranjos organizacionais internacionais, responsáveis por uma coesão também organizacional, baseada na racionalidade das economias mundializadas. Vázquez Barquero (2001, p.15) ratifica o dito: A globalização é um processo vinculado ao território, não apenas porque envolve nações e países, mas, sobretudo, porque a dinâmica econômica e o ajuste produtivo dependem das decisões sobre investimento e localização tomadas pelos atores econômicos11, sendo também uma função dos fatores de atração de cada território. Trata-se, portanto, de uma questão que condiciona a dinâmica econômica das cidades e 5 Uma das ‘mentiras da Modernidade apontadas por Harris (2004) é a promessa de domínio total do homem sobre a natureza, e outra, a de que a tecnologia seria capaz de resolver qualquer problema ambiental provocado pelo modelo entrópico de desenvolvimento. A tecnologia não só se mostrou ineficaz neste papel, como o seu próprio avanço foi, algumas vezes, barrado por contingências ambientais. 6 Os conceitos de desenvolvimento sustentável e ecodesenvolvimento serão discutidos no item 2 do presente artigo. 7 A teoria da desterritorialização ou fim dos territórios é defendida por alguns pensadores que acreditam que, na contemporaneidade, “o homem pode viver sem território, que a sociedade pode existir sem territorialidade, como se o movimento de destruição de territórios não fosse sempre, de algum modo, sua reconstrução em novas bases”. (Haesbaert, 2004, p. 16). 8 Margareth Wertheim (2001, p. 17) exemplifica o fenômeno das fronteiras, do ponto de vista norteamericano: “Há ‘bárbaros’ martelando nossos portões [...]: as ‘hordas latinas’ do sul, que, ao que nos dizem, iriam exaurir nossos sistemas de seguridade social e assistência médica; há as ‘hordas amarelas’ da Ásia, que estariam supostamente roubando nossos empregos com sua mão-de-obra barata e solapando nossa economia com seus aparelhos eletrônicos duvidosos e suas roupas produzidas em massa”. 9 As noções de horizontalidades e verticalidades serão discutidas no item 2 do presente artigo. 10 O conceito de racionalidade será discutido no item 2 do presente artigo. 11 Grifo nosso. Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA 13 regiões e que, por sua vez, é afetada pelo comportamento dos atores locais. Num outro extremo da Pós-Modernidade, emerge o contra-movimento formado por forças, ou contra-forças agindo em direção contrária às forças de globalização. Estas contraforças têm ação centrípeta – originada e voltada para o local, o regional; enquanto as forças globalizantes são centrífugas – voltadas ao mercado/ mundo. (SANTOS, 2004). Este contramovimento não é necessariamente um movimento de embate, de luta contra as forças da globalização; ao contrário, é um movimento de inserção, mas que se manifesta no fortalecimento do local e do regional, na busca pelas particularidades que, ao contrário do que se pode pensar num primeiro momento, não isolam ou individualizam, mas integram, constituindo-se em ‘moeda de troca’ para a inserção nos fluxos do mercado/ mundo global. A respeito disso, José Luiz Coraggio, em sua fala, afirma que a própria globalização pressupõe a diferenciação: La celebración de la diferencia no sólo no se opone sino que está instalada en el discurso sobre la globalización, lejos de expresar una contraposición a los procesos de globalización, el mantenimiento o incluso la amplificación de las diferencias entre lugares y sociedades aparece como constitutiva de aquellos. En términos muy generales, la complejidad y el desarrollo de un sistema supone no la homogeneización sino la diferenciación creciente (Coraggio, J. L., 2005, p. 2). des marcas da Pós-Modernidade) e como questionamento à racionalidade e aos paradigmas teóricos que impulsionaram e legitimaram o crescimento em bases puramente econômicas. Estas novas racionalidades e os pensadores que as gestaram – entre eles, Leff, que teoriza a racionalidade ambiental; Morin, que apresenta um método para lidar com a complexidade manifestada nos mais diversos campos da contemporaneidade; Giddens, que aponta a emergência da sociedade de risco; Brandão e Boff, que falam da necessidade de uma ética inter-específica – estão imersos no que pode ser entendido como o zeitgeist pós-moderno: a busca pelos híbridos – expressão de Bruno Latour (2005) – entre natureza e cultura. Esta busca reflete a insatisfação com preocupações e ações unifocais, que desconsideram suas repercussões em outras áreas12. E é no ponto de ruptura aí manifesto – que repete a tensão historicamente registrada por outros momentos caracterizados pela busca por novos paradigmas – que surge espaço para a racionalidade ambiental. Esta, formada por um conjunto de interesses e práticas sociais articuladoras de ordens materiais diversas, que atribuem sentidos e organizam processos sociais através de certas regras, meios e fins socialmente constituídos. Processos estes, que especificam o campo das contradições e relações entre a lógica do capital e as leis da vida; entre a dinâmica dos processos ecológicos e as transformações dos siste- As contra-forças são gestadas socialmente, culturalmente, politicamente e economicamente, através da ratificação das diferenças territoriais – como manifestação de outras tantas diferenças. É pela ação das contra-forças que o capitalismo industrial não homogeneíza os espaços, mas cria, desfaz e refaz unidades específicas, muitas delas configuradas como regiões (CORRÊA, 1997). Ainda no campo de ação do contra-movimento, surge espaço para novas racionalidades emergentes como resposta à crise (uma das gran- 14 Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA mas sócio-ambientais (LEFF, 2004), estando imersos no já referido campo do hibridismo entre natureza e cultura. Conseqüentemente, a racionalidade ambiental busca por uma análise da crise – e dos riscos nela presentes – cujo ponto de partida é uma aproximação conjunta entre as Ciências, especialmente as Sociais e Ambientais. Nada mais necessário, quando se trata de lidar com problemáticas de cunho sócio-ambiental 13. Nesta perspectiva, a racionalidade ambiental embasa uma visão de território que parte da própria concepção deste enquanto um híbrido de sociedade + natureza, ou seja, de meio ambiente, política, economia e cultura; de objetos materiais e objetos ideais; de movimento e estabilidade ou fixos e fluxos, como afirma Milton Santos (2004). Este território híbrido abre espaço para o diálogo entre as múltiplas manifestações de poder, do mais macro – verticalizado, proveniente das ações políticas estatais nacionais e dos poderes organizacionais globalizados, ao mais micro – horizontalizado, expressão das múltiplas territorialidades que podem coexistir em diferentes escalas territoriais e podem emergir como manifestações culturais, identitárias, expressões da diversidade e da cidadania. É neste território híbrido que as regiões voltam à cena como escalas intermediárias entre o nacional e o global, continentes e conteúdos das escalas locais, que podem configurar-se em espaços das particularida- 12 Os problemas do crescimento econômico ‘desencaixado’ dos demais aspectos, especialmente os relacionados à capacidade de suporte dos sistemas naturais, acabaram por gerar a necessidade de uma nova definição para a sociedade capitalista que - para muitos pensadores, entre eles Ulrich Beck e Anthony Giddens (1997) - não é mais uma sociedade de classes, mas uma sociedade de risco. Denominação esta, baseada na lógica negativa da distribuição de males sociais e pessoais. A teoria dos riscos pode ser compreendida enquanto uma resposta da teoria social à degradação do ambiente e à política de ambiente. Busca localizar as origens e conseqüências da degradação do ambiente precisamente no centro de uma teoria da sociedade contemporânea, em vez de considerá-la um elemento periférico ou uma reflexão teórica a posteriori. Para esclarecer ainda mais acerca da sociedade de risco, David Goldblatt (1996, p. 228), explica que “A sociologia de Beck e as sociedades que ela descreve são dominadas pela existência de ameaças ecológicas e pela forma como as entendemos e lhes reagimos. Na realidade, podemos ser levados ao ponto de afirmar que a sociedade de risco é firmada e definida pela emergência destes perigos ecológicos, caracteristicamente novos e problemáticos”. 13 A racionalidade ambiental pressupõe uma ‘união de forças’, que evitaria os problemas de abordagens unifocais por parte das Ciências Sociais que, em geral, desconhecem as especificidades dos importantes processos naturais que ocorrem nos territórios e suas implicações na implementação de intervenções locais, regionais ou mesmo globais, e das Ciências Ambientais, que ignoram a complexidade dos fenômenos sociais e a forma como estes interferem nas estruturas naturais. O diálogo entre ambas as especificidades científicas parece ser a chave para o delineamento de propostas coerentes para um desenvolvimento assentado em outras bases. RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO des, das individualidades, do convívio das multiplicidades, do exercício do micropoder cidadão, capaz de interagir e integrar-se às demais escalas. Para que isso ocorra, o próprio processo de ordenamento territorial expresso na regionalização precisa ser repensado; os parâmetros que determinam a regionalização dos territórios precisam ir além daqueles impostos pela racionalidade do capital; precisam constituir-se em parâmetros que partam dos preceitos de sustentabilidade, justiça ambiental e exercício da cidadania – a necessidade destes parece constituir-se em unanimidade na percepção dos estudiosos das crises contemporâneas. 2. Racionalidade e Desenvolvimento Conforme já afirmado anteriormente, cada concepção de natureza está atrelada a uma determinada racionalidade14, e também (a partir da Antigüidade, nos povos ditos ‘civilizados’) a um ideal de desenvolvimento. A maneira de entender a natureza mudou bastante desde os povos primitivos até a Pós-Modernidade, tantas vezes quantas transformou-se a matriz racional da humanidade. Dessa forma, o meio ambiente ou a natureza apropriada que emerge na Sociedade Industrial Moderna, pensada a partir da racionalidade capitalista, voltada ao desenvolvimentismo, ao progresso e ao crescimento econômico15, tem seu contraponto no meio ambiente da sociedade Pós-Industrial ou Pós-Moderna, com a emergência de uma nova racionalidade16, chamada por Enrique Leff (2004) de racionalidade ambiental, que se coloca como uma alternativa à racionalidade do capital. O processo civilizatório da modernidade fundou-se em princípios de racionalidade econômica e instrumental que moldaram as diversas esferas do corpo social: os padrões tecnológicos, as práticas de produção, a organização burocrática e os aparelhos ideológicos do Estado. A problemática ecológica questiona os custos socioambientais derivados de uma racionalidade produtiva fundada no cálculo econômico, na eficácia dos sis- RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO temas de controle e previsão, na uniformização dos comportamentos sociais e na eficiência de seus meios tecnológicos. A questão ambiental estabelece assim a necessidade de introduzir reformas democráticas no Estado, de incorporar normas ecológicas ao processo econômico e de criar novas técnicas para controlar os efeitos contaminantes e dissolver as externalidades socioambientais geradas pela lógica do capital (LEFF, 2004, p. 133). Para que se possa compreender o surgimento desta contraposição de racionalidades e sua influência sobre os rumos do desenvolvimento, pode-se partir das considerações do filósofo Bruno Latour, em sua obra Jamais Fomos Modernos, publicada em 1991. Latour é um dos autores que aponta o surgimento de uma crise, marcada especialmente pelo ano de 1989, com a queda do muro de Berlim e, simbolicamente, do socialismo. Deste fato emergem algumas considerações importantes, dentre elas a conclusão de que o socialismo, ao tentar acabar com a exploração do homem pelo homem, multiplicou-a indefinidamente; com a queda do Socialismo Real, o Ocidente liberal, ou seja, o capitalismo, se autoproclama ‘vencedor da guerra fria’. Mas este triunfo dura pouco. Em Paris, Londres e Amsterdã, neste mesmo glorioso ano de 1989, são realizadas as primeiras conferên- cias sobre o estado global do planeta, o que simboliza, para alguns observadores, o fim do capitalismo e de suas vãs esperanças de conquista ilimitada e de dominação total sobre a natureza. Ao tentar desviar a exploração do homem pelo homem para uma exploração da natureza pelo homem 17 , o capitalismo multiplicou indefinidamente as duas. O recaldo retorna e retorna em dobro: as multidões que deveriam ser salvas da morte caem aos milhões na miséria; as naturezas que deveriam ser dominadas de forma absoluta nos dominam de forma igualmente global, ameaçando a todos. Estranha dialética esta que faz do escravo dominado o mestre e dono do homem, e que subitamente nos informa que inventamos os ecocídios e ao mesmo tempo as fomes em larga escala. (Latour, 2005, p. 14). Conforme visto, Latour discorre sobre um período de mudanças, apontando para a existência de uma simetria entre a queda do ‘muro da vergonha’ e o ‘fim da natureza ilimitada’. Frente a esta realidade, o antropólogo Marvin Harris (2004), concorda com Latour sobre uma evidente quebra das promessas da Modernidade, uma delas, a já citada promessa de domínio total do homem sobre a natureza, e outra, a de que a tecnologia seria capaz de resolver qualquer problema ambiental provocado pelo modelo entrópico de desenvolvimento. A tecnologia não só se mostrou inefi- 14 O conceito de racionalidade é introduzido por Max Weber “para caracterizar a forma capitalista da atividade econômica, a forma burguesa das trocas ao nível do direito privado e a forma burocrática da dominação. A racionalização designa, em primeiro lugar, a extensão dos domínios da sociedade que se acham submetidos aos critérios de decisão racional. Paralelamente assistimos a uma industrialização do trabalho social, o que faz com que os critérios da atividade instrumental penetrem também em outros domínios da existência (urbanização do modo de vida, tecnicização das trocas e das comunicações). Nos dois casos, o que se vai impondo é um tipo de atividade racional com respeito a um fim (Zweckrational): em um, refere-se à organização de certos meios; em outro, trata-se da escolha entre os termos de uma alternativa” (Habermas, 1968, apud Santos, 2004, p. 289). Milton Santos (2004, p. 289-290) cita Jürgen Habermas quando este afirma que racionalização designa, em primeiro lugar, a extensão dos domínios da sociedade submetidos aos critérios de decisão racional: “A superioridade do modo de produção capitalista em relação aos que o precederam deve-se a duas coisas: o aprimoramento de um mecanismo econômico que torna permanente a expansão dos subsistemas de atividade racional com respeito a um fim e a elaboração de uma legitimação econômica que permite ao sistema de dominação adaptar-se às novas exigências de racionalidade desses subsistemas em via de desenvolvimento. É esse processo de adaptação que Max Weber concebe como uma ‘racionalização’”. 15 Para Herbert Marcuse, “no desenvolvimento da racionalidade capitalista, a irracionalidade se converte em razão: razão como desenvolvimento frenético da produtividade, como conquista da natureza, como incremento da riqueza de bens; mas irracional, porque a alta produção, o domínio da natureza e a riqueza social se convertem em forças destrutivas” (Leff, 2004, p. 136). 16 A emergência desta racionalidade está ligada a algumas correntes de pensamento, não sendo hegemônica, como, de fato, nenhuma racionalidade foi, é, e muito provavelmente, não o será. 17 Grifo nosso. Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA 15 “ ... a humanidade gerou padrões de crescimento que se traduzem pela incorporação predatória de recursos naturais no fluxo da renda... ” caz neste papel, como o seu próprio avanço foi, algumas vezes, barrado por contingências ambientais. Ignacy Sachs (1996) aponta para o fato de que a humanidade gerou padrões de crescimento que se traduzem pela incorporação predatória de recursos naturais no fluxo da renda, o que implicou numa descapitalização da natureza, falando em termos econômicos; ao mesmo tempo, gerou poluição; logo, o sistema de produção atual produz riqueza, mas esta produção é acompanhada da reprodução ampliada da pobreza e da exclusão social, além da degradação ambiental. Ou seja, a racionalidade do capital demonstrou que, sozinha, é ineficaz e que crescimento econômico não é sinônimo de desenvolvimento, daí se pode concluir que não é pela aceleração do crescimento econômico que se resolvem os problemas de distintas ordens, principalmente porque a maioria desses problemas é resultado daquele modelo de desenvolvimento. Então, a questão que emerge apontada por Ignacy Sachs (1996) é: como passar a um outro paradigma de desenvolvimento? Neste sentido, o caminho parece ser longo. A busca por este novo paradigma (conforme já citado anteriormente) remonta ao ano de 1972, com Limits to Grow, do Clube de Roma e Only one Earth, de Ward e Dubos, este último publicado como conseqüência da Conferência de Estocolmo; ambos “destacando o elemento humano como protagonista principal na manutenção do equilíbrio planetário”. (SATO, 1997, p. 36). Um novo modelo de desenvolvimento aparece nomeado pela primeira vez em 1973, quando Maurice Strong, referindo-se às áreas pobres 16 do continente africano, utiliza o termo eco-desenvolvimento, popularizado pelo Relatório Brundtland (1987) e consolidado na Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, a Eco-92 (1992), como desenvolvimento sustentável. O Relatório Brundtland – Our Common Future – define desenvolvimento sustentável como “aquele que atende às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade das gerações futuras atenderem às suas próprias necessidades”. (Dias, 1998, p. 47). A Comissão Brundtland afirmava que o conceito de desenvolvimento sustentável não envolvia limites absolutos, mas limitações impostas pelo estágio atual da tecnologia e da organização social sobre os recursos ambientais, e pela capacidade da biosfera para absorver os efeitos das atividades humanas. Reconhecia também, que Our Common Future não oferece um plano detalhado de ação, apenas sinalizando um caminho para que os povos do mundo pudessem ampliar suas formas de cooperação em busca do desenvolvimento sustentável. (LEMOS, 1995). Na frase acima grifada, percebese que o desenvolvimento aparece como limitado pela fase atual de adiantamento da tecnologia em relação à sociedade e ao meio ambiente. Desta consideração transparece o contexto de crise do modelo de produção capitalista no qual o conceito é cunhado. O Relatório Brundtland, nas entrelinhas, diz: é preciso crescer quantitativamente, mas a tecnologia ainda não avançou a tal ponto de se poder desrespeitar/ignorar os limites sociais e ambientais. Fica claro que a racionalidade que guiou tal conceituação é a racionalidade do capital. Daí os ‘problemas’ de tantos pensadores da crise sócio-ambiental com relação ao termo desenvolvimento sustentável. Atualmente, Michèle Sato (1997) aponta para a existência de mais de 800 definições para desenvolvimento sustentável. Almeida (1995 apud Sato, 1997) classifica estas definições dentro de quatro modelos de interação homem-natureza, quais sejam: o modelo de desenvolvimento cooperativo, Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA que se dá pelo estabelecimento de interações com ganhos mútuos para o ser humano e para o ambiente, comumente encontrado em sociedades tribais; o competitivo, caracterizado por perdas mútuas e complexas, como as ocorridas em Nagasaki e Chernobyl; o conflitivo egoísta, marcado por ganhos econômicos e perdas ambientais, sendo o mais comum de todos, ocorrendo desde a Antigüidade; e o conflitivo altruísta, que utiliza o modelo de proteção da natureza e do gerenciamento ambiental, como o ocorrido nas unidades de conservação. Daí advém que alguns modelos de desenvolvimento que se pautam na sustentabilidade não se encontram assentados somente na lógica do capital; isso, de acordo com as tipologias de Almeida, ocorre no desenvolvimento cooperativo, no qual desponta de forma mais evidente a racionalidade ambiental. Tal racionalidade, por ser legitimadora de práticas sociais – como qualquer racionalidade – abre novas perspectivas ao processo de desenvolvimento, permitindo pensar em princípios éticos e potenciais ambientais, propondo uma transformação nos processos econômicos, políticos, tecnológicos e educativos, rumo à construção de uma racionalidade social e produtiva alternativa (LEFF, 2004). Enrique Leff (2004, p. 135) explica que a racionalidade ambiental integra os princípios éticos, as bases materiais, os instrumentos técnicos e jurídicos e as ações orientadas para a gestão democrática e sustentável do desenvolvimento. Desse modo, “converte-se num conceito normativo para analisar a consistência dos princípios do ambientalismo em suas formações teóricas e ideológicas, das transformações institucionais e programas governamentais, assim como dos movimentos sociais, para alcançar estes fins”. Para chegar aos seus citados fins, a racionalidade ambiental precisa ser construída mediante a articulação de quatro esferas (LEFF, 2004): – a racionalidade substantiva: um sistema axiológico que define os valores e objetivos que orientam as ações sociais para a construção de RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO uma racionalidade ambiental, na qual estão implícitas sustentabilidade ecológica, eqüidade social, diversidade cultural e democracia política; – a racionalidade teórica: sistematiza os valores da racionalidade substantiva articulando-os com os processos ecológicos, culturais, tecnológicos, políticos e econômicos que constituem as condições materiais, os potenciais e as motivações que sustentam a construção de uma nova racionalidade social e produtiva; – a racionalidade instrumental: cria os vínculos técnicos, funcionais e operacionais entre os objetivos sociais e as bases materiais do desenvolvimento sustentável, através de um sistema de meios eficazes; – a racionalidade cultural: sistema singular e diverso de significações que não se submetem a valores homogêneos nem a uma lógica ambiental geral; produz a identidade e a integridade de cada cultura, dando coerência a suas práticas sociais e produtivas em relação com as potencialidades de seu entorno geográfico e de seus recursos naturais. Dessa forma, a relevância da racionalidade ambiental parece residir no fato de que ela permite incluir as questões ambientais dentro das problemáticas sociais, orientando o saber e as pesquisas para o campo estratégico do poder e da ação política. Neste sentido, já em 1996, Ignacy Sachs sugere que o desenvolvimento esteja submetido a alguns condicionantes, os quais, embora o autor não se refira na época, ao termo racionalidade ambiental, parecem estar nela assentados ou, ao menos, parecem extrapolar a racionalidade do capital. Quais sejam esses condicionantes: – o condicionante ambiental, que por muitos é interpretado em termos éticos como a solidariedade com as gerações futuras, mas que parece mais relacionado à solidariedade sincrônica e diacrônica com a humanidade; – a eficiência econômica, interpretada do ponto de vista social e não empresarial, já que pode haver situações de alta rentabilidade, mas que se traduzem em custos sociais e ambientais externalizados; portanRDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO to, o que parece muito eficiente no patamar micro, pode ser considerado como socialmente ineficiente; – o critério cultural, ou seja, a impossibilidade de forçar padrões ou paradigmas de desenvolvimento que não correspondam à cultura de um dado grupo ou povo; – o critério territorial, já que o problema da distribuição — ou mesmo má distribuição — dos homens e das atividades humanas no Planeta é certamente um dos elementos essenciais da crise sócio-ambiental. A respeito deste último critério, é indiscutível a existência de uma forte dimensão territorial no desenvolvimento. E é a partir desta consideração que a região desponta como uma escala especialmente propícia para se pensar em um desenvolvimento equânime do ponto de vista social, ambiental e econômico, baseado em relações de horizontalidades18, como propõe Milton Santos (2004), ou seja, fundamentado em uma nova racionalidade. 3. A Regionalização na Contemporaneidade A organização do espaço, o ordenamento territorial e o planejamento de ações de gestão e desenvolvimento são os principais objetivos dos processos de regionalização na contemporaneidade (PUJADAS; FONT, 1998). “ Em sentido amplo, a regionalização pode ser entendida enquanto ação no sentido de organizar um espaço em regiões... ” Etienne Juillard19 (1994, p. 290) corrobora esta afirmação ao dizer que “cada vez más, en los medios de actuación económica y social, se piensa el desarrollo en términos de ordenación del territorio, de regionalización”. Em sentido amplo, a regionalização pode ser entendida enquanto ação no sentido de organizar um espaço em regiões (BEZZI, 2004). Porém, constituindo-se na operacionalização das diferentes abordagens de região, a própria regionalização é compreendida de formas distintas por autores diversos, ocorrendo transformações no sentido do termo relacionadas às próprias transformações ocorridas no mundo. Segundo autores como Maria Ângela Faggin Pereira Leite (1994), Roberto Lobato Corrêa (1997) e Milton Santos (1996), o significado de regionalização se evidencia com o desenvolvimento de técnicas de produção que, pela percepção da diver- 18 Para Milton Santos (2004), as horizontalidades e verticalidades são relações entre as ‘coisas e seus fenômenos’ desenvolvidas no ‘espaço banal’, entendido como espaço de todas as pessoas, empresas e instituições, podendo ser descrito enquanto sistema de objetos animado por um sistema de ações. Santos (Idem) entende que, atualmente, os arranjos espaciais não se dão apenas através de figuras formadas por pontos contínuos e contíguos, supondo haver, igualmente, constelações de pontos descontínuos, porém interligados, definindo um espaço de fluxos reguladores. E é neste contexto de segmentações e partições presentes no espaço que o autor percebe os recortes de horizontalidades e verticalidades: “De um lado há extensões formadas de pontos que se agregam sem descontinuidade, como na definição tradicional de região. São as horizontalidades. De outro lado, há pontos no espaço que, separados uns dos outros, asseguram o funcionamento global da sociedade e da economia. São as verticalidades”. (Santos, 2004, p. 284). Santos (Idem, p. 285) segue afirmando que as verticalidades criam interdependências hierárquicas, baseadas especialmente na informação ao serviço das forças econômicas hegemônicas e ao serviço do Estado, funcionando como regentes das ações que definem as novas realidades espaciais, na maioria das vezes homogeneizadas em função da “perda correlativa da capacidade de gestão da vida local”. Neste sentido, as horizontalidades caracterizam-se como contraponto, sendo, para Santos (2004, p. 286), tanto o lugar da finalidade imposta de fora, de longe e de cima, quanto o da contrafinalidade, localmente gerada. “Elas são o teatro de um cotidiano conforme, mas não obrigatoriamente conformista e, simultaneamente, o lugar da cegueira e da descoberta, da complacência e da revolta”. 19 Ettienne Juillard, juntamente com Jean Labasse, Pierre George, Michel Rochefort, Raymond Dugrand, Philippe Pinchemel, Bernard Kayser, entre outros, membros da corrente da Geografia Ativa, discutem região pela perspectiva do desenvolvimento desigual, colocando-a como objeto de intervenção da ação humana. Os trabalhos desses autores expõem o quanto a base regional do território francês foi destruída ante o desenvolvimento capitalista; demonstram igualmente o quanto o território francês está voltado unicamente para Paris. (LENCIONI, 2003). Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA 17 sidade dos lugares, desenvolveram-se a partir do uso dos recursos disponíveis. Dessa forma, para Mints (apud LEITE, 1994), a base do processo de formação de uma região é constituída pelo trabalho social organizado segundo certas formas técnicas aplicadas a uma determinada combinação de recursos naturais. Para Roberto Lobato Corrêa (1986), os conceitos de região e de regionalização, estando atrelados ao modo de produção, e considerando-se que este muda no decorrer do tempo, não podem ser definitivos e imutáveis, constituindo-se em construções históricas. Este autor (1986, p. 44) ainda afirma que os próprios mecanismos de regionalização não são sempre os mesmos, mudando segundo as transformações ocorridas na história do homem, “marcada pelo desenvolvimento das forças produtivas, pela dinâmica da sociedade de classes e de suas lutas”, tornando-se – o processo de regionalização – cada vez mais complexo. Dessa forma, é no modo de produção capitalista que o processo de regionalização se acentua, estando marcado pela simultaneidade dos artifícios de diferenciação e integração, verificada no interior da constante mundialização da economia a partir do século XV. Sob a égide do capital, os mecanismos de diferenciação de áreas tornam-se mais claros, sendo eles (CORRÊA, 1986, p. 44-45): • a divisão territorial do trabalho, que define o que será produzido e onde; • o desenvolvimento dos meios e técnicas de produção e a combinação das relações de produção originadas em momentos distintos da história, que definem o como se realizará a produção; • a ação do Estado e a ideologia, que se espacializam desigualmente, garantindo novos modos de vida e a pretensa perpetuação destes; • a ampla articulação, através dos progressivamente mais rápidos e eficientes meios de comunicação entre as regiões criadas ou transformadas pelo e para o capital. 18 Desse modo, compreendida enquanto processo, a regionalização comporta diferentes metodologias, todas ligadas a abordagens diversas, conforme explica Paulo Affonso Soares Pereira (2000) em sua tipologia: • Regionalização como Diferenciação de Áreas: aqui a paisagem geográfica constitui o próprio método de regionalização, ou seja, a região é a área coincidente à determinada paisagem geográfica; • Regionalização como Classificação: o espaço terá tantas regiões quantas forem as classificações adotadas para analisá-lo. Esta forma de regionalização trata o espaço de modo multivariado, setorizado e mesmo desagregado de sua complexa constituição; • Regionalização como Instrumento de Ação: associada às teorias econômicas de desenvolvimento regional – supõe planejamento regional como estratégia de desenvolvimento econômico. A região passa a ser vista como sinônimo de ‘espaço econômico’, sendo homogênea ou funcional; • Regionalização como Processo: parte da idéia de que as diferenciações regionais são frutos de processos sociais e econômicos20. A região enquanto escala de planejamento ou mecanismo de ordenamento territorial – instrumento de ação, segundo a tipologia de Pereira (2000) – foi/é bastante estudada pela chamada Ciência Regional, surgida na Geografia, mas à qual se agregaram pesquisadores de diferentes áreas, constituindo um dos ramos mais recentes das Ciências Sociais e Econômicas. Oficialmente, a Ciência Regional foi fundada em 1954, pelo economista espacial Walter Isard, junto a uma associação chamada Regional Science Association (BENKO, 1999). Na contemporaneidade, a região enquanto escala de planejamento emerge como resposta local ao pro- Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA 20 “ A Pós-Modernidade trouxe à pauta discussões sobre o fim do Estado... ” cesso de globalização capitalista, formador do que Sandra Lencioni (2003, p. 177) caracteriza como “um contexto de desenvolvimento global e de internacionalização de todas as esferas da vida humana”, marcado por uma “crescente intensificação da determinação do caráter internacional sobre o nacional”. A Pós-Modernidade trouxe à pauta discussões sobre o fim do Estado, o fim do território, a existência dos não-lugares e, também a negação da região. A escala regional tende a não fazer sentido: como uma entidade espacial baseada na diferenciação de áreas pode sobreviver à homogeneização globalizante? Otávio Ianni (1993 apud LENCIONI, 2003, p. 191) contribui com as reflexões sobre esta questão quando afirma que a globalização não apaga as desigualdades nem as contradições que constituem parte importante da vida social nacional e mundial. “Ao contrário, desenvolve umas e outras, recriando-se em outros níveis, com novos ingredientes. As mesmas condições que alimentam a interdependência e a integração alimentam as desigualdades e contradições, em âmbito tribal, regional, nacional, continental e global”. Já Milton Santos (1999, p. 197) afirma que “a região continua a existir, mas com um nível de complexidade jamais visto pelo homem”. O autor procura mostrar que o processo de globalização é também um processo de fragmentação, significando, assim, além da globalização, individualização e regionalização. Por isso é que a região se recompõe como um nível decisivo de análise. Aqueles que vêem o fim da região argumentam que o seu desaparecimento deve-se à anulação Herbert Klarmann (1999) ainda aponta uma quinta forma de regionalização, proposta por Duarte (1980): regionalização e totalidade social – que considera a região como reflexo espacial da totalidade social, o que significa ver a região como um produto da sociedade. RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO das diferenciações regionais decorrentes da expansão do capital hegemônico em todo o planeta. Milton Santos (SANTOS, 1996, p. 196-197) observa que, com o espaço tornado mundial, as regiões ‘são o suporte e a condição de relações globais que de outra forma não se realizariam’ Regiões com formas e conteúdos em constante mudança, diríamos ainda, mudanças bastante voláteis. O fato de as formas e conteúdos terem movimentos acelerados não significa o desaparecimento da região. Atualmente, segundo expressão de Milton Santos, as regiões têm uma menor duração de seu edifício regional, ao mesmo tempo que são mais complexas em comparação às construções regionais de antigamente. (LENCIONI, 2003, p. 192-193). “ Para Bertha Becker (1990), a ‘nova regionalização’ e o rompimento das divisões administrativas oficiais são resultado da interação conflituosa de suas malhas: a programada, ou técnico-política, das grandes redes e territórios impostos pelo Estado, e a sócio-política, constituída pelo espaço vivido dos grupos sociais. Atentando para as considerações feitas até este ponto, e tendo em conta a ‘mutabilidade’ da ação regionalizante e a necessidade de eficácia da escala regional – isso em consonância com os objetivos da pesquisa, voltados aos parâmetros utilizados na regionalização – a definição de regionalização adotada na presente pesquisa refere-se à formação e transformação de regiões, ou seja, uma regionalização que seja “mais que o método de identificar regiões, passando a ser conceitualmente o processo de formação de regiões”. (DUARTE, 1980 apud PEREIRA, 2000, p. 66)21. 4. Discussões e Considerações Finais Pensar a região como escala de desenvolvimento no mundo globalizado contemporâneo, implica – indiscutivelmente – em assumir um ‘outro’ processo de desenvolvimento. Mas este ‘outro’ processo pode não pressupor, necessariamente, novas bases, novas racionalidades. Ao contrário, pode assumir um padrão igualmente cruel e excludente, caso os processos de regionalização mantenham-se atrelados ao modelo RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO A gestão territorial a partir de bacias hidrográficas passa a ser realidade no Brasil a partir da implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos... ” de desenvolvimento dominante, voltado unicamente para a lógica do capital, centralizador ou concentrador das instâncias de decisões e levado a cabo à revelia da participação social. No movimento para que a efetivação de um processo de institucionalização de regiões que sejam palcos para este novo modelo de desenvolvimento, evidencia-se a necessidade de novos instrumentos ou parâmetros de regionalização. A gestão territorial por bacias hidrográficas e o Zoneamento Ecológico-Econômico (ZEE), instrumentos de ordenamento territorial que, segundo seus objetivos e propostas, parecem ter – ao menos idealmente – como pressupostos, dentre outros, a sustentabilidade, a justiça ambiental e o exercício da cidadania, apresentam características relevantes para o processo de regionalização dos territórios com base em novos parâmetros. As bacias hidrográficas – por constituírem-se em unidades naturais, diretamente relacionadas com o fornecimento da água, imprescindível para a manutenção da vida, dotadas de um grande e comprovado poder de resiliência frente às agressões – há muito têm reconhecido o seu papel estratégico no processo de desenvolvimento. A percepção dos problemas de origem sócio-ambiental a assolarem as áreas de drenagem dos rios, locais historicamente ocupados desde o processo de colonização do Brasil, e a conseqüente perda na qualidade de vida da população, torna as bacias 21 hidrográficas objeto de atenção por parte dos planejadores. A gestão territorial a partir de bacias hidrográficas passa a ser realidade no Brasil a partir da implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos, instituída pela Lei nº. 9.433, de janeiro de 1997, que cria o Conselho Nacional dos Recursos Hídricos e institui a bacia hidrográfica como unidade de gestão. Os recursos hídricos passam a ser geridos no contexto de suas bacias pela constatação de que a problemática de disponibilidade e qualidade dos mesmos está vinculada a processos naturais sistêmicos que estão diretamente relacionados ao clima, à vegetação, à fauna, ao substrato de solo, etc. Além disso, a gestão de bacias passa a ser uma gestão territorial, porque é impossível pensá-la em separado da realidade sócio-econômica-cultural – marcada pela relação sociedade-natureza. Assim, a gestão territorial a partir de bacias, expressa através da regionalização dos Comitês de Gerenciamento de Bacias parece estar em acordo com a racionalidade ambiental e apresentar potencialidades para embasar um processo de regionalização novo, capaz de definir regiões-palcos para um novo projeto de desenvolvimento. Isso porque, pressupõe o trato com problemáticas de ordem sócio-ambiental, remetendo diretamente aos preceitos: – da sustentabilidade: em sentido amplo, abarcando questões sociais, econômicas e ambientais, relacionadas à sustentabilidade da vida humana – inclusive no que se refere aos sistemas produtivos – e à vida animal e vegetal; – da participação popular: através da formação de órgãos gestores deliberativos que podem ser semelhantes aos Comitês de Gerenciamento de Bacias, que constituam-se em fóruns de discussão e deliberação a respeito da totalidade das ações a serem tomadas em relação à região e, conseqüentemente; – da justiça ambiental: no que se refere à garantia de uma distribuição justa dos riscos causados por al- Dessa forma, observa-se que, em contraposição à regionalização, há um processo diferenciado, a delimitação de regiões, procedimento que faz referência exclusivamente à subdivisão de espaços. Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA 19 terações na região da bacia hidrográfica, que influirão, mais ou menos diretamente, na qualidade de vida da população (poluição, maucheiro, mortandade de peixes, queda na qualidade e disponibilidade de água para consumo humano, animal e aproveitamento em atividades produtivas, etc.). A justiça na distribuição dos riscos deverá ser garantida pelos preceitos anteriores, sustentabilidade e exercício da cidadania através da participação popular. Além do que – uma regionalização que considere os conflitos sócioambientais, não necessariamente relacionados às divisões político-administrativas propostas pelo IBGE, nem sequer com as fronteiras que separam os países – poderia suplantar as divisões regionais nacionais e setoriais, possibilitando uma visão mais ampla e sistêmica das realidades regionais; respeitando limites físico-geográficos coerentes com unidades ambientais que compõem sistemas interdependentes, e não limites criados arbitrariamente por órgãos governamentais; garantindo uma maior coerência na feitura e aplicabilidade das políticas públicas; contribuindo mesmo para que diferentes nações, em conjunto, passem a discutir alternativas de desenvolvimento. As regiões assim criadas constituir-se-iam em unidades supranacionais, instituições administrativas descentralizadas e articuladas entre si. Mais do que em qualquer outra situação, seriam palcos da diferença e da pluralidade, unidas pelo que parece ser o fio de Ariadne em relação ao futuro da humanidade: as variáveis ambientais, especialmente aquelas relacionadas à disponibilidade e qualidade da água, substância sem a qual é impossível pensar qualquer modelo de desenvolvimento, porque impossível pensar a existência da vida. Quanto ao ZEE, no que se refere aos preceitos de sustentabilidade, participação popular e justiça ambiental, tem-se: – sustentabilidade: no texto dos documentos oficiais do ZEE – especialmente nas Diretrizes Metodológicas para o Zoneamento Ecológico- 20 Econômico do Brasil (2001, p. 26) há uma especificação de que, para orientar sua operacionalização, o ZEE deve considerar alguns princípios políticos fundamentais e a sustentabilidade está entre eles, equivalendo ao Princípio 2, cujo texto remete à sustentabilidade ecológica e econômica, afirmando que: A sustentabilidade visa desenvolver a sociedade e proteger os recursos naturais, de acordo com suas potencialidades ecológicas, econômicas e sociais. A premissa básica considera a existência de potencialidades e limitações diferenciadas a vários tipos de usos. Os recursos naturais devem ser utilizados considerando-se os impactos diretos e indiretos para a sociedade e para a natureza. A noção de escassez relativa coloca limites nas opções atuais e futuras de ocupação do território e uso dos seus recursos. O viés economicista é claramente privilegiado neste conceito de sustentabilidade, enquanto a sustentabilidade em uma visão mais coerente com novas racionalidades, está implícita em outros pressupostos do ZEE, como a abordagem multidisciplinar e sistêmica e, com relação aos aspectos técnicos, a feitura dos diagnósticos físico-bióticos, sócio-econômicos e jurídico-institucionais. A participação popular está citada no Princípio 3, intitulado Participação Democrática, cujo texto diz que o ZEE só pode ser legitimado através da participação social, na forma de redistribuição do poder entre as esferas pública e privada, Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA [...] aí incluída a ampliação de parcerias entre os diversos níveis da administração pública (federal, estadual e municipal) e entre estes e as organizações do chamado terceiro setor e as instituições privadas. Para ter viabilidade política, o ZEE demanda abertura à participação de segmentos sociais interessados, que tenham acesso às informações relativas ao andamento dos trabalhos e aos produtos gerados, conforme preceitua a Constituição Federal no artigo 5º, incisos XIV e XXXIII. Na construção do ZEE, o processo de participação demanda mobilização dos órgãos públicos afins e dos seg- mentos sociais interessados. No âmbito das instituições de Governo, este passo busca o envolvimento técnico (gerentes, coordenadores, especialistas, etc.) e político (representantes oficiais, lideranças, formuladores de políticas, etc.) orientando os esforços para integrar ações e otimizar resultados. Dentre os segmentos sociais, busca-se apreender e disseminar conceitos básicos, concentrando esforços para estimular parcerias e compartilhar ações comuns. (Diretrizes Metodológicas para o Zoneamento Ecológico-Econômico do Brasil, 2001, p. 26-27). Uma crítica a se fazer neste ponto, é que a participação da população parece ser requerida apenas para legitimar a aceitação das intervenções propostas pelo ZEE e não no sentido de orientar o instrumento para as necessidades e objetivos da população a ser diretamente atingida. – no que se refere à justiça ambiental, os documentos que apresentam a proposta de ZEE para o território nacional não consideram diretamente este preceito. Porém, se voltado à sustentabilidade e se contar com a efetiva participação das populações dos territórios a serem zoneados, conseqüentemente estará voltado à efetivação da justiça ambiental. Apesar de todas as críticas feitas ao ZEE – especialmente durante a sua aplicação nos estados da Amazônia Legal – não se pode desconsiderar as possíveis contribuições deste instrumento num processo de ordenamento territorial sistêmico. O ZEE, tendo sua metodologia focada numa visão legitimamente sistêmica do território, e sendo considerado verdadeiramente como instrumento para o tratamento dos conflitos de uso de recursos e de distribuição das atividades nos territórios e não como tendo um fim em si mesmo, pode contribuir para a mudança nos rumos do desenvolvimento a partir da racionalidade ambiental. Sem contar que o ZEE, através de suas interfaces com a gestão das bacias hidrográficas, pode constituirse em importante meio para a inserção das variáveis ambientais no novo processo de regionalização proposto. RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO Falar na inserção das variáveis ambientais no processo de ordenamento territorial, especialmente no que se refere aos seus rumos e aos interesses nele imbricados, faz menção a uma reflexão há muito posta por pensadores como Habermas, Marcuse, Lévy-Strauss, a qual gira em torno da idéia de que a ciência e a técnica subordinam a dominação humana da natureza a uma dupla dominação dos homens. Isso se dá, segundo o antropólogo Carlos Roberto Brandão (1994), primeiro, por meio de uma subordinação entre homens e, em segundo lugar, por meio da subordinação dos homens a um sistema que os exclui em troca de bens, ao torná-los cativos servos dos senhores do aparato, dentro de redes onde valem apenas a utilidade e o interesse. Assim, repensar as formas de desenvolvimento e o ponto de chegada destas, o seu resultado final, é estabelecer uma ponte entre o Do Contrato Social de Jean-Jacques Rousseau (1762:2002), que levou a sociedade humana até o ponto de conflito da atualidade e O Contrato Natural, de Michel Serres (1990), baseado na ética sociedade-natureza. É preciso considerar, como sugere Serres, que existe um ou muitos equilíbrios naturais e humanos ou sociais, mas que falta refletir, construir e colocar em ação um novo equilíbrio global entre esses dois conjuntos, buscando derivações diversas das alcançadas até o momento. É isso o que os resultados das análises da pesquisa desenvolvida propõem. Estas considerações, então, juntam-se ao desejo propositivo de mudanças que sempre moveu e – espera-se – moverá, as ações humanas frente aos impasses. Assim, os resultados desta pesquisa pretendem constituirse numa contribuição para com a mudança, ou a luta ‘antidestino’, como chamada pelo filósofo Jean-Michel Besnier22 (1996, p. 161), que propõe o confronto de alteridades “como desafio a ultrapassar, como apatia a sacudir”, na busca pelo novo. Um desejo final: que a principal contribuição deste trabalho, tendose em conta suas limitações, possa ser a de fornecer elementos para as disRDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO cussões em torno da emergência de novos pressupostos para a compreensão da região, dos processos de regionalização e de desenvolvimento, voltados a uma ética humanista, que amplie seus horizontes no sentido das relações inter-específicas, e que garanta a revisão dos valores que fundamentam a organização das sociedades. Utopia? Talvez, mas há que se sonhar. CORRÊA, R. L. Região e Organização Espacial. São Paulo: Ática, 1986. Referências GOLDBLAT, D. Teoria Social e Ambiente. 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Jean-Michel Besnier (1996, p. 161) afirma que: “não pode haver mudança sem essa determinação em relação ao antidestino, isto é, sem o confronto com uma alteridade como desafio a ultrapassar, como apatia a sacudir. Trata-se de uma banalidade que o político, parece, contudo, ter esquecido, quando se julga um mero gestor do possível, ou que o humanista também se afastou, quando se julga predisposto à evocação generosa e à reconciliação universal”. Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA 21 LENCIONI, S. Região e Geografia. São Paulo: Edusp, 2003. MARQUES, A. F. Novos Parâmetros na Regionalização dos Territórios. Estudo do Zoneamento Ecológico-Econômico (ZEE) na Amazônia Legal e das Bacias Hidrográficas no Rio Grande do Sul (RS). Dissertação de Mestrado desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional, UNISC. Santa Cruz do Sul, RS. Defendida em 23/02/2006. MERLEAU-PONTY, M. A Natureza. Notas. Curso no Collège de France. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 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De Dante à Internet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. CEDRE CENTRO DE ESTUDOS DO DESENVOLVIMENTO REGIONAL O CEDRE realiza estudos e pesquisas, elabora projetos e presta consultoria nas áreas de: • ECONOMIA REGIONAL E URBANA – Análises regionais para programas de desenvolvimento – Avaliações e acompanhamento de programas de fomento – Estudos de viabilidade econômica – Estudos setoriais de oportunidades de investimento – Estudos de localização industrial – Projetos de implantação e ampliação de empresas – Diagnósticos municipais – Planejamento espacial e econômico nos planos macro e microeconômicos – Planos diretores de desenvolvimento urbano – análises urbanas. • TURISMO E MEIO AMBIENTE – Planejamento turístico macro e microeconômico – Estudos de viabilidade econômica de empreendimentos turísticos – Projetos turísticos – Estudos de impactos ambientais (Rima). Sendo uma instituição universitária o CEDRE não tem finalidades lucrativas e opera em termos bastante acessíveis para as prefeituras municipais e as pequenas e médias empresas. Tel.: (71) 3273-8528 22 / 3271-8780 Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA E-mail: [email protected] RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO MERCADO DE CAPACIDADE: UMA ALTERNATIVA PARA O SETOR ELÉTRICO BRASILEIRO André Luís da Silva Leite1 Edvaldo Alves de Santana2 Resumo 1 Introdução Este trabalho tem como objetivo propor um modelo de mercado de capacidade para o setor elétrico brasileiro. O mercado de capacidade ou de reserva de geração tem sido utilizado como ferramenta adicional ao mercado spot em muitos países, visando aumentar a confiabilidade do sistema. O modelo aqui proposto tem duas características principais. A primeira é o estabelecimento de uma penalidade para os geradores indisponíveis. A segunda propõe que as transações ocorram com a utilização de mecanismos do mercado de opções. Neste sentido, conclui-se que o mercado de capacidade opera como um hedge para os geradores, dado que são remunerados tanto pela disponibilidade quanto pela energia vendida. As reformas nas indústrias de energia elétrica (IEE) em diversos países têm como objetivo principal o aumento da eficiência econômica, pelo aumento do grau de competição nestas indústrias. Muitas destas mudanças vêm sendo questionadas, já que em certos casos não foi possível alcançar os objetivos propostos. Contribuem para esses questionamentos as crises de suprimento de energia vivenciadas na Califórnia (2001), no Brasil (2001) e no pool Nórdico (2003), além de problemas isolados como na Inglaterra (20002001) e na Nova Zelândia (2001). Parte da explicação para as crises da IEE refere-se à redução dos investimentos, principalmente, devido à não implementação de modelos ou falhas de desenhos. Atualmente, uma das preocupações refere-se ao modo mais eficiente de atrair investimentos em geração, incluindo reservas de geração. No caso brasileiro, devido à limitada capacidade financeira do Estado, há muito espaço para a participação privada no setor elétrico brasileiro, o que pode sugerir a possibilidade de mecanismos de mercados que estimulem os investidores privados. O papel das reservas de geração tem sido muito destacado, devido à importância que essas exercem na garantia de um ambiente competitivo estável, estímulo a novos investimentos e, principalmente, na manutenção da confiabilidade do sistema, Palavras-chave: confiabilidade – penalidade – mercado de capacidade Abstract: The main purpose of this paper is to model a capacity market for the Brazilian electricity industry. In other countries, the capacity market is being used as an additional tool to enhance the system’s reliability. The model we propose has two characteristics. First, we propose a penalty for non-performing generators. Second, we model a capacity market where capacity is sold and bought with options mechanisms. So, we conclude that a capacity market can reduce the risk in the spot market, as generators are paid for their availability and electricity. Key words: Reliability – penalty capacity market RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO que é condição essencial para o bom funcionamento da IEE. A expansão do sistema elétrico deve ser garantida de modo compatível com a manutenção da confiabilidade. Para isto, mecanismos complementares são necessários, tais como: aumento da contratação bilateral e a criação de um mercado de reserva de geração ou capacidade, tema deste artigo. Assim, este trabalho tem como objetivo propor um mercado de capacidade para o setor elétrico brasileiro. O modelo aqui proposto tem como ênfase o estabelecimento de uma penalidade para as geradoras não disponíveis e também se caracteriza pelo fato de as transações ocorrerem utilizando-se mecanismos do mercado de opções. Para atingir o objetivo, o artigo está dividido em mais cinco seções, além desta introdutória. A seção seguinte brevemente a reforma no setor elétrico brasileiro e apresenta os principais fatores que podem comprometer a confiabilidade na IEE brasileira. A terceira seção discute a questão das reservas de geração e a criação de um mercado para se transacionar tais reservas. A quarta seção apresenta o design de mercado proposto e mostra que neste tipo de mercado é importante o estabelecimento de um mecanismo de penalidade, que pode, inclusive, estimular o aumento dos investimentos na IEE. A quinta apresenta a simulação do modelo com transações via opções. E, por fim, a última seção apresenta as conclusões do trabalho. 