S j L`c - Ordem Iniciática Descendentes Da Luz

Transcrição

S j L`c - Ordem Iniciática Descendentes Da Luz
CONSCIÊNCIA
CÓSMICA
Richard Maurice Bucke, M.D.
Antigo Médico Superintendente do
Asylum for the Insane, London, Canadá
COORDENAÇÃO E SUPERVISÃO
Charles Vega Parucker, F.R.C.
Grande Mestre
BIBLIOTECA ROSACRUZ
ORDEM ROSACRUZ, AMORC
GRANDE LOJA DA JURISDIÇÃO
DE LÍNGUA PORTUGUESA
l- Edição da AMORC em Língua Portuguesa
Novembro, 1996
ISBN - 85-317-0152-X
Todos os direitos reservados pela
ORDEM ROSACRUZ, AMORC
GRANDE LOJA DA JURISDIÇÃO
DE LÍNGUA PORTUGUESA
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ÍNDICE
Dedicatória..................................................................................................9
O Homem e o Livro................................................................................... 11
Nota........................................................................................................... 20
Lista de Algumas das Obras Citadas ou Mencionadas Neste Livro........21
PARTE I
Primeiras Palavras....................................................................................35
PARTE II
Evolução e Involução.
Capítulo
1 Rumo à Autoconsciência...............................................................53
2 No Plano da Autoconsciência....................................................... 57
3 Involução.......................................................................................85
PARTE III
Da Autoconsciência à Consciência Cósmica............................................91
PARTE IV
Casos de Consciência Cósmica
Capítulo
1
2
3
4
5
Gautama o Buda........................................................................... 111
Jesus o Cristo............................................................................... 125
Paulo............................................................................................ 139
Plotino......................................................................................... 149
Maomé......................................................................................... 155
6
7
8
9
10
11
12
13
14
D ante........................................................................................... 161
Bartolome Las Casas................................................................... 169
Juan Yepes (Chamado São João da C ruz).................................. 175
Francis B acon.............................................................................. 187
Jacob Behmen (Chamado O Teósofo Teutônico)....................... 215
William Blake.................................... ......................................... 227
Honoré de Balzac........................................................................ 235
Walt Whitman..............................................................................253
Edward Carpenter....................................................................... 275
PARTE V
Adicionais - Alguns Casos, Menores, Imperfeitos
Capítulo
1 O Crepúsculo...............................................................................293
2 Moisés.......................................................................................... 295
3 Gideão (Apelidado Jurubbaal).................................................... 299
4 Isaías............................................................................................ 301
5 O Caso de Lí R .............................................................................303
6 Sócrates........................................................................................ 309
7 Roger Bacon.................................................................................311
8 Blaise Pascal................................................................................315
9 Benedictus Spinoza.....................................................................319
10 Coronel James Gardiner..............................................................325
11 Swedenborg..................................................................................327
12 William Wordsworth...................................................................329
13 Charles G. Finney....................................................................... 331
14 Alexander Pushkin.......................... ........................................... 335
15 Ralph Waldo Emerson.................................................................337
16 Alfred Tennyson.......................................................................... 339
17 J. B. B........................................................................................... 343
18 Henry David Thoreau..................................................................345
19 J. B................................................................................................349
20 C. P ...............................................................................................351
21 O Caso de H. B. em suas Próprias Palavras................................357
22 R. P S........................................................................................... 363
23
24
25
26
27
28
29
30
31
32
33
34
35
36
E .T .............................................................................................. 367
Caso de Ramakríshna Paramahansa.......................................... 369
Caso de J. H. H.............................................................................373
T. S. R...........................................................................................375
W .H .W .......................................................................................377
Richard Jefferies.......................................................................... 379
Caso de C. M, C., nas Próprias Palavras Dela............................385
O Caso de M. C. L., nas Próprias Palavras D ele....................... 393
Caso de J. W. W., Principalmente nas Próprias Palavras D ele... 397
O Caso de J. William Lloyd, nas Próprias Palavras Dele...........409
Horace Traubel............................................................................. 413
O Caso de Paul Tyner, em Suas Próprias Palavras.................... 421
O Caso de C. Y. E., nas Próprias Palavras D ela........................ 429
O Caso de A. J. S......................................................................... 433
PARTE VI
Palavras Finais........................................................................................ 437
Biblioteca Rosacruz.................................................................................457
DEDICATÓRIA DA
PRIMEIRA EDIÇÃO
A Maurice Andrews Bucke
(22 de novembro de 1868 - 8 de dezembro de 1899)
8 de dezembro de 1900
Querido Maurice:
Há um ano, nesta data, no alvor da juventude, da saúde e da força, num
instante, por um acidente terrível e fatal, você foi levado para sempre deste
mundo em que sua mãe e eu ainda vivemos. De todos os jovens que conheci
você foi o mais puro, o mais nobre, o mais honrado, o de mais temo coração.
Nas situações da vida você foi industrioso, honesto, fiel, inteligente e
inteiramente digno de confiança. O quanto sentimos na ocasião a sua perda
- o quanto ainda a sentimos - eu não o escreveria, mesmo que pudesse.
Desejo falar aqui de minha convicta esperança, não de minha dor. Tenho a
dizer que através das experiências que constituem a base deste livro aprendi
que, apesar da morte e da sepultura, embora você esteja além do alcance de
nossa vista e de nossa audição, não obstante o universo dos sentidos
testemunhar sua ausência, você não está morto nem realmente ausente, mas
vivo e bem e não longe de mim neste momento. Se me foi permitido, não
entrar, mas através do estreito vão de uma porta entreaberta ter um vislumbre
fugaz daquele outro mundo divino, com certeza foi para que assim eu pudesse
sobreviver àquela notícia de Montana que caiu como um raio e que o tempo
só consegue queimar cada vez mais fundo em meu cérebro.
Apenas um pouco mais de tempo agora e estaremos novamente juntos; e
conosco todas aquelas nobres e bem-amadas almas que já se foram antes.
Estou certo de que me encontrarei com você e com elas; de que você e eu
falaremos de mil coisas, bem como daquele dia inesquecível e de todos que o
seguiram; e de que veremos claramente que todos faziam parte de um plano
infinito que era integralmente sábio e bom. Você entende e aprova estas
palavras que estou escrevendo? Pode bem ser que sim. Você lê dentro de
mim o que estou agora pensando e sentindo? Se é assim, sabe o quanto era
querido para mim enquanto vivia aquilo que aqui chamamos de vida e quanto
muito mais querido se tomou para mim desde então.
Em razão dos elos indissolúveis de nascimento e de morte forjados pela
natureza e pelo destino entre nós; em razão de meu amor e de meu pesar;
acima de tudo em razão da infinita e inextinguível confiança que sinto em
meu coração, a você dedico este livro que, cheio de imperfeições que o tomam
indigno de sua aceitação, surgiu não obstante da divina certeza que nasceu
da mais profunda percepção interior dos mais nobres membros de sua espécie.
Até breve, querido rapaz!
SEU PAI
Algumas vezes acontece que, na maré de livros que continuamente vêm
e vão, um deles não desaparece juntamente com seus contemporâneos e,
devido a algo que contém, ou algo que é, subsiste para uma outra geração ou mesmo além disso - respondendo de algum modo a alguma real
necessidade humana.
Consciência Cósmica é um livro assim, pois apareceu de maneira
silenciosa, sem alarde, em 1901, como trabalho de um médico canadense de
quem poucas pessoas fora do círculo íntimo dos amigos de Walt Whitman e
do limitado mundo desse alienista tinham ouvido falar.
Mesmo hoje, para os milhares de pessoas que leram e valorizam o livro,
o autor é pouco mais que um nome - apenas Richard Maurice Bucke, que
escreveu Consciência Cósmica. Entretanto, Bucke, que faleceu menos de
um ano depois da publicação do livro, foi durante sua vida uma personalidade
muito especial e muito forte.
Descendendo de ambos os lados de boas famílias inglesas, seu pai era
formado pelo Trínity College de Cambridge e era um clérigo; sua mãe, irmã
de um eminente Conselheiro da Rainha, era neta de Sir Robert Walpole,
famoso autor e estadista. Bucke era o sétimo filho do casal, nascido em
1837, um ano antes que seus pais emigrassem para o Canadá e se fixassem
na remota Creek Farm, no local que hoje é um subúrbio da cidade de London,
Ontário. Seu pai, embora assim tivesse se tornado um fazendeiro, era um
erudito brilhante; conhecia sete idiomas e levara para a fazenda uma biblioteca
de milhares de livros.
O jovem Richard Maurice Bucke praticamente não teve escolaridade
formal. Seu pai lhe ensinou latim e soltou-o no meio de todos aqueles livros
para educar a si mesmo. Quanto ao resto, era um jovem de fazenda comum
que conhecia e fazia toda a incessante e pesada rotina de trabalho duro que
uma fazenda requeria antes da época do automóvel e da eletricidade.
Quando tinha sete anos, sua mãe faleceu e seu pai logo se casou nova­
mente; mas aos dezessete anos sua madrasta também faleceu e Bucke decidiu
que chegara o momento de viajar e ver um pouco mais do mundo do que
podia observar de uma fazenda interiorana. Foi para o Sul e cruzou a fronteira
para os Estados Unidos. Por três longos anos viajou de um lugar para outro,
trabalhando em empregos temporários. Entre outras coisas, foi jardineiro
em Columbus, Ohio, ferroviário em Cincinatti, auxiliar de convés num barco
a vapor do Mississipi e finalmente empregou-se como maquinista de um
trem de 26 vagões, que deveria cruzar as planícies para o extremo ocidental
do Território Mórmon (hoje parte do Estado de Nevada). Era uma empresa
séria e perigosa, pois na época não havia nenhum povoado branco permanente
nas últimas 1.200 milhas da viagem e não se podia confiar na atitude pacífica
dos índios.
A viagem até Salt Lake durou cinco meses e lá o jovem Bucke sacou seu
pagamento acumulado de todo aquele tempo e decidiu seguir adiante com
alguns outros. Os aventureiros cruzaram as Montanhas Rochosas pelo South
Pass e logo viram que sua jornada era muito mais emocionante e perigosa,
pois os bandos errantes de índios que encontraram ressentiram-se da presença
de homens brancos e os atacaram assim que os viram. Eles tiveram de abrir
caminho lutando, de acampamento a acampamento, até ficarem reduzidos a
seus últimos cartuchos. Então, não somente sua munição havia acabado,
mas também suas provisões; assim sendo, Bucke e um companheiro viajaram
as últimas 150 milhas comendo somente farinha mexida em água quente,
até que cambalearam para um posto de comércio na montanha e desfaleceram.
Depois de descansarem ali por algum tempo, reiniciaram a viagem, cruzaram
o Grande Deserto Americano em direção ao Rio Carson e finalmente
alcançaram o Gold Canyon.
Por um ano Richard Maurice Bucke viveu como mineiro de ouro, numa
comunidade de cerca de 100 homens brancos espalhados em 1.600 milhas
quadradas de território sem leis, sem tribunais, sem igreja nem escola.
Conheceu e se tomou amigo dos irmãos Grosh e de seu sócio, chamado
Brown, que haviam descoberto as grandes jazidas de prata conhecidas mais
tarde como Comstock Lode, mas que mantinham sua descoberta em segredo
enquanto continuavam com a prospecção de mais prata. Mas um revés os
surpreendeu: Brown e um dos Grosh faleceram e o outro irmão, Allan, seguiu
com Bucke pelas montanhas, embora fosse invemo, na tentativa de alcançar
a costa. Foi uma experiência terrível; Allan Grosh morreu no caminho e
Bucke, com ambos os pés congelados, foi resgatado no último minuto por
um grupo de mineiros. O resultado foi que Bucke precisou ter um dos pés
completamente amputado e uma parte do outro e que, após um inverno inteiro
de cama, ele voltou à vida, na flor de seus 21 anos, tão gravemente mutilado
que pelos restantes 40 anos de sua vida nunca esteve livre de dores por mais
de algumas horas de cada vez.
Com a maioridade, herdou a pequena propriedade de sua falecida mãe e
usou o dinheiro para cursar a Escola de Medicina McGill. Os cinco anos de
aventuras temerárias por que passara não haviam interferido em sua
capacidade de assimilar conhecimento, pois não somente se diplomou entre
os melhores alunos mas ganhou o prêmio pela melhor tese. Seu trabalho de
pós-graduação foi feito na Europa. Os anos 1862-63 foram passados em
Londres, trabalhando com Sir Benjamin Ward Richardson e, depois, em
visitas à França e à Alemanha; mas em 1864 ele voltou ao Canadá e estabele­
ceu seu consultório em Sarnia, Ontário, casando-se e fixando-se para criar
família como qualquer outro profissional de sua idade.
Mas Richard Maurice Bucke era tudo menos um mero profissional. Num
dos lados de seu cérebro era um cientista objetivo, ao passo que no outro era
um homem de faculdade de imaginação altamente desenvolvida e dotado de
memória extraordinária, especialmente para poesia - de que sabia livros
inteiros de cor. Sua carreira profissional foi notável. Em 1876 foi nomeado
Superintendente do Provincial Asylum for the lnsane, recém-construído em
Hamilton, Ontário; em 1877, do London (Ontario) Hospital. Tomou-se um
dos mais destacados alienistas do continente, introduzindo muitas reformas
em procedimentos que, embora considerados na época perigosamente radicais,
são hoje corriqueiros. Em 1882 tomou-se Professor de Doenças Mentais e
Nervosas na Western University (London, Ontário). Em 1888 foi eleito
Presidente da Psychological Section da British Medicai Association e em
1890 Presidente da American Medico-Psychological Association.
Tudo isto como médico!
Mas havia o outro lado dele, que se demonstrou de importância mais
duradoura para mais gente do que o excelente e útil trabalho que fez em sua
profissão. Em 1867, uma pessoa que o visitou em sua casa citou para ele
alguns versos de Walt Whitman. O efeito desses versos foi extraordinário,
instantâneo e permanente. Eles abriram uma nova porta em sua mente e,
desde então até o fim de sua vida, Bucke esteve sob o fascínio de Whitman.
Na primavera de 1872 veio um dos grandes momentos de sua vida.
Naquele ano, Bucke, ao visitar a Inglaterra, teve a experiência da Iluminação.
Eis o relato dessa experiência, extraído de Proceedings and Transactions o f
the Royal Society o f Canada* e que consta à página 42 deste livro:
“Ele [Bucke] e dois amigos tinham passado a noite lendo
Wordsworth, Shelley, Keats, Browning e especialmente
Whitman. Separaram-se à meia-noite e ele partiu para um
longo percurso em fiacre. Sua mente, sob a profunda influência
das idéias, imagens e emoções suscitadas pela leitura e pela
conversa, estava calma e em paz. Ele estava num estado de
deleite tranqüilo, quase passivo.
“De repente, sem qualquer prenúncio, sentiu-se como que
envolto numa nuvem da cor de uma chama. Por um instante
pensou em fogo - algum súbito incêndio na grande cidade.
No instante seguinte percebeu que a luz estava em seu interior.
“Logo depois veio-lhe um sentimento de júbilo, de imensa
felicidade, acompanhado ou imediatamente seguido de uma
iluminação intelectual totalmente impossível de descrever.
Em sua mente jorrou um lampejo do Esplendor Bramânico,
que desde então iluminou sua vida. Em seu coração caiu uma
gota da Bem-aventurança Bramânica, deixando de então em
diante, para sempre, um gosto de Céu.”
Não é difícil imaginar o efeito dessa avassaladora experiência numa
personalidade forte e vívida como era Bucke aos 35 anos de idade. Foi ela
que lhe trouxe o conhecimento, a percepção interior revelada em Consciência
Cósmica - Parte III, pág. 91-110 - onde ele descreve as condiçOes que
envolvem essa experiência e seus efeitos na pessoa que a vivência.
Com suas energias mentais expandidas e refinadas por essa nova
consciência, ele começou a apreciar mais profundamente a relação entre a
mente do ser humano e sua natureza moral e, em 1879, escreveu seu primeiro
livro, Man ’s Moral Nature (A Natureza Moral do Homem), editado por G. P.
Putnam & Sons, New York. Trata-se de um exame da relação entre 0 sistema
nervoso simpático do corpo e a natureza moral do ser humano - um assunto
de que já havia tratado num ensaio apresentado por ele numa reuníSo da
Association o f American lnstitutionsfor the Insane e num outro ensaio Sobre
o mesmo assunto apresentado no ano seguinte perante a mesma associação.
* Série n, Vol. 12, pág. 159-196
Em 1877, conheceu Walt Whitman - e esta foi outra experiência crucial
para ele. Ele próprio a descreveu na Introdução de sua edição de Calamus,
de autoria de Whitman {Small Maynard, Boston, 1897), como “uma espécie
de embriaguez espiritual” e “o momento decisivo de minha vida”. M an’s
Moral Nature é dedicado a Whitman.
Horace Traubel nos deu uma idéia do que Whitman pensava de Bucke,
como homem e como médico (Bucke tratou de Whitman profissionalmente
e, segundo o poeta acreditava, salvou-lhe a vida). “Alguém esteve aqui outro
dia e se queixou de que o Médico era rigoroso demais. O Sol também é
rigoroso; e quanto a mim - não sou rigoroso?” E: “É bonito vê-lo em seu
trabalho - como lida com pessoas difíceis de modo tão afável”; e ainda:
“Bucke é um homem que gosta de estar ocupado... é rápido na ação, lúcido,
seguro, decidido”. E comparando Bucke com Sir William Osier: “Osier
também tem suas qualidades, grandes qualidades, mas, no final das contas,
o verdadeiro homem é o Doutor Bucke. Ele está acima de todos”.
Em 1894, a questão da Iluminação e da Consciência Cósmica ocupava
com crescente intensidade a mente de Bucke. Em maio desse ano leu um
ensaio intitulado Consciência Cósmica, perante a American M edicoPsychological Association, na reunião anual em Philadelphia e, na sua
mensagem como presidente à British Medical Association, em Montreal,
em agosto do mesmo ano, desenvolveu a idéia dessa nova Consciência como
uma evolução mental da humanidade, a qual, à medida que se tornasse
progressivamente mais comum e mais adiante generalizada, elevaria toda a
vida humana a um plano superior.
Quatro anos mais tarde, o próprio livro Consciência Cósmica foi publicado
por Messrs. Innes o f Philadelphia, numa edição limitada de 500 exemplares.
Embora Bucke tenha vivido mais db que seu amigo e ídolo, Whitman, não
viveu o suficiente para ver o sucesso de seu próprio livro; pois, numa noite
do inverno seguinte - 19 de fevereiro de 1902, para sermos exatos - depois
de voltar para casa com sua esposa, da noite que haviam passado na casa de
um amigo, Bucke foi à varanda antes de se deitar, para dar mais uma olhada
nas estrelas - que naquela noite estavam excepcionalmente brilhantes no
claro céu de inverno; escorregou num pedaço de gelo, bateu violentamente a
cabeça contra uma coluna da varanda e caiu. Quando foi erguido já estava
sem vida.
“O Doutor”, como era carinhosamente chamado por muitos, era uma
figura que atraía os olhos das pessoas, assim como seu coração. De postura
ereta, ombros largos, com sua longa barba de pioneiro cobrindo grande parte
do peito, tinha o nariz proeminente e os olhos cavos de um homem de ação
- que brilhavam com a luz de uma inteligência vívida e perscrutadora.
Durante seus anos de formação, quando a maioria dos homens tem sua
originalidade reprimida e suas opiniões padronizadas pelas rotinas de escola
e colégio, Bucke esteve em briga com a vida real e com isto se tomou um
tanto herege. Passou a última noite de sua vida discutindo os indícios a favor
da autoria baconiana das peças e poesias de Shakespeare, questão que
firmemente mantinha do lado heterodoxo. Era um brilhante polemista quando
estava predisposto a isto, sua espantosa memória permitindo-lhe citar páginas
inteiras de autoridades para apoiar seus pontos de vista - chega-se a dizer
que ele podia repetir de cor o livro inteiro de Walt Whitman, Leaves o f
Grass - o que não é nenhum feito medíocre.
Física e mentalmente, dava impressão de força e competência, o que
fazia com que as pessoas confiassem nele, bem como gostassem dele. Inglês
por descendência e nascimento, canadense por criação e em sua vida
profissional, mas conhecendo - graças às duras experiências de seus anos de
peregrinação - muito mais dos Estados Unidos do que muitos americanos,
pode-se dizer que focalizou em sua própria pessoa o que é essencialmente
são e vigoroso nos três ramos da civilização branca que estão agora sendo
tão estreitamente aproximados pelo curso dos eventos mundiais.
Consciência Cósmica é um livro muito difícil de classificar. Não pode
ser seguramente encaixado em nenhuma das categorias normais. Isto se deve
ao fato de que a Iluminação, ou o Êxtase de que trata, é geralmente considerado
como pertencente ao campo da religião e do misticismo, ou da magia e do
ocultismo - ou mesmo, por alguns ultramaterialistas, ao domínio da
insanidade. No misticismo cristão, a Iluminação é o reconhecido terceiro
estágio do progresso do místico, depois dos dois estágios preliminares de
Despertar e Purificação * Tanto no bramanismo como no budismo, é a
recompensa de longa e rígida autodisciplina e esforço.
Mas para Bucke a Consciência Cósmica nada tinha a ver com misticismo
ou religião formal, ou com intenção ou preparação conscientes. Ele era um
estudioso da mente humana, um psicólogo, e tratava a Iluminação do ponto
de vista da Psicologia, como uma condição mental muito rara mas real e
reconhecível, da qual muitos exemplos autênticos estão registrados e
disponíveis para exame.
* Vide Mysticism, de Evelyn Underhill, E.P. Dutton & Co., New York, 1912
Ele considerava, com base na documentação histórica, que nos últimos
três mil anos da história humana houve pelo menos quatorze casos inegáveis
de completa e permanente Iluminação e que, além desses, houve muitos
outros casos de Iluminação parcial, temporária ou duvidosa, vários dos quais
ocorreram no século passado.
Notando a freqüência crescente da experiência, deduziu que muito
gradualmente - e por assim dizer esporadicamente - a espécie humana está
no processo de desenvolver um novo tipo de consciência, muito mais avançado
que a autoconsciência humana comum, o qual acabará elevando a espécie
acima e além de todos os temores e de todas as ignorâncias, das brutalidades
e bestialidades que a bloqueiam hoje em dia.
E de se admitir que seu argumento é grandemente baseado na analogia.
Primeiro ele trata dos três estágios de consciência distintos observáveis nos
seres vivos: a mente perceptiva dos animais inferiores, aberta somente a
impressões dos sentidos; a mente receptiva dos animais superiores, produ­
zindo a consciência simples, e a mente conceptual dos seres humanos, acom­
panhada de autoconsciência. Mostra que a espécie humana tem adicionado
a suas faculdades originais, mesmo nos últimos milhares de anos, diversos
novos tipos de consciência. O sentido da cor, por exemplo. Os gregos antigos,
Aristóteles e Xenófanes, conheciam apenas três cores e não há palavra para
qualquer cor na primitiva fala Indo-Européia. O azul resplandecente do céu
oriental não é mencionado em Homero ou na Bíblia, nem no Rig Veda ou no
Zend Avesta. Mas no século atual conhecemos, não somente as sete cores
primárias, mas literalmente milhares de matizes diferentes e graduações dos
mesmos. O sentido da fragrância e o sentido musical são dois outros que a
espécie, de igual modo, só recentemente adquiriu.
Bucke argumentava que esses novos sentidos devem ter começado como
esporádicos, casos isolados da nova consciência em uns poucos indivíduos;
depois devem ter se espalhado gradualmente com o passar das gerações, até
que quase todas as raças civilizadas agora os possuem - embora absolutamente
não com a mesma totalidade ou ao mesmo grau. Mesmo hoje, os bosquímanos
da África e os aborígines da Austrália são totalmente desprovidos deles.
Esse novo, quarto estágio de consciência, que habilita o ser humano a
apreender a unidade do Universo, a sentir nele e por todo ele a presença do
Criador, a sentir-se livre de todos os temores do mal, da desventura ou da
morte, a compreender que o Amor é a regra e a base do Cosmo, constitui a
Consciência Cósmica que Bucke profetizou que aparecerá cada vez mais
freqüentemente até tomar-se um atributo normal da humanidade adulta.
Bucke sabia precisamente do que estava falando quando descreveu a expe­
riência da Iluminação e a entrada temporária da pessoa na Consciência Cós­
mica. Como já foi indicado, ele próprio recebera pelo menos uma Ilumina­
ção temporária que enriquecera e expandira toda a sua vida, daquele mo­
mento em diante, em todos os seus aspectos. Assim, suas descrições das
condições da mente que preparam a Iluminação, bem como dos seus efeitos
nos sentidos e na pessoa do indivíduo, não são meras descrições científicas
secas, objetivas. Elas brilham com a luz da experiência e do calor pessoais,
com a emoção do sentimento pessoal. Por todos os cinqüenta casos de
Iluminação que ele relaciona e descreve, essa experiência pessoal do fenômeno
e de seus efeitos na pessoa eleva o que teria sido meramente um detalhe
psicológico interessante no campo de uma exposição inspirada e inspiradora.
Provavelmente, ninguém que leia Consciência Cósmica concordará com
seu autor em todos os pontos, pois seu entusiasmo e sua energia mental eram
tais que mesmo em suas heresias ele era herético. No entanto Ouspensky, o
célebre matemático e filósofo russo, que discordava completamente de Bucke
em pelo menos um detalhe importante de sua crença, valorizava o livro o
bastante para dedicar quase um capítulo inteiro de sua grande obra, Tertium
Organum, a Consciência Cósmica, reproduzindo páginas inteiras deste livro
em seu texto.
O Professor William James leu Consciência Cósmica logo depois de sua
primeira publicação e escreveu ao seu autor:
“Creio que V.Sa. trouxe esta espécie de consciência à atenção de
estudiosos da natureza humana de um modo tão claro e inevitável
que será impossível, de agora em diante, não fazer caso dela ou
ignorá-la... Mas minha reação global ao seu livro, prezado Senhor, é
de que se trata de um a contribuição da mais alta importância à
Psicologia e de que V.Sa. é um benfeitor de todos nós.”
A metade da última frase me parece ainda mais importante que o
depoimento do Professor James como filósofo e psicólogo. Explica a persis­
tência da vida e da utilidade de Consciência Cósmica, pois acredito firmemen­
te que nenhuma inteligência que tenha discernimento possa tomar conheci­
mento real deste livro sem vivenciar uma tremenda elevação e um estímulo
extraordinário. É uma obra de alento e promessa; abre uma nova porta nas
sombrias paredes do materialismo de que estamos cercados, para nos
proporcionar uma visão de estranhas e maravilhosas possibilidades e acolher
o som de belas harmonias - não tão distantes e elusivas, mas implícitas em
nós mesmos e em nossa espécie - e para nos devolver a esperança e o encan­
tamento que muitos de nós temos deixado de lado mas de que tão desespera­
damente necessitamos para os dias duvidosos que temos à frente.
George Moreby Acklom.
New York City
25 de fevereiro de 1946.
NOTA
Deve-se notar que este livro está impresso em três tamanhos de letras: no
maior, a parte escrita pelo autor, bem como certas citações curtas que são
indicadas por aspas da maneira usual; os excertos de escritores que alcançaram
a Consciência Cósmica e de outros escritores a respeito deles estão impressos
em tipo de tamanho médio e neste caso não foi considerado necessário usar
aspas, pois todo assunto impresso neste tipo é indicado e os respectivos autores
são devidamente reconhecidos, cada qual com sua parte; o tipo menor é
usado para passagens paralelas e comentários; neste caso as aspas são usadas
da maneira comum.
LISTA DE ALGUMAS DAS OBRAS CITADAS
OU MENCIONADAS NESTE LIVRO
Os números de referência entre colchetes no texto indicam obra desta
lista e a página, com exceção dos casos da Bíblia, em que indicam livro,
capítulo e versículo e dos sonetos de Shakespeare, em que indicam livro e
soneto.
1. Anderson, A.A. Twenty Five Years in a Wagon (Vinte Cinco Anos num Vagão).
Chapman & Hall,
Londres, 1888.
2. Arena, The (Arena, A). Boston, Mass., fevereiro de 1893.
3. Atlantic Monthly (Mensário Atlantic), outubro de 1896.
4. Balzac, Honoré de. A Memoir o f (Balzac, Honoré de. Uma Biografia de), por K.
P. Wormley. Robert Bros., Boston, 1892.
5. Balzac, Honoré de. Louis Lambert. Robert Bros., Boston 1889.
6. Introduction to 5 (Introdução a 5). Mesmo livro, mas paginação separada. Por
George Fred. Parsons.
7. Balzac, Honoré de. Séraphita. Robert Bros., Boston 1889.
8. Introduction to 7 (Introdução a 7). Mesmo livro, mas paginação separada. Por
George Fred. Parsons.
9. Balzac, Honoré de. The Exiles (Os Exilados). No mesmo livro com 7.
10. Bíblia. Comparada com as mais antigas autoridades e revisada. University Press,
Oxford, 1887. (Na tradução: A BÍBLIA SAGRADA, traduzida em português por
João Ferreira de Almeida - Imprensa Biblica Brasileira, 1954).
11. Exodus (Êxodo), em 10.
12. Judges (Juizes), em 10.
14. Matthew (Mateus), em 10.
16. Luke (Lucas), em 10.
17. John (João), em 10.
18. Acts (Atos), em 10.
19. Romans (Romanos), em 10.
2 0 .1 Corinthians (I Corintios), em 10.
21. n Corinthians (H Corintios), em 10.
22. Galatians (Gálatas), em 10.
23. Ephesians (Efésios), em 10.
24. Philippians (Filipenses), em 10.
25. Colossians (Colossenses), em 10.
2 6 .1 Thessalonians (I Tessalonicenses), em 10.
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33. Parte I do Vol. I de 32.
34. Parte II (segunda paginação) do Vol. I de 32.
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40. The Life o f Jacob Boehme (A Vida de Jacob Boehme), paginação separada, no
Vol. I de 39.
41. Aurora, the Dayspring or Dawning o f the Day in the East (Aurora, a Alvorada
ou o Nascer do Dia no Oriente), paginação separada, no Vol. I de 39.
42. The Three Principles o f the Divine Essence (Os Três Princípios da Essência
Divina), paginação separada, no Vol. I de 39.
43. The Threefold Life o f Man (A Vida Tríplice do Homem), paginação, separada, no
Vol. H de 39.
44. Forty Questions Concerning the Soul (Quarenta Questões sobre a Alma),
paginação separada, no Vol. II de 39.
45. The Treatise o f the Incarnation (O Tratado da Encarnação), paginação separada,
no Vol. II de 39.
46. The Clavis, paginação separada, no Vol. II de 39.
47. Misterium Magnum, paginação separada, no Vol. II de 39.
48. The Four Tables (As Quatro Mesas, paginação separada, no Vol. II de 39.
49. Signatura Rerum, paginação separada, em Vol. II de 39.
50. The Way to Christ (O Caminho para Cristo), paginação separada, no Vol. II de
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70. Introdução para 69.
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150. Vagasaneyi, Samhita Upanishad. Traduzido por F. Max Mueller, em Vol. I de
146.
151. Part I o f Q u r’an (Parte I do Alcorão). Traduzida do árabe por E.H. Palmer,
sendo Vol. VI de 146.
152. Introduction to Q ur’an (Introdução ao AlcorSo). Por E.H. Palmer, paginação
separada, no Vol. VI de 146.
153. Part II o f Qur'an (Parte II do Alcorão). Traduzida do árabe por E.H. Palmer,
sendo Vol. IX de 146.
154. Bhagavadgita. Traduzido por K.T. Telang, no Vol. VIII de 146.
155. Anugita. Traduzido por K.T. Telang, no Vol. VIII de 146.
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157. Sutta-Nipata. Traduzido do pâli por V. Fausboll, no Vol. X de 146.
158. Introduction to 157 (Introdução a 157). Por V. Fausboll, no Vol. X de 146,
paginação separada.
159. Dhamma-kakka-Ppavattana-Sutta. Traduzido do pâli por T.W. Rhys Davids,
no Vol. XI de 146.
160. Introduction to 159 (Introdução a 159). Por T.W. Rhys Davids, no Vol. XI de
146.
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162. Introduction to 161 (Introdução a 161). Por T.W. Rhys Davids, no Vol. XI de
146.
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de 146.
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202. Yepes, Juan, chamado S. João da Cruz. Life and Works (Vida e Obras), em dois
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espanhol pelo mesmo. Thomas Baker, Londres, 1889-1891.
203. Ascent o f Mount Carmel (Ascensão do Monte Carmelo), no Vol. I de 202.
204. The D ark Night o f the Soul (A Noite Negra da Alma), no Vol. II de 202.
205. A Spiritual Canticle o f the Soul and the Bridegroom Christ (Um Cântico
Espiritual da Alma e o Cristo Noivo), no Vol. II de 202.
206. The Living Flame o f Love (A Chama Viva do Amor) , no Vol. H do 202.
207. Spiritual Maxims (Máximas Espirituais), no Vol. II do 202.
208. Poems (Poemas), no Vol. II do 202.
Parte I
PRIMEIRAS PALAVRAS
I
QUE É Consciência Cósmica?
Este livro é uma tentativa de responder esta pergunta; não obstante, parece
razoável que se faça uma declaração prefaciai, em linguagem tão simples
quanto possível, de modo a por assim dizer abrir a porta para a exposição
mais elaborada a ser tentada no corpo do trabalho. Consciência Cósmica,
então, é uma consciência mais elevada do que a do ser humano comum. Esta
última é chamada Autoconsciência e é a faculdade sobre a qual repousa
toda a nossa vida - tanto subjetiva como objetiva - que não é comum a nós e
aos animais superiores, exceto a pequena parte dela que é derivada das poucas
pessoas que alcançaram a consciência mais elevada acima citada. Para tomar
claro este assunto, faz-se necessário entender que há três tipos ou graus de
consciência. (1) Consciência Simples, que é própria (digamos) da metade
superior do reino animal. Por meio desta faculdade, um cão ou um cavalo é
tão consciente das coisas ao seu redor quanto um ser humano; é também
consciente de seus próprios membros e de seu corpo e sabe que estes fazem
parte dele próprio. (2) Acima dessa Consciência Simples, que é própria do
ser humano como dos animais, o primeiro tem uma outra que é chamada
Autoconsciência. Em virtude desta faculdade, ele não só é consciente de
árvores, rochas, águas, seus braços, suas pernas e seu corpo, mas toma-se
consciente dele próprio como entidade distinta, separada do resto do universo.
Está fora de dúvida que nenhum animal pode ter consciência de si mesmo
dessa forma. Além disso, por meio da autoconsciência, o ser humano (que
sabe, assim como o animal sabe) toma-se capaz de tratar seus próprios estados
mentais como objetos de consciência. O animal está por assim dizer imerso
em sua consciência; assim como um peixe no mar; não pode, nem mesmo
em imaginação, emergir dela por um momento sequer, para percebê-la. Mas
o ser humano, em virtude da autoconsciência, pode por assim dizer sair de si
mesmo e pensar assim: “Sim, aquele pensamento que tive a respeito daquele
assunto é verdadeiro; sei que é verdadeiro e sei que sei que ele é verdadeiro”.
Tem sido perguntado ao autor deste livro: “Como você sabe que os animais
não conseguem pensar da mesma maneira?” A resposta é simples e
conclusiva: não há prova de que qualquer animal possa pensar assim, porém,
se pudesse, logo o saberíamos. Entre duas criaturas vivendo juntas, tais como
cães, cavalos e seres humanos, e cada qual autoconsciente, seria a coisa mais
simples do mundo estabelecer comunicação. Mesmo sendo as coisas como
são, diversificada como é a nossa psicologia, conseguimos, observando os
atos de um cão, entrar com toda liberdade na mente dele e ver o que ali se
passa; sabemos que o cão vê e ouve, cheira e saboreia; sabemos que ele tem
inteligência - que adapta os meios aos fins - que raciocina. Se ele fosse
autoconsciente, já o teríamos constatado há muito tempo. Não o fizemos, de
modo que está fora de dúvida que nenhum cão, cavalo, elefante ou macaco
jamais foi autoconsciente. E mais uma coisa, na autoconsciência do ser
humano repousa tudo o que é distintivamente humano em nós e a nosso
respeito. A linguagem é o objetivo de que a autoconsciência é o subjetivo.
Autoconsciência e linguagem - duas em uma, pois são duas metades da
mesma coisa - sao o sine qua non da vida social humana, dos compor­
tamentos, das instituições, das atividades de todo tipo, de todas as artes úteis
e belas. Se algum animal tivesse autoconsciência, parece certo que sobre
esta faculdade mestra construiria - como o ser humano o fez - uma superes­
trutura de linguagem, costumes, atividades e artes, baseados em raciocínio.
Mas nenhum animal fez isto; portanto, inferimos que nenhum animal tem
autoconsciência.
A posse da autoconsciência e da linguagem (seu outro “eu ”), por parte
do ser humano, cria uma enorme lacuna entre ele e a mais elevada criatura
dotada meramente de consciência simples.
A Consciência Cósmica é o terceiro tipo de consciência, que está tão
acima da Autoconsciência quanto esta da Consciência Simples Naturalmente,
com essa terceira consciência, ambas, a consciência simples e a autoconsciên­
cia, persistem (assim como a consciência simples persiste quando a autocons­
ciência é adquirida), mas a elas é acrescentada a nova faculdade tantas vezes
já mencionada e a ser mencionada neste livro. A característica fundamental
da Consciência Cósmica é, como seu próprio nome indica, de uma consciência
do Cosmo, isto é, da vida e da ordem do universo. O que estas palavras
significam não pode ser considerado aqui; é finalidade deste livro lançar
alguma luz sobre elas. Há muitos elementos pertencentes ao sentido cósmico
além do fato central a que acabamos de aludir. Uns poucos dentre esses
podem ser mencionados. Juntamente com a consciência do Cosmo ocorre
uma aclaração ou iluminação intelectual, que por si só colocaria o indivíduo
num novo plano de existência -tomá-lo-ia quase um membro de uma nova
espécie. A isto se acrescenta um estado de exaltação moral, um indescritível
sentimento de elevação, elação e júbilo, um despertar do senso moral, que é
plenamente tão maravilhoso e mais importante, tanto para a pessoa quanto
para a espécie, do que o intensificado poder intelectual. Com isto vem o que
pode ser chamado de senso de imortalidade, uma consciência de vida eterna;
não uma convicção de que o indivíduo terá isto, mas a consciência de que já
o tem.
Somente uma experiência pessoal disso ou um estudo prolongado de seres
humanos que tenham passado para essa nova vida há de nos tomar capazes
de entender o que isso efetivamente é; mas ao autor pareceu que valeria a
pena passar em revista, mesmo de maneira breve e imperfeita, os casos em
que essa condição se tenha verificado. Ele espera que seu trabalho venha a
ser útil de dois modos: primeiro, ampliando nossa perspectiva geral da vida
humana, abrangendo em nossa visão mental essa importante fase dela e
tomando-nos aptos a apreender em alguma medida o verdadeiro estado de
certos homens que até o presente são, ou exaltados ao nível de deuses pelo
indivíduo autoconsciente comum, ou, adotando o outro extremo, considerados
insanos. Em segundo lugar, o autor espera proporcionar ajuda aos seus seme­
lhantes num sentido muito mais importante e prático. Sua opinião é que
nossos descendentes mais cedo ou mais tarde alcançarão, como espécie, a
condição de Consciência Cósmica, do mesmo modo que há muito tempo
nossos ancestrais passaram da consciência simples para a autoconsciência.
Ele crê que este passo na evolução está sendo dado agora mesmo, pois está
claro para ele que seres humanos com aquela faculdade estão se tomando
cada vez mais comuns e também que, como espécie, estamos nos aproximando
mais e mais do estágio da mente autoconsciente a partir do qual se realiza a
transição para a Consciência Cósmica. E compreende que, considerada a
necessária hereditariedade, qualquer pessoa que ainda não tenha ultrapassado
a idade poderá alcançar a Consciência Cósmica. Sabe que o contato inteligente
com mentes cosmicamente conscientes ajuda pessoas autoconscientes na as­
censão ao plano superior. Espera portanto, provocando ou pelo menos faci­
litando esse contato, ajudar homens e mulheres a darem esse passo quase
infinitamente importante.
II
O futuro imediato de nossa espécie - o autor assim pensa - é indes­
critivelmente auspicioso. Há no momento*, pairando sobre nós, três
revoluções; a menor delas reduziria a chamada revolução histórica comum a
uma absoluta insignificância. São elas: (1) A revolução material, econômica
e social, que dependerá e será o resultado do estabelecimento da navegação
aérea. (2) A revolução econômica e social que irá abolir a propriedade
individual e livrará a Terra, de uma só vez, de dois males imensos: a riqueza
e a pobreza. (3) A revolução psíquica, de que estamos tratando.
Qualquer uma das duas primeiras mudaria (e mudará) radicalmente as
condições da vida humana e a elevaria grandemente; mas a terceira fará
mais pela humanidade do que ambas as duas outras, mesmo se a importância
delas fosse multiplicada por cem ou até por mil.
As três, operando (e elas operarão) juntas, criarão literalmente um novo
Céu e uma nova Terra. Coisas velhas serão eliminadas e tudo se tomará
novo.
Com a navegação aérea, as fronteiras nacionais, as tarifas e talvez as
diferenças de idiomas desaparecerão. As grandes cidades não terão mais
razão de ser e se desvanecerão. Os seres humanos que hoje moram em cidades
vão viver no verão nas montanhas e nas praias, construindo muitas vezes em
lugares altos e bonitos, hoje quase ou completamente inacessíveis, que
dominarão as vistas mais amplas e magníficas. No invemo, provavelmente
morarão em comunidades de tamanho moderado. A aglomeração atual em
grandes cidades e o isolamento do agricultor serão coisas do passado. O
espaço desocupado será praticamente eliminado; não haverá ajuntamento
de multidões nem solidão forçada.
Com o socialismo, a labuta esmagadora, a cruel ansiedade, as riquezas
que insultam e desmoralizam e a pobreza com seus males se tomarão assuntos
para romances históricos.
Em contato com o fluxo de consciência cósmica, todas as religiões hoje
conhecidas e citadas se desvanecerão. A alma humana será revolucionada.
A religião dominará a espécie humana de maneira absoluta. Não dependerá
de tradição. Não será objeto de crença ou de descrença. Não será uma parte
*Cerca de 1900 d.C.
da vida, pertencendo a certos momentos, horas, ocasiões. Não estará em
livros sagrados nem na boca de sacerdotes. Não se encontrará em igrejas e
reuniões, em formalismos e dias certos. A vida religiosa não estará em orações,
hinos ou sermões. Não dependerá de revelações especiais, das palavras de
deuses que tenham descido à Terra para ensinar, nem de nenhuma bíblia, ou
de bíblias. Não terá nenhuma missão de salvar os seres humanos de seus
pecados ou de lhes assegurar a entrada no Céu. Não ensinará uma imortalidade
futura nem futuras glórias, pois a imortalidade e toda a glória existirão aqui
e agora. A prova da imortalidade viverá em todos os corações, assim como
a vista em todos os olhos. Dúvida quanto a Deus e à vida eterna será
impossível, como o é hoje a dúvida quanto à existência; a prova de ambas
será a mesma. A religião regerá todos os minutos de todos os dias de toda
vida. As igrejas, os sacerdotes, os ritos, os credos, as orações, todos os agentes,
todos os intermediários entre o ser humano individual e Deus, serão
permanentemente substituídos por uma relação direta e inequívoca. O pecado
não mais existirá nem tampouco será desejada a salvação. Os seres humanos
não se preocuparão com a morte ou com o futuro, com o reino dos céus, com
o que poderá vir com e após o cessar da vida do corpo atual. Cada alma
sentir-se-á e saber-se-á imortal; sentirá e saberá que o universo inteiro, com
todo seu bem e toda sua beleza, existe para ela e a ela pertence para sempre.
O mundo povoado de pessoas que tenham alcançado a Consciência Cósmica
será tão diferente em comparação com o mundo de hoje como este é diferente
do que era antes do advento da autoconsciência.
III
Há uma tradição, provavelmente muito antiga, no sentido de que o
primeiro ser humano era inocente e feliz até o momento em que comeu do
fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. E de que, por ter comido
desse fruto, tornou-se ele consciente de que estava nu e sentiu vergonha.
Além disso, de que então o pecado nasceu no mundo e o senso desditoso do
mesmo substituiu o sentimento anterior de inocência do ser humano. De que
daí em diante - e não até então - o homem começou a trabalhar e a cobrir
seu corpo. Mais estranho ainda - assim nos parece e a história continua - de
que, juntamente com essa mudança ou imediatamente depois dela, veio à
mente humana a notável convicção - que nunca mais a deixou mas que tem
sido mantida viva pela sua própria vitalidade inerente e pelo ensinamento
de todos os verdadeiros videntes, profetas e poetas - de que aquela coisa
amaldiçoada que picou o calcanhar do ser humano - aleijando-o, retardando
e especialmente tomando seu progresso vacilante e penoso - haveria de ser
um dia esmagada e subjugada pelo próprio ser humano, com o emergir, em
seu interior, de um Salvador - o Cristo.
O progenitor do homem era uma criatura (um animal) que caminhava
ereta mas que era dotada apenas de consciência simples. Era (como o são
hoje os animais) incapaz de pecar ou de sentir o que fosse pecar e igualmente
incapaz de sentir vergonha (pelo menos no sentido humano). Não tinha
nenhum sentimento ou conhecimento de bem e mal. Nada sabia até então
daquilo que chamamos de trabalho e nunca havia trabalhado. Desse estado
caiu (ou ascendeu) para a autoconsciência; seus olhos se abriram; tomou
consciência de que estava nu, sentiu vergonha, adquiriu o senso do pecado
(tomou-se na verdade o que se chama de pecador) e aprendeu a fazer certas
coisas para alcançar certas metas - isto é, aprendeu a trabalhar.
Esta situação perdurou por penosas eras: o senso de pecado continua
rondando seu caminho; é pelo suor de sua fronte que ainda come pão; e
ainda sente vergonha. Onde está o libertador, o Salvador? Quem é, ou que é
ele?
O Salvador do ser humano é a Consciência Cósmica - na linguagem de
Paulo, o Cristo. O sentido cósmico (seja qual for a mente em que apareça)
esmaga a cabeça da serpente - destrói o pecado, a vergonha, a consciência
de bem e mal tais como contrastados entre si, e há de eliminar o labor,
embora não elimine a atividade humana.
O fato de que veio ao ser humano - juntamente com ou imediatamente
após sua aquisição da autoconsciência - a premonição incipiente de uma
outra e mais alta consciência, que na ocasião ainda estava muitos milênios
no futuro, é seguramente m uitíssim o digno de nota, embora não
necessariamente surpreendente, Temos na Biologia muitos fatos análogos,
tais como a premonição e a preparação, por parte do indivíduo, de estados e
circunstâncias de que ele não tenha tido nenhuma experiência; e vemos a
mesma coisa no instinto maternal de uma moça ainda muito nova.
O esquema universal está tecido em uma só peça e é permeável à
consciência ou - e especialmente - à subconsciência, em toda sua extensão e
em todas as direções. O universo é uma vasta evolução - grandiosa, terrível,
multiforme e no entanto uniforme. A seção que nos diz particularmente
respeito é a que se estende do bruto ao homem, do homem ao semideus e que
constitui o impressionante drama da humanidade - seu cenário, a superfície
do planeta - seu tempo, um milhão de ános.
IV
A finalidade destas observações preliminares é lançar tanta luz quanto
possível sobre o assunto deste livro, de modo a aumentar o prazer e o proveito
de seu uso. Uma exposição pessoal da própria introdução do autor ao fato
principal aqui tratado talvez sirva a essa finalidade tanto quanto qualquer
outra coisa. Portanto, ele fará francamente um esboço muito breve de sua
vida mental em sua primeira idade, bem como um breve relato de sua leve
experiência daquilo que chama de consciência cósmica. Assim o leitor
perceberá imediatamente de onde vieram as idéias e convicções apresentadas
nas páginas seguintes.
Ele nasceu em boa família de classe média inglesa e cresceu quase sem
instrução no que era na época uma fazenda agreste do Canadá. Quando
criança, ajudava em tarefas consoantes com sua capacidade: cuidava do gado,
de cavalos, ovelhas e porcos; apanhava lenha, trabalhava no campo de feno,
tocava bois e cavalos, procurava animais desgarrados. Suas distrações eram
tão simples como suas tarefas. Uma visita ocasional a uma pequena cidade
vizinha, jogar bola, banhar-se no riacho que corria na fazenda de seu pai,
confeccionar e fazer flutuar pequenas imitações de barcos, procurar ovos de
pássaros e flores na primavera, bem como frutas silvestres no verão e no
outono, constituíam, com seus patins e seu trenó manual no inverno, as
diversões simples que ele adorava. Ainda muito jovem lia e apreciava
intensamente os romances de Marryat, os poemas e romances de Scott e
outros livros do gênero que tratavam da natureza ao ar livre e da vida humana.
Nunca, nem mesmo quando criança, aceitou as doutrinas da Igreja Cristã;
mas, tão logo atingiu idade suficiente para refletir sobre tais temas, concebeu
que Jesus fora um homem - sem dúvida grandioso e bom, mas um homem;
que ninguém jamais seria condenado a uma pena eterna; que se existia um
Deus consciente ele era o mestre supremo e queria o bem de todos no final;
mas que, chegando ao fim esta vida visível no mundo, era duvidoso, ou mais
que duvidoso, que a identidade consciente fosse preservada. O rapaz (e mesmo
a criança) meditava tais tópicos e outros do gênero bem mais do que alguém
poderia supor, mas provavelmente não mais do que muitos outros de seus
pequenos semelhantes mortais de natureza introspectiva. Ele estava sujeito,
às vezes, a uma espécie de êxtase de curiosidade e esperança. Como numa
ocasião especial, quando tinha aproximadamente dez anos de idade, em que
desejou seriamente morrer, para que os segredos do além - desde que houvesse
esse além - lhe pudessem ser revelados. Era sujeito também a agonias de
ansiedade e terror; por exemplo quando, mais ou menos na mesma idade,
leu Fausto de Reynold e, quando estava perto do final, numa tarde ensolarada,
largou o livro completamente sem condição de continuar sua leitura e correu
para o sol a fim de se recuperar do horror que se apossara dele - evento de
que se lembra mais de cinqüenta anos depois. Sua mãe faleceu quando ele
tinha apenas alguns anos de vida e, seu pai, pouco depois. As circunstâncias
exteriores de sua vida, em alguns aspectos, tomaram-se mais infelizes do
que se pode facilmente contar. Aos dezesseis anos saiu de casa para viver ou
morrer. Durante cinco anos vagueou pela América do Norte, desde os Grandes
Lagos até o Golfo do México, desde o alto Ohio até San Francisco. Trabalhou
em fazendas, estradas de ferro, barcos a vapor e nas minas do oeste de Nevada.
Várias vezes quase sucumbiu por motivos de doença, fome, frio intenso e,
certa vez, nas barrancas do Rio Humboldt, em Utah, lutou por sua vida contra
os índios Shoshones, durante meio dia. Depois de vaguear cinco anos, aos
vinte e um voltou para o lugar onde havia passado sua infância. Uma
importância razoável em dinheiro, de sua falecida mãe, permitiu-lhe passar
alguns anos estudando e sua mente, após ter ficado inativa por tanto tempo,
absorveu idéias com extraordinária facilidade. Diplomou-se com louvor quatro
anos depois de seu retomo da costa do Pacífico. Fora do curso da faculdade,
leu com avidez muitos livros especulativos, tais comovi Origem das Espécies
(de Darwin), O Calor e Ensaios (de Tyndall), História e Ensaios e Revisões
(de Buckle), e muita poesia, especialmente aquela que lhe pareceu livre e
destemida. Nesta espécie de literatura, logo preferiu Shelley e, dentre seus
poemas, Adonais e Prometheus foram seus favoritos. Sua vida, por alguns
anos, foi um apaixonado ponto de interrogação, uma sede insaciável de
esclarecimento sobre os problemas básicos. Ao sair do colégio, continuou
sua busca com o mesmo ardor. De maneira autodidata, estudou francês para
poder ler Auguste Comte, Hugo e Renan, e alemão para poder ler Goethe,
especialmente o Fausto. Aos trinta anos descobriu Leaves o f Grass (Folhas
de Relva) e percebeu de imediato que este livro continha, em maior medida
do que qualquer outro que já lera, aquilo que por tanto tempo estivera
procurando. Leu Leaves sequiosa e mesmo apaixonadamente; durante anos,
porém, pouco proveito tirou da obra. Finalmente a luz se fez e a ele se
revelaram - talvez ao ponto em que tais coisas possam ser reveladas - pelo
menos alguns de seus significados. Então ocorreu aquilo de que o que se
escreveu até agora é prefácio.
Foi no começo da primavera, no início de seu trigésimo sexto ano de
vida. Ele e dois amigos tinham passado a noite lendo Wordsworth, Shelley,
Keats, Browning e especialmente Whitman. Separaram-se à meia-noite e
ele partiu para um longo percurso em fiacre. Sua mente, sob a profunda
influência das idéias, imagens e emoções suscitadas pela leitura e pela
conversa, estava calma e em paz. Ele estava num estado de deleite tranqüilo,
quase passivo. De repente, sem qualquer prenúncio, sentiu-se como que
envolto numa nuvem da cor de uma chama. Por um instante pensou em fogo
- algum súbito incêndio na grande cidade. No instante seguinte percebeu
que a luz estava em seu interior. Logo depois veio-lhe um sentimento de
júbilo, de imensa felicidade, acompanhado ou imediatamente seguido de
uma iluminação intelectual totalmente impossível de descrever. Em sua mente
jorrou um lampejo do Esplendor Bramânico, que desde então iluminou sua
vida. Em seu coração caiu uma gota da Bem-aventurança Bramânica,
deixando de então em diante, para sempre, um gosto de Céu. Entre outras
coisas em que não chegou a acreditar, percebeu e compreendeu que o Cosmo
não é matéria morta e sim uma Presença viva; que a alma do ser humano é
imortal; que o universo é tão bem estruturado e ordenado que, sem qualquer
possibilidade de erro, todas as coisas trabalham juntas para o bem de cada
uma e de todas; que o princípio fundamental do mundo é o que chamamos
de amor e que a felicidade de cada um é a longo prazo absolutamente certa.
Ele afirma que aprendeu mais naqueles poucos segundos que durou a
iluminação do que em meses ou mesmo anos anteriores de estudo e que
aprendeu muita coisa que nenhum estudo lhe poderia ter ensinado.
A iluminação em si continuou por não mais do que uns poucos momentos,
mas seus efeitos demonstraram-se indeléveis; foi-lhe impossível jamais
esquecer o que naquele instante percebeu e compreendeu; nem tampouco
jamais duvidou (nem poderia duvidar) da verdade do que fora apresentado à
sua mente. Não houve retomo, naquela noite ou em qualquer outro momento,
daquela experiência. Mais tarde ele escreveu um livro (28a) em que procurou
incluir o ensinamento da iluminação. Alguns dos que o leram julgaram-no
de alto nível, porém (como era de esperar, por muitas razões), ele teve pequena
circulação.
O acontecimento supremo daquela noite foi sua real e única iniciação à
nova e superior ordem de idéias. Mas foi apenas uma iniciação. Ele vira a
luz mas não fazia mais idéia de onde ela viera e do seu significado do que a
primeira criatura que viu a luz do Sol. Anos depois conheceu C. P., de quem
ouvira dizer que tinha uma extraordinária percepção espiritual. Achou que
C. P. havia entrado na vida mais sublime - de que ele próprio tivera um
vislumbre - e tivera uma grande experiência de seus fenômenos. Sua conversa
com C. P. lançou muita luz sobre o verdadeiro significado do que ele próprio
tinha vivenciado.
Contemplando então o mundo do ser humano, apercebeu-se da importân­
cia da luz subjetiva no caso de Paulo e no de Maomé. O segredo da grandeza
transcendente de Whitman lhe foi revelado. Certas conversas com J.H.J. e
com J.B. o ajudaram bastante. A convivência com Edward Carpenter, T.S.R.,
C.M.C. e M.C.L. ajudou muito na ampliação e no esclarecimento de suas
pesquisas, na extensão e coordenação de seus pensamentos. Muito tempo e
trabalho, porém, foram ainda necessários antes que o conceito germinal pudes­
se ser satisfatoriamente elaborado e amadurecido, ou seja, a idéia de que
existe uma familia que se origina e vive entre os membros da humanidade
mas que dificilmente faz parte da humanidade comum, cujos integrantes
estão largamente espalhados pelas raças humanas adiantadas e pelos últimos
quarenta séculos da história do mundo.
A peculiaridade que distingue essas pessoas dos outros seres humanos é
esta: seus olhos espirituais se abriram e elas enxergaram. Os membros mais
conhecidos desse grupo - os quais, se fossem reunidos, caberiam numa só
vez numa moderna sala de estar - criaram todas as grandes religiões atuais,
começando com o taoísmo e o budismo; e, falando de maneira geral, criaram,
através da religião e da literatura, a civilização moderna. Não que tenham
contribuído com uma grande proporção numérica dos livros que já foram
escritos, mas que produziram as poucas obras que inspiraram o número maior
dos que foram escritos nos tempos atuais. Esses homens dominam os últimos
vinte e cinco e especialmente os últimos cinco séculos, como estrelas de
primeira grandeza dominam o céu da meia-noite.
Um homem é identificado como membro dessa família pelo fato de que,
em certa idade, tenha passado por um novo nascimento e ascendido a um
plano espiritual superior. A realidade desse novo nascimento é demonstrada
pela luz subjetiva e por outros fenômenos. O objetivo deste livro é ensinar a
outros o pouco que o próprio autor tenha tido a capacidade de aprender a
respeito do estado espiritual dessa nova raça.
V
Resta dizer algumas palavras a respeito da origem psicológica do que é
chamado de Consciência Cósmica neste livro e que não deve de modo algum
ser considerado em qualquer sentido como sobrenatural ou supranormal como algo mais, ou menos, do que um crescimento natural.
Embora a natureza moral tenha um papel importante no nascimento da
Consciência Cósmica, será melhor por muitas razões limitarmos nossa aten-
ção, no momento, à evolução do intelecto. Nesta evolução há quatro estágios
distintos. O primeiro deles foi alcançado quando à qualidade primária de
excitabilidade foi incorporada a sensação. Neste ponto tiveram início a
aquisição e o registro, mais ou menos perfeito, de impressões sensoriais isto é, dos perceptos.
Naturalmente, um percepto é uma impressão sensorial - um som é ouvido
ou um objeto é visto e a impressão produzida é um percepto. Se pudéssemos
recuar suficientemente no tempo, encontraríamos entre nossos ancestrais
uma criatura cujo intelecto seria todo composto simplesmente de tais
perceptos. Mas essa criatura (qualquer que fosse o seu nome) teria em si o
que pode ser chamado de aptidão de crescimento e o que teria acontecido
com ela teria sido algo assim: individualmente e de geração em geração,
teria acumulado esses perceptos, cuja constante repetição, requerendo mais
e mais registros, teria levado, na luta pela sobrevivência e sob a lei da seleção
natural, a um acúmulo de células nos gânglios sensoriais centrais; essa
multiplicação de células teria possibilitado mais registro; isto, por sua vez,
teria tornado necessário o crescimento dos gânglios e assim por diante.
Finalmente teria sido alcançada uma condição em que se teria tomado possível
ao nosso ancestral combinar grupos desses perceptos naquilo que hoje
denominamos recepto*. Este processo é muito semelhante ao da fotografia
composta. Perceptos semelhantes (como os de uma árvore) são registrados
um sobre o outro até que - tendo o centro nervoso se tomado competente
para essa tarefa - são por assim dizer generalizados num só percepto; mas a
percepção composta não é mais nem menos que um recepto - algo que foi
recebido.
Agora o trabalho de acumulação recomeça num plano superior: os órgãos
sensoriais mantêm-se firmemente ativos produzindo mais e mais receptos a
partir dos velhos e dos novos perceptos; as potencialidades dos gânglios
centrais são constantemente forçadas afazer o necessário registro de perceptos,
sua necessária elaboração em receptos e o necessário registro de receptos;
então, conforme os gânglios são aperfeiçoados por uso e seleção, produzem
constantemente, partindo de perceptos e dos receptos simples iniciais, receptos
cada vez mais complexos, isto é, cada vez mais superiores.
•N.T. - Recepto: Idéia ou imagem mental formada por percepções sucessivas dos
mesmos objetos ou de objetos semelhantes, acentuando suas características
comuns.
Finalmente, após muitos milhares de gerações terem vivido e morrido,
chegou um momento em que a mente do animal que estamos considerando
alcançou o mais alto ponto possível de inteligência puramente receptiva; a
acumulação de perceptos e receptos continuou até que um cabedal maior de
impressões não pôde ser acrescentado e nenhuma elaboração ulterior destas
pôde ser efetuada no plano da inteligência receptiva. Deu-se então uma nova
mudança e os receptos superiores foram substituídos por conceptos*. A
relação entre um concepto e um recepto é algo parecida com a relação entre
a álgebra e a aritmética. Um recepto é, como já foi dito, uma imagem composta
de centenas, talvez milhares de perceptos; ele próprio é uma imagem abstraída
de muitas imagens; mas um concepto é aquela mesma imagem composta aquele mesmo recepto - nomeada, rotulada e, por assim dizer, dispensada.
Um concepto é em verdade nem mais nem menos que um recepto nomeado
(que recebeu um nome) - o nome, isto é, o signo (como na álgebra),
representando daí em diante a própria coisa, isto é, o recepto.
Agora está claro como o dia, para qualquer pessoa que dê o mínimo de
atenção a este assunto, que a revolução pela qual os receptos são substituídos
por conceptos aumenta a eficiência do cérebro no pensamento, tanto quanto
a introdução de máquinas aumentou a capacidade da espécie humana para
o trabalho - ou tanto quanto o uso da álgebra aumenta o poder da mente para
cálculos matemáticos. Substituir um recepto grande e canhestro por um signo
simples foi quase como substituir mercadorias reais - tais como trigo, tecidos
ou ferramentas - por lançamentos num livro razão.
Mas, como foi sugerido acima, para que um recepto possa ser substituído
por um concepto precisa receber um nome ou, em outras palavras, precisa
ser marcado com um signo que o represente, assim como uma etiqueta
representa uma bagagem ou um lançamento num livro razão representa um
lote de mercadorias; em outras palavras, a espécie que tem conceptos é também
- e necessariamente - a que tem linguagem. Além disso devemos notar que,
assim como a posse de conceptos implica a posse de linguagem, assim também
a posse de conceptos e linguagem - que são na realidade dois aspectos de
uma mesma coisa - implica a posse de autoconsciência. Tudo isto significa
que há um momento na evolução da mente em que o intelecto receptivo,
capaz somente de consciência simples, toma-se quase instantaneamente ou
de fato instantaneamente um intelecto conceptual, possuidor de linguagem e
autoconsciência.
*N.T. - Concepto: A resultante de uma operação mental generalizadora; uma imagem
mental genérica abstraída de receptos.
Quando dizemos que um indivíduo - seja um adulto de muito tempo
atrás ou uma criança atual - entrou na posse de conceptos, de linguagem e
de autoconsciência num instante, queremos naturalmente dizer que ele entrou
na posse da autoconsciência e de um ou alguns conceptos, bem como de uma
ou algumas palavras verdadeiras, instantaneamente - e não que tenha entrado
na posse de toda uma linguagem naquele curto tempo. Na história do ser
humano individual, o ponto em questão é alcançado e ultrapassado
aproximadamente na idade de três anos; na história da espécie humana, foi
alcançado e ultrapassado há várias centenas de milhares de anos.
Atingimos agora, em nossa análise, o ponto em que cada um de nós se
encontra individualmente, ou seja, da mente conceptual, autoconsciente. Ao
adquirirmos este novo e mais alto tipo de consciência, em nenhum momento
se deve supor que tenhamos deixado de ter nossa inteligência receptiva ou
nossa antiga mente perceptiva; na verdade não poderíamos viver sem elas,
tanto quanto o animal que não tem outra mente além delas. Nosso intelecto
então, hoje, é constituído de uma mistura muito complexa de perceptos,
receptos e conceptos.
Consideremos agora, por um instante, o concepto. Este pode ser
considerado como um recepto grande e complexo, porém, maior e mais
complexo do que qualquer recepto. É composto de um ou mais receptos
provavelmente combinados com vários perceptos. Esse recepto, extremamente
complexo, é então marcado por um signo, ou seja, recebe um nome e, em
virtude desse nome, toma-se um concepto. Este, após ter sido nomeado ou
marcado, é (por assim dizer) deixado de lado, assim como uma bagagem
conferida é etiquetada e empilhada no depósito de bagagens.
Por meio da etiqueta, podemos enviar a bagagem a qualquer parte da
América, sem jamais vê-la ou saber exatamente onde se encontra num dado
momento. Assim, por meio de seus signos, podemos desenvolver conceptos
a cálculos complicados, poesias e sistemas de filosofia, sem saber na metade
do tempo coisa alguma a respeito daquilo que é representado pelos conceptos
individuais que estamos usando.
Agora é preciso fazer uma observação à margem do assunto principal. Já
foi notado milhares de vezes que o cérebro de um ser humano pensante não
excede em tamanho o de um silvícola não-pensante, em coisa alguma que se
pareça com a proporção em que a mente do pensador excede a do silvícola.
A razão disso é que o cérebro de um Herbert Spencer tem bem pouco mais
trabalho a fazer do que o de um nativo australiano, pois Spencer faz todo seu
trabalho mental característico por signos ou registros que representam
conceptos, ao passo que o silvícola faz todo ou quase todo o seu trabalho por
meio de canhestros receptos. O silvicola está numa situação comparável à de
um astrônomo que faça seus cálculos por aritmética, enquanto Spencer está
na situação de um outro que os faça usando álgebra. O primeiro preencherá
muitas folhas grandes de papel com números e terá um trabalho imenso; o
outro fará os mesmos cálculos num papel do tamanho de um envelope e com
um trabalho mental comparativamente pequeno.
O próximo capítulo nessa história é a acumulação de conceptos. Este é
um processo duplo. Desde a idade, digamos, de três anos, cada pessoa
acumula, ano após ano, um número de conceptos cada vez maior, enquanto,
ao mesmo tempo, os conceptos individuais vão constantemente se tomando
mais e mais complexos. Considere-se por exemplo o concepto ciência , tal
como existe na mente de um menino e na de um homem pensante de meia
idade; no primeiro ele representa algumas dúzias ou algumas centenas de
fatos; no segundo, muitos milhares.
Haverá algum limite para esse crescimento de conceptos em número e
complexidade? Quem quer que considere seriamente esta questão verá que
deve haver um limite. Nenhum processo como esse poderia prosseguir
infinitamente. Caso a natureza tentasse tal façanha, o cérebro teria de crescer
a um ponto em que não poderia mais ser alimentado e seria atingida uma
condição semelhante a um impasse, que impediria ulterior progresso.
Vimos que a expansão da mente perceptiva tinha necessariamente um
limite; que a continuidade de sua própria vida levou-a inevitavelmente à
mente receptiva. Esta, por seu próprio crescimento, foi inevitavelmente levada
e elevada à mente conceptual. Considerações a priori nos dão a certeza de
que uma saída correspondente será encontrada para a mente conceptual.
Mas não precisamos depender de raciocínio abstrato para demonstrar a
necessária existência da mente supraconceptual, pois esta existe e pode ser
estudada com dificuldade não maior do que a enfrentada quanto a outros
fenômenos naturais. O intelecto supraconceptual - cujos elementos, ao invés
de serem conceptos, são intuições - já é, embora em números pequenos, um
fato comprovado; e o tipo de consciência que pertence a esse intelecto pode
ser chamado e tem sido chamado de Consciência Cósmica.
Assim, temos quatro estágios distintos de intelecto, todos abundantemente
ilustrados nos reinos animal e humano ao nosso redor - todos igualmente
ilustrados no crescimento individual da mente cosmicamente consciente e
todos os quatro existindo juntos nessa mente, do mesmo modo que os três
primeiros existem juntos na mente humana comum. Estes quatro estágios
são: primeiro, a mente perceptiva - a mente composta de perceptos ou
impressões sensoriais; segundo, a mente composta destes e dos receptos - a
chamada mente receptiva ou, em outras palavras, a mente da consciência
simples; em terceiro lugar temos a mente composta de perceptos, receptos e
conceptos, chamada às vezes de mente conceptual, ou de mente autoconsciente - a mente da autoconsciência; finalmente, em quarto lugar, temos a
mente intuitiva - a mente cujo elemento superior não é um recepto nem um
concepto, mas uma intuição. Esta é a mente em que a sensação, a consciência
simples e a autoconsciência são suplementadas e coroadas com a consciência
cósmica.
Mas é necessário mostrar mais claramente ainda a natureza desses quatro
estágios e sua relação um para com o outro. O estágio perceptivo ou sensorial
do intelecto é muito fácil de se compreender, de modo que podemos passar
por ele fazendo apenas uma observação, ou seja, que numa mente inteiramente
composta de perceptos não há qualquer espécie de consciência. Quando,
entretanto, a mente receptiva vem à existência, nasce a consciência simples,
o que significa que os animais são conscientes (como sabemos que são) das
coisas que vêem ao seu redor. Mas a mente receptiva é capaz somente de
consciência simples - isto é, o animal é consciente do objeto que vê, mas não
sabe que é consciente desse objeto; nem é consciente de si mesmo como
entidade ou personalidade distinta. Em ainda outras palavras, o animal não
pode se situar fora de si mesmo e olhar para si mesmo, como pode qualquer
criatura autoconsciente. Isto, então, é consciência simples; ser consciente
das coisas ao seu redor mas não ser consciente do seu ego. Mas tendo eu
alcançado a autoconsciência, não estou apenas consciente do que vejo, mas
também sei que estou consciente disso. Estou ainda consciente de mim mesmo
como entidade e personalidade separada e posso me situar fora de mim mesmo
e contemplar a mim mesmo, assim como posso analisar e julgar as operações
de minha própria mente, como analisaria e julgaria qualquer outra coisa.
Esta autoconsciência só é possível após a formação de conceptos e o
conseqüente nascimento da linguagem. Na autoconsciência está baseada toda
a vida distintivamente humana até agora, exceto a que procedeu das poucas
mentes cosmicamente conscientes dos últimos três mil anos. Finalmente, o
feto básico na consciência cósmica está contido em seu próprio nome; esse
fato é a consciência do cosmo - isto é o que é chamado no Oriente de
“Esplendor Bramânico”, que, nas palavras de Dante, é capaz de transhumanizar um homem num deus. Whitman, que tem muitíssimo a nos dizer
a este respeito, usa em certo lugar a expressão “luz inefável - luz rara,
inexprimível, iluminando a própria luz - transcendendo todos os signos, as
descrições, os idiomas”. Esta consciência mostra que o cosmo consiste, não
em matéria morta regida por uma lei inconsciente, rígida, sem intenção;
mostra-o, pelo contrário, como inteiramente imaterial, inteiramente espiritual
e inteiramente vivo; mostra que a morte é um absurdo e que todo ser e toda
coisa tem vida eterna; mostra que o universo é Deus e que Deus é o universo
e que nenhum mal jamais entrou nele nem jamais entrará; grande parte
disto tudo é naturalmente absurdo do ponto de vista da autoconsciência; no
entanto isto é indubitavelmente verdadeiro. Mas tudo isto não quer dizer
que, quando um homem tem consciência cósmica, sabe tudo a respeito do
universo. Todos sabemos que, quando aos três anos de idade adquirimos
autoconsciência, não soubemos de imediato tudo a respeito de nós mesmos;
sabemos, pelo contrário, que depois de muitos milhares de anos de experiência
de si mesmo o ser humano ainda hoje sabe comparativamente pouco acerca
de si próprio, mesmo considerado como uma personalidade autoconsciente.
Assim, tampouco um homem sabe tudo a respeito do cosmo meramente
porque se toma consciente dele. Se a espécie precisou de várias centenas de
milhares de anos para ter uma pequena noção da ciência da humanidade
desde sua aquisição da autoconsciência, poderá levar milhões de anos para
ter uma pequena noção da ciência de Deus após sua aquisição da consciência
cósmica.
Assim como o mundo humano tal como o vemos, com todas as suas
realizações e maneiras de ser, está baseado na autoconsciência, na consciência
cósmica estão baseadas as religiões e as filosofias superiores e o que delas
provém; e nela estará baseado, quando ela se tomar mais generalizada, um
novo mundo de que seria ocioso tentar falar hoje em dia.
A filosofia do nascimento da consciência cósmica no indivíduo é muito
semelhante à do nascimento da autoconsciência. A mente se toma superlotada
(por assim dizer) de conceptos e estes vão constantemente se tomando
maiores, mais numerosos e cada vez mais complexos; um dia (se todas as
condições são favoráveis) ocorre a fusão - ou o que poderia ser chamado de
união química - de diversos deles e de certos elementos morais; o resultado
é uma intuição e o estabelecimento da mente intuitiva, ou seja, da consciência
cósmica.
O
esquema sobre o qual a mente está construída é uniforme do início ao
fim: um recepto é composto de muitos perceptos; um concepto, de muitos ou
vários receptos e perceptos; e uma intuição é composta de muitos conceptos,
receptos e perceptos, juntamente com outros elementos pertencentes à
natureza moral e desta última atraídos. A visão cósmica ou a intuição cósmica
- de que aquilo que pode ser chamado de nova consciência toma seu nome assim mostra ser simplesmente o complexo e a união de todos os pensamentos
e de todas as experiências anteriores, do mesmo modo que a autoconsciência
é o complexo e a união de todos os pensamentos e de todas as experiências
que a antecederam.
entre os reinos inorgânico e orgânico e o salto com que esse hiato foi
transposto; nesse hiato ou abismo tem residido, desde então, ou a substância
ou a sombra de um deus cuja mão tem sido considerada necessária para
alçar e promover os elementos do plano inferior para o superior.
Ao longo do caminho plano da formação de sóis e planetas, da crosta da
Terra, de rochas e solo, somos levados pelos evolucionistas de maneira suave
e segura; mas quando atingimos esse perigoso fosso que se estende
interminavelmente para a direita e para a esquerda em nosso caminho,
paramos e, mesmo um piloto hábil e corajoso como Lester Ward (190. 300320), dificilmente pode nos induzir a tentar o salto com ele, tão amplo e
escuro se apresenta o ameaçador abismo. Sentimos que a natureza, que tudo
fez - e coisas muito maiores - foi competente para cruzar e de fato cruzou
essa aparente brecha, embora talvez não tenhamos hoje condição de colocar
um dedo em cada uma de suas pegadas. Por enquanto, porém, isto representa
a primeira e maior das chamadas barreiras para a aceitação da doutrina da
continuidade absoluta na evolução do mundo visível.
Mais tarde na história da Criação advém o começo da Consciência
Simples. Um belo dia certos indivíduos de alguma espécie mais adiantada
no lento desenvolvimento da vida neste planeta - pela primeira vez - tomamse conscientes; sabem que existe um mundo, alguma coisa, fora deles. Apesar
de que tem sido menos ponderado, esse passo do inconsciente para o
consciente bem poderia nos impressionar como sendo tão imenso, tão
milagroso e tão divino como o da passagem do reino inorgânico para o
orgânico.
Então, correndo paralelamente ao rio do tempo, percebemos uma longa,
uniforme e gradativa ascensão, estendendo-se do nascer da Consciência
Simples à sua mais alta excelência nos melhores tipos pré-humanos - o
cavalo, o cachorro, o elefante e o macaco. Neste ponto nos defrontamos com
uma outra brecha, comparável às que a precederam cronologicamente - a
saber, o hiato, ou o aparente hiato entre a Consciência Simples e a
Autoconsciência: o profundo abismo ou desfiladeiro, num dos lados do qual
perambula o bruto, enquanto no outro vive o ser humano. Um abismo no
qual foram jogados livros suficientes (pudessem eles ter sido convertidos em
pedras ou blocos de ferro) para represar um grande rio ou construir uma
ponte sobre ele. Um abismo que só agora pode ser cruzado com segurança,
graças ao trabalho do lamentado G. J. Romanes em seu valioso tratado sobre
a Origem da Faculdade Humana [134],
Até bem pouco tempo essa brecha na linha de ascenso (ou de descenso)
era considerada - inclusive pela maioria - como intransponível pelo cres­
cimento comum. Pode-se dizer que ela é agora tida como transponível, mas
ainda se apresenta à nossa visão como destacada e fora do caminho uniforme
do desenvolvimento Cósmico, assim como o grande abismo ou hiato entre o
bruto e o ser humano.
Por algumas centenas de milhares de anos, no plano geral da Autocons­
ciência, deu-se uma ascensão, gradual para os olhos humanos mas rápida do
ponto de vista da evolução cósmica. Em certa espécie, de cérebro desenvolvido,
caminhando ereta, gregária, brutal mas reinando sobre todos os outros brutos,
humana em aparência mas não de fato - o chamado alalus-homo - nasceu,
do nível mais alto de Consciência Simples, a faculdade humana básica de
Autoconsciência e com ela sua gêmea, a linguagem. Destas e do que delas
decorreu, através de sofrimento, labuta e guerra; através de bestialidade,
selvageria, barbárie; através de escravidão, ganância, esforço; através de
conquistas sem fim, de esmagadoras derrotas, de lutas intermináveis; através
de eras de existência semibrutal sem rumo; através da subsistência por meio
de frutas silvestres e raízes; através do uso de pedras e galhos casualmente
encontrados; através da vida em floresta densa, alimentando-se de nozes e
sementes e, nas praias, de moluscos, crustáceos e peixes; através da maior,
talvez, das vitórias humanas, a de domesticar e subjugar o fogo; através da
invenção e arte do arco e flecha; através da prática de domar os animais e
submetê-los ao trabalho; através do longo aprendizado que levou ao cultivo
do solo; através do adobe e, com ele, da construção de casas; através da
fundição de metais e do lento nascimento das artes que deles derivam; através
da lenta elaboração de alfabetos e da evolução da palavra escrita; em suma,
através de milhares de séculos de vida humana, de aspiração humana, de
crescimento humano, expandiu-se o mundo dos homens e das mulheres tal
como hoje se apresenta a nós e dentro de nós, com todas as suas realizações
e posses [124. 10-13],
Será que isso é tudo? Que é o fim? Não. Assim como a vida surgiu num
mundo sem vida; assim como a Consciência Simples veio a existir onde
antes havia mera vitalidade sem percepção; assim como a Autoconsciência,
saltando de asas abertas da Consciência Simples, esvoaçou alto sobre terra e
mar, assim também a espécie humana, que foi deste modo estabelecida,
continuando sua ascensão sem começo nem fim, dará outros passos - o
próximo está agora no ato de ser dado - e alcançará uma vida ainda mais
elevada do que qualquer outra vivenciada até aqui ou mesmo concebida.
Que fique claramente entendido que esse novo passo (para cuja explicação
este livro está sendo escrito) não é simplesmente uma expansão da autocons­
ciência, mas algo tão diferente disto quanto essa expansão é diferente da
consciência simples, ou quanto esta o é da mera vitalidade destituída de
qualquer consciência, ou ainda como esta última se diferencia do mundo de
matéria inorgânica e energia que a precedeu e do qual procedeu.
NO PLANO DA AUTOCONSCIÊNCIA
I
Em primeiro lugar seria conveniente fixar bem o significado da palavra
autoconsciência, sobre cuja definição um excelente escritor e pensador muito
competente faz estas observações: “A Autoconsciência é muitas vezes citada
como uma característica distintiva do homem. Muitos, entretanto, falham
em alcançar uma concepção clara do que seja esta faculdade. O Dr. Carpenter
a confunde com “o poder de refletir sobre seus próprios estados mentais”,
enquanto o Sr. Darwin a associa a abstração e outras dentre as faculdades
derivativas. Certamente ela é algo muito mais simples do que a introspecção
e tem origem mais remota do que as faculdades especulativas altamente
derivativas. Se apenas pudesse ser apreendida e claramente compreendida, a
autoconsciência indubitavelmente se revelaria o atributo humano primário e
fimdamental. Nosso idioma parece carecer da palavra adequada para expressála na sua forma mais simples. A palavra pensar é a que mais se aproxima e
o ser humano é algumas vezes descrito como um ser pensante. O idioma
alemão tem uma palavra melhor, qual seja, besinnen\ e o substantivo
Besonnenheit parece tocar o cerne do problema. Schopenhauer diz: “O animal
vive sem qualquer Besonnenheit. Tem consciência, isto é, conhece a si mesmo
e suas vicissitudes, bem como os objetos que as produzem; mas seu
conhecimento é sempre subjetivo, nunca se torna objetivo; tudo que ele
abrange parece existir em si mesmo e por si mesmo e, portanto, pode nunca
se tomar um objeto de representação nem um problema para meditação.
Assim, sua consciência é totalmente imanente. A consciência do ser humano
selvagem é analogamente constituída, no fato de que suas percepções das
coisas e do mundo permanecem preponderantemente subjetivas e imanentes.
Ele percebe coisas no mundo, mas não o mundo; suas próprias ações e paixões,
mas não a si mesmo”.
Talvez a definição mais simples (e existem dezenas delas) fosse:
autoconsciência é a faculdade pela qual tomamos consciência de. Ou ainda:
sem autoconsciência, uma criatura senciente pode saber, mas sua posse é
necessária para que ela possa saber que sabe. O melhor tratado já escrito
sobre este assunto é o livro de Romanes já mencionado várias vezes [134].
Estando as raízes da árvore da vida bem enterradas no mundo orgânico,
seu tronco é constituído da seguinte maneira: Começando ao nível da terra,
temos primeiro que tudo as mais baixas formas de vida, inconscientes e não
sencientes. Estas, por seu turno, dão origem a formas dotadas de sensação e,
mais tarde, aformas dotadas de Consciência Simples. Destas últimas, quando
chega o momento certo, surge a autoconsciência e (como já foi dito), em
direta ascensão desta, a Consciência Cósmica. Apenas é necessário neste
ponto, como a limpar o terreno para o trabalho a ser feito, enfatizar que a
doutrina do desenvolvimento do ser humano, encarada do ponto de vista da
Psicologia, está rigorosamente de acordo com a teoria da evolução em geral,
tal como recebida e ensinada hoje em dia pelos mais destacados pensadores.
Essa árvore que chamamos de vida - e sua parte superior de vida humana
e de mente humana -simplesmente cresceu como cresce qualquer outra árvore
e, além de seu tronco principal, como acima indicado, lançou muitos ramos,
como no caso de outras árvores. Será bom considerar alguns destes. Veremos
que alguns deles nascem da parte mais baixa do tronco; por exemplo a
contratilidade, ramo do qual - e como uma parte dele - surge toda ação
muscular, desde o movimento simples de uma minhoca até os movimentos
maravilhosamente coordenados e feitos, no exercício de sua arte, por um
Liszt ou um Paderewski. Um outro desses grandes ramos inferiores é o instinto
de autopreservação e (como gêmeo dele) o instinto da continuação da espécie
- a preservação da espécie. Mais acima, os sentidos especiais brotam do
tronco principal e, conforme crescem e se dividem repetidamente, tomamse ramos maiores e vitalmente importantes da grande árvore. De todos esses
brotos principais nascem braços menores e, destes, rebentos mais delicados.
Assim, do intelecto humano cujo fato central é a Autoconsciência, uma
seção do tronco principal de nossa árvore, nascem o discernimento, a razão,
a comparação, a imaginação, a abstração, a reflexão e a generalização. Da
natureza moral ou emocional, um dos maiores e mais importantes ramos
principais, nascem o amor (ele próprio um grande ramo que se divide em
muitos ramos menores), a reverência, a fé, o medo, o espanto, a esperança, o
ódio, o humor e muitos outros. Do grande ramo chamado sentido da visão,
que no início era uma percepção da diferença entre a luz e a escuridão,
brotaram rebentos que chamamos de sentido de forma, de distância e, mais
tarde, o sentido da cor. O ramo denominado sentido da audição tem como
ramificações e rebentos a apreensão da intensidade de um som, de sua altura,
de sua distância, de sua direção e, como um rebento delicado que vem de
nascer, o sentido musical.
n
O fato importante a ser notado neste ponto é que, em consonância com a
analogia da árvore aqui adotada, as numerosas faculdades de que o ser humano
é composto (encaradas do ponto de vista da dinâmica) são todas de eras
diferentes. Cada uma delas veio a existir no seu próprio tempo, isto é, quando
o organismo psíquico (a árvore) estava pronto para produzi-la. Por exemplo,
a Consciência Simples, muitos milhões de anos atrás; a Autoconsciência,
talvez há trezentos mil anos. A visão geral é extremamente antiga, mas o
sentido da cor provavelmente só existe há cerca de mil gerações. A sensibili­
dade ao som, há muitos milhões de anos, enquanto o sentido musical está
agora aparecendo. A paixão ou o instinto sexual surgiu há muito tempo nas
eras geológicas - a natureza moral humana, de que o amor sexual humano é
um ramo jovem e vigoroso, não parece ter existido há muitas dezenas de
milhares de anos.
m
Para tomar mais pronta e completamente inteligível o que já foi dito e o
que resta a dizer, será conveniente entrar um pouco em detalhe quanto ao
momento e à maneira de algumas faculdades se transformarem e desenvol­
verem, como amostra do trabalho divino que se tem desenrolado dentro de
nós e à nossa volta desde o alvorecer da vida neste planeta. A ciência da
psicologia humana (para ilustrar o assunto deste livro) deveria explicar o
intelecto humano, a natureza moral humana e os sentidos. Deveria fazer
uma descrição destes tais como existem hoje, de sua origem e evolução, e
deveria fazer uma previsão de seu curso futuro, seja de declínio seja de ulterior
expansão. Apenas bem poucas páginas de amostra desse trabalho podem
aqui ser apresentadas, mas primeiro daremos uma rápida olhada no intelecto.
O intelecto é a parte da mente que sabe, enquanto a natureza moral é a
parte que sente. Cada ato particular do intelecto é instantâneo, ao passo que
os atos (ou melhor, os estados) da natureza moral são mais ou menos
contínuos. A linguagem corresponde ao intelecto e é portanto capaz de
expressá-lo perfeita e diretamente; por outro lado, as funções da natureza
moral (pertencendo, isto é, derivando como derivam do grande sistema
nervoso simpático - enquanto o intelecto e a fala dependem do sistema
cerebrospinal e dele derivam) não estão ligadas à linguagem e são apenas
capazes de expressão indireta e imperfeita por seu intermédio. Talvez a música
- que certamente tem raizes na natureza moral - seja, tal como existe hoje,
o início de uma linguagem que expressará a emoção, assim como as palavras
expressam idéias. [28a. 106]. Os atos intelectuais são complexos e podem ser
decompostos em muitas partes; os estados morais, ou são absolutamente
simples (como no caso de amor, medo, ódio), ou quase tão simples assim; ou
seja, são compostos de relativamente poucos elementos. Todos os atos
intelectuais são semelhantes ou quase semelhantes neste particular; estados
morais têm uma escala de graus de intensidade muito ampla.
O intelecto humano é composto principalmente de conceptos, assim como
uma floresta é composta de árvores e uma cidade de casas; esses conceptos
são imagens mentais de coisas, atos, ou relações. Ao seu registro damos o
nome de memória e, à comparação de uma com a outra, de raciocínio; para
a elaboração dessas imagens em imagens mais complexas (assim como tijolos
são convertidos numa casa), não existe em inglês uma expressão adequada;
às vezes chamamos esse ato de “imaginação” (o ato de formar um símile ou
cópia mental); os alemães têm um nome melhor para isto; eles o chamam
Vorstellung (o ato de colocar adiante), Anschauungsgabe (o dom de
contemplar) e, melhor ainda, Einbildungskraft (o poder de acumular). O
grande intelecto é aquele em que o número de conceptos está acima da média;
o intelecto fino é aquele em que esses conceptos são precisos e bem definidos;
o intelecto lesto é aquele em que eles são fácil e rapidamente acessíveis
quando desejados; e assim por diante.
O crescimento do intelecto humano é o crescimento dos conceptos, isto
é, a multiplicação dos mais simples e ao mesmo tempo a elaboração destes
em outros, mais e mais complexos.
Embora esse crescimento em número e complexidade esteja acontecendo
constantemente em toda mente ativa durante pelo menos a primeira metade
da vida, desde a infância até a meia-idade, e embora cada um de nós saiba
que tem conceptos agora que não tinha algum tempo atrás, mesmo assim,
provavelmente os mais dotados dentre nós não poderiam dizer, a partir de
observação feita sobre sua própria mente, por qual processo esses novos
conceptos vieram a existir - de onde vieram e como vieram. Mas, embora
não possamos perceber isto por observação direta, quer de nossa própria
mente quer da mente de outra pessoa, há ainda outra maneira pela qual o
processo oculto pode ser seguido e é por meio da linguagem. Como foi dito
acima, a linguagem é o equivalente exato do intelecto: para todo concepto
há uma palavra ou palavras e para toda palavra há um concepto; nenhum
dos dois pode existir sem o outro. Assim, diz Trench: “Não podemos
comunicar a um homem mais do que as palavras que ele saiba que já possua
ou que possa ser levado - compreensivelmente para ele - a possuir”. Ou,
como Max Mueller o exprime: “Sem fala não há razão; sem razão não há
fala”. A fala e o intelecto não se correspondem mutuamente desta maneira
por acidente; sua relação está inevitavelmente implicada na natureza das
duas coisas. Ou será que são duas coisas? Ou dois lados da mesma coisa?
Nenhuma palavra pode vir a existir senão como expressão de um concepto,
nem pode um concepto ser formado sem a formação (ao mesmo tempo) da
nova palavra que é sua expressão, embora essa “nova palavra” possa ser
soletrada e pronunciada do mesmo modo que alguma velha palavra. Mas
uma velha palavra, tomando um outro e novo significado, na realidade se
transforma em duas palavras, uma velha e uma nova. O intelecto e a fala se
ajustam mutuamente como a mão e a luva, porém, muito mais estreitamente;
melhor seria dizer que se ajustam como a pele ao corpo, ou a pia-máter ao
cérebro, ou como qualquer espécie no mundo orgânico é adaptada por seu
ambiente. Como ficou implícito no que foi dito, deve-se notar especialmente
que a linguagem se ajusta ao intelecto não somente no sentido de o cobrir em
todas as partes e seguindo todas as suas curvas e dobras, mas também no
sentido de não ultrapassá-lo. As palavras correspondem aos conceptos e
somente aos conceptos, de modo que não podemos expressar diretamente
com elas nem impressões sensoriais nem emoções, mas somos sempre
forçados a transmiti-las (se o conseguimos) expressando, não elas próprias,
mas a impressão que produzem em nosso intelecto, ou seja, os conceptos
formados da contemplação delas pelo intelecto - em outras palavras, sua
imagem intelectual. Assim, antes que uma impressão sensorial ou uma
emoção possa ser concretizada ou transmitida na linguagem, um concepto
tem de ser formado (na suposição de que a represente mais ou menos
verdadeiramente); concepto esse que pode, naturalmente, ser transmitido
em palavras. Mas, na realidade, noventa e nove por cento de nossas impressões
sensoriais e emoções nunca foram representadas no intelecto por conceptos
e, portanto, permanecem não expressas e inexprimíveis, a não ser de maneira
imperfeita, por sugestão ou descrição indireta. Existe nos animais inferiores
uma situação que serve bem para ilustrar esta proposição. Eles têm percepções
sensoriais agudas e fortes emoções como medo, raiva, paixão sexual e amor
materno; mas não podem expressá-las porque estas não têm nenhuma
linguagem própria e os animais em questão não têm nenhum sistema de
conceptos com sons articulados correspondentes. Mesmo asseguradas nossas
percepções sensoriais e nossa natureza moral humana, seríamos tão mudos
como os animais se não tivéssemos juntamente com elas um intelecto em
que pudessem ser refletidas e pelo qual, mediante a linguagem, elas pudessem
ser expressas.
Dado que a correspondência de palavras e conceptos não é casual ou
temporária, mas reside na natureza de ambos e continua absolutamente
constante por todo o tempo e sob todas as .circunstâncias, mudanças num
dos fatores têm de corresponder a mudanças no outro. Assim, a evolução do
intelecto (se ocorre) tem de ser acompanhada de evolução da linguagem.
Uma evolução de linguagem (se ocorre) é evidência de evolução do intelecto.
O que é então aqui proposto é estudar (por alguns momentos) o crescimento
do intelecto por meio de um exame da linguagem, isto é, estudar o nascimento,
a vida e o crescimento de conceptos - que não podem ser vistos - por meio
de palavras, que são seus correlatos e que podem ser vistas.
Sir Charles Lyell, emAntiquity ofMan (Antiguidade do Homem) [113],
ressaltou o paralelismo que existe entre origem, crescimento, declínio e morte
dos idiomas e das espécies no mundo orgânico. Para ilustrar e ao mesmo
tempo ampliar o presente argumento, estendamos o paralelo retroativamente
até a formação dos mundos e para a frente até a evolução das palavras e dos
conceptos. O quadro seguinte atenderá a este propósito, tão bem como - ou
melhor do que - uma exposição minuciosamente argumentada e servirá ao
mesmo tempo como um resumo do argumento da evolução que é desenvolvido
ao longo deste livro.
Um breve estudo do quadro apresentado na página seguinte deixará claro
como orbes, espécies, idiomas e palavras se ramificam, dividem-se e se
multiplicam; tomará inteligível a estimativa de Max Mueller segundo a qual
“todo pensamento que já passou pela mente da índia” pode ser reduzido a
cento e vinte e um conceptos raízes - isto é, a cento e vinte e uma palavras
raízes [116.401] , fará com que concordemos com ele em que, provavelmente,
esse número poderia ser ainda mais reduzido. Se considerarmos por um
momento que isto significa que os milhões de palavras indo-européias hoje
em uso - bem como muitas vezes o número destas há muito tempo mortas e
esquecidas - derivaram quase todas de aproximadamente uma centena de
raízes e que estas, por sua vez, de provavelmente uma meia dúzia, e ao
mesmo tempo lembrarmos que razão e fala são uma coisa só, faremos uma
1. Nebulosa do Sistema astral.
Nebulosa do Sistema Solar...
N.
N.
N.
Sistema de Júpiter..
Saturno
Urano
Netuno
Marte
Terra
Etc.
Planeta
1* Lua
23 Lua
32 Lua
4* Lua
_N.
2. Eohippus
(Eoceno)
Tamanho de
Raposa
Mesohippus
^ (início
I do
Mioceno)
J
3. ? Ariano.
A n c h ith e riu m ...........
(Mioceno) Tamanho
de carneiro
Miohippus
Latim ................
Grego
Sânscrito
Zende
Armênio
Lituano
Antigo Eslavo
Gótico
Equus Caballus.. . Asinus
Hemionus
Quagga
Zebra
. Dauw
Italiano................... -<
Espanhol
Português
Francês
Valáquio
Rético
4. Pré-raiz - Raiz ariana, Spac.
Veneziano
Siciliano
Calabrês
Arcolano
Corso
Expectando
Expectativa
Expectado
Expectar................. - i
Expectável
Espécime
Expectação
Respeito, Respeitar
Expectante
Espectador
,_Expectador
Retardação
Espetáculo
Desprez-ar, -ível
Respective
Despeit-o, -ado
Espectro
Especula-r, -ção
Suspeitar, Suspicaz
Especios-o, -amente, -idade
Específico, Especificação
Inspe-cionar, -ção, -tor
Espéculo
Espécie
Circunspec-to, -ção
Especiaria, Especieiro
Prospect-o, -ivo
Especial, -mente, -idade
Auspicioso, Auspício
Espicular
Respeitável
Espião, Espionar
Aspecto
Prospecto
V^Especificar
r
Latim, Specio, Ver, olhar.............
Grego, Skeptomai, Eu olho
Skeptikos, Um inquiridor
"
Episkopes, Um inspetor
Sânscrito, Pas, Ver
Spasa, Um espião
Spashta, Manifesto
Spas, Um guardião
O.H.G., Spehan, Olhar, espionar
Speha, Um espião
Cavalo de Corrida
Cavalo de Carroça
Cavalo Inglês de Carroção
Cavalo Inglês de Caça
Cavalo Árabe
Pônei de Shetland
idéia do que o intelecto humano já foi em comparação com o que é hoje; do
mesmo modo se toma evidente, num relance, que não somente a evolução
das espécies, das línguas e das palavras é rigorosamente paralela, mas que o
esquema tem provavelmente uma aplicação mais ampla, talvez universal.
Com relação à presente tese, a conclusão a ser tirada dessa comparação é
que as palavras - e portanto os elementos constituintes do intelecto que elas
representam e que chamamos de conceptos - crescem por divisão e
ramificação, conforme novas espécies se ramificam a partir das mais velhas;
e parece claro que um crescimento normal é encorajado e um desenvolvimento
excessivo e inútil é refreado pelos mesmos meios, num caso como no outro isto é, por seleção natural e na luta pela existência.
Novos conceptos - e palavras que os expressam - que correspondem a
alguma realidade externa (seja uma coisa, um ato, um estado ou uma relação)
- e que são portanto úteis para o ser humano, uma vez que a existência deles
o coloca numa relação mais completa com o mundo exterior (relação de que
dependem sua vida e seu bem-estar) são preservados pelo processo de seleção
natural e sobrevivência dos mais ajustados. Alguns, que absolutamente não
correspondem (ou o fazem apenas imperfeitamente) a uma realidade objetiva,
são substituídos por outros que efetivamente correspondem (ou o fazem
melhor) à realidade que aqueles almejavam expressar e assim, na luta pela
existência, caem em desuso e morrem.
Pois com as palavras e com qualquer outra entidade viva acontece o
mesmo: milhares são produzidas para cada uma que sobrevive. A mente,
para qualquer objeto a que é especialmente dirigida, faz surgirem palavras,
muitas vezes em formidável profusão. Há alguns milhares de anos, quando o
sânscrito era ainda uma língua viva e o Sol e o fogo eram tidos como
verdadeiros deuses ou pelo menos como especialmente sagrados, o fogo tinha,
em lugar de bem poucos nomes como hoje, trinta e cinco nomes e, o Sol,
trinta e sete [115.437], Mas exemplos muito mais notáveis são os tirados do
árabe, tais como os oitenta nomes para mel, os duzentos para serpente, os
quinhentos para leão, os mil para espada e as cinco mil setecentas e quarenta
e quatro palavras referentes ao camelo, assuntos estes para os quais a mente
dos árabes está voltada de maneira incisiva e persistente [115. 438]. Mais
uma vez é Max Mueller quem nos diz: “Dificilmente podemos fazer idéia
dos recursos ilimitados dos dialetos. Quando as línguas vernáculas tenham
estereotipado um termo geral, seus dialetos fornecerão cinqüenta, embora
cada um com sua nuança especial de significado. Se novas combinações de
pensamentos são elaboradas no progresso da sociedade, os dialetos fornecem
prontamente os nomes requeridos, do estoque de suas palavras ditas
supérfluas. Não existem somente dialetos locais e provinciais, mas também
de classes. Há um dialeto dos pastores, dos caçadores, dos soldados, dos
fazendeiros. Suponho que poucas pessoas poderão dizer qual é o significado
exato de certas palavras referentes a cavalos: cabeleira, cernelha, pitoco,
garrão, canela, quarteia, coroa, braço, queixada e açaimo. Onde a linguagem
vernácula fala dos filhotes de todas as espécies de animais, os fazendeiros,
os pastores e os caçadores ficariam encabulados de usar um termo tão genérico.
O idioma dos nômades, como diz Grimm, contém uma profusão de variegadas
expressões para espada, armas e para os diferentes estágios da vida do gado.
Numa língua mais altamente cultivada, essas expressões tomam-se pesadas
e supérfluas. Mas, no dizer de um camponês, a prenhez, o dar cria, a decaída
e o abater de quase cada animal têm seus termos peculiares, assim como o
caçador se deleita em dar nomes diferentes à andadura e aos membros da
caça. Assim a Dame* Juliana Bemers, priora do convento de Sopwell no
século XV, renomada autora do Book o f St. Albans (Livro de Santo Albano)
diz que não devemos usar nomes coletivos indiscriminadamente, mas que
devemos dizer: uma “congregcyon”** {congregation, congregação) de
pessoas, uma “hoost” (host, hoste) de homens, um “felyshyppynge” (?) de
mulheres e um “bevy” (bevy, bando, pequeno grupo) de senhoras; que devemos
falar em “herde” (herd, horda) de “hartys” Qiarts, cervos), “swannys (swans,
cisnes), “cranys” (cranes , garças-azuis) ou “wrennys” (wrens, garriças,
corruíras); em “sege” (?) de “herons” (herons, garças) ou “bytourys” (?), em
“muster” (muster , ajuntamento) de “peacockys” (peacocks, pavões), em
“watche” (watch ouflock, bando) de “nyghtyngalys” (nightingales, rouxinóis),
numa “flyghte” (flight, revoada) de pombas, em “claterynge” (clatter,
estrépito) de “choughes” (choughs, gralhas), em “piyde” (pride, bando) de
leões, em “slewthe” (slew ou slue, grande número) de “beeiy” (?), em “gagle”
(gaggle , bando) de “geys” (?), numa “skulke” (skulk, malta) de raposas, em
“sculle” (?) de “frerys” (?), num “pontyfycalate” (pontificate, pontificado)
de prelados, numa “bomynable syght” (abominable sight, vista abominável)
de “monkes” (monkeys, macacos), em “dronkenshyp” (?) de “cobblers”
(cobblers, sapateiros), e assim por diante quanto a outros agrupamentos
humanos ou de bichos. Analogamente, ao se cortar a carne da caça para a
*Titular feminina da Ordem do Império Britânico
**Aqui são listados muitos termos em inglês arcaico - alguns talvez não vernáculos
- para ilustrar o argumento do autor. Para proveito dos estudiosos do assunto, optamos
por apresentar entre aspas os termos originais, indicando entre parênteses, primeiro,
em itálico, o provável termo em inglês atual, depois o termo em português para a
possível compreensão do argumento pelo leitor desta tradução.
mesa, os animais não eram trinchados, mas um “dere” {deer, veado) era
“broken” (broken, quebrado), um “gose” (goose, ganso) era “reryd” (reared\
fatiado), uma “chekyn” (chicken, galinha) era “frusshed” (talvezfried, frita)”
- [e assim por diante, no original, a cada animal sendo atribuídos um
substantivo e um verbo diferentes] - [115. 70],
Estes exemplos servem para mostrar como o intelecto humano se sente
frente ao mundo exterior que se lhe apresenta, tentando um abrigo em cada
fenda que encontre, por estreito e precário que seja o controle que lhe
proporcione. Pois, de era em era, a mente humana procura incessantemente
dominar os fatos do mundo exterior; seu crescimento consiste efetivamente
em rotular esses fatos, assim como a hera se espalha, se ajusta e cobre as
pedras de um muro; o broto que consegue um ponto de apoio fortalece e dá
origem a outros brotos; aquele que não o consegue, depois de algum tempo
pára de crescer e acaba morrendo.
O ponto importante a ser observado para nosso propósito atual é que,
assim como no caso da criança que está aprendendo a falar, a espécie começou
também com poucas palavras, ou, como diz Geiger [91. 29], com uma única
palavra. Isto é, o ser humano começou a pensar com bem poucos conceptos
ou com um só còncepto (naturalmente, na época e anteriormente ele tinha
um grande acervo de perceptos e receptos [134. 193], pois do contrário pouco
poderia ter feito com o seu concepto único ou com seus poucos conceptos).
Desses poucos conceptos ou daquele concepto único procederam, em enorme
quantidade, os conceptos e as palavras que vieram depois a existir; e a evolução
de todo o intelecto humano a partir de um só concepto inicial não deve
parecer incrível, ou mesmo muito maravilhosa, para aqueles que tenham em
mente que todo o complexo corpo humano, com todos os seus tecidos, seus
órgãos e suas partes, é composto de centenas de milhões de células, cada
uma das quais, por mais que seja diferente em estrutura e função daquelas
que pertençam a outros órgãos e tecidos que não os seus, não obstante descende
linearmente da única célula primordial em que cada um de nós (e há apenas
alguns anos) teve sua origem.
A medida que recuamos no passado, portanto, vemos a linguagem - e
com ela o intelecto humano - reduzindo-se a um ponto, e sabemos que,
dentro de uma distância mensurável do ponto em que estamos hoje, ambos
devem ter tido um começo. A data desse começo foi aproximadamente fixada
por muitos escritores e a partir de muitas indicações, de modo que não
podemos estar muito afastados do certo ao colocá-la (provisoriamente) em
mais ou menos trezentos mil anos antes da nossa época.
IV
Muito mais modemo do que o nascimento do intelecto foi o do sentido
da cor. Contamos com a autoridade de Max Mueller [117. 299] na afirmação
de que: “É bem sabido que a distinção da cor é de data recente; que Xenófanfes
conhecia apenas três cores do arco-íris: púrpura, vermelho e amarelo; que
mesmo Aristóteles falava do arco-íris de três cores; e que Demócrito não
conhecia mais que quatro cores - preto, branco, vermelho e amarelo”.
Geiger [91. 48] salienta que pode ser provado, por exame da linguagem,
que remotamente na vida da espécie como na época dos primitivos arianos talvez não mais de quinze ou vinte mil anos atrás - o ser humano só tinha
consciência, só percebia, uma cor. Isto é, não distinguia qualquer diferença
de matiz entre o azul do céu, o verde das árvores e da relva, o marrom ou o
cinza da terra e o ouro e o púrpura das nuvens no nascer e no pôr-do-sol.
Assim, Pictet [126] não encontra nomes de cores no primitivo discurso indoeuropeu. E Max Mueller [116:616] não encontra raiz sânscrita cujo
significado tenha qualquer referência a cor.
Em período posterior mas ainda antes da época das composições literárias
mais antigas hoje existentes, o sentido da cor era tão mais desenvolvido do
que essa condição primitiva que vermelho e preto eram reconhecidos como
cores distintas. Mais tarde ainda, na época em que foi composta a maior
parte do Rig Veda, o vermelho, o amarelo e o preto eram reconhecidos como
três matizes diferentes, mas os três incluíam todas as cores que o ser humano,
naquela época, era capaz de identificar. Ainda mais tarde, o branco foi
acrescentado à lista e depois o verde; mas no Rig Veda, no Zend Avesta, nos
poemas de Homero e na Bíblia, a cor do céu não é mencionada nem sequer
uma vez; aparentemente, portanto, não era reconhecida. Pois esta omissão
dificilmente poderá ser atribuída a acidente; as dez mil linhas do Rig Veda
são grandemente ocupadas com descrições do firmamento e de todos os seus
aspectos - o Sol, a Lua, as estrelas, as nuvens, o relâmpago, o nascer e o pôrdo-sol, são mencionados centenas de vezes. Assim também o Zend Avesta,
para cujos autores a luz e o fogo, tanto terrestres como celestes, são sagrados,
dificilmente poderia ter omitido por acaso qualquer menção ao céu azul. Na
Bíblia, o firmamento e o Céu são mencionados mais de quatrocentas e trinta
vezes; mesmo assim não é feita menção alguma à cor do primeiro. Em
nenhuma parte do mundo o azul do céu é mais intenso do que na Grécia e na
Ásia Menor, onde foram compostos os poemas de Homero. Será possível
conceber que um poeta (ou os poetas) que viu o céu como o vemos agora
pudesse escrever os quarenta e oito longos livros da Ilíada e da Odisséia sem
nunca ter feito menção ou referência a isso? Mas, ainda que fosse possível
crer que todos os poetas do Rig Veda, do Zend Avesta, da Ilíada, da Odisséia
e da Bíblia pudessem ter deixado de mencionar a cor azul do céu por mero
acidente, a etimologia entraria em cena e nos asseguraria que, quatro mil
anos atrás, ou talvez três, o azul era desconhecido, pois naquela época os
nomes subseqüentes para o azul estavam todos inseridos nos nomes para
preto.
O
vocábulo inglês blue e o alemão blau descendem de uma palavra que
significava preto. O chinês hi-u-an, que hoje significa azul do céu, antiga­
mente significava preto. A palavra nil, que hoje significa azul nos idiomas
persa e árabe, deriva do nome Nilo, isto é, rio negro, de que a palavra latina
niger é uma forma.
Não parece possível que, na época em que os seres humanos reconheciam
somente duas cores - que chamavam de vermelho e preto - estas aparecessem
a eles como vermelho e preto aparecem a nós - embora exatamente o que
eram as sensações que eles assim denominavam não possa naturalmente ser
agora verificado. Com o nome de vermelho, parece que eles incluíam nesta
cor o branco, o amarelo e todos os matizes intermediários; ao passo que,
com o nome de preto, parecem ter incluído todas as tonalidades de azul e
verde. Assim como as sensações de vermelho e preto vieram a existir pela
divisão de uma sensação de cor originariamente unitária, com o passar do
tempo estas se dividiram. Primeiro o vermelho se dividiu em vermelhoamarelo; depois, este vermelho em vermelho-branco. O preto se dividiu em
preto-verde; depois o preto novamente em preto-azul e, durante os últimos
dois mil e quinhentos anos, estas seis cores (ou melhor, estas quatro vermelho, amarelo, verde e azul) subdividiram-se no número enorme de
tonalidades de cor que são agora reconhecidas e têm nome. O diagrama da
página seguinte mostra, num relance, a ordem em que as cores do espectro
tornaram-se visíveis para o ser humano:
Pode ser mostrado de modo totalmente independente que, se o sentido da
cor de fato veio a existir como aqui supomos, a ordem sucessiva em que se
diz que as cores foram reconhecidas pelo ser humano (seguindo antigos
documentos e etimologias) é efetivamente a ordem em que devem ter sido
assim reconhecidas e os fatos científicos que agora estão para ser aduzidos
devem ser admitidos como extraordinariamente confirmatórios das conclusões
acima, tais como extraídos de fontes inteiramente separadas e distintas.
Os raios solares ou outros raios de luz que excitam a visão são chamados
de vermelho, laranja, amarelo, verde, azul, índigo e violeta. Estes raios
diferem um do outro no comprimento e na amplitude das ondas que os
compõem e tanto o comprimento quanto a amplitude das ondas diminuem
na ordem em que os nomes vêm de ser mencionados. Mas a força ou energia
de uma onda de luz, ou seja, seu poder de excitar a visão, é proporcional ao
quadrado de sua amplitude [180. 272, e especialmente 181. 136], Segundo
esta lei, a energia - o poder de excitar a visão - dos raios vermelhos é milhares
de vezes maior que a energia dos raios violeta e há uma rápida e regular
queda de energia conforme percorremos o espectro do vermelho até o violeta.
E claro que, se houve um aperfeiçoamento crescente no sentido da visão, em
virtude do qual o olho passou gradualmente da insensibilidade para a
sensibilidade à cor, o vermelho deve necessariamente ter sido a primeira cor
percebida, depois o amarelo, o verde e assim por diante até o violeta; e isto é
exatamente o que a etimologia e a literatura antigas nos dizem que aconteceu.
A relativa modernidade do sentido da cor é ainda atestada pelo grande
número de pessoas, em todos os países, chamadas daltônicas - isto é, pessoas
que são nos dias atuais total ou parcialmente destituídas do sentido da cor.
“A asserção de Wilson de que provavelmente uma pessoa em cada vinte e
cinco é daltônica permaneceu em dúvida porque não foi provada com base
em números suficientemente grandes. Enquanto não dispúnhamos de métodos
de comparação - principalmente o de Hohngren - não foi possível obter
dados satisfatórios. Nas mãos certas, o método de Hohngren decide um caso
tão rapidamente que já foram feitos testes em milhares de pessoas. Com base
em pelo menos duzentos mil exames, foi obtido o resultado de que quatro
por cento de homens e um quarto de um por cento de mulheres têm daltonismo
em maior ou menor grau” [135. 242], Isto daria um caso de daltonismo em
cada quarenta e sete pessoas.
O grau de universalidade do sentido da cor numa raça é, naturalmente,
um fato importante para se estimar seu grau de evolução em comparação
com outras raças. A este propósito, os fatos seguintes são de interesse [122.
716]: “No Japão, de 1.200 soldados, 1,58 por cento eram daltônicos em
relação ao vermelho e 0,833 por cento em relação ao verde. De 373 meninos,
1 por cento eram daltônicos em relação ao vermelho; de 270 meninas, 0,4
por cento. De 596 homens examinados pelo Dr. Berry, de Kyoto, 5,45 por
cento mostraram sentido da cor imperfeito. Dentre os japoneses em geral, o
percentual de daltonismo é menor do que dentre os europeus ou os americanos.
Dentre 796 chineses examinados em vários lugares não foram encontrados
casos de daltonismo, mas foi freqüentemente constatada uma tendência de
misturar verde e azul. Esta peculiaridade foi apresentada com ênfase muito
maior pelo Dr. Fielde, de Swatow, China, que examinou 1.200 chineses de
ambos os sexos usando o teste da lã, de Thompson. De 600 homens, 19 eram
daltônicos e, de 600 mulheres, apenas 1. O percentual de daltonismo entre
homens chineses é então de aproximadamente 3 por cento e não varia muito
em comparação com os europeus”.
No daltonismo, a visão geral não é afetada; o indivíduo distingue luz e
sombra, forma e distância, tão bem como outras pessoas. Isto mostra também
que o sentido da cor é mais superficial, menos fundamental e provavelmente,
portanto, é adquirido mais tarde do que outras faculdades que pertencem à
função da visão. Pois uma pessoa não poderia perder um dos elementos mais
fundamentais da visão (o sentido da forma visual, por exemplo) e conservar
as outras faculdades visuais inalteradas.
O daltonismo é na verdade um exemplo do que se denomina atavismo,
ou reincidência de uma condição que era normal na ancestralidade da pessoa
mas que não pertence propriamente à espécie na época em que ela vive. A
freqüência dessa reincidência (que como vimos se estima ocorrer em uma
pessoa em cada quarenta e sete) indica que o sentido da cor é compara­
tivamente moderno; pois o atavismo é mais freqüente na proporção inversa
da duração do tempo que transcorreu desde que o órgão ou a função perdida
ou impropriamente usada (conforme o caso) tenha (num caso) existido
normalmente na raça ou (no outro) sido descartada no processo de evolução.
O fundamento lógico desta lei (a que voltaremos a nos referir) é óbvio: depende
do simples fato de que, quanto mais tempo qualquer órgão (ou função) tenha
existido numa raça, maior será a certeza de que será herdado. A existência
do daltonismo, então, numa porcentagem tão grande da população, demonstra
que o sentido da cor é uma faculdade moderna. A relativa visibilidade dos
diferentes raios coloridos de luz assegura que, se o sentido da cor foi adquirido,
deve indubitavelmente tê-lo sido na ordem em que os filólogos afirmam que
ele de fato foi adquirido e a concordância destes dois conjuntos de fatos - um
tirado da filosofia natural, o outro da etimologia - juntamente com o fato do
daltonismo, é tão notável que parece impossível alguém recusar-se a assentir
nas conclusões alcançadas.
V
Uma outra faculdade recentemente adquirida é o sentido da fragrância.
Ela não é mencionada nos hinos védicos e apenas uma vez no Zend Avesta.
Geiger [91. 58] nos diz que o hábito de oferecer incenso juntamente com o
sacrifício não é encontrado no Rig Veda, embora seja encontrado no mais
recente Yadshurveda. Dentre os livros bíblicos, o sentido da fragrância de
flores faz seu primeiro aparecimento no Cântico dos Cânticos. Segundo a
descrição no Gênesis, havia no Paraíso todas as espécies de árvores “que
eram agradáveis à vista e boas para alimento”, não se fazendo menção de
odores agradáveis. O livro apócrifo de Enoch (do primeiro século a. C. ou
mesmo mais tarde), existente em etíope, descreve do mesmo modo o Paraíso
mas não deixa de exaltar a deleitosa fragrância da Árvore do Conhecimento,
bem como de outras árvores, no Jardim do Éden.
Além desta evidência, diz-se que é possível provar com base na linguagem
que um sentido como o da fragrância não existia nos primeiros tempos dos
indo-europeus. Vale a pena também mencionar a este propósito que nenhum
animal (embora muitos destes nos ultrapassem tanto no reconhecimento pelo
olfato) possui, até onde sabemos ou podemos descobrir, qualquer sentido de
fragrância e que as crianças só o adquirem depois que têm vários anos de
idade - não, certamente, por vários anos depois de terem adquirido, mais ou
menos perfeitamente, o sentido da cor; correspondendo assim, em seu
desenvolvimento mental (conforme acima indicado), à evolução da mente
humana em geral, pois o sentido da cor provavelmente veio a existir na
espécie muitos milhares de anos antes do sentido da fragrância.
VI
Os instintos, que são tanto humanos quanto animais, como o sexual e o
maternal, sem dúvida chegaram ao ser humano através de longas linhas de
descendência e têm existido nele e em seus ancestrais há milhões de anos;
mas a natureza moral humana, embora tenha raízes nesses instintos e deles
tenha se desenvolvido, é de origem relativamente recente. Não apenas não é
anterior ao nascimento da autoconsciência, mas é decerto muito mais recente
do que ela.
O ser humano, isto é, a Autoconsciência, como já foi dito, deve ter vindo
a existir cerca de trezentos mil anos atrás, quando o primeiro Alalus Homo
emitiu a primeira verdadeira palavra. No indivíduo atual, o ser humano
nasce quando a criança se toma autoconsciente - na idade média de, digamos,
três anos. Entre as raças indo-européias, não mais que cerca de um indivíduo
(denominado idiota) em mil cresce até a maturidade sem atingir a Autocons­
ciência. Esta, tendo aparecido no indivíduo, só é perdida em grandes ou
raras crises - como no delírio da febre e em algumas formas de insanidade,
notavelmente na obsessão; por outro lado, a natureza moral humana não
aparece no indivíduo (em média) até, digamos, a meio caminho entre a idade
de três anos e a maturidade. Em lugar de um ou dois em mil, várias vezes o
mesmo número numa centena nascem, crescem e morrem sem uma natureza
moral. Ao invés de ser perdida em crises grandes e raras, ela é constantemente
perdida em caráter temporário. Todas estas indicações provam que a natureza
moral humana é de origem muito mais recente do que o intelecto humano e
que, se supomos que o último tenha trezentos mil anos, não podemos supor
que a primeira tenha a mesma idade.
VII
O ser humano primitivo de que descendemos ainda tem na Terra, nos
dias atuais, dois representantes, primeiro, o silvícola; segundo, a criança.
Seria verdadeiro dizer que a criança é um silvícola e este uma criança e que
não somente cada membro individual da espécie mas a própria espécie como
um todo passou pelo estado mental representado pelos dois. Pois, assim como
na sua evolução intra-uterina o indivíduo humano reproduz e resume em
poucos e breves meses a evolução da espécie humana, fisicamente considerada,
da forma unicelular inicial em que a vida individual começou, através de
todas as fases intervenientes entre essa forma e a humana, retomando a cada
dia a lenta evolução de milhões de anos, assim também o indivíduo humano,
em seu desenvolvimento mental do nascimento à maturidade, reproduz e
resume a evolução da vida psíquica da espécie; e assim como o ser humano
físico individual começa na parte mais baixa da escala como uma mônada
unicelular, o ser humano psíquico começa no degrau mais baixo da escada
mental e, em sua ascensão de umas poucas dúzias de meses, passa pelas
sucessivas fases, cada uma delas tendo utilizado milhares de anos para seu
cumprimento pela espécie. As características da mente do silvícola e da
criança nos darão, quando encontradas, as características da mente humana
primeva de que descendeu a mente moderna comum que conhecemos, bem
como as mentes excepcionais dos grandes homens da história contemporânea.
As principais diferenças entre a mente primitiva (a infantil e a silvícola)
de um lado, e a mente civilizada de outro, estão em que a primeira (chamada,
para sermos breves, de mente inferior) é deficiente em força pessoal, coragem,
ou fé; e também em compaixão, ou afeto, e é mais facilmente provocada ao
terror ou à raiva do que a segunda mente, a civilizada. Naturalmente, há
outras diferenças além destas, entre a mente inferior e a superior - diferenças
no intelecto e mesmo em percepções dos sentidos; estas, porém, embora
grandes em si mesmas, não têm a suprema significância das diferenças
básicas, fundamentais e morais que vêm de ser mencionadas. A mente inferior,
então, carece de fé, de coragem, de força pessoal, de compaixão, de afeição isto é (para resumir), carece de paz, contentamento e felicidade. É propensa
ao medo das coisas conhecidas e, mais ainda, a um terror indefinido das
coisas desconhecidas; é propensa à raiva, à fúria, ao ódio - ou seja (para
resumir, uma vez mais), ao desassossego, ao descontentamento e à
infelicidade. Por outro lado, a mente superior (comparada à inferior) tem fé,
coragem, força pessoal, compaixão, afeição; isto é, tem, relativamente,
felicidade; é menos propensa a temer coisas conhecidas e desconhecidas,
bem como à raiva e ao ódio - isto é, à infelicidade.
Esta afirmativa, feita assim em traços gerais, não parece à primeira vista
significar muito, mas de fato significa quase tudo; contém a chave do nosso
passado, do nosso presente e do nosso futuro, pois é a condição da natureza
moral (assim brevemente aludida) que decide por cada um de nós de momento
a momento e pela raça em geral de era em era, que espécie de lugar este
mundo em que vivemos parecerá ser - que espécie de lugar ele efetivamente
é para cada um de nós. Pois não são nossos olhos e ouvidos, nem mesmo
nossos intelectos, que julgam o mundo para nós, mas é a nossa natureza
moral que afinal estabelece o valor do que existe ao nosso redor.
Os membros da espécie humana começaram temendo muita coisa e não
gostando de muita coisa, amando ou admirando pouca coisa e confiando
menos ainda. É seguro dizer que os primeiros homens das águas e os homens
das cavernas, seus sucessores, pouca beleza viam no mundo exterior em que
viviam, embora talvez seus olhos, em quase todos os outros aspectos, fossem
tão intensamente sensíveis quanto os nossos. É certo que suas afeições de
família (como no caso dos silvícolas inferiores de hoje) eram, para dizer o
mínimo, rudimentares, e que todos os homens fora de sua família imediata
eram temidos ou antipatizados, ou ambas as coisas. Quando a espécie emergiu
do passado nebuloso para a luz daquilo que pode ser chamado de história
inferida, a visão que os seres humanos adotaram do governo do universo, do
caráter dos seres e das forças pelos quais esse governo era conduzido, da
posição em que o homem se achava perante os poderes governantes, de suas
perspectivas nesta vida e depois dela, era (como no caso das raças inferiores
de hoje) extremamente sombria. Desde aquele tempo, nem o mundo nem o
governo do mundo mudaram, mas a alteração gradual da natureza moral do
ser humano transformou o mundo, aos seus olhos, num lugar diferente. As
ermas e proibitivas montanhas, o assombroso mar, as sinistras florestas, a
escura e temível noite, todos os aspectos da natureza que naquela remota
época estavam carregados de temor, revestiram-se de uma nova e estranha
beleza. Toda a espécie humana e todos os seres vivos adquiriram (em nossos
olhos) um encanto e um caráter sagrado que nos tempos antigos estavam
longe de possuir. Os poderes governantes do universo (obedientes à mesma
influência benéfica) foram gradualmente convertidos de demônios em seres
e forças cada vez menos hostis e cada vez mais amigáveis para o ser humano;
assim, em todos os aspectos, cada era interpretou o universo por si mesma e
tem mais ou menos desacreditado as interpretações de eras anteriores.
Qual é a interpretação correta? Que mente, em toda a vasta diversidade
do passado e do presente, em toda esta longa série, visualizou para si própria
mais corretamente o mundo exterior? Vejamos. Consideremos por um
momento nossa genealogia espiritual e ponderemos mais extensamente seu
significado. Nossos ancestrais imediatos eram cristãos. O progenitor espiritual
do cristianismo foi o judaísmo. Este, tendo começado no grupo de tribos
coletivamente denominadas Terachitas ou Hebreus - Ibrim, os do outro lado
(isto é, do Eufrates) - descendeu do mítico Ab-orham ou Abraão [137-91],
sendo essas próprias tribos um rebento do grande ramo semítico da raça
caucasiana, que se originou diretamente do politeísmo caldeu. Este último,
por sua vez, foi um desenvolvimento em descendência direta da adoração ao
Sol e à Natureza, da primitiva e indivisa família caucasiana. A adoração ao
Sol e à Natureza sem dúvida teve sua raiz e deveu sua vida ao fetichismo
inicial, ou à direta adoração a objetos particulares da Terra. Nesta longa
descendência (embora apliquemos nomes diferentes a diferentes partes de
uma série contínua, como se houvesse linhas de demarcação entre essas partes
diferentes) não tem havido nenhuma ruptura e, em todos os milhares de
anos, nunca houve coisa alguma como uma nova partida. Nestes assuntos
espirituais, a máxima Natura non facit saltum* é aplicável tanto na Física
como na Geologia.
Todo o assunto é uma simples questão de crescimento estritamente análogo
ao desenvolvimento do ramo a partir do broto, ou da planta a partir de sua
semente. Comojá foi bem expresso: “La religion étant un des produits vivants
de l’humanité doit vivre, c’est-a-dire, changer avec elle”** [136:45]. Em
última análise será verificado que, sob a vasta diversidade de aparência
externa, desde o fetichismo até o cristianismo, por trás da infinita variedade
de fórmulas, credos e dogmas resumidos sob estes cinco tópicos, o elemento
essencial de que tudo o mais depende, que está por trás de tudo e é a alma de
tudo, é a atitude da natureza moral. Todas as mudanças na forma intelectual
e no aspecto exterior da religião são tão obedientes à mudança gradual que
ocorre nessa natureza como os ponteiros e as engrenagens do relógio à força
expansiva de sua mola principal. O mundo exterior permanece estável, mas
o espírito do ser humano cresce continuamente e, conforme o faz, sua própria
vasta sombra de Brocken (lançada pela natureza moral mas moldada pelo
intelecto), que ele projeta em meio ao infinito desconhecido, necessariamente
(como uma visão que se dissolve) muda e muda, seguindo as alterações na
substância (isto é, na alma do ser humano) que dá vida e realidade ao fantasma
sombrio que as pessoas simples chamam de seu credo e que metafísicos
chamam de filosofia do absoluto.
Mas assim interpretando de era em era o universo desconhecido em que
vivemos, deve ser observado que estamos (no todo) constantemente fazendo
um relatório cada vez melhor dele. Atribuímos aos nossos deuses (conforme
* A natureza não dá saltos.
** A religião, sendo um dos produtos vivos da humanidade, deve viver, isto é,
mudar com ela.
passam as eras) um caráter cada vez melhor e constantemente esperamos,
nas mãos deles, um tratamento cada vez melhor, tanto na vida atual como
após a morte. Isto quer dizer (naturalmente) que a confiança ou fé que
possuímos está firmemente aumentando e invadindo o campo oposto do medo,
que está com a mesma constância diminuindo. Igualmente pode ser dito,
quanto a caridade, solidariedade, afeição, que o constante aumento daquela
faculdade está firmemente mudando para nós o aspecto do mundo visível,
do mesmo modo que o crescimento da fé está alterando a imagem que
formamos para nós mesmos daquele mundo maior que é invisível. Nem há
qualquer indicação de que este processo duplo tenha chegado a um fim ou de
que seja provável que chegue a um fim.
vm
O período de tempo durante o qual a espécie esteve de posse de qualquer
dada faculdade pode ser mais ou menos precisamente estimado partindo-se
de várias indicações. Nos casos em que o nascimento da faculdade ocorreu
em tempos comparativamente recentes - dentro, por exemplo, dos últimos
vinte e cinco ou trinta mil anos - a filologia (como vimos) pode nos ajudar
consideravelmente a determinar a data aproximada de seu aparecimento.
Mas para faculdades comparativamente antigas, tais como o intelecto humano
ou a consciência simples, este meio necessariamente nos falha por completo.
Recorremos, então, aos seguintes testes:
1. A idade em que a faculdade aparece atualmente no indivíduo humano.
2. A maior ou menor universalidade da faculdade nos adultos da espécie
hoje em dia.
3. A rapidez, ou o inverso, com que a faculdade é perdida - como no caso de
doença.
4. A relativa freqüência com que a faculdade aparece em sonhos.
1.
A propósito de cada uma de nossas faculdades mentais pode-se afirmar
que ela tem sua própria idade normal, ou média, para aparecer no indivíduo;
por exemplo, a memória e a consciência simples aparecem nos primeiros
dias após o nascimento; a curiosidade, dez semanas depois; o uso de
ferramentas e objetos, doze meses mais tarde; a vergonha, o remorso e um
senso do ridículo, todos uns quinze meses após o nascimento. Mas deve ser
notado que, em cada caso, a idade em que aparece uma faculdade na criança
corresponde ao estágio em que a mesma faculdade aparece (tanto quanto
pode ser atualmente verificado) na escala animal ascendente, do mesmo modo
que, no caso de faculdades que aparecem mais tarde, a idade de seu apare­
cimento no indivíduo corresponde ao seu período de aparecimento na espécie;
por exemplo, a memória e a consciência simples ocorrem em animais
primitivos como os equinodermos, enquanto o uso de ferramentas não é
encontrado abaixo dos macacos; e a vergonha, o remorso e o senso do ridículo
são quase se não inteiramente restritos (entre os animais) ao macaco
antropóide e ao cachorro. Assim, dentre as faculdades puramente humanas,
a autoconsciência, que aparece no indivíduo em geral na idade de três anos,
fez seu primeiro aparecimento na espécie certamente mais de mil séculos
atrás, enquanto o sentido musical, que não aparece no indivíduo antes da
adolescência ou puberdade, não pode (a julgar pelos registros) ter existido
na espécie há mais do que bem poucos milhares de anos.
