Revista Aprender nº 13 - O Direito de Aprender

Transcrição

Revista Aprender nº 13 - O Direito de Aprender
REPORTAGEM
GRUNDTVIG
A OPORTUNIDADE EUROPEIA
NA EDUCAÇÃO DE ADULTOS
REPORTAGEM
ENTREVISTA
PRESERVAR AS TRADIÇÕES
DA PROFISSÃO E DA TERRA
O PROCESSO DO RECONHECIMENTO
DE COMPETÊNCIAS
MINEIROS DE ALJUSTREL ANA LUÍSA O. PIRES
Aprender
Nº13 | DEZEMBRO 2010 | trimestral
a 4,00 (IVA incluído)
ao longo da vida
Viajar é Aprender
I S S N 16 4 5 - 9 7 8 4
ÍNDICE
EDITORIAL
PARA TRABALHO DECENTE, APRENDIZAGEM DECENTE
Reportagem
Grundtvig: A oportunidade europeia
na educação de adultos
1
Entrevista
Ana Luísa Oliveira Pires
O conceito de competência ainda hoje
se encontra em construção
6
Dossier
Quando se viaja... Aprende-se
14
REPORTAGEM
De volta ao passado no exploratório
de Coimbra
16
DEBATE
Turismo Cultural
20
ARTIGO
Turismo ético e solidário
30
REPORTAGEM
O lobo bom
32
RECURSOS
A propósito de viagens Artigos
Educação-Formação de Adultos:
Caminhos passados e horizontes
possíveis As Universidades populares
em Portugal
Educação de Adultos na Escócia:
passado e presente
Reportagem
“Vê lá, companheiro,
Vê lá como venho eu”
Livros Net
Notícias
36
40
46
51
54
62
63
63
O
Conselho Internacional de Educação de Adultos (ICAE, na sigla em inglês) prepara a sua Assembleia Mundial, que decorrerá na Suécia em
meados de Julho de 2011, sob o título “Um mundo em que vale a
pena viver: a aprendizagem e educação de adultos como chave para a
transformação”. Adoptando já a terminologia consagrada na CONFINTEA VI – aprendizagem e educação ao longo da vida –, não vá a primeira acabar desarticulada da
segunda, o ICAE, através do seu Presidente Paul Bélanger, propôs recentemente
para discussão um documento preparatório intitulado “Nenhum direito ao trabalho decente sem o direito de aprender”. O racional é claro: trabalho decente, não
apenas para a adaptação ao mundo, mas também para a inscrição nele e para a
sua transformação, exige o direito à aprendizagem e à educação ao longo da vida.
Propus, neste quadro, que se fosse ainda mais claro na relação entre “trabalho
com significado”, “trabalho decente”, e direito à aprendizagem e educação com
significado, decentes. Com efeito, a tónica demasiado restrita na aprendizagem
para o trabalho esquece, por vezes, que nem todas as formas de aprendizagem
e educação de adultos podem ser consideradas decentes e justas, de qualidade
social para todos, baseadas em princípios resultantes da discussão e deliberação
democrática. Uma aprendizagem decente exige não apenas o direito a aprender,
mas também o direito a participar no processo de construção das formas de organização, dos conteúdos, das metodologias, da avaliação, etc. E exige que não
se esqueça o fim último da aprendizagem e educação: trazer mais pessoas para
o processo de participação activa na construção do mundo social. Isso só é possível através da constituição dos seres humanos como cidadãos activos, não como
seres passivos ou apenas consumidores, simples objectos de assistência social
ou definidos como “grupos-alvo”. A aprendizagem e educação de adultos decente
podem ser assumidas como um novo paradigma de preparação de nós próprios,
com os outros, durante toda a vida, para a liberdade e o aperfeiçoamento pessoal
e social, para a solidariedade e a autonomia, para a criatividade e a transformação, para a justiça e a emancipação, para a participação política e a cidadania
activa. É aprendizagem e educação para a inscrição, contra a subordinação e
a alienação, para a mobilização a favor do trabalho decente e com significado,
para um ambiente decente, para uma vida decente. Não é, por todas as razões,
um simples instrumento de ajustamento ao mundo que está sendo, como se os
nossos problemas pudessem ser resolvidos pela adaptação funcional dos indivíduos aos imperativos da economia e do trabalho, sem minimamente procurarem
intervir na mudança das condições estruturais da nossa existência colectiva. A
aprendizagem e educação de adultos decentes, para além das qualificações e
habilidades economicamente valorizáveis, comportam a esperança, sem esperas
desmobilizadoras, num mundo e num trabalho mais decentes e mais justos.
Estes são, também, os meus votos para 2011, saudando vivamente o regresso
de Alberto Melo à direcção desta Revista, a partir do próximo número, lugar em
que sabemos bem como é insuperável.
Licínio C. Lima
ficha técnica
Editor: Associação “O Direito de Aprender” | Director: Licínio Lima | Director Adjunto: Rui Seguro |Coordenador editorial: Luis Leiria
Redacção: Ana Silveira, António Simões do Paço, Carlos Morais, Cristina Portella e Daniela Silveira
Fotografia: Miguel Baltazar e Paulo Figueiredo | Ilustrações: Luis Miguel Castro |
Colaboraram neste número: Alberto Melo, Ian Martin, Irene Santos, Jim Crowther e Madalena Santos.
Redacção: Rua do Chão da Feira, Nº11 - 2ºDto. 1100-143 Lisboa | Edição gráfica: Atelier Gráficos à Lapa
Impressão: Gráfica Manuel Barbosa & Filhos, Lda.
APRENDER ao Longo da Vida publicação trimestral da Associação”O Direito de APRENDER”
Apartado 30005, 1350-999 Lisboa · Telefone: 969 593 912
www.direitodeaprender.com.pt e-mail: [email protected]
N.º reg. título: 124340 | NIF: 506687449 | ISSN 1645-9784 | Dep. Legal 211075/04 | Tiragem: 5000 exemplares
As opiniões expressas nos textos assinados são da exclusiva responsabilidade dos autores. A reprodução parcial ou total, carece de autorização prévia.
REPORTAGEM
A Intercultura-AFS foi uma das cinco instituições de outros tantos países que, integrada no programa
Grundtvig, participou no projecto IVALIP – “Integration, Volunteerism and Adult Learning through an
Intercultural Pathway”, que procurou facilitar o desenvolvimento de competências interculturais no
voluntariado como meio de lidar com a diversidade e a exclusão.
GRUNDTVIG:
A OPORTUNIDADE
EUROPEIA
NA EDUCAÇÃO
DE ADULTOS
Texto Carlos Morais # Fotografias Paulo Figueiredo
AO LONGO DA VIDA 1
REPORTAGEM
O
Programa
Grundtvig,
dirigido à Educação
de Adultos, é um dos
quatro subprogramas do
Programa Aprendizagem
ao Longo da Vida e tem como
principal objectivo contribuir para o
desenvolvimento da União Europeia
enquanto sociedade baseada no
conhecimento.
O Programa Grundtvig teve início
em 2001 (ver caixas). Deve o seu nome
ao humanista dinamarquês e dirige-se
às necessidades de aprendizagem em
todas as formas de educação contínua
não profissional para adultos, formal ou
informal – assim como às organizações
que promovem essa educação e seus
respectivos actores (professores, formadores e outros intervenientes), numa
perspectiva de reforço da qualidade e
da dimensão europeia da educação de
adultos.
Pedro Carmona
2 APRENDER
Iniciativa e coordenação
A Intercultura-AFS Portugal (http://
www.intercultura-afs.pt) é uma associação de juventude e voluntariado que
está em Portugal desde 1956. Tem como
principal objectivo promover o intercâmbio de jovens entre diversos países.
O estudante, para além de frequentar
uma escola, é integrado como membro
de uma família. Este movimento internacional teve origem na AFS (American Field Service) que, nas duas guerras
mundiais do século XX, criou um serviço de ambulâncias para transportar feridos. No final da Segunda Guerra, passou
a promover intercâmbios interculturais
e educacionais.
Estes intercâmbios possibilitam a
imersão do indivíduo numa cultura de
acolhimento, permitindo um maior
entendimento e aceitação da diferença,
“porque ao mudarmos de cultura, mu-
damos o filtro dos óculos e apercebemonos que a nossa forma de ver as coisas
não é única”.
Grande parte das acções da Intercultura-AFS são desenvolvidas por pessoas
em regime de voluntariado, e passam
por promover a organização junto da
comunidade local, entrevistar e orientar
os participantes nos intercâmbios.
Para que esse trabalho seja desenvolvido da forma mais eficaz possível, a Intercultura-AFS providencia regularmente
aos seus voluntários acções de formação. Por isso decidiu participar num
Seminário de Contacto (afecto ao programa Grundtvig) realizado em França,
em Setembro de 2007. Estes seminários
são espaços de encontro entre diversas
instituições ou entidades de diferentes
países que servem para lançar os futuros
projectos na área do seminário e definir
os respectivos agrupamentos de instituições que vão executá-los.
Neste seminário, a Intercultura-AFS
sabia que teria de respeitar os dois requisitos obrigatórios para constituir uma
parceria de aprendizagem, um mínimo
de três instituições originárias de três
países diferentes e dois anos de duração
de projecto. A estas regras básicas teria
de ser somada uma partilha de metodologias e objectivos, de forma a permitir
um intercâmbio de boas práticas e de
experiências.
Deste encontro resultou a constituição de um grupo de trabalho formado
por organizações de Portugal, França,
Irlanda, Polónia, Eslováquia, Lituânia
e Turquia. A formação de formadores
em educação não-formal como meio de
promoção de uma cidadania intercultural competente constituiu-se, desde
logo, como o objecto principal desta
parceria.
Pedro Carmona, Coordenador de
Desenvolvimento Organizacional da
Intercultura-AFS Portugal, explica a escolha: “somos uma associação que trabalha ao nível da educação intercultural,
utilizando metodologias de educação
não-formal. Estas metodologias são
mais activas, permitem a participação e
a mobilização dos conhecimentos dos
participantes, permitem que se parta do
conhecimento que já possuem, possibilitando assim o desenvolvimento de
outras competências que não só as cognitivas”.
Antes do projecto avançar para uma
etapa mais sólida, as organizações da
França e da Irlanda abandonaram-no.
Deste modo, constituíram-se como parceiros efectivos do IVALIP, para além do
Intercultura-AFS:
Association LIA / Window to
the Future (Lituânia) – Associação
formada por várias empresas de
topo (desde as telecomunicações aos
bancos, passando pelas Tecnologias
da Informação) que prossegue o
desenvolvimento e disseminação da
sociedade da informação por todo o
território, designadamente na criação
de pontos de acesso à Internet nas
bibliotecas em zonas mais remotas
e rurais
Foundation Institute of
Transnational Education and
Research (Eslováquia) – Fundação
ligada a uma universidade que
desenvolve a sua acção para a
investigação sobre o voluntariado
na Europa, nomeadamente através
da participação activa em programas
europeus de educação e no apoio e
organização de seminários e cursos
de formação.
Giresun Halk Egitimi Merkezi ve
Aso Mudurlugu (Turquia) – Escola
privada (mas com fundos estatais)
de formação de adultos. O papel das
mulheres na escola é uma das suas
causas.
PHO – Polish Humanitarian
Organisation (Polónia) –
Organização não governamental
de utilidade pública, que trabalha
em situações de crise. O seu lema é
fazer do mundo um lugar melhor
através do alívio do sofrimento
humano e da promoção dos valores
humanitários.
Pelo papel central que assumiu logo
no início do processo, foi atribuída à
Intercultura-AFS de Portugal o papel de
coordenação do IVALIP.
Exercitar no processo
O IVALIP iniciou-se formalmente em
Agosto de 2008. A primeira tarefa de
cada parceiro consistiu em fazer a pesquisa sobre a sua realidade relativa ao
voluntariado e desenvolver, em conjunto, metodologias de aprendizagem que
Luísa Loução
Grande parte das acções
da Intercultura-AFS são
desenvolvidas por pessoas
em regime de voluntariado,
e passam por promover
a organização junto da
comunidade local, entrevistar
e orientar os participantes nos
intercâmbios.
pudessem preencher as lacunas identificadas. O ponto alto deste primeiro ano
de trabalho foi a reunião internacional
de estreia da parceria, que decorreu em
Lisboa e Leiria em Novembro de 2008.
Durante os cinco dias do encontro, os
parceiros procuraram conhecer mais sobre a realidade de cada uma das organizações e respectivos países; alinharam estratégias; delinearam a forma final e a calendarização das várias fases do projecto
e trabalharam na imagem do projecto.
Em Fevereiro, realizou-se novo encontro, desta vez na Polónia. Foram então feitas várias apresentações (como as
das metodologias de aprendizagem da
Educação para Adultos ao longo da vida
e as do ciclo de vida dos voluntários de
cada organização participante no projecto), resultado do trabalho já produzido
por cada uma das cinco organizações.
Em Maio, foi a Lituânia a receber uma
cimeira do IVALIP, desta vez com uma
participação numérica de cada delegação
mais expressiva do que as das reuniões
anteriores (21 elementos), de modo a
promover um seminário destinado aos
formadores de voluntários em educação
de adultos não-formal. Os trabalhos desenvolvidos em Vilnius tiveram grande
importância no concretizar do principal
objectivo do segundo ano do projecto,
produção dos conteúdos para um curso
de formação de formadores em educação não-formal, a ser usado como uma
abordagem pedagógica alternativa, de
modo a promover não apenas a integração social, como o aperfeiçoamento de
uma cidadania intercultural competente.
A Eslováquia foi, sete meses depois,
o palco da quarta reunião entre os parceiros. Já com o final do projecto no
horizonte, a ordem de trabalhos esteve
centrada na apresentação e discussão dos
esboços dos produtos finais, como o website e jogo virtual.
Para a Turquia, em Maio de 2010, fi-
AO LONGO DA VIDA 3
REPORTAGEM
O PROGRAMA
GRUNDTVIG
EM NÚMEROS
Nos últimos 10 anos, o Programa
Grundtvig ajudou os adultos europeus
a elevar o nível de competências e
empregabilidade, dando apoio financeiro
a cursos de formação e à mobilidade das
aprendizagens. Durante este período,
o Programa investiu 370 milhões de
euros no sector da educação de adultos,
concedendo 17000 subvenções a
organizações que envolveram cerca de
meio milhão de participantes.
Desde 2000 foram concedidos quase
14000 subsídios a organizações que
integraram mais de 3000 parcerias de
aprendizagem. Para muitos, o Grundtvig
proporcionou-lhes a primeira experiência
de trabalho com entidades afins, de outros
pontos da Europa.
Nos últimos 10 anos, cerca de 15000
docentes e outros profissionais receberam
formação em serviço ou efectuaram
uma missão de ensino com o apoio do
Grundtvig. Espera-se que este número suba
para mais de 20000 no final de 2013.
Após o lançamento de novas
oportunidades de mobilidade ao abrigo do
Programa Grundtvig, em 2009, cerca de
5000 aprendentes adultos, oriundos de 30
países, receberam bolsas para participar
em experiências educativas e actividades
de voluntariado além-fronteiras,
aumentando assim as suas competências
de desenvolvimento pessoal.
O Programa dá prioridade ao apoio a
projectos em cooperação e a redes que
desenvolvam e disseminem abordagens
inovadoras em educação de adultos. Cerca
de 700 iniciativas deste tipo foram já
levadas a cabo desde o início do Grundtvig,
envolvendo uma média de 4000 parceiros
por toda a Europa.
4 APRENDER
cou marcada a reunião final do IVALIP.
Durante cinco dias, a agenda esteve focada na conclusão e revisão de produtos
do projecto e nas orientações finais para
elaboração do imprescindível Relatório
Final do Projecto.
Um dos produtos do IVALIP foi o
jogo virtual. João Rito, voluntário do Intercultura-AFS e criador desta “ferramenta”, sintetizou-o à Aprender ao Longo
da Vida: “O jogo consiste num conjunto sequencial de cenários com situações
onde a interculturalidade está presente,
em que, perante determinadas opções, o
jogador tem de tomar uma série de decisões. Nessa sequência, o jogador é confrontado com situações onde a sua concepção de
interculturalidade é exposta e
onde é levado a questionarse/consciencializar-se sobre
essas mesmas concepções.
Assim, o jogo, no seu conjunto, procura contribuir para o
desenvolvimento de conhecimentos e competências ao nível da educação intercultural,
de uma forma não expositiva
e interactiva.”
No balanço final assume
destaque o facto de, na maior
parte das actividades, se terem utilizado métodos de
educação não-formal, naquele que foi um modo intencional de experimentação destas
metodologias.
O próprio processo inerente ao projecto IVALIP
consubstanciou-se como um
exercício de experimentação
das metodologias prosseguidas: a organização dos encontros, o seminário de formação
para formadores e a maior parte das actividades foram executadas nesse espírito
e com essa intencionalidade, utilizando
métodos de educação não-formal.
Luísa Loução, coordenadora do projecto IVALIP, identifica dois grandes
tipos de vantagens trazidas para a instituição que integra: partilha de saber e
competências decorrentes do contacto
com experiências de outras organizações
e países e, também, o grande enriquecimento cultural e pessoal dos voluntários
que participam nestas experiências, que
se traduzirá, igualmente, numa maisvalia para a organização.
José Manuel Moura
O Grundtvig em Portugal em 2009
PARCERIAS
WORKSHOPS
PROJECTOS DE VOLUNTARIADO SÉNIOR
CURSOS DE FORMAÇÃO CONTÍNUA
ASSISTENTES
VISITAS E INTERCÂMBIOS
TOTAL
VISITAS PREPARATÓRIAS/SEMINÁRIOS
CONTACTO (VP/SC)
Candidaturas Recebidas
139
12
4
175
9
26
365
28
Candidaturas
Aprovadas
62
4
2
55
6
22
151
21
A este propósito, José Manuel Moura,
voluntário do Intercultura-AFS que participou em vários seminários do IVALIP,
sublinha que “este projecto proporcionou conhecimentos para formar voluntários com mais competência, conhecimento, experiência e motivação”, e que
este último factor é muito importante,
“atendendo a que a integração de voluntários nestes projectos constitui um desafio para os mesmos, integrando-se numa
política de gestão de expectativas e de
ciclo de vida do voluntário”.
Pedro Carmona salienta ainda dois
outros benefícios da participação/coordenação no IVALIP: o aproveitamento
directo pela Intercultura-AFS do knowhow adquirido com a organização do
seminário de formação para formadores
(Lituânia) no desenvolvimento das estruturas do voluntariado e o “projectar
da associação como uma organização
credível ao nível da educação intercultural”. n
O PROGRAMA GRUNDTVIG, DEZ ANOS DEPOIS
No discurso de encerramento do 10º
aniversário do Programa Grundtvig, a
Comissária Androulla Vassiliou afirmou que
o sucesso do Grundtvig e a necessidade
de se encontrar, na Europa, uma estratégia
capaz de combater a crise financeira e
social justifica que as instâncias europeias
continuem a apostar fortemente na
educação de adultos. Transcrevemos,
de seguida, algumas passagens da sua
comunicação.
“O Grundtvig começa onde outros dos
nossos programas param, oferecendo
às pessoas uma oportunidade para dar
um passo em frente na sua educação,
qualquer que seja a sua situação de
origem. Fornece, assim, uma segunda
oportunidade educativa para quem
não obteve uma qualificação à primeira
tentativa. Consegue chegar aos grupos
marginalizados e desfavorecidos na
sociedade. Trabalha com cidadãos idosos
VAI MAIS ALÉM
NO TEU CONHECIMENTO
Porque o conhecimento não escolhe local nem idade, com
o Programa GRUNDTVIG podes descobrir inúmeras actividades
de cooperação europeia que promovem a melhoria dos conhecimentos
e competências dos adultos.
Se tens vontade de levar o teu conhecimento mais além,
vai a www.proalv.pt e descobre tudo sobre as acções GRUNDTVIG
geridas pela Agência Nacional PROALV.
VAI MAIS ALÉM
para promover a educação numa etapa
mais avançada da vida, uma preocupação
crescente das políticas sociais, à medida
que cresce na Europa o número de
cidadãos seniores activos.
A Europa vai continuar a necessitar
de pessoas fortemente motivadas e
qualificadas vindas de todas as partes
do mundo. Também será essencial para
ajudar a integrar imigrantes e pessoas
das minorias étnicas na sociedade e no
mercado de trabalho.
Cerca de um século e meio depois da
sua morte, continuamos a lutar pelos
ideais que eram caros a Grundtvig. Os que
previram que o século XXI seria o século da
educação de adultos, tal como os séculos
XIX e XX foram os do desenvolvimento
das escolas e das universidades, não
deverão estar longe da verdade. A visão
de Grundtvig ajuda-nos hoje a construir o
nosso futuro.”
ACÇÕES | Prazos de Candidatura
Parcerias 19 Fev 2010
Projectos de aprendizagem partilhada
Workshops Grundtvig 19 Fev 2010
Experiências intensivas de aprendizagem
Projectos de Voluntariado Sénior 31 Mar 2010
Voluntariado sénior ao serviço da aprendizagem
Visitas e Intercâmbios 6 semanas antes do início da mobilidade
Conferências e visitas na área da educação de adultos
Cursos 15 Jan 2010 | 30 Abr 2010 | 15 Set 2010
Oportunidades de formação na Europa
Assistentes / Períodos de Assistência 31 Mar 2010
Trabalhar e aprender fora de portas
AO LONGO DA VIDA 5
6 APRENDER
ENTREVISTA
reconhecimento e a
O CONCEITO DE COMPETÊNCIA Ovalidação
de competências
podem
ter
um potencial
AINDA HOJE SE ENCONTRA
emancipatório enorme,
enquanto processos de
EM CONSTRUÇÃO
ANA LuísA
OLIVEIRA
PIRES
construção de identidades
pessoais, sociais e
profissionais, como meios
de desenvolvimento
pessoal e de qualificação
social, defende a
professora de Ciências
da Educação Ana Luisa
Oliveira Pires nesta
entrevista à Aprender ao
Longo da Vida.
Entrevista de Rui Seguro # Fotografias de Miguel Baltazar
AO LONGO DA VIDA 7
Acompanha desde 1995 os processos de validação de
competências. O conceito de competências sofreu alguma
evolução ao longo destes 15 anos?
O conceito de competência ainda hoje se encontra em construção. Os conceitos também evoluem, vão sendo enriquecidos a partir de contributos disciplinares distintos, a partir de
quadros teóricos e paradigmáticos que nos vão permitindo
também fazer evoluir e construir novas formas de inteligibilidade dos fenómenos. De qualquer forma, o conceito de competência encontra-se hoje mais bem estudado do ponto de vista teórico. Os quadros paradigmáticos e teóricos que utilizamos, que nos balizam a acção educativa, têm vindo a evoluir
e o conceito competência é hoje melhor compreendido pelos
actores do terreno, e que também melhor trabalham com ele.
O conceito de competência é um conceito polissémico que,
no meu entendimento e na perspectiva da investigação, dependendo do quadro teórico que se mobiliza, assim também
a concepção de competência é diferente, e a forma como se
operacionaliza e trabalha a nível educativo é distinta.
Do ponto de vista teórico, temos diferentes quadros de referência e, só ao nível das ciências de educação e da psicologia,
temos uma concepção de competência behaviorista que, durante décadas, do ponto de vista da pedagogia dos objectivos,
foi aquela que influenciou mais a acção educativa e o pensamento da educação. Mas, neste momento, essa concepção
behaviorista, que já foi em muito ultrapassada pelas concepções construtivistas, pelas concepções cognitivistas, humanistas da aprendizagem, é uma concepção da qual ainda se
podem encontrar algumas influências nas práticas actuais de
quem está no terreno – os docentes, os formadores, os educadores. Apesar de hoje termos quadros teóricos de referência
muito mais apropriados para compreender a essência do que
são as competências, nomeadamente o contributo das abordagens construtivistas que são aquelas que mais se têm difundido a nível educativo, na actualidade.
Assistimos a um movimento, em especial na comunicação
social, de críticas “à moda” das competências. Num artigo
de opinião que li há dias, afirmava-se que o que era
necessário era as pessoas saberem. Em termos da aceitação
da opinião pública, estes movimentos têm alguma
receptividade?
É óbvio que os discursos dependem de quem os produz e do
contexto onde estão a ser produzidos. Se perguntar às pessoas
de senso comum o que são competências, é óbvio que todos
têm uma noção do que são. Se estamos a falar no discurso
dos teóricos, aí obviamente que há uma obrigação de maior
rigor conceptual e de saber quando se utiliza uma determina-
da concepção, um determinado conceito de competência, em
que fundamentos e em que princípios se está a basear. Temos
também os educadores, os formadores e, nesse caso, é o discurso dos práticos que estão na acção, é um discurso que, de
alguma forma, não é apenas teórico, é um discurso que vem
muito também do seu saber, daquilo que fazem e da forma
como entendem e de como trabalham, no dia a dia, as competências dos seus formandos.
Há vários níveis de discurso, e se me falar no discurso de senso
comum é uma coisa, discurso cientifico é outra, o discurso da
acção provavelmente é outro, que se cruzam e que se interpelam mutuamente.
Cita num artigo seu que Bernard Liétard afirmou que
o futuro do reconhecimento de competências ainda é
incerto. Pode ser a raiz para uma nova ordem educativa
renovadora de projectos de educação permanente, ou
podem ser as premissas de novas formas de gestão social
ao serviço da economia de mercado.
Agora saltámos do conceito competência para o de reconhecimento de competências.
Reconhecimento, validação, certificação de competências, são
termos hoje utilizados para designar um conjunto de novas
práticas educativas, práticas sociais que têm vindo a ser disseminadas em diferentes países europeus e noutros. O meu
doutoramento foi baseado num estudo comparativo nestes
sistemas em vários países. Nós conhecemos bem a situação
portuguesa, que é paradigmática a este nível pela rápida expansão e implementação deste sistema em Portugal. Os referenciais que são utilizados em qualquer sistema ou dispositivo de reconhecimento e validação de competências são
construções. Representam de alguma forma as competências
ou o conjunto de saberes que são considerados de referência,
e é à luz deles que se vão validar os saberes que as pessoas
possuem, sejam referenciais académicos, sejam referenciais
profissionais. Eles tipificam, objectivam um conjunto de saberes que são considerados como de referência no âmbito de
um determinado sistema ou dispositivo e, como tal, são construídos socialmente.
Um dos aspectos fundamentais de um sistema de reconhecimento e de validação de competências é exactamente os referenciais que utiliza, para além das metodologias que são postas em prática para fazer esse reconhecimento, os referenciais
são outra das pedras de toque do sistema, assim com a intervenção dos próprios formadores, validadores, dos indivíduos
que trabalham nesta área. Isto tem de ser pensado sempre de
uma forma global, interligada.
Articulando com Bernard Liétard – que tem a ver com a gran-
Bernard Liétard diz que o futuro destas práticas é incerto, pois tanto
se poderão vir a constituir como uma raiz nova de uma nova ordem
educativa, ou como as premissas de nova gestão social ao serviço da
economia do mercado.
