Dois irmãos - Colégio Sant`Ana

Transcrição

Dois irmãos - Colégio Sant`Ana
Dois irmãos
(Milton Hatoum)
tes. A mãe, Zana, entretanto, estabelece preferência
pelo caçula, que é boêmio, libertino e corajoso. Esse
afeto diferenciado acirra ainda mais a rivalidade natural entre eles.
O narrador pode ser visto como produto do processo multicultural apresentado por Milton Hatoum
em Dois irmãos, porque resulta da miscigenação do
um libanês com uma índia, Domingas. A angústia
desse narrador é descobrir, afinal, quem é seu pai.
Para isso cria uma narrativa que reúne as lembranças
da mãe e suas para recompor sua própria história. Ele
freqüenta a casa da família, mas será sempre o filho
bastardo, que sonha com a possibilidade de sair desse círculo vicioso.
O elemento sensorial se destaca na descrição da
cidade de Manaus. Entretanto, não é apenas a cor local que passa pelo crivo atendo do olhar de Milton
Hatuoum, mas também o processo de modernização
do país e da cidade, bem como a formação étnica de
sua população.
Dois irmãos é um romance inovador tanto nos aspectos plurilingüísticos que o autor incorporou na sua
elaboração, como na capacidade de captar o regional
não apenas pelo cenário exótico da região amazônica, mas pela densidade do material humano. Cores,
formas, gostos e cheiros misturam-se, nesse mundo
sensorial, à multiplicidade de etnias, línguas e costumes da população manauara.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
1. BIOGRAFIA E BIBLIOGRAFIA
Milton Hatoum nasceu em Manaus, em 1952, filho de libaneses. Mudou-se aos 16 anos para São Paulo, onde estudou arquitetura na USP. Estudou literatura
e história da arte durante um ano em Barcelona e quatro em Paris, na Sorbonne. Viajou pelo mundo. Voltou para Manaus, onde lecionou língua e literatura
francesa na universidade do Amazonas. Viajou novamente pelo mundo e tornou-se mestre e doutor em
literatura pela USP.
Entre seus prêmios está a façanha de escrever três
livros e ganhar três Jabutis.
OBRAS
Relato de um certo Oriente (1989); Dois irmãos
(2000); Cinzas do norte (2005).
2. INTRODUÇÃO
Dois elementos são fundamentais para a compreensão do romance Dois irmãos: a percepção do leitor não
de uma Manaus real e atual, mas de um espaço imaginário vivido por meio da memória do narrador, e o contexto social e multicultural que forma a população da
cidade. Partindo do primeiro elemento, o geográfico
parece ultrapassar as fronteiras regionais e transitar pelo
universal. Essa universalidade poderá ser percebida, por
exemplo, a partir do tema central: a luta entre gêmeos e
a destruição de uma família por causa de um comportamento amoroso obsessivo entre mãe e filho.
O mesmo tema poderá ser percebido, ainda que de
maneira menos radical, em Esaú e Jacó, de Machado
de Assis. A intertextualidade é evidente. Hatoum retoma em certos aspectos a luta entre irmãos gêmeos pelo
carinho materno e o amor. O elemento intertextual pode
ser também traçado com a Bíblia. O conflito entre gêmeos está presente em várias culturas.
Yaqub e Omar são idênticos fisicamente, mas possuem personalidade e comportamento muito diferen-
3. ANÁLISE DA OBRA
A história é contada por Nael, que acompanha a
decadência da família de Halim e Zana e da casa
em que vivem. Esse processo pode também ser observado com relação à cidade de Manaus, que perde sua identidade com a chegada de um progresso
voraz e devastador, completado pelos anos de ditadura militar. As angústias do narrador são de ordem
tanto pessoal quanto familiar. Ele busca descobrir
quem é seu pai entre os homens da família. A história só é contada trinta anos depois dos acontecimentos que marcaram sua vida e a de seus familiares.
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irmã para casa e voltasse depois. Quando regressou,
encontrou Omar dançando com o rosto colado em
Lívia. Não teve coragem de falar com ela. Odiou o
baile, como contou à empregada da casa, Domingas.
Dois meses depois, viajou para o Líbano.
Tudo aconteceu num sábado, depois do carnaval.
Domingas costumava levar os gêmeos à casa de Abelardo Reinoso no último sábado de cada mês para uma
sessão de cinema. Era uma ocasião especial. Por isso
os gêmeos e Domingas iam bem arrumados. Lívia sorria para os dois. Omar ficou enciumado. Lívia ofereceu um selo do álbum para Yaqub. “Mas ela gostava
mesmo era dos gêmeos; olhava dengosa para os dois;
às vezes, quando se distraía, olhava para Yaqub como
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se visse nele alguma coisa que o outro não tinha.”
(HATOUM, Milton. Op. cit., p. 27) Omar pensava que
Lívia só pensaria nele depois do baile dos Benemou.
Chegou a planejar o roubo do Land Rover dos pais
para passear com ela até as cachoeiras de Tarumã.
Domingas desconfiou e escondeu a chave do jipe.
Quando o homem do cinematógrafo chegou, Yaqub já reservara uma cadeira para Lívia, o que desagradou Omar. Vinte minutos depois houve uma pane
no gerador. Omar viu os lábios de Lívia grudados no
rosto de Yaqub, quando alguém abriu a janela. Omar
quebrou uma garrafa e rasgou o rosto do irmão. Não
se falaram depois desse dia. Yaqub levou 13 pontos.
Na escola era chamado de “cara de lacrau” ou “bochecha de foice”.
Zana culpou Halim pela falta de mão firme, mas
o marido discordava porque considerava que ela tratava Omar como se fosse filho único. Temiam que o
silêncio do mais velho se transformasse em reação,
em violência dentro de casa. Halim decidiu a viagem
do filho e a separação. “A distância que promete apa2
gar o ódio, o ciúme e o ato que os engendrou .” (HATOUM, Milton. Op. cit. p. 28) Yaqub segue para o
sul do Líbano.
Quando Yaqub chega do Líbano, Halim vai buscálo no Rio de Janeiro. Passaram-se cinco anos. O rapaz
tem agora 18 anos. Tudo aconteceu um ano antes da
Segunda Guerra Mundial. Zana esperou o filho no aeroporto de Manaus. Não parou de abraçar o filho até
que Halim disse que chegava e que iam descer.
Os gêmeos estudavam no colégio dos padres. Yaqub era tímido e quase não falava, porque trocava o
pê pelo bê. Era alvo de chacotas dos colegas, mas
também dos olhares femininos e dos assédios das
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cunhantãs . Logo se destaca também nos estudos para
orgulho do pai, que afirma que Yaqub tem cabeça para os
HATOUM, Milton. Dois irmãos. São Paulo: Companhia das
Letras, 2000. p. 11.
Zana sentava no chão sozinha e chorava pela volta
de Omar. Antes de abandonar a casa, viu o vulto do
pai e de Halim nos pesadelos. Sentia a presença deles
no quarto. Durante o dia dizia que vieram visitá-la e
estavam na casa.
Alguns dias antes de morrer, Zana perguntou em
árabe se os filhos já fizeram as pazes. Ninguém respondeu.
Nós esperamos até tarde da noite. Minha mãe e
eu no nosso quarto dos fundos. Rânia e Zana no
andar de cima, deitadas, com a porta aberta, atentas a qualquer ruído. Deram duas horas e nada de
Halim chegar. Por volta das três, escutei o ronco
de minha mãe, quase um assobio grave, um sopro.
Um nambuaçu piou por ali; olhei para o chão do
quintal, nem sombra da ave. Depois reconheci o
canto de um anum, me senti melancólico, mareado. As copas escuras cobriam os fundos da casa.
Um barulhinho esquisito riscava a noite, podia ser
mucura faminta no faro de um poleiro ou morcegos
mordendo jambo doce. Lembro que as palavras do
livro que eu lia foram se apagando e sumiram.
O livro também foi engolido pela escuridão. Cochilei, debruçado na mesinha. Lá pelas cinco da manhã (ou um pouco depois, porque o cortiço dos
fundos já emitia sinais de despertar e a noite começava a perder a sua treva), um ruído me despertou.
Vi uma claridade na cozinha e logo depois um vulto.
Era uma mulher.
1
Halim e Zana são libaneses. Fixaram residência
em Manaus e moram na praça dos Remédios. Eles
têm três filhos: os gêmeos Yaqub e Omar, e Rânia.
Omar, o caçula, é mais ousado que Yaqub, que admirava a coragem do irmão ao subir em árvores e brigar
com outros moleques parrudos. Os gêmeos tinham
13 anos. Durante um baile no casarão dos Benemou,
Yaqub quis ficar até a meia-noite porque Lívia, sobrinha dos Reinoso, participava de sua primeira festa
dos adultos. “Queria ficar para pular abraçado com
ela, sentir-se quase adulto como ela.” (HATOUM,
Milton. Op. cit., p. 19) Zana ordenou que levasse a
1
O mesmo comportamento pode ser percebido em Flora, personagem de Esaú e Jacó, de Machado de Assis, que não consegue decidir
se ama Pedro ou Paulo.
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Formou, gerou.
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Meninas, moças, em tupi.
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Zana teve que deixar tudo: o bairro portuário de Manaus,
a rua em declive sombreada por mangueiras centenárias,
o lugar que para ela era quase tão vital quanto a Biblos de
sua infância: a pequena cidade no Líbano que ela recordava em voz alta, vagando pelos aposentos empoeirados até
se perder no quinal, onde a copa da velha seringueira sombreava as palmeiras e o pomar cultivados por mais de meio
século.
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números e de sobra o que faltava em Omar, que ouvia
a frase do pai. Enquanto o mais velho se esforçava,
o caçula dava trabalho: saía toda noite e bebia, subornava os porteiros do colégio, faltava às lições de
latim.
O pai, um dia, perdeu a paciência com o estado de
ressaca do filho: “Não tens vergonha de viver assim?
Vais passar a vida nessa rede imunda, com essa cara?”
(HATOUM, Milton. Op. cit. p. 33) Omar parecia não
se importar com a repreensão do pai. Foi reprovado
dois anos seguidos e acabou expulso, depois de acertar um soco no queixo e um chute no saco do professor de matemática, padre Bolislau. Omar foi estudar
no Liceu Rui Barbosa, conhecido como “Galinheiro
dos Vândalos”.
Omar tornou-se amigo do professor de francês,
Antenor Laval.
Yaqub ingressaria na Politécnica de São Paulo, para
onde partiu em janeiro de 1950. Yaqub recusou ajuda
financeira do pai. Halim chorou com a partida do filho. Lívia foi despedir-se de Yaqub. No quintal, o rapaz acariciou o ventre e os seios de Lívia.
