Revista Aprender nº 13 - O Direito de Aprender
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Revista Aprender nº 13 - O Direito de Aprender
REPORTAGEM GRUNDTVIG A OPORTUNIDADE EUROPEIA NA EDUCAÇÃO DE ADULTOS REPORTAGEM ENTREVISTA PRESERVAR AS TRADIÇÕES DA PROFISSÃO E DA TERRA O PROCESSO DO RECONHECIMENTO DE COMPETÊNCIAS MINEIROS DE ALJUSTREL ANA LUÍSA O. PIRES Aprender Nº13 | DEZEMBRO 2010 | trimestral a 4,00 (IVA incluído) ao longo da vida Viajar é Aprender I S S N 16 4 5 - 9 7 8 4 ÍNDICE EDITORIAL PARA TRABALHO DECENTE, APRENDIZAGEM DECENTE Reportagem Grundtvig: A oportunidade europeia na educação de adultos 1 Entrevista Ana Luísa Oliveira Pires O conceito de competência ainda hoje se encontra em construção 6 Dossier Quando se viaja... Aprende-se 14 REPORTAGEM De volta ao passado no exploratório de Coimbra 16 DEBATE Turismo Cultural 20 ARTIGO Turismo ético e solidário 30 REPORTAGEM O lobo bom 32 RECURSOS A propósito de viagens Artigos Educação-Formação de Adultos: Caminhos passados e horizontes possíveis As Universidades populares em Portugal Educação de Adultos na Escócia: passado e presente Reportagem “Vê lá, companheiro, Vê lá como venho eu” Livros Net Notícias 36 40 46 51 54 62 63 63 O Conselho Internacional de Educação de Adultos (ICAE, na sigla em inglês) prepara a sua Assembleia Mundial, que decorrerá na Suécia em meados de Julho de 2011, sob o título “Um mundo em que vale a pena viver: a aprendizagem e educação de adultos como chave para a transformação”. Adoptando já a terminologia consagrada na CONFINTEA VI – aprendizagem e educação ao longo da vida –, não vá a primeira acabar desarticulada da segunda, o ICAE, através do seu Presidente Paul Bélanger, propôs recentemente para discussão um documento preparatório intitulado “Nenhum direito ao trabalho decente sem o direito de aprender”. O racional é claro: trabalho decente, não apenas para a adaptação ao mundo, mas também para a inscrição nele e para a sua transformação, exige o direito à aprendizagem e à educação ao longo da vida. Propus, neste quadro, que se fosse ainda mais claro na relação entre “trabalho com significado”, “trabalho decente”, e direito à aprendizagem e educação com significado, decentes. Com efeito, a tónica demasiado restrita na aprendizagem para o trabalho esquece, por vezes, que nem todas as formas de aprendizagem e educação de adultos podem ser consideradas decentes e justas, de qualidade social para todos, baseadas em princípios resultantes da discussão e deliberação democrática. Uma aprendizagem decente exige não apenas o direito a aprender, mas também o direito a participar no processo de construção das formas de organização, dos conteúdos, das metodologias, da avaliação, etc. E exige que não se esqueça o fim último da aprendizagem e educação: trazer mais pessoas para o processo de participação activa na construção do mundo social. Isso só é possível através da constituição dos seres humanos como cidadãos activos, não como seres passivos ou apenas consumidores, simples objectos de assistência social ou definidos como “grupos-alvo”. A aprendizagem e educação de adultos decente podem ser assumidas como um novo paradigma de preparação de nós próprios, com os outros, durante toda a vida, para a liberdade e o aperfeiçoamento pessoal e social, para a solidariedade e a autonomia, para a criatividade e a transformação, para a justiça e a emancipação, para a participação política e a cidadania activa. É aprendizagem e educação para a inscrição, contra a subordinação e a alienação, para a mobilização a favor do trabalho decente e com significado, para um ambiente decente, para uma vida decente. Não é, por todas as razões, um simples instrumento de ajustamento ao mundo que está sendo, como se os nossos problemas pudessem ser resolvidos pela adaptação funcional dos indivíduos aos imperativos da economia e do trabalho, sem minimamente procurarem intervir na mudança das condições estruturais da nossa existência colectiva. A aprendizagem e educação de adultos decentes, para além das qualificações e habilidades economicamente valorizáveis, comportam a esperança, sem esperas desmobilizadoras, num mundo e num trabalho mais decentes e mais justos. Estes são, também, os meus votos para 2011, saudando vivamente o regresso de Alberto Melo à direcção desta Revista, a partir do próximo número, lugar em que sabemos bem como é insuperável. Licínio C. Lima ficha técnica Editor: Associação “O Direito de Aprender” | Director: Licínio Lima | Director Adjunto: Rui Seguro |Coordenador editorial: Luis Leiria Redacção: Ana Silveira, António Simões do Paço, Carlos Morais, Cristina Portella e Daniela Silveira Fotografia: Miguel Baltazar e Paulo Figueiredo | Ilustrações: Luis Miguel Castro | Colaboraram neste número: Alberto Melo, Ian Martin, Irene Santos, Jim Crowther e Madalena Santos. Redacção: Rua do Chão da Feira, Nº11 - 2ºDto. 1100-143 Lisboa | Edição gráfica: Atelier Gráficos à Lapa Impressão: Gráfica Manuel Barbosa & Filhos, Lda. APRENDER ao Longo da Vida publicação trimestral da Associação”O Direito de APRENDER” Apartado 30005, 1350-999 Lisboa · Telefone: 969 593 912 www.direitodeaprender.com.pt e-mail: [email protected] N.º reg. título: 124340 | NIF: 506687449 | ISSN 1645-9784 | Dep. Legal 211075/04 | Tiragem: 5000 exemplares As opiniões expressas nos textos assinados são da exclusiva responsabilidade dos autores. A reprodução parcial ou total, carece de autorização prévia. REPORTAGEM A Intercultura-AFS foi uma das cinco instituições de outros tantos países que, integrada no programa Grundtvig, participou no projecto IVALIP – “Integration, Volunteerism and Adult Learning through an Intercultural Pathway”, que procurou facilitar o desenvolvimento de competências interculturais no voluntariado como meio de lidar com a diversidade e a exclusão. GRUNDTVIG: A OPORTUNIDADE EUROPEIA NA EDUCAÇÃO DE ADULTOS Texto Carlos Morais # Fotografias Paulo Figueiredo AO LONGO DA VIDA 1 REPORTAGEM O Programa Grundtvig, dirigido à Educação de Adultos, é um dos quatro subprogramas do Programa Aprendizagem ao Longo da Vida e tem como principal objectivo contribuir para o desenvolvimento da União Europeia enquanto sociedade baseada no conhecimento. O Programa Grundtvig teve início em 2001 (ver caixas). Deve o seu nome ao humanista dinamarquês e dirige-se às necessidades de aprendizagem em todas as formas de educação contínua não profissional para adultos, formal ou informal – assim como às organizações que promovem essa educação e seus respectivos actores (professores, formadores e outros intervenientes), numa perspectiva de reforço da qualidade e da dimensão europeia da educação de adultos. Pedro Carmona 2 APRENDER Iniciativa e coordenação A Intercultura-AFS Portugal (http:// www.intercultura-afs.pt) é uma associação de juventude e voluntariado que está em Portugal desde 1956. Tem como principal objectivo promover o intercâmbio de jovens entre diversos países. O estudante, para além de frequentar uma escola, é integrado como membro de uma família. Este movimento internacional teve origem na AFS (American Field Service) que, nas duas guerras mundiais do século XX, criou um serviço de ambulâncias para transportar feridos. No final da Segunda Guerra, passou a promover intercâmbios interculturais e educacionais. Estes intercâmbios possibilitam a imersão do indivíduo numa cultura de acolhimento, permitindo um maior entendimento e aceitação da diferença, “porque ao mudarmos de cultura, mu- damos o filtro dos óculos e apercebemonos que a nossa forma de ver as coisas não é única”. Grande parte das acções da Intercultura-AFS são desenvolvidas por pessoas em regime de voluntariado, e passam por promover a organização junto da comunidade local, entrevistar e orientar os participantes nos intercâmbios. Para que esse trabalho seja desenvolvido da forma mais eficaz possível, a Intercultura-AFS providencia regularmente aos seus voluntários acções de formação. Por isso decidiu participar num Seminário de Contacto (afecto ao programa Grundtvig) realizado em França, em Setembro de 2007. Estes seminários são espaços de encontro entre diversas instituições ou entidades de diferentes países que servem para lançar os futuros projectos na área do seminário e definir os respectivos agrupamentos de instituições que vão executá-los. Neste seminário, a Intercultura-AFS sabia que teria de respeitar os dois requisitos obrigatórios para constituir uma parceria de aprendizagem, um mínimo de três instituições originárias de três países diferentes e dois anos de duração de projecto. A estas regras básicas teria de ser somada uma partilha de metodologias e objectivos, de forma a permitir um intercâmbio de boas práticas e de experiências. Deste encontro resultou a constituição de um grupo de trabalho formado por organizações de Portugal, França, Irlanda, Polónia, Eslováquia, Lituânia e Turquia. A formação de formadores em educação não-formal como meio de promoção de uma cidadania intercultural competente constituiu-se, desde logo, como o objecto principal desta parceria. Pedro Carmona, Coordenador de Desenvolvimento Organizacional da Intercultura-AFS Portugal, explica a escolha: “somos uma associação que trabalha ao nível da educação intercultural, utilizando metodologias de educação não-formal. Estas metodologias são mais activas, permitem a participação e a mobilização dos conhecimentos dos participantes, permitem que se parta do conhecimento que já possuem, possibilitando assim o desenvolvimento de outras competências que não só as cognitivas”. Antes do projecto avançar para uma etapa mais sólida, as organizações da França e da Irlanda abandonaram-no. Deste modo, constituíram-se como parceiros efectivos do IVALIP, para além do Intercultura-AFS: Association LIA / Window to the Future (Lituânia) – Associação formada por várias empresas de topo (desde as telecomunicações aos bancos, passando pelas Tecnologias da Informação) que prossegue o desenvolvimento e disseminação da sociedade da informação por todo o território, designadamente na criação de pontos de acesso à Internet nas bibliotecas em zonas mais remotas e rurais Foundation Institute of Transnational Education and Research (Eslováquia) – Fundação ligada a uma universidade que desenvolve a sua acção para a investigação sobre o voluntariado na Europa, nomeadamente através da participação activa em programas europeus de educação e no apoio e organização de seminários e cursos de formação. Giresun Halk Egitimi Merkezi ve Aso Mudurlugu (Turquia) – Escola privada (mas com fundos estatais) de formação de adultos. O papel das mulheres na escola é uma das suas causas. PHO – Polish Humanitarian Organisation (Polónia) – Organização não governamental de utilidade pública, que trabalha em situações de crise. O seu lema é fazer do mundo um lugar melhor através do alívio do sofrimento humano e da promoção dos valores humanitários. Pelo papel central que assumiu logo no início do processo, foi atribuída à Intercultura-AFS de Portugal o papel de coordenação do IVALIP. Exercitar no processo O IVALIP iniciou-se formalmente em Agosto de 2008. A primeira tarefa de cada parceiro consistiu em fazer a pesquisa sobre a sua realidade relativa ao voluntariado e desenvolver, em conjunto, metodologias de aprendizagem que Luísa Loução Grande parte das acções da Intercultura-AFS são desenvolvidas por pessoas em regime de voluntariado, e passam por promover a organização junto da comunidade local, entrevistar e orientar os participantes nos intercâmbios. pudessem preencher as lacunas identificadas. O ponto alto deste primeiro ano de trabalho foi a reunião internacional de estreia da parceria, que decorreu em Lisboa e Leiria em Novembro de 2008. Durante os cinco dias do encontro, os parceiros procuraram conhecer mais sobre a realidade de cada uma das organizações e respectivos países; alinharam estratégias; delinearam a forma final e a calendarização das várias fases do projecto e trabalharam na imagem do projecto. Em Fevereiro, realizou-se novo encontro, desta vez na Polónia. Foram então feitas várias apresentações (como as das metodologias de aprendizagem da Educação para Adultos ao longo da vida e as do ciclo de vida dos voluntários de cada organização participante no projecto), resultado do trabalho já produzido por cada uma das cinco organizações. Em Maio, foi a Lituânia a receber uma cimeira do IVALIP, desta vez com uma participação numérica de cada delegação mais expressiva do que as das reuniões anteriores (21 elementos), de modo a promover um seminário destinado aos formadores de voluntários em educação de adultos não-formal. Os trabalhos desenvolvidos em Vilnius tiveram grande importância no concretizar do principal objectivo do segundo ano do projecto, produção dos conteúdos para um curso de formação de formadores em educação não-formal, a ser usado como uma abordagem pedagógica alternativa, de modo a promover não apenas a integração social, como o aperfeiçoamento de uma cidadania intercultural competente. A Eslováquia foi, sete meses depois, o palco da quarta reunião entre os parceiros. Já com o final do projecto no horizonte, a ordem de trabalhos esteve centrada na apresentação e discussão dos esboços dos produtos finais, como o website e jogo virtual. Para a Turquia, em Maio de 2010, fi- AO LONGO DA VIDA 3 REPORTAGEM O PROGRAMA GRUNDTVIG EM NÚMEROS Nos últimos 10 anos, o Programa Grundtvig ajudou os adultos europeus a elevar o nível de competências e empregabilidade, dando apoio financeiro a cursos de formação e à mobilidade das aprendizagens. Durante este período, o Programa investiu 370 milhões de euros no sector da educação de adultos, concedendo 17000 subvenções a organizações que envolveram cerca de meio milhão de participantes. Desde 2000 foram concedidos quase 14000 subsídios a organizações que integraram mais de 3000 parcerias de aprendizagem. Para muitos, o Grundtvig proporcionou-lhes a primeira experiência de trabalho com entidades afins, de outros pontos da Europa. Nos últimos 10 anos, cerca de 15000 docentes e outros profissionais receberam formação em serviço ou efectuaram uma missão de ensino com o apoio do Grundtvig. Espera-se que este número suba para mais de 20000 no final de 2013. Após o lançamento de novas oportunidades de mobilidade ao abrigo do Programa Grundtvig, em 2009, cerca de 5000 aprendentes adultos, oriundos de 30 países, receberam bolsas para participar em experiências educativas e actividades de voluntariado além-fronteiras, aumentando assim as suas competências de desenvolvimento pessoal. O Programa dá prioridade ao apoio a projectos em cooperação e a redes que desenvolvam e disseminem abordagens inovadoras em educação de adultos. Cerca de 700 iniciativas deste tipo foram já levadas a cabo desde o início do Grundtvig, envolvendo uma média de 4000 parceiros por toda a Europa. 4 APRENDER cou marcada a reunião final do IVALIP. Durante cinco dias, a agenda esteve focada na conclusão e revisão de produtos do projecto e nas orientações finais para elaboração do imprescindível Relatório Final do Projecto. Um dos produtos do IVALIP foi o jogo virtual. João Rito, voluntário do Intercultura-AFS e criador desta “ferramenta”, sintetizou-o à Aprender ao Longo da Vida: “O jogo consiste num conjunto sequencial de cenários com situações onde a interculturalidade está presente, em que, perante determinadas opções, o jogador tem de tomar uma série de decisões. Nessa sequência, o jogador é confrontado com situações onde a sua concepção de interculturalidade é exposta e onde é levado a questionarse/consciencializar-se sobre essas mesmas concepções. Assim, o jogo, no seu conjunto, procura contribuir para o desenvolvimento de conhecimentos e competências ao nível da educação intercultural, de uma forma não expositiva e interactiva.” No balanço final assume destaque o facto de, na maior parte das actividades, se terem utilizado métodos de educação não-formal, naquele que foi um modo intencional de experimentação destas metodologias. O próprio processo inerente ao projecto IVALIP consubstanciou-se como um exercício de experimentação das metodologias prosseguidas: a organização dos encontros, o seminário de formação para formadores e a maior parte das actividades foram executadas nesse espírito e com essa intencionalidade, utilizando métodos de educação não-formal. Luísa Loução, coordenadora do projecto IVALIP, identifica dois grandes tipos de vantagens trazidas para a instituição que integra: partilha de saber e competências decorrentes do contacto com experiências de outras organizações e países e, também, o grande enriquecimento cultural e pessoal dos voluntários que participam nestas experiências, que se traduzirá, igualmente, numa maisvalia para a organização. José Manuel Moura O Grundtvig em Portugal em 2009 PARCERIAS WORKSHOPS PROJECTOS DE VOLUNTARIADO SÉNIOR CURSOS DE FORMAÇÃO CONTÍNUA ASSISTENTES VISITAS E INTERCÂMBIOS TOTAL VISITAS PREPARATÓRIAS/SEMINÁRIOS CONTACTO (VP/SC) Candidaturas Recebidas 139 12 4 175 9 26 365 28 Candidaturas Aprovadas 62 4 2 55 6 22 151 21 A este propósito, José Manuel Moura, voluntário do Intercultura-AFS que participou em vários seminários do IVALIP, sublinha que “este projecto proporcionou conhecimentos para formar voluntários com mais competência, conhecimento, experiência e motivação”, e que este último factor é muito importante, “atendendo a que a integração de voluntários nestes projectos constitui um desafio para os mesmos, integrando-se numa política de gestão de expectativas e de ciclo de vida do voluntário”. Pedro Carmona salienta ainda dois outros benefícios da participação/coordenação no IVALIP: o aproveitamento directo pela Intercultura-AFS do knowhow adquirido com a organização do seminário de formação para formadores (Lituânia) no desenvolvimento das estruturas do voluntariado e o “projectar da associação como uma organização credível ao nível da educação intercultural”. n O PROGRAMA GRUNDTVIG, DEZ ANOS DEPOIS No discurso de encerramento do 10º aniversário do Programa Grundtvig, a Comissária Androulla Vassiliou afirmou que o sucesso do Grundtvig e a necessidade de se encontrar, na Europa, uma estratégia capaz de combater a crise financeira e social justifica que as instâncias europeias continuem a apostar fortemente na educação de adultos. Transcrevemos, de seguida, algumas passagens da sua comunicação. “O Grundtvig começa onde outros dos nossos programas param, oferecendo às pessoas uma oportunidade para dar um passo em frente na sua educação, qualquer que seja a sua situação de origem. Fornece, assim, uma segunda oportunidade educativa para quem não obteve uma qualificação à primeira tentativa. Consegue chegar aos grupos marginalizados e desfavorecidos na sociedade. Trabalha com cidadãos idosos VAI MAIS ALÉM NO TEU CONHECIMENTO Porque o conhecimento não escolhe local nem idade, com o Programa GRUNDTVIG podes descobrir inúmeras actividades de cooperação europeia que promovem a melhoria dos conhecimentos e competências dos adultos. Se tens vontade de levar o teu conhecimento mais além, vai a www.proalv.pt e descobre tudo sobre as acções GRUNDTVIG geridas pela Agência Nacional PROALV. VAI MAIS ALÉM para promover a educação numa etapa mais avançada da vida, uma preocupação crescente das políticas sociais, à medida que cresce na Europa o número de cidadãos seniores activos. A Europa vai continuar a necessitar de pessoas fortemente motivadas e qualificadas vindas de todas as partes do mundo. Também será essencial para ajudar a integrar imigrantes e pessoas das minorias étnicas na sociedade e no mercado de trabalho. Cerca de um século e meio depois da sua morte, continuamos a lutar pelos ideais que eram caros a Grundtvig. Os que previram que o século XXI seria o século da educação de adultos, tal como os séculos XIX e XX foram os do desenvolvimento das escolas e das universidades, não deverão estar longe da verdade. A visão de Grundtvig ajuda-nos hoje a construir o nosso futuro.” ACÇÕES | Prazos de Candidatura Parcerias 19 Fev 2010 Projectos de aprendizagem partilhada Workshops Grundtvig 19 Fev 2010 Experiências intensivas de aprendizagem Projectos de Voluntariado Sénior 31 Mar 2010 Voluntariado sénior ao serviço da aprendizagem Visitas e Intercâmbios 6 semanas antes do início da mobilidade Conferências e visitas na área da educação de adultos Cursos 15 Jan 2010 | 30 Abr 2010 | 15 Set 2010 Oportunidades de formação na Europa Assistentes / Períodos de Assistência 31 Mar 2010 Trabalhar e aprender fora de portas AO LONGO DA VIDA 5 6 APRENDER ENTREVISTA reconhecimento e a O CONCEITO DE COMPETÊNCIA Ovalidação de competências podem ter um potencial AINDA HOJE SE ENCONTRA emancipatório enorme, enquanto processos de EM CONSTRUÇÃO ANA LuísA OLIVEIRA PIRES construção de identidades pessoais, sociais e profissionais, como meios de desenvolvimento pessoal e de qualificação social, defende a professora de Ciências da Educação Ana Luisa Oliveira Pires nesta entrevista à Aprender ao Longo da Vida. Entrevista de Rui Seguro # Fotografias de Miguel Baltazar AO LONGO DA VIDA 7 Acompanha desde 1995 os processos de validação de competências. O conceito de competências sofreu alguma evolução ao longo destes 15 anos? O conceito de competência ainda hoje se encontra em construção. Os conceitos também evoluem, vão sendo enriquecidos a partir de contributos disciplinares distintos, a partir de quadros teóricos e paradigmáticos que nos vão permitindo também fazer evoluir e construir novas formas de inteligibilidade dos fenómenos. De qualquer forma, o conceito de competência encontra-se hoje mais bem estudado do ponto de vista teórico. Os quadros paradigmáticos e teóricos que utilizamos, que nos balizam a acção educativa, têm vindo a evoluir e o conceito competência é hoje melhor compreendido pelos actores do terreno, e que também melhor trabalham com ele. O conceito de competência é um conceito polissémico que, no meu entendimento e na perspectiva da investigação, dependendo do quadro teórico que se mobiliza, assim também a concepção de competência é diferente, e a forma como se operacionaliza e trabalha a nível educativo é distinta. Do ponto de vista teórico, temos diferentes quadros de referência e, só ao nível das ciências de educação e da psicologia, temos uma concepção de competência behaviorista que, durante décadas, do ponto de vista da pedagogia dos objectivos, foi aquela que influenciou mais a acção educativa e o pensamento da educação. Mas, neste momento, essa concepção behaviorista, que já foi em muito ultrapassada pelas concepções construtivistas, pelas concepções cognitivistas, humanistas da aprendizagem, é uma concepção da qual ainda se podem encontrar algumas influências nas práticas actuais de quem está no terreno – os docentes, os formadores, os educadores. Apesar de hoje termos quadros teóricos de referência muito mais apropriados para compreender a essência do que são as competências, nomeadamente o contributo das abordagens construtivistas que são aquelas que mais se têm difundido a nível educativo, na actualidade. Assistimos a um movimento, em especial na comunicação social, de críticas “à moda” das competências. Num artigo de opinião que li há dias, afirmava-se que o que era necessário era as pessoas saberem. Em termos da aceitação da opinião pública, estes movimentos têm alguma receptividade? É óbvio que os discursos dependem de quem os produz e do contexto onde estão a ser produzidos. Se perguntar às pessoas de senso comum o que são competências, é óbvio que todos têm uma noção do que são. Se estamos a falar no discurso dos teóricos, aí obviamente que há uma obrigação de maior rigor conceptual e de saber quando se utiliza uma determina- da concepção, um determinado conceito de competência, em que fundamentos e em que princípios se está a basear. Temos também os educadores, os formadores e, nesse caso, é o discurso dos práticos que estão na acção, é um discurso que, de alguma forma, não é apenas teórico, é um discurso que vem muito também do seu saber, daquilo que fazem e da forma como entendem e de como trabalham, no dia a dia, as competências dos seus formandos. Há vários níveis de discurso, e se me falar no discurso de senso comum é uma coisa, discurso cientifico é outra, o discurso da acção provavelmente é outro, que se cruzam e que se interpelam mutuamente. Cita num artigo seu que Bernard Liétard afirmou que o futuro do reconhecimento de competências ainda é incerto. Pode ser a raiz para uma nova ordem educativa renovadora de projectos de educação permanente, ou podem ser as premissas de novas formas de gestão social ao serviço da economia de mercado. Agora saltámos do conceito competência para o de reconhecimento de competências. Reconhecimento, validação, certificação de competências, são termos hoje utilizados para designar um conjunto de novas práticas educativas, práticas sociais que têm vindo a ser disseminadas em diferentes países europeus e noutros. O meu doutoramento foi baseado num estudo comparativo nestes sistemas em vários países. Nós conhecemos bem a situação portuguesa, que é paradigmática a este nível pela rápida expansão e implementação deste sistema em Portugal. Os referenciais que são utilizados em qualquer sistema ou dispositivo de reconhecimento e validação de competências são construções. Representam de alguma forma as competências ou o conjunto de saberes que são considerados de referência, e é à luz deles que se vão validar os saberes que as pessoas possuem, sejam referenciais académicos, sejam referenciais profissionais. Eles tipificam, objectivam um conjunto de saberes que são considerados como de referência no âmbito de um determinado sistema ou dispositivo e, como tal, são construídos socialmente. Um dos aspectos fundamentais de um sistema de reconhecimento e de validação de competências é exactamente os referenciais que utiliza, para além das metodologias que são postas em prática para fazer esse reconhecimento, os referenciais são outra das pedras de toque do sistema, assim com a intervenção dos próprios formadores, validadores, dos indivíduos que trabalham nesta área. Isto tem de ser pensado sempre de uma forma global, interligada. Articulando com Bernard Liétard – que tem a ver com a gran- Bernard Liétard diz que o futuro destas práticas é incerto, pois tanto se poderão vir a constituir como uma raiz nova de uma nova ordem educativa, ou como as premissas de nova gestão social ao serviço da economia do mercado. 