2. Quanto mais tempo uma espécie tenha estado de posse de uma dada
faculdade, mais universal será essa faculdade na espécie. Esta proposição
certamente não requer prova. Toda faculdade nova tem de ocorrer primeiro
em certo indivíduo e, à medida que outros indivíduos vão alcançando o estado
de ser dele vão adquirindo-a também, até que, depois de talvez muitos
milhares de anos, tendo toda a espécie alcançado aquele mesmo estado, a
faculdade terá se tomado universal.
3. Quanto mais tempo uma espécie tenha estado de posse de uma dada
faculdade, mais firmemente estará essa faculdade fixada em cada indivíduo
da espécie que a possua. Em outras palavras: quanto mais recente é qualquer
faculdade, mais facilmente é perdida. Autoridade para esta proposição (de
que ela dificilmente carece) será citada quando ela for feita num outro
contexto. Trata-se de uma proposição quase, se não absolutamente, autoevidente.
4. Um estudo dos sonhos parece revelar o fato de que, no sono, o tipo de
mente que temos difere de nossa mente desperta, especialmente em ser mais
primitiva; de que seria de fato quase rigorosamente verdadeiro dizer que em
sonhos recuamos para uma vida mental pré-humana; de que as faculdades
intelectuais que temos nos sonhos são especialmente receptos, distintos dos
conceptos de nosso estado de vigília - ao passo que, no campo moral, são
igualmente faculdades como remorso, vergonha, surpresa, juntamente com
as mais antigas e mais básicas funções sensoriais que já nos pertenciam
antes de alcançarmos o plano humano - e de que as faculdades mentais mais
modernas, tais como o sentido da cor, o sentido musical, a autoconsciência e
a natureza moral humana, não existem nesse estado ou, se quaisquer delas
efetivamente ocorrem, fazem-no apenas como rara exceção.
Comparemos agora algumas das faculdades que já mencionamos, à luz
das regras estabelecidas. Isto nos dará, mais claramente do que talvez qualquer
outra coisa poderia fazer, uma noção precisa do crescimento da mente pelo
sucessivo acréscimo de novas funções. Para este fim tomemos (como alguns
exemplos que possam representar todos os casos) a consciência simples, a
vergonha, a autoconsciência, o sentido da cor, a natureza moral humana, o
sentido musical e a consciência cósmica.
A consciência simples aparece na criança poucos dias após seu nasci­
mento; é absolutamente universal na espécie humana, data de bem antes dos
primeiros mamíferos e é perdida somente no sono profundo e no estado de
coma; está presente em todos os sonhos.
Segundo consta, a vergonha, o remorso e o senso do ridículo nascem na
criança mais ou menos aos quinze meses; todas são faculdades pré-humanas
que se encontram no cachorro e nos macacos e sem dúvida existiam em
nossos ancestrais pré-humanos; são quase universais na espécie, sendo
ausentes somente nos idiotas muito profundos; as três são comuns nos so­
nhos.
A autoconsciência aparece na criança á idade média de três anos e não
está presente em nenhuma outra espécie além do ser humano; é na verdade
a faculdade cuja posse por um indivíduo o constitui como um ser humano.
Não é universal em nossa espécie, sendo ausente em todos os verdadeiros
idiotas, ou seja, permanentemente ausente em mais ou menos um em cada
mil seres humanos na Europa e na América.*
* No que tange à ausência da autoconsciência nos idiotas, o exame dos internados de um grande
asilo de idiotas revelou o fato de que a faculdade estava ausente em noventa por cento. Os pacientes
examinados tinham, quase todos, acima de dez anos de idade. Naturalmente, alguns deles poderiam
alcançar a autoconsciência mais tarde. Dicionários e trabalhos sobre idiotia [101] definem um idiota
como “um ser humano destituído dos poderes mentais comuns”; mas parece que uma definição
melhor e mais precisa seria: “um ser humano no qual, tendo passado a idade usual, por conseqüência
de atavismo, a autoconsciência não foi desenvolvida” . Ao passo que a definição de imbecil seria:
“Um ser humano que, embora autoconsciente, é, por conseqüência de atavismo, em alto grau
destituído dos poderes mentais comuns”.
Deve no entanto haver muitos membros de espécies inferiores, tais como os
bosquímanos sul-africanos* e os nativos da Austrália, que nunca alcançaram essa
faculdade. Em nossa anoestralidade, a autoconsciência remonta ao primeiro homem
verdadeiro. Milhares de anos devem ter passado entre seu primeiro aparecimento
e sua universalidade, do mesmo modo que milhares de anos estão agora passando
entre os primeiros casos de consciência cósmica e sua universalidade.
Essa espécie, assim somos informados, despida, caminhando ereta**, gregária,
sem uma verdadeira linguagem, comuso limitado de ferramentas, sem casamento,
governo ou qualquer instituição; animal mas rainha dos animais, dada sua natureza
moral relativamente alta (tornando-a gregária) e sua inteligência receptiva altamente
evoluída, desenvolveu autoconsciência e com isto se tomou humana.
* Quanto ao nlvel mental dos bosquímanos, consulte-se Anderson [1-9,216,217,218,227, 228,232,
291 ], que nos dá os fatos com base em real observação, sem especulação ou teoria; ele é um observador
minucioso e evidentemente um relator fiel. Vejam-se também algumas páginas notáveis de Olive
Schreiner [90-2, 4] em que ela descreve esses mesmos bosquímanos (como o faz Anderson), por
observação pessoal. Juntamente com muitas outras coisas ela afirma por exemplo que: “Esse pequeno
povo não tinha nenhuma organização social fixa; vagando em bandos ou como indivíduos solitários,
sem nenhuma habitação definitiva, dormiam à noite sob as rochas ou em tocas de cães selvagens, ou
eles mesmos faziam um curioso anteparo pequeno de arbustos soltos, levantado do lado de onde o
vento soprava e estranhamente parecido com um covil de animal - e o abandonavam quando rompia
a manhã. Não tinham rebanhos ou manadas e viviam de caça selvagem ou, quando esta faltava,
comiam cobras, escorpiões, insetos ou restos, ou visitavam os rebanhos dos hotentotes. Não usavam
nenhuma espécie de roupa e suas armas eram arcos e flechas; as cordas dos arcos eram feitas com
tendões de animais selvagens, enquanto as flechas tinham ponta de osso ou pedra lascada aguçados,
envenenada com o suco de uma planta bulbosa ou introduzida no corpo de uma lagarta venenosa;
estas coisas constituíam suas únicas propriedades. Não tinham cerimônia de casamento nem relação
sexual permanente, pois cada homem e cada mulher coabitava apenas durante o prazer, o sentimento
maternal estava em seu nível mais baixo, pois as mães abandonavam seus filhos ou desfaziam-se deles
por qualquer ninharia; o sentimento paternal não existia. Dizem aqueles que estudaram sua língua
acuradamente que ela era tão imperfeita que a expressão clara mesmo das idéias mais simples era
difícil. Eles não tinham palavra para esposa, para casamento, para nação e sua mente parecia estar no
mesmo estado simples de sua língua. Aparentemente, não tinham nenhuma capacidade de executar as
operações mentais complexas necessárias à manutenção da vida em condições civilizadas; a nenhum
membro da raça, em qualquer caso conhecido, foi ensinado a ler ou a escrever, nem a compreender
concepções religiosas claramente, embora grandes esforços tenham sido feitos para instruí-los”. Parece
impossível crer que, como raça, essas criaturas sejam autoconscientes.
** Caminhando ereta. Se a visão aqui assumida da evolução mental humana fosse aceita, lançaria
alguma luz sobre nosso passado remoto. Um de seus corolários seria que nossos ancestrais caminharam
eretos centenas de milhares de anos antes de se tomarem autoconscientes - isto é, antes de se tomarem
humanos e começarem a falar. A idade em que as crianças começam a andar é (mentalmente) a idade do
cachorro e do macaco. Dos quinze ou dezoito meses até os três anos de idade, a criança passa pelos
estágios mentais situados entre esses animais e a autoconsciência Durante esse período, a inteligência
receptiva da criança se toma mais e mais perfeita, pois os próprios receptos se tomam mais e mais complexos,
cada vez mais próximos de conceptos, até que estes são efetivamente formados e a autoconsciência é
estabelecida. Dir-se-ia que cerca de meio milhão de anos de evolução deve ter transcorrido entre o estado
do mais alto macaco antropóide e o do ser humano. Talvez isto possa ser uma reflexão confortável para
aqueles que não gostam da idéia de serem descendentes de alguma foima simiesca
É impossível dizer há quanto tempo esse fato ocorreu, mas não poderá
ter sido há menos de várias centenas de milhares de anos. Essa faculdade é
perdida muito mais facilmente do que a consciência simples. Nós a perdemos
em coma e também, muitas vezes, em delírio de febre; em certas formas de
insanidade, como nas obsessões, é muitas vezes perdida por períodos de
semanas e meses; finalmente, ela nunca está presente em sonhos.
O sentido da cor já foi considerado. Resta dizer algumas palavras do
ponto de vista atual. Esse sentido surge gradualmente no indivíduo - aos
três ou quatro anos já pode haver um sinal dele. JefFries [135-242] verificou
que ele ainda estava ausente numa alta porcentagem de crianças aos oito
anos de idade. Consta que vinte a trinta por cento de meninos em idade
escolar são daltônicos, ao passo que apenas quatro por cento de adultos
masculinos o são. O Dr. Favre, de Lyon [135-243], relatou em 1874, no
Congresso Francês para o Avanço da Ciência, emLille, “algumas observações
que lhe pareciam provar que o daltonismo congênito era curável” [135-242],
porém, não parece ter ocorrido a ele que, sendo o sentido da cor invaria­
velmente ausente em crianças muito jovens e aparecendo ele em idade variável
conforme a criança avança para a maturidade, o daltonismo pareceria ne­
cessariamente estar sendo “curado”, ao professor, atento ao desenvolvimen­
to da criança no exercício de seu sentido da visão sobre as cores. Já vimos
que o sentido da cor na espécie não pode ter muitas dezenas de milhares de
anos.
O sentido da cor é ausente num ser humano em cada quarenta e sete.
Raramente está presente em sonhos e, quando isto ocorre, ou seja, quando
qualquer cor é vista num sonho, geralmente é a cor que por bons motivos foi
percebida pela primeira vez pelo ser humano, isto é, o vermelho.
As ocorrências seguintes ilustram (de modo enfático) a ausência usual
do sentido da cor durante a consciência parcial que ocorre no sono. Um
homem que tinha cabelo branco sonhou que estava se olhando num espelho
e via claramente que seu cabelo, não somente estava muito mais espesso do
que ele sabia que de fato era, como, ao invés de ser branco, como ele também
sabia, era preto. Ora, ele se lembrou muito bem, em seu sonho, de que seu
cabelo nunca fora preto; fora, na verdade, castanho claro. Ele se surpreendeu
(convém mencionar aqui que o espanto ou a surpresa é uma faculdade préhumana e que é comum em sonhos) de que em seu sonho seu cabelo fosse
preto, lembrando-se claramente de que nunca fora assim. O ponto importante
a ser notado a respeito do sonho em questão é que, embora fosse claro para a
mente do sonhador que seu cabelo nunca fora preto, assim mesmo ele não se
lembrou de que tivesse sido castanho. Por alguma razão havia dificuldade
para trazer à consciência qualquer cor. O mesmo homem sonhou que havia
ferido com uma faca a um inimigo que o havia atacado; a sangradura era
profusa mas o sangue era branco; ele sabia em seu sonho que não deveria ser
branco, mas nenhuma imagem de sua verdadeira cor ou de qualquer outra se
apresentou.
A natureza moral humana inclui muitas faculdades, tais como a cons­
ciência; o senso abstrato do certo e do errado; o amor sexual - diferenciado
do desejo ou instinto sexual; o amor parental e filial - diferenciado dos
instintos correspondentes (o ser humano tem ambos estes instintos em comum
com os animais irracionais, além de sentimentos mais elevados); o amor por
nossos semelhantes como tais; o amor ao belo; o temor respeitoso; a
reverência; o senso do dever ou da responsabilidade; solidariedade, compaixão
e fé. A natureza humana não é completa sem estas e outras faculdades;
portanto, trata-se de uma função muito complexa; mas, para o propósito
deste argumento, ela deve ser tratada como se fosse um sentido simples.
Ora, em que idade aparece essa natureza moral humana no indivíduo? Ela
nunca está presente em crianças muito jovens. Com freqüência está ausente
na puberdade e mesmo na adolescência. É uma faculdade recentemente
adquirida. Provavelmente não estaria muito errado dizer que a idade média
para seu aparecimento estivesse por volta dos quinze anos. Parece claro,
com base num estudo da história, que nossa natureza moral não pode ter
mais de dez ou doze mil anos. Pois uma meticulosa consideração dos registros
que chegaram a nós dos antigos romanos, gregos, hebreus, egípcios, assírios
e babilônios indicaria inequivocamente que, à medida que recuamos ao
passado, esta faculdade vai se afunilando para um ponto de desaparecimento
e, se continua a se afunilar assim conforme recuamos nas eras, tudo o que
chamamos distintamente de nossa natureza moral teria certamente desapa­
recido quando tivéssemos recuado o número de séculos já mencionado - dez
ou doze mil anos.
Em que proporção de homens e mulheres de países civilizados a natureza
moral humana não está presente? Há tantos homens e mulheres que têm
natureza moral parcial e tantos que, tendo pouco ou nada dessa natureza,
fazem parecer que a têm, e o julgamento de homens e mulheres neste
particular é tão difícil - o problema é tão velado e tão complicado - que é
impossível dar mais do que apenas uma opinião. Mas que o curioso leia
alguns livros como os de Despine [66] e de Ellis [76] - e depois observe os
homens e as mulheres com quem convive - e será forçado a chegar à conclusão
de que a proporção de adultos que têm pouca ou nenhuma natureza moral,
ou ainda uma natureza moral não desenvolvida, é muito maior do que a
daqueles que têm pouco ou nenhum sentido de cor, ou ainda um sentido de
cor não desenvolvido. Provavelmente não estaríamos muito errados se
disséssemos que pelo menos quarenta homens e mulheres, em cada mil, na
América e na Europa, estão nesta situação.
Então, quantas raças humanas estão ainda vivendo na Terra, nas quais
nenhum ou poucos membros têm o que poderia ser chamado de natureza
moral humana do ponto de vista de nossa civilização? E, enquanto a
autoconsciência é perdida - não sempre, naturalmente, mas com freqüência
- na insanidade e na febre, a natureza moral está - temos de admitir - sujeita
a ausências e lapsos muito mais freqüentes e por causa bem menor.
Como vimos, a autoconsciência apareceu na espécie há cerca de trezentos
mil anos. As considerações acima indicariam uma data muito posterior para
o surgimento da natureza moral. E não apóiam esta inferência todos os
registros e indícios históricos, até o ponto que alcançam?
Finalmente, o sentido musical (faculdade que está agora em processo de
nascer) não aparece no indivíduo antes da adolescência. Não existe em mais
que a metade dos membros de nossa espécie. Tem existido por menos (talvez
consideravelmente menos) de cinco mil anos. Nunca ou quase nunca está
presente em sonhos, mesmo no caso de músicos profissionais. Enquanto,
como já foi dito, a autoconsciência é fortuitamente perdida na insanidade,
pode-se dizer que o sentido musical, nessa condição, é invariavelmente
perdido - pelo menos, após uma experiência de vinte e cinco anos com cerca
de cinco mil casos de demência, o autor não se lembra de um só caso em que
o sentido musical tenha sido conservado sendo a pessoa insana.
O sumário que se segue, em forma de tabela, dos principais fatos re­
lativos à evolução das faculdades mencionadas e de algumas outras, há
de tomar - acredita-se - todo este assunto mais inteligível do que o faria
qualquer exposição extensa do mesmo. Os dados numéricos na tabela e no
texto não são apresentados como exatos mas para o fim de transmitir uma
idéia clara que se acredita seja suficientemente correta para o presente
propósito.
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Em suma: como a ontogênese nada mais é que a fllogênese in petto - isto
é, como a evolução do indivíduo é necessariamente a evolução da espécie
muna forma abreviada, simplesmente porque não pode por natureza ser dife­
rente (não pode seguir quaisquer outras linhas, porque não há outras linhas
a seguir) - é claro que órgãos e faculdades (ampla e genericamente falando)
têm de aparecer no indivíduo na mesma ordem em que apareceram na espécie
e, conhecida uma ordem, a outra pode ser confiavelmente presumida.
Quando uma faculdade nova aparece numa espécie, há de ser encontrada
bem no começo num indivíduo dessa espécie; mais tarde será encontrada em
alguns indivíduos; passado mais algum tempo, numa porcentagem maior
dos membros da espécie; mais adiante ainda, na metade destes; e assim por
diante, até que, após milhares de gerações, um indivíduo que não apresente
essa faculdade será visto como uma monstruosidade. Note-se também que e isto é importante - quando a nova faculdade aparece, especialmente se o
faz na linha direta da ascensão da espécie, como no caso de Consciência
Simples, Autoconsciência, ou de Consciência Cósmica, tem de aparecer pri­
meiro em um membro, depois em membros da espécie que tenham alcançado
plena maturidade. Pois um indivíduo imaturo (outros aspectos permanecendo
iguais) não pode exceder ou ultrapassar um indivíduo maduro da mesma
espécie.
Assim, com o passar das eras, o grande tronco da árvore da vida se tornou
mais alto e, de tempos a tempos, lançou brotos que cresceram a galhos e
estes a ramos nobres que por sua vez lançaram brotos e galhos, muitos dos
quais de grande tamanho e em números imensos. Sabemos que essa árvore
não cessou de crescer; que mesmo agora, como sempre, está lançando novos
brotos e que os velhos brotos, galhos e ramos, estão em maioria aumentando
em tamanho e força. Cessará hoje esse crescimento? Não parece que sim.
Parece mais provável que outros membros e ramos, com que nem sonhamos
hoje, venham a nascer da árvore e que o tronco principal, que da mera vida
cresceu para vida sensitiva, para a consciência simples e para a autocons­
ciência, há de passar para formas de vida e consciência mais altas ainda.
INVOLUÇÃO
Assim como no desenvolvimento de uma árvore individual alguns ramos
florescem enquanto outros malogram; como numa floresta algumas árvores
crescem alto e estendem ramos grandes enquanto outras se atrofiam e morrem;
como no progresso para a frente e para o alto de qualquer espécie alguns
indivíduos estão mais adiante do corpo principal enquanto outros vêm mais
atrás, assim também, na marcha para a frente da mente humana coletiva,
através dos séculos, algumas mentes individuais estão na vanguarda do grande
exército, enquanto na retaguarda da coluna vacilam e caem números imensos
de espécimes defeituosos.
Em qualquer espécie, a estabilidade de qualquer faculdade é proporcional
à idade da faculdade na espécie. Isto é, uma faculdade comparativamente
nova está mais sujeita a falha, ausência, aberração, àquilo que chamamos de
doença e está mais sujeita a ser perdida do que uma faculdade mais velha.
Para muitos esta proposição parecerá um truísmo. Se um órgão ou uma facul­
dade foram herdados numa espécie por, digamos, um milhão de gerações,
parece a priori certo que é mais provável que sejam herdados por determinado
indivíduo daquela espécie do que um órgão ou uma faculdade que tenham
tido origem, digamos, três gerações atrás. Este é o caso do que é chamado de
gênio. O gênio consiste na posse de uma nova faculdade ou de novas faculda­
des, ou no desenvolvimento incrementado de uma velha faculdade ou de
velhas faculdades. Assim sendo, parece necessário a Galton [92] escrever
um livro de bom tamanho para provar que a genialidade é hereditária. Tão
longe estava isto de ser um fato óbvio que até hoje a hereditariedade da
genialidade está longe de ser universalmente aceita. Mas ninguém jamais
escreveu um livro para provar que a visão, a audição e a autoconsciência
fossem hereditárias, pois qualquer pessoa (mesmo a mais ignorante) sabe,
sem discussão, que elas o são. No ponto em questão, diz Darwin, falando de
cavalos: “A falta de uniformidade nas partes que no momento estejam pas­
sando por seleção depende principalmente da força do princípio da reversão”
[67: 288]. Isto significa que partes ou órgãos que estão passando por mudança
através de seleção estão sujeitos a perder o que foi ganho, pela reversão à
condição inicial. Diz ele ainda: “É crença generalizada entre criadores que
características de todos os tipos se tomam fixas por herança prolongada”
[67: 289], Em outro lugar, fala da “variabilidade flutuante e, tanto quanto
podemos julgar, infindável, de nossas produções domésticas, a plasticidade
de toda a sua organização” [67: 485], e atribui essa instabilidade às recentes
mudanças que essas produções têm sofrido sob a influência da seleção artificial
a que têm sido submetidas. Ainda em outro lugar, Darwin fala da “extrema
variabilidade de nossos animais domésticos e de nossas plantas cultivadas”.
Mas é quase desnecessário levar adiante esta discussão. Qualquer pessoa
que queira pensar um pouco no assunto admitirá que, quanto menor for o
tempo que um órgão ou uma faculdade tenham sido possuídos por uma
espécie, tanto mais instáveis serão na espécie e, conseqüentemente, no indiví­
duo; tanto mais sujeitos estarão a serem abandonados; tanto mais sujeitos a
serem defectivos; tanto mais sujeitos avariarem; tanto mais sujeitos a serem
ou se tomarem imperfeitos - como dizemos, doentios. Pelo contrário, quanto
mais tempo um órgão ou uma faculdade tenham existido em qualquer espécie,
mais seguramente serão herdados e mais seguramente assumirão um caráter
definitivo, típico - isto é, com mais certeza serão normais, mais certamente
concordarão com a norma ou o tipo desse órgão ou dessa faculdade. Em
outras palavras, menos provável será que sejam imperfeitos - o que chamamos
de defectivo ou doentio. Admitido isto, será prontamente anuído: primeiro,
que a espécie cuja evolução for a mais rápida (outras coisas sendo iguais)
terá mais colapsos; segundo, que, em qualquer dada espécie, as funções cuja
evolução for a mais rápida serão as mais sujeitas a colapsos.
Se estes princípios forem aplicados aos animais domésticos - a maioria
dos quais, dentro das últimas poucas centenas de gerações, tem sido muito
diferenciada por seleção artificial - explicarão o que algumas vezes tem sido
considerado como anômalo - isto é, a propensão muito maior a doença e a
morte prematura destes em comparação com seus protótipos selvagens. Pois
o fato de que os animais domésticos são mais propensos a doença e a morte
prematura do que os selvagens é admitido em toda parte. Este mesmo princípio
explicará também como é que, quanto mais pura for a raça de um animal isto é, quanto mais amplamente tiver ele sido diferenciado de um tipo anterior
nas últimas gerações - mais sujeito estará a doença e a morte prematura.
Trazendo agora estas regras gerais para nós mesmos - para a espécie
humana - vemos que elas indicam que os órgãos e as funções que foram os
mais recentemente adquiridos serão com maior probabilidade defectivos,
ausentes, anormais, doentios. Mas é notório que no ser humano civilizado,
especialmente na raça ariana, as funções que passaram pela maior mudança
nos últimos milênios são aquelas que chamamos de mentais - esse grande
grupo de funções (sensoriais, intelectuais, morais) que dependem dos dois
grandes sistemas nervosos - o cerebrospinal e o grande simpático - e deles
advêm. Esse grande grupo de funções cresceu, expandiu-se, lançou novos
brotos e galhos e está ainda no processo de produzir novas faculdades, numa
taxa extraordinariamente maior do que qualquer outra parte do organismo
humano. Se isto é assim, então, dentro dessa grande congérie de faculdades
é inevitável que encontremos constantes falhas, omissões, defeitos e colapsos.
Observações clínicas nos ensinam, todos os dias, que o raciocínio acima
está solidamente fundamentado. Ele mostra falhas de todos os graus e de
variedades ilimitadas; falhas em funções sensoriais, como o daltonismo e a
surdez musical; falhas na natureza moral, do todo ou de uma parte; no
intelecto, de uma ou de várias faculdades; ou falhas mais ou menos completas
de todo o intelecto, como na imbecilidade e na idiotia. Mas acima dessas
falhas e como um necessário acompanhamento delas, temos o colapso
funcional, inevitável uma vez estabelecido no indivíduo, que chamamos de
insanidade e que se diferencia dos vários graus e formas de idiotia. Pois é
fácil verificar que, se uma função ou faculdade pertencente a qualquer espécie
dada está sujeita por qualquer causa geral a ser perdida em certa proporção
dos indivíduos dessa espécie, deve também estar sujeita a tomar-se doentia
- isto é, a entrar em colapso - nos casos em que não venha a ser perdida.
Pois se a faculdade em questão absolutamente não é sempre desenvolvida no
indivíduo - se com bastante freqüência deixa de aparecer - isto tem de
significar que, em muitos outros casos em que ela de fato apareça, não estará
plena e solidamente formada. Não podemos imaginar um salto de um total
não aparecimento de uma função em certos membros de uma espécie para a
absoluta perfeição e solidez da mesma função nos demais membros. Sabemos
que as espécies não crescem desta maneira. Sabemos que, numa raça em que
tenhamos alguns homens com mais de dois metros e outros com apenas um
metro e vinte, encontraremos, se procurarmos, homens de todas as estaturas
entre estes extremos. Sabemos que em todos os casos os extremos apresentados
pela raça são ligados por conjuntos completos de espécimes intermediários.
Um homem pode levantar quatrocentos quilos e outro apenas quarenta; mas
entre estes há aqueles cujos limites de força preenchem todo o intervalo
entre os quarenta e os quatrocentos quilos. Um homem morre de idade aos
quarenta anos e outro aos cento e trinta; mas em cada número de anos e
meses entre quarenta anos e cento e trinta anos está o limite de vida possível
de algum homem. A mesma lei que vale para o limite de faculdades vale
também para sua solidez e permanência. Sabemos que em alguns homens as
funções intelectuais são tão instáveis que, tão logo são estabelecidas,
desmoronam - esmagadas, por assim dizer, pelo seu próprio peso - assim
como uma casa mal construída cujas paredes não são suficientemente fortes
para sustentar o teto. Trata-se de casos extremos da chamada insanidade
progressiva - casos em que a mente se arruina assim que começa a existir ou
mesmo antes que esteja totalmente formada; casos de insanidade da puberdade
e da adolescência, em que a natureza mal consegue formar uma mente normal,
por inteiro ou pela metade, e é totalmente incapaz de sustentá-la, decaindo
então, imediatamente, para o caos. A desesperança nesta classe de casos (no
tocante a recuperação) é bem compreendida por todos os alienistas e não é
difícil perceber por que essas insanidades devem e têm de ser praticamente
incuráveis, pois sua própria existência denota a ausência dos elementos
necessários para formar e manter uma mente humana normal nos pacientes
em questão.
No campo da insanidade propriamente dita - isto é, excluindo-se as
idiotias - esses casos ocupam a posição extrema no fim da escala, ao passo
que as pessoas que só se tomam maníacas ou melancólicas sob as mais
poderosas causas excitantes, tais como parto e velhice, ocupam o outro
extremo. Ou seja, temos uma classe em que a mente, sem ser tocada,
desmorona em ruínas tão logo é formada, ou mesmo antes que esteja
completamente formada. Temos então uma outra classe, em que o equilíbrio
das faculdades mentais só é subvertido pelos choques mais violentos e apenas
temporariamente, uma vez que os casos a que me refiro podem ser curados
em poucas semanas ou poucos meses, se colocados sob condições favoráveis.
Mas, entre estes extremos, todo o amplo espaço intermediário é preenchido
por uma variedade infinita de fases de insanidade, mostrando toda condição
possível de estabilidade e instabilidade mental entre os dois extremos. Mas
por toda a gama de alienações mentais prevalece a seguinte lei: a função
mental mais recentemente evoluída, seja ela intelectual ou moral, sofre
primeiro e sofre mais, enquanto a função mental e moral desenvolvida em
primeiro lugar sofre por último e sofre menos (se é que sofre).
Se a mente humana é comparada a uma árvore em crescimento, então
pode-se dizer que os ataques mais leves de insanidade secam suas folhas paralisam total ou parcialmente suas funções por algum tempo, representando
as folhas as emoções e os conceptos mais frágeis formados por último e
especialmente as últimas combinações destes; que os ataques mais profundos
matam as folhas e danificam os galhos mais finos; que distúrbios ainda mais
profundos matam os galhos mais finos e afetam os mais grossos; e assim por
diante, até que, nas insanidades mais profundas e arraigadas, como nas
demências avançadas, o que resta da árvore é apenas um tronco nu, meio
morto, sem folhas ou rebentos e quase sem galhos.
Em todo esse processo de destruição, as faculdades formadas há mais
tempo, tais como a percepção e a memória, o desejo de alimento e de bebida,
o contrair-se quando ferido e as mais básicas funções sensoriais, perduram
por mais tempo; já, como foi dito, as funções desenvolvidas mais recentemente
são as primeiras que desmoronam, depois as seguintes menos recentes e
assim por diante.
Um fato que ilustra bem a asserção de que a insanidade consiste
essencialmente no colapso das faculdades mentais que são instáveis
principalmente por serem as mais recentes e de que ela portanto assenta
sobre uma evolução nova e ainda em progresso, é a relativa ausência de
insanidade entre os negros.
Tem sido dito que o grande percentual de insanidade na América e na
Europa depende diretamente da rápida evolução, nos últimos milênios, da
mente da raça ariana. Poucos afirmariam que a mente do negro estivesse
avançando numa velocidade parecida. Como conseqüência dessas diferentes
velocidades de progresso, temos nos membros da raça ariana na América
um percentual de insanidade muito mais alto do que o que é encontrado na
raça negra.
Quando se fez o recenseamento de 1880 nos Estados Unidos, verificou-se
que em quarenta e três milhões de pessoas de raça branca havia oitenta e seis
mil insanas - exatamente uma em cada quinhentas - ao passo que em seis
milhões e setecentos e cinqüenta mil negros só um pouco mais de seis mil
eram insanos, o que dá uma proporção de apenas um em cada mil e cem.
Indubitavelmente, se tivéssemos estatísticas de outros povos atrasados e esta­
cionários, um estado de coisa semelhante seria encontrado, o que nos leva a
concluir que entre os selvagens e semi-selvagens existem, comparativamente,
bem poucos casos de insanidade.
Concluindo, os resultados a que se chega neste capítulo podem ser resu­
midos da seguinte maneira:
1. A estabilidade de uma faculdade no indivíduo depende da idade dessa
faculdade na raça. Quanto mais antiga for a faculdade, mais estável será;
quanto mais recente, menos estável.
2. A raça cuja evolução for a mais rápida será a mais sujeita a colapso.
3. Em qualquer raça, as funções cuja evolução for a mais rápida serão as
mais sujeitas a colapso.
4. Nas famílias mais progressivas da raça ariana, as faculdades mentais
têm se desenvolvido com grande rapidez por alguns milênios passados.
5. Nessa raça, o grande número de colapsos mentais, comumente
chamados de insanidade, deve-se à rápida e recente evolução das faculdades
presentes na raça.
DA AUTOCONSCIÊNCIA
À CONSCIÊNCIA CÓSMICA
I
Assim como as faculdades discutidas na parte precedente deste livro e
muitas outras passaram a existir na espécie, cada qual em sua época - quando
a espécie estava pronta para ela - temos de admitir que o crescimento, a
evolução, o desenvolvimento, ou como quer que prefiramos designar isto,
sempre (como foi exemplificado) esteve prosseguindo, está prosseguindo
agora e (até onde podemos dizer) sempre estará prosseguindo. Se estivermos
certos em nossa assunção, novas faculdades irão de tempos em tempos surgir
na mente, assim como no passado novas faculdades surgiram. Admitido
isto, assumamos que aquilo que neste livro chamamos de Consciência
Cósmica seja uma dessas faculdades assim nascentes, werdende*. E agora
vejamos o que sabemos a respeito deste novo sentido, estado, desta nova
faculdade, ou como quer que isto possa ser designado. Primeiramente, pode-se
notar que o novo sentido não aparece ao acaso nessa ou naquela pessoa. É
necessário, para seu aparecimento, que uma personalidade humana elevada
exista e preencha os requisitos para sua manifestação. Especialmente nos
grandes casos há um desenvolvimento excepcional de algumas ou de todas
as faculdades humanas comuns. Cabe ressaltar, particularmente, uma vez
que esse caso é inequivocamente conhecido por nós, a singular perfeição das
faculdades intelectuais e morais e dos sentidos especiais de Walt Whitman
[103:57-71]. É provável que uma aproximação dessa excelência evolucionai
seja necessária em todos os casos. Então, certamente em alguns casos,
provavelmente em todos, a pessoa tem excepcional compleição - excepcio­
nal beleza de estrutura e postura, feições excepcionalmente bonitas, saú­
de excepcional, excepcional doçura de temperamento, excepcional magne­
tismo.
* werdende’, em formação.
A faculdade em si tem muitos nomes, mas estes não têm sido
compreendidos ou reconhecidos. Convém darmos aqui alguns deles, que
serão mais bem compreendidos à medida que prosseguirmos. Talvez o pró­
prio Gautama ou algum de seus primeiros discípulos a tenha chamado de
Nirvâna* devido à “extinção” de certas faculdades mentais inferiores (tais
como o senso do pecado, o medo da morte, o desejo de riqueza, etc.), a qual
incide diretamente sobre o nascimento da nova faculdade. Essa subjuga­
ção da velha personalidade ao ocorrer o nascimento da nova é, na verda­
de, quase equivalente à aniquilação do velho ego* e à criação de um novo
ego. A palavra Nirvâna é definida como “o estado a que deve aspirar o
santo budista, como a mais elevada meta e o maior bem”. Jesus chamava
esse novo estado de o Reino de Deus ou o Reino dos Céus, devido à paz e à
felicidade inerentes a ele e que são talvez seus aspectos mais caracte­
rísticos. Paulo denominava esse estado Cristo - ele fala de si próprio como
“um homem em Cristo” e de “aqueles que estão em Cristo”. Chamava-o
também de “o Espírito” e “o Espírito de Deus”. Depois que alcançou a
Consciência Cósmica, ficou sabendo que Jesus possuíra o sentido cósmico e
que ele próprio estava vivendo (por assim dizer) a vida de Jesus - que uma
outra individualidade, um outro ego, vivia nele. Chamou este segundo ego
de Cristo (o libertador, divinamente enviado), identificando-o não tanto
com o homem Jesus mas com o libertador que deveria ser enviado e que fora
enviado em sua pessoa, que era ao mesmo tempo Jesus (o homem
autoconsciente comum) e o Messias (o arauto e o exemplo da nova e mais
elevada raça ). A dupla personalidade dos homens possuidores de cons­
ciência cósmica aparecerá muitas vezes à medida que prosseguirmos e
veremos que é um fenômeno constante e conspícuo. Maomé chamou o sentido
cósmico de Gabriel e parece tê-lo encarado como uma pessoa distintamente
separada, que vivia nele e falava com ele. Dante o chamou de Beatrice (“Que
Faz Feliz” ou “Que Beatífica”), um nome quase ou perfeitamente equivalente
a “Reino dos Céus”. Balzac chamou o novo homem de “especialista” e o
novo estado de Especialismo. Whitman chamava a consciência cósmica de
Minha Alma, mas falava dela como de uma outra pessoa; por exemplo, nestes
versos:
N. T. -
* Nirvana, em português.
** self, no original; em todos os casos aqui traduzido por ego, devido à
referência a personalidade e a individualidade.
O’ alma irreprimível, eu contigo e tu comigo...
Navegamos os dois, ó alma...
Com risos e muitos beijos...
O’ alma, tu me deleitas e eu a ti.**
Bacon, nos Sonetos, tratou o sentido cósmico tão enfaticamente como
uma pessoa separada, que o mundo por trezentos anos o interpretou
literalmente e concluiu que a “pessoa” em questão (qualquer que fosse seu
nome) era um jovem amigo do poeta!
Para ilustrar a objetivação deste fenômeno puramente subjetivo (embora
deva ser lembrado que, para a pessoa possuidora de consciência cósmica, os
termos objetivo e subjetivo perdem seu velho significado - de modo que
“objetos grosso modo” e “alma invisível” tomam-se “uma só coisa”), não
será impróprio citar uma passagem [173 : 5] de um poeta que, embora seja
um caso de consciência cósmica, não está incluído neste livro pelo fato de
que o autor não conseguiu obter os detalhes necessários.
Assim meditou um viajante no plano terrenal,
Em si mesmo de toda a humanidade um modelo sendo.
Pois pálidas aspirações apenas, a princípio o acometiam,
Vagamente em seus sonhos surdindo,
Até que, maduro, suas meditações mudaram
Para a inspiração e a luz da alma.
Então a visão veio e na luz ele viu
O que havia esperado, agora abertamente revelado;
E muito mais ainda - das coisas a mais profunda alma,
E beleza qual da própria vida a coroa,
Inefável, transcendente mortal forma;
Pois em luz trajado, não mais em fantasia,
Ante seu olhar o vero ideal se via,
Esplendidamente belo, inconcebível,
Em beleza e na mais divina simetria vestido.
Mas aflito não estava ele, qual aquele de Latmo, quando
Em onírico êxtase, sobre as colinas,
Sob a Lua, seu amor desvelado viu;
Pois bem sabia que de sua vida o coroamento
** A tradução de versos e poemas é livre, tentando-se aproximação suficiente do
original. Isto vale para todo o livro. Como é sabido, a melhor apreciação de
versos e poemas requer leitura direta do original.
Naquela visão estava e cumprido seria.
Não, cumprido fora, pois de então em diante a seu lado
Um radiante ser estava, sua luz-guia
E estrela polar, que qual imã seguro o mantinha
Na atração de imperecedouro amor!
Mas como descrever tal ser, doravante seu?
Que palavras podem dizer aquilo que palavras transcende, senão
Que ela era bela além de todo humano pensamento?
Pois quem poderia pintar aqueles traços e aquela forma
Tão primorosamente moldados que nenhuma arte
Poderia apreendê-los, ou de algum modo transmitir
O sorriso daqueles róseos lábios, ou captar
E passar a plena expressão daqueles olhos,
Tão maravilhosos, meio velados sob a linha
De macios e curvos cílios, que realçavam
Indescritivelmente o efeito que fluía
Das líquidas profundezas daquelas amplas órbitas,
Fontes de amor, tão cheios de lento fogo
E paixão e todavia tão temos e tão castos?
Todo movimento dela, também, tão perfeito,
A natureza parecia, exaltada por inconsciente arte,
E toda a sua copiosa candura;
Pois não aquela majestade que intimida Aquela superior e imperiosa consciência de valor
Que faz o humilde se encolher embaraçado - tinha ela,
Mas em seu lugar estava toda a cativante graça
E doçura que o imortal Amor adotar poderia,
Para seu santuário embelezar e dele fazer
Para si próprio adequada morada;
Pois curvando-se para a frente com aquele maravilhoso olhar,
Tão inexprimível, parecia ela dizer:
“Tu és meu, meu igual e meu esposo,
Meu complemento, sem o qual eu nada seria;
Então mais belo tu és em meus olhos que eu,
Pois minha vida só em ti se realiza”.
Acrescentou então, em harmoniosa voz, em alto tom:
“Por longo tempo no mistério da vida tens pensado,
Seus vastos, eternamente recorrentes ciclos
De repouso e renascimento e atividade,
E nele procurado a passagem da alma
Da luz para as trevas, das trevas de novo para a luz.
Vem então comigo e veremos em parte
Essa última em sua fase humana desvelada”.
Assim dizendo, com sua presença ela o dotou
De novos sentidos, faculdades e poderes,
Que muito ultrapassavam dos antigos os limites.
m
Já foi mencionado de passagem que numa espécie que está entrando na
posse de uma nova faculdade, especialmente se esta se encontra na linha da
ascensão direta dessa espécie, como é certamente o caso da consciência
cósmica, a nova faculdade será necessariamente adquirida a princípio, não
somente pelos seus melhores espécimes, mas também quando estes estiverem
no seu auge - isto é, na plena maturidade e antes que se inicie o declínio
próprio da idade avançada. Quais são então os fatos a este respeito, quanto
ao advento do sentido cósmico ?
Eles podem ser resumidos em poucas palavras como segue: de trinta e
quatro casos em que a iluminação foi instantânea e o período em que ocorreu
foi com algum grau de certeza conhecido, a idade com que a pessoa entrou
em consciência cósmica foi, em um caso, vinte e quatro anos; em três, trinta
anos; em dois, trinta e um anos; em dois, trinta e um anos e meio; em três,
trinta e dois anos; em um, trinta e três anos; em dois, trinta e quatro anos;
em oito, trinta e cinco anos; em dois, trinta e seis anos; em dois, trinta e sete
anos; em dois, trinta e oito anos; em três, trinta e nove anos; em um, quarenta
anos; em um, quarenta e nove anos e, em um, cinqüenta e quatro anos.
Conforme os casos forem sendo tratados individualmente, serão
apresentadas comprovações e a idade de cada pessoa no momento da
iluminação será apresentada numa tabela mais adiante, juntamente com outros
fatos.
IV
A Consciência Cósmica, então, aparece principalmente em pessoas do
sexo masculino, sob outros aspectos altamente desenvolvidas - homens de
bom nível intelectual, de altas qualidades morais, de compleição superior.
Aparece no período da vida em que o organismo se acha no auge de sua
eficiência, entre trinta e quarenta anos. O precursor imediato da Consciência
Cósmica - a Autoconsciência - deve também ter aparecido a princípio na
meia-idade, aqui e ali, em casos isolados, nos espécimes mais desenvolvidos,
tornando-se cada vez mais quase universal (à medida que a espécie foi
amadurecendo para ela), manifestando-se em idade cada vez mais baixa, até
que (como vemos) hoje se manifesta em todo indivíduo razoavelmente bem
constituído por volta dos três anos de idade.
Por analogia, então, somos levados a crer que o passo progressivo que é
o assunto deste livro também está reservado a toda a espécie - que virá um
momento em que não possuir a faculdade em questão será uma marca de
inferioridade paralela à ausência da natureza moral na atualidade. A conjetura
parece ser de que o novo sentido venha a ser cada vez mais comum e apareça
mais cedo na vida, até que, após muitas gerações, venha a aparecer em cada
indivíduo normal na puberdade ou mesmo antes; prossiga então tomando-se
ainda mais universal e aparecendo numa idade ainda mais baixa, até que,
depois de muitos milhares de gerações, manifeste-se imediatamente após a
infância em praticamente todo membro da espécie.
V
Devemos compreender claramente que todos os casos de Consciência
Cósmica não estão no mesmo plano. Ou, se falamos de Consciência Simples,
Autoconsciência e Consciência Cósmica, cada qual ocupando um plano,
então, assim como a escala da Autoconsciência em seu plano (onde um
homem pode ser um Aristóteles, um César, um Newton, ou um Comte, en­
quanto seu vizinho na próxima rua pode ser intelectual e moralmente pequeno,
pouco ou nada acima de um animal em seu estábulo) é bem maior do que a
escala da Consciência Simples em qualquer dada espécie em seu plano,
assim devemos supor que a escala da Consciência Cósmica (considerando-se
milhões de casos, como nos demais planos) é maior do que a da Autocons­
ciência e provavelmente é de fato muito maior, tanto em tipo como em grau;
com isto se quer dizer que, considerando-se um mundo povoado por pessoas
possuidoras de Consciência Cósmica, estas apresentariam uma variedade de
maior ou menor habilidade intelectual, de maior ou menor elevação moral e
espiritual e ainda de caráter, mais do que apresentariam os habitantes de um
planeta no plano da Autoconsciência. Dentro do plano da Consciência
Cósmica, um homem será um deus enquanto um outro, a uma observação
superficial, não estará situado muito acima da humanidade comum, por mais
que sua vida interior possa estar exaltada, fortalecida e purificada pelo novo
sentido. Mas, assim como o homem Autoconsciente (por mais degenerado
que seja) está quase infinitamente acima do animal dotado apenas de
consciência simples, assim qualquer homem permanentemente dotado de
Consciência Cósmica será quase infinitamente superior e mais nobre do que
qualquer homem que seja meramente Autoconsciente. E não somente isto,
mas o homem que vivenciou o Sentido Cósmico, mesmo que por alguns
momentos apenas, provavelmente nunca mais descerá ao nível espiritual do
homem meramente autoconsciente e, vinte, trinta ou quarenta anos depois,
ainda sentirá intimamente o efeito purificador, fortalecedor e nobilitante
daquela iluminação divina, de modo que muitas pessoas com quem se
relacione reconhecerão que sua estatura espiritual estará acima da média
dos homens.
VI
A hipótese adotada pelo autor deste livro requer que casos de consciência
cósmica se tornem mais numerosos de era em era e não somente isto, mas
que se tornem mais perfeitos e mais evidentes. Quais são os fatos a este
respeito? Deixando de lado casos menores, como os que devem ter aparecido
e devem ter sido esquecidos às centenas nos últimos milênios, dentre aqueles
que já mencionamos pelo menos treze são tão grandes que jam ais
desaparecerão da memória humana - a saber: Gautama, Jesus, Paulo, Plotino,
Maomé, Dante, Las Casas, Juan Yepes, Francis Bacon, Jacob Behmen,
William Blake, Balzac, Walt Whitman.
De Gautama a Dante contam-se mil e oitocentos anos, período em que
temos cinco casos. Desde Dante até hoje contamos seiscentos anos, em que
temos oito casos. Isto quer dizer que, enquanto no primeiro período houve
um caso cada trezentos e sessenta anos, no segundo tivemos um caso cada
setenta e cinco anos. Em outras palavras, a consciência cósmica foi 4,8 vezes
mais freqüente durante o segundo período do que durante o primeiro. E
antes da época de Gautama? Provavelmente não houve nenhum caso, ou
poucos e imperfeitamente desenvolvidos.
Sabemos que há atualmente muitos casos ditos secundários, mas o número
deles não pode ser comparado com o de casos semelhantes do passado, pois
estes se perderam. Deve também ser lembrado que os treze “grandes casos”
acima citados são talvez uma pequena fração dos casos igualmente grandes
que ocorreram desde a época de Gautama, pois é provável que apenas uma
pequena proporção dos “grandes casos” tenha assumido e realizado alguma
obra que lhe tenha assegurado recordação. Com que facilidade poderia até
mesmo a lembrança de Jesus ter sido obliterada da mente de seus con­
temporâneos e seguidores quase antes que se firmasse... Muitas pessoas
pensam hoje que, admitido tudo o mais, se ele não tivesse sido imediatamente
seguido de Paulo sua obra e seu nome teriam desaparecido quase com a
geração que o ouviu falar.
Isto é tão verdadeiro que um homem competente como Auguste Comte
considera São Paulo “le vrai fondateur du Catholicisme” [o verdadeiro
fundador do catolicismo] - que neste particular é sinônimo de cristianismo
[65:356] - a ele associa o oitavo mês do “Calendrier Positiviste” [Calendário
Positivista] [65: 332] e não concede sequer um dia a Jesus, tão pequeno teria
sido, para ele, o papel deste último na evolução da religião e da espécie.
Mesmo a obra e a memória daqueles que escrevem devem ter sido muitas
vezes esquecidas e devem ter morrido. Quanto a um dos maiores dentre estes
pode-se dizer que, se o grande incêndio* tivesse acontecido poucos anos
antes, talvez tivesse destruído todas as cópias do fólio de 1623 e assim para
sempre privado o mundo das peças de “Shakespeare”. A obra desses homens,
falada ou escrita, por natureza só pode ser apreciada por poucas e seletas
pessoas contemporâneas e é em quase todos os casos suscetível de ser
esquecida. Que isto é verdadeiro hoje como nos dias de Gautama, não pode
duvidar quem tenha seguido de perto a carreira de Walt Whitman. Mesmo
no caso dele, a palavra escrita teria sido quase certamente perdida se ele
tivesse falecido (como facilmente poderia ter ocorrido) de acidente ou doença
durante a guerra, embora naquela época três edições de Leaves já tivessem
sido impressas. Ele próprio não considerava sua mensagem salva de extinção
até quase o momento de seu falecimento, embora tivesse trabalhado
infatigavelmente por trinta e cinco anos para a semear.
Então, quanto à relativa grandeza de casos antigos e modernos, o
julgamento do mundo em geral deve ser necessariamente contra os últimos,
porque o tempo requerido para se chegar a uma apreciação dos mesmos não
transcorreu. E, afinal, de que valem a razão e o chamado senso comum
numa questão como esta?
Como diz Victor Hugo a propósito de Les Génies [Os Gênios]: “Choisir
entre ces hommes, preferer l’un a l’autre, indiquer du doigt le premier parmi
* N . T. - Trata-se do incêndio em Londres, em 1666.
ces premiers, cela ne se peut”* [96: 72-3], Qual a pessoa viva, em verdade,
que pode dizer, tendo seguramente já passado tempo suficiente, quem foi
maior, Gautama ou Jesus? E se não podemos decidir entre os dois, menos
ainda entre um deles e, por exemplo, Whitman.
Muitos crêem hoje que Walt Whitman foi a maior força espiritual já
produzida pela espécie - o que significaria que ele é o maior caso de
consciência cósmica até hoje. Mas o balanço de opiniões seria, naturalmente,
de milhares contra um, contrários a tal asserção.
VII
Embora sua verdadeira natureza (necessariamente) tenha passado
inteiramente despercebida, o fato da consciência cósmica tem sido há muito
tempo reconhecido, tanto no Oriente como no Ocidente e a grande maioria
de homens e mulheres civilizados em todos os países, hoje, curva-se ante
instrutores que possuíam o sentido cósmico e não somente por que possuíam
o sentido cósmico. E não apenas o mundo em geral considera esses homens
com reverência, mas talvez não fosse mais que a simples verdade dizer que
todos os instrutores não inspirados derivam as lições que transmitem direta
ou indiretamente daqueles poucos que foram iluminados.
VIII
Parece que em todo ou quase todo homem que entra em consciência
cósmica a apreensão é de início conturbada, de modo que a pessoa se pergunta
se o novo sentido não pode ser um sintoma ou um tipo de insanidade. Maomé
sentiu-se muito alarmado. Acho que é claro que Paulo e outros que serão
mencionados mais adiante foram afetados de maneira parecida.
A primeira coisa que cada pessoa pergunta a si própria ao vivenciar o
novo sentido é: o que vejo e o que sinto representam uma realidade, ou
estarei sofrendo um delírio? O fato de que a nova experiência parece até
mais real do que as velhas lições da consciência simples e da autoconsciência
a princípio não lhe dá plena confiança, porque ela provavelmente sabe que
as alucinações, quando se fazem presentes, dominam a mente com a mesma
firmeza com que o fazem os fatos reais.
* Fazer uma escolha entre esses homens, preferir um ao outro, apontar o primeiro
entre esses primeiros, isto é impossível.
Verdade ou não, cada pessoa que tem a experiência em questão acaba
crendo forçosamente em seus ensinamentos, aceitando-os tão absolutamente
como quaisquer outros ensinamentos. Isto, entretanto, não provaria que eles
fossem verdadeiros, pois o mesmo poderia ser dito das alucinações de um
demente.
Como então saberemos que esse é um novo sentido, um fato revelador e
não uma forma de insanidade, lançando a pessoa em alucinação? Em primeiro
lugar, as tendências do estado em questão são totalmente diferentes e mesmo
opostas às da alienação mental, sendo estas últimas distintamente amorais
ou mesmo imorais, ao passo que as primeiras são morais em grau muito
elevado. Em segundo lugar, enquanto em todas as formas de insanidade o
autocontrole - a inibição - é grandemente reduzido, às vezes mesmo elimi­
nado, na consciência cósmica é enormemente aumentado. A prova absoluta
desta última afirmação pode ser encontrada na vida dos homens aqui men­
cionados como exemplos. Em terceiro lugar (não importando o que os zom­
badores da religião possam dizer), é certo que a civilização moderna (ampla­
mente falando) se apóia (como já foi dito) grandemente nos ensinamentos
do novo sentido. Os mestres aprendem com esse novo sentido e o resto do
mundo com eles através de seus livros, seguidores e discípulos, de modo
que, se o que aqui é chamado de consciência cósmica é uma forma de insa­
nidade, defrontamo-nos com o fato terrível (se não fosse um absurdo) de que
nossa civilização, inclusive todas as nossas mais elevadas religiões, assentam
em alucinação. Mas (em quarto lugar), longe de admitirmos ou mesmo por
um momento considerarmos tão medonha alternativa, pode ser sustentado
que temos a mesma prova da realidade objetiva que corresponde a essa
faculdade que da realidade que corresponde a qualquer outro sentido ou
faculdade. A visão, por exemplo: sabemos que a árvore que está ali, do outro
lado do campo, a meia milha de distância, é real e não uma alucinação,
porquanto todas as outras pessoas dotadas do sentido da visão com quem
tenhamos falado também a terão visto, ao passo que, se ela fosse uma
alucinação, seria visível apenas para nós mesmos. Pelo mesmo método de
raciocinar confirmamos a realidade do universo objetivo correspondente à
consciência cósmica. Cada pessoa que tem essa faculdade é por ela cons­
cientizada, essencialmente, do mesmo fato ou dos mesmos fatos. Se três
homens olhassem para a árvore e meia hora depois lhes fosse pedido que a
desenhassem ou descrevessem, os três desenhos ou descrições não iriam
coincidir em detalhes mas corresponderiam no esboço geral. Do mesmo modo
os relatos daqueles que vivenciaram a consciência cósmica correspondem-se
em todos os pontos essenciais, embora sejam mais ou menos divergentes em
detalhes (mas essas divergências estão cabalmente tanto em nossa má inter­
pretação dos relatos quanto nos próprios relatos). Assim, não há nenhum
exemplo de que uma pessoa que tenha sido iluminada tenha negado ou
contrariado os ensinamentos de uma outra que tenha passado pela mesma
experiência. Paulo, por menos que estivesse predisposto por suas idéias
anteriores a aceitar os ensinamentos de Jesus, tão logo alcançou o sentido
cósmico percebeu que aqueles ensinamentos eram verdadeiros. Maomé acei­
tou Jesus, não somente como o maior dos profetas, mas como alguém situado
num plano distintamente acima daquele em que se encontravam Adão, Noé,
Moisés e os demais. Diz ele: “E enviamos Noé e Abraão e na semente deles
colocamos profecia e o livro; e alguns deles são guiados, embora muitos
sejam artífices de abominações! Seguimos então seus passos com nossos
apóstolos; e os seguimos com Jesus, o filho de Maria; e a ele demos o evan­
gelho; e colocamos bondade e compaixão no coração daqueles que o seguiram
” [153: 269], EPalmer testifica: “Maomé vê o nosso Senhor com veneração
especial e chega ao ponto de chamá-lo o “Espírito”, o “Verbo” de Deus, o
“Messias”[152: 51], Walt Whitman aceita os ensinamentos de Buda, Jesus,
Paulo, Maomé; especialmente os de Jesus, de quem mais sabia. Como diz
ele: “Aceitando os evangelhos, aceitando aquele que foi crucificado, sabendo
com certeza que ele é divino” [193: 69], E se, como Whitman certa vez
desejou, “os grandes mestres voltassem e me estudassem” [193: 20], nada é
mais certo do que todos eles (e cada um) me aceitarem como “um irmão do
radiante ápice”. Assim, todos os homens que o autor sabe que foram ilumi­
nados (em maior ou menor grau) concordam entre si em todos os pontos
essenciais, bem como com os mestres do passado que também o foram. Parece
também que todos os homens livres de preconceito que sabem alguma coisa
de mais de uma religião reconhecem, como é o caso de Sir Edwin Amold,
que as grandes crenças são “irmãs”, ou, como diz Arthur Lillie, que “Buda e
Cristo ensinaram praticamente a mesma doutrina” [110: 8],
IX
Como já foi dito ou sugerido, para que um homem possa entrar em
Consciência Cósmica terá de pertencer (por assim dizer) ao nível mais alto
do mundo da Autoconsciência. Não que ele precise ter um intelecto extraor­
dinário (essa faculdade é usualmente estimada muito acima de seu real valor
e não parece ser assim tão importante, deste ponto de vista, quanto outras),
embora tampouco possa ser deficiente neste particular. Deve ter boa com­
pleição, boa saúde, mas acima de tudo natureza moral elevada, forte solida­
riedade, coração cálido, coragem, forte e fervoroso sentimento religioso. Tudo
isto alcançado e tendo o homem chegado à idade necessária para levá-lo ao
ápice do nível mental autoconsciente, um dia ele entra em Consciência
Cósmica. Qual é então sua experiência? Os detalhes têm de ser dados com
desconfiança, pois são conhecidos deste autor apenas em poucos casos e,
sem dúvida, os fenômenos são variados e diversos. O que é dito aqui,
entretanto, merece confiança até onde alcança. É verdadeiro em certos casos
e certamente chega perto da plena verdade em certos outros casos, de modo
que pode ser considerado provisoriamente correto.
a. De repente, sem qualquer aviso, a pessoa tem a sensação de ser imersa
numa chama ou numa nuvem cor-de-rosa, ou talvez uma sensação de que
a mente mesma seja inundada dessa nuvem ou névoa.
b. No mesmo instante ela é por assim dizer banhada numa emoção de júbilo,
convicção, triunfo, “salvação”. A última palavra não é rigorosamente corre­
ta se tomada em seu sentido comum, pois o sentimento, quando plenamente
desenvolvido, não é de que um ato particular de salvação seja efetuado,
mas de que nenhuma “salvação” especial é necessária, já que o esquema
sobre o qual o mundo está construído é por si só suficiente. É desse êxtase,
muito superior a qualquer outro que pertença à vida meramente autocons­
ciente, que os poetas, como tais, ocupam-se especialmente; como Gautama
em seus discursos, preservados nos Suttas; Jesus, nas Parábolas; Paulo,
nas Epístolas; Dante, no final do Purgatorio e no começo do Paradiso;
“Shakespeare”, nos Sonetos; Balzac, em Seraphita; Whitman, em Leaves;
Edward Carpenter, em Rumo à Democracia, deixando aos cantores os
prazeres e as penas, os amores e os ódios, as alegrias e as tristezas, a paz
e a guerra, a vida e a morte do homem autoconsciente; embora os poetas
possam tratar também destas coisas, mas do novo ponto de vista, conforme
está expresso em Leaves: “Jamais voltarei a mencionar o amor ou a morte
dentro de uma casa” [193: 75] - isto é, do velho ponto de vista, com as
velhas conotações.
c. Simultaneamente, ou seguindo-se instantaneamente às experiências sensoriais e emocionais acima referidas, vem à pessoa uma iluminação inte­
lectual totalmente impossível de ser descrita. Como um lampejo, é apresen­
tada à sua consciência uma concepção clara (uma visão), em esboço, do
significado e do curso do universo. Ela não é levada a meramente crer,
mas percebe e sabe que o Cosmo, que para a mente autoconsciente parece
feito de matéria morta, é na realidade muito diferente - é em verdade uma
presença viva. Percebe que, ao invés de os homens serem, por assim dizer,
manchas de vida dispersas num infinito mar de substância não-víva, são
na realidade partículas de relativa morte num infinito oceano de vida.
Percebe que a vida que se manifesta no ser humano é eterna, assim como
toda vida é eterna; que a alma do ser humano é tão imortal como Deus o
é; que o universo está construído e ordenado de tal modo que, sem possibi­
lidade de erro, todas as coisas trabalham juntas para o bem de cada uma e
de todas; que o princípio fundamental do mundo é o que chamamos de
amor e que a felicidade de todo e qualquer indivíduo é, afinal de contas,
absolutamente certa. A pessoa que passe por essa experiência aprenderá
nos poucos minutos, ou mesmo instantes de sua duração, mais do que em
meses ou anos de estudo e aprenderá muita coisa que estudo nenhum já
ensinou ou pode ensinar. Em especial obterá tal concepção DO TODO,
ou pelo menos de um imenso TODO, que reduzirá a quase nada toda
concepção, imaginação ou especulação que brote da mente autoconsciente
comum e a ela pertença; uma concepção tal que fará com que as velhas
tentativas de compreender intelectualmente o universo e seu significado
se tomem insignificantes e mesmo ridículas.
Esse despertar do intelecto foi bem descrito por um escritor, a respeito de
Jacob Behmen, nestas palavras: “Os mistérios sobre os quais discorria
não lhe eram relatados; ele os VIA. Discerniu a raiz de todos os mistérios,
o UNGRUND ou URGRUND de que brotam todos os contrastes e princí­
pios discordantes, a dureza e a maciez, a severidade e a brandura, o doce
e o amargo, o amor e o pesar, o céu e o inferno. Todas estas coisas VIU em
sua origem; tentou descrevê-las em sua nascente e reconciliá-las em seus
eternos resultados. Viu no íntimo do ser de Deus, de onde procede o
nascimento ou a emanação da divina manifestação. A Natureza desvelouse a ele - ele estava à vontade no coração das coisas. Seu próprio livro,
que ele mesmo era (tal como Whitman: Isto não é um livro; quem o toca,
toca um homem.) [193: 382], o microcosmo do homem, com sua vida
trina, era patente à sua visão” [79: 852],
d. Juntamente com a elevação moral e a iluminação intelectual vem o que
pode ser chamado, por falta de melhor termo, um senso de imortalidade.
Não se trata de uma convicção intelectual, como a que vem com a solução
de um problema, nem de uma experiência como a de aprender algo antes
desconhecido. É bem mais simples e elementar e poderia ser comparado
melhor à certeza da individualidade distinta, possuída por cada um, que
vem com a autoconsciência e a esta pertence.
e. Com a iluminação, o medo da morte, que persegue tantos homens e
mulheres, às vezes por toda a sua vida, cai como um manto velho - mas
não como um resultado de raciocínio - simplesmente se desvanece.
f. Podemos dizer o mesmo da consciência do pecado. Não que a pessoa
escape do pecado, mas que ela não mais percebe que haja qualquer pecado
de que deva escapar.
g. A instantaneidade da iluminação é uma de suas mais notáveis caracterís­
ticas. A nada pode ser tão bem comparada como a um deslumbrante clarão
de relâmpago numa noite escura, trazendo o panorama que estivera
escondido a uma clara visão.
h. O caráter anterior do homem que entra na nova vida é um importante
elemento no caso.
i. Também é importante a idade em que a iluminação ocorre. Se ouvirmos
falar em um caso de consciência cósmica que tenha ocorrido aos vinte
anos, por exemplo, deveremos primeiro duvidar da veracidade do relato
e, se forçados a crer, deveremos esperar que o homem (caso viva) prove
que seja um verdadeiro gigante espiritual.
j. O encanto acrescentado à personalidade da pessoa que alcança a cons­
ciência cósmica é sempre - acredita-se - uma característica deste caso.
k. Parece ao autor deste livro haver suficiente evidência de que, com a cons­
ciência cósmica, - enquanto ela está efetivamente presente e perdurando
(gradualmente passando) por breve tempo - ocorre uma mudança na apa­
rência da pessoa que recebe a iluminação. Essa mudança é semelhante à
que é causada na aparência de alguém por uma grande alegria, mas às
vezes (isto é, nos casos pronunciados) parece ser muito mais acentuada
do que isto. Nesses grandes casos em que a iluminação é intensa, a mudança
em questão é também intensa e pode chegar a ser uma verdadeira “transfi­
guração”. Dante diz que foi “transhumanizado num Deus”. Parece haver
uma grande probabilidade de que, pudesse ele ter sido visto naquele
momento, teria apresentado o que só poderia ser chamado de “transfi­
guração”. Em capítulos subseqüentes deste livro serão apresentados vários
casos em que ocorreu a mudança em questão, mais ou menos fortemente
marcada.
X
A passagem da autoconsciência para a consciência cósmica, considerada
do ponto de vista do intelecto, parece ser um fenômeno rigorosamente paralelo
ao da passagem da consciência simples para a autoconsciência.
Assim como na última, também na primeira há dois elementos principais:
a. Nova consciência.
b. Nova faculdade.
a. Quando um organismo que só tem consciência simples alcança a autocons­
ciência, apercebe-se pela primeira vez de que é uma criatura separada, ou
um ego existindo num mundo que está à parte dele. Isto é, o advento da
nova faculdade o instrui, sem qualquer nova experiência ou processo de
aprendizagem.
b. Ao mesmo tempo ele adquire poderes enormemente aumentados para
acumular conhecimento e para iniciar ações.
Assim, quando uma pessoa que era apenas autoconsciente entra em
consciência cósmica:
a. Sabe sem aprender (graças ao mero fato da iluminação) certas coisas,
como por exemplo: (1) que o universo não é uma máquina morta e sim
uma presença viva; (2) que, em sua essência e tendência, ele é infinitamente
bom; (3) que a existência individual é contínua para além do que chamamos
de morte. Ao mesmo tempo:
b. Adquire uma capacidade extraordinariamente maior, tanto para o aprendi­
zado quanto para a iniciativa.
XI
O paralelo é também válido do ponto de vista da natureza moral. Pois o
animal, que tem meramente consciência simples, não tem possibilidade de
saber coisa alguma do pino deleite de simplesmente viver que sente (pelo
menos parte do tempo) todo homem ou toda mulher, jovem ou de meia-
idade, de boa constituição e que goze de boa saúde. “Não tem possibilidade
de”, pois este sentimento depende da autoconsciência e sem esta não pode
existir. O cavalo ou o cachorro desfrutam a vida enquanto têm uma sensação
agradável ou quando estimulados por uma atividade agradável (na realidade
a mesma coisa), mas não podem ter consciência da tranqüilidade diária no
gozo da vida que independe dos sentidos e das coisas externas e que pertence
à natureza moral (que é na realidade o fato básico do lado positivo desta),
começando, como pode em verdade ser dito, da fonte central da vida do
organismo (o senso de bien-être - de “bem-estar”), que pertence ao ser huma­
no como tal e é na verdade uma de suas heranças mais valiosas. Isto constitui
uma planície (ou um platô) na região da natureza moral, à qual a criatura
sensível ascende quando passa ou enquanto passa da consciência simples
para a autoconsciência.
Correspondendo a essa ascensão moral e a esses passos, acima referidos,
que são dados pelo intelecto da consciência simples para a autoconsciência e
desta para a consciência cósmica, há a ascensão moral que pertence à passa­
gem da autoconsciência para a consciência cósmica. Isto só pode ser com­
preendido - e portanto descrito - por aqueles que passaram pela experiência.
Que dizem eles a este respeito? Bem, leiamos o que Gautama e os illuminati
dos budistas nos dizem sobre o Nirvâna, ou seja, que se trata da “mais alta
felicidade” [156: 9], Diz o autor desconhecido mas inquestionavelmente
iluminado, no Mahabbharata: “O devoto cuja felicidade está dentro de si
mesmo e cuja luz [de conhecimento] também está dentro de si, tomando-se
uno com Brahma, obtém a Beatitude Bramânica” [154: 66]. Consideremos
os dizeres de Jesus quanto ao valor do Reino dos Céus, para cuja aquisição
um homem vende tudo que tem; lembremo-nos do valor que Paulo atribui a
Cristo e de como ele foi elevado ao terceiro céu; reflitamos sobre a “transhumanização” de Dante, de homem “num Deus”, e sobre o nome que ele dá ao
sentido cósmico: Beatrice - “Que Toma Feliz” ou “Que Beatífica”. Eis aqui,
também, sua clara afirmação da alegria que pertence a esse estado: “O que
eu estava vendo pareceu-me um sorriso do universo, pois meu enlevo entrava
pela audição e pela visão. Ó alegria! Ó inefável contentamento! Ó vida repleta
de amor e de paz! Ó riqueza segura, sem ansiedade!” [72: 173], Vejamos
agora o que Behmen diz sobre o mesmo assunto: “A linguagem terrena é
inteiramente insuficiente para descrever o que há de alegria, felicidade e
beleza nas íntimas maravilhas de Deus. Ainda que a Virgem etema os mostre
à nossa mente, a constituição do ser humano é fria e escura demais para ser
capaz de expressar mesmo uma centelha disso em sua linguagem” [97: 85],
Consideremos a exclamação, freqüentemente repetida, de Elukhanam: “Sandosiam, Sandosiam Eppotham” - “Alegria, sempre alegria”. E ainda Edward
Carpenter: “Toda a tristeza acabada”, “o profundo, profundo oceano de alegria
interior ”, “estar pleno de alegria”, “cantando alegria infindável”. Acima de
tudo, tenhamos em mente o testemunho de Walt Whitman - testemunho que
não varia, embora dado em linguagem que sempre varia e em quase todas as
páginas de Leaves, cobrindo quarenta anos de vida: “Estou satisfeito - vejo,
danço, rio, canto”. “Vagueando, maravilhado de minha própria leveza e de
meu regozijo”. “Ó, a alegria de meu espírito - está livre - dispara qual
relâmpago”. “Este canto flutuar faço com alegria, com alegria por ti, ó morte”.
E a previsão do futuro tirada do seu próprio coração - do futuro “em que
através desses estados caminhem cem milhões de esplêndidas pessoas”- isto
é, pessoas possuidoras do sentido cósmico. E finalmente: “O oceano cheio
de alegria - a atmosfera, toda alegria! Alegria, alegria, em liberdade, adora­
ção, amor! Alegria no êxtase da vida: Bastante é, meramente ser! Bastante
é, respirar! Alegria, alegria! Alegria em toda parte!” [193: 358]
xn
“Bem”, dirá alguém, “se essas pessoas vêem, sabem e sentem tanto, por
que não vêm até nós e o expressam em linguagem clara, dando ao mundo o
benefício disso?” Eis o que a “fala” disse a Whitman: “Walt, você tem um
grande conteúdo; por que não deixá-lo vir à luz?” [193: 50], Mas ele nos
diz:
“Quando o melhor tento dizer, vejo que não o consigo,
Minha língua ineficiente se toma em seus movimentos,
Meu fôlego a seus órgãos não obedece,
Emudecido me tomo.” [ 193: 179]
Assim Paulo, quando foi “arrebatado para o paraíso”, ouviu “palavras
impronunciáveis”. E Dante não foi capaz de contar as coisas que viu no céu.
“Minha visão”, diz ele, “foi maior do que nossa fala, que sucumbe a tal
visão” [72: 212], E assim com todos os demais. A verdade disso tudo não é
difícil de entender; trata-se de que a fala (como acima plenamente explicado)
é o equivalente do intelecto autoconsciente; pode expressar a ele e nada além
dele; não equivale ao Sentido Cósmico e não pode expressá-lo - ou, se em
absoluto pode fazê-lo, é somente ao ponto em que isto possa ser traduzido
em termos do intelecto autoconsciente.
Será conveniente relacionar aqui (parcialmente em recapitulação), para
o benefício do leitor das duas próximas partes, de maneira breve e explícita,
os sinais do Sentido Cósmico. São eles:
a.
b.
c.
d.
e.
f.
g.
h.
i.
j.
A luz subjetiva.
A elevação moral.
A iluminação intelectual.
O senso de imortalidade.
A perda do medo da morte.
A perda do senso de pecado.
A subitaneidade e instantaneidade do despertar.
O caráter anterior do homem - intelectual, moral e físico.
A idade da iluminação.
O encanto acrescentado à personalidade, de modo que homens e mulheres
são sempre (?) fortemente atraídos para a pessoa,
k. A transfiguração do indivíduo que é objeto da mudança, tal como vista
por outrem quando o sentido cósmico está efetivamente presente.
XIV
Não se deve supor que um homem, somente porque tenha consciência
cósmica, seja onisciente ou infalível. Os maiores dentre esses homens estão
de certo modo na situação - embora num plano mais elevado - de crianças
que vêm de se tomar autoconscientes. Eles vêm de alcançar uma nova fase
de consciência - ainda não tiveram tempo e oportunidade de estudá-la ou
dominá-la. É verdade que alcançaram um nível mental mais alto; mas nesse
nível pode haver e certamente haverá relativa sabedoria e relativa insensatez,
assim como no nível de consciência simples ou de autoconsciência. Do mesmo
modo que um homem com autoconsciência pode decair na moral e na
inteligência abaixo de um animal superior dotado somente de consciência
simples, assim também podemos supor que um homem possuidor de
consciência cósmica possa (em certas circunstâncias) estar pouco mais acima
- se em absoluto estiver - do que um outro que passe a vida no plano de
autoconsciência. Deve ser ainda mais evidente que, por mais divina que a
faculdade possa ser, aqueles que primeiramente a adquirem, vivendo em
diferentes épocas e países, passando os anos de sua vida autoconsciente em
ambientes diferentes, tendo sido educados para encarar a vida e os interesses
da vida de pontos de vista totalmente diversos, têm necessariamente de
interpretar de maneira um tanto diferente as coisas que vêem no novo mundo
em que vêm de entrar. O admirável é que todos eles vejam tão claramente o
novo mundo pelo que ele é. O ponto principal é que esses homens e essa
nova consciência não devem ser condenados, porquanto nem eles nem a
nova consciência são absolutos. Isto não seria possível. Pois mesmo que o
ser humano (elevando-se de plano a plano) alcançasse uma posição intelectual
e moral tão acima da posição de nossos melhores homens atuais como aqueles
homens estão acima de um simples molusco, estaria tão longe da infalibilidade
e da virtude absoluta ou do conhecimento absoluto como está na atualidade.
Teria a mesma aspiração que tem hoje de conquistar uma posição mental
mais elevada e haveria tanto espaço para crescimento e melhoria acima de
sua cabeça quanto sempre houve.
XV
A título de sumário e antecipação introdutória dos casos que serão
apresentados a seguir, mostraremos um quadro dos que são considerados
como provavelmente genuínos. Algumas palavras sobre isto podem ser de
interesse. Numa rápida leitura geral, a primeira coisa que vai chamar a atenção
do leitor é a imensa preponderância de homens sobre mulheres dentre aqueles
que tenham alcançado a nova faculdade. A segunda é o fato, à primeira vista
curioso (de que se falará mais adiante), de que em quase todos os casos em
que é conhecida a época do ano a iluminação ocorreu entre o começo da
primavera e o fim do verão, tendo a metade de todos os casos ocorrido em
maio e junho ou por volta destes meses. A terceira (e este fato é interessante
do ponto de vista fisiológico) é que parece haver uma correspondência geral
entre a idade na iluminação e a duração da vida do indivíduo. Assim, a
idade média na iluminação de Sócrates, Maomé, Las Casas e J. B. foi de 39
anos e a idade média no falecimento foi de 74 anos e meio (embora um deles
tenha sido executado enquanto era ainda vigoroso e forte). Nos casos de
Bacon, Pascal, Blake e Gardiner, a idade média na iluminação foi de 31
anos e no falecimento de apenas 55 anos e um quarto, sendo assim (em
média) 8 anos a menos na iluminação e 9 anos e um quarto a menos no
falecimento. Já Gautama, Paulo, Dante, Behmen, Yepes e Whitman, que
entraram em consciência cósmica na idade média de 34 a 36, tiveram uma
duração média de vida de 62 anos, sendo que um deles, Paulo, foi executado
aos 67. Poderíamos esperar esta correspondência, pois, como a iluminação
acontece na plena maturidade, isto naturalmente corresponderia (de modo
geral) ao limite de vida da pessoa.
N°.
Nome
Data de
Nasc.
Idade na
Iluminação
Sexo
Época do ano na
Iluminação
Idade na
Morte
1
Moisés
1650?
M
2
Gideão
1350?
M
3
Isaías
770?
M
4
Li R
604?
5
Gautama
560?
35
M
6
Sócrates
469?
39?
M
Verão
71?
Janeiro?
38?
Idoso
M
Idoso
80
7
Jesus
4
35
M
8
Paulo
0
35
‘ M
67?
9
Plotino
204
M
66?
10
11
12
Maomé
570
Roger Bacon
1214
Dante
1265
35
M
Primavera
56
13
Las Casas
1474
40
M
Junho
92
Começo do Verão
49
39
M
Maio?
M
62
80?
14
Juan Yepes
1542
36
M
15
Francis Bacon
1561
30?
M
66
16
Behmen
1575
35
M
49
17
Pascal
1623
311/2
M
18
Spinoza
1632
19
Mde. Guyon
1648
20
21
22
Swedenborg
1688
54
M
Gardiner
1688
32
M
Blake
1759
31
M
68
23
Balzac
1799
32
M
51
24
J. B. B.
1817
38
M
25
Whitman
1819
34
M
26
J. B.
1821
38
M
27
C. P.
1822
37
M
Novembro
39
Julho
69
Julho
58
M
33
F
45
84
Junho
73
73
28
H. B.
1823
29
R. R.
1830
30
M
30
E. T.
1830
30
M
31
R. P.
1835
32
J. H. J.
1837
34
M
Fim da Primavera
33
R. M. B.
1837
35
M
Primavera
34
T. S. R.
1840
32
M
35
W. H. W.
1842
35
M
36
Carpenter
1844
36
M
Primavera
37
C. M. C.
1844
49
F
Setembro
Fevereiro
M
Começo do Verão
M
38
M. C. L.
1853
37
M
39
J. W. W.
1853
31
M
Janeiro
40
J. William Lloyd
1857
39
M
Janeiro
41
P. T.
1860
35
M
Maio
42
C. Y. E.
1864
31 1/2
F
Setembro
43
A. J. S.
1871
24
F
69
CASOS DE CONSCIÊNCIA CÓSMICA
Capítulo 1
GAUTAMA, O BUDA
Naturalmente, não há intenção de escrever aqui as biografias dos homens
considerados neste livro como casos de Consciência Cósmica, nem tampouco,
é claro, pode ser feita a mais leve alusão a seus ensinamentos. Os fatos
tirados de suas vidas e as passagens tomadas de suas palavras têm apenas a
intenção de demonstrar e ilustrar o fato de que esses homens eram iluminados
no sentido em que esta palavra é usada neste livro.
I
Siddhartha Gautama nasceu de pais abastados (seu pai tendo sido mais
um grande proprietário de terras do que um rei, como se diz que tenha sido),
entre 562 e 552 a.C. Parece suficientemente certo que ele foi um caso de
Consciência Cósmica, embora, dado o caráter remoto de suá época, detalhes
de prova possam até certo ponto faltar. Casou-se muito jovem. Dez anos
após nasceu seu único filho, Rahula. Pouco depois do nascimento de Rahula,
Gautama, então com a idade de vinte e nove anos, repentinamente abandonou
seu lar para se devotar inteiramente ao estudo de religião e filosofia. Ele
parece ter sido um homem de mentalidade muito séria, que, sentindo
profundamente as aflições da espécie humana, desejou acima de tudo fazer
algo para eliminá-las ou pelo menos diminuí-las. A maneira ortodoxa de
alcançar a santidade, na época e na terra de Gautama, era pelo jejum e pela
penitência, de modo que por seis anos ele praticou extrema automortificação.
Ganhou fama extraordinária, pela qual não se interessava nem um pouco,
mas não conquistou a paz mental nem o segredo da felicidade humana por
que tanto se esforçara. Vendo que aquele caminho era vão e a nada levava,
abandonou o ascetismo e logo depois, na idade de trinta e cinco, alcançou a
iluminação sob a famosa árvore Bo.
n
Para nosso presente propósito, é importante fixarmos a idade do advento
do Sentido Cósmico - neste como em outros casos - tão precisamente quanto
possível. Uma autoridade muito recente e provavelmente boa [60] estabelece-a
como trinta e seis anos. Emest De Bunsen, em sua obra The Angel Messiah
[O Messias Anjo], diz que Buda, como Cristo, “começou a pregar aos trinta
anos. Com certeza deve ter pregado em Vaisali, pois lá cinco rapazes toma­
ram-se seus discípulos e o exortaram a que continuasse com seus ensina­
mentos. Ele estava com vinte e nove anos quando deixou aquele lugar;
portanto, pode muito bem ter pregado aos trinta. Ele não girou a roda da lei
(não se tomou iluminado) senão após uma meditação de seis anos sob a
árvore do conhecimento” [109: 44],
III
Agora, vejamos quais tenham sido os resultados de sua iluminação. Que
disse ele a respeito dela? E que mudança efetuou ela no homem? O DhammaKakka-Ppavattana-Sutta [159] é aceito por todos os budistas como um
sumário das palavras com que o grande pensador e reformador indiano
promulgou pela primeira vez suas novas idéias com sucesso [ 160: 140]. Nele
Gautama declara repetidamente que as “nobres verdades” ali ensinadas “não
se achavam entre as doutrinas transmitidas”, mas que “nascera em seu interior
o olho para percebê-las, o conhecimento de sua natureza, a compreensão de
sua causa, a sabedoria que ilumina a verdadeira senda, a luz que dissipa as
trevas”. Ele não poderia ter declarado mais positivamente que não havia
derivado sua autoridade para ensinar meramente com base na mente
autoconsciente e sim na mente cosmicamente consciente - ou seja, na
iluminação ou inspiração. Comparemos com isto o que diz Behmen de si
próprio quanto à mesma situação: “Não estou colhendo meu conhecimento
de cartas ou livros mas o tenho dentro do meu próprio ser, porquanto o céu e
a terra com todos seus habitantes e, além disso, o próprio Deus, estão dentro
do ser humano” [97: 39],
IV
No Maha Vagga [162: 208] está dito que “durante a primeira vigília da
noite seguinte à vitória de Gautama sobre o maléfico (a noite seguinte àquela
em que alcançou a Consciência Cósmica), ele fixou sua mente na cadeia de
causação', durante a segunda vigília, fez o mesmo e, durante a terceira,
também fez o mesmo”. Esta tradição existe entre os budistas do Norte e do
Sul e vem desde o tempo anterior à separação destas igrejas; portanto, é
provavelmente genuína e provém do próprio Gautama. Mas expressa em
linguagem clara e concisa um dos fenômenos mais fundamentais relativos
ao advento do Sentido Cósmico; muito provavelmente, “a revelação de
extraordinária grandeza” de que fala Paulo; a visão das “rodas eternas”, de
Dante; “o conhecimento que ultrapassa todos os argumentos da terra”, de
Whitman; a “iluminação interior pela qual podemos finalmente ver todas as
coisas como elas são, contemplando toda a criação - os animais, os anjos, as
plantas, as imagens de nossos amigos e todos os níveis e raças da espécie
humana - em sua verdadeira constituição e ordem”, de Edwárd Carpenter.
V
No Akankheyya-Sutta [161:210-18] são apresentadas as características
espirituais daqueles que têm o Sentido Cósmico. Ninguém que não o tivesse
poderia ter escrito a descrição que indubitavelmente procede, como se
pretende, diretamente de Gautama. Nem poderia qualquer possuidor posterior
dessa faculdade expressar mais claramente, no mesmo número de palavras,
os sinais característicos que a ela pertencem. Por exemplo, ali é dito que a
conquista do estado de Arahat (visão interior, sobrenatural - Nirvâna iluminação - Consciência Cósmica) “fará um homem se transformar” :
Palavras d e Gautama
Passagens paralelas
A m ado, popular, respeitado entre
seus companheiros, vitorioso sobre o des­
contentamento (*1) e a luxúria; sobre o
perigo espiritual e o desânimo; a ele será
outorgado o êxtase da contemplação (*2);
será ele capaz de atingir com seu corpo
os estágios de libertação que são incorpó­
reos e transcendem os fenômenos e neles
perm anecer (*3); fará com que se tom e
um herdeiro dos mais altos céus (*4); fará
com que, sendo um , ele se torne múltiplo
e, sendo múltiplo, tome-se um (*5); será
ele dotado de ouvido claro e celeste que
ultrapassará o dos homens; será capaci­
tado a compreender pelo seu próprio co­
ração o de outros seres e de outros ho­
mens, a compreender todas as mentes a apaixonada, a calma, a sábia, a concen-
(*1) “Estavam os homens desejosos de matálos ou com ciúme de vocês, meu irmão,
minha irmã? Sinto muito por vocês, pois eles
não desejam me matar nem têm ciúme de mim;
todos têm sido gentis comigo; nada tenho a
lamentar - que poderia fazer com lamentações?”
[193: 71] “O sagrado sopro mata a luxúria, a
paixão e o ódio”. [M.C.L. infra]
(*2) “No entanto, ó minha alma suprema!!
Conheces tu as alegrias do pensamento
melancólico? As alegrias do coração livre e
solitário, temo e tristonho?” [193: 147]
(*3) “Folhas de tumbas, folhas de corpos, cres­
cendo sobre mim, sobre a morte” [193:96],
(*4) “Herdeiros de Deus e herdeiros-adjuntos
com Cristo” [19: 8-17],
(*5) “O outro eu-sou” [193: 32], “Tu me
ensinas como fazer de um dois” [176:39],
trada, a sublime, a vil, a firme, a irresoluta, a livre e a escravizada (*6); a ele
dará o poder de se lembrar de seus vários
estados temporários em épocas passadas,
tais como um nascimento, dois nascimen­
tos, três, quatro, cinco, dez, vinte, trinta,
quarenta, cinqüenta, cem, mil, ou cem mil
nascim entos; de seus nascim entos em
muitas eras de renovação; em muitas eras
de destruição e renovação; de se lembrar
de seus estados tem porários em épocas
passadas, em todos os seus modos e todos
os seus detalhes (*7); o poder de ver, com
pura e celestial visão (*8) que transcende­
rá a dos homens, seres passando de um
estado de existência para tomarem forma
em outros; seres abjetos ou nobres, de
boa aparência ou desfavorecidos, felizes
ou infelizes; (*9) o poder de conhecer e
alcançar a emancipação do coração e a
emancipação da mente.
(*6) Não é esta uma perfeita descrição de uma
grande e importante parte do que o Sentido
Cósm ico fez, por exem plo, por D ante,
“ Shakespeare”, Balzac, Whitman?
(*7) “Passo pela morte com o moribundo e pelo
nascimento com o bebê novo e lavado”.
“Sem dúvida morri dez mil vezes antes” [193:
34-37],
(*8) Compare-se Faces [193: 353], onde essa
“visão celestial” pode ser vista em ação.
(*9) O teste final e supremo.
VI
Algumas outras passagens alusivas ao sentido cósmico e que têm paralelos
mais ou menos próximos nos escritos dos illuminati mais modernos podem
ser apresentadas para maior ilustração, mas é quase desnecessário dizer que
quem quiser luz neste assunto deverá ler por si próprio - não apenas uma
vez, mas muitas e muitas vezes - as palavras que nos foram deixadas por
aqueles senhores do pensamento. Aqui está uma passagem de O Livro do
Grande Óbito. Gautama está ensinando a seus discípulos e diz o seguinte:
Desde que os irmãos não se dediquem a negócios, ou não se afeiçoem a eles, ou
a eles não estejam ligados - desde que os irmãos não tenham o hábito de conversas
frívolas, ou não se afeiçoem a elas, ou nelas não participem - desde que os irmãos
não se apeguem à preguiça, ou não se afeiçoem a ela, ou a ela não se entreguem desde que os irmãos não freqüentem a sociedade, ou não se afeiçoem a ela, ou nela
não se comprazam - desde que os irmãos não tenham desejos pecam inosos, nem
caiam sob sua influência - desde que os irmãos não se tom em amigos, companheiros
ou íntimos de pecadores - desde que os irmãos não se detenham no caminho (para
Nirvânà), porque tenham conseguido qualquer coisa m enor (tais com o riqueza e
poder) - então poderão os irmãos esperar não declinarem mas prosperarem [ 163: 7
et seq. ].
É desnecessário citar passagens paralelas de Jesus, pois são tão numerosas
e ocorrerão a todo mundo. Mas vale a pena observar que Paulo usa quase a
mesma maneira de falar ao se referir à mesma figura que está na mente do
escritor budista, quando diz (comparando Nirvana, o Sentido Cósmico e as
coisas pertencentes a ele, com o prêmio de uma corrida): “Uma coisa faço,
esquecendo as coisas que estão para trás (as coisas menores do texto budista)
e avançando para as coisas que estão à frente, arremeto-me em direção à
meta, para o prêmio” [24:3:13 ]. Compare-se também The Song o f the Open
Road (A Canção da Estrada Livre), em que o mesmo pensamento é trabalhado
de forma bastante elaborada [193: 120], Então, quanto à admoestação contra
“negócios” e as “coisas menores”, como riqueza, considerem-se as vidas de
Gautama, Jesus, Paulo, Whitman e E.C., que em maioria, ou eram ou pode­
riam facilmente ter ficado ricos, mas que viraram as costas para sua riqueza
(como Gautama ou E.C.) ou simplesmente não quiseram ser ricos (como
Jesus e Whitman). Como comentário sobre este fato, leiam-se as seguintes
palavras de Whitman:
Para além da segurança de uma pequena soma de dinheiro economizada para o
funeral, de algumas ripas de madeira em tomo de si e acima da cabeça num pedaço
de solo americano próprio, de alguns dólares para as despesas anuais com roupas e
refeições modestas, a melancólica prudência do desamparo de um grande ser como
um homem é para os altos e baixos de anos de luta para ganhar dinheiro, com todos
os dias causticantes e as geladas noites... é a grande fraude da civilização moderna
[191: 10],
vn
As linhas seguintes são citadas como alusão clara ao Sentido Cósmico o Upanishad deveria ser lido por inteiro:
Viveu certa vez Svetaketu Aruneya
(o neto de A runa). D isse-lhe seu pai
(Uddâlaka, filho de Aruna): “Svetaketu,
vá à escola, pois não há ninguém que
pertença à nossa raça, querido, que, não
ten d o estudado (os V edas), seja, por
assim dizer, um Brâm ane som ente pelo
nascim ento” .
“ Que, vendo, eles podem ver e não
apreender e, ouvindo, podem ouvir e não
compreender” [15:4.12] “Não duvido que
interiores tenham seus interiores e exteriores
tenham seus exteriores e que a vista tenha outra
vista e que a audição outra audição e a voz outra
voz” [193: 342].
Tendo iniciado seu aprendizado com um mestre quando tinha doze anos de idade,
Svetaketu voltou a seu pai aos vinte e quatro, depois de ter estudado todos os Vedas,
pretensioso, considerando-se um homem culto e austero.
Seu pai lhe disse: “Svetaketu, como você é tão presunçoso, considerando-se tão
culto e tão austero; meu caro, você já pediu a instrução pela qual ouvimos aquilo que
não pode ser ouvido, pela qual percebemos aquilo que não pode ser percebido, pela
qual conhecemos aquilo que não pode ser conhecido?” [148: 92]
VIII
A este mesmo propósito, leia-se este versículo:
O mestre responde: E o ouvido do ouvido, a mente da mente, a fala da fala, o
alento do alento e o olho do olho. [149: 147]
Apenas mais uma passagem:
Esse (o E u interior*), embora nunca se agite, é mais rápido que o pensamento.
Os sentidos nunca o alcançaram, pois ele caminhava à sua frente. Em bora permaneça
parado, ultrapassa os outros que estão correndo. O espírito movente lhe outorga
poderes. Ele se agita e não se agita. Está
longe e ao m esm o tem po perto . E s t á
, . “° sentido é um senso de que a Pessoa é 08
c
, , .
objetos, as coisas e as pessoas que percebe, bem
dentro de tudo isso e esta fora de tudo
.
. , .
....
como o universo inteiro . [62]
isso.
E aquele que contempla todos os seres no E u interior* e o Eu interior* em todos
os seres, nunca o abandona. Quando, para um homem que compreende, o E u interior*
tiver se tom ado todas as coisas, que pesar, que problema poderá haver para ele que
um a vez contemplou essa unidade? [150: 311]
IX
As razões específicas para crer que Gautama tenha sido um caso de
Consciência Cósmica são:
a. O caráter inicial de sua mente, que parece ter sido ardoroso, sério e elevado;
com efeito, o tipo de caráter que geralmente (sempre?) precede o advento
do Sentido Cósmico.
b. O caráter peremptório e súbito da mudança no homem, de incessante
aspiração e empenho para consecução e paz. “Uma vida religiosa é bem
ensinada por mim” (diz Gautama). “Uma vida instantânea, imediata”
[157:104], E consta ainda que Gautama ensinava “o instantâneo, o imedia­
to, a destruição do desejo, a libertação da angústia, como não há semelhan­
tes em parte alguma”. [157: 211]
* self, no original
c. A idade em que consta que é alcançada a iluminação - a idade típica para
o advento do Sentido Cósmico - trinta e cinco anos.
d. O ensinamento geral dos Suttas, que se diz ter vindo de Gautama,
ensinamento esse que sem dúvida procede de uma mente possuidora de
Consciência Cósmica.
e. A iluminação intelectual - a “visão interior sobrenatural” [157: 78] atribuída, e atribuída com justiça a Gautama e comprovada pelo
ensinamento acima citado - se este procede dele.
f. A elevação moral alcançada por Gautama, que nada senão a posse da
Consciência Cósmica pode explicar.
g. Gautama parece ter tido o senso da vida eterna próprio da Consciência
Cósmica. Supõe-se que o Mahavagga apresente com exatidão considerável
seu verdadeiro ensinamento a este respeito. [158: 11] [162: 208] Nele
encontramos estas palavras: “Aquele que não tem desejo algum, que está
conscientemente livre de dúvida e que alcançou a profundeza da
imortalidade, a esse chamo de Brâmane”. [157:114] É importante notar
que o teste não é uma crença ou certeza (por mais forte) quanto a uma
vida eterna futura. Para se tomar um Brâmane (para ter alcançado o
Nirvâna - a Consciência Cósmica), o homem deverá já ter adquirido a
vida etema.
h. O magnetismo pessoal exercido diretamente por ele sobre seus
contemporâneos e através de suas palavras sobre seus discípulos de todas
as épocas desde então.
i. Há uma tradição da mudança característica na aparência, conhecida como
“transfiguração”. Quando ele desceu “da montanha Mienmo, uma escada
de resplendentes diamantes, vista por todos, ajudou seu descida. Sua
aparência era ofuscante” [109: 63]. Descontando o exagero oriental, um
germe de verdade pode estar contido nessa tradição.
X
Ora, se Gautama tinha Consciência Cósmica e se, como parece quase
certo, ela se manifestou entre seus seguidores, geração após geração, desde
seu tempo até hoje, então ela deve ter um nome na copiosa literatura dos
budistas. Há de fato uma palavra usada por essa gente, de cuja significação
exata os estudiosos ocidentais têm sempre estado mais ou menos em dúvida;
mas se a ela atribuímos este significado, toda dificuldade parece terminar e
se percebe que as passagens em que essa palavra aparece ganham um sentido
claro e simples. A palavra a que nos referimos é Nirvâna.
Kinza M. Hirai diz [2: 263]: “O Nirvâna é interpretado pelas nações
ocidentais como a efetiva aniquilação da paixão humana ou do desejo humano;
mas isto é um erro. Nirvâna nada mais é que razão universal”.
Pode haver dúvida quanto a se o Sr. Hirai, por “razão universal”, entende
“Consciência Cósmica”, mas sua intenção ao usar a expressão é a mesma.
Se ele compreende ou se vier a compreender o que é Consciência Cósmica, é
certo que dirá que Nirvâna é um nome para ela.
XI
Para maior ilustração deste ponto, leia-se (como segue) parte de um
capítulo sobre Nirvâna, de autoria de uma excelente autoridade [73: 110],
que é Rhys Davids:
Podem-se encher páginas com o abismado e extático louvor, profusamente usado
nos escritos budistas, dessa condição mental, o Fruto da Quarta Senda, o estado de
um Arahat, de um homem que se tom ou perfeito segundo a fé budista. M as tudo o
que poderia ser dito pode ser incluído em uma frase fecunda - isso é Nirvâna.
Não há sofrimento para aquele que tenha terminado sua jornada e abandonado o
pesar, que se tenha libertado por todos os lados e lançado fora todos os grilhões.
Até os deuses invejam aquele cujos sentidos, como cavalos controlados por seu
condutor, foram dominados, aquele que está livre do orgulho e livre dos apetites.
A quele que cum pre com seu dever é
tolerante como a terra (*1), como o raio
de In d ra; é com o um lago sem lam a;
novos nascimentos não estão reservados
para ele. Seu pensam ento é sereno e
serenas são sua palavra e sua ação quando
tenha obtido a liberdade por meio do
verdadeiro conhecimento [131: 271.
(#1) «Aquele que ^ seu eSpírito, em qualquer
emergência, não acelera nem evita a
morte” [193: 291],
“A terra, nem se retarda nem se apressa; não
retém, é bastante generosa; as verdades da terra
esperam continuamente, não estão ocultas
tampouco; são calmas, sutis, intransmissíveis
pela escrita”[193: 176],
A queles que por firmeza mental tenham se tornado isentos de m au desejo e
[sejam] bem treinados nos ensinamentos de Gautama; esses, tendo obtido o Fruto da
Quarta Senda e tendo imergido a si próprios naquela Ambrosia, receberam [prêmio?]
inestimável e estão no gozo de Nirvana.
Seu velho Karma (* 2 ) está exaurido,
nenhum novo Karma está sendo produ­
zido; seu coração está livre do anseio por
um a vida futura (*3); destruída a causa
de sua existência e nenhum anelo nascen­
do em seu interior, esses, os sábios, são
ex tin to s com o esta lâm p ad a (R atan a
Sutta). Conduz bem a si mesmo o mendi­
cante que conquistou [o pecado] por meio
da santidade, de cujos olhos o véu do erro
foi removido, que é bem treinado na reli­
gião; e que, livre de anelo e qualificado
no co n h ecim en to , te n h a alcançado o
Nirvâna (Sammaparibbajaniya Sutta).
Que é então Nirvâna, que significa sim­
plesmente apagar soprando - extinção
(*2) K arm a - ação ou atos da pessoa
considerados como determinantes de seu
destino após a morte e numa vida seguinte.
(*3) O homem que adquiriu o Sentido Cósmico
não deseja a vida eterna - ele a tem.
(*4) Nir, “apagar”, vana, “soprando”, da raiz
va, “soprar”, com o sufixo ana. Que
Nirvâna não pode significar extinção no sentido
de morte, está claro pela seguinte passagem: “E
logo ele atingiu a meta suprema do Nirvâna - a
vida superior - em prol da qual os homens se
afastam de todo e qualquer proveito e conforto
domésticos a fim de se tomarem peregrinos sem
lar; sim, essa meta suprema ele passou a conhecer
por si próprio e continua a apreender e ver face
a face enquanto ainda neste mundo visível.
”[163: 110].
(*4) - sendo bem claro, pelo que já foi
dito, que não se pode tratar da extinção
da alma? Trata-se da extinção da pecaminosa, cobiçosa condição da mente e do
coração, que - se não è extinta —é a causa de renovada existência individual segundo
o grande mistério do Karma .
Essa extinção deve ser acarretada pelo crescimento da condição oposta de coração
e m ente e corre paralelamente a ele; está completa quando essa condição oposta é
alcançada. Nirvâna é portanto a mesma coisa que um estado sem pecado e calmo da
m ente e, se traduzida, talvez seja melhor interpretada como “ santidade”- isto é,
santidade, no sentido budista - paz perfeita, virtude e sabedoria.
Tentar traduções de termos tão fecundos é no entanto sempre perigoso, pois a
nova palavra - parte de um novo idioma que é produto de um espírito diferente de
pensam ento - embora possa denotar a mesma ou quase a m esm a idéia, em geral
evoca também outras, muito diferentes. E este o caso aqui; nossa palavra santidade
sugeriria muitas vezes a idéia de amor a um criador pessoal, de temor respeitoso na
sentida presença de tal criador - idéias estas inconsistentes com a santidade budista.
Por outro lado, Nirvâna indica as idéias
(*5) Necessariamente, se significa Consciência
de energia intelectual (*5) e da cessação
Cósmica.
da existência individual (*6), das quais
a primeira não é essencial à nossa idéia
(*6) Não tanto cessação quanto absorção da
de santidade e, a segunda, não guarda
existência individual na universal.
relação alguma com esta idéia.
Santidade e Nirvâna , em outras palavras, podem representar estados mentais
não muito diferentes; mas estes se devem a causas diferentes e terminam em resultados
diferentes; e, ao usar essas palavras, é impossível restringir o pensam ento à coisa
expressa de modo a não pensar também em sua origem e em seu efeito.
É melhor, portanto, manter a palavra Nirvâna como o nome do summum bonum
budista, que é um estado santo e bem -aventurado, um a condição m oral, um a
m odificação do caráter pessoal (*7); e
(*7) Uma modificação da personalidade do
d ev em o s p e rm itir que a p alav ra nos
homem.
lem bre, com o o fez com os prim eiros
b u d ista s, ta n to da S en d a q u e leva à
(*8) A perda do senso de pecado é uma das mais
ex tin ç ã o do pecad o (* 8 ), q u a n to da
notáveis características do estado de
cessação da transferência do Karma que
Consciência Cósmica.
a extinção do pecado trará. Que isto deva
ser o efeito do Nirvâna é evidente, pois o estado da m ente que em Nirvâna está
extinto (upadana klesa, trishna) é exatamente aquele que, segundo o grande mistério
do budismo, levará na morte à formação de um novo indivíduo, para o qual o Karma
do indivíduo dissolvido ou morto será transferido. Esse novo indivíduo consistiria
em certas qualidades ou tendências corporais e m entais enum eradas, conform e já
explicadas nos cinco Skandhas ou agregados. Um nome abrangente de todos os cinco
é upadi, uma palavra derivada (em alusão ao nome de sua causa, upadana ) de upada,
apreender, tanto com a mão, como com a
(*9) Em outras palavras, o desejo (não
m ente (*9). Agora, quando um budista
importa do que) - desejo no abstrato - é
se tom ou um Arahat, quando ele alcançou
a base do pecado, do Karma e é aquilo de que o
o Nirvâna, o F ruto da Q uarta Senda,
indivíduo deve se livrar. Mas desejo é inseparável
extinguiu upadana e klesa (*10), mas
do estado autoconsciente e cessa somente com o
advento do Sentido Cósmico.
ainda está vivo; o upadi, o skandhas, seu
corpo com todos os seus poderes - vale
(*10) Isto é, desejo e pecado.
dizer, o fruto de seu pecado anterior (*11) Temos aqui o mesmo ponto de vista
permanecem. E stes, entretanto, são imadotado por Paulo - o demérito, o caráter
permanentes; logo passarão (*11); nada
essencialmente pecaminoso da carne. Para o
então restará para fazer nascer um novo
budista, Nirvâna (o Sentido Cósmico) é tudo;
conjunto de skandhas de um novo indi­
para Paulo, Cristo (o Sentido Cósmico) é tudo.
víduo; e o A rahat não mais estará vivo
O corpo é nada ou menos que nada. Foi contra
ou existirá em qualquer sentido; ele terá
esta visão muito natural (pois a glória do Sentido
alcançado Parinibbana, completa extin­ Cósmico destina-se a jogar em trevas profundas
ção, ou Nir-upana-sesa-Nibbana dhatu, todo o resto da vida) que Whitman se colocou
do começo ao fim. Ele viu, com olhos de um
extinção tão com pleta que o upadi, os
verdadeiro vidente - com olhos de absoluta
cinco skandhas não mais sobreviverão sensatez e bom senso - que a vida autoconsciente
isto é, num a palavra, morte.
era tão grandiosa, a seu modo, quanto a do novo
A vida do hom em , para usar um a
alegoria ou parábola budista constante­
mente repetida, é como a chama de uma
lâm pada indiana, um pires de metal ou
de cerâmica no qual um a mecha de algo­
dão é embebida em óleo. U m a vida é deri­
vada de um a outra, assim como um a cha­
ma é acesa num a outra; não é a mesma
cham a, m as sem a outra não existiria.
sentido - por divina que esta fosse; viu que nada
fora ou poderia ser mais grandioso que o simples
ver, ouvir, sentir ao tato, ao paladar, conhecer e com base nisto assumiu sua posição. “O outro
Eu-sou” (o velho ego), diz ele ,“não tem de ser
rebaixado ante você” (o novo sentido) “e você
não tem de ser rebaixado ante o outro”.
Whitman tem e sempre terá a eterna glória
de ser o primeiro homem que foi tão grande que
mesmo o.Sentido Cósmico não pôde dominá-lo.
Assim como a chama não pode existir sem óleo, assim a vida, a existência individual,
depende da adesão à lei e às coisas terrenas, o pecado do coração. Se não houver óleo
na lâmpada, ela se apagará, embora não antes que o óleo que a mecha tenha absorvido
tenha acabado; então, nenhuma nova chama poderá ali ser acesa. E assim as partes e
os poderes do homem sem pecado serão dissolvidos e nenhum novo ser nascerá para
o sofrimento. O s sábios passarão, apagar-se-ão como a cham a da lâmpada e seu
Karma não mais será individualizado.
As estrelas extintas há longo tempo podem ser ainda visíveis a nós pela luz que
emitiram antes de cessarem de brilhar; mas o efeito em rápida dissipação de uma
causa não mais ativa logo deixará de ferir nossos sentidos; e onde estava a luz haverá
trevas. Assim o corpo vivente e movente do homem perfeito é ainda visível, embora
sua causa tenha deixado de atuar; mas logo decairá, morrerá e passará e, como nenhum
corpo novo será formado, onde havia vida nada existirá.
M o rte , m o rte to ta l, com n e n h u m a
n o v a vida a seguir, é então o resultado
de (m as não é) Nirvâna. O céu budista
(*12) O homem que alcançou o Nirvâna (o
Sentido Cósmico) tem vida eterna qualquer morte que pode então acontecer é a
não é a m orte e não está n a m orte, m as
sim n u m a vida v irtuosa aqui e agora, a
„
,
....
que os Pitakas pro d .g ah zam os term o s
de d e sc riç ão e x tá tic a q u e a trib u em ao
morte de alg0 nao ma's desej ado„ .
,
Pois as palavras Vida virtuosa devem ser
ent(mdidas oomo- vidaoomo Sentido Cósmico”,
Nirvâna, como o Fruto da Quarta Senda do estado de Arahat (*12).
Assim, o Prof. Max Mueller, que foi o primeiro a apontar o fato, diz (“As Parábolas
de Buddhaghosha”): “Se olhamos no Dhamma-pada, em todos os trechos em que o
Nirvâna é mencionado não há um só que requeira que seu significado seja aniquilação,
ao passo que a maioria, se não todos, seriam totalmente ininteligíveis se atribuíssemos
esse significado à palavra Nirvâna. A mesma coisa pode ser dita de outras partes dos
Pitakas acessíveis a nós nos textos publicados. Assim o comentarista do Jataka cita
alguns versos do Buddhavansa, ou história dos Budas, que é um dos livros do segundo
Pitaka. Nesses versos temos (entre outras coisas) um argumento baseado na assunção
lógica de que, se existe um positivo, seu negativo tem de existir também; se existe
calor, tem de existir frio, e assim por diante. N um destes pares encontramos existência
em oposição, não a Nirvâna, mas à não-existência; enquanto num outro os três fogos
(o da luxúria, o do ódio e o do erro) opSem-se a Nirvâna (textos Jataka de Fausboll).
Segue-se, creio, que para a m ente do
a u to r do Buddhavansa Nirvâna signifl(*13) E esta, a vida de alegria e inteligência
cava, não a extinção, a negação do ser,
m as a extinção, a ausência dos três fogos
exaltada, livre do desejo, é a vida em
Consciência Cósmica,
da paixão” (*13).
Tão pouco é sabido dos livros do Cânon Budista do Norte, que é difícil descobrir
sua doutrina em qualquer ponto controvertido; mas, tanto quanto é possível julgar,
eles co n firm a m esse uso da p alav ra
Nirvâna que encontramos nos Pitakas N o
Lalita Vistara, a palavra ocorre em aigu,
, ,
,
mas passagens e em nenhum a delas e o
sentido de aniquilação necessário, em todas considero que Nirvâna significa o
mesmo que Nibbana em pâli (*14).
(*14) Gautamadiz: “Fui a Benares, onde preguei
a 308 ci1100Solitários. Desde aquele momento
a roda da minha lei tem estado em movimento e
o nome de Nirvana fez seu aparecimento no
mundo„ [164. J6]_ Isto se refere à data da
iluminação de Gautama e parece mostrar
claramente que “Nirvâna” é um nome de
Consciência Cósmica. Em oulro lugar no mesmo
livro, ficam os sabendo de “hom ens que
caminham no conhecimento da lei apôs terem atingido o Nirvâna" [164: 125]. E ainda: “Nirvâna
é uma conseqüência da compreensão de que todas as coisas são iguais” [164:129], Uma vez mais:
“Não há nenhum verdadeiro Nirvâna sem o tudo-saber (Consciência Cósmica); procurem conseguir
isto” [164: 140]. Além disso, Gautama fala de si próprio como aquele que explicou neste mundo a
perfeita lei, que conduziu ao Nirvâna inúmeras pessoas [30: 179]. Se ele explicou a perfeita lei e
conduziu pessoas ao Nirvâna enquanto ainda vivia, certamente deve ter alcançado ele próprio o
Nirvâna durante sua vida. Gautama se dirige também a homens que alcançaram o Nirvâna. Como
poderia fazê-lo seNirvâna fosse aniquilação? As palavras da tradução de Bumouf são: “Je m ’adresse
à tous ces Çravakas, aux hommes qui sont parvenues à l’état de Pratyêkabuddha, à ceux qui ont été
établis par moi dans le N irvana, à ceux qui sont entièrement délivrés de la succession incessante des
douleurs” [30: 22] (*). Assim, também, Sariputra, agradecendo e louvando a Gautama, diz: “Hoje
atingi o Nirvâna"— “Aujour d’hui ô Bhagavat, j ’ai acquis le Nirvâna”. “Nirvâna, portanto, é
certamente algo que o homem pode adquirir e continuar vivendo”.
A interpretação tibetana da palavra é um a frase longa que significa, segundo
B urnouf (*15), “o estado daquele que está livre do sofrimento”, ou “o estado em que
a pessoa encontra seu E u interior, em que ela assim está livre” . Isto é confirmado no
trabalho completo e valioso do Sr. Beal sobre o budismo chinês, onde a versão chinesa
do Parinirvâna Sutra sânscrito contém o seguinte: “Nirvâna é apenas isso. Em meio
ao sofrimento não há nenhum Nirvâna e no Nirvâna não há sofrimento”.
(*15) As palavras de Bumouf são: “L’idée d’affranchissement est la seule que les interprètes tibétains
aient vue dans le mot de Nirvana car c’est la seule qu’ils ont traduite. Dans les versions
qu ’ils donnent des textes sanscrits du Népal, le terme Nirvana est rendu par les mots mya-ngan-lashdah-ba, qui signifient litteralment / ’état de celui qui est affranchi de la douleur, ou l ’état dans
lequel on se trouve quand on est ainsi affranchi"[29:\7] (* * ).
Os antigos textos em sânscrito dos budistas do Norte, assim como os textos em
pâli dos Pitakas, parecem todos considerar o N irvâna como um estado moral a ser
alcançado aqui, no mundo e nesta vida.
*
D irijo-m e a todos os Ç rav ak as, aos h o m en s que ch eg aram ao estado de
Pratyêkabuddha, àqueles que foram estabelecidos por mim no Nirvâna, àqueles
que estão inteiramente livres da sucessão incessante das dores” .
** “A idéia de libertação é a única que os intérpretes tibetanos viram n a palavra
Nirvâna , pois é a única que eles traduziram. N as versões que dão dos textos
sânscritos do Nepal, o termo Nirvâna é substituído pelas palavras mya-nganlas-hdah-ba, que significam literalmente o estado daquele que é liberto da dor,
ou o estado em que a pessoa se encontra quando está assim liberta
XII
Finalmente, para mostrar que, tal como a palavra é usada por aqueles
que conhecem melhor seu significado, dificilmente pode corresponder a morte
e bem pode significar o que aqui é chamado de consciência cósmica, leiamos
as seguintes passagens escolhidas do Dhamma-pada, uma das mais antigas
e mais sagradas escrituras budistas. Todos os trechos deste livro em que
ocorre a palavra Nirvâna são aqui indicados e, juntamente com eles, trechos
paralelos de outros escritos análogos:
Diligência é a senda da imortalidade
{Nirvâna), negligência é o cam inho da
Tem sido muitas vezes apontado neste livro
que a diligência da mente é condição sine qua
non para se alcançar a consciência cósmica. As
citações aqui feitas mostram este ponto de
maneira bastante incisiva.
morte. O s que são diligentes não morrem,
m as os n eg lig en tes são com o se já
estivessem mortos [156: 9]. Estas sábias
pessoas, m editativas, firm es, sem pre possuidoras de fortes poderes, atingem o
Nirvâna, a mais alta felicidade [156: 9].
Um Bhikshu (mendicante) que se compraz em reflexão, que encara com temor a
negligência, não pode cair (de seu estado perfeito) - ele está muito perto do Nirvâna
[156: 11], “U m a é a estrada que leva à riqueza; outra, a que leva ao Nirvâna ”; se o
Bhikshu, o discípulo de B uda, tiver aprendido isto, não almejará honrarias, lutará
pela sua separação do mundo [156: 22],
H om ens que não possuam bens, que
vivam de alimentos que lhes sejam dados,
que tenham percebido a liberdade total e
incondicional (Nirvâna), têm um a senda
difícil de ser compreendida, como a dos pás­
saros no céu [156: 27], Aquele cujos apetites
tenham sido mitigados, que não esteja imer­
so no prazer, que tenha percebido a liber­
dade total e incondicional (Nirvâna), tem
um a senda difícil de ser compreendida, co­
mo a dos pássaros no céu [156: 28],
Depois que Confucio viu Lí R, disse a
seus discípulos: “Sei que os pássaros podem
voar, os peixes nadar e os animais correr, mas
o corredor pode ser apanhado por um laço, o
nadador por um anzol e o pássaro por uma
flecha. Mas há o dragão; não posso dizer como
ele monta no vento através das nuvens e sobe
ao céu. Hoje vi Laotsze e só posso comparálo ao dragão”. Poderíamos dizer o mesmo, à
nossa maneira, de quase todas as pessoas
mencionadas neste livro como possuidoras do
sentido cósmico.
Algumas pessoas nascem novamente; malfeitores vão para o inferno; pessoas
virtuosas vão para o céu; aqueles que estão livres de todos os desejos terrenos atingem
o Nirvâna [156: 35]. Se, como um prato metálico (gongo) quebrado, tu não soas,
então alcançaste Nirvâna; não conheces conflito [156: 37]. O s Despertos consideram
a paciência a mais alta pena e a resignação o mais alto Nirvâna', pois não é um
eremita, (pravragita) aquele que bate nos outros; não é um asceta (stramana), aquele
que insulta os outros [156: 50].
A fome é a pior das doenças, o corpo
a pior das penas; se a pessoa sabe isto
verdadeiramente, isto é Nirvâna, a mais
alta felicidade [156: 54],
O verdadeiro lugar do corpo e dos apetites
na vida só pode ser percebido por quem tenha a
consciência cósmica,
A saúde é o maior dom; o contentamento, a maior riqueza; a confiança é o melhor
relacionamento; Nirvâna, a mais alta felicidade [156: 55]. Aquele em quem o desejo
do Inefável (Nirvâna ) tenha nascido, que está satisfeito em sua m ente e cujos
pensam entos nâo são desnorteados pelo amor, é chamado ürdhvamsrotas (levado
para cim a pela corrente) [156: 57]. O s sábios, que não ofendem ninguém e que
sempre controlam seu corpo, irão para o lugar imutável (Nirvâna), onde, se para lá
forem , nâo m ais sofrerão [156: 58]. A queles que estiverem sem pre alerta, que
estudarem dia e noite e que se esforçarem pelo Nirvâna, verão suas paixões chegarem
a um fim [156: 58]. Corta o amor ao ego, como um lótus de outono, com tua mão!
A m a a estrada da paz. O Nirvâna foi mostrado por Sugata (Buda) [156: 69], Um
homem sábio e bom que conhece o significado disto deveria rapidamente desobstruir
o caminho que leva ao Nirvâna [156: 69]. Pois com esses animais nenhum homem
chega ao país inexplorado (Nirvâna), onde um homem domesticado vai sobre um
animal domesticado - isto é, sobre seu próprio ego domesticado [156: 77], Aquele
que, tendo se libertado da floresta (da luxúria) - isto é, tendo alcançado o Nirvâna entregue-se à vida da floresta (da luxúria) e que, retirado da floresta (i.e., da luxúria),
corra para a floresta (i.e., para a luxúria) - vejam só esse homem! em bora livre,
corre para o cativeiro [156: 81]. O Bhikshu que age com bondade, que é sereno na
doutrina de Buda, alcançará o lugar tranqüilo (Nirvâna), a cessação de desejos naturais
e felicidade [156: 86]. Ó Bhikshu, esvazia este barco! vazio, ele irá rapidamente;
tendo cortado a paixão e o ódio, tu irás para Nirvâna [156: 86]. Sem conhecimento
não há meditação; sem meditação não há conhecimento; aquele que tem conhecimento
e meditação está próximo ao Nirvâna [156: 87]. Tão logo tenha ele considerado a
origem e a destruição dos elementos (khandha) do corpo, encontrará a felicidade e a
alegria que pertencem àqueles que conhecem o imortal (Nirvâna) [156: 87]. O Bhikshu
cheio de deleite, que é sereno na doutrina de B uda, alcançará o lugar tranqüilo
(Nirvâna), a cessação de desejos naturais e felicidade [156: 88].
XIII
Gautama, então, foi um caso de Consciência Cósmica, e a doutrina central
de seu sistema, Nirvâna, era a doutrina do Sentido Cósmico. Todo o budismo
é simplesmente isto: Há um estado mental tão feliz, tão glorioso, que todo o
restante na vida não tem valor algum em comparação com ele; uma pérola
de grande preço, para cuja compra o sábio de bom grado vende tudo o que
tem; esse estado pode ser alcançado. O objetivo de toda a literatura budista é
transmitir uma idéia desse estado e guiar os aspirantes a este glorioso pais,
que é, literalmente, o Reino de Deus.
JESUS, O CRISTO
Balzac diz [5: 143] que Jesus era um Especialista - isto é, que tinha
Consciência Cósmica. Como o próprio Balzac era indubitavelmente ilumina­
do, deveria ser uma alta (senão absoluta) autoridade neste particular. Paulo,
tão logo seus próprios olhos foram abertos, reconheceu Jesus como pertencente
a uma ordem espiritual superior - isto é, como possuidor do Sentido Cósmico.
Mas não aceitemos a palavra de ninguém e sim tentemos ver por nós mesmos
que razões existem para se incluir este homem na lista dos possuidores de
Consciência Cósmica.
I
Jesus nasceu em 4 a.C. [80] e teria, conforme essa autoridade, trinta e
quatro ou trinta e cinco anos quando começou a ensinar; assim, teria pelo
menos trinta e três no período da iluminação - supondo que ele seja um
caso.
Segundo outros escritores, seria mais velho. Sutherland [171: 140] diz:
“A morte de Jesus ocorreu no ano 35”. Isto lhe daria trinta e nove por ocasião
de seu falecimento, trinta e seis ou trinta e oito quando começou a ensinar (a
primeira idade, se ele ensinou três anos, como diz João; a segunda, se ensinou
apenas um ano, conforme os sinópticos nos contam) e, digamos, trinta e
cinco ou trinta e seis na iluminação*.
* A Review o f Reviews, de Janeiro de 1897, assim resume o indício relativo a este
assunto:
“U m a das m ais em inentes autoridades vivas sobre a vida de C risto, o Dr.
Cunningham Geikie, escreve em Homilectic Review sobre as várias tentativas para
fixar a data exata do nascimento do Messias.
“Está claro que a cronologia recebida do Abade Dyonisius, o Anão, que data da
primeira metade do sexto século, deve ter começado com vários anos de atraso ao
Tudo tende a mostrar que, aproximadamente na idade especificada, ocor­
reu nele uma notável mudança; conquanto até certa idade ele fosse muito
semelhante aos outros, de repente ascendeu a um nível espiritual bem acima
dos homens comuns. Aqueles que o haviam conhecido em seu lar, como
fixar o nascimento de Cristo como tendo ocorrido no ano 754 de Roma, um a vez que
se sabe que H erodes faleceu em 750 e Jesus deve ter nascido enquanto Herodes
ainda reinava. O Dr. Geikie indica outros erros de base nos cálculos do Abade
Dyonisius.
“Dyonisius baseou seus cálculos na menção de São Lucas de que João Batista,
que era um pouco mais velho do que Jesus, começou sua obra pública no décimo
quinto ano de Tibério e de que Jesus tinha cerca de trinta anos quando começou a
ensinar (Lucas 3:1-23). Esse décimo quinto ano de Tibério seria provavelmente 782
ou 783; ora, subtraindo trinta, teríamos 752 ou 753, tendo Dyonisius adicionado um
ano a este último, na suposição de que as palavras de Lucas cerca de trinta anos
requeriam que ele acrescentasse um ano. Mas a expressão vaga cerca de era um a
indicação precária em que se basear e, além disto, o reinado de Tibério pode ser
calculado em função de sua associação a Augusto no governo e, portanto, a partir de
765, ao invés de 767. Os textos de São Lucas que citei não podem então ser usados
para o dia nem para o mês do nascimento, ou mesmo para o ano. Isto se vê, na
verdade, nas variadas opiniões sobre todos estes pontos na igreja primitiva e no fato
de o dia 25 de dezembro ter sido aceito como o dia do nascimento somente desde o
quarto século, quando foi divulgado de Rom a como o dia que deveria ser assim
honrado”.
A CONCLUSÃO MAIS RAZOÁVEL
“A m elhor tentativ a de um a conclusão lógica é n a verdade fornecida pela
afirmação de que Herodes estava vivo algum tempo depois que Cristo nasceu. O
menino Redentor devia ter seis semanas de idade quando foi apresentado no templo
e a visita dos Magos ocorreu não sabemos quanto tempo depois. D e que o massacre
de todas as crianças de Belém de dois anos para baixo pressupõe que os M agos
deviam ter chegado a Jerusalém muito tempo após o nascimento do esperado Rei,
pois nâo teria havido sentido em matar crianças de dois anos se Cristo tivesse nascido
somente poucas semanas ou mesmo meses antes. Que houve um massacre, conforme
é relatado nos Evangelhos, está confirmado por uma referência a ele num a Sátira de
Macrobius (Sat.ii,4), de modo que o crime é historicamente verdadeiro e a crítica
mais acerba que o tratou como uma fábula é incorreta. M as se Cristo nasceu dois
anos antes da morte de Herodes - e ele poderá ter nascido até antes - isto faria com
que o grande evento caísse no ano 748, ou seja, seis anos antes de nossa era” .
Se aceitamos as conclusões deste escritor, Jesus tinha por volta de trinta e cinco
anos quando de sua iluminação.
menino e como rapaz, não puderam compreender sua superioridade. “Não é
este o filho do carpinteiro?” [14:13:55] -perguntavam. Ou, conforme relatado
em outro lugar: “Não é este o carpinteiro, filho de Maria?... E escandalizavamse nele”. [15:6:3] Essa acentuada ascensão espiritual, ocorrendo subitamente
nessa idade, é em si mesma quase sintomática do advento do sentido cósmico.
O mais antigo e provavelmente mais autêntico relato sobre a iluminação
de Jesus é o seguinte: “E, logo ao sair da água, viu os céus rasgarem-se, e o
Espírito descendo como pomba sobre ele. Então foi ouvida uma voz dos
céus: ®u t i o meu filiio amabo, tm ti mr comprajo. E logo o Espírito o impeliu
para o deserto” [15:1:10-12], Há uma tradição segundo a qual a iluminação
de Jesus teve lugar no dia 6 ou no dia 10 de janeiro [133a: 63].
O fato de Jesus ter ido a João para ser batizado mostra que sua mente
estava direcionada para a religião e toma provável que ele tivesse (antes da
iluminação) o temperamento devoto do qual brota, quando acontece, o Sentido
Cósmico. Não é necessário supor que a iluminação tenha ocorrido
imediatamente quando do batismo, ou que houvesse qualquer relação especial
entre estas duas coisas. O impulso que levou Jesus à solidão após a iluminação
é usual, se não universal. Paulo o sentiu e o obedeceu; e Whitman fez o
mesmo.
A expressão “Ele viu os céus rasgarem-se” descreve muito bem o advento
do Sentido Cósmico, que é (como já foi dito) instantâneo, repentino e bem
como se um véu, num gesto brusco, fosse rasgado e retirado dos olhos da
mente, permitindo à vista traspassá-lo.
Assim, descrevendo esse mesmo advento da Consciência Cósmica, Juan
Yepes (ele vinha se perguntando se, nessa ocorrência aparentemente
miraculosa, era Deus ou a alma humana que agia) diz concluindo: “É a alma
que é movida e despertada; é como se Deus puxasse para trás alguns dos
muitos véus e anteparos que estão diante dela, de modo que ela pudesse ver
o que ele é” [206: 502],
Assim, também, o significado das palavras "®u t i o meu ííljo amabo"
concorda perfeitamente com a mensagem transmitida em todos os casos. As
palavras de Whitman, “Sei que o espírito de Deus é irmão do meu próprio
espírito” e as de Dante, “O’ amor, que governas os céus, que com tua luz me
levantaste”, são paralelos perfeitos. A voz (aparentemente) objetiva também
é um fenômeno comum; foi ouvida por Paulo, bem como por Maomé.
Outro importante elemento no caso é a chamada “Tentação”. A teoria
aqui aceita é que Jesus, na idade de trinta e três, ou mesmo de trinta e cinco,
era simplesmente um artesão inteligente, de mentalidade muito ardorosa, de
excelente hereditariedade e de compleição excepcional. Que ele não era de
modo algum distinguível, de modo algum diferente, exceto em sua qualifi­
cação para a expansão espiritual, que estava oculta (até de si mesmo) nas
profundezas de sua natureza e que pode igualmente existir em outros dentre
centenas de jovens artesãos em toda cidade ou vila da cristandade de hoje.
De repente, instantaneamente, a mudança ocorreu e aquele jovem sentiu e
conheceu dentro de si mesmo a força espiritual aparentemente ilimitada pelo
uso da qual quase qualquer coisa pode ser conseguida. Como deveria ela ser
usada? Com que objetivo? Poder? Riqueza? Fama? Ou o quê? [14:4:1-10]
Jesus decidiu rapidamente, como todos esses homens decidem, que o
poder tinha de ser usado em benefício da espécie humana. Por que decidiria
ele assim? Por que decidiriam assim todos eles?
A razão disso está em que a elevação moral que faz parte da Consciência
Cósmica não permite qualquer outra decisão. Se não fosse assim, se a
iluminação intelectual não fosse acompanhada de elevação moral, esses
homens sem dúvida seriam na verdade uns tantos demônios que acabariam
destruindo o mundo. Essa tentação é necessariamente comum a todos os
casos, embora nem todos falem nela. Sua essência é o apelo do velho ego
autoconsciente ao novo poder, no sentido de que este último o ajude a realizar
seus velhos desejos. O demônio, portanto, é o ego autoconsciente. O demônio
(Mâra ) apareceu a Gautama como a Jesus [157: 69] e o incitou a não
empreender uma nova senda mas ater-se às antigas práticas religiosas, a
viver tranqüila e confortavelmente. “Que queres tu com esforço?” - perguntoulhe. Mâra não procurou seduzir Gautama com ofertas de riqueza e poder,
pois ele já as possuíra e até o Gautama autoconsciente sabia de sua futilidade.
Como já foi sugerido, todo homem que entra em Consciência Cósmica passa
necessariamente pela mesma tentação. Como todos os demais, Bacon foi
tentado e, como sem dúvida muitos outros caíram, ele em certo sentido caiu.
Sentiu em si mesmo uma capacidade tão enorme que imaginou que podia
absorver a riqueza tanto do Sentido Cósmico quanto da Autoconsciência do céu e da terra. Mais tarde se arrependeu amargamente de sua ganância.
Reconheceu o dom (recebido de Deus) da divina faculdade - “the gracious
talent” - que ele diz que “nem entesourou sem usar nem empregou para o
melhor proveito, como devia ter feito, mas desperdiçou em coisas para as
quais (ele) menos estava talhado.” [175: 469]
A superioridade de Jesus em relação a homens comuns consistia (entre
outras coisas) em:
Acuidade intelectual;
Elevação moral;
Um otimismo que a tudo abrangia;
Um senso (ou o senso) da imortalidade.
A superioridade mental assim caracterizada é, outrossim, quase com
certeza restrita àqueles que entraram em Consciência Cósmica e, portanto,
se admitida, decide a questão.