Halim ficou conhecendo Zana no restaurante de
Galib. Ela tinha 15 anos e ajudava o pai a servir os
clientes. Halim apaixonou-se por Zana. Ele morava
na Pensão Oriente. Abbas, amigo de Halim, escreveu
um gazal4 de 15 dísticos, que traduziu para o português. Halim deixa o gazal sobre a mesa do restaurante e fica uma semana sem aparecer. Quando voltou,
Galib devolveu o envelope com o gazal. Halim passou a ler em voz baixa, mas Zana não estava ali para
ouvir. Galib elogiou os versos e disse-lhe que “uma
mulher sentiria essas palavras na carne”. Saiu do restaurante lembrando as palavras de Galib.
Numa madrugada de uma sexta-feira, encontrou
Cid Tannus, um cortejador das últimas polacas e francesas que ainda moravam na cidade decadente. Beberam o vinho que Tannus comprara de marinheiros
franceses e italianos. Depois chegou Abbas, ainda
sóbrio, mas animado com outras encomendas de gazais. […]
Halim foi aconselhado a tomar as duas garrafas
de vinho que ganhou de Abbas, voltar ao restaurante
e ler para Zana os gazais.
No sábado, Halim declamou de fogo, para vencer
a timidez, os gazais para Zana, que ficou desnorteada e buscou refúgio no pai. Muitos freqüentadores
riram, mas isso não alterou a fisionomia de Halim.
Em dois meses, tornou-se esposo de Zana. Antes disso, teve que enfrentar o escândalo entre as cristãs
maronitas de Manaus, que não se conformavam de
ver Zana casar-se com um muçulmano. Havia também muitos boatos sobre o dote que o mascate teria
oferecido a Galib.
Halim nunca passou de um modesto negociante,
mas Zana decidia tudo sozinha.
O primeiro capítulo mostra o comportamento protetor de Zana em relação ao filho Omar e sua pouca
preocupação com Yaqub. Halim, ao contrário da mulher, percebe o erro que está sendo cometido. O resultado é previsível: o sucesso do mais velho dos
gêmeos e a decadência do caçula. O ciúme de Zana
em relação aos filhos é doentio, e seu comportamento
é de proteção às atitudes inadequadas de Omar.
Durante todo o capítulo, o narrador conta os fatos que ouviu de sua mãe, Domingas, que conviveu com os gêmeos desde a infância deles.
2
Por volta de 1914, Galib inaugurou o restaurante Biblos
no térreo da casa. O almoço era servido às 11, comida
simples, mas com sabor raro. Ele mesmo, o viúvo Galib,
cozinhava, ajudava a servir e cultivava a horta, cobrindo-a
com um véu de tule para evitar o sol abrasador. No Mercado Municipal, escolhia uma pescada, um tucunaré ou um
matrinxã, recheava-o com farofa e azeitonas, assava-o no
forno de lenha e servia-o com molho de gergelim. […] Desde
a inauguração o Biblos foi um ponto de encontro de imigrantes libaneses, sírios e judeus marroquinos que moravam na praça Nossa Senhora dos Remédios e nos
quarteirões que a rodeavam. Falavam português misturado com árabe, francês e espanhol, e dessa algaravia surgiam histórias que se cruzam, vidas em trânsito, um vaivém
de vozes que contavam um pouco de tudo: um naufrágio,
a febre negra num povoado do rio Purus, uma trapaça, um
incesto, lembranças remotas e o mais recente […]
Foi assim desde os 15 anos. Era possuída por uma
teimosia silenciosa, matutada, uma insistência em fogo
brando; depois, armada por uma convicção poderosa, golpeava ferinamente e decidia tudo, deixando o outro
estatelado. […] Casaram-se diante do altar de Nossa Se5
nhora do Líbano, com a presença das maronitas e católicas de Manaus.
Galib convidou amigos do porto da Catraia, das escadarias dos Remédios, pescadores e peixeiros que abasteciam o Biblos, e também compadres dos lagos da ilha do
Careiro e do paraná do Cambixe. Uma mistura de gente,
de línguas, trajes e aparências.6 […]
HATOUM, Milton. Op. cit. p. 53.
Halim e Zana passaram três noites no Hotel América e uma noite “nas cachoeiras do Tarumã, perto de
Manaus”. Zana mandava na casa, na empregada e nos
HATOUM, Milton. Op. cit. p. 47-48.
4
Gênero de poesia amorosa dos persas e dos árabes, estruturado em dísticos, com a mesma rima funcionando para os dois versos do
primeiro dístico (estrofe de dois versos) e para o segundo verso dos demais.
5
Quem nasce na Maronéia, cidade da Trácia (antiga província do Império Romano, em região hoje dividida entre a Grécia e a Turquia.
6
A passagem mostra a presença multicultural e étnica, que é um dos traços marcantes do romance Dois irmãos.
3
Omar continuava dormindo no alpendre. Caçoava
das fotos do irmão expostas na sala com a mesma
voz de Yaqub. Ficava fazendo macaquices quando
Rânia beijava a foto do irmão. A lembrança de Yaqub
triunfava. “O duelo entre os gêmeos era uma centelha que prometia explodir.”8 (HATOUM, Milton. Op.
cit. p. 61)
Halim, que não queria ter filhos tão cedo, preferia
aproveitar a vida com Zana. Não suportava mais ouvir
a mulher falar todo o tempo de Galib, das lembranças
da terra natal à beira do Mediterrâneo onde passeava
com o pai, e esquivar-se de suas carícias. Pensou em
levar Zana para Biblos, desenterrar o sogro e mandá-la
ficar com os ossos. Mas esperou paciente.
Depois, fecharam o restaurante e abriram uma loja.
Uma freira ofereceu-lhes uma órfã, Domingas, que
cresceu nos fundos da casa. Zana gostou dela, apesar
do trabalho que deu. Rezavam juntas. Halim ria da
aproximação entre patroa e empregada por meio
da religião. Domingas asssustava-se com a barulheira dos patrões na hora do amor.
Yaqub e Omar nasceram dois anos depois da chegada de Domingas. Yaqub primeiro, depois Omar, que
adoeceu muito nos primeiros meses. Cresceu com zelo
excessivo e o mimo da mãe. Yaqub foi cuidado por
Domingas. Rânia nasceu quatro anos depois dos gêmeos.
Depois do nascimento dos filhos, Halim ficou dois
meses sem tocar no corpo de Zana. Os tempos de prazer pelos cantos da casa desapareceram, mesmo depois de ter reconquistado a esposa. Omar deu muito
trabalho ao pai. Halim perdeu seu espaço para os filhos. Aproveitava as visitas da mulher à loja para
ficarem juntos. Quando reabria a loja, fazia liquidação das tralhas todas para comemorar o encontro. “Foi
o que se poderia chamar de pai, só que um pai consciente de que os filhos tinham lhe roubado um bom
pedaço de privacidade e prazer. Anos depois, iriam
roubar-lhe a serenidade e o bom humor.” (HATOUM,
Milton. Op. cit. p. 71)
“[…] … A minha maior falha foi ter mandado o Yaqub
sozinho para a aldeia dos meus parentes”, disse com uma
voz sussurrante. “Mas Zana quis assim… ela decidiu.”
HATOUM, Milton. Op. cit. p. 57.
O capítulo coloca o leitor a par dos acontecimentos que antecederam e sucederam o casamento dos
pais dos dois gêmeos. Nesse capítulo fica-se sabendo da personalidade dominadora de Zana e da
personalidade paciente de Halim. No final do capítulo, todo ele contado por Halim ao narrador Nael,
o leitor descobre que a decisão de mandar Yaqub
para longe de casa foi da mãe, prontamente acatada pelo marido. A predileção de Zana por Omar fica
mais evidente.
O narrador também comenta que Halim nunca
teve intimidade com os filhos. Coube a ele, o bastardo, ouvir as histórias do avô.
3
Yaqub mandava pontualmente uma carta para os pais
ao final de cada mês. Zana lia para todos “como quem lê
um salmo ou uma surata7” (HATOUM, Milton. Op. cit.
p. 59), com a fala emocionada e pausas. Era motivo para
Halim convidar os vizinhos para um jantar festivo. Yaqub
morava na Pensão Veneza, no centro de São Paulo. Ele
descrevia o ritmo de sua vida paulistana. Apesar do sofrimento, sentia-se fascinado pela vida nova. No sexto mês,
começou a lecionar matemática. Abreviou as cartas. Noticiou, sem grande alarde, seu ingresso na universidade
de São Paulo. Ia ser engenheiro. Ele devolveu o dinheiro
que os pais mandaram. “Entenderam que o filho nunca
mais precisaria de um vintém. Mesmo se precisasse, não
lhes pediria.” (HATOUM, Milton. Op. cit. p. 60.) As correspondências tornaram-se mais raras.
O capítulo fixa os momentos que antecedem e
sucedem o nascimento dos gêmeos. Além disso,
mostra o período de adaptação de Yaqub em São
Paulo, pressupondo a guerra permanente entre os
gêmeos. Omar sente ciúme e inveja de Yaqub e
procura desprezar as conquistas do irmão. A fixação da mãe pelo caçula é um ponto importante desse capítulo, bem como o incômodo trazido pela
chegada e pelo crescimento dos filhos trouxeram
ao pai, que não via com bons olhos o excesso de
mimo da mulher com o caçula.
Cresci vendo as fotos de Yaqub e ouvindo a mãe dele ler
suas cartas. Numa das fotos, posou com a farda do Exército;
outra vez uma espada, só que agora a arma de dois gumes
dava mais poder ao corpo do oficial da reserva. Durante anos,
essa imagem do galã fardado me impressionou. Um oficial
do Exército, e futuro engenheiro da Escola Politécnica.
HATOUM, Milton. Op. cit. p. 61.
7
8
Seção, versículo ou capítulo do Corão.
O narrador anuncia de forma dramática a luta silenciosa e permanente entre os gêmeos.
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filhos. Halim tinha toda a paciência e aceitava tudo,
mas “era um demônio na cama e na rede”.
Galib volta para o Líbano, Cedros, onde cozinhava pratos amazônicos. Morreu dormindo na casa perto do mar. Zana só ficou sabendo bem depois. Passou
dias chorando, queria filhos porque se sentia órfã.
Passou trancada no quarto duas semanas, sem dormir
com o marido. Gritava o nome do pai.
Halim pensa, ao contar para Nael a história de seu
casamento com Zana, que quando alguém morre no
outro lado do mundo, era como se desaparecesse.
mir uma ou duas sessões, até ser acordado pelo lanterninha. Ele podia freqüentar o interior da casa, sentar no sofá e nas cadeiras da sala, mas não se sentava
à mesa com os donos da casa. Podia comer a comida
deles que não se importavam.
Nael não suportava a quantidade de trabalho da
mãe. Ele costumava fazer compras ou entregar recados, inclusive para as vizinhas que pediam a Zana
para o garoto ir a um lugar ou outro para elas. Nael
um dia recusa-se a servir de mensageiro a Estelita
Reinoso, que descendia das elites de Manaus.