8 APRENDER ENTREVISTA de finalidade deste sistemas e destes dispositivos, com que finalidade são utilizados, quais são as lógicas dominantes –, sabemos que há muitas tensões, bastante conflitualidade ao nível do trabalho, do reconhecimento e da validação das competências dos adultos; e estas tensões não são apenas a nível nacional – elas acontecem, perpassam estas práticas noutros países. Bernard Liétard diz que o futuro destas práticas é incerto, pois tanto se poderão vir a constituir como uma raiz nova de uma nova ordem educativa, ou como as premissas de nova gestão social ao serviço da economia do mercado. Gostava de articular isto com Isabelle Cherqui-Houot, que também fez uma tese de doutoramento sobre o reconhecimento e a validação das competências, e que diz que estes dispositivos de reconhecimento e de validação e particularmente no ensino superior, que foi o estudo que ela realizou, podem ceder à tentação de reproduzir os modelos sociais dominantes, o modelo industrial, o modelo de mercado, que se apropriam de uma visão utilitária e estratégica do saber e do conhecimento com vista à comercialização do seu “produto”. E assim pode acentuar esta tendência actual do sistema educativo que massifica, por um lado, o acesso ao diploma, é o modelo industrial da massificação, da tipificação, mas por outro lado esta comercialização é o saber que o mercado quer comprar. São as competências que têm determinada relevância em termos económicos, e sabemos que quando pensamos na formação das pessoas, numa perspectiva global e integrada nas suas múltiplas dimensões, não podemos ter apenas em atenção as competências que têm valor económico no mercado. Há outro tipo de competências que são, se calhar, muito mais importantes para a vida e sem elas não podemos ser cidadãos de pleno direito, interventivos, participativos. Bernard Liétard chama a atenção para este risco de o reconhecimento e a validação de competências poderem ser instrumentos ao serviço da economia de mercado, e é nessa perspectiva que ele defende, tal como eu, que estas práticas têm um potencial emancipatório enorme e podem e devem ser consideradas como uma função educativa a tempo inteiro, enquanto processos de construção de identidades pessoais, sociais e profissionais, como meios de desenvolvimento pessoal e de qualificação social. É neste sentido que entendo que devemos continuar a trabalhar. cesso e de desenvolvimento da pessoa. É um meio para a pessoa, a partir de uma nova trajectória de aprendizagem, conseguir realizar algo, um projecto, uma nova actividade, uma nova fase em termos profissionais, sociais e educativos. Essa perspectiva pode ser aplicada dentro ou fora do sistema educativo, numa perspectiva mais lata, numa lógica de educação de adultos? Em França e noutros países europeus, em Portugal também, têm-se realizado os balanços de competências não na lógica da validação/certificação mas na lógica de tentar identificar as competências que aquelas pessoas possuem, ajudá-las a fazer um projecto e orientar a sua vida educativa, profissional, etc., e sem esse balanço de competências não é possível evoluir e avançar e orientar. Neste sentido, não é apenas para certificar. Aí é fundamental o papel do mediador... Há aqui três ou quarto peças fundamentais destes dispositivos e sistemas que têm de ser pensados de uma forma global e integrada. É a questão dos referenciais e porquê aqueles referenciais, e quais são as competências privilegiadas em detri- O reconhecimento das competências não é um fim em si mesmo, mas é um processo. Não acha que é necessário colocar mais o enfoque no processo? Se olharmos na perspectiva na lógica sumativa, que é testar um determinado nível de competências, dar um diploma, é óbvio que isso tem um determinado valor, um valor social, um valor pessoal, um valor profissional para a pessoa que adquiriu esse diploma. Mas há aqui uma dimensão fundamental dos processos que não é a sumativa, é a dimensão formativa, que é o que vai fazer com que aquela pessoa tome consciência do seu percurso de aprendizagem não valorizado até aí, das competências que adquiriu e das competências que poderá ainda adquirir. É uma etapa, não é um fim em si mesmo e tem de ser visto também nesta dimensão de processo. O reconhecimento e a validação de competências não apenas na perspectiva sumativa mas na perspectiva de pro- AO LONGO DA VIDA 9 mento de outras. Há a questão dos referenciais, há a questão das metodologias, dos portfólios. Posso dar um exemplo no ensino superior. Com o Processo de Bolonha, os referenciais do ensino superior sofreram uma mudança drástica, porque se pretende passar de um ensino centrado no conhecimento para um ensino centrado nas competências. O ensino superior confronta-se neste momento com uma série de desafios, nomeadamente este. O que são competências? Hoje, se formos olhar para os referenciais que são utilizados no ensino superior, há esta maior preocupação com as competências. Isto é um dos efeitos colaterais de Bolonha e penso que não está ainda completamente resolvido. Os referenciais, as metodologias, as técnicas e os instrumentos utilizados são fundamentais, os mediadores são outra das peças chave e, junto com os formadores, os técnicos de acompanhamento. Não podemos esquecer-nos do seguinte: estas competências que se tentam a todo o custo objectivar, nomear, identificar, fazer, explicitar, são competências que foram adquiridas em contextos não formais ou informais, através de experiência de vida, de experiências profissionais e as pessoas, muitas vezes, não têm consciência de que possuem estes saberes e muito menos as competências que estão nos referenciais. E é preciso um trabalho, que é esta passagem do induzível 10 APRENDER Temos uma tensão entre a lógica dos saberes académicos e a lógica dos saberes profissionais, que se confrontam e se interpelam mutuamente. A lógica disciplinar e científica versus a lógica dos saberes experienciais. ENTREVISTA para o deduzível, do implícito para o explícito, este é o verdadeiro trabalho de um mediador que muitas vezes empresta aos adultos uma linguagem que não é a desses adultos. Ele tem de ser capaz de mediar os saberes adquiridos que muitas vezes não são sequer nomeados pelo próprio, e ele tem muitas vezes de apoiar este trabalho de explicitação, de nomeação. E isto, para o próprio, não se faz sem um processo de tomada de consciência. Eu tenho de tomar consciência que possuo estes saberes e isto é um trabalho muito importante que o mediador tem de saber desenvolver e apoiar. Daí que não é a técnica, não é o instrumento, não é o portfólio em si que vai fazer esta explicitação, é o trabalho que o mediador vai fazer junto do outro, de escuta, de apropriação, de identificação. Isto remete para a formação das pessoas que estão a fazer este trabalho. Na grande generalidade têm vindo a aprender com a sua própria experiência, e há saberes que têm vindo a ser constituídos pelas equipas, nos centros, que são de muito valor e que mereciam ser explicitados e disseminados pelas outras equipas. Muitos destes saberes que se têm vindo a constituir são valiosíssimos, e é importante ter noção disto e sistematizálos, desenvolvê-los, disseminá-los. A sensação que tenho é que o reconhecimento de competências é um percurso muito mais difícil do que as avaliações académicas simples... O que está aí em causa? Qual é o objecto da avaliação? Temos de pensar o que é o objecto e se o procedimento é o mais adequado ou não. Se queremos um saber, se queremos avaliar se um indivíduo possui um saber académico, disciplinar, cientifico e se sabe reproduzir o que está num programa, o teste visa a restituição desse conhecimento, é um saber declarativo que pode ser exposto por escrito. Mas as competências – e pensamos principalmente em competências adquiridas através de experiências de vida – as pessoas não são capazes de identificar os saberes subjacentes a essa acção na perspectiva científica disciplinar e académica. Se olharmos para uma definição mais consensual do ponto de vista das ciências da educação, as competências são saberes, uma integração de saberes que se mobilizam na acção. São contextualizados e finalizados. Os saberes experienciais e as competências que as pessoas constroem ao longo da vida não são passíveis de ser explicitados nessa lógica académica do conhecimento científico, fragmentado, dividido, cumulativo. Portanto, um teste escrito seria a maior contradição. Mas há países em que há uma tendência para isso. Depende das abordagens que se estão a utilizar. Há diferentes abordagens de avaliação de competências. Uma delas é a avaliação pelos saberes. Há abordagens que dizem: vamos avaliar cada um destes saberes per si no pressuposto de que, na posse deles, a pessoa será capaz de os mobilizar. E neste caso já vi serem utilizados determinados testes de conhecimentos, porque se pretende avaliar se aquele individuo possui o conhecimento teórico subjacente àquela acção ou aquele conhecimento da acção. Esta é uma visão que, como todas as visões, também tem muitos limites. Estamos a olhar para os vários ingredientes da competência e estamos a avaliar per si. Ora a competência não é o somatório dos ingredientes, é a integração dinâmica de todos eles, é algo mais, é um processo de valor acrescentado – o produto final é sempre mais do que a soma das partes. Daí que essas abordagens existam, também as conheço, mas têm limitações e não se aproximam de uma avaliação, de um objecto tão complexo quanto são as competências. É uma aproximação. Mas há várias lógicas e princípios subjacentes? Há uma multiplicidade de lógicas em presença, nos vários sistemas e dispositivos – não falo especificamente do caso português, estou a falar de lógicas que se encontram em diferentes países e em diferentes contextos – e temos conflitualidades e tensões entre diferentes lógicas. Por exemplo, entre a lógica individual e a lógica social, entre a lógica individual do reconhecimento, do reconhecimento dos saberes da pessoa para a pessoa e a lógica social da validação. Temos uma tensão entre a lógica formativa e a lógica sumativa, a lógica formativa do balanço das aprendizagens, da elaboração de projectos que entra, muitas vezes, em tensão com a lógica sumativa de obtenção de créditos com vista à certificação. Temos a lógica da personalização versus a lógica da massificação. A lógica da personalização centrada nos processos, na pessoa e na sua singularidade, enquanto que a lógica da massificação é mais centrada nas metas, nos resultados, no alargar quantitativo destes processos mais públicos. Temos outra tensão muito forte entre a lógica da flexibilização e a lógica da standardização. Até que ponto é possível flexibilizar, adaptar, adequar e standardizar, nomeadamente ao nível das metodologias, até que ponto é possível utilizar um conjunto de metodologias em função daquela pessoa que é única ou não, ou a lógica da standardização, igual para todos. Temos uma tensão entre a lógica dos saberes académicos e a lógica dos saberes profissionais, que se confrontam e se interpelam mutuamente. A lógica disciplinar e científica versus a lógica dos saberes experienciais, que é mais orientada pela fragmentação do saber, enquanto que a lógica dos saberes experienciais é na óptica dos saberes integrados e contextualizados. Por fim, a lógica da racionalidade instrumental, utilitarista, de mercado e a lógica antropocêntrica, emancipatória, centrada na pessoa e na descoberta das suas potencialidades e no desenvolvimento dessas potencialidades, que era aquilo que dizia o Bernard Liétard, que o futuro destes sistemas está em aberto e ainda é incerto e, de facto, somos nós que podemos fazer evoluir os sistemas numa direcção ou noutra. Quando diz que existem tensões e contradições, isto significa que pode haver opções, ou pode haver conciliação entre estas dicotomias? Estas tensões foram apresentadas de uma forma muito bipolar, muito dicotómica. A realidade é que estas forças conflituais existem de facto e podemos assistir, em determinados contextos, a uma lógica sobrepôr-se à outra, ou estar em maior destaque em relação à outra. Elas existem. Observamos a existência destas lógicas; agora a sobreposição de uma em relação à outra é sempre uma questão que tem a ver com o específico, com o local, com o contextual, e com as características do próprio sistema e do AO LONGO DA VIDA 11 próprio contexto educativo nacional em causa. Tudo isto pode ser construído e estas lógicas podem ser dominantes umas em relação às outras em função do contexto, do local, do específico, das políticas que são privilegiadas, etc. mente superior aos saberes da prática. Toda esta concepção tem de evoluir e é através da mudança de representações, da mudança cultural, do que é conhecimento, do que é saber, do que são competências e é por aqui que tem de se caminhar. Vamos falar dos maiores de 23. Vamos falar no contexto das universidades e do acesso ao ensino superior. Ainda bem que falou nos maiores de 23, visto ser uma medida política, legislativa, que visa a abertura e o alargamento aos adultos que não têm as habilitações de acesso pelo concurso geral de acesso ao ensino superior. Podem concorrer ao ensino superior através deste concurso, e é valorizado o seu currículo profissional, a sua experiência profissional, são critérios de admissão. Esta medida dos maiores de 23, que é de 2006, foi criada no âmbito deste paradigma de educação e formação ao longo da vida com vista ao alargamento do acesso ao ensino superior para públicos não tradicionais, para aqueles que não têm a escolaridade de acesso imediatamente anterior, 12º ano, concurso nacional de acesso. Esta medida diz também que as pessoas têm o direito de pedir a creditação destas experiências para efeitos académicos, ou seja, vem colocar as instituições de ensino superior diante desta questão, de reconhecer e validar esta experiência, estes saberes adquiridos através da experiência, com vista à atribuição de créditos, no âmbito do plano de estudos que as pessoas estão a frequentar. No âmbito do ensino superior, isto é uma situação inovadora, porque as instituições de ensino superior podem ter entre si candidatos, indivíduos, que fazem o pedido para ter o reconhecimento da sua experiência profissional e para que essa experiência profissional lhes sejam creditada com créditos, o sistema de ECTS (Sistema Europeu de. Transferência de Créditos) para efeitos de prossecução dos estudos. Aquela tensão que falávamos há pouco, a que existe entre a lógica dos saberes académicos, disciplinares, e os saberes profissionais, encontramo-la aqui no ensino superior – um terreno onde esta conflitualidade é muito maior. Estas novas medidas são muito recentes. Neste momento existem já em algumas instituições nacionais implementadas estas práticas de reconhecimento e validação de competências. Posso dar o exemplo do Instituto Politécnico de Setúbal, onde estou actualmente a coordenar uma unidade de desenvolvimento, reconhecimento e validação de competências. Implementámos um dispositivo que tem a finalidade de fazer o reconhecimento destas competências que as pessoas possuem para efeitos de creditação no âmbito do plano de estudos que estão a frequentar. É um trabalho inovador e que tem vindo a ser desenvolvido há dois anos a esta parte, e posso dizer que é um trabalho pioneiro, muito desafiador, se achamos que ao nível do ensino básico e ao nível do ensino secundário esta problemática é muito complexa, ao nível do ensino superior a complexidade aumenta. Porque os referenciais são mais complexos e, por outro lado, há uma outra cultura ao nível do ensino superior que não aceita reconhecer a experiência de vida ou a experiência profissional, porque o que tem mais valor no âmbito do sistema do ensino superior é o conhecimento científico, esta hegemonia do sistema educativo é mais marcada, os saberes académicos e científicos têm um valor hierarquica- No ano passado, os resultados de entrada são extremamente reduzidos... Nas instituições de ensino superior há números que são limitados e que são definidos pelas instituições relativamente a este concurso especial de acesso. A legislação fala em 5% do número total de vagas, mas que é sempre alargado, porque as vagas que não são preenchidas no concurso geral de acesso podem, numa segunda ou numa terceira fase, ser preenchidas por estes concursos especiais. Mas falamos de um número diminuto de candidatos que entra por esta via, face à via do concurso geral de acesso, e que tem um peso residual nas instituições, se bem que nalgumas instituições os candidatos maiores de 23 têm vindo a ocupar um espaço e uma visibilidade que não tinham no ano passado, há dois anos ou há três anos. Continua a haver uma procura muito grande por estes adultos que trabalham e que não têm as habilitações do 12º pelo concurso geral de acesso e que querem concorrer à universidade ou ao politécnico por esta via. O ensino superior não tem muita tradição de trabalhar com públicos de adultos e não tem esta tradição de valorização das aprendizagens experienciais, nem das competências adquiridas noutros contextos que não o próprio ensino superior. Por isso é que acho que é um trabalho desafiante, e que se deve continuar a investir ao nível da investigação para melhor podermos compreender a especificidade destes públicos e como o sistema poderá evoluir de forma a integrá-los e a promover trajectórias de sucesso. 12 APRENDER Mas os que tiveram o acesso através do Mais 23 foram os mais novos e com maior formação académica, e não os mais velhos com maior experiência de vida... Os estudos que têm vindo a ser feitos em várias instituições a nível nacional têm evidenciado que, apesar de os candidatos obedecerem aos requisitos legais, aqueles que mais entram são os que pertencem às faixas etárias mais jovens e os que têm habilitações académicas e profissionais mais elevadas. Ou seja, os adultos mais velhos e com menos escolaridade são os que continuam a ficar afastados do sistema educativo. Isto vem evidenciar que há uma reprodução ao nível dos públicos tradicionais do ensino superior. Mesmo no quadro dos mais velhos, são sempre os mais novos que entram em detrimento dos mais velhos. E no fundo isso acaba por ser uma contradição. Não é valorizar o saber experiencial ao longo da vida, mas sim validar a formação académica. Não quer dizer que isso aconteça na generalidade das situações, mas há essa tendência porque são as pessoas que estão mais próximas do sistema educativo, as que deixaram de estudar há menos tempo, e que têm mais habilitações, e mais escolaridade no seu percursos, aquelas que se encontram em melhores condições para poderem ter melhores classificações nas provas e como os candidatos são seriados pelas classificações que têm nas provas, pela classificação do seu Curriculum ENTREVISTA Vitae, pela sua carta de motivações, é óbvio que há determinados factores que têm algum peso. É em função desse peso que eles são seriados. Isto tem muito a ver como a forma como as instituições de ensino superior se posicionam face a estes públicos, porque a ponderação entre os diferentes tipos de provas também são decididas pelas próprias instituições, há uma margem de maior ou menor flexibilização das ponderações atribuídas aos currículos profissionais, à carta de motivações e à prova de conhecimentos. Vou ler o que escreveu num artigo: “para que as novas práticas possam contribuir efectivamente para uma mudança educativa, não basta pensar a nível técnico, pedagógico, é também uma questão política. É necessário garantir um conjunto de princípios éticos metodológicos e condições materiais”. Na sua opinião, em que é importante investir neste momento? Neste momento, um dos investimentos fundamentais seria ao nível da formação das pessoas envolvidas nestes processos. Tem sido feita alguma formação, as pessoas têm tido alguma preparação. É fundamental continuar a investir na formação dos técnicos, dos conselheiros, dos mediadores, dos processos de RVC e isto tanto a nível do dispositivo nacional, do sistema nacional como também ao nível do ensino superior. Tendo em conta que são práticas inovadoras e que implicam uma profunda mudança de representações e de concepções sobre aprender, ensinar competências, saberes, a formação é fundamental, e acho que as próprias instituições de ensino superior se têm posicionado com uma oferta de formação até bastante adequada e aproximada das necessidades que existem, mas há que alimentar esta formação pela investigação e essa é uma função que cabe às instituições de ensino superior. Continuar a desenvolver linhas e eixos de investigação centrados na educação e na formação de adultos, projectos de investigação centrados nas práticas e nos processos de reconhecimento e validação de competências. Porque há, neste momento, massa critica para poder produzir conhecimento que pode alimentar a própria formação dos profissionais que estão envolvidos no terreno. n Há, neste momento, massa critica para poder produzir conhecimento que pode alimentar a própria formação dos profissionais que estão envolvidos no terreno. Ana Luisa Oliveira Pires Finalizou e defendeu o doutoramento em 2002, na Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade Nova de Lisboa, com a tese “Educação e Formação ao Longo da Vida: Análise Crítica dos Sistemas e Dispositivos de Reconhecimento e Validação de Aprendizagens e de Competências”. A partir daí, continuou a trabalhar estas questões, tanto do ponto de vista da investigação como do ponto de vista empírico. Fez um Pós-Doutoramento em Ciências da Educação, com o tema: “Ensino Superior e Aprendizagem ao Longo da Vida. O reconhecimento de adquiridos e a mudança educativa”, na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação, Universidade de Lisboa. AO LONGO DA VIDA 13 DOSSIER No dicionário, viagem é definida como “o acto de ir a um lugar mais ou menos distante”. É também “a descrição do que se viu ou aconteceu durante um passeio ou jornada”. Assim, registar o que se contemplou e viveu, capturar momentos e imagens, fazem parte integrante das viagens. Qualquer viagem proporciona a possibilidade de nos deslumbrarmos com paisagens, pessoas, costumes, cores, sons, sabores… Qualquer que seja o itinerário que perseguimos, as descobertas que fazemos levam-nos a viajar dentro de nós próprios e a desvendar percursos interiores que tantas vezes conhecemos. Quando se viaja, perto e longe, cedo e tarde, adquire-se outros significados, porque o espaço e o tempo fogem da tirania do dia-a-dia. Feita de paragens e desvios, avanços e recuos, encontros e desencontros, na viagem a ordem é outra. Quando se viaja… Aprende-se. AO LONGO DA VIDA 15 DOSSIER Texto de Cristina Portella # Fotografias de Miguel Baltazar DE VOLTA AO PASSADO NO EXPLORATÓRIO DE COIMBRA Sem o recurso da ficção científica e das suas máquinas do tempo, regressar ao passado e voltar a ser criança é possível no Exploratório, o Centro Ciência Viva de Coimbra. A companhámos uma visita de adultos ao Exploratório para perceber a sua reacção ao interagir com os equipamentos de divulgação científica apresentados em várias exposições. “Se na escola eu tivesse aprendido ciência como se ensina aqui, teria sido uma excelente aluna. Aqui podemos experimentar, quando às vezes a teoria não nos diz nada. O facto de podermos mexer, participar das experiências, só por si 16 APRENDER é muito bom”, avalia Conceição Santos, 36 anos. Aquela foi a primeira visita de Conceição ao Exploratório. Mas não será a última. “Achei espectacular, gostei de tudo. Vou voltar e trago a família toda. Nunca me tinha passado pela cabeça que com um tubo eu conseguia encestar uma bola no cesto”, afirma, referindo-se a uma das experiências. Na exposição chamada “Em boa forma... com a ciência”, o tema é a saúde, e o coração, o “artista principal”. Inúmeras experiências desafiam o visitante a conhecer melhor o seu coração e o sistema circulatório, como a que reproduz os batimentos cardíacos e mede a pressão arterial. Uma outra exposição chama-se “Sentir.com – a comunicação e os cinco sentidos”, que pode terminar com a construção de um ET (Extra Terrestre) que deseje inventar e levar o respectivo bilhete de identidade, com figura de corpo inteiro. “No dia-a-dia estamos com a ciência ao pé de nós, só que passa ao lado”, observa André Marques, 34 anos. “Ao lon- DOSSIER/REPORTAGEM go da vida vamos defrontando situações em que a ciência está cada vez mais posta no nosso caminho. A ciência nos invade”, diz Ana Carla, 33 anos, a reforçar a ideia do seu colega. Antes de retomar os estudos, Ana trabalhou como comunicadora no serviço telefónico, função em que, segundo ela, a ciência invadia o seu dia-a-dia através dos computadores. “Mas limitava-me a utilizá-la como um instrumento de trabalho”, reconhece. Foi durante a visita ao Exploratório que tomou consciência de que “a ciência nos explica pequenos detalhes das nossas vidas, porque está tudo ligado com a ciência”. Ela nunca tinha visitado o Centro Ciência Viva de Coimbra, mas uma das filhas, sim. “A exposição está montada de maneira adequada, para que as crianças se sintam à vontade e intervenham nos jogos. E para os adultos não há diferença. O facto de as crianças brincarem estimula os pais. Eles aprendem connosco e nós com eles”, comenta Celeste Matias, 49 anos. Depois de concluir a sexta classe, em criança, nunca mais estudou até frequentar um curso EFA. É também a primeira vez que visita o Exploratório, mas garante que virá mais vezes, da próxima vez com o filho. Todos estes adultos frequentam cursos EFA e esta é primeira visita organizada pelo Centro de Serviços e Apoio às Empresas (CESAE) ao Exploratório e que mal tinha começado já estava a ser um sucesso. Mas, inicialmente, a reacção predominante entre os adultos tinha sido outra. Eles ficaram desconfiados, sem entender a razão da iniciativa. “Eles pensavam que a visita não estava enquadrada na formação. Mas agora estão a adorar, entenderam porque viemos aqui. Nem sequer querem sair”, observa Amélia Nunes, responsável pela delegação do CESAE em Coimbra. Ana Carla resume o sentimento dos colegas, ao refutar a ideia de que o Exploratório é só para crianças: “Esta é uma ideia pré-concebida da sociedade. Nunca imaginamos que nós, adultos, desconhecemos coisas tão básicas”. Para todas as idades Ana Carla está certa: o Exploratório foi concebido para crianças e adultos. Quem o diz é o seu director, Victor Gil. “Aqui podemos experimentar, quando às vezes a teoria não nos diz nada. O facto de podermos mexer, participar das experiências, só por si é muito bom”. “Os adultos têm uma surpresa: acham que é uma diversão para crianças e, quando chegam aqui, vêem que é uma diversão para eles também”. “Esses centros são indiferenciados, são abertos às várias gerações.” Isso porque há lacunas de conhecimento científico em todas as idades, mas também porque visitar os centros Ciência Viva pode tornar-se uma actividade extremamente gratificante. Nos seus anos de experiência, Victor Gil verificou que o comportamento dos adultos diante das experiências mostradas nas exposições é muito semelhante ao das crianças. Eles participam, gritam, assustam-se, surpreendemse e saem do Exploratório totalmente encantados e convencidos de que a ciência é genial. “Os adultos têm uma surpresa: acham que é uma diversão para crianças e, quando chegam aqui, vêem que é uma diversão para eles também”, comenta Cristina Pinheiro, professora licenciada em Física e integrante da equipa responsável pela criação, confecção e manutenção das exposições do Exploratório. “Mas isso é bom: a curiosidade”, disse Victor Gil. “A capacidade de se surpreender, de