A construção semântica do humor no espetáculo teatral Terça
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A construção semântica do humor no espetáculo teatral Terça
Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes A CONSTRUÇÃO SEMÂNTICA DO HUMOR NO ESPETÁCULO TEATRAL TERÇA INSANA Alex Caldas Simões (UFOP) 1 RESUMO: O presente artigo pretende analisar a construção do humor em trechos do esquete, intitulada por nós, “Freira Insana”, que foi transcrita lingüisticamente do show teatral Terça Insana, de Ângela Dip, Luís Miranda, Grace Gianoukas, Marcelo Mansfield, Octávio Mendes e Roberto Camargos, apresentada todas as terças-feiras em um bar de São Paulo. Ao assistirmos ao espetáculo podemos indagar: como um espetáculo teatral apresentado em esquetes, na forma de monólogos, por um mesmo grupo de atores, que se travestem para encenar personagens caricatos, pôde produzir humor? Como o humor é produzido? E como ele se apresenta no espetáculo sob a perspectiva das teorias semânticas, propostas por Ana Lúcia Müller e Evani Viotti (Semântica Formal); Antonio Pietroforte e Ivã Lopes (Semântica Lexical); e Eduardo Guimarães (Semântica Enunciativa)? Palavras-chave: semântica, humor, lingüística. Introdução A ntes de desvendarmos os aspectos humorísticos contidos no esquete “Freira Insana”, cabe indicarmos, ainda que superficialmente, algumas das problemáticas da teoria semântica, que são pertinentes a nossa pesquisa. Semântica, como afirma Gomes (2003) citando Kempson (1990), é a gata borralheira da lingüística, visto que, recente, surgida no século XX, ainda não recebeu, por parte dos pesquisadores, a atenção merecida. Podemos defini-la como a ciência que estuda o significado. Mais especificamente, de acordo com Mari (1991), ela é responsável por uma análise da significação numa determinada língua natural, no nosso caso a língua portuguesa. Podemos dizer ainda, de forma a elucidar a discussão acima, que “a semântica é o estudo do significado lingüístico. Interessa-se pelo que é expresso por sentenças e outros objetos lingüísticos, não pelo arranjo de suas partes sintáticas ou pela sua pronúncia” (TRASK, 2004, p. 265). Significado, teoricamente, apresenta-se de formas diversas, tendo em vista que cada teoria semântica o compreende a seu modo. Uma teoria semântica sobre o significado ainda está longe de ser consolidada. Dessa forma “podemos basear nossa resposta a ‘O que é significado?’ naquilo que a teoria teve que postular que o significado era, a fim de fornecer suas explicações” (KATZ, 1982, p. 60). O humor pode ser explicado, à primeira vista, por meio de três teorias semânticas. A primeira delas, a semântica formal, “considera que se deve tratar o sentido da sentença, daí sua unidade de análise não ser o signo; mas por outro lado, considera que o sentido é uma relação com um estado de coisas” (GOMES, 2003, p. 37). Podemos dizer ainda que essa teoria, segundo Müller e Viotti, estuda a relação que existe entre expressões lingüísticas e o mundo. A semântica formal considera que [...] as línguas naturais são utilizadas para estabelecermos uma referencialidade, para falarmos sobre objetos, indivíduos, 1 E-mail: [email protected] A MARgem - Estudos, Uberlândia - MG, ano 2, n. 3, p. 1-5, jan./jun. 2009 1 Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes fatos, eventos, propriedades, [...] descritos como externos à própria língua [...] o significado é entendido como uma relação entre linguagens por um lado, e, por outro, aquilo sobre o qual a linguagem fala. (MÜLLER; VIOTTI, 2003, p. 139) A semântica formal se preocupa, de forma geral, segundo Cançado (2005), com as condições de verdade do significado, com a concepção de teoria de modelos em semântica 2 e com a centralidade metodológica do Princípio da Composicionalidade 3. Encontrar as condições de verdade de uma sentença, segundo a autora, não é dizer se ela é verdadeira ou falsa, mas saber em que condições essa sentença seria possível (verdadeira) no mundo. Conhecer as condições de verdade, de acordo com Müller e Viotti, é conhecer o significado da sentença. A semântica formal postula, então, que “se não conhecemos as condições nas quais uma sentença é verdadeira, não conhecemos seu significado” (MÜLLER; VIOTTI, 2003, p. 139). As autoras ainda resumem a discussão acima dizendo que “a semântica formal pode ser descrita como um programa de pesquisa