A utopia política na Contra-Reforma - Morus

Transcrição

A utopia política na Contra-Reforma - Morus
A utopia política na Contra-Reforma
Luigi Firpo1
Tradução de Carlos Eduardo O. Berriel
Resumo
Neste estudo, hoje clássico, Luigi Firpo faz uma penetrante análise
dos mais relevantes escritos utópicos do Cinquecento e, principalmente,
daqueles que surgiram durante o período mais atuante da Contra-Reforma.
Primeiramente, identifica os traços principais da utopia renascentista, como seu
cunho marcadamente social, sua posição otimista quanto à capacidade da razão
humana de criar formas novas, perfeitas, autárquicas de organização social, entre
outros. A isto contrapõe, num segundo momento, o conjunto de valores advindos
do novo clima espiritual instaurado pela Contra-Reforma (e suas conseqüências),
detendo-se principalmente em autores como Agostini, Campanella e Zuccolo.
Palavras-chave
Utopia, Contra-Reforma, Pensamento Político, Campanella.
Luigi Firpo (1915-1989) foi um dos mais importantes historiadores italianos do século passado. Renomado estudioso de Campanella, assim como de outros utopistas e do
pensamento político e religioso dos séculos XVI e XVII, ensinou História das Doutrinas
Políticas, primeiramente na Faculdade de Jurisprudência, e mais tarde na de Ciências Políticas da Università di Torino. Entre seus escritos, destacam-se Ricerche campanelliane,
Sansoni, 1947; Lo stato ideale della Controriforma: Ludovico Agostini, Bari, Laterza,
1957; Il supplizio di Tommaso Campanella : narrazioni, documenti, verbali delle torture, Roma, Salerno, 1985. Também organizou o volume Studi sull’Utopia, Firenze, Olschki, 1977. Coordenou, para a editora UTET, a célebre coleção de Classici del pensiero
político e a Storia delle idee politiche economiche e sociali.
Este ensaio de Luigi Firpo foi
traduzido a partir de “L’utopia
política nella Controriforma”,
in Quaderni di “Belfagor”.
Diretti da Luigi Russo.
Quaderno Primo. Contributi
alla storia del Concilio di Trento
e della Controriforma. Firenze:
Vallechi, 1948.
1
LUIGI FIRPO
F
2
Conferir em particular:
FRANCK (1881); BERTANA
(1892); DE MATTEI (1927);
ARCARI (1935); CURCIO
(1941 e 1944). Conferir
também os trabalhos de De
Mattei e de Bobbio que citarei
mais adiante e, do mesmo
MATTEI (1938).
16
alou-se muito, ao se resenhar as fortunas da utopia política, e em
particular da utopia citadina, de um filão italiano renascentista,
de um florescimento – na verdade bastante denso – de escritos
publicados ou compostos no nosso meio entre o pleno Cinquecento e o
primeiro Seicento, ao qual a crítica2 parece atribuir motivos e atitudes
comuns, quase que um único substrato de aspirações, uma concórdia
inconsciente de intenções, até mesmo uma monótona identidade
de soluções revolucionárias propostas para sanar o difuso mal estar
econômico e social do século. Ninguém notou, ao contrário, como
esse fato – se verdadeiro fosse, e não apenas aparência, disfarce de
ambíguos e contraditórios aspectos – deveria ser encarado como
sendo completamente surpreendente, inconciliável mesmo por sua
uniformidade e coerência, com todo o fermento de idéias do nosso
grande século, que parece fracionado em sua metade por um corte
radical. O Concílio de Trento, fulcro de um movimento europeu tão
profundo como foi o da Contra-Reforma católica, e a paz de Castel
Cambrese, grávida de tantas conseqüências para a Itália pacificada
na servidão, teve entre nós influência decisiva no campo especulativo
e no campo político: problemas antigos caíram na irrelevância, quase
esvaziados de qualquer interesse e vitalidade (os belos castelos de cartas
do estado misto, por exemplo, que eram simplesmente uma utopia
sui generis), e surgiram novos problemas que, se novos realmente não
eram, como tal apareceram à luz da exigência essencial e imperiosa
do novo tempo: o moralismo, o confronto sistemático e escrupuloso
entre os valores humanísticos do Renascença e os perenes valores
ético-religiosos da tradição. De fato, na atitude utópica, na proposta
confiante e convicta de modelos de sociedades perfeitas, auto-suficientes
e felizes, existem elementos radicalmente incompatíveis com tal clima
espiritual: antes de tudo um fundo de epicurismo latente, uma busca
de felicidade na Terra, que está em contraste com a concepção cristã
da cidade celeste, beatífica e perene, contraposta ao vale de lágrimas
terreno, ao breve exílio no mundo da carne e da culpa; mas também
devia, com a mais hostil repugnância, resguardar-se no novo clima o
sentido otimista da utopia civil, a implícita exaltação humanística da
razão e da autonomia do homem, o imanentismo recôndito que está no
íntimo daquelas sociedades imaginárias, tão radicalmente autárquicas
que poderiam subsistir sem nenhum pressuposto de transcendência, de
forma que a própria religião tem da transcendência um caráter postiço
e vago, com um deísmo genérico, sem dogma, aceita apenas em vista do
valor social e moral das religiões e inclinado, portanto, a reconhecer nas
diferentes crenças uma equivalência substancial. A essas tendências a
Contra-Reforma contrapôs todas as complexas estruturas dogmáticas e
teológicas do catolicismo positivo, e apagou a entusiástica fé nos ditames
da razão humana com um gelo inesperado, que é o cansaço advindo
dos generosos impulsos renascentistas - mas que é também a angústia
arcana que está no fundo das religiosidades íntimas, o sentido trágico e
desconfortável da precariedade e do pecado.
A UTOPIA POLÍTICA NA CONTRA-REFORMA
O impulso de reforma político-social que se propaga na
primeira metade do Cinquecento, ora genérico e cauteloso, ora explícito
e radical, aquele tanto de pré-iluminismo e de pré-revolução que, em
certas situações e em certas veleidades transparece, vê o seu impulso
freado pela Contra-Reforma, como observa Curcio (1944, p. 28), desde
que esta seja entendida não como movimento decorrente externo e
reacionário, não como um tipo de abafador obscurantista, mas como
crise e estado oscilante daquelas mesmas consciências, como sintoma de
desconfiança nas reformas aplicadas às instituições e aos bens materiais,
como necessidade de atuação mais sobre as almas do que sobre coisas,
como consciência da precedência imprescindível de uma reforma
moral: no século XVII a utopia se tornará, portanto, “débil, desprovida
de qualquer conteúdo social”, porque a nova época não era mais da
razão, mas queria herdar da remota tradição dogmático-escolástica os
esquemas do viver associado. Mas para aceitar uma tal organização
conceitual – excessivamente simétrica e óbvia, ainda que persuasiva –
é preciso antes explicar e organizar as incongruências aparentes, pelo
menos as cronológicas, que parecem colocar em risco o edifício. É bem
verdade que Campanella “está a cavalo de dois séculos” (a Cidade do Sol
foi com certeza rascunhada em 1602), mas então a Contra-Reforma
já se tornara claramente operante e intransigente havia quarenta anos,
e já era assim quando Ludovico Agostini, no penúltimo decênio do
Cinquecento,3 a descrevia na sua “república imaginária”, para não falar
da Evandria de Zuccolo, impressa com certeza em 1625.4 Pelo menos
esses três pequenos enigmas precisam ser resolvidos, para que o discurso
mantenha a desejada coerência.
1. Características do utopismo do Renascimento
Em primeiro lugar, convém trazer ainda que brevemente à memória
as mais vivas e evidentes sugestões que atuaram sobre os utopistas do
Renascimento, os motivos compósitos que estão entrelaçados nas suas
páginas, e distinguir dentre esses as questões – já em parte apontadas –
que a restauração católica precisou obrigatoriamente repudiar, e quais
questões que, no entanto, revividas ou disfarçadas, puderam sobreviver e
frutificar na nova estação. Trata-se, em outros termos, de definir o clima
espiritual do primeiro Cinquecento, os problemas político-sociais que por
gravidade e urgência pareceram requerer soluções radicais – enfim, os
modelos e as questões culturais nos quais aquelas soluções se inspiram,
seja na substância das providências, seja na mera exposição literária.
A coloratura deste tempo, a corrente espiritual à qual as mais
vivas e profundas consciências aderem é, sem dúvida, o racionalismo
humanista, aquela ânsia e aquela alegria da autonomia humana, aquele
orgulho da reconhecida supremacia e quase onipotência da inteligência,
que se traduziu em otimismo operoso, no sentido desabusado e heróico
da vida. Acostumado há séculos a comedir a própria ação com uma
Curcio localiza os Dialoghi
dell’Infinito de LUDOVICO
AGOSTINI nos anos
1575-1580 (1941, p. xviii;
1944, p. 115), mas no contexto
(p. 172-4) encontram-se
alusões e indicações descritivas,
que parecem presumir um
conhecimento direto do
Oriente próximo e da Palestina
em particular, onde se sabe
que Agostini esteve em 1584.
Creio, portanto que a datação
dos Dialoghi deveria ser
alterada em pelo menos um
decênio.
3
Matteo Buonamico
frequentemente comenta
passeios por países imaginários
nos seus Trattati della servitù
volontaria (primeira edição:
Napoli, 1572) e nesses
comentários faz referência
à idade de ouro. Mas a sua
cidade de Nársida, com o
templo da Liberdade cujos
visitantes são miraculosamente
liberados do império das
paixões, nada tem de comum
com a utopia política: trata-se
de um decrépito alegorismo
moralizante, que da longa
tradição medieval havia jogado
as últimas germinações com
Fregoso e com Manfredi, nos
começos do século XVI; uma
tênue sugestão de alegorismo
sobre a utopia certamente pode
ser admitida, mas desde que
não exagerada, como alguns
pretendem, ao ponto de colocar
entre as utopias Viaggio dei tre
peregrini de Fregoso, que tem
direito de cidadania não maior
do que a Commedia dantesca.
Duas breves passagens de
Buonamico são reproduzidas
por CURCIO (1944,
p. 175-193).
4
17
LUIGI FIRPO
5
Cito sempre a Utopia na
versão de T. FIORE
(Bari, 1942); conf. a p. 98.
18
férrea norma positiva transcendente, o homem reconhece com estupor
no mundo uma razão suficiente, intrínseca, capaz de assegurar-lhe toda
harmônica operação: a natureza. E no próprio íntimo essa natureza se
torna consciente, toma o nome de razão, torna-se guia e medida do
agir: “virtù”, escreve Morus,5 é “viver segundo a natureza” e “segue o
comando da natureza aquele que (...) obedece à razão”. Do impulso
confiante de traçar por si mesmo o próprio caminho no mundo, de forjar
o próprio mundo como criação da mente, surge a crítica da tradição,
da estrutura histórica – aparentemente arbitrária e ocasional – do viver
associado, a crítica à intrincada complexidade dos direitos positivos do
decálogo bíblico ditado ao grupo comunitário. Em todos os campos a
razão nutrida de experiência se põe confiantemente a ditar normas para
todos os aspectos do agir prático: o Cinquecento é a idade dos manuais,
incansável na busca de princípios normativos de valor geral e perene
que coubessem em cômodos esquemas didáticos. No terreno político
o retorno à natureza envolvia imediatamente o conceito de igualdade,
e isso trazia consigo, imediatamente, o de legalidade; o despotismo
desabusado da época dos tiranos, a brutal concepção do Estado
absolutista, patrimonial, capaz de todas as arbitrariedades, contrastava
de modo completamente evidente com a visão idílica da nativa concórdia
fraterna dos homens; enquanto os desiludidos políticos realistas colocam
a sua maliciosa preceptística a serviço dos príncipes, todas as páginas
da corrente idealista soam como crítica severa à instituição monárquica
e esboçam – não sem anacronismo – o feliz modelo da república
aristocrática, que se inspira no mito, tenazmente renovado, da sábia e
equilibrada Veneza. Essa aversão ao Estado-força renascentista tende
por um lado à restauração dos princípios jurídicos subtraídos pelos
arbítrios dos déspotas terrenos, e ao reconhecimento dos intocáveis
direitos congênitos à pessoa humana, que amadurecerá com os teóricos
do direito natural; mas no plano contingente essa aversão também trai o
decorrente cansaço do século, a saciedade com a violência desenfreada,
o desejo de um ordenamento que, no interior e no exterior dos Estados,
assegure finalmente uma tolerável convivência e uma paz duradoura.
Nos motivos políticos se mesclam aspirações de aberto conteúdo
social: um aspecto da violência irracional é a insuportável especulação
com os bens da terra, a desigualdade excessiva das riquezas; por toda
parte a sociedade européia mostrava-se onerada por aqueles males que
Morus apontava com desdém na Inglaterra de Henrique VIII: de um
lado a nobreza frívola e ávida, o clero corrupto e ocioso, o parasitismo
pululante, o ofício das armas reduzido à ladroagem de viciados, e do outro
lado o pauperismo deprimente, a fome que induz ao furto e ao delito,
a turba dos assaltantes e dos vagabundos. O amor pelo quieto viver deve,
portanto, sugerir aos próprios privilegiados um senso de moderação
e de renúncia, de adaptação a fortunas menores, porém mais seguras,
de instauração de uma igualdade mais ou menos rigorosa que, atenuando
as desigualdades, alivie certas classes de uma opressão intolerável e a
outras prive de privilégios excessivamente injustos; a condenação da
A UTOPIA POLÍTICA NA CONTRA-REFORMA
usura e do ócio, o desprezo pela vã acumulação de riquezas, a polêmica
sobre o critério de nobreza (que se quer antes fundada sobre a virtù
do que sobre a estirpe), os impulsos filantrópicos, são aspectos desta
tendência, que encontrava no naturalismo inspiração para os seus projetos
de medida, de equidade, de renúncia ao supérfluo. Nos utopistas, ao
contrário, o projeto social terminará por prevalecer sobre o político, e o
absolutismo, aprisionado na instituição monárquica, será reafirmado nos
novos esquemas – frequentemente ainda mais maciço e inquisitorial, e
muito mais opressor da autonomia individual – apenas para se proteger
de qualquer evasão na direção daquela estrutura econômica igualitária, a
meta precípua dos sistemas que estamos analisando.
Neste conjunto inicial de idéias e de aspirações mesclamse tradições culturais, experiências históricas, sugestões de modelos
literários. Voltar-se para a natureza para dela requerer normas incorruptas
de vida coletiva significava entregar-se ao mito pagão da idade do ouro, à
tradição religiosa do paraíso terrestre, à doutrina estóica da ingenuidade
feliz no estado da natureza – aquela mesma que será logo idealizada
na musicalidade sensual da poesia pastoral. Platão e Virgílio por um
lado, Sêneca e Cícero por outro, sugerem temas eficazes; a República
platônica torna-se o modelo típico, com o seu comunismo que exercerá
atração sobre o das fraternidades religiosas, das ordens de cavalaria,
das comunidades anabatistas, com a sua idealização da cidade-estado,
que se espelha na tradição comunal italiana, no mito da Veneza feliz.
Cláudio Ptolomeu, Ludovico Guicciardini, Botero, observadores e
analistas do real, disputam sobre o melhor posicionamento da cidade;
os arquitetos racionalistas, Alberti, Filarete, Leonardo, traçam esquemas
urbanísticos inspirados em abstratas simetrias funcionais; os duques
da Toscana devaneiam transformar Portoferraio em Cosmópolis e
fundar uma paradisíaca e erudita “Cidade do Sol”, na qual não seria
necessário falar outra língua além do latim. O século é tão permeado
de radicalismo reformista que a utopia chega a fazer fronteira com a
história, e muitas vezes o ideal parece estar a ponto de materializarse na realidade. Quando esses devaneios se fazem palavra escrita,
óbvias sugestões literárias dirigem a pena dos utopistas: são os poemas
alegórico-didáticos do Tre e do Quattrocento, as fabulosas peregrinações
medievais em busca do paraíso terrestre, as correrias romanescas dos
ciclos de cavalaria, os recentes relatos de viajantes e de navegantes,
tão inclinados à idealização dos remotos países de recente descoberta:
nasce destes elementos compósitos um “gênero” literário, uma fórmula
destinada a repetir-se até os nossos dias com uma fortuna constante,
e que ainda não mostra sinais de declínio.