1 Professor Universidade do Sul de Santa Catarina - UNISUL – E-mail: [email protected]. 2 Professor Titular Depto. de Economia – Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC – Campus Universitário – Trindade – Florianópolis – SC 88040-900 – – E-mail: [email protected]. Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA 23 2. A reforma no Brasil Ano Esta seção visa examinar questões que podem comprometer a confiabilidade do setor elétrico brasileiro, e que, portanto, devem ser analisadas, dado que mostram que a confiabilidade da IEE brasileira será seriamente afetada caso não ocorram aumentos expressivos nos investimentos. Tais áreas são: maturidade do mercado e a natureza da indústria. 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 (*) 2005 (*) 2006 (*) 2007 (*) 2008 (*) 2.1 Maturidade do mercado Uma das questões essenciais ao sucesso da reforma no setor elétrico é a criação de um ambiente regulatório e comercial estável. Sem tal estabilidade os agentes evitam fazer novos investimentos, dado que não compreendem os riscos envolvidos. A IEE brasileira caracteriza-se por ser ainda um mercado imaturo, onde a demanda cresce a taxas maiores que o crescimento do PIB. Isto pode ser visto no quadro 1, que compara a taxa de crescimento do PIB com o consumo de energia elétrica de 1994 a 2001. Pode-se notar que na maior parte do período o consumo de energia, de fato, cresce a taxas acima da taxa de crescimento do PIB. A exceção é o ano de 2001, no qual o PIB cresceu 1,42% em relação ao ano anterior. Contudo, devido à crise de energia, o consumo de energia teve uma queda de 7,9%. Na verdade, 2001 foi um ano atípico para a IEE brasileira, onde o consumo caiu em todas as regiões, de forma diferenciada, pois a região sul, que não fez parte do racionamento, sofreu conseqüências. Mas, mesmo com a crise, na média do período o crescimento do consumo de energia ainda ficou acima do crescimento do PIB, o que sugere o caráter ainda de pouca maturidade do setor elétrico brasileiro. Importa notar que no período pósracionamento, as empresas concessionárias vêm enfrentando uma séria crise financeira, causada pela expressiva redução no consumo, o que levou a um excesso de oferta. 2.2 Natureza da indústria No caso da IEE brasileira, o preço da energia é função da natureza da indústria, i.e., da disponibilidade de água. Em sistemas predomi- 24 PIB (crescimento %) Crescimento do Consumo de Energia Elétrica (%) 5,85 4,22 2,66 3,27 0,13 0,81 4,36 1,42 1,9 0,5 3,6 3,6 3,9 4,5 4,4 3,58 6,01 4,86 6,12 4,19 2,50 4,43 -7,9 3,2 3,8 4,5 5,4 4,5 4,9 6,3 Quadro 1 – Relação Crescimento do PIB e do consumo de Energia Elétrica 1994 a 2008 Fonte: IBGE (www.ibge.gov.br), Relatório Analítico Eletrobrás (2003) e ONS (2004) (*) Previsão nantemente hidráulicos, o preço da energia tende a ser pouco volátil no curto prazo e mais volátil no longo prazo. Isto porque, no curto prazo, os reservatórios transferem energia das horas de carga baixa para as de ponta, modulando a oferta e reduzindo a volatilidade dos preços. Enquanto que, no longo prazo, o preço da energia é mais volátil porque os sistemas hidráulicos são desenhados visando garantir a oferta de carga em condições hidrológicas adversas. Há de se destacar ainda o aspecto híbrido da IEE brasileira. Este se caracteriza principalmente pelo fato de que enquanto aproximadamente 80% da geração se encontram sob controle estatal, apenas 20% da distribuição é estatal. Note-se, ainda, que há expressiva diferença entre a competitividade das geradoras hidráulicas, mais baratas e de investimentos já amortizados, e das térmicas, com investimentos novos e custos mais altos. Isto resulta na necessidade de criação de um estímulo ao aumento da participação térmica, porque a diferença de custos entre as geradoras é inconsistente com os requisitos de um mercado competitivo. Tal situação pode ser entendida por meio do quadro 2, que mostra a diferença entre as tarifas das usinas hidrelé- Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA tricas antigas, de investimentos já amortizados, das hidrelétricas novas e das termelétricas novas, o que dificulta a competição no segmento de geração. Fonte de geração Tarifa média (US$/MWh) Energia Velha 10 – 12 Hidrelétrica Nova 32 – 34 Termelétrica Nova (gás natural ciclo combinado) 39-41 Quadro 2 – Tarifa média de geração do setor elétrico brasileiro Fonte: MME (2002). Além do mais, um mercado de energia elétrica deve ter liquidez e oferecer algum tipo de mecanismo de hedge financeiro para possibilitar o gerenciamento do risco por parte dos agentes. No atual contexto da IEE brasileira, tal mecanismo inexiste e também não há liquidez para incentivar os agentes a adotarem estratégias de risco mais agressivas e de longo prazo. Contradizendo à necessidade e devido à situação conjuntural (em fase de adaptação em virtude da reestruturação recente) do setor elétrico brasileiro, a participação priRDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO vada em novos investimentos pode não tem crescido conforme planejado. Assim, pode-se concluir que caso não haja um mecanismo capaz de atrair novos investimentos privados e dada a escassez de recursos públicos, a confiabilidade e a capacidade de geração do setor poderão estar seriamente comprometidas em um futuro próximo, o que pode ser observado pela análise do quadro 3, para o sistema interligado nacional. O quadro 3 mostra, a partir de um dado cenário e mantidas algumas condições previstas pelo ONS em 2004, que a capacidade instalada tenderia aumentar menos que proporcionalmente ao aumento da carga, ou seja, que há tendência ao aumento no risco do déficit. È para evitar isso que estão sendo viabilizadas alternativas de contratação por meio de leilões, o que incluiria usinas hidrelétricas, usinas termelétricas a diversos tipos de combustível, biomassa e outras fontes alternativas. 3 Reservas de geração A energia elétrica tem, nos últimos tempos, sido considerada uma commodity. No entanto, deve-se salientar que tal conceito não se aplica, sem ressalvas, à eletricidade, já que energia elétrica não pode ser estocada a custos baixos, ao contrário das demais commodities (COLLINS, 2002). Em sistemas elétricos, o desequilíbrio entre demanda e oferta põe a estabilidade do sistema em risco. O problema se torna mais grave, dado que dificilmente o equilíbrio entre demanda e oferta pode ser alcançado pelo lado da demanda 3. Deste modo, a manutenção da estabilidade do sistema requer o equilíbrio entre a capacidade instalada suficiente para garantir a demanda de ponta mais uma margem de reserva, que seja capaz de garantir suprimento de energia elétrica em situações não esperadas de perda de capacidade de geração e de transmissão. A reserva de geração tem como principal objetivo prover lastro físico ao sistema, de forma que o fornecimento a todos os consumidores aconteça sem interrupção. Em suma, O principal objetivo das reservas de geração é aumentar o grau de confiaRDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO Submercado 2005 2006 2007 2008 SE/CO S NE N 0,1 0,4 0,4 4,5 0,8 8,4 2,9 2,9 1,5 1,3 3,6 3,5 3,4 3,2 8,9 5,9 Quadro 3 – Riscos de déficits conjunturais (%) Fonte: ONS (2004). bilidade no sistema. Neste sentido, a NERC4 define confiabilidade como sendo o grau no qual o desempenho do sistema técnico resulta em energia entregue aos consumidores dentro dos padrões esperados e na quantidade desejada5. As reservas são importantes porque tanto a carga quanto a oferta são imprevisíveis, sendo necessárias para que o operador do sistema possa responder a tais variações e às condições inesperadas. No curto prazo, mudanças nas condições climáticas e hidrológicas, dentre outros fatores, podem causar mudanças nas condições de oferta e demanda. No longo prazo, o ritmo de crescimento econômico deve influenciar o crescimento da oferta. Reservas de geração, então, podem ser definidas como a capacidade de geração de eletricidade que não está sendo utilizada em um determinado momento6. Assim, há um mercado físico de energia, com suas características técnicas que devem ser respeitadas para a adequada prestação do serviço, e um mercado financeiro, que não estando submetido a tais características e, que, portanto, deve ser operado dentro de limites técnicos, para evitar negociação de ativos não realizáveis. Deste modo, a capacidade ou reserva de geração (MW), apresenta características de semelhantes às de uma commodity. Vários trabalhos abordam o tema das reservas de geração e confiabilidade, como Oren (1996 e 2000), Jaffe e Felder (1996), Von der Fehr, Har- bord e Fabra (1998), Hirst e Hadley (1999), Stoft (2000), Araújo et alli (2001) Joskow (2002), Joskow e Tirole (2004), Cramton (2003), Certi e Fabra (2004) e Leite (2003). Em um ambiente competitivo, espera-se que a demanda responda às oscilações no preço spot, de modo que, por um lado, alguns consumidores possam voluntariamente não consumir energia. Por outro lado, a confiabilidade refere-se à probabilidade que os demandantes que escolham consumir eletricidade e pagar o preço de mercado possam fazê-lo7. Assim, no novo ambiente da indústria de eletricidade, a confiabilidade pode ser vista como um problema multidisciplinar. Ou seja, é um problema técnico, no que diz respeito à infra-estrutura necessária, sendo também um problema econômico, no que tange aos incentivos dos ofertantes e demandantes. E passa também a ser um problema político, à medida que as instituições de governança do setor operem de forma eficiente. Em um ambiente de competição, o preço, em tese, se torna a variável chave. Os agentes planejam novos investimentos em geração com base nas expectativas sobre os preços futuros da eletricidade. Novas plantas são erguidas na medida em que os preços futuros aumentem. Bem como, há uma queda no ritmo de expansão das obras quando o preço diminui. A garantia de confiabilidade é fundamental para o desenvolvimen- 3 Ver Fraser (2001) para uma análise da importância do comportamento do consumidor em sistemas elétricos. 4 North American Electric Reliability Council. 5 Conceito disponível em http://www.nerc.com. 6 FERC, 2001. 7 Ver Felder (2001). Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA 25 “ ... numa situação de racionamento não pode haver discrimi- nação entre classes de consumidores... ” to do setor elétrico, mas se torna, na prática, um assunto complexo devido a três fatores: i) a estrutura industrial do segmento de geração está sendo modificada visando à introdução de mecanismos de mercado, enquanto o segmento de transmissão permanece como monopólio natural, exigindo coordenação técnica e econômica do operador do sistema; ii) decisões referentes à expansão do segmento de geração, teoricamente, podem ser deixadas a cargo das forças de mercado, mas decisões de expansão do segmento de transmissão continuam dependendo de planejamento central ou do operador do sistema; e iii) geração e transmissão são bens complementares e substitutos simultaneamente8. Como o fornecimento de energia ocorre em rede é praticamente impossível suspender o fornecimento aos consumidores de forma discriminatória. Isto torna a reserva de geração um bem público, no que tange ao seu aspecto físico, não havendo, portanto, distinção entre consumidores cativos e livres. Ou seja, numa situação de racionamento não pode haver discriminação entre classes de consumidores. Desta forma, é importante que a contratação de geração de reserva, em um mercado de capacidade, seja obrigatória para todos os consumidores. 3.1 Mercado de capacidade A confiabilidade também pode ser garantida por um mercado de capacidade. O principal objetivo de um mercado de capacidade é garantir que o mercado tenha disponível uma determinada quantidade de capacidade instalada. Em outras palavras, operar como um “seguro coletivo” contra riscos de desabastecimento, o que elevaria a confiabilidade no setor. Também visa criar um ambien- 26 te competitivo adicional entre geradores e distribuidoras e consumidores livres, o que aumenta a liquidez do setor. Adicionalmente, o mercado de capacidade cumpre outras funções, como reduzir a volatilidade dos preços de energia; estimular novos investimentos, ao possibilitar a recuperação dos custos fixos; mitigar poder de mercado; e balizar o preço spot, e, por conseqüência, os contratos bilaterais. Um mecanismo importante em um mercado de capacidade é o estabelecimento de uma penalidade. O sistema de requerimento de capacidade prevê penalidades para o agente que tiver menos energia (capacidade) do que a quantidade requerida. O requerimento de capacidade incentiva geração suficiente, dado que imputa uma penalidade maior que o custo de nova capacidade (ou o custo marginal de expansão), de tal forma que picos de preço não mais são necessários para induzir ao investimento. O sistema PJM (Pennsylvannia – New Jersey – Maryland) dispõe, desde 1998, de um mercado de capacidade que é referência para outros mercados semelhantes em outras regiões. Neste pool, as LSEs têm obrigações de capacidade, em base anual, e são penalizadas caso não cumpram tais obrigações. A oferta de capacidade é de responsabilidade dos geradores da região. Mas, um dado interessante é que a capacidade pode ser exportada para outras regiões dos Estados Unidos, e vice-versa. Já a demanda de capacidade no pool PJM é determinada pelo operador do sistema (PJM-ISO), através das decisões das LSEs. As atuais regras do pool requerem que as LSEs tenham ou adquiriam capacidade igual ou maior do que a demanda de ponta mais uma margem de reserva, que é calculada com base na análise anual de confiabilidade do PJM e nos padrões de confiabilidade estabelecidos pela NERC. 4. Mercado de capacidade para o setor elétrico brasileiro As mudanças na estrutura da IEE brasileira aumentaram a exposição Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA dos agentes a um maior grau de incerteza. Tal incerteza implica a necessidade de minimizar os riscos ou de compartilhá-los via contratos de longo prazo. No entanto, ao passo em que reduzem o risco de longo prazo, os contratos não resolvem os desequilíbrios que eventualmente podem surgir entre demanda e oferta no curto prazo. Tais desequilíbrios fazem surgir a necessidade de mecanismos de mercado adicionais, como o mercado spot e o mercado de capacidade. Em suma, O mercado spot é necessário para fazer face às flutuações da demanda em tempo real, enquanto que o mercado de capacidade minimizaria os riscos de falta de eletricidade e garantiria o aumento da expansão da capacidade instalada. Em relação particular à existência de um mercado de capacidade para a IEE brasileira, há três razões para sua implantação: • O critério do cálculo de energia assegurada incorpora um risco de déficit pré-fixado de 5%; • Caso haja incerteza em relação à demanda futura, as empresas distribuidoras poderiam adotar um cenário de menor crescimento do mercado, e para evitar prejuízo com a sobrecontratação, tenderiam a reduzir os investimentos; • Eventuais atrasos em obras de geração e transmissão poderiam causar deplecionamentos nos reservatórios das usinas. Em relação ao fato de a quantidade ter de ser determinada pelo operador do sistema, isso ocorre porque a curva de oferta de eletricidade tem inclinação menor que a curva de demanda. Então, se a quantidade for determinada livremente pelo mercado, pequenas variações no preço poderão gerar grandes variações na quantidade de equilíbrio, o que comprometeria a confiabilidade do sistema, que é um dos objetivos do design de mercados de eletricidade. Além do mais, num ambiente competitivo, a previsão de carga de cada firma se torna mais difícil, o que justifica novamente o fato de a quantidade de capacidade reque8 Ver Hirst e Hadley (1999, p. 1). RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO rida ser determinada administrativamente pelo operador. Como as firmas serão remuneradas pela disponibilidade, este mercado representa uma maneira de remunerar as usinas térmicas, que com custos de geração maiores podem não ser despachadas de forma a tornar tais investimentos atrativos para o capital privado. No mercado proposto, a demanda reflete a disposição das LSEs em pagar pela capacidade disponível das geradoras. Isto torna os demandantes mais preço-elásticos, o que contribui para uma definição de preço mais próxima do ideal competitivo e reduz poder de mercado. Sob o prisma da oferta, os geradores seriam remunerados pelo preço de mercado, que reflete o custo marginal de capacidade7. Em suma, Pk = CMK (1) onde: Pk = preço de capacidade CMK = Custo Marginal de capacidade. Posto isto, o custo total de capacidade pode ser expresso por: (2) onde: CTn-1 : custo total de capacidade no período n-1; : refere-se ao custo de capacidade de geração térmica no período n-1; : expectativa de geração hidrelétrica no mês em questão (o a 1). Então, o problema, em um sistema hidrotérmico, é determinar o valor de â, que é tão mais importante quanto maior é a participação das hidrelétricas ou quanto mais regularizada é a produção de energia pelas fontes hídricas. Na prática, o valor de â pode ser zero quando há expectativa de vertimento e pode ser um quando a esperança é de geração térmica, em estações secas. Em suma, o custo de capacidade é proporcional à disponibilidade de água nos reservatórios. RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO 4.1 Penalidade Uma interrupção no fornecimento provoca uma externalidade. Esta se traduz em custo para os consumidores que ficaram sem energia por um determinado período de tempo. Por outro lado, a redução do risco de interrupções, ou o aumento da confiabilidade, é uma externalidade positiva. Desta forma, a confiabilidade pode ser considerada um bem público. O conceito de mercado de capacidade envolve penalidade, como mencionado anteriormente. Caso um agente gerador não tenha reservas à disposição em um determinado mês, ainda há a possibilidade de adquirir a quantidade contratada no mercado spot, mesmo que com isso tenha prejuízo. Caso contrário, o agente com deficiência de capacidade recebe uma penalidade do órgão regulador. O valor desta penalidade poderia ser distribuído entre os demais agentes do mercado que supriram com capacidade extra a demanda do mercado. O segredo no mercado de capacidade é definir um preço que não seja função exclusiva do regime hidrológico, mas que não o despreze, levando seus efeitos em termos da necessidade de expansão. Logo, o principal elemento neste mercado é a existência de uma penalidade. Assim, o modelo aqui proposto inclui elementos como: a) Requerimento de condições de geração de energia, que garanta que a capacidade disponível é capaz de ser gerada no momento requerido; b) O operador deve evitar que haja excesso de oferta de capacidade para não remunerar capacidade que não será despachada no determinado momento; c) Os dados do mercado de capacidade, tais como quantidade e preço, devem estar disponíveis com certa antecedência, de sorte que os agentes possam tomar decisões relativas às operações físicas das 9 usinas, de acordo com sua futura participação no mercado. Por exemplo, usinas não listadas no mercado devem ficar livres para fornecer energia ou via contratos ou no mercado spot. Dado que se pretende estudar a formação de um mercado, então, os métodos de determinação da quantidade requerida devem ser simplificados. Por exemplo, os requerimentos devem ser função da previsão de carga e da margem de reserva planejada. Desta forma, supondo: qo = capacidade instalada; qr = capacidade requerida; Pk = pr eço da capacidade; Y = penalidade imposta pelo regulador; e CF = Custo fixo de geração. O preço de equilíbrio de mercado de capacidade seria, portanto, igual ao custo marginal, como em (1). O custo marginal, a exemplo do que sucede em toda teoria econômica de cunho marginalista, é dado por: (3) onde: : custo marginal estabelecido no mês anterior; : é o custo total para o mês anterior; e q n-1 : quantidade de energia estabelecida como reserva de capacidade para o mesmo mês; e qr : quantidade requerida. A composição do custo total é essencial no modelo proposto. Assim: (4) onde: : é o custo fixo de capacidade para o mês anterior; : é o custo variável de capacidade para o mês anterior. Neste caso, convém notar que o custo marginal de capacidade reflete um custo de oportunidade, dado que implica a análise, por parte das empresas, da relação custo/benefício entre operar no mercado spot ou operar no Mercado de capacidade. Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA 27 Em situação normal, o custo marginal variaria com a quantidade, o que significaria que tal custo seria função apenas do custo variável de capacidade, o que é irrelevante no modelo proposto, uma vez que manteria a volatilidade do preço spot. Para resolver tal problema é incorporada uma penalidade (Y). Observe-se que sempre que a capacidade requerida (qr) se aproximar da capacidade instalada (q0), maior será o preço no mercado spot, ocorrendo o contrário quando qr for muito menor do que q0. neste sentido, haveria um valor ótimo para a relação entre qr e q0, e é prudente que se defina a penalidade em função de tal relação. Em outras palavras, (5) Portanto, Y=f( ) (6) Na prática, a penalidade seria um incentivo à expansão da capacidade e, por conseqüência, ao aumento da confiabilidade e, por isso, podese determinar que se ≤ 1, então: Y = CFK (7) Por outro lado, se Y= CFK > 1, então: (8) O uso combinado das equações (7) e (8) mostra que sempre haverá o incentivo à expansão e que, para evitar custos maiores, as empresas dificilmente permitirão que qr seja maior do que q0. O benefício do aumento da capacidade instalada resulta na redução dos custos sociais da interrupção. Quando aumenta a diferença entre q0 e qr, a probabilidade de interrupção diminui. No entanto, há uma relação ótima entre q0 e qr, e na prática, isso dificulta o planejamento dos geradores. Joskow (2002) acrescenta que as penalidades para os geradores não disponíveis devem ser as mais elevadas possíveis e aumentar conforme o grau de emergência. Ou seja, 28 em situações onde há a necessidade de aumento da expansão do parque gerador, mecanismos de penalidade são essenciais ao correto funcionamento de mercado de opções de capacidade. A penalidade exerce um papel significativo, pois as LSEs são severamente multadas caso não disponham de capacidade nos momentos requeridos. A penalidade impõe um limite máximo ao preço da capacidade, pois os consumidores não vão pagar mais pela capacidade do que o valor da penalidade. 5. O Modelo Importa notar também que há significativa relação entre a quantidade de capacidade e o lucro das geradoras neste mercado. Assim, ao se reduzir a quantidade de reservas disponíveis, o preço destas aumenta, e aumentam também os lucros dos geradores. Isto leva a um aumento dos investimentos, que gera um ciclo virtuoso. Este ciclo corresponde a épocas onde há excesso de capacidade intercaladas com épocas nas quais há escassez de capacidade. Oren (2003) propõe que capacidade seja transacionada via mercado de opções. Por meio deste mecanismo, compradores e vendedores de opções determinariam o preço de mercado da capacidade em um momento futuro. O período necessário para contratos futuros de capacidade seria limitado apenas pelas previsões de requerimentos futuros. Um mercado de opções de capacidade funcionaria como um hedge em relação às incertezas inerentes a mercados de energia. Além do mais, tal mercado incentivaria o aumento da participação das usinas termelétricas, o que contribuiria para reduzir a dependência hidráulica e a volatilidade do preço spot. Note-se que as LSEs, individualmente, poderiam contratar capacidade futura visando suas próprias necessidades. Entretanto, como há uma perspectiva de aumento da competição no segmento de varejo, de modo unilateral nenhuma distribuidora tem condições de prever sua carga futura. O Operador do Sistema pode indicar às distribuidoras Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA suas obrigações de compra de capacidade futura. A experiência internacional mostra que mercados de energia e de capacidade são suscetíveis a desequilíbrios. Assim, o regulador deve estabelecer a quantidade de reserva a ser requerida e o preço deve ser formado como em um leilão. Isto se caracteriza como uma intervenção branda, dado que o regulador especifica requisitos mínimos de hedge, fiscaliza as garantias comerciais, os arranjos contratuais e as penalidades para os geradores que não cumprirem os requisitos de disponibilidade. Esta intervenção regulatória proativa tem a vantagem de permitir que o consumidor escolha o nível adequado de proteção contra o risco (de preço ou de abastecimento) e fundamentar uma relação econômico-financeira entre os pagamentos de opções de capacidade aos geradores a responsabilidade advinda de tais pagamentos. Os geradores que recebem pagamento pela capacidade devem garantir sua disponibilidade para produzir energia quando o risco de abastecimento atingir um nível previamente estabelecido pelo regulador. Assim, o prêmio de uma opção de compra de capacidade (R$/MW) reflete um pagamento pela disponibilidade do gerador (pago no momento da assinatura do contrato) e o preço de exercício da opção (R$/MWh) equivale à remuneração recebida pela energia gerada (pago se houver entrega de energia). Outra possível solução diz respeito às trocas diretas entre as distribuidoras. Neste caso, distribuidoras que contrataram capacidade em excesso podem revender tais opções a concorrentes que têm à sua disposição uma quantidade de capacidade menor do que o necessário para fazer frente à carga. Convém destacar que em um mercado de opções de compra de capacidade pode haver manifestação de poder de mercado. Se a obrigação se der em data próxima à data de entrega e, ao mesmo tempo, a capacidade disponível estiver próxima da capacidade total instalada, então, o preço de capacidade pode subir acima do nível competitivo. RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO Com o objetivo de reduzir tal poder de mercado, a liquidação neste mercado deve se dar com antecedência da data de entrega. Isto além de reduzir o poder de mercado potencial, aumenta as opções de oferta de capacidade disponíveis aos consumidores, e incentivar novos entrantes a investir no aumento da capacidade. Num ambiente competitivo, a previsão de carga individual de cada empresa fica mais difícil, assim, o MAE deve definir a quantidade de capacidade requerida para todo o sistema. Os mercados de capacidade operam em regimes temporais. Isto é, o produto capacidade pode ser diário, anual ou mensal. Em um mercado diário as liquidações ocorrem no dia anterior à entrega da energia elétrica. No entanto, um mercado de capacidade diário não cumpre suas funções, justamente por não prover sinais com antecedência significativa das possíveis alterações na oferta e demanda de energia. Um mercado de capacidade mensal, por sua vez, provê mais liquidez e sinais, mas como o setor elétrico demanda planejamento de longo prazo, um mercado mensal não satisfaz todas as exigências. Já um mercado de opções de capacidade anual fornece sinais de médio e longo prazo ao mesmo tempo em que garante maior confiabilidade ao sistema. Em cada submercado, o regulador deve exigir de cada distribuidora que tenha contratos de opções de compra de capacidade para fazer frente à previsão de demanda nos horários de ponta além de uma margem de reserva (em torno de 15 a 20%). O tamanho do mercado de capacidade, em relação à capacidade instalada total do setor elétrico, é de fundamental importância para seu sucesso. Caso o percentual determinado pelo MAE seja relativamente pequeno, menos de 5 % da capacidade instalada, então, nos horários de demanda de ponta, haverá exercício de poder de mercado, dado que no mercado de energia a capacidade estará próxima ao limite e o mercado de capacidade não terá folga suficiente para reduzir os preços MAE. Outra questão importante diz respeito ao tempo de maturação dos RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO Figura 1 – Efeito Risco quantidade Fonte: Adaptado de Hunt e Shuttleworth (1996) contratos de opções de capacidade. Dado que o setor elétrico requer investimentos de longo prazo, os contratos também devem obedecer a este critério. Especificamente, contratos de um até três anos de maturação seriam ferramentas úteis ao planejamento de longo e médio prazo. Mas, devido à dificuldade em se prever corretamente a demanda, contratos de opções de capacidade com tempo de maturidade inferior a um ano também poderiam ser negociados para suprir eventuais erros de previsão de carga. Como o objetivo básico desta proposta é criar um mercado para reserva de geração, é irrelevante se a reserva é proveniente de geração termelétrica ou hidrelétrica. A idéia é que o mercado de capacidade crie incentivos para que os geradores mantenham níveis confortáveis de armazenamento. Em suma, tanto os geradores hidrelétricos quanto os térmicos devem operar no mercado de capacidade. Para que o mercado de capacidade seja eficiente é necessário que os geradores termelétricos comprovem a contratação de combustível e que os hidrelétricos mantenham etoques de água compatíveis com o nível de reserva contratado. O tratamento simétrico a todos os tipos de geradores minimiza os efeitos das economias de escala que decorrem da expansão da geração e também reduz o custo marginal de longo prazo do sistema. Os benefícios do contrato de opções de reserva de geração podem ser visualizados na figura 1, que apre- senta o risco quantidade, ou seja, as possibilidades de variação na produção de um determinado gerador dadas às variações no preço de mercado. Ou seja, tanto se o preço subir ou diminuir, o gerador ficará exposto a um risco quantidade. Tal risco pode ser mitigado por contratos de opção de capacidade. A figura 1 retrata uma situação na qual se o preço aumentar a geradora tende a operar por H2 horas no ano. E, caso o preço se reduza, a geradora operará por H0 horas/ano. Deste modo, o gerador está sujeito a produzir além de sua capacidade ou disponibilidade. Assim, supondo-se que um determinado gerador tenha contratado uma quantidade Q kw em um dado período, onde Q é a capacidade do gerador e E ($/Kw) é o custo variável, que equivale ao preço de exercício. O risco quantidade do gerador está expresso nas possíveis variações no preço de mercado. Neste caso, supondo que o gerador esteja sempre disponível, a geradora operará H* horas, que é o número de horas em que o preço de mercado é superior ao preço de exercício. Assim, o prêmio de exercício gera uma receita fixa que remunera os custos fixos (CF) da planta. 6. Simulação do modelo Esta seção descreve o modelo de mercado proposto. Para se atingir o objetivo deste trabalho, foram seguidas as seguintes etapas8: Primeira8 Como em Leite (2003). Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA 29 mente, foi desenvolvido um modelo ARIMA (Autoregressive Integrated Moving Average) de previsão do preço spot no Brasil, com base nos dados do Mercado Atacadista de Energia (MAE). Em segundo lugar, com base no modelo ARIMA estimado, foram feitas previsões com diferença de um mês em relação ao mês estudado. Por fim, com base nos preços futuros estimados, foram calculados os valores das opções de compra de capacidade, com base no modelo desenvolvido por Black and Scholes (HULL, 1998). Este modelo de previsão do preço spot foi desenvolvido como objetivo de possibilitar a simulação de preços futuros de capacidade, no prazo de um mês. A previsão de preço spot neste trabalho leva em consideração os limites impostos pela metodologia de cálculo do mesmo. Esta utiliza uma série de tempo com mais de 70 anos de dados para modelar a previsão de variáveis estocásticas como o nível pluviométrico. Assim, o preço MAE em um determinado período contém informações passadas, por isso, ele é a única variável no modelo. Para tanto, foi usada uma série histórica de dados do preço MAE, dos submercados Sudeste/CentroOeste (Se) e Sul (S), de 47 semanas, com início na segunda semana de fevereiro de 2002 e terminando na última semana de dezembro e 2002. Este período foi escolhido porque seu início se dá no final do período de racionamento de energia e seu final ocorre simultaneamente ao período final de operações do MAE. A utilização dos dados colhidos no período de vigência do racionamento de energia poderia levar a um viés na análise estatística, dado que houve forte queda nos preços, na região sudeste, no período de apenas uma semana. O modelo de previsão do preço MAE utilizado neste trabalho segue o método de Box & Jenkins (MAKRIDAKIS et al., 1998) e utiliza um modelo ARIMA para descrever o comportamento da série. Foram, assim, estimadas as seguintes equações para os submercados SE/CO e S, respectivamente. 30 SE/CO S Assim, com base nas equações encontradas, foram feitas previsões exante do comportamento dos preços MAE nos submercados SE/CO e S. Ou seja, com base nas equações estimadas, foram calculados preços futuros teóricos com prazo de maturidade de um mês, para 43 semanas. Desta forma, as figuras 2 e 3 mostram a relação entre os preços reais observados (P SE/CO e P S) e os preços teóricos estimados (Pt Se e Pt S). Pode-se notar que a série teórica tem volatilidade reduzida em relação à série observada. Porém, segue a mesma tendência de sazonalidade. Figura 2 – Relação entre Preços MAE observados (P) e teóricos (Pt) para o submercado SE/CO (R$/MWh e R$/MW). Fonte: Elaboração própria com dados MAE. Figura 3 – Relação entre Preços MAE observados (P) e teóricos (Pt) para o submercado S (R$/MWh e R$/MW). Fonte: Elaboração própria com dados MAE. Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO Volatilidade/ tempo P SE/CO P Sul SE/CO P teórico P teórico Sul Volatilidade Semanal Volatilidade Mensal Volatilidade Anual 27 53 193 39 77 279 19 38 138 26 51 184 Quadro 4 - Volatilidade das séries de preços real e estimada pelo modelo (Em %) Fonte: elaboração própria com dados do MAE. Figura 4: Valores das opções de compra para os submercados SE/CO e S (R$/MW teóricos) Fonte: elaboração própria com dados do MAE. O passo seguinte consistiu em estimar a volatilidade, com em Hull (1998) tanto dos preços observados quanto dos preços teóricos estimados. É possível notar no quadro 4 que o preço teórico estimado tem volatilidade aproximadamente 30% menor que o a série de preços real. Precisamente, esta redução é um dos objetivos de um mercado de opções. Porém, é possível notar que o modelo de previsão do preço MAE apresenta limitações, que são inerentes à própria metodologia de formação do preço MAE. Assim, caso fosse possível estimar um modelo de previsão de preço ótimo, então, a volatilidade estimada também seria expressivamente menor, corroborando a existência de um mercado de opções de capacidade. Posteriormente, com base nos preços estimados pelo modelo e na volatilidade calculada para os preços futuros teóricos, foi feito, por intermédio da metodologia apresentada por Black e Scholes, o cálculo do preço das opções de compra, ou seja, RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO das calls, que podem ser visualizados na figura 4, para os dois submercados estudados. Note-se que há semanas em que o preço das calls nos dois submercados é positivo, mas há semanas em que o preço das calls é igual a zero. Este era um resultado esperado já que, dada a variação do preço MAE, é natural que ocorra semanas em que as distribuidoras (compradoras) precisem recorrer ao mercado de opções, para garantir entrega de eletricidade para o mês seguinte, dado que nestes períodos a probabilidade de racionamento seria maior. Em alter- “ ... um modelo de mercado spot competitivo e eficiente é condição essencial para o crescimento do setor elétrico brasileiro... ” nância, há semanas em que isso não é necessário dado que o preço MAE possa estar bastante baixo, devido à demanda reduzida. Ou seja, há períodos onde é vantajoso exercer a opção de compra, o que significa dizer que o preço spot é maior do que o preço de exercício da opção. E, em contrapartida, há épocas onde é mais racional comprar energia diretamente no mercado spot. Quando o preço spot (ps) for menor do que o preço de exercício da opção (pe), o comprador não exerce sua opção e compra energia diretamente no mercado spot. O gerador disponível vende energia no mercado spot e é remunerado por pelo preço spot. Já quando o preço spot for maior do que o preço de exercício, então, o comprador exerce sua opção e paga o preço de exercício. Neste caso, o gerador disponível oferta energia ao comprador e é remunerado em pe. Em todos os casos, o gerador é remunerado também pelo prêmio do contrato de opções, que remunera os custos fixos de disponibilidade. Em suma, o mercado de capacidade opera como um price-cap ao nível pe. O mercado de capacidade é uma combinação entre uma opção de compra de capacidade ou reserva de geração, um preço de exercício previamente estabelecido e uma penalidade por indisponibilidade. As transações com mecanismos do mercado de opções operam como um elemento estabilizador da receita do gerador, reduzindo, portanto, seu risco. Isto se torna ainda mais relevante para geradores que não tenham 100% da energia contratada. Pode-se concluir, então, que há forte relação de interdependência entre o mercado spot e o mercado de opções de capacidade, e, por conseqüência, entre a eficiência de cada um destes mercados. Muito embora, o modelo aqui proposto resulte na redução da volatilidade do preço spot, sua eficiência também é afetada pelo modelo de mercado spot. Assim, um modelo de mercado spot competitivo e eficiente é condição essencial para o melhor dinamismo e crescimento do setor elétrico brasileiro. O limite do modelo aqui proposto reside no fato de que o prazo de Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA 31 maturidade do mercado de opções de capacidade, um mês, é relativamente curto, o que pode aumentar a correlação entre o valor dos prêmios e o preço MAE. No entanto, tem a vantagem de reduzir a volatilidade do preço MAE e garantir o aumento da confiabilidade no curto prazo. Contratos futuros de longo prazo, por sua vez, tenderiam a reduzir ainda mais a volatilidade do preço MAE. No entanto, estimar um modelo de previsão levando-se em conta um período de um ano requer uma quantidade significativa de dados. Sendo assim, este trabalho limitouse a modelar os preços futuros com apenas um mês de antecedência. 7. Considerações finais Este artigo teve como objetivo apresentar uma proposta de mercado de capacidade, com transações via mercado de opções, para o setor elétrico brasileiro. Discutiu-se que a para garantir um nível mínimo de confiabilidade, a capacidade instalada deve ser superior à demanda. Para tanto, num ambiente onde participem agentes privados, esta capacidade adicional deve ser remunerada. Assim, a proposta tem algumas características importantes: • Foi proposto que capacidade, isto é, a disponibilidade dos geradores, seja transacionada via mercado de opções, do tipo europeu; • Como a garantia de confiabilidade é o objetivo deste mercado, o MAE deve determinar a quantidade exante e o preço é determinado no mercado de opções de capacidade; • Este mecanismo reduziria o poder de mercado do lado da oferta e tornaria a demanda mais preçoelástica. Além do mais, neste trabalho foi desenvolvido um modelo de previsão do preço MAE com o intuito de simular preços de opções de compra, no curto prazo. Mostrou-se que os preços futuros teóricos estimados comportam-se de forma sazonal, tal qual a série de preços MAE, e que, por conseqüência disso, os preços das opções de compra, calculados pelo modelo Black e Scholes, são positivos em determinados períodos 32 e nulos em outros. Isto mostra que há épocas em que os preços de exercício tendem a ter valor acima dos preços spot e épocas onde os primeiros são menores do que os últimos. A principal implicação disso é que em alguns períodos os geradores serão remunerados pela sua disponibilidade futura e períodos nos quais não o serão, sendo, portanto, necessário buscar mecanismos para garantir tal remuneração em todos os períodos. Examinou-se, também, que o próprio modelo de previsão tem restrições, o que implica restrições também nos preços futuros teóricos e nos preços das opções de compra. Isto permite concluir que mecanismos de mercado, como o proposto neste trabalho, somente serão eficientes se o mercado spot também o for. Em outras palavras, a partir da experiência internacional, especialmente o caso americano, pode-se notar que há forte correlação entre o mercado spot e o mercado futuro de energia elétrica. No entanto, tal correlação não permite verificar relações de causalidade, o que implica afirmar que os dois modelos de mercado são complementares e a eficiência em ambos é requisito para o sucesso destes tipos de mercado. Conforme Fraser (2003), um mercado spot no qual os preços estão submetidos a rígidos controles, pode não induzir a um adequado nível de investimento, mesmo quando ocorre um choque de oferta. E, medidas no sentido de reduzir o poder de mercado podem reduzir o preço de escassez, que tenderia a estimular novos investimentos. Resulta daí que algum tipo de obrigação de capacidade é desejável no sentido de reduzir a volatilidade do preço spot. Tal obrigação é ainda mais desejável quando o mercado de energia não é competitivo, e tal obrigação teria caráter passageiro. É importante enfatizar que mercados secundários de energia ou capacidade são ferramentas preciosas para aumentar a confiabilidade e a liquidez do setor elétrico, como mostra a experiência internacional, mas, sua eficiência só ocorre na medida em que também sejam eficien- Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA tes os mercados de contratos e o mercado spot. Tal Mercado e seu sistema de penalidade induzem ao aumento da expansão do sistema porque: como os geradores são remunerados pela disponibilidade, e sendo o CF o real custo de capacidade, então, como mostrado em Leite (2003), a capacidade seria transacionada a um preço igual ao custo marginal. Há incentivo também, pois como a penalidade é proporcional à diferença entre a capacidade requerida e a capacidade instalada, os geradores tenderiam a investir a fim de evitar tal situação. Importa, por fim, destacar que um mercado de capacidade é um mercado adicional no sistema elétrico. A experiência bem-sucedida de alguns países (por exemplo, o pool dos países nórdicos) mostra que a co-existência de diferentes tipos de mercados (de contratos, spot, futuros) pode contribuir para o aumento da eficiência econômica no setor elétrico. Ou seja, a introdução de um mercado de capacidade é somente viabilizada à medida que outros mercados, como o spot, também estejam em operação no sistema. Referências Bibliográficas ARAÚJO, J. L.H. et al. Comparação entre MAE, PJM e Nord Pool: relatório final. Brasília: ANEEL, outubro de 2001. COLLINS, Robert A. The economics of electricity hedging and a proposed modification for the future contract for electricity. IEEE Transactions on Power System, vol. 17, n.1, February 2002. CRAMTON, P. Electricity market design: the good, the bad and the ugly. In: Proceedings of the 36th IEEE Hawaii International Conference on System Sciences. January 2003. CRETI, A. & FABRA, N. Capacity markets for electricity. 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Utilizando-se de uma base teórica densa, respaldada por evidências empíricas inéditas, mostra porque os laços e as conexões presentes em uma dada região – vinculando e interconectando os atores produtivos entre si e estes com o mundo exterior e formando as redes territoriais – são fundamentais para o crescimento e a prosperidade. Durante o desenvolvimento ocorre um processo de adensamento das relações locais e uma ampliação e diversificação das conexões com o mundo exterior. Laços são ativos territoriais e condicionam a própria evolução da região. Não são, no entanto, imutáveis. A ação empreendedora – dotada de capacidade de inovação – pode alterar a configuração das redes. Os laços e suas conformações podem ser adequadamente identificados e mensurados, com metodologias e indicadores adequados, permitindo a realização de estudos de natureza comparativa. O presente trabalho demonstra a importância da construção teórica na elucidação de dimensões até então desconhecidas da dinâmica territorial e a necessidade de se incorporar, nas análises sobre competitividade e desenvolvimento regional, os ativos relacionais, ao lado de outros recursos produtivos convencionais, já amplamente considerados na literatura Abstract This article conceives and displays an new analytical construct, devised for the evaluation of the regional development, supported by a set of empirical dates. This is accomplished with reliance upon the recognition of the importance acquired by ties and networks connecting local productive actors among themselves and with the outside world. It shows that throughout the development process underlying a given territory, local relations, involving local productive actors, tend to coalesce, conjoined with the widening and diversification of their ties with the outside world. Ties and networks condition and shape the nature of business achievements those actors can accomplish and the evolution of the own region. But they are not unchangeble. Entrepreneurship, with its innovative dimensions, can prevail upon a given region, changing ties and connections, as well as imprinting current networks with new dynamics. This work shows the importance acquired by relational assets – also called here Relational Social Capital or, briefly, Relational Capital – for the explanation of territorial dynamics and introduces a new methodology, with a set of indicators, able to be supportive of comparative studies, both at the inter and intra territorial levels. A call is placed on the need, in the context of analytical studies on competitiveness and regional deve- Palavras-chave: desenvolvimento, competitividade, capital relacional, capital social, laços, redes, enraizamento, empreendedorismo, inovação, aglomeração produtiva. 34 Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA 1 lopment, to incorporate relational assets to the conventional productive assets, distinguished in the traditional literature. Key words: development, competitiveness, relational capital, social capital, ties, networks, embeddedness, entrepreneurship, innovation, regional clusters. Introdução A crença de que o desenvolvimento regional poderia ser induzido a partir de fatores exógenos, ancorados em investimentos em grandes projetos produtivos e de infra-estrutura, capazes de desencadear efeitos benéficos na região, norteou, em grande parte, em todo o mundo, as políticas públicas na área, sobretudo nas décadas imediatamente após a Segunda Grande Guerra. No Brasil, tal proposta foi incorporada, por exemplo, nas estratégias da SUDENE, voltadas para a industrialização e o desenvolvimento do Nordeste. Essa promessa parece ter se esgotado, juntamente com a crença na capacidade ilimitada de utilização de mecanismos externos e exógenos, como a principal fonte de estímulo ao crescimento econômico regional (a propósito da evolução recente da literatura sobre desenvolvimento, ver, entre outros autores, Sen, 2002; Meier & Stiglitz, 2002; Sachs, 2004; Johanssen et al., 2001. Sobre a prática recente do desenvolvimento local no Brasil, ver, por exemplo, Lages et al., 2004; Fisher, 2002, Vale, 2004 a; b; c.). Economista, Mestrado (Université de Paris I- Panthéon/Sorbonne), Doutorado (UFLA), Professora da PUC Minas, Gerente do Sebrae Minas, com mais de uma década de experiência na concepção e acompanhamento de projetos de desenvolvimento regional e setorial, com livros e artigos publicados, no Brasil e no exterior, sobre os temas desenvolvimento, empreendedorismo, redes empresariais. RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO A partir, sobretudo, da década de 1980, o sucesso alcançado por algumas regiões do mundo, em termos de inserção competitiva no mercado global, associado a elevado padrão de sustentabilidade sócio-econômica, passou a atrair a atenção. Projetaram-se, nesse contexto, não só as experiências bem sucedidas dos distritos industriais italianos, que passaram a ser amplamente estudados e observados, como também de várias outras regiões, caracterizadas, em geral, por configurações de maior densidade produtiva, compostas por um grande número de empresas conexas e inter-relacionadas, em geral, de pequeno porte. Neste elenco incluem-se, entre outras, certas regiões produtoras de confecção e jóias da Grande Londres, na Inglaterra, os distritos de Baden-Wurttemberg, na Alemanha e o Vale do Silício, nos Estados Unidos. No Brasil cita-se, por exemplo, a partir da década de 1990, o aglomerado de couro e calçados do Vale dos Sinos. Mas, várias outras regiões no país vêm despontando, também, como exemplos de regiões mais dinâmicas, como é o caso, em Minas Gerais, da aglomeração de móveis, na região de Ubá. Ressurgem, nesse contexto, novas indagações e provocações. Por que algumas localidades se desenvolvem e outras não? Por que algumas aglomerações produtivas são mais dinâmicas que outras? Por que algumas regiões, aparentemente semelhantes, em termos, por exemplo, de dotação de recursos produtivos e de capital humano, podem apresentar diferentes níveis de evolução? Questões deste tipo vêm despertando a atenção de delineadores de políticas públicas. A inclusão, nas análises sobre desenvolvimento, dos ativos relacionais pode ajudar a esclarecer algumas questões. O presente artigo pretende mostrar como estes ativos de natureza relacional – designados, aqui, por Capital Social Relacional ou, simplesmente, Capital Relacional – podem ser tão importantes para o processo de desenvolvimento local quanto os demais recursos produtivos tradicionalmente citados na literatura. Esses ativos podem ser não apenas identificados como, também, mensuRDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO rados, com a utilização de instrumentos adequados. Tal tema foi concebido e explorado por Vale (2006a). Esta autora já vinha trabalhando com a temática do desenvolvimento regional e suas associações aos temas do capital social, das redes empresariais e do empreendedorismo (VALE, 2002 a.,b; 2004 a;b, 2005, 2006 a;b;c). Sua proposição corrente evoluiu a partir da teoria das redes sociais – em particular as noções de “laços fracos” e embeddedness (enraizamento)2 associadas a proposições originárias da literatura sobre capital social3, que foram acrescidas com reflexões advindas de uma das vertente da literatura sobre empreendedorismo4 e sobre inovação enquanto um processo de construção social.5 Este trabalho mostra que: i.) os laços e conexões presentes em um dado território podem mudar. A ação empreendedora dotada de capacidade de inovação possui a propriedade de afetar a configuração das redes de relacionamento aí existentes; ii) durante o processo de desenvolvimento de uma região ocorre um adensamento das relações locais – que conectam os diferentes atores locais entre si -, concomitantemente a uma ampliação e diversificação de suas conexões com o “resto do mundo”; iii.) empresas funcionam como “plataformas” de relacionamentos, dotando seus membros de ativos relacionais específicos, úteis para a criação de novas empresas em setores afins. Será apresentada, para isso, a proposta teórica básica (primeira parte), acompanhada por um conjunto de evidências empíricas , onde se incluem, entre outras, as geradas em uma pesquisa pioneira e inovadora, realizada, durante o ano de 2005, na aglomeração produtiva de móveis, na região de Ubá, em Minas Gerais (segunda parte), seguida pela conclusão (terceira parte). A concepção teórica Uma proposição teórica básica norteia a presente reflexão. Trata-se da noção que a transformação de uma região desarticulada ou economicamente deprimida em um território próspero e produtivo depende não apenas da natureza dos recursos produtivos aí presentes e da qualidade da mão-de-obra (como, aliás, amplamente defendido pelos teóricos do desenvolvimento, que a isto vêm adicionando, mais recentemente, outros fatores, como história e cultura), mas também, em grande dose, de seus “ativos relacionais”, ou seja, do seu estoque de capital relacional. No sentido aqui imputado, o capital relacional representa o conjunto de recursos enraizados (embedded) em redes sociais, de usufruto de atores (individuais ou coletivos) e resultante de relacionamentos, conexões e laços. Tais recursos garantem a seus detentores informações, permitem acesso a bens valiosos e geram oportunidades, ajudando-os na obtenção de resultados pretendidos. Nesse contexto, atores sociais, com conexões capazes de lhes permitir transpor distâncias sociais e estabelecer “pontes”, com outros atores e redes (grupos sociais) distintos, gozarão de condições mais privilegiadas. Em um determinado território, o capital social seria representado pelo conjunto de recursos inseridos nas conexões e laços à disposição dos atores produtivos aí presentes, vinculando-os entre si e com o “resto do mundo” e condicionando a natureza dos empreendimentos (individuais e coletivos) que são capazes de implementar. Estes “ativos” relacionais, em interação com os demais recursos produtivos aí presentes, condicionam a evolução do próprio território. 2 Ver, na origem destes conceitos, Granovetter, 1973, 1985, 1986, 1991, 1992, 1994, 2001, 2005. Nos desdobramentos, em outros autores, ver, por exemplo, Zukin & DiMaggio, 1990; DiMaggio, 1994; Grabher, 1993; Dosi e Malerba, 1996; Dacin et al., 1999; Malerba, 2005. 