Os relatos da transfiguração de Jesus nos evangelhos sinópticos só podem
ser explicados (se aceitos) supondo-se que ele tenha sido visto em estado de
Consciência Cósmica, tendo sido a mudança de aparência (em si mesma
bastante impressionante) provavelmente exagerada na narrativa (como quase
certamente o seria). Aqui estão os relatos, tais como foram feitos: “E foi
transfigurado diante deles; o seu rosto resplandecia como o sol e as suas
vestes tomaram-se brancas como a luz” [14:17:2] “Foi transfigurado diante
deles. As suas vestes tomaram-se resplandecentes e sobremodo brancas, como
nenhum lavandeiro na terra as poderia alvejar” [15: 9: 2-3], É curioso que
este observador tenha limitado seus comentários às vestes de Jesus. E ainda:
“E aconteceu que, enquanto ele orava, a aparência do seu rosto se transfigurou
e suas vestes resplandeceram de brancura” [16: 9: 29], Acredita-se que não
há nenhum estado humano conhecido, exceto o de Consciência Cósmica,
que justificaria as palavras acima. A referida mudança nas “vestes” de Jesus
deve ser entendida como um reflexo de seu rosto e de sua pessoa.
No Evangelho segundo os hebreus ocorre a seguinte passagem: “Agora
há pouco, minha mãe, o Espírito Santo, pegou-me por um de meus cabelos e
me levou à grande montanha de Tabor” [109:63], Baur e Hilgenfield, assim
parece, acham que este é o original da narrativa da transfiguração; mas se é
não enfraquece necessariamente os testemunhos de Marcos e Lucas.
Há pessoas vivas hoje (e o autor conhece uma delas) que viram o que está
descrito (e bem descrito) nas palavras dos evangelhos acima citadas.
Aqui estão várias fortes razões para se crer que Jesus tinha o Sentido
Cósmico. Uma outra razão (se outra é necessária) é que Jesus está espiri­
tualmente no ápice ou perto do ápice da espécie humana e, se há uma faculdade
como a Consciência Cósmica, conforme é descrita neste livro, ele deve tê-la
possuído, pois, do contrário, não poderia ocupar essa posição.
n
É bastante lamentável que o mundo não conheça palavras que possamos
estar seguros de que esse homem extraordinário tenha pronunciado. Como
seria precioso se tivéssemos um livro, por pequeno que fosse, efetivamente
escrito por ele! Temos, entretanto, tantos dizeres que são atribuídos a ele e
aparentemente de tão boa autoridade, que podemos estar praticamente certos
de que muitos deles transmitem com suficiente exatidão o sentido do que ele
de fato disse.
Se, então, Jesus tinha Consciência Cósmica, deve ter se referido repetida­
mente a ela em seus ensinamentos, tal como todos os outros homens como
ele fizeram. Se assim fez, deverá ser fácil para qualquer pessoa que saiba
algo a respeito do Sentido Cósmico detectar essas referências, enquanto
aqueles que nada saibam a este respeito deverão necessariamente interpretálas de outras maneiras.
Não se trata necessariamente de interpretação errônea, pois as palavras
de Jesus (como as de Dante, “Shakespeare” e Whitman) teriam - e sem
dúvida teriam sido ditas com a intenção de ter - mais de um significado.
Ao mesmo tempo, Jesus não escreveu e, como suas palavras foram
transmitidas por tradição (pelo menos por um curto período) e como essas
palavras (conforme a suposição atual) foram compreendidas imperfeitamente
por aqueles que as passaram adiante, elas devem ter sido inevitavelmente
alteradas. Em algumas passagens certamente o foram e, em muitas outras,
provavelmente o foram. Frases cujo significado é apenas parcialmente
apreendido não podem ser verbalmente transmitidas intactas, a menos que
já se tenham tomado sagradas, como foi o caso dos Vedas. O significado
incompleto a elas atribuído inevitavelmente sugere e leva a mudanças mais
ou menos importantes para lhes dar coerência.
Então, se Jesus tinha o Sentido Cósmico e a ele se referiu mais ou menos
freqüentemente em seus ensinamentos, algumas se não todas as passagens
em que fez essa referência devem estar mais ou menos alteradas. Mas há
uma longa série de passagens que aparentemente provêm direto dele e que
aparecem especialmente ao longo dos evangelhos sinópticos, que, mesmo
em sua forma atual, parecem referir-se inequivocamente à faculdade em
questão. E se algumas não o fazem tão claramente como outras, talvez esta
divergência possa ser razoavelmente explicada como foi feito acima. As
passagens em questão são as que tratam do que Jesus algumas vezes chamou
de “o Reino dos Céus” e, outras vezes, de “o Reino de Deus”.
m
As citações seguintes abrangem todas as passagens mais importantes e
significativas em que uma das expressões é usada nos evangelhos quando as
palavras em questão são dadas como vindo dos lábios de Jesus:
B em -av en tu rad o s os h um ildes de
espírito, porque deles é o reino dos céus
[14:5:3], (*1)
B e m -a v e n tu ra d o s os que sofrem
perseguição por causa da justiça, porque
deles é o reino dos céus [14:5:10], (*2)
Qualquer, pois, que violar um destes
m ais pequenos m andam entos, e assim
ensinar aos homens, será chamado o me­
nor no reino dos céus; aquele, porém, que
os cumprir e ensinar será chamado grande
no reino dos céus. Porque vos digo que,
se a vossa justiça não exceder a dos escri­
bas e fariseus, de modo nenhum entrareis
no reino dos céus [14:5:19-20], (*3)
M as buscai primeiro o reino de Deus
e a sua justiça, e todas estas coisas vos
serão acrescentadas [14:6:33], (*4)
N em todo o que m e diz: S enhor,
Senhor! entrará no reino dos céus, mas
aquele que faz a vontade de meu Pai que
está nos céus [14:7:21], (*5)
M as eu vos digo que muitos virão do
Oriente e do Ocidente e assentar-se-ão à
mesa com Abraão, Isaque e Jacó, no reino
dos céus. E os filhos do reino serão lança­
dos nas trevas exteriores; ali haverá pran­
to e ranger de dentes [14:8:11-12], (*6)
(*1) D ificilm ente um hom em orgulhoso
adquirirá o Sentido Cósmico.
(*2) Perseguição dificilmente conduziria à
Consciência Cósmica, mas esta última
quase inevitavelmente leva à primeira.
(*3) Um homem que levasse uma vida má e
encorajasse outros a fazer o mesmo seria
chamado “o menor”, enquanto um homem bom,
consciencioso, seria chamado “grande” do ponto
de vista do Sentido Cójmico. Mas ninguém
poderia jamais entrar em Consciência Cósmica
simplesmente por ter obedecido quaisquer
mandamentos, por mais rigorosamente que o
fizesse. A menos que a vida espiritual da pes­
soa ultrapasse as ortodoxias e as convenções, ela
de m odo algum entrará em C onsciência
Cósmica.
(*4) Um homem que tenha a Consciência
Cósmica não estará inclinado a se preo­
cupar com coisas mundanas. Provavelmente terá
tudo que queira, embora suas posses possam ser
muito pequenas.
(*5) Ninguém alcançará o Sentido Cósmico
pela oração, mas sim, se o fizer, por
hereditariedade e por uma vida elevada e pura.
(*6) Isto não vale exclusivamente para os
judeus, mas igualmente para os gentios.
E m verdade vos digo que, entre os que
de mulher têm nascido, não apareceu al­
guém m aior do que João B atista; m as
aquele que é o menor no reino dos céus é
maior do que ele. E, desde os dias de João
Batista até agora, se faz violência ao reino
dos céus, e pela força se apoderam dele
[14:11:11-12], (*7)
M as, se eu expulso os demônios pelo
Espírito de D eus, é conseguintemente che­
gado a vós o reino de D eus [14:12:28],
(*8)
Porque a vós é dado conhecer os mis­
térios do reino dos céus, mas a eles não
lhes é dado [14:13:11). (*9)
O reino dos céus é semelhante ao ho­
mem que semeia boa semente no seu cam­
po; mas, dormindo os homens, veio o seu
inimigo, e semeou joio no meio do trigo,
e retirou-se [14:13:24-25], O reino dos
céus é sem elhante ao grão de mostarda
que o homem, pegando dele, semeou no
seu campo; o qual é realmente a mais pe­
quena de todas as sem entes; mas, cres­
cendo, é a maior das plantas, e faz-se uma
árvore, de sorte que vêm as aves do céu, e
se aninham nos seus ramos [14:13:31-2],
(* 10)
O reino dos céus é semelhante ao fer­
mento, que um a mulher tom a e introduz
em três medidas de farinha, até que tudo
esteja levedado [14:13:33], (*11)
O reino dos céus é semelhante a um
tesouro escondido num campo que um ho­
mem achou e escondeu; e, pelo gozo dele,
vai, vende tudo quanto tem, e com pra
aquele campo [14:13:44], (*12)
O reino dos céus é sem elhante ao
ho m em , n e g o cia n te , que b u sc a boas
pérolas; e, encontrando um a pérola de
grande valor, foi, v en d eu tudo quanto
tinha, e a comprou [14:13:45-6], (*13)
(*7) Entre os m eramente autoconscientes
(entre “aqueles que de m ulher têm
nascido”- fazendo-se distinção entre aqueles
que não “nasceram de novo” e aqueles que
“nasceram de novo”) nenhum é maior do que
João. Mas o menor daqueles que têm o Sentido
Cósmico é maior do que ele. Desde os dias de
João, o reino dos céus tem sofrido violência
(interpretação errônea, etc.) na pessoa de Jesus.
(*8) Sua ascendência espiritual era prova de
que ele entrara em Consciência Cósmica
(o reino dos céus).
(*9) Graças à sua intimidade pessoal com
Jesus, eles perceberam e apreenderam a
sublimidade sobre-humana da mente dele. Nele
viram o reino dos céus - a vida excelsa.
(*10) O antagonismo entre o Sentido Cósmico
e a mente meramente autoconsciente e
afinal e inevitável sujeição da última ao primei­
ro, Uma imagem perfeita da aparente insigni­
ficância inicial do Sentido Cósmico, tal como
se manifesta em um ou em alguns indivíduos
obscuros, bem como de sua suprema e esma­
gadora preponderância em vista da influência
universal do ensinamento deles (digamos,
Gautama, Jesus, Paulo e Maomé) e mais espe­
cificamente em vista da inevitável univer­
salidade do Sentido Cósmico no fiituro.
(*11) Se possível, um a comparação ainda
mais exata - o Sentido Cósmico leveda
a pessoa e está hoje levedando o mundo.
(*12) Os hom ens que têm C onsciência
Cósmica renunciam a tudo por ela todo este livro é uma prova disto.
(*13) A mesma afirmação, em outras pa­
lavras.
O reino dos céus é semelhante a uma
rede lançada ao mar, e que apanha toda a
qualidade de peixes; e, estando cheia, a
puxam para a praia; e, assentando-se,
apanham para os cestos os bons; os ruins,
porém, lançam fora [14:13:47-8], (*14)
E eu te darei as chaves do reino dos
céus; e tudo o que ligares na terra será
ligado nos céus; e tudo o que desligares
na te rra , será desligad o n o s céus
[14:16:19], (*15)
(*14) Corresponde à metáfora do trigo e do
joio.
(*15) O Sentido Cósmico é o árbitro final do
bem e do mal. Jesus parece ter antecipado
o estabelecimento de uma escola ou seita cujos
afiliados possuiriam o Sentido Cósmico.
(*16) “Estaface,” dizWhitman“deummenino
sadio e honesto, é o programa de todo o
bem” [193: 355],
N aquela mesm a hora chegaram os discípulos ao pé de Jesus, perguntando: Quem
é o maior no reino dos céus? E Jesus, chamando um menino, o pôs no meio deles. E
disse: E m verdade vos digo que, se não vos converterdes e não vos fizerdes como
meninos, de modo algum entrareis no reino dos céus [14:18:1-3]. (*16)
Por isso o reino dos céus pode comparar-se a um certo rei que quis fazer contas
com os seus servos; e, começando a fazer contas, foi-lhe apresentado um que lhe
devia dez mil talentos. E , não tendo ele com que pagar, o seu senhor mandou que ele,
e sua mulher e seus filhos fossem vendidos, com tudo quanto tinha, para que a dívida
se lhe pagasse. Então aquele servo, prostrando-se, o reverenciava, dizendo: Senhor,
sê generoso para comigo, e tudo te pagarei. Então o senhor daquele servo, movido de
íntima compaixão, soltou-o, e perdoou-lhe a dívida. Saindo, porém, aquele servo,
encontrou um dos seus conservos, que lhe devia cem denários e, lançando mão dele,
sufocava-o, dizendo: Paga-me o que me deves. Então o seu companheiro, prostrando-se
a seus pés, rogava-lhe, dizendo: Sê generoso para comigo, e tudo te pagarei. Ele,
porém, não quis, antes foi encerrá-lo na prisão, até que pagasse a dívida. Vendo pois
os seus conservos o que acontecia, contristaram-se muito, e foram declarar ao seu
senhor tudo o que se passara. Então o seu
(*17) O Sentido Cósmico é como um rei, muito
sen h o r, cham an d o -o à sua p resen ça,
acima da mente autoconsciente comum.
disse-lhe: Servo malvado, perdoei-te toda
Tem absoluta caridade para com esta, que
aquela dívida, porque me suplicaste. Não
constantemente guerreia consigo mesma, mas
devias tu igualm ente ter compaixão do
por fim a mente cosmicamente consciente fará a
teu companheiro, como eu também tive mente meramente autoconsciente desaparecer
misericórdia de ti? E, indignado, o seu
completamente da terra e a substituirá. Enquanto
senhor o entregou aos atormentadores, até isso, as pessoas do plano autoconsciente carecem
muito de paciência e misericórdia.
que pagasse tudo o que devia [14:18:2334] (*17)
E mais fácil passar um camelo pelo
fundo de uma agulha do que entrar um
rico no reino de D eus [14:19:24] (*18)
(*18) O autor não encontrou nenhum caso de
um homem concentrado em ganhar
dinheiro que tivesse entrado em Consciência
Cósmica. Todo o espírito do primeiro é anta­
gônico à segunda.
O reino dos céus é semelhante a um homem, pai de família, que saiu de madrugada
a assalariar trabalhadores para a sua vinha. E , ajustando com os trabalhadores a um
denário por dia, mandou-os para a sua vinha. E, saindo perto da hora terceira, viu
outros que estavam ociosos na praça. E disse-lhes: Ide vós também para a vinha, e
dar-vos-ei o que for justo. E eles foram. Saindo outra vez, perto da hora sexta e da
nona, fez 0 mesmo. E, saindo perto da hora undécima, encontrou outros que estavam
ociosos, e perguntou-lhes: Por que estais ociosos todo o dia? Disseram-lhe eles: Porque
ninguém nos assalariou. Diz-lhes ele: Ide vós tam bém para a vinha, e recebereis o
que for justo. E , aproximando-se a noite, diz o senhor da vinha ao seu mordomo:
C ham a os trabalhadores, e paga-lhes o jornal, começando pelos derradeiros até aos
primeiros. E, chegando os que tinham ido perto da hora undécima, receberam um
denário cada um. Vindo, porém, os primeiros, cuidaram que haviam de receber mais;
mas do mesmo modo receberam um denário cada um. E, recebendo-o, murmuraram
contra o pai de família, dizendo: Estes derradeiros trabalharam só um a hora, e tu os
igualaste conosco, que suportamos a fadiga e a calma do dia. M as ele, respondendo,
disse a um deles: Amigo, não te faço agravo; não ajustaste tu comigo um denário?
Toma o que é teu e retira-te; eu quero dar a este derradeiro tanto como a ti. Ou não
me é lícito fazer o que quiser do que é meu? Ou é mau o teu olho porque eu sou bom?
Assim os derradeiros serão primeiros, e
os prim eiros derradeiros [14:20:1-16]
(*19) O Sentido Cósmico não é dado pelo
trabalho feito ou de acordo com o mérito,
(*19)
Um homem tinha dois filhos, e, diri­
gindo-se ao primeiro, disse: Filho, vai tra­
balhar hoje na minha vinha. Ele, porém,
respondendo, disse: N ão quero. M as de­
pois, arrependendo-se, foi. E, dirigindose ao segundo, falou-lhe de igual modo;
e, respondendo ele, disse: Eu vou, senhor;
e não foi. Qual dos dois fez a vontade do
pai? Disseram-lhe eles: O primeiro. Dis­
se-lhes Jesus: Em verdade vos digo que
os publicanos e as m eretrizes entram
a d ia n te de vós no rein o d e D eu s
[14:21:28-31] (*20)
O reino de D eus vos será tirado, e
será dado a um a nação que dê os seus
frutos [14:21:43]. (*21)
conform e este seja avaliado pela m ente
autoconsciente. Por que seriam Jesus, Yepes e
Behmen escolhidos, e Goethe, Newton e
Aristóteles deixados de lado?
(*20) Por sua resposta, os sacerdotes e os
anciãos condenaram a si próprios, pois
disseram: “Eu vou, senhor” e não foram, ao
passo que os publicanos e as meretrizes nada
prometeram, porém, como é mostrado em outro
ponto no evangelho, algumas vezes tiveram
excelente coração. Estes podem facilmente estar
mais perto da Consciência Cósmica do que a
classe hipócrita mais alta. Com efeito, onde está
o caso de um homem hipócrita que se tenha
tomado iluminado?
(*21) O Sentido Cósmico vem especialmente
às pessoas que têm a natureza moral mais
elevada.
Então Jesus, tom ando a palavra, tornou a falar-lhes em parabolas, dizendo: O
reino dos céus é semelhante a um certo rei que celebrou as bodas de seu filho. E
enviou os seus servos a chamar os convidados para as bodas; e estes não quiseram
vir. Depois enviou outros servos, dizendo: Dizei aos convidados: Eis que tenho o
meu jantar preparado, os meus bois e cevados já mortos, e tudo já pronto; vinde às
bodas. Porém eles, não fazendo caso, foram, um para o seu campo, outro para o seu
tráfico; e os outros, apoderando-se dos servos, os ultrajaram e mataram . E o rei,
tendo n otícia disto, en co le rizo u -se e,
en v ian d o os seus ex érc ito s, d estru iu
(*22) O rei é Deus, a festa das bodas é a
aqueles hom icidas, e incendiou a sua
Consciência Cósmica; os convidados são
cidade. E ntão diz aos seus servos: As os que receberam as melhores oportunidades
bodas, na verdade, estão preparadas, mas para adiantamento espiritual —fartura, lazer, etc.
os convidados não eram dignos. Ide pois - mas que, ao invés de usarem essas oportu­
às saídas dos caminhos, e convidai para nidades para a finalidade designada (crescimento
espiritual), concentraram-se somente em si
as bodas a todos os que encontrardes. E
mesmos. Então Deus enviou seus profetas para
os serv o s, saindo p elo s cam in h o s,
persuadi-los de que estavam cometendo um erro,
ajuntaram todos quantos encontraram ,
mas eles não quiseram escutar e até abusaram
tanto maus como bons; e a festa nupcial
dos profetas. Assim, como os abastados, os cultos
foi cheia de convidados. E o rei, entrando,
e os religiosos não quiseram comparecer, o
para ver os convidados, viu ali um homem
convite foi estendido a todos. Todavia, rico ou
que não estava trajado com vestido de pobre, erudito ou ignorante, religioso ou
descrente, quem quer que venha tem de estar
n ú p cias. E disse-lhe: A m ig o , com o
trajado com roupa de casamento - a mente tem
entraste aqui, não tendo veste nupcial? E
de estar revestida de humildade, sinceridade,
ele em udeceu . D isse en tão o rei aos
reverência, bondade e destemor. Se um homem
servos: Amarrai-o de pés e mãos, levai- pudesse conseguir o acesso à festa sem estas
o, e lançai-o nas trevas exteriores; ali
qualidades, é facilmente imaginável que ele seria
expulso dela.
haverá pranto e ranger de dentes. Porque
m u ito s são ch am a d o s, m as poucos
escolhidos [14:22:1-14] (*22)
(*23) A religião formal, sem alma, dos escribas
Ai de vós, escribas e fariseus, hipó­
critas! pois que fechais aos hom ens o
reino dos céus; e nem vós entrais nem
deixais entrar aos que estão entrando
[14:23:13] (*23)
e dos fariseus (e o mesmo é verdadeiro
quanto a grande parte da cristandade de hoje)
era antagônica ao crescimento do espírito da
Consciência Cósmica. Nem permitiam eles (na
medida em que podiam evitar) qualquer vida e
crescimento espirituais fora dos estreitos limites
estabelecidos por sua “lei”.
E ntão o reino dos céus será sem elhante a dez viigens que, tom ando as suas
lâm padas, saíram ao encontro do esposo. E cinco delas eram prudentes e cinco
insensatas. As insensatas, tomando as suas lâmpadas, não levaram azeite consigo;
mas as prudentes levaram azeite em suas vasilhas, com as suas lâmpadas. E , tardando
o esposo, tosquenejaram todas, e adormeceram. Mas à meia noite ouviu-se um clamor:
Aí vem o esposo! saí-lhe ao encontro. Então todas aquelas virgens se levantaram, e
prepararam as suas lâmpadas. E as insensatas disseram às prudentes: D ai-nos do
vosso azeite, porque as nossas lâmpadas se apagam. M as as prudentes responderam,
dizendo: Não seja caso que nos falte a nós e a vós, ide antes aos que o vendem, e
comprai-o para vós. E, tendo elas ido comprá-lo, chegou o esposo, e as que estavam
preparadas entraram com ele para as bodas, e fechou-se a porta. E depois chegaram
tam bém as outras virgens, dizendo: Se­
nhor, Senhor, abre-nos! E ele, respon­
dendo,disse: Em verdade vos digo que vos
não conheço. Vigiai pois, porque não
sabeis o dia nem a h o ra [14:25:1-12]
(*24)
(*24) O Sentido Cósmico não vem aos dis­
plicentes, mas aos diligentes que zelo­
samente usam todos os meios de adiantamento
espiritual. Todas as virgens pegaram no sono;
nenhuma delas sabia que o “noivo” estava che­
gando, mas algumas haviam tomado as neces­
sárias providências - as outras, não.
Porque isto é também como um homem que, partindo para fora da terra, chamou
os seus servos, e entregou-lhes os seus bens. E a um deu cinco talentos, e a outro
dois, e a outro um, a cada um segundo a sua capacidade; e ausentou-se logo para
longe. E , tendo ele partido, o que recebera cinco talentos negociou com eles, e granjeou
outros cinco talentos. D a mesma sorte, o que recebera dois, granjeou também outros
dois; m as o que recebera um, foi e cavou na terra e escondeu o dinheiro do seu
senhor. E muito tempo depois veio o senhor daqueles servos, e fez contas com eles.
Então aproximou-se o que recebera cinco talentos, e trouxe-lhe outros cinco talentos,
dizendo: Senhor, entregaste-m e cinco talentos; eis aqui outros cinco talentos que
granjeei com eles. E o seu senhor lhe disse: B em está, servo bom e fiel. Sobre o
pouco foste fiel, sobre o muito te colocarei; entra no gozo do teu senhor. E, chegando
também o que tinha recebido dois talentos, disse: Senhor, entregaste-me dois talentos;
eis que com eles granjeei outros dois talentos. Disse-lhe o seu senhor: B em está,
bom e fiel servo. Sobre o pouco foste fiel, sobre o muito te colocarei; entra no gozo
do teu senhor. M as, chegando tam bém o que recebera um talento, disse: Senhor,
eu conhecia-te, que és um homem duro,
(*25) O ser humano está dotado de Autocons­
que ceifas onde não semeaste e ajuntas
ciência e tem de fazer o máximo possível
onde não espalhaste. E, atemorizado, es­ desta circunstância antes que possa se elevar
condi na terra o teu talento; aqui tens o
acima dela. Ou, em outras palavras (e para con­
verter a proposição num truísmo), ele deve alcan­
que é teu. R espondendo, porém, o seu
çar o ápice do nível mental denominado Auto­
senhor, disse-lhe: M au e negligente servo;
consciência, antes que possa passar para o nível
sabes que ceifo onde não semeei e ajunto
superior denominado Consciência Cósmica. Na
onde não espalhei. Devias então ter dado
parábola, Jesus diz: Deus deu a cada ser humano
o meu dinheiro aos banqueiros, e, quando
as faculdades autoconscientes em várias medi­
eu viesse, receberia o meu com os juros.
das; quanto a ele (qualquer dado indivíduo) pas­
Tirai-lhe pois o talento, e dai-o ao que
sar além da Autoconsciência para o reino dos
céus (a Consciência Cósmica), depende não tanto
tem os dez talentos. Porque a qualquer
da medida dessas faculdades mas do uso que
que tiver será dado, e terá em abundância;
delas seja feito. Com certeza há muita verdade
mas ao que não tiver até o que tem sernesta proposição. Se, por outro lado, o cultivo
lhe-á tirado. Lançai pois o servo inútil
dessas faculdades é negligenciado, o ser humano
nas trevas exteriores; ali haverá pranto e permanece irrem ediavelm ente no nível da
ranger de dentes. [14:25:14-30] (*25)
autoconsciência; nele houve, há e sempre haverá
pranto e ranger de dentes.
E dizia: O reino de D eus é assim
como se um homem lançasse semente à
terra. E dormisse, e se levantasse de noite
ou de dia, e a semente brotasse e cresces­
se, não sabendo ele como [15:4:26-27]
(*26)
(*26) A semente (uma vida de aspiração) tem
de ser semeada. Não sabemos o que irá
crescer dela - dias e noites passam e em algum
momento - na cama, caminhando, viajando, “o
convidado que há muito espera” aparece. Ver
acima a mesma parábola, em Mateus.
Dizia-lhes também: Em verdade vos
digo que, dos que aqui estão, alguns há
que não provarão a morte sem que vejam
chegado o rein o de D eu s com poder
[15:9:1], (*27)
E , se o teu olho te escandalizar, lançao fora; melhor é para ti entrares no reino
de D eus com um só olho, do que, tendo
dois olhos, seres lançado no fogo do
inferno. Onde o seu germe não morre, e
o fogo nunca se apaga. Porque cada um
será salgado com fogo [15:9:47]. (*28)
A lei e os profetas duraram até João;
desde então é anunciado o reino de Deus,
e todo o hom em em prega fo rça para
entrar nele [16:16:16], (*29)
(*27) Há alguns aqui presentes que entrarão
em Consciência Cósmica. Para uma
pessoa dotada de Consciência Cósmica, parece
simples e certo que outras entrarão também.
“Asseguro a qualquer homem ou mulher” (diz
Whitman) “a conquista de todas as dádivas do
universo” [193: 216]
(*28) Não devemos permitir que nada bloqueie
o caminho do adiantamento espiritual.
Qualquer coisa é melhor do que continuar no
estado meramente autoconsciente, que é cheio
de infortúnios.
(*29) Tentativas de entrar no reino de maneira
violenta ou desastrada. Tentativas de
entrar enquanto ainda autoconsciente apenas .
Como isto é verdadeiro hoje!
E , interrogado pelos fariseus sobre quando havia de vir o reino de Deus, respon­
deu-lhes, e disse: o reino de Deus não vem com aparência exterior. N em dirão: Ei-lo
aqui, ou, ei-lo ali; porque eis que o reino
(*30) O reino não está fora, mas dentro. É uma
de Deus está dentro em vós [16:17:20-1]
parte (uma faculdade) da mente mesma.
(*30)
E ele lhes disse: Na verdade vos digo que ninguém há, que tenha deixado casa,
ou pais, ou irmãos, ou mulher, ou filhos, pelo reino de Deus. E não haja de receber
m uito m ais n este m u n d o , e na idade
(*31) Homens dotados de Consciência Cós­
vindoura a vida eterna [16:18:29-30],
mica têm geralmente sido desta opinião;
(*31)
têm se afastado de seus parentes e, ou não se
Jesu s resp o n d eu , e disse-lhe: N a
verdade, na verdade te digo que aquele
que não nascer de novo, não pode ver o
reino de D eus. D isse-lhe N icodem us:
Com o pode um hom em nascer, sendo
velho? porventura pode tornar a entrar
no ventre de sua mãe, e nascer? Jesus
respondeu: N a verdade, n a verdade te
digo que aquele que não nascer da água e
D eus [17:3:3-5]. (*32)
têm casado ou têm rompido o laço conjugal cf. Buda, Jesus, Paulo, Balzac (até o fim de sua
vida), Whitman, Carpenter.
(*32) Esta passagem não parece necessitar de
comentário. Tal como se apresenta, é tão
clara quanto as palavras podem ser. O advento
do Sentido Cósmico é um novo nâscimento numa
nova vida.
do Espírito, não pode entrar no reino de
Vistos do presente ponto de vista, os objetivos dos ensinamentos de Jesus
- como os de Gautama - foram dois: (a) Dizer aos seres humanos o que ele
havia aprendido por ter entrado em Consciência Cósmica, coisas que ele
percebeu que era da maior importância que eles conhecessem e (b) guiá-los
para a Consciência Cósmica, ou pelo menos em direção a ela, ou, em suas
próprias palavras, para o reino de Deus.
SUMÁRIO
Neste caso, temos:
a. Algum indício da subitaneidade que é própria do advento do novo sentido.
b. Não há registro definido da luz subjetiva, embora seja impossível dizer o
que realmente significam as palavras “os Céus se rasgaram”, “o Espírito
descendo como uma pomba” e “Uma voz dos céus” . Como a experiência
foi subjetiva, Jesus deve tê-la contado a alguém e talvez ela tenha passado
por diversas mentes antes que as palavras que temos tenham sido escritas,
ninguém (nem mesmo Jesus) tendo qualquer idéia quanto ao significado
da experiência.
c. Presumivelmente, temos a iluminação intelectual.
d. Acentuada elevação moral, embora, lamentavelmente, nada saibamos com
certeza da personalidade de Jesus antes de sua iluminação, quando, como
foi dito acima, ele tinha trinta e três ou trinta e cinco anos de idade.
e. Temos o senso de imortalidade e a extinção do senso do pecado e do medo
da morte.
f. Finalmente, a mudança característica de aparência que acompanha a
presença do Sentido Cósmico, conforme é relatada pelos evangelistas como
a “transfiguração” de Jesus.
PAULO
Que o grande apóstolo tinha o Sentido Cósmico parece tão claro e certo
como César foi um grande general.
Ele foi efetivamente “grande” e um “apóstolo”, porquanto tinha o Sentido
Cósmico - e não por qualquer outra razão.
I
Em seu caso estão reunidos todos os elementos, tanto de probabilidade
como de prova. Como demonstra seu entusiasmo pela religião em que foi
criado, ele tinha o temperamento devoto que parece sempre formar a matriz
em que a nova vida é preparada para seu nascimento. Na época de sua (supos­
ta) iluminação, ele tinha provavelmente a idade em que o Sentido Cósmico
usualmente se manifesta. Sutherland [171:137] tem o ponto de vista seguinte
a este respeito. Ele diz que Paulo:
N ão poderia ter sido muito mais jovem que Jesus. Era de natureza arrebatada e
im petuosa e, não muito tem po depois da crucificação (talvez dentro de u n s dois
anos), começou a ser notado como um perseguidor dos pequenos grupos de crentes
em Cristo que se reuniam, não somente em Jerusalém, mas em muitos outros lugares.
O mesmo zelo que o tom ou mais tarde um eficiente missionário do cristianismo fez
com que levasse suas perseguições da odiada seita dos “Nazarenos” para além de
Jerusalém, para as cidades e vilas da Judéia e, finalmente, além mesmo das fronteiras
da Palestina. Foi quando estava a caminho da cidade de Damasco, num a pequena
estrada ao nordeste da Palestina, em penhado em ali extirpar a nova heresia, que
ocorreu o extraordinário evento que mudou toda a sua vida.
Ora, se Paulo era - digamos - quatro ou cinco anos mais moço que Jesus,
sua iluminação ocorreu na mesma idade da iluminação de seu grande
predecessor.
Mais uma palavra sobre este último ponto. E um tanto esquisito que
nem o próprio apóstolo nem seu historiador, Lucas - que estava profun-
damente interessado em tudo que se relacionava com sua personalidade tenham deixado uma simples referência de que a data do nascimento de
Paulo possa ser deduzida de maneira positiva e definitiva. Falando de sua
vida antes de sua iluminação, entretanto, Paulo diz [18:22:4] : “Persegui
este caminho até à morte, prendendo e metendo em prisões tanto varões
como mulheres”. Um homem tão jovem, a não ser que tivesse nascido em
alguma posição de autoridade, dificilmente teria assumido a postura assim
descrita. Os líderes da principal divisão dos judeus com bem pouca probabi­
lidade iriam empregar um homem jovem como ele. A “conversão” de Paulo
possivelmente aconteceu no ano 33 [144: 45-6], Supondo que ele tenha
nascido pouco antes do ano 1, então, quando A os Filipenses foi escrita - isto
é, A.D. 61 [144: 357-8] - ele teria entre sessenta e sessenta e cinco anos de
idade, o que concordaria muito bem com certas expressões nessa epístola
que dificilmente teriam sido usadas por um homem muito mais jovem. Por
exemplo: “Mas de ambos os lados estou em aperto, tendo desejo de partir e
de estar com Cristo, porque isto é ainda muito melhor. Mas julgo mais
necessário, por amor de vós, ficar na carne”[24:1:23-4], Ao escrever ele
estas palavras, não parece que estava doente, nem em qualquer perigo
decorrente de seu julgamento, que estava então em andamento [144: 357-8],
A perspectiva de morte próxima deve ter sido devida a sua idade naquela
ocasião. Mas se ele tinha, digamos, sessenta e cinco anos em A.D. 61, então
teria trinta e sete na época de sua iluminação. Poderia não ter ainda esta
idade, mas dificilmente poderia ser muito mais moço.
A cronologia da igreja primitiva é muito obscura. Renan [142:163] dá,
como data de nascimento de Paulo, o ano 10 ou o ano 12 A.D.; do apedre­
jamento de Estêvão, 37 e, da “conversão” de Paulo, 38. Assim, Paulo teria
entre vinte e seis e vinte e oito anos quando da ocorrência daquele evento; e
não estaria além de quarenta e nove a cinqüenta e um quando a passagem
acima, em Aos Filipenses, foi escrita. Mas isto, pelas razões apresentadas,
parece extremamente improvável. Pesando todas as probabilidades (pois nada
mais temos), parece provável que Paulo tenha sido cerca de quatro anos
mais jovem que Jesus e que sua iluminação tenha ocorrido mais ou menos
com esta diferença de tempo após a de seu grande predecessor.
n
Temos três relatos distintos do advento de sua nova vida, dois deles
aparente e provavelmente em suas próprias palavras e todos contendo os
elementos essenciais do fato da iluminação, tal como incontestavelmente
conhecido em outros casos. E, em outro lugar [21:12:1-7], temos uma
descrição certamente feita por ele próprio, de certas experiências subjetivas
que por si mesmas seriam uma forte se não convincente evidência do fato da
iluminação; pois é seguro dizer que as palavras ali contidas dificilmente
poderiam ter sido escritas a menos que seu autor tivesse efetivamente
vivenciado a passagem da autoconsciência para a Consciência Cósmica. E
acima de todas essas evidências há um conjunto de escritos deste homem
que repetidamente demonstra a existência nele da faculdade em questão.
Seu comportamento imediatamente após a iluminação é também caracte­
rístico. Tomando o rumo usual, ele se retira por algum tempo numa solidão
mais ou menos completa; se para Hauran, como supõe Renan, ou para a
península do Sinai, como julga Holsten, não importa [84:417], No que se
refere à sua iluminação propriamente - sua “conversão”, o advento da
Consciência Cósmica em seu caso - somos informados [18:9:3-9] de que:
E , indo no caminho, aconteceu que, chegando perto de Damasco, subitamente o
cercou um resplendor de luz do céu. E, caindo em terra, ouviu um a voz que lhe dizia:
Ãaulo, &aulo, por que mt persegues? E ele disse: Quem és, Senhor? E disse o Senhor:
Cu sou JesuS, a quem tu persegues. [...] Iebanta-te, e entra na cfbabe, e lá te será btto o que te
tonblm lajer. E os varões, que iam com ele, pararam espantados, ouvindo a voz, mas
não vendo ninguém . E Saulo levantou-se da terra e, abrindo os olhos, não via a
ninguém. E, guiando-o pela mão, o conduziram a Damasco. E esteve três dias sem
ver, e não comeu nem bebeu.
O segundo relato é o seguinte [18:22:6-11]:
O ra aconteceu que, indo eu já de caminho e chegando perto de Damasco, quase
ao meio dia, de repente me rodeou uma grande luz do céu. E caí por terra e ouvi uma
voz que me dizia: daulo, daulo, por que me persegues? E eu respondi: Quem és, Senhor?
E disse-me: Cu «ou Jeíusí najareno, a quem tu persegues. E os que estavam comigo viram,
em verdade, a luz, [...] mas não ouviram a voz daquele que falava comigo. Então
disse eu: Senhor, que farei? E o Senhor disse-me: Zebanta-te e baí a fiam asco, e ali St te
blrá tubo o que te i orbenabo la?er. E , como eu não via, por causa do esplendor daquela
luz, fui levado pela mão dos que estavam comigo e cheguei a Damasco.
E o terceiro relato [18:26:12-18] é como segue:
Sobre o que, indo então a Damasco, com poder e comissão dos principais dos
sacerdotes, ao meio dia, ó rei, vi no caminho um a luz no céu, que excedia o esplendor
do sol, cuja claridade m e envolveu a mim e aos que iam comigo. E, caindo nós todos
por terra, ouvi uma voz que me falava, e em língua hebraica dizia: Ãaulo, ftaulo, por
que me persegues? JBura tofsa te í recalcitrar contra os agullpec. E disse eu: Quem és,
Senhor? E ele respondeu: Cu sou Jeíus, a quem tu persegues. fflai lebanta-te e põe-te Sobre
teus pis, porque te apareci por isto, para te pôr por ministro e testemunfia tonto ba* coisas que
tens bisto tomo baqueias pelas quais te aparecerei afnba. libranbo-te beste pobo e bos gentios,
a quem agora te enbfo, $ara Ifjes abrires os olt)os, e bos trebas os conberteres à luj, e bo pober
be âatanás a Seus.
Estas três narrativas, que concordam suficientemente entre si, cujas leves
discrepâncias têm pouca ou nenhuma importância, dão-nos os fenômenos
sensoriais usuais que quase sempre acompanham o advento do novo sentido.
Segue-se um relato de importância, se possível, ainda maior [21:12:1-7],
Ele traz, em poucas palavras, uma descrição da elevação moral e da ilumi­
nação intelectual de Paulo, durante e logo após sua “conversão”. Diz ele:
E m verdade que nâo convém gloriar- (*1) “Cristo” é o nome que Paulo dá à
me; mas passarei às visões e revelações
Consciência Cósmica,
do Senhor. Conheço um homem em Cris­
to (*1) que há catorze anos (se no corpo
nâo sei, se fora do corpo não sei, Deus o sabe) foi arrebatado até ao terceiro céu. E
sei que o tal homem (se no corpo, se fora do corpo, não sei; Deus o sabe) foi arrebatado
ao paraíso; e ouviu palavras inefáveis
(*2), de que ao hom em não é lícito falar.
D e um assim m e gloriarei eu, m as de m im
m e s m o n ã o m e g lo ria r e i, s e n ã o n a s
m in h a s fra q u e z a s . P o r q u e , se q u is e r
gloriar-m e, não serei néscio, porque direi
a v e r d a d e ; m a s d e ix o is to , p a ra q u e
(»2) Palavras mefáve, ^ tol como whitman:
“Quando tenciono dizer o melhor, vejo que
não o consigo; minha língua se toma ineficiente,
meu fôlego não obedece o comando de seus
órgãos;tomo-meumhomemmudo” [193:179].
ninguém cuide de mim mais do que em mim vê ou de mim ouve. E, para que me não
exaltasse pelas excelências das revelações, foi-me dado um espinho na carne, a
saber, um mensageiro de Satanás, para me esbofetear, a fim de me nâo exaltar.
III
Para completar o caso, resta somente transcrever certos pronunciamentos
de Paulo do ponto de vista do Sentido Cósmico; tais pronunciamentos, fossem
eles os únicos, provariam que o homem de quem procedem era possuidor do
Sentido Cósmico, pois, sem este último, os pronunciamentos não poderiam
ter sido feitos.
Dizemo-vos pois, isto pela palavra do Senhor: que nós, os que ficarmos vivos
para a vinda do Senhor, nâo precederemos os que dormem. Porque o mesmo Senhor
descerá do céu com alarido, e com voz de arcanjo, e com a trombeta de Deus; e os
que morreram em Cristo ressuscitarão primeiro. Depois nós, os que ficarmos vivos,
seremos arrebatados juntam ente com eles nas nuvens, a encontrar o Senhor nos ares,
e assim estaremos sempre com o Senhor.
(*1) As usuais assertivas de imortalidade,
Portanto, consolai-vos uns aos outros com
próprias da Consciência Cósmica.
estas p alav ras [2 6 :4 :1 5 -1 8 ]. (* 1 )
(*2) No que se refere a seu “Evangelho”, Paulo
M as faço-vos saber, irm ãos, que o
foi instruído apenas pelo Sentido Cósmico.
evangelho (*2) que por mim foi anun­
ciado não é segundo os homens. Porque não o recebi, nem aprendi de homem algum,
mas pela revelação de Jesus Cristo [22:1:11-12].
M as, quando aprouve a Deus, que desde o ventre de minha mãe me separou, e
me chamou pela sua graça, revelar seu Filho em mim, para que o pregasse entre os
gentios, não consultei a carne nem o sangue, nem tomei a Jerusalém, a ter com os
que já antes de mim eram apóstolos, mas parti para a Arábia, e voltei outra vez a
Damasco [22:1:15-17]. (*3)
Cristo nos resgatou da maldição da
lei, fazendo-se maldição por nós; porque
está escrito: Maldito todo aquele que for
pendurado no madeiro [22:3:13]. M as,
antes que a fé viesse, estávamos guarda­
dos debaixo da lei, e encerrados para
aquela fé que se havia de manifestar. De
maneira que a lei nos serviu de aio, para
nos conduzir a Cristo, para que pela fé
fôssem os justificados. M as, depois que
a fé veio, já não estamos debaixo de aio.
Porque todos sois filhos de Deus pela fé
em Cristo Jesus. Porque todos quantos
fostes batizados em Cristo, já vos reves­
tistes de Cristo[22:3:23-27], (*4)
E stai pois firm es na liberdade com
que Cristo nos libertou [...] [22:5:1]. (*5)
Porque vós, irmãos, fostes chamados
à liberdade [22:5:13]. (*6)
M as o fruto do espírito é: caridade*,
gozo, paz, longanimidade, benignidade,
b o n d ad e, fé, m an sid ão , tem p eran ça.
Contra estas coisas não há lei. E os que
são de Cristo crucificaram a carne com
as suas p aixões e c o n c u p isc ên c ia s
[22:5:22-24], (*7)
* N.T. - Amor, no original.
(*3) Ele sabia, entretanto, o bastante sobre Jesus
e seus ensinamentos, para poder reconhecer
(quando isto lhe veio) que os ensinamentos do
Sentido Cósmico eram praticamente idênticos
aos ensinamentos de Jesus.
(*4) Cristo é o Sentido Cósmico concebido
como uma entidade ou individualidade
distinta. E aquela que de fato redime a todo aque­
le a quem chega da “maldição da lei” - isto é, da
vergonha, do medo e do ódio que são próprios
da vida autoconsciente. Paulo parece supor um
batismo para a Consciência Cósmica (Cristo).
Indubitavelmente existe esse batismo; mas onde
estão os sacerdotes capazes de ministrá-lo?
(*5) A “ liberdade” do Sentido Cósmico é
suprema. Absolve o ser humano de seu ego
anterior e torna impossível uma futura escra­
vidão.
(*6) Paulo ama e valoriza a liberdade tão
intensamente como o moderno americano
W alt W hitm an. Ambos sabiam (o que,
lamentavelmente, poucos sabem) o que é a
verdadeira liberdade.
(*7) Onde se lê “Espírito” e “Cristo”, deve-se
entender C onsciência Cósm ica. C.f.
M.C.L., infra, “O santo sopro mata a luxúria,
etc.” e o Bhagavadgita: “Mesmo o gosto por
objetos dos sentidos desaparece daquele que viu
o supremo”.
Porque em Cristo Jesus nem a cireun- (*8) No dizer de Balzac: “A segunda exiscisão nem a incircuncisão tem virtude
tência”. [5:100]
alguma, mas sim o ser uma nova criatura [22:6:15], (*8)
Todavia falam os sabedoria entre os perfeitos; não, porém , a sabedoria deste
mundo, nem dos príncipes deste mundo, que se aniquilam; mas falamos a sabedoria
de D eus, oculta em mistério, a qual Deus
ordenou antes dos séculos para nossa (*9) Ele fala do ponto de vista do Sentido Cósglória; a qual nenhum dos príncipes deste
mico, que estava paia vir quando omomenmundo conheceu [...] [20:2 :6-8]. (*9)
to estivesse maduro e que veio então para ele.
[...] porque o espírito penetra todas as coisas, ainda as profundezas de D eus.
Porque, qual dos homens sabe as coisas do homem, senão 0 espírito do homem, que
nele está? Assim também ninguém sabe as coisas de Deus, senão o Espírito de Deus.
[...] para que pudéssemos conhecer o que
(*10) Paulo é informado, não pela mente
nos é dado gratuitamente por Deus (*10).
humana (a autoconsciente) mas pelo
As quais também falamos, não com pala­ espírito de Deus (Consciência Cósmica); ne­
vras de sabedoria hum ana, mas com as nhum homem meramente autoconsciente pode
que o Espírito Santo ensina, comparando julgá-lo, tanto quanto um animal (dotado apenas
as coisas espirituais com as espirituais. de consciência simples) não pode julgar um
homem (autoconsciente).
O ra, o hom em natural não compreende
as coisas do espírito de Deus, porque lhe (*11) O homem meramente autoconsciente não
pode ser levado a compreender as coisas
parecem loucura; e não pode entendê-las,
vistas pelo Sentido Cósmico. Estas coisas, se
porque elas se discernem espiritualmen­ apresentadas, parecem tolas a ele. Mas aquele
te. M as o que é espiritual discerne bem que tem o Sentido Cósmico (sendo, naturalmen­
tudo, e ele de ninguém é discernido. Por­ te, também autoconsciente) é capaz de julgar
que, quem conheceu a mente do Senhor, “todas as coisas” - isto é, as coisas de ambas as
para que possa instruí-lo? M as nós temos regiões. Paulo não poderia portanto falar aos
Coríntios como gostaria de ter feito, pois eles
a mente de Cristo. E eu, irmãos, não vos não tinham Consciência Cósmica.
pude falar como a espirituais, mas como
a carnais, com o a m eninos em Cristo. (*12) Paulo diz que a sabedoria da autoconsciên­
cia não é sabedoria para aqueles que têm
Com leite vos criei, e não com manjar; o Sentido Cósmico; e a sabedoria destes últimos
porque ainda não podíeis nem tão pouco é loucura para os meramente autoconscientes.
ainda agora podeis. P orque ainda sois
(*13) Compare-se o poema de Whitman To
carnais [...] [20:2:10-16 e 3:1-3], (*11)
Rich Givers (A Dadores Ricos) [193:
N inguém se engane a si mesmo; se
alguém dentre vós se tem por sábio neste
m undo, faça-se louco p ara ser sábio.
Porque a sabedoria deste mundo é loucura
diante de Deus [...] [20:3:18-19]. (*12)
Se nós vos semeamos as coisas espi­
rituais, será muito que de vós recolhamos
as carnais? [20:9:11]. (*13)
216]. “O que me dás aceito alegremente, um pe­
queno sustento, uma cabana e um jardim, um
pouco de dinheiro enquanto me encontro com
meus poemas, a hospedagem a um viajante e um
desjejum, enquanto através dos estados viajo. Por
que deveria eu me envergonhar de tais dádivas
possuir? Por que deveria eu anunciá-las? Pois
eu próprio não sou alguém que não dá nada a
homem e a mulher, porquanto dou a qualquer
homem ou mulher o acesso a todas as dádivas
do universo.”
Porque, se anuncio o evangelho, não
tenho de que m e gloriar, pois me é imposta essa obrigação [...]. [20:9:16] (*14)
(*14) Esta parece ser a experiência de todas
38 Pessoas 9ue tiveram o Sentido Cósmico, tanto em grau maior como menor. Assim,
diz Blake: “Escrevi este poema (Jerusalém) sem
premeditação e mesmo contra minha vontade. Assim também Behmen “se impressionou com a
necessidade de escrever o que viu”, embora escrever não lhe fosse nada fácil.
A inda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e nâo tivesse caridade*,
seria como o metal que soa ou como o sino que tine. E ainda que tivesse o dom de
profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse toda a
fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse caridade, nada seria. E
ainda que distribuísse toda a m inha fortuna para sustento dos pobres, e ainda que
entregasse o m eu corpo para ser queimado, e não tivesse caridade, nada disso me
aproveitaria. A caridade é sofredora, é benigna; a caridade não é invejosa; a caridade
não trata com leviandade, não se envaidece. Não se porta com indecência, não busca
os seus interesses, não se irrita, não suspeita mal; não folga com a injustiça, mas
folga com a verdade; tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. A caridade
nunca falha; mas havendo profecias, serão aniquiladas; havendo línguas, cessarão;
havendo ciência, desaparecerá. Porque, em parte, conhecemos, e em parte profeti­
zamos. Mas, quando vier o que é perfeito, então o que o é em parte será aniquilado.
Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, discorria como
m enino , m as, logo que cheguei a ser
homem, acabei com as coisas de menino.
(*15) Uma esplêndida exposição da moralidade
P o rq u e agora vem os por espelho em
própria da Consciência Cósmica. O
enigma, mas então veremos face a face;
mesm0 esPírito pode ser constatado em todos os
.
x
4.casos -m as vejamos especialmente [193:2731:
agora conheço em parte, mas entao co,
J
.
,
,
,
’
, ,
, .,
Concede-me o pagamento pelo qual servi,
nhecerei como tam bem sou conhecido.
concede_me cantar a cançâo da &anáe idéia.
Agora, pois, perm anecem a fé, a espetoma tudo o mais; amei aterra, o sol, os animais,
rança e a caridade, estas três, mas a maior
desprezei as riquezas, dei esmola a todos que
destas é a caridade [20:13:1-13], (*15)
pediram, defendi os tolos e os loucos, devotei
minha renda e meu trabalho aos outros”.
P orque, assim com o todos morrem
em A dão, assim tam bém todos serão
vivificados em Cristo. M as cada um por
,
^
,
, .
,
sua ordem: Cristo, as primícias; depois
r
.
os que sao de Cristo, na sua vinda. Depois
virá o fim, quando tiver entregado o reino
a Deus, ao Pai, e quando houver aniquilado todo o império, e toda a potestade e
força [20:15:22-24], (*16)
(*16) Uma comparação entre os estados autoconsciente e Cosmicamente consciente.
A Autoconsciência - diz ele o estado Adâmico
,
~
.. „
- e uma condição de morte. Com Cnsto começa a verdadeira vida, que irá se espalhar e se tornar universal; este é o fim da velha ordem. Depois
disso não haverá mais “regra”, “autoridade” ou
“poder”; todos serão livres e iguais. “O anjo, levadono vento, nâo disse ‘Vós, mortos, levantaivos’; disse ‘Levantai-vos, vós viventes’ ” [5:145]
Eis aqui vos digo um mistério: N a verdade, nem todos dormiremos, m as todos
seremos transformados. N um mom ento, num abrir e fechar de olhos, ante a última
trombeta; porque a trombeta soará, e os mortos ressuscitarão incorruptíveis, e nós
serem os transform ados. Porque convém que isto que é corruptível se revista da
*N.T. - Em todo o contexto, amor, no original.
(*17) Expressa o senso da imortalidade que é
próprio da Consciência Cósmica. Com­
paremos [193 :77]: “Há aquilo em mim - não
sei o que possa ser - mas sei que está em mim.
Desgraçado e suado - calmo e frio então meu
corpo se tom a. Durmo. Durmo longamente. Não
o conheço - ele não tem nome - é uma palavra
que não foi dita - não está em qualquer dicio­
nário, elocução ou símbolo. AJgo em que roda mais do que a terra em que eu rodo, disso a criação
é o amigo cujo abraçar me acorda. Talvez eu possa dizer mais. Esboços! Rogo pelos meus irmãos e
irmãs. Vedes vós, ó irmãos e irmãs? Não é o caos ou a morte; é forma, união, plano - é vida eterna
- é felicidade”.
incorruptibilidade, e que isto que é mortal
se revista da imortalidade. E, quando isto
que é corruptível se revestir da incorrupti­
bilidade e isto que é mortal se revestir
da imortalidade, então cumprir-se-á a pa­
lavra que está escrita: Tragada foi a morte
na vitória. [20:15:51-54] (*17)
Por isso não desfalecemos; mas, ainda que o nosso homem exterior se corrompa,
o interior, contudo, se renova de dia em dia. Porque a nossa leve e m om entânea
tribulação produz para nós um peso eterno de glória mui excelente. N ão atentando
nós nas coisas que se vêem, mas nas que se não vêem; porque as que se vêem são
temporais e as que se não vêem são eternas. Porque sabemos que, se a nossa casa
terrestre deste tabernáculo se desfizer, tem os de D eus um edifício, um a casa não
feita por mãos, eterna, nos céus. E por isso também gememos, desejando ser revestidos
da nossa habitação, que é do céu; se, todavia, estando vestidos, não formos achados
nus. Porque também nós, os que estamos neste tabernáculo, gememos carregados;
não porque queremos ser despidos, mas revestidos, para que o mortal seja absorvido
pela vida [21:4:16-18 e 21:5:1-4], (*18)
Assim que, se alguém está em Cristo,
nova criatura é: as coisas velhas já passa­
ram; eis que tudo se fez novo [21:5:17],
(*19)
Portanto agora nenhuma condenação
há para os que estão em Cristo Jesus [...].
Porque a lei do espírito de vida, em Cristo
Jesus, m e livrou da lei do pecado e da
morte. Porquanto o que era impossível à
lei, visto como estava enferma pela carne,
Deus, enviando o seu Filho em semelhan­
ça da carne do pecado, pelo pecado con­
denou o pecado na carne. Para que a ju s­
tiça da lei se cumprisse em nós, que não
andamos segundo a carne, mas segundo
o espírito. Porque os que são segundo a
carne inclinam-se para as coisas da carne;
mas os que são segundo o espírito para
as coisas do espírito. Porque a inclinação
da carne é m orte; m as a inclinação do
espírito é vida e paz. Porquanto a incli­
nação da carne é inimizade contra Deus
[...]. [19:8:1-7] (*20)
(*18) Paulo contrasta o ego com a vida Cosmicamente Consciente. Sua consciência
da vida etema é claramente colocada.
(*19) Nenhuma expressão poderia ser mais
adequada, mais perfeita. O ser humano
que entra em Consciência Cósmica é realmente
uma nova criatura e todo o seu ambiente “se tor­
na novo” - adquire nova aparência e novo signi­
ficado. A pessoa dá a volta para o outro lado das
coisas, por assim dizer; elas são as mesmas, mas
também inteiramente diferentes. “As coisas não
são deslocadas dos lugares que antes ocupavam.
A terra é tão positiva e direta como era antes.
Mas a alma também é real; também ela é positiva
e direta; nenhum raciocínio, nenhuma prova esta­
beleceu isto; foi o inegável crescimento que o
estabeleceu [193:180].
(*20) Na Consciência Cósmica não há absolu­
tamente nenhum senso de pecado nem
de morte; a pessoa sente que esta última é apenas
um incidente na continuidade da vida. O ser
humano meramente autoconsciente não pode,
pelo cumprimento da “lei” ou de qualquer outro
modo, destruir quer o pecado, quer o senso do
pecado, mas “Cristo” - isto é, o Sentido Cósmico
- pode destruir e destrói a ambos.
O mesmo Espírito testifica com o
nosso espírito que somos filhos de Deus.
E, se nós somos filhos, somos logo
herdeiros também, herdeiros de Deus e
co-herdeiros de Cristo: se é certo que com
ele padecemos, para que também com ele
sejamos glorificados [19:8:16-17]. (*21)
Porque para mim tenho por certo que
as aflições deste tempo presente não são
para comparar com a glória que em nós
há de ser revelada . Porque a ardente ex­
pectação da criatura espera a m ani­
festação dos filhos de Deus. Porque a
criação ficou sujeita à vaidade, não por
sua vontade, mas por causa do que a
sujeitou. Na esperança de que também a
mesma criatura será libertada da servidão
da corrupção, para a liberdade da glória
dos filhos de Deus. Porque sabemos que
toda a criação geme e está juntamente
com dores de parto até agora. E não só
ela, mas nós mesmos, que temos as
primícias do Espírito, também gememos
em nós mesmos, esperando a adoção, a
saber, a redenção do nosso corpo
[19:8:18-23] (*22)
E sabemos que todas as coisas con­
tribuem juntamente para o bem daqueles
que amam a Deus, daqueles que são
chamados por seu decreto [19:8:28]. Por­
que estou certo de que, nem a morte, nem
a vida, nem os anjos, nem os principados,
nem as potestades, nem o presente, nem
o porvir, nem poderes, nem a altura, nem
a profundidade, nem alguma outra cria­
tura nos poderá separar do amor de Deus
[19:8:38-39]. Eu sei, e estou certo no Se­
nhor Jesus, que nenhuma coisa é de si
mesma imunda a não ser para aquele que
a tem por imunda: para esse é imunda
[19:14:14]. (*23)
(*21) Todos os seres humanos que têm Cons­
ciência Cósmica estão no mesmo nível
espiritual, no mesmo sentido em que todos que
são autoconscientes são seres humanos - per­
tencem à mesma espécie.
(*22) Paulo fala da glória e da alegria da vida
Cosmicamente Consciente que ora nasce
no horizonte do mundo, em comparação com o
estado autoconsciente já anteriormente universal.
“Vistas de glória”, diz Whitman, “incessantes e
ramificando”. “Alegria, sempre alegria”, diz
Elukhanam. “Alegria, começando mas sem fim”,
diz E.C. “Quando tiveres uma vez sentido ”, diz
Seraphita (isto é, Balzac), “o deleite da embria­
guez divina (iluminação), então tudo será
teu”[7:182]. Comparemos também os extratos
seguintes, de Behmen, nos quais ele, da mesma
maneira que Paulo, contrasta o Ego com a vida
Cosmicamente Consciente: “O mundo exterior
ou a vida exterior não é um vale de sofrimento
para aqueles que a desfrutam, mas somente para
aqueles que sabem de uma vida superior. O
animal desfruta a vida animal; o intelecto, o reino
intelectual; mas aquele que entrou em rege­
neração reconhece sua existência terrena como
um peso e uma prisão. Com este reconhecimento,
ele toma sobre si mesmo a cruz de Cristo
[97:325].
“O homem santo e celestial, escondido no
homem monstruoso (o exterior), está no céu
tanto quanto Deus; e o céu está nele; e o cora­
ção ou a luz de Deus é gerada nele e nasce
nele. Assim é Deus nele e ele em Deus. Deus
está mais perto dele do que seu corpo animalesco
[97:326]
(*23) Uma expressão do otjpiismo próprio da
Consciência Cósmica. Comparemos
Whitman: “Omnes! Omnes! Que os outros igno­
rem o que queiram, faço o poema do mal
também, comemoro essa parte também. Sou, eu
mesmo, tanto o mal quanto o bem; como também
minha nação é, e eu digo que não há de fato
nenhum mal” [193:22].
Em suma, temos neste caso:
a. A característica subitaneidade própria do advento do Novo Sentido. O
novo nascimento tem lugar num dado lugar e momento.
b. Temos a luz subjetiva manifesta de maneira clara e muito fortemente.
c. Temos a iluminação intelectual de caráter muito pronunciado.
d. Temos uma exaltação moral marcada muito fortemente.
e. Temos a convicção, o senso da imortalidade, a extinção do sentido do
pecado e a extinção do medo da morte.
PLOTINO
PLOTINO nasceu em 204 A.D. e faleceu em 274.
Plotino dizia que, para se aperfeiçoar
o conhecimento, o sujeito e o objeto têm
de estar unidos - que o agente inteligente
e a coisa entendida... não podem estar
separados [55:716], (*1)
Ele sustentava que, para se aperfei­
çoar o conhecimento, o sujeito e o objeto
têm de estar unidos [85:716]. (*2)
(*1) “Quando, para um homem que com­
preende, o Eu se tomou todas as coisas”
[150:312]
(*2) “Objetos grosseiros e alma invisível são
uma só coisa”[193:173]. “A percepção
parece ser tal que nela todos os sentidos se unem
num só sentido. Tal que nela vós vos tornais o
objeto” [63].
Segue aqui uma carta:
De Plotino a Flaccus [188:78-81]
Aplaudo tua dedicação à filosofia: Alegro-me em saber que tua alma se tenha
posto a viajar, como Ulisses em regresso, à sua terra natal - àquele glorioso país,
àquele único país real - o mundo da verdade não vista. Para seguir a filosofia, o
senador Rogatianus, um dos mais nobres dentre meus discípulos, desfez-se outro dia
de todo o seu patrimônio, libertou seus escravos e dispensou todas as honras de sua
posição.
Notícias têm chegado a nós de que Valeriano foi derrotado e está agora nas mãos
de Sapor. As ameaças de Francos e Alemães, de Godos e Persas, são igualmente
terríveis, sucessivamente, para nossa degenerada Roma. Em diás como estes, repletos
de incessantes calamidades, os motivos para uma vida de contemplação são mais do
que nunca fortes. Mesmo minha tranqüila existência parece agora tornar-se algo
sensível ao avanço dos anos. Só a idade não consigo excluir do meu retiro. Já estou
cansado desta morada-prisão, o corpo, e
calmamente aguardo o dia em que a natureza divina dentro de mim seja libertada
da matéria. (*3)
^*3^ ^ noção da continuidade da vida. “E
quanto a ti, morte, e a ti, amargo pulmão
da mortalidade, é inútil tentarem me alarmar”
[193:77]
Os sacerdotes egípcios costumavam dizer que um simples toque com a asa de
seu pássaro sagrado podia encantar o crocodilo num torpor; não será assim tão
velozmente, meu prezado amigo, que as penas de tua alma terão poder para aquietar
o corpo indómito. A criatura só cederá à vigilante e extenuante constância do hábito.
Purifica tua alma de toda esperança e todo medo indevidos acerca de coisas terrenas,
m ortifica o corpo, nega teu ego - as afeições, bem com o os apetites - e o olho
interior começará a exercer sua visão clara e solene.
Pedes que te digamos como sabemos e qual é o nosso critério de certeza. Escrever
é sempre maçante para mim. M as às contínuas solicitações de Porfirio eu não devia
ter deixado um a linha que me sobrevivesse. Para teu próprio bem e o do teu pai,
m inha relutância será superada.
Objetos externos nos apresentam apenas aparências. A respeito deles, portanto,
pode-se dizer que temos opinião, ao invés de conhecimento. As distinções no mundo
real de aparência são importantes somente para os homens comuns e práticos. Nosso
problema está na realidade ideal que existe por trás da aparência. Como percebe a
m ente essas idéias? Estão elas fora de nós, e está a razão, tal com o a sensação,
ocupada com objetos externos a ela mesma? Que certeza teríamos nós então, que
segurança haveria de que nossa percepção fosse infalível? O objeto percebido seria
um algo diferente da mente que o percebesse. Deveríamos então ter um a imagem ao
invés de realidade. Seria monstruoso crer, por um momento sequer, que a mente não
fosse capaz de perceber a verdade ideal exatamente como ela é, e que nâo tivéssemos
certeza e real conhecimento a respeito do mundo da inteligência. Segue-se, portanto,
que essa região da verdade nâo deverá ser investigada como um a coisa externa a nós
e, assim, só imperfeitamente conhecida. Ela está dentro de nós. Aqui os objetos que
contem plam os e aquilo que contem pla são idênticos - ambos são pensam ento. O
sujeito não pode seguramente conhecer um objeto diferente de si mesmo. O mundo
das idéias repo u sa dentro de nossa inteligência. A verdade, portanto, não é a
concordância de nossa apreensão de um objeto externo com o próprio objeto. E a
concordância da mente consigo mesma. Logo, a consciência é a única base de certeza.
A mente é sua própria testemunha. A razão vê em si mesma aquilo que está acima
dela própria como sua fonte; e, por outro
lado, aquilo que esta abaixo dela própria,
m ais um a vez com o ainda ela m esm a.
O c o n h e c im e n to te m trê s g ra u s opinião, ciência, ilum inação. (* 4 ) O m eio
ou instrum ento do primeiro é o sentido;
,
,, .
.
do segundo, a dialética; da terceira, a intuição. Â últim a subordino a razão. Tratase de conhecim ento absoluto fundado n a
identidade da m ente que conhece com os
objetos conhecidos.
(*4) “O mundo das idéias divide-se em três esfèras - a do instinto; a das abstrações; a do
especialismo” [5:141] Compare-se Bacon: “A
primeira criatura de Deus no trabalho dos dias
foi a luz do sentido’ a ültima>a '_uz da razâ0’ e
Seu trabalho de Sábado, desde então, é a Iluminação de Seu Espírito”[35:821. Plotino, Bacon e
Ba,za£ ens|nam^ todos eles (e qualquer pessoa
tenha tido a experiência concordará com
eles) que existe um intervalo tão grande entre
Consciência Cósmica e Autoconsciência como
entre a última e a Consciência Simples.
qUe
H á um irradiar de todas as ordens de existência, um a emanação externa do Um
inefável. M as há um impulso de retomo, atraindo tudo para cima e para dentro, em
direção ao centro de onde tudo proveio. O amor, como diz lindamente Platão no
Banquete, é filho da pobreza e da abundância. N a busca amorosa da alma pelo bem
repousa o doloroso senso de queda e de perda.
M as esse am or é benção, é salvação, é nosso gênio guardião; sem ele, a lei
centrífuga seria mais poderosa que nós e levaria nossas almas para bem longe de sua
fonte, em direção às frias extremidades do material e da multiplicidade. O homem
sábio reconhece a idéia do bem dentro dele. Isto ele desenvolve por recolhimento ao
lugar santo de sua própria alma. Aquele que nâo compreende como a alma contém o
belo dentro si mesma, procura apreender a beleza fora, por laboriosa produção. Seu
propósito deveria ser de preferência concentrar-se e simplificar e assim expandir o
seu ser; ao invés de sair para a multiplicidade, abandoná-la pelo U m , e assim flutuar
para o alto em direção à fonte divina do ser cuja corrente flui dentro dele.
Perguntas: como podemos conhecer o Infinito? Eu respondo: nâo pela razão. É
função da razão distinguir e definir. O Infinito, portanto, não pode ser classificado
entre seus objetos. Só podes apreender o Infinito por uma faculdade superior à razão,
entrando num estado em que não mais és o teu ego finito - em que a essência divina
é comunicada a ti. Isto é êxtase [Consciência Cósmica], É a libertação de tua mente
de sua consciência finita. O semelhante só pode apreender o sem elhante; quando
assim cessas de ser finito, tomas-te uno com o Infinito. N a redução de tua alma a seu
mais simples E u , a sua essência divina, tom as consciência dessa união - dessa
identidade.
M as esta sublime condição não tem
(*5) Plotino (conforme ele nos diz) teve três
períodos de iluminação na época em que
duração permanente. Somente (*5) de vez
em quando podemos desfrutar essa ele­ escreveu esta carta a Flaccus - isto é, quando
tinha cinqüenta e seis anos de idade. Somos
vação (misericordiosamente possibilitada
informados por Porfírio de que entre a idade de
a nós) acima dos limites do corpo e do
cinqüenta e nove e de sessenta e quatro (isto é,
mundo. E u mesmo só tomei consciência
durante os seis anos das relações entre eles) ele
dela por três vezes até agora, enquanto
teve quatro períodos, totalizando pelo menos
Porfírio, até o mom ento, nenhum a vez.
sete. Deve-se notar que aquilo que Plotino diz
quanto ao que ajuda na passagem para a
Tudo o que tenda a purificar e elevar a
Consciência Cósmica é exatamente o que é
mente há de te assistir nesta consecução
ensinado por todos aqueles que a alcançaram e facilitar a aproximação e a recorrência
por Gautama, Jesus, Paulo e os demais.
desses felizes intervalos. Há, então, dife­
rentes cam inhos pelos quais essa meta pode ser alcançada. O am or à beleza que
exalta o poeta; a devoção ao Absoluto e a ascensão da ciência que fazem a ambição
do filósofo, e o amor e as orações pelos quais alguma devota e ardente alm a tende
para a perfeição em sua pureza moral. Estas são as grandes estradas que conduzem à
altura acima do real e do particular, na qual nos encontramos na presença imediata
do Infinito, que brilha como das profundezas da alma.
A passagem seguinte [83:336] pode ser tomada como um resumo razoável
da filosofia de Plotino tal como entendida pelos neoplatônicos:
As alm as hum anas que desceram para a corporalidade são aquelas que se
permitiram seduzir pela sensualidade e dominar pela luxúria. Elas agora procuram
se apartar de seu verdadeiro ser; e, lutando por independência, assumem um a falsa
existência. Precisam voltar atrás nisso e, como não perderam sua liberdade, um a
conversão ainda é possível.
Aqui, então, entramos na filosofia prática. Pela mesma estrada por onde desceu
deve a alma refazer seus passos de volta ao supremo Bem. Primeiro que tudo deve
retom ar a si própria. Isto é conseguido pela prática da virtude, que tem por m eta a
semelhança com D eus e que leva a Deus. N a ética de Plotino, todos os esquemas de
virtude mais antigos são tomados e arranjados numa série graduada. O estágio mais
baixo é o das virtudes civis; seguem-se as purificadoras e, em último lugar, as virtudes
divinas. As virtudes civis apenas adornam a vida, sem elevar a alma. Isto é a função
das virtudes purificadoras, pela qual a alma é libertada da sensualidade e levada de
volta a si mesma e daí para nous. Por meio de práticas ascéticas, o homem se torna
um a vez mais um ser espiritual e duradouro, livre de todo pecado. M as há ainda uma
consecução superior; não basta ser sem pecado; é necessário tomar-se “D eus”. Isto é
alcançado mediante contemplação do Ser Primevo, o Absoluto; ou, em outras palavras,
através de um a aproximação extática. O pensam ento não pode alcançar isto, pois
chega somente até nous e é ele próprio um a espécie de movimento. O pensamento é
um mero preliminar para a comunhão com Deus. E somente num estado de perfeita
passividade e repouso que a alma pode reconhecer e tocar o Ser primevo. Logo, para
essa consecução superior, a alm a tem de passar por um curriculum espiritual.
C om eçando com a contem plação das coisas corpóreas em sua m ultiplicidade e
harm onia, retira-se para dentro de si própria e se recolhe às profundezas de seu
próprio ser, ascendendo daí para nous, o mundo das idéias. Mesmo lá, porém, não
encontra o Mais Alto, o Absoluto; ainda ouve uma voz, dizendo, “Nâo fizemos a nós
mesmos”. O último estágio é alcançado quando, na mais alta tensão e concentração,
contemplando em silêncio e extremo esquecimento de todas as coisas, é ela capaz,
por assim dizer, de perder a si mesma. Então poderá ver D eus, a fonte da vida, a
fonte do ser, a origem de todo bem, a raiz da alma. N esse momento ela desfruta a
mais alta e indescritível bem-aventurança, em que é como que engolfada de divindade,
banhada na luz da eternidade.
SUMÁRIO
O
autor deste livro só conseguiu aprender um pouco da vida de Plotino.
Faltam-nos também detalhes de sua iluminação além do que ele nos diz na
carta acima citada. Mas sua própria menção dos três “felizes intervalos”, o
que ele diz da “sublime condição” e o caráter de sua filosofia demonstram
com segurança que ele foi um caso genuíno de Consciência Cósmica. Lamen­
tavelmente, sua idade no momento de sua primeira iluminação não é co­
nhecida. Plotino, entretanto, tendo nascido em 204, tendo começado o estudo
de filosofia no ano 232, com a idade de vinte e oito, e tendo escrito a carta
acima em 260, aos cinqüenta e seis anos (foi nesse ano que Valeriano foi
feito prisioneiro por Sapor), provavelmente devia estar entre trinta e quarenta
anos no momento de sua primeira iluminação.
MAOMÉ
Nasceu em 570. Faleceu em 632.
Este caso, tanto no detalhe como no conjunto, é maravilhosamente
completo. O desprezo nutrido para com este homem pelos cristãos é tão
meritório para eles quanto o correspondente desprezo nutrido para com Jesus
pelos muçulmanos é meritório para estes. Maomé nasceu na tribo deKoreish,
em agosto, no ano 570. Sua herança foi de cinco camelos e uma escrava. Seu
pai faleceu antes de seu nascimento e sua mãe quando ele tinha seis anos de
idade. Como menino e como jovem, ganhava seu sustento tomando conta de
ovelhas e cabras.
Mais tarde se tornou condutor de camelos. Na idade de vinte e cinco,
casou-se com Cadijah, que tinha quarenta anos. Essa união foi altamente
feliz. Ele era um homem honesto e correto, inatacável em seus relacionamen­
tos domésticos e universalmente estimado por seus concidadãos, que lhe
outorgaram o cognome de ElAmin - “o confiável”. “Maomé era um homem
de estatura média, mas de presença imponente; bastante magro mas com
ombros largos e peito amplo; cabeça grande, rosto franco e ovalado, de pele
clara, olhos negros inquietos, longas e espessas pestanas, nariz proeminente
e aquilino, dentes brancos e barba cheia e espessa.... Era um homem de
constituição altamente nervosa, pensativo, inquieto, tendente à melancolia e
de extrema sensibilidade, sendo incapaz de suportar o mais leve odor desagra­
dável ou a menor dor física. .. .Era simples em seus hábitos, bondoso e cortês
em suas maneiras e de conversa agradável”. [152:19-20]
Parece que Maomé fora, como jovem e homem de meia-idade, antes de
sua experiência no Monte Hara, sério, devoto e profundamente religioso.
Parece também (como já foi dito) que esta constituição mental é um prérequisito essencial para se alcançar a Consciência Cósmica. Ele percebeu
claramente que a religião de seus conterrâneos estava longe de estar numa
condição satisfatória e lhe pareceu que o momento para uma reforma ou
para um novo começo havia chegado.
Somos informados de que ele se afastou gradualmente da sociedade e procurou a
solidão de um a caverna no M onte H ara (cerca de três léguas ao norte de M eca),
onde, emulando os eremitas cristãos do deserto, passava dias e noites empenhado
em orações e meditação... Tornou-se sujeito a visões, êxtases e transes... Por fim ,
segundo se diz, aquilo que estivera até então oculto em sonhos se tornou manifesto e
claro por um a aparição angélica e um a anunciação divina.
Foi no quadragésimo ano de sua vida que ocorreu essa famosa revelação. Escritores
muçulmanos nos dão relatos a seu respeito, como se a tivessem recebido dos próprios
lábios de M aom é e há alusões a ela em certas passagens do Alcorão. Como era de
seu costum e, ele estava passando o m ês de R am adã na caverna do M onte H ara,
tentando, por m eio de jeju m , de oração e de m editação solitária, elevar seus
pensamentos à contemplação da verdade divina.
Foi na noite que os árabes chamam de A l Kader, ou O Decreto Divino; uma noite
em que, segundo o Alcorão, anjos descem à Terra e Gabriel traz os decretos de Deus.
Durante essa noite há paz na Terra e um a quietude santa reina sobre toda a natureza
até o amanhecer.
Quando M aom é, na silenciosa vigília da noite, estava deitado, envolto em seu
manto, ouviu um a voz que o chamava. Quando descobriu a cabeça, uma onda de luz
irrompeu sobre ele num esplendor tão insuportável que ele desmaiou. Ao recuperar
os sentidos, viu um anjo numa forma humana que, aproximando-se a certa distância,
mostrou um tecido de seda coberto de caracteres escritos. “leia!" disse o anjo. “Não
sei ler!”- respondeu Maomé. "leíal" - repetiu o anjo - “em nome bo Ãettfjor que criou
tobaí as toftas; que criou o bomem be um coágulo bt «angue. leia, em nome bo SltíMfoio, que
eníínou ao bomem o uío ba pena, que bertama em <ua alma o raio bo conhecimento e Uji ensina
aquilo que ele anteí não tafcía”.
Com isso Maomé sentiu instantaneamente seu discernimento iluminado com luz
celestial e leu o que estava escrito no pano, que continha o decreto de Deus, conforme
foi posteriormente promulgado no Alcorão. Quando terminou, o mensageiro celestial
anunciou: “0 , íHaomí. em berbabe ís o profeta be fietuít < eu (ou deu lãnjo gataieir
Diz-se então que M aomé voltou tremendo e agitado para Cadijah, pela manhã,
sem saber se o que ouvira e vira fora efetivamente verdadeiro e se ele era um profeta
decretado para levar a efeito a reforma que por tanto tempo havia sido o objeto de
suas meditações, ou se não poderia ser um a mera visão, um engano dos sentidos ou,
pior ainda, a apariçãó de um espírito mau [102:32-3].
No caso de Maomé, a Iluminação aconteceu no mês de abril, ou por volta
deste mês. Ocorreu no mês árabe de Ramadã (82a:553). Ora, no primeiro
ano após a Hégira, este mês caía em nosso mês de dezembro. Mas o ano
maometano tem dez dias a menos do que o tempo realmente gasto pela rotação
da Terra em sua órbita. Está claro, portanto, que qualquer data maometana
deva cair dez dias mais cedo, ano após ano. A Hégira ocorreu doze anos após
a iluminação de Maomé. Então, se o mês de Ramadã correspondeu a dezembro
logo depois da Hégira, deve ter correspondido a abril na época da iluminação
do profeta. Essa iluminação, portanto, deve ter acontecido em abril.
Se Maomé foi um caso de Consciência Cósmica, este fato deve transparecer
claramente nos escritos que ele deixou para o mundo. Será que transparece?
Na verdade, esses escritos não são facilmente compreendidos numa tradução
para inglês e do ponto de vista ocidental moderno. Notem-se, por exemplo,
as observações de um leitor que pode ser considerado competente para apreciar
uma obra como o Alcorão. Diz Carlyle a respeito dela [59:295]: “É a leitura
mais trabalhosa que já fiz. Uma mixórdia enfadonha e confusa, com
infindáveis e desordenadas repetições, grande prolixidade, complicada; em
suma, uma insuportável tolice” e assim por diante.
Mas apesar disso tudo, mesmo multiplicado milhares de vezes, devemos
considerar que a grandeza, o poder, a espiritualidade do livro, são comprova­
dos pelos resultados que ele produziu no mundo. Nenhum efeito pode ser
maior do que sua causa e neste caso tem de ser admitido que o efeito (a
elevação espiritual de muitos milhões de pessoas por muitas gerações) foi
enorme. Além disso, parece ao autor deste livro que, apesar da indubitável
dificuldade acima referida, quase qualquer leitor imparcial pode perceber
por si próprio, numa leitura atenta do Alcorão, que este tem grandes quali­
dades, muito embora esse leitor possa não ser capaz de apreendê-las total­
mente.
Mas há uma outra razão para não encontrarmos no Alcorão exatamente
aquilo que queremos para nosso propósito atual. Ele está escrito inteiramente
do ponto de vista do Sentido Cósmico; como diria seu autor, é todo ditado
por Gabriel. Não há passagens em que o Maomé autoconsciente nos fale do
Maomé cosmicamente consciente - como as que ocorrem com grande
freqüência nos escritos de Yepes, Whitman e outros - passagens escritas do
ponto de vista dos Sonetos de “Shakespeare”. Não obstante, aqui e ali há
frases no Alcorão que quase certamente se referem à experiência em questão,
como, por exemplo, as seguintes:
N a verdade, na criação do céu e da terra, e na alternância da noite e do dia, e no
navio que singra o mar com aquilo que dá lucro ao homem, e na água que Deus faz
desccr do céu e que reanima a terra após
sua morte e largamente nela espalha todas
as espécies de gado, e no mudar dos ven­
tos, e nas nuvens que são compelidas ao
serviço entre céu e terra, estão sinais para
as pessoas que podem com preender
[151:22]. (*1)
(*1) Maomé está procurando indicar a certeza
(para ele) de um Deus infinitamente bom
e de vida eterna Ele usa aqui a mesma linguagem
que Whitman emprega a este mesmo respeito:
“Eu vos ouço murmurando ali, Ó estrelas do céu,
O sóis, O relva de sepulturas, Ó perpétuas
transferências e promoções, se nada dizeis, como
posso eu dizer alguma coisa?” [193:77]
E quando dissemos a ti “Em verdade (*2) “A visão”- evidentemente, a visão cós­
mica.
teu Senhor abraça os homens!” e fizemos
com que a visão que a ti mostramos fosse
a causa única de sedição entre os homens, e a árvore amaldiçoada também; pois nós
os assustaremos, mas isto só os aumentará em grande rebelião. [153:7] (*2)
Eles perguntarão a ti do espírito. Dize: “O espírito vem por ordem de meu Senhor
e vós recebeis apenas um pequeno conhecimento dele”. Se assim tivéssemos desejado,
teríamos retirado aquilo com que a ti ins­
piramos: então tu não terias encontrado (*3) Ele fala do “espírito” que o visita “Gabriel”, o Sentido Cósmico - e usa
nenhum guardião contra nós, a não ser
quase as mesmas palavras de Jesus: “O vento
por misericórdia de teu Senhor; verda­ assopra onde quer, e ouves a sua voz, mas não
deiramente, sua graça para contigo é sabes donde vem, nem para onde vai; assim é
grande [153:10]. (*3)
todo aquele que é nascido do Espírito” [17:3:8]
Não descemos senão por ordem do
teu Senhor: Dele é o que está diante de
nós, e o que está atrás de nós e o que está
entre os dois; pois teu Senhor não é nunca
desatento - o Senhor dos céus e da terra
e do que está entre os dois; então serve-O
e persevera em Seu serviço [153:31-2].
(*4)
(*4) “Não descemos”. A observação de Palmer
quanto a estas palavras é: “Entre várias
conjeturas, a mais usualmente aceita pelos
comentaristas maometanos é que estas são as
palavras do anjo Gabriel em resposta à queixa
de Maomé quanto aos longos intervalos que
transcorriam entre os períodos de revelação.
Compare-se, no capítulo dedicado a Bacon, o
Soneto xxxiii e o respectivo comentário.
N a verdade a hora está chegando,
quase a faço aparecer, em que todas as
almas possam ser recompensadas por
seus esforços [153:35]. (*5)
(*5) As palavras “quase a faço aparecer”
parecem referir-se ao sentimento quase
universal ou de fato universal, daqueles que têm
consciência cósmica, de que a dotação universal
com essa faculdade está próxima, é iminente, e
de que um indivíduo que tenha essa faculdade poderá outorgá-la quase à vontade. “Outorgo”, diz
Whitman, “a qualquer homem ou mulher a obtenção de todas as dádivas do universo”. Naturalmente,
há um sentido em que estas duas proposições são verdadeiras: (1) A nova faculdade está se tomando
universal e (2) esses homens que têm a faculdade de fato a outorgam àqueles que sejam elegíveis
dentre os que entrem em contato com eles.
Esta vida do mundo nada mais é que um esporte ou um jogo; mas, na verdade, a
morada do próximo mundo - isto é, a
vida. Se eles apenas soubessem disso!
(*6) A distinção entre a vida autoconsciente e a
1153:124]. (*6)
vida cosmicamente consciente.
Àquele que deseja a colheita do pró­
ximo mundo, aumentaremos a colheita
para ele; e àquele que deseja a colheita
deste mundo, desta daremos a ele, mas
no próximo não terá a menor porção
[153:207]. (*7)
A vida deste mundo é apenas um jogo
e um esporte; mas se creres em Deus e o
temeres, ele te dará teu salário [153:232],
(*8)
E toda alma virá - e com ela um guia
e uma testemunha! Estavas indiferente a
isto e nós retiramos teu véu de ti; hoje,
tua visão está aguçada! [153:243] (*9)
E o paraíso será trazido para perto
dos piedosos - não longe deles [153:243].
(* 10)
Isto é que está prometido a vós, a
todos que se voltam freqüentemente (para
Deus) e que guardam Seus mandamentos,
que temem os misericordiosos em segre­
do e trazem um coração contrito. Entrai
nele em paz; este é o dia da eternidade!
[153:244] (*11)
E escutai o dia em que aquele que
clama clamará de um lugar próximo - o
dia em que eles ouvirão na verdade o
clamor - isto é, o dia da manifestação
[153:244] (*12)
Sabei que a vida deste mundo nada
mais é que um esporte e um jogo, um
adorno e algo de que vos vangloriardes
entre vós mesmos; e a multiplicação de
filhos é como o crescimento proporciona­
do pela chuva; sua vegetação agrada aos
incrédulos; então eles murcham e podeis
vê-los se tornarem amarelos; depois se
tornam apenas pó [1 5 3 :2 6 8 ]. (* 1 3 )
(*7)
Um homem rico, pelo mero fato de o ser
não está apto a entrar em consciência
cósmica. Se o faz, provavelmente abandona sua
riqueza, como o fizeram Gautama e E.C. Se,
entretanto, um homem (não a tendo) deseja
ardentemente a riqueza, ou (tendo-a) concentra
seu coração nela, com certeza “não terá a menor
porção” na Consciência Cósmica.
(*8)
A insignificância da vida autoconsciente,
em comparação com a vida cosmicamente consciente.
(*9)
“Retiramos teu véu” - referência à
iluminação de Maomé. Ele “viu os céus
rasgarem-se” [15:1:10].
(*10) “...o reino de Deus está próximo”
[16:21:31] “...o reino de Deus está dentro
em vós” [16:17:21]
(*11) A Iluminação - o Sentido Cósmico - a
Bem-aventurança Bramânica - o Reino
de Deus - é corretamente chamado aqui de “o
dia da eternidade”, uma vez que a admissão nele
é a admissão na imortalidade - a eternidade.
(*12) O caráter súbito e inesperado do advento
da Consciência Cósmica é encontrado
nos escritos de praticamente todos os que
vivenciaram a iluminação. “Aquele dia - o dia
da libertação - virá a vós, mas não sabeis o lugar;
virá, mas não sabeis a hora. No púlpito, enquanto
estiverdes pregando o sermão, de repente todas
as amarras e faixas cairão; na prisão, um virá e
saireis livre para sempre. No campo, com o
arado; ao lado de vosso cavalo, no estábulo; em
meio a vossa vida de costume e recebendo *
chamados matutinos; em vossa sala de visitas mesmo aí, quem sabe? Oportunamente, na hora
certa, virá ” [61:231].
(*13) A insignificância da vida meramente
autoconsciente.
N a verdade o estabelecemos na Noite
do Poder!. E quê te fará saber o que seja
a N oite do Poder? A N oite do Poder é
m e lh o r que m il m eses! N e ssa n o ite
d escem os an jo s e os esp írito s, pela
permissão de seu Senhor, com todas as
ordens [153:337], (*14)
(*14) “O estabelecemos”, o Alcorão, “ANoite
do Poder” (a noite da iluminação de
Maomé) “é melhor que mil meses!” Assim,
Boehme, referindo-se à sua iluminação, diz
[40:15]: “O portal me foi aberto e em um quarto
de hora vi e conheci mais do que se tivesse
passado muitos anos na universidade.”
Neste caso temos autenticamente relatados (ao que parece) todos os
elementos fundamentais necessários para constituir um caso de Consciência
Cósmica:
a.
b.
c.
d.
e.
f.
g.
A luz subjetiva.
A elevação moral.
A iluminação intelectual.
O senso de imortalidade.
O caráter decisivo, súbito e inesperado do advento do novo estado.
O caráter mental e físico anterior da pessoa.
A idade da iluminação, aos 40 anos, mais tarde do que em média, mas
enquanto ainda estava em seu apogeu.
h. O encanto acrescentado à sua personalidade, de modo que ele pôde
conquistar e manter seguidores devotados.
DANTE
Nasceu em 1265. Faleceu em 1321.
Balzac [9:241 e 263] dá a entender claramente sua convicção de que
Dante era um “Especialista”; este é o nome que ele usava para a pessoa que
tem Consciência Cósmica. Provavelmente conhecia Dante muito bem e não
podia estar equivocado neste particular, já que ele próprio era um “Especia­
lista”; pois, assim como um músico sabe se um outro homem é ou não um
músico, como um poeta sabe se um outro homem é ou não um poeta, como
um pintor sabe se um outro homem é ou não um pintor, como um homem
com o sentido da visão, que viva num país habitado por homens quase todos
cegos, deve saber quais dos seus conhecidos enxergam e quais não enxergam,
assim, hoje e todos os dias um homem que tenha o Sentido Cósmico saberá
de qualquer homem que conheça, pessoalmente ou por suas obras, se este
também o tem ou não. Portanto, poderíamos confiantemente aceitar a palavra
de Balzac de que Dante era dotado do Sentido Cósmico; mas não o façamos
ainda - procuremos verificar isto por nós mesmos.
I
A vida pessoal e a personalidade de Dante estão praticamente perdidas
para nós do século XIX. Parece claro, no entanto - e a natureza de seus
escritos indicaria a mesma coisa - que, como diz Boccaccio [81:809], Dante,
ainda jovem, foi:
Tomado da doçura de saber a verdade das coisas ocultas no céu e, não considerando
nenhum outro prazer mais caro a ele na vida, deixou para trás todos os outros cuidados
mundanos e se entregou somente a isso, e, para que nenhuma parte da filosofia
permanecesse desconhecida dele, mergulhou com inteligência perspicaz nos mais
profundos recessos da teologia e a tal ponto foi bem sucedido em seus desígnios que,
pouco se preocupando com o frio ou o calor, com as horas de vigília ou de jejum, ou
com qualquer outro desconforto físico, estudando assiduamente, veio a conhecer da
divina essência e das outras distintas inteligências tudo o que o intelecto humano
pode compreender.
E dele diz Leonardo Bruni que:
Pelo estudo de filosofia, teologia, astrologia, aritmética e geometria, pela leitura
de história e revirando muitos livros curiosos, esforçando-se muito em seus estudos,
adquiriu a ciência que iria adornar e explicar em seus versos.
Tudo isso indica que Dante tinha natureza reflexiva, estudiosa, diligente,
e podemos interpretar este fato como significando, ou que em seu caso esse
tipo de vida levou a um elevado gênio poético, dentro dos limites da
autoconsciência, ou que levou (como aqui se pretende) à Consciência
Cósmica. Em todo caso, a juventude de Dante parece ter sido tal como a que
encontramos em homens que atingem a iluminação.
II
Bem, quanto ao homem exterior, diz Boccaccio [111:200]:
Nosso poeta era de estatura mediana e, quando atingiu idade mais avançada,
tornou-se um tanto encurvado; seu andar era solene e tranqüilo; sempre trajado
adequadamente, sua roupa era apropriada para sua idade; seu rosto era longo, seu
nariz aquilino, seus olhos mais para grandes do que para pequenos, seu maxilar forte
e seu lábio inferior proeminente; sua pele era amorenada e seu cabelo e sua barba
espessos, negros e crespos; seu semblante era sempre triste e pensativo... Suas
maneiras, em público ou no lar, eram maravilhosamente serenas e controladas e em
todo o seu modo de ser ele era mais cortês e civilizado do que qualquer outra pessoa.
Charles E. Norton [111:204] diz de uma máscara mortuária do poeta
indubitavelmente autêntica:
O rosto é um dos mais patéticos que olhos humanos possam ter visto, pois mostra
em suà expressão o conflito entre a natureza forte do homem e as duras marcas do
destino - entre a idéia de sua vida e a experiência prática da mesma. Força é o
atributo mais notável do semblante, mostrada igualmente na larga fronte, no nariz
masculino, nos lábios firmes, no maxilar forte e no queixo largo; e essa força,
decorrente dos traços principais de seu rosto, é enfatizada pela força das linhas de
expressão. O olhar é grave e duro quase ao ponto de ferocidade; há nas sobrancelhas
algo de desdenhoso e na fronte uma contração como que causada por pensamentos
penosos; porém, obscurecidas sob esse olhar mas não perdidas, vêem-se as marcas
da ternura, do refinamento e do autodomínio, que, em combinação com características
mais óbvias, dão ao semblante do poeta falecido uma dignidade e uma melancolia
inefáveis . Não há sinais de fraqueza ou de fracasso. E a imagem de uma fortaleza,
de um a alma forte, “apoiada em consciência e num a vontade inexpugnável”,
contundida pelos golpes de inimigos de fora e de dentro, com as paredes marcadas
por muitos sítios, mas permanecendo firme e inabalável contra todos os ataques, até
o fim do conflito.
ra
Quanto à qualidade da mente de Dante e de sua obra, convém citar aqui,
brevemente, a autoridade que é talvez a mais alta dos últimos tempos. Diz
ela:
O relato dantesco do Inferno, do Pur- (*1) Naturalmente, isto é necessariamente
gatório e do Paraíso não é um sonho arbiverdadeiro de todo livro que emana do
trário ou fantástico, mas a personificação Sentido Cósmico e é por ele ditado,
vívida e verossímil de uma profunda filosofia (*1) [179:104],
Enquanto isso, deixando aos antiquários a elucidação da linhagem das idéias de
Dante, podemos observar que desde sua primeira infância ele tinha sonhos e visões
e ele próprio sugere, no final de Vita Nuova, que a visão da Comédia lhe veio como
uma revelação enquanto ponderava sobre (*2) Esse escritor, embora nada saiba a respeito
a idéia da morte e sobre a memória de
de Consciência Cósmica, adota, por assim
Beatrice (*2) [179:109],
dizer forçosamente, a mesma teoria de Dante e
sua obra aqui proposta.
O objetivo de toda a obra (escreve
ele a Can Grande) é fazer aqueles que
vivem nesta vida deixarem seu estado de
infortúnio e guiá-los a um estado de
felicidade (*3) [179:110].
(*3) O principal objetivo da vida no caso de todo
(?) homem que tenha Consciência Cósmica
é outorgá-la à espécie humana e cada um deles
sente em si mesmo algum poder para assim
outorgá-la.
IV
Na Divina Comédia (livro rigorosamente paralelo a Comédie Humaine
ou a Leaves o f Grass, no sentido de que é um quadro do mundo do ponto de
vista do autor), Dante fala primeiro, no Inferno, da vida humana tal como
vista entre malfeitores, os “pecadores”, os “perversos”. Depois, no Purgatório
- “aquele segundo reino onde o espírito humano é purificado e se torna
digno de ascender ao céu” [71:1] - ele fala da vida humana tal como vista
naqueles que estão lutando para alcançar a luz - que estão tentando levar
uma vida boa mas que estão ainda sobrecarregados por defeitos hereditários,
faltas cometidas, maus hábitos formados, ambientes infelizes e outras
circunstâncias adversas. Estas são as melhores criaturas - apenas sem
iluminação. Mas, no Paraíso, Dante trata do novo mundo do Sentido Cósmico
- do reino de Deus - do Nirvâna.
Beatrice - “Que Beatífica”, “Que Faz Feliz” - é o Sentido Cósmico (que,
de fato, é o único que beatífica, que faz feliz). O nome pode ter sido sugerido
por uma bela jovem (que tivesse esse nome). Se foi assim, a coincidência é
curiosa.
Que o significado é este, parece claro a julgar por centenas de passagens.
Tomemos uma. Virgílio diz a Dante: “O quanto a razão aqui vê, posso te
dizer; o que ultrapassa isso [o que ultrapassa a razão, a mente autoconsciente]
espera ainda por Beatrice” [71:114], Que é que está além da razão - da
mente autoconsciente - senão a Consciência Cósmica?
Dante vagueia pelo mundo autoconsciente (“Inferno” e “Purgatório”),
guiado por Virgílio (escolhido como esplêndido exemplo e tipo da mente
autoconsciente e, também, provavelmente porque fora realmente um dos
principais guias de Dante antes de sua iluminação). Mas Virgílio não foi um
caso de Consciência Cósmica e, naturalmente, não pode entrar no Paraíso.
Beatrice (o Sentido Cósmico) é quem guia Dante para este reino e neste
reino.
A Vita Nuova de Dante, escrita no fim do século XIII, foi publicada pela
primeira vez em 1309, quando ele tinha quarenta e quatro anos de idade.
Bem no final dessa obra, Dante parece falar do advento da Consciência Cós­
mica.
A Divina Comédia foi concluída em 1321, enquanto o período de sua
elaboração está estritamente limitado ao fim de março e ao começo de abril
de 1300 [81:815], período em que Dante tinha trinta e cinco anos de idade.
Parece quase certo que essa tenha sido a data de sua iluminação. Teria então
sido a idade típica e na estação do ano típica e nada parece contradizer esta
suposição. É uma suposição plausível que o livro anterior, Vita Nuova, estava
sendo escrito no começo da primavera de 1300 e que, quando a iluminação
ocorreu, esse livro foi encerrado, para dar lugar a uma obra maior a ser
então começada; e que esta nova obra, a Divina Comédia, foi de fato iniciada
nessa data.
V
Vita Nuova [68] termina da seguinte maneira:
Após este soneto, uma visão maravilhosa me apareceu, na qual vi coisas que me
fizeram resolver não mais falar dessa abençoada (Beatrice) antes que pudesse tratá-
la mais dignámente. E, para conseguir isto, estudo ao máximo de minhas forças,
como ela bem o sabe. Assim, se for do agrado Daquele graças ao qual todas as coisas
vivem, que minha vida seja prolongada por alguns anos, espero dizer dela aquilo que
jamais foi dito de mulher alguma.
VI
Agora acompanharemos a experiência de Dante, tanto quanto possível
em suas próprias palavras, usando sempre, como fizemos acima, a tradução
de Charles Elliott Norton. Primeiro consideraremos passagens do Purgatório
que descrevem a aproximação de Dante da terra divina. Quando ele está
para entrar em Consciência Cósmica, Virgílio diz a seu respeito:
N ã o m ais esperes nem palavra nem
sinal de m im . L ivre, íntegro e equilibrado
em teu próprio livre arbítrio, e seria errado não agires em conform idade com ele;
por isso em ti acim a do teu eu a coroa ou
m itra coloco. [71:176] (*1)
(*1) Há dois pontos aqui que merecem ser
observados: (1) Quando o Sentido Cósmico advém, as regras e os padrões próprios
^ autoconsciência são suspensos. “Confrontados, repelidos e postos de lado”
[193:153] é a expressão de Whitman.
Nenhum homem com o Sentido Cósmico
aceitará orientação (nos assuntos da alma) de outro homem ou de qualquer suposto Deus. Em seu
próprio coração ele tem á sua disposição o mais alto padrão acessível e a este aderirá e terá de aderir;
somente a este poderá obedecer. ( 2 ) 0 outro ponto é a duplicação do indivíduo: “em ti acima do teu
eu”. Comparem-se estas palavras com as de Whitman, “O outro Eu-sou”; com as de “Shakespeare”
[176:62], “E a ti (meu Eu) que para mim mesmo eu louvo”; comas de Paulo, “Se qualquer homem
está em Cristo, ele é uma nova criatura”; com as de Jesus, “A menos que um homem nasça
novamente”. Um novo indivíduo deve nascer dentro do antigo e, assim nascendo, viverá sua própria
e distinta vida.
Virgílio se retira. A mente autoconsciente abdica de sua soberania na
presença da autoridade maior. Dante entra em relação imediata com Beatrice
- a Consciência Cósmica.
Uma senhora me apareceu, trajada
com a cor da chama viva. Voltei-me para
a esquerda, na confiança com que a crian­
ça pequena corre para sua mãe quando
está am edrontada ou quando está em
dificuldade, para dizer a Virgílio: “Menos
do que uma dracma de sangue resta em
mim que não esteja tremendo, eu reco­
nheço os sinais da antiga chama”; mas
Virgílio nos tinha deixado privados dele
próprio [71:191]. (*2)
(*2) O Sentido Cósm ico vestido da luz
subjetiva. No umbral do novo sentido,
Virgílio (caracterizando aqui a faculdade
humana sem o Sentido Cósmico) deixa Dante.
Não que a consciência simples e a autocons­
ciência nos abandonem quando entramos em
Consciência Cósmica, mas de fato deixam de nos
guiar - “a visão tem uma outra visão, a audição
uma outra audição, e a voz uma outra voz”.
[193:342]
Conforme meu rosto inelinou-se para cima, meus olhos viram Beatrice. Por trás
de seu véu e além do riacho, ela me pareceu mais superar seu antigo ego do que
superara os outros aqui quando estava
aqui [71:198], (*3)
(*3) O novo mundo está ainda velado e distante,
Q uando eu estava perto daquela
abençoada praia, a bela senhora [a nature­
za?] abriu seus braços, pegou minha
cabeça e me submergiu até o ponto em
que tive de engolir água [71:199], (*4)
Oh, esplendor de luz viva, eterna!
quem se tornou tão pálido sob a sombra
do Parnasso, ou bebeu tanto em sua
cisterna que não pareceria ter sua mente
embaraçada, tentando representar a ti tal
como lá apareceste, onde em harmonia o
céu te encobriu quando no ar livre te
revelaste? [71:201] (*5)
mas mesmo assim sua glória transcende em
muito todas as coisas do velho mundo da mera
autoconsciência.
(*4) Nota de Norton: “O beber das águas do
Letes que obliteram a memória do pecado”.
Não há sentido de pecado na Consciência
Cósmica.
(*5) O poeta m ais preparado (ao nível de
autoconsciência), por estudo e prática, não
poderia representar o novo mundo quando este
livremente (no ar livre) mostra a si mesmo.
“Nenhuma escola ou sala fechada pode comun­
gar comigo”, diz o Sentido Cósmico pela língua
de Whitman [193:75],
Beatrice (o Sentido Cósmico) diz Dante:
Tu estarás comigo, para sempre um
cidadão da Roma de que Cristo é um
romano. [71:206] (*6)
(*6) Dante entra em igualdade com Jesus.
Compare-se Whitman: “A ele que foi
crucificado” [193:298],
E Beatrice diz ainda a ele:
Do m edo e da vergonha desejo que
tu doravante te despojes. [71:211] (*7)
(*7) Compare-se o que diz Balzac, “Jesus era
um Especialista” e o que diz Paulo,
“Herdeiros de Deus e co-herdeiros em Cristo” .
Nem medo e nem vergonha podem existir juntamente com o Sentido Cósmico.
VII
Isto é suficiente quanto à aproximação do advento do Sentido Cósmico.
Vejamos agora o que Dante diz a seu respeito após ter entrado nele.
A glória Daquele que move todas as coisas penetra o universo todo e brilha mais
numa parte e menos numa outra. No céu que recebe a maior parte da sua luz eu
estive e vi coisas que aquele que de lá do pg) ^
pau,o ouyiu ,.palavras inefiveis” e
alto desce não sabe como contar nem pode
Whitman, quando ''tentou dizer o melhor”
fazê-lo. [72:1] (*8)
daquilo que tinha visto, ficou mudo.
De repente dia pareceu ser acrescentado ao dia, como se aquele que pode
fazê-lo tivesse adornado o céu com um
outro sol. [72:4] (*9)
(*9) “Como num desmaio, num instante, um
outro sol, inefável, plenamente me
deslumbra [1 9 2 :207],
Trata-se, naturalmente, da luz subjetiva vista por Maomé, Paulo e outros,
no momento em que entraram no Sentido Cósmico.
Beatrice estava de pé, com seus olhos concentrados nas rodas eternas e nela fixei
meus olhos, do alto desviados. Olhando para ela, tornei-me interiormente como
Glaucus (*1) se tornou ao provar da erva
(*1) Glaucus - timoneiro da nave Argo - que
que o fez companheiro no mar dos outros
foi transformado num deus.
deuses . A transhumanização não pode
ser expressa em palavras; portanto, que (*2) De Glaucus.
o exemplo (*2) seja suficiente para
aquele a quem a graça reserva a (*3) Se eu continuasse a ser um mero ser
humano.
experiência. Se apenas eu fosse o que de
mim tu criaste por derradeiro (*3), Ó (*4) O desejo de Deus leva um homem da
amor que governas os céus, tu sabes, tu
autoconsciência para a Consciência Cós­
que com tua luz me soergueste.
mica e essa revolução, quando efetiva, é eterna.
Quando a revolução que tu, sendo
desejado, tornas eterna (*4), fez-me aten­
tar para ela mesma com a harmonia que
tu harmonizas e modulas, tanto do céu
então me pareceu inflamado pela chama
do sol, que chuva ou rio jamais fizeram
tão grande lago. [72:4]
Q uando D ante despertou no Sentido
Cósmico, no novo Cosmo, a primeira coisa que
o impressionou (como é e tem de ser a primeira
coisa a impressionar qualquer pessoa que assim
desperte) foi a visão das “Rodas Eternas”- a
“Corrente da Causação” —a ordem universal —
uma visão que transcende infinitamente qualquer
expressão por palavras humanas. Seu novo Eu
- Beatrice - tinha seus olhos concentrados nisso, no desabrochar Cósmico. Concentrando-se ele
mesmo nisso, a visão Cósmica e o êxtase Cósmico o transhumanizaram num deus. É a visão da
ordem universal que vem instantaneamente, iluminando o mundo assim como o relâmpago ilumina
o panorama, porém, ao contrário do relâmpago, persistindo, o que levou o autor deste livro a adotar
o termo Consciência Cósmica - uma Consciência do Cosmo. Compare-se a experiência de Dante
com a de Gautama, conforme é apresentada no Maha Vegga [163:208] : “Durante a primeira vigília
da noite, ele fixou sua mente na corrente da causação; durante a segunda vigília, fez o mesmo;
durante a terceira, fez o mesmo”. E, como já foi mostrado, este é um dos relatos mais antigos e mais
confiáveis da iluminação de Buda.
Dante escreveu a Divina Comédia após sua iluminação. Nela (como um
todo) deve ser procurada a expressão que ele pôde dar à visão Cósmica.
Trata-se, portanto, de uma declaração paralela à do Alcorão, dos Upanishads,
dos Suttas, das epístolas de Paulo, das palavras de Jesus, da Comédie
Humaine, de Leaves o f Grass, das peças e dos sonetos de “Shakespeare”,
das obras de Behmen e de Rumo à Democracia.
Em suma, temos neste caso:
a. A subitaneidade característica do advento do Sentido Cósmico.
b. A iluminação ocorre na idade e na época do ano típicas.
c. A luz subjetiva é um aspecto fortemente destacado.
d. A iluminação intelectual.
e. A elevação moral.
f. O senso de imortalidade.
g. A extinção do senso de pecado e de vergonha, bem como do medo da
morte.
BARTOLOMÉ LAS CASAS
Nasceu em 1474; faleceu em 1566.
“Um dos homens mais notáveis do século XVI” [128:206], “Las Casas
foi a estrela mais brilhante dessa pequena constelação [os primeiros hispanoamericanos]. Com olhos de vidente viu e em palavras de profeta predisse o
julgamento que recairia sobre a Espanha pelos horrores perpetrados contra
os aborígines”[119:706].
“Bartolomé Las Casas nasceu em Sevilha, em 1474. Sua família, uma
das mais nobres da Espanha, era de origem francesa, descendente dos Viscon­
des de Limoges. Eles já estavam na Espanha antes do século XIII e desempe­
nharam papel de destaque na conquista de Sevilha, resgatada dos mouros
por Ferdinando III de Castilla, em 1252. Dessa data em diante, membros da
família ocuparam cargos de confiança e entre seus traços de caráter destaca­
vam-se uma coragem indómita e uma integridade imaculada. De nascimento
e educação, Bartolomé era um aristocrata dos pés à cabeça.”[89:437]
Las Casas foi para Hispaniola e se estabeleceu numa propriedade nesta
ilha em 1502.
Pouco se sabe de sua primeira ocupação nessa ilha, com exceção do fato de que
ele parece ter estado mais ou menos preocupado em ganhar dinheiro, como todos os
outros colonos. Por volta de 1510, foi ordenado sacerdote. Realizou três ou quatro
vocações, tendo sido um sequioso homem de negócios, um historiador dedicado e
preciso, um grande reformador, um grande filantropo e um vigoroso eclesiástico.
[98:2]
Era eloqüente, perspicaz, confiável, corajoso, desprendido e piedoso [98:3],
Sua vida foi dessas que transcendem a biografia e requerem que uma história
seja escrita para ilustrá-las. Sua carreira proporciona talvez um exemplo singular de
um homem que, não sendo nem um conquistador, nem um descobridor, nem um
inventor, tornou-se, pela simples força de sua benevolência, uma figura tão notável
que grandes trechos da história não podem ser escritos, ou pelo menos não podem
ser compreendidos, sem se fazer da narrativa de seus feitos e esforços um dos fios
principais com que a história seja tecida. No período inicial da história americana,
Las Casas é indubitavelmente a figura principal. Ele foi justificadamente chamado
de “o Grande Apóstolo das índias”[98:289],
Era uma pessoa de tão imensa habilidade e força de caráter que, em qualquer
época do mundo que tivesse vivido, sem dúvida teria sido um de seus homens mais
proeminentes. Como homem de negócios, tinha raro poder executivo. Era um grande
diplomata e um pregador eloqüente, um homem de energia titânica, ardoroso mas
controlado, de invencível tenacidade, caloroso de coração e temo, calmo em seus
julgamentos, de humor perspicaz, absolutamente destemido e absolutamente autêntico.
Fez muitos e implacáveis inimigos, alguns dos quais eram por demais inescrupulosos;
mas creio que ninguém jamais o tenha acusado de qualquer pecado pior do que
extremo fervor de temperamento. Sua ira subia a um ponto de incandescência e de
fato houve bastante ensejo para isto. Era também propenso a dizer o que pensava e
proclamar verdades desagradáveis com pungente ênfase. [89:439]
Por volta de 1510, a escravatura dos índios, sob os nomes de repartimentos e
encomiendas, tinha se tomado deploravelmente cruel. A vida de um índio não tinha
o menor valor. Era mais barato fazer um índio trabalhar até a morte e depois apanhar
um outro, do que cuidar dele e, por isto, os escravos eram forçados a trabalhar até a
morte, sem misericórdia. De tempos a tempos eles se rebelavam e então eram
“massacrados às centenas, queimados vivos, empalados em estacas aguçadas, feitos
em pedaços por cães de caça.” [89:443]
Las Casas, por dom natural, era um homem muito versátil, que encarava os
assuntos humanos de vários pontos de vista. Em outras circunstâncias ele não teria
precisado se transformar num filantropo, embora qualquer carreira para a qual pudesse
ter sido atraído não pudesse ter deixado de ser honrada e nobre. A princípio ele
parece ter sido o que se poderia chamar de um homem de mentalidade mundana.
Mas o fato mais interessante que podemos encontrar a seu respeito é seu firme
desenvolvimento intelectual e espiritual; de ano para ano ele se alçava a planos de
pensamento e sentimento cada vez mais altos. Como outros, foi de início um senhor
de escravos e nisto nada via de mal. Mas desde o começo sua natureza bondosa e
compassiva se fez presente e seu tratamento dos escravos era tal que eles o amavam.
Era um homem de aspecto impressionante e facilmente distinguível, e os índios em
geral, que fugiam à vista de um homem branco, logo passaram a reconhecê-lo como
um amigo em quem sempre podiam confiar. [89:448]
Entre 1512 e 1513, Velasquez conquistou Cuba, reduzindo os nativos à
escravidão. Las Casas logo o seguiu à ilha e dele recebeu uma participação
numa grande aldeia de índios. Tomou posse como era de esperar e estabele­
ceu-se na ilha.
Chegamos agora ao fato específico que, se podemos confiar que aconteceu
tal como é contado, prova (juntamente com os fatos de sua vida) que Las
Casas foi um caso de Consciência Cósmica. E não apenas isto, mas parece -
a julgar por seu supremo vigor físico e mental, prolongado até uma idade
avançada, por sua esplêndida natureza moral, por seu intelecto, que se diz
que seus escritos provam que era de primeira classe, por seu magnetismo
pessoal e por seus elevados dons espirituais - que este homem se conta entre
os exemplos supremos daqueles que têm sido dotados dessa esplêndida
faculdade.
Era dever de Las Casas rezar a missa e vez por outra fazer um sermão e, pensando
no sermão de Pentecostes, em 1514, ele abriu a Bíblia e seus olhos pousaram nos
seguintes versículos do capítulo 34 de Ecclesiasticus*:
“O Altíssimo não aprova as oferendas do iníquo; nem é ele apaziguado quanto
ao pecado pela multidão de sacrifícios.”
“O pão dos necessitados é sua vida; aquele que dele os defrauda é homem de
sangue.”
“Aquele que tira o sustento de seu próximo o mata; e aquele que defrauda o
trabalhador de seu salário é um derramador de sangue.”
Quando Las Casas leu estas palavras, uma luz do céu pareceu brilhar sobre ele.
Aquilo que lhe bloqueava a visão caiu de seus olhos. Ele percebeu que o sistema de
escravatura estava errado em princípio. [89:450]
Las Casas tinha então quarenta anos de idade. Fiske conta ainda como,
por mais cinqüenta e dois anos, ele levou uma das vidas mais ativas, belas e
beneficentes, vindo a falecer “em Madrid, após uma enfermidade de alguns
dias, com noventa e dois anos. Em toda sua longa e árdua vida - com exceção
talvez de apenas um momento, quando da chocante notícia da destruição de
sua colônia na Pearí Coast (Costa da Pérola) - não encontramos nenhum
registro de trabalho interrompido por doença e, até o fim, sua vista não ficou
fraca nem sua força natural abatida”. [89:481]
Fiske conclui:
Ao se considerar uma vida como a de Las Casas, todas as palavras de louvor
parecem fracas e frívolas. O historiador pode apenas se curvar em reverente respeito,
ante uma figura que, em alguns aspectos, é a mais bela e sublime nos anais do
cristianismo desde a época dos apóstolos. Quando, uma vez ou outra no decurso dos
séculos, a Providência Divina traz ao mundo uma vida como essa, sua memória tem
de ser prezada pela humanidade como uma de suas posses mais preciosas e sagradas.
Para os pensamentos, as palavras, os atos de um homem como este, não há morte. A
esfera de sua influência continua para sempre a se ampliar. Eles brotam, desabrocham,
florescem, dão frutos, de era para era. [89:482]
* N.T. -
Versículos traduzidos diretamente do original, dado que não constam na
Bíblia em português [10] usada nesta edição de Consciência Cósmica.
Como escreveu Las Casas, uma evidência mais ou menos decisiva sobre
o ponto aqui levantado deveria ser encontrada sob sua própria mão. Mas
seus trabalhos eram em maioria curtos e tratavam de tópicos especiais e do
momento; o trabalho em que ele pode ter tocado (se é que tocou) no suposto
evento em sua história pessoal é sua “Historia General de las índias” e este,
lamentavelmente, nunca foi impresso.
Quando faleceu, deixou-o ao convento de San Gregorio, em Valladolid, com
instruções de que não deveria ser impresso por quarenta anos, nem visto durante
este tempo por qualquer leigo ou membro da fraternidade.... A Real Academia de
História revisou o primeiro volume há alguns anos, com vistas à publicação da obra
completa; mas o estilo indiscreto e imaginativo do trabalho, segundo Navarrete, e a
consideração de que seus fatos mais importantes já eram conhecidos através de outros
canais, induziram aquela entidade a abandonar o projeto. Com o devido respeito a
seu julgamento, isto me parece um erro. Las Casas, com toda dedução, é um dos
grandes escritores do país - grande pelas importantes verdades que discerniu, quando
ninguém mais conseguia percebê-las, e pela coragem com que as proclamou ao mundo.
Elas estão dispersas em sua História, bem como em seus outros escritos. Não são,
porém, as passagens transcritas por Herrara [128:212].
É uma inferência razoável, com base nas observações acima, que os escri­
tos de Las Casas têm as qualidades usualmente encontradas naqueles que
procedem da Consciência Cósmica, tais como arrojo, originalidade, nãoconvencionalismo, discernimento aguçado, compaixão e coragem. E acima
de todos estes pontos é bem possível que, fossem seus escritos examinados,
seria constatado que contêm a prova, por declaração direta, de que seu autor
possuía o Sentido Cósmico.
Em suma, Las Casas era presumivelmente possuidor de Consciência
Cósmica, devido:
a. A sua força e à sua saúde fora do comum - e esta grande qualidade ocorre
comumente em excepcionais organismos físicos.
b. A seu “aspecto impressionante” e ao afeto que por ele sentiam os índios
e outros.
c. A seu crescimento mental após a idade em que a estatura intelectual e
moral está usualmente completa.
d. A súbita e imensa mudança que nele ocorreu aos quarenta anos, quando
tinha passado o período da evolução moral dentro do compasso do homem
autoconsciente comum.
e. À estatura intelectual, mas especialmente à estatura moral por ele alcançada
- mais elevada (pode-se dizer com segurança) do que a que pode ser
alcançada dentro dos limites da mera autoconsciência.
f. E devido (se podemos confiar nisto - e parece tão provável que é fácil
acreditar que ocorreu) à luz subjetiva que se diz ter sido por ele vivenciada
por ocasião de Pentecostes, em 1514. Se fosse possível demonstrar que
essa luz tivesse tido a mesma natureza da luz que brilhou em Paulo, Maomé
e outros, então teríamos certeza de que Las Casas teria possuído o Sentido
Cósmico. Mesmo no estado atual do caso, há pouca dúvida quanto a isto.
Não pode ser esquecido que a (suposta) luz subjetiva foi o presságio
imediato do novo nascimento espiritual de Las Casas, nem que esse novo
nascimento ocorreu na época do ano característica - enquanto ele estava
pensando em seu sermão para Pentecostes - portanto, perto do fim de
maio ou do começo de junho.
JUAN YEPES
(Chamado São João da Cruz)
Nasceu em 1542. Faleceu em 1591.
Juan Yepes nasceu em Fontibere, perto de Ávila, na velha Castela, em 24
de junho de 1542. Seu pai faleceu quando ele era ainda criança e sua mãe
ficou em estado de pobreza. Estudou no Colégio de Jesuítas. Aos vinte e um
anos tomou hábito religioso entre os Frades Carmelitas, em Medina. Seu
zelo religioso aumentava continuamente. Quando chegou a Salamanca, para
começar seus estudos superiores, as austeridades que praticou foram
excessivas. Aos vinte e cinco foi promovido ao sacerdócio. Mais ou menos
aos trinta, ou talvez entre trinta e trinta e três, passou por um período de
“distúrbio mental interior, escrúpulos e aversão por exercícios espirituais;...
os demônios o assaltavam com violentas tentações;... a mais terrível dessas
penas foi a de escrupulosidade e desolação interior, na qual pareceu-lhe ver
o inferno aberto, pronto para tragá-lo”. [31:552]
Depois de algum tempo, certos raios de luz, conforto e divina doçura dispersaram
essas névoas e levaram a alma do servo de Deus a um paraíso de deleites interiores
e de doçura celestial [31:552].
Ele teve um outro período de depressão, seguido de felicidade e iluminação
ainda mais perfeitas.
Certo brilho projetava-se de seu semblante em muitas ocasiões - especialmente
quando vinha do altar ou das orações. Consta que uma luz celestial, em certos
momentos, resplandecia de seu semblante [31:554].
Ele se deleitava com a felicidade característica do estado de Consciência
Cósmica. Butler cita-o dizendo: “A alma daquele que serve a Deus está sempre
nadando em alegria, vive sempre um dia festivo, está sempre em seu palácio
de júbilo, sempre cantando com renovado ardor e prazer uma nova canção
de alegria e amor” [31:557],
Duas horas antes de falecer, repetiu em voz alta o salmo Miserere com seus
irmãos; depois pediu que um deles lesse um trecho do livro dos Cânticos, parecendo
gozar êxtases de alegria. Finalmente, clamou em voz alta: “Deus seja glorificado//”;
apertou o crucifixo sobre seu peito e, depois de algum tempo, disse: “Senhor, a tuas
mãos confio minha alma” e, com estas palavras, faleceu calmamente, no dia 14 de
dezembro de 1591, na idade de quarenta e nove anos. [31:558]
Por ter criado ou por ter aderido a algumas formas monásticas, ele foi
preso durante alguns meses, em 1578, e foi durante esse período, aos trinta
e seis anos, que entrou em Consciência Cósmica.
Em 15 de agosto de 1578 ele tinha passado oito meses na prisão. No dia
vinte e quatro de junho do mesmo ano, completou trinta e seis anos de idade.
A iluminação ocorreu quando ele estava na prisão e aparentemente (mas
o registro não é claro neste particular) poucos meses antes de 15 de agosto.
Consideradas todas as indicações disponíveis, parece quase certo que a
iluminação tenha ocorrido na primavera ou no começo do verão e que na
ocasião Yepes estava a um mês ou dois (antes ou depois) de seu trigésimo
sexto aniversário. [112:108]
Foi no mesmo ano, após a iluminação [112:141], que ele começou a
escrever.
O
fenômeno da luz subjetiva parece ter se manifestado com intensidade
fora do comum neste caso.
Consta que outros a viram. Diz-se também que ela o iluminava por toda
a volta do mosteiro. Estas últimas declarações sem dúvida assentam em
exagero ou confusão, assim como se verifica na descrição do mesmo fenômeno
no caso de Paulo. É curioso também que, no caso de Juan Yepes, seguiu-se
uma cegueira parcial que durou alguns dias e esteve de algum modo eviden­
temente ligada à luz subjetiva.
No caso de Paulo, a cegueira foi mais acentuada e teve maior duração.
Parece que o distúrbio central que tem de coexistir com a luz subjetiva pode
ser tão grande que faça com que o centro óptico seja por algum tempo incapaz
de reagir a seu estímulo normal. Parece claro que, tanto no caso de Paulo
como no de Yepes, a mudança que provocou a cegueira era centralizada. Um
dos biógrafos de Yepes descreve o fenômeno da luz em si mesma e de seus
efeitos sobre seus olhos nas seguintes palavras:
Sua cela tornou-se inundada de uma luz visível ao olho físico. Certa noite, o
frade que cuidava dele foi como de costume ver se seu prisioneiro estava seguro e
viu a luz celestial de que a cela estava inundada. Ele não parou para pensar e correu
para o prior, achando que alguém na casa tinha as chaves para abrir as portas da
prisão. O prior, com dois religiosos, foi imediatamente para a prisão, mas ao entrar
na sala pela qual se chegava à prisão, a luz se desvaneceu. Não obstante, o prior
entrou na cela e, encontrando-a escura, acendeu a lanterna de que se munira e pergun­
tou ao prisioneiro quem lhe dera luz. São João lhe respondeu dizendo que ninguém
na casa o fizera, que ninguém poderia tê-lo feito e que não havia vela nem lâmpada
na cela. O prior nada disse e saiu, julgando que o guardião havia se equivocado.
Algum tempo depois, São João da Cruz disse a um de seus irmãos que a luz
celestial que Deus tão misericordiosamente lhe enviara durara a noite toda e enchera
sua alma de alegria, fazendo a noite passar como se fosse apenas um instante. Quando
sua prisão estava chegando ao fim, ele ouviu nosso Senhor lhe dizer como que da luz
que estava em volta dele: “João. eta-me aqui; não tema*; eu te libertarei" [112:108],
Poucos momentos depois, enquanto escapava da prisão do mosteiro, consta que
ele teve uma repetição da experiência, como segue:
Viu uma luz maravilhosa, da qual veio uma voz que disse: “deaue-me”. Ele seguiu
e a luz moveu-se adiante dele em direção à parede que estava na encosta, e então,
sem que ele soubesse como, encontrou-se em seu topo, sem nenhum esforço ou
fadiga. Desceu à rua e então a luz se desvaneceu. Tão brilhante era ela que por dois
ou três dias - assim confessou ele mais tarde - seus olhos estiveram fracos, como se
ele tivesse estado olhando o Sol com toda sua força [112:116].
Após a iluminação e por solicitação de pessoas a ele chegadas, que viram
que ele tivera, como diz Emerson, “uma nova experiência”, escreveu vários
livros com o objetivo de levar a outrem um conhecimento da nova vida que
havia chegado a ele e, se possível, transmitir algo dessa própria vida nova.
Os extratos seguintes foram escolhidos porque mostram com alguma clareza
a atitude e o estado mentais do homem Juan Yepes após a iluminação e
assim contribuem para compor melhor o quadro da Consciência Cósmica.
E claram ente necessário à alm a, visando sua própria transform ação sobrenatural, estar em trevas e bem afastada de
tudo que diga respeito à sua condição na,
,
,
.
.
.
tural, a suas partes sensuais e racionais.
O sobrenatural é aquilo que transcende a
natureza e, portanto, aquilo que é natural
fica abaixo. Visto que essa união e essa
.
c __
k
- •
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transiormaçao não sao cognosciveis pelos
“
,, , ,
(*1) Esta é a doutrina da supressão e obliteração
do pensamento e da sujeição do desejo
ensinada pelos iluminados hindus desde o tempo
Buda ató hoje - uma doutrina indubitavelmente baseada na experiência real [154:68 e
^
r
6S
„
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“ ° autor c*° Bhagavadgita não é
apontado neste livro como um caso de
..................................
Consciência Cósmica, pelo motivo de que nada
,
.. .
....
se sabe a respeito de sua personalidade. Mas o
sentidos ou por qualquer faculdade huma'
1 ^
na, a alma precisa estar total e voluntana-
próprio Divjno Poema traz em sua face a prova
m e n te v a z ia d e tu d o q u e p o ss a e n tra r
nela, de toda afeição e inclinação, no que
concerne a si própria. [203:71] (* 1)
de que ele era um caso - n o poema, Krishnaé o
Sentido Cósmico e as falas de Krishna são as
declarações da Consciência Cósmica.
N essa estrada, portanto, abandonar o
eam inho pessoal é en trar n o verdadeiro
(*2) Método para alcançar a Consciência Cósm'ca e descrição geral dele.
cam inho, ou, para falar m ais corretam en­
te, é ir ad ia n te em direção à m eta (*2); e re n u n ciar ao cam in h o pessoal é e n tra r
naquilo que não tem nenhum , isto é, D eus. Pois a alm a que alcança esse estado não
tem cam inhos ou m étodos próprios, nem se apóia nem pode se apoiar sobre qualquer
coisa d esta espécie. Q u ero dizer m eios de e ntender, perceber, ou sentir, em b o ra
possua todos os meios ao mesmo tempo,
(*3) como alguém que, nada possuindo, (*3) Todos os m eios ao m esm o tem p o :
Carpenter tenta expressar sua experiência,
não obstante tudo possui. Pois a alma co­
da seguinte maneira: “Qual é a natureza exata
rajosamente decidida a ultrapassar, inte­
desse estado de se r- desse iluminante esplendor?
rior e exteriormente, os limites de sua Tudo que posso dizer é que parece existir uma
própria natureza, entra ilimitadamente no visão possível aos homens, como de algum ponto
sobrenatural, que não tem medida, mas de vista mais universal, livre da obscuridade e
contém toda medida iminentemente em do localismo que especialmente os ligam às
si mesmo. Chegar lá é partir daqui, ir em­ nuvens passageiras do desejo, do medo e de toda
bora, para fora de si mesmo, tão longe emoção e todo pensamento comum - neste
sentido uma outra faculdade, separada; e como
quanto possível deste desprezível estado,
visão sempre significa um sentido de luz, aqui
para aquele que é o mais elevado de to­ há um sentido de luz interior, naturalmente sem
dos. Portanto, ascendendo acima de tudo estar ligado ao olho mortal mas trazendo ao olho
que possa ser conhecido e compreendido, da mente a impressão de que vê e através de um
temporal e espiritualmente, a alma tem meio que por assim dizer lava as superficies inte­
de desejar intensamente alcançar aquilo riores de todos os objetos, todas as coisas e todas
que não pode ser conhecido nesta vida e as pessoas—como posso me expressar? - e, ape­
sar de tudo, esse sentido é muito deficiente, pois
que o coração não pode conceber; e, dei­
é um senso de que a pessoa é os objetos, as coisas
xando para trás todo real e possível gosto e as pessoas que percebe (e todo o universo) e sentimento do sentido e do espírito, tem um sentido em que a visão, o tato e a audição
de desejar intensamente chegar àquilo estão todos fundidos em identidade [62].
que transcende todo sentido e sentimento.
Para que a alma possa estar livre e desembaraçada para este fim, não deve de ma­
neira alguma se ligar - como explicarei presentemente, quando tratar deste ponto a qualquer coisa que possa receber no sentido e no espírito, e sim avaliar isto como
coisa de muito menor importância. Pois quanto mais importância a alma atribui
àquilo que compreende, sente e imagina, e quanto mais preza isto, seja espiritual ou
não, mais deprecia o supremo bem e maior será seu atraso em alcançá-lo. Por outro
lado, quanto menos preza tudo que possa ter em comparação com o supremo bem,
mais engrandece e preza o supremo bem e, conseqüentemente, maior é seu progresso
em direção a ele. Desta maneira a alma se aproxima cada vez mais da união divina
nas trevas, pelo caminho da fé, que, embora possa ser também obscuro, mesmo
assim irradia uma luz maravilhosa. Certamente, se a alma quer ver (se ela persiste
no desejo e no esforço de ver), toma-se com isto instantaneamente mais cega quanto
a Deus do que aquele que tentasse olhar o Sol quando este estivesse resplandecendo
em toda sua força. Nessa estrada, portanto, o termos nossas faculdades nas trevas é
vermos a luz [203:74-5].