Omar costuma implicar com Nael. Não aceitava o
garoto na mesa quando ele ia comer. Omar costumava chegar embriagado e machucado e acordava as
mulheres da casa. Nael tinha que ajudar.
4
Eu não sabia nada de mim, como vim ao mundo, de
onde tinha vindo. A origem: as origens. Meu passado,
de alguma forma palpitando na vida dos meus antepassados, nada disso eu sabia. Minha infância, sem nenhum sinal
da origem. É como esquecer uma criança dentro de um barco num rio deserto, até que uma das margens a acolhe. Anos
depois, desconfiei: um dos gêmeos era meu pai. Domingas
disfarçava quando eu tocava no assunto; deixava-me cheio
de dúvida, talvez pensando que um dia eu pudesse descobrir a verdade. Eu sofria com o silêncio dela […]
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HATOUM, Milton. Op. cit. p. 73.
Domingas pediu para passar o domingo fora. Ela
saiu com o filho de Manaus. Caminharam até o porto
da Catraia e embarcaram num motor até a margem
do Acajatuba, afluente do rio Negro. Durante a viagem, Domingas se alegrou com o cenário do rio. Nascera perto do povoado de São João, na margem do
Jurubaxi, braço do rio Negro. Não se lembrava da
mãe. O pai foi encontrado morto num piaçabal9. Foi
levada para o orfanato, onde rezava, aprendia a ler e
escrever; limpava os banheiros e o refeitório; costurava e bordava. Sabia que nunca mais ia ver o irmão.
Um dia a irmã Damasceno mandou-a tomar banho
de verdade e arrumar-se. Levou-a até a casa de Zana.
Nunca mais visitou as irmãs, não gostava delas. Havia apanhado várias vezes da irmã Damasceno com a
palmatória.
Nem bem chegaram à margem do Acajatuba, e
Domingas resolveu voltar. Tinha medo de chegar tarde a Manaus. Na volta, apanharam uma tempestade
perto do Tarumã. Não havia bóias. Ficaram agarrados à amurada. Ficaram enjoados e vomitaram. Parecia que iam naufragar. Chegaram à noitinha.
Domingas pediu a Nael que ficasse ao lado dela.
“No meio da noite acordei com a voz de Domingas:
se eu gostava de Yaqub, se eu me lembrava dele, do
rosto.10 Não escutei mais nada. Às cinco ela já estava
pronta para ir ao Mercado Municipal.” (HATOUM,
Milton. Op. cit. p. 79) Nael desconfia que há um pacto entre a mãe, Halim e Zana para que ela não diga
quem é seu pai.
Depois da viagem, Halim sugere que Nael ocupe
o quartinho dos fundos, porque já passara da idade
de dormir com a mãe. Domingas não deixou de vigiar o filho, quando ele saía à noite, com medo de que
o destino “confluísse para o de Omar, como dois rios
indômitos e turbulentos: águas sem nenhum remanso.” (HATOUM, Milton. Op. cit. p. 80)
Aos domingos, Nael costuma ir comprar miúdo
de boi. Costumava admirar o rio Negro. Quando Halim lhe dava dinheiro, ia ao cinema, costumava dor9
[…] enquanto o Caçula se contorcia, arrotava, mandava todo mundo à merda, se exibia, era um touro, agarrava
minha mãe, bolinava, dava-lhe um tapinha na bunda e eu
pulava em cima dele, queria esganá-lo, ele me tacava um
safanão, depois um coice, e aí a gritaria era geral, todo
mundo se intrometia, Zana me despachava para o quarto,
Domingas me socorria, chorava, me abraçava, Rânia enlaçava o irmão, “Pára com isso, pelo amor de Deus!”, mas
ele persistia, queria acabar com a noite de todos, escornar
Deus e o mundo, acordar os moradores do cortiço, da rua,
do bairro.
HATOUM, Milton. Op. cit. p. 89.
Nael odiava aquelas noites perdidas e as broncas
que tomava de Zana porque ele não entendia o filho
dela. Pensava em fugir, mas adiava a partida por causa de Domingas. Alguma vezes via Halim e Zana em
seus momentos de amor. Halim parecia querer esquecer algumas partes de seus encontros com Zana, porque não contara a Nael que costumava recitar os gazais
antes de amar a mulher.
Yaqub comunicou seu casamento, mas não disse
nem o nome da noiva. O Caçula abandonara a escola.
Mantinha amizade com o professor Antenor Laval,
para quem lia poemas antes de saírem para a calçada
do Café Mocambo para verem as veteranas e calouras do Liceu Rui Barbosa. Omar não tomava jeito.
Uma manhã amanheceu nu com uma moça no sofá
de casa. Halim acordara e viu a cena. Nesse dia, Omar
tomou um bofetada do pai e foi acorrentado na maçaneta do cofre. Halim saiu de casa e sumiu por dois
dias. As mulheres cuidavam de Omar: “Três escravas
de um cativo.” (HATOUM, Milton. Op. cit. p. 92)
No aniversário de Zana, Omar costumava deixar
flores e bilhetinhos amorosos nos vasos da sala. Rânia admirava o gesto nobre do irmão e sonhava com
um noivo que agisse da mesma forma. Abraçava e
beijava o irmão, que logo voltava ao seu comporta-
Aglomerado de piaçabas (tipo de palmeira da qual se fazem escovas e vassouras).
Essa passagem é um índice do apego de Domingas com Yaqub, mas não se pode afirmar que ele seja o pai de Nael.
10
5
Dessa vez ela não quis disfarçar: encarou com um sorriso dócil e um olhar de desprezo a mulher que jamais seria a esposa de seu filho, a rival derrotada de antemão. No
fundo, Zana não dava muita trela às mulheres que o Caçula levava para casa. Ele não escolhia, não se empolgava
com a cor dos olhos ou cabelos. Namorava as anônimas,
mulheres que ninguém da família ou da vizinhança podia
dizer: é filha, neta, sobrinha de fulano ou beltrano. […]
Todas foram vítimas de Zana. Todas, menos duas.
A que eu conheci e vi de perto surge agora diante de mim,
como se aquela noite distante se intrometesse nesta noite
do presente.
HATOUM, Milton. Op. cit. p. 100.
Omar não costumava chamar as mulheres que trazia pelo nome, mas de princesa ou queridinha. Só que
dessa vez a mulher tinha um nome: Dália. Omar chegou a revelar seu sobrenome. Vestida de vermelho,
Dália atrai mais olhares que Rânia, que se recolheu
no fim da sobremesa, porque sua beleza foi ignorada.
Zana sente que não consegue vencer a rival. Quase no final da dança das irmãs Talib, entra Dália dançando de forma sensual e atraindo todos os olhares
num vestido prateado11. No final, Omar deu-lhe um
beijo teatral e pediu palmas aos presentes. Zana não
quis saber do bolo que preparou com Domingas. As
velinhas ficaram por apagar. Halim seguiu-a logo
depois para o quarto. Zana sentiu-se traída pelo Caçula.
Ao voltar do quarto, Zana pediu ajuda a Dália para
arrumar a mesa. Logo Dália vai ao banheiro e volta
11
Ela é chamada por Nael de Mulher Prateada.
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Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
com o vestido vermelho. Nael nota que seu rosto não
era o da mesma mulher que entrara, mas o de uma
mulher humilhada. Antes de sair, disse: “Vamos ver,
vamos ver”. Omar levantou-se da rede e desapareceu
atrás da mulher.
Souberam depois que Dália era uma das Mulheres Prateadas que se exibiam na Maloca dos Barés.
Eram amazonenses, mas se diziam cariocas para ter
maior audiência. Zana fez de tudo para convencer
Yaqub a hospedar o filho farrista. Yaqub ofereceu-se
para alugar um quarto numa pensão e matricular o
irmão num colégio particular. Não permitiria o irmão
sob o mesmo teto. Omar ficou vários dias sem aparecer em casa, depois de saber do plano da mãe.
Zana descobriu o endereço de Dália e mandou Nael
procurá-la na Vila Saturnino. Nael ofereceu às tias de
Dália o dinheiro enviado por Zana. No começo relutaram, mas acabaram aceitando. Dália sumiu da Maloca dos Barés, da casa e da cidade. Omar apareceu
numa tarde de chuva, bêbado. Omar foi a São Paulo.
Zana quase se arrependeu, porque “a separação tinha
o travo da morte”. (HATOUM, Milton. Op. cit. p. 106.)
Nael entrou para o Galinheiro dos Vândalos. Nael
concluiu o curso que Omar deixou no último ano. Na
escola havia marcas da passagem de Omar, que desprezava qualquer diploma e qualquer coisa que não
lhe desse prazer intenso.
No começo, Omar mostrou-se aplicado. Quase não
saía do quarto. Jantava numa pensão da rua Tamandaré. Não faltava às aulas, embora se sentisse deslocado por ser um marmanjo. No final de agosto, a
empregada de Yaqub levou dois casacos, um pulôver,
uma calça de veludo e doces árabes enviados pela
mãe. A empregada contou que Omar devorou os doces sentado na cama.
Em 15 de novembro, antes de viajar com a esposa, Yaqub foi ao bairro da Liberdade ver onde morava
Omar. Ele acreditava que o desamparo, a solidão, o
sofrimento e a labuta seriam decisivos na educação
de Omar. Não queria encontrar-se com o irmão. Uma
semana depois, passou pelo colégio onde o irmão
estudava, conversou com os professores. Omar era
impulsivo, ousado, gostava de vencer obstáculos, mas
assistia às aulas com assiduidade. Yaqub descobriu
que deixara de freqüentar o colégio logo depois do
feriado. Yaqub vai até a pensão e descobre que o irmão abandonou o quarto sem nenhuma explicação e
sem pagar. Não havia nenhum bilhete. Procurou nos
hospitais, delegacias, necrotérios, mas nada. A esposa o aconselhou a não contar aos pais o desaparecimento de Omar. Em dezembro receberam o primeiro
cartão-postal.
mento imoral e fazia cócegas nas pernas e nos quadris da irmã, dirigindo a mão para o vão das pernas
dela. Rânia suava e afastava-se dele.
Rânia era bela, mas teimava em permanecer sozinha. Não saía para festas. Tornara-se assim desde uma
tarde em que ela e a mãe se estranharam. Abandonara
a universidade no primeiro semestre e decidiu trabalhar com o pai na loja. Tornou-se uma águia nos negócios. Não quis saber dos pretendentes, rasgava suas
cartas. Iludia os pretendentes que a mãe convidava
no dia do aniversário dela. Dançava muito próxima
deles, mas bastava Omar entrar na sala e atirava-se
nos braços do irmão. A intimidade entre os irmãos
irritava os pretendentes, a ponto de alguns saírem sem
se despedir. Rânia mantinha sua solidão. Somente se
vestia de maneira sensual para o aniversário da mãe.