3 As abordagens recentes sobre capital social diferem, significativamente, das abordagens clássicas (representadas, por exemplo, por Coleman 1988, 1990; Bourdieu, 1982, 1999, 2002; Putnam 1993, 1996). Ver, entre outros, Lin, 2001a,b. 4 Trata-se da visão do empreendedor enquanto um articulador de redes, como concebido por Leibenstein 1968; Granovetter 1985; Burt, 1992, 1997, 2000, 2001 5 A propósito deste assunto ver, entre outros, Lundval, 1988; Lundval & Borrás, 1997; Malerba, 2005 Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA 35 “ ... alianças estratégicas são construídas e desfeitas; novas alianças se consolidam; relações empresariais e institucionais são retransformadas... ” Este conjunto de laços e conexões representa, em um dado momento, o estoque de capital social relacional ou de ativos relacionais do território. Este estoque não é, no entanto, estático, sendo dotado de uma característica dinâmica. A configuração das redes, em um dado momento, reflete a história e a natureza da evolução da própria comunidade. Relações e interações passadas influenciam a natureza das relações futuras que, por sua vez, são afetadas por variáveis de natureza institucional, social e cultural aí presentes. Mas, na dinâmica de reconfiguração das redes, um fator, em particular, é de interesse do presente trabalho: a ação empreendedora dotada de capacidade de inovação. A ação empreendedora pode alterar não só a configuração das redes existentes, preenchendo brechas ou vazios no mercado, destruindo e criando diferentes laços e conexões entre distintos atores e grupos sociais e recombinando recursos novos e ou antigos, como altera, também, a natureza dos recursos enraizados (embedded) nessas redes. Ou seja, o capital relacional. Ao longo do processo, vinculações sociais e mercantis, imbricadas e enraizadas (embedded) umas nas outras, vão se reforçando e interpenetrando, afetando a dinâmica do próprio capital social aí presente. A reconfiguração de redes passa não só pela capacidade de combinação de recursos produtivos convencionais, disponíveis no mercado e compatíveis com um determinado padrão de conhecimento já existen- 36 te, mas também e sobretudo, pela capacidade de combinação de recursos existentes mas não relacionados ou não considerados compatíveis em face de um dado paradigma tecnológico prevalente. Fornecedores e distribuidores são, eventualmente, substituídos ou acrescidos; novos produtos são lançados, exigindo a criação de novas redes voltadas para outros segmentos ou nichos de mercado; novas combinações de produtos e mercados são realizadas; alianças estratégicas são construídas e desfeitas; novas alianças se consolidam; relações empresariais e institucionais são retransformadas; relações sociais e mercantis, imbricadas umas nas outras, se reforçam e se modelam. O ritmo da transformação dependerá da natureza da inovação (se incremental versus radical) e de seu impacto (se pequena versus grande e se localizada versus abrangente). Grandes inovações podem gerar grandes transformações. Inovações incrementais geram transformações incrementais. O ritmo de desenvolvimento e de transformação de um território é, em geral, lento. Se é verdade que uma empresa possui uma certa dotação em termos de rotinas e procedimentos técnicos (a propósito deste assunto ver Nelson & Winter, 1982), que evolui, geralmente, de maneira mais gradual, pode-se complementar tal afirmação salientando que cada empresa possui um determinado conjunto de ativos relacionais – seu estoque de capital social – que evolui, também, de maneira mais gradual. Tal ritmo pode ser quebrado, apenas, no caso de grandes inovações. Nesse contexto, as empresas locais funcionam como plataformas de relacionamentos, dotando seus membros de ativos relacionais específicos, que lhes são de utilidade na criação de novas empresas, em setores afins. No início da evolução de uma empresa, os laços pessoais pregressos de seus proprietários funcionam como alavancadores de relações comerciais, que vão se formando, constituindo, elas próprias, à medida que se consolidam, também em alavancadoras de novas re- Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA lações, que compõem o ativo relacional das empresas. Parte deste ativo ou acervo pode ser, eventualmente, apropriado ou aproveitado por outros membros da empresa, como ativos pessoais, na criação de novas empresas. Durante o processo de desenvolvimento de uma região ocorre uma evolução e uma ampliação das redes aí existentes, capazes de preencher os vácuos e lacunas, que separam não só distintos atores, grupos e segmentos sociais presentes naquela comunidade (reduzindo as facções, o isolamento e a distância existente entre eles, permitindo, conseqüentemente, um maior fluxo de informação e a difusão e renovação da inovação entre as empresas) como, também, que separam a região de centros mais dinâmicos, localizados fora de seu território, ou seja, situados no “resto do mundo”. Enquanto o adensamento dos vínculos locais garante a criação de um padrão produtivo local e a implementação de ações coletivas, são os vínculos exteriores, com os centros dinâmicos, capazes de “capturar” recursos valiosos e diversificados, localizados fora do território, que funcionam como mecanismos indutores de permanente transformação e inovação. Uma ênfase demasiada em vínculos interiores, em detrimento dos exteriores, leva o território a uma situação de isolamento e contração. No outro extremo, uma valorização excessiva dos vínculos exteriores, sem um correspondente desenvolvimento dos vínculos interiores, leva à formação de enclaves territoriais, onde os benefícios do progresso podem ficar concentrados nas mãos de poucos privilegiados conectados com exterior, ao mesmo tempo em que se amplia a vulnerabilidade local, visto que processos decisórios relevantes podem, eventualmente, situar-se fora da esfera do próprio território. Para o desenvolvimento de uma região concebe-se, como fundamental, o estoque de ativos relacionais existentes e sua interação com os demais ativos, tradicionalmente citados na literatura corrente. Se, por um lado, os modelos econômicos regioRDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO nalizados de relações interindustriais, como os de Leontief, Chenery e Isard, entre outros, são capazes de captar as vinculações produtivas existentes, em um dado momento, entre certos tipos de recursos produtivos locais e os recursos produtivos externos, tais modelos são, no entanto, incapazes de capturar as múltiplas dimensões existentes na configuração das redes sociais aí presentes ou o caráter dinâmico de tais configurações. Estas configurações afetam, de certa forma, a própria conformação da matriz de insumo-produto, à medida que condicionam o que será ou não “apropriado” como recurso local e o que será “transacionado” com o mundo exterior, dentro de um conjunto de possibilidade objetivas e concretas, teoricamente disponíveis para a região. Tais proposições encontram amplo respaldo na realidade das regiões, como pode ser observado, recorrendo-se a pesquisas empíricas. As evidências empíricas Alguns exemplos permitem uma melhor compreensão da importância das conexões e das redes de relacionamento, tanto no âmbito de um ator individual, quanto de um território. Pode existir, por exemplo, em uma comunidade rural, um ou mais artesãos com capacidade de criar ou produzir determinados objetos, muito valorizados em outros locais ou em centros mais dinâmicos. No entanto, a realização e o usufruto do valor pelo seu criador ou produtor só são possíveis se esse ator possuir contatos e laços com outras redes sociais, além daquelas situadas na sua própria localidade, capazes de permitir a ele inserir seu produto em mercados que o valorizam. Ao contrário, sua criação ou produção ficarão restritas à sua pequena comunidade de relacionamento, que é incapaz de dotá-lo de qualquer valor econômico relevante. Em várias regiões do país podem ser encontrados indivíduos deste tipo, como atestado pelo projeto de resgate cultural do artesanato, desenvolvido pelo Sebrae/ FAOP (VALE, 2003). São detentores de saberes tradicionais, verdadeiros repositóRDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO rios de técnicas e ofícios que foram, um dia, no passado, fundamentais para a vida social e econômica de suas comunidades. Vários desses ofícios encontram-se, hoje, em risco de extinção. Seus produtos seriam, no entanto, muito valorizados, atualmente, em vários locais do mundo, como objetos de decoração ou, mesmo, como utilitários. Situações deste tipo podem ser encontradas, por exemplo, em regiões que já foram prósperas, passaram por um processo de contração e perderam suas conexões (região deprimida) ou, ainda, em regiões dotadas de certo conteúdo demográfico e de recursos convencionais, mas que, ainda, não lograram articulação com centros dinâmicos (regiões isoladas ou desarticuladas). É comum referir-se a essas regiões como pouco dotadas de capacidade empreendedora e, conseqüentemente, incapazes de usufruir, plenamente, de investimentos aí realizados. Na realidade, elas carecem de um tipo de capital social, ou seja, de redes de relacionamento e conexões com o mundo exterior, embora possam possuir, eventualmente, densidade de vínculos locais. Um segundo exemplo ajuda a caracterizar a importância das conexões externas de um dado território na manutenção do dinamismo local. Com o esgotamento do ciclo do café e a decadência da produção de fumo, a Zona da Mata, localizada em Minas Gerais, foi perdendo a vitalidade e as conexões com os centros mais dinâmicos do país e do exterior. Insere-se, hoje, entre as macroregiões deprimidas do estado e do país. Sua taxa de crescimento do PIB, no período 1992/2000, foi de 3,3%, inferior à média estadual. No entanto, aí vem despontando uma localidade cujo desempenho destoa do restante da região. Trata-se do pólo moveleiro de Ubá que apresentou, neste mesmo período, uma taxa de crescimento de 5,7%, muito superior, inclusive, à taxa estadual ou à nacional. Esta localidade vem se especializando, desde a década de 1970, na fabricação de móveis. A partir de 1990 multiplicou-se o número das empresas existentes e a produção expandiu-se para cidades vizinhas. Nos últimos anos esta região despontou, no cenário nacional, como um dos principais centros produtores do país e inicia, agora, seu processo de internacionalização. Ao longo do processo de transformação e desenvolvimento desta região é possível observar como as redes locais foram se adensando; como foram surgindo e se multiplicando as conexões externas; a importância das redes pessoais condicionando e afetando a criação das redes empresariais; as repercussões destas nas redes pessoais; a capacidade de inovação e o papel da ação empreendedora rompendo o status quo e afetando a configuração das redes regionais; a interação entre estes processos na formação do capital relacional local. Nas últimas décadas, este território foi forjando, paulatinamente, uma nova rede de conexões e vinculações com os principais centros produtores e consumidores de móveis do país e inicia, agora, suas conexões com o mercado internacional. Os móveis que eram, inicialmente, cópias mal feitas, voltadas para segmentos situados geograficamente próximos do pólo e menos exigentes de consumo, estão adquirindo uma concepção própria e voltando-se para mercados cada vez mais distantes e exigentes. Dada a intensa interação existente entre os produtores e demais atores locais, a proliferação de redes conectando a região com os centros mais dinâmicos amplifica e multiplica oportunidades empreendedoras individuais. Novos empreendimentos que surgem usufruem de muitas das conexões existentes no local, além de forjar, muitas vezes, novos laços e conexões. “ Com o esgotamento do ciclo do café e a decadência da produção de fumo, a Zona da Mata foi perdendo a vitalidade... ” Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA 37 Uma imersão na realidade de Ubá permite observar como vem se dando a dinâmica de evolução do território. Serão utilizados, para isso, alguns resultados obtidos a partir de uma pesquisa de campo aí realizadas.6, que contou com a ajuda de um conjunto de indicadores, incluindo: i.) Indicador de densidade da rede (mede o grau de conectividade de uma rede, em um determinado momento, a partir da aferição da freqüência de contatos existentes entre seus membros, incluindo: contatos diários/semanais; mensais; bimestrais; eventuais); ii.) Indicador de amplitude da rede (mede o número de diferentes “categorias” de contatos existentes em uma determinada rede, incluindo os contatos a níveis local, estadual, nacional e internacional); iii.) Indicador de Adensamento da rede (mede a alteração na intensidade de contatos, dentro de uma mesma “categoria de contato”, em um determinado período de tempo); iv.) Indicador de Enraizamento ou de embeddedeness, contendo dois tipos (Temporal mede o encadeamento intrafamiliar da atividade produtiva, verificando a quantas gerações imediatamente precedentes esta remonta; Setorial mede o grau de encadeamento interempresarial, verificando as ligações a jusante e a montante, que se estabelecem entre diferentes empresas, no fenômeno de transformação de antigos empregados em novos empresários); v.) Indicador de desempenho empresarial (mede o impacto de um produto novo nas vendas totais de um dado conjunto de empresas). Embora um determinado território possa apresentar uma tendência geral dominante de transformação em certa direção, podem coexistir e conviver, em seu interior, diferentes realidades, com distintos padrões de evolução. A pesquisa realizada em Ubá permitiu a identificação de dois conjuntos bastante distintos de empresas: o Grupo em Expansão (empresas que apresentaram, nos últimos dois anos, taxas de crescimento do faturamento superiores a 20%, representando o núcleo dinâmico do polo); Grupo em Retração (empresas 38 cujas taxas de faturamento, no mesmo período, foram negativas ou, no máximo, inferiores a 5%). A pesquisa identificou que estes dois grupos também apresentaram nítidas diferenciações em termos de capacidade de inovação e no que diz respeito à posse de ativos relacionais. O fenômeno de ampliação e adensamento das redes Há meio século atrás, a região de Ubá não possuía conexões vinculando empresas moveleiras com qualquer tipo de organização localizada além das fronteiras estaduais. Há uma década, a região não possuía conexões com qualquer tipo de organização além das fronteiras nacionais. Há cinco anos, a região não tinha contato com nenhum centro tecnológico. No exercício de sua missão as empresas lançam mão de vários canais de conexão e de contato (com o mercado, o poder público e a sociedade), cada um deles inserindo-se em uma dada “categoria de contato”. As diferentes categorias de contato incluem: outras empresas similares, fornecedores, clientes, representantes, empresas de consultoria, bancos, entidades empresariais e de apoio, escolas/universidades/centros tecnológicos, grupos empresariais, fóruns e grupos sociais, prefeitura e orgãos públicos, outros grupos, etc. Estas vinculações podem se dar a nível local/regional, estadual, nacional e internacional. Quanto mais freqüentes forem, por exemplo, as vinculações de âmbito internacional, mais internacionalizada encontra-se a região; e vice versa. No caso de Ubá, estes canais foram todos mapeados e classificados em certas categorias de contato ou de vinculação, levando à criação de uma Matriz de Conectividade Territorial. Foi possível vislumbrar, aí, o atual perfil de vinculações empresariais, hoje prevalente na região. Os dados indicam que, no âmbito local, existem treze diferentes categorias de contato explorados pelas empresas Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA 6 locais; no estadual nove; no nacional, sete; no internacional, quatro. Tais vinculações retratam não apenas o quadro atual mas representam, também, os limite das possibilidades territoriais atualmente disponíveis para o setor produtivo local. Observando-se a performance do indicador de diversidade de contato entre os dois grupos de empresas constatam-se diferenças significativas: o grupo de empresas em expansão possui, em geral, um maior número de diferentes categorias de conexão. Mais de 20% das empresas moveleiras possuem vinculações com um mínimo de nove diferentes categorias de conexão (no caso das empresas em retração este indicador é de 11%, contra 24% no caso das empresas em expansão). Cerca de 56,3% das empresas possuem mais de cinco diferentes categorias de conexão em âmbito nacional (sendo 36,9% para o grupo em retração e 66,7% para o grupo em expansão). Já, 8% das empresas possuem pelo menos uma categoria de conexão em âmbito internacional (empresas em retração zero e empresas em expansão 15%). A transformação recente no estoque de ativos relacionais da região (período 2000-2005) pode ser captada com a utilização do indicador de adensamento das conexões, que baseia-se no conceito de saldo (um saldo positivo indica que em 2005 a freqüência de contatos realizados pelo conjunto de empresas, dentro de uma mesma “categoria de contato” foi maior do que a freqüência existente em 2000, sinalizando expansão nos contatos; por outro lado, o saldo negativo sinaliza retração nos contatos). Este indicador, aferido na categoria de relações “empresa moveleiraoutras empresas similares da região” é de +30%. Indica que o número de empresas que ampliou seus contatos com outras empresas similares, na própria comunidade, é muito superior ao número de empresas que, no mesmo período, reduziu A pesquisa de campo foi realizada em 2005, com uma amostra composta por 64 empresas, representativa do universo empresarial local, considerando um nível de confiança de 95% e um erro amostral de nove pontos percentuais. RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO seus contatos. Este indicador, aferido para a categoria de relacionamento “empresa moveleira-entidades empresariais de apoio local” é de +31%. No caso da categoria “empresas moveleiras-entidades coletivas locais” (a exemplo de consórcios de exportação, centrais de compra, etc.) é de +14%. No mesmo período, as empresas do pólo também ampliaram e diversificaram suas conexões com o resto do mundo, com destaque para o grupo de empresas em expansão. Estas, apresentaram um indicador de adensamento das conexões com a categoria “universidades, escolas, centros tecnológicos”, no âmbito estadual, de +15% (contra zero para o grupo de retração). As empresas do grupo em expansão apresentaram uma taxa de adensamento de contatos com a categoria “clientes”, localizados no exterior, de +12% (valor nulo para grupo em retração). As empresas da aglomeração produtiva de móveis da região de Ubá encontramse, neste exato momento, iniciando um processo de internacionalização, com inserção no mercado internacional. Desempenho, inovação, laços e dinâmica territorial A sobreposição e o encadeamento de mudanças e inovações nas empresas vêm alterando, de maneira significativa, as relações com seus clientes, fornecedores, representantes, com demais empresas moveleiras do pólo e com a comunidade em geral: do total de empresas que lançou, a partir de 2003, um produto novo no mercado (considerado novo da perspectiva da empresa), tal fato afetou, em algum grau, suas respectivas carteiras de clientes (em 95% das empresas), suas carteiras de representantes (40% delas), suas carteiras de fornecedores (30% delas) e suas relações com outras empresas moveleiras na região (21% delas). A região vem apresentando, nos últimos anos, capacidade de inovação e de mudança. O mesmo conjunto de empresas que vêm ampliando e diversificando seus laços e conexões com o “resto de mundo” vem, também, demonstrando uma maior RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO capacidade de inovação e um melhor desempenho, este aferido em termos de evolução do faturamento nos últimos dois anos (2003/2005). Tal fato permite associar desempenho com a presença de ativos relacionais e sugere que a ampliação e a diversificação de contato encontram-se, intimamente, associada à capacidade de inovação das empresas. O indicador de desempenho empresarial permite captar a associação entre capacidade de inovação e desempenho empresarial. A pesquisa constatou que existe uma capacidade diferenciada de inovação entre os dois conjuntos de empresas: este indicador foi de 30,6% no caso do grupo em expansão (contra 3,6% no grupo em retração). Observandose o impacto de um produto novo, introduzido pelas empresas nos últimos dois anos (2003/2004), nas vendas totais correntes das empresas, constatou-se que em 51,5% das empresas em expansão (contra apenas 5,2% no caso das empresas em retração), o impacto de um produto novo, nas vendas totais da empresa situou-se no patamar de 5% a 50%. Salienta-se, também, que 67% das empresas em expansão afirmaram ter lançado um produto novo (incluem-se, neste conjunto, todas as empresas que estão exportando), contra apenas 10,5% para o grupo em retração. Pode-se concluir que, durante o processo de desenvolvimento da região de Ubá, vem ocorrendo, gradualmente, seja um processo de um adensamento das redes de conexão envolvendo as empresas com distintos grupos e organizações presentes na região (reduzindo as facções, o isolamento e a distância existente entre eles, permitindo, conseqüentemente, um maior fluxo de informação e a difusão e renovação da inovação entre as empresas), seja um processo de ampliação e diversificação das conexões locais com outras organizações e empresas, situadas em centros mais dinâmicos e localizadas em territórios cada vez mais distantes. Enquanto o adensamentos dos vínculos locais vem permitindo a criação de um padrão produtivo local e a implementação de algumas ações coletivas, são os vínculos exteriores, com os centros dinâmicos, que funcionam como mecanismos indutores de permanente transformação e inovação. Destaca-se, nesse contexto, o papel desempenhado por um conjunto de empresas que constituem o núcleo dinâmico da aglomeração, imprimindo à região uma capacidade diferenciada de inovação e de transformação, associada a uma habilidade de desbravar e criar novas conexões. Muitas destas são, posteriormente, exploradas e ocupadas pelas demais empresas da região. Elas também funcionam como referência para melhoria e mudanças nas outras empresas, o que é possível, devido à grande interação, em geral informal, existente entre elas e o fluxo de informação que aí circula. Alguns dados permitem sustentar tal proposição. Quase 60% das empresas consideram “muito importante” ou “importante” os contatos com “outras empresas do ramo”, como fonte de informação para aperfeiçoamento de seus produtos. Mais de 60% delas mantêm laços fortes (caracterizados por uma freqüência diária ou semanal de contato) com pelo menos uma outra empresa do ramo, localizada na região; 96,8% das empresas mantêm laços de qualquer intensidade com pelo menos uma outra empresa moveleira. Tais dados indicam que a circulação de informação e a difusão da inovação na aglomeração produtiva podem se propagar rapidamente. Para uma melhor compreensão da dinâmica territorial é importante entende o papel das empresas como “plataformas” de relacionamento. Empresas como “plataformas” e laços como ativos Empresas podem funcionar como “plataformas” para a criação de novas empresas, dotando seus membros de ativos relacionais específicos. No caso de Ubá, um grande número de empresários atuais teve, no passado, algum tipo de conexão, pessoal ou familiar, no ramo de móveis. A forma mais difundida de experiência prévia é, no caso dessa região, a vinculação passada como Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA 39 “ ... experiência prévia no mesmo ramo, inclusive como empregado constitui-se, no mundo empresarial, um fator distintivo. ” empregado em outra empresa. Antigos empregados, que se transformam em novos empreendedores, somam, ao estoque de ativos relacionais que tiveram a habilidade de acumular durante o período em que atuaram como membros de outra organização, as novas conexões, que são capazes de criar, em suas próprias empresas, graças ao esforço empreendedor e à capacidade de inovação. Nesse contexto, é de fundamental importância a natureza do enraizamento (embeddedness) da atividade produtiva na região. Algumas das dimensões do fenômeno foram captadas em Ubá, contando-se, inclusive, com a utilização dos indicadores de enraizamento (Temporal e Setorial). Em Ubá, o indicador de enraizamento temporal para a terceira geração é de 6,2% (indica que 6,2% das empresas possuem vinculações intrafamiliares que remontam há 3 gerações). O indicador de enraizamento setorial é de 71,8% (indica que 71,2% das empresas possuem sócios-proprietários que já foram, anteriormente, empregados de outras empresas no ramo ou, então, possuíram, no passado, empregados que se tornaram empresários no ramo). Um empresário bem sucedido em um determinado ramo de negócios usufruiu, com muito freqüência, no passado, de uma experiência prévia no mesmo ramo, inclusive como empregado (antes de se tornar empresário). A presença de tal experiência constitui-se, no mundo empresarial, um fator distintivo. Ampla maioria dos empresários pesquisados considera que a experiência previa é benéfica para a sua empresa. No entanto, avaliando-se o tipo de beneficio obtido, aquele gerado pelo domínio do 40 processo produtivo equipara-se, em termos de importância, ao beneficio advindo do conhecimento das fontes de informações de interesse, ambos citados por pouco mais da metade das empresários pesquisados, que registraram a presença de alguma experiência anterior na área. Como identificado pela pesquisa, existe, no entanto, um benefício que é, na visão dos empresários, superior aos demais: “o conhecimento de clientes”, citado por 72% dos empresários. Na realidade, é o acesso ao cliente que se constitui um elemento distintivo, para um iniciante no mundo dos negócios. Como podese daí depreender, a experiência passada do atual empresário, como empregado em outra empresa, pode se transformar em um grande ativo. Entre as formas possíveis utilizadas pelas empresas de Ubá, para obter o acesso aos clientes, situamse indicação de pessoas do relacionamento comercial, com 21,% das citações (primeiro lugar) e, “já era de conhecimento do empresário, desde o tempo em que trabalhava em outra empresa do ramo”, com 16% das citações (segundo lugar). Salienta-se que o primeiro tipo de benefício diz respeito a contatos de natureza comercial (que a empresa foi forjando), enquanto que o segundo tipo refere-se a contatos de natureza pessoal (que o empresário acumulou enquanto atuava, como empregado, em outra empresa). A pesquisa constatou que, à medida que ocorre um aumento no porte das empresas, amplia-se a importância dos mecanismos de acesso derivados da ação empreendedora dotada de capacidade de inovação, levados a cabo pela empresa, capaz de diferenciar seu produto dos concorrentes, tornando-o mais competitivo. No outro extremo, quanto menor for uma empresa, mais dependente ela encontra-se de ativos relacionais passados, de natureza pessoal do empresário. Se, por um lado, estes podem ser importantes para permitir um melhor posicionamento inicial de uma nova empresa no mercado e podem, também, dar uma contribuição para o sucesso posterior do empreendimento, eles Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA não são, no entanto, suficientes para o crescimento e o desenvolvimento da empresa. Em um mundo de competição acirrada e em permanente processo de mudança, as empresas devem, continuamente, investir na criação de novos laços e conexões, o que é possível à medida que são capazes, também, de inovar e de se transformar, introduzindo novos processos e gerando produtos diferenciados. A inovação garante o acesso a novas redes e a centros mais dinâmicos. Ao mesmo tempo, as novas vinculações e conexões exigem da empresa maior dinamismo e capacidade de transformação. No ambiente de interação, as novas empresas geradas, muitas delas provenientes de empresas já instaladas, aproveitam, muitas vezes, das redes e conexões criadas pelas empresas anteriores mas vão, também, adicionando e forjando seus próprios laços e criando novas redes. Foi assim em Ubá e é assim nas regiões que estão prosperando e crescendo. Considerações finais Como observado, os ativos relacionais, no contexto de um dado território, são tão importantes quanto o capital físico ou o capital humano aí presentes, para seu crescimento e desenvolvimento. No caso de Ubá, várias gerações vêm alimentando a dinâmica dessa aglomeração produtiva, com um rico acervo de capital relacional, que vem se acumulando e ampliando, como resultado da ação empreendedora, dotada de capacidade de inovação. As gerações, assim, vão se sucedendo, as mais novas utilizando-se dos laços, conexões e conhecimento das gerações anteriores, mas, conseguindo, ao mesmo tempo, preservar o ímpeto empreendedor e a capacidade de inovação. As concepções teóricas, associadas às observações de campo, permitem avançar com algumas proposições para políticas públicas voltadas para o incremento da competitividade territorial e para a implementação de processos sustentáveis de desenvolvimento local. São elas: a) Conscientizar entidades envolvidas com projetos de desenvolvimento territorial sobre a imporRDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO tância de seus papéis como agentes de conexão e de criação de redes, conectando empresas entre si, com entidades e grupos locais e com o mundo exterior. b) Ajudar a transformar as conexões indiretas das empresas (intermediadas, em geral, por entidades de apoio empresarial) com atores chaves, localizados no âmbito local, estadual, nacional e internacional, em conexões diretas c) Inserir ou valorizar, nos esforços de criação de um sistema local de governança nas aglomerações produtivas, a presença de entidades diversas de atuação estadual e nacional, para que possam interagir mais freqüentemente com os demais atores locais. d) Implementar, em aglomerações produtivas, constituídas por um grande número de empresas do mesmo setor de atividade, programas de incentivo à criação de novas empresas, explorando, ao máximo, as conexões aí presentes e o estoque de experiência e conhecimento acumulados. e) Incentivar os contatos e interações de natureza mais informal entre as empresas, em acréscimo aos esforços de criação de agrupamentos empresariais mais institucionalizados ou formalizados. f) Reforçar iniciativas que permitam ampliar os contatos e as interações das empresas locais com empresas similares ou com outros elos da cadeia produtiva, localizados em centros mais dinâmicos, fora da região. g) Investir na criação de um núcleo dinâmico e auto-suficiente de empresas, capaz não só de gerar efeito demonstração, como, também, de forjar e desbravar novos contatos e conexões, que poderão, gradativamente, ser ocupados e explorados pelas demais empresas da região. 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Seu foco é o nível local, ou municipal, até agora ainda pouco tratado pelos pesquisadores dos Estudos Sociais da C&T, mas que para os que se interessam na elaboração de políticas publicas que possam incidir “onde as coisas acontecem” (ou impactam diretamente a população) é fundamental. Palavras chave: Política Científica e Tecnológica, desenvolvimento local, estilos alternativos de desenvolvimento, inovação social. Abstract Contrarily to other areas of public policy, where the Brazilian and Latin-American left are conforming a new way to govern appropriate to the alternative style of socioeconomic development they defend, the area of S&T remains tied to the past. The purpose of this paper -very ambitious and, for some, little academic– is to rescue S&T of the “ideological fog” in which so many other areas of public polices where before and to propose actions that place it RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO in a situation coherent with its impelling power towards that alternative style. The focus of this work is at local level, which has been rarely approached by researchers of social studies of S&T. Key words: Science and Technology Policy, local development, alternative development styles, social innovation. 1. Introdução O patamar do qual se tem que partir é muito inferior ao existente em outras áreas, aonde um longo processo de acúmulo de reflexão e discussão foi gerando um pensamento alternativo e rompida a “neblina ideológica” que as cercava. Foi saindo do vale enevoado que a esquerda chegou ao meio do caminho, foi capaz de perceber o quanto já se havia afastado da neblina, escolher a melhor maneira de chegar ao pico, e transformar esse pensamento em ações de governo nas instâncias que foi pouco a pouco controlando. Partir desse patamar, que se poderia denominar “pré-neblina”, uma vez que são ainda escassas as manifestações críticas a respeito, obriga a um longo e arriscado caminho. Ele deixa a muitos temerosos e a todos impacientes, mas deve ser percorrido em marcha forçada porque disso depende a produção do conhecimento necessário para construir o futuro que se deseja. Ele se inicia pela desconstrução do pensamento hegemônico, do substrato analítico-conceitual e do marco institucional da PCT em curso. Apesar de terem sido construídos 1 pela direita ao longo de mais de dois séculos, a favor da corrente conformada pelo modo de produção capitalista – sua base econômico-produtiva, e sua superestrutura ideológica – e junto com a ciência e a tecnologia que com ele se foram entremeando, esses três elementos do pensamento hegemônico terão que ser rapidamente desconstruídos. Mitos muito caros a quem insiste em dizer que o conhecimento só pode sair da universidade e chegar à sociedade através da empresa privada; que é aquilo que imitativamente entendem por a “alta tecnologia” o que irá desenvolver o País; que só pode existir uma ciência – a verdadeira, neutra e universal –; e que a construção de um conhecimento que sirva a um outro projeto é heresia, serão deixados para trás neste longo e arriscado caminho. Iremos do geral/ideológico/internacional/teórico-programático para o particular/político/nacional/ municipal/prático, abordando sucessivamente nas seções que se seguem: 1. os desafios que a construção do “Estado necessário” coloca para a PCT; 2. a agenda proposta pela esquerda em nível mundial acerca das relações entre C&T e sociedade; 3. a urgente necessidade de incorporar esta agenda num processo de politização da PCT nacional; 4. as características do potencial de C&T instalado nas cidades brasileiras, o arranjo institucional dos Parques e Pólos Tecnológicos e as razões do seu fracasso, determinadas pelas características do tecido industrial brasileiro; Livre Docente e Professor Ttitular do Departamento de Política Científica e Tecnológica – Unicamp. Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA 43 “ ... se espera que uma ampla conscientização e mobilização políticas ocorra sem um custo social maior que aquele que esta sociedade vem pagando... ” 5. a proposta de um Sistema de Inovação Social feita por setores da esquerda para a instância municipal; 6. os compromissos possíveis de novos governos de esquerda na área de C&T. Coerentemente com o caráter das questões que levanta e com o interesse que espera satisfazer – mais próximo do debate político do que da reflexão acadêmica – este trabalho não inclui nenhuma referência bibliográfica. Não será difícil para o leitor acostumado com os Estudos Sociais da C&T rastrear muitas das idéias que ele contém. 2. O “estado necessário” e a PCT Este item pode ser entendido como uma tentativa de responder, no plano da PCT, a uma pergunta que a muitos preocupa: o que fazer para construir o “estado necessário”, um estado que possa alavancar o atendimento das demandas da maioria da população e projetar os países da América Latina numa rota que leve a estágios civilizatórios sempre superiores? Por isto, e embora a abordagem que ele propõe esteja limitada ao campo da PCT ou de Inovação, buscamos situá-la num contexto mais amplo. A resposta a essa pergunta demanda, em primeiro lugar, que se identifiquem as características do Estado que herdamos do período autoritário, que sucedeu ao nacional-desenvolvimentismo e antecedeu o seu desmantelamento pelo neoliberalismo. Para fazê-lo, parece necessário reconhecer que, mais além das referências ideológicas, a combinação que herdamos, de um 44 Estado que combinava autoritarismo com clientelismo, hipertrofia com opacidade, insulamento com intervencionismo, deficitarismo com megalomania, não atende nem ao projeto da direita nem ao projeto da esquerda latino-americana. O final do autoritarismo deu início a um processo de democratização política, que tende a possibilitar um aumento da capacidade dos segmentos marginalizados de veicular seus interesses, levando à expressão de uma demanda crescente por direitos de cidadania. À medida que este processo avançar, aumentará ainda mais a capacidade desses segmentos de pressionar, pela satisfação de suas necessidades não atendidas por bens e serviços – alimentação, transporte, moradia, saúde, educação, comunicação etc. – e, com isso, a demanda por políticas públicas capazes de promover seu atendimento. É o que tem sido chamado de cenário tendencial da democratização. Para satisfazer essas necessidades sociais com eficiência, e no volume que temos em países como o Brasil, será necessário “duplicar o tamanho” dessas políticas (ou, mais precisamente, do volume de recursos envolvidos e impactos esperados) para incorporar os 50% da população hoje desatendida. Se não for possível promover um processo de transformação do Estado que herdamos em direção ao “Estado necessário” que permita satisfazer necessidades sociais represadas ao longo de tanto tempo, o processo de democratização pode se ver dificultado e até abortado, com uma fatal esterilização de energia social e política. É claro que para satisfazer àquelas demandas, o ingrediente fundamental, que não depende diretamente do Estado, é uma ampla conscientização e mobilização políticas que, se espera, ocorra sem um custo social maior que aquele que esta sociedade vem pagando. É verdade que a correlação de forças políticas, que sanciona uma brutal e até agora crescente concentração de poder econômico, muito pouco espaço deixa para que uma ação no sentido de disponibilizar conhe- Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA cimento, que possa levar à melhoria das políticas públicas e da eficiência da máquina do Estado contribua para alavancar o processo de democratização. Mas também é verdade que como esse espaço irá se ampliando à medida que a democratização avance e a concentração de renda, que hoje asfixia nosso desenvolvimento e penaliza a sociedade, for sendo alterada, este conhecimento poderá fazer toda a diferença. Isto é, talvez ele venha a ser o responsável por se alcançar ou não a adequação sócio-técnica e a governabilidade necessária para tornar materialmente sustentável o processo de mudança social que se deseja. A democratização política está levando a um crescimento exponencial da agenda de governo; a erupção de uma infinidade de problemas que, em geral, demandam soluções específicas e criativas, muito mais complexas do que aquelas que o estilo tradicional de elaboração de políticas públicas – homogeneizador, uniformizador, centralizador, tecnocrático, típico do Estado que herdamos – pode absorver. A maneira como tradicionalmente se definia e caracterizava os problemas que o Estado deveria tratar ficava restrita ao que a orientação ideológica e o pensamento político conservador dominante eram capazes de visualizar. A explicação dos mesmos estava constrangida por um modelo explicativo que, de um lado tendia à quase monocausalidade e, de outro, a soluções genéricas, universais. Isso levou ao estabelecimento de um padrão único causa – problema – solução no qual, embora fosse percebida uma certa especificidade nos problemas enfrentados, o fato de que segundo o modelo explicativo adotado, sua causa básica era a mesma, terminava conduzindo à proposição de uma mesma solução. As demandas que o processo de democratização política irá cada vez mais colocar, e que serão filtrados com um viés progressista por uma estrutura que deve celeremente se aproximar do “Estado necessário”, originarão um outro tipo de agenda política. Serão muito distintos os problemas que a integrarão e terão RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO que ser processados por este Estado em transformação. Eles não serão mais abstratos e genéricos, serão concretos e específicos, conforme sejam apontados pela população que os sente, de acordo com sua própria percepção da realidade, com seu repertório cultural, com sua experiência de vida, freqüentemente de muito sofrimento e justa revolta. Da mesma forma que é pertinente a idéia de que não pode ser deixada de lado na PCT, a necessidade de tomar mais eficiente o modo como se gastam os recursos disponíveis, parece pouco discutível a afirmação de que a mera adoção de estratégias de reengenharia institucional será incapaz de alterar o status quo. Em outros termos: as propostas centradas na “otimização da qualidade de gestão’’, são pró-inerciais e, portanto, inúteis para redirecionar para objetivos políticos e sociais alternativos os complexos sistemas sociais locais de interação entre ciência, tecnologia e sociedade. O fato apontado, relativo à escassa reflexão existente, contribui para explicar porque, apesar das numerosas experiências falidas de reforma institucional acumuladas na região durante a década passada, ainda se continue buscando implementar estratégias baseadas na otimização da gestão. Rejeitar essas iniciativas, que além de se terem mostrado pouco eficazes podem ser inclusive contraproducentes, demanda a proposição de cursos de ação alternativos para conceber uma PCT capaz de reforçar e consolidar processos de democratização política e econômica. 3. A esquerda contemporânea e as relações entre C&T e sociedade O próximo passo do longo e arriscado caminho a que se fez referencia na introdução deste trabalho implica numa mudança de foco. Tratase de passar da América Latina para os paises avançados de modo a avaliar como a esquerda hoje concebe as relações entre Ciência, a Tecnologia e a sociedade para desta forma vislumbrar como elas podem se materializar numa política adequada à RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO realidade de países periféricos como o nosso. Essa rápida síntese destaca três direções de crítica da esquerda contemporânea ao pensamento hegemônico de direita sobre essas relações. Dela se poderá extrair uma orientação para a construção de um substrato analítico-conceitual e de um marco institucional para uma PCT de esquerda, e para construir propostas para ação imediata no âmbito dos governos de esquerda. Ao criticar o uso do conhecimento pelas elites para viabilizar a exploração da classe trabalhadora, por um lado, e a incapacidade do socialismo real para gerar uma C&T coerente com o interesse dos trabalhadores e com o estilo de desenvolvimento sustentável que desejam, por outro, a esquerda tem revisitado a análise da história da C&T contada por pensadores do capitalismo. E o tem feito partindo da incidência da C&T sobre sua contradição central, a relação capital-trabalho. Ou, mais especificamente, da forma como o capital as usa crescentemente para viabilizar sua reprodução ampliada tirando partido da característica singular da mercadoria força de trabalho: o fato de ela poder ser trocada por um não-equivalente em termos de tempo de trabalho socialmente necessário. Antes de Marx, outros pensadores já haviam mostrado que o preço das mercadorias era uma manifestação social do tempo de trabalho nelas incorporado na esfera da produção (o qual regulava a troca de equivalentes em valor), e não um suposto equilíbrio entre oferta e demanda logrado através do mercado. Marx avança evidenciando que esse tempo de trabalho que determina o valor das mercadorias, entendido este como uma construção social, é dividido em três partes; que correspondem às matérias-primas e depreciação das máquinas, ao lucro do capitalista, e ao salário que ele paga ao trabalhador pela mercadoria força de trabalho. Origem, vale ressaltar, da acumulação capitalista. Marx mostra também que esse lucro – mais valia, para ser exato – pode ser aumentado continuamente pelo capitalista através do emprego de novas tecnologias – máquinas, equipamento, métodos de gestão da mão-de-obra etc – que diminuam a terceira parte, correspondente ao tempo que o trabalhador gasta para produzir as mercadorias em sua empresa. Ou, então, pela ação de outras tecnologias, em outras empresas, que permitam a produção das matérias-primas ou dos bens que consomem os trabalhadores num tempo menor. Ou seja, que o desenvolvimento de tecnologias que permitam reduzir a parte do valor da mercadoria efetivamente pago ao trabalhador pelos capitalistas – donos dos meios de produção –, e maximizar o que Marx chama de mais valia relativa, é o motor da acumulação do capital e a condição de manutenção da exploração da classe trabalhadora. Marx foi além ao mostrar como a pesquisa científica passava a incorporar-se à lógica capitalista ao proporcionar conhecimentos apropriados para aumentar o controle do capitalista sobre o processo de trabalho, cada vez mais parcelizado, alienante (dissociador do trabalho intelectual do braçal), hierarquizado, heterogestionário. O caráter de construção social da C&T é também evidenciado quando ele aponta como, em dezenas de processos de inovação que então estavam ocorrendo, alternativas de igual eficiência técnica eram escolhidas em função da facilidade com que o capitalista ou gerente podia diminuir o preço da força de trabalho. Quer através do controle sobre o processo de trabalho em sua empresa, aumentando o tempo de trabalho não pago ou “ Ao criticar o uso do conhecimento pelas elites para viabilizar a exploração da classe trabalhadora, a esquerda tem revisitado a análise da história da C&T... ” Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA 45 “ A direita evitou o questionamento do marxismo apoiando-se no velho mito iluminista da neutralidade da ciência... ” a produtividade do trabalho, quer diminuindo o número de trabalhadores necessário para a produção e, desta forma, ao reduzir-se a oferta de empregos, abaixando o salário real. A direita evitou o questionamento do marxismo apoiando-se no velho mito iluminista – da neutralidade da ciência – que a idealiza como resultado intrinsecamente verdadeiro, e cada vez melhor, da relação (individual) de um Homem curioso com uma Natureza perfeita. Dessa forma, tem logrado mascarar o caráter de construção social do conhecimento que, sob a égide do capitalismo, se verifica em benefício de seu objetivo de dominação. Um outro mito, positivista, do determinismo, que confere ao desenvolvimento tecnológico atributos de endogenia, linearidade e inexorabilidade que assegurariam eficiência crescente e a serviço de todos, tem sido usado para compor no plano ideológico superestrutural o suporte para a manutenção das relações sociais e materiais que, no plano da infra-estrutura técnico-econômico, garantem a exploração capitalista. A esquerda contemporânea, criticando o novo fetiche unificador – a inovação – que a direita ideou para tentar convencer a sociedade que ela só poderá evoluir caso incorpore celeremente este fruto desses dois processos quase supra-humanos, tem atuado em três direções complementares. Primeiro, argumentando de modo radical que o estilo de desenvolvimento alternativo que defende não pode ser construído tendo por base o conhecimento, aparentemente neutro e progressista, mas 46 intrinsecamente excludente e predatório engendrado por um sistema que só logra manter-se às custas de violência crescente. Que, tal como mostrou o socialismo soviético (forçado a recriar o controle autoritário que a tecnologia capitalista no qual se fundou exigia, e por esta via engendrar a degenerescência burocrática), não basta a mera apropriação pela classe trabalhadora, e em seu benefício, do conhecimento que maximiza a maisvalia. Isto é, que a transformação que ela anseia demanda a concepção de um conhecimento alternativo ao existente, por mais difícil e utópico que isso seja. Segundo, resignando-se, dialética e realistamente, a “não jogar a criança com a água do banho”, mostrando como a adoção de agendas de pesquisa científica e desenvolvimento tecnológico que internalizem valores ético-sociais (e sua contrapartida técnica) coerentes com um estilo alternativo de desenvolvimento podem levar à concepção de um outro tipo de conhecimento. Consciente de que essa reorientação da trajetória da C&T, embora seja um desafio histórico sem precedentes, é indispensável para seu projeto político, a esquerda tem substituído as receitas totalizadoras, ingênuas e voluntaristas do passado pela proposição de estratégias de pesquisa e docência ancoradas nos interesses dos movimentos sociais que alavanquem processos de adequação sócio-técnica coerentes com esse estilo alternativo. Terceiro, mostrando que a crescente subordinação da dinâmica de exploração da fronteira do conhecimento científico-tecnológico ao interesse das empresas transnacionais não produz apenas trabalhadores desempregados e pesquisadores obcecados por uma “qualidade” enganosa. Que também empresários pequenos e médios vêem-se cada vez mais debilitados frente a uma situação como a atual em que as dez transnacionais que mais realizam pesquisa gastem mais do que a Inglaterra e a França juntas. 4. Politizando o debate Ao apontar essas direções de crítica, a esquerda contemporânea tem mostrado o alto grau de convergência política possível entre esses três Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA atores diretamente envolvidos com a C&T. Grau este que se torna potencialmente muito maior em se tratando de países periféricos como o nosso. Mas que exige para se tornar efetivo um processo de politização do debate que resgate a C&T da “neblina ideológica” em que se encontra. De fato, essa crítica ao pensamento formulado pela direita não alcançou ainda a cena brasileira. Pelo contrário, tem ecoado aqui, ampliada, a proposição do neoliberalismo – aparentemente neutra, mas de fato ideologizada e contrária os interesses desses três atores e da sociedade – sobre a importância da “inovação” para a “competitividade” das empresas e para o “progresso” dos países num mundo “globalizado”. Por isso, esse pensamento permanece hegemônico na condução do esforço nacional de pesquisa e formação de recursos humanos, mantendo-a infensa à crítica política da esquerda; como se esta área de intervenção do estado não estivesse estado como outras a serviço do projeto neoliberal. A existência desse pensamento tem dificultado também a construção no âmbito da esquerda de um marco analítico-conceitual alternativo capaz de integrar a questão do desenvolvimento científico e tecnológico na sua proposta global de transformação sócio-econômica e cultural, e a concepção de um estilo de PCT com ela coerente. Como resultado, nas instâncias de governo que vem logrando conquistar, a esquerda não tem sido capaz de implementar ações na área de C&T à altura das demandas tecnológicas que aquela proposta contém. Não tem sequer logrado politizar o tema, acompanhando o movimento protagonizado pela esquerda contemporânea, no âmbito do aparato do estado e da sociedade, e dos professores, pesquisadores e gestores que conformam nosso complexo público do ensino superior e da pesquisa. Nem mesmo tem conseguido contrapor-se à ofensiva da direita para seguir implementando seu projeto político na área de C&T. A absoluta precedência desse processo de politização do tema em relação à elaboração de um marco RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO analítico-conceitual adequado necessário para conceber uma PCT de esquerda, tem sido crescentemente percebida por setores que, entendendo-o como uma prioridade, o tem colocado em marcha. A ampliação dessa politização da C&T no âmbito nacional, supõe a utilização pela esquerda dos instrumentos, inclusive institucionais, de que dispõe para envolver comunidade de pesquisa, gestores públicos, empresários e ONGs, juntamente com a sociedade e seus movimentos sociais organizados, na construção de uma PCT de esquerda. Uma política que, levando em conta os diferentes atores e correntes de opinião que compõem o pacto que lidera, privilegie o interesse daqueles que estrategicamente representa, os trabalhadores. 5. Características do potencial de C&T instalado nas cidades Como não poderia ser de outra forma, os governos municipais que têm desenvolvido ações na área de C&T são os de cidades onde existe algum potencial de C&T instalado. Uma primeira característica desse potencial é seu alinhamento com os interesses das elites econômicas e políticas que controlam os processos econômico-produtivos, o meioambiente, e os próprios trabalhadores em benefício da acumulação do capital. Esse alinhamento não está determinado por uma orientação particularmente privatista, míope ou corporativa dos seus responsáveis e sim por um senso comum ainda hoje hegemônico, inclusive em muitos setores da esquerda. Conformado através de uma série de ações aparentemente aleatórias, ele reflete o modo ideologicamente comprometido com a acumulação de capital como se pensa a C&T: • Como algo que só pela intermediação das empresas, dos bens e serviços que oferece no mercado, dos empregos que gera, dos impostos que paga, ou do aumento de eficiência possibilitado pelas inovações que realiza (utilizando conhecimentos e recursos humanos gerados nas instituições púRDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO blicas) pode atingir a sociedade; • Como algo que segue uma trajetória linear, inexorável, em que o último desenvolvimento é, por definição, o melhor; aquele ao qual a sociedade deve necessariamente – por bem ou por mal – adaptar-se; • Como, senão o único legítimo, o principal motor do desenvolvimento econômico e social; • Como algo que simplesmente decorre da aplicação “eficiente”, segundo padrões “técnico-científicos” e de acordo à ética profissional, de uma ciência “universal”, “neutra”, que funciona segundo regras e métodos próprios e endogenamente determinados em “busca da verdade”. Essa visão da C&T, ideologicamente construída ao longo de um processo que se inicia com o próprio surgimento do capitalismo, e que se incorporou ao “senso comum” de nossa sociedade, torna difícil alterar o alinhamento desse complexo com interesses contrários aos das elites dominantes sem que um profundo debate se realize no âmbito da esquerda. Até que ele ocorra, o conhecimento que esse complexo produz e difunde, muitas vezes contrariando a visão de mundo e a postura ideológica dos seus pesquisadores, dificilmente poderá ser usado para promover o estilo de desenvolvimento socialmente justo e ambientalmente sustentável que a esquerda deseja. A segunda característica é a pouca relevância desse complexo para as equipes que, qualquer que tenha sido seu projeto político, têm ocupado os governos municipais. Suas demandas cognitivas, associadas à gestão pública e à satisfação dos interesses dos grupos que lhes dão sustentabilidade política (que vão dos grandes empresários aos segmentos marginalizados), não têm encontrado, nesse complexo, elementos significativos para sua satisfação em patamares mais elevados. Nem os programas de inclusão social, que buscam proporcionar oportunidades sustentáveis de trabalho e renda, nem as iniciativas de atrair empresas multinacionais intensivas em “alta tecnologia”, têm aí encontrado o conhecimento científico e tecnológico que necessitam. A relativamente escassa relevância do conhecimento difundido por esse complexo e, sua conseqüente pequena importância para a implementação de políticas públicas não se verifica apenas em relação à instância municipal. De fato, a intervenção do Estado brasileiro na área de C&T, concentrada na instância federal no que respeita à sua regulação e ao financiamento, tem-se orientado para a geração de capacidade de oferta de conhecimento e não para a sua incorporação aos distintos projetos políticos que se expressam em nossa sociedade. 