Q uanto m ais a alm a se esforçar para
se to rn ar cega e an u lad a (* 4 ) q u an to a
to d a s a s c o isas in te rio res e e x te rio re s,
(*4) Assim, diz Balzac que a autoconsciência,
embora gloriosa por aquilo que tenha feito,
® ao raesmo tempo perniciosa, porque impede
mais se encherá de fé, amor e esperança. que ° ser h”
entre navida Cosmicamente
,
_ ,
Consciente que leva ao infinito - que e a umca
Mas esse amor, as vezes, nao e compreen.
.. „
rc ,
’
r
que pode explicar Deus [5:142].
dido nem sentido, porque não se mani­
festa nos sentidos com ternura, mas na alma com fortitude, com mais coragem e
resolução do que antes, embora às vezes transborde para os sentidos e se mostre
temo e gentil. Para atingir então esse amor, essa alegria e esse deleite que as visões
suscitam, é necessário que a alma tenha fortitude e esteja fortalecida, de modo a
subsistir voluntariamente no vazio e nas trevas e para estabelecer o alicerce de seu
amor e deleite naquilo que nem vê nem sente, naquilo que não pode ver nem sentir
- isto é, em Deus, incompreensível e supremo. Nosso caminho para Ele está portanto,
necessariamente, na autonegação [203:202].
, .
Embora, como eu já disse, seja verdade que Deus esteja sempre em toda alma,
concedendo-lhe dádivas e preservando para ela seu ser natural pela Sua presença,
com tudo isto Ele nem sempre comunica a vida sobrenatural. Pois esta só é dada por
amor e graça, que nem todas as almas alcançam, e aquelas que alcançam não o
conseguem ao mesmo grau, pois algumas ascendem a graus mais altos de amor do
que outras. Portanto, tem maior comunhão com Deus a alma que é mais adiantada no
amor - isto é, aquela cuja vontade é mais harmonizada com a vontade de Deus. E a
alma que alcançou perfeita conformidade e semelhança está perfeitamente unida a
Deus e sobrenaturalmente transformada em Deus. Por causa disso, portanto, como já
expliquei, quanto mais a alma se apega às coisas criadas, confiando em sua própria
força, por hábito e tendência, menos está propensa a essa união, porque não se entrega
completamente nas mãos de Deus, de modo que Ele possa transformá-la sobrena­
turalmente [203:78], (*5)
i
, __.__ ____, .................. u,;...
E m o u tras ocasioes, tam b em , a luz
,, ,
,
,
divina atinge a alm a com tanta força que
as trevas não são sentidas e a luz não é
percebida; a alm a parece inconsciente de
tudo que conhece e, portanto, por assim
,. ,
.
.
.
dizer perdida no esquecimento, sem saber
onde está nem o que lhe aconteceu, inconsciente da passagem do tem po. (*6)
Pode acontecer e de fato acontece que
(*5) A distinção entre a vida autoconsciente,
mesmo em seu melhor nível, e a vida em
Consciência Cósmica,
(*6) “Louis teve um típico ataque de catalepsia.
Ficou de Pé Por cinqüenta e nove horas,
sem se mover>seus olhos flxos’ sem falar ou
(ist0 . de Bal’zac) pertence ao período
comer, etc.” [5:1271. Esta experiência de
jiuminação, como no caso de Yepes.
(*7) E provável que uma experiência semelhante, na mesma circunstância, seja
m uitas horas se passem enquanto a alm a
comum’ embora nâo seia umversalse encontre nesse estado de esquecim ento; tudo parece apenas um m om ento quando
ela novam ente retorna a si. [203:127] (*7)
O p ensam en to de Yepes é que D eus sem pre existe n a a lm a h u m an a, m as
(em g eral) nu m estado passivo ou de adorm ecido, ou pelo m enos fo ra d a
consciência. A alma que sabe que Deus está nela mesma é abençoada, mas a
alma na qual Deus despeita é supremamente abençoada. Esse despertar de
Deus na alma é o que neste livro chamamos de Consciência Cósmica.
O h , co m o é a b e n ç o a d a a alm a q u e
está sem pre consciente de que D eus está
p re sen te e rep o u sa em seu âm ago... Aí
está E le, por assim dizer adorm ecido no
(* i) Diz Yepes: Deus está sempre no ser
humano, e muito comumente a alma está
consciente de Sua presença (passiva). É como
se
dormisse na alma. Se Ele desperta apenas
ab raço d a alm a e a alm a e stá em geral
. . . o
i
c o n sc ie n te de S u a p resen ça e em geral
r
.
,
se d e le ita e x tre m a m e n te nisso. Se E le
e stiv e sse se m p re d e sp e rto n a a lm a , as
uma vez na vida de um homem’ a exPeriência
desse instante afeta toda sua vida. Se a
.„ . .
. . .
,
,
expenencia desse instante tosse prolongada
indeflnidamente) que alma poderia suportá-la?
comunicações de conhecimento e amor seriam incessantes e isto seria um estado de
glória. Se Ele, despertando apenas uma vez, meramente abrindo seus olhos, afeta
tão profundamente a alma, que aconteceria a ela se Ele estivesse continuamente
desperto dentro dela? [206:506](*1) (*1)
Uma das características do Sentido Cósmico muitas vezes mencionada e
a ser mencionada, é a identificação da pessoa com o universo e tudo no
universo/Quando Gautama ouPlotino expressam este fato, ele é denominado
“misticismo”. Quando Whitman lhe dá voz, ele é Yankee Bluster (“vendaval
ianque”). Que nome devemos lhe dar quando um monge espanhol do século
XVI, simples, de mente humilde, dele fala numa linguagem simples como a
que segue?
Os céus são meus, a terra é minha e as nações são minhas! meus são os justos e
os pecadores são meus; meus são os anjos e a Mãe de Deus; todas as coisas são
minhas, o próprio Deus é meu e para
mim, porque Cristo é meu e todo para (*2) Whitman nos diz: “Como se alguém,
mim. Que então pedes, que buscas, ó
talhado Para Possf coisas’ nâo Pudesse
i
• i n *
i
,j
, « '
N ã o p eg u es m enos nem fiq u es com as
entrar a vontade em todas e incorpora-las a si
„ mais:
M *.1Que
ai t?supoe
_ • voce
«rx.
mesmo [193:214]. E
que eu ,he sugeriria numa centena de maneiras
m igalhas que caiam da m esa de teu pai.
Vai e e x u lta em tu a gló ria, e sc o n d e-te
nela e alegra-te, e obterás todos os desejos
de teu coração. [206:607] (*2)
senão que o ser humano, homem ou mulher, é
tão bom quanto Deus? E que não há nenhum
D eus m ais divino do que você m esm o”?
[193:299].
alma minha? lu d o e teu - tudo e para
ti.
v
Visões de substâncias incorpóreas, como de anjos e de almas, não são freqüentes
nem naturais nesta vida terrena, e menos ainda o é a visão da essência divina que é
peculiar aos bem-aventurados, a menos que seja comunicada transientemente por
dispensação de Deus, ou por conservação de nossa condição e vida natural e pela
abstração do espírito, como foi talvez o caso de São Paulo quando ouviu os
impronunciáveis segredos no terceiro céu. “Se no corpo”, disse ele, “não o sei, ou
fora do corpo, não o sei; Deus o sabe”. Está claro nas palavras do apóstolo que ele foi
transportado para fora de si mesmo, pelo
ato de Deus, como para sua existência
natural [203 198-9] (*3)
_
,
,
, ,
O c o n h e c im e n to d a v e rd a d e p u ra
(*3) A visão Cósmica comparada, em poucas
palavras comuns, com “ visões" mais
comuns de, por exemplo, anjos e espíritos, nas
quais Yepes parece ter pouca fé.
requer, para um a explicação adeq u ad a,
que D eus pegue a m ão e conduza a pena
do escritor. T enha em m ente, m eu preza­
do leitor, que estes assuntos transcendem
todas as palavras. (* 4 ) M as com o m eu
propósito não é discuti-los e sim ensinar
„ j- ■ ■
.
j- •
e d irig ir a a lin a p a ra a u m a o d iv in a
, .
« .
. ,
através deles, sera suticiente que eu f a e
M
deles concisam ente dentro de certos limi-
(M) «
transcendem todas as palavras” Esta é
a experiência universal,
(*5) Uma tentativa de indicar a diferença radical
entre o conhecimento próprio da mente
autoconsciente e a consciência da verdade
característica da m ente Cosm icam ente
„
. x _ . ..
. ,
......
Consciente. De indicar tambem o jubilo da
„
Consciência Cósmica e a impossibilidade de
expressar na única linguagem que temos (a
tes, até o ponto em que meu assunto o
requeira. (*5) Esta espécie de visão não
linguagem da autoconsciência), o que é visto,
ou o que é sentido no estado Cosmicamente
é a m esm a coisa que as visões intelectuais
de co isas corpóreas. C on siste em com p re en d e r ou ver com p reen siv am en te as
Consciente. “Quando tenciono dizer o melhor”,
^iz Whitman, “vejo que não o consigo; minha
línSua se torna ineficiente. meu fôlego não
verdades de D eus, ou das coisas ou a res.
peito das coisas q u e existem , existiram ,
° bef , “ ™
° rgâos’ tom °-me um homem
mudo”. 193:179
ou existirão. E mais como o espírito da profecia, como eu talvez explique mais
adiante. Esta espécie de conhecimento tem uma dupla natureza: uma se refere ao
Criador; a outra, a criaturas. E embora ambas sejam bem cheias de doçura, o deleite
produzido pela que se refere a Deus não pode ser comparado com qualquer outra
coisa; não há palavras nem linguagem que possa descrevê-lo, pois trata-se do
conhecimento do próprio Deus e de seus deleites. [203:205]
Na medida em que isso se torna pura contemplação, a alma percebe claramente
que não pode descrevê-lo de outro modo senão em termos gerais que a exuberância
de deleite e felicidade lhe impõe. E embora às vezes, quando esse conhecimento é
outorgado à alma, sejam proferidas palavras, a alma sabe muito bem, no entanto,
que de modo algum expressou o que sentiu, porque está consciente de que não há
palavras de significação adequada. [203:206]
Esse conhecimento divino atinente a Deus nunca se refere a coisas particulares,
pois está intimamente ligado ao Mais Alto e, portanto, não pode ser explicado, a não
ser quando se refere a alguma verdade menor do que Deus, suscetível de ser descrita;
esse conhecimento geral, porém, é inefável. Só uma alma em união com Deus é
capaz desse profundo e amoroso conhecimento, pois ele próprio é essa união. Esse
conhecimento consiste em certo contato da alma com a Divindade e é o Próprio Deus
que é então sentido e vivenciado, embora não de maneira manifesta e clara, como o
será em glória. Mas esse toque de conhecimento e doçura é tão forte e profundo que
penetra a substância mais íntima da alma e o diabo não pode interferir nisto nem
produzir qualquer coisa semelhante - porque não há nada mais que lhe seja comparável
- nem infundir qualquer doçura ou deleite que de algum modo possa
a isso se assemelhar. Esse conhecimento, em alguma medida, tem o toque da essên-
cia divina e da vida sempiterna e o diabo
não tem nenhum poder para simular qualquer coisa que seja tão grande. [203:207]
(*6) Compare-se Behmen: “O conhecimento
espiritual não pode ser comunicado de um
intelect0 a outro>mas
de ser Procurado no
espírito de Deus”[97:56].
Tal é a d o ç u ra do p ro fu n d o deleite
£ Qdizer de whitman: „A sabedoria . ^ alma;
desses toques de D eu s, que um só deles
e m ais que um a recom pensa por todos os
so frim e n to s d e sta vida, p o r m aio r que
não pode ser passada de uma pessoa que a tenha
para outra que não a tenha”. [193:123]
seja seu número [203:208]. (*7)
Essas imagens, assim impressas na
alma, produzem, sempre que são cons-
(*7) “Pois creio que os sofrimentos do momento
atual não são merecedores de comparação
com a glória que a nós será revelada. [19:8:18]
cientizadas, os efeitos divinos de amor,
_
,
. . . „
(*8} Sempre que são conscientizadas. Comparedoçura e luz, as vezes mais as vezes mese Bacon.
nos, pois este é o objetivo para o qual “Assim como o rico sou eu, cuja abençoada
são impressas. Aquele com quem Deus chave
assim lida recebe uma grande dádiva, A seu doce tesouro trancado pode levar,
pois tem uma mina de bênçãos dentro de Que ele não há de a cada hora inspecionar,
si mesmo. As imagens que produzem tais P°'s *st° ° gozo embotaria, de esporádico
efeitos estão vividamente fixadas na Prazer- [176:52]
memória espiritual. [203:275] (*8)
O caminho dos proficientes, que é também chamado de caminho iluminativo, ou
de caminho de inspirada contemplação, onde o próprio Deus ensina e refrigera a
alma, sem meditação ou quaisquer esforços ativos que ela mesma possa deliberada­
mente fazer [203:55-6], Eu saí de mim mesmo, de minhas inferiores concepções e de
meu tíbio amor, de meu limitado e pobre sentimento de Deus, sem ser impedido pela
carne ou pelo diabo. Saí de minhas limitadas obras e maneiras pessoais, para as de
Deus; em outras palavras, minha compreensão saiu de si mesma e, de humana, passou
a divina. Minha vontade saiu de si mesma, tomando-se divina; pois agora unida ao
amor divino, não mais ama com seus limi, , , ,
,
.
.
...
tados poderes e su a restrita capacidade,
r
r
m as com a energia e a pureza do espírito
(*9) Ele fala da passagem da autoconsciência
,
para a Consciência Cósmica e de como e
estar nesta ú]tima condiçâa
divino. [203:67] (*9)
Ora, isto nada mais é senão a luz sobrenatural iluminando o discernimento, de
modo que o discernimento humano se tome divino, unificado com o divino. Do mesmo
modo o amor divino inflama a vontade, de maneira que esta se toma nada menos que
divina, amando de maneira divina, unificada com a vontade divina e com o amor
divino. A memória é afetada de modo semelhante; todos os desejos e afetos são
também divinamente modificados, de acordo com Deus. Assim a alma será do céu,
celestial, divina, ao invés de humana. (*io) Como diz Dante, isto é ser “trans[204:111] (*10)
humanizado num Deus”. [72:4]
Foi uma situação feliz para a alma quando Deus nessa noite pôs a casa inteira a
dormir - isto é, todos os poderes, as paixões, as afeições e os desejos da alma sensual
e espiritual, de modo que ela pudesse alcançar a união espiritual do amor perfeito de
Deus, “inobservado”- ou seja, não impedido por eles, por estarem todos adormecidos
e mortificados nessa noite. Oh, como a alma deve estar então feliz, ao poder escapar
da casa de sua sensualidade! Ninguém pode compreender isto, creio eu, exceto a
alma que o tenha vivenciado [204:113]
(*11). E stá portanto claro que n enhum
. . . . . . . .
,
, ,
,
(*U ) ° utras ah“ * “ . à necessJá ria subjLJgaçâo
ou mesmo obliteração da antiga mente
obieto
distinto que agrade a vontade pode
,
■__
J
v
autoconsciente, antes que a mente cosmicamente
ser Deus; e, por esta razão, para que ela conSciente possa emergir,
se unifique com Ele, deve se esvaziar,
lançar fora qualquer paixão desordenada do desejo, qualquer satisfação que possa
ter distintamente, grande ou pequena, temporal ou espiritual, de modo que, purificada
e limpa de todas as satisfações, alegrias e desejos indevidos, possa estar comple­
tamente ocupada, com todas as suas afeições, em amar a Deus. [204:534]
Esse abismo de sabedoria, então, a tal ponto exalta e eleva a alma - dispondo-a
ordenadamente para a ciência do amor - que a faz não somente compreender como
são más todas as coisas criadas em relação à sabedoria suprema e ao conhecimento
divino, mas tam bém como são baixas, defeituosas e em certo sentido impróprias
todas as palavras e frases pelas quais, nesta vida, discutimos as coisas divinas, e
como é totalm ente im possível, por qualquer meio natural, por mais profunda e
eruditamente que possamos falar, compreendê-las e percebê-las como são, exceto à
luz da teologia mística. Assim a alma, à luz disto, discernindo esta verdade, isto é,
que não pode alcançá-la e menos ainda explicá-la pelos termos do discurso comum,
acertadamente a chama de secreta. [204:126]
O espírito é agora tão forte e a tal ponto subjugou a carne e a ela atribui tão pouca
importância, que é tão indiferente a ela quanto uma árvore a uma de suas folhas. Não
procura consolação ou doçura em Deus ou em qualquer outra parte, nem ora para
receber dádivas de Deus por qualquer motivo de interesse pessoal ou de auto-satisfação. Pois tudo o que lhe interessa agora (. 12) Yepes a,sseme|ha.se a Buda e Paulo ao
e como agradar a Deus e servi-Lo em aldesprezar e condenar a vida autoconsguma medida, como retribuição por Sua ciente anterior. Jesus e Whitman alcançaram um
bondade e pelas graças recebidas - e isto nível mais alto - viram que toda vida é boa, é
a todo e qualquer custo. [204:134] (*12)
divina.
Mas se falamos dessa luz de glória que nesse abraço da alma Deus às vezes nela
produz, e que é um a certa comunhão espiritual em que Ele a faz contemplar e ao
mesmo tempo desfrutar o abismo de deleite e riqueza que Ele dispôs em seu interior,
não há palavras para expressar qualquer grau disto. Assim como o sol, quando brilha
sobre o mar, ilumina suas grandes profundezas e revela as pérolas, o ouro e as pedras
preciosas que ali estão, assim o divino sol do noivo, voltando-se para a noiva, revela
de certo modo as riquezas de sua alma, de maneira que mesmo os anjos a contemplam
com espanto. [205:292]
Eu disse que Deus se compraz com nada mais que o amor. Ele de nada necessita
e, assim, se está satisfeito com alguma coisa, é com o crescimento da alma; e como
não há nenhum modo pelo qual a alma possa crescer senão tornando-se de certo
modo igual a Ele, som ente por esta razão está Ele satisfeito com nosso amor. É
próprio do amor colocar aquele que ama a nível de igualdade com o objeto de seu
amor. Assim, a alma, pelo seu perfeito
amor, é chamada de noiva do Filho de
Deus, o que implica igualdade com Ele.
[205:333] (*13)
Antes que a alma tenha tido sucesso
em conseguir esta dádiva e uma renúncia
de si mesma e de todas as coisas que a
ela pertencem, em favor do Amado, esta­
va enredada em muitas ocupações não
proveitosas, pelas quais procurava agra­
dar a si mesma e a outros, e pode-se dizer
que suas ocupações nesse tempo eram tão
numerosas quanto seus hábitos de imper­
feição. [205:236] (*14)
Não é sem alguma relutância que en­
tro, a pedido de outros, na explicação das
quatro stanzas, porque elas se referem a
assuntos tão íntimos e espirituais que
frustram os poderes da linguagem
[206:407] (* 15). Tudo que digo fica muito
aquém daquilo que se passa nessa união
íntima da alma com Deus - desse amor
ainda mais perfeito e completo no mesmo
estado de transformação. [206:408]
Entrei, mas não sabia onde e ali fi­
quei, nada sabendo, toda ciência trans­
cendendo.
Não sabia onde havia entrado, pois
quando me coloquei dentro, não sabendo
onde estava, grandes coisas ouvi. O que
ouvi não direi; eu estava lá como alguém
que não sabia, toda ciência transcendendo. (*16)
(*13) “Que supõe você que eu lhe sugeriria
numa centena de maneiras senão que o
ser humano, homem ou mulher, é tão bom quanto
Deus? E que não há nenhum Deus mais divino
do que você mesmo”? [193:299].
(*14) Estado autoconsciente anterior. Compare-se Whitman: “Viajantes e pessoas
inquiridoras me rodeiam, pessoas encontro, efei­
to em mim de minha vida em fase anterior, ou o
bairro e a cidade em que vivo, ou a nação, as
datas mais recentes, as descobertas, as invenções,
as sociedades, autores velhos e novos, meu jantar,
a roupa, os associados, os olhares, os cumprimen­
tos, as dívidas, a real ou imaginada indiferença
de algum homem ou mulher que amo, a doença
de um de meus companheiros ou de mim mesmo,
ou o mal feito, ou a perda ou a falta de dinheiro,
ou as depressões ou as exaltações, as batalhas,
os horrores da guerra fratricida, a febre de notí­
cias duvidosas, os eventos caprichosos; tudo isto
vem a mim dias e noites e se vai de mim nova­
mente, mas estas coisas não são o meu Eu
mesmo. [193:31-2]
(*15) Expressões com que ele tenta sugerir
estados m entais que não podem ser
representados por palavras.
(*16) Neste curto poema, Juan Yepes tentou
expressar os fatos essenciais da entrada
no estado de Consciência Cósmica. Ele diz que
entrou, mas (tendo assim feito) não sabia onde
estava. Ouviu grandes coisas, mas não dirá o quê
(ou não poderá dizer?). Encontrou (naquele
estado) perfeita paz e perfeito conhecimento.
Da paz e da devoção o conhecimento foi perfeito, em profunda solitude; o caminho
certo era claro, mas tão secreto era ele que eu fiquei balbuciando, toda ciência
transcendendo.
Permaneci arrebatado em êxtase, fora de mim mesmo, e de todos os meus sentidos
nenhum sentido restou. Meu espírito foi dotado de discernimento, nada entendendo,
toda ciência transcendendo.
(*17) “Rapidamente surgiram e se dispersaram
Quanto mais alto me elevava, menos
ao meu redor p az e conhecimento que
entendia. E a nuvem escura iluminando
ultrapassam todos os argumentos da
a noite. Portanto, aquele que compreende
Terra” [193:32],
nada sabe, sempre toda ciência transcen­ O caminho certo (o curso certo de ação), também
dendo. (*17)
era claro (Whitman diz que o novo sentido
Aquele que realmente ascende tão “segurou seus pés”). [193:32] Yepes, assim
alto anula a si mesmo e todo o seu conhe­ como Whitman e todos os demais, sentiu-se cheio
cimento anterior parece cada vez menor; de alegria. E ele prossegue descrevendo o
ele sabe cada vez mais que nada sabe, Nirvana, a ponto de usar a palavra “anulação”.
Finalmente ele pronuncia a palavra que todos
toda ciência transcendendo.
os iluminados proferem, cada qual a seu modo.
Esse saber que nada sabe é tão pode­ Ele diz que essa profunda sabedoria consiste num
roso que os sábios jamais poderão derro­ sentimento da essência de Deus. E o Sentido
tá-lo com seu raciocínio; pois sua sabedo­ Cósmico - um sentido, uma intuição, ou uma
ria nunca chega à compreensão que nada consciência do Cosmo. O nascimento da única
compreende, toda ciência transcendendo. faculdade que pode compreender Deus. É o
Essa soberana sabedoria é de tão alta renascimento através do qual, unicamente, pode
excelência que nenhuma faculdade nem um homem ver o reino de Deus.
ciência pode jamais alcançá-la. Aquele que superar a si mesmo pelo conhecimento
que nada sabe, sempre se elevará, toda a ciência transcendendo.
E se escutardes, essa soberana sabedoria consiste de fato num profundo senso da
essência de Deus: é um ato de Sua compaixão, para nos deixar, nada compreendendo,
toda ciência transcendendo. [208:624-5]
SUMÁRIO
a. No caso de Juan Yepes, a luz subjetiva parece ter estado presente e ter
sido mesmo extraordinariamente intensa, embora possa haver alguma
confusão no relato da mesma.
b. A elevação moral foi fortemente acentuada.
c. A iluminação intelectual esteve bem, mas não talvez de maneira tão forte
como em alguns outros casos.
d. Seu senso de imortalidade é tão perfeito que não lhe ocorre discuti-la
como uma questão à parte ou tão-somente como uma questão. Ele
simplesmente se tomou Deus, um Deus, ou uma parte de Deus, e não
pensaria em discutir sua imortalidade mais do que pensaria em discutir a
de Deus.
e. Naturalmente, ele perdeu (se é que jamais teve) todo medo da morte. A
morte é simplesmente nada para ele. É um assunto que absolutamente
não lhe diz respeito.
f. A instantaneidade da mudança da autoconsciência para a Consèiência
Cósmica, na prisão em que estava na primavera ou no começo do verão
de 1578, quando tinha trinta e seis anos de idade, parece clara na narrativa
de Lewis.
g. A mudança na aparência da pessoa iluminada - chamada de “transfigu­
ração” nos evangelhos - parece ter sido bem acentuada.
Capítulo 9
FRANCIS BACON
Nasceu em 1561; faleceu em 1626.
Nada que se aproxime de um estudo exaustivo deste caso pode ser tentado
ui. As meras bordas do assunto já preencheram uma biblioteca de tamanho
oável, enquanto o âmago da questão mal foi tocado.
I
Sem mais delongas ou circunlóquios, é melhor que seja francamente
declarado, de imediato, que o ponto de vista deste autor é o seguinte:
a. Que Francis Bacon escreveu as peças e poesias atribuídas a “Shakespeare”.
b. Que ele entrou em Consciência Cósmica com a idade aproximada de trinta
anos, ou talvez um ano antes, dado que seu desenvolvimento intelectual e
moral foi muito precoce.
c. Que ele começou a escrever os Sonetos imediatamente após sua iluminação.
Os Sonetos aqui considerados são os primeiros cento e vinte e seis, que
constituem distintamente um poema, em si mesmos e por si mesmos, e
tratam do assunto aqui estudado.
d. Que os primeiros desses cento e vinte e seis Sonetos são dirigidos ao
Sentido Cósmico e, os últimos, a ele e a seus “produtos”, as peças.
e. Que, nos Sonetos, as seguintes entidades podem ser reconhecidas: (a) o
Sentido Cósmico; (b) o Bacon do Sentido Cósmico e das peças e dos
Sonetos-, ( c ) o “produto” especial do Sentido Cósmico - as peças; (d) o
Bacon notório, da corte, da política, dos escritos em prosa, dos negócios,
etc., e possivelmente de outras coisas.
n
Não se nega, em absoluto, que os primeiros cento e vinte e seis Sonetos
possam ser lidos como se dirigidos a um jovem amigo (embora no caso de
vários isto possa ser verdade, parece a este autor que é contestado com
sucesso), mas é claro que, assim lidos, faltam-lhes significado e dignidade que, na verdade, encarados deste ponto de vista, eles são totalmente indignos
do homem (seja quem for) que escreveu Lear e Macbeth . E pode ser afirmado
que uma característica quase constante (ou de fato constante) dos escritos da
categoria de homens abordada neste livro é exatamente esse duplo sentido
que corresponde à dupla personalidade do autor. Desse significado duplo,
talvez triplo, as obras de Dante e de Whitman fornecem talvez os melhores
exemplos.
T. S.Baynes [86:764] diz que estas especulações “não podem ser considera­
das como bem sucedidas”; mas supondo para fins de argumentação que houve
realmente esse jovem, ou essa mulher secreta [Mary Fitton, 167:30 et seq.
ou uma outra], isto não provaria absolutamente nada. Essas pessoas podem
ter tido existência real e a elas e delas pode ter sido falado como o significado
superficial dos Sonetos, assim como se fala ao oceano e do oceano no signifi­
cado superficial de With Husky Haughty Lips* [193:392]. Ou consideremos
como outro exemplo o da Prece de Colombo [193:323]. Colombo pode ter
feito exatamente essa prece e não há razão para que Whitman não devesse
ter posto essa oração na boca de Colombo; mas nada é mais certo que as
palavras em questão serem dirigidas ao Todo-poderoso pelo próprio Whitman.
Mas por que selecionar exemplos? Não há em Leaves talvez um só verso que
tenha somente um significado. E quem hoje em dia não compreende que, na
Divina Comédia, Dante usou os termos teológicos correntes em seu tempo
para velar e expressar pensamentos muito mais profundos e mais elevados
do que aqueles que até então haviam sido atribuídos a eles? Atribua-se o
significado corrente aos termos usados e seus versos terão um sentido, mas
atribua-se a esses termos a intenção de Dante e eles terão um outro sentido,
imensamente mais amplo e profundo. Assim, seu último e melhor tradutor,
que sem dúvida o conheceu profundamente, diz que “uma fonte mais profunda
e mais dominante de compreensão imperfeita do poema do que qualquer
dificuldade verbal reside no significado duplo ou triplo que perpassa por
ele” [70:16], Ou seria Seraphita uma espécie de conto de fadas, tendo por
figura central uma idealizada e ninfômana jovem norueguesa?
* N. T. - Aproximadamente, “Com Robustos e Arrogantes Lábios”.
III
Que um homem que tem Consciência Cósmica é de fato pelo menos uma
pessoa dual, é algo fartamente mostrado e ilustrado neste livro e
“Shakespeare”, o autor das peças e dos Sonetos, é realmente um outro (embora
sendo o mesmo) eu do Bacon que escreveu as obras em prosa, falou no Parla­
mento, viveu perante o mundo como jurista, homem da corte e cidadão. Do
mesmo modo que “Seraphita” (Seraphitus), sendo Balzac, é totalmente distin­
to doBalzac notório, que era visto nos salões de recepção parisienses. Assim
como o Whitman do Leaves é completamente distinto (e no entanto o mesmo)
do Whitman que viajava em ônibus e trem e que “viveu a mesma vida com
os outros” e veio a falecer em Camden, em 26 de março de 1892. Ainda
como “Gabriel”, sendo Maomé, é ao mesmo tempo uma outra e distinta
personalidade.
Essa identidade e disparidade (ao mesmo tempo) é a verdadeira solução
(assim se acredita) da controvérsia Bacon-Shakespeare.
IV
É talvez impossível ao homem meramente autoconsciente formar qualquer
conceito do que esse advento da Consciência Cósmica deva ser para aqueles
que a vivenciem. A pessoa é alçada de seu velho ego e vive mais no céu do
que na velha terra - mais corretamente, a velha terra se transforma em céu.
Uma das necessidades fundamentais desse período é a solidão. Por que?
Provavelmente porque a pessoa está tão ocupada com o seu novo mundo
(seu novo Eu), tão extasiada com ele, que simplesmente não pode suportar
ser chamada para o velho mundo (o velho ego). Assim, Balzac (nesse período
de sua vida) trancava-se - escondia-se - por semanas e meses de uma só vez.
Assim também Paulo não se relacionava com a carne e o sangue, “nem subia
a Jerusalém”[22:1-17], mas “partia para as regiões da Arábia” e parece ter
vivido muito a sós por um bom tempo. Nas mesmas circunstâncias, a solidão
se tornou uma necessidade para Whitman (embora ele naturalmente fosse
sociável em alto grau) e, nos primeiros tempos de sua vida Cosmicamente
Consciente, ele costumava passar dias, semanas e até meses por vez em
bairros escassamente povoados ou habitados de Long Island - especialmente
na praia.
Imediatamente após a iluminação de Jesus (se podemos confiar no relato
feito por Mateus e Marcos), ele foi “levado pelo espírito ao deserto” e perma­
neceu em solidão por certo tempo. E é provável que suficiente pesquisa reve­
lasse que este tipo de ação fosse universal em casos inequívocos. Seja como
for, Spedding [174:49] diz que: “De abril de 1590 até o final de 1591 (quase
dois anos), não encontro nenhum escrito de Bacon (a não ser uma carta de
cinco páginas!), nem qualquer notícia importante a respeito dele”. Enquanto
Bacon diz (referindo-se ao mesmo período de sua vida), escrevendo aBurghley
no final de 1591 ou no começo de 1592, quando tinha trinta e um anos e, de
acordo com esta hipótese, um ou dois anos após sua iluminação: “Não temo
que a ação a prejudique [a saúde dele], pois considero que meu ritmo normal
de estudo e meditação seja mais penoso [mais trabalhoso] que muitos tipos
de ação”. [174:56]
Parece que, especialmente durante esses dois anos, 1590 e 1591, Bacon
freqüentemente - para usar suas próprias palavras - “refugiou-se na sombra”
em Twickenham e “desfrutou as bênçãos da contemplação naquela doce
solitude que reanima a mente assim como fechar os olhos reanima a vista”
[129:71], Assim, “há períodos observados pelo Sr. Spedding em que Bacon
escreveu a portas fechadas e em que o assunto de seus estudos é duvidoso; e
há um longo recesso sobre o qual o mesmo cuidadoso biógrafo comenta que
não pode dizer que trabalho o incansável estudioso produziu durante aqueles
meses, pois não sabe de nenhum cuja data corresponda a esse período”
[129:71-2]. E sem dúvida a Sra. Pott está certa quando sugere que foi durante
tais períodos e provavelmente ao longo de 1590-91 que muitas de suas
primeiras peças foram escritas [129:71],
V
Assim temos a moldura em que montar o quadro: a mente de Bacon é
excepcionalmente precoce e ele entra em Consciência Cósmica, suponhamos,
no começo de 1590, aos vinte e nove anos de idade ou pouco depois; ele
tinha provavelmente escrito várias peças antes disto, algumas das quais podem
ter sido consideradas dignas de inclusão no fólio de 1623. Na primavera de
1590 (aos trinta anos) ele adquire o Sentido Cósmico. Nos dois anos seguintes
(1590-91), isola-se e produz várias peças, ao mesmo tempo que, numa espécie
de comentário paralelo a respeito de suas experiências mentais e de seu
trabalho, escreve os primeiros “Sonetos”, ao passo que os demais foram
escritos, um ou dois por vez, conforme as circunstâncias os requeriam, entre
este período e a data de sua publicação, 1609.
Seria apropriado, neste ponto, darmos alguma informação sobre a
personalidade de Bacon, se este assunto não fosse demasiado extenso para
os limites deste livro. A questão que nos interessa aqui é, naturalmente, a
seguinte: Eram seu intelecto e sua natureza moral (especialmente a segunda)
tais como os que são próprios das pessoas que têm Consciência Cósmica?
Quanto às respostas à segunda metade desta pergunta, surgiu uma dúvida
(fomentada principalmente por Pope e Macaulay). Este ponto não pode ser
discutido aqui. Tudo que pode ser dito é que este autor crê que Bacon era tão
grandioso moralmente quanto o era intelectualmente; e ele acredita que,
seja quem for que se dê ao trabalho de considerar seriamente os trabalhos
clássicos sobre o assunto, escritos por homens competentes e imparciais (tais
como Personal History, de Dixon [75], Life and Times, de Spedding [174],
Evenings With a Reviewer, de Spedding [177] e especialmente Life, deRawley,
que conhecia Bacon muito bem), chegará inevitavelmente à mesma conclusão.
Sobre ele, diz Rawley: “Ele não tinha malícia; não se vingava de injúrias;
não difamava a ninguém; ao contrário, procurava dizer o melhor que podia
ser dito de qualquer pessoa, mesmo tratando-se de um inimigo” [141:52], E,
depois de muitos anos de estudo, Spedding sintetiza o assunto como segue:
A evidência a partir da qual todos tiveram de julgar levou-me a supor que ele era
uma pessoa muito diferente de como era comumente considerado. Essa idéia me
induziu a procurar novas evidências e todas que descobri confirmaram minha
impressão. Não critico as pessoas por não saberem que conselho Bacon deu ao rei
quanto à convocação de um parlamento e a negociar com ele; mas digo que o teor do
conselho, tal como hoje apresentado, mostra que os integrantes do parlamento não
eram bons para fazer previsões; que a conclusão a que chegaram quanto ao caráter
de Bacon, partindo dos fartos indícios de que dispunham foi estranhamente inexata;
tão longe da verdade como se alguém considerasse Flavius como um exemplo de
mau administrador porque a economia a que servia estava indo mal. Tomo estes
elementos recentemente descobertos como testes. Se eu estivesse errado, teria sido
condenado; se Macaulay estivesse com a razão, eles o teriam confirmado. [178:189]
No final de seu livro, após todos os fatos da vida de Bacon que chegaram
até nós terem sido revistos e considerados, ele prossegue:
Para mim pelo menos, por mais que se possa lamentar uma queda como essa, de
um homem como ele, e um fecho tão lastimável de uma vida como a dele, sempre
senti que, não tivesse ele caído, ou tivesse ele caído numa situação menos desoladora
em suas condições exteriores, eu nunca teria sabido o quanto ele era um homem bom
e grandioso - dificilmente, talvez, o quanto a bondade intrínseca é uma coisa grandiosa
e invencível. Passando do mundo exterior para o mundo que estava em seu interior,
não conheço nada mais inspirador, mais comovente, mais sublime, do que a indómita
energia, a confiança, a clarividência, a paciência e a compostura com que seu espírito
sustentou-se naquele destino tão deprimente. Nem o coração do próprio Jó foi tão
dolorosamente provado, nem passou ele melhor por suas provas. Nos muitos livros
que Bacon escreveu durante esses últimos cinco anos, não encontro lamentações
ociosas, queixas vãs contra terceiros, nenhuma justificativa medíocre de si mesmo;
nenhum traço de uma mente desgostosa, vacilante ou desesperada. [178:407]
Compare-se com esta avaliação da atitude mental de Bacon sob as circuns­
tâncias deprimentes de seus últimos anos o imperecível e inexaurível ânimo
de Walt Whitman, Jacob Behmen e William Blake, em situações semelhantes.
VI
Aqui (enquanto falamos dos traços pessoais deste homem), temos uma
boa oportunidade para citar algumas passagens que parecem vislumbrar certa
qualidade da mente de Bacon semelhante à faculdade superior que está em
discussão neste livro. Por exemplo, Rawley [141:47], como resultado de
observação pessoal, diz dele: “Tenho sido induzido a pensar que se houve
um raio de conhecimento oriundo de Deus em qualquer homem nestes tempos
modernos, foi nele. Pois, embora ele fosse um grande ledor de livros, seu
conhecimento não provinha de livros e sim de fundamentos e noções oriundos
de seu interior, os quais, não obstante, ele externava com grande cautela e
circunspecção”. Em outras palavras, Rawley acha que Bacon era inspirado e
diz que ele era extremamente cuidadoso em publicar as verdades ou as idéias
extraídas dessa fonte. E isto é exatamente o que afirma o autor deste livro
como uma razão para a autoria oculta das peças e dos sonetos.
Notem-se também estas palavras de Bacon, extraídas de seu ensaio, Da
Verdade [35:82]: “A primeira criatura de Deus, na criação dos dias, foi a luz
do sentido; a última foi a luz da razão; e seu trabalho no Sábado, desde
então, é a iluminação do seu espírito”. Em outras palavras: Na evolução da
mente humana, foi primeiramente produzida a consciência simples; depois
a autoconsciência; e, por último, está sendo produzida hoje a Consciência
Cósmica. Bacon prossegue: “Primeiro ele insuflou luz sobre a face da matéria
do caos [e produziu vida, consciência simples]; depois insuflou luz na face
do ser humano [e produziu autoconsciência]; e em seguida insuflou e inspirou
luz na face de seus escolhidos” [dotando-os de Consciência Cósmica]. Compa­
re-se: “Tem-se dito que grandes são os sentidos, maior do que os sentidos é
a mente [a consciência simples], maior do que a mente é o discernimento [a
autoconsciência]. O que é maior do que o discernimento é isto [a Consciência
Cósmica]. Assim, conhecendo aquilo que é mais elevado que o discernimento
e restringindo-te por ti mesmo [note-se a inevitável reduplicação do indiví­
duo], destrói o ingovernável inimigo na forma do desejo”[154:57], E ainda:
“Não será pelo raciocínio que a lei será encontrada; ela está além do âmbito
do raciocínio” [154:3 9],
É de se notar que Bacon parece ter reconhecido um intervalo tão grande
entre a luz da razão e a iluminação do espírito quanto o intervalo entre a luz
do sentido e a da razão. Isto é, que ele reconheceu um intervalo tão grande
entre a Consciência Cósmica e a Autoconsciência quanto o que existe entre
esta última e a consciência simples - exatamente como sustenta o autor
deste livro. Mas, no campo da autoconsciência, onde poderia ele encontrar
um intervalo assim entre a razão e qualquer coisa acima da razão?
Além disso, em sua grande prece [175:469], diz Bacon:
A Ti sou devedor pelo generoso ta­
lento de Teus dons e Tuas graças, que
nem ocultei nem entreguei (como deveria
ter feito) a cambistas, com os quais po­
deria ter dado mais lucro; mas o gastei
mal em coisas para as quais eu menos
estava preparado; assim , posso ver­
dadeiramente dizer que minha alma tem
sido um estranho no decurso de minha
peregrinação.
O talento em questão é o Sentido Cósmico.
Bacon não o deixou ficar improdutivo, mas não
fez dele tanto uso quanto poderia e deveria ter
feito. Devia ter vivido sua vida para ele (como o
fizeram Gautama, Jesus e Paulo), mas tentou
viver (e viveu) duas vidas e malgastou uma gran­
de parte de sua vida “em coisas para as quais
menos estava preparado” - leis, política, etc.; as­
sim, pode-se verdadeiramente dizer que sua alma
(o Bacon do Sentido Cósmico) era um estranho
na vida do Bacon notório (o autoconsciente).
O Sentido Cósmico produziu as peças. Se Bacon tivesse vivido abertamen­
te toda a sua vida para o Sentido Cósmico, que outras, talvez maiores obras
não poderia ter produzido? E ao invés de sua quase oculta e mal interpretada
vida poderíamos ter tido mais uma daquelas vidas abertas, nobres, cada uma
das quais é uma fonte de infindável inspiração para a espécie humana que
está lentamente lutando, a partir daquilo que vemos ao nosso redor, para
aquela meta divina.
Para encerrar esta parte do assunto, vamos dar uma olhada em dois outros
breves excertos. O primeiro é do Plano da Obra e, o segundo, do Novum
Organum. Diz Bacon:
Se trabalharmos em tuas obras com
Esta passagem parece aludir claramente a
o suor do nosso rosto, tu nos farás partici- »ma vida espiritual superior que pode ser
pantes em tua visão e no teu Sábado. Hu- avançada nesta vida e de que se pode supor que
mildemente rogamos que este desígnio ° escritor tenhatido exPenência'
esteja firme em nós e que, através destas nossas mãos e das mãos de outros a quem
dês o mesmo espírito, tu te dignes dotar a família humana de novas graças. [34:54]
E há ainda o seguinte:
Posso então dizer de mim mesmo
Se o “licor extraído de inúmeras uvas” não
aquilo que alguém disse como pilhéria ®0 Sentido Cósmico, não parece muito claro o
(dado que tão verdadeiramente evidencia l “6 Possa sera diferença): “Não é possível que tenhamos de pensar do mesmo modo, visto que um
bebe água e outro bebe vinho”. Ora, outros homens, tanto em tempos antigos como
nos modernos, em matéria de ciência têm bebido como água um licor cru, fluindo
espontaneamente do discernimento ou inferido por lógica, como de um poço por
roldanas. Ao passo que eu brindo à humanidade com um licor extraído de inúmeras
uvas, de uvas perfeitamente m aduras, colhidas em cachos, ajuntadas e então
esmagadas na prensa e finalmente purificadas e clarificadas na cuba. Portanto, não é
de admirar que eles e eu não pensemos do mesmo modo. [34:155]
vn
Este não é, naturalmente, o lugar para uma discussão da autoria das
peças, mas como é aqui tido como certo que elas devam ser creditadas a
Bacon, será correto indicarmos algumas das principais razões para adotarmos
esta posição. O depoimento do autor deste livro sobre o assunto será apre­
sentado quando alguns dos Sonetos estiverem sendo considerados. À parte
dessas passagens nos Sonetos, as “razões” em questão podem ser assim resu­
midas:
a. O grande número de palavras novas nas peças, estimadas em quinhentas,
em maioria do latim, e o número muito maior de palavras velhas usadas
com novo significado, estimadas em cinco mil, deixam claro que elas
foram escritas, não apenas por um gênio, mas também por um homem
erudito - um homem que lia latim tão fluentemente que quase chegava a
pensar neste idioma. Depois, a semelhança do estilo de Bacon com o das
peças e, acima de tudo, a espantosa identidade de vocabulário nos trabalhos
em prosa e nas peças, tão maravilhosa que 98,5% das palavras de “Shakespeare” são também de Bacon [37:133], bem como o uso das mesmas metá­
foras e dos mesmos símiles, das mesmas antíteses, etc. [37:136], tomam
praticamente certo (especialmente quando se considera que esse vocabu­
lário, essas metáforas, esses símiles e essas antíteses são em alta escala
novos) que a mesma mente produziu os dois conjuntos de livros - o
“shakespeariano” e o baconiano.
b. Não somente há grande número de novas palavras e palavras antigas com
novos significados, metáforas, símiles, etc., comuns às peças de
“Shakespeare” e à prosa de Bacon, mas o grande número de frases e de
expressões modificadas que aparecem também em ambas, não pode ser
atribuído a mero acidente. Vejam-se as centenas de exemplos dados por
Donnelly [74], por Wigston [197], por Holmes [99] e outros.
C. Bacon e “Shakespeare” leram os mesmos livros, e não somente isto, mas
os livros favoritos de um eram os favoritos do outro.
d. Ambos escreveram sobre os mesmos assuntos. AfúosofmáQ De Augmentis,
do Novum Organum e de outras obras em prosa é constantemente repro­
duzida nas peças; e os ensaios de Bacon e as peças tratam o tempo todo
dos mesmos assuntos (a vida humana e as paixões humanas) e sempre do
mesmo ponto de vista. [197:25 et seq]
e. Em todas as espécies de assuntos, grandes e pequenos, o ponto de vista de
ambos é o mesmo - eles nunca expressam opiniões irreconciliáveis.
f. Eles foram os dois (se é que foram dois) maiores homens que viveram no
mundo em sua época. Durante trinta anos viveram naquilo que hoje
consideraríamos uma pequena cidade de cento e sessenta mil habitantes
[82:820] e não parece que alguma vez tenham se encontrado, assim como
não há evidência de que nenhum dos doisjamais tenha sabido da existência
do outro. O menor entre os (supostos) dois homens - Bacon - deixou
atrás de si abundante evidência da atividade literária de sua vida em forma
de manuscritos, cartas a amigos e recebidas de amigos, etc. O maior,
“Shakespeare”, nada deixou; nem um manuscrito, nem uma carta.
g. Sabe-se que Bacon conhecia todos os locais das peças, por residência, por
visita, ou por ter lido a seu respeito - principalmente pelos dois primeiros
motivos. O escritor freqüentemente revela íntima familiaridade com esses
locais. Justamente o local especial, que deve ter sido conhecido nos
mínimos detalhes por William Shakespeare - Stratford e suas vizinhanças
- não está incluído.
h. Há um claro paralelismo entre as sucessivas peças (seus incidentes, suas
cenas, etc.) e as ocorrências da vida de Bacon (seu cargo, circunstâncias,
residências, etc.), enquanto parece não haver nenhum entre elas e a vida
de “Shakespeare”, até onde é do nosso conhecimento. [130]
i. A relação que existe, por um lado, entre Ricardo III e Henrique VIII, de
“Shakespeare” e, por outro lado, a história em prosa de Henrique VIII, de
Bacon, faz com que seja quase certo que o mesmo homem tenha escrito as
três obras [197:1-24],
j. Afirma-se às vezes que Bacon era cientista, filósofo, homem da corte,
advogado, homem de negócios, mas não um homem de grande perspicácia
ou um grande poeta, que pudesse ter escrito as peças. Mas, em primeiro
lugar e deixando de lado as peças, Bacon era ambas as coisas: era perspicaz
e era poeta. Macaulay não exagera quando escreve que, como é demonstra­
do em suas obras em prosa: “A faculdade poética era poderosa na mente
de Bacon, mas não, como sua perspicácia, poderosa a ponto de ocasional­
mente usurpar o lugar de sua razão e tiranizar totalmente o homem”.
“Nenhuma imaginação”, acrescenta ele, “jamais foi ao mesmo tempo tão
forte e tão completamente dominada” [120:487],
k. Só o argumento de Promus já pareceria, a uma mente imparcial, bastante
conclusivo quanto à autoria baconiana das peças. Se essa coletânea [129]
não foi feita para ajudar na produção das peças, poderia alguém ter a
bondade de nos dizer com que finalidade Bacon empreendeu e persistiu
na árdua tarefa de compilá-la? Aqueles que ainda tenham dúvidas sobre
este assunto fariam bem em ler os escritos de Bacon abertamente reconhe­
cidos. Então, em segundo lugar, tem-se dito aqui que Bacon era na reali­
dade dois homens (o Bacon autoconsciente e o Bacon Cosmicamente
Consciente); que o homem visto pelos contemporâneos de Bacon e nas
obras em prosa era o primeiro, enquanto o homem oculto que produziu as
peças e os Sonetos era o segundo. O Bacon Cosmicamente Consciente
fazia (naturalmente) uso de todo o conhecimento e de todas as faculdades
do Bacon autoconsciente e, ao lado disto, do imenso discernimento
espiritual e dos poderes que estão presentes quando se tem Consciência
Cósmica.
1. Por volta de 18 de abril de 1621, após sua queda, Bacon compôs uma
prece que Addison citou como parecendo as devoções de um anjo e não de
um homem [175:467], Nenhuma poesia mais verdadeira nem mais elevada
é encontrada nas peças ou nos Sonetos do que nessa prece. Nenhum homem
com a alma no corpo pode lê-la e duvidar de sua absoluta candura e
sinceridade. Nela, diz ele: “Suscitei (embora numa roupagem modesta) o
bem de todos os homens”. Ninguém jamais explicou o que pudesse ser
esse “bem de todos os homens” que Bacon suscitou e que andava em
roupagem modesta. Poderia ser alguma outra coisa além das peças? “O
bem de todos os homens” é uma frase tão grandiosa que o propósito a que
se refere tem de ser necessariamente imenso. Que outro propósito do gênero
poderia ter existido na mente de Bacon naquela época? Bem, suas obras
filosóficas - o De Augmentis, o Novum Organum e as demais? Sim, sem
dúvida isto seria verdadeiro a respeito delas. Mas o propósito de que se
falou estava numa roupagem modesta. Estavam estas últimas assim? Bem
ao contrário. Elas trajavam genuína vestimenta de alta classe, filosófica,
tanto na forma como no estilo - além disto, no melhor latim que, por
amor ou por dinheiro, poderia ser obtido para elas.
m.Bormann [28] e Ruggles [145], em dois livros fascinantes e de pontos de
vista algo diferentes, competentemente salientaram (como aliás fora feito
diversas vezes antes mas não tão sistematicamente) com que persistência
o pensamento de Bacon e o de “Shakespeare” correm no mesmo canal;
como a ciência e a filosofia do primeiro são constantemente introduzidas
na poesia do segundo, tornando-se seu próprio sangue vital e sua alma, e
como um nunca perde vista o método delineado e seguido pelo outro.
Com efeito, se nada tivesse jamais sido escrito sobre o assunto exceto
esses dois livros (e eles não tocam nos argumentos principais, básicos),
eles estariam em forte concordância, numa demonstração da proposição
de que o homem que escreveu Tempest, Lear eMerchantofVenice escreveu
também De Augmentis e Silva Silvarium.
n. Finalmente, considere-se o anagrama descoberto pelo Dr. Platt, na época
de New Jersey, em Love ’s Labor ’s Lost [51:376]: “Começando no início
do quinto ato, encontramos, uma coisa após outra, as seguintes expressões:
Satis quod sufficit (aquilo que satisfaz é bastante). Novi hominen tanquam
te (conheço o homem tanto quanto vos conheço). Ne intelligis domine
(vós me compreendeis, senhor)? Laus Deo, bene, intelligo (Deus seja
louvado, compreendo bem). Videsne quis venit (vedes vós quem vem)?
Video et gaudeo (vejo e me regozijo). Quare (por que)? Depois, algumas
linhas mais adiante, a palavra Honorificabilitudinitatibus é (por assim
dizer) jogada no texto. Imediatamente depois alguém diz: Are you not
lettered (não sois vós letrado)? A resposta é: Yes, he teaches boys the
hornbook (sim, ele ensina aos meninos a cartilha). What is a b spelt
backward, with the hom on his head (que é a b soletrado às avessas, com
o chifre em sua cabeça)? A resposta a isto, naturalmente, é Ba, with a
hom added (Ba, acrescentado de um chifre). Ora, Ba com um chifre adicio­
nado é Bacomu, que não é mas sugere e provavelmente se pretendeu que
sugerisse Bacon. Mas de onde se deriva o “a b” que deverá ser soletrado
às avessas? No meio da palavra longa encontramos estas letras nesta ordem:
a b. Comecemos agora no b e soletremos às avessas como nos foi dito.
Teremos então bacifironoh. Destas letras não é difícil selecionaria Bacon.
Agora, tomemos a outra metade da palavra, soletrada para a frente -
ilitudinitatibus. Não é difícil dela selecionar ludi (as peças), tuiti (protegi­
das ou guardadas), nati (produzidas). Estas palavras, com as que tínhamos
antes, dão: Ludi tuiti Fr. Bacono nati. As letras restantes são hiiibs, que
são facilmente lidas como hi sibi. Agora, colocando as palavras juntas em
ordem gramatical, teremos: Hi ludi, tuiti sibi, Fr. Bacono nati (estas peças,
confiadas a si próprias, procederam de Fr. Bacon). É um anagrama perfeito.
Cada letra é usada uma vez e somente uma vez. A forma da palavra longa
é latina e ela é lida em latim. O sentido das palavras envolvidas corresponde
ao sentido da palavra envolvente, desde que ela tenha algum sentido
(compare-se honorificare, honorifico; veja-se o Dicionário Century). O
latim envolvido é gramatical. A intenção é totalmente declarada e clara.
Não há falhas.
“Mas de onde vem a palavra longa, e será que pode ser descoberta uma
relação entre ela e o homem real, Francis Bacon? Para responder a isto,
voltemos ao manuscrito de Northumberland House, MS„ mencionado acima.
Esse MS. pertencia a Bacon e nunca poderia ter sido visto pelo ator, Shakespeare. Na folha externa está escrita a palavra: Honorificabilitudino. Esta é
também um anagrama. Ela envolve as palavras: Initio hi ludi Fr. Bacono
(no início estas peças de* Fr. Bacon). Parece ter sido uma primeira idéia. As
palavras latinas não formam uma oração completa; sugerem um significado
mas não o contêm de fato. O anagrama nesta forma não era considerado
satisfatório e foi depois melhorado na forma encontrada em Love ’s Labor ’s
Lost.
“Assim temos diante de nós a feitura da palavra por Bacon. O sentido da
palavra e sua história correspondem. O caso parece estar completo.”
o. Mas argumentos como os acima apresentados, embora convincentes e
realmente suficientes por si mesmos se francamente considerados, não
são mais necessários para comprovar - embora se possa permitir que
sugiram - a autoria baconiana das peças e das poesias, uma vez que este
autor, nos últimos dois anos, descobriu que estas estão todas ou praticamen­
te todas assinadas por Francis Bacon, por meio de uma cifra inventada
por ele próprio e que ele manteve em segredo por quarenta anos. O indício
em que assenta esta afirmação, se ainda não publicado quando este livro
for lançado, será dado ao mundo logo depois.
* N. T. - O “de” indica um ablativo e não um genitivo; assinala origem e não posse
ou autoria.
VIII
Mas este livro nada tem a ver com a questão Bacon-Shakespeare, exceto
incidentalmente e por força de circunstâncias. Alguém escreveu as peças e
os “Sonetos” e acredita-se que essa pessoa, seja quem for, tinha Cons­
ciência Cósmica. E assim como são encontrados em quase todos esses ca­
sos dois tipos de escritos - a saber, um que flui do Sentido Cósmico e outro
que, brotando na mente autoconsciente, trata diretamente do Sentido Cós­
mico como uma realidade que para ela é objetiva - assim estes dois tipos
de escritos são encontrados neste caso: (1) As peças, que tratam do mun­
do dos homens e fluem diretamente do Sentido Cósmico e (2) os Sone­
tos, que tratam (do ponto de vista do homem autoconsciente) do próprio
Sentido Cósmico, de maneira sutil e oculta, como é usual e na verdade
inevitável.
Resta (e é tudo o que pode ser feito aqui) apresentar tantos “Sonetos”
quantos caibam no espaço disponível, acompanhados das necessárias
observações explanatórias.
IX
Os primeiros dezessete “Sonetos” instam o Sentido Cósmico a dar fru­
tos. A teoria é de que eles foram escritos em primeiro lugar tais como
se apresentam e foram os primeiros escritos de seu autor após a ilumina­
ção. Se parecer estranho que um homem tenha escrito assim, que se compare
isto com um indubitável caso de precisamente a mesma coisa aqui suposta.
A edição de 1855 de Leaves o f Grass foi escrita por Whitman imediata­
mente após a iluminação. Na terceira página (o prefácio foi escrito poste­
riormente) aparecem estas palavras, dirigidas ao Sentido Cósmico: “Solte o
freio de sua garganta - não palavras, não música nem rima eu quero; não
costume nem preleção, nem mesmo o melhor; só do acalento gosto, do
cantarolar de tua valvulada voz”. No caso de Whitman, como nos casos de
Buda e de Jesus, a indução especial do Sentido Cósmico era para uma vida
nobre. No caso de Bacon, como no de Balzac, era especialmente para a
expressão literária. Em conformidade com esta distinção, Whitman escreve,
numa vida longa, dois pequenos livros; Bacon, numa vida mais curta, dez
ou vinte vezes mais. A invocação de Whitman ocupa três versos; a de Bacon,
duzentos.
De mais belas criaturas aumento desejamos,
Que assim de beleza nunca feneça o roseiral,
Mas como as mais maduras no tempo a
fenecer virão,
Seu tenro herdeiro sua memória há de portar:
Mas tu, para teus próprios luzidos olhos
contraída,
De tua luz a flama alimentas com
auto-substancial combustível,
Fome causando onde abundância existe,
Tu mesma teu inimigo, para teu doce Eu tão
cruel.
Tu, que ora do mundo o novo ornamento és,
E da ostentosa primavera o único (*1) arauto,
Em teu próprio botão tua essência sepultas,
E, tenro sovina, a mesquinhar desperdiças.
Do mundo te apieda, ou então o glutão sê,
A devorar o que ao mundo é devido, pela
cova e por ti.
(*1) Único - í.e., incomparável
arauto da ostentosa primavera.
Em quarenta e três casos de Cons­
ciência Cósmica, a época do ano da
primeira iluminação é conhecida
com maior ou menor certeza em
vinte, e em quinze destes aconteceu
na primeira metade do ano - de
jan eiro a junho. Teria talvez a
iluminação de Bacon ocorrido na
primavera? Seria este o significado
do verso?
A mais bela das criaturas é o que
Plotino denomina “esta sublime
condição” e da qual disse Dante: “Ó
esplendor da eterna luz vivente! Que
se tomou tão pálido sob a sombra do
Pamasso, ou que tanto bebeu em sua
cisterna que ele não pareceria ter sua
m ente estorvada, tentando a ti
representar tal como apareceste ali
onde em harm onia o céu a ti
obscurece quando no ar livre em
verdade te revelaste”. [71:201]
SONETO n
Quando quarenta invernos tua fronte
assediarem, (*2)
E profundas valas no campo de tua beleza cavarem
De tua juventude a orgulhosa veste, tão admirada
hoje,
Andrajosa erva será, de pouco valor considerada:
Ao te perguntarem então onde toda tua beleza
esteja,
Onde todo o tesouro de teus vigorosos dias, Dentro de teus próprios olhos tão cavos dizeres,
Uma devoradora vergonha e um vão louvor haveria.
Quanto mais louvor o uso de tua beleza mereceria,
Se pudesses responder - “Este belo filho meu
Minha conta fechará e minha velha desculpa será”Provando sua beleza por sucessão tua!
Isto recém-feito deveria ser quando velho
fosses,
E teu sangue quente visses, quando frio
o sentisses.
(*2) Quando o Sentido Cósmico
tivesse quarenta anos de idade,
Bacon teria setenta.
Olha em teu espelho e dize a face que vês,
Hora já é de essa face outra formar;
Cujo recente trato se não renovas,
Deveras o mundo logras, alguma mãe
desabençoas. (*3)
Pois onde está ela, tão linda (*4), cujo imérito
ventre,
De teu cultivo a colheita desdenha?
Ou quem tão afeiçoado é ao túmulo
De seu narcisimo, que a posteridade faça parar?
És o espelho de tua mãe (*5), e ela em ti
De volta chama o encantador abril de seu apogeu:
Assim, através de janelas da tua idade verás,
Despeito as rugas, este teu dourado tempo,
Mas se lembrado de não ser viveres,
Solteiro morre, e tua imagem contigo morre.
SONETO XV
Quando considero que tudo que cresce
Só por um breve momento em perfeição se
mantém,
Que este imenso palco além de espetáculos nada
apresenta,
Onde as estrelas em secreta influência observam,
Quando percebo que homens qual plantas
aumentam,
Pelo mesmíssimo céu animados e refreados,
Em sua juvenil tolice gabando-se de que o alto
decrescem,
E da memória seu esplêndido estado apagando;
Então a presunção desta inconstante estada
A meus olhos em juventude mais rico vos torna,
Onde perdulário Tempo com Decadência disputa,
Para em maculada noite vosso dia de juventude
mudar;
E, tudo em guerra com o Tempo, por amor a
vós,
Conforme ele de vós toma eu em vós novo
implanto. (*6)
(*3) A lgum a mãe desabençoas:
destitui alguma arte da prole
que poderia (deveria) ter tido, da
influência geradora do “menino
encantador” - o Sentido Cósmico.
(*4) Onde está ela, tão linda? Qual arte existe, tão linda, etc.
(*5) Es o espelho de tua mãe - isto
é, o espelho da natureza.
“Segura o espelho voltado para a
natureza” (Hamlet). No Sentido
Cósm ico, toda a n atureza está
refletida, inclusive o coração
humano. A este propósito, consi­
dere-se (além das peças de
“ Shakespeare”) a C om édie
H um aine, de B alzac; a D ivina
Comédia, de Dante e Leaves o f
Grass, de Whitman.
(*6) Todas as coisas, após um
período m om entâneo de
maturidade, murcham e decaem. O
próprio Sentido Cósmico está sujeito
à mesma lei universal. Para que ele
absolutamente não morra com a
morte de seu possuidor, ele (o Bacon
autoconsciente) o im planta
novamente nos Sonetos.
Mas por que vós, de maneira mais poderosa,
Não fazeis guerra contra o Tempo, esse sanguinário
tirano?
E em vosso declínio não vos fortaleceis
Com mais abençoados meios que minha estéril rima?
Agora, no ápice de felizes horas estais;
E muitos intocados jardins, não arranjados ainda,
Com virtuoso desejo vossas vivas flores à luz trariam,
Muito mais parecidas do que vossas pintadas
imitações:
Assim deveriam ser da vida os versos que a vida
restauram,
Que este, o pincel do Tempo, ou minha pupila pena,
Nem num mérito interior nem na beleza exterior,
Podem vos fazer aos olhos dos homens viver.
O de vós mesmo desfazer-vos, imóvel vos
mantém;
E por vossa própria doce arte conduzido
deveis viver. (*7)
SONETO XVII
Quem meu verso acreditaria em tempos por vir,
Se preenchido fosse com vossos altíssimos
desertos?
Embora seja ele ainda, o sabem os Céus, apenas
qual tumba
Que vossa vida esconde e nem metade mostra de
vossas partes.
Se eu pudesse escrever de vossos olhos a beleza,
E em novos números todas as vossas graças enumerár,
Diria a era por vir, “este poeta mente;
Toques assim celestiais, faces terrenas jamais
tocaram”.
Assim, por sua idade amarelecidos, deveriam meus
papéis
Ser escarnecidos, como homens velhos de menor
verdade que a língua;
E de fúria de poeta deveriam vossos justos direitos
ser chamados,
E de exagerada métrica de canção antiga:
Mas se algum filho vosso vivo fosse naquele
tempo,
Duas vezes viver deveríeis - nele e em minha
rima. (*8)
(*7) Ele (O Bacon autoconsciente)
irá (diz ele) implantar o Senti­
do Cósmico nos Sonetos. Mas, (diz
ele ao Sentido Cósmico), por que
razão vós (vós mesmo) não adotais
um modo mais poderoso de assegu­
rar vossa im ortalidade terrena?
Estais agora no apogeu de vossa
juventude e muitos intocados jardins
(arte, poesia, drama, etc.) sentir-seiam felizes em trazer à luz vossos
filhos - vossas vivas flores. E estas
se pareceriam muito mais convosco
do que uma descrição de vós feita
de fora (como no caso dos Sonetos).
Sim, porque os Sonetos são uma
descrição do Sentido Cósmico do
ponto de vista da autoconsciência,
ao passo que a coisa realmente
desejável seria que o próprio Sentido
Cósmico falasse. “Só do acalento
gosto”, diz Whitman, “do cantarolar
de tua valvulada voz”. Se vos
apagásseis, diz Bacon ao Sentido
Cósmico, haveríeis de vos tom ar
imortal. Haveríeis de “vos manter
imóvel”.
(*8) Deixai-me dizer o que eu quei­
ra (como nos Sonetos) a vosso
respeito; ninguém poderia saber, de
minhas palavras, o que realmente
sois. Deixai-me dizer como pareceis
a mim e se dirá que exagerei, que
menti. Mas produzi - deixai atrás de
vós filhos como vós —dignos de vós
mesmo - como devem ser - então
não sereis negado. Inequivocamente
vivereis duas vezes: (1) Em vossa
própria prole, cuja divindade nin­
guém poderá questionar e (2) em mi­
nha descrição de vós, nos Sonetos,
a qual será vista, por comparação
com a vossa própria prole, como
verdadeira.
A um dia de verão devo comparar-te?
Es mais encantador e mais temperado:
Fortes ventos sacodem sim os graciosos botões
de maio,
E do verão o prazo demasiado curto é:
Vezes quente demais, do céu o olho brilha,
Vezes em sua dourada pele esmaecido é;
E tudo que belo é, do belo vezes declina,
Pelo acaso ou pelo curso mutante da natureza
desadomado;
Mas não murchará teu eterno verão,
Nem a posse perderá daquele belo que deves;
Nem a Morte se gabará de que em sua sombra
vagueias,
Quando em eternos versos ao tempo subsistes:
Enquanto respirar possam homens, ou ver
possam olhos,
Tanto vive isto e a ti dá vida. (*9)
SONETO XXXIII
Inumeráveis gloriosas manhãs tenho visto
Os cumes das montanhas com soberano olho
exaltarem,
Com face dourada os verdes prados beijando,
Pálidos córregos com celeste alquimia
embelezando;
Quando em vez, nas nuvens mais baixas permitir
andar
Com feia angústia em sua celestial face,
E do mundo infeliz seu rosto esconder,
Para o poente com esta vergonha escapando:
Embora meu filho certa manhã cedo deveras tenha
brilhado
Com todo o triunfante esplendor em minha fronte;
Mas, ai! que só por uma hora meu ele foi.
Uma nuvem do campo de mim o escondeu agora.
Mas a ele, por meu amor, nem um pouquinho
desdenha;
Macularem-se podem os sóis do mundo,
quando o sol do céu se macula. (*10)
(*9)
A primeira parte do soneto é um
louvor ao Sentido Cósmico,
mico. Pareceria que, na ocasião em que
este soneto foi composto, Bacon havia
estabelecido em sua própria mente como
o Sentido Cósmico iria se expressar, e
parte do trabalho parece ter sido feita isto é, algumas das peças terem sido
escritas. Ele fala do Sentido Cósmico
como tendo subsistido ao tempo em
versos eternos.
(*10) O Soneto XXXIII se refere ao
caráter intermitente da ilumina­
ção, que é verdadeiro em todos os casos
de Consciência Cósmica, nos quais há
mais de um lampejo da divina radiância.
Trata do desânimo e da aridez dos
intervalos, em comparação com os
períodos em que o Sentido Cósmico está
efetivamente presente. Assim, Behmen,
referindo-se ao caráter intermitente de
sua iluminação, diz [40:16]: “O sol
brilhou sobre mim por um bom tempo
mas não constantemente, pois escondeuse e então eu não sabianem compreendia
bem m eu próprio trabalho” [seus
próprios escritos]. Note-se o uso das
mesmas imagens por ambos os autores.
Também Yepes nos diz: “Quando essas
visões ocorrem, é como se uma porta
fosse aberta para uma luz maravilhosa,
pela qual a alma vê, assim como os
homens vêem quando o raio lampeja
numa noite escura. O relâmpago toma
visíveis por um instante os objetos do
ambiente e depois os deixa no escuro,
embora suas formas permaneçam na
imaginação. Mas no caso da alma a
visão é muito mais perfeita, pois as
coisas que ela viu em espírito naquela
luz ficam tão impressas nela que, sempre
que Deus a ilumina novamente, ela os
vê claro como o fez na primeira vez,
exatamente como num espelho, no qual
vemos objetos refletidos toda vez que
nele olhamos. Uma vez concedidas à
alma, essas visões nunca mais a deixam totalmente; pois as formas permanecem, embora se tomem um
tanto indistintas no decurso do tempo. Os efeitos dessas visões na alma são quietude, iluminação,
glória como que jubilosa, doçura, pureza, amor, humildade, propensão ou elevação da mente a Deus,
às vezes mais, às vezes menos, às vezes mais de um, às vezes mais de outro, conforme a disposição da
alma e a vontade de Deus” [203:200-1], Comparem-se as últimas palavras de Yepes com Paulo: “O
fruto do espírito [Cristo, o Sentido Cósmico] é: amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade,
fé, mansidão, temperança” [22:5:22],
SONETO XXXVI
(*11) É razoável supor que este so­
neto represente uma ocasião
posterior às citadas acima. É portanto
Deixa-me confessar que dois temos de ser,
lícito imaginar que, quando ele foi
Ainda que nossos indivisos amores um sejam:
escrito, uma boa quantidade das
Assim as nódoas que comigo permanecem,
peças já existia. Por alguns anos
Sem tua ajuda, só por mim conduzidas sejam.
Bacon vinha levando um a vida
Em nossos dois amores um afeto somente existe,
dupla; de um lado, a vida de um
Embora em nossas vidas um separado rancor,
advogado, um homem da corte, um
Que, bem que não altere do amor o efeito único,
político - sua vida autoconsciente;
Em verdade doces horas roube ao deleite do amor. de outro lado, a vida do vidente, do
poeta - a vida iluminada por aquela
Talvez eu nunca mais a ti reconheça,
“luz rara, indizível, iluminando a
Para que minha lamentada culpa a ti não
própria luz”- a “luz que nunca
envergonhe;
existiu na terra ou no mar”- numa
Nem tu com pública bondade me honres,
palavra, a vida em Consciência
A menos que de teu nome essa honra tomes:
Cósmica. Ele mantivera estas duas
Não o faças, porém; de tal modo te amo
vidas inteiramente separadas. Nin­
Que, sendo tu meu, minha é tua boa reputação. guém sabia, ou poucos sabiam
(Anthony talvez, e Mathews) que ele
(*11)
estava vivendo qualquer outra vida
que não a primeira. Tomara-se para ele uma política decidida, por muitas razões fortes e por
sentimentos mais fortes do que as razões, que as duas vidas seriam mantidas em separado. Apatente
dualidade disto e de algum outro dos Sonetos será quase ou totalmente incompreensível para muitos,
quando aplicada a duas partes da mesma pessoa ou duas personalidades no mesmo indivíduo. Mas
sabemos que (supondo que a interpretação aqui adotada seja correta) a linguagem dos Sonetos não
é mais extrema, neste particular, do que a linguagem em outro destes casos em que não pode haver
dúvida quanto ao seu significado. Assim, Whitman escreve: “Com risos e muitos beijos, O alma, tu
me aprazes e eu a ti” [193:321], E ainda: “Eu, voltando-me, a ti chamo , Ó alma, tu, verdadeiro
eu”[ib.].
O autor do soneto diz ou parece dizer que, se ele reconhecesse seu outro Eu - o Sentido Cósmico
- e sua prole - as peças - qualquer bem que fosse feito a ele (à pessoa autoconsciente) seria tomado
a seu Eu superior, e que ele não consentirá nisto.
SONETO XXXIX
Oh, como teu valor com formas posso eu cantar?
Quando de mim toda a melhor parte és ?
Que pode meu próprio louvor ao meu próprio Eu trazer?
E que é senão meu mesmo quando a ti louvo?
(*12) O significado deste soneto
parece inequívoco. Dificilmente carece de comentário. O autor
diz que o Sentido Cósmico é a melhor
parte dele (o que, naturalmente, era)
e, sendo uma parte dele mesmo, não
é nada polido da parte dele louvá-lo.
Mas (diz ele) por esta razão mesmo,
vivamos como dois. Seu período de
privação do Sentido Cósmico, natu­
ralmente, é o tempo em que está
ocupado com a lei, a política, os ne­
gócios, os afazeres mundanos - todo
o tempo, com efeito, entre os perío­
dos de iluminação, quando seu tempo e sua mente não estavam ocupados com as coisas do Sentido Cósmico. Essa ausência se torna
feliz pelo conhecimento de que a qualquer hora ele pode se voltar para pensamentos do Sentido
Cósmico e das coisas que são próprias dele. A mais forte expressão neste soneto é: “Tu [o Sentido
Cósmico] ensinas como fazer um ser dois”. Isto é, como tem sido muitas vezes enfatizado neste
livro, uma característica fundamental dos casos em questão. “A consecução da condição de Arahat”
(da Consciência Cósmica), diz Gautama, fará com que um homem “sendo um, multiforme se
tome”[161:214], “Já não sou eu”, diz Paulo, “quem vive, mas Cristo [ Sentido Cósmico] vive em
mim” [22:2:20]. E ainda, “Se alguém está em Cristo [se qualquer homem vive a vida do Sentido
Cósmico], é nova criatura” [21:5:17]; e Paulo diz que o homem Jesus “de ambos [isto é, (1) o
Sentido Cósmico - Cristo - e (2) o homem autoconsciente - Jesus] fez um”, “... para que dos dois
criasse em si mesmo novohomem” [23:2:14-15], e em muitos outros lugares ele dá testemunho de
sua própria personalidade dual. Maomé chamava o Sentido Cósmico de “Gabriel o Alcorão foi
ditado por ele *; o Maomé conhecido era uma segunda individualidade. Balzac, falando de Louis
Lambert (isto é, de si mesmo), depois de ter entregue sua vida ao período de iluminação, diz: “Os
eventos que ainda tenho a relatar formam a segunda existência desta criatura, destinada a ser
excepcional em todas as coisas”[5:100]. E prossegue descrevendo o advento do estado de Consciência
Cósmica e, nos aforismos, a própria Consciência Cósmica. Whitman se refere constantemente ao
Sentido Cósmico como sua alma e chama o Walt Whitman visível do dia a dia de “O outro EuSou”[193:32], e assim por diante.
Apesar disto, divididos vivamos,
E nosso querido amor o nome de um só perca,
Q ue por esta separação eu possa dar
Aquilo que te é devido e que só tu mereces.
O ausência, que tormento provarias ser,
Não tivesse teu amargo vagar doce despedida feito,
Para com pensamentos de amor o tempo
entreter, Tempo e pensamentos que tão docemente
enganam E que tu ensinas como fazer um ser dois,
Este aqui louvando, que doravante aqui fica!
(* 12)
SONETO LII
Assim como o rico sou eu, cuja abençoada chave
A seu doce tesouro trancado pode levar,
Q ue ele não há de a cada hora inspecionar,
Pois isto o gozo embotaria, de esporádico prazer.
Por isso tão solenes e raras são as festas,
Pois, raramente vindo, no longo ano estabelecidas,
Como preciosas pedras esparsamente são colocadas,
* N.T. -
N o original em inglês há aqui um interessante, talvez importante jogo de
palavras: a “ditado por ele” (dictated by him), o autor acrescenta: (or it). A
sugestão para reflexão está em que “him ” refere-se a pessoa, ao passo que “ it”
refere-se a coisa ou fenômeno - na sua tese, o Sentido Cósmico.
Ou como jóias maiores no colar.
Assim é o tempo que vos guarda,
qual cofre meu,
Ou como o armário que o manto esconde,
Para algum especial instante especialmente
abençoado tomar,
Por um novo desabrochar de seu aprisionado
orgulho.
Abençoados sois vós cujo merecimento
escopo dá,
Provido sendo para o triunfo, falto sendo para
a esperança. (*13)
(*13) Compare-se Plotino: “Esta
sublime condição não é de
duração permanente. É apenas de vez
em quando que podemos desfrutar a
elevação (misericordiosamente a nós
possibilitada) acima dos limites do
corpo e do mundo. Eu mesmo a
apreendi somente três vezes até
agora” [188:81], Os períodos de
iluminação de Bacon foram prova­
velm ente m ais longos e m ais
freqüentes do que os de Plotino.
Aparentemente, nenhum dos dois
podia controlar os períodos de
iluminação. Parece provável que
Jesus esteja se referindo a esse arbitrário ir e vir (aparentemente sem causa) da luz divina, quando
diz [17:3’.8y “O vento sopra onde quer, ouves a sua voz, mas não sabes donde vem, nem para onde
vai; assim é todo o que é nascido do Espírito.”
SONETO Lffl
(*14) Uma descrição, de um ponto
de vista, da Consciência Cósmica.
Que se compare a ela uma descrição
de Gautama, do mesmo ponto de
vista. Diz ele: “O estado de Arahat
[Consciência Cósmica] torna um
homem apto a compreender pelo seu
próprio coração os corações de
outros seres e dos outros homens, a
entender todas as mentes, as impe­
tuosas, as calmas, as iradas, as pacífi­
cas, as iludidas, as sábias, as concen­
tradas, as sempre variantes, as eleva­
das, as estreitas, as sublimes, as per­
versas, as resolutas, as vacilantes, as
livres e as escravizadas” [161:215].
Isto é, revela todo caráter, como étão
bem exem plificado no dram a
“shakespeariano” . Compare-se a
visão mundialmente ampla de Dante;
a penetração de Balzac na estrutura
e na operação do infinito coração
humano; as palavras de Whitman, “Sou do velho e do jovem, tanto do tolo quanto do sábio, desatento
dos outros, sempre atento aos outros, maternal bem como paternal, criança bem como homem”, etc.
[193:42] e o conhecimento quase universal do homem e de seu ambiente, que seus escritos indicam,
especialmente Leaves.
Qual é vossa substância, da qual sois feita,
Que milhões de estranhas sombras a vós
propendem
Pois cada um, cada qual uma sombra tem,
E vós, exceto uma, toda sombra podeis dar.
Descrevei Adónis, e a simulação
Do que sois, pobre imitação é;
Na face de Helena toda a arte da beleza
aplicada,
E vós, em gregos atavios, nova
pintada sois:
Da primavera falai, e da fartura do ano;
Uma, de vossa beleza sombra mostra,
A outra, como vossa plenitude se mostra;
E vós, em toda abençoada forma
conhecemos.
Em toda externa graça alguma parte tendes,
Mas vós como ninguém, ninguém como vós,
quanto a um coração leal. (*14)
Não o mármore nem os dourados monumentos
De príncipes a esta poderosa rima sobreviverão;
M as nestes conteúdos mais forte brilhareis
Do que não varrida pedra, com desleixado tempo
lambuzada.
Quando devastadora guerra estátuas derrubar,
E motins o trabalho de alvenaria arrancarem,
N em a espada de Marte nem da guerra o fogo
intenso queimarão
De vossa memória o registro vivo.
Contra a morte e toda esquecida inimizade
Caminhareis; vosso louvor lugar encontrará ainda,
N os olhos mesmo de toda a posteridade
Q ue este mundo até a terminante sina consome.
Assim, até o juízo em que ressurgireis,
Aqui vivereis e nos olhos dos amantes
morareis. (*15)
(*15) Com “esta poderosa rima”,
na qual o Sentido Cósmico
perdurará e brilh ará no futuro
distante, provavelmente não se quer
dizer os Sonetos, mas as peças ou
alguma peça em particular, como
Romeu e Julieta (escrita em 1596 e
impressa em 1597 e 1599). Até o
julgamento que a elevação do gosto
humano, promovida pelas próprias
peças, fará nascer, vós (a Consciência
Cósm ica) vivereis nesta peça e
deleitareis os olhos e o coração dos
que amam.
SONETO LEX
Se nada novo existe, mas aquilo que é
Antes já era , como enganado é nosso cérebro,
Q ue, em inventar empenhando-se, erroneamente
gera
O segundo fardo de um antigo filho!
O h, esse registro poderia, com um retroativo olhar,
Mesmo de quinhentos cursos do sol,
Vossa imagem nalgum antigo livro me mostrar,
Pois a mente a princípio em aparência foi feita!
Que eu pudesse ver o que o velho mundo poderia
dizer
A esta harmoniosa maravilha de vossa estrutura;
Q uer aprimorados estejamos nós, quer antes
estejam eles,
O u quer o mesmo seja o ciclo,
O h, seguro estou, de velhos dias a perspicácia
A piores assuntos, de admiração louvor
prestou. (*16)
(*16) O escritor pergunta: “É esta
ilum inação de que estou
consciente um fenômeno novo, ou
existia no velho mundo? Gostaria”
- diz ele - “de poder encontrá-la, ou
então uma descrição dela, em litera­
tura. Se ela já existiu, tem de ser en­
contrada nos registros da mente hu­
mana, e se eu pudesse encontrar esses
registros, poderia avaliar se a mente
humana estaria progredindo, recuan­
do ou permanecendo parada". Ele
parece chegar à conclusão de que
poucos ou nenhum dos grandes escri­
tores do passado teve essa experiên­
cia. Bacon estava altamente familia­
rizado com a Bíblia e, portanto, com
os evangelhos e as epístolas de Paulo,
mas sua reverência para com estes
escritos provavelmente o impediria
de comparar suas experiências com
a dos escritores sagrados. Não parece que ele conhecia muito de Dante; e a literatura budista, em
que o assunto é exaustivamente tratado, era livro absolutamente selado para os ingleses de seu
tempo. Jamais ocorreria a ele examinar o Alcorão e a vida de Maomé, se é que eram acessíveis a ele.
Assim, é provável que Bacon estivesse totalmente impossibilitado de ter qualquer conhecimento de
outros casos além do seu próprio.
O pecado do narcisismo todo o meu olho possui,
E toda a minha alma e todas as minhas partes;
E para este pecado remédio não há,
Tão enraizado está ele no âmago do meu coração.
A mim parece que nenhum rosto, gracioso seja
como o meu,
Nenhuma forma tão verdadeira, nenhuma verdade
tão valiosa;
E para mim mesmo meu próprio valor define,
Como eu a todos os outros em todo valor supero.
Mas quando meu espelho a mim, eu mesmo,
realmente mostra,
Surrado e truncado, pelo tempo curtido,
Meu próprio narcisismo bem ao contrário leio;
Tão narcisista ego iniqüidade era.
Es tu (eu mesmo), que a mim mesmo louvo,
Com beleza de teus dias minha idade pintando.
(*17)
(*17) Neste soneto, a dualidade da
pessoa que o escreve vem à
tona com muita força - sem dúvida
propositadamente. Quando ele se
encontra no seu Eu Cosmicamente
Consciente, está por assim dizer per­
dido em admiração de si mesmo.
Quando se volta para seu eu físico e
autoconsciente tende, ao contrário, a
desprezar a si próprio. Ele é ao mes­
mo tempo muitíssimo e pouquíssimo
um egotista. Aqueles que conheceram
o homem Walt Whitman sabem que
esta mesma aparente contradição,
apoiada nos mesmos fundamentos,
existia muito acentuadamentenele. A
adm iração de W hitm an pelo
Whitman Cosmicamente Consciente
e suas obras (Leaves), era exatamente
como pintada neste soneto, ao passo
que ele estava absolutamente desprovido de egotismo no jeito comum do indivíduo autoconsciente.
Acredita-se que estas observações seriam também verdadeiras quando aplicadas a Paulo, Maomé
ou Balzac. Em última análise, a questão parece ficar mais ou menos assim: O Eu Cosmicamente
Consciente, de todos os pontos de vista, parece maravilhoso, divino. Do ponto de vista do Eu Cosmicamente Consciente, o corpo e o ego autoconsciente também parecem divinos. Mas, do ponto de
vista da autoconsciência comum, e portanto comparado com o Eu Cosmicamente Consciente, o ego
autoconsciente e o corpo parecem insignificantes e até, como se vê bem no caso de Paulo, desprezíveis.
SONETO LXX
Que sejas acusado teu defeito não há de ser,
Pois a marca da calúnia a justiça nunca foi;
Suspeito é, o ornamento da beleza,
Um corvo que no mais doce ar do céu voa.
Bom sejas, o falatório só pode sancionar
Teu valor o maior, pelo tempo cortejado;
Pois a lagarta os mais doces botões ama,
E tu imaculada primavera apresentas.
De jovens dias pela emboscada passaste,
Ou não assaltado ou de vitorioso acusado;
Mas esse teu louvor não pode ser tanto teu louvor,
Que a inveja acorrente, eternamente aumentada;
Se algum suspeito do mal teu show não
mascaras se,
Então só tu reinos de corações deverias dever.
(*18)
(*18) Bacon diz: Que um Sentido
Cósmico (tal como visto em
seu produto, as peças) seja acusado
(quanto a abuso na linguagem, des­
prezo de regras recebidas, etc.) não
será nenhuma prova de defeito. Uma
grande obra original, como o drama
shakespeariano, nunca é a princípio
apreciada; é, na verdade, sempre
objeto de grave suspeita e muitas ve­
zes de absoluta condenação. Se - diz
ele - o Sentido Cósmico é realmente
a coisa divina que parece ser, o falar
mal dele e de seu produto apenas
mostra ainda mais que ele é divino,
revelando que está acima da cabeça
e do julgamento dos homens comuns.
Se não fosse por essa inevitável ce­
gueira, todos os olhos e corações re­
conheceriam sua supremacia e a ela
se curvariam.
(* 1 9 ) Na ocasião em que este sone­
to foi escrito, muitas das pe­
ças estavam compostas, publicadas
Tantas vezes qual minha Musa a ti tenho invocado.
e sem dúvida imitadas. O escritor
E tão bela ajuda em meu verso encontrado,
fala de si mesmo como “ignorante”,
Que toda pena estranha meu estilo tem imitado,
porque não tivera nenhum treina­
E sua poesia sob ti se desfaz.
mento ou prática em escrever versos.
Teus olhos, que ao mudo alto a cantar ensinaram,
O Sentido Cósmico, imediatamente
E pesada ignorância alto a voar,
quando surgiu, “ensinou àquele que
À asa do sábio penas têm dado,
até então era mudo” “alto a cantar”.
E à graça dupla majestade têm acrescido.
Tendo se tomado iluminado mais ou
Entanto, mui orgulhosa sê do que compilo eu,
menos aos trinta anos, ele não só co­
Cujo influxo teu é, e de ti nascido:
meçou a escrever poesia sem qual­
quer aprendizado, mas a escrever
Nas obras de outrem apenas o estilo consertas,
uma poesia nova e superior à que fo­
E artes, com tuas doces graças agraciadas sejam;
ra até então escrita em inglês. E diz
Mas tu és toda minha arte e sim avanças
que a luz divina que brilhava através
Tão alto quanto a minha rude ignorância
de suas composições (as peças) foi
ensinas. (*19)
(em todo caso até certa extensão) as­
similada e utilizada pelos escritores de poemas da época; acrescentou penas a suas asas e deu dupla
majestade à graça de seus versos. Assim, Lang diz de Scott que este “estava sendo levado de ceca a
meca por seus imitadores, a quem havia ensinado, como o Capitão Boabdil, a escrever quase tão
bem como ele próprio” [169:9], Mas Bacon diz ao Sentido Cósmico: “tem muito orgulho do que eu
produzo, pois o mérito disso não vem todo de estudo, talento ou prática, mas inteiramente de ti
mesmo”.
Comparem-se com a declaração acima os casos de Jesus, Paulo, Maomé, Balzac e Walt Whitman,
os quais, ou não tinham prática ou treinamento, ou (como no caso de Balzac) pouco ou nenhum
proveito tiraram disso, mas que, na meia-idade começaram, imediatamente após a iluminação, ou a
falar ou a escrever palavras imortais.
SONETO L X X V m
SO N E T O LX X X V I
Terá sido o soberbo velejar de seu grande verso,
Rumo ao prêmio de vós, tâo-sumamente-precioso,
Que meus maturados pensamentos em minha mente
infundiu,
Do túmulo deles fazendo o ventre onde cresceram?
Terá sido seu espírito por espíritos a escrever ensinado
Acima de um letal diapasão que de morte me feriu?
Não, nem ele nem seus pares à noite
Dando-lhe ajuda, meu verso abismaram.
Ele, nem aquele afável fantasma familiar
Que à noite com inteligência o logra,
Como vitoriosos, do meu silêncio não se podem gabar;
Atormentado não estava eu, de qualquer medo de lá:
Mas quando vosso semblante seu verso preencheu
Então matéria me faltou; isto meu verso
enfraqueceu. (*20)
(*20) Neste soneto, a reduplicação
da pessoa Bacon-Shakespeare é levada ao mais alto grau.
Somos forçosam ente lembrados
(uma vez mais) das palavras de
Gautama neste particular, isto é, que
a Consciência Cósmica (ou condição
de Arahat, como ele a chama) “fará
um homem, sendo um, tomar-se
multiforme” - não apenas dois, mas
m ultiforme. Nenhum soneto ou
poucos (assim parece) foram escritos
por algum tempo pelo “outro EuSou”. Mas a personalidade Cosmica­
mente Consciente estivera produzin­
do rapidamente. Várias ou muitas
peças tinham sido escritas num curto
período. O Bacon Cosmicamente
Consciente aprendera com o Sentido
Cósmico a escrever “acima de um
letal diapasão” . Mas não foi isto que emudeceu o Bacon autoconsciente. E sim o fato de que o
indivíduo Cosmicamente Consciente havia assimilado a si mesmo (pelo menos momentaneamente)
todas as forças do complexo organismo. Quanto aos “pares” do Sentido Cósmico, são as entidades
espirituais de que falava Balzac. “Seres misteriosos, armados com faculdades maravilhosas, que se
combinam com outros seres e os penetram como agentes ativos, seres que dominam outros com o
cetro e a glória de uma natureza superior” [7:50]. E, no nono verso, “Ele” é o Bacon Cosmicamente
Consciente, enquanto o “afável fantasma familiar” é a Consciência Cósmica. A expressão “à noite
com inteligência o logra” pode ser comparada com a de Whitman, “Mensagem, do céu a mim
sussurrando mesmo em meu sono” [193:324], Pode-se notar aqui (muitos leitores observarão isto
por si próprios) que, falando da mesma experiência, a linguagem de Whitman é mais moderada, de
tonalidade mais baixa, em relação à de Balzac, à de Dante ou talvez à de qualquer outro dos escritores
Cosmicamente Conscientes.
SONETO XCV
Quão doce e amável a vergonha tornas,
Que qual verme em fragrante rosa,
A beleza detecta de teu flóreo nome!
Oh, em que doçuras teus pecados envolves!
Essa língua que de teus dias a história conta,
De teu passatempo lascivos comentários fazendo,
Deslouvar pode, só numa espécie de louvor;
Teu nome chamar, má reputação abençoa.
Ah, que palácio esses defeitos conseguiram
Que para sua habitação a ti escolheram,
Onde o véu da beleza toda mancha cobre,
E todas as coisas um belo se tomam, que olhos
possam ver!
Acautela-te, coração querido, deste grande
privilégio;
A mais dura lâmina, mal usada, seu fio perde.
(*21)
(*21) “Quão doce e amável a ver­
gonha tomas”. Helen Price
diz que, em 1866, Walt Whitman
(que na época precisava muito de um
editor para Leaves ofGrass) recebeu
de uma importante editora uma boa
oferta, na condição de que ele con­
cordasse em eliminar alguns versos
de Children o f Adam (“Filhos de
Adão”). Uma ou duas horas depois
que a oferta foi feita, ele voltou à casa
da mãe dela em Nova York, onde es­
tava então hospedado e, depois deter
contado a ela e a sua mãe a respeito
da oferta, disse: “Mas não ouso fazêlo; não me atrevo a deixar fora ou
alterar o que é tão genuíno, tão
indispensável, tão elevado, tão puro”
[38:32], E, quanto a um episódio
anterior em sua vida, disse ele ao escritor [38:26]: “Em 1855, quando Leaves o f Grass provocou
uma tempestade de raiva e condenação, fui para o extremo oriental de Long Island e passei o final
do verão e todo o outono - o mais feliz de minha vida - em Shelter Island e Peconic Bay. Depois
voltei para Nova York, com a resolução confirmada - da qual jamais depois me afastei - de ir em
frente com o meu empreendimento poético à minha própria maneira e conclui-lo o melhor que
pudesse”. Um incidente semelhante ocorreu na vida de Balzac, relativamente à publicação de Le
Médecin de Campagne (“O Médico do Campo”). Em 1833 (pouco depois da iluminação) ele
escreveu a sua tão amada irmã que aquele livro chegaria às mãos dela na semana seguinte: “Custoume”, disse ele, “dez vezes o trabalho da obra Louis Lambert... Aquele trabalho foi terrível. Agora
posso morrer em paz; fiz um grande trabalho pelo meu país”. Dois meses depois, escreve ele
novamente: “Sabes como Le Médecin foi recebido? Com uma torrente de insultos;... mas escolhi
meu caminho; nada poderá me desencorajar... A torrente que me empurra para a frente nunca foi tão
rápida; nenhuma obra mais terrivelmente majestosa jamais compeliu o cérebro humano” [4:142-3],
O quarto verso, (“Oh, em que doçuras”, etc.), refere-se aos vícios, aos crimes e às perversidades nas
peças (aos atos de Regan, Goneril, Edmund, lago, etc.). E não são todos eles cobertos por um véu de
beleza? Essa língua, diz ele, que narra as visões, as revelações que procedem do Sentido Cósmico,
“deslouvar pode, só numa espécie de louvor”. (“E eu digo”, fala Whitman, “que na verdade não
existe o mal ”) [193:22]. Depois ele exorta o Sentido Cósmico a acautelar-se “deste grande privilégio”.
E assim vemos Whitman “voltando a (seus) poemas, reconsiderando-os, neles demorando-se” e
eliminando palavras e expressões que lhe parecem livres demais. Este soneto é um dos mais difíceis
de se penetrar totalmente em seu significado, mas, quando se consegue isto, é talvez a mais primorosa
passagem jamais escrita pelo seu autor. A mais primorosa em expressão e em sutileza metafísica.
Nenhum comentário talvez, certamente nenhum comentário deste autor, poderá lhe fazer mesmo a
mais modesta justiça.
SONETO XCVI
Dizem alguns, teu defeito a juventude é; outros, a
devassidão;
Dizem alguns, tua virtude a juventude é, e nobre
passatempo é;
Virtude e defeito, amados são ambos, ora mais ora
menos;
Em virtudes que a ti refluem, defeitos tornas.
Como no dedo de entronizada rainha
A mais humilde jóia bem valorizada será,
Assim são os erros que em ti são vistos
Em verdades traduzidos e para veras coisas
considerados.
Quantas ovelhas poderia o sombrio lobo trair,
Se como uma ovelha pudesse ele se disfarçar!
Quantos espectadores poderias tu desviar,
Se de todo o teu estado a força empregasses!
Mas não o faças; de tal modo te amo,
Que, tu sendo meu, minha é tua boa reputação.
(* 22 )
(*22) As peças (as filhas do Sentido
Cósmico) são julgadas de
maneira variada. O que, por exem­
plo, a uma pessoa parece “devassi­
dão”, para outra é “nobre passatem­
po”. Ambos, defeitos e virtudes, são
recomendados, pois os defeitos são
transformados em virtudes, pela
alquimia do Sentido Cósmico. “Eu
mesmo sou” , diz Whitman, “tanto
mau quanto bom, e assim minha
nação é, e eu digo que na verdade
não existe om al” [193:22]. E Paulo
diz: “ Sei e estou persuadido no
Senhor Jesus [isto é, pelo Sentido
Cósmico] que nada é impuro em si
m esmo”. Assim como um a jó ia
modesta na mão de uma rainha passa
por uma rica pedra preciosa, assim
todas as coisas em ti (o Sentido
Cósmico) são belas, verdadeiras e
boas. Se desses livre expressão a esta
revelação (usando a força de todo o teu estado), muitos desviarias (pois não te compreenderiam) e
tu mesmo (em tua prole - como as Epístolas de Paulo, o drama shakespearíano, Leaves o f Grass,
etc.) serias condenado e assim impedido de fazer teu devido trabalho no mundo; portanto, “não o
faças”.
SONETO XCVII
Ah, que qual inverno tem minha ausência sido
De ti, o prazer do ano fugaz!
Que gélidos entorpecimentos senti, que tenebrosos dias vi!
Que nudez do velho dezembro, em toda parte!
Entanto este tempo passado, verão era;
O abundante outono, de rico acréscimo grande,
O viçoso fardo da primavera portando,
Qual enviuvados ventres, após a morte de seu
senhor:
Mas esse abundante fruto a mim pareceu
Tão só de órfãos a esperança, e fruto sem pai;
Pois o verão e seus prazeres a ti esperam,
E, longe estás, até os pássaros mudos estão;
Ou, se cantam, é com tão murcha alegria,
Que as folhas pálidas parecem, do inverno a
aproximação temendo. (*23)
(*23) Quanto à ausência do Senti­
do Cósmico - ou, falando
mais apropriadamente, sua presença
apenas ocasional, mesmo nos maio­
res casos - ver o comentário sobre o
Soneto XXXin. Como foi enfatizado
em outro lugar, mesmo a autocons­
ciência, que já existe na espécie
talvez há várias centenas de milhares
de anos, e que agora se manifesta no
indivíduo na idade aproximada de
três anos, está sujeita a faltar. Como então muito longe de constante deve ser uma faculdade nova
como a Consciência Cósmica! O escritor fala de um período em que o Sentido Cósmico estava
ausente. Mas (como ele o expressa), era ele que estava ausente do Sentido Cósmico - este último
sendo considerado a pessoa verdadeira. Assim Whitman fala do Sentido Cósmico como ele próprio,
e do Whitman autoconsciente como “o outro Eu-Sou”. Mesmo assim, diz ele, foi um período de
produção muito livre - como não há nenhuma razão para que não devesse ter sido - pois aquilo que
é revelado pelo Sentido Cósmico permanece claro e manifesto mesmo durante meses e anos, supondo
que não houvesse nenhuma iluminação subseqüente. Compare-se Yepes, conforme é citado no
comentário sobre o Soneto XXXIII. Mas embora tenha sido um período de suficiente luz (refletida)
e de livre produção, foi sem alegria e árido, quando comparado com períodos durante os quais o
Sentido Cósmico estava efetivamente presente.
SONETO CXXVI
Ó tu, meu adorável menino, que em teu poder
Do Tempo a caprichosa ampulheta seguras, sua
ceifeira a hora;
Que minguando cresceste e nisto mostraste
Teus amantes murchando enquanto teu doce Eu
crescia;
Se a Natureza, soberana senhora da ruína,
Conforme em frente segues ainda te puxa para trás,
Com o propósito te mantém ela, de que sua perícia
O tempo a desonrar venha, e desventurados minutos
matar.
Mas a ela teme, ó tu, favorito do seu prazer!
Reter pode ela seu tesouro, mas mantê-lo não pode:
Sua auditoria, tardia embora, respondida tem
de ser,
E sua quitação é a ti retribuir. (*24)
(*24) Este soneto constitui o fecho
da alocução à Consciência
Cósmica. Foi provavelmente escrito
bem pouco antes de sua publicação
(1609), quase vinte anos depois que
seu autor fora “iluminado com o
Esplendor Bramânico” [155:232] e
produzira, sob seu influxo, quase
todas as peças shakespearianas. “Ó
tu, meu adorável menino”, diz ele
dirigindo-se pela últim a vez ao
Sentido Cósmico, que em tua mão o
tempo e a morte seguras - que min­
guando (conforme a idade avança
dentro de mim), cresceu (nas peças,
teus produtos), e com isso te mostras
constantemente aumentando, en­
quanto teus amantes mortais mur­
cham e morrem. Se a Natureza de­
sejasse (como é de seu jeito) destruir-te (as peças - filhas da Consciência Cósmica), no entanto não
o faria, mas a ti manteria, para mostrar que ela é capaz de desonrar o tempo, fazendo o que ele não
pode matar. Não somente isso, mas também para mostrar que esse produto da Natureza pode até
matar o tempo (“desventurados minutos matar”). Mesmo assim tu (o favorito da Natureza - o
Sentido Cósmico - as peças) ainda deves temer a Natureza, que pode a ti manter por certo tempo,
mas talvez não para sempre. Quanto a ela (a Natureza), embora seu dominio seja tão forte, deverá
Um dia prestar contas de si mesma a um poder mais forte. Esse poder és tu (Consciência Cósmica),
t quem, quando a evolução (que é a Natureza) tiver dado frutos (isto é, tiver se tomado generalizada
- como é a autoconsciência hoje), ela (a Natureza) terá recebido sua quitação. Pois a plena aparição
do Sentido Cósmico destruirá a morte, o medo da morte, o pecado e o espaço. “Virá então o fim,
quando ele (Cristo - a Consciência Cósmica) entregará o reino a Deus, ao próprio Pai, quando ele
tiver abolido todo domínio, toda autoridade e todo poder. Pois ele deverá reinar até que tenha calcado
M U S inimigos sob seus pés. O último inimigo que será abolido é a morte [20:15:24-26]. A Consciência
Cósmica a tal ponto lançará para um segundo plano as coisas dos sentidos (da autoconsciência - da
Natureza como a entendemos hoje, que ora absorve os pensamentos dos homens), que praticamente
■a abolirá. A Natureza, ao invés de ser o Senhor, como agora, será uma escrava - na verdade
receberá, efetivamente, sua quitação.
SUMÁRIO
Neste caso, os detalhes comuns da prova de iluminação estão em grande
parte ausentes. Se William Shakespeare escreveu as peças e os Sonetos, não
temos absolutamente nenhum indício externo em que nos basearmos. Se
Francis Bacon os escreveu, temos o vago indício de seu isolamento mais ou
menos na época em que deve ter ocorrido sua iluminação (se esta de fato
aconteceu), bem como da alusão feita por Hawley e aparentemente por ele
próprio, a que ele possuía certa faculdade incomum, muito elevada. Além
destas circunstâncias, que para muitos parecerão muito frágeis, o argumento
de que o homem que escreveu as peças e os Sonetos tinha Consciência
Cósmica tem de assentar nos próprios escritos e consistiria em duas cláusulas:
(1)0 criador das peças foi talvez o maior intelecto que o mundo já conheceu.
Suas intuições morais eram tão verdadeiras quanto era grande seu intelecto.
Sob todos os pontos de vista ele foi uma força espiritual transcendentemente
grande. Assim sendo, ele não pode deixar (segundo a tese sustentada neste
livro) de ter tido Consciência Cósmica. (2) Os primeiros cento e vinte e seis
lonetos parecem demonstrar, acima de qualquer dúvida, que seu autor tinha
o Sentido Cósmico e que esses sonetos a ele foram dirigidos. Não parece ao
autor deste livro que se lhes possa dar sentido (uma leitura inteligente), de
qualquer outro ponto de vista.
JACOB BEHMEN*
(Cbamado O Teósofo Teutônico)
Nasceu em 1575; faleceu em 1624.
Seu lugar de nascimento foi Alt Seidenberg, uma localidade a cerca de
duas milhas de Görlitz, na Alemanha. Veio de uma família abastada, mas
seu primeiro emprego foi de pastor de rebanho em Lands-Krone, uma colina
nas vizinhanças de Görlitz. A única educação que recebeu foi na escola
municipal de Seidenberg, a uma milha de sua casa. Mais tarde fez seu
aprendizado para sapateiro em Seidenberg. Por volta de 1599, estabeleceuse em Görlitz como mestre sapateiro e se casou com Katharina, uma filha de
Hans Kuntzschmann, um próspero açougueiro daquela cidade.
I
Behmen teve duas iluminações distintas. A primeira, em 1600 (quando
tinha vinte e cinco anos de idade), é assim descrita por Martensen:
Um dia, sentado em seu quarto, seu olhar caiu sobre um prato de estanho polido,
que refletia a luz solar com um esplendor tão maravilhoso que ele caiu num êxtase
interior e pareceu-lhe como se pudesse então olhar nos princípios e fundamentos
profundos das coisas. Ele pensou que se tratava apenas de uma fantasia e, para fazêla desaparecer de sua mente, saiu para o gramado. Mas ali percebeu que estava
contemplando o próprio coração das coisas, da própria relva e da grama, e aquela
natureza real harmonizou-se com o que ele tinha visto interiormente. Não disse nada
disto a ninguém, mas louvou e agradeceu a Deus em silêncio. Retomou a prática
honrada de seu oficio, atentou para seus afazeres domésticos e sentiu-se em paz com
todas as pessoas. [123]
Desta primeira iluminação, Hartmann diz que, por ela e dela, “Ele apren­
deu a conhecer o mais íntimo fundamento da natureza e adquiriu a capacidade
de ver de então em diante no coração de todas as coisas com os olhos da
N.T. - * Ou Jakob Böhme
alma, numa faculdade que permaneceu nele mesmo em sua condição
normal”[97:3], E na biografia apresentada como introdução a suas obras a
mesma circunstância é mencionada nas seguintes palavras:
Por volta do ano 1600, aos seus vinte e cinco anos de idade, ele foi novamente
circundado pela luz divina e mais uma vez infundido com o conhecimento celestial;
adentrando o campo até um relvado diante de Neys Gate, em Görlitz, sentou-se ali e,
olhando a grama e a relva do campo com sua luz interior, teve a visão íntima de sua
essência, sua função e suas propriedades, que lhe foram reveladas pelas suas linhas,
imagens e qualidades. Do mesmo modo contemplou toda a Criação e com essa base
de revelação escreveu posteriormente seu livro De Signaíura Rerum. Na revelação
desses mistérios à sua compreensão ele viveu uma grande alegria, mas voltou para
casa, cuidou de sua família e viveu em grande paz e silêncio, mal insinuando a
alguém as coisas maravilhosas que lhe haviam acontecido, até que em 1610, sendo
novamente imerso naquela luz, para que os mistérios que lhe tinham sido revelados
não passassem por ele apenas como um fluxo, e mais como um apontamento do que
com intenção de publicar, escreveu seu primeiro livro, intitulado Aurora, or the
M om ing Redness (“Aurora, ou o Rubor da Manhã”) [40:13-14].
A primeira iluminação, em 1600, não foi completa. Ele não alcançou
realmente, naquela oportunidade, a Consciência Cósmica; entrou na aurora,
mas não no dia perfeito. De sua iluminação completa, em 1610 (aos trinta e
cinco anos) Martensen diz:
Dez anos mais tarde [1610] ele teve outra notável experiência interior. O que
antes vira somente de maneira caótica, fragmentária e em vislumbres isolados, agora
contemplou como um todo coerente e em contornos mais definidos [123].
Desta última experiência, Hartmann diz o seguinte:
D ez anos mais tarde [1610], ocorreu sua terceira iluminação e aquilo que em
visões anteriores lhe tinha parecido caótico e multifário foi agora reconhecido por
ele como uma unidade, assim como uma harpa de muitas cordas, cada corda da qual
é um instrumento separado, enquanto o todo é uma só harpa. Agora ele reconhecia a
ordem divina da natureza e a maneira como do tronco da árvore da vida brotam
diferentes ramos, produzindo folhas, flores e frutos diversos, e teve forte impressão
da necessidade de escrever o que viu e preservar o registro [97:3],
Ao passo que ele próprio fala como segue dessa iluminação final e com­
pleta:
O portal me foi aberto e num quarto de hora vi e aprendi mais do que se tivesse
passado muitos anos consecutivos numa universidade, coisa que admirei extre­
mamente, e em razâo disto dirigi meu louvor a Deus por isto. Pois vi e conheci o ser
de todos os seres, o abismo e a eterna geração da Santíssima Trindade, o descenso e
a origem do mundo e de todas as criaturas, através da sabedoria divina: conheci e vi
em mim mesmo todos os três mundos, isto é, (1) o divino [angélico e paradisíaco],
(2) o escuro [a origem da natureza no fogo] e (3) o mundo externo e visível [sendo
uma procriação ou um nascimento externo a partir tanto do mundo interno como do
espiritual], E vi e conheci toda a essência ativa, no mal e no bem, e a origem e a
existência destes; do mesmo modo, a maneira como o ventre fecundo da eternidade
frutificou. D e modo que, não só fiquei grandemente maravilhado, mas também me
regozijei em extremo [40:15],
A expressão acima, “ele foi novamente circundado”, refere-se a certas
outras visões que precederam esse primeiro (imperfeito) advento do Sentido
Cósmico, à idade de vinte e cinco anos. Visões que (pode-se dizer) parecem
ser comuns na vida dos homens que posteriormente se tornam iluminados.
Sem dúvida elas pertencem a sistemas nervosos sensíveis e altamente
desenvolvidos, como os que teriam pessoas que tivessem dentro de si a
“eligibilidade” (como Whitman a teria expressado) para se elevarem à
Consciência Cósmica. Hartmann diz dele:
Jacob Behmen tinha notáveis poderes ocultos. Sabe-se que falava vários idiomas,
embora ninguém jamais tivesse sabido onde os pudesse ter aprendido. Provavelmente
os teria aprendido numa vida anterior. Ele conhecia também o idioma da natureza e
podia chamar plantas e animais pelos seus próprios nomes [97:19],
Behmen diz de si mesmo, neste particular:
Não sou um mestre de literatura, nem de artes, tais como são próprios deste
mundo, mas apenas um homem tolo e de mentalidade simples. Nunca desejei aprender
quaisquer ciências, mas desde cedo na juventude esforcei-me para conseguir a salvação
de minha alma e pensei em como poderia herdar ou possuir o reino dos céus.
Encontrando dentro de mim um poderoso contrarium, isto é, os desejos que dizem
respeito à carne e ao sangue, comecei a lutar uma dura batalha contra a minha natureza
corrompida e, com a ajuda de Deus, decidi sobrepujar a herdada vontade má, derrotála, e entrar inteiramente no amor de Deus em Cristo. Assim, pois, resolvi considerar
a mim mesmo como morto em minha forma herdada, até que o espírito de Deus
tomasse forma em mim, de modo que n’Ele e através d’Ele eu pudesse guiar minha
vida. Isto, entretanto, não me foi possível realizar, mas continuei firme em minha
veemente resolução e lutei uma dura batalha comigo mesmo. Ora, enquanto estava
lutando e batalhando, ajudado por Deus, uma luz maravilhosa surgiu dentro de minha
alma. Era uma luz totalmente estranha à minha natureza indisciplinada, mas nela
reconheci a verdadeira natureza de Deus e do homem, bem como a relação entre
ambos, coisa que até aqui jamais tinha compreendido e que jamais teria procurado
[97:50],
Frankenburg escreve a respeito dele:
Sua aparência física era um tanto comum; ele era alto, tinha uma fronte estreita
mas têmporas proeminentes, o nariz bastante aquilino, a barba rala, olhos cinzentos
brilhando para um azul celestial e voz fraca mas agradável. Era modesto em sua
aparência, despretencioso nas conversas, lento em suas ações, paciente no sofrimento
e dócil de coração [123:15].
E Hartmann, também sobre ele, diz:
Em sua aparência exterior, Behmen não era especial; tinha barba curta e rala,
voz fraca e olhos de um tom acinzentado. Era deficiente em força física; não obstante,
nada se sabe de que ele tenha tido qualquer doença além da que causou sua morte
[97:17],
Sua vida pode ser lida lado a lado com a de Gautama, Jesus, Paulo, Las
Casas, Yepes, ou mesmo Whitman, sem receio de que Behmen, com seu
dócil coração, venha a sofrer com tal comparação, enquanto sua morte merece
igualdade de registro com a de Yepes ou Blake. Aconteceu no domingo, 20
de novembro de 1624.
Antes de uma hora da madrugada, Behmen chamou seu filho Tobias para perto
de sua cama e lhe perguntou se não estava ouvindo uma música bonita; depois pediu
que abrisse a porta do quarto, para que a canção celestial pudesse ser ouvida melhor.
Mais tarde perguntou que horas eram e, quando lhe disseram que o relógio havia
batido duas horas, disse: “Ainda nâo é minha hora; daqui a três horas será minha
hora”. Depois de uma pausa, falou uma vez mais, dizendo: “ Tu, poderoso Deus,
Zabaoth, salva-me conforme a tua vontade”. Em seguida, disse: “Tu, Senhor Jesus
Cristo crucificado, tem misericórdia de mim e leva-me para teu reino”. Deu então a
sua esposa certas instruções relativas a seus livros e outras coisas temporais, dizendolhe também que ela não iria sobreviver a ele por muito tempo (como de fato aconteceu)
e, despedindo-se de seus filhos, disse: “Agora entrarei no Paraíso”. Pediu então a
seu filho mais velho, cujo olhar amoroso parecia impedir que a alma de Behmen se
separasse dos elos do corpo, que o virasse e, com um profundo suspiro, sua alma
entregou seu corpo à terra a que ele pertencia e entrou no estado mais elevado que
nâo é do conhecimento de ninguém exceto daqueles que o vivenciaram pessoalmente
[97:15],
II
Como elocuções do Sentido Cósmico, todos os escritos de Behmen são
quase totalmente ininteligíveis para a mente meramente autoconsciente. Não
obstante, aquele que se dispuser a fazer o necessário esforço verá que, como
os escritos de Paulo, Dante, Balzac, Whitman e dos demais, os de Behmen
são uma verdadeira mina de sabedoria, uma parte da qual pode ser encontrada
por todo buscador diligente, embora o todo só possa ser compreendido por
pessoas iluminadas como ele próprio foi.
Para mostrar o que tem sido pensado desses livros por homens competentes
que os estudaram, será conveniente citarmos as palavras do editor de The
Three Principies (“Os Três Princípios”), na edição de 1764, in-quarto:
Um homem [diz ele] não pode conceber o conhecimento maravilhoso contido
neste livro antes que diligentemente o tenha lido por inteiro. E verá que The Threefold
Life [“A Vida Trina”] é dez vezes mais profundo que este e que Forty Questions
[“Quarenta Perguntas”] é dez vezes mais profundo que o anterior e este tão profundo
quanto um espirito é em si mesmo, como diz o autor; e não pode haver maior
profundeza que esta, pois o Próprio Deus é um espírito [42:3],
E as palavras de Louis-Claude de Saint Martin, nas cartas a Kirchberger:
Não sou jovem [escreve ele], estando agora perto de meus cinqüenta anos; no
entanto comecei a aprender alemão para que pudesse ler este incomparável autor em
seu próprio idioma. Eu mesmo escrevi alguns livros não-inaceitáveis, mas não sou
digno de desatar os cordões dos sapatos desse homem maravilhoso, que considero a
maior luz que já apareceu na Terra, segundo somente para Ele, que era a própria
luz... A vós aconselho, absolutamente, que vos atireis no abismo de conhecimento da
mais profunda de todas as verdades [97:32 e 199:30].
Os extratos a seguir (como todos os demais neste livro) são selecionados,
não tanto por seu interesse intrínseco e sua excelência, nem pelo que nos
revelam da natureza do Cosmo, quanto pela luz que ajudam a lançar nas
características da faculdade denominada Consciência Cósmica; e para esta
finalidade são comparados com expressões equivalentes de homens cuja
posição espiritual é semelhante à do inspirado sapateiro de Görlitz.
m
Se contemplardes vosso próprio ego
e o mundo exterior, e o que neles está
acontecendo, vereis que vós, no tocante
ao vosso ser exterior, sois esse mundo
exterior [97 137] (*1)
(*1) “Um estranho e difícil paradoxo, embora
verdadeiro,vosdou:objetosbrutoseaalma
invisível sâo uma só coisa” [193:173], e
Gautania, Plotino e Carpenter são todos igualmente positivos sobre este mesmo ponto.
Sois um pequeno mundo formado do
grande mundo, e vossa luz exterior é um
caos do Sol e da constelação de estrelas.
Se não fo sse assim , não teríeis a
capacidade de ver por meio da luz do Sol
[97:137], (*2)
Não eu, o eu que eu sou, sei destas
coisas: Mas Deus sabe destas coisas em
mim [97:34], (*3)
Portanto, somente aquele em quem
Cristo existe e vive é um cristão, um
homem em quem Cristo foi elevado, da
desgastada carne de Adão [97:5], (*4)
(*2) “Deslumbrante e tremendo, quão rápido o
nascer do sol me mataria se eu não pudesse
agora e sempre enviar o nascer do sol para fora
de mim” [193:50],
(*3) “O outro Eu-Sou” [193:32], “Es tu [eu
mesmo] que para mim mesmo louvo”
[176:62], O reconhecimento da personalidade
dual da pessoa Cosmicamente Consciente - isto
é, o ego autoconsciente e o Eu Cosmicamente
Consciente.
(*4) “Cristo”, aqui, foi usado como Paulo
constantemente usa a palavra, como um
nome - isto é, da Consciência Cósmica.
D e repente... meu espírito irrompeu... deveras no mais profundo nascimento da
Genitura da Divindade, e ali fui abraçado com amor, como um noivo abraça sua
bem-amada noiva. Mas a grandeza do triunfo que havia no espírito eu não posso
expressar, falando ou escrevendo; nem pode ela ser comparada a coisa alguma, exceto
àquilo onde a vida é gerada em meio à morte, e é como a ressureição de entre os
mortos. Nessa luz meu espírito de súbito viu através de tudo e dentro e por todas as
criaturas; mesmo nas ervas e na grama ele conheceu a Deus, quem ele é e como ele
é, e o que sua vontade é; e de repente naquela luz minha vontade foi movida, por um
poderoso impulso, a descrever o ser de Deus. Mas como eu não podia então apreender
os nascimentos mais profundos de Deus no ser deles nem compreendê-los em minha
razão, passaram-se quase doze anos até que o entendimento exato disso me fosse
dado. E aconteceu comigo como com uma árvore jovem que é plantada no solo, a
qual a princípio é jovem e tenra e florescente aos olhos, em especial se cresce
vigorosamente. Mas ela não dá frutos en­
(*5) O “ato de irromper” no Sentido Cósmico e
tão; e, embora produza flores, estas caem;
o intenso sentimento de júbilo e elevação
além disto, muitos ventos frios, gelo e que é próprio dele. A conscientização de “céu,
neve são lançados sobre ela antes que
que é pura luz; luz intelectual, cheia de amor,
venha a crescer e a dar frutos [41:184].
amor ao verdadeiro bem, cheio de alegria; alegria
(*5)
que transcende toda doçura” [72:193],
Se sobes esta escada que eu subo para a profundeza de Deus, como tenho feito,
então tens subido bem: Não vim para este significado, ou para esta obra e este conhe­
cimento através de minha própria razão
ou através de minha própria vontade e (*6) Nenhum daqueles que alcançaram a
Consciência Cósmica a “buscou”; eles não
meu propósito; nem busquei este conheci­
o poderiam ter feito, pois não sabiam que uma
mento, nem mesmo conhecer algo a res­ coisa assim existisse. Mas parece que todos os
peito deie. Busquei apenas o coração de casos m ais m arcantes eram hom ens que
Deus, para nele me esconder das tormen­ buscavam veementemente o “ coração de Deus”
tas tempestuosas do diabo [41:237], (*6) - isto é, a melhor e mais elevada vida.
Ora, a vontade nâo pode suportar a atração e a impregnação, pois estaria livre e
no entanto não pode, pois é desejosa; e, sentindo que não pode estar livre, entra com
a atração para dentro de si mesma e toma (ou concebe) em si mesma uma outra
vontade, que deve sair das trevas para ela própria, e essa outra vontade concebida é
a mente eterna, que nela entra como um súbito lampejo (ou relâmpago) e dissipa as
trevas, e nela penetra e nela faz morada e para si mesma faz um outro (ou segundo)
princípio de uma outra qualidade (fonte ou condição), pois o tormento da agitação
permanece nas trevas [43:5], A primeira vontade eterna é Deus, o Pai, e é gerar Seu
filho - isto é, Seu Verbo - não de qualquer outra coisa, mas de Si Mesmo; e já vos
informamos a respeito das essências que são geradas na vontade e também como a
vontade nas essências é colocada em trevas e como as trevas (na roda da ansiedade)
são apartadas pelo lampejo do fogo, e como a vontade vem a ser em quatro formas,
enquanto no original todas as quatro são apenas uma, mas no lampejo do fogo aparecem
em quatro formas; e também como o lampejo do fogo existe efetivamente, em que a
primeira vontade aguça a si mesma na ansiosa dureza, de modo que a liberdade da
vontade brilha na carne. Com isto oferecemos à vossa compreensão que a primeira
vontade brilha no lampejo do fogo e está se consumindo por força da agudeza ansiosa,
onde a vontade continua na agudeza e abrange a outra vontade em si mesma (entender
no centro da agudeza), que deve sair da
agudeza
e rpermanecer em si mesma na (*7) Duas exposiçoes exóticas da
j
°
geraçao do
e te rn a liberdade, sem so frim en to ou
segundo Eu (Cosmicamente Consciente)
origem [43.15-16], (*7)
no primeiro eu (autoconsciente).
Pois Jesus Cristo, o Filho de Deus, o Verbo Eterno no Pai (que é o fulgor, o brilho
e o poder da eternidade da luz) tem de se tomar homem e nasceT em vós, paTa que
conheçais a Deus; do contrário estais num estábulo escuro e ficais apalpando, tateando,
sempre procurando por Cristo à mão direita de Deus, supondo que ele esteja muito
distante; lançais vossa mente para o alto acima das estrelas e procurais Deus, como
os sofistas vos ensinam, eles que representam Deus como um ser muito distante, no
céu [43.24]. ( 8)
Eu era tão sim ples quanto aos m istérios ocultos com o aos m ais insignifican-
(*g) “Cristo”, aqui usado como por Paulo, para
Sentido Cósmico - “Eu vivo, nâo mais eu,
masCristoviveemmim” [22:2:20].“Cristo,que
® nossa vida” [25:3:4]. ‘ Jesus Cristo está em
tes; m as a m inha virgem das m aravilhas
vos l2 1 1 3 -5!-
de D eus me ensinou, de modo que tenho
de escrever sobre Suas maravilhas; embora na realidade meu propósito seja escrever isto como um apontamento para mim
mesmo, ainda assim falarei como p a ra
(*9 ) o Sentido Cósmico é uma virgem,
Compare-se Beatrice, de Dante, e Seraphita
(Seraphitus), de Balzac - como também 0 jovem
~ 0 Sentido Cósmico - nos Sonetos de Bacon, é
.
muitos a q u ilo q u e e sabido p o r D e u s
[43:31], (*9)
uma vlr^ m; tod°sf ° “uma virgem”. “Como
um apontamento . Com pare-se W hitman:
“Apenas algumas sugestões procuro reconstituir
aqui para meu próprio uso” [193:14].
Assim distinguimos para vós a substância nas trevas; e embora seja bem difícil
sermos por vós compreendidos, e embora, também, pouca fé possa ser nisso deposi­
tada, temos no entanto uma prova bastante convincente disso, não somente no céu
criado mas também no centro da Terra,
bem como em todo o princípio deste mundo, o que seria longo demais expor aqui
[43 331 (*10)
(*10) Assim, como prova ou argumento para
algumas de suas doutrinas mais recônditas e espirituais - otimismo, imortalidade,
crescimento sem fim, expansão e evolução Whitman recorre aos fenômenos comuns da
natureza e da vida. Diz ele : “Ouço-vos ali
murmurando, Ó estrelas do céu, Ó sóis - Ó relva
dos túmulos - O perpétuas transferências e promoções, se nada dizeis, como posso eu dizer alguma
coisa?” [193:77]
O discípulo perguntou a seu m estre:
“ C om o posso eu chegar à vida supersensível, para que possa ver D eus e ouvi-Lo
(*11) Balzac nos diz: “Da abstração [autoconsciência] são derivadas as leis, as
artes, os interesses, as idéias sociais. É a glória e
falar”? Disse o mestre : “Quando por um
,
,»
0 castig0 00 mundo: Glorioso’cria 35 soc,cdades;
nocivo, impede o ser humano de entrar na senda
m om ento puderes atirar a ti m esm o nar
. d
o
quilo onde n en h u m a criatura vive, então
,
.
especialismo [Consciência Cósmica], que
leva ao Infmito„ [5.142]
ouvirás o que Deus fala”. (*11)
Discípulo -
Está isso ao alcance da mão, ou muito distante?
Mestre - Está em ti; e se puderes cessar por um instante todo o teu pensar e
querer, ouvirás as inefáveis palavras de Deus.
Discípulo - Como posso ouvir quando cesso de pensar e querer?
Mestre
Quando cessares o pensar e
(*12) Amesmadoutrinaérepetidamaisemais
querer do ego, a audição, a visão e a fala
eternas te serão reveladas, e assim Deus
ouvirá e verá através de ti. Teu próprio
vezes nos Suttas. Compare-se também
Carpenter [56:166-174].
ouvir, teu próprio querer e teu próprio ver te impedem de ver e de ouvir a Deus.
(* 12)
Discípulo - Por que meios ouvirei e verei a Deus, estando Ele acima da natureza
e da criatura?
Mestre - Quando estiveres quieto ou silente, então serás aquilo que Deus era
antes da natureza e da criatura, e de onde Ele fez tua natureza e tua criatura. Então
ouvirás e verás com aquilo com que Deus viu e ouviu em ti, antes que teu querer, teu
ver e teu ouvir tivessem início.
Discípulo - Que é que me impede ou me detém, que não posso chegar a isso?
Mestre - Teu próprio querer, ver e ouvir. E como lutas contra aquilo de que
provieste, apartas a ti mesmo, com teu próprio querer, da vontade de Deus, e com teu
próprio ver somente em teu próprio querer vês; e teu querer faz parar teu ouvir com
teu próprio pensar nas coisas naturais terrenas e te prende ao chão e te obscurece
com aquilo que queres, de modo que não podes chegar àquilo que é supernatural e
supersensível [50:75-6],
M estre - Se reinas sobre todas as (*13) Assim, diz Whitman com respeito à
propriedade: “Como se alguém talhado
criaturas apenas exteriormente, então tua
para
possuir
coisas não pudesse a seu bel-prazer
vontade e teu reinado são de natureza
entrar em todas elas e incorporá-las a si mesmo”
bestial e não passam de um reinado
[193:214], E também: “Não ver nenhuma posse
transitório imaginário, e trazes também
sem que a deva possuir, usufruindo de tudo sem
teu desejo a uma essência bestial, com a trabalho ou compra, abstraindo a festa mas não
qual tornas-te infectado e fascinado, e abstraindo uma só partícula dela, levar o melhor
da fazenda do fazendeiro e do palácio elegante
assumes também uma condição bestial.
do homem rico, e as castas bênçãos do casal bem
Mas se deixaste a condição imaginária,
casado e os frutos de pomares e as flores de
então estás na condição super-imaginária,
jardins” [193:127],
e reinas sobre todas as criaturas, no
terreno de que elas são criadas, e nada na Terra pode te ferir, pois és como todas as
coisas e nada é diferente de ti [50:76], (*13)
Seu mestre lhe disse muito bondosa­
mente: Amado discípulo, se acontecesse
que tua vontade pudesse apartar a si mes­
ma de todas as criaturas por uma hora e
se lançar naquilo onde não há criatura
alguma, ela estaria sempre revestida com
o mais alto esplendor da glória de Deus
e provaria em si mesma o mais doce amor
de nosso Senhor Jesus, que nenhum ho­
mem pode expressar, e nela própria en­
contraria as inefáveis palavras de nosso
Senhor referentes à sua grande misericór­
dia; sentiria em si mesma que a cruz de
nosso Senhor Cristo seria muito agradá­
vel para ela e amaria isso mais do que a
honra e os bens do mundo [50:78], (*14)
(*14) A “Cruz de Cristo”, do ponto de vista do
que se poderia chamar de tipo “paulino”
desses homens, significa sim plesm ente o
despojar-se das boas coisas da autoconsciência
e de portar os chamados males da vida autoconsciente. Mas esses bens são vistos por eles
como não sendo bons, e esses males como não
sendo maus, e alcançar este ponto de vista (em
Consciência Cósmica) é a única coisa boa.
“Chegar alí é partir daqui, saindo do ego e
afastando-se o quanto possível deste vil estado
para aquele que é o mais alto de todos. Portanto,
elevando-se acim a de tudo que possa ser
conhecido e compreendido temporal e espiri­
tualmente, a alma tem de desejar veementemente
alcançar aquilo que nesta vida [a vida autoconsciente] não pode ser conhecido e que o coração
não pode conceber e, deixando para trás todo
real e possível gosto e sentimento dos sentidos e
do espírito, deve desejar veementemente chegar ài
[203:74],
Mestre - Embora agora ames a sabe­
doria terrena, quando estiveres sempre
revestido com a celestial [sabedoria],
verás que toda a sabedoria deste mundo
nada mais é que insensatez e que o mun­
do não detesta senão o teu inimigo - isto
é, a vida mortal; e quando tu mesmo
vieres a detestar a vontade dessa vida
mortal, então tu também começarás a
amar aquele desprezo pela vida mortal [í
(*15) “Falamos sabedoria entre os perfeitos;
não porém a sabedoria deste mundo”
[20:2:6], “Se alguém dentre vós se tem por sábio
neste mundo, faça-se louco para ser sábio.