8 APRENDER
ENTREVISTA
de finalidade deste sistemas e destes dispositivos, com que
finalidade são utilizados, quais são as lógicas dominantes –,
sabemos que há muitas tensões, bastante conflitualidade ao
nível do trabalho, do reconhecimento e da validação das competências dos adultos; e estas tensões não são apenas a nível
nacional – elas acontecem, perpassam estas práticas noutros
países. Bernard Liétard diz que o futuro destas práticas é incerto, pois tanto se poderão vir a constituir como uma raiz nova
de uma nova ordem educativa, ou como as premissas de nova
gestão social ao serviço da economia do mercado.
Gostava de articular isto com Isabelle Cherqui-Houot, que
também fez uma tese de doutoramento sobre o reconhecimento e a validação das competências, e que diz que estes
dispositivos de reconhecimento e de validação e particularmente no ensino superior, que foi o estudo que ela realizou,
podem ceder à tentação de reproduzir os modelos sociais dominantes, o modelo industrial, o modelo de mercado, que se
apropriam de uma visão utilitária e estratégica do saber e do
conhecimento com vista à comercialização do seu “produto”.
E assim pode acentuar esta tendência actual do sistema educativo que massifica, por um lado, o acesso ao diploma, é o
modelo industrial da massificação, da tipificação, mas por outro lado esta comercialização é o saber que o mercado quer
comprar. São as competências que têm determinada relevância em termos económicos, e sabemos que quando pensamos
na formação das pessoas, numa perspectiva global e integrada
nas suas múltiplas dimensões, não podemos ter apenas em
atenção as competências que têm valor económico no mercado. Há outro tipo de competências que são, se calhar, muito
mais importantes para a vida e sem elas não podemos ser cidadãos de pleno direito, interventivos, participativos. Bernard
Liétard chama a atenção para este risco de o reconhecimento
e a validação de competências poderem ser instrumentos ao
serviço da economia de mercado, e é nessa perspectiva que
ele defende, tal como eu, que estas práticas têm um potencial emancipatório enorme e podem e devem ser consideradas como uma função educativa a tempo inteiro, enquanto
processos de construção de identidades pessoais, sociais e
profissionais, como meios de desenvolvimento pessoal e de
qualificação social. É neste sentido que entendo que devemos
continuar a trabalhar.
cesso e de desenvolvimento da pessoa. É um meio para a pessoa,
a partir de uma nova trajectória de aprendizagem, conseguir realizar algo, um projecto, uma nova actividade, uma nova fase em
termos profissionais, sociais e educativos.
Essa perspectiva pode ser aplicada dentro ou fora do
sistema educativo, numa perspectiva mais lata, numa
lógica de educação de adultos?
Em França e noutros países europeus, em Portugal também,
têm-se realizado os balanços de competências não na lógica
da validação/certificação mas na lógica de tentar identificar as
competências que aquelas pessoas possuem, ajudá-las a fazer
um projecto e orientar a sua vida educativa, profissional, etc.,
e sem esse balanço de competências não é possível evoluir e
avançar e orientar. Neste sentido, não é apenas para certificar.
Aí é fundamental o papel do mediador...
Há aqui três ou quarto peças fundamentais destes dispositivos
e sistemas que têm de ser pensados de uma forma global e
integrada. É a questão dos referenciais e porquê aqueles referenciais, e quais são as competências privilegiadas em detri-
O reconhecimento das competências não é um fim em si
mesmo, mas é um processo. Não acha que é necessário
colocar mais o enfoque no processo?
Se olharmos na perspectiva na lógica sumativa, que é testar
um determinado nível de competências, dar um diploma, é
óbvio que isso tem um determinado valor, um valor social,
um valor pessoal, um valor profissional para a pessoa que adquiriu esse diploma.
Mas há aqui uma dimensão fundamental dos processos que não
é a sumativa, é a dimensão formativa, que é o que vai fazer com
que aquela pessoa tome consciência do seu percurso de aprendizagem não valorizado até aí, das competências que adquiriu e
das competências que poderá ainda adquirir. É uma etapa, não é
um fim em si mesmo e tem de ser visto também nesta dimensão
de processo. O reconhecimento e a validação de competências
não apenas na perspectiva sumativa mas na perspectiva de pro-
AO LONGO DA VIDA 9
mento de outras. Há a questão dos referenciais, há a questão
das metodologias, dos portfólios.
Posso dar um exemplo no ensino superior. Com o Processo
de Bolonha, os referenciais do ensino superior sofreram uma
mudança drástica, porque se pretende passar de um ensino
centrado no conhecimento para um ensino centrado nas competências. O ensino superior confronta-se neste momento
com uma série de desafios, nomeadamente este.
O que são competências? Hoje, se formos olhar para os referenciais que são utilizados no ensino superior, há esta maior
preocupação com as competências. Isto é um dos efeitos colaterais de Bolonha e penso que não está ainda completamente
resolvido.
Os referenciais, as metodologias, as técnicas e os instrumentos utilizados são fundamentais, os mediadores são outra das
peças chave e, junto com os formadores, os técnicos de acompanhamento. Não podemos esquecer-nos do seguinte: estas
competências que se tentam a todo o custo objectivar, nomear, identificar, fazer, explicitar, são competências que foram
adquiridas em contextos não formais ou informais, através de
experiência de vida, de experiências profissionais e as pessoas,
muitas vezes, não têm consciência de que possuem estes saberes e muito menos as competências que estão nos referenciais.
E é preciso um trabalho, que é esta passagem do induzível
10 APRENDER
Temos uma tensão entre a lógica dos
saberes académicos e a lógica dos
saberes profissionais, que se confrontam
e se interpelam mutuamente. A lógica
disciplinar e científica versus a lógica dos
saberes experienciais.
ENTREVISTA
para o deduzível, do implícito para o explícito, este é o verdadeiro trabalho de um mediador que muitas vezes empresta
aos adultos uma linguagem que não é a desses adultos. Ele
tem de ser capaz de mediar os saberes adquiridos que muitas
vezes não são sequer nomeados pelo próprio, e ele tem muitas
vezes de apoiar este trabalho de explicitação, de nomeação. E
isto, para o próprio, não se faz sem um processo de tomada de
consciência. Eu tenho de tomar consciência que possuo estes
saberes e isto é um trabalho muito importante que o mediador tem de saber desenvolver e apoiar. Daí que não é a técnica,
não é o instrumento, não é o portfólio em si que vai fazer esta
explicitação, é o trabalho que o mediador vai fazer junto do
outro, de escuta, de apropriação, de identificação.
Isto remete para a formação das pessoas que estão a fazer este
trabalho. Na grande generalidade têm vindo a aprender com a
sua própria experiência, e há saberes que têm vindo a ser constituídos pelas equipas, nos centros, que são de muito valor
e que mereciam ser explicitados e disseminados pelas outras
equipas. Muitos destes saberes que se têm vindo a constituir
são valiosíssimos, e é importante ter noção disto e sistematizálos, desenvolvê-los, disseminá-los.
A sensação que tenho é que o reconhecimento de
competências é um percurso muito mais difícil do que as
avaliações académicas simples...
O que está aí em causa? Qual é o objecto da avaliação? Temos
de pensar o que é o objecto e se o procedimento é o mais adequado ou não. Se queremos um saber, se queremos avaliar se
um indivíduo possui um saber académico, disciplinar, cientifico e se sabe reproduzir o que está num programa, o teste visa
a restituição desse conhecimento, é um saber declarativo que
pode ser exposto por escrito. Mas as competências – e pensamos principalmente em competências adquiridas através de
experiências de vida – as pessoas não são capazes de identificar os saberes subjacentes a essa acção na perspectiva científica
disciplinar e académica.
Se olharmos para uma definição mais consensual do ponto de
vista das ciências da educação, as competências são saberes,
uma integração de saberes que se mobilizam na acção. São
contextualizados e finalizados. Os saberes experienciais e as
competências que as pessoas constroem ao longo da vida não
são passíveis de ser explicitados nessa lógica académica do
conhecimento científico, fragmentado, dividido, cumulativo.
Portanto, um teste escrito seria a maior contradição.
Mas há países em que há uma tendência para isso.
Depende das abordagens que se estão a utilizar. Há diferentes abordagens de avaliação de competências. Uma delas é
a avaliação pelos saberes. Há abordagens que dizem: vamos
avaliar cada um destes saberes per si no pressuposto de que,
na posse deles, a pessoa será capaz de os mobilizar. E neste
caso já vi serem utilizados determinados testes de conhecimentos, porque se pretende avaliar se aquele individuo possui
o conhecimento teórico subjacente àquela acção ou aquele
conhecimento da acção. Esta é uma visão que, como todas
as visões, também tem muitos limites. Estamos a olhar para
os vários ingredientes da competência e estamos a avaliar per
si. Ora a competência não é o somatório dos ingredientes, é a
integração dinâmica de todos eles, é algo mais, é um processo
de valor acrescentado – o produto final é sempre mais do que
a soma das partes. Daí que essas abordagens existam, também
as conheço, mas têm limitações e não se aproximam de uma
avaliação, de um objecto tão complexo quanto são as competências. É uma aproximação.
Mas há várias lógicas e princípios subjacentes?
Há uma multiplicidade de lógicas em presença, nos vários sistemas e dispositivos – não falo especificamente do caso português, estou a falar de lógicas que se encontram em diferentes
países e em diferentes contextos – e temos conflitualidades e
tensões entre diferentes lógicas. Por exemplo, entre a lógica
individual e a lógica social, entre a lógica individual do reconhecimento, do reconhecimento dos saberes da pessoa para a
pessoa e a lógica social da validação.
Temos uma tensão entre a lógica formativa e a lógica sumativa, a lógica formativa do balanço das aprendizagens, da
elaboração de projectos que entra, muitas vezes, em tensão
com a lógica sumativa de obtenção de créditos com vista à
certificação. Temos a lógica da personalização versus a lógica
da massificação. A lógica da personalização centrada nos processos, na pessoa e na sua singularidade, enquanto que a lógica da massificação é mais centrada nas metas, nos resultados,
no alargar quantitativo destes processos mais públicos. Temos
outra tensão muito forte entre a lógica da flexibilização e a
lógica da standardização. Até que ponto é possível flexibilizar,
adaptar, adequar e standardizar, nomeadamente ao nível das
metodologias, até que ponto é possível utilizar um conjunto
de metodologias em função daquela pessoa que é única ou
não, ou a lógica da standardização, igual para todos.
Temos uma tensão entre a lógica dos saberes académicos e a
lógica dos saberes profissionais, que se confrontam e se interpelam mutuamente. A lógica disciplinar e científica versus
a lógica dos saberes experienciais, que é mais orientada pela
fragmentação do saber, enquanto que a lógica dos saberes experienciais é na óptica dos saberes integrados e contextualizados.
Por fim, a lógica da racionalidade instrumental, utilitarista,
de mercado e a lógica antropocêntrica, emancipatória, centrada na pessoa e na descoberta das suas potencialidades e no
desenvolvimento dessas potencialidades, que era aquilo que
dizia o Bernard Liétard, que o futuro destes sistemas está em
aberto e ainda é incerto e, de facto, somos nós que podemos
fazer evoluir os sistemas numa direcção ou noutra.
Quando diz que existem tensões e contradições, isto
significa que pode haver opções, ou pode haver conciliação
entre estas dicotomias?
Estas tensões foram apresentadas de uma forma muito bipolar, muito dicotómica. A realidade é que estas forças conflituais existem de facto e podemos assistir, em determinados
contextos, a uma lógica sobrepôr-se à outra, ou estar em maior
destaque em relação à outra.
Elas existem. Observamos a existência destas lógicas; agora a sobreposição de uma em relação à outra é sempre uma
questão que tem a ver com o específico, com o local, com o
contextual, e com as características do próprio sistema e do
AO LONGO DA VIDA 11
próprio contexto educativo nacional em causa. Tudo isto pode
ser construído e estas lógicas podem ser dominantes umas em
relação às outras em função do contexto, do local, do específico, das políticas que são privilegiadas, etc.
mente superior aos saberes da prática. Toda esta concepção
tem de evoluir e é através da mudança de representações, da
mudança cultural, do que é conhecimento, do que é saber, do
que são competências e é por aqui que tem de se caminhar.
Vamos falar dos maiores de 23. Vamos falar no contexto
das universidades e do acesso ao ensino superior.
Ainda bem que falou nos maiores de 23, visto ser uma medida
política, legislativa, que visa a abertura e o alargamento aos
adultos que não têm as habilitações de acesso pelo concurso
geral de acesso ao ensino superior. Podem concorrer ao ensino
superior através deste concurso, e é valorizado o seu currículo profissional, a sua experiência profissional, são critérios de
admissão. Esta medida dos maiores de 23, que é de 2006, foi
criada no âmbito deste paradigma de educação e formação
ao longo da vida com vista ao alargamento do acesso ao ensino superior para públicos não tradicionais, para aqueles que
não têm a escolaridade de acesso imediatamente anterior, 12º
ano, concurso nacional de acesso.
Esta medida diz também que as pessoas têm o direito de pedir a creditação destas experiências para efeitos académicos,
ou seja, vem colocar as instituições de ensino superior diante
desta questão, de reconhecer e validar esta experiência, estes
saberes adquiridos através da experiência, com vista à atribuição de créditos, no âmbito do plano de estudos que as pessoas
estão a frequentar.
No âmbito do ensino superior, isto é uma situação inovadora,
porque as instituições de ensino superior podem ter entre si
candidatos, indivíduos, que fazem o pedido para ter o reconhecimento da sua experiência profissional e para que essa
experiência profissional lhes sejam creditada com créditos, o
sistema de ECTS (Sistema Europeu de. Transferência de Créditos) para efeitos de prossecução dos estudos.
Aquela tensão que falávamos há pouco, a que existe entre a lógica dos saberes académicos, disciplinares, e os saberes profissionais, encontramo-la aqui no ensino superior – um terreno
onde esta conflitualidade é muito maior.
Estas novas medidas são muito recentes. Neste momento existem já em algumas instituições nacionais implementadas estas práticas de reconhecimento e validação de competências.
Posso dar o exemplo do Instituto Politécnico de Setúbal, onde
estou actualmente a coordenar uma unidade de desenvolvimento, reconhecimento e validação de competências. Implementámos um dispositivo que tem a finalidade de fazer o reconhecimento destas competências que as pessoas possuem
para efeitos de creditação no âmbito do plano de estudos que
estão a frequentar. É um trabalho inovador e que tem vindo a
ser desenvolvido há dois anos a esta parte, e posso dizer que
é um trabalho pioneiro, muito desafiador, se achamos que ao
nível do ensino básico e ao nível do ensino secundário esta
problemática é muito complexa, ao nível do ensino superior a
complexidade aumenta. Porque os referenciais são mais complexos e, por outro lado, há uma outra cultura ao nível do ensino superior que não aceita reconhecer a experiência de vida
ou a experiência profissional, porque o que tem mais valor no
âmbito do sistema do ensino superior é o conhecimento científico, esta hegemonia do sistema educativo é mais marcada,
os saberes académicos e científicos têm um valor hierarquica-
No ano passado, os resultados de entrada são
extremamente reduzidos...
Nas instituições de ensino superior há números que são limitados e que são definidos pelas instituições relativamente a
este concurso especial de acesso. A legislação fala em 5% do
número total de vagas, mas que é sempre alargado, porque as
vagas que não são preenchidas no concurso geral de acesso
podem, numa segunda ou numa terceira fase, ser preenchidas
por estes concursos especiais. Mas falamos de um número diminuto de candidatos que entra por esta via, face à via do concurso geral de acesso, e que tem um peso residual nas instituições, se bem que nalgumas instituições os candidatos maiores
de 23 têm vindo a ocupar um espaço e uma visibilidade que
não tinham no ano passado, há dois anos ou há três anos.
Continua a haver uma procura muito grande por estes adultos que trabalham e que não têm as habilitações do 12º pelo
concurso geral de acesso e que querem concorrer à universidade ou ao politécnico por esta via. O ensino superior não tem
muita tradição de trabalhar com públicos de adultos e não
tem esta tradição de valorização das aprendizagens experienciais, nem das competências adquiridas noutros contextos que
não o próprio ensino superior. Por isso é que acho que é um
trabalho desafiante, e que se deve continuar a investir ao nível
da investigação para melhor podermos compreender a especificidade destes públicos e como o sistema poderá evoluir de
forma a integrá-los e a promover trajectórias de sucesso.
12 APRENDER
Mas os que tiveram o acesso através do Mais 23 foram os
mais novos e com maior formação académica, e não os
mais velhos com maior experiência de vida...
Os estudos que têm vindo a ser feitos em várias instituições a
nível nacional têm evidenciado que, apesar de os candidatos
obedecerem aos requisitos legais, aqueles que mais entram
são os que pertencem às faixas etárias mais jovens e os que
têm habilitações académicas e profissionais mais elevadas. Ou
seja, os adultos mais velhos e com menos escolaridade são
os que continuam a ficar afastados do sistema educativo. Isto
vem evidenciar que há uma reprodução ao nível dos públicos
tradicionais do ensino superior. Mesmo no quadro dos mais
velhos, são sempre os mais novos que entram em detrimento
dos mais velhos.
E no fundo isso acaba por ser uma contradição. Não é valorizar o saber experiencial ao longo da vida, mas sim validar
a formação académica.
Não quer dizer que isso aconteça na generalidade das situações, mas há essa tendência porque são as pessoas que estão
mais próximas do sistema educativo, as que deixaram de estudar há menos tempo, e que têm mais habilitações, e mais
escolaridade no seu percursos, aquelas que se encontram em
melhores condições para poderem ter melhores classificações
nas provas e como os candidatos são seriados pelas classificações que têm nas provas, pela classificação do seu Curriculum
ENTREVISTA
Vitae, pela sua carta de motivações, é óbvio que há determinados factores que têm algum peso. É em função desse peso que
eles são seriados. Isto tem muito a ver como a forma como as
instituições de ensino superior se posicionam face a estes públicos, porque a ponderação entre os diferentes tipos de provas também são decididas pelas próprias instituições, há uma
margem de maior ou menor flexibilização das ponderações
atribuídas aos currículos profissionais, à carta de motivações e
à prova de conhecimentos.
Vou ler o que escreveu num artigo: “para que as novas práticas possam contribuir efectivamente para uma mudança
educativa, não basta pensar a nível técnico, pedagógico, é
também uma questão política. É necessário garantir um
conjunto de princípios éticos metodológicos e condições
materiais”.
Na sua opinião, em que é importante investir neste momento?
Neste momento, um dos investimentos fundamentais seria
ao nível da formação das pessoas envolvidas nestes processos.
Tem sido feita alguma formação, as pessoas têm tido alguma
preparação. É fundamental continuar a investir na formação
dos técnicos, dos conselheiros, dos mediadores, dos processos
de RVC e isto tanto a nível do dispositivo nacional, do sistema
nacional como também ao nível do ensino superior. Tendo
em conta que são práticas inovadoras e que implicam uma
profunda mudança de representações e de concepções sobre
aprender, ensinar competências, saberes, a formação é fundamental, e acho que as próprias instituições de ensino superior
se têm posicionado com uma oferta de formação até bastante
adequada e aproximada das necessidades que existem, mas há
que alimentar esta formação pela investigação e essa é uma
função que cabe às instituições de ensino superior. Continuar a desenvolver linhas e eixos de investigação centrados na
educação e na formação de adultos, projectos de investigação
centrados nas práticas e nos processos de reconhecimento e
validação de competências. Porque há, neste momento, massa
critica para poder produzir conhecimento que pode alimentar
a própria formação dos profissionais que estão envolvidos no
terreno. n
Há, neste momento, massa critica para poder produzir conhecimento
que pode alimentar a própria formação dos profissionais que estão
envolvidos no terreno.
Ana Luisa Oliveira Pires
Finalizou e defendeu o
doutoramento em 2002,
na Faculdade de Ciências e
Tecnologia, Universidade Nova
de Lisboa, com a tese “Educação
e Formação ao Longo da Vida:
Análise Crítica dos Sistemas e
Dispositivos de Reconhecimento
e Validação de Aprendizagens
e de Competências”. A partir
daí, continuou a trabalhar estas
questões, tanto do ponto de vista
da investigação como do ponto de
vista empírico.
Fez um Pós-Doutoramento em
Ciências da Educação, com
o tema: “Ensino Superior e
Aprendizagem ao Longo da Vida.
O reconhecimento de adquiridos
e a mudança educativa”,
na Faculdade de Psicologia
e Ciências da Educação,
Universidade de Lisboa.
AO LONGO DA VIDA 13
DOSSIER
No dicionário, viagem é definida como “o acto de ir a um lugar mais ou menos
distante”. É também “a descrição do que se viu ou aconteceu durante um passeio
ou jornada”. Assim, registar o que se contemplou e viveu, capturar momentos e
imagens, fazem parte integrante das viagens.
Qualquer viagem proporciona a possibilidade de nos deslumbrarmos com
paisagens, pessoas, costumes, cores, sons, sabores… Qualquer que seja o itinerário
que perseguimos, as descobertas que fazemos levam-nos a viajar dentro de nós
próprios e a desvendar percursos interiores que tantas vezes conhecemos.
Quando se viaja, perto e longe, cedo e tarde, adquire-se outros significados, porque
o espaço e o tempo fogem da tirania do dia-a-dia. Feita de paragens e desvios,
avanços e recuos, encontros e desencontros, na viagem a ordem é outra.
Quando se viaja…
Aprende-se.
AO LONGO DA VIDA 15
DOSSIER
Texto de Cristina Portella # Fotografias de Miguel Baltazar
DE VOLTA AO PASSADO
NO EXPLORATÓRIO
DE COIMBRA
Sem o recurso da ficção científica e das suas máquinas do tempo, regressar ao passado e voltar a
ser criança é possível no Exploratório, o Centro Ciência Viva de Coimbra.
A
companhámos
uma
visita de adultos ao Exploratório para perceber a sua reacção ao interagir com os equipamentos de divulgação
científica apresentados em várias exposições. “Se na escola eu tivesse aprendido
ciência como se ensina aqui, teria sido
uma excelente aluna. Aqui podemos experimentar, quando às vezes a teoria não
nos diz nada. O facto de podermos mexer, participar das experiências, só por si
16 APRENDER
é muito bom”, avalia Conceição Santos,
36 anos.
Aquela foi a primeira visita de Conceição ao Exploratório. Mas não será a
última. “Achei espectacular, gostei de
tudo. Vou voltar e trago a família toda.
Nunca me tinha passado pela cabeça
que com um tubo eu conseguia encestar
uma bola no cesto”, afirma, referindo-se
a uma das experiências. Na exposição
chamada “Em boa forma... com a ciência”, o tema é a saúde, e o coração, o “artista principal”. Inúmeras experiências
desafiam o visitante a conhecer melhor
o seu coração e o sistema circulatório,
como a que reproduz os batimentos cardíacos e mede a pressão arterial. Uma
outra exposição chama-se “Sentir.com –
a comunicação e os cinco sentidos”, que
pode terminar com a construção de um
ET (Extra Terrestre) que deseje inventar e
levar o respectivo bilhete de identidade,
com figura de corpo inteiro.
“No dia-a-dia estamos com a ciência
ao pé de nós, só que passa ao lado”, observa André Marques, 34 anos. “Ao lon-
DOSSIER/REPORTAGEM
go da vida vamos defrontando situações
em que a ciência está cada vez mais posta no nosso caminho. A ciência nos invade”, diz Ana Carla, 33 anos, a reforçar
a ideia do seu colega.
Antes de retomar os estudos, Ana trabalhou como comunicadora no serviço
telefónico, função em que, segundo ela,
a ciência invadia o seu dia-a-dia através
dos computadores. “Mas limitava-me a
utilizá-la como um instrumento de trabalho”, reconhece. Foi durante a visita
ao Exploratório que tomou consciência
de que “a ciência nos explica pequenos
detalhes das nossas vidas, porque está
tudo ligado com a ciência”. Ela nunca
tinha visitado o Centro Ciência Viva de
Coimbra, mas uma das filhas, sim.
“A exposição está montada de maneira adequada, para que as crianças se sintam à vontade e intervenham nos jogos.
E para os adultos não há diferença. O
facto de as crianças brincarem estimula
os pais. Eles aprendem connosco e nós
com eles”, comenta Celeste Matias, 49
anos. Depois de concluir a sexta classe,
em criança, nunca mais estudou até frequentar um curso EFA. É também a primeira vez que visita o Exploratório, mas
garante que virá mais vezes, da próxima
vez com o filho.
Todos estes adultos frequentam cursos EFA e esta é primeira visita organizada pelo Centro de Serviços e Apoio
às Empresas (CESAE) ao Exploratório e
que mal tinha começado já estava a ser
um sucesso. Mas, inicialmente, a reacção
predominante entre os adultos tinha
sido outra. Eles ficaram desconfiados,
sem entender a razão da iniciativa. “Eles
pensavam que a visita não estava enquadrada na formação. Mas agora
estão a adorar, entenderam porque
viemos aqui. Nem sequer querem sair”,
observa Amélia Nunes, responsável pela
delegação do CESAE em Coimbra.
Ana Carla resume o sentimento dos
colegas, ao refutar a ideia de que o Exploratório é só para crianças: “Esta é
uma ideia pré-concebida da sociedade.
Nunca imaginamos que nós, adultos,
desconhecemos coisas tão básicas”.
Para todas as idades
Ana Carla está certa: o Exploratório
foi concebido para crianças e adultos.
Quem o diz é o seu director, Victor Gil.
“Aqui podemos experimentar,
quando às vezes a teoria não
nos diz nada. O facto de
podermos mexer, participar
das experiências, só por si é
muito bom”.
“Os adultos têm uma
surpresa: acham que é uma
diversão para crianças e,
quando chegam aqui, vêem
que é uma diversão para eles
também”.
“Esses centros são indiferenciados, são
abertos às várias gerações.” Isso porque
há lacunas de conhecimento científico
em todas as idades, mas também porque visitar os centros Ciência Viva pode
tornar-se uma actividade extremamente
gratificante. Nos seus anos de experiência, Victor Gil verificou que o comportamento dos adultos diante das experiências mostradas nas exposições é muito
semelhante ao das crianças. Eles participam, gritam, assustam-se, surpreendemse e saem do Exploratório totalmente
encantados e convencidos de que a ciência é genial.
“Os adultos têm uma surpresa:
acham que é uma diversão para crianças
e, quando chegam aqui, vêem que é uma
diversão para eles também”, comenta
Cristina Pinheiro, professora licenciada
em Física e integrante da equipa responsável pela criação, confecção e manutenção das exposições do Exploratório.
“Mas isso é bom: a curiosidade”, disse
Victor Gil. “A capacidade de se surpreender, de dizer ‘isso, afinal, é giro, não
é chato’, ‘agora percebi isso’, tudo isso é
positivo.” Mas não basta. Para o director
do centro de Coimbra, é necessário que
haja uma complementação da experiência – do mexer, do fazer e do observar
– com a informação mais “teórica” a explicar o porquê daquilo acontecer.
“As pessoas aceitam as coisas porque
estão bem apresentadas e ponto final, ou
há possibilidade de as pôr a pensar? Porque, se não fizermos isso, então não estamos contribuindo para a ciência. Assim
não vale a pena. E esses espaços têm esse
risco. É uma grande correria, e as pessoas
não lêem as instruções.” Instruções e explicações que complementariam a experiência feita pelo visitante, pois “a aprendizagem não pode basear-se na descoberta sistemática, tem de haver alguma
informação oferecida.” Dessa forma, a
equipa responsável pela concepção das
exposições, integrada ao Exploratório,
tentar encontrar uma abordagem simplificada, sem prejuízo do rigor.