Dupla é, portanto, a aspiração que o Renascimento revela através
dessas descrições de cidades ideais: a restauração da legalidade na vida
política, e o saneamento do agudo mal estar econômico causado pelas
graves desigualdades na distribuição da riqueza. Mas se trata de vozes
isoladas de precursores, sendo tênue o eco no vivo emaranhado da história:
são ainda extremamente eficientes as forças sociais que defendem os
19
LUIGI FIRPO
6
Por exemplo, S. TOMÁS, in
Suma Teológica, I, qaest. 94-102.
20
privilégios econômicos, e extremamente antitética a base política da
nova época, voltada para as fortunas dos principados absolutos e para
os rígidos centralismos nacionalistas. A história desmentia a utopia,
que se humilhava – rebaixando os generosos propósitos erasmianos do
humanismo cristão – ditando vagas idealizações do pio monarca nos
untuosos “espelhos de príncipes”; a Contra-Reforma não era o único
motor daquela história, de forma que possa ser identificada, com
simplismo apressado, a causa única de um indubitável desfibramento do
idealismo utópico. Na realidade a Contra-Reforma visou essencialmente
à restauração daqueles valores religiosos, ou antes, daquela específica e
positiva religiosidade católica que o pensamento renascentista havia
renegado ou, pior ainda, mortificado em compromissos esquecidos.
Em meados do Cinquecento, tais valores, tendo recuperado seu caráter
intransigente e imperativo, encontraram-se justapostos nas consciências
aos valores humanístico-naturalistas, e muitas vezes pretenderam até
rejeitá-los bruscamente e suplantá-los: na realidade foram obrigados
a submetê-los a uma filtragem sistemática, a aceitá-los em parte,
a reconciliar-se com eles e a estabelecer, não uma substituição pura e
simples, mas uma síntese.
No campo das doutrinas políticas, em particular, as duas aquisições
fundamentais do Renascimento e da Reforma foram, por um lado, a
reconhecida categoricidade dos valores utilitários, definida por Maquiavel,
e a doutrina contratual e democrática dos astuciosos monarquistas
calvinistas. Portanto, a reação católica não rejeita esses aportes, nem retorna
pura e simplesmente aos esquemas da política tomista: troveja contra
Maquiavel, mas com os agentes silenciadores e com os teóricos da razão
do Estado tenta conciliar a instância utilitária com a restaurada exigência
moral, e acolhe de fora, com Mariana e com Suarez, as apaixonadas
reivindicações dos polemistas huguenotes, tornadas mais sistemáticas nos
esquemas jurídicos da reflorescente escolástica.
Nas correntes do utopismo político a intransigência póstridentina não encontra, portanto, motivo de escândalo - nem nas
reivindicações democráticas, nem nas aspirações de igualitarismo
econômico: da república eletiva governada pelos mais dignos fornecia
o exemplo a própria hierarquia eclesiástica; às teorias igualitárias e
majoritárias haviam fornecido impulsos eficazes as doutrinas conciliares
do século XV; a polêmica contra a riqueza, a aspiração de um retorno à
pobreza evangélica eram revividas de século em século como um tema
perene da espiritualidade cristã. O que a nova era renega é, ao contrário,
o excessivo otimismo racionalista, a tendência do utopismo em degenerar
do hedonismo individualista (que Morus, por exemplo, compensa – não
sem desconcertante antítese – com uma ética da coletividade) até o
mais grosseiro materialismo, o que é comprovado por Doni; a pintura
do homem constituído in puris naturalibus não pode por si mesma
causar escândalo, se era tema obrigatório dos teólogos nas Summae,
quando nas seções dedicadas à criação tratavam “de conditione hominis
in statu innocentiae”,6 mas a tese implícita naquelas pinturas é a de uma
A UTOPIA POLÍTICA NA CONTRA-REFORMA
auto-suficiência da lex naturae, para a qual qualquer adição é
degenerescência, ou pelo menos superfluidade, aí compreendida a própria
lei divina positiva. A imaginação da ilha desconhecida, do país remoto no
qual prospera a cidade ideal, não é apenas imaginação literária, artifício
fantástico, mas se revela expediente sutil para subtrair em bloco, com a
desculpa da ignorada revelação cristã, a inteira estrutura ético-religiosa
da república imaginária do imperativo, inevitável confronto com a
moral e a dogmática da Igreja. A religião simplificada e genérica das
cidades ideais da Renascença tende a resolver-se no deísmo: não valem
desculpas ou reticências que possam desviar a renovada intransigência
dos homens da Contra-Reforma, a qual torna evidente que o radicalismo
da revolução político-social pressupõe uma análoga revolução moral, e
que esta por sua vez não pode senão coincidir com a instância de uma
renovação religiosa ab imis: não se trata de um aspecto particular da
utopia cinquecentesca, mas um caráter constante do extremismo utópico,
voltado necessariamente para uma transformação que não pode ser
coerente a não ser com a condição de ser total.7 Entre os temas da utopia
renascentista, este, malgrado todo expediente dissimulador, é o único que
a nova época sente como verdadeiramente intolerável: será oportuna uma
sumária averiguação através dos Estados ideais do primeiro Cinquecento
para clarear os termos da insanável antítese.
A Utopia de Morus viu a luz no fim de 1516. No ótimo Estado
que foi delineado, pode-se dizer que é modesto o lugar reservado à
religião: um regime de larga tolerância consente as crenças mais variadas
e tutela toda forma de pacífico proselitismo; algumas delas veneram os
planetas, outras deificam ilustres homens desaparecidos, mas a maioria
concorda no culto de um deus único, eterno, incognoscível, onipresente,
causa e fim de todas as coisas. É comum a todas as convicções religiosas
essa veneração do ente supremo, e apenas a ele é tributado o culto público
nos templos, por ocasião das 26 festividades anuais; o ritual compreende
o uso de vestimentas imaculadas para o povo, e recamadas de penas
coloridas com desenhos simbólicos para o sacerdote, a genuflexão
silenciosa e devota, o canto de louvor a Deus com acompanhamento de
instrumentos musicais, e enfim a recitação coletiva de uma oração que
inspira sentidos propiciatórios e de gratidão. Consideram, além disso,
como forma de culto aceitável por Deus a contemplação da natureza,
o que é fácil explicar, visto que cada um “admite, qualquer seja para
ele o ser supremo, que é sem dúvida a mesma natureza”. Não existem
dogmas, mas, em vista de sua eficácia social no encaminhamento do
homem para as boas ações, é vetado negar publicamente “alguns
princípios extraídos da religião com a filosofia”, que se reduzem à crença
na imortalidade da alma, criada por bondade divina para a felicidade, na
recompensa e na pena reservadas no além para as boas e as más ações,
enfim na providência divina; quem nega tais princípios não é punido,
a não ser com a exclusão dos cargos e com a proibição de propagar
ao povo o seu erro. Trata-se, afirma Morus, de “crenças próprias da
religião”, e, com efeito, os utopianos “crêem que para a verdadeira
Sobre a constante repetição
destas características do
utopismo, destinada a envolver
inclusive a esfera religiosa,
conferir para a concepção
iluminista e jacobina
D. CANTIMORI (1943,
p. 17-19).
7
21
LUIGI FIRPO
busca da felicidade a razão, por si só, seja insuficiente e fraca”; mas logo
reafirma que “a razão é aquela que nos conduz a admiti-las e a acreditar
nelas”. Nenhum dogma revelado, nenhum preceito positivo interrompe,
portanto, o genuíno deísmo que impera em Utopia; Morus não exclui
hipoteticamente essa intervenção sobrenatural e, quase para justificar o
hedonismo dos habitantes da ilha feliz, observa que tal doutrina é o que
de “mais verdadeiro” se pode atingir por via da razão: “apenas uma religião
mandada do céu poderia instilar no homem algo mais santo”. Mas nem
mesmo a justificação evasiva da ignorância como fruto do isolamento
parece se sustentar depois do desembarque, na ilha, de Rafael Itlodeu
e dos seus companheiros aventureiros; da sua boca a revelação cristã é
ecoada no mundo da pura razão, colocando com urgência indeclinável o
problema da aceitação ou da rejeição. Morus se apressa em assegurar que
muitos utopianos já começaram a abraçar o Evangelho, estimulados pela
afinidade de sua religião natural com o cristianismo, e contentes com as
concordâncias do próprio estatuto social com o comunismo apostólico
e conventual; e logo acrescenta que muitos receberam o batismo, que
permaneceram privados dos outros sacramentos apenas por ausência
de sacerdotes, que para a propagação da nova fé – já que privada da
intolerância fanática – não encontra hostilidade de nenhuma espécie;
mas estamos sempre diante de um compromisso dilatório, não de uma
coerente sublimação do natural em sobrenatural. O escritor não diz de
que maneira aqueles neófitos conciliariam as suas existências de cristãos
– desta forma votados com empenho total para a própria restaurada e
santificada natureza – com as estruturas sociais delineadas pela sabedoria
terrena: como consentiriam com o divórcio, com a escolha popular dos
sacerdotes, com a crença na alma imortal dos animais, com a cremação
dos cadáveres, com o matrimônio dos sacerdotes, com o sacerdócio
feminino, com a proibição das imagens, com o culto coletivo que rejeita
e mortifica no recôndito das habitações privadas qualquer manifestação
de culto particular. O cristianismo que pode existir em Utopia é uma
larva da religião católica apostólica romana, com suas tradições e seus
dogmas, os seus preceitos e os seus ritos, a sua universalidade e a sua
intransigência. A ingênua e generosa esperança do irenismo humanístico
que flutua por sobre estas páginas, a tentativa de preparar um terreno
favorável ao entendimento entre os dissidentes sobre a base do dogma
simplificado e racionalizado, eram destinados a receber da restauração
tridentina o mais duro desmentido.
Treze anos depois da impressão da Utopia, Antonio de Guevara
publicava o seu celebrado Libro llamado Relox de los príncipes, no qual
um breve episódio narra a imaginária visita de Alexandre Magno ao
povo dos Garamantes; estes, pela boca de um de seus sábios, infligem ao
Macedônio uma longa repreensão que soa como áspera condenação do
ativismo heróico, da sede de luta e de conquista, exaltando ao contrário
a vida modesta e pacífica, a moderação virtuosa, os ideais da pobreza
feliz na caridade e na concórdia. Dirigidos por poucas e simples leis
em regime de estrito comunismo igualitário, o povo dos Garamantes
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A UTOPIA POLÍTICA NA CONTRA-REFORMA
goza de uma relativamente larga liberdade em matéria religiosa, e cada
qual é livre de escolher para si o culto que preferir, desde que o pratique
com sinceridade de coração e não venere mais do que dois deuses,
“um para a vida e o outro para a morte”.8 A obra de Guevara foi traduzida
e em parte refundida entre nós por Mambrino Roseo na sua Instituzione
del principe cristiano, cuja primeira impressão aparece em Roma em
1543: dez anos depois viam a luz quase simultaneamente em Veneza os
dois típicos escritos utópicos do nosso Renascimento: o “Mondo savio
e pazzo”,9 nos Mondi de Doni, e a Città felice10 do Patrizi dalmaciano;
no intervalo, em 1548, o mesmo Doni se fizera editor da primeira versão
em vulgar do escrito de Morus, realizada por um outro scapigliato de seu
tempo, Ortensio Lando.
O mundo imaginário de Doni é um esquema sumário, em traços
grosseiros, mas inspirado por inflamado extremismo revolucionário:
o comunismo econômico da Utopia se torna radical, corrói a própria
instituição familiar, que Morus havia consagrado como pedra angular
do viver associado, e inclui o comunismo sexual. O organismo urbano
funciona tendo por objetivo a satisfação exclusiva das necessidades
corporais, a vida afetiva é sufocada como incentivadora de paixões
desagradáveis, e sobretudo impera o mais maciço materialismo. No
centro da cidade está um grande templo, servido por cem sacerdotes,
a quem cabe a última manifestação de poder político que sobrevive no
automatismo daquela vida coletiva, reduzida a meras funções vegetativas,
mas trata-se porém de sacerdotes de um culto rudimentar. Narra Doni
que a cada sete dias, à semelhança do nosso domingo, aqueles cidadãos
“faziam a sua festa (...) e naquele dia não se fazia outra coisa a não ser
estar no templo com grande devoção”: gente realmente ruim do ouvido,
se o recolhimento não fosse perturbado pelos “cem tipos de música”
que justamente naquele sétimo dia se entrecruzavam debaixo da grande
cúpula. Além disso, também “pela manhã todos visitavam o templo”, e
era certo que em tal ocasião cada sacerdote, voltado para os habitantes da
rua da qual era preposto, lhes ensinava “a conhecer Deus e a agradecerlhe por tantos dons e por se amarem uns aos outros”.11 É tudo: também
existe aqui um vago deísmo, uma religião sem dogma e desprovida de
qualquer conteúdo positivo; como único preceito o amor ao próximo,
o culto da solidariedade humana.12
No plano social Patrizi está no extremo oposto: na sua Città
felice, tecida com motivos aristotélicos mais do que platônicos, sublinha
uma identidade de aspirações entre a oligarquia da polis e a do domínio
vêneto, e visivelmente se compraz no gesto. Constrói uma apologia
restritiva e reacionária na qual o mais vivo impulso do utopismo
renascentista, a rebelião contra a injustiça social, aparece brutalmente
rejeitado. O racionalismo continua a elaborar formas mais oportunas de
convivência organizada, mas para completo benefício de uma minoria
exígua, para quem a auréola da “operação virtuosa” dá o direito de
explorar a turba servil dos camponeses, dos artesãos, dos comerciantes,
privados de todo direito civil, compreendidos apenas para prover os
Ver o texto da contrafação
de Roseo em Curcio (1944,
p. 43-55). Ver ainda a
tradução para o português
de BERRIEL, Carlos E. O.
O Elogio dos Garamantes
de Mambrino Roseo –
1543. Morus – Utopia e
Renascimento, Campinas,
nº. 2, p. 105-121, 2005
(N. do T.).
8
Traduzido para o português
por BERRIEL, Carlos E.
O. Uma utopia plebéia do
Cinquecento: Mondo Savio
e Pazzo. Morus – Utopia e
Renascimento, Campinas,
nº. 1, p. 129-145, 2004
(N. do T.).
9
10
Traduzido para o português
e analisado por Helvio
Moraes em seu mestrado
O Pensamento Utópico
de Francesco Patrizi da
Cherso em La città Felice,
realizado sob orientação de
Carlos Eduardo O. Berriel
e defendido no DTL/IEL/
UNICAMP em 2005, e
publicado na revista Morus
– Utopia e Renascimento,
Campinas, nº. 1, p. 103-127,
2004 (N. do T.).
Veja-se o texto de Doni em
CURCIO (1941, p. 1-15,
em part. p. 10, 13 e 15).
11
12
Note-se em confronto este
conceito de Morus: “Procurar
a própria vantagem sem violar
estas leis [públicas] é sabedoria,
procurar a vantagem para todos
é religião”.
23
LUIGI FIRPO
Ver o texto em CURCIO
(1941, p. 121-142). Sobre os
conceitos religiosos de Patrizi
conferir o citado trabalho
de ARCARI (1935, p. 90-91
e 135).
13
24
privilegiados de toda abundância de subsistência e de recursos. Entre
esses privilegiados, juntamente com os soldados e os magistrados, estão
também os sacerdotes: a religião, de fato, é tão própria do homem
quanto o instinto social, e na cidade perfeita a aspiração ao divino deve
encontrar adequado acolhimento: “para a satisfação de todas as almas
dos cidadãos devem existir nas cidades pessoas que sigam as leis divinas,
cuidem dos mistérios e com os sacrifícios tornem benignos e aplacados
os deuses, e para isso sejam pelo público edificados templos e igrejas
onde o culto a deus possa ser rendido”; na sua linguagem alegóricomística Patrizi define os sacerdotes como aqueles “que com a sua obra
se empenham para que, com o favor e a graça divina, saia este povo
da solidão e do deserto” e venha a conseguir a felicidade.13 Outra coisa
não diz o autor das crenças e do culto na sua cidade beata, mas basta
ler, um pouco mais adiante, que três são os meios para conseguir a
virtù (ou seja, natureza, hábito e razão), para constatar mais uma vez
quão remota é, dos mais íntimos motivos cristãos, uma tal concepção
da vida moral; a sua mencionada explicação racionalista da experiência
religiosa, a desenvolta aproximação na mesma frase dos “sacrifícios aos
deuses” e do “culto a deus”, a função essencialmente propiciatória e
utilitária atribuída ao culto e aos seus ministros, bastam para revelar
o caráter compósito e nebuloso desta concepção na qual se misturam,
permanecendo dissociados, motivos pagãos e cristãos, naturalismo e
misticismo, senso do transcendente e fé exclusiva na razão.