Porque a sabedoria deste mundo é loucura diante
de D eus” [20:3:18-19], A sabedoria da
autoconsciência é uma insensatez do ponto de
vista do Sentido Cósmico.
Discípulo - Q ue são a v irtude, o
poder, a elevação e a grandeza do amor?
(*
(*16) Este excerto e o próximo contêm uma
definição de Consciência Cósmica do
ponto de vista de Nirvâna, seu nome budista.
Mestre - Sua virtude é aquele nada (de onde todas as coisas procedem) e seu
poder está (em e) através de todas as coisas; sua elevação é tão alta quanto Deus e
sua grandeza é maior que Deus; aquele que o encontra nada e todas as coisas encontra.
Discípulo - Amado Mestre, rogo que me digas como devo entender isso.
Mestre - Assim deves entender o meu dizer que sua virtude é aquele nada: Quando
tiveres saído completamente da criatura e te tomado nada para tudo o que é natureza
e criatura, então estarás naquele ser eterno que é o próprio Deus e perceberás e sen­
tirás a mais alta virtude do amor [50-1:81]
(*17). E tam bém o m eu dizer que aquele (*17) “Ó Bhikshu, esvazia este barco (isto é,
que o encontra nada e todas as coisas en-
esvazia-te das coisas da autoconsciência);
c o n tra , este tam b ém é verdadeiro, pois
ele encontra um abism o supernatural, su-
se vazio- ele irá
tendo cortado Paixão e
ódio, irás para Nirvâna [156.86],
persensível, sem fundo, onde não há lugar para morar; e também encontra nada que
seja assim, e portanto a nada pode ser comparado, pois é mais profundo que qualquer
coisa e é como nada para todas as coisas, pois não é compreensível; e visto que é
nada, é livre de todas as coisas e é aquele único bem que um homem não pode
expressar ou dizer o que é, Mas o meu último dizer que aquele que o encontra todas
as coisas encontra é também verdadeiro; ele foi o começo de todas as coisas e reina
sobre todas as coisas. Se o encontras, chegas ao solo de onde todas as coisas procedem
e onde elas subsistem, e nele és um rei (*18) Aquele que está preparado (diz
sobre todas as obras de D eus [50:81].
Whitman) pode entrar na posse de todas
(*18)
as coisas [193:214].
Discípulo - Amado Mestre, não posso mais suportar que qualquer coisa me
desvie; como encontrarei o caminho mais próximo para isso?
Mestre - Onde o cam inho for o m ais
árduo, aí andarás e tom arás aquilo que o
m undo rejeita; e aquilo que o m undo faz,
n
A
, , .
n a ° o faças tu. A n d a contrario ao m undo em to d as as coisas. E n tã o c h eg a rás
ao caminho mais próximo para isso...
(* 19)
(*19) Se desejais alcançar a vida divina
(Consciência Cósmica), diz Yepes, deveis
atirar fora toda satisfação, temporal e espiritual
(do ser humano autoconsciente) [204:5341,
~esquecendo as coisas que estejam atrás [as
coisas da autoconsciência] e procurando alcançar
as coisas que estâo adiante” [24:3:13], Este
parece ser o ditame universal.
Mestre - Que tu digas também que serias classificado como um insensato, é ver­
dadeiro; pois o caminho para o amor de Deus é insensatez para o mundo mas sabedoria
para os filhos de Deus. Quando o mundo percebe esse fogo de amor nos filhos de
Deus, diz que eles se tornaram insensatos, mas para os filhos de Deus é o maior te­
souro, tão grande que nenhuma vida pode expressá-lo e nenhuma língua pode sequer
nomear o que o fogo do inflamante amor de Deus é; é mais branco que o Sol, é mais
doce que qualquer outra coisa; é muito mais nutriente do que qualquer alimento ou
bebida e mais agradável do que toda a alegria deste mundo. Aquele que consegue is­
to é mais rico do que qualquer rei na Ter, .
, ,
,
,
( 2 0 ) O homem natural (meramente
ra, mais nobre do que qualquer imperador
autoconsciente) nâo compreende as
possa ser e mais poderoso e forte do que
coísas do espírito de Deus, porque lhe parecem
toda autoridade e todo poder. (*20)
loucura” [20:2:14],
Então o discípulo perguntou ainda a seu mestre: “Para onde vai a alma quando o
corpo morre, tanto para ser salva como para ser condenada?”
Mestre - Já não é necessário ir. Somente a vida moral exterior, com o corpo,
separam-se da alma; essa alma teve céu e inferno dentro de si anteriormente, como
está escrito. O reino de Deus nâo vem com obediência exterior a preceitos, nem se
dirá “ei-lo aqui”, ou “lá está ele”, pois, notai bem, o reino de Deus está dentro de
vós: E não importa qual dos dois, isto é,
céu ou inferno, estará manifesto nele, no
(*21) “Nunca haverá mais céu ou inferno do
qual esteja a alma [50:82-3], (*21)
<lue existe a8 ora” [193:30],
Discípulo -
Que é, então, o corpo de um homem?
Mestre - É o mundo visível, uma imagem e essência de tudo que o mundo é; e o
mundo visível é uma manifestação do mundo espiritual interior (vindo) das trevas
eternas, da tecedura espiritual (entrelaçamento ou conexão) e é um objeto ou seme­
lhança da eternidade, com que a eternidade tornou a si mesma visível; onde a vontade
egotista e a vontade renunciada, isto é, o
ma! e o bem , trabalham um a com a outra;
(*22) Diz whitman; “0 s tipos montados pelo
impressor não voltam na sua impressão
e tal substância o homem exterior também é; pois Deus criou o homem do mundo exterior e soprou dentro dele o mundo
o significado, o tema principal, tanto quanto a
vida e a substância de um homem, ou a vida e a
substância de uma mulher, não voltam no corpo
espiritual interior, para que tivesse alm a
..
.
c um a vida com preensiva e, portanto, nas
e “ al” a’ '" ^ ^ e m e n t e antes e depois da
morte. Notai que o corpo inclui e e o significado,
0 tema principal e inclui e é a alma. sejais vós
coisas do mundo exterior o homem pode
receber e praticar o mal e o bem. (*22)
quem fordes, como é soberbo e divino vosso
corpo ou qualquer parte dele” 1193 ,25).
Discípulo -
Que existirá após este mundo, quando todas as coisas perecerem?
Mestre - Som ente a substância m ateríal cessa de ser - isto é, os quatro ele-
(*23) “A alma é por si própria, tudo tende para
ela, tudo tem referência àquilo que segue;
mentos, o Sol, a Lua, as estrelas, e então
, , , .
, , t
O mundo interior sera totalmente visível
tudo 0 ciue uma Pessoa faz’ diz>Pensa’ tem sua
conseqüência; nenhum movimento pode um
_
.
.____ _
homem ou uma mulher lazer, que afete a ele ou
0 m anifesto. M as o que quer que ten h a
lido feito pelo espírito neste tem po, bom
OU mau, digo que toda obra ali se separará
de m an e ira esp iritu al, ou p ara a etern a
a e(a num dja, num mês, qualquer parte da vida
direta, ou a hora da morte, mas o mesmo afeta a
ele ou a ela, dai por diante, através da vida
indireta [193.289].
luz, ou para as trevas eternas, pois aquilo que nasce de cada um a penetra novam ente
naquilo que lhe é sem elhante [50:86]. (*23)
IV
S U M Á R IO
a. No caso de Jacob Behmen, houve a veemência inicial de caráter que é
característica da categoria de homens de que trata este livro.
b. Houve (quase certamente), embora não nos tenha sido dito com muitas
palavras, a luz subjetiva.
c. Houve uma extraordinária iluminação intelectual.
d. E igual elevação moral.
e. Houve o senso de imortalidade.
f. Perda do medo da morte (se ele jamais o teve, como é provável, pois
parece ter sido um menino e um jovem bastante comuns.)
g. Houve a subitaneidade, a instantaneidade, do despertar da nova vida.
h. Na ocasião de sua iluminação ele estava na idade típica - isto é, trinta e
cinco anos.
WILLIAM BLAKE
Nasceu em 1757. Faleceu em 1827.
SeBlake tinha Consciência Cósmica, as palavras escritas até aqui, quanto
à variedade e ao escopo imensamente maiores desta consciência do que da
autoconsciência, ficarão ilustradas com o seu caso. Os pequenos excertos de
seus escritos, abaixo citados, quase provam que ele tenha tido o Sentido
Cósmico, que chamava de “Visão Imaginativa” [95:66], e ele deve tê-lo
alcançado dentro de bem poucos anos após ter chegado à idade de trinta
anos. Parece não haver quaisquer detalhes de sua entrada no Sentido Cósmico,
mas pode-se razoavelmente admitir que seus escritos provem o fato de que
ele o possuía.
I
W. M. Rossetti, no Prefatory Memoir [“Memento Prefacial”] para The
Poetical Works o f William Blake [“As Obras Poéticas de William Blake”]
[52], apresenta um admirável esboço da vida real de Blake e, aparentemente,
uma razoável estimativa de suas habilidades e de seus defeitos. Os seguintes
excertos desta biografia preambular nos ajudarão na questão que temos diante
de nós, isto é: Blake tinha Consciência Cósmica?
A dificuldade dos biógrafos de Blake
posteriores a 1863, data do livro do Sr.
Gilchrist, é de um tipo totalmente dife­
rente. E a dificuldade de afirmar suficien­
temente alto as extraordinárias preten­
sões de Blake a admiração e reverência,
sem omitir as outras considerações que
precisam ser clara e com pletam ente
colocadas para obtermos alguma idéia do
homem tal como ele era - de sua total
dessemelhança com seus contemporâ-
No fato de que Blake se alçava além e muito
além dos homens de mera autoconsciência mas
não podia ver ou fazer muitas coisas que eles
viam claramente e podiam fazer facilmente,
vemos um a relação entre ele e os grandes
iluminados. Com certeza a mesma coisa poderia
ser dita de todos eles. Em assuntos mundanos,
todos eles ou quase todos são como criancinhas,
ao passo que nas coisas espirituais são como
deuses. Note-se como Balzac contraiu pesadas
dívidas por falta de senso comum de negócios,
trabalhando em vão durante anos para pagar
neos, de sua espantosa genialidade e de essas dívidas, enquanto exercia plenamente
seu nobre desempenho em duas artes, do genialidade suficiente p a ra equipar um
elevado nível a que ele transcendeu ou­ regimento de Rothschilds. Bacon derramou sobre
a humanidade incalculáveis riquezas intelectuais
tros homens e da incapacidade que sem­
e espirituais, mas, com toda a aparente vantagem
pre demonstrou para realizar o que outros
(posição na corte, prestígio hereditário, amigos
realizam facilmente. Ele conseguia fazer influentes), em vão trabalhou durante anos por
imensamente mais do que eles, mas rara­ uma posição na esfera autoconsciente, pois,
mente conseguia fazer o mesmo. Por al­ depois que a conquistou, não soube mantê-la.
gum processo desconhecido ele havia se Buda, Jesus, Paulo, Las Casas, Yepes, Behmen
e Whitman foram sábios: perceberam que as
elevado ao cume de verdadeiros Alpes
coroados de nuvens, enquanto outros fica­ coisas do Sentido Cósmico eram suficientes e
simplesmente puseram de lado as coisas da
vam se curvando servilmente no vale.
autoconsciência; mas tivessem eles tentado lutar
Mas alcançar um ponto intermediário na por essas coisas, muito provavelmente teriam
montanha era o que eles podiam pronta- fracassado em obtê-las.
mente conseguir passo a passo, enquanto
para Blake esta consecução comum era impraticável. Ele não conseguia e não queria
fazer isso; a falta de vontade, ou melhor, a total alienação da vontade, a determinação
de se elevar (que era natural nele) e não caminhar (o que era antinatural e repulsivo),
assumiam o lugar de uma real necessidade de poder [139:9].
A rrebatado n u m a apaixonada aspiração ele alcan ço u , m esm o n esta T erra e
em seu c o rp o m o rta l, u m a e sp é cie de
. T.
,
., ,
,
Também Blake achava o mundo do Sentido
Cósmico suficiente e, sabiamente, não desperdiçava tempo e energia à procura dos chamados
bens e riquezas da vida autoconsciente.
Nirvana: toda a sua capacidade, toda a
sua personalidade, a própria essência de sua mente e de sua maneira de ser, alcançaram
a absorção em seu objetivo ideal, naquilo que Dante, em sua profunda frase, designa
como “il B en deH’intelleto” [139:11].
Esses homens independem de educação e a
maioria deles - como o próprio Blake - a
considera inútil ou ainda pior. Diz Blake a
respeito dela: “Não há utilidade na educação:
considero-a errada. E o grande pecado; é o comer
da árvore do conhecimento do bem e do mal.
Este foi o erro de Platão. Ele nada sabia além de
virtudes e vícios, além do bem e do mal. Nada
há nisto tudo. Tudo é bom aos olhos de Deus”
[139:80], Isto lembra o que Rawley disse de
Bacon: “Ele não extraía seu conhecimento de livros, mas de alguma coisa dentro dele próprio”
[141:47]; e o dizer de Whitman: “Não mais te alimentarás dos espectros que existem nos livros”
[193:30],
A educação de William Blake foi das
mais modestas, restringindo-se apenas a
ler e escrever; pode-se pensar também
em aritmética, mas isto não está registra­
do e muito provavelmente sua capacidade
para adquirir ou reter este tipo de conhe­
cim ento estava bem abaixo da média
[139:14],
N o prefácio a Jerusalém, Blake fala desta obra como tendo sido “ditada” a ele, e
outras de suas expressões provam que ele a considerava mais como uma revelação
da qual ele era o escriba do que como um produto de sua própria mente inventora ou
moldadora. Blake a considerava “o maior
Esta é a declaração de cada possuidor do
poema que este mundo contém”, acres­ Sentido Cósmico. Não sou eu, o homem visível,
quem fala, mas (como diz Jesus) “O que eu falo,
centando, “posso elogiá-la, pois não me
falo-o como o Pai mo tem dito” [17:12:50]; ou
atrevo pretender ser outra coisa senão o
como Paulo escreve: “Não me atreverei a falar
secretário - os autores estão na eternida­
de quaisquer coisas, a não ser aquelas que Cristo
de”. Numa carta anterior (25 de abril de diga através de mim”* [16:15:18]. “Solta o freio
1803) ele dissera: “Escrevi este poema de tua garganta” [193:32] diz Whitman ao
de um ditado imediato, doze ou às vezes
Sentido Cósmico. E assim universalmente.
vinte ou trinta versos de cada vez, sem
premeditação e mesmo contra minha vontade” [139:41].
Blake tinha uma intuição mental, uma inspiração, ou revelação - não importa
como a chamemos; ela era tão real ao seu olho espiritual como um objeto material
poderia ser ao seu olho físico; e sem dúvi­
“Oh, estou seguro”, diz Whitman, “eles
da seu olho físico, o olho de um desenhis­
realmente vieram de Ti - o impulso, o ardor, o
ta ou pintor com grande dom de invenção
poderoso, sentido, interior comando, uma
e composição, estava bem mais do que mensagem dos céus” [193:324], “As nobres
normalmente pronto para seguir os dita­ verdades”, diz Gautama, “não estavam entre as
mes do olho espiritual e para ver, num
doutrinas que nos foram transmitidas, mas em
ato quase instantaneamente criativo e mo­ seu interior surgiu o olho para percebê-las”
[159:150],
delador, a imagem visual de uma essência
visionária [139:62],
Sua falta de mundanalidade, extrema
Cada palavra desta passagem é rigorosa­
como era, não degenerou em inépcia. Ele mente verdadeira a respeito de Whitman e, consi­
derando-se as diferenças de maneiras e costumes
apreendeu os requisitos da vida prática,
em outras épocas e outros países, este parágrafo
foi preparado para enfrentá-los com
poderia ser lido quanto à vida de qualquer um
espírito resoluto e diligente no dia a dia,
dos homens discutidos neste livro.
e podia em certas oca siõ es mostrar
excelente sagacidade. Tinha espírito elevado e independente e não se ocupava em
refutar quaisquer das histórias estranhas que eram correntes quanto a sua conduta ou
seu jeito de ser; não ostentava nem escondia sua pobreza e raramente aceitava qualquer
espécie de ajuda que não pudesse retribuir com algo equivalente [139:69].
“Divino eu sou”, diz Whitman, “por dentro
Ele sabe que aquilo que faz não é
e por fora”.
inferior ao que faziam os maiores entre
os antigos. Superior não pode ser, pois o
poder humano não pode ir além daquilo que ele faz ou do que eles fizeram. É o dom
de Deus, é inspiração e visão [139:72],
*N.T. -
Na Bíblia em português usada para esta tradução [10] não encontramos
exatamente este versículo - que seria Lucas, 15:18, Encontramos um
versículo que pode ter o mesmo significado ou espírito, em Romanos, 15:18. Nele se
lê: “Porque não ousaria dizer coisa alguma que Cristo por mim não tenha feito ... por
palavra e por obras”.
D eve ser admitido que em muitos ca-
sos Blake falava de si mesmo com incomensurável e provocador auto-aplauso.
“Pesquisei muito os velhos tempos”, diz
Whitman, “estudei aos pés dos grandes mestres;
agora, se for apropriado, que os grandes mestres
Isto é na verdade um efeito conspícuo da possam retribuir e estudar afflim” [193:20]
simplicidade de caráter de que venho de falar; é egotismo, mas não mundano, egoístico
[139:71],
Que ele foi feliz, no todo e no melhor
“A felicidade é uma das marcas do Sentido
sentido, considerando todas as suas pro- Cósmico.”
vas e tribulações, é um dos sinais mais fortes em seu louvor. “Se me perguntarem”,
escreve o Sr. Palmer, “se jamais conheci entre os intelectuais um homem feliz, Blake
seria o único que imediatamente me ocorreria”. Aspirações visionárias e ideais da
mais intensa espécie; a vida imaginativa predominando inteiramente sobre a vida
física e mundana e praticamente ultrapassando-a por completo; uma simplicidade
infantil de caráter pessoal, isenta de interesse pessoal e ignorando ou negligenciando
qualquer política de autocontrole, embora habitualmente guiada e regulada por nobres
em oções e uma resoluta lealdade ao dever - estes são os traços principais que
descobrimos por toda a carreira de Blake, em sua vida e em sua morte, em seus
escritos e em sua arte. E isto que o toma tão peculiarmente amorável e admirável
como homem e que reveste suas obras, especialmente seus poemas, de tão deleitoso
charme. Sentim os que ele é verdadeiramente “do reino dos céu s”; acima do
firmamento, sua alma conversa com arcanjos; na terra, ele é como o menino que
Jesus “pôs no meio deles” [139:70],
A essência da capacidade de Blake,
o poder com que empreendeu sua obra,
foi a intuição; isto se aplica a seus trabalhos artísticos e mais ainda a seus poemas. N eles a intuição reina suprema; e
.
.
mesmo o leitor tem de apreende-los mtui, . , ,
.
tivamente, ou então deixá-los completa­
mente de lado [139:74].
É de se lamentar que esses Prophetic Books
[“Livros Proféticos”] não tenham sido publicados. Parece quase certo que eles contenham (sem
dúvida por trás de espessos véus) revelações de
^aordjnário vaIor- notícias d° “reino dos
ceus” - do mundo melhor - o mundo do Sentido
.
Cósmico,
Há muitos indícios satisfatórios de que Blake tinha reais concepções no campo
metafísico ou supersensível do pensamento - concepções que poderiam ter sido
classificadas como especulações em outras pessoas mas, nele, antes como intuições;
e é indiscutível que os Prophetic Books contêm de algum modo essas intuições
[139:120],
Q uanto a sua crença religiosa, deve
ser entendido que B lake era de certa m aneira cristão e verdadeiram ente fervoroso
com o cristão; m as o era de um m odo pró-
Areligião de Blake -s u a atitude em relação
à Igreja - em relação a Deus - em relação à
imortalidade - é a atitude característica do
homem que alcançou a Consciência Cósmica -
prio, m uito d iferente do m odo de qualquer igreja. N o s últim os quarenta anos
como se Percebe em cada vida e em todos 08
escritos desses homens,
de sua vida, n u n c a entrou em qualquer lugar de adoração [139:76].
Ele acreditava - com grande profundeza e ardor de fé - em Deus; mas acreditava
tam bém que os homens são deuses, ou que o ser humano, coletivamente, é Deus.
Acreditava em Cristo; mas exatamente o que acreditava que ele fosse é outra questão.
“Jesus Cristo”, disse ele conversando com o Sr. Robinson, “ é o único D eus, e eu
tam bém, e você também” [139:77],
B lake parece ter acreditado implicitam ente n a im ortalidade e (em alguns
pontos essenciais) sem muito desvio da
Sua atitude em relação à morte é a de todos
08 iluminados, Ele não crê numa “outra vida”,
Não pensa que será imortal. Ele tem vida eterna,
crença de outras pessoas. Quando soube da morte de Flaxman (7 de dezembro de
1826), comentou: “N ão posso pensar na morte como mais do que sair de um quarto
e entrar em outro” . Em um de seus escritos ele diz: “O mundo da imaginação é o
mundo da eternidade. E o seio divino para o qual todos iremos após a morte do corpo
vegetativo” [139:79],
Com toda probabilidade Blake leu,
em sua juventude, alguns dos escritores
m ísticos ou cabalísticos - Paracelso,
Jacob Böhme, Cornelius Agrippa; e há
muito em suas especulações, em substância e em tom, e às vezes em detalhes,
que pode ser remontado a autores dessa
categoria [139 80]
o mesmo escreve George Frederic Parsons
sobre Balzac [6:11]. Thoreau faz sugestão
semelhante quanto a Whitman [38:142] e em
geral tem sido constantemente sugerido ou dado
a entender que alguns desses homens estiveram
lendo outros dentre eles. Naturalmente, isto pode
vezes acontecer, mas, falando de modo geral,
nâo ^ 0 caso’ P°'s niuitos deles são bastante
iletrados e o estudo de outros, como por exemplo
de Bacon, não segue este mesmo padrão. Blake, Balzac, Yepes, Behmen, Whitman, Caipenter e os
demais, cada qual viu por si mesmo esse outro mundo de que nos fala. Ninguém pode nos falar dele
em segunda mão, pois ninguém que não tenha visto algo dele pode concebê-lo.
A morte de Blake foi tão nobre e característica quanto sua vida. Gilchrist
[94: 360-1] nos dá o relato seguinte, simples e tocante:
“Sua doença não foi violenta, mas uma queda suave e gradativa de suas
forças físicas, que de modo algum afetou sua mente. O rápido fim não foi
previsto por seus amigos. Sobreveio num domingo, 12 de agosto de 1827,
perto de três meses antes de ele completar setenta anos de idade. “No dia de
sua morte”, escreve Smith, que recebeu um relato da viúva, “ele compôs e
cantou canções ao seu Criador, de maneira tão doce para os ouvidos de sua
Catharine, que, quando ela se levantou para ouvi-lo, ele, olhando para ela
com muito afeto, disse: Minha bem-amada, elas não são minhas - não, elas
não são minhas/” Disse então que eles não se separariam; ele estaria sempre
perto dela, para cuidar dela. As canções piedosas seguiu-se, por volta das 6
horas da tarde de verão, uma calma e indolor parada da respiração, cujo
exato momento não foi percebido por sua esposa, que estava sentada a seu
lado. Uma vizinha humilde, a única companhia que ela tinha então, disse
depois: “Estive presente à morte, não de um homem, mas de um anjo
abençoado”.”
Resta-nos mencionar'’certas declarações do próprio Blake que parecem
ter a ver com o assunto em questão - isto é, a pergunta: foi Blake um caso de
Consciência Cósmica?
O mundo da imaginação (*) é o mundo da eternidade. É o seio divino para o qual
todos iremos após a morte do corpo vegetativo. Esse mundo da imaginação é infinito
e eterno, ao passo que o mundo da geração, da vegetação, é finito e temporal.
(*) O nome que Blake dava à Consciência
Existem naquele mundo eterno as reali­ Cósmica. Com este parágrafo comparem-se as
dades permanentes de tudo o que vemos palavras de Whitman: “Juro que agora penso que
refletido neste espelho vegetal da natu­ tudo, sem exceção, tem uma alma etema! As
árvores, enraizadas na terra, têm! As algas do
reza [95:163],
mar têm! Os animais” [193:337],
Estamos num mundo de geração (**)
e morte e este mundo teremos de des­
cartar, se quisermos ser artistas como
R afael, M ichelangelo e os escultores
antigos. Se não descartarmos este mundo,
seremos apenas pintores venezianos, que
serão postos de lado e perdidos da arte
[95:172],
(**) O mundo da autoconsciência. Balzac
diz: “O homem (autoconsciente) julga todas as
coisas por suas abstrações - o bem, o mal, a
virtude, o crime. Suas fórmulas do direito são
sua balança e sua justiça é cega; a justiça de Deus
[isto é, do Sentido Cósmico] vê - aí está tudo”
[5:142]
“Mostrando o melhor e separando-o do pior,
era discute era. Conhecendo a perfeita justeza e
equanimidade das coisas, enquanto eles discutem
eu guardo silêncio”[193:31].
O ator é um mentiroso quando diz:
Os anjos são mais felizes do que os ho­
mens porque são melhores! Os anjos são
mais felizes que os homens e os demônios porque não estão sempre averiguando o
bem e o mal, um no outro, e comendo da árvore do conhecimento para gratificação
de Satanás [95:176],
O juízo final é o triunfo sobre a m á
arte e a m á ciência [95:176],
Ou seja, é o advento da Consciência Cósmica universal. “O Especialismo [o Sentido Cós­
mico] abre ao ser humano”, diz Balzac, “sua
verdadeira carreira; o infinito desponta para ele”[5:144]. “A auditoria da natureza, tardia embora,
respondida tem de ser, e sua quitação é te restituir [Consciência Cósmica] [176:126],
Algumas pessoas se iludem de que
não haverá um juízo final... Eu não as
iludirei. O erro é criado; a verdade é eter­
na. A criação, ou o erro, será queimado e
então, e não até então, a verdade, ou a
eternidade, aparecerá. Ele [o erro] será
Blake diz que suas faculdades autoconsci en­
tes são um estorvo para ele e não um auxílio.
Também Balzac: “Perniciosa, ela [a autocons­
ciência] impede o homem de entrar na senda do
Especialismo [Consciência Cósmica] que leva
ao infinito” [5:142], Assim também os peritos
queimado no momento que os homens hindus ensinam e sempre ensinaram que a su­
deixem de contemplá-lo. D e minha parte pressão e a extinção de muitas das faculdades
autoconscientes são condições necessárias à ilu­
declaro que não contem plo a criação
minação
[56:166 et seq.].
exterior e que, para mim, ela é estorvo e
não ação. “Quê?” será perguntado, “quando o sol nasce, não vedes vós um disco
redondo de fogo, assim como um guinéu?” “Oh, não, não! Vejo uma incontável companhia da hoste celestial, gritando: “Santo,
Assim Carpenter pergunta (bem sabendo a
santo, santo é o Senhor Deus Todo-Poderesposta) “Não existe uma verdade... uma ilumi­
roso!” N ão questiono meu olho físico, nação interior... pela qual possamos aíinal ver
tanto quanto não questionaria uma janela as coisas como elas são, contemplando toda a
a propósito de uma vista. Olho através criação... em seu verdadeiro ser e sua verdadeira
ordem?” [57:98]
dela e não com ela [95:176].
Abaixo das figuras de Adão e Eva (descendo a corrente geradora a partir daí)
está o assento da prostituta denominada mistério [a vida autoconsciente] no
Apocalipse. Ela (mistério) é segura por dois seres (a vida e a morte), cada qual com
três cabeças; eles representam a existência vegetativa. Como está escrito no Apoca­
lipse, eles a desnudam e a queimam com fogo [isto é, a morte a desnuda e as paixões
da vida autoconsciente a queimam qual com fogo]. Isto sepresenta a eterna consumpção da vida vegetal e a morte [a vida
e a morte do meramente autoconsciente]
“Seu verme não morre, e o seu fogo nunca
com sua concupiscên cia. As tochas
se apaga” * [15:9:44], disse Jesus da vida
enfumaçadas em suas mãos [nas mãos da
autoconsciente, que (também) é o inferno de
vida e da morte] representam o fogo
Dante.
eterno, que é o fogo da geração ou vege­
tação; é uma eterna consumpção. Aqueles
que são abençoados com visão im a­
E W hitm an diz: “ Eu rio daquilo que
ginativa [Consciência Cósmica] vêem
chamais de dissolução”.
essa mulher eterna [mistério - a vida
autoconsciente] e tremem ante aquilo que
“Ele [meu outro Eu], nem aquele afável
os outros não temem; enquanto desde­
fantasma familiar [o Sentido Cósmico] que à
nham e riem daquilo que os outros temem
noite com inteligência o logra” [176:86],
[95:166],
N ão estou encabulado, com medo ou
“Uma mensagem dos céus, sussurrando
contrariado em vos dizer o que precisa para mim até no sono” [193:324],
ser dito - que estou sob a direção de
mensageiros do céu, de dia e de noite. Mas a natureza dessas coisas não é, como
alguns supõem, sem preocupações ou cuidados [95:185],
*N.T. -
Também em [13:66:24]: “o seu bicho nunca morrerá, nem o seu fogo se
apagará”.
SUMÁRIO
a. Blake parece ter entrado em Consciência Cósmica quando estava com
pouco mais de trinta anos de idade.
b. Este autor nada sabe a respeito da ocorrência da luz subjetiva no caso de
Blake.
c. O fato da grande iluminação intelectual parece claro.
d. Sua elevação moral era bem marcante.
e. Ele parece ter tido o senso de imortalidade próprio da Consciência Cósmica.
f. Detalhes específicos de provas deixam a desejar, como acontece várias
vezes, inevitavelmente, mas um estudo da vida de Blake e de seus escritos
(o autor não tem condição nem competência para julgar Blake pelos seus
desenhos), bem como da sua morte, convencem o autor de que ele foi um
caso genuíno e provavelmente mesmo um grande caso.
HONORÉ DE BALZAC
I
Nasceu em 1799; faleceu em 1850.
“Talvez o maior nome da literatura pós-revolucionária da França”
[78:304],
Ele é bem resumido por um escritor ainda mais recente, W. P. Trent
[3:566]:
“O inesperado”, diz-nos ele, “às vezes acontece, como descobri
recentemente quando terminei meu qüinquagésimo volume da edição popular
das obras de Balzac, de M. Calmann Levy. Eu havia pensado que a conclusão
das odes de Horácio, das peças de Shakespeare e da Odisséia tinham marcado
as três épocas mais importantes em minha própria vida intelectual e que eu
provavelmente não seria novamente tão tocado, tão empolgado, por qualquer
livro ou por qualquer autor. Mas eu estava errado. Balzac, cujos romances,
considerados isoladamente, tinham me tocado fortemente mas nem sempre
tinham me empolgado e de quem eu fizera um companheiro durante anos,
sem compreendê-lo plenamente - este Balzac, quando visto à luz de suas
realizações estupendas e totais, de repente se projetou diante de mim com
toda a sua estatura e todo o seu poder, como um dos poucos gênios genuínos
do mundo que a humanidade pode apontar com legítimo e inabalável orgulho.
Eu tinha emergido da Comédie Humaine do mesmo modo como emergira
dos poemas de Homero e das peças de Shakespeare, sentindo que atravessara
um mundo e estivera na presença de um verdadeiro criador”.
Um outro escritor, ainda mais recente, pode ser citado para o mesmo fim.
H. T. Peck [128a:245] assim resume o resultado de seus estudos: “O lugar
que este grande gênio em última análise tem de ocupar na história da literatura
não foi ainda definitivamente estabelecido. Os críticos franceses ligam seu
nome ao de Shakespeare, ao passo que os críticos ingleses parecem achar
que uma comparação como esta é muito ousada. Pessoalmente, creio que, no
final, seu nome será colocado ainda mais alto do que o de Shakespeare, no
verdadeiro ápice da pirâmide da fama literária.
“Por mais que se procure, não se encontra nenhuma biografia completa
de Balzac. Ainda há cartas e ensaios não publicados, em poder do Visconde
de Spoelberch de Lovenjoul, um compatriota que o compreendeu
perfeitamente; mas, somando-se esses trabalhos a tudo que foi escrito, ainda
é duvidoso que o verdadeiro homem seja encontrado por trás deles. Embora
fosse em certas ocasiões comunicativo, ele se furtava a conhecer outras
pessoas. Há períodos de sua vida em que ele desaparece, em que se esconde,
e cada qual deve interpretar por si mesmo o segredo que fez o seu poder e
assegura sua fama”.
Balzac pôs as seguintes palavras na boca de Dante, que, segundo ele, foi
um “Especialista”. O próprio Balzac foi um “Especialista”. Essas palavras,
portanto, serão aplicáveis tanto a ele como a Dante: “Então o coitado do
jovem pensa que é um anjo exilado do céu. Quem de nós tem o direito de
desenganá-lo? Eu? Eu, que sou tantas vezes elevado acima desta Terra por
um poder mágico? Eu, que pertenço a Deus? Eu, que sou um mistério para
mim mesmo? Não vi o mais belo dos anjos [o Sentido Cósmico] vivendo
neste mundo inferior? Estará esse jovem mais ou menos fora de si do que eu
estou? Terá ele dado um passo mais arrojado para a fé? Ele crê; sua crença
sem dúvida o guiará para alguma senda luminosa, como essa em que
caminho”[9:263].
Que Balzac estivesse situado à parte e num plano acima dos homens
comuns, foi conjeturado durante sua vida e percebido por milhares de pessoas
desde sua morte. Taine, procurando encontrar uma explicação do fato óbvio,
diz: “Seu instrumento era a intuição, essa faculdade perigosa e superior,
pela qual o homem imagina ou descobre, num fato isolado, todas as
possibilidades de que é capaz; uma espécie de segunda visão, própria dos
profetas e dos sonâmbulos, que às vezes encontram o verdadeiro, muitas
vezes o falso, e que comumente alcançam apenas a verossimilitude” [6:12].
G. F. Parsons, em sua introdução a Louis Lambert, chega mais perto
quando pergunta “se esse estado [de êxtase crônico, em que o paciente - isto
é, Louis Lambert - na realidade o próprio Balzac - parece absorto] não pode
ser conseqüência de uma iluminação tão maior do que a que é concedida à
humanidade em geral que transcenda qualquer expressão - para separar
aquele que o receba de contato intelectual com seus próximos, por meio da
revelação de coisas intraduzíveis ao seu sentido interior ” [6:11],
Esta última parece ser a pura e simples verdade: Balzac, de maneira
muito clara, foi um caso bem marcante de Consciência Cósmica. A evidência
de que ele assim foi reside (1) no fato de sua vida, tal como observada por
outros e (2) em suas próprias revelações quanto ao seu Eu interior. A primeira
série de fatos pode ser colhida de sua biografia, compilada por K. P. Wormeley,
em grande parte das memórias escritas pela irmã de Balzac, Laure - Madame
Surville; a segunda, dos próprios escritos de Balzac e principalmente de
Louis Lambert e Seraphita. E acima de tudo, quanto à sua vida exterior
revelando a interior, Miss W. diz: “Uma biografia completa não pode ser
escrita atualmente e talvez nunca possa. Quase o todo do que ele era para si
mesmo, do que era seu próprio ser e de quais foram as influências que o
moldaram, de como o olho que via as múltiplas vidas dos outros via sua
própria vida, de como aquela alma que coroou sua obra terrena com uma
visão do verbo vivo foi nutrida - em suma do que era aquela alma, foi ocultado
àvista” [14:1], “Em todas as estimativas sobre a natureza de Balzac é preciso
atentar para o fato de que ele era eminentemente são, saudável de mente e
corpo. Embora seu espírito se elevasse a regiões que só podiam ser alcançadas
por intuição e meditasse sobre problemas cujo estudo associamos a fragilidade
de corpo e alheamento das coisas da vida, ele era ao mesmo tempo e tão
plenamente um homem com instintos humanos, que amava a vida e a
desfrutava. Nisto sem dúvida repousa um dos segredos de seu poder. Era
uma parte de sua multíplice genialidade, que o capacitava a efetivamente
viver e ter o seu ser nos homens e nas mulheres que evocava das profundezas
e das alturas da natureza humana. Seu temperamento era acima de tudo
jovial e, seu humor, divertido; nenhuma pressão de preocupações e débitos
mundanos, nenhuma labuta esmagadora, nenhum pesar oculto, com que esse
homem, tal como a criança em seu pequeno mundo, estivesse familiarizado,
podia destruir aquela saudável animação ou impedir sua repercussão numa
alegria sincera ou mesmo jovial. “Robusto” é a palavra que parece assentarlhe no lado material de sua natureza, aplicando-se mesmo a seus processos
mentais. Ele era dotado de forte bom senso, que guiava seu julgamento de
homens e circunstâncias” [4:58-9],
Ainda muito jovem, Balzac decidiu ser escritor. Parece que ele sentiu,
mesmo ainda menino, que estava destinado a fazer algo importante nesse
campo e compôs na escola, entre outras coisas, um tratado sobre a vontade e
um poema épico. Mais tarde escreveu em Paris, no decurso de dez anos,
mormente com o pseudônimo de “Horace de Saint Aubin”, uns quarenta
volumes, tidos como quase totalmente sem valor. Uma boa autoridade [106:87]
assim resume este episódio na história de Balzac: “Antes de seus trinta anos
ele havia publicado, sob vários pseudônimos, cerca de vinte romances longos,
verdadeiras produções “Grub Street”, escritas em sórdidos sótãos de Paris,
na pobreza, em perfeita obscuridade. Várias dessas “oeuvres de jeunesse”
foram recentemente republicadas, mas as melhores delas são horríveis.
Nenhum escritor jamais passou por um aprendizado mais árduo para chegar
à sua arte, ou se demorou tão desesperadamente na base da escada da fama”.
Então, aos trinta anos, sua genialidade começou a despontar em Les Chouans
e Physiologie du Marriage. Ele deve ter entrado em Consciência Cósmica
por volta do começo de 1831, aos trinta e dois anos, pois Louis Lambert (que
foi sem dúvida concebido logo depois da iluminação) foi escrito em 1832.
Em 1833, aos trinta e quatro anos, ele tinha entrado na plena posse de sua
verdadeira vida, um pressentimento da qual o havia dominado desde cedo
em sua infância.
Madame Surville diz: “Só em 1833, mais ou menos na época da publicação
de Médecin de Campagne, ele pensou pela primeira vez em reunir todos os
seus personagens e formar uma sociedade completa. O dia em que esta idéia
irrompeu em sua mente foi um dia glorioso para ele. Ele saiu da Rue de
Cassini, onde passara a residir depois de ter saído da Rue de Toumon, e
correu para o subúrbio de Poissonnière, onde eu estava então morando.
“Curvem-se diante de mim - disse ele alegremente - estou a caminho de
me tornar um gênio!
“Então revelou seu plano, que o assustava um pouco, pois, por maior que
fosse seu cérebro, precisava de tempo para elaborar um esquema como aquele.
“Como ele será glorioso, se eu tiver sucesso - disse ele, andando de um
lado para outro na sala. Ele não conseguia ficar parado; irradiava alegria de
cada traço de sua fisionomia. De bom grado deixarei que me chamem de
fazedor de contos, por todo o tempo em que estou cortando pedras para
meu edifício. Eu me regozijo antecipadamente com o espanto daquelas
criaturas de pouca visão quando o virem subir” [4:83].
Parece provável, a julgar pelo relato de Madame Surville, que Balzac, ou
estava no estado de Consciência Cósmica durante aquela visita a ela, ou
estivera recentemente nele.
Um escritor já citado [106:87] descreve nas palavras seguintes, sem dúvida
corretamente, qual era então o esquema de Balzac, e vale a pena observar
que, para todos os propósitos, era o mesmo que o concebido e tentado por
Dante, “Shakespeare” e Whitman (cada um em seu próprio mundo):
“Balzac se propôs ilustrar, com um conto ou um grupo de contos, cada
fase da vida e dos costumes dos franceses durante a primeira metade do
século dezenove. O trabalho deveria ser vasta e exaustivamente completo completo, não somente nas generalidades, mas também nos detalhes; deveria
tocar todo ponto destacado, iluminar cada aspecto típico, reproduzir cada
sentimento, cada idéia, cada pessoa, cada lugar, cada objeto que tivesse
desempenhado algum papel, por pequeno, obscuro que tivesse sido, na vida
do povo francês”.
Eis uma descrição dele no começo de seus trinta anos, feita por Lamartine:
Balzac estava de pé em frente à lareira daquela sala querida onde vi tantos homens
e mulheres notáveis entrando e saindo. Ele não era alto, embora a luz em seu rosto e
a mobilidade de sua figura m e impedissem de reparar na sua estatura. Seu corpo
balançava com seu pensamento; às vezes parecia que havia um espaço entre ele e o
chão; vez por outra ele se abaixava, como que para apanhar um a idéia a seus pés, e
depois se erguia sobre eles para seguir o vôo de seu pensamento acima dele próprio.
Q uando entrei na sala ele estava empolgado com o assunto de uma conversa com
M onsieur e M adam e de Girardin, e só se interrom peu por um instante, para me
lançar um olhar agudo, rápido e gracioso, de extrema bondade.
Ele era robusto, cheio, quadrado na base e de lado a lado dos ombros. O pescoço,
o peito, o tronco e as coxas eram fortes, com algo da amplitude de Mirabeau, mas
sem excesso. Sua alma transparecia e parecia encarar tudo de maneira leve, alegre,
como uma coberta elástica e de modo algum como um fardo. Seu tamanho parecia
dar-lhe poder e, não, despojá-lo dele. Seus braços curtos gesticulavam com facilidade;
falava como fala um orador. Sua voz ressoava com a energia um tanto veemente de
seus pulmões, mas nela não havia aspereza nem sarcasmo nem raiva; suas pernas,
nas quais ele mesmo balançava bastante, sustentavam facilmente seu tronco; suas
mãos, que eram grandes e rechonchudas, expressavam seu pensam ento à medida
que ele as movia. Assim era o homem exterior naquela robusta estrutura. M as na
presença de seu rosto era difícil pensar a respeito de seu físico. Aquele rosto que
falava, do qual não era fácil desviar os olhos, encantava e fascinava; seu cabelo era
penteado em m assas espessas; seus olhos negros eram penetrantes com o dardos
embebidos em benevolência; eles entravam confiantemente nos nossos, como amigos.
Suas bochechas eram cheias e rosadas; o nariz era bem modelado, embora um tanto
longo; os lábios eram finos de contorno mas cheios e erguidos nos cantos; os dentes
eram irregulares e chanfrados. Sua cabeça tendia a se inclinar para um lado e depois,
quando a conversa o excitava, era rapidamente levantada, com um a espécie de orgulho
heróico.
M as a expressão dominante de seu rosto, maior até mesmo do que a de seu
intelecto, era a manifestação de bondade e compassividade. Ele conquistava nossa
m ente quando falava, mas conquistava nosso coração quando estava calado. N enhum
sentim ento de inveja ou de ódio poderia ter sido expresso por aquele rosto; era
impossível que ele parecesse qualquer coisa que não bom. M as essa bondade não era
a da indiferença; era bondade amorosa, consciente de seu significado e consciente
das outras pessoas; inspirava gratidão e franqueza e desafiava todos aqueles que o
conheciam a não amá-lo. Havia uma folia infantil em seu semblante; ali estava uma
alma a brincar; ele tinha largado a pena para estar feliz entre amigos e era impossível
não estar alegre onde ele estava [4:123:5],
Tem sido dito de Balzac: “Ele foi uma iluminação lançada sobre a vida”.
Foi uma ilustração de seu próprio dito: “Tudo o que somos está na alma”
(“nous ne sommes que par l’ame”), e uma pergunta que fez a um amigo toca
muito perto a tese deste livro:
Tens certeza [disse ele] de que tua
Isto lembra Whitman: “A visão tem uma
alma já teve seu pleno desenvolvimento?
outra visão, a audição uma outra audição e a
R espiras ar através de todos os poros voz uma outra voz [193:342],
dela? Vêem teus olhos tudo que podem ver? [4:126]
Uma olhada em algumas de suas cartas a um amigo íntimo, naquele
período, lançará luz em nossa atual pesquisa:
“Agosto, 1833. Médecin de Campagne estará em tuas mãos na próxima
semana. Custou-me dez vezes mais o trabalho que me deu Louis Lambert.
Não há uma frase, uma idéia, que não tenha sido vista e revista, lida e relida
e corrigida; o trabalho foi assustador. Agora posso morrer em paz. Fiz um
grande trabalho para o meu país. No meu modo de pensar, é melhor ter
escrito este livro do que ter feito leis e ter ganho batalhas. É o evangelho em
ação” [4:143],
“Outubro, 1833. Sabes como Medecin foi recebido? Com uma torrente
de insultos. Os três jornais do meu próprio grupo que falaram nele fizeramno com o maior desprezo pela obra e por seu autor” [4:143],
“Dezembro, 1835. Nunca a torrente que me empurra para a frente foi tão
rápida; nenhuma obra mais terrivelmente majestosajamais conmpeliu a mente
humana. Vou à minha labuta como um jogador às cartas. Durmo apenas
cinco horas e trabalho dezoito; vou acabar me matando” [4:145],
Como todos os homens de sua categoria - isto é, como todos os homens
glorificados pela centelha divina que é o assunto deste modesto livro - Balzac
foi muitíssimo amado por aqueles que estiveram em contato com ele.
Seus empregados o amavam. Rose, a cozinheira, uma verdadeira “cordon Blue”
(nós a chamávamos de “La Grande Nanon”), ficava desesperada quando seu patrão,
em seus meses de trabalho, negligenciava seus deliciosos pratos. E u a vi entrar no
quarto dele na ponta dos pés, levando-lhe um delicioso consom e e trem endo de
ansiedade de vê-lo tomá-lo. Balzac então se dava conta dela; talvez o vapor da sopa
chegasse a seu olfato; então ele sacudia sua cabeleira para trás, com um gesto de
impaciência de sua cabeça, e exclamava com sua voz mais áspera e mais grosseira:
“Rose, vá embora; não quero nada; deixe-me a sós!” “Mas, mossieu vai estragar sua
saúde e se continuar assim mossieu vai ficar doente!” “Não, não! Eu lhe digo que me
deixe só!” - retrucava ele num a voz trovejante. “Não quero nada; você me aborrece;
vá em bora!” Então, a boa alm a se virava para sair, lentamente, muito lentamente,
murmurando: “Tanto trabalho para agradar mossieu] e uma sopa dessa - como está
cheirosa! P or que mossieu m e mantém a seu serviço, se não quer o que faço para
ele?” Isto era demais para Balzac. Ele a chamou de volta, tomou a sopa num gole só
e disse em sua mais bondosa voz, enquanto ela saía, radiante, para a cozinha: “Ora,
Rose, não deixe que isto aconteça outra vez!” Quando seu microscópico cavalariço,
um coitado dum orfaozinho que ele chamava Gain de mil, estava para morrer, Balzac
tom ou o m aior cuidado dele e nunca deixou de ir vê-lo diariam ente durante sua
doença. Sim, Deus deu ao meu grande escritor um coração de ouro; e todos que
realmente o conheciam o adoravam. Ele possuía a arte de fazer com que outros o
amassem a tal ponto que, em sua presença, eles esqueciam qualquer queixa, real ou
fantasiosa, contra ele, e só se lembravam do afeto que sentiam por ele [14:162-3],
Tem sido dito: “Poucos escritores foram maiores que Balzac na manifes­
tação das qualidades morais”. Mas Goethe diz: “Wenn ihr nicht flillt ihr
Werdefs nicht eijagen”. Se um homem é destituído de uma dada faculdade,
é inútil que tente descrevê-la.
Como é que, como diz Hugo, “um gênio é um homem amaldiçoado”?
Que os homens que têm as maiores qualidades são precisamente aqueles a
quem se atribui a ausência das mesmas? E, voltando a Balzac, por que se
haveria de duvidar que esse homem - que deu toda prova de grandeza moral
- era grande por suas qualidades morais tanto quanto por suas qualidades
intelectuais? Simplesmente porque é mais fácil interpretar mal do que
compreender homens dessa categoria e porque, quando não compreendemos,
tendemos a inferir o pior ao invés do melhor.
Ofato é que, como se tem dito, “Balzac é um moralista, o maior moralista
do século dezenove, alguém que não prega mas mostra a verdade” [4:178].
Assim, embora se possa dizer que Bacon pregava em suas obras em prosa,
ele tinha a intenção de que essas obras fossem meramente introdutórias a
outras, que deveriam então mostrar a verdade. No “Plano” da obra de sua
vida, a Instauratio Magna [“A Grande Restauração das Ciências”], ele a
divide em seis partes: (I) A divisão das ciências, representada por De
Augmentis; (II) The New Organon [“Novum Organum” ou “Elementos de
Interpretação da Natureza”]; (III) The Phenomena of the Universe [“Os
Fenômenos do Universo”], representada pelos seus livros de história natural;
(IV) The Ladder of the Intellect [“A Escada do Intelecto”], representada
pelas Comedies [“Comédias”]; (V) The Forerunners [“Os Precursores”],
representada pelas Histories [“Histórias”] e (VI) The New Philosophy [“A
Nova Filosofia”], representada pelas Tragedies [“Tragédias”].
Falando agora [34:51] de IV (as Comedies) e descrevendo o intuito desta
parte, ele diz que ela não consiste em preceitos e regras - pois, diz ele, “já
dei uma grande quantidade deles em Novum Organum - mas de verdadeiros
“tipos e modelos” pelos quais as coisas que devem ser ensinadas são “por
assim dizer colocadas diante dos olhos”. De VI, então, (as Tragedies) ele diz
que esta parte consiste, não em “mera retórica de especulação”, mas que
apresenta (como sabemos que o faz) “os reais negócios e sucessos da espécie
humana”. “Pois proíba Deus” - prossegue ele - “que façamos de um sonho
de nossa própria imaginação um padrão para o mundo; antes, que ele genero­
samente nos conceda que possamos escrever um apocalipse ou visão verdadei­
ra das pegadas do Criador impressas em suas criaturas”. Nem Jesus, nem
Whitman, nem quaisquer outros destes homens, pregaram, mas todos eles
mostraram a verdade, cada um à sua maneira, em sua vida, com sua palavra
falada ou escrita.
Outra característica que parece comum a esses homens - absorção em
sua própria época - foi notada em Balzac. Theophile Gautier se ocupa bastante
daquilo que chama de absoluta modernidade da genialidade de Balzac. Diz
ele: “Balzac nada deve à antiguidade. Para ele não há gregos nem romanos,
nem há na composição de seu talento qualquer traço de Homero, ou Virgílio,
ou Horácio - ninguém jamais foi menos clássico [4:170].
“Poder-se-ia supor que seus sentimentos tivessem sido feridos quando
lhe barraram a entrada na Academia. Mas ele se portou com dignidade e
retirou seu nome quando o fracasso pareceu provável. Este assunto não
perturba muito meus sentimentos - disse ele; algumas pessoas pensam que
absolutamente não perturba, mas elas estão enganadas. Se eu efetivamente
entrar lá, tanto melhor; se não entrar, não importa [4:190]”.
George Sand dá o seguinte depoimento a seu respeito:
“Ele procurou tesouros e não encontrou nenhum senão aqueles que tinha
dentro de si mesmo - seu intelecto, seu espírito de observação, sua maravilhosa
capacidade, sua força, sua alegria, sua bondade de coração - numa palavra,
sua genialidade.
“Sóbrio em todos os aspectos, sua moral era pura; ele tinha horror a
excessos, por serem a morte do talento; respeitava as mulheres com seu
coração e com sua mente, e sua vida, desde a primeira juventude, foi a de um
eremita [4:201],
“Ele viu tudo e disse tudo; tudo compreendeu, tudo adivinhou- como
então pode ser imoral?. . .
“Balzac tem sido criticado por não ter princípios porque não tem, penso
eu, convicções categóricas em questões de fato na religião, na arte, na política,
ou mesmo no amor” [4:203].
Esta é uma afirmação altamente significativa. Todas essas pessoas têm
sido julgadas da mesma maneira por seus contemporâneos. Por quê? Porque
elas não têm nenhuma opinião ou princípio no sentido em que seus
semelhantes têm. As coisas que parecem vitais para as pessoas ao seu redor
parecem não ter nenhuma importância para elas. E as coisas que têm valor
para elas são inatingíveis para as demais.
Aqui está o testemunho de Gautier quanto ao tipo de homem que Balzac
era (deveria ser transcrito na íntegra, mas é impossível fazê-lo aqui):
Quando vi Balzac pela primeira vez, ele tinha cerca de trinta e seis anos e sua
personalidade era um a daquelas que jam ais se esquece. E m sua presença, lembrei
palavras de Shakespeare: diante dele, “a natureza poderia se levantar e dizer ao
Itiundo inteiro: Este foi um homem”. Ele trajava um hábito de monge de flanela ou
chashmere branca, no qual, algum tempo mais tarde, fez Louis Boulanger pintar ele
próprio, Balzac. Q ue fantasia o levara a escolher esta roupa em particular que ele
sempre trajava, de preferência a todos os outros tipos, não sei. Talvez simbolizasse a
seus olhos a vida de claustro a que seu trabalho o condenava e, beneditino por
romantismo, ele usava o hábito. Seja como for, ele lhe assentava maravilhosamente.
Ele se gabou, mostrando-me as m angas im pecavelmente limpas, de que nelas
nunca tinha deixado cair nem u m a gotinha de tinta; “pois” - acrescentou - “um
verdadeiro literato tem de ser limpo em seu trabalho”.
Então, depois de descrever outras características, Gautier continua:
Quanto a seus olhos, nunca houve outros iguais; eles tinham uma vida,
uma luz, um inconcebível magnetismo; o branco dos olhos era puro, límpido,
com um ligeiro tom azulado, como o de uma criança ou de uma virgem,
envolvendo dois diamantes negros, salpicados em certos momentos de reflexos
dourados - olhos de fazer uma águia fechar as pálpebras - olhos de ler
através de paredes, ou no âmago das pessoas, ou de aterrorizar um furioso
animal selvagem - os olhos de um soberano, de um vidente, de um subjugador.
A expressão habitual do rosto era de uma pujante hilaridade, de uma alegria
à Rabelais, uma alegria monacal.
Estranho como possa parecer dizer isto no século dezenove, Balzac era
um vidente. Seu poder como observador, seu discernimento como fisiologista,
sua genialidade como escritor, não explicam suficientemente a infinita varie­
dade dos dois ou três mil tipos humanos que desempenham um papel mais
ou menos importante em sua comédia humana. Ele não os copiou; ele os
viveu idealmente. Vestiu suas roupas,contraiu seus hábitos, movimentou-se
em seus ambientes, foi eles próprios, durante o tempo necessário [4:204-8],
Como um outro homem da mesma categoria diz de si mesmo: “Sou um
camarada livre”. “Minha voz é a voz da esposa”. “Sou o escravo acossado”.
“Sou um velho artilheiro”. “Sou o bombeiro enfatuado”. “Sou eu quem está
livre de manhã e é barrado à noite”. “Não é um jovem que é preso por furto,
mas eu vou também e sou julgado e sentenciado”. “Não é um paciente de
cólera que está deitado, no último arquejo, mas eu também estou deitado, no
último arquejo. Meu rosto tem a cor das cinzas, minhas fibras rosnam, para
longe de mim as pessoas se retraem”. “Inquiridores se incorporam a mim e
eu me incorporo a eles. Estendo meu chapéu, sento-me com cara envergo­
nhada e peço esmolas”. Gautier continua:
E no entanto B alzac, m entalm ente im enso, um fisiologista p en etrante, um
profundo observador, um espírito intuitivo, não tinha o dom literário. Havia nele um
abismo entre o pensamento e a forma [4:209],
Aqui há uma coisa curiosa. Como é que esses homens que formam a
mente da espécie humana raramente ou nunca podem (pelo menos segundo
seus contemporâneos) escrever sua própria língua apropriadamente? Segundo
Renan (e ele não parece ter sido contradito), o estilo de Paulo era tão ruim
quanto possível (“sans charme; la forme, en est âpre est presque toujour
dénuée de grace” [143:568].*
Dificilmente se poderá dizer que Maomé tenha escrito e em sua época e
em seu país não havia nenhum padrão reconhecido com que se pudesse
comparar sua linguagem. O autor dos dramas shakespearianos foi por muito
tempo classificado como um escritor abaixo do mais medíocre autor de
panfletos. E, até o presente momento, dificilmente alguém defendeu Walt
Whitman do ponto de vista puramente literário, ao passo que milhares de
pessoas o condenaram sumariamente.
Mas os escritos de Paulo dominam continentes inteiros. As palavras de
Maomé mantêm duzentos milhões de pessoas em sujeição espiritual. O autor
de Hamlet tem sido chamado, e chamado corretamente, de “The Lord of
Civilization” [“O Senhor da Civilização”]. E a voz de Walt Whitman
provavelmente será afinal considerada a mais forte do século dezenove.
Essa aparente anomalia talvez seja facilmente explicada. Em cada geração
há certos homens, nunca muito numerosos, que são dotados do instinto
literário, e há também certos homens que são dotados de Consciência Cósmica,
mas não há razão alguma para que estes dois dons estejam unidos. Se isto
acontece, é um mero acidente. O homem com instinto literário escreve por
amor a escrever. Sente que tem a faculdade e, procurando um assunto, ou
um assunto após o outro, escreve sobre aquele ou sobre estes. O homem
dotado de Consciência Cósmica quase certamente não tem o instinto literário
(a probabilidade de que o tenha é de um em milhões), mas percebe certas
coisas que sente que deve contar. Simplesmente, com toda força, faz o melhor
que pode. A importância de sua mensagem faz com que ele seja lido. Sua
personalidade, conforme vai sendo reconhecida, faz com que tudo que tenha
relação direta com ele seja admirado e por fim ele é talvez considerado um
modelo de estilo.
•N. T. -
(“sem encanto; a forma é rude e quase sempre desprovida de graça”).
Madame Surville, continuando, diz: “Os ataques contra meu irmão
aumentaram, ao invés de diminuírem; os críticos, como não podiam repetir
as mesmas coisas para sempre, mudaram suas baterias e o acusaram de
imoralidade. Estas acusações foram muito injuriosas para meu irmão; elas o
entristeceram profundamente e algumas vezes o desanimaram” [4:242], É a
velha, velha história, mas nunca desgastada, nunca surrada, sempre pronta
para o serviço, tão atual e, lamentavelmente, tão fatal como sempre.
Os poucos e breves excertos acima sugerem a espécie de homem que foi
Balzac visto pelo lado exterior. Com base neles está claro, para qualquer
pessoa em condição de julgar, que ele era uma pessoa de tal modo dotada e só resta mostrar com suas próprias palavras, que do contrário não poderiam
ter sido escritas - que foi realmente um dos iluminados - um homem dotado
da rara e esplêndida faculdade denominada Consciência Cósmica.
Vejamos primeiro alguns excertos curtos, escritos pelo próprio Balzac,
que nos dão vislumbres do homem interior antes do advento do Sentido
Cósmico.
Deve-se notar que ele, como todos os homens da classe a que pertence,
era religioso, embora não tanto da maneira ortodoxa; esses homens raramente
aderem a uma igreja. Um “especialista” pode fiindar uma religião; raramente
pertence a uma. Os “especialistas” são pela religião e não por uma religião.
Assim Balzac nos diz de si mesmo, sob o nome de “Louis Lambert”:
Embora naturalmente religioso, ele não compartilhava os minuciosos deveres da
Igreja Romana; suas idéias eram mais particularmente consoantes com as de Santa
Teresa, Fénelon, vários dos padres e alguns santos, que em nossos dias seriam tratados
como hereges ou ateus. Ele permanecia frio durante as cerimônias religiosas. Para
ele a oração nascia de um impulso, um movimento, um a elevação do espírito, que
não seguia nenhum curso regular; em todas as coisas ele se entregava à natureza, e
não queria orar nem pensar em períodos preestabelecidos [5:73].
O limite que muitas mentes alcançam foi o ponto de partida de que a sua mente
um dia começaria a buscar novas regiões da inteligência [5:79].
Mais tarde ele faz esta observação a respeito de si mesmo:
A semente expandiu-se e germinou. Os filósofos podem se queixar da folhagem,
atingida pela geada antes que brotasse, mas um dia eles verâo a perfeita florescência
em regiões muito mais altas que os lugares mais altos da Terra [5:84],
Em sua narrativa adicional, fragmentária, velada e mística, do real advento
do Sentido Cósmico, é importante para o presente argumento notar que: (a)
Ele não tinha a menor idéia do que lhe acontecera, (b) Foi tomado de terror
[5:129], ( c) Seriamente se debateu quanto a se não estava insano, (d)
Considerou (ou reconsiderou) a questão do casamento - na dúvida de que
seria “um obstáculo ao aperfeiçoamento de seus sentidos interiores e ao seu
vôo pelos mundos espirituais” [5:131] - e pareceu decidir-se contra. Com
efeito, quando consideramos a atitude antagonística de tantos dos grandes
casos quanto a este relacionamento (Gautama, Jesus, Paulo, Whitman, etc.),
parece haver pouca dúvida de que algo como uma posse geral de Consciência
Cósmica deva abolir o casamento como o conhecemos hoje.
II
Balzac deve ter alcançado a Consciência Cósmica por volta de 1831 ou
1832, na idade de trinta e dois ou trinta e três. Foi nessa época que começou
a escrever seus grandes livros. Mas é especialmente importante, no momento,
notar que em 1832 ele escreveu Louis Lambert e, em 1833, Seraphita.
Nestes dois livros ele descreve o novo sentido mais cabalmente do que
ele jamais fora descrito em outros lugares. Em Louis Lambert ele faz uma
descrição arrojada, clara e cheia de bom senso, que é particularmente valiosa
para o nosso propósito atual. Depois, no ano seguinte, após ter escrito essa
obra, compôs Seraphita, cujo objetivo foi delinear uma pessoa dotada da
grande faculdade. Juntos, os dois livros provam que seu autor era dotado da
faculdade. Seraphita tem de ser lido inteiramente, para ser entendido e
apreciado; e, naturalmente, Louis Lambert também deve ser lido por completo;
mas a evidência de que necessitamos agora pode ser obtida desta última
obra dentro do limite de algumas páginas. Os excertos são da tradução de K.
P. Wormley, que foi comparada com o original e considerada fiel.
O m undo das idéias está dividido em
três esferas: a dos instintos; a da abstração; a do especialism o [5:141], (*1)
(*i) Há no intelecto três estágios - consciência
simples, autoconsciência e Consciência
Cósmica.
A maior parte da humanidade visível
- isto é, a parte mais fraca - habita a esfe­
ra dos instintos; os instintivos nascem ,
trabalham e morrem sem atingir o segun­
do grau da inteligência hum ana - isto é,
a abstração [5:142]. (*2)
(*2) Naturalmente, não é verdade que a massa
da espécie humana tenha consciência sim­
ples e não autoconsciência. Na verdade, é a se­
gunda que faz como que uma dada criatura seja
um ser humano. Mas é verdade (o que Balzac
quer dizer) que, na massa, a consciência simples
desempenha um papel bem maior do que a auto­
consciência. A “parte mais fraca” de fato vive bem
mais em consciência simples do que em autocons­
ciência.
A sociedade tem seu começo na abs­
tração. Em bora a abstração, quando com­
parada com o instinto, seja um poder quase divino, é infinitamente débil se comparada
com o dom do especialismo, que é o único que pode explicar Deus. A abstração
contém toda um a natureza em forma germinal, tão potencialmente quanto um a semente
contém o sistema de uma planta e todos os seus produtos. D a abstração derivam as
leis, as artes, os interesses, as idéias sociais. E a glória e o flagelo do mundo. Quando
gloriosa, cria sociedades; quando perniciosa, impede que o ser hum ano entre na
senda do especialismo, que leva ao infinito. O homem julga todas as coisas por suas
abstrações - o bem, o mal, a virtude, o
(*3) Na abstração - isto é, na autoconsciência crime. Suas fórmulas do direito são a sua
ahumanidade, e portanto a sociedade huma­
balança e sua justiça é cega; a justiça de na, tem seu início. “Somente o especialismo pode
D eus vê - aí está tudo. H á, necessaria­ explicar Deus”. Que se note, neste particular, que
mente, seres intermediários que separam todas as religiões dignas do nome - budismo,
maometismo, cristianismo e possivelmente outras
o reino dos instintivos do reino dos abs- nasceram do especialismo - isto é, da Consciên­
trativos, em quem a instintividade se mis­ cia Cósmica. “Eu” (Cristo, o Sentido Cósmico)
tura com a abstratividade, num a infindá­ “sou o caminho, a verdade e a vida, ninguém vai
vel variedade de proporção. Alguns têm a Deus senão por mim”. Não está tão claro como
mais da primeira do que da segunda, e é que a autoconsciência barra o caminho para a
Consciência Cósmica. Pelo contrário, ela parece
vice-versa. Além disto, há seres em que
ser o único e necessário caminho que pode levar
a ação de cada um a é neutralizada, pois à Consciência Cósmica. Muitos dos iluminados,
am b as são m o v id as p o r igual fo rça entretanto, têm a mesma opinião de Balzac e eles
devem ser os melhores juizes disto.
[5:142], (*3)
O especialismo consiste em ver as coisas do mundo material, bem como as do
mundo espiritual, em suas ramificações originais e conseqtlenciais. O mais alto gêriio
hum ano é aquele que começa das som(*4) Note-se que Balzac está falando de Consciên­
bras da abstração, para avançar para a
cia Cósmica somente do ponto de vista de
luz do especialismo. (Especialismo, espé­ “idéias”. Portanto, ele não nos fala aqui da exalta­
cie, visão, especulação, visão do todo, e ção moral que é uma parte essencial dela. Mas
aquele vislumbre da unidade; speculum, ele nos dá este aspecto, cabalmente, em Seraphita.
o espelho ou meio de examinar uma coisa
vendo-a na sua inteireza). (*4) Jesus era (*5) Como diz Dante: “Do mesmo modo que
mentes terrenas percebem que dois ângulos
um especialista. Via o ato em suas raízes
obtusos não podem estar contidos num triângu­
e em seus produtos; no passado, que o lo, assim tu [o Sentido Cósmico], contemplando
gerou; no presente, em que está manifes­ o ponto em que todos os tempos estão presentes,
to; no futuro, em que se desenvolve; (*5) vês coisas contingentes antes que elas próprias
sua visão penetrava o entendimento dos existam” [72:111].
outros. A perfeição da visão interior faz nascer o dom do especialismo. O especialismo
traz consigo a intuição. Intuição é a faculdade do homem interior, de quem o
especialismo é um atributo.
Entre a esfera do especialismo e a es­
fera da abstração, e do mesmo modo entre
estas esferas e a da instintividade, encon­
tramos seres em quem os diversos atribu­
tos dos dois reinos estão misturados, pro­
duzindo um a natureza mista - o homem
de gênio [5:143], (*6)
(*6) “Natura non facit saltum”. É necessário
que haja uma passagem gradual da cons­
ciência simples para a autoconsciência e desta
para a Consciência Cósmica - isto quer dizer
que é necessário que haja um caminho de passa­
gem gradual. Não obstante, nada é mais certo
do que essa passagem da consciência simples
para a autoconsciência, e desta para a Cons­
ciência Cósmica, ser comumente feita com um salto repentino e muitas vezes terrivelmente assus­
tador. Mas para que as condições não se misturem e não se sobreponham, como diz Balzac, seria
bom não ser muito categórico.
O especialista é necessariam ente a
mais elevada expressão de ser humano o elo que liga o mundo visível aos mundos
superiores. Ele age, vê, sente através de
seu ser interior. O abstrativo pensa. O
instintivo simplesmente age [5:144], (*7)
Segue-se que existem três graus de
ser humano. Como instintivo, ele se en­
contra abaixo do nível; como abstrativo,
cie alcança o nível; como especialista, ele
o ultrapassa. O especialismo abre para o
íer hum ano sua verdadeira carreira: o
Infinito desponta nele - ele capta um
vislumbre do seu destino [5:144]. (*8)
(*7) O estado de Consciência Cósmica é indu­
bitavelmente o mais alto que podemos
atualmente conceber, mas não podemos concluir
que não haja outros mais altos, nem que não
possamos um dia alcançar estados superiores.
(*8) Com a consciência simples somente, o ser
humano não é ainda ser humano - é o
alalus homo. Com a autoconsciência, é como
nós o conhecemos. Com a Consciêcia Cósmica,
é como o vemos - ou melhor, como não o vemos;
pois quem de nós vê esses homens? - em Jesus,
Maomé, Balzac, Whitman. Quando a espécie ti­
ver alcançado a Consciência Cósmica, como no
passado remoto alcançou a autoconsciência, ha­
verá um outro começo num outro nível. O ser
humano entrará em sua herança e em sua
verdadeira obra.
Balzac prossegue:
Existem três mundos - o mundo natural, o mundo espiritual e o mundo divino.
se move para cá e para lá no mundo natural, que não é fixo nem em
IUa essência nem em suas propriedades. O mundo espiritual é fixo em sua essência
C variável em suas propriedades. O mundo divino é fixo em suas propriedades e em
IUa essência. Conseqüentemente, há uma adoração material, um a adoração espiritual
■ Uma adoração divina; as três se manifestam por ação, palavra e oração, ou (para
•Xpressar isto de outro modo) ato, compreensão e amor. O instintivo deseja atos; o
A humanidade
«bltrati vo volta-se para idéias; o especiaHsta vê a meta, aspira a D eus, a quem
jW rcebe ou co n tem p la in te rio rm en te
(S: 144]. (*9)
(*9) Emoutras palavras: Os homens que vivem
inteiramente ou quase inteiramente em
consciência simples flutuam na corrente do
tempo, do mesmo modo que os animais - sendo
levados pelas estações do ano, pelo suprimento de alimentos, etc., etc., assim como uma folha é
levada numa corrente, não por movimento próprio, nem por equilíbrio próprio, mas movida por
influências externas e equilibrada por forças naturais, como os animais e as árvores. O ser humano
plenamente autoconsciente avalia a si mesmo e é por assim dizer centrado em si mesmo. Sente que
é um ponto fixo. Julga todas as coisas com referência a esse ponto. Mas fora dele próprio (como
sabemos) nada há de fixo. Ele confia naquilo que chama de Deus e não confia em si próprio - é um
deísta, um ateu, um cristão, um budista. Acredita na ciência, mas a ciência está constantemente
mudando e raramente lhe dirá, em qualquer caso, alguma coisa que valha a pena saber. Então, ele
está fixo num ponto e nele se move livremente. O homem dotado de Consciência Cósmica, sendo
consciente de si mesmo e consciente do Cosmo - seu significado e seu movimento - está fixo fora e
dentro, “em sua essência e em suas propriedades”. A criatura dotada apenas de consciência simples
é uma palha flutuando numa corrente de água; move-se livremente com toda e qualquer influência.
O ser humano autoconsciente é uma agulha, um ponteiro, que gira com um pivô em seu centro lixado num ponto mas girando livremente sobre o mesmo. O ser humano com Consciência Cósmica
é a mesma agulha, magnetizada. Está ainda fixado pelo seu centro, mas, além disto, aponta firmemente
para o norte - encontrou algo real e permanente fora de si mesmo e não pode deixar de se voltar
invariavelmente para isso.
Portanto, talvez um dia o sentido in­
verso de et verbo caro fa c tu m seja o epítome de um novo evangelho, que dirá: e a
carne será fe ita verbo\ isto se tom ará a
elocução de Deus [5:145]. (*10)
(*10) Quando toda a espécie tiver alcançado a
Consciência Cósmica, nossa idéia de
Deus será realizada no ser humano.
(*11) A “ressurreição” não é dos chamados
mortos, mas dos vivos que estão “mortos”
no sentido de nunca terem entrado na verdadeira
vida.
A ressurreição é acarretad a pelos
ventos do céu que varrem os mundos. O
anjo trazido na rajada não diz: “ Vós, M ortos, levantai-vos”; ele diz, “Levantai-vos,
vós viventes” [5:145]. (*11)
III
SUMÁRIO DO CASO DE BALZAC
a. Não temos informação quanto ao dia e à hora em que o Sentido Cósmico
se manifestou.
b. Nada sabemos quanto a uma luz subjetiva.
c. Sabemos que Balzac tinha natureza intensamente fervorosa, bem como a
aspiração espiritual que parece necessariamente preceder a iluminação,
embora muitas vezes exista sem conduzir a ela.
d. Sabemos que Balzac, depois de certa idade, tinha as qualidades morais e
intelectuais quase preternaturais que são características do Sentido
Cósmico.
e. Mas a prova de que Balzac foi um caso de Consciência Cósmica assenta
no fato de que ele definiu e descreveu de maneira precisa o estado mental
assim denominado, e não poderia ter descrito esse estado se não o tivesse
vivenciado.
f. Ele não somente o descreve em grande detalhe, como em Louis Lambert,
e aí o atribui a si mesmo - pois esse livro é abertamente autobiográfico porém, mais ainda, em Seraphita cria uma personalidade na qual o Sentido
Cósmico é o elemento principal e, no curso da narrativa, apresenta todos
os traços característicos desse estado; ora, para fazer isto era um absoluto
pré-requisito estar de posse do Sentido Cósmico.
g. Para qualquer pessoa que compreenda o que é o Sentido Cósmico, é tão
certo que Balzac o possuía como que ele possuía o sentido da visão.
WALT WHITMAN
Nasceu em 1819; faleceu em 1892.
Em cada um destes exemplos da chamada Consciência Cósmica, seria
apropriado fazer-se um relato satisfatoriamente exaustivo da vida exterior
do homem, bem como de seus ensinamentos, pois a primeira corrobora e
deve mesmo corroborar os últimos. Mas não seria possível fazer isto e ainda
manter o argumento dentro de limites razoáveis. Felizmente, isto não é
totalmente necessário; esses homens são em maioria bem conhecidos. Pode
ser dito também que este livro não tem tanto a finalidade de ensinar alguma
coisa, mas de mostrar que há certa lição a ser aprendida e de indicar onde
ela pode ser estudada. Este livro não é tanto uma estrada, mas um cartaz de
sinalização numa estrada. Seu maior valor (se tem algum) há de ser o de
guiar ao estudo sério de certos homens de um tipo excepcional; não de um
ou outro deles, mas deles como um grupo e partindo de um ponto de vista
especial. Embora seja então necessário dizer aqui algumas palavras sobre
Walt Whitman, será bom que o leitor fique longe de satisfeito com elas e
procure em outros lugares uma descrição bem mais completa da vida e do
pensamento deste homem notável. A breve descrição que segue é extraída
da obra deste autor intitulada Life o f Whitman [38], escrita no verão de 1880,
enquanto ele estava sendo visitado por Whitman. Walt Whitman tinha então
sessenta e um ano» de idade.
A primeira vista ele parece bem mais velho, de modo que muitas vezes se
lupõe que tenha setenta ou mesmo oitenta. Tem pouco mais de um metro e
Oitenta de altura e é bem ereto. Pesa perto de noventa quilos. Seu corpo e
•eus membros são de tamanho natural e bem proporcionados. Sua cabeça é
grande e arredondada em todas as direções; a parte superior é um pouco
mais alta do que a tomaria um semicírculo da fronte para a parte posterior.
Embora seu rosto e sua cabeça dêem a impressão de estarem bem supridos
de cabelos, o cocuruto é moderadamente calvo; nos lados e na nuca, o cabelo
é longo, muito fino e quase branco como neve. As sobrancelhas são bem
arqueadas, de modo que há uma longa distância entre o olho até o centro da
sobrancelha (este é o traço facial que mais chama a atenção à primeira vista).
Os olhos são azul-claros; não são grandes - na verdade, em proporção à
cabeça e ao rosto, parecem um tanto pequenos; são turvos e sombrios, não
expressivos; se têm alguma expressão é de bondade, serenidade e suavidade.
As pálpebras são cheias, as superiores comumente cobrindo quase a metade
do globo ocular. O nariz é largo, forte e bem reto; é de bom tamanho mas não
é grande em proporção ao resto da face; não desce diretamente da testa mas
se aprofunda um tanto entre os olhos numa boa extensão. A boca é de bom
tamanho, os lábios carnudos. Os lados e a parte inferior do rosto estão cobertos
com uma barba fina e branca, suficientemente longa para descer um pouco
até o peito. No lábio superior, um bigode espesso. As orelhas são bastante
grandes, especialmente longas de cima para baixo, pesadas e muito vistosas.
Creio que todos os sentidos do poeta são extraordinariamente aguçados,
especialmente sua audição; nenhum som ou modulação de som perceptível a
outros lhe escapa e ele parece ouvir muitas coisas que são inaudíveis para as
pessoas comuns. Eu o ouvi falar de ouvir a grama crescendo e as árvores
brotando folhas. As maçãs do rosto são redondas e suaves. Seu rosto não tem
linhas indicativas de preocupação, cansaço ou idade - a barba e os cabelos
brancos, e a debilidade ao andar (por causa de paralisia), é que o fazem
parecer velho. A expressão costumeira de seu rosto é de repouso, mas há
uma decisão, uma firmeza bem marcada. Jamais vi seu olhar, mesmo
momentaneamente, expressar desdém, ou qualquer sentimento maligno.
Nunca soube que ele tivesse zombado de qualquer pessoa ou menosprezado
qualquer coisa, ou manifestado de qualquer modo ou em qualquer grau,
quer alarme, quer apreensão, embora na minha presença ele tenha sido
colocado em circunstâncias que teriam causado ambas as coisas na maioria
dos homens. Sua tez é peculiar - um matiz moreno brilhante, que,
contrastando com seu cabelo branco e sua barba branca, causa uma impressão
muito forte. Seu corpo não é branco como o de todos as outras pessoas de
procedência inglesa ou teutônica que tenho visto- tem uma cor rosa delicada
mas bem acentuada. Todos os seus traços são grandes e maciços. Seu rosto é
o mais nobre que já vi.
Nenhuma descrição pode dar uma idéia da extraordinária atração física
deste homem. Não estou falando do afeto de amigos e daqueles que estão
muito com ele, mas do magnetismo que ele exerce sobre as pessoas que
apenas o vêem por alguns minutos ou passam por ele na rua. Um amigo
íntimo deste autor, depois de conviver com Walt Whitman por alguns dias,
disse numa carta: “Quanto a mim, parece que sempre o conheci e o amei”.
E numa outra carta, escrita de uma cidade onde o poeta estivera por uns
poucos dias, a mesma pessoa diz: “Você sabe que todo mundo que o conheceu
parece amá-lo”?
O que segue é a experiência de uma pessoa bem conhecida do autor deste
livro: Ele visitou Whitman e passou uma hora em sua casa, em Camden, no
outono de 1877. Nunca vira o poeta antes, mas estivera lendo profundamente
suas obras por alguns anos. Contou ele que Walt Whitman só disse a ele uma
centena de palavras, ao todo, e foram apenas palavras comuns, corriqueiras;
que não havia notado nada de especial enquanto estava com ele, mas que,
pouco depois de tê-lo deixado, veio um estado de exaltação mental que ele só
podia descrever comparando-o com uma leve embriaguez por champanha,
ou com estar apaixonado, e essa exaltação, disse ele, durou pelo menos seis
semanas num grau claramente acentuado, de modo que, pelo menos por
aquele período, ele esteve nitidamente diferente do que normalmente era.
Tampouco, acrescentou, isso passou então ou desde então, embora tenha
deixado de ser sentido como algo novo e estranho, mas tomou-se um elemento
permanente em sua vida, uma grande força viva (como ele a descreveu),
suscitando pureza e felicidade. Posso acrescentar que toda a vida dessa pessoa
foi modificada por aquele contato - seu temperamento, seu caráter, todo o
seu ser espiritual, sua vida exterior, seu modo de conversar, etc., foram
elevados e purificados a um grau extraordinário. Disse-me ele que, a princípio,
costumava falar muitas vezes com amigos e conhecidos sobre seus sentimentos
por Walt Whitman e Leaves, mas que depois de algum tempo percebeu que
não conseguia fazer-se entender e que alguns até chegavam a pensar que seu
equilíbrio mental não estava bem. Aos poucos aprendeu a guardar silêncio
sobre o assunto, mas o sentimento não arrefeceu nem sua influência em sua
vida diminuiu.
A maneira como Walt Whitman se vestia era sempre extremamente
simples. Quando o tempo era agradável, geralmente usava um temo cinzaclaro de lã de boa qualidade. A única coisa peculiar quanto a sua roupa era
que nunca usava gravata e sempre vestia camisas com colarinhos bastante
grandes, com o botão do pescoço umas cinco ou seis polegadas abaixo do
normal, de modo que a garganta e a parte superior do peito ficavam expostos.
Em todos os outros aspectos ele se vestia de maneira essencial, asseada,
fimples e comum. Tudo que usava e qualquer coisa nele eram sempre
escrupulosamente limpos. Suas roubas podiam mostrar (e com freqüência
mostravam) sinais de desgaste, ou podiam estar remendadas ou apresentar
Airos, mas nunca pareciam sujas. Na verdade, um agradável cheiro de limpeza
sempre foi um dos traços especiais dele; sempre esteve em suas roupas, seu
hálito, seu corpo inteiro, seus alimentos e suas bebidas, sua conversa, e
ninguém podia estar com ele por uma hora sem perceber que isso penetrava
sua mente e sua vida e era de fato a expressão de uma pureza que era física
tanto quanto moral e moral tanto quanto física.
Walt Whitman, em minhas conversas com ele naquela época, sèmpre
repudiou qualquer pretensão exacerbada em relação à sua pessoa ou à sua
poesia. Se aceitávamos suas explicações, elas eram simples e comuns. Mas
quando se pensava nelas, entrando no espírito delas, percebia-se que nele o
simples e o comum incluíam o ideal e o espiritual. Assim, pode-se dizer que
nem ele nem seus escritos são desenvolvimentos do ideal a partir do real,
mas o próprio real elevado ao e no ideal. Em Walt Whitman, seu corpo, sua
vida exterior, sua existência espiritual interior e sua poesia eram uma só
coisa; em todos os aspectos, cada uma destas coisas se harmonizava com
qualquer outra e qualquer uma delas podia ser inferida de qualquer outra.
Ele me disse um dia (não lembro agora a respeito de quê): “Eu imaginei uma
vida que deveria ser a do homem comum em circunstâncias comuns e, não
obstante, uma vida grandiosa, heróica”. Não há dúvida de que este ideal
estivera constantemente em sua mente e de que tudo que ele fazia, dizia,
escrevia, pensava e sentia, estivera e estava, a cada momento, moldado nesse
ideal. Seu jeito de ser era curiosamente calmo e controlado. Raramente ficava
empolgado numa conversa, ou em todos os eventos raramente mostrava
excitação; também raramente levantava sua voz ou fazia quaisquer gestos.
Nunca soube que ele tivesse estado de mau humor. Parecia sempre satisfeito
com os que estavam à sua volta. Em geral não esperava por uma apresentação
formal; ao encontrar uma pessoa pela primeira vez, com grande probabilidade
dava um passo à frente e estendia sua mão (a esquerda ou a direita, aquela
que estivesse desocupada), e a pessoa e ele imediatamente se tomavam
conhecidos. As pessoas não conseguiam dizer por que que gostavam dele.
Diziam que havia algo atraente nele; que ele tinha um forte magnetismo
pessoal, ou davam alguma outra explicação vaga sem significado. Um músico
muito talentoso que passou uns dois dias em minha casa quando Walt
Whitman estava lá me disse, quando ia embora: “Eu sei o que é; é sua voz
maravilhosa que toma tão agradável estar com ele”. Eu disse: “Sim, talvez
seja isto; mas onde a voz dele adquiriu esse charme”?
Embora ele às vezes não tocasse em um livro por uma semana, geralmente
passava uma parte do dia (embora não uma grande parte) lendo. Talvez
lesse, em média, umas duas horas por dia. Raramente lia qualquer livro
deliberadamente por inteiro e não havia mais sistema (aparente) em sua
leitura do que em qualquer outra coisa que ele fizesse; quer dizer,
absolutamente não havia sistema algum nisso. Se ele se sentava numa
biblioteca por uma hora, costumava ter de meia dúzia a uma dúzia de livros
à sua volta, na mesa, em cadeiras e no chão. Parecia ler algumas páginas
aqui e algumas páginas ali e passar de um ponto para outro, de um livro para
outro, sem dúvida procurando algum indício ou fio em particular. Às vezes
(embora muito raramente), interessava-se suficientemente por um livro para
o ler por completo. Acho que leu quase se não por inteiro Egypt [“Egito”] de
Renouf, e Egypt de Bruschbey, mas estes foram casos excepcionais. No seu
modo de ler ele mergulhou em histórias, ensaios, tratados metafísicos,
religiosos e científicos, romances e poesias - embora eu creia que lesse menos
poesias do que qualquer outra coisa. Não lia em nenhuma outra língua que
não o inglês, mas acredito que conhecia muito mais o francês, o alemão e o
espanhol do que teria admitido. Mas em sendo aceita a palavra dele neste
particular, ele sabia muito pouco de qualquer assunto.
Sua ocupação favorita parecia ser a de passear a sós ao ar livre, olhando
a relva, as árvores, as flores, as perspectivas de luz, os variantes aspectos do
céu, e escutando os pássaros, os grilos, as pererecas, o vento nas árvores e as
centenas de sons naturais. Era evidente que estas coisas lhe davam uma
sensação de prazer muito além do que davam a pessoas comuns. Enquanto
eu conhecia este homem, não me tinha ocorrido que alguém pudesse sentir
tanta felicidade e tão ampla satisfação nestas coisas como ele evidentemente
sentia. Ele próprio nunca falava de todo esse prazer. Atrevo-me a dizer que
dificilmente pensava nisso, mas qualquer pessoa que o observava podia ver
claramente que em seu caso esse prazer era real e profundo.
Ele tinha um jeito de cantar quando estava a sós, geralmente a meia voz,
onde quer que estivesse e fosse o que fosse que estivesse fazendo. Podia-se
ouvi-lo logo de manhã, enquanto tomava seu banho e se vestia (então ele
talvez cantasse a plena voz baladas ou canções marciais), e grande parte do
tempo em que passeava ao ar livre durante o dia cantava melodias, usualmente
sem palavras, ou um recitativo sem estrutura. As vezes recitava poemas,
creio que geralmente de Shakespeare ou Homero e, de vez em quando, de
Bryant ou de outros. Dedicava bem pouco tempo a escrever. É provável que
nunca tenha dedicado muito tempo a esta ocupação. Escreveu poucas cartas
de caráter pessoal. Enquanto estava conosco, podia escrever uma carta a um
jornal canadense a respeito de suas viagens, seu estado geral, as últimas
coisas que fizera e suas últimas idéias, e mandar fazer cinqüenta ou cem
cópias para mandá-las a seus amigos e parentes, especialmente mocinhas e
jovens em geral, fazendo disto toda a sua correspondência. Escrevia quase
tudo a lápis, numa espécie de livro de folhas soltas que levava no bolso da
camisa. Esse livro consistia em algumas folhas de papel branco de boa qualida­
de, dobradas e presas por um ou dois grampos. Ele disse que tinha experimen­
tado todos os tipos de livros de anotações e tinha gostado mais daquele. Seu
trabalho literário era feito a qualquer hora e geralmente sobre seus joelhos,
de improviso e muitas vezes ao ar livre. Mesmo numa sala com as conveniên­
cias usuais para se escrever, não usava mesa; punha um livro nos joelhos ou
o segurava em sua mão esquerda, deitava o papel sobre ele e assim escrevia.
Sua caligrafia era clara e comum, cada letra perfeitamente formada.
Era muito afeiçoado às flores, tanto as naturais como as cultivadas; com
freqüência as colhia e as arranjava num grande buquê para a mesa de jantar,
para sua sala de estar, ou para seu quarto de dormir; grande parte do tempo
usava um botão de rosa ou uma rosa recém-aberta, ou talvez um gerânio,
espetado na lapela de seu casaco; não parecia ter muita preferência por uma
espécie a qualquer outra; gostava de todas. Acho que admirava lilases e
girassóis, tanto quanto rosas. Na realidade, talvez nenhum homem que já
tenha vivido gostasse de tantas coisas e não gostasse de tão poucas como
Walt Whitman. Todas as coisas naturais pareciam ter um charme para ele,
tudo o que via ou que ouvia, dentro e fora de casa, parecia agradá-lo. Ele
parecia gostar (e creio que efetivamente gostava) de todos os homens,
mulheres e crianças que via (embora nunca o tenha ouvido dizer que gostasse
de alguém), mas cada pessoa que o conhecia sentia que ele gostava dela e
que gostava também de outras. Nisto e em tudo ele era inteiramente natural
e não convencional. Quando de fato expressava preferência por alguma pessoa
(o que acontecia muito raramente), procurava indicar isto de maneira indireta;
por exemplo, soube que ele disse: “Adeus, meu amor”, a uma jovem senhora
casada que ele vira apenas algumas vezes.
Ele era especialmente afeiçoado a crianças e todas as crianças gostavam
dele e confiavam nele de imediato. Com freqüência os pequeninos, se exaustos
e agitados, no momento em que ele os pegava e acariciava paravam de chorar
e às vezes até adormeciam em seus braços. Um dia várias senhoras, o poeta
e eu, participamos num piquenique para centenas de crianças pobres, em
London. Perdi de vista meu amigo por talvez uma hora e, quando o encontrei
novamente, ele estava sentado num canto quieto à margem do rio, com uma
criança de rosto rosado, de uns quatro ou cinco anos de idade, exausta e
dormindo profundamente em seu colo.
Para jovens e velhos seu toque tinha um charme que não pode ser descrito
e, se pudesse, a descrição não mereceria crédito, exceto por parte daqueles
que o conheciam pessoalmente ou através de Leaves o f Grass. Esse charme
(fisiológico, mais do que psicológico), se compreendido, explicaria todo o
mistério do homem e de como ele produzia esses efeitos, não somente nos
que gozavam de boa saúde, mas também entre os doentes e os feridos.
É certo também, talvez contrariamente ao que já apresentei, que há uma
outra fase, e muito real, para a base de seu caráter. Um senhor de idade com
quem conversei (um pintor de retratos e parente distante do poeta), que convi­
veu muito com ele, particularmente ao longo dos anos de sua meia idade e
mais tarde (1845 a 1870), diz-me que Walt Whitman, nos elementos de seu
caráter, tinha a mais profunda severidade e altivez, que não eram facilmente
despertadas mas vinham à tona em certos momentos e que eram bem com­
preendidas por aqueles que o conheciam bem como coisas com que não se
podia brincar. O senhor a que me refiro (ele é um leitor de Leaves o f Grass
e o aceita completamente), concorda comigo em minha descrição de sua
benevolência, sua lisura e de seu otimismo tolerante, mas insiste em que na
estrutura interior do poeta sempre houve, como ele o expressa, “uma combina­
ção de sangue quente e qualidades de luta”. Diz ele que meu esboço se aplica
mais especialmente aos seus últimos anos; que Walt Whitman desenvolveu
gradativamente os atributos a que me refiro e lhes deu controle. Sua teoria,
quase em suas próprias palavras, é que há duas naturezas em Walt Whitman.
Uma é de imensa suavidade, autocontrole, um misticismo como os ocasionais
transes de Sócrates e de profunda benevolência, ternura e simpatia, à maneira
de Cristo (o mesmo sentimento do retrato entalhado de página de rosto que
mostrei a ele, e ele disse que tinha visto exatamente aquele olhar “no velho”
e mais de uma vez durante 1863 -64, embora nunca o tivesse observado antes
ou desde então). Mas estas qualidades, embora ele as tenha entronizado e
por muitos anos tenha regido sua vida por elas, estão duplicadas por outras
muito mais severas. Não há dúvida de que ele tenha conseguido dominar as
últimas, mas resta o fato de que as possui. Como poderia Walt Whitman
(disse meu interlocutor) ter assumido a atitude para com o mal e coisas más
que está por trás de cada página de seu pronunciamento em Leaves o f Grass,
da primeira à última página - tão diferente nesse assunto de todos os escritores
conhecidos, novos ou antigos - a menos que tivesse assumido todo aquele
mal dentro dele?
Havia então um outro lado desse quadro - a indispensável exceção que
prova a regra. Este homem, cuja presença suscitava uma afeição tão extraordi­
nária, cuja voz tinha para a maioria dos que a ouviam um encanto maravilho­
so, cujo toque tinha um poder que nenhuma palavra pode expressar - em
raros momentos, este homem, tal como um imã, repelia assim como atraía.
Assim como havia aqueles que instintivamente o amavam, havia outros,
aqui e ali, que instintivamente não gostavam dele. Assim como suas elocuções
poéticas eram ridículas para muitos, mesmo sua aparência pessoal em não
poucos casos provocava comentários igualmente sarcásticos. Sua figura gran­
de, seu rosto avermelhado, sua copiosa barba, sua roupa solta e não convencio­
nal, seu colarinho de camisa muito grande e com tendência a se enrolar, sem
gravata e sempre bem aberto na altura da garganta, eram coisas que suscita­
vam zombaria e explosões de riso.
Ele não falava muito. Às vezes, embora permanecesse alegre e com boa
disposição, falava muito pouco durante um dia inteiro. Sua conversa, quando
efetivamente falava, era em todos os momentos fácil e espontânea. Nunca
soube que ele tivesse discutido ou debatido alguma coisa e ele nunca falava
em dinheiro. Sempre justificava, às vezes brincando, outras vezes de maneira
bem séria, aqueles que falavam asperamente a respeito dele ou de seus escritos
e eu muitas vezes pensei que ele até tinha prazer naquelas duras críticas,
maledicências, e na oposição de seus inimigos. Ele dizia que seus críticos
estavam perfeitamente certos; que, por trás daquilo que seus amigos viam,
ele absolutamente não era o que parecia, e que, do ponto de vista de seus
inimigos, seu livro merecia todas as coisas duras que pudessem dizer dele e que ele próprio indubitavelmente as merecia e muito mais.
Quando conheci Walt Whitman, costumava pensar que ele vigiava a si
mesmo e não permitia que sua língua expressasse sentimentos de irritação,
antipatia, queixa é admoestação. Não me ocorreu que fosse possível que
esses estados mentais não existissem nele. Mas, após longa observação e
conversando com outros que o conheciam havia muitos anos, fiquei satisfeito
com o fato de que essa ausência ou inconsciência era inteiramente real.
Sua voz, profunda, clara e veemente, constituía boa parte, embora não
todo o charme das coisas mais simples que ele dizia - uma voz que não era
característica de qualquer nacionalidade ou dialeto em especial. Se ele dizia
(como às vezes fazia involuntariamente ao chegar à porta e olhar para fora),
“oh, que céu bonito!” ou “oh, que bela relva!”, as palavras produziam o
efeito de suave música.
Um dia ele disse, quando se falava em alguma bela paisagem e no desejo
de ir vê-la (e ele próprio era muito afeiçoado a novas paisagens): “Afinal, a
grande lição é que nenhuma vista natural em especial - nem os Alpes, nem
Niágara, nem Yosemite, nem qualquer outra - é mais grandiosa ou mais
bela do que o nascer ou o pôr do sol comuns, a terra e o céu, as árvores
comuns e a relva”. Compreendido corretamente, acredito que isto sugere o
ensinamento central de sua obra e de sua vida - isto é, que o comum é a
maior de todas as coisas; que o excepcional, em qualquer campo, não é mais
fino, melhor ou mais bonito do que o usual, e que o que realmente faz falta
não é que deveríamos possuir algo que não temos atualmente, mas que nossos
olhos deveriam ser abertos para ver e nosso coração para sentir o que todos
temos.
Ele nunca falou de maneira depreciativa de qualquer nacionalidade ou
classe de homens, ou época da história mundial, ou do feudalismo, ou contra
quaisquer profissões ou ocupações - nem mesmo contra quaisquer animais,
insetos, plantas ou objetos inanimados, nem qualquer das leis da natureza
ou dos resultados dessas leis, tais como doenças, deformidade ou morte.
Também jamais se queixou ou resmungou contra o clima, dores, doenças ou
qualquer outra coisa. Em conversa, nunca, em qualquer companhia e em
qualquer circunstância, usou de linguagem que pudesse ser considerada
indelicada (naturalmente, em seus poemas, ele usou uma linguagem que foi
tida como indelicada, mas nenhuma que de fato o fosse). Na verdade, nunca
soube que ele tivesse proferido uma palavra ou expressado um sentimento
que não pudesse ser publicado sem qualquer prejuízo para sua reputação.
Jamais praguejou; e não podia mesmo, pois, ao que eu saiba, nunca falou
com raiva e, aparentemente, nunca esteve com raiva. Nunca demonstrou
medo e não creio que jamais o tenha sentido. Sua conversa, na maior parte
em voz baixa, era sempre agradável e usualmente instrutiva. Nunca fazia
elogios, muito raramente se desculpava e muito esporadicamente usava
fórmulas comuns de civilidade, como “por favor” e “obrigado”, em geral
dando um sorriso ou acenando com a cabeça como resposta, no lugar delas.
Em minha experiência a seu respeito ele não era dado a especular sobre
questões abstratas (embora eu tenha ouvido outros dizerem que não havia
assuntos em que ele se deleitasse tanto). Nunca mexericava. Raramente falava
da vida particular das pessoas, mesmo para dizer coisas boas delas, exceto
para responder uma pergunta ou um comentário e, então, sempre dava ao
que dizia um jeito favorável à pessoa de quem se falava.
Sua conversa, falando de maneira geral, era sobre assuntos corriqueiros,
0 trabalho do dia, notícias políticas e históricas, européias ou americanas,
um pouco sobre livros e muito sobre aspectos da natureza - tais como
paisagens, as estrelas, pássaros, flores e árvores. Lia os jornais regularmente,
gostava de boas exposições e reminiscências. De qualquer forma, em geral
não falava muito. Seu jeito de ser era invariavelmente calmo e simples,
peculiar, e não podia ser completamente descrito ou transmitido.
n
Walt Whitman é o melhor, o mais perfeito exemplo que o mundo teve até
agora do Sentido Cósmico, primeiro porque ele é o homem em quem a nova
faculdade foi, provavelmente, mais perfeitamente desenvolvida, e especial­
mente porque ele é, por excelência, o homem que em tempos modernos
escreveu clara e extensamente do ponto de vista da Consciência Cósmica e
também que se referiu a seus fatos e fenômenos mais clara e cabalmente do
que qualquer outro escritor, antigo ou moderno.
Ele nos fala claramente, embora não tão completamente quanto gostaría­
mos, do momento em que alcançou a iluminação, bem como, mais para o
fim de sua vida, de seu passamento. Não que devamos supor que ele teve o
Sentido Cósmico continuamente, anos a fio, mas que este veio cada vez
menos freqüentemente à medida que a idade avançava, provavelmente
perdurou menos e menos a cada vez e diminuiu em vividez e intensidade.
Além disso, no caso de Whitman, temos meios de conhecer completamente
o homem, desde a juventude até a morte - tanto antes como depois da ilumi­
nação - e assim (melhor do que em qualquer outro caso, exceto talvez o de
Balzac) podemos comparar o homem totalmente desenvolvido com seu ego
anterior. A linha de demarcação (entre os dois Whitman) está perfeitamente
desenhada.
De um lado, o Whitman dos quarenta, escrevendo contos e ensaios - tais
como Death in a School-room, 1841; Wild Frank’s Return, id.; Bervance, or
Father and Son, id.; The Tomb Blossoms, 1842; The Last ofthe Sacred Army,
id.; The Child Ghost, a Story o f the Last Loyalist, id.; The Angel o f Tears,
id.; Revenge and Requital, 1845; A Dialogue, id; etc. - a que mesmo sua
atual e esplêndida fama não pode dar vida novamente; do outro lado, o
Whitman dos cinqüenta, escrevendo a primeira edição (em 1855) de Leaves.
Esperamos encontrar e sempre encontramos uma diferença entre os pri­
meiros escritos e os mais maduros, do mesmo homem. Que distância, por
exemplo, entre os romances de Shelley e Cenci; entre os primeiros ensaios
de Macaulay e sua história! Mas aqui há algo bem distinto destes e de casos
semelhantes. Podemos traçar uma evolução gradual de aptidão e poder, de
Zastrozzi para Epipsychidion\ âe Milton, de Macaulay, para ssü Massacre o f
Glencoe. Mas no caso de Whitman (como no de Balzac), escritos de absoluta­
mente nenhum valor foram imediatamente seguidos (e pelo menos no caso
de Whitman sem prática ou estudo) de páginas em cada uma das quais, em
letras de fogo etéreo, estão escritas as palavras VIDA ETERNA; páginas
cobertas não somente de uma obra-prima mas de sentenças vitais como não
foram escritas dez vezes na história da espécie humana. É nessa evolução
instantânea de Homem para Titã, nesse profundo mistério da consecução do
esplendor e do poder do reino dos céus, que o presente livro procura lançar
alguma luz.
E é interessante observar aqui que Whitman parece ter feito tão pouca
idéia quanto fizeram Gautama, Paulo ou Maomé, do que era que lhe estava
dando o poder mental, a elevação moral e o júbilo perene que se contam
entre as características do estado que ele alcançou e que parecem ter sido
para ele motivo de contínuo pasmo. “Vagueando espantado”, diz ele, “com
minha própria leveza e alegria”. [193:36]
Vejamos agora o que Whitman diz desse novo sentido que lhe deve ter
vindo em junho de 1853 ou 1854, na idade típica, isto é, de trinta e quatro ou
trinta e cinco. A primeira menção direta a isto está na página 15 da edição
de 1855 de Leaves [191:15], Vale dizer, na terceira página de seu primeiro
escrito depois que a nova faculdade havia chegado para ele - pois o longo
prefácio deste livro foi escrito após o corpo do livro. Os versos estão
essencialmente inalterados em todas as edições subseqüentes. Na edição atual
(1891-92), estão na página 32.
Tal como aqui apresentada, a citação é da edição de 1855, dado que é
importante chegar o mais perto possível do homem na época em que ele
escreveu as palavras. Diz ele:
Em ti acredito, minha alma... o outro Eu-Sou
a ti não se deve humilhar,
E tu ao outro não te deves humilhar.
Comigo folga na relva... solta o freio de tua garganta,
Não palavras, não música ou rima quero eu...
não costume ou sermão, nem mesmo os melhores,
Só do acalanto gosto, da cantarola de tua valvulada voz.
Penso em como deitados descansamos, tão
transparente manhã de verão;
Tua cabeça de través em meus quadris colocaste
e delicadamente para mim te voltaste,
E a camisa do osso de meu peito apartaste e com
tua língua meu desnudado coração tocaste.
E a mão estendeste até minha barba sentires, e a
mão estendeste até meus pés segurares.
Célere surdiste e à minha volta derramaste, a paz,
o júbilo e a ciência que a toda arte e a todo pensar
da terra transcendem;
E sei que a mão de Deus minha própria mão
antepassada é,
E sei que o espírito de Deus meu próprio irmão
mais velho é,
E que todos os homens que já nasceram meus
irmãos também são... e minhas irmãs e minhas
amantes as mulheres,
E que o amor, da criação a sobrequilha é. (*1)
(*1) A nova experiência deu-se em
ju n h o , provavelm ente em
1853, quando ele acabara de entrar
em seu trigésim o quinto ano de
idade. Dir-se-ia que ele a princípio
estava em dúvida quanto ao que ela
pudesse significar; depois sentiu-se
satisfeito e disse: Acredito em seus
ensinamentos. Mas embora este seja
tão divino, o outro Eu-Sou (o velho
ego) não pode ser humilhado ante
ele, nem deve ele (o novo Eu) jamais
ser suplantado pelos órgãos ou facul­
dades mais básicos. Ele continua: Fi­
ca comigo, folga comigo na relva,
instrui-me, dize-me o que queres di­
zer, o que há em ti, não te importes
com falar musicalmente ou de ma­
neira poética, ou segundo as regras,
ou mesmo usando a melhor lingua­
gem, mas usa apenas tuas próprias
palavras à tu a própria m aneira.
Então ele volta a falar da exata ocorrência. A iluminação (ou o que possa ter sido) veio-lhe numa
manhã de junho e tomou (embora gentilmente) absoluta posse dele, pelo menos para o momento.
Daí em diante, diz ele, sua vida recebeu sua inspiração do recém-chegado, do novo Eu, cuja língua,
como ele o expressa, tocou seu desnudado coração.
Sua vida exterior também se tomou sujeita aos ditames do novo Eu - segurou seus pés. Por
fim ele fala concisamente da mudança ocorrida em sua mente e em seu coração pelo nascimento, em
seu interior, da nova faculdade. Diz que se sentiu imediatamente cheio da paz, da alegria e do
conhecimento que transcendem toda arte e todo raciocínio da Terra. Ele atingiu o ponto de vista do
qual somente pode um ser humano ver algo de Deus (“o qual somente”, diz Balzac, “pode explicar
Deus”; o ponto que, a menos que ele o alcance, “não pode”, diz Jesus, “ver o reino de Deus”). E ele
resume o relato afirmando que Deus é seu amigo íntimo, que todos os homens e mulheres já nascidos
são seus irmãos, suas irmãs e amantes, e que toda a criação está construída sobre o amor e assenta
no amor.
A isto acrescentem-se agora os quatro versos seguintes [192:207], escritos
em outro momento, mas certamente referindo-se à mesma experiência ou a
uma experiência semelhante:
Como num desmaio, num instante,
Um outro sol, inefável, a mim totalmente
deslumbra,
E todos os orbes que eu conhecia, e outros mais
brilhantes e desconhecidos;
Um instante da futura terra, a terra do Céu. (*2)
(*2) Assim, Dante: “Dia pareceu ser
acrescentado ao dia, como se
aquele que pode tivesse adornado os
céus com um outro sol”.
Ao mesmo tempo e quanto à mesma situação, considere-se esta passa­
gem:
Não te veio nunca uma hora,
Um súbito, divino lampejo, todas essas bolhas, formas, fortunas despenhando,
rompendo?
Esses ávidos intuitos de atividades - livros, política, artes, amores,
A um absoluto nada precipitando? [193:218]
Com o propósito, agora, de ajudar a trazer à mente do leitor mais diligente
(pois qualquer outra pessoa pouco se interessará por este livro) uma indicação,
uma sugestão (pois o que mais é possível dar aqui?) do que seja essa Cons­
ciência Cósmica, talvez seja bom citar, de um dos trabalhos em prosa de
Whitman, certas passagens que parecem lançar luz sobre o assunto. Falando
das pessoas, diz ele: “Só a mente rara, cósmica, artística, acesa com o infinito,
confronta suas múltiplas e oceânicas qualidades” [193:215]. E: “Há ainda,
para quem for elegível entre nós, a visão profética, a alegria de ser lançado
no bravo turbilhão destes tempos - a proclamação e a senda, obedientes,
humildemente reverentes para com a voz, o gesto do deus, ou espírito santo,
que outros não vêem, não ouvem” [195:227], E mais uma vez : “A idéia de
identidade... Milagre dos milagres, indizível, os sonhos mais espirituais e
vagos da Terra, não obstante o mais árduo fato básico e a única entrada para
todos os fatos. Nessas horas devotas, em meio às significativas maravilhas
do céu e da terra (significativas somente devido ao Eu no centro), credos,
convenções, acabam caindo e já não contam ante esta simples idéia. Sob a
luminosidade da visão real, somente ela toma posse, adquire valor. Tal como
o sombrio anão da fábula, uma vez liberada e contemplada, expande-se por
toda a terra e se espalha até a abóbada do céu” [195:229], E outra ainda: “Na
verdade eu diria que só na perfeita pureza e solidão da individualidade pode
a espiritualidade da religião positivamente surgir. Somente aqui e nesses
termos haverá meditação, êxtase devoto, vôo altaneiro. Somente aqui haverá
comunhão com os mistérios, com os eternos problemas, de ondel para onde?
A sós, com a identidade e a disposição - e a alma emerge e todas as afirmações,
as igrejas, os sermões se desvanecem como vapores. A sós, em silente
pensamento e reverência e aspiração - e então a consciência interior, qual
inscrição não vista até então, em tinta mágica seus maravilhosos versos irradia
para o sentido. Bíblias podem conter e sacerdotes explicar, mas cabe
exclusivamente à operação silenciosa do Eu isolado entrar no puro éter da
veneração, chegar aos níveis divinos e entrar em comunhão com o impro-
nunciável” [195:233]. A próxima passagem parece profetizar a espécie vin­
doura: “Uma espécie nascida e criada adequadamente, crescendo em con­
dições corretas de harmonia fora e dentro de casa, de atividade e desenvol­
vimento, provavelmente, a partir dessas condições e nelas mesmas, acharia
suficiente meramente viver - e, em suas relações com o céu, o ar, a água, as
árvores, etc., e com os incontáveis espetáculos comuns, e no fato da própria
vida, descobriria e alcançaria felicidade - com o Ser inundado noite e dia de
sadio êxtase, excedendo todos os prazeres que a riqueza, a diversão e mesmo
o gratificado intelecto, a erudição, ou a consciência da arte podem propor­
cionar” [195:249], E, finalmente, a melhor de todas as passagens: “Vede! a
Natureza (o único poema completo, verdadeiro), existindo calmamente no
divino esquema, tudo contendo, contente, despreocupada das censuras do
dia ou desses infindáveis e prolixos tagarelas. E vede! à consciência da alma,
a identidade permanente, a idéia - esse algo diante do qual a grandeza mesmo
da Democracia, da arte, da literatura, etc., vai se desvanecendo, torna-se
parcial, mensurável - algo que satisfaz plenamente (ao passo que essas outras
coisas não o fazem). Aquele algo é o Todo e a idéia do Todo, com a conco­
mitante idéia de eternidade, para sempre navegando o Espaço, visitando
todas as regiões, como um navio no mar. E vede ainda! as pulsações em toda
a matéria, em todo o espírito, para sempre vibrando - os eternos batimentos,
sístole e diástole da vida eternamente nas coisas - de que sinto e sei que a
morte não é o fim como pensávamos, mas antes o verdadeiro início - e que
nada jamais é perdido ou pode ser perdido, nem mesmo morrer, nem a alma
nem a matéria” [195:253]. Aqui apresentamos enfaticamente a consciência
do Cosmo, sua vida e sua eternidade - e a consciência da igual grandiosidade
e eternidade da alma individual, uma equilibrando (igualando-se a) a outra.
Ou seja, temos aqui a expressão (tanto quanto talvez ela possa ser expressada)
do que é chamado, neste livro de Consciência Cósmica.
Aqueles que foram dotados de Consciência Cósmica a esse ponto foram
quase em todos os casos arrebatados e subjugados por ela; encararam-na muitos deles - como uma faculdade super-humana, mais ou menos
sobrenatural, separando-os dos outros homens. Quase sempre, se não
efetivamente sempre, procuraram ajudar os seres humanos, pois seu senso
moral foi inevitavelmente purificado e elevado a um grau extraordinário
pelo advento do novo sentido; mas não se deram conta da necessidade nem
provavelmente sentiram a possibilidade de usar seu discernimento e seu poder
excepcionais de qualquer maneira sistemática. Isto é, O HOMEM não
dominou, não se apossou, não usou a nova faculdade, mas (ao contrário) foi
altamente ou totalmente dominado e usado por ela. Este foi claramente o
caso de Paulo, que foi levado pela grandiosidade e a glória do novo sentido
a subestimar a divindade realmente igual de suas faculdades humanas
anteriores. As mesmas palavras, quase com a mesma veracidade poderiam
ser aplicadas ao caso de Gautama. Os males que a humanidade tem sofrido
e está hoje sofrendo simplesmente porque estes dois homens assumiram esta
visão errônea - a saber, os males que nos têm acometido devido ao desprezo
à “carne” - isto é, devido ao desprezo ao chamado “homem natural ” - os
males, em suma, que provieram da doutrina de que uma parte do ser humano
é boa e deve ser cultivada, enquanto uma outra parte é má e (se possível)
deve ser extirpada, ou, se isto não é possível, encoberta e escondida - os
males que nos advieram dessa compreensão errônea são inteiramente
incalculáveis e às vezes quase nos tentariam a esquecer mesmo os benefícios,
maiores ainda, que foram outorgados à espécie humana pelos homens de
quem se originaram os males que vêm de ser especificados. Não que Gautama
e Paulo sejam de qualquer modo inteiramente responsáveis pelo monasticismo
e pelo ascetismo de seus seguidores. É indubitavelmente verdadeiro, como
nos diz Lecky [14:108], que esse movimento já havia começado. Mas ninguém
pode ou há de negar que a influência destes dois homens, ao intensificarem
e recomendarem a paixão pela renúncia ao prazer e pela chamada pureza
(em outras palavras, ao deixarem de lado as coisas da vida autoconsciente,
em favor das coisas da vida Cosmicamente Consciente) foi incalculavelmente
grande.
Os males em questão foram claramente percebidos, lucidamente retratados
e referidos à sua fonte predominante nestes grandes instrutores, por muitos
escritores. Dentre eles, Kidd [108:125f] indicou com grande força e veracidade
o imenso impulso para a negação do ego que marcou os primeiros séculos do
cristianismo; mostrou que esse impulso, embora “irracional ”, tinha um
significado mais profundo que a razão; que, para que a espécie humana
avance, esses instintos anti-sociais são uma necessidade (embora não seja
necessário nem bom que tenham muitas vezes a força que tinham nos referidos
séculos); que eles têm seu lugar no esquema, assim como seu complemento,
os instintos sociais. O que Kidd não percebe é de onde os grandes instrutores
extraíram o discernimento de que nasceu a convicção que os moveu nesse
sentido e, através deles, ao mundo.
Esse antagonismo entre a vida superior e a inferior, entre a vida para o
ego e a vida para os outros, entre a vida da carne e a vida do espírito, entre a
vida do indivíduo e a vida da espécie, entre a vida autoconsciente e a vida
Cosmicamente Consciente, é talvez o fato supremo do mundo moderno dando-lhe movimento e estabilidade, assim como as forças opostas, a
centrífuga e a centrípeta, dão movimento e estabilidade no campo do universo
sideral. E deste ponto de vista está claro porque deveria ser que: Le sort de
grands hommes est de passer tour à tour pour des fous et pour des sages. La
gloire est d’etre un de ceux que choisit successivement l’humanité par les
aimer et les haïr [138:182].*
Pode ser que Walt Whitman seja o primeiro homem que, tendo
Consciência Cósmica muito desenvolvida, tenha-se deliberadamente disposto
contra o ser dominado por ela, determinando-se, ao contrário, a sujeitá-la e
tomá-la uma serva, juntamente com a consciência simples, a autoconsciência
e o restante do EGO individual conjunto. Ele percebeu o que nem Gautama
nem Paulo perceberam e que Jesus percebeu (embora não tão claramente
como ele): que, embora essa faculdade tenha verdadeiramente caráter divino,
não é mais sobrenatural ou preternatural do que a visão, a audição, o paladar,
o tato, ou qualquer outra e, por conseguinte, ele se recusou a lhe dar uma
supremacia ilimitada e não permitia que ela tiranizasse o resto. Ele crê nela,
mas diz que o outro ego, o velho ego, não se deve humilhar ante o novo; nem
deve o novo ser usurpado ou limitado pelo velho; procura fazer com que eles
convivam como colaboradores amistosos. E pode ser dito aqui que quem
quer que não compreenda esta última oração jamais compreenderá plenamente
Leaves.
A referência seguinte à Consciência Cósmica a ser aqui mencionada,
feita por Walt Whitman, está num poema intitulado Prayer of Columbus
[“Prece de Colombo”] [193:323], Cabem algumas palavras sobre a sua
história. Ela foi escrita por volta de 1874 -1875, quando a condição do pobre,
doente, esquecido explorador espiritual era admiravelmente semelhante à
desse heróico explorador geográfico, naufragado na ilha das Antilhas em
1503, lugar e época em que se supõe que a prece foi feita. Walt Whitman num truque muito comum nele - usou essa consonância de circunstância
para colocar suas próprias palavras (ostensivamente) na boca do outro homem.
Naturalmente, a prece é na realidade de Walt Whitman e todas as alusões
que nela constam são à sua própria vida, ao seu trabalho, a suas venturas.
Nessa prece ele se refere específica e incisivamente ao nosso tema atual.
Falando a Deus, diz ele:
*N.T. -
“O destino dos grandes homens é passarem alternadamente por tolos e por
sábios. A glória está em ser um desses que a humanidade escolh e
sucessivamente para amar ou odiar”.
As solenes e visionárias meditações de minha humanidade conheces.
Oh, certo estou de que de Ti vieram,
O impulso, o ardor, a inconquistável vontade,
O poderoso, sentido, interior comando, mais forte que palavras,
Uma mensagem dos Céus, a mim até no sono murmurando,
Tudo isso me impulsionou.
Um esforço mais, meu altar esta árida areia;
Que Tu, ó Deus, minha vida iluminaste,
Com um raio de luz, firme, inefável, por Ti outorgado,
Indizível, rara luz, iluminando a própria luz,
Além de todos os signos, descrições, idiomas;
Por isto, ó Deus, que minha última palavra seja, aqui de joelhos,
Velho, pobre e paralisado, a Ti agradeço.
Minhas mãos, meus membros, sem nervos ficaram,
Torturado, embaraçado sente-se meu cérebro,
Parta a velha carcaça, não partirei eu,
A Ti me apegarei, ó Deus, embora me fustiguem as ondas,
A Ti, a Ti pelo menos conheço.
Quando escreveu estes versos, Walt Whitman tinha cinqüenta e cinco ou
cinqüenta e seis anos de idade. Por mais de vinte anos ele tem sido guiado
por essa (aparente) iluminação sobrenatural. Tem se submetido voluntaria­
mente a ela e obedecido suas ordens, como ordens do Próprio Deus.
Ele “amou a terra, o Sol, os animais, desprezou as riquezas, deu esmolas
a todos que pediram, defendeu os estúpidos e loucos, destinou sua renda e
seu trabalho a outrem” [193:273], como ordenado pela voz divina e como
compelido pelo impulso divino e, agora, como recompensa, está pobre, doente,
paralisado, desprezado, neglicenciado, morrendo. Sua mensagem ao ser
humano, a cuja transmissão dedicou sua vida, a qual foi mais querida aos
seus olhos (em favor do homem), do que esposa, filhos, a própria vida, não é
lida ou é ridicularizada e escarnecida. Que dirá ele a Deus? Diz ele que Deus
0 conhece em todos os pormenores e que está disposto a se entregar nas
mãos de Deus. Diz que não conhece os homens nem seu próprio trabalho, e
assim não julga o que os homens possam fazer com ou, digamos, de Leaves.
Mas diz também que efetivamente conhece Deus e que a Ele se apegará,
ainda que as ondas o fustiguem. E quanto à inspiração, à iluminação, ao
poderoso, sentido, interior comando, mais forte que as palavras? Ele está
seguro de que vêm de Deus. Não tem dúvida. Não pode haver dúvida a este
respeito.
Ele prossegue, falando do raio de luz, firme, inefável, com que Deus
iluminou sua vida, e diz que é raro, indizível, além de todos os signos,
descrições e idiomas. E isto (que seja bem lembrado) não é um falar de
entusiasmo febril, mas de fato frio, duro, de um velho decrépito em seu leito
de morte (como ele supôs).
Este reconhecimento que Whitman faz da bondade de Deus lembra forço­
samente a gratidão de Bacon a Deus por seus “dons e graças” e as circunstân­
cias deste último no verão de 1621 (tanto exterior como interiormente) eram
tão paralelas quanto possível às de Whitman em 1875.
A próxima alusão direta à Consciência Cósmica a ser considerada está
incorporada num poema intitulado Now Precedent Songs, Farewell [“Agora,
Cantos Precedentes, Adeus”] [193:403], escrito em junho de 1888, quando
ele novamente, e com boa razão, supôs que fosse morrer. O poema foi escrito
como um apressado adeus a Leaves. No final ele assim se refere a seus cantos
e sua origem:
Ó céu ! que ostentoso e estremecido, infindável cortejo de tudo!comparado deveras
àquilo!
Que lamentável farrapo, mesmo no melhor de tudo!
Diz ele: Comparados com o lampejo, a iluminação divina em que tiveram
origem, como seus versos são pobres e sem valor. E deve-se ter em mente
que Whitman nunca teve má opinião de Leaves. Ele costumava dizer (de
maneira meio jocosa mas de qualquer forma querendo dizer justamente isso)
que nenhum de seus companheiros (ou seja, de seus admiradores incondicio­
nais), nem mesmo O’Conner, Burroughs ou Bucke, tinham opinião tão alta
a respeito desses versos quanto a dele próprio. Mas, mesmo pensando dessa
maneira a respeito deles, podia ainda exclamar que eram pobres quando
comparados com a iluminação de que haviam surgido. Mas ele não morreu
nessa ocasião. Recuperou-se e novamente, assim parece, de vez em quando a
visão apareceu e a voz murmurou. Sem dúvida a visão foi enfraquecendo e a
voz foi se tomando menos distinta à medida que o tempo foi passando e a
debilidade da idade e a doença foram tomando conta dele. Por fim, em 1891,
na idade de setenta e dois, o “Esplendor Bramânico” partiu e nos versos
místicos, To the Sunset Breeze [“Para a Brisa do Ocaso”] [193:414], que os
Harpers devolveram a ele como “uma mera improvisação”, ele assim se
despede desse “Esplendor”:
Tens, Ó Natureza! elementos! voz ao meu coração acima de tudo o mais e este a eles pertence...
Es espiritual, Divina, em especial do meu sentido conhecida...
Concede dizer-me, aqui e agora, aquilo que a palavra nunca disse e não
pode dizer,
Não és tu universal, destilação do concreto?
Assim como um homem dotado de Consciência Cósmica vê a ordem
Cósmica e, como diz Paulo, que “todas as coisas contribuem juntamente
para o bem” * [19:8:28], assim cada homem desses é o que é chamado “um
Otimista” e pode ser livremente afirmado que o conhecimento da benevolência
do universo para com o ser humano é uma marca distintiva da categoria de
homens considerada neste livro. Que Walt Whitman tenha esta marca, é
necessário dizê-lo somente àqueles que não leram o que ele escreveu. Muitas
e muitas vezes, em palavras que sempre variam, ele diz e repete: “E eu digo
que não existe de fato nenhum mal” [193:22]. “Clara e doce é minha alma,
e claro e doce é tudo que não seja minha alma” [193:31], “Seria sorte o ter
nascido?” pergunta ele; e responde: “É igualmente afortunado morrer”
[193:34],
Assim Dante declara concluindo que, visto pela luz do Sentido Cósmico,
tudo é perfeito, inclusive aquilo que, estando fora dessa luz, é (ou parece)
imperfeito [72:213],
Não se supõe que no caso de qualquer homem nascido até agora tenha o
Sentido Cósmico estado constantemente presente durante anos, meses, ou
mesmo semanas - provavelmente nem mesmo dias ou, dificilmente, horas.
Em muitos casos ele aparece somente uma vez e por alguns momentos apenas,
mas esse lampejo é suficiente para iluminar (mais ou menos intensamente)
todos os anos subseqüentes da vida. Nos casos maiores pode se fazer presente
durante muitos minutos por vez e voltar a intervalos de semanas, meses ou
anos. Entre estes extremos parece haver uma vasta escala de casos maiores e
menores.
Mais de uma vez foi aqui afirmado que, enquanto a Consciência Cósmica
está efetivamente presente, há uma profunda mudança na aparência da pessoa.
•Nesta passagem, Paulo parece limitar a afirmação a “aqueles que amam a D eus”
(aqueles que têm Consciência Cósmica), mas o que ele realmente quer dizer é sem
dúvida: Todas as coisas trabalham juntamente paia o bem; mas isto na realidade só
é visto e conhecido por aqueles que tenham recebido o dom do Sentido Cósmico.
Ao se pensar em como o semblante fica iluminado por uma grande alegria
comum, pode-se perceber que essa mudança de que se falou deve acontecer.
Não somente isto, mas é de conhecimento pessoal do autor deste livro que
(seguramente, em alguns casos) a pessoa não retorna completamente (pelo
menos de modo permanente) à sua antiga expressão e aparência, por meses
e mesmo anos, após um período de iluminação.
Isto equivale a dizer que o semblante de um homem que teve períodos
ocasionais de iluminação estendendo-se ao longo de anos teria habitualmente
uma expressão mais ou menos exaltada e nobre - e isto é verdade.
É contudo enquanto a Consciência Cósmica está efetivamente presente
que a mudança no aspecto da pessoa é maior. O trecho que segue parece ser
uma descrição dessa mudança. Ou a Consciência Cósmica estava efetivamente
presente na hora mencionada ou estivera presente imediatamente antes disso.
O relato é feito por uma testemunha ocular - Miss Helen Price - uma senhora
bem conhecida deste autor:
Certa noite, em 1866, quando Walt Whitman estava conosco em Nova York, a
campainha para o chá fora tocada havia dez minutos ou mais quando ele desceu de
seu quarto e todos nos reunimos em torno da mesa. Observei-o quando ele entrou na
sala; parecia haver uma cintilação e exultação peculiar ao seu redor, um júbilo quase
irreprimível, que brilhava do seu rosto e parecia penetrar todo o seu corpo. Isto foi
particularmente notável, pois sua disposição comum era de uma serenidade quieta
mas cheia de alegria. Eu sabia que ele estivera trabalhando numa nova edição de seu
livro e esperava que, se ele tivesse oportunidade, dissesse-nos algo que nos fizesse
compartilhar o segredo de sua misteriosa alegria. Infelizmente, a maioria dos que
estavam à mesa estava ocupada com algum assunto de conversa; a cada pausa eu
esperava ansiosamente que ele falasse; mas, não; uma outra pessoa começava
novamente, até que eu fiquei quase louca de impaciência e irritação. Ele parecia
escutar e até chegou a rir com algumas das observações que foram feitas, mas não
disse uma única palavra durante a refeição; e seu rosto apresentava ainda aquele
brilho e deleite especial, como se ele tivesse compartilhado algum elixir divino. Sua
expressão era tão extraordinária que eu poderia ter duvidado de minha própria
observação, não tivesse isto sido notado por outra pessoa além de mim mesma
[38:321],
m
SUMÁRIO
. A luz subjetiva apareceu fortemente a Whitman.
b. A elevação moral e
C. A iluminação intelectual foram extremas, e em seu caso se destacam muito
claramente, pois conhecemos o homem tão bem, tanto antes como depois
do advento do Sentido Cósmico.
d. Em nenhum outro homem que já viveu o sentido da vida eterna foi tão
absoluto.
e. O medo da morte era ausente. Nem na saúde nem na doença ele mostrou
qualquer sinal dele e há toda razão para se crer que não o sentia.
f. Ele não tinha o menor senso de pecado. Isto não deve ser entendido no
sentido de que ele se achasse perfeito. Whitman percebia sua própria
grandeza tão clara e plenamente quanto o faziam seus admiradores.
Também percebia como estava imensuravelmente abaixo do ideal que
constantemente colocava ante si próprio.
g. A mudança do homem autoconsciente para o Cosmicamente Consciente
foi instantânea - ocorrendo a certa hora de certo dia.
h. Ocorreu na idade característica e na época característica do ano.
i. A aparência alterada do homem, enquanto se encontrava no estado
Cosmicamente Consciente, foi vista e notada.
EDWARD CARPENTER
I
Nasceu em 29 de agosto de 1844, em Brighton, onde passou sua primeira
juventude. Seu pai viera de Comwall. Freqüentou alguns anos o Brighton
College e em 1864 ingressou no Trinity Hall, Cambridge, onde obteve uma
bolsa de estudos; graduou-se em 1868 em décimo lugar e, mais tarde, foi
eleito para o conselho da escola. No devido tempo foi ordenado e por alguns
anos exerceu as funções de cura da Igreja de St. Edward, em Cambridge, da
qual era vigário na época Frederic Dennison Maurice. Nunca acreditou
profundamente na exatidão histórica da Bíblia. Seu pai era um Broad
Churchman e o criou de modo que pudesse pensar por si próprio. Quando
ainda muito jovem, decidiu que tomaria ordens e apegou-se a isto
principalmente em função de uma idéia de que a igreja poderia ser ampliada
a partir de dentro. Mas quando estava razoavelmente dentro dela verificou
que isso levaria um longo e precioso tempo. Em suma, logo se sentiu tão
constrangido que uma total ruptura com tudo se tornou absolutamente
necessária. Esteve ordenado desde 1869 até 1874.
Vamos encontrá-lo imediatamente depois trabalhando com sucesso
reconhecido em um novo campo - o da extensão universitária. Foi na época,
de 1874 a 1880, bastante conhecido e estimado em York, Nottingham,
Sheffield e arredores.
Quase na mesma época começou a estudar questões sociais profundas e
se convenceu de que a sociedade tinha uma base errada e caminhava numa
direção errada.