Não se poderia, por outro lado, correr o risco de, com experiências tão divertidas e estimulantes, passar a ideia de
que aprender ciência é uma brincadeira?
De passar uma falsa ideia de que o conhecimento pode prescindir do esforço?
Victor Gil acha que não. “Somos um
complemento da escola, não como al-
AO LONGO DA VIDA 17
ternativa, nem como exemplo de escola, o que seria completamente errado.”
A eficácia da aprendizagem adquirida
numa visita à exposição será difícil de
quantificar, mas será possível potencializá-la. “Se o formador puder fazer uma
visita antes, saber o que vai encontrar
aqui e depois planear a visita, discutir e
integrar o que está a ser ensinado com
alguma experiência aqui do Exploratório, isso será certamente uma mais valia.” Trabalho, esforço, organização, rigor e método são indispensáveis ao trabalho científico, mas desmontar a ideia
de que a ciência “é uma seca” também
pode ser um estímulo poderoso ao estudo da ciência.
Um movimento que veio da
Califórnia
O movimento de criação de centros
exploratório começou em 1969, em São
Francisco, Califórnia. A grande revolução era o conceito. Em vez de uma exposição em que as pessoas eram meras
observadoras das experiências, elas eram
primeiro convidadas a explorar, mexer,
18 APRENDER
“Podem até não saber que
aquilo é uma aprendizagem,
mas quando chegam depois
na escola ou lêem qualquer
coisa lembram que já
mexeram, que já viram,
que é um conhecimento já
adquirido.”
participar das experiências e chegarem
às suas conclusões.
O Exploratório Infante D. Henrique, em Coimbra, foi, em 1995, o primeiro centro interactivo de ciência em
Portugal, numa iniciativa reunindo a
Universidade de Coimbra, a Faculdade
de Ciências e de Tecnologia e a Casa
Municipal da Cultura. Mas só em 2009
obteve um edifício próprio, no Parque
Verde do Mondego, com a exposição
principal dedicada às relações entre as
ciências básicas e a saúde. Desde que a
nova sede foi inaugurada, cerca de 200
pessoas visitam o Exploratório a cada
fim-de-semana, em sua maioria jovens
e crianças. Os adultos são minoria, em
geral a acompanhar os filhos.
Há, por parte da direcção do Exploratório, uma tentativa consciente em atrair
novos públicos adultos. “A nossa vocação
principal são as exposições interactivas.
Mas não nos esgotamos aí, procuramos
desenvolver outras iniciativas, especialmente mais orientadas para o público
adulto, que cai no domínio, por exemplo, da relação entre a ciência e as outras
vertentes da cultura”, informou Victor
DOSSIER/REPORTAGEM
Gil. Um trabalho recente procurou demonstrar a relação entre ciência e pintura. “Esperamos, assim, atrair pessoas com
idades mais avançadas. Se se consegue ou
não é aquele velho problema...”
O projecto de ampliação do Exploratório permitirá aumentar a área de exposição e integrar outras temáticas. “Temos
muita coisa interessante que não está a
ser mostrada.”
É proibido não mexer
Quais são as experiências que mais
sucesso fazem entre os visitantes adultos? Esta pergunta é prontamente respondida pelos integrantes da equipa
do Exploratório: todas as experiências
que mexam e façam barulho chamam a
atenção de toda a gente. E também aquelas que nos provocam emoções contraditórias, como o “Tactear no escuro”,
integrada na exposição “Sentir.com”. A
experiência é muito simples, e consiste
em tactear diversas texturas sem vê-las,
isto é, sem poder atribuir às nossas sensações tácteis um significado específico.
Ou a experiência chamada “Cheirar... é
preciso”, em que testamos vários odores
para atribuir-lhes as respectivas origens.
Na exposição principal, “Em boa forma... com a ciência”, o coração é a vedeta. “Porque tem módulos que medem
coisas, como a pressão arterial, e mexem
connosco, são descobertas pessoais”,
explica Sara Gaspar, monitora sénior do
Exploratório. Ela conta que enquanto as
crianças vão logo, assim que entram na
exposição, carregar nos botões, os adultos são mais inibidos. “Com os adultos
existe aquele entrave do ‘não é para mexer’. Temos de quebrar o gelo e fazer com
que mexam. Mas acaba tudo dando certo. Já tive avós a divertirem-se mais que
os netos a fazer o extraterrestre”.
Muitos visitantes, adultos ou crianças,
acabam por, em algum momento, fazer
a ligação entre a exposição e as informações recebidas sobre o tema abordado,
em sala de aula ou outro local qualquer,
antes ou depois da visita. “Podem até
não saber que aquilo é uma aprendizagem, mas quando chegam depois na
escola ou lêem qualquer coisa lembram
que já mexeram, que já viram, que é um
conhecimento já adquirido. As pessoas
pensam sobre aquilo que estão a fazer
e sentem o que estão a fazer, não é só
mexer, não é só a diversão”, refere Sara.
Relativamente aos mais jovens, mas
também aos adultos, a primeira intervenção dos monitores é no sentido deles se
aperceberem do espaço e de que, lendo
as instruções, é possível compreender melhor a experiência na qual foram elementos activos. “Tentamos sempre despertar a
curiosidade e, depois, transpor para a vida
real. Muitas vezes as crianças vêem um
botão e sabem carregar, mas não sabem
para quê, o que acontece.” Tanto adultos
quanto crianças entram na exposição a
tentar mexer, e só se as coisas não correm
bem é que vão ler as instruções.
“Os textos têm de ser acessíveis a
todos, queremos que as pessoas leiam
o que está inscrito e hajam de acordo.
Elas são independentes e, com a leitura
dos textos, podem andar sós na exposição”, explica Cristina Pinheiro. No caso
dos adultos, o papel do monitor é pôr
as pessoas à vontade: é proibido não
mexer. Ensinar as pessoas como se devem comportar num “museu” que não é
igual aos outros. n
AO LONGO DA VIDA 19
20 APRENDER
DOSSIER/DEBATE
Turismo
Cultural
Há um grande acordo entre os três intervenientes do debate
desta edição. Portugal é um país riquíssimo em termos de
turismo cultural. Não é por acaso que o nosso país está entre
os que têm mais património mundial classificado pela Unesco.
Quais são as novas tendências nesta área? O que é que nos falta?
Que formação é necessária? O que e como se aprende? Qual o
papel das autarquias? Estas e outras questões são abordadas no
debate que se segue.
Moderador Rui Seguro # Fotografias de Miguel Baltazar
Como podemos motivar as pessoas
para, além de retemperar as forças
nas férias, motivarem-se para adquirir
novos conhecimentos, para uma
curiosidade cultural?
Gabriela Botelho – Costumo dizer que
muita gente viaja para o exterior, mas devia começar por Portugal. Portugal é um
país riquíssimo, ainda mais do ponto de
vista cultural. Em termos de turismo cultural temos imensos pontos fortes, não é
por acaso que Portugal está entre os países que têm mais património mundial
classificado pela Unesco, de centros históricos a monumentos, a paisagens culturais, uma panóplia enorme de atracções
turísticas, patrimoniais e culturais que a
maioria dos portugueses não conhece.
Eu própria, que tenho andado, nos últimos anos, a bater terreno de norte a sul,
estou constantemente a descobrir coisas
novas, a nossa própria história, a nossa
própria identidade como povo.
Vou dar uma experiência que este
fim-de-semana tive, numa terra não
muito longe, a Batalha. Passei lá o fimde-semana e vim com uma alma lusitana renovada, com espírito para estes
desafios. É na nossa história e na nossa
identidade que temos de buscar, muitas
vezes, a força para o futuro. Aconteceume isto recentemente com a visita à Batalha, onde fui ver o CIB, Centro de Importação da Batalha de Aljubarrota, que
está interessantíssimo e acho que todos
os portugueses deviam lá ir, para além
do Mosteiro da Batalha, que é sempre
muito interessante aprofundarmos.
AO LONGO DA VIDA 21
Cláudia Gomes – Achei muito interessante a definição de turismo de uma
investigadora brasileira. Ela procurou a
origem da palavra turismo e a primeira
referência que aparece, é “Tour” de origem hebraica, vem no livro dos números e significa a tal viagem de descoberta.
Quando falamos no turismo, é sempre
a tal viagem de descoberta em que nos
deslocamos à terra do outro para aprender o outro com todos os seus valores, o
seu património, a sua identidade, o que
acaba por ser enriquecedor para nós,
porque vimos com uma nova visão sobre os outros e acabamos por gostar da
nossa. Muitas vezes, ao ver outra cultura,
acabamos por dar valor à nossa.
Se partimos à descoberta do nosso
país, todas as regiões têm a sua identidade; não podemos comparar um minhoto com um algarvio, nem uma vila como
Ponte de Lima com Reguengos de Monsaraz, temos de fazer com que o turismo
cultural se recorra de certos instrumentos para se valorizar e se mostrar e explicar e aproximar das pessoas. Só olharmos para os monumentos não chega, é
preciso que eles nos sejam explicados, é
preciso que quase se possa tocar neles
para os aprender e ver melhor.
Gabriela Botelho – Vou falar um pouco
sobre o CIB porque é fantástico, faz-nos
vivenciar e quase retroceder alguns séculos e quase ver, a pessoa está no espaço
onde se desenrolou a acção.
Cláudia Gomes – Essas recriações históricas são um recurso muito actual
que é a interpretação do património. A
interpretação do património vai usar as
recriações históricas, usa os roteiros, fala
com as populações locais, uma série de
estratégias para nos pôr lá, para nos fazer
questionar. Já que estamos a falar para
formadores de adultos, existe uma série
de mitos que vêem certos espaços ou
só para crianças ou só para elites. Isso é
completamente descabido: é para todos,
o nosso património é comum.
Carlos Mamede – Não queria fazer
propaganda do tal CIB, mas este é um
exemplo concreto disso mesmo. Temos
junto de uma outra unidade da Fundação Inatel um centro muito parecido
com este, do ponto de vista da atractividade, da explicação, da capacidade de
22 APRENDER
Gabriela de Vilhena Bettencourt Andrade Botelho
Licenciada em Direito pela Universidade Clássica de Lisboa. Advogada.
Tem formação diversa na área de Marketing da Gestão e Turismo, um
mestrado em Gestão Estratégica e Desenvolvimento do Turismo.
Tem-se dedicado nos últimos anos à área da hotelaria, as novas tendências
e desafios dessa área. Tem várias obras publicadas no âmbito do luxo e
charme na hotelaria em Portugal. Criou o curso de Licenciatura em Gestão
Hoteleira na Universidade Lusófona. É assessora principal da presidência
do conselho de ministros com a área jurídica.
DOSSIER/DEBATE
juntar, aliciar e ensinar tanto adultos
como jovens, que é o Centro de Interpretação da Pesca da Baleia, na Ilha das
Flores. Eu vi-o nascer. O sítio onde está
instalado eram uns tanques da apanha
da baleia, que agora estão tapados. Era
uma fábrica, enganchavam as baleias,
sangravam-nas e cortavam-nas, levavam
lá para dentro as postas de gordura e era
ali que faziam o tratamento da gordura de baleia. Como está não se percebe
muito bem, não se tem a noção de como
aquilo era.
Cláudia Gomes – Isso é uma falha, tem
de recriar a coisa quase como se eles tivessem saído de lá hoje de manhã.
Carlos Mamede – Também achei. Ao
contrário do CIGMA, onde a Fundação
Inatel tem um protocolo, vamos lá em
viagem, tanto idosos como jovens. E é
extraordinário, porque tanto os jovens
como os idosos saem de lá fascinados
pelo espectáculo e pela aprendizagem.
Gabriela Botelho – Uma questão mais
vasta é o papel das experiências no turismo. Vivemos numa época de um turismo de experiências, levadas aos mais
diversos níveis, tentando levar a pessoa
a participar naquilo que vai ver. Em
termos gastronómicos, os hotéis estão
a desenvolver muito este conceito das
experiências. Os hotéis levam as pessoas
que assim querem ao mercado comprar
o peixe, escolher as hortaliças, num prato que depois são convidadas a aprender
com os chefes e a confeccionar aquilo
que vão almoçar ou jantar.
Carlos Mamede – Quando tem a ver
com a natureza, está associado a um segmento muito mais amplo de pessoas. O
Inatel tem um acordo com a Associação
de Agricultura Biológica e um dos objectivos é assegurar que os clientes dos
nossos hotéis venham cultivar produtos
biológicos que são depois servidos nas
refeições dessas mesmas pessoas.
Queria pôr uma pedrinha neste entusiasmo. Estando de acordo com o que
foi dito acerca do turismo cultural e designadamente desta parte dos Centros
de Interpretação, vale a pena dizer que
os bons centros custam muito dinheiro
e corremos o risco da sua banalização.
Conheço alguns exemplos de Centros de
Em termos de turismo
cultural temos imensos
pontos fortes, não é por
acaso que Portugal está
entre os países que têm
mais património mundial
classificado pela Unesco,
de centros históricos a
monumentos, a paisagens
culturais, uma panóplia
enorme de atracções
turísticas, patrimoniais e
culturais.
Vivemos numa época de
um turismo de experiências,
levadas aos mais diversos
níveis, tentando levar a
pessoa a participar naquilo
que vai ver. Em termos
gastronómicos, os hotéis
estão a desenvolver muito
este conceito das experiências.
Gabriela Botelho
Interpretação que são cabanas sem qualquer espécie de interesse, que não explicam. Como não há dinheiro, em vez de
um verdadeiro Centro de Interpretação
fazem uma pequena sala de exposição e
chamam-lhe Centro de Interpretação. A
experiência que tenho é frustrante nesse
ponto de vista.
Cláudia Gomes – Mas eu vou discordar de si. A interpretação do património nem sempre precisa de um edifício
arquitectónico. Quando fazemos um
roteiro turístico no meio de uma serra,
basta pôr uns painéis exemplificativos
da flora, da fauna ou da cultura.
Toda a gente acha que é preciso um
edifício, megalómano e excêntrico para
aquilo ser bem concebido e ser um sucesso. Mentira. Aquilo muitas vezes é
um pólo de lóbis que estão lá adormecidos, não fazem nenhumas actividades
didácticas. A interpretação do património está onde ele acontece e interpretar
o parque natural é no parque natural,
não é rua x. Existe uma série de ideias
preconcebidas que executamos mal. A
interpretação de património não precisa
de muito dinheiro, basta um guia turístico local.
Um dos melhores Centros de Interpretação que temos em Portugal é o parque geológico de Arouca, uma casinha
em xisto integrada na paisagem, muito
bem concebido, ganhou já prémios internacionais do sector, é um projecto
singelo e está fenomenal, não é avultado
em termos monetários e tem uma equipa didáctica, de pedagogia, muito boa;
mas falha numa coisa, na promoção.
Gabriela Botelho – O problema é que
os produtos turísticos, as atracções turísticas, têm de ser vendidas de uma forma global. Por exemplo, porque é que o
caso da Batalha está, neste momento, a
ter êxito? Porque há ali um conjunto de
intervenientes com peso. É preciso não
esquecer que o Centro de Interpretação
da Batalha de Aljubarrota tem como
mecenas a Fundação Champalimaud, o
Banco Espírito Santo, a Fundação Gulbenkian, os melhores mecenas de Portugal. Há ali uma componente financeira
muito forte. O que há de interessante é
um envolvimento dos privados com o
público, entre a Câmara Municipal e até
as câmaras limítrofes.
AO LONGO DA VIDA 23
Continuo a achar que
tem grande relevância a
organização de viagens
sobretudo em estratos com
menos capacidade financeira
e estratos mais frágeis, por
exemplo os chamados
seniores, os chamados jovens.
Vamos a Centros de
Interpretação onde estão
funcionários desmotivados,
que não têm formação
sobre o que precisam de
explicar, não têm nenhuma
capacidade de atendimento
e de cativação dos turistas e
das pessoas que nos visitam.
Porquê? Porque não houve a
preocupação da formação.
Carlos Mamede
Como é que as pessoas nos próprios
locais conseguem ser veículos
promotores da sua cultura e como
conseguimos sensibilizar os outros a ir
à procura dessa cultura? É mais fácil ir
a uma agência de viagens...
Gabriela Botelho – Há o turismo de
massas, de autocarro, e há o turismo
de lazer. Esse é o que toda a gente quer
porque é o melhor turismo que se pode
ter. Estou habituada a trabalhar e a falar
com pessoas que estão num segmento
alto, que não querem turismo de autocarro à porta, querem turismo individual, de lazer. São turistas com preocupações culturais, preocupações ambientais.
Na captação de um bom turista é preciso que haja um conjunto de infra-estruturas já montadas. Até há uns anos muita
gente não ia de propósito à Batalha só
para ver o Mosteiro ou se ia, ia de passagem, na viagem ao Porto. O que gostei
de ver e é assim que se começa a traçar
um destino, o hotel vende cultura mas
também vende saúde e bem estar, com a
preocupação de ter um spa, uma preocupação gastronómica. Ou seja, as pessoas
vão ao monumento durante o dia mas ao
fim da tarde podem lanchar, jogar uma
partida de ténis ou de golf. Isto tem de
ser um produto integrado para atrair um
determinado tipo de pessoas e sobretudo
prolongar a estadia. É o mais interessante
para uma região, que a pessoa não passe
só por lá mas que durma e fique numa
estadia de mais de uma noite.
Mas reconhece que há determinado
tipo de destinos que são periféricos.
Gabriela Botelho – Os Açores, por
exemplo, estão longe, são a região mais
periférica da Europa e a Ilha das Flores é
o ponto mais ocidental.
Cláudia Gomes – Mas temos de começar
por um ponto de partida, fazer só uma coisa e deixar um ilha isolada não vai trazer
turistas, isso é uma ilusão. É o que acontece em muitas terras do interior, metem-se
em projectos de turismo rural que só por
si não bastam, é preciso infra-estruturas
que combinem entre si e se complementem de modo a seduzir o turista.
Carlos Mamede – Acho importante,
independentemente de nós gostarmos
24 APRENDER
daquilo a que na Fundação Inatel chamamos auto-férias, as férias individuais
escolhidas pelo cliente de acordo com o
destino que deseja e com o figurino, continuo a achar que tem grande relevância
a organização de viagens sobretudo em
estratos com menos capacidade financeira e estratos mais frágeis, por exemplo os
chamados seniores, os chamados jovens.
Nós desenvolvemos um programa de
turismo juvenil que envolveu, só no Verão, 1500 jovens, ficaram todos alojadas
na Fundação Inatel, para o ano vamos
fazer exactamente o mesmo programa
com 5000 nas férias da Páscoa e nas férias do Verão e o sucesso é enorme e são
programas que não são apenas de lazer,
são educativos e ao mesmo tempo de
lazer, não têm só uma função de desenvolvimento económico das regiões onde
estão porque eles não estão fechados
dentro do hotel, mas tem também uma
função educativa clara, assumida, que é
extremamente importante.
Quando falamos em destinos falamos destes Centros de Interpretação,
falamos da visita a monumentos megalíticos. Independentemente de estar de
acordo com o que disseram acerca da
importância da construção complexa do
produto turístico e do destino turístico.
Não há dúvida nenhuma que organizações como a Fundação Inatel são extremamente importantes nesse desenvolvimento. A principal concorrente da Fundação Inatel no que respeita às viagens
não são os operadores turísticos, não
são as agências de viagens, são as autarquias, porque não há Junta de Freguesia
que não organize uma viagem, todas as
Juntas gostam de ter o seu autocarro.
Gabriela Botelho – Precisamos de um
maior mediador, e o Inatel e as Juntas
de Freguesia acabam por ser esse agente,
esse veículo de ligação entre o visitante e
o local. Isso e tão importante como fazer
um projecto turístico de excelência.
Num artigo sobre turismo era dito:
“a viagem começa no preparar da
viagem”, saber o que vamos ver e ao
tentar procurar estamos a aprender”.
Qual a importância desta preparação?
Gabriela Botelho – A Europa é quem faz
mais viagens de turismo cultural, 80%
dos povos europeus contribuem para
DOSSIER
o turismo cultural. São claramente um
tipo de povo que se informa muito bem
e é muito interessante ver que, quando
os turistas cá chegam, já trazem os guias
que compram nos seus países sobre Lisboa, por exemplo, andam com eles na
mão e cá procuram outras coisas, são turistas altamente informados. Tenho uma
relação familiar com o turismo açoriano
há três gerações. O meu avô foi o fundador da primeira agência de viagens em
Portugal, a Agência Açoriana de Viagens,
no início do séc. XX. Acompanhei isto
sempre ao longo da minha vida, comentamos muitas vezes, estas pessoas sabem
mais sobre os Açores do que as pessoas
que vivem aqui. Isto porque hoje em dia
há um conjunto de guias e de literatura
já muito disponível e há os livros mais
complexos sobre as próprias regiões e há
livros como o meu, o meu é um pouco
um guia, fala sobre Portugal, fala sobre
as várias regiões turísticas de Portugal,
com aspectos importantes ao nível das
atracções histórico-turísticas e também
do ponto de vista da selecção dos hotéis que são recomendados para usufruir
desse mesmo produto turístico cultural.
Não é por caso que muitos hotéis
constituem eles próprios uma viagem
cultural. Se pensarmos que uma pessoa
vai para Sintra e se hospeda em Seteais
está a usufruir, ao mesmo tempo, e a
pernoitar num património com muita
história. A pessoa, ao mesmo vai para
aquela região fazer um turismo diversificado, desde golf até ao cultural mas também está a dormir num monumento nacional e todos os hotéis são também eles
locais de história, locais de memória que
nos reportam para este tipo de vivências
em termos culturais e históricos.
Quando se referia que os europeus
eram cultos, sente que os portugueses
também têm essa apetência cultural?
Que se documentam, e se preparam?
Carlos Mamede
Vice-presidente da Fundação Inatel desde Setembro de 2008, com um
percurso de gestor público nos últimos vinte anos, sobretudo ligado a
projectos na reforma administrativa, designadamente com o projecto da Loja
do Cidadão, e depois Presidente do Instituto que geriu as Lojas do Cidadão.
Na Fundação Inatel tem a responsabilidade da área de Turismo e Hotelaria.
Gabriela Botelho – O português não é,
claramente, o povo que mais se interessa
por turismo cultural.
Carlos Mamede – Se entendemos que
turismo cultural se define pelo turismo
culturalmente informado, porque turismo cultural é visitar o Mosteiro da Batalha, sem mais coisas, é visitar – como
visitar a Serra da Estrela.
AO LONGO DA VIDA 25
Cláudia Gomes – Isso é demasiado redutor. Turismo cultural é toda a produção humana num determinado lugar, da
maneira como se adaptou àquela paisagem, como a trabalhou, como a sobreviveu, como se diverte, como este lá toda a
criação humana.
Carlos Mamede – Não percebi a sua explicação.
Cláudia Gomes – O turismo cultural
abarca toda a criação humana, não estamos a falar do natural, estamos a falar
do cultural, abarca toda a criação do homem num determinado lugar, desde a
maneira como ele se exprime perante os
deuses, como se trabalhou a paisagem.
Carlos Mamede – Turismo em si é a deslocação de pessoas. Certo?
Cláudia Gomes – É sem dúvida a maior
deslocação espontânea no mundo de
pessoas. O turismo é a deslocação voluntária para descobrir o outro e eu não
vou descobrir o outro se só olho para o
hotel de luxo, eu vou descobrir o outro
no seu meio, com tudo o que ele fez.
Carlos Mamede – Tuurismo de hotel de
luxo não tem nada a ver com turismo
cultural. O hotel de luxo pode ser um
monumento importante para promover
o destino turístico.
Rosa Cláudia Gomes
Representa a ágora – Propostas Culturais, uma empresa de
Leiria que actua na área do turismo cultural. “Actuamos desde as
escavações arqueológicas, as prospecções, o trabalho inicial, até à
apresentação final ao público em projectos de turismo cultural.”
Tem 34 anos, é formada em arqueologia pela Universidade de
Coimbra, com pós-graduação na Universidade de Barcelona em
Gestão de Projectos de Turismo Cultural, e outra em Museus e
Turismo. Está a fazer o doutoramento em Turismo.
26 APRENDER
Gabriela Botelho – Estou radicalmente em oposição. Um hotel pode ser um
destino por si só. Até culturalmente falando. Em Seteais, Sintra, há pessoas
que vão passar o fim-de-semana e para
vivenciar um conjunto de experiências
que tem a ver com o próprio hotel, mas
podemos dar exemplos de hotéis que
são, eles próprios, património. Quando
eu tenho um hotel que ele próprio tem
um livro de uma grossura considerável,
por exemplo, o Convento de Espinheiro
em Évora, todo ele é uma lição de cultura. Se sair da minha casa e ficar hospedada no Convento de Espinheiro, e
comprar um livro sobre o Convento que
tem cinco séculos de história e ler toda
a história, desde a Dinastia de Avis, pernoitar no hotel, nos quartos onde os reis
ficaram, acompanho uma parte da História de Portugal. Isto é turismo cultural.
DOSSIER/DEBATE
Cláudia Gomes – Esta ponta de seta do
Neolítico que tenho aqui na mão é turismo cultural. Por isso é que digo que é
toda a criação num determinado lugar.
Tanto é turismo cultural o Hotel de Espinheiro como uma simples pedra, isto
é uma ponta de seta em sílex, é o reflexo
do homem num determinado lugar.
Carlos Mamede – Eu sou muito pragmático. Para mim essa seta não é turismo cultural e o Hotel de Espinheiro
também não é turismo cultural. Turismo
cultural é ter capacidade de mostrar, ensinar e explicar o que é essa seta às pessoas que vão mudar de sítio. Se alguém
for para o Hotel do Espinheiro e se não
estiver lá nada dito o que é possível saber, a pessoa não fica a saber e não está a
fazer turismo cultural.
Gabriela Botelho – A pessoa que vai
para um hotel destes tem, desde que
chega lá, logo na recepção, alguém que
lhe vai explicar o hotel, que lhe vai explicar a história, eles têm os próprios guias
dentro do hotel.
Cláudia Gomes – O turismo cultural recorre-se de instrumentos para aproximar
o seu recurso, o seu legado, do turista e
pode valer-se de variadas coisas. Imaginemos que isto era Paleolítico, vamos ao
Vale do Côa, eu mostrava-lhe isto, você
olha e diz, isto é uma pedra, uma pedra
vulgaríssima. Se eu começar a explicar as
particularidades desta pedra, dizer-lhe
isto em 15 mil anos, isto foi um núcleo
que foi desbastado consecutivamente
por um grupo de caçadores-recolectores,
seguiu várias fases de desbaste até conseguir esta que era considerada uma espécie de foguetão da altura, isto era o topo
da tecnologia há 15 mil anos atrás, se eu
começar a explicar isto, se eu o convidar
a fazer o encaixe de um pau, a simular
uma caçada de um mamute ou de um
veado você está dentro de uma estratégia
de turismo cultural, vai aprender a história, vai enriquecer-se, vai sentir-se valorizado. Nós temos estratégias que nos
ajudam a perceber o lugar, não temos de
ser todos especialistas em geologia, em
arqueologia, em arquitectura, em história, em política, temos técnicos que nos
ajudam a perceber isso numa linguagem
simples, acessível, sem muitos termos
técnicos.