O utopismo renascentista, colocado diante do problema religioso,
alcança, portanto resultados substancialmente concordes: o homem,
guiado pelo puro lume natural e movido pela instância religiosa que é
nele inata, segue nas suas crenças um caminho evolutivo que Morus bem
delineou, ao descrever os cultos dos utopianos: primeiro venera os astros
(isto é, os fenômenos cósmicos e meteorológicos), depois os homens
insignes (idade mítica), e enfim alcança o conceito monoteísta do ente
supremo, único, invisível e onipotente, criador do mundo e juiz no alémtúmulo das almas imortais. Para além desse deísmo a esfera humana,
a razão solitária, não tem asas para superar: para além está a esfera do
milagre e da graça, o mistério revelado, o preceito positivo. Não se
pode crer que nesta definição da religião natural estivessem inseridas
questões polêmicas, motivos heréticos, com o objetivo de contrapor
o deísmo, qual forma de religiosidade em si perfeita e suficiente,
ao cristianismo positivo. Essas idéias não interrompem a santidade
de Morus, o episcopado de Guevara, o sacerdócio de Doni. Trata-se
antes de tudo de indicar da forma mais ampla o fundamento racional
do próprio cristianismo, a coincidência em amplo aspecto de razão e
revelação: estamos na trilha do platonismo renascentista, nos rastros de
Marsílio e de Pico – este último, sabe-se, é fonte direta para Morus
– com um acordo rigorosamente ortodoxo, reavivado nos primórdios
do Cinquecento com as esperanças irênicas, no qual quase afirmam que
os alicerces racionais da fé podem fornecer a primeira base da sonhada
concórdia cristã. Logo as fissuras da consciência religiosa européia,
A UTOPIA POLÍTICA NA CONTRA-REFORMA
não sanadas, tornar-se-ão ao contrário irreparáveis, despedaçando a ilusão
do humanismo cristão, que de fato em Morus e no seu amigo Erasmo
tiveram as suas vozes mais altas. Renegado pela história, esse tema cada
vez mais se refugia na utopia e sugere veladamente, com a simplificação
das estruturas teológicas e das hierarquias eclesiásticas, o retorno à
austeridade cândida do cristianismo primitivo. Depois de uma disputa
dramática e desfibrante a Igreja de Roma assume, ao invés, outro acordo:
o da intransigência dogmática e disciplinar, da reação sem acordos em
todos os campos: missionários e apologetas, diplomatas e gente de armas
se fazem soldados da mesma batalha: Inácio dá ao papado a Companhia
de Jesus, Bellarmino as Controversiae, Baronio os Annales; motivos extrateológicos de descontentamento são sanados com as rigorosas normas
sobre a seleção e preparação do clero, a distribuição dos benefícios, a
residência dos bispos, as visitas pastorais; até mesmo o agudo mal estar
econômico encontra parcial resolução nas grandes iniciativas filantrópicas
de largo âmbito social. A utopia do Renascimento foi uma livre busca de
soluções racionais para os complexos problemas da convivência humana;
a Contra-Reforma impôs a grande parte daqueles problemas uma sua
já pré-ordenada solução, retirada das Escrituras e da tradição, e subtrai
à livre investigação o inteiro campo religioso: dogma e preceito ético,
ritual e sacerdócio, serão a priori definidos por um magistério absoluto,
imune a toda crítica. Apenas no exíguo terreno residual a razão poderá
tentar as suas últimas provas, antes de depor desmoralizada, as armas.
2. Novos aspectos da utopia no Seicento
É necessário agora comprovar, textos à mão, a validade das teses.
Não sem, todavia, apontar antes para uma tentativa de verificar por outra
via os caracteres salientes da utopia seicentista. Sustentava De Mattei,
em um breve ensaio juvenil,14 dever-se reconhecer no áureo modelo
veneziano de uma república completa em si mesma, com ordenamentos
de mecanismo minucioso e exato, a mais direta sugestão atuante sobre
os nossos utopistas do século XVII, que se diferenciam singularmente
dos seus precursores quinhentistas pela maior seriedade do conteúdo
filosófico, pelo propósito de atuação prática que faz dos seus escritos
o esboço de um “experimento” contra o “devaneio doutrinal”, contra o
“exercício acadêmico” próprio da mentalidade renascentista. Já ARCARI
(1935, p. 79-83) observava nessa tese uma contradição interna, segundo
a qual o processo que vai do devaneio ao experimento, a tentativa de
realização do ideal, é de fato contrário à mitificação de Veneza, segundo
um processo inverso de idealização do real; mas convém sublinhar
ainda mais nessa antítese a inconsistência de um e outro argumento.
A idealização dos ordenamentos da Sereníssima, a transformação
literária de estruturas civis, nascidas de um secular processo histórico
contingente, em modelo racional de perfeição, aquilo que em suma foi o
mito tenaz da sábia e livre Veneza, é fruto genuinamente quinhentista:
14
Conferir em DE MATTEI
(1929, p. 414-425); sobre a
idealização de Veneza,
De Mattei retorna inclusive
com um artigo paralelo
(DE MATTEI, 1930,
p. 391-401). Ambos foram
reimpressos em Ricerche di
storia del pensiero politico,
Roma, 1934.
25
LUIGI FIRPO
A Della repubblica de’
Veneziani de GIANOTTI foi
impressa em Roma por Blado
em 1540; a De magistratibus
et republica Venetorum de
CONTARINI aparece
postumamente em Paris, em
1543. Sobre a idealização dos
ordenamentos vênetos conferir
em CURCIO (1934, p. 90 ss).
15
26
os seus textos capitais são da primeira metade do século, e carregam na
fronte os nomes de Contarini e de Giannotti;15 isso inspira por tais vias,
com se viu, o utopismo renascentista, e se no Seicento perdura, por certo
vai definhando, em uníssono com as fortunas políticas e econômicas da
cidade lagunar, para não falar do grave golpe infligido pelos polemistas
eclesiásticos ao tempo da grande disputa do interdito.
Quanto à presumível antítese entre o exercício literário e
acadêmico dos quinhentistas e o propósito de atuação prática dos
seicentistas, trata-se de uma velha tese de FRANCK (1881, p. 187-8),
enunciada em uma comparação limitada a Morus e Campanella,
já discutível nessa restrita acepção, mas certamente falaz quando se
pretende conhecer as típicas características diferenciadoras dos dois
séculos. O próprio De Mattei ressalta intuitivamente uma carga de
anacronismo na Cidade do Sol campanelliana, que “fecha em certo sentido
o ciclo das utopias humanísticas”, e dessa forma fica colocada em um
quadro anterior ao ciclo propriamente seicentista. Isso admitido – e logo
teremos ocasião de definir conceitualmente essa exata escansão – tornase totalmente arbitrário assumir o próprio Campanella como expoente
da atitude dos seicentistas; mas, sobretudo, deve-se considerar como já
insustentável a tese que visa reduzir a Utopia a mero exercício literário,
a “devaneio abstrato”: trata-se de uma interpretação que é movida por
uma causerie de Erasmo – o segundo livro da Utopia teria sido escrito
“per otium” –, testemunho ambíguo de modo algum probatório, mas
que encontrou fortuna entre uns poucos inadvertidos apologetas do
Chanceler, temerosos de ver-lhe a santidade arranhada pelo radicalismo
social. Toda a crítica mais iluminada concorda hoje em reconhecer o
profundo conteúdo construtivo do escrito de Morus, a concretude das
reformas desejadas, o senso vigilante dos males que afligiam a Inglaterra
contemporânea – numa palavra, a historicidade e a seriedade do seu
pensamento. Disso à fé na concretização, daí ao impulso de ação prática,
tem muito chão. Caráter saliente, porém distintivo da utopia, é de fato
o radicalismo, a abstração de toda historicidade nas soluções propostas
– não nas questões! –, a intransigência revolucionária que deriva não
da inflamada paixão política, mas da contemplação do ideal na esfera
do absoluto, sem compromissos. A reforma moderada e concreta não
é própria do utopista, que não pode fazer de seu modelo uma meta da
ação sem perder sua natureza, transformando-se em agitador político ou
social, isto é, um homem que na esfera prática vê uma passagem aberta
para por em contato realidade com ideal. Para o verdadeiro utopista
o hiatus é ao invés insuperável, as instituições presentes não oferecem
aquele ponto de menor resistência sobre o qual fazer pressão com a
ação direta para a sua subversão; a única esperança de ação é aquela
que se abre no íntimo das consciências especulativas, como convite à
reavaliação do real, como antítese crítica da história, para chegar depois
a refluir na vida somente através desse lento e indireto trâmite ideal,
quando – amadurecidos os tempos, transformada em aspiração difusa
aquele solitário ideal – outros farão do modelo sonhado a meta de ação.
A UTOPIA POLÍTICA NA CONTRA-REFORMA
Para sustentar que no Seicento o utopismo manifesta propósitos de
ação prática, isto é, muda sua natureza em reformismo ou em revolução,
seria necessário captar pelo menos um vislumbre de tal propósito em
Bacon ou em Andréa, em Zuccolo ou em Vairasse d’Alais: empresa
completamente vã. Mais uma vez se retorna, portanto, a Campanella,
que foi utopista e que em uma confusa rebelião tentou erigir sobre um
monte calabrês a sua cidade do Sol; parte dele a errônea tese e nele
se encontra a solução: a fé na concretização da utopia não é sinal de
uma evolução do utopismo de um século para outro, mas fruto singular
e personalíssimo de ingenuidade e de entusiasmo, tão anti-histórico e
absurdo como a conjura de 1599, concebida fora de qualquer cálculo
político e militar, confiada apenas ao messianismo individual do seu
chefe e na chegada iminente de uma espantosa palingêsese cósmica.
Permanece ao invés, em De Mattei, o mérito de haver agregado
um último caráter à utopia seicentista, que lhe é realmente peculiar: o
cientificismo. As ciências experimentais são elevadas em grande honra
nas novas comunidades imaginárias, resolvem antigos problemas com
o avanço técnico, criam com a abundância e as comodidades a visão
otimista e fervorosa do “progresso”: singularmente vivos em Campanella,
estes motivos logo se tornarão quase exclusivos no fragmento da
Nova Atlântida baconiana, eco das fantásticas ilhas da nova ciência
emergente. Sob este aspecto tome-se o cuidado, entretanto, de não
falar em antíteses com as construções quinhentistas: trata-se de um
desenvolvimento coerente e contínuo do racionalismo humanista que,
inspirando confiança no livre intelecto indagador, havia determinado a
rebelião contra o princípio de autoridade e, portanto, o florescimento
através da pesquisa experimental da nova ciência. É de fato na amorosa
investigação da natureza que se perpetua a obra da razão, ferozmente
combatida sobre o terreno ético-religioso.
3. Ludovico Agostini e a República imaginária
A primeira utopia pós-tridentina é a República Imaginária,
que Ludovico Agostini, de Pesaro, descreveu no penúltimo decênio do
século XVI nos seus Dialoghi dell’Infinito, e que permaneceram inéditos
até poucos anos atrás. Gentil-homem e doutor em leis, Agostini sonhou
uma reforma dos tribunais, mas não exerceu a profissão senão para
defender gratuitamente os pobres, e transcorreu grande parte de sua
longa vida (nascido em 1535, morreu em 1612) retirado em uma vila
sobre uma colina em Soria, perto de Pesaro, dividindo o seu tempo entre
as ocupações literárias, o recolhimento ascético e as obras de caridade;
parece, entretanto, fruto de um mal entendido a notícia de uma sua parcial
tentativa de instauração de uma convivência ideal através de um regime
coletivo de fundo religioso, praticado na sua vila acima mencionada.16
Como escritor este pio jurista certamente merece a escassa
fortuna que suas páginas receberam: cansativo e retorcido, polvilha os
16
Um longo trecho dos
Dialoghi foi publicado por
CURCIO (1941, p. 143207), e a tal edição me refiro.
Na página 172, falando de
espaços públicos de alimentos
cozidos, o autor define como
“soriana” tais práticas, e o
editor comenta: “e esse é
costume dos habitantes da
vila onde Agostini viveu por
algum tempo”; mas trata-se,
ao contrário, como aparece
claro no contexto, de prática
de uma outra e mais conhecida
Soria, que é no século XVI o
nome corrente da Palestina.
Reimprimindo três anos
depois, com algumas omissões
o mesmo trecho (1944, p.
119-172) Curcio modificava
oportunamente a nota (p. 172),
mas nas páginas introdutórias
(p. 115) se apoiava de fato
na interpretação errônea
precedente ao se referir ao
“sistema de vida coletiva” que
Agostini teria instalado na
própria vila.
27
LUIGI FIRPO
Veja-se, por exemplo, o
horripilante paralelo (p. 189)
entre as defesas materiais e as
espirituais da cidade.
17
18
Curcio, ao contrário, apesar
de lhe ter dedicado agudas
anotações, considera-o figura
“sem grande relevo” e que “não
agrega provavelmente grande
coisa à história do pensamento
político” (1944, p. xviii).
19
Na verdade o texto corre
contínuo, sem repartições, e
Curcio trabalhou bastante
para intercalar títulos sumários
de sua própria mão, dada a
desordem da matéria com
relação aos nossos esquemas
conceituais: na realidade a
ordem é rigorosíssima, desde
que se aceite os esquemas do
autor: antes os ensinamentos
de Infinito e depois (a partir da
p. 165) os de Finito. Cada uma
destas duas seções se divide
depois em quatro parágrafos,
como logo direi.
28
seus períodos de citações bíblicas e eruditas a mancheias, abarrotandoas com pedante método de definições escolásticas convencionais,
esquece-se de digerir sentenças aristotélicas apenas para abandonar-se
às conceituosas extravagâncias, aos seicentismos desmedidos;17 sendo a
sua desenvoltura ao cunhar vocábulos empolados igual à facilidade com
a qual se perde em digressões: está falando do furto, e pula num piscar
de olhos para as eleições dos cardeais, para os abusos eclesiásticos, para
o fausto da Igreja, e daí para os “pecados dos príncipes seculares e dos
seus súditos, obstáculo à divina graça”, para a infalibilidade do Papa,
a doação de Constantino, o seu desejo de “humilhação” dos hereges e
maometanos (ibid., p. 155-8); feito o desabafo, retoma tranquilamente
o seu tema. Mais adiante, depois de ter falado sobre os ordenamentos
sanitários, corre logo a tratar dos médicos das almas e faz uma prolixa
divagação sobre confessores (ibid., p. 183-4); ou então explica as razões
pelas quais Deus permite a derrota de tantos exércitos cristãos contra
os infiéis (ibid., p. 191-2); faz-nos saber que as freqüentes pestilências
do Levante não acontecem apenas por causas naturais, mas “pela divina
permissão, que talvez assim queira para que não aumente excessivamente
aquele povo inimigo de Cristo” (ibid., p. 174); longamente disserta sobre
a distinção entre artes nobre e artes vis (ibid., p. 201-4). Estranhas ao
tema da república ideal, semelhantes divagações são mais significativas
para delinear os caracteres mentais deste homem profundamente
impregnado de motivações contra-reformistas, em tudo zelo ortodoxo
e devoção ao papado, execrador de hereges e de infiéis e apoiador
intransigente de um moralismo severo. Mas superada a barreira da forma
ingrata, da desordem expositiva, Agostini se revela escritor merecedor de
atenta consideração:18 mesmo prescindindo da validade de algumas de
suas teses, da engenhosa e às vezes precursora oportunidade de algumas
soluções, aquilo que surpreende nesta ingênua e límpida natureza é a
imediaticidade com a qual as exigências do tempo novo assumem o
problema político-social, a sensação tão precisa nele da antítese entre
a idade concluída e a idade emergente, tanto que aparecem ambas
de forma abstrata, quase em simbólica alegoria. O grande drama do
século – natureza e sobrenatural, razão e revelação – nessas páginas que
apenas de longe tendem ao sereno modelo do diálogo socrático, tornase elementar e absoluto, personifica-se, torna-se apólogo. Natureza e
sobrenatural, Finito e Infinito são os dois interlocutores: pelo primeiro
fala a razão humana, o lume natural, e no segundo a sapiência sobrehumana, o preceito divino; cada um dos dois personagens predomina
nas duas seções do diálogo:19 primeiramente Infinito, com indiscutível
precedência, enuncia as regras fundamentais da convivência ideal,
enquanto Finito se limita a cautelosas objeções, a tímidas requisições
de explicações posteriores; depois de haver dado “leis civis” à república
“para as quatro partes divinas” (isto é, visando permear o corpo social das
quatro virtudes cardeais da prudência, temperança, justiça e fortaleza),
ele cede a palavra a Finito para que se ocupe das “outras quatro humanas
sobre a base da sanidade, da forma, da força e das riquezas”. Posto assim
A UTOPIA POLÍTICA NA CONTRA-REFORMA
sobre o seu terreno, Finito se reanima, defende com calor as próprias
teses, continua a reconhecer a supremacia de Infinito, mas não sem
acenos de independência e de crítica; é o próprio Infinito que reconhece
como sua “própria cognição a ciência das coisas humanas”, e a admitir a
suficiência “na advertência de tão útil matéria” da “prudência” ou lume
natural (ibid., p. 165). Finito, com a razão, cuida do útil, mas dentro dos
limites do dever imposto pela sapiência divina de Infinito: o utopismo
renascentista está em uma mudança de direção decisiva.