Nael sentia-se atraído por Rânia. O viúvo Talib era
tarado por ela, chegando a oferecer a Halim as duas
filhas por Rânia.
Na noite do aniversário da mãe, Omar chegava
sempre acompanhado de uma mulher diferente. Nessa ocasião, Zana já soubera que ele estava de caso
com uma mulher mais velha e muito bonita.
Sempre bela, a ponto de impressionar Nael, Rânia
envelhecia com a beleza da mãe.
O capítulo reforça o amor doentio de Zana pelo
filho caçula, a qual chega a ponto de enfrentar as
pretendentes e oferecer dinheiro para que uma delas desapareça da vida de Omar. Enquanto isso,
surge uma dúvida em relação a Rânia, cujo comportamento pode ser considerado estranho para
uma jovem bonita e inteligente. O narrador instiga
a curiosidade do leitor, porque ela se transforma
depois de uma briga com a mãe e sugere também
a intimidade dela com Omar para enciumar os pretendentes. Da mesma forma, sua saída antes do
final da festa da mãe, porque se sente inferiorizada
pela amante do irmão, causa estranheza.
[…] Ela mimava os gêmeos e se deixava acariciar por
eles, como naquela manhã em que Yaqub a recebeu no
colo. As pernas dela, morenas e rijas, roçavam as do irmão; ela acariciava-lhe o rosto com a ponta dos dedos, e
Yaqub, embevecido, ficava menos sisudo. Como ela se
tornava sensual na presença de um irmão! Com esse ou
com o outro formava um par promissor.
HATOUM, Milton. Op. cit. p. 117.
Rânia se empetecou como nunca nos quatro dias
da visita de Yaqub. Ganhou dele os melhores presentes: um colar de pérolas e um bracelete de prata. Nael
viu quando ela e Yaqub subiram as escadas e entraram no quarto dela e alguém fechou a porta. A imagi13
nação de Nael correu solta. Os dois só desceram
para comer com os pais, Talib e suas duas filhas.
Durante o café debaixo da seringueira, Talib perguntou a Yaqub se não sentia falta do Líbano. Yaqub empalideceu e demorou a perguntar que Líbano, afirmou
depois que havia esquecido tudo, o nome da aldeia e
dos parentes, menos a língua. Ia dizer que não esqueceu outra coisa, mas não completou a frase. Zana convidou-os para um licor na sala. Talib agradeceu e
retirou-se com as filhas. Yaqub ficou só sob a seringueira e fumava com ânsia. “Estava transfigurado, e
parecia trincar os dentes até a alma.” (HATOUM,
Milton. Op. cit. p. 119)
À noite saiu para jantar apenas com Halim e revelou alguns detalhes sobre o sumiço de Omar. Halim
não sabia de nada do que o caçula aprontara. Pocu,
um ex-barqueiro e amigo de Halim, contou a história
de um casal de irmãos que viviam como amantes num
14
barco encalhado .
Depois da saída de Pocu, Halim falou que nem
São Paulo corrigiu Omar. Yaqub contou que Omar
fizera pouco dele e da mulher. Enviara postais de
Miami, Tampa, Mobile e Nova Orleans, contando farras e peripécias. Roubou o passaporte, uma gravata
de seda e duas camisas de linho irlandês e 820 dólares de Yaqub, que explodiu enquanto cobrava o que o
irmão roubara e afirmou que não lhe perdoaria.
A raiva maior de Yaqub é que Omar olhou as fotos do
casamento e descobriu que ele se casara com Lívia.
Além disso, fizera desenhos obscenos e palavrões nas
fotos do casamento. “Yaqub ficou louco… Não tinha
perdoado a agressão do irmão na infância, a cicatriz…
Isso nunca tinha saído da cabeça dele. Jurou que um
dia ia se vingar”. (HATOUM, Milton. Op. cit. p. 125)
Depois do desabafo do filho, Halim voltou para casa,
arrumou um vaso de orquídeas, chamou Zana e dei-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
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Na vida de Omar aconteciam lances incríveis, ou ele
os deixava acontecer, como quem recebe de mão cheia
um lance de aventura. E não há seres assim? Pessoas
que nem carecem buscar o lado fantasioso da vida, apenas se deixam conduzir pelo acaso, pelo inusitado que
assoma nas ventas.
Yaqub só revelou a verdade sobre o irmão quando visitou
pela primeira vez a família desde que partira para São Paulo.
HATOUM, Milton. Op. cit. p. 111.
Nael ficou agitado com a notícia da chegada de
Yaqub. Como a imagem que fazem dele é de um ser
perfeito, Nael pensa que pode ser filho de um homem quase perfeito. Pensava em qual dos dois teria
atraído sua mãe.
Yaqub abraçou primeiro Domingas. Nael lembrouse da voz que ouvia aos quatro ou cinco anos. Yaqub
trouxera livros para ele. Não veio com a esposa para
Manaus. Zana quis saber como era a nora. Na véspera sonhara com os gêmeos conversando e depois com
Yaqub partindo. Evitou que os gêmeos se encontrassem. Durante três noites conseguiram esconder Omar.
Durante um passeio com Yaqub, Nael percebeu
que o gêmeo não se mostrava na defesa com ele, não
vestia uma armadura sólida, como dissera Halim.
Passearam de canoa e foram até uma mesma palafita
onde Yaqub e Domingas iam aos domingos. A dona
não o reconheceu. Yaqub estava alegre, mas depois
foi ficando quieto e pensativo. Confessou a Nael que foi
horrível o dia em que foi obrigado a ir para o Líbano.
Yaqub criticou a presença dos amigos do pai e o
jogo de gamão no comércio. Chamou esses freqüentadores de urubus, porque ficavam ali esperando a
hora do lanche da tarde. Assim não iriam muito longe. Rânia perguntou para que ir tão longe, e sobre o
prazer do jogo e da conversa. Segundo Yaqub, o co12
mércio não se alimentava de prazeres fortuitos .
Halim pediu a Nael que o acompanhasse à loja de
Balma para assistir à partida de bilhar entre Issa e Talib.
12
Que acontecem por acaso; não planejados; imprevistos.
O índice de sugestão de incesto é retomado pelo narrador.
14
Sugestão de incesto entre Rânia e Yaqub.
13
7
çuda, roliça, alta e escura, de boca enorme e cabelos
longos e alisados.
Zana contratou Zanuri, um delator profissional e
funcionário do tribunal de justiça, para descobrir tudo
sobre o filho. Omar decidira fugir com a amante, mas
enfrentou o desespero e a ira de Zana, que prometeu
trazer o filho de volta para casa ou ir embora de vez
com aquela mulher.
tou-se nu na rede. Ela chegou e ouviu-o declamar alguns versos de Abbas. Era a senha… Halim precisava esquecer um pouco os filhos.
Yaqub prosperava em São Paulo. Zana orgulhavase do filho doutor, mas venerava Omar. Tinha ciúme
do casamento de Yaqub, comia escondida as guloseimas que a nora lhe enviava. Halim elogiava a nora
que lhe mandava presentes. Zana irritava-se com a
falta de objetos modernos em casa. O progresso que
tomava o país não chegara até sua casa. Halim preocupava-se apenas com a fartura da mesa.
Durante a visita que fez à casa dos pais, Yaqub
percebeu a carência e transformou a casa. Utensílios
domésticos novos foram descarregados de um caminhão. “Se a inauguração de Brasília havia causado
euforia nacional, a chegada daqueles objetos foi o
grande evento da nossa casa.” (HATOUM, Milton.
Op. cit. p. 129) A casa foi restaurada, e a loja pintada.
O mesmo aconteceu com o quarto de Nael e da mãe.
Rânia modernizou a loja, mas por trás de tudo aquilo
estavam as palavras de Yaqub.
Omar recusou que pintassem seu quarto e não quis
usufruir de qualquer conforto que viesse do irmão.
Não comia em casa. Zana fingia não ver que o caçula
furtava seu dinheiro. Outras vezes colocava dinheiro no
bolso dele. Omar fingia não ver que o dinheiro vinha
de Yaqub. A loja foi modernizada e ficou muito diferente do armarinho de secos e molhados. Só a parte
de cima foi mantida intacta, porque era onde Halim
se refugiava.
Omar acabou se envolvendo com uma mulher apelidada de Pau-Mulato. Estava mudado, não chegava
embriagado, dormia no quarto, barbeava-se, acordava cedo. Não trouxe a nova amante para casa. Escondeu-se com ela.
6
Halim já estava com quase 80 anos, mas ainda era
forte como um cavalo. Exibia-se para Zana ao abrir as
portas de ferro da loja. “Até um pouco antes de morrer, foi discreto em roda de amigos, incapaz de rir sem
gana, generoso sem pensar três vezes, mas imprevisível na coragem de macho. Um homem capaz de dar
um coice em queixo inimigo e machucar.” (HATOUM,
Milton. Op. cit. p. 151) Isso aconteceu com Azaz e sua
gangue um ano antes do fim da Segunda Guerra. Foi
quando Nael nasceu. A cidade toda comentou a briga.
“Ninguém se intrometeu. Em duelos assim, só Deus é
mediador.” (HATOUM, Milton. Op. cit. p. 154)
Halim procurou o contrabandista Wyckham, que
ocultou o verdadeiro esconderijo de Omar, dizendo
que viajara para os Estados Unidos e ainda não dera
notícias. Halim procurou Tannus, antigo companheiro de jogo. Durante três noites vasculharam clubes
grã-finos e espeluncas dos subúrbios de Manaus. Na
quarta noite, num botequim da Colina, sentaram-se
numa mesinha para tomar um uísque presenteado a
Tannus por Wyckham. Foi ali que Halim descobriu
que o homem não era inglês, chamava-se Francisco
Alves Keller, o Chico Quelé. Foi por intermédio do
falso inglês que Omar ficou conhecendo a Pau-Mulato.
Halim alugou um barco e passou meses procurando
pelo caçula junto com Pocu, Nael e Tannus. Voltou
triste por não ter achado o filho antes de Zana.
Halim passa a estranhar a quantidade de peixes
que são comprados, contrariando o controle que Zana
exercia sobre as despesas. Comeu-se bem e com desperdício durante a estação das chuvas.
O peixeiro Adamor, conhecido como Perna-deSapo, porque arrastava uma perna, fora incumbido por
Zana de encontrar Omar. Adamor, em 1943, resgatara
um tenente-aviador norte-americano que caíra na selva. Por causa de sua bravura foi condecorado com uma
Esse homem metamorfoseado em anjo assombrou sua
mãe. E o anjo, em lugar de apaziguá-la, transtornou-a. Zana
achava esquisito ver o filho à mesa nas refeições, ver o
homem que nunca tinha trabalhado acordar cedo, barbear-se […]
HATOUM, Milton. Op. cit. p. 135.