6. Governos municipais e Parques e Pólos Tecnológicos A percepção desse distanciamento levou a que governos de algumas cidades passassem a se preocupar, no final dos anos 70, em promover a utilização de seu potencial de C&T. Isto ocorreu de modo coerente com seu alinhamento com demandas bem distintas daquelas da maioria da população e, também, com a postura ideológica desses governos. Essa iniciativa foi deixada, como era natural que ocorresse numa área politicamente marginal, e em que a comunidade científica era legitimada como proprietária de um saber “neutro” e portador do progresso, nas mãos do projeto político dominante no seu âmbito. Assumiu o controle dessa iniciativa uma parte dessa comunidade, que passou a implementar seu projeto: colocar esse potencial a serviço de segmentos produtivos de “alta tecnologia”. Isso ocorreu no bojo de um movimento de emulação da experiência norteamericana de Parques e Pólos Tecnológicos que em meados dos 80, em função do vácuo deixado pelo Projeto-Brasil-Grande-Potência, foi envolvendo gestores públicos que, talvez por default, permitiram que se tornasse ideologicamente dominante na PCT nacional. Embora sejam freqüentemente tratados de forma indistinta, talvez porque ambos tenham seu núcleo na universidade e tenham recebido apoio de Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA 47 “ Preocupados com a baixa eficácia das políticas tecnológicas e industriais européias, pesquisadores europeus mostraram que 97% de toda atividade industrial desse continente está baseada em baixa e média tecnologia... ” governos municipais, esses dois arranjos institucionais possuem significado distinto e trajetórias algo diferentes em nosso meio. De fato, foi em torno deles que se desenvolveram as iniciativas do pequeno número de Prefeituras brasileiras que atuam na área de C&T. O primeiro deles – o dos Parques Tecnológicos – foi implantado em torno das universidades públicas onde aquele projeto era mais bem aceito visando à incubação de “empresas de base tecnológica” criadas por professores e ex-alunos a partir de pesquisas com aplicação tecnológica. É uma iniciativa de custo inicial relativamente modesto, que tem lugar no próprio espaço físico e laboratorial da universidade e não demanda, como o segundo, investimento imobiliário. Passadas quase duas décadas, esses arranjos, quase 200, segundo os que os patrocinam, incubam anualmente 2000 empresas, das quais menos da metade completam um ano de vida, gerando cada uma média de 10 empregos. Avaliações baseadas em evidência empírica realizadas no País têm corroborado o que já se sabe a respeito do relativamente pequeno impacto dos Parques Tecnológicos situados nos países avançados. Eles têm mostrado, por exemplo, que o custo das incubadoras, caso computadas as bolsas, auxílios a projeto e outros recursos alocados por instituições de financiamento como CNPq, Finep, Fapesp, etc e de enti- 48 dades como o Sebrae, é bem maior do que aquele explicitado pelas universidades e prefeituras que as apóiam. E, ademais, que as empresas são em geral desenvolvedoras de softwares que não podem ser considerados, nem mesmo pelos professores com elas engajados, de “alta tecnologia”; que a dificuldade das empresas em se manter no mercado é em geral tão grande que onerosos mecanismos de “pós-incubação” são hoje adotados em quase todas as incubadoras; que seu benefício para a universidade é quase nulo; e sua contribuição para a sociedade muito pequena. O impacto econômico alegado na geração de emprego tem também sido contestado. Mas se aceitos, ele seria de uns 10 mil empregos “firmes” gerados por ano num país em que chegam ao mercado de trabalho 1,5 milhão de pessoas por ano. Assim, nos escassos casos em que foram bem-sucedidas, essas empresas apenas lograram beneficiar seus proprietários – professores ou alunos da universidade – e uns poucos empregados, em geral na produção de bens e serviços demandados pelas grandes empresas nacionais e multinacionais localizadas na região. O segundo arranjo, os Pólos Tecnológicos, também situados, não por casualidade, próximo às universidades, visava, basicamente, criar um pólo de atração de grandes empresas para que viessem neles desenvolver tecnologia “de ponta”; preferencialmente multinacionais, porque são elas que têm recursos para isso. Assim, essas grandes empresas vindas de fora gerariam empregos “limpos” e de “qualidade”, efeitos indiretos de encadeamento industrial, impostos etc, enfim, atividade econômica. Além disso, e muito importante para o projeto político daquela parte da comunidade de pesquisa diretamente interessada, demandariam resultados desenvolvidas na universidade gerando recursos e potencializando as atividades de professores e alunos e mobilizariam a rede de “empresas de base tecnológica” incubadas nos Parques Tecnológicos. O pacote institucional “Parques e Pólos”, e daí Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA em parte o uso indiscriminado dos dois arranjos, passava a ser cuidadosa e atrativamente embrulhado... Versão pós-moderna dos “Distritos Industriais”, os Pólos são iniciativas bem mais ambiciosas que ultrapassam a capacidade organizativa, financeira e de articulação política da universidade. Demandam legislação de incentivo fiscal específica, supõem a existência de uma área próxima à universidade capaz de abrigar as empresas interessadas, e podem implicar num considerável investimento imobiliário. A observação da experiência brasileira de Pólos Tecnológicos tem mostrado também um quadro modesto. Nem mesmo quando se utilizou o expediente da “guerra fiscal” foi possível atrair empresas na quantidade e com a “qualidade” esperada. Pólos como o criado em Campinas no início dos anos 90 com o apoio da Prefeitura, que possui o respaldo de legislação específica para atrair empresas de base tecnológica, tem conseguido resultados apenas sofríveis. 7. Razões do fracasso dos Parques e Pólos Tecnológicos Algumas das razões que explicam o pouco sucesso dessas iniciativas são também as que explicam a pouca relevância para a economia brasileira dos segmentos industriais baseados no que é conhecido como alta tecnologia. Uma classificação internacionalmente aceita aponta como de “alta tecnologia” as indústrias que apresentam gastos de P&D superiores a 4% do faturamento, de “média” as gastam entre 1 e 4% em P&D, e de “baixa” aquelas em que o gasto em P&D é menor do que 1% do faturamento. Preocupados com a baixa eficácia das políticas tecnológicas e industriais européias que, baseadas na idéia de senso comum de que são as indústrias de alta tecnologia as que promovem desenvolvimento econômico, pesquisadores europeus mostraram que 97% de toda atividade industrial daquele continente está baseada em baixa e média tecnologia. E que mesmo nos EUA e Japão a participação da alta tecnologia não ultrapassa 16%. E, ainda, que como RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO “ ... muitos dos segmentos industriais de baixa e média tecnologia sofreram um processo de reorganização que os tornou muito competitivos... ” o setor manufatureiro representa uma parcela cada vez menor do PIB dessas economias (hoje ela é menos de 25%), as indústrias de alta tecnologia responderiam apenas por 0,75% e 4% do total da riqueza produzida, respectivamente, na Europa e nos EUA e Japão. Segundo esses pesquisadores, muitos dos segmentos industriais de baixa e média tecnologia que, segundo aquele senso comum, seriam transferidos para a periferia, sofreram um processo de reorganização que os tornou muito competitivos e exitosos no que toca à penetração no mercado mundial. E que, apesar do rápido desenvolvimento das TICs, muito do crescimento industrial recente da Europa decorre do avanço de segmentos não intensivos em P&D mas que geram uma quantidade significativa de produtos novos ou tecnologicamente modificados a partir, inclusive, de inovações desenvolvidas em outras indústrias localizadas dentro e fora da região. Essas indústrias parecem possuir formas de organização industrial e geração de conhecimento e relações com a infra-estrutura de C&T muito particulares, que não se enquadram nos modelos tradicionalmente empregados para elaborar a política tecnológica e industrial. A de mobiliário é um exemplo de indústria européia que está crescendo mediante utilização intensiva de conhecimento, de habilidades em design de alto nível, etc para a inovação. Não existe para o Brasil pesquisa semelhante. Mas segundo dados obtidos através da metodologia da RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO Pintec/IBGE, dos 29 setores industriais, nenhum gasta mais do que 4% de seu faturamento em P&D para poder ser considerado de alta tecnologia. Somente 6 setores poderiam ser considerados de média tecnologia (1 a 4% do faturamento aplicado em P&D): Máquinas e Equipamentos (1,2%), Equipamentos de Informática (1,3%), Equipamentos de Precisão, de Comunicações, Máquinas e aparelhos elétricos (todos com 1,8%) e Outros Equipamentos de Transporte (2,7%). O fato dos demais 23 setores de baixa tecnologia responderem por quase de 85% da produção industrial brasileira estaria mostrando, por um lado, a excessiva importância que os setores de alta tecnologia possuem na determinação dos rumos da política tecnológica nacional. E a escassa probabilidade de que esta possa de fato promover a capacitação do tecido industrial local – mais ainda do que o europeu, de baixa intensidade tecnológica – e o crescimento econômico. Por outro lado, sugere como uma política que, ao invés de basear-se em Parques e Pólos Tecnológicos com um viés de alta tecnologia e na atração de empresas estrangeiras, promovesse a capacitação da micro e pequena empresa nacional situada em setores de baixa intensidade tecnológica, poderia alcançar resultados significativos. Uma outra razão que explica o pouco sucesso dos Parques e Pólos Tecnológicos é que em geral somente as grandes empresas é que tem condições de investir em P&D. E que, destas apenas as nacionais é que efetivamente realizam P&D no País. O fato de que entre as 500 maiores empresas, as de propriedade estrangeira são atualmente responsáveis por 46% da produção total (quando, em 1985 eram por 29%) e que se concentram justamente nos setores de maior intensidade tecnológica (92% do segmentos eletro-eletrônico, 85% do automobilístico, 78% do de computação e 74% do de telecomunicações), ajuda a entender porque a PCT brasileira tem que mudar e porque ela deve mudar a partir da instância municipal. Finalmente, por que investir esforços na atração de uma das pouquíssimas empresas multinacionais que contrariam a tendência mundial de localizarem seus centros de P&D nos países sede ou em outros países avançados para um Pólo brasileiro, quando existe para eles um uso alternativo muito mais rentável para o País. 8. Exemplo de uma proposta de esquerda: o Sistema de Inovação Social Este Sistema procura responder ao desafio que hoje se coloca para um grande número de prefeituras, em que ganharam as eleições forças políticas interessadas em promover um estilo de desenvolvimento social e ambientalmente sustentável e que, para tanto, percebem a necessidade da inovação social. A seguir se apresentam as características do Sistema de Inovação Social, iniciando pelo enunciado de alguns conceitos necessários ao entendimento da proposta, passando a apresentar alternativas para a visualização de sua forma de operação e indicar os recursos materiais e humanos que demanda. Alguns conceitos próprios ao Sistema de Inovação Social O conceito de inovação, entendido como o conjunto de atividades que pode englobar desde a pesquisa e o desenvolvimento tecnológico até introdução de novos métodos de gestão da força de trabalho, e que tem como objetivo a disponibilização por uma unidade produtiva de um novo bem ou serviço para a sociedade é hoje recorrente no meio acadêmico e cada vez mais presente no ambiente de policy making. O conceito engloba, portanto, desde o desenvolvimento de uma máquina (hardware), até um sistema de processamento de informação (software) ou de uma tecnologia de gestão – organização ou governo – de instituições públicas e privadas (orgware). As condições em que, no Primeiro Mundo, o conceito de inovação foi cunhado e passa a ter como objetivo primordial a competitividade dos países merecem destaque. É lá onde surge o novo paradigma tecno-econômico baseado na eletro-eletrôni- Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA 49 ca, onde um estado do bem-estar garantia um nível razoável de desenvolvimento social, onde o término da Guerra Fria acirra a concorrência intercapitalista e onde o crescimento dependia crescentemente das as oportunidades de exportação e, portanto da competitividade (sempre entendida em relação ao exterior). O conceito de Sistema Nacional de Inovação foi cunhado nestes países como um modelo descritivo de um arranjo societal típico do capitalismo avançado. Arranjo em que uma teia de atores densa e completa gera, no interior de um ambiente sistêmico propício proporcionado pelo Estado, sinais de relevância que levam ao estabelecimento de relações virtuosas entre pesquisa e produção, à inovação nas empresas e à competitividade do país. Posteriormente ele se transforma num modelo normativo para que estes países, ao mesmo tempo semelhantes no plano sócio-institucional e complementares no econômico, orientem seus governos e grandes empresas em busca da competitividade. Algo parecido ocorreu, também, nos países periféricos como o Brasil, onde se tentou emular a criação de Sistemas Nacionais (e Locais) de Inovação em busca da competitividade, como se existissem aquelas condições e aquele arranjo societal. O conceito de Sistema é aqui utilizado num sentido francamente prescritivo (ou normativo). Isto é como um arranjo a ser construído mediante ações coordenadas e planejadas, de responsabilidade de um tipo particular de Estado que, sem pretender substituir e sim alavancar uma incipiente teia de atores ainda incapaz de gerar sinais de relevância fortes, promova o estabelecimento de relações virtuosas entre pesquisa e produção e a um tipo particular de inovação. O conceito de inovação social é aqui usado para fazer referência ao conhecimento – intangível ou incorporado a pessoas ou equipamentos, tácito ou codificado – que tem por objetivo o aumento da efetividade dos processos, serviços e produtos relacionados à satisfação das necessidades sociais. Sem ser excludente 50 em relação ao anterior, ele se refere a um distinto código de valores, estilo de desenvolvimento, “projeto nacional” e objetivos de tipo social, político, econômico e ambiental. Como o anterior, o conceito de inovação social engloba três tipo de inovação: hardware, software e orgware2. A visualização do Sistema de Inovação Social A concepção combinada destes três tipos de inovação, através de uma rede de atores sociais (universidades, órgãos de governo, empresas etc) em que o Estado3 desempenha um papel central direcionado a garantir à população os direitos de cidadania – educação, saúde, emprego e renda – é o que caracteriza o Sistema de Inovação Social. Adicionalmente, visa à promoção de sinergias cumulativas entre estes atores, no bojo de um processo de radicalização da democracia política e econômica; condição para assegurar níveis crescentes de participação nas decisões que afetam a maioria da população. O Sistema irá promover o desenvolvimento de inovações, no interior do aparelho de Estado, ou por outros atores (através do apoio direto ou a compra de seus resultados) de três tipos distintos (hardware, software e orgware) , orientadas a três finalidades tal como representado na figura abaixo. Em cada um dos três eixos se representa o grau em que cada finali- Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA dade é atendida pelas inovações que o Sistema promove. O primeiro eixo diz respeito às demandas do próprio Estado por inovações orientadas à melhoria da eficiência, eficácia e efetividade da “máquina” do Estado. O segundo diz respeito à utilização do poder de compra do Estado como vetor de inovação dos processos de produção dos bens e serviços que adquire ou contrata com organizações de natureza privada (empresas, cooperativas etc). O terceiro eixo abarca inovações passíveis de serem utilizadas por organizações de natureza privada (e preferivelmente por elas geradas) com ou sem finalidade lucrativa, que promovam formas de produção compatíveis com um estilo de desenvolvimento social e ambientalmente sustentável. Dado que uma mesma inovação pode atender a mais de uma finalidade (e é desejável que seja assim), o sólido mostrado na figura seria o conjunto de ações promovidas pelo Sistema visando promover inovações de três tipos diferentes para atender às três finalidades, também diferentes. O Sistema não se resume a uma estrutura administrativa ou conjunto de órgão situados em alguma secretaria de governo. Sendo a inovação social um processo que interessa e onde intervém um grande número de atores, e cujo impacto se dá de forma dispersa (em nosso caso em diferentes partes do aparelho de Estado e da sociedade), é lógico que ele seja concebido como um ente governamental de tipo horizontal. Um ente que permita que o processo de decisão acerca das ações a serem privilegiadas e seu próprio processo e local de implementação envolva várias áreas de atuação – e respectivos órgãos – de governo. Embora possa ser representado por uma matriz, o Sistema não deve ser assimilado a uma “estrutura matricial”, muito menos a uma de tipo “departamentalizada”. Ele tem como premis- 2 Mantivemos os anglicismos porque não nos parece valer a pena cunhar outros termos. 3 Usamos o termo Estado e não o de Prefeitura, propositadamente, por duas razões. A primeira é para conotar a aplicabilidade do conceito de Sistema de Inovação Social a outros contextos. A segunda é para apontar que embora “sediado” numa determinada prefeitura, o Sistema poderá prestar serviços a outras prefeituras situadas na sua região de abrangência ou mesmo fora dela. RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO sa cognitiva a interdisciplinaridade, como elemento organizador a visão sistêmica, como princípio finalístico o serviço à população e como vetor estruturante a inovação social. O Sistema não se esgota nos limites da porção do aparelho do Estado à qual estará adstrita. A rede de atores com ele relacionada abrange por um lado, atores especificamente direcionados à geração de conhecimento – as Universidades e Institutos de Pesquisa do Estado – e, por outro, organizações públicas e privadas que têm como característica distintiva a de alavancar inovação. Seja no sentido de oferecer condições para a realização de atividades inovativas, seja de demandar soluções inovativas aos seus problemas. São exemplo, no setor privado (e no chamado terceiro setor), os pequenos produtores, as empresas familiares, as cooperativas e movimentos sociais e, na área pública, uma grande quantidade de órgãos relacionados ao governo (setores das prefeituras, empresas públicas, autarquias etc) que demandam significativamente da inovação para sua operação. A presença dessas organizações capazes de incorporar desde o início do processo inovativo os componentes direcionadores da “oferta” e da “demanda” de conhecimento fará com que as decisões de maior transcendência relativas à atuação do Sistema sejam tomadas de forma participativa e em conjunto com aqueles mais diretamente envolvidos no seu desempenho. Um último comentário em relação à forma de operação do Sistema diz respeito à relação entre a metodologia proposta e os métodos de intervenção social que já compõem o arsenal de alguns partidos políticos brasileiros, em especial o Orçamento Participativo. Isto porque eles contribuem para encaminhar favoravelmente um dos problemas cruciais do processo inovativo, o que se conhece na literatura especializada como a “formação da agenda”. A definição dos temas que devem concentrar a atenção do potencial de inovação (ou usando a termo mais conhecido embora não equivalente, da capacidade material e humana existente de RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO geração de pesquisa e de financiamento) é realizada em todo o mundo, mas principalmente em sociedades periféricas, em função de um modelo institucional que busca emular a dinâmica científica e tecnológica dos países centrais. Contar com um mecanismo como o Orçamento Participativo implica em contrabalançar esta tendência até agora hegemônica, danado lugar à possibilidade de que o processo de “formação da agenda” passe a estar influenciado por outras diretrizes. Recursos materiais e humanos As características do Sistema proposto fazem com que o mesmo possa ser constituído, basicamente, a partir de recursos materiais e humanos já existentes no âmbito da Prefeitura. Do ponto de vista estritamente financeiro, as ações referentes às três finalidade apresentam um balanço de custo-benefício que tenderá a ser positivo. As ações referentes à finalidade denominada “Poder de Compra do Estado” é claramente geradora de recursos, na medida em que poderá permitir, já no curto prazo, uma considerável economia. As referentes à finalidade “Demanda do Estado” tenderão a demandar recursos para a contratação de serviços especializados para a organização e oferecimento de cursos e programas de capacitação etc cujo retorno só será sentido na medida em que a melhoria da eficiência, eficácia e efetividade da “máquina” do Estado se concretizar. Não obstante, neste caso mas também nos demais, os encarregados da gestão do Sistema terão a responsabilidade de alavancar recursos públicos e privados adicionais aos fornecidos pela Prefeitura para a sua operação. Como exemplo mais relacionado a esta finalidade, estão os recursos que poderão ser obtidos junto ao FAT, SENAI, Fundação Euvaldo Lodi e outros fundos, instituições e Programas dedicados à formação e qualificação do trabalhador. De um modo genérico, instituições como o CNPq, Finep, Fapesp, entre tantas outras relacionados ao fomento à pesquisa científica e tecnológica, também poderão ser importantes parceiras das iniciativas promovidas no Sistema. Num plano ainda mais abrangente, haveria que citar as instituições internacionais de caráter público e privado sensíveis a projetos e iniciativas como o que se pretende implantar. As ações referentes à finalidade denominada “Desenvolvimento Sustentável”, na medida em que se criem mecanismos como pagamento de royalties pelas organizações envolvidas, capital de risco, arrendamento de equipamento e locais de propriedade da Prefeitura, poderão também ter seu custo líquido de operação positivo. 9. Considerações Finais: doze pontos programáticos de uma proposta transformadora Os novos governos da esquerda deverão ter como um de seus focos importantes a exploração do potencial científico-tecnológico das cidades para adicionar conteúdo tecnológico às atividades-fim da Prefeitura e aos bens e serviços que adquire. Neste último caso, utilizando seu poder de compra como estímulo à capacitação tecnológica das pequenas e médias empresas, das cooperativas e de seus cidadãos, de maneira a melhorar a qualidade do serviço que presta à população. A priorização da dimensão C&T no governo da cidade irá beneficiar todos os seus demais setores devido ao seu intrínseco caráter de transversalidade. A materialização do potencial de C&T da cidade requer a participação democrática de todas as instâncias de governo e dos demais atores políticos e movimentos sociais. Mas, para que isso ocorra é necessário criar, de imediato, o espaço institucional adequado para a implementação das diretrizes que esse processo de participação irá definir. O futuro governo de esquerda deverá ter então, como principais compromissos programáticos: 1. A criação de um espaço institucional (secretaria ou órgão de planejamento, coordenação e execução de ações em C&T) que deverá se articular com as demais instâncias administrativas, com a finalidade de introduzir nos planos e Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA 51 ações do governo os objetivos definidos em um Plano de C&T a ser elaborado. 2. Dar a esse novo órgão importância estratégica dentro do plano de ação de governo. 3. Incorporar a ele os órgãos eventualmente já existentes na estrutura de governo relacionados à C&T. 4. O novo órgão será o “braço tecnológico da Prefeitura”, com a missão de identificar o componente científico–tecnológico (ou, de forma mais ampla, cognitivo) contido nos problemas internos de gestão, e da cidade e sua população, e propor soluções. 5. Dada à inexistência de informação adequada para o cumprimento de sua missão, a primeira ação do órgão será realizar um levantamento das demandas mais urgentes do governo e da cidade e das soluções científico-tecnológicas passiveis de serem geradas através da mobilização do potencial de C&T existente. 6. A realização do levantamento se irá apoiar nas competências dos técnicos e profissionais da própria Prefeitura e no potencial de C&T existente na cidade. 7. Os resultados do levantamento irão compor um banco de dados sobre as demandas e o potencial de soluções existente junto ao pessoal da Prefeitura e à comunidade científica e tecnológica da cidade. 8. Utilizando esse banco de dados, e buscando privilegiar soluções locais para os problemas da cidade, o novo órgão irá propor ações visando à utilização do poder de compra de bens e serviços da Prefeitura para estimular cooperativas e outros empreendimentos auto-gestionários, e pequenas empresas, a expandirem sua capacitação tecnológica. 9. Identificar o componente tecnológico e científico contido nas decisões do Orçamento Participativo e otimizar a utilização dos recursos disponíveis, tendo em vista, sempre que possível, a capacitação tecnológica dos empreendimentos auto-gestionários. 10. Mais do que atrair atores externos (grandes empresas) ou pesquisadores, professores e alunos para se instalarem em Parques ou Pólos de Alta Tecno- logia, o órgão irá promover mecanismos de intervenção direta (incubadora de empresas e de cooperativas, etc) e indireta (utilizando o poder de compra da Prefeitura) para qualificar seus cidadãos no desenvolvimento, uso e difusão das tecnologias adequadas para solucionar os problemas da cidade. 11. Desenvolver uma linha de ação propositiva em relação às instituições que compõem o potencial científico-tecnológico da cidade, influenciando, no caso das instituições ligadas ao governo federal, na definição de sua agenda de pesquisa e na orientação de suas políticas. 12. Desencadear um processo de politização da C&T, envolvendo a comunidade de pesquisa, gestores públicos, empresários, ONGs, e movimentos sociais, na construção de uma PCT de esquerda. Uma política que, levando em conta os diferentes atores e correntes de opinião que compõem o pacto liderado pela esquerda, privilegie o interesse daqueles que, estrategicamente, representa: os trabalhadores. Leia todos os números da RDE acessando o site: www.ppdru.unifacs.br Arquivos prontos para download. 52 Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO O SUBDESENVOLVIMENTO BRASILEIRO NOS TEMPOS DO ORNITORRINCO Carlos Alberto Bello1 Resumo O artigo discute as perspectivas de superação do subdesenvolvimento brasileiro. Partindo do pensamento de Francisco de Oliveira, analisa como as mudanças na base econômica e na dinâmica política se influenciam mutuamente desde 1930. Ao contrário do ocorrido no início dos anos 60, as transformações mais recentes apontam no sentido oposto à superação do subdesenvolvimento, pois elas promoveram um grande enfraquecimento dos trabalhadores e da burguesia nacional, os grupos sociais mais interessados nas políticas de desenvolvimento. Palavras chave: Subdesenvolvimento; Economia Brasileira; Política de Desenvolvimento. Abstract The article discusses the prospects of surpassing Brazilian’s underdevelopment. Departing from Francisco de Oliveira’s thought, it analyzes how the shifts on economics basis and political dynamics influence one another since 1930. Unlike what happened in the early 60’s, recent changes point against the surpass of underdevelopment, because they promoted a great weakness of workers and national bourgeoisie, the social groups most interested in development policies. Key words: Underdevelopment; Brazilian’s Economy; Development policy. Introdução Avaliando o quadro atual do subdesenvolvimento brasileiro, Francisco de Oliveira conclui seu ensaio de forma contundente: O ornitorrinco capitalista é uma acumulação truncada e uma socie- RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO dade desigualitária sem remissão. (OLIVEIRA, 2003b:150). Teria sido ele pessimista demais? Este artigo busca discutir essa avaliação a partir da especificidade do pensamento de Oliveira, contida em diversas obras voltadas à economia e à política brasileiras, interpretando-a e avançando contribuições quanto à perspectiva de que o ornitorrinco possa significar a virtual impossibilidade de superação do subdesenvolvimento no Brasil, discussão central do ensaio citado acima. Embora Oliveira não tenha discorrido detidamente sobre o conceito de subdesenvolvimento, duas acepções podem ser percebidas no citado ensaio. A primeira remete ao grau de desenvolvimento das forças produtivas, como exposto no trecho abaixo: Antes, tratou-se de uma singularidade histórica, a forma do desenvolvimento capitalista nas ex-colônias transformadas em periferia, cuja função histórica era fornecer elementos para a acumulação de capital no centro. Essa relação, que permaneceu apesar de intensas transformações, impediu-a precisamente de “evoluir” para estágios superiores da acumulação capitalista; vale dizer, para igualar-se ao centro dinâmico, conquanto lhe injetou reiteradamente elementos de atualização. (Oliveira, 2003b:126, grifo nosso). A segunda acepção chama a atenção para a existência de um certo desenvolvimento das forças produtivas, porém com a preservação de características de subdesenvolvimento sócio-econômico, como se 1 pode observar no trecho abaixo: “Ao rejeitar o dualismo cepalino, acentuava-se que o específico da revolução produtiva sem revolução burguesa era o caráter “produtivo” do atraso como condômino da expansão capitalista.” (OLIVEIRA, 2003b :131, grifo nosso). O artigo discutirá a questão do desenvolvimento a partir do conceito definido nessa segunda acepção, uma vez que busca analisar as relações entre economia e política, ou seja, como as ações dos segmentos sociais influenciam a economia e, na direção oposta, como as mudanças na economia influem sobre o poder e as ações daqueles segmentos. Oliveira avaliou que houve virtualidade de superação do subdesenvolvimento no início dos anos 60, salientando como processos fundamentais o crescimento da organização dos trabalhadores e o avanço da luta pela reforma agrária. No entanto, eles teriam sido insuficientes para romper o subdesenvolvimento, uma vez que a burguesia nacional não compartilhou do que Oliveira chamou de projeto emancipador, ou seja, do objetivo de liquidar a alta exploração propiciada pelo custo rebaixado da força de trabalho, salientando que a reforma agrária liquidaria com a formação do amplo exército de reserva e com o poder patrimonialista (OLIVEIRA, 2003b: 131-32). Como a caracterização do ornitorrinco se refere aos dias atuais, parece auspiciosa a tentativa de analisar de maneira comparativa a atual situação sócio-econômica e política frente ao quadro vigente no início dos anos 60, já que se trata de dois Doutor em Sociologia pela USP, pesquisador do Cenedic (Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania) da FFLCH/USP e professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) – Ciências Sociais (campus Guarulhos). Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA 53 momentos fortemente contrastantes quanto às perspectivas de superação do subdesenvolvimento, permitindo ainda uma discussão mais acurada sobre os processos que teriam constituído o ornitorrinco. 1. O período 1930-64 e a virtualidade da superação do subdesenvolvimento Oliveira contribuiu de maneira inovadora para a análise deste período por ter argumentado que o avanço do setor moderno (indústria) se nutriu de suas relações com os setores atrasados (agricultura de subsistência e informal urbano). No entanto, no ensaio O ornitorrinco ele mesmo ressalta outra contribuição fundamental: a política como elemento estruturante da articulação das formas econômicas subdesenvolvidas (Oliveira, 2003b:128). Embora a crise mundial abalasse fortemente nossa economia dominada pelos setores agrário-exportadores, abrindo assim a perspectiva de buscar a alternativa do crescimento do mercado interno, foi a mudança na correlação de forças entre as classes sociais a partir de 1930 que possibilitou que a industrialização surgisse como projeto de dominação, às custas do domínio anterior da burguesia cafeeira. Diversas transformações viabilizaram uma rápida industrialização no Brasil, no sentido do desenvolvimento das forças produtivas, tais como a criação da CLT, a transferência de excedentes dos setores agroexportadores para a indústria, a expansão da infra-estrutura e das empresas estatais e a articulação entre a entrada de capitais estrangeiros e a expansão das empresas privadas “ ... as intensas transformações sócioeconômicas promoveram o grande crescimento da classe operária e das classes médias urbanas... 54 ” nacionais. Tais mudanças só foram possíveis devido à autonomização fiscal e monetária, o que Oliveira (1995) discutiu a partir de Keynes e Aglietta, dizendo que a moeda nacional passou a ser concebida como uma relação entre ativos e passivos cuja medida cabia ao Estado, que podia expandir os gastos públicos e financiá-los de diversas formas, sem necessariamente provocar inflação. Como Oliveira (2003a, II)2 discutiu de forma inovadora, a criação da CLT resultou na estruturação do mercado de trabalho no Brasil, ao estipular padrões salariais que viabilizaram o cálculo empresarial e ao fomentar a formação de um amplo exército industrial de reserva. A autonomização fiscal e monetária do Estado foi direcionada não só para a expansão industrial interna como também para a criação e o crescimento das formas monopolistas do capital, ao viabilizar a expansão das empresas estatais e a entrada das empresas multinacionais. Cabe frisar que o quadro estrutural existente entre 1930 e 1945 – a base capitalista relativamente pobre e a falta de perspectivas de restaurar um modo de acumulação vinculado à divisão internacional do trabalho – acarretou que a industrialização necessitasse de uma ativa promoção estatal que resultasse em expressiva transferência de renda dos agroexportadores para a burguesia industrial. Esta transferência foi viabilizada pelo apoio popular obtido através do pacto populista o qual, em contrapartida, excluiu o mundo rural da CLT, permitindo a reprodução das formas de trabalho que possibilitaram a continuidade dos latifúndios e das oligarquias rurais. A expansão das empresas estatais e multinacionais, aliada ao crescimento das diversas instâncias do Estado, permitiu o incremento das classes médias, segmento social fundamental para a gestão das complexas organizações públicas e privadas que caracterizam o capitalismo monopolista. Esta modernização social implica também o aumento do volume de consumo total da economia, uma vez que na sua ausência os processos que incrementavam a Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA participação dos lucros na renda nacional teriam efeitos ainda mais deletérios sobre o nível de consumo. Desta forma, as intensas transformações sócio-econômicas promoveram o grande crescimento da classe operária e das classes médias urbanas, ao mesmo tempo em que fortaleciam a burguesia industrial. Assim, a política reestruturou as formas econômicas subdesenvolvidas; é possível, no entanto, ir além e argumentar que, ao mesmo tempo, esta reestruturação reforçou as demandas por medidas de caráter nacional-desenvolvimentista, uma vez que os citados segmentos sociais se fortaleciam através de tais medidas, o que os levava a lutar mais intensamente para que elas fossem implementadas. Noutras palavras, a base econômica e a luta político-ideológica se alimentavam mutuamente em torno das medidas nacional-desenvolvimentistas, fortalecendo-as e levando a burguesia industrial a assumir uma posição de poder econômico cada vez maior, força que estava longe de possuir em 1930, momento no qual começaram as mudanças que iriam levá-la a ter grande poderio. Nesse sentido, as instituições de caráter corporativista, implantadas durante o Estado Novo, propiciaram à burguesia nacional maior espaço dentro do aparato estatal e maior capacidade para se organizar e levar seus interesses ao conjunto da sociedade (FONSECA, 1987). O crescimento da classe operária e das classes médias ocorreu paralelamente à busca de seu apoio político pelos governos, notadamente sob as presidências de Getúlio Vargas e de João Goulart. A incorporação desses segmentos sociais à política deu-se através da tutela estatal, materializada nas instituições corporativas criadas no Estado Novo e assegurada pela relativa eficácia dos discursos populistas, já que a promessa de inclusão social tornava-se plausível devido ao crescimento da renda e do emprego. Apesar desses aspectos característicos do processo de desenvolvi2 A referência remete aos itens que compõe Oliveira (2003a). RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO mento econômico-social, outras facetas de caráter contrário surgiram ou continuaram a se reproduzir. No âmbito do trabalho, os trabalhadores rurais e a grande maioria dos ocupados no terciário urbano não foram inseridos no novo estatuto do trabalho (a CLT), reproduzindo formas de exploração anteriores à fase monopolista do capitalismo, objeto de tratamento minucioso em Oliveira (2003a, II). Quando a crise econômica começou a aparecer em fins dos anos 50, um novo processo antidesenvolvimentista ocorreu: para combater a inflação, houve contenção dos reajustes salariais, embora ela nem sempre tenha sido efetiva, uma vez que o pacto populista dificultava a plena continuidade desta opção estatal. A grande expansão monetária – necessária para viabilizar a incorporação de bens de capital e de insumos intermediários e expandir a infra-estrutura – impulsionou, e depois sancionou, a reprodução do processo inflacionário, o qual tende a estreitar o horizonte de cálculo empresarial e assim reduzir a atividade econômica. A incapacidade de realizar reformas fiscais e de arbitrar ganhos e perdas entre o empresariado em meio ao processo inflacionário – a incapacidade de as classes dominantes se abrirem para a política, conforme Oliveira (1999) – são aspectos que expressam uma outra espécie de subdesenvolvimento; a burguesia usufruía dos recursos públicos, mas contribuía muito menos do que o necessário para evitar o aparecimento de um déficit público elevado. Cabe ressaltar que a reprodução do processo inflacionário não pode ser explicada apenas pelo enorme aumento da base monetária. Tavares (1981) afirmou que a desaceleração do crescimento (a partir de fins dos anos 50) expressava o esgotamento das reservas de mercado preexistentes, devido à substituição de importações de bens de consumo durável (ou seja, da exploração do potencial de consumo das classes de maior renda), e da complementaridade intersetorial entre os investimentos (entre setores produtores de bens de RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO consumo durável, de bens de capital e de insumos intermediários), o que levou as empresas a aumentar os preços para frente ao menor crescimento das quantidades vendidas (já que aumentar o crédito ao consumo aumenta as suas necessidades de capital de giro), o que em muitos casos levou ao aumento da capacidade ociosa. Esta crise cíclica ilustra um aspecto fundamental do subdesenvolvimento: a ausência de uma expansão significativa do consumo de massas – fruto do estatuto das relações capital-trabalho já discutidas – que pudesse continuar impulsionando os investimentos, o que fez com que o elevado volume de excedentes gerado anteriormente (apoiado não só na exploração do trabalho, aumentada pela introdução de novas tecnologias, como no protecionismo e no barateamento dos produtos das empresas estatais) superasse as oportunidades rentáveis de acumulação de capital. Oliveira (2003a, IV) articula a crise econômica com a crise política do período pré-64 ao discutir que a crise inflacionária, ao resultar em perdas salariais expressivas, leva os trabalhadores a denunciarem o pacto populista, inclusive porque estas perdas são mais sentidas por ter havido um expressivo aumento do custo de reprodução da força de trabalho urbana, devido à incorporação de bens modernos à sua cesta de consumo. Esta dimensão de crise tipicamente moderna alia-se à ascensão da luta dos excluídos – reforma de base (massas urbanas) e reforma agrária – para conformar um quadro de grave crise, o qual faz aparecer como problema outra faceta do nosso subdesenvolvimento: a insuficiência de moeda estrangeira para fazer frente às necessidades de valorização do capital aplicado internamente. A crise política exacerba “ Os discursos populistas propiciavam aumento das demandas dos excluídos às medidas de inclusão social... ” os efeitos da crise econômica, levando à diminuição da entrada de investimentos e de empréstimos externos e, principalmente, ao aumento da demanda pela remessa de lucros das multinacionais, a maioria delas instalada no país há poucos anos. A análise de Oliveira (2003a, IV) da crise econômica do período pré64 permite caracterizar a política como elemento estruturante da crise econômica. Os discursos populistas e os próprios resultados sócio-econômicos (incluindo o aumento do grau de urbanização, o que incrementava o impacto desses discursos) propiciavam aumento das demandas dos excluídos às medidas de inclusão social, crescentemente expressas nas lutas pelas reformas de base e reforma agrária, incorporadas mais intensamente à dinâmica política no início dos anos 603. Desta forma, as medidas nacional-desenvolvimentistas, fruto da dinâmica política iniciada em 1930, ensejaram transformações sócio-econômicas que, no contexto essa dinâmica, propiciaram condições para a ascensão da luta dos trabalhadores e dos excluídos, de difícil absorção sob a dinâmica política anterior. Uma outra manifestação dessa espécie de relação entre política e economia refere-se a outra transformação sócio-econômica ocorrida neste período. A partir dos anos 40, a taxa de inflação anual esteve quase sempre acima dos dois dígitos4 e tornou-se mais preocupante a partir de 19545, ano no qual o governo Getúlio Vargas decretou um aumen- 3 Santos (1979) salienta que a crise política desse período se deve em grande medida às demandas por direitos dos segmentos sociais não contemplados na democracia regulada vigente sob o populismo. 4 À exceção do biênio 1948/9 (4% ao ano) e de 1950 (9,4%), cf. Abreu (1990). 5 A média do período de 1954/6 foi de 22% ao ano, seguida por 16% a.a entre 1957/8, 34% a. a. entre 1959/61 e 49, 73 e 92% ao ano nos três anos seguintes, conforme Abreu (1990). Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA 55 to de 100% no salário mínimo, atendendo demandas de sindicatos que vinham fazendo muitas greves reivindicando reposição do poder de compra desde 1952 (Fonseca, 1987). As expressivas perdas salariais levaram os trabalhadores a questionarem a tutela estatal inerente ao populismo, obrigando os governos a fazerem concessões, as quais realimentavam o processo inflacionário e o próprio questionamento à tutela estatal. Além disso, vimos a pouco que a política de grande expansão dos gastos públicos foi um fator inflacionário relevante; ela era indispensável ao desenvolvimento, mas o populismo dificultava muito o aumento das receitas fiscais, que poderia reduzir os impactos inflacionários dos gastos públicos. A questão inflacionária mobilizava os trabalhadores e acirrava os ânimos dos segmentos empresariais, conformando uma situação de tensão política que também se nutria das demandas dos excluídos. O quadro se torna ainda mais turbulento devido à exacerbação do caráter nacionalista do populismo, cujo momento de maior afirmação se deu na criação da Petrobrás em 1954; no momento da crise de 1963/64, uma grande mobilização social acabou levando o governo Goulart a propor uma lei para reduzir o volume das remessas de lucros, o que gerou forte oposição do capital estrangeiro. Em suma, as características do populismo incrementaram os elementos de crise econômica e política do início dos anos 60. Levando em conta os compromissos assumidos com os trabalhadores, com as massas urbanas e agrárias e com os segmentos empresariais, o alto grau de conflitualidade ficou claramente expresso nas dificuldades em gerir as políticas salariais e os gastos públicos. As transformações sócio-econômicas ocorridas desde 1930 tendiam a fazer com que a temática desenvolvimentista caminhasse no sentido da redução das desigualdades, ao mesmo tempo em que a crise econômica aumentava a oposição do empresariado a esta direção. A mútua retroalimentação entre crise eco- 56 nômica e crise política produziu uma grave crise que foi “resolvida” pelo golpe militar de 1964. 2. O subdesenvolvimento a partir da redemocratização Para discutir a situação atual, cabe iniciar retornando a 1985, quando o país reiniciava sua vida democrática. A inflação havia chegado a mais de 200% ao ano, impulsionada pelas duas máxi-desvalorizações cambiais (de 30%, em 1979 e em 1983) e reproduzida através da generalizada indexação da economia. Paralelamente, houve uma profunda transformação na atuação do Estado, cujo eixo deixou de ser o fomento à rápida industrialização, como vinha ocorrendo no Brasil desde 1930. A partir de meados dos anos 70, a autonomização fiscal e monetária do Estado brasileiro transforma-se em seu contrário: ao invés de fomentar a acumulação de capital, os gastos públicos não comprometidos com a manutenção das instituições estatais são crescentemente destinados ao pagamento de encargos relativos à estatização das perdas privadas com a dívida externa e a honrar uma dívida pública interna plenamente indexada, administrada em curtíssimos prazos e sujeita a altos juros, justificados como instrumento de combate à inflação e de captação de recursos externos (TAVARES & ASSIS, 1985). Esta política viabilizou e estimulou estratégias empresariais defensivas – menores investimentos, maiores aplicações financeiras e aumento ou defesa das margens de lucro, condutas que tendiam a reproduzir a inflação e um baixo nível de crescimento econômico. Do ponto de vista político, Oliveira (1995) ressaltou a instauração de uma crise de hegemonia. A capacidade de previsão do Estado evaporou-se, do ponto de vista fiscal devido ao grande aumento das dívidas externa e interna, do ângulo político devido à ascensão da luta democrática, impulsionada pelos sindicatos e pelos movimentos sociais, a qual colocou os anseios por mudanças sociais progressistas no plano principal da política, sem que as Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA classes dominantes tivessem uma estratégia para enfrentá-los. Às vésperas das eleições diretas de 1989, o quadro descrito acima estava agravado pelas sucessivas decepções com os planos de combate à inflação, iniciadas com o fracasso do Plano Cruzado em 1986/87. Oliveira (1992) avaliou que a situação assumia o caráter de “à beira do abismo” face à crise econômica (elevada inflação e baixo crescimento), o que, aliado ao descrédito do sistema político e à profunda crise das instituições estatais, teria caracterizado a Nova República como um total descalabro. A situação de profunda crise econômica e política dificultou em muito a capacidade de agregação de interesses dos partidos, à exceção da candidatura Lula do PT, que possuía condições para postular a agregação dos interesses das classes trabalhadoras. No entanto, como nem mesmo os cinqüenta anos de crescimento (1930-80) foram capazes de produzir uma ampla formalização, logo sindicalização, da classe trabalhadora, a maioria dos eleitores não integrava os movimentos sociais organizados; no quadro de ampla crise já discutido, tendeu a prevalecer o anseio de que um messias – um salvador da pátria situado fora do sistema político tão desacreditado – viesse a derrotar o dragão inflacionário e por ordem no Estado tão debilitado. Esse anseio levou Collor à presidência da república pois, diante da candidatura Lula, grande parte dos segmentos empresariais e dos setores conservadores se uniu, transformando a eleição numa espécie de luta de classes. A análise da situação brasileira à época da eleição de Collor parece fundamental para a compreensão do momento atual, uma vez que a situação caracterizada como “à beira do abismo” – fruto de uma profunda crise sócio-econômica e política – parece ter se prolongado até 1994, levando em conta o fracasso do Plano e do governo Collor, tão vorazmente autoritário e corrupto. A eleição de Fernando Henrique Cardoso (FHC) em 1994 nutre-se em boa medida dos anseios por estabiRDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO lidade econômica e ordem discutidos acima. Embora o governo Collor tenha tomado medidas de caráter neoliberal (privatizações e abertura comercial e financeira com o exterior), FHC levou-as muito mais adiante entre 1994 e 2002. O grande apoio empresarial ao governo pareceu demonstrar que FHC foi considerado o condottiere ideal para implementar tais reformas. Sua atuação no Ministério da Fazenda de Itamar Franco, assessorado por quadros técnicos muito respeitados pelo empresariado, como Pedro Malan, Pérsio Arida e André Lara Resende, tornou plausível vislumbrar um novo modo de acumulação no Brasil, que adviria das seguintes mudanças: queda da inflação, rearticulação do país à circulação internacional de capitais, privatização e desregulamentação da economia, perspectiva de realizar a riqueza privada encapsulada na dívida pública (apesar dos juros elevados) e uma reforma do Estado capaz de reduzir e/ou privatizar os gastos sociais, visando afastar a ameaça distributivista fortalecida nos anos 80. Apesar de tais processos articularem o país com as formas mais contemporâneas do capitalismo – processos de reestruturação tecno-produtiva, de internacionalização e de financeirização da economia, sua contrapartida foi uma profunda redução da já precária autonomia nacional, já que a acumulação visa majoritariamente ao mercado interno, mas passa a depender mais fortemente de recursos externos. Avançaram rapidamente as importações (o eixo do Plano Real era a âncora cambial, que assegura a baixa inflação), a desnacionalização da propriedade do capital (além da privatização, as empresas nacionais estavam vulneráveis, logo baratas, aos olhos dos capitais internacionais), a dívida externa (dados os baixos juros internacionais e a citada âncora, que barateou o dólar frente ao real) e a liberdade de movimento para os capitais especulativos (uma estratégia para financiar o déficit externo), com uma agravante mais radical: a liberalização da circulaRDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO ção financeira tornou internacionalizável toda a riqueza situada no país. Apesar da precariedade e da baixíssima remuneração do trabalho já estarem plenamente estatuídas em nossa sociedade – a mais permanente faceta do nosso subdesenvolvimento, o governo FHC também procurou contribuir para o seu aprofundamento. Embora não tenha reformulado a CLT como parecia pretender, em 1995 o governo FHC arquitetou uma verdadeira operação de guerra midiática no episódio da greve dos petroleiros (Rizek, 1998), para deixar bem clara sua política para com os sindicatos das empresas estatais e do funcionalismo público. A forte concorrência das importações e o baixo crescimento vigente a partir de 1996 constituíram-se em ameaças à rentabilidade das empresas, levando-as a acelerar a busca por redução de custos através do aumento das importações de bens de capital e de matérias-primas (modernização produtiva incentivada pelo dólar barateado). Considerando ainda o aumento da concentração do capital – grandes empresas buscaram adquirir empresas cuja taxa de lucro potencial tornasse rentável sua compra, a resultante foi a ampliação do exército de reserva, possibilitado às empresas intensificarem a redução de salários e a precarização do trabalho, fragilizando ainda mais os sindicatos. Tais processos exacerbam o subdesenvolvimento, uma vez que as estratégias empresariais incrementam o excedente potencial, mas simultaneamente acarretam pequena expansão da massa salarial, fruto também do fato de a economia ter crescido pouco (5% ao ano em 1994/ 95, 2% entre 1996 e 2000) e do baixo nível de consumo resultante dos parcos recursos aportados às políticas sociais. A redução da inflação e a liberalização com plena internacionalização da circulação financeira fazem com que o grande aumento da dívida pública, que desde os anos 80 já não significava uma autonomia estatal, passasse a expressar algo ainda mais crítico: a subordinação do Estado à necessidade de evitar uma grande desvalorização cambial, causadora de aumento da inflação e de perdas aos segmentos importadores e endividados, além de reduzir o valor dos investimentos externos expressos na moeda relevante (o dólar). Incrementando seus lucros através de juros altos e de ganhos com recursos externos (captando externamente a juros baixos e aplicando nos títulos públicos, ganhando inclusive com a variação cambial), os grandes capitais passaram a obter apoio estatal até para a própria participação nas privatizações (empréstimos do BNDES, aportes dos fundos de pensão e plena indexação dos preços nos contratos de concessão). A partir de 1999, a desvalorização cambial, desencadeada pelas crises internacionais que aumentaram acentuadamente o risco dos capitais financeiros numa economia de vulnerabilidade externa tão exacerbada como brasileira, levou os governos a cederam ao “mercado” quando este passou a exigir superávits fiscais primários para evitar um aumento ainda maior da dívida pública e assim não deixar o país, o que levaria a uma maior desvalorização cambial. O baixo nível de atividade econômica, combinado ao rápido crescimento do endividamento interno e externo, fez com que as exigências do mercado constituíssem o que Oliveira (2006) chamou de autonomização do mercado, cujo sentido fica ainda mais claro com a expressão absolutização do mercado, também citada no texto, que significa uma quase total imprevisibilidade para a acumulação do capital e, simultaneamente, para a administração das contas públicas. 