dizer ‘isso, afinal, é giro, não é chato’, ‘agora percebi isso’, tudo isso é positivo.” Mas não basta. Para o director do centro de Coimbra, é necessário que haja uma complementação da experiência – do mexer, do fazer e do observar – com a informação mais “teórica” a explicar o porquê daquilo acontecer. “As pessoas aceitam as coisas porque estão bem apresentadas e ponto final, ou há possibilidade de as pôr a pensar? Porque, se não fizermos isso, então não estamos contribuindo para a ciência. Assim não vale a pena. E esses espaços têm esse risco. É uma grande correria, e as pessoas não lêem as instruções.” Instruções e explicações que complementariam a experiência feita pelo visitante, pois “a aprendizagem não pode basear-se na descoberta sistemática, tem de haver alguma informação oferecida.” Dessa forma, a equipa responsável pela concepção das exposições, integrada ao Exploratório, tentar encontrar uma abordagem simplificada, sem prejuízo do rigor. Não se poderia, por outro lado, correr o risco de, com experiências tão divertidas e estimulantes, passar a ideia de que aprender ciência é uma brincadeira? De passar uma falsa ideia de que o conhecimento pode prescindir do esforço? Victor Gil acha que não. “Somos um complemento da escola, não como al- AO LONGO DA VIDA 17 ternativa, nem como exemplo de escola, o que seria completamente errado.” A eficácia da aprendizagem adquirida numa visita à exposição será difícil de quantificar, mas será possível potencializá-la. “Se o formador puder fazer uma visita antes, saber o que vai encontrar aqui e depois planear a visita, discutir e integrar o que está a ser ensinado com alguma experiência aqui do Exploratório, isso será certamente uma mais valia.” Trabalho, esforço, organização, rigor e método são indispensáveis ao trabalho científico, mas desmontar a ideia de que a ciência “é uma seca” também pode ser um estímulo poderoso ao estudo da ciência. Um movimento que veio da Califórnia O movimento de criação de centros exploratório começou em 1969, em São Francisco, Califórnia. A grande revolução era o conceito. Em vez de uma exposição em que as pessoas eram meras observadoras das experiências, elas eram primeiro convidadas a explorar, mexer, 18 APRENDER “Podem até não saber que aquilo é uma aprendizagem, mas quando chegam depois na escola ou lêem qualquer coisa lembram que já mexeram, que já viram, que é um conhecimento já adquirido.” participar das experiências e chegarem às suas conclusões. O Exploratório Infante D. Henrique, em Coimbra, foi, em 1995, o primeiro centro interactivo de ciência em Portugal, numa iniciativa reunindo a Universidade de Coimbra, a Faculdade de Ciências e de Tecnologia e a Casa Municipal da Cultura. Mas só em 2009 obteve um edifício próprio, no Parque Verde do Mondego, com a exposição principal dedicada às relações entre as ciências básicas e a saúde. Desde que a nova sede foi inaugurada, cerca de 200 pessoas visitam o Exploratório a cada fim-de-semana, em sua maioria jovens e crianças. Os adultos são minoria, em geral a acompanhar os filhos. Há, por parte da direcção do Exploratório, uma tentativa consciente em atrair novos públicos adultos. “A nossa vocação principal são as exposições interactivas. Mas não nos esgotamos aí, procuramos desenvolver outras iniciativas, especialmente mais orientadas para o público adulto, que cai no domínio, por exemplo, da relação entre a ciência e as outras vertentes da cultura”, informou Victor DOSSIER/REPORTAGEM Gil. Um trabalho recente procurou demonstrar a relação entre ciência e pintura. “Esperamos, assim, atrair pessoas com idades mais avançadas. Se se consegue ou não é aquele velho problema...” O projecto de ampliação do Exploratório permitirá aumentar a área de exposição e integrar outras temáticas. “Temos muita coisa interessante que não está a ser mostrada.” É proibido não mexer Quais são as experiências que mais sucesso fazem entre os visitantes adultos? Esta pergunta é prontamente respondida pelos integrantes da equipa do Exploratório: todas as experiências que mexam e façam barulho chamam a atenção de toda a gente. E também aquelas que nos provocam emoções contraditórias, como o “Tactear no escuro”, integrada na exposição “Sentir.com”. A experiência é muito simples, e consiste em tactear diversas texturas sem vê-las, isto é, sem poder atribuir às nossas sensações tácteis um significado específico. Ou a experiência chamada “Cheirar... é preciso”, em que testamos vários odores para atribuir-lhes as respectivas origens. Na exposição principal, “Em boa forma... com a ciência”, o coração é a vedeta. “Porque tem módulos que medem coisas, como a pressão arterial, e mexem connosco, são descobertas pessoais”, explica Sara Gaspar, monitora sénior do Exploratório. Ela conta que enquanto as crianças vão logo, assim que entram na exposição, carregar nos botões, os adultos são mais inibidos. “Com os adultos existe aquele entrave do ‘não é para mexer’. Temos de quebrar o gelo e fazer com que mexam. Mas acaba tudo dando certo. Já tive avós a divertirem-se mais que os netos a fazer o extraterrestre”. Muitos visitantes, adultos ou crianças, acabam por, em algum momento, fazer a ligação entre a exposição e as informações recebidas sobre o tema abordado, em sala de aula ou outro local qualquer, antes ou depois da visita. “Podem até não saber que aquilo é uma aprendizagem, mas quando chegam depois na escola ou lêem qualquer coisa lembram que já mexeram, que já viram, que é um conhecimento já adquirido. As pessoas pensam sobre aquilo que estão a fazer e sentem o que estão a fazer, não é só mexer, não é só a diversão”, refere Sara. Relativamente aos mais jovens, mas também aos adultos, a primeira intervenção dos monitores é no sentido deles se aperceberem do espaço e de que, lendo as instruções, é possível compreender melhor a experiência na qual foram elementos activos. “Tentamos sempre despertar a curiosidade e, depois, transpor para a vida real. Muitas vezes as crianças vêem um botão e sabem carregar, mas não sabem para quê, o que acontece.” Tanto adultos quanto crianças entram na exposição a tentar mexer, e só se as coisas não correm bem é que vão ler as instruções. “Os textos têm de ser acessíveis a todos, queremos que as pessoas leiam o que está inscrito e hajam de acordo. Elas são independentes e, com a leitura dos textos, podem andar sós na exposição”, explica Cristina Pinheiro. No caso dos adultos, o papel do monitor é pôr as pessoas à vontade: é proibido não mexer. Ensinar as pessoas como se devem comportar num “museu” que não é igual aos outros. n AO LONGO DA VIDA 19 20 APRENDER DOSSIER/DEBATE Turismo Cultural Há um grande acordo entre os três intervenientes do debate desta edição. Portugal é um país riquíssimo em termos de turismo cultural. Não é por acaso que o nosso país está entre os que têm mais património mundial classificado pela Unesco. Quais são as novas tendências nesta área? O que é que nos falta? Que formação é necessária? O que e como se aprende? Qual o papel das autarquias? Estas e outras questões são abordadas no debate que se segue. Moderador Rui Seguro # Fotografias de Miguel Baltazar Como podemos motivar as pessoas para, além de retemperar as forças nas férias, motivarem-se para adquirir novos conhecimentos, para uma curiosidade cultural? Gabriela Botelho – Costumo dizer que muita gente viaja para o exterior, mas devia começar por Portugal. Portugal é um país riquíssimo, ainda mais do ponto de vista cultural. Em termos de turismo cultural temos imensos pontos fortes, não é por acaso que Portugal está entre os países que têm mais património mundial classificado pela Unesco, de centros históricos a monumentos, a paisagens culturais, uma panóplia enorme de atracções turísticas, patrimoniais e culturais que a maioria dos portugueses não conhece. Eu própria, que tenho andado, nos últimos anos, a bater terreno de norte a sul, estou constantemente a descobrir coisas novas, a nossa própria história, a nossa própria identidade como povo. Vou dar uma experiência que este fim-de-semana tive, numa terra não muito longe, a Batalha. Passei lá o fimde-semana e vim com uma alma lusitana renovada, com espírito para estes desafios. É na nossa história e na nossa identidade que temos de buscar, muitas vezes, a força para o futuro. Aconteceume isto recentemente com a visita à Batalha, onde fui ver o CIB, Centro de Importação da Batalha de Aljubarrota, que está interessantíssimo e acho que todos os portugueses deviam lá ir, para além do Mosteiro da Batalha, que é sempre muito interessante aprofundarmos. AO LONGO DA VIDA 21 Cláudia Gomes – Achei muito interessante a definição de turismo de uma investigadora brasileira. Ela procurou a origem da palavra turismo e a primeira referência que aparece, é “Tour” de origem hebraica, vem no livro dos números e significa a tal viagem de descoberta. Quando falamos no turismo, é sempre a tal viagem de descoberta em que nos deslocamos à terra do outro para aprender o outro com todos os seus valores, o seu património, a sua identidade, o que acaba por ser enriquecedor para nós, porque vimos com uma nova visão sobre os outros e acabamos por gostar da nossa. Muitas vezes, ao ver outra cultura, acabamos por dar valor à nossa. Se partimos à descoberta do nosso país, todas as regiões têm a sua identidade; não podemos comparar um minhoto com um algarvio, nem uma vila como Ponte de Lima com Reguengos de Monsaraz, temos de fazer com que o turismo cultural se recorra de certos instrumentos para se valorizar e se mostrar e explicar e aproximar das pessoas. Só olharmos para os monumentos não chega, é preciso que eles nos sejam explicados, é preciso que quase se possa tocar neles para os aprender e ver melhor. Gabriela Botelho – Vou falar um pouco sobre o CIB porque é fantástico, faz-nos vivenciar e quase retroceder alguns séculos e quase ver, a pessoa está no espaço onde se desenrolou a acção. Cláudia Gomes – Essas recriações históricas são um recurso muito actual que é a interpretação do património. A interpretação do património vai usar as recriações históricas, usa os roteiros, fala com as populações locais, uma série de estratégias para nos pôr lá, para nos fazer questionar. Já que estamos a falar para formadores de adultos, existe uma série de mitos que vêem certos espaços ou só para crianças ou só para elites. Isso é completamente descabido: é para todos, o nosso património é comum. Carlos Mamede – Não queria fazer propaganda do tal CIB, mas este é um exemplo concreto disso mesmo. Temos junto de uma outra unidade da Fundação Inatel um centro muito parecido com este, do ponto de vista da atractividade, da explicação, da capacidade de 22 APRENDER Gabriela de Vilhena Bettencourt Andrade Botelho Licenciada em Direito pela Universidade Clássica de Lisboa. Advogada. Tem formação diversa na área de Marketing da Gestão e Turismo, um mestrado em Gestão Estratégica e Desenvolvimento do Turismo. Tem-se dedicado nos últimos anos à área da hotelaria, as novas tendências e desafios dessa área. Tem várias obras publicadas no âmbito do luxo e charme na hotelaria em Portugal. Criou o curso de Licenciatura em Gestão Hoteleira na Universidade Lusófona. É assessora principal da presidência do conselho de ministros com a área jurídica. DOSSIER/DEBATE juntar, aliciar e ensinar tanto adultos como jovens, que é o Centro de Interpretação da Pesca da Baleia, na Ilha das Flores. Eu vi-o nascer. O sítio onde está instalado eram uns tanques da apanha da baleia, que agora estão tapados. Era uma fábrica, enganchavam as baleias, sangravam-nas e cortavam-nas, levavam lá para dentro as postas de gordura e era ali que faziam o tratamento da gordura de baleia. Como está não se percebe muito bem, não se tem a noção de como aquilo era. Cláudia Gomes – Isso é uma falha, tem de recriar a coisa quase como se eles tivessem saído de lá hoje de manhã. Carlos Mamede – Também achei. Ao contrário do CIGMA, onde a Fundação Inatel tem um protocolo, vamos lá em viagem, tanto idosos como jovens. E é extraordinário, porque tanto os jovens como os idosos saem de lá fascinados pelo espectáculo e pela aprendizagem. Gabriela Botelho – Uma questão mais vasta é o papel das experiências no turismo. Vivemos numa época de um turismo de experiências, levadas aos mais diversos níveis, tentando levar a pessoa a participar naquilo que vai ver. Em termos gastronómicos, os hotéis estão a desenvolver muito este conceito das experiências. Os hotéis levam as pessoas que assim querem ao mercado comprar o peixe, escolher as hortaliças, num prato que depois são convidadas a aprender com os chefes e a confeccionar aquilo que vão almoçar ou jantar. Carlos Mamede – Quando tem a ver com a natureza, está associado a um segmento muito mais amplo de pessoas. O Inatel tem um acordo com a Associação de Agricultura Biológica e um dos objectivos é assegurar que os clientes dos nossos hotéis venham cultivar produtos biológicos que são depois servidos nas refeições dessas mesmas pessoas. Queria pôr uma pedrinha neste entusiasmo. Estando de acordo com o que foi dito acerca do turismo cultural e designadamente desta parte dos Centros de Interpretação, vale a pena dizer que os bons centros custam muito dinheiro e corremos o risco da sua banalização. Conheço alguns exemplos de Centros de Em termos de turismo cultural temos imensos pontos fortes, não é por acaso que Portugal está entre os países que têm mais património mundial classificado pela Unesco, de centros históricos a monumentos, a paisagens culturais, uma panóplia enorme de atracções turísticas, patrimoniais e culturais. Vivemos numa época de um turismo de experiências, levadas aos mais diversos níveis, tentando levar a pessoa a participar naquilo que vai ver. Em termos gastronómicos, os hotéis estão a desenvolver muito este conceito das experiências. Gabriela Botelho Interpretação que são cabanas sem qualquer espécie de interesse, que não explicam. Como não há dinheiro, em vez de um verdadeiro Centro de Interpretação fazem uma pequena sala de exposição e chamam-lhe Centro de Interpretação. A experiência que tenho é frustrante nesse ponto de vista. Cláudia Gomes – Mas eu vou discordar de si. A interpretação do património nem sempre precisa de um edifício arquitectónico. Quando fazemos um roteiro turístico no meio de uma serra, basta pôr uns painéis exemplificativos da flora, da fauna ou da cultura. Toda a gente acha que é preciso um edifício, megalómano e excêntrico para aquilo ser bem concebido e ser um sucesso. Mentira. Aquilo muitas vezes é um pólo de lóbis que estão lá adormecidos, não fazem nenhumas actividades didácticas. A interpretação do património está onde ele acontece e interpretar o parque natural é no parque natural, não é rua x. Existe uma série de ideias preconcebidas que executamos mal. A interpretação de património não precisa de muito dinheiro, basta um guia turístico local. Um dos melhores Centros de Interpretação que temos em Portugal é o parque geológico de Arouca, uma casinha em xisto integrada na paisagem, muito bem concebido, ganhou já prémios internacionais do sector, é um projecto singelo e está fenomenal, não é avultado em termos monetários e tem uma equipa didáctica, de pedagogia, muito boa; mas falha numa coisa, na promoção. Gabriela Botelho – O problema é que os produtos turísticos, as atracções turísticas, têm de ser vendidas de uma forma global. Por exemplo, porque é que o caso da Batalha está, neste momento, a ter êxito? Porque há ali um conjunto de intervenientes com peso. É preciso não esquecer que o Centro de Interpretação da Batalha de Aljubarrota tem como mecenas a Fundação Champalimaud, o Banco Espírito Santo, a Fundação Gulbenkian, os melhores mecenas de Portugal. Há ali uma componente financeira muito forte. O que há de interessante é um envolvimento dos privados com o público, entre a Câmara Municipal e até as câmaras limítrofes. AO LONGO DA VIDA 23 Continuo a achar que tem grande relevância a organização de viagens sobretudo em estratos com menos capacidade financeira e estratos mais frágeis, por exemplo os chamados seniores, os chamados jovens. Vamos a Centros de Interpretação onde estão funcionários desmotivados, que não têm formação sobre o que precisam de explicar, não têm nenhuma capacidade de atendimento e de cativação dos turistas e das pessoas que nos visitam. Porquê? Porque não houve a preocupação da formação. Carlos Mamede Como é que as pessoas nos próprios locais conseguem ser veículos promotores da sua cultura e como conseguimos sensibilizar os outros a ir à procura dessa cultura? É mais fácil ir a uma agência de viagens... Gabriela Botelho – Há o turismo de massas, de autocarro, e há o turismo de lazer. Esse é o que toda a gente quer porque é o melhor turismo que se pode ter. Estou habituada a trabalhar e a falar com pessoas que estão num segmento alto, que não querem turismo de autocarro à porta, querem turismo individual, de lazer. São turistas com preocupações culturais, preocupações ambientais. Na captação de um bom turista é preciso que haja um conjunto de infra-estruturas já montadas. Até há uns anos muita gente não ia de propósito à Batalha só para ver o Mosteiro ou se ia, ia de passagem, na viagem ao Porto. O que gostei de ver e é assim que se começa a traçar um destino, o hotel vende cultura mas também vende saúde e bem estar, com a preocupação de ter um spa, uma preocupação gastronómica. Ou seja, as pessoas vão ao monumento durante o dia mas ao fim da tarde podem lanchar, jogar uma partida de ténis ou de golf. Isto tem de ser um produto integrado para atrair um determinado tipo de pessoas e sobretudo prolongar a estadia. É o mais interessante para uma região, que a pessoa não passe só por lá mas que durma e fique numa estadia de mais de uma noite. Mas reconhece que há determinado tipo de destinos que são periféricos. Gabriela Botelho – Os Açores, por exemplo, estão longe, são a região mais periférica da Europa e a Ilha das Flores é o ponto mais ocidental. Cláudia Gomes – Mas temos de começar por um ponto de partida, fazer só uma coisa e deixar um ilha isolada não vai trazer turistas, isso é uma ilusão. É o que acontece em muitas terras do interior, metem-se em projectos de turismo rural que só por si não bastam, é preciso infra-estruturas que combinem entre si e se complementem de modo a seduzir o turista. Carlos Mamede – Acho importante, independentemente de nós gostarmos 24 APRENDER daquilo a que na Fundação Inatel chamamos auto-férias, as férias individuais escolhidas pelo cliente de acordo com o destino que deseja e com o figurino, continuo a achar que tem grande relevância a organização de viagens sobretudo em estratos com menos capacidade financeira e estratos mais frágeis, por exemplo os chamados seniores, os chamados jovens. Nós desenvolvemos um programa de turismo juvenil que envolveu, só no Verão, 1500 jovens, ficaram todos alojadas na Fundação Inatel, para o ano vamos fazer exactamente o mesmo programa com 5000 nas férias da Páscoa e nas férias do Verão e o sucesso é enorme e são programas que não são apenas de lazer, são educativos e ao mesmo tempo de lazer, não têm só uma função de desenvolvimento económico das regiões onde estão porque eles não estão fechados dentro do hotel, mas tem também uma função educativa clara, assumida, que é extremamente importante. Quando falamos em destinos falamos destes Centros de Interpretação, falamos da visita a monumentos megalíticos. Independentemente de estar de acordo com o que disseram acerca da importância da construção complexa do produto turístico e do destino turístico. Não há dúvida nenhuma que organizações como a Fundação Inatel são extremamente importantes nesse desenvolvimento. A principal concorrente da Fundação Inatel no que respeita às viagens não são os operadores turísticos, não são as agências de viagens, são as autarquias, porque não há Junta de Freguesia que não organize uma viagem, todas as Juntas gostam de ter o seu autocarro. Gabriela Botelho – Precisamos de um maior mediador, e o Inatel e as Juntas de Freguesia acabam por ser esse agente, esse veículo de ligação entre o visitante e o local. Isso e tão importante como fazer um projecto turístico de excelência. Num artigo sobre turismo era dito: “a viagem começa no preparar da viagem”, saber o que vamos ver e ao tentar procurar estamos a aprender”. Qual a importância desta preparação? Gabriela Botelho – A Europa é quem faz mais viagens de turismo cultural, 80% dos povos europeus contribuem para DOSSIER o turismo cultural. São claramente um tipo de povo que se informa muito bem e é muito interessante ver que, quando os turistas cá chegam, já trazem os guias que compram nos seus países sobre Lisboa, por exemplo, andam com eles na mão e cá procuram outras coisas, são turistas altamente informados. Tenho uma relação familiar com o turismo açoriano há três gerações. O meu avô foi o fundador da primeira agência de viagens em Portugal, a Agência Açoriana de Viagens, no início do séc. XX. Acompanhei isto sempre ao longo da minha vida, comentamos muitas vezes, estas pessoas sabem mais sobre os Açores do que as pessoas que vivem aqui. Isto porque hoje em dia há um conjunto de guias e de literatura já muito disponível e há os livros mais complexos sobre as próprias regiões e há livros como o meu, o meu é um pouco um guia, fala sobre Portugal, fala sobre as várias regiões turísticas de Portugal, com aspectos importantes ao nível das atracções histórico-turísticas e também do ponto de vista da selecção dos hotéis que são recomendados para usufruir desse mesmo produto turístico cultural. Não é por caso que muitos hotéis constituem eles próprios uma viagem cultural. Se pensarmos que uma pessoa vai para Sintra e se hospeda em Seteais está a usufruir, ao mesmo tempo, e a pernoitar num património com muita história. A pessoa, ao mesmo vai para aquela região fazer um turismo diversificado, desde golf até ao cultural mas também está a dormir num monumento nacional e todos os hotéis são também eles locais de história, locais de memória que nos reportam para este tipo de vivências em termos culturais e históricos. Quando se referia que os europeus eram cultos, sente que os portugueses também têm essa apetência cultural? Que se documentam, e se preparam? Carlos Mamede Vice-presidente da Fundação Inatel desde Setembro de 2008, com um percurso de gestor público nos últimos vinte anos, sobretudo ligado a projectos na reforma administrativa, designadamente com o projecto da Loja do Cidadão, e depois Presidente do Instituto que geriu as Lojas do Cidadão. Na Fundação Inatel tem a responsabilidade da área de Turismo e Hotelaria. Gabriela Botelho – O português não é, claramente, o povo que mais se interessa por turismo cultural. Carlos Mamede – Se entendemos que turismo cultural se define pelo turismo culturalmente informado, porque turismo cultural é visitar o Mosteiro da Batalha, sem mais coisas, é visitar – como visitar a Serra da Estrela. AO LONGO DA VIDA 25 Cláudia Gomes – Isso é demasiado redutor. Turismo cultural é toda a produção humana num determinado lugar, da maneira como se adaptou àquela paisagem, como a trabalhou, como a sobreviveu, como se diverte, como este lá toda a criação humana. Carlos Mamede – Não percebi a sua explicação. Cláudia Gomes – O turismo cultural abarca toda a criação humana, não estamos a falar do natural, estamos a falar do cultural, abarca toda a criação do homem num determinado lugar, desde a maneira como ele se exprime perante os deuses, como se trabalhou a paisagem. Carlos Mamede – Turismo em si é a deslocação de pessoas. Certo? Cláudia Gomes – É sem dúvida a maior deslocação espontânea no mundo de pessoas. O turismo é a deslocação voluntária para descobrir o outro e eu não vou descobrir o outro se só olho para o hotel de luxo, eu vou descobrir o outro no seu meio, com tudo o que ele fez. Carlos Mamede – Tuurismo de hotel de luxo não tem nada a ver com turismo cultural. O hotel de luxo pode ser um monumento importante para promover o destino turístico. Rosa Cláudia Gomes Representa a ágora – Propostas Culturais, uma empresa de Leiria que actua na área do turismo cultural. “Actuamos desde as escavações arqueológicas, as prospecções, o trabalho inicial, até à apresentação final ao público em projectos de turismo cultural.” Tem 34 anos, é formada em arqueologia pela Universidade de Coimbra, com pós-graduação na Universidade de Barcelona em Gestão de Projectos de Turismo Cultural, e outra em Museus e Turismo. Está a fazer o doutoramento em Turismo. 