Omar dizia trabalhar num banco estrangeiro. Rânia passou a conviver mais com o irmão. Certa feita
Omar levou um tal Wyckham ou Weakhand, que dizia ser gerente de um banco estrangeiro. Possuía um
Oldsmobile conversível, prateado com bancos forrados de azulão. Para surpresa de todos, era o carro de
Omar.
Zana não engoliu a história do banco estrangeiro.
Descobriu que Wyckham era contrabandista. Omar
conferia as mercadorias contrabandeadas, que eram
enviadas do armazém número nove para uma chácara. Por trás daquilo estava a mulher que envolvera o
filho: a Pau-Mulato, uma gigante, uma mulher ma-
8
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
O capítulo destaca o ciúme de Zana pelos filhos.
A chegada de Yaqub altera a rotina da família. Os
gêmeos confirmam suas diferenças psicológicas.
Omar é o oposto do irmão, preguiçoso, boêmio,
aproveitador. Seu comportamento muda depois que
se apaixona por uma nova mulher. A mãe estranha
e contrata um delator para dar o paradeiro do filho,
envolvido também em contrabando.
medalha de honra. Não foi à toa que passou a vender
os peixes mais caros e também os encalhados para Zana,
que impediu Domingas de escolher os peixes.
Numa manhã de sábado, Halim viu a mulher sair com
o peixeiro. Zana usava sua melhor roupa. Halim sabia
que Omar seria fisgado. Estava escondido a 300 metros
da toca de Halim, como descobriu o astuto Adamor.
7
Na primeira semana de janeiro de 1964 Antenor Laval
passou em casa para conversar com Omar. O professor de
francês estava afobado, me perguntou se eu havia lido os
livros que me emprestara e me lembrou, com uma voz abafada: as aulas no liceu começam logo depois do Carnaval. […]
HATOUM, Milton. Op. cit. p. 185.
Laval vivia num porão cheio de papéis, garrafões
vazios de vinho e restos de comida ressequida. Ele
conseguiu convencer Omar a ir até sua casa para uma
sessão de poesia. Omar só voltou na madrugada do
dia seguinte. Pediu muito dinheiro a Rânia, que recusou o pedido.
Nael visitava os fregueses da loja para tentar vender alguma mercadoria. O movimento estava pequeno. Rânia insistia nessas visitas. Halim via Rânia
carregar caixas de mercadoria e vender de porta em
porta. Sentia piedade da filha, que se matava para
sustentar o parasita do irmão. Não suportava mais
olhar para o filho.
Em março, Laval passou algumas semanas sem
aparecer nas aulas. Estava muito abatido quando apareceu. Não conseguiu dar sua aula. Saiu sem dizer
uma palavra. Não voltou mais ao liceu. Foi preso numa
manhã de abril.
[…] Morava num motor velho, barquinho de aluguel,
bem barato. Dormiam numa rede, ele e a mulher. E dormiam ao ar livre em praias desertas, onde atracavam o
motor. Passariam a vida assim? Talvez. Ela, a Pau-Mulato,
dando uma de cartomante, lendo a mão calosa dos ribeirinhos, recebendo farinha e moedas em troca de destinos
fantasiosos. […] ambos na honrosa pobreza, sem horário
para nada. Soltos e livres, viviam a vida sem o previsível.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
HATOUM, Milton. Op. cit. p. 169-170.
Omar estava careca, barbudo e quase preto de tanto sol. Mais magro. Usava uma bermuda suja e cheia
de furos. Entrou em casa destruindo tudo com uma
corrente de aço. Rasgou os retratos do irmão, a quem
culpava junto com o pai. Queria saber de Halim. Demonstrou claramente os seus ciúmes de Yaqub. Não
parava de xingar a mãe, Domingas e Nael, que se preparou para revidar se Omar o atacasse. Pensou em
atacar Zana, mas ela usou seu poder de mãe, insultou
a mulher com quem o filho vivia. Sabia de tudo, do
contrabando, do aliciamento de meninas para o inglês de araque. Omar acalmou-se. Domingas e Nael
começaram a limpar a bagunça e consertar as cadeiras quebradas. O espelho veneziano estava destruído.
Halim pedira a Nael que seguisse Zana. Sabia que
algo aconteceria. Sentia ciúme do filho como nunca.
Nael acompanhou a cena toda até o regresso de Omar,
que passou vários dias fechado no quarto. O gêmeo
foi mimado como nunca, para desespero de Halim.
Rânia foi obrigada a abrir o cofre da loja, ceder aos
caprichos do irmão.
Foi humilhado no centro da praça das Acácias,
esbofeteado como se fosse um cão vadio à mercê da sanha de uma gangue feroz. Seu paletó branco explodiu de
vermelho e ele rodopiou no centro do coreto, as mãos cegas procurando uma apoio […] Laval foi arrastado para
um veículo do Exército […] Tudo isso em abril, nos primeiros dias de abril.
HATOUM, Milton. Op. cit. p. 189-190.
Nael apanhou a pasta surrada de Laval. Dois dias
depois, todos souberam que o mestre estava morto.
Choveu muito no dia da morte de Laval. Os estudantes
se reuniram no coreto para ler poemas manuscritos do
professor. “Omar foi o último a recitar. Estava emocionado e triste, o Caçula.” (HATOUM, Milton. Op. cit.
p. 190) Escreveu com tinta vermelha um verso de Laval. Nael não conseguiu odiá-lo naquele momento.
No mesmo dia, Yaqub voltou a Manaus. Estava com
Domingas na varanda quando Omar chegou. Este ignorou o irmão. Domingas não atendeu ao seu chamado. Halim e Zana chegaram. Depois de beijar o filho,
Zana foi cuidar de Omar. Halim trouxe notícias de que
os militares cercaram a cidade flutuante. Rânia conversou com o irmão. Zana cuidava do doente, que mal
conseguia engolir. Yaqub olhava. Domingas sabia que
ele matutava alguma coisa. Nael tinha medo, mas Yaqub nada temia. Levava Nael com ele pela cidade.
Ele ouvia a ladainha e começava a acariciar a irmã: um
beijo nas mãos, um afago no pescoço, uma lambida no
lóbulo de cada orelha. Enlaçava-a, carregava-a no colo,
olhando para ela como um conquistador cheio de desejo.
As palavras que adoraria ouvir de um homem ela ouviu de
Omar, “o irmão que nunca ficou longe de ti, que nunca te
abandonou, mana”, ele sussurrava. Rânia se derretia, sensual e manhosa, e a voz dela, mais pausada, ia cedendo
um pouquinho, até balbuciar, concordar: “Está bem, mano,
te dou uma mesadinha, assim tu te divertes por aí.”
HATOUM, Milton. Op. cit. p. 178.
O capítulo destaca o resgate de Omar para os
braços de Zana, que se desesperava com o ausência do filho mimado. Novamente, o narrador sugere
uma relação incestuosa entre Omar e Rânia. O comportamento de Halim em relação ao filho sugere o
distanciamento entre eles e aproximação entre
o velho e o narrador.
Ele [Yaqub] sabia que Manaus se tornara uma cidade
ocupada. As escolas e os cinemas tinham sido fechados,
lanchas da Marinha patrulhavam a baía do Negro, e as
9
contrar-se com as prostitutas. Não era a primeira vez
que ficava doente. Zana aplicava compressas no membro do filho. Ao urinar, ele acordava a casa inteira.
Halim costumava escapulir de casa durante o dia.
Nael era enviado por Zana para ir atrás do avô. Comia as comidas que a nora Lívia enviava de São Paulo. Desprezava a comida de casa. “Era um insulto para
Zana, mas ele não se importava mais.” (HATOUM,
Milton. Op. cit. p. 210) Halim revoltou-se com a demolição da Cidade Flutuante. Chorou quando viu seu
bar predileto ser derrubado.
Na véspera de natal, Halim desapareceu. Ninguém o viu, nem mesmo os amigos. Zana esperou
por ele, não procurou a polícia. Sabia que voltaria
para casa. Todos acabaram dormindo, mas atentos à
chegada de Halim. Quando Zana se levantou, lá pelas cinco da manhã, encontrou Halim no sofá cinzento. Chamou-o pelo nome. Perguntou por que
chegara tão tarde.
HATOUM, Milton. Op. cit. p. 198.
Nael sentiu-se mal ao acompanhar uma fila interminável de veículos militares e lembrar-se da prisão
de Laval. Yaqub e Halim mostraram-se preocupados
com ele, que passou vários dias de cama. Yaqub, Halim e Domingas comemoraram o aniversário de Nael.
Omar fez um grande barulho, como se quisesse roubar a festa que ocorria no quarto dos fundos da casa.
Yaqub foi se despedir de Nael e do pai, que o abraçou
chorando e disse que aquela era a casa dele, Yaqub.
Nael perguntou à mãe se Yaqub era seu pai. Domingas pediu que aproveitasse para descansar e ler.
Omar também sentiu a morte de Laval, de quem era
verdadeiramente amigo. Quando saiu do quarto, tinha o olhar fixo e parecia um farrapo. Deixou as noitadas, dedicando-se a catar frutas podres no quintal e
cuidar das plantas.
Numa tarde de sábado, Nael é chamado por Rânia
para ajudá-la a empilhar umas caixas de mercadoria
no depósito da loja. Rânia trancou as portas da loja
para não serem importunados. O andar de cima fica
atulhado de caixas. Rânia resolveu arrumar toda a loja,
a começar pelo depósito. Jogou fora as quinquilharias e os objetos de outro século.
[…] Halim não respondeu.
Estava quieto como nunca.
Calado, para sempre.
HATOUM, Milton. Op. cit. p. 213.
8
Omar desapareceu numa tarde de outubro, dois
meses antes da morte de Halim. Mortificara o corpo
todos os dias, mesmo nos dias mais quentes.
Omar não se conformou com a morte do pai naquela madrugada. Apontava o dedo em riste e gritava
com o pai. Talib chegou a tempo de evitar um confronto entre o filho vivo e o pai morto. Nael arrastou
o Caçula para fora da sala. Não suportou vê-lo tão
corajoso diante do finado Halim. Enfrentou Omar,
que o ameaçou com um terçado. Chamou-o de covarde. Omar empunhou o facão, mas recuou.
[…] Quando se curvou para abrir uma caixa de lençóis,
vi os seios dela, morenos e suados, soltos na blusa branca
sem mangas. Rânia demorou nessa posição, e eu fiquei
paralisado ao vê-la assim, recurvada, os ombros, os seios
e os braços nus. Os lábios se moveram e a voz manhosa
sussurrou lentamente: Vamos parar?
Depois da morte de Halim, a casa começou a desmoronar. Omar foi ao enterro, mas permaneceu distante, tão
distante que o irmão, mesmo ausente, parecia estar mais
próximo da despedida ao pai. Yaqub mandara entregar no
cemitério uma cora de flores e um epitáfio, que Talib traduziu e leu em voz alta: Saudades do meu pai, que mesmo a
distância sempre esteve presente.