Temos de fazer com que o
turismo cultural se recorra
de certos instrumentos para
se valorizar e se mostrar e
explicar e aproximar das
pessoas. Só olharmos para
os monumentos não chega,
é preciso que eles nos sejam
explicados.
Nós temos estratégias que
nos ajudam a perceber o
lugar, não temos de ser todos
especialistas em geologia, em
arqueologia, em arquitectura,
em história, em política,
temos técnicos que nos
ajudam a perceber isso numa
linguagem simples, acessível,
sem muitos termos técnicos.
Cláudia Gomes
Gabriela Botelho – Existem em termos
de conceptualização do turismo cultural
três variantes. O turismo cultural dividese e resume o nosso testemunho aqui,
em primeiro lugar o turismo patrimonial, em segundo lugar o turismo de um
lugar específico e finalmente o turismo
de arte. Se pensarmos um pouco o turismo cultural, são estas três variantes levadas nos vários aspectos que estávamos
aqui a dizer.
Se eu fizer uma caminhada a pé,
posso estar a fazer ao mesmo tempo
um turismo ecológico e cultural.
Eles complementam-se?
Gabriela Botelho – Temos de precisar
conceitos, como sabe temos muito produtos turísticos, em última análise todo
o turismo é cultural porque todo o turismo tem uma base cultural e educativa. Isso é uma forma muito abrangente.
O turismo está numa relação directa,
numa dialéctica constante com a sociedade, com o homem, com a cultura.
Cláudia Gomes – Há investigadores que
dizem que sempre que nos deslocamos
a determinado sítio estamos a fazer turismo cultural porque vamos aprender
sempre qualquer coisa.
Será talvez fácil convencer uma pessoa
que vai a um Centro de Interpretação
que está a adquirir cultura. Mas terá
essa noção se visitar uma aldeia e
se ficar a saber como as pessoas
cozinham ou que tipo de roupa usam?
Carlos Mamede – Na aldeia de Piódão
há um museu etnográfico e de facto tem
toda a história da aldeia e do viver das
gentes da aldeia. Isso é turismo cultural.
Naquele mesmo sítio começa o trilho
que a Fundação Inatel fez, temos caminheiros que se alojam na nossa estalagem de Piódão, descem à aldeia, ficam a
conhecer a aldeia, fazem turismo cultural e fazem turismo de natureza.
Gabriela Botelho – O que acontece é
que, quando as pessoas saem das suas
casas e vão em viagem para fazer um
tipo de turismo, fazem mais do que um,
em termos conceptuais. Isto não está
espartilhado, não está completamente
compartimentado, o turismo cultural
AO LONGO DA VIDA 27
e o turismo de natureza completam-se
muito. O que não quer dizer que não
sejam produtos turísticos distintos, com
estratégias distintas e que há regiões que
têm mais oportunidades turísticas que
outras.
Quando se visita uma comunidade
acontece que ou sentimo-nos por vezes
uns estranhos, ou então estamos a
confrontar-nos com uma realidade
estereotipada, para turista ver...
Cláudia Gomes – Senti isso recentemente em Trás-os-Montes. Ficámos em
casinhas de turismo rural e fomos fazendo as várias aldeias de Montesinho.
Queríamos falar com pessoas, sobretudo as mais idosas, uma população muito envelhecida e aquele feedback não
foi conseguido, olhavam para nós com
desconfiança.
Gabriela Botelho – Isso é normal nos
lugares mais fechados, mais longínquos,
onde as pessoas têm menos contacto
com o exterior. São características das
próprias populações locais, acontece
muito isso nas ilhas dos Açores.
Como se poderia incentivar essa aproximação?
Cláudia Gomes – Seria interessante de
parte a parte, sem desvirtuar a própria
identidade local, uma aculturação q.b.
mas teria que ser a trabalhar com as próprias populações locais, entre as associações de desenvolvimento local, quem
lida com as pessoas para que estejam receptivas ao visitante que vem do exterior.
Gabriela Botelho – Isso leva-nos a outros aspectos sobre o contacto com as
populações locais. Há muitos destinos turísticos em termos mundiais que
captam imensos turistas por ano e que
não há contacto quase nenhum com
as populações, as pessoas saem daqui e
metem-se num resort em Punta Cana e
não convivem com ninguém que vive na
Republica Dominicana.
Carlos Mamede – Isso tem a ver também
com uma outra coisa que é o papel das
autarquias na valorização dos seus recursos e passa também pela formação dos
agentes que fazem a promoção desses
28 APRENDER
recursos. Por isso vamos a Centros de Interpretação onde estão funcionários desmotivados, que não têm formação sobre
o que precisam de explicar, não têm nenhuma capacidade de atendimento e de
cativação dos turistas e das pessoas que
nos visitam. Porquê? Porque não houve
a preocupação da formação. Esse é um
aspecto muito importante.
As autarquias têm um papel absolutamente fundamental em relação ao turismo cultural. Um ponto de vista que
é cada vez mais importante, há muitos
recursos públicos que não se pode requalificar porque não há dinheiro, antigos castelos, por exemplo. Nunca me
esqueço de um, num sítio onde muitas
vezes passei férias, na Costa Alentejana,
que são os dois castelos na Ilha e na
Costa da Ilha do Pessegueiro. São bons
castelos que, se fossem recuperados pela
iniciativa privada, isto é, se a autarquia
fosse capaz de captar o investimento
privado dando-lhe condições de reprodução e de valorização, teríamos muito
mais produto turístico cultural, muito
mais capacidade de atracção do turista. Em muitos sítios onde isto é feito, é
feito incompletamente, porque não há
formação dos agentes que devem promover, valorizar, ensinar.
Cláudia Gomes – Falta sensibilização
dentro das autarquias. Quando lhe apresentam projectos, que olhem para eles
com os mesmo olhos com que olham
para os parques industriais que estão a
fazer. Muitas vezes tratam o património
ou estas coisas complementares ao turismo como o parente menor, qualquer
coisa que está ali no município mas que
não serve para muita coisa.
Carlos Mamede – Para além disso tudo,
é preciso ir buscar quem invista e às vezes não se consegue.
O turismo é também uma das áreas
mais importantes para o país a nível de
emprego.
Carlos Mamede – É sem dúvida um sector estratégico para Portugal, mas como
costuma dizer o Prof. Silva Lopes, cheio
de razão, o nosso grande problema, o
nosso principal problema é que nós, ao
contrário dos restantes países da Europa,
não tivemos relações exteriores e tivemos
um interregno de 50 anos que nos atrasou ainda mais e não temos capacidade
produtiva instalada e cada vez que há um
problema a nossa capacidade de resistência é dez vezes inferior à dos outros.
Não é por acaso que a Irlanda está
hoje com um défice público de 32% e
com mais capacidade de resistir do que
Portugal que tem um défice público de
8,4%. O turismo é muito importante
mas é muito importante encarado como
indústria. E é importante o turismo sem
desprimor da grande importância que
tem, conseguirmos ter capacidade produtiva efectiva instalada neste país. O sector
terciário é muito interessante mas é para
vender aquilo que os outros fazem, é preciso que alguém faça, se não estamos a
vender o que os estrangeiros fazem e lá
está o problema da importação.
E quais são as potencialidades da
exploração do artesanato?
Cláudia Gomes – Nós temos um artesanato fantástico e todas as nossas aldeias
do interior se podiam reerguer a partir
daí com indústrias criativas. Falta trabalhar as pessoas, quem está no terreno, as
autarquias, as juntas de freguesia também têm de incentivar, seduzir as pessoas para investir e não para deixar morrer,
e para inovar. Fazer a simbiose entre o
passado e o presente.
Gabriela Botelho – Tenho visto muito
uma preocupação de ir buscar, a nível
das compotas, ao nível dos têxteis, dos licores, algumas tradições antigas e pessoas que faziam isso de uma forma caseira.
E tenho visto isto dentro dos hotéis que
muitas vezes oferecem, nos vip’s, como
prendas no quarto, uns licores típicos da
região, umas compotas, tenho visto esta
preocupação de buscar aquilo que é um
produto autêntico daquele local onde a
unidade hoteleira está inserida e trazêlo para dentro do hotel. Tenho assistido
a uma atenção muito maior que há dez
anos atrás. A nova geração está com esta
preocupação de não deixar perder.
Cláudia Gomes – Essa é uma aposta rentável de fixação de pessoas. O património está na moda. Os aspectos culturais
estão todos na moda. Tudo o que é feira
medieval, artesanato, gastronomia passa
a ser um “boom” muito interessante.
DOSSIER/DEBATE
Gabriela Botelho – Há aqui um conjunto de aspectos ligados ao turismo
cultural, as feiras, as rotas, as rotas temáticas, o vinho também é um produto interessantíssimo, todas as regiões ligadas
ao vinho estão a trabalhar muito bem.
Falta-nos mais marketing para nos promovermos lá fora. Não temos produtos
inferiores aos franceses, nos vinhos, nos
queijos. Não temos ainda é o marketing.
Carlos Mamede – É fundamental para
que fora de portas haja um reconhecimento e a vontade de viajar, visitar, conhecer e comprar produtos portugueses
desse tipo, que é a construção de destinos turísticos completos, que associam
todas as vertentes, associam o vinho, a
qualidade da unidade hoteleira, a qualidade dos transportes para lá chegar, a
qualidade das acessibilidades. O Douro
Vinhateiro, para ser verdadeiramente
um destino apelativo a toda a Europa,
tem de ter acessibilidades que, neste momento, não existem.
O que é que gostariam que
acontecesse em Portugal na área do
turismo?
Cláudia Gomes – Eu gostaria que começássemos a pensar em projectos integrais, transversais e dentro da excelência.
Sempre sobre estes três princípios. De
contrário não vale a pena.
Gabriela Botelho – Eu gostaria de ver
ligado à excelência a própria formação,
essa preocupação de excelência dos
quadros e deixássemos de menos politiquices e politiqueiros e puséssemos as
pessoas que sabem trabalhar à frente de
muito do trabalho
Carlos Mamede – A nossa mensagem é
que a Fundação Inatel, agora que já não
é um Instituto Público, é uma Fundação
de Direito Privado, voltou a ser uma
instituição para todos os portugueses e
uma instituição que precisa de ser, merece ser e tem que ser acarinhada nas
suas três grandes vertentes que são a sua
missão social, a promoção da cultura, a
promoção do desporto popular.
Somos a organização que mais promove quer uma coisa quer a outra, e
a promoção do turismo social, porque
é desse que falamos e é desse sobretudo que tratamos e que faz com que
tenhamos neste momento já dezassete
hotéis, quatro parques de campismo, e
muita gente ainda não sabe que pode
utilizar, com preços imbatíveis, estas
unidades e pode utilizá-lo sendo sócio
ou não da Fundação Inatel. É este o
meu desejo, que cada vez mais pessoas
estejam abertas a esta realidade, conheçam esta realidade e usufruam desta
realidade. n
AO LONGO DA VIDA 29
TURISMO
ÉTICO
E SOLIDÁRIO
O movimento por um Turismo ético,
responsável e solidário tem origem
na Europa com base nos princípios
do Comércio Justo. É o ponto de
partida para o desenvolvimento
sustentável do sector.
A prática de um Turismo Ético
Responsável e Solidário além de
ajudar as comunidades dos países
de destino, é um instrumento
importante na consciencialização
dos turistas do Norte face às
grandes diferenças existentes em
relação aos países do Sul.
O confronto com a realidade,
tomando conhecimento no local
visitado das desigualdades,
injustiças, etc., levarão à adopção
de atitudes mais solidárias nas
suas vidas quotidianas em relação
ao Sul, tanto no que diz respeito ao
consumo responsável como a um
comportamento mais reivindicativo
no que toca a políticas que visem a
diminuição e, se possível, a extinção
dessas mesmas desigualdades.
Sendo o Turismo uma importante
actividade económica
(maioritariamente assente
em bases economicistas e de
exploração humana), torna-se
imprescindível que os movimentos
ligados ao Turismo Ético e Solidário
se desenvolvam em conjunto com
o Comércio Justo e, de forma mais
alargada, inseridos nas redes de
economia solidária.
30 APRENDER
Carta do Turista
Responsável
Países longínquos, exóticos,
praias de sonho, vistas
encantadoras, estruturas de
acolhimento com todos os
confortos: estas férias são as
que, em geral, nos propõem as
agências! Nenhuma atenção (ou
quase) é dada à realidade do
país que se vai visitar: quais as
condições de vida da população
local? Quais os impactos da
nossa presença no território?
Quem são os verdadeiros
beneficiários das nossas férias?
Férias responsáveis
Há uma maneira de viajar cuja característica principal é ter consciência de
nós próprios e das nossas acções, da realidade dos países que visitamos, da possibilidade de uma escolha bem pensada,
diferente.
Isto é Turismo Responsável: quando
viaja significa que vai ao encontro dos
outros países, das pessoas e da natureza,
com respeito e disponibilidade. Quando
viaja significa que escolhe não dar apoio
à destruição e à exploração, bem pelo
contrário, ser vector de princípios de
justiça e ser sustentável, com reduzido
impacto ambiental e sobretudo cultural,
a ponto de se estabelecerem verdadeiras
relações entre visitantes e visitados.
Os números do turismo
6 mil milhões de pessoas, em cada
ano, deslocam-se de um lugar para outro.
127 milhões de pessoas trabalham
neste sector (1 em cada 15 com ocupação no mundo!)
Uma facturação semelhante a 6% do
Produto Interno Líquido do planeta.
O turista não pode ser apenas um
veraneante despreocupado, tem de ser
também testemunha de uma realidade
muitas vezes difícil e nem sempre agradável de ver. É necessário que os viajantes ganhem consciência do seu papel de
consumidores do produto viagem, do
qual depende a qualidade da oferta e o
destino de milhões de outros indivíduos
nos lugares de destino.
DOSSIER/ARTIGO
O turista responsável é aquele que
toma consciência do fenómeno na sua
complexidade, e de que o encontro com
“o outro” não é um problema a menosprezar, ou a ignorar, mas, pelo contrário,
deve ser analisado com responsabilidade.
Para viajar de Olhos Abertos!
Em suma, o turismo responsável visa
partilhar experiências de crescimento
interior e de respeito pelos visitados.
Quem viaja deve estar de “olhos abertos”, tendo sempre o cuidado de não
“invadir” as sociedades locais para que
permaneçam donas das suas vidas.
É provável que um viajante consciente assuma também na sua vida quotidiana, atitudes responsáveis em relação ao
Sul do mundo. Apenas desta forma vai
ser possível falar do turismo como valor
humano, como oportunidade de troca e
de aproximação entre culturas.
Algumas consequências do turismo
de massas:
- Impacto ambiental, cultural, social e
económico muitas vezes devastador.
- Perca de valores e tradições (sobretudo nos países do Sul do mundo)
- Redução dos recursos e mal-estar social não compensados por uma justa
redistribuição do lucro obtido.
- A possibilidade de encontro e de troca entre turistas e população local é,
na maior parte dos casos, fictícia ou
limitada a experiências rápidas e artificiais, se não mesmo desrespeitadoras das realidades visitadas.
“Bilhete de Identidade”
para Viagens Sustentáveis
“Turismo Responsável: Bilhete de
Identidade para Viagens Sustentáveis”
é o nome do documento assinado, nos
anos 90, por algumas associações do
sector. O objectivo comum é promover
uma forma de viajar que respeite as comunidades locais, que tenha fraco impacto ambiental e que garanta uma justa
distribuição dos lucros.
No “Bilhete de Identidade” evidenciam-se alguns pontos chave: antes, durante e depois da viagem: três fases temporais diferentes que devem ser analisadas com base em indicações concretas,
para que se possa realizar uma viagem
verdadeiramente responsável.
Antes da viagem
Ao viajante:
- interroga-se acerca das reais expectativas e das motivações da sua viagem;
- informa-se e pede informações correctas aos organizadores, não só
acerca dos aspectos técnicos e logísticos da viagem, mas, também, do
contexto sociocultural que vai visitar,
pedindo catálogos realistas nos quais
o país a visitar não é apresentado de
uma maneira falsa e tendenciosa ou
até ambígua (por ex.: turismo sexual)
ou manipulada (por ex.: as tradições
culturais vendidas “em saldo”);
- faz contactos, se possível através dos
organizadores, com realidades dos
locais que o podem alojar;
- está disponível para encontros preparatórios com os seus futuros companheiros de viagem e/ou com o acompanhante;
- pede aos organizadores garantias sobre a viagem, do ponto de vista ético
(privilegiando entre outros: alojamento, restaurantes, estruturas, transportes compatíveis com o ambiente),
social (por ex.: pedindo às autoridades dos países de destino a garantia
de um desenvolvimento turístico
compatível; privilegiando serviços de
acolhimento de acordo com a cultura
do lugar; escolhendo parceiros locais
que respeitem as normas sindicais
mínimas estabelecidas pela Organização Internacional do Trabalho) e
económico (privilegiando serviços de
acolhimento de tipo familiar ou de
pequena escala; escolhendo serviços
locais em que a diferença de acesso
entre o viajante e as pessoas do lugar
seja mínimo);
- pede transparência em relação ao
valor, no sentido de saber que percentagem do preço final fica para as
comunidades visitadas;
- privilegia viagens que garantam a
máxima possibilidade de escolha no
que respeita a tempos e conteúdos, e
organiza itinerários com tempos que
não obriguem a pressas;
- informa-se sobre as normas de comportamento aconselháveis;
- não favorece o turismo do comércio
sexual e desencoraja, por todos os
meios, a prostituição e a pornografia
infantil.
Durante a viagem
Ao viajante:
- considera positivo partilhar os vários
aspectos da vida quotidiana local e
não exige privilégios ou práticas que
possam causar um impacto negativo;
- não ostenta riqueza e luxo contrastantes com o nível de vida local;
- pede a autorização das pessoas e dos
lugares filmados ou fotografados;
- não adopta comportamentos ofensivos dos usos e dos costumes locais;
- procura produtos e manifestações
que sejam expressão da cultura local
(por ex.: artesanato, gastronomia,
arte, etc.), protegendo as identidades
autóctones;
- respeita o ambiente e o património
histórico e monumental
Após a viagem
Ao viajante:
- verifica se conseguiu estabelecer uma
relação satisfatória com as pessoas e
com o país visitado;
- avalia a forma de dar continuidade às
relações estabelecidas.
Para mais informações sobre Turismo Ético consultar:
A Mó de Vida é uma Cooperativa de
Comércio Justo em Almada que se tem
dedicado ao Turismo Ético e Solidário
www.modevida.com/turismo.html
Rede Internacional do Comércio
Justo no Turismo /
Tourism Concern
www.tourismconcern.org.uk
TEN - Rede Europeia Ecuménica de
Turismo /
Tourism European/Ecumenical
Network
www.ten-tourism.org
AO LONGO DA VIDA 31
Grupo Lobo © Artur V. Oliveira
DOSSIER/REPORTAGEM
O LOBO BOM
Texto de Cristina Portella # Fotografias de Paulo Figueiredo
É ao cair da tarde que melhor
se pode ver o lobo. Já perto
das sete horas da tarde cerca
de 30 pessoas, na sua maioria
adultos, mas também
algumas crianças chegam
ao Centro de Recuperação
do Lobo Ibérico para ficar a
saber mais sobre esse animal
do qual existem tantos mitos,
lendas e que ao contrário, do
que geralmente pensamos,
é o homem que é seu
predador.
A visita ao centro começa quando o
sol já vai desaparecendo no horizonte,
porque é nesta altura do dia que os lobos, como animais nocturnos que são,
passam a movimentar-se e será possível
vê-los. Alertam-nos para não tentarmos
tocá-los por entre as grades. Afinal, não
são animais domésticos e pouca ou nenhuma familiaridade têm com as carícias humanas. Mesmo o casal de irmãos
mais popular do centro, Soajo e Faia,
não devem ser tocados. Faia nasceu no
centro em 2008 e ali foi criada por técnicos e voluntários, sendo por isso bastante sociável.
O nosso guia vai ser o biólogo Francisco Fonseca, professor da Faculdade
de Ciências da Universidade de Lisboa
e presidente do Grupo Lobo que, numa
pequena sala circular onde ficam expostos painéis com informações e fotos
de lobos, nos dá algumas informações
preliminares sobre o Centro de Recuperação do Lobo Ibérico e o percurso que
iremos realizar.
O Centro ocupa uma área de 17 hectares na freguesia do Gradil, concelho de
Mafra, e abriga actualmente nove lobos,
dos quais duas fêmeas, divididos em
oito cercados. São animais que, apesar
de não serem domesticados, não conseguiriam viver em liberdade. Alguns
nasceram em cativeiro, enquanto outros
foram para ali trazidos depois de terem
sido feridos ou maltratados. O centro
chegou a alojar 33 lobos, mas, para que
não haja excesso de animais, a reprodução é planeada, sendo alguns submetidos à vasectomia. “A reprodução não é o
objectivo do centro”.
Os objectivos do centro são outros,
estimular a realização de estudos sobre o
comportamento do animal e promover
acções de educação ambiental, direccionadas a diferentes públicos, que dêem
a conhecer o verdadeiro lobo. “Não
queremos idolatrar o lobo, mas dar informações para que a sociedade possa
decidir se devemos ou não protegê-lo”,
esclarece Francisco Fonseca. O centro é
uma instituição privada, criada em 1987
pelo Grupo Lobo, cuja área ocupada
pertence à fundação suíça Bernd Thies.
O Grupo Lobo, por sua vez, é uma associação não governamental, sem fins
lucrativos, fundada em 1985 para trabalhar pela conservação do lobo e do seu
ecossistema em Portugal.
AO LONGO DA VIDA 33
A má fama do lobo
Ao contrário do que poderíamos pensar, na região escolhida para albergar o
Centro de Recuperação do Lobo Ibérico não existem lobos. E este facto não
foi aleatório à escolha. Pelo contrário,
procurou-se justamente um local em
que estes fossem inexistentes. Por quê?
Porque, como explicou o professor, a
maioria das pessoas de áreas onde há
lobos não gostam deles. Esta má fama
do lobo teria a ver com um mito muito
antigo, estimulado na Idade Média pela
Igreja Católica e transmitido por lendas,
contos e versos populares, em que este
animal estaria associado à figura do demónio e outros símbolos do mal.
Mas, como toda mentira convincente, esta também tem um aspecto verdadeiro: o mito do lobo mau está ancorado na sua actividade predadora contra o
rebanho e outros animais domésticos,
provocada pela escassez das suas tradicionais fontes de alimento, como coelhos, lebres e javalis, entre outros, em
virtude da ocupação humana. Por isso,
os pastores são uns dos maiores inimigos dos lobos e promovem a sua caça.
É para neutralizar esse ódio ancestral, e
preservar a vida de uma espécie sempre
ameaçada, que uma das actividades do
Grupo Lobo é fornecer cães de gado aos
pastores para proteger os seus rebanhos.
Em Portugal, as quatro raças reconhecidas são Castro Laboreiro, Serra da Estrela, Rafeiro do Alentejo e Transmontano.
O facto de ser um predador não significa que o lobo seja um animal agressivo
ou que obtenha sucesso na maior parte
das suas empreitadas. A percentagem
de êxito nas suas tentativas de ataque é
inferior a 10%, uma realidade bastante
diferente da exibida pelos documentários. Quanto aos seres humanos, estes
podem ficar descansados porque não é
considerada uma presa para este animal.
“O lobo vê o homem como um competidor; depois passa a entender que é
a presa de um predador.” Por isso, ao
contrário do que se pensa, o lobo não
enfrenta o homem, mas foge dele.
Ao contrário do que acontece na natureza, onde só percebemos a presença
de lobos através de vestígios – dejectos,
pegadas, reclamações dos pastores por
terem matado um animal do rebanho –,
no Centro de Recuperação do Lobo Ibé-
34 APRENDER
rico eles aparecem com regularidade. E
a cada vez que isso acontece, um certo
frenesi perpassa o grupo. Pequeno em
comparação com outros da sua espécie,
com pelagem castanha, o focinho avermelhado e uma juba à volta do pescoço,
o lobo ibérico, ou Canis lupus signatus,
pesa em média 35 quilos, com 2 anos é
adulto e, aos 10, quando em liberdade,
pode ser considerado idoso. O lobo ibérico integra a espécie dos lobos cinzentos (Canis lupus), subdividida em cerca
de 30 subespécies.
Ao longe, e aparentemente indiferente ao olhar curioso dos visitantes, mais
parece um inofensivo e vulgar cão doméstico, aliás, seu descendente. “Os lobos estão agora onde os homens permitem que eles estejam”, destaca Francisco
Fonseca. Praticamente confinados, no
caso de Portugal, ao Norte do país, onde
se estima que existam cerca de 300 lobos, no passado povoavam até o Algarve. “O lobo não é animal de serra, mas
uma espécie com grande capacidade de
adaptação.” Actualmente, no Centro e
Sul do país não vivem mais de 20 a 30
animais. Na Península Ibérica, devem
existir entre 1.500 a 2.000. A sua história na Europa não é das mais famosas.
Praticamente extinto na Inglaterra no
século XV, o lobo foi exterminado na Irlanda no século XVIII. Na Suíça e França
teve o mesmo destino desde meados do
século XIX.
A boa notícia é que, fruto de uma
maior consciencialização da população
e dos governantes sobre a necessidade
de preservar a espécie, mas também,
em alguns casos, pela desertificação de
grandes áreas rurais em muitos países,
como Portugal, o número de lobos até
tem vindo a aumentar. “O último censo mundial, realizado em 1998, refere a
presença de lobos em 43 países: em 83%
destes o número de lobos é estável ou
tende a aumentar, e em 17% o número
de lobos está a diminuir”, informa o sítio do Grupo Lobo na Internet (http://
lobo.fc.ul.pt/). Na Europa, o lobo é protegido na maioria dos países pela Convenção de Berna e por directivas comunitárias.
A família Santos
Entre os participantes da visita está a
família Santos: Regina, Rui e as duas fi-
A má fama do lobo teria
a ver com um mito muito
antigo, estimulado na Idade
Média pela Igreja Católica
e transmitido por lendas,
contos e versos populares,
em que este animal estaria
associado à figura do
demónio e outros símbolos
do mal.
DOSSIER/REPORTAGEM
Conhecer o homem
Para Regina Santos, a figura do lobo
também fascina porque remete a um
passado misterioso, cheio de misticismo. “Na primeira vez que aqui viemos,
começámos a uivar, e os lobos responderam. Sentimos um arrepiozinho na
espinha. Fez-nos recordar um lado nosso selvagem, primitivo”. “O lobo uiva
para demarcar território e comunicar
com os seus companheiros”, explica o
professor. É possível – após algum treino
– identificar inclusive o autor do uivo,
uma forma de comunicação que tanto
amedrontou os nossos antepassados e
inspirou incontáveis histórias de terror.
“O lobo moldou a cultura europeia”,
admite o professor. E dá exemplos com
vários séculos de idade, além das lendas
e histórias de arrepiar: os cães de guarda existiriam por causa dos lobos, assim
como o fojo do lobo, uma armadilha
para capturá-los feita de pedra, ainda
bastante encontráveis no norte ibérico.