Foi no começo de 1881, conforme ele nos diz, aos trinta e sete anos, que
Carpenter entrou em Consciência Cósmica. O indício do fato é perfeitamente
claro, mas o autor deste livro não tem condição de dar detalhes da iluminação
neste caso, além dos que são dados a seguir. Como resultado direto do advento
do Sentido Cósmico ele praticamente renunciou a sua posição social e se
tomou um operário; isto é, obteve alguns acres de terra a não muitas milhas
de Dronfield, em Derbyshire, construiu ali uma pequena casa e lá viveu com
a família de um trabalhador, como um deles. Trajando-se de veludo cotelê
conforme os costumes da região, pegou sua enxada e trabalhou firmemente
com os outros. Pareceu-lhe que as maneiras e os costumes dos ricos eram
menos nobres do que os dos pobres; que a alma e a vida dos ricos eram
menos nobres. Preferiu viver com os relativamente pobres e ser ele próprio
relativamente pobre; neste particular, não seguindo o exemplo deles mas
participando no instinto de Gautama, Jesus, Paulo, Las Casas e Whitman.
Conservou seu piano e, depois de horas de trabalho manual, refrigerava-se
com uma sonata de Beethoven, pois era músico realizado e independente. É
desnecessário dizer que ele era um socialista declarado e avançado - talvez
um anarquista. Era um com o povo, o povo “comum” (tomado tão numeroso,
tão comum, disse Lincoln, porque Deus os ama e gosta de ver muitos deles).
E infantil dizer (como alguns pensaram e disseram) que os homens desse
quilate vivem como pobres, com os pobres, com a finalidade de influenciar a
estes e como um exemplo para os ricos. Eles simplesmente vivem como
pobres, com os pobres, como trabalhadores entre trabalhadores, porque
preferem a vida, as maneiras, os hábitos, o ambiente, a personalidade destes
à vida, às maneiras, aos hábitos, ao ambiente e à personalidade dos ricos.
Ocasionalmente, Carpenter entrava na chamada “boa sociedade” (onde tinha
relações estreitas e queridas), mas não permanecia nela por muito tempo.
Ele amava, acima de todas as coisas, nele e nos outros, honestidade,
imparcialidade, sinceridade e simplicidade, e dizia que encontrava mais estas
coisas nos trabalhadores pobres, comuns, do que nos homens e mulheres
ricos que constituíam a “sociedade”.
Em 1873, Carpenter publicou Narcissus and Other Poems [“Narciso e
Outros Poemas”] e, em 1875, Moses: A Drama [“Moisés: Um Drama”].
Começou a ler Whitman em 1869 e, daí em diante, leu Leaves continuamente
por dez anos. Se Carpenter teria alcançado a Consciência Cósmica se jamais
tivesse lido Whitman não pode talvez ser dito, por ele ou por qualquer outra
pessoa, mas parece haver pouca dúvida de que o estudo de Leaves tenha sido
um fator material que o levou à iluminação. Ele não é o único homem que
foi impelido por esse mesmo fator e é provável que, no futuro do mundo,
muitos milhares de homens e mulheres sejam de maneira semelhante ajudados
para a mesma meta. Pois (e nisto está a razão de ser do presente livro) além
da necessária hereditariedade e da constituição adequada (física e mental), a
associação com as mentes daqueles que passaram as fronteiras para o
“Especialismo” é de suprema importância. Ele começou a escrever Towards
Democracy [“Rumo à Democracia”] - o livro em que tentou incorporar os
ensinamentos do Sentido Cósmico - imediatamente após sua iluminação. A
primeira edição, pequena e fina, foi publicada em 1883; a segunda, bastante
aumentada, em 1885; a terceira, ampliada para um livro volumoso e vistoso,
em 1892; e a quarta, em 1896. Não há melhor livro para se obter uma idéia
do que seja a Consciência Cósmica e daquilo em que ela difere da
autoconsciência. Além de Towards Democracy, Carpenter publicou, em 1887,
England’s Ideal [“O Ideal da Inglaterra”]; em 1889, Civilization, its Cause
and Cure [“Civilização, sua Causa e Cura”] e, em 1893, From Adam ’s Peak
to Elephanta [“De Adam’s Peak a Elefanta”]; todas estas obras são
extremamente merecedoras da melhor atenção.
II
Numa carta ao autor deste livro, que pedira certos detalhes a respeito do
novo sentido, ele diz:
Realmente não creio que lhe possa dizer qualquer coisa sem falsear e obscurecer
o assunto. Fiz o melhor que pude ao descrevê-lo em Towards Democracy. Não tenho
nenhuma experiência de luz física neste particular. A percepção parece ser tal que
todos os sentidos se unem num só sentido. Em que você se toma o objeto. Mas isto
é ininteligível, mentalmente falando. Não
„ . . IT . . . . .
. ,
(*1) No Vagasaneyi-Sammta-Upanishad ha o
.
i___
creio que
o
assunto
possa
ainda
ser
•
. __
M
r
seguinte verso: Quando, para um homem
definido, mas não tenho conhecimento de qllc compreende, o Eu se tornou todas as coisas,
que haja qualquer problema em escrever que pesar, que problema pode haver para ele que
a seu respeito. (*1)
já contemplou aquela unidade”? [150:312]
Em outro lugar, ele tem a seguinte passagem, clara e explícita, sobre o
assunto:
A despeito, então, da prevalência da ciência indutiva e do fato de que os pagãos
tilo furiosamente esbravejam em sua crença nela, proponhamos que há no ser humano
uma consciência divina assim como uma consciência inferior. Pois como vimos que
o sentido do paladar pode passar da condição de uma mera coisa localizada na ponta
da língua para impregnar e se tomar sinônimo da saúde de todo o corpo; ou como o
azul do céu pode ser para uma pessoa uma mera impressão superficial de cor e para
outra a inspiração de um poema ou um quadro e, para uma terceira, como o árabe do
deserto, “ébrio de Deus”, uma presença viva como o antigo Dyaus ou Zeus - assim,
nfio poderá o todo da consciência humana gradualmente se elevar de uma mera
oonsciência local e temporária para uma consciência divina e universal? Há em todo
Wr humano uma consciência local, ligada ao seu corpo exterior; isto nós sabemos.
NSo haverá também em cada ser humano a construção de um a consciência universal?
Que há em nós fases de consciência que transcendem o limite dos sentidos físicos é
uma questão de experiência diária; que percebemos e conhecemos coisas que não
nos são trazidas pelos nossos olhos físicos nem são ouvidas pelos nossos ouvidos
físicos, é certo; que surgem em nós ondas de consciência partindo dos que nos cercam
- das pessoas, da espécie humana a que pertencemos - é também certo. Não poderão
então existir em nós as potencialidades de uma percepção e de um conhecimento
que não sejam relativos a este corpo que está aqui e agora, mas que sejam válidos
para todo o tempo e em todas as partes? Não existirá na verdade, como já sugerimos,
um a iluminação interior, da qual o que cham am os de luz no m undo exterior seja
expressão e m anifestação parciais, pela qual possamos enfim ver as coisas como
elas são, contemplando toda a criação - os animais, os anjos, as plantas, as figuras
de nossos amigos e todos os graus e raças da espécie humana, em seu verdadeiro ser
e ordem - não por qualquer ato local de percepção mas por uma presença e intuição
cósmicas, identificando-nos com aquilo que vemos? Não existirá um sentido aperfei­
çoado de audição - como o das estrelas da manhã cantando juntas - um a compreensão
das palavras que são proferidas por todo o universo, o sentido oculto de todas as
coisas, a palavra que é a própria criação - um sentido profundo e penetrante em
tudo, do qual nosso sentido comum de som é apenas o primeiro noviciado e iniciação?
Não nos tomamos conscientes de um sentido interior de saúde e santidade - tradução
e produção final do sentido exterior do paladar - que tem o poder de determinar para
nós de maneira absoluta e sem qualquer dificuldade, sem discussão e sem negação,
o que é bom e apropriado para ser feito ou sofrido em cada caso que possa surgir? Se
há tais poderes no ser humano, então, realmente, um a ciência exata é possível. Sem
isto, existe som ente um a ciência temporária e fantasma. “ Seja o que for que seja
conhecido por nós, por consciência (direta)” , diz Mills em sua Logic [“Lógica”], “é
conhecido por nós sem possibilidade de contestação” . O que é conhecido por nossa
consciência local e temporária é conhecido para o momento além da possibilidade
de contestação; o que é conhecido pela nossa consciência permanente e universal é
perm anentem ente conhecido além da possibilidade de contestação [57:97-8].
Num livro posterior, Carpenter tem um capítulo, Consciousness Without
Thought [56:153] [“Consciência sem Pensamento”], escrito expressamente
para dar ao não-iniciado uma idéia do que se quer dizer com as palavras
usadas como título do presente livro. Segue-se aqui o capítulo inteiro. Aqueles
que se interessam pelo assunto fariam bem em ler o próprio livro, pois ele
contém outros capítulos que são de importância praticamente igual. O capítulo
começa:
A questão é: Que é essa experiência? Ou melhor - dado que um a experiência só
pode ser realmente conhecida de um a pessoa que a vivência - podemos perguntar:
qual é a natureza dessa experiência? E, ao tentar indicar um a resposta de alguma
espécie para esta pergunta, sinto um a considerável desconfiança, apenas pela própria
razão (entre outras) já mencionada - isto é, de que é tão difícil ou impossível uma
pessoa fazer um relato verdadeiro de um a experiência que tenha aoonteádo a outra
pessoa.
Se eu pudesse passar as palavras exatas do m estre, sem nenhum viés ou
preconceito derivado de mim mesmo ou de um amigo intérprete, o caso poderia ser
diferente; mas isto não posso pretender fazer; e, se pudesse, a forma científica do
velho mundo em que seus pensamentos foram lançados provavelmente só mostraria
ser um obstáculo e um a fonte de confusão, ao invés de ajuda, para o leitor. Com
efeito, no caso dos livros sagrados, onde temos um a boa quantidade de informação
acessível e com autoridade, os críticos ocidentais, embora concordando em maioria
em que há algum a experiência subjacente, lam entavelmente não estão de acordo
entre si quanto ao que possa ser essa experiência.
Por estas razões, prefiro não tentar ou pretender dar o ensinamento exato, sem
preconceito, dos Gurus da índia ou de suas experiências, mas apenas indicar, até
onde eu possa, com minhas próprias palavras e na forma moderna de pensamento, o
que considero ser a direção em que devemos procurar esse conhecimento antiquíssimo
que tem tido um a influência tão estupenda no Oriente e que realmente é ainda a
marca principal de sua diferença do Ocidente.
M as primeiro devo me guardar contra um erro que provavelmente pode surgir. É
muito fácil presumir e muito freqüentemente presumido, em qualquer caso em que
uma pessoa seja tida como possuidora de uma faculdade incomum, que essa pessoa
seja de imediato elevada acima de nossa esfera para uma região sobrenatural e possua
toda e qualquer faculdade dessa região. Se, por exemplo, ela é ou se supõe que seja
clarividente, presum e-se que tudo é ou deva ser sabido por ela; ou, se a pessoa
demonstrou o que parece um poder milagroso em qualquer momento ou em qualquer
caso, é questionado, à guisa de descrédito, por que ela não m ostrou um poder
semelhante em outros momentos e em outros casos. É necessário nos precavermos
contra todas essas generalizações precipitadas. Se há uma forma de consciência que
pode ser alcançada pelo ser hum ano, superior àquela que ele pode em geral dizer
que tem atualmente, é provável - não, é certo - que ela está evoluindo e irá evoluir
apenas lentam ente e com m uitos deslizes e pausas hesitantes pelo caminho. N o
passado remoto do ser humano e dos animais, a consciência da sensação e a consciência
do ego foram sucessivamente evoluídas - cada um destes poderosos crescimentos
com inúm eros ramos principais e secundários espalhando-se continuadamente. Em
algum ponto nesta vasta experiência um novo crescim ento, um a nova form a de
consciência, bem poderia ter parecido milagrosa. Que poderia ser mais maravilhoso
do que a primeira revelação do sentido da visão, que poderia ser mais inconcebível
para aqueles que não a tivessem vivenciado, e que poderia ser mais certo do que o
fato de que o primeiro uso desta faculdade deve ter sido carregado de desilusão e
erro? N o entanto deve haver um a visão interior que transcende a visão física, assim
como esta transcende o tato. E mais que provável que nos nascimentos secretos do
tempo oculte-se um a consciência que não é a consciência da sensação nem a
consciência do ego - ou pelo menos que as inclui e ultrapassa inteiramente - uma
consciência em que o contraste entre o ego e o mundo exterior, e a distinção entre
sujeito e objeto, desaparecem. A parte do mundo a que essa consciência nos admite
(chamêmo-la de supermundana ou qualquer outra coisa que queiramos) provavelmente
é pelo m enos tão vasta e complexa como a parte que conhecem os e, o progresso
nessa região, pelo menos igualmente lento, tentativo e vário, laborioso, descontínuo
e incerto. N ão há salto súbito do átrio posterior para o Olimpo; e as rotas de um para
o outro, quando encontradas, são longas e desnorteadoras em sua variedade.
E quanto àqueles que efetivam ente atingem algum a parte dessa região, não
devemos supor que se tom em de imediato semideuses ou infalíveis. N a realidade,
em m uitos casos a própria novidade e a estranheza da experiência dão origem a
seqüências fantasmagóricas de especulação ilusória. Embora devêssemos esperar e
embora seja sem dúvida verdadeiro no todo que aqueles a quem chamaríamos de os
tipos superiores de seres hum anos existentes sejam os que mais provavelm ente
venham a possuir quaisquer faculdades que possam estar pairando por aí, nâo é
sempre assim que acontece e há casos bem reconhecidos em que pessoas de natureza
moral decididamente deficiente ou pervertida alcançam poderes que pertencem na
verdade a um grau mais alto de evolução e são por isso correspondentemente perigosos.
Em tudo isso ou numa grande parte disso os instrutores da índia insistem. Eles
dizem - e creio que isto aponta para a realidade de sua experiência - que nâo há
nada de anorm al ou milagroso no assunto; que as faculdades adquiridas resultam
totalm ente de longa evolução e treinam ento e que elas têm leis distintas e um a
ordem própria. Reconhecem a existência de pessoas de faculdade demoníaca, que
adquiriram poderes de certo grau sem um a correspondente evolução moral, e admitem
que são raras as fases mais altas de consciência e que é pequeno o número daqueles
que no momento têm condição de alcançá-las. Com estes pequenos preâmbulos então
estabelecidos, creio que podemos prosseguir dizendo que o que o G náni busca e
obtém é uma nova ordem de consciência - à qual, por falta de melhor, podemos dar
o nom e de consciência universal ou C onsciência C ósm ica, em contraste com a
consciência individual ou a consciência física especial com que todos estam os
fam iliarizados. N ão estou ciente de que o equivalente exato desta expressão,
“consciência universal” , seja usado na filosofia hindu; mas a Sat-chit-ánanda Brahm,
a que todo iogue aspira, indica a mesm a idéia: sat, a realidade, aquilo que a tudo
penetra; chit, o saber, o perceber; ánanda, o bem-aventurado - todos estes termos
unidos em um a manifestação de Brahm.
O Ocidente busca a consciência individual - a mente enriquecida, percepções e
memórias ou lembranças imediatas, esperanças e medos individuais, ambição, amores,
conquistas - o ego, o ego local, em todas as suas fases e formas - e dolorosamente
duvida que exista u m a coisa com o co n sciên cia universal. O O rien te busca a
consciência universal e, nos casos em que sua busca tem êxito, o ego e a vida
individuais transformam-se numa mera película e são apenas as sombras projetadas
pela glória revelada além.
A consciência individual tom a a forma do Pensam ento, que é fluido e móvel
como o mercúrio, perpetuamente num estado de mudança e agitação, carregado de
sofrimento e esforço; a outra consciência não ocorre na forma de Pensamento. Ela
toca, ouve, vê e é as coisas que percebe - sem movimento, sem mudança, sem esforço,
sem distinção de sujeito e objeto, mas com uma incrível e imensa alegria.
A consciência individual é especialmente relacionada com o corpo. Os órgãos
corpo são a certo grau seus órgãos. Mas o corpo inteiro é apenas como um órgão
C onsciência Cósmica. Para alcançar esta última, a pessoa precisa ter o poder
conhecer seu próprio ego à parte do corpo - na verdade de passar a um estado
êxtase. Sem isto a Consciência Cósmica não pode ser vivenciada.
do
da
de
de
Diz-se: “H á quatro experiências principais de iniciação - (1) o encontro com um
Guru; (2) a consciência da Graça ou Arul - que pode talvez ser interpretada como a
consciência de um a mudança - até mesmo de uma mudança fisiológica - trabalhando
dentro da pessoa; (3) a visão de Siva (Deus), com a qual o conhecimento do ego
pessoal como um Eu distinto do corpo está estreitamente relacionado; (4) o encontrar
do universo interior.” “Os sábios” - diz-se também - “quando seus pensamentos se
to rn am fixos, percebem dentro de si m esm os a co n sciên cia A b so lu ta, que é
Sarvasakshi, Testemunha de todas as coisas”.
Grandes têm sido as discussões entre os eruditos quanto ao significado da palavra
N irvâna - se ela indica um estado de não-consciência ou de consciência imensamente
intensificada. Provavelmente, ambos os pareceres têm suas justificativas; trata-se de
algo que não admite definição nos termos da linguagem comum. O im portante a
perceber e admitir é que, por trás deste e de outros termos semelhantes, existe um
fato real e reconhecível (isto é, um estado de consciência, em algum sentido), que
tem sido repetidas vezes vivenciado e que, para aqueles que o experienciaram ainda
que ao menor grau, pareceu digno de busca e dedicação por toda a vida. Naturalmente,
é fácil representar esse fato como um a mera palavra, uma teoria, um a especulação
dos hindus sonhadores; mas as pessoas não sacrificam suas vidas por palavras vazias,
nem meras abstrações filosóficas regem os destinos de continentes. Não; a palavra
representa um a realidade, algo muito básico e inevitável na natureza hum ana. A
questão realmente não é definir o fato - pois não podemos fazer isto - mas chegar a
ele e vivenciá-lo. N esta conjuntura é interessante constatar que a m oderna ciência
ocidental, que se tem ocupado até agora - sem muito resultado - com teorias mecânicas
do universo, está se aproximando, de seu lado, dessa idéia da existência de uma
outra forma de consciência. Os fenômenos extraordinários do hipnotismo - que sem
dúvida estão a algum grau relacionados com o assunto que estamos discutindo e que
têm sido reconhecidos há muito tem po no Oriente - estão forçando os cientistas
ocidentais a admitir a existência da chamada consciência secundária no corpo. Os
fenômenos parecem realmente inexplicáveis sem a suposição de um fator secundário
de alguma espécie e cada dia se tom a mais difícil não usar a palavra consciência
para descrevê-lo. Que se entenda que nem por um momento estou assumindo que
essa consciência secundária dos hipnotizadores seja em todos os sentidos idêntica à
Consciência Cósmica (ou como quer que possamos chamá-la) dos ocultistas orientais.
Pode ser e pode não ser. As duas espécies de consciência podem cobrir o mesmo
campo ou podem apenas se sobrepor a uma pequena extensão. Esta é um a questão
que não proponho discutir. O ponto para o qual quero chamar atenção é que a ciência
ocidental está encarando a possibilidade da existência no ser humano de uma outra
co n sc iê n c ia de alg u m a esp é cie , além d a q u ela com cu jas fu n ç õ e s estam o s
familiarizados. Ela cita (A. M oll) o caso de B arkw orth, que “ pode som ar longas
listas de números enquanto está empenhado num a discussão animada, sem permitir
que sua atenção seja distraída da discussão”; e nos pergunta como Barkworth pode
fazer isto a menos que tenha uma consciência secundária que se ocupe dos números
enquanto sua consciência primária está envolvida na discussão. E há o caso de um
palestrante (F.M yers) que por um m inuto inteiro perm ite sua m ente se afastar
totalm ente do assunto em questão e se im agina sentado ao lado de um amigo no
auditório, engajado num a conversa com ele, e que depois desperta para se encontrar
na plataforma fazendo sua palestra com perfeita facilidade e coerência. Que podemos
dizer de um caso como este? Em outro caso, temos um pianista que apresenta uma
peça musical de memória e constata que seu recital está na realidade sendo dificultado
por ele permitir que sua mente (sua consciência primária) se concentre no que ele
está fazendo. E às vezes sugerido que a própria perfeição da execução musical mostra
que ela é mecânica ou inconsciente, mas será esta um a inferência razoável? E não
pareceria ser um a mera contradição de termos falar-se de uma palestra inconsciente,
ou de um a adição inconsciente de um a lista de números?
M uitos atos e processos do corpo - por exemplo, engolir - são assistidos pela
consciência pessoal manifesta; muitos outros atos e processos absolutam ente não
são percebidos pela m esm a; e poderia parecer razoável supor que estes últim os,
afinal de contas, fossem puramente mecânicos e desprovidos de qualquer substrato
mental. M as os desenvolvimentos posteriores do hipnotismo no Ocidente têm mostrado
- o que é bem conhecido dos faquires da índia - que sob certas condições a consciência
dos atos e processos internos do corpo pode ser obtida e não som ente esta, mas
tam bém a consciência de acontecimentos que estejam ocorrendo longe do corpo e
sem os meios comuns de comunicação.
Assim, a idéia de uma outra consciência, em alguns aspectos com maior alcance
do que a comum e com métodos de percepção próprios, tem gradualmente se infiltrado
nas m entes ocidentais.
H á um a outra idéia com que a ciência moderna nos tem familiarizado e que nos
está levando em direção à mesma concepção: a idéia da quarta dimensão. A suposição
de que o m undo real tem quatro dim ensões de espaço, ao invés de três, torna
concebíveis muitas coisas que de outro modo seriam incríveis. Toma concebível que
objetos aparentem ente separados - por exem plo, pessoas distintas - estejam na
realidade fisicam ente unidos; que coisas aparentem ente separadas por enormes
distâncias de espaço estejam na realidade bem juntas; que um a pessoa ou um objeto
possam entrar e sair de um a sala fechada, sem que paredes, portas ou janelas, etc.,
sejam obstáculos; e, para que essa quarta dimensão se tornasse um fator de nossa
consciência, é óbvio que deveríamos ter meios de conhecimento que para o sentido
comum pareceriam simplesmente miraculosos. A parentem ente, muita coisa sugere
que a consciência alcançada pelos Gfíanis da índia a seu grau, e por sujeitos hipnóticos
ao deles, é dessa ordem quadridimensional.
Assim como um sólido está relacionado com suas próprias superfícies, assim, ao
que parece, a Consciência Cósmica está relacionada com a consciência comum. As
fases da consciência pessoal são apenas diferentes facetas da outra consciência; e
experiências que parecem remotas entre si na individual são talvez todas igualmente
próximas na universal. O próprio espaço, tal como o conhecemos, pode ser praticamen­
te anulado na consciência de um espaço maior de que ele é apenas a superfície; e
um a pessoa que viva em Londres pode não improvavelmente descobrir que tenha
um a porta de fundo que dê muito simplesmente e sem cerimônia para Bombaim.
“A verdadeira qualidade da alm a” , disse o Guru um dia, “é a do espaço, pelo
qual ela está em repouso em toda parte, M as esse espaço (Akása) dentro da alma
está muito acima do espaço material co­
mum. Todo este último, inclusive todos
(*1) Compare-se com Whitman: “Deslumbran­
os sóis e estrelas, parece-vos então como
te e tremendo, quão rápido o nascer do sol
se fosse nada m ais que um átom o do me mataria se eu não pudesse agora e sempre
primeiro”- e aí ele ergueu seus dedos co­ irradiar o nascer do sol para fora de mim. Nós
mo se estivesse esmagando uma partícula também ascendemos deslumbrantes e tremendos
como o sol ”.
de pó entre eles (*1).
“Em repouso em toda parte”, “Indiferença”, “Igualdade” . Esta foi um a das partes
mais notáveis do ensinamento do Guru. Em bora (por razões de família) mantendo
ele próprio muitas das observâncias de casta e embora mantendo e ensinando que
para a m assa do povo as regras de casta fossem perfeitamente necessárias, nunca
cessou de insistir em que quando chegasse o momento para um homem (ou um a
mulher) ser “emancipado” , todas essas regras teriam de ser abandonadas como coisas
sem importância - todas as distinções de castas, classes, todo sentimento de superiori­
dade ou excelência pessoal - até mesmo do bem e do mal - e o mais absoluto senso
de igualdade tem de prevalecer para com todos, bem como determinação em sua
expressão. Foi certam ente notável (em bora eu soubesse que os livros sagrados o
continham) encontrar este princípio germinal da Democracia Ocidental tão vividamente ativo e em funcionamento bem fundo sob as inúmeras camadas da vida social e
dos costum es do Oriente. M as assim é; e nada m ostra m elhor a relação entre o
Ocidente e o Oriente do que este fato.
Esse senso de igualdade, de liberdade quanto a normas e limitações, de inclusi­
vidade e da vida que “repousa em toda parte”, pertence, naturalmente, mais à parte
Cósmica ou universal de um ser humano do que à parte individual. Para a última é
sempre um obstáculo e uma ofensa. E fácil mostrar que os homens não são iguais,
que não podem ser livres, e apontar o absurdo de uma vida indiferente e em repouso
sob todas as condições. Todavia, para a consciência maior, estes são fatos básicos
subjacentes à vida comum da humanidade e que alimentam o próprio indivíduo que
os nega.
Assim, repetindo a cláusula de que, ao usarmos termos como consciência Cósmica
e consciência universal, não nos comprometemos com a teoria de que no instante em
que o homem deixa sua parte pessoal entra num conhecimento absolutamente ilimitado
e universal, mas apenas numa ordem superior de percepção - e admitindo a condição
intricada e complexa da região tão grosseiramente denotada por esses termos, bem
como o caráter microscópico de nosso conhecimento a seu respeito - podemos dizer
uma vez mais, também numa generalização muito imperfeita, que a busca do Oriente
tem sido essa consciência universal e, a do Ocidente, da consciência pessoal ou
individual. Como é bem sabido, o Oriente tem suas várias seitas e escolas de filosofia,
com sutis discriminações de qualidades, essências, divindades, demônios, etc., nas
quais nâo me proponho entrar e com as quais eu me sentiria muito incom petente
para lidar. D eixando todas elas de lado, procurarei m e restringir sim plesm ente a
esses dois term os ocidentais imperfeitos e tentarei considerar ainda a questão dos
métodos pelos quais o estudante oriental se empenha em obter o estado Cósmico, ou
essa ordem superior de consciência que ele abrange.
Mais tarde [62] Carpenter fez ainda uma outra tentativa de explicar ou
pelo menos indicar a natureza do novo sentido. Diz ele:
A respeito de Towards Democracy
têm-me sido feitas algumas vezes pergun­
tas que acho difícil responder; tentarei
aqui formular alguns pensamentos a este
respeito (*1).
(*1) É importante notar que por toda esta ex­
posição, bem como nos outros escritos
de Carpenter sobre o mesmo assunto (como
quem quer que tenha lido este livro até este ponto
perceberá sem mais repetição), seu testemunho
quanto aos fenômenos da Consciência Cósmica
corre paralelamente e é muitas vezes idêntico ao
dos Suttas, de Behmen, de Yepes e de outros es­
critores da mesma classe que tratam deste assun­
to (especialmente, talvez, o autor do Bagavat
Gita), embora nâo pareça que ele tenha estudado
(e provavelmente não estudou) estes escritores.
Bastante tempo atrás (digamos, quan­
do eu tinha uns vinte e cinco anos e mora­
va em Cambridge) quis escrever algum
tipo de livro que se dirigisse muito pes­
soal e intimamente a qualquer pessoa que
se importasse de lê-lo - que estabeleces­
se, por assim dizer, um a relação pessoal íntima entre o leitor e eu; e durante anos
sucessivos fiz várias tentativas de realizar esta idéia - dentre as quais um ou dois
começos em versos (um, por exemplo, que posso mencionar, chamado The Angel of
Death and Life [“O Anjo da Morte e da Vida”] pode ser encontrado num pequeno
livro intitulado Narcissus and Other Poems [“Narciso e Outros Poemas”], agora faz
tem po esgotado, que publiquei em 1873. M as nenhum a de minhas tentativas me
satisfez e depois de algum tempo comecei a pensar que a busca nSo era razoável porque, embora talvez nâo fosse difícil para qualquer pessoa com uma disposição
maleável e solidária tanger certas cordas em qualquer indivíduo que encontrasse,
parecia impossível esperar que um livro - que não pode de modo algum se adaptar às
idiossincrasias de seus leitores - pudesse encontrar a chave das personalidades em
cujas mãos viesse a cair. P ara isto seria necessário supor e encontrar um terreno
absolutamente comum a todos os indivíduos (todos, afinal, que tivessem alcançado
certo nível de pensamento e experiência) e escrever o livro nesse terreno comum e a
partir dele; mas isto pareceu na época impraticável.
P assaram -se anos, relativam ente cheios de aco ntecim entos, com saídas de
C am bridge e palestras universitárias em cidades provinciais, e assim por diante;
mas com inatividade no tocante a escrever e, interiormente, com extrema tensão e
sofrimento. Finalmente, no início de 1881, sem dúvida como culminação e resultado
de lutas e experiências que estiveram ocorrendo, tomei consciência de que uma massa
de material estava se formando dentro de mim, exigindo imperativamente expressão
- embora eu nâo pudesse então ter dito o que exatamente haveria de ser sua expressão.
No momento tomei-me avassaladoramente consciente da revelação, dentro de mim,
de u m a região que u ltrap assav a em algum sen tid o as fro n teira s co m u n s da
personalidade, à luz da qual minhas próprias idiossincrasias de caráter - defeitos,
realizações, limitações, e não sei o que mais - pareciam nâo ter a menor importância
- um a absoluta libertação da mortalidade, acompanhada de uma calma e uma alegria
indescritíveis.
Também percebi ou senti imediatamente que essa região do ego que havia em
mim existia igualm ente (em bora nem sempre igualm ente consciente) em outras
pessoas. Relativamente a ela, as meras diversidades de temperamento que comumente
distinguem e dividem as pessoas perderam sentido e se tornaram indiferentes e foi
aberto um cam po no qual todas pudessem se encontrar, no qual todas fossem
verdadeiramente iguais. Assim, as duas palavras que controlaram meu pensamento
e m inha expressão naquela ocasião vieram a ser Liberdade e Igualdade. A necessidade
de espaço e tempo para trabalhar nisso cresceu tão fortemente que, em abril daquele
ano, abandonei meu emprego de palestrante. Além disso, uma outra necessidade me
ocorrera, impondo essa decisão - a necessidade de uma vida ao ar livre e de trabalho
manual. Finalmente nâo pude mais lutar contra esta necessidade nem contra a outra;
tive de desistir e obedecer. Quando isto aconteceu, na ocasião que mencionei eu já
estav?. vivendo numa pequena cabana numa fazenda (em Bradway, perto de Shefííeld),
com um am igo e sua família, e trabalhava na fazenda nos intervalos de minhas
palestras. Quando abandonei essas palestras, tudo se tom ou claro para mim. Montei
uma espécie de guarita de madeira no jardim e ali, ou no campo e no bosque, durante
toda a primavera e o verão e por todo o inverno, de dia e às vezes de noite, com sol ou
chuva, na geada e na neve, e em todas as espécies de clima cinzento e sombrio,
escrevi Towards Democracy - ou de qualquer modo o primeiro e mais longo poema
que leva esse nome.
Em fins de 1881 esse poema estava concluído - embora tenha sido revisado e um
pouco emendado no começo de 1882; e me lembro de ter sentido então que, embora
fosse ele defeituoso, fraco e inconsistente em expressão, se tivesse êxito em passar
ainda que a metade do esplendor que o havia inspirado, seria bom e eu nâo precisaria
me dar ao trabalho de escrever qualquer outra coisa (o que, com a devida consideração
da palavra “se”, mesmo agora sinto que foi um a insinuação verdadeira e benévola).
A escrita desse livro e a sua publicação (em 1883) tiraram de minha mente uma
carga que vinha pesando nela havia anos e desde então nunca mais tive aquele
sentimento de opressão e ansiedade que sofrera constantemente antes - e que, acredito,
em suas diferentes formas, é um a experiência comum na primeira fase da vida.
Nesse primeiro poema foi incorporado, com consideráveis alterações e adaptações,
um bom número de textos casuais que eu havia escrito (meramente sob a tensão de
sentir e sem qualquer senso particular de proporção) durante vários anos anteriores.
Eles agora haviam encontrado sua interpretação, sob a luz firme e clara de um a nova
disposição de espírito ou um novo estado de sentir, que antes havia me visitado
apenas espasmodicamente e com raios nebulosos. Todo Towards Democracy - posso
dizê-lo, falando genericamente e incluindo os trechos feitos mais tarde - foi escrito
sob o domínio dessa disposição. Por ele tudo tenho testado e medido; ele tem sido o
sol para o qual todas as imagens, todas as concepções e idéias usadas têm sido como
objetos materiais refletindo sua luz. E talvez isto esteja ligado ao fato de que foi tão
necessário escrever ao ar livre. O sentimento mais universal que procurei transmitir
recusou-se a sair de mim num ambiente fechado; nem poderia eu, em qualquer
mom ento ou por qualquer meio, persuadir o ritmo ou o estilo da expressão a se
manifestar dentro de um a sala - aí tendendo sempre a se decompor em formas métricas
específicas, que, por mais que as adm irasse em certos autores e eu m esm o as
considerasse adequadas para certos tipos de trabalho, não eram o que eu queria e nâo
expressavam para mim o sentim ento que eu procurava expressar. E ste fato (da
necessidade de ar livre) é muito curioso e eu não posso realmente explicá-lo. Só sei
que é assim , de m aneira absolutam ente indubitável e insuperável. P osso sentir
imediatamente a diferença tão-somente ao cruzar uma porta - mas não posso explicálo. Sempre, em especial o céu, pareceu conter para mim a chave, a inspiração; mais
do que qualquer outra coisa, a visão dele dava-me o que eu queria (às vezes como um
verdadeiro relâm pago descendo dele para o m eu papel - sendo eu um a m era
testemunha, mas agitado com estranhos arroubos).
M as se me perguntassem - como algumas vezes me têm perguntado - qual é a
natureza exata dessa disposição de espírito, desse esplendor iluminante, eu teria de
dizer que não posso dar nenhuma resposta. Todo Towards Democracy é um a tentativa
de lhe dar expressão; qualquer mera sentença isolada, ou definição direta, nâo teria
a m enor utilidade - ao contrário, na realidade tenderia a obscurecer por limitar.
Tudo que posso dizer é que parece existir uma visão possível ao ser humano como de
algum ponto de vista mais universal, livre da obscuridade e do localismo que se
ligam especialmente às nuvens passageiras de desejo, medo, e de todos os pensamentos
e emoções comuns; neste sentido, um a outra e distinta faculdade; e uma visão sempre
significa um a sensação de luz, de modo que aqui há uma sensação de luz interior,
naturalmente desligada do olho mortal, mas trazendo ao olho da mente a impressão
de que ele vê e através do meio que lava, por assim dizer, as faces interiores de todos
os objetos, todas as coisas e pessoas - como posso expressá-lo? E mesmo assim isto
é muito defeituoso, pois o sentimento é um senso de que a pessoa è os objetos e as
coisas e as pessoas que percebe (bem como todo o universo) - um sentimento em que
a visão, o tato e a audição estão fundidos numa identidade. Nem pode esta questão
ser entendida sem se perceber que a faculdade inteira está enraizada profunda e
intimamente na natureza ultramoral e emocional e para além da região de pensamento
do cérebro.
Agora quero me referir ao pronome “eu” que ocorre tão livremente neste livro.
N este e em outros casos do gênero, o autor está naturalmente sujeito a uma acusação
de egotismo e, pessoalmente, não m e sinto disposto a combater qualquer acusação
desse tipo que possa ser feita. Que haja meros egocentrismo e vaidade incorporados
nestas páginas, não duvido por um só momento, e que na medida em que existem
prejudicam a expressão e a finalidade deste livro, tam bém nâo duvido. M as a
existência destas coisas não afeta a real questão: que ou quem, essencialmente, é o
“eu” de que se fala?
A esta pergunta devo também admitir francamente que nâo posso dar nenhuma
resposta. N ão sei. Q ue essa palavra não é usada no sentido dramático é tudo que
posso dizer. O “eu” sou eu mesmo, assim como poderia encontrar palavras para
expressar a mim mesmo; mas o que seja esse ego e o que possam ser seus limites e portanto o que seja o ego de qualquer pessoa e quais possam ser seus limites - não
sei dizer. Tenho às vezes pensado que talvez o melhor trabalho que alguém poderia
fazer - se sentisse a qualquer momento ampliações e extensões de seu ego - seria
sim plesm ente registrá-las tão fielm ente quanto possível, deixando a outros - ao
cientista e ao filósofo - a explicação e sentindo-se confiante de que o que realmente
existisse n a pessoa seria constatado como existente, conscientemente ou em forma
latente, em outras pessoas. E direi que nesses registros tenho acima de tudo tentado
ser autêntico. Se eu disse, “E u, Natureza”, foi porque na ocasião, seja como for, senti
“Eu, N atureza”; se disse “ Sou igual ao menor”, foi porque não poderia expressar o
que senti mais diretamente do que por essas palavras. O valor de tais declarações só
pode aparecer com o tempo; se elas forem corroboradas por outros, então ajudarão a
formar um corpo de registro que bem poderá merecer pesquisa, análise e explicação.
Se não forem assim corroboradas, então serão natural e devidam ente deixadas de
lado como meras excentricidades de auto-ilusão. Nâo tenho a menor dúvida de que
algum a coisa realm ente g en u ín a será corroborada. P arece-m e cad a vez m ais
claramente que a palavra “eu” tem um a gama praticamente infinita de significado -
que o ego cobre um campo muito maior do que usualmente supomos. Em alguns
pontos somos intensamente individuais e, em outros, intensamente solidários; algumas
de nossas impressões (como a cócega de um pêlo) são de caráter em inentem ente
momentâneo, ao passo que outras (como o sentimento da identidade) envolvem longos
períodos de tempo. As vezes estamos conscientes de quase um a fusão entre nossa
identidade e a de um a outra pessoa. Q ue significa tudo isso? Somos realm ente
indivíduos separados, ou a individualidade é um a ilusão ou, então, é apenas um a
parte do ego ou da alma que é individual e não o todo? É o ego absolutamente uno
com o corpo, ou é somente um a parte do corpo, ou ainda é o corpo apenas uma parte
do ego - um de seus órgãos, por assim dizer - e não todo o ser humano? Ou, finalmente,
não será talvez possível expressar a verdade por qualquer uso direto destes ou de
outros termos da linguagem comum? Seja como for, que sou eu?
Estas são questões que aparecem ao longo do Tempo, exigindo solução - para as
quais a hum anidade está constantem ente tentando encontrar um a resposta. N âo
pretendo respondê-las. Pelo contrário, tenho certeza de que nenhum dos trechos de
Towards D em ocracy foi escrito com vistas a dar u m a resp o sta. E le s foram
simplesmente escritos para expressar sentim entos que insistiam em ser expressos.
Nâo obstante, é possível que alguns deles - transmitindo as experiências e declarações
mesmo de um a só pessoa - possam contribuir com material para se obter aquela
resposta a estas e outras perguntas do gênero, que algum dia será seguramente dada.
Que há uma região de consciência situada além daquilo que chamamos usualmente
de mortalidade, para a qual nós humanos podemos no entanto passar, praticamente
não duvido; mas, partindo do pressuposto de que isto seja um fato, sua explicação
ainda depende de pesquisa. Nestas poucas notas sobre Towards Democracy eu não
disse nada sobre a influência de Whitman - pela mesma razão que nada disse sobre
a influência do sol ou dos ventos. Estas influências são muito remotas e se ramificam
de maneira demasiadamente complexa para serem remontadas. Em 1868 ou 1869
deparei-me com a pequena seleção de Leaves o f Grass feita por William Rossetti e
li esta edição e as do original, continuam ente, d u ran te dez anos. Jam ais tive
conhecimento de qualquer outro livro (com exceção talvez das sonatas de Beethoven)
que eu pudesse ler e reler como fiz com este. Acho difícil imaginar o que teria sido
m inha vida sem esse livro. Leaves o f Grass “ incorporou-se ao meu sangue”; mas
nâo creio que jamais tenha tentado imitá-lo ou ao seu estilo. Lutei bastante contra o
inevitável desvio das formas mais clássicas de poesia para um ritmo mais solto e
mais livre, disputando o terreno (“dando m urro em ponta de faca”) polegada a
polegada, durante um período de sete anos de num erosas criações m alogradas e
híbridas - até que finalmente, em 1881, fui compelido à forma (se é que pode ser
assim chamada) de Towards Democracy. Não a adotei porque fosse uma aproximação
à forma de Leaves o f Grass. Qualquer semelhança que possa haver entre o ritmo, o
estilo, os pensamentos, a construção, etc., dos dois livros, tem de ser, creio eu, atribuída
a um a similitude mais profunda de intenção e atmosfera emocional nos dois autores
- embora essa similitude possa ter decorrido (e sem dúvida decorreu principalmente)
da influência pessoal de um sobre o outro. Seja como for, nossos tem peram entos,
pontos de vista, antecedentes, etc., são tão inteiramente diversos e opostos que, com
exceção de alguns pontos, dificilmente posso imaginar que haja muita semelhança
real a ser constatada. O estilo de Whitman, pletórico, exuberante, viril, deve sempre
fazer dele um a das pessoas mais originais do mundo - uma fonte perene de saúde e
força, tanto moral como física. Ele tem a amplitude da própria Terra e não pode ser
ignorado, tal como não pode ser ignorada um a montanha. Com efeito, muitas vezes
ele m e lembra um a grande pedreira na encosta de um a montanha - os grandes fachos
de luz solar e as sombras, a face primitiva da própria rocha, o poder e o arrojo de
hom ens trabalhando nela, as massas e os blocos caídos, materiais para infindáveis
construções e belos tufos de ervas ou flores em saliências inacessíveis - um quadro
bastante artístico em sua própria incoerência e falta de forma. Towards Democracy
tem um a radiância mais suave, como a da Lua comparada com a do Sol - permitindo
que a gente vislumbre as estrelas por detrás. Terno e meditativo, menos resoluto e
absolutamente menos volumoso, tem mais a qualidade do ar fluido e dócil do que a
da terra sólida e inflexível.
Todos os trechos acima, extraídos dos escritos de Edward Carpenter,
devem ser vistos como pronunciamentos da mente autoconsciente a respeito
da Consciência Cósmica. Em Towards Democracy, deve ser entendido que é
o próprio Sentido Cósmico que fala; às vezes a respeito de si mesmo, às
vezes a respeito da natureza, do ser humano, etc., do ponto de vista dele
próprio. Como, por exemplo:
Vê! aquilo que olho mortal não viu nem
ouvido e sc u to u - ( * 1 )
í*1) Uma sugestão do que o Sentido Cósmico
mostra a ele.
Toda tristeza terminada - o fundo, fundo oceano de alegria dentro abrindo-se - a superfície
cintilando.
O multifário revelado, cada uma e todas, todas as coisas que existem, transfiguradas De alegria transbordando, mal o solo tocando, braços em cruz às estrelas estendendo,
ao longo de montanhas e florestas, de inúmeras criaturas habitação, cantando,
alegria infindável Assim como o sol em manhã sombria nuvens rompendo - assim, por detrás do sol um
outro sol, de dentro do corpo um outro corpo - estes em pedaços caindo Vê! agora por fim ou ainda um pouco mais, no devido instante contempla aquilo que há
longo tempo tens buscado Oh olhos, não admira que atenteis. [61:200]
Aquele dia —o dia da liberação —a ti
(*2) Como veio a ele, assim virá a outros,
virá, em que lugar nâo sabes; virá, mas
não sabes a hora (*2).
(*3) Quase literalmente verdadeiro no caso de
N o púlpito, enquanto o sermão pregas
k*8 Casas(*3), observa! Súbito os laços e as faixas - no berço, no caixão, na mortalha e nas
ataduras - tombarão;
N a prisão Ele virá; e as correntes, mais fortes que o ferro, os grilhões, mais duros
que o aço, se dissolverão - para sempre livre serás.
N o quarto doente, em meio a sofrimento, lágrimas e cansaço de toda um a vida, um
som de asas virá - e saberás que próximo estará o fim (O amado, levanta-te, docemente comigo vem - mas ansioso não sejas tanto - para
que a própria alegria a ti não desfaça.)
N o campo com o arado e a grade; no estábulo ao lado de teu cavalo;
N o bordel em meio a indecência e ociosidade e tua roupa e a de tuas companheiras
consertando;
Em meio à vida da moda, visitas matutinas em ociosidade fazendo e recebendo, e
berloques arranjando em tua sala de estar - mesmo lá, quem sabe?
N a hora marcada, devidamente virá ele. [61:23]
Não há paz, exceto onde estou, disse o
(*4) Fala o Sentido Cósmico.
Senhor - (*4)
Embora saúde tenhas - aquilo que é chamado saúde - no entanto sem mim somente
falsa cobertura da doença é;
Embora amor tenhas, no entanto se entre e ao redor dos amantes não estiver eu, só
tormento e inquietação seu amor será;
Embora bens e amigos e o lar tenhas - todos estes virão e irão embora - nada há de
estável ou seguro que não será levado embora.
M as eu, somente, fico - não mudo,
Assim como o espaço por toda parte se estende, e todas as coisas dentro dele se
movem e mudam, mas ele nâo se move nem muda,
Assim o espaço dentro da alma sou eu, do qual o espaço fora nada mais que imagem
mental e similitude é;
Habitar-me vem tu, a entrada tens para toda vida - a morte a ti não mais separará
daqueles a quem amas.
Sou o sol que de dentro sobre todas as criaturas brilha - a mim contempla, de eterna
alegria repleto serás.
Não te enganes. Logo este mundo exterior tombará - dele te despirás tu, como o ser
humano de seu corpo mortal se despe.
Agora mesmo tuas asas nesse outro mundo - o mundo da igualdade - a estender
aprende, meu filho, para no oceano de mim e de meu amor nadares.
(Ah! não te ensinei pela semelhança deste mundo exterior, por suas alienações e
mortes e seus letais sofrimentos - tudo para isso?
Para a alegria, ah! improferível júbilo!). [61:343-4]
III
SUMÁRIO
a. A iluminação ocorreu na idade característica - aos trinta e sete anos.
b. E na estação característica - na primavera.
Houve um sentimento de “luz interior”, mas não rigorosamente a
costumeira experiência da luz subjetiva.
Houve a usual iluminação intelectual repentina.
E a costumeira elevação moral repentina.
Sua vida foi absolutamente regida, daquele momento em diante, pela
nova luz que havia despertado nele - “ela segurou seus pés”.
Ele perdeu totalmente o senso do pecado, quando de sua iluminação.
Percebeu claramente que era imortal.
Mas a melhor prova de Consciência Cósmica, em seu caso, é sua descrição
da mesma, que só poderia ter sido tirada (como ele nos diz que foi) de
sua própria experiência.
CASOS ADICIONAIS - ALGUNS MENORES,
IMPERFEITOS E DUVIDOSOS
Capítulo 1
O CREPÚSCULO
O principal propósito desta Quinta Parte é ilustrar o fato inevitável de
que, admitido que exista uma faculdade mental como a Consciência Cósmica
e que ela tenha sido produzida, como o foram as outras, por evolução
gradativa, devem existir mentes em todos os planos intermediários entre a
mera autoconsciência e a mais plena Consciência Cósmica até agora
produzida pela marcha da espécie humana para a frente e para o alto.
Se pensamos no advento do Sentido Cósmico como o nascer de um sol
na vida individual, torna-se claro, levando adiante a analogia como
provavelmente faremos, sem medo de erro material, que entre a relativa
escuridão da noite da mera autoconsciência e a luz do dia que é a Consciência
Cósmica deve existir um intervalo do que pode razoavelmente ser chamado
de crepúsculo - uma região em que o sol do Sentido Cósmico há de dar mais
ou menos luz, embora ainda não totalmente nascido, e em que talvez nunca
nasça totalmente na vida da pessoa. Esse crepúsculo é muitas vezes claramente
perceptível (como nos casos de Dante e de Behmen) nas vidas daqueles que
mais tarde se tomam completamente iluminados. Após uma iluminação
momentânea, também nos casos menores fica um brilho que dura anos, como
se o Sol, depois de aparecer por alguns momentos acima do horizonte,
permanecesse imediatamente abaixo deste, descendo muito vagarosamente,
tal como o Sol físico nas latitudes nórdicas por volta da época do solstício de
verão. Numa outra categoria de casos, a vida espiritual individual pode ser
comparada a um dia de invemo dentro do circulo ártico. O Sol se aproxima
vagarosamente do horizonte, sua trajetória inclinando-se gradualmente para
cima, até que a bola de fogo chega praticamente a tocar a borda da Terra,
passa vagarosamente pelo sudeste, pelo sul, pelo sudoeste, iluminando a
paisagem mas nunca mostrando sua face deslumbrante - efetuando uma
iluminação genuína mas sem se levantar totalmente - produzindo um brilho
de forte contraste com a escuridão da noite mas que é infinitamente pequeno
(em esplendor e especialmente em poder frutífero) em relação ao dos raios
solares diretos. Assim foi um dos casos mais notáveis desta Quinta Parte - o
de Richard Jefiferies.
Hoje, inúmeros homens e inúmeras mulheres devem estar vivendo nesse
crepúsculo. Sem dúvida muitos casos da chamada conversão são
simplesmente casos de ascensão espiritual, geralmente repentina, do nível
médio autoconsciente para a região de maior ou menor esplendor, conforme
a altitude alcançada, que se situa entre aquela autoconsciência e a Consciência
Cósmica. E se é aceita a opinião de Carlyle [59:150] - que está de pleno
acordo com o que sabemos da evolução mental - de que essa “conversão”,
especificamente, “não era conhecida dos antigos mas veio à luz pela primeira
vez em nossa era moderna”, não indica isto claramente uma ascensão
espiritual gradativa de uma vasta seção da mente humana? Casos de conversão
na juventude não são aqui observados. Estes são provavelmente, em geral se
não sempre, casos de ascensão espiritual mais ou menos repentina, dentro
da região estritamente pertencente à autoconsciência e, portanto, não nos
dizem respeito aqui. Mas os casos da chamada conversão aos trinta ou trinta
e cinco anos de idade (como o de C.G. Finney, capítulo 13, adiante) são em
si mesmos fenômenos mais impressionantes e são indubitavelmente, sempre
ou quase sempre, casos de ascensão à região que se situa além dos limites da
mente autoconsciente comum.
Uma palavra pode ser dita neste ponto para nos guardarmos contra uma
possível suspeita. Em nenhum caso o relator (a pessoa que teve a experiência)
foi induzido por alguma palavra ou por algum sinal. Cada um dos relatos
seguintes (assim como é claramente verdadeiro quanto aos que estão incluídos
na Parte IV), foi feito com absoluta espontaneidade, quase sempre sem
qualquer conhecimento dos fenômenos pertencentes a outros casos e
seguramente sem estar influenciado na narração por um conhecimento de
outros casos. Em vista da extraordinária uniformidade desses relatos (até
onde eles chegam) é importante que este fato seja claramente compreendido.
MOISÉS
Renan nos diz que os documentos mais antigos em que Moisés é
mencionado são de quatrocentos a quinhentos anos posteriores à data do
Exodo, época em que Moisés viveu, se é que ele viveu: “Les documents les
plus anciens sur Moïse sont postérieurs de quatre cents ou cinq cents ans à
l’époque ou ce personage a du vivre” [137:160]. Será que houve narrativas
escritas perdidas, mais antigas, nas quais se teriam baseado as que temos?
Ou teria o longo intervalo de mais de quatrocentos anos sido ligado por uma
ponte de tradição para fazer com que os relatos que temos tivessem algum
valor? E difícil dizer. Mas se nos atrevemos a acreditar que os incidentes da
história pessoal desse homem relatados no Êxodo são em qualquer sentido
confiáveis (naturalmente, não se pode esperar que sejam exatos), então temos
no grande legislador egípcio-israelita um provável caso de Consciência
Cósmica. O arbusto ardente que ele viu em Horeb, que não era consumido
pelo fogo, seria então a forma assumida na tradição pela luz subjetiva: “E
apareceu-lhe o anjo do Senhor em uma chama de fogo do meio duma sarça;
e olhou, e eis que a sarça ardia no fogo, e a sarça não se consumia” [11:3:2],
E quanto à luz brilhando de sua face: “E aconteceu que, descendo Moisés do
monte Sinai (e Moisés trazia as duas tábuas do testemunho em sua mão,
quando desceu do monte), Moisés não sabia que a pele do seu rosto
resplandecia, depois que falara com ele. Olhando pois Arão e todos os filhos
de Israel para Moisés, eis que a pele do seu rosto resplandecia, pelo que
temeram de chegar-se a ele”[ll:34:29-30]. Esse resplandecer do rosto de
Moisés, quando ele desceu do Sinai, seria a “transfiguração” característica
da Consciência Cósmica.
Na época em que Moisés viu o “fogo”, parece que ele estava já casado e
tinha filhos [11:4:20], mas ainda era jovem, pois viveu e trabalhou por qua­
renta anos a partir daí. Parece provável que na época ele estivesse na idade
típica da iluminação, ou perto disto. A princípio ele ficou alarmado com o
“fogo”, ou a luz, como é comum: “E Moisés encobriu o seu rosto, porque
temeu olhar para Deus”[11:3:6]. “Quem sou eu, que vá a Faraó”[11:3:11]? —
assim como Maomé não confiou em si mesmo. A “voz” dando comandos
mais ou menos explícitos é um fenômeno comum. É duvidoso que essa voz
jamais seja ouvida com o ouvido exterior - talvez ocasionalmente, mais
provavelmente nunca. A luz é quase certamente sempre subjetiva e sem dúvida
a voz também. Mas com o Sentido Cósmico vem a consciência de certos
fatos e a impressão que se faz na pessoa é de que estes lhe foram transmitidos
e, se o foram, então o foram por alguém - alguma pessoa (mas, naturalmente,
não por um ser humano) - daí a voz de Deus para Moisés, a voz do Pai para
Jesus, a voz do Cristo para Paulo, a voz de Gabriel para Maomé, a voz de
Beatrice para Dante. Quem a pessoa pensou ter ouvido (na boca de quem o
ensinamento foi colocado), será suposto ou determinado pelos hábitos mentais
do sujeito, por sua idade e sua cultura.
Aquilo que então foi efetivamente “dito” a Moisés - se podemos acreditar
no relato - e ele parece digno de crédito - é (até onde o presente autor pode
julgar) exatamente o que lhe teria sido dito pelo Sentido Cósmico:
Especificamente, a unidade, o poder e a benevolência de Deus, e que ele
deveria trabalhar por seu povo. Parece além disto provável que veio a Moisés,
por volta da época da “sarça ardente”, uma grande expansão intelectual e
moral. As tábuas da lei (sem dúvida por ele compostas) provam isto - assim
como o reconhecimento de sua superioridade e autoridade, aparentemente
tão livremente aceitas por um povo não especialmente inclinado (assim
pareceria) a renunciar a suas próprias idéias e se colocar sob o controle de
um líder que não tinha jurisdição hereditária ou sacerdotal.
Quando o texto acima já havia sido escrito, o autor recebeu uma carta de
C. M. C., cujo caso está incluído neste livro (Capítulo 29), na qual ela descreve
uma experiência tão parecida com a da “sarça ardente” que é impossível
resistir à tentação de citá-la. Diz ela: “Duas senhoras amigas e eu estávamos
viajando poucos dias atrás. Era uma manhã muito bonita, perfeita. Quando
estávamos seguindo uma estrada sombria no campo, saímos da carruagem
para apanhar ásteres púrpuras que floresciam em toda sua perfeição às
margens da estrada. Eu estava numa disposição de espírito estranhamente
jubilosa - toda a natureza parecia doce e melancólica. Os ásteres nunca
tinham me parecido tão belos. Olhei para os grandes maços que havíamos
colhido com crescente espanto por seu brilho e passou-se algum tempo até
que me dei conta de que isto era incomum. Mas logo percebi que estava
vendo a aura das flores. Uma luz maravilhosa resplandecia de cada pequena
pétala e flor e o seu todo era uma chama esplendorosa. Eu tremi de êxtase era uma “sarça ardente”. Não há como descrever. As flores pareciam jóias
ou estrelas, da cor da ametista, tão claras e transparentes, tão firmes e intensas,
um sutil brilho vivo. O véu quase se rompeu; talvez nem tanto, ou eu as teria
visto sorrindo, conscientes e olhando para mim. Que momento foi aquele!
Sinto um calafrio quando penso nele”.
GIDEÃO,
(Apelidado Jerubbaal)
Décimo terceiro século a.C.
Então o anjo do Senhor veio, e assentou-se debaixo do carvalho que está em
Ofra, que pertencia a Joás, abiezrita; e Gideão, seu filho, estava malhando o trigo no
lagar, para o salvar dos midianitas. Então o anjo do Senhor lhe apareceu, e lhe disse:
O Senhor é contigo, varão valoroso. Mas Gideão lhe respondeu: Ai, senhor meu, se
o Senhor é conosco, por que tudo isto nos sobreveio? e que é feito de todas as suas
maravilhas que nossos pais nos contaram, dizendo: Não nos fez o Senhor subir do
Egito? Porém agora o Senhor nos desamparou, e nos deu na mão dos midianitas.
Então o Senhor olhou para ele, e disse: Vai nesta tua força e livrarás a Israel da mão
dos midianitas; porventura não te enviei eu? E ele lhe disse: Ai, senhor meu, com
que livrarei a Israel? eis que o meu milheiro é o mais pobre em Manassés, e eu o
menor na casa de meu pai. E o Senhor lhe disse: Porquanto eu hei de ser contigo, tu
ferirás aos midianitas como se fossem um só homem. E ele lhe disse: Se agora tenho
achado graça aos teus olhos, dá-me um sinal de que és o que comigo falas. Rogo-te
que daqui te não apartes, até que eu venha a ti, e traga o meu presente, e o ponha
perante ti. E disse: Eu esperarei até que voltes. E entrou Gideão e preparou um
cabrito e bolos asmos duma efa de farinha; a carne pôs num açafate e o caldo pôs
numa panela; e trouxe-lho até debaixo do carvalho, e lho apresentou. Porém o anjo
de Deus lhe disse: Toma a carne e os bolos asmos, e põe-nos sobre esta penha e verte
o caldo. E assim o fez. E o anjo do Senhor estendeu a ponta do cajado, que estava na
sua mão, e tocou a carne e os bolos asmos; então subiu fogo da penha, e consumiu a
carne e os bolos asmos; e o anjo do Senhor desapareceu de seus olhos. Então viu
Gideão que era o anjo do Senhor; e disse Gideão: Ah, Senhor, Jeová, que eu vi o anjo
do Senhor face a face. Porém o Senhor lhe disse: Paz seja contigo: não temas, não
morrerás. Então Gideão edificou ali um altar ao Senhor, e lhe chamou, Senhor é paz;
e ainda até ao dia de hoje está em Ofra dos abiezritas [12:6:11-24],
Se o comentário de Renan sobre a vida desse homem fosse considerado
seriamente, dele faria, se não um grande caso, de qualquer modo um caso de
Consciência Cósmica. Diz ele: “Circunstâncias que ignoramos inclinaramno à adoração exclusiva de Jeová. Esta conversão foi atribuída a uma visão e
é possível que no caso de Gideão, como no de Moisés, uma experiência
sensorial possa ter intervindo. Parece que teria ocorrido a ele uma das
aparições de chama em que se supõe que Jeová Se revelava”[137:320].
Nada de definido pode ser dito neste caso. A idade de Gideão na ocasião
não é conhecida. A luz subjetiva (se ele a vivenciou), sua conversão repentina
de um plano religioso inferior para outro superior (o que parece bastante
certo), sua rápida elevação na estima de seus compatriotas, sua vida longa e
estrénua, seu claro reconhecimento de Deus, sua recusa em reinar em qualquer
outro sentido que não o de agente de Jeová - tudo isto indica a possibilidade
de sua iluminação.
ISAÍAS
Tinha “o maior dos profetas hebreus” o Sentido Cósmico? Não parece
improvável. Como Isaías viveu e escreveu durante trinta e nove anos após
sua “visão”, poderia facilmente ser que ele estivesse com pouco mais de
trinta anos na época - isto é, no ano da morte de Uzias, 740 a. C. A visão
propriamente, tal como ele a descreve, sugere iluminação - o advento da
Consciência Cósmica. Escreve Isaías:
N o ano em que morreu o rei Uzias,
Os pontos principais a serem notados são:
eu vi ao Senhor assentado sobre um alto (1) Ele viu Deus. (2) Ele viu que Deus é o
Cosmo. (3) A expressão “a casa se encheu de
e sublime trono, e o seu séquito enchia o
templo. Os serafins estavam acima dele; fu m o ” deveria (se a hipótese é correta) de
preferência ser “de luz” ou “de chamas”, pois
cada um tinha seis asas: com duas
deveria se referir à luz subjetiva; mas parece
cobriam os seus rostos, e com duas
duvidoso que a palavra hebraica Ashan possa
cobriam os seus pés e com duas voavam.
significar “luz” ou “chama”. Se, entretanto, está
E clamavam uns para os outros, dizendo: filologicamente ligada à palavra sânscrita
Santo, santo, santo é o Senhor dos Arman, deve ser suscetível de interpretação
Exércitos; toda a terra está cheia da sua análoga. (4) Ele perde o senso do pecado.
glória. E os umbrais das portas se
moveram com a voz do que clamava, e a casa se encheu de fumo. Então disse eu: Ai
de mim, que vou perecendo porque eu sou um homem de lábios impuros, e habito no
meio dum povo de impuros lábios, e os meus olhos viram o rei, o Senhor dos Exércitos!
Mas um dos serafins voou para mim trazendo na sua mão uma brasa viva, que tirara
do altar com uma tenaz; E com ela tocou a minha boca, e disse: Eis que isto tocou os
teus lábios; e a tua iniqüidade foi tirada, e purificado o teu pecado. Depois disto ouvi
a voz do Senhor, que dizia: A quem enviarei, e quem há de ir por nós? Então disse eu:
Eis-me aqui, envia-me a mim. [Isaías, 6: 1-8]
O CASO DE Lí R.
Lí R, comumente chamado Lâo-tsze (o velho filósofo), nasceu por volta
de 604 a.C., em Honan, China. Durante parte de sua vida, talvez uma grande
parte, foi curador da Biblioteca Real. Kung-fu-tse (Confucio) visitou Li em
517, quando ele (Lí) tinha oitenta e oito anos. Durante sua conversa, Li
disse a Kung: “Os homens de quem falais estão mortos e seus ossos reduzidos
a pó; restam apenas suas palavras. Além disto, quando o homem superior
tem sua oportunidade ele alça vôo; mas quando o tempo está contra ele, é
levado pela força das circunstâncias. Ouvi dizer que um bom mercador,
embora tenha ricos tesouros guardados em segurança, apresenta-se como se
fosse pobre, e que o homem superior, embora sua virtude seja completa, é
em aparência exterior um tolo. Abandonai vosso ar orgulhoso e muitos desejos
- vosso hábito insinuante e vossa vontade indomada. Estas coisas não são de
nenhuma vantagem para vós; isto é tudo que tenho a vos dizer”. Consta que
Kung teria dito a seus discípulos após essa entrevista: “Sei que os pássaros
podem voar, os peixes nadar e os animais correr. Mas o corredor pode ser
apanhado numa armadilha, o nadador fisgado e o voador atingido por uma
flecha. Mas há o dragão: Não vos posso dizer como ele monta o vento, através
das nuvens, e se alça no céu. Hoje vi Lâo-tsze e só posso compará-lo ao
dragão” [166:34], Parece ter sido após esta reunião que Lâo-tsze escreveu
seu livro sobre o Tâo e seus atributos, em cinco mil caracteres. Diz-se que
após escrever o livro ele foi para o noroeste. Não se sabe quando ou onde
faleceu.
Que é esse Tâo? Diz-se que mantém jovens as pessoas que o possuem.
Diz-se que a um famoso taoísta, um velho, foi perguntado: “Sois velho, senhor,
mas vossa pele é como a de uma criança; como é isto?” E a resposta foi:
“Familiarizei-me com o Tâo” [166:34], Na primeira tradução do Tâo Teh
King para qualquer idioma ocidental, Tâo é tomado no sentido de Ratio, ou
a Suprema Razão. A descrição de Abel Remusat, do caractere Tâo, é: “Não
me parece possível traduzir esta palavra senão por Logos, no tríplice sentido
de Soberano Ser, Razão e a Palavra.” O sucessor de Remusat na cadeira de
Chinês em Paris, Stanislau Julien, que fez uma tradução do Tâo Teh King,
decidiu que era impossível compreender por Tâo Razão Primordial ou
Inteligência Sublime e concluiu que o Tâo era desprovido de ação, de
pensamento, de julgamento e de inteligência - na verdade, ele parece (sem
assim dizer) ter tomado a palavra como sinônima (como sem dúvida ela é)
de Nirvana [166:12], Finalmente, ele a traduz como “um caminho” ou “o
caminho”, no sentido de “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”, e assim,
por outro lado, ela se torna sinônima de “Cristo”, de “Nirvâna”e de
Consciência Cósmica.
Lâo-tsze fala de certos resultados que fluem do cultivo do Tâo e, se
compreendemos corretamente sua linguagem, verificamos que ela se aplica
àqueles que têm o Sentido Cósmico. Diz ele: “Aquele que é hábil em
administrar sua vida viaja por terra sem ter de se esquivar de rinocerontes ou
tigres e entra num exército sem ter de evitar armadura de couro ou armas
afiadas. O rinoceronte não encontra nele um lugar onde fazer entrar seu
chifre, nem o tigre um lugar onde fixar suas garras, nem a arma um lugar
onde inserir sua ponta. E por que razão? Porque não há nele nenhum lugar
de morte”. E também: “Aquele que tem em si abundantemente os atributos
(do Tâo) é como uma criança. Insetos venenosos não o picarão; bestas ferozes
não o pegarão; aves de rapina não o atacarão” [166:25],
Voltemos aos nossos próprios tempos, aqui na América do Norte, para
ilustrar esta passagem: O autor deste livro viu Walt Whitman, em Long
Island, New York, permanecer numa varanda durante toda uma longa tarde
de verão, com o ar literalmente carregado de mosquitos. Estes investiam
sobre ele em grande número, mas ele não parecia notá-los. De vez em quando
abanava um leque de folhas de palmeira, que segurava em sua mão, mas não
o usava e nem sua outra mão para espantar ou matar os mosquitos. Não
parecia estar sendo picado ou de qualquer modo incomodado por aquelas
pequenas criaturas que estavam deixando as demais pessoas ali presentes
quase loucas. É bem sabido que Walt Whitman andou livre e impunemente
durante anos, entrando e saindo como lhe dava na telha, entre as pessoas
mais perigosas de New York. Nunca se disse que ele tivesse sido molestado
ou mesmo que lhe tivessem falado de maneira rude. Quanto à vida do
possuidor do Tâo (se isto é Consciência Cósmica) ser indestrutível por tigres
ou outros animais selvagens, ou por homens armados, esta é a pura verdade.
Diz-se também do Tâo que “sua mais alta excelência é como a da água.
A excelência da água se manifesta no benefício que traz a todas as coisas e
no fato de ela ocupar, sem se esforçar em fazer o contrário, o terreno mais
baixo que todos os homens abominam. Assim, (seu caminho) aproxima-se
do caminho do Tâo. Não há nada no mundo mais mole e fraco que a água e,
no entanto, para atacar as coisas firmes e fortes, nada tem primazia sobre
ela. Todas as pessoas do mundo sabem que o mole supera o duro e o fraco
supera o forte, mas ninguém é capaz de aplicar isto na prática” [166:30-1].
Assim, diz Whitman do Sentido Cósmico: “O mais comum, o mais barato,
o mais inferior, o mais fácil, sou Eu”. E também: “Não há nada mais mole,
mas ele forma um eixo para a roda do universo”.
Diz-se ainda que: “É jeito do Tâo agir sem (pensar em) agir, conduzir as
coisas sem (sentir) suas dificuldades, degustar sem discernir qualquer sabor,
considerar os pequenos como grandes e os poucos como muitos, e retribuir
ofensa com bondade” [166:31],
Seguem-se alguns trechos do livro de Li R, o Tâo Teh King, acompanhados
de passagens paralelas de dizeres ou escritos de outros homens dotados de
Consciência Cósmica:
Homens comuns parecem brilhantes
e inteligentes e só eu pareço estar em tre­
vas. Eles parecem cheios de discernimen­
to e só eu sou obtuso e confuso. Pareço
ser levado como que pelas correntes do
mar, carregado como se não tivesse lugar
para descansar. Todos os homens têm
suas esferas de ação, ao passo que só eu
pareço apático e incapaz como um rude
habitante de fronteira. (Assim) só eu sou
diferente dos outros homens, mas valorizo
e *2)
O parcial se toma completo; o curvo,
reto; o vazio, cheio; o gasto, novo. Aquele
cujos (desejos) são poucos os consegue;
aquele (cujos) desejos são muitos perde
seu rumo [166:65] (*3).
(*1) “Contemplai estaface trigueira, estes olhos
cinzentos,
Esta barba, branca lã sobre o meu pescoço
pendendo,
Minhas bronzeadas mãos e o meu jeito
silencioso, sem charme”[193:105].
(*2) “As raposas têm covis, e as aves do céu
têm ninhos, mas o Filho do homem não tem
onde reclinar a cabeça” [14:8:20],
a mãe que acalenta (o Tâo) [166:63], (* 1
(*3) “O criminoso sai da prisão, o insano se
torna são... a garganta que estava muda
fala, os pulmões do tuberculoso são recuperados,
a pobre cabeça aflita é libertada” [193:332],
O Tâo, considerado como imutável, não tem nome. Embora em sua primordial
simplicidade ele possa ser pequeno, o mundo inteiro não se atreve a lidar com (a
pessoa que incorpora) ele como um ministro. Se um príncipe feudal ou rei pudesse
guardá-lo ou segurá-lo, todos se subme­
teriam espontaneamente a ele. Céu e terra
(sob sua orientação) unem-se e fazem
descer o doce orvalho, que, sem as ins­
truções dos homens, alcança igualmente
todo lugar, como por sua livre vontade
[166:74] (*4).
(*4) “É como um grão de m ostarda, que,
quando se semeia na terra, é a mais peque­
na de todas as sementes que há na terra; mas,
tendo sido semeado, cresce; e faz-se a maior de
todas as hortaliças, e cria grandes ramos, de tal
maneira que as aves do céu podem aninhar-se
debaixo da sua sombra.” [15:4:31-32]
Naquele que segura em suas mãos a Grande Imagem (do Tâo invisível) o mundo
inteiro atenta. Os homens a ele apelam e não recebem nenhum dano mas (encontram)
descanso, paz e o sentimento de tranqüilidade. Música e manjares farão o visitante
passageiro parar (por um lapso de tempo).
(*5) “O homem natural não compreende as
Mas embora o Tâo, assim como vem da
coisas do espírito de Deus (do Sentido Cós­
boca pareça insípido e não tenha sabor, mico), porque lhe parecem loucura” [20:2:14],
embora pareça não merecer ser contem­ Os ensinamentos do Sentido Cósmico são sempre
plado ou escutado, o uso dele é inexau­ sem gosto, a princípio insípidos, mas seu uso “é
rível [166:77] (*5).
inexaurível”.
Sem passar de sua porta, a pessoa
entende (tudo que acontece) sob o céu;
sem olhar para fora de sua janela, a
pessoa vê o Tâo do céu. Quanto mais
longe a pessoa sai (de si mesma), menos
sabe [166:89], (*6 a *9)
(*6) “Em vão a contenção ou timidez.,
Em vão objetos se põem a léguas de distância
e múltiplas formas assumem”[193:54].
(*7) “Um minuto apenas de vós faço uso,
depois de vós desisto, garanhão,
Por que necessito de vossos passos, quando eu,
eu mesmo, mais rápido vou que eles?
Mesmo quando parado estou, de pé ou sentado,
mais célere passando do que vós” [193:55],
(*8) “Aquilo que é o mais comum, o mais barato, o mais inferior, o mais fácil, sou Eu” [193:39],
(*9) Procurareis muito longe? Com certeza afinal voltareis” [193:175],
Aquele que consegue para si mesmo
tudo sob o céu, assim o faz não se dando
a nenhum trabalho (com esta finalidade).
Se alguém se dá a trabalho (com esta
finalidade), não consegue para si mesmo
tudo sob o céu [166:90] (*10).
Aquele que em si mesmo tem abun­
dantemente os atributos (do Tâo) é como
uma criança. Insetos venenosos não o
picarão; aves de rapina não o atacarão
[166:99] (*11).
(*10) “Não ver nenhuma posse senão a que
possas ter, de tudo usufruindo sem labuta ou
compra, abstraindo a festa sem no entanto uma
só partícula dela abstrair,
Pegar o melhor da fazenda do fazendeiro e da
elegante vila do homem rico, e as castas bênçãos
do casal bem casado e as frutas dos pomares e
as flores dos jardins,
As mentes dos homens de seus cérebros colher,
de seus corações o amor” [193:127],
(*11) “Qualquer que não receber o reino de
Deus como um menino, de m aneira
nenhuma entrará nele” [ 15:10:15].
(*12) É curioso que os homens dotados de
Aquele que conhece (o Tâo) não (se
Consciência Cósmica não falem dela.
preocupa) em falar (a respeito dele);
Anos
atrás,
quando este autor era mais íntimo
aquele que está (sempre pronto) a falar a
de Walt Whitman do que jamais fora de seus
respeito dele não o conhece. Aquele (que
irmãos, procurou arduamente fazer com que
o conhece) manterá sua boca fechada e
Whitman lhe dissesse algo a respeito (pois sabia
fechará os portais (de suas narinas). Rom­ bem que havia algo especial a dizer e Whitman
budas fará suas pontas aguçadas e as sabia que ele sabia), mas nunca conseguiu extrair
complicações das coisas desembaraçará; uma palavra do poeta. Esses homens a colocam
seu brilho moderará e se harmonizará em seus escritos de maneira impessoal, mas difi­
com a obscuridade (de outros). Isto é cha­ cilmente falam face a face de suas experiências
pessoais; estas são por demais sagradas para
mado “o Acordo Misterioso” . (Tal ser)
serem tratadas dessa maneira.
não pode ser tratado com intimidade nem
friamente; ele está além de lucro ou prej z.o - de nobreza ou baixeza; é o homem
mais nobre sob o céu [166.100] (*12).
(Suas) admiráveis palavras podem
comprar a honra; (seus) admiráveis feitos
podem elevar seu realizador acima dos
outros. Mesmo homens que não são bons
não são abandonados por ele [166:105]
(*13).
(*13) “Então Pedro, aproximando-se dele,
disse: Senhor, até quantas vezes pecará
meu irmão contra mim, e eu lhe perdoarei? Até
sete? Jesus lhe disse: Não te digo que até sete,
mas, até setenta vezes sete” [14:18:21-22].
(*14) Eu, porém, vos digo: Amai a vossos
inimigos, bendizei os que vos maldizem,
fazei bem aos que vos odeiam, e orai pelos que
vos maltratam e vos perseguem”[14:5:44].
(E jeito do Tâo) agir sem (pensar
em) agir; conduzir as coisas sem (sentir)
suas dificuldades; degustar sem discernir qualquer sabor; considerar os pequenos
como grandes e os poucos como muitos; : retribuir ofensa com bondade [166:106]
(*14).
Para que os rios e os mares possam receber a homenagem e o tributo de todas as
correntes do vale, têm a habilidade de estarem mais baixos que elas; é assim que
eles são os reis delas todas. Assim é que
,
.
. .
,
o sabio (o g o v ern an te), desejando estar
acim a dos h o m en s, pelas suas palavras
(15)
Iodo aquele que quiser entre vos tazersegrandesejavossose™Çal”[14:20:26].
se coloca abaixo deles e, desejando estar à frente deles, coloca sua pessoa atrás deles
[166:109] (*15).
(*16) Considerem-se e comparem-se as vidas
O mundo inteiro diz que, embora meu
e os ensinamentos de Gautama, Jesus,
Tâo seja grande, mesmo assim parece ser
inferior (a outros sistemas de ensinamen­ Paulo, Whitman, Carpenter e praticamente todos
os grandes casos.
to). Mas é justamente sua grandeza que
o faz parecer inferior. Se ele fosse como qualquer outro (sistema), há muito tempo
sua pequenez teria sido conhecida! (*16)
Mas eu tenho três coisas preciosas, que prezo e guardo cuidadosamente. A primeira
é docilidade; a segunda é economia e, a terceira, abster-me de ter precedência sobre
os outros.
Com essa docilidade posso ser audaz; com essa economia posso ser liberal;
abstendo-me de ter precedência sobre os outros posso me tomar um recipiente da
mais alta honra. Hoje em dia, as pessoas rejeitam a docilidade e são todas pela
audácia; a economia, e são todas pela liberalidade; o último lugar, e só procuram ser
as primeiras; (de todas elas o fim é) a morte [166:110].
Palavras sinceras não sâo delicadas;
palavras delicadas não são sinceras; aque­
les que sâo hábeis (no Tâo) não discutem
(a respeito dele); os que discutem não sâo
hábeis nele. Aqueles que conhecem (o
Tâo) não sâo altamente cultos; os alta­
mente cultos não o conhecem [166: 123]
(*17 a *19).
(* 17) “A lógica e os sermões jamais
convencem” [193:53],
(* 18) “Não posso passar o tempo
em conversa.”
No círculo social culto fico constrangido
e quieto, pois a cultura não me assenta”
[193:249],
(*19) “Se alguém dentre vós se tem por sábio neste mundo, faça-se louco para ser sábio” [20:3:18].
SÓCRATES
Tanto por suas qualidades morais quanto por seus dons intelectuais,
Sócrates parece estar cotado entre os homens mais destacados de toda a
história. Mas seria obviamente absurdo argumentar que, por causa destes
fatos, ele tivesse sido um caso de Consciência Cósmica, dado que entre as
características da Consciência Cósmica contam-se a elevação moral e a
iluminação intelectual. Xenofonte nos diz que Sócrates afirmava que “recebia
sugestões de um Deus” [201:350], Diz ele que “Sócrates fora admirado acima
de todos os homens pela jovialidade e tranqüilidade com que vivera” [201:505]
e cita ainda Sócrates dizendo: “Eu não admitiria a qualquer homem que ele
tivesse vivido melhor ou com mais prazer do que eu” [201:506]. Estes indícios,
embora não sejam absolutos, sugerem fortemente que Sócrates tinha o Sentido
Cósmico. É bem sabido que ele tinha excepcional saúde e força física e parece
que por ocasião de sua morte, embora com mais de setenta anos de idade,
sua mente e seu corpo eram fortes como sempre. Parece também claro que
ele tinha uma forte convicção da imortalidade, embora isto talvez não
implicasse o senso da imortalidade que é próprio da Consciência Cósmica.
Seu otimismo, que é também uma das características do Sentido Cósmico,
não deve ser esquecido, nem sua atratividade pessoal, bem maior do que a da
média das pessoas. O fenômeno do “sinal”, da “voz”, do “deus”, do “gênio”
ou do “daimon”, segundo consta, data de seus primeiros anos.
Por outro lado, Lelut [88:313] remonta o que considera como a insanida­
de* de Sócrates ao assédio de Potidaea, 429 a.C., quando Sócrates teria cerca
de quarenta anos de idade. O que aconteceu nessa ocasião é relatado como
segue no Simposium [127:71]: “Certa manhã ele estava pensando em algo
que não conseguia resolver; não queria desistir e continuou pensando desde
o amanhecer até o meio-dia. Ali ficou ele de pé, absorto em seu pensamento
e, ao meio-dia, isto chamou atenção e pela multidão espantada correu o
* Pois Lelut é um caso típico de homem de “bom senso” e, para ele, todos os
místicos são lunáticos.
rumor de que Sócrates estivera de pé e pensando em alguma coisa desde o
raiar do dia. Finalmente, à tarde, após a ceia, alguns jônios, por curiosidade
(devo explicar que isto não aconteceu no inverno e sim no verão), trouxeram
suas esteiras e deitaram-se ao ar livre, a fim de que pudessem observá-lo e
ver se ele ficaria de pé a noite toda. E ele ficou ali, toda a noite até a manhã
seguinte; e, com o retomo da luz do dia, ofereceu uma prece ao Sol e seguiu
seu caminho”.
Mas, se aceitamos esta narrativa como fato, possivelmente preferiremos
a explicação que lhe dá Elam, ao invés da de Lelut. Ela é assim: “Não é
impossível que ele, que voltara as costas para um sistema estéril de filosofia,
obsoleto e batido, e que das profundezas de seu próprio pensamento eliminara
as grandes verdades da imortalidade da alma e a certeza de um estado futuro
de recompensas e punições; que de um politeísmo caótico chegara à crença
em Um Deus, o Criador e mantenedor de todas as coisas - não é impossível
que esse homem tenha ficado tão absorto e perdido na imensidão e profundeza
destas considerações que se tenha tomado insensível aos objetos ao seu redor,
mesmo por um tempo longo como o que foi aqui mencionado” [88:314],
Juntemos o testemunho de Balzac, em Louis Lambert [5:127], no qual é
descrito um estado análogo à catalepsia acompanhando a iluminação nesse
caso.
Se juntamos todos os fatos - a idade de Sócrates na ocasião, o caráter do
homem física, intelectual e moralmente - podemos não estar muito errados
se concluímos que ele pertenceu à categoria de homens de que trata este
livro.
ROGERBACON
1214-1294 (?)
Nem este nem qualquer outro homem deveria ser classificado entre os
membros da nova raça pelo fato de que tinha perspicácia extraordinária,
pois alguns dos maiores intelectos humanos estão claramente fora da Cons­
ciência Cósmica; nem qualquer desenvolvimento extraordinário daquela
faculdade, apenas, levaria um homem a esta consciência. Não é então devido
à sua inteligência, extraordinária como esta parece ter sido, que a questão
“foi Roger Bacon um caso de Consciência Cósmica?” é aqui levantada. Por
outro lado, infelizmente, nenhum detalhe, como iluminação instantânea ou
luz subjetiva, veio até nós como tendo ocorrido neste caso. Tudo que temos
são as referências de Bacon a um certo “Master Peter”, de quem ele recebeu
extraordinária assistência em seu trabalho filosófico. E a questão é: não guar­
dará esse Master Peter [“Mestre Pedro”] a mesma relação para com Bacon
que Cristo para com Paulo, Beatrice para com Dante, Seraphita para com
Balzac, Gabriel para com Maomé? Pois nunca devemos esquecer a qualidade
essencial da mente Cosmicamente Consciente.
Esse, então, segundo Charles [58], era o estado de coisas entre Bacon e
Master Peter. Que cada qual julgue por si mesmo quem ou o que possa ter
sido Master Peter. Charles estivera falando da agitação intelectual e da vida
da época e prossegue: “Em meio a tudo isso, sob que bandeira lutará o estudan­
te de Oxford? Qual mestre escolherá ele entre tantos ilustres doutores? Ele
contempla em seu foco mais brilhante essa ciência de que seus contemporâ­
neos tanto se orgulham e o sentimento que tem não é de entusiasmo mas de
desdém. Escuta as mais eloqüentes vozes, mas para mestre escolhe, não um
Alexander de Hales, ou um Albert, mas uma pessoa obscura de quem a
história nada sabe. Aquela aparente renascença parece-lhe uma verdadeira
decadência. Para ele, aqueles dominicanos e franciscanos são homens igno­
rantes quando comparados com Robert de Lincoln e seus amigos e, os moder­
nos, geralmente bárbaros em contraste com os gregos e os árabes. A experiên­
cia, assim pensa ele, vale mais que todos os escritos de Aristóteles, e um
pouco de gramática e matemática é mais útil que toda a metafísica das escolas.
Assim aplicou-se ele apaixonadamente a essas ciências desdenhadas. Apren­
deu árabe, grego, hebraico, caldeu - quatro idiomas - numa idade em que
Albert sabia somente um deles e em que São Tomás se satisfazia em usar as
más traduções de William de Morbeke. Lê com avidez os livros dos antigos,
estuda matemática, alquimia, óptica. Antes de reformar a educação de sua
época, reconstrói sua própria educação e para este fim associa-se a matemáti­
cos e sábios obscuros, de preferência aos mais renomados filósofos. Alexander
de Hales não lhe inspira outra coisa que não desdém. Albert, a seus olhos, é
ignorante e presunçoso e, sua influência, fatal para a época sobre a qual
estende sua ascendência. Só William of Auvergne merece respeito. Os amigos
que ele valoriza são pessoas menos celebradas - William of Shirwood, segundo
ele muito mais preparado que Albert; Campano de Novarre, matemático e
aritmético; Nicolas, tutor de Amansy de Monfort; John of London, que Jeff
acredita ser John Peckham e, acima de todos, o mais desconhecido, segundo
ele o mais preparado de todos os homens daquele tempo, aquele a quem
venera como seu mestre, admira como exemplo vivo da verdadeira ciência e
que chama de “Master Peter”.
“A julgar pelo retrato que Bacon fez dela, trata-se de uma pessoa singular.
Master Peter é um solitário, tão empenhado em evitar fama como outros em
procurá-la; esforçando-se para velar e esconder sua ciência aos homens e
que a eles recusa a verdade que não são dignos de receber. Master Peter não
pertence a nenhuma das poderosas ordens eclesiásticas da época; não ensina
e não deseja nem estudantes nem admiradores; foge da importunação do
vulgo. E orgulhoso e ao seu desdém do povo une uma fé imensa em si mesmo.
Vive isolado, contente com a riqueza mental que possui e que poderia multipli­
car muitas vezes se assim desejasse. Se se dignasse a ocupar uma cátedra de
professor, o mundo inteiro viria a Paris para ouvi-lo; se quisesse chegar-se a
algum soberano, nenhum tesouro poderia pagar o valor de sua maravilhosa
ciência. Mas ele despreza a massa composta de loucos corrompidos com as
sutilezas da lei, charlatães que por seus sofismas desonram a filosofia, tomam
a medicina ridícula e falsificam a própria teologia. Os mais esclarecidos
dentre eles são cegos ou, se fizessem vãos esforços para usar seus olhos, a
verdade os ofuscaria. Eles são como morcegos no crepúsculo - quanto menos
luz, tanto melhor podem enxergar. Somente ele olha diretamente para o sol
radiante. Escondido num retiro que lhe dá segurança com silêncio, Master
Peter deixa a outrem longos discursos e a guerra de palavras, para se entregar
ao estudo de química, das ciências naturais, da matemática, da medicina e,
acima de tudo, à experiência, cuja importância, em sua época, somente ele
compreende. Seu discípulo o cumprimenta pelo nome dqMaster ofExperience
[“Mestre da Experiência”], que em seu caso substitui os títulos sonoros e
ambiciosos dos outros doutores.
“A experiência lhe revela os segredos da natureza, a arte de curar, fenô­
menos celestes e sua relação com os da Terra; ele não desdenha nada e não
se furta a aplicar a ciência às realidades da Terra comum; ficaria encabulado
se encontrasse um leigo, uma senhora de idade, um soldado ou um camponês
mais bem informados do que ele em assuntos que dissessem respeito a cada
um deles.
“Fundir e forjar metais, manipular prata, ouro e todos os minerais*, inven­
tar instrumentos mortais de guerra, novas armas, fazer uma ciência da
agricultura e do trabalho dos rústicos, não negligenciar a prospecção nem a
arte de construir, buscar com diligência a base da verdade oculta mesmo sob
os encantamentos do feiticeiro, sob as imposturas e os artifícios de
prestidigitadores - este é o trabalho a que devotou sua vida. Ele examinou
tudo, aprendeu tudo, separou em toda parte o verdadeiro do falso e, através
de um deserto vazio e estéril, descobriu uma rota praticável. Acaso deseja-se
acelerar o progresso da ciência? Aí está o único homem à altura da tarefa. Se
ele decidisse divulgar seus segredos, reis e príncipes o coroariam com honras
e prêmios e, numa expedição contra os infiéis, ele prestaria mais serviço a
São Luís do que a metade, ou mesmo todo o seu exército.**
“Foi com esse grande desconhecido, esse gênio não descoberto, cujo nome
ficou sem registro na história da ciência, que (segundo ele) Bacon aprendeu
línguas, astronomia, matemática, ciência experimental, tudo enfim que ele
sabia. Em comparação com esse Master Peter, os estudantes, os professores,
escritores, mestres, pensadores das universidades, eram obtusos, lerdos, insen­
satos [compare-se com Paulo, Bacon, Behmen, Maomé; é realmente um depoi­
mento universal que, quando o Sentido Cósmico aparece, a sabedoria da
autoconsciência é reduzida a pó e cinzas], A devoção de Bacon para com seu
desconhecido mestre deveria resgatar este último da obscuridade em que
está sepultado, mas parece impossível identificá-lo entre o número infinito
de sábios do mesmo nome que podem ser encontrados nos catálogos” [58:14
et seq.].
*
“N o trabalho com máquinas e no comércio, como no trabalho do campo, encontro
os desenvolvimentos e encontro os eternos significados”[193:169],
** O relato acima sobre Master Peter foi colhido por Charles de Opus Tertium,
Opus Minus, de De Septem Peccatis e de outras obras, todas de Bacon.
BLAISE PASCAL
1623-1772
Nasceu em 19 de junho de 1623. Como criança, menino e jovem, foi
extraordinariamente precoce - neste particular comparável a Bacon. Consta
que, embora seus pais tentassem restringir seu desenvolvimento mental, “aos
dez anos ele tinha proposto uma teoria acústica mais avançada do que os
conceitos então em vigor; aos doze tinha desenvolvido a geometria partindo
de suas próprias reflexões; e aos quinze compôs um tratado sobre seções
cônicas que Descartes se recusou a acreditar que tivesse procedido de uma
mente tão jovem” [88:329],
A saúde de Pascal foi durante toda a sua vida delicada. Ele foi provavel­
mente sempre um homem perfeitamente moral, embora fosse afeiçoado à
alegria e aos prazeres sociais de seu tempo e de seu país.
Durante toda sua vida deu evidência abundante de que possuía a um grau
incomum a honestidade mental e a verve que sempre parecem próprias
daqueles que alcançam o Sentido Cósmico.
Em novembro de 1654, com a idade de trinta e um anos e meio, aconteceu
algo que alterou radicalmente a vida de Pascal. A partir desta data ele
praticamente abandonou o mundo e se tornou, assim permanecendo até sua
morte, notadamente religioso e caritativo. Mas a partir daquela data sua
vida passou a ser muito isolada e poucos detalhes parecem ser conhecidos.
Brilhante como era seu intelecto antes de novembro 1654, tornou-se ainda
mais brilhante depois. Por volta de um ano após essa data, começou a escrever
Cartas Provinciais e mais tarde seus Pensées [“Pensamentos”], sendo que
ambos estes trabalhos (embora o segundo seja apenas uma série de notas
para escrever um livro) mostram qualidades mentais extraordinárias. Podese dizer com segurança que ele não poderia ter escrito nem um nem o outro
antes da data acima.
Alguns dias após a morte de Pascal, um criado sentiu, casualmente, algo
duro e grosso sob o tecido de seu gibão. Cortando a costura nessa área,
encontrou um pergaminho dobrado e, dentro deste, um papel dobrado. Ambos
tinham algo escrito com a caligrafia de Pascal, cujas palavras são aquelas
que aqui apresentaremos. O pergaminho e o papel foram entregues à irmã
de Pascal, Madame Périer, que os mostrou a alguns amigos. Todos perceberam
de imediato que aquelas palavras, assim escritas por Pascal em duplicata e
por ele preservadas com tanto cuidado e tanta preocupação (transferindo-as
ele próprio, como o fez, de gibão para gibão), deviam ter tido a seus olhos
um significado profundo. Algum tempo após a morte de Madame Périer
(que aconteceu vinte e cinco anos depois da morte de seu irmão), seus filhos
mostraram esses documentos a um frade que era um amigo íntimo da família.
Ele copiou o documento e escreveu algumas páginas de comentário sobre
ele, a que Marguerite Périer acrescentou mais algumas páginas. Esses
comentários estão agora perdidos, bem como o pergaminho. Mas a cópia em
papel, na escrita de Pascal, existe ainda na Bibliothèque Nationale de Paris.
Foi Cordecet quem deu ao documento o nome de “Amulette Mystique de
Pascal” [“Amuleto Místico de Pascal”] [112a: 156].
Traduzidas, as palavras do amuleto são as seguintes: “O ano da graça
1654, segunda-feira, 23 de novembro, dia de São Clemente, Papa e Mártir.
A partir de aproximadamente dez horas e meia da noite, até aproximadamente
meia-noite e meia, FOGO. Deus de Abraão, Deus de Isaac, Deus de Jacob,
não dos filósofos nem dos Sábios. Asseguramento, alegria, asseguramento,
sentimento, alegria, paz. DEUS DE JESUS CRISTO, meu Deus e teu Deus.
Teu Deus será meu Deus. Esquecido do mundo e de todos, exceto de DEUS.
Ele só é encontrado pelos meios ensinados no Evangelho. A SUBLIMIDADE
DA ALMA HUMANA. Justo PAI, o mundo não te conheceu, mas eu te
conheci. Alegria, alegria, alegria, lágrimas de alegria. Não me separo de ti.
Eles me deixaram para trás, eu, uma fonte de água viva. Meu Deus, não me
deixes. Que eu não seja separado de ti, eternamente. É vida eterna que eles
devam conhecer a ti, o único verdadeiro Deus e àquele a quem enviaste.
JESUS CRISTO - JESUS CRISTO. Separei-me dele; fugi, renunciei,
crucifiquei-o. Que eu não esteja para sempre separado dele. Só se é salvo
pelo ensinamento do Evangelho. DOCE E TOTAL RECONCILIAÇÃO. Total
submissão a JESUS CRISTO e a meu DIRETOR. Alegria contínua para os
dias de minha vida na terra. Não esquecerei o que me ensinaste. Amém.”*
* Lelut [112a: 154] dá as palavras exatas do amuleto, sua form a e seu arranjo,
como segue:
S j L 'c .
''/V ?
L’an de grâce 1654
Lundy 23e nov^re jour de S1 Clement
Pape et m. et autres au martirologe Romain
veille de St. Crisogone m. et autres, etc. . . .
Depuis environ diz heures et demi du soir
jusques environ minuit et demi.
FEU
Dieu d’Abraham. Dieu d’Isaac. Dieu de Jacob
non des philosophes et des savans
Certitude joye certitude, sentiment, veue joye paix.
Dieu de Jésus christ
Deum meum et Deum vestrum
Jeh. 20. 17.
Ton Dieu sera mon Dieu. Ruth.
Oubly du monde et de tout hormis Dieu
Il ne se trouve que par les voyes enseignées
dans l’Evangile. Grandeur de l’ame humaine.
Père juste, le monde ne t’a point
connu, mais je t’ai connu. Jeh. 17
Joye, joye, joye, et pleurs de jo y e ________________
Je m’en suis séparé_____________________________
Dereliquerunt me fontem aquae v ivae__________
mon Dieu me quitterez v o u s____________________
que je n’en sois pas séparé éternellement.
Cette est la vie éternelle qu’ils te connaissent
Seul vray Dieu et celuy que tu as envoyé
Jésus christ________________________
Jésus christ________________________
T ,
, je l’av fuy renoncé, crucifié
Je m en suis séparéJ
J
que je n ’en sois jamais séparé_____________
Il ne se conserve que par les voyes ensignées
dans l’Evangile
Renonciation totale et douce
~ --------------- v M
Soûmission totale à Jésus christ et à mon Directeur.
i
éternellement en joye pour um jour d’exercice sur la terre >
I
non obliviscar sermones tuos. Amen.
/ I
Ninguém que tenha lido este livro até este ponto terá, creio eu, a menor
dúvida quanto ao significado das palavras do amuleto.
Evidentemente, a luz subjetiva foi fortemente acentuada. Imediatamente
em seguida vem o sentido de libertação, salvação, alegria, contentamento,
intensa gratidão. Depois a percepção da grandeza da alma humana,
imediatamente seguida do êxtase da percepção de Deus. Ele olha para trás e
percebe o quanto sua vida e suas ambições foram fúteis até então. Toma
então consciência de sua atual reconciliação com o cosmo e de que o resto de
sua vida deverá ser uma alegria contínua.
As palavras do amuleto, o cuidado e o sigilo com que ele foi preservado,
sua data relativamente à idade de Pascal, o esplêndido intelecto de Pascal e
seu caráter anterior até onde é conhecido por nós, a mudança em sua vida,
síncrona com a data do amuleto, sua exaltação moral e sua iluminação
intelectual a partir daquela data e depois dela; acima de tudo, a luz subjetiva,
que parece ter sido mais do que comumente acentuada e continuada por
mais tempo que usualmente, embora no caso de Juan Yepes se diga que
tenha durado uma noite inteira [112:108], Todos estes aspectos, tomados em
conjunto, tornam certo na mente do autor que Pascal foi um caso de
Consciência Cósmica. Naturalmente, tem sido dito de Pascal, como o foi de
Jesus, Paulo, Blake e outros, que ele era insano; mas eu não vejo nenhum
sinal de qualquer coisa desta espécie. As palavras do amuleto dão testemunho
de que foram escritas imediatamente após a iluminação (ao que parece, antes
de ele se deitar naquela noite). Elas são, portanto, até certo ponto incoerentes.
Dão testemunho de alegria, triunfo, iluminação, e não de doença. O homem
que as escreve apenas acabou de ver o Esplendor Bramânico e sentiu a Bemaventurança Bramânica. Só isso.
BENEDICTUS SPINOZA
1632-1677
Nasceu em Amsterdã, a 24 de novembro de 1632, filho de um judeu
português e ele próprio judeu até a idade de vinte e quatro anos, quando foi
“solenemente excluído da Comunidade de Israel” [87b:400]. Era um latinista
emérito e um entusiástico discípulo de Descartes, embora tenha deixado de
ser seu seguidor no final dos cinco anos de estudo e pensamento concentrado
que se seguiram à sua excomunhão. Este não é o lugar para insistirmos
quanto à grandeza de Spinoza, que aliás deve ser conhecida de todos que
lêem livros sérios.
Poucos modernos realmente têm sido tão endossados pelo discipulado de
grandes homens como ele - pelo de Goethe, por exemplo, de Coleridge, de
Novalis, Hegel, Lessing, Schelling, Scheiermacher e muitos outros. Isto é
tão verdadeiro que “se admite que Spinoza seja o fundador da filosofia
moderna” [133:372].
Não será possível mostrar que Spinoza tenha sido um caso de Consciência
Cósmica no mesmo sentido em que pode ser mostrado, por exemplo, que
Juan Yepes foi um caso; não temos os necessários detalhes de sua iluminação.
Tudo que podemos fazer é relatar os fatos de que dispomos e deixar o leitor
julgar por si próprio. Consideraremos primeiro a natureza de seu ensinamento
filosófico e depois os fatos de sua vida real. Verificaremos que ambos apontam
quase inevitavelmente para a mesma conclusão. Spinoza (por exemplo) “não
pode admitir que o pecado e o mal tenham qualquer realidade positiva, muito
menos que qualquer coisa aconteça contrariamente à vontade de Deus. Não
é apenas uma maneira inexata e humana de falar, dizer que o ser humano
pode pecar contra Deus e ofender a Deus” [133:47], E: “O Universo é regido
por leis divinas, que, ao contrário das que são feitas pelo homem, são
imutáveis, invioláveis e um fim em si mesmas e não instrumentos para se
alcançar objetivos particulares. O amor de Deus é o único verdadeiro bem do
ser humano. De outras paixões podemos nos livrar, mas não do amor,
porquanto pela fraqueza de nossa natureza não poderíamos subsistir sem o
gozo de alguma coisa que pudesse nos fortalecer por nossa união com ela.
Somente o conhecimento de Deus nos capacitará a dominar paixões
perniciosas. Este, como a fonte de todo conhecimento, é o mais perfeito de
todos; e, na medida em que todo conhecimento é derivado do conhecimento
de Deus, podemos conhecer Deus melhor do que conheçamos a nós mesmos.
Este conhecimento, no devido tempo, leva ao amor de Deus, que é a união
da alma com Ele. A união da alma com Deus é seu segundo nascimento e
nisto consistem a imortalidade e a liberdade do ser humano” [133:86]. A
última oração deste período, transcrito em itálico pelo autor deste livro, se
tomada absolutamente, decide a questão - pois a união da alma com Deus é
iluminação, é o segundo nascimento e nele estão a imortalidade e a liberdade.
E ele diz ainda: “O amor a uma coisa eterna e infinita alimenta a mente com
alegria pura e é completamente livre de tristeza; isto é algo a ser altamente
desejado e ardentemente procurado” [133:116], É a Bem-aventurança
Bramânica - a alegria que Whitman, Carpenter, Yepes e os demais nunca se
cansam de celebrar.
Então, mais adiante, ele nos diz que o bem principal é ser dotado de certo
caráter. “O que seja esse caráter, mostraremos em seu devido lugar - isto é,
que ele consiste no conhecimento da união que a mente tem com o todo da
natureza” [133:118], Mas esse conhecimento não existe àparte da iluminação,
enquanto, por outro lado, todos aqueles que entraram em Consciência
Cósmica o possuem. Assim, Spinoza, ao invés de procurar na maneira usual
uma explicação artificial para a correspondência de duas coisas assim
(aparentemente) diferentes, como o corpo e a mente, diz ousadamente que
“são a mesma coisa e diferem apenas como aspectos” [133:180]. Assim
Whitman (e todos os demais, em linguagem diferente): “Estava alguém pe­
dindo para ver a alma? Que veja sua própria forma e fisionomia, etc.” [193:25].
Assim, além disso, Spinoza mais de uma vez classifica as espécies de nosso
conhecimento de maneira a tomar necessária a inclusão do que é neste livro
chamado de intuição, que é a forma que pertence à mente Cosmicamente
Consciente e só a esta mente. Diz ele, por exemplo: “Podemos aprender
coisas (1) por ouvir dizer ou por alguma autoridade; (2) pela mera sugestão
da experiência; (3) por raciocínio; (4) por percepção completa e imedia­
ta” [ 133:119 e 188]. E diz também que este último modo de conhecer “procede
de uma idéia adequada da natureza absoluta de algum atributo de Deus para
um conhecimento adequado da natureza das coisas”. Isto é, o ser humano
entra em relação consciente com Deus (no ato da iluminação) e, através
desse contato - até onde ele alcança - tem um “conhecimento adequado das
coisas”. É duvidoso que qualquer ser humano meramente autoconsciente
pudesse ter usado esta linguagem, pois para um ser humano assim nada
parece mais absurdo que uma asserção de conhecimento por simples intuição
e, no entanto, nada é mais certo do que esse conhecimento seja assim
adquirido. O seguinte é igualmente característico: “Conhecer Deus - em
outras palavras, conhecer a ordem da natureza e encarar o universo como
ordenado - é a mais alta função da mente; e o conhecimento, como a forma
perfeita da atividade normal da mente, é bom em si mesmo e não como um
meio” [133:241], Se Spinoza quer dizer aqui (como parece provável que
queira) o mesmo que Balzac quando falou do especialismo, dizendo que “é o
único que pode explicar Deus”, então Spinoza foi um especialista. Assim,
quando ele diz que “o conhecimento claro e distinto de natureza intuitiva
engendra o amor a um ser imutável e eterno, verdadeiramente dentro de
nosso alcance”[133:268], ele implica em si próprio a posse da Consciência
Cósmica e ensina que ela está ao alcance de todos. Igualmente característico
é o seguinte: “Em todo conhecimento exato, a mente conhece a si mesma
sob a forma de eternidade; vale dizer, em todo ato desse gênero ela é eterna
e sabe que é eterna. Essa eternidade não é persistência no tempo após a
dissolução do corpo, assim como não é preexistência no tempo, pois não é
em absoluto comensurável com o tempo. E a ela está associado um estado ou
uma qualidade de perfeição denom inada o amor in te le ctu a l de
£>ews”[ 133:269], Spinoza, como Whitman, ensinava que “na verdade, não
existe o mal” [193:22]; diz ele: “A perfeição das coisas é para ser reconhecida
somente em função de sua própria natureza e seu poder; e as coisas não são
ali mais ou menos perfeitas conforme agradem ou desagradem ao sentido
dos seres humanos, ou sejam convenientes para a natureza do ser humano
ou a ela repugnantes. Se alguém pergunta por que Deus não criou todos os
seres humanos de modo que pudessem ser regidos somente pela razão, não
dou nenhuma resposta senão esta: Porque não lhe faltou matéria para criar
todas as coisas, mesmo desde o mais alto grau de perfeição até o mais baixo.
Ou mais exatamente assim: Porque as leis de sua própria natureza eram tão
vastas que eram suficientes para produzir todas as coisas que podem ser
concebidas por uma inteligência infinita”[133:327], Como observa Pollock,
esta é “uma mente infinita hipotética, que deve ser distinguida do intelecto
infinito, que conhecemos como uma das coisas imediatamente produzidas
por Deus” [133:328],
Finalmente, Spinoza resume tudo na seguinte nobre passagem: “Terminei
tudo que desejava explicar a respeito do poder da mente sobre as emoções e
a respeito da sua liberdade. Do que foi dito vemos qual é a força do sábio e
quanto ele ultrapassa o ignorante, que é impelido por desejo cego. Pois o
homem ignorante [a mente autoconsciente - compare-se Balzac - supra e
[5:144], onde ele classifica a mente humana como Spinoza o faz aqui] não
somente é agitado por causas externas de muitas maneiras e jamais goza da
verdadeira paz da alma, mas vive também na ignorância, por assim dizer,
tanto de Deus como das coisas e, tão logo cessa de sofrer, cessa também de
ser. Por outro lado, o sábio [o ser humano Cosmicamente Consciente], na
medida em que seja assim considerado como tal, raramente é movido em sua
mente, mas, sendo consciente de Deus e das coisas por certa eterna
necessidade de si mesmo, nunca cessa de ser e sempre desfruta a verdadeira
paz da alma. Se o caminho que leva a isso [isto é, à Consciência Cósmica]
como mostrei, parece muito difícil, ele pode não obstante ser encontrado.
Deve ser realmente difícil, visto que tão raramente é descoberto; pois se a
salvação estivesse à mão e pudesse ser descoberta sem grande trabalho, como
seria possível que fosse negligenciada quase por todo mundo? Mas todas as
coisas nobres são tão difíceis quanto são raras” [170a:283].
Agora, algumas palavras sobre as características pessoais do homem.
John Colerus, ministro da igreja Luterana em Haia durante um período de
residência de Spinoza nesta cidade, conheceu-o bem, e o que segue será
tirado em grande parte de sua narrativa, que está incluída no livro de Sir
FrederickPollock. Diz Colerus: “Spinoza tinha estatura média, boas feições,
pele escura, cabelos pretos ondulados, sobrancelhas pretas longas, de maneira
que se podia facilmente saber, por sua aparência, que ele era descendente de
judeus portugueses. Quanto a suas roupas, era muito descuidado; elas não
eram melhores do que as do mais humilde cidadão”[133:394].
Na verdade, Spinoza era muito pobre. Como Thoreau, Whitman,
Carpenter, Buda, Jesus e muitos outros homens de sua categoria, parecia
preferir a pobreza. Ganhava um sustento bastante simples polindo lentes
para telescópios. Várias vezes pessoas abastadas que o conheciam e que
gostavam dele lhe ofereceram dinheiro, mas ele sempre recusou, até que um
amigo, de Vries, de quem se recusara durante sua vida a aceitar dinheiro, ao
falecer encarregou seu irmão, que era seu herdeiro, de pagar a Spinoza, de
seus bens, uma manutenção adequada. O irmão quis pagar a Spinoza
quinhentos florins por ano, mas Spinoza só aceitou trezentos - cerca de
cento e cinqüenta dólares [87b:401], Spinoza viveu da maneira mais simples
possível e nunca se casou; viveu a maior parte de sua vida com outros, pagando
pensão; o resto do tempo viveu só em hospedarias, comprando o que
necessitava e mantendo-se muito isolado. “É difícil acreditar o quanto ele
era sóbrio e frugal todo o tempo. Não que estivesse reduzido a uma pobreza
tão grande que não tivesse condição de gastar mais se o quisesse. Tinha
amigos suficientes, que lhe ofereciam ajuda monetária e todo tipo de
assistência. Mas era naturalmente muito sóbrio e podia se satisfazer com
pouco, além de que não se importava que as pessoas pensassem que ele
tivesse vivido, mesmo que apenas uma vez, a expensas de outros homens. O
que digo a respeito de sua sobriedade e de sua capacidade de administrar sua
economia pode ser provado por uma série de pequenos cálculos que foram
encontrados entre seus papéis após sua morte. A julgar por esses cálculos,
parece que ele vivia um dia inteiro com uma sopa de leite com manteiga, que
custava três pence, e com uma caneca de cerveja de um penny e meio. No dia
seguinte não comia nada além de um mingau feito com passas e manteiga, e
este prato lhe custava quatro pence e meio. Entre esses cálculos contam-se
apenas dois “half-pints” de vinho por mês [sendo cada “pint” equivalente a
cerca de meio litro], no máximo e, embora fosse muitas vezes convidado a
comer com seus amigos, preferia viver com o que tinha em casa, ainda que
fosse sempre tão pouco, a sentar numa boa mesa à custa de outro
homem” [133:393], “Sua conversa era muito agradável e fácil. Sabia
admiravelmente bem dominar suas paixões e jamais foi visto muito
melancólico nem muito alegre. Era muito cortês e obsequioso e com
freqüência conversava com a senhoria e as pessoas da casa, quando estavam
adoentadas ou aflitas - nunca deixando de confortá-las. Fazia com que as
crianças se dispusessem a ir à igreja e as ensinava a serem obedientes e
cumpridoras de seus deveres para com seus pais. Um dia sua senhoria lhe
perguntou se ele acreditava que ela pudesse ser salva na religião que
professava. Ele respondeu: Sua religião é boa; a senhora não precisa procurar
outra nem duvidar que possa ser salva nela, desde que, ao mesmo tempo
que se dedique a suas devoções, leve uma vida pacífica e quieta. Quando
ele estava em casa, não causava problemas a ninguém; passava a maior
parte do tempo silenciosamente em seu quarto. Quando estava cansado por
se ter aplicado demais a suas meditações filosóficas, descia para descansar e
falava com as pessoas da casa sobre qualquer coisa que pudesse proporcionar
assunto para uma conversa comum e mesmo sobre banalidades. Tinha também
prazer em fumar cachimbo”[133:395],
Spinoza nunca foi um homem robusto. “A tuberculose andara fazendo
suas incursões em seu organismo por muitos anos e, no início de 1677, ele já
devia estar consciente de que estava gravemente doente. No dia 20 de
fevereiro, um sábado, mandou chamar seu amigo de Amsterdã, o Dr. Meyer.
No dia seguinte, as pessoas da família com que ele vivia, não vendo perigo
imediato, foram ao culto da tarde. Quando voltaram, Spinoza já não estava
mais vivo; tinha falecido mais ou menos às três da tarde, com Meyer como a
única testemunha de seus últimos momentos”[87b:403]. Por ocasião de seu
falecimento, Spinoza tinha quarenta e quatro anos e três meses de idade.
Tudo o que resta é mostrar que, assim como em sua vida e seus ensinamen­
tos, assim em seu reconhecimento pelo mundo Spinoza está estreitamente
ligado à categoria de homens a que aqui procuramos associá-lo. “O primeiro
efeito de seus escritos na Holanda foi levantar uma tempestade de indignada
controvérsia”[133:349], E o homem que Novalis descreveu corretamente
como “ébrio de Deus” foi classificado como “blasfemo, ateu, enganoso”,
enquanto seus livros foram descritos como “as obras destruidoras da alma,
de Spinoza” [ib.]. Por uma centena de anos após sua morte pouco foi lido,
mas depois disto, mais e mais; e agora ele está situado no nível a que pertence,
como um dos grandes líderes espirituais da espécie humana.
CORONEL JAMES GARDINER
1688-1745
Nasceu em 10 de janeiro de 1688. Diz-se que travou três duelos antes de
se tornar adulto. Entrou jovem no exército e lutou com muita bravura. Consta
que suas relações com mulheres eram livres e mesmo licenciosas. Não era
religioso, bem ao contrário, mas às vezes sofria “inexprimível remorso” por
causa da vida que levava, que lhe parecia má. Em meados de julho de 1719,
quando tinha trinta e um anos e meio de idade, ocorreu o evento que lhe dá
um lugar neste livro: “Ele passara a primeira parte da noite com alguns
companheiros alegres e tinha um encontro amoroso com uma mulher casada,
com quem tinha o compromisso de se encontrar exatamente à meia-noite. A
reunião com aqueles companheiros terminou às onze e, não achando
conveniente antecipar a hora marcada para o encontro, foi para seu quarto a
fim de matar a hora ociosa, talvez com algum livro divertido, ou de algum
outro modo. Mas aconteceu, muito acidentalmente, que ele pegou um livro
religioso que sua bondosa mãe ou sua tia pusera sem ele saber em sua valise.
Se lembro o título exato, o livro era The Christian Soldier, or Heaven Taken
by Storm [“O Soldado Cristão, ou o Céu Tomado de Assalto”] e fora escrito
por Thomas Watson. Julgando pelo título que encontraria algumas frases
relativas à sua própria profissão, escritas num modo espirituoso que ele achou
que poderia lhe proporcionar alguma diversão, resolveu lê-lo; mas não deu
nenhuma atenção séria a qualquer coisa nele.* Mesmo assim, enquanto o
livro estava em suas mãos, foi causada em sua mente uma impressão (talvez
só Deus saiba como) que trouxe uma série de conseqüências das mais
importantes e felizes. Ele pensou que viu um facho incomum de luz caindo
sobre o livro que estava lendo, o que a princípio imaginou que podia ter
acontecido por algum acidente com a vela; mas levantando os olhos constatou,
para seu extremo assombro, que havia diante dele, como que suspensa no ar,
* Ele estava bem acordado - provavelmente mais acordado que de costume - e ao
mesmo tempo sua mente (no momento) estava aberta, em branco. Esta é uma
condição que, segundo nos dizem as pessoas que são autoridades no assunto, desde
Gautama até o presente, é sine qua non para o advento da iluminação.
uma representação visível do Senhor Jesus Cristo na cruz, rodeada em todos
os lados de um resplendor, e teve a impressão de que uma voz ou algo equi­
valente a uma voz** se manifestou a ele mais ou menos com este sentido
(pois não tinha certeza quanto às palavras): ©f), pecabor, tubo tóto «ofrí por ti, r
t eifta tua rrtrifiuífáo? Impressionado com esse fenômeno espantoso, dificilmente
restou alguma vida nele***, de modo que ele afundou na poltrona em que
estava sentado e continuou insensível, não sabendo por quanto tempo”[107:286]. Consta que o efeito imediato da experiência de Gardiner foi
um conhecimento, ou melhor, uma visão, da “majestade e benevolência de
Deus” e sua vida posterior (um período de vinte e seis anos) foi de uma
notável excelência. O “novo homem” foi tão virtuoso, puro e piedoso como o
“velho homem” havia sido licencioso e profano [107:71].
**
Quanto à objetividade ou à subjetividade da “voz” em tais casos, ver as observa­
ções sob o título de “Moisés”- naturalmente, o que a pessoa vê cai na mesma
categoria.
**» “Menos de uma dracma de sangue resta em mim que não esteja tremendo”, diz
Dante em circunstâncias semelhantes [71:192],
SWEDENBORG
1688-1772
Independentemente da iluminação, Swedenborg foi um dos grandes ho­
mens de todos os tempos - um grande pensador, um grande escritor, um
grande cientista, um grande engenheiro. Em 1743, aos cinqüenta e quatro
anos, algo aconteceu - alguma mudança ocorreu nele; não parece ter sido
qualquer forma de insanidade, pois não estava doente, mantinha todas as
suas amizades e mesmo as aumentava e, aparentemente, era completamente
insuspeito de qualquer alienação mental por parte daqueles que o cercavam.
Seu próprio relato de sua iluminação, a seu amigo Robsahm, até onde chega
é muito característico; ele conta que Deus lhe apareceu e disse: Cu íou ©tu«,
o ã>tnl)or, o Criabor t &tbtntor bo tnunbo. Mti tstolln para rtbtlar o átntíbo tápírítual
baí á&agrabaí «&strituras, «u mtsmo bítareí a tí o p t bttotrá« eácrrttr [87a:759],
Todos os estudantes da vida de Swedenborg admitem que a mudança foi
de fato uma iluminação; que, pondo de lado suas visões de anjos e demônios,
ele realmente teve daí em diante um discernimento espiritual superior ao
dos homens comuns e, se foi um visionário, também “levou a vida mais real
de qualquer homem então no mundo” [87a: 96]. Quanto a suas visões, podese dizer que não eram fundamentalmente diferentes das visões de Blake,
Behmen, Dante e outros. Deve ser lembrado que esses homens vêem coisas
que nós não vemos - coisas que estão fora da nossa linguagem; se no entanto
eles usam esta linguagem (que é tudo que têm) para colocá-las diante de nós,
parece inevitável que não devamos entender suas palavras como eles as
entendem. O resultado, no caso de todo e qualquer desses expositores, por
mais comum que ele tente ser - nos casos de Jesus, Gautama, Paulo e todos
os demais - é um terrível mal-entendido e confusão; no entanto, apesar de
tudo, alguma coisa passa desses homens para nós, mais importante que tudo
o que poderíamos obter dos cientistas e filósofos comuns.
Muitos fatos indicam que Swedenborg pode ter pertencido à categoria de
homens em questão aqui. “Nunca se casou. Tinha grande modéstia e delica-
deza de comportamento. Seus hábitos eram simples; vivia de pão, leite e
vegetais” [87a: 98], “Era um homem que conquistava o respeito, a confiança
e o amor de todos que tinham contato com ele”[87a:759], Embora muitos
daqueles que o cercavam não acreditassem em suas visões, respeitavam-no
demais para fazer pouco delas na sua presença. Seu ensinamento é
basicamente o de todos os grandes videntes - que Deus em Si é amor infinito
- que sua manifestação, sua forma ou seu corpo é sabedoria infinita - que o
amor divino é a auto-subsistente vida do universo [87a:759],
Swedenborg destoa desses casos especialmente pela sua idade (cinqüenta
e quatro anos) na iluminação. Parece incrível que um homem pudesse
continuar crescendo até essa idade; no entanto isto é o que devemos crer se o
incluímos aqui. Maomé tinha trinta e nove, Las Casas quarenta, C.M.C.
quarenta e nove; estes são casos incontestáveis e não parece que a história
pessoal de Swedenborg possa ser explicada com base em qualquer outra
hipótese.
WILLIAM WORDSWORTH
1770-1850
Que a mente desse escritor (quase um poeta, se não exatamente isto), em
seus momentos de disposição de espírito mais sublime, alcançou uma condição
muito próxima à Consciência Cósmica, se é que ele não entrou efetivamente
no território mágico do reino dos céus, ninguém que saiba o que estas palavras
significam e que também já o tenha lido com alguma consonância há de
negar. Na verdade, os breves trechos que seguem, de versos escritos em Tintem
Abbey, em seu vigésimo nono ano, provam isto. No primeiro verso ele fala
de “aquela abençoada disposição”.
Em que o fardo do mistério,
Em que o denso e enfadonho peso
De todo este ininteligível mundo,
É aliviado: - aquela serena e abençoada disposição
Em que gentilmente nos impelem as afeições,
Até que, o sopro desta estrutura corpórea
E mesmo o movimento de nosso humano sangue
Quase suspensos, a dormitar somos postos
N o corpo, e se torna uma alma vivente.
Enquanto com um olho aquietado pelo poder
Da harmonia, e o profundo poder da alegria,
N o âmago da vida das coisas vemos [198:187],
Este trecho indica claramente o alívio (próximo a alegria) e o esclareci­
mento (próximo a iluminação) que são próprios do sol do Sentido Cósmico
ainda não nascido. Mas não há indício de que nele, em qualquer momento,
o sol tenha efetivamente nascido - de que o véu tenha sido rasgado e o
esplendor tenha entrado; de fato pode ser considerado bem claro que isto
não aconteceu. Então, no verso seguinte, vem a dúvida usual:
Se esta nada mais seja que uma crença vã
(se a revelação mereça crédito ou não) - questão nunca levantada, pelo menos
após os primeiros minutos ou as primeiras horas, por uma pessoa que tenha
obtido mesmo um vislumbre do “Esplendor Bramânico”.
Mais adiante, no mesmo poema, há um outro trecho que descreve com
outras palavras a mesma condição mental, que pode ser apropriadamente
chamada de o crepúsculo da Consciência Cósmica:
Senti
Uma presença que com a alegria me disturba
De elevado pensamento; um sublime senso
D e algo bem mais profundamente permeado,
Cuja morada a luz de sóis poentes é,
E o redondo oceano e o vivente ar,
E o céu azul, e na mente do homem Um movimento e um espírito, que impele
Todos os seres pensantes, todos os objetos de todo pensamento,
E através de todas as coisas rola [198:189],
CHARLES G. FINNEY
1792-1875
Este caso é de interesse maior do que o comum, pelo fato de que, embora
nele tenha ocorrido quase certamente, embora não fortemente marcado, o
fenômeno da luz subjetiva, juntamente com acentuada exaltação moral e
provavelmente alguma iluminação intelectual, mesmo assim ele não foi
coroado pela visão Cósmica - o Esplendor Bramânico. Não é portanto
completo, mas apenas parcial ou imperfeito.
Que a iluminação de Charles G. Finney não foi acompanhada da
consciência do Cosmo é coisa certa, porque a narrativa da visão Cósmica,
tivesse esta acontecido, não poderia ter sido omitida de seu relato de sua
“conversão”, da qual teria sido o aspecto mais impressionante - o verdadeiro
âmago e centro. O que ele efetivamente viu e sentiu foi bastante maravilhoso
e impressionante. Como ele teria ficado surpreso e provavelmente incrédulo
se tivesse sido informado de que, embora tivesse alcançado o umbral da
Divina Presença de que estivera tão próximo e a tivesse sentido fortemente,
a visão que tanto teria significado para ele estivera ainda oculta por trás do
véu dos sentidos e para aquela ocasião lhe fora negada!
Assim a vida deste homem, embora pela experiência daquele dia de outono
infinitamente exaltada em comparação com a da média dos homens
autoconscientes, está analogamente abaixo da vida dos homens que não
apenas sentiram Aquele que é Infinito, como Charles G. Finney O sentiu,
mas que passaram à Sua presença e viram Sua inconcebível glória.
A diferença apontada pode ser claramente compreendida fazendo-se uma
comparação do livro que Charles G. Finney nos deixou com os livros que
fizeram época - os Suttas (por exemplo), os Evangelhos, as Epístolas , o
Alcorão, a Divina Comédia, as obras de “Shakespeare”, a Comédie Humaine,
Leaves o f Grass e os demais - inspirados ou escritos pelos homens a quem
foi mostrado o Esplendor Bramânico como um fato visível.
A iluminação de Charles G. Finney teve lugar no começo de seus trinta
anos - a saber, em outubro de 1821. Ele tinha o usual temperamento religioso
devoto e por algum tempo estivera grandemente problematizado quanto ao
seu estado espiritual, ardentemente desejando a salvação mas incapaz de se
assegurar dela. Então ocorreu o que ele chama de sua “conversão”. Diz ele:
A elevação de minha alma foi tâo grande que eu corri para o quarto que ficava
atrás do escritório da frente, para orar.
N ão havia fogo ou luz no quarto; não obstante, parecia como se ele estivesse
perfeitamente iluminado. Conforme eu entrei e fechei a porta, pareceu como se tivesse
encontrado o Senhor Jesus Cristo face a face. Não me ocorreu que se tratava
completamente de um estado mental; pareceu que eu o vi como teria visto qualquer
outro homem. Ele nada disse, mas me olhou de tal maneira que me fez prostrar-me
a seus pés. Desde então sempre considerei isto um estado mental bastante especial;
pois pareceu-me que ele estava de pé diante de mim e eu caí a seus pés e abri minha
alma para ele. Chorei alto como uma criança e fiz as confissões que pude com a voz
sufocada.
Devo ter continuado nesse estado por um bom tempo; mas minha mente estava
absorta demais para se lembrar de qualquer coisa que eu tivesse dito. Mas sei que,
tão logo minha mente se acalmou, eu retornei ao escritório da frente e vi que o fogo
que tinha feito com madeira grossa estava quase apagado. Mas conforme eu me virei
e estava prestes a me sentar perto do fogo, recebi um poderoso batismo do Espírito
Santo. Sem esperar por isto, sem jamais ter tido a idéia em minha mente de que
houvesse tal coisa para mim, sem qualquer lembrança de que eu jamais tivesse
ouvido tal coisa mencionada por qualquer pessoa no mundo, o Espírito Santo desceu
sobre mim, de um modo que parecia entrar em mim, corpo e alma.
Não há palavras para expressar o maravilhoso amor que foi derramado em meu
coração. Chorei alto, com alegria e amor; e não sei, mas eu diria que literalmente
gritei os inexprimíveis jorros de meu coração. Estas ondas me perpassaram, me
perpassaram, me perpassaram, uma após a outra, até o momento em que me lembro
de ter gritado: “Eu vou morrer se estas ondas continuarem a passar por mim”. E
disse: “Senhor, não posso mais agüentar”; mesmo assim não sentia nenhum medo da
morte.
Por quanto tempo continuei nesse estado, não sei. Mas era tarde da noite quando
um integrante de meu coro veio me ver. Era um dos fiéis da igreja. Ele me encontrou
naquele estado de choro alto e perguntou: “Sr. Finney, o que é que há com o senhor”?
Não consegui formular nenhuma resposta por algum tempo. Então ele perguntou:
“Está com alguma dor?” Procurei me recompor e respondi: “Não, mas estou tão feliz
que não posso viver” [104:17-18],
Depois disso, a longa, laboriosa e beneficente vida deste homem provou,
se é que uma prova fosse necessária, que sua “conversão” não foi nenhuma
excitação acidental que pudesse ter acontecido a qualquer homem, mas uma
marca inequívoca de superioridade espiritual.
Finney tinha também, a um grau extraordinário, o magnetismo pessoal
que é tão característico da categoria de homens a que ele pertencia. O efeito
de sua pregação foi indescritível, mas é duvidoso que as palavras pronunciadas
tenham tido muito a ver com seu excepcional poder. Sua presença, seu toque,
o som de sua voz, pareciam muitas vezes suficientes para despertar
sentimentos inefáveis - para exaltar e regenerar de um modo que pode
razoavelmente ser chamado de milagroso.
Não tendo efetivamente Consciência Cósmica, ele não tinha a dupla
personalidade típica de tais casos e, mesmo assim, tinha um sentimento do
outro Eu em seu interior, que em caso de iluminação plena teria se destacado
como o “Eu-sou”, ao passo que o homem autoconsciente teria passado para
o segundo lugar como “O Outro Eu-sou”. Ilustrando essa dupla personalidade
incipiente, ele diz: “Que ninguém pense que aqueles sermões, que foram
classificados como tão poderosos, foram produções de minha própria mente
ou de meu próprio coração, sem a assistência do Espirito Santo. Eles não são
meus, mas do Espirito Santo em mim”.
Finalmente deve ser notado que a vida e a obra de Charles G. Finney
seguiram linhas rigorosamente paralelas, embora num plano menos elevado,
às da vida e da obra dos grandes líderes religiosos, tendo ele, como esses
líderes, empregado todo o seu tempo e a sua energia trabalhando para ajudar
seus irmãos e irmãs num plano moral mais alto do que aquele em que eles
tinham vivido até então, sendo que a única diferença era que aqueles líderes
trabalharam num nível moral ligeiramente mais alto que aquele em que ele
trabalhou.
ALEXANDER PUSHKIN
Nasceu em 26 de maio de 1799. Faleceu em 29 de janeiro de 1837.
Se Pushkin baseou os versos seguintes em sua própria experiência, quase
certamente foi um caso de Consciência Cósmica. Seja como for, o poder
descritivo desses versos toma-os dignos de serem citados. A tradução para
inglês é de Dana, do New York Sun:
Pela sede do espírito atormentado,
Por tenebrosa floresta me arrastava, (*1)
Quando um serafim (*2) de seis asas
A mim na encruzilhada apareceu.
Com dedos leves como um sonho
Meus olhos ele tocou,
E muito se abriram meus olhos,
Qual os de amedrontada águia-fêmea.
Meus ouvidos tocou ele,
E rugir e ruído os encheram;
E dos céus o tremor ouvi;
E dos anjos o alto vôo,
E no fundo do mar das criaturas o movimento,
E nos vales da relva o crescimento!
E ele meus lábios pegou,
E minha pecaminosa língua rasgou Pecaminosa, frívola e astuta;
E de sábia serpente as presas,
Entre meus inconscientes lábios,
Com a ensangüentada mão direita plantou.
E meu peito com uma espada cortou,
E o trêmulo coração arrancou,
E brilhante e chamejante carvão,
Dentro do peito aberto empurrou.