Para expor brevemente as estruturas da “república imaginária”,
convirá seguir de preferência a trilha de Finito, seja pela sua maior aderência
aos problemas especificamente políticos, seja porque, por azar, uma boa
parte do discurso de Infinito permanece até agora inédito no pouco
acessível códice pesarense.20 O primeiro argumento é o da “sanidade”,
sob o qual são tratados problemas higiênicos e sanitários, alimentares e
de abastecimento, urbanísticos e econômicos. Quanto à escolha do mais
idôneo local para a construção da cidade, Finito deseja apenas que ele seja
salubre e fértil, e as colinas da sua pátria lhe parecem lugar ideal: em paz
com a Igreja e com a própria consciência, Agostini não tem necessidade
de refugiar-se em ilhas imaginárias, o ar de sua casa lhe apraz, e são
os italianos de seu tempo que ele quer reformar, pura e simplesmente.
Depois que Infinito recomendou o desprezo pelos bens terrenos, e após se
mostrar tolerante com relação a uma modesta busca do bem estar, Finito
pode cuidar da organização das habitações urbanas: todas as casas devem
ser construídas com recursos públicos, com pelo menos duas fachadas,
expostas ao ar e ao sol, dotadas de esgoto e despensa, e que todo o povo
more junto, ficando nos planos baixos a plebe e nos superiores a nobreza.
Se um rico deseja uma residência separada poderá construí-la por sua
própria conta, mas segundo o desenho do “arquiteto da cidade”, que a
inserirá oportunamente no plano urbanístico geral: a fim de suprimir tolas
disputas ambiciosas, uma lei suntuária limitará a altura das construções
privadas ao nível comum. Cada casa terá uma face dando para a rua,
com comprimento de fachada pré-fixado, e terá nos fundos, indo até a
sucessiva avenida paralela, espaço para pátio ou jardim; quem quiser casa
mais ampla poderá ocupar tal espaço, mas não poderá estender a frente do
edifício, e em toda parte tais ampliações deverão ser ditadas pelo número
crescente dos familiares, e não pelo capricho. As casas serão construídas
segundo as regras da arte, amplas o suficiente para uma “família mediana”,
dotada de “toda comodidade necessária” (ibid., p. 167-170).
Disposições ainda mais rigorosas vigem no tocante ao
abastecimento; Infinito já havia estabelecido, “dando modo ao comércio
de todas as coisas”, que todos os preços do comércio no varejo fossem
fixados e sustentados pelo erário, e que tal comércio se desenvolvesse
exclusivamente no mercado público, com pesos e medidas controlados
pelo Estado; ainda que anunciadas de maneira geral, as providências
para a supervisão, principalmente das provisões, são justificadas com o
intento de livrar os pobres do sofrimento das carestias (p. 146). Por conta
própria, Finito agrega um controle público sobre a venda dos alimentos,
Curcio omitiu, na primeira
seção, toda a parte dedicada à
“prudência” e fração daquela
dedicada à “temperança”.
20
29
LUIGI FIRPO
21
Serão livres de restrições de
abastecimento os regulares
religiosos, os hospitais e os
enfermos; direito de dispensa
é concedida pelo prelado
ordinário por ocasião de
núpcias e outras festas. À
p.181 se especifica que cada
quarteirão da cidade deve ser
abastecido de dois centros
de distribuição de alimentos,
sendo indeterminado o número
das cozinhas públicas.
30
para garantir a sua sanidade, maturação e frescura, e quer o registro “em
mesas públicas, segundo a aprovação da nossa província” das qualidades
sazonais dos alimentos que deverão ser escolhidos; mas, não contente,
Infinito objeta que deste modo permanece ainda possível condescender
com a gula no recôndito das paredes domésticas, e docilmente Finito
concorda com as providências: se introduzirá antes de tudo a prática
oriental das cozinhas públicas, compostas de uma única sala aberta, para
completo controle, nas quais cozinheiros munidos de atestado público
de higiene e maestria confeccionarão e venderão os alimentos; para
todos os outros gêneros vigerá um credenciamento rigorosíssimo, pois
cada chefe de família receberá “do conservador público o atestado do
número da sua família”, e a ninguém será lícito comprar nem mesmo
um centésimo a mais.21 Entretanto, duas vezes por semana, todos os
adultos, excluídos os velhos e os enfermos, se alimentarão uma única
vez, observando um jejum parcial salutar (ibid., p. 170-3 e 180).
Severo quanto à alimentação, Agostini não brinca nem
mesmo sobre o tema “dos confortos e dos repousos”, visando tolher
“as comodidades supérfluas dos nobres e diminuir a indigência dos
pobres”. É verdade que não existirão pobres na república ideal, não
sendo tais “aqueles que pelo público serão em todas as suas necessidades
socorridos”, tanto assim que a mendicância será “interdita a todos”.
Ninguém, portanto, terá o direito de dormir mais de sete horas, de
deitar-se no leito senão à noite, de possuir colchão de penas ou mais
de um cobertor; sinais determinados indicarão as horas das refeições
e de repouso, e nos intervalos a isso destinados é proibido vagar pela
cidade sem um motivo urgente, “tanto de dia como principalmente de
noite”; em contrapartida, cabem “ao governador das armas” e aos “chefes
de bairro” percorrerem as ruas desertas ao som de tambores, pífaros,
tímpanos e trompas. É concedida uma hora para as refeições, com o
começo e o fim assinalados por três tiros de canhão, e enquanto dura,
“sobre os parapeitos dos palácios públicos” ocorrem “concertos de vozes
e de todo tipo de instrumentos” para alegrar os comensais; logo depois
todos retomam o trabalho, sendo o ócio concedido apenas aos doentes
e aos decrépitos; de uma meia hora de repouso suplementar gozam os
nobres e os “cientistas contemplativos” (ibid., p. 175-180).
Acurada é a organização sanitária: em todos os bairros da cidade
residirão um herborista e um médico “douto e prático”, que será sempre
acompanhado de um cirurgião; os médicos jovens deverão por um
qüinqüênio, na função de assistentes, seguir os médicos velhos, não
tanto para praticar a arte, mas principalmente para aprender a conhecer
a complexão dos habitantes do quarteirão: antes de tal término poderão
exercitar a profissão fora da cidade, ou ser conduzidos aos vilarejos, mas
dentre esses, cada médico ancião deverá escolher um jovem substituto,
que lhe permanecerá ao lado com adequado pagamento; o paciente que
o desejar pode recorrer ao médico de outro quarteirão, sendo inclusive
prescrito que nos casos graves sejam consultados todos os médicos da
cidade (ibid., p. 181-2).
A UTOPIA POLÍTICA NA CONTRA-REFORMA
Exaurido o tema da “sanidade”, Finito passa a tratar da “forma”
e estrutura política do Estado. Segundo o ensinamento de Infinito,
o regime ideal é o da aristocracia de base larga, temperada, entretanto,
pelo reconhecimento de alguns direitos para a plebe. Severamente
deplorado é o arbítrio exclusivista da oligarquia veneta,22 e deseja
“proclamar uma lei de completa e tremenda severidade contra aqueles
que, estando em igualdade de cidadania, no dizer ou no agir almejarem
qualquer marca de superioridade pela antiguidade de sua civiltà ”.
Eliminada toda e qualquer pretensão de supremacia da nobreza maior
sobre a menor, Infinito não quer que seja reconhecida outra proeminência
além daquela do magistrado sobre o ente privado e, entre privados, a
proeminência do mais velho: em particular, a supremacia da idade se
traduz na preferência que é dada ao mais velho na “república imperial”,
enquanto aos mais jovens cabem os encargos da “república exequial”;23
aos velhos cabe, em suma, fazer leis e ensinar, e aos jovens aplicá-las e
aprender (ibid., p. 152-4).
Dentre os gentis-homens, todos assim equiparados nos direitos
políticos e nomeados às vezes “senadores”, Finito deseja que se elejam
as seis magistraturas que governam a república, todas elas anuais “e não
mais”; todas “devendo mudar e fazer rodízio por ordem e número dos
senadores em infinito”. O primeiro magistrado é o “príncipe”, a quem
cabem meras funções representativas e de coordenação, além do direito
de graça para as penas corporais e pecuniárias mais leves; depois vêm
os “doze conselheiros” que compõem o “senado”, assembléia que tem a
faculdade da graça ilimitada, e funciona sob apelação (concedida apenas
por “evidência de erro”) contra a sentença dos primeiros juízes, como um
tribunal de segunda e última instância; as deliberações são tomadas por
maioria de votos, e oito reuniões mensais do senado são destinadas a tais
funções judiciárias. A terceira magistratura é a dos “juízes”, seis para as
causas civis e seis para as criminais, que deliberam também por maioria;
a quarta é a dos “doze tribunos” prepostos ao abastecimento; a quinta, a
dos “seis fiscais extraordinários” que supervisionam sobre a leal execução
dos comércios e das artes, cuida da repressão ao vício e superintendem
a moralidade citadina; a sexta e última é a dos “seis conservadores” que
possuem funções compósitas, têm assento como juízes de paz, compõem
litígios e matrimônios, superintendem à higiene, aos estabelecimentos
sanitários, à limpeza urbana, às instalações e aos serviços públicos. Todos
estes 49 magistrados se reúnem, para o exercício dos seus cargos, duas
vezes ao dia (ibid., p. 185).
Que dotes são requeridos para aspirar às magistraturas? Aqui
é novamente Infinito que dita as normas: não basta, para comandar
os outros, ser cidadão irrepreensível, respeitoso de todos os preceitos
negativos, mas é necessário possuir o dote positivo da valentia ou coragem,
que não é temerária audácia, mas fortaleza cristã, coração intrépido no
fazer o bem; a maior valentia não é a do soldado na guerra, mas aquela
que cada um experimenta na luta consigo mesmo, na resistência viril,
no rechaço das tentações, no viver como verdadeiro cristão: existe a
22
Confronte-se com aquilo
que acima apontava a respeito
do declínio do mito de
Veneza; Agostini cita três
vezes os ordenamentos da
Sereníssima (ibid., p. 147, 150,
152) e sempre com evidente
desaprovação.
23
Basta este exemplo para
mostrar a desenvoltura lexical
de Agostini.
31
LUIGI FIRPO
valentia civil, não menos heróica que a bélica, que resplende nas obras de
caridade, no ensino aos ignaros, no aconselhamento dos que padecem de
dúvidas, no consolo dos aflitos, na ajuda aos necessitados, na recondução
dos errantes. No exercício de tais virtudes deverão ter excelência os
governantes da república (ibid., p. 161-4).
Quanto à modalidade de suas eleições, Infinito quer que ocorra
em primeira seleção “por pública aclamação”, anotando-se em fichas os
nomes daqueles que “serão considerados dignos”, designados assim por
uma genérica vox populi, por uma boa fama bastante vaga: tal procedimento
deve dar, logicamente, antes exclusão que escolha, conduzindo a uma
eliminação preventiva dos indignos; os nomes dos sobreviventes depois
desse primeiro peneiramento, colocados na urna, são em seguida confiados
à designação da sorte (ibid, p. 148-9). Os camponeses e os artesãos não
participam da direção da coisa pública, mas também não vivem naquela
condição de servidão que Patrizi considerava ideal; aos agricultores é
reconhecida para “cada castelo” uma “congregação de universalidade”, isto
é, uma personalidade jurídica coletiva para as circunscrições territoriais
particulares, cada uma das quais dispondo de um procurador na cidade
para a tutela de seus interesses. Do mesmo modo cada arte constitui na
cidade uma corporação igualmente reconhecida, cada qual com o seu
“tribuno” e com seu “protetor e procurador com grau de nobreza”. Tanto
as “universidades” agrícolas quanto as “fraternidades” de artesãos cuidam
da preparação técnica dos seus membros, vigiam para “que católicos
sejam, e de boa vida, condição e fama”, indenizam com fundos comuns
os danos sofridos por cada um por furto, e ressarciam em moeda sonante
os danos causados a terceiros por um de seus membros, se o culpado
permanecer ignorado (ibid., p. 154 e 200).
Finito volta-se então para tratar do terceiro ponto, isto é, da
“força”, sob a qual recolhe o conjunto dos problemas militares. Seja,
portanto, o terreno da cidade adequado para uma fortificação eficaz,
dispondo de água de moinho, com abundantes estoques de víveres e
de munições, provido de armas brancas, de fogo e de defesa; milhares
de cidadãos escolhidos mantenham-se prontos para combater a cavalo,
a pé os outros, sem exceção nem por idade nem por cargo; todos os
aptos para as armas devem reunir-se uma vez ao mês, nos lugares e sob
os “mestres” designados, para parada e exercício. Infinito não deixa de
exortar a que se confie mais nas armas do espírito do que nas materiais,
mas Finito se justifica com o “ajuda-te que Deus te ajudará” (ibid., p. 187190). Em tal sentido torna-se esclarecedor, para iluminar o espírito que
anima a obra como um todo, trazer à mente uma precedente disposição
de Infinito: todos na república imaginária devem ser soldados, mas
sendo previsto que entre estes exista uma ordem distinta, com o “grau
militar” conferido apenas a quem houver completado um dos quatro
empreendimentos seguintes: ter guerreado por cinco anos contínuos sob
estipêndio de “príncipes que por ordem ou adesão ao Santo Pontífice”
movam as armas contra hereges ou infiéis: ter defendido a pátria com a
mão, a língua ou o senso; ter libertado um cidadão das mãos dos infiéis
32
A UTOPIA POLÍTICA NA CONTRA-REFORMA
ou dos inimigos; ter enfim salvado uma mulher de boa fama da violência
“de desenfreados luxuriosos” (ibid., p. 161): não é, portanto, a destreza
das armas que assegura a dignidade militar, mas a nobreza das intenções,
a dedicação à causa do bem.
O último argumento de Finito é o das “riquezas”, o mais delicado
e complexo, pois implica a inteira estrutura econômica do Estado. Três
são as fontes da riqueza segundo Agostini: agricultura, comércio e
indústria,24 razão pela qual a prosperidade da república será assegurada
por “três leis afirmativas e três negativas”. Vejamos, antes de mais nada,
a lei agrária: tendo por pressuposto que o território do Estado deve ter
amplitude e fecundidade, para assegurar a independência com relação
ao exterior no que tange aos produtos da terra, e reconhecido aos nobres
apenas o direito de possuir terrenos, é estabelecida taxativamente a
exploração racional do solo, com culturas obrigatórias prescritas “pelos
mestres dos campos assalariados do poder público, e pelos arquitetos”;
para tais funcionários é prevista uma vasta e acurada preparação nas
ciências agrárias; o proprietário que careça de capitais para investir nas
melhorias oportunas recorre sobretudo ao erário, que provê até mesmo a
sua manutenção, pagando depois com as colheitas (ibid., p. 193-4).