26 APRENDER Gabriela Botelho – Estou radicalmente em oposição. Um hotel pode ser um destino por si só. Até culturalmente falando. Em Seteais, Sintra, há pessoas que vão passar o fim-de-semana e para vivenciar um conjunto de experiências que tem a ver com o próprio hotel, mas podemos dar exemplos de hotéis que são, eles próprios, património. Quando eu tenho um hotel que ele próprio tem um livro de uma grossura considerável, por exemplo, o Convento de Espinheiro em Évora, todo ele é uma lição de cultura. Se sair da minha casa e ficar hospedada no Convento de Espinheiro, e comprar um livro sobre o Convento que tem cinco séculos de história e ler toda a história, desde a Dinastia de Avis, pernoitar no hotel, nos quartos onde os reis ficaram, acompanho uma parte da História de Portugal. Isto é turismo cultural. DOSSIER/DEBATE Cláudia Gomes – Esta ponta de seta do Neolítico que tenho aqui na mão é turismo cultural. Por isso é que digo que é toda a criação num determinado lugar. Tanto é turismo cultural o Hotel de Espinheiro como uma simples pedra, isto é uma ponta de seta em sílex, é o reflexo do homem num determinado lugar. Carlos Mamede – Eu sou muito pragmático. Para mim essa seta não é turismo cultural e o Hotel de Espinheiro também não é turismo cultural. Turismo cultural é ter capacidade de mostrar, ensinar e explicar o que é essa seta às pessoas que vão mudar de sítio. Se alguém for para o Hotel do Espinheiro e se não estiver lá nada dito o que é possível saber, a pessoa não fica a saber e não está a fazer turismo cultural. Gabriela Botelho – A pessoa que vai para um hotel destes tem, desde que chega lá, logo na recepção, alguém que lhe vai explicar o hotel, que lhe vai explicar a história, eles têm os próprios guias dentro do hotel. Cláudia Gomes – O turismo cultural recorre-se de instrumentos para aproximar o seu recurso, o seu legado, do turista e pode valer-se de variadas coisas. Imaginemos que isto era Paleolítico, vamos ao Vale do Côa, eu mostrava-lhe isto, você olha e diz, isto é uma pedra, uma pedra vulgaríssima. Se eu começar a explicar as particularidades desta pedra, dizer-lhe isto em 15 mil anos, isto foi um núcleo que foi desbastado consecutivamente por um grupo de caçadores-recolectores, seguiu várias fases de desbaste até conseguir esta que era considerada uma espécie de foguetão da altura, isto era o topo da tecnologia há 15 mil anos atrás, se eu começar a explicar isto, se eu o convidar a fazer o encaixe de um pau, a simular uma caçada de um mamute ou de um veado você está dentro de uma estratégia de turismo cultural, vai aprender a história, vai enriquecer-se, vai sentir-se valorizado. Nós temos estratégias que nos ajudam a perceber o lugar, não temos de ser todos especialistas em geologia, em arqueologia, em arquitectura, em história, em política, temos técnicos que nos ajudam a perceber isso numa linguagem simples, acessível, sem muitos termos técnicos. Temos de fazer com que o turismo cultural se recorra de certos instrumentos para se valorizar e se mostrar e explicar e aproximar das pessoas. Só olharmos para os monumentos não chega, é preciso que eles nos sejam explicados. Nós temos estratégias que nos ajudam a perceber o lugar, não temos de ser todos especialistas em geologia, em arqueologia, em arquitectura, em história, em política, temos técnicos que nos ajudam a perceber isso numa linguagem simples, acessível, sem muitos termos técnicos. Cláudia Gomes Gabriela Botelho – Existem em termos de conceptualização do turismo cultural três variantes. O turismo cultural dividese e resume o nosso testemunho aqui, em primeiro lugar o turismo patrimonial, em segundo lugar o turismo de um lugar específico e finalmente o turismo de arte. Se pensarmos um pouco o turismo cultural, são estas três variantes levadas nos vários aspectos que estávamos aqui a dizer. Se eu fizer uma caminhada a pé, posso estar a fazer ao mesmo tempo um turismo ecológico e cultural. Eles complementam-se? Gabriela Botelho – Temos de precisar conceitos, como sabe temos muito produtos turísticos, em última análise todo o turismo é cultural porque todo o turismo tem uma base cultural e educativa. Isso é uma forma muito abrangente. O turismo está numa relação directa, numa dialéctica constante com a sociedade, com o homem, com a cultura. Cláudia Gomes – Há investigadores que dizem que sempre que nos deslocamos a determinado sítio estamos a fazer turismo cultural porque vamos aprender sempre qualquer coisa. Será talvez fácil convencer uma pessoa que vai a um Centro de Interpretação que está a adquirir cultura. Mas terá essa noção se visitar uma aldeia e se ficar a saber como as pessoas cozinham ou que tipo de roupa usam? Carlos Mamede – Na aldeia de Piódão há um museu etnográfico e de facto tem toda a história da aldeia e do viver das gentes da aldeia. Isso é turismo cultural. Naquele mesmo sítio começa o trilho que a Fundação Inatel fez, temos caminheiros que se alojam na nossa estalagem de Piódão, descem à aldeia, ficam a conhecer a aldeia, fazem turismo cultural e fazem turismo de natureza. Gabriela Botelho – O que acontece é que, quando as pessoas saem das suas casas e vão em viagem para fazer um tipo de turismo, fazem mais do que um, em termos conceptuais. Isto não está espartilhado, não está completamente compartimentado, o turismo cultural AO LONGO DA VIDA 27 e o turismo de natureza completam-se muito. O que não quer dizer que não sejam produtos turísticos distintos, com estratégias distintas e que há regiões que têm mais oportunidades turísticas que outras. Quando se visita uma comunidade acontece que ou sentimo-nos por vezes uns estranhos, ou então estamos a confrontar-nos com uma realidade estereotipada, para turista ver... Cláudia Gomes – Senti isso recentemente em Trás-os-Montes. Ficámos em casinhas de turismo rural e fomos fazendo as várias aldeias de Montesinho. Queríamos falar com pessoas, sobretudo as mais idosas, uma população muito envelhecida e aquele feedback não foi conseguido, olhavam para nós com desconfiança. Gabriela Botelho – Isso é normal nos lugares mais fechados, mais longínquos, onde as pessoas têm menos contacto com o exterior. São características das próprias populações locais, acontece muito isso nas ilhas dos Açores. Como se poderia incentivar essa aproximação? Cláudia Gomes – Seria interessante de parte a parte, sem desvirtuar a própria identidade local, uma aculturação q.b. mas teria que ser a trabalhar com as próprias populações locais, entre as associações de desenvolvimento local, quem lida com as pessoas para que estejam receptivas ao visitante que vem do exterior. Gabriela Botelho – Isso leva-nos a outros aspectos sobre o contacto com as populações locais. Há muitos destinos turísticos em termos mundiais que captam imensos turistas por ano e que não há contacto quase nenhum com as populações, as pessoas saem daqui e metem-se num resort em Punta Cana e não convivem com ninguém que vive na Republica Dominicana. Carlos Mamede – Isso tem a ver também com uma outra coisa que é o papel das autarquias na valorização dos seus recursos e passa também pela formação dos agentes que fazem a promoção desses 28 APRENDER recursos. Por isso vamos a Centros de Interpretação onde estão funcionários desmotivados, que não têm formação sobre o que precisam de explicar, não têm nenhuma capacidade de atendimento e de cativação dos turistas e das pessoas que nos visitam. Porquê? Porque não houve a preocupação da formação. Esse é um aspecto muito importante. As autarquias têm um papel absolutamente fundamental em relação ao turismo cultural. Um ponto de vista que é cada vez mais importante, há muitos recursos públicos que não se pode requalificar porque não há dinheiro, antigos castelos, por exemplo. Nunca me esqueço de um, num sítio onde muitas vezes passei férias, na Costa Alentejana, que são os dois castelos na Ilha e na Costa da Ilha do Pessegueiro. São bons castelos que, se fossem recuperados pela iniciativa privada, isto é, se a autarquia fosse capaz de captar o investimento privado dando-lhe condições de reprodução e de valorização, teríamos muito mais produto turístico cultural, muito mais capacidade de atracção do turista. Em muitos sítios onde isto é feito, é feito incompletamente, porque não há formação dos agentes que devem promover, valorizar, ensinar. Cláudia Gomes – Falta sensibilização dentro das autarquias. Quando lhe apresentam projectos, que olhem para eles com os mesmo olhos com que olham para os parques industriais que estão a fazer. Muitas vezes tratam o património ou estas coisas complementares ao turismo como o parente menor, qualquer coisa que está ali no município mas que não serve para muita coisa. Carlos Mamede – Para além disso tudo, é preciso ir buscar quem invista e às vezes não se consegue. O turismo é também uma das áreas mais importantes para o país a nível de emprego. Carlos Mamede – É sem dúvida um sector estratégico para Portugal, mas como costuma dizer o Prof. Silva Lopes, cheio de razão, o nosso grande problema, o nosso principal problema é que nós, ao contrário dos restantes países da Europa, não tivemos relações exteriores e tivemos um interregno de 50 anos que nos atrasou ainda mais e não temos capacidade produtiva instalada e cada vez que há um problema a nossa capacidade de resistência é dez vezes inferior à dos outros. Não é por acaso que a Irlanda está hoje com um défice público de 32% e com mais capacidade de resistir do que Portugal que tem um défice público de 8,4%. O turismo é muito importante mas é muito importante encarado como indústria. E é importante o turismo sem desprimor da grande importância que tem, conseguirmos ter capacidade produtiva efectiva instalada neste país. O sector terciário é muito interessante mas é para vender aquilo que os outros fazem, é preciso que alguém faça, se não estamos a vender o que os estrangeiros fazem e lá está o problema da importação. E quais são as potencialidades da exploração do artesanato? Cláudia Gomes – Nós temos um artesanato fantástico e todas as nossas aldeias do interior se podiam reerguer a partir daí com indústrias criativas. Falta trabalhar as pessoas, quem está no terreno, as autarquias, as juntas de freguesia também têm de incentivar, seduzir as pessoas para investir e não para deixar morrer, e para inovar. Fazer a simbiose entre o passado e o presente. Gabriela Botelho – Tenho visto muito uma preocupação de ir buscar, a nível das compotas, ao nível dos têxteis, dos licores, algumas tradições antigas e pessoas que faziam isso de uma forma caseira. E tenho visto isto dentro dos hotéis que muitas vezes oferecem, nos vip’s, como prendas no quarto, uns licores típicos da região, umas compotas, tenho visto esta preocupação de buscar aquilo que é um produto autêntico daquele local onde a unidade hoteleira está inserida e trazêlo para dentro do hotel. Tenho assistido a uma atenção muito maior que há dez anos atrás. A nova geração está com esta preocupação de não deixar perder. Cláudia Gomes – Essa é uma aposta rentável de fixação de pessoas. O património está na moda. Os aspectos culturais estão todos na moda. Tudo o que é feira medieval, artesanato, gastronomia passa a ser um “boom” muito interessante. DOSSIER/DEBATE Gabriela Botelho – Há aqui um conjunto de aspectos ligados ao turismo cultural, as feiras, as rotas, as rotas temáticas, o vinho também é um produto interessantíssimo, todas as regiões ligadas ao vinho estão a trabalhar muito bem. Falta-nos mais marketing para nos promovermos lá fora. Não temos produtos inferiores aos franceses, nos vinhos, nos queijos. Não temos ainda é o marketing. Carlos Mamede – É fundamental para que fora de portas haja um reconhecimento e a vontade de viajar, visitar, conhecer e comprar produtos portugueses desse tipo, que é a construção de destinos turísticos completos, que associam todas as vertentes, associam o vinho, a qualidade da unidade hoteleira, a qualidade dos transportes para lá chegar, a qualidade das acessibilidades. O Douro Vinhateiro, para ser verdadeiramente um destino apelativo a toda a Europa, tem de ter acessibilidades que, neste momento, não existem. O que é que gostariam que acontecesse em Portugal na área do turismo? Cláudia Gomes – Eu gostaria que começássemos a pensar em projectos integrais, transversais e dentro da excelência. Sempre sobre estes três princípios. De contrário não vale a pena. Gabriela Botelho – Eu gostaria de ver ligado à excelência a própria formação, essa preocupação de excelência dos quadros e deixássemos de menos politiquices e politiqueiros e puséssemos as pessoas que sabem trabalhar à frente de muito do trabalho Carlos Mamede – A nossa mensagem é que a Fundação Inatel, agora que já não é um Instituto Público, é uma Fundação de Direito Privado, voltou a ser uma instituição para todos os portugueses e uma instituição que precisa de ser, merece ser e tem que ser acarinhada nas suas três grandes vertentes que são a sua missão social, a promoção da cultura, a promoção do desporto popular. Somos a organização que mais promove quer uma coisa quer a outra, e a promoção do turismo social, porque é desse que falamos e é desse sobretudo que tratamos e que faz com que tenhamos neste momento já dezassete hotéis, quatro parques de campismo, e muita gente ainda não sabe que pode utilizar, com preços imbatíveis, estas unidades e pode utilizá-lo sendo sócio ou não da Fundação Inatel. É este o meu desejo, que cada vez mais pessoas estejam abertas a esta realidade, conheçam esta realidade e usufruam desta realidade. n AO LONGO DA VIDA 29 TURISMO ÉTICO E SOLIDÁRIO O movimento por um Turismo ético, responsável e solidário tem origem na Europa com base nos princípios do Comércio Justo. É o ponto de partida para o desenvolvimento sustentável do sector. A prática de um Turismo Ético Responsável e Solidário além de ajudar as comunidades dos países de destino, é um instrumento importante na consciencialização dos turistas do Norte face às grandes diferenças existentes em relação aos países do Sul. O confronto com a realidade, tomando conhecimento no local visitado das desigualdades, injustiças, etc., levarão à adopção de atitudes mais solidárias nas suas vidas quotidianas em relação ao Sul, tanto no que diz respeito ao consumo responsável como a um comportamento mais reivindicativo no que toca a políticas que visem a diminuição e, se possível, a extinção dessas mesmas desigualdades. Sendo o Turismo uma importante actividade económica (maioritariamente assente em bases economicistas e de exploração humana), torna-se imprescindível que os movimentos ligados ao Turismo Ético e Solidário se desenvolvam em conjunto com o Comércio Justo e, de forma mais alargada, inseridos nas redes de economia solidária. 30 APRENDER Carta do Turista Responsável Países longínquos, exóticos, praias de sonho, vistas encantadoras, estruturas de acolhimento com todos os confortos: estas férias são as que, em geral, nos propõem as agências! Nenhuma atenção (ou quase) é dada à realidade do país que se vai visitar: quais as condições de vida da população local? Quais os impactos da nossa presença no território? Quem são os verdadeiros beneficiários das nossas férias? Férias responsáveis Há uma maneira de viajar cuja característica principal é ter consciência de nós próprios e das nossas acções, da realidade dos países que visitamos, da possibilidade de uma escolha bem pensada, diferente. Isto é Turismo Responsável: quando viaja significa que vai ao encontro dos outros países, das pessoas e da natureza, com respeito e disponibilidade. Quando viaja significa que escolhe não dar apoio à destruição e à exploração, bem pelo contrário, ser vector de princípios de justiça e ser sustentável, com reduzido impacto ambiental e sobretudo cultural, a ponto de se estabelecerem verdadeiras relações entre visitantes e visitados. Os números do turismo 6 mil milhões de pessoas, em cada ano, deslocam-se de um lugar para outro. 127 milhões de pessoas trabalham neste sector (1 em cada 15 com ocupação no mundo!) Uma facturação semelhante a 6% do Produto Interno Líquido do planeta. O turista não pode ser apenas um veraneante despreocupado, tem de ser também testemunha de uma realidade muitas vezes difícil e nem sempre agradável de ver. É necessário que os viajantes ganhem consciência do seu papel de consumidores do produto viagem, do qual depende a qualidade da oferta e o destino de milhões de outros indivíduos nos lugares de destino. DOSSIER/ARTIGO O turista responsável é aquele que toma consciência do fenómeno na sua complexidade, e de que o encontro com “o outro” não é um problema a menosprezar, ou a ignorar, mas, pelo contrário, deve ser analisado com responsabilidade. Para viajar de Olhos Abertos! Em suma, o turismo responsável visa partilhar experiências de crescimento interior e de respeito pelos visitados. Quem viaja deve estar de “olhos abertos”, tendo sempre o cuidado de não “invadir” as sociedades locais para que permaneçam donas das suas vidas. É provável que um viajante consciente assuma também na sua vida quotidiana, atitudes responsáveis em relação ao Sul do mundo. Apenas desta forma vai ser possível falar do turismo como valor humano, como oportunidade de troca e de aproximação entre culturas. Algumas consequências do turismo de massas: - Impacto ambiental, cultural, social e económico muitas vezes devastador. - Perca de valores e tradições (sobretudo nos países do Sul do mundo) - Redução dos recursos e mal-estar social não compensados por uma justa redistribuição do lucro obtido. - A possibilidade de encontro e de troca entre turistas e população local é, na maior parte dos casos, fictícia ou limitada a experiências rápidas e artificiais, se não mesmo desrespeitadoras das realidades visitadas. “Bilhete de Identidade” para Viagens Sustentáveis “Turismo Responsável: Bilhete de Identidade para Viagens Sustentáveis” é o nome do documento assinado, nos anos 90, por algumas associações do sector. O objectivo comum é promover uma forma de viajar que respeite as comunidades locais, que tenha fraco impacto ambiental e que garanta uma justa distribuição dos lucros. No “Bilhete de Identidade” evidenciam-se alguns pontos chave: antes, durante e depois da viagem: três fases temporais diferentes que devem ser analisadas com base em indicações concretas, para que se possa realizar uma viagem verdadeiramente responsável. Antes da viagem Ao viajante: - interroga-se acerca das reais expectativas e das motivações da sua viagem; - informa-se e pede informações correctas aos organizadores, não só acerca dos aspectos técnicos e logísticos da viagem, mas, também, do contexto sociocultural que vai visitar, pedindo catálogos realistas nos quais o país a visitar não é apresentado de uma maneira falsa e tendenciosa ou até ambígua (por ex.: turismo sexual) ou manipulada (por ex.: as tradições culturais vendidas “em saldo”); - faz contactos, se possível através dos organizadores, com realidades dos locais que o podem alojar; - está disponível para encontros preparatórios com os seus futuros companheiros de viagem e/ou com o acompanhante; - pede aos organizadores garantias sobre a viagem, do ponto de vista ético (privilegiando entre outros: alojamento, restaurantes, estruturas, transportes compatíveis com o ambiente), social (por ex.: pedindo às autoridades dos países de destino a garantia de um desenvolvimento turístico compatível; privilegiando serviços de acolhimento de acordo com a cultura do lugar; escolhendo parceiros locais que respeitem as normas sindicais mínimas estabelecidas pela Organização Internacional do Trabalho) e económico (privilegiando serviços de acolhimento de tipo familiar ou de pequena escala; escolhendo serviços locais em que a diferença de acesso entre o viajante e as pessoas do lugar seja mínimo); - pede transparência em relação ao valor, no sentido de saber que percentagem do preço final fica para as comunidades visitadas; - privilegia viagens que garantam a máxima possibilidade de escolha no que respeita a tempos e conteúdos, e organiza itinerários com tempos que não obriguem a pressas; - informa-se sobre as normas de comportamento aconselháveis; - não favorece o turismo do comércio sexual e desencoraja, por todos os meios, a prostituição e a pornografia infantil. Durante a viagem Ao viajante: - considera positivo partilhar os vários aspectos da vida quotidiana local e não exige privilégios ou práticas que possam causar um impacto negativo; - não ostenta riqueza e luxo contrastantes com o nível de vida local; - pede a autorização das pessoas e dos lugares filmados ou fotografados; - não adopta comportamentos ofensivos dos usos e dos costumes locais; - procura produtos e manifestações que sejam expressão da cultura local (por ex.: artesanato, gastronomia, arte, etc.), protegendo as identidades autóctones; - respeita o ambiente e o património histórico e monumental Após a viagem Ao viajante: - verifica se conseguiu estabelecer uma relação satisfatória com as pessoas e com o país visitado; - avalia a forma de dar continuidade às relações estabelecidas. Para mais informações sobre Turismo Ético consultar: A Mó de Vida é uma Cooperativa de Comércio Justo em Almada que se tem dedicado ao Turismo Ético e Solidário www.modevida.com/turismo.html Rede Internacional do Comércio Justo no Turismo / Tourism Concern www.tourismconcern.org.uk TEN - Rede Europeia Ecuménica de Turismo / Tourism European/Ecumenical Network www.ten-tourism.org AO LONGO DA VIDA 31 Grupo Lobo © Artur V. Oliveira DOSSIER/REPORTAGEM O LOBO BOM Texto de Cristina Portella # Fotografias de Paulo Figueiredo É ao cair da tarde que melhor se pode ver o lobo. Já perto das sete horas da tarde cerca de 30 pessoas, na sua maioria adultos, mas também algumas crianças chegam ao Centro de Recuperação do Lobo Ibérico para ficar a saber mais sobre esse animal do qual existem tantos mitos, lendas e que ao contrário, do que geralmente pensamos, é o homem que é seu predador. A visita ao centro começa quando o sol já vai desaparecendo no horizonte, porque é nesta altura do dia que os lobos, como animais nocturnos que são, passam a movimentar-se e será possível vê-los. Alertam-nos para não tentarmos tocá-los por entre as grades. Afinal, não são animais domésticos e pouca ou nenhuma familiaridade têm com as carícias humanas. Mesmo o casal de irmãos mais popular do centro, Soajo e Faia, não devem ser tocados. Faia nasceu no centro em 2008 e ali foi criada por técnicos e voluntários, sendo por isso bastante sociável. O nosso guia vai ser o biólogo Francisco Fonseca, professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e presidente do Grupo Lobo que, numa pequena sala circular onde ficam expostos painéis com informações e fotos de lobos, nos dá algumas informações preliminares sobre o Centro de Recuperação do Lobo Ibérico e o percurso que iremos realizar. O Centro ocupa uma área de 17 hectares na freguesia do Gradil, concelho de Mafra, e abriga actualmente nove lobos, dos quais duas fêmeas, divididos em oito cercados. São animais que, apesar de não serem domesticados, não conseguiriam viver em liberdade. Alguns nasceram em cativeiro, enquanto outros foram para ali trazidos depois de terem sido feridos ou maltratados. O centro chegou a alojar 33 lobos, mas, para que não haja excesso de animais, a reprodução é planeada, sendo alguns submetidos à vasectomia. “A reprodução não é o objectivo do centro”. Os objectivos do centro são outros, estimular a realização de estudos sobre o comportamento do animal e promover acções de educação ambiental, direccionadas a diferentes públicos, que dêem a conhecer o verdadeiro lobo. “Não queremos idolatrar o lobo, mas dar informações para que a sociedade possa decidir se devemos ou não protegê-lo”, esclarece Francisco Fonseca. O centro é uma instituição privada, criada em 1987 pelo Grupo Lobo, cuja área ocupada pertence à fundação suíça Bernd Thies. O Grupo Lobo, por sua vez, é uma associação não governamental, sem fins lucrativos, fundada em 1985 para trabalhar pela conservação do lobo e do seu ecossistema em Portugal. AO LONGO DA VIDA 33 A má fama do lobo Ao contrário do que poderíamos pensar, na região escolhida para albergar o Centro de Recuperação do Lobo Ibérico não existem lobos. E este facto não foi aleatório à escolha. Pelo contrário, procurou-se justamente um local em que estes fossem inexistentes. Por quê? Porque, como explicou o professor, a maioria das pessoas de áreas onde há lobos não gostam deles. Esta má fama do lobo teria a ver com um mito muito antigo, estimulado na Idade Média pela Igreja Católica e transmitido por lendas, contos e versos populares, em que este animal estaria associado à figura do demónio e outros símbolos do mal. Mas, como toda mentira convincente, esta também tem um aspecto verdadeiro: o mito do lobo mau está ancorado na sua actividade predadora contra o rebanho e outros animais domésticos, provocada pela escassez das suas tradicionais fontes de alimento, como coelhos, lebres e javalis, entre outros, em virtude da ocupação humana. Por isso, os pastores são uns dos maiores inimigos dos lobos e promovem a sua caça. É para neutralizar esse ódio ancestral, e preservar a vida de uma espécie sempre ameaçada, que uma das actividades do Grupo Lobo é fornecer cães de gado aos pastores para proteger os seus rebanhos. Em Portugal, as quatro raças reconhecidas são Castro Laboreiro, Serra da Estrela, Rafeiro do Alentejo e Transmontano. O facto de ser um predador não significa que o lobo seja um animal agressivo ou que obtenha sucesso na maior parte das suas empreitadas. A percentagem de êxito nas suas tentativas de ataque é inferior a 10%, uma realidade bastante diferente da exibida pelos documentários. Quanto aos seres humanos, estes podem ficar descansados porque não é considerada uma presa para este animal. “O lobo vê o homem como um competidor; depois passa a entender que é a presa de um predador.” Por isso, ao contrário do que se pensa, o lobo não enfrenta o homem, mas foge dele. Ao contrário do que acontece na natureza, onde só percebemos a presença de lobos através de vestígios – dejectos, pegadas, reclamações dos pastores por terem matado um animal do rebanho –, no Centro de Recuperação do Lobo Ibé- 34 APRENDER rico eles aparecem com regularidade. E a cada vez que isso acontece, um certo frenesi perpassa o grupo. Pequeno em comparação com outros da sua espécie, com pelagem castanha, o focinho avermelhado e uma juba à volta do pescoço, o lobo ibérico, ou Canis lupus signatus, pesa em média 35 quilos, com 2 anos é adulto e, aos 10, quando em liberdade, pode ser considerado idoso. O lobo ibérico integra a espécie dos lobos cinzentos (Canis lupus), subdividida em cerca de 30 subespécies. Ao longe, e aparentemente indiferente ao olhar curioso dos visitantes, mais parece um inofensivo e vulgar cão doméstico, aliás, seu descendente. “Os lobos estão agora onde os homens permitem que eles estejam”, destaca Francisco Fonseca. Praticamente confinados, no caso de Portugal, ao Norte do país, onde se estima que existam cerca de 300 lobos, no passado povoavam até o Algarve. “O lobo não é animal de serra, mas uma espécie com grande capacidade de adaptação.” Actualmente, no Centro e Sul do país não vivem mais de 20 a 30 animais. Na Península Ibérica, devem existir entre 1.500 a 2.000. A sua história na Europa não é das mais famosas. Praticamente extinto na Inglaterra no século XV, o lobo foi exterminado na Irlanda no século XVIII. Na Suíça e França teve o mesmo destino desde meados do século XIX. A boa notícia é que, fruto de uma maior consciencialização da população e dos governantes sobre a necessidade de preservar a espécie, mas também, em alguns casos, pela desertificação de grandes áreas rurais em muitos países, como Portugal, o número de lobos até tem vindo a aumentar. “O último censo mundial, realizado em 1998, refere a presença de lobos em 43 países: em 83% destes o número de lobos é estável ou tende a aumentar, e em 17% o número de lobos está a diminuir”, informa o sítio do Grupo Lobo na Internet (http:// lobo.fc.ul.pt/). Na Europa, o lobo é protegido na maioria dos países pela Convenção de Berna e por directivas comunitárias. A família Santos Entre os participantes da visita está a família Santos: Regina, Rui e as duas fi- A má fama do lobo teria a ver com um mito muito antigo, estimulado na Idade Média pela Igreja Católica e transmitido por lendas, contos e versos populares, em que este animal estaria associado à figura do demónio e outros símbolos do mal. DOSSIER/REPORTAGEM Conhecer o homem Para Regina Santos, a figura do lobo também fascina porque remete a um passado misterioso, cheio de misticismo. “Na primeira vez que aqui viemos, começámos a uivar, e os lobos responderam. Sentimos um arrepiozinho na espinha. Fez-nos recordar um lado nosso selvagem, primitivo”. “O lobo uiva para demarcar território e comunicar com os seus companheiros”, explica o professor. É possível – após algum treino – identificar inclusive o autor do uivo, uma forma de comunicação que tanto amedrontou os nossos antepassados e inspirou incontáveis histórias de terror. “O lobo moldou a cultura europeia”, admite o professor. E dá exemplos com vários séculos de idade, além das lendas e histórias de arrepiar: os cães de guarda existiriam por causa dos lobos, assim como o fojo do lobo, uma armadilha para capturá-los feita de pedra, ainda bastante encontráveis no norte ibérico. O professor Francisco Fonseca estuda lobos desde 1977, quando ingressou na faculdade. Hoje, uma das suas mais importantes actividades relaciona-se com a tantes, pois a visita