3. Perspectivas atuais de superação do subdesenvolvimento A conjunção entre as políticas de âncora cambial, de privatização, de reforma previdenciária, de contenção dos gastos públicos não-financeiros e de enfrentamento ao sindicalismo do setor público (incluindo as empresas estatais) produziu transformações sócio-econômicas que reestruturaram profundamente as Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA 57 “ A internacionalização produtiva e financeira da economia resultou em uma grande desnacionalização da propriedade do capital das empresas... ” formas econômicas subdesenvolvidas, transformações que, por sua vez, provocaram alterações no poderio dos diversos segmentos empresariais, logo na sua capacidade de influência política. Cabe salientar que o governo Lula, ao manter as linhas básicas da política macroeconômica, não reverteu tais transformações e tampouco promoveu mudanças significativas no quadro descrito na seção anterior. A internacionalização produtiva e financeira da economia resultou em uma grande desnacionalização da propriedade do capital das empresas, debilitando o poderio da burguesia nacional, logo sua capacidade de influir na regulação da própria internacionalização citada, a principal fonte de instabilidade da economia. Ao mesmo tempo, o aumento do poderio das empresas transnacionais incrementa sua força em influenciar a continuidade ou até o aprofundamento da citada internacionalização, conforme os interesses de cada empresa. Além disso, tais empresas preferem negociar seus interesses diretamente junto às instâncias estatais, o que tende a enfraquecer a possibilidade de formulação de políticas de âmbito mais geral que possam resultar em maior crescimento econômico, competitividade ou desenvolvimento tecnológico. Por outro lado, a internacionalização financeira da economia tem proporcionado grandes rendimentos para os capitais financeiros, ou seja, para instituições financeiras e empresas de outros setores capazes de mobilizar vultosas quantias através dos circuitos financeiros. Essas 58 instituições se beneficiam dos altos juros vigentes internamente (ainda mais quando possuem capacidade de captar recursos externos a juros baixos e quando houve valorização da moeda nacional – o real, que diminuía o custo em reais dos dólares captados no exterior), além dos ganhos nas bolsas de valores e nas operações especulativas (futuros e opções), estas tanto mais intensas quanto maior a instabilidade financeira e cambial da economia (pois aumentam as entidades querendo proteção – hedge – ou vislumbrando maiores ganhos especulativos), como tem sido o caso brasileiro. Além disso, a disponibilidade de recursos financeiros no mundo (que também provocou substancial aumento das cotações nas bolsas de valores e de futuros) tem propiciado a venda do controle acionário ou de parte significativa do capital de empresas nacionais, proporcionando rendas a muitos empresários nacionais (que podem incrementá-las no contexto das oportunidades financeiras mencionadas). Por outro lado, as empresas endividadas foram prejudicadas pela política adotada pelo governo FHC. O aumento da internacionalização produtiva tem proporcionado principalmente as importações de bens de capital e insumos a custos rebaixados enquanto o real estivesse valorizado, embora, por esse mesmo motivo, as importações prejudicassem diversos setores e as exportações nacionais fossem desestimuladas. Essas transformações no poderio dos diversos setores e empresas implicam diferentes capacidades de influenciar as decisões do Estado. Enquanto a política estatal estiver pautada pela ampla liberdade de circulação financeira dos capitais, medidas que contrariem uma parcela dos agentes com significativo poderio financeiro poderão resultar em crises cambiais ou financeiras gravíssimas, caso tais agentes resolvam se desfazer da moeda nacional ou dos títulos públicos, em troca de moeda estrangeira ou de outros ativos financeiros. Por outro lado, o poderio dos agentes que sofrem com Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA a elevada taxa de juros diminuiu ao longo do tempo, inclusive quanto à geração de emprego e renda, o que facilita a manutenção dessa política monetária. Cabe salientar ainda que o segmento empresarial mais interessado na retomada do crescimento do mercado interno e, provavelmente, o menos beneficiado (ou mais prejudicado) pela internacionalização produtiva e financeira da economia, é o empresariado nacional, cujo faturamento depende menos das exportações e é, por outro lado, muito pressionado pelas importações. Debilitado economicamente e distante de outros segmentos sociais interessado nessa retomada (como trabalhadores e parcelas das classes médias), lideranças do empresariado nacional tem proferido alguns discursos de teor desenvolvimentista cuja repercussão tem sido muito fraca junto àqueles segmentos e à opinião pública. Os trabalhadores foram bastante afetados pela política adotada pelo governo FHC, já que o aumento da internacionalização produtiva através da âncora cambial aumentou as importações e impediu o aumento das exportações, além de ter obrigado maior aceleração da reestruturação produtiva das empresas sujeitas a tivessem maior competição das importações e propiciado tal reestruturação a empresas interessadas apenas na redução de custos. Tais processos aumentaram as taxas de desemprego e de subemprego, reduziram os empregos formais e rebaixaram os salários. Oliveira (2003b) acrescentou um efeito perverso decorrente das novas tecnologias: aproveitando-se do contexto de ampla flexibilidade do mercado de trabalho brasileiro (baixa formalização do emprego e alto índice de rotatividade da mão-deobra), as empresas estão estendendo a contratação de trabalho por tempo parcial ou determinado também aos setores “modernos”. Na medida em que as novas tecnologias permitem uma elevadíssima produtividade do trabalho, sua aplicação resulta em um grande contingente de trabalhadores qualificados inseridos no exército de reserva (desemRDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO pregados ou subempregados) e possibilita o aumento das citadas formas de contratação. Em consequência, tem sido reduzida a abrangência da forma salário, o que reduz os custos das empresas e lhes proporciona ainda maior poder frente aos trabalhadores, num círculo vicioso que agrava cada vez mais a situação dos trabalhadores. Este forte debilitamento do poder econômico dos trabalhadores é, provavelmente, uma das principais causas das novas condutas assumidas por lideranças sindicais que, desde os anos 80, vem buscando conquistar espaços para participar de discussões que afetem os interesses dos trabalhadores. Nesta mesma direção, as políticas neoliberais, ao se pautarem pela contenção dos gastos públicos, têm enfraquecido os movimentos sociais e fazendo com que suas entidades sejam instadas a participar da implementação dos programas sociais, sob pena de pouco poderem fazer para minorar as carências da população. Ocorre que os programas sociais têm se focalizado cada vez mais na pobreza e na redução das desigualdades de oportunidades de um lado, e na filantropia empresarial e ações voluntárias de outro, o que pode estar ampliando processos de consolidação de uma nova subjetividade assentada no paradigma da dádiva – não dos direitos, da ação focalizada – não abrangente, das medidas provisórias (ou emergenciais) – não estáveis, das técnicas gestionárias (gestão eficiente e eficaz) – não participativas. Seu avanço pode estar produzindo uma progressiva hegemonia de concepções pautadas pela naturalização da pobreza e da desigualdade, ou seja, pela desresponsabilização do Estado e da sociedade para com a eliminação da iniqüidade social brasileira. As técnicas gestionárias que caracterizam tais políticas praticamente inviabilizam a contestação do seu caráter, ao mesmo tempo em que abrem espaço para que parte de suas lideranças mude suas posturas, a ponto de se transformarem em segmentos especializados na intermediação de fundos públicos, o que levou Oliveira RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO (2006) a denominá-los como novas classes sociais, cuja atuação tende a incrementar a despolitização no tratamento dessas questões. Desta forma, ao contrário do que ocorreu no período 1930-64, as intensas transformações sócio-econômicas iniciadas em 1994 promoveram um grande enfraquecimento dos trabalhadores e da burguesia nacional, reduzindo portanto sua capacidade política de lutar por medidas de caráter desenvolvimentista. Além disso, o foco das políticas sociais está concentrado na população mais carente, em sua maioria pouco organizada politicamente, e isto tende a tornar hegemônicas as concepções pautadas pela naturalização da pobreza e da desigualdade. As entidades sindicais e os movimentos sociais, os segmentos que mais seriam capazes de lutar por aquelas medidas, sofrem assim uma grande despotencialização política, por estarem sujeitos à coerção das necessidades e instados a aderir aos programas sociais de caráter completamente diverso. Por outro lado, os segmentos empresariais, cada vez menos atuantes na esfera política, tratam de seus interesses diretamente junto a Estado (caso dos mais poderosos) ou buscam sobreviver aos percalços da economia (caso dos pouco poderosos), ao mesmo tempo em que se engajam nas práticas de responsabilidade social. As questões políticas que os unificam estão inseridas no ideário neoliberal, como a redução dos custos fiscais e trabalhistas, de direção antagônica à perspectiva do desenvolvimento. Desta maneira, as transformações na base econômica e a luta político-ideológica se alimentam mutuamente no sentido contrário àquele que apontaria para a superação do subdesenvolvimento, inclusive – talvez principalmente – porque elas fortalecem as frações burguesas mais interessadas nas lógicas financeirizantes e internacionalistas predominantes no país. Será que a pauta desenvolvimentista foi varrida do mapa político? Nesse momento, o horizonte parece cada vez mais sombrio; o ornitorrinco se desenvolve, cada vez mais acir- rando a oposição entre modernidade e desigualdade social. Bibliografia ABREU, Marcelo Paiva (org.) (1990) – A ordem do progresso: Cem anos de política econômica republicana. Rio de Janeiro: Campus. FONSECA, Pedro C. D. (1987) – Vargas: o discurso em perspectiva e o capitalismo em construção. Tese de Doutoramento FEA/USP, São Paulo: mimeo. OLIVEIRA, Francisco de (1992) – A falsificação da ira. Rio de Janeiro: Imago. _________ (1995) – “Quem tem medo da governabilidade?”. In: Novos Estudos Cebrap, n° 41, março. _________ (1999) – “Privatização do público, destituição da fala e anulação da política: o totalitarismo neoliberal”. In: OLIVEIRA, Francisco de & PAOLI, Maria Célia (orgs) – O sentidos da democracia: políticas do dissenso e a hegemonia global, Petropólis, RJ: Vozes. ________ (2003a) – “Crítica à razão dualista”. In: Crítica à razão dualista – o Ornitorrinco. São Paulo: Boitempo. _______ (2003b) – “O Ornitorrinco”. In: Crítica à razão dualista – o Ornitorrinco. São Paulo: Boitempo. _______ (2006) – “Política numa era de indeterminação”. In: RIZEK, Cibele S & OLIVEIRA, Francisco de (orgs.) – A era da indeterminação, São Paulo: Boitempo Editorial (no prelo). RIZEK, Cibele S. (1998)– “A greve dos petroleiros”. In: Praga, estudos marxistas, n° 6, setembro, São Paulo: Hucitec. SANTOS, Wanderley G. (1979) – Cidadania e justiça: A política social na ordem brasileira. Rio de Janeiro: Campus. TAVARES, Maria da Conceição (1981) – “Além da Estagnação”. In: TAVARES, M. C. – Da substituição de importações ao capitalismo financeiro: Ensaios sobre economia brasileira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., Nona edição. TAVARES, Maria da Conceição & ASSIS, José C. (1985) – O grande salto para o caos: A economia política e a política econômica do regime autoritário. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. MESTRADO EM ANÁLISE REGIONAL O primeiro da sua categoria no Estado da Bahia Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA 59 UM LIBERTADOR DAS IDÉIAS: O PENSAMENTO DESENVOLVIMENTISTA DE RAÚL PREBISCH Joaquim Miguel Couto1 Ana Cristina Lima Couto2 Resumo As idéias do economista argentino Raúl Prebisch (1901-1986) sempre estiveram voltadas para a ação. As dificuldades encontradas frente a problemas concretos (durante a crise dos anos 1930), tornaram Prebisch um homem prático. Assim, suas teorias sobre a substituição de importações, o sistema centro-periferia e a criação de um mercado comum latino-americano, possuíam um grande sentido de influenciar a realidade. A única exceção coube a sua “Teoria da Transformação”, construída no último decênio de sua vida. Nesta, Prebisch se afasta da realidade e teoriza sobre a criação de um novo sistema econômico, através de uma síntese entre socialismo e liberalismo, visando alcançar o desenvolvimento econômico. Palavras chave: Prebisch; sistema centro-periferia; substituição de importações. Abstract The argentinean economist Raúl Prebisch’s (1901-1986) ideas were always gone back to the action. Difficulties facing concrete problems made him a pragmatic man. Thus, his theories about import substitution, core-periphery system and the creation of a common latin-american market, were embodied in a great purpose of influencing the reality. The only exception was the “Theory of Transformation”, which was built in the last decade of this life. There, Prebisch moves off practical matters and speculates about the creation of a new economic system, through a synthesis of socialism and liberalism, seeking to reach the economic development. 60 Key words: Prebisch; core-periphery system; import substitution. Introdução A América Latina teve seus libertadores políticos; homens destemidos que lutaram para libertar o continente sul-americano da dominação das metrópoles européias. Prebisch foi também um libertador, não da dominação política, mas do campo das idéias econômicas. Sua paixão pela defesa dos interesses econômicos da América Latina, levou-o a desprezar a ciência econômica marginalista e monetarista, inspirado, principalmente, pelo livro revolucionário de John M. Keynes. Expor as principais idéias do economista argentino Raúl Prebisch (1901-1986), sua originalidade e coesão, é o objetivo desse artigo. No entanto, escrever sobre o pensamento de um determinado autor requer uma série de cuidados. Primeiro, a certeza de ter coberto a bibliografia correta. Segundo, de extrair de tal bibliografia as idéias centrais e pertinentes de seu pensamento. Terceiro, sistematizar a exposição de tais idéias, perseguindo um sentido de continuidade entre elas. Prebisch facilitou em muito este terceiro cuidado. Em 1982, escreveu um ensaio para apresentação no Banco Mundial, posteriormente publicado pelo “El Trimestre Económico”, intitulado “Cinco etapas de mi pensamiento sobre el desarrollo”. Neste ensaio, Prebisch, aos 81 anos Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA de idade, volta-se para o passado e nos diz que seu pensamento sobre o desenvolvimento econômico atravessou cinco etapas sucessivas, sob a influência de uma realidade que se transformava e dos ensinamentos de sua própria experiência. É por esta razão que esse artigo segue uma divisão em etapas. Na primeira, tratamos das idéias de Prebisch desenvolvidas entre os anos de 1943 e 1949: da sua aceitação do ciclo econômico e do repúdio as teorias do equilíbrio. Na segunda etapa, que cobre os anos de 1949 a 1959, são expostas as idéias mais conhecidas do economista argentino: o sistema centro-periferia e a deterioração dos termos de intercâmbio. Na terceira etapa, situada entre 1959 e 1963, aparece sua defesa pública pela criação de um mercado comum latino-americano e o conceito de insuficiência dinâmica da economia. A quarta etapa marca a passagem de Prebisch pela Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), entre os anos de 1963 e 1969. A quinta etapa tem início em meados do anos 1970 e termina com sua morte em 1986. É o momento em que Prebisch se aproxima do pensamento de Karl Marx para propor uma síntese entre liberalismo e socialismo. Este é um texto de História do Pensamento Econômico. No entanto, ao estudar o pensamento de Raúl Prebisch, estamos tratando da realidade brasileira do “desenvolvimentismo” após a crise dos anos 30, che- 1 Doutor em Ciências Econômicas pelo Instituto de Economia da UNICAMP. Professor Adjunto TIDE (Tempo Integral Dedicação Exclusiva), Departamento de Economia da Universidade Estadual de Maringá. 2 Mestre em Economia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professora Colaboradora TIDE, Departamento de Economia da Universidade Estadual de Maringá. RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO gando até os problemas da dívida externa e da hiperinflação dos anos 80. O Brasil, sem dúvida, foi o grande laboratório para as idéias de Prebisch e da CEPAL. Em razão disso, ao penetrar no pensamento do economista argentino, estamos estudando a própria Economia Brasileira e o caminho para o seu desenvolvimento. 1. A primeira etapa: o ciclo econômico e o repúdio às teorias do equilíbrio geral A primeira etapa do pensamento de Prebisch inicia-se com sua saída da Direção Geral do Banco Central da Argentina (1943) e termina com sua entrada na CEPAL (1949). Neste período, retorna à cátedra na Faculdade de Ciências Econômicas de Buenos Aires, dedicando-se a pensar sobre o significado de sua experiência anterior. Ressalta que surgiram em sua mente algumas perguntas sobre problemas teóricos importantes cujas reflexões traçaram o caminho da segunda etapa. Perguntava-se: por que se afastou de suas crenças ortodoxas marginalistas? Por que o Estado teria que desempenhar um papel ativo no desenvolvimento? Por que as políticas formuladas nos centros não podiam aplicar-se na periferia? No fundo, este é um período formativo das idéias de Prebisch que só viriam a constituirse em um todo consistente na segunda etapa de seu pensamento. Assim, concordamos com Rodríguez (1981) de que esses textos da Primeira etapa são claros antecedentes da concepção do sistema centro-periferia. O principal conceito teórico abordado por Prebisch nesta etapa é o ciclo econômico. Para ele, o ciclo se manifestava em um movimento alternado de rendas que se contraíam e se dilatavam em um processo circulatório. Este processo circulatório das rendas não se limitava à esfera interna de um país, era pois um fenômeno internacional. Prebisch não aceitava o sistema de equilíbrio dos economistas marginalistas. Tinha que a realidade era eminentemente cíclica. O ciclo era uma sucessão de desequilíbrios, portanto, incompatível com o equilíbrio geral. Para RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO Gurrieri (1982), é através da análise dos ciclos e da dinâmica econômica que Prebisch começa a assentar as bases de sua teoria do desenvolvimento econômico. Ressalta Prebisch (1945), que desde o início de sua carreira como professor, na década de 20, dominavalhe a fé e um grande entusiasmo pela teoria econômica e, muito embora o trabalho futuro frente a problemas concretos, tenham-no transformado em um homem da prática, sentia, cada vez mais, a necessidade do apoio constante da teoria econômica para explicar e trabalhar sobre os problemas da realidade. Apesar desta fé ter se transformado em uma convicção, Prebisch se mostrava descontente com a teoria econômica dominante. Para ele, a teoria envelheceu como um antigo mapa, fazendo-se necessário uma tarefa de revisão para acentuar seus grandes acertos e corrigir seus muitos erros. Esta crítica abarcava tanto o padrão-ouro como também o protecionismo, o livre câmbio, a livre concorrência reguladora e muitos outros pontos defasados. Prebisch criticava a postura dos Estados Unidos que ainda acreditavam que o livre funcionamento do mecanismo econômico corrigiria todos os males, sem a necessidade de uma política compensatória. Pontuava Prebisch que a Economia Política estava passando por uma grave crise que a tornava insuficiente para explicar os problemas da realidade e agir sobre eles. Esta era a segunda crise pela qual passava a Economia Política. A primeira teria sido provocada por Karl Marx. Superada a crítica marxista, a Economia Política aumentou o seu rigor e precisão através do aperfeiçoamento dos raciocínios lógicos e do emprego das matemáticas. Porém, esta elegância e rigor matemático afastava a Economia Política da realidade econômica, tornando-a incapaz de resolver os problemas advindos com a grande depressão dos anos 30. O interesse de Prebisch por Keynes torna-se notório ao publicar o livro “Introdução a Keynes” (1947). Trata-se do primeiro manual escrito na América Latina para difundir as idéias do economista britânico contidas em sua “Teoria geral do emprego, do juro e da moeda”, de 1936. Prebisch, neste livro, concorda que a falha fundamental do capitalismo é a desocupação persistente e que Keynes interpreta este fenômeno e oferece uma solução compatível com a iniciativa privada e a liberdade pessoal. Considera, entretanto, que os artigos que antecederam a “Teoria Geral”, publicados pelo “Times” de Londres, em 1933, eram de uma heresia doutrinária superior ao seu grande livro. Nesta fase, Prebisch estuda também profundamente a obra de Schumpeter, que se materializa nas suas idéias sobre o ciclo econômico e o papel do empreendedor no processo de desenvolvimento. Sobre o conceito Centro-Periferia, este aparece pela primeira vez em 1946 (“Memoria de la Primeira Reunión de Técnicos sobre Problemas de Banca Central del Continente Americano”, publicado pelo Banco do México): “Os Estados Unidos, a meu ver, desempenham ativamente o papel de centro cíclico principal, não só no continente, mas em todo o mundo; e os países latino-americanos estão na periferia do sistema econômico (...) Por que chamo os Estados Unidos de centro cíclico? Porque deste país, em função da sua magnitude e de suas características, partem os impulsos de expansão e contração na vida econômica mundial e especialmente na periferia latino-americana, cujos países estão sujeitos as influências destes impulsos, como haviam estado anteriormente, quando a Grã-Bretanha tinha o papel de centro cíclico principal (...) Eu creio que o movimento cíclico é universal, que há um só movimento que vai se propagando de país a país. Portanto, não se deveria dividir o processo em várias partes independentes; não há um ciclo nos Estados Unidos e um ciclo em cada um dos países da periferia. Tudo constitui um só movimento, mas dividido em fases muito distintas com características claramente diferentes, segundo se trate do centro cíclico ou da periferia. Por esta última razão, apesar de ser o processo um só, as suas manifestações são muito diversas, de acordo com o lugar em que nos situe- Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA 61 “ Não é possível usar na periferia as mesmas armas de intervenção e regulamentação monetária que se usa no centro cíclico... ” mos (...) Sustento, por isso, que é impossível aplicar uma política uniforme para abordar os problemas emergentes do ciclo econômico. Não é possível usar na periferia as mesmas armas de intervenção e regulamentação monetária que se usa no centro cíclico.” (PREBISCH citado por RODRÍGUEZ, 1981, p.34/35) Pela citação acima, podemos afirmar que o ciclo econômico constitui a base de onde se desprende o sistema centro-periferia. Embora este conceito surja nesta primeira etapa, ainda estava distante de formar um sistema único (fato que ocorre somente na segunda etapa). O comércio internacional e a preocupação com o balanço de pagamentos estão presentes em metade dos textos escritos por Prebisch nesta fase. Já a necessidade da industrialização através da substituição de importações é considerada de forma rápida apenas em texto de 1944. A inflação, por sua vez, desperta pouca atenção, sendo diagnosticada apenas como um fenômeno monetário. Podemos considerar esta primeira etapa, como uma fase onde os fatos eram analisados sob uma ótica estritamente econômica. Não obstante, Prebisch (1945) adverte que a teoria econômica só explicava uma parte e não toda a realidade. No mais, tem-se referência ao planejamento e a necessidade da América Latina começar a pensar com suas próprias idéias. 2. A segunda etapa: o sistema centro-periferia e a industrialização da América Latina Esta etapa é marcada pela entrada de Prebisch na Comissão Econômica para a América Latina e o 62 Caribe - CEPAL, em fevereiro de 1949, e termina ao final da década de 50. Segundo Gurrieri (1982), Prebisch inicia seu caminho cepalino orientado por sua idéia de desenvolvimento econômico, que manterá sem grandes mudanças em todos os seus trabalhos posteriores. Para Furtado (1985), foi no Brasil e no Chile onde germinaram as idéias plantadas por Prebisch nesta fase. Passado um mês de sua chegada à CEPAL (Santiago do Chile), Prebisch distribui internamente um primeiro texto, escrito possivelmente com material trazido por ele próprio da Argentina, mas que logo é recolhido sem nenhuma explicação. Continha este texto as idéias que Prebisch já vinha desenvolvendo na etapa anterior: desequilíbrio do balanço de pagamentos provocado pelo baixo coeficiente de importações dos Estados Unidos e a importância e limitação da industrialização. Era, na verdade, o primeiro esboço de um trabalho que estava sendo preparado para a Conferência da CEPAL em Havana (maio de 1949). A versão definitiva, terminada às vésperas da dita Conferência, é assim comentada por Celso Furtado: “O novo texto de Prebisch não circulou para discussão (...) Tratava-se de um texto mais longo, contendo quadros e gráficos e o tom havia mudado. A linguagem agora era de um manifesto que conclamava os países latino-americanos a engajar-se na industrialização. Nele evidenciavam-se gosto pela língua depurada e qualidade de polemista” (FURTADO, 1985, p.60). Este texto, intitulado “O desenvolvimento econômico da América Latina e alguns de seus principais problemas”, é a gênese do pensamento da CEPAL e a concretização do sistema de relações econômicas internacionais denominado Centro-Periferia. Seus três primeiros parágrafos são extremamente marcantes e controvertidos. Para Furtado, o ponto de partida do texto era um “grito de guerra”, um ataque direto à ordem internacional vigente e a seus ideólogos: “A realidade está destruindo na América Latina aquele pretérito esquema da divisão internacional do trabalho que, de- Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA pois de haver adquirido grande vigor no século XIX, seguia prevalecendo doutrinariamente até há bem pouco tempo”(PREBISCH, 1949, p.99). O sistema Centro-Periferia seria o conceito mais difundido do economista argentino, porém ainda era um termo não consolidado, razão pela qual, em alguns textos desta etapa, Prebisch evita empregá-lo ou faz de forma cuidadosa. Entende-se por centro, grosso modo, os países desenvolvidos produtores de bens manufaturados, e por periferia, os países em desenvolvimento ou subdesenvolvidos, produtores de bens primários. A América Latina, pertencente à periferia da economia mundial, seria o pano de fundo das idéias de Prebisch sobre o desenvolvimento econômico e o comércio exterior. É claro que este primeiro trabalho de Prebisch na CEPAL é fruto de sua experiência argentina, transladada para a órbita latino-americana pelas coincidências de certos problemas comuns. Entretanto, Prebisch reconhece, desde o início, a diferença existente entre estes países, porém isto não invalidaria as suas idéias gerais sobre a região. Da explicação dada por Prebisch, pode-se considerar que o centro e a periferia eram o resultado histórico da maneira como se propagou o progresso técnico na economia mundial, dando lugar às estruturas produtivas diferentes tanto no centro como na periferia, além de funções também diferentes no sistema econômico mundial (FLOTO, 1989). Para justificar a industrialização da América Latina, que já vinha se realizando desde a grande depressão dos anos 30, Prebisch questiona a validade da divisão internacional do trabalho. Segundo esta, o progresso técnico dos centros se distribuiria para a periferia pela baixa nos preços dos produtos manufaturados (em razão do aumento de sua produtividade). Desta maneira, os produtos primários da periferia, de menor produtividade, teriam um maior poder de compra, conforme evoluísse a técnica nos centros, não cabendo a industrialização da periferia do sistema. RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO Prebisch desmente este pressuposto da distribuição do progresso técnico, afirmando que desde o final do século XIX, os preços dos produtos primários vêm se deteriorando em relação aos preços dos produtos manufaturados dos centros. Ou seja, por não terem sido repassados os aumentos de produtividade na baixa dos preços, o progresso técnico tem se concentrado nos centros. Esta deterioração era explicada pelo movimento cíclico da economia. Na fase descendente do ciclo, a queda nos preços dos produtos primários era maior do que a sua elevação na fase ascendente. Enquanto isto, os preços dos produtos manufaturados produzidos nos centros resistiam à queda. A rigidez dos preços manufaturados e a flexibilidade dos preços primários tinham como razão o maior poder sindical dos trabalhadores dos centros, que elevavam os salários na fase ascendente e mantinha-os na fase descendente. A deterioração dos termos de intercâmbio e o próprio processo de industrialização (que necessitava de importações) eram os motivos apontados por Prebisch que levavam os países periféricos a desequilíbrios em seus balanços de pagamentos. Creditava, contudo, a grande culpa do desequilíbrio ao baixo coeficiente de importações dos Estados Unidos. Esta explicação para o desequilíbrio externo, datada de 1949, é mantida no texto de 1950; porém, em texto de 1951, Prebisch acrescenta um novo fator causador do desequilíbrio: a elasticidade-renda da demanda. Ou seja, a medida que cresce a renda, diminui a demanda relativa por bens primários e aumenta a demanda relativa por bens industriais. Hans W. Singer, em 1950, também advogou que a deterioração era causada pela elasticidade-renda da demanda, porém Prebisch creditava esta deterioração tanto à elasticidade quanto ao ciclo econômico. Não obstante, muitos tratam estas duas teorias com um rótulo comum (“Tese Prebisch-Singer”), ignorando o ciclo econômico. Em sua extensa bibliografia, Prebisch nunca fez qualquer referência a esta tese “PrebischSinger”. RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO Para atacar o desequilíbrio externo, Prebisch não via outro caminho senão a industrialização da América Latina, através do processo de substituição de importações. Observava, entretanto, que esta industrialização possuia limites: a pequena escala de produção e a baixa poupança interna para inversões. Outra medida preconizada para evitar ou diminuir o desequilíbrio do balanço de pagamentos era o desestímulo às importações através do controle do câmbio e outras medidas seletivas. Criticava também as formas imitativas de consumo (bem supérfluos importados) dos grupos de altas rendas, que prejudicava as inversões e acentuava o desequilíbrio externo. Foi a pequena escala das indústrias latino-americanas, em razão de seus estreitos mercados nacionais, o motivo que incentivou Prebisch a defender a criação de um mercado comum latino-americano desde o seu primeiro trabalho na CEPAL. Apesar do acento na industrialização, Prebisch não descartava a importância da agricultura, tanto para o mercado interno como para o externo. Criticava a posse do solo e o enriquecimento dos proprietários de terras. É forte também a preocupação de Prebisch com o desemprego estrutural ou tecnológico. As exportações já não eram suficientes para absorver o crescimento da população ativa e a desocupação resultante do progresso técnico (principalmente na agricultura). Cabia à industrialização esta tarefa. A introdução de novas técnicas que aumentavam a produtividade e, consequentemente, eliminavam mão-de-obra, deveriam ser implantadas à medida que houvesse capital disponível para absorver esta população em outras atividades. Prebisch considerava o comércio exterior um dos elementos propulsores do desenvolvimento econômico. A industrialização exigia novas importações de bens de capital e insumos que, para pagá-los, necessitava de exportações. Porém, devido à baixa capacidade para importar da periferia, a composição das importações deveria ir sendo modi- “ Prebisch era a favor do multila- teralismo, onde cada país poderia comprar e vender nos melhores mercados... ” ficada, substituindo as importações supérfluas pelas essenciais ao desenvolvimento. Prebisch era a favor do multilateralismo, onde cada país poderia comprar e vender nos melhores mercados; no entanto, a falta de divisas, e não uma questão doutrinária (como afirma), levou os países a praticarem o controle de câmbio e o comércio discriminatório. É no texto de 1950 que Prebisch começa a defender medidas protecionistas para estimular a industrialização periférica, devido ao seu maior custo de produção. Somente na Terceira etapa de seu pensamento, Prebisch irá criticar o excesso de proteção. Outro ponto de luta de Prebisch, nesta fase e nas demais, é a cooperação internacional, tanto financeira como técnica. A cooperação financeira deveria ser complementar ao esforço interno dos países. O reconhecimento da necessidade de um programa de desenvolvimento surge no texto de 1951, e se intensifica em 1955. A técnica de programação buscava ordenar e aumentar as inversões de capital, com o fim de imprimir mais força e regularidade ao crescimento econômico. Nesta programação, não estava implícito que o Estado deveria ocupar o lugar da iniciativa privada, mas atuar onde esta fosse débil. Ao longo dos textos desta etapa, Prebisch critica constantemente os ensinamentos da teoria econômica dominante. Apesar de concordar teoricamente sobre a validade da divisão internacional do trabalho, Prebisch diz que esta é contradita pelos fatos. Considera falsa a premissa de plena mobilidade dos fatores produtivos entre os países, e descarta o sentido de universalidade da teoria Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA 63 ortodoxa. Outro ponto de crítica, era de que a teoria marginalista nunca levou em consideração o tempo entre uma e outra situação de equilíbrio. Impunha-se um sério esforço de revisão teórica, partindo de premissas mais próximas da realidade. 3. A terceira etapa: o mercado comum latino-americano e a insuficiência dinâmica do sistema A terceira etapa do pensamento de Raúl Prebisch envolve o período que vai do final da década de 50 até o ano de 1963, quando este deixa a CEPAL para assumir a Secretaria Geral da UNCTAD. Um dos destaques desta etapa é o acolhimento de outras áreas do conhecimento, além da econômica, para explicar o processo de desenvolvimento econômico da América Latina. Por influência reconhecida de José Medina Echavarría, Prebisch passa a englobar em suas idéias posições sociológicas, referentes, particularmente, a estrutura social. A deterioração dos termos de intercâmbio passa a ser explicada como consequência da elasticidaderenda da demanda e da densidade tecnológica. Prebisch “esquece” a explicação da deterioração através do movimento cíclico da economia. Em texto de 1959, depois de ensaiar durante toda a etapa anterior, Prebisch propõe a criação de um mercado comum latino-americano. O objetivo principal do mercado comum era assegurar a industrialização racional dos países da América Latina, principalmente em razão do fim da etapa fácil de substituição das importações. Com um mercado comum, a industrialização passaria a contar com maiores mercados e ganhos de escala, bem como atenuaria a vulnerabilidade externa. É a partir desta fase que Prebisch passa a defender a exportação de produtos manufaturados. A criação da ALALC (Associação Latino-Americana de Livre Comércio), nascida em fevereiro de 1960, é o resultado da luta de Prebisch em busca do mercado comum. Argumenta que o processo de substituição de importações não prejudicava o comércio internacional, 64 pois substituía certos produtos para poder importar outros requeridos pelo desenvolvimento. Reconhecia a necessidade da proteção, porém sem exageros. Prebisch (1961) considerava um falso dilema a questão entre desenvolvimento econômico e estabilidade monetária, pois, segundo a ortodoxia, para se conseguir a estabilidade monetária dever-se-ia sacrificar o crescimento da economia. Prebisch discorda desta posição, afirmando que era possível conseguir estabilidade com crescimento, dado que a inflação da América Latina não era causada por fenômenos monetários, mas sim por fatores estruturais (alto custo da substituição de importações, aumento dos preços dos produtos agrícolas e importados, etc.). Para ele, requeria-se investigações sociológicas, pois eram os novos grupos que surgiam na política ou na economia que usavam a inflação para modificar a distribuição de renda a seu favor. A estabilidade monetária não era condição suficiente para o desenvolvimento econômico. Junto com a estabilidade se fazia necessária uma política de substituição de importações. Nessa fase, Prebisch passa a dar grande ênfase a acumulação e a distribuição. Diz que enquanto nos centros a acumulação de capital precedeu a sua distribuição, na América Latina a acumulação e a distribuição da renda se requerem de forma simultânea. É um erro a tese passada de primeiro crescer e depois distribuir. O então modelo distributivo era apontado por Prebisch como um dos obstáculos mais graves ao desenvolvimento econômico, gerador de tensões sociais. As grandes disparidades de rendas dos países latino-americanos provieram, primeiro, da concentração das terras, e depois do excessivo protecionismo industrial, da restrição à concorrência, da inflação e da intervenção do Estado favorecendo determinados grupos. A baixa poupança interna para inversões exigia ser complementada com recursos externos. Ainda em 1961, Prebisch defende de forma clara, pela primeira vez, a reforma agrária. Esta era inadiável. Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA Cabia ao Estado redistribuir a terra e difundir a técnica e o capital. Aparece também, nesse texto, a sua primeira preocupação ecológica: a aglutinação ou divisão de terras deveria levar em consideração as condições ecológicas da região. Em 1963, Prebisch publica o principal texto desta etapa. Trata-se do livro “Dinâmica do desenvolvimento latino-americano”, que lança o conceito de insuficiência dinâmica. Segundo Prebisch, o desenvolvimento econômico não viria de forma espontânea e sim de um esforço racional e deliberado, onde a acumulação de capital e a redistribuição da renda não se dariam pelo livre jogo do mercado, mas somente com uma grande participação do Estado sobre a poupança, a terra e a iniciativa individual, dando dinâmica ao sistema. A insuficiência dinâmica da economia era a incapacidade do sistema de absorver o crescimento da população ativa e a desocupação provocada pelo progresso técnico. Para Gurrieri (1982), insuficiência dinâmica (ou suficiência dinâmica) era um conceito operacional que permitia estimar o dinamismo econômico em relação com a absorção produtiva da força de trabalho. Em razão deste novo conceito, a preocupação com o desemprego estrutural tornara-se uma constante no pensamento de Prebisch. Para ele, a estrutura social da América Latina colocava um grave obstáculo ao progresso técnico e, por consequência, ao desenvolvimento econômico e social. Esta estrutura entorpecia a mobilidade social (ou seja, o surgimento de elementos dinâmicos) e privilegiava certos grupos na distribuição da renda. Este privilégio distributivo, por sua vez, não era canalizado para a acumulação de capital, mas para modelos exagerados de consumo. O ponto de partida para superar a então estrutura social era a educação. Recomendava que se deveria combinar a ação do Estado com a iniciativa privada, pois a livre iniciativa e a competição eram essenciais para o progresso econômico, assim como o planejamento e a coopeRDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO ração internacional. Entretanto, dever-se-ia tomar cuidado com a iniciativa privada estrangeira, em razão de sua superioridade técnica e econômica. Este era o início de sua preocupação com as empresas transnacionais. Admitia ainda o fim da etapa fácil de substituição de importações. Foi relativamente simples substituir bens de consumo corrente e alguns duradouros. Tratava-se agora de substituir bens de capital e intermediários, de fabricação mais complexa, que exigia maiores mercados e capitais. Segundo o próprio Prebisch, esta foi uma etapa crítica da política e das idéias econômicas, “(...) em resposta as mudanças que estavam ocorrendo no processo de desenvolvimento e a minha melhor compreensão de seus problemas” (PREBISCH, 1982, p.1084). Confessa que “(...) não pôde desentranhar naqueles anos, o significado real da inflação e do processo de distribuição da renda” (Ibid., p.1086). Este “significado real” só viria na quinta etapa. 4. A quarta etapa: comércio internacional, desequilíbrio externo e desenvolvimento econômico Esta etapa é marcada pela passagem de Prebisch pela Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), na qualidade de seu Secretário Geral. Cobre o período situado entre 1963 a 1969. É através da UNCTAD, que tem sua sede em Genebra (Suíça), que as idéias de Prebisch ultrapassam as fronteiras da América Latina: “A Quarta etapa, relacionada com o meu trabalho na UNCTAD, se orientou para os problemas da cooperação internacional. Esta nova responsabilidade resultou muito pesada, porém, ao mesmo tempo, muito estimulante. Não tinha tempo para as lucubrações teóricas, de modo que tive de recorrer as minhas idéias da época da CEPAL. Apesar das grandes diferenças que separavam os países da periferia mundial, havia muitos denominadores comuns. Isto me permitiu apresentar um conjunto completo de recomendações de RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO política econômica que constituíram o ponto de partida da discussão entre os governos membros.” (PREBISCH, 1982, p.1086) Nesta etapa na UNCTAD são publicados dois informes, que foram apresentados respectivamente nas Conferências de Genebra (1964) e Nova Delhi (1968). Pode-se ainda classificar como sendo um trabalho representativo desta fase o livro “Transformação e desenvolvimento. A grande tarefa da América Latina”, relatório encomendado à Prebisch pelo BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), publicado em 1970. Este texto é o seu escrito mais importante como diretor do ILPES (Instituto Latino-Americano de Planejamento Econômico e Social – período 1970-72). No primeiro informe, Prebisch trata de formular uma nova política comercial em prol do desenvolvimento econômico, que visava evitar o seu estrangulamento externo. O propósito imediato desta nova política comercial era corrigir o déficit virtual do comércio. Dentro do tema básico da conferência, as idéias iriam girar em torno do balanço de pagamentos e seu desequilíbrio nos países em desenvolvimento. A explicação para este desequilíbrio era a já conhecida elasticidade-renda da demanda. Prebisch enaltece o comércio multilateral e condena o bilateralismo. Voltava a afirmar que a etapa simples de substituição de importações havia-se esgotado, sendo necessários maiores mercados para substituir bens de maior complexidade. A substituição deveria atingir o frete (através de uma frota marítima própria) e os seguros, posto que estes dois elementos constituíam um déficit virtual no balanço de pagamentos. No entanto, advertia que o desenvolvimento econômico deveria ser buscado tanto no mercado interno como no mercado externo. Estes dois mercados não eram excludentes entre si. Desta forma, a substituição de importações deveria ser conjunta com uma política de exportações industriais. No segundo informe, Prebisch propõe uma estratégia global de de- senvolvimento, que significava estender à periferia a nova ordem do comércio internacional, onde só os países industrializados faziam parte. Nova ordem no sentido de uma maior liberalização do comércio mundial. O objetivo da estratégia era resolver os problemas que impediam acelerar o ritmo de desenvolvimento econômico e social. Os problemas eram: desequilíbrio externo, déficit de poupança e vulnerabilidade externa. As medidas para atacar o desequilíbrio estavam no plano comercial e no plano da cooperação financeira. A estratégia era global porque abarcava medidas tanto nos países periféricos como nos desenvolvidos. Para Prebisch, desenvolvimento é mudança e disciplina. Mudança para facilitar o acesso a tecnologia e disciplina para aproveitá-la com eficácia e distribuir seus frutos eqüitativamente. Quanto ao relatório do BID, este tinha a proposta de convencer da necessidade e da possibilidade de acelerar o desenvolvimento. Para isso, era necessário transformações de estruturas e de atitudes: estrutura agrária (posse do solo), estrutura industrial (compartimentos fechados e proteção), estrutura do poder e estrutura do Estado. Segundo Prebisch, o relatório do BID era voltado para a ação. Fundamentava suas observações sobre uma sólida base de dados, que possibilitava afirmar, entre outras coisas, que os países latino-americanos que não tiveram problemas de balanço de pagamentos foram os que menos adotaram a política substitutiva. Ou seja, a substituição de importações se deu por medidas circunstanciais nos demais países, e não por uma política deliberada. Neste relatório, Prebisch escreve sobre Marx e o socialismo. Seus comentários são muito pertinentes, muito embora pudessem ter o motivo de pressionar uma maior cooperação por parte dos países desenvolvidos do ocidente. Atenta que o socialismo real foi um método de desenvolvimento e não a transformação de uma economia avançada. Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA 65 Também é neste texto que Prebisch inicia a formulação de sua Teoria da Transformação, onde os fatos poderiam levar o Estado a socializar as grandes empresas. Prebisch critica duramente o capitalismo, dizendo que qualquer sistema que não corrigisse a insuficiência dinâmica e não distribuísse eqüitativamente a sua renda, teria perdido a justificativa de se prolongar. Enxerga a necessidade da concorrência tanto no mundo capitalista como no socialista. O caráter multidisciplinar da análise se acentua. Diz que o desenvolvimento não se defrontava apenas com problemas econômicos, mas também com problemas políticos, sociais e culturais. Assim, um sistema de idéias não poderia abarcar somente o econômico, pois existiam diferentes aspectos de uma mesma realidade. Quanto a insuficiência dinâmica da economia, requeria-se um grande esforço de acumulação de capital, onde as inversões deveriam ser maiores que o progresso técnico e o crescimento da população, visando absorver a população ativa. Era a favor de uma política deliberada de planejamento familiar, reconhecendo, contudo, a delicadeza do tema. Prebisch apresenta um estudo do CELADE (Centro Latino-Americano de Demografia) que provava que quanto menor o nível de renda, menor era a educação e maior era a natalidade. O interesse pelo desemprego estrutural continua muito grande. O próprio conceito de insuficiência dinâmica da economia evidencia este aspecto. Para Prebisch, o avanço da técnica possibilitaria ao homem dedicar-se menos tempo ao trabalho, abrindo espaço para outras “ Prebisch se aproxima do socialismo e seus trabalhos passam a conter uma forte ligação com a estrutura social. 66 ” atividades não-econômicas. No entanto, a tecnologia era ambivalente, podendo servir para o bem ou para o mal: tudo dependia da aptidão do homem para endereçá-la da melhor maneira. 5. A quinta etapa: uma teoria da transformação – a síntese entre liberalismo e socialismo Com a entrada de Prebisch na “Revista de la CEPAL” em 1976, no cargo de Diretor-Geral, inicia-se a quinta etapa de seu pensamento, que dura até sua morte em 1986. Diz que longe de atribuições executivas depois de anos, pôde dedicar-se dentro da revista a melhorar a sua interpretação do capitalismo periférico: “Para tal fim, revisei com grande espirito crítico minhas idéias anteriores. Havia nelas alguns elementos válidos, porém distavam muito de constituir um sistema teórico. Cheguei a conclusão de que, para começar a construir um sistema, era necessário levar a perspectiva mais além da mera teoria econômica.”(PREBISCH, 1982, p.1087) Nesta última etapa, Prebisch elabora a sua “Teoria da Transformação” através de artigos publicados na “Revista de la CEPAL”, no período de 1976 a 1980. Trata-se de uma fase extremamente rica e de grande produção, apesar de sua avançada idade. Prebisch se aproxima do socialismo e seus trabalhos passam a conter uma forte ligação com a estrutura social. O ponto culminante deste período é o lançamento do livro “Capitalismo periférico. Crise e transformação” de 1981, que condensa e ordena as idéias publicadas nos artigos anteriores. Para Gurrieri (1982), esta quinta etapa marca o convencimento de Prebisch da impossibilidade de alcançar no sistema vigente os objetivos do desenvolvimento, dedicando grande parte deste seu último livro a apresentar os argumentos que justifiquem essa sua opinião. O conceito dominante nessa etapa é o excedente econômico. Tratase de parte dos frutos da produtividade que não é transferida propor- Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA cionalmente à força de trabalho e nem resulta na baixa dos preços, mas sim apropriada pelos proprietários dos meios produtivos. Com o avanço do processo democrático, a força de trabalho adquire poder político e sindical, passando a aumentar a sua parcela do incremento da produtividade, em detrimento do excedente. Este poder de apropriação não provém do jogo espontâneo da economia, mas das relações de poder oriundas da estrutura social. Para restabelecer a dinâmica do sistema, os proprietários dos meios produtivos elevam os seus preços. Esta inflação é classificada como social, diferente da inflação passada, onde a oferta superava a demanda. Da seqüência de aumentos de preços e reajustes das remunerações para compensar as perdas, surge o fenômeno da espiral inflacionária. A inflação conduz o sistema a sua crise. O Estado, então, usando de sua força coercitiva, interrompe o processo democrático (e com isto o poder político e sindical da força de trabalho), restabelecendo o excedente. Daí a razão da ruptura entre o processo democrático e o processo econômico: para continuar com este último, dever-se-ia sacrificar o primeiro. Para harmonizar a dinâmica do sistema econômico com o regime democrático, Prebisch “esboça” uma Teoria da Transformação. Seria uma síntese entre socialismo e liberalismo. Socialismo, enquanto o Estado regularia democraticamente a acumulação e a distribuição. Liberalismo, enquanto consagraria essencialmente a liberdade econômica do que produzir e do que consumir. O Estado deveria estabelecer uma disciplina de acumulação e distribuição, de forma compatível com a liberdade econômica no jogo de mercado. Mas por que transformar o sistema? Diz Prebisch que após longa observação se convenceu de que as grandes falhas do desenvolvimento latino-americano careciam de solução dentro do sistema vigente, cabendo transformá-lo. O ataque às teorias neoclássicas se torna o motivo de muitos artigos. Diz Prebisch que os neoclássicos, RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO por descartarem de seus raciocínios os elementos importantes da realidade social, política e cultural, bem como o desenvolvimento histórico das coletividades, sistematizaram e desenvolveram seus raciocínios no vácuo, fora do tempo e do espaço. Estas teorias estavam longe de explicar o desenvolvimento tanto da periferia como dos centros. O sistema tendia para a crise e não ao equilíbrio dinâmico (como supõe a teoria neoclássica). Confessa que se deixou seduzir, em sua juventude, pelos raciocínios neoclássicos e que lhe custou um grande esforço intelectual para superá-los. A renda não se distribui pela produtividade marginal de cada fator, e sim é resultado das relações de poder que emergem da estrutura da sociedade. As forças do mercado não alocam da melhor forma os recursos produtivos, vide a contaminação e deterioração do meio-ambiente e a exploração irracional de seus recursos naturais esgotáveis. O mercado também não eleva espontaneamente a acumulação de capital. O mercado tem sua importância, mas está longe de ser o supremo regulador da economia: não possui horizonte temporal e nem horizonte social. Apenas através da transformação do sistema, o mercado teria, além da eficácia econômica, a eficácia social e ecológica. A moeda, por sua vez, não é neutra como afirmam os neoclássicos. É um elemento decisivo na desigualdade social. A tese acerca da neutralidade da moeda radicava na renúncia em reconhecer a estrutura social e suas mutações. Afirma Prebisch que as idéias de Milton Friedman não são novas, mas sim uma divulgação inteligente do pensamento marginalista do século XIX. O próprio sistema de preços não é privativo dos raciocínios neoclássicos, tendo existido durante longos séculos de pré-capitalismo. A grande divulgação, até certo ponto deliberada, das idéias neoclássicas responde, em grande parte, ao jogo de interesses. A propagação destas teorias não estão inspiradas em uma genuína exaltação científica. Em suma: os centros não estão preocuRDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO pados em resolver os problemas da periferia, mas apenas em participar da apropriação de seu excedente, através das empresas transnacionais, com sua reconhecida superioridade econômica e técnica. Os centros possuem ideologias que são favoráveis a seus interesses e não aos da periferia: “Os grandes (centros) nunca violam seus princípios econômicos, se não lhes servem bem, simplesmente os trocam!” (PREBISCH, 1978, p.287). Para Prebisch, aceitar tais ideologias é um retrocesso intelectual. As teorias do comércio e a divisão internacional do trabalho retardaram historicamente a industrialização da periferia. Apesar de sua industrialização, a periferia não deixou de ser periferia. Esta deveria buscar o seu próprio caminho. Após esta fase de elaboração da Teoria da Transformação, levada a cabo por artigos longos e profundos, Prebisch escreve uma última série de artigos relativamente curtos (de 1981 a 1986), onde se mostra preocupado com a inflação e a dívida externa dos países latino-americanos. Sugere medidas conjunturais urgentes e outras estruturais baseadas em seus conhecidos diagnósticos da periferia. A primeira prioridade dos países em desenvolvimento deveria ser o aumento do ritmo de crescimento, e não o pagamento da dívida externa. Nesta sua quinta etapa, Prebisch não abandona o seu sistema centroperiferia. Reconhece que a polêmica sobre a dependência nos anos 60, enriqueceu este sistema. A contribuição mais importante, segundo Prebisch, foi a incorporação das relações de poder nesta análise. Para ele, o sistema centro-periferia não tinha o desígnio de se tornar uma teoria própria, diferente do pensamento dos centros, apenas requeria que os fenômenos do capitalismo periférico se inserissem em uma teoria global do desenvolvimento capitalista. Quanto a industrialização, diz que a substituição de importações não é estática, pois a diversificação da demanda impõe substituir novos produtos. Até o seu último texto (1986), Prebisch continua acreditando na substituição de importações e “ Os grandes centros nunca violam seus princípios econômicos; se não lhes servem bem, simplesmente os trocam! ” nas exportações de manufaturas como forma de superar o desequilíbrio externo. Continua também a sua eterna persistência à cooperação econômica internacional, buscando novas formas de cooperação e convivência internacional, além de fórmulas que assegurassem as vantagens do intercâmbio recíproco entre centro e periferia. Ou seja, Prebisch não renega nenhum de seus principais argumentos e pontos de luta do passado. 