A troca mercantil é atividade própria do “cidadão não senador”,
isto é, daquela burguesia abastada que não pode participar da vida pública,
mas desdenha das artes manuais: Agostini deseja que fique neste ponto
diferenciado o comércio de importação (lícito apenas para introduzir no
território colheitas agrícolas que nele não sejam produzidas ou que sejam
insuficientes) e aquele exercido com fins especulativos, entre um e outro
mercado exterior. O primeiro é vinculado a um rigoroso protecionismo,
tanto que as mesmas mercadorias de importação autorizada devem ser
vendidas a um preço estabelecido pela autoridade; já o segundo é livre,
e claramente encorajado pelo Estado, que envia aos maiores mercados
mundiais hábeis cidadãos abastecidos com dinheiro privado e público,
mas que depois avoca para si todo o lucro daquelas operações.25 Os riscos
inerentes ao transporte de produtos serão cobertos por seguros mantidos
exclusivamente por banqueiros estrangeiros, para evitar as eventuais
crises decorrentes do prejuízo de um assegurador concidadão; por outro
lado, o originário caráter de ilícito moral do lucro mercantil será sanado
destinando um décimo dos lucros ao resgate dos escravos cristãos
das mãos dos infiéis. A honestidade comercial deverá ser observada
escrupulosamente; “avaliadores públicos” controlarão qualidade,
genuinidade e preços das mercadorias; a habitual desonestidade dos
juízes de “perdas” será extirpada; juízes, notários e avaliadores serão
escolhidos mediante o costumeiro sorteio, inclusive entre os não nobres,
mas “entre os melhores e os mais cientes e práticos”; os fraudadores
serão punidos com o “exílio perpétuo” (ibid., p. 195-98). O comerciante
forasteiro será acolhido e bem tratado, podendo introduzir qualquer
mercadoria da qual a cidade seja privada e vendê-la a preço livre, visto
que ninguém será obrigado a comprá-la se não lhe convier, mas não
poderá fixar residência estável no território da república para exercer
24
Conceito notável, que
supera o preconceito segundo
o qual apenas a terra produz
riqueza, e reconhece a função
valorizadora do trabalho:
trata-se de um ponto de vista
não originalíssimo (entre
nós, por exemplo, Botero o
sustentava naqueles anos),
mas no século XVI e mais
tarde não era coisa comum.
25
No texto a afirmação tem
caráter absoluto: se deverá com
toda plausibilidade entender
que o Estado avocará para
si o lucro excedente uma
pré-estabelecida e equânime
margem de lucro, já que
faltaria em caso contrário
todo incentivo à atividade
mercantil. Tal é por outro lado
o critério habitual que regula a
intervenção estatal em matéria
econômica na “república
imaginária”.
33
LUIGI FIRPO
as suas trocas (ibid., p. 197): é essa norma geral imposta por Infinito
aos forasteiros, dispondo que sejam “respeitados e em toda coisa e lugar
bem tratados”, mas excluídos de todos os cargos públicos, consentindo,
porém que “por residência continuada”, nos termos estabelecidos pela lei,
possam conseguir a cidadania (ibid., p. 149 e 152). A preocupação que
dita essas normas é com a desunião, com o cosmopolitismo agnóstico
diante dos ideais da pátria ou da coletividade, que Agostini afirma com
acalorada convicção: “me refiro a povo, e não desunido”; quer ditar os seus
preceitos e pretende “acomodar não as ações particulares nos indivíduos
dos homens, mas num corpo universal da república” (ibid., p. 146-7).
A terceira fonte de riquezas são as indústrias “de ciências e
de artes”, aquelas abertas a todos, próprias do “trabalhador mecânico
plebeu” (ibid., p. 193). Essa colocação no mesmo plano das “artes nobres
e mecânicas”, consideradas no mesmo plano como simples atividades
econômicas (ibid., p. 199) não deve surpreender; Agostini não mostra a
mínima consideração pelos estudos e pelas artes – excluída a música por
seus reflexos sociais – e os ideais humanistas são nele completamente
apagados: nenhuma palavra pode ser dita sobre os ordenamentos
escolásticos da sua república, e a sua tese cardeal é “que aos jovenzinhos
se deve ensinar nas escolas públicas mais os exercícios das virtudes morais
que as ciências das artes liberais” (ibid., p. 181); mestres e professores não
comparecem à cena, mas são instituídos os “preceptores dos costumes”,
que ensinam aos discípulos a modéstia da compostura (ibid., p. 148).
O moralismo intransigente, aqui, realmente apaga os mais altos valores
da Renascença.
Na cidade, todas as artes não infames serão consideradas não
ignóbeis, e todas elas deverão ser exercidas, de forma que apenas os
gêneros de luxo devam ser importados, e ao pobre seja lícito abastecerse do necessário no próprio local onde mora. Sendo o ócio banido com
todo rigor, todo cidadão, quando chega ao décimo quarto ano, deve
escolher para si uma profissão: as artes liberais ou as armas, o comércio
ou o artesanato; quem se coloca neste último caminho entra a fazer
parte de uma corporação, situada em um bairro para que a vizinhança
do trabalho gere emulação, sob a vigilância técnica e moral de um “chefe
de bairro”; prêmios públicos são entregues a quem ascende a grande
excelência na sua arte. Inclusive os preços dos produtos industriais
são estabelecidos pelo Estado, com cálculos periódicos que levam em
consideração os custos das matérias primas, e reservam ao trabalho uma
equânime remuneração, da qual – deduzidas as despesas de alimentação
e vestuário – um dízimo será descontado em benefício dos pobres
(ibid., p. 199-201).
A regulamentação negativa não repete a correspondência
simétrica da positiva, que organiza a produção da riqueza. A economia
rigorosamente controlada que Agostini auspicia visa sanar a praga do
pauperismo: toda especulação é vetada, toda mercadoria que o produtor
não vá consumir é cedida ao Estado “a justo preço”, para ser por igual
preço revendida aos necessitados; severa é a proibição da usura e das
34
A UTOPIA POLÍTICA NA CONTRA-REFORMA
suas “invenções satânicas”; obrigatório o registro em recenseamento
público da faculdade de todos os cidadãos, com anotação diária das
variações e penas severas aos transgressores; fiscalizada a instituição
de um montepio, financiado pelo Estado, que empresta gratuitamente
sob penhor ou hipoteca (ibid., p. 204-7). O mesmo cuidado posto no
socorro do pobre é dedicado a evitar o desperdício do rico: leis suntuárias
severas erradicam as pompas e o jogo, “duas principais portas da pobreza
infame dos homens”, e nem mesmo a dança é permitida; malgrado as
insistências de Finito, que deseja salvar algumas distrações honestas,
Infinito se mostra intransigente (ibid., p. 179 e 207).
A coroar este edifício ideal estão os supremos valores religiosos.
Para Infinito a hierarquia é esta: antes de tudo honrar a Deus, depois
a honra do mundo, depois a vida, e por último os bens de fortuna; a
religião inspira e vigia cada ato dos cidadãos e é, no coração da “república
imaginária”, uma religião inteiramente histórica e positiva: o catolicismo
romano, com características do mais intransigente exclusivismo; aos
judeus, cismáticos e infiéis estão fechadas as portas da cidade ideal
(ibid., p. 175). Pela manhã, antes de dedicar-se ao trabalho cotidiano,
todos devem assistir à missa (ibid., p. 147); depois da hora destinada
à refeição os sinos “soam nove toques melancólicos e distintos em
comemoração às almas dos mortos”, e está sujeito a graves penas quem
então não se ajoelhar em oração (ibid, p. 176); toda corporação de ofício
é devotada a um Santo protetor (ibid., p. 155); todas as maiores ordens
religiosas possuem conventos na cidade, e neles são preparados “doutos
e fervorosos” missionários (ibid., p. 196). Tido em grande honra é o
sacerdócio: os seus membros devem andar ornados daquelas mesmas
virtudes que distinguem os magistrados (ibid., p. 161), gozam de isenção
das normas de abastecimento (ibid., p. 173), compondo uma hierarquia
espiritual que se iguala à civil com acentuado paralelismo e não menores
poderes (ibid., p. 185-6). Ao lado do príncipe está o bispo, que recebe
diariamente os párocos da cidade – um por quarteirão (ibid., p. 181) –
e uma vez ao mês aos da diocese, para ouvir e resolver todos os casos de
sua competência; em analogia com o “senado” civil, tem assento ao lado
do bispo o capítulo dos canônicos da catedral, cujos membros cumprem
inspeções periódicas à diocese depois que o bispo a tenha visitado pelo
menos uma vez ao ano; junto ao tribunal laico está o eclesiástico, não
reservado ao julgamento dos religiosos, mas competente para punir
todos aqueles cidadãos que “presumivelmente farão coisa que à honra
de Deus e da Igreja católica seja contrária” (ibid., p. 159); os mesmos
canônicos, à semelhança dos tribunos, cuidam para que aos pobres não
falte o necessário (ibid., p. 205); outros prelados, à semelhança dos fiscais,
vigiam a boa fé dos contratos e a repressão da usura; outros enfim, à
guisa dos conservadores, cuidam de reconduzir ao rebanho os pecadores,
de pacificar os inimigos, de converter os infiéis, de reconciliar as famílias
desunidas, de reprimir em todo o território o vício, o jogo, a blasfêmia.
Esta é a “república ideal” de Agostini: um texto escrito
deliberadamente para comprazer o historiador, tal é a clareza com a
35
LUIGI FIRPO
qual nele se lê, linear como um paradigma, o encontro dos dois motivos
típicos do Renascimento italiano. A Contra-Reforma intransigente, o
moralismo rigoroso, malgrado certos aspectos extrínsecos e formais, a
defesa em excesso de todas as posições da Igreja católica, o exclusivismo
tão fervoroso que chega a ser injusto e mesquinho, são questões presentes
nestas páginas: e, no entanto, apesar da reação maciça e da limitação
própria do homem, que neste pequeno episódio se tornam expoente,
evidenciam, contudo a vitalidade tenaz de alguns temas renascentistas,
que sobrevivem no novo clima. Agostini se mostra completamente
insatisfeito com o mundo que o Cinquecento estava forjando, no qual não
vê senão “confusão infernal”, mas não é pessimista nem fanático: não
propõe nenhum despotismo, nem mesmo com a finalidade de obtenção
do bem. Com seus remédios ele não pretende “violentar nem um fio
de cabelo do livre arbítrio dos homens”, convicto como é de que todo
mal é culpa do “mau hábito”, que o vício outra coisa não é que costume
maldoso, confiando que “o arbítrio dirigido pela razão facilmente se
curva à eleição do seu melhor”, e com o bom costume o homem pode
“mais prontamente e quase que naturalmente fazer aquilo que, fora do
hábito, parece não menos difícil que contrário à natureza” (ibid., p. 147).
Palavras que se poderia esperar serem repudiadas permanecem no auge:
“razão”, “natureza”. Na realidade, ambas sobrevivem, desde que aceitem
a posição de Finito; continuam simplesmente a procurar soluções, e
cogitar sistemas, mas prontas a acolher como verbo indiscutível a força
de Infinito. Desde que seja respeitado até o último iota da revelação,
ninguém sonha em repudiar a razão: o racionalismo, que antes passeava
a céu aberto, e da cidade terrena ascendia até contemplar o mistério
de Deus, agora se move em um horizonte fechado de postulados que
transcendem toda investigação e discussão.
Isso dá a Agostini a sensação de mover-se não em uma prisão,
mas de seguir uma pista: a Igreja lhe fornece norma ética e direção
social, modelos de hierarquias eletivas e impulsos de caridade fraterna.
Cai o comunismo, mas a propriedade sofre limitações esmagadoras;
perdura o preconceito aristocrático, mas direitos fundamentais são
reconhecidos para as classes mais humildes. Questões de severo
ascetismo se casam com um espírito operoso, com um sentido vigilante
dos problemas concretos; o sucesso mundano não é desprezado desde
que o fim contingente não afaste o temor de Deus, sendo este um
outro aspecto típico da religiosidade da Contra-Reforma, mortificada
e ao mesmo tempo ansiosa por conquistas práticas, incapaz de uma
verdadeira renúncia ao mundo. Como bem observou Curcio (1944,
p. 116), nesta teocracia com fundo social o século tenta conciliar burguesia
e filantropia, capitalismo e caridade, bem-estar na terra e salvação das
almas no céu; mas o espírito realmente novo que anima essas palavras
relativas às utopias renascentistas é a fulgurante luz da caridade cristã,
o sentido do vínculo posto na consciência antes que na lei, a certeza de
que a felicidade não está nos bens materiais, mas na virtude: finalmente,
é evidente que a reforma do homem interior é pressuposto necessário
36
A UTOPIA POLÍTICA NA CONTRA-REFORMA
à reforma da sociedade. Seria muito fácil agora dissecar esta cidade
ideal, colocar em evidência a fragilidade de certas conexões, a artificiosa
economia, o regime da meticulosa caserna, a tétrica e interminável série
das jornadas de trabalho sem distração nem pausa; ponto particularmente
débil, que provoca em Finito uma preocupada interrogação (CURCIO,
1941, p. 186), é o da convivência entre duas hierarquias, a interferência
contínua do poder civil no poder religioso, a cotidiana sobreposição das
jurisdições: mas aqui, como em outros pontos, Infinito é otimista: uma
e outra magistratura viverão “concordes como Aarão e Moisés”, sem
sombra de atrito. Cândida ingenuidade, mas ainda com fé na celeste
inspiração que guia a pia comunidade nos caminhos da paz concorde,
sanando os defeitos das instituições e as imperfeições dos homens.
4. A Cidade do Sol no sistema de Campanella
Se a nova época é refletida nas páginas de Agostini como em
um espelho fiel, o mais evidente anacronismo parece caracterizar
as de Campanella; a Città del Sole, escrita em 1602, publicada em
1623, reimpressa ainda pelo autor em texto definitivo em 1637,
irmã das utopias renascentistas que a precedem de quase um século,
ignora o longo trabalho da reforma católica, e propõe novamente –
aparentemente intactos – os velhos temas do comunismo dos bens e
do naturalismo religioso, juntando-se às propostas extremistas de
Doni no tema do comunismo sexual. Platão e Morus são de fato os
modelos que inspiram o stilese26 com explícitas referências, e o Mondo
savio e pazzo, mesmo não sendo citado expressamente, certamente está
entre as suas fontes, visto que Campanella pôs em versos o conto da
epístola do proêmio, compondo um soneto não desprovido de amargas
alusões autobiográficas.27 Para não ir além do aspecto religioso das
cidades solares, é inegável a redução das crenças ao mero deísmo,28 com
uma extensão máxima da investigação racional: à devoção genérica
ao Criador (CAMPANELLA, 1941, p. 73), à crença na providência
divina, na imortalidade da alma, na recompensa e na condenação no
além (ibid., p. 79), alicerce da religião de Utopia, os solarianos somam
até mesmo a racionalização do mistério da Trindade (ibid., p. 106),
mas cada aspecto positivo e dogmático é excluído rigorosamente.
O culto compreende a oração individual (pela manhã “fazem a oração
brevíssima voltados ao levante, como o Pater noster”)29; a oração coletiva
no templo, decorado como refiguração do universo (ibid., p. 57-58), é
realizada pelo sumo sacerdote30 voltado para os quatro pontos cardeais, e
depois outra mais longa, ao zênite (ibid., p. 98); enfim a oração continua
com os 24 sacerdotes-astrólogos, que fazem orações por uma hora cada
um por turnos (ibid., p. 96). Não se adora nenhuma criatura, o próprio
sol é honrado apenas como imagem sensível de Deus (ibid., p. 100),
e é tão grande o temor da idolatria que os cadáveres são cremados
(ibid., p. 97); o sacrifício incruento dos voluntários, que para expiação
Campanella é natural da
pequena cidade de Stilo,
Calábria. N. do T.
26
É o soneto Senno senza forza
de’ savi delle genti antiche esser
soggetto alla forza de’ pazzi
(in CAMPANELLA, 1939,
p. 37). À parte o regime
sacerdotal, que tem em
Campanella motivos bem
íntimos, são evidentes os ecos
de Doni na Cidade do Sol: a
estrutura circular da cidade,
as avenidas radiais, o grande
templo central com cúpula, etc.
27
Para todas as citações me
refiro à edição curada por
N. Bobbio, 1941.
28
Conf. à p. 89; recorde-se
também a oração especial para
ter prole excelente (p. 71) e o
costume de “depois de comer
rendem graças a Deus com
música” (p. 97).