que procura responder às seguintes perguntas: O que ‘representam’ ou ‘denotam’ as expressões complexas a partir dos significados de suas partes?” (MÜLLER; VIOTTI, 2003, p. 140). A semântica lexical é também mais uma das teorias semânticas que podem explicar as causas do humor. Para ela, significado (o conceito da coisa - de ordem semântica) é uma das partes, juntamente com o significante (imagem acústica - de ordem fonológica), do signo lingüístico. Podemos dizer, sob a perspectiva de Pietroforte e Lopes, que comunidades lingüísticas diferentes não enxergam o mundo da mesma maneira. “As coisas do mundo seriam as mesmas para todo observador e que já viriam previamente discretizadas, bastando às línguas naturais colar-lhes rótulos designativos” (PIETROFORTE; LOPES, 2003, p. 115). Dessa forma cada povo irá representar os elementos do mundo a sua maneira, estruturando, então, a sua própria visão de mundo: afinal, “[a] verdade é sempre uma construção dos homens e por isso é necessário acolher seu caráter múltiplo, problemático, variando em função dos pontos de vista humanos” (PIETROFORTE; LOPES, 2003, p. 116). A última teoria semântica, apontada por nós, como sendo uma das formas que explicam a construção do humor é a semântica enunciativa. “A idéia dessa linha teórica é que as sentenças são pronunciadas como parte de um discurso em que o falante tenta convencer seu interlocutor de uma hipótese qualquer” (CANÇADO, 2005, p. 144). Podemos dizer ainda, segundo, Benveniste (1989), que a enunciação é produzida quando a língua (seu aparelho formal) é posta em funcionamento em um ato individual do locutor 4. Por meio deste processo se institui um ‘eu’ (indivíduo que profere a enunciação) e um ‘tu’ (indivíduo que aí está presente como alocutário 5). 2 Modelos em semântica, de acordo com Cançado, se dão quando por meio de frases simples tenta-se interpretar o maior número de sentenças possíveis de uma língua natural. 3 Princípio de Composicionalidade, de acordo com Cançado, citado por Frege (1892), se apresenta quando “o significado de um todo é a função do significado de suas partes e da combinação sintática dessas partes” (CANÇADO, 2005, p. 143). 4 Locutor, segundo Ducrot, citado por Guimarães, representa o ‘eu’. É responsável pela enunciação que vai estar no enunciado. Divide-se em Locutor L e Locutor l. O primeiro “é o que se representa como fonte do dizer” (GUIMARÃES, 1995, p. 60). O segundo “é o locutor-enquanto-pessoa-no-mundo” (GUIMARÃES, 1995, p. 60). 5 Alocutário, segundo Ducrot, citado por Guimarães, é aquele que se vê obrigado a responder o que o locutor disse. Dividese, a exemplo do locutor, em dois, alocutário AL e alocutário al. O primeiro “é a figura a qual a ação de perguntar é endereçada” (GUIMARÃES, 1995, p. 60). O segundo, podemos dizer, é a pessoa no mundo que responderá a pergunta formulada. A MARgem - Estudos, Uberlândia - MG, ano 2, n. 3, p. 1-5, jan./jun. 2009 2 Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes Antes da enunciação, a língua não é senão possibilidade da língua. Depois da enunciação, a língua é efetuada em uma instância de discurso, que emana de um locutor, forma sonora que atinge um ouvinte e que suscita uma outra enunciação de retorno. (BENVENISTE, 1989, p. 84). Análise do Freira Insana Com base nessas teorias descritas acima, discutiremos a construção de sentido e o efeito de humor inseridos no “Freira Insana”. O referido esquete é encenada por um único ator travestido de freira, com uma maquiagem pesada, vestida com um hábito nas cores preto e branco e fumando um cigarro. Durante a encenação ocorre interação entre personagem e a platéia. Já em sua primeira fala “Não, não sou corintiana!”(1) podemos perceber humor. A construção desse humor pode ser explicada, primeiramente, pela semântica formal (função de denotação), uma vez que faz referência a uma coisa no mundo. Corintiana refere-se ao time de futebol paulista Corintians, que possui preto e branco como suas cores oficiais e estar vestido de preto e branco, portanto, é uma das representações no mundo que remetem ao time. Ainda podemos formalmente dizer, de acordo com o depreendimento das condições de verdade, que ao afirmar “Não, não sou corintiana”, a freira se diz não torcedora do Corintians, ou seja, pode ser torcedora de outro time, ou até mesmo de nenhum. De acordo com a semântica lexical, proposta por