HATOUM, Milton. Op. cit. p. 206.
Rânia não fugiu do abraço, afagos e beijos de Nael.
Passaram horas juntos naquele suadouro.16 Rânia
confessou a Nael que a mãe implicou com o homem
que ela amava, cancelou a festa de 15 anos da filha,
ameaçou fazer um escândalo. Por isso desprezou todos os pretendentes escolhidos por Zana. Rânia pediu que Nael fosse embora, dormiria ali na loja. Nael
nunca mais foi chamado por Rânia para outro sábado
na loja, apesar de confessar que gostaria. Tampouco
descobriu quem era o homem por quem Rânia foi
apaixonada.
Omar contrai doença venérea (gonorréia). À noite costumava escapar da tarefa de jardineiro e ia en15
16
HATOUM, Milton. Op. cit. p. 220.
Algumas semanas depois, Zana repreendeu Omar
por ter humilhado o pai morto. Não admitia o dedo
em riste e as palavras duras. Zana mandou que parasse de bancar o coitadinho, de esfolar as mãos e os
braços como péssimo jardineiro. Deveria procurar um
emprego e parar com a mania de desocupado porque
não tinha pai. Zana recusou o carinho do Caçula, que
veio atrás dela até a sala.
O golpe militar alterou a rotina da cidade de Manaus, como de todo o país.
Ainda que o incesto com o irmão não seja confirmado, o incesto com o sobrinho Nael é claramente descrito no romance.
10
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
estações de rádio transmitiam comunicados do Comando
Militar da Amazônia. Rânia teve que fechar a loja, porque
a greve dos portuários terminara num confronto com a polícia do Exército. Halim me aconselhou a não mencionar o
nome de Laval fora de casa. Outros nomes foram emudecidos. A tarja preta que cobria uma parte da fachada do
liceu fora arrancada e as portas do prédio permaneceram
trancadas por várias semanas. 15
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
construtora estava destruído.
Rochiram procurara Rânia na loja e ameaçava com
um processo para ser indenizado pelo prejuízo com a
comissão do terreno e com o que pagou a Yaqub pelo
projeto. Rânia pediu um tempo. Rânia tentaria tudo
para evitar um processo de Yaqub contra Omar.
Domingas não contou a briga para Zana, apenas
disse que Yaqub não pôde reagir.
Rânia convidou o irmão para trabalhar com ela,
mas ele não aceitou. Omar voltou à noite manauara.
Zana mostrava-se calada, triste por causa da morte de
Halim. Omar contava à mãe que Manaus estava mudada, cheia de estrangeiros. Zana não deu atenção ao
buquê e ao convite de Omar para jantarem juntos, só
os dois. Queria a paz entre os filhos.
Num sábado, Omar chega com um homem, o indiano Rochiram. Domingas estava indisposta e não
gostou do visitante sentar no sofá de Halim. Por isso
recusou-se a ajudar Zana a preparar um lanche. Rochiram passou a freqüentar a casa, sempre acompanhado por Omar, porque percebera que podia cativar
Zana. Trazia presentes. Rochiram queria construir um
hotel em Manaus. Domingas não gostava do estrangeiro. Sonhara com Halim na primeira noite que o
homem esteve lá.
Zana enviou uma carta para Yaqub falando do estrangeiro, que queria construir um hotel em Manaus.
Procurava conciliar os filhos num projeto comum. Pedia perdão por ter enviado o filho para o Líbano. Quase um mês depois veio a resposta. Yaqub não aceitou
ou recusou qualquer perdão. O atrito entre ele e Omar
era um assunto dos dois. Na carta acrescentou: “Oxalá
seja resolvido com civilidade; se houver violência, será
uma cena bíblica.”17 (HATOUM, Milton. Op. cit. p.
228) Interessou-se pela construção do hotel.
Omar debochou da carta. Passou um bom tempo
incomodando Rânia e a mãe por causa da carta do
irmão. Gastou todo o dinheiro que ganhara de comissão na venda do terreno do hotel em bebidas e presentes para namoradas.
Nael ouve um cochicho entre Zana e Rânia de que
Yaqub estava hospedado num hotel barato em Manaus. Domingas duvidava porque ele viria vê-la.
Yaqub apareceu depois de um dia de muita chuva.
Nael acreditou que um dos olhares de Yaqub para ele
eram olhares de um pai. Esboçara os cálculos para
uma grande construção em Manaus. Esteve muito
próximo, muito íntimo de Domingas. Recusou-se a ir
embora, como Domingas aconselhou. Estava em casa.
Nael assustou-se com a chegada de Omar, que avançou sobre o irmão e socava e chutava. Nael não conseguiu detê-lo sozinho. A chegada dos vizinhos do
cortiço dos fundos pôde conter a raiva de Omar. Yaqub foi levado por Domingas a um hospital, muito
machucado. Ferira gravemente a mão esquerda e perdera três dentes. Além de sentir muitas dores nas costas. Yaqub pediu que Domingas inventasse para a mãe
que ele partira para São Paulo com pressa. Mas Zana
descobriu tudo. Seu sonho de unir os filhos numa
17
18
9
Uma tarde Domingas e o filho foram passear na praça da Matriz. Não havia mais uma multidão de pássaros. O aviário estava silencioso. Índios e migrantes
esmolavam na escadaria da igreja. Nael fica sabendo
que Halim ajudou Domingas quando o filho nasceu. Foi
Halim que escolheu o nome do neto. Ela sentia que ele
gostava muito do neto. Domingas contou que uma noite
Omar entrou no seu quarto e a agarrou com força. Ela
não queria. Omar nunca pediu perdão.18 Depois que
contou isso ao filho, evitava sair do quarto.
Zana mandou jogar fora o cofre de Halim. O mesmo cofre em que acorrentara o filho. Omar continuava sumido. Zana pedira aos amigos de Halim, Talib e
Cid Tannus, que trouxessem o filho de volta.
Nael encontrou Domingas morta na rede de Omar,
descorada depois de lavada para tirar o sangue de Yaqub. Morreu, mas não sem antes revelar o segredo do
nascimento do filho. Zana abraçou Domingas de joelhos. Nael pediu a Rânia para enterrar a mãe no jazigo
da família, ao lado de Halim. Rânia concordou.
O capítulo exerce a função de decifrar um dos
enigmas do romance: a paternidade de Nael, o narrador. A morte de Domingas e sua confissão destacam a importância dessa passagem.
10
A família tinha que se mudar para um bangalô.
Zana não queria sair da casa. Zana começou a caducar. Primeiro quebrou o braço e a clavícula esquerda.
Costumava dependurar as roupas no varal e colocar
os sapatos de Halim no alpendre. Chamava por Domingas. Rânia não suportava ver a mãe conviver com
fantasmas. Sabia que a casa deveria ser vendida para
pagar a dívida com Rochiram. Rânia mudou-se sozinha para o bangalô.
Zana costumava conversar com Nael, depois que
restaram apenas os dois na casa. Ela mesma fazia as
perguntas e respondia. Nael ficou sabendo mais sobre Zana, Halim e Galib. Não suportava a ausência
de Omar.
Referência à passagem bíblica da luta entre Caim e Abel.
Finalmente, Nael descobre que é filho de Omar, que estuprou Domingas quando estava bêbado.
11
O capítulo destaca a decadência final da família
de Halim que, na ausência do patriarca, encontrase numa difícil situação financeira e deixa a casa,
já bastante arruinada. A morte de Zana mostra o
fim do ciclo familiar e a separação definitiva dos
demais membros, cabendo a Nael reunir pela memória as lembranças familiares.
[…] Hoje, penso: sou e não sou filho de Yaqub, e talvez
ele tenha compartilhado comigo essa dúvida. O que Halim
havia desejado com tanto ardor, os dois irmãos realizaram: nenhum teve filhos. Alguns dos nossos desejos só se
cumprem no outro, os pesadelos pertencem a nós mesmos.
11
Zana morreu quando Omar estava foragido. Na
viu a reforma da casa. Os azulejos portugueses foram arrancados. Em pouco tempo, a fachada transformou-se num horror. Houve uma festa de estrondo
na inauguração da casa de Rochiram. A Nael coube
como herança apenas uma passagem e os fundos da
casa. Yaqub decidira dessa forma. Achara sensato
vender a casa e uma boa parte do terreno a Rochiram
para Omar não sofrer as conseqüências.
Na noite que passara no hospital, Yaqub fora obrigado a embarcar para São Paulo porque Omar invadira o hospital e por pouco não agrediu novamente o
irmão. Omar só não foi preso porque subornou policiais. Depois da morte da mãe, Yaqub agiu, colocando um oficial de Justiça atrás do irmão. Omar não
parava em lugar nenhum para escapar da Justiça. Rânia costumava ser cobrada pelas dívidas que Omar
deixava. Passou a ser procurado por vários delitos.
Rânia não podia quitar todas as dívidas do irmão. Tinha que poupar para o que viria depois.
HATOUM, Milton. Op. cit. p. 264.
Nael viu Omar pela última vez quando este saiu
do presídio. Nael tornara-se professor no liceu e dera
sua primeira aula. Voltou para casa e estava envolvido com os escritos de Laval e com a anotação das
conversas com Halim. Omar invadiu o seu refúgio.
Nael esperava que ele confessasse a desonra, a humilhação. Esperava o perdão.
Omar titubeou. Olhou para mim, emudecido. Assim ficou por um tempo, o olhar cortando a chuva e a janela,
para além de qualquer ângulo ou ponto fixo. Era um olhar
à deriva. Depois recuou lentamente, deu as costas e foi
embora.
HATOUM, Milton. Op. cit. p. 266.
4. SÍNTESE DO ENREDO
O narrador participa da ação principal do romance Dois irmãos. Nael conta as histórias que viveu ou
ouviu Halim, sua mãe Domingas ou Zana contar.
A angústia do narrador é descobrir quem é seu pai, já
que é considerado neto de Halim, apesar de morar
com a mãe nos quartinhos dos fundos da casa da família.
A história gira em torno do drama de uma família
de libaneses que vivem em Manaus. Halim casou-se
com Zana e não queria filhos para atrapalhar o amor
12
Cedo ou tarde, o tempo e o acaso acabam por alcançar a todos. O tempo não apagara um verso de Laval pintado no piso do coreto da praça das Acácias. Alguns anos
depois, num dos primeiros dias de abril, um lance do acaso uniu o destino de Laval ao de Omar.
HATOUM, Milton. Op. cit. p. 259.
Rânia encontrou Omar na praça das Acácias, mas
não conseguiu aproximar-se. Três policiais o fareja-
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Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
vam. Omar riu na cara dos “meganhas”. Recebeu uma
coronhada no rosto e foi arrastado até uma viatura.
Rânia tentou intervir, mas foi repelida brutalmente.
Nael intuiu que a amizade com Laval “era uma forma
de condenação política”. Omar foi condenado a dois
anos e sete meses de reclusão.