6. Conclusão: evolução e continuidade A preocupação fundamental e objetiva de Prebisch foi sempre o desequilíbrio do balanço de pagamentos. Antes de suas etapas, Prebisch se defrontou com problemas reais (Figura 1) de desequilíbrio externo na Argentina, seja como subsecretário da Fazenda (1930 a 1932), seja como Diretor Geral do Banco Central (1935 a 1943). Ao dar início às etapas de seu pensamento, foi tentando compreender teoricamente os motivos que levaram a economia Argentina, a princípio, e a latino-americana, posteriormente, ao desequilíbrio das contas externas. O ciclo econômico, a elasticidade-renda da demanda e o baixo coeficiente de importações dos Estados Unidos, foram as principais respostas encontradas por Prebisch para explicar o problema do balanço de pagamentos. A deterioração dos termos de intercâmbio embora faça parte das respostas para o desequilíbrio externo, tem sua explicação também no ciclo econômico (fator conjuntural) e na elasticidade-renda da demanda (fator estrutural). Foi através do ciclo econômico que Prebisch deslumbrou o sistema Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA 67 de relações internacionais denominado centro-periferia, designando os Estados Unidos como “centro cíclico” e os países latino-americanos como “periferia” do sistema econômico mundial. Ou seja, o movimento cíclico da economia foi a origem deste sistema centro-periferia. Ao identificar os elementos que compõem este sistema, os centros industriais do capitalismo e os países periféricos de produção primária, e enxergando que o desequilíbrio externo da periferia provinha de seu tipo de atividade (a produção primária), Prebisch não teve dúvidas em apontar a industrialização como o principal caminho de solução. A sua conclusão tinha como respaldo empírico, o surto industrial que se iniciou em razão da grande depressão dos anos 30. Portanto, a periferia do capitalismo mundial só alcançaria o seu desenvolvimento econômico com a industrialização através da substituição de importações para o mercado interno, sem desprezar, contudo, as exportações primárias. Posteriormente, no início dos anos 60, verificou que apenas a substituição de importações era insuficiente, cabendo também incorporar ao processo industrializador as exportações de manufaturas. O sistema centro-periferia seria a base teórica dos raciocínios de Prebisch sobre os problemas do desenvolvimento. Sobre esta base, buscaria os meios pelos quais poderia atingir os seus objetivos. O primeiro meio era a industrialização, já discutida no parágrafo anterior. O segundo meio era o comércio internacional. Buscando a criação de um mercado comum latino-americano (de onde surgiria a ALALC) e lutando pelo multilateralismo e melhores condições de troca no seio da UNCTAD, Prebisch via a expansão do comércio mundial como um pré-requisito essencial para o desenvolvimento da periferia. O terceiro meio viria com a sua Teoria da Transformação, onde, pela transformação do sistema, se buscaria novas formas de acumulação e distribuição da renda. Estes três meios foram os fundamentais dentro de seu pensamento, porém não foram os únicos. A refor- 68 Figura 1 – Plano geral do pensamento de Raúl Prebisch. Fonte: Os autores. ma agrária, a política de cooperação internacional (técnica e financeira) e a planificação do desenvolvimento, eram também meios constantemente mencionados. O objetivo final, contudo, de todas estas medidas (ou meios) era o desenvolvimento. Portanto, o comércio internacional e a industrialização não eram um fim em si mesmo, como colocam alguns estudiosos. O comércio e a indústria eram, sim, dois dos meios pelos quais se poderia chegar ao verdadeiro fim: o desenvolvimento econômico e social da periferia, em geral, e da América Latina, em particular. Apesar dos demais meios, a industrialização foi a pedra angular da política de desenvolvimento preconizada por Prebisch e a CEPAL. Cabia à indústria: modificar a estrutura produtiva da periferia, reduzir sua dependência externa, ampliar os benefícios do progresso técnico e absorver a população desocupada. Nota-se, entretanto, que a análise industrial não era independente da análise sobre o comércio; havia uma ligação entre comércio e indústria, entre maiores mercados e redução de custos (pelo aumento da escala de produção), visando a concorrência com os centros. Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA Quanto ao conceito substituição de importações, Prebisch diz que nunca existiu um “modelo de substituição de importações” dentro da CEPAL. Não admite a substituição como um “modelo”, mas sim como um “processo”. A CEPAL apenas identificou este “processo de substituição” que se iniciou nos anos 30. Já a forma da análise de Prebisch adquire um grande significado dentro de seu pensamento por descortinar novos elementos que se mantinham encobertos pela estreita análise econômica. Por isto, esta análise possui uma evolução em sentido multidisciplinar no transcorrer das etapas. Apesar de reconhecer a necessidade de outras formas de análise em texto de 1945, Prebisch, ao longo de suas duas primeiras etapas, trata os fenômenos por uma ótica estritamente econômica, motivo posteriormente alegado por ele próprio como o causador da não preocupação com a distribuição de renda: acreditava que o desenvolvimento por si mesmo traria a distribuição. Quanto engano! Nas etapas seguintes, Prebisch passa cada vez mais a englobar outras áreas do conhecimento para poder compreender melhor os problemas da periferia. A RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO sociologia seria a principal contribuição advinda da ótica multidisciplinar de Prebisch. Através dela pôde enxergar a questão da distribuição de renda (terceira etapa) e descobrir as relações de poder oriundas da estrutura social que determinavam tal distribuição (quinta etapa). A quinta etapa é o período de maior ênfase sociológica: passa a encarar o sistema capitalista nunca como um “sistema econômico”, mas simplesmente como um “sistema”, posto que como “sistema” englobava o plano político, social, cultural e econômico. Sobre este aspecto, dizia em 1979, no prefácio do livro de Otávio Rodrigues, que as idéias elaboradas pela CEPAL não respondiam a um plano preconcebido: “Foram surgindo com o correr dos anos, à medida que íamos avançando no reconhecimento do desenvolvimento latino-americano e de sua vinculação com os grandes centros industriais”(PREBISCH, 1979, p.07). Segundo Flechsig, “As teorias da CEPAL, sob a influência de Prebisch, constituíram o primeiro sistema relativamente independente e coerente de economia política na América Latina, não representando nenhuma recepção mecânica das doutrinas econômicas burguesas elaboradas para os países capitalistas desenvolvidos (...)” (FLECHSIG, 1991, p.95). Para Gurrieri (1982), o sistema centro-periferia se tornou um paradigma: um marco inicial para o desenvolvimento de outras idéias, fora e dentro da CEPAL. Em 24 de abril de 1986, cinco dias antes de sua morte, Prebisch participa, no México, do XXI período de sessões da CEPAL. Em sua exposição, aponta para uma necessária renovação do pensamento da CEPAL diante dos enormes problemas por que passava a América Latina. Assinala que eram os centros que iriam definir a intensidade da política substitutiva e insiste na reforma do sistema monetário internacional. Percebe-se, assim, que mesmo admitindo o esgotamento do processo de substituição de importações já no início dos anos 60, Prebisch continuava a acreditar em tal processo até a sua última exposição pública. RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO Bibliografia FLECHSIG, S. (1991). Em memória de Raúl Prebisch (1901-1986). Revista de Economia Política, São Paulo, vol.11, n.41, janeiro-março. FLOTO, E. (1989). 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O trabalho ilumina três aspectos específicos, mas articulados, a saber: a imigração ocorrida, a fragmentação do espaço nacional e a crescente concentração de renda desde então. Palavras-Chave: desenvolvimento econômico; México; imigração; espaço; concentração de renda. Abstract The paper intends to give a general idea of what is happening in Mexico since the eighties, trying to stress the perverse effects of the regional integration process. It puts some specific focus on three interrelated subjects: the immigration that had happen, the internal space fragmentation and the growing of income concentration, since them. Key words: Economic development; Mexico; immigration; space; income concentration. Introdução Os recentes acontecimentos eleitorais do México trazem de volta o país para o cenário mundial. As incertezas decorrentes de uma vitória contestada no judiciário e nas ruas pelos partidários de López Obrador evidenciam não apenas a fragilidade institucional do país, mas, sobretudo, uma profunda insatisfação da população com o status quo. A nossa intenção aqui é trazer à reflexão alguns aspectos da realida- 70 de econômico-social e ambiental do país, no sentido de melhor compreender os acontecimentos presentes. Este artigo teve por inspiração uma conferência, proferida pela Profª Maria da Conceição Tavares e organizado pela Cepal, em julho de 2000 na UFRJ, quando assinalou que os intelectuais da América do Sul não deveriam excluir o México de suas preocupações, uma vez que o que ali se desenrolava, principalmente os avanços do Tratado de Livre Comércio com os Estados Unidos, teriam efeitos substantivos para o restante da América Latina. O México, desde os princípios dos anos 80, viveu uma crise econômica que freou o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) que resultara das políticas anteriores de Importação via Substituição de Importações (ISI), como de resto em toda a América Latina. Os colapsos de 1982 e o de 1994 têm natureza diversa, mas o elemento comum foi a excessiva dependência do financiamento externo. Na primeira crise alguma infra-estrutura foi realizada e certa modernização ocorreu no setor industrial, apesar do descompasso entre a envergadura de muitos projetos e a capacidade de gerar divisas para pagar os empréstimos contraídos. Já na segunda crise, a entrada de capital especulativo, do centro para periferia, buscando o diferencial de juros que então se praticava fez ampliar, no decorrer do processo, o déficit em conta corrente, o estoque da dívida em moeda estran- Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA geira e estreitava-se a estrutura produtiva com desestimulo às atividades exportadoras3. Para reativar a economia do País, com a crise cambial de 1994 adotouse então uma política de corte neoliberal, baseada em políticas de ajuste estrutural recomendadas pelos organismos de Bretton-Woods: ajuste fiscal drástico, geração de superávits nas contas públicas, ampla abertura comercial, descompressão financeira e livre movimento de capitais, uma intensa privatização das empresas estatais, a desregulamentação, a eliminação dos subsídios e incentivos. Em 1994, em plena crise e com a assinatura do Tratado de Livre Comércio –NAFTA, o País passa a viver uma forte vinculação, comercial e em última instância, econômico – política, com os Estados Unidos da América. Como é de praxe na América latina, o ajuste estrutural se faz a partir de programas de estabilização que incluem desvalorização da moeda, liberação de preços e austeridade fiscal. Por outro lado, práticas estruturais de redução do gasto público, eliminando subsídios e privatizando ou eliminando programas sociais e ativos públicos. Para Lurdes Beneria (1992; p.94), entre as estratégias principais que os setores sociais de baixa renda implementavam para enfrentar a crise, estavam: incorporar às atividades remuneradas mulheres , crianças e idosos; mudanças radicais no orçamento doméstico; modificação 1 Este artigo é dedicado à economista Maria da Conceição Tavares 2 Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política – UFPE.. Pós-Doutorado na Université Paris XIII – Villetaneuse; Doutor em Ciências Sociais, Unicamp -São Paulo. 3 Cf. Belluzzo, 1995. RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO dos hábitos de consumo e intensificação do trabalho doméstico. Em estudo que realizou para a cidade do México, 70% das habitações compravam menos comida, roupa e sapatos, do que antes das políticas de ajuste. Os gastos diários de transporte, e refeições breves, se reduziram ao mínimo. Aumentou sensivelmente as atividades do setor informal; foram intensificadas as migrações para o Norte do país. Não obstante a queda no nível do padrão de bem estar, a mortalidade infantil cai no México, desde os anos 40, tendência esta que se acelerou a partir dos anos 80 e, particularmente entre 1990-94, com programas para evitar a morte por diarréia. Em 2004, dez anos após a crise, a economia mexicana passou a apresentar o seu pior desempenho, considerando os últimos 50 anos. Nos três primeiros anos do governo do presidente Vicent Fox, que em 2000 pos fim a 71 anos de “reinado” do Partido Revolucionário Institucional, o crescimento do Produto Interno Bruto não passou de 1,9% ao ano, o que corresponde a 0,63% ao ano. Os resultados de suas políticas econômicas monetaristas fizeram aumentar o desemprego e o crescimento do setor informal. O governo se debateu com casos de corrupção e em termos políticos, a ausência de maioria no Congresso por parte do partido do governo, amplia suas fragilidades. No conjunto, é um governo que não se pode intitular de vitorioso, longe disso. 2. Impactos do NAFTA sobre o México Com o advento do NAFTA4 falava-se que as imigrações freqüentes e constantes para os Estados Unidos se reduziriam. O contrário tem ocorrido, apesar de uma vigilância cada vez maior na fronteira. Segundo cálculos estatísticos, a população de imigrantes mexicanos não autorizada no território dos EUA duplicou entre 1900 e 2000 e o maior crescimento deu-se justamente a partir de 1994, quando formaliza-se o Acordo. Na verdade, este processo devese não só à crise financeira do País no período, mas também pela reesRDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO truturação industrial que precedera e seguira a aprovação do Tratado, bem como à permanente instabilidade e impossibilidade do México de criar postos de trabalho para os mais de um milhão de novos ingressos no mercado de trabalho a cada ano. Outro elemento que deu força a este processo de imigração foi o auge da economia dos EUA a partir de meados dos anos 90, quando passou-se a falar do estabelecimento de uma “Nova Economia”, bem como às redes de imigração que vinculam os dois países. ou seja, passando de US$ 5 bilhões para US$ 16 bilhões5. O México está vivendo um processo contínuo de migração rural e de urbanização. Em 1970, 41,3% da população vivia em zonas rurais e já em 1990 este número cai para 28,7% e atinge 25,4% em 2000. O emprego agrícola vem despencando.6 Calcula-se que em 2000 havia 4,7 milhões de imigrantes mexicanos não autorizados nos EUA, vivendo em estados americanos como Carolina do Norte, Kentucky, Minnesota e Arkansas, estados que tiveram um incremento de mais de 1.000% entre 1990 e 2.000 de população originária do México. Estima-se que 30% dos migrantes das zonas rurais do México estavam vivendo nos EUA em 2000, quando em 1994 representavam não mais que 19%. Figura 1 Crescimento da População nascida no México vivendo nos EUA 1960-2002 Fonte: Análise do Instituto de Política de Migração sobre os dados do censo de 2000 e: Campbell, Gibson e Emily Lennon, Historical Census Statistics on the Foreign-Born Population of the United States: 18501990 (Washington DC, US Census Bureau, 1999). Em termos de comércio e de investimentos diretos externos (IDE), os números excederam em muito as projeções, com os investimentos provenientes dos EUA se ampliando entre 1994 e 2001 em cerca de 220%, Figura 2 – Migração das Zonas rurais do México para os Estados Unidos 1980-2002 Membros da Unidade Familiar – 1980=100 Fonte: Análise dos dados da pesquisa Nacional de famílias rurais em 2002. Em: J.Edward Taylor e George Dyer, Nafta, Trade and Migration, 2003. Tabela 1 Investimento Direto Externo no México 1994-2001 Fonte: Secretaria de Economia. México (a)– Janeiro-Setembro 4 Também se utilizará o homônimo em espanhol TLCAN. 5 Sandra Polaski et al, ,p.46. .In : AUDLEY, John (2004) 6 Papdemetriou et al, p.49. In: AUDLEY, John (2004). Todas as informações sobre imigração para os EUA foram extraídas deste trabalho. Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA 71 A crise da moeda mexicana em 1994 coincidiu com o início do NAFTA e os resultados desta crise foram, segundos dados oficiais, uma desvalorização cambial de mais de 50%, uma queda do PIB em 6,2% em relação ao ano anterior e o aumento do desemprego urbano total de 3,6% em 1994 para 6,3% em 1995. Além disso, ocorreu um grande movimento de trabalhadores para o setor informal. Os salários reais caíram substantivamente e os empregos formais apresentaram queda acentuada. Em termos de agricultura o NAFTA não impediu, muito ao contrário, a migração rural no México. Havia a esperança de que os investimentos realizados em frutas para exportação e vegetais de alto valor, trariam mais emprego às zonas rurais, o que chegou a ocorrer apenas parcialmente, pois o emprego do setor agropecuário como um todo teve uma queda sistemática. O México ampliou suas importações de grãos dos EUA, sobretudo o milho, cultura tradicional no País, um produto que absorve mão-de-obra intensiva e que tem baixa produtividade vis-àvis dos EUA. O México registrou um déficit comercial líquido em produtos agrícolas com os EUA desde que o TLCAN entrou em vigor, à exceção de 1995, quando da enorme desvalorização do peso tornou a maioria dos produtos orçados em dólar muito caros para os mexicanos. Este déficit se traduziu em perdas de postos de trabalho na agricultura. Em 1993 o México empregava 8,1 milhões de mexicanos na agricultura. Em fins de 2002 este número já batia as portas dos 6,8 milhões, o que representou uma perda de 1,3 milhão de postos de trabalho. Hoje, grande parte das famílias rurais depende da remessa de familiares enviadas desde os EUA. Em 2002, estas chegaram a US$9.800 bilhões e US$ 12 bilhões em 20037. Com relação ao emprego urbano, as crises de 1982 e a de 1994 acentuaram a redução dos trabalhos assalariados, com aumento de postos no setor informal. As plantas das montadoras – ou maquilas agregaram em torno de 72 Figura 3 – Emprego mexicano na Agricultura – 1993 -2002 Fonte: INEGI/STPS, Pesquisa Nacional de Emprego Nota: a– não havia dados para 1994 800.000 postos de trabalho entre 1994 e 2001. Em 2003, já sofrendo nova crise, 250.000 postos foram perdidos. Atualmente as maquiladoras empregam 550.000 pessoas (2004), produzindo praticamente para a exportação ao grande vizinho do Norte, quando o México passou a ser o segundo exportador para os EUA depois do Japão. O setor informal da economia representou em 2004, 46% dos postos de trabalho no México, fenômeno de base estrutural que se espalha pela América Latina. Os salários reais de hoje são inferiores aos que eram pagos anteriormente ao Tratado e se encontram abaixo do nível de 1980. Esta queda está associada em grande medida ao abandono pelo estado de políticas sociais estruturadoras e às crises e desvalorizações bruscas, tanto em 1982 quanto em 1994. Este padrão atinge também os trabalhos mais qualificados, conforme Sandra Polaski8, pois quer os trabalhadores com título universitário, quer aqueles com pós-graduação tiveram seus salários em 2000 com valores inferiores àqueles de 1993. Tudo isto apesar do aumento de produtividade do trabalho desde que o TLCAN entrou em vigor. A entrada da China na Organização Mundial do Comércio veio aumentar a oferta de mão-de-obra Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA 7 8 9 barata em termos mundiais e a competição na alocação das indústrias maquiladoras, quando as empresas transnacionais podem recorrer e fazer exigências adicionais, ampliando ainda mais o problema do emprego e dos baixos salários no México. Todo este processo só poderia acarretar desigualdade em termos de renda, que aumentou no México após o NAFTA, pois comparando com o período anterior, os 10% das famílias de mais alta renda tiveram ampliados a sua fatia da renda nacional, ao passo que os 90% perderam participação ou não experimentaram nenhuma mudança. A desigualdade regional no interior do País acentuou-se, revertendo uma tendência de longa data no sentido da convergência das rendas regionais. Quanto aos impactos ambientais acarretados após 1994, o estudo de Scott Vaughan9 analisa as alterações provocadas pelo incremento do valor de comércio agrícola entre o México e os EUA e seus efeitos em termos ambientais. As exportações de trigo, por exemplo, dos EUA para o México aumentaram 182% desde 1992, o que contribuiu por sua vez para uma mudança de composição de 80% na produção de variedade de trigo na região produtora do produto no México. Durante o último decênio foram registrados aumentos do nitrogênio e outros produtos agro-químicos nas águas subterrâneas da região de Sonora, bem como de outras regiões agrícolas comerciais. As exportações de milho dos EUA para o México aumentaram 240% desde 1992 o que pode trazer risco ambiental para as variedades tradicionais de milho mexicano. O milho transgênico foi introduzido na região de Oaxaca entre outras, apesar da proibição imposta no México em 1998, já que o País conta com uma variedade de mais de 40 tipos de milho, risco ampliado que acarreta a contaminação genética sobre as variedades tradicionais. Também tem sido ampliada a importação de carne bovina e suína In Sandra Polaski,p.22, op.cit. Op.cit,p.25 Scott Vaughan et al. In: AUDLEY, John 2004). RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO dos EUA para o México, quando a produção mexicana de pecuária pode satisfazer a demanda doméstica. Ora, as vantagens norte-americanas na agricultura são muitas, desde uma legislação protecionista (Bill-Farm), a maior capacidade tecnológica, os índices superiores de produtividade, sem falar das taxas de juros sem comparação àquelas vigentes no México. Do México para os EUA aumentaram substantivamente as exportações de vegetais e frutas frescas, como já vimos anteriormente, ampliando no País o consumo de nitrogênio e anti-pragas. O problema maior é que o México é um dos países mais afetados pela falta de água do hemisfério ocidental e sua expansão da exportação de vegetais e frutas frescas é a principal causa antropogênica da falta de água. Segundo Vaughan, calcula-se que a exportação de tomates do México aos EUA representa uma transferência equivalente a 162 milhões de galões de água doce aos EUA a cada ano, desde 1993 10 . Até o presente, nenhuma medida preventiva ambiental, dentre aquelas incorporadas ao TLCAN ou em acordos paralelos para o meio ambiente foi adotada. Este é um fenômeno que na literatura econômica é conhecido como greenfield, ou seja, o México funciona para os EUA como uma região de baixo nível de sindicalização e de rarefeita legislação ambiental, ampliando o nível de acumulação das grandes transnacionais que se beneficiam do status quo. Para concluir este capítulo, fica evidente que o TLCAN acelerou e aprofundou significativamente as transformações estruturais no México, sem que o processo viesse a acarretar incorporação dos trabalhadores e melhores condições de vida e trabalho, reduzindo os salários e degradando o meio ambiente. 3. A dinâmica do espaço Mexicano A Cidade do México, capital dos Estados Unidos Mexicanos é o principal centro industrial, demográfico, administrativo e cultural do país. Possui uma vasta rede de vias de RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO Figura 4 – Mapa do México. Fonte: S.E.M. comunicação. Sua indústria é altamente diversificada e desenvolvida. Entre elas, destacam-se as metalúrgicas, montadoras de automóveis, químicas, alimentícias, têxteis, petrolíferas e eletroeletrônicas. Hoje considerada uma das maiores cidades mundiais do ponto de vista populacional, com uma população total de mais de 13 milhões de habitantes, ocupa cerca de 13% da população total mexicana, mas sua influência, sua dinâmica econômica extrapola em muito esta sua superioridade populacional. Entre os anos de 1930 e 1950 a produção manufatureira da Cidade do México correspondia a 30% do total nacional. Seguiam os estados de Veracruz e Nuevo Leon, com 10% e 8 % respectivamente. A região fronteiriça com os Estados Unidos, sobretudo o Texas, passou a ter importância desde os fins dos anos 30. Entre 1945 e 1950, os estados de Nuevo Leon, Coahuilia, Chihuahua e Tamaulipas perfaziam 20% da produção manufatureira do país. Outros estados, além dos assinalados, como o estado do México, Puebla e Jalisco também ganharam importância industrial nos 1950. Até o início da década de 70, portanto, o eixo econômico industrializado teve como pólo a Zona Metopolitana do Vale do México. Esta concentração industrial entre 1945 e 1970 se ampliou, passando de 32,8% para 48,6% do total nacional. A partir da Cidade do México, então, se estendia uma rede de cidades que seguia em direção ao Norte do País, com eixos secundários em Guadalajara11 e Monterrey12 e com os eixos terciá- 10 Vaughan, idem, p. 67 11 Guadalajara, cidade do centro-oeste do México, capital do estado de Jalisco, com 2.846.720 habitantes, situada próxima ao rio Grande de Santiago. O lago de Chapala, o maior do México, encontra-se a 38 km ao sul. Guadalajara se estende sobre uma fértil região agrícola e é também um importante centro comercial. Entre os principais produtos manufaturados, encontram-se têxteis e artigos de couro. 12 Monterrey, cidade no nordeste do México, capital do Estado de Nuevo León, com 2.521.697 habitantes. É uma das maiores e mais importantes cidades do país, possui indústria pesada de ferro e aço, além de cobre, chumbo e zinco, e processadora de prata. Fabrica produtos químicos, vidro, materiais de construção, papel, cerveja, alimentos industrializados e têxteis. Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA 73 rios de Puebla (região central); Leon (região nordeste, bem como as cidades portuárias de Veracruz ( golfo oriental) e Tampico (golfo nororiental). Como afirma Martinez Yllescas (2000: 83), esta conformação histórica e geográfica criou um “padrão” piramidal de crescimento industrial que se justapõe à configuração da rede nacional de transporte: (...) desde la consolidación de la red ferrroviária nacional em 1910, pasando por el impulso de las carreteras y autopistas desde los años treinta, hasta el início de la década de los setenta, la composición de las principales 25 ciudades más importantes del país se mantuvo, sorpreendentemente inalterada. A dinâmica da concentração regional mexicana resulta ainda dos investimentos públicos em infra-estrutura urbana, que acompanhou esta lógica acima apontada. Durante a etapa da política de substituição de importações no país, a alta concentração da atividade econômica nas três principais cidades era resultado das economias internas de escala, aproveitando-se das vantagens de redução dos custos de transporte e economias de aglomeração. Com o processo de abertura, as diferenças foram ampliadas, porque as regiões com infrra-estrutura deficientes, mão-de-obra de baixa qualificação, não foram capazes de se engatar ao novo modelo. A Zona Metropolitana de la Ciudad de México (ZMCM) apresenta indicadores de bem estar superiores à média nacional, não obstante estes dados muitas vezes escondem a situação de concentração de renda e, na base da pirâmide social se encontram significativos setores que vivem na pobreza, em condições de insalubridade e que não têm acesso aos cuidados médicos. Nestes “bolsões”, tão característicos e numerosos em toda a América latina, há forte incidência de enfermidades graves, que se somam aos efeitos da violência do sistema, que atinge, sobremaneira, os grupos de menor renda. Não é por menos, que em certos países da região a violência por causas externas passou a ser tida como o segundo fator de causa mortis entre 74 a população, logo em seguida das doenças coronarianas (SAINT MARTIN, 1997). Segundo Blanco e López (1995), que analisaram a heterogeneidade urbana e o desenvolvimento das desigualdades de condições de vida na Cidade do México, a transição de uma política social de bem estar para uma política social de mercantilização e de neo – previdência, as áreas rentáveis das instituições de bem estar são privatizadas, redefinindose a relação público – privada nos sistemas de proteção social e se descentralizam os problemas da federação aos estados, sem fortalecer-se as capacidades técnicas, financeiras e organizacionais para enfrentá-los, gerando iniqüidades e acelerando a exclusão de amplos setores da população. A política social passa a assumir um papel residual e, as políticas de saúde, por sua vez, restringem a ação pública a modelos assistencialistas e seletivos que são instrumentalizados a partir de “pacotes” básicos de serviços de saúde, justificados desde uma perspectiva tecnocrática de custo-benefício, onde novos atores, como as agências financeiras internacionais, Banco Mundial, BID, assumem papel protagônico. No estudo que realizaram sobre a cidade do México, estabeleceram uma tipologia de condições de vida e classificaram esta cidade, territorialmente divida em 16 distritos, em 06 categorias: i) precária ( 3 distritos); Ruim ( 3 distritos); Regular ( 04 distritos) suficientes (03 distritos) e satisfatória ( 03 distritos). Nesta classificação, o quadro de saúde também se conforma segundo esta distribuição e apresenta diferenças tremendas nos índices de mortalidade infantil, que atinge diapasão entre 16/ 1000 a 31 por mil nascidos vivos, indicadores tão fortes quanto aqueles encontrados nas regiões mais pobres do Nordeste do Brasil. Nestas zonas periféricas da grande cidade do México, portanto, se verificam processos de segregação sócioterritorial; identificam-se zonas cuja Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA 13 população convive, majoritariamente, em condições muito precárias, em áreas de exclusão. A Tabela13 abaixo sintetiza indicadores dos principais estados mexicanos em termos i) populacionais e de ii) realização econômica. Tabela 1. Posição por ordem de importância de Estados Mexicanos segundo População e PIB. Fonte: INEGI: 2000. A densidade populacional ao nível do país em 2000 era de 50 habitantes por km2. Sem dúvida no interior se observavam números bem aquém desta média. Enquanto em entidades como o Distrito Federal encontram-se 5.643 habitantes por km 2, no Estado do México são 611 habitantes por km2 e em Morelos, 313 habitantes por km2 , que embora com índices distintos sejam bem mais povoadas, em situação oposta encontra-se Chihuahua, Sonora, Campeche e Durango que têm aproximadamente 12 habitantes por km2, sendo um caso extremo a Baja California Sur, onde este indicador alcança apenas seis pessoas por Km2. Em 2000, o Produto Interno Bruto do México era de aproximadamente 574 445.1 milhões de dólares, distribuídos da seguinte maneira: setor agropecuário 4,3%: setor industrial 28%, onde as manufaturas constituem 73% de seu valor, e o setor de serviços com 67,7% . Em termos regionais, o Distrito Federal, mais os Estados do México, Nuevo Leon, Jalisco e Vera Cruz, juntos, perfaziam 54,2 % do PIB. De todo modo, a economia das maquiladoras, ao Norte do País, embora em regiões pouco populosas, como a Baja Califórnia, Chihuahua, Sonora e Sinaloa, têm relativamente, boa posição no PIB. Em anexo incluímos tabela com os indicadores de população, estrutura etária e PIB de todos os estados mexicanos. RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO 3. A Economia das Maquilas Um dos aspectos polêmicos da economia mexicana, as maquiladoras, situadas no passado apenas ao Norte e hoje também no Yucatán, têm merecido um substantivo número de estudos, sejam mais gerais e macroeconômicos, sejam estudos pontuais, tratando da questão de gênero e, mesmo, de cunho fortemente antropológico. A polêmica que se trava em torno das plataformas de exportação é de seu baixo efeito na cadeia industrial do país, sua pequena contribuição com respeito ao aporte tecnológico e à qualificação da mãode-obra. Leslie Sklair, por exemplo, afirmava categoricamente que as maquilas, na maioria dos casos, não contribuíam para um genuíno desenvolvimento do país (SKLAIR, 1989). Esta indústrias exportavam quase toda a sua produção para os Estados Unidos e não buscavam mais que 2% de seus insumos no interior do México. Do total da produção do país, os insumos para as maquilas, em 1997 e 1997 não ultrapassaram 1,2 % (KOPINAK, 1997:2). Figura 4 – Emprego nas Maquilas do México. Fonte: INEGI, Indicadores Mensais da Indústria das maquiladoras. Manuel Perlo Cohen (1987), ao se perguntar sobre os efeitos da internacionalização da economia mundial numa economia periférica como a mexicana, ressalta a explosiva urbanização durante os anos 70 que tomou conta de estados como Veracruz e Tabasco (petróleo); turismo (Cancun e Acapulco) e finalmente sobre as montadoras na fronteira RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO com os Estados Unidos. O seu objetivo foi o de descobrir que tipos de impacto regional e urbano estas transformações tiveram para o conjunto do país. Estabeleceu-se um padrão ou houve variantes? Estas regiões desenvolveram elos mais fortes com a economia internacional? O rápido crescimento urbano ficou concentrado em algumas poucas cidades, enfraquecendo aquelas pequenas e médias? Cohen estabeleceu algumas conclusões, a partir de estudos, sobretudo, em Sonora e Sinaloa. Em primeiro lugar, que o significado econômico das plantas montadoras variavam, ao longo dos anos 80, entre as cidades ao longo da fronteira. Algumas delas como em Nogales, tornaram-se altamente dependentes destas operações, em mais de 20% do total da população economicamente ativa. Sua dependência esteve relacionada ao seu tamanho. Cidades como Matamoros e Ciudad Juarez, tinham economias fortemente apoiadas nas montadoras, com a maioria de suas manufaturas a elas relacionadas. Um outro grupo de cidades, como Nuevo Laredo, Tijuana e Mexicali, eram menos dependentes. Além da relação com o tamanho, a diversificação econômica parecia ser um importante determinante do grau de importância que as maquilas poderiam ter. Cidades com uma variada e forte tradição no setor serviços ou com base agrícola ou industrial eram menos dependentes das montadoras. Com relação às migrações internas, as plantas maquiladoras contribuíam apenas marginalmente. As mulheres compunham quase dois terços da mão-de-obra empregada nestas maquilas. Já em termos de integração das maquilas com o restante da economia mexicana, é importante sublinhar que até 1985 não era permitido a estas firmas vender no mercado mexicano, caracterizando-se apenas como zonas de exportação, o que foi alterado posteriormente. É justamente neste ano que é criado o Programa PITEX, que tinha como objetivo oferecer, às empresas mexicanas, muitas das vantagens que eram 14 exclusivas das maquiladoras. Kopinak, que estudou as maquilas de Tijuana14 ( que tem mais destas plantas que em qualquer outra cidade do México) , chamou a atenção para a sua especificidade enquanto centro exportador, porque também possui indústria não maquiladora. São empresas pequenas e médias e especialmente as micro, com não mais que três a quatro empregados nos setores de medicina, farmacêutica, vestuário, auto-peças e reparos, que produzem sobretudo para o mercado local. Estas empresas não maquiladoras demandam insumos que são responsáveis por grande parte das importações de Tijuana, não obstante as exportações serem, em geral, produzidas pelas maquilas. Quase dois terços dos produtos importados pelo México estão relacionados com a maquiladoras. Com relação a origem e destino dos bens comercializáveis , quase 98% das exportações mexicanas são destinadas aos Estados Unidos e, quase 83% todas as importações mexicanas vêm dos EUA. A Ásia e Borda do Pacífico se responsabilizam por 12,6% das importações do país (KOPINAK, 1997:11). Estudando o fenômeno das maquilas no Estado de Chihuahua, Blancas e Díaz (1997) as enquadra enquanto um caso particular, por não serem empresas instaladas nas cidades fronteiriças. Nos anos 80 estas indústrias tiveram um crescimento espetacular e, em 1990, o estado de Chihuahua contava com 56 maquilas dos mais diversos ramos industriais, sobretudo de autopeças, componentes elétrico-eletrônicos, vestuário e manufaturas diversas. Aí trabalhavam 17.879 mulheres, 72,6 % do total e 6.760 homens, ou 27,4%. Estas empresas podem ser classificadas como modernas, apresentando novas formas de organização do trabalho, de caráter flexível. O capital pode dispor livremente da força de trabalho. Tanto no posto quanto no turno de trabalho. Também pode fechar ou abrir – temporária ou definitivamente – dependen- As mais modernas maquilas foram instaladas em Jalisco e Yucatán. Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA 75 do dos vaivens do mercado internacional. A força de trabalho é oriunda da cidade, de povoações próximas e de comunidades rurais. É clara a tendência à flexibilização do salário. Existe um amplo leque de “bônus” ou pontuação, que premia com transporte, assistência, os casos de pontualidade, regularidade e ainda, por produtividade. Há inclusive bônus contra a indigência. Estes bônus são alcançados pelos trabalhadores, dependendo do cumprimento de certas normas, de certos padrões considerados desejáveis.. Os salários em geral são baixos, 51 % do total não ultrapassando o Salário Mínimo. Os trabalhadores se queixam, em geral, da repetição e monotonia do trabalho, do esforço visual, da permanência do corpo na mesma posição por muitas horas. Esta precariedade está relacionada à uma rotatividade da mão-de-obra que oscila entre os 11 e os 14%. Um trabalho excelente sobre um outro ângulo do problema é o da associação de grandes companhias mexicanas com o capital internacional. Pozas (1997), analisa a emergência de novas formas de relação entre o Grupo Monterey15 em suas alianças estratégicas com empresas internacionais. O trabalho tenta responder a algumas perguntas fundamentais: – Qual o modelo de globalização que contribui, de forma mais efetiva, para o desenvolvimento econômico do país? – Qual deles tende a integrar um maior número de fornecedores e subcontratistas nacionais? – Quais benefícios trazem para o país, em termos de transferência tecnológica e de capital, investimentos no território nacional e criação de empregos? – Qual é o custo social de associar-se com empresas estrangeiras em termos de emprego, salários e saída de capital? Observando quatro tipos de estratégias distintas adotadas por estas empresas mexicanas, a saber: 1. de investimentos centrados no território nacional; 2. de investimentos no exterior; 3. de investimentos mixtos e 4. de transnacionalização, Pozas entende que estas alianças estratégicas são, para o país, a porta de entrada de capital internacional em suas três for- 76 mas: créditos de longo prazo; Investimentos Diretos Externos e investimentos em Bolsa. Ao mesmo tempo são canais de exportação e subcontratação que vinculam o país com o mercado internacional. As conclusões a que se chega são: a de que é importante conservar mecanismos de proteção à indústria nacional; de que no longo prazo parece muito mais inteligente fortalecer as redes de associação internacional com a América latina, dada a maior simetria entre estas empresas e a comunidade de interesse frente aos Estados Unidos, que têm escalas muito assimétricas às mexicanas; que o desenvolvimento de um sistema de subcontratação latinoamericano melhoraria sensivelmente a capacidade de negociação da região na economia mundial. Para Pozas (op.cit:40), a única forma de aproveitar cabalmente os benefícios do processo de globalização do setor da grande empresa, no México, é de garantir de maneira mais ampla possível sua vinculação com empresas de menor tamanho, sob a forma de provedores e subcontratista. Os Programas de desenvolvimento de pequenos e médios provedores para a grande empresa, poderiam ser uma alternativa às dificuldades para exportar experimentada por estas empresas. Pode-se apontar ainda a internalização dos processos tecnológicos e a produção endógena que redunde em patentes locais, com efeitos substantivos para a indústria e para o país (COSTA LIMA, 2001a). O professor da Unicamp, Wilson Cano, no seu livro Soberania e Política Econômica na América Latina apresenta todo um consistente capítulo sobre o México onde as projeções que estabelece para o País não são nada animadoras, a continuar o modelo econômico vigente e a aprofundarse o TLCAN. Diz o economista: Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA (...) o país estará cada vez mais atrelado à dinâmica de crescimento da economia norte-americana, como um ‘departamento de produção no exterior’, em incessante busca do trabalho barato. Isso não só condiciona os determinantes macroeconômicos principais, mas também os da distribuição da renda e do emprego”.16 De forma semelhante, mais poética, nos fala o escritor uruguaio Eduardo Galeano: Nestas terras, o que assistimos não é a infância selvagem do capitalismo, mas a sua cruenta decrepitude”.17 Referências AUDLEY, John; POLASKI, Sandra; PAPADEMETRIOU, Demetrius; VAUGHAN, Scott (2004), La promessa y la realidad del TLCAN.Lecciones de México para el hemisfério. México Publisher Carnegie./Carnegie Endowment for International Peace. BELLINGERI, Marco (1999), “Yucatán uma Isla?”. In: Raymond Buve y Marianne Wiesebron (comp.), Procesos de integración en América latina: perspectivas y experiencias latinoamericanas y europeas. 171: 177. México: CEDLA & UIA. BELLUZZO, Luiz G.(1995), “ A Crise do México e as forças de Mercado”. In Folha de São Paulo, 08 de janeiro. BENERIA, Lurdes (1995), “The Mexican debt crises: reestructuring the economy and the households”. 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Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA 77 UMA LEITURA DA ECONOMIA BAIANA PELA ÓTICA DO PIB – 1975/2005 Gustavo Casseb Pessoti1 Resumo Esse artigo tem como objetivo fazer uma análise do Produto Interno Bruto da Bahia no período 1975-2005, enfatizando os principais fatos econômicos que marcaram o período e, por conseguinte a evolução do PIB. Com base nesse critério os argumentos foram agrupados obedecendo a seguinte periodização 1975-1986; 1986-1992; 1992-2000 e, 2000-2005. Palavras-Chave: produto interno bruto, política industrial, recessão econômica, crescimento econômico, transformações estruturais. Abstract That article aims at to do an analysis of the Gross domestic product of Bahia in the period 19752005, emphasizing the main economical facts that you/they marked the period and, consequently the evolution of GDP. With base in that scenery the arguments were contained obeying the following periods 1975-1986; 1986-1992; 1992-2000 and, 2000-2005. Key Words: gross domestic product, industrial politics, economical recession, economical growth, structural transformations Introdução Este artigo tem por objetivo central fazer uma análise e periodização da trajetória do PIB baiano ao longo dos anos de 1975 e 2005, com destaque para o período mais recente, a partir do ano de 2000, tomando como base as contas regionais produzidas pela SEI em parceria com o IBGE. A periodização partiu da observação empírica das taxas de crescimento e dos índices do Produto In- 78 terno Bruto baiano com base em 1975, o que levou à identificação de quatro períodos distintos: uma fase inicial de intenso crescimento; uma segunda, de crise e recessão; a terceira fase, quando a economia baiana volta a apresentar sinais de recuperação, ao longo da década de 1990; e, finalmente a quarta fase em que a economia baiana consolida o crescimento alicerçado no grande desempenho do setor industrial. Buscou-se ainda, tendo em vista o objetivo proposto, identificar os principais fatores que determinaram a trajetória de crescimento, estagnação e retração desse indicador do crescimento econômico. Nesse sentido, é salutar considerar o fato de que o PIB representa a expressão monetária do conjunto de todos os bens e serviços finais que são gerados em uma determinada economia em um determinado período de tempo. Embora a definição acabe dando a esse indicador mais importância do que ele realmente mereça, duas considerações precisam ser feitas antes de iniciarmos a análise proposta: primeiro, que embora possua uma grande definição, a mensuração da atividade econômica expressada pelo PIB, apenas sinaliza uma tendência de crescimento e/ou arrefecimento da economia em questão, no período considerado. Isto é, o indicador dado pelo PIB mede apenas a geração das riquezas e não a sua distribuição. Essa definição é muito importante, pois quando falamos que, no período compreendido entre os anos 2000 a 2005 há uma consolidação do crescimento econômico, em momento Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA 1 nenhum queremos dizer que esse modelo de crescimento esteja comprometido com o desenvolvimento local ou com a maneira mais eficiente de distribuição do agregado macroeconômico. O segundo ponto a se considerar e, complementar ao primeiro, é o fato de que o PIB não consegue traduzir a totalidade de relações econômicas existentes entre os agentes produtivos. Sua expressão mede, segundo critérios de pesquisa, a totalidade produzida de bens e serviços finais (retirado o consumo intermediário) em um determinado período. No entanto o grau de abertura dos dados em setores produtivos segue a mesma recomendação das Nações Unidas. Assim, não se pode esperar maior poder analítico do PIB que não o de verificar a tendência de comportamento ou ainda a mudança na estrutura econômica (de um país, estado, região ou município) em um determinado período de tempo. Condicionantes da análise A identificação e análise desses fatores, que, em parte, explicam a dinâmica da evolução da economia baiana, exigem que se leve em conta dois aspectos principais: O primeiro deles é a situação político-administrativa do Estado da Bahia, a saber: um Estado subnacional e periférico inserido em uma economia também periférica. Estado subnacional é identificado com base em Sandroni (2005) como aquele que não controla as variáveis e políticas macroeconômicas. Nesse caso, está-se diante de um poder político e administrativo Mestrando em Análise Regional pela UNIFACS; Especialista em Planejamento e Gestão Governamental pela UNIFACS; Especialista em Planejamento Regional e Orçamento Público pela UFBA; Economista graduado pela UFBA; Coordenador de Contas Regionais e Finanças Pública na Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia – SEI/SEPLAN. RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO não-independente/autônomo, que não formula e não define políticas macroeconômicas e, portanto, tem autonomia restrita e também restrito controle sobre os elementos determinantes da conjuntura econômica — taxa de juros, preços, taxa de câmbio, base monetária etc. Sabe-se que a política macroeconômica é fundamental na determinação do crescimento da economia e, portanto, do ritmo da acumulação capitalista. Quando se menciona “um estado periférico” (SPINOLA, 2001), fala-se do processo histórico, da formação socioeconômica. A Bahia, como integrante da região Nordeste, teve uma participação subordinada na divisão nacional do trabalho ao longo da constituição do capitalismo industrial-financeiro do Brasil. Essa região exportava força de trabalho com baixa qualificação, gerava divisa — sendo o cacau uma importante fonte dessas divisas — e era mercado consumidor dos bens finais produzidos pelas indústrias montadas na região Sudeste, beneficiada com a política de substituição de importações implementada pelo Governo Federal. Entretanto, apesar de o Estado da Bahia ter tido alguns benefícios no processo anteriormente mencionado e, por isso mesmo, ter-se constituído no sexto PIB do Brasil, a maioria dos seus indicadores sociais encontrase abaixo da média brasileira. Isso faz com que as condições estruturais da sustentabilidade da acumulação capitalista sejam precárias, a exemplo do nível de escolarização da população em idade ativa (PIA), da distribuição de renda, da infra-estrutura econômica e da situação dos centros de pesquisas e outros. Estar na periferia de um país periférico significa, para o processo de crescimento econômico, poucos recursos de capital e trabalho para uma acumulação sustentada. Essa condição decorre, em parte, das necessidades básicas não-atendidas ao longo da história, do nível de arrecadação estatal e da baixa geração de poupança interna. Quanto à organização políticoadministrativa do Estado da Bahia é importante salientar que a escassez de recursos públicos, a impossiRDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO bilidade de definição de políticas macroeconômicas de curto, médio e longo prazo e o sério quadro de carências sociais e econômicas resultam em conflitos e tensões permanentes e na necessidade de busca de poupanças externas, no âmbito federal e internacionalmente. O segundo aspecto é a divisão regional do trabalho no Brasil e a forma de participação da economia do Estado da Bahia nesse processo, ou seja, a forma como os fluxos econômicos, que atuam nos seus limites geográficos, se articulam com o centro dinâmico do capitalismo brasileiro e com outros, no plano internacional. Cabe salientar que a inserção da economia baiana na divisão nacional do trabalho dá-se da seguinte forma: a) o Estado da Bahia é um centro de geração de divisas para o país; b) é produtor de bens intermediários e matérias-primas para a indústria instalada no Sudeste do país; c) é um grande mercado consumidor de produtos finais vindos das regiões Sudeste e Sul do país; d) ainda é fornecedor de mão-de-obra, uma vez que perde população, com os processos migratórios. Com essa compreensão da economia baiana, buscou-se a identificação dos principais fatores que explicam os movimentos e fluxos econômicos no espaço geográfico, político e administrativo do Estado da Bahia, a seguir discriminados: • Cenário macroeconômico nacional — portanto, as políticas macroeconômicas de curto prazo; • Políticas macroeconômicas de longo prazo, fiscal, regional, tributária e de emprego e renda; • Processo de formação histórico, social e econômico; • Cenário internacional, ainda que de forma mais indireta; • Organização político-administrativa local, capacidade de investimento, de concessão de incentivos etc; • Condições naturais, ambientais e culturais e • Fatores estruturais da competitividade, que são, em boa medida, conseqüência imediata das políticas anteriormente citadas: nível educacional/escolarização da população em idade ativa, infraestrutura econômica — transportes, comunicação, energia; infraestrutura básica — esgoto, água e saúde; controle ambiental; existência de centros de pesquisa etc. Antecedentes históricos A industrialização brasileira, iniciada no final da década de 1950 do século passado com a implementação da indústria pesada, gerou algumas distorções regionais e setoriais. O modelo então implantado — Substituição de Importações — e que vigorou até a década de 1980, favoreceu principalmente os setores agregados ao complexo metal-mecânico da região Centro-Sul do Brasil. Na década de 1970 houve um esforço de política econômica para integrar as regiões brasileiras mediante a formação de complexos industriais, especialmente de produtores de bens intermediários, na perspectiva de uma matriz produtiva brasileira articulada setorial e regionalmente. Nesse contexto, no Nordeste, ocorreu um avanço da indústria de bens intermediários em detrimento do segmento produtor de bens de consumo não-duráveis, tradicionalmente os de maior peso na indústria de transformação regional, sobretudo os setores alimentício e têxtil. Essa maior participação da indústria de bens intermediários se deve à montagem do Complexo Petroquímico de Camaçari, na Bahia, a que se associaram as políticas de industrialização regional e de substituição de importações de petroquímicos do II PND. Essas duas políticas econômicas foram fundamentais para a estratégia de crescimento do Estado da Bahia, a partir de meados da década de 1970. Nesse sentido, a análise apresentada nesse trabalho, da evolução numérica do PIB da Bahia, foi pensada seguindo uma periodização específica, com base nas taxas de crescimento desse macro indicador. Os gráficos e as tabelas mostram, com clareza, que entre 1975 e 1986 o PIB baiano cresceu aceleradamente, Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA 79 seguindo-se uma fase de estagnação (1986-1992) e, logo depois, uma retomada do crescimento econômico (1992-2000). Por fim a partir do ano de 2000 mostram a manutenção e consolidação do crescimento da economia baiana, principalmente associado aos investimentos industriais realizados. Período 1 (1975–1986): transformações estruturais e crescimento acelerado O período que vai de 1975 até 1986 tem como característica principal à transformação estrutural do PIB da Bahia, que deixa de ter como carro-chefe a agropecuária, passando a ser impulsionado pela indústria. Crescimentos acelerados (em torno de 6,1% ao ano) foram à tônica dessa época, marcada pela expansão do segmento industrial baiano, que apresentou taxas de crescimento de aproximadamente 9%. Esse processo teve origem em meados dos anos 1950, embora, até o início dos anos 1970, a estrutura produtiva da economia baiana ainda estivesse fundada no setor primário-exportador, que se complementava com a economia de subsistência praticada em quase todas as suas regiões. Durante décadas essa dinâmica foi comandada pelo agrobusiness do cacau, que era o principal produto agrícola estadual e o seu maior gerador de divisas. Contudo, a renda gerada pela cacauicultura foi em parte alocada no próprio setor, aprofundando e mantendo a monocultura do cacau, sendo o restante canalizado para consumo ou investimentos fora do Estado, principalmente em imóveis. Esse setor, por sua vez, devido às suas características estruturais, era incapaz de irradiar seu dinamismo para a economia baiana como um todo. A partir dos anos 1970, com o avanço da industrialização, essa estrutura produtiva começa a mudar e perde sua feição agroexportadora. Alguns fatores, a seguir comentados, podem ser apontados como principais para o desenvolvimento desse processo. Em primeiro lugar, as políticas macroeconômicas adotadas no país a partir da década de 80 Figura 1 – Evolução do PIB da Bahia 1975-2005. Fonte: SEI/Coordenação de Contas Regionais. Tabela 1 – Taxa Média de Crescimento dos Grandes Setores de Atividade do PIB da Bahia 1975 – 2005. Fonte: SEI/Coordenação de Contas Regionais Tabela 2 – Taxa Acumulada de Crescimento dos Grandes Setores de Atividade do PIB da Bahia 1975 – 2005. Fonte: SEI/Coordenação de Contas Regionais. 