O professor Francisco Fonseca estuda
lobos desde 1977, quando ingressou na
faculdade. Hoje, uma das suas mais importantes actividades relaciona-se com a
tantes, pois a visita está quase a terminar
e quase alcançamos a sede. “Estudar o
lobo é conhecer as pessoas”, sintetiza o
professor. “É totalmente mágico”, acrescenta Regina. n
© Grupo Lobo
lhas, de 9 e 12 anos. Eles vivem na Amadora e esta é a segunda vez que vêm ao
Centro de Recuperação do Lobo Ibérico.
“Nunca fizemos do lobo o lobo mau. A
mais velha gosta muito de lobos”, explica Regina. A sugestão do passeio foi dada
pela cunhada e rapidamente aceite pela
família. “Não é como ir ao zoológico, é
mais enriquecedor, ficamos a conhecer
melhor o nosso meio-ambiente e tudo o
que fazem para cuidar dos lobos.”
Durante o percurso, o professor Francisco Fonseca comenta a dieta dos animais em cativeiro. Eles são alimentados
duas a três vezes por semana, com carne
certificada de frango ou vaca, lançada por
cima da cerca. Da dieta alimentar dos lobos do centro nunca constam carne de
porco, pela rapidez com que se deteriora,
e animais vivos, em respeito pelos animais. Em liberdade, a sobrevivência lupina é bastante mais dura – o lobo, às
vezes, percorre dezenas de quilómetros
para conseguir apanhar uma presa.
Esta seria uma das razões a explicar por
que este canídeo é um animal social. “O
lobo vive em grupo; a alcateia, com a sua
organização hierárquica bem definida, é
uma família. É um animal social porque
caça animais maiores que ele”, assinala
o professor. Durante uma caçada, pode
perseguir a presa por muitos quilómetros
porque se reveza com outros membros da
alcateia. A solidariedade entre os membros da alcateia também é demonstrada
pelo facto de todos os lobos adultos se
responsabilizarem pela alimentação e
protecção das crias, sejam ou não os seus
procriadores. O número de lobos na alcateia depende do espaço e da comida disponíveis, sendo imprescindível a existência de uma fonte de água, para saciarem a
sede e banhar-se no Verão.
Francisco Fonseca
divulgação desse conhecimento adquirido em tantos anos de estudo. “É importante conhecermos aquilo que nos
rodeia e transmitir à população.”
O Grupo Lobo organiza acções de
divulgação para alcançar diferentes públicos em escolas, universidades, feiras
ambientalistas ou de cães e no Centro de
Recuperação do Lobo Ibérico, como esta
visita na qual participámos. “Os adultos
chegam aqui com a percepção diferente
do que vão ver e saem com uma ideia diferente do lobo. Há pessoas que vêm aqui
várias vezes.” É caso da família Santos:
“Não nos importa voltar aqui outra vez”.
Já é noite fechada, algumas lanternas
iluminam a trilha de cascalho que percorremos a conhecer o habitat de Aura,
Douro, Fagus, Faia, Minho, Olmo, Prado, Soajo e Teixo, os lobos do centro.
Ouvimos alguns uivos, agora mais dis-
O lobo vê o homem como
um competidor; depois passa
a entender que é a presa de
um predador. Por isso, ao
contrário do que se pensa, o
lobo não enfrenta o homem,
mas foge dele.
AO LONGO DA VIDA 35
Recursos a Propósito de Viagens
RECURSOS
O tema viagens é
inesgotável e uma
simples pesquisa
na internet lhe irá
disponibilizar uma
quantidade imensa
de sites. As sugestões
de recursos que
apresentamos são um
mero ponto de partida
para outras tantas
descobertas.
Por Madalena Santos
36 APRENDER
LIVROS
Colecção Literatura de viagens
Tinta da China
Literatura de Viagens,
de Fernando Cristóvão,
Edições Almedina
Já foram publicados uma dúzia de
livros por esta editora com temas tão
diversificados como o relato de um
escritor (Peter Carey) da viagem ao
Japão que fez com o seu filho, guiados
pela paixão do filho por Manga (banda
desenhada japonesa), passando pelo
retrato inesperado de Julien Green da
cidade de Paris, escapando ao lugarcomum e descrevendo uma Paris íntima
e privada, lugar de memórias e de
descobertas, até ao “Na Síria” de Agatha
Christie que faz um relato impressivo e
divertido das temporadas passadas no
deserto sírio, onde terá desenvolvido
muitos dos seus policiais.
www.tintadachina.pt/themes.php?code
=7442ce97ebbbf7acafdfb75f512e6fd1
A viagem tem sido, desde sempre, uma
forma de conhecimento, de diálogo e
de mudança. Dai a tradição de a registar
para memória e testemunho, em textos
de grande espontaneidade, ou em
verdadeiras peças literárias.
Assim, ao longo da História, e
reportando-nos à literatura de viagens
europeia, sobretudo a partir do século
XV, em fase tradicional, os relatos de
viagem são de tipo aventureiro, pelas
dificuldades e perigos que abundavam,
descrevendo peregrinações, descobertas,
conquistas, comércio, em especial. Na
fase seguinte, iniciada com o Turismo,
no séc. XIX, em transportes rápidos,
seguros (comboio, navio a motor,
automóvel...), a nova mentalidade criou
novos textos descrevendo as viagens
de lazer, de grandes reportagens, de
descoberta de mundos exóticos, de
reportagens de guerra, de turismo
religioso...
Com as novas tecnologias do vídeo,
telemóvel, computador e seus relatos
brevíssimos, carregados de imagens,
estaremos a assistir a uma novíssima
literatura? É desta evolução da literatura
de viagens que se ocupa esta obra.
DOSSIER/RECURSOS
A Arte de Viajar,
de Alain de Botton,
The Lonely Planet Guide
to Experimental Travel
Turismo Científico em Portugal
- um roteiro
Dom Quixote
Lonely Planet
Assírio & Alvim
Neste livro, Botton fala dos prazeres
e desilusões de viajar. Tratando, entre
outras coisas, de aeroportos, tapetes
exóticos, romances de férias e minibares
de hotel, este livro cheio de humor,
surpreendente e provocador, revela as
motivações escondidas, expectativas
e complicações das nossas viagens
por esse mundo fora. Acompanhando
o autor nesta viagem encontramse escritores, artistas e pensadores
que foram inspirados pela viagem
em todas as suas formas: Gustave
Flaubert, Edward Hopper, Baudelaire,
Wordsworth, Van Gogh, Ruskin – todos
eles preparados para nos darem as
suas visões sobre o curioso negócio de
viajar. O antídoto perfeito para aqueles
guias que nos dizem que fazer quando
lá chegarmos, A Arte de Viajar tenta
explicar porque é que escolhemos tal
sítio em primeiro lugar – e sugere,
modestamente, como podemos
aprender a ser mais felizes nas nossas
viagens.
Será só mais um guia de viagens da
famosa colecção Lonely Planet? Bem, é
mesmo um Guia, mas nada semelhante
aos habituais guias. Esqueça as viagens
em pacotes pré-fabricados, com
itinerários totalmente previsíveis e bem
definidos. Arrisque, explore e aprenda…
Os tempos actuais convidam a que se
viaje com imaginação, por exemplo,
observando com novos olhos ou
novos ‘óculos’ o que já consideramos
familiar, desenhando percursos com
regras estranhas ou com pontos de
partida (e chegada) inesperados,
ou ainda viajando com intenção de
‘produzir’ ou ‘construir’ algo mais do
que memórias com o que vivemos.
Este Guia é um verdadeiro passaporte
que nos oferece 40 boas ideias para
ajudar a planear e a concretizar as
tais ‘Viagens experimentais’. Além das
ideias, apresenta-nos ainda relatos de
intrépidos viajantes experimentais que
nos mostram não só que essas viagens
são possíveis mas como podem ser
aliciantes, divertidas e enriquecedoras.
Pode ainda alargar o leque de ideias
recorrendo ao site www.lonelyplanet.
com/experimentaltravel/
O objectivo deste livro é dar a conhecer,
aos portugueses e estrangeiros que se
interessam por ciência, uma série de
locais e entidades que, doutra forma,
poderiam passar despercebidos.
Organizado de uma forma lógica
e concisa, de forma a facilitar a
consulta. Tratando-se de um guia,
está organizado por regiões (Lisboa e
Vale do Tejo, Norte, Centro, Alentejo,
Algarve, Açores e Madeira). Por
sua vez, cada uma destas grandes
unidades geográficas está dividida nos
concelhos que a integram, sendo estes
apresentados por ordem alfabética.
AO LONGO DA VIDA 37
DOSSIER/RECURSOS
REVISTAS
VIDEOS
SITES
Na Net encontram-se muitos sites de
interesse relacionados com este tema.
Na lista a seguir apresentamos alguns
exemplos muito diversificados que
podem ser pontos de partida para
outras ligações.
Viagens com Michael Palin
Revista Itinerante
Há cerca de um ano surgiu a Itinerante das
Edições: Itinerante – Divulgação Histórica e
Cultural, crl, uma revista quadrimestral em
que cada número é organizado por temas:
“Invasões Francesas” (Nov. 2009 – Fev.
2010) “Faróis Portugueses” (Março – Junho
2010), “Caminhos de Santiago” (Julho –
Outubro 2010) “República” (Novembro
2010 – Fevereiro 2011). Existe ainda um
número especial sobre as Linhas de Torres
Vedras recentemente publicado.
Cada número está organizado em três
secções - Caminhar, Conhecer e Conviver.
No “Caminhar” sugerem-se trilhos e
fornece-se informação necessária para
os percorrer com autonomia, podendo
essa orientação ser feita através da carta
topográfica, da descrição do caminho e/ou
com o GPS.
No “Conhecer” há rubricas que vão de
simples curiosidades, a artigos teóricos
escritos de uma forma clara e objectiva,
e entrevistas a especialistas do tema do
dossier. De realçar que, para cada número,
existe um consultor científico desta secção.
No “Conviver” encontra-se indicações,
por exemplo, de alguns restaurantes
nos percursos dos trilhos onde se pode
conviver.
A Itinerante apresenta-se com um grafismo
cuidado, não descurando a preocupação
de apresentar fotografias a duas páginas
visualmente muito agradáveis.
Como complemento da revista existe
um site (http://itinerante.pt) onde pode
recolher mais informação da revista,
fazer “download” dos trilhos para GPS
e partilhar informação e experiências
através de um blogue do “Facebook” ou do
“Twitter”.
38 APRENDER
O primeiro documentário de viagens
de Palin (um dos elementos dos
Monty Pyton) foi na série de BBC
de 1980, Great Railway Journeys
of the World, no qual recordou
humoristicamente o seu passatempo
de infância de viajar de comboio.
A partir de 1989, Palin passou a
apresentar séries de viagens para
a BBC. Estes programas já foram
transmitidos em todo o mundo e
alguns deles em Portugal, estando
parte deles editados em DVD.
Alguns programas:
Volta ao Mundo em 80 dias (1989):
uma viagem que seguiu o mais
próximo possível a do romance
de Júlio Verne, sem recorrer a
transportes aéreos.
De Polo a Polo (1992): viagem
desde o Pólo Norte até ao Polo Sul
através da linha 30º E de longitude,
andando o mais possível por terra.
A Nova Europa de Michael Palin
(2007): viagem pelos países da
Europa de Leste.
Depois de cada viagem, Palin
escreveu livros sobre as mesmas,
onde revelou aspectos e informações
que não foram incluídos nos
programas. Cada livro é ilustrado
com fotografias de Basil Pao.
Os programas de viagens de
Michael são responsáveis pelo
chamado “Efeito Palin”: as áreas
do Mundo que visita, tornam-se
repentinamente atracções turísticas
populares. Por exemplo houve um
aumento significativo da procura
turística pelo Peru após Palin ter
visitado o Machu Picchu.
Ver www.palinstravels.co.uk/
www.teachersfirst.com/globetracker/
about.cfm
– site em inglês com ideias para a
exploração das viagens com um ponto
de vista educativo.
www.sfu.ca/seniors/10benefit.htm
– site em inglês que apresenta os 10
Benefícios da Aprendizagem ao Longo
da Vida por Nancy Merz Nordstrom
http://terracha.no.sapo.pt
– site da Cooperativa “Terra Chã” que
promove a Rota dos Pastores.
www.foroturismoresponsable.org
– site que se preocupa com as
consequências que o Turismo pode ter
em todos os países e particularmente
nos do Sul
http://viajes.sodepaz.tv/
– site da organização espanhola SodePaz
que promove e organiza viagens numa
perspectiva de Turismo Responsável
www.effat.org/public/index.
php?menu=5&lang=2
– site inglês onde se encontra
muitas referências a organizações e
movimentos do Turismo sustentável.
http://ec.europa.eu/enterprise/sectors/
tourism/eden/index_en.htm.
– site do Projecto EDEN “Destinos
Europeus de Excelência” que tem
por objectivo fomentar modelos de
desenvolvimento sustentável através da
União Europeia.
AO LONGO DA VIDA 39
EDUCAÇÃO-FORMAÇÃO
DE ADULTOS:
CAMINHOS PASSADOS
E HORIZONTES POSSÍVEIS*
Texto de Alberto Melo # Ilustrações de Luis Miguel Castro
1 – A perspectiva “pedagógica” de Espinoza no
século XVII ou como uma pessoa se torna pessoa
Segundo (Bento ou Baruch) Espinoza (1632-1677), cada
pessoa não é o átomo indivisível e isolado do liberalismo anglosaxónico, mas sim um conjunto coerente de relações - quer físicas quer intelectuais - com a natureza, com os artefactos, com
as outras pessoas; relações que a transformam continuamente.
Assim, nenhum indivíduo é estritamente individual. Porém, a
coerência destas relações não é garantida, nem estável; pode
e deve reforçar-se, aprofundar-se, aperfeiçoar-se, mas também
pode degradar-se, destruir-se. Para melhorar continuamente a
sua coerência interna, cada pessoa deve chegar à compreensão
das relações que lhe são positivas e úteis, que reforçam a sua autonomia, mas também deve aperceber-se de que o útil aqui não
é apenas o que lhe convém, de um modo individual e isoladamente. É útil, sobretudo, aquilo que torna cada pessoa solidária
com o mundo natural e social que a rodeia. E, para chegar a este
patamar de conhecimento, é necessário passar pela experiência
prática, agindo sobre o mundo, procurando e testando inúmeras e variadas relações com o mundo físico e com a sociedade,
através portanto do Trabalho e da Política.
Paralelamente, terá que existir, por parte dos Estados, das
sociedades políticas, a missão de criar e promover, em permanência, um contexto cultural propício à realização em plenitude dos seus cidadãos. (Pensamentos contidos em “Tratado das
Autoridades Teológica e Política”, 1670, e “Tratado da Autoridade Política”, 1677).
2 – Da génese da Educação de Adultos estruturada
Nos dois séculos anteriores a Espinoza, houve já personalidades e movimentos históricos que influenciaram profundamente a Educação de Adultos, como hoje a conhecemos. Em
primeiro lugar, temos Johan Gutemberg (1398-1468) e a sua
invenção da imprensa (1450), esse “exército de 26 soldados de
chumbo com os quais se poderia conquistar o mundo”, frase
que se atribui ao próprio inventor. Não foi decerto um invento
pacífico. Para a igreja da época, a possibilidade de os livros saírem da oficina de artesãos e não apenas das mãos dos monges
escribas provocou os maiores receios pela força subversiva que
isso representava, como instrumento de difusão incontrolada
de ideias e informações, com a consequente erosão da autoridade eclesiástica. Também foi ruidosa na altura a reacção dos
40 APRENDER
ARTIGO
professores, que consideravam a sua ocupação como extinta
dada a possibilidade de cada um poder aprender sozinho,
com os livros. Para tranquilidade dos poderes instituídos, a
primeira obra impressa foi uma belíssima Bíblia (em 1455) e
a igreja passou, em seguida, a recolher avultadas receitas graças à impressão de indulgências, em centenas de milhar de cópias. Esta faculdade de qualquer pessoa poder comprar à igreja
o perdão dos seus pecados terá levado, entre outros factores, à
cisão de Martin Luther (1483-1546) que, após a excomunhão
de que foi objecto por parte do Papa, rebelou-se contra a autoridade papal e instituiu uma nova igreja centrada na Bíblia
como única fonte do conhecimento divinamente revelado.
Considerou também que qualquer cristão baptizado era um
legítimo sacerdote, não havendo necessidade de mediadores
entre Deus e cada pessoa. Por seu lado, os crentes deveriam
possuir e ler regularmente a Bíblia, constando os serviços religiosos de leituras e sermões nela centrados. Multiplicaram-se
então as traduções a partir do latim para as diferentes línguas
nacionais dos países aderentes à chamada Reforma protestante, assim como a impressão maciça e distribuição de Bíblias.
Outra corrente desta revolta contra a hegemonia da igreja liderada pelo Papa foi iniciada na mesma altura por Jean Cauvin
(ou Calvino, 1509-1564), em França, Suiça e Alsácia. Um seu
contemporâneo e colaborador, o escocês John Knox (15101572) criou no seu país a igreja presbiteriana, assente em princípios semelhantes. Esta, em oposição à tradicional e rígida
estrutura eclesiástica, assenta em pequenas estruturas de base
de criação e funcionamento democráticos. A fim de permitir
a todos os crentes o cumprimento do dever de regular leitura
da Bíblia, multiplicaram-se as actividades de alfabetização,
sendo a Escócia a primeira nação do mundo a apresentar uma
população adulta a 100% letrada. Em tendência inversa, nos
países que conservavam a obediência à Igreja de Roma, a leitura da Bíblia, na sua versão em latim, que perdurou alguns
séculos, manteve-se reservada aos ministros ordenados pela
hierarquia, não havendo por isso necessidade de promover as
competências de literacia na população em geral.
3 – Uma definição de Educação de Adultos
por justaposição
Creio que se pode caracterizar a situação actual e a evolução previsível da Educação-Formação de Adultos (EFA) por
referência a três vectores: Educação de Adultos, Cidadania e
Trabalho. Ora, nenhum destes conceitos terá recebido uma
definição consensual, são noções que variam muito ao longo
dos tempos e nas diferentes latitudes e que estão fortemente
dependentes das ideologias dominantes. Sendo conceitos de
construção social, são criados e evoluem na base de tensões
e contradições permanentes. O próprio conceito de Educação
de Adultos (EA) só há poucos anos (1976) recebeu uma definição largamente consensual, que foi revista ligeiramente e
ratificada nas 5ª e 6ª Conferências Internacionais de Educação de Adultos da UNESCO (CONFINTEAs) em 1997 e 2009.
É uma definição feita por justaposição, somando os diferentes
subsectores que, ao longo da história, se têm inserido neste
vasto e variado campo de acção educativa. Tem uma grande
virtude: ser uma definição abrangente, pois em algumas oca-
siões a EA foi reduzida à alfabetização ou a cursos escolares
nocturnos para adultos, numa perspectiva única de extensão
escolar ou de segunda oportunidade. Foi o que aconteceu em
Portugal, durante certos períodos, quando em muitos outros
países já dominava uma acepção de EA muito mais abrangente, onde se incluíam os sectores formal, informal e não formal,
visando a construção de uma sociedade educativa e educadora
e de uma maior autonomia e emancipação dos seus cidadãos.
4 – Educação para a (e pela) Cidadania
De facto, a perspectiva da cidadania é desde há muito inerente à EA, pelo menos desde a Revolução Francesa (Condorcet) e, já no século XIX, na Escócia, Inglaterra e países escandinavos (com Nicolaj Grundtvig e outras experiências). O conceito moderno de EA está, com efeito, estreitamente relacionado
com a formação de um cidadão culto e informado, finalidade
que ainda hoje é prosseguida nos países escandinavos sob a
bandeira da “Liberal Education”, isto é a educação e formação
da pessoa por via de mais conhecimento, de acesso à cultura,
de valorização dos princípios da democracia e de uma vivência
democrática, de participação activa na vida cívica e política.
Quanto a cidadania, este conceito tem sido visto na perspectiva de uma intervenção na sociedade com o fim de a
transformar, de a melhorar. Assim, e particularmente em sociedades muito desiguais, de forte exploração sócio-económica, a
transformação social tem estado na base de iniciativas de EA,
vista assim como Educação Popular. Esta tem sido, em geral,
uma das vertentes fortes da EA, nomeadamente no Brasil e outros da América Latina, onde a figura e a obra de Paulo Freire
são incontornáveis. No entanto, também nos próprios países
escandinavos, a Educação Popular, vista essencialmente como
formação de cidadãos, encontra-se numa primeira linha há
mais de século e meio, através das chamadas Folk High Schools.
Outros exemplos se podem encontrar dentro desta dimensão. A Plebs’ League, com uma forte presença nos meios operários ingleses entre 1905 e 1926, colocara uma radical transformação social como fim último das suas actividades educativas
e organizativas. Os movimentos cívicos e educativos que surgiram após a II Guerra Mundial, por exemplo, em França (é
o caso de Peuple et Culture ou da Ligue de l’Enseignement), na
sequência da resistência à ocupação alemã, investiram intensamente na Educação Popular, uma corrente que iria conduzir,
já nos anos 60-70, à Educação Permanente, um conceito de
base alargada e essencialmente humanista.
Esta perspectiva de EA, vista essencialmente como um processo de construção do cidadão, tem emergido quer para garantir a integração numa sociedade democrática, relativamente estável e pacífica, quer para fomentar a adesão a movimentos de intervenção, de resistência, de construção / reconstrução das respectivas sociedades. Por isso, a Educação Popular
foi tão importante em Portugal, nos anos 74 a 80, quando
se reconheceu que a finalidade prioritária para a Educação de
Adultos era então a de formar cidadãos capazes de impedir
um eventual retrocesso a regimes ditatoriais.
Noutras ocasiões, a missão de construir cidadãos e cidadãs
na plenitude da suas capacidades e aspirações assumiu uma
dimensão prioritariamente cultural, visando fazer da cultu-
AO LONGO DA VIDA 41
ra um bem público acessível à grande massa dos cidadãos e
não apenas um privilégio das classes mais favorecidas. Alguns
movimentos de EA apostaram fortemente na democratização / massificação do conhecimento e da fruição dos bens
culturais, a fim de darem a conhecer as grandes obras e figuras mundiais da história e das artes - da pintura, da poesia,
da música, da filosofia, da literatura, etc. Era neste sentido,
fundamentalmente, que actuavam as universidades inglesas
na segunda metade do séc. XIX e primeiros anos do séc. XX,
através dos seus Departamentos de Extensão (“Extra-Mural departments”), tradição mantida em seguida pela Workers’ Education Association, após a sua criação em 1903.
5 – Educação de Adultos para o Trabalho
Entretanto, e em paralelo com as tendências convergentes
de industrialização e urbanização, as mutações tecnológicas e
as consequentes alterações nos processos de trabalho estavam a
criar exigências novas (quantitativas e qualitativas) na formação
da força de trabalho. O crescimento exponencial da capacidade
produtiva dos países mais industrializados destruiu completamente a prática proteccionista das corporações ou das trade
unions, que até então conseguiam controlar a entrada dos trabalhadores especializados no mercado de emprego (e, consequentemente, os respectivos salários) graças a situações de monopólio nos domínios da aprendizagem e da formação profissional.
Empresas, empregadores, e também alguns sindicatos, pressionavam no sentido de se assegurar uma mão-de-obra mais
qualificada, com maior escolaridade mas também com mais
conhecimentos técnicos. Conhecem-se instâncias em que sindicatos contestaram iniciativas clássicas de EA, considerandoas inúteis e pouco adequadas às reais necessidades dos trabalhadores, onde os adultos iam aprender algo que pouco ou
nada servia para saírem de uma situação de desemprego ou
para melhorarem empregos pouco qualificados e mal remunerados. Os próprios adultos, face a um mercado de emprego
em forte expansão, sentiam a necessidade de possuírem mais
capacidades e competências para a sua vida profissional.
Já no período da Revolução Francesa, e como um dos instrumentos de destruição das corporações, vistas como inimigas tanto do cidadão como do Estado, fora criado (em 1794) o
Conservatoire National d’Arts et Métiers, como escola pública
superior dedicada à transmissão de conhecimentos e competências nos vários sectores produtivos. De uma forma sistemática, porém, só após a II Guerra Mundial esta preocupação
veio a constituir-se como política pública, como resposta às
convulsões provocadas pelo conflito e aos grandes planos de
reconstrução e modernização do tecido económico. Nos EUA,
a aposta neste tipo de política pública foi motivada pelo regresso de milhares de soldados para os quais, como recompensa, se definiram medidas de apoio e programas de formação profissional acelerada, para assegurar a sua reintegração
na vida activa. Esta formação profissional acelerada (FPA) foi
importada para a Europa, onde originou o aparecimento de
novas instituições e fomentou a formação profissional como
objecto de políticas públicas centrais. A primeira iniciativa europeia surge em França, com a criação em 1946 da AFRMO,
que se transformou em 1949 em ANIFRMO e em AFPA, após
42 APRENDER
ARTIGO
1964. Em Portugal, foi criado em 1962 o Fundo de Desenvolvimento da Mão-de-Obra, que evoluiu em 1965 para Serviço
Nacional de Emprego e deu origem, a partir de 1979, ao Instituto do Emprego e Formação Profissional.
6 – A construção de uma visão integrada
da Educação-Formação de Adultos
Todos estes desenvolvimentos ocorreram na pós-guerra,
concomitantemente à procura do mais alargado consenso
possível em torno de um Contrato Social onde se inscrevia a
edificação do Estado Providência, garantindo novos direitos
humanos de natureza social e económica, como por exemplo
o direito ao trabalho. Ora, havendo um direito, há necessariamente uma obrigação recíproca; e quem teria obrigação de garantir o direito ao trabalho? Certamente o Estado, os poderes
públicos, aos quais caberia assegurar o pleno emprego. Obviamente, para assegurar o pleno emprego, houve necessidade de
adoptar novas políticas e de definir vastos programas de qualificação, escolar e profissional, e tanto inicial como contínua.
Chegados aos dias de hoje, o que se observa nas mais recentes tendências dentro do campo da EA é um desígnio de
coerência e de integração de elementos que até há pouco se
encontravam dispersos ou em real ou aparente antagonismo.
Durante muito tempo, colocou-se em oposição, por um lado,
uma EA cultural ou uma EA cidadã e, por outro, a Formação
Profissional, esta última vista como actividade puramente técnica, uma mera aprendizagem de gestos repetitivos, manuais,
mecânicos; em suma, um processo que não considerava a formação plena do adulto como pessoa e como cidadão, mas
apenas como trabalhador, produtor. Esta clara distinção entre
EA e Formação Profissional foi-se esbatendo, sendo de sublinhar uma maior coerência e integração, pelo menos, nos últimos 15 anos. A CONFINTEA de Hamburgo (1997) foi um
evento de importância histórica para sublinhar esta tendência,
à escala mundial, confirmando que tal convergência se estava
já a concretizar em muitos países e sistemas, graças a estratégias e instrumentos específicos de formação integrada e de
dupla certificação. Daí para diante, na Comissão Europeia,
na OCDE e na própria UNESCO, as recomendações aos Estados Membros vão no sentido da necessidade de programas,
conteúdos, processos combinados e integrados em EducaçãoFormação de Adultos.