Como um cadáver no deserto fiquei, (*3)
E de Deus a voz me chamou:
Levanta-te, Profeta, e vê e compreende! (*4)
De Minha Vontade enchido pleno,
Mar e terra percorrendo,
Com a Palavra no coração dos homens fogo p5e.
(*1) A floresta escura de Dante,
onde ele se perdeu.
(*2) Compare-se com a visão de
Isaías.
(*3) O estado de entorpecimento
que é tão comum logo após a
iluminação.
(*4) A iluminação intelectual.
RALPH WALDO EMERSON
Nasceu em maio de 1803; faleceu em abril de 1882.
Espiritualmente eminente como foi este grande americano, não parece
que tenha pertencido à categoria dos homens discutidos neste livro. Esteve
talvez tão perto da Consciência Cósmica como é possível estar sem efetiva­
mente entrar neste reino. Viveu à luz do grande dia, mas não há indício de
que seu sol tenha de fato nascido para ele. Oversoul*, obra de sua autoria,
foi impressa em 1841, quando ele tinha trinta e oito anos de idade. Nela ele
nos diz claramente em que ponto evolutivo estava na ocasião e é praticamente
certo que nos anos posteriores não avançou além desse ponto. Nessa obra,
então, diz ele:
Há uma diferença entre uma e outra
hora da vida, em seu poder e seu efeito
subseqüente.
Há nesses breves momentos uma pro­
fundeza que nos compele a atribuir mais
realidade a eles do que a todas as outras
experiências. (*1)
(* 1) Se ele tivesse tido a experiência da Visão
Cósmica - do Esplendor Bramânico - não
poderia ter usado esta linguagem excessivamente
moderada, fria mesmo, ao se referir a ela. Nem
poderia ele, abstraindo isso, estar se referindo
aqui a outras experiências.
(*2) Estas passagens mostram como a expe­
riência espiritual de Emerson era profunda,
embora estivesse aquém do insondavelmente
profundo.
As palavras de todo homem que fala
sobre essa vida não podem deixar de soar
como vãs para aqueles que não nutrem o mesmo pensamento por si mesmos. (*2)
Somente ela pode inspirar a quem queira, e vede! suas palavras serão líricas,
doces e universais como o nascer do vento.
N.T. - * Oversoul seria, em português, algo como “superalma”, “hiperalma”, “ultraalma”, “supra-alma”, “sobrealma”, “alma suprema”, etc. No Webster’s Third
N ew International Dictionary consta como significado de oversoul: “a realidade
absoluta concebida como um ser espiritual em que a natureza ideal imperfeitamente
manifesta nos seres humanos é perfeitamente realizada e em que nossas existências
finitas e distintas estão fundamentadas”.
Ao ascendermos a esse sentimento primário e aborígine, passamos de nossa remota
posição na circunferência instantaneamente para o centro do mundo, onde, como que
no gabinete de Deus, vemos causas e antevemos o universo, que é apenas um lento
efeito.
Essa energia não desce à vida individual, ou a qualquer outra condição que não
a posse plena. Vem para os humildes e simples; vem para quem se desfaça do que
seja estranho e orgulhoso; vem como uma visão interior; vem como serenidade e
grandeza. Quando vemos aqueles em quem ela faz morada, tomamos consciência de
novos graus de grandeza. Dessa inspiração o ser humano volta com um tom mudado.
Não fala com os homens considerando a opinião deles. Ele os testa. D e nós se requer
que sejamos simples e verdadeiros. O viajante vaidoso tenta embelezar sua vida
citando o lorde, o príncipe e a condessa, que algo disseram ou fizeram a ele. O vulgo
ambicioso vos mostra seus broches e anéis e preserva seus cartões e cumprimentos.
O s mais cultos, em seus relatos de suas próprias experiências, selecionam a
circunstância poética agradável; a visita a Roma, o homem de classe que viram; o
amigo brilhante que conhecem; mais ainda, talvez, a magnífica paisagem, as grandes
luzes, os grandes pensamentos, de que desfrutaram ontem - e assim procuram dar
uma cor romântica a sua vida. Mas a alma que ascende a adorar o grande D eus é
simples e verdadeira; nada pinta cor-de-rosa; não tem amigos finos; nenhum
cavalheirismo; não tem aventuras; não quer admiração; vive na hora que é agora, na
mais intensa experiência do dia comum - em razão do presente momento e a mera
ninharia tendo-se tomado porosa ao pensamento e absorvente do mar de luz.
ALFRED TENNYSON
Este poeta (pois, embora não seja absolutamente qualificado para estar
situado na ordem divina, serviu merecidamente a esse nome e a ele faz jus)
passou a maior parte de sua longa vida na região da autoconsciência que se
encontra próxima à parte inferior do Sentido Cósmico. Seus “transes
sobrenaturais”, mencionados em The Princess [“A Princesa], nos quais ele
parecia “mover-se num mundo de fantasmas e sentir (ele próprio) a sombra
de um sonho” [185:11], pertencem àquele reino espiritual; mas bem mais
seguramente uma condição bem descrita se encontra nos versos seguintes,
em Ancient Sage [“Sábio Antigo”].
Mais de uma vez quando eu
Sozinho fiquei, em mim mesmo revolvendo
A palavra que de mim mesmo o símbolo é,
Do ego liberado foi o mortal limite,
E para o sem-nome passou, como uma nuvem
N o céu se desfaz. Meus membros toquei e eles
Estranhos eram, não meus - nenhuma sombra de dúvida, porém,
Mas absoluta clareza e pela perda do ego
O ganho de vida tão vasta com a nossa comparada,
Era o sol a brilhar - em palavras não ensombrecível,
Elas próprias sombras apenas de um mundo de sombras [186:48],
E em Holy Grail [“Santo Graal”]:
Que as visões da noite ou do dia
A seu grado venham; e muita vez vêm elas
Até que esta terra em que ele caminha não mais terra parece,
Esta luz que seu olho fere luz não é,
Este ar que sua fronte sopra ar não é,
Visão, porém - sim, sua própria mão e seu pé N os momentos em que sente que morrer não pode,
E ele próprio visão para si mesmo não conhece,
Nem o excelso Deus uma visão, nem aquele
Que de novo se levantou; vós vistes o que vistes [184:290],
E, uma vez mais, em prosa simples:
Uma espécie de sonambulismo tive freqüentemente, já desde minha infância,
quando fiquei totalmente só. Isto me tem muitas vezes ocorrido pela repetição do
meu próprio nome a mim mesmo, silen­
“Pela repetição do meu próprio nome”.
ciosamente, até que, de repente, como
De maneira totalmente inconsciente, Tennyson
que da intensidade da consciência da in­ estava usando o meio estabelecido desde tempos
dividualidade, a própria individualidade imemoriais para se alcançar a iluminação:
“Aquele que, não pensando em nada, faz a mente
pareceu dissolver-se e desvanecer-se num
estado de ser ilimitado; e não foi um cessar de trabalhar, entrega-se a ininterrupta me­
ditação, repete a simples sílaba, Om, meditando
estado confuso mas o mais claro dos mais
em mim, alcança a mais alta meta (isto é, a Cons­
claros, o mais seguro dos mais seguros, ciência Cósmica) [154:79]. Naturalmente, não
o mais estranho dos mais estranhos, faz diferença qual a palavra ou o nome usado. O
extremamente além das palavras, em que que se requer é que a ação da mente seja tanto
a morte era uma quase irrisória impossi­ quanto possível suspensa e especialmente que
bilidade, a perda da personalidade (se era todos os desejos de toda espécie sejam
aquietados, que nada seja desejado ou temido, a
isto) não parecia extinção alguma, mas a mente em perfeita saúde e perfeito vigor mas
única vida verdadeira [182:320],
mantida inativa, num estado de calmo equilíbrio!
“A religião não era nenhuma abstração nebulosa para ele. Constantemente
ele enfatizava sua própria crença naquilo que chamava de as eternas verdades,
num Deus onipotente, onipresente e todo-amor, que se revelou através do
atributo humano do mais alto amor altruístico e na imortalidade da alma”
[182:311],
“Acreditava firmemente que a humildade é a única atitude verdadeira da
alma humana e, portanto, falava com a maior reserva daquilo que chamava
de “esses mistérios insondáveis”, como apropriados àquele que não
dogmatizasse mas soubesse que o finito não pode de modo algum apreender
o infinito, e mesmo assim tinha profunda confiança em que, quando tudo
fosse visto face a face, tudo seria visto como o melhor” [182:316],
“Disse também, com profundo sentimento, em janeiro de 1869: Sim, é
verdade que há momentos em que a carne nada é para mim, em que sinto e
sei que a carne é a visão; Deus e o espiritual, o único real e verdadeiro.
Confiai nisto, o espiritual é o real; pertence à pessoa mais do que a mão e
o pé. Podeis dizer-me que minha mão e meu pé são apenas símbolos
imaginários de minha existência. Eu poderia acreditar em vós, mas vós
nunca, nunca podereis me convencer de que o Eu não seja uma realidade
eterna e de que o espiritual não seja a verdadeira e real parte de mim. Ele
disse estas palavras com tão apaixonada veemência que um silêncio solene
se abateu sobre nós enquanto ele deixava a sala”. [182a:90]
ALFRED TENNYSON
Foi escrito a respeito de Tennyson, logo depois de sua morte: “Entendese que ele acreditava que escrevera muitas das melhores e mais verdadeiras
coisas que publicou sob a influência direta de inteligências superiores, de
cuja presença estava claramente consciente. Ele as sentia perto dele e sua
mente era incutida de suas idéias” [170], o que significa, se O relato é
verdadeiro, como provavelmente é, que o véu entre ele e o Sentido Cósmico
era tão fino que ele sentia seus ensinamentos através desse véu; mas nfto há
evidência, conhecida do autor deste livro, de que jamais o véu tenha sido
rasgado e ele tenha visto o outro mundo. Em outras palavras, não há prova
de que ele tenha entrado em Consciência Cósmica.
J. B. B.
Doutor em Medicina, nasceu em 1817. Entrou em Consciência
Cósmica em 1855, aos trinta e oito anos. Um informante diz que “ele não é
um homem refinado” e prossegue: “É uma das coisas estranhas em tudo isso
que a consecução da verdade parece deixar um homem, neste particular,
mais ou menos como o encontra. O Dr. B. foi um exemplo. Ele parecia
contente em viver numa casa barata, pobre, e preferia cortejar a rudeza no
trajar, no conversar e no viver.” No tocante a rudeza no trajar, na alimentação
e no ambiente, nosso informante não precisava ter encarado J. B. B. como
tão excepcional. Podia tê-lo comparado com Tilleinathan Swamy [56:142],
com Edward Carpenter, ou mesmo com Jesus, Maomé ou com Walt Whitman.
“Ao mesmo tempo”, nosso informante continua, “se ele era provocado com
a questão da visão interior, tomava-se vivo até o âmago de seu ser. Ele fora
um espírita mas, após a iluminação, embora parecesse saber que muito do
que o espiritismo ensinava era verdadeiro, sua importância foi extremamente
diminuída pelas verdades muito maiores a que ele teve acesso”. “Certa vez
ele me contou”, o informante prossegue ainda, “uma coisa curiosa: Ele disse
que morreu, que seu espírito deixou o corpo durante vinte minutos e que ele
olhou para o corpo, pairou sobre ele e finalmente voltou para o mesmo. E
disse isto num tom grave e convincente que causava no ouvinte um sentimento
horripilante. Ninguém que o tivesse ouvido contar isso poderia deixar de
acreditar.”
HENRY DAVID THOREAU
Nasceu em 12 de julho de 1817; faleceu em 6 de maio de 1862. Há várias
razões para se suspeitar que Thoreau tenha sido um caso de Consciência
Cósmica, tais como seu hábito de solidão, seu amor pelo misticismo e pelos
místicos, a quase pretematural agudeza de seus sentidos, seu amor pelos
animais e seu companheirismo para com eles, sua perspicácia intelectual e
sua elevação moral. O autor deste livro, entretanto, em vão procurou dados
que pudessem converter esta suposição em algo como certeza, e Thoreau
está tão perto de nós que, tivesse ele vivenciado a iluminação, a evidência
disto deveria estar disponível e ser decisiva. Mas que significam estes oito
versos, se não que seu autor passara por alguma experiência como a que é
aqui abordada?
Eu, que só ouvidos tinha, audição consigo,
E visão, eu que só olhos antes tinha,
M omentos vivo, eu que só anos vivera.
E verdade discirno, eu que só da cultura erudição
conhecia.
Além do alcance do som ouço,
Além do alcance da visão vejo,
Novas terras e céus e mares em redor,
E em meu dia o Sol sua luz empalidece.
(*1, *2, *3)
(*1) “Vocêjápediu a instrução pela
qual ouvimos aquilo que não
pode ser ouvido, pela qual percebe­
mos aquilo que não pode ser percebi­
do, pela qual conhecemos aquilo que
não pode ser conhecido?” [148:92]
(*2) “Ouvindo, ouvireis, mas não
com preendereis, e, vendo,
vereis, m as não percebereis”
[14:13:14],
(*3) “A visão tem outra visão e a
audição outra audição e a voz
outra voz” [193:342],
Se Thoreau vivenciou a iluminação na idade usual, evidência deste fato
deve ser encontrada em Walden, obra escrita entre 1845 e 1854, quando seu
autor estava entre vinte e oito e trinta e sete anos de idade. Efetivamente
encontramos nesse livro passagens que sugerem que o autor, se não foi um
verdadeiro caso de Consciência Cósmica, estava pelo menos bem a caminho
da mesma. Por exemplo:
N ossas m aneiras têm sido corrom(*1) Ele constata que Deus e a vida humana são
pidas pela comunicação com os santos.
maiores e melhores do que jamais tenha
Nossos livros de hinos ressoam com uma sido dito’como malmente são maiores e melhores
melodiosa blasfêmia contra Deus e contra do
qualqller Pessoa tenha dito ou Possa dizer
suportá-lo para sempre. Dir-se-ia que mesmo os profetas e redentores teriam mais
consolado os medos do que confirmado as esperanças do ser hum ano. Em lugar
algum está registrada um a satisfação simples e irreprimível com o dom da vida,
algum memorável louvor a Deus [199a:85] (*1):
O s m ilhões estão su ficientem ente
(*2) Compare-se Whitman: “Não posso estar
acordado, pois nada me parece como era
acordados para o trabalho físico; mas so­
m ente um em um milhão é suficiente­ antes, ou então estou agora acordado pela pri­
meira vez e tudo antes foi um sono banal”
mente acordado para o efetivo exercício
[124a:49],
intelectual, somente um em cem milhões
para uma vida poética ou divina [199a:97], (*2 )
Às vezes, quando me comparo com outros homens, parece como se eu fosse mais
favorecido pelos deuses que eles, para além de quaisquer desertos de que tenho
consciência; como se nas mãos deles eu tivesse um a garantia e certeza que meus
semelhantes não têm e fosse especialmente guiado e protegido. Não me elogio mas,
se possível, eles me elogiam. Nunca me senti solitário ou fui por pouco que fosse
oprimido por um sentimento de solidão, exceto uma vez, e isto foi algumas semanas
depois que vim pava o bosque, quando por um a hora eu me perguntei se a vizinhança
próxima do homem não seria essencial a uma vida serena e sadia. Estar só era uma
coisa desagradável. M as eu estava ao m esm o tem po consciente de um a ligeira
insanidade em minha disposição de espírito e parecia prever minha recuperação. Em
m eio a u m a leve chuva, e n q u an to estes pensam entos prevaleciam , tornei-m e
subitamente cônscio de tão doce e benigna comunhão na N atureza - no próprio bater
de cada pingo de chuva, e em cada som e cada vista ao redor de minha casa, uma
infinita e inexplicável afabilidade, tudo de uma vez, como uma atmosfera, sustentandome - que isso tornou as imaginadas vantagens da vizinhança humana insignificantes,
de modo que desde então nunca mais pensei nelas. Cada folha de pinheiro se expandiu
e intumesceu com simpatia e mostrou sua amizade para comigo. Fui tão claramente
conscientizado da presença de algo afim comigo, mesmo nas cenas que estamos
acostumados a classificar como selvagens e áridas, e também de que o mais próximo
de sangue a mim e o mais humano não era um a pessoa nem um integrante do vilarejo,
que eu pensei que nenhum lugar poderia jamais ser estranho para mim novamente.
Algumas das horas mais prazerosas foram durante as longas tem pestades na
primavera e no outono, as quais me confinaram à casa por toda a manhã e a tarde,
aquietado pelo incessante ruído e golpear da chuva; quando um crepúsculo prematuro
anunciou um a noite longa, em que muitos pensamentos tiveram tempo para se enraizar
e desabrochar. Naquelas chuvas direcionadas para o nordeste, que tanto ameaçavam
as casas do vilarejo, quando as criadas mantinham-se de prontidão com rodo e balde
HENRY DAVID THOREAU
em frente às entradas, para manter o aguaceiro fora, eu me sentava por detrás da
porta de m inha pequena casa, que era toda entrada, e desfrutava inteiramente sua
proteção. N um a chuva torrencial com trovão, um relâmpago fulminou um grande
pinheiro do outro lado do lago, nele abrindo um sulco em espiral, bastante visível e
perfeitamente regular, de cima em baixo, com um a polegada ou mais de profundidade
por quatro ou cinco de largura, como se faria um sulco assim num bastão. Outro dia
passei por lá e fiquei muito espantado ao olhar para cima e contemplar aquela marca,
mais acentuada que nunca, de que um raio terrível e irresistível tinha se abatido do
inofensivo céu oito anos atrás. Os homens freqüentemente me dizem: “E u pensaria
que você se sentisse solitário lá e desejasse estar mais perto das pessoas, nos dias de
chuva e de neve e especialmente à noite”. Fico tentado a responder assim: Toda esta
Terra que habitamos não é mais que um ponto no espaço. A que distância você acha
que vivem os dois habitantes mais distantes de uma longínqua estrela, cujo diâmetro
não pode ser medido pelos nossos instrumentos? Por que deveria eu me sentir solitário?
Não está nosso planeta na Via Láctea? Esta questão que você coloca não me parece
ser a mais importante. Que espécie de espaço é esse que separa um homem de seus
semelhantes e o tom a solitário? Já me dei conta de que nenhum esforço das pernas
pode trazer duas m entes mais perto um a da outra. D o que é que mais querem os
morar perto? Não certamente de muitos homens, do armazém, da agência dos Correios,
do bar, do clube, da escola, da mercearia, de Beaeon Hill, ou de Five Points, onde os
homens mais se reúnem, mas da fonte perene de nossa vida, de onde em toda a nossa
experiência verificamos que ela provém , assim como o salgueiro cresee perto da
água e lança suas raízes em sua direção. Isto há de variar com as diferentes naturezas,
mas este é o lugar onde um homem sábio vai fazer seu celeiro... Uma noite encontreime com um dos homens da cidade, que havia conseguido o que é chamado de “uma
boa propriedade” (na qual eu nunca dei uma boa olhada), na Walden Road, tocando
algumas cabeças de gado para o mercado, e ele me perguntou como eu podia renunciar
a tantos confortos da vida. Respondi que tinha muita certeza de que gostava disso
passavelmente bem; e não estava brincando. E assim fui para casa, para a m inha
cama, e o deixei tateando seu caminho pelas trevas e a lama para Brighton - ou
Brightown - lugar a que ele chegaria em alguma hora da manhã.
Q ualquer perspectiva de despertar ou de viver, para um homem morto, torna
indiferentes todos os tempos e lugares. O lugar onde isto pode ocorrer é sempre o
mesm o e indescritivelmente agradável a todos os nossos sentidos. N a maior parte
das vezes permitimos somente que circunstâncias externas e transitórias façam nossas
ocasiões. Elas são, na verdade, a causa de nossa distração. Mais perto de todas as
coisas está o poder que molda sua existência. Próximo a nós, as mais grandiosas leis
estão continuam ente sendo executadas. Próximo a nós está, não o trabalhador a
quem empregamos, com quem gostamos tanto de conversar, mas o trabalhador cujo
trabalho somos [199a:143-5],
Só conheço a mim mesmo como um a entidade hum ana; o cenário, por assim
dizer, de pensamentos e afeições; e tenho consciência de certa duplicidade pela qual
posso ficar tão afastado de mim mesmo
com o de outrem . P or intensa que seja
m inha experiência, estou consciente da
presença e da crítica de um a parte de
mim, que é como se não fosse uma parte
de mim mas um espectador, não compar­
tilhando nenhuma experiência mas obser­
vando-a; e isso não é mais eu do que é
você [199a:146], (*1)
(*1) Compare-se Whitman: “Turistas e curio­
sos me rodeiam; pessoas que encontro, o
efeito em mim de minha antiga vida ou do bairro
ou da cidade onde vivo, ou do país, os últimos
compromissos, descobertas, invenções, socie­
dades, velhos e novos autores, meu jantar, roupa,
associados, olhares, cumprimentos, dívidas, a
real ou imaginada indiferença de algum homem
ou mulher que amo, a doença de um dos meus
parentes próximos ou minha mesmo, ou o fazer
um mal, ou perda ou falta de dinheiro, ou
depressões ou exaltações, batalhas, os horrores da guerra fratricida, a febre de notícias duvidosas, os
eventos caprichosos; todas estas coisas me vêm dia e noite e de mim se vão novamente, mas não são
Eu próprio.
“A parte desse puxa-e-empurra está o que sou, entretido, complacente, compassivo, unitário
indolente, olha para baixo, está ereto, ou curva um braço em certo descanso impalpável, olhando
com a cabeça curvada para o lado, curioso do que virá em seguida, tanto dentro como fora do jogo
e observando e se maravilhando por ele” [193:31].
J. B.
Nasceu em 1821. Entrou em Consciência Cósmica em 1859, com a idade
de trinta e nove anos. Era um metodista e de posição elevada em sua igreja.
Orava fervorosamente pela luz, pela certeza da salvação, etc. Isto lhe pareceu
inútil e assim parou de orar - então a luz irrompeu gradualmente; nenhuma
luz subjetiva mas uma iluminação intelectual firme, contínua, e com um
sentimento cada vez mais profundo de paz moral, descanso e felicidade.
Essa iluminação intelectual e essa paz moral cresceram firmemente, até que
todo o homem estava transformado. Ele se tornou uma autoridade reconhecida
entre homens esclarecidos e competentes em todos os assuntos espirituais. A
consciência da imortalidade adveio pouco depois do renascimento intelectual
e moral. Na realidade veio com os outros aspectos, mas levou mais tempo
para chegar a seu crescimento total. Todo o tempo ele nutrira a esperança da
imortalidade, em comum com os outros membros da igreja, mas nunca da
própria coisa ou de algo que se aproximasse dela. Agora (isto é, desde a
iluminação) ele não mais aguarda ansiosamente a imortalidade, mas está
consciente que a alcançou, de que entrou na posse e no gozo dela. Ele nasceu
na Inglaterra; era tecelão; na América foi durante anos um agente funerário.
No tocante a escolaridade, é uma pessoa inteiramente sem educação. O autor
deste livro passou várias horas na companhia dele, por volta de 1890, e ficou
impressionado com sua iluminação intelectual, porém, muito mais com sua
perfeita felicidade, sua absoluta paz moral.
Certo mentor, ele próprio um homem sério e competente, morador de
uma grande capital, que em toda sua vida viu e ouviu os melhores homens e
leu os melhores livros e que durante anos tem sido um diligente buscador da
verdade, viu J. B. pela primeira vez em 1870 e tem sido íntimo dele desde
então. Diz ele: “Eu não o ouvira falar por dez minutos e já sabia que pela
primeira vez estava na presença de um homem que tinha o que eu queria.
Nunca encontrei um homem que conhecesse tão bem as Escrituras. Ele
conhecia a Bíblia quase de cor e tinha a mesma inspiração de Paulo e João.
Nunca houve uma ocasião em que eu encontrasse J. B. e ele não deixasse
claro, por uma palavra, uma frase, ou um longo discurso, que estava firme
numa rocha de sólida verdade”.
C. P.
Nasceu em 1822. Em toda sua vida foi um homem laborioso. Foi e é
estimado como um santo e sábio por todos que o conheceram e o conhecem.
Sua conversa é iluminada a um grau extraordinário. Naturalmente, é inculto.
Alcançou a Consciência Cósmica em 1859, quando tinha trinta e sete anos.
Um informante, que conheceu bem C. P., diz: “Ele tem sido um grande
sonhador de sonhos curiosos e notáveis. Seu principal charme é sua
maravilhosa exposição das Escrituras. Ele é a própria incorporação do Cristo
vivo. Despreza o dinheiro. Em sua presença, as pessoas sentem que ele é um
irmão. Suas cartas são as mais encantadoras que já recebi. A coisa mais
curiosa e estranha em seu caso é que ele acredita que a morte acaba com
tudo. Por quarenta anos tem sido um orador público extraordinário; primeiro
na igreja Metodista, depois, por algum tempo, numa veia semi-infiel, mas
desde sua iluminação suas palestras têm sido principalmente bíblicas. Ele
tem forte postura socialista”.
O autor deste livro teve duas longas conversas com C. P. e pode atestar
sua extraordinária inteligência. Sua falta de fé na continuação da vida indivi­
dual parece à primeira vista colocá-lo fora da categoria dos homens dotados
de Consciência Cósmica; mas, em primeiro lugar, como já foi observado,
temos de levar em conta a escala da vida espiritual naquele plano; e, em
segundo lugar, é preciso considerar que sua convicção provavelmente era,
para ele, mais otimista do que teria sido a convicção usual da vida eterna.
Ele crê, na verdade tem certeza de que após a morte será absorvido em Deus
e de que, ao perder sua individualidade, ganhará algo muito mais valioso.
Seu sentimento, sua convicção, seu conhecimento (como em todos esses casos)
é que acontecerá o melhor. Ele dá uma interpretação ligeiramente diferente
a este o melhor - isto é tudo.
Em julho de 1895 C. P. publicou um livro no qual tentou expor alguns
dos resultados espirituais da iluminação em seu caso. Esta tarefa não é nada
fácil, como muitos além de C.P. verificaram. Na verdade é, em todos os
casos, uma tarefa impossível, como Paulo, Whitman e outros constataram.
C. P. era menos qualificado para essa tarefa do que alguns outros homens da
categoria, de modo que sua tentativa, embora extremamente interessante,
não pode ser tida como um sucesso perfeito. As passagens seguintes mostra­
rão, entretanto, para quem puder compreendê-las, que C. P., fora de qualquer
dúvida, pertence à categoria de homens tratada neste livro - um fato que era
positivamente conhecido deste autor muito antes que o referido livro fosse
escrito. Diz C. P.:
Paulo disse que “os judeus perderam
o reino dos céus porque o procuraram pe­
las cláusulas da lei de M oisés” - pela
retidão da lei moral - “ao invés de pro­
curá-lo através da retidão da fé”, na per­
feição da ordem da existência - a fé do
Cristo. Eles não puderam perceber que
há duas espécies separadas e distintas de
retidão ou leis - um a imperfeita, para a
mente imperfeita ou carnal e, a outra, per­
feita, para a mente perfeita ou espiritual;
estes dois estados são separados e distin­
tos um do outro, assim como carneiros o
são em relação a cabras [132:13], (*1)
(* 1) Esta mesma concepção errônea é universal
ou quase universal, hoje em dia. Para todo
homem que tenha tido o menor vislumbre de
Consciência Cósmica, isto é claro como o dia;
..se a vossa justiça” - diz Jesus - “não exceder
a dos escribas e fariseus...”. E ele não quer dizer
exceder em grau e sim em espécie. “Aquele que
não nascer de novo...” . “Se alguém está em
Cristo, nova criatura é” - não a velha criatura
melhorada, mas uma outra, uma nova criatura.
(*2) Aqui novamente há uma marca distinta e
absoluta, provando que o escritor tinha o
Sentido Cósmico. Nenhum homem meramente
autoconsciente conhece Deus como conhece os
assuntos mundanos. Todo homem Cosmicamen­
te Consciente assim o conhece. Ele o conhece
através da visão interior, do mesmo modo que
sabe (por sua autoconsciência) que é uma
entidade distinta.
A vida não está em acreditar que exis­
te um a divindade em algum lugar, mas
em conhecê-la. Conhecer a Palavra da
Verdade e ter seu espírito gerado na men­
te e no coração é ter seu puro rebento - seu hiino - gerado em seu interior, conscien­
temente chamando “Pai ”, com convicção [132:19], (*2)
O governo da mente carnal, que não teve o Filho da Divindade gerado nela, não
tem conhecimento real do que seja a única verdadeira Divindade. Ninguém conhece
os nomes da real Divindade e de seu Cordeiro, até que estes sejam escritos em seu
entendimento por revelação especial a cada qual individualmente. Sobre a Rocha da
real revelação do Cristo na mente pelo seu eterno Pai, a congregação do verdadeiro
Cristo está edificada. Esta é a única base
(*3) Em outras palavras: A mente meramente
de certeza; e o mundo pode continuar a
autoconsciente pode crer em Deus mas não
se dividir indefinidamente em seitas dis­ pode conhecê-lo - nunca o viu, nunca poderá
cordantes, até que receba esta revelação, vê-lo. Os únicos homens que podem conhecer e
de fato conhecem a Divindade são os homens
porquanto não pode ter nenhuma certeza
até então; mas todos aqueles que a rece­ Cosmicamente Conscientes (a consciência da Di­
vindade e do Cosmo sendo a mesma coisa). O
bem concordam e não podem discordar
que C. P. muito apropriadamente chama de con­
[132:20], (*3)
gregação de Cristo é simplesmente composto da­
queles que foram iluminados. Esta iluminação é a única base de certeza nestes assuntos. Se todas as
pessoas do mundo tivessem Consciência Cósmica, todas concordariam em muitas questões básicas
de religião e filosofia que hoje são discutidas - embora sem dúvida outras questões, muitas das
quais não estão à vista no presente momento, possam surgir e ser discutidas.
Foi dessa própria parte - desse Filho gerado nele - que era a mente espiritual,
que o Espírito da Verdade disse: “És meu Filho: neste dia eu te gerei”. E ele o soube
naquele dia mesmo em que foi gerado - no dia mesmo em que se tornou consciente
de ter sido tornado vivo para esse Pai de seu entendimento, porquanto esse Filho
espiritual nele espontaneamente “chamou, Pai” , com certeza natural, como não havia
chamado antes. E assim esse Filho gerado do Eterno Espírito da Verdade de tal modo
clama em todos aqueles em quem é gerado, que eles e somente eles sabem como o
primogênito foi gerado. E somente estes sabem o que o domínio da Divindade é,
pois, “A m en o s q u e um ^hom em assim
(M) Dispensa comentário; é apenas uma ^
n a sç a n o v a m e n te , ele n ã o pode vê-lo
[132:22], (*4)
mação da realidade do novo nascimento
- isto é, do advento da Consciência Cósmica.
A mente carnal pode falar “da Pater- (*5) Deus é o Pai de cada um de nós; mas
nidade de Deus e da fraternidade do honinguém, sem iluminação, pode compreenm en r . m as não com preende nem um a der 0 ^ estas Palavras slS"lflcamnem a outra, porque esse Filho de Deus não foi gerado nela [132:33]. (*5)
Além de tudo, ele disse: “Nesse dia” - no dia em que eles estiverem conscientes
de que esse Espírito veio a eles - “ sabereis que eu sou no Pai e vós em mim e eu em
vós” . E como era impossível ao homem estar pessoalmente neles, e eles nele, é claro
que quando o Espírito da Verdade se tivesse inscrito claramente em sua consciência
isto seria, ao mesmo tempo, o Pai e o Filho neles e eles nestes, e o trabalho teria sido
puram ente o de um estado mental espi(*6) Dispensa comentário.
ritual [132:24].(*6)
(*7) Jesus se considerava o primeiro homem da
Aquele que era o menor no reino dos
nova espécie (Cosmicamente Consciente),
céus, era maior que João” , pois aqueles Dentre os homens meramente autoconscientes
que nele entraram foram feitos perfeitos ninguém chegara a um nível mais alto do que
pela plenitude da Luz do eterno Espírito.
João, mas o menor dos homens da nova ordem
Daí “a lei dos profetas foi até João, mas ser'a ma'or 11116 elecom ele começou a pregação do reino de D eus” [132:31]. (*7)
E para estes (os iluminados) é inteiram ente claro que, sendo esta D ivindade
eterna, toda existência tem de ser eterna, porquanto toda Verdade é simplesmente a
Verdade da existência. Para esses, a existência é uma imensidade eterna de existência
infinita, atuando com força infinita, num a ordem inevitável, infinita e, portanto,
absolutamente perfeita, em cuja perfeição ou verdade todas as coisas e sua ação têm
necessariam ente de estar incluídas, e isto Paulo expressou na frase abrangente e
básica, “ Todas as coisas são da D ivin­
dade” [132:68]. (*8)
(*8) Um aspecto da visão Cósmica.
Os apóstolos eram ministros da nova Aliança, que estava baseada nessa Rocha,
que era um a base inteiramente nova de raciocínio, e absolutamente não eram ministros
da antiga aliança da lei moral. A lei moral, sendo o conhecimento do bem e do mal,
é o “ministério da morte”, ao passo que a nova lei é o ministério da vida. A antiga é
o ministério da condenação, que é a mor­
te, e a nova é o ministério da justificação,
que é a vida; assim, aqueles que passam
para o domínio da nova necessariamente
saem da velha e assim eles têm de ser
“libertados da velha”, e assim é que não
h á condenação, não há morte, para aque­
les que estão n a A lia n ç a do C ris to ”
[132:73]. (*9)
(*9)
A “Rocha” é, naturalmente, o Sentido
Cósmico. Quer qualquer uni dos apósto­
los além de Paulo tenha tido Consciência
Cósmica ou não, o trabalho deles foi nesse plano,
pois o objetivo desse trabalho era preservar e di­
fundir os ensinamentos de Jesus. Na Consciência
Cósmica não há condenação, não há pecado, não
há mal, não há morte. Isto pode ser uma afir­
mação dura, mas é verdade.
(*10) “Isto” se refere à Visão Cósmica, ao
“Esplendor Bramânico”.
Isto revela o esplendor sem limites
da infinita face da real Divindade, refulgindo naquele que o veja seu equilíbrio de
“Misericórdia e Verdade” [132:75]. (*10)
E quando este Cristo é formado na mente e no coração ele é conhecido como o
“Espírito da fé” na infinita ordem de toda existência como verdadeira, e por esta razão ele “não resiste ao mal” (*11), que é
(*11) “Este Cristo” , isto é, a Consciência
um a parte inevitável da Ordem e visto
Cósmica. Quando ela advém a um ser
na L uz da V erdade co m p leta com o
humano ele pode dizer, como diz Whitman: “Não
perfeitam ente bom , tendo uso perfeito
há, na verdade, nenhum mal” [193:22].
[132:140]. (*11)
E é assim que esse Espírito da Fé na
Ordem completa é o Cristo formado na
mente e este é o “Cordeiro de Deus que
tira todos os pecados” - tirando toda re­
sistência da Ordem natural da existência.
Quando esse Cristo é formado na mente,
então ele tem a L uz perfeita pela qual
todas as coisas da Divindade de toda Ver­
dade sâo claramente entendidas. Então e
som ente então ela sabe com o todas as
coisas da nova A liança são espiritual­
mente discernidas, pois então e somente
então conhece a única Divindade verda­
deira e seu Cristo. E então a mente sabe,
com absoluta certeza, por sua própria ex­
periência, que tudo aquilo que o p ri­
m ogênito, Paulo, ou qualquer um dos
crentes tinha de conhecim ento da Ver­
dade (e eles tinham a plenitude disto)
veio a eles por revelação interior e não
por quaisquer “sinais e prodígios” exte­
riores [132:140-1]. (*12)
(*12) Para a mente autoconsciente há o bem
neste mundo, mas também muito mal.
Para a mente Cosmicamente Consciente tudo é
bom; não existe o mal. A principal fiinção das
poucas mentes Cosmicamente Conscientes que
o mundo até hoje já teve foi a de reconciliar (o
quanto possível) a mente autoconsciente com a
ordem Cósmica, que às primeiras parecia perfeita
e, à segunda, imperfeita. Whitman expressa isto
muito bem, num curto poema [193:416]:
“Quando o maduro poeta veio,
Contente falou a Natureza (o redondo,
impassível globo, com todos os seus espetáculos
de dia e noite) dizendo, Ele é meu;
Mas também a orgulhosa, enciumada e não
reconciliada alma dos homens falou, Não, ele
é somente meu!
- Então o maduro poeta entre as duas se pôs
e pela mão a cada uma pegou;
E hoje e sempre assim está, como
harmonizador, unificador, as mãos
apertadamente segurando,
Que nunca soltará até que as duas reconcilie,
E total e jubilosamente as harmonize.”
Sendo perfeitamente iluminado pelo Espírito de toda existência, ele foi recon­
ciliado com toda ela e, portanto, não poderia resistir a qualquer parte dela como se
não tivesse nenhum direito de existir, e ele viu jubilosamente que o caminho para a
paz e a harmonia dos homens uns com os outros era por meio da reconciliaçlo ou
harmonização com a Ordem infinita, que ele percebeu ser toda Verdade, portanto,
infinita perfeição [132:247].
O CASO DE H. B. EM
SUAS PRÓPRIAS PALAVRAS
“Meu primeiro lar tinha grandes limitações. Eu não vivia rodeado de
livros, embora tal fosse meu desejo de tê-los que nada mais tinha qualquer
atrativo para mim. Minha atividade mental deve ter sido digna de nota,
como posso ver isto agora, em comparação com a dos outros ao meu redor.
Nunca senti muito prazer nas diversões comuns da infância. Preferia estar
só e, no verão, gostava principalmente de estar no bosque. Encontrava
companhia entre as árvores; elas pareciam mais próximas a mim que os
seres humanos. Eu costumava falar com elas e pensar que elas me diziam
alguma coisa. Toda a minha vida o bosque me atraiu e agora, se eu pudesse,
viveria entre as árvores. Toda a minha vida gostei de estar só e ainda gosto.
Nunca vou parar de me perguntar se, no dizer de Byron, sou “um animal
selvagem ou um Deus”. É também verdadeiro que amo a associação com
espíritos afins na vida doméstica e geral.
“Cedo aprendi que os homens regulavam suas relações por regras
convencionais e não por aquilo que agora entendo como leis espirituais mas
a que não podia então dar algum nome e que não podia entender, embora
sentisse sua presença, como Wordsworth sentia uma “presença externa” na
natureza.
“Os choques que minha consciência espiritual experienciou quando entrei
em contato com homens rudes foram tais que nenhuma linguagem pode
exprimir. Tem havido um desenvolvimento gradual desta percepção, ou visão
espiritual, por toda a minha vida. Cedo comecei a indagar como as coisas
vieram a ser como são e isto é o que estou tentando fazer agora. Conforme as
coisas me parecem agora, tenho sempre de encarar como um infortúnio que
eu tenha nascido no ambiente da teologia calvinista. Vivi durante uma vintena
de anos sob a sombra daquela nuvem negra - anos que poderiam de outro
modo ter sido bem usados num crescimento saudável. Tentei aceitar essa
teologia intelectualmente, porque todos à minha volta o faziam; mas minha
alma jamais a endossou. Aos quarenta anos eu estava completamente livre
da influência retrógrada dessa linha de pensamento e, desde então, tenho
respirado livremente.
“O que sou, devo-o principalmente a livros. Pouco estive em contato com
homens que me pudessem ter ensinado e me pudessem ter dado força. Um
ou dois anos numa academia e vinte semanas num colégio foi tudo o que tive
neste particular. Quando saí da sombra daquela sombria teologia, tive
oportunidade de ouvir Emerson. Depois adquiri seus livros. Tenho sido um
zeloso estudante deles há cinqüenta anos. Devo mais a ele do que, eu poderia
quase dizer, a todos os outros homens. Em seguida encontrei meu caminho
para Darwin. A minha cópia de Origem das Espécies era a única que havia
em minha comunidade durante dez anos.
“A primeira real iluminação mental que me lembro de ter experienciado
foi quando percebi que o universo existe em cada um de seus átomos
individuais - isto é, o universo é o resultado de alguns processos simples
infinitamente repetidos. Quando uma gota de água tenha sido
matematicamente medida, todos os princípios necessários à medição dos
céus terão sido usados. Toda vida no globo é sustentada por digestão e
assimilação; quando estes processos param por ação voluntária e traumática,
advém a morte. A história de uma mente individual é a história da espécie
humana. Conhecendo-se uma coisa em suas propriedades e relações,
conhecem-se todas as coisas. Toda a cristalografia está num só grão de areia,
toda a vida animal num só inseto, toda a vida vegetal num só broto. Eu tinha
então, aproximadamente, quarenta anos.
“O ponto seguinte foi quando vi que não havia uma linha divisória entre
a vida vegetal e a animal e, assim, não havia começo nem fim em nenhuma
delas. A primeira dessas experiências me ocorreu muito antes de eu encontrar
o que Tales disse a este respeito. Estas declarações são talvez suficientes
para indicar a direção em que meu intelecto se tem desenvolvido.
“Quaisquer que tenham sido os tranqüilos deleites que o intelecto me
tenha trazido, a verdadeira grandeza de meus dias foi encontrada na atmosfera
do sentimento moral - uma grandeza que reduz todos os eventos materiais
ao valor de brinquedos. Senti isto quando menino, como uma obscurante
presença que estava constantemente me afastando de tudo o que parecia
compor a vida daqueles que me cercavam - afastando-me, eu não sabia como
ou para onde. O que então vi obscuramente ou “através de um vidro enfiima-
çado”, reluz agora a toda a minha volta, com um brilho que excede o do sol.
À sua luz vejo que o amor e a justiça não podem ser limitados por aquilo
que, na pobreza de nossa ignorância, chamamos de tempo e espaço. Assim
sendo, todas as coisas que foram pensadas e ensinadas neste mundo com
base em nossas idéias de tempo e espaço são levadas como palha pelo vento,
ou apodrecem como “madeira, feno ou restolho”.
“Eu estava chegando aos sessenta anos quando percebi que o que é
verdadeiro em qualquer tempo e qualquer lugar é também verdadeiro em
todos os momentos e em todos os lugares, ou, o que chamamos de lei, se
encontrado em qualquer lugar, será encontrado em todos os lugares, embora
os homens possam lhe dar nomes diferentes. O que os homens chamam de
gravidade vale para fenômenos mentais tanto quanto para fenômenos físicos
e todos os fenômenos físicos, na melhor hipótese, são foscos e tenebrosos,
até que se elevem à vida espiritual. Como ilustração do fato de que toda lei é
universal, considere-se a lei ou o princípio familiar segundo o qual ação e
reação são iguais. Que é isto senão colher o tufão depois de ter semeado o
vento, ou como difere essa lei natural deste ensinamento: “Cada qual colhe o
que semeia”? Não serão apenas diferentes acordes na grande sinfonia
cósmica?
“Logo depois comecei a entender os paradoxais ensinamentos de Jesus,
como quando ele declarou que aquele que quiser salvar sua vida deverá perdêla e somente aquele que quiser perdê-la (por amor a Jesus) irá encontrá-la. O
mesmo em Paulo: como nada tendo, e possuindo tudo. Disto foi apenas um
passo para um conhecimento do princípio central de toda vida espiritual isto é, o dar o seu próprio ser em prol de outrem.
“Há cerca de dez anos, na idade de sessenta, vi-me atormentado com a
questão contra a qual a inteligência tem lutado desde que há esta faculdade
na Terra - a saber, o começo das coisas. Quando eu estava em profunda
agonia, uma luz indireta foi lançada em minha alma, com subitaneidade que
quase me cegou - Se pudesses encontrar um começo, não seria esse começo
em si mesmo um fim? Partindo daí, se pudesses encontrar um fim das coisas,
não te mostraria isto que tem de existir também um outro fim? O quê! um
fim de todas as coisas, para além do qual só poderia haver um vazio, como
deve ter havido antes que as coisas começassem a existir, se é que elas tiveram
um começo. Não! Não houve começo e não pode haver fim! Desde a
experiência daquele momento, não mais fui perturbado pela imortalidade da
alma e agora penso que nunca mais o serei.
“Cinco anos atrás tive uma experiência que se mostrou mais frutífera,
talvez, do que todas as outras combinadas. Levei uma queda e bati com a
cabeça. Perdi a consciência. Ao recuperar a posse de mim mesmo, passei por
todas as experiências da espécie humana! No primeiro estágio, eu simplesmen­
te tomei consciência do fato de que eu era alguma coisa; o que era isso eu
nem sabia nem me importava em saber. Não sabia o que era saber. Estava
calmo, bem-aventuradamente feliz, e para mim não havia nem passado nem
futuro. Não havia tempo, lugar algum, coisa alguma, a não ser aquela partícula
de consciência - que era eu mesmo. Como não havia nada para denotar
duração, esse estágio pode ter tido uma duração incompreensível. Seja como
for, esta foi sua lição para mim.
“Esse estágio de existência bem-aventurada terminou com minha desco­
berta de que havia alguma coisa em mim que não era eu mesmo. Comecei a
ver e, vendo, comecei a raciocinar e assim acabei encontrando meu mundo
objetivo. Como no estágio anterior, eu não tinha o que fazer com o tempo e
portanto, para mim, não havia tempo. Este estágio poderia ter durado uma
eternidade, no que tange à minha consciência dele. Eu me ocupei em estudar
primeiro a mim mesmo e depois as coisas ao meu redor, e assim a infinita
paz de minha primeira experiência foi rompida.
“Incapaz de pensar de outra maneira, concluí que o que via tinha de ser
como eu mesmo e assim comecei meu conhecimento desse mundo exterior
transferindo para seus objetos o que encontrava em mim mesmo. Este estágio
durou em minha experiência do momento em que vi coisas ao meu redor até
o despertar da ciência experimental. Então me familiarizei com o começo de
todo conhecimento e especialmente de toda religião. Naturalmente, a auto­
consciência logo voltou e eu retornei a meu velho mundo outra vez. Desde
aquela hora minha experiência tem parecido maior do que a de minha vida
anterior. Agora, nada é mais confuso ou obscuro. Minha expansão espiritual
tem sido rápida nestes três ou quatro últimos anos. Vivo no mundo mas para
mim mesmo não pareço pertencer a ele!
“Desfruto o que devo chamar de visão espiritual. Tão logo o intelecto
apreende um fato, vejo-o em suas relações espirituais, não menos que nas
materiais, apenas bem mais claramente. A perfeição da matemática é sim­
plesmente uma demonstração da verdade espiritual de que Deus não pode
mentir.
“Os fenômenos naturais são apenas as sombras do espírito de que eles
emanam, assim como a fisionomia humana muda sob a influência do amor,
do ódio ou do medo. A cor na natureza, que lava todas as coisas em suas
cálidas ondas, mostra-nos o que o amor espiritual faria se fosse solto no
mundo. A Bíblia é simplesmente um quadro que vejo com infinita clareza.
Esta visão parece se estender à dança dos átomos na natureza, não menos
que através de todas as leis, todo conhecimento, toda ciência, toda história e
toda religião.
“Vós me dais uma árdua tarefa quando me pedis que indique a diferença
que percebo em mim a partir dessas experiências. Não encontro nenhuma
língua em que vos possa falar das coisas deste reino em que agora estou.
Nem sequer descobri um alfabeto. Quando, oh! quando terei condição de
revelar sua poesia? Em todo lugar e em todo objeto vejo um movimento
incessante e, nesse movimento, uma força criativa para sempre repetindo e
tornando a repetir o mesmo processo simples, ao infinito. Por toda a natureza
os grandes ritmos rolam e o céu e a terra se enchem com a melodia. Os
homens não são mais que meninos correndo atrás de sombras. Ninguém
parece perceber o sentido espiritual do mundo - ninguém se preocupa em
compreender a infinita simplicidade de seus processos.”
SUMÁRIO
Este parece ao autor ser provavelmente, embora não com certeza, um
verdadeiro caso de Consciência Cósmica, em que o plano cósmico foi
alcançado gradualmente e não per saltum como em geral acontece. Se não é,
então é um caso de ascensão gradual até o limite extremo da mente
autoconsciente. Seja como for, a experiência de H. B. é interessante e instrutiva
e bem merece um lugar neste livro.
R P . S.
Nasceu em 1830; faleceu em 1898.
Numa carta a este autor, R.P. S. diz: “Eu tinha cerca de trinta anos quando
este maravilhoso batismo transformador me ocorreu. A ele atribuo resultados*
imensamente desproporcionais a minha muito modesta capacidade natural
ou meu conhecimento. Um diagnóstico científico e exato disso seria uma
contribuição muito valiosa para o conhecimento humano”.
A experiência pode agora ser dada nas próprias palavras de R.P.S., a
seguir [140:135]:
“Tendo sempre sabido que na conversão o crente recebia o Espírito Santo
e que sua orientação e seu poder seriam conhecidos, quando necessário, no
esclarecimento dos tesouros das Escrituras e em serviço ou em provações, eu
não tinha procurado quaisquer outras manifestações especiais de Sua presença.
E no entanto havia uma grande categoria de passagens do Velho e do Novo
Testamentos cujas condições não eram plenamente preenchidas por qualquer
consciência minha, como tinham sido o conhecimento do perdão, a adoção e
a permanência em Cristo, nem ainda por uma experiência posterior que me
ocorreu dez anos depois de minha conversão, da maravilhosa purgação do
sangue de “todo pecado”.
“Eu havia lido: Aquele que beber da água que eu lhe der jamais terá
sede; mas a água que lhe darei será nele uma fonte de água jorrando para
a vida etema. Isto não era verdade em minha experiência, no pleno significado
evidentemente pretendido pelas palavras. Nem sempre do meu coração
“fluíam rios de água viva”, livre e espontaneamente. Muitas vezes uma bomba
de compressão, ao invés de uma fonte, teria representado minha condição.
Quando eu fitei no espelho da Palavra a gloriosa pessoa de meu Senhor,
* Ele se refere ao trabalho desenvolvido por ele m esm o, quase m iraculoso em
natureza e quantidade, mas que nâo pode ser mais especificado aqui.
minha alma muita vez se curvou em amor de adoração, mas eu nunca chegara
a “conhecer” [17:14:17] o Confortador em tal plenitude que pudesse sentir
Sua presença interior melhor ainda do que a da pessoa visível de Jesus. Eu
lera que, assim como homens eram “possuídos” por um espírito mau e levados
a fazer coisas que muito ultrapassavam seus poderes naturais, assim os “cheios
do espírito” pareciam ser transportados para fora de si próprios e além de si
próprios. Lera também a acusação contra os apóstolos de estarem “ébrios” e
que depois Paulo trouxe a mesma idéia da exaltação pelo vinho como analogia
para estar “cheio do Espírito”. Esta parecia ser uma condição decretada,
dado que os comandos de Deus são sempre promessas; assim como suas
promessas são comandos; sendo as promessas sempre maiores do que os
comandos. Até então eu nunca tinha conhecido, em minha consciência, um
ser assim “cheio do Espírito”, ou o significado da declaração de João Batista,
Ele vos batizará com o Espírito Santo e com fogo.
“Tão ignorante era eu, mesmo em assuntos da maior importância para
meus interesses espirituais, que, ao me dar conta da purgação interior e da
“vitória” exterior sobre o pecado - aquela “fé que supera” o mundo - não
pressionei além de meus hábitos educacionais de pensamento o reconhecimen­
to de que uma manifestação de Deus bem mais gloriosa ainda estava para ser
conhecida pelo Espírito. Então quase não percebi que, depois de nosso Senhor
ter soprado sobre seus discípulos dizendo recebei o Espírito Santo, eles tiveram
ainda de esperar dez dias em oração pelo mais pleno batismo do Espírito;
nem que foi algum tempo depois deste evento que, “quando eles tinham
orado, o lugar onde estavam reunidos foi sacudido e eles todos foram cheios
do Espírito Santo”. Eu não estava realmente na condição dos “discípulos”,
que até então “mal tinham ouvido dizer que houvesse algum Espírito Santo”;
e mesmo assim eu não tinha formado nenhuma concepção do que pudesse
ser o prometido batismo “com o Espírito Santo e com fogo” .
“Profundamente grato pelos privilégios da “santificação pela fé”, conscien­
tizada numa plenitude não esperada alguns meses antes, um dia juntei-me
no bosque a alguns Cristãos que ali estavam para esperar perante Deus pelo
batismo do Espírito. A não ser por alguns hinos ou algumas breves orações
em voz baixa, aquela meia hora foi passada em solene silêncio. Por fim
“veio um som do céu, como de um vento impetuoso e poderoso e encheu
todo o (lugar) onde estavam sentados”. Palavras não inspiradas não poderiam
assim descrever minhas impressões. No entanto, nenhuma folha acima ou
grama abaixo foi movida - toda a natureza estava imóvel. Foi para nossas
almas, não para nossos sentidos, que o Senhor Se revelou pelo Espírito.
Todo o meu ser pareceu inefavelmente pleno do Deus em que eu havia muito
tempo acreditava. A percepção dos meus sentidos não poderia trazer uma
consciência como a que eu agora tinha. Compreendi as visões extra-sensoriais
de Isaías, Ezequiel e Paulo. Nenhuma coisa criada era agora tão real para a
minha alma como O Próprio Criador. Foi espantoso mas sem terror. Não
perdi nenhuma parte de meus sentidos e entretanto eles foram todos
envolvidos na sublime manifestação. Uma pergunta que me foi feita foi
respondida da maneira mais breve possível, para que minha alma não perdesse
nada da Presença Celestial que envolvia e preenchia meu ser. Não me lembro
de ter então falado a qualquer pessoa a este respeito, mas dias depois, quando
voltei para minha esposa, ela irrompeu em pranto quando nos encontramos,
antes que disséssemos uma só palavra, tão grande era a mudança em minha
aparência. Como “Canções na fase noturna”, as águas vivas que jorravam
do meu coração vieram com a consciência do despertar. Um temor reverente,
doce mas não pesado, ensombreceu meu espírito, pois cada momento foi
preenchido com a presença de Deus; e isto não me deixou mesmo em meio
às mais absorventes ocupações. A vida se tornou um salmo de louvor.
“Esta elevação de sentimento necessariamente se arrefeceu depois de
algum tempo, mas deixou-me com uma consciência interior de Deus que é
expressa por estas palavras: “Eu habitarei neles e caminharei neles”. “Iremos
a ele e nele faremos nossa morada” . A cena na Cruz do Calvário tornou-se
freqüentemente mais real do que os sentidos poderiam fazê-la. Sem a materia­
lidade da visão corpórea, o santo semblante de Jesus, em sua humanidade
terna e sofredora, iluminado pela glória da divindade, parece-me agora olhar
do alto da cruz para as assembléias, quando falo da redenção aos pecadores.
É doloroso tentar falar destas coisas. Minhas pobres palavras mais parecem
cobri-las do que revelá-las. Que esta gloriosa realidade seja transmitida a
outros corações!”
Aqui está um caso de ascensão para a plena luz da manhã, antes do real
nascer do Sol. Este homem foi altamente privilegiado, mas não lhe foi dado
ver “os céus abertos”. Ele entrou na Bem-aventurança Bramânica mas não
viu (ao que parece) o “Esplendor Bramânico”.
E. T.
Nasceu em 1830. Entrou em Consciência Cósmica em 1860; portanto,
aos trinta anos. O autor não dispõe (no momento) de detalhes deste caso e só
o inclui pela idade na iluminação.
CASO DE RAMAKRISHNA PARAMAHANSA
Devemos a Max Mueller e a Protap Chunder Mozoomdar os poucos
detalhes que temos neste caso. O relato deles é talvez mais valioso ainda
porque o primeiro, que é o principal relator [116:306], nunca mostrou em
seus escritos qualquer conhecimento ou apreciação da faculdade aqui chamada
de Consciência Cósmica, embora sua obra sobre literatura indiana o tenha
posto mil vezes em contato com a expressão mais ou menos perfeita dessa
Consciência. Tudo que é feito aqui é resumir a informação que os relatores
acima citados nos deram.
Ramakrishna Paramahansa nasceu em 1835, num vilarejo perto de
Jahanabad (distrito de Hooghly), perto de Kamarpukur. Seu principal local
de residência, segundo consta, foi um templo da Deusa Kali, nas margens do
Ganges, perto de Calcutá. Ele faleceu em 1886, em Kasipur Garden, duas
milhas ao norte de Calcutá. Diz-se que exerceu uma influência extraordinária
sobre um grande número de homens inteligentes e altamente cultos, entre os
quais Protap Chunder Mozoomdar e Keshub Chunder Sen. Uma vintena de
jovens que muito se apegaram a ele tomaram-se ascetas desde seu falecimento.
Eles seguem sua doutrina renunciando ao gozo da riqueza e do prazer carnal,
vivendo juntos numa congregação e de vez em quando se retirando para
lugares sagrados e solitários. Além destes, estamos informados de que um
grande número de homens, com suas famílias, são devotos ardentes de sua
causa.
Ramakrishna nunca andou pelo mundo ou foi um homem do mundo.
Parece que desde o princípio praticou um austero ascetismo. Era um brâmane
por casta, bem dotado de corpo, mas as austeridades pelas quais seu caráter
se desenvolveu parecem ter perturbado permanentemente seu organismo,
deixando em suas feições uma aparência débil, pálida e mirrada, que suscitava
compaixão. Mas, em meio a seu definhamento, seu rosto mantinha uma
plenitude, uma infantil ternura, uma profunda e visível humildade, uma
indescritível doçura de expressão e um sorriso que Mozoomdar diz que nunca
viu em nenhum outro rosto. Um santo hindu é sempre escrupuloso quanto a
seus aspectos externos. Usa o manto Garua, come de acordo com regras
rigorosas, recusa-se a se relacionar com pessoas, é um rígido observador da
casta, é sempre orgulhoso e professa uma sabedoria secreta; é sempre um
conselheiro universal e dispensador de sortilégios. Mas o homem
Ramakrishna era peculiarmente isento de tais pretensões. Sua roupa e sua
dieta não diferiam das de outros homens, exceto na negligência geral que
demonstrava para com ambas e, quanto à casta, todos os dias ele a infringia
abertamente. Repudiava o título de instrutor, manifestava desagrado de
qualquer honra excepcional que as pessoas tentavam lhe tributar e
enfaticamente desmentia o conhecimento de segredos e mistérios. Não
venerava nenhuma divindade hindu específica, nem Siva, nem Víshnu, nem
Saktis e, no entanto, aceitava todas as doutrinas, as personificações, os
costumes e as práticas de devoção de todo culto religioso. Cada uma dessas
divindades, por sua vez, era infalível para ele. Sua religião significava êxtase;
sua adoração, visão transcendental; toda a sua natureza ardia noite e dia
com o fogo permanente e a perpétua febre de uma estranha fé e um estranho
sentimento. Seu discurso era um borbotar incessante de seu fogo interior e
durava longas horas. Muitas vezes mergulhava em exultante êxtase e
inconsciência exterior durante o dia, principalmente quando falava de suas
experiências espirituais favoritas ou ouvia alguma resposta dramática a elas.
Krishna se tomou para ele a encarnação da devoção amorosa e somos
informados de que, quando meditava nele, com o coração cheio de ardente
amor a Deus, suas feições de repente ficavam hirtas e imóveis, seus olhos
perdiam sua visão e, embora ele próprio estivesse completamente inconsciente,
lágrimas rolavam por seu rosto rígido, pálido mas sorridente; e enquanto
estava nesse estado ele às vezes se punha a orar, cantar canções e pronunciar
prédicas, cuja força e cujo sentimento eram capazes de penetrar no mais
duro coração e suscitar lágrimas em olhos que nunca tivessem chorado por
influência da religião.
O mais extraordinário é que sua religião não estava restrita à adoração
das divindades hindus. Por longos dias ele se submeteu a vários tipos de
disciplina para realizar a idéia muçulmana do todo-poderoso Alá. Deixou
sua barba crescer, seguiu a dieta muçulmana e repetiu continuamente trechos
do Alcorão. Por Cristo, sua reverência era profunda e genuína. Ele curvava
a cabeça ao nome de Jesus, honrava a doutrina de sua filiação e por uma ou
duas vezes compareceu a locais cristãos de adoração. Mostrou que era possível
unificar todas as religiões do mundo vendo somente o que é bom em cada
uma delas e por sincera reverência por todos os que tenham sofrido pela
verdade, por sua fé em Deus e por seu amor aos seres humanos. Nada deixou
por escrito. Seus amigos escreveram alguns de seus dizeres. Não desejou
fundar uma seita.
A seguir temos algumas passagens, mais ou menos características, de
seus ensinamentos:
Como se livrar do ego inferior. A flor desaparece por si mesma conforme o fruto
cresce; assim vosso ego inferior se dissipará conforme o divino crescer em vós.
Enquanto a expansão celestial do coração for estorvada e perturbada pelos acessos
do desejo, há pouca possibilidade de nele contem plarm os interiorm ente o D eus
luminar. A beatífica visão divina ocorre somente no coração que está calmo e absorto
em divina comunhão.
O espelho sujo nunca reflete os raios do Sol; assim, os impuros e os que não são
limpos de coração, que estão sujeitos a Maya (ilusão), nunca percebem a glória de
Bhagavan, o Santo. M as os puros de coração vêem o Senhor, do mesmo modo que o
espelho limpo reflete o Sol. Assim, pois, sede santos.
U m a jo v em senhora recen tem en te casada fica p ro fu n d am en te ab so rta no
desempenho de seus deveres domésticos, enquanto não lhe nasce nenhum filho. Mas,
tão logo tem um filho, começa a negligenciar detalhes da administração doméstica e
não mais encontra tanto prazer neles. Em lugar disso, afaga a criança recém-nascida
durante todo o dia e a beija com intensa alegria. Assim o ser humano, em seu estado
de ignorância, está sempre ocupado no desempenho de toda espécie de trabalho, mas
tão logo vê em seu coração o Todo-poderoso Deus, não encontra mais prazer nesse
trabalho. Ao contrário, sua felicidade consiste agora som ente em servir a D eus e
realizar suas obras. Não mais encontra felicidade em qualquer outra ocupação e não
pode mais subtrair-se ao êxtase da Santa Comunhão.
Assim como alguém pode subir ao topo de uma casa por meio de um a escada, ou
de um bambu, ou de uma corda, assim também diversos são os meios e modos de se
alcançar Deus e cada religião do mundo mostra um desses meios.
Por que não podemos ver a Divina Mãe? Ela é como uma senhora de alta linhagem,
conduzindo todos os seus negócios de trás de um biombo - vendo todos mas não
sendo vista por ninguém. Somente Seus filhos devotados a vêem, aproximando-se
dela por trás do véu de Maya.
Vedes muitas estrelas no céu à noite, mas não as encontrais quando o Sol nasce.
Podeis dizer que não há estrelas no céu do dia? Assim, ó ser humano, porque não
vedes Deus nos dias de vossa ignorância, não digais que não há Deus.
N a brincadeira de pique ou pega-pega, se um a das crianças consegue tocar o
pique (Boori) não está m ais sujeita a ser cham ada de “ladrão” por aquela que a
persegue. Analogamente, tendo um a vez visto D eus, o ser hum ano não mais está
preso aos grilhões do mundo. Assim como a pessoa que toca o pique está livre para
ir aonde quiser sem ser perseguida e cham ada de “ ladrão” , assim tam bém no
“playground” deste mundo não há medo para aquele que tenha um a vez tocado os
pés de D eus. Ele alcança a liberdade de todas as preocupações e ansiedades deste
mundo e nada pode jam ais prendê-lo outra vez.
A ostra que contém a preciosa pérola é em si mesma de valor muito pequeno,
mas é essencial para o crescimento da pérola. A concha em si poderá não ter nenhuma
utilidade para o homem que tenha conseguido a pérola. Assim, cerimônias e ritos
podem não ser necessários àquele que alcançou a Suprema Verdade - Deus.
O menino que está usando a máscara com a cabeça de leão parece realmente
muito terrível. Ele vai aonde sua irmãzinha está brincando e solta um grito hediondo,
o que de imediato choca e aterroriza a menina, fazendo-a gritar com sua voz mais
aguda, na agonia do desespero de escapar às garras daquela terrível criatura. Mas
quando seu pequeno atormentador tira sua máscara, a menina amedrontada reconhece
imediatamente seu querido irmão e corre para ele exclamando: “O h, é meu querido
irmão, afinal!” Este é o caso de todos os seres humanos do mundo que estão iludidos
e amedrontados e são levados a fazer toda sorte de coisas pelo poder nefando de
Maya, ou Nescidade, sob cuja máscara Brahman se esconde. Mas quando o véu de
Maya é retirado de Brahman, os homens então não vêem nele um Mestre terrível e
inflexível mas, sim, seu próprio amado Outro Eu.
Talvez não possa ser provado (da maneira usual) que Ramakrishna tenha
sido um caso de Consciência Cósmica. Não podemos apontar a presença da
luz subjetiva ou a súbita iluminação numa certa idade. Apesar disto há pouca
dúvida quanto ao diagnóstico e podemos prontamente compreender nossa
falta de informação precisa, que é provavelmente devida ao fato de que aqueles
que nos relataram o caso não faziam idéia de sua real natureza, ou de quais
eram os sintomas característicos e essenciais. Para eles a luz subjetiva (se
tinham conhecimento dela) pareceria provavelmente uma coisa sem impor­
tância e igualmente quanto à idade e à relativa subitaneidade do advento de
tais características no caso, conforme eles o relataram.
CASO DE J. H. J.
Um comerciante, num negócio bastante grande. O advento do Sentido
Cósmico - que foi momentâneo e incompleto - não causou nenhuma mudança
visível em sua vida e bem poucas dentre as centenas de pessoas que o
conheceram tiveram a menor suspeita de que ele jamais tivesse tido qualquer
experiência fora do comum. Ele não é considerado um santo nem exatamente
um sábio, mas tem muitos amigos sinceros e é em vários aspectos
notavelmente inteligente. Nasceu em 25 de maio de 1837. Na noite de 31 de
dezembro de 1868, na metade de seu trigésimo segundo ano de vida, teve o
sonho que apresentamos a seguir. Absolutamente não está claro que o sonho
tenha tido qualquer ligação com sua subseqüente iluminação. Apresento agora
esse sonho em suas próprias palavras, como parte de seu caso, e cada leitor
pode formar sua própria opinião quanto à sua importância. O autor, não
obstante, pode afirmar que lhe parece que a sensação de luz intensa vivenciada
no sonho, se não foi efetivamente a luz subjetiva própria do advento da
Consciência Cósmica, teve alguma estreita relação com ela.
“Pensei”, escreve ele, “que estava de pé atrás do balcão de minha loja, no
meio de uma tarde brilhante e ensolarada e, instantaneamente, num lampejo,
ela ficou mais escura do que a mais escura noite, mais escura que uma mina,
e o cavalheiro que estava falando comigo correu para a rua. Seguindo-o,
embora estivesse tão escuro, pude ver centenas, milhares de pessoas saindo
para a rua, todas se perguntando o que teria acontecido. Exatamente naquele
momento notei no céu, bem longe a sudoeste, uma luz brilhante como uma
estrela, mais ou menos do tamanho da palma da minha mão, e num instante
ela pareceu crescer cada vez mais e chegar sempre mais perto, até que começou
a iluminar a escuridão. Quando ela ficou do tamanho de um chapéu de homem,
dividiu-se em doze luzes menores, com uma outra maior ao centro e então,
de maneira muito rápida, cresceu a um tamanho muito maior e
instantaneamente eu senti que se tratava da vinda do Cristo. No momento
em que este pensamento me ocorreu, todo o sudoeste do céu ficou cheio de
uma hoste brilhante e ao centro dela estavam Cristo e os doze apóstolos. A
esta altura ficou mais claro do que o dia mais iluminado que se poderia
imaginar e, enquanto a hoste brilhante avançava para o zénite, o amigo com
quem eu estava falando exclamou: “Aquele é o meu Salvador!” e me pareceu
que ele imediatamente deixou seu corpo e ascendeu ao céu, e eu achei que
não era suficientemente bom para acompanhá-lo. Então, acordei.
“Por alguns dias estive fortemente impressionado com este sonho e não
pude contá-lo a ninguém. Dentro de cerca de uma quinzena contei-o à minha
família; depois à minha classe da escola dominical; desde então o tenho
freqüentemente repetido. Foi o sonho mais vívido que já tive.”
O resto de sua experiência é tirado de uma carta datada de 4 de junho de
1892:
“Eu vivera durante três anos ou mais um período “apertado”. Sabia que
tinha de haver um lugar de repouso, ou toda a Bíblia era uma mentira. Desde
menino lera e pensara a respeito da “segunda vinda” e, embora risse dos
adventistas e soubesse que eles eram tolos em suas expectativas, eu ainda
tinha bastante do prodigioso em mim para estar na expectativa de uma
mudança repentina de alguma espécie. Um dia, no final da primavera de
1871 [ele estava então exatamente com trinta e quatro anos de idade], o Sr.
B. [J. B. neste livro] disse à minha esposa que meu caso era muito curioso.
Disse ele: “Seu marido nasceu novamente e não sabe disso. Ele é um bebêzinho
espiritual que ainda não abriu os olhos, mas vai se dar conta disto muito
brevemente”. E, cerca de três semanas depois, por volta das sete e quarenta
e cinco, enquanto eu caminhava na Segunda Avenida (em New York) com
minha esposa, a caminho de uma palestra no Liberal Club, de repente
exclamei para ela: “A., eu tenho vida eterna”! Não posso dizer que tenha
havido uma exaltação tremenda, mas foi um estado de exaltação muito
acentuado. O sentimento mais forte foi uma espécie de segurança imorredoura
de que o Cristo em mim havia nascido e permaneceria em sempiterna
consciência- e permaneceu. Houve uma ocasião depois disto, três anos mais
tarde, em agosto de 1874, num barco de Long Branch, em que num grupo de
pessoas, sentado, recostado em minha cadeira, tive uma experiência da maior
exaltação mental e espiritual - quando pareceu como se toda a minha alma,
e o corpo também, estivessem inundados de luz, mas isto jamais me fez
esquecer a primeira experiência, que, embora tenha sido algo parecida com
esta última, não foi tão arrebatadora.”
T. S. R.
Nasceu em 1840. Entrou em Consciência Cósmica em 1872, aos trinta e
dois anos. Era membro ativo da Igreja Presbiteriana. Quando de sua
iluminação, deixou a igreja e desde então não mais teve ligação com qualquer
outra organização similar. Foi sempre um homem sério e ponderado. “Em
1872 [diz um informante] seus amigos julgaram por algum tempo que ele
estava ficando insano. Passou por uma crise espiritual grave, cuja natureza
exata desconheço * Qualquer que tenha sido, ao que tudo indica passou e ele
tem se demonstrado desde então, não somente são, mas excepcionalmente
inteligente e mentalmente equilibrado. É o erudito mais versado em Emerson
que conheço. Em todas as suas relações domésticas - esposa, filhos e amigos
- ele é muito amado. Tem absoluta certeza da imortalidade individual. É um
homem muito modesto, mas tem um certo ar ou jeito que causa naqueles que
vêm a conhecê-lo a impressão de que ele (que é apenas um empregado) é
mais rico que seus patrões milionários, e de que ele sabe disto.
* Louis Lambert - isto é, Balzac - foi tido por seus amigos como insano na ocasião
de sua iluminação [5:126 et seq.]. Maomé temeu que estivesse ficando insano.
N o caso de M.C.L. (mais adiante) a mesm a dúvida veio à tona. Esta dúvida tem
in co n testav elm en te se m an ifestad o n a m ente de quase to d a p esso a que tem
experienciado a iluminação.
W. H. W.
Nasceu em 1842. Entrou em Consciência Cósmica em 1877, aos trinta e
cinco anos. Tinha mente muito forte e original e maravilhosa memória. Es­
creve um cavalheiro que o conheceu: “Ele era um extraordinário conversador;
era como se tivesse absorvido a mente e as obras de Darwin, Huxley e Spencer,
e falava com a autoridade e o conhecimento de todos os três; as obras, o
pensamento, a linguagem deles, estavam na ponta de sua língua; era uma
educação estar com ele por alguns dias. Era um maravilhoso violinista igual ao melhor não conhecido como um astro. Ouviu falar em J.B. [o J. B.
deste livro] em 1877, mandou buscá-lo e teve uma conversa de cinco horas
com ele (tinha a capacidade de pegar um caso, um assunto, um livro, uma
composição musical, e não sei que mais, e reter permanentemente tudo que
ouvia ou lia a respeito). Pediu uma outra entrevista e, depois de uma segunda
conversa de duas horas, disse: “Agora, Sr. B., terminei. Tenho apenas mais
uma pergunta a lhe fazer e somente uma. Tem o senhor o que os cientistas
chamam de “um Novo Princípio”? “Tenho”, respondeu B., “e posso
acrescentar que o senhor o terá também. Não sei quando, mas o terá”. J.B.
voltou para sua cidade naquela tarde. Na tarde seguinte recebeu um telegrama
de W.H.W. “Consegui aquele Princípio”. Mais tarde ouvi ele descrever a
experiência. Disse ele. “Fui para o quintal, para a bomba, e assim que cheguei
lá aconteceu - um choque, uma torrente de luz e, juntamente com ela ou
imediatamente depois, o choque e o fulgor subjetivo - como um grande fogo
interno; veio o sentimento de absoluta harmonia com o poder que fez todas
as coisas e está em todas as coisas. Toda luta cessou - não havia nada por
que lutar - eu estava em paz.”
Nasceu em 6 de novembro de 1848; faleceu em 14 de agosto de 1887.
Este caso é aqui apresentado como o de um homem que passou vários
anos naquilo que foi anteriormente chamado de crepúsculo da Consciência
Cósmica, mas sobre o qual o sol não nasceu. Neste particular, o homem de
que falamos é um estudo extremamente interessante para todos aqueles que
se preocupam com o assunto deste livro, ainda mais porque ele escreveu um
livro em que nos apresenta o que é indubitavelmente um relato franco e
cândido de sua vida espiritual até seus trinta e cinco anos [105], Ele parece
ter entrado cedo no crepúsculo acima referido e parece provável que JefFeries
teria entrado pelo menos numa Consciência Cósmica momentânea mais ou
menos na idade usual se não tivesse acontecido que, antes que chegasse essa
idade, aos seus trinta e três anos ele fosse acometido de uma doença fatal que
o enfraqueceu e torturou desde então até sua morte, que ocorreu aos seus
trinta e noVe anos. De qualquer forma, o referido livro representa a mais
elevada altitude espiritual alcançada por JefFeries - uma altitude espiritual
claramente acima da mera autoconsciência e também claramente abaixo do
estado mental da plena Consciência Cósmica.
O livro, naturalmente, deve ser lido por completo - e bem compensará
uma leitura diligente - mas para o propósito deste nosso livro as passagens
a seguir devem ser suficientes.
A história do meu coração começa há (*1) Aos dezoito anos de idade ele entra no
crepúsculo do Sentido Cósmico. Mas nem
dezessete anos [105:1], E u não tinha mais
que dezoito anos quando um significado então nem mais tarde se apresentam quaisquer
fenômenos característicos da entrada em
interior, esotérico, começou a vir a mim
Consciência Cósmica.
de todo o universo visível e indefiníveis
aspirações tomaram conta de mim [105:181], (*1)
Eu estava completamente só, com o Sol e a Terra. Deitado na relva, falava em
minha alma como a Terra, o Sol, o ar e o mar distante, muito longe de vista. Pensei
na firm eza da Terra - senti-a me sustentando; através do leito de relva veio um
influxo como se eu pudesse sentir a grande Terra falando comigo. Pensei no ar errante
- sua pureza, que é sua beleza; o ar me tocou e me deu algo de si próprio [105:4], Por
tudo isto eu orei; senti uma emoção da alma que transcende toda definição [105:5].
Pensei na minha existência interior, nessa consciência que é chamada de alma.
Isto - ou seja, a mim mesmo - pus na balança, para dar mais peso à oração. E a isto
apliquei m inha força de corpo, mente e alma; pus m inha força nisso tudo; lutei,
esforcei-me, trabalhei arduamente no po­
(*2) Jefferies está sempre ansiando, sempre
der da oração. A prece, essa emoção aní­
aspirando, sempre procurando alcançar e
mica, era em si m esma, não um objeto, lutando. Ele sente intensamente que há algo
mas um a paixão. Escondi meu rosto na
infinitamente desejável pouco além de sua mão
relva, com pletam ente prostrado; perdiestendida, mas nunca consegue realmente
tocá-lo.
me n a luta, arrebatado e transportado
[105:7], (*2)
Se algum pastor tivesse incidentalm ente me visto, deitado no gram ado, teria
pensado apenas que eu estivesse descansando por alguns minutos; eu não demonstrava
nada abertamente. Quem poderia ter imaginado o torvelinho de paixão que se passava
dentro de mim enquanto eu estava ali deitado! Eu estava bastante exausto quando
cheguei em casa [105:8].
Tendo bebido profundamente do céu
acima e sentido a mais gloriosa beleza
do dia e relembrando o velho, velho mar,
que (como m e pareceu) estava logo ali
na orla, eu agora m e tornei perdido e
absorvido no ser ou na existência do uni­
verso. Senti-me bem fundo na terra abai­
xo e bem alto no céu e mais longe ainda
até o Sol e as estrelas. Mais distante ain­
da, além das estrelas, no vácuo do espaço
e, assim perdido, m inha condição de
separação do ser chegou a parecer uma
parte do todo [105:8-9], (*3)
(*3) De passagens como estas diz Salt
[172:53]: “Jefferies agora escreve sem
disfarce, como uma pessoa que recebeu uma
revelação solene da beleza interior do universo”.
Mas deve-se notar especialmente que seu amor
pela beleza exterior é sempre um anseio, tor­
nando-se intenso mas nunca realizado, de se
tomar o objeto. Mas talvez a essência do Sentido
Cósmico, do ponto de vista do intelecto, seja a
percepção de que o sujeito e o objeto são um só.
Vejam-se, anteriormente, as palavras de E.C. e
também do Vaga-Saneyi-Samhita-Upanishad
[193:173]'. “Estranho e difícil, esse paradoxo
como verdadeiro dou, que os objetos brutos e os
invisíveis são um só”. Mas Gautama diz que
“dentro dele nasceu o olho para perceber, o conhecimento, o entendimento, a sabedoria que ilumina
a verdadeira senda, a luz que dissipa as trevas”.
Com todo aquele tempo e poder, orei para que eu pudesse ter em minha alma a
parte intelectual daquilo - a idéia, o pensamento [105:17]. Agora, este momento me
dá todo o pensamento, toda a idéia, toda a alma expressa no Cosmo ao meu redor
[105:18], Dá-me a plenitude da vida, como ao mar e ao Sol, como à Terra e ao ar, dáme plenitude de vida física igual e além da plenitude destas coisas; dá-me grandeza
e perfeição da alma superiores a todas as coisas; dá-me o meu desejo inefável, que
cresce em mim como a m aré - dá-m e isto com toda a força do m ar [105:103].
Conscientizo-me de um a ilimitável vida anímica; conscientizo-me da existência de
um U niverso de pensam ento [105:51], Creio na form a hum ana; que eu consiga
encontrar algo, algum, método pelo qual essa forma alcance sua maior beleza. Sua
beleza é como um a flecha, que pode ser atirada a qualquer distância conform e a
força do arco. Assim, a idéia expressa na forma humana é capaz de indefinida expansão
e elevação de beleza. Quanto à mente, à consciência interior, à alma, minha oração
desejou que eu pudesse descobrir um modo de vida para ela, tal que ela pudesse não
apenas conceber essa vida, mas efetivamente desfrutá-la na Terra. Eu desejei pesquisar
um novo e mais elevado conjunto de idéias em que a mente trabalhasse. A analogia
de um novo livro da alma é a que chega mais perto de transmitir este significado um livro extraído do presente e do futuro e não do passado. Em lugar de um conjunto
de idéias baseadas na tradição, que eu dê à mente um novo pensamento, extraído
diretamente do maravilhoso presente, desta exata hora [105:30].
Reconhecendo tão claramente minha (*4) Ele tem o sentimento da vida contínua própria consciência interior, m inha psinão parece que possa morrer. Se tivesse
que, não me pareceu que a morte afetasse alcançado a Consciência Cósmica teria entrado
a personalidade. N a dissolução não havia na vida eterna e nâo haveria nenhum “P ^ 06” a
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este respeito,
nenhum precipício sem ponte, nenhum
insondável abismo de separação; o espírito não se tornou imediatamente inacessível,
saltando na fronteira para um a distância imensurável [105:34], (*4)
Para mim, tudo é sobrenatural [105:42], E impossível forçar a mente às mesmas
leis que regem peças de madeira [105:42],
Q uando c o n sid e ro q u e v ivo n e ste
m om ento no eterno Agora, que sem pre
existiu e sem pre existirá, q u e neste insta n te esto u em m eio a coisas im ortais,
(*5) Ora! Quem liga para milagres? Para mim,
cada hora da luz e da escuridão é um milaSfe>ca|Ja centímetro cúbico de espaço é um
m ilagre’ [193:301], etc.
que provavelm ente h á alm as infinitam ente superiores à m inha, assim com o a m inha
em relação a um pedaço de m adeira - que é então um “ m ilagre”? [105:44] (*5)
Sinto-m e à m argem de um a vida des-
(*6) Ele sente que não conseguiu apreender -
conhecida, muito perto, quase tocando-a
que há algo pouco mais além do seu
- a um passo de poderes que, se eu pudesse apreender, haveriam de m e dar u m a
alcance; seu contentamento nunca é completo
ou só o é em lampejos. Por outro lado, aqueles
imensa amplitude na existência [105:45]
que entraram plenamente em Consciência
(*6). Às vezes um verdadeiro êxtase de
intenso desfrute de todo o universo enchia
Cósmica - sobre os quais o sol nasceu - que
alcançaram o Nirvana - o reino dos céus - estão
todo o meu ser [105:182], Quero mais
idéias da vida aním ica. E stou certo de
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que ha mais a serem encontradas. U m a
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grande vida - toda um a civilizaçao - esta
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logo depois da fronteira do pensam ento
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comum [105:48].
em paz e felizes. “Estou satisfeito”, diz Whitman,
“exist0 tal como sou' Ist0 basta” “Se. que sou
firme e são”. “Sei que sou imortal”. E todos os
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plenamente iluminados, de Gautama a E.C.,
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inclusive eles propnos, declaram a mesma plena
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satisraçao do deseio.
H á um a E ntidade, una E ntidade A lm a, ainda não reconhecida [105:48],
(*7)
(*7) Sim, o Sentido Cósmico, que Jefferies
sentiu mas não alcançou.
O ser humano tem uma alma, por enquanto ao que me parece em estado latente,
com a ajuda da qual pode ele ainda descobrir coisas hoje consideradas sobrenaturais
[105:144],
Creio de todo meu coração na carne, no corpo, e creio que ele deve ser reforçado
e tomado mais belo por todos os meios [105:114]; que os órgãos do corpo podem ser
mais fortes em sua ação, perfeitos e duradouros; que a carne exterior pode ser ainda
mais bela; que a forma pode ser mais fina e os movimentos mais graciosos [105:29],
Sou de opinião que todos os tipos de ascetismo são a mais vil blasfêmia - blasfêmia
contra toda a espécie humana. Creio na
carne, no corpo, que é digno de culto
(*8) “Creio na carne e nos apetites. Ver, ouvir,
[105:114], (*8)
sentir, são milagres e cada parte de mim é
um milagre. Divino eu sou, dentro e fora!”
Como posso expressar adequadamen­
te meu desprezo pela asserção de que to­
das as coisas ocorrem para o melhor, para
um fim sábio e beneficente, e de que são
decretadas por uma inteligência humana!
Esta é a maior falsidade e um crime con­
tra a espécie humana [105:134], (*9)
(*9) Em passagens como esta tem-se a prova
decisiva de que Jefferies nunca realmente
alcançou o Sentido Cósmico - isto é, ele nunca
se tomou consciente da ordem Cósmica - a visão
das “rodas eternas”, da “cadeia de causação”,
não lhe foi concedida.
N ada é evoluído. N ão há evolução, assim como não há qualquer desígnio na
natureza. Colocando-me face a face com a natureza, e não a partir de livros, convencime de que não há desígnio nem evolução. O que é que existe, qual foi a causa, como
e por que, ainda não se sabe; certamente, não foi nenhuma destas coisas [105:126].
Nada de humano existe em qualquer animal vivente. Toda a natureza, o universo até
onde podemos ver, é anti-humano, ou ultra-humano, lá fora, e nada tem a ver com o
ser hum ano [105:62]. Não havendo nada de hum ano na natureza, no universo, e
todas as coisas sendo ultra-hum anas e sem desígnio, forma ou propósito, concluo
que nenhuma divindade tem qualquer coisa a ver com a natureza [105:63], Depois,
nos assuntos humanos, nas relações do ser humano com outro ser humano, na condução
da vida, nos eventos que ocorrem, nos afazeres humanos em geral, tudo acontece por
acaso [105:64], M as como tudo nos assuntos humanos obviamente acontece por acaso,
está claro que nenhum a divindade é responsável [105:66],
Fui forçado a escrever estas coisas por um irresistível impulso que tem trabalhado
em mim desde a primeira juventude. Elas não foram escritas para fins de discussão,
menos ainda com alguma idéia de lucro; na verdade, justo pelo contrário. Elas foram
forçadas de mim mesmo pela sinceridade de coração e expressam minhas mais sérias
(*10) Assim, disse Bláke de Jerusalém-, “Escrevi esta poesia por ditado imediato, doze
ou às vezes vinte ou trinta versos cada vez, sem
premeditação e mesmo contra minha vontade”.
Este sentimento de domínio extemo ou intemo
por alguma coisa ou alguém é comum, se não universal, entre aqueles que têm o Sentido Cósmico.
Assim como no caso daqueles que entraram no santuário dos santuários, assim Jefferies, embora a
revelação em seu caso tenha sido longe de completa, viu mais do que achou fácil expressar em nossa
linguagem da mente autoconsciente.
convicções [105:181], U m a das maiores
dificuldades que encontrei é a falta de
palavras para expressar idéias [105:184],
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CASO DE C. M. C.,
NAS PRÓPRIAS PALAVRAS DELA
É importante compreender claramente que, ao escrever as páginas que
seguem, C. M. C. (e o mesmo pode verdadeiramente ser dito de toda pessoa
cujo depoimento está incluído neste livro) não tinha nenhum caso anterior
ou contemporâneo ante sua mente, com base no qual, se ela tivesse sido
capaz de assim fazer, pudesse ter construído sua narrativa. Esta última é,
fora de qualquer dúvida, um relato fiel (tão simples e franco quanto ela o
pôde fazer) de sua real experiência psicológica tal como ela a vivenciou.
N asci em 1844. Disseram -m e que, (*1) C. M. C. parece ter tido a constituição
quando criança, nunca pareci jovem - isto
mental (a julgar pelos indícios) das pessoas
é, que juntamente com minha juventude que, quando chega a idade adequada, alcançam
havia um ar de reflexão que é próprio de a Consc'ência Cósmica,
idades mais avançadas. (*1) Não consigo me lembrar de qualquer época em que não
tenha pensado em Deus e levantado questões a respeito de Deus. Desde a primeira
in fâ n c ia a b eleza e a su b lim id ad e da n a tu re z a sem p re m e im p ressio n ara m
profundamente. Fui à igreja e à escola dominical, ouvi atentamente as orações e os
sermões - refleti sobre estes últimos mais do que provavelmente se supunha. Os
sermões eram os presbiterianos tradicionais - o dia do juízo, a perdição do pecador,
o pecado im perdoável e todas aquelas coisas chocantes para um a criança séria e
imaginativa. A medida que eu ficava mais velha e quanto mais eu pensava, mais
confusa e perplexa m e tornava. P elos sofrim entos de Jesu s, derram ei am argas
lágrimas, lamentando que meus pecados pudessem tê-lo pregado na cruz. Como ele
podia ter sido Deus eu não podia compreender, mas nunca duvidei que aquilo tinha
de ser verdade. Estudei a Bíblia e o catecismo e, especialm ente, a “ Confissão de
Fé”, não somente porque era um dever, mas porque me sentia como se tivesse de
descobrir a verdade a respeito das coisas. Como me senti mal quando soube que fora
do evangelho os pagãos não poderiam ser salvos. A crueldade e a injustiça disto
fizeram com que eu quase odiasse Deus por ter feito o mundo assim. Não obstante
entrei para a Igreja, pensando que isto me poderia trazer paz e repouso; mas embora
me sentisse mais segura, estava tão longe como sempre de estar satisfeita. Quando
eu ainda era bem jovem, começamos a pegar alguns papéis da Igreja bastante liberais,
que li e que foram até certo ponto um conforto para mim, pois eles m e mostraram
que as doutrinas estreitas sob as quais eu fora criada não representavam todo o
cristianismo. N essa época, Paradise Lost [“Paraíso Perdido” ], o livro de Pollock,
C ourse o f Tim e [“ C urso do Tem po”], e P ilg rim ’s P ro g ress [“ O P rogresso do
Peregrino”] eram livros favoritos. Course o f Time, porém, deixou-me deprimida por
muitas semanas. N unca pude conciliar a vastidão e a grandeza do D eus que sentia na
natureza com o D eus da Bíblia, por mais que tentasse e, naturalmente, senti-me por
conseguinte um a cética má. Assim as coisas continuaram e, embora por todas as
aparências eu fosse feliz e cheia de vida como as outras mocinhas, havia sempre
aquela subcorrente - uma veia de tristeza, bem no fundo, fora de vista. M uitas vezes,
ao passear sob as estrelas olhando para cima, para aquelas profundezas silenciosas,
com inefável ansiedade por alguma resposta para as perguntas sem palavras dentro
de mim, eu me prostrei no chão numa perfeita agonia de aspiração. M as se as estrelas
conheciam o segredo que eu procurava elas não deram nen h u m sinal. M in h a
experiência era sem dúvida comum - em grande parte a da média das moças, vivendo
a vida média, comum - com aspirações e ideais aparentemente além de qualquer
esperança de realização. Aos vinte e dois anos, casei-me. D ez anos depois, um a
m udança de lugar quebrou a velha rotina de minha vida, proporcionando-me novos
associados e novos interesses. Entrei em relação com pessoas de tendências mais
liberais e logo comecei a ler os livros e as revistas (“Popular Science Monthly”, etc),
que encontrei nas mãos de minhas novas amizades. Belfast Address, de Tyndall, um
dos livros em questão, foi o primeiro livro realm ente sério (do ponto de vista da
ciência moderna) que eu li e foi uma revelação para mim. Desde aquela oportunidade,
sem eu entrar muito profundamente no assunto, adquiri uma idéia geral da evolução
e pouco a pouco as velhas concepções deram lugar a outras mais racionais e mais em
conformidade com meus próprios sentimentos. As questões de desígnio e propósito
na natureza, da imortalidade individual, etc., foram deixadas para a pesquisa científica
desvendar, se é que foram deixadas a desvendar. M inha atitude era a de um agnóstico.
Então descansei, não totalmente contente, é verdade. Alguma coisa na vida
havia sido perdida, que parecia que tinha
de estar lá: profundezas em m inha própria
natureza que nunca tinham sido sondaj
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das; alturas que eu podia ver mas que nao
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tinham sido alcançadas. O abismo entre
(*2) Todos os leitores deste livro devem ter
notado a aparente incompatibilidade entre
38 chamadas religiões - em outras palavras, as
' 8 ^ “ e a Consciência Cósmica. Aquele que
alcança ou está P8™ alcançar esta última;,°,u
nunca pertenceu a um a igreia, como Walt
„ T. ..
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Whitman, ou deixa a igreja antes da íiuminaçao,
como
c M c >ou imediatamente após a
o q u e eu era e o que precisava ser e ra
profundo e am plo, m as com o esta m esm a
carência era óbvia n a vida de outros, foi
aceita com o m inha cota no fado com um ,
M as então a essa vida, passado seu auge
e a p are n te m en te fixado para o bem ou
p a ra o m al, e s ta v a p a ra v ir um n o v o
iluminação. Quase a única exceção a esta regra
foi Juan Yepes - uma exceção a ser explicada
pela grande largueza da Igreja Católica, que lhe
permitiu interpretar sua experiência em termos
da religião corrente. As igrejas são inevitáveis e
sem dúvida indispensáveis no plano da
autoconsciência,
são provavelmente (em
t
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qualquer forma) impossíveis no plano
elem ento, que deveria me transform ar, 1
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Cosmicamente Consciente.
transtormar minha vida e o mundo para
mim. A alm a, o Eu mais profundo, estava para despertar e exigir o que lhe era
próprio! (*2) Estava para ser despertada uma força irresistível, que, com poderosas
investidas, rasgaria o véu por trás do qual a natureza esconde seus segredos. Uma
doença, combinando extrema prostração física com igualmente extrema perturbação
emocional e mental, revelou-me as profundezas de minha própria natureza. Depois
de alguns meses, minhas forças foram restauradas e minha condição mental melhorada
até certo ponto, mas a profunda inquietação ficou. Com o poder de sofrer veio o
poder da solidariedade para com todos os sofredores. O que eu havia até então
aprendido ou compreendido da vida era como a picada de um alfinete em comparação
com um golpe de adaga. Eu estivera vivendo na superfície; agora estava descendo às
profundezas e, à medida que ia cada vez mais fundo, as barreiras que haviam me
separado dos meus semelhantes eram derrubadas; o senso de parentesco com cada
criatura vivente se aprofundara, de modo que eu estava oprimida com um duplo
fardo. N ão haveria eu de ter tranqüilidade e paz nunca mais? Parecia que não. A vida
tinha m uitas bênçãos - lar, marido, filhos, amigos - mas foi com desalento que
pensei nos anos que viriam até que a morte viesse me libertar.
Walt W hitman, em Leaves o f Grass, tinha retratado com maravilhoso poder e
sublim idade esta fase do desenvolvim ento mental e espiritual, como aqueles que
olham profundamente para dentro de sua própria natureza devem perceber. Naqueles
maravilhosos poemas, a própria natureza faz ouvir sua voz, extravasando a paixão e
a dor elementar do viver, em palavras abrasadoras como a lava que é derramada em
torrentes da cratera de um vulcão - não som ente a voz dele, m as a da alm a da
humanidade aprisionada, lutando para romper as cadeias que a encerram e a mantêm
confinada. Como é doce a gente se apoiar naquela grande alma! sentir aquela tem a
solidariedade humana! e vendo a que alturas ele chegou e conhecendo o caminho
que ele trilhou, que coragem!
Pulando o intervalo entre este momento e setembro de 1893, por nâo ser importante
exceto pela luta constante dentro de mim, passo a descrever, tão bem quanto for
possível, o evento supremo de m inha vida, que sem dúvida está relacionado com
tudo o mais e é o resultado daqueles anos de apaixonada busca.
Eu me dera conta de que minha necessidade era ainda maior do que eu havia
pensado. A dor, a tensão, fundo no ceme, no centro de meu ser, era tão grande que eu
m e sentia como deveria se sentir alguma criatura que tivesse crescido mais que a sua
concha mas não conseguisse sair dela. O que era eu não sabia, exceto que era um
grande anelo - para a liberdade, para uma vida maior - para um amor mais profundo.
Parecia nâo haver nenhuma resposta na natureza para aquela infinita necessidade. A
grande maré avançou devastadoramente, indiferente, impiedosa e, as forças esgotadas,
exauridos todos os recursos, nada restou senão submissão. Disse eu então: Tem de
haver uma razão para isto, um propósito nisto, mesmo que eu não o possa apreender.
O Poder em cujas mãos estou pode fazer de mim o que quiser! Passaram-se vários
dias desde esta resolução até que o ponto de entrega total fosse alcançado. Enquanto
isso, com todos os sentidos interiores, procurei por aquele princípio, fosse qual fosse,
que haveria de me sustentar quando eu me abandonasse.
(*3) Eu me entreguei! C arpenter nos diz
Por fim, subjugada, com uma curiosa,
[56:166 etseq.] que a “supressão do pensa­
crescente força em minha fraqueza, eu
me entreguei! Em pouco tempo, para mi­ mento” e o “cancelamento de projetos e pro­
pósitos” são os pontos principais em que insistem
nha surpresa, comecei a sentir um con­
os peritos indianos e iogues para se alcançar os
forto físico, de repouso, como se algum
Siddhi ou poderes miraculosos (vale dizer
esforço, alguma tensão tivesse sido elimi­ iluminação - Nirvana). A mesma doutrina foi
nada. Nunca antes eu tinha vivenciado
evidentemente ensinada na índia durante séculos.
No Bhagavad Gita é estabelecido [154:68] que
um tal sentimento de saúde perfeita. Eu
me espantei com ele. E como era brilhan­ a “atividade da mente e dos sentidos” tem de ser
reprimida - na verdade, que um absoluto vazio
te e belo o dia! Olhei para o céu, as colinas
mental é a condição para se receber a iluminação.
e o rio, admirada de nunca antes ter tido
Isto parece ser a base do ensinamento de Jesus;
consciência de quão divinamente belo era
que não nos devemos deixar preocupar com
o mundo! A sensação de leveza e expan­ cuidados por dinheiro, alim ento, roupas,
são continuou crescendo, as arestas de necessidades do lar [14:6:25 - 16:10:42]. Mas
tudo foram aplainadas e não havia nada uma coisa é necessária, diz ele: Nirvana, o reino
de Deus. E o fato de nos preocuparmos com esses
em todo o mundo que parecesse fora do
assuntos mundanos só tende a nos manter
lugar. (*3) N o jantar, observei: “Como
afastados desse reino, ao passo que se alcança­
estou estranhamente feliz hoje”! Se eu
mos as coisas do mundo que procuramos, nada
tivesse percebido então, como o fiz de­
é ganho, pois elas não têm valor. Assim, diz
pois, que uma coisa tão grandiosa estava
Balzac: A vida autoconsciente “é a glória e o
me acontecendo, eu teria com certeza dei­ flagelo do mundo; gloriosa, ela cria sociedades;
xado meu trabalho e me abandonado à perniciosa, impede que o ser humano entre na
contemplação daquilo, mas tudo me pare­ senda do especialismo, que leva ao Infinito”. E
ceu tão simples e natural (apesar de seu Whitman: “Que procurais?” “Credes que seja o
caráter maravilhoso) que eu e meus afaze­ amor?” “Sim”, ele continua, “o amor é grande,
mas”, diz ele (referindo-se ao Sentido Cósmico),
res prosseguimos como de costume. A luz
“há algo mais que é muito grande; faz com que
e as cores fulguravam, a atmosfera pare­ tudo se harmonize; magnificente, para além das
cia tremular e vibrar ao meu redor e den­ coisas materiais, com mãos contínuas a tudo se
tro de mim. Alegria, paz e repouso perfei­ estende e a tudo provê”. “Se tendes isto, nada
tos estavam por toda parte e, mais estra- mais quereis ter”.
nho que tudo, veio-me uma sensação co­
mo de alguma presença serena e magnética - grandiosa e onipresente. A vida e a
alegria em meu íntimo estavam se tomando tão intensas que, ao anoitecer, tomei-me
inquieta e saí andando pelos quartos e pelas salas, sem saber o que fazer comigo
mesma. Deitando-me cedo para que pudesse ficar sozinha, logo todos os fenômenos
objetivos foram suprimidos. Eu estava vendo e compreendendo o significado sublime
das coisas, a razão de ser de tudo que antes estivera oculto e em trevas. A grande
verdade de que a vida é uma evolução espiritual, de que esta vida é apenas uma fase
passageira na progressão da alma, irrompeu então ante minha visão espantada com
arrebatadora magnificência. Oh, pensei, se isto é o que esta experiência significa, se
este é o resultado, então a dor é sublime! Abençoados os séculos, as eras de sofrimento,
se nos trazem a isto! E o esplendor aumentou ainda mais. Nesse momento, o que
pareceu uma grande, rápida e crescente onda de esplendor e glória inefável se abateu
sobre mim e me senti sendo envolvida, tragada.
Senti que ia embora, que me perdia. (*4) O medo que foi assinalado m ui de uma
Então fiquei aterrorizada, mas com um
dezena de vezes neste livro.
medo brando. Estava perdendo minha consciência, minha identidade, mas estava
sem força para me controlar. (*4) Veio então um período de arrebatamento, tão intenso
que o universo parou, como que pasmo ante a indizível majestade do espetáculo!
Somente um em todo o infinito universo! O Todo-Amoroso, o Ser Perfeito! A Perfeita
Sabedoria, verdade, amor e pureza! E com esse arrebatamento veio a visão interior.
Naquele mesmo maravilhoso momento do que poderia ser chamado de superna bemaventurança, veio a iluminação. Vi, com intensa visão introspectiva, os átomos e as
moléculas de que aparentemente o universo é composto - não sei se materiais ou
espirituais - rearranjando-se conforme o
,
(*5) De uma ordem para ouCra: Esta é a visão
cosm o (em sua vida continua, sempi. .
„ , . „
K
r
cósm ica- o Esplendor Bramanico- o sentem a) passa de uma ordem para outra. timento ou a consciência do cosmo, que está
(*5) Que júbilo quando vi que não havia (aparentemente) na raiz de tudo isso, do mesmo
nenhum intervalo na cadeia - nenhum elo modo que o sentimento ou a consciência do ego
deixado fora - tudo em seu lugar e mo- é o fato central na humanidade, tal como o vemos
mento. Mundos, sistemas, todos mistura­
dos num harmonioso todo. Vida universal, sinônim a de am or universal!
hoje ao nosso redor. É a “cadeia de causação”
de Gautama, as “rodas eternas” de Dante, o “mo­
vimento medido e perfeito” da “marcha do
universo” [193:85] de Whitman.
Quanto tempo durou aquele período de mtenso êxtase, não sei - pareceu uma
eternidade - mas pode ter sido apenas alguns momentos. Depois relaxei, vieram as
lágrimas felizes, a expressão murmurada em êxtase. Eu estava em segurança; estava
na grande estrada, a via ascensional que a humanidade tem trilhado com pés ensan­
güentados mas com imorredoura esperança no coração e canções de amor e confiança
nos lábios. (*6) Agora eu compreendia
as velhas verdades eternas, que eram no (*6) “Em outros momentos”, diz Juan Yepes,
“a divina luz atinge a alma com tanta força
entanto frescas, novas e encantadoras co­
mo o alvorecer. Quanto tempo durou a que as trevas não são sentidas e a luz é ignorada;
a alma parece inconsciente de tudo que sabe e
visão, não sei dizer. De manhã, acordei
portanto se perde, por assim dizer, em esqueci­
com uma leve dor de cabeça, mas com o
mento, não sabendo onde está nem o que lhe
sentido espiritual tão forte que o que cha­ aconteceu, inconsciente da passagem de
mamos de coisas reais e materiais, ao tempo” [203:127],
meu redor, a mim pareciam como som­
bras e irreais. Meu ponto de vista estava (*7) Todo anseio do coração fo i satisfeito: A
abolição ou extinção das paixões e dos
inteiramente mudado. Coisas velhas ti­
nham passado e tudo tinha se tornado no­ desejos próprios da vida autoconsciente (daí o
vo. O ideal tinha se tornado real, o velho nome de Nirvana) é um dos aspectos caracterís­
real tinha perdido sua realidade anterior ticos (comojá vimos muitas vezes) do reino dos
céus - do Sentido Cósmico. Este ponto é observa­
e tinha se tornado como uma sombra.
do em todo caso genuíno, mas de nenhum modo
Essa irrealidade sombria das coisas ex­ é mais bem expresso do que nas seguintes pala­
ternas não durou muitos dias. Todo an­ vras: “Jesus respondeu e disse-lhe: se tu conhe­
seio do coração fo i satisfeito, (*7) toda ceras o dom de Deus, e quem é o que te diz dápergunta respondida, os “ represados, me de beber, tu lhe pedirias, e ele te daria água
aflitivos rios”, alcançaram o oceano - eu
amei infinitamente e fui infinitamente
amada! A maré universal fluiu sobre mim
em ondas de alegria e regozijo, derraman­
do-se sobre mim em torrentes de fragran­
te bálsamo.
viva. Disse-lhe a mulher: Senhor, tu não tens com
que a tirar, e o poço é fondo; onde pois tens a
água viva? És tu maior do que o nosso pai Jacó,
que nos deu o poço, bebendo ele próprio dele, e
os seus filhos, e o seu gado? Jesus respondeu, e
disse-lhe: Qualquer que beber desta água tomará
a ter sede; mas aquele que beber da água que eu
lhe der nunca terá sede, porque a água que eu
lhe der se fará nele uma fonte de água que jorrará
para a vida eterna” [17:4:10-14].
Isto descreve uma sensação real. O
amor e a ternura infinitos pareciam real­
mente fluir sobre mim, qual óleo santo,
curando todas as minhas feridas e contusões. Como pareciam tolos, infantis, a
petulância e o descontentamento, diante daquela serena majestade! Eu aprendera a
grande lição de que o sofrimento é o preço que tem de ser pago por tudo aquilo que
vale a pena; (*8) de que de algum modo misterioso somos refinados e sensibilizados,
sem dúvida em alto grau por ele, de modo
que nos tornamos suscetíveis às influên­ (*8) Porque a nossa leve e m om entânea
tribulação produz para nós um peso etemo
cias mais elevadas e mais puras da natu­
reza - e isto, se é verdade para um, é de glória mui excelente [21:4:17].
verdade para todos. E, sentindo e sabendo
(*9) “Aquilo que eu estava vendo”, diz Dante
isto, agora já não me transtorno como
nas mesmas circunstâncias, “parecia-me
antes, mas fico “silente” “enquanto me um sorriso do universo. O alegria! Ó inefável
sento e contemplo todo o pesar do mun­ contentamento!”
do” - “toda a interminável maldade e
agonia”. Aquele doce e eterno sorriso na face da natureza! (*9) Não há nada no
universo que se lhe compare- tão jubiloso repouso e tão doce despreocupação dizendo-nos com o mais temo amor: tudo está bem, sempre esteve e sempre estará.
A “luz subjetiva” (assim me parece) é magnética ou elétrica - alguma força é liberada
no cérebro e no sistema nervoso - alguma explosão ocorre - o fogo que ardia no peito
é agora uma chama ascendente. Em diversas ocasiões, semanas após a iluminação
descrita, senti claramente faíscas elétricas saltarem dos meus olhos. N a minha
experiência, a “luz subjetiva” não foi uma coisa vista - uma sensação distinta de
uma emoção - foi a própria emoção - êxtase. Foi o contentamento e êxtase do amor,
tão intensificado que se tomou um oceano de luz viva, palpitante, cujo brilho reluzia
mais que o brilho do Sol. (*10) Seu ful­
gor, seu calor e sua ternura enchiam o (*10) ...cujo brilho reluzia mais que o brilho
universo. Aquele oceano infinito era o
do Sol: “Acima do brilho do Sol”, diz
Paulo. Maomé viu “um facho de luz de esplendor
amor eterno, a alma da natureza e tudo
tão insuportável que ele desmaiou”. Yepes ficou
era um sorriso sem fim!
O que me deixou pasma acima de
tudo, conforme os meses iam passando
(a partir daquele setembro), foi uma sen­
sação profunda de uma Santa Presença.
Havia um silêncio em tudo, como se a
por alguns dias parcialmente cego por ela. Na
experiência de Dante, “ De repente, dia pareceu
ser acrescentado ao dia, como se Aquele que
pode tivesse adomado o céu com um outro Sol”;
e Whitman ficou deslumbrado por “Um outro
Sol inefável e todos os orbes que eu conhecia e
mais brilhantes e desconhecidos orbes” .
natureza estivesse retendo o respiro em adoração. Houve momentos em que essa
sensação me veio com tal força que se tornou opressiva, quase dolorosa. NSo me
teria surpreendido que as próprias rochas e colinas tivessem prorrompido num grande
hino de louvor. Por vezes senti como se estas tivessem de fazê-lo, para aliviar meus
sentim entos.
“O véu rasgado”, “o santuário dos santuários”, “o querubim com asas encolhidas”,
“tabernáculos” e “templos” - percebi que eram todos símbolos - as tentativas do ser
humano de dar expressão a uma experiência interior. A natureza me tocou muito
estreitamente; senti-me às vezes oprimida por ela, essa extrema exaltação me deixou
exausta e eu fiquei contente quando pude ter um dia comum. Esperei com algum
temor a vinda do verão e, quando ele chegou, sua luz e sua profusão de cor, embora
deleitosas, eram quase mais do que eu podia suportar. N ós pensamos que vemos,
mas na verdade somos cegos - se pudéssemos ver!
Um dia, por um momento, meus olhos foram abertos. Foi de manhã, no começo
do verão de 1894, e eu fui para fora feliz, com disposição tranqüila, para olhar as
flores, aproximando meu rosto das ervi, , .
, „ . .
(*11) Conta-se uma experiência paralela de
lhas-de-cheiro, destrutando seu perfume,
_ ,
.
r
Behmen. Ele se sentou num prado
observando como sua forma e sua cor
verdejante
olhando para 0 capim e a relva>
eram vividas e nítidas. (*11) O prazer viu sua essência, seus usos e suas propriedades”
que senti se aprofundou em êxtase; eu
[40:13],
fiquei extremamente emocionada e esta­
va começando a me maravilhar daquilo quando, bem fundo dentro de mim , um véu
ou uma cortina de repente se rompeu e tomei consciência de que as flores estavam
vivas e conscientes! Elas estavam agitadas! E eu sabia que estavam emitindo centelhas
elétricas! Que revelação foi aquela! O sentim ento que m e veio com essa visão é
indescritível - voltei-me e fui para casa, cheia de inefável temor reverente.
H avia e ainda há, embora não tão per­ (*12) Ao ar livre: Assim Carpenter [56] nos
diz que, ao transcrever os pensamentos e
ceptível como antes, uma sensação muito
clara e peculiar ao longo das sobran­ as emoções do Sentido Cósmico, viu que era
celhas, acima dos olhos, como a de uma “necessário escrever ao ar livre”, pois, diz ele:
“O que procurei transmitir recusou-se a se
tensão que tivesse passado, uma sensação
revelar a portas fechadas” . Assim também o
de mais espaço. Essa é a sensação física.
Sentido Cósmico, falando através de Whitman,
A mental é um sentimento de majestade,
diz [193:75]: “Nunca traduzirei a mim mesmo,
de serenidade, que é mais conspícuo ao mas somente àquele ou àquela que fique comigo
ar livre. (*12) U m outro efeito muito cla- em particular, ao ar livre”.
ro e peculiar seguiu-se aos fenômenos
descritos acima - o de estar centrada, ou de ser um centro. Foi como se, cercandome e me tocando estreitamente por todos os lados, houvesse os mais macios e felpudos
travesseiros. Para qualquer lado que eu me reclinasse, lá estavam eles. Esses
travesseiros se ajustavam a cada ponto cansado, de modo que, embora eu estivesse
claramente consciente do mais leve toque, não havia a menor resistência ou obstrução
a movimento e mesmo assim o apoio era tão permanente e sólido como o universo.
Era como “braços perenes”. E eu estava finalmente ancorada! Mas a quê? A algo
fora de mim mesma?
A consciência de inteireza e de per- (*13) O sentimento de imortalidade, de vida
m anência em mim m esma é consoante
eterna, que é próprio da Consciência
com a inteireza e a permanência da natu- Cósmica,
reza. (*13) Esse sentimento é bem distin­
to de qualquer outro que eu tive antes da iluminação e decorreu desta. Freqüentemente
reflito sobre ele e me pergunto o que aconteceu - que mudança pode ter acontecido
em mim para assim me equilibrar e me individualizar. Meu sentimento é como se eu
estivesse tão separada de todos os outros seres e todas as outras coisas como a Lua
no espaço e, ao mesmo tempo, indissoluvelmente unificada a toda a natureza.
Dessa experiência nasceu uma irredutível confiança. No fundo da alma, por trás
de toda dor, de toda perturbação da vida, há um silêncio, vasto e grandioso - um
infinito oceano de calma, que nada pode perturbar; a própria extrema paz da Natureza,
que “transcende toda compreensão”.
Aquilo que procuramos com apaixonado anseio, aqui e ali, acima e fora,
encontramos por fim dentro de nós mesmos. O reino, em nosso interior! O Deus que
vive dentro de nós! Estas são palavras cujo sublime significado jamais conseguiremos
perscrutar.
A pequena comunicação abaixo foi enviada a este autor por uma irmã
mais moça de C. M. C., em resposta a uma pergunta feita por eie quanto a se
tinha sido observada alguma mudança na aparência de C. M. C. quando de
suas experiências, acima apresentadas, ou depois delas. A comunicação está
datada de 2 de fevereiro de 1895 e é a seguinte, palavra por palavra:
Foi em dezembro, três meses depois, que vi minha irmã pela primeira vez após
a experiência descrita e sua aparência modificada me causou uma impressão tão
profunda que nunca vou esquecer. Sua aparência e seu jeito de ser estavam tão
mudados que ela quase não parecia a mesma pessoa. Havia uma luz clara, brilhante
e cheia de paz em seus olhos, iluminando todo o seu rosto, e ela estava tão feliz e
contente - tão satisfeita com as coisas tais como elas eram! Parecia como se algum
grande peso tivesse sido tirado dela e ela estivesse livre. Quando ela falou comigo,
senti que ela estava vivendo num novo mundo de pensamento e de sentimento, que
eu desconhecia. Sinceramente, P. M.
O CASO DE M. C. L.,
NAS PRÓPRIAS PALAVRAS DELE
Nasceu por volta de janeiro de 1853.
E uma tarefa difícil escrever a respeito de mim mesmo, especialmente no tocante
a uma experiência que por quatro ou cinco anos foi um dos eventos guardados como
os mais sagrados de minha vida. O Dr. M. descreveu-me vossa teoria da Consciência
C ósm ica, que de imediato reconheci como definindo, de maneira geral, certa
experiência de minha própria vida. Não comuniquei os detalhes ao doutor. Nunca o
tinha feito a ninguém, porque poderia ter sido acusado de superstição ou de loucura.
Cedo em minha carreira conquistei uma boa reputação como pregador popular e
alcancei o poder de interessar um auditório e mantê-lo atento. Como ministro, lutei
contra os problemas intelectuais da idade, não somente no campo teológico, mas
também no físico, no sociológico e no psíquico. Meu desejo de informação era ávido
e, a procura da verdade, honesta e persistente.
Em fevereiro de 1890, logo depois de meu trigésimo sétimo aniversário, o Rev.
J.E.L., do Canadá, veio me dar assistência numa série de reuniões especiais em
minha igreja. Minha afeição por ele aumentou durante sua permanência. Fazia três
dias que ele tinha ido embora quando, pensando nele bem tarde da noite - o cinzento
da manhã já despontando no céu - veio-me a convicção de que nele eu tinha conhecido
uma encarnação do Cristo. Por um momento fiquei petrificado com esse pensamento.
Estava aquilo que eu nutrira como uma teoria para ser realizado como um fato? Meu
amigo foi esquecido na visão do Cristo, que viera a mim, não de fora, mas através
dos portões que se abrem interiormente. Eu o conhecia, estava consciente dele em
meu próprio espírito, em minha própria alma e em meu próprio corpo. Então, com
essa consciência a desabrochar, veio uma infusão, como de uma nuvem ou névoa
delicada, que percorreu todo o corpo e que era mais invasora que a luz, mais penetrante
que o calor, de maior alcance interno que a eletricidade. Era como se eu tivesse
mergulhado num banho de fluido mais sutil e penetrante que o éter. Contra o fluxo
de entrada e saída daquela essência envolvente, o corpo não era tão resistente quanto
o ar à asa de um pássaro ou uma neblina da manhã aos raios do Sol. O arrebatamento,
a exaltação, a divindade daquele momento transcende o conhecim ento. Então
rapidamente veio o temor reverente da misteriosa presença que me encheu por
completo e a consciência de toda a Criação, do universo, passou vibrando por mim ,
não como um pensamento, uma sensação, uma emoção, mas como o sopro vital de
Deus. Isto cresceu até que me senti subindo e me expandindo para o Infinito, ali
sendo difuso e perdido, a mente e o corpo em vertigem. Ao sentir que estava caindo,
exclamei: “A visão é demais! Não posso olhar para a face de Deus e continuar vivendo!
Pai do Céu, é o bastante!” E a voz respondeu. Afundei na minha cama e dormi como
uma criança. Poucas horas depois acordei com uma alegria que era inefável e plena
de glória. Compreendi o que Paulo quis dizer com “dom inefável”. A experiência foi
para mim a “eleição” - o chamado de filiação para fazer a vontade do Pai. Fui para
meu púlpito vibrando com a sujeição ao sopro sagrado e fiz minha pregação sobre o
texto: “E eu, se for elevado, atrairei todos os homens para mim”. O sermão se tornou
intenso. Vi a cruz diante de mim como a necessidade de minha vida. Sua agonia e
seu medo apossaram-se de mim, a mente não pôde se agüentar sob ela; cambaleei do
meu púlpito, a congregação assustada com a angústia no meu rosto e nas minhas
palavras.
Minha família ficou alarmada e um médico foi chamado. Ele diagnosticou que
eu estava sofrendo de prostração nervosa, mas não encontrou sintomas de insanidade,
cujo horror me havia oprimido. A exaustão era tal que eu senti a necessidade de
descansar e fui para a casa de minha mãe, na velha propriedade entre as colinas de
Connecticut. A ela contei a história. Ela disse: “Meu filho, eu estava esperando isto.
Agora você conhece a verdade de um Cristo Vivo”.
O caráter de minha pregação mudou
completamente. A velha popularidade
minguou, mas vieram maiores poderes
mentais e a percepção da verdade é mais
clara. O sopro sagrado mata a luxúria, a
paixão, o ódio; enche o coração de riso e a
Compare-se o Bhagavad Gita: “Os objetos
dos sentidos recuam da pessoa que é abstinente;
o mesmo não acontece com o gosto por esses
objetos. Mas até esse gosto se afasta dele depois
que ele viu o Supremo” [154:50]
alma de paz.
Conheço o Cristo eterno de Paulo e João, o Cristo manifesto no Nazareno, e que
na manifestação foi a interpretação da Consciência Cósmica do passado e a forma
típica da nova raça em que essa consciência é evoluída. É a raça dos Filhos de Deus,
que, como Moisés, têm estado na presença e têm sido banhados na glória de Sua
beleza e na bem-aventurança de Sua alegria. A Consciência Cósmica é a luz da
glória de Deus na face de Jesus Cristo.
Em resposta a um pedido de mais detalhes, M. C. L.diz:
A névoa ou luz foi mais sentida do que vista. A maior aproximação que já conheci
para a sensação foi a que tive quando estava em Niágara e visitei a Gruta dos Ventos.
E também quando, de minha janela, no Hotel Coutet, em Chamouni, vi o Sol nascer
no Mt. Blanc. O matiz, mais sutil que as ondas de cor, era o dessas experiências um berilo fluido ou uma esmeralda transparente.
A mente aos poucos passou do medo a uma consciência clara de algum evento
aparentemente extranatural. A princípio meu pensamento foi, “Este é um ataque de
paralisia”, e testei todas as funções do corpo e da mente; então, a mente se abriu
para entender algo do que estava se passando. Acompanhou o ritmo da sensação e
cada progresso da experiência envolveu um processo mental.
Estou inclinado a localizar o ponto de contato na mente. Uso a palavra mente
como sinônimo de psique, que naturalmente envolve a personalidade. Sempre acreditei
que o evento foi basicamente subjetivo, mas foi uma experiência subjetiva que estava
em perfeita consonância com todo o universo objetivo. Era a exaltação do subjetivo
em mim a uma nova relação com o objetivo na Terra e no Céu.
Esta é a primeira tentativa que já fiz de apresentar uma história verbal daquela
hora santa e foi com algum sentimento de hesitação que escrevi; mas o que está
escrito, está escrito.
Nasceu em 11 de agosto de 1853. A data de sua iluminação foi 20 de
janeiro de 1885. É arquiteto. Tem sido sempre um homem sério, ansioso por
saber o que é certo e fazê-lo. Após a momentânea consecução da Consciência
Cósmica, tornou-se mais inclinado ainda a seguir o mesmo caminho. Antes
da iluminação era agnóstico e cético, como o esboço autobiográfico anexo
mostrará. Não somente não tinha crenças mas não tinha esperança alguma.
Após a iluminação, nunca mais duvidou da infinita benevolência do poder
central e soberano do universo. Embora neste caso o Sentido Cósmico tenha
vindo apenas por um momento e depois tenha passado, provavelmente para
o resto de sua vida, mesmo assim o homem foi por ele incrivelmente
enobrecido. Este parece ser o melhor termo para a mudança que nele se
operou. Embora não fosse um Buda, um Cristo, ou um Whitman, a partir
daquele momento ele foi claramente superior à média dos homens. Como
prova desta afirmação pode ser mencionado o fato de que muitos dos melhores
jovens de sua cidade o procuravam e o constituíam, sob o título de “Mestre”,
como seu líder espiritual. Esses jovens, como o autor deste livro pode
pessoalmente testemunhar, durante anos dedicaram a esse homem afeição
pessoal e reverência, por nenhuma outra razão senão a de que viram
claramente nele uma natureza espiritual superior, superioridade esta que
nunca tinha sido observada ou suspeitada nele até o advento do Sentido
Cósmico em 1885. Desde sua iluminação, J. W. W. tem dedicado sua vida à
elevação intelectual e moral dele mesmo e de seus amigos.
A seguir transcrevemos um esboço autobiográfico, escrito com o propósito
de mostrar de que maneira e em que circunstâncias ele entrou na nova vida.
Essas páginas não foram escritas para este livro nem por instigação deste
autor. Na verdade foram escritas antes que o autor conhecesse J. W. W. e por
isto mesmo são tanto mais valiosas neste lugar. Nem tampouco foram elas
escritas para ilustrar ou apoiar qualquer teoria. J. W. W. não tinha e não tem
teorias sobre o assunto. Tudo que ele sabe ou talvez se preocupa em saber
sobre este assunto é que naquele momento entrou em reláção com uma forma
superior de vida e aprendeu, como diz Paulo, “coisas inefáveis” - em todo
caso, coisas que tinham e têm indizível importância para ele, de modo que
qualquer dúvida quanto à sua veracidade esteve e (como ele pensa) sempre
estará inteiramente fora de questão.
J. W. W. então, dirigindo-se a seus amigos íntimos, aos jovens e aos
homens de meia-idade mencionados acima, que se acercam dele e que, como
foi dito, chamam-no de “Mestre”, disse o seguinte:
Hoje, 20 de janeiro de 1890, é o aniversário da morte de minha mãe, há cinco
anos. Resolvi celebrar esta data fazendo-vos um relato das circunstâncias que até o
momento guardei para mim mesmo e mantive como sagradas no recôndito de meu
coração e de minha memória.
Creio que não preciso vos dizer que a doença final de minha mãe e sua morte
foram com imensurável margem de diferença o mais duro pesar e a dor mais forte
que eu já conheci ou que provavelmente jamais venha a conhecer. Mas é também
verdade que a memória delas é para todo o sempre minha posse mais preciosa - uma
posse sem preço.
Aquele período foi o momento supremo de minha vida e sua mais profunda
experiência. N a vida comum vivemos somente na superfície das coisas, nossa atenção
interminavelmente distraída pelas mais rasas ilusões e ninharias.
Discutimos de coração leve e em grande parte comodamente os grandes problemas
que tem os discutido ultim am ente no colégio (da im ortalidade e da infinita
benevolência), mas não estamos profundamente interessados neles e pouco nos
importamos com quais possam ser suas soluções.
Mas uma grande consternação remove a venda dos nossos olhos e nos compele,
na intensa solidão de nossa própria alma, a contemplar as insondáveis profundezas
em que flutuamos e questionar seus vastos e solenes significados. Essa consternação
nos advém revestida de densas trevas e de profundo mistério e penetra em nosso
coração com agonia e pesar indescritíveis, mas pode acontecer que as horas mais
escuras de sua provação, o momento supremo em si, mostre-se também uma revelação
do Altíssimo para nossa alma e nos leve à própria presença do Amor Infinito, da
Ternura Infinita.
D e minha parte não posso duvidar que esta foi minha própria experiência. Falar
nela é profaná-la. Sou indigno até de aludir a ela. Mas desde então ela tem sido o
conforto de minha vida.
Ah! os anos que se seguiram! Um vislumbre momentâneo do inefável brilho,
seguido de uma concentração de nuvens e trevas, de penosos tropeços e grandes
erros, sem apoio de qualquer auxílio espiritual reconhecível, os céus surdos e
indiferentes a minhas mais veementes orações e agonias, não! menosprezando-as
mesmo, ao que parecia. Mas em meio a tudo isso, como o brilho constante de uma
luzente estrela, a memória daquele momento sagrado permaneceu profundamente
em meu coração e eu nunca realmente duvidei por um momento que uma Infinita
Sabedoria e um Infinito Amor de fa to envolvem a vida de todos nós - de maneira
terna, piedosa e solidária. Podem os passar toda a nossa vida sem jamais nos
apercebermos disto, duvidando disto, não! até negando isto categoricamente. Mas
isto existe\ e aquele a quem a visão em absoluto tenha ocorrido, ainda que no mais
breve relance transitório de consciência momentânea, jamais poderá esquecê-la,
mesmo que todo o seu caminho posterior possa estar envolto em trevas e ele próprio
possa cair em erro grosseiro e possa resvalar.
Recebi o treinamento ortodoxo comum da Igreja Presbiteriana. Fui batizado e fui
um freqüentador regular da igreja e da escola dominical até bem avançado na
adolescência.
Atribuo importância pelo menos igual, nos elementos de formação de meu
treinamento religioso, à prática diária em casa do culto em família, enquanto eu era
menino. Lembro-me, agora, enquanto estou escrevendo, com reverente emoção, o
temo tom da voz de minha mãe, quando ela suplicava especialmente pelo seu filho
único, tão profundamente amado.
Sempre fui um amante de livros e não estava longe da adolescência quando
comecei a aprender alguma coisa do conflito entre o ensinamento da ciência e muitas
das crenças que me haviam ensinado. Esta descoberta foi gradativa e eu vou dar
apenas um breve esboço da posição em que fui finalmente colocado.
Aprendi que o primeiro capítulo do Gênese era pelo menos um relato muito
grosseiro do fato real. Em certa época fui um ardoroso e entusiástico estudante dos
livros de Hugh Miller e fiquei contente com a reconciliação que ele procurava
estabelecer entre o ensinamento de sua amada ciência, a Geologia, e o registro bíblico.
Mas tive de desistir disso quando passei a ler e estudar o livro de Darwin e outros
livros e me familiarizar com as descobertas geológicas mais recentes. Lembro-me
bem do entusiasmo com que copiei à mão a famosa conferência do Professor Huxley
ao Departamento de Geologia da Associação Britânica, na qual ele remontou o
pedigree do cavalo a seus progenitores no período eoceno e à clara evidência de sua
evolução.
O Darwinismo demoliu para mim o relato bíblico da Criação, a autoridade da
Bíblia e o relato que ela faz da origem do mal e da queda do homem. Esta última
claramente envolve toda a superestrutura teológica que nela se baseia, inclusive o
chamado plano de redenção e a doutrina da expiação. As lendas do dilúvio, da torre
de Babel, da dispersão do homem e da origem das diferentes línguas eram assuntos
secundários de importância comparativamente insignificante.
Lembro-me do prazer com que li o livro Heat as a Mode o f Motion [“O Calor
como um Tipo de Movimento”], de Tyndall, e o reli várias vezes. Li também suas
palestras sobre “Sound” [Som]. Isto foi minha introdução à Física, da qual aprendi
as grandes doutrinas da conservação e correlação de forças, assim como aprendera
antes a perceber a algum grau a unidade e uniformidade da natureza. Diante de
concepções tão majestosas, tão augustas, as idéias comuns de oração e milagres
pareceram infantis. Lembro-me de ter lido Fragments o f Science [“Excertos de
Ciência”], de Tyndall, e de ter sentido isso ainda mais fortemente. Com o tempo
cheguei a abandonar totalmente o hábito de orar.
Não se pode ler muito no campo da ciência fisiológica sem uma séria reflexão
sobre a natureza da consciência, a relação entre mente e estrutura física e a influência
de tudo isto na crença na imortalidade pessoal. Sempre me pareceu claro que o único
resultado lógico das considerações colocadas pela ciência é que elas são categórica e
totalmente opostas a essa crença.
Resumindo: Para mim a ciência destruiu toda a crença nas lendas bíblicas da
Criação e da queda do homem, etc., bem como na doutrina da expiação, e pelo
menos questionou seriamente todas as narrativas de milagres, a probabilidade de
resposta à oração e a idéia da imortalidade pessoal. Também toda a idéia da divina
encarnação do Cristo em nosso insignificante mundo, esse minúsculo átomo, pareceu
incompatível com o augusto espetáculo do universo infinito e de sua imensurável
duração. Mas minha leitura nunca foi exclusivamente científica, de modo que meus
pensamentos sempre foram modificados por outras considerações.