1930, que alteraram profundamente a divisão nacional do trabalho no Brasil. O principal projeto era o de substituições de importações e é a partir da sua implantação, juntamente com a do processo de desconcentração da economia — promovido pelo Governo Federal e incentivado pelos estados periféricos, dentre eles a Bahia, para reduzir desequilíbrios regionais — que, finalmente, nos anos 1970, a Bahia se insere na matriz industrial brasileira, com a chamada “especialização regional”. Tal especialização levou o Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA Tabela 3 – Taxa de Crescimento do PIB da Bahia – Por período – Acumulada e Média. Fonte: SEI/Coordenação de Contas Regionais. Estado a voltar-se para uma industrialização centrada no setor químico, especialmente na petroquímica, e na metalurgia. RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO Ainda no âmbito de medidas macroeconômicas, é importante salientar os incentivos fiscais e financeiros criados pelo Governo Federal para atrair investimentos para outras regiões brasileiras que não o Centro-Sul. Entre esses se registra o sistema de incentivos fiscais 34/18/ FINOR, que beneficiou o processo de reestruturação da dinâmica econômica da região Nordeste, observando-se que tais incentivos foram, em sua grande maioria, alocados no Estado da Bahia. Isso se deu pela proximidade da Bahia em relação ao Centro–Sul, e pelo fato de a produção nacional não oferecer alguns insumos básicos demandados pela indústria de transformação do Sudeste. Entre os fatores sistêmicos da competitividade, a Bahia contava ainda com as vantagens de ser, à época, a maior produtora de petróleo do país e de já possuir uma refinaria, a Landulfo Alves – Mataripe (RLAM). Em relação ao poder local, foi montada uma explícita política industrial, setorial e regional. Além de participar diretamente de alguns empreendimentos, com estudos, investimentos e infra-estrutura, o Governo Estadual concedeu um amplo conjunto de incentivos fiscais e financeiros, o que possibilitou ao capital privado reduzir drasticamente o risco de sua participação no processo produtivo e garantiu vantagens comparativas à Bahia em relação aos demais Estados do Nordeste. Em decorrência das medidas acima descritas, vários projetos foram implantados, destacando-se os localizados no Centro Industrial de Aratu (CIA), nos Distritos Industriais do interior do Estado e no Complexo Petroquímico de Camaçari (COPEC). Essas alterações estruturais na economia baiana incrementaram fortemente seu produto interno. Em termos de taxas de crescimento real do PIB, a Bahia supera o Nordeste e o Brasil ao longo da década de 1970. No período entre 1975 e 1986, a indústria cresce acumuladamente 156,4%, a agricultura 30%, o comércio 117% e as comunicações 1.383%. Esse crescimento fez com que a ecoRDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO Tabela 4 – Composição Setorial do PIB Baiano. Fonte: SEI/Coordenação de Contas Regionais. nomia baiana aumentasse sua participação na economia nacional — de menos de 4% em 1975 passa a 5,4% em 1985 — e contribuiu de forma positiva para a expansão do setor terciário da economia (em média 7,6% ao ano), particularmente na RMS. É importante destacar que a consolidação da indústria de transformação no processo de desenvolvimento econômico estadual, na primeira metade da década de 1980, ocorreu num período de grande recessão e crise da economia brasileira, da qual poucos Estados lograram escapar. A Bahia, exatamente pelo avanço da sua indústria, estava entre estes últimos, ou seja, apresentou, malgrado a crise, crescimento do nível de atividade econômica. Nos anos 1980, inicia-se uma política de desvalorização cambial que torna caros os produtos importados. Esses fatores macroeconômicos fizeram com que aumentasse a demanda, por parte das indústrias instaladas no Centro-Sul, pelos petroquímicos produzidos na Bahia. Apesar de a economia ter-se concentrado fortemente, principalmente na Região Metropolitana de Salvador (RMS), outras áreas do interior do Estado também apresentaram significativo crescimento no final da década de 1970. Entre os destaques tem-se: produção de feijão na região de Irecê; expansão do pólo cafeeiro na Chapada; extração de minérios em determinadas áreas do Estado (Caraíba Metais etc.); rápida ocupação do Vale do Iuiú (pecuária e algodão) e desenvolvimento de regiões como o Extremo-Sul , com a extração de madeira. Período 2 – 1986 a 1992: inflexão e crise A partir da segunda metade dos anos 1980, o vigoroso crescimento ocorrido entre 1975 a 1985 sofre um forte processo de inflexão. Entre 1986 e 1992, o ritmo de crescimento do PIB cai de 6,5% ao ano para aproximadamente 0,1%. Em dez anos, ou seja, de 1975 a 1986, o PIB baiano, sob o efeito do Pólo Petroquímico de Camaçari, cresceu 92% acumuladamente. Entretanto, no período subsequente, entre 1986 e 1992, o crescimento acumulado foi de apenas 0,9%. Em que pese à diferença quantitativa dos anos entre os dois períodos, essa comparação tem como único objetivo salientar que entre 1986 e 1992 a economia baiana praticamente se estagnou. O Gráfico 2, a seguir, evidencia claramente esse processo. Entre 1986 e 1992, o cenário apresentado foi de recessão, com variação negativa do nível de atividade nos três últimos anos desse período. Os fatores que explicam essa crise podem ser encadeados da seguinte forma: • a crise da economia nacional nos anos 1980 (a chamada década perdida), capitaneada pela crise fiscal e financeira do Estado brasileiro, levou à falência o modelo anterior, no qual o Estado era o motor da acumulação capitalista e sob o qual se pautou o crescimento da economia baiana entre Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA 81 de a Bahia possuir uma população rural muito grande (ainda hoje a maior do país em termos absolutos, e vivendo de forma precária no semi-árido) — para essa região, atraída pelo Pólo. Esse processo fez de Salvador a terceira mais populosa cidade do país, com a uma das maiores taxa de desemprego dentre as cidades estudadas pelos institutos de pesquisas brasileiros; Figura 2 – Evolução do PIB da Bahia segundo taxa anual de crescimento – 1976-2005. Fonte: SEI/Coordenação de Contas Regionais. 1975 e 1986. O endividamento interno e externo do Estado inviabilizou os investimentos projetados e a manutenção da acumulação capitalista, na forma até então vigente; ração da petroquímica. Dessa forma, a economia baiana permaneceu apenas como produtora de bens intermediários e o Complexo Petroquímico não recebeu novos investimentos; • a queda no ritmo de crescimento da economia ocasionou altas taxas de inflação, índices crescentes de desemprego e elevação das taxas de juros, o que desencadeou a chamada “ciranda” financeira e teve, portanto, efeitos negativos diretos na demanda agregada da economia brasileira, principalmente no consumo das famílias e nos gastos do Governo; • diminuiu o ritmo de crescimento da produção da indústria química baiana, tendo esse segmento, nos anos de 1988, 1990 e 1991, apresentado taxas negativas, de 3,6%, 6,8% e 7,6%, respectivamente. Pelo elevado peso que a indústria química tem na estrutura do segmento industrial baiano, os reflexos negativos sobre o PIB eram inevitáveis; • deu-se um redirecionamento da economia brasileira para o mercado externo: incentivaram-se assim as exportações, que geravam divisas, garantiam o fechamento do balanço de pagamentos e mantinham o nível da atividade econômica. • foi gerada, com a paralisação do processo de investimentos, uma economia duplamente concentrada na formação do PIB: na agricultura, o cacau, em crise, continuava ser o principal produto de exportação. Na indústria, deu-se uma elevada concentração em torno do gênero químico. Em termos macroeconômicos, a geração espacial da renda concentrou-se na RMS e no litoral, principalmente na área de influência dos municípios de Ilhéus e Itabuna; Os efeitos dessa crise para o Estado da Bahia foram altamente negativos, podendo-se destacar alguns deles como os mais graves, como se pode verificar a seguir: • foram paralisados os investimentos previstos para o Pólo de Camaçari e, assim, não foram geradas cadeias produtivas, a terceira ge- 82 • cresceu a taxa de desemprego na RMS, conseqüência da forte migração — em parte derivada do fato Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA • finalmente, identifica-se um último efeito, que se manifestou em meados dos anos 1980, decorrente da reestruturação produtiva mundial: a crise nos produtos tradicionais de exportação da agricultura baiana. A partir desse período, registraram-se sucessivas quedas nos preços internacionais dessas commodities, resultantes do crescimento da sua oferta mundial, com a entrada, no mercado, de novos países produtores, com menores custos médios e maiores rendimentos por hectare. Dentre os produtos baianos cujos preços caíram, citam-se: o cacau, que também foi atingido pela grave doença conhecida como “vassoura de bruxa”, e a mamona, o sisal, o fumo, o café e o algodão. O forte declínio do cacau, principal cultura agrícola do Estado na segunda metade dos anos 1980, ocorre sem que outra lavoura a substitua de imediato. Assiste-se assim a uma total desestruturação do Estado da Bahia: suas finanças desorganizam-se; seu patrimônio público — estradas, escolas, hospitais etc. — passa por um processo de desgaste; seu funcionalismo tem grandes perdas em termos reais. Os fatores sistêmicos da competitividade baiana seguem na mesma direção da situação financeira do setor público, acima mencionado. A educação não apresenta grandes avanços, a concentração da renda aumenta, as estradas pioram de situação, o crescimento dos setores serviços e comunicações é lento etc. Apesar da crise nos dois principais setores da economia baiana (a agricultura tradicional e a petroRDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO química emergente), a política de redirecionamento da economia brasileira para o setor externo traz novos vetores de crescimento econômico para o Estado e dá início a um processo de diversificação agrícola e interiorização da produção. Além disso, a petroquímica, graças à política de desvalorização cambial adotada pelo Governo Federal, conseguiu colocar no mercado externo parte da sua produção, diminuindo, dessa forma, os efeitos da queda das vendas para o mercado interno. Assim, esse período, apesar de se caracterizar como uma fase recessiva, é também aquele em que se verifica uma diversificação e interiorização da sua dinâmica, a saber: ocupação dos cerrados com a produção de grãos, tendo na soja seu carrochefe; desenvolvimento de projetos de irrigação, principalmente na Região de Juazeiro, com a produção de frutas para exportação e o cultivo de hortifruti — laranja no Litoral Norte, especiarias no Recôncavo Sul; afirmação do papel e celulose no Extremo-Sul; florescimento do turismo, na faixa litorânea, com destaque para a região de Porto Seguro e o Litoral Norte; surgimento de novos empreendimentos do Complexo Agroindustrial, dinamizando e modernizando a produção agropecuária, dentre outros setores e processos com menor relevância. É importante salientar que esse processo só começaria a ter impacto sobre o PIB a partir dos anos 1990. Em conclusão, esse período, diferentemente do anterior, é marcado por uma redução da participação do PIB baiano no nacional, em conseqüência de ter-se estagnado o ritmo de crescimento da economia baiana (no cotejo com o período anterior, 1975/ 1985) e de se terem expandido fortemente outras áreas no Brasil, como o Centro-Oeste, incentivadas pela produção pecuária e agroexportadora, principalmente de grãos. Período 3: anos 1990 — retomada do crescimento Como dito anteriormente, a atual configuração socioeconômica da Bahia tem início a partir de meados da década de 1970, com o fortaleciRDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO Figura 3 – Participação das Grandes Regiões no PIB do Brasil 1985-2003. Fonte: IBGE/Departamento de Contas Nacionais do Brasil – CONAC. mento do cinturão industrial da Região Metropolitana de Salvador (RMS), particularmente com a entrada em operação do Pólo Petroquímico. A expansão da economia baiana alicerçada no desempenho industrial — principalmente com o incremento nas atividades da indústria de transformação e da construção civil, esta última grande geradora de emprego e renda — acontece, principalmente no período do pós II PND e prossegue até meados dos anos 1980, momento em que a crise que vinha atingindo a economia brasileira começa a afetar o desempenho baiano: registram-se, entre o final dos anos 1980 e o começo de 1990, taxas de crescimento mais modestas. Apesar disso, a Bahia foi um dos Estados de melhor desempenho econômico naquela que é considerada a “década perdida” da economia brasileira. O período compreendido entre 1992 e 2000 — tem algumas características marcantes, como: • crescimento econômico acompanhando a média nacional; • consolidação e ampliação da indústria montada no primeiro período, ou seja, petroquímica e metalurgia; • consolidação de setores que se beneficiaram com a política nacional de incentivo às exportações e que tiveram vantagens comparativas no estado, a exemplo da sil- vicultura, da produção de papel e celulose, dos frutos e grãos; • alcance, pela agricultura, de um novo patamar de produção, com base na política nacional de incentivo às exportações iniciada no segundo período; • esgotamento dos produtos tradicionais, a exemplo do fumo, que chegam ao fundo do poço, e esboço de recuperação dos níveis de produção de outros, graças às políticas dos Governos Estadual e Federal; • surgimento de novos setores industriais, notadamente de bens finais, portadores de mudanças futuras na estrutura do Estado e promotores de sua inserção na divisão nacional do trabalho; • maior preocupação com o turismo local, que passa a operar em um patamar mais elevado, a partir de investimento do Governo Estadual e de programas nacionais com parceiros internacionais, a exemplo do PRODETUR. O crescimento médio do PIB baiano correspondeu a 3,1% a.a. ou, em taxa acumulada, foi de 27,5%, no período de 1992 a 2000. Os setores agropecuário e industrial cresceram no mesmo patamar: 3,1% e 2,9% respectivamente. Outros segmentos, como o comércio e comunicação, foram de grande destaque nesse período, alcançando um crescimento acumulado de 28,3% e 255,7% respectivamente. Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA 83 Novo cenário nacional A mudança na política econômica nacional, o Plano Real, a abertura do mercado brasileiro e a reestruturação do Governo Estadual fizeram a economia voltar a crescer. Abriu-se um novo período de investimentos produtivos e a perspectiva de outro ciclo sustentado de crescimento, agora menos concentrado. Antes de tudo, verifica-se um forte crescimento do comércio e do consumo nos primeiros três anos do Plano Real, em função da estabilidade econômica e das facilidades de financiamento. Esse processo beneficiou mais fortemente as classes menos favorecidas, que representam a maioria da população baiana. Em segundo lugar, ocorreu uma reestruturação dos principais setores do parque industrial baiano, que, como se sabe, é ainda pouco diversificado e concentra-se em setores internacionalmente competitivos: química e petroquímica, mineração e metalurgia, além de papel e celulose. A partir de 1994, além da celulose, a duplicação da RLAM e da Central de Matérias-Primas do Pólo Petroquímico de Camaçari fizeram a produção voltar a crescer e, em conseqüência, cresceu também o PIB estadual, como mostram as figuras a seguir. Cabe também ressaltar o bom desempenho da indústria metalúrgica e a consolidação dos investimentos realizados na indústria de papel e celulose no Sul do Estado, que resultaram em elevados crescimentos desses segmentos no referido período, como mostra a figura 5. Um outro importante fator a ser destacado é que, somente em meados dos anos 1990, o processo de diversificação da produção, ocorrido na agricultura baiana a partir de fins dos anos 1980, como descrito anteriormente, começa a influenciar e determinar a formação do valor agregado agrícola e, consequentemente, do PIB baiano. Como mostra a Tabela 5, entre os anos de 1985 e 2000 dá-se uma profunda transformação na agricultura, com perda significativa da participação do cacau na formação do valor bruto da produção, contribuindo com 36% em 1985, em 2000 o cacau tem um peso 84 Figura 4 – Taxa de Crescimento acumulada da Indústria Química e Indústria de Transformação – Bahia, 1991-2000. Fonte: SEI/Coordenação de Contas Regionais. Figura 5 – Taxa de Crescimento Acumulada dos Segmentos Industriais de Maior Ascensão na Bahia – 1991-2000. Fonte: SEI/Coordenação de Contas Regionais. de apenas 6% no valor bruto da produção agrícola da Bahia. É ainda nesse período que a crise dos produtos agrícolas tradicionais, como o cacau, sisal, fumo, café, mamona, parece chegar ao pior resultado já registrado pelas pesquisas do IBGE, como pode ser observado na Figura 6. No que diz respeito ao comércio exterior, a competitividade da economia baiana fica evidente ao se verificar o significativo incremento do valor das exportações baianas, da ordem de quase 50% entre 1991 e 1998, apesar das dificuldades com que se defrontaram as exportações brasileiras no período. A conta de comércio (exportação + importação) cresce mais de 50%. Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA Na esfera governamental, a Bahia passou por um processo de reforma do Estado desde 1991 e promoveu um ajuste administrativo, fiscal e financeiro. Os primeiros resultados foram o equilíbrio das finanças públicas estaduais — o que levou à recuperação do crédito público nacional e internacionalmente — e o fato de o Estado passar a ter capacidade de gerar poupança interna e externa, abrindo assim a possibilidade de investimentos e de contar com programas de incentivos fiscais e financeiros. Em conjunto, esses fatores viabilizaram múltiplos investimentos privados em novas áreas da atividade econômica, a exemplo dos segmentos industriais de bens de consumo RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO Tabela 5 – Participação dos Principais Produtos Agrícolas, segundo o Valor Bruto da Produção (Bahia: 1985-2000). populares, automobilístico, cerâmico e madeireiro/moveleiro, turismo etc. Esse movimento tem contribuído para a expansão e diversificação da economia, proporcionando uma maior integração industrial, com a abertura de novos horizontes que indicam um novo ciclo de crescimento. Concluindo, é possível afirmarse que, do ponto de vista da geração do PIB, esse período se constitui no momento histórico em que foram lançadas as bases para um novo ciclo de expansão do produto baiano e para que se reestruture a composição desse indicador, sobretudo no que concerne ao peso que aí têm a agropecuária e a indústria. Período 4 – 2000-2005: manutenção do crescimento e consolidação industrial Fonte: SEI/IBGE. Figura 6 – Taxa de Crescimento Acumulada das Principais Lavouras da Bahia – 1991-2000. Fonte: SEI/Coordenação de Contas Regionais. Tabela 6 – Balança Comercial – Bahia (em U$ bilhões – FOB). Fonte: PROMO – Centro Internacional de Negócios da Bahia. RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO A partir do ano 2000 começa a ser observado mudanças na estrutura produtiva do Estado da Bahia oriundas de dois fatores principais: Primeiro pela austera política macroeconômica colocada em prática pelo Governo Federal, priorizando a proteção da moeda contra desvalorizações e, buscando uma meta inflacionária extremamente baixa. Utilizando-se do instrumental de controle da taxa de juros, a política econômica do Brasil priorizou o curto prazo, pondo fim definitivo no projeto nacional desenvolvimentista. Esse fato tem grande relevância para a análise da evolução do PIB, pois como já mencionado a Bahia como unidade da federação brasileira passou por grandes problemas nos setores demandantes de recursos (atrelados ao crédito de longo prazo, praticamente inexistente nesse período). Essa conjuntura prejudicou muito o desempenho do setor de serviços baianos, que aos poucos perdeu participação. Segundo, pela política de atração de indústrias, que se consolidou no Estado uma montadora de veículos e seus sistemistas, grande geradora de valor agregado e outras tantas indústrias calçadistas grande geradoras de emprego. O empreendimento do Complexo Amazon que trouxe uma unidade da Ford para a Bahia, gerou efeitos multiplicadores para a economia estadual. Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA 85 Como decorrência desse processo, vários sistemistas, inclusive de outros países, vieram para a Bahia e começaram a consolidar a indústria automobilística no Estado. Em menos de cinco anos de operação, a montadora baiana já bateu recordes de produção, e antecipou etapas, inicialmente previstas para 2006. A despeito disso a “baianização” dos veículos ainda é pequena tal qual o montante de empregos diretos gerados vis a vis o montante dos investimentos, devido a grandes recursos tecnológicos utilizada na produção. A reformulação das atividades industriais baianas, como parte de um plano, da diversificação produtiva, alcançou maior impulso, a partir de 2001, com o lançamento de uma política de atração de investimentos para estimular fluxos de produção e renda no Estado. Segundo dados da Secretaria de Indústria e Comércio e Mineração do Estado (2005), foram realizados na Bahia no período 1999-2005 cerca de R$ 30,7 bilhões em investimentos industriais, responsáveis por aproximadamente 135 mil empregos diretos. Merece destaque o fato de que 80% desses investimentos foram destinados à implantação de novas plantas industriais no Estado, sendo, portanto, 20% outros destinados à reativação de plantas já existentes. Desta Forma vieram para a Bahia entre 2000 e 2005, diversas indústrias de diversas áreas. Delas destacam-se, seja pelo valor do investimento, seja pela elevada geração de emprego e valor agregado: a FORD e seus sistemistas de produção, a VERACEL CELULOSE, atualmente maior produtora de celulose do mundo, a MONSANTO, com produção de fertilizantes e diversas indústrias calçadistas, que são grandes geradoras de empregos. O destaque desse último empreendimento deve ser dado ao fato de ter permitido uma “interiorização” pelo território baiano. O PIB da Bahia alcançou, nesse período, uma taxa média de 3,8% de crescimento, acumulando 20,3%. Ainda em relação à taxa acumulada os grandes destaques ficaram por conta da indústria de transformação 86 Tabela 7 – Investimentos Industriais Realizados no Estado da Bahia no período de 1999 a 2005. Fonte: SICM. (40,5%), agropecuária (31,4%) e, em menor fôlego, o setor de serviços (11,6%). Conforme já observado na Tabela 4, toda a estrutura produtiva foi modificada, passando o setor industrial a responder por mais de 50% do valor agregado total da economia baiana em 2005. Caso ocorra a formação de cadeias produtivas, com base nesses investimentos, poder-se-á assistir a um crescimento econômico distinto daquele ocorrido quando da implantação do Pólo Petroquímico nos anos 1970. Espera-se um processo menos concentrado e, portanto, com impactos positivos sobre os níveis de emprego, renda e demanda, podendo assim vir a alterar-se significativamente o setor do comércio e de serviços da RMS, e com impactos positivos para o interior do Estado. Um outro aspecto que pode ser observado com a implementação dos novos arranjos produtivos é a mudança no perfil industrial da Bahia, que, chegou em 2001 a concentrar mais de 57% da estrutura de sua indústria de transformação no segmento químico. A geração do valor agregado de uma indústria automobilística, além dos investimentos nas indústrias de papel e celulose e alimentos têm contribuído para a diminuição na participação dessa estrutura, além de permitir à Bahia aumentar sua participação na geração do valor agregado nacional. A relação PIB-BA/PIB-BR passou de 4,1% em 1995 para aproximadamente 5,0%, em 2005. Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA Esse aumento de participação possibilita, sobretudo duas considerações especiais: a) primeiro, que a Bahia apresentou no período um crescimento médio do PIB superior ao do Brasil (na média — 3,8% Bahia e 2,2% Brasil — no acumulado, 20,3% Bahia e 11,4% Brasil), e b) que os investimentos alocados no Estado proporcionaram uma elevação da base produtiva e da geração de valor agregado. Tais investimentos, além do se constituírem em impulso à indústria de transformação, são fundamentais para a competitividade — inclusive internacional — do Estado. Em relação a essa última observação, é importante destacar a evolução do comércio exterior da Bahia nesse período. Somente em 2005, o Estado da Bahia atingiu o recorde de sua história econômica recente, quando suas exportações somaram aproximadamente U$ 6 bilhões expandindo-se 48% em relação a 2004. A título de informação, apenas para que se perceba a relevância do resultado estadual nesse mesmo período, as exportações brasileiras expandiram-se 23%. Segundo os dados da Promo Bahia, a participação de produtos de média e alta tecnologia — que passaram a ser produzidos no Estado a partir de 2001—, apresentou um incremento de aproximadamente 19% no total das vendas externas realizadas entre 2004 e 2005. Em função dessa diversificação da pauta de exportações, ampliaram-se as relaRDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO ções comerciais do Estado com mercados não tradicionais, a exemplo do México e Venezuela, dois dos maiores compradores de automóveis produzidos em Camaçari, além de mercados em alta expansão como a China, Índia, Tailândia, Nigéria, Austrália e Israel. É importante mencionar que, apesar da Bahia ter uma política de atração de indústrias ativa, criando vantagens econômicas comparativas como já mencionado, é limitada a participação no estabelecimento de diretrizes da política macroeconômica, que são determinadas pelo Governo Federal. A evolução do PIB na Bahia dependeu, depende e vai continuar a depender da situação prevalecente na conjuntura nacional, sendo esse indicador muito sensível às mudanças na política de Governo. Em 2001 a economia baiana apresentou uma taxa de crescimento apenas satisfatória (aproximadamente 1,0%), pelas razões acima expostas, como reflexo de uma conjuntura bastante conflituosa. Crise de energia, desaceleração da economia norteamericana, crise na Argentina, ataques terroristas, desvalorização do Real marcaram negativamente esse período. Na Bahia houve ainda uma intensa seca, que atingiu praticamente todos os estados da região Nordeste e prejudicou sensivelmente o desempenho do setor agropecuário, não se podendo esquecer da posição de destaque que o mesmo tem na estrutura do PIB. Nesse cenário, o governo brasileiro foi obrigado a agir, primeiro, para tentar separar as imagens do Brasil e da Argentina; em segundo lugar, para manter a meta inflacionária, grande âncora do Plano Real e condição obrigatória dos acordos de ajuda monetária com o FMI. Esses compromissos praticamente congelaram a ação da política macroeconômica brasileira em 2001. Para tentar equilibrar a economia frente a tantos problemas, o Governo foi obrigado a manter elevadas às taxas de juros internas. Na macroeconomia básica, um aumento na taxa de juros, em que pese à diminuição da liquidez da economia com reRDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO Tabela 8 – Exportações Baianas, principais Segmentos: 2004/2005. Fonte: Mdic/Secex, Dados Coletados em 11/01/2006. Elaboração: Promo – Centro Internacional de Negócios da Bahia. Tabela 9 – Balança Comercial da Bahia – 2000-2005. Fonte: MDIC/SECEX. dução na inflação, tem como reflexo imediato uma retração nos investimentos produtivos, que, por sua vez, diminuem a demanda agregada e paralisam a atividade interna. Em um cenário como esse, diminui a procura pelo crédito e a inadimplência aumenta. Sofrem os impactos dessa situação o comércio, que depende muito dos financiamentos de médio e longo prazo; a indústria, que é fomentada pelos investimentos produtivos e, que, praticamente, em sua totalidade, utiliza insumos importados (comprados em dólar); e outros setores, como os serviços, que, inevitavelmente, apresentaram diminuições nos indicadores de emprego e renda. Em 2003, com a eleição do novo presidente que ao longa de sua his- tória política, tinha posições contrárias a política econômica que vigorava até então, com isso esperava-se uma mudança nesse quadro de juros altos, para combater a inflação e segurar o câmbio. Esperava-se, também o reinicio de um projeto nacional desenvolvimentista capaz de induzir crescimento econômico para todas as regiões do Brasil. Entretanto, o que se tem acompanhado é a manutenção das “regras do jogo” em que o mercado continua imperando de forma absoluta e o cumprimento das metas de inflação o único objeto de política econômica. Nesse cenário fica difícil fazer qualquer prognóstico sobre o desempenho macroeconômico do país, que apresentou crescimento da economia em 2004, Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA 87 “ ... enquanto vigorar essa política econômica, a agricultura da região Nordeste vai continuar a depender das chuvas para apre-sentar bons resultados... ” muito mais pela insuficiência da demanda agregada de 2003 do que pelo projeto colocado em prática. Ou seja, enquanto vigorar essa política econômica, a agricultura da região Nordeste vai continuar a depender das chuvas para apresentar bons resultados e as atividades que dependem do crédito e do investimento de longo prazo vão continuar subordinadas ao “nervosismo do mercado” e à tradicional pouca vontade da iniciativa privada brasileira. Finalmente — e esperando-se ter alcançado o objetivo proposto inicialmente, qual seja, mostrar os principais fatos que proporcionaram ou limitaram o crescimento econômico da Bahia entre 1975 e 2005 — poder-se-ia dizer que política industrial, crise e recessão, retomada do crescimento e nova configuração industrial são as expressões que, respectivamente, melhor caracterizam cada um dos períodos aqui delimitados: 1975/1986, 1986/1992 e 1992/2000, 2000/2005. Considerações finais Como pode ser observado, a economia baiana passou por diferentes ciclos de crescimento do PIB. No primeiro deles (1975-1986) a atividade industrial, principalmente derivada da indústria de transformação e da construção civil foi a grande responsável pelo resultado do PIB com um detalhe. Dentro da estratégia de desenvolvimento regional oriunda do II PND houve a consolidação de um Pólo Petroquímico, complementar às indústrias instaladas no eixo SulSudeste do país. A forma como se deu o processo de industrialização do Estado da Bahia impulsionou também o setor de serviços, atrain- 88 do milhares de trabalhadores para a RMS. Tanto sim que, mesmo com a pujança do crescimento industrial, como se observou pelos números da Tabela 4, o setor de serviços detinha a predominância na geração de valor agregado. Com o esgotamento do modelo de substituição das importações e o fim da estratégia de crescimento para “dentro”, houve uma crise sem precedentes na história econômica recente do Brasil, resultando em um período de estagnação econômica, crise fiscal e financeira do Estado, combinados com altas taxas de inflação. Mesmo que tardiamente, em relação a outros Estados do Brasil, essa situação desaqueceu a economia baiana altamente especializada na produção de intermediários voltados para abastecimento das indústrias do Sudeste do país. Para piorar houve o esgotamento de tradicionais produtos agrícolas baianos (como o cacau fortemente prejudicado pela praga da vassoura de bruxa, e a quase que estagnação na produção de fumo do Recôncavo). Com a diminuição da atividade industrial, aumentou o desemprego, concentrado principalmente na RMS e praticamente cessaram os investimentos para o Estado da Bahia. No período 1986-1992 a economia baiana cresceu apenas 0,1% em média. O período 1992-2000 se caracteriza por uma maior diversificação produtiva e interiorização da produção ao largo do território baiano (processo que começou no final da década de 1980 e início dos anos 1990 e ganha impulso a partir de então). Nesse período ocorreu, com maior ênfase a ocupação dos cerrados com a produção de grãos, tendo na soja seu carro-chefe; desenvolvimento de projetos de irrigação, principalmente na Região de Juazeiro, com a produção de frutas para exportação e o cultivo de hortifruti — laranja no Litoral Norte, especiarias no Recôncavo Sul; afirmação do papel e celulose no Extremo-Sul; florescimento do turismo, na faixa litorânea, com destaque para a região de Porto Seguro e o Litoral Norte; surgimento de novos empreendimentos do Complexo Agroindustrial, dinamizando Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA e modernizando a produção agropecuária, dentre outros setores e processos com menor relevância. A entrada em vigor do Plano Real (julho 1994) foi acompanhada por uma ausência total de um plano nacional desenvolvimentista e uma “obsessão” excessiva pelo controle inflacionário, a custas da valorização cambial e de elevadas taxas de juros (fato que se intensificou muito a partir dos anos 2000). Essa situação fez com que aumentasse a necessidade da intervenção das políticas estaduais, capazes de dinamizar a economia e promover uma atenuação do desemprego. Não houve nesse período um setor líder na expansão do PIB. Como se observou na Tabela 1, agropecuária, indústria e serviços cresceram aproximadamente 3% em média ente 1992 e 2000, mesma tendência, em que pese a tautologia, seguida pelo PIB (3,1%). Apesar da conjuntura nacional desfavorável o setor de serviços permanecia, até essa época, como mais importante na geração de valor agregado do PIB estadual baiano. A partir do ano 2000 iniciou-se um novo paradigma: a busca por “novas” industrias, principalmente, através de isenções fiscais. Apoiado nessa estratégia, houve um grande aporte de investimentos industriais diversificando a base produtiva baiana. Vieram para a Bahia diversos segmentos industriais, seja por razões fiscais, seja por estratégia industrial, ou ainda por vantagens locacionais. O setor industrial mais uma vez retomava a liderança na geração do PIB com outro detalhe importante. Diferente do período 1975-1986 em que o dinamismo industrial impulsionou o setor de serviços, principalmente, porque a indústria de transformação era nascente, e tal qual a construção civil que se expandiu muito nesse período promoveu uma grande geração de emprego e renda desenvolvendo o setor de serviços, no período 20002005, o crescimento do setor industrial “achatou” o de serviços. As explicações se respaldam tanto na conjuntura nacional, com a ausência de políticas econômicas de desenvolviRDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO mento e submissão total ao controle inflacionário via taxa de juros como, no campo estadual, pelo fato de que o principal empreendimento “baiano” desse período (leia-se a indústria montadora de veículos) ser altamente intensivo em capital e pouco gerador de empregos diretos. Os primeiros resultados da SEI apontam para 2006, uma manutenção no crescimento do PIB, ainda que em taxas decrescentes. Ainda é cedo para dizer quando esse “modelo de crescimento” vai se esgotar, mas, o certo que é a Bahia, como periferia do capitalismo mundial certamente precisará de outro “coelho na cartola”. Referências BAHIA. Secretaria do Planejamento, Ciência e Tecnologia. Quatro cantos da Bahia. Salvador: SEPLANTEC. Superintendência de Planejamento Estratégico, 2001. 110 p. (Série estudos estratégicos, n. 4). CARVALHO JUNIOR, Cesar Vaz de; PESSOTI, Gustavo Casseb; PEREIRA, Ítalo Guanais Aguiar. Panorama da economia baiana sob a ótica do PIB – 1975/ 2000. In: SUPERINTENDÊNCIA DE ESTUDOS ECONÔMICOS E SOCIAIS DA BAHIA. Dez anos de economia baiana. Salvador: SEI, 2002. p. 7-23 (Série estudos e pesquisas, 57). CONTAS REGIONAIS DO BRASIL 1985-2002. Contas Nacionais. Rio de Janeiro: IBGE, 2003. v. 13. CONTAS REGIONAIS DO BRASIL 2003. Contas Nacionais. 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Inicialmente promove uma revisão da evolução desta área de conhecimento e da sua formação micro e macroeconômica, destacando alguns aspectos pouco considerados na literatura que versa sobre as raízes da teoria da localização industrial. Aborda as novas contribuições relacionadas com o desenvolvimento local e endógeno. Palavras-chave: Economia Regional, Desenvolvimento Regional, Desenvolvimento Local, Economia Espacial. Abstract This article deals with the development issue under the Regional Economy approach. Initially it is made a review of the evolution of this analysis approach, as well as its macroeconomic and microeconomic concepts, highlighting some aspects that are less studied under the literature concerned with the roots of the industrial localization theory. It approaches new contributions related endogenous and local development. primeira faz uma breve revisão histórica da evolução da “ciência regional” como queria Walter Isard (1956,1971) fazendo o registro de diversas contribuições que normalmente estão esquecidas nos compêndios acadêmicos. A análise desta evolução histórica foi limitada pela disponibilidade de espaço para publicação ficando de fora muito material de pesquisa que se imagina poder publicar posteriormente. A inserção do tema neste texto tem o propósito de provocar outros pesquisadores da história econômica e de estabelecer um debate acadêmico, prática que parece em extinção na vida universitária. Nesse sentido vale questionar se tem razão Masahisa, Krugman e Venables (2002, p.50) quando afirmam que a ciência regional nunca assumiu realmente o papel que Isard havia imaginado e que a ciência regional em momento algum conseguiu sequer se integrar à economia urbana tradicional. 4 Não obstante tal descrendenciamento, para Richardson (1975, p.16-20) a economia regional reflete as vantagens de uma abordagem interdisciplinar no estudo dos problemas locacionais e regionais. Muitos desses problemas não poderiam ser com- Key words: Regional Economics, Regional Development, Local Development, Spatial Economy. Introdução Este artigo, além desta introdução e de uma conclusão, é composto por duas partes que no entendimento dos autores se complementam. A 90 Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA preendidos em função apenas da ciência econômica. Richardson acredita que o crescente interesse pela economia regional e as teorias locacionais devemse a motivações de natureza política. Porém salienta a importância da investigação das conseqüências derivadas do onde as atividades econômicas se realizam. Segundo Richardson existem três formas de analisar as implicações econômicas da dimensão espacial. A primeira supõe que a localização da população e dos demais recursos é fixa concebido o espaço como um atrito no fluxo de bens entre dois pontos fixos (economia urbana); a segunda supõe trata o espaço como matriz para a localização das atividades econômicas, supondo a heterogeneidade espacial (localização empresarial); e a terceira concentra-se nas inter-relações entre as regiões e a economia nacional (economia regional)5. A segunda parte deste artigo trata de questões conceituais em torno das idéias relacionadas com o desenvolvimento local e o desenvolvimento endógeno. Também buscando polemizar, o texto critica as imprecisões de linguagem e a verdadeira “babel” que se forma quando diferentes autores tratam do assunto. 1 Economista. Mestranda em Análise Regional pela Universidade Salvador (Unifacs) 2 Administradora de Empresas. Mestranda em Análise Regional pela Universidade Salvador (Unifacs) 3 Economista. Doutor em Geografia pela Universidade de Barcelona – Es. Professor titular do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional e Urbano da Universidade Salvador (Unifacs) 4 Realmente existe muita indefinição conceitual, como se verá a seguir no uso indistinto de categorias diferentes como desenvolvimento local e desenvolvimento endógeno. 5 A economia urbana fornece as bases econômicas para os estudos de desenvolvimento endógeno enquanto a teoria da localização e a economia regional referem-se ao desenvolvimento local. RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO Raízes econômicas das teorias da localização As questões da concentração e da aglomeração ocupam lugar central nas teorias e nos modelos de localização industrial, que dominaram a ciência econômica regional, no século passado. No âmbito da teoria geral, tais questões se estabeleceram, basicamente, ao considerar-se o comportamento dos consumidores e produtores, por um lado, e o do Estado por outro, enquanto que, no campo da teoria econômica espacial se determinaram a partir de considerações setoriais. Esta diferenciação é importante, porque, deixando a parte conexões inevitáveis, ajuda a entender a delimitação dos campos da micro e macroeconomia espaciais, como a Teoria da Localização Empresarial e a Economia Regional, respectivamente. Para se chegar a um entendimento, desta natureza é preciso ter presente as sucessivas construções que, passo a passo, foram sendo elaboradas pelos chamados teóricos da localização, as quais não são registradas detalhadamente nos compêndios de uso escolar e aparecem fragmentados nas obras de vários autores. É nesta análise evolutiva que a observação da existência de uma microeconomia setorial frente a uma microeconomia do comportamento adquire toda relevância, já que desde o princípio das análises locacionais todos os estudos se interessaram pela determinação de assentamentos ótimos para as produções agrárias e industriais. Segundo Ponsard (1958), a despeito do mérito precursor de Cantillon6 foi Von Thünen o fundador da Economia Espacial com a sua obra O Estado Isolado cuja teoria sobre a formação e estruturação do espaço agrícola constitui um paradigma da modernização espacial. Posteriormente, ainda de acordo com Ponsard, os estudos da localização industrial agrícola foram substituídos pelos relacionados com a localização industrial, a partir da passagem da era da carruagem para a da estrada de ferro. Seja qual for o motivo, a análise locacional agrícola, segundo Arau RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO (1971)7, só volta em 1922 com a obra de Brinkmann, seguidor das análises thunesianas, traduzida para o inglês em 1935, e, posteriormente, em 1954, por Dunn no seu The Location of Agricultural Production. As análises de caráter industrial assumiram o campo dos estudos espaciais quando Weber delimitou o âmbito formal desses estudos ao publicar em 1909 sua obra Urber den Standort der Industrien, onde elabora um modelo econômico espacial destituído de toda a casuística indutivista, empregando uma metodologia eminentemente dedutiva. A contribuição de Weber, não só delimita o âmbito específico da localização industrial como provoca discussões posteriores que garantiriam a sua continuidade. Estas discussões compreendiam, em primeiro lugar, uma reflexão de caráter geral que, segundo colocações de Schumpeter (1964) e outros, formulava a questão de que a teoria da localização constituía uma teoria particular da microeconomia convencional ou se deveria compor a microeconomia espacial, e, em segundo lugar, a intenção de defender e ampliar o modelo weberiano. Na realidade, ambos os questionamentos oferecem um tratamento conceitual comum, não apenas porque a teoria de Weber foi estudada quase que exclusivamente por teóricos da localização, mas a convergência deriva do fato de que em ambos os casos o pretendido era a inter-relação entre a incipiente teoria econômica espacial e uma vigorosa microeconomia de base marginalista. É importante destacar que sendo considerada a teoria espacial deve-se ajustar à realidade as hipóteses básicas do marco tradicional, e no caso da microeconomia marginalista devese manter nas formulações conven- cionais a contribuição weberiana, como algo essencial aos estudos espaciais. Em termos históricos, Predöhl (1927 apud PONSARD, 1958 p. 42) tenta reconsiderar os fundamentos da análise locacional8. Contemporaneamente, Engleander, em 1926, tentaria tratar, sob condições espaciais, a mobilidade dos bens, especificamente a da oferta e da procura, considerando a vinculação que os gastos de transporte estabelecem entre necessidades e mercado. Hawttrey também em 1926, seguindo as idéias de Engleander, aponta para a importância locacional dos centros comerciais e dos mercados bursáteis e Ritschel, em seu trabalho publicado em 1927, destaca a importância do conceito de “circuito econômico” e oferece um enfoque revelador por suas perspectivas dinâmicas, ainda que entendidas num sentido histórico (PONSARD, 1958). Como é óbvio, cada um desses estudos fornecia um degrau adicional num processo que tendia a conduzir diretamente ao estabelecimento da teoria econômica espacial. Não obstante, todos estes intentos, padeciam de escassa formalização. Por isto, segundo Arau (1971), Weigman, em 1926, se interessou na correção dessa deficiência – o que realizou de forma complexa e abstrata. Ele pretendia assentar as bases para uma teoria econômica espacial realista, destacando a necessidade de se abandonar o contexto inerente à concorrência perfeita e adotar um enfoque competitivo de caráter restrito, levando em conta a imobilidade dos fatores que, por estarem num espaço físico determinado, motivam o aparecimento de inelasticidades espaciais. Weigman destacou também, a necessidade de completar a aplicabilidade do enfoque do equi- 6 Richard Cantillon (1680-1734) banqueiro francês de origem irlandesa foi redescoberto por W.S. Jevons é o autor do Essay sur la nature du commerce em general escrito em torno de 1730.Segundo Schumpeter, Cantillon influenciou diversos economistas que inclusive plagiaram sua obra, estando incluído entre estes o notável Adam Smith. Discute-se até hoje os seus méritos como predecessor da ciência econômica e da economia espacial. (SCHUMPETER, 1964, p.313). 7 As citações a Arau não representam transcrições literais. Foram traduzidas do espanhol por Noelio D. Spinola e incorporadas fragmentadamente e complementadas no texto de acordo com a interpretação e informações adicionais agregadas pelo tradutor e autor deste artigo. 8 Isard em seu Location and Space-Economy apresenta uma interessante análise da concepção de Predohl (1971, p.31). Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA 91 “ Na década de 1950, surgiram várias teses importantes para a teoria do desenvolvi- mento regional e para os sistemas de planejamento desenvolvidos nos anos 1960... ” líbrio walrasiano à base germânica de gestalt. Em toda a sua contribuição, Weigman parte da consideração da economia como um todo, pensando em torno das suas formas básicas de unidades espaciais (região, mercado, marco competitivo). Porém, se bem considere os problemas que poderão advir para a análise, com a inclusão de uma economia aberta, tal fato não parecia preocupá-lo significativamente. No entanto é Ohlin, que em 1933 no seu Comércio inter-regional e internacional, procura demonstrar que a teoria do comércio internacional é somente uma parte da teoria geral da localização. Estabelece, assim, um modelo de determinação dos preços no qual se define uma interdependência geral em relação com a variação dos mesmos numa multiplicidade de mercados (ARAU, 1971). As investigações tendentes a estabelecer os fundamentos da economia espacial são reforçadas, em 1929, pelos trabalhos de Hotelling e seu modelo de economia de aglomeração e, em 1935, por Palander, o primeiro economista fora da Alemanha a trabalhar nesta área do conhecimento. A contribuição de Palander consistiu na tentativa de determinar um sistema de equilíbrio para as análises espaciais (PONSARD, 1958). Segundo Arau (1971) em 1948, Lösch com a sua Teoria Econômica Espacial, constrói uma teoria verdadeiramente geral do espaço econômico, ao considerar uma teoria da localização, uma teoria das regiões e uma teoria de intercâmbio. Esta teoria elaborada por Lösch distingue-se radicalmente da abordagem weberiana, 92 na medida em que enfatiza a definição das áreas de mercado e toma como motivo principal da localização, a maximização do lucro. Segundo Losch as regiões são espaços de mercado rodeados por fronteiras econômicas. Aparecem como uma demarcação espacial originada do jogo das forças econômicas. Para seu estabelecimento, deve-se partir da análise de fatores econômicos tais como as forças de aglomeração e as economias de escala. Ao se tratar de região, não se pode olvidar a importância de Boudeville (1965) com os conceitos de região homogênea, região polarizada e região de planejamento que tanto influenciaram o planejamento regional brasileiro nas décadas de 1960 e 1970. Fechando a primeira metade do século XX, merece referência a Hoover com o seu The Location of Economic Activity de 1948, onde busca aprofundar a abordagem das questões da localização industrial, com os conceitos das economias de escala – associadas à eficiência técnica das empresas e as economias urbanas decorrentes da disponibilidade de infra-estrutura9. Por fim, há que se fazer dois registros especiais. Primeiro, ao geógrafo alemão Walter Christäller e a sua Teoria da Localidade Central, que representa uma das mais vigorosas contribuições para o desenvolvimento da economia urbana, notadamente no que tange aos estudos locacionais do comércio e dos serviços. Christaller está ausente de vários tratados de economia espacial, inclusive daqueles que tratam da história deste campo do saber, em que pese a inter-relação com Lösch10. Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA O segundo registro refere-se Isard, cuja contribuição é significativa para a macroeconomia do espaço e para os métodos de análise regional, que são utilizados até os tempos atuais11. Na década de 1950, surgiram várias teses importantes para a teoria do desenvolvimento regional e para os sistemas de planejamento desenvolvidos nos anos 1960. Destacamse entre essas os conceitos: a deterioração dos termos de intercâmbio e da industrialização como fator estratégico para ruptura do subdesenvolvimento de Raul Prebisch e da Cepal12; de “pólo de crescimento”, de François Perroux ; da “base de exportação” de Douglas North ; da “causação circular acumulativa”, de Gunnar Myrdal ; do big push de Rosenstein Rodan e o tricking down forces de Albert Hirschman . Todas estas idéias-força foram incorporadas por Celso Furtado, em 1959, no documento mais famoso do planejamento regional do Brasil intitulado Uma política de desenvolvimento econômico para o Nordeste que cria as bases teóricas da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), também criada em 195913 (SPINOLA, 2003). Segundo Krugman (1991) os esforços intelectuais na busca da produção de idéias que contribuam para o desenvolvimento regional prosseguem a partir dos anos 1970, com os economistas considerados evolucionistas e institucionalistas, representados por Becattini, Pyke, Sengenberger, Stoper, etc. Esses utilizam o argumento das externalidades dinâmicas e redescobrem a teoria dos distritos industriais, desenvolvida originalmente por Marshall. Porém, distanciam-se dos autores antes citados 9 Sobre Hoover comenta Isard : In the way he is able to synthesize the various theoretical contributions of his predecessors that are of practical value…Hoover writings are the best (1956,p.30). 