Os documentos estratégicos mais recentes, tanto à escala
nacional como internacional, apontam para uma EA construída como um processo ao longo da vida que garanta a integração das diferentes dimensões vitais para o desenvolvimento
dos aprendentes, como pessoas e como cidadãos: o acesso aos
bens culturais, o conhecimento do património cultural da humanidade, a aquisição das bases cognitivas e metodológicas
para novas aprendizagens, competências técnicas, organizativas e comportamentais visando actividades laborais, conteúdos e expressões de cidadania, etc. Em suma, exige-se hoje à
EA (ou à EFA) que faça de todas as pessoas adultas cidadãos
mais bem informados, mais activos, mais participantes, mas
também que lhes facilite uma aquisição ou produção de competências necessárias à inserção no mercado de trabalho, não
esquecendo que esta valência é hoje fundamental para o bem-
estar de qualquer pessoa. De facto, ninguém poderá assumir
plenamente a sua situação de cidadão se viver desempregado,
sem meios de subsistência. É que actualmente os assalariados
por conta de outrem são a grande massa da população activa,
o que não acontecia há uns 50-60 anos. Por isso, a formação para o trabalho e para o emprego ganhou ultimamente
uma dimensão fundamental e tem que ser vista como uma
das componentes essenciais da EA (ou EFA) contemporânea.
7 – A Educação-Formação de Adultos
face ao retrocesso social provocado pelo
“neo-liberalismo”
Temos que constatar que se desenvolveu também uma
mutação muito radical desde os tempos em que vigorava, em
muitos países do hemisfério norte, o Estado-Providência até à
situação que tem sido dominante nos últimos 15 anos: uma
hegemonia tentacular e esmagadora da ideologia dita neoliberal (que aliás de liberal não tem nada), que determinou a
”rescisão do Contrato Social”, considerando que o Estado não
tem a obrigação de garantir direitos sociais e económicos (os
chamados direitos humanos de 3ª geração), e deles desapossando os cidadãos.
O direito ao trabalho extinguiu-se assim praticamente,
o Estado deixou de garantir o pleno emprego e o emprego
/ desemprego passaram a considerar-se sobretudo como matérias de responsabilidade individual. Neste novo contexto,
o conceito de empregabilidade (que substituiu entretanto o
de direito ao trabalho) remete agora para a responsabilização
pessoal, devendo cada qual assegurar a sua empregabilidade.
A perspectiva individualista substituiu assim a perspectiva
tendencialmente colectivista em que cada comunidade se responsabilizava pelos seus cidadãos. Hoje em dia, caberá a cada
trabalhador ou candidato a trabalhador, e ao longo de toda
a sua vida, garantir condições para ser e manter-se “empregável”. Por outro lado, os empregos deixaram de ser empregos
para toda a vida. Mutações diversas vão provocando a extinção
de muitas profissões. Daqui por 15 anos, mais de metade das
actuais profissões não existirão, mas surgirão outras. Perante tais incertezas, há que antecipar mudanças e actualizações,
tanto de um ponto de vista técnico e tecnológico, como em
termos de conhecimentos e de informação, para que se possam planear alterações da carreira e garantir empregos, pois a
única certeza é a de um itinerário de vida e profissional muito
diversificado, em que alternarão períodos de actividade remunerada e períodos de ausência de emprego e onde cada pessoa
terá ocupações muito diversas ao longo da sua vida, incluindo
intervenções cívicas e solidárias de natureza voluntária.
Contudo, é preciso frisar que saber gerir a incerteza e as
mutações técnicas / tecnológicas não se reduz a uma simples actualização de competências técnicas, pois implica uma
construção da personalidade no sentido de aceitar e controlar
a instabilidade. Uma tal contingência exige, de facto, uma estrutura mental, psicológica e moral preparada para a mudança
e para a reacção imediata e ajustada, ao saltar de repente para
outra profissão num sector ou num país diferente. Para além
de atitudes pessoais e comportamentos sociais propícios à
mudança, serão imprescindíveis, por exemplo, o conhecimen-
AO LONGO DA VIDA 43
to de línguas e a capacidade de conviver em culturas – nacionais ou institucionais - diversificadas. Abertura e polivalência
são atitudes exigidas aos cidadãos em geral e, em especial, aos
novos (mas também aos mais velhos) trabalhadores, os quais
devem estar preparados e prepararem-se em permanência para
o novo, o incerto, o inédito.
Em consequência, a EFA tornou-se hoje, mais do que nunca,
uma necessidade imperiosa para todos, em todos os quadrantes da sociedade e durante toda a vida. Porém, contrariamente a
algumas orientações explícitas ou latentes em estratégias europeias ou nacionais, a Educação-Formação de Adultos não pode
ser vista exclusivamente numa perspectiva do trabalho, apesar
deste ser uma valência incontornável. Nas circunstâncias actuais, não é aceitável minimizar ou ignorar as demais finalidades:
desenvolvimento e bem-estar pessoal, adesão a valores éticos,
fruição cultural, expressão estética, consciência cívica, cidadania
activa, entre outras. Uma EFA abrangente (não necessariamente
em cada uma das actividades singularmente organizadas, mas
ao longo do contínuo de aprendizagens concretizadas ao longo da vida) é cada vez mais necessária, em minha opinião, às
sociedades modernas. Isto, à medida que o processo de globalização se intensifica e que a hegemonia do capital financeiro a
nível planetário vai provocando uma crescente desumanização
e a erosão das democracias e da cidadania.
Quando o capital financeiro se torna efectivamente hegemónico, não pode haver uma verdadeira política, nem pode
existir uma real democracia. Tudo passa a ter um preço, toda
a vida social e económica é orientada para a procura do lucro
– o máximo e o mais rápido. Nesta perspectiva economicista,
toda a sociedade se transforma num imenso mercado. E não
se pode ser cidadão de um Mercado. Contudo, a partir da crise
(inicialmente financeira e seguidamente económica) desencadeada em Setembro de 2008 pelas hipotecas “subprime”, nos
Estados Unidos, a ideologia neoliberal, de bases supostamente
científicas, e as políticas e práticas a que deu origem foram refutadas, na sua própria essência, pelos efeitos reais que provocaram a nível mundial. Como saída possível para as situações
insustentáveis entretanto provocadas por esta forma extrema
e radical de capitalismo, poderão emergir num futuro próximo sociedades pluralistas e mais abertas, finalmente libertas
da opressão do “pensamento único” e em antítese ao recente
anúncio do “fim da história”. Há novas sociedades a construir,
sem ideologias nem práticas totalitárias, que fomentem e propiciem alternativas, onde se dê margem e apoio à liberdade,
criatividade, experimentação e invenção social, onde se procurem e testem outras maneiras de produzir, de consumir, de
viver em sociedade. A economia é sem dúvida importante, vital
até para a vida em comunidade, desde que seja colocada no seu
devido lugar, o que passa por reactivar as dimensões “ética” e
“política” que eram dominantes entre os primeiros pensadores
desta disciplina (Adam Smith, David Ricardo, John Stuart Mill,
entre muitos outros). Assim, em vez de estarem as pessoas (e
outras formas de vida, a Biosfera) inteiramente ao serviço da
economia, situação que originou os impactos social e ecologicamente devastadores hoje bem visíveis, deverá colocar-se a
economia ao serviço das grandes finalidades da sociedade política, do bem-estar colectivo e da felicidade das pessoas. Com
este fim em vista, acredito que existem nos dias de hoje, face á
44 APRENDER
ARTIGO
crise actual, condições propícias para que se debata e se afirme
uma educação direccionada para a construção em comum de
uma melhor sociedade, uma melhor economia e para se promoverem verdadeiras sociedades educadoras. Urge recuperar
a condição de cidadão dentro da sociedade e a dimensão de
humanidade na pessoa humana e, para isso, a Educação-Formação de Adultos, na sua acepção holística e humanista, tem
um papel fundamental a desempenhar.
8 – Algumas orientações e pistas para a EducaçãoFormação de Adultos no Portugal de hoje
Relativamente a Portugal, será oportuno referir aqui o estudo
promovido pela Associação de Desenvolvimento “Tese” e apresentado muito recentemente (28.06.2010) em Seminário na
Fundação Gulbenkian, onde se sublinha a combinação, numa
grande parte da população portuguesa, de uma situação aguda
de carência material com uma extrema fragilidade do chamado
capital social. Os autores identificaram diversos factores socialmente negativos, como “incapacidade de pensar colectivamente
o futuro”, “desconfiança nos outros e nas instituições”, “diminuta participação nas organizações de índole mais societária”,
e constataram que um terço dos inquiridos se sente “às vezes
ou frequentemente” “como se não fizesse parte da sociedade”.
De facto, ainda mais do que crescimento económico, expresso em taxas de PIB, a sociedade portuguesa aparenta precisar acima de tudo de coesão, de uma consciência generalizada
do que é e de como deve promover-se o espaço e o serviço
público, como bens comuns. A sociedade portuguesa necessita, pois, de uma dinâmica social forte que, mobilizando múltiplos e diversos quadrantes, privados e públicos, locais ou
regionais, permita pressionar no sentido de construção de um
contexto cultural, legal e organizacional mais propício à cidadania e à educação. Um tal fluxo de energia social, embora
devendo exercer-se fundamentalmente “de baixo para cima”,
deveria ser considerado como um real ‘projecto de sociedade’
e, como tal, desenvolvido em estreita cooperação entre os poderes públicos e os cidadãos.
Por outro lado, para promover a adesão de uma grande
maioria das pessoas adultas e agir efectivamente como um instrumento de inserção social, a Educação-Formação de Adultos
não pode limitar-se a abrir as suas portas a novos públicos.
Devem as respectivas entidades e agentes saber inserir-se directamente nos processos em curso, de cunho pessoal e social,
assumindo – como dimensões intrínsecas ao processo de formação e não de uma forma marginal – as funções de animação, intervenção e acompanhamento, relativamente à:
(a) concepção e concretização, à escala individual, de projectos de vida / percursos personalizados de educaçãoformação;
(b) concepção e concretização, à escala colectiva, de projectos
de desenvolvimento social e / ou territorial, ou de promoção da qualidade de vida (inseridos, sempre que existam,
em planos locais de educação e formação para a inserção).
Nesta perspectiva, entre as condições para assegurar uma
maior participação por parte das pessoas adultas menos qualificadas e mais marginalizadas em actividades de natureza educativa, devem sublinhar-se as seguintes:
- a inserção da Educação-Formação de Adultos em dinâmicas
e projectos que motivem fortemente os adultos (iniciativas
sociais, culturais, de expressão artística, de lazer, desportivas ou de desenvolvimento socioeconómico, de criação do
auto-emprego, etc.);
- a realização de um intenso trabalho a montante e a jusante
das acções de formação propriamente ditas (e daí o papel
essencial dos animadores, mediadores ou mentores como
agentes de sensibilização, motivação, orientação, comunicação e apoio pessoal);
- a elevação da auto-confiança, através, por exemplo, da
identificação e valorização das experiências, conhecimentos, competências e atitudes das pessoas adultas;
- a utilização de uma metodologia pró-activa (de outreach),
em que agentes de educação-formação vão ao encontro das
pessoas, onde elas residem, trabalham, se divertem, intervêm civicamente, etc., e procurando também acolhê-las e
orientá-las em espaços de convivialidade informal, num
contexto sócio-cultural onde elas possam transpor, se quiserem e quando o quiserem, o degrau para o patamar de
entrada em percursos de educação-formação;
- a adopção de uma abordagem de empowerment, que assegure aos participantes uma apropriação gradual do processo
de crescimento pessoal, através de uma participação activa nas decisões, tanto nos processos de intervenção social,
como nas acções mais específicas dirigidas a novas aprendizagens.
Em conclusão, é de sublinhar que a definição dos objectivos
da “instrução pública” apresentada por Condorcet, em finais
do século XVIII, continua a ser da maior actualidade: “oferecer
a todos os indivíduos da raça humana os meios para proverem
às suas necessidades e bem-estar, conhecerem e exercerem os
seus direitos e compreenderem e cumprirem os seus deveres; a
oportunidade de aperfeiçoarem as suas competências, tornando-se capazes de desempenhar as funções sociais para que têm
o direito de ser chamados e de desenvolver a gama completa
de faculdades que lhes concedeu a Natureza; e, ao fazer isto,
estabelecer entre os cidadãos uma verdadeira igualdade que
torne real a igualdade política reconhecida por lei”.1 n
* Este artigo esteve na base de duas comunicações orais
apresentadas, sucessivamente, no XII Congresso Internacional
de Formação para o Trabalho Norte de Portugal / Galiza
(Guimarães, 8-9 de Julho de 2010) e I Congresso Internacional
da Cátedra UNESCO de Educação de Jovens e Adultos (20-23
de Julho de 2010, João Pessoa, Paraíba).
1. Condorcet, “Rapport et projet de décret sur l’organisation générale de l’instruction publique”, L’instruction publique en france pendant la Révolution, pp. 105-51,
Paris, Klincksieck (in Bernard Jolibert, “Condorcet”, Prospects: the quarterly review of comparative education. Paris, UNESCO: International Bureau of Education),
vol. XXIII, no. ½, 1993, pp. 197-209.
AO LONGO DA VIDA 45
artigo
AS UNIVERSIDADES
POPULARES
EM PORTUGAL
NA I REPÚBLICA
Texto de António Simões do Paço # Ilustrações de Luis Miguel Castro
46 APRENDER
O ensino popular, uma preocupação de republicanos,
anarquistas e socialistas ainda nos tempos da monarquia,
materializou-se, durante a I República, na criação de
universidades populares.
A
formação sindical e operária na
Europa teve início em finais do
século XVIII, «com a preocupação prática de dar instrução aos trabalhadores adultos, ou seja, com objectivos técnico-profissionais, havendo para
o efeito cursos nocturnos», como diz
Maria Manuela Rodrigues, do Centro
de Investigação em Educação da Universidade de Lisboa. «No final do século
seguinte, este movimento de educação
toma duas vertentes: por um lado, há
a corrente que mantém o objectivo de
educar o povo e que resulta no nascimento das universidades populares já
no século XX; a outra corrente desenvolveu-se separadamente e centrou as suas
actividades nas necessidades de formação dos adultos e da promoção profissional.»1
Portugal não foi alheio a esse tipo de
preocupação. «O ambiente cultural português do final do século XIX e primeiras décadas do século XX foi propício ao
desenvolvimento das preocupações com
a educação popular», escreveu Joaquim
Pintassilgo, professor auxiliar do Instituto de Educação da Universidade de
Lisboa2. «A crença de raiz positivista no
papel decisivo da educação e da cultura
como fonte de progresso e regeneração
social, o investimento político republicano, considerado inseparável do combate contra o analfabetismo, e o labor
cultural de pendor iluminista da maçonaria são algumas das condições que
favorecem a afirmação de um discurso
que coloca o povo e a sua educação no
centro do debate político e social. A educação e a cultura surgem, assim, como
peças chave da formação de um cidadão
consciente e participativo e da construção de uma sociedade nova, sem lugar
para a ignorância e para os preconceitos,
crença esta que se torna uma das grandes referências míticas desse momento
histórico e cultural.»
A minoria culta do País fez a «traumática descoberta», através das estatísticas publicadas na segunda metade do
século XIX, de que «a esmagadora maioria do povo português nunca havia frequentado a escola, não sabendo ler nem
escrever». A taxa de analfabetismo da
população com idades iguais ou superiores a sete anos era de 78% em 1878,
e irá baixar apenas para 62% em 19303.
Respondendo a essa necessidade social de uma população trabalhadora
mais instruída e também às preocupações culturais e políticas de republicanos, anarco-sindicalistas, socialistas e,
um pouco mais tarde, também católicos
– após as encíclicas de Leão XIII, nomeadamente a Rerum Novarum (1891) e a
Graves de Communi (1901), preocupados
com o avanço entre as classes populares das ideias socialistas –, emerge entre
nós, como noutros países da Europa, o
movimento da educação popular, «caracterizado pela multiplicidade das iniciativas e pela diversidade, quando não
pelo antagonismo político-ideológico
dos respectivos promotores e agentes:
cursos nocturnos e escolas móveis, animados por associações de diferentes
matizes ideológicos, pelo estudantado,
ou pelas autoridades políticas, círculos
católicos operários, organizados pela
Igreja Católica ou por militantes laicos
na perspectiva da difusão da doutrina
social cristã.»4
Surgem então as universidades livres
e populares, associações dedicadas à
educação popular e à divulgação científica e cultural.
A Academia de Estudos Livres –
Universidade Popular
Uma das primeiras é a Academia de
Estudos Livres, fundada em Lisboa em
1889, que se define, a partir de 1904,
como Universidade Popular. Assegura
o funcionamento da Escola Marquês
de Pombal, que possui ensino diurno e
nocturno, este último destinado a adultos. Dedica-se também à edição de publicações, com destaque para os Anais
da Academia de Estudos Livres - Universidade Popular (1912-1916), e incluindo o
periódico estudantil A Mocidade (1910-
AO LONGO DA VIDA 47
Algumas associações de ensino popular
1889 – É fundada, em Lisboa, a Academia de Estudos
Livres, que se define, a partir de 1904, como Universidade
Popular. Assegura o funcionamento da Escola Marquês
de Pombal, que possui ensino diurno e nocturno, este
último destinado a adultos. Dedicou-se também à edição
de publicações, com destaque para os Anais da Academia de
Estudos Livres - Universidade Popular (1912-1916), e incluindo
o periódico estudantil A Mocidade (1910-1911), dedicado à
educação moral e cívica dos jovens alunos.
1895 – É fundado em Lisboa o Instituto 19 de
Setembro. António Cabreira, seu criador, incluiu-o entre os
antecedentes da Universidade Livre para Educação Popular,
embora os seus Estatutos afirmassem que se destinava à
«educação da mocidade», não à educação de adultos.
1912 – No Porto, é fundada por Jaime Cortesão a
Renascença Portuguesa. Com filiais em Porto e Coimbra
teve como principal órgão a revista A Águia e, mais tarde,
o quinzenário Vida Portuguesa. Nos seus Estatutos, dizia-se
destinada a «promover a maior cultura do povo português,
por meio da conferência, do manifesto, da revista, do livro,
da biblioteca, da escola, etc.». Os fundadores desta associação
promoveram a primeira Universidade Popular no Porto, cuja
primeira lição foi proferida em 17 de Junho de 1912. A 24
de Novembro desse ano, foi inaugurada em Coimbra outra
Universidade Popular. Em ambas efectuaram conferências e
deram lições Jaime Cortesão, Leonardo Coimbra, Fidelino de
Figueiredo, Teixeira de Pascoaes e outros.
1912 – Em 28 de Janeiro, é fundada a Universidade
Livre para Educação Popular de Lisboa, por iniciativa de
Alexandre Ferreira. Propunha-se «promover, tanto quanto
possível, a educação moral, social, estética e científica
do povo português» e ir até «aos centros fabris, junto das
oficinas, às aldeias, aos pequenos e grandes povoados,
realizando lições, conferências, palestras e leituras».
Entre Outubro de 1912 e Julho de 1913, 19 946 pessoas
assistiram às suas lições e conferências e entre Janeiro de
1912 e Janeiro de 1914 publicaram-se 26 obras. Entre as
suas publicações contava-se o seu Boletim Mensal. Além das
quotas dos sócios, a Universidade Livre de Lisboa obtinha
receitas das vendas dos volumes publicados e ainda de
subsídios da Provedoria Central da Assistência Pública e da
Câmara Municipal de Lisboa.
1919 – A Universidade Popular Portuguesa é considerada
de utilidade nacional, sendo aprovados novos estatutos.
Nestes, determina-se que a sua sede seja fixada em Lisboa,
podendo ter delegações em diferentes pontos do País.
O Estado passa a conceder-lhe um subsídio mensal de
400$000 «destinado ao desenvolvimento da sua biblioteca,
dos seus programas cinematográficos educativos e
publicações de vulgarização».
48 APRENDER
1911), dedicado à educação moral e cívica dos jovens alunos.
Os dirigentes da Academia, escreveu Joaquim Pintassilgo,
«estavam bem cientes de qual o papel a desempenhar pelas
universidades populares e qual a sua especificidade. Estas tinham em vista a educação permanente dos adultos, não a
sua alfabetização nem a educação escolar dos jovens. Os seus
meios de acção eram, preferencialmente, as conferências, os
cursos livres, as visitas de estudo e a biblioteca, ou seja, a vulgarização científica e cultural, não as aulas tradicionais»5.
No artigo de apresentação da revista Anais da Academia de
Estudos Livres - Universidade Popular, os responsáveis desta afirmam taxativamente: «O alvo é – a educação do povo»6.
O tipo de actividades e a diversidade dos alunos que frequentavam a Academia/Universidade Popular estão patentes
no ‘Parecer do Conselho Fiscal’ relativo ao período 1912-1913,
onde é feita uma avaliação muito positiva do trabalho realizado:
“Realizou 12 conferências, 6 visitas de estudo, 2 sessões solenes,
uma sessão de propaganda e outra de arte, 1 concerto musical, 2
festas da árvore, 1 festa escolar e 1 passeio fluvial...
A importância dessas matrículas para 12 disciplinas em aulas
nocturnas, avalia-se pelo número de 522 com uma frequência de
341 alunos, dos quais 256 do sexo masculino e 85 do sexo feminino,
exercendo diversas profissões em número de 29. Além disso, a aula
diurna de instrução primária tem 114 matrículas”.7
A Universidade Livre para Educação Popular
Outra grande iniciativa dedicada sobretudo à educação de
adultos foi a Universidade Livre para Educação Popular. Fundada em Janeiro de 1912 por um grupo de personalidades republicanas à frente das quais estava Alexandre Ferreira, «numa
sessão pública no velho Coliseu da Rua da Palma e com a comparência do Presidente da República Dr. Manuel d’Arriaga»8,
propunha-se «promover, tanto quanto possível, a educação
moral, social, estética e científica do povo português» e ir até
«aos centros fabris, junto das oficinas, às aldeias, aos pequenos
e grandes povoados, realizando lições, conferências, palestras
e leituras». Entre Outubro de 1912 e Julho de 1913, assistiram
às suas lições e conferências19 946 pessoas, e entre Janeiro de
1912 e Janeiro de 1914 publicaram-se 26 obras.
Na sua sede, que começou por situar-se provisoriamente na
Rua dos Fanqueiros, 267, 1.º esquerdo, e mais tarde passaria
pelo Poço do Borratém, 13, 1.º D, e pela Praça Luís de Camões, 46, 2.º, sempre em Lisboa, ministravam-se cursos que
iam da Literatura à Modelagem, passando pela Álgebra. Por
exemplo, no ano lectivo de 1914-15, além dos já referidos,
havia cursos de Francês, Inglês, Alemão, Ciências Naturais,
Química, Matemática Elementar, Matemática Comercial, Desenho, Geografia, Caligrafia, Taquigrafia, Dactilografia e Escrituração Comercial. Houve 828 inscrições em todos estes cursos, com médias de presenças na ordem dos 61,3% em Francês
do 1.º ano (89 presentes em média para 145 inscritos), 50%
em Dactilografia (14 presentes em média para 28 inscritos)
ou uma média mais fraca de 25,6% em Escrituração Comercial (22 presenças em média para 86 inscritos). Estes cursos
eram frequentados por muitos sectores profissionais, onde se
artigo
destacam, ao longo de vários anos lectivos, os empregados do
comércio, seguidos dos empregados de escritório e das domésticas. Eram ministrados por mestres conceituados como
Câmara Reis, António Ferrão, Albino Vieira da Rocha, João de
Barros, Rodrigo de Castro, Antero Seabra, Alfredo Appell, Manuel de Vasconcellos, Bernardo Vila Nova, Paulo Dálannoy,
Teófilo Braga, Faria de Vasconcelos, Luciano Ribeiro, António
Maria Pires, António Sérgio e outros9.
Um dos fracassos da Universidade Livre foi a experiência
da sua extensão a outras regiões do País. Tentativas como a de
implantá-la em Leiria, logo no ano lectivo de 1912-13, não
tiveram continuidade.
A Universidade Livre promoveu a leitura através da criação
de bibliotecas: na sua sede e nos jardins públicos de Lisboa, a
partir de 1922, iniciativa que terá atraído muitos milhares de
leitores. Também promoveu a criação de bibliotecas infantis,
com uma selecção de textos por idades e próprios para crianças até á 4.ª classe. Publicava folhetos e editou regularmente
o seu Boletim Mensal.
Além das quotas dos sócios, a Universidade Livre de Lisboa
obtinha receitas das vendas dos volumes publicados e ainda
de subsídios da Provedoria Central da Assistência Pública e da
Câmara Municipal de Lisboa.
O golpe militar de 28 de Maio de 1926 veio dar um profundo golpe em iniciativas como as universidades populares.
Apesar disso, «em 1930 ainda se proferiam conferências em
Lisboa sob a égide da Universidade Livre»10.
Com todas as limitações que sempre tiveram os movimentos associativos e cooperativos em Portugal, talvez se possa no
entanto concluir, como o faz Rogério Fernandes em relação à
Universidade Livre de Lisboa11, que as universidades populares em Portugal no período da República colmataram «uma lacuna grave no sistema português de ensino e [exerceram] uma
função supletiva de inegável projecção entre os alfabetizados
ou insuficientemente escolarizados». n
1 Maria Manuela P. F. Rodrigues, ‘A Educação do Operariado no Dealbar
do Século XX’, síntese de um capítulo da sua tese de doutoramento,
dedicada ao ensino primário na 1.ª República no Barreiro, defendida
em 2007. Disponível em: http://web.letras.up.pt/aphes29/data/5th/
MariaManuelaRodrigues_Texto.pdf. Acesso em: 11 Dez. 2010.
2 Joaquim Pintassilgo, ‘Imprensa de Educação e Ensino, Universidades
Populares e Renovação Pedagógica’, in Cadernos de História da
Educação, Vol. 5 (2006), Uberlândia (Minas Gerais), Brasil, p. 83.
3 Joaquim Pintassilgo, «Analfabetismo e educação popular», Público, 31
de Agosto de 2010.
4 Rogério Fernandes, Uma Experiência de Formação de Adultos na 1.ª
República. A Universidade Livre Para Educação Popular 1911-1917, Lisboa:
Câmara Municipal de Lisboa, 1993, p. 9.
5 Joaquim Pintassilgo, ‘Imprensa de Educação e Ensino, Universidades
Populares e Renovação Pedagógica’, in Cadernos de História da
Educação, Vol. 5 (2006), Uberlândia (Minas Gerais), Brasil, p. 86.
6 «Ao público» (1912). Anais da Academia de Estudos Livres – Universidade
Popular, 1-2, 1. Citado por Joaquim Pintassilgo in ‘Imprensa de
Educação e Ensino…’, p. 85.
7 Parecer do Conselho Fiscal (1914). Anais..., 9-10, 319. Citado por
Joaquim Pintassilgo in ‘Imprensa de Educação e Ensino…’, p. 86.
8 Texto anónimo facultado a Rogério Fernandes por José Gomes
Ferreira, in Rogério Fernandes, op. cit, p. 123.
9 Rogério Fernandes, op. cit, pp. 123-124.
10 Idem, op. cit, p. 90.
11 Idem, op. cit, p. 92.
A Universidade
Livre promoveu
a leitura através
da criação de
bibliotecas: na
sua sede e nos
jardins públicos
de Lisboa, a partir
de 1922.
Para saber mais
Bandeira, Filomena (1994).
A Universidade Popular Portuguesa
nos anos 20. Os intelectuais e a
educação do povo: entre a salvação
da República e a revolução social.