29
Que possui vestes sacerdotais
simbólicas e de várias cores,
como na “Utopia”.
30
37
LUIGI FIRPO
31
Milenarista (N. do T.)
38
coletiva se sujeitam a um rigoroso ascetismo, é o único admitido;
vige a confissão pública e anônima com intenções mais ético-sociais
que religiosas (ibid., p. 95-6). O regime teocrático dos solarianos está
aparentemente em contraste com essa redução racional da religião:
“todos os oficiais são sacerdotes”, diz Campanella (ibid., p. 95), e o
“chefe de todos em nível espiritual e temporal” é um príncipe sacerdote,
chamado Sol (ibid., p. 59), que acima de todos brilha pela vastidão de
saber e que, via de regra, é escolhido entre os 24 religiosos do templo
dedicados à oração e à reflexão (ibid., p. 96). A contradição aparente se
desmancha quando se percebe que esse sacerdócio, investido de poder
político, deve o seu prestígio à própria sapiência metafísica, à própria
experiência histórica e técnica, com antecedência à impecável conduta
moral, e certamente não ao seu ministério - ainda que o distinga uma
ordem sacramental e uma investidura divina. O termo teocracia torna-se
impróprio para tal regime de probos filósofos, antes de tudo sacerdotes
da augusta verdade, e não de uma religião positiva.
Naturalismo e deísmo são, na Cidade do Sol, o aspecto evidente,
a primeira casca: para inserir a opereta sob este ângulo visual na história
das veleidades reformadoras expressas em forma utópica, isto é, naquela
linha que acima busquei expressar com continuidade e coerência, não
existiria outro caminho além daquele há pouco indicado: reconhecer o
patente anacronismo e tentar depois justificá-lo. Coisa não difícil para
um homem como Campanella, que sob alguns aspectos nos parece estar
fora de seu tempo, sempre envolvido com idéias superadas ou então
prematuras, precursor ou reacionário, mas sempre em posição singular
no quadro da história presente. Por toda a vida ele levou consigo essa
marca da sua formação juvenil, amadurecida em um duplo exílio: a
da Calábria nativa, supersticiosa e remota, excluída dos centros vivos
da cultura, e a marca do claustro dominicano, com seus opressivos
esquemas escolásticos. Na evasão desses limites Campanella vai, com
fervoroso ímpeto, superar o alvo: Nápoles, Roma, Florença e Pádua
lhe parecem faróis do saber a serem alcançados a qualquer custo, a
intolerância disciplinar torna-se rebelião, a ânsia de livre investigação
filosófica gera a dúvida religiosa, e ao fim negação altiva. Temas ideais
já exauridos, como o platonismo da Academia florentina, o alcançam
com atraso, com sugestões isoladas ainda mais perturbadoras e febris;
magia e astrologia, profetismo e expectativa quiliástica31 nele fermentam
como heranças espirituais remotas da sua terra, colocando-se lado a lado
em absurdo sincretismo com a investigação positiva, o racionalismo
naturalista, os esquemas aristotélico-tomistas. De elementos tão
disparatados e irreconciliáveis nasce uma imagem típica de Campanella,
que de modo fascinante estimulou muita crítica, inclusive recente, e
que não é desprovida de fundamento, desde que não se queira nessa
imagem resumir todo o Campanella, e nem mesmo o Campanella mais
genuíno. Aquela figura rebelde, tumultuada e ávida, pode corresponder,
grosso modo, ao jovem fugitivo de ‘89 e de ’92, ao processado de ’94,
ao conjurado de ’99; e já se sente, admitindo isso, como fica inadequado
A UTOPIA POLÍTICA NA CONTRA-REFORMA
um esquema necessariamente simplista em um decênio intenso, de
evolução rapidíssima. Depois, no cárcere napolitano, principalmente
na “fossa” de S. Elmo, outro é o homem que encontramos diante de
nós, e uma análise bem mais sutil será necessária para penetrá-lo. Isto
significa que explicar a Cidade do Sol como fruto tardio do racionalismo
humanista seria a redução de Campanella a um perpétuo anacronismo,
seria identificar nele nada mais que um último e solitário reformador,
iludido e disfarçado ao mesmo tempo, ora satisfeito com seu cauteloso
nicodemismo, ora ingenuamente confiante em poder, por dentro,
desmantelar a instituição eclesiástica até anular a Igreja na negação de si
mesma, o dogma do deísmo.
Torna-se evidente, portanto, que não convém tentar uma
interpretação isolada da Cidade do Sol, se não for por outro motivo,
pelo fato de que nestas conhecidíssimas páginas muitos críticos
acreditaram encontrar a chave exegética do pensador por inteiro,
reduzindo todo o Campanella ao mito solar; é preciso, ao contrário,
assentar sobre base documental bem mais ampla as diretrizes do
sistema campanelliano e, portanto, nele inserir apenas como parte do
todo o “dialogo di propria repubblica”. Para tal fim é necessário, antes
de qualquer coisa, desembaraçar o campo de antigos preconceitos:
não ficou sem graves conseqüências no plano teórico, por exemplo,
a interpretação psicológica de Campanella delineada pelo seu maior
biógrafo, Luigi Amabile (1882; 1887), autor de uma “vida” do stilese
que é ainda hoje insubstituível viático para toda primeira aproximação
do assunto. O insigne médico napolitano, anti-clerical e positivista,
foi leitor tão pouco atento aos textos campanellianos, sob o aspecto
especulativo, quanto foi escrupuloso indagador de cada episódio
biográfico, chegando porém a uma interpretação parcial e deformada.
Recolocando a chave do sistema campanelliano na utopia solar, lendo
nela o esquema programático da revolta calabresa de 1599, dissolvendo
na vaidade conceitual e na mortificação moral de uma metódica
simulação cautelar todas as páginas não redutíveis àquele módulo,
Amabile esgota Campanella no naturalismo religioso, conclui a sua
viva especulação às portas do Seicento, anula os operosos quarenta
anos nos quais ele pensou e infatigavelmente escreveu, acorrentando-o
numa paciente e estéril ficção oportunista, visando manter válidos os
postulados da religião sem dogmas e do racionalismo naturalista, dentro
do hostil ambiente da Contra-Reforma. Para fazer cessar a perseguição
e para inviabilizar as novas suspeitas, Campanella teria mentido por
oito lustros. Prolongando assim o momento localizado e justificado
da simulação confessada (a loucura fingida para salvar a vida) para a
totalidade da existência do filósofo, Amabile, que tão apaixonadamente
lhe exaltava a força de ânimo e a grandeza moral, minava as próprias
bases do seu edifício. O sacrifício das convicções profundas à cautela
prática não é outra coisa senão mortificação e negação de si mesmo, a
pertinaz mentira exterior não guardando a tutela do verdadeiro interior,
mas a extinção do verdadeiro no falso, a redução do ser ao não ser.
39
LUIGI FIRPO
32
Conf. AMERIO (1941,
p. 557). A tese de Amerio
é exposta com largueza nos
ensaios seguintes: Ritrattazione
dell’ortodossia campanelliana,
“Rivista di filosofia neoscolastica”, XXI, 1929, p.
410-430; Le dottrine religiose di
T. Campanella, ivi, XXII, 1930,
p. 435-461; La diagnostica
della religione positiva in T.
Campanella, ivi, XXIV, 1932,
p. 174-179; Di alcune aporie
dell’interpretazione deistica
della filosofia campanelliana, ivi,
XXVI, 1934, p. 605-615; Il
problema esegetico fondamentale
del pensiero campanelliano, ivi,
XXXI, 1939, p. 368-387.
40
Consciente da insustentabilidade de tal tese à luz de uma mais
larga experiência textual, Blanchet (1920), colocado diante da vasta
e coerente sistematização do pensamento campanelliano maduro,
posterior às páginas deísticas e naturalísticas, admitiu por sua vez a
sinceridade da filosofia religiosa do segundo Campanella, aquela que
localiza no cristianismo o valor supremo; mas tentou resolver a segunda
posição na primeira, atribuindo ao stilese a convicção da equivalência do
seu cristianismo positivo, oportunamente simplificado e purificado, com
a religião natural da Cidade do Sol. Campanella teria assim permanecido
no seio da Igreja na ingênua esperança de poder reduzir o catolicismo
ao deísmo com uma reforma progressiva, interna e pacífica, tentando
um absurdo “sincretismo monstruoso entre o dogma e a sua negação”
(AMERIO, 1941, p. 557). Se a velha tese retirava Campanella da
sua missão, a nova reduz esta missão a divagação ilusória, fruto de
ingenuidade pueril e de crassa ignorância.
Além dessas posições, por muito tempo os estudiosos italianos,
inclusive aqueles bem mais versados em questões filosóficas que Amabile,
não souberam como proceder: os maiores entre esses, crescidos na
escola idealista, com particular correspondência de ressonância interior,
procuraram e iluminaram em Campanella as posições imanentistas, a
racionalização dos dogmas, os pontos de mais obstinada discórdia com o
magistério eclesiástico: elementos que no seu espantoso corpus, tão variado
nos motivos e nos tempos, são fáceis de isolar, para recompor depois em
unidade fictícia, em arbitrário sistema. O núcleo vivo do pensamento de
um filósofo não é um mosaico de sentenças aparentemente concordes,
mas o sentido último de seu filosofar, o epílogo daquele itinerarium
mentis que nenhuma de suas etapas renega, mas a todas supera numa
linha evolutiva – às vezes intrincada e ondeante – para assumir apenas
na foz o seu significado definitivo.
À luz de uma exploração rigorosíssima das fontes, estendida pela
primeira vez inclusive nos fundamentos inéditos da maturidade,a Theologia
e o Reminiscentur, Romano Amerio ofereceu uma bem mais coerente e
persuasiva chave exegética: a da evolução campanelliana, já operante na
época juvenil – “quando ignorei e neguei”, recorda Campanella (1939,
p. 125) – mas tornada trabalhosa e dramática nos anos imediatamente
posteriores ao processo napolitano, quando a completa falência prática,
a morte e dispersão dos companheiros, o próprio aniquilamento físico
da prisão sem saída, induziram o pensador a rever as próprias posições
de audaz messianismo individual, a intrépida segurança do inovador
inspirado chamado à grande gesta dos vaticínios e dos presságios
astrais. No desabamento da antiga soberba, na mortificação do orgulho
fraturado, as convicções originais permanecem: a renovação do século,
a purificada república reconduzida às leis da natureza, a monarquia
universal da idade de ouro vindoura: mas o radical materialismo juvenil
amadurece, reconhecendo “como a razão lê não mais de fora ou contra,
mas dentro da religião revelada a realização de si mesma”.32 Mais do que
de conversão, com aquele tanto de antítese e de negação do passado que
A UTOPIA POLÍTICA NA CONTRA-REFORMA
o termo poderia implicar, pode-se falar de iluminação reveladora, de
alegre reconhecimento de uma identidade na qual se resolve o antigo
dissídio entre fé e razão. A doutrina do Cristo Primeira Razão, isto é,
a racionalidade humana entendida como emanação do Verbo, conciliando
natureza e sobrenatural, filosofia e dogma, aplaca finalmente a tumultuosa
ânsia especulativa de Campanella, e torna-se fulcro do seu sistema
definitivo; com o Recognoscimento filosofico della vera universale religione
(1605) ele inicia a radical apologia do cristianismo à qual dedicará o
melhor da sua maturidade, certo então de servir verdadeiramente à
própria missão arcana que havia subentendido e desnaturado nos anos
do erro juvenil.
Malgrado a largueza da documentação em parte inédita e a
coerência das argumentações, a tese de Amerio encontrou obstinadas
resistências, inspiradas pelo seu próprio caráter revolucionário com
relação às opiniões correntes, e da injustificada suspeição de tendenciosa
reivindicação confessional. É certo que o diligente editor recente da
Cidade do Sol, Norberto Bobbio, preferiu não levá-lo em consideração
e retornar à interpretação psicológica de Amabile, reafirmando que o
único modo de entender o texto campanelliano consiste em inseri-lo
na biografia do seu autor, lendo não o evangelho revolucionário do
conspirador, mas a idealização póstuma, depois do desengano avassalador,
da conjura calabresa miseravelmente falida no plano da história e
resgatada, portanto, em estéril idolatria entre as nuvens do ideal. Neste
aprofundamento de uma tese não nova Bobbio colocou de seu aquela
coerência que faltou a Amabile: reconduzindo o único Campanella
sincero à Cidade do Sol, todo o resto da sua vida e da sua obra se esgota
na ficção oportunista, a aura de heróica grandeza moral se dissolve,
ficando o cínico e despudorado mentiroso, o visionário petulante, o
orgulhoso e obstinado reformador puerilmente iludido de ser chamado
a agir no coração daquela história, destinada a esmagá-lo, ignorando-o.
Se a este denegrir sistemático do homem se somar a não menos radical
subestimação da sua obra, julgada impiedosamente por Bobbio como
fraquíssima e fútil, desordenada e mesquinha, outra coisa não nos resta
além de perguntar se realmente valia a pena dedicar àquelas páginas toda
uma amorosa paciência, uma iluminada cautela que um sério trabalho
filológico requer, e que Bobbio de fato realizou com rigor exemplar.
Apenas reduzida dessa maneira às suas mais extremas conseqüências
a tese da simulação tornou evidente as suas aporias, constringindo a
crítica a um esforço interpretativo mais coerente, voltado não mais a
sublinhar as contradições aparentes do pensamento campanelliano para
melhor contrapor a convicção íntima à enunciação oportunista, mas
empenhado, ao contrário, em conciliar tais contradições resolvendo-lhe
na unidade viva do pensamento, que ao aprofundar-se se altera e não
se renega: preciosos são, neste sentido, um último ensaio de Amerio
(1944, p. 28-59) e duas importantes contribuições de Solari.33 Tratase de duas direções interpretativas que, sem propriamente coincidir,
convergem, e podem já – resolvidos os aparentes pontos de atrito e
33
Conf. SOLARI (1941
(e também a resenha do
mesmo in “Atti dell Accad.
delle Scienze”, Torino, vol. 77,
1941-2, p. 4-14; 1946).
41
LUIGI FIRPO
oportunamente integrados na argumentação – constituir base segura
para uma exata definição do pensamento campanelliano. A tal resolução
e integração visam as poucas páginas seguintes.
5. Auto-interpretação evolutiva do mito solar
Pedra de comparação:
no sentido de “termo de
comparação” (N.do T.).
34
35
Veja-se a carta de Valori a
Ferdinando I de Medici in
CAMPANELLA (1854,
Vol. I, p. LXXV-VI).
36
Para informações externas
sobre a obra indico FIRPO
(1940, p. 177-8). A data,
suspeita de oportunista
retro-datação nas citações
tardias, pode, no entanto
tomar-se como certa, porque a
Monarquia é citada cinco vezes
em CAMPANELLA (1911,
p. 99, 149, 152, 159, 172) e
quatro em CAMPANELLA
(1944, p. 95, 130, 133, 184).
42
O problema político e o religioso são completamente estranhos
– como se sabe – aos horizontes fechados da primeira especulação
campanelliana; colocado em contato com o saber livresco nos claustros
calabreses, o stilese, adolescente, percorre o curriculum studiorum
prescrito aos noviços, comentando os compêndios escolásticos de lógica,
a Physica e o De anima aristotélicos. O seu primeiro interesse é, portanto,
gnosiológico e ontológico, e é um interesse que a sistematização deixa
insatisfeito, em um crescendo de interrogações reprimidas, de desafio
aos superiores, de intolerância disciplinar. A aspiração de Campanella é
a de poder colecionar indistintamente todos os ditames do pensamento
antigo – somados aqueles excluídos da sistematização aristotélicotomista – e de poder saborear aquelas sentenças à luz da experiência
sensível sobre a única pietra de paragone34 não ilusória, o livro vivo da
natureza. A entusiástica adesão a Telésio coloca um ponto firme naquela
primeira busca tumultuosa, cristalizando em forma imediatamente
definitiva a física de Campanella e provocando indiretamente a sua
ruptura com a ordem dominicana. É certo, entretanto, que em meados
de outubro de 1592, quando o stilese expõe em Florença a Bacio Valori
as próprias teses e elenca os próprios escritos realizados ou concebidos,35
apenas o problema do conhecimento e o do ser estão presentes em seu
espírito em uma direção sensualista e naturalista, o que fez então da sua
física uma construção distante de toda experiência, uma pura metafísica
de ingênuo sabor pré-socrático.