Pietroforte e Lopes (2003), podemos analisar que o humor na frase acima se intensifica pelo fato de ter sido produzido no estado de São Paulo, e nesse estado um dos principais times é o Corintians. A comunidade lingüística de São Paulo reconhece Corintians como o principal time preto e branco; o mesmo não se aplica a outro estado. Por exemplo, no Rio de Janeiro o principal time preto e branco é o Vasco, não o Corintians. Pela semântica enunciativa analisamos esse trecho (1) como produtor de humor, pois a freira não foi questionada para dar a resposta “Não, não sou corintiana”. O ‘eu’ (locutor L: freira/ locutor l: comediante) cria uma imagem do ‘tu’, (alocutário AL e al: que correspondem ao público) da mesma forma que o ‘tu’ cria uma imagem do ‘eu’ – a que se dizer ainda que o operador argumentativo 6 “não” sinalizado no trecho (1) demonstra que há nesse enunciado uma força argumentativa maior do que se não fosse apresentado. Dessa forma há humor, pois ocorre uma quebra de expectativa, quando o ‘eu’ supõe que o ‘tu’ pensa que ele é corintiano, sendo que o ‘tu’ não criaria necessariamente tal imagem do ‘eu’. Cabe destacar, de forma complementar apenas, que o enunciador, no trecho (1) se coloca na posição de enunciadorgenérico, uma vez que pronuncia um dito que qualquer pessoa poderia ter falado. No trecho seguinte temos “Para quem não me conhece, eu trabalho com crianças excepcionais. Não que elas sejam, mas eu gosto de tratá-las assim”(2). Pela semântica formal a construção do humor reside no fato de que a representação de qualquer freira no mundo seria de uma mulher bondosa, caridosa, paciente, etc. e isso não corresponde à freira em questão, que se apresenta como arrogante, antipática e não capaz de caridade. Ocorre, novamente, uma quebra de expectativa, pois a referencia de freira no mundo é contrária ao que se apresenta. 6 “Operador argumentativo [...] [designa] certos elementos da gramática de uma língua que têm por função indicar (“mostrar”) a força argumentativa dos enunciados, a direção (sentido) para qual apontam” (KOCH, 2001, p. 30). A MARgem - Estudos, Uberlândia - MG, ano 2, n. 3, p. 1-5, jan./jun. 2009 3 Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes A contradição ocorre, segundo Müller e Viotti (2003), quando duas expressões possuem sentidos incompatíveis com a mesma situação e na análise feita anteriormente, com base na semântica formal, ocorre esse fato, o que gera humor. A semântica lexical também pode elucidar a construção de humor no fragmento (2) do espetáculo. A palavra excepcional possui dois significados distintos e apenas um significante, o que caracteriza o fato lingüístico homonímia. É o sujeito que decide que significado vai utilizar, e, segundo Mari (1991), é possível que os usuários da língua utilizem o sistema de maneira “mixada” para gerar efeitos específicos, e nesse trecho há efeitos cômicos com a utilização do homônimo. Excepcional pode ser entendido como brilhante, ou como débil. No trecho acima (2) a freira utiliza o significado de débil. O humor pode acontecer quando algum espectador entende a palavra excepcionais com um significado diferente do referido pela freira. Uma outra análise, a ser feita em relação ao trecho comentado a pouco (2), se faz por meio da semântica enunciativa. Isso se confirma quando a freira ao assumir o lugar de locutor L (freira) não fala como tal, uma vez que o enunciador se coloca como comediante (locutor l), e dessa forma procura o significado mais improvável a ser dito no tom de uma freira. Isso provoca humor. Podemos ainda identificar no trecho (2) o fenômeno de polifonia, “que aparece como uma coexistência de sujeitos na narrativa, que não se resolve por um sub sumir os pontos de vista dos demais” (GUIMARÃES, 1995, p. 58). Temos no trecho em questão (2) o operador argumentativo mas, que marca, segundo Kock (2001), uma outra voz no texto. “O termo polifonia designa o fenômeno pelo qual, num mesmo texto, se faziam ouvir ‘vozes’ que falam de perspectivas ou pontos de vista diferentes com as quais o locutor se identifica ou não” (KOCH, 2001, p. 58). Esse fenômeno provoca humor, na medida em que o entendimento de uma voz pode se contrapor a outra. No caso (2), há essa sobreposição de vozes, pois “Não que elas sejam, mas eu gosto de tratá-las assim” evidência que há uma voz que afirma que as crianças não são excepcionais (débeis), e outra que afirma que são. Esse conflito também provoca humor. No trecho dito pela freira “Contarei uma piada de loira [...] A loira, sem compreender muito bem, volta ao consultório e diz: Doutor, eu não entendi muito bem, é ... libra ou sagitário? E ele: é câncer!”