Dissertação de Mestrado. Lisboa:
Faculdade de Ciências Sociais e
Humanas – Universidade Nova
de Lisboa.
Fernandes, Rogério (1993).
Uma experiência de formação
de adultos na 1ª República. A
Universidade Livre para Educação
Popular. 1911-1917. Lisboa:
Câmara Municipal de Lisboa.
Marques, Maria Gracinda
(1999). As Universidades Livres e
Populares portuguesas em Coimbra
e Porto: dos finais do século XIX
à década de 30. Dissertação de
Mestrado. Braga: Universidade
do Minho.
Neves, Marlène (1997).
As Universidades Populares
Portuguesas no seu período áureo
– 1ª República. Dissertação
de Mestrado. Braga: Instituto
de Educação e Psicologia –
Universidade do Minho.
Pintassilgo, Joaquim (2006).
‘Imprensa de Educação e
Ensino, Universidades Populares
e Renovação Pedagógica’, in
Cadernos de História da Educação,
Vol. 5 (2006), Uberlândia
(Minas Gerais), Brasil.
Sampaio, José Salvado
(1975). O ensino primário. 19111969. Contribuição monográfica.
Vol. I – 1.º Período. 1911-1926.
Lisboa: Instituto Gulbenkian de
Ciência – Centro de Investigação
Pedagógica.
AO LONGO DA VIDA 49
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Artigo
A tradição radical e a tradição respeitável moldaram a história da Educação de Adultos na Escócia.
A realidade poderá ter sido mais complicada do que o que esta simples distinção implica, mas este
continua a ser um ponto de partida útil.
Educação
de Adultos
na ESCÓCIA:
PASSADO
E PRESENTE
Texto: Jim Crowther e Ian Martin, Universidade de Edimburgo
Tradução: Daniela Silveira
A
distinção que por vezes é feita entre as tradições
“radicais” e “respeitáveis” na educação de
adultos na Escócia (Bryant, 1984) enfatiza
a importância do objectivo ideológico da
abordagem à história da educação de adultos e
do seu estado actual. A tradição radical refere-se à educação
de adultos baseada num currículo voltado para a mudança
política e social, enquanto que a tradição respeitável descreve
a provisão voltada principalmente para o desenvolvimento
pessoal ou para o progresso individual. A realidade poderá
ter sido mais complicada do que o que esta simples distinção
implica, mas continua a ser um ponto de partida útil para
analisar a educação de adultos.
As raízes da tradição respeitável reportam-se à importante
influência do Calvinismo e Presbiterianismo Protestantes. Os
ideais de economia, disciplina e auto-melhoramento, associados a estas crenças religiosas, geraram uma cultura que apoiava a educação como forma de adquirir a salvação espiritual e o
progresso material – bem como uma maior apreciação da cultura e das artes. A educação sempre teve um valor elevado na cul-
AO LONGO DA VIDA 51
tura escocesa que, historicamente, para os adultos, assumiu a
forma de aprendizagem autodidacta e de melhoramento mútuo
(Cooke, 2006). Uma versão secular e institucionalizada desta
cultura de auto-ajuda foi evidente no crescimento dos Institutos
de Mecânica no final do século XVIII, que eram essencialmente
voltadas para o melhoramento da compreensão científica dos
artesãos competentes, e o seu aparecimento na Escócia levou
ao seu crescimento por todo o Reino Unido no século XIX.
A tradição radical estava ligada ao crescimento da ideologia
socialista nos séculos XIX e XX. O movimento de mudança social
e política forneceu uma forma “pronta a usar” de educação de
adultos, para uma acção política e social que atingiu um eleitorado de classe média alargado e em desenvolvimento, que
tomava consciência de si mesmo como classe social. Só no início do século XX, com a força crescente dos partidos políticos
radicais, é que as organizações educativas se desenvolveram
para apoiar as lutas do movimento laboral (Crowther, 1999). Na
década de 1920, as Universidades Trabalhistas, inspiradas no
comunismo, forneceram uma primeira tentativa sistemática de
provisão educativa radical para a classe trabalhadora, baseada
num currículo inspirado no marxismo. O objectivo era equipar
intelectualmente os organizadores no momento da produção,
para desempenharem o seu papel na liderança da revolução
política que se aproximava. A organização rival, a Associação
Educativa de Trabalhadores (WEA), fundada em 1903, adoptou
uma ideologia e um currículo mais alargados, mas também estava voltada para a educação dos trabalhadores no sentido de
se tornarem líderes sociais e políticos.
Por outro lado, a tradição respeitável na primeira metade
do século XX estava ligada ao crescimento lento da provisão de
alargamento da universidade – uma manta de retalhos de aulas
de educação liberal de adultos, tempos livres e cursos baseados em interesses, fornecidos essencialmente pelas seculares
Universidades de Glasgow, Edimburgo, St. Andrews e Aberdeen
– e aulas de educação de adultos das autoridades locais, que
cobriam um leque de temas similar, embora menos intelectual. A outra perspectiva importante da provisão educativa (ou,
mais especificamente, da formação) eram as “aulas nocturnas”,
que ofereciam cursos vocacionais certificados, especialmente
nas universidades de educação ao longo da vida. Em termos
estatísticos, provavelmente estariam mais pessoas envolvidas
na formação vocacional do que em todas as outras formas de
educação de adultos combinadas.
Na realidade, a sobreposição entre as tradições radical e
respeitável também é importante porque foram reformuladas e
reconfiguradas com a passagem do tempo, em parte devido ao
crescimento do estado social no século XX e em parte devido às
correntes de mudança das lutas sociais e políticas. O desenvolvimento da comunidade educativa na década de 1970 inspirouse nestas tradições distintas.
De acordo com as recomendações de Relatório Alexander, de
1975, Educação de Adultos: O Desafio da Mudança, a expansão
da provisão da educação de adultos pelas autoridades locais,
52 APRENDER
Só no início do século XX, com a
força crescente dos partidos políticos
radicais, é que as organizações
educativas se desenvolveram para
apoiar as lutas do movimento laboral..
em especial nas comunidades desfavorecidas, levou à criação
dos Serviços de Educação Comunitária, que combinou a educação de adultos, o desenvolvimento da comunidade e o trabalho
dos jovens num serviço integrado. O principal objectivo era alargar as oportunidades educativas aos “não-participantes” tradicionais, através da adopção de uma “abordagem de desenvolvimento comunitário”. O foco da intervenção era primariamente
o indivíduo, mas também havia a noção de que a educação de
adultos podia ser parte integrante do processo de mudança social, como indica a seguinte citação:
“A sociedade tem agora menos certezas acerca dos valores
que deve seguir e tolera um leque alargado. A liberdade individual para questionar o valor de práticas e instituições estabelecidas e de propor novas formas faz parte da nossa herança
democrática. Para manter esta liberdade, não devem ser disponibilizados recursos apenas para quem se enquadra, mas,
dentro da razoabilidade, ser disponibilizados a todas as pessoas
com objectivos educativos explícitos. As motivações de quem
providencia educação não têm necessariamente de se identificar com as motivações daqueles a quem é fornecida.” (Departamento Escocês de Educação 1975, 25)
O apoio oficial pela divergência e o seu valor para uma sociedade democrática encorajaram as ligações educativas aos
movimentos sociais, especialmente o movimento pacifista e o
movimento de mulheres, que ajudaram a revigorar o objectivo
social de organizações como a WEA. Para mais, a tradução das
ideias de Paulo Freire para inglês, na década de 1970, foi ao
encontro do novo ênfase nas lutas culturais e do papel da educação como recurso para os grupos explorados e oprimidos.
O Projecto de Educação de Adultos, que foi estabelecido em
Edimburgo em 1979, foi uma tentativa de traduzir as ideias de
Freire sobre a acção cultural no contexto escocês (Kirkwood e
Kirkwood, 1989). Esta iniciativa da educação de adultos baseada na comunidade atraiu um considerável interesse internacional durante os anos, e teve uma pequena mas importante
contribuição para o crescimento da delegação e do movimento
democrático na década de 1990, e que eventualmente levou ao
estabelecimento do novo Parlamento Escocês em 1999.
Apesar disto, a avaliação geral deverá reconhecer a natureza
fragmentada e localizada da tradição radical na educação de
adultos. O estatuto marginal da educação comunitária na política de segurança social criou condições em que a experimenta-
artigo
ção e a criatividade por vezes floresceram e em que abordagens
ideológicas diferentes e por vezes antagónicas co-existiram –
mas também limitou o seu impacto geográfico e institucional.
No geral, a educação de adultos fora da provisão formal temse caracterizado pela indiferença oficial, sendo que a grande
preferência é dada às formas institucionais e credenciadas da
aprendizagem e da educação. A ênfase política de um modelo
essencialmente economista e instrumental de educação ao longo da vida para pessoas no mercado de trabalho também faz
parte desta tendência (Crowther, 2006).
Apesar da relativa autonomia do Parlamento Escocês, a política padrão para a aprendizagem ao longo da vida através do
Reino Unido envolve a responsabilização dos indivíduos para
cuidarem de si mesmos e das suas famílias através da formação, em vez de depender da provisão da segurança social estatal (Martin, 2003). Por sua vez, isto teve um impacto marcante
na educação de adultos, no sentido em que a perspectiva fundamental que permeou o Relatório Alexander implicou uma visão construtivista do conhecimento, em que as pessoas aprendiam através da sua experiência e a educação era um recurso
para abordar os seus problemas individuais e colectivos. Em
contraste, o valor primário agora atribuído à aprendizagem ao
longo da vida é adquirir conhecimentos e capacidades instrumentais que serão “entregues” numa variedade de contextos e
formas. A ênfase em capacidades instrumentais conjuntas para
o trabalho, distintas de um currículo baseado nos interesses
das pessoas dentro das comunidades desempenha um importante papel naquilo que é visto como merecedor de aprendizagem e do tipo de sociedade que ambicionamos ser.
Outra característica deste novo contexto de políticas é a ênfase no papel da educação de adultos para promover a coesão
social, num contexto de desigualdades cada vez maiores (Tett,
2006). A educação de adultos tem de cumprir objectivos políticos muito controlados – para os quais existe financiamento
– ou deve, cada vez mais, operar numa cultura dominada por
valores de mercado. Por exemplo, a literacia de adultos é uma
prioridade política actual e recebeu recursos substanciais com
o objectivo de chegar aos 150.000 novos alunos na Escócia,
num período de cinco anos. A oferta é gratuita, e está a decorrer
um trabalho interessante e criativo. A consequência, no entanto, é que a educação de adultos sem a componente de literacia
tem falta de recursos e está muito dependente dos educadores
de adultos obterem subsídios a curto prazo, que têm uma duração e impacto limitados. É o caso do sector de voluntários em
particular, mas também da provisão das autoridades locais, em
geral. Para mais, as aulas para adultos providenciadas pelas
autoridades locais – que, a partir da década de 1970 começaram a chegar a um público mais alargado – são crescentemente direccionadas pelos critérios de mercado, o que significou
que os subsídios para grupos de desempregados ou com baixos salários foram eliminados ou que o valor das propinas aumentou. Os processos de mercado actualmente em efeito irão
servir para restringir e estratificar o corpo estudantil e minar o
progresso feito no sentido de providenciar um currículo variado,
aberto a um amplo leque de adultos.
A crescente participação, em termos de aumento do número de estudantes matriculados na educação superior, tem sido
uma parte importante da agenda política do Reino Unido. Isto
levou à emergência de serviços de apoio à aprendizagem, no
seio da educação superior e continuada, para possibilitar aos
estudantes lidar com o estudo académico e exigências de literacia. Sobre este tema, o que alguns educadores de adultos – especialmente profissionais de literacia – costumavam fazer nas
comunidades é agora providenciado pelas instituições formais.
Esta tendência é reforçar um modelo “respeitável” de progressão na educação de adultos, compreendida primariamente em
termos de aquisição de qualificações e credenciais educativas
formais, que estão sujeitas a inflação. Entretanto, um sentido
mais alargado do significado de progressão, ou um sentido enquadrado em interesses sociais e colectivos progressivos simplesmente já não faz parte da agenda.
Uma diferença notável na educação superior na Escócia,
quando comparada com o resto do Reino Unido, é que não existe qualquer tipo de pagamento de propinas (Paterson, 2000).
Os estudantes podem contrair empréstimos para pagar despesas de alojamento, que são subsequentemente liquidados
quando começam a ganhar um montante específico de ordenado. Apesar disto, a tendência geral do Reino Unido é a de os
custos da educação superior se terem afastado do Estado e
se terem aproximado dos estudantes e das suas famílias. Um
resultado bastante previsível é que a proporção de estudantes
da classe trabalhadora a entrar no ensino superior está em declínio. A natureza selectiva do sistema de educação não mudou
significativamente, porque os mecanismos do mercado simplesmente substituíram ou, mais provavelmente, reforçaram as expectativas sociais e culturais enquanto barreiras para a entrada
no ensino superior. A direcção é clara: é no sentido de um novo
tipo de uma respeitável educação de adultos, na qual a aprendizagem é motivada pelas necessidades da economia, e a coesão
social é organizada através de mecanismos de mercado.
Apesar do retrato traçado, as formas autónomas de uma
educação radical de adultos, ligadas a uma mudança social
e política, continuam a ser importantes – mesmo que muitos
educadores de adultos considerem difícil criar o espaço ou não
tenham os meios que justifiquem o estabelecimento dessas ligações. Existem algumas situações profundamente enraizadas,
tais como o contínuo défice democrático, a degradação ambiental, a experiência da globalização, a crise da segurança social, a
política internacional, e por aí fora, que estimulam activamente
a resistência e criam movimentos populares que aliam a educação de adultos e a acção colectiva (Crowther, Galloway e Martin,
2005). Existem ainda educadores comunitários e de adultos
que procuram manter uma posição ideológica radical no seu
trabalho, mas têm de negociar e ceder no que podem fazer devido às restrições de um ambiente político hostil. No contexto
dos cortes no sector público, isto é cada vez mais difícil. n
AO LONGO DA VIDA 53
“VÊ LÁ,
COMPANHEIRO,
VÊ LÁ COMO
VENHO EU”
Em Aljustrel, o Grupo Coral do Sindicato Mineiro preserva
as ricas tradições da sua profissão e também da terra.
Texto António Simões do Paço # Fotografias Paulo Figueiredo
R
egularmente surgem notícias de acidentes graves em minas. Em 2001 morreram 36 mineiros
na Ucrânia e 40 na Colômbia. Em 2005, 214 na
China, no terrível acidente de Sunjiawan. Em 19
de Novembro, uma explosão de grisu na mina de
Pike River, na Nova Zelândia, deixou 29 mineiros
no fundo da mina. Nova explosão em 24 de Novembro pôs fim
às esperanças de poder resgatar com vida esses 29 mineiros.
Porém, o salvamento dos 33 mineiros isolados dentro dos túneis da mina de S. José, na região de Atacama, desde a primeira semana de Agosto deste ano, completado na madrugada de
14 de Outubro, com milhões de pessoas a assistir pela televisão
em todo o Mundo, fez mais que todos os outros para chamar a
atenção para a vida dos mineiros, para os seus perigos, mas
também para a sua cultura de coragem e resistência.
54 APRENDER
REPORTAGEM
AO LONGO DA VIDA 55
Quando o coro entoa o ‘Hino dos Mineiros’, é visível a força e a vibração que as suas
vozes robustas transmitem à assistência. Ninguém fica indiferente. E o orgulho na sua
profissão e no seu canto é também evidente nos rostos cinzelados dos elementos do coro.
Tradição preservada através do canto
Em Portugal, embora as condições de segurança sejam hoje
muito melhores que há anos – e que as existentes na China
ou no Chile – ainda a 1 de Setembro morreu um mineiro de 31
anos em Aljustrel. Foi lá que nos deslocámos para ver, na companhia do Grupo Coral do Sindicato Mineiro de Aljustrel, como
as tradições de uma determinada profissão, neste caso a dos
mineiros, e também da terra onde vivem, podem ser preservadas e divulgadas através do canto.
A mineração em Aljustrel é antiga de pelo menos dois milénios, tendo os depósitos de escórias do período romano sido
calculados em cerca de 450 000 toneladas. Porém, os achados arqueológicos recolhidos na área de Aljustrel apontam para
uma exploração pré-histórica dos chapéus de ferro dos filões
mais antigos – os de S. João e de Algares –, que continham altos
teores de cobre e prata e algum ouro.
Apesar desta história tão antiga, a exploração moderna da
mina inicia-se apenas em meados do século XIX, com a primeira
concessão da mina de S. João atribuída a Sebastião de Gargamala
em 1845. Data de então a construção do primeiro bairro mineiro.
A criação do primeiro sindicato mineiro em Aljustrel, a Associação de Classe dos Operários Mineiros de Aljustrel, data de
56 APRENDER
1898, por iniciativa de militantes anarco-sindicalistas. O reconhecimento da sua existência legal foi feito pelo Governo da
República em 13 de Fevereiro de 1912, após terem sido satisfeitas pelos sindicalistas diversas exigências de alterações aos
estatutos do sindicato.
O Coro dos Mineiros
A primeira documentação oficial relativa à criação do que
viria a ser o Grupo Coral do Sindicato Mineiro de Aljustrel é de
18 de Janeiro de 1926. O Grupo Coral tem hoje perto de uma
vintena de elementos e é um dos representantes do cante alentejano mais solicitados para actuar em feiras, festas, desfiles e
festivais, em Portugal e também no estrangeiro, tendo actuado
já em França, na Bélgica e em Espanha.
Ernesto Guerreiro Mestre, de 49 anos, natural de Aljustrel, é o
ponto, o ensaiador – desde a saída de José Figueira – e principal
figura do grupo coral. Esteve emigrado no Canadá e voltou. Começou a cantar em grupo numa tasca, o Feijão Branco, quando
tinha 14 anos. O dono da taberna corria com ele, mas Ernesto
insistia. «O grupo Coral foi fundado por doze teimosos», diz ele.
«Ao princípio chamava-se Os 12 Teimosos, depois é que entraram para o sindicato. Para estar nisto é preciso ser teimoso.»
António Manuel Mestre, de 52 anos, também de Aljustrel,
é irmão de Ernesto. Trabalha na Somincor, em Castro Verde.
Preocupa-o o facto de que «não há malta nova no coro. Gostam
de cantar e ouvir, mas é só naquela altura.»
Manuel Cavaco, de 73 anos, natural de Serpa, veio para Aljustrel ainda criança. Sempre trabalhou na mina. Está desde
1962 no coro. Concorda com António: «A malta nova não quer
porque isto é uma prisão.» Ernesto é da mesma opinião: «Os
outros chegam ao fim-de-semana e podem fazer o que querem,
não têm a obrigação de ensaiar, de ir cantar aqui ou acolá.» Mas
eles estão no coro porque gostam disso mesmo: de cantar, do
convívio, de viajar.
Mas não é só gostarem de cantar e conviver. Recentemente,
vi-os actuar duas vezes: nas festas de Carnide, em Lisboa, e na
feira de Castro Verde, no Alentejo. Quando o coro entoa o ‘Hino
dos Mineiros’, por exemplo, é visível a força e a vibração que as
suas vozes robustas transmitem à assistência. Ninguém fica indiferente. E o orgulho na sua profissão e no seu canto é também
evidente nos rostos cinzelados dos elementos do coro.
Este é composto quase só por mineiros, nascidos em famílias de mineiros. Uma excepção é Manuel Cantigas, o alto, que é
pedreiro. Com 70 anos, é natural de Aljustrel e um dos elementos mais antigos do coro. Leonel Palma, de 52 anos, natural de
Aljustrel, é encarregado de turno. O pai, que morreu há 9 anos,
de doença profissional, também foi mineiro, durante 34 anos.
Luís Maria Campos, de 76 anos, e há 26 anos no coro, também
foi mineiro. Francisco António Galope, há vinte e tal anos no
coro, foi mineiro 35 anos. À falta de gente mais nova, há os antigos que voltam. É o caso de Francisco Matias Curtinho, de 84
anos, também natural de Aljustrel. Trabalhou 17 anos na mina;
esteve no coro há vinte anos, depois saiu, e voltou há dois anos.
O trabalho como factor de identidade
O trabalho tem sido, ao longo da história, «não só um meio
de vida mas também um factor de identidade, e por isso foi cantado desde tempos imemoriais. Nas sociedades tradicionais, as
tarefas ligadas ao cultivo da terra (a sementeira, a monda, a colheita, a vindima), bem como o pastoreio e a pesca encontramse amplamente reflectidos no acervo musical», diz-nos Ruben
Vega Garcia, historiador asturiano, da Universidade de Oviedo.
«Não acontece o mesmo com os ofícios próprios da revolução
industrial, muito menos representados. A actividade mineira
fica a meio caminho entre ambos: originária da proto-história,
desenvolve-se extraordinariamente com a industrialização, requerendo grandes massas de trabalhadores que de forma natural se integram na classe operária emergente e frequentemente
constituem um sector destacado do movimento operário.»
As letras das modas do Grupo Coral do Sindicato Mineiro de
Aljustrel abordam temas comuns a outros grupos corais alentejanos, mas distinguem-se destes pelas referências ao trabalho
nas minas e à identidade de Aljustrel como vila mineira. ‘Aljustrel tem uma mina’ e Aljustrel vila mineira’ são, aliás, os títulos
de algumas dessas modas, junto com o ‘Hino do mineiro’, este
adaptação para português de uma canção asturiana de longa
AO LONGO DA VIDA 57
http://www.youtube.com/watch?v=WCWc3V0YK_s
http://www.youtube.com/watch?v=9rSuM5KXatg&feature=geosearch
tradição, que em Espanha é conhecida por dois nomes: ‘Santa
Bárbara Bendita’ (referindo-se à santa padroeira dos mineiros)
e ‘En el pozu Maria Luísa’ (em memória de um acidente ocorrido
neste poço).
A existência das minas e da comunidade mineira em Aljustrel transmitiu a identidade mineira à vila como um todo, embora a actividade mineira esteja hoje em declínio e ao longo de
mais de um século, como diz a antropóloga Inês Fonseca, «a
actividade industrial mineira, entre 1867 e 1993, [se realizasse] com sucessivas paragens da produção, provocando grande
instabilidade ao nível da mão-de-obra operária empregada nas
minas», e também «em complemento com a actividade agrícola,
sendo a mão-de-obra assalariada disponível no concelho utilizada ora numa ora noutra»1.
Essa identificação entre Aljustrel e os mineiros, ainda que
mitificada, na opinião de Inês Fonseca2, reflecte-se nas letras
do grupo coral, onde o ‘patriotismo’ local (e nacional) vai de par
com a expressão da luta contra a natureza e o desafio da morte,
e a acção colectiva para mudar as condições de vida e de trabalho. Disso são exemplo modas como ‘Aljustrel, vila mineira’:
«O mineiro sempre deu/ Tudo p’la nossa nação/ Arrancando os
minerais/ debaixo dum frio chão. / Aljustrel vila mineira/ No
Alentejo a brilhar/ Tens sempre a fama/ De toda a gente encantar. / Nós somos os botânicos/ Daquela linda roseira/ No Alentejo a brilhar/ Aljustrel, vila mineira», ou ainda ‘Aljustrel é meu
concelho’: «Aljustrel é meu concelho/ O meu povo é lusitano/
Nossa pátria é Portugal/ À beira do oceano. / Meu rico Baixo
58 APRENDER
Hino do mineiro
Nas minas de Aljustrel5
Trá, lá, lá, lá
Morreram muitos mineiros, vê lá
vê lá companheiro, vê lá
vê lá como venho eu.
Trá, lá, lá, lá
Trago a cabeça aberta
Trá, lá, lá, lá
que me abriu uma barrena, vê lá
vê lá companheiro, vê lá
vê lá como venho eu.
Trago a camisa rota
Trá, lá, lá, lá
e sangue de um camarada, vê lá
vê lá companheiro, vê lá
vê lá como venho eu.
Trá, lá, lá, lá
Santa Bárbara bendita
Trá, lá, lá, lá
padroeira dos mineiros, vê lá
vê lá companheiro, vê lá
vê lá como venho eu.
Trá, lá, lá, lá
Aljustrel
Tradição musical
Grupo Coral do Sindicato
Mineiro de Aljustrel.
Uma edição da Câmara
Municipal de Aljustrel.
Gravado em 27 de Setembro
de 2002.
REPORTAGEM
As letras das modas do Grupo Coral do Sindicato Mineiro de Aljustrel abordam temas
comuns a outros grupos corais alentejanos, mas distinguem-se destes pelas referências ao
trabalho nas minas e à identidade de Aljustrel como vila mineira.
Alentejo/ Beja é a capital/ À beira do oceano/ Nossa pátria é
Portugal. / Fui mineiro por natureza/ Vivi debaixo do chão/ Tirei
da terra a riqueza/ E dei produto à nação. / Trabalhei enquanto
pude/ Passei anos soterrado/ Estraguei minha saúde/ Por tanto ter trabalhado.»
Da literatura à música
Desde O Germinal de Émile Zola muitos têm sido os romances de temática mineira publicados. O mesmo se passa com
a música. Onde quer que haja uma bacia mineira, diz Ruben
Vega, «gera-se uma tradição musical que gira em torno do trabalho dos mineiros. Sob estilos muito diversos, que abarcam tanto
as formas locais do folclore, nascidas de ambientes populares
e adoptadas pelos próprios mineiros e pelos que os rodeiam,
como obras criadas por artistas que pegam nos mineiros como
motivo de inspiração e cantam a dureza do seu trabalho ou as
gestas das suas lutas. No Sudeste de Espanha desenvolveramse ao longo dos últimos séculos variantes específicas do canto das minas que constituem vários subgéneros do flamenco
perfeitamente reconhecíveis e que deram origem ao festival da
localidade mineira de La Unión [na província de Múrcia], cujo
prémio, consistente numa lâmpada de mineiro, é o mais antigo
e prestigioso que pode obter um artista do flamenco. A presença dos mineiros foi amplamente recolhida também no country
norte-americano, na tonada asturiana ou nos ritmos tribais sulafricanos, para citar alguns exemplos».
Outros artistas, de diferentes géneros, incluíram os mineiros
nos seus reportórios. É o caso dos U2, que ainda agora, em 25
de Novembro, dedicaram um seu mega-concerto em Auckland,
na Nova Zelândia, aos 29 mineiros que perderam a vida na
mina de Pike River. «As pessoas lidam com a dor de muitas maneiras», disse Bono, o líder da banda. «Na Irlanda cantamos.»3
Os acidentes na mina de Springhill, na Nova Escócia, em 1891,
1956 e 1958, levaram os U2 a incluir nalguns concertos a canção ‘Springhill Mining Disaster’. O terceiro acidente, em 1958,
em que morreram 74 mineiros, levou ao encerramento da mina:
«In the town of Springhill Nova Scotia/ Down in the dark of the
Cumberland mine/ There’s blood on the coal, and the miners lie
/ In roads that never saw sun or sky. (Na cidade de Springhill,
na Nova Escócia, / no escuro da mina de Cumberland / Há sangue no carvão, e os mineiros jazem / Em caminhos que nunca
viram o sol e o céu.)» Esta canção foi escrita originalmente por
Peggy Seeger (meia irmã do famoso Pete Seeger) com o nome
de ‘The Ballad of Springhill’. Também seria interpretada pelo
AO LONGO DA VIDA 59
No desfile dos grupos corais pelas artérias que separam o Jardim do Padrão da Praça da
Liberdade nesta vila alentejana, era notório o envelhecimento de muitos dos grupos. «Sem
tascas e tabernas, não aparecem novos elementos para o coro», diz-nos Ernesto Mestre.
grupo folk Peter, Paul, & Mary e pelos cantores folk irlandeses
Luke Kelly, membro dos The Dubliners, e por Pauline Scanlon. O
grupo canadiano Tanglefoot refere-se ao acidente de Springhill
na canção ‘Hard Work’, do álbum Dance like flames.