está quase a terminar e quase alcançamos a sede. “Estudar o lobo é conhecer as pessoas”, sintetiza o professor. “É totalmente mágico”, acrescenta Regina. n © Grupo Lobo lhas, de 9 e 12 anos. Eles vivem na Amadora e esta é a segunda vez que vêm ao Centro de Recuperação do Lobo Ibérico. “Nunca fizemos do lobo o lobo mau. A mais velha gosta muito de lobos”, explica Regina. A sugestão do passeio foi dada pela cunhada e rapidamente aceite pela família. “Não é como ir ao zoológico, é mais enriquecedor, ficamos a conhecer melhor o nosso meio-ambiente e tudo o que fazem para cuidar dos lobos.” Durante o percurso, o professor Francisco Fonseca comenta a dieta dos animais em cativeiro. Eles são alimentados duas a três vezes por semana, com carne certificada de frango ou vaca, lançada por cima da cerca. Da dieta alimentar dos lobos do centro nunca constam carne de porco, pela rapidez com que se deteriora, e animais vivos, em respeito pelos animais. Em liberdade, a sobrevivência lupina é bastante mais dura – o lobo, às vezes, percorre dezenas de quilómetros para conseguir apanhar uma presa. Esta seria uma das razões a explicar por que este canídeo é um animal social. “O lobo vive em grupo; a alcateia, com a sua organização hierárquica bem definida, é uma família. É um animal social porque caça animais maiores que ele”, assinala o professor. Durante uma caçada, pode perseguir a presa por muitos quilómetros porque se reveza com outros membros da alcateia. A solidariedade entre os membros da alcateia também é demonstrada pelo facto de todos os lobos adultos se responsabilizarem pela alimentação e protecção das crias, sejam ou não os seus procriadores. O número de lobos na alcateia depende do espaço e da comida disponíveis, sendo imprescindível a existência de uma fonte de água, para saciarem a sede e banhar-se no Verão. Francisco Fonseca divulgação desse conhecimento adquirido em tantos anos de estudo. “É importante conhecermos aquilo que nos rodeia e transmitir à população.” O Grupo Lobo organiza acções de divulgação para alcançar diferentes públicos em escolas, universidades, feiras ambientalistas ou de cães e no Centro de Recuperação do Lobo Ibérico, como esta visita na qual participámos. “Os adultos chegam aqui com a percepção diferente do que vão ver e saem com uma ideia diferente do lobo. Há pessoas que vêm aqui várias vezes.” É caso da família Santos: “Não nos importa voltar aqui outra vez”. Já é noite fechada, algumas lanternas iluminam a trilha de cascalho que percorremos a conhecer o habitat de Aura, Douro, Fagus, Faia, Minho, Olmo, Prado, Soajo e Teixo, os lobos do centro. Ouvimos alguns uivos, agora mais dis- O lobo vê o homem como um competidor; depois passa a entender que é a presa de um predador. Por isso, ao contrário do que se pensa, o lobo não enfrenta o homem, mas foge dele. AO LONGO DA VIDA 35 Recursos a Propósito de Viagens RECURSOS O tema viagens é inesgotável e uma simples pesquisa na internet lhe irá disponibilizar uma quantidade imensa de sites. As sugestões de recursos que apresentamos são um mero ponto de partida para outras tantas descobertas. Por Madalena Santos 36 APRENDER LIVROS Colecção Literatura de viagens Tinta da China Literatura de Viagens, de Fernando Cristóvão, Edições Almedina Já foram publicados uma dúzia de livros por esta editora com temas tão diversificados como o relato de um escritor (Peter Carey) da viagem ao Japão que fez com o seu filho, guiados pela paixão do filho por Manga (banda desenhada japonesa), passando pelo retrato inesperado de Julien Green da cidade de Paris, escapando ao lugarcomum e descrevendo uma Paris íntima e privada, lugar de memórias e de descobertas, até ao “Na Síria” de Agatha Christie que faz um relato impressivo e divertido das temporadas passadas no deserto sírio, onde terá desenvolvido muitos dos seus policiais. www.tintadachina.pt/themes.php?code =7442ce97ebbbf7acafdfb75f512e6fd1 A viagem tem sido, desde sempre, uma forma de conhecimento, de diálogo e de mudança. Dai a tradição de a registar para memória e testemunho, em textos de grande espontaneidade, ou em verdadeiras peças literárias. Assim, ao longo da História, e reportando-nos à literatura de viagens europeia, sobretudo a partir do século XV, em fase tradicional, os relatos de viagem são de tipo aventureiro, pelas dificuldades e perigos que abundavam, descrevendo peregrinações, descobertas, conquistas, comércio, em especial. Na fase seguinte, iniciada com o Turismo, no séc. XIX, em transportes rápidos, seguros (comboio, navio a motor, automóvel...), a nova mentalidade criou novos textos descrevendo as viagens de lazer, de grandes reportagens, de descoberta de mundos exóticos, de reportagens de guerra, de turismo religioso... Com as novas tecnologias do vídeo, telemóvel, computador e seus relatos brevíssimos, carregados de imagens, estaremos a assistir a uma novíssima literatura? É desta evolução da literatura de viagens que se ocupa esta obra. DOSSIER/RECURSOS A Arte de Viajar, de Alain de Botton, The Lonely Planet Guide to Experimental Travel Turismo Científico em Portugal - um roteiro Dom Quixote Lonely Planet Assírio & Alvim Neste livro, Botton fala dos prazeres e desilusões de viajar. Tratando, entre outras coisas, de aeroportos, tapetes exóticos, romances de férias e minibares de hotel, este livro cheio de humor, surpreendente e provocador, revela as motivações escondidas, expectativas e complicações das nossas viagens por esse mundo fora. Acompanhando o autor nesta viagem encontramse escritores, artistas e pensadores que foram inspirados pela viagem em todas as suas formas: Gustave Flaubert, Edward Hopper, Baudelaire, Wordsworth, Van Gogh, Ruskin – todos eles preparados para nos darem as suas visões sobre o curioso negócio de viajar. O antídoto perfeito para aqueles guias que nos dizem que fazer quando lá chegarmos, A Arte de Viajar tenta explicar porque é que escolhemos tal sítio em primeiro lugar – e sugere, modestamente, como podemos aprender a ser mais felizes nas nossas viagens. Será só mais um guia de viagens da famosa colecção Lonely Planet? Bem, é mesmo um Guia, mas nada semelhante aos habituais guias. Esqueça as viagens em pacotes pré-fabricados, com itinerários totalmente previsíveis e bem definidos. Arrisque, explore e aprenda… Os tempos actuais convidam a que se viaje com imaginação, por exemplo, observando com novos olhos ou novos ‘óculos’ o que já consideramos familiar, desenhando percursos com regras estranhas ou com pontos de partida (e chegada) inesperados, ou ainda viajando com intenção de ‘produzir’ ou ‘construir’ algo mais do que memórias com o que vivemos. Este Guia é um verdadeiro passaporte que nos oferece 40 boas ideias para ajudar a planear e a concretizar as tais ‘Viagens experimentais’. Além das ideias, apresenta-nos ainda relatos de intrépidos viajantes experimentais que nos mostram não só que essas viagens são possíveis mas como podem ser aliciantes, divertidas e enriquecedoras. Pode ainda alargar o leque de ideias recorrendo ao site www.lonelyplanet. com/experimentaltravel/ O objectivo deste livro é dar a conhecer, aos portugueses e estrangeiros que se interessam por ciência, uma série de locais e entidades que, doutra forma, poderiam passar despercebidos. Organizado de uma forma lógica e concisa, de forma a facilitar a consulta. Tratando-se de um guia, está organizado por regiões (Lisboa e Vale do Tejo, Norte, Centro, Alentejo, Algarve, Açores e Madeira). Por sua vez, cada uma destas grandes unidades geográficas está dividida nos concelhos que a integram, sendo estes apresentados por ordem alfabética. AO LONGO DA VIDA 37 DOSSIER/RECURSOS REVISTAS VIDEOS SITES Na Net encontram-se muitos sites de interesse relacionados com este tema. Na lista a seguir apresentamos alguns exemplos muito diversificados que podem ser pontos de partida para outras ligações. Viagens com Michael Palin Revista Itinerante Há cerca de um ano surgiu a Itinerante das Edições: Itinerante – Divulgação Histórica e Cultural, crl, uma revista quadrimestral em que cada número é organizado por temas: “Invasões Francesas” (Nov. 2009 – Fev. 2010) “Faróis Portugueses” (Março – Junho 2010), “Caminhos de Santiago” (Julho – Outubro 2010) “República” (Novembro 2010 – Fevereiro 2011). Existe ainda um número especial sobre as Linhas de Torres Vedras recentemente publicado. Cada número está organizado em três secções - Caminhar, Conhecer e Conviver. No “Caminhar” sugerem-se trilhos e fornece-se informação necessária para os percorrer com autonomia, podendo essa orientação ser feita através da carta topográfica, da descrição do caminho e/ou com o GPS. No “Conhecer” há rubricas que vão de simples curiosidades, a artigos teóricos escritos de uma forma clara e objectiva, e entrevistas a especialistas do tema do dossier. De realçar que, para cada número, existe um consultor científico desta secção. No “Conviver” encontra-se indicações, por exemplo, de alguns restaurantes nos percursos dos trilhos onde se pode conviver. A Itinerante apresenta-se com um grafismo cuidado, não descurando a preocupação de apresentar fotografias a duas páginas visualmente muito agradáveis. Como complemento da revista existe um site (http://itinerante.pt) onde pode recolher mais informação da revista, fazer “download” dos trilhos para GPS e partilhar informação e experiências através de um blogue do “Facebook” ou do “Twitter”. 38 APRENDER O primeiro documentário de viagens de Palin (um dos elementos dos Monty Pyton) foi na série de BBC de 1980, Great Railway Journeys of the World, no qual recordou humoristicamente o seu passatempo de infância de viajar de comboio. A partir de 1989, Palin passou a apresentar séries de viagens para a BBC. Estes programas já foram transmitidos em todo o mundo e alguns deles em Portugal, estando parte deles editados em DVD. Alguns programas: Volta ao Mundo em 80 dias (1989): uma viagem que seguiu o mais próximo possível a do romance de Júlio Verne, sem recorrer a transportes aéreos. De Polo a Polo (1992): viagem desde o Pólo Norte até ao Polo Sul através da linha 30º E de longitude, andando o mais possível por terra. A Nova Europa de Michael Palin (2007): viagem pelos países da Europa de Leste. Depois de cada viagem, Palin escreveu livros sobre as mesmas, onde revelou aspectos e informações que não foram incluídos nos programas. Cada livro é ilustrado com fotografias de Basil Pao. Os programas de viagens de Michael são responsáveis pelo chamado “Efeito Palin”: as áreas do Mundo que visita, tornam-se repentinamente atracções turísticas populares. Por exemplo houve um aumento significativo da procura turística pelo Peru após Palin ter visitado o Machu Picchu. Ver www.palinstravels.co.uk/ www.teachersfirst.com/globetracker/ about.cfm – site em inglês com ideias para a exploração das viagens com um ponto de vista educativo. www.sfu.ca/seniors/10benefit.htm – site em inglês que apresenta os 10 Benefícios da Aprendizagem ao Longo da Vida por Nancy Merz Nordstrom http://terracha.no.sapo.pt – site da Cooperativa “Terra Chã” que promove a Rota dos Pastores. www.foroturismoresponsable.org – site que se preocupa com as consequências que o Turismo pode ter em todos os países e particularmente nos do Sul http://viajes.sodepaz.tv/ – site da organização espanhola SodePaz que promove e organiza viagens numa perspectiva de Turismo Responsável www.effat.org/public/index. php?menu=5&lang=2 – site inglês onde se encontra muitas referências a organizações e movimentos do Turismo sustentável. http://ec.europa.eu/enterprise/sectors/ tourism/eden/index_en.htm. – site do Projecto EDEN “Destinos Europeus de Excelência” que tem por objectivo fomentar modelos de desenvolvimento sustentável através da União Europeia. AO LONGO DA VIDA 39 EDUCAÇÃO-FORMAÇÃO DE ADULTOS: CAMINHOS PASSADOS E HORIZONTES POSSÍVEIS* Texto de Alberto Melo # Ilustrações de Luis Miguel Castro 1 – A perspectiva “pedagógica” de Espinoza no século XVII ou como uma pessoa se torna pessoa Segundo (Bento ou Baruch) Espinoza (1632-1677), cada pessoa não é o átomo indivisível e isolado do liberalismo anglosaxónico, mas sim um conjunto coerente de relações - quer físicas quer intelectuais - com a natureza, com os artefactos, com as outras pessoas; relações que a transformam continuamente. Assim, nenhum indivíduo é estritamente individual. Porém, a coerência destas relações não é garantida, nem estável; pode e deve reforçar-se, aprofundar-se, aperfeiçoar-se, mas também pode degradar-se, destruir-se. Para melhorar continuamente a sua coerência interna, cada pessoa deve chegar à compreensão das relações que lhe são positivas e úteis, que reforçam a sua autonomia, mas também deve aperceber-se de que o útil aqui não é apenas o que lhe convém, de um modo individual e isoladamente. É útil, sobretudo, aquilo que torna cada pessoa solidária com o mundo natural e social que a rodeia. E, para chegar a este patamar de conhecimento, é necessário passar pela experiência prática, agindo sobre o mundo, procurando e testando inúmeras e variadas relações com o mundo físico e com a sociedade, através portanto do Trabalho e da Política. Paralelamente, terá que existir, por parte dos Estados, das sociedades políticas, a missão de criar e promover, em permanência, um contexto cultural propício à realização em plenitude dos seus cidadãos. (Pensamentos contidos em “Tratado das Autoridades Teológica e Política”, 1670, e “Tratado da Autoridade Política”, 1677). 2 – Da génese da Educação de Adultos estruturada Nos dois séculos anteriores a Espinoza, houve já personalidades e movimentos históricos que influenciaram profundamente a Educação de Adultos, como hoje a conhecemos. Em primeiro lugar, temos Johan Gutemberg (1398-1468) e a sua invenção da imprensa (1450), esse “exército de 26 soldados de chumbo com os quais se poderia conquistar o mundo”, frase que se atribui ao próprio inventor. Não foi decerto um invento pacífico. Para a igreja da época, a possibilidade de os livros saírem da oficina de artesãos e não apenas das mãos dos monges escribas provocou os maiores receios pela força subversiva que isso representava, como instrumento de difusão incontrolada de ideias e informações, com a consequente erosão da autoridade eclesiástica. Também foi ruidosa na altura a reacção dos 40 APRENDER ARTIGO professores, que consideravam a sua ocupação como extinta dada a possibilidade de cada um poder aprender sozinho, com os livros. Para tranquilidade dos poderes instituídos, a primeira obra impressa foi uma belíssima Bíblia (em 1455) e a igreja passou, em seguida, a recolher avultadas receitas graças à impressão de indulgências, em centenas de milhar de cópias. Esta faculdade de qualquer pessoa poder comprar à igreja o perdão dos seus pecados terá levado, entre outros factores, à cisão de Martin Luther (1483-1546) que, após a excomunhão de que foi objecto por parte do Papa, rebelou-se contra a autoridade papal e instituiu uma nova igreja centrada na Bíblia como única fonte do conhecimento divinamente revelado. Considerou também que qualquer cristão baptizado era um legítimo sacerdote, não havendo necessidade de mediadores entre Deus e cada pessoa. Por seu lado, os crentes deveriam possuir e ler regularmente a Bíblia, constando os serviços religiosos de leituras e sermões nela centrados. Multiplicaram-se então as traduções a partir do latim para as diferentes línguas nacionais dos países aderentes à chamada Reforma protestante, assim como a impressão maciça e distribuição de Bíblias. Outra corrente desta revolta contra a hegemonia da igreja liderada pelo Papa foi iniciada na mesma altura por Jean Cauvin (ou Calvino, 1509-1564), em França, Suiça e Alsácia. Um seu contemporâneo e colaborador, o escocês John Knox (15101572) criou no seu país a igreja presbiteriana, assente em princípios semelhantes. Esta, em oposição à tradicional e rígida estrutura eclesiástica, assenta em pequenas estruturas de base de criação e funcionamento democráticos. A fim de permitir a todos os crentes o cumprimento do dever de regular leitura da Bíblia, multiplicaram-se as actividades de alfabetização, sendo a Escócia a primeira nação do mundo a apresentar uma população adulta a 100% letrada. Em tendência inversa, nos países que conservavam a obediência à Igreja de Roma, a leitura da Bíblia, na sua versão em latim, que perdurou alguns séculos, manteve-se reservada aos ministros ordenados pela hierarquia, não havendo por isso necessidade de promover as competências de literacia na população em geral. 3 – Uma definição de Educação de Adultos por justaposição Creio que se pode caracterizar a situação actual e a evolução previsível da Educação-Formação de Adultos (EFA) por referência a três vectores: Educação de Adultos, Cidadania e Trabalho. Ora, nenhum destes conceitos terá recebido uma definição consensual, são noções que variam muito ao longo dos tempos e nas diferentes latitudes e que estão fortemente dependentes das ideologias dominantes. Sendo conceitos de construção social, são criados e evoluem na base de tensões e contradições permanentes. O próprio conceito de Educação de Adultos (EA) só há poucos anos (1976) recebeu uma definição largamente consensual, que foi revista ligeiramente e ratificada nas 5ª e 6ª Conferências Internacionais de Educação de Adultos da UNESCO (CONFINTEAs) em 1997 e 2009. É uma definição feita por justaposição, somando os diferentes subsectores que, ao longo da história, se têm inserido neste vasto e variado campo de acção educativa. Tem uma grande virtude: ser uma definição abrangente, pois em algumas oca- siões a EA foi reduzida à alfabetização ou a cursos escolares nocturnos para adultos, numa perspectiva única de extensão escolar ou de segunda oportunidade. Foi o que aconteceu em Portugal, durante certos períodos, quando em muitos outros países já dominava uma acepção de EA muito mais abrangente, onde se incluíam os sectores formal, informal e não formal, visando a construção de uma sociedade educativa e educadora e de uma maior autonomia e emancipação dos seus cidadãos. 4 – Educação para a (e pela) Cidadania De facto, a perspectiva da cidadania é desde há muito inerente à EA, pelo menos desde a Revolução Francesa (Condorcet) e, já no século XIX, na Escócia, Inglaterra e países escandinavos (com Nicolaj Grundtvig e outras experiências). O conceito moderno de EA está, com efeito, estreitamente relacionado com a formação de um cidadão culto e informado, finalidade que ainda hoje é prosseguida nos países escandinavos sob a bandeira da “Liberal Education”, isto é a educação e formação da pessoa por via de mais conhecimento, de acesso à cultura, de valorização dos princípios da democracia e de uma vivência democrática, de participação activa na vida cívica e política. Quanto a cidadania, este conceito tem sido visto na perspectiva de uma intervenção na sociedade com o fim de a transformar, de a melhorar. Assim, e particularmente em sociedades muito desiguais, de forte exploração sócio-económica, a transformação social tem estado na base de iniciativas de EA, vista assim como Educação Popular. Esta tem sido, em geral, uma das vertentes fortes da EA, nomeadamente no Brasil e outros da América Latina, onde a figura e a obra de Paulo Freire são incontornáveis. No entanto, também nos próprios países escandinavos, a Educação Popular, vista essencialmente como formação de cidadãos, encontra-se numa primeira linha há mais de século e meio, através das chamadas Folk High Schools. Outros exemplos se podem encontrar dentro desta dimensão. A Plebs’ League, com uma forte presença nos meios operários ingleses entre 1905 e 1926, colocara uma radical transformação social como fim último das suas actividades educativas e organizativas. Os movimentos cívicos e educativos que surgiram após a II Guerra Mundial, por exemplo, em França (é o caso de Peuple et Culture ou da Ligue de l’Enseignement), na sequência da resistência à ocupação alemã, investiram intensamente na Educação Popular, uma corrente que iria conduzir, já nos anos 60-70, à Educação Permanente, um conceito de base alargada e essencialmente humanista. Esta perspectiva de EA, vista essencialmente como um processo de construção do cidadão, tem emergido quer para garantir a integração numa sociedade democrática, relativamente estável e pacífica, quer para fomentar a adesão a movimentos de intervenção, de resistência, de construção / reconstrução das respectivas sociedades. Por isso, a Educação Popular foi tão importante em Portugal, nos anos 74 a 80, quando se reconheceu que a finalidade prioritária para a Educação de Adultos era então a de formar cidadãos capazes de impedir um eventual retrocesso a regimes ditatoriais. Noutras ocasiões, a missão de construir cidadãos e cidadãs na plenitude da suas capacidades e aspirações assumiu uma dimensão prioritariamente cultural, visando fazer da cultu- AO LONGO DA VIDA 41 ra um bem público acessível à grande massa dos cidadãos e não apenas um privilégio das classes mais favorecidas. Alguns movimentos de EA apostaram fortemente na democratização / massificação do conhecimento e da fruição dos bens culturais, a fim de darem a conhecer as grandes obras e figuras mundiais da história e das artes - da pintura, da poesia, da música, da filosofia, da literatura, etc. Era neste sentido, fundamentalmente, que actuavam as universidades inglesas na segunda metade do séc. XIX e primeiros anos do séc. XX, através dos seus Departamentos de Extensão (“Extra-Mural departments”), tradição mantida em seguida pela Workers’ Education Association, após a sua criação em 1903. 5 – Educação de Adultos para o Trabalho Entretanto, e em paralelo com as tendências convergentes de industrialização e urbanização, as mutações tecnológicas e as consequentes alterações nos processos de trabalho estavam a criar exigências novas (quantitativas e qualitativas) na formação da força de trabalho. O crescimento exponencial da capacidade produtiva dos países mais industrializados destruiu completamente a prática proteccionista das corporações ou das trade unions, que até então conseguiam controlar a entrada dos trabalhadores especializados no mercado de emprego (e, consequentemente, os respectivos salários) graças a situações de monopólio nos domínios da aprendizagem e da formação profissional. Empresas, empregadores, e também alguns sindicatos, pressionavam no sentido de se assegurar uma mão-de-obra mais qualificada, com maior escolaridade mas também com mais conhecimentos técnicos. Conhecem-se instâncias em que sindicatos contestaram iniciativas clássicas de EA, considerandoas inúteis e pouco adequadas às reais necessidades dos trabalhadores, onde os adultos iam aprender algo que pouco ou nada servia para saírem de uma situação de desemprego ou para melhorarem empregos pouco qualificados e mal remunerados. Os próprios adultos, face a um mercado de emprego em forte expansão, sentiam a necessidade de possuírem mais capacidades e competências para a sua vida profissional. Já no período da Revolução Francesa, e como um dos instrumentos de destruição das corporações, vistas como inimigas tanto do cidadão como do Estado, fora criado (em 1794) o Conservatoire National d’Arts et Métiers, como escola pública superior dedicada à transmissão de conhecimentos e competências nos vários sectores produtivos. De uma forma sistemática, porém, só após a II Guerra Mundial esta preocupação veio a constituir-se como política pública, como resposta às convulsões provocadas pelo conflito e aos grandes planos de reconstrução e modernização do tecido económico. Nos EUA, a aposta neste tipo de política pública foi motivada pelo regresso de milhares de soldados para os quais, como recompensa, se definiram medidas de apoio e programas de formação profissional acelerada, para assegurar a sua reintegração na vida activa. Esta formação profissional acelerada (FPA) foi importada para a Europa, onde originou o aparecimento de novas instituições e fomentou a formação profissional como objecto de políticas públicas centrais. A primeira iniciativa europeia surge em França, com a criação em 1946 da AFRMO, que se transformou em 1949 em ANIFRMO e em AFPA, após 42 APRENDER ARTIGO 1964. Em Portugal, foi criado em 1962 o Fundo de Desenvolvimento da Mão-de-Obra, que evoluiu em 1965 para Serviço Nacional de Emprego e deu origem, a partir de 1979, ao Instituto do Emprego e Formação Profissional. 6 – A construção de uma visão integrada da Educação-Formação de Adultos Todos estes desenvolvimentos ocorreram na pós-guerra, concomitantemente à procura do mais alargado consenso possível em torno de um Contrato Social onde se inscrevia a edificação do Estado Providência, garantindo novos direitos humanos de natureza social e económica, como por exemplo o direito ao trabalho. Ora, havendo um direito, há necessariamente uma obrigação recíproca; e quem teria obrigação de garantir o direito ao trabalho? Certamente o Estado, os poderes públicos, aos quais caberia assegurar o pleno emprego. Obviamente, para assegurar o pleno emprego, houve necessidade de adoptar novas políticas e de definir vastos programas de qualificação, escolar e profissional, e tanto inicial como contínua. Chegados aos dias de hoje, o que se observa nas mais recentes tendências dentro do campo da EA é um desígnio de coerência e de integração de elementos que até há pouco se encontravam dispersos ou em real ou aparente antagonismo. Durante muito tempo, colocou-se em oposição, por um lado, uma EA cultural ou uma EA cidadã e, por outro, a Formação Profissional, esta última vista como actividade puramente técnica, uma mera aprendizagem de gestos repetitivos, manuais, mecânicos; em suma, um processo que não considerava a formação plena do adulto como pessoa e como cidadão, mas apenas como trabalhador, produtor. Esta clara distinção entre EA e Formação Profissional foi-se esbatendo, sendo de sublinhar uma maior coerência e integração, pelo menos, nos últimos 15 anos. A CONFINTEA de Hamburgo (1997) foi um evento de importância histórica para sublinhar esta tendência, à escala mundial, confirmando que tal convergência se estava já a concretizar em muitos países e sistemas, graças a estratégias e instrumentos específicos de formação integrada e de dupla certificação. Daí para diante, na Comissão Europeia, na OCDE e na própria UNESCO, as recomendações aos Estados Membros vão no sentido da necessidade de programas, conteúdos, processos combinados e integrados em EducaçãoFormação de Adultos. Os documentos estratégicos mais recentes, tanto à escala nacional como internacional, apontam para uma EA construída como um processo ao longo da vida que garanta a integração das diferentes dimensões vitais para o desenvolvimento dos aprendentes, como pessoas e como cidadãos: o acesso aos bens culturais, o conhecimento do património cultural da humanidade, a aquisição das bases cognitivas e metodológicas para novas aprendizagens, competências técnicas, organizativas e comportamentais visando actividades laborais, conteúdos e expressões de cidadania, etc. Em suma, exige-se hoje à EA (ou à EFA) que faça de todas as pessoas adultas cidadãos mais bem informados, mais activos, mais participantes, mas também que lhes facilite uma aquisição ou produção de competências necessárias à inserção no mercado de trabalho, não esquecendo que esta valência é hoje fundamental para o bem- estar de qualquer pessoa. De facto, ninguém poderá assumir plenamente a sua situação de cidadão se viver desempregado, sem meios de subsistência. É que actualmente os assalariados por conta de outrem são a grande massa da população activa, o que não acontecia há uns 50-60 anos. Por isso, a formação para o trabalho e para o emprego ganhou ultimamente uma dimensão fundamental e tem que ser vista como uma das componentes essenciais da EA (ou EFA) contemporânea. 