Mas eis que em ’93, o ano de liberdade transcorrido por
Campanella em Pádua, um vasto interesse novo se acende e lhe deixa um
escrito de capital importância, cuja infausta perda é a razão não última
de tantos mal entendidos: a Monarquia de’ Cristiani.36 O conteúdo do
livro, inclusive bastante evidente à luz das contínuas reelaborações
sucessivas, deve ser reconhecido, por cautela exegética, apenas à luz
das citações próximas e diretas: desde 1595, Campanella escrevia que
o “livro da Monarquia cristã... trata com razões divinas e humanas
desta monarquia doada ao Papa, e futuramente a mostra em um só
rebanho e um só pastor, como disse o oráculo de Jesus Deus”; e em
outro lugar: “aquele século de Adão-inocente vem restituir-me Cristo
como Inocente... porque se cada um observasse inteiramente as suas leis,
cessar-se-iam as guerras, carestias e pestilências, como escreveu aquele
amigo que compôs a Monarquia cristã”; e ainda a própria Monarchia
é citada como escrita “ao pontífice” e sendo “conveniente e futura”. O
ideal universalista campanelliano é desde o seu nascimento delineado
em módulos definitivos, e o primeiro texto político do filósofo de vinte
A UTOPIA POLÍTICA NA CONTRA-REFORMA
e cinco anos propõe, com absoluto brilhantismo, os temas que por nove
lustros animarão o seu longo solilóquio apaixonado: a feliz inocência
primeva no estado de natureza, uma queda daquele estado, que é a causa
de todos os males do mundo, uma esperada regeneração cósmica que
reconduza a humanidade ao século de ouro, quando, canceladas as divisões
perturbadoras, se instaurará uma única monarquia ecumênica, sacerdotal
e cristã, destinada a governar o mundo na era pacífica e beata. Trata-se
de aspirações perfeitamente ortodoxas no grande sulco do universalismo
católico; a queda que despedaçou o idílio paradisíaco é identificada com
o pecado de Adão, e à vinda de Cristo é reconhecida a virtude redentora,
que permanece, todavia, potencial e não imediatamente eficaz no plano
político-social – assim como é, por outro lado, para o fim da salvação
individual – sem uma eficaz colaboração do homem; e esta é de fato até
agora ausente, porque as leis de Jesus não são “intactamente” observadas,
conseguindo a duras penas um mitigado retorno da paz e da felicidade
sobre a terra. Para apressar o evento Campanella não apenas predica
a vinda certa, atestada pelas profecias das escrituras, mas se empenha
em remover os obstáculos, seja sobre o plano político internacional, ao
qual a Monarchia parece que visasse principalmente, seja sobre o plano
da organização eclesiástica, que deveria renovar-se e purificar-se dos
abusos para assumir dignamente a sua função diretiva no ecúmeno
unificado: a esta última finalidade visava o tratado síncrono Del governo
ecclesiastico.37
Se o inesperado acender-se do interesse político é um problema
não resolvido da obscura juventude campanelliana, não menos ambíguo
nele é o nascimento da heterodoxia, a gênese daquela fratura breve e
violenta, que amadureceu por contraste próprio nos anos da mais áspera
repressão inquisitória, e no qual se observa como convergentes os temas
mais heterogêneos: intolerância disciplinar, jactância de um libertinage
epidérmico e verbal, fascínio pelas ciências ocultas, grosseiras sugestões
materialistas de uma tradição que, de Demócrito a Telésio, tendia a
reduzir a alma humana a espírito corpóreo e caduco, a concepção do
pecado como violação da ordem social e racional, punido pela mesma
desordem que com esse se produz. Difícil é isolar, com tanta penúria
de testemunhos, as atitudes de rebelião filosófica, a reação psicológica
necessariamente excessiva às perseguições, da crítica meditada do dogma.
Mais que frente a este ou àquele aspecto do catolicismo, Campanella
parece relutante frente à inteira religião positiva, completamente imerso
na descoberta alegre de uma auto-suficiência da natureza e de uma
religião natural que racionalmente a coroa. Consolidado esse ideal
universalista, mas no grande drama da queda e da salvação, Adão e Cristo
não são mais os protagonistas: esse novo ponto de vista será atribuído
alguns anos depois aos solarianos, e se tornará altamente significativo;
estes habitantes crêem de fato na primitiva inocência e numa corrupção
remota do mundo, em uma ainda não sanada desestruturação da machina
mundi, e conhecem bem as várias causas míticas cogitadas para explicá-la;
entre outras coisas, também as oferecidas pelas Escrituras, considerando
37
Perdido na vasta redação
original, sobreviveu em um
tardio compêndio, mas que
não faz parte de um contexto
em torno de seu pensamento
juvenil; a mesma data de
redação encontra testemunhos
discordantes nas páginas
autobiográficas: decisiva é,
porém a mudança da datação
da Poetica italiana (p. 145-6),
que mostra a redação original
anterior a 1595.
43
LUIGI FIRPO
“que é feliz o cristão que se contenta em crer que tenha ocorrido por
causa do pecado de Adão tanto tumulto” (p. 106-7). Os solarianos,
portanto, não crêem no pecado de Adão – como o jovem Campanella
–, e é inclusive óbvio indagar por que, sem prevaricação, não é dada a
redenção. Campanella tem pronta uma nova doutrina para explicar a
desordem das coisas humanas, a dos ciclos cósmicos, governados pelos
“números fatais”; assunto já presente na Monarchia, mas tornado agora
preeminente depois do desaparecimento do tema da regeneração cristã.
Pouco antes de pôr as mãos na Cidade do Sol, em torno de 1601, escrevia
nos Aforismi politici:
Pois como serão mudadas todas as seitas e religiões e os modos dos
principados e de outras comunidades, necessariamente virá o primeiro
governo natural divino, em que reine apenas um rei sacerdote... como
eu disputei na Monarchia cristiana, que convirá ser pela profecia, e pelo
círculo das coisas chegado ao primeiro estado inocente natural.38
38
Conf. o aforismo 92
na edição por mim curada:
CAMPANELLA (1941,
p. 121-2).
44
Evidente é a equiparação no plano caduco de todas as religiões
positivas, e a irrelevância da encarnação e da paixão de Jesus para os fins
da fatal economia da criação. Parece de fato que nesse grave terreno,
núcleo essencial do cristianismo, seja necessário determinar os limites da
incredulidade juvenil de Campanella: não apenas se imputou ao stilese
ter disputado de fide com um judaizante (tocando portanto na identificação de Cristo com o Messias), de haver escrito o De tribus impostoribus:
Mosè, Christo et Mahumed, de haver composto um ímpio soneto “que falava de Cristo como um trabalhador braçal”; são acusações não comprováveis e – com exceção da primeira – provavelmente infundadas. Como
certa permanece a documentada hostilidade de Campanella ao culto do
Crucifixo (explicada depois como exaltação do Cristo triunfante, mas
não alheia na sua origem a uma atitude de desprezo); resta um soneto,
de atribuição ao menos provável, que louva os aspectos sociais do culto
de Jesus, “se bem que não seja do Pai Eterno o filho”; restam os testemunhos evidentes da Cidade do Sol, na qual não apenas se é incrédulo
acerca do pecado de Adão, mas se vê Cristo honrado com os apóstolos
e tido em grande consideração, qual um homem insigne e nada mais,
entre os “inventores das leis e das ciências e das armas”, ao lado de Moisés, Osíris, Júpiter, Mercúrio e Maomé; Mauricio de Rinaldis, o chefe
secular da conjura, confessou sentir-se escandalizado ao ouvir da boca de
Campanella “que Jesus Cristo era um homem de bem”.
Na sua concepção original a Cidade do Sol era, portanto, vasta
como a terra toda, e só a sugestão e o artifício literário a inseriram
mais tarde, no momento da composição, no sulco tradicional da utopia
citadina; era por outro lado uma utopia peculiar, pois não propunha
intenções críticas (exceto sugestões indiretas) nem satíricas, não avançava
hipóteses ou modelos, não visava persuadir: era, ao contrário, a previsão
científica, nítida, de um evento certo e fatal, destinado a realizar-se na
economia cósmica no ponto de sutura do grande ciclo das coisas, lá onde
princípio e fim coincidem, onde a soma de todas as experiências e de
A UTOPIA POLÍTICA NA CONTRA-REFORMA
todas as aberrações é anulada na segunda inocência beata. Desta forma a
Cidade do Sol permaneceu, enquanto suscetibilidade e ambição, orgulho
messiânico e profetismo supersticioso não turvaram a límpida posição
especulativa de Campanella com ímpetos de ação prática. Tomado por
uma eletrizante alucinação, ele acredita ler nas órbitas astrais e nos
ingênuos prodígios os sinais do evento iminente, vê o descontentamento
econômico, as disputas jurídicas, o banditismo indiscriminado na sua
pobre terra e os acredita sinais de uma tensão já intolerável; no próprio
horóscopo lê presságios de poder e se crê chamado a instaurar o
século de ouro, sublevando as pessoas com a palavra arrebatadora para
despedaçar as velhas estruturas corroídas, e reger depois com iluminada
sapiência a filosófica república natural da nova era. Esse messianismo
individual que se apresta, armado de milagres mágicos, para extirpar
os abusos da Igreja de Deus, é o fermento da conjura calabresa: mas a
maior parte dos cúmplices, a massa da indigesta mistura não é mais do
que superstição e ignorância, mal entendimento grosseiro e instintos
vulgares desenfreados. A coincidência entre as resultantes processuais e os
módulos da Cidade do Sol, que tanto impressionou os leitores modernos,
é mais genérica e extrínseca do que substancial: vige, é verdade, tanto
no programa da conjura como na cidade ideal, o regime republicano
e comunista, o governo sacerdotal, a religião simplificada; concordam
o tecido urbano construído sobre uma colina, as vestes uniformes, o
culto solar, as práticas astrológicas, as orações rituais, a racionalização
da Trindade, a humanização de Cristo; mas os conjurados afirmavam a
casualidade do mundo, a mortalidade da alma, a inexistência do inferno
e do paraíso, o livre comércio sexual, enquanto os solarianos crêem, ao
contrário, na providência, na imortalidade, na recompensa, e praticam o
mais rigoroso controle sobre a geração, entendida como função social.
Para Bobbio estas discordâncias são fruto de atenuações introduzidas
na busca da idealização do falido movimento insurrecional, e parece
a ele “excessivamente cômoda” (CAMPANELLA, 1941, p. 33) a tese
de Amabile, que quer atribuir ao lugar tenente Frei Dionísio Ponzio as
enunciações mais grosseiras e comprometedoras: trata-se em substância
de um primeiro fruto daquele “ingrato trabalho de revisão”, que coincide
com a mentira sistemática com fins utilitários e se explica “no quadro da
evolução ou melhor talvez involução espiritual de Campanella”. A mim
parece, por outro lado, que tais discordâncias sejam íntimas e originárias,
não ditadas por atenuação oportunista, da qual não se chega a ver a
finalidade, se a vulgata da Cidade do Sol parece feita justamente para
comprometer, com as coincidências sublinhadas e as graves admissões,
aquele que por todos foi designado como cabeça da conjura; por este
motivo bem observa Solari que, se Campanella teve no movimento papel
de protagonista, não está realmente provado que as metas perseguidas
pelos conjurados, os desenvolvimentos do complô, coincidissem com as
suas intenções genuínas: sabe-se com quanta amargura ele lamentava
no cárcere a Ponzio: “loquebaris quae minus intelligebas”.39 Durante
todo o angustiante calvário dos processos e das tentativas de liberação,
39
Conf. FIRPO (1947, p. 184).
45
LUIGI FIRPO
Campanella persiste em não delatar os cúmplices, em não separar
a sua responsabilidade da deles, e o mais desconfiado leitor, mesmo
percorrendo com desconfiança aquelas páginas de trabalhosa autodefesa,
não pode permanecer surdo a certos sinais de desespero implorante e
não atendido. Para Solari, que crê na sinceridade de Campanella,
provada pela sua indestrutível resistência moral em meio à desventura,
a Cidade do Sol torna-se um documento para o esclarecimento das
intenções, um texto escrito para definir e resgatar as próprias idéias
religiosas, filosóficas e sociais, os próprios projetos, para uma reforma
da Igreja e das instituições políticas. Apenas esse acordo pode explicar
a gênese do libreto enquanto documento literário, desde que se evite
atribuir-lhe imediatas finalidades auto-apologéticas: a Cidade do Sol não
foi certamente, à diferença da quase sincrônica Monarchia di Spagna,
texto feito para circular nas mãos dos juízes e dos poderosos em busca
de proteção ou favores; redigida no segredo do cárcere, essa obra não
foi outra coisa que reavaliação composta sobre o belo sonho fracassado,
testemunho da sobrevivência da espera do “novo século” introduzido
pelas iminentes “conjunções magnas”: não idealizações, portanto, mas
reivindicação das torturas e dos mal-entendidos grosseiros, necessidade
de pôr no papel, em desenho firme, um devaneio que outros haviam
deformado e envilecido sem compreender-lhe a pureza e a dignidade.
Não convence sustentar a tese da simulação no livro, pois sua transparente
inspiração deísta e naturalista era mais apta a provocar perseguições do
que vantagens: a composição da Cidade do Sol é, portanto, límpido ato
de fidelidade a um ideal.
No cárcere logo se delineia a crise resolutiva das experiências
campanellianas; fracassado o plano de fuga, reconhecidas como falsas
as revelações dos espíritos demoníacos evocados, verificadas como sem
efeito as grandes conjunções planetárias de dezembro de 1603, desabam
as esperanças de liberdade e de resgate, o messianismo orgulhoso é
abatido pelo total insucesso, impõe-se uma reavaliação mais cautelosa
dos motivos antigos, depurados das veleidades práticas imediatas. A
transferência para a horrenda “fossa” subterrânea do Castel S. Elmo
configura inclusive materialmente essa mortificação última, essa
dilaceração do homem antigo sob o cúmulo das desventuras, para que
o homem novo surja: se a primeira comparação que a própria situação
lhe sugere é para Campanella a de Prometeu no Cáucaso, a última
será a de Jó: as poesias acompanham esse itinerário de sofrimento
e de aprofundamento interior, quase um tipo de diário lírico, com
traços grosseiros, em clima rarefeito, do Soneto do Cáucaso à Canção de
arrependimento. A reconciliação com o cristianismo que amadurece nele
naqueles anos não é aquiescência servil, renúncia ao próprio pensamento
autônomo, muito menos conformismo oportunista: Campanella vê a
sua nova posição não como antítese da antiga, mas como transformação
desta em realidade e integração, sublimação espontânea de natureza em
sobrenatural. Também no campo político, como bem disse Solari, mesmo
assim hesitante na aceitação da tese da ortodoxia religiosa do Campanella
46
A UTOPIA POLÍTICA NA CONTRA-REFORMA
maduro, “a conversão não é palinódia, mas maturação, não é regressiva,
mas progressiva, é reavaliação das exigências doutrinais implícitas na
Cidade do Sol em sentido realista e concreto, isto é, católico”.