(3), apresenta, assim como nos trechos acima, humor. A semântica formal esclarece o humor que se apresenta no trecho (3) ao analisarmos o referente loira no mundo. Loira corresponde, denotativamente, a uma mulher que possui cabelos loiros e no senso comum pode ser chamada de “burra”. As condições de verdade depreendidas do trecho (3) nos permitem afirmar que: não será contada uma piada de português ou de papagaio, mas de loira. Esse pressuposto 7 forma uma expectativa no interlocutor que esperará uma piada tipicamente de loira e não de outro assunto. A semântica lexical pode analisar o trecho (3) pelo fenômeno de homonímia. Isso porque a palavra câncer, um único significante, apresenta mais de um significado. No trecho (3), podemos desprender as seguintes significações: câncer, correspondendo a uma doença, e câncer correspondendo a um signo do zoodíaco. A loira da piada, desconsiderando o local de seu enunciado, atribui a câncer o significado de signo do zoodíaco, entretanto, o médico e a situação do que é dito não afirmam o mesmo sentido. Dessa forma o mal entendido causado 7 Pressuposto, de acordo com Müller e Viotti, corresponde a “uma ‘pré-suposição’ que é pano-de-fundo de uma asserção. Ela é considerada parte do conhecimento partilhado pelo falante e pelo ouvinte” (MULER; VIOTTI, 2003, p. 146). A MARgem - Estudos, Uberlândia - MG, ano 2, n. 3, p. 1-5, jan./jun. 2009 4 Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes pela presença da homonímia gera humor. A semântica enunciativa pode observar o trecho acima (3) como formador de humor, pois o ‘tu’ não espera do ‘eu’ (freira) a enunciação de uma piada, quanto mais sendo para depreciar uma pessoa, no caso uma loira. Na piada, a loira desconsiderou o papel social do médico, e, ao emitir “Doutor, eu não entendi muito bem, é ... libra ou sagitário?” provocou humor. Conclusão Muito ainda poderia ser descrito sobre a construção de humor no esquete “Freira Insana”. Cabe, entretanto, oferecermos, aqui, a oportunidade de outros pesquisadores abordarem a questão e até mesmo continuá-la, uma vez que apresentamos e explicamos nesse artigo apenas alguns aspectos de humor no espetáculo. Podemos dizer que o humor como apresentado nessa pesquisa é construído e não estabelecido, ou seja, de acordo com Guimarães, tem-se que “a linguagem não remete às coisas do mundo, mas a uma construção que a linguagem faz dessas coisas” (GUIMARÃES, 1995, p. 54). Dessa forma podemos dizer que a esquete como um todo foi intencionalmente produzida para gerar o humor e esse artigo pretendeu sinalizar, por meio das teorias semânticas, que aspectos foram esses. REFERÊNCIAS: BENVENISTE, Emile. O aparelho formal da enunciação. In: BENVENISTE, Emile. Problemas e estudos lingüísticos II. Campinas: Pontes, 1989. p. 81-90. CANÇADO, Márcia. Manual de semântica. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2005. Cap. 9. p. 141-147. GOMES, Claudete. Tendências da Semântica Lingüística. Ejuí: Ed. Unijuí, 2003. p. 23-40. GUIMARÃES, Eduardo. Os limites do sentido: um estudo histórico e enunciativo da linguagem. Campinas, São Paulo: Pontes, 1995. p. 45-61. GUIMARÃES, Eduardo. Semântica do acontecimento: um estudo enunciativo da designação. 2. ed. Campinas, São Paulo: Pontes, 2005. p. 11-31. KATZ, Jerrold J.. O escopo da semântica. In: DASCAL, Marcelo (Org.). Fundamentos metodológicos da Semântica. Campinas: Unicamp, 1982. p. 43-61. KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. A interação pela linguagem. São Paulo: Contexto, 2001. p. 29-65. MARI, Hugo. Os lugares do sentido. Belo Horizonte: NAPq-FALE/ UFMG, 1991. p. 1-86. MÜLLER, Ana Lúcia de Paula; VIOTTI, Evani de Carvalho. Semântica Formal. In: FIORIN, José Luiz (Org.). Introdução à Lingüística. São Paulo: Contexto, 2003. p. 137-159. v. 2. PIETROFORTE, Antonio; LOPES, Ivã. A Semântica Lexical. In: FIORIN, José Luiz (Org.). Introdução à Lingüística. São Paulo: Contexto, 2003. p. 111-135. v. 2. TRASK, Robert Lawrence. Dicionário de linguagem e lingüística. São Paulo: Contexto, 2004. p. 261-7. A MARgem - Estudos, Uberlândia - MG, ano 2, n. 3, p. 1-5, jan./jun. 2009 5