O primeiro êxito dos Bee Gees nos EUA narra um acidente
numa mina nova-iorquina e Johnny Cash e Bob Dylan, entre muitos outros, também dedicaram canções aos mineiros. A estrela
do country Loretta Lynn deu à sua autobiografia o título de uma
das suas canções mais conhecidas: Miner’s daughter. E o conhecido cantautor britânico Billy Bragg deu o subtítulo de Still
suitable for miners (Ainda apropriado para mineiros) à sua biografia. Billy Bragg canta, por exemplo, ‘A Miner’s Life’ (Vida de
mineiro): «A miner’s life is like a sailor on board a ship to cross
the waves/ Every day his life’s in danger, many ventures being
brave/ Watch the rocks, they’re falling daily, careless miners always fail/ Keep your hand upon your wages and your eye upon
the scale (A vida do mineiro é como a de um marinheiro a bordo
de um navio enfrentando as ondas/
Todos os dias a sua vida corre perigo, é preciso coragem
para as muitas tarefas/ Cuidado com as rochas, todos os dias
caem, o mineiro descuidado não consegue evitá-las/ Mantém
sempre um olho no teu salário e outro na balança.)»
60 APRENDER
As greves mineiras, como a 1984 e 1985 contra a reestruturação do sector pelo governo de Margaret Thatcher, tiveram o
apoio de letras de Elton John, Sting, UB40, Pulp, Dick Gaughan
e uma balada dos Oyster Band que musica um poema de Kay
Sutcliffe (mulher de um dos grevistas) intitulado «Coal, not dole»
(Carvão, não subsídio de desemprego), uma palavra de ordem
daquela greve que apelava à dignidade do trabalho face à humilhação dos subsídios que compensavam o fecho dos poços.
Um fenómeno semelhante, que inclui, junto à glosa de episódios de luta operária, a crítica à actuação dos sindicatos, a
nostalgia pelo passado e a frustração dos jovens perante a falta
de perspectivas de futuro uma vez encerrados os poços, deu-se
nas Astúrias nos últimos vinte anos, onde o hip hop e o heavy
metal passaram a conviver com as formas mais antigas como
a tonada asturiana e as mais comerciais como a balada, o poprock ou o folk.
E do futebol ao cinema
O francês Pierre Bachelet compôs em 1982 ‘Les Corons’,
que fala da vida nas cidades mineiras do Norte da França. Os
corons são os bairros de casas térreas unifamiliares típicas das
povoações mineiras, com um quintalinho nas traseiras, como
REPORTAGEM
evoca o refrão: Au nord, c’étaient les corons/ La terre c’était le
charbon/ Le ciel c’était l’horizon/ Les hommes des mineurs de
fond (A norte havia os corons/ A terra era o carvão/ O céu era
o horizonte/ Os homens, mineiros do fundo [da mina].) A história, a tradição e o orgulho de ser mineiro estão presentes em
toda a canção: Ils parlaient de 36 et des coups de grisou/ Des
accidents du fond du trou/ Ils aimaient leur métier comme on
aime un pays/ C’est avec eux que j’ai compris (Falavam de 364
e das detonações de grisu/ Dos acidentes no fundo do poço/
Amavam a sua profissão como se ama um país/ Foi com eles
que compreendi.) ‘Les Corons’ tornou-se um hino para os adeptos do Racing Club de Lens, a equipa de futebol desta cidade
do Norte da França, que o cantam em coro durante os desafios.
No filme O Brother, Where Art Thou? (Irmão, Onde Estás?), de
2000, dos irmãos Ethan e Joel Coen, três prisioneiros – Everett
(George Clooney), Delmar (Tim Nelson) e Pete (John Tuturro) – em
plena Grande Depressão americana, escapam de uma cadeia do
Mississipi. A cena em que se vê os prisioneiros, com os seus típicos uniformes listados, a trabalhar no exterior da cadeia desenrola-se ao som de um canto de trabalho, “Po’ Lazarus” (adaptação
do ‘Poor Lazarus’ de Woodie Guthrie), cujos versos acompanham
a cadência das picaretas e dos maços: «Well, the high sheriff/
He told his deputy/ Want you go out and bring me Lazarus/ Well,
the high sheriff/ Told his deputy/ I want you go out and bring
me Lazarus/ Bring him dead or alive,/ Lawd, Lawd/ Bring him
dead or alive (O grande xerife/ disse ao seu adjunto/ Quero que
vás buscar-me o Lázaro/ O grande xerife/ disse ao seu adjunto/
Traz-mo vivo ou morto,/ Lawd, Lawd/ Traz-mo vivo ou morto.)»
Na Feira de Castro, que este ano decorreu em 16 e 17 de Outubro, no desfile dos grupos corais pelas artérias que separam o
Jardim do Padrão da Praça da Liberdade nesta vila alentejana, era
notório o envelhecimento de muitos dos grupos. «Sem tascas e
tabernas, não aparecem novos elementos para o coro», diz-nos Ernesto Mestre, enquanto tomamos umas minis antes que chegue
a vez de o Grupo Coral do Sindicato Mineiro de Aljustrel desfilar.
«É lá que a malta começa a cantar. E elas estão a desaparecer.»
Mas ninguém diria que a continuidade do grupo coral corre perigo quando dali a pouco os vir desfilar, impecáveis nos
seus fatos-macacos azuis, lenço verde e vermelho ao pescoço,
capacete mineiro na cabeça, rostos e vozes orgulhosamente levantados ao céu do Alentejo. «Vê lá, companheiro, vê lá. Vê lá
como venho eu.» n
1 Inês Fonseca, «Identidades e memórias em torno de uma mina: o caso
de Aljustrel», in AIBR. Revista de Antropología Iberoamericana, Vol. 1.
N.º 3. Agosto-Dezembro de 2006, pág. v.
2 «A memória oficial edificada na actualidade, sobre o passado da vila e
da sua população ligado à mineração, é uma memória depurada dos
seus aspectos menos consensuais e passíveis de criar tensões e conflitos
e, simultaneamente, corresponde a uma mitificação do trabalho na
mina. Todos os elementos que contribuem para a edificação de uma
imagem menos agradável sobre as minas e o trabalho dos mineiros são
afastados da imagem oficial apresentada», Inês Fonseca, op. cit., p. vii.
3 «U2 dedicate songs to 29 lost miners», in 3news.co.nz, 26 de
Novembro de 2010.
4 Referência ao triunfo da Frente Popular em 1936.
5 ou ‘No poço de S. João’, numa outra versão.
AO LONGO DA VIDA 61
LIVROS
DOSSIER
Adultos pouco escolarizados: Políticas e práticas de formação
Cavaco, Cármen (2009)
Lisboa: Educa e UI&DCE
por Irene Santos
A
mais recente obra de Cármen Cavaco corresponde a uma investigação efectuada no quadro de
um doutoramento em Ciências da Educação e integrou o projecto FAP – Políticas de Formação de Adultos em Portugal
– coordenado pelo Professor Rui Canário. Nesta pesquisa, a autora procurou
conhecer e analisar as ‘lógicas de acção
inerentes às ofertas de educação e formação,
frequentadas por adultos pouco escolarizados’; parte de uma história da formação
de adultos a nível internacional e nacional, e centra-se na actualidade de um
território delimitado – foram estudados
os cinco concelhos de Aljustrel, Almodôvar, Castro Verde, Mértola e Ourique
– para perceber como se articulam os
níveis micro (local), meso (nacional) e
macro (internacional) na concretização
das ofertas de formação.
No seu anterior trabalho, a autora
havia-se dedicado à aprendizagem experiencial de adultos pouco ou nada
escolarizados1 em que inquiria pessoas
comummente conhecidas como ‘analfabetas’ a fim de perceber como haviam
desenvolvido conhecimentos e capacidades que lhes permitiram participar na
vida social e laboral. Esta nova pesquisa,
de grande fôlego, abrangência e profundidade, leva-nos a acompanhar o que na
área da formação vem acontecendo em
Portugal e em particular no Baixo Alentejo. Com efeito, sendo Carmen Cavaco
originária desta região, os trabalhos que
aí desenvolve constituem um tributo
para aquela zona que, tal como em geral
as menos urbanizadas, estão arredadas
do conhecimento. Ela fá-lo pela escolha
da região como foco de observação mas
sobretudo pela forma dialogante e dignificante como escuta e apresenta a voz
dos entrevistados, sejam eles decisores,
formadores ou adultos certificados.
A metodologia utilizada é reflexo
também da forma como a autora pretende perceber o seu objecto de estudo.
Com efeito, em territórios como estes,
acossados pela perspectiva de atraso e
deficit com que costumam ser encarados, a escolha metodológica é, antes de
62 APRENDER
mais, conceptual: ‘a opção pelo estudo de
um território prende-se com o facto de se assumir como fundamental uma intervenção
contextualizada, em que as práticas educativas formais e não formais devem ser integradas em dinâmicas sociais, construídas
e auto-geridas localmente pelas pessoas’ (p.
74). É na medida que a autora quer romper com um pensamento ‘escolocentrado’, horizontalizar as diversas formas
educativas e de formação, que permite
evidenciar a força do informal e do não
formal da formação de cada pessoa. A
escolha em ouvir o leque de actores envolvidos, dos decisores ao ‘público alvo’,
é determinante na compreensão da articulação complexa que instituições e pessoas fazem das medidas políticas e das
suas ideias e necessidades individuais e
colectivas.
O corpo do trabalho organiza-se em
quatro componentes. Numa primeira,
apresenta-se a evolução internacional e
nacional da formação de adultos. Tendo
por base os discursos fundadores das
Conferências da Unesco desde o seu
início em 1949, analisam-se as perspectivas e concepções que norteiam as medidas e directivas fornecidas aos vários
países. Deste modo tornam-se evidentes
as transformações radicais ao longo do
desenvolvimento e difusão da formação de adultos. Iniciada numa óptica de
educação popular, auto-determinante e
valorizando as práticas auto-formativas,
passa-se progressivamente para uma
perspectiva de combate à ignorância de
saberes científicos e técnicos numa lógica desenvolvimentista, até à predominância da óptica da ‘empregabilidade’.
A alfabetização aparece como ícone da
participação social, o combate ao iletrismo desempenha um papel crucial nesta
transformação e torna-se um dos objectos centrais das orientações da Unesco.
Uma lógica de gestão de recursos humanos, subordinada ao desenvolvimento
económico, parece hoje dominar a formação de adultos na Europa, com uma
forte determinação por parte da Ocde e
da União Europeia, através das medidas
políticas que se materializam nos meios
administrativos, organizacionais, logísticos e financeiros, disponibilizados.
Neste capítulo, percebe-se como, ao
definir alguns problemas (da falta) de
conhecimento, por exemplo o analfabetismo e sem descurar a importância
da sua visibilidade, se contribuiu para a
estigmatização e marginalização dos saberes próprios dos destinatários. Apesar
dos princípios iniciais da Unesco que
colocavam a centralidade preconizavam
o cariz emancipatório, e do relatório
Faure ‘Aprender a Ser’ em que nos anos
70 se defendia o valor formativo da vida
na sua integralidade, estas intenções foram sendo alteradas e até pervertidas:
‘faltou uma reflexão epistemológica sobre o
acto formativo. Essa reflexão teria sido fundamental para romper com a lógica escolarizante que continuou a prevalecer e que se
apresentou como uma das fragilidades dos
projectos de alfabetização e de educação de
base de adultos’ (p. 117).
Numa segunda parte, a autora percorre estatísticas para entender a situação da população portuguesa, tal como
especificamente do território a estudar,
face à escolaridade e a relação entre escolarização e situação face ao trabalho. A
partir de uma análise cruzada de dados
quantitativos e qualitativos, como entrevistas, Cármen Cavaco mostra como
a formação passa sempre pelas opções
locais, ainda que as politicas emanem
do nível macro. Este é, aliás um exemplo de como ultrapassada a dicotomia
entre estes paradigmas, o desdobramento do olhar sobre o objecto de estudo é
beneficiado com a maior profundidade.
A diversidade de dados recolhidos – legislação e outra documentação oficial,
estatísticas e 113 entrevistas - constitui
um factor de riqueza e originalidade do
trabalho, que, aliada ao rigor e meticulosidade de tratamento e interpretação,
dão conta de articulações, influências
locais, nacionais e internacionais, contradições, discursos, adaptações, representações, usos, sentidos, etc.
Noutro momento, apresenta-se um
levantamento das ofertas formativas
para adultos pouco escolarizados nos
DOSSIER
cinco concelhos, em que se salientam
alguns aspectos. Por um lado a autora
observa o modo como se relacionam as
três modalidades – ensino recorrente,
cursos EFA e RVCC - quando coexistem
no mesmo tempo e local. Se nalguns
casos parece haver uma relação entre as
entidades promotoras, na maioria dos
casos, a articulação ou se faz no interior
de uma instituição que oferece mais do
que uma modalidade formativa ou se
faz pelas pessoas que individualmente
e através da socialização com colegas,
familiares ou amigos, optam por uma
dada oferta.
Neste levantamento também se destaca a terceirização que, nas associações
e outras entidades afins tornadas IPSS’s2,
de espaços de aprendizagem informal se
têm vindo a transformar em espaços não
formais de formação com uma estruturação progressiva, subordinada às normativas governamentais e europeias, que
inverte todo o sentido da construção do
saber e da acção dos interlocutores. Ao
analisar a dimensão local destas iniciativas a autora discute ainda a ambiguidade, o ‘aparente consenso’, que surge na
relação entre Estado e local, em medidas
de territorialização ou de desconcentração, que não se enquadram num local
enquanto espaço a ser valorizado e criado a partir da ideia de endogenia, isto é,
através da iniciativa, recursos endógenos
e auto-definidos.
Finalmente, é com detalhe que são
interrogadas as práticas dos centros de
reconhecimento, validação e certificação
de conhecimentos. Um dos elementos
que acresce a pertinência desta componente tem a ver, como refere Rui Canário no prefácio ao livro, com a referência
temporal: ‘um período curto que medeia
entre, por um lado, a criação e o início das
actividades promovidas pela Anefa e o lançamento do programa Novas Oportunidades
(pelo meio a Anefa foi extinta e acentuou-se
a orientação vocacionalista da politica governamental)’ (p. 21).
Quem conhece minimamente esta
prática, sabe o quanto a modalidade é
atravessada por lógicas contrárias: uma
vertente humanista que introduz no
contexto pedagógico oficial um factor
de inovação único, a quer a nível epistemológico – pelo reconhecimento da experiência como factor de conhecimento
e pelo carácter complementar da formação ao que os adultos já sabem – quer
a nível identitário dos profissionais envolvidos – cujo desempenho fica submetido às pessoas que recebem e acompanham; e uma vertente de gestão de
recursos humanos que impele à produtividade para atingir metas previamente
anunciadas, com consequências imedia-
tas nas organizações. Esta contradição,
sendo geral, é sentida por cada um dos
centros de RVCC, e tem consequências
nas linhas de conduta. Ora, é a recência
do fenómeno em estudo que permite
aos entrevistados verbalizar o faseamento do seu decorrer, explicitar o processo
tendo em conta as contradições, os obstáculos, os hábitos, os desejos, etc; isto
é, só assim foi possível apreender como
foram sendo resolvidas as tensões inerentes à conjugação de ambas as lógicas,
a que se acrescem outras como a tradição professoral que persiste, arreigada,
nos profissionais e nas próprias insti-
tuições, e que aos poucos se vão instituindo e sedimentando. A este respeito
é de notar a relevância do trabalho de
equipa que os centros empreenderam
a fim de ir aferindo práticas e proceder
a uma apropriação colectiva desta nova
modalidade.
No quadro do estudo destes centros
de RVCC, a autora também concede
uma atenção especial aos profissionais
que emergem no quadro desta modalidade, sendo, por exemplo, feita uma sistematização das funções e competências
dos profissionais de RVC e dos respectivos formadores.
Para terminar esta breve apresentação do mais recente trabalho de Cármen Cavaco, uma pequena nota sobre
o corpo teórico que evidencia aspectos
do foro investigativo a que vale a pena
prestar atenção, tais como: a) a diversidade das áreas que estudam a formação
de adultos no interior das ciências da
educação - história da educação, formação de adultos, história da educação,
desenvolvimento curricular, políticas e
administração educacional, formação
de professores, etc ; b) uma quantidade
significativa de estudos enquadrados por
programas de formação avançada (mestrados e doutoramentos), produzidos
por pessoas directamente implicadas no
assunto por via profissional, o que tem
efeitos a nível do acesso ao objecto de estudo e do conhecimento daí resultante,
mas também cria um campo de reflexão
interessante (creio que renovado) sobre
a relação - a ‘velha’ querela – entre a pesquisa e a acção; c) por fim, o facto de se
manter escassa a dimensão do corpo de
investigadores profissionais dedicados
em Portugal a esta temática, o que é paradoxal na época actual, pelas fortes alterações nas medidas que se têm efectuado
neste domínio e pela enorme expansão
da formação nas agendas políticas, facilmente traduzível em números. n
1 Cavaco, Carmen (2002). Aprender fora da
escola: percursos de formação experiencial.
Lisboa: Educa.
2 Instituições Particulares de Solidariedade
Social.
AO LONGO DA VIDA 63
NET
DOSSIER
Plataforma Europeia para a Aprendizagem
ao Longo da Vida
A Plataforma da Sociedade Civil Europeia sobre Educação-Formação ao longo da Vida (EUCIS-LLL) é uma estrutura que promove a
cooperação entre organizações da sociedade civil à escala europeia.
Reúne quase duas dezenas de redes europeias activas em diferentes
sectores da educação e da formação, a fim de fazer ouvir a voz dos
cidadãos sobre questões relacionadas com a Aprendizagem ao longo da Vida e propor soluções concretas assentes nos conhecimentos, competências e experiência dos peritos e práticos destas redes.
Como recentemente a Comissão Europeia lançou uma Consulta
Pública visando a revisão do Programa Aprendizagem ao Longo
da Vida (LLLP), a EUCIS-LLL submeteu uma lista de comentários e
recomendações, que estão patentes no respectivo site:
www.eucis-lll.eu
Uma Base de Dados das Revistas de Educação
de Adultos na Europa
Nesta Base de Dados é possível ter acesso a mais de 100 revistas especializadas em educação de adultos, de âmbito europeu ou nacional. Aqui se encontra uma listagem de periódicos, quer em formato
papel quer on-line, com um enfoque específico nesta temática e
que podem ser detectados através de palavras-chave relevantes em
inglês (lifelong learning, lifelong education, adult education, adult
learning and continuing education). De Portugal, encontram-se as
revistas “Aprender ao longo da Vida” (da Associação O Direito de
Aprender) e Fórum (da Universidade do Minho).
www.artio.net/infoservice/en/database-of-adult-education-journals-0872
“Language Café”
Um “Language Café” (ou
“Café de Língua”) é uma
forma sociável e amigável
de praticar línguas sem
frequentar aulas formais.
São geridos para e pelas
pessoas que os usam e podem encontrar-se nos mais
diferentes locais, tais como
cafés, bibliotecas, centros
comunitários, cinemas, livrarias, escolas, “pubs” e
restaurantes, entre outros.
Existem cerca de 30 destes
Cafés, espalhados por 8
países (Bélgica, Lituânia,
Letónia, Hungria, Áustria,
Suécia, Turquia e Reino
Unido).
Em Inglaterra, os “Language Café” ou se especializam numa só língua (e já existem em espanhol, italiano, francês, alemão, polaco,
russo, português, árabe e linguagem gestual) ou são multilingues
(por exemplo, um em Glasgow, Escócia, onde se conversa em francês, espanhol ou italiano.
Para mais informações: www.languagecafe.eu
64 APRENDER
Aprendizagem divertida no Canadá
“ABC Alpha para a vida Canadá” anunciou o tema oficial do Dia da Alfabetização Familiar: “Brincar, Brincar
pela Alfabetização”, fazendo assim reemergir a criança
que existe em todos e encorajando os canadianos dos
vários cantos do país a juntar-se para participarem em
jogos de grupo amigáveis e em família, com vizinhos e
amigos, no próximo dia 27 de Janeiro de 2011. Brincar
pela alfabetização pode incluir todo o tipo de jogos
que facilitem a alfabetização e promovam as capacidades de cálculo, e ainda a aptidão à compreensão, como
os jogos de sociedade, os jogos de cartas e as actividades e jogos de autocriação imaginativa. Os jogos e
o facto de se brincar despreocupadamente constituem
formas divertidas para que pessoas de qualquer idade
possam participar em actividades capazes de gerar novos conhecimentos ou de melhorar competências de
leitura, escrita, cálculo ou compreensão.
“Brincar com jogos permite, não só reunir as pessoas,
mas também criar um contexto de aprendizagem divertido”, explica Margaret Eaton, presidente de “ABC
Alpha para a vida Canadá”. E acrescenta: “Os jogos de
cartas, por exemplo, ajudam a aperfeiçoar as capacidades de calcular, enquanto os jogos de sociedade, e
também os jogos de associação de palavras, enriquecem a ortografia e as competências de leitura e de compreensão. É importante recordar que se pode aprender
enquanto se ri e se passa um tempo agradável em família, sem esquecer os desafios quotidianos que temos
pela frente”.
Criado em 1999, o Dia da Alfabetização Familiar tem
lugar todos os anos a 27 de Janeiro e é uma iniciativa concebida para fazer partilhar o prazer de ler e de
aprender em família; e também para encorajar os canadianos a consagrarem 15 minutos por dia, pelo menos, a uma actividade que promova a aprendizagem.
Para saber mais sobre alfabetização e aprendizagem
contínua no Canadá, pode visitar:
http://www.abclifeliteracy.ca
NOTÍCIAS
Satisfazer as necessidades Educativas dos Imigrantes na Irlanda
A
Irlanda lançou o seu 1º Plano
Estratégico de Educação Intercultural para 2010-2015. No discurso que pronunciou por ocasião do
lançamento do Plano, o Ministro de Estado sublinhou a sua importância, não
apenas para os imigrantes mas igualmente para as comunidades anfitriãs.
Como é sabido, a língua não é a
única coisa de que os recém-chegados
necessitam. O Livro Branco sobre Educação de Adultos, em 2000, afirmou a
necessidade de enquadrar as políticas e
práticas educativas dentro de um contexto que servisse uma população diversificada, o que trouxe implicações para
o desenvolvimento curricular, materiais,
formação, modalidades de avaliação
e métodos didácticos. Há pois que ter
em consideração, não só lutar contra o
racismo e encorajar a participação dos
recém-chegados em actividades educativas, mas também reconhecer que
muitos grupos minoritários têm necessidades e contextos culturais específicos
que devem ser respeitados e reflectidos
no contexto educacional. A nova Estratégia de Educação Intercultural procura
dar resposta a essas necessidades, tendo
para isso elaborado um certo número de
objectivos de elevado grau, tais como:
- Possibilitar a adopção de uma
abordagem institucional abrangente
capaz de criar um ambiente de
aprendizagem intercultural
- Capacitar os agentes educativos
com vista ao desenvolvimento
de contextos de aprendizagem
interculturais
- Apoiar os estudantes para que se
tornem proficientes na língua de
O Método Montessori adaptado a pessoas idosas
O
Método Montessori
é conhecido na educação das crianças,
mas pode aplicar-se, desde
que devidamente ajustado,
a pessoas idosas que sofram
de perturbações cognitivas.
Trata-se de uma abordagem
inovadora iniciada do Hearthstone Alzheimer Care nos
Estados Unidos e que permite viver melhor com uma demência.
O acompanhamento e os cuidados
a ter com pessoas afectadas pela doença de Alzheimer ou outras demências
semelhantes devem garantir uma estimulação cognitiva regular, possibilidades diárias de intercâmbio e participação social, assim como um treino
frequente, a fim de reduzir as dificuldades que estas pessoas têm para desempenhar os actos da vida quotidiana.
É extremamente importante recordar
que os doentes são, antes de mais, pessoas. Apesar da intensidade dos seus deficits cognitivos associados à patologia,
continuam a ter as mesmas necessida-
des fundamentais que todos
nós. Entre essas necessidades,
encontram-se, por exemplo:
a auto-estima, as possibilidades de exprimir pensamentos
e afectos, a realização pessoal,
o sentimento de pertença a
uma comunidade de vida e o
de viver uma existência digna
e portadora de sentido e de
qualidade. Muitas perturbações psico-comportamentais podem
estar ligadas à falta de satisfação destas
necessidades fundamentais. O Método
Montessori, uma vez adaptado às pessoas afectadas de demência do tipo Alzheimer ou semelhantes, permite aos prestadores de cuidados proporem aos doentes
actividades estimulantes que visam satisfazer o conjunto dessas necessidades.
Os principais objectivos do Método
Montessori adaptado às pessoas afectadas pela doença de Alzheimer e similares são de propor a estas pessoas actividades que lhes permitam conservar,
durante tanto tempo quanto possível,
ou até melhorar, as suas capacidades
instrução
- Encorajar e promover parcerias
activas, envolvimento e comunicação
real entre agentes e entidades
formadoras, estudantes, progenitores
e comunidades
- Promover e avaliar a recolha e
monitorização de dados para que
a definição de políticas e a tomada
de decisão estejam enraizadas na
realidade.
Dado o actual clima económico,
este Plano Estratégico terá que ser executado dentro dos limites das verbas disponíveis. Como foi já definida uma estratégia de monitorização,
aguardam-se os primeiros resultados
com o maior interesse. O texto completo do Plano Estratégico encontra-se
disponível no seguinte sítio Internet:
www.education.ie/home/home.jsp?pca
tegory=10856&ecategory=54720&lang
uage=EN
Extracto do artigo escrito por Bernardette Maria
Brady (27.09.2010) in http://www.infonet-ae.eu
para desempenharem actos da vida de
todos os dias, tais como alimentarem-se,
prepararem pratos simples, vestirem-se
e participarem em actividades lúdicas.
Tudo isto até uma fase já avançada da
patologia. Este método fornece estímulos intelectuais fomentados pela inexistência de uma situação de fracasso
e de uma confrontação do doente com
as suas carências. A finalidade do Método Montessori é também de permitir
às pessoas idosas serem tão autónomas
quanto possível, capazes de fazer escolhas, enquanto são tratadas dignamente
e com respeito. É tradicionalmente utilizado com crianças, mas foi modificado a
fim de corresponder à especificidade das
pessoas que sofrem de demências tipo
Alzheimer. Permite-lhes, apelando às
suas capacidades remanescentes, compreender o mundo que as rodeia, ter
acesso a uma participação social, interagir com o seu meio e beneficiar de uma
qualidade de vida que seja fonte de dignidade, de bem-estar e de auto-estima.
Cameron Camp & Cindy Barotte em:
www.ag-d.fr/iso_album/la-methodemontessori-adaptee.pdf
www.thehearth.org/theway.html
AO LONGO DA VIDA 65