Malgrado o naturalismo e o racionalismo, Campanella é no
íntimo um confirmador dos ideais da Contra-Reforma, pela sua aversão
profunda ao agnosticismo incrédulo do Renascimento e ao individualismo
anárquico do Protestantismo; o seu universalismo orgânico e hierárquico
é de inconfundível estampa católica. Eram ortodoxos – é evidente – os
conceitos da perfeição originária do homem, da decadência do estado de
pureza feliz, da redenção através do cristianismo, da unificação das pessoas
num único rebanho e sob um só pastor: astros, prodígios e números fatais
retornam ao seu significado de símbolos anunciadores, não mais causas
eficientes da mutação cósmica; o Cristo reaparece como instaurador do
novo século, não nas roupagens do Encarnado crucificado, mas sob o
semblante triunfal da segunda vinda, do debelador do Anticristo que
reinará na terra no milênio feliz antes do fim do mundo. Os retoques
acrescentados à Cidade do Sol nesses anos não são, portanto, como queria
Bobbio, cautelosas atenuações insinceras, mas esclarecimentos das teses
essenciais, que permitem a Campanella inserir no seu novo mundo o
seu mundo antigo sem renegar uma palavra: tal doutrina, perfeitamente
ortodoxa, nega toda antítese entre natureza e sobrenatural, e mostra como
a razão preludia e aspira à revelação. Sob esta luz, a Cidade do Sol tornase o “achado filosófico para demonstrar que a verdade do Evangelho está
em conformidade com a natureza”; conformidade substancial e genérica,
bem entendido, na qual permanecem discordâncias nas particularidades
sobre a revelação, que enquanto único lume natural não seria infalível;
permanece o fato de que os solarianos, porquanto vivem conforme a
razão, são “quase catecúmenos da vida cristã”.40 Explica-se desse modo o
título ampliado no “Diálogo de república, no qual se desenha a idéia de
reforma da república cristã conforme a promessa de Deus feita a Santa
Catarina e Brígida”, que impregna a Cidade do Sol na justa medida do
sistema campanelliano, qual espelho do milênio de beatitude anunciado
pelos vaticínios sacros e profanos, que Campanella havia com tanta
diligência reunidos nos Articuli prophetales. Trata-se de reconhecer no
modelo campanelliano não “a ordem soberana que restituirá à terra a
idade de ouro”,41 mas o prefigurado desenho dos estatutos sociais que
a vindoura idade de ouro instaurará sobre a terra: não estamos diante
de um programa revolucionário, mas de uma anunciação messiânica.
Não diversamente, o acréscimo trazido ao mais tardio dentre os códices
italianos, lá onde se fala da comunidade das mulheres e da prontidão
dos solarianos no reconhecimento e adoção de práticas eventualmente
melhores do que as próprias, perde todo caráter de atenuação conformista;
de fato diz Campanella: “quando souberem as razões vivas do cristianismo,
comprovadas com milagres, consentirão, porque são dulcíssimos. Mas até
agora vivem naturalmente sem fé revelada, nem tentaram ir além disso”
(CAMPANELLA, 1854, vol. II, p. 78). Conhecimento do cristianismo
não é – como bem sabia Campanella – mera notícia histórica e objetiva,
40
Assim nas Questioni
sull’ottima repubblica, in
CAMPANELLA (1854,
vol. II, p. 289).
41
Assim a define DE
MATTEI (1938, p. 431).
47
LUIGI FIRPO
42
Sobre este assunto veja-se,
no mais recente ensaio citado
de AMERIO, as p. 45-47.
48
mas iluminação sobrenatural, regeneração na graça: a noção extrínseca
não é insuficiente nos solarianos, que têm em grande conta Jesus e os
apóstolos, como vimos, louvam o comunismo conventual e apostólico
(ibid., p. 77), conhecem a profecia de Cristo sobre o fim do mundo
(ibid., p. 100); o que eles ignoram não são as razões mortas, mas são de
fato as “razões vivas”, que entre eles ainda não são desenvolvidas. Tanto
na primeira redação como na última, a relação entre religião natural e
religião revelada permanece imutável, sem atenuações ou despistamentos;
diz o texto italiano: “seguem apenas a lei da natureza”, mas “são tão
próximos ao cristianismo, que coisa nenhuma falta à lei natural a não
ser os sacramentos”; e ainda: “a verdadeira lei é a cristã e, subtraídos os
abusos, será senhora do mundo” (ibid., p. 180); os solarianos limitam-se
apenas à concepção racional da Trindade “porque não tiveram revelação”
(ibid., p. 106); concluirá com plena coerência uma glosa ao texto latino de
1637: “vigor Evangelii non potest totus naturaliter nosci” (ibid., p. 136).
Se a Cidade do Sol, fechada em seu naturalismo, fosse o ideal secreto
de Campanella, e a teocracia universal seu pseudo-ideal oportunista,
haveria antítese entre os dois textos ao invés de complementação –
como bem nota Amerio; ao invés disso, as estruturas sociais da utopia
apenas aparentemente citadinas impregnam completamente os confins
da monarquia ecumênica, os próprios solarianos predicam a “iminência
da grande monarquia nova” (ibid., p. 109), e “dizem que o mundo terá de
se adequar para viver como aqueles fazem” (ibid., p. 87); não atenuado,
mas antes audaciosamente explícito, o texto latino estabelece: “vitam
apostolicam in se et in nobis expectant” (ibid., p. 145). A urgência da
reforma, no sentido de um retorno ao cristianismo genuíno das origens,
é proposta àqueles que há muito tempo já tiveram a revelação: aquilo
que para os gentios é apenas integração espontânea ao lume natural,
para nós há de ser revisão de vida e restauração. No maduro sistema
campanelliano, a convivência solar é retomada como modelo não
superado de sociedade perfeita no estado de inocência, na coincidência
inicial e final das remotas origens e do século de ouro futuro: como tal,
em torno de 1609, essa convivência é defendida e corroborada por uma
erudita argumentação nas Quaestiones politicae, e encontra lugar intacta,
dez anos depois, no décimo quarto livro da Theologia, apenas com a
renúncia à comunidade sexual que o direito positivo divino condena,
mas que é, entretanto, defendida eficazmente apenas à luz do direito
natural; longe de representar um resíduo da heterodoxia juvenil, tratase de uma tese genuinamente tomista, superada mas não condenada
pela moderna teologia católica42. Tornado assim parte vital do sistema
político-religioso de Campanella, inserido no universalismo teocrático
e na palingênese cósmica, o ideal da Cidade do Sol ilumina ainda os
últimos anos da velhice e do exílio: “Civitas Solis per me delineata ac per
te aedificanda perpetuo fulgore splendescat semper”, escreve a Richelieu
o cansado filósofo em 1636, e dois anos mais tarde, sobre o berço do
futuro Luis XIV, canta:
A UTOPIA POLÍTICA NA CONTRA-REFORMA
Admirandam urbem, Solis de nomine dictam,
me signasse tibi, puer, alto ex corde resigno...
Convenient reges, populorumque agmina in urbem
(“Helicam” dicent), quam construet inclytus heros.43
Sem ser símbolo genérico do Estado perfeito, apagada figura
retórica44, mas evocação fiel de um ideal jamais renegado, generosa
ilusão que nenhum insucesso pôde despedaçar, o mito solar sorri para
a velhice campanelliana com imutável virtude consoladora: junto ao
universalismo teocrático, ainda reafirmado em 1637 com De regno Dei –
e se tacha de oportunista o homem que agitava tais idéias no coração da
França racionalista, absolutista e galicana! – o idealismo social da Cidade
do Sol permanece durante toda a vida de Campanella o valor mais alto da
sua especulação política, a meta certeira do trabalho secular do homem
saído dos tempestuosos particularismos que perpassam a história para
voltar ao tempo fraterno, no qual o triunfo da razão e do amor instaurará
sobre a terra o reino de Deus.45
Inserida assim nas correntes perenes do universalismo e da espera cristã, a Cidade do Sol se desvincula do seu aparente anacronismo:
se permanece estranha aos aspectos reacionários da Contra-Reforma, é
indubitavelmente uma alta expressão da construtiva reforma católica.
Constrangido pela antítese aparente entre razão e revelação, entre naturalismo e transcendência, Agostini se satisfizera em salvar o salvável,
submissamente aceitando dogmas e preceitos, hierarquia e ritos da Igreja, satisfeito com aquela zona residual na qual a razão podia ainda cogitar os seus achados, movendo-se com uma humilde e respeitosa cautela.
Já Campanella visa à conciliação total, à elisão de todo contraste em uma
explícita continuidade gradual que conduz a filosofia da natureza a desaguar no cristianismo. Ele aspira a mostrar como, na milenar elaboração
do saber tradicional, as teses aristotélicas podem ser impunemente substituídas por outras racionalmente mais válidas, sejam essas telesianas ou
galileanas, sem que uma única sílaba da revelação seja abalada. Depostos
os aspectos panteístas, hedonistas e materialistas, o naturalismo humanista reivindica para si a dignidade e legitimidade da própria investigação racional, cuja espontânea convergência em sentido cristão é garantida ab aeterno pelo Verbo divino, Razão Primeira. Na auto-interpretação
evolvente do mito solar Campanella supera o grande drama do século,
mostrando que ciência positiva e metafísica católica, longe de divergir,
são distintos graus cognoscitivos de uma mesma verdade.
6. Ludovico Zuccolo e a República de Evandria
Falta agora deter o discurso, para não fugir ao assunto, em
Ludovico Zuccolo, que nos seus Dialoghi publicados em Veneza em 1625
descreve um imaginário país abençoado na República de Evandria46.
Mas trata-se na verdade de um pseudo-utopista, que vestiu propósitos
moderados de reformas sociais com a agradável roupagem literária do
43
Conf. CAMPANELLA
(1927, p. 374; 1939, p. 214).
44
Assim desejava Bobbio
(CAMPANELLA, 1941,
p. 37).
45
Sobre isso já apontei para
um outro típico, ainda que
menor aspecto da Cidade do
Sol: o imperante cientificismo.
Basta recordar sumariamente
a rígida, contínua intervenção
da ciência, através dos poderes
públicos, regulando todos
os aspectos da vida social,
da geração aos métodos
froebelianos na educação
(CAMPANELLA, 1941, p. 61,
64-5, 74, 76), dos benefícios
integrais trazidos pelas ciências
aplicadas à agricultura (ibid.,
p. 85), das precauções
higiênicas aos exercícios
esportivos (ibid., p. 67).
Por outro lado os solarianos
equiparam a mulher ao
homem nos esforços e nos
perigos (ibid., p. 64, 68, 79,
81, 84), exaltam os trabalhos
mas querem que sua duração
seja limitada (ibid., p.65, 76),
possuem museus de ciências
naturais, hortos botânicos
(ibid., p. 60-61), telescópios e
amplificadores acústicos
(ibid., p. 109), navios que se
movem sem remos nem velas
(ibid., p. 86), veículos aéreos
(ibid., p. 109), instrumentos
para guiar os cavalos com os
pés (ibid., p. 86), armas de fogo
de têmpera especial e artifícios
bélicos não conhecidos (ibid.,
p. 81, 87). Notáveis a este
respeito são as páginas de
BRUERS (1941,
p. 119-125; 1942).
46
Valho-me da reedição curada
por De Mattei (ZUCCOLO,
1945), que é precedida de uma
aguda introdução.
49
LUIGI FIRPO
47
Uma única vez Zuccolo
parece tomar alguma liberdade,
quando parece admitir em
casos extremos o divórcio
(ibid., p. 54); atente-se, porém,
para fato de que os censores de
Evandria se limitam a “separar”
os cônjuges, “não sem nota
de vergonha e de vitupério”,
nem é dito que estes possuam
a faculdade de contrair novas
núpcias.
50
romance político; cortesão e literato, elegante e culto, mas eclético e
superficial, Zuccolo goza de uma efêmera fortuna recente, devida à
descoberta croceana de algumas páginas agudas de sua autoria sobre a
razão de Estado, que lhe valeram o apelativo – nada menos – de “o mais
profundo filósofo político do seu tempo”. Trata-se na realidade de um
culto e aberto engenho, em nada surdo aos problemas de sua época,
mas disperso em acadêmicos deleites, em divagações diletantes, privado
daquela coerência mordente que é a medida própria de um pensador;
não é perspicácia que lhe faz falta, mas o interesse verdadeiro pelas
coisas que toca, o fogo da paixão interior.
Ceticismo e moderação, aspectos evidentes do seu ser, são
o que de mais remoto se possa reconhecer no utopismo, que exige fé
absoluta e radicalismo drástico nas soluções. Zuccolo é, ao contrário, o
homem da tepidez e da cautela, o incrédulo que rejeita as miragens da
perfeição absoluta e do retorno à era Saturnina, não sendo insensível ao
mal estar econômico, às desigualdades sociais e políticas da sua época,
mas privado de fantasia construtiva, temeroso de cair a cada passo no
artificioso e no irreal, ligado sempre aos dados imediatos de uma limitada
experiência concreta. Explica-se assim a sua desconjuntada requisitória
contra Morus no Aromatario, outro de seus diálogos, que trai uma total
incompreensão do texto tomado para exame, reduzindo a crítica a uma
seqüência de acusações de obscuridade, contraditoriedade e reticência,
que nem mesmo de leve toca as teses capitais da Utopia. Desnecessário
dizer que na sua Evandria o próprio Zuccolo será bem mais lacunoso e
ambíguo, deixando sem resposta indagações muitíssimo mais urgentes.
E inclusive fica mais bem explicado como, em busca do Estado perfeito,
Zuccolo não vai longe, ficando plantado ao invés disso na porta de casa,
sobre o desmoronado monte de San Marino, idealizando na Città Felice
– retomada talvez polêmica, no sentido realístico, do título patriziano –
aquele pequeno mundo comunal e agreste governado pela simplicidade,
pela parcimônia, pela concórdia operosa. Assuntos vagos, que um ilusório
desejo de concreção, de referência a instituições históricas comprovadas
na realidade, acabava por dissolver no moralismo genérico, vão esforço
de atribuir valor exemplar a uma exígua e esgotada experiência, fruto de
condições e coincidências completamente únicas e intransferíveis.
Por isto Evandria não é utópica a não ser nas suas roupagens
literárias: as suas estruturas, desprovidas de extremismos, são inspiradas
em um brando reformismo, são ecos de aspirações difusas, realizações de
instâncias habituais. Se quisermos fazer um balanço metódico, nenhuma
das idéias de Zuccolo é peculiar, cada uma delas encontrando profundas
raízes não apenas nos reformadores que o precederam, mas nos próprios
políticos práticos, nos espelhos de príncipes, nos manuais de bom
governo. Por mais de meio século essa literatura inspirada no cotidiano,
esse empírico compromisso, se colocara à sombra da Contra-Reforma
intransigente e ostentava – sem perder de vista a útil minúcia – uma
devoção untuosa, um sacro zelo fictício. Zuccolo, prudentemente, não se
aventura sobre o terreno religioso; apenas nos adverte que em Evandria
os jovens são adestrados “a temer e reverenciar Deus” (ZUCCOLO,
1945, p. 48)47, mas no entanto o moralismo mais rígido, espelho fiel dos
tempos, impera soberano. Amplíssimos poderes para inquirir a conduta
A UTOPIA POLÍTICA NA CONTRA-REFORMA
privada dos cidadãos são atribuídos aos censores (ibid., p. 54); rigoroso é
o controle sobre a imprensa, sobre a exposição de obras de arte lascivas
(ibid., p. 55), sobre o teatro, do qual a comédia é banida e é apenas
tolerada a tragédia admoestatória (ibid., p. 50-55); a vagabundagem é
reprimida, pois corrompe com o mau exemplo os costumes (ibid., p. 48),
punidos com o confinamento os grevistas (ibid., p. 58), banido o luxo
por severas leis suntuárias (ibid., p. 51), por “bons e honrados costumes”
é essencialmente inspirada a educação da juventude (ibid., p. 49). Antiga
e já instância convencional, que já havia sido ecoada, com muito mais
convicta adesão interior, nas páginas de Agostini, tão mais grosseiras e
tão mais sinceras.
Com Zuccolo a utopia italiana entra em seu ocaso, ou melhor,
nela se revela já declinada, naquela época de desenvolvimento do espírito italiano que a aquiescência formal e o compromisso malicioso caracterizam: é o mais melancólico de todos os ocasos, o do entusiasmo
moral. Por outras estradas caberá de agora em diante continuar a fortuna
perene da utopia, em terras não sujeitas à drástica reductio ad unum da
Contra-Reforma: será o pietista Andreä a transformar em alegoria moralizante as estruturas da Cidade do Sol na sua Christianopolis (1619),
Bacon historiará na Nova Atlântida (1620) o mito da idade feliz, atribuindo ao progresso técnico a garantia do bem estar futuro, Winstanley
tentará em Leis de liberdade (1651) contrapor ao comunismo absolutista
um comunismo liberal, Harrington em Oceana (1656) dará nova voz
à remota aspiração igualitária. Entrementes no além mar, nas virgens
planuras do Paraguai, os aventurosos Jesuítas realizavam nas imensas
reduções jesuíticas fecundadas pelo grande rio o primeiro experimento
concreto, compondo costumes indígenas e preceitos religiosos, temperamentos empíricos e esquemas racionais, interesses capitalistas de empresa produtiva e zelo missionário de iluminação evangélica.
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