Rânia escreveu a Yaqub condenando sua vingança, que era mais patética que o perdão. Ameaçou desprezá-lo para sempre, queimar suas fotos e devolver
as jóias e roupas que ganhou, se não renunciasse à
perseguição de Omar. Cumpriu a promessa diante do
silêncio do irmão.
Nael afastou-se de Rânia, porque ela não aceitou
a omissão dele diante da prisão de Omar, que saiu
pouco antes de cumprir a pena. Omar chorou a morte
da mãe. Esquivou-se de Rânia e de todos os vizinhos.
Nael recebia cartas breves e esparsas de Yaqub,
que pedia para cobrir de flores o túmulo dos pais e
cobrava uma visita a São Paulo. Nael adiou a visita
por 20 anos.
Rochiram apareceu para cobrar sua dívida: a casa
em troca da dívida dos irmãos. Afirmou que Yaqub
concordava. Poucos dias depois um caminhão levou
a mudança para o bangalô.
Zana partiu sem conhecer o desfecho da história. Nael
ficou sozinho em seu quartinho dos fundos. Num domingo Rânia pediu que tomasse conta de Zana enquanto ia ao mercado. Nael voltou às leituras. Zana entrou
no galinheiro e não queria mais sair de lá. Estava com as
roupas de Halim sobre o corpo. Com dificuldade, conseguiram colocá-la no carro. Nunca mais voltou.
Nael voltou a encontrar Zana numa clínica, com
hemorragia interna. Depois de pronunciar algumas
palavras em árabe, balbuciou “Nael… querido…”
(HATOUM, Milton. Op. cit. p. 254)
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viviam precariamente na cidade, e os anos que se seguem, até o período de implantação e domínio da ditadura militar.
A modernidade convivia com o comércio tradicional e retrógrado dos secos e molhados e com a proliferação de produtos importados. A narrativa focaliza
ainda a inauguração de Brasília e as mortes e transformações causadas pela repressão/opressão militar.
C) Espaço: O espaço principal é Manaus, onde
se passa a maior parte da narrativa. Estão presentes o
centro, os bairros e os subúrbios da cidade ribeirinha.
A miséria e o fausto convivem nesse cenário, onde o
consumismo começa a espalhar-se depois da crise da
borracha, com o processo de modernização. No entanto, também está presente a São Paulo dos anos de
1950, como na descrição da seringueira da praça da
República, objeto de identificação com o mundo de
onde Yaqub partiu e de que não consegue se esquecer. O Líbano é um referencial lembrado apenas por
Zana e Halim, já que Yaqub em nenhum momento
fala do que viveu nos cinco anos que passou na terra
natal dos pais.
D) Foco narrativo: O foco narrativo está na primeira pessoa. O narrador-personagem é Nael, um
membro à parte dentro do clã de Halim, que escreve
o que viu e viveu, mas principalmente transcreve as
histórias contadas pela própria mãe. O narrador-observador é uma testemunha privilegiada, que tenta
reconstruir a própria identidade com fragmentos das
histórias contadas pelos outros ou que presenciou,
distanciado da cena principal em quartinho no fundo
da casa.
sensual entre ele e a esposa. O sogro Galib volta para
o Líbano, onde morre longe da única filha. O casal
acaba tendo dois filhos homens, gêmeos, Yaqub e
Omar, e uma filha, Rânia. Os gêmeos tornam-se inimigos mortais desde muito jovens. Eram diferentes
em tudo: à ousadia e à coragem de Omar opunhamse a timidez e a covardia de Yaqub. Ambos, mas principalmente Omar, foram estragados pelos mimos e
desvelos da mãe. Zana tem ciúme doentio dos dois
filhos até mesmo de Rânia, a quem impede de continuar namorando o homem pelo qual era apaixonada.
Yaqub foi enviado para o Líbano, depois de ser
atacado por Omar durante uma briga por causa de
Lívia, uma menina por quem Omar era apaixonado.
Depois de voltar para o Brasil, Yaqub vai para São
Paulo, torna-se engenheiro sem a ajuda da família e
casa-se escondido com Lívia. O ódio entre os gêmeos
continua.
Omar leva uma vida devassa entre bares e prostíbulos, amores vadios com mulheres da vida, para desespero da mãe. Não trabalha, não estuda e ganha
dinheiro da mãe para continuar sempre em casa. Zana
não admite os namoros do filho. Omar atormenta a
vida de todos na casa, inclusive da pobre Domingas e
de Nael, com suas brigas e bebedeiras. Rânia assume
os negócios da família, com o apoio de Yaqub.
Nael descobre pela mãe que Omar invadiu seu
quarto numa noite e estuprou-a. Sabe que é filho de
Omar, mas sente-se mais próximo de Yaqub, de quem
a mãe sempre foi amiga e confidente.
Depois da morte de Halim, o ódio entre os irmãos
cresce, a ponto de, numa visita de negócios incentivada pela mãe para aproximar os filhos, Omar agredir violentamente o irmão, que vai parar no hospital.
Yaqub abre processo por lesão corporal contra Omar.
Zana morre sem rever Omar. Depois de algum tempo, Omar é preso e cumpre pena. Rânia afasta-se definitivamente de Yaqub. Omar sai da cadeia. Nael
torna-se professor no liceu e vê pela última vez Omar.
Eu não sabia nada de mim, como vim ao mundo, de
onde tinha vindo. A origem: as origens. Meu passado,
de alguma forma palpitando na vida dos meus antepassados, nada disso eu sabia. Minha infância sem nenhum sinal
de origem. É como esquecer uma criança dentro de um barco
num rio deserto, até que uma das margens a acolhe. Anos
depois, desconfiei: um dos gêmeos era meu pai.
HATOUM, Milton. Op. cit. p. 73.
E) Personagens: Apesar da aparente concentração nas figuras masculinas dos gêmeos, são as figuras femininas que possuem o poder de decisão na
narrativa. A história é contada por um narrador masculino, mas a partir da memória de sua mãe, cuja visão faz parte do estrato inferior dentro da família.
A memória reside, portanto, nas figuras femininas,
principalmente Zana e Domingas. Cabe a Zana a verdadeira escolha dos destinos dos homens da família.
Seu apego pelo filho caçula conduz a ação ao limite
da disputa entre os dois gêmeos pela atenção, o carinho e o amor da mãe.
5. ESTRUTURA DA OBRA
A) Ação: A narração é realizada como uma colcha de retalhos através dos fragmentos ouvidos ou
vividos pelo narrador-personagem porque já se passaram 30 anos e quase todas as personagens já estão
mortas.
B) Tempo: Ambientada entre as décadas de 1940
e 1970, a narrativa focaliza Manaus entre a época da
Segunda Guerra, período de grande miséria e exploração norte-americana, comércio realizado por imigrantes libaneses, sírios e judeus marroquinos, que
1. Nael: É o narrador, que conta a história da família à qual pertence, mas como elemento intruso, já
13
que é filho ilegítimo de um dos gêmeos com a índia
Domingas. Sua posição na família é definida pelo
lugar em que vive – um quartinho nos fundos da casa,
junto com a mãe. A narrativa parece uma forma de
busca da própria identidade. Sua dúvida em relação à
figura do pai permanece durante quase toda a narrativa, despertando a curiosidade do leitor. Não consegue deixar esse vínculo e encontra na escrita uma
forma de libertação que parece uma nova escravidão,
porque se sente preso à memória da família.
2. Omar: É o caçula dos gêmeos. Indivíduo ousado, agressivo, boêmio, não gosta de estudar e só
faz o que lhe dá prazer. Sedutor incorrigível, ele apresenta um comportamento que pode ser considerado
imoral. Bebe muito e torna-se violento. Apesar de fisicamente idêntico ao irmão, sua personalidade é
oposta.
3. Yakub: Ao contrário do irmão, é esforçado.
Forma-se engenheiro pela USP. Assim como o irmão,
disputa um lugar na família e no coração da mãe.
Apesar de silencioso e pensativo, não é uma pessoa
tranqüila. Seu humor é oscilante. Sofreu um forte trauma ao ser separado de seu mundo e mandado para
uma aldeia no Líbano por cinco anos. Seu afastamento
para São Paulo e sua independência financeira confirmam sua capacidade de superação.
4. Zana: A mãe dos gêmeos; ela é uma libanesa
forte e determinada. Guarda por toda a vida os gazais
que Halim, seu marido, recitou para conquistá-la, símbolos da sua cultura de origem. São essas mulheres
que decidem os rumos da família, enquanto o destino
inexorável não lhes toma as rédeas das mãos.
5. Halim: Marido de Zana e pai dos gêmeos e de
Rânia, é patriarca da família de libaneses. Adaptou-se
muito bem em Manaus, onde começa como mascate.
Depois de casar-se com Zana, cuida por um tempo do
restaurante do sogro, mas depois monta um estabelecimento comercial pequeno. Não consegue conter
sua sensualidade em relação à esposa, e sente-se incomodado pela chegada dos filhos. Seu desalento resulta
do fato de ter perdido o amor de Zana para os filhos.
Boa parte das narrativas de Nael resultam das histórias
que ouviu de Halim.
6. Domingas: Mãe de Nael, é ela quem conta boa
parte da história dos gêmeos e da família ao filho.
Ela morre pouco depois de revelar o segredo da verdadeira paternidade de Nael.
7. Rânia: Irmã dos gêmeos, ela é bela e sensual.
Apesar de inteligente, deixa a faculdade e prefere ajudar o pai nos negócios, no que se sai muito bem. Recusa as propostas de pretendentes e prefere fechar-se
dentro do próprio quarto. Sua sexualidade fica quardada, porque parece realizar-se apenas com os irmãos
ou com alguém desconhecido.
Dois irmãos é um romance contemporâneo que
confirma a força narrativa e o domínio de linguagem
de Milton Hatoum. Sem dúvida, o autor está entre os
principais escritores da atualidade, como a crítica
positiva de leitores e profissionais da área tem demonstrado. Não se trata de um estreante, mas de um
autor maduro tanto no instrumento ficcional quanto
em sua postura diante do papel do escritor na sociedade brasileira. Milton é uma pessoa conscientemente crítica, um professor experiente.
A modernidade da obra está presente na linguagem
fluente, sem ser descuidada. O vocabulário confirma a
intenção do escritor de integração entre grupos sociais,
étnicos e profissionais que convivem numa Manaus em
ritmo de transformação. Expressões e termos da cultura
árabe misturam-se com o tupi e outras línguas, dando
equilíbrio ao romance. É uma característica realista da
obra essa mistura de línguas e expressões, já que pode
ser facilmente percebida nas ruas e no porto de Manaus.
Essa transculturação é o traço mais importante. Os nomes de peixes, frutos, plantas e comidas mostram essa
pluralidade lingüística e cultural, e os cheiros e gostos
de Manaus se destacam entre os outros sentidos que a
leitura de Dois irmãos desperta.