Aprendi algo sobre Descartes, Kant, Fichte, Schelling, Hege) e Spinoza. Qual
foi o efeito de tudo isto em mim, não posso agora analisar ou dizer. Mas que um
homem ponha uma vez claramente em sua cabeça o ensinamento de Kant de que o
tempo e o espaço só existem como o estado de nossa consciência, e a discussão da
imortalidade parecerá irrelevante - ele sentirá a própria base de suas especulações
se esfarelar sob seus pés. Cedo na juventude reconheci dois mestres, para os quais
continuamente me voltava e os quais estudei com interesse e deleite sempre renovados
- Carlyle e Emerson - dois homens amplamente diferentes mas fundamentalmente
parecidos na absoluta honestidade e sinceridade de seu ensinamento, em seu caráter
nobre e heróico e em seu firme e vitalício devotamento ao serviço do supremo. Ambos
rejeitavam a concepção materialista do mundo, que consideravam como espiritual
em sua essência, e cada um acreditava à sua maneira num divino propósito - Emerson,
com jovial e crescente otimismo; Carlyle, com um sentimento hebraico do mistério e
do terror do mal.
Mas nem de Carlyle nem de Emerson colherá um estudante qualquer convicção
firme na questão da imortalidade individual. Carlyle preferiadeixá-la como um
mistério sobre o qual nada pode ser dito decisivamente com real segurança, mas a
respeito do qual muito pode ser esperado. Emerson, fundamentalmente, acreditava
realmente nela, mas pode ser mencionado de ambos os lados da queatffc “AS-peiguntas
que ansiamos por ver respondidas”, declarou ele, “s8o uma oonfissl© de peoado”.
Ele pregava confiança e submissão incondicionais. “Acreditai 00tn teto o vosso
coração e toda a vossa alma que tudo está bem e não façais perguntas. Se for melhor
que devais continuar, assim fareis; se não, não deveis desejá-lo”. E todo 0 assunto,
acreditava ele, pertence a um plano muito mais alto do que aquele em que é usualmente
discutido.
Faz agora quinze anos que estudei diligentemente Tennyson e, especialmente,
sua obra In Memoriam. Seus argumentos, porém, não me pareceram convincentes,
embora fossem poderosos. Cheguei a prezar os dois livros que tinha de excertos
seletos de Browning, mas também não pude aderir completamente a suas opiniões.
M eu julgamento foi suspenso com o coração inclinando-se para Larger Hope
[“Esperança Maior”]. George Macdonald prestou-me um grande e crescente serviço,
embora eu nunca pudesse aceitar todas as suas conclusões nem admirar grandemente
sua lógica. Por outro lado, a lógica do credo de George Eliot me pareceu sem defeitos
e, sua simpatia para com opiniões opostas, total. E sua rígida e fiel devoção somente
a verdade e a fato me pareceu ser recompensada em sua arte. Via de regra, as criações
de George Macdonald parecem abstrações fantasmagóricas. As de George Eliot são
vivas; se forem picadas, verterão sangue. Mas a melancolia que os livros dela suscitam
é inegável, de modo que o coração instintivamente se revolta contra seu credo.
Matthew Amold prestou-me um serviço imenso com seus livros teológicos e abriu
novamente a Bíblia para mim como um livro de vivo interesse. Mas seu famoso
axioma de que não acontecem milagres e sua eliminação do elemento sobrenatural
são inequívocos. Não obstante, um estudo cuidadoso de Isaías, com a ajuda de suas
notas, deu-me uma pista para uma visão mais elevada, a meu juízo, do que aquela a
que ele próprio chegou. Também ele desaprova a atribuição de personalidade a Deus
e assim acaba com o impulso de orar. Pois, quem pode orar a uma “corrente de
tendência”? Por outro lado, a luz que ele lança sobre o caráter e o ensinamento de
São Paulo nos ajuda também a compreender melhor o ensinamento do próprio Paulo,
que é mais elevado do que o desse crítico. Ruskin acreditava nessas coisas, mas sua
autoridade é enfraquecida pelo ensinamento evangélico, que ele próprio com o tempo
descartou. Os grandes mestres m e pareciam inconcludentes. Todo o valor do
ensinamento de Dante é invalidado por suas falsas e horríveis representações de
punição eterna. Shakespeare se mantém afastado do assunto e suas opiniões não
aparecem na superfície. Eu acreditava que Goethe ensinara mais explicitamente a
eficácia da oração e a imortalidade individual do que ele de fato o fizera. Havia
muito tempo eu tivera um ligeiro conhecimento e muita curiosidade a respeito de
Whitman e, doze meses antes que minha mãe falecesse, li pela primeira vez cópias
completas de Leaves o f Grass e de Specimen Days e senti a profunda emoção do
contato com um espírito grandioso. E pareceu uma grande coisa que justo ele, dentre
todos os homens, ensinasse a doutrina da imortalidade com ênfase e autoridade
absolutamente novas.
A s coisas ditas acima são apenas esboços muito grosseiros e incompletos de
tentativas intelectuais, questionamentos, estudos, complexas e multifárias experiên­
cias, bem como dificuldades de muitos anos. Mas elas vos ajudarão a compreender
parcialmente minha posição na ocasião sobre a qual estou escrevendo.
E agora à minha narrativa'. Não vos vou importunar com quaisquer detalhes que
não me pareçam necessários ao meu propósito. E os darei com a brevidade coerente
com a clareza e o colorido certo do quadro que quero apresentar. Sinto no entanto
que devo de partida fazer um esclarecimento. Não quero que julgueis meu caráter
como filho com base em minha devoção à minha mãe em seu leito de morte. Na
verdade nunca fui, no verdadeiro sentido das palavras, “um bom filho”. Tenho
demasiados defeitos graves e fortes idiossincrasias de oposição para isso. E tenho
inúmeras lembranças amargas de rudeza, mau gênio, desejo egoístico de consideração
e simpatia, coisas deixadas por fazer que eu deveria ter feito e coisas feitas que eu
deveria ter deixado por fazer. Elas são agora lembranças do passado e motivos de
expiação e só posso orar e me esforçar por uma natureza melhor no futuro.
Talvez seja praticamente desnecessário que fale de minha mãe. Ela não era sem
defeitos nem fraquezas. Tinha boas qualidades a um grau excepcional, que não preciso
analisar e de que não preciso falar. Mas é necessário, para o meu propósito, que eu
faça referência ao que era sua paixão predominante - um amor profundo, constante,
absorvente e cheio de auto-sacriflcio, pelo seu filho único. Todos sabem alguma
coisa das profundezas sagradas do amor de mãe. Mas bem poucos podem sondar
seus profundos abismos como coube a mim fazer.
Muitas circunstâncias nos tornaram mais unidos do que o comum. Em primeiro
lugar, meu pai ficava muito fora de casa. Meus próprios gostos e minhas ocupações
me mantinham mais constantemente em casa do que acontece com a maioria dos
joven s. N o ssa s naturezas, tam bém , eram sem elhantes em m uitos aspectos.
Naturalmente, eu era em muitas coisas o confidente de minha mãe. Seus sofrimentos
e sua força declinante tornaram-na cada vez mais dependente de mim e uniram
nossos corações mais estreitamente com o passar do tempo.
As vezes ela sofria dores exeruciantes. Ficou aleijada e perdeu a capacidade de
ficar de pé. Se meu pai estava em casa, levava-a para o andar de cima à noite, para
dormir, do contrário ela rastejava até o pé da escada e puxava a si mesma para cima
degrau por degrau. Mas de jeito nenhum deixava que eu a carregasse, temendo que
eu pudesse me cansar demais ou me machucar. Mas por fim ela teve de me permitir
que a ajudasse e, a partir de então, eu sempre a carregava para cima.
D e manha ela estava sempre indisposta e sofria grandes dores internas. Eu
costumava levar regularmente para ela uma xícara de chá, como desjejum, no qual
ela não comia praticamente nada.
Uns dezoito meses antes de ela falecer, disse-me que acreditava que estava
sofrendo de um câncer interno. Por muito tempo eu a havia aconselhado que chamasse
um médico e então insisti nisto.
Durante muito tempo ela não concordou com isto, mas acabou cedendo e o Dr. R.
foi chamado. Ela parecia mais animada e alegre após a visita dele. Disse-me que o
diagnóstico dele fora que não era um câncer, mas os fatos que a levaram a pensar
que era resultaram em seu reumatismo. Foi um feliz alívio para mim e eu descartei
totalmente as idéias terríveis que estavam pesando como chumbo em meu coração.
Na realidade era câncer, e minha mãe logo veio a sabê-lo sem sombra de dúvida.
Mas em sua consideração por mim, que implicava auto-sacrifício, ela escondeu todas
as informações de mim e, nos cansativos, dolorosos e tristes meses que se seguiram,
vivi em absoluta ignorância dos reais fatos do caso. Talvez tenha sido melhor assim.
Creio realmente que, se eu tivesse sabido, esse terrível conhecimento me teria matado.
Tal como aconteceu, fui sustentado por esperanças infundadas. Mesmo assim, a dor
disso tudo e o esforço diário em meu coração e na minha mente foram quase maiores
do que eu podia suportar e seus efeitos persistiram comigo desde então.
Direi o mínimo possível daquela época. Mencionarei apenas sua força declinando
visivelmente, a solidão e os muitos tormentos da sua sina, sua absorvente e infindável
solicitude para comigo, sua total indiferença para consigo mesma e seu constante
espírito de amoroso auto-sacrifício, e um amor no coração de ambos, que se tornou
mais temo e profundo à medida que nos conscientizamos cada vez mais do vindouro
e inevitável fim. As incontáveis preocupações e dores daqueles dias só serviram
para revelar mais claramente a profundeza e a força de um amor que era mais poderoso
do que todas as circunstâncias adversas e até mesmo do que a própria morte.
Assim os dias, as semanas e os meses se arrastaram numa tristeza sempre mais
profunda, até o fatídico mês de janeiro de 1885. Conforme a força de minha mãe foi
se tornando progressivamente menor, sua hora de se deitar foi sendo antecipada - de
dez para nove e meia, depois para nove, oito e meia, oito. Doía-me extremamente
notar isto e todas as noites, depois que ela tinha se deitado, eu me sentia indizivelmente
triste e arrasado ao pensar no futuro. Eu não podia suportar ficar sem ela. Costumava
mantê-la comigo o quanto possível, brincar com ela e fazer o máximo para animá-la
e animar a mim mesmo. Mas quando seu cansaço se tomava muito grande, muitas
vezes ela perdia a paciência e dizia, numa súplica patética: “Willie, agora me leve”,
“Por que você não me leva?”, “Willie, deixe-me ir”. Depois disto nada mais havia a
fazer senão levá-la imediatamente.
N o dia 9 de janeiro de 1885 fui a uma festa de aniversário. Eu estava longe de
me sentir bem; não tinha disposição para isto mas fui ao chá e voltei para casa às oito
para levar minha mãe para a cama (e aconteceu que foi a última vez) e voltei para a
festa, só retomando à minha casa entre uma e duas horas. Durante a madrugada, fui
acordado por minha mãe batendo na parede. Ela se sentia fraca, disse, e me pediu
para lhe levar um copo d’água. Perguntei-lhe se deveria fazer chá e ela disse que
preferia água, que eu levei para ela. Lamento dizer que eu estava bem ríspido, nada
simpático, desagradável. Eu devia ter sabido que ela precisava de mais do que um
copo d’água e, sem pensar um só instante em mim mesmo, devia tê-lo providenciado.
Ela me agradeceu com sua habitual ternura e eu fui para a cama novamente.
Na manhã seguinte, quando levei chá para ela, fiquei sabendo de tudo. Durante
a noite ela se arrastara para fora da cama e desmaiara no chão. Voltando a si, conseguira
com doloroso esforço deitar-se novamente na cama. Não queria me perturbar ou
incomodar, sabendo o que sabia, mas por fim sentiu-se compelida a me acordar e
pedir um copo d’água. Imaginem só! Apenas água fresca! e que eu levara a ela com
um resmungo nada compassivo. Nunca me perdoei por minha atitude muito mais
que estúpida e empedernida. Minha mãe, no entanto, em sua doce e serena afeição e
sua amorosa bondade, perdoou-me desde o primeiro momento.
Não entrarei em detalhes quanto à doença que se seguiu. Ela não se levantou
naquele dia, embora estivesse serenamente animada, esperançosa e amorosa. Meu
pai veio para casa à tarde e ela parecia um pouco melhor, mas à noite ficou pior e
ligeiramente delirante. Cedo na manhã seguinte (domingo) eu trouxe o médico e
fiquei sabendo pela primeira vez o que outros sabiam, ou seja, que ela estivera
realmente sofrendo de câncer o tempo todo e que a recuperação era impossível,
embora o inevitável fim pudesse ser evitado por algum tempo. Foi um golpe terrível
para mim. Procurei uma enfermeira e eu mesmo dei assistência a ela até que veio o
fim - nove dias depois.
N o domingo, na segunda e na terça-feira ela continuou a melhorar e meu coração
ficou mais leve e mais animado. Depois ela começou a piorar e desceu passo a passo,
para o Vale das Sombras.
Vou passar rapidamente para as cenas finais. Mas devo primeiro mencionar os
seguintes aspectos do comportamento de minha mãe: Extremo e total esquecimento
de si mesma, amor e caridade infalíveis para com todos, bom ânimo tranqüilo e
mesmo alegria, sempre se esforçando para me animar, com alegres e amorosos sorrisos
e com palavras consoladoras e de esperança. Isto, naturalmente, somente quando ela
podia. A noite ela sempre ficava delirante, cada vez mais.
Lamento ter de vos dar detalhes dolorosos e só o faço onde é necessário para
meu propósito fundamental. Mas sinto-me compelido a dar alguns detalhes das cenas
finais.
A noite da antevéspera de seu falecimento foi a mais horrível que eu já passei.
Como costuma acontecer nessas doenças consumidoras, a destruição do corpo, depois
que o sistema muscular foi devastado, ataca o sistema nervoso. Quando este estágio
é alcançado, o paciente entra num período de terrível inquietaçlo e cansaço, ansiando
intensamente por descanso e incessante e inutilmente procurando« ntima mudança
de posição. Todas as noites, no delírio de sua doença, ela sentia algo desie cansaço
e, no fim do dia, chamava-me com as palavras de costume: “Willie, leve-me para
cima agora; por favor me leve”. Em particular naquela noite, chamados deiae tipo
soaram em meus ouvidos durante toda a longa e horrível noite - “Willie, leve-me
agora”, “D eixe eu ir”, “Por que você não deixa eu ir?” As palavras cortavam meu
coração. Eu sabia que o descanso que ela procurava só poderia vir com a morte e
meu coração estava fervendo de raivosa revolta. Eu não podia deixar ela ir embora.
O destino era demais para mim. E era um destino indizivelmente cruel, de modo que
toda faculdade em mim se revoltou em protesto e indignação veementes. Mudei sua
posição repetidas vezes, ajustei e afofei seu travesseiro e, por alguns breves momentos,
ela ficou quieta. Depois vieram novamente os chamados incessantes, que cortavam o
coração: “Willie, deixe-me ir agora”, “Leve-me agora”, “Por que você não deixa eu
ir”? E assim, inúmeras vezes, ao longo de toda aquela horrível noite.
N o dia seguinte ela estava mais calma. O médico disse que era apenas uma
questão de horas. A tarde ela parecia extremamente exausta e por algum tempo
pensamos que estava morrendo. M eu pai, a Sra. D. (a enfermeira) e eu ficamos
olhando, numa momentânea expectativa do fim. Eu estava exausto, no coração e no
corpo, mal-humorado e magoado. Era consoante com toda aquela situação horrível
que ela morresse assim, sem dar qualquer sinal ou fazer qualquer despedida. Mas
não era para ser assim e ela reviveu. Por volta das sete horas, naquela noite, eu
estava a sós com ela. Ela estava inconsciente. Ajoelhei-me ao lado da cama, com o
rosto sobre a cama. Meu cérebro estava em brasa e a coisa toda era um horrível
pesadelo. N ão era mais minha mãe que estava deitada ali e sim um autômato
cadavérico; eu mesmo era um autômato também e ambos éramos movidos numa
vasta máquina mundial, sem remorso, sem cérebro e sem coração, a tudo esmagando.
Mais tarde meu pai, vindo para cima, deve ter ficado alarmado a meu respeito e me
obrigou a dar uma volta, que ele julgou absolutamente necessária. Acho provável
que minha saída por um tempo curto tenha salvo minha razão. Tarde da noite meu
pai tentou me fazer ir para a cama. Recusei-me. Eu não podia ir nem perder qualquer
parcela do precioso tempo que ainda tinha com minha mãe, mas afinal concordei em
ir por duas horas no máximo, se ele me acordasse mais cedo em caso de alguma
mudança. Muito relutantemente fui, mas eu estava esgotado e meu pai deixou eu
dormir profundamente até as seis. Imediatamente corri para o quarto e lá fiquei até o
fim, aproximadamente à uma hora.
Minha mãe era aparentemente a mesma porém mais fraca. Ela me recebeu com
aquele doce sorriso e como sempre retribuiu meus beijos com aqueles seus beijos
amorosos. Estava bem consciente mas muito fraca para falar. A manhã se arrastou
até o meio-dia, quando ouvi o Sr. T. na cozinha, com meu pai. Perguntei a ela se
queria que ele subisse e ela aquiesceu com a cabeça, com uma expressão de agrado.
Ele veio e orou ao lado da cama, minha mãe acompanhando tudo com muito apreço,
com a cabeça apoiada no meu braço, estremecendo com a extrema debilidade da
morte próxima. Ela tentou expressar seu agradecimento e o seguiu com um olhar
cheio de gratidão enquanto ele deixava o quarto. Mais tarde, por volta de uma hora,
meu pai e a enfermeira desceram. A Sra. D. ficou mas eu lhe pedi que também saísse
e me deixasse a sós com minha mãe. Perguntei então se ela gostaria que eu orasse
com ela. Eu nunca tinha feito isto antes, mas imaginei que o quisesse e ela concordou
com evidente satisfação. De pé na extremidade da cama, orei brevemente a Deus,
nosso Pai, para que misericordiosamente libertasse minha mãe de seu sofrimento e a
levasse com Ele e para que me ajudasse no caminho solitário que me estava reservado.
Voltei-me então por um minuto ou dois para a janela. Olhando em volta, vi
instantaneamente que a última mudança havia chegado. Apressei-me em umedecer
seus lábios, mas sua língua estava rígida. Fui até o topo da escada e chamei meu pai.
Ele correu para cima e chegou justo a tempo de assistir à última vã tentativa de
respiração. Num acesso de forte emoção eu gritei, “Graças a D eus, que nos dá a
vitória”, e à minha excitada fantasia pareceu que o espírito de minha mãe anuía.
Pareceu-me no momento que eu estava na própria presença do Amor Infinito e o
senti por todo o meu ser.
Desci e disse à Sra. D. e à enfermeira que tudo estava terminado; elas subiram
para prestar os últimos tristes serviços. Vim para este quarto (o quarto em que este
pronunciamento foi lido) e entreguei-me a uma longa e pesada crise de choro - mas
um choro que não era mais de tristeza e sim de grande alívio, de reconhecimento
pelo grande consolo que viera ao meu coração e de resignada e amorosa despedida.
Após o funeral e durante os dias que se seguiram, senti uma grande calma e paz
mental e de coração, uma paz mental que me arrisco a dizer que não foi outra senão
“a paz de Deus que transcende toda compreensão”. Essa paz passou, mas sua memória
ficou. O pesar e o sentimento de perda irreparável tiveram seu curso natural e passei
muitas semanas de insônia e pranto.
Não tenho esperança de que minhas palavras possam transmitir mais do que
uma pobre fração dos fatos reais. No máximo posso apenas esboçar esses fatos no
mais grosseiro croqui. Mas peço-vos que considerem alguns dos fatos mais importantes
na narrativa que fiz.
Lembrai o que eu disse dos questionamentos espirituais de muitos anos e de seus
resultados. Considerai como o longo e terrível sofrimento de minha mãe revelou e
reforçou, como nenhuma outra coisa poderia ter feito, não somente as doces e
amoráveis qualidades de seu coração e de sua mente e a força da esperança e da fé
que a sustentaram através de todo aquele período, mas também o comprimento, a
largura e a profundidade de seu amor por mim , maravilhoso e cheio de auto-sacrifício,
que só se tomou mais forte, mais profundo e mais temo, à medida que ela avançava
na sombra de nossa inevitável separação. E quando sobre ela se abateu a última crise
e ela foi obrigada a ficar presa à sua cama para não mais se levantar, pensai como
foram gratos e doces para mim aqueles dias de ligeiro aprimoramento, quando tive o
privilégio de dar atenção a ela constantemente e de lhe mostrar como nunca pudera
antes a realidade e a profundeza do meu correspondente amor e de receber seu total
perdão por toda a falta de consideração e todo o malefício passado de minha parte
para com ela, bem como sua amorosa bênção. E, apressando-nos para a cena final:
Pensai naquela noite horrível, quando seus incessantes chamados ressoaram em mim
para “deixá-la ir” e eu sabia que isto significava deixá-la ir para o último repouso da
morte, e meu coração palpitou com veemente ressentimento e protesto contra um
destino cruel e impiedoso. Pensai na cena do dia seguinte, quando sua força parecia
exaurida e nós esperávamos o fim e eu senti, com irritado ressentimento, que era
apenas coerente com tudo o mais que ela morresse assim, sem dar qualquer sinal ou
fazer qualquer despedida, na presença de pessoas relativamente estranhas, que nSo
eram de sua própria família, enquanto eu, seu filho, nascido de seu corpo, osso de
seu osso e carne de sua carne, a única pessoa que ela amava com todo o poderoso
amor de seu grande coração, ali estava como um estranho, longe de sua consciência.
Pensai na hora daquela noite em que, com o cérebro em brasa, eu senti por todo o
meu ser o temível significado da crença materialista em que nós seríamos meras
partes automáticas de uma vasta máquina sem cérebro, sem coração, impiedosa e
cruel. Pensai na providência pela qual me foi concedido um sono restaurador e
curativo, para me capacitar a uma visão mais verdadeira. Pensai na graça terna da
nossa comunhão na manhã seguinte, na consciência plena de minha mãe e nos doces
sinais de seu imorredouro amor. Pensai na providência que levou o Sr. T. a chegar
dentro daquela hora final e fazer uma oração solene, na qual minha mãe pôde participar
com plena apreciação, juntamente com meu pai e eu. Pensai na adequação do arranjo
pelo qual, no último momento, minha mãe e eu ficamos a sós, como ela teria desejado.
Pensai no divino aprendizado pelo qual meu revoltado coração foi curvado à
aquiescência e à resignação. Pensai na circunstância pela qual meu antagonismo e
meu ceticismo foram diminuídos e eu fui levado, com a grata concordância de minha
mãe, a finalmente “deixá-la ir” e chamar audivelmente o Divino Pai de todos para
levá-la a Ele. E pensai como imediatamente a oração foi respondida e Deus se revelou
a mim e eu senti por todo o meu ser, no momento de sua morte, a presença do Amor
Infinito, do Divino Consolador, acalmando-me com uma estranha e inefável paz.
As palavras humanas são instrumentos pobres para a expressão de tais realidades.
Mas para além do toque de todo argumento possível, apesar das aparentes experiências
de minha vida desde então e de meus deslizes, eu sabia que uma providência divina
estava atuando em minha hora de suprema necessidade, sintetizando as longas
tentativas e os longos processos do passado e, a despeito de todas as trevas terrenas
e do pecado, iluminando todo o meu rumo futuro com uma infinita esperança.
N ão mais me perturbo com as dificuldades levantadas pela metafísica e pela
filosofia quanto à personalidade de Deus, pois, seja como for, sei que há nele aquilo
a que posso me dirigir como a um amoroso amigo e pai. Não mais me perturbo com
as discussões a respeito da providência e das evidências contrárias da vida e das
experiências, pois vi Sua providência atuando visivelmente, sintetizando numa
experiência apoteótica os processos de longos anos, em eventos que foram inteiramente
naturais em sua ordem e em seu curso, mas foram também visivelmente .sobrenaturais
e milagrosos. N ão mais me perturbo com dúvidas quanto ao amor de Deus e às
evidências contrárias fornecidas pelo pecado do mundo e por intermináveis misérias,
pois em meio ao maior pesar de minha própria vida vi uma ternura, um amor inefável
revelado, que coroou e justificou os sofrimentos que o precederam e iluminou muito
do que estivera escuro e misterioso no passado. Seja qual for a impressão que este
pobre esboço cause em vós, sei que os fatos reais foram mais adequados e belos do
que qualquer poeta terreno poderia ter concebido em sua mais encantadora e tema
disposição. N ão mais me perturbo com as discussões correntes a respeito da
imortalidade, porque sei que minha mãe está segura e que tudo está bem com ela,
pois, indigno como sou, eu mesmo vi a inefável glória do amor que a recebeu quando
ela me foi tirada.
SUMÁRIO
a. A narrativa de J. W. W. deixa bem claro que ele tinha o zelo mental e o
desejo necessários ao crescimento espiritual, os quais, como vimos,
parecem ser pré-requisitos para a iluminação.
b. Sua idade, quando da ocorrência desta última, era de trinta e um anos e
meio.
c. Não houve nenhuma experiência de luz subjetiva.
d. A iluminação intelectual foi bem marcante.
e. E a exaltação moral ainda mais.
f. Embora ele não dê detalhes (talvez não pudesse dar) está claro que
vivenciou alguma coisa muito próxima da visão Cósmica, mesmo que
não tenha sequer visto o próprio Esplendor Bramânico.
g. O estado de “paz e conhecimento” de que falou Whitman e que é citado
por todos os casos como um dos resultados principais da consecução do
Nirvâna - do Sentido Cósmico - veio a J. W. W. inequivocamente,
instantaneamente.
h. O rigoroso paralelismo deste caso com todos os outros aqui apresentados
há de ser reconhecido por todo leitor diligente.
V. S-. me pede um breve relato de minha vida e minha evolução espiritual. Nasci
em Westfield, N ew Jersey, em 4 de junho de 1857. Meus pais eram ingleses e haviam
tido escolaridade de apenas alguns meses. Meu pai era carpinteiro e, minha mãe,
costureira. Minha mãe era uma mulher de natureza aberta, gentil, espiritual, poética,
e uma grande leitora. Meu pai era um veemente abolicionista. Minha escolaridade
foi pequena, numa escola distrital. Morávamos perto de um grande bosque. Eu não
ligava muito para outras crianças, mas passava meu tempo com livros e as árvores.
Amava as árvores, como amigos conscientes.
O lado desagradável da religião nunca me foi mostrado. Quando criança, eu
conversava com Deus tão naturalmente como com a minha mãe. Um velho livro de
filosofia (não sei seu nome) caiu em minhas mãos e comecei a pensar profundamente.
Li a Bíblia, comentários e um livro sobre “All Religions” [“Todas as Religiões”].
A os treze anos era ateu, depois veio uma rápida mudança, tive a experiência da
conversão e, à medida que fui lendo, tornei-me calvinista, arminiano, swedenborgiano.
Aos quinze tomei-me aprendiz de carpinteiro, mas faltou trabalho em 1873 e passei
a ser jardineiro. A os dezessete eu era líder de reuniões de oração, conselheiro, e
discutia pontos de ortodoxia com pastores. Aos dezoito fui para o “Trail’s Hygienic
College”, em Florence, N ew Jersey, como estudante funcionário. Ali encontrei todas
as questões radicais, bem como a mulher que se tomou minha esposa. Trail faleceu,
o colégio fechou, fui para Kansas como pioneiro, onde fui pastor (guardador de gado),
colono, casei-me em 1879, atuei como terapeuta sanitarista para meus vizinhos, li o
jornal Index de Boston e Theodore Parker e me afiliei à Free Religious Association
[“Associação Religiosa Livre”]. Uma seca de três anos me obrigou a ir de Kansas
para um sanatório em Vinton, Iowa, onde fui um assistente. Tomei-me um agnóstico.
Li Ingersoll e os cientistas. Juntei-me a uma colônia de naturalistas no Tennessee,
em janeiro de 1883. Voltei a ser pioneiro na mata. Aceitei a Democracy [“D em o­
cracia”] de Karl Heingen e passei mais firmemente a escrever poesias, coisa que
começara a fazer pouco antes de ir para Kansas. Aceitei o amor livre, que combatera
durante anos. A colônia fracassou e fui para outra similar na Florida. Lá havia muitos
espiritualistas. Li Liberty, de Tucker, e me tornei um anarquista entusiasta. Fui
cultivador de laranjas, trabalhador em fazenda e pioneiro. A colônia e o trabalho
fracassaram e fui para Palatka. Fui criador de aves. Minha esposa faleceu em setembro
de 1888, após quase uma década de vida conjugal muito feliz. Voltei para o velho lar
no Norte, com duas crianças, e me tornei enfermeiro profissional. Aqui encontrei
mais livros e li os poetas - Emerson, Whitman, Thoreau, Spencer, Darwin, Carpenter,
William Morris. Adorei os transcendentalistas, mas não os compreendia muito bem.
Vivi mais em poesia e ciência sociológica.
Quanto à minha iluminação: eu estava indo para a cidade de N ew York certa
manhã, em janeiro de 1897, num trem, para trabalhar em hospital. Estava lendo
Carpenter. Era uma bela manhã de inverno. Acho que estava perto de Bay Bridge, ou
sobre esta ponte, quando veio o Pensamento. Não houve nenhuma sensação especial,
exceto de que alguma coisa bela e grande parecia ter me acontecido, que eu só
poderia descrever em termos de luz. No entanto era puramente mental. Mas tudo
pareceu diferente para mim. Saí passeando pela cidade naquele dia, calmo mas
contente e inspirado. A coisa de que mais me lembro foi perguntar-me quando aquela
sensação ou impressão iria me deixar. Eu era latentemente cético e pensei que fosse
uma inspiração temporária, como a de um poema. Mas passaram-se dias, semanas,
meses e eu verifiquei que aquele broto que rompera o solo naquela manhã de inverno
continuava crescendo, tornando-se mais forte e mudando todo o cenário de minha
vida. Continuadamente questionei e testei e, por fim, após um ano de tentativas,
comecei a escrever. Toda a parte inicial do livro foi escrita à noite, enquanto eu
cuidava e tomava conta de um menino aluado cujos gritos, risadas, xingações e
gracejos de baixo nível faziam o quarto retinir enquanto eu escrevia. Mesmo assim
cu escrevia com facilidade, rapidamente, sem nenhum esforço mental consciente e
com uma espécie de espanto ante as palavras que escrevia, como se elas não tivessem
nenhuma ligação comigo. Parte do livro foi escrita no verão seguinte, quando eu
estava em casa, e parte no inverno de 1899-1900, enquanto o preparava para impressão,
mas sempre com as mesmas sensações de facilidade e inspiração. Ainda assim,
quando li o livro ele me pareceu uma coisa à parte em cuja construção eu não tivera
participado. Quanto a como me senti quando recebi o Pensamento, V.S~. mesmo
descreveu com precisão os sintomas nas páginas 10 e 11 de seu panfleto: “Com a
iluminação intelectual advém uma elevação moral indescritível, uma intensa e sublime
alegria e, juntamente com isto, um senso de imortalidade; não meramente uma crença
numa vida futura - isto seria de menor importância - mas uma consciência de que a
vida agora vivida é eterna, sendo a morte vista como um incidente trivial que não
afeta sua continuidade. Além disso, há a extinção do senso de pecado e uma
competência intelectual que não apenas ultrapassa a anterior, mas que ocorre num
novo e mais alto nível”. Muitas das características da condição de Arahat, como foi
ensinado por Buda, descrevem com precisão o sentimento.
O que prova que J. William Lloyd foi um caso de Consciência Cósmica
não é tanto a exposição acima, que ele faz sobre si mesmo (embora isto
dificilmente poderia ter sido escrito sem uma experiência como a iluminação),
quanto o livro [110a] que ele escreveu após o evento em questão. Esse livro,
que contém extraordinária evidência do fato, é facilmente acessível e sem
dúvida será lido por toda pessoa que se interesse pelo assunto.
O advento da Consciência Cósmica, neste caso, foi muito semelhante ao
mesmo fato no caso de Edward Carpenter. Houve um momento bem definido
em que a luz começou a irromper, mas a iluminação veio gradualmente. Não
houve luz subjetiva. Houve iluminação intelectual e elevação moral
acentuadas, mas a visão Cósmica, o Esplendor Bramânico dos grandes casos
não parece ter estado presente. Se não esteve, não se pode dizer que este foi
um caso completo e, não obstante, o livro de J. William Lloyd mostra uma
excelente visão interior da ordem cósmica. É preciso lembrar que a iluminação
que ocorre gradualmente pode ser tão completa como aquela que vem
instantaneamente. Por que deva haver essa diferença no despertar em
diferentes casos não pode por enquanto ser explicado.
Até onde nossos fatos nos levam, dir-se-ia que os casos em que o Sentido
Cósmico se manifesta completamente desenvolvido, de maneira instantânea
e, por assim dizer, num lampejo, são aqueles em que há uma acentuada luz
subjetiva - casos como os de Dante, Yepes, Paulo, Pascal e outros. Quando,
ao contrário, o novo sentido vem mais gradualmente, pode não haver luz
subjetiva, como nos casos de Carpenter e Lloyd. Parece razoavelmente certo
que com a iluminação ocorre um real rearranjo físico, molecular, em algum
ponto dos centros cerebrais e que é esse rearranjo molecular que, quando
considerável e repentino, dá origem ao fenômeno da luz subjetiva.
HORACE TRAUBEL
Nasceu em 19 de dezembro de 1858 e, portanto, tinha trinta e um anos
na ocasião de sua primeira iluminação. Sua experiência consta aqui a seguir,
apresentada em suas próprias palavras. Toda ela é muito interessante, mas
talvez a coisa mais interessante a seu respeito seja a maneira como a notícia
dela foi recebida por Walt Whitman, cujas palavras simples e comuns, “Eu
sabia que isso ia ocorrer a você”, têm uma profundeza de significado bem
fora do comum. H. T. conta a história de seu despertar de maneira coloquial
e direta, em resposta a indagações deste autor:
V. S-. está bem familiarizado com a senda de meu desenvolvimento espiritual com o ramo seguido pelo meu Eu mental para chegar a seu estado presente. Sabe que
cheguei onde cheguei, seja isto o que for, principalmente por contato imediato com a
experiência, em vez de por meio de livros, embora tenha lido livros de toda espécie
e num certo período em número espantoso. Mas de algum modo o erudito em mim
nunca parece ter obscurecido o homem. Suponho que minha leitura mais intensa
tenha sido Emerson, Calyle, Hugo e qualquer outra coisa que eu pudesse obter
referente ao mundo do mito e às Escrituras pré-cristãs da humanidade. Não me parece
ter vivido tempo algum em que não tenha lido Leaves o f Grass. Mas antes de maio
de 1889 não me parece ter conseguido (em certo sentido) a apreensão final de seu
mistério, que agora lhe confere seu significado primordial e sobrenatural. Maio de
1889. Depois, novamente, dois anos mais tarde, em 1891. Uma terceira vez em 1893
ou 1894, na noite histórica (histórica para mim) em que certas circunstâncias fizeram
com que eu fosse o porta-voz do grupo dissidente dos Ethicists [“Eticistas”], em
Filadélfia, por ocasião da cisão da Eíhical Society [“Sociedade Ética”] nessa cidade.
Maio de 1889. Naquela noite arrebatadora, quando me inclinei sobre o parapeito da
balsa, perdi este mundo em troca de outro e, na angústia e na alegria de alguns
minutos, vi reveladas coisas que até então me tinham sido ocultadas. Aqueles que já
tiveram esse encontro compreenderão o que isto significa; outros, não, ou talvez só o
compreenderão por sugestão. Eu não podia separar o aspecto físico daquele momento
do espiritual. Meu corpo físico passou pela experiência de desaparecimento na luz
espiritual. Todas as linhas fortes dos contornos dos fenômenos foram suavizadas. Eu
era uno com Deus, o Amor, o Universo, tendo chegado afinal face a face comigo
mesmo. Tive a sensação de estranhos distúrbios e reajustes morais e mentais. Havia
um imediatismo em tudo aquilo - uma indissolúvel unidade das diversas energias do
meu ser numa só força. Eu não estava mais atravessando um rio do que voando no
espaço ou saltando entre estrelas, como um viajante de um para outro dos orbes
povoados. Enquanto eu estava ali, a balsa tinha chegado ao cais e estava prestes a
sair novamente. Um ajudante da balsa, que me conhecia, veio e bateu no meu ombro:
“O senhor não vai descer da balsa?” -perguntou ele. E acrescentou quando olhei
para ele e disse “Sim”: “O senhor parece magnificamente bem e feliz esta noite, Sr.
Traubel
Só vi Walt no dia seguinte, à noite. N esse meio tempo eu vivera vinte e
quatro horas de êxtase misturado com algumas dúvidas quanto a se não tivera um
parafuso afrouxado na cabeça e não teria mais ficado maluco do que entrado no
influxo de alguma luz e feito uma descoberta. Mas as primeiras palavras que Walt
me disse quando eu irrompi em sua sala renovaram minha confiança: “Horace, você
está com aparência de grande felicidade em seu rosto esta noite. Tirou a sorte grande”?
Sentei-me e tentei indicar em poucas palavras que de fato tinha tirado a sorte grande,
embora não fosse talvez o tipo de sorte que ele tinha em mente para mim naquele
momento. Ele absolutamente não pareceu surpreso com o que eu lhe disse, limitandose a comentar, enquanto punha a mão no meu ombro e me olhava nos olhos: “Eu
sabia que isso ia ocorrer a você”. Eu sugeri: “Passei o dia me perguntando se não
estou maluco”. Ele sorriu com um jeito sério: “Não; sadio. Agora você está finalmente
são”.
Levou um mês para o efeito imediato dessa experiência passar. Naturalmente, o
efeito reflexo foi permanente. Posso dizer agora (escrevendo em 1901) que daquele
dia até hoje não conheci um só momento de desesperança quanto a minhas relações
espirituais para com o ser humano e o universo. Tenho meus problemas mundanos e
minhas fraquezas mundanas. Mas a fé essencial é inquebrantável. Eu nunca tinha
tido a menor suspeita da imortalidade. O vislumbre da lei eterna naquele minuto - e
nas experiências repetidas nas duas ocasiões posteriores mencionadas acima - não
deixou nenhuma mancha ou restrição. Eu dissera muitas vezes, ao falar de Whitman
(de certo modo fazendo uma verdadeira conjetura): “A noção de Whitman sobre a
imortalidade não é uma noção de lógica e sim pictórica. Ele não acredita na
imortalidade. Ele a vê”. Muitas vezes ele me dissera com relação a esta explicação:
“Cada palavra é verdadeira. Você acertou na mosca”. Agora eu sabia melhor do que
soubera antes - não somente melhor, mas de um modo que não poderia ter sabido
antes - o que eu mesmo quisera dizer quando usara a expressão: “Whitman vê”. Vejo
à volta dos fenômenos e através deles. Os fenômenos nunca são uma parede ou um
véu. Tenho sido capaz de fazer meu trabalho como nunca antes. Isso me trouxe amigos
e o estímulo de cumprimentos solidários de todas as partes do mundo. Há um aspecto
do que escrevo que devo salientar. Acho que lhe disse há muito tempo que me tornei
na verdade automático quando estou empenhado em alguma composição séria. Não
parece que sou eu quem escreve. A escrita parece ser feita através de mim. Pego a
pena e mal sei o que escrevo. Depois de ter escrito, muitas vezes fico surpreso com
as coisas que disse. Elas são tão novas para mim como para qualquer leitor. Todo
escrito que me trouxe algum retomo - congratulações - foi feito desta maneira.
N a noite da cisão da Sociedade Ética eu estava numa posiçSo que me forçou a
ser o principal porta-voz do grupo pela liberdade. Fiz um discurso tal que meus
adversários, mais do que meus amigos, me congratularam. Mesmo assim, quando
desci do atril e passei a conversar, fui instantaneamente imerso na estranha luz que
me visitara na primeira experiência e simplesmente disse, sem pensar ou raciocinar
- formalmente falando - as palavras do poder mais alto que tomara posse de mim.
Desde então tenho constatado que, em momentos de crise, tenho simplesmente de
me entregar de novo a essa fonte para descobrir que - espiritualmente falando - toda
força que ela deu uma vez, dá novamente. Em minha própria vida muito atribulada,
que tem suas vicissitudes temporais, isto vale mais que um saldo no banco e contribui
mais para minhas vitórias do qtie quaisquer efemeridades de prosperidade material
poderiam contribuir; na verdade, é a primeira e a última letra de meu poder. Quando
os pequenos problemas de todos os dias parecem bastante embrulhados, muitos já
insolúveis, com certeza consigo finalmente uma saída por meio dessas inspiradoras
revelações. Nem uma vez sequer o espírito me desertou - nem uma vez sequer a luz
deixou de aparecer, em algum grau de sua radiância, naturalmente nem sempre em
todo o seu poder. A diferença que isto faz na vida da pessoa é a diferença entre
preparação e realização. Na ocasião de minha segunda experiência (abril de 1891),
que não foi exteriormente momentosa, constatei que minha dúvida inicial - minha
pergunta, “estou eu estruturado ou desestruturado?” - não reapareceu.
Se V.S-. pegar meu poema Illumination [e grande parte do verso e da prosa que
H.T. escreveu desde aquele ano] e tentar considerá-lo com espírito estatístico,
verificará que expressei uma série de experiências de profunda significação para
todos aqueles que foram similarmente abençoados. Vejo que meus componentes não
estão mais em guerra entre si. Quando eu era jovem, abri meu caminho para o passado
lendo, avidamente e com simpatia, especialmente a literatura oriental de tipo religioso
- abri a fogo uma senda para o espírito. Depois de 1889 (tendo intervindo um hiato
nessa leitura) vi-me atraído novamente para aquele velho mundo, a fim de revisar
aquelas minhas impressões originais. A nova luz tornara minha viagem mais fácil e
mais ricamente produziu seus frutos. Antes eu achava que as religiões eram todas
religiões de desesperança: agora vi que nenhuma religião leva a desesperança - que
toda religião, antes de se tornar e tão logo cesse de ser uma instituição, reduz-se
essencialmente a luz e imortalidade.
Eu deveria talvez dizer que tem acontecido invariavelmente alguém - e às vezes
muitas pessoas - comentar para mim e me felicitar quanto à minha aparência, nas
ocasiões de meu contato direto com aquilo que me acostumei a chamar de meu Eu
subliminar. Isto pode significar muito, ou nada. Mas ninguém poderia passar pelo
que eu passo nesses períodos sem de algum modo dar testemunho disso exteriormente.
V S-. me disse: “Coloque isto em prosa simples”. Mas como posso fazer isto? Eu
nunca poderia dizê-lo em prosa que fosse entendida por alguém que não tivesse
compartilhado minhas sensações. Nunca poderia dizê-lo em palavras que não o
tornasse - com a sua licença - prosa para aqueles que entram paralelamente nos
canais de sua augusta revelação. Depois de ter perguntado a V.S-., “como posso
fazê-lo”?, acabo de mostrar como poderia.
Algumas coisas que eu disse podem parecer cheirar a egotismo. Mas elas são
simplesmente honestas. Não estou dando a mim mesmo a dimensão de um gênio
nem de um idiota, mas de uma simples terceira pessoa cuja palavra e cuja carreira
têm de ser para ela própria lei absoluta. Escrevi este apontamento para V.S-,
impulsivamente, sem nenhuma tentativa de o adornar, se é que na realidade isto foi
feito até este ponto, e agora o li, sem nenhuma real compreensão daquilo de que
minha pena me incumbiria ou que ela professaria.
O poema que se segue foi escrito por Horace Traubel pouco depois de sua
iluminação e, naturalmente, cabe rigorosamente aqui:
As noites, os dias, em escravidão me mantêm,
Fainas de homens e mulheres à terra minha fé arrastam Pela dor vincado, com triviais cuidados,
Eu anseio - eu busco - a vida a alcançar me empenho.
Libertação! Salvação!
Devo falar da porta escancarada, dos portões sem barras?
Após a vigília a fronteira passo,
Meu lugar com os pioneiros tomo.
Terei a hora pacientemente enfrentado, sem medo, no portal?
Agora chamado é meu nome, agora falou, de meu amor o lábio:
Estarei contigo enganado, Ó divino Sinaleiro? É afinal alguma outra alma saudada?
Meu Eu minha resposta é:
Há aquilo que em meu coração responde, o chamado atendendo com
igual voz, para sempre o elo inefável estabelecendo!
Elo que não prende - elo que liberta - elo que descobre e outorga.
Olha! Transbordante estou de inexauríveis posses!
Desvanecem as velhas medidas, expandido estou a infinito alcance.
O mundo! Não morto para ti - apenas a ti vendo, conhecendo afinal,
A incontáveis mundos misturado, contigo teus companheiros conhecendo também:
O ano! Não morto para ti - apenas a ti vendo, conhecendo afinal,
A todo o tempo misturado, o emaranhado fio desatando:
Ó mundo! Ó ano! Antes do nascimento, nascimento vendo, depois da vida, vida vendo!
O infinito azul, do céu afeiçoado olho, a mim se abre.
Ó voz, que a mim mestreias, que de mim também mestre fazes Meu ouvido fechado está, as silabas ouço caírem,
Ondas nas praias dos mais distantes mundos, ondas nas praias do dia.
Partem as nuvens: Ó face - O face - Ó face! Face que a mim sorri - asas a mim sorrindo, para além do barateado,
descartado presente pairando.
(Tu, também, O presente, permanecendo ainda,
Meu coração devidamente visitando, não proibido,
O lugar supremo no entanto cedendo).
Todo olho sou - O Deus ! todo fala és:
Celestial melodia - visão e voz, cor e tom, não mais combatendo,
No ilimitado azul elevado.
D e quem é a mão que me toca? - minha sobrancelha - meu peito minha própria mão que nada pede Do eu para o Eu me guiando?
Divina forma - mãe, pai - sexo somente agora revelado,
a irreversível união;
Divina forma, em ti íntegros fiz,
Os diversos elementos aqui misturados.
Este minuto infinito feito, os distantes mundos ante mim espalhados,
O vaguear sem fim da alma, a longa fila de faces, todas iluminadas pelo
divino sol Rápida ou lenta, adiantada ou atrasada, a linha em nenhum ponto quebrada,
Todas - todas - igualmente sustentadas, no mesmo destino arrebatadas,
no mar e na terra da vida,
O pico para todas iluminado, o triunfo inevitável.
Ó alma minha! olha ainda outra vez:
Ali também estás tu, uma figura no panorama,
Em tua sobrancelha o alvorecer seu belo raio apôs,
Aqui comigo - ali sem mim.
Com sua abundância me enche a morte.
Que é este dilúvio que corpo e sentido supera?
Sinto as paredes de meu crânio romperem-se, as barreiras partirem-se,
o solar dilúvio entrar -
Amor, saber, não perdidos, apenas engrandecidos, em eternos
mares de essência flutuando Antes e por trás de nascimentos e mortes, gravitação espiritual,
a emergência sempre mais se expandindo.
Ó alma, perdi eu a ti ou te encontrei?
Encontrei! o círculo perfeito para ti afinal nascido,
Após os anos de espera.
Remotas eras atrás, remotas eras à frente, os simples poucos anos toco,
Raios do sol central,
Para mais plena fruição do espaço os orbes acelerando.
Para trás à primeira palavra da fala,
A frente para o último pronunciamento dos videntes,
Minha alma a sua própria conhecendo, em seu protéieo manto envolta,
a perfeita canção capta.
Deus! Envolto estou - ébrio estou com o influxo da vida A tua órbita engrenado - dada a palavra eu falaria, mas retê-la devo A ti deixando, O meu irmão, a cada um, para por ti mesmo dizê-la.
Irmãos, mundos, a vós saúdo!
A roda gira, a perspectiva sem limites se abre;
Tudo, tudo se emaranha - a luz ilimitadamente suportando o fardo de tudo.
Pensais acaso que sois esquecidos, que o grande coração para vós não bate?
Que em algum ponto da estrada desmaiareis e morrereis?
Força será dada para tudo que necessitardes,
E o mais fraco, quando vier a noite que é o dia,
O rei saudará, um gigante em estatura e graça.
Agora os anos imortais, o incessante ciclo realizado As dúvidas de pés e asas desprovidas,
A mais distante légua mais próxima e as multiplicadas infinidades
sufocando aqui em meu peito.
O meu inquiridor! de mim não suspeitas - de ti mesmo suspeitas:
Amanhã, a ti mesmo vendo, a mim verás,
E o iluminado espírito o portal cruzando,
Em Deus crescido, orgulhosamente me saudará. [60a:40]
Se não tivéssemos nenhum outro escrito deste homem, estes versos apenas,
para todos que podem compreendê-los - e eles são claros como o dia do
ponto de vista deste livro - seriam prova de iluminação. Mas temos algo
mais. Uma série de escritos em prosa e em verso, abrangendo os últimos dez
anos, dá-nos mais prova do que é necessário.
E há mais uma coisa a dizer. Horace Traubel (como ele mesmo dá a
entender em suas próprias palavras acima) pertence, juntamente com Blake,
Yepes, Behmen, Swedenborg e outros, à categoria dos que podem ser
chamados de escritores automáticos. Esses homens dão caminho livre à sua
inspiração - soltam as rédeas no pescoço do cavalo e o deixam ir. O que eles
escrevem sob o impulso divino, para aqueles que podem seguir seus
pensamentos é divino, mas para aqueles que não podem é, como diz Paulo a
este respeito, “insensatez”.
Talvez todos esses homens escrevam automaticamente, mas, no caso de
alguns deles, a expressão tal como flui do Sentido Cósmico ou como é depois
modificada pelo intelecto autoconsciente é mais inteligível para o “homem
natural” do que no caso de outros. Em nenhum deles o significado está na
superfície - todos requerem e exigem leitura repetida por muito tempo e
refletida. Whitman e Paulo são tão ininteligíveis quanto Behmen ou
Swedenborg, até que o ponto de vista certo seja alcançado, embora Whitman
(de sua parte) tenha trabalhado toda a sua vida “revisando (seus) poemas,
demorando-se longamente neles”, para que pudessem se tomar assimiláveis
por toda a espécie humana.
Horace Traubel não escapou à praga de sua tribo - ininteligibilidade.
Mas apesar disto produziu seu efeito. E esta é a coisa mais estranha de todas
- que seja possível a um homem falar ou escrever algo que não possa ser
entendido, mas que o faça de um modo tão divino que suas palavras sejam
reverenciadas e lembradas através dos séculos. Os Sonetos de “Shakespeare”
nunca foram entendidos; mas assim mesmo são aceitos por aquilo que
realmente são - uma revelação.
Horace Traubel tem muitos leitores que o entendem, e mesmo aqueles
que não o compreendem plenamente ficam impressionados com sua
personalidade, através da qual flui inequivocamente a luz divina.
Nasci em 7 de março de 1860, por volta da meia-noite, na cidade de Cork, na
Irlanda. Minha mãe era irlandesa, de uma família antiga, os Sarfields, um dos quais
é celebrado por Macaulay em seu relato do conflito na Irlanda entre as forças Stuart
e as dirigidas por William o f Orange. Meu pai era o representante na Irlanda de uma
importante editora de Londres. Ele costumava dizer que um de seus ancestrais havia
lutado sob o comando de William o f Orange e creio que tenha vindo com ele da
Holanda.
Fui trazido para a América aos quatro anos, educado nas escolas públicas de
Albany, N. Y., e mais tarde estudei Direito no Columbia College, de N ew York City,
mas mudei de Direito para Jornalismo aos vinte anos, quando passei a integrar a
equipe do World de N ew York, a serviço do qual permaneci por uns oito anos,
ininterruptamente. Em 1887 fui para a América Central, para me engajar em
mineração de prata, explorações e viagens. Depois de um ano em Honduras, fui à
Costa Rica, onde editei e publiquei um jornal chamado E l Comercio, em inglês e
espanhol, por uns seis meses, voltando depois para N ew York e me integrando
novamente ao trabalho jornalístico, como escritor editorial, na equipe do Press de
N ew York.
A inclinação de minha mente para o misticismo, que tanto influenciou meu
trabalho posterior, provavelmente começou durante o retiro de um ano na comunidade
Shaker, em Mt. Lebanon, N.Y. (1891-1892). Esta experiência foi seguida de um
curso especial de Econom ia Social e História, com o Prof. Richard T.Ely, da
Universidade de Wisconsin. Cedo na manhã de 11 de maio de 1895 veio a experiência
suprema de minha vida. Na noite daquele dia escrevi em meu diário um relato exato
e completo de todo o episódio, tal como o encarei então. Passo a transcrever esse
apontamento:
“Com o alvorecer deste dia vieram a grande revelação e a grande incumbência.
Coroado com espinhos foi o pensamento ao despertar; depois esbofeteado, cuspido,
escarnecido, insultado, chicoteado e exposto no pelourinho, um homem sofrido e
familiarizado com a dor, pregado na cruz, perfurado no lado, extremamente desprezado
e rejeitado pelos homens, morto como um malfeitor, sepultado; e então o grande
pensamento - a verdade que liberta; a absoluta demonstração do domínio do destino
pelo homem e de seu controle de todas as condições - a vitória do homem - todos os
homens nesse homem que representa a espécie, esse irmão mais velho da humanidade
em seu triunfo sobre o pecado, o medo e a morte!
“Mas uma coisa ficara na minha mente como necessária para provar à massa dos
homens de hoje a absoluta supremacia do ser humano sobre a morte em todas as suas
formas, como um atributo de sua unidade com Deus, com a Vida Eterna, o Perfeito
Amor, a Perfeita Justiça, a Onisciência e a Onipotência: a aparência visível de um
homem que, vivendo por mais tempo que os anos registrados de qualquer homem
que tenha visto a morte, ainda assim viveu na carne sem sombra de mudança ou
declínio. E eu disse a mim mesmo: por isto valeria a pena esperar, velar e trabalhar
durante mil anos! Mesmo assim desejei que a emancipação maior não estivesse tão
distante. E eis que no alvorecer deste dia eu sei - sei absolutamente como um fato uma verdade que nada pode destruir: que o homem que triunfou sobre a morte no
Calvário quase dois mil anos atrás vive - vive na Terra num corpo de carne tomado
perfeito, um homem entre homens, compartilhando nossas lutas e tristezas, nossas
alegrias e aflições, trabalhando conosco coração a coração e ombro a ombro inspirando, guiando, sustentando, conforme possível, em todo humano avanço.
“A glória dessa verdade, a grandeza dessa criatura, a suprema nobreza, a paciência,
a sabedoria e o amor dessa vida me emocionaram com êxtase e reverência inefáveis
- deram-me plenitude e de mim se apossaram. Ele vive, não em algum céu distante,
num grande trono branco, mas aqui e agora; não está vindo, mas está aqui conosco,
amando, ajudando, vivendo, animando e inspirando a espécie humana a que pertence
tão plena e verdadeiramente como a espécie pertence a ele. Agora está realmente
claro que, sendo elevado, elevará todos os homens com ele - elevou, está elevando e
deve sempre continuar a elevar, em função da própria essência de sua humanidade
transcendente. A imortalidade não é mais uma hipótese do teólogo, uma fantasia da
imaginação, um sonho do poeta. Os homens viverão para sempre, porquanto o homem,
invencível para todos os efeitos de tempo e mudança e mesmo de violência homicida,
vive hoje na plenitude da vida e do poder que desfrutou aos seus trinta e três anos,
apenas com maior glória de bondade, grandeza e beleza - embora o mundo conte
1895 anos desde seu último nascimento na Terra.
“Esta é a verdade transmitida era após era a todos os homens em todas as terras
e persistentemente mal interpretada - a verdade que há de finalmente ser vista por
todos os homens em sua plenitude e pureza. O homem deverá conhecer a si mesmo
e, com pleno comando de suas condições e tempo ilimitado para ação, não deverá
tão-somente voar para níveis de existência não sonhados até agora, mas absolutamente
alcançá-los e trazer razoavelmente em sua realização um céu na terra, em verdadeira
grandeza e felicidade, transcendendo o céu do cristão ortodoxo tanto quanto este céu
transcende o do selvagem.
“Este é o fato que me é dado saber, a prova deverá vir no devido tempo. Minha
missão é testemunhar isso - ser a voz clamando no deserto: Preparai o caminho do
Senhor, endireitai as suas veredas.
“E na luz desta verdade vivo de novo; levanto-me vitalizado e encigizado em
cada nervo e cada fibra. Alma e corpo, não mais separados à força, estão unidos e
glorificados. Serei merecedor do grande encaixo de Portador da Verdade para a minha
espécie e manifestarei em meu corpo, em meu pensamento e minhas palavras, em
minha vida e minhas ações, a verdade que se tornou uma parte de mim - a verdade
da unidade do ser humano com a vida eterna...
“Com estes pensamentos dentro de mim e dissolvendo-me em lágrimas felizes,
pulei da cama por volta das cinco horas e caminhei de um lado para o outro no
quarto, em fervor de adoração e amor, pois como será o amor, comparado ao deste
homem? O tempo todo a atmosfera do quarto vibrava com uma intensa luz branca. A
presença que tinha sido revelada nos primeiros momentos do despertar parecia agora
difusa e continuando pelo universo afora. Depois de me banhar e me vestir, saí para
um passeio matinal. A manhã estava um tanto fria, nublada, úmida e ventosa, mas o
ar, docemente perfumado, cheio de luz e do vívido e tenro verde da primavera e
vibrante de vida, parecia compartilhar minha sensação de alegria e elevação.”
Posso acrescentar que, sendo minha mente naturalmente analítica, pude descobrir
como fatores distintos na evolução mental aqui indicada, primeiro (e talvez mais que
tudo) Lohengrin e Parsifal, de Wagner; segundo, A Vênus de Milo; terceiro, Cristo
diante de Pilatos, de Munkacsy, todas estas obras, porém, misturadas, expandidas e
iluminadas pela grande alma de Walt Whitman.
Respondendo sua pergunta: N ão sei se alguma mudança em minha aparência
física se seguiu àquilo que pode ser chamado de minha iluminação e seria melhor
que outra pessoa falasse disso. Não obstante, foi-me dito que meu rosto era o rosto
de uma pessoa em chamas e este é claramente meu próprio sentimento quanto à
minha mudança, fisicamente. Há uma consciência de um brilho constante que é luz
e calor em todo o meu ser. É certo que desde aquela manhã tenho tido um controle
maior e mais seguro da vida e tenho sido capaz de trabalhar com a mente e o corpo
mais límpidos e mais ativos.
Solicitado a explicar de maneira mais completa a vida contínua do Cristo
na Terra, num corpo físico, Paul Tyner respondeu assim;
Ao asseverar a existência contínua do homem Jesus na Terra, no corpo de carne
e osso, absolutamente não pretendo negar a lei demonstrada em todo o universo, em
todas as formas de vida, simples ou complexas, da passagem do nascimento para a
maturidade e desta para o declínio, no que se refere à forma externa. O que essa
existência contínua de Jesus num corpo de carne e osso significa é o domínio e
controle sobre a lei de construção, destruição e reconstrução que opera em todas as
formas, e sua deliberada e consciente direção todo o tempo. D e fato flexibilidade é a
própria essência da forma e isto é especialmente verdadeiro com relação à forma
humana. O espírito, que é o próprio ser humano, sem forma e sem substância, está
continuamente construindo e reconstruindo, colhendo do oceano universal de matéria
e energia todos os elementos de que necessita e rejeitando e expelindo aquilo que já
tenha usado, quando não mais sirva aos seus propósitos ou quando tenha disso retirado
tudo aquilo de que precisava.
N o verdadeiro sentido, não há espírito desincorporado. O espírito tem de se
incorporar para fins de m anifestação e expressão. Tendo Jesus alcançado a
autoconsciência espiritual, deliberada e conscientemente escolheu e escolhe sua
incorporação, moldando-a dia a dia a uma sensibilidade cada vez maior à sua vontade
- em seu caso a vontade Cósmica, a vontade do Pai. Ele tem a capacidade de atravessar
portas fechadas e paredes de pedra nesse corpo, graças ao seu poder para mudar suas
vibrações. Isto é, ele atravessa paredes de pedra assim como éteres ou gases passam
através de substâncias de vibrações mais baixas ou de maior densidade. Os elementos
componentes de seu corpo, embora regidos até certo ponto pela estrutura, pela
organização anatômica humana normal, estão no que poderia ser chamado de estado
de fluxo. Os gregos antigos consideravam o universo num estado de fluxo, como ele
efetivamente está.
Completamente consciente como estou das dificuldades inerentes à descrição de
um fenômeno que não apenas não é familiar mas que é impensável para a maioria
dos seres humanos, só posso pedir ao leitor que deseje uma compreensão mais sutil
do que se quer dizer com essa “imortalização da carne” que imagine por meio de
analogia - e de uma analogia que leve a uma grande aproximação da realidade - um
arquiteto que tenha planejado uma residência muito bela e perfeita, que tenha o
projeto em mente de maneira muito clara e completa e que seja ele próprio um
mestre construtor, com ilimitado domínio dos materiais necessários à concretização
de seu projeto, bem como conhecimento infalível do melhor método de construção.
Que imagine ainda que esse arquiteto, de pé no meio da residência que planejou e
construiu, verificasse que os materiais que usou, por alguma casualidade, ou melhor,
por alguma lei, tenham se queimado toda a noite, sem no entanto queimar a ele, ou
sequer prejudicar seus poderes. Tenhamos em mente que o projeto permanece intacto.
Tenhamos em mente que a habilidade do construtor não é extinta; que ele conserva
seu domínio sobre o material, suficiente para suas necessidades e de fornecimento
instantâneo. Que poderia acontecer? Ele reproduziria essa residência tão rapidamente
com o ela fora destruída; na verdade não haveria nenhum hiato aparente na
continuidade da residência. A s únicas mudanças possíveis seriam que, com a
experiência e o desenvolvimento, a parte material da construção teria qualidade
cada vez melhor e os ajustes de suas várias partes uma à outra seriam cada vez mais
precisos. Isto, a grosso modo, dá uma idéia do que se quer dizer com o ser humano
imortal numa incorporação imortal.
Nenhuma dificuldade parece ser encontrada para conceber o princípio imortal
do homem incorporando-se a corpos sucessivos, numa escala ascendente ou descen­
dente, assim como não achamos difícil conceber o princípio universal da vida incorpo­
rando-se a uma variedade de formas numa escala ascendente ou descendente. Todavia,
qualquer processo deve ser considerado complexo e incerto em comparação com os
processos simples e específicos do homem cosmicamente consciente reconstruindo
de maneira consciente e deliberada, dia a dia, a incorporação que melhor expresse
seu pensamento e corresponda a suas necessidades. Nisto como em outras coisas, a
evolução de formas e processos se faz sempre no sentido de aumento da simplicidade
- de economia e eficiência na execução do nosso trabalho. Não é o Jesus pessoal que
é imortalizado, ou que tem o poder de imortalizar a carne e sim o princípio do Cristo
revestido daquela personalidade, incorporado a ela e usando-a simplesmente como
um de seus modos de movimento, por assim dizer. O Cristo em Jesus, entretanto,
alcançou tal plenitude e naturalidade de manifestação que sua personalidade é real­
mente feita a Luz do mundo, que ilumina todo ser humano que vem ao mundo.
Quanto à aparência de Paul Tyner na época de sua iluminação, H. C. me
informa o seguinte: “Tenho condição de fazer uma declaração segura quanto
à aparência do Sr. Paul Tyner na manhã de 11 de maio de 1895. Sua cor
estava inalterada, seu corpo quente e natural, sua expressão singularmente
doce e luminosa. Seu rosto tinha no momento - e manteve por vários dias o aspecto iluminado que às vezes vemos no rosto dos moribundos, um aspecto
de êxtase, resplandecente, elevado - estava como que aceso com um fulgor
proveniente de uma fonte invisível. Não havia lapso das faculdades comuns,
nenhuma deficiência na saúde perfeita, tanto mental como física; ao contrário,
havia saúde aparentemente superabundante. Seu trabalho do dia (que era
bastante grande) foi feito naquele dia como de costume”.
Resta apenas citar dois breves trechos de um livro escrito e publicado
antes que Paul Tyner tivesse ouvido falar neste autor ou em suas teorias:
N o raiar da manhã de sexta-feira, 11 de maio de 1895, acordei com pleno e
absoluto conhecimento do grande fato que para mim prova a imortalidade do homem
aqui e agora e no corpo de carne que conhecemos. Sei que um homem viveu quase
dezenove séculos e, conhecendo uma vida mais e mais plena com o passar dos anos,
viveu e ainda vive no mesmo corpo em que, no começo daquele período, andou na
Terra como um homem de carne e osso. Esse homem, em quem a humanidade chegou
ao pleno florescimento com a manifestação consciente de sua unidade com a vida
eterna no trigésimo terceiro ano de sua atual encarnação, realmente destruiu o último
inimigo, que é a morte.
Hoje, na Europa e na América, na Austrália e na África, na índia e nas ilhas do
mar, onde quer que o Pai seja adorado em espírito e verdade - como na Judéia de
Herodes o Grande - o Cristo Jesus, Filho de Deus e Filho do Homem, vive em nosso
meio! Por esta causa ele veio ao mundo; para que fosse testemunha da verdade; uma
testemunha viva e incontestável da verdade que há de nos libertar - a verdade da
religião (reunião) do homem com Deus através da autoconsciência espiritual absoluta
- com Deus - com a Eterna, Onipotente e Onisciente Fonte da Vida, “na qual vivemos
e nos movemos e temos nossa existência”, sem a qual não existimos!
Eu disse que tomei conhecimento desse maior fato da história da humanidade
num momento; que aquilo que antes era desconhecido para mim, assim como o
continente ocidental o era para Colombo antes que ele avistasse terra, tomou-se num
instante uma realidade conhecida, uma parte de minha consciência tanto quanto o ar
que eu respirava; uma verdade até então vagamente compreendida em sua plenitude,
mas uma verdade firmemente apreendida, irrevogável e indestrutível; uma verdade
eterna escrita em letras de fogo em minha mente e em meu coração - e do mesmo
modo na mente e no coração da gente desta era e das eras futuras.
Ao abrir os olhos aos primeiros raios de luz da manhã que iluminavam meu
quarto, pensei vagamente na unidade da Luz e da Vida Eternas, quando minha atenção
foi aparentemente desviada pela imagem da cabeça tonsurada de um monge e pensei
na coroa de espinhos que ela simbolizava. Então toda a sublime tragédia da Paixão
passou vívida e rapidamente ante meus olhos; o açoite, o pelourinho, as bofetadas e
os socos, os escárnios e as ridiculizações, o deboche e a irrisão da coroação com
espinhos; a penosa subida do Gólgota, vaiado pela turba cega e cruel; a tortura e a
ignomínia da pregação à cruz, o grito de agonia dizendo que os últimos restos da taça
haviam sido esgotados; a exclamação de vitória que proclamou: “Está terminado!”
Vi então o golpe de lança; vi o sepultamento, o sublime templo da Divindade assim
rebaixado, e vi - a ressurreição no terceiro dia.
Neste ponto minha mente se abriu para o grande fato, como para uma torrente de
vida. Ele se ergueu dentre os mortos. E nunca mais morreu! Ele vive! O ar em meu
quarto pareceu vibrar com uma luz mais intensa do que jamais fora visto na terra ou
no mar. Meu cérebro e meus nervos, meu sangue e meus músculos, todo o meu ser
vibrou em uníssono harmonioso com essa luz e, em meio à sua glória reluzente,
contemplei o Homem Divino, o Homem Imortal - eu o contemplei face a face e vi
que era ele em carne e ossos verdadeiros, bem como em alma que transcende a
carne; vi que era ele e não outro [187:4],
“Em verdade, em verdade vos digo que aquele que crê em mim tem a vida eterna”
[João 6:47], Nestas palavras Jesus anunciou um princípio científico da maior importân­
cia. A crença é essencial à consecução da imortalidade (dentro ou fora do corpo).
Crença em quê? Crença na imortalidade - um estado de consciência do fato da imor­
talidade. A crença em Jesus, em qualquer sentido real, é crença na imortalidade do
ser humano. E uma crença naquele que é “o caminho, a verdade e a vida” - em corpo
e alma juntos; e, com a crença, uma conscientização da unidade com ele [187:97-8].
Não faço nenhuma critica à crença específica de Paul Tyner quanto ao
“Cristo Vivo”. E simplesmente uma questão de como as palavras são enten­
didas. Cristo (como Paulo chamava o Sentido Cósmico) está naturalmente
vivendo e sempre viverá.
Do ponto de vista deste livro, Paul Tyner é quase um caso típico de
Consciência Cósmica.
a. A luz subjetiva esteve bem marcada.
b. Houve a característica elevação moral.
c. Houve também a usual iluminação intelectual.
d. O senso de imortalidade.
e. A subitaneidade do advento, a instantaneidade do despertar.
f. A vida mental anterior do homem era do tipo que tende a levar à ilumi­
nação.
g. Sua idade na iluminação, trinta e cinco anos e dois meses.
h. Ele alcançou a Consciência Cósmica na primavera, em 11 de maio.
i. Houve a característica mudança de aparência, quando da iluminação.
O CASO DE C. Y. E.
NAS PRÓPRIAS PALAVRAS DELA
Nasci em 21 de abril de 1864. Fui criada como membro da Igreja da Inglaterra,
aceitei sua doutrina e adorei seus cultos e sua liturgia. Acreditei em Cristo como
Deus encarnado - o Verbo feito carne. A doutrina da expiação, entendida no sentido
de um sacrifício necessário para aplacar a ira de um Deus vingativo, havia muito
fora por mim rejeitada. Casei-me em l 2 de janeiro 1891. M eu marido tinha um
desejo intenso e sério da verdade. Ele era um agnóstico. Nosso denominador comum
era uma firme convicção de que Deus é Amor, de que Ele é também Luz e de que
nele absolutamente não há trevas. Dois anos após nosso casamento, meu marido se
tornou um entusiástico e ardente admirador dos escritos de Walt Whitman e aqui,
para minha tristeza, eu fiquei para trás. Tentei ler Leaves o f Grass, mas não conseguia
entender uma só palavra. Podia ouvir a música dos versos, mas a linguagem em que
eles estavam escritos era um idioma desconhecido para mim. Eu reconhecia que
havia alguma coisa e talvez alguma coisa fora do comum no que esse homem escrevia,
mas era simplesmente incapaz de perceber o que era.
N o outono de 1893 mudamos para o interior e fixamos residência num pequeno
vilarejo em Yorshire. Pouco depois meu marido foi a Bolton para se encontrar com
os homens do Eagle College. Voltou para casa encantado com os novos companheiros
que havia encontrado, com o amor sincero e o bom companheirismo com que tinha
sido recebido e com a comprovação indiscutível do poderoso magnetismo do homem
Walt Whitman, que podia reunir num só grupo homens de todos os tipos, diversos
em procedência, profissão, nível, na verdade em tudo menos nesse maravilhoso senso
de camaradagem. Fiquei ainda mais confusa. Então, em setembro de 1894, recebemos
a visita de um jovem notável da Filadélfia, chamado P. D ., que estava profundamente
imbuído da filosofia de Whitman. N a segunda-feira e outra vez na noite de terça, P.
D ., meu marido e eu tivemos longas conversas a respeito de Whitman e seu ensina­
mento. N a tarde de quarta-feira fui ver uma amiga, a esposa de um fazendeiro, e
fomos de carro aos campos de colheita, para levar algum refresco a seu marido, que
estava trabalhando com seus homens. Quando eu estava indo embora, ela me deu
duas rosas “Maréchal N iel” muito bonitas. Eu sempre tivera paixão pelas flores,
mas o perfume daquelas e a beleza de sua forma e sua cor me encantaram com força
e vividez excepcionais. Deixei minha amiga e estava caminhando lentamente para
casa, desfrutando a calma beleza da noite, quando tomei consciência de uma indizível
quietude e, simultaneamente, todos os objetos ao meu redor foram banhados numa
luz suave, mais clara e mais etérea do que eu jamais tinha visto. Então uma voz
murmurou em minha alma: “Deus é tudo. Ele não está lá longe no céu; está aqui. A
relva sob os seus pés é Ele; esta abundante colheita, aquele céu azul, estas rosas em
sua mão - você mesma, tudo é uno com Ele. Tudo está bem para todo o sempre, pois
não há lugar ou momento em que Deus não esteja”. Então, a terra e o ar e o céu
estremeceram e vibraram a uma canção cujo estribilho era “Glória a Deus nas alturas
e paz e boa vontade aos homens na terra”.
Quando cheguei em casa, meu marido e sua irmã notaram uma mudança em meu
rosto. Uma paz e uma alegria infinitas tinham enchido meu coração, ambições e
cuidados mundanos tinham-se desvanecido à luz da verdade gloriosa que me fora
revelada - toda ansiedade e preocupação com o futuro tinham me deixado
completamente e minha vida é agora uma longa canção de amor e paz. Quando
acordo à noite ou quando me levanto da cama de manhã - não, em todas as horas do
dia e da noite - essa canção está sempre comigo: “Glória a Deus nas alturas e paz e
boa vontade aos homens na terra”.
Agora eu podia ler Walt Whitman. Ler! Na verdade parecia mais que ler, pois
minha alma, bebendo avidamente em suas palavras, era assim refrigerada e revigorada.
Os efeitos desta experiência em minha vida diária têm sido muitos; principal­
mente, creio eu, depois da alegria e da paz, profundas e subjacentes, veio a fé na
eterna retidão de todas as coisas; veio a cessação da aflição e preocupação com o
problema do mal; veio o desejo de viver o mais possível ao ar livre e veio um deleite
sempre crescente com as belezas da natureza em todos os momentos e todas as estações
do ano; vieram também uma forte tendência para simplicidade na vida e um sentimento
cada vez mais profundo da igualdade e da fraternidade de todos os seres humanos.
a. Deve-se notar que a luz subjetiva foi bem marcada, embora não fortemente,
neste caso.
b. Que a elevação moral foi um aspecto destacado.
c. A iluminação intelectual parece ter estado presente, embora não tenhamos
prova conclusiva da mesma.
d. O senso de imortalidade foi acentuado.
e. O medo da morte foi perdido.
f. Não somos informados com muitas palavras, mas parece claro que não
poderia haver nenhum senso de pecado no estado mental que acompanhou
e se seguiu à experiência.
g. A mudança foi repentina, instantânea.
h. O caráter anterior da mente da pessoa a identificaria como uma pessoa
provável de ter uma experiência como essa.
i. Ela estava na idade certa - seu trigésimo primeiro ano.
j. Este autor não pode falar de qualquer encanto que se tenha acrescentado
à personalidade da Sra. E., mas parece-lhe que devemos depreender do
que nos foi informado que isso tenha ocorrido por ocasião de sua ilumi­
nação.
k. O fenômeno que nos grandes casos foi chamado de transfiguração esteve
presente em grau moderado neste. Foi notado pelo seu marido e por sua
irmã.
Somente uma coisa resta a dizer. Aquilo que pode ser chamado de
suspensão mental e que parece ser um fato preliminar necessário à iluminação
foi notado e relatado pela Sra. E. Diz ela, “tomei consciência de uma indizível
quietude”, e “simultaneamente” ela foi envolvida na luz subjetiva. Parece
notável que este fato tenha sido percebido por videntes hindus e não é sur­
preendente que tenha sido um tanto mal interpretado por eles. Parece que
eles pensaram que essa suspensão mental era não somente um acompanha­
mento inevitável da iluminação mas uma causa eficaz dela. Por conseguinte
eles lançaram as mais rigorosas regras para induzir o estado mental em
questão, na esperança e expectativa de que, obtido este estado, a iluminação
se seguiria. Assim, temos instruções como estas: “Um devoto deve se dedicar
constantemente à abstração, permanecendo num lugar secreto, sozinho, com
sua mente e seu ego dominados, sem expectativas e sem pertences” [154:68],
E também: “O estado mental em que a mente, dominada pela prática da
abstração, pára de trabalhar” [154:69], Ao que se supunha, este é o estado
mental do qual o Nirvâna deve surgir. É o estado do qual ele se manifesta,
mas não se segue e não parece que o estado de suspensão mental tenha
qualquer relação causal com o estado de iluminação ou Nirvâna.
Este é talvez um ponto tão bom quanto qualquer outro para uma citação
de Gibbon que há de lançar alguma luz na história da opinião sobre o assunto
acima e há também de mostrar como um grande estudioso e grande homem
pode falhar totalmente em entender fetos que, embora trazidos imediatamente
à sua atenção, estão em dissonância com seus preconceitos. A respeito do
Imperador Cantacuzene [93:193], diz Gibbon que ele “defendeu a luz divina
do Monte Tabor, uma memorável questão que leva ao auge as tolices religiosas
dos gregos. Os faquires da índia e os monges da igreja oriental estavam
igualmente persuadidos de que, na total abstração das faculdades da mente e
do corpo, o espírito mais puro pode ascender ao gozo e à visão da Divindade.
A opinião e a prática dos mosteiros de Monte Athos serão melhor represen­
tados nas palavras de um abade que viveu no século onze. “Quando estiveres
sozinho em tua cela”, diz o mestre ascético, “fecha a porta e senta-te num
canto; eleva tua mente acima de todas as coisas vãs e transitórias; recosta tua
barba e teu queixo em teu peito; volta teus olhos e teus pensamentos para o
meio de teu ventre, na região do umbigo, e procura o lugar de teu coração, a
sede da alma. A princípio tudo será escuro e sem conforto, mas se perseverares
dia e noite sentirás uma alegria inefável e tão logo tenha a alma descoberto
o lugar do coração será envolvida numa luz mística e etérea”. Esta luz,
produto de uma fantasia desregrada, criatura de um estômago vazio e de
uma mente vazia, era adorada pelos quietistas como a essência pura e perfeita
do próprio Deus”.
Gibbon relatou corretamente as recomendações dos sábios indianos. A
verdade sobre este assunto parece ser a seguinte: Quando, sem premeditação,
conhecimento ou empenho (como em todos os casos ocidentais até onde o
autor deste livro sabe), a iluminação vem espontaneamente, é precedida (pelo
menos por um instante) daquilo que podemos chamar de suspensão mental.
Tendo esse fato sido notado pelos adeptos orientais, que procuravam reduzir
o Nirvâna a uma arte, supunha-se que, obtida a suspensão mental, a ilumina­
ção se seguiria - que a primeira era na verdade, de algum modo, a causa da
segunda. Agora parece a este autor certo que onde se tenha um indivíduo por
assim dizer à beira do Sentido Cósmico, talvez seja possível induzir isto
seguindo as instruções dadas por exemplo no Bhagavad Gita, quando, nada
sendo feito, a iluminação não sobreviria espontaneamente. Mas o Sentido
Cósmico (embora em qualquer caso mais valioso do que todas as riquezas da
terra), quando auto-induzido, como pelos métodos já referidos, é menos
valioso, provavelmente bem menos valioso - menos potente e menos magistral
- menos criativo - do que nos casos em que ele irrompe (por assim dizer)
por sua própria força - autoliberado - triunfante.
Parece certo que os monges do Monte Athos conheciam realmente o
estado aqui chamado de Consciência Cósmica; caso contrário, como poderiam
ter especificado, como fizeram, a luz subjetiva? De onde teriam derivado o
conhecimento dessa consciência e da “alegria inefável” que a acompanha?
Com referência à adoração do Sentido Cósmico como Deus, talvez ele o
seja.
O CASO DE A. J. S.
Nasci em 24 de janeiro de 1871, num vilarejo do interior, a sétima numa família
de nove filhos. Eu era a mais jovem de seis meninas. Meu pai, minha mãe e todos os
filhos éramos muito musicais -a s meninas tinham excelente voz. Quando eu tinha
três ou quatro anos de idade, fui levada para vários lugares para cantar e nessa idade
eu podia cantar uma canção inteira se alguém a cantasse para mim. Um pouco mais
velha eu fazia de conta que era uma grande cantora e passava horas dedilhando uma
das velhas escrivaninhas de meu pai, em lugar de tocar ao órgão, porque ouviria o
som que fosse produzido neste último, que nem sempre me agradava, ao passo que
da escrivaninha não saía som algum para interferir no que era criado em minha
própria imaginação. Até hoje às vezes me pergunto se não ouvia realmente, vindo da
velha escrivaninha, a música que minha fantasia criava em mim mesma. Sempre fui
muito fraca. Grande parte do tempo eu não me interessava em brincar com outras
crianças, mas gostava mais de escutar essa música espiritual, que me fascinava. Por
fim o sonho foi dissipado pela morte trágica de meu pai e por um acidente que
aconteceu comigo. Ou será, talvez, que eu simplesmente cresci e o abandonei?
A idéia de eu me tomar uma cantora profissional era constantemente mantida
em minha mente pela minha família e pelos meus amigos e eu fui mandada a uma
escola de música em Boston. Parecia que minha voz tinha todas as qualidades supostas,
mas minha constituição fraca e alguns efeitos do referido acidente colocaram-se em
meu caminho; mesmo assim eu não queria desistir.
Casei-me cedo e depois trabalhei em minha música mais arduamente que nunca;
meu marido sentiu que meu coração estava tão ligado ao canto que eu provavelmente
morreria se renunciasse a ele. Mas logo tive um esgotamento total por causa do
excesso de trabalho. Tudo que era possível foi feito por mim, mas sem resultado. Fui
me exaurindo continuamente e sentia dores constantes em conseqüência de uma
queda na infância que lesara minha espinha. Tomei vários remédios para dormir,
mas eles só me trouxeram excitação e delírio. Finalmente fui mandada para um
sanatório, levada para minha cama num quarto escuro, e me recusei a ver qualquer
um de meus amigos. Por algum tempo minha vida não inspirou esperança e eu só
tinha disposição para fazer planos para dar cabo dela quando tivesse oportunidade.
Por fim veio um período em que abandonei toda esperança e achei que não havia
mais nada por que eu vivesse ou que pudesse esperar. Um dia, neste estado, eu
estava deitada tranqüilamente em minha cama quando uma grande calma pareceu
tomar conta de mim; adormeci, mas acordei poucas horas depois, vendo-me então
numa torrente de luz. Fiquei alarmada. Depois me pareceu ouvir as palavras, “# aj,
eítefa tranqüila”, várias vezes. Não posso dizer que era uma voz, mas ouvi as palavras
claramente, distintamente, assim como ouvira a música que saía da velha escrivaninha,
em minha infância. Pus minha cabeça debaixo do travesseiro, para não ouvir aquele
som, mas continuei a ouvi-lo do mesmo jeito. Fiquei deitada naquela posição durante
o que me pareceu um longo tempo, em que pouco a pouco fui ficando novamente no
escuro. Sentei-me na cama. E claro que não compreendi a mim mesma, mas senti
que aquilo significava alguma coisa. Aquela mesma calma me veio várias vezes e
sempre antes da luz.
Depois daquela noite minha recuperação foi firme, sem ajuda de nenhum modo,
de médico ou de remédios. Quando a luz me veio outra vez, algum tempo depois,
perguntei a meu marido se a tinha visto e ele disse que não. Não tenho tentado
cultivá-la, visto que não a compreendo. Só sei que, se antes antes eu era um caco,
hoje estou bem e forte física e mentalmente e, se antes gostava da excitação de uma
vida pública, agora gosto da tranqüilidade de uma vida caseira e com uns poucos
amigos.
Com essa calma veio um poder (como eu o chamo) de curar os outros. Com um
toque ou em alguns casos fixando o olhar, posso muitas vezes induzir sono. Em
outros casos a pessoa pode me dizer: “Por que será que me sinto tão descansado
quando estou perto de você?” Quando amigos me têm pedido para lhes contar minha
experiência, tenho declinado disto com exceção de um ou dois casos. Tudo é tão real
para mim, mas temo que para outros pareça uma tolice; mas um dia estas coisas
serão todas explicadas e espero que logo o sejam.
Na época em que vi a luz pela primeira vez eu tinha vinte e quatro anos. No total
eu a vi três vezes. Agora, quanto às experiências intelectuais e morais que se seguem
imediatamente à luz, é quase impossível descrevê-las, pois as palavras são muito
pobres como meio de expressar quer o sentimento quer a visão que me vieram naquela
ocasião. Creio que o intelecto jamais poderia me dar, com todo o estudo do mundo,
o que me é revelado durante essa experiência e seguindo-se imediatamente à presença
da luz. Para mim, isso transcende a expressão intelectual. Consiste em ver interior­
mente e a palavra harmonia poderia talvez expressar uma parte do que é visto.
A humanidade continua caminhando quase em desespero, esperando um dia
encontrar descanso, paz e plenitude de vida num futuro indefinido, quando na realidade
todas estas coisas e outras mais estão aqui agora, se apenas estendêssem os
(pudéssemos estender?) nossa mão e as pegássemos.
Meu supremo desejo é ajudar a humanidade, mas quando essa luz me veio fui
tão tomada do desejo de revelar o que vejo à humanidade que parece como se eu não
estivesse fazendo absolutamente nada.
As experiências mentais que se seguem à luz são sempre essencialmente as
mesmas - isto é, um intenso desejo de revelar o ser humano a si mesmo e de ajudar
aqueles que estão tentando encontrar algo por que valha a pena viver naquilo que
chamam de “esta vida”.
Não creio que me tenha feito inteligível, mas repito que pelo menos neste assunto
as palavras oferecem um meio de expressão muito inadequado.
I
Muitos leitores, antes que tenham alcançado esta página, terão ficado
impressionados com o fato de que o nome de nenhuma mulher tenha sido
incluído na lista dos chamados “grandes casos” e de que os nomes de apenas
três mulheres constem na dos “Casos Menores, Imperfeitos e Duvidosos”.
Além dessas três, o autor conhece uma outra mulher, ainda viva, que sem
dúvida é, se não um grande caso, pelo menos um caso genuíno. Mas ela não
permitiu que o editor usasse sua experiência, mesmo sem declarar o seu
nome, e por isto o caso é com relutância completamente omitido. A única
outra mulher conhecida deste autor, no passado ou no presente, que é ou foi
seguramente ou quase seguramente um caso de Consciência Cósmica é
Madame Guyon, que foi ao que lhe parece um caso genuíno e grande, embora,
infelizmente, a prova em seu caso não seja tão positiva como seria desejável.
II
Jeanne-Marie Bouvières de la Mothe nasceu em 13 de abril de 1648. Foi
uma criança doentia e precoce, com fortes tendências religiosas, grande
determinação de propósito, inclinação para auto-renúncia e paixão por livros
espirituais, especialmente a Bíblia que, quando era uma menina de dez anos,
costumava ler desde a manhã até a noite. Aos dezesseis anos casou com o Sr.
Guyon, que tinha então trinta e oito anos. Com um marido muito mais velho
e severo e uma sogra das mais desagradáveis, sua vida objetiva foi infeliz,
desgraçada mesmo. Para todos os males exteriores ela encontrava consolo
na religião e sua vida era na realidade feliz, exceto quando essa alegria
interior era eclipsada, como acontecia de vez em quando. Finalmente, porém,
em 22 de julho de 1680 (isto é, no verão de seu trigésimo terceiro ano de
vida) veio a libertação final. O autor não sabe de qualquer registro de sua
experiência subjetiva naquele dia, mas parece certo que o restante de sua
vida foi cheio de paz e felicidade, o que é característico da vida daqueles que
entraram em Consciência Cósmica.
Estas poucas palavras, embora não sejam
Ela descreve a si mesma como tendose abstido de qualquer ação e qualquer suficientes para provar alguma coisa, são bem
características. “Nada faço como dever”, diz
escolha originadas em seu ego. Para seu
Whitman. “O que outros fazem por dever eu faço
espanto e sua indizível felicidade, pare­
por impulso natural (devo acaso fazer a ação do
ceu que todo impulso natural desse gêne­
coração como um dever?)” [193:190],
ro não mais existia - que um poder supe­
rior o deslocara e tomara seu lugar. “Eu nem sequer percebia mais [escreve ela em
sua autobiografia] a alma que Ele antes dirigia com Seu cajado, com Seu bordão,
porque agora somente Ele aparecia a mim, tendo minha alma cedido seu lugar a Ele,
assim como uma gotinha de água lançada ao mar recebe as qualidades do mar”. Ela
fala de si mesma como uma pessoa que agora não mais pratica as virtudes como tais
- isto é, não por esforços específicos e compelidos. Seria necessário esforço para não
praticá-las. [180:227]
III
Alguns anos atrás, quando o plano deste livro estava se formando na
mente do autor, era sua intenção incluir vários capítulos que tratassem de
outros desvios do padrão na vida mental do ser humano, mais ou menos
análogos ao que ele chamou de Consciência Cósmica, para o fim especial de
examinar a relação (se existente) entre esses desvios e essa Consciência. Se
tivesse persistido nesse plano ele teria incluído (1) uma revisão do hipnotismo;
(2) os chamados milagres, os poderes físicos supranormais tais como se
distinguem dos poderes mentais supranormais; (3) o chamado espiritismo a noção da comunhão consciente do ser humano com outros espíritos, talvez
superiores, considerados relativamente a essa outra noção da comunhão do
ser humano com um Eu superior dentro de si mesmo e (4) casos em que o ser
humano parece ser o centro e em algum sentido o regente de forças que se
presume existirem completamente fora dele próprio, bem como a relação
destes casos (se existente) com as manifestações psíquicas preter-humanas
das pessoas dotadas do Sentido Cósmico. Faltaram-lhe tempo e provavelmente
capacidade para esse projeto maior, de modo que ele vai apenas fazer alusão
a um caso (pertencente à categoria 4), a fim de indicar o que lhe parece a
forte probabilidade de que todas essas diferentes categorias de casos (sempre
que genuínos, como muitos deles* sem dúvida são), se nem sempre se
justapõem lado com lado, pelo menos se tocam por seus ângulos.
* Aqueles que estejam interessados no assunto fariam bem em consultar o Atlantic
M onthly de agosto de 1868 e ler “A Remarkable Case o f Physical Phenomena”
[“Um Caso Extraordinário de Fenômenos Físicos”]. Mary Carrick, uma jovem serviçal
irlandesa recém-chegada à América, estava trabalhando para uma família numa cidade
de Massachusetts. Durante meses (de tempos a tempos) sinos tocavam, peças de
IV
William Stanton Moses [131:245 et seq.] nasceu em Lincolnshire,
Inglaterra, em 5 de novembro de 1839. Seu pai era diretor de uma escola
primária. Moses foi educado em Oxford, onde se diplomou. Foi ordenado e
pelo resto de sua vida, enquanto a saúde permitiu, foi um pároco ativo e
popular. Nesse período (vale assinalar, mais ou menos na época usual para o
advento da Consciência Cósmica), ao longo de 1872, tiveram início os
fenômenos físicos que o tomam interessante para nós aqui. Eles persistiram
por uns dez anos e depois cessaram devido ao declínio de sua saúde. William
Stanton Moses faleceu em setembro de 1892. Nunca se casou e pouco
freqüentou a sociedade. “Sua aparência pessoal não dava indicação de seu
singular dom. Ele era de estatura média, robusto, com traços um tanto pesados
e cabelo e barba espessos e escuros” [131:250], É preciso que se entenda que
os fatos apresentados neste caso, bem como a fídedignidade das pessoas que
os relataram, inclusive naturalmente o próprio William Stanton Moses, foram
exaustivamente investigados por homens competentes como T.W.H. Myers
e acredita-se firmemente que nenhuma fraude de qualquer espécie tenha
sido tentada ou cogitada.
Seja qual for a explicação que finalmente se dê e aceite para eles, os fatos
tais como estabelecidos hoje vão quase certamente permanecer válidos. Seria
impossível apresentar aqui os dados nos quais assenta o relato. Esses dados
poderão ser encontrados em outra parte por aqueles que desejem examinálos. Tudo o que é necessário aqui e tudo o que pode ser feito é citar por
amostragem bem poucos casos das ocorrências supranormais que, com
extraordinária freqüência e grande variedade, envolveram este homem
durante pelo menos dez anos.
mobília moviam-se de um lado para outro, mesas levitavam, tinas cheias de roupas e
água deslocavam-se de suas bases, sempre na peça da casa onde Mary estava ou na
peça contígua, mas sem serem tocados por Mary nem por qualquer outra pessoa. Os
objetos movidos nunca eram tão grandes e pesados que Mary não tivesse força
suficiente para movê-los da maneira usual. Esses deslocamentos extraordinários não
ocorriam quando Mary estava dormindo. Não era questão de truque. Mary estava
mais angustiada do que qualquer outra pessoa com aquelas ocorrências; além disto,
com freqüência outras pessoas estavam com ela no local e viam cadeiras, pratos,
etc., deslocarem-se sem serem tocados. Parece não haver razão para se associar
‘espíritos” a esses fenômenos. Os movimentos parecem não ter tido qualquer objetivo.
Que havia algo estranho (por outro lado) na própria moça, fica demonstrado pelo
fato de que ela acabou ficando insana e foi mandada para um hospício.
M ovim ento sem contato, dirigido por uma evidente inteligência, percebe-se
nitidamente no seguinte caso: Eu estava visitando um amigo e a conversa caiu nos
fenômenos espíritas. Uma sessão foi proposta e nada ou quase nada aconteceu.
Estávamos totalmente a sós na sala, que era bem iluminada. Afastamo-nos da mesa,
com a intenção de desistir da tentativa. Meu amigo perguntou por que nada ocorrera.
A mesa, sem que a tocássemos, levitou e tocou suavemente minha garganta e meu
peito, três vezes. Eu estava sofrendo de um grave problema nos brônquios e estava
completamente abaixo do normal. Depois disto nenhuma batida e nenhum movimento
puderam ser provocados e nos dispusemos a aceitar como explicação a nossa falta de
sucesso.
Minha primeira experiência pessoal de levitação ocorreu cerca de cinco meses
após meu ingresso no espiritismo. Fenômenos físicos de natureza muito poderosa
foram desenvolvidos com grande rapidez. Éramos novos no assunto e os fenômenos
eram muito interessantes. Depois de muita movimentação de objetos e de levitação
e inclinação da mesa, um pequeno órgão de brinquedo foi flutuado pela sala, fazendo
um barulho muito desarmônico. Era uma diversão favorita do pequeno ente invisível,
tipo duende, que então se manifestava. Um dia (30 de agosto de 1872) esse pequeno
órgão foi violentamente atirado a um canto da sala e senti minha cadeira ser afastada
da mesa e voltada para o canto perto do qual eu estava sentado. Ela foi colocada de
tal maneira que meu rosto ficou desviado do círculo para o ângulo formado pelas
duas paredes. Nesta posição a cadeira foi erguida do piso a uma altura, ao que posso
estimar, de doze a quatorze polegadas. Meus pés tocavam o topo do largo rodapé,
que ficava a umas doze polegadas de altura. A cadeira ficou suspensa por alguns
momentos e depois eu me senti saindo dela e subindo cada vez mais alto, num
movimento muito lento e suave. Não tive nenhuma sensação de desconforto nem
qualquer apreensão. Estava perfeitamente consciente do que estava se passando e
descrevi o processo para os que estavam sentados à mesa. O movimento era bem
contínuo e levou o que pareceu um longo tempo para se completar. Eu estava perto
da parede, tão perto que podia apoiar um lápis firmemente em meu peito e marcar o
ponto à minha frente no papel de parede. Quando essa marca foi depois medida,
verificou-se que estava a bem mais de seis pés do piso e, em função de sua posição,
ficou claro que minha cabeça devia ter estado exatamente no canto da sala, próxima
ao teto. Não creio que eu estivesse de modo algum em transe. Minha mente estava
perfeitamente clara, bem alerta para o que estava sendo feito e plenamente consciente
do curioso fenômeno. Não senti nenhuma pressão em parte alguma do meu corpo;
apenas a sensação de estar num elevador, com os objetos passando por mim para
baixo. Lembro-me de uma ligeira dificuldade para respirar e de uma sensação de
peito cheio, com a impressão de ser mais leve que o ar. Fui abaixado bem suavemente
e colocado na cadeira, que tinha parado em sua posição anterior. As medições e
observações foram feitas imediatamente e as marcas que eu fizera com o lápis foram
anotadas. Foi dito que minha voz naquele momento soara como que do canto da sala,
próximo ao teto.
Este experimento foi repetido com mais ou menos igual sucesso em nove outras
vezes. Em 2 de setembro de 1872, vejo pelas minhas anotações que fui três vezes
erguido para a mesa e duas vezes levitado no canto da sala. O primeiro movimento,
para a mesa, foi bem repentino - numa espécie de solavanco instantâneo. Não tive
consciência de nada até que me vi em cima da mesa - sem que minha cadeira tivesse
sido movida. Isto, em circunstâncias comuns, é o que chamamos de impossível. Eu
estava sentado de tal maneira que não teria estado em meu poder deixar meu lugar à
mesa sem mover minha cadeira. N a segunda tentativa fui colocado de pé sobre a
mesa. Neste caso tive consciência do arrastar de minha cadeira e de ser erguido ao
nível da mesa e depois impelido para a frente de modo a ficar de pé sobre a mesa. Eu
não estava em transe nem consciente de qualquer pressão externa. N o terceiro caso
fui jogado para cima da mesa e daí para um sofá próximo. O movim ento foi
instantâneo, como no primeiro caso registrado; e, embora eu tenha sido atirado a
uma distância considerável e com força considerável, de nenhum modo fui machucado.
Enquanto eu estava deitado no sofá, senti a cadeira em que estivera sentado e que
estava a quatro pés do sofá chegar junto de mim e pressionar minhas costas várias
vezes. Finalmente fui colocado sobre a mesa.
Para um número enorme de fenômenos semelhantes e diferentes que
ocorreram neste caso, ver 131.
V
Como já foi dito, os fatos acima são citados apenas como amostras de
incidentes inusitados, supranormais, que se diz terem ocorrido - que sem
dúvida ocorreram repetidamente, durante dez anos, na experiência deste
homem. Ora, que relação existe (se é que existe) entre este caso e um caso de
Consciência Cósmica?
Vimos que no caso de William Stanton Moses os fenômenos de que
estamos tratando começaram mais ou menos na idade certa - trinta e três
anos - e consta que em pelo menos uma ocasião “a drenagem da força vital
de Moses foi tão grande” que as manifestações tiveram de ser suspensas.
Parece claro em função da maneira natural como isso é declarado que o
“médium” usualmente sentia fadiga ou exaustão proporcional à freqüência e
magnitude das manifestações. Vimos também que qualquer estado doentio
no “médium” interferia analogamente na produção dos fenômenos. Estes
fatos apontam para o próprio “médium” como a fonte da força demonstrada
de tantos modos diferentes.
Se esta inferência é correta, é ao mesmo tempo indubitavelmente verda­
deiro que ele não estava cônscio de que o poder que causava os fenômenos
provinha dele próprio. Nem, raciocinando por analogia, deveríamos esperar
que estivesse, visto que mesmo na Consciência Cósmica - em que todos os
fenômenos são mentais e em que, por conseguinte, deveríamos considerar
que o ator real seria ainda menos suscetível de ser enganado quanto à pessoa
que estivesse agindo - vemos que o indivíduo é assim inconsciente, não
ocasionalmente, mas quase constantemente ou de fato constantemente. Paulo,
Maomé, Yepes, Behmen, Blake, dizem-nos repetidamente que os grandes
pensamentos, as emoções divinas que expressam, não são deles próprios
mas transmitidas de fora deles. O protesto feito por Blake - e repetido uma
centena de vezes - e pela última vez a sua esposa alguns minutos antes de
ele falecer, relativamente às canções que ele cantava deitado e lentamente
morrendo, “Minha querida! elas não são minhas. Não, elas não são minhas”,
foi numa forma ou outra feito por todos eles. Mesmo assim acreditamos hoje
que esse outro Eu que escreveu as Epístolas, ditou o Alcorão, compôs a
Aurora, na realidade não foi outro senão uma parte (a parte mais divina) de
Paulo, Maomé e Behmen, respectivamente. O indivíduo age e não sabe que
é ele quem está agindo - na verdade está certo de que não é ele; repele (como
o faz Maomé) indignadamente a imputação de que os pensamentos, as
palavras, provenham dele e oferece prova de que essa imputação não é nem
pode ser íundada em fato. “E se estais em dúvida quanto ao que revelamos
ao nosso servidor” [Gabriel é quem fala e “nosso servidor”, naturalmente, é
Maomé] “então trazei um capítulo semelhante... mas se não o fizerdes, e
seguramente não o fareis”, etc. [151:13]. Em muitos casos essa negação foi
aceita e o mundo concordou com o anunciante em que, direta ou indireta­
mente, Deus lhe revelara os elevados sentimentos e as sublimes verdades
que haviam passado por seus lábios, de que Deus ou um mensageiro de Deus
vivera nele e falara através dele.
Por que não supormos que tenhamos, implicado na personalidade de
William Stanton Moses, o fato paralelo (uma personalidade paralela dupla
ou múltipla) de que de algum modo, talvez até agora extremamente inconce­
bível para nós bem como para ele próprio (assim como para alguns de seus
contemporâneos e seguidores era inconcebível que Jesus e Maomé, tão-somen­
te como homens, dissessem as palavras e praticassem os atos que deles
procederam), William Stanton Moses tenha desenvolvido ele mesmo a força
e tenha ele mesmo fornecido a inteligência que atuaram nos fenômenos?
Parece corroborar este ponto de vista o fato de que corpos como rochas ou
casas de cem toneladas, que nenhum homem poderia mover, não são de fato
levantadas ou movidas; de que as luzes não são maiores do que poderia ser
suprido pela força que existe no homem comum, supondo-se que essa força
ou algo dela tome a forma de luz; de que a inteligência manifesta, embora
com freqüência considerável e às vezes extraordinária, não está acima das
possibilidades humanas, levando-se em consideração a inteligência que têm
pessoas dotadas de Consciência Cósmica. Pois, se entidades supramortais
estivessem atuando na produção dos chamados fenômenos espíritas, por que
permaneceriam estes tão constantemente no plano (considerando-se somente
as faculdades humanas comuns) ou imediatamente acima do plano dos poderes
humanos? Além disso, vimos no decorrer deste estudo que toda a história do
ser humano, bem como a do mundo orgânico, é simplesmente a história da
evolução de novas faculdades, uma após a outra - qualquer uma das quais
(antes que fosse desenvolvida) teria parecido uma impossibilidade e um
absurdo para qualquer membro da espécie prestes a recebê-la. Por exemplo,
não teremos no espiritismo e na telepatia, com todos os seus quase
infinitamente variados fenômenos, o germe ou os germes de alguma nova
faculdade ou algumas novas faculdades, por enquanto tão pouco
compreendidas quanto era a Consciência Cósmica mil anos atrás e não,
como é às vezes pensado, em qualquer sentido, a ação ou interferência nos
assuntos humanos, quer de espíritos desencarnados, quer de mentes supra-,
infra- ou extra-humanas - sendo essas faculdades não necessariamente
destinadas a se expandirem ao ponto de se tomarem universais (pois, em
evolução, “muitos são chamados mas poucos escolhidos”), mas quase
seguramente, nos tempos modernos e até o presente, expandindo-se e
tomando-se mais comuns?
E, em verdade, não poderá ser que no ser humano autoconsciente tal
como o conhecemos hoje em dia tenhamos o germe psíquico não apenas de
uma espécie superior mas de várias? Assim como na nebulosa de um sistema
solar temos a potencialidade, não apenas de um orbe ou de um tipo de orbe,
mas de um sol, planetas, luas, cometas e muitos corpos menores; assim como
no primeiro ser vivo unicelular tivemos o progenitor não apenas de uma mas
de muitas espécies de descendentes pluricelulares;assim como no alalushomo
tivemos o progenitor não apenas de uma raça mas de muitas raças de homens
autoconscientes diversamente caracterizados - assim pode ser (ou não pode?)
que na raça ou nas raças proeminentes do ser humano autoconsciente de
hoje tenhamos a aptidão, o germe, não apenas de uma raça superior mas de
várias. Como, por exemplo: uma raça cosmicamente consciente; uma outra
raça que possua poderes aparentemente miraculosos de agir sobre o que
chamamos de natureza objetiva; uma outra com poderes clarividentes que
ultrapassem muito os que possuem os melhores espécimes até hoje; uma
outra com prodigiosos poderes de cura, e assim por diante.
Que os chamados poderes milagrosos guardam estreita afinidade com o
que aqui é chamado de Consciência Cósmica, que eles se manifestam
relativamente a esta última, que eles não são mais sobrenaturais do que ela
própria e que esses poderes, em sua natureza, cobrem uma grande escala de
atuação - tudo isso é claramente reconhecido e ensinado pelos homens que,
dentre todos os outros, mais conhecem sobre o assunto. Os dizeres de Gautama
sobre isso podem ser lidos (supra) no capítulo a ele dedicado. Paulo não é
menos explícito mas expõe em termos muito claros que “há diversidade de
dons, mas o Espírito é o mesmo” [20:12:4] - que “a um, pelo Espírito é dada
a palavra da sabedoria; e a outro, pelo mesmo Espírito, a palavra da ciência;
e a outro, pelo mesmo Espírito, a fé; e a outro, pelo mesmo Espírito, os dons
de curar; e a outro a operação de maravilhas; e a outro a profecia; e a outro
o dom de discernir os espíritos; e a outro a variedade de línguas; e a outro a
interpretação das línguas” [20:12:8-10].
VI
Um objetivo principal que o autor deste livro teve em mente foi enfatizar
que já viveram neste mundo certos homens que por conseqüência, não de
um extraordinário desenvolvimento de qualquer uma ou de todas as faculdades
mentais comuns, mas da posse de uma nova faculdade, peculiar a eles próprios
e não existente (ou pelo menos não declarada) nas pessoas comuns, viram,
conheceram e sentiram fatos espirituais e vivenciaram fenômenos psíquicos
que, apesar de serem velados ao mundo em geral, têm no entanto vital
importância para ele; que se um ou dois desses homens são estudados com
exclusão dos demais - como tem sido a prática não somente dos cristãos mas
também dos budistas e dos muçulmanos - o resultado tem de ser inadequado
e insatisfatório em comparação com o estudo de todos eles, porque nenhum
deles pôde dizer muito do que viu, conheceu e sentiu e, lendo-se somente um
ou dois deles, o pouco que eles de fato dizem - justamente por seu caráter
incompleto, fragmentário - com certeza vai ser mal interpretado; ao passo
que se todos eles são lidos e comparados, o testemunho de cada qual esclarece,
suplementa e reforça o de todos os demais; que é da maior importância como tem na verdade sido sentido - que esses homens sejam estudados e
assimilados tão profundamente quanto possível, por todo aquele que aspire
à vida espiritual superior, porque o contato da mente do estudante com a
desses homens tem o efeito de produzir na primeira toda a expansão espiritual,
todo o crescimento espiritual de que ela é capaz por sua constituição congênita.
Com a ajuda desses homens, mesmo a própria Consciência Cósmica pode
muitas vezes ser conseguida, ao passo que sem eles ela certamente não
ocorreria; como disse um deles: “Eu outorgo a qualquer homem ou mulher o
acesso a todas as dádivas do universo” [193:216], Ou como diz um outro
grande homem que, embora se acredite que não esteja incluído na categoria
de homens de que se trata aqui, tinha pelo menos a sinceridade deles, se não
sua visão e sua alegria: “Pelo menos é com heróis e homens inspirados por
Deus que eu de minha parte prefiro de longe conversar, em qualquer que
seja o dialeto que falem! Grandiosas, sempre frutíferas, proveitosas como
exortação, como encorajamento, para intrépidos propósitos e obras, são as
palavras daqueles que em seu tempo foram HOMENS” [64:75],
E não somente é melhor estudar vários desses homens do que apenas um
ou dois mas, se o estudante, por idiossincrasia ou qualquer outra causa,
restringisse sua atenção a um ou dois deles, seria imensamente importante
que tivesse oportunidade de escolher o mestre a quem seguir, visto que um
homem nascido na Europa ou na América pode ser mais seguramente
influenciado para o bem pelos Upanishads e os Suttas do que (por exemplo)
pelo Novo Testamento. Isto foi verdadeiro, pelo menos, nos casos de
Schopenhauer e Thoreau. Quanto ao primeiro, diz-se que: “Num canto de
seu quarto havia uma estatueta dourada do Buda e, numa mesa próxima, a
tradução dos Upanishads para o latim, de Duperron, intitulada Oupnekhat,
que servia como livro de oração, do qual Schopenhauer lia suas devoções”
[87:456], A respeito de Oupnekhat, disse Schopenhauer: “Foi meu consolo
na vida e será o consolo de minha morte” [147:61], E assim como há muitos
homens no Ocidente que são, ou seriam se as lessem, mais beneficiados
pelas escrituras budistas e muçulmanas do que o são pelas escrituras judaicas
ou cristãs, sem dúvida há milhares de homens no Sul da Ásia que, tendo
nascido budistas, bramânes ou muçulmanos, seriam, por alguma peculiaridade
de constituição mental, mais pronta e profundamente tocados pelos
evangelhos e pelas epístolas de Paulo, ou por Leaves o f Grass, do que pelos
Vedas ou por quaisquer dos livros que devem sua inspiração aos ensinamentos
de Gautama ou de Maomé.
VII
Se há um intervalo tão vasto entre o homem dotado de Consciência
Cósmica e o homem apenas autoconsciente, como é que o primeiro não se
destaca perante o mundo como pertencente a uma classe à parte do segundo?
Como é que existem centenas de pintores e poetas que na avaliação de quase
todo o mundo superam William Blake, se este era dotado de Consciência
Cósmica e aqueles não? Como é que homens situados nos mais altos picos
da fama - Aristóteles, Platão, Newton, Cesar - tinham apenas autocons­
ciência, ao passo que Juan Yepes, Las Casas, Edward Carpenter e outros,
que são tidos como dotados daquela faculdade suprema e perfeita, não são
geralmente vistos como homens que foram muito extraordinários?
A resposta parece ser: Em primeiro lugar, o dom literário (ou de qualquer
tipo de expressão) não está necessariamente desenvolvido em alto grau na
mente cosmicamente consciente, mas é uma faculdade à parte. Balzac
trabalhou exaustivamente para adquirir um estilo adequado e Whitman viveu
e morreu intensamente cônscio de seus defeitos de expressão. Além disto: o
homem autoconsciente médio pode apreciar as faculdades da mente
autoconsciente, mesmo quando inusitadamente desenvolvidas, muito mais
facilmente, muito mais seguramente, do que pode apreciar as faculdades da
mente cosmicamente consciente. A despeito destes fatos óbvios, continua
sendo verdadeiro que o homem autoconsciente, mesmo em sua cegueira,
colocou as mais altas coroas na cabeça dos homens que tiveram a divina
faculdade da Consciência Cósmica - Gautama, Jesus, Maomé, Dante,
“Shakespeare”.
O intelecto desses homens cosmicamente conscientes tem com freqüência,
se não sempre, um alcance e uma sagacidade - demonstrados principalmente
em Dante e “Shakespeare” - que os colocam claramente acima quase de
qualquer pessoa meramente autoconsciente. É também claro que suas
qualidades puramente morais - demonstradas especialmente em Gautama,
Jesus e Whitman - situam-nos numa categoria à parte de seus semelhantes
autoconscientes, mas isto absolutamente não é toda a história. O ponto central,
o cerne da questão, consiste no fato de que eles têm qualidades para as quais
não temos no presente nomes ou conceitos. Jesus aludiu a uma delas quando
disse: “Mas aquele que beber da água que eu lhe der nunca terá sede, porque
a água que eu lhe der se fará nele uma fonte de água que jorrará para a vida
eterna” [17:4:14], E Whitman aponta na mesma direção quando declara que
seu livro não está ligado aos outros nem é sentido pelo intelecto, “mas tem a
ver com incontáveis latências” [193:17] no autor e no leitor, como também
quando ele afirma que não faz palestras nem caridade - isto é, não faz doações
intelectuais nem morais - mas, quando doa, é a si mesmo que doa [193:66],
A mente autoconsciente comum não pode apreender claramente a faculdade
aludida nestas palavras e, por conseguinte, não lhe pode dar um nome. Talvez
o melhor que possa ser feito seja considerá-la análoga a um influxo de
vitalidade introduzido na humanidade através de certos homens, permeando
e vivificando a cada um e todos os que permitem que esse influxo os penetre.
Para a maioria, a qualidade em questão parecerá indefinida e fugidia ao
mais alto grau. Na verdade, trata-se da mais importante e mais sólida entidade
que existe hoje em dia no mundo.
VIII
Que é que determina que certo ser humano vai entrar em Consciência
Cósmica (pois este livro é fisiológico assim como psicológico e sua psicologia
deve corresponder a fatos fisiológicos)? Em outras palavras: Quais são os
fatores que entram na iluminação e finalmente a decidem?
a. O primeiro parece ser plena maturidade, idade entre trinta e quarenta
anos, segundo o homem é dotado de nascença de maior ou menor longe­
vidade - isto é, conforme o número de anos de que ele precisa para alcançar
a plena maturidade - uma idade média, digamos, de trinta e cinco anos.
Este fator poderia ter sido pressuposto a priori, pois, se a humanidade
está crescendo para a Consciência Cósmica, os indivíduos que alcançarem
a mais alta linha divisória de evolução mental no plano imediatamente
inferior (no plano da autoconsciência) deverão ser aqueles que entrarão
primeiro naquela consciência e os primeiríssimos indivíduos que nela
entrem terão de fazê-lo quando estiverem no auge da eficiência espiritual.
b. A educação (assim chamada) parece não ter nada a ver com isso. Alguns
dos casos mais importantes (Jesus, Maomé, Yepes, Behmen e Whitman)
eram, do ponto de vista de escolaridade, ignorantes - alguns deles totalmen­
te, outros quase totalmente. Por outro lado, a formação acadêmica não
parece ter necessariamente qualquer influência prejudicial, visto que alguns
casos (como Dante, Bacon e Carpenter) foram estudantes laureados em
bons colégios. Mas se “educação”, no sentido comum do termo, pouco
tem a ver com esta questão, há um outro sentido em que ela tem muito a
ver com ela. Uma alta autoridade nos diz, por exemplo, que aqueles que
almejam a companhia do Sentido Cósmico “precisam do melhor sangue,
vigor mental, estoicidade”; que “ninguém pode enfrentar a prova até que
traga coragem e saúde”; que “só se podem apresentar aqueles que o façam
com corpo dócil e firme”; que “nenhuma pessoa enferma, nenhum bebedor
de rum ou portador de doença venérea, tem permissão de entrar” [193:125].
c. É provavelmente imperativo que o indivíduo tenha tido uma grande mãe
- uma mulher forte, vigorosa, espiritual, de boa compleição, de superior
capacidade mental e especialmente moral. Infelizmente, pouco ou nada
sabemos das mães da maioria de nossos casos de Consciência Cósmica.
Todavia, a mãe de Bacon e certamente a de Whitman, eram mulheres
excepcionais. Provavelmente, podemos seguramente acreditar nas tradi­
ções a este mesmo respeito quanto à mãe de Gautama e à de Jesus.
d. É com grande probabilidade também necessário que o pai seja um homem
superior física e espiritualmente, embora certamente não que o seja
intelectualmente.
e. Talvez o ponto mais importante - admitidos um homem e uma mulher,
como pai e mãe, numa boa média ou acima da média - seja que estes
devam ser opostos ou pelo menos diversos em temperamento (o segredo
do sucesso ou do fracasso em todos os casamentos talvez esteja no
cumprimento ou na violação desta lei não escrita). Que, se o temperamento
do pai, por exemplo, for colérico-melancólico, o da mãe seja sanguíneofleumático, e assim por diante.
f. Vem então a final e suprema necessidade fisiológica, qual seja a de que a
união do pai e da mãe dos quais deva proceder o homem cosmicamente
consciente ocorra em perfeitas condições, de modo que cada qual esteja
plenamente representado no descendente - cada qual mesclado ao outro resultando disso um homem perfeito, com as qualidades e o temperamento
tanto do pai quanto da mãe [103:65], Talvez não seja imperativo que um
homem tenha todos os quatro temperamentos como condição de
iluminação, mas é provável que todos os grandes casos tenham tido os
quatro ou pelo menos três.
g. Admitidas a constituição mental e física certa e a plena maturidade, o
pré-requisito seguinte para a iluminação é a época do ano. Do total de
quarenta e três casos apresentados neste livro, em todos menos três dentre
aqueles cuja época é conhecida, ou seja, em dezessete casos, a iluminação
ocorreu nos primeiros sete meses do ano. A explicação do fato de que a
iluminação ocorre geralmente na primavera ou no começo do verão é sem
dúvida a mesma da idade em que ela acontece - a plena maturidade. Assim
como no presente os membros mais adiantados da espécie não podem
alcançar a condição favorável - o status - a partir da qual a Consciência
Cósmica pode ser alcançada antes da plena ou quase plena maturidade,
assim também a vantagem adicional da época do ano de mais plena vita­
lidade é um fator de grande importância. A estação do Sol ascendente, de
temperatura em ascensão, de fluido vital em elevação e de brotos a irromper,
do acasalamento de pássaros, na qual o coração de toda a natureza, inclu­
sive o coração humano, está em maré alta, é a estação em que poderíamos
esperar (se é que poderíamos), em que vemos o florescer desse divino
evento - um evento supremo na vida do indivíduo e que há de ser supremo
na vida da espécie.
h. Por último, o homem qualificado por hereditariedade, crescimento pessoal
e tudo o mais para receber o elevado dom em questão, tem de se colocar
(talvez não intencional ou conscientemente) na correta atitude mental.
Qual é essa atitude, já foi indicado muitas vezes, direta e indiretamente,
mas pode ser mais uma vez indicado nas palavras de um escritor sem
dúvida inspirado. (É a Divindade ou o Sentido Cósmico quem fala)
[154:129]: “Mais uma vez escutai minhas excelentes palavras - as mais
misteriosas de todas. Amo-vos profundamente; portanto, direi o que é
para o vosso bem. Em mim colocai vossa mente, devotai-vos a mim, reve­
renciai a mim. Em verdade vos declaro que sois caro a mim. Abandonando
tudo o mais, vinde a mim como vosso único refugio. Eu vos libertarei de
todo pecado, de toda dúvida” .
IX
Se este livro não corresse o risco de se tomar excessivamente volumoso,
uma seção ou um capítulo relativamente extenso poderia muito apropriada­
mente ser dedicado aos vários meios artificiais adotados (especialmente na
índia) para induzir a faculdade ou condição nele abordada. Alguns deles
foram mencionados e aqueles que tenham curiosidade a este respeito podem
consultar especialmente 56 e 154. Não parece, ao que sabe este autor, que
qualquer grande obra tenha sido realizada por pessoas em quem a faculdade
tenha sido artificialmente provocada, embora a vida dessas pessoas sem dúvida
tenha se tomado imensamente feliz e melhor. O objetivo deste parágrafo,
porém, é fazer uma breve referência a uma condição mental ocasionalmente
induzida por anestésicos, que está sem dúvida intimamente ligada à faculdade
em questão. Assim como a ingestão de álcool induz uma espécie de alegria
artificial, bastarda, assim também a inalação de éter e clorofórmio induz (às
vezes) uma espécie de consciência cósmica artificial, bastarda. Os casos breves
seguintes deixarão isto claro [121: 586], Diz o Dr. George Wyld (ao inalar
clorofórmio): “De repente tive a impressão extraordinária de que meu ser
espiritual estava visivelmente fora do meu corpo, olhando esse corpo abando­
nado na cama. Pouco tempo depois visitei três anestesistas profissionais e
lhes perguntei se algum de seus pacientes já tinha tido sensações como a que
eu tivera. Um deles disse: “Ouvi várias vezes pacientes expressarem idéias
semelhantes”. Um outro disse: “Eu mesmo tive em três ocasiões, sob efeito
de clorofórmio, exatamente sensações semelhantes”. E o terceiro disse: “Meus
pacientes disseram várias vezes que não sentiram dor mas que se sentiram
como se vissem com seu olho interno tudo o que eu estava fazendo durante a
operação”. Falaram-me de um paciente que disse após a anestesia: “Pensei
que tinha chegado ao fundo dos segredos da natureza”. E um dentista me
disse que muitos de seus pacientes haviam tido sensações semelhantes às
que eu descrevera.
O falecido John Addington Symonds assim descreveu suas sensações
(sob efeito de clorofórmio): “A princípio pareceu que eu estava num estado
de extremo vazio mental; depois vieram lampejos de intensa luz, alternando
com vacuidade mental e com uma visão aguda do que estava se passando no
quarto ao meu redor, sem nenhuma sensação ao tato. Pensei que estivesse
prestes a morrer, quando subitamente minha alma tomou consciência de
Deus, que estava evidentemente tratando de mim, por assim dizer manipu­
lando-me numa intensa realidade pessoal e presente. Eu O senti fluindo em
mim como luz e O ouvi dizendo em nenhuma língua mas assim como mãos
se tocam e comunicam sensações: “Eu te conduzi; Eu te guiei; nunca mais
pecarás nem chorarás nem lamentarás desvairadamente; pois agora Me
viste”. Toda a minha consciência pareceu ser levada a um ponto de absoluta
convicção, a independência de minha mente em relação a meu corpo ficou
provada pelos fenômenos dessa aguda sensibilidade a fatos espirituais, dessa
extrema insensibilidade dos sentidos. Vida e morte pareceram meros
nomes”... Symonds acrescenta: "Nãoposso descrever o êxtase que senti” e,
referindo-se à sua experiência e à evidência psicológica da mesma, diz: “Se
isto tivesse acontecido a um homem numa idade não crítica, não teria levado
à sua alma uma convicção como a de Saulo de Tarso”?
É curioso que Symonds, que parece ter realmente passado por uma espécie
de verdadeira Consciência Cósmica naquele momento, tenha instintivamente
escolhido um caso genuíno a que comparar seu próprio estado mental
temporário.
Consideradas todas as condições e admitido o fato da Consciência
Cósmica, qual é seu lugar como entidade psíquica? E de onde ela provém? A
chave para as respostas (assim pensa o autor) pode ser encontrada nos
capítulos 3 e 4 de 134. Ali é competentemente mostrado como a consciência
simples - sendo as circunstâncias favoráveis - passa por um lento crescimento
para a mente autoconsciente. Por experiência, por hereditariedade, por
acumulação e por um processo de construção psíquica, perceptos são
coletados, armazenados, e deles são construídos receptos. Depois, perceptos
e receptos são usados, como pedras e argamassa numa parede, e deles são
afinal formados conceptos. E, quando é dado o último toque, o edifício
completo de repente se apresenta à vista como uma nova entidade e assim o
homem autoconsciente apareceu na Terra. Assim (parece) conceptos,
emoções, percepções sensoriais, todos os elementos espirituais do ser humano
pensante, capaz de sentir e de conhecer, são individual e coletivamente
erigidos até que paredes, contrafortes, cumeeiras e torres de uma consciência
ainda mais alta são terminados. Vem o acabamento, é dado o sinal, o andaime
cai e a nova estrutura é instantaneamente revelada.
X
A explicação do que pode ser chamado de o mistério da religião, tal
como existe hoje em dia entre nós, pode ser formulado simplesmente como
segue. Até o presente, todos os homens, com exceção no máximo de algumas
centenas, têm vivido no mundo da autoconsciência, sem poder para deixálo. Os grandes videntes, reveladores, instrutores religiosos também têm vivido
nesse mundo, mas ao mesmo tempo num outro - no mundo da Consciência
Cósmica - sendo este último de longe o maior, o mais importante e o mais
interessante. O fato de qualquer um destes mundos ter ou não existência
objetiva é uma questão sem importância. Eles são igualmente reais e
significativos para nós em ambas as hipóteses. Os homens que viveram no
mundo cosmicamente consciente, isto é, no mundo que o Sentido Cósmico
toma visível, assim como o sentido da visão toma visíveis as florestas e o
céu, desejaram, para consolo e para o bem de seus semelhantes, contar à
humanidade em geral o que viram naquele mundo; mas como foram forçados
(por falta de melhor) a usar a linguagem da autoconsciência, seus relatos
foram extremamente incompletos e as palavras e frases usadas foram tão
inadequadas que no mais alto grau têm sido desorientadoras. Não somente
isto, mas, supondo-se uma descrição clara (uma impossibilidade), transcende­
ria o poder da mente autoconsciente conceber o mundo cosmicamente
consciente. Assim sendo, as descrições feitas por esses viajantes espirituais
têm sido não apenas incompreendidas mas mal interpretadas, numa infinita
variedade de sentidos, de modo que os relatos essencialmente semelhantes
feitos por exemplo por Paulo, Maomé, Dante, Jesus, Gautama, Whitman e
outros, têm sido encarados como uma variedade de relatos, não da mesma
coisa mas de coisas diferentes. E todos esses relatos exceto um, aquele sob
cuja influência nasce o ouvinte, têm sido vistos como baseados tão-somente
na imaginação dos relatores. Um estudo crítico de todos esses relatos diversos
(aparentemente) há de mostrar que eles são tentativas mais ou menos mal
sucedidas de descrever a mesma coisa; mas, dado que não estava no poder
do relator original, do vidente, fornecer algo como um relato completo e
claro do que vira, em grande parte devido à inadequação da linguagem própria
da mente autoconsciente; dado também que seus divulgadores (como nos
casos de Jesus e Gautama, que não escreveram), tendo somente
autoconsciência, anuviaram ainda mais o quadro; dado que tradutores,
contando somente com a autoconsciência e compreendendo muito
imperfeitamente o que o mestre desejara transmitir, distorceram ainda mais
os registros; por todos estes motivos o importante fato da unidade dos
ensinamentos desses homens tem generalizadamente passado despercebido;
daí a confusão e o suposto mistério; sem dúvida um equívoco inevitável nas
circunstâncias, mas que um dia , com certeza, há de ser esclarecido.
Muitas outras pessoas além deste autor já notaram a unidade essencial
dos ensinamentos em questão, aparentemente diversos - como, por exemplo,
Hartmann [100: 6], que nos diz: “Comparei minuciosamente as doutrinas
de Behmen com as dos sábios orientais, tais como estas estão formuladas em
Doutrina Secreta e na literatura religiosa do Oriente, e constatei a mais notável
harmonia entre elas em seu significado esotérico; de fato, a religião de Buda,
Krishna e do Cristo me parece uma só e idêntica”. Não significa nada que os
exemplos de instrutores que Hartmann escolheu tenham sido todos casos de
Consciência Cósmica, posto que, naturalmente, ele nada sabia desta como
um estado mental específico.
XI
Uma última palavra para concluir. Desde que este livro começou a ser
concebido alguns anos atrás, o autor procurou diligentemente casos de
Consciência Cósmica e toda a sua lista, até aqui, inclusive alguns casos
imperfeitos e duvidosos, totaliza perto de cinqüenta. Alguns são casos
contemporâneos, menores, como os que podem ter ocorrido em número
considerável em qualquer dos últimos séculos e dos quais não restaram
registros. Não obstante o autor encontrou, como foi dito mais de uma vez,
treze casos, todos tão grandiosos que quase inevitavelmente têm de sobreviver.
Como já foi mostrado, cinco desses homens viveram durante os dezoito séculos
que se passaram entre o nascimento de Gautama e o de Dante e, os oito
restantes, nos seiscentos anos entre o nascimento de Dante e o presente. Isto
significaria que os casos de Consciência Cósmica são quase cinco vezes mais
freqüentes agora do que eram, digamos, mil anos atrás. Naturalmente, não
se pretende que estejam se tornando mais freqüentes exatamente nesta
proporção. Nos últimos dois mil e quinhentos anos deve ter ocorrido um
grande número de casos cuja memória tenha sido completamente perdida.
Ninguém poderia dizer positivamente quantos viveram numa dada época.
Mas parece razoavelmente certo que esses homens são mais numerosos no
mundo moderno do que foram no antigo e este fato, considerado relativamente
à teoria geral da evolução psíquica, cabalmente tratada nas páginas
precedentes, é uma forte confirmação da conclusão de que, assim como há
muito tempo a autoconsciência surgiu nos melhores espécimes de nossa raça
ancestral nos primórdios da vida e gradualmente foi se tomando universal e
aparecendo no indivíduo numa idade cada vez mais anterior, até que, como
vemos agora, tomou-se quase universal e aparece em média mais ou menos
aos três anos, assim a Consciência Cósmica há de se tomar cada vez mais
universal e aparecer mais cedo na vida individual, até que a espécie humana
em geral possua esta faculdade. A mesma espécie e não a mesma; pois a
espécie dotada de Consciência Cósmica não será a que existe hoje, assim
como a espécie atual de seres humanos não é a mesma que existia antes da
evolução da autoconsciência. A simples verdade é que têm vivido na Terra,
“aparecendo a intervalos” por milhares de anos entre os homens comuns, os
primeiros exemplos de uma outra espécie; caminhando na Terra e respirando
o mesmo ar que nós, mas ao mesmo tempo vivendo num outro mundo e
respirando um outro ar de que pouco ou nada sabemos mas que é de qualquer
maneira nossa vida espiritual, assim como sua ausência seria nossa morte.
Esta nova espécie está efetivamente nascendo de nós e, no futuro próximo,
há de ocupar e dominar a Terra.
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CONSCIÊNCIA CÓSMICA
Richard Maurice Bucke, M.D.
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instante pensou em fogo I. - .
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BIBLIOTECA DA ORDEM ROS ACRUZ, AMO R (
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