7 – A Educação-Formação de Adultos face ao retrocesso social provocado pelo “neo-liberalismo” Temos que constatar que se desenvolveu também uma mutação muito radical desde os tempos em que vigorava, em muitos países do hemisfério norte, o Estado-Providência até à situação que tem sido dominante nos últimos 15 anos: uma hegemonia tentacular e esmagadora da ideologia dita neoliberal (que aliás de liberal não tem nada), que determinou a ”rescisão do Contrato Social”, considerando que o Estado não tem a obrigação de garantir direitos sociais e económicos (os chamados direitos humanos de 3ª geração), e deles desapossando os cidadãos. O direito ao trabalho extinguiu-se assim praticamente, o Estado deixou de garantir o pleno emprego e o emprego / desemprego passaram a considerar-se sobretudo como matérias de responsabilidade individual. Neste novo contexto, o conceito de empregabilidade (que substituiu entretanto o de direito ao trabalho) remete agora para a responsabilização pessoal, devendo cada qual assegurar a sua empregabilidade. A perspectiva individualista substituiu assim a perspectiva tendencialmente colectivista em que cada comunidade se responsabilizava pelos seus cidadãos. Hoje em dia, caberá a cada trabalhador ou candidato a trabalhador, e ao longo de toda a sua vida, garantir condições para ser e manter-se “empregável”. Por outro lado, os empregos deixaram de ser empregos para toda a vida. Mutações diversas vão provocando a extinção de muitas profissões. Daqui por 15 anos, mais de metade das actuais profissões não existirão, mas surgirão outras. Perante tais incertezas, há que antecipar mudanças e actualizações, tanto de um ponto de vista técnico e tecnológico, como em termos de conhecimentos e de informação, para que se possam planear alterações da carreira e garantir empregos, pois a única certeza é a de um itinerário de vida e profissional muito diversificado, em que alternarão períodos de actividade remunerada e períodos de ausência de emprego e onde cada pessoa terá ocupações muito diversas ao longo da sua vida, incluindo intervenções cívicas e solidárias de natureza voluntária. Contudo, é preciso frisar que saber gerir a incerteza e as mutações técnicas / tecnológicas não se reduz a uma simples actualização de competências técnicas, pois implica uma construção da personalidade no sentido de aceitar e controlar a instabilidade. Uma tal contingência exige, de facto, uma estrutura mental, psicológica e moral preparada para a mudança e para a reacção imediata e ajustada, ao saltar de repente para outra profissão num sector ou num país diferente. Para além de atitudes pessoais e comportamentos sociais propícios à mudança, serão imprescindíveis, por exemplo, o conhecimen- AO LONGO DA VIDA 43 to de línguas e a capacidade de conviver em culturas – nacionais ou institucionais - diversificadas. Abertura e polivalência são atitudes exigidas aos cidadãos em geral e, em especial, aos novos (mas também aos mais velhos) trabalhadores, os quais devem estar preparados e prepararem-se em permanência para o novo, o incerto, o inédito. Em consequência, a EFA tornou-se hoje, mais do que nunca, uma necessidade imperiosa para todos, em todos os quadrantes da sociedade e durante toda a vida. Porém, contrariamente a algumas orientações explícitas ou latentes em estratégias europeias ou nacionais, a Educação-Formação de Adultos não pode ser vista exclusivamente numa perspectiva do trabalho, apesar deste ser uma valência incontornável. Nas circunstâncias actuais, não é aceitável minimizar ou ignorar as demais finalidades: desenvolvimento e bem-estar pessoal, adesão a valores éticos, fruição cultural, expressão estética, consciência cívica, cidadania activa, entre outras. Uma EFA abrangente (não necessariamente em cada uma das actividades singularmente organizadas, mas ao longo do contínuo de aprendizagens concretizadas ao longo da vida) é cada vez mais necessária, em minha opinião, às sociedades modernas. Isto, à medida que o processo de globalização se intensifica e que a hegemonia do capital financeiro a nível planetário vai provocando uma crescente desumanização e a erosão das democracias e da cidadania. Quando o capital financeiro se torna efectivamente hegemónico, não pode haver uma verdadeira política, nem pode existir uma real democracia. Tudo passa a ter um preço, toda a vida social e económica é orientada para a procura do lucro – o máximo e o mais rápido. Nesta perspectiva economicista, toda a sociedade se transforma num imenso mercado. E não se pode ser cidadão de um Mercado. Contudo, a partir da crise (inicialmente financeira e seguidamente económica) desencadeada em Setembro de 2008 pelas hipotecas “subprime”, nos Estados Unidos, a ideologia neoliberal, de bases supostamente científicas, e as políticas e práticas a que deu origem foram refutadas, na sua própria essência, pelos efeitos reais que provocaram a nível mundial. Como saída possível para as situações insustentáveis entretanto provocadas por esta forma extrema e radical de capitalismo, poderão emergir num futuro próximo sociedades pluralistas e mais abertas, finalmente libertas da opressão do “pensamento único” e em antítese ao recente anúncio do “fim da história”. Há novas sociedades a construir, sem ideologias nem práticas totalitárias, que fomentem e propiciem alternativas, onde se dê margem e apoio à liberdade, criatividade, experimentação e invenção social, onde se procurem e testem outras maneiras de produzir, de consumir, de viver em sociedade. A economia é sem dúvida importante, vital até para a vida em comunidade, desde que seja colocada no seu devido lugar, o que passa por reactivar as dimensões “ética” e “política” que eram dominantes entre os primeiros pensadores desta disciplina (Adam Smith, David Ricardo, John Stuart Mill, entre muitos outros). Assim, em vez de estarem as pessoas (e outras formas de vida, a Biosfera) inteiramente ao serviço da economia, situação que originou os impactos social e ecologicamente devastadores hoje bem visíveis, deverá colocar-se a economia ao serviço das grandes finalidades da sociedade política, do bem-estar colectivo e da felicidade das pessoas. Com este fim em vista, acredito que existem nos dias de hoje, face á 44 APRENDER ARTIGO crise actual, condições propícias para que se debata e se afirme uma educação direccionada para a construção em comum de uma melhor sociedade, uma melhor economia e para se promoverem verdadeiras sociedades educadoras. Urge recuperar a condição de cidadão dentro da sociedade e a dimensão de humanidade na pessoa humana e, para isso, a Educação-Formação de Adultos, na sua acepção holística e humanista, tem um papel fundamental a desempenhar. 8 – Algumas orientações e pistas para a EducaçãoFormação de Adultos no Portugal de hoje Relativamente a Portugal, será oportuno referir aqui o estudo promovido pela Associação de Desenvolvimento “Tese” e apresentado muito recentemente (28.06.2010) em Seminário na Fundação Gulbenkian, onde se sublinha a combinação, numa grande parte da população portuguesa, de uma situação aguda de carência material com uma extrema fragilidade do chamado capital social. Os autores identificaram diversos factores socialmente negativos, como “incapacidade de pensar colectivamente o futuro”, “desconfiança nos outros e nas instituições”, “diminuta participação nas organizações de índole mais societária”, e constataram que um terço dos inquiridos se sente “às vezes ou frequentemente” “como se não fizesse parte da sociedade”. De facto, ainda mais do que crescimento económico, expresso em taxas de PIB, a sociedade portuguesa aparenta precisar acima de tudo de coesão, de uma consciência generalizada do que é e de como deve promover-se o espaço e o serviço público, como bens comuns. A sociedade portuguesa necessita, pois, de uma dinâmica social forte que, mobilizando múltiplos e diversos quadrantes, privados e públicos, locais ou regionais, permita pressionar no sentido de construção de um contexto cultural, legal e organizacional mais propício à cidadania e à educação. Um tal fluxo de energia social, embora devendo exercer-se fundamentalmente “de baixo para cima”, deveria ser considerado como um real ‘projecto de sociedade’ e, como tal, desenvolvido em estreita cooperação entre os poderes públicos e os cidadãos. Por outro lado, para promover a adesão de uma grande maioria das pessoas adultas e agir efectivamente como um instrumento de inserção social, a Educação-Formação de Adultos não pode limitar-se a abrir as suas portas a novos públicos. Devem as respectivas entidades e agentes saber inserir-se directamente nos processos em curso, de cunho pessoal e social, assumindo – como dimensões intrínsecas ao processo de formação e não de uma forma marginal – as funções de animação, intervenção e acompanhamento, relativamente à: (a) concepção e concretização, à escala individual, de projectos de vida / percursos personalizados de educaçãoformação; (b) concepção e concretização, à escala colectiva, de projectos de desenvolvimento social e / ou territorial, ou de promoção da qualidade de vida (inseridos, sempre que existam, em planos locais de educação e formação para a inserção). Nesta perspectiva, entre as condições para assegurar uma maior participação por parte das pessoas adultas menos qualificadas e mais marginalizadas em actividades de natureza educativa, devem sublinhar-se as seguintes: - a inserção da Educação-Formação de Adultos em dinâmicas e projectos que motivem fortemente os adultos (iniciativas sociais, culturais, de expressão artística, de lazer, desportivas ou de desenvolvimento socioeconómico, de criação do auto-emprego, etc.); - a realização de um intenso trabalho a montante e a jusante das acções de formação propriamente ditas (e daí o papel essencial dos animadores, mediadores ou mentores como agentes de sensibilização, motivação, orientação, comunicação e apoio pessoal); - a elevação da auto-confiança, através, por exemplo, da identificação e valorização das experiências, conhecimentos, competências e atitudes das pessoas adultas; - a utilização de uma metodologia pró-activa (de outreach), em que agentes de educação-formação vão ao encontro das pessoas, onde elas residem, trabalham, se divertem, intervêm civicamente, etc., e procurando também acolhê-las e orientá-las em espaços de convivialidade informal, num contexto sócio-cultural onde elas possam transpor, se quiserem e quando o quiserem, o degrau para o patamar de entrada em percursos de educação-formação; - a adopção de uma abordagem de empowerment, que assegure aos participantes uma apropriação gradual do processo de crescimento pessoal, através de uma participação activa nas decisões, tanto nos processos de intervenção social, como nas acções mais específicas dirigidas a novas aprendizagens. Em conclusão, é de sublinhar que a definição dos objectivos da “instrução pública” apresentada por Condorcet, em finais do século XVIII, continua a ser da maior actualidade: “oferecer a todos os indivíduos da raça humana os meios para proverem às suas necessidades e bem-estar, conhecerem e exercerem os seus direitos e compreenderem e cumprirem os seus deveres; a oportunidade de aperfeiçoarem as suas competências, tornando-se capazes de desempenhar as funções sociais para que têm o direito de ser chamados e de desenvolver a gama completa de faculdades que lhes concedeu a Natureza; e, ao fazer isto, estabelecer entre os cidadãos uma verdadeira igualdade que torne real a igualdade política reconhecida por lei”.1 n * Este artigo esteve na base de duas comunicações orais apresentadas, sucessivamente, no XII Congresso Internacional de Formação para o Trabalho Norte de Portugal / Galiza (Guimarães, 8-9 de Julho de 2010) e I Congresso Internacional da Cátedra UNESCO de Educação de Jovens e Adultos (20-23 de Julho de 2010, João Pessoa, Paraíba). 1. Condorcet, “Rapport et projet de décret sur l’organisation générale de l’instruction publique”, L’instruction publique en france pendant la Révolution, pp. 105-51, Paris, Klincksieck (in Bernard Jolibert, “Condorcet”, Prospects: the quarterly review of comparative education. Paris, UNESCO: International Bureau of Education), vol. XXIII, no. ½, 1993, pp. 197-209. AO LONGO DA VIDA 45 artigo AS UNIVERSIDADES POPULARES EM PORTUGAL NA I REPÚBLICA Texto de António Simões do Paço # Ilustrações de Luis Miguel Castro 46 APRENDER O ensino popular, uma preocupação de republicanos, anarquistas e socialistas ainda nos tempos da monarquia, materializou-se, durante a I República, na criação de universidades populares. A formação sindical e operária na Europa teve início em finais do século XVIII, «com a preocupação prática de dar instrução aos trabalhadores adultos, ou seja, com objectivos técnico-profissionais, havendo para o efeito cursos nocturnos», como diz Maria Manuela Rodrigues, do Centro de Investigação em Educação da Universidade de Lisboa. «No final do século seguinte, este movimento de educação toma duas vertentes: por um lado, há a corrente que mantém o objectivo de educar o povo e que resulta no nascimento das universidades populares já no século XX; a outra corrente desenvolveu-se separadamente e centrou as suas actividades nas necessidades de formação dos adultos e da promoção profissional.»1 Portugal não foi alheio a esse tipo de preocupação. «O ambiente cultural português do final do século XIX e primeiras décadas do século XX foi propício ao desenvolvimento das preocupações com a educação popular», escreveu Joaquim Pintassilgo, professor auxiliar do Instituto de Educação da Universidade de Lisboa2. «A crença de raiz positivista no papel decisivo da educação e da cultura como fonte de progresso e regeneração social, o investimento político republicano, considerado inseparável do combate contra o analfabetismo, e o labor cultural de pendor iluminista da maçonaria são algumas das condições que favorecem a afirmação de um discurso que coloca o povo e a sua educação no centro do debate político e social. A educação e a cultura surgem, assim, como peças chave da formação de um cidadão consciente e participativo e da construção de uma sociedade nova, sem lugar para a ignorância e para os preconceitos, crença esta que se torna uma das grandes referências míticas desse momento histórico e cultural.» A minoria culta do País fez a «traumática descoberta», através das estatísticas publicadas na segunda metade do século XIX, de que «a esmagadora maioria do povo português nunca havia frequentado a escola, não sabendo ler nem escrever». A taxa de analfabetismo da população com idades iguais ou superiores a sete anos era de 78% em 1878, e irá baixar apenas para 62% em 19303. Respondendo a essa necessidade social de uma população trabalhadora mais instruída e também às preocupações culturais e políticas de republicanos, anarco-sindicalistas, socialistas e, um pouco mais tarde, também católicos – após as encíclicas de Leão XIII, nomeadamente a Rerum Novarum (1891) e a Graves de Communi (1901), preocupados com o avanço entre as classes populares das ideias socialistas –, emerge entre nós, como noutros países da Europa, o movimento da educação popular, «caracterizado pela multiplicidade das iniciativas e pela diversidade, quando não pelo antagonismo político-ideológico dos respectivos promotores e agentes: cursos nocturnos e escolas móveis, animados por associações de diferentes matizes ideológicos, pelo estudantado, ou pelas autoridades políticas, círculos católicos operários, organizados pela Igreja Católica ou por militantes laicos na perspectiva da difusão da doutrina social cristã.»4 Surgem então as universidades livres e populares, associações dedicadas à educação popular e à divulgação científica e cultural. A Academia de Estudos Livres – Universidade Popular Uma das primeiras é a Academia de Estudos Livres, fundada em Lisboa em 1889, que se define, a partir de 1904, como Universidade Popular. Assegura o funcionamento da Escola Marquês de Pombal, que possui ensino diurno e nocturno, este último destinado a adultos. Dedica-se também à edição de publicações, com destaque para os Anais da Academia de Estudos Livres - Universidade Popular (1912-1916), e incluindo o periódico estudantil A Mocidade (1910- AO LONGO DA VIDA 47 Algumas associações de ensino popular 1889 – É fundada, em Lisboa, a Academia de Estudos Livres, que se define, a partir de 1904, como Universidade Popular. Assegura o funcionamento da Escola Marquês de Pombal, que possui ensino diurno e nocturno, este último destinado a adultos. Dedicou-se também à edição de publicações, com destaque para os Anais da Academia de Estudos Livres - Universidade Popular (1912-1916), e incluindo o periódico estudantil A Mocidade (1910-1911), dedicado à educação moral e cívica dos jovens alunos. 1895 – É fundado em Lisboa o Instituto 19 de Setembro. António Cabreira, seu criador, incluiu-o entre os antecedentes da Universidade Livre para Educação Popular, embora os seus Estatutos afirmassem que se destinava à «educação da mocidade», não à educação de adultos. 1912 – No Porto, é fundada por Jaime Cortesão a Renascença Portuguesa. Com filiais em Porto e Coimbra teve como principal órgão a revista A Águia e, mais tarde, o quinzenário Vida Portuguesa. Nos seus Estatutos, dizia-se destinada a «promover a maior cultura do povo português, por meio da conferência, do manifesto, da revista, do livro, da biblioteca, da escola, etc.». Os fundadores desta associação promoveram a primeira Universidade Popular no Porto, cuja primeira lição foi proferida em 17 de Junho de 1912. A 24 de Novembro desse ano, foi inaugurada em Coimbra outra Universidade Popular. Em ambas efectuaram conferências e deram lições Jaime Cortesão, Leonardo Coimbra, Fidelino de Figueiredo, Teixeira de Pascoaes e outros. 1912 – Em 28 de Janeiro, é fundada a Universidade Livre para Educação Popular de Lisboa, por iniciativa de Alexandre Ferreira. Propunha-se «promover, tanto quanto possível, a educação moral, social, estética e científica do povo português» e ir até «aos centros fabris, junto das oficinas, às aldeias, aos pequenos e grandes povoados, realizando lições, conferências, palestras e leituras». Entre Outubro de 1912 e Julho de 1913, 19 946 pessoas assistiram às suas lições e conferências e entre Janeiro de 1912 e Janeiro de 1914 publicaram-se 26 obras. Entre as suas publicações contava-se o seu Boletim Mensal. Além das quotas dos sócios, a Universidade Livre de Lisboa obtinha receitas das vendas dos volumes publicados e ainda de subsídios da Provedoria Central da Assistência Pública e da Câmara Municipal de Lisboa. 1919 – A Universidade Popular Portuguesa é considerada de utilidade nacional, sendo aprovados novos estatutos. Nestes, determina-se que a sua sede seja fixada em Lisboa, podendo ter delegações em diferentes pontos do País. O Estado passa a conceder-lhe um subsídio mensal de 400$000 «destinado ao desenvolvimento da sua biblioteca, dos seus programas cinematográficos educativos e publicações de vulgarização». 48 APRENDER 1911), dedicado à educação moral e cívica dos jovens alunos. Os dirigentes da Academia, escreveu Joaquim Pintassilgo, «estavam bem cientes de qual o papel a desempenhar pelas universidades populares e qual a sua especificidade. Estas tinham em vista a educação permanente dos adultos, não a sua alfabetização nem a educação escolar dos jovens. Os seus meios de acção eram, preferencialmente, as conferências, os cursos livres, as visitas de estudo e a biblioteca, ou seja, a vulgarização científica e cultural, não as aulas tradicionais»5. No artigo de apresentação da revista Anais da Academia de Estudos Livres - Universidade Popular, os responsáveis desta afirmam taxativamente: «O alvo é – a educação do povo»6. O tipo de actividades e a diversidade dos alunos que frequentavam a Academia/Universidade Popular estão patentes no ‘Parecer do Conselho Fiscal’ relativo ao período 1912-1913, onde é feita uma avaliação muito positiva do trabalho realizado: “Realizou 12 conferências, 6 visitas de estudo, 2 sessões solenes, uma sessão de propaganda e outra de arte, 1 concerto musical, 2 festas da árvore, 1 festa escolar e 1 passeio fluvial... A importância dessas matrículas para 12 disciplinas em aulas nocturnas, avalia-se pelo número de 522 com uma frequência de 341 alunos, dos quais 256 do sexo masculino e 85 do sexo feminino, exercendo diversas profissões em número de 29. Além disso, a aula diurna de instrução primária tem 114 matrículas”.7 A Universidade Livre para Educação Popular Outra grande iniciativa dedicada sobretudo à educação de adultos foi a Universidade Livre para Educação Popular. Fundada em Janeiro de 1912 por um grupo de personalidades republicanas à frente das quais estava Alexandre Ferreira, «numa sessão pública no velho Coliseu da Rua da Palma e com a comparência do Presidente da República Dr. Manuel d’Arriaga»8, propunha-se «promover, tanto quanto possível, a educação moral, social, estética e científica do povo português» e ir até «aos centros fabris, junto das oficinas, às aldeias, aos pequenos e grandes povoados, realizando lições, conferências, palestras e leituras». Entre Outubro de 1912 e Julho de 1913, assistiram às suas lições e conferências19 946 pessoas, e entre Janeiro de 1912 e Janeiro de 1914 publicaram-se 26 obras. Na sua sede, que começou por situar-se provisoriamente na Rua dos Fanqueiros, 267, 1.º esquerdo, e mais tarde passaria pelo Poço do Borratém, 13, 1.º D, e pela Praça Luís de Camões, 46, 2.º, sempre em Lisboa, ministravam-se cursos que iam da Literatura à Modelagem, passando pela Álgebra. Por exemplo, no ano lectivo de 1914-15, além dos já referidos, havia cursos de Francês, Inglês, Alemão, Ciências Naturais, Química, Matemática Elementar, Matemática Comercial, Desenho, Geografia, Caligrafia, Taquigrafia, Dactilografia e Escrituração Comercial. Houve 828 inscrições em todos estes cursos, com médias de presenças na ordem dos 61,3% em Francês do 1.º ano (89 presentes em média para 145 inscritos), 50% em Dactilografia (14 presentes em média para 28 inscritos) ou uma média mais fraca de 25,6% em Escrituração Comercial (22 presenças em média para 86 inscritos). Estes cursos eram frequentados por muitos sectores profissionais, onde se artigo destacam, ao longo de vários anos lectivos, os empregados do comércio, seguidos dos empregados de escritório e das domésticas. Eram ministrados por mestres conceituados como Câmara Reis, António Ferrão, Albino Vieira da Rocha, João de Barros, Rodrigo de Castro, Antero Seabra, Alfredo Appell, Manuel de Vasconcellos, Bernardo Vila Nova, Paulo Dálannoy, Teófilo Braga, Faria de Vasconcelos, Luciano Ribeiro, António Maria Pires, António Sérgio e outros9. Um dos fracassos da Universidade Livre foi a experiência da sua extensão a outras regiões do País. Tentativas como a de implantá-la em Leiria, logo no ano lectivo de 1912-13, não tiveram continuidade. A Universidade Livre promoveu a leitura através da criação de bibliotecas: na sua sede e nos jardins públicos de Lisboa, a partir de 1922, iniciativa que terá atraído muitos milhares de leitores. Também promoveu a criação de bibliotecas infantis, com uma selecção de textos por idades e próprios para crianças até á 4.ª classe. Publicava folhetos e editou regularmente o seu Boletim Mensal. Além das quotas dos sócios, a Universidade Livre de Lisboa obtinha receitas das vendas dos volumes publicados e ainda de subsídios da Provedoria Central da Assistência Pública e da Câmara Municipal de Lisboa. O golpe militar de 28 de Maio de 1926 veio dar um profundo golpe em iniciativas como as universidades populares. Apesar disso, «em 1930 ainda se proferiam conferências em Lisboa sob a égide da Universidade Livre»10. Com todas as limitações que sempre tiveram os movimentos associativos e cooperativos em Portugal, talvez se possa no entanto concluir, como o faz Rogério Fernandes em relação à Universidade Livre de Lisboa11, que as universidades populares em Portugal no período da República colmataram «uma lacuna grave no sistema português de ensino e [exerceram] uma função supletiva de inegável projecção entre os alfabetizados ou insuficientemente escolarizados». n 1 Maria Manuela P. F. Rodrigues, ‘A Educação do Operariado no Dealbar do Século XX’, síntese de um capítulo da sua tese de doutoramento, dedicada ao ensino primário na 1.ª República no Barreiro, defendida em 2007. Disponível em: http://web.letras.up.pt/aphes29/data/5th/ MariaManuelaRodrigues_Texto.pdf. Acesso em: 11 Dez. 2010. 2 Joaquim Pintassilgo, ‘Imprensa de Educação e Ensino, Universidades Populares e Renovação Pedagógica’, in Cadernos de História da Educação, Vol. 5 (2006), Uberlândia (Minas Gerais), Brasil, p. 83. 3 Joaquim Pintassilgo, «Analfabetismo e educação popular», Público, 31 de Agosto de 2010. 4 Rogério Fernandes, Uma Experiência de Formação de Adultos na 1.ª República. A Universidade Livre Para Educação Popular 1911-1917, Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa, 1993, p. 9. 5 Joaquim Pintassilgo, ‘Imprensa de Educação e Ensino, Universidades Populares e Renovação Pedagógica’, in Cadernos de História da Educação, Vol. 5 (2006), Uberlândia (Minas Gerais), Brasil, p. 86. 6 «Ao público» (1912). Anais da Academia de Estudos Livres – Universidade Popular, 1-2, 1. Citado por Joaquim Pintassilgo in ‘Imprensa de Educação e Ensino…’, p. 85. 7 Parecer do Conselho Fiscal (1914). Anais..., 9-10, 319. Citado por Joaquim Pintassilgo in ‘Imprensa de Educação e Ensino…’, p. 86. 8 Texto anónimo facultado a Rogério Fernandes por José Gomes Ferreira, in Rogério Fernandes, op. cit, p. 123. 9 Rogério Fernandes, op. cit, pp. 123-124. 10 Idem, op. cit, p. 90. 11 Idem, op. cit, p. 92. A Universidade Livre promoveu a leitura através da criação de bibliotecas: na sua sede e nos jardins públicos de Lisboa, a partir de 1922. Para saber mais Bandeira, Filomena (1994). A Universidade Popular Portuguesa nos anos 20. Os intelectuais e a educação do povo: entre a salvação da República e a revolução social. Dissertação de Mestrado. Lisboa: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas – Universidade Nova de Lisboa. Fernandes, Rogério (1993). Uma experiência de formação de adultos na 1ª República. A Universidade Livre para Educação Popular. 1911-1917. Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa. Marques, Maria Gracinda (1999). As Universidades Livres e Populares portuguesas em Coimbra e Porto: dos finais do século XIX à década de 30. Dissertação de Mestrado. Braga: Universidade do Minho. Neves, Marlène (1997). As Universidades Populares Portuguesas no seu período áureo – 1ª República. Dissertação de Mestrado. Braga: Instituto de Educação e Psicologia – Universidade do Minho. Pintassilgo, Joaquim (2006). ‘Imprensa de Educação e Ensino, Universidades Populares e Renovação Pedagógica’, in Cadernos de História da Educação, Vol. 5 (2006), Uberlândia (Minas Gerais), Brasil. Sampaio, José Salvado (1975). O ensino primário. 19111969. Contribuição monográfica. Vol. I – 1.º Período. 1911-1926. Lisboa: Instituto Gulbenkian de Ciência – Centro de Investigação Pedagógica. AO LONGO DA VIDA 49 Aprender ao longo da vida Assine a revista Envio de um exemplar da revista à cobrança, com os portes incluídos: 4 euros APARTADO 30005 · 1350 - 999 LISBOA · Telefone: 969 593 912 · e-mail: [email protected] www.direitodeaprender.com.pt NOME: MORADA: TELEFONE: LOCALIDADE: FAX: E-MAIL: Pretendo aderir à Associação “O Direito de Aprender” (Distribuição gratuíta da Revista aos associados) (Cota anual: 30 euros) Pretendo ser assinante da revista “Aprender ao Longo da Vida” (4 números por ano) (O preço da assinatura anual é de 13,50 euros) O pagamento pode ser efectuado por cheque para a Associação “O Direito de Aprender” ou para a conta da Caixa Geral de Depósitos, com o NIB: 003500270008163483055 transferência bancária Artigo A tradição radical e a tradição respeitável moldaram a história da Educação de Adultos na Escócia. A realidade poderá ter sido mais complicada do que o que esta simples distinção implica, mas este continua a ser um ponto de partida útil. Educação de Adultos na ESCÓCIA: PASSADO E PRESENTE Texto: Jim Crowther e Ian Martin, Universidade de Edimburgo Tradução: Daniela Silveira A distinção que por vezes é feita entre as tradições “radicais” e “respeitáveis” na educação de adultos na Escócia (Bryant, 1984) enfatiza a importância do objectivo ideológico da abordagem à história da educação de adultos e do seu estado actual. A tradição radical refere-se à educação de adultos baseada num currículo voltado para a mudança política e social, enquanto que a tradição respeitável descreve a provisão voltada principalmente para o desenvolvimento pessoal ou para o progresso individual. A realidade poderá ter sido mais complicada do que o que esta simples distinção implica, mas continua a ser um ponto de partida útil para analisar a educação de adultos. As raízes da tradição respeitável reportam-se à importante influência do Calvinismo e Presbiterianismo Protestantes. Os ideais de economia, disciplina e auto-melhoramento, associados a estas crenças religiosas, geraram uma cultura que apoiava a educação como forma de adquirir a salvação espiritual e o progresso material – bem como uma maior apreciação da cultura e das artes. A educação sempre teve um valor elevado na cul- AO LONGO DA VIDA 51 tura escocesa que, historicamente, para os adultos, assumiu a forma de aprendizagem autodidacta e de melhoramento mútuo (Cooke, 2006). Uma versão secular e institucionalizada desta cultura de auto-ajuda foi evidente no crescimento dos Institutos de Mecânica no final do século XVIII, que eram essencialmente voltadas para o melhoramento da compreensão científica dos artesãos competentes, e o seu aparecimento na Escócia levou ao seu crescimento por todo o Reino Unido no século XIX. A tradição radical estava ligada ao crescimento da ideologia socialista nos séculos XIX e XX. O movimento de mudança social e política forneceu uma forma “pronta a usar” de educação de adultos, para uma acção política e social que atingiu um eleitorado de classe média alargado e em desenvolvimento, que tomava consciência de si mesmo como classe social. Só no início do século XX, com a força crescente dos partidos políticos radicais, é que as organizações educativas se desenvolveram para apoiar as lutas do movimento laboral (Crowther, 1999). Na década de 1920, as Universidades Trabalhistas, inspiradas no comunismo, forneceram uma primeira tentativa sistemática de provisão educativa radical para a classe trabalhadora, baseada num currículo inspirado no marxismo. O objectivo era equipar intelectualmente os organizadores no momento da produção, para desempenharem o seu papel na liderança da revolução política que se aproximava. A organização rival, a Associação Educativa de Trabalhadores (WEA), fundada em 1903, adoptou uma ideologia e um currículo mais alargados, mas também estava voltada para a educação dos trabalhadores no sentido de se tornarem líderes sociais e políticos. Por outro lado, a tradição respeitável na primeira metade do século XX estava ligada ao crescimento lento da provisão de alargamento da universidade – uma manta de retalhos de aulas de educação liberal de adultos, tempos livres e cursos baseados em interesses, fornecidos essencialmente pelas seculares Universidades de Glasgow, Edimburgo, St. Andrews e Aberdeen – e aulas de educação de adultos das autoridades locais, que cobriam um leque de temas similar, embora menos intelectual. A outra perspectiva importante da provisão educativa (ou, mais especificamente, da formação) eram as “aulas nocturnas”, que ofereciam cursos vocacionais certificados, especialmente nas universidades de educação ao longo da vida. Em termos estatísticos, provavelmente estariam mais pessoas envolvidas na formação vocacional do que em todas as outras formas de educação de adultos combinadas. Na realidade, a sobreposição entre as tradições radical e respeitável também é importante porque foram reformuladas e reconfiguradas com a passagem do tempo, em parte devido ao crescimento do estado social no século XX e em parte devido às correntes de mudança das lutas sociais e políticas. O desenvolvimento da comunidade educativa na década de 1970 inspirouse nestas tradições distintas. De acordo com as recomendações de Relatório Alexander, de 1975, Educação de Adultos: O Desafio da Mudança, a expansão da provisão da educação de adultos pelas autoridades locais, 52 APRENDER Só no início do século XX, com a força crescente dos partidos políticos radicais, é que as organizações educativas se desenvolveram para apoiar as lutas do movimento laboral.. em especial nas comunidades desfavorecidas, levou à criação dos Serviços de Educação Comunitária, que combinou a educação de adultos, o desenvolvimento da comunidade e o trabalho dos jovens num serviço integrado. O principal objectivo era alargar as oportunidades educativas aos “não-participantes” tradicionais, através da adopção de uma “abordagem de desenvolvimento comunitário”. O foco da intervenção era primariamente o indivíduo, mas também havia a noção de que a educação de adultos podia ser parte integrante do processo de mudança social, como indica a seguinte citação: “A sociedade tem agora menos certezas acerca dos valores que deve seguir e tolera um leque alargado. A liberdade individual para questionar o valor de práticas e instituições estabelecidas e de propor novas formas faz parte da nossa herança democrática. Para manter esta liberdade, não devem ser disponibilizados recursos apenas para quem se enquadra, mas, dentro da razoabilidade, ser disponibilizados a todas as pessoas com objectivos educativos explícitos. As motivações de quem providencia educação não têm necessariamente de se identificar com as motivações daqueles a quem é fornecida.” (Departamento Escocês de Educação 1975, 25) O apoio oficial pela divergência e o seu valor para uma sociedade democrática encorajaram as ligações educativas aos movimentos sociais, especialmente o movimento pacifista e o movimento de mulheres, que ajudaram a revigorar o objectivo social de organizações como a WEA. Para mais, a tradução das ideias de Paulo Freire para inglês, na década de 1970, foi ao encontro do novo ênfase nas lutas culturais e do papel da educação como recurso para os grupos explorados e oprimidos. O Projecto de Educação de Adultos, que foi estabelecido em Edimburgo em 1979, foi uma tentativa de traduzir as ideias de Freire sobre a acção cultural no contexto escocês (Kirkwood e Kirkwood, 1989). Esta iniciativa da educação de adultos baseada na comunidade atraiu um considerável interesse internacional durante os anos, e teve uma pequena mas importante contribuição para o crescimento da delegação e do movimento democrático na década de 1990, e que eventualmente levou ao estabelecimento do novo Parlamento Escocês em 1999. Apesar disto, a avaliação geral deverá reconhecer a natureza fragmentada e localizada da tradição radical na educação de adultos. O estatuto marginal da educação comunitária na política de segurança social criou condições em que a experimenta- artigo ção e a criatividade por vezes floresceram e em que abordagens ideológicas diferentes e por vezes antagónicas co-existiram – mas também limitou o seu impacto geográfico e institucional. No geral, a educação de adultos fora da provisão formal temse caracterizado pela indiferença oficial, sendo que a grande preferência é dada às formas institucionais e credenciadas da aprendizagem e da educação. A ênfase política de um modelo essencialmente economista e instrumental de educação ao longo da vida para pessoas no mercado de trabalho também faz parte desta tendência (Crowther, 2006). Apesar da relativa autonomia do Parlamento Escocês, a política padrão para a aprendizagem ao longo da vida através do Reino Unido envolve a responsabilização dos indivíduos para cuidarem de si mesmos e das suas famílias através da formação, em vez de depender da provisão da segurança social estatal (Martin, 2003). Por sua vez, isto teve um impacto marcante na educação de adultos, no sentido em que a perspectiva fundamental que permeou o Relatório Alexander implicou uma visão construtivista do conhecimento, em que as pessoas aprendiam através da sua experiência e a educação era um recurso para abordar os seus problemas individuais e colectivos. Em contraste, o valor primário agora atribuído à aprendizagem ao longo da vida é adquirir conhecimentos e capacidades instrumentais que serão “entregues” numa variedade de contextos e formas. A ênfase em capacidades instrumentais conjuntas para o trabalho, distintas de um currículo baseado nos interesses das pessoas dentro das comunidades desempenha um importante papel naquilo que é visto como merecedor de aprendizagem e do tipo de sociedade que ambicionamos ser. Outra característica deste novo contexto de políticas é a ênfase no papel da educação de adultos para promover a coesão social, num contexto de desigualdades cada vez maiores (Tett, 2006). A educação de adultos tem de cumprir objectivos políticos muito controlados – para os quais existe financiamento – ou deve, cada vez mais, operar numa cultura dominada por valores de mercado. Por exemplo, a literacia de adultos é uma prioridade política actual e recebeu recursos substanciais com o objectivo de chegar aos 150.000 novos alunos na Escócia, num período de cinco anos. A oferta é gratuita, e está a decorrer um trabalho interessante e criativo. A consequência, no entanto, é que a educação de adultos sem a componente de literacia tem falta de recursos e está muito dependente dos educadores de adultos obterem subsídios a curto prazo, que têm uma duração e impacto limitados. É o caso do sector de voluntários em particular, mas também da provisão das autoridades locais, em geral. Para mais, as aulas para adultos providenciadas pelas autoridades locais – que, a partir da década de 1970 começaram a chegar a um público mais alargado – são crescentemente direccionadas pelos critérios de mercado, o que significou que os subsídios para grupos de desempregados ou com baixos salários foram eliminados ou que o valor das propinas aumentou. Os processos de mercado actualmente em efeito irão servir para restringir e estratificar o corpo estudantil e minar o progresso feito no sentido de providenciar um currículo variado, aberto a um amplo leque de adultos. A crescente participação, em termos de aumento do número de estudantes matriculados na educação superior, tem sido uma parte importante da agenda política do Reino Unido. Isto levou à emergência de serviços de apoio à aprendizagem, no seio da educação superior e continuada, para possibilitar aos estudantes lidar com o estudo académico e exigências de literacia. Sobre este tema, o que alguns educadores de adultos – especialmente profissionais de literacia – costumavam fazer nas comunidades é agora providenciado pelas instituições formais. Esta tendência é reforçar um modelo “respeitável” de progressão na educação de adultos, compreendida primariamente em termos de aquisição de qualificações e credenciais educativas formais, que estão sujeitas a inflação. Entretanto, um sentido mais alargado do significado de progressão, ou um sentido enquadrado em interesses sociais e colectivos progressivos simplesmente já não faz parte da agenda. Uma diferença notável na educação superior na Escócia, quando comparada com o resto do Reino Unido, é que não existe qualquer tipo de pagamento de propinas (Paterson, 2000). Os estudantes podem contrair empréstimos para pagar despesas de alojamento, que são subsequentemente liquidados quando começam a ganhar um montante específico de ordenado. Apesar disto, a tendência geral do Reino Unido é a de os custos da educação superior se terem afastado do Estado e se terem aproximado dos estudantes e das suas famílias. Um resultado bastante previsível é que a proporção de estudantes da classe trabalhadora a entrar no ensino superior está em declínio. A natureza selectiva do sistema de educação não mudou significativamente, porque os mecanismos do mercado simplesmente substituíram ou, mais provavelmente, reforçaram as expectativas sociais e culturais enquanto barreiras para a entrada no ensino superior. A direcção é clara: é no sentido de um novo tipo de uma respeitável educação de adultos, na qual a aprendizagem é motivada pelas necessidades da economia, e a coesão social é organizada através de mecanismos de mercado. Apesar do retrato traçado, as formas autónomas de uma educação radical de adultos, ligadas a uma mudança social e política, continuam a ser importantes – mesmo que muitos educadores de adultos considerem difícil criar o espaço ou não tenham os meios que justifiquem o estabelecimento dessas ligações. Existem algumas situações profundamente enraizadas, tais como o contínuo défice democrático, a degradação ambiental, a experiência da globalização, a crise da segurança social, a política internacional, e por aí fora, que estimulam activamente a resistência e criam movimentos populares que aliam a educação de adultos e a acção colectiva (Crowther, Galloway e Martin, 2005). Existem ainda educadores comunitários e de adultos que procuram manter uma posição ideológica radical no seu trabalho, mas têm de negociar e ceder no que podem fazer devido às restrições de um ambiente político hostil. No contexto dos cortes no sector público, isto é cada vez mais difícil. n AO LONGO DA VIDA 53 “VÊ LÁ, COMPANHEIRO, VÊ LÁ COMO VENHO EU” Em Aljustrel, o Grupo Coral do Sindicato Mineiro preserva as ricas tradições da sua profissão e também da terra. Texto António Simões do Paço # Fotografias Paulo Figueiredo R egularmente surgem notícias de acidentes graves em minas. Em 2001 morreram 36 mineiros na Ucrânia e 40 na Colômbia. Em 2005, 214 na China, no terrível acidente de Sunjiawan. Em 19 de Novembro, uma explosão de grisu na mina de Pike River, na Nova Zelândia, deixou 29 mineiros no fundo da mina. Nova explosão em 24 de Novembro pôs fim às esperanças de poder resgatar com vida esses 29 mineiros. Porém, o salvamento dos 33 mineiros isolados dentro dos túneis da mina de S. José, na região de Atacama, desde a primeira semana de Agosto deste ano, completado na madrugada de 14 de Outubro, com milhões de pessoas a assistir pela televisão em todo o Mundo, fez mais que todos os outros para chamar a atenção para a vida dos mineiros, para os seus perigos, mas também para a sua cultura de coragem e resistência. 54 APRENDER REPORTAGEM AO LONGO DA VIDA 55 Quando o coro entoa o ‘Hino dos Mineiros’, é visível a força e a vibração que as suas vozes robustas transmitem à assistência. Ninguém fica indiferente. E o orgulho na sua profissão e no seu canto é também evidente nos rostos cinzelados dos elementos do coro. Tradição preservada através do canto Em Portugal, embora as condições de segurança sejam hoje muito melhores que há anos – e que as existentes na China ou no Chile – ainda a 1 de Setembro morreu um mineiro de 31 anos em Aljustrel. Foi lá que nos deslocámos para ver, na companhia do Grupo Coral do Sindicato Mineiro de Aljustrel, como as tradições de uma determinada profissão, neste caso a dos mineiros, e também da terra onde vivem, podem ser preservadas e divulgadas através do canto. A mineração em Aljustrel é antiga de pelo menos dois milénios, tendo os depósitos de escórias do período romano sido calculados em cerca de 450 000 toneladas. Porém, os achados arqueológicos recolhidos na área de Aljustrel apontam para uma exploração pré-histórica dos chapéus de ferro dos filões mais antigos – os de S. João e de Algares –, que continham altos teores de cobre e prata e algum ouro. Apesar desta história tão antiga, a exploração moderna da mina inicia-se apenas em meados do século XIX, com a primeira concessão da mina de S. João atribuída a Sebastião de Gargamala em 1845. Data de então a construção do primeiro bairro mineiro. A criação do primeiro sindicato mineiro em Aljustrel, a Associação de Classe dos Operários Mineiros de Aljustrel, data de 56 APRENDER 1898, por iniciativa de militantes anarco-sindicalistas. O reconhecimento da sua existência legal foi feito pelo Governo da República em 13 de Fevereiro de 1912, após terem sido satisfeitas pelos sindicalistas diversas exigências de alterações aos estatutos do sindicato. O Coro dos Mineiros A primeira documentação oficial relativa à criação do que viria a ser o Grupo Coral do Sindicato Mineiro de Aljustrel é de 18 de Janeiro de 1926. O Grupo Coral tem hoje perto de uma vintena de elementos e é um dos representantes do cante alentejano mais solicitados para actuar em feiras, festas, desfiles e festivais, em Portugal e também no estrangeiro, tendo actuado já em França, na Bélgica e em Espanha. Ernesto Guerreiro Mestre, de 49 anos, natural de Aljustrel, é o ponto, o ensaiador – desde a saída de José Figueira – e principal figura do grupo coral. Esteve emigrado no Canadá e voltou. Começou a cantar em grupo numa tasca, o Feijão Branco, quando tinha 14 anos. O dono da taberna corria com ele, mas Ernesto insistia. «O grupo Coral foi fundado por doze teimosos», diz ele. «Ao princípio chamava-se Os 12 Teimosos, depois é que entraram para o sindicato. Para estar nisto é preciso ser teimoso.» António Manuel Mestre, de 52 anos, também de Aljustrel, é irmão de Ernesto. Trabalha na Somincor, em Castro Verde. Preocupa-o o facto de que «não há malta nova no coro. Gostam de cantar e ouvir, mas é só naquela altura.» Manuel Cavaco, de 73 anos, natural de Serpa, veio para Aljustrel ainda criança. Sempre trabalhou na mina. Está desde 1962 no coro. Concorda com António: «A malta nova não quer porque isto é uma prisão.» Ernesto é da mesma opinião: «Os outros chegam ao fim-de-semana e podem fazer o que querem, não têm a obrigação de ensaiar, de ir cantar aqui ou acolá.» Mas eles estão no coro porque gostam disso mesmo: de cantar, do convívio, de viajar. Mas não é só gostarem de cantar e conviver. Recentemente, vi-os actuar duas vezes: nas festas de Carnide, em Lisboa, e na feira de Castro Verde, no Alentejo. Quando o coro entoa o ‘Hino dos Mineiros’, por exemplo, é visível a força e a vibração que as suas vozes robustas transmitem à assistência. Ninguém fica indiferente. E o orgulho na sua profissão e no seu canto é também evidente nos rostos cinzelados dos elementos do coro. Este é composto quase só por mineiros, nascidos em famílias de mineiros. Uma excepção é Manuel Cantigas, o alto, que é pedreiro. Com 70 anos, é natural de Aljustrel e um dos elementos mais antigos do coro. Leonel Palma, de 52 anos, natural de Aljustrel, é encarregado de turno. O pai, que morreu há 9 anos, de doença profissional, também foi mineiro, durante 34 anos. Luís Maria Campos, de 76 anos, e há 26 anos no coro, também foi mineiro. Francisco António Galope, há vinte e tal anos no coro, foi mineiro 35 anos. À falta de gente mais nova, há os antigos que voltam. É o caso de Francisco Matias Curtinho, de 84 anos, também natural de Aljustrel. Trabalhou 17 anos na mina; esteve no coro há vinte anos, depois saiu, e voltou há dois anos. O trabalho como factor de identidade O trabalho tem sido, ao longo da história, «não só um meio de vida mas também um factor de identidade, e por isso foi cantado desde tempos imemoriais. Nas sociedades tradicionais, as tarefas ligadas ao cultivo da terra (a sementeira, a monda, a colheita, a vindima), bem como o pastoreio e a pesca encontramse amplamente reflectidos no acervo musical», diz-nos Ruben Vega Garcia, historiador asturiano, da Universidade de Oviedo. «Não acontece o mesmo com os ofícios próprios da revolução industrial, muito menos representados. A actividade mineira fica a meio caminho entre ambos: originária da proto-história, desenvolve-se extraordinariamente com a industrialização, requerendo grandes massas de trabalhadores que de forma natural se integram na classe operária emergente e frequentemente constituem um sector destacado do movimento operário.» As letras das modas do Grupo Coral do Sindicato Mineiro de Aljustrel abordam temas comuns a outros grupos corais alentejanos, mas distinguem-se destes pelas referências ao trabalho nas minas e à identidade de Aljustrel como vila mineira. ‘Aljustrel tem uma mina’ e Aljustrel vila mineira’ são, aliás, os títulos de algumas dessas modas, junto com o ‘Hino do mineiro’, este adaptação para português de uma canção asturiana de longa AO LONGO DA VIDA 57 http://www.youtube.com/watch?v=WCWc3V0YK_s http://www.youtube.com/watch?v=9rSuM5KXatg&feature=geosearch tradição, que em Espanha é conhecida por dois nomes: ‘Santa Bárbara Bendita’ (referindo-se à santa padroeira dos mineiros) e ‘En el pozu Maria Luísa’ (em memória de um acidente ocorrido neste poço). A existência das minas e da comunidade mineira em Aljustrel transmitiu a identidade mineira à vila como um todo, embora a actividade mineira esteja hoje em declínio e ao longo de mais de um século, como diz a antropóloga Inês Fonseca, «a actividade industrial mineira, entre 1867 e 1993, [se realizasse] com sucessivas paragens da produção, provocando grande instabilidade ao nível da mão-de-obra operária empregada nas minas», e também «em complemento com a actividade agrícola, sendo a mão-de-obra assalariada disponível no concelho utilizada ora numa ora noutra»1. Essa identificação entre Aljustrel e os mineiros, ainda que mitificada, na opinião de Inês Fonseca2, reflecte-se nas letras do grupo coral, onde o ‘patriotismo’ local (e nacional) vai de par com a expressão da luta contra a natureza e o desafio da morte, e a acção colectiva para mudar as condições de vida e de trabalho. Disso são exemplo modas como ‘Aljustrel, vila mineira’: «O mineiro sempre deu/ Tudo p’la nossa nação/ Arrancando os minerais/ debaixo dum frio chão. / Aljustrel vila mineira/ No Alentejo a brilhar/ Tens sempre a fama/ De toda a gente encantar. / Nós somos os botânicos/ Daquela linda roseira/ No Alentejo a brilhar/ Aljustrel, vila mineira», ou ainda ‘Aljustrel é meu concelho’: «Aljustrel é meu concelho/ O meu povo é lusitano/ Nossa pátria é Portugal/ À beira do oceano. / Meu rico Baixo 58 APRENDER Hino do mineiro Nas minas de Aljustrel5 Trá, lá, lá, lá Morreram muitos mineiros, vê lá vê lá companheiro, vê lá vê lá como venho eu. Trá, lá, lá, lá Trago a cabeça aberta Trá, lá, lá, lá que me abriu uma barrena, vê lá vê lá companheiro, vê lá vê lá como venho eu. Trago a camisa rota Trá, lá, lá, lá e sangue de um camarada, vê lá vê lá companheiro, vê lá vê lá como venho eu. Trá, lá, lá, lá Santa Bárbara bendita Trá, lá, lá, lá padroeira dos mineiros, vê lá vê lá companheiro, vê lá vê lá como venho eu. Trá, lá, lá, lá Aljustrel Tradição musical Grupo Coral do Sindicato Mineiro de Aljustrel. Uma edição da Câmara Municipal de Aljustrel. Gravado em 27 de Setembro de 2002. REPORTAGEM As letras das modas do Grupo Coral do Sindicato Mineiro de Aljustrel abordam temas comuns a outros grupos corais alentejanos, mas distinguem-se destes pelas referências ao trabalho nas minas e à identidade de Aljustrel como vila mineira. Alentejo/ Beja é a capital/ À beira do oceano/ Nossa pátria é Portugal. / Fui mineiro por natureza/ Vivi debaixo do chão/ Tirei da terra a riqueza/ E dei produto à nação. / Trabalhei enquanto pude/ Passei anos soterrado/ Estraguei minha saúde/ Por tanto ter trabalhado.» Da literatura à música Desde O Germinal de Émile Zola muitos têm sido os romances de temática mineira publicados. O mesmo se passa com a música. Onde quer que haja uma bacia mineira, diz Ruben Vega, «gera-se uma tradição musical que gira em torno do trabalho dos mineiros. Sob estilos muito diversos, que abarcam tanto as formas locais do folclore, nascidas de ambientes populares e adoptadas pelos próprios mineiros e pelos que os rodeiam, como obras criadas por artistas que pegam nos mineiros como motivo de inspiração e cantam a dureza do seu trabalho ou as gestas das suas lutas. No Sudeste de Espanha desenvolveramse ao longo dos últimos séculos variantes específicas do canto das minas que constituem vários subgéneros do flamenco perfeitamente reconhecíveis e que deram origem ao festival da localidade mineira de La Unión [na província de Múrcia], cujo prémio, consistente numa lâmpada de mineiro, é o mais antigo e prestigioso que pode obter um artista do flamenco. A presença dos mineiros foi amplamente recolhida também no country norte-americano, na tonada asturiana ou nos ritmos tribais sulafricanos, para citar alguns exemplos». Outros artistas, de diferentes géneros, incluíram os mineiros nos seus reportórios. É o caso dos U2, que ainda agora, em 25 de Novembro, dedicaram um seu mega-concerto em Auckland, na Nova Zelândia, aos 29 mineiros que perderam a vida na mina de Pike River. «As pessoas lidam com a dor de muitas maneiras», disse Bono, o líder da banda. «Na Irlanda cantamos.»3 Os acidentes na mina de Springhill, na Nova Escócia, em 1891, 1956 e 1958, levaram os U2 a incluir nalguns concertos a canção ‘Springhill Mining Disaster’. O terceiro acidente, em 1958, em que morreram 74 mineiros, levou ao encerramento da mina: «In the town of Springhill Nova Scotia/ Down in the dark of the Cumberland mine/ There’s blood on the coal, and the miners lie / In roads that never saw sun or sky. (Na cidade de Springhill, na Nova Escócia, / no escuro da mina de Cumberland / Há sangue no carvão, e os mineiros jazem / Em caminhos que nunca viram o sol e o céu.)» Esta canção foi escrita originalmente por Peggy Seeger (meia irmã do famoso Pete Seeger) com o nome de ‘The Ballad of Springhill’. Também seria interpretada pelo AO LONGO DA VIDA 59 No desfile dos grupos corais pelas artérias que separam o Jardim do Padrão da Praça da Liberdade nesta vila alentejana, era notório o envelhecimento de muitos dos grupos. «Sem tascas e tabernas, não aparecem novos elementos para o coro», diz-nos Ernesto Mestre. grupo folk Peter, Paul, & Mary e pelos cantores folk irlandeses Luke Kelly, membro dos The Dubliners, e por Pauline Scanlon. O grupo canadiano Tanglefoot refere-se ao acidente de Springhill na canção ‘Hard Work’, do álbum Dance like flames. O primeiro êxito dos Bee Gees nos EUA narra um acidente numa mina nova-iorquina e Johnny Cash e Bob Dylan, entre muitos outros, também dedicaram canções aos mineiros. A estrela do country Loretta Lynn deu à sua autobiografia o título de uma das suas canções mais conhecidas: Miner’s daughter. E o conhecido cantautor britânico Billy Bragg deu o subtítulo de Still suitable for miners (Ainda apropriado para mineiros) à sua biografia. Billy Bragg canta, por exemplo, ‘A Miner’s Life’ (Vida de mineiro): «A miner’s life is like a sailor on board a ship to cross the waves/ Every day his life’s in danger, many ventures being brave/ Watch the rocks, they’re falling daily, careless miners always fail/ Keep your hand upon your wages and your eye upon the scale (A vida do mineiro é como a de um marinheiro a bordo de um navio enfrentando as ondas/ Todos os dias a sua vida corre perigo, é preciso coragem para as muitas tarefas/ Cuidado com as rochas, todos os dias caem, o mineiro descuidado não consegue evitá-las/ Mantém sempre um olho no teu salário e outro na balança.)» 