[…] O homem que deixara a clientela do restaurante
manauara com água na boca já era um exímio cozinheiro
na sua Biblos natal. Cozinhava com o que havia nas casas
de pedra de Jabal al Qaraqif, Jabal Haous e Jabal Laqlouq,
montanhas onde a neve brilhava sob a intensidade do azul.
[…] E quando visitava uma casa à beira-mar, Galib levava
seu peixe preferido, o sultan ibrahim, que temperava com
uma mistura de ervas cujo segredo nunca revelou. No restaurante manauara ele preparava temperos fortes com a
pimenta-de-caiena e a murupi, misturava-as com tucupi
jambu e regava o peixe com esse molho. Havia outros condimentos, hortelã e zatar, talvez.
HATOUM, Milton. Op. cit. p. 63.
A presença da metalinguagem é outro traço de
modernidade do romance:
Naquela época, tentei, em vão, escrever outras linhas.
Mas as palavras parecem esperar a morte e o esquecimento; permanecem soterradas, petrificadas, em estado latente, para depois, em lenta combustão, acenderem em nós o
desejo de contar passagens que o tempo dissipou. E o tempo nos faz esquecer, também é cúmplice delas. […]
HATOUM, Milton. Op. cit. p. 244.
O romance ambienta-se em Manaus e região, mas
nem por isso pode ser considerado regional, porque
os aspectos exóticos do espaço não formam o cerne
da narrativa, mas a ambiência espacial. O centro da
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Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
6.ESTILO DE ÉPOCA E
INDIVIDUAL
narrativa focaliza o psicológico — o desmantelamento
de uma família, por extensão de uma cidade, de um
país, no que se refere ao pós-guerra e à implantação
dolorosa de um regime militar na vida das pessoas.
Assim mesmo esse regional torna-se transcultural pela
inserção de usos e costumes, cheiros e gostos, vocabulário de outros lugares e regiões. O regional destaca e individualiza o local, a região amazônica, mas
universaliza-se. A Manaus de Milton Hatoum é real,
porém fruto da memória, da lembrança.
Antenado em seu tempo, o escritor denuncia a
modernização do país, que maltrata a população regional e procura massacrar os costumes regionais.
8.BIBLIOGRAFIA
HATOUM, Milton. Dois irmãos. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
MARTINS, Gilberto. “Garras da modernidade ferem Dois irmãos.” O Estado de S. Paulo, 18 jun. 2000.
A valorização dos elementos sensoriais é uma característica que se destaca de maneira fundamental na composição da obra Dois irmãos, de Milton Hatoum. De que
maneira esses elementos contribuem de maneira sugestiva
para a construção do cenário do romance?
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
7. PROBLEMÁTICA E PRINCIPAIS
TEMAS
Dois irmãos parece dialogar com a temática milenar
do desentendimento entre irmãos gêmeos já encontrada em
Esaú e Jacó, de Machado de Assis. Em entrevistas, Milton
Hatoum chegou a afirmar essa relação intertextual de Dois
irmãos com a referida obra de Machado de Assis. Entretanto, percebe-se que Yaqub e Omar agem de maneira mais
violenta e vingativa do que os gêmeos machadianos. O comportamento dos gêmeos aproxima-se mais de que passagem bíblica? Atribua o papel bíblico de cada um dos irmãos
no romance.
Um ponto importante para que se amplie ao leitor
a perspectiva de contextualização de Dois irmãos é
entender que as famílias de origem libanesa chegaram à Amazônia na primeira década do século XX.
O ciclo da borracha tornava a região rica e próspera,
mas sem abandonar o arcaísmo presente nas figuras
dos coronéis. Os primeiros imigrantes libaneses dedicaram-se ao comércio ribeirinho, por isso eram chamados de regatões. A ascensão socioeconômica veio
não só do comércio ambulante, mas também de estabelecimentos fixos no meio urbano.
Ao contrário da Manaus que enfrenta com dificuldade o desenvolvimento a qualquer preço, surge a
São Paulo da década de 1950:
Essa intertextualidade bíblica é mencionada numa carta. Quem é o autor da carta e a quem ela se destina?
(U. Amazonas) Um dos enunciados abaixo, feitos a
propósito do romance Dois irmãos, de Milton Hatoum, não
está correto. Assinale-o:
a) Omar, o Caçula, foge com uma mulher chamada PauMulato, e sua mãe, inconformada, persegue o casal até
fazer o filho retornar à casa paterna.
b) Antenor Laval, mestre no Liceu Rui Barbosa, apelidado de Galinheiro dos Vândalos, foi morto em abril de
1964, logo após o golpe militar.
c) Para conquistar Lívia, Yaqub passou a freqüentar o restaurante Biblos, de propriedade do viúvo Galib, pai da
moça.
d) Domingas, uma índia do rio Negro que servia como
empregada na casa de Halim e Zana, é a mãe de Nael,
o narrador do romance.
e) A rivalidade entre os gêmeos fica bem expressa no episódio em que Omar faz uma cicatriz no rosto de Yaqub.
[…] Com poucas palavras, Yaqub pintava o ritmo da
vida paulistana. A solidão e o frio não o incomodavam; comentava os estudos, a perturbação da metrópole, a seriedade e a devoção das pessoas ao trabalho. De vez em
quando, ao atravessar a praça da República, parava para
contemplar a imensa seringueira. Gostou de ver a árvore
amazônica no centro de São Paulo, mas nunca mais a
mencionou. […]
HATOUM, Milton. Op. cit. p. 59-60.
São dois brasis que se confrontam, numa espécie
de releitura modernizada de Os sertões, de Euclides
da Cunha. As dificuldades econômico-sociais do norte
e o progresso do sudeste.
A grande dúvida permanecerá ao final da leitura:
há um caso incestuoso entre a mãe e o filho Omar?
Ou entre um dos irmãos e a irmã? Assim como a
ambigüidade presente no melhor da obra machadiana, Dom Casmurro, o narrador deixa os leitores na
dúvida, mostrando índices de incesto, mas não os
confirmando ao final da narrativa. Sem dúvida, o incesto está presente, mas entre Nael e a tia Rânia.
(UFMS, adaptada) Com relação ao romance Dois irmãos, de Milton Hatoum, assinale a(s) alternativa(s)
correta(s).
a) Em torno da família de Halim, vivem diversos agregados, tais como o poeta Antenor Laval, o escroque Rochiram, o viciado em jogo Cid Tannus, o dissimulado
Zanuri e imigrantes recém-chegados do Líbano.
b) Halim teve quatro filhos: os gêmeos Yaqub e Omar, e
duas moças, Zana e Raina.
15
Trata-se do enfrentamento entre Halim e A. L. Azaz,
um grandalhão façanhudo que espalhara que Halim
se deitava com várias moças de família. Astucioso
diante da envergadura do oponente, Halim leva a melhor no duelo e, mesmo muito machucado, só não corta
a língua do adversário devido à intervenção da assistência.
e) Entre os papéis do poeta Antenor Laval, professor de
francês preso e assassinado pelo exército quando deflagrado o movimento militar de março de 1964, o narrador descobre as cartas apaixonadas que Rânia lhe
enviava. O final trágico do poeta denota a filiação do
autor ao movimento ultra-romântico inspirado na vida
e na obra de Lorde Byron.
(UFMS) O romance Dois irmãos, de Milton Hatoum,
recupera a história de uma família manauara ao longo do
século XX. O narrador afirma: “Eu tinha começado a reunir, pela primeira vez, os escritos de Antenor Laval, e a
anotar minhas conversas com Halim. Passei parte da tarde
com as palavras do poeta inédito e a voz do amante de
Zana. Ia de um para o outro, e essa alternância — o jogo
de lembranças e esquecimentos — me dava prazer.” (p.
265). É, pois, um registro ao sabor dos meandros da memória. A propósito do enredo dessa narrativa, assinale a(s)
alternativa(s) correta(s).
a) Halim casa-se com Zana, dela se separa e tornam-se
amantes; por fim, ela rompe o novo relacionamento,
retornando para Halim.
b) Rânia, filha de Halim e Zana, mantém um curto romance secreto com o narrador; ela, no entanto, permanece solteira, justificando sua opção pela necessidade
de se dedicar aos negócios da família.
c) O título Dois irmãos decorre dos gêmeos Yaqub e
Omar: o primeiro, introvertido, torna-se engenheiro
em São Paulo; o segundo, “o Caçula”, é farrista, não
trabalha, mas é o predileto da mãe. Os dois disputam
o amor da mesma mulher, Domingas, mas quem com
ela estabelece um romance secreto é Halim, o velho
sedutor.
d) Um episódio do romance é assim introduzido pelo narrador: “A briga que toda a cidade ficou sabendo, e se
lembrava, em tom de anedota, hoje tão distorcida, nas
versões fantasiadas pelo tempo e suas vozes.” (p. 152).
Expectativas de respostas
1. A composição do cenário da obra Dois irmãos é feita a partir
de elementos sensoriais que criam um cenário exuberante em
torno da Manaus dos anos de 1960. O narrador Nael capta
não apenas o que vê ou sente através do olfato, mas também
o que Halim e as demais personagens percebem do cenário
que as cerca. Os elementos sensoriais parecem preencher esse
cenário, recriando de forma exuberante tanto a beleza da paisagem ribeirinha da cidade e das proximidades de Manaus,
como a pobreza de alguns bairros e casas. O olfato é algo
muito vivo no transcorrer da narrativa, parecendo colocar os
leitores dentro de algumas cenas, como o cais, as margens do
rio Negro e as ruas de Manaus.
2. O comportamento dos gêmeos Omar e Yaqub aproxima-se
da passagem bíblica dos irmãos Caim e Abel, cujo ódio leva
à morte de Abel. Omar exerceria o papel de Caim, daí a
violência que demonstra contra o irmão em três ocasiões:
na adolescência, quando fere o irmão na face esquerda; na
maturidade, quando o agride violentamente na rede diante
de Domingas; e logo depois, ao tentar agredir o irmão no
hospital enquanto ele era socorrido. Yaqub teria o papel de
Abel.
3. A carta foi escrita por Yaqub quando a mãe tenta aproximá-lo
de Omar por meio do projeto de construção de um hotel em
Manaus. Ele sugere a violência bíblica da passagem de Caim
e Abel. O destinatário é Zana, mãe dos gêmeos.
4. c
5. c
6. d
16
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
c) Neto de Halim, o narrador é filho da doméstica Domingas e de Omar.
d) Centrado na vida de uma família de libaneses fixada
em Manaus, o romance narra a destruição da paz familiar devido à intempestividade de Omar e aos negócios
que Yaqub, formado em engenharia, empreende, investindo na construção de Brasília.
e) O livro não sugere relacionamento incestuoso, mas
deixa clara a paixão doentia de uma mãe pelos filhos a
ponto de arriscar a própria estrutura familiar para manter um dos filhos junto dela.

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