10 Quem estuda a história deve sempre estar atento para os vieses ideológicos e corporativos e as posturas nacionalistas. É freqüente economistas excluírem geógrafos em suas citações e vice-versa. Também franceses e ingleses possuem uma longa rivalidade intelectual ignorando mutuamente em diversas situações. 11 É lamentável que, depois de tantos anos, as obras seminais de Isard não tenham sido traduzidas para o português. 12 Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal). 13 Em termos do planejamento regional a Bahia foi pioneira no Brasil com o Plano de Desenvolvimento da Bahia (Plandeb), elaborado por Rômulo de Almeida e equipe e concluído em 1958. A tese de desenvolvimento de Rômulo era oposta a de Furtado em alguns aspectos básicos, porém esta é outra história. RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO uma vez que admitem o papel dos agentes locais (“atores”, “protagonistas”) na organização dos fatores e na coordenação do processo cumulativo. Levando-se em conta as teorias desenvolvidas nos anos 50 e as estratégias endógenas desenvolvidas mais recentemente, o elemento relevante a se destacar é a inovação tecnológica. Esta se apresenta como uma aprendizagem contínua e acumulativa das empresas para melhorar os produtos, os processos e a gestão funcionando como um incremento à produtividade e à competitividade. Antes de tudo, a tecnologia deve ser observada não somente como um objeto que se oferece ao mercado, mas, também, como um processo de aprendizagem social que, em todo caso, é uma contribuição substancial aos processos de Desenvolvimento Local que serão examinados a seguir. cas sociais dessas regiões16de desenvolvimento endógeno (a construção social do mercado) Becattini observou que o tipo de organização industrial dessas regiões, mistura de concorrência-emulação-cooperação no seio de um sistema de pequenas e médias empresas, fazia lembrar um velho conceito: o “distrito industrial” de Alfred Marshall. Ainda sobre esses distritos industriais italianos, geradores das estratégias de desenvolvimento local ou endógeno, cabe destacar duas importantes colocações formuladas por Becattini visto contribuírem de forma esclarecedora para alguns aspectos que serão tratados em seguida neste artigo. Becattini afirma que: O distrito industrial é uma entidade socioterritorial caracterizada pela presença ativa de uma comunidade de pessoas e de uma população de empresas num determinado espaço geográfico e histórico. No distrito, ao invés do que acontece noutros tipos de meios, como por exemplo as cidade industriais, tende a criar-se uma osmose perfeita entre a comunidade local e as empresas. ......................................................... A sua característica mais marcante é o seu sistema de valores e de pensamento relativamente homogêneo – expressão de uma certa ética do trabalho e da atividade, da família, da reciprocidade e da mudança – o qual, de alguma maneira, condiciona os principais aspectos da vida....Paralelamente a este sistema de valores, desenvolveu-se um corpo de instituições e de regras destinadas a propagar esses valores a todo o distrito, estimulando a sua adoção e transmissão de geração em geração..... Em termos simples o distrito é um caso concreto de divisão do trabalho localizada, não diluída num mercado geral nem concentrada no seio As novas denominações do processo de desenvolvimento: a estratégia do desenvolvimento local A partir da década de 1970, quando se registra a crise do modelo fordista de produção em massa; a “descoberta” dos distritos industriais marshalianos na Terceira Itália14 por Arnaldo Bagnasco, Carlos Triglia e Sebastiano Brusco; e o trabalho seminal de Michael Piore e Charles Sobel, com a proposta de um novo paradigma tecnológico, o da especialização flexível cuja forma especial seria o distrito industrial15 , complementada por inúmeras outras contribuições importantes de Becattini , Scott , Storper e Walker, (BENKO, 1994 p.10) são lançadas as bases do que viria a ser conhecido como “desenvolvimento local”. Segundo Benko (1994 p. 10): Entre a industrialização clássica do triângulo Milão-Turim-Gênova e o subdesenvolvimento desesperadamente persistente do Mezogiorno, emergiam cidades e vales que, baseando-se exclusivamente nas suas energias, se integravam vitoriosamente ao mercado de trabalho mundial, através de uma indústria específica. Enquanto os primeiros estudos insistiam nas característi- RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO “ ... a tecnologia deve ser observada não somente como um objeto que se oferece ao mercado, mas, também, como um processo de aprendizagem... ” de uma ou várias empresas. O termo localização não significa aqui a concentração acidental de vários processos produtivos estabelecidos no mesmo local devido a atração de fatores próprios da região. Pelo contrário, as empresas enraízam-se no território, e não é possível conceituar este fenômeno sem ter em conta a sua evolução histórica.(BECATTINI apud BENKO, 1994 p.20). À parte os aspectos eminentemente históricos e culturais que respondem pela existência e sucesso dos distritos industriais italianos, destaque-se, por fim, que as estratégias de desenvolvimento local tiveram grande sucesso em outros países da Europa (a Espanha é o maior exemplo) graças aos maciços investimentos a fundo perdido efetuados pela União Européia (UE) no bojo do Programa Leader17. Nos Estados Unidos, também foram citados como exemplo o aglomerado de indústrias do Vale do Silício (SAXENIAN, 1980, BENKO, 1991 apud BENKO 1994). É importante observar que desenvolvimento local, endógeno, autosustentável, integrado, comunitário etc. constituem expressões que representam diferentes estratégias que, por isto mesmo, comportam diferentes definições.18 Não se trata aqui de 14 A denominada Terceira Itália compreende a região polarizada por Bolonha e Firenze.O conceito de distrito industrial foi forjado por Alfred Marshall em 1900. 15 Conceito forjado por Alfred Marshall em 1900. 16 Um aspecto extremamente importante que não é observado pelos países que buscam importar esse modelo. 17 Nas décadas de 1990, principalmente, foram executados diversos programas de investimento na Espanha e Portugal objetivando fomentar o desenvolvimento destes países e criar condições para a sua integração no bloco econômico da União Européia. Parte desses investimentos foram realizados no financiamento, a fundo perdido, de empreendimentos empresariais agrícolas, industriais e de turismo. 18 Neste artigo serão considerados apenas os aspectos relacionados com o desenvolvimento local e o endógeno. Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA 93 “ ... o aumento da eficiência do sistema de produção nas regiões, não é uma condição suficiente para que se satisfaçam melhor as necessidades elementares da população local... ” uma simples questão de hermenêutica (aos olhos dos mais pragmáticos), mas de um problema metodológico19 que não só compromete o rigor científico exigido de quem trabalha com as ciências sociais como distorce, confunde e dificulta, em termos universais, o sentido de políticas públicas adotadas sob o rótulo dessas denominações.20 González (1998) considera muito importante diferenciar o desenvolvimento local, do que chama de “localizado”. Para ele, …el desarrollo localizado se trata de un desarrollo económico y social, localizado en un espacio concreto dentro de una dinámica general cambiante. Es un proceso general que afecta a todas las estructuras productivas y sociales y que se distribuye por todos los territorios afectados por el mismo (GONZALEZ, 1998, p.6). No entendimento deste autor o desenvolvimento local corresponde ao que aqui no Brasil denominamos de endógeno. Ou seja: um processo diferente no sentido de que é voluntário e combinado, ou pelo menos conhecido, pelo conjunto de uma coletividade concreta na que se realiza um processo diferenciado daquele que ocorre em seu entorno próximo, mediante a introdução de inovações que geram valor adicionado a suas atividades produtivas e cotidianas (GONZALEZ, 1998, p.6). Neste sentido quando o desenvolvimento de um determinado espaço ocorre como conseqüência de fatores exógenos dever-se-ia denomi- 94 ná-lo simplesmente de desenvolvimento regional. Neste caso a expressão desenvolvimento local e endógeno seriam sinônimas. O desenvolvimento endógeno obedece a uma visão territorial (e não funcional) dos processos de crescimento e mudança estrutural, que parte de uma hipótese de que o território não é apenas um mero suporte físico dos objetos, atividades e processos econômicos, mas também que é um agente de transformação territorial, segundo Agnew & Ducan (1989), Giddens (1991) e Albagli (1999) apud Lastres e Cassiolato (2000). Por seu turno Barquero (2002) considera que os processos de desenvolvimento endógeno ocorrem graças à utilização produtiva do potencial de desenvolvimento possibilitado quando as instituições e mecanismos de regulação do território funcionam eficientemente. A forma de organização da produção, a estrutura familiar, a estrutura social e cultural e os códigos de conduta da população condicionam os processos de desenvolvimento favorecendo ou limitando a dinâmica econômica e, em definitivo, determinam o rumo específico do desenvolvimento das cidades e das regiões. O desenvolvimento endógeno é um processo que passa por diversas fases, Baquero (1999) e Malé (2001), identificam três dimensões importantes desse processo: a primeira de caráter econômico, que permite aos empresários e agentes econômicos locais usar eficientemente os fatores produtivos e alcançar os níveis de produtividade que lhes permitem ser competitivos nos mercados; a segunda, de cunho sociocultural, na qual os atores econômicos e sociais se integram com as instituições locais formando um sistema denso de relações que incorporam os valores da sociedade no processo de desenvolvimento local endógeno; e, a terceira e última, de caráter político, que ins- Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA trumentaliza, mediante as iniciativas locais, permitindo criar um entorno local que estimule a produção e favoreça o desenvolvimento. É importante observar que o aumento da eficiência do sistema de produção nas regiões, não é uma condição suficiente para que se satisfaçam melhor as necessidades elementares da população local, inclusive observa-se que a degradação das condições da vida de algumas populações é conseqüência da introdução de técnicas mais avançadas (FURTADO 1979). Isto decorre da própria natureza concentradora do sistema capitalista. Como Nurkse (1957) afirmava, nos países pobres as próprias forças do mercado perpetuam a pobreza, dado que, para sair dela, são necessários investimentos para aumentar a produtividade. Nurkse admite que a dificuldade desta situação é fruto não somente da escassa poupança dos pobres, mas, também, pela falta de incentivo e benefícios para a construção de indústrias de alta produtividade, uma vez que o mercado local existente é demasiado pequeno. Complementando Nurkse destacaríamos também a necessidade de substanciais investimentos na educação básica e tecnológica, destinada fundamentalmente para as camadas mais pobres da população, único caminho viável para a promoção da desconcentração da renda. A inexistência de poupança local constitui realmente um entrave para qualquer estratégia de desenvolvimento que se objetive. Este parece ser um fato pouco considerado pelos adeptos do desenvolvimento local. Vale lembrar que os exemplos citados: distritos industriais marshalianos, Vale do Silício e experiência espanhola, que geraram toda a euforia em torno do paradigma da especialização flexível e do desenvolvimento local, não possuem identificação com a realidade brasileira. O que ocorreu no Vale do Silício foi 19 Aqui também se reflete a dificuldade dos economistas em lidar com o espaço e os desencontros conceituais entre a economia regional e a urbana. 20 Entendemos que estas expressões representam estratégias de políticas públicas, não constituindo, de per si, teorias. Estão, de modo geral, integradas à teoria do desenvolvimento econômico com base keynesiana ou neo-schumpeteriana. RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO um fenômeno que Hirschman (1958) definiria como forward effects a partir da massa crítica de conhecimentos gerados pela vizinha Universidade Stanford e outras similares no estado mais rico do país mais rico e avançado tecnologicamente do mundo. Os distritos industriais italianos constituem um fenômeno estruturalmente histórico (de uma região onde, segundo vários estudiosos do assunto, a solidariedade é uma característica política formada ao longo de séculos, daí ser também conhecida como Itália Vermelha pelo predomínio do partido comunista italiano na administração comunal o que, aliás, fez com que a região fosse excluída dos benefícios do Plano Marshall para a Europa) e, sobretudo, um produto da cultura mediterrânea, algo peculiar, sui generis, e intransmissível.. Já o ocorrido na Espanha deveu-se principalmente ao estímulo decorrente da injeção maciça de recursos não exigíveis pela União Européia através do Programa Leader. Diante do exposto e segundo um enfoque pessimista, porém realista, existe uma ilusão desenvolvimentista que esquece o quadro econômico predominante, (que sempre foi e continua sendo cada vez mais acentuado com o processo de globalização), baseado em trocas desiguais entre os países, estados ou regiões industrializados (ou primeiro mundo) e os países, estados ou regiões periféricos e semiperiféricos (ditos emergentes ou subdesenvolvidos) (ARRIGHI, 1997) o que, segundo Walerstein (1998), é essencial para a estabilidade da economia capitalista mundial. Desta forma, pode-se identificar, a nível internacional, os países do Norte e os países do Sul; a nível nacional (Brasil), o Sudeste e o Nordeste; e, a nível baiano, o Litoral e o Interior sendo que, os primeiros estão sempre se apropriando de uma parcela desproporcional dos benefícios da divisão internacional do trabalho, enquanto que os segundos colhem apenas os benefícios que são necessários para conservá-los na relação de troca desigual (ARRIGHI, 1997). O termo periferia descreve uma situação geral, mas que tem sentido RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO estrito, decorrente do desenvolvimento desigual da economia capitalista. O argumento chave do desenvolvimento desigual, de acordo com as teorias desenvolvidas por Myrdal (1957) e Hirschman (1958) deve-se ao fato de que as forças econômicas de atração e repulsão atuam no espaço, de forma desequilibrada, através de um processo circular cumulativo. Uma vez que as forças de atração favoreçam uma região, em detrimento de outra, estabelece-se um processo de concentração de fatores de produção de bens no espaço – o centro –, cujas relações de troca com a região desfavorecida – a periferia – reproduzem a dinâmica centroperiferia. O fator escala da produção aglomerada, ao nível do território, é o fator chave desta dinâmica, pois cria retornos crescentes localizados. Mesmo que a teoria vislumbre uma eventual reversão deste movimento de polarização espacial, favorecendo a atração de fatores e de produção de bens nas regiões periféricas, nada indica uma convergência inter-regional do nível de desenvolvimento. Ao contrário, a dinâmica de reversão da polarização é geograficamente restrita a localidades próximas ao centro, caracterizando o que Richardson (1975) denominou de “dispersão concentrada”. Conclusão Diante do exposto, fica claro que, se por um lado, existem aqueles que defendem a inexistência de espaço para o surgimento espontâneo dos processos de desenvolvimento das cidades, regiões e países periféricos, outros sustentam que, em determinadas condições, seriam possíveis formas específicas de desenvolvimento dependente, mesmo que não seja generalizada para toda a periferia. Para Schumpeter (1963), o desenvolvimento não é um fenômeno que possa ser explicado economicamente. O processo de inovação assume, em sua visão, um caráter dinâmico, marcado pela reprodução de conhecimentos de indivíduos e agentes coletivos. O conceito de sistema de inovação emerge dessa percepção da importância de elementos como a interação e a cooperação de atores. Como a economia é afetada pelas mudanças do mundo que a rodeia, as causas e a explicação do desenvolvimento devem ser buscadas, também, fora dos estudos da teoria econômica. Para Barquero (2002) um dos pilares da política de desenvolvimento local são aquelas iniciativas que favorecem a difusão das inovações no tecido produtivo da localidade ou do território e a melhoria de qualificação dos recursos humanos por meio da adequação da oferta de capacitação às necessidades dos diferentes sistemas produtivos locais. A diferença entre aglomerações produtivas (baseadas em externalidades marshalianas) e inovativas (baseadas em externalidades schumpeterianas) é, principalmente, a capacidade de criação de um ambiente inovativo, caracterizado pelo engajamento das pessoas de boa qualificação nas causas de inovação e design, as trocas entre fornecedores e usuários e seus efeitos de encadeamento, a presença de programas de qualificação seja de pessoal, seja das atividades técnicas e produtivas e, principalmente, a cooperação entre os atores envolvidos, seja entre firmas competidores ou entre usuários e produtores. Assim, é relevante a formação de centros regionais de atividade econômicas (ou aglomerações geográficas de empresas) para a ocorrência de inovações (RESENDE, 2003). Essa aglomeração geográfica estaria na base de ganhos de produtividade na atividade de pesquisa que visa inovações e que assegura crescentes economias de escala (KRUGMAN, 1991), estimulando o investimento. As aglomerações geográficas de atividades econômicas propiciam ganhos de produtividade, favorecem a produção de pesquisas que, por seu “ ... desenvolvimento não é um fenômeno que possa ser explicado economicamente... Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA ” 95 “ Os programas em execução foram conceitualmente influenciados pela experiência aglomerativa dos distritos industriais italianos e do Vale do Silício... ” turno, podem ter êxito na geração de inovações. Havendo maior produção de pesquisa, a probabilidade de ocorrerem inovações aumenta. Por fim, este modelo expressa a existência de um ciclo virtuoso de crescimento: cada inovação que ocorre em determinada região estimula o aumento da renda nessa região. Conforme Krugman (1991), assumindo retornos crescentes de escala o aumento da renda estimula o investimento que, segundo Porter (1990), se expressa no incremento da aglomeração geográfica. No Brasil, a partir da década de 1990, realizam-se programas de desenvolvimento local sob a liderança do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE) com a ativa participação de outros organismos de fomento regional federais e estaduais.21 Os programas em execução foram conceitualmente influenciados pela experiência aglomerativa dos distritos industriais italianos e do Vale do Silício, na Califórnia, no âmbito do paradigma da especialização flexível. No país é vasta e diversificada a produção teórica sobre este assunto, sobretudo na área acadêmica, onde se destaca a contribuição do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IE/ UFRJ) que vem, há muitos anos, com o apoio de organismos internacionais, desenvolvendo projetos de pesquisa na área da inovação. O IE/ UFRJ opera a Rede de Pesquisa em Sistemas Produtivos e Inovativos Locais (RedeSist) interdisciplinar, 96 com a participação de várias universidades e institutos de pesquisa do Brasil e do exterior. Um dos primeiros conceitos relacionados com aglomerações empresarias, surgidos no país, foi o de cluster. Segundo define a RedeSist este termo associa-se à tradição anglo-americana e, genericamente, refere-se a aglomerados de empresas, desenvolvendo atividades similares. Ao longo do tempo o conceito ganhou nuances de interpretação sendo bastante utilizado no país, notadamente pelo apelo que representa para os nativos as expressões na língua inglesa. Posteriormente surgiu o conceito de arranjos produtivos locais, conhecidos pela sigla APL, uma versão brasileira 22 . Em 2003 a RedeSist assim o definia: são aglomerações territoriais de agentes econômicos, políticos e sociais - com foco em um conjunto específico de atividades econômicas - que apresentam vínculos mesmo que incipientes. Geralmente envolvem a participação e a interação de empresas - que podem ser desde produtoras de bens e serviços finais até fornecedoras de insumos e equipamentos, prestadoras de consultoria e serviços, comercializadoras, clientes, entre outros - e suas variadas formas de representação e associação. Incluem também diversas outras instituições públicas e privadas voltadas para: formação e capacitação de recursos humanos, como escolas técnicas e universidades; pesquisa, desenvolvimento e engenharia; política, promoção e financiamento. O argumento básico do enfoque conceitual e analítico adotado pela RedeSist era que: Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA ...onde houver produção de qualquer bem ou serviço haverá sempre um arranjo em torno da mesma23, envolvendo atividades e atores relacionados à aquisição de matérias-primas, máquinas e demais insumos, além de outros. Tais arranjos variarão desde aqueles mais rudimentares àqueles mais complexos e articulados (sistemas). A formação de arranjos e sistemas produtivos locais encontra-se geralmente associada a trajetórias históricas de construção de identidades e de formação de vínculos territoriais (regionais e locais), a partir de uma base social, cultural, política e econômica comum. Sistemas são mais propícios a desenvolverem-se em ambientes favoráveis à interação, cooperação e confiança entre os atores. A ação de políticas, tanto públicas como privadas, pode contribuir para fomentar e estimular (e até mesmo destroçar)24 tais processos históricos de longo prazo. (REDESIST, 2005). Já em 2004, fruto da evolução dos estudos, surge o conceito dos Arranjos e Sistemas Produtivos e Inovativos Locais (ASPILS). Segundo a RedeSist constitui esta uma abordagem mais adequada, pois nos ASPILs, geralmente verificam-se processos de geração, compartilhamento e socialização de conhecimentos, por parte de empresas, organizações e indivíduos. Particularmente de conhecimentos tácitos, ou seja, aqueles que não estão codificados, mas que estão implícitos e incorporados em indivíduos, organizações e até regiões. O conhecimento tácito apresenta forte especificidade local, decorrendo da proximidade territorial e/ou de identidades culturais, sociais e empresariais, tornando-se elemento de vantagem competitiva de quem o detém (REDESIST, 2004). A partir desse momento os APLS passam a ser considerados no glosário da RedeSist apenas como casos fragmentados e que não apresentam significativa articulação entre os atores. O fato é que, como não existe uma padronização de linguagem entre os pesquisadores e instituições dedicadas ao assunto, os termos cluster, APL e ASPILS, são usados como sinônimos. Na tradição luso-brasileira de solução dos problemas por decreto, 21 Os programa de fomento às micro, pequenas e médias empresas no Brasil datam da década de 1960 porém utilizando metodologias e enfoques diferentes. 22 Emocional e patrioticamente defendida em documento do BNDES [2004?]. 23 Esta interpretação ajusta-se como uma luva aos projetos de fomento as APLs nas regiões menos desenvolvidas do país. O grifo é nosso. 24 Uma marca típica da corrente neo-schumpeteriana que domina esta área. RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO ou seja, formalmente no papel, existe, muito entusiasmo em torno de projetos desta natureza e sob este escopo. A exemplo do que já ocorreu com outros termos (pólo, por exemplo) estas são as “palavras totêmicas” da vez. E todos administradores de projetos, notadamente no setor público, correm atrás dos seus clusters, apls, aspils, sem importarem-se muito com os fundamentos teóricos da questão. Aspectos culturais, sociológicos, tecnológicos etc. são ignorados e numa perspectiva orwerliana reescreve-se a história ajustando a realidade à necessidade midiática e política dos protagonistas, sem qualquer consideração pela fragilidade, inadequação e até a inexistência dos atores principais. Porém, quando efetivamente existem25, os sistemas produtivos locais têm se mostrado, com disposição especial para introduzir e adotar inovações e, sobretudo, adaptar as tecnologias mediante pequenas mudanças e transformações que permitem às empresas melhorar sua posição competitiva nos mercados As externalidades que surgem dos sistemas locais de empresas podem gerar rendimentos crescentes e resultar, assim, no crescimento da economia territorial. Além do mais, quando a tecnologia disponível permite às empresas especializar-se em partes do processo produtivo, proporcionam vantagens competitivas às empresas locais nos mercados nacionais e internacionais. O principal condicionante territorial para o surgimento de sistemas produtivos locais é a capacidade de atração de atividades correlatas e complementares, capazes de estabelecerem uma cadeia produtiva localizada, de tal forma que o poder de indução intersetorial seja internalizado na aglomeração. Em outro nível encontram-se as chamadas aglomerações produtivas informais, que são compostas, geralmente, por micros e pequenas empresas, cujo grau tecnológico é baixo em relação à fronteira da indústria e cuja capacidade de gestão é precária. A força de trabalho possui baixa qualificação, sem sistema contínuo de aprendizado. As dificuldades de RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO verticalização intersetorial local podem resultar em sistemas produtivos que são um aglomerado de empresas mono-produto, com baixo nível de troca intra-arranjo. Ou seja, a fonte mais tangível de externalidades localizadas é comprometida pelo baixo desenvolvimento da cadeia local. No entanto, é possível reproduzir cadeias relativamente completas em localidades periféricas, que se beneficiam de externalidades “perrouxianas”, desde que puxadas por um centro industrial nacional ou regional de grande porte, capaz de adensar o espaço regional. O desenvolvimento da divisão intra-regional do trabalho possibilita, neste caso, uma especialização local em atividades industriais tradicionais e a internalização substantiva da cadeia produtiva, inclusive os segmentos de máquinas e equipamentos. Assim, o poder de indução intersetorial é potencializado e o mercado de trabalho é capaz de acumular, ao longo do tempo, capacitações específicas, não reproduzíveis em outras localidades. De toda a discussão o fato irrefutável é que todos os esforços para a promoção do desenvolvimento são indispensáveis, sobretudo porque a cada dia se agrava mais o quadro de estagnação econômica e da deterioração das condições sociais de vastas regiões da periferia capitalista nesse contexto de globalização. O grande desafio consiste em pensar o desenvolvimento levando em consideração abordagens realmente eficazes e ajustadas às nossas peculiaridades culturais. Referências ARAU, Juan Hortalá. In ISARD, Walter. Metodos de Analisis Regional.Barcelona: Ariel, 1971. ARRIGHI, Giovanni. A ilusão do desenvolvimento. Petrópolis: Vozes, 1997. BARQUERO, Antonio Vasquez. Desarrollo, redes e innovación: lecciones sobre desarrollo endógeno. Madrid: Pirámide, 1999. ___________. Desenvolvimento endógeno em tempos de Globalização. Porto Alegre: UFRGS Editora, 2002. 25 BECATTINI, Giacomo in BENKO, As regiões ganhadoras. Oeiras – Portugal: Celta, 1994. BENKO, As regiões ganhadoras. Oeiras – Portugal: Celta, 1994. BNDES – Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social. Arranjos Produtivos Locais e Desenvolvimento (Versão Preliminar). Rio de Janeiro [2004?] BOUDEVILLE, Jacques-R. Los espacios econômicos.Buenos Aires: Eudeba,1965. CORSI, Francisco Luiz. A questão do desenvolvimento à luz da globalização da economia capitalista. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, n. 19, nov. 2002. Disponível em: <http: //test. scielo.br >. Acesso em: 07 ago. 2005. CASSIOLATO, J. E; LASTRES, H. M. M. 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Desenvolvimento Regional 2. Desenvolvimento Urbano 3. Turismo e Meio Ambiente OBJETIVOS 1. Adequar a formação dos profissionais à demanda de um mercado de trabalho em que é mais intensa a renovação do conhecimento científico e tecnológico. 2. Desenvolver a capacidade do profissional para apropriar-se de novos conhecimentos. 3. Desenvolver a capacidade destes profissionais para contribuir em uma solução de problemas sócio-econômicos organizacionais locais, regionais e nacionais. 4. Formar e atualizar professores, capacitando-os para o desempenho qualificado do ensino de graduação e pós-graduação. www.unifacs.br [email protected] Tel.: (71) 3273-8528 MESTRADO RECOMENDADO PELA CAPES 98 5. Formar uma massa crítica capaz de desenvolver trabalhos científicos que contribuam para o desenvolvimento local, regional e nacional. 6. Desenvolver a integração Universidade/Empresa incentivando a realização da pesquisa aplicada. 7. Promover o aprimoramento do processo ensino/aprendizagem através do incentivo à realização de pesquisas institucionais e o aperfeiçoamento do ensino de graduação. Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO ISABELLE STENGERS, A INVENÇÃO DAS CIÊNCIAS MODERNAS, SÃO PAULO, EDITORA 34, 2002. Fernando Pedrão A autora tem um notável currículo como filósofa associada a literatura científica de ponta, dentre outros antecedentes, por ter partilhado com Ilya Prigogine dois livros famosos, A nova aliança (Unb, 1997) e Entre o tempo e a eternidade (Companhia das Letras, 1992). É dona de um pensamento instigante, que sobressai da continuidade das reflexões sobre a ciência. Este livro é uma contribuição indiscutível a um debate que esteve preso, por muito tempo, ao prestígio de alguns pensadores que fizeram escola, tais como Karl Popper, Imre Lakatos e Paul Feyerabend. Reveste de grande valor para todos que pensamos em termos das inter-relações entre as ciências sociais e as ciências da natureza. Um dos diversos modos possíveis de resumir este livro tão perspicaz e abrangente pode ser afirmar que na polêmica atual da ciência não há nada mais moderno que Galileu. A autora reproduz o modo galileano de trabalhar (GEYMONAT, 1997) na construção temática do livro, que parte de um mapeamento dos deslocamentos da atividade científica e de traçar as contradições provindas de práticas não científicas, para tirar o gesso que encobre os muros de pedra da ciência, enquanto prática qualificada e enquanto representação ideológica. Na realidade, há requisitos, que ela mesma invoca adiante, de que a singularidade da ciência está ligada a sua capacidade de síntese e universalidade. O fato de que Galileu tenha feito afirmações, que ser tomadas como metafísica, decorre de que ele tenha sido caRDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO paz de alcançar universalidade com observações derivadas de seu método. O essencial é que essa observação reflete algo essencial à ciência. Em muitos aspectos, este é um livro que faltava, para recompor uma visão de conjunto, exorcizadora dos modismos e das tentativas de subordinar a ciência a projetos de poder. Nessa perspectiva, vê-se que, mesmo homens como Bruno e Bacon, que foram moldados e vítimas de sua própria prática política, reaparecem iluminados pela independência interna de seu trabalho frente ao Poder. Não há como ter ilusões! O poder persuasivo do poder organizado é brutal e é sutil e permeia ideologicamente a ciência, através da atração dos cientistas. A vertente antropológica saxônica e o controle burocrático das prioridades da ciência caminham na mesma direção. No entanto, a ciência está além dos reducionismos, porque não se restringe às condições dos cientistas individuais, isto é, carrega algo próprio, que faz com que o paradigma – no sentido que lhe foi dado por Thomas Kuhn (1972) – esteja além das circunstâncias, porque carrega o peso do acontecido (pp.63). A dita “ciência normal” será, dentre outras coisas, a ciência de um “período normal” que não foi abalado por rupturas reais no fluxo do pensamento científico. Entendo que isso nos autoriza a pensar que a ciência posterior ao aparecimento da Física Quântica teria que prosseguir como “não normal”, já que se vale de observações que rompem com os padrões de ordem que sustentaram sua trajetória anterior. Stengers detém-se longamente – excessivamente a meu ver – em refazer o caminho da argumentação de Popper e Lakatos, deixando ver as implicações de irracionalidade de uma teoria do conhecimento inspirada em justificar Einstein frente a Poincaré, que ficou, por isso, exposta, frente a uma proposta de ciência que se coloca antes ou acima dos acidentes do trabalho científico. Neopositivistas como Carnap e Nagel não correriam esse risco! No entanto, a questão que nos aflige não se resume a nossa possibilidade de decifrar os elementos de divergência que brotam das polêmicas entre os cientistas. Lembraremos que Heisenberg colocava a questão da incerteza em relação com a problemática de uma compreensão de totalidade, depois explorada por Bohm, em que o significado da parte depende do significado do todo do qual ela é parte. Ao passar a enfrentar a tarefa de construir e não só de criticar, segundo a própria Stengers (pp.75), descobre-se que há uma carência, que se repete nas ciências sociais, de afrontar o fundamento histórico da questão científica. Se a ciência pode tratar com fenômenos que não podem ser definidos como históricos, ela própria é histórica. Sem essa qualificação, surge uma diferenciação entre o trabalho apodado de “normal” e o não normal, que tem diversas feições, tal como entre especialistas e generalistas, ou – diremos – entre criativos e repetidores. Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA 99 Stengers volta-se para a Sociologia, que será a ciência mais representativa desse embate, porque é a que melhor pode situar historicamente a ciência. A sociologia da ciência configura-se como o oposto inevitável da concepção de tecnociência, que se voltará para a mecânica da tarefa científica. Diremos que a sociologia da ciência é a garantia da historicidade da ciência. A noção de tecnociência projeta a imagem de uma ciência presa à norma, mais perto do entendimento kantiano daquilo já ocorrido que de uma faculdade criativa da razão. Stengers deixa passar juízos ácidos da tecnociência, com sua preferência indisfarçável por uma ciência útil, mais atenta aos projetos de poder que aos programas de pesquisa. Stengers recupera a singularidade do trabalho científico, ao mesmo tempo colocando-o como um elemento de um coletivo: se Beethoven morresse jovem ninguém faria suas sinfonias, mas se Einstein morresse jovem alguém trilharia seu caminho. No entanto, ela mesma matiza esse pensamento: se Carnot não existisse, a termodinâmica não seria o que é. Singularidade não é uniformidade. Stengers invoca a pluralidade de línguas dos cientistas para definir o problema de linguagem da ciência, que desborda o reducionismo da epistemologia, sempre em busca um 100 método científico acima de qualquer ciência. As diversas ciências falam diferentes linguagens, que, entretanto, se comunicam no plano de historicidade em que estão inseridas. Diremos que se encontra aí uma questão residual, perante a qual os instrumentos da teoria das ciências se revelam insuficientes. Talvez simplesmente porque a percepção da incerteza ainda não penetrou completamente na consciência social da ciência. Parece-nos que será justamente da junção das ciências sociais com as ciências da natureza – tal como ela é operada por Edgar Morin – que pode haver um encaminhamento aceitável para tratar desse problema. No mundo da incerteza a ordem e a desordem são duas expressões de um ambiente carregado daquela imprevisibilidade dos sistemas que se reproduzem longe do equilíbrio. Estamos aqui diante de outro conflito da ciência, entre aquela razão que busca o bem e aquela outra que regula os arranjos da vida social. A referência aos gregos é inevitável, bem como à distinção entre Aristóteles e os sofistas. Nossa autora desloca-se para o campo da polêmica entre o que é racional e o que é político, com uma referência ao trabalho de Bárbara Cassin (1999) com sua revisão da crítica sofística do logos, e situando historicamente a racionalidade. Stengers encontra-se Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA com a concepção de práxis como composição dos diversos trabalhos, que costura a ciência com o cotidiano. A singularidade da ciência encontra-se com a necessidade de recompor a relação entre sujeito e objeto com a concretização do ser social através da ficção matemática. A observação sintética, final, destas notas é que a invenção das ciências modernas não quer dizer que elas já foram inventadas, senão que se trata de um processo de inventar as ciências que se enriquece com as dúvidas e contradições que surgem no seio delas. Bibliografia BACHELARD, Gaston, El compromiso racionalista, México, Siglo XXI, 1973. BOHM, David, A totalidade e a ordem implicada, São Paulo, Cultrix, 1999. CASSIN, Bárbara, Aristóteles e o logos, São Paulo, Loyola, 1999. GEYMONAT, Ludovico, Galilleu Galilei, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999. HEISENBERG, Werner, A parte e o todo, São Paulo, Contraponto, 1996. KUHN, Thomas, A tensão essencial, Lisboa, Edições 70, 1999. PRIGOGINE, Ilya, STENGERS, Isabelle, A nova aliança, Brasilia, UNB, 1997. _______. Entre o tempo e a eternidade, Rio de Janeiro, Companhia das Letras, 1992. RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO ARANTES, OTÍLIA. UMA ESTRATÉGIA FATAL: A CULTURA NAS NOVAS GESTÕES URBANAS IN: ARANTES, O.; VAINER, C.; MARICATO, E. (ORG). A CIDADE DO PENSAMENTO ÚNICO. PETRÓPOLIS: VOZES, 2000, (11-73P.) Lidia Santana1 O texto da filósofa Otília Arantes compreende uma análise crítica dos processos ideológicos que presidem aos movimentos de globalização em sua relação com o planejamento de cidades, tema amplamente explorado pela produção acadêmica no Brasil desde os anos 90. A erudição e a fluência argumentativa da autora sustentam um discurso competente que desfaz, de modo implacável, perspectivas construtivas que se possa ter diante de um mundo subsumido ao capital. Dois eixos centrais se entrecruzam e se reforçam mutuamente no texto de Arantes: o primeiro se relaciona à identidade de substância do projeto moderno das vanguardas arquitetônicas com a modernização capitalista, daí a continuidade no pós-modernismo com “o formalismo do ciclo anterior”, em que os movimentos nesse plano resultariam de “reviravoltas niveladoras” tributárias da hegemonia global; o segundo centra-se na “mercadorização” da cidade através de “abordagens culturalistas” e políticas de imagemaking assimiladas nos projetos urbanos, com a conseqüente transformação da cidade em “mercadoria total” em que os variados encaminhamentos arquitetônicos e urbanísticos desde o modernismo não passariam de representações ideológicas das estratégias de dominação. Partindo daí, a autora deslinda a “estratégia fatal” em torno da construção de um “pensamento único das cidades”, forjado pela simbiose entre “o interesse econômico da cultura e as alegações culturais do comando econômico” (p.67). Nessa direção, busca o “encadeamento objetivo” do chamado “culturalismo RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO empresarial” encarnado não apenas na ideologia dos planos estratégicos cuja matriz norte-americana teria se generalizado, mas, também, assimilado nos movimentos do urbanismo contemporâneo, e nos “Grandes Projetos” realizados mundo afora (p. 47-8). O foco não se restringe, portanto, aos enclaves das metrópoles periféricas, ou às cidades genéricas e sem identidade dos EUA, as edge cities, locais de reprodução de tipologias urbanas e arquitetônicas que respondem às necessidades de comando da economia global, e em que se opera a negociação das condições materiais e simbólicas do capitalismo avançado. Trata-se de uma generalização quanto às intervenções urbanas que envolvem cidades européias como Paris, Lisboa, Barcelona, Londres e Berlim, e cidades dos Estados Unidos, especialmente Baltimore, tida como matriz da tournant cultural do capitalismo avançado. Segundo a autora, as políticas de ocupação do território urbano sob a globalização determinam de modo generalizado a transfiguração do espaço em “cidade-negócio” capitaneada pelo “culturalsimo de mercado”, ou seja, uma verdadeira “máquina de produzir riquezas” conforme Molotch e Logan (1976) precocemente diagnosticaram. Nesse processo, a adesão da população em torno dos “famigerados” projetos de requalificação/ revitalização urbana, então associados aos processos de gentrificação, expressaria o poder da “máquina ideológica” mediante expedientes do tipo “consensos cívicos” ou “coalizões urbanas pró-crescimento”. 1 Arquitetos e urbanistas se incluiriam entre “o séqüito de coadjuvantes” dessas coalizões e desempenhariam papel de “operadores-chave” da “máquina urbana de crescimento” no comando da criação da cidade-espetáculo; teóricos, como Fredric Jameson e Jürgen Habermas, para não falar dos catalães diretamente envolvidos com o planejamento estratégico de cidades, restariam seduzidos, cada um a seu modo, ao espectro de uma esquerda naturalmente assimilada ao cultural turn. A análise sobre a continuidade entre modernismo e pós-modernismo no urbano mostra que a utopia modernista se esfuma na racionalidade funcionalista da linha de montagem fordista, do mesmo modo que as manifestações arquitetônicas no pós-moderno se subsumem na “mercadorização integral” da cidade. A diferença fundamental entre ambos estaria na ingenuidade dos modernos ao se imaginarem desprendidos da “dura verdade de sua funcionalidade sistêmica” de origem, enquanto os pós-modernistas não só legitimariam como invocariam a “cidadeempresa” (p.17). Em poucas palavras, poderia se dizer que de Corbusier a Koolhaas, nenhuma ruptura maior, apenas “a mesma e paradoxal animação urbana”. Ao relacionar produção arquitetônica e modernização capitalista, opera a autora uma interpretação unilateral das análises marxistas que apresentam a substância do pós-moderno como a conversão do capital em totalidade, isto é, como a realização do moderno, no sentido oposto ao de ruptura ou mutação do Arquiteta, MSC em Análise Regional (UNIFACS), doutoranda em arquitetura e urbanismo (FAUFBA). Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA 101 sistema, como insinua o conceito de ‘sociedade pós-industrial’. A sobreposição linear desse pensamento ao campo do saber ou à esfera cultural tende a ver continuidade onde impera a diversidade, leva a produzir uniformizações onde tudo se multiplica. Assim é que, os movimentos arquitetônicos desde a segunda metade do século se reduzem, na dialética da autora, a uma condição estética homogeneizante, ou à mera representação ideológica da estrutura econômica. Sabe-se que o capital sempre foi indiferente ao mundo concreto e múltiplo dos valores de uso, e que se participa desse mundo é na medida de sua própria valorização. De acordo com Fredric Jameson (1992), no nível econômico da globalização, a produção de meios de consumo se tornou um fenômeno cultural, o que não significa que o capitalismo tenha se tornado “uma forma cultural entre outras rivais”, como traduz Arantes (p.47). Com percepção diversa à postulada pela autora acerca da dinâmica da relação entre a dimensão econômica e cultural, Jameson (ibid: 18) refere-se a uma “revolução cultural na escala do próprio modo de produção”, compreendendo que a inter-relação do cultural com o econômico “não é uma via de mão única, mas uma contínua interação recíproca, um círculo de realimentação”. Jameson (ibid: 31) percebe na ‘lógica cultural do capitalismo avançado’ mudanças substanciais na arquitetura pós-modernista, e releva sua maior proximidade “entre todas as artes” com o campo econômico através da relação da obra com o valor do solo. Nesses termos, os grandes investimentos em equipamentos culturais ou em preservação e restauração não se constituiriam como afirma a autora, “uma dimensão associada à cultura na condição de isca ou imagem publicitária”, mas, os próprios equipamentos e edificações preservadas e restauradas constituiriam, simultaneamente, a dimensão cultural e econômica na estratégia de promoção da cidade. Ao isolar a componente cultural do campo das complexas relações de 102 causas e efeitos que se estabelecem entre os processos materiais e ideológicos2, “ao negar o caráter eficiente (e não apenas representativo) e intelectivo (e não apenas ideológico ou pulsional) do discurso arquitetônico (...) Otília nos lega um mundo governado por forças intransponíveis do capital (...)”3. O mundo irremediavelmente obscuro do Urbanismo em fim de linha. Segundo Maricato (2001:61), o Planejamento Estratégico (PE) trouxe, ao mesmo tempo, “a perspectiva de um novo papel político e econômico” para as cidades, diante do “aumento do desemprego e das demandas sociais, da guerra fiscal e da diminuição dos recursos públicos nacionais, decorrentes dos cenários internacionais”. Nessas condições, o crescimento da indústria do turismo propiciado pelo aumento da mobilidade, da renda e do tempo livre nas últimas décadas 4, tem se mostrado uma alternativa recorrente nas políticas de desenvolvimento de países e regiões periféricos na busca de captação desses fluxos e sua conversão em divisas e em novos postos de trabalho, diante da escassez de opções. O Planejamento Estratégico tem se destacado como um das alternativas de planejamento urbano após o descrédito do Plano Diretor centralizador e burocrático, sucedendo os projetos urbanos concebidos e conduzidos pelo setor privado na década de 1980. Trata-se de um estilo de planejamento que restabelece, assim, a relevância do poder público no desenvolvimento urbano em que, segundo Borja (1996:98), “o processo participativo é prioritário” para Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA sua concretização, que se dá mediante atuações públicas e privadas e a mobilização e cooperação dos atores sociais urbanos. Um posicionamento adverso à formação de parcerias e ao estabelecimento de um ambiente dialógico entre Estado, mercado e sociedade civil como o explicitado pela autora, se contrapõe não apenas aos pressupostos do PE, mas a qualquer projeto propositivo voltado para a promoção de oportunidades locais, neutralizando iniciativas por novas formas de governabilidade urbana a partir das práticas sociais e espaciais 5. A ênfase na “pró-colonização urbano-cultural pelo reino da mercadoria” que norteia o discurso de Arantes, pode ser vista como um alerta, e mesmo como a lógica que move segmentos poderosos do capital, mas, sua materialização não se reduz a uma homogeneidade ideológica nem à universalização de seus mecanismos e resultados. A ausência desse foco deixa sem explicação os movimentos mais recentes pelo direito à cidade, e neutraliza a discussão da crise do sistema neoliberal na atualidade 6, ao tempo em que nega a possibilidade de projetos urbanos socialmente necessários, remetendo qualquer perspectiva emancipacionista para além do capital. O texto de Arantes reporta-se à positividade discursiva da crise da análise urbana da década de 1960, resumida de modo simplificado por Maricato (ibid: 48), como sendo a recusa de parte da esquerda intelectualizada em colaborar de modo propositivo, por considerar a inevitabilidade da manutenção ou repro- 2 “Aos olhos do marxismo vulgar a superestrutura é uma conseqüência mecânica, causal, do desenvolvimento das forças produtivas. O método dialético não reconhece de fato relações desse tipo. A dialética nega que possa existir em alguma parte do mundo relações de causa-efeito puramente unilaterais; nos dados reais mais elementares reconhece complexas relações de causas e efeitos”. LUKÁCS (1984). 3 Comentários de GUERRA (2003) sobre o livro da autora intitulado “Urbanismo em fim de linha”, publicado em 1999. 4 O aumento da renda coloca-se aí de um ponto de vista absoluto no caso dos países periféricos, reduzindo-se crescentemente de um ponto de vista relacional-sincrônico com relação à renda das classes e países dominantes. 5 Um exemplo disso seria a inviabilidade de implementação das Operações Urbanas Consorciadas como previsto no Estatuto da Cidade. 6 Segundo Harvey (2003), a crise do neoliberalismo se coloca como resposta contraditória de suas próprias sociedades, na tentativa de tornar a cidade cada vez mais livre das amarras políticas e do capitalismo financeiro. Considera, ainda, que é no plano das relações sociais é nas cidades que as transformações necessárias podem acontecer. RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO dução do staus quo diante da “impossibilidade do planejamento democrático e igualitário”. Esse tema que se reproduz sob diferentes enunciados, obriga a releitura da obra de Henri Lefébvre e do conceito de hegemonia e das estruturas que lhe dão sustentação, na perspectiva de sua superação para que a emancipação possa voltar a fazer parte da dinâmica histórica. Mas, além disso, o texto clama por uma maior afeição pela arquitetura RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO que se torna aos olhos da autora, apenas um instrumento bastardo de reprodução da dominação. Referências BORJA, Jordi. As cidades e o planejamento estratégico: uma reflexão européia e Latino-Americana. In: FISCHER, Tânia (org). Gestão contemporânea. Rio de Janeiro: FGV, 1996. GUERRA, Abílio. O véu e a mortalha. 2003. 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Podem ser submetidos trabalhos redigidos em Português, Inglês, Francês, Espanhol, Italiano e Alemão. Devem ser observadas as normas e orientações indicadas a seguir. I – Entrega do Material Os artigos não deverão ultrapassar 30 páginas com título, resumo e abstract e até cinco palavras-chave, em português e outro idioma aceito pela revista, além da classificação segundo o Classification System for Journal Articles do Journal of Economic Literature. O resumo e o seu correspondente em outro idioma deverá ser estruturado em um único parágrafo com, no máximo, 300 palavras. As resenhas deverão ter, no máximo, 10 páginas (equivalentes a 2 500 palavras). Deverão constar no final do artigo os dados referentes ao autor, tais como: titulação, sua atividade atual, instituição a que esteja vinculado, endereço comercial e residencial, telefones e correio eletrônico. Os originais devem ser enviados à Secretaria da Revista em três vias impressas, das quais uma com identificação do autor e duas sem identificação, e uma cópia em CD padrão IBM-PC, no formato Word for Windows. Os originais devem ser acompanhados de carta submetendo o trabalho para publicação e de uma folha à parte contendo informações completas sobre o(s) autor (es): nome, vínculo institucional, endereço para correspondência, telefone, fax e correio eletrônico. A RDE não aceita artigos enviados exclusivamente por meio eletrônico (Internet). O endereço para a remessa é o seguinte PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM DESENVOLVIMENTO REGIONAL E URBANO Secretaria da Revista de Desenvolvimento Econômico (RDE) Rua Dr. José Peroba 25 Edifício Civil Empresarial, Sala 601 – Stiep 41770235 – Salvador – Bahia II – Apresentação Gráfica do Texto 1. Especificações 1.1. Papel, Espaço e Letras Tamanho do papel: A4 Tamanho das letras: – do corpo do trabalho 12 – do título 16 – de sub-títulos 14 Tipo de letras: Arial Espaços: Entrelinhas: 1,5 Superior:3,0 cm Inferior:2,0 cm Lateral direita:3,0 cm Lateral esquerda:3,0 cm 2. Formatação • O texto deve ser justificado. •Nunca separar as sílabas para evitar desconfiguração do texto ao ser aberto em outro computador. 104 Ano VIII • Nº 14 • Julho de 2006 • Salvador, BA • Usar somente a cor padrão do texto (preto). • As páginas devem ser numeradas. • Os gráficos, tabelas e figuras e/ou ilustrações deverão ser fornecidos em monocromia (em preto e branco, com ou sem tons de cinza), apresentados no corpo do texto enviado e, também, em anexo, nos formatos originalmente produzidos. 3. Primeira Página do Texto 3.1. Título do artigo Centralizado na página a 3 cm da borda superior. 3.2. Parágrafos Cada parágrafo deve ter um recuo de 0,5 cm na primeira linha e nenhuma linha em branco entre eles, exceto para os subtítulos que deverão ter apenas uma linha em branco depois do parágrafo que o antecede. III – Notas As notas devem ser devidamente numeradas e indicadas no final do texto, antecedendo as referências. IV – Tabelas e ilustrações • Devem ser encaminhadas em arquivos separados. Na cópia impressa deverá ser indicado, com destaque, o local a serem inseridas. • As Tabelas e Quadros devem seguir as normas da ABNT (padrão IBGE) e devem ser numeradas seqüencialmente. • As figuras devem ser numeradas e apresentar título e fonte. V – Referências Devem seguir os padrões estabelecidos pela ABNT. VI – Responsabilidades É responsabilidade do autor a correção ortográfica e sintática, como a revisão de digitação do texto, que será publicado conforme o original recebido pela editoração. O conteúdo dos textos assinados é de exclusiva responsabilidade dos autores. VII – Procedimentos de avaliação Os trabalhos submetidos serão avaliados no sistema duplo cego por pareceristas, de instituições distintas daquela à qual o(s) autor (es) está(ão) vinculado(s). Os direitos autorais dos trabalhos aprovados são automaticamente transferidos à RDE como condição para sua publicação. O resultado da avaliação de artigos recusados será comunicado ao autor, neste caso os originais poderão ser recebidos pessoalmente na redação da revista até um prazo de 60 dias contados da data de postagem da comunicação, após o qual serão destruídos. RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO Uma publicação da PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DESENVOLVIMENTO REGIONAL E URBANO Diagramação, arte final e laser-filme: JOSEH CALDAS Tel.: (71) 3356-1920 Impresso nas oficinas da SVICTOR GRÁFICA LTDA. Tel.: (71) 3381-9033