60 APRENDER As greves mineiras, como a 1984 e 1985 contra a reestruturação do sector pelo governo de Margaret Thatcher, tiveram o apoio de letras de Elton John, Sting, UB40, Pulp, Dick Gaughan e uma balada dos Oyster Band que musica um poema de Kay Sutcliffe (mulher de um dos grevistas) intitulado «Coal, not dole» (Carvão, não subsídio de desemprego), uma palavra de ordem daquela greve que apelava à dignidade do trabalho face à humilhação dos subsídios que compensavam o fecho dos poços. Um fenómeno semelhante, que inclui, junto à glosa de episódios de luta operária, a crítica à actuação dos sindicatos, a nostalgia pelo passado e a frustração dos jovens perante a falta de perspectivas de futuro uma vez encerrados os poços, deu-se nas Astúrias nos últimos vinte anos, onde o hip hop e o heavy metal passaram a conviver com as formas mais antigas como a tonada asturiana e as mais comerciais como a balada, o poprock ou o folk. E do futebol ao cinema O francês Pierre Bachelet compôs em 1982 ‘Les Corons’, que fala da vida nas cidades mineiras do Norte da França. Os corons são os bairros de casas térreas unifamiliares típicas das povoações mineiras, com um quintalinho nas traseiras, como REPORTAGEM evoca o refrão: Au nord, c’étaient les corons/ La terre c’était le charbon/ Le ciel c’était l’horizon/ Les hommes des mineurs de fond (A norte havia os corons/ A terra era o carvão/ O céu era o horizonte/ Os homens, mineiros do fundo [da mina].) A história, a tradição e o orgulho de ser mineiro estão presentes em toda a canção: Ils parlaient de 36 et des coups de grisou/ Des accidents du fond du trou/ Ils aimaient leur métier comme on aime un pays/ C’est avec eux que j’ai compris (Falavam de 364 e das detonações de grisu/ Dos acidentes no fundo do poço/ Amavam a sua profissão como se ama um país/ Foi com eles que compreendi.) ‘Les Corons’ tornou-se um hino para os adeptos do Racing Club de Lens, a equipa de futebol desta cidade do Norte da França, que o cantam em coro durante os desafios. No filme O Brother, Where Art Thou? (Irmão, Onde Estás?), de 2000, dos irmãos Ethan e Joel Coen, três prisioneiros – Everett (George Clooney), Delmar (Tim Nelson) e Pete (John Tuturro) – em plena Grande Depressão americana, escapam de uma cadeia do Mississipi. A cena em que se vê os prisioneiros, com os seus típicos uniformes listados, a trabalhar no exterior da cadeia desenrola-se ao som de um canto de trabalho, “Po’ Lazarus” (adaptação do ‘Poor Lazarus’ de Woodie Guthrie), cujos versos acompanham a cadência das picaretas e dos maços: «Well, the high sheriff/ He told his deputy/ Want you go out and bring me Lazarus/ Well, the high sheriff/ Told his deputy/ I want you go out and bring me Lazarus/ Bring him dead or alive,/ Lawd, Lawd/ Bring him dead or alive (O grande xerife/ disse ao seu adjunto/ Quero que vás buscar-me o Lázaro/ O grande xerife/ disse ao seu adjunto/ Traz-mo vivo ou morto,/ Lawd, Lawd/ Traz-mo vivo ou morto.)» Na Feira de Castro, que este ano decorreu em 16 e 17 de Outubro, no desfile dos grupos corais pelas artérias que separam o Jardim do Padrão da Praça da Liberdade nesta vila alentejana, era notório o envelhecimento de muitos dos grupos. «Sem tascas e tabernas, não aparecem novos elementos para o coro», diz-nos Ernesto Mestre, enquanto tomamos umas minis antes que chegue a vez de o Grupo Coral do Sindicato Mineiro de Aljustrel desfilar. «É lá que a malta começa a cantar. E elas estão a desaparecer.» Mas ninguém diria que a continuidade do grupo coral corre perigo quando dali a pouco os vir desfilar, impecáveis nos seus fatos-macacos azuis, lenço verde e vermelho ao pescoço, capacete mineiro na cabeça, rostos e vozes orgulhosamente levantados ao céu do Alentejo. «Vê lá, companheiro, vê lá. Vê lá como venho eu.» n 1 Inês Fonseca, «Identidades e memórias em torno de uma mina: o caso de Aljustrel», in AIBR. Revista de Antropología Iberoamericana, Vol. 1. N.º 3. Agosto-Dezembro de 2006, pág. v. 2 «A memória oficial edificada na actualidade, sobre o passado da vila e da sua população ligado à mineração, é uma memória depurada dos seus aspectos menos consensuais e passíveis de criar tensões e conflitos e, simultaneamente, corresponde a uma mitificação do trabalho na mina. Todos os elementos que contribuem para a edificação de uma imagem menos agradável sobre as minas e o trabalho dos mineiros são afastados da imagem oficial apresentada», Inês Fonseca, op. cit., p. vii. 3 «U2 dedicate songs to 29 lost miners», in 3news.co.nz, 26 de Novembro de 2010. 4 Referência ao triunfo da Frente Popular em 1936. 5 ou ‘No poço de S. João’, numa outra versão. AO LONGO DA VIDA 61 LIVROS DOSSIER Adultos pouco escolarizados: Políticas e práticas de formação Cavaco, Cármen (2009) Lisboa: Educa e UI&DCE por Irene Santos A mais recente obra de Cármen Cavaco corresponde a uma investigação efectuada no quadro de um doutoramento em Ciências da Educação e integrou o projecto FAP – Políticas de Formação de Adultos em Portugal – coordenado pelo Professor Rui Canário. Nesta pesquisa, a autora procurou conhecer e analisar as ‘lógicas de acção inerentes às ofertas de educação e formação, frequentadas por adultos pouco escolarizados’; parte de uma história da formação de adultos a nível internacional e nacional, e centra-se na actualidade de um território delimitado – foram estudados os cinco concelhos de Aljustrel, Almodôvar, Castro Verde, Mértola e Ourique – para perceber como se articulam os níveis micro (local), meso (nacional) e macro (internacional) na concretização das ofertas de formação. No seu anterior trabalho, a autora havia-se dedicado à aprendizagem experiencial de adultos pouco ou nada escolarizados1 em que inquiria pessoas comummente conhecidas como ‘analfabetas’ a fim de perceber como haviam desenvolvido conhecimentos e capacidades que lhes permitiram participar na vida social e laboral. Esta nova pesquisa, de grande fôlego, abrangência e profundidade, leva-nos a acompanhar o que na área da formação vem acontecendo em Portugal e em particular no Baixo Alentejo. Com efeito, sendo Carmen Cavaco originária desta região, os trabalhos que aí desenvolve constituem um tributo para aquela zona que, tal como em geral as menos urbanizadas, estão arredadas do conhecimento. Ela fá-lo pela escolha da região como foco de observação mas sobretudo pela forma dialogante e dignificante como escuta e apresenta a voz dos entrevistados, sejam eles decisores, formadores ou adultos certificados. A metodologia utilizada é reflexo também da forma como a autora pretende perceber o seu objecto de estudo. Com efeito, em territórios como estes, acossados pela perspectiva de atraso e deficit com que costumam ser encarados, a escolha metodológica é, antes de 62 APRENDER mais, conceptual: ‘a opção pelo estudo de um território prende-se com o facto de se assumir como fundamental uma intervenção contextualizada, em que as práticas educativas formais e não formais devem ser integradas em dinâmicas sociais, construídas e auto-geridas localmente pelas pessoas’ (p. 74). É na medida que a autora quer romper com um pensamento ‘escolocentrado’, horizontalizar as diversas formas educativas e de formação, que permite evidenciar a força do informal e do não formal da formação de cada pessoa. A escolha em ouvir o leque de actores envolvidos, dos decisores ao ‘público alvo’, é determinante na compreensão da articulação complexa que instituições e pessoas fazem das medidas políticas e das suas ideias e necessidades individuais e colectivas. O corpo do trabalho organiza-se em quatro componentes. Numa primeira, apresenta-se a evolução internacional e nacional da formação de adultos. Tendo por base os discursos fundadores das Conferências da Unesco desde o seu início em 1949, analisam-se as perspectivas e concepções que norteiam as medidas e directivas fornecidas aos vários países. Deste modo tornam-se evidentes as transformações radicais ao longo do desenvolvimento e difusão da formação de adultos. Iniciada numa óptica de educação popular, auto-determinante e valorizando as práticas auto-formativas, passa-se progressivamente para uma perspectiva de combate à ignorância de saberes científicos e técnicos numa lógica desenvolvimentista, até à predominância da óptica da ‘empregabilidade’. A alfabetização aparece como ícone da participação social, o combate ao iletrismo desempenha um papel crucial nesta transformação e torna-se um dos objectos centrais das orientações da Unesco. Uma lógica de gestão de recursos humanos, subordinada ao desenvolvimento económico, parece hoje dominar a formação de adultos na Europa, com uma forte determinação por parte da Ocde e da União Europeia, através das medidas políticas que se materializam nos meios administrativos, organizacionais, logísticos e financeiros, disponibilizados. Neste capítulo, percebe-se como, ao definir alguns problemas (da falta) de conhecimento, por exemplo o analfabetismo e sem descurar a importância da sua visibilidade, se contribuiu para a estigmatização e marginalização dos saberes próprios dos destinatários. Apesar dos princípios iniciais da Unesco que colocavam a centralidade preconizavam o cariz emancipatório, e do relatório Faure ‘Aprender a Ser’ em que nos anos 70 se defendia o valor formativo da vida na sua integralidade, estas intenções foram sendo alteradas e até pervertidas: ‘faltou uma reflexão epistemológica sobre o acto formativo. Essa reflexão teria sido fundamental para romper com a lógica escolarizante que continuou a prevalecer e que se apresentou como uma das fragilidades dos projectos de alfabetização e de educação de base de adultos’ (p. 117). Numa segunda parte, a autora percorre estatísticas para entender a situação da população portuguesa, tal como especificamente do território a estudar, face à escolaridade e a relação entre escolarização e situação face ao trabalho. A partir de uma análise cruzada de dados quantitativos e qualitativos, como entrevistas, Cármen Cavaco mostra como a formação passa sempre pelas opções locais, ainda que as politicas emanem do nível macro. Este é, aliás um exemplo de como ultrapassada a dicotomia entre estes paradigmas, o desdobramento do olhar sobre o objecto de estudo é beneficiado com a maior profundidade. A diversidade de dados recolhidos – legislação e outra documentação oficial, estatísticas e 113 entrevistas - constitui um factor de riqueza e originalidade do trabalho, que, aliada ao rigor e meticulosidade de tratamento e interpretação, dão conta de articulações, influências locais, nacionais e internacionais, contradições, discursos, adaptações, representações, usos, sentidos, etc. Noutro momento, apresenta-se um levantamento das ofertas formativas para adultos pouco escolarizados nos DOSSIER cinco concelhos, em que se salientam alguns aspectos. Por um lado a autora observa o modo como se relacionam as três modalidades – ensino recorrente, cursos EFA e RVCC - quando coexistem no mesmo tempo e local. Se nalguns casos parece haver uma relação entre as entidades promotoras, na maioria dos casos, a articulação ou se faz no interior de uma instituição que oferece mais do que uma modalidade formativa ou se faz pelas pessoas que individualmente e através da socialização com colegas, familiares ou amigos, optam por uma dada oferta. Neste levantamento também se destaca a terceirização que, nas associações e outras entidades afins tornadas IPSS’s2, de espaços de aprendizagem informal se têm vindo a transformar em espaços não formais de formação com uma estruturação progressiva, subordinada às normativas governamentais e europeias, que inverte todo o sentido da construção do saber e da acção dos interlocutores. Ao analisar a dimensão local destas iniciativas a autora discute ainda a ambiguidade, o ‘aparente consenso’, que surge na relação entre Estado e local, em medidas de territorialização ou de desconcentração, que não se enquadram num local enquanto espaço a ser valorizado e criado a partir da ideia de endogenia, isto é, através da iniciativa, recursos endógenos e auto-definidos. Finalmente, é com detalhe que são interrogadas as práticas dos centros de reconhecimento, validação e certificação de conhecimentos. Um dos elementos que acresce a pertinência desta componente tem a ver, como refere Rui Canário no prefácio ao livro, com a referência temporal: ‘um período curto que medeia entre, por um lado, a criação e o início das actividades promovidas pela Anefa e o lançamento do programa Novas Oportunidades (pelo meio a Anefa foi extinta e acentuou-se a orientação vocacionalista da politica governamental)’ (p. 21). Quem conhece minimamente esta prática, sabe o quanto a modalidade é atravessada por lógicas contrárias: uma vertente humanista que introduz no contexto pedagógico oficial um factor de inovação único, a quer a nível epistemológico – pelo reconhecimento da experiência como factor de conhecimento e pelo carácter complementar da formação ao que os adultos já sabem – quer a nível identitário dos profissionais envolvidos – cujo desempenho fica submetido às pessoas que recebem e acompanham; e uma vertente de gestão de recursos humanos que impele à produtividade para atingir metas previamente anunciadas, com consequências imedia- tas nas organizações. Esta contradição, sendo geral, é sentida por cada um dos centros de RVCC, e tem consequências nas linhas de conduta. Ora, é a recência do fenómeno em estudo que permite aos entrevistados verbalizar o faseamento do seu decorrer, explicitar o processo tendo em conta as contradições, os obstáculos, os hábitos, os desejos, etc; isto é, só assim foi possível apreender como foram sendo resolvidas as tensões inerentes à conjugação de ambas as lógicas, a que se acrescem outras como a tradição professoral que persiste, arreigada, nos profissionais e nas próprias insti- tuições, e que aos poucos se vão instituindo e sedimentando. A este respeito é de notar a relevância do trabalho de equipa que os centros empreenderam a fim de ir aferindo práticas e proceder a uma apropriação colectiva desta nova modalidade. No quadro do estudo destes centros de RVCC, a autora também concede uma atenção especial aos profissionais que emergem no quadro desta modalidade, sendo, por exemplo, feita uma sistematização das funções e competências dos profissionais de RVC e dos respectivos formadores. Para terminar esta breve apresentação do mais recente trabalho de Cármen Cavaco, uma pequena nota sobre o corpo teórico que evidencia aspectos do foro investigativo a que vale a pena prestar atenção, tais como: a) a diversidade das áreas que estudam a formação de adultos no interior das ciências da educação - história da educação, formação de adultos, história da educação, desenvolvimento curricular, políticas e administração educacional, formação de professores, etc ; b) uma quantidade significativa de estudos enquadrados por programas de formação avançada (mestrados e doutoramentos), produzidos por pessoas directamente implicadas no assunto por via profissional, o que tem efeitos a nível do acesso ao objecto de estudo e do conhecimento daí resultante, mas também cria um campo de reflexão interessante (creio que renovado) sobre a relação - a ‘velha’ querela – entre a pesquisa e a acção; c) por fim, o facto de se manter escassa a dimensão do corpo de investigadores profissionais dedicados em Portugal a esta temática, o que é paradoxal na época actual, pelas fortes alterações nas medidas que se têm efectuado neste domínio e pela enorme expansão da formação nas agendas políticas, facilmente traduzível em números. n 1 Cavaco, Carmen (2002). Aprender fora da escola: percursos de formação experiencial. Lisboa: Educa. 2 Instituições Particulares de Solidariedade Social. AO LONGO DA VIDA 63 NET DOSSIER Plataforma Europeia para a Aprendizagem ao Longo da Vida A Plataforma da Sociedade Civil Europeia sobre Educação-Formação ao longo da Vida (EUCIS-LLL) é uma estrutura que promove a cooperação entre organizações da sociedade civil à escala europeia. Reúne quase duas dezenas de redes europeias activas em diferentes sectores da educação e da formação, a fim de fazer ouvir a voz dos cidadãos sobre questões relacionadas com a Aprendizagem ao longo da Vida e propor soluções concretas assentes nos conhecimentos, competências e experiência dos peritos e práticos destas redes. Como recentemente a Comissão Europeia lançou uma Consulta Pública visando a revisão do Programa Aprendizagem ao Longo da Vida (LLLP), a EUCIS-LLL submeteu uma lista de comentários e recomendações, que estão patentes no respectivo site: www.eucis-lll.eu Uma Base de Dados das Revistas de Educação de Adultos na Europa Nesta Base de Dados é possível ter acesso a mais de 100 revistas especializadas em educação de adultos, de âmbito europeu ou nacional. Aqui se encontra uma listagem de periódicos, quer em formato papel quer on-line, com um enfoque específico nesta temática e que podem ser detectados através de palavras-chave relevantes em inglês (lifelong learning, lifelong education, adult education, adult learning and continuing education). De Portugal, encontram-se as revistas “Aprender ao longo da Vida” (da Associação O Direito de Aprender) e Fórum (da Universidade do Minho). www.artio.net/infoservice/en/database-of-adult-education-journals-0872 “Language Café” Um “Language Café” (ou “Café de Língua”) é uma forma sociável e amigável de praticar línguas sem frequentar aulas formais. São geridos para e pelas pessoas que os usam e podem encontrar-se nos mais diferentes locais, tais como cafés, bibliotecas, centros comunitários, cinemas, livrarias, escolas, “pubs” e restaurantes, entre outros. Existem cerca de 30 destes Cafés, espalhados por 8 países (Bélgica, Lituânia, Letónia, Hungria, Áustria, Suécia, Turquia e Reino Unido). Em Inglaterra, os “Language Café” ou se especializam numa só língua (e já existem em espanhol, italiano, francês, alemão, polaco, russo, português, árabe e linguagem gestual) ou são multilingues (por exemplo, um em Glasgow, Escócia, onde se conversa em francês, espanhol ou italiano. Para mais informações: www.languagecafe.eu 64 APRENDER Aprendizagem divertida no Canadá “ABC Alpha para a vida Canadá” anunciou o tema oficial do Dia da Alfabetização Familiar: “Brincar, Brincar pela Alfabetização”, fazendo assim reemergir a criança que existe em todos e encorajando os canadianos dos vários cantos do país a juntar-se para participarem em jogos de grupo amigáveis e em família, com vizinhos e amigos, no próximo dia 27 de Janeiro de 2011. Brincar pela alfabetização pode incluir todo o tipo de jogos que facilitem a alfabetização e promovam as capacidades de cálculo, e ainda a aptidão à compreensão, como os jogos de sociedade, os jogos de cartas e as actividades e jogos de autocriação imaginativa. Os jogos e o facto de se brincar despreocupadamente constituem formas divertidas para que pessoas de qualquer idade possam participar em actividades capazes de gerar novos conhecimentos ou de melhorar competências de leitura, escrita, cálculo ou compreensão. “Brincar com jogos permite, não só reunir as pessoas, mas também criar um contexto de aprendizagem divertido”, explica Margaret Eaton, presidente de “ABC Alpha para a vida Canadá”. E acrescenta: “Os jogos de cartas, por exemplo, ajudam a aperfeiçoar as capacidades de calcular, enquanto os jogos de sociedade, e também os jogos de associação de palavras, enriquecem a ortografia e as competências de leitura e de compreensão. É importante recordar que se pode aprender enquanto se ri e se passa um tempo agradável em família, sem esquecer os desafios quotidianos que temos pela frente”. Criado em 1999, o Dia da Alfabetização Familiar tem lugar todos os anos a 27 de Janeiro e é uma iniciativa concebida para fazer partilhar o prazer de ler e de aprender em família; e também para encorajar os canadianos a consagrarem 15 minutos por dia, pelo menos, a uma actividade que promova a aprendizagem. Para saber mais sobre alfabetização e aprendizagem contínua no Canadá, pode visitar: http://www.abclifeliteracy.ca NOTÍCIAS Satisfazer as necessidades Educativas dos Imigrantes na Irlanda A Irlanda lançou o seu 1º Plano Estratégico de Educação Intercultural para 2010-2015. No discurso que pronunciou por ocasião do lançamento do Plano, o Ministro de Estado sublinhou a sua importância, não apenas para os imigrantes mas igualmente para as comunidades anfitriãs. Como é sabido, a língua não é a única coisa de que os recém-chegados necessitam. O Livro Branco sobre Educação de Adultos, em 2000, afirmou a necessidade de enquadrar as políticas e práticas educativas dentro de um contexto que servisse uma população diversificada, o que trouxe implicações para o desenvolvimento curricular, materiais, formação, modalidades de avaliação e métodos didácticos. Há pois que ter em consideração, não só lutar contra o racismo e encorajar a participação dos recém-chegados em actividades educativas, mas também reconhecer que muitos grupos minoritários têm necessidades e contextos culturais específicos que devem ser respeitados e reflectidos no contexto educacional. A nova Estratégia de Educação Intercultural procura dar resposta a essas necessidades, tendo para isso elaborado um certo número de objectivos de elevado grau, tais como: - Possibilitar a adopção de uma abordagem institucional abrangente capaz de criar um ambiente de aprendizagem intercultural - Capacitar os agentes educativos com vista ao desenvolvimento de contextos de aprendizagem interculturais - Apoiar os estudantes para que se tornem proficientes na língua de O Método Montessori adaptado a pessoas idosas O Método Montessori é conhecido na educação das crianças, mas pode aplicar-se, desde que devidamente ajustado, a pessoas idosas que sofram de perturbações cognitivas. Trata-se de uma abordagem inovadora iniciada do Hearthstone Alzheimer Care nos Estados Unidos e que permite viver melhor com uma demência. O acompanhamento e os cuidados a ter com pessoas afectadas pela doença de Alzheimer ou outras demências semelhantes devem garantir uma estimulação cognitiva regular, possibilidades diárias de intercâmbio e participação social, assim como um treino frequente, a fim de reduzir as dificuldades que estas pessoas têm para desempenhar os actos da vida quotidiana. É extremamente importante recordar que os doentes são, antes de mais, pessoas. Apesar da intensidade dos seus deficits cognitivos associados à patologia, continuam a ter as mesmas necessida- des fundamentais que todos nós. Entre essas necessidades, encontram-se, por exemplo: a auto-estima, as possibilidades de exprimir pensamentos e afectos, a realização pessoal, o sentimento de pertença a uma comunidade de vida e o de viver uma existência digna e portadora de sentido e de qualidade. Muitas perturbações psico-comportamentais podem estar ligadas à falta de satisfação destas necessidades fundamentais. O Método Montessori, uma vez adaptado às pessoas afectadas de demência do tipo Alzheimer ou semelhantes, permite aos prestadores de cuidados proporem aos doentes actividades estimulantes que visam satisfazer o conjunto dessas necessidades. Os principais objectivos do Método Montessori adaptado às pessoas afectadas pela doença de Alzheimer e similares são de propor a estas pessoas actividades que lhes permitam conservar, durante tanto tempo quanto possível, ou até melhorar, as suas capacidades instrução - Encorajar e promover parcerias activas, envolvimento e comunicação real entre agentes e entidades formadoras, estudantes, progenitores e comunidades - Promover e avaliar a recolha e monitorização de dados para que a definição de políticas e a tomada de decisão estejam enraizadas na realidade. Dado o actual clima económico, este Plano Estratégico terá que ser executado dentro dos limites das verbas disponíveis. Como foi já definida uma estratégia de monitorização, aguardam-se os primeiros resultados com o maior interesse. O texto completo do Plano Estratégico encontra-se disponível no seguinte sítio Internet: www.education.ie/home/home.jsp?pca tegory=10856&ecategory=54720&lang uage=EN Extracto do artigo escrito por Bernardette Maria Brady (27.09.2010) in http://www.infonet-ae.eu para desempenharem actos da vida de todos os dias, tais como alimentarem-se, prepararem pratos simples, vestirem-se e participarem em actividades lúdicas. Tudo isto até uma fase já avançada da patologia. Este método fornece estímulos intelectuais fomentados pela inexistência de uma situação de fracasso e de uma confrontação do doente com as suas carências. A finalidade do Método Montessori é também de permitir às pessoas idosas serem tão autónomas quanto possível, capazes de fazer escolhas, enquanto são tratadas dignamente e com respeito. É tradicionalmente utilizado com crianças, mas foi modificado a fim de corresponder à especificidade das pessoas que sofrem de demências tipo Alzheimer. Permite-lhes, apelando às suas capacidades remanescentes, compreender o mundo que as rodeia, ter acesso a uma participação social, interagir com o seu meio e beneficiar de uma qualidade de vida que seja fonte de dignidade, de bem-estar e de auto-estima. Cameron Camp & Cindy Barotte em: www.ag-d.fr/iso_album/la-methodemontessori-adaptee.pdf www.thehearth.org